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Maurizio Morelli
RA 1428353
1
Maurizio Morelli
2
Banca Examinadora:
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3
I Bu
Andé a di acsè mi bu ch’i vaga véa,
che quèl chi à fat i à fatt,
che adèss u s’èra préima se tratour.
E’ pianz e’ còr ma tòtt, ènca mu mè,
avdai ch’i à lavurè dal mièri d’ann
e adèss i à d’andè véa a tèsta basa
dri ma la còrda lònga de’ mazèll.
4
SUMÁRIO:
Resumo/Abstract:...........................................................................................p.6
Introdução:…..................................................................................................p.7
5
Considerações finais..................................................................................p.38
Referências bibliográficas..........................................................................p.48
RESUMO:
Esse texto pretende verificar se, e de qual forma, a escrita de João Guimarães Rosa pode
ser considerada “plurilinguista” e “expressionista”. A análise pretende investir trechos do
romance Grande Sertão:Veredas, e consta de um estudo “estilístico” da linguagem de
Guimarães Rosa, com o objetivo de identificar as diferentes variantes e registros usados
pelo escritor mineiro, através de uma análise do tecido linguístico do romance, avaliando
a sua estrutura lexical, sintática, fonética, etc.. Atravessando a obra roseana, poderemos
comparar as tensões linguísticas que agiram na formação das literaturas italiana (de
onde os conceitos de “plurilinguismo” e “expressionismo” foram extraídos) e portuguesa.
PALAVRAS CHAVES: Guimarães Rosa; Gianfranco Contini; expressionismo;
plurilinguismo;
ABSTRACT
This text aims to analyze Jõao Guimaraes Rosa's works, having as a starting point the
notions of ”plurilingualism” and “expressionism”. Our analysis focuses on the romance
Grande Sertão: Veredas. This text is a stylistic study about Guimarães Rosa's language, to
verify his mechanisms of creation of word using different kinds of linguistic variations. We will
pay attention to the lexical, syntactical and phonetic structure of Grande Sertão's language.
Starting from Guimarães Rosa's works, we will compare some linguistic conficts that took part
in italian literature (where the notions of ”plurilingualism” and “expressionism” grews ) and
brazilian literature.
KEY WORDS: Guimarães Rosa; Gianfranco Contini; expressionism; plurilingualism;
6
INTRODUÇÃO
1
Entrevista de Günter Lorenz a Guimarães Rosa, em janeiro de 1965, disponível em
http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/GuimaraesRosa-1965.htm.
7
por Guimarães Rosa, abordado em textos críticos que tratam dos conceitos de
“plurilinguismo” e “expressionismo” na história da literatura ou em autores específicos
como Gadda, e em um ensaio dedicado ao Grande Sertão Veredas (“Um Faust
brasiliano”, incluído na colectânea “Altri Esercizi”), no qual Contini reconhece um lugar de
primeira importância do escritor brasileiro, ao lado de Joyce, Gadda e Céline, como
culminância de uma linha macarrônica, expressionista e pluirilinguista que partiu de
Folengo e Rabelais.
Por Contini, como releva Andrea Lombardi 2, os autores expressionistas não são
simplesmente autores dialetais ou periféricos: eles, como o próprio Guimarães Rosa, são
“artistas da palavra”, onde o texto, a palavra, tem muito mais importância do que o
referencial. A escolha de uma variante linguística não corresponde à um realismo
mimético, mas à vontade de representar, através de uma nova linguagem, uma ideia de
mundo novo e originalmente autoral.
Essa é uma análise comparativa que quer identificar a existência da mesma tensão
em contextos literários diferentes, sugerindo sintonias e unidades de intenções,
reconhecendo um caráter universal aos conceitos de plurilinguismo e expressionismo,
como o próprio Contini chegou a sugerir, ao transpor essas definições, identificadas no
estudo da literatura italiana, na análise de autores estrangeiros.
Uma análise comparativa de “artistas da palavras” que se desacostam da língua
“oficial” ou “padrão” (monolinguismo), preferindo o uso “macarrônico” do neologismo, do
dialeto, do socioleto e/ou de um próprio ideoleto, nos permite ir além do conceito de
“literatura nacional”, estabelecendo conexões universais entre autores que apostam em
uma escrita criativa e original.
2
Entrevista a Andrea Lombardi,em “Evento na Biblioteca Nacional discute o conceito de expressionismo e
suas implicações na tradução”,disponível em https://bookcenterbrazil.wordpress.com/2015/06/02/ Evento-na-
biblioteca-nacional-discute-o-conceito-de-expressionismo-e-suas-implicacoes-na-traducao/
8
CAPITULO I : PLURILINGUISMO E EXPRESSIONISMO LITERÁRIO
9
A partir dessa consideração, a crítica estilística de Contini enriquece-se com a análise
filológica das variantes autorais (que representam diferentes “paroles” do mesmo autor).
Através da crítica das variante autorais, a estilística torna-se “diacrônica” (pois as
variantes seguem-se no tempo) e “estrutural”.
As importantes críticas das variantes autorais em Ludovico Ariosto, Giacomo Leopardi e
Francesco Petrarca (Contini:1937;1947;1951) 5 permitem redefinir as relações entre autor
e obra; essa última não representa um resultado definitivo mas relativo, um resultado
temporário, in fieri, de uma tensão dialética permanente. As contribuições do
estruturalismo de Saussure permitem que Contini reconheça que cada nível de variante
represente um “sistema”, e que cada mudança provoque reações em cadeia. Assim a
análise “estilística” do texto nos leva do particular para o todo, através de movimentos
instáveis.
10
Guimarães Rosa. A ideia de plurilinguismo nasce do estudo do Dante Alighieri; a partir de
várias monografias, através do constante confronto com os dados, o autor consegue
identificar uma “linha plurilinguista” presente em toda a literatura italiana. Do estudo do
particular, é elaborada uma categoria “geral”, cuja aplicabilidade somente será
comprovada através de novas análises estilísticas e filológicas.
As antologias sobre a literatura italiana nos apresentam o trabalho de Contini como
historiador da literatura8; a escolha dos textos e dos autores representa a tentativa de
fundar um “cânone“ a partir da oposição entre a linha monolinguista e a linha
plurilínguista, oposição que torna-se o critério com o qual percorrer o desenvolvimento da
literatura italiana.
Na fundação desse “cânone” não colaboram somente as investigações cronológicas, a
partir dos autores mais antigos da tradição literária, mas é o olhar sobre os autores
contemporâneos que direciona o olhar sobre o passado. Contini parece apropriar-se da
ideia de Nietzche9 da utilidade da história pela vida, como modelo para refletir sobre o
presente:
8
Contini, Gianfranco, Letteratura italiana delle origini, Firenze, Sansoni, 1988; Gianfranco Contini,
Letteratura italiana del Quattrocento, Firenze, Sansoni, 1995, Gianfranco Contini , Letteratura dell'Italia
unita 1861-1968, Firenze, Sansoni, 1997.
9
Nietzche, Friedrich, Segunda consideração intempestiva, Relume-Dumará, Rio de Janeiro, 2003
10
“Ogni storia è storia contemporanea, suona un famoso teorema crociano. Se questa impostazione e
corretta, non cadrà necessariamente nell’anacronismo ogni tentativo di richiamarsi all’attualità per
illuminare eventi di culture sopite o remo-te. [...]Marcel Proust, voglio dire, serve di metafora per un
discorso non del tutto elementare su Dante” originlmente em Contini, Gianfranco: Dante come
personaggio nella Commedia, originalmente em “Approdo letterario”, janeiro 1958. Disponível em
Contini, Gianfranco: Varianti e altra linguistica (1938-68), Torino, Einaudi, 1970, p.335.
11
“Será licito [….]chamar reacionária uma cultura que, chegando a tomar consciência, recuse converter-
se em ação” (Tradução nossa de “Sarà lecito senza peccato di demagogico vocabolario chiamare
reazionaria una cultura che, giunta alla sua presa di coscienza, si rifiuti di convertirsi in azione“ em
Contini,Gianfranco , Dove va la cultura europea?, Macerata, Quodlibet, 2012)
11
Ungaretti ou Umberto Saba na poesia e Emílio Gadda, Antonio Pizzuto na prosa, Pier
Paolo Pasolini como poeta dialetal e romancista (essas relações, em alguns casos,
fortaleceram-se através de espistolários, como aquele com Gadda, Montale e Pizzuto).
E será a presença do Gadda que favorecerá o surgimento de outro termo analítico e
descritivo: o expressionismo. Contini usa a categoria de expressionismo desviando a sua
relação com a a vaguarda histórica que se desenvolveu na Alemanha e no norte da
Europa na primeira metade do século xx, para torná-la quase uma categoria universal,
cuja aplicabilidade será averiguada tanto na história da literatura italiana (com a
identificação de uma linha Gadda que parte do Dante cómico passando por Folengo, mais
recentemente, pela “scapigliatura” de Carlo Dossi e Giovanni Faldella) quanto na literatura
mundial, sugerindo interessantes paralelos além dos limites espaciais e temporais das
línguas e literaturas nacionais, entre Emilio Gadda, James Joyce, Ferdinand Celine e
Guimarães Rosa.
Podemos concluir afirmando que no modelo metodológico de Contini é possível
encontrar a convergência dos interesses do estilista, do linguista estruturalista, do crítico e
histórico da literatura, que realiza-se a partir do estudo do texto (ponto de começo de
qualquer análise literária) como microcosmo, cujo regras de funcionamento serão
desveladas pela capacidade do analista em relacionar o detalhe com o todo, as micro-
estruturas com a macro-estrutura.
No ensaio “Preliminari sulla lingua del Petrarca” , de 1951, Gianfranco Contini define
duas linhas que atravessam toda a história da literatura italiana: a linha monolinguista e
linha plurilinguista.
A elaboração do conceito de “monolinguismo” é um dos melhores resultados do método
de análise do Contini: a característica “monolinguista” da escrita de Francesco Petrarca é
identificada a partir da análise das variantes autorais do Canzoniere (Rerum vulgarium
fragmenta ), coletânea dos poemas, em italiano “vulgar”, organizada pelo próprio autor e
da qual existem diferentes testemunhos manuscritos (os principais são quatros, idiógrafos
12
e autógrafos12), a testemunhar a busca constante de uma versão definitiva. Tanto esses
manuscritos quanto as primeiras edições do Canzoniere nos permitem entender a
dinâmica do trabalho de Petrarca, acompanhando quase quarenta anos de pequenas e
minuciosas revisões estilísticas e novas redações.
Uma característica do Petrarca é a preocupação em melhorar e aperfeiçoar, sem
excessivas transformações, os mesmos poemas. Observando as correções (“limatio”)
parece evidente a tentativa do Petrarca em elevar a língua vulgar à “língua “literária” ,
perto do nível de perfeição do latim13: perdendo as características mais “populares”, a
nova língua “vulgar” adquirirá o estado de língua, e ganhará “classicismo” pela escolha de
uma tonalidade e de um léxico “médios”14.
O monolinguismo de Petrarca é essa aspiração a um modelo linguístico classicamente
perfeito, por isso fora do tempo (esse italiano “vulgar” não têm mais nenhuma relação com
a fala popular) e do espaço (Petrarca cria uma nova nova linguagem de base “toscana”
sem nunca ter morado na Toscana). Linguagem artificial, clássica e classicista, que exclui
as formas que não são consideradas “nobres”: a poesia do Petrarca caracteriza-se por
escolhas unívocas no léxico (depurado de tratos vernaculares, realistas ou exóticos), pela
reprodução dos modelos clássicos da literatura latina que o humanismo ia re-descobrindo,
por um trabalho paciente de pequenas correções, limagens, polimentos.
Para Contini, entre as mais visíveis atribuições que pertencem a Dante, a primeira é o
“plurilinguismo”. Contini escreve sobre Dante Alighieri em décadas diferentes, dedicando
15
“monografie” a quase todos os textos dantescos : apesar de uma aparente
descontinuidade temporal, as monografias apresentam um caminho “nítido”, “não
contraditório16, pois o olhar sobre uma ou outra obra é direcionado pela mesma
perspectiva, a perspectiva “plurilinguista” que encontrará na Divina Comédia a máxima
expressão.
Dante é o único, entre os “sumos” autores não contemporâneos abordados por Contini,
que não oferece variantes autorais; mas o seu impacto metodológico não varia, pois a
critica textual de diferentes obras de Dante permite, dinamicamente, encontrar e
12
Por “autógrafos” entendem-se textos escritos pelo próprio autor, por “idiógrafos” textos escritos por
outras pessoas mas sob o controle direito do autor.
13
Não é por acaso que a maioria da produção desse autor é em latim, cuja variante clássica
(principalmente Cícero e Virgilio) é considerada modelo de perfeição absoluta.
14
O léxico do Petrarca è intencionalmente restrito (as concordâncias registram apenas 3275 lemas).
15
Os textos de G.Contini dedicados a Dante Alighieri foram recolhidos no livro: Contini, Gianfranco, Una
idea di Dante, Torino, Enauidi,1978
16
Giunta, Claudio, Sui saggi danteschi di Contini, 2015, disponivel em
http://www.claudiogiunta.it/2015/11/sui-saggi-danteschi-di-contini/
13
acompanhar o caminho até a Comedia praticando aquela mesma exploração das
“estruturas”, através do vai e vem do micro para o macro. Assim, tanto o Dante lírico
como o Dante teorético17 desvelam um autor fortemente experimental, sempre em busca
de novas soluções estilísticas; um escritor cuja inaudita riqueza e heterogeneidade das
percepções poéticas acompanham-se “não somente com uma vivíssima inteligência geral,
mas também com um verdadeiro logos capaz de inventar conceitos e estruturar
pensamentos” (Contini:2007, tradução nossa)18.
O “plurilinguismo” de Dante é, por Contini, tanto o uso de diferentes registros e variantes
linguísticas, quanto a “poliglottia” dos estilos e dos géneros literários.
O uso da língua, por Dante, é a construção de uma nova língua, pois não é
testemunhado nenhum antecedente na nascente língua italiana tão ambicioso e ousado
como a Divina Comédia19. Assim Dante, na nova linguagem da Comédia, misturará a
linguagem “falada” em Florência nos séculos XIII e XIV com outras formas linguísticas,
aprendidas literariamente (a cultura linguística de Dante incluía tanto o latim quanto
quase todas as nascentes línguas românicas da Itália e da França) ou diretamente,
durante o exílio no norte da Itália. Encontramos na Divina Comédia variantes em quase
todas as quatorze novas línguas “vulgares” identificadas, na península itálica, pelo próprio
Dante no De Vulgari Eloquência, além de palavras de ascendência latina, grega e
francesa.
Significativa é a conotação sociolinguística, na direção do fiorentino arcaico (com
personagem como o Cacciaguida (1091-1148)) ou popular, principalmente nos
personagens do inferno. Contini (2007), analisando os neologismos de Dante, identifica
várias tipologias20.
14
che merda fa di quel che si trangugia21.
15
partida do ensaio crítico “L`Espressionismo letterario” é a definição do expressionismo
dentro dos limites geográficos e históricos da vanguarda histórica alemã: essa literatura
pode ser definida de “grito” e “destruição” e encontra formas expressivas originais e
violentas (grande influência teve, nas inovações linguísticas dos expressionistas alemães,
o Manifesto Futurista do Filippo Marinetti de 1909), marcadas pelo predomínios das
formas verbais sobre as adjetivais, simplificação e escarnificação linguística, e pela
recusa da retórica e da linguagem poética tradicional. Assim, a partir de definições de
“expressionismo” de teóricos alemães (que já tentaram transferir esse conceito para
outras literaturas, como a francesa), é possível encontrar uma definição de
“expressionismo” que vai além dos limites geográficos e históricos da vanguarda
(Contini:1977)23.
Para Elise Rchter24 o expressionismo é o “precário fruto de uma força descontrolada,
uma momentânea deformação solicitada por um movimento”, ou, em outras palavras,
seria “expressionista” qualquer meio de comunicação que manifeste uma tomada de
consciência do eu enfrentando um processo ou uma situação. Essas definições de
expressionismo dilatam os limites históricos e geográficos dessa categoria, podendo ser
nela incluídas todas as obras que testemunham uma relação conflituosa entre o “eu” e um
mundo evanescente; a percepção de um mundo em movimento não pode acontecer
através das palavras estáticas da gramática convencional, mas pela criação de uma
linguagem subjetiva, que persiste em movimento pela criação de novas dimensões
fonéticas, sintáticas e morfológicas; a própria mensagem não poderá ser interpretada
univocamente e estaticamente pelo leitor, pois é exigida por ele uma constante
participação interpretativa de um novo código e que determina uma reformulação das
tradicionais coordenadas de percepção
23
“Somente depois do fim da transformação do expressionismo histórico […] foi possível e legitimo usar o
vocábulo em forma generalizante” ,tradução nossa. Contini:1977, disponível em
http://www.treccani.it/enciclopedia/espressionismo_(Enciclopedia-del-Novecento).
24
Richter, E., Impressionismus, Expressionismus und Grammatik, in ‟Zeitschrift für romanische
Philologie", 1927, XLVII, pp. 349-371. Citado em Contini,Gianfranco:1977.
25
Gadda, Carlo Emilio, La cognizione del dolore, Milano, Garzanti, 2000, p.74.
16
[O simples fato que nos continuamos proclamando... eu, você...com as nossas bocas
impudentes...com a nossa avareza de constipados predestinados à putrefação...eu,
você...o simples fato...eu, você...denuncia a baixeza da comum dilética...demonstra
a nossa incapacidade de pregar nada de nada...pois ignoramos...o sujeito de
qualquer possível proposição....](tradução nossa)
26
Uma primeira recensão de Contini da obra gaddiana “ Il Castello Di Udine” è publicada na revista
“Solaria” em 1934.
27
Os escritos sobre Gadda, frutos de mais de quarenta ano de “amizade” encontram-se em Contini,
Gianfranco: Quarant`anni di amicizia: scritti su Emilio Gadda, Torino, Enaudi, 1989
28
As cartas estão disponíveis em Contini,Gianfranco; Gadda,Emilio, Carteggio 1934-1963, Milano,
Garzanti, 2009.
29
Contini, Gianfranco (org), Racconti della Scapigliatura piemontese, Einaudi, Torino, 1992. p.12. Primeira
edição: Contini, Gianfranco (org), Racconti della Scapigliatura piemontese, Bompiani, 1953.
17
espaço; expressa a necessidade de dividir, dentro da história da literatura, duas grandes
“linhas” estilísticas: “em um lado os “pasticheurs” com o seu “plurilinguismo” e
“expressionismo”, no outro lado os escritores monolinguistas, impressionistas, portadores
de experiências verbais sem violência, sem grito.
”Tenho tendência a uma brutal deformação dos temas que o destino acreditava que
30
poderia propor como coisas formadas e objetivas”: essa declaração poética do próprio
Gadda, na prefácio do livro “Il Castello di Udine”, nos apresenta um autor claramente
“expressionista” e “plurilinguista”, no qual a deformação representa a irrealizável tentativa
de pacificar uma visão de mundo em contínua crise e transformação.
O “pastiche” de Gadda não é uma simples imitação e re-combinação de elementos
alheios, mas têm que ser entendido como descarto da norma, como uso de material
heterogêneo tanto no plano diacrônico quanto no plano sincrônico, com o objetivo de
produzir uma evasão da norma comunicativa.
Contini (1963)31 nos oferece um elenco detalhado das deformações linguísticas na obra
de Gadda; pelo próprio Contini, o material de Gadda é tão irregular e eclético que é mais
fácil separar o “normal” do “deformado” do que o contrário. Aqui indicaremos apenas
alguns aspectos da linguagem do romance “La Cognizione del Dolore” :
- usos de formas gramaticais irregulares ou alternativas às oficialmente aceitas ( como por
exemplo o uso do artigo “li” em relação ao regular “il”)
- uso de variantes dialetais setentrionais que se opõem a variantes “literárias” e “rústicas”
da Toscana32 (pelo filólogo Dante Isella esse romance pertenceria à “linha lombarda”,
oposta à linha oficialmente italiana).
- uso da língua espanhola, que cria um bilinguismo paródico tanto com o italiano quanto
com o próprio dialeto lombardo, tornando-se, grotescamente, uma tentativa de exotizar o
vernáculo, ou seja a língua mais nativa e natural (La Cognizione del Dolore é ambientada
em um hipotético Maradagal, uma “Brianza33” camuflada de Sul América”).
- deformação da língua padrão pela língua “burocrática” ou pela língua técnica- cientista,
em expressões como “peptonizzare” (neologismo formado por derivação sufixal, com o
acréscimo do radical “peptoide” com o sufixo verbal “–are”= “peptoidizar”).
30
Podemos lembrar as palavras de Guimarães Rosa na entrevista com Gunter Lorenz (cit.nota
1):“Quando escrevo, repito o que já vivi antes. E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente”
31
Inicialmente em Contini, Gianfranco, Introduzione alla cognizione del dolore, em Gadda,Emilio, La
cognizione del dolore, Einaudi, Torino, 1963. Hoje em Contini,Gianfranco: Quarant`anni di amicizia:
scritti su Emilio Gadda, Torino, Enaudi, 1989.
32
Dentro da linguagem “toscana”, Gadda usa formas já reconhecidas como “oficiais” e outras já
percebidas como “arcaicas”
33
Território da região “Lombardía” que inclui os municípios de Milão, Como e Lecco,
18
- sintaticamente, é observável a predominância de formas ipotáticas e a adulteração da
ordem regular Sujeito - Verbo – Objeto, mas o escritor pode impor ao texto mudanças
rítmicas.
Essas deformações linguísticas relacionam-se com as desfigurações do gênero
romance e com aquela relação conflituosa eu/mundo que será abordada por Contini
(1963), em chave psicanalista, na “Introduzione alla Cognizione del Dolore”. Assim
descobrimos em Gonzalo Pitiburro (alter ego ou máscara literária do próprio autor) um
sujeito fortemente “neurótico”; Por Contini, trata-se de uma neurose que pré-existe e
persiste no romance; mas as motivações e justificativas dessa “neurose” seriam tão
insuficientes, fúteis, que tornam as ações (e até o presunto homicídio da mãe) grotescas e
desproporcionais. Uma vez derrubadas as motivações das ações, é o próprio tecido
narrativo que perde a própria justificativa, o próprio sentido: o resultado é a incompletude
de La Cognizione del Dolore (típico “anti-romance” do século XX) ao qual é negada uma
conclusão, o fechamento de um ciclo que ficará inevitavelmente aberto 34.Essa
incompletude deixa em aberto inúmeras questões sobre o significado daquelas imagens
de morte e de culpa.
19
outras literaturas, conduzida por “especialistas”. No ensaio “L`espressionismo letterario” o
crítico aborda escritores que pertencem a outras literaturas. Esses parágrafos parecem
propostas de pesquisa, sugestões fundamentadas de caminhos para a aplicação da
categoria de expressionismo.
O pequeno escrito “Un Faust Brasiliano”, publicado no jornal Corriere della Sera em
197036, pode também ser lido como uma hipótese interpretava: trata-se de uma
recensione (recensão) de dimensões resumidas nas quais são contidas algumas
observações sobre os aspectos mais evidentes da obra de Guimarães Rosa, a partir das
quais será aprofundada a nossa análise.
As obras de Guimarães Rosa consideradas são Corpo de Baile e Grande Sertão
Veredas, na tradução italiana de Emilio Bizzarri. Sobre a traduzibilidade de Guimarães
Rosa, Contini afirma que as dificuldades, numerosas, são “meramente idiomáticas, como
em Gadda, e não mais vastamente exegéticas” , como no James Joyce do Finnegans
Wake. Por Contini (1970), Guimarães Rosa pertence de direito à categoria dos grandes
escritores (o único de tão grande força que, até aquele momento, tinha nascido e
concluído a carreira dentro do século XX), pois o grande artista é medido pela “força da
chicotada que a sua inventiva dá a vitalidade, e a persistência e a duração com a qual e à
qual reage” (Contini:1970,p.318, tradução nossa). Essa definição parece uma paráfrase
da definição da Richter (pela qual seria expressionista qualquer meio de comunicação
que manifesta um posicionamento do “eu” em frente a um processo ou uma situação
(Contini:1977)) e nos permite identificar claramente Guimarães Rosa como escritor
expressionista.
A linguagem de Guimarães Rosa é por Contini relacionada à portada simbólica do
“Sertão”. A linguagem de Guimarães Rosa, rica de variantes regionais não é pitoresca,
exótica, pois esse regionalismo representaria uma reconstrução linguística do próprio
sertão através de uma língua íntima, vernacular. E a excepcional abundância com a qual
proliferam nomes de flora, fauna e ecologia, em um discurso predominado pela parataxe,
corresponde, simbolicamente, ao processo de dilatação representado pelo Sertão.
Por Contini, típica de Guimarães Rosa é essa “double face” da natureza e dos eventos.
Assim, a natureza do Sertão “é sujeita a um processo de dilatação e penetração, até
nomenclatório”: “grande sertão é o sertão na sua máxima extensão, é o sertão mais
sertão que se possa ter” (Contini:1970,p.319, tradução nossa). Contini verifica a sua
36
A recensão encontra-se hoje em: Contini, Gianfranco, Ultimi esercizi e elzeviri (1968-1987), Torino,
Einaudi, 1988, p.318-322.
20
hipótese de um “processo de dilatação e penetração nomenclatório” em trechos do
Grande Sertão como os seguintes:
“O sertão aceita todos os nomes: aqui é o Gerais, lá é o Chapadão, lá
acolá é a caatinga37“
“ Sei o grande sertão? Sertão: quem sabe dele é urubu, gavião, gaivota,
esses pássaros: eles estão sempre no alto, apalpando ares com
pendurado pé, com o olhar remedindo a alegria e as misérias todas...38”
37
Rosa, João Guimarães Grande Sertão Veredas, Rio de Janeiro, Nova Aguillar, 1994 p.701
38
Rosa, João Guimarães (1994) p.825
39
Rosa, João Guimarães (1994) p.851
21
CAPITULO II – PLURILINGUISMO E EXPRESSIONISMO EM GUIMARÃES ROSA
22
do Guimarães Rosa. Do Grande Sertão Veredas, por exemplo, Rocha (2008) lista
expressões como “Tão território que não foi feito para isso, por lá esperança não
acompanha”42, transformação quase literal do “Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate” 43.
Mas é principalmente na descrição do Liso do Sussurão que as relações intertextuais
entre as duas obras evidenciam-se:
Nessa descrição, por Rocha (2008), é clara a derivação do Canto XXVI do Inferno:
23
que os meus companheiros ficassem
tão desejosos de viajar que não conseguiria mais freiá-los (Tradução nossa)]
44
A ambivalência de Dante autor, narrador e personagem é também central no estudo de Contini Dante
come personaggio-poeta della Commedia, ( em Contini,1970) no qual Contini evidência o caminho para
Comédia como percurso, ao mesmo tempo, autobiográfico e intelectual).
45
Essa “construção”, no nosso ponto de vista, será pacífica e vitoriosa em Dante (“ Cada etapa e pausa
na sua viagem extraterrena é uma modalidade do “eu” antigo vitoriosamente atravessada”(Contini:1970,
tradução nossa ) mas não em Rosa, escritor expressionista, onde o conflito do “eu”, como veremos, está
somente e aparentemente resolvido no plano formal.
24
encontra no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) na Universidade de São Paulo (USP).
Esse material representa uma riquíssima biografia intelectual (em parte organizada pelo
próprio autor), de onde emergem as mais variadas correspondências: desenhos,
entrevistas, depoimentos, cadernos e cadernetas de registros, além de documentos de
natureza privada, cartas, postais, etc.
A crítica genética revela o lado inconcluso e incompleto da obra, possibilitando
visualizar os processos criativos dos autores a partir da rasura e do rascunho. Camargo
(2013)46 foca a sua analise sobre o material do Arquivo João Guimarães Rosa agrupado
sob a designação de Estudos para Obra47, nos quais visualiza três grandes usos e
funções: o registro das experiências quotidianas (na forma de diários e apontamentos
avulsos); o arquivamento de notas de leitura, pesquisas temáticas e estudos linguísticos;
a experimentação literária, “por meio de numerosas listas de elaborações textuais
fragmentárias e planos poéticos, ficcionais e ensaísticos” (Camargo,2013) . Gama (2014)
propões a visualização do material segundo três aspectos: “a acumulação enquanto
método, a listagem como forma e a citação enquanto desejo de apropriação do outro” 48
As pastas, cadernos, cadernetas da série Estudos para Obra contém, de acordo com
Cécilia De Lara (1987)49, vários tipos de estudos sobre os assuntos mais diversificados
(animais, armas à heráldica, navegação, tarô...). Há listas de diferentes comprimentos
(formadas por palavras, frases, provérbios, expressões) assim como estudos lexicais a
partir de vários dicionários, inclusive de dialetos e de línguas estrangeiras. Nos Estudos o
criado convive com o que foi lido ou ouvido. Assim, a citação literária ou o estudo
específico e criativo de uma obra50 acompanha o registro da linguagem oral.
A leitura dos Estudos para Obra nos demostra o caráter enciclopédico da “fusão
cultural” de Guimarães Rosa, pois a sua cultura atingia territórios mais vastos do que o
“grande sertão”, convivendo nela a tradição oral com tradição literária, escritores e
46
Camargo, Federico Antonio Camillo, Da montanha de minério ao metal raro: os Estudos para Obra de
João Guimarães Rosa, dissertação, USP, disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8151/tde-01072013-085851/pt-br.php, acesso 10/10/2016
47
“Nele vamos encontrar a extensa coleta de informações, o estabelecimento de relações entre os dados
obtidos e os propósitos literários, o exercício repetitivo das técnicas, os esboços fragmentários em que
se vislumbram as obras futuras, e a experimentação contínua dirigida para o aperfeiçoamento do
trabalho de escrita. Nesse sentido, ainda que ímpar, o termo “estudo” termina por se revelar
extremamente apropriado. (Camargo, 2013, p.19)
48
Gama, Mónica, O breviário criativo de Guimarães Rosa, em “Manuscrítica n. 26”, 2014, p.11
49
Lara de, Cécilia, Arquivo João Guimarães Rosa do I.E.B., disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/travessia/article/view/17407 , acesso:10/10/2016
50
Entre os de autores estudados em folhas avulsas dos Estudos para Obra, de acordo com o levantamento
de Camargo (2011), encontramos Omero (35 páginas, o mais estudado), Dante (20 páginas), Plotino,
LaFontaine, Émile Mochel, Camões, Victor Tissot, Euclídes da Cunha, Garcia Lorca, Bergson, Montesquie,
Eçaa de Queroiz, Auguste Comte, Lão Tse, Ortega Y Gasset, Nietzche,
25
linguagens de épocas e idiomas diferentes, a experiência pessoal de viajante ao redor do
mundo e no interior brasileiro: Rosa, como Dante, é “homo viator”, cujas viagens se dão
na vida privada e no percurso estético-literário que sintetiza as fontes mais distantes em
uma proposta poética original.
Os Estudos para Obra contém, nos volumes nos quais estão catalogadas as “Folhas
avulsa”, uma cartolina de 62 páginas com a inscrição autógrafa “Dante-Homero //
LaFonteine”; as divisórias internas classificam como “Dante” as páginas de 42 a 62.
Nessas páginas é investigada a Divina Comédia de Dante (do canto I ao XIII do Inferno),
através de transcrições e intervenções de Rosa, que consistiam em traduções, estudos da
língua italiana, exercícios poéticos. Acompanhando essas páginas é possível decifrar
quais aspectos da Divina Comédia interessavam a Guimarães Rosa.
Para Camargo (2011) a leitura de Dante por Guimarães Rosa foi muito rica e
aprofundada, pois o escritor tentou compreender aspectos históricos, linguísticos
(principalmente fonéticos e morfológicos) e exegéticos do poema. Assim, a leitura do
texto “Dante: introduction a l'étude de la Divine Comédie” do crítico francês Henri
Hauvette, permite que Guimarães Rosa se aproprie da noção de Dante de “sovrasenso”.
Essa noção de “sovrasenso” refere-se à leitura “anagógica”, sugerida por Dante (no
Convivio e na Epistola a Cangrande della Scala) como a quarta forma de leitura de texto
literário, depois da interpretação literária, alegórica e moral. Na idade média, a
interpretação “anagógica” do texto era aquela que desvelava interpretações escatológicas
sobre o futuro e o destino do homem, além do significado literal.
É interessante frisar que esse “sovrasenso” indica algo além da grafia, uma persistência
51
no futuro da palavra carregada de valores simbólicos, metafóricos, bíblicos . As
interpretações textuais sugeridas por Dante podem ter influenciado a percepção, em
Rosa, do caráter polissemântico e poliédrico da palavra:
26
Além do interesse e do aproveitamento do conceito de interpretação alegórica e
anagógica (“sovrasenso”53), Camargo (2011) nos apresenta Guimarães Rosa estudando,
em Dante, o constante uso de figura de linguagem e a sonoridade. As figuras de
linguagem que Guimarães Rosa registra com maior frequência, são a perífrase e a
antonomásia. Frequentemente, é possível encontrar propostas autógrafas de tradução
dessas figuras para o português, como por exemplo:
53
Camargo, 2011, p. 241.
54
“Tenho estudado Dante, no italiano; com as fartas notas de pé de página, não é difícil, experimente; e vale
a pena, se vale!, ali tenho descoberto ou re-descoberto muita coisas” carta a Alvaro Lins de 1949, em
Camargo (2011, p.239)
55
Camargo (2011, p.243) analisa as correspondências direitas entre a novela “Dão-Lalalão”, de Corpo de
Baile e as notas sobre Dante nos cadernos, citando também uma carta para Edoardo Bizzarri, tradutor
italiano da novela, onde são listadas diversas passagens do “Dão-Lalalão” construídas sobre versos de
Dante
27
Por Contini, o plurilinguismo de Dante é caraterizado pela “pluralidade de camadas
lexicais” (que é também “pluralidade de tons” 56): o autor escolhe uma base linguística viva
e falada (o fiorentino entre século XIII e XIV com sua instabilidade fonomorfológica e
morfosintática) com abertura para variantes regionais ou dialetais (aprendidas diretamente
pela literatura) e para outros idiomas literários (latim, grego, francês antigo).
Eu incluo em minha dicção certas particularidades dialéticas da minha
região, que são linguagens literárias e ainda têm sua marca original, que
não estão desgastadas e quase sempre são de uma grande sabedoria
linguística. Além disso, como autor do século XX, devo me ocupar do idioma
formado sob a influência das ciências modernas e que representa uma
espécie de dialeto. E também está à minha disposição esse magnífico
idioma já quase esquecido: o português dos sábios e dos poetas daquela
época dos escolásticos da Idade Média, tal como se falava, por exemplo em
Coimbra.(...). (Rosa, 1963)57
Percebemos (através dessa carta para o tradutor italiano Edoardo Bizzarri) que em
Rosa, como em Dante e em outros escritores propriamente “plurilinguistas”, o uso do
dialeto não corresponde à intenções pitorescas: ele é idioma vivo, não somente como
variante “oral” mas “literária”. Podemos citar outras observações de Rosa, na entrevista
com Gunther Lorenz:
De acordo com Coutinho (1983, p. 208)58, Rosa não limitou-se a reprodução de uma
linguagem falada no sertão do Brasil, mas acrescentou “à síntese já existente” com a “sua
própria síntese”, criando uma estrutura sintática peculiar, e um léxico riquíssimo, que inclui
neologismos, estrangeirismos59, “revitalização do antigo português”, variantes indígenas e
56
Contini, 1970, p.341
57
Rosa, João Guimarães Rosa, Carta a Emílio Bizzarri, 1963, em Arquivo João Guimarães Rosa, USP
58
Coutinho, Eduardo F. (Org.). Guimarães Rosa: Coletânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira;
Brasília
59
Clarice Nadir von Borstel, conclui que “poucos foram os empréstimos linguísticos utilizados no
28
crioulas. A linguagem aparentemente “sertaneja” do Grande Sertão sintetiza a
“pluralidade de camadas lexicais” existentes no texto, que são desveladas tanto pelas
declarações poéticas de Rosa quanto pelos exercícios e traduções de outros autores nos
cadernos do arquivo.
Por Contini os autores “plurilinguistas” são, como Dante, escritores “neologistas”; o
neologismo é uma das características mais evidentes do estilo de Guimarães Rosa e já
existem vários estudos críticos sobre essa prática na sua obra. Para Mendes (1991:8), a
neologia "se define pela possibilidade de criação de novas unidades lexicais, novas
formas de significante e significado, em virtude da existência de um mecanismo de
produção incluído no sistema lexical”.
A linguística geralmente separa os neologismos em três famílias: os neologismos
fonológicos (aqueles em que a nova palavra surge de uma combinação inédita de
fonemas), semânticos ( atribuição de um novo significado a uma palavra já existente) e
“sintáticos”. Nessa última família encontramos novas palavras formadas pela combinação
de signos preexistentes no léxico da língua; por Mendes (1991) 60, elas criam “signos
relacionados, ou seja, relativamente motivados quanto à relação significante/significado”
através de processos morfosintáticos (derivação), sintagmáticos (aglutinação), mistos61 ou
estilísticos62.
Mendes (1991) identifica, na formação de novas unidades linguisticas do Grande
Sertão, o predomínio de neológismos a partir de signos preexistente. Mais de 80%, das
942 ocorrências neológicas em Grande Sertão: Veredas, são constituídas por processos
morfosintáticos, ou seja “por derivação; prefixação, semiprefixação, sufixação,
parassíntese, derivação regressiva e por composição”. A metade desse neologismos
morfosintáticos são criados por “processos roseanos”: processos sui generis, ou seja,
não-previstos pelas regras de formação lexical 63. Mendes identifica dezesseis tipologias
desses “processos roseanos”64.
romance Grande Sertão:Veredas.” Borstel, Clarice Nadir von, “Os empréstimos linguísticos em Grande
Sertão: Veredas” , 2009, disponível em https://pendientedemigracion.ucm.es
/info/especulo/numero42/veredas.html, acesso 10/10/2016.
60
Mendes, Eliana Amarante de Mendonça. A Tradução dos Neologismos de Grande Sertão:Veredas ,
1991. Tese (Doutorado em Filologia e LinguÌstica Romanicas) , USP, 1991 .
61
“Formação de vocábulo impressivo, expansão de sigla lexicalizada, expansão de redução, expansão de
empréstimo” (Mendes, 1991)
62
“Criação gráfica, redobro, aglutinação estilística, criação forjada de expressões sintagmáticas coesas,
cruzamento de palavra, redução” (Mendes, 1991)
63
Mendes (1991, p.24)
64
PR1- O uso de afixos improdutivos, ou arcaicos, como, por exemplo, o sufixo formador de aumentativo
-az, em malvaz.PR2 - O esvaziamento semântico de afixos, utilizados para conferir à lexia um
significante 18 fonologicamente mais rico, (por exemplo, o prefixo de-, em deamar, e o sufixo -al, em
29
Em Grande Sertao:Veredas estão presentes não somente neologismos cujo processo
de criação envolve significante e significado, mas também neologismos que agem
somente a nível de significado: trata-se dos neologismos semânticos, pontualmente
identificados por Leonel (1997)65, que estuda as relações entre verbo, objeto e sujeito.
Um exemplo de neologismo semântico na ”relação verbo-objeto” (SV + SN) é em:
Será que fosse para o urucuiano Salustio no primeiro descuido meu me
amortizar ?(Rosa,1994 p.489)
30
Zé Bebelo é interessado em aperfeiçoar o “falar muito nacional” (que causa o encontro
com Riobaldo, “moço professor”), pela ambição em se tornar político, “deputado”; a
linguagem é meio de ascensão social e de exercício de poder. O poder da fala é
confirmado em vários passos do livro, como no seguinte diálogo entre Riobaldo/Urutú-
Branco e os “urucuianos” sobre Zé Bebelo:
À fé, quando eu mandasse uma coisa, ah, então tinha de se cumprir, de qualquer
jeito. - “Tenho resoluto que!” – e montei, com a vontade muito confiada. Dali a
gente tinha logo de sair, segundo ã regra exata. Estradeei. Nem olhei para trás. Os
outros me viessem? Cantava o trinca-ferro. Uma arara chiou cheio; levou bala,
quase. Atrás de mim, os cabras deram vivas. Eles vinham, em vinham. Eu contava,
prazido, o tôo dos cascos.
(Rosa,1994,p. 628)
31
O contraste entre a fala grandiloqüente dos poderosos e a fala dos humildes representa,
por Willi Bollé68, o programa do romance, que é “ uma montagem em choque de dois
universos linguísticos e sociais conflitantes”. (Bollé, 2002) O protagonista/narrador ,
enquanto jagunço literato, é o ponto de encontro entre essas duas esferas, pois conhece,
pertence e atravessa, ao longo do romance, esses universos linguísticos e os campos de
tensão existentes entre eles.
Outra característica do plurilinguismo dantesco identificado por Contini, que pode ser
constatada no Grande Sertão:Veredas éa “poliglotia dos estilos”. Dante é preocupado
com a elaboração de uma teoria de literatura na qual encontramos, de acordo com
tradição retórica antiga e medieval, a separação dos estilos em “trágico” (“superiorem
stilum”) , “cômico” (“inferiorem”) e “elegíaco” (“stilus miserorum”); essa divisão é superada
por Dante (e essa é uma revolução teórica na literatura ocidental) com a proposta de
intercomunicabilidade entre todos os estilos através do estilo “cômico” , no qual podem
elevar-se o estilo mais humilde e abaixar-se o mais alto e sublime. Essa ideia de
“Comedia” como presença de vários níveis estilísticos, autoriza o uso e a mistura de
todos os gêneros literários (tragédia, sátira, comédia, comédia elegíaca,etc.) da época 69.
A coexistência de vários estilos é um recurso que permite que Dante, que é autor,
narrador e protagonista/espectador, possa alternar momentos descritivos e realistas
(denotativos) com intervenções líricas e emocionais (dos sofredores ou beatos
personagens encontrados ou/e do autor/personagem condolente); o diálogo privilegiado
com Virgílio e, depois, com Beatrice, possibilita a racionalização das emoções,
esclarecendo dúvidas e afinando a compreensão racional e filosófica; sincretizando as
principais teorias filosóficas e teológicas da idade média, a especulação filosófica,
racional (guiada por Virgílio) permite a purificação da alma de Dante, que, no Paraíso,
será alcançada pelo influxo divino, entendido como irradiação de luz, pela mediação da
teologia (Beatrice).
No Grande Sertão:Veredas encontramos uma estrutura muito parecida, determinada
principalmente pela função do “homem-viator” como narrador e protagonista, que a partir
da mesma descrição autobiográfica dos acontecimentos tenta alcançar uma verdade mais
profunda. Assim a descrição realista das guerras acompanha o desenvolvimento
68
Bolle, William, Representação do povo e invenção de linguagem em Grande Sertão:Veredas,2002,
disponivel
em://www.ich.pucminas.br/cespuc/Revistas_Scripta/Scripta10/Conteudo/N10_Parte01_art28 .pdf,
acesso 10/10/2016
69
Russo, Vittorio, La Commedia, em Borsellino, Nino (org.), Storia generale della lettura italiana, vol II,
Milano, Motta, 2004, p.110-123.
32
psicológico e sentimental do autor , cuja confissão é apresentada usando o monólogo
interior; como na Comédia, no Grande Sertão: Veredas é necessária a intervenção de um
interlocutor privilegiado, com o qual o narrador cria uma relação dialética e especulativa,
para entender a existência do bem e do mal.
Os interlocutores privilegiados de Riobaldo são pessoas que caraterizam-se pela
“fineza de atenção”, ou por “nunca falar vazio” e que por isso terão o privilégio de penetrar
nos segredos mais profundos que o autor desvela através do monólogo interior. São
compadre Quelemem e o hipotético leitor, as únicas pessoas as quais o autor expõe a
sua intimidade, pedindo ajuda para compreender verdades mais profundas e
indecifráveis:
Existe uma diferença notável entre os resultados alcançados nessa busca da verdade.
Enquanto Dante, ajudado por Virgilio e Beatrice, realiza positivamente a sua viagem,
alcançando os níveis mais altos do paraíso e a purificação, Riobaldo não consegue,
dentro do romance, as respostas que está buscando, deixando em aberto as questões
filosóficas e teológicas que motivam a narração, pedindo a intervenção e a ajuda do leitor:
33
interlocutor externo, para costurar essa laceração fora do livro. A impossibilidade de
alcançar uma solução dentro do tempo narrativo, pela relação conflituosa entre o “eu” e
um mundo evanescente, carateriza a escritura “plurilinguista” de Guimarães Rosa como
“expressionista”.
34
Entre as características do romance tradicional, transgredidas por Rosa, Bruyas
evidência o tratamento do enredo: temos uma ação que acontece em um momento e um
lugar definidos, mas a reconstrução pelo narrador é rica de interrupções digressivas e
cronológicas71, pois o narrador ainda participa da desordem que tenta organizar (uma
última organização é deixada para o leitor/ interlocutor da confissão).
Os elementos épicos (como os da cavalaria) utilizados por Rosa, são esvaziados de
significado e de sentido, pois as lutas são acompanhadas para uma impressão de
inutilidade. Assim, a batalha final, no Paredão, representa a “própria ilustração do
absurdo”: nessa batalha Riobaldo percebe a inutilidade, o não sentido de seus esforços:
“o rosto odioso do mal e o rosto luminoso do bem e do amor são apagados ao mesmo
tempo. Nada mais há que o silêncio nas ruínas – esperando os urubus – e o vazio.”
(Bruyas,1983).
Em La Cognizione del dolore de Gadda, Contini tinha identificado a mesma perda e
esvaziamento de sentido nas ações que regem o enredo. No romance de Gadda as
motivações da “neurose” são insuficientes, fúteis, pois acontecem em um universo
humano grotesco, caracterizado pela estupidez e insensatez, de mesma forma que a
“aporia teológica” de Riobaldo é averiguada em um universo humano violento, sem
sentido, sem redenção: “ Existe é o homem humano. Travessia.”(Rosa, 1994, p.608).
O próprio Gadda declara a possibilidade de reconhecer, na Cognizione
35
autor, perturbado e desacreditado 73. Para Gadda, a guerra é o resultado das aspirações,
mesquinhas e insignificantes, da pequena burguesia da Itália fascista, grotescamente e
cruelmente representada (mas camuflada em um improvável estado sul-americano 74 de
“Maradagal”) no romance. Depois da conclusão histórica e natural, por auto-implosão
através da guerra, desse universo ideológico cultural, o autor não consegue encontrar
uma conclusão apenas formal para o romance.
Bruyas (1983) relaciona a concepção da violência no Grande Sertão: Veredas com a
experiência pessoal do autor na Alemanha durante a Segunda Guerra, onde “ como
diplomata, observou, de modo bastante direto, o espetáculo de uma guerra terrível e de
uma sociedade dominada pela violência”. As observações sobre a guerra contidas no
75
chamado “Diário Alemão” têm correspondências com a descrição da violência em
Grande Sertão. No próprio Bruyas essa derivação não é exclusiva, pois, como para todos
os elementos roseanos, as relações são múltiplas e variadas: assim na concepção do
Grande Sertão teria concorrido também a meditação sobre o fato histórico do cangaço.
Não faltam textos críticos que tentam contextualizar o Grande Sertão:Veredas na
história do Brasil, propondo contraposições entre o mundo da lei e o mundo “sem” lei do
jagunços, entre cultura arcaica e moderna, ou tentando encontrar em alguns personagens
a símbolos de elementos contrastantes da República Velha, como em Zé Bebelo ( que no
discurso e na promoção da sua auto-imagem representa os anseios de modernidade da
Velha República) ou nas preocupações lucrativas do Seu Habão. A própria re-inclusão
social de Riobaldo acontece através da transformação do chefe dos jagunços em
latifundiário76.
Quaisquer que sejam o mundo ou os mundos que estimularam as ambientações do
Grande Sertão e da Cognizione, os dois autores compartilham uma percepção
contraditória do mundo, não-linear, e recusam o mito mentiroso de uma “monolíngua”,
manifestação de uma mono-cultura e de uma identidade unívoca.
73
Gadda, 2000, p.197.
74
Interessante relevar que Gadda, como engenheiro civil, trabalhou em Argentina na década de 1920.
75
O original desse “Diário” não se conhece; a cópia mais conhecida encontra-se no Arquivo Henriqueta
Lisboa do Acervo de Escritores Mineiros da Universidade Federal de Minas Gerais. O diário cobre o período
em que Guimarães Rosa viveu em Hamburgo, entre 1938 e 1942.
76
“A pesar da falta de datas explícitas na narrativa, há discretos subsídios que permitem situar os
episódios narrados no contexto da República Velha.” Maia, Joao Robero, Sobre a crítica de João
Gumarães Rosa, disponivel em https://pendientedemigracion.ucm.es
/info/especulo/numero37/guimaro .html, acesso 11/10/2016
36
descolorida, tosca, repetitiva, como um pequeno avental de cozinha para arrumar
a louça é, posso afirmá-lo, também uma língua: uma “modalidade” do ser. Mas ela
não pode tornar-se a lei, a única lei. (Gadda, 1942, tradução nossa)77.
O que mais impressiona é como, a partir dessas crises, vividas em contextos históricos,
ao mesmo tempo, distantes e próximos, os dois autores optam por soluções poéticas e
estilísticas muito parecidas, propondo uma ideia de literatura alimentada pelo contraste,
a contradição, o indecifrável.
Como verificamos, os dois são escritores plurilinguistas, macarrônicos, que criam
novas linguagens literárias a partir do contraste expressionista (linguístico e sociológico)
entre uma variante regional e sociolinguística dominante (a variante mineira dos jagunços,
em Rosa, e o lombardo, in Gadda) e outras variantes: outras línguas vernaculares,
linguagens técnicas, variantes cultas e literárias, latinismos, idiomas estrangeiros e
estrangeirismos, socioletos e idioletos.
Nos dois autores, a mistura macarrônica é acompanhada pela criação de neologismos,
semânticos e morfosintáticos. Tanto Gadda quanto Rosa experimentaram e transgrediram
o gênero romance, criando formatos de obras não conclusas, não solucionadas,
representação desse caos universal onde o enredo e as suas ações perdem seus
significados, esvaziam-se.
Essas escolhas são, corajosamente, a favor da liberdade, da pluralidade e dos
indivíduos:
Pode acontecer que essa mania de ordem force alguns em podar das plantas
todos os galhos rebeldes da liberdade e do luxo. Declaro, ademais, que não
pertenço a nenhuma confraria de podadores. A minha caneta está a serviço da
minha alma, e não é serva ou doméstica da senhora Cesira ou do senhor
Zebedia, que querem extrair dos seus breviários “a língua em uso”, a partir do
uso que eles mesmos, pintas-unhas ou alfaiates de suspensórios, fazem
(Gadda, 1942) .
77
Gadda, Carlo Emilio, Lingua letterária e língua d`uso, 1942, disponivel em
http://www.gadda.ed.ac.uk/Pages/resources/essays/lingualetterariauso.phpa
37
onde as transformações políticas, econômicas e sócio-culturais globais estão em uma
fase de aceleração que parece irreversível, ameaçando tanto a liberdade e a criatividade
do indivíduo quanto a sobrevivência de culturas riquíssimas liquidadas como “arcaicas” e
“superadas”. As soluções poéticas encontradas por Guimarães Rosa e Emilio Gadda,
escritores plurilinguistas e expressionistas, podem nos ajudar a desmascarar as fraudes e os
enganos, nas formas de pensar e de falar, dessas tendências uniformizantes e globalizantes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
“Cada língua guarda em si uma verdade que não pode ser traduzida.”
(Rosa, Entrevista de Günter Lorenz a Guimarães Rosa,196578)
Uma “função Gadda” na literatura italiana foi facilmente percebível por Contini,
observando as tensões linguísticas existentes na península italiana e os seus reflexos na
história literária. É como se na literatura italiana Gadda fosse alcançado depois de um
78
Entrevista de Günter Lorenz a Guimarães Rosa, em janeiro de 1965, disponível em
http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/GuimaraesRosa-1965.htm.
79
Contini,Gianfranco, 1977, Disponível em http://www.treccani.it/enciclopedia/ espressionismo_
(Enciclopedia-del-Novecento):
38
percurso por degraus. O plurilinguismo e o expressionismo de Gadda encontrou um
terreno fértil na península itálica, onde verificamos, desde as primeiras experiências
literárias, a existência de uma constante tensão conflitante entre tendências clássicas e
anti-clássicas, entre “mono” e “pluri” linguismo. Sobre as tentativas centralizadoras agem
forças centrífugas, que subvertem os gêneros literários tradicionais e propõem a criação
de uma linguagem alternativa, podendo contar com uma riquíssima variedade linguística,
principalmente dialetal.
[...]a interpretação de Gadda realizada por Contini permite reler toda a tradição
literária com uma perspectiva descontínua, que curiosamente aproxima Dante a
Gadda, numa ponte que passa por Giambattista Basile, o mestre do expressionismo
barroco e, também, pelo macarrônico Teofilo Folengo, autor do monumental Baldus e
por Ruzante, cultor da língua veneta e muitos outros autores de uma tradição
revisitada e subvertida. (Lombardi, 2015, p.6)80
39
propunham uma língua “literária” clássica como modelo) e os “românticos” (que eram
favoráveis a usar uma “koiné” inter-regional, mais próxima da língua em uso entre as
classes cultas, depurada dos traços mais dialetais). Nesse escritor, como em Ruzante, o
dialeto é língua escolhida para apresentar o contraste, não somente lingüístico mas
principalmente social e cultural, entre o submundo dos “humilhados e ofendidos” e as
classes dominantes. Exemplar é o poema “Desgrazzi de Giovanni Bongee” , confissão de
Giovanni, um pobre atendente de drogaria, que será interrogado e condenado,
injustamente, pela ronda militar depois de ter descoberto um soldado francês seduzindo a
sua esposa.
A “questione della língua” perpassa a história da península italiana desde o surgimento
das primeiras manifestações literárias, nascidas em um território politicamente
fragmentado (até 1870), entre os limites das cidades/estados da Baixa Idade Média e do
Renascimento, ambiciosos centros políticos e culturais. Nesse contexto, é logo verificável
o surgimento de literaturas regionais: como afirma com propriedade Contini (1984, p.611)
a literatura italiana é “a única grande literatura nacional cuja produção dialetal é
visceralmente, inseparavelmente incorporada com o restante do patrimônio”
82
As classes cultas e letradas cresceram e se alternaram em um contexto, no mínimo,
de bilinguismo, entre o dialeto local (verdadeiro idioma, língua do dia dia mas também
literária, com todas as suas variantes sociais 83 e culturais) e a variante “literária” italiana,
modelada mais ou menos rigorosamente sobre o prestigioso “toscano” de Florença (as
vezes preferindo o classicismo de Petrarca e Boccaccio, as vezes incluindo a linha mais
“vulgar” de Dante e Macchiavelli).
Em 1925, em um ensaio de importância revolucionária na história da crítica literária
italiana, intitulado “La Letteratura dialettale riflessa”, Benedetto Croce diferenciava a
literatura dialetal reflexa e literatura dialetal espontânea84. A literatura dialetal reflexa
“supõe, como antecedente e ponto de partida, a literatura nacional” 85: não se trata de uma
língua “mimética”, “realista”, mas construída em tensão e em diálogo, mais ou menos
polêmico, com a língua oficial. Os escritores não são ingênuos representantes de uma
82
Pelo menos até o final do século XX, quando o numero dos italianos bilinguas (italiano e dialeto) é
superado pelo numero dos “unilinguistas” italianos.
83
Os dialectos, como toda as outras línguas, apresentam variações sociolínguisticas entre a variante
“camponese” e aquela das elites economicas e culturais.
84
A literatura dialectal espontânea, cuja literatura é principalmente oral ou popular (cantos, fabulas), e
precede o desenvolvimento de uma literatura nacional, é a linguagem do dia dia, de quem não percebe
a própria língua como “dialecto” pois não têm acesso a variante nacional.
85
Croce, Benedetto, La Letteratura Dialettale Riflessa em Filosofia, Poesia, Storia, p.256-265, Ricciardi,
Napoli, 1951.
40
língua “natural”, mas constroem e propõem uma nova linguagem, funcional para contestar
uma visão de mundo unitária e pacífica. 86
No contexto, aqui brevemente resumido, de tensão linguística, perene na literatura
italiana, entre língua “nacional” e literatura dialetal reflexa, não são tão surpreendentes as
originais escolhas linguísticas de Gadda (ou do quase contemporâneo Pasolini, que
compartilha com Gadda a mesma vocação “expressionista” ).
Seguindo o modelo de Contini, a tentativa de identificar uma “função Rosa” na literatura
brasileira leva a reflexão para as tensões linguísticas existentes no Brasil, e sobre o
possível reflexo exercitado por essas tensões, sensivelmente ou imperceptivelmente, na
literatura nacional antes de Guimarães Rosa.
Bem mais revolucionárias parecem as escolhas linguísticas de Guimarães Rosa dentro
de uma tradição literária que não contava, como a italiana, com um consolidado corpus
em dialeto reflexo. Em Rosa é visível a construção de uma linguagem através da criação
de uma própria síntese a partir do idioma sertanejo; o semi-literato Riobaldo é o anel que
junta o universo linguístico dos humildes jagunços e o dos poderosos através de “uma
montagem em choque de dois universos linguísticos e sociais conflitantes” 87. Na invenção
de uma linguagem que possa ser entendida por um hipotético leitor/interlocutor, Riobaldo
é colocado em uma posição demiúrgica, pelos conhecimentos literários e gramaticais
aprendido na escola no Curralinho (e não em uma grande cidade), onde Mestre Lucas
ofereceu-lhe as ferramentas que permitem a literalização e a criação dessa novo idioleto
“mestiço”, rico em neologismos e soluções originais :
Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal. Sou muito pobre coitado.
Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração.
Não é que eu esteja analfabeto. Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e
palmatória. Tive mestre, Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as
operações, regra-de-três, até geografia e estudo pátrio. Em folhas grandes de papel,
com capricho tracei bonitos mapas. Ah, não é por falar: mas, desde o começo, me
86
Giacchino Belli (1791-1863) parece bem consciente do caráter “reflexo” da sua escritura: “ No meu
trabalho eu não apresento a escrita do povo. O povo não têm escrita; e eu não a procuro no povo […]. A
escrita é minha, e com ela tento imitar a palavra do povo. Por isso, eu uso o valor de signos conhecidos
para expressar sons desconhecidos”, tradução nossa de: ”Nel mio lavoro io non presento la scrittura de'
popolani. Questa lor manca;ec né in essi la cerco [...] La scrittura è mia, e com essa tento de imitare la
loro parola. Perció del valore de' segni cogniti io mi valgo ad esprimere incogniti suoni. “. Belli,
Gioacchino, Sonetti Romaneschi, Einaudi, Torino, 1966, p.11
87
Bolle, William, Representação do povo e invenção de linguagem em Grande Sertão: Veredas,2002,
disponivel em://www.ich.pucminas.br/cespuc/Revistas_Scripta/Scripta10/
Conteudo/N10_Parte01_art28 .pdf, acesso 10/10/2016
41
achavam sofismado de ladino. E que eu merecia de ir para cursar latim, em Aula
Régia – que também diziam. Tempo saudoso! Inda hoje, apreceio um bom livro,
despaçado (Rosa, 1994, p.14).
E essa linguagem aponta a uma tensão linguistica, onde os termos de oposição não
são somente a colônia e Portugal, mas as próprias “línguas brasileiras”, cuja
potencialidades literárias reflexas são finalmente e inovadoramente exploradas.
Tratam-se de tensões linguísticas radicadas na nova terra. O contraste linguístico que
tenciona o Brasil é a resultante do contraste étnico, entre as matrizes lusa, tupi e africana.
Nesse contraste étnico se insere uma tensão interna à língua portuguesa, idioma do
grupo sócio-cultural dominante. Esse grupo dominante chegará no Brasil em variados
momentos, ocupando diferentes funções e posições dentro do sistema sócio-econômico
colonial; assim podemos identificar o surgimento de idiomas funcionais às necessidades
desse sistema.
O idioma oficial é a língua da lei e da literatura, da elite política e cultural e sua difusão é
principalmente urbana, nos centros que mantinham uma ligação política, econômica e
cultural com Portugal. A língua geral foi um idioma artificial, criado e impulsionado pelos
jesuítas, para transmitir os valores da religião cristã aos índios levados para as missões.
José Arial Castro (2007)88 identifica, alem da língua dos jesuítas e a da elite cultural
principalmente urbana e costeira, uma outra língua dos colonizadores, diferente, mas
“sem a menor solidariedade com o povo da terra na qual nasceram” .
Trata-se da língua dos aventureiros como João Ramalho e Diógo Alvares Correia, o
Caramuru, cujo descendentes caboclos, conhecidos como mamelucos, tornam-se
grandes povoadores do interior brasileiros. João Ramalho e Caramuru são o ponto de
partida para formação étnica social brasileira, que se realizará, por Darcy Ribeiro, através
da des-indianização dos índios e da indianização dos portugueses, pelo surgimento de
figuras mestiças como o caipira e o sertanejo.
O processo de formação desses novos povos, por Castro (2004), é acompanhado pala
formação de duas novas grandes variedades linguísticas brasileiras, os dialetos caipira
(paulista) e sertanejo (baiano). Trata-se de idiomas com funções práticas, que respondiam
aos interesses individuais de quem lucrava com a exploração dos recursos encontrados
no interior do brasil; por isso nunca tiveram ambições literárias. Trata-se de línguas com
88
Castro, José Ariel, Formação e desenvolvimento da língua nacional brasileira, em Coutinho, Afránio, A
literatura no Brasil, Global Editora, São Paolo, 2004,p.270.
42
antecedentes lusos que precedem a formação da língua portuguesa em Portugal 89. Isso
explica a resistência, dentro desses dialetos, de formas “arcaicas”, nas quais, por Rosa,
ecoa “o português dos sábios e dos poetas daquela época dos escolásticos da Idade
Média”.
Aparece claro que Rosa se inseriu dentro desse contraste linguístico (entre “língua “
portuguesa e “língua” sertaneja) com uma proposta radical, que não encontra precedentes
na literatura brasileira, pois é o primeiro, ao nosso conhecimento, a dar estrutura “literária”
a essa linguagem sertaneja, transformando-a em uma literatura dialetal reflexa, construída
em tensão e em diálogo, mais ou menos polêmico, com a língua oficial. Ele escolhe
posicionar-se integralmente em uma linha “marginal” e “periférica” ao retrair o sertão que,
como afirma Ribeiro (2013):
Conformou, também, um tipo particular de população com uma sub-cultura própria,
a sertaneja, marcada por sua especialização ao pastoreio, por sua dispersão espacial
e por traços característicos identificáveis no modo de vida, na organização da família,
na estruturação do poder, na vestimenta típica, nos folguedos estacionais, na dieta,
na culinária, na visão de mundo e numa religiosidade propensa ao messianismo90.
O sertanejo retratado no Grande Sertão poderá adquirir uma língua literária pela
invenção da figura de Riobaldo, jagunço “semi-literato”. O sertanejo, já protagonista dos
Sertões de Euclide da Cunha, não é mais objeto de uma análise externa, são a sua voz e
o seu universo a desvelar-se através de Riobaldo, personagem que além de participar da
marginalidade histórica do sertanejo no processo de desenvolvimento do país, ocupa uma
posição instável dentro do romance, começando como professor 91, atravessando tanto o
universo dos jagunços quanto aquile da chefia, para tornar-se latifundiário; e cada
posição é assumida como momentânea e provisória, pois a energia do personagem é
caracterizada por momento de insatisfação e de inadequação em cada etapa.
Essa instabilidade e essa liberdade de movimentos do protagonista entre esses inter-
mundos, traduz-se na criação de um próprio idioleto, deformação “expressionista” da
linguagem, para representar uma nova percepção de mundo não pacífica, contraditória.
Partindo da um contexto de marginalidade sócio-cultural representado pelo sertão e
pela cultura sertaneja, Rosa escolhe o caminho centrífugo, o que mais se adentra nessa
89
“E o que era essa língua lusitana do século XV? Não era língua, era linguagem, como homônimo de
vulgar e antônimo de latim. Nem recebido tinha ainda o nome de língua portuguesa”, Castro (2003),
p.270
90
Ribeiro, Darcy, O Povo Brasileiro, Companhia de Bolso, São Paolo, 2013,p.207.
91
Mas o próprio Riobaldo reconhece o seu processo de educação literária como não concluído: “ Inveja
minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração [...]E que eu merecia de ir
para cursar latim, em Aula Régia – que também diziam” Rosa, 1994, p.17
43
linha de margem, em direção de uma subjetividade sempre menos compartilhada. Do
tecido linguístico marginal do grupo social ao qual pertencia, é criada uma linguagem
subjetiva, a única que por Guimarães Rosa possa ser considerada uma verdadeira
linguagem.
Meu lema é: a linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o
espelho de sua personalidade não vive: e como a vida é uma corrente contínua, a
linguagem também deve evoluir constantemente. Isto significa que, como escritor,
devo me prestar contas de cada palavra e considerar cada palavra o tempo
necessário para ela ser novamente vida92.
92
Entrevista de Günter Lorenz a Guimarães Rosa, em janeiro de 1965, disponível em
http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/GuimaraesRosa-1965.htm.
93
Castro (2004), p.347
94
Castro (2004), p.347
44
representação sócio-linguística dos personagens: “Me acuda, meu sinhô moço!” 95), mas
esses traços regionais são aproveitados dentro das estruturas linguísticas padronizadas
do português ou português brasileiro.
O processo de formação de uma língua literária “brasileira” será impulsionado pela
poética modernista. O modernismo, embora condene um certo exagero de exotismo
presente na literatura brasileira (pois representaria a parte mais arcaica e menos
“progressista” do país), é um movimento de inclusão das variantes regionais e sociais, no qual
encontram voz as novas grandes massas urbanas. Nesse contexto moderno, o sertanejo
entra em jogo para perder as suas características peculiares e arcaicas, anti-modernas, para
contribuir na criação de um brasileiro moderno que funde dentro de si, antropofagicamente,
essas heranças genéticas em uma nova conformação de homem nacional:
“O Brasil pra ser civilizado artisticamente, entrar no concerto da nações que hoje em
dia dirigem a Civilização da Terra, tem de concorrer para esse concerto com a sua
parte pessoal, com o que o singulariza e o individualiza, parte essa única que poderá
enriquecer e alargar a Civilização.”
45
nova figura nacional de brasileiro que perpassa, nessa nova metamorfose, os elementos
percebidos como mais arcaicos e antigos. O desejo principal dos autores modernistas foi
o de serem atuais, expressarem a vida diária, dar estado de literatura aos fatos da
civilização moderna. Linguisticamente, a proposta incentiva a criação de uma koiné
literária que pretende unificar e “legitimar” as diferenças e as variantes, que serão aceitas
97
somente se reativas e propositivas ao projeto progressista nacional . As intenções
unificadoras e centralizadoras desse projeto aparecem claramente na resposta,
indignada, de Mario Andrade a Manuel Bandeira, que o acusava de escrever “paulista”.
Você diz por exemplo que eu em vez de escrever brasileiro estou escrevendo
paulista. Injustiça grave. Me tenho preocupado muito com não escrever paulista[...]
Não estou escrevendo paulista, não. Ao contrário. Tanto que fundo na minha
linguagem brasileira de agora termos do Norte e do Sul. [...]98
Se conseguir que se escreva brasileiro sem por isso ser caipira, mas sistematizando
erros diários de conversação, idiotismos brasileiros e sobretudo psicologia brasileira, já
cumpri o meu destino99.
97
Andrade escreveu uma gramática na qual tenta regulamentar e, ao mesmo tempo, institucionalizar, o
uso dessas expressões mais regionais.
98
Andrade, Mario, Carta a Manuel Bandeira, janeiro de 1925, em Rodrigues, Garcia Leandro, 2013.
99
Andrade, Mario, Carta a Manuel Bandeira, 10 de outubro de 1924 em Rodrigues, Garcia Leandro, 2013.
46
ter sua linguagem chegado a tal ponto, que a futura história da literatura terá de citá-la
como literatura de um único homem [...] “)100.
E esse idioleto “expressionista” é extremamente e radicalmente anárquico, anti-social,
pois não somente contradiz o momento histórico nacional do qual Rosa percebe as
contradições, mas as possibilidades lógicas e univocamente interpretativas de qualquer
tipo de história escrita e de discurso. Esse idioleto é uma denúncia a inconsistência e
falácia da linguagem humana:
“O sério pontual é isto, o senhor escute, me escute mais do que eu estou dizendo;
e escute desarmado. O sério é isto, da estória toda – por isto foi que a estória eu lhe
contei : eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita coisa
importante falta nome.” (ROSA, 1994, p.147).
100
Entrevista de Günter Lorenz a Guimarães Rosa, em janeiro de 1965, disponível em
http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/GuimaraesRosa-1965.htm.
47
Referências bibliográficas:
48
Treccani, Milano, 1977. Disponível em
http://www.treccani.it/enciclopedia/espressionismo_(Enciclopedia-del-Novecento). Acesso
1/11/2016. Também em Contini, Gianfranco: Ultimi esercizi e elzeviri (1968-1987), Torino,
Einaudi, 1988.
CONTINI, Gianfranco, Varianti e altra linguistica. Una raccolta di saggi, Torino, Einaudi,
1970
49
GUIMARÃES ROSA,João. Grande Sertão Veredas, Rio de Janeiro, Nova Aguillar, 1994
50
179-201.
ROSA, João Guimarães Rosa, Carta a Emílio Bizzarri, 1963, em Arquivo João Guimarães
Rosa, USP
ROSA, João Guimarães Rosa, Grande Sertao: Veredas, Editora Nova Aguiar, Rio de
Janerio, 1994
RUSSO, Vittorio, La Commedia, em Borsellino, Nino (org.), Storia generale della lettura
italiana, vol II, Milano, Motta, 2004, p.110-123.
ROCHA, Gibson Monteiro O que há entre uma grande escritura e uma escritura divina?
em Anais do Evento PG Letras 30 Anos Vol. I (1), 2007, p.287-297, disponivel em
http://www.pgletras.com.br/Anais-30-Anos/Docs/Artigos/3.%20Pesq%20em
%20andamento%20Literatura/3.3_Gibson_Monteiro.pdf, acesso 1/11/2016.
WELLEK, Rene, WARREN, Austin, Teoria della letteratura, Il Mulino, Bologna 1992.
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