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Da Casa
Claudio Angelo
24 de Março de 2020 às 11:01
Mas a principal reação tem vindo da base: o eleitorado bolsonarista está acreditando
nos médicos, na imprensa e nos cientistas, e não no presidente e na sua récua. As
pessoas estão ficando em casa, lavando as mãos e protegendo os idosos. Tias nos
grupos de família que dia 15 postavam fotos da Coronafest agora compartilham dicas
de saúde pública. Agem com o bom senso que lhes faltou em outubro de 2018. O que
aconteceu?
A pandemia vira esse jogo ao mexer com o valor máximo de qualquer replicador
darwinista: a preservação da própria vida. O presidente pode declarar na coletiva
(ofegante e de olhos vermelhos) que é “só uma gripezinha”. Mas a esta altura todo
mundo conhece alguém infectado ou alguém que conhece alguém infectado ou que foi
para a UTI. À medida que o número de mortes aumenta, as pessoas vão tendo mais e
mais razões para ouvir os cientistas e não seu “grande timoneiro”. A milícia de
desinformação digital pode até reagir, como está reagindo, mas mesmo o gado mais
bovino acreditará na sua experiência imediata e não nas loucuras que recebe no zap. É
de experiência imediata, afinal, que vivem o terraplanismo e outros negacionismos.
O que é possível antever, porém, é que a antiga ordem iluminista ganhou um respirador
artificial. As instituições tradicionalmente encarregadas de encontrar e relatar a verdade
sobre o mundo, a imprensa e a ciência, podem recuperar terreno e confiança perdidos
à medida que salvem vidas e deixem os bots falando sozinhos que o “vírus chinês” não
pega nada.
Seria ingenuidade afirmar que a humanidade terá aprendido a lição e emergirá deste
período pronta para ouvir e apoiar a ciência na resolução da crise do clima, da
desigualdade, da guerra às drogas e de outros problemas que demandem agir com
base em evidências. Mas o diminuto vírus parece ter produzido uma rachadura, se
temporária, no muro da manipulação digital que sustenta o novo autoritarismo. É hora
de pegar as marretas, abri-lo e deixar entrar a luz do sol – que, como sabemos, é o
melhor desinfetante.
***
Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de
S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como Nature, Scientific
American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados
Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte,
sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria
Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.