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Enterro Prematuro

Edgar Allan Poe

01 O simples romancista devia evitar certos temas que são excessiva-


02 mente hediondos para a ficção legítima. São assuntos que despertam um
03 interesse absorvente em uns, mas a outros pode ofender ou desagradar.
04 Somos tomados, por exemplo, de uma dor intensa (“dor agradável”,
05 podemos dizer) diante de notícias de terremotos, surtos de pragas, mas-
06 sacres, chacinas de prisioneiros, mas se esses relatos são fatos reais e dis-
07 tantes. É a realidade – a história que nos empolga. Como invenções, só po-
08 demos encará-las com total aversão.
09 Essas calamidades, nas dimensões que citei, impressionam viva-
10 mente a nossa fantasia, se acontecem longe e atingem a muitos. A verda-
11 deira infelicidade – o supremo infortúnio – é, na verdade, particular. É o so-
12 frimento bem perto. De um só conhecido. Os extremos medonhos da ago-
13 nia são sofridos pelo homem isoladamente, e nunca pelo homem na multi-
14 dão.
15 O terror mais extremo que já se abateu sobre um ser humano, é,
16 sem sombra de dúvida, o de ser enterrado vivo. E isso tem ocorrido com
17 muita freqüência.
18 As fronteiras entre a vida e a morte são vagas e imprecisas. Ninguém
19 pode dizer, com certeza, onde começa uma e termina a outra.
20 Sabemos que há enfermidades onde cessam todas as funções vitais
21 aparentes. Mas isso não passa de uma suspensão. Há pausas temporárias
22 no incompreensível funcionamento dessa máquina: nosso corpo. Depois de
23 certo período, tudo volta a se movimentar, e o mágico mecanismo recome-
24 ça o seu trabalho.
25 Aqui eu lhes poderia narrar muitos e muitos casos de enterrados vi-
26 vos. Sepultamentos prematuros. Pessoas que são enterradas numa posi-
27 ção, anos depois são encontradas em posição diferente. O leitor mesmo po-
28 de ter sido testemunha de algum caso assim. Testemunha direta ou ter ou-
29 vido contar. Ou lido nos noticiários cotidianos. E mesmo os médicos estão
30 aí para provar que um grande número desses sepultamentos ocorreu real-
31 mente.
32 Se interessassem, eu próprio lhes contaria, agora, uns cem deles. Os
33 mais estranhos, incríveis, variados. A narrativa, porém, ganharia aquele sa-
34 bor de que lhes falei no início. E se tornaria cansativa, desinteressante. Tal-
35 vez eu lhes desse apenas uma notícia, uma informação a mais. O que nada
36 lhes acrescentaria à emoção, à fantasia.
37 Mas eu posso lhes falar do horror que nos entra pelos ouvidos quan-
38 do se houve claramente a sentença: está morto. E as palavras: estou vivo -
39 estouram na sua mente sem que possam ser ouvidas pelos outros. Posso
40 lhes falar do horror da suspeita – se está morto ou não. E da condenação,
41 mais terrível que tudo: está morto.
42 Na verdade, nada é tão terrível. A aflição do corpo e da mente. O
43 enterro antes da morte. A insuportável compressão dos pulmões, as exala-
44 ções sufocantes da terra úmida, a aderência e o abraço apertado do caixão
45 estreito, a escuridão da Noite absoluta. O silêncio – como um mar engolindo
46 tudo. A presença invisível, mas contida, do verme devorador. Essas coisas,
47 mais a lembrança do ar lá fora e da grama que estão logo ali em cima. Os
48 amigos queridos que correriam para nos salvar se soubessem da nossa si-
49 tuação. E a consciência de que nunca serão informados dessa situação. O
50 desespero que tudo isso leva ao coração faz recuar qualquer imaginação.
51 Não sei de nada tão angustiante sobre a Terra. Ninguém pode imagi-
52 nar nada tão hediondo nos reinos do mais profundo Inferno. E eu posso
53 lhes contar uma coisa assim – com um real e profundo interesse. Porque o
54 que tenho a contar agora é de meu próprio conhecimento. De minha própria
55 experiência real e concreta.
56 Meu caso pessoal não difere, em nenhum ponto importante, dos ca-
57 sos citados nos livros médicos. Por muitos anos fui propenso a ataques de
58 um estranho mal a que os médicos chamam catalepsia. Talvez por falta de
59 uma denominação mais definida. As causas, os sintomas e mesmo o dia-
60 gnóstico dessa doença são ainda um tanto misteriosos. Mas seu caráter
61 aparente é bastante conhecido. Aliás, as variações parece que dependem
62 do grau. Às vezes o paciente cai em sono por um dia apenas ou mesmo por
63 um período menor. Fica imóvel. Insensível. A pulsação do coração é quase
64 imperceptível. Permanecem alguns vestígios de calor e coloração nas fa-
65 ces. Com um espelho diante dos lábios, pode-se perceber um lento movi-
66 mento, vacilante e irregular, dos pulmões. Depois a duração dessa síncope
67 passa a ser de semana. Depois meses, até que exames médicos minucio-
68 sos e testes rigorosos não mais conseguem estabelecer diferença entre o
69 estado da vítima e aquilo a que chamamos morte absoluta. O infeliz se sal-
70 va de um enterro prematuro pela suspeita dos amigos que lhe conhecem a
71 situação. E também pela demora da decomposição. Os ataques vão se su-
72 cedendo. Cada vez com as características mais acentuadas. E cada um
73 mais demorado do que o outro. De maior, muito maior duração.
74 No meu caso, às vezes, sem causa aparente, mergulhava eu num
75 estado de semi-síncope. Meio desfalecimento. E assim permanecia: sem
76 dor, incapaz de me mover, de pensar, com uma vaga consciência de vida e
77 da presença daqueles que rodeavam meu leito. Isto até que a crise da
78 doença me restituía a completa sensibilidade.
79 Outras vezes era um ataque rápido, impetuoso. Ficava doente, entor-
80 pecido, gelado, tonto. Caía, então, prostrado. Durante semanas. Tudo era
81 vazio, a escuridão, o silêncio. O nada era o meu universo. A anulação total.
82 Daí saía, depois, lentamente, exausto, numa lentidão igual à rapidez do ata-
83 que. E lentamente, com a mesma alegria para mim, voltava-me a luz da al-
84 ma.
85 Apesar dos ataques, contudo, minha saúde parecia boa. Não se no-
86 tava que fosse, em absoluto, afetada pela minha doença principal. Apenas
87 o meu sono parecia exagerado. E, depois de sair do estado de torpor, não
88 conseguia recuperar, imediatamente, o domínio completo de meus senti-
89 dos. Permanecia, por muitos minutos, perplexo, confuso. Meu cérebro, a
90 memória em especial, ficava num estado de completa inatividade.
91 Em tudo isso, meu sofrimento maior não era físico. Era uma infinita
92 angústia moral. Tornava-me mórbido. Minha mente vivia povoada de ver-
93 mes, túmulos, epitáfios. Eram delírios sobre morte. Enterro prematuro: o
94 medonho perigo que me rondava, dia e noite. Durante o dia, torturavam-me
95 o pensamento, o medo. À noite, o terror. Era sempre o mesmo pavor: dor-
96 mir e acordar na escuridão de um túmulo.
97 Meus curtos períodos de sono eram cheios de pesadelos. Via-me
98 submerso no sono cataléptico. Ouvia vozes e sentia mãos geladas sacudin-
99 do-me pelos pulsos. Todas as noites os sonhos de agonia. As visões he-
100 diondas. Ilusões apavorantes surgiam à noite e estendiam sua terrível in-
101 fluência muito além, até as minhas horas de vigília. Meus nervos se debili-
102 taram, e fui tomado de um constante pavor.
103 Evitava passear. Montar. Praticar qualquer exercício que me afastas-
104 se de casa. Temia afastar-me daqueles que conheciam minha propensão à
105 catalepsia. Desconfiava de meus amigos mais íntimos. Exigia de todos os
106 juramentos mais sagrados. E todos me tranqüilizavam com as promessas
107 mais solenes. Mesmo assim, meus temores mortais negavam-se a dar ouvi-
108 dos à razão. Não aceitavam qualquer consolo.
109 Tomei uma série de precauções. Reformei a galeria da família de for-
110 ma a permitir que fosse facilmente aberta do interior. Uma pequena pressão
111 sobre uma alavanca longa que entrava pela tumba adentro bastava para
112 que as folhas de ferro da porta se abrissem. Coloquei dispositivos para en-
113 trada de ar e luz e recipientes para água e alimento. Tudo ao alcance do
114 caixão que me era destinado. Este era maciamente forrado e aquecido.
115 Guarnecido com molas de maneira a deixar-me em liberdade ao menor mo-
116 vimento. Além de tudo isso, havia suspenso do teto do túmulo um enorme
117 sino cuja corda passava por um buraco no caixão, para ser amarrada numa
118 das mãos do cadáver. Agora sim, eu estava preparado, devidamente equi-
119 pado para o perigo de ser sepultado vivo. Mas, ah, de que vale a vigilância
120 do homem contra o Destino implacável?
121 Como tantas vezes já acontecera antes, um dia, vi-me saindo de u-
122 ma inconsciência total para uma primeira sensação imprecisa de existência.
123 Como das outras tantas vezes, lentamente, com um torpor de tartaruga, a-
124 proximava-se fraca a cinzenta aurora do dia da mente. Eu despertava. Uma
125 entorpecida inquietação. Uma vaga sensação de dor. Nenhuma preocupa-
126 ção. Nem esperança. Nem esforço. Nada. Como se estivesse nascendo.
127 Depois, após um longo intervalo, um tilintar nos ouvidos. Uma sen-
128 sação de dormência. Um leve formigamento nas extremidades. A sensação
129 agradável de repouso. Os sentimentos despertando. Uma tentativa de pen-
130 samento. O primeiro esforço para lembrar-se: o ligeiro estremecimento de
131 uma pálpebra e um choque elétrico de horror indefinido e mortal, que lança
132 o sangue das têmporas para o coração. Outro esforço para lembrar-se. A-
133 gora a memória recupera o seu domínio. Tomo conhecimento de minha si-
134 tuação. Sei que não estou acordando de um sono comum. Fora tomado de
135 catalepsia. Finalmente meu espírito é dominado por uma única ideia sinis-
136 tra, central e mórbida. Perigo!
137 Por alguns minutos a ideia tomou conta de mim. Permaneci imóvel.
138 Não conseguia reunir coragem para mover-me. Não ousava nada, paralisa-
139 do pelo medo. Medo do destino. Eu sabia. Ele era inevitável.
140 O desespero – apenas o desespero – impeliu-me, após longa hesita-
141 ção, a mover minhas pesadas pálpebras. Abri os olhos. Estava escuro.
142 Tudo muito escuro. Agora eu sabia que o ataque já passara. Sabia que re-
143 cuperara todas as minhas faculdades. Eu poderia ver. E não enxergava por-
144 que estava tudo escuro. Era aquela intensa, negra e completa Noite que du-
145 ra para sempre. Tentei gritar. Meus lábios e minha língua ressecados move-
146 ram-se, mas nenhum som de voz saiu. Os pulmões pareciam oprimidos pe-
147 lo peso de uma incomensurável montanha. Coração e pulmão arfavam, pal-
148 pitavam. Latejavam.
149 Ao esforço de gritar, vi que os maxilares estavam amarrados como
150 sempre acontece com os mortos.
151 Senti que repousava em alguma coisa dura. E duros também eram
152 os lados. Elevei os braços acima de meu corpo e senti baterem numa sólida
153 tampa de madeira, que subia acima do meu rosto a pouca altura.
154 Não havia mais dúvida. Eu fora encerrado num caixão.
155 Pensei então em minhas precauções. Fiz movimentos e a tampa não
156 cedeu. Procurei a corda do sino que devia estar amarrada aos meus pulsos.
157 Não consegui encontrá-la. Não havia acolchoado. E às minhas narinas che-
158 gou repentinamente o cheiro forte da terra úmida. Eu não estava na galeria
159 de minha família. Caíra com o ataque longe de casa, entre estranhos. Não
160 podia me lembrar como nem quando. Mas sabia que me haviam enterrado
161 como a um cão, num caixão, em alguma cova funda, vulgar, sem epitáfio. E
162 para sempre.
163 Quando me convenci disso, tentei gritar de novo. E consegui. O grito
164 saiu longo, prolongado, selvagem. De agonia, de desespero, de terror. Tão
165 forte que ressoou através da Noite subterrânea.
166 - Alô! Alô, aqui! – disse uma voz.
167 - Que diabo será agora? – perguntou uma segunda.
168 - Saia daí! – disse uma terceira.
169 - Que idéia é essa de gritar desse modo? – falou uma outra.
170 E logo fui agarrado e arrancado dali, sem a menor cerimônia.
171 Isto ocorreu perto de Richmond, na Virgínia. Eu acompanhara um a-
172 migo numa expedição de caça. Caiu a noite. Fomos surpreendidos por uma
173 tempestade. A cabina de um pequeno barco, ancorado no rio, fora o nosso
174 único abrigo. Passamos a noite a bordo, dormindo num dos dois únicos be-
175 liches do barco. Na embarcação pequena os beliches eram boxes aperta-
176 dos, estreitos, sem altura, sem roupa de cama. Lembro-me de que eu acha-
177 ra extremamente difícil espremer-me para entrar ali. Contudo, dormi profun-
178 damente. E a visão que tivera – não fora sonho nem pesadelo – resultara
179 do meu habitual estado de nervos. Claro que, ajudada pelo ambiente, mi-
180 nha neurose se agravara. A demora para recobrar os sentidos e recuperar
181 a memória, o cheiro que vinha da própria terra molhada, o lenço em volta
182 do queixo que eu próprio amarrara pois esquecera minha touca de dormir,
183 tudo concorreu para aquela situação.
184 As torturas que sofri foram as de um sepultamento real. Terríveis.
185 Odientas. Mas nenhum mal nos reserva Deus que não seja para nosso
186 bem. Pois vejam.
187 Uma reviravolta se operou em meu ser. Meu próprio exagero serviu
188 para curar-me. Minha alma fortaleceu-se. Viajei para o exterior. Fiz exercí-
189 cios ao ar livre e puro. Respirei. Acabei com todos os pensamentos mórbi-
190 dos. Desfiz-me de meus livros de Medicina. Esqueci meus passeios pelos
191 cemitérios. Acabei com os contos de fantasmas – como este. Tornei-me um
192 homem novo. Saudável. Vivo. Um verdadeiro homem. Livre de apreensões
193 de morte, medos, dúvidas, doenças. Até a catalepsia desapareceu de mi-
194 nha vida.
195 Concluo que o mundo de nossa triste Humanidade pode assumir,
196 muitas vezes, a aparência de um Inferno. Tudo depende da mente, da ra-
197 zão, da imaginação do homem. De fato, a legião sinistra de terrores sepul-
198 crais não é totalmente fantasiosa. Existe mesmo. Mas, como aos Demô-
199 nios, temos que deixá-la adormecida. Ou seremos devorados. Têm que ser
200 deixados dormindo. Ou morreremos.

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