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JAMES BURKE
ROBERT ORNSTEIN

O PRESENTE
.
DO FAZEDOR DE
MACHADOS
Os dois gumes da história
da cultura humana

Ilustrações
Ted Dewan

Tradução
Pedro Jorgensen Júnior

BERTRAND BRASIL
Copyright ® 1995, James Burke e Robert Ornstein
Publicado mediante contrato com G. P. PutnanVs Sons of The Putnam
Berkley Group, Inc.

Capa: Rodrigo Rodrigues

Editoração: Art Line


1999
Impresso no Brasil
Printed in Brazil CS

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
B973p Burke, James
O presente do fazedor de machados: os dois gumes da história da cul-
tura humana / James Burke, Robert Ornstein; ilustrações Ted Dewan;
tradução Pedro Jorgensen Jr. - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
350p.
Tradução de: The axemaker's gift
Inclui bibliografia
ISBN 85-286-0686-4
1. Tecnologia — Aspectos sociais. 2. Tecnologia — História. 3. Cultu-
ra. I. Ornstein, Robert. II. Título.
CDD - 303.483
98-1738 CDU-3:608.1

Todos os direitos reservados pela:


BCD UNIÃO DE EDITORAS S.A.
Av. Rio Branco, 99 — 20° andar — Centro
20040-004 — Rio de Janeiro - RJ
Tel.: (021) 263-2082 Fax: (021) 263-6112

Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quais-


quer meios, sem a prévia autorização por escrito da Editora.

Atendemos pelo Reembolso Postal.


Agradecimentos

Gostaríamos de agradecer antes de mais nada a Carolyn Doree pelos


muitos e muitos megabytes de pesquisa para a realização deste livro.
Fomos ainda beneficiados pelo trabalho de muitas outras pessoas,
mas de maneira especial pelas pesquisas de Alan Parker, John Wood,
Jerome Burne (que também leu os manuscritos) e Lynne Levitan em
tópicos específicos.
O livro foi lido e criticado por um pequeno exército de leitores,
dentre os quais gostaríamos de agradecer especialmente a Brent
Danninger, Evan Neilsen, Howard Gardner, Bob Cialdini, Sally Mallam
e Tom Malone. Para as duas dezenas de pessoas que preferiram perma-
necer anónimas: seus conselhos e sugestões foram de grande valia.
Ted Dewan fez um trabalho magnífico, traduzindo nossas ideias
em ilustrações, e Jane Isay incentivou, acariciou e criticou o manuscrito,
transformando-o em livro.
Sumário

PRÓLOGO 13

I. UM Fio DE VANTAGEM 19
.1. Um fio de vantagem 21
2. Uma contribuição simbólica 53
3. O abe da lógica 79

II. RETALHANDO o MUNDO 105


4. A fé no poder 107
5. Talhado para a impressão 135
6. Novos mundos 157
7. Raiz e ramo 185
8. Ato de classe 209
9. Ordem médica 233

III. JUNTANDO os CACOS 257


JO. O fim da jornada 259
J L Em frente, rumo ao passado 283

BIBLIOGRAFIA SELECIONADA 317


PROLOEO

Saadi de Shiraz disse uma grande verda-


de quando narrou, em seu Bostan, esta
minúscula história:
Um homem encontrou um outro ho-
mem, bonito, inteligente e elegante. Pergun-
tou-lhe quem era. O outro disse: "Eu sou o
Diabo."
"Mas não pode ser", disse o primeiro
homem, "porque o Diabo é mau e feio."
"Meu caro", disse Satã, "você anda dan-
do ouvidos aos meus detratares."

IDRIES SHAH, REFLEXÕES


r ste é um livro sobre as pessoas que nos deram o mundo em troca
de nossas mentes.
São os fazedores de machados, cujas descobertas e inovações vêm,
há milhares de anos, presenteando poder sob inúmeras formas. Eles
deram aos imperadores o poder da morte, aos cirurgiões o poder da vida.
Toda vez que os fazedores de machados ofereciam uma nova maneira
de nos tornar ricos, seguros, inteligentes ou invencíveis, nós a aceitáva-
mos e a utilizávamos para mudar o mundo. E ao mudar o mundo, mudá-
vamos nossas mentes, porque cada presente redefinia nosso modo de
pensar, os valores e as verdades por que vivíamos e morríamos.
E por ser tão encantador, nunca mau nem feio, a cada presente
dos fazedores de machados, sempre voltávamos para buscar mais, não
importava a que preço. E de cada vez não restava outra escolha senão
nos adaptarmos aos seus efeitos, geração após geração, desde que o pro-
cesso começou há mais de um milhão de anos. Quando pela primeira
vez usamos um instrumento para tirar mais alimento da natureza do
que ela estava preparada para oferecer, mudamos o nosso futuro. Como
resultado, em pouco tempo éramos muitos mais. E à medida que
aumentava o nosso número, aumentava também o poder daqueles que
mais eficazmente sabiam manejar o machado. Estes se tornaram líderes.
O resto do grupo, em sua maior parte, seguia o machado.
No início, o impacto dos novos instrumentos sobre o mundo era
insignificante. Os primeiros seres humanos viviam completamente dis-
persos em pequenos grupos, caçando e coletando com machados e lan-
ças em sua área imediata até que nada restasse, depois iam embora. A
Terra era tão rica e tão vasta que, por um longo tempo, o dano causado
pelo incógnito machado não mereceu consideração. Mas há cerca de 12
mil anos, as coisas já não eram assim: a quantidade de pessoas e ferra-
mentas atingiu massa crítica e nossa presença começou a se fazer ampla-
mente sentida. A taxa de mudança se acelerou.
16 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

O resultado desse processo pode ser visto hoje em uma rua apinha-
da de qualquer cidade do Terceiro Mundo. Se há 12 mil anos éramos
cinco milhões, hoje esta mesma quantidade de gente nasce a cada duas
semanas. No ano 2100, o impacto desse crescimento sobre o corpo do
planeta poderá causar a perda irreversível de metade das espécies exis-
tentes na Terra.
Por que isso aconteceu? Porque os fazedores de machados eram
bons demais para serem reais. Seus presentes deram aos nossos líderes e
instituições, e a todos que buscavam o poder, oportunidades tão seduto-
ras de auto-realização, auto-engrandecimento, auto-indulgência, auto-
satisfação e auto-enriquecimento, que eles ignoraram seus efeitos
potenciais.
Hoje temos o triste resultado dessa negligência. Enquanto alguns
comemoram umas poucas melhorias ambientais, milhões passam fome
e as nações desenvolvidas seguem usando suas imensas capacidades
científicas e tecnológicas para pavimentar quase metade das terras cul-
tiváveis existentes. Ainda que se possa apontar, aqui e ali, alguns exem-
plos de reflorestamento, um terço das florestas da Terra já desapareceu;
a população está explodindo, os oceanos se exaurindo a ponto de a pes-
ca ter sido proibida em muitas áreas e a atmosfera permanecer severa-
mente poluída. O conhecimento do fazedor de machados e a destruição
do meio ambiente estão indissoluvelmente ligados.
Quando, num passado remoto, saímos da África e começamos a
abrir nosso caminho através do planeta, guiados por chefes tribais cujos
instrumentos de fazer machados lhes conferiam poderes de corte-e-con-
trole sobre o mundo, não percebíamos (ou não cuidávamos) o quão pró-
ximos já estávamos do fim da jornada. Por dezenas de milhares de anos,
continuou sendo a prática geral usar os presentes dos fazedores de
machados para tirar do mundo tudo o que queríamos sem dar nada em
troca. Um nível de vida sempre mais elevado era tudo o que importava.
O resultado é que somos hoje, nos países industrializados, mais
saudáveis, mais ricos, mais bem alimentados, mais informados e mais
móveis do que qualquer ser humano jamais foi. E o fato de o progresso
ter trazido em seu rastro um certo grau de devastação não nos deve sur-
preender, porque à medida que progredíamos, destruíamos. Raramente,
se é que alguma vez olhamos para trás, examinamos o efeito de nossa
passagem sobre o mundo, porque o progresso sempre nos levava adian-
te, em direção a um horizonte que esperávamos jamais atingir. Graças
ao machado, o passado estava morto e o futuro por ser construído.
PRÓLOGO 17

Só agora, quando nos aproximamos do fim da jornada, é que


começamos a nos perguntar por que temos as dificuldades que temos.
Talvez tenhamos aprendido tarde demais a lição de causa e efeito. A
menos que sejamos capazes de avaliar que os presentes dos fazedores de
machados sempre favoreceram o tipo de poder que modifica as mentes,
nunca iremos reconhecer que nossa sobrevivência depende de nos apro-
priarmos desse mesmo poder para nossa própria salvação. Se o que
necessitamos é uma nova mente, temos os meios de produzi-la. Tudo o
que precisamos fazer é descobrir a maneira como isto sempre foi feito e
fazê-lo para nós mesmos. É esse o propósito deste livro.
Quem e o que são os fazedores de machados desta fábula?
Originalmente, eram remotos hominídeos que tinham talento para mol-
dar as pedras, uma a uma, e por assim fazer, criar instrumentos que
iriam recortar o mundo. Esta capacidade fazedora-de-machados de rea-
lizar coisas na ordem apropriada é um dos muitos talentos naturais do
cérebro. Esses talentos se tornam ativos toda vez que uma pessoa se
move com graça, calcula o arco traçado por uma bola jogada (e a agarra)
ou reproduz sons em um teclado.
No entanto, mentes diferentes adquirem proeminência diferente
em mundos diferentes. O talento fazedor-de-machados que no passado
remoto realizava o processo preciso, sequencial, que dava forma aos
machados, daria lugar mais tarde ao pensamento preciso, sequencial, que
gerou a linguagem, a lógica e as regras formalizadoras e disciplinadoras do
próprio pensamento. O talento sequencial da mente, agora dominante,
estava pronto para usar a capacidade de "recortar-a-natureza-e-controlá-
la" para extrair do mundo mais conhecimento e usá-lo em seguida para
provocar novas mudanças. Graças aos talentos dos fazedores de macha-
dos, e aos seus presentes, as coisas literalmente jamais seriam as mesmas.
Existem hoje fazedores de machados, pessoas que usam este talen-
to, em toda parte. Você pode conhecer ou viver com um, até mesmo ser
um deles. O que os fazedores de machados sabem e como o expressam
não é compreendido pela maioria das pessoas. Em geral, eles têm a
propensão de permanecer no quarto dos fundos da história, saindo ape-
nas para colocar seus presentes à disposição das instituições e dos indi-
víduos. Alguns dos muitos papéis desempenhados por fazedores de
machados através da história têm sido os de: xamã, astrónomo, editor,
cardeal, engenheiro, filósofo e físico quântico.
Este livro começa com os primeiros dentre eles: os fazedores de
machados da África antiga.
Capítulo l

UM FIO DE
VANTAEEM

De onde veio a arte mística e maravilhosa


De pintar a fala e falar aos olhos?
E traçando linhas mágicas o ensinamento
De colorir e dar forma ao pensamento?

THOMAS ASTLE, As ORIGENS E os PROGRESSOS


DA ESCRITA, 1803
JJP *
£7. s fazedores de machados apareceram há cerca de quatro milhões
de anos, aqui, no único planeta do sistema solar capaz de sustentá-los. O
sistema de manutenção da vida planetária lhes foi proporcionado pela
energia solar, que circulava pelo planeta (então como agora) movida por
uma trama turbulenta de ciclos de energia complexos e interativos,
abrangendo desde perturbações atmosféricas gigantescas, de dimensões
continentais, até a microscópica atividade bacteriana nas raízes das
plantas. A interação constante e às vezes violenta entre os ciclos é gene-
ralizada e contínua. Nas páginas seguintes, iremos falar de alguns de
seus elementos.
O Sol desencadeia o ciclo primário quando a radiação solar golpeia
a superfície superior da atmosfera com a energia de uma explosão ató-
mica a cada dois e meio quilómetros quadrados. Parte dessa energia irra-
dia-se pelo espaço, mas a superfície da Terra é alcançada por quantida-
de suficiente para manter vivos tudo e todos. E devido à rotação da
Terra, esta energia de sustentação da vida, quando atinge um ponto
qualquer da sua superfície, pulsa até o máximo e cai ao mínimo uma vez
a cada vinte e quatro horas.
E porque a Terra orbita velozmente em torno do Sol, o pulso de
energia é três vezes mais poderoso no equador do que no pólo. Esta dife-
rença de energia impulsiona o ciclo seguinte: a circulação atmosférica.
Enquanto o ar se movimenta através do oceano, parte de sua ener-
gia desloca-se para o mar na forma de turbilhões de correntes superfi-
ciais, ou ondas, que por sua vez interagem com as marés causadas pelos
ciclos solar e lunar. Todos esses movimentos oceânicos contribuem para
o ciclo de temperatura do mar, porque o oceano se comporta como a
atmosfera, as águas frias movem-se nas profundezas, do pólo em direção
ao sul, elevam-se no equador e depois retornam, próximas à superfície,
24 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

em direção ao norte. Ocasionalmente, explodem também tempestades


de águas profundas que varrem vastas áreas do fundo do oceano, levan-
tando e transportando milhares de toneladas de sedimentos e vida ma-
rinha.
O oceano e a atmosfera impulsionam os ciclos de gases atmosféri-
cos. Aquele que nos mantém respirando é o ciclo do oxigénio. O oxigé-
nio acumula-se na atmosfera e no oceano, sendo gerado por três ciclos
de produção diferentes. O primeiro acontece na atmosfera superior,
onde o pulso da energia solar cinde as moléculas de água e libera o oxi-
génio que elas contêm; o segundo resulta do ciclo diário da fotossíntese
das plantas; o terceiro é um ciclo longo causado pela decomposição de
organismos marinhos, liberando oxigénio que penetra na atmosfera
através da interface com a superfície do oceano.
O ciclo atmosférico causa a evaporação e a precipitação entre o
oceano e a atmosfera, gerando o ciclo vital de renovação da água. Treze
mil quilómetros cúbicos de água pura são armazenados na atmosfera
como vapor d'água que sobe e se condensa em torno de partículas de
poeira. Isto dá início a ciclos de formação de nuvens, que são acionados
pela quantidade de vapor, pela temperatura local, pela pressão atmosfé-
rica ou pela quantidade de calor na nuvem. Quando os ventos levam o
vapor para a terra, ele penetra no ar mais fresco e se condensa como
chuva que, finalmente, retorna ao oceano (através da evaporação desde
o solo, a vegetação, os lagos e rios ou desde o próprio oceano), por perco-
lação, infiltração até as fontes e mananciais subterrâneos, ou através da
drenagem e escoamento do solo.
A chuva desencadeia também complexos microciclos envolvendo
reações eletroquímicas nas rochas, que se desgastam liberando minerais.
Alguns são dissolvidos por escoamento, outros são absorvidos pelas raí-
zes dos vegetais e mais tarde reciclados no solo por meio das folhas caí-
das, e alguns ainda são lixiviados até os mananciais subterrâneos pelo
ciclo de renovação da água.
Em um tal ambiente em constante mutação, um organismo só
sobrevive se for capaz de retirar energia de onde pode obtê-la. Por isso,
os tipos bem-sucedidos evoluem tirando proveito da forma de alimento
disponível ali onde se encontram. Os demais seguem o caminho de tudo
o que na natureza fica parado ou não se adapta: morrem.
O exemplo mais claro de adaptação é o modo como algumas plan-
UM Fio D E V A N T A G E M 25

rãs se abrem e se fecham de manhã e à noite. Mas as plantas também


interagem com o ambiente de maneiras ainda mais idiossincráticas.
Certas plantas das rochas da Namíbia deixam de ser comidas pelo gado
por terem aparência de pedras; as mimosas ficam menores e menos visí-
veis quando são tocadas; algumas orquídeas têm aspecto e textura de
fêmeas de insetos, de modo que os machos transportam o pólen ao ten-
tarem acasalar-se com elas.
No entanto, a natureza não é um almoço gratuito. Em qualquer
nível da hierarquia da vida, a cada vez que um organismo drena o supri-
mento de energia, apenas um décimo da energia existente naquele nível
se transmite para o nível imediatamente inferior. A quantidade total de
energia inicialmente fotossintetizada pelas plantas verdes e algas dimi-
nui à medida que passa por meio milhão de tipos de vegetais, trinta
milhões de tipos de invertebrados, cem milhões de tipos de insetos e
mais de cinquenta mil tipos de vertebrados. Para aqueles microorganis-
mos desafortunados que se encontram no fim da linha, apenas um déci-
mo milésimo da energia original arrancada do céu pela clorofila está dis-
ponível para consumo.
Ao percorrer todo o caminho que vai do ciclo planetário da ener-
gia atmosférica até os microorganismos em atividade nas raízes das plan-
tas, esta formidável passagem de energia através da cadeia vital gera
constantes subciclos. Por exemplo, certas bactérias que vivem nas raízes
dos vegetais da América do Norte promovem o crescimento da rama-
gem, que é a principal fonte de alimento do veado-galheiro. Quando o
veado come a ramagem, deixa excrementos ricos em nitrogénio, dos
quais se alimentam as bactérias. Mas à medida que cresce a população
de veados, ela é depredada pelos lobos, e à medida que estes se satisfa-
zem, o número de veados começa a diminuir e os lobos começam a ficar
famintos. Vão, então, à caça de presas menores, como as ovelhas. Mais
adiante, quando diminui o número de ovelhas, os lobos retornam à
população de veados já recomposta, cujos resíduos acumulados nesse
período promoveram o crescimento da ramagem que lhes fornece ali-
mento.
Uma infinidade de ciclos semelhantes a este começa e termina
constantemente e de maneira aleatória. A combinação desses ciclos gera
incontáveis formas de energia utilizável, as quais sustentam a enorme
variedade de espécies existentes sobre a Terra. Esta diversidade assegu-
26 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

rã a durabilidade a longo prazo de todo o ecossistema, porque um siste-


ma mix-and-match está melhor equipado para adaptar-se ao conjunto de
mudanças aleatórias que ocorrem naturalmente. Alguns vencem, alguns
perdem.
Nos primórdios, graças a esse intercâmbio sem-fim, o ciclo da vida
repetiu-se por bilhões de anos, adaptando-se lentamente a mudanças cli-
máticas e acontecimentos desafortunados como os catastróficos cho-
ques de meteoros. E então a adaptabilidade fundamental da natureza
foi desafiada por mudanças que o sistema não podia compensar e das
quais jamais se recuperaria totalmente, porque tratava-se de um novo
tipo de mudança. Não era cíclica, era sequencial e cumulativa.

Foi assim que aconteceu. Há uns treze milhões de anos, séculos e sécu-
los de estiagem causaram a rarefação das florestas da África Oriental.
Esta variação climática pôs em marcha uma série de acontecimentos
que colocariam todo o ecossistema sob o poder de uma única espécie, a
qual logo iria usar esse poder para cortar seus vínculos com a natureza e
ao final conduzir o planeta à beira da ruína.
O clima mais seco forçou a saída de muitos primatas arborícolas
das florestas onde viviam e colocou-os face à necessidade de se adapta-
rem a novos nichos ecológicos nas savanas em expansão. Os primatas
que permaneceram na floresta evoluíram como chipanzés, gorilas e uma
outra espécie intermediária recém-descoberta. Os que se mudaram
viriam a ser nós. Alguns iriam se tornar fazedores de machados.
É difícil estabelecer com exatidão de onde e do que viemos. Não é
fácil encontrar provas de coisas que aconteceram há milhões de anos.
Por isso, a compreensão científica desses problemas ancestrais está sem-
pre mudando. Certo dia do ano de 1993, por exemplo, uma nova e dra-
mática descoberta obrigou todo o mundo a repensar o calendário dos
acontecimentos humanos: foi quando o antropólogo Gen Suwa topou
com a arcada de um fóssil no centro-norte da Etiópia. Descobriu-se que
ela pertencia ao mais antigo ancestral conhecido do homem, batizado
de Ramidus pela equipe de Suwa.
Quem quer que tenha sido, Ramidus viveu há uns quatro e meio
milhões de anos, tinha cerca de l,20m de altura e características tanto
UM Fio DE V A N T A G E M 27

símias quanto humanas. Não sabemos ainda se caminhava ereto ou não.


Ao contrário do entendimento que geralmente tínhamos antes dele ser
encontrado, Ramidus parece ter vivido em terras florestadas, porque
seus restos foram encontrados entre sementes de árvores frondosas,
madeira petrificada e fósseis de antílopes e esquilos. Surpre-
endentemente, ele é intermediário em desenvolvimento, e por isso foi
chamado de "elo perdido", entre os seres totalmente eretos que existi-
ram um milhão de anos mais tarde e os macacos de seis milhões de anos
antes. São lentos esses processos.
As evidências são escassas até aqui, mas se Ramidus foi realmente
um habitante da floresta que se ergueu sobre suas pernas traseiras para
apanhar frutas nas árvores, este simples fato forçará os biólogos evolucio-
nistas a reverem toda a explicação das origens da marcha sobre dois pés.
Em todo caso, a transição para o caminhar ereto parece ter ocorrido cer-
ca de quatro milhões de anos atrás com Ramidus, ou com outro ancestral
algumas centenas de milhares de anos depois. Mas o que importa não é
exatamente quando a coisa aconteceu, mas que aconteceu.
Uma pegada de três e meio milhões de anos de idade, descoberta
por Mary Leakey na África Oriental, indica que por aquela época nossos
ancestrais humanos haviam claramente se diferenciado dos macacos
superiores. A pegada pertence a uma criatura indiscutivelmente erguida
sobre duas pernas. O ajuste do caminhar sobre os quatro membros para
o caminhar ereto encorajou a confiança na visão e liberou os membros
dianteiros para funções outras como a fabricação de instrumentos e o
transporte. O peso do corpo, antes suportado pelos membros dianteiros,
foi transferido para as pernas e a pélvis, que engrossaram para suportar
o peso da parte superior do corpo. Isto, por outro lado, modificou o par-
to, levando ao nascimento de bebés imaturos.
Até aqui, sabemos que esses ancestrais viviam em campos como a
savana da moderna África Oriental e não mais nas árvores. A seleção
natural favoreceu os que eram capazes de caminhar eretos pela relva
alta e pelos matagais do novo habitat, uma vez que estavam mais bem
equipados para enxergar os predadores e os alimentos (razão pela qual
sobreviveram) e provavelmente por isso mesmo venceram a luta pela
sobrevivência (e então mantiveram a postura). O controle sofisticado
dos dedos dos pés, antes essencial para a vida nas árvores, diminuiu de
importância em favor da sensibilidade manual e da capacidade de mani-
28 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

pulação. Os dedos das mãos foram se tornando cada vez mais ágeis, mais
capazes de produzir manipulações difíceis, cortes precisos inclusive.
Com esses desenvolvimentos vieram os membros assimétricos.
Por motivos óbvios, estes não representam vantagem para quadrúpedes,
pássaros ou mamíferos aquáticos, dado que membros mais fortes de um
lado acabariam por produzir movimentos circulares e o animal não iria
a parte alguma. Com pés hominídeos responsáveis pelo movimento, e
não os membros dianteiros, estes estavam agora livres para se desenvol-
verem independentemente, e assim veio a capacidade de exercer forças
e destrezas diferentes à esquerda e à direita.
Tal capacidade seria comportamentalmente vital no repertório
desses primeiros hominídeos, porque a assimetria das mãos foi acompa-
nhada da assimetria do cérebro. Há cerca de três milhões de anos, o lado
esquerdo do cérebro do pequeno Austmlopithecus diferia do lado direi-
to, cabendo a esse lado esquerdo ligeiramente maior as capacidades
manipulativas produtoras de ferramentas.
As mãos eram agora mais precisas, capazes de movimentos com-
plexos. Os olhos podiam ver à distância e também coordenar os movi-
mentos das mãos, o que conduziu a um aumento da capacidade infor-
macional do cérebro. Cérebros ocupados são cérebros grandes, e assim,
há cerca de dois e meio milhões de anos, o cérebro hominídeo já dobra-
ra de tamanho. A ambidestria, combinada à capacidade acrescida de
processar informações no cérebro, trouxe os hominídeos ao estágio
seguinte da evolução. O novo tipo é chamado de Homo habilis, o ator
principal da história.
Habilis mudou o curso da história, porque foi capaz de dar às
pedras formas instrumentais, e esses instrumentos puderam rápida e
vantajosamente ajudá-los a manipular o seu meio ambiente. Esta capa-
cidade dos primeiros fazedores de machados iria quebrar o ciclo que nos
ligava à natureza e, nos dois milhões de anos seguintes, colocar em peri-
go toda a vida no planeta.
Os primeiros instrumentos primitivos, simples lascas de pedra fei-
tas de fraturas e usadas há 2,6 milhões de anos para cortar e raspar,
foram descobertas onde é hoje a Etiópia. Os machados de pedra deram
então a habilis o fio de vantagem, com instrumentos que não apenas
iriam causar mudanças no meio ambiente mas também liberar para
sempre os seus usuários do lento desenvolvimento dos processos natu-
UM Fio DE V A N T A G E M 29

rais. Agora os instrumentos podiam suplantar a evolução biológica como


3 principal fonte de mudança.
Os machados tornaram possível a construção de abrigos e instala-
ções primitivos, mudando fisicamente o mundo de uma vez para sem-
pre. Isto, por seu turno, mudou os padrões comportamentais dos homi-
nídeos porque os instrumentos também permitiram que habilis saísse
para caçar. E, mais importante ainda, saíam para caçar em grupos, o que
viria a ter um enorme significado. Primeiro mudou o dia de trabalho, e
depois o menu. Antes, vasculhar o mato à cata de frutas e bagas suficien-
tes para alimentar uma pequena comunidade consumia muito tempo,
mas agora um grupo de caçadores munidos de instrumentos podia, com
uma única incursão, levar para casa alimento suficiente para o sustento
de várias famílias por muitos dias.
A alimentação compartilhada encorajou habilis a estabelecer um
abrigo estável e uma sociedade mais permanente. Cérebros capazes de
fazê-lo estão relacionados à capacidade de caçar em grupos. Consi-
deremos o que requer uma caçada: velocidade e precisão, evidentemen-
te, mas, ainda mais importante, capacidade de planejar, comunicar-se e
cooperar. Essas capacidades comunicativas ajudaram habilis a se organi-
zar melhor, mas também prepararam a cena para coisas maiores, uma
vez que estabeleceram a matriz mental necessária para o pensamento e
o raciocínio, a linguagem e a cultura.
Por milénios, a nova espécie se desenvolveu e se espalhou pela
África e para fora dela. Há aproximadamente dois milhões de anos, um
descendente dos primeiros hominídeos, um tipo troncudo de l,50m de
altura chamado Homo erectus, cujo esqueleto, do pescoço para baixo,
assemelhava-se ao dos humanos modernos, vivia nas frescas terras mon-
tanhosas da África Oriental, saindo para mais longe à caça de suas pre-
sas e em busca de comida.
Haviam sido necessários entre seis e nove milhões de anos para
que o cérebro pré-humano crescesse o suficiente para o desenvolvimen-
to de alguma forma de vida comunal e para a invenção e o uso de instru-
mentos. Mas uma vez surgidos esses sistemas e instrumentos, eles inte-
ragiram uns com os outros e impulsionaram mudanças mais rápidas no
mundo e, em consequência, na nossa maneira de pensar.
Os primeiros instrumentos de pedra, datados da época do erectus,
foram encontrados no Quénia e na Tanzânia. Eram usados para cortar
30 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

e triturar vegetais, retalhar a carne e quebrar ossos para a retirada do


tutano. Eram também empregados para afiar ossos de animais, por sua
vez usados para cavar a terra em busca de raízes.
No fim deste período, nossos ancestrais desenvolveram machados
de mão com dois gumes. É possível que o machado tenha, por essa épo-
ca, dado à luz a divisão do trabalho, permitindo aos machos, pela primei-
ra vez, caçar e também pilhar animais mortos por grandes predadores.
As fêmeas também pilhavam, provavelmente, mas não há dúvida de que
passavam a maior parte de seu tempo escavando raízes, recolhendo
vegetais e cuidando dos filhos.
No milhão de anos seguinte, a fabricação de machados se tornou
mais e mais sofisticada. Setecentos mil anos atrás, nossos predecessores
possuíam também um certo tipo de machado de mão encontrado na
África, Oriente Médio, grande parte da Europa e da índia e em regiões
do Sudeste Asiático. Um grande achado em Kilombe, no Quénia, suge-
re que nessa época os fazedores de machados já haviam desenvolvido
técnicas de produção em massa. Eles utilizavam um certo tipo de gaba-
rito para fabricar machados de mão de igual comprimento mas de largu-
ras diversas. Este tipo de trabalho exigia mais e mais atenção e memória
da parte de quem estivesse aprendendo a técnica, e por isso os grunhi-
dos e acenos de mão que acompanhavam o ensinamento devem ter se
mostrado, a certa altura, pouco adequados. Isto levou alguns professores
a sofisticar o uso de uma capacidade anatómica que já possuíam desen-
volvida. Podiam fazer ruídos com a boca.
Os instrumentos também promoveram a evolução da fala em
outro sentido, graças à descoberta do fogo por erectus. Há seiscentos mil
anos, quando o tamanho do cérebro havia dobrado outra vez, a fabrica-
ção de instrumentos envolvia muitas vezes o uso dos lábios, dentes, lín-
gua e até das vias aéreas, como ao insuflar a chama. A configuração da
laringe e das cavidades oronasais proto-humanas indica que as curvatu-
ras das vias aéreas tornou a respiração pela boca necessária em momen-
tos de atividade extenuante. Tendo o fogo tornado possível o cozimen-
to, a comida mais macia acarretou a diminuição gradual dos dentes
molares e a mudança da forma da boca e da laringe.
Graças às novas técnicas de triturar e moer os alimentos, já não
eram necessários dentes grandes, acompanhados de fortes músculos nas
mandíbulas e ossos de fixação, que por isso se tornaram menores. Este
UM Fio DE V A N T A G E M 31

augeiramento dos ossos do crânio teve como efeito abrir espaço para a
expansão do cérebro, e deve ter sido por isso que a fala pôde se desen-
volver. A língua também se tornou mais flexível, o que, junto às demais
características físicas, reforçou a capacidade de produzir sons vocais
mais sutilmente controláveis.
Isto produziu um efeito sobre a anatomia, porque acima e além
das mudanças na laringe e na língua, a vocalização exigia maior contra-
te do diafragma e das costelas o que, por seu turno, contribuiu para a for-
mação dos canais nervosos mais dilatados que aparecem na espinha dor-
sal dos humanos modernos. Com todas essas mudanças, então, o cére-
bro dos primeiros hominídeos foi capaz de gerar, pela primeira vez, pen-
samentos complicados e sons simples.
A medida que os fazedores de machados mudavam o mundo e nos
mudavam com seus instrumentos, alteravam também radicalmente nos-
í percepção desse mesmo mundo. Os instrumentos mudaram a forma
finca do cérebro humano. O processo de evolução selecionou, ao longo
áe milhões de anos, a estrutura básica deste cérebro que o homem pos-
sm há alguns milhares de anos, treinado para a detecção das partes do
mundo mais úteis à sobrevivência e à reprodução, ao menos no tipo de
meio ambiente que existia durante a sua evolução. Por esta razão, nota-
mos algumas partes do meio ambiente e não outras: por exemplo, vemos
a radiação eletromagnética com comprimento de onda entre 400 e 680
aanômetros (chamamo-la "curta"), mas não o imenso espectro de outros
comprimentos de onda, como as "radio" ou "microondas".
O cérebro que evoluiu para manejar o mundo em toda a sua formi-
el complexidade era um sistema capaz de integrar a percepção da
realidade por meio de todos os sentidos simultaneamente. A aproxima-
ção de um urso, por exemplo, exige reação imediata. Esta, no entanto,
poderia ser disparada pela visão de um urso inteiro ou de uma parte do
animal, o som de sua corrida, o rosnado, o farfalhar ou o cheiro. Todos
sinais ou qualquer um deles provocaria o tipo de fuga rápida mais
conveniente para a saúde.
Nesse remoto mundo de reações instantâneas, os acontecimentos
eram interpretados de maneira simples e natural: uma tempestade gera-
va a necessidade de achar abrigo e o fogo representava perigo de vida.
Na maior parte do tempo, no entanto, pouca mudança havia nas cir-
stâncias de vida de nossos ancestrais, de modo que o sistema nervo-
32 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

só se desenvolveu fazendo desaparecer os aspectos constantes do mun-


do e enfatizando somente o anormal. É por isso que, em nosso estado
natural, estamos equipados ou para a ação imediata ou para o descanso.
A mudança gradual pode não ser bem percebida, mas a mudança súbita
sempre é.
Certos elementos da percepção são fixados no nascimento: a capa-
cidade de perceber os comprimentos de onda da luz dentro de uma cer-
ta amplitude (cores); de detectar compressões do ar situadas entre 20 e
20 mil ondas por segundo (som): de detectar certas substâncias com os
sensores do nariz (olfato) e da língua (paladar); de sentir quando alguma
coisa está em contato (tato) e quando o corpo se move (propriocepção);
de experimentar certos tipos de sofrimento físico (dor).
Combinamos esses sentidos para ajudar-nos a navegar pelo mun-
do, para detectar o perigo e a comunicação dos demais, para evitar o
dano físico e para achar e escolher os alimentos. Mas os sentidos são
navegadores flexíveis. Quando o mundo e seus sinais e perigos mudam,
pela força dos terremotos, da evolução ou dos fazedores de machados,
os sentidos também mudam e procuram coisas novas. Há uma centena
de anos, sabíamos distinguir bosta de vaca de esterco de cavalo. Hoje dis-
tinguimos Rochas de Chanel n? 5. Esta adaptação ao mundo tal como
ele é começa quando nascemos, porque sem isso os indivíduos não
poderiam ajustar-se ao seu meio ambiente particular.
Desde um ponto de vista neurofisiológico, o modo como isto ocor-
re é surpreendentemente óbvio. As conexões cerebrais estão mais disse-
minadas quando nascemos do que na idade adulta, e o aprendizado da
criança não aumenta, como se poderia supor, o número de conexões
neurais no cérebro — ao contrário, as enxuga. As conexões importantes
para o indivíduo são ativadas e as que só raramente são usadas acabam
por se atrofiar. Por conseguinte, o modo como o meio ambiente local
efetua demandas sobre algumas conexões do cérebro (e não sobre
outras) afeta o modo como ele funciona — basicamente, como todo
indivíduo percebe o mundo. Prossigamos.
O primeiro indício desse papel-chave do meio ambiente no desen-
volvimento da percepção veio do estudo dos gatos. Filhotes criados
experimentalmente em lugares onde só vêem linhas horizontais duran-
te os primeiros meses de vida ficam para sempre deficientes quanto à
visão de linhas verticais. Por não verem nenhuma linha vertical no
U M Fio D E V A N T A G E M 33

período crítico de sua experiência inicial com o mundo, os cérebros dos


filhotes eliminam a maioria das conexões detectoras de linhas verticais.
No meio ambiente natural, se um filhote não vê nenhuma linha vertical
cm seus primeiros meses de vida, ele provavelmente nunca irá vê-las, e
por isso o seu cérebro modificar-se-á para detectar mais nuanças nas
hnhas horizontais de seu mundo.
Os fazedores de machados, cujos presentes modificam o mundo,
têm levado a cabo experiências similares com a sociedade humana des-
de que começaram a realizar ações inaturais como construir abrigos e
cultivar o campo. Como resultado, tornaram a percepção ocidental
moderna diferente das outras. Na moderna cultura ocidental, os cons-
trutores utilizam muitas linhas retas, principalmente verticais e horizon-
tais: ruas retilíneas que se estendem a longas distâncias, edifícios e cor-
redores retangulares, janelas, aparelhos de TV e monitores de computa-
dor quadrados. Crescer neste mundo de retas acima-abaixo e esquerda-
direita afetou nossa capacidade de enxergar as linhas. Por exemplo, um
estudo comparado de estudantes de cidades ocidentais com índios cree
(cujas casas têm linhas em todas as direções) demonstrou que os habi-
tantes da cidade são menos capazes de distinguir o oblíquo (linhas diago-
nais) do que os cree. Estes, de modo análogo, não lidam muito bem com
o retilíneo.
Em outro exemplo, o povo zulu (que vive em choupanas redondas,
com portas e janelas redondas, e ara seus campos em círculos) não expe-
rimenta, tanto quanto os ocidentais, a ilusão de ótica chamada "Muller-
Lyer". Quando vemos uma linha vertical encimada por linhas diagonais
divergentes, temos a sensação de estar olhando a parte interna de um
canto, de modo que a linha vertical parece estar mais distante de nós do
que as diagonais. Por isso ela parece mais comprida. Se vemos uma linha
vertical com linhas diagonais que partem do alto e da base, interpreta-
mos como se fosse um canto voltado em nossa direção, de modo que a
hnha vertical parece mais próxima e mais curta. Mas se fôssemos como
os zulus e nunca víssemos cantos como estes, nós provavelmente não
desenvolveríamos as conexões neurais que nos permitem ter a ilusão
que eles não podem ter.
Algumas de nossas aflições "modernas" resultam também de pre-
sentes dos fazedores de machados. Muito mais pessoas na sociedade
moderna do que na tradicional sofrem de miopia, um crescimento
34 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

excessivo do olho que coloca demasiada distância entre o cristalino e a


retina, de modo que o ponto focal fica acima da superfície do objeto,
turvando a imagem. Mas, dado que esta condição é hereditária em cer-
ca de 80 por cento dos casos, como poderia ela ter-se mantido através
das gerações se os 25 por cento de pessoas que normalmente a possuem
não teriam facilidade para sobreviver caçando e pilhando antes da
invenção dos óculos? Nas sociedades caçadoras-coletoras, a incidência
de miopia é muito baixa, o que não quer dizer que a civilização de algum
modo tenha permitido às pessoas com deficiência visual sobreviverem e
reproduzirem. Os esquimós não eram míopes quando encontraram os
europeus, mas a sua primeira geração de escolares se tornou, na mesma
proporção que em todas as outras sociedades.
A resposta para este mistério está no modo como a leitura em idade
tenra altera a fisiologia do olho que se desenvolve. O olho "normal" rece-
be uma grande quantidade de estímulos visuais a diferentes distâncias,
mas se alguma coisa no campo visual (como a página de um livro) está
sempre no mesmo plano, o olho se desenvolve em uma única direção,
resultando em dificuldades de mudança de foco. A leitura parece interfe-
rir dessa maneira no desenvolvimento do olho, dado que o ato de olhar
para uma pequena marca em um plano liso transforma o próprio olho e
torna os óculos necessários. Daí os óculos dos "ratos-de-biblioteca".
Mas não é só o que está "lá fora" que afeta a rede cerebral. Nosso
comportamento físico também é importante, e as experiências com
macacos mostram que a exercitação de certas áreas das pontas dos
dedos (discriminá-las em troca de recompensas) leva ao aumento da
quantidade de neurônios cerebrais dedicados à análise de informações
provenientes daquela região particular da pele. Isto significa que quan-
do um macaco, ou um humano, pratica repetidamente uma habilidade
ou conjunto de movimentos, o cérebro se reorganiza para melhor fazer
o trabalho.
Entretanto, embora aparentemente tenhamos algumas capacida-
des perceptivas inatas, um sistema perceptivo completamente formado e
pré-integrado parece improvável. Os seres humanos têm vivido em todo
tipo de meio ambiente, em muitas culturas, e é quase certo que a maior
parte dos processos perceptivos se desenvolve com a experiência. Os pig-
meus do Congo, que vivem basicamente na floresta densa e raramente
vêem a longas distâncias, não desenvolvem uma noção de tamanho tão
UM Fio DE V A N T A G E M 35

aguçada quanto a nossa, uma vez que não vêem pessoas e animais se
afastando para longe. Quando fora da floresta, eles "vêem" um búfalo à
distância como se fosse um inseto muito próximo. Embora este seja um
oemplo extremo, todas as pessoas se desenvolvem de um modo que lhes
permite perceber aquilo que é necessário para elas, não para os outros.
A ideia geral que se faz dos instrumentos pré-históricos que produ-
rsram em nós e em nosso comportamento mudanças tão radicais é, qua-
ic sempre, a de que foram feitos de instrumentos de pedra, mas a maior
parte deles, no entanto, era feita, muito provavelmente, de materiais
•aturais que não sobreviveram, como ossos, chifres, tendões, peles e
•adeiras. Dois dos mais importantes desses instrumentos orgânicos
devem ter sido as sacolas e os cordões. As sacolas quase que certamente
com usadas para carregar pedras desde o lugar de origem, e carne des-
ir : .usar do abate, e talvez fossem feitas de peles de animais ou folhas
adas. O próprio desenvolvimento dos instrumentos de pedra, espe-
Jmente em áreas pantanosas onde não havia paus nem pedras, deve
.:gido algum tipo de sacola. Uma tecnologia muitas vezes demanda
i desenvolvimento de outra em seu caminho — por exemplo, o motor a
explosão, que iria estimular novas técnicas de pavimentação de estradas,
coiós problemas de escoamento, por seu turno, iriam exigir melhores
•stemas de drenagem. Sem falar de airbags e dispositivos para remover
a poluição dos edifícios.
Quase todas as sociedades coletoras remanescentes na era moder-
na nutrem uma forte afeição pela cestaria e cordoaria. Fabricam redes e
laços, jogam cama-de-gato e disputam cabos-de-guerra. Cordões e bar-
bantes podiam ser feitos de couro animal, folhas de parreira ou cortiça e
asados para fabricar armadilhas, atar anteparos contra o vento, fazer
sedes para o transporte de cabaças de água e para pescar.
Mas quaisquer que fossem os instrumentos, a mais poderosa e dura-
ioura mudança que trouxeram foi, talvez, aquela que afetou o comporta-
mento das comunidades que os utilizavam. A magia de fabricar estes arte-
fatos conferiu poder aos fazedores de machados e, por conseguinte, àque-
les que podiam utilizar os instrumentos para fazer coisas novas. Divisão
fundamental que iria durar até os tempos modernos, o presente do
machado favoreceu os que na comunidade eram bons no manejo do novo
instrumento e da mudança que ele podia trazer. Os vencedores viriam a
ser aqueles que tinham facilidade de usar suas mentes da maneira como
36 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

elas eram usadas para fabricar um machado, ou seja, sequencialmente.


Nos milénios vindouros, o poder iria fluir, com frequência, na direção da-
quele tipo analítico que podia transformar os presentes em vantagens de
corte-e-controle. Era como se o machado tivesse gerado uma espécie de
meio ambiente artefatual,* no qual aqueles que melhor utilizavam a tec-
nologia para moldar o mundo (e os que os cercavam) se tornavam líderes.
Esta mudança de seleção "natural" para inatural apressou tanto o
surgimento da mente capaz de pensar de maneira sequencial quanto a
natureza não-cíclica das mudanças que os fazedores de machados
haviam introduzido. Juntos, estes dois aspectos do desenvolvimento
humano se tornaram uma potente força de inovação, porque os compo-
nentes sequenciais, seriais, passo a passo, da produção de machados,
quando formalizados, puderam ser transformados em processos mentais
por meio dos quais outros artefatos podiam ser criados. Esta capacidade
iria se tornar, como explicaremos adiante, um ativo muito valorizado na
comunidade humana.
Como resultado dessa primazia, a sociedade iria elevar a ciência
acima das artes, a razão acima da emoção, a lógica acima da intuição, a
comunidade tecnologicamente avançada acima da "primitiva". Pode ser
também que tais aspectos não sequenciais do talento humano, que se
expressam por exemplo na música e na arte, simplesmente não fossem
facilitados pelas circunstâncias daqueles tempos, rigidamente orienta-
dos para a sobrevivência, e permaneceram adormecidos à espera de dias
melhores. O prato do dia ficaria sendo, por enquanto, o pensamento
estritamente linear.
A seleção da mente e a especificação do tipo dominante ocorreu
durante um largo período de tempo, através de processos semelhantes
aos que governam a evolução do mundo natural: geração aleatória e
retenção seletiva. Na natureza, a maioria das coisas acontece aleatoria-
mente. Um bambu se aproxima ou se afasta do sol, uma rã cria uma
nova perna, uma outra ruga aparece no córtex. O que acontece em
seguida depende do mundo, que "seleciona" as mudanças que se lhe
ajustam. O grande génio de Darwin percebeu que é o mundo que sele-
ciona a forma como a vida há de ser moldada. Muita luz solar significa
que haverá plantas com folhas pequenas voltadas para o lado oposto ao

' Artifactual, no original. (N. do T.)


UM Fio DE V A N T A G E M 37

do sol. Pouca luz solar significa que irão predominar plantas com folhas
l grandes.
Existem dentro de cada um de nós, como no caso dos filhotes de
gato antes mencionados, diferentes talentos que se desenvolvem em
relação ao mundo em que vivemos. Por exemplo, as pessoas diferem em
atura, mas, mantidas as demais condições, embora um indivíduo porta-
dor de genes de grande estatura deva ser realmente mais alto do que
outro que não os possua, o mundo que ambos habitam influenciará o
quão altos eles serão. Por isso, durante sucessivas gerações os norte-ame-
ricanos eram, no conjunto, mais altos que seus pais.
As mentes diferem de maneira similar. Por ter a humanidade evo-
hiido de outros animais, mais recentemente dos macacos superiores
antes deles, dos símios do mundo primevo e, antes destes, dos mamífe-
ros), diferentes centros de talento se desenvolveram em tempos diferen-
tes em diferentes partes do cérebro humano. É por isso que alguns indi-
víduos parecem ser muito bons em ver a si mesmos no espaço e se mover
dentro dele (talentos que são bons para o movimento através das regiões
incultas). Outros se destacam pela habilidade de ouvir sons e logo imitá-
ios com pequenos movimentos em um instrumento musical. Outros são
bons no manejo de pessoas, palavras ou números. Ao mesmo tempo que
a herança individual é, evidentemente, muitíssimo diversa, cada um de
DÓS nasce com uma certa variedade de talentos, muitos dos quais nunca
usamos porque o mundo não nos dá oportunidade. Os leitores deste
fivro, por exemplo, ou sua maioria nunca saberão se seriam bons em poe-
sia suaili, em navegação interestelar ou em construção de igrejas.
Os diferentes centros do cérebro estão abarrotados de talentos,
dentre eles a capacidade de sentir o mundo, de conhecer as próprias
emoções e as alheias, de mover-se com graça, de localizar e identificar
objetos no mundo em mutação, ou a aptidão para o cálculo, a conversa,
a literatura, a música, a organização da personalidade. E muitas outras
mais.
O crescimento e desenvolvimento de qualquer pessoa é, como o
próprio curso da evolução, uma luta. A evolução biológica é uma luta
entre diferentes plantas e animais, enquanto a evolução do indivíduo
humano é uma luta entre vários talentos. Assim como os filhotes podem
perder a capacidade de ver linhas verticais, nós podemos perder muitos
de nossos talentos à medida que nos desenvolvemos.
38 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

Quando os seres humanos começaram, na Pré-História, a fabricar


instrumentos, mudaram para sempre este processo de "seleção natural".
Como no caso da miopia, o machado introduziu uma mudança artificial
no modo como os talentos individuais se desenvolviam. Pela primeira
vez, as pessoas que eram boas no seqúenciamento de suas ações desco-
briram que havia uma demanda para esses talentos e que eles eram
recompensados. Os que eram bons no processo se tornaram mais pode-
rosos e seus descendentes tinham maior probabilidade de sobreviver e
transmitir seus talentos. Mas desenvolver preferencialmente um tipo de
talento significa rebaixar e rejeitar outros. Os talentos sequenciais para
produzir comida e construir aldeias fora da floresta viriam a representar
uma evidente vantagem, donde as pessoas seriam mais e mais incentiva-
das a aprender tais artes. Nesse sentido, os instrumentos dirigiram o
desenvolvimento das mentes e vice-versa, e, ao longo do tempo, este
processo retroalimentador singular e "inatural" de ordenar e seqúenciar
ações e pensamentos se tornou dominante graças à produção de macha-
dos e a tudo o que se seguiu. Mas já estamos muito à frente de nós
mesmos.

Há aproximadamente 120 mil anos, o Homo sapiens — humanos anato-


micamente modernos, dotados de talentos sequenciais — parece ter-se
movido para o norte, da África Oriental em direção ao Saara, vivendo
vidas complexas em abrigos de pedra, construindo acampamentos de
cabanas quando saíam para a caça, cozinhando alimentos, secando-os
para armazenamento e moendo vegetais para comer. Alguns parecem
ter desenvolvido instrumentos de corte: uma descoberta recente no vale
Semliki, onde hoje é o Zaire, revelou um depósito de lanças primitivas
talhadas a partir de ossos de peixes de grande porte. Depois, o clima
esfriou abruptamente por muitas centenas de anos e as planícies saaria-
nas, antes exuberantes e abundantes em animais de caça, secaram pou-
co a pouco. Alguns caçadores, estando já longe demais para retornarem
a tempo para o sul, foram forçados a marchar para o norte, seguindo o
que é hoje o Vale do Nilo.
Esses viajantes eram surpreendentemente sofisticados. Um acha-
do arqueológico em Israel (na caverna Qafzeh, nas montanhas da
Galiléia próximas a Nazaré, área situada no caminho dos emigrantes
UM Fio DE V A N T A G E M 39

saarianos) contendo objetos datados de cerca de 90 mil anos atrás por


meio de técnicas de termoluminescência, mostram-nos transportando
láts de fabricação de instrumentos. Os kits consistem em serrotes, plai-
nas, enxós, sovelas e puas, o tipo de coisas que lhes teriam permitido
produzir uma ampla gama de instrumentos sofisticados e especializa-
dos. Os achados também incluem instrumentos de corte e raspagem
para trabalhos com madeira, ossos, peles, carne, além de cabos e pontas.
Fica claro que a mente sequencial já funcionava plenamente por
essa época, com uma visão inteiramente nova da fabricação de instru-
mentos. O poder do pensamento serial para conceituar as coisas, parte
por parte, pode ser visto nas técnicas de trabalho em pedra chamadas
"Levallois" (subúrbio parisiense onde, no século XIX, foram encontra-
dos seus primeiros exemplares). Nesta técnica, a forma do instrumento
era agora determinada pelo método de preparar a pedra em vez de ser
ditada pela forma natural da mesma. Esta capacidade significava que os
viajantes podiam montar seus complexos de produção de instrumentos
em uma gama variada de lugares. Mas o verdadeiro salto do novo pensa-
mento pode ser visto no modo como muitos instrumentos podiam então
ser fabricados a partir da mesma pedra. A pedra-mãe produzia agora
cinco vezes mais objetos afiados do que as técnicas anteriores haviam
sido capazes de fazer. E um fio de vantagem era essencial para a sobre-
vivência.
A absoluta complexidade deste género de produção de instrumen-
tos (convém repetir que isto acontecera há 90 mil anos) foi revelada pela
reconstrução moderna das técnicas de trabalho em pedra de Levallois. A
fabricação de um instrumento complexo teria exigido algo como 111
golpes para moldar a plataforma plana em sua base, seguidos de um gol-
pe vibrado com força e extrema precisão para separá-lo da pedra-mãe.
Isto indica uma notável familiaridade com as características da fragmen-
tação das pedras. Um moderno especialista francês em trabalhos de can-
taria estimou que um vocabulário de não menos de duzentos e cinquen-
ta sinais teria sido necessário para transmitir esta habilidade. Além dis-
so, dado que cada gesto ou som poderia referir-se a uma ferramenta que
podia ser usada de muitas maneiras, seria necessário que existissem
novas e diferentes formas sonoras e de gesticulação para expressar o uso
que se pretendia para um ferramenta e por quem.
Esses "sons de aprendizado" podem ter sido os mais importantes
40 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

jamais produzidos pela boca humana. E talvez revelem outro daqueles


talentos por selecionar, latentes, discutidos anteriormente. O antropólo-
go Gordon Gallup analisou sequências de movimentos dos membros em
macacos arborícolas do Novo Mundo e percebeu nelas "uma espécie de
gramática", uma sequência de ações que têm de ser realizadas na ordem
correta. Concluída a mudança inicial para a savana, a estrutura cerebral
básica que evoluiu até esta movimentação rítmica sofisticada e sequen-
cial estava agora disponível para outros usos.
Esta "gramática" primeva da atividade sequencial pode ter propi-
ciado, assim, a organização de ações que tornariam possível a produção
de instrumentos. E é aqui que este novo poder da mente serial aparece
como evidente. Talhar um instrumento requer um conjunto de opera-
ções levadas a cabo em uma ordem específica. As instruções para a fabri-
cação de uma ferramenta podem ter sido, pois, sons seriais especifican-
do a sequência da manipulação física necessária. A mão direita teria sido
usada prefencialmente para golpear e posicionar enquanto a mão
esquerda atuava como elemento de estabilização.
Pode ser então que os primeiros sons que acompanhavam a "gra-
mática" da fabricação serial de instrumentos tenham também lançado
os fundamentos da gramática da linguagem, porque a gramática se
baseia em sons que só fazem sentido (tal como as ações bem-sucedidas
na fabricação de instrumentos) se são produzidos na ordem correta. O
instrumento e a sentença seriam uma única e mesma coisa.
À medida que os instrumentos se aperfeiçoavam e proliferavam, o
mesmo ocorria com os sinais e sons que os descreviam e à sua manufa-
tura. O indivíduo que dominava esse vocabulário não apenas possuía o
mais valioso conhecimento do grupo como era o mais apto a (literalmen-
te) articulá-lo para o benefício da comunidade.
A linguagem provaria ser outro "presente-machado", imensamen-
te mais eficaz, para recortar e transformar a natureza e a comunidade.
De início ela propiciou uma melhor organização, o uso mais eficiente
dos recursos do grupo e a produção de novos conhecimentos. No final
(embora o processo tenha levado dezenas de milénios), a linguagem
levaria os homens a se tornarem analíticos, segmentando as experiên-
cias para reordená-las em modelos mentais da realidade que pudessem
ser usados para dirigir a inovação.
À medida que se multiplicava, o estoque de conhecimento produ-
UM F i o D E V A N T A G E M 41

zia uma grande quantidade de instrumentos para elevar as chances de


sobrevivência e retirar mais alimentos do meio ambiente — agulhas e
sovelas (no norte, onde roupa quente era essencial), arpões e anzóis (nas
comunidades ao longo da costa), arremessadores de lanças e pontas de
flecha (para os povos caçadores das savanas).
Viajando a uma velocidade de trezentos e vinte quilómetros por
ano, os humanos saíram da África e, há uns 90 mil anos, encontravam-se
no Oriente Médio. Cinquenta mil anos depois haviam se espalhado pela
Europa, Nova Guiné e Austrália. Cerca de 25 mil anos mais tarde che-
garam à Sibéria e logo cruzaram a ponte de terra do Estreito de Behring
em direção à América.
Dotados de sistemas digestivos capazes de nutrir-se de uma gran-
de variedade de fontes, eles extraíram a energia da natureza com lanças
e machados, facas e pedras, fogo e armadilhas. Cada cacador-coletor
precisava de uns quarenta quilómetros quadrados para prover-se de ali-
mento suficiente para a sua sobrevivência, o que limitava o tamanho dos
grupos talvez a vinte e cinco membros. Quando exauriam a capacidade
de extração de uma zona, mudavam-se.
Graças a seus instrumentos, os humanos, diferentemente dos
outros animais, eram capazes de se adaptar rapidamente e sobreviver
em ambientes extremamente variados. Por esta razão, setecentos sécu-
los depois de deixarem a África como um grupo homogéneo, os seres
humanos começaram a se diferenciar. Por esta época, eles haviam aber-
to seu caminho por todo o mundo e chegado a diferentes zonas climáti-
cas. Ali onde os recursos alimentares eram fartos o bastante, eles fica-
vam, e após centenas de gerações já haviam permanecido em diferentes
partes do mundo tempo suficiente para se adaptarem às condições
locais. Então, cerca de 40 mil anos atrás, já haviam se transformado
naqueles que seriam os três principais grupos físicos: africanos,
eurasianos (caucasóides, norte-asiáticos e ameríndios) e sul-asiáticos/
oceanídeos (sudeste-asiáticos, pacífico-insulares e australianos/nova-
guineenses).
E por todo o planeta, quanto mais tempo ficavam em uma área,
mais desenvolviam características locais diferentes, dependendo do
meio ambiente que seus instrumentos tornassem habitável. Os que pos-
suíam instrumentos para sobreviver na densa floresta tropical se toma-
ram gradualmente menores porque a falta da luz solar e a escassez de
42 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

minerais essenciais no solo, lixiviados pela pesada chuva tropical, limita-


vam a absorção do cálcio.
Por esta época, a tecnologia da produção de instrumentos havia se
aperfeiçoado a ponto de tornar possível a fabricação de lâminas muito
pequenas e finas que permitiam às pessoas costurar peles de animais,
instalar-se em torno de lareiras empedradas e sobreviver nos climas frios
do norte, perto da linha do gelo. Aqui, uma vez mais, os presentes dos
fazedores de machados estavam mudando nossas formas, uma vez que
o meio ambiente do norte favorecia agora aqueles dentre os povoadores
que tinham a pele clara, quase transparente, e que podiam maximizar a
síntese da vitamina D a partir de baixos níveis de luz solar. Os olhos
azuis também viam melhor na luz opaca do inverno. E as regiões mais
frias favoreciam corpos mais pesados, capazes de reter mais calor, dota-
dos de troncos longos, pernas curtas, pescoços grossos, pés largos e nari-
zes mais compridos e estreitos para que o ar ganhasse calor e umidade
antes de atingir as mucosas delicadas dos pulmões. Os povos do norte
começaram a ficar parecidos com os nórdicos.
Com novos instrumentos que lhes forneciam meios de viver onde
nenhum hominídeo poderia ter sobrevivido antes, os viajantes foram
também afetados pelo nível de raios ultravioleta da luz do dia. Suces-
sivas gerações reagiram mudando a pigmentação da pele, as característi-
cas físicas e a forma do cabelo. Tornaram-se altos, atarracados, gordos,
pálidos, morenos, amarelos, negros e de todos os tons e formas interme-
diárias, à medida que as "raças" (modificações adaptativas menores)
começavam a surgir.
Um claro exemplo desta mudança adaptativa ocorreu entre os
colonizadores que alcançaram a Ásia Oriental, vindos por dois caminhos
diferentes. Um grupo, viajando para o leste desde a Ásia Menor, tomou
a rota pelo sul do Himalaia. Outro seguiu pelo lado norte das monta-
nhas, através da Ásia. Os do norte viveram nas estepes por centenas de
gerações, tornando-se fisicamente diferentes de seus parentes do sul,
que se adaptaram ao clima mais quente e se tornaram uma gente esguia
e de pele escura, capaz de viver em condições quentes e úmidas, quase
sempre ao longo da costa e nas ilhas. Estes povos, com suas tecnologias
baseadas no bambu, colonizaram o Sudeste Asiático e se estabeleceram
como aborígenes e, mais tarde, como povos insulares do Pacífico. Os do
norte assumiram características mais adaptadas aos ambientes frios.
UM Fio DE V A N T A G E M 43

Tendo-se deslocado para a Sibéria, tornaram-se os esquimós modernos,


alguns dos quais se mudaram para mais longe ainda, através da ponte de
terra do Estreito de Behring, para se tomar, por sua vez, os americanos
nativos.
A percepção popular desses primeiros humanos é a de que viviam
ios em harmonia com a natureza, em uma espécie de paraíso pré-his-
árico. Assim foi em algumas áreas durante longos períodos, mas desde
mito cedo o comportamento humano começou a mudar dramatica-
mente a ecologia de vastos territórios, exterminando por exemplo ani-
nais como mamutes, rinocerontes, gado selvagem e preguiças gigantes
pastagens da Eurásia e América do Norte. Os que se moviam deva-
• viravam refeição.
Os povos da Idade do Gelo eram eficientes caçadores de grandes
limais, os quais provavelmente eram conduzidos para os penhascos ou
i dentro dos lagos, onde podiam ser facilmente alcançados pelas lan-
as arremessadas dos barcos de madeira revestida com peles. O uso do
fogo para espantar os animais, de modo a tornar mais fácil a sua caça,
também mudou a flora de áreas inteiras da África, com o que as espécies
sminantes de árvores, arbustos e relvas passaram a ser vegetais resis-
tentes ao fogo, como acácias, loureiro-selvagem e outras.
Existem na América do Norte intrigantes indícios arqueológicos
do quão extensa foi a matança, sob a forma de "horizontes de cinzas" —
orlas das áreas de queima de vegetação que demonstram de maneira
impressionante as distâncias consideráveis até onde iam as caçadas.
Além disso, ao liquidar várias espécies de grande porte em uma área os
caçadores mudavam a ecologia, porque esses animais eram muitas vezes
um elemento-chave da propagação dos vegetais.
Um típico grupo de tais caçadores viajantes teria cerca de vinte e
cinco indivíduos estreitamente ligados entre si por laços de parentesco
na unidade básica, mantendo contato regular e ligando-se pelo casamen-
to com grupos semelhantes que compartilhavam a mesma língua, em
uma quantidade estimada entre vinte e cinco e cinquenta. Desse modo,
uma tribo devia ter entre 300 e 1.000 indivíduos. Antes de atingir os
2,000 membros, o mais provável era que a tribo se dividisse e lutasse.
Dependendo da quantidade de alimento disponível, a área de cobertura
de uma tribo podia variar de ZOOkm2 por pessoa, em áreas desertas, a
Ikm2 por pessoa ao longo de uma linha de costa abundante em recursos.
44 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

Há cinquenta mil anos, quando nossos ancestrais se mudavam


para a Europa, o meio ambiente mudou outra vez. As temperaturas
começaram a cair com a chegada de uma nova Idade do Gelo. Estes res-
friamentos periódicos provavelmente ocorrem devido ao ângulo do eixo
da Terra (que atinge a máxima inclinação a cada 41 mil anos) e à varia-
ção da distância em relação ao sol (que alcança um máximo a cada 100
mil anos). Quando a Terra inclina seu Pólo Norte até a máxima distân-
cia do sol, o Hemisfério Norte esfria e as geleiras se expandem. Por isso,
há 50 mil anos o clima europeu piorou catastroficamente. Por todo o
continente ao norte do Mediterrâneo, as florestas desapareceram dando
lugar a uma capoeira mirrada e um ambiente polar, desértico e frio.
Tudo ficou gelado, e pior, à medida que as manadas se exauriam, a co-
mida começou a desaparecer.
Não há dúvida de que, como resultado das novas demandas que
lhes apresentou este ambiente em deterioração, os fazedores de macha-
dos, que proviam suas tribos (e já outras também) de instrumentos, ago-
ra trabalhavam com extrema sofisticação, utilizando um novo método
chamado técnica da "lâmina puncionada". Um núcleo de rocha rude-
mente cilíndrico era desbastado e aplainado no topo. Um golpe seco na
borda desta "plataforma" plana fazia com que uma lasca de pedra se sol-
tasse na lateral da peça. Outro golpe seria aplicado em seguida num pon-
to próximo ao primeiro, fazendo soltar uma nova lasca. Esta técnica
podia produzir mais de cinquenta lascas (lâminas brutas) de um única
pedra-mãe, as quais podiam ser mais tarde transformadas em outros ins-
trumentos de tipo específico. Se com a velha técnica Levallois uma
pedra produzia quarenta centímetros de lâmina, agora podia render dez
metros. O farto suprimento de gumes gerado por esta técnica tornou
possível a existência de um total de não menos de 130 diferentes tipos
de instrumentos. E, como sempre, as pessoas achavam usos para eles.
Os usuários deste amplo sortimento de gumes começaram, então,
a viver um estilo de vida mais complexo. Estes caçadores do norte agora
vestiam parkas* de pele de animal, viviam em campo aberto no verão e
nos vales dos rios no inverno e levavam consigo seus fogos portáteis
quando se mudavam. Toda primavera, eles saíam de suas cavernas
invernais para retornar aos mesmos sítios de caça voltados para o sul,

1
Peça de vestuário da Sibéria e do Alasca, espécie de agasalho com capuz (N. do T.)
UM Fio D E V A N T A G E M 45

onde erguiam tendas de couro retangulares com pisos empedrados e,


em alguns casos, lareiras circulares. Caçavam com arremessadores de
lanças, apoiadas em cordões de fibra e com pontas de lâminas destacá-
de maneira que a haste pudesse ser recuperada. O escambo com
outros grupos havia começado também, fazendo vir artefatos de lugares
situados a até 400 quilómetros de distância.
O fato de enterrarem seus mortos adornados com colares de con-
chas, contas de marfim de mamute perfuradas, braceletes, faixas de
cabeça, anéis e lâminas de pedra delicadamente trabalhadas significa
que eles os vestiam para a outra vida. Muitos dos mortos sepultados des-
sa maneira eram crianças, que não poderiam ainda ter adquirido o tipo
de respeitabilidade que as levaria a merecer este tipo de sepultamento
especial. Por isso, é possível que fossem membros de famílias ou filhos
de homens e mulheres detentores de poder. Essas crianças mortas pare-
cem indicar a presença de uma elite cuja posição era possivelmente
hereditária e que era detentora de autoridade ou posses suficientes para
ordenar que artigos extremamente valiosos e mágicos fossem colocados
QOS túmulos de seus filhos.
Há cerca de 30 mil anos, enquanto a temperatura em declínio fazia
perigar o suprimento de comida e a sobrevivência começava a exigir
tipos de organização cada vez mais eficientes, uma mudança extraordi-
nária ocorreu no comportamento dos habitantes de uma faixa do terri-
tório europeu que ia da Espanha ao sul da Rússia. Eles começaram a
crâr a arte primitiva.
Esta arte é talvez a primeira evidência indireta do uso da nova lin-
guagem para a criação de mitos. É possível que fosse usada por xamãs
tribais como instrumento de controle social, sob a forma de explicações
•ágicas para processos naturais que só eles conheciam. A natureza
autoritária dessas explicações pode ter conferido um poder mágico aos
xamãs, que usavam seu conhecimento misterioso para prever os fenó-
menos naturais. Essa arte pode ter sido usada para formar cenários ritua-
feticos em ocasiões cerimoniais. Ela ocorre primeiro nas cavernas, luga-
res provavelmente sagrados em cujas paredes os xamãs e seus assisten-
tes pintavam imagens de animais e onde realizavam cerimónias de ini-
ciação (em algumas cavernas, os pisos de lama endurecida exibem sinais
de pés dançando). O propósito das pinturas parece ter sido o de aplacar
as forças da natureza, das quais a comunidade dependia.
46 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

Os bisões, cavalos, leões e renas das pinturas eram todos objeto de


caça. Algumas das pinturas mostram também caçadores atacando ani-
mais feridos, que aparecem espetados com lanças. É possível que
tenham sido desenhadas durante os rituais que a cada ano, no início da
estação, auguravam boas caçadas e transmitiam aos caçadores força de
propósito. Qualquer que fosse sua finalidade, no entanto, as pinturas
claramente estavam escondidas dos olhos das pessoas comuns porque
em alguns casos elas se acham a grandes profundidades, em cavernas
dentro de cavernas dentro de cavernas, sugerindo que a jornada para
atingi-las tinha um significado exclusivamente ritual.
A arte das cavernas surge num período em que a população do
Paleolítico Superior em rápido crescimento vivia momentos difíceis,
que demandavam constante adaptação e muitos recursos. A quantidade
cada vez maior de novos instrumentos produzidos em resposta a tais
necessidades pode ter complicado a estrutura da comunidade, uma vez
que os novos instrumentos possibilitavam atividades novas e mais espe-
cializadas. A consequente necessidade, por parte dos líderes tribais, de
manter unidos grupos cada vez mais heterogéneos sob condições cada
vez mais difíceis pode ter, por outro lado, gerado a necessidade de
encontrar-se uma fonte de autoridade ainda maior e mais poderosa que
eles próprios.
As pinturas encontradas na caverna-santuário de Trois-Frères, no
sul da França, contêm a representação de um ser meio-homem meio-
cervo batizado pelos arqueólogos de "O feiticeiro", que pode ser uma
das primeiras figurações da nova autoridade: um deus que conservava o
bem-estar da comunidade em seu poder e que só podia comunicar-se
com o líder através da mediação do xamã. No meio ambiente em cons-
tante mutação daqueles tempos, a introdução deste tipo de mitologia
sobrenatural pode ter tornado mais eficaz a hierarquia de comando e
consolidado a unidade do grupo face às tensões sobre ele colocadas pelo
temor de que o clima se tornasse ainda pior e a sobrevivência ainda mais
precária.
Uma vez que o clima glacial causava a dispersão das manadas, tor-
nando essencial a capacidade de monitorar seu movimento em áreas
cada vez mais amplas, deve ter sido também natural a busca de outros
grupos para ajuda e informação, constituindo-se então alianças de grupos
cimentadas por laços de casamento. Esta pode ter sido a razão do surgi-
UM Fio DE V A N T A G E M 47

•ento de outro artefato que apareceu pela primeira vez há cerca de 20


ãl anos. Trata-se de uma pequena estatueta feminina conhecida como
a *Vênus". A figura aparece com frequência cada vez maior em todo o sul
da Europa, numa área que cobre a distância de mil e seiscentos quilôme-
RK que vai da França ocidental até a planície da Rússia central.
A Vénus tinha um formato uniforme, servindo provavelmente de
forma de identificação de pessoas que deviam fazer contato com outros
pnpos ou, mais provavelmente, por mulheres dadas em casamento nas
afanças, para fazer recordar à comunidade adotiva as suas origens e des-
sr modo assegurar a continuidade do contato entre os grupos. Tendo as
[•líparações trazido crescentes problemas de linguagem, esses artefatos
de identificação podiam, quem sabe, ajudar a evitar problemas de comu-
•icação no caso de caçadores ou mercadores de longas distâncias encon-
trarem dificuldade, ao se depararem uns com os outros, de explicar
quem eram. Estes artefatos teriam também tornado possível a manuten-
ção de laços intertribais a grandes distâncias, permitindo que os grupos
e espalhassem sobre áreas muito vastas.
Nesta época, os cérebros dessas tribos que mercadejavam, viaja-
vam e casavam eram inteiramente modernos, sob o ponto de vista ana-
tómico. Sondagens feitas em crânios fossilizados indicam um importan-
te crescimento do suprimento de sangue para o cérebro, bem como o
aumento de tamanho da fissura Sylvius, que está relacionada à produ-
ção da linguagem. A região de Broca, que só se faz presente no cérebro
altamente complexo do homem moderno e é associada à fala, também
D aparece nesses novos crânios.
Foi por volta desse tempo que um novo e extraordinário tipo de
artefato apareceu pela primeira vez. Trata-se de outro poderoso exem-
o da maneira como os fazedores de machados remodelaram nosso
modo de pensar. O novo instrumento deve ter parecido absolutamente
mágico, e é tentador vê-lo na origem do antiquíssimo mito da varinha de
eoodão. Ele parece representar o primeiro uso deliberado e preciso de
mn aparato destinado a estender a memória, porque com ele o conheci-
mento podia ser mantido como registro fora do cérebro ou de uma
sequência ritual. Tais objetos mágicos, chamados de "bastões" pelos
arqueólogos modernos, são feitos de ossos ou chifres entalhados. Muitos
milhares de exemplares sobreviveram, aparecendo na maioria das cultu-
ras do período.
48 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

Cada sinal entalhado no bastão era feito com um golpe de uma fer-
ramenta de tipo especial. Alguns são simples linhas retas, outros são
linhas curvas, outros se parecem com pontilhados. As marcas aparecem
também em conjuntos, dispostos horizontalmente formando uma linha.
Em alguns casos, o entalhador virava o bastão e continuava a série na
parte de trás, para ter lugar para todas as marcas. Isto bastaria para indi-
car que o trabalho não tinha a mera intenção de arte. Com toda proba-
bilidade, as gravações representam a primeira forma de notação infor-
macional. Sua mera existência é prova do estágio altamente desenvolvi-
do da inteligência de seus autores. As faculdades cognitivas necessárias
para produzir os bastões requeriam um cérebro capaz de operar séries
complexas de conceitos visuais e temporais, exigindo tanto memória
como reconhecimento. São exatamente estas as capacidades mentais
envolvidas na moderna leitura e escrita. Esses artefatos revelam a pre-
sença, já há aproximadamente 20 mil anos, de cérebros totalmente
desenvolvidos, totalmente modernos. Mas a maneira como esses cére-
bros pensavam o mundo era ainda muito diferente da nossa.
Os bastões evocam uma existência repleta de símbolos mágicos
como as estatuetas de Vénus e os rituais associados à arte das cavernas e
à vida além-túmulo. As notações nos bastões se ajustam ao contexto de
um repertório cultural sofisticado que incluía instrumentos decorados,
amuletos pintados com ocre vermelho, decoração pessoal, objetos e ima-
gens rituais, inclusive fúnebres, que envolviam elementos cuidadosa-
mente dispostos com arranjos florais e representações antropomórficas,
como o homem-cervo "Feiticeiro" antes mencionado. Os membros des-
sas comunidades estavam muito distantes dos trôpegos e simiescos
homens das cavernas imaginados pelos arqueólogos modernos até umas
poucas décadas atrás.
A primeira pista da finalidade específica dos bastões vem do fato
de terem sido todos eles encontrados em latitudes meridionais, em tor-
no do Mediterrâneo, principalmente na França, Itália e Espanha. É aqui
que, tendo o gelo finalmente começado a recuar, a melhoria do clima se
teria feito acompanhar do aumento da vegetação, de uma variedade
crescente de animais de caça e da oportunidade de os humanos se bene-
ficiarem de ambos. A segunda pista é que a regularidade e a repetição de
conjuntos padronizados de entalhes nos bastões indicam um senso de
periodicidade.
U M Fio D E V A N T A G E M 49

Com o passar do tempo, o número de bastões entalhados cresce de


maneira impressionante e os conjuntos de marcas começam a conter
representações de animais e plantas. O bastão de Montgaudier (um chi-
fre de rena entalhado, datado de 17 mil anos atrás) mostra gravações
naturais de focas e peixes, embora Montgaudier, na França, esteja a
quase duas centenas de quilómetros do mar. O exame microscópico
revela o motivo. A gravação da mandíbula do salmão mostra a forma
característica deste peixe na época da desova. O mesmo bastão também
íorta imagens de formas sinuosas que podem ser representações de ser-
pentes locais saindo da hibernação na mesma época da desova do salmão.
Uma flor da primavera brotando, também representada, completa as gra-
vações e revela por que o entalhador desenhou focas e salmões tão longe
o mar. Na primavera, os salmões deviam iniciar a desova rio acima,
seguidos pelas focas predadoras. Ambos os animais eram uma abundan-
te fonte de alimento, e os bastões tornavam possível a previsão acurada
:_ t; :ca de sua chegada.
Um osso gravado posterior, encontrado em Cuerto de Ia Mina, no
•oroeste da Espanha, desenvolve o tema com as duas faces gravadas
:om uma série de imagens que mostram animais e plantas em uma
sequência estacionai que vai de março a outubro.
O mais extraordinário de todos os exemplos, o osso francês "La
Marche", data de 13 mil anos atrás e foi descoberto em um achado que
incluía instrumentos decorados, amuletos e uma biblioteca de pedras
gravadas com imagens humanas e animais. Além da gravação de uma
égua prenha, o osso porta uma série de marcas talhadas em conjuntos e
subconjuntos, feitos cada um com uma ferramenta diferente.
Quando comparado com um modelo astronómico, o osso revelou-
se como a notação das exatas sessenta marcas do calendário lunar. Os
subconjuntos começam em pontos convencionais das fases lunares,
rorn as limitações de observação que se pode esperar nas latitudes
médias da Europa. O calendário completo cobre um período de sete
meses e meio, com notável precisão. A sequência completa parece ir do
meio do degelo, em março, ao primeiro gelo de novembro, cobrindo o
período em que os caçadores poderiam viver fora de seus abrigos nas
cavernas.
Esses bastões maravilhosos indicam capacidade de abstrair e sim-
olizar. Revelam também uma capacidade altamente desenvolvida de
50 O P R E S E N T E DO FAZEDOR DE M A C H A D O S

observar e registrar os fenómenos celestes. Revelam, acima de tudo,


como os instrumentos, ao tornar possível uma vida cada vez mais com-
plexa, mudaram também o modo de funcionamento de nossas mentes.
Da mesma forma, o uso de calendários para organizar caçadas indica
capacidade de planejar estrategicamente para um ano inteiro e de
comunicar tais planos de maneira inteligível aos demais membros do
grupo. Mais que tudo, a capacidade de o grupo compreender toda esta
informação indica que o simbolismo envolvido na explicação era com-
partilhado. Este grau atingido pela capacidade de comunicação iria, por
sua vez, tornar possível uma adaptação cultural muito mais rápida.
O significado fundamental dos bastões para o futuro da comunida-
de humana (e a razão pela qual eles mostram o poder dos instrumentos
para moldar a mente) reside na maneira como este mecanismo de
memória externa fez aumentar a capacidade de funcionamento do cére-
bro. Um instrumento como o bastão permitiu a codificação da natureza
em símbolos duráveis que podiam ser utilizados e reutilizados pela ima-
ginação para manipular o mundo. Com ele, a mente podia dissecar sim-
bolicamente o mundo, recortá-lo e depois rearrumar as peças para
encontrar nos dados novos padrões. Nesse sentido, os símbolos deram
aos seus usuários a capacidade de construir cenários, de ver os produtos
na teoria antes de passar à prática. Os bastões deram, portanto, ao xamã
— então o depositário dos saberes ocultos (e através deles ao líder do
grupo) — a capacidade de prever os acontecimentos antes de eles ocor-
rerem, como o degelo e a chegada do salmão. O sucesso dos novos ins-
trumentos fica evidente no fato de que todos os bastões, com pouquíssi-
mas exceções, exibem sinais de uso contínuo.
Talvez não seja fantasioso demais imaginar como foi que os viajan-
tes sobreviveram e se multiplicaram, enquanto prosseguiam sua marcha
milenar pelo planeta, graças a esses bancos de dados portáteis, com suas
informações sobre as estações e as caçadas interpretadas pelo xamã nas
horas mágicas.
Mas, acima de tudo, a simples presença dessas varinhas de condão
anuncia um novo tipo de conhecimento, diferente talvez de tudo o que
as precedera. O bastão não era apenas um machado de pedra moldado
por uma técnica misteriosa, desconhecida da maioria, cuja finalidade
podia no entanto ser apreciada pelo uso. Os símbolos no bastão eram
visíveis mas incompreensíveis, exceto para uns poucos, em qualquer cir-
U M Fio D E V A N T A G E M 51

cunstância. Olhar para eles ou mesmo tocá-los quantas vezes fosse não
tomaria claro o seu significado sem o código especial que só o xamã e
seus acólitos conheciam. Os símbolos eram a prova visível da existência
de um tipo de conhecimento artificial do mundo que conferia poder
àqueles que sabiam como usá-lo. Era o tipo de conhecimento que iria
provir, cada vez mais, dos fazedores de machados, e que iria alargar o
fosso entre os que produziam mudanças e os que somente as aceitavam.
Os bastões talvez tenham causado um último efeito, que penetrou
fundo nas mentes dos membros da primitiva raça humana. A língua que
falavam quando deixaram a África era compartilhada e devia ser sufi-
cientemente desenvolvida para descrever os instrumentos que prolifera-
vam e seus diversos usos, bem como para organizar a complexidade
social resultante. Mas, à medida que o sucesso dos próprios instrumen-
tos ajudava os viajantes a irem cada vez mais longe mundo afora, os gru-
tos se dividiam e redividiam, tomando diferentes caminhos, por dife-
rentes vales, diferentes rios e diferentes montanhas, sobrevivendo mais
facilmente separados do que juntos.
Com o passar do tempo, tendo a raça humana se dividido vezes
sem conta, aqueles primeiros momentos de separação talvez se tenham
tornado, em algum lugar do Oriente Próximo, uma lembrança semi-
esquecida, apenas lembrada em mitos e rituais. Assim foi também com
a língua que um dia todos compartilhamos. À medida que os instrumen-
tos se tornaram mais específicos de cada meio ambiente, e que os ruídos
usados para descrevê-los (e tudo que eles tornaram possível) se tornaram
mais ligados à localidade, perdemos nossa identidade única original em
uma babel de novos dialetos que com o tempo se transformaram em lín-
guas diferentes operando em cérebros diferentemente organizados. Os
presentes dos fazedores de machados nos haviam dado distintas manei-
:e expressar distintas realidades e distintas visões do mundo basea-
das em distintos sistemas de valores gerados em conformidade com o
meio ambiente.
Há cerca de 12 mil anos, as tribos agora física e culturalmente
diversas estavam dispersas em todos os continentes, com exceção da
Antártida, incompreensíveis umas às outras, com suas ancestrais origens
africanas esquecidas e sua existência firmemente enraizada nas terras
para as quais seus instrumentos as haviam trazido. Elas já não podiam
retomar. Podiam apenas parar e se estabelecer.
Capítulo 2

UMA CONTRIBUIÇÃO
SIMBÓLICA

O desenvolvimento humano e o crescimento da civiliza-


ção têm dependido, fundamentalmente, do progresso de
umas poucas atividades — a descoberta do fogo, a domes-
ticação dos animais, a divisão do trabalho; mas, acima de
tudo, da evolução dos meios de recepção, comunicação e
registro do conhecimento e, especialmente, do desenvol-
vimento da escrita fonética.

COLIN CHERRY, ON HUMAN COMMUNICATION


á mais ou menos 12 milhões de anos, quando existiam cerca de
mco milhões de seres humanos sobre a Terra, os fazedores de macha-
s criaram dois presentes que iriam causar mudanças profundas no
specto físico de nosso mundo e na paisagem de nossas mentes. Nossos
ancestrais pegaram os presentes não muito tempo após terem encerrado
a grande viagem porque, como iria acontecer muitas e muitas vezes na
história, não tinham escolha.
As tribos haviam sobrevivido à milenar jornada através do planeta
por causa de seus instrumentos. E graças à intensidade com que esses
instrumentos lhes permitiam retirar mais e mais meios de subsistência
da natureza, o número de indivíduos cresceu a ponto de existirem ago-
ra muitos e muitos deles sobrevivendo sem a necessidade de uma nova
mudança radical de comportamento. Os novos presentes da agricultura
e da escrita iriam libertá-los dos caprichos das fontes naturais de alimen-
to e conduzir a notação em ossos do xamã a um novo estágio de modifi-
cação do mundo.
Os viajantes, em número cada vez maior, já vinham há algum tem-
po usando instrumentos para aumentar a retirada de meios de sustento
dos lugares onde se encontravam. Parte deste processo correspondia,
muito provavelmente, ao desenvolvimento de uma espécie de proto-
horticultura. Os coletores tinham de estar agudamente conscientes dos
movimentos estacionais dos animais e do ciclos de vida dos vegetais, e
por isso devem ter observado que as plantas de que se alimentavam
regularmente cresciam perto dos assentamentos temporários onde as
sementes haviam sido atiradas. Deviam usar laços e armadilhas para pro-
teger dos animais as plantas mais apreciadas e mesmo incentivar o cres-
cimento delas por meio da capina. Nos tempos difíceis, as áreas mais
produtivas deviam ser cuidadosamente guardadas das tribos rivais.
56 | O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DEM A C H A D O S

Desse modo, a ideia de que a fixação era provavelmente a única


forma de sobreviver deve ter surgido junto com a capacidade de assegu-
rar o sustento sem a necessidade de longas viagens em busca de comida.
Há evidências de que os instrumentos necessários já estavam à disposi-
ção. Foices primitivas e pedras de amolar encontradas em Israel provam
que já há 15 mil anos os grupos caçadores estavam tendendo para uma
vida mais sedentária. Os novos instrumentos permitiram que o meio
ambiente local ofertasse mais alimentos, e com isso o crescimento da
população continuou. E uma vez que os instrumentos começaram a
ligar mais estreitamente o indivíduo ao lugar, agora semipermanente, os
grupos começaram também, de acordo com as circunstâncias, a se
apoiar em atividades mais especificamente relacionadas à localização:
coleta de moluscos e crustáceos, caça de animais nas pastagens e pilha-
gem de frutos nas florestas. Comportamento e localização se tornavam
estreitamente ligados.
Nesta época, práticas fúnebres começaram a ser adotadas por
outras pessoas que não os líderes, o que pode indicar que os nomes pes-
soais, antes usados somente pelos chefes e xamãs, eram agora atribuídos
a todos os membros do grupo. Escolhidos possivelmente pelos líderes, os
nomes serviriam para ligar o indivíduo ao grupo, antes e depois da mor-
te, o que por sua vez pode ter reforçado a identidade grupai e, por con-
seguinte, o poder dos líderes. Também isto pode ter contribuído para
que as pessoas permanecessem nos novos assentamentos.
A primeira tribo a se estabelecer permanentemente foi talvez a dos
kerabans, das planícies do Levante, em frente ao Mediterrâneo, um
lugar fértil, abundante em plantas e frutas. A sua cultura (conhecida
como "natufiana" e localizada onde é hoje a Síria) se desenvolveu, e com
ela o tamanho dos assentamentos, que cresceram de modo impressio-
nante, de no máximo quatro famílias agrupadas, há 11 mil anos, para as
primeiras aldeias de mais de duzentas casas (em Mureybit, Síria) dois mil
anos mais tarde.
Mas os novos ocupantes natufianos não se tornaram de imediato
agricultores. Eram ainda hábeis caçadores, e dispunham de um novo
instrumento: um longo fragmento de basalto no qual eram talhados dois
sulcos profundos em paralelo. Hastes de madeira colocadas nos sulcos
endireitavam-se facilmente com o aquecimento da pedra. Isto iria
aumentar bastante a precisão das flechas, fazendo com que a caçada
UMA C O N T R I B U I Ç Ã O S I M B Ó L I C A 57

luzisse alimento suficiente para toda a comunidade estabelecida,


10 no caso de faltarem as fontes de vegetais.
Enquanto o crescimento da população forçava os grupos errantes a
fontes de alimento mais confiáveis, a limitada capacidade de
produção da terra fazia também elevar o valor do conhecimento que as
•ulheres coletoras tinham tradicionalmente dos vegetais e agora da agri-
oritura seca. A introdução do arado rudimentar (basicamente uma vara
-jc es;avar puxada por um boi) também elevou radicalmente a capacida-
b de produção do meio ambiente local, ainda insuficiente no entanto
pKH o sustento de uma população sadia e bem-alimentada. No início, a
áeca era restrita e a desnutrição comum. Mas onde haviam sido necessá-
ios cerca de quarenta quilómetros quadrados para o sustento de um
eaçador-coletor, cinco eram suficientes agora para um ocupante.
A dieta básica do mundo moderno vem dessa época em que nossos
•cestrais começaram a selecionar espécies locais para o cultivo — trigo,
nada, ervilha, lentilha, fava, ervilhaca — em todo o território que ia do
faque ao Curdistão, da Palestina à Turquia Ocidental e da planície da
laztólia até o Levante.
A medida que se disseminavam a partir dos centros iniciais de ino-
vação, as novas técnicas agrícolas favoreciam a consolidação linguística
ice grupos que as utilizavam, fortalecendo com isso o sentimento de
aitidade em torno de técnicas e tradições próprias. Esta estabilidade
csérjral ocasionou o estabelecimento das principais famílias linguísticas
•lemas, em sua forma final: a indo-européia, a afro-asiática, a elamo-
(onridica (índia), a sino-tibetana e a austronésica.
Uma das últimas modificações do corpo humano determinadas
ias instrumentos foi a eliminação, pela agricultura, da necessidade de
bules grandes. Quando os cereais substituíram a carne, os dentes se
•naram menores e o rosto mais vertical. Uma prova da mudança dietá-
JBB e o número de celeiros retangulares, rodeados de solo abundante em
óien cereal fossilizado, encontrados no Oriente Médio.
A medida que se tornavam mais numerosos, os ocupantes iam se
ido para lugares mais férteis situados nas proximidades dos rios e
planícies costeiras. Seus novos assentamentos eram pequenas
formadas por abrigos construídos com tijolos de lama e tetos de
:. separados por estreitas travessas. Seus instrumentos também
m mais variados, uma vez que as lâminas de pedra e rocha haviam
58 O P R E S E N T E DO FAZEDOR DE M A C H A D O S

cedido o lugar às ferramentas de ponta, foicinhos e setouras. Cos-


turavam peles com agulhas de osso, processavam cereais com pilões de
pedra e mós, teciam cestas e esteiras de junco e pastoreavam cabras e
ovelhas.
O excedente gerado pela agricultura seca havia por esta época
estabelecido uma economia capaz de sustentar indivíduos que não con-
tribuíam diretamente para a produção de alimentos: artífices, escribas,
curandeiros, chefes. Cada um deles detinha alguma forma de conheci-
mento esotérico não compartilhado mas necessário à maioria da popula-
ção. A tomada de decisões e a responsabilidade social foram se concen-
trando cada vez mais nas mãos desses novos especialistas.
Quando finalmente se estabeleceram, as tribos errantes já pos-
suíam instrumentos para produzir alimentos e abrigo em muito maior
quantidade do que seus ancestrais jamais haviam podido dispor. Então,
há cerca de 7 mil anos, por motivo de crescimento populacional ou de
más colheitas causadas por estiagens cada vez mais longas, algumas
comunidades, situadas provavelmente nas proximidades de um dos
grandes rios, passaram da agricultura seca à irrigação. Já fazia parte do
saber tradicional a noção de que as plantas liberavam suas próprias
sementes e de que estas poderiam brotar em áreas bem irrigadas. O sal-
to qualitativo do pensamento residia na compreensão de que tais pro-
cessos naturais podiam ser reproduzidos artificialmente.
O excedente de alimentos deve ter surgido pouco depois da irriga-
ção intencional ou do simples plantio de sementes em áreas natural-
mente irrigadas. Este acontecimento parece constituir um divisor de
águas na atitude do homem para com o meio ambiente. Durante milha-
res de anos, a humanidade havia estado intimamente ligada à natureza.
Para os caçadores-coletores, o mundo natural era uma entidade viva,
cujas estações forneciam diferentes tipos de alimento e abrigo. E devía-
mos ter uma aguda consciência de todas as suas nuanças: a localização
de uma clareira frutífera no outono, o lugar onde os pássaros podiam ser
apanhados na primavera, as nascentes de águas mais límpidas, os abri-
gos de pedra onde os ventos invernais não penetravam. Mais que tudo,
talvez, conhecíamos a relação fundamental entre o alimento e a oportu-
nidade, que só se apresentava por um instante fugaz, fossem frutos sazo-
nais ou bandos de animais em migração. Se se perdia a deixa da nature-
za, não havia uma segunda chance no mesmo ano.
UMA C O N T R I B U I Ç Ã O S I M B Ó L I C A 59

O primeiro excedente agrícola mudou tudo isso de uma tacada. A


reza era agora reprodutível, podia ser cortada e controlada à vonta-
. E com este novo conceito, veio a exigência paralela de aplicarem-se
aos métodos de corte-e-controle à própria comunidade. Devia
• excedente de alimentos bastante para sustentar a sociedade mais
;xa das aldeias em crescimento, mas dado que a população era
3sa demais para que fosse suficiente apenas dirigir-se às fontes de
utos, como sempre haviam feito os ancestrais, a sobrevivência
a, de agora em diante, de um nível de organização que jamais
L Por esta razão, começamos a sentir necessidade de ficar onde
Í1OS.

Pela primeira vez, graças aos fazedores de machados, estávamos a


de viver em "lugares" dos quais alguns de nós nunca sairia,
i pensar em nós mesmos como sendo "de tais" lugares. Na forma
ides povoações, esses lugares se tornariam nosso "lar". De agora
l diante, iríamos nos identificar com um lugar e com as pessoas com
0 compartilhávamos. Juntos, passaríamos a ser "deste ou daquele"
, e os outros, por sua vez, seriam de "seus lugares". Os muros de
cidades iriam demarcar o espaço dentro do qual éramos o que
fazendo as coisas de maneira diferente dos indivíduos que
1 dentro de outros muros.
Nesses novos e extraordinários enclaves artificiais, não mais sería-
rtnna parte passiva da natureza. Mesmo o nosso conceito de direção
• íer mudado quando as características naturais indicativas de norte
. leste e oeste, se tornaram algo de permanente na vida ao invés de
i referência mutável com os ventos estacionais ou com o movimen-
\ sol e das estrelas. Em certo sentido, o mundo da comunidade
havia sido ele próprio definido pelos instrumentos que torna-
síveis os novos assentamentos.
Esta nova definição tornava-se clara agora, com o segundo dos
presentes dos fazedores de machados, que iria tornar possível os
, de organização mais elevados necessários para viabilizar a comu-
: e ajudá-la a sobreviver. Mas a sobrevivência organizada iria tam-
i frigir novos níveis de obediência, novas restrições comportamen-
novas camadas de autoridade social. O novo presente acabaria
a pensar de outra maneira. Era o presente da escrita.
O ato de cortar uma pedra para fabricar instrumentos tornou-se
60 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

agora um instrumento para a reprodução do mundo através de símbo-


los. O primeiro escrito foi uma versão nova e aperfeiçoada do bastão
entalhado do xamã (agora insuficiente para a complexa base informacio-
nal exigida por uma comunidade mais numerosa), que deu às primitivas
comunidades agrícolas uma nova maneira de descrever e registrar o
mundo.
A nova técnica iria constituir-se em um método radicalmente dife-
rente de gerar conhecimento, um modo sem paralelo de manipular
informação externa à mente e, o mais importante, um poderoso instru-
mento de controle social. Tendo surgido há cerca de dez mil anos, a
escrita levaria cerca de 7.500 anos para atingir seu pleno desenvolvimen-
to, permanecendo então basicamente inalterada até a revolução cogniti-
va ocorrida na Grécia no primeiro milénio da era pré-cristã. Antes,
porém, voltemos um pouco atrás em busca de suas origens.

-
No início estava a linha de base: números, não palavras. Em primeiro
lugar, a existência de um excedente significa que havia mais alimentos
do que a comunidade precisava. Tal excedente podia ser poupado para
consumo posterior ou ser usado como forma de pagamento de serviços
por pessoas não alocadas prioritariamente na produção de alimentos.
Podia também ser usado como presente ou como oferenda nos rituais
religiosos. Em qualquer caso, sua existência exigia inventariamento e
este por sua vez exigia medição.
O salto intelectual expresso no desenvolvimento da contagem,
que aparece neste período, é semelhante ao salto da capacidade cogniti-
va de uma criança na sua primeira fase de desenvolvimento. Muito cedo
em suas vidas as crianças contam em "uns", "dois" e "muitos". Esta capa-
cidade é, provavelmente, o entendimento humano fundamental da
quantidade, dado que pode ser encontrada em crianças de todas as
sociedades primitivas e antigas. Um membro da tribo veda do Sri Lanka
contando cocos assinalará uma barra para cada coco, mantendo um
registro correlativo: um coco, uma barra. Pergunte-se-lhe quantos cocos
contou e ele provavelmente apontará para as barras e dirá qualquer coi-
sa como: "aqueles".
O mesmo se verifica em todas as sociedades que conhecemos.
UMA C O N T R I B U I Ç Ã O S I M B Ó L I C A 61

Para controlar um grande número de animais, digamos, cinquenta e oito


ovelhas, far-se-ia corresponder a cada uma um marcador, uma pedra por
exemplo. Um marcador seria disposto para cada ovelha no início do dia
e recolhido no fim da jornada, quando o rebanho fosse reunido. Se não
restasse nenhuma pedra, o pastor concluiria que seu rebanho estava
completo sem ter jamais sabido quantas ovelhas possuía.
A representação do mundo através de sua redução a símbolos e
números abstratos é um componente fundamental da nossa moderna
maneira de pensar, mas não faz parte da coleção de talentos humanos
Meturais. Falar e ouvir são coisas que vêm naturalmente para quase
todos os seres humanos, mas escrever e ler não são coisas fáceis de
•prender. A inovação pré-histórica da representação de quantidades, e
mais tarde de palavras, desenvolveu-se em um período de tempo cultu-
ralmente longo, ainda que biologicamente curto. As mudanças sociais
que tornaram os seres humanos aptos a representar o mundo dos obje-
tos e quantidades por meio de sinais abstratos (e nesse sentido distinguir
três objetos de quatro, e mais tarde "três" de qualquer coisa de "quatro"
de qualquer coisa) levaram cerca de 10 mil anos para se completar.
O primeiro escrito genuíno apareceu há aproximadamente 12 mil
anos, nas montanhas Zagros, no Ira e na Turquia, porque a colheita e o
rebanho, agora excedentes em relação às exigências imediatas, consti-
tuíam património e exigiam algum tipo de marca de quantidade e pro-
priedade.
Os primeiros exemplos de escrita ocorreram no Oriente Próximo
na época em que os animais e plantas estavam sendo domesticados.
Eram pequenos símbolos feitos de argila, peças menores que uma pole-
gada usadas para representar artigos diversos. Um cilindro valia um ani-
mal, cones e esferas representavam celamins e alqueires de cereais. As
peças valiam por quantidades específicas, ainda que a forma de cada
uma representasse um item diferente. Para duas medidas de cereal eram
necessárias duas peças, para catorze medidas catorze peças. No período
entre 10 mil a 5.400 anos atrás, o uso desses símbolos difundiu-se gra-
dualmente por todo o Oriente Médio. Os formatos das peças foram logo
padronizados, o que é um indício de produção manual em série. Devem
ter sido também os primeiros artefatos secados a fogo.
Esses minúsculos objetos cerâmicos foram a génese da linguagem
ocrita, uma vez que o símbolo era uma unidade de significado específi-
62 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

ca. Unidades discretas, de uso sistemático e abstrato, elas seguiam uma


ordem ou sintaxe quando usadas juntas. Seu uso sistemático lançou
com certeza as bases cognitivas dos desenvolvimentos posteriores dos
processos linguísticos — e matemáticos — que iriam mais tarde se
desenvolver como linguagem e sistema numérico escritos e estrutura-
dos. Esses primeiros símbolos eram como as letras de um novo tipo de
alfabeto.
Sua contribuição mais imediata foi a contagem e a contabilidade.
Cada peça tinha sua marca específica e valia uma quantidade fixa, de
modo que, à medida que crescia o volume de provisões, mais peças eram
necessárias para representá-las. Para manter unidas as suas peças nas
transações individuais, os sumerianos da Mesopotâmia (onde hoje é o
Iraque) colocavam-nas dentro de "envelopes" de argila.
Todos as peças descobertas levam também o selo pessoal de um
funcionário. E o fato de só aparecerem nos túmulos de altos funcioná-
rios indica que os novos artefatos, talvez em associação com a proprieda-
de, eram vistos como símbolos de status, quem sabe até de função here-
ditária: eram símbolos de poder.
Estes símbolos relativamente simples, ainda que numerosos, con-
taram e contabilizaram uma grande quantidade de currais e depósitos.
Mas o complexo mundo urbano que agora se formava necessitava de
meios de representação mais complexos. As peças começaram a portar
marcas adicionais, entalhes e padrões que indicavam artigos como per-
fumes, pão, tecidos e roupas. No final havia quinze tipos de símbolos
diferentes, subdivididos em não menos de 215 subtipos, o que refletia a
variedade de bens disponíveis.
O número crescente de tipos cedo tornou o uso dos envelopes de
argila por demais incómodo. Por não serem transparentes, os envelopes
tinham de ser quebrados para a validação de seu conteúdo. Este peque-
no inconveniente gerou um acontecimento fundamental na história do
armazenamento de informações: a criação de um novo tipo de "conhe-
cimento" que, como sempre, seria de uso e disponibilidade restritos.
Com toda certeza, tal acontecimento se deu em algum lugar da
Síria e Iraque atuais. Para simplificar as coisas, alguém surgiu com a
ideia de pressionar as peças contra a argila úmida do lado externo do
envelope, de modo a indicar a quantidade e o tipo dos símbolos que
havia dentro. Em um dado momento, no entanto, há cerca de cinco mil
UMA C O N T R I B U I Ç Ã O SIMBÓLICA 63

t, alguém parece ter-se dado conta de que era ainda mais simples eli-
ras moedas dentro do envelope e usar apenas a impressão externa.
0 tempo, o próprio envelope, agora vazio, assumiu a forma de uma
^ o o s símbolos d a s peças.
Com o aumento da quantidade de pessoas e mercadorias, e uma
que marcas já vinham sendo aceitas no lugar de objetos sólidos, a
•a técnica estimulou o surgimento de outras maneiras de representar
formação. Outro avanço significativo ocorrido nesta mesma época
Q aparecimento dos primeiros símbolos aritméticos, na forma de sig-
ide quantidade. Onde antes três ovelhas eram representadas por três
individuais portando uma cruz entalhada (a correspondência de
i paia um já descrita), os sumerianos agora produziam uma abstração
lente destinada a representar quantidades, um número.
Tendo sido usados de início para representar medidas de cereais, a
ária básica, os símbolos numéricos logo foram compreendidos
i o mundo. Mais tarde, há cerca de cinco mil anos, um salto qua-
• se operou. Os contabilistas de Uruk, uma das primeiras cidades
apotâmia, foram capazes de abstrair do conceito de "duas olivei-
, "duas ovelhas" e "dois fardos" o conceito de "dois", independente
t objetos referidos. Esses contabilistas imaginaram signos gémeos:
lis, que eram números propriamente ditos, e pictogramas, que
avam as mercadorias. Eles eram produzidos de maneiras diferen-
kos numerais impressos na argila úmida e os pictogramas talhados na
1 dura. Uma placa de Uruk mostra uma dessas representações, cin-
as descritas por meio do pictograma "ovelha" combinado com
i cunhas impressas.
Este sistema foi mais tarde aperfeiçoado. Um linha ("pequena")
significava "l" e um círculo ("grande") valia "10". E podiam ser
lados. Um círculo e duas linhas representava "12". No início, os
los eram aplicados ao pagamento de cereais, depois ao pagamento
: trabalhadores e, finalmente, como números propriamente ditos,
usados para representar qualquer tipo de quantidade. Usadas
meio de administração e contabilização dos artigos e animais,
marcas simbólicas são prova de avanços importantes no controle
e da comunidade. Número e mercadoria estavam separados
sempre e, como resultado, os números podiam agora ser aplicados
i quantificar qualquer coisa no mundo. Tornáramo-nos capazes de
64 J O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

pensar o mundo como algo que podia, tanto quanto o grão e as ovelhas,
ser inventariado, controlado e redistribuído.
A esta altura, novos presentes dos fazedores de machados facilita-
vam a organização e manutenção dos centros, que cresciam em tama-
nho e população. O arado puxado a boi impulsionava a produção de
grãos, a roda e o barco os transportavam, o torno de oleiro fabricava cân-
taros para acondicioná-los, e a roda d'água transformava-os em alimento
para pessoas que agora viviam em casas feitas de tijolos secos a fogo em
comunidades protegidas por armas metálicas. Animais de tração fertili-
zavam o solo, o arado aumentava a área de terra trabalhável e a agricul-
tura "de pousio curto" (plantio e colheita frequentes) produzia safras em
sequências mais rápidas. As coisas estavam mudando mais depressa.
A generalização da agricultura marca o ponto em que os presentes
dos fazedores de machados nos haviam dado a capacidade de mudar
nosso ambiente no espaço de uma única estação e de reduzir a quanti-
dade de tempo que uma comunidade necessitava para superar uma má
colheita. Alguns milhares de anos passados desde a invenção da irriga-
ção no Oriente Médio, os mesopotâmios já faziam florescer o deserto e
mudavam o caráter da terra como nunca fora feito antes.
Com suas redes de canais de irrigação distribuindo a água dos rios
para as terras cultiváveis dos arredores, a civilização "hidráulica" surgida
há cerca de sete mil anos trouxe pela primeira vez a percepção de que os
humanos podiam promover alterações de larga escala na conformação
natural do mundo. Esta nova capacidade foi celebrada no tema domi-
nante de toda a mitologia mesopotâmica: o caos da natureza podia ser
transformado em uma ordem humano-divina. A sociedade e seu
ambiente eram agora ambos controláveis.
A passagem para uma sociedade agrícola, sedentária, mudou tam-
bém radicalmente o papel da mulher. Antes, as habilidades das mulhe-
res incluíam provavelmente o conhecimento da ecologia para coleta de
alimentos, a guarda do fogo, a fabricação de recipientes de madeira e
argila, a preparação dos alimentos e o uso das partes animais para propó-
sitos utilitários. Deviam conhecer as ervas medicinais e saber transfor-
mar plantas em tinturas e fios para convertê-los em vestuário. Suas habi-
lidades eram, portanto, iguais, senão superiores, às dos homens. Mas
quando a agricultura gerou propriedade excedente, o poder de distribui-
la foi outorgado aos seus possuidores, quase que exclusivamente
UMA C O N T R I B U I Ç Ã O S I M B Ó L I C A 65

A combinação da propriedade com a conquista armada de ter-


começou quase que imediatamente a excluir as mulheres da
to de poder presenteador.
D excedente da comunidade era por esta época grande o bastante
i sustentar uma ampla gama de ofícios. A cidade agora abrigava pas-
favradores, boiadeiros, pescadores, açougueiros, cervejeiros,
s, barqueiros, agricultores, jardineiros, construtores, carpintei-
ros e tecelões, além de indivíduos dedicados à produção de bens
> como jóias e candeias.
mo assim, cada aldeia ou cidade era ainda incapaz de viver de
próprios recursos. A Mesopotâmia (aproximadamente o moderno
K), por exemplo, com suas terras aluviais planas, desprovidas de
pões significativas, embora abundante em cereais e gado, era defi-
• em minerais. Por isso, tornou-se necessário formar uma reserva
entos e produtos manufaturados para a troca por excedentes ali-
res e materiais oriundos de outras comunidades.
Impelida pelo crescimento populacional gerado, primordialmente
i instrumentos dos fazedores de machados, a disputa pelos recursos
í agora um novo tipo de líder, capaz de comandar na guerra e na
f de organizar a distribuição de alimentos e utensílios entre sua gen-
fazê-lo, ajudados por uma minúscula elite emergente de indiví-
! que sabiam ler e escrever pictogramas (provavelmente umas pou-
tdezenas numa comunidade de milhares), os chefes mobilizavam
abra e lançavam mão de dízimos para sustentar uma quantidade
• de especialistas, inclusive ferreiros e metalurgistas dedicados à
ao e manutenção do equipamento militar.
Talvez por esta razão, os novos líderes, fossem religiosos ou secu-
^ eram geralmente referidos como benfeitores generosos e magnâni-
. Na verdade, não eram bem assim. O líder recolhia dízimos e impos-
spara ter o que distribuir em troca do trabalho que produzia os pró-
i bens. Sua função primeira, auto-estatuída, era a de organizador e
ar das comunidades que cresciam rapidamente, e que já eram
ides demais para serem chamadas de aldeias.
A maior e talvez mais antiga cidade da Mesopotâmia era Uruk,
existência remonta ao quinto milénio a.C. (sete mil anos atrás), e
era constituída de dois assentamentos distintos, um de cada lado do
rates. No milénio seguinte a cidade manteve sua forma geminada,
66 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

mas tinha agora dois proeminentes distritos cerimoniais, um dedicado


ao deus celeste Anu e outro à deusa do amor, Enana, enquanto sua área
crescera de cerca de 25 para mais de 175 acres.
Uruk cresceu de maneira impressionante durante os dois séculos
seguintes ao ano 3100 a.C. Num primeiro momento, a área da cidade
aumentou de cerca de 100 para 250 acres enquanto o número de assen-
tamentos extramuros passava de 100 para 150. Veio então uma mudan-
ça repentina. A cidade passou a crescer a taxas nunca vistas, mas agora
às expensas do campo. Cerca de metade dos assentamentos situados em
áreas próximas foi abandonada, processo que levou a cidade a estender-
se por uma área de até 1.000 acres e a população a dobrar de 10 para 20
mil, o equivalente a dois terços das pessoas que habitavam a região. Esse
crescimento acelerado sugere que a população sentiu uma urgente
necessidade de se concentrar, motivada, mais provavelmente, por algu-
ma ameaça externa.
Com o crescimento da comunidade, os indivíduos foram organiza-
dos de uma forma que o ponto de vista moderno consideraria um regi-
me opressivo e claustrofóbico — uma nova rede social totalmente hie-
rarquizada sobre a base dos variados e sofisticados presentes agrícolas
dos fazedores de machados. No nível básico da subsistência estavam os
lavradores e suas famílias, trabalhando longas horas para produzir ali-
mentos além de suas necessidades. O excedente era levado aos pontos
intermediários de distribuição, onde funcionários asseguravam que uma
exata proporção dos alimentos seria destinada aos principais centros
populacionais e que a maior e melhor parte seria carreada para as auto-
ridades. Em troca, os trabalhadores eram pagos, muito provavelmente,
com cerâmica e têxteis e, sobretudo, com garantia de proteção. Rituais
religiosos em apoio aos governantes na certa também ocupavam boa
parte de seu tempo.
Mas o modo como essas condições eram aceitas indica a nova visão
de mundo trazida pelos presentes dos fazedores de machados. Os bene-
fícios da vida urbana mais do que compensavam as restrições comporta-
mentais decorrentes. Para os que viviam nas aldeias, as cidades deviam
ter o aspecto de centros de atividades mágicas, com seus muros e edifí-
cios povoados de um pequeno número de homens capazes de ler e
escrever, vigiados por gente portando armas de bronze de grande valor
e dirigidos por figuras misteriosas tidas como semidivinas. As cidades
UMA C O N T R I B U I Ç Ã O S I M B Ó L I C A 67

•zm. em todos os sentidos, as primeiras superpotências, e por isso uma


•te pressão deve ter sido necessária para persuadir o homem do cam-
i permanecer fora delas, na lavoura.
A posição de "rei", surgida por esta época na Mesopotâmia, pode
r sua origem ligada ao período tardio da caça-e-coleta, quando a forma-
ritual dos mitos gerou práticas religiosas centradas na figura de
xamã semi-sagrado. Desde muito cedo a elite governante da
Dtâmia consolidou sua posição associando-se à misteriosa fonte
f poder que os xamãs haviam inventado. Com a ajuda dos xamãs,
ite os reis compreendiam e podiam prever a atividade das forças
kmatureza. Os novos líderes se apresentavam como intermediários
' a população e as forças míticas primevas. Reclamavam conta to
í, divino, com essas forças sobrenaturais antes antropomorfizadas
>deuses e deusas.
Os líderes reais eram, portanto, os únicos que podiam interceder
• às deidades e assegurar a sua contínua beneficência. A natureza
desses primeiros hierarcas em comunicação com os céus está
. nos pictogramas sumerianos, nos quais o escriba punha símbo-
elares à frente dos nomes reais para indicar seus vínculos com os
. cósmicos. Esta posição sagrada e privilegiada refletia-se na nova
da dos líderes de acumular riquezas e levá-las consigo para os
; quando morriam.
Este conceito de um novo tipo de ser humano, uma alta autoridade
adora distinta e acima do populacho (conceito ainda bem vivo no
moderno), era correspondido (como ainda hoje) pelas quantias
sãs em edifícios para abrigá-la e ao seu pessoal. Das novas elites não se
persva, como seres semidivinos, que vivessem com o resto da comuni-
;;: T por isso as estruturas cerimoniais e as casas dos governantes se
tasnm maiores e mais proeminentes, localizadas no alto das monta-
•pr^: f ;ercadas de muros ciclópicos. As ossadas demonstram que os pri-
Itgsos dos governantes lhes asseguravam mais saúde e longevidade.
De agora em diante, os adornos da liderança deviam ser símbolos
SECOS que refletissem a permanência da comunidade e os novos valo-
lànpostos pela autoridade. O síaíus especial da família real está refle-
0 em Uruk, onde se estima que o templo e sua base, elevando-se a
_— _ :.:.::= de doze metros e cobrindo uma área de 38 mil metros qua-
fcaocs. com seus muros e edifícios de tijolos de adobe decorados com
68 : O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

milhares de cones de argila, tenham custado 7.500 homens-ano de esfor-


ço para serem construídos.
O rigoroso controle social necessário para fazer funcionar as cida-
des da Mesopotâmia tornou os rituais e artefatos extremamente confor-
mistas. Em Yahya, não muito distante da cidade de Sumer, havia um
centro de potes de pedra. Esses potes eram objetos de luxo produzidos
para as autoridades sumerianas (dado que não eram usados pelos habi-
tantes de Yahya e que não há evidências de uma elite local) em troca de
alimentos e utensílios. Potes contendo símbolos semelhantes aos de
Yahya foram encontrados em lugares distantes como a Síria e o Vale do
Indo. Esses artigos de luxo funcionavam como imagens da autoridade,
de uma forma parecida, talvez, com os modernos tesouros artísticos em
museus e instituições nacionais, uma vez que somente as autoridades
tinham condições de encomendá-los.
A abundância, nesta época, de selos pessoais impressos em placas
de argila indica um complexo e bem-estabelecido sistema de comércio.
A falsificação não chegava a ser motivo de preocupação porque os bens
passavam por muitas mãos e os selos, usados quase sempre no pulso de
seu possuidor, a dificultavam ainda mais. Mas o número e o pictograma
tornaram-se inadequados ao ritmo de vida e por isso o junco apontado,
antes usado para desenhar imagens sobre as placas úmidas, foi substituí-
do por um estilete com o qual se podia riscar uma linha sobre a argila
com um único movimento. Com sua seção transversal em forma de
cunha, ele deu seu nome aos novos pictogramas estilizados, de escrita
rápida (escrita cuneiforme).
Mas o novo presente da escrita padronizada era ainda extrema-
mente complexo e esotérico, com seus pelos menos 2.000 signos dife-
rentes. Havia, por exemplo, não menos de trinta e uma versões do signo
"ovelha", referidas a diversos tipos, situações e condições. O domínio
desses signos exigia muitos anos de treinamento, tornando a arte de
escrever uma técnica altamente especializada, conhecida apenas por
uns poucos. A imprecisão da tradução fonética dos signos (que em mui-
tos casos representavam sons muito similares), além da confusão que
criavam (o mesmo signo tanto podia representar um som como um obje-
to), tornavam longo e difícil o processo de aprendizado. Embora a escri-
ta tenha facilitado o desenvolvimento de uma comunidade muito mais
complexa e heterogénea que deu a muitos de seus membros um estilo
UMA C O N T R I B U I Ç Ã O S I M B Ó L I C A j 69

ca impensável até umas poucas gerações, as recompensas tinham


ipreço. O poder da escrita para organizar e comandar era ainda ina-
a todos, exceto a uma pequena minoria.
A burocracia dos escribas detinha o controle da cobrança de
Btos, da alocação de recursos, da remuneração dos trabalhadores e
jmércio interno e externo. Mais tarde, no Egito, as imagens repre-
itivas das atividades económicas nos monumentos iriam invariavel-
te mostrar um escriba em posição privilegiada, supervisionando a
Qção. Os escribas sustentavam uma posição respeitada e privilegia-
l devido à sua importância na administração. Não tinham, portanto,
interesse em simplificar sua arte arcana, o que só serviria para
i mais acessível a potenciais concorrentes.
A administração desse sistema requeria um corpo clerical profis-
I numeroso e especializado. A escola de escribas, ou eduba, surgida
io do terceiro milénio, era a força propulsora por trás da socieda-
ido uma elite pequena e letrada. O curso completo durava da
. até o início da idade adulta. O estudo começava com a prática
acteres silábicos, tu, ta, ti, nu, na, ni, bu, ba, bi etc., após o que era
um repertório de uns 900 signos, seguidos dos grupos de mais
caracter. Após a memorização e prática desses fundamentos
L aquilo que constituía a real dificuldade para que a maioria das pes-
> compartilhasse o conhecimento da leitura e da escrita. O estudan-
defrontava com meses de estudos dedicados ao aprendizado de
rés de itens dispostos por assunto, por exemplo as partes dos ani-
; e o corpo humano, os nomes dos animais domésticos, pássaros e
s, plantas, utensílios etc. O problema dos pictogramas era que
i quase tantos signos quanto coisas a serem significadas.
Mas as realizações literárias, linguísticas, matemáticas e astronômi-
(das escolas de escribas excederam em muito as necessidades práticas
cráticas, e assim sendo (como era de se esperar) aprofundaram a
entre líderes e liderados. As escolas, novas arenas de atividade
jal criadas pela tecnologia dos fazedores de machados e fechadas
da população, se utilizaram da instrução para desenvolver um
educacional de abrangência nunca vista, embora extremamente
vo, através do qual estabeleceram uma elite poderosa. Muitas, den-
milhares de placas que sobreviveram, contêm os nomes dos escri-
i e até os nomes e ocupações de seus pais. Como era de se esperar em
70 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

uma sociedade em que a instrução era uma qualificação zelosamente


protegida, os escribas vinham de famílias ricas e importantes. Muitos
deles ascendiam aos altos cargos da burocracia administrativa.
Então, como tornaria a acontecer muitas vezes ao longo da histó-
ria, a minoria qualificada foi obrigada, pela mudança das circunstâncias,
a difundir alguns de seus conhecimentos especializados. Uma vez que a
tecnologia gerava mudanças sociais crescentes, a alternativa inevitável
ao colapso social foi permitir que um segmento mais amplo da comuni-
dade aprendesse a ler e escrever. O número de signos pictográficos foi
radicalmente reduzido, de dois mil para trezentos, em apenas cinco
séculos, tornando o seu uso muito mais generalizado.
Embora a parcela da população capaz de utilizar os novos pictogra-
mas simplificados fosse ainda de menos de um por cento, agora era possí-
vel organizar-se uma estrutura social muito mais complexa e desenharem-
se os primeiros contornos de um recorte propriamente burocrático da ati-
vidade social. Muitas cidades se juntaram em federações até se tornarem
finalmente governadas por um único rei. Este arranjo trouxe a regulariza-
ção de uma visão mais ampla do "lugar" como a entidade hierárquica com-
plexa e rigidamente estratificada que no mundo moderno descrevemos
como o "Estado". O aparato da organização comunitária estava agora esta-
belecido em pelo menos três classes: os administradores de nível inferior
(supervisores e capatazes, que inspecionavam os trabalhadores e agricul-
tores), os supervisores dos supervisores (que trabalhavam em escritórios,
fazendo a contabilidade) e, no nível mais alto, os planejadores.
Esta divisão do trabalho foi propiciada pela tecnologia da escrita, o
mesmo ocorrendo com a conformidade do pensamento público e do
comportamento, em uma escala antes impossível. Em tempos mais sim-
ples, os rituais e ordens oralmente transmitidos, por melhor que fossem
memorizados e narrados, podiam ser deliberada ou inconscientemente
distorcidos. Mas agora se tornavam permanentes, codificados através da
escrita, o que deixava pouco espaço para a fuga das obrigações. A escri-
ta fazedora-de-machados unificou o sistema mesopotâmio de comando-
e-controle através da burocracia, e por volta do terceiro milénio esta
autoridade começou a converter a organização orientada para o traba-
lho em comportamento privado individual.
UMA CONTRIBUIÇÃO SIMBÓLICA 71

;orreu em seguida um fenómeno que faz destacar a Mesopotâmia


itre as demais civilizações justafluviais do período na índia, China e
;ito. Na Mesopotâmia, a extensão do controle social através da instru-
alterou radicalmente a relação entre os indivíduos e entre estes e a
toridade, graças à invenção da lei.
Um dos primeiros exemplos do novo governo da lei foi o modo
10, em particular na Mesopotâmia, foi retirada das mãos das vítimas
sparação dos agravos. Acredita-se que nos tempos da caça-e-coleta as
fossem punidas por meio de atos de vingança dos membros da
lília, quando a parte ofendida ou parentes seus agiam como juiz e
lugo. O problema com este sistema é que ele transformava o crimi-
original em vítima, cujos parentes passavam a exigir então a sua
ápria vingança, processo que costumava degenerar em rixas sangren-
que duravam gerações. Este tipo de comportamento "desregrado",
lado dentro dos muros da cidade, podia facilmente causar danos à
ao da comunidade. A criação, por meio dos instrumentos do faze-
• de machados, de "lugares" como essas primeiras cidades rigidamen-
; organizadas, onde a vida era severamente arregimentada, começava a
rtar os valores e a ética dos indivíduos.
Na índia, China e Egito, a responsabilidade pelo julgamento e
lição parece ter sido transferida, com a institucionalização da reli-
3, dos chefes das famílias para a autoridade sacerdotal. Os atos anti-
ais se tornavam ainda mais indesejáveis ao serem definidos como
ita aos deuses.
Mas este padrão foi quebrado na Mesopotâmia graças à mudança
(propriedade comunal para privada, ocorrida há 4.500 anos, época em
1
as placas de argila já portavam detalhes de transações privadas e
los contratuais. Mas este tipo de interação comercial elementar
sitava, talvez, de algo mais simples do que as cerimónias dedicadas
i deuses, e por esta razão uma forma inferior de autoridade regulado-
i a existir.
A primeira lei escrita diferia de todas as outras instituições até
> estabelecidas com a finalidade de controle social. Por ser a primei-
i lidar com a propriedade privada, ela tinha também de partir de um
ííto radicalmente novo. Os fazedores de machados ofereceram
um presente que iria influenciar todo o desenvolvimento social
ien diante — a ideia dos direitos e obrigações da propriedade indivi-
72 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

dual. Pela primeira vez, havia um padrão de comportamento ao qual


toda circunstância individual podia adaptar-se. Graças ao desenvolvi-
mento da lei, a vida pessoal não mais devia ser inteiramente vivida para
o capricho dos sacerdotes e do rei. Por outro lado, ela não mais perten-
cia por completo ao indivíduo.
Toda a legislação primitiva da Mesopotâmia é pouco mais do que
uma coleção de precedentes, quadro onde se inserem as referências à for-
ma especial da autoridade do governante. Esta autorizava a intromissão
do poder na vida privada dos indivíduos sob pena de punição dos céus.
Todos os éditos começam afirmando a designação do rei pelos deuses
para governar a cidade-estado, seguindo-se o corpo da lei, que termina
com a advertência de que todo desafio à lei real seria amaldiçoado.
A primeira referência ao governo da lei parece remontar a quatro
mil anos, na cidade de Ur, cujo rei Ur-Engur reclamava administrar jus-
tiça "seguindo as leis dos deuses". A sugestão de que todo transgressor
que desobedecesse ao rei seria punido tanto pelas autoridades tanto
quanto pelos céus conferia força mágica adicional ao novo código de
comportamento. Correr era possível, esconder-se nunca. O mais anti-
go código legal formal conhecido é o do rei Ur-Nammu da cidade de
Nippur, fundador da terceira dinastia Ur, há 4.050 anos. Ele faz referên-
cia, dentre outras coisas, a um outro elemento básico de controle social
que reflete o grau em que o presente dos números havia se desenvolvi-
do, no comércio, como instrumento de padronização do comportamen-
to e regulamentação das relações humanas. Esta nova condicionante do
pensamento tinha a forma de um sistema padronizado de pesos e medi-
das. O mundo já podia ser oficialmente embrulhado. Mercadorias
padronizadas e vida pessoal padronizada iam se tornando rotina.
O tribunal que impunha ordem nas disputas era o templo, o que
não chega a surpreender. Centenas de placas desenterradas na área
onde viviam os escribas do templo, nas ruínas de Nippur, pintam todas
um claro retrato da admistração da justiça naquele período. Dentre os
registros da corte, conhecidos como ditilla — termo que significa "pro-
cesso judicial concluído" —, encontram-se autenticações de acordos e
contratos de casamentos, divórcios, sustento dos filhos, doações, ven-
das, heranças, servidões, aluguel de barcos, acordos judiciais, intima-
ções, furtos e danos à propriedade. A justiça era administrada pelos ensí,
os governadores e representantes do rei nas cidades dentro da cidade-
UMA CONTRIBUIÇÃO SIMBÓLICA 73

. O templo servia de corte de justiça, na qual não existiam juizes


.onais, dado que todos os trinta e seis homens relacionados como
provinham de todas as esferas de atividade: mercadores, escribas,
istradores do templo e altos funcionários de todo tipo.
No início do terceiro milénio a.C., há cinco mil anos, grupos de
invasores semíticos amoritas da Síria e dos desertos da Arábia,
am a realizar ataques esporádicos, mas cada vez mais freqúen-
fc contra a Mesopotâmia. Quando as cidades-estados finalmente caí-
. os sumerianos deixaram de existir como entidade étnica, linguísti-
e política, estabelecendo-se em seu lugar uma dinastia amorita que
•governar por trezentos anos desde seu centro, na Babilónia. No ano
-l ;.C. subiu ao poder o rei babilónio Hamurabi, sob cuja suprema
taridade o governo babilónio se tornou fortemente centralizado, com
E2 cerrada rede de governadores e funcionários que representavam os
s do rei em todos os aspectos da vida pública.
Quarenta e dois anos depois, este soberano decretou o hoje famo-
go de Hamurabi, em cujo prólogo ele afirma ter sido eleito pelos
para reinar sobre a Babilónia e preservar a justiça entre seu povo.
lui com bênçãos aos que respeitam a sua lei e maldições aos que
No epílogo está dito: "Tais são os preceitos de justiça estabele-
por Hamurabi, conforme a vontade dos deuses que conduzem o
pelo caminho apropriado [sic]. O epílogo revela consciência da for-
legislação como instrumento de reforma social, desenhado para
ir a opressão e facilitar a justiça.
O código está dividido em três partes. A seção central contém 282
s que indicam um claro impulso em direção a uma legislação
sistemática e permanente. É significativo que o código esteja enta-
numa durável coluna de pedra e não escrito nas frágeis placas de
Os seus artigos são mais numerosos e muito mais seculares do
dos códigos que o precederam. O princípio do "olho por olho" é
uzido como medida repressiva. E a lei agora prescrevia a pena
em ocasiões em que, antes, era suficiente o pagamento de uma
a sancionada pelo templo e devida pelos parentes do infrator.
A preocupação da Mesopotâmia com a continuidade da ordem
assegurada pela rígida codificação legal dos direitos e responsabi-
s individuais, influenciou todo o pensamento ocidental posterior,
;almente a maneira como ela sustenta a divisão da sociedade em
74 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

classes submetidas a um supremo monarca que governa por direito divi-


no. Um excepcional exemplo do modo como os presentes dos fazedores
de machados modifica profundamente o nosso pensamento é a maneira
como este (que reduziu drasticamente as antigas liberdades dos tempos
da caça-e-coleta) alterou radicalmente a nossa visão dos direitos indivi-
duais, em um grau que ainda marca as nossas atitudes milhares de anos
depois. No mundo moderno, definimos como "liberdade sob a lei" aqui-
lo que nossos ancestrais remotos teriam certamente considerado como
restrição fundamental de todas as suas liberdades.
Mas a modificação do modo de pensar causada pela escrita e pelo
comércio empalidece de insignificância ao lado do que ocorreu com a
interação entre eles. Em todas as civilizações justafluviais, o comércio
foi imensamente facilitado pela técnica esotérica da escrita. E foi no
Egito que avanços cruciais ocorreram na tecnologia, graças à farta pro-
visão de um meio muito mais portátil e versátil do que as placas de argi-
la da Mesopotâmia. Embora a autoridade estatal se fizesse sempre pre-
sente e visível na forma de hieróglifos, gravados em virtualmente todas
as estruturas — como os slogans das fábricas soviéticas — para lembrar
às pessoas os planos e realizações do faraó onipotente, a economia egíp-
cia era impulsionada por uma planta. O papiro, que crescia profusa-
mente ao longo do Nilo, possibilitou a fácil difusão da instrução entre os
burocratas devido ao fácil preparo de suas folhas e ao uso do pincel e da
tinta.
Duas versões da escrita se desenvolveram, a chamada "hierática",
para uso em textos religiosos e informes oficiais, e a forma simplificada
mais popular chamada "demótica", que lidava com conceitos abstratos.
Dispondo de um meio de comunicação tão flexível, a elite egípcia logo
construiu um império sem rivais no Mediterrâneo. Os egípcios comer-
ciaram com a China através de intermediários hindus, chegaram até o
Atlântico e viajaram na direcão sul até lugares distantes como a África
Central.
O Egito se desenvolveu um pouco mais tarde que a Mesopotâmia
e, devido às diferentes circunstâncias ambientais, tomou uma rota alter-
nativa para a civilização. Em primeiro lugar, os caçadores-coletores do
Egito eram há muito protegidos por barreiras naturais contra as incur-
sões inimigas: ao norte o mar e, em todas as outras direções, o deserto.
Não houve necessidade, como na Mesopotâmia, do desenvolvimento de
UMA C O N T R I B U I Ç Ã O S I M B Ó L I C A 75

idades-estados independentes, todas elas autoprotegidas de ataques. A


»do Nilo era extremamente regular, tornando relativamente fácil o
ivolvimento, em larga escala, de planos centralizados de obras
iças de irrigação.
A experiência de um grande rio unindo o que era separado pela
icia deve ter gerado, desde o início, mitos e crenças compartilhadas
comunidades tribais, facilitando a sua integração posterior. A
jgeneidade da comunidade tornou relativamente fácil o apareci-
to, desde o início, de uma única e suprema autoridade. Há cerca de
[ anos, a centralização da autoridade era total no Egito.
Os administradores do faraó eram membros de sua família. Ele
ernava só, por direito divino, e não havia um sistema legal similar ao
lesopotâmia, uma vez que inexistem referências a mercadores nem
Driedade privada, os quais haviam gerado os códigos legais daquela
zacão. A burocracia egípcia era estreitamente associada à corte
iplar e controlava todo o comércio, dentro e fora do país. Dado que
no Egito pertencia ao faraó, o distribuidor de todos os privilégios,
i ele e somente ele quem sancionava todos os decretos governamen-
que tudo regulavam: o corte da madeira, a irrigação, a construção
jmbarcações, as práticas agrícolas e as viagens comerciais.
O Egito teve a economia mais burocratizada da História, graças à
ia estratificação de sua comunidade. A extrema centralização da
isão do trabalho gerou uma economia basicamente constituída de
:ios especializados e exclusivos e ciclópicas obras controladas pelo
ado, tais como pirâmides, cidades sagradas dos mortos e redes de
ais de irrigação. O que os egípcios realizaram não era diferente ou
vador, mas era incomumente grande.
O Estado dinástico egípcio marcou um novo estágio na expressão
poder. A institucionalização do controle através da tecnologia e da
rita cultuava o tratamento preferencial para os letrados. O abismo
ré a elite aristocrática e os plebeus passivos, desprovidos de poder,
i sancionado pela prática e pelo ritual. Em vista disso, não surpreende
aqui, como em todas as comunidades antigas, a primeira lei a ser
alizada pela autoridade central visasse os atos de lese majesté.
Quase todos os avanços tecnológicos eram postos a serviço do fun-
Dnamento do governo e do controle da comunidade. A escrita e a mate-
ática serviam à cobrança dos impostos e à organização. Artífices espe-
76 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE MACHADOS

cializados em metalurgia criavam armas de conquista e luxuosos objetos


de veneração. O calendário, a astronomia e a geometria foram especifica-
mente desenvolvidos para os projetos estatais de irrigação e para investir
as autoridades com o poder mágico da previsão dos eclipses.
Veio então, há cerca de 3.600 anos, um desenvolvimento funda-
mental que iria tornar a aquisição e a aplicação do conhecimento imen-
samente mais fáceis, alterando uma vez mais o modo de funcionamen-
to do cérebro ocidental. Sua emergência assinalaria também o início do
fim de nossa confiança milenar na tradição, nos rituais e na autoridade
divina. O novo produto dos fazedores de machados iria libertar os gover-
nantes de todas as limitações à sua liberdade de ação que a tradição oral
pudesse ter imposto, porque facilitava em muito a administração de
altas taxas de inovação e mudança. Era um novo tipo de escrita, o pri-
meiro sistema de comunicação verdadeiramente transparente porque
podia ser usado para expressar toda e qualquer linguagem.
O alfabeto apareceu em uma das empresas ultramarinas do Egito,
uma mina de turquesa situada nas montanhas ao sul da Península do
Sinai, no lugar hoje chamado Serabit el Khadem. O complexo ali cons-
truído incluía um templo dedicado a Hathor, deusa da turquesa, e um
grande edifício com átrio, santuários, banhos e alojamentos de soldados.
Trabalhadores escravos semitas formavam o pessoal da mina, empresa
dirigida por cananeus que falavam uma linguagem semítica parecida
com o hebreu antigo.
Esses cananeus, especialistas em minas, haviam sido treinados em
um centro mercantil egípcio e teriam conhecimento das principais for-
mas de escrita comercial daquele tempo — hieróglifos e pictogramas —
que não se adequavam à linguagem cananéia e eram também complexas
e difíceis de grafar. Levado pela tentativa de tornar as coisas mais fáceis,
um desses cananeus deve ter imaginado uma forma mais simples de
expressão. Ou talvez a invenção tenha acontecido em outro lugar, sen-
do trazida ao local pelos mineiros semitas. Mas quem quer que o tenha
feito e qualquer que tenha sido o propósito da invenção do novo instru-
mento, ele deve ter facilitado o comércio intercomunitário e o avanço
tecnológico quase que de uma tacada.
Os egípcios (bem como os mesopotâmios, cretenses, cipriotas e os
povos semíticos ocidentais) já haviam começado a abreviar suas comple-
xas formas de escrita figurada por meio do silabário, que reduzia o
UMA C O N T R I B U I Ç Ã O S I M B Ó L I C A 77

ero de signos ao adotar um signo comum para todos os exemplos de


mesma consoante. O uso dos hieróglifos egípcios, por exemplo,
seus pelo menos 700 símbolos, foi muito facilitado. Chegou-se ao
irio tomando-se o signo de uma palavra contendo uma consoante e
ido-o o símbolo para aquele som sempre que ele aparecesse (p. ex.,
;m", o signo ondulado de "água", era usado para representar a letra
' porque a palavra falada tinha um som de "M").
Mas o que dificultava o uso do silabário em outras línguas (ao con-
rio do alfabeto) era o fato de ele utilizar, como no Egito, por exemplo,
:te e quatro signos para expressar todas as possíveis modificações de
i consoante por uma vogal ("ma", "mo", "mi" etc.), e outros oitenta para
isentar um par de consoantes modificadas por duas vogais (p. ex.,
a", "tama", "tima" etc.). E dado que alguns dos sons vocálicos dos sila-
não eram necessariamente simples vogais, e que eles só existiam
i uma língua particular, numa espécie de nó cego linguístico, era neces-
i que o leitor conhecesse a linguagem para poder reproduzir o som.
E provável que a escrita do Sinai tenha desenvolvido sua técnica a
de um silabário conhecido (talvez o semítico ocidental usado na
a, o hebraico ou o aramaico), simplificando e reduzindo o núme-
1
letras necessárias. Tudo o que ela fez foi eliminar as formas modi-
as. A transcrição do sistema sonoro podia, desse modo, atender às
ssidades de todas as línguas sem ter de se referir ao conjunto dos
>s pictográficos que constituíam a palavra.
Os signos riscados nas superfícies calcárias das rochas de Serabit el
são letras escritas em um estilo solto, indicando sua origem em
;1 e tinta e não na pedra entalhada. O desconhecido fazedor de
ados cananeu havia inventado o primeiro alfabeto verdadeiro para
• a realização de negócios com membros de outros grupos lingúís-
, mas quando finalmente atingisse a Grécia, a nova escrita iria fazer
i mais: iria desencadear o início do pensamento moderno.
Xo período de dez mil anos que vai dos primeiros assentamentos
)las até a criação dos numerais e da comunidade do alfabeto, os
rcas haviam usado, como vimos, os presentes dos fazedores de
ados para manter, reforçar e centralizar seu domínio sobre a socie-
enquanto propiciavam a um número crescente de seus membros
t meios necessários para uma vida material mais completa e satisfató-
. Mas durante todo este tempo, cresceu sem cessar o abismo entre os
78 O P R E S E N T E DO FAZEDOR DE M A C H A D O S

poucos detentores do saber esotérico que conferia poderes de corte-e-


controle sobre a sociedade e a maioria dos que não o compreendiam. E
mesmo a fabricação de instrumentos tendo gerado, do bastão do xamã
ao alfabeto, uma quantidade de conhecimento sempre maior e mais
acessível, devemos nos lembrar que jamais este acesso esteve disponível
para mais do que uma fração minúscula da população.
E, à medida que se expandia o conhecimento, assim também as
práticas especializadas e esotéricas. Mais que tudo, o conhecimento
acrescido criava sociedades e atividades mais complexas, que exigiam
por sua vez uma administração cada vez mais rigorosa. As consequên-
cias do colapso social nos confins de uma abarrotada cidade mesopotâ-
mia que dependia da conformidade organizacional para assegurar a con-
tínua provisão de alimentos eram potencialmente muito mais perigosas
do que no interior de um pequeno grupo caçador-coletor errante dez
mil anos antes. Além disso, a perspectiva de segurança e continuidade
devia ser atraente não apenas para a minoria que lucrava com a concen-
tração de trabalho dentro dos muros da cidade mas também para a gran-
de massa que vivia na linha precária entre a festa e a fome, aprisionada
por esses mesmos muros e separada de suas fontes de alimentos e ves-
tuário. Conformidade e obediência, nestas circunstâncias, eram prag-
máticas. Era o diabo, podemos dizer.

Já nesses tempos remotos os presentes dos fazedores de machados


nos haviam dado a capacidade de operar milagres. Usamo-los para sair
da selva, de início para os pequenos assentamentos agrícolas regular-
mente abastecidos, mais tarde para cidades grandes e organizadas.
Nestas, trocamos a liberdade de movimento dos tempos da caça-e-cole-
ta por segurança, proteção, haveres e alimentos e o direito de substituir
nossos líderes por dinastias reais que governavam por direito divino e
que codificavam em leis o nosso comportamento.
Concentrados e arregimentados, limitados por uma rígida confor-
midade, estávamos convenientemente prontos, nas cidades, para a pró-
xima grande mudança dos fazedores de machados. Em troca do presen-
te do alfabeto, teríamos de aceitar uma nova medida de conformidade,
desta vez em nosso modo de pensar o próprio pensamento.
Capítulo 3

O ABC DA
LÚEICA

Eu inventei para eles a arte de enumerar, base de todas as


ciências, e a arte de combinar as letras, memória de todas as
coisas, mãe das Musas e fonte de todas as artes.

ESQUILO, PROMETEU ACORRENTADO


o s presentes dos fazedores de machados costumam suscitar pro-
Icdas auto-realizáveis porque criam problemas que só eles mesmos
adem resolver. No Egito, na Mesopotâmia e em outras civilizações jus-
•Aoviais, o fato de vivermos agrupados em tão grande número (o que
-evitável, pelas mesmas razões que nos levaram, um dia, a nos esta-
belecermos) criou a necessidade da organização e quantificação dos pro-
btos das técnicas agrícolas que então utilizávamos para sobreviver. O
ncedente alimentar fez crescer a população e fomentou o comércio a
HI ponto em que a regulação através da e.scrita era a única alternativa
• caos. A escrita, por sua vez, padronizou o comportamento por meio
arregimentação legal. A vida intramuros trouxe necessariamente
nova atitude hierárquica entre os indivíduos. Ficáramos livres dos
irichos da natureza para viver o tormento das refeições regulares.
Agora, o mesmo tipo de ciclo estava para ocorrer outra vez. Poucos
is depois da sua invenção, o alfabeto iria cair nas mãos dos gregos,
is com um estilo de vida particularmente pragmático, muitos deles
iheiros dotados da curiosidade exuberante que costumam desen-
rer aqueles que vivem circunstâncias tão incertas como o tempo e o
mbarque em terras desconhecidas. O alfabeto lhes daria finalmente
nós), um meio de satisfazer a curiosidade em uma escala extraordi-
mas também os iria submeter (e a nós) a um novo tipo de restrição:
mento alfabético.
Essa restrição está operando no momento em que você lê estas
is. Estamos tão completamente reprogramados por dois e meio
inios de processo alfabético que parece perfeitamente natural que as
letras isoladas se combinem em palavras. Estas se dispõem também
"ftaruralmente" em uma linha reta enquanto nossos olhos se movem da
esquerda para a direita. E no entanto faz pouco tempo que existem
82 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

letras assim e menos tempo ainda que elas são lidas da esquerda para a
direita.
Os seres humanos vêm registrando informações de muitas formas
diferentes: signos, marcas, números e taquigrafia. Os signos podem se
apresentar em escrita cursiva, de cima para baixo ou de baixo para cima.
A direção da leitura pode alternar, primeiro à esquerda, depois à direita,
ou primeiro acima, depois abaixo. A escrita pode ser expressa em picto-
gramas lidos para cima e para baixo, da direita para a esquerda, em espi-
ral, ou em formato de tijolos, e de muitas outras formas.
Um desses formatos, o nosso alfabeto de vinte e seis letras escrito
da esquerda para a direita, adquiriu sua forma moderna há dois mil e
quinhentos anos, na Grécia. Junto com o bastão do xamã, o tipo móvel
de Gutenberg e o computador eletrônico, ele é um dos pilares do pensa-
mento moderno.
A aparição seguinte do alfabeto, depois das ocorrências em Serabit
el Khadem, se deu na Fenícia, o atual Líbano. O primeiro texto comple-
to consiste em umas poucas palavras escritas com um sistema de vinte e
duas consoantes, no ano 1000 a.C., no sarcófago do rei fenício Ahiram,
de Byblos. O novo alfabeto deve ter aparecido aos fenícios como irresis-
tível porque, como já foi dito, a base fonética das letras facilitava a
comunicação em qualquer língua. Os fenícios, os maiores viajantes do
Mediterrâneo antigo, estavam em constante contato com outras comu-
nidades.
Eles aparecem em Homero: "famosos como navegadores e trapa-
ceiros, trazendo milhares de bugigangas em seus barcos negros".
Carregados de mercadorias, os fenícios levavam seu comércio a todos os
recantos do mundo conhecido. A Fenícia exportava pinho e cedro do
Líbano, rendas finas de Byblos e Tiro, metal e vidro, sal e peixe.
Importavam metais e pedras preciosas, papiro, ovos de avestruz, mar-
fim, seda, especiarias e cavalos. Descobriram uma tintura extraída de
um molusco raro, tão cara que ficou conhecida como "púrpura real". Os
mercadores fenícios iam longe, levando com eles o novo alfabeto: suas
inscrições foram encontradas em lugares distantes como Chipre,
Marselha, Espanha, Sardenha e Malta.
Mais tarde, em algum momento do século IX a.C., os fenícios se
depararam com as primeiras colónias gregas, na costa da Ásia Menor
(Turquia), na ilha de Rhodes e talvez também em Creta e Chipre. Esse
O ABC DA L Ó G I C A 83

mtro iria ter um significado profundo para o mundo ocidental. Tal


Juência está assinalada em primeiro lugar pelas inscrições em alfabe-
go encontradas em achados arqueológicos do oitavo século, em
. uma certa quantidade de vasos, e de maneira mais ampla, pelos
dos mortos gravados, um século mais tarde, em monumentos,
js e oferendas aos deuses, e às vezes até na versão alfabética do
> de um oleiro. Os gregos adquiriram o domínio dos signos alfabéti-
simplesmente tomaram para si os nomes fenícios, referindo-se às
i novas letras como phoenikia, palavra que significa "objetos fenícios".
Na época do contato, os gregos, recuperando-se dos séculos de
que se seguiram à queda da cidade-estado de Micenas, se expan-
de sua terra de origem através do Egeu. Agora ostentavam um
ado sistema social, leis tradicionais e um corpo de conhecimen-
i míticos transmitidos oralmente na poesia épica cantada pelos bar-
. Sua avidez de inovação já havia sido indicada ao herdarem a aritmé-
i Mesopotâmia, a geometria elementar do Egito e a metalurgia da
i. As cidades-estados coloniais gregas, como Mileto, onde é hoje a
i da Turquia, já eram ricas, com dinâmicas economias baseadas no
rcio com outras comunidades marítimas.
Acredita-se que os gregos tenham incentivado o estabelecimento
Buenos grupos fenícios, com quem puderam comerciar e aprender
is de joalheria e cosmética. Mas o lugar onde se deu a efetiva
ferência do alfabeto permanece um mistério. Uma das hipóteses é
tenha ocorrido em um assentamento comercial grego do oitavo
i onde hoje se situa El Mina, na costa da Síria. Evidências de con-
; existem também em Creta e Rhodes, onde aparecem importações
cias e sírias no século IX a.C. Joalheiros semitas viviam em Rhodes
• volta do ano 1000 a.C. Um vaso fenício com inscrições datadas do
Jo IX a.C. foi encontrado em Chipre. Nessa mesma ápoca, bens de
i semitas também alcançaram o território grego pela ilha costeira de

Mas qualquer que tenha sido a época, é provável que o momento-


antecimento tenha se dado em um único local, porque, em todas as
; do novo alfabeto mais tarde encontradas por toda a Grécia, uma
•esma combinação era usada para a transcrição de quatro sons fenícios:
Vzyin", "tsade", "samekh" e "s(h)in". O signo para zayin erroneamente
•rnou-se o de tsade (Gr.: zeta), o de tsade tornou-se o de zayin (Gr.: san),
84 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

a mesma inversão ocorrendo entre os signos de samekh (Gr.: sigma) e de


s(h)in (Gr.: xi).
Os gregos também modificaram ligeiramente o alfabeto, porque
sua língua usava menos sibilantes. Não muito depois da transferência,
acrescentaram também letras para sons especificamente gregos: phi,
chi, psi e ômega. Esta versão grega modificada da phoenikia era final-
mente capaz de representar todos os sons da fala de maneira tal que
podia ser facilmente aprendida. Em outras palavras, resolveu-se o velho
problema de como produzir formas que acionassem automaticamente a
memória auditiva.
Na realidade, em uma cultura oral, ou pré-instruída, na qual
desempenhava um papel muito maior do que hoje em dia, o novo alfa-
beto era visto antes de tudo como um auxiliar da memória. Em culturas
desse tipo, as tradições da sociedade são transmitidas pelos contadores
de histórias. Isto significa que rituais, regras, maneiras e a própria histó-
ria da sociedade têm de ser rememoradas por alguém. E é claro que à
medida que a sociedade se torna mais complexa esta capacidade é exigi-
da até o limite.
Seria no entanto equivocado ver a sociedade grega anterior ao
desenvolvimento do alfabeto como primitiva ou carente de sofisticação.
A arquitetura e a geometria já eram bem desenvolvidas nessa época, à
qual também pertencem, com certeza quase total, as magníficas
Odisseia e Ilíada de Homero, e alguns filósofos mais antigos. A educação
era oral e se concentrava na música, na memorização da poesia, na reci-
tação e no canto. A poesia não era usada para expressar a emoção conti-
da em imagens mentais, mas como meio de registro. A memorização dos
fatos indispensáveis tornava-se mais fácil por meio de um artifício, uma
rima por exemplo. Encontramos a mesma técnica na Inglaterra da baixa
Idade Média, como neste verso:

Red sky at night, shepherd's delight


Red sky at morning, shepherd's warning*

Um dos primeiros usos do alfabeto foi a transcrição deste tipo de


tradição oral, razão pela qual a literatura da Grécia antiga era uma espé-

* Céu vermelho à noite, o deleite do pastor


Céu vermelho de manhã, um aviso ao pastor [N. do T.]
O ABC DA L Ó G I C A 85

de planilha poética. É impossível entendê-la completamente se pen-


ida como literatura, no sentido moderno. Na Grécia clássica, a escrita
foi inicialmente usada para a transição do registro oral para o documen-
tado. Nós, modernos, que vivemos em uma sociedade instruída, vemos
a prosa escrita como prosaica e a poesia como poética, mas na Grécia
estas posições estavam, de início, invertidas. E porque vemos a leitura e
a escrita como tão importantes, tendemos a assumir que os primeiros a
adquiri-las foram os membros da aristocracia. Na verdade, eles foram
dos últimos a se instruírem.
Ainda que os gregos tenham considerado a escrita, de início, como
pouco mais do que um aide-mémoire,* cedo ela cresceu de importância,
acabando por mudar o modo de pensar. Primeiro, o alfabeto converteu o
conhecimento tradicional em um objeto externo facilmente disponível
para inspeção, menos dependente da memória. Disso resultou que novos
modos de falar e pensar sobre o mundo tornaram-se possíveis. A tradição
oral funcionava muito bem, por exemplo, na descrição de acões, como
nas cenas de batalha de Homero e mais tarde nos poemas anglo-saxôni-
cos como Beowulf. Por outro lado, uma cultura escrita, em que palavras
e ideias podem ser estudadas ao bel-prazer, é muito melhor para ativida-
des reflexivas como a filosofia, a prosa narrativa e congéneres.
Fundamental para a nova maneira de pensar foi o fato de que as
letras alfabéticas, ao contrário dos pictogramas, não eram representa-
ções de objetos. Um "A" não representava especificamente nada na
natureza. O alfabeto codificava a natureza em algo abstrato, a ser corta-
do e controlado de maneira impessoal. O alfabeto levou-nos, nesse sen-
tido, um passo a mais para longe de nosso meio ambiente, o que nos deu
também uma visão nova sobre o passado.
A literatura é um claro produto do desenvolvimento do alfabeto,
mas o mesmo não se dá com o conceito de história. A memória oral é
lida como presente, e a recordação está preocupada com o que é rele-
vante para ele. A biografia, em uma tradição oral, não é tanto erudição
rigorosa quanto um ato criativo, no qual os acontecimentos são coeren-
temente costurados com a ajuda da imaginação. Mas a acumulação de
registros escritos torna possível separar o presente do passado. Uma pes-
soa que sabe ler pode olhar "para trás", para o que aconteceu antes, de

- Em francês no original. [N. do T.]


86 O P R E S E N T E DO FAZEDOR DE M A C H A D O S

um modo que uma pessoa não instruída nunca poderá fazer. O material
escrito é necessariamente "datado" e fixado, enquanto a tradição oral é
"viva" e fluida. Nesse sentido, Heródoto foi menos o Pai da História do
que um filho do alfabeto.
Ao contrário da escritura primitiva da Mesopotâmia e do Egito, o
antigo alfabeto grego não foi usado originalmente na administração e na
contabilidade. Isto é surpreendente por ter a transferência do alfabeto
ocorrido em um assentamento comercial. A utilização mais remota que
se conhece (por volta do ano 800 a.C., em Creta) é a gravação, na pare-
de de um templo, de proclamações públicas de leis gregas e não-gregas.
O novo alfabeto também aparece em artigos pessoais de luxo, como
vasos, nos quais se incluía com frequência o nome do proprietário. Na
ilha italiana de Ischia, em 720 a.C., um vaso conhecido como "A Taça de
Nestor" continha uma mensagem alfabética onde se lia: "A taça de
Nestor é boa para nela se beber. Mas quem dela beber será tomado pelo
desejo de Afrodite."
O alfabeto causou uma revolução imediata na estrutura da socie-
dade porque, sendo muito fácil de aprender, permitia que muitas pes-
soas agora pudessem ler. Diversas culturas se arranjaram bem com os
pictogramas e outros sistemas de escrita, mas a moderna expansão da
instrução e da democracia se devem, basicamente, à simplicidade do
alfabeto grego. Devido à complexidade de seu sistema de escrita, uma
cultura como a japonesa, ainda que tenha adotado muitos elementos da
vida ocidental, ainda hoje requer uma educação muito mais longa (e que
pressiona muito mais os estudantes) do que a ocidental. Mas voltemos à
Grécia.

Com o alfabeto grego, os humanos tinham pela primeira vez um "siste-


ma de armazenamento de dados" fácil de usar que compensava as con-
sideráveis limitações da memória. A memória imediata só sobrevive sem
repetição por dois segundos, e os seres humanos só podem manter de
cinco a sete itens em seu estoque temporário. Mais que tudo, o sistema
é muito vulnerável a interferências, como se pode ver na memória da
testemunha, sabidamente não confiável.
Com a ajuda da escrita, no entanto, o cérebro pode manipular sim-
O ABC DA L Ó G I C A 87

tias sem ter de despender o esforço de reproduzi-los. Nas cul-


léemas, as pessoas que lidam com o pensamento abstraio utili-
msi externo, como a escrita, como sua "memória de serviço". O
«temo também divulga o pensamento, de modo que as ideias
•"avaliadas, comentadas e criticadas. A ciência é, talvez, o mais
rmplo do que esta capacidade pode propiciar. É por isso
Btruídos" na comunidade grega tinham agora um instrumento
dar o pensamento e fazer perguntas complexas sem o risco de
•esn no processo.
não significa, é claro, que em comunidades primitivas, como a
eus por exemplo, os indivíduos não tivessem habilidades de
tío abstrato e raciocínio, que eram no entanto restritas a uma
fcemamente pequena. Ainda que o alfabeto tenha tornado o
lento mais acessível, a instrução não era ainda para todos.
: pessoas em posição de mando sabiam ler e escrever.
ptsar disso, no entanto, a introdução das letras gregas e, de um
•ab geral, a literatura por elas gerada, iriam alterar o caráter da
•imana e diferenciar as sociedades alfabéticas de suas contem-
>«ais. Elas tornaram possível a forma democrática de governo
Éteina educacional mais rápido e eficaz. As crianças não mais pre-
•icmorizar centenas de ícones e o conhecimento da comunida-
pecisava mais se afogar em recitações poéticas longas e difíceis
ta, na Grécia, por milhares de anos. Mais importante que tudo,
fcaBabeto era outro daqueles presentes de fazedor de machados
• mudar o modo de funcionamento do cérebro humano e, por
inte, a. maneira de os humanos alfabéticos encararem a si mes-
•a relação com o mundo.
no ia foi dito, a linguagem escrita pode assumir várias formas:
|i para cima, de cima para baixo, do alto à esquerda para baixo à
,pea baixo até o final da página ou espaço e depois para cima, da
paca a esquerda até o final da linha retornando da esquerda para
• ^chamada boustrophedon, em grego, tal qual a trajetória de um
fctracão animal). A escrita pode também irradiar desde o centro,
ar uma espiral. Já os antigos hieróglifos iam geralmente da direi-
: -querda.
•tílise das formas de escrita existentes em todo o mundo reali-

r Derrick DeKerckhove revela que todos os sistemas que repre-


O PRESENTE DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

sentam sons são escritos horizontalmente e todos os que representam


imagens, como o chinês, são figurados verticalmente. E, mais exatamen-
te, todos os sistemas que contêm sons vocálicos (exceto o etrusco) são
escritos da direita para a esquerda.
Não é por acidente, com certeza, que a escrita grega se tornou
esquerda-direita logo depois da aquisição das vogais, dada a maior facili-
dade com que o hemisfério esquerdo do cérebro podia processar o texto
lido desta maneira. Isto provavelmente ocorreu quando alguns indiví-
duos encontraram vantagens em usar apenas a metade dos movimentos
do boustrophedon. Por esta época (500 a.C.), muitas revoluções mentais
além da grega apareceram pelo mundo, como a de Confúcio na China e
a de Buda na índia. Mas o alfabeto deu uma especial contribuição à
capacidade humana de dissecar e conformar o mundo. Este desenvolvi-
mento forneceu certamente as bases necessárias para a formação do
"modo de pensar" moderno que nós, é claro, identificamos como tendo
se iniciado com os gregos.
A ortografia esquerda-direita é lida de um modo diferente. O con-
trole de movimento do olho, quando vai para a direita, é feito pelo
hemisfério esquerdo do cérebro. As letras são vistas primeiro no campo
de visão direito de cada olho e processado no hemisfério esquerdo do
cérebro, especializado no processamento sequencial, passo a passo, e na
análise de bocados de informação.
Esse modo de escrever incentiva, portanto, o processamento da
linguagem, como se o mundo fosse não uma ilustração mas o produto de
uma montagem serial de componentes. E com a escrita "vogalizada"
esquerda-direita é possível entender um texto mesmo que não se tenha
nenhum conhecimento prévio do assunto (o que é obrigatório nas escri-
tas primitivas, de natureza icônica, em que os símbolos representam coi-
sas em vez de sons) ou da palavra, bastando reproduzir os sons sequen-
ciais que constroem-na pedaço a pedaço.
Podemos especular que as crianças formadas nesse mundo recém-
alfabético tenham tido um desenvolvimento cerebral diferente daquelas
formadas em um mundo recém-saído da carpintaria. A explicação pode
estar na facilidade com que o alfabeto grego permitia às crianças apren-
der a ler durante a assimilação do próprio vocabulário oral. A leitura e a
escrita podiam então ser ensinadas muito mais facilmente durante o
período de crescimento da criança, quando do desenvolvimento da
O ABC DA L Ó G I C A 89

Btnpetência linguística do cérebro. Com a leitura esquerda-direita, a


•Opacidade de representar o mundo combinando e recombinando ele-
Hentos abstratos tornou-se parte do modo como éramos treinados para
rnsar sobre ele.
Esses componentes, combinados com uma ordem social desenvol-
ida. a estabilização dos suprimentos alimentares e a segurança comuni-
fca. tornaram possível o primeiro salto em direção ao moderno conhe-
•Knto consciente, porque existia agora uma cultura letrada na qual
Ba haver um certo distanciamento entre pensador e pensamento por
•cão não apenas da externalização da memória (como no caso dos anti-
5 bastões) mas do próprio processo de pensamento. Essa maneira de
|btar o conhecimento como artefato iria separar daqui em diante os
Redores de machados das demais pessoas, fazendo do conhecimento
B inundo novo em si mesmo, a ser recortado e segmentado por espe-
^Httas.
Esta mudança nos processos do pensamento pode ser observada
B decorrer de um único século, durante o qual um certo modo de olhar
fcundo analiticamente, passo-a-passo, adquiriu proeminência sobre a
Be do desenvolvimento de novos procedimentos para a aquisição e
•alise do conhecimento (chamados pelos gregos de "amor ao saber" ou
khsophia).
Talvez pelo fato de disporem dessa nova capacidade de corte-e-
-:le do pensamento, os primeiros intelectuais gregos eram ampla-
livres dos temores religiosos que permearam a maior parte do
lento anterior. A filosofia, tal como a conhecemos hoje, começa-
i se desenvolver cerca de cem anos antes, quando pela primeira vez
ihistória registrada foram colocadas questões sobre a própria natureza
>cxmhecimento, sobre os aspectos práticos do governo da lei e sobre o
elecimento das convenções sociais.
Dentre os primeiros a atacar essas questões estavam os pensadores
ileto, no século VI a.C. Eram todos homens práticos, envolvidos
ta política e o comércio em sua cidade, instruídos em matemáticas e
3. Foram os primeiros a explicar a origem do mundo em termos
nente naturais, livres de ingredientes mitológicos. Inclinavam-se,
Hãlrnente, a fazer grandes generalizações a partir de observações res-
ias mas cuidadosamente verificadas.
O alfabeto os ajudou a se afastar do velho modo de pensar politeís-
90 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

tico e produzir leis racionais e gerais para os fenómenos naturais, basea-


das em explicações sequenciais do tipo causa-e-efeito. Por essa razão,
eles faziam novos tipos de perguntas que relacionavam o particular ("Por
que o fogo derrete o metal?") ao geral ("Qual é a natureza do fogo?").
Este novo processo estabeleceu o padrão usado pelos homens, desde
então, para pensarem o mundo e que, sob muitos aspectos, ainda são
centrais no pensamento moderno. Uma das principais distinções entre
os modos de pensar é, por exemplo, aquela entre o estilo crítico, analíti-
co, que procura entender o mundo pelo exame de suas partes, e o estilo
sintetizador, especulativo, que busca descrever o todo.
Os fazedores de machados-filósofos de Mileto pensavam em temas
abstratos que ainda hoje exercitam nossas mentes: será o mundo consti-
tuído de um único elemento básico ou são diferentes elementos da
natureza que se combinam para formá-lo? Parmênides concluiu que
existia apenas uma natureza duradoura, enquanto Heráclito afirmava
que tudo era um fluxo em constante mutação. Outra questão era se a
substância básica do mundo era contínua e fluida ou discreta e atómica.
Hoje nós pensamos que é atómica, como Demócrito de Abdera que,
tomando como metáfora a maneira como as palavras eram formadas
pedaço a pedaço com as letras do alfabeto, ensinava que o mundo mate-
rial era formado de partículas que surgem, se combinam e recombinam
a partir de um lodo primitivo.
O processo alfabético de construção de palavras com um conjunto
de elementos abstratos combinados de infinitas formas influenciou a
formação, na Grécia, do ponto de vista de que era também este o modo
de funcionamento do mundo material. Do mesmo modo como as letras
constituem palavras, também átomos de diferentes formas e tamanhos
podiam constituir coisas. Substâncias diversas podiam ter propriedades
diversas porque seus átomos eram diferentemente conformados, dispos-
tos e agrupados.
Em sua Metafísica, Aristóteles se referiu a este ponto de vista:

E da mesma forma como esses pensadores — [Leucipo e


Demócrito] postulam que uma substância subjacente gera todas as
outras coisas por meio de seus atributos, postulando o Raro e o
Denso como os princípios de todos os demais atributos em muta-
ção — eles dizem que as diferenças são as causas de todas as
O ABC DA L Ó G I C A 91

demais diferenças nas coisas. Tais diferenças são três: Forma,


Ordem e Posição. Eles dizem que as coisas diferem somente em
contorno, disposição e orientação; e, destes, contorno é forma, dis-
posição é ordem e orientação é posição. A difere de N em forma,
AN de NA em ordem e Z de N em posição

Com tantas pessoas capacitadas para a leitura, já era possível o


ate entre os membros letrados da cultura. Aristóteles, por exemplo,
amou a atenção para os problemas enfrentados pelos atomistas para
içar as mudanças dos estados físicos, tal como acontece quando as
derretem ou evaporam. Os gregos também se viram a braços com
;stão que ainda hoje atormenta os que acreditam no Bing Bang:
pode algo surgir do nada? Um dos milesianos, Anaximandro, suge-
de 150 anos antes de Platão que o mundo desenvolveu-se a par-
rdo apeiron infinito e indefinido do qual surgiram os quatro elementos
icos: o quente e o frio, o molhado e o seco. Seu discípulo
ímenes foi mais adiante, sugerindo que a matéria original do mun-
;rmanece a mesma em todas as suas transmutações (nada mau
primeira versão da lei da termodinâmica).
Até mesmo a teoria da evolução e da sobrevivência do mais apto
um precursor primitivo, Empédocles, que disse que no início as dis-
js partes dos animais circulavam livremente (cabeças, braços, per-
combinando-se mais tarde para formar toda sorte de monstros dos
somente os mais organizados sobreviveram. Anaximandro sugeriu
os animais terrestres eram originariamente marinhos e que os
los descendiam de animais marinhos que carregavam seus filho-
uma bolsa.
Não se trata apenas do fato de algumas ideias gregas terem resisti-
b tão bem (muitas, é claro, não resistiram), mas de que o estilo de pen-
«Hnento e as discussões que campeavam entre eles romperam com o
ipo de pensamento que havia dominado até então. Ao invés do pensa-
mento mágico e supersticioso que determinava causas com base em
Enilaridades e atribuía aos deuses poderes ilimitados e arbitrários, o
pensamento grego esforçava-se para dar explicações baseadas naquilo
^ue podia ser observado, segundo princípios regulares. Dito de outra
fama: com o pensamento alfabético, o mundo podia ser mentalmente
ntocado ao alcance das mãos, examinado e discutido.
92 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

As dissecções e análises que o alfabeto possibilitou afastaram


como nunca as pessoas iletradas da compreensão da natureza e do fun-
cionamento do mundo. No estilo característico dos fazedores de macha-
dos, os novos pensadores descreveram um mundo "real" muito diferen-
te daquele que aparecia para o observador não treinado. Embora o olho
visse árvores, cavalos e pessoas, o que existia na realidade eram átomos,
alguma substância subjacente duradoura ou, como pensava Pitágoras,
somente números.
O alfabeto foi o mais poderoso dos instrumentos de mudança do
mundo surgidos desde os tempos do primeiro machado. Mas era tam-
bém um instrumento muito fácil de usar. Se a instrução se espalhasse
demais, poderia resultar em perda de controle por parte dos detentores
do poder. Esse risco apareceu claramente quando a expansão e diferen-
ciação da economia grega tornou patente a necessidade de um maior
número de cidadãos educados. Desde o século VI a.C., a educação pri-
mária estava disponível para todos os homens livres, mas o sistema não
era desenvolvido o suficiente para produzir um quadro treinado de
burocratas capazes de cuidar da fundação de colónias, da gestão do
tesouro público, da organização da finança e da guerra, da coleta de
taxas aduaneiras e assim por diante.
Os administradores deviam saber geografia, economia, direito,
costumes estrangeiros e muito mais. Acima de tudo, um discurso claro e
de qualidade era essencial para a condução de uma sociedade complexa
e ordenada em um novo Conselho, em que política era discurso público
e onde o governo funcionava por meio de persuasão pela discussão. Esta
capacidade de debater e demonstrar foi enormemente desenvolvida por
um grupo chamado de sofistas, que conduziam tudo o que o alfabeto
lhes propiciava para uma conclusão inevitável.
O sofista Protágoras foi o primeiro a sugerir o valor potencial do
modo pelo qual o pensamento sequencial e combinatório permitia
demonstrar os dois lados de um mesmo problema. Isto introduziu a pos-
sibilidade socialmente desagregadora de que podiam não existir a verda-
de nem a moral absolutas, uma vez que elas diferiam de uma comunida-
de para outra e eram, em qualquer caso, "discutíveis" por definição.
É este relativismo, o pensamento que os tornou proscritos em sua
própria sociedade, o que mais nos atrai nos sofistas. No cerne de seu
modo de ver as coisas estava a ideia de que conceitos e ideias eram
O ABC DA L Ó G I C A 93

i os átomos de Demócrito) elementos mutáveis como as letras do


Étre::. e por isso os valores morais, por exemplo, eram relativos. O que
considerava bom e valioso em uma sociedade era muitas vezes des-
-r^-i:: em outra.
Ainda mais sofisticada era a ideia de que todo conhecimento é
—.ente relativo, e o que se considera como conhecimento não é um
rinto, mas uma visão de mundo fortemente influenciada pela socie-
\At da época e do lugar. Uma decorrência de seu pensamento era a de
ns homens e seus valores estavam no centro de todas as interpreta-
do universo.

Í Outro sofista, Górgias de Leontini, nasceu um pouco antes do ano


L.C., em Leontini, hoje Sicília, e ali viveu a maior parte de sua vida
Èora tenha visitado Atenas como embaixador em busca de ajuda.
BC tributo a seus dotes oratórios, uma estátua de ouro, que ele pró-
: inaugurou, foi erguida em sua honra, em Delphi. Nunca se casou
• deixou filhos, e morreu na corte de Jasão em Phaera, Tessália, com
•fade de 105 ou 109 anos (as fontes divergem). Perguntado sobre o
•ETr-r: de sua longevidade, ele disse que era porque nunca tomara o
^^Bo dos outros.
Górgias colocou na cena das ideias gregas algumas questões filosó-
• . : rur.damentais com as quais ainda hoje nos vemos a braços. Seu
f-.- :em um tom incomumente moderno. Uma das principais habilida-
s cos sofistas era a retórica, arte de apresentar um argumento de
r.!- r.:2 a convencer o ouvinte. Górgias inventou um estilo de preleção
ío fazia conduzir as palestras sob a forma de debate. Considerava pri-
um lado, logo o outro, e depois fazia um discurso em defesa de
. lado, enfatizando a natureza arbitrária, de corte-e-combinação, da
agem. Platão queixava-se de que os discursos de Górgias podiam
'coisas pequenas parecerem grandes e coisas grandes parecerem
;nas, ou coisas novas parecerem antigas e vice-versa, por meio de
i certo poder de linguagem".
Mas essa ênfase que Górgias e outros sofistas punham na retórica
i tinha a ver somente com o manejo da opinião política. Ela veio da
Deão de que a relação entre discurso e "verdade" está longe de ser
jles. O discurso não é apenas a apresentação dos fatos, dado que
considerável reorganização dos "fatos" está envolvida na maneira
i eles são selecionados e seqtienciados. Essa diferença entre retóri-
94 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

ca e realidade levou Platão a condenar a retórica, pondo-a em contraste


com a filosofia.
Os efeitos da nova ilustração, o poder da palavra, a distinção entre
palavras e realidade são problemas que Górgias explorou mais profunda-
mente em sua obra mais conhecida, Da não-existência da existência, ou
da natureza — pela qual Górgias foi tornado infame em sua época —,
levando um contemporâneo a assinalar: "Como pode alguém superar
Górgias, que ousou dizer que, das coisas existentes, nenhuma existe?"
Em sua obra, Górgias sustentava que:

1. nada existe e
2. se realmente existe, o homem não pode conhecer, mas que
3. se alguém de fato conhecesse, não poderia comunicá-lo.

A posição sofista era que os elementos do pensamento permane-


cem basicamente os mesmos, fossem usados para sustentar ou para ata-
car uma posição racionalista. E um ponto de vista discutível, mas é
extraordinário que alguém brincasse com ideias de corte-e-combinação
desse género já no ano 450 a.C.
Górgias separava os conceitos, antes unificados, de "ser", "pensar"
e "dizer" (tinha de ser assim para que a verdade ou o conhecimento
tivesse algum significado). Já nessa época levantava a questão do signifi-
cado e da referência. Se as palavras se referiam a coisas, como podiam
ser conectadas entre si, no sentido de por que uma palavra está associa-
da a uma coisa e não a outra se nela nada existe que a conecte com a sua
referência?
Górgias sustentava que, quando nos comunicamos, nunca troca-
mos a coisa, mas apenas a palavra para ela, que é sempre outra que a
própria coisa. Toda palavra introduz, portanto, uma falsificação da coi-
sa a que se refere, e isso significa que não se pode reproduzir a realidade
e que toda pretensão de fazê-lo é um engano. Mas uma vez que isso é
exatamente o que todas as palavras pretendem, então todas elas são
enganos. Isto posto, o homem que comunica melhor é o que mais enga-
na. No mundo moderno esta ideia tem um tom vagamente político, mas
na Grécia antiga não havia televisão.
O relativismo moral dos sofistas ainda provoca os pensadores con-
servadores de hoje, especialmente no que diz respeito ao ponto de vista
O ABC DA L Ó G I C A 95

|oe nada é absoluto em se tratando do comportamento humano. Os


consideravam que no que respeita a sexo, casamento ou funeral,
esemplo, as práticas dependiam da cultura em que viviam as pes-
de modo que as regras de comportamento nesses casos eram ape-
convencões. O importante, concluíam (antecipando nossos moder-
exércitos de executivos da publicidade, gente de marketíng e médi-
de coluna), era influenciar os outros, e isto é o que prometiam ensi-
às pessoas (mediante pagamento). Seu ponto de vista ficou muito
claro nos ensinamentos de Trasímaco da Calcedônia, que afirmou:
certo é o que é bom para o mais forte."
Destacamos Górgias, figura pouco conhecida do pensamento gre-
enfatizar a profundidade da revolução cognitiva que ocorria na
, mas os grandes pensadores seus contemporâneos não foram
impressionantes. Embora não o discutamos em profundidade, é
que pairava sobre todos, quanto ao alcance de sua influência, a
de Platão, que desenvolveu uma teoria unificada sobre quase
os ramos do saber, como a política, o direito, as artes e a natureza
indo. Um dos fatos mais importantes na formação de seu pensa-
foi o desastre nas guerras do Peloponeso, em que os atenienses
derrotados por Esparta. Platão oscilava entre a rejeição da demo-
— que podia conduzir ao tipo de demagogia que havia empurra-
Atenas para a guerra — e o horror frente aos excessos da ditadura
úente. Ele desenvolveu as primeiras ideias sobre como um país
ser idealmente governado. Em seu sistema, em troca do poder
o imposto pelos guerreiros, os filósofos-guardiães atuariam desin-
.sadamente em favor do Estado por não possuírem propriedades.
Mas considerava também que nenhuma teoria filosófica tinha de
o mundo natural. Sua sugestão sobre a natureza básica do mun-
que somente as verdades da matemática perduram, de modo que
te uma teoria baseada em números, com uma estrutura geométri-
velaria a estrutura permanente por trás da evidente mudança e
lio do mundo.
Platão foi o arquetípico teórico da crença de que a estrutura da
pode ser deduzida de princípios lógicos e que, portanto, não há
ssidade de observação. Este ponto de vista pode ser apreciado com
clareza em sua ideia de que os corpos celestes deviam mover-se em
[os porque estariam assim seguindo a forma mais perfeita. Ele não
96 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

estava interessado na mecânica do processo, acreditava que o único pro-


pósito de se observar as estrelas era encontrar exemplos de movimento
circular. As origens do mundo seriam reveladas por meio de princípios
racionais similares. Uma vez que as formas matemáticas são as mais per-
feitas, o mundo deve ter começado com dois tipos de triângulos retân-
gulos que geraram sólidos regulares, que por sua vez constituíram as
partículas dos quatro elementos.
Embora contestasse a ênfase dos sofistas na retórica (escreveu até
um diálogo sobre Górgias, do qual este disse: "Como Platão satiriza
bem!"), Platão produziu uma monumental série de diálogos. Estes retra-
tam quase todas as posições intelectuais concebíveis sobre muitas ques-
tões. E ainda que muitos eruditos tenham interpretado, nos diálogos,
Platão assumindo uma ou outra dessas posições, o mais plausível é que
ele estivesse expondo fragilidades do modo de pensar para ajudar as pes-
soas a avaliar a direção de seu pensamento e corrigir seus erros.

Mas não foi a considerável e variada produção dos filófosos gregos que
veio a ter, ao final, o maior peso na formação de nosso pensamento, e
sim o trabalho de um discípulo de Platão. Aristóteles, filho do médico de
Felipe da Macedônia, ingressou na Academia Ateniense com a idade de
17 ou 18 anos, onde se tornou um ardente platonista. Com a morte de
Platão, vinte anos mais tarde, ele deixou a Academia, em parte devido
ao sentimento antimacedônio, em parte por desagrado com o tipo de
platonismo que se ensinava ali, tendente a reduzir a filosofia à matemá-
tica. Ao mudar-se para a costa da Ásia Menor, Aristóteles começou a
considerar o problema que Platão deixou sem resolver: o modo como a
mente (que é distinta e superior ao mundo) adquire o entendimento da
matéria.
Tendo deixado a Grécia, afastou-se de Platão, especialmente no
que se refere às ideias deste sobre a observação da natureza. Aristóteles
concentrou-se especialmente na biologia, mencionando em suas várias
obras (História dos animais, Sobre as partes dos animais etc.) umas qui-
nhentas espécies de animais. Acredita-se que tenha dissecado pelo
menos cinquenta deles, esforço pioneiro em sua época.
As técnicas de Aristóteles moldaram o modo de se organizar o pen-
O ABC DA L Ó G I C A 97

ito e hoje exibe toda a sua importância quando se chega a uma


ío sobre qualquer coisa. Ele formulou as regras aceitas sobre como
• sem cometer erros. Sua fórmula era submeter os problemas a um
só racional sequencial. Nesse sistema, a análise (de acordo com
i processo claramente definido) conduzia à síntese por meio de um
i de diálogo que tornava possível identificar inconsistências inte-

A abordagem indutiva implicava em primeiro lugar o reconheci-


to e classificação de afirmações contraditórias. O processo de defi-
da verdade passava por distinguir entre a verdade particular, ou
i, sobre aquelas afirmações, e a verdade geral. Tal era o meio de che-
r ao entendimento: processar definições contraditórias, incompletas
i imprecisas até que surgisse uma definição consistente.
Como reflexo do modo como haviam sido usados os primeiros pre-
Btes dos fazedores de machados, a enorme vantagem dessa nova ferra-
enta mental para os detentores do poder era que ela lhes permitia
•etrar no coração do mundo e achar a ordem essencial de todas as coi-
utilizando-a então para moldar adequadamente o comportamento
A descoberta da ordem fundamental iria revelar que o universo
i era uma coleção aleatória de coisas mas tinha uma intenção e um
lio. E o único objetivo da vida era chegar à compreensão de como
:iedade e seus membros individuais se adequavam a esse desígnio.
Mas por mais significativo que tenha sido o presente do pensa-
ito alfabético sequencial em termos de ruptura democrática ou filo-
j, e quaisquer que tenham sido as alternativas que ofereceu para o
do mundo, o raciocínio dedutivo padronizou o pensamento
• nunca antes. O novo método consistia em proposições com duas
issas, cada uma contendo um meio-termo comum, daí resultando
: terceira premissa. A força desse sistema estava em permitir ao pen-
estabelecer a verdade sobre a natureza mesmo que esta verdade
i pudesse ser testada pessoal ou diretamente. Por exemplo: "Tudo o
: brilha no escuro é fogo. As estrelas brilham no escuro. Portanto,
as são fogo." Este método permitia às pessoas verificar a consistên-
i de seu pensamento.
O método de Aristóteles foi chamado de "lógica". Mais tarde, seria
içado pelos pensadores islâmicos de "ferramenta de afiar o pensa-
o". O presente de Aristóteles possuía, de fato, um enorme poder
98 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

modificador do mundo: era um método padronizado para cortá-lo,


observá-lo e analisar o seu funcionamento de maneira ordenada.
Instrumentos de corte-e-controle vinham sendo usados há milé-
nios pelos detentores do poder para manter a estabilidade e a ordem dos
povos. Aristóteles, agora, aplicava métodos analíticos à compreensão da
existência inteira, por exemplo classificando todos os organismos vivos
segundo uma única matriz — a Grande Cadeia da Existência —, defini-
ção da natureza que iria guiar toda a investigação durante os quinze
séculos vindouros.
Aristóteles construiu também um sistema para explicar o que
ocorria nos céus, colocando a Terra no centro do universo, circundada
por esferas concêntricas invisíveis contendo cada uma o Sol, a Lua, os
planetas e as estrelas. Esta estrutura universal provia um lugar para
todas as coisas, de modo que todas as coisas estavam em seu lugar. A
conformidade era tudo. Tal como a lógica, este constructo de Aristó-
teles iria governar o pensamento até Newton.
Aristóteles não via como necessário um reino das ideias separado
para explicar como chegamos à noção de ideias abstraías. Ele considera-
va que aquilo que se vê é aquilo que se tem, que o mundo das coisas per-
cebidas é o mundo real e que não existe nenhum grande mistério nas
noções de "bem" e "beleza". Possuir conhecimento era ser capaz de
dizer que alguma coisa era uma verdade geral de certo tipo ou grupo de
coisas. Com este ponto de partida, um sistema de conhecimento das coi-
sas poderia ser construído. Aristóteles inventou de fato um método cien-
tífico ao insistir que é importante observar-se o que ocorre no mundo
real. "Deve-se dar crédito às teorias", disse, "apenas na medida em que
elas se confirmam por fatos observáveis."
E praticava o que propunha através da observação simples e siste-
mática, anotando correlações de todo tipo, por exemplo a inexistência
de animais dotados simultaneamente de presas e chifres. Interessou-se
pela embriologia, deduzindo de suas observações que as baleias se apro-
ximavam mais dos mamíferos do que dos peixes. Coerente com sua
atenção para com o mundo natural, Aristóteles não aceitou as ideias de
Platão sobre a existência de uma alma separada do corpo: acreditava que
a alma era a parte espiritual do corpo, vivendo e morrendo com ele. Seus
seguidores desenvolveram este ponto de vista, identificando centenas
OABCDALÓGICA 99

r espécies de plantas e descobrindo o seu modo de reprodução (o que


: perdeu até o século XVIII).
Por volta do ano 250 a.C., um dos aristotélicos, Strato de Lamp-
cus, realizou experiências sobre o efeito do fogo pesando a madeira
lies e depois de aquecê-la. Strato tornou-se o cabeça do grande Mu-
5on de Alexandria, no Egito, onde Arquimedes fez suas famosas desco-
trtas sobre o volume e o deslocamento dos corpos na água e onde Aris-
rco desenvolveu a teoria de que a Terra fazia uma rotação diária,
cvendo-se em torno do Sol, tal como os planetas, numa órbita circular.
Financiado e controlado pelo Estado, o Museion era basicamente
t instituto fazedor-de-machados de pesquisa e ensino. Possuía a maior
Sioteca do Ocidente, com meio milhão de volumes, salas de palestra
jdo, um anfiteatro de dissecação, observatório, zoológico e jardim
iço. Uma ampla gama de experiências foram realizadas ali, como
r exemplo a investigação do comportamento dos líquidos no vácuo e
iquanto a comida ingerida por um pássaro acrescenta peso ao seu pró-
»corpo. Muitos, dentre a centena de professores do Museion, deixa-
i sua marca para a posteridade. Entre os matemáticos alexandrinos
_ —: Euclides, Arquimedes e Apolônio. Herófilo estabeleceu o cére-
»como centro do sistema nervoso e Eristrato investigou o sistema car-
scular. Eratóstenes calculou a circunferência da Terra e Aristarco
los avançou a teoria da sua órbita em torno do Sol. A primeira gra-
i sistemática foi escrita por um aluno da Biblioteca, permanecen-
pcomo norma durante dezesseis séculos.
Mas este espírito de investigação científica aparentemente livre
»o era de fato. Ou se seguia os modelos de Aristóteles ou se estava
x O modelo astronómico heliocêntrico de Aristarco não foi ampla-
• aceito porque não estava de acordo com o ponto de vista de Arís-
de que a Terra não podia seguir as mesmas leis dos planetas per-
; o professor de medicina e pesquisador Galeno deixou escapar a
i da circulação do sangue devido a um preconceito aristotélico seme-
e, de que na Terra todo movimento era supostamente retílineo.
ate no mundo perfeito dos céus o movimento podia ser circular.
Aristóteles foi o supremo fazedor de machados na medida em que
i tuna ferramenta de descobertas cujo uso os governantes podiam
• sem preocupação, uma vez que impunha um sistema padroni-
• produção de conhecimento dentro das regras aceitas. O conhe-
100 l O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

cimento gerado por este sistema ofereceria oportunidades de controle


social ainda maiores porque, ao possibilitar o corte-e-controle analítico
do mundo, Aristóteles abrira a porta para uma crescente especialização.
O fosso entre detentores e não-detentores de conhecimento aumentou
novamente.
O catalisador da mudança gerada pelo pensamento lógico, alfabé-
tico, pode ser visto em funcionamento em todas as áreas da vida, do tea-
tro grego à cerâmica. No ano 650 a.C., os padrões geométricos dos cera-
mistas da geração precedente começaram a ser substituídos por repre-
sentações da figura humana. Figuras naturalistas de soldados a pé em
formação de batalha apareceram no Chigi Vase. Nessa mesma época,
Hesíodo, agricultor-poeta que buscava classificar os deuses e mitos,
defendeu em um de seus primeiros textos escritos que a ordem social só
seria alcançada se os humanos assumissem a responsabilidade de desco-
brir sua relação com os deuses, a natureza e seus semelhantes humanos.
O efeito do pensamento e comportamento racionais pode ser
apreciado na maneira como os gregos discutiam os assuntos publica-
mente, no teatro. Por volta de 450 a.C., o que séculos antes se havia ini-
ciado como festivais religiosos já evoluíra para a forma grega trágica.
As tragédias manifestavam as preocupações de uma sociedade em tran-
sição do modo oral de pensamento para o escrito, dramatizando os efei-
tos sociais dos presentes dos fazedores de machados: os mitos face ao
novo conhecimento, o poder dos deuses contrastado com o da vontade
humana.
As mais claras evidências deste efeito alfabético podem talvez ser
apreciadas quando, no V século a.C, as peças de Esquilo são reunidas no
palco com as dos novos autores, Sófocles e Eurípides. As tragédias de
Esquilo, como a trilogia de Orestes, retinham as velhas tradições religio-
sas ao tratar dos deuses e de seu controle sobre o destino humano.
Foram escritas em poesia formal e solene, com coros longos e elabora-
dos. A preocupação do teatrólogo parecia ser antes de tudo a natureza
do governo dos céus e o modo como as decisões humanas punham em
movimento acontecimentos inevitáveis preordenados pelos deuses, que
reagiam à desobediência com punições terríveis.
Por outro lado, Eurípides, um teatrólogo da nova escola, escrevia
em prosa e preocupava-se com a investigação do caráter humano. A
O ABC DA L Ó G I C A 101

Hiaior dessas peças "novo-estilo" foi provavelmente Medeia, história de


mna mulher desprezada que trama vinganças terríveis contra os homens
que a traíram. A peça é o primeiro retrato de um caráter que suscita
compaixão por seu tormento emocional e psicológico. É também, tal-
vez, a primeira peça escrita sobre um ser humano que exerce o seu livre-
arbitrio. Os deuses não desempenham nenhum papel na história de
Medeia porque ela própria não queria o envolvimento deles. Com
tkdéia, Eurípides desligou-se das velhas convenções teatrais e religiosas
igualizadas.
Neste novo mundo, os indivíduos eram os únicos juizes de suas
próprias ações. Os acontecimentos não mais seguiam os ditames do
ritual religioso mas as novas (mas não menos conformistas) leis da socie-
dade humana. Em Antígona, de Sófocles, outro jovem tragedista, o coro
kico faz o sepultamento de Polyneykes soar como uma celebração dos
fazedores de machados ao proclamar a ascendência da humanidade
obre os deuses antigos, relacionando as façanhas do transporte maríti-
•o, da agricultura, caça, transporte terrestre, oratória, habitação e medi-
ana. Os humanos instruídos começavam a perceber que o novo conhe-
cnnento lhes estava dando um maior poder de ditar seus próprios desti-
•05 e de dominar um mundo maior.
A mesma libertação dos velhos modos também pode ser apreciada
D desenvolvimento da vida política grega. No século V a.C., Atenas
nou sua primeira Assembleia dotada de poderes legislativos totais, a
qual se reunia quarenta vezes por ano e era aberta somente aos atenien-
; do sexo masculino nascidos livres. Nenhuma propriedade ou qualifi-
ío de classe era necessária para ser elegível à Assembleia, e era direi-
> de todo cidadão dirigir-se a ela.
A Atenas do V século a.C. era dirigida por membros da comunida-
• masculina não-escrava, dotados de espírito público. De 30 mil cida-
livres, não menos de 2 mil cargos tinham de ser preenchidos,
lente um sistema altamente desenvolvido de manutenção de regis-
, escritos o tornaram possível. Cada novo funcionário podia ler o tra-
i de seus predecessores e aprender com eles. A nova sociedade polí-
se apoiava sobretudo na cidadania letrada capaz de ler anúncios
ícos, bem como leis e decretos escritos na pedra. Um exemplo é a
ática do ostracismo, processo pelo qual um homem podia ser banido
• Atenas. A decisão de fazê-lo requeria que pelo menos seis mil cida-
102 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

dãos lessem as acusações e depois escrevessem o nome em um fragmen-


to de cerâmica (cujo designativo grego era "ostraca").
Dado que todos esses cidadãos não podiam estar disponíveis ao
mesmo tempo, de uma hora para outra, devia existir muito mais do que
seis mil homens instruídos em Atenas. A maioria das estimativas registra
pelo menos dez mil, número similar ao de outros centros gregos. Isto sig-
nifica pelo menos dez por cento de homens de classe alta. A título de
comparação, é extremamente improvável que na Suméria e no Egito
um por cento soubesse ler ou escrever.
A nova estrutura política "democrática" grega parece ter sido pro-
duto direto da maneira como o pensamento alfabético incentivou a dis-
cussão de ideias que se desenvolviam. Mas era democrático em um sen-
tido bastante restrito, uma vez que não havia nenhum direito universal
na sociedade grega. Antes de tudo, o processo envolvia somente os cida-
dãos: nenhum membro da maioria escravizada da comunidade podia
votar. Por isso a democracia grega era, em certo sentido, pouco mais do
que uma versão ampliada da elite com acesso aos presentes dos fazedo-
res de machados que sempre dirigira a sociedade. Mas ela deu ao mun-
do moderno um modelo sobre o qual se podia construir.
Mas nem todo o mundo estava satisfeito com o poder do alfabeto
sobre o pensamento. Alguns dos pontos de vista mais críticos sobre a
questão vieram de Platão. Ele expressou sua preocupação com a capaci-
dade que possuía o pensamento alfabético de afetar nossa visão do
conhecimento em uma advertência que seria amplamente ignorada até
o final do século XX:

Ele causará o esquecimento nas almas daqueles que o


tiverem aprendido, quer pela falta de prática no uso da memória
quer pela confiança em escritos que lhes são recordados desde fora
por signos estranhos, e não de dentro, eles por si mesmos: desco-
briu-se não um elixir de memória mas de recordação. Dá-se aos
estudantes uma aparência de sabedoria, não a sabedoria real; de
tanto ouvir, na ausência de ensinamentos eles parecerão saber
muito quando em sua maioria não saberão nada, e terão dificulda-
de de conservá-lo porque adquiriram uma aparência de conheci-
mento em lugar do próprio conhecimento.
O ABC DA LÓGICA 103

Talvez seja muito fácil ver a ascenção do pensamento grego, epito-


do por Aristóteles, como a primeira magnífica tentativa de livrar a
3ite humana dos grilhões de milhares de anos de ignorância e cego
uai. Mas este ponto de vista é ele mesmo obrigado pelo fato de que o
e ocorreu há vinte e cinco séculos na Grécia modelou a maneira como
próprios vemos aqueles acontecimentos. Nosso pensamento é pro-
da lógica aristotélica, ela própria desenhada para evitar a terrível
uia que o alfabeto tornara possível e os sofistas tornaram sedutora.
A lógica penetrou na raiz do pensamento livre antes que ele se tor-
anárquico ou se desenvolvesse de alguma outra forma, assim pros-
ido pelos dois mil anos seguintes. Seriam necessários outros tantos
para que outra revolução na tecnologia da linguagem oferecesse à
te humana uma segunda chance. Nesse meio tempo, o processo de
e-manipulacão-e-seqúenciamento" entrincheirou-se tão poderosa-
nte em nosso pensamento que com poucos séculos de Aristóteles e
ele sobreviveria inclusive ao que pareceu ser o fim do mundo.
RETALHANDO
O MUNDO
Capítulo 4

t A FÉ A/O
;
PODER
C-^/uando Roma surgiu como poder imperial, os fazedores de macha-
dos já haviam fornecido meios suficientes para que uma pequena elite
lesse viver com relativo conforto e ordem e para que a maioria dos
indivíduos estivesse ocupada em uma miríade de diferentes atividades.
o século V, quando Roma caiu, o fim na civilização parecia próximo
tra os seus cidadãos.
Mas os fazedores de machados vieram para o resgate, uma vez
mais. Sob a forma do conhecimento clássico — preservado quase intac-
> durante toda a Idade Média —, os presentes deles depositariam em
•aos de uma única autoridade central ainda mais poder sobre mais pes-
«oas, as quais teriam de se conformar com as regras de comportamento
mais amplas e restritivas que jamais haviam existido. Depois de terem os
jpotâmios definido a estrutura social e os gregos moldado o pensa-
ito, as restrições surgidas na alta Idade Média iriam estreitar ainda
as opções individuais. Nos séculos que se seguiram ao fim de Roma
- cujo modelo de administiação foi seguido pelo regime que juntou os
•eacos após a queda do Império —, os presentes dos fazedores de macha-
ÍDS dariam aos líderes o poder de controlar as crenças pessoais mais fun-
damentais de seus seguidores.
Com a ajuda do conhecimento grego alexandrino, os romanos
•aviam sido os primeiros a governar um império altamente centraliza-
o qual se apoiava no uso extensivo de tecnologia e se estendia por
incias continentais. Em seu ápice, Roma governou tudo o que exis-
desde a Escócia até o Sudão e de Portugal até o Ira. E o maior impé-
que o mundo jamais havia visto existiu para um único propósito: pro-
e sustentar a autoridade central. Os romanos usaram a ciência e a
rnologia de seus talentosos súditos gregos para construir e manter
imensa burocracia, cujo poder & influência não encontra paralelo,
nem mesmo no moderno Serviço do Imposto de Renda.
110 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

A máquina de propaganda romana soldou um conjunto altamente


diverso de culturas através da Europa, Oriente Próximo e Norte da Áfri-
ca, de modo a reforçar o poder central e sustentar seus desejos militares
e políticos. Os administratores do Estado fizeram uso das artes visuais
para o controle social em todo o Império. César e seus sucessores lança-
ram mão de todas as formas de mídia desenvolvidas no mundo antigo
para controlar uma vasta área de conquista com milhares de tribos e lín-
guas diferentes. Os imperadores se esmeraram em colocar suas efígies
nas moedas, mostrando-se como senhores da guerra, sacerdotes e prote-
tores divinos. Em todos os lugares aonde foram, os romanos criaram um
ambiente romano, construindo cidades planejadas segundo seu padrão.
Desfiles e festivais regulares idealizavam o Estado e o imperador e todas
as principais estradas para Roma eram ladeadas de "triunfos", o equiva-
lente a enormes murais de pedra com anúncios que vendiam as virtudes
do modo de vida romano.
A Eneida, de Virgílio, uma das maiores obras da literatura romana,
foi escrita sob encomenda e patrocínio de Mecenas, o ministro da pro-
paganda. O poeta romano Horácio deu ao sentimento patriótico um slo-
gan tão poderoso e duradouro que ainda hoje aparece nos túmulos dos
soldados mortos: Dulce et decorum est pró pátria mori ("É doce e honroso
morrer pela pátria").
Em termos de conhecimento especializado, Roma contribuiu com
pouca novidade, se bem que seus engenheiros construíram, para manter
unido o Império, uma rede de estradas que, passados dois mil anos, ain-
da existe. Os romanos se concentraram na consolidação, ao invés da
mudança, talvez devido ao estrito controle social necessário para admi-
nistrar em uma escala geográfica tão ampla.
 carga de impostos cobrados às províncias imperiais para susten-
tar um número crescente de burocratas e aristrocratas ociosos na Itália
parece ter, já no século V, enfraquecido as lealdades locais nas provín-
cias, que se tornaram um convite para que a primeira onda de invasores
saísse das florestas da Europa Oriental. E eles vieram mesmo: godos,
germanos, vândalos, visigodos e hunos, em uma maré irreversível.
Fracassadas as primeiras tentativas de fazê-los retornar, foram fei-
tos esforços de cooptação através de cidadanias "federadas". Em alguns
lugares, esta tática funcionou por certo tempo. Bolsões de civilização
romana tardia sobreviveram até o século VI em áreas idílicas como a
A FÉ NO P O D E R 111

ânia, no sudoeste da França. Mas as legiões finalmente recuaram e


radas pavimentadas ficaram cobertas de mato. Os saxônios, nórdi-
i e húngaros conheciam técnicas de manutenção de estradas, mas
alesmente não havia nenhum lugar aonde ir e nada para adminis-
r a infra-estrutura afundou em desuso e ruína, o mármore foi retira-
»dos edifícios para virar cal, e as pedras foram removidas para a cons-
de habitações rústicas situadas muitas vezes à sombra das vilas
ias de onde haviam sido tiradas.
Com o império em ruínas, e seguindo o colapso da organização
l, a doença e a fome cobraram seu tributo e a produção de alimen-
i tornou-se, como tudo o mais, uma questão de produzir apenas o sufi-
nte para o uso local. As propriedades agrárias romanas deram lugar a
lúsculas tiras de terra plantada ao redor de aldeias enclausuradas
i muro de florestas que cresciam outra vez por toda parte. Amontoa-
; em minúsculas clareiras havia pequenos feudos e aldeias cujos habi-
tantes raramente iam campo adentro mais do que um meio dia a pé ou
Icavalo, para poderem retornar em segurança ao anoitecer.
Em apenas três ou quatro gerações, os romanos haviam se tornado
vaga lembrança de superseres, suas marcas na paisagem eram
icmoradas em lugares batizados segundo a agora incompreensível
itura de comando que haviam erigido: "Rua", "Fórum", "Campo",
jco a pouco, as luzes se apagaram por toda a Europa, onde não mais
via óleo para as lamparinas e nenhuma necessidade de iluminação
orna.
Neste mundo de sombras bruxuleantes lançadas por uma ocasio-
I carga de archotes, fantasmas e bandidos erravam pelos vastos e escu-
; espaços entre os minúsculos assentamentos. Mas aqui e ali, espalha-
; pelo continente, algumas fagulhas brilhavam atrás de grossos muros
pedra, onde a vida romana ainda se mantinha com uma qualidade
rito reduzida. Habitando essas ilhas de luz dispersas em um mar de
ruridão havia uns poucos homens, como Boécio e Cassiodoro, capa-
de ler e escrever, filosofar e discutir, recordar o passado. Esses
aens podiam se comunicar com outros de seu género em lugares de
santuário como os seus.
Foi esta a geração seguinte de fazedores de machados. Lutando
;speradamente para preservar o antigo conhecimento, ela reuniu
itamente os pedaços de um distante mundo futuro outra vez pacífico
112 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

e produtivo, e que, quando o caos recuasse, seria então ordenado de


acordo com a visão da Igreja. Eram os monges cristãos, guardiães do que
havia restado de conhecimento nas ruínas do Ocidente. Cerca de qua-
renta casas de monasticismo celta dispersas pela França e Itália revelam
esses enclaves de atividade fazedora de machados, pontos de transição
através dos quais o conhecimento do mundo antigo iria amadurecer e
originar o pensamento medieval maduro. Os próprios nomes desses
monastérios soam como uma lista de chamada de fazedores de macha-
dos: Jumièges, St. Gall, Bobbio, Luxeuil, Ripon, Wearmouth, Jarrow,
Bangor, Kells, Corbie, e os tardios Lorsch, Reichenau e Fulda.
O seu modelo de um novo mundo havia sido inspirado, ironica-
mente, por falsos relatos do saque de Roma, em 441, atribuído a Alarico,
o Huno, supostamente um bárbaro em busca de vingança para seus deu-
ses pagãos. Alguns romanos também responsabilizavam os cristãos pelo
fim do Império. As pessoas afirmavam que os deuses antigos, ofendidos
pela tardia adoção formal da nova fé pelo Império, haviam retirado sua
proteção à Cidade Eterna.
Agostinho, bispo cristão de Hippo, no Norte da África, levou treze
anos elaborando sua resposta a esta acusação. O resultado, uma obra
chamada De Civitate Dei ("A Cidade de Deus"), definiu a atitude que
iria guiar a sociedade ocidental nos séculos de confusão que viriam à
frente.
Agostinho expressou o sentimento escapista de "fim-do-mundo"
de seu tempo. Para além do reino dos sentidos existia um mundo eterno
de verdades espirituais, objetivo de todos os esforços humanos. O cami-
nho para ingressar neste mundo divino não era o exame do mundo exte-
rior por meio dos sentidos (na verdade o caos social tornava impossível
esta investigação), mas a introspecção. A verdade não vinha do mundo
exterior nem da mente, ambos impermanentes e não-confiáveis, mas da
presença iluminada de Deus.
Agostinho dividia as pessoas entre favorecidos e proscritos, os que
habitavam a "Cidade de Deus", que viveriam eternamente com a divin-
dade, e os da "Cidade Terrena", que seriam condenados para sempre aos
tormentos de Satã. A Igreja era representante do Reino de Deus na
Terra e, de acordo com Agostinho, exerceria um dia o poder supremo
em uma sociedade teocrática. A ideologia agostiniana foi um potente
instrumento com o qual a Igreja iria, nos milénios seguintes, manipular
A FÉ NO P O D E R | 113

controlar os governantes seculares da Europa Ocidental e, através


:les, os seus súditos.
Nos anos da agonia de Roma, a hierarquia cristã modelou a sua
•ganização com base na administração imperial, em que grupos de
ivernos de cidades formavam províncias e grupos de províncias forma-
vicariatos. Na Igreja, a unidade básica passou a ser a diocese dirigi-
por um bispo. As dioceses eram agrupadas para formar províncias da
Igreja presididas por arcebispos, e as províncias se agrupavam sob a dire-
i cão dos arcebispos metropolitanos, ou primazes. Governando os metro-
politanos estavam os patriarcas de Roma, Constantinopla, Antioquia,
Alexandria e Jerusalém.
Esta estrutura estreitamente articulada perdurou pelos séculos de
escuridão que se seguiram à queda de Roma porque seus membros pos-
líam meios de se manter em contato e compartilhar todo o pouco
ihecimento que sobrevivera ao cataclismo. Assumindo como suas as
:vras de Daniel 12.4: "Muitos irão para aqui e para ali e o conheci-
:nto será acrescido" (ou talvez olhando ao redor para o Império que
moronava), a antiga Igreja medieval organizou congregações espe-
de sacerdotes, alocou pessoas na reparação das estradas locais e na
strucão de pontes, criou serviços de estafetas, e estabeleceu até pou-
is para viajantes.
O poder mágico da Igreja era também capaz de persuadir as pessoas
que se elas visitassem os santuários sagrados seriam agraciadas com
losos contatos com as relíquias dos santos. Esses viajantes da fé tam-
atuavam como mensageiros da Igreja, cujas linhas de comunicação
im mantidas abertas na maior parte de todo este período. Uma ampla
bem-organizada rede de mensagens, operando de bispado em bispado,
d estabelecida pelo papa Gregório, o Grande, no século VIL
Cem anos mais tarde, São Bonifácio usou sacerdotes para levar
correspondência regular da Alemanha para a Inglaterra e Roma.
i, Bonifácio se referia a itens que ele queria que lhes fossem envia-
ou que já recebera. Na Alemanha, livros lhe foram enviados pela
[essa inglesa Eadburga; Bonifácio queria saber detalhes de todo livro
biblioteca do abade Duddo que lhe pudesse ser útil; encomendou
cópia das epístolas de São Pedro escritas em letras de ouro para
primir honra e reverência à sua congregação; no fim da vida ele ten-
114 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

tou obter uma cópia dos Profetas escrita em letras grandes e sem abre-
viações, por causa de sua visão deficiente.
A capacidade de ler, escrever e se comunicar à distância elevou os
hierarcas cristãos a uma posição extremamente poderosa sobre os reis e
príncipes iletrados, que dependiam totalmente do clero para ajudá-los a
administrar seus territórios. Foi então que novos termos foram introdu-
zidos na linguagem, tais como fazer "auditorias" e dar "audiências", nas
quais eram apresentadas provas orais porque a maioria dos envolvidos,
mesmo os de mais alta posição na sociedade laica, eram analfabetos e só
podiam entender a língua falada. Mas quando um cardeal corrigiu o
latim do imperador Sigismundo, ele respondeu: Ego sum rex Romanus
et super grammatica ("Eu sou o imperador romano e estou acima da gra-
mática").
Era fácil para a Igreja controlar um mundo iletrado, principalmen-
te por meio de suas comunidades monásticas e bispos. Na Alta Idade
Média, o ensino estatal romano tinha desaparecido e nada o havia subs-
tituído que pudesse competir com o sistema educacional controlado
pela Igreja. O conhecimento estava agora nas mãos de uma fração ínfi-
ma da população, era exclusivamente religioso em seus propósitos e
dava à Igreja o monopólio do controle sobre todos os aspectos da vida
social que exigiam instrução e aprendizado.
O papa Gregório fez da arte um instrumento de propaganda. Ele
disse:

Faz-se uso nas igrejas da representação pictórica pela seguinte


razão: os que são ignorantes das letras devem ao menos poder ver
nas paredes o que não podem ler nos livros. Para que os ignorantes
das letras possam adquirir o conhecimento da história e porque as
pessoas não podem pecar por adoração de uma representação pic-
tórica. (...) Porque aquilo que a escrita apresenta aos leitores uma
imagem apresenta ao iletrado, uma vez que nela mesmo o ignoran-
te vê o que deve seguir. Nela o analfabeto lê. Daí, e principalmen-
te para os povos (...) a figura substitui a leitura.

Na Baixa Idade Média, a arte seria usada de várias maneiras para propa-
gandear a autoridade papal sobre os governantes seculares. Imperadores
e antipapas são repetidamente mostrados esmagados sob os pés de um
A FÉ NO P O D E R 115

supremo pontífice triunfante, sentado em um imenso trono. Muito


mais tarde tornou-se comum os papas serem retratados em algum lugar
em qualquer trabalho artístico que encomendassem.
No que dizia respeito à cultura, era tempo, por enquanto, de con-
solidação intelectual mais do que de novo conhecimento, e por isso a
Igreja tentou preservar o que pôde em vastas compilações de conheci-
mento fazedor-de-machados, misturas duvidosas de fato, ficção e ouvir
;_ier.
O mais importante dos antigos compiladores foi um visigodo espa-
•hol, arcebispo Isidoro de Sevilha. Um de seus livros, Etimologias, basea-
do em fontes clássicas romanas e cristãs, foi um dos textos mais popula-
res da Idade Média. Tratava-se de uma enciclopédia do mundo, descrito
segundo o significado dos nomes das coisas. Incluía temas de medicina,
fceito, contagem do tempo e calendário, teologia, antropologia (incluin-
b raças monstruosas), geografia, cosmologia, mineralogia e agricultura.
i cosmos geocêntrico de Isidoro era composto pelos quatro elementos:
|o, terra, água e ar. Ele também acreditava que a Terra era uma esfera
r tinha uma compreensão rudimentar do movimento celeste.
Isidoro foi seguido por outro grande enciclopedista medieval, o
Dnge inglês Bede (m. 735), que escreveu dois livros didáticos sobre a
itagem do tempo e o calendário para ajudar os monges a saber os dias
lorários de suas orações e festivais. Este iria se tomar a base do com-
s, princípios de contagem do tempo e controle do calendário usado
i toda a cristandade.
Nem Bede nem Isidoro descobriram nada de novo, mas durante
los suas coletâneas forneceram aos dirigentes europeus a sua única
ate de conhecimento sobre a natureza, cujo uso e acesso seria contro-
i pela Igreja. E dada a preocupação cristã com as recompensas espi-
ais do outro mundo, o acesso era mais um sistema de discussão meta-
sica sobre questões como a incognoscibilidade do nome de Deus e a
istituicão dionisíaca da hierarquia celestial. Era um ambiente mental
lê a mente inquisitiva era severamente coagida a pensar de modo
jro e conservador, renunciando a descobertas intelectuais que per-
assem a ordem e a harmonia.
Enquanto isso a Igreja consolidava sua autoridade através de ações
aconianas contra todo e qualquer desafio. Quando os pensadores
ásticos do século II propuseram um caminho para a salvação através
116 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

da erudição e do autoconhecimento, seus livros foram queimados e


foram eles próprios proscritos. Como um eco da estratégia corte-e-con-
trole em uso desde os pré-históricos presentes, como o bastão de
Montgaudier, a Igreja consolidou seu poder com cânones de conheci-
mento oficial estritamente controlados, baseados em um único texto, a
Bíblia, somente acessível a hierarcas eclesiásticos instruídos.
Para aumentar as rendas, as autoridades da Igreja introduziram
um imposto religioso, o dízimo (décimo), inspirado nas leis do Velho
Testamento e autorizado pela primeira vez pelo rei carolíngio Pepino, o
Breve (741-68), e que determinava que todos (exceto os que fossem isen-
tados pelo papa, como as ordens religiosas) pagassem um décimo de suas
rendas à igreja local onde recebiam o sacramento. Este, o primeiro
imposto universal da história europeia, ajudou enormemente um papa-
do desesperadamente carente de ajuda financeira.
O poder da Igreja se encontra, antes de mais nada, ali onde todo
poder social sempre esteve, em uma estrutura centralizada de comando.
O papa de Roma, ao menos na teoria, era a autoridade única e central ao
qual era devida total obediência. O poder real dos monarcas e príncipes
era reconhecido, mas os ensinamentos da Igreja restringiam o seu alcan-
ce. Já no século V, o papa Gelásio I (492-6) dissera: "Existem dois [princí-
pios] fundamentais por meio dos quais este mundo é governado, a auto-
ridade sagrada dos papas e o poder real. Destes, o peso dos sacerdotes é
muito maior, porque eles têm de render contas dos próprios reis ao tri-
bunal divino." Ainda que representasse a admissão de que a sociedade
de fato necessitava tanto da monarquia quanto do papado, esta declara-
ção continha as sementes do futuro pensamento papal mais radical.
A liderança do papa era, no entanto, frequentemente contestada.
Gregório VII deu um passo decisivo para reforçar a autoridade da Igreja
com seu Dictatus Papae, de 1075, onde declarava entre outras coisas:
"Somente o pontífice romano é chamado com justeza de universal. (...)
Ele é o único cujo nome deve ser pronunciado em todas as igrejas." Mais
tarde, no século XII, o título do papa mudou, o que é muito significati-
vo, de "vigário de São Pedro" para "vigário de Cristo". Certos poderes
pertenciam, em última instância, somente ao papa: ele era a corte final
de apelação em casos eclesiásticos, sua permissão era necessária para o
estabelecimento de uma nova província da Igreja e somente ele podia
destituir um arcebispo de seu cargo ou dispensar uma clerezia da júris-
A FÉ NO P O D E R 117

i de seu bispo, o que era uma ameaça direta ao poder real de desig-
• o episcopado. O papa podia também fazer estabelecer regras escri-
i abrangendo toda a Igreja e convocar um Concílio Geral.
O crescimento do poder papal se evidenciava aos poucos em todo
ridente. Desde o século VII, tornou-se obrigatório que todo arcebis-
i recém-eleito visitasse Roma para ser investido com um pálio, uma
: de lã que devia vestir, durante o ofício, como sinal de que estava
L comunhão com a Sé Romana.
Paralelamente, o papado começara a assumir a antiga função
rial no Ocidente, especialmente do século VIII em diante, graças à
:
icacão da Doação de Constantino. De acordo com este documento
somente se descobriu ser uma fraude no século XV) o imperador
istantino dera a cidade de Roma ao papa (e, por extensão, o contro-
: todo o Ocidente) no século V, quando transferiu a sede do Império
i Constantinopla. A "doação" autorizava o papa a portar o diadema e
sígnia papal e conferia status senatorial ao clero romano. Na época
; Pascal II, mais exatamente em 1099, os papas passaram a ser coroa-
e depois de Gregório VII sua "entronização" na basílica de São João
ao era acompanhada da entrega do manto imperial vermelho, cuja
: conferia legitimidade no caso de rivalidade entre papas. As autori-
imperiais, por sua vez, podiam usar a Doação para "provar" que o
jado exercia o comando através de seu beneplácito.
O papado não apenas tentou remover a Igreja de sua subserviên-
i para com a autoridade secular como também proclamou-se superior
srarquia secular. Em resposta, os reis e imperadores europeus come-
am a se investir de um caráter religioso, no mínimo sagrado, quando
sacerdotal. Começaram por se fazer ungir nas coroações, as quais
liram a forma de cerimónias religiosas que os declaravam possuí-
da "unção do Senhor". A verdadeira unção, é claro, era dada tão
^úentemente quanto possível pelo próprio papa. Roma tentou calçar
ier real desse modo, dotando os reis e imperadores de um caráter
ido e tornando obrigatório que todos os súditos se lhes submetes-
com fé e cega obediência, porque (fazendo eco à Mesopotâmia)
jele que resiste a este poder resiste à ordem desejada por Deus". Mas
jbmissão dos fiéis era uma espada de dois fios que podia ser brandida
i poder real contra o papado.
O concílio da Igreja convocado em Paris no ano de 829 definiu os
118 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

deveres dos reis em termos que foram desenvolvidos dois anos mais tar-
de por Jonas, bispo de Orléans, em seu De institutione regis, que perma-
neceu como modelo de instrução real por toda a Idade Média. No con-
cílio, os bispos anunciaram:
"O ministério real consiste, de modo especial, em governar e diri-
gir o povo de Deus com equidade e justiça e em cuidar da provisão da
paz e da concórdia. Acima de tudo, o rei deve ser o defensor das igrejas,
dos servos de Deus, das viúvas, órfãos e de outras pessoas pobres e
necessitadas."
O controle eclesiástico, baseado nos poderes da instrução, inseriu
o clero em todos os aspectos da vida secular. Bispos e abades recebiam
concessões de terras dos reis e nobres, embora as nomeações reais fre-
quentemente os colocassem em posição inferior frente ao monarca.
Mas reforçavam de fato seu poder político e económico em todos os rei-
nos do Ocidente, dando-lhes poder senhorial sobre milhares de campo-
neses. Durante todo este período, bispos e abades tinham assento em
conselhos reais, influenciavam a redação de códigos legais seculares, e
eram figuras importantes nas decisões de Estado. Durante os séculos IX
e X, os eclesiásticos se viram frequentemente envolvidos em questões
de organização militar, uma vez que a partir do século IX passaram a ser
vinculadas à concessão de terras certas condições, como a obrigação de
que os beneficiários eclesiásticos reunissem, quando requisitadas, uma
quantidade especificada de tropas para o serviço de seus benfeitores.
No século XI, o controle da Igreja sobre a sociedade ocidental era
firme, ainda que não incontestado. Igrejas haviam sido criadas em todas
as principais áreas de assentamento por toda a Europa do Norte, o que
possibilitou o crescimento de um sistema de paróquias. Todas os habi-
tantes de uma cidade ou aldeia da Europa Ocidental tinham uma igreja
local.
A Igreja passou então a controlar outros níveis, adquirindo um
domínio sem precedentes sobre os pensamentos e sentimentos de todos
os indivíduos por meio de um dos mais eficazes sistemas de disciplina
social jamais concebido: a confissão. No século XII, todo pecado ou
ofensa cometida contra a doutrina da Igreja tinha de ser comunicado
em privado a um sacerdote; não fazê-lo podia levar à punição, até mes-
mo à sanção final de excomunhão da comunidade cristã, privando o cul-
pado de todas as formas de proteção da lei civil e canónica. A confissão
A FÉ NO P O D E R 119

provavelmente das práticas penitenciais monásticas celtas, em


o monge ou eremita confessava seus pecados à sua "alma amiga",
atribuído pelos textos a este conselheiro moral.
Pouco a pouco este sistema tornou-se comum, a ponto de o
cílio de Latrão de 1215 decretar que todos tinham de se confessar
vez por ano ao padre da paróquia. Este foi, em milhares da anos,
dos mais importantes passos para o reforço da cristianização dos
coes e das mentes. O controle da mente, de início exercido por
gês sobre outros monges, veio a ser exercido sobre todos pelo-clero
lar responsável pela atenção espiritual. Deste ponto em diante,
: permaneceria oculto da Igreja. No entanto, como as coisas vieram
lonstrar, a Igreja necessitaria de todos os sistemas de controle de
pudesse dispor para lidar com a ameaça (à cristandade e acima de
ao controle mental papal) que vinha se construindo na Idade
i desde o século VII.

i época, o conhecimento grego alexandrino havia começado a se


ferir para o Islã, onde seria processado antes de retornar à cultura
atai. A transferência foi desencadeada por uma seita cristã heréti-
nestorianos, expulsos de Bizâncio séculos antes e que vagaram
: Ásia Menor até se estabelecerem em Jundishapur, nas montanhas
! do Ira, a poucos quilómetros do lugar onde viria a se construir a
eira capital do mundo árabe, Bagdá.
Na Bagdá do século VII, o califa Al Mansur, que procurava uma
| para seus problemas gástricos, enviou servos ao monastério nesto-
em busca de remédios. Seus criados relataram a existência, no
stério, de uma imensa biblioteca. Al Mansur descobriu, em segui-
: os nestorianos haviam preservado virtualmente intactas as obras
r todos os principais pensadores do Museion de Alexandria, bem como
predecessores na Grécia Clássica. O califa e seus sucessores
laram que quase todos os textos fossem traduzidos e se viram na
; de um fabuloso tesouro de conhecimento fazedor-de-machados.
A transferência dos dados gregos para Bagdá alcançou seu ponto
i alto durante os séculos VIU e IX sob os califas abássidas, com a tra-
i de Aristóteles e Platão, Hipócrates e Galeno, Ptolomeu, Euclides
120 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

e Arquimedes, Apolônio, Aristarco e outros. Nada era absorvido pela


cultura islâmica até que fosse checado em termos de aceitabilidade teo-
lógica. O trabalho era feito em bibliotecas, hospitais e observatórios,
estimulando os fazedores de machados árabes à sua própria investigação
do mundo. A astronomia lhes dizia a hora das orações e a direção de
Meca; a medicina era uma valiosa ciência aplicada, ligada à astronomia
através da natureza astrológica do tratamento; a filologia auxiliava a aná-
lise dos textos sagrados.
Entretanto, o Islã estabeleceu pouco a pouco uma distinção entre
temas religiosos (direito e costumes religiosos), temas a serem postos a
serviço da religião, como a astronomia e a gramática, e as ciência secula-
res da matemática, astronomia e medicina. As sociedades islâmicas
transformaram a teoria grega em tecnologia aplicada que as ajudaria,
bem como a seus senhores clericais, a sobreviver e prosperar. Elas reali-
zaram importantes avanços em hidráulica, aplicada a sistemas de irriga-
ção que faziam florir seus desertos em magníficos jardins nos palácios
dos governantes.
A natureza altamente centralizada da sociedade islâmica impunha
pesadas restrições à liberdade intelectual do indivíduo, tornando o pen-
samento inovador possível mas sua aplicação estritamente controlada.
O mesmo era verdadeiro para a sociedade medieval chinesa, onde por
esta época outros conhecimentos fazedores-de-machados estavam sen-
do gerados, os quais iriam ao final encontrar, como os avanços islâmicos,
seu caminho para o Ocidente. Na China, onde o Estado controlava toda
a atividade, a ampla organização social necessária para a irrigação e
outras obras públicas de larga escala dava à vida chinesa um caráter
coletivo.
Toda atividade individual na China era subordinada ao bem
comum e portanto definida pelos burocratas. Desde os primórdios, o
poder permaneceu nas mãos de um xamã governante, o filho divino dos
céus. Ele era sustentado por uma extensa e toda-poderosa burocracia de
mandarins, onde o ingresso se dava por mérito e cujos membros
seguiam, em sua maioria, os ensinamentos do pensador Confúcio, do
século V. Para os mandarins, o pensamento de Confúcio era o "Grande
Caminho da Vida", cujos princípios controlavam toda a atividade social
e política, e mantinham também rigidamente controladas as atividades
do espírito analítico do livre-pensar.
A FÉ NO P O D E R 121

0 ponto de vista confuciano era um outro bom exemplo da natu-


auto-realizável dos processos fazedores-de-machados. De acordo
notn o princípio confuciano, o único propósito da educação era a prepa-
acão para o serviço do Estado, e por isso a meta do homem educado era
pádar antes de mais nada da manutenção do governo estável. Nenhum
conhecimento era proveniente de revelação sobrenatural; era antes
*mgido pelo uso da razão, que também tomava explícitas as diretrizes
A conduta ética, por sua vez definida pelo Estado.
Neste circuito fechado não havia caminho para que a teoria cientí-
i se tornasse prática tecnológica, porque o Estado proibia todo conta-
> entre uma e outra disciplina, e portanto não era esperado que a teoria
'. relacionasse com a prática. Os mandarins acreditavam que o mais
feroso instrumento da administração social era a classificação e o
ro de tudo e de todos, e por isso tudo era categorizado e a aplicação
(conhecimento somente era permitida dentro de sua própria categoria.
;por um lado toda a informação necessária estava disponível, por outro
i era toda dividida, razão pela qual ocorreu na China uma revolução.
Quando o imenso repositório de conhecimento islâmico (e através
i Islã, o chinês) e grego alexandrino finalmente alcançou o Ocidente à
ca em que a Europa iniciou seu contato com os árabes na Espanha,
1 e Jerusalém, ele colocou um poder de corte-e-controle sem prece-
rtes nas mão da liderança católica em primeiro lugar, graças à crença
í da posse do direito, conferido por Deus, de subjugar o mundo.
De acordo tanto com o Velho como com o Novo Testamento, ao
sm foi dado o domínio sobre a natureza. O Génesis disse: "Toda
i viva será alimento para ti. (...) Inspirarás medo e terror em todas as
da Terra. (...) Elas serão entregues em tuas mãos. (...) Domina a
e subjuga-a." É provável que essas declarações pretendessem ori-
ilmente regular e quem sabe celebrar o que já vinha ocorrendo des-
sque os fazedores de machados viabilizaram o assentamento humano
i Oriente pré-histórico e, principalmente, estabelecer a domesticacão
ais e a agricultura primitiva.
Em muitas outras religiões, a natureza era divina ou compartilhava
ivindade, mas a doutrina cristã deu à humanidade uma posição na
reza distinta do resto das coisas criadas. Os cosmologistas gregos
i compartilharam desta visão de uma natureza não-sagrada, e por
, quando as traduções de Aristóteles chegaram ao Ocidente cristão,
122 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

no início da Idade Média, sua afirmação de que a vida animal só existia


para o benefício do homem acrescentou autoridade extra à prática cristã.
A visão cristã dominante era que uma vez que os animais e plantas
não tinham alma, ficava excluída sua elegibilidade para um tratamento
humano. A manipulação da natureza (que podia incluir o aumento de
seu valor e beleza) era um direito e uma obrigação humana porque o
"aperfeiçoamento" do mundo envolvia o exercício do poder derivado de
Deus para este exato propósito.
O cristão medieval acreditava na "Grande Cadeia da Existência"
de Aristóteles, a estrutura hierárquica feita por Deus na Criação ou,
como teria dito Aristóteles, a "Força Primordial". A Grande Cadeia liga-
va todas as espécies, cada uma à seguinte, desde o organismo mais sim-
ples até os humanos e anjos, e estava baseada no conceito de que as for-
mas inferiores existiam somente para o benefício das formas superiores.
Os monges beneditinos do século XI estiveram entre os primeiros
a aplicar sistematicamente essa visão da natureza na vida cotidiana e a
começar o processo de seu "aperfeiçoamento", o qual iria se refletir na
atividade fazedora-de-machados dos séculos vindouros. O Regulamento
de São Benedito ordenara que os membros da Ordem buscassem sítios
monásticos "longe dos antros dos homens", em lugares selvagens e isola-
dos, e que aplicassem então seus conhecimentos ao cultivo da terra para
que ela produzisse alimento suficiente para sustentá-los.
Uma família particular de beneditinos, os cistercianos, cujo lema
era "Trabalho é oração", foi a mais bem-sucedida nesta tarefa. A maior
parte da pouca tecnologia que sobrevivera aos séculos seguintes à queda
de Roma emergiu na Idade Média dos monastérios cistercianos, que
mais pareciam pequenas fábricas, cheias de teares movidos a água, moi-
nhos, serras, moendas e martinetes de forja.
São Bernardo de Clairvaux descreveu, na França do século XII, a
paisagem de seu monastério cisterciano como tendo "adquirido signifi-
cado", uma vez que o engenho humano trouxera ordem à selvageria,
represando o rio e desviando seu curso para mover as rodas d'água do
monastério:

O [rio] Aube (...) passa e repassa pelas muitas oficinas da


abadia, e em todo lugar deixa atrás de si uma bênção por seu fiel
serviço.
A FÉ NO P O D E R 123

O rio sobe a essas alturas por meio de trabalhos laboriosa-


mente executados, e em nenhum lugar passa sem prestar algum
serviço, ou sem deixar para trás um pouco de sua água. Ele divide
o vale em dois com seu leito sinuoso, feito pelo trabalho dos irmãos
e não pela natureza, e segue adiante para despejar metade de suas
águas dentro da abadia, como para saudar os irmãos, parecendo
desculpar-se por não vir com força total, para o que é muito peque-
no o canal que o recebe. Se às vezes a correnteza, engolida por
' mna inundação, irrompe numa torrente violenta, ela é detida por
um muro, sob o qual é obrigada a passar, voltando-se assim sobre si
mesma para encontrar e se fundir à corrente descendente. Mas
quando o muro, tal qual um porteiro fiel, lhe permite o ingresso,
segue adiante para mover as rodas do moinho; ali, açoitada em
espuma pelo seu movimento, ela faz moer a farinha sob o peso da
pedra e separa o fino do grosseiro em uma joeira de malha fina.
Um pouco mais longe, no edifício seguinte, o rio enche uma
caldeira e é aquecido para a fermentação, de modo que a bebida
possa ser preparada para os irmãos no caso da vindima não respon-
der com indulgência ao trabalho do vinhadeiro; desse modo, na fal-
ta do sumo da uva, a necessidade pode ser suprida pelo extrato dos
cereais. Mas a utilidade do rio ainda não está completa, pois o
pisoador o chama em auxílio de seu trabalho ao lado do moinho;
sólida razão pela qual, tal como o moinho exige o cuidado com o
alimento dos irmãos, neste caso a sua roupa pode ser fabricada.
Mas o rio não hesita nem rejeita quem quer que peça sua ajuda; e
se pode vê-lo erguer e baixar alternadamente os pesados pilões,
isto é, os martelos, ou blocos de madeira em forma de pés (e por
isso aquele nome parece concordar melhor com o trabalho dos
pisoadores) e assim os alivia da parte mais pesada de seu trabalho
(...) Quantos cavalos cansaria este trabalho! E quantos braços
humanos fatigaria!

Os monastérios cistercianos do século XII eram os mais avançados


•plexos técnicos do continente europeu, com as mais desenvolvidas
nkas agrícolas e as minas e fábricas mais produtivas. A sua dinâmica
••trina "seguir em frente e melhorar" iria finalmente dar às autorida-
124 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

dês seculares do Ocidente medieval tardio a tecnologia necessária para


alcançar meios eficazes de controle social.
Um dos novos sistemas de controle surgiu das necessidades litúrgi-
cas dos monastérios da Europa do Norte. Os monges necessitavam
saber as horas por causa da programação de rezas coletivas diárias que
tinham obrigação de realizar pelas almas do populacho. Havia sete gru-
pos de horas em que as preces deviam ser rezadas, algumas no meio da
noite. No início, velas e relógios de água serviam para indicar o momen-
to em que os sinos do monastério deviam ser tocados assinalando a hora
das preces; mas os relógios de água congelavam no inverno e as velas se
apagavam.
O controle do tempo era um método indispensável de organização
também para os supervisores das protofábricas monásticas. Deve ter
sido, portanto, a expansão dessa ordem religiosa de fazedores de macha-
dos orientada para a tecnologia o que intensificou a busca de uma
melhor forma de controle do tempo e incentivou o desenvolvimento do
relógio mecânico movido a peso no século XIII.
O presente do relógio tornou imediatamente possível novas for-
mas, mais amplas e eficazes, de disciplinar as forças sociais. A demanda
das cortes e de um número crescente de cidades de toda a Europa por
relógios era impressionante. Os relógios das cidades deram às guildas e
aos governos novos meios para regular o comportamento. Em Bruxelas,
os trabalhadores têxteis levantavam com o sino da aurora, os tecelães
encerravam a sua jornada com o sino da noite e havia um relógio espe-
cial para os sapateiros. Em 1355, em Amiens, França, o governo da cida-
de baixou um regulamento "sobre a hora em que os trabalhadores (...)
deviam ir para ao trabalho todas as manhãs, quando deviam comer e
quando voltar ao trabalho, e também a hora em que deviam encerrar a
jornada, à noite", para o que usavam um sino especial.
Ao mesmo tempo em que esta tecnologia de controle se espalhava
dos monastérios para a comunidade urbana, a Igreja também definia os
usos permitidos das novas técnicas investigativas que se espalhavam
para fora dos escritórios onde eram traduzidos e copiados os manuscri-
tos árabes e gregos.
As primeiras traduções do árabe (tratados diversos sobre matemá-
tica e astrolábios) foram feitas no final do século X na Espanha. Cem
anos mais tarde, Constantino, monge beneditino norte-africano, foi
A FÉ NO P O D E R J 125

0 monastério de Monte Cassino, no sul da Itália, onde começou a


iuzir tratados médicos do árabe para o latim, incluindo trabalhos de
ieno e Hipócrates. Aqui foram lançadas as fundações da literatura
dica sobre as quais o Ocidente iria construir por muitos séculos.
Na primeira metade do século XII, a tradução havia se tornado
importante atividade especializada tendo como foco geográfico a
janha, país que possuía séculos de brilhante cultura árabe, um farto
Drimento de livros árabes e comunidades de cristãos (moçárabes) que
im praticado sua religião sob permissão do governo muçulmano e
agora podiam ajudar na mediação entre as duas culturas.
Como resultado da reconquista cristã da Espanha, centros de cul-
e bibliotecas hispano-arábicas caíram em mãos cristãs. Toledo, o
ais importante deles, caiu em 1085. O maior dos tradutores do árabe
i o latim foi Gerard de Cremona, originário do norte da Itália, que foi
i a Espanha no final da década de 1130 ou início da de 1140 em bus-
1 Almagesto de Ptolomeu, obra que ele não conseguira localizar em
lum lugar.
Gerard encontrou uma cópia em Toledo, ficou na cidade para
ender o árabe e ao final traduziu o trabalho para o latim. Entretanto,
descobriu também textos sobre todo tipo de assunto, e nos trinta e
co anos seguintes produziu traduções de pelo menos uma dúzia de
falhos de astronomia, dezessete de ótica e matemática, catorze de
sofia natural (incluindo a Física, Sobre os céus, Meteorologia e Sobre
i geração e a corrupção, de Aristóteles), além de vinte e quatro livros
licos.
Traduções do grego, língua que nunca desaparecera inteiramente
pás à ocupação bizantina de partes da Itália, agora se multiplicavam
laticamente, especialmente no sul da Itália e na Sicília, onde sem-
houvera comunidades de fala grega e bibliotecas contendo livros
gos. Importantes obras de matemática e ciências matemáticas apare-
am em traduções do grego para o latim em meados do século XII: o
tagesto de Ptolomeu, Elementos, Ópticas e Catóptricas de Euclides.
adução de obras gregas para o latim continuou no século XIII, nota-
icnte na obra de William de Moerbeke, cuja intenção era fornecer à
andade latina uma versão completa e confiável das obras de Aristó-
s, revisando sempre que necessário traduções existentes do grego, e
luzindo alguns trabalhos matemáticos de Arquimedes.
126 O P R E S E N T E DO FAZEDOR DE M A C H A D O S

Essas traduções tornaram o conhecimento prático mais acessível


às autoridades eclesiásticas ocidentais. Primeiro vieram a medicina e a
astronomia, nos séculos X e XI; no início do século XII a ênfase parece
ter se deslocado para as obras astrológicas, ao lado dos tratados de mate-
mática necessários para o sucesso da prática da astronomia e da astrolo-
gia. A medicina e a astrologia se mantiveram sobre bases filosóficas, e foi
ao menos em parte para recuperá-las que, de 1150 em diante, a atenção
voltou-se para as obras físicas e metafísicas de Aristóteles. Mas uma vez
tendo a totalidade das obras de Aristóteles se tornado conhecida, ficou
claro que seu sistema filosófico era aplicável a uma enorme gama de
temas com que se lidava nas escolas e nas novas universidades.
Para os homens políticos do Ocidente, o domínio da lógica aristo-
télica recém-descoberta deu uma capacidade quase mágica de aumento
ilimitado do conhecimento e, acima de tudo, um sistema de controle
para limitar os efeitos desestabilizantes dos novos dados árabes. Tal
como na Grécia, o presente da razão podia inicialmente oferecer pers-
pectivas intelectuais intoxicantes, mas no final atuaria como um freio
eficaz sobre a liberdade de pensamento.
A excitação provocada pelo conhecimento árabe fica clara nas des-
crições dos primeiros contatos. No início do século XII, o inglês Abelard
de Bath retornou da Sicília arábica exortando os monges seus confrades
a "(...) pensar por si mesmos. Porque eu aprendi coisas diferentes com
meus mestres árabes tendo por guia a razão. Vós, no entanto, tornados
cativos pela autoridade, sois guiados com um cabresto".
Abelard escreveu dois livros que causaram grande impacto sobre
seus confrades europeus. Neles, dizia que toda autoridade devia estar
sujeita ao questionamento da razão. Sua mais poderosa afirmação foi
talvez: "O universo visível está sujeito à quantificação e é assim por
necessidade. (...) Se quereis ouvir mais de mim, dai e recebei razões, por-
que eu não sou o tipo de homem que satisfaz sua fome com a imagem
de um bife!"
Peter Abelard reuniu-se aos novos pensadores em 1110. Rapida-
mente se tornou uma figura central e já nas primeiras décadas do século
era o mais notório erudito da Europa. Seu interesse principal estava em
dispor os argumentos das autoridades em apoio e em oposição a pontos
em disputa, uma técnica que já era limitadamente utilizada, especialmen-
te por eruditos em teologia, conhecida como método dos pró et contra.
A FÉ NO P O D E R 127

Abelard forneceu uma técnica mais precisa para o tratamento de


questões teológicas com seu influente Sic et Non ("Sim e Não"), onde
fcrmulou 157 perguntas e respostas sobre a fé e a moral. A obra expôs as
inconsistências internas de boa parte da teologia da época e produziu
f nma nova consciência da necessidade de se aplicar os princípios da lógi-
ca à experiência humana e distinguir o discurso lógico do metafísico.
Este género de investigação rapidamente se tornava um aspecto
capital do novo aprendizado nas escolas oficiais, enquanto eruditos
ísientosos como Abelard exerciam forte atração sobre um número cres-
cente de estudantes nas cidades em crescimento. É claro, os dialéticos
Jessas escolas não procuravam destruir a fé ou derrubar a ordem estabe-
I fccida, baseada na supremacia eclesiástica. Ao contrário, estavam con-
vencidos que seu trabalho reforçaria bases que assegurassem os valores
absolutos da Igreja. O famoso dito de Abelard: "Por meio da dúvida
»mos levados à pergunta, por meio da pergunta alcançamos a verdade"
, era uma tentativa de defender a fé tanto quanto a ordem social cristã
estabelecida.
O novo aprendizado tornou-se o aspecto central da vida intelec-
tual do século XIII, estabelecendo a agenda que iria ocupar os maiores
eruditos do século. A tarefa desses cristãos fazedores-de-machados era
lominar o novo conhecimento, organizá-lo, avaliar seu significado, des-
cobrir suas ramificações, resolver suas contradições internas e torná-lo
disponível (sempre que possível) para aplicação autorizada aos proble-
mas intelectuais existentes. Acima de tudo, a exigência era torná-lo
socialmente seguro. As novas traduções do árabe eram enormemente
[àtrativas devido à sua amplitude, seu poder intelectual e sua utilidade,
Imas sua origem pagã significava que continha material teologicamente
•Bvidoso.
A maioria dos textos era, no entanto, considerada suficientemente
BBÓcua, e o próprio fato de que um manuscrito tivesse sido totalmente
traduzido significava que sua utilidade superava o potencial de pertur-
bação social. Tratados técnicos em todo tipo de assunto (matemática,
astronomia, estatística, ótica, meteorologia e medicina) foram recebidos
cem indescritível entusiasmo por serem claramente superiores a qual-
quer coisa até então disponível e não conter nenhuma surpresa desagra-
[íável de cunho filosófico ou teológico. Nesse sentido, os Elementos de
I-iclides, o Almagesto de Ptolomeu, a Álgebra de al-Khwarizmi, a Óptica
128 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

de Ibn al-Haytham e o Cânon de Medicina de Avicena foram pacifica-


mente acrescentados ao arsenal intelectual da Europa eclesiástica e (em
uma extensão limitada) de sua elite secular.

Mas em áreas temáticas mais distantes, como a cosmologia, física, meta-


física, epistemologia e psicologia, surgiram problemas que ameaçaram
se chocar com a teologia. No centro desses trabalhos estavam as obras
de Aristóteles e de seus comentaristas, que abordaram com êxito uma
infinidade de problemas críticos em filosofia, prometendo indizíveis
benefícios futuros do uso geral de sua metodologia.
Um dos mais eminentes eruditos cristãos a ser influenciado por
este novo material foi Alberto Magno, frei dominicano do século XIII
que ensinava na Universidade de Paris. Inspirado nas ideias de
Aristóteles, ele viajou pela Europa fazendo perguntas a artífices (pesca-
dores, caçadores, apicultores) que a Igreja normalmente ignorava e
olhando para o mundo com outros olhos. Produziu dois livros sobre
botânica e zoologia repletos de descrições da natureza, com um frescor
e uma objetividade completamente distinta de qualquer coisa escrita há
milénios. Sua observação sobre o pássaro que surgiu do fogo ("A fénix
deve mais à teologia mística do que à natureza") foi uma afirmação
extraordinariamente moderna para a época.
Numa época em que textos antigos eram a fonte de toda autorida-
de, Alberto avançou um novo princípio metodológico revolucionário:
"Não pode existir nenhuma filosofia sobre coisas concretas. (...) Nesses
assuntos, somente a experiência pode trazer a certeza." Alberto foi sen-
sível ao racionalismo e ao compromisso aristotélico com a aplicação do
método filosófico em todas as áreas da iniciativa humana ao propor dis-
tinguir a filosofia da teologia em termos metodológicos e revelar que a
filosofia sozinha, sem nenhuma ajuda da teologia, podia dar conta da
realidade. Era uma ruptura que mais tarde ficaria demonstrada.
Um seu contemporâneo francês, William de Conches, foi ainda
mais longe clamando pela investigação objetiva da fé e da filosofia. O
erudito francês Thierry, que vivia em Chartres (centro de novos pensa-
dores, chamados por seus contemporâneos de "os modernos"), analisou
o Génesis desde o ponto de vista dos processos naturais descritos no tex-
A FÉ NO P O D E R 129

to e questionou a extensão em que as descrições deviam ser tomadas


literalmente.
A questão-chave (que ameaçaria as próprias bases da Igreja) era, no
entanto, que se a lógica e a razão deviam ser aplicadas à fé, o que seria
de milagres como a concepção sem pecado? O que seria da fé? Os eru-
ditos tinham de ser cuidadosos para preservar o delicado equilíbrio entre
crença e descrença, ameaçado por este género de ideias.
William de Conches protestou que sua posição filosófica não dimi-
nuía o poder e a majestade divinos: "Eu não tiro nada de Deus; todas as
coisas que existem no mundo foram feitas por Deus, exceto o mal; mas
ele fez outras coisas por meio da natureza, que é o instrumento da ope-
ração divina." O estudo do mundo físico capacitou o homem a apreciar
"o poder, a sabedoria e a bondade divinos", e portanto a busca das cau-
sas secundárias (os processos naturais) não era negação, mas afirmação
da existência e majestade da causa primeira (Deus).
A realidade dos milagres podia, então, ser reconciliada com a natu-
reza pelo reconhecimento de que os milagres representavam a genuína
interrupção das leis usuais, dando-se por certo que essas interrupções
haviam sido planejadas por Deus desde o tempo da Criação e colocadas
dentro da maquinaria cósmica. Os milagres podiam assim permanecer
perfeitamente naturais, em sentido amplo. Era possível falar de uma
ordem natural fixa sem infringir a divina onipotência e liberdade,
arguindo que Deus tinha infinita liberdade para criar o mundo à sua
escolha, e escolhera em realidade fazer o mundo tal como o encontra-
mos. E agora que estava terminado, Deus não iria alterá-lo. Este ponto
de vista se tornaria crucial para a autoridade cristã.
Na segunda metade do século XIII, a controvérsia sobre os novos
pontos de vista começou a envolver as universidades recém-estabeleci-
das na Europa do Norte, naquela época dominada ou sujeita à vassala-
gem do papado. O centro do conflito era Paris, embora a bulha tenha se
espalhado para outras universidades francesas em Toulouse, Mont-
pellier e Orléans. O problema era se as universidades tinham ou não o
direito de estudar os novos textos e principalmente os tratados de
Aristóteles sobre metafísica e filosofia natural, em especial da forma
como apresentados ao Ocidente nos escritos do comentarista hispano-
islâmico de Aristóteles, Averróis.
Era uma questão candente, porque se a filosofia natural de
130 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

Aristóteles ganhasse aceitação, toda a base metafísica dos ensinamentos


agostinianos tradicionais da Igreja, bem como sua reivindicação da auto-
ridade religiosa, seriam desafiados e o caminho estaria livre para o
desenvolvimento de uma explicação completamente naturalista e racio-
nal do universo, com óbvios perigos para a Igreja. Ironicamente, Roma
reagiu à nova heterodoxia, no início do século XIII, de modo muito
semelhante a como a Grécia reagira aos sofistas mil e quinhentos anos
antes — com o banimento total dos escritos de Aristóteles.
Alegou-se, em Paris, que o panteísmo (grosso modo, o fazer de
Deus uma parte do Universo) estava sendo ensinado pelos mestres sob
inspiração aristotélica. O resultado foi um decreto, expedido por um
concílio de bispos reunido em Paris no ano de 1210, proibindo o ensino
da filosofia natural de Aristóteles dentro da faculdade de artes. O decre-
to foi renovado em 1215 pelo delegado do papa Robert de Courcon. O
papa Gregório IX envolveu-se diretamente na discussão em 1231, coma
renovação do banimento de 1210 e a especificação de que as obras de
Aristóteles sobre filosofia natural não deviam ser lidas na faculdade de
artes de Paris até que tivessem sido "examinadas e expurgadas de todas
as suspeitas de erros".
Em uma carta que nomeava uma comissão para agir sobre a ques-
tão, Gregório escreveu: "Uma vez que as demais ciências devem servir à
sabedoria das Sagradas Escrituras, elas só devem ser apropriadas pelos
fiéis a partir do momento em que se saiba estarem de acordo com o
beneplácito do Supremo." Mas Gregório estava ciente de que "os livros
de filosofia natural proibidos em um concílio provincial em Paris (...)
contêm tanto matéria útil quanto inútil" e por conseguinte, "para que o
útil não seja contaminado pelo inútil", ordenou à comissão "eliminar
tudo o que está errado ou que possa causar escândalo ou ofender os lei-
tores, de modo que quando a matéria ambígua tenha sido removida, o
remanescente possa ser estudado sem obstáculos e sem ofensa".
Mais tarde, em 1277, a discussão de qualquer coisa remotamente
relacionada com o racionalismo foi proibida, enquanto Roma procurava
uma saída para o aparente impasse. A solução foi encontrada na pessoa
de um intelectual dominicano que fora discípulo de Alberto Magno em
Paris, chamado Tomás de Aquino.
Aquino escreveu sobre as fissuras entre a f é e a razão em sua Suma
Teológica. Nela, dizia que a filosofia examinava a ordem sobrenatural à
A FÉ NO P O D E R 131

1
luz da razão e a teologia o fazia à luz da revelação. Embora a razão fosse
ada na teologia, a revelação não penetrava no reino da filosofia, e esta
podia contradizer a teologia porque a verdade não podia contradi-
verdade. A razão humana podia demonstrar algumas verdades da
elação e mostrar que outras verdades eram supra e não anti-racionais,
; a fé era um reino no qual a razão não podia governar. Para Aquino,
1
e o conhecimento, por conseguinte, não eram mutuamente exclu-
ites. Ele dizia que a fé assumia o comando ali onde terminava o co-
ecimento. O objetivo tanto da razão quanto da teologia era o "Ser", e
ibora a razão não pudesse, em última instância, apreender o "Ser",
: tornar plausível a fé. Dessa forma, ele demonstrou que fé e conhe-
nento não eram antitéticos. Aquino assim resumiu seu ponto de vista:
r é pensar com aquiescência."
Aquino expôs a falta de tolerância para com os adversários, que se
ia esperar de um defensor da ordem estabelecida justificando a exco-
lão e a execução, alegando que uma vez que seus pecados afeta-
i a alma, eles deviam ser mais rápida e severamente punidos do que
falsificadores e os ladrões. Mas a Igreja devia advertir duas vezes,
srando seu retorno, antes de excomungá-los e de conduzi-los aos
ieres seculares para a execução.
Com esta Suma, Aquino deixou todo o poder do presente do racio-
smo em mãos seculares. Ele se curvou ao poder da geometria admi-
que Deus não podia fazer os ângulos internos de um triângulo
r mais do que dois ângulos retos. No futuro, haveria dois tipos de
lecimento: o que se relacionava com a revelação (território da teolo-
e o que iria lidar com o mundo natural (a ser tratado pela razão e
filosofia).
Com esta decisão, a Igreja deu uma oportunidade a mais para que
; fazedores de machados fossem adiante e se multiplicassem. O resul-
i iria um dia se tornar conhecido como "ciência". Mas a libertação do
cionalismo por essa via era mera aparência. Nenhuma "ciência" seria
do controle eclesiástico durante séculos. Na verdade, em todo o
ipo decorrido até o advento do mundo moderno, a maioria dos cien-
as seria de gente da Igreja e, até Darwin, a ciência seguiria trabalhan-
i pela sustentação da religião estabelecida.
Uma das primeiras manifestações de uma visão nova, mais secular,
i obra de um clérigo britânico chamado Roger Bacon, no final do sécu-
132 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

Io XIII: a sua Opus Maius. Escrevendo sobre Peter de Maricourt, outro


viajante às terras árabes já famoso por seus trabalhos sobre o magnetis-
mo, Bacon disse: "Aquilo que outras pessoas lutam para enxergar, de
modo vago e difuso, como morcegos no crepúsculo, ele vê em plena luz
do dia porque é um mestre dos experimentos. Através dos experimentos
ele adquire conhecimentos sobre coisas naturais, médicas, químicas e
sobre todas as coisas do céu e da Terra."
Os principais escritos "científicos" de Bacon não versavam sobre
filosofia natural, eram tentativas apaixonadas de advertir a hierarquia da
Igreja (em trabalhos dirigidos ao papa) contra a repressão aos novos ensi-
namentos da filosofia aristotélica e toda a nova literatura relacionada
com a filosofia natural, as ciências matemáticas e a medicina. Bacon sus-
tentava que a nova filosofia era uma dádiva divina, capaz de provar arti-
gos de fé e persuadir os inconvertidos; que o conhecimento científico
dava uma contribuição vital para a interpretação das escrituras; que a
astronomia era essencial para o estabelecimento do calendário religioso;
que a astrologia permitia ao homem prever o futuro; que a "ciência expe-
rimental" ensinava a prolongar a vida; e que a óptica permitia a criação de
aparelhos que aterrorizariam os incréus e os levariam à conversão.
Existe "uma sabedoria perfeita", sustentou Bacon em seu Opus
Maius, "e ela está contida nas sagradas escrituras, nas quais radica toda a
verdade. Digo, ainda mais, que uma disciplina é senhora de todas as
demais, vale dizer, a teologia, para a qual as outras são uma necessidade
integral e que não pode alcançar sem elas as suas finalidades. Ela clama
pelas suas virtudes e as subordina ao seu assentimento e comando". A
teologia, portanto, não oprimia essas ciências mas as punha a trabalhar,
dirigindo-as aos seus adequados fins.
A técnica experimental de Bacon, que daria aos fazedores de
machados um novo meio de produzir conhecimento, tornou-se conheci-
da como "resolução e composição". Era descendente direta do modo de
pensar propiciado pelo alfabeto, porque aplicava o método analítico cor-
te-e-controle à solução de problemas. A "resolução" definia um fenóme-
no complexo e suas condições causais, decompondo-o em elementos ou
princípios relacionados ao seu aparecimento. A "composição" tomava
então aqueles dados para mostrar como destas causas se originava o
fenómeno, revelando assim as condições necessárias e suficientes para
produzi-lo.
A FÉ NO P O D E R 133

Os primeiros experimentos seguindo esta linha foram realizados


Bacon e por seu contemporâneo inglês Robert Grosseteste (o pri-
;iro chanceler de Oxford), e também por Theodorico de Freiburg e
ros. O objetivo era descobrir "mecanismos de produção dos fenôme-
' por meio da criação experimental das condições para a sua existên-
a. Theodorico espargiu gotas d'água para simular as condições de um
-íris, investigou em seguida as suas propriedades ópticas e criou
ielos com balões de vidro cheios de água, chegando à explicação geo-
étrica da refração da luz.
No século XIII, os novos experimentalistas começaram pela pri-
;ira vez a referir-se à natureza como uma máquina que funcionava
ido "mecanismos" que podiam ser descobertos e mensurados. Em
ris, Nicholas Oresme comparou o universo a um relógio. Os investiga-
; começaram a caracterizar os fenómenos como "primários" (a ativi-
ie física produtora da luz, calor e som) e "secundários" (as sensações
iuzidas por estes fenómenos sobre os sentidos).
Eles assim preparavam o terreno para um corpo de conhecimentos
ramente novos que iriam expandir enormemente o poder e influên-
das instituições e indivíduos que pudessem acessá-los. No século
f, estas novas técnicas de produção do conhecimento eram ainda
adas a minúsculos e isolados grupos de clérigos. Mas este isolamen-
i iria terminar explosivamente cem anos mais tarde, quando um ouri-
\ alemão equivocou-se com uma data no ano de 1439. As conseqúên-
; desse erro iriam sacudir a autoridade de Roma em suas bases e criar
i tipo inteiramente novo de fazedor de machados.
Capítulo 5

TALHADO PARA
A IMPRESSÃO
'esde os tempos do primeiro machado, o conhecimento trouxe
•oder para os que se encontravam em posição de usá-lo. Com os presen-
s dos fazedores de machados, fossem os primeiros efeitos mentais
"Seqúencializantes" da linguagem e da fabricação de instrumentos ou os
•astões preditivos do xamã, fosse o potencial burocrático da escrita
tnneiforme da Mesopotâmia, a força analítica liberada pelo alfabético
r_.T:e da lógica cortadora-de-mundo ou ainda a coerção mental propicia-
«2 pelo confessionário, essas instituições e indivíduos estabelecidos no
poder estavam armados de um conhecimento cada vez mais eficaz, que
podiam usar para cortar e controlar o mundo natural e a sociedade
humana.
O presente seguinte iria modificar radicalmente o modo de regis-
n e disseminação do conhecimento. Ele mudaria a própria natureza do
conhecimento, o modo como poderia ser usado e quantas pessoas pode-
iram acessá-lo. E dado que todo progresso nas comunicações torna as
Bolsas mais complicadas, o presente iria quebrar a estrutura social
•onolítica da cristandade e disseminar o controle em direção aos cen-
tos periféricos de poder. Isto foi possível porque, de uma só tacada, o
IDVO presente fez crescer também a quantidade de fazedores de mu-
•Hiças.
Em 1439, na cidade alemã de Mainz, um ourives chamado Johann
Gutenberg descobriu que havia se enganado sobre a data de uma feira
e peregrinos nas proximidades de Aachen. Esperava-se que muitos
concidadãos se dirigissem à feira, de modo que Gutenberg tratou com
•na dupla de investidores a produção de pequenos espelhos para ven-
ieraos peregrinos. Quando se deu conta de que a feira só iria acontecer
•m ano depois, Gutenberg revelou aos seus sócios uma oportunidade de
•vestimento alternativa que vinha imaginando havia algum tempo:
138 | O P R E S E N T E D OF A Z E D O R D EM A C H A D O S

fabricar letras metálicas que poderiam ser combinadas e recombinadas


para imprimir palavras sobre o papel.
Esta técnica revolucionária já fora desenvolvida na Coreia do sécu-
lo XIV, mas seu uso foi permitido exclusivamente para a reposição de
certos textos religiosos que haviam sido destruídos pelo fogo. Uma vez
completo o trabalho de reposição, o maquinário foi também destruído.
É irrelevante se Gutenberg recolheu ou não a sua ideia de alguém que
viajara à Coreia e ouvira falar do sucedido. O fato é que o tipo móvel iria
mudar radicalmente o mundo da documentação no Ocidente, substi-
tuindo os textos manuscritos. Uma certa quantidade de impressos feitos
com blocos de madeira gravada já vinha sendo produzida, mas com um
uso quase inteiramente restrito a ilustrações e cartas de jogar. As princi-
pais limitações dos blocos de madeira era que eles só podiam ser usados
para imprimir uma única imagem e se desgastavam com o uso, enquan-
to os tipos de Gutenberg duravam muito, reproduziam letras soltas e
eram intercambiáveis.
O efeito das letras de Gutenberg foi mudar o mapa da Europa,
reduzir consideravelmente o poder da Igreja Católica e alterar a própria
natureza do conhecimento em que se baseava o controle político e reli-
gioso.
A imprensa escrita ajudaria também a estimular formas nascentes
de capitalismo e prover suporte económico para um novo tipo de comu-
nidade. E com a informação amplamente disponibilizada pela imprensa,
o setor comercial da sociedade, em rápido crescimento, transformaria a
Europa de uma cultura medieval monolítica e passadista em um poder
mundial dinâmico e complexo. Mas acima de tudo ela iria retalhar a cris-
tandade.
A imprensa espalhou-se pelo continente numa velocidade extraor-
dinária. Em 1455, não existiam textos impressos na Europa, mas por vol-
ta de 1500 vinte milhões de livros haviam sido publicados em 35 mil edi-
ções — um livro para cada cinco habitantes. Em 1455, a única prensa
tipográfica da Europa era a de Gutenberg, mas por volta de 1500 elas
existiam em 245 cidades, de Estocolmo a Palermo.
Os impressores estabeleceram suas editoras em todas as cidades
universitárias e centros comerciais importantes e produziram, entre os
anos de 1500 e 1600, de 150 a 200 milhões de textos. Em um sentido
muito especial, o livro foi a primeira mercadoria industrial produzida
TALHADO PARA A IMPRESSÃO 139

em massa no sentido moderno. Nenhuma invenção se havia difundido


tanto e tão rapidamente na história.
A maioria das invenções criadoras de novos mundos primeiro ser-
wem aos velhos e assim foi no caso da imprensa — os impressores puse-
ram o seu novo equipamento high-tech a serviço antes de mais nada da
mais poderosa autoridade de sua época, a Igreja Católica.
Roma percebeu que a imprensa podia reforçar sua autoridade
social por meio da produção e difusão de milhares de cópias de livros
eligiosos idênticos, que propiciariam conformidade e obediência lítúr-
em uma escala jamais vista. Desse modo, entre 1455 e 1500 foram
icomendadas mais de duzentas edições da Bíblia, ao lado de edições
ipressas da gramática latina de Donato, esteio da educação católica
desde o século V. O principal texto religioso, a Imitação de Cristo, tor-
j-se rapidamente o livro mais popular da história, apenas secundado
:la Bíblia.
Em 1466, Roma fez então um movimento para fortificar seu poder
|jsntre a quantidade crescente de falantes letrados não-latinos (da ascen-
nte classe dos artesãos) ao sancionar, em Estrasburgo, a impressão da
imeira Bíblia vernácula, em alemão. A ideia pegou, e em 1471 a edito-
s Delft publicou uma Bíblia holandesa. Em 1500 já existiam trinta ver-
sões em seis línguas. Aquela decisão fora um grande erro.
Quando Roma percebeu o efeito que teriam essas Bíblias vernácu-
bs, o modo como elas reduziriam o poder católico universal, já era tarde
[demais. Para começar, as Bíblias tiveram um efeito político inesperado.
Elas conferiam permanência às línguas nas quais eram publicadas, refor-
çando com isso a unidade de cada comunidade linguística (e o poder de
seus governantes). Entre 1478 e 1571, a Letónia, Estónia, Lituânia,
Gales, Irlanda, País Basco, Catalunha e Finlândia retiveram e reforça-
suas identidades nacionais, mesmo estando todos situados dentro
da esfera de influência económica de algum outro grupo linguístico
mais poderoso, porque possuíam sua própria versão da Bíblia.
Os idiomas nos quais a Bíblia não era impressa desapareceram ou
je tornaram dialetos provinciais, subordinados ao grupo linguístico polí-
tica ou economicamente dominante na área. Sem uma Bíblia local para
: j?tentá-las, a língua e a identidade política da Sicília foram subsumidas
às da Itália, as da Provença e da Bretanha às da França, as da Frísia à
Holanda, as da Rétia à Áustria, as da Cornualha à Inglaterra e as da
140 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

Prússia à Alemanha. A tecnologia e a economia da produção e distribui-


ção de impressos tendeu inevitavelmente a concentrar produtos em uns
poucos mercados de maior porte, razão pela qual os próprios editores
contribuíram para a rápida homogeneização dos muitos dialetos da
Europa em umas poucas línguas principais.
A resultante política desses novos idiomas impressos, impostos
pelos reis por meio de seu controle sobre a imprensa, foi a emergência
de um novo tipo de fazedor de machados patriota. Graças à imprensa, os
cristãos que haviam pertencido ao oikoumene da cristandade agora se
viam como membros de um grupo que antes da imprensa para todos os
efeitos não existia: a nação.
O desenvolvimento das línguas nacionais, a perda de uma língua
franca latina e o colapso da cristandade concentraram o controle local
nas mãos de líderes nacionais independentes. Em uma fala proferida no
final do século XVI, Henrique IV da França abordou a questão-chave:
"Se vocês falam a língua francesa por natureza, é razoável que sejam
súditos do rei de França. Eu estou inteiramente de acordo que a língua
espanhola pertença aos espanhóis e que a alemã aos alemães. Mas a
região inteira de língua francesa deve ser minha."
Os monarcas e seus governos começavam agora a reforçar a língua
local com leis, impostos, exércitos e as burocracias estatais que vinham
com eles. E uma vez que a fronteira de um Estado se consolidava dessa
maneira burocrática, ia se tornando mais conveniente (por motivos polí-
ticos, económicos e sociais) usar uma única língua.
Nenhum europeu usou a imprensa de maneira mais eficaz na pro-
moção e manipulação desse novo sentido de identidade nacional criado
pela imprensa do que o reformador protestante alemão Martinho Lu-
tero. As editoras levaram às ruas a sua luta contra o papa com uma velo-
cidade estonteante. Uma versão impressa de suas críticas à Igreja roma-
na apareceu em todas as partes da Alemanha duas semanas depois de
sua publicação e em toda a Europa depois de um mês. Significati-
vamente, em 1520 seu apelo por apoio apareceu em um folheto intitula-
do: "À Nobreza Cristã da Nação Alemã". Vendeu 4 mil cópias em três
semanas; antes do fim do ano treze edições já haviam sido impressas.
Mais tarde, quando usou a imprensa para produzir a sua Bíblia,
que alcançou no final 430 edições, Lutero expressou claramente o dese-
jo de fundir seus compatriotas em uma única unidade linguística mais
TALHADO PARA A IMPRESSÃO 141

fácil de influenciar e controlar. Ele disse: "Quero ser compreendido no


sul como no norte da Alemanha", e para realizá-lo padronizou o vocabu-
lário e a pronúncia alemã e eliminou os dialetos. A primeira gramática
da nova língua pangermânica apareceu em 1525.
Dado o interesse dos editores no retorno lucrativo dos investimen-
tos, todo novo esforço linguístico europeu era também dirigido para a
padronização da gramática e do vocabulário de modo a criar um merca-
do lingúísticamente homogéneo. Graças a esforços semelhantes do edi-
tor inglês Caxton, o dialeto londrino se tornou a língua nacional e, na
Itália, o dialeto toscano de Dante tornou-se o italiano "oficial".
Nos próprios textos, dos antigos sinais de entonação manuscritos,
que serviam como indicadores de significação, foram substituídos por
alternativas novas e menos idiossincráticas. Em 1473, um professor ale-
mão de Ulm se referiu a tais sinais pela primeira vez. Para entender um
texto impresso, ele disse, "fique atento aos pequenos sinais", as novas
marcas de pontuação, que acabaram com a necessidade de se ler em voz
alta para compreender um texto e tornou muito mais fácil a compreen-
são. O ato de ler se tornara privado.
A tipografia controlava o impulso linguístico enriquecendo os ver-
náculos padronizados à medida que as línguas anexavam as terminolo-
gias dialetais. Graças à imprensa, a própria linguagem se tornara um veí-
culo de conformidade e codificação, pavimentando o caminho para a
"pureza" linguística.
A duplicação dos originais e traduções vernáculas contribuiu de
outras formas para o nacionalismo porque possibilitou que a "língua-
BBãe" ensinada em casa fosse reforçada com o aprendizado infantil da
leitura da língua impressa. Como fora com o alfabeto grego dois mil
anos antes, nos anos de aprendizado infantil o olho iria agora enxergar
ama versão padronizada daquilo que o ouvido já havia escutado. E uma
vez que as escolas de gramática começaram a dar a instrução primária
em língua vernácula e não em textos didáticos em latim, as raízes lin-
guísticas e nacionais se tornavam uma única e mesma coisa.
O resultado foi mais evidente, talvez, na cultura inglesa elisabeta-
na onde, por meio da circulação de livros impressos, a língua foi rapida-
(•aente padronizada em todo o reino. O mais claro exemplo do modo
como isto contribuiu para a estabilidade do inglês como língua vernácu-
la foi a utilização da Bíblia do rei James, introduzida em todas as igrejas
142 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

protestantes inglesas em 1611 (ainda usada em 1970). Com o auxílio da


palavra impressa, a Inglaterra já era em 1600 uma entidade cultural e lin-
guística virtualmente unificada. Daí em diante, quaisquer que fossem os
novos grupos, classes e mesmo países que se tornassem parte da
Inglaterra, seriam absorvidos em uma comunidade já definida pela tec-
nologia da impressão.
As novas línguas impressas criaram uma facilidade de comunica-
ção doméstica sem precedentes entre falantes das amplas variedades de
sotaques existentes na França, na Inglaterra e na Espanha, que pode-
riam, de outra forma, ter achado difícil, senão impossível, entenderem-
se uns aos outros em uma conversação. Por meio da leitura em papel de
sua língua formal comum, eles se tornaram conscientes das centenas de
milhares, e até milhões, de pessoas de seu campo linguístico particular.
Em consequência, num processo de desenvolvimento que iria durar até
o final do século XX, começaram a se tornar orgulhosos de uma nova
percepção nacionalista de si mesmos. Existia agora um modo de pensar
"inglês", "francês", "espanhol".
Na Inglaterra, a coroa percebeu rapidamente o potencial da
imprensa para induzir a conformidade ideológica e por isso divulgou em
1549 um Livro da Oração Comum em vernáculo. Dentre as muitas jus-
tificativas apresentadas para a sua introdução estava a economia de pro-
dução e a uniformidade de culto. Seu criador, Cranmer, escreveu no
prefácio: "Por essa ordenação, os curas não precisarão de nenhum outro
livro para seu serviço a não ser este e a Bíblia: com eles, as pessoas não
ficarão tão sobrecarregadas de livros como nos tempos passados." O
livro de orações de Cranmer continha, nas páginas de um único livro,
todos os textos de todos os ritos de culto público. Ele acrescentou:
"Sempre houve uma grande diversidade de falas e cantos nas igrejas do
reino: algumas seguem o rito de Salisbury, outras o de Herford, outras o
de Bangor, outras o de York e algumas o de Lincoln: daqui para a fren-
te, um único será seguido em todo o reino."
A vida religiosa também se tornou mais nacionalista. Antes, os
livros litúrgicos eram produzidos em escritórios monásticos isolados,
onde se desenvolviam tradições cerimoniais locais; agora a imprensa tor-
nara possível um novo tipo de ritual nacional uniforme.
Henrique VIII da Inglaterra também ordenou a padronização sis-
temática da gramática, da ortografia e da pontuação com "um tipo de
TALHADO PARA A IMPRESSÃO 143

aprendizado absoluto e uniforme". A educação e a religião foram fundi-


I das em um mesmo molde vernáculo conformista, como deixa claro a
introdução à edição de 1542 da gramática de William Lily, An
Introduction of the Eyght Partes of Speche: "E é propósito de Sua
Majestade estabelecer para seu povo o consenso e a harmonia da pura e
verdadeira religião: sua sabedoria deseja que a juventude e a infância de
seu reino tenham um tipo de aprendizado uniforme e absoluto (...) con-
siderando a grande dificuldade e confusão dos jovens (...) devido à diver-
sidade das regras e ensinamentos da gramática." Em 1545 apareceu a
cartilha autorizada, publicada por Grafton, "para evitar a diversidade
cias cartilhas que circulam hoje por toda parte (...) e para obter a unifor-
I midade de tais livros em todo o reino".
Como resultado deste tipo de coordenação era possível, passados
' alguns meses da publicação de um texto litúrgico, que os destacamentos
de visitação do reino percorressem as áreas rurais verificando, nas paró-
quias, o cumprimento das orientações para seu uso.
A imprensa escrita deu às novas autoridades nacionalistas o poder
l de influenciar e dirigir os negócios de amplos setores da população, mes-
• mo nos níveis mais elementares, sob formas que parecem notavelmente
modernas. Na batalha que se seguiu à difusão de suas teses antipapais,
Lutero usou a imprensa como arma de propaganda para apresentar suas
alegações. Milhares de panfletos, folhas impressas e pósteres pró e anti-
Lutero apareceram em todos os lugares. No alto das passagens alpinas, a
caminho de um encontro com o imperador germânico, Lutero encon-
trou impressos conclamando ao banimento e queima de seus livros pou-
cos meses depois deles terem sido publicados. Graças à imprensa, a
pá se viu envolvida na primeira guerra de propaganda de alcance
continental, em que amplos segmentos da população eram capazes de
•er por si mesmos as questões em discussão.
O potencial de controle burocrático extensivo da imprensa não
escapou à atenção dos governos. Em Veneza, por volta de fins do sécu-
j XVI, apareceu a primeira folha de censo populacional impressa. A
faiprensa facilitou a administração ao padronizar e simplificar a forma,
conteúdo e distribuição de documentos públicos. No Sacro Império
lomano, surgiram as primeira leis impressas contra a perturbação da
faz, além de excomunhões públicas e leis reguladoras da anistia, da
«lendicância, dos tratados de paz e do vinho. Com a ajuda da imprensa,
144 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

as leis podiam também ser compiladas em coleções impressas, e com os


registros impressos a referência aos precedentes era agora mais eficien-
te, mais confiável e mais comum.
Regras de comportamento social eram agora estabelecidas, por
toda parte, em preto e branco. No século e meio seguinte a Gutenberg,
a imprensa havia racionalizado as leis e regulamentos em níveis sem pre-
cedentes. Na França, em meados do século XVI, o processo de primeiro
codificar e depois reformar os inumeráveis costumes do país foi lento,
mas na segunda metade do século a trabalhosa tarefa dos comissários
reais começou a adquirir uniformidade, com disposições idênticas sendo
seguidas em todas as comarcas e com a adoção generalizada das praxes
do parlement de Paris.
Na Espanha, a codificação das leis de Castela em 1484 foi seguida
da Nova Compilação impressa de 1567, com cerca de 4.000 artigos.
Códigos similares foram lançados nos demais reinos ibéricos. Na
Holanda, em 1531, Carlos V iniciou um programa de codificação similar
ao da França. A imprensa também ajudou a padronizar o procedimento
civil com relação à família, à propriedade, sucessões, contratos e outras
questões. O cidadão se sentia sem dúvida mais seguro neste mundo
novo, homogéneo e menos arbitrário da justiça impressa, ainda que as
regulações impressas restringissem como nunca a sua liberdade de ação.
Com já foi dito, a imprensa disseminou o poder para fora do velho
centro papal, em direção à nova periferia de estados-nações. Depois ela
isolou as pessoas dentro de suas novas fronteiras ao favorecer um novo
sentimento de separatismo nacional à medida que a atividade comercial
tornava-se mais fácil de regular e gerenciar com os passaportes impres-
sos, salvo-condutos, mandatos, intimações, notificações e papéis nacio-
nais de todos os tipos. E enquanto a imprensa incentivava a regulação
padronizada do comércio, as economias das novas nações começaram a
crescer e desenvolver seu próprio caráter distintivo.
Os livros populares baratos que jorravam das editoras também
criaram rapidamente um novo e amplo público leitor, dentre eles os
comerciantes, que geralmente sabiam pouco ou nada de latim. A propa-
ganda política e religiosa impressa também era utilizada para mobilizar
essa classe média mais numerosa e instruída. A circulação de volantes e
gravuras com figuras de reis e príncipes aumentou a visibilidade real. O
efeito das imagens e retratos de governantes, enquadrados e pendura-
T A L H A DO PARA A IMPRESSÃO 145

k tanto em casas importantes como em casebres camponeses por toda


uropa, foi o surgimento da imagem pública, que já havia sido usada
ipeios antigos imperadores romanos, numa amplitude até aqui desco-
nhecida.
A mais prolífica utilização da imprensa para tais propósitos foi fei-
ta pelo imperador Maximiliano de Habsburgo que, entre 1489 e 1500,
divulgou não menos de 85 cartazes, além de numerosas publicações,
apresentando suas razões para ir à guerra, aumentar os impostos e
Ifrmar tratados. Maximiliano produziu também o primeiro Boletim
Oficial de governo.
Num intento de cultivar sua reputação como super-homem multi-
talentoso, Maximiliano também planejou uma série de livros e cartazes
jEpressos destinados a glorificar o nome de sua família. Encomendou a
Durer e Holbein a gravação de um imenso "Arco do Triunfo" impresso
r em papel, ilustrando a genealogia da casa de Habsburgo e pleno de refe-
i lências às suas façanhas. O produto final veio em noventa e duas folhas
separadas, que formavam um painel gigante de mais de três metros e
•KÍO de altura. Outra encomenda sua, o "Desfile Triunfal", era ainda
izãis grandiosa, formada de cento e trinta e cinco grandes impressos que
l aicançavam a altura de cinquenta e três metros.
Mas ainda que tenha tornado mais fácil a propaganda e o controle
•ciai, a imprensa era um presente que funcionava em duas direções. As
editoras também tornaram mais eficaz a dissidência e por isso seu uso
foi rapidamente regulamentado pela censura, primeiro da Igreja Católi-
ca, depois de todos os monarcas europeus. Para todas as autoridades, o
\mero volume de produto impresso representava uma enorme ameaça à
estabilidade e à conformidade social. Em 1559, a Igreja católica mutilou
todas as traduções vernáculas da Bíblia na Itália, permitindo-as somente
nos países onde a Reforma representava um problema. Pelo fato de o
•ovo "índex de Livros Proibidos", autorizado pelo Concílio de Trento
Ide 1563 e impresso pelo papado, ser republicado não menos de dez
•pezes em apenas trinta anos, pode-se ter uma medida do quanto as edi-
toras se adiantavam aos censores.
Nada propicia uma melhor noção da preocupação dos detentores
de poder com as possibilidades subversivas da imprensa do que a deci-
são do rei católico francês Francisco I que, em 1535, movido pelo pâni-
co, baniu iodos os livros de seu reino sob pena de morte por enforcamen-
146 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

to. A razão desta ação desesperada era devida a que as fronteiras do les-
te francês confinavam com estados e cidades protestantes, que produ-
ziam, cada uma, uma imensa quantidade de livros facilmente contra-
bandeados para a França. O banimento visava assegurar que nenhum
livro fosse impresso na França, de modo que todo livro descoberto no
país seria, por definição, ilegal.
Na comunidade protestante, o impulso para a instrução que leva-
ria a palavra de Deus a todos os leitores introduziu formas mais íntimas
de controle. Era mais fácil mudar o comportamento em um lar instruí-
do por meio de livros do que jamais o fora desde o púlpito, pelo simples
fato de que existiam mais livros do que párocos. Os puritanos o reconhe-
ceriam mais tarde e introduziriam um conjunto estrito de padrões e
regras impressas para os costumes domésticos. Volumes selecionados de
"conselhos" domésticos aplicaram este ponto de vista em guias como o
"For the Ordering of Puritan Families According to the Direction of the
God'sWord", de 1598.
No início da década de 1660, as regras de conduta da Igreja purita-
na foram especificadas em injunções oficiais impressas, distribuídas até
para os leigos com a finalidade de identificar e reportar comportamen-
tos eclesiásticos desviantes dentro da congregação e do clero.
As autoridades foram também capazes de fomentar entre seus
súditos um sentido coletivo de cultura e identidade nacional, graças
também à maneira como a imprensa gerou um novo senso de história.
Este foi inicialmente provocado pela publicação, no início do século
XVI, dos clássicos da Grécia e Roma antigas, que haviam aturdido e
excitado um crescente núnero de leitores desde o Renascimento.
Os reis (e os fazedores de machados que trabalhavam para eles]
começavam a olhar agora para a sua própria história em busca de provas
de respeitabilidade dinástica. No século XVI, o inglês William Camden
escreveu uma história chamada Remaines Concerníng Britaine, compi-
lada, segundo ele, por "amor ao país" e que continha a vida dos reis, des-
crições do país e seus habitantes, línguas, nomes, armas, moedas, vestuá-
rio, estradas, vilas e cidades, cenários e recursos naturais. No mesmo
espírito, um grupo de historiadores ingleses fundou em 1572 a So-
ciedade Elisabetana de Antiguidades para estudar e preservar velhos
manuscritos ingleses, enquanto em 1577 William Harrison publicava A
Historical Description ofthe Land of Britaine.
TALHADO PARA A IMPRESSÃO 147

Ao mesmo tempo, a Itália ganhava um historiador nacional em


fcacesco Guicciardini, com sua História de Florença e História da Itá-
L que tratavam basicamente dos assuntos diplomáticos dos Estados
desde a invasão de Carlos VII em 1494 até a eleição do papa
III em 1534. A Espanha, territorialmente, senão culturalmente,
ida, teve também um historiador patriótico em Juan de Mariana,
Historiae de rebus Hispaniae foi escrita e mais tarde traduzida para
culo para que a Europa se familiarizasse com a história da Espa-
Em 1555, Olaus Magnus publicou um longo trabalho sobre os po-
nórdicos para demonstrar as superiores realizações dos suecos, en-
:o a primeira história da Lituânia foi escrita no século XVII por um
, Albertas Vijukas Kojalavicus.
Os alemães, que se embrenharam no passado em busca de provas
itigas civilizações germânicas, ficaram enormemente excitados em
com a redescoberta da Germania de Tácito no monastério de
Feld. Daí reconstruíram triunfalmente um tipo germânico ideal,
ido na maneira como Tácito havia contrastado a honestidade, liber-
e simplicidade dos bárbaros germânicos com a degeneração e ser-
tO de seus próprios concidadãos. Partindo do próprio testemunho
romano, os alemães podiam então supor a superioridade do cará-
germânico sobre seus contemporâneos europeus.
As reivindicações da superioridade germânica chegaram a extre-
quando alguns sustentaram que Adão fora um germânico que fala-
mânico, a qual, por conseguinte, deveria ter sido a língua original
anidade, a ser novamente recolocada em sua posição dominante
ido o império alcançasse o controle mundial e estabelecesse a verda-
pax germânica. Quando o humanista Heinrich Babel foi laureado
Maximiliano em Innsbruck, em 1501, ele invocou em seu discurso
os germânicos haviam conquistado praticamente toda a Terra e
gado muitos povos.
Mais praticamente, desde o ponto de vista dos reis e príncipes, as
histórias reforçaram o senso de separação nos novos estados-
s e, especialmente nos países protestantes, ajudaram os monarcas
suas tentativas de subtrair suas administrações do controle papal,
seria facilitado por uma cadeia de acontecimentos postos em mar-
graças à introdução, por Roma, de bíblias impressas em vernáculo,
levariam finalmente à perda de influência da cristandade católica,
148 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

com um efeito chocante e inesperado. O resultado disso iria atingir o


próprio coração da fé religiosa e dar às autoridades seculares um novo
presente com que cortar e controlar o mundo.

A sequência foi disparada em 1545, quando Roma convocou um concí-


lio ecuménico na cidade de Trento, no norte da Itália, para discutir
medidas de combate a Lutero. Como parte das medidas gerais para
padronizar o culto, o concílio aprovou a publicação de versões autoriza-
das de todos os textos litúrgicos. Em Antuérpia (na época sob controle
do rei católico da Espanha Felipe II) estava Christopher Plantin, que
dirigia a maior editora da Europa. Plantin possuía uma extensa rede de
agentes e escritórios de vendas, da Noruega ao norte da África, através
da qual vendia livros e dirigia um lucrativo negócio paralelo de exporta-
ção de penas, vinhos, lingerie francesa, artigos de couro, espelhos e
balanças.
Plantin fundara sua gráfica em Antuérpia em 1555, a qual, no auge
do sucesso, abrigou vinte e duas prensas, perto de duzentos empregados
e uma organização cinco vezes maior do que a de seu rival mais próxi-
mo. A nova casa editora de Plantin epitomizava as novas entidades que
brotavam por toda a Europa, reunindo uma combinação inteiramente
nova de disciplinas intelectuais e comerciais. Este era um fato em si
mesmo revolucionário, uma vez que antes da imprensa essas distintas
áreas de conhecimento especializado não teriam tido nenhum motivo
para interagir. Na loja de Plantin, professores e ex-abades atuavam como
revisores e editores de texto; eruditos de todas as matérias verificavam o
rigor factual dos textos; artistas preparavam entalhes e gravuras; arte-
sãos editavam ou aconselhavam em áreas de sua competência; e merca-
dores se tornavam agentes financeiros.
Plantin e seus companheiros editores foram também os primeiros
capitalistas verdadeiros — levantavam fundos para seus empreendimen-
tos, davam aos financiadores uma parte dos lucros, desenvolviam plani-
lhas de produção, ligavam vendas ao maiheting, organizavam o trabalho
e negociavam com grevistas. O estabelecimento de Plantin e outros
parecidos com o dele eram uma combinação de loja, balcão de negócios
e instituto de pesquisa.
TALHADO PARA A IMPRESSÃO 149

A casa editora de Plantin iria mudar a história ao permitir que os


fazedores de machados produzissem a maior força de mudança que já
•aristira, a qual modificou a própria natureza do conhecimento e alargou
repentinamente o fosso entre os detentores e os não-detentores de
conhecimentos especializados.
Isto ocorreu porque em 1566 Plantin escreveu ao secretário de
Felipe II da Espanha para sugerir um tipo de bíblia inteiramente novo,
Za atenderia, disse ele, à aspiração do Concílio de Trento de consolidar
o poder de Roma e melhor controlar o mundo laico. Mais importante,
da acrescentaria brilho à reputação do próprio Felipe. Para ser impres-
sa em todas as linguagens bíblicas (latim, grego, hebraico, siríaco e ara-
feico), a nova bíblia seria baseada na nova visão analítica da crítica tex-
tual, gerada pela imprensa.
Ao longo dos séculos, os manuscritos clássicos e bíblicos foram
sndo acrescidos de uma grande quantidade de comentários e material
planatório, geralmente escritos em suas margens. Quando tais textos
am impressos pela primeira vez, tornou-se habitual a incorporação de
réscimos e a submissão do texto total a um exame detalhado para
tectarem-se repetições e erros textuais e para a correção dos freqúen-
; erros das cópias manuscritas. Neste trabalho, os editores desenvolve-
i novas formas de pensar sobre o conhecimento, usando técnicas de
iíse textual, gramatical e factual que antes não eram consideradas
essárias rnas que Plantin iria agora aplicar à produção da nova bíblia.
Em 1568, ele recebeu permissão para começar o trabalho. Cinco
litos franceses e flamengos se reuniram sob a supervisão pessoal do
iselheiro do rei Felipe para assuntos de teologia, Benito Árias
antano, que conduziu a empresa onze horas por dia, todos os dias,
ínte quatro anos. Em 1572, finalmente, Plantin imprimiu 1.212
jias do trabalho, na época conhecido como a bíblia "real", em oito
lês, cinco dos quais portavam o texto bíblico nas cinco línguas. Os
fios três volumes continham um novo tipo de conhecimento que só
^ tornou possível com a imprensa. Eles continham material adicional,
lentários e informações relativas ao texto bíblico e baseadas no com-
adio das mais recentes descobertas dos eruditos.
Os apêndices, editados por Montano, continham grandes quanti-
Jes de dados sobre tudo, desde as genealogias bíblicas a mapas da
tara Sagrada, notas sobre o idioma hebraico e sobre as origens da lín-
150 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

gua, planos do Templo de Jerusalém, antiguidades judaicas, histórias


das tribos de Israel e ensaios sobre moedas, pesos e medidas bíblicos.
Havia também dicionários e gramáticas aramaica, siríaca, grega e
hebraica, interpretações várias do texto, discussões sobre o significado
da terminologia usada, índices e não menos de dezoito tratados sobre
assuntos arqueológicos e filosóficos.
A ideia pegou, fazendo com que outros apêndices bíblicos come-
çassem a aparecer por toda a Europa, frequentemente acompanhados
de ilustrações gravadas dos atlas da Terra Santa, desenhadas por reno-
mados cartógrafos, bem como plantas de cidades bíblicas desenhadas
por artistas famosos. O material era organizado alfabeticamente e toma-
va-se um grande cuidado para racionalizar, codificar e catalogar tudo.
Os eruditos, cartógrafos, lexicógrafos e outros que vieram empres-
tar sua expertise aos editores haviam adquirido seus conhecimentos e
sua nova visão analítica da informação em trabalhos editoriais anterio-
res, em que comparavam versões impressas de trabalhos clássicos de
botânica, zoologia, mineralogia, medicina e anatomia. As pessoas que
haviam trabalhado nesses textos e nas bíblias poliglotas começavam ago-
ra a expressar seus talentos de formas mais inovadoras. Montano, por
exemplo, prosseguiu escrevendo uma história do mundo que se apoiava
nos últimos materiais arqueológicos; provia tanta informação nova e não
censurada que caiu ao final vítima da Inquisição espanhola.
Quando os eruditos bíblicos terminavam seu trabalho sobre os
apêndices, voltavam-se, como Montano, para outras coisas e, ao fazê-lo,
provocavam uma extraordinária "tempestade de conhecimento" que iria
afetar quase todos os aspectos da vida europeia do século XVI e ajudar
a moldar o mundo moderno. Os novos especialistas em conhecimentos
criaram redes intelectuais por toda a Europa, intercambiando desde
mapas a dados sobre instrumentos, bulbos de flores, sementes e pedras
raras.
O trabalho inicial do astrónomo Johann Kepler sobre as referên-
cias bíblicas aos céus (e as técnicas bibliográficas que aprendeu) deu-lhe
o background para suas publicações posteriores sobre a dinâmica plane-
tária, que fizeram época. Compiladores de dicionários bíblicos foram
adiante e produziram gramáticas e dicionários de língua moderna para
uso de mercadores e negociantes. Em 1617, por exemplo, apareceu na
Inglaterra um Guia de onze idiomas.
TALHADO PARA A IMPRESSÃO 151

Os únicos trabalhos impressos com potencial de mercado tão gran-


de quanto os apêndices bíblicos foram talvez os almanaques. Também
stes atraíram as habilidades de uma grande variedade de novos experts.
lanaques existiram de forma limitada antes da imprensa, mas do
culo XVI em diante eles apareceram por toda a Europa em quantida-
=s massivas, aumentando radicalmente a quantidade de dados em cir-
ação. Eles eram, por essa época, dirigidos a um público leitor mais
sral, e os textos incluíam compilações de informações sazonais úteis,
amo quadros lunares, solares e de marés para navegantes, dados agríco-
e da criação animal para os agricultores, tabelas de prognósticos e
rológicas para os crédulos, calendários para os mercadores e os devo-
35, notas sobre o nascimento dos bebés para as parteiras, aritmética
^comercial e preços de mercadorias para os negociantes, e previsões do
. tempo para todos.
Em 1600, os almanaques ingleses já vinham sendo padronizados,
jrmalmente incluindo uma seção sobre dados legais e calendariais,
i como material sobre as estações, com tópicos médicos relevantes e
as sobre agricultura. Muitas vezes seria acrescentada uma seção com
t listas das feiras de negócios e suas localizações, sendo que uma edição
acrescentava uma página em branco para os leitores que compare-
as feiras. Na Europa de inícios do século XVII, esses almanaques
idiam 400 mil cópias por ano.
Com o passar do tempo, os dados dos almanaques incentivaram por
i vez o crescimento de outras disciplinas especializadas, cada uma das
ais necessitava o seu próprio almanaque: o calendário do navegante, o
tecelão, o do condestável, o do agricultor, e assim por diante. Cada
ílicação padronizava o dado especializado e ajudava a institucionalizar
ticas e regras consensuadas para o ingresso e o exercício da profissão.
; negócios e nos ofícios, os almanaques também ajudaram a construir
i-as redes de comércio, fornecendo tabelas uniformes para o cálculo do
to das mercadorias e pagamento de salários, bem como tabelas de con-
So de pesos e medidas e de distâncias entre os mercados.
À medida que aumentava, com a publicação de trabalhos especia-
ados impressos, o interesse pela ciência clássica e pela tecnologia, pro-
ravam as compilações de conhecimentos clássicos. Os médicos delas
Deneficiaram em 1543 com o trabalho do anatomista belga Vessálio,
go seguido de trabalhos sobre doenças contagiosas, patologia, reprodu-
152 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

cão e cirurgia. Mercadores e matemáticos possuíam os livros de álgebra


de Pacioli já em 1494. Arquitetos, astrónomos e pesquisadores tiveram
sua primeira edição impressa de Euclides na Basileia, em 1533, mesmo
ano dos trabalhos de Regiomontano sobre a trigonometria e de Frísio
sobre a triangulação. Construtores de navios tiveram sua primeira edi-
ção de Arquimedes em 1544, e nos oitos anos que se seguiram ao de
1551 nove grandes estudos foram publicados sobre animais, pássaros e
nda marinha.
Havia também livros sobre todos os temas úteis a uma comunida-
de de fazedores de machados em rápido crescimento, trabalhando nos
campos da arquitetura, balística, estatística, magnetismo, máquinas
mecânicas, cosmologia, astronomia, navegação, guerra, fortificações,
geologia, experimentação química, metalurgia, tintura e tecelagem. Este
jorrar de literatura atualizada difundiu, pela primeira vez, informações
técnicas padronizadas e incentivou o rápido desenvolvimento de novas
técnicas especializadas. Os livros didáticos e manuais começaram a sola-
par a posição das pessoas mais velhas. Se a juventude havia sentado aos
pés dos mais velhos para aprender habilidades acumuladas em décadas
de experiência, elas agora podiam ser aprendidas apenas abrindo livros.
Com cada nova publicação, o conhecimento se tornava sempre
mais fragmentado e esotérico. Depois das primeiras edições terem resu-
mido o trabalho das autoridades clássicas, os especialistas sabiam agora
o suficiente para experimentar e julgar a partir de sua própria experiên-
cia. Os anatomistas, por exemplo, abriam os corpos e viam por si mes-
mos os erros dos antigos a respeito da posição dos órgãos e do sistema
circulatório.
Talvez o trabalho mais inovador deste tipo tenha sido o dos botâ-
nicos da Universidade Luterana de Wittenberg. O próprio Lutero era
um naturalista perspicaz, amante das plantas (seu emblema era uma
rosa), e queria que o conhecimento natural se tornasse propriedade das
pessoas comuns. Em Wittenberg, os botânicos se beneficiaram da exis-
tência de uma escola de medicina e da inclusão de clássicos de botânica
no currículo das artes. A razão deste particular interesse pela botânica
era que a maioria dos remédios da época era feita de ervas. Por isso, em
1529, Gaspar Cruciger, professor de teologia de Wittenberg, implantou
dois jardins botânicos fora da cidade porque percebeu que cedo ou tar-
de as plantas iriam fornecer a cura para todas as doenças.
T A L H A D O PARA A I M P R E S S Ã O 153

Valerius Cordus deixou Wittenberg, em 1542, para uma viagem


iça que o levou à Alemanha e à Itália, da qual produziu A History
Plants, impresso em 1561. Rauwolf, outro luterano, viajou de
;burg ao Oriente Próximo e coletou um herbário de 843 plantas,
preservadas na Universidade Holandesa de Leyden. O holandês
lem Quackelbeen viajou através da Turquia e trouxe a castanha-da-
, o lilás e a tulipa. Antes da prensa de Gutenberg, as antigas autori-
s clássicas haviam identificado seiscentas plantas; graças a ela, em
o total havia crescido a mais de seis mil.
Por toda a parte o presente da imprensa gerou uma nova maneira
sar sobre o mundo. Havia coisas claras que os autores clássicos
conheciam, coisas ainda não descobertas e maneiras de melhorar
que já era conhecido. Por isso a imprensa engendrou uma febre
•;de. As editoras deram aos europeus um desejo poderoso de
sso e mudança porque tornaram as pessoas conscientes da histó-
ofereciam agora novos conhecimentos a cada nova edição. Depois
de do século XVI, a maioria dos títulos dos livros especializados
;os (quase não havia, deve ser lembrado, livros não-especializa-
mcluía a palavra que daí em diante seria associada aos fazedores de
idos: "novo" (Nova ciência, Teatro de máquinas, Um novo ins-
to, e assim por diante).
O problema para as autoridades era até que ponto e de que forma
essa novidade podia ser disseminada com segurança, sem causar
. Desde os primeiros anos da imprensa, a proliferação de dados
•a as tentativas institucionais de garantir que a instrução não se
socialmente desestabilizadora, e de assegurar tal objetivo pela
io do livro como agente de controle social, limitando a quantida-
tipo de conhecimento novo oferecido ao público em geral.
os didáticos, disponibilizados em grande número pela impren-
mizaram o conhecimento e tornaram-no ideologicamente acei-
mas mesmo então nem todo mundo aprovou. Os livros eram vis-
alguns como "a cegueira do povo", e já em 1498, em Mainz, dizia-
'agora todo o mundo quer ler e escrever". A educação adquiriu
significado ao assegurar a administração adequada do conheci-
O número das antigas escolas católicas foi logo ultrapassado pelo
s de religião protestante, porque Lutero tinha uma preocupa-
te com a educação e a doutrinação dos jovens. Obcecado pela
154 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

necessidade de criar uma sociedade totalmente ordenada e hierarquiza-


da de crentes dóceis e instruídos, Lutero estruturou a educação num
processo classificado e gradativo que submetia os aprendizes a exames
padronizados para identificar seu nível de capacitação e revelar desvios
ou ignorância.
O processo ajudava a destacar os que possuíam potencial para ser
admitidos em posições de autoridade. Novos experts pedagógicos surgi-
ram para controlar e administrar o novo processo de doutrinação. Por
exigência de Lutero, os currículos se tornaram oficiais, o treinamento
dos professores passou a ser controlado pelo Estado, textos aprovados
foram impressos e o uso do vernáculo, no lugar do latim, assegurou que
a nova arregimentação alcançasse os estratos mais baixos da sociedade.
No norte da Alemanha, a capacidade de ler foi feita pré-requisito da
crisma, ela própria pré-requisito do casamento e, dessa maneira, aqueles
que queriam se casar tinham de primeiro passar pelo sistema e serem
aprovados. Entre 1530 e 1600, mais de cem ordenações tratando da edu-
cação foram promulgadas somente na Alemanha. No ducado de
Wúrttenberg, por exemplo, um sistema de escola primária vernácula e
escola secundária em latim foi estabelecido em todas as cidades e vilas
para treinar os garotos para o trabalho na igreja ou no governo, com cur-
sos de cinco níveis, currículo uniforme e livros didáticos padronizados
impressos, estudados como preparação para um exame único nacional.
Os dinamarqueses, suecos e holandeses logo copiaram o exemplo alemão.
A Igreja Católica respondeu a esta ameaça implantando os grandes
colégios jesuítas de Ignácio de Loyola, o primeiro dos quais foi aberto
em Coimbra., Portugal, em 1542. A ênfase aqui era o ensino de latim e
o treinamento de padres, mas os jesuítas se envolveram cada vez mais
com a educação pública, e em 1546 começaram a admitir seculares
externos nos seus colégios. A ênfase jesuítica na uniformidade e em
altos padrões de realização — num contexto de administração continen-
tal centralizada — produziu um sistema pedagógico que era, em termos
de controle social, de longe mais avançado que qualquer outra coisa na
Europa. O material de curso era extremamente formalizado e ensinado
sob estrita supervisão teológica, enquanto os estudantes eram monitora-
dos todo o tempo por professores, prefeitos e reitores para assegurar a
sua conformidade.
Lutero e Loyola haviam estabelecido, por caminhos diferentes, o
TALHADO PARA A IMPRESSÃO 155

hbtema educacional como o principal agente de diferentes sistemas de


ças, mas, na época do estabelecimento das primeiras Sociedades
Reais de Conhecimento do século XVII, uma outra figura-chave havia
rgido na educação. Era um tcheco chamado Amos Komensky (nome
10, Comenius), cujo desejo aparentemente democrático era "ensinar
is as coisas a todos os homens". A grande didática de Komensky foi o
ais importante tratado educacional do século, e nele se detalhava "um
étodo para ensinar as crianças a soma de todo o conhecimento", pre-
ite pelo qual ele foi chamado de Pai da Pedagogia.
O foco de seu interesse era aquilo que mais preocupava os educa-
s: a necessidade, em uma época de comércio e negócios crescentes,
: usar a educação como ferramenta para inculcar conhecimento "útil".
; crianças deviam agora receber na escola ferramentas tais que pudes-
i experimentar o trabalho e fazer cedo a sua escolha de vocação. Mas
lensky enfatizava o potencial da educação para controlar e prever o
iportamento humano, porque "não haverá terreno para a dissensão
ando todos os homens tiverem as mesmas verdades claramente apre-
itadas diante de seus olhos".
As escolas de gramática inglesas, os liceus franceses e os ginásios
lães seguiram a liderança vocacional de Komensky porque seus mer-
DS estavam ansiosos para preparar os jovens para o novo capitalismo,
iando-lh.es em estabelecimentos livres do controle direto da Igreja,
novas escolas comerciais ensinavam a ler, escrever, a aritmética e
io o que era básico para o sucesso na economia em expansão.
Por isso, à medida que a imprensa tornou possível a transmissão de
i corpo de informação crescente sem risco de perda ou corrupção, as
vás instituições educacionais ajudaram por outro lado a treinar pes-
para novas organizações especializadas que podiam lucrar com o
lecimento "útil". Era apenas uma questão de tempo antes que as
:racias, elas próprias controladas pelo Estado, fossem criadas para
:ionar os dados socialmente mais aplicáveis e regular seu uso na for-
i de círculos seletivos que se tornariam conhecidos como "profissões".
i principal meta seria, como sempre é com os especialistas, defender
anter a natureza exclusiva de seu corpo particular de conhecimento,
tentar seus patronos reais e a ordem social.
Em 1518, o rei inglês Henrique VIII, vendo que era sábio manter
es novos fazedores de conhecimento sob controle governamental,
156 O PRESENTE DO FAZEDOR DE M A C H A D O S

fundou o Colégio Real de Medicina de Londres. O Colégio tinha pode-


res para processar a prática errada, estabelecer seus próprios estatutos,
aprovar seus regulamentos, organizar encontros, e conceder licenças.'
Em 1540, os cirurgiões ingleses criaram uma companhia para regular a
nova profissão de cirurgião, onde o ingresso requeria um exame teórico
e prático, cujo tema era prescrito e detalhadamente padronizado. No
mesmo ano, o Colégio Real de Fisiologistas foi criado com poderes simi-
lares e em 1617 a Sociedade de Apotecários foi fundada, com três níveis
de associação, sua própria sala de conferências e seu herbário.
À medida que as profissões se estabeleciam, seus membros cada
vez mais usavam livros impressos para comunicarem-se uns com os
outros em uma língua que se tornava mais e mais incompreensível,
exceto para eles próprios. Mas essa esotérica comunidade de fazedores
de machados especialistas que liam e escreviam seria abalada por acon-
tecimentos que pareceram ameaçar a própria credibilidade do conheci-
mento impresso sobre o qual repousava seu novo poder. O efeito seria o
de gerar uma visão radicalmente diferente do conhecimento, do lugar
onde poderia ser encontrado e do que poderia ser feito com ele.
O acontecimento que originou esta mudança momentosa foi tão
extraordinário que quando notícias suas se tornaram conhecidas (cerca
de trinta anos depois do acontecido), a maioria das pessoas simplesmen-
te não acreditou. Foi o descobrimento da América.
Capítulo 6

NOVOS
MUNOOS
E n 22 de julho de 1502, o administrador italiano do ramo hispânico
toma agência de navegação florentina desembarcou em Lisboa no
U de uma viagem ao Brasil. Era a sua terceira travessia transatlântica,
• qual ficou famoso, uma vez que em 1507 uma versão de seu nome
impressa numa pequena inserção em um mapa desenhado pelo car-
fo francês Martin Waldseemúller, mostrando onde o navegador,
co Vespúcio, havia estado.
O mapa de Waldseemúller causou uma tempestade na Europa
mostrou o mundo como Vespúcio o havia visto, com um conti-
extra no meio do Atlântico e um outro oceano além, separando-o
. Colombo nunca havia expressado este ponto de vista e, em
;er caso, pouco ou nada se ouvira falar sobre ele desde 1497.
Em 1505, Vespúcio registrou suas viagens em uma carta que intitu-
) Novo Mundo", a qual em 1527 já havia sido publicada em vinte e
edições latinas e trinta e sete versões vernáculas em todas as princi-
Imguas da Europa. Na época, o continente ainda era referido pelo no-
Waldseemúller havia cunhado a partir do primeiro nome de Ves-
'América". E a descoberta da América iria causar um furor total.
Desde os tempos do primeiro instrumento de pedra, os presentes
fazedores de machados haviam dado às instituições de liderança os
de remodelar o mundo. Sempre que o fizeram, estruturas e siste-
inteiramente novos apareceram na forma dos escudos de madeira
caçadores-coletores, do controle das cidades da Mesopotâmia, da
grega para reforçar a conformidade da investigação dos processos
is, do estratagema medieval da "reprodução do fenómeno" e as
profissões regulamentadas pela impressão. Mas agora, ao tornar-
que o mundo não era absolutamente o que parecia ser, um tipo
ente novo de conhecimento iria surgir.
160 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

É irónico que o novo conhecimento fosse disparado por um acon-


tecimento que surpreendeu os próprios fazedores de machados, uma
torrente de conhecimentos que eles próprios não haviam fabricado, ori-
undos de uma fonte que não haviam sequer identificado. Sua resposta
para o problema criado tomou a forma de um presente que traria para a
comunidade benefícios materiais muito além de qualquer coisa que já
havia sido oferecida, e que ao mesmo tempo iria subtrair inteiramente o
conhecimento especializado da atenção pública e colocá-lo em mundos
novos, artificiais. Nós o chamamos "ciência".
Os relatos de Vespúcio sobre o Novo Mundo desestabilizaram a .
sociedade europeia, dando início a um processo que ao final iria coloc
em questão a estabilidade das premissas sobre as quais todo o poc
social havia repousado até então. A crença ideológica crucial da Europ
era a de que a Terra era o centro do universo; de que todas as coisas
céu e na Terra tinham seu lugar próprio ordenado por Deus; de que :
existiam três continentes; e acima de tudo isso, de acordo com a Bíblia
todas essas questões estavam fixadas por Deus desde a criação e era
portanto impossíveis de serem mudadas.
Parecia que a descoberta da América, não prevista pela Bíblia, ir
varrer tudo isso, e ainda toda a estrutura social construída em dois mil
anos de autoridade teológica e filosófica. O sistema medieval de discus-
são do caminho da verdade era um fracasso porque não preparara as
pessoas para a possibilidade de um continente extra.
Um problema ainda maior surgiu do fato desagradável de que í
América era habitada por gente primitiva em estado natural de existên-1
cia, aparentemente sem conhecimento de política, de história ou do.l
cristianismo, e ainda assim eles estavam lá, sem todo esse conhecimen-1
to, sobrevivendo completamente felizes em sociedades voluntárias»
organizadas e operantes. Esta percepção provocou a rápida dissemina-
ção, pela Europa, do conceito radical de "livre associação", um princípio
social que poderia (assim se dizia) mostrar-se como melhor do que as'
velhas formas sociais europeias, cuja existência dependia da submissão
à autoridade. A livre associação propunha que comunidades de pessoa
pudessem se reunir por livre e espontânea vontade e acordar suas pró-
prias leis, tal qual as tribos "primitivas" americanas pareciam fazer. Este
conceito era absolutamente chocante no século XVI, mas uma centena
Novos MUNDOS 161

: anos mais tarde ele iria influenciar o pensamento de John Locke e,


vês deste, dos fundadores das repúblicas francesa e americana.
A América estava aparentemente intocada pela influência euro-
i ou por qualquer outra, e por isso oferecia uma oportunidade única
i o estudo da obra de Deus, livre das restrições do pensamento clás-
. Mas qualquer um que quisesse se arriscar estaria em terreno filosó-
> perigoso, uma vez que nenhuma escala oficial existia para classificar
novos dados e controlar a sua incorporação à sociedade. Por isso,
í primeiro lugar estava a necessidade urgente, da parte das institui-
i do Estado e da Igreja, de uma nova definição de "fato" que fosse
de erro, de modo que novas informações pudessem se tornar
Jmente aceitáveis.
A busca dessa nova definição iria redefinir radicalmente o próprio
ceito de conhecimento e trazer o novo instrumento de mudança
: permitiria aos fazedores de machados criar mundos completamen-
3vos. Mas para as autoridades era essencial desenvolver antes de
nada um modo de determinar como os dados deveriam ser coligi-
quem teria permissão para conhecê-los. Surpresas do Novo
io, como abacaxis, batatas, perus, cactos, causaram uma estupefa-
visão das técnicas usadas no estudo da história natural. A descober-
f espécies desconhecidas provou a superioridade da observação dire-
i natureza e puxou o tapete do modo acrítico como se utilizavam as
lições clássicas. De início, foram feitas tentativas de manter as coi-
itro dos limites das velhas categorias, mas sua inadequação cedo
velada pelo tipo de terminologia usada para descrever, por exem-
»recém-descoberto tapir: "meio-touro, meio-elefante, meio-cavalo".
ao inglês "pine-apple" e o francês "pomme de terre" (maçã da terra
Jletata) refletiam estes primeiros intentos de fazer com que velhas
ss se adaptassem a novas coisas.
Mas a urgência imediata era classificar e nomear tudo. Acreditava-
• as coisas, uma vez nomeadas, podiam ser controladas. O primei-
lim botânico europeu criado para receber as novas espécies a
i classificadas foi implantado em 1545, em Pádua, na Itália, segun-
modelo dos gigantescos jardins de Montezuma descritos por
£. Em 1577, Juan de Ovando, presidente das índias Hispânicas,
zou uma burocracia coletora de informações que distribuía ques-
ios impressos para todos os que regressavam da travessia do
162 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

Atlântico. Poucos anos mais tarde, quando da criação dos arquivos esp
cializados em Sevilha, a estrutura de administração e ordenamento i
dados americanos já estava estabelecida.
Mais e mais viajantes retorYiavam do novo continente trazei
questões que solapavam todos os tipos de autoridade. Como podi
esses ameríndios nus e selvagens ser descendentes de Adão e Eva?!
Ptolomeu, a autoridade clássica inquestionada em assuntos de geog
e em cujos mapas toda a cartografia contemporânea estava baseada,:
sabia da existência da América, que dizer da precisão do restante de:
dados? Se o supremo Aristóteles se enganara sobre o número de
nentes (ele havia dito que eram três), podia-se confiar no seu método í
classificação da natureza, alicerce da vida intelectual do Ocidente?
Mas o pior ainda estava por vir. Ao mesmo tempo que eram lev
tadas dúvidas sobre a natureza do mundo, outras tantas questões er
colocadas sobre a natureza do cosmos. O pensamento cosmológico i
ciai da época seguia a descrição aristotélica da Igreja, de um univí
formado por uma série de esferas giratórias invisíveis, feitas de al|
material não terreno, em que viajavam o Sol, a Lua, os planetas e!
estrelas. No centro de tudo, a Terra, imóvel.
Este sistema cósmico constituiu, durante séculos, a base da ac
nistração social porque provia o calendário dos dias litúrgicos sagra
que os fiéis tinham obrigação de observar: deixar de fazê-lo podia <
prometer as chances de salvação. Desafortunadamente, o cálculo as
nômico permanecera virtualmente inalterado desde o primeiro séc
quando Ptolomeu alterou o modelo de Aristóteles com a introduç
conceito de planetas que giravam sobre esferas menores ligadas à <
principal, conceito que pretendia dar conta da maneira como certos t
pôs, como Marte, pareciam às vezes andar para trás. No século XV]
sistema foi modificado com a inclusão de não menos de noventa de
"epiciclos" e era inapelavelmente impreciso. O cáculo exato da Pásc
partir da posição relativa do Sol e da Lua era agora impossível. O
ma de Ptolomeu havia deixado escapar a festa máxima da Igreja.
Mas era teologicamente vital reencontrar a Pácoa, e por isso Ri
pediu a um de seus astrónomos, um canónico polonês cham
Kopernik, para resolver o problema. Assim fez Copérnico (nome Ia
pelo qual é mais comumente conhecido), não tendo outra alterna
Novos M U N D O S 163

tpropor, em 1534, um arranjo que punha o Sol no centro de um sis-


i em que a Terra era apenas um dentre muitos planetas.
Esse novo sistema era filosoficamente assustador e tinha tremen-
jlicações porque negava a certeza secular de que a humanidade
jva uma posição central no universo, como cabia a uma criatura
i ã imagem e semelhança de Deus. Solapava-se assim a asserção
rã qual repousava a suprema autoridade da Igreja. Por um momen-
wna camuflou com êxito a questão, descrevendo o presente de
lico como uma "ficção matemática", que apenas "salvava as apa-
com uma construção puramente teórica. Em qualquer caso,
; sabia que Copérnico estava errado.
Mas no decorrer do século XVI a cosmologia tradicional foi pouco
i minada por novos dados astronómicos. Aparições de cometas e
ívas desafiavam a visão aristotélica de que o céu era incorruptí-
: inalterável. Além disso, supunha-se que a natureza especial da
i de que eram feitos os céus significava que ele era o único lugar
ío movimento circular poderia ocorrer. De acordo com Aristóteles,
lento terreno teria de ser para sempre retilíneo. Acreditava-se
ijetos atirados (ou disparados por canhões) se moviam em linha
té que cessasse o "ímpeto", caindo então diretamente no chão.
Foi então que o especialista italiano em artilharia Niccolò
3, conhecido como Tartaglia ("o gago"), colocou tudo de pernas
10 ar: tentando fazer com que suas armas atingissem o máximo
s, descobriu que todas as trajetórias balísticas eram na verdade
Esta falha revelada no esquema aristotélico levou pouco a pou-
léia de que o fenómeno precisava ser descrito de um modo mais
el, com a ajuda de medições. A tentativa de fazê-lo deu origem a
btécnica inteiramente nova para extrair e intercambiar dados com o
natural, que introduzia explicações não-religiosas do mundo,
as na observação do indivíduo. Mas a avaliação descontrolada,
e quantitativa do mundo era a última coisa que queria a Igreja,
: encorajava perguntas.
0 primeiro expoente desta nova técnica transformadora do mundo
jfessor de matemática italiano Galileu Galilei. Em 1603, em Pá-
lileu experimentou uma abordagem inteiramente nova ao estudo
amenos naturais, em que primeiro elaborava a solução de um pro-
1 matematicamente e depois buscava as provas experimentais.
164 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

Galileu aplicou o novo método ao problema da aceleração dos a


pôs em queda. Aristóteles havia dito que os objetos caíam para prc
sua posição natural no solo e que se moviam cada vez mais rápido >
do a um senso de felicidade pela aproximação de seu objetivo.
propôs uma alternativa radical (que explicava também as trajetórias i
vás de Tartaglia), de acordo com a qual todos os corpos caíam da me
maneira e no mesmo ritmo porque obedeciam a uma mesma lei<
natureza que podia ser matematicamente derivada e experiment
te comprovada.
Galileu fez rolar uma bola por um plano inclinado marcado
trastes de cordas de tripa e depois, usando um pêndulo, mediu a i
cia que a bola percorria em iguais períodos de tempo. A experiéi
revelou que a distância da bola em qualquer instante de sua traje
desde o repouso era sempre igual ao quadrado do tempo de rola
decorrido. Dessa maneira, Galileu demonstrou que podia ir da abstr
matemática para a comprovação experimental e depois para a afii
generalizada da consequente lei que governa os corpos em qi
Acima de tudo, ele demonstrou que era possível modelar a nat
através da matemática, analisar qualquer problema em termos
princípios básicos e gerar um conhecimento universalmente aplica*
Por esssa época, um aristocrático advogado inglês char
Francis Bacon abordava a questão da certeza no conhecimento
um ângulo diferente, complementar. Em 1620, ele propôs uma at
gem inteiramente nova ao problema da geração da informação em i
obra mestra chamada The New System (novo porque substiti
Organon de Aristóteles, o "velho" sistema até então usado pelo
mento analítico).
Bacon acreditava que o sistema de Copérnico, a descoberta i
América e os novos dados que fluíam de todo o mundo haviam
uma crise geral de conhecimento. E escreveu: "A mente do home
é como um copo encantado, cheio de superstição e impostura (.-
América e a nova cosmologia não haviam deixado nenhum terreno!
do para a autoridade, não existia mais uma cristandade unificada, a <
coberta das montanhas da Lua por Galileu havia rebatido Aristóte
Copérnico solapara a estabilidade fundamental do modelo do uni
junto com a estrutura social que nele se baseava. O poeta e clérigo i
Novos MUNDOS 165

Donne expressou a situação de quase pânico causada pela crise: "A


filosofia deixa tudo em dúvida."
A confusão reinava porque ninguém sabia mais o que era conheci-
to oficialmente autorizado. Em um mundo em que a punição dos
ios podia ser a morte, esta era uma séria questão. Para Bacon, uma
tão fundamental assinalava o início de uma nova era que exigia
de pensar inteiramente novos. Não podia haver nenhum com-
isso com sistemas aristotélicos fracassados ou com meras altera-
das formas tradicionais, como as de Ptolomeu. A antiga visão esco-
havia causado uma crise geral de aprendizado. Nos corredores
irados das universidades, eruditos discutiam com premissas agora
s irrelevantes para o entendimento do mundo nascente e impo-
para enfrentar, analisar e responder aos novos problemas que
vam o velho mundo do pensamento aristotélico e ptolomaico.
em estava tratando da questão. Uma ação urgente era necessária
a preservação da estabilidade social.
O fluxo dos novos dados americanos, copernicanos e galileicos
regras radicalmente novas de coleta de dados e, acima de tudo, de
estruturação em algum tipo de esquema global. Novos princípios
necessários, bem como novas formas de discussão, novos objetivos
o conhecimento, uma nova ética e novos meios de canalizar e admi-
a torrente de descobertas, que parecia a ponto de ultrapassar a
social e intelectual. Bacon sentia que a situação era tão desespera-
"todo o trabalho de entender [devia] ser refeito desde o início".
O "novo instrumento" apoiava firmemente o conhecimento na
.•ação e na experiência porque Bacon percebeu que o velho méto-
olástico de julgar-se uma teoria pelo quão bem ela pudesse ser
dida fracassava quando confrontado com os dados que surgiam
partes recém-descobertas do mundo. Somente a coleta e classifica-
ustiva da informação produziria a certeza necessária para a
tenção da estabilidade social, por revelar, de um modo novo e com
tipos de provas, a ordenabilidade da criação de Deus e a regulari-
das obras da natureza e da sociedade.
Bacon também percebia que a compreensão intelectual não era
nte privilégio de uns poucos escolásticos de elite, uma vez que o
jecimento empírico dos artífices havia levado às grandes descober-
Íta pólvora e do relógio. Melhores resultados poderiam ser obtidos,
166 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

por conseguinte, abrindo-se a investigação ao espectro mais amplo da


experiência. Mas Bacon não era, como poderia parecer, favorável ao
acesso ilimitado ao conhecimento, preferindo que os fatos se tornassem'
disponíveis somente se apropriados ao status social do usuário.
Bacon via como parte do plano de Deus que "a abertura do mun-
do pelos navegantes e pelo comércio e a descoberta do conhecimento se"
encontrassem". Diante da urgente necessidade de estabilidade socia^1
num período de agitação intelectual e teológica em que a Igreja e seus,
servos, as autoridades seculares, estavam sob ataque e inseguros de se
chão, a meta prioritária deveria ser a consolidação de informações ut
tárias, confiáveis, capazes de promover a melhoria da vida, acima
tudo. Por isso, o novo sistema de Bacon iria oferecer os novos dadc
todos os usuários potenciais, comunicando-os, na linguagem mais cL
possível, à maior quantidade possível de pessoas "legitimamente qualif
cadas".
Bacon estabeleceu também os parâmetros para o contato cresce
te entre a Europa e as terras recém-descobertas, bem como o cenái
para a exploração daqueles países: "Considere-se apenas a diferença qi
há entre a vida dos homens nas províncias mais civilizadas da Europa
nos mais selvagens e bárbaros distritos da Nova índia. (...) Tal diferer
não provém do solo, do clima nem da raça, mas das artes." (Por "arte
ele queria dizer o novo conhecimento baconiano.)
O processo baconiano de administração dos novos dados tini
quatro componentes essenciais, que acabariam se incorporando à nos
visão moderna do conhecimento: encontrar, avaliar, registrar e comi
car, de modo a "detectar e trazer à luz coisas nunca feitas". Se tais
sãs" demonstrassem ser realmente novas, o mais importante, pá
Bacon, era que fossem vistas sob a fria luz da "objetividade", termo qi
iria se tornar palavra de ordem dos novos fazedores de machados,
um mundo abalado pelo efeito do novo e do nunca visto, as opiniões,;
tendências pessoais e os sentidos eram agora considerados por der
subjetivos para serem confiáveis. Sempre que necessário, os investU
dores deviam se precaver contra possíveis erros com o uso de instrume
tos "objetivos", que serviriam para corrigir as deficiências da percep
humana.
A regulação do pensamento através de métodos autorizados tor
ria mais fácil o controle e o domínio da natureza e, mais importante, -
Novos MUNDOS 167

rco da conformidade. A experimentação de Galileu e o sistema


aniano de gestão de dados constituem as bases de uma nova defini-
)de conhecimento, do papel da teoria, e da capacidade "objetivadora"
matemática para a quantificação dos fenómenos. Com isto, restou
idente apenas o problema da técnica para reduzir os erros de avalia-
i dos dados brutos.
Enquanto Bacon formulava seu novo sistema, em uma pequena
ade da Bavária uma tempestade de neve reteve um engenheiro mili-
• francês em seu alojamento por todo um dia e uma noite, durante os
; ele formulou o conceito que iria resolver o problema da avaliação,
i método daria aos especialistas um novo e poderoso presente para
dar na produção do conhecimento. Em 1637, depois de muita refle-
D. René Descartes publicou seu novo conceito em um livro chamado
í discurso do método, no qual estabeleceu as regras para pensarem-se a
fccteza e a incerteza no mundo.
O segredo está naquilo que ele denominou "dúvida metódica",
b qual tudo, exceto as verdades auto-evidentes, devia ser questionado
\ que se provasse verdadeiro (e para Descartes tudo, especialmente as
idéncias dos sentidos, devia ser posto em dúvida na ausência de algu-
i "verdade evidente"). O método de Descartes era a suprema visão de
te-e-controle do mundo, na forma de uma técnica conhecida como
áucionismo". Refletindo a técnica medieval da resolução-e-composi-
9, o método exigia que um problema, para ser resolvido, fosse dividi-
lem suas menores partes para melhor compreensão. Todo pensamen-
iucionista devia ir do simples ao complexo e todas as afirmações
o mundo somente deviam ser expressas em termos não-metafísi-
: tamanho, forma e movimento.
A principal preocupação de Descartes (a de que o conhecimento
usado em benefício da ordem social) se revela em sua insistência
i "necessidade de purificação", a disposição do mundo todo em catego-
í firmes e claramente articuladas que não admitissem nenhuma ambi-
ade ou dissonância e que controlassem previamente a avaliação de
juer experiência. De acordo com o Discurso, somente o que pudes-
er previamente classificado era passível de estudo. Com o eixo redu-
lista de Descartes, o processo seletivo e exclusivo da percepção
anã, modificado pela língua e pelo alfabeto milénios antes, ficava
i ainda mais restrito. Logo estaria disponível a tecnologia necessária
168 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

para transformar essas restrições em uma atividade fazedora-de-ma


dos ainda mais incompreensível.

As metáforas de Descartes sugerem obsessão com a conformidade
mais do que desejo de inovação. Descartes exigia o amplo "expurgo
mental", jogar fora as "cestas de frutas podres". Seu desejo, como o de
Bacon, era começar do zero em um universo livre de fronteiras e estru-
turas preordenadas, pronto para ser "posto em ordem". Como outros de
sua época, ele temia as novas vozes do relativismo, como Montesquieu,
ensaísta e comentarista político francês cujas Cartas persas (escritas, por
medida de segurança, como correspondência do embaixador persa na
França para um amigo na terra natal) questionavam se o modelo euro-
peu era mais válido ou acertado que o da América "selvagem". Os pó*
tos de vista "persas" de Montesquieu ironizavam os valores europeus
aceitos e satirizavam as posições absolutistas das autoridades francesas.

As provas matemáticas de Galileu, o empirismo de Bacon e a dúvic


metódica de Descartes produziram uma nova técnica investigativa tão
poderosa que iria propiciar aos fazedores-de-machados níveis sem prece-
dentes de especialização e controle esotérico. O primeiro efeito social
generalizado do novo modo reducionista de pensar foi a geração de hie-
rarquias reguladoras da aplicação do método e da manipulação do flux:
dos dados oriundos do mundo todo.
Essas hierarquias eram conhecidas como "academias para a propa-
gação do conhecimento". A primeira delas, a Accademia dei Cimento,
foi criada em Roma em 1657, com o lema: "Testar mais e mais." O exem-1
pio foi logo seguido em toda a Europa por agrupamentos similares, o
mais exclusivo dos quais era o francês, onde a admissão era limitada ;
dezesseis membros.
O primeiro corpo oficial permanente a organizar e gerenciar com
sucesso a produção do conhecimento (que a nova técnica tornou pos = :-
vel) começou como um grupo de jovens que se inspiravam no pensa-
mento de Bacon e se autodenominavam "Clube de Filosofia Expe-
rimental". Eles se reuniam regularmente no Wadham College, OxfordJ
para falar sobre descobertas contemporâneas como a circulação do san-
gue e a astronomia copernicana.
Novos MUNDOS 169

A descoberta da América, a nova cosmologia de Galileu e o perigo-


irelativismo pregado por radicais como Giordano Bruno (clérigo italia-
iqueimado em 1600 por sugerir que o universo era infinito e continha
ros planetas habitados como a Terra), além da divisão da religião
lizada entre católicos e protestantes e a avalancha de novas infor-
ss vindas de todo o mundo, tudo isso exigia dos novos "experimen-
>res" que encontrassem um modo de manejar o conhecimento que
• acima de tudo politicamente correto.
O grupo de Oxford, ao mesmo tempo que queria afastar-se o mais
io possível dos pontos de vista autoritários da ciência clássica, tam-
i se preocupava em situar a investigação da natureza sobre bases que
jvassem fáceis de controlar. O país havia apenas recentemente
lado às mãos dos realistas da Igreja Anglicana e a uma monarquia
aurada, após os anos do Commonwealth Republicano de Cromwell.
; o puritanismo radical ainda estava vivo, esperneava e era perigoso.
55 anos haviam se passado desde o fim do Commonwealth, quan-
»os puritanos radicais tomaram o poder depois de vencer a guerra civil
capitar Carlos I, o Católico. Em um reino novamente anglicano,
is uns poucos anos passados desde o fim da guerra civil, isto signi-
manter o controle do conhecimento fora das mãos dos radicais
ticos e filosóficos protestantes, que quase tiveram êxito em transfor-
r a Inglaterra em república sob Oliver Cromwell.
0 grupo de Wadham propôs a criação de um "Colégio para a pro-
io do aprendizado de física matemática", que em 1662 foi posto sob
> asas do establishment ao ser fundado por Carlos I como "Real So-
ie para o Aperfeiçoamento da Ciência Natural". A Real Sociedade
: ainda existe) iria agir como modelo para os fazedores de machados
fioda a Europa durante o século seguinte e ainda mais tarde, estimu-
1 e guiando a produção do novo conhecimento que lançou as bases
>mundo industrial. Mas, por enquanto, o objetivo-chave da nova
ide, e de outras que a seguiram em toda a Europa, era defender o
quo institucional por meio da arregimentação das novas técnicas
novo conhecimento que ela gerava) contra o que era declarado
"ateísmo", chavão que designava todo comportamento anti-esta-
kment.
Acima de tudo, não devia haver nenhum conflito entre a ciência e
pão do Estado, porque a ordem física da natureza devia se refletir
170 O P R E S E N T E DO FAZEDOR DE M A C H A D O S

em uma sociedade disciplinada: quanto mais a natureza fosse com-


preendida pela ciência, mais a estrutura social podia ser defendida. Os
membros da sociedade eram em sua maioria membros da Igreja estatal,
e os mais poderosos dentre eles eram os latitudinários, uma subseita
anglicana que controlava a maioria dos altos cargos eclesiásticos no país.
incluindo o Arcebispado de Canterbury.
O objetivo declarado da Real Sociedade era o "controle da maté-
ria" para uso da comunidade, na qual "cada indivíduo devia cumprir as
obrigações, quaisquer que fossem, da posição particular que a
Providência lhe tivesse proporcionado na vida". Ao seguir as leis ordena-
das da natureza, a ciência funcionaria como um instrumento essencial |
de incentivo à conformidade social.
Em sua história da Real Sociedade, de 1667, Thomas Sprat expli-
cou o valor das novas experiências para o incentivo dessa conformidade:

Transgressão da Lei é Idolatria: A razão de os homens menos-


prezarem a Jurisdição e o Poder provém de Idolatrarem sua própria
Inteligência. Eles tornam onipotente a sua própria Prudência;
supõem-se Infalíveis', estabelecem suas próprias Opiniões e as cul-
tuam. Mas essa vã Idolatria cairá inevitavelmente ante o Co-
nhecimento Experimental; este, que é o inimigo de todas as formas
de falsa Superstição, muito especialmente aquela de homens que
adoram a si mesmos e suas próprias Ilusões.

Galileu já havia mostrado que experiências "objetivas" podiam tra- •


zer novas certezas ao conhecimento; essas técnicas seriam agora utiliza-
das para proteger e legitimar a Igreja e o Estado.
O lema da Real Sociedade, que adotou entusiasticamente o méto-
do cartesiano da dúvida metódica, era (traduzido livremente): "Não se i
fie na palavra de ninguém." Mas seus membros perceberam que a apli-1
cação do novo método científico iria provavelmente inundá-los coi
"provas experimentais" de todas as partes, e por isso introduziram regra
para a padronização dos dados produzidos. O objetivo da sociedade nãc
era se deixar levar por discussões metafísicas perigosas e antiquada
mas reunir dados de corte-e-controle em primeira mão e se preocup
somente com aquilo a que se referia como "fatos".
Muito da informação de primeira mão que a sociedade recebia de]
Novos MUNDOS 171

ãrteres" (a origem do uso desse termo) pelo mundo afora vinha de


iregadores, mercadores, militares, viajantes ingleses e observadores
angeiros de todo tipo. A sociedade classificava os dados recebidos
vês de um comité de correspondência e os organizava para publica-
um jornal, criado em 6 de março de 1665, que descrevia as suas
ades experimentais.
O novo jornal, Philosophical Transactions ofthe Royal Society (ain-
I boje publicado), foi o primeiro periódico científico e estabeleceu o
;lo para todos os que vieram em seguida. Suas regras de aceitação
jm que todas as reportagens se submetessem a um formato aprova-
i Sociedade, que facilitava aos editores localizar ideias políticas ou
liças desviantes. A edição inaugural continha reportagens sobre os
ípios de Roma, sobre a observação das manchas de Júpiter, a pre-
de um cometa em França e uma nova jazida de chumbo na
anha, uma carta sobre a pesca da baleia nas Bermudas e uma ava-
> sobre os relógios de pêndulo movidos a água.
Para que os conhecimentos fossem "objetivamente" testados,
ivos procedimentos foram instituídos pelo principal dirigente da
«ciedade, o aristocrata irlandês Robert Boyle. O ponto de vista de
: era que a ciência devia revelar o grande projeto de Deus e refor-
: ortodoxia. Então ele raciocinou que a melhor maneira de chegar a
avaliação "objetiva" das provas era repetir todas as experiências
ite dos membros da sociedade em um ato chamado "testemunho
ivo".
Somente quando coletivamente observada dessa maneira, pela via
i consenso, podia alguma coisa ser aceita com segurança como um
3. Um vocabulário especial e um modo padronizado de registrar os
foram também desenvolvidos para eliminar idiossincrasias e
gúidades de qualquer relatório. O regulamento da Sociedade dizia
"em todos os relatórios de experiências (...) o fato deve ser claramen-
stabelecido, sem preâmbulos, apologias ou floreios retóricos".
Agora que a Sociedade padronizara o relato das provas experimen-
i em uma fraseologia oficial (conhecida, é claro, somente pelos mem-
), testemunhos coletivos podiam também ser conduzidos por corres-
iência, utilizando-se descrições padronizadas e acompanhadas de
rações também padronizadas e extremamente detalhadas. Dessas
as de controle nasceu o moderno paper científico.
172 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

O objetivo de Boyle era criar uma comunidade experimen


exclusiva, com formas, convenções e relações sociais próprias que cons-
tituíssem uma base confiável para o incentivo de formas de invenção e
descoberta socialmente aceitáveis.

Esta atividade iria exigir um local de trabalho de novo tipo, regula-
do e oficial, onde a inovação seria conduzida de acordo com processos e
equipamentos aprovados. Boyle chamou este local de trabalho de "labo-
ratório" e os pesquisadores de "sacerdotes da natureza", cujos experi-
mentos seriam mais bem realizados aos domingos e cujo trabalho produ-
ziria "fatos" para o reforço ideológico e económico da sociedade.
No laboratório, este novo estilo "objetivo" de manipulação dos
dados devia ser conduzido, pela primeira vez, com o auxílio de instru-
mentos padronizados e uniformes. Estes, como disse Bacon, deviam
remediar a fraqueza dos sentidos humanos e ajudar a evitar as discus-
sões metafísicas que antes conduziam a dados poucos confiáveis, causa-
dores em potencial de uma indesejável heterodoxia política e ideológica.
Os novos instrumentos fariam estender, eles próprios, o âmbito
das descobertas científicas e serviriam para torná-las ainda mais exclusi-
vas, porque em muitos casos um fenómeno só podia ser observado e
"testemunhado" através do uso coletivo dos instrumentos. Era esse con-
trole coletivo que Boyle via como a principal virtude da Sociedade, por-
que, num mundo em que era perigoso não estar conforme, ela propicia-
va um ambiente onde as disputas podiam ocorrer e os erros subversivos
ser corrigidos com calma, a portas fechadas. A linguagem da ciência
seria a linguagem da conformidade. Nenhum individualismo ou dogma-
tismo (tal como definido pela Igreja Anglicana) seria permitido: somen-
te com a concordância da comunidade dos experimentadores alguma
coisa se convertia em "fato".
Pode-se constatar que a Real Sociedade não era a democracia da
ciência que se pretendia publicamente pelo fato de serem ainda nega-
dos aos cientistas da Igreja livre não-anglicana, que não pertenciam ao
grupo de experimentalistas, as cláusulas da Lei de Tolerância estabeleci-
da poucos anos antes, em seguida à restauração da monarquia. Esta Lei
tinha por objetivo levantar as pesadas restrições que haviam sido coloca-
das sobre as atividades dos membros da Igreja livre após o fim do
Commonwealth de Cromwell. As restrições impediam que eles se tor-
nassem membros das universidades, das forças militares, dos partidos
Novos M U N D O S 173

cos e das grandes instituições, uma das quais era agora a Real
:edade. Alegava-se que todos os que resistiam à filosofia experimen-
tal como praticada pela Real Sociedade, resistiam também por defi-
à religião estabelecida. Ainda os ecos da Mesopotâmia.
Muito mais ainda seria negado às pessoas não-conformes porque,
ida que surgiam novos instrumentos de observação, um tipo com-
mente novo de conhecimento começava a aparecer sob a forma de
menos "instrumentais", aqueles que somente podiam ser observa-
com a ajuda de instrumentos como telescópios e microscópios.
m e Descartes tinham capacitado os fazedores de machados a criar
próprios "novos mundos", conhecidos somente por pessoas que dis-
m de equipamentos para observá-los e que fossem qualificadas
trabalhar com eles.
A proliferação da investigação instrumental começou também a
novas disciplinas. Em 1673, a Sociedade tinha diversos comités, ca-
dos quais lidava com diferentes materiais e observações trazidos
Io o mundo. Estes incluíam agora temas de farmácia, agricultura,
idades, cronologia, história, matemática, construção naval, via-
mecânica, gramática, química, navegação, arquitetura, hidráulica,
Tologia, estatística, longevidade, geografia e monstruosidades.
Apesar do aspecto aparentemente livre dessa prolífica investiga-
e produção de novos conhecimentos, a Sociedade mantinha firme-
te apertados seus grilhões sobre o que podia e o que não podia ser
feito. O caso do vácuo bem o demonstra. Antes de sua descober-
posterior confirmação pela observação, experimentação e testemu-
coletivo, o vácuo não existira. Na verdade, sugeri-lo teria sido heré-
uma vez que a Igreja aceitava o ponto de vista aristotélico de que
impossível por ser o movimento dos corpos desacelerado pela
ia do ar. No vácuo, o movimento seria instantâneo, coisa que
fora vista.
Em todo caso, Aristóteles havia dito que o espaço fora criado por
i (que ele chamava "Força Primordial") como um receptáculo a ser
pado por corpos sólidos, e que se acontecesse de qualquer parte sua
nanecer desocupada, como parecia ser o caso do vácuo, Deus oni-
cnte a encheria de luz. O espaço nunca era vazio, por isso o vácuo
existia. A Igreja, tanto quanto a natureza, parecia abominar o

-
174 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

Mas em 1635, durante a construção dos jardins aquáticos de


Florença, os engenheiros viram que as bombas de abastecimento da fon-
te não conseguiam puxar água a mais de trinta pés de profundidade de
uma só vez. Galileu foi chamado para reproduzir as condições do pro-
blema. Em 1638, quando os detalhes de sua experiência foram publica-
dos em Roma, o professor de matemática Giovanni Berti, da Academia
Romana, sentiu-se estimulado a dirigir um teste em escala real.
Ele fixou, na lateral de sua casa, um duto vertical, no alto do qual
fora instalado um balão de vidro com uma ponta helicoidal. Berti colo-
cou uma tampa de bronze na parte inferior do duto e pôs o engenho
sobre um tonel de madeira. Depois encheu de água o duto e o balão de
vidro, fechando a ponta helicoidal.
Quando a tampa de bronze no fundo era aberta, a água jorrava do
balão, descia pelo duto e começava a encher o tonel, mas quando o jor-
ro parava, ainda ficava no duto uma coluna de água de trinta pés, com
um espaço vazio acima. Quando a ponta helicoidal era aberta novamen-
te, podia-se ouvir o ar correndo para dentro do balão e a coluna de água
remanescente esvaziava-se dentro do tonel.
Em 1641, o sucessor de Galileu, Evangelista Torricelli, referiu-se à |
questão e lançou a ideia de usar mercúrio. Este era mais denso que a
água, o que reduzia em catorze vezes a escala do equipamento. Em
1644, Torricelli foi visitado por um experimentador francês chamado
\Iarin Mersenne, que vivia em Paris e passava a maior parte de seu tem-
po colocando experimentadores de toda a Europa em contato uns com
os outros. Mersenne retornou prontamente à França e relatou as novi-
dades a todos os seus correspondentes.
Um deles, o matemático francês Blaise Pascal, realizava experi-
mentos secretos que o levaram a concluir que o espaço deixado vazio no
alto da coluna de mercúrio era na verdade vácuo, e que a altura da colu-
na de qualquer líquido dependia da sustentação da coluna pelo ar que
pressionava a superfície do líquido no recipiente ao fundo. As evidên-
cias mostraram que a pressão do ar era suficiente para sustentar uma
coluna de água de trinta pés de altura, o que explicava o problema origi-
nal da bomba de sucção.
Em 1658, Boyle colocou verticalmente sobre uma bandeja um
tubo de um metro de comprimento, cheio de mercúrio, dentro de um
Novos MUNDOS 175

balão ligado a uma bomba de vácuo. O topo da coluna de mercúrio den-


tro do tubo atingia a altura de 74 centímetros. À medida que a bomba
expulsava o ar de dentro do balão, o nível do mercúrio no tubo caía.
Quando o ar era devolvido ao balão, a coluna de mercúrio subia, e quan-
do bombeado em excesso, a coluna de líquido subia acima do nível ori-
ginal. Ficava conclusivamente provada a existência da pressão do ar,
cenário de importantes desenvolvimentos da medicina respiratória, da
química pneumática e da investigação dos gases.
Mas Boyle foi absolutamente cauteloso ao tratar da descrição
"experimentar do fenómeno que a bomba havia criado. Ele evitou a
armadilha teológica do vácuo, negando sua existência ao descrevê-lo
como um espaço "quase" totalmente destituído de ar e não "ousando"
julgar se ele era ou não "desprovido de toda substância corpórea". A
agenda oculta de Boyle fora neutralizar politicamente os pontos de vis-
ta perigosos: se o vácuo realmente existisse, o espaço não era, como ensi-
nava a Igreja, preenchido em todos os lugares pela presença de Deus; e
se existisse algum lugar onde Deus não estava presente, quão válida
seria então a autoridade desse seu representante sentado no trono da
Inglaterra e das próprias autoridades eclesiásticas?
A primeira aplicação "útil" da bomba de vácuo foi a construção de
instrumentos para medir a pressão do ar. Passadas algumas décadas, per-
cebeu-se que a mudança do tempo fazia com que o nível de água nos tu-
bos subisse e descesse. Em 1642, Torricelli projetou um engenho que
consistia em um longo tubo quase totalmente cheio de água no qual flu-
tuava uma imagem de madeira. Instalado no alto de sua casa, em Floren-
ça, ele lhe permitia observar a chegada do tempo bom e a elevação da
pressão atmosférica pelo aparecimento da imagem flutuante sobre o te-
lhado à medida que subia o nível da água. A observação meteorológica foi
3go padronizada e facilitada pela produção de uma versão portátil desse
engenho, feita com mercúrio, que ficou conhecida como barómetro.
O vácuo seguiu gerando fenómenos novos e mais esotéricos.
Entre 1660 e 1663, experiências com pássaros, cobras, sapos, peixes,
itos e insetos mostraram que os animais morriam no vácuo, e essa
Dservacão, mais o fato de Boyle conseguir usar sua bomba de ar para
strair gases do sangue, conduziu os pesquisadores na direção da respi-
ção e, principalmente, da pesquisa da composição do ar. Como já fora
servado, o ar era também necessário à combustão. Continha ele então
176 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

matéria que ajudava o fogo? A teoria desenvolvida por Mayow, outro


membro da Real Sociedade, era de que o ar continha um agente com-
bustível. Dado que a pólvora era o único material que queimava no
vácuo, Mayow concluiu que uma substância similar à pólvora devia exis-
tir no ar, à qual denominou "partículas nitroaéreas". Essas observações
abriram um século de experiências com gases que lançariam as bases
para a moderna ciência química.
Duas outras importantes áreas de pesquisa surgiram da descober-
ta do vácuo. Boyle colaborou com o francês Denis Papin em experiên-
cias com a pressão do ar que levaram este último a desenvolver uma
máquina de produzir vácuo por meio da condensação do vapor em um
espaço fechado. Este trabalho lançou as bases da máquina a vapor e pre-
parou o terreno para o início da Revolução Industrial não mais de ura
século passado desde o aparecimento do novo método científico.
O produto mais esotérico das experiências com o vácuo talvez
tenha sido o barómetro. Este instrumento foi, naquela época, um exem-
plo de tecnologia especializada tão popular quanto são os telefones celu-
lares no mundo moderno. Todo "experimentador" digno desse título!
devia possuir um. Em 1675, um astrónomo francês chamado Jean
Picard notou que quando sacudia seu instrumento o mercúrio brilhava
e a coluna se movia para cima e para baixo dentro do recipiente de vidro.
Esta observação levou à investigação da luminescência e, finalmente, à
descoberta da eletricidade.
Na sequência do vácuo, o segundo dos "novos mundos" gerados
pelo método científico foi o dos instrumentos ópticos — o telescópio, e,
principalmente, o microscópio. Quando Galileu usou o novo telescópio
holandês (a "luneta" de guerra de Hans Lippershey, rejeitada por seu ;
cliente, o príncipe Maurício de Nassau, que preferia binóculos), ele viu
um cosmo jamais observado. Esta descoberta foi mais um exemplo do
modo como as novas ciências instrumentais, como aquelas associadas j
com o vácuo, desqualificavam a observação direta não-fazedora-de-
machados, feita a olho nu.
O telescópio mostrou a Galileu as luas de Júpiter, uma superfície l
lunar que não era lisa, manchas na superfície do Sol e muito mais estre- J
Ias do que se supunha existir. Esses fatos eram heréticos por si mesmos,
dado que, de acordo com Roma (i.e., Aristóteles) e apesar de Copérnico,
todos os corpos celestes tinham a Terra como o centro de sua órbita, a j
Novos MUNDOS 177

era uma esfera perfeita desprovida de interesse e o Sol não tinha


luma imperfeição.
Mas quando Galileu observou um trânsito de Vénus, provando
ssa maneira que o planeta, como afirmara Copérnico, orbitava o Sol,
i telescópio desafiou sem ambiguidade a ortodoxia católica e acelerou o
Ébno com que a ciência iria subtrair poder das mãos das autoridades
priesiásticas e criar urna nova geração de fazedores de machados secula-
fts. Seus instrumentos podiam "ver" sozinhos a nova verdade porque
jvam eles próprios as condições sob as quais ela podia ser observada.
^ agora em diante, o poder político seria sustentado pela ciência.
Mais inesperado ainda era o mundo a ser revelado pelo microscó-
Absoluta novidade, a vida microscópica foi um choque tão grande
a autoridade tradicional quanto havia sido a descoberta da
lérica, causando um efeito profundo sobre o pensamento da época.
; milhares de novos fenómenos revelados pelo microscópio reforca-
: ainda mais a independência intelectual secular em relação à Igreja
jnduziram a investigação em muitas direções simultâneas. Disci-
is científicas inteiramente novas surgiram como resultado da revela-
i desses novos mundos, nos quais somente os fazedores de machados
am aptos a operar.
O microscópio de Galileu revelou a visão complexa dos insetos, e
E 1625 um outro italiano, Francesco Stelluti, publicou um trabalho
ibre a anatomia das abelhas. Em 1628, o anatomista inglês Harvey
sobre o movimento do coração e do sangue depois de examinar
áceos, moluscos e insetos "com a ajuda de uma lente de aumento",
rã de Harvey iria ajudar os experimentadores do vácuo em sua des-
ta dos componentes químicos e gasosos do sangue e gerar também
}va disciplina da embriologia com os estudos microscópicos descritos
i geração dos animais, publicado em 1651.
Em 1660, o professor de medicina e futuro médico do papa,
cello Malpighi, usou dados microscópicos para explicar o funciona-
ito dos pulmões, para desvendar o modo como os vasos capilares li-
artérias e veias, e para descobrir as papilas do sabor existentes na
já, o córtex cerebral e as células vermelhas do sangue.
Poucos anos mais tarde, um amador autodidata holandês chamado
Leeuwenhoek enviou à Real Sociedade os desenhos de suas obser-
microscópicas. Infelizmente, a sociedade não dispunha naquela
178 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

época de microscópios suficientemente bons para testemunhar tal


balho como um fato. Mas em 1695 Leeuwenhoek trouxe à atenção geri
o mundo microscópico em sua obra Os segredos da natureza, meio sécw
Io de estudos detalhados em quatro volumes.
Leeuwenhoek completou o trabalho de Malpighi mostrando
as artérias e veias iam e vinham do coração. Desenhou esquemas
glóbulos vermelhos do sangue mostrando que eles eram circulares
humanos e mamíferos, mas ovais em peixes e anfíbios. Produziu ilustnd
coes mostrando a proliferação de protozoários em uma gota de água
chuva e em 1683 já havia examinado raspas de dentes e encontrado bac-
térias. Descobriu também que os afídios se reproduzem assexuadame»]
te, descobriu organismos rotíferos e examinou os espermatozóides,
cristalino dos olhos, a estrutura dos ossos e o levedo.
Em botânica, Nehemiah Grew publicou em 1682 A anatomia
folhas, flores e frutos, que foi lida para a Real Sociedade. As observa<
de Grew sugeriam, sob a base do exame microscópico, que as foliud
eram os órgãos da respiração dos vegetais, lançando os fundamentos pa-
ra o posterior trabalho de Príestley, com a câmara de vácuo, sobre a afr
vidade respiratória da menta. Grew foi também o primeiro a especubd
sobre a sexualidade das plantas, fornecendo informações que ajudaria»
Lineu no século seguinte. Todo este trabalho em botânica foi consolii
do em uma nova disciplina formalmente organizada quando, em 161
John Ray cotejou os estudos de Grew e de Malpighi em um livro cham»
do A história natural das plantas, em que baseava a classificação de mal
de três mil espécies vegetais nas diferenças entre os tipos de sementes.
Em poucas décadas, portanto, o microscópio havia levado
conhecimento a se diferenciar em um grande número de novas ciênci
especializadas, isoladas entre si e dos membros "não-experimentador
da comunidade. A biologia, por exemplo, não era mais uma única
ria mas dividira-se em embriologia e estudos gerais de desenvolvime:
— anatomia comparada, citologia, histologia, microbiologia e entorno^
gia. Mais importante que tudo, talvez, o microscópio confirmou o no
método científico de Descartes ao gerar disciplinas baseadas no estud»
reducionista da estrutura que, ao contrário do processo, podia ser dividi-
da e recomposta como havia dito Descartes.
Novos M U N D O S 179

Os presentes gémeos da bomba de ar e do microscópio, combina-


ligaram pela primeira vez as artes da engenharia e da metalurgia
i a teoria científica. Isto gerou por sua vez o novo ofício da fabrica-
instrumentos científicos e um novo conceito de precisão. E com
Dliferacão do conhecimento esotérico em tantas novas disciplinas
as, surgiram novas demandas de sistemas de medida e quantifica-
De início, esta necessidade foi vista claramente na astronomia, on-
: o impulso para a produção de lentes melhores incentivou por outro
i a produção de meios mais precisos de apontar os instrumentos.
Em 1640, William Gascoigne desenvolveu o micrômetro, que con-
em uma agulha fixa e outra móvel na ocular. Alinhando a agulha
. em um lado de uma estrela, ou da Lua por exemplo, e usando uma
re de parafuso de precisão para mover a segunda agulha de modo
ela alinhasse com o outro lado do objeto, podia-se ler sua medida
lar. Em 1667, o astrónomo francês Jean Picard descobriu que este
ia podia ser usado para medir a distância entre os objetos, e assim
;scópio era agora também um instrumento de pesquisa para cortar-
itrolar o país com estradas e canais, portos e obras diversas. Pela pri-
ra vez, os viajantes podiam dispor de mapas precisos para lhes dizer
[lugar onde se encontravam. À medida que os transportes incentiva-
a movimentação de bens e pessoas, expandia-se o comércio e a
lunicação tornava-se mais fácil.
A precisão mudou também a vida no mar. O comércio transatlân-
i crescente tornava o cálculo mais rigoroso das longitudes uma ques-
de urgência. O governo inglês ofereceu um prémio (cerca de dois
iões de dólares em valores atuais) para a solução do problema.
Iley, na Inglaterra, e Godfrey, na Filadélfia, deram o primeiro passo
um instrumento de navegação chamado sextante, que usava uma
i telescópica para obter leituras muito precisas da posição das estre-
. O segundo passo seria poder dizer exatamente a hora de Greenwich,
Jaterra, que era o meridiano padrão desde 1675. Se em um ponto
juer de uma viagem a altitude do Sol ou de uma estrela, junto com
s Lua, pudesse ser comparada com quadros que mostrassem sua posi-
p à mesma hora em Greenwich, a diferença entre as duas indicaria ao
ivegante o quão afastado de Greenwich ele estava, para leste ou para
ste.
180 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

Em 1735, John Harrison produziu um cronometro marítimo de


molas que foi finalmente testado durante uma viagem experimental a
Barbados. Ele mostrava a hora com uma precisão de quinze segundos
em um período de cinco meses. Isto significava que durante uma via-
gem de cinco meses, a navegação podia ser realizada com precisão de
até uma milha.
Com a ajuda do telescópio de pesquisa, do sextante, e do cronome-
tro, cartas e mapas podiam ser mais precisos do que antes, e portanto a
exploração e o comércio viram-se facilitados. Com o crescimento mas?:-
vo dos carregamentos de chá, açúcar e tabaco que ingressavam na
Inglaterra, foi desenvolvida a régua de cálculo para ajudar os funcioná-
rios da alfândega a calcular as taxas. No decorrer do século XVIII, a
experimentação científica gerou mais e mais instrumentos de precisão,
que ajudaram todos, de alguma forma, o comércio e as comunicações.
os anemómetros mediam os ventos para ajudar na previsão do tempo, os
instrumentos de navegação tornavam as jornadas mais seguras e os piiôl
metros auxiliavam os foguistas.
Máquinas operatrizes e tornos — para cortar delicadas peças heli-
coidais em bronze e ferro usadas para girar dispositivos de escala com
grande precisão — ajudavam a tornar mais precisas as medições em pes-
quisa, cartografia e navegação. Elas seriam usadas também para projetar
e construir os canais, estradas, ferrovias e pontes da Revolução Indus-
trial, movidas pela máquina a vapor, ela própria gerada pelas experiên-
cias com o vácuo e construída com a ajuda dos instrumentos de precisão.
A quantificação afetou diretamente o populacho quando suas téc-
nicas levaram a administração social a novos níveis de corte-e-controle.
William Petty, um membro da Real Sociedade que estudara medicina i
em Oxford e participara do grupo original de Wadham, apoiou-se em
Descartes para desenvolver a sua "aritmética política", publicada em
1662, onde usou somente "números, pesos e medidas" para realizar a pri-
meira análise propriamente estatística da população e da riqueza da
Inglaterra.
Em 1671, o holandês Jan de Witt forneceu ao seu governo uma
tabela de estatística "vital" em que anuidades do Estado podiam ser
padronizadas e oferecidas aos investidores, que por sua vez empresta-
riam dinheiro para pagar a guerra contra a França, exemplo logo segui-
do pela Inglaterra e pela França. No mesmo ano, a Inglaterra também
Novos M U N D O S 181

tralizou o recolhimento de taxas aduaneiras com a Inspetoria de


orações e Importações, o primeiro departamento nacional de esta-
ncas da Europa. Daí em diante, os números coletados por esta inspe-
também apareceriam nas negociações políticas e económicas com
outros Estados. Como se verá, as estatísticas logo iriam se tornar
•a ferramenta eficaz para a manutenção da ordem social.
Samuel Pepys, antigo membro da Real Sociedade e secretário da
nhã, logo aplicou a nova visão "científica" à administração, estabe-
:ndo a primeira classificação padronizada de navios ern caráter ofi-
Outro membro da Real Sociedade, John Collins, veio em ajuda das
iridades sugerindo que a saúde nacional fosse computada em uma
rplanilha que apoiaria a tomada de decisões económicas e políticas
s, porque "cientificamente" embasadas. As oportunidades de apli-
cação do novo presente fazedor-de-machados da quantificação ao cam-
0 da gestão social eram boas demais para-serem desperdiçadas.
Em 1692, Dudley North publicou seu Discourse ofTrade, atribuin-
b diretamente a Descartes o seu método, pelo qual analisava, pela pri-
eira vez, a relação entre a oferta de dinheiro e o comércio. Como todos
1 "experimentadores", ele considerou a atividade económica em ter-
•DS de "mecanismos". Isto conduziria, ao final, a tentativas exitosas de
aduzirem-se todos os aspectos do comportamento humano a processos
lecanicistas similares aos das ciências "pesadas".
A quantificação veio passo a passo com a classificação recomenda-
ipor Bacon. À medida que proliferava o conhecimento (e a necessida-
de controlar sua disseminação), a ciência perseguia a precisão na des-
•ição dos novos fenómenos descobertos ou criados e das novas áreas do
bneta que os exploradores e comerciantes iam desbravando. Um diri-
ente da Real Sociedade, John Wiliness, propôs nada menos que uma
guagem "filosófica" especializada porque, como Bacon havia dito, a

"•guagem comum era imprecisa e, em todo caso, não tinha palavras


descrever as novas descobertas.
Uma estrutura sobre a qual podia ser baseada tal linguagem já esta-
e disponível na "Grande Cadeia da Existência" de Aristóteles. A sua
ifícacão de todos os organismos, desde a mais simples ameba até os
humanos, fornecia um gabarito pronto-para-usar no futuro corte
reza. O propósito da classificação era fazer com que a taxonomia
i
sse a base da nova linguagem da ciência, por meio da redução da
182 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

natureza aos menores elementos (comuns possíveis). O plano dos taxi»


nomistas era revelar a total majestade do desígnio original ordenado ]
Deus e promover a estabilidade social em seu nível mais fundamenta
Em 1668, fohn Ray elaborou um quadro que culminava com a de
crição de todas as plantas conhecidas e sugeria uma ideia que prome
aumentar o controle sobre o mundo físico: a natureza só estaria ordet
da quando fosse produzida pelos humanos. Na apoteose dos esforç
taxonômicos, a grande Philosophica Botânica do botânico sueco Line
publicada em 1751, sistematizava a natureza e a obrigava a obedecer!
regram da lógica. Graças ao novo uso dado aos números, o método cie
tífico reduzira a natureza a algo que era, como o resto do universo, af
nas um número de elementos que se comportavam conforme as leis:
tas pelo homem e que deviam ser ordenados e manipulados ao seu
prazer.
Manifestação mais geral de seus poderes, o método científ
gerou atitudes mecanicistas também no pensamento político da Eur
dos séculos XVII e XVIII. O conhecimento da lei universal da acelec
cão, por exemplo, levou.as pessoas a achar que o progresso da sociedc
também se aceleraria com o passar do tempo. Regularidade e unifc
dade tomaram-se a marca da sociedade "moderna". Na Inglaterra, a posj
cão financeira da monarquia foi regularizada e feita uniforme por meia
de um salário real e os assuntos nacionais passaram por sua vez a sen
codificados e monitorados pelo primeiro banco nacional.
O efeito social mais abrangente da nova filosofia reducionista veio
talvez, em 1776, com a teoria da divisão do trabalho do econor
Adam Smith. Em A riqueza das nações, Smith expôs uma lei cien
da economia na qual as forças de mercado regulavam a atividade econã
mica do país de um modo que fazia lembrar a lei da gravitação universal
de Newton. Ao mostrar a interacão entre preço e lucro, entre crescimea-|
to económico e salários e empregos e entre oferta e procura, além
vínculos que ligavam consumo, propriedade e circulação de capit
Smith exibiu as várias partes de um mecanismo que operava indepeiw
dente de tendências ou partidos, controlados por "Mão Invisível",
era, segundo ele, uma força que buscava sempre o equilíbrio e que pç
ser usada, como as demais leis da natureza, para a previsão dos fenôm«
nos sociais.
Novos M U N D O S 183

Ponto culminante dessa capacidade de criação de "novos mun-


*, o método científico forneceu, com os instrumentos políticos cria-
; por John Locke — que usou a linguagem do laboratório de Boyle em
; escritos sobre os processos sociais — os meios para a aplicação das
da mecânica ao funcionamento de sociedades inteiras. Existia em
íração, segundo ele, uma lei natural que governava os assuntos do
iem da mesma maneira como governava a trajetória de uma bala de
ião ou a pressão de um gás. Essa lei social se expressava no interes-
• próprio que regia o comportamento de todos os indivíduos.
O único objetivo do governo deveria ser o de assegurar que nada
ringisse a força natural do interesse próprio. Dado que sua expressão
tis comum era a propriedade privada, a principal responsabilidade do
ado deveria ser então protegê-la, deixando livres os cidadãos para se
acentrarem no aumento da riqueza. Como a expressão social do inte-
: próprio era mais bem alcançada através de consenso (ainda um eco
testemunho coletivo), a tendência natural daqueles que possuíam
Dpriedades seria a coexistência, de tal modo que a busca do interesse
óprio fosse, por conseguinte, iluminada pela comunidade e voltada
i a maximização do bem individual e comum através da aplicação da
Encia "útil".
As ideias de Locke, nascidas do método científico originário da
prensa e do descobrimento da América, encontrariam sua mais pode-
expressão na própria América com o nascimento dos Estados
aidos, uma nação "moderna" cuja constituição seria estruturada, em
iguagem de laboratório, como "sociedade racional e livre instituída
í>re a base das leis naturais, do consenso e das verdades auto-eviden-
. Os Estados Unidos se tornariam a mais poderosa nação da história
ais que a Revolução Industrial fornecesse à mais rica sociedade da
erra novos instrumentos de corte-e-controle em escala planetária.
Capítulo 7

RAIZ E
RAMO
E .m 1760, uma tulipa chamada "Georgie" foi roubada de Samuel
icklemore, em Ipswich, Inglaterra. Ela resultara de tanta pesquisa que
i Sociedade dos Floristas local ofereceu por ela urna recompensa equi-
ente, em dinheiro moderno, a 150 dólares.
Nessa mesma época, Capability Brown, o maior especialista em
sagismo e autopromoção do país, jactava-se do que realizara no ter-
que circundava uma grande casa, descrevendo-o como uma com-
;ição literária com a natureza, "uma vírgula aqui, um ponto final ali",
noeta e satirista Alexander Pope, seu contemporâneo, igualou o tra-
io à arte: "todo paisagismo é pintura de paisagem — pode-se distan-
as coisas escurecendo-as e reduzindo-as perto do fim, da mesma
íeira como se faz na pintura".
Em um única geração desde a Revolução Científica que culmina-
i com Newton, a ciência e a tecnologia já nos davam uma visão radical-
ite nova da natureza, sugerindo que ela podia ser "aperfeiçoada". À
lida que a força integral da revolução científica começava a fazer
sito, o gume das inovações tornava-se mais afiado do que nunca. Os
vos presentes de fazedores de machados desenvolvidos nos laborató-
da Real Sociedade disseminavam-se, dando aos governos e institui-
o poder de modificar o mundo com uma velocidade inesperada e
L nível de detalhe sem precedente.
No século XVIII, a tecnologia já era capaz de passar da criação de
Dmenos artificiais nos instrumentos da Real Sociedade à geração de
jelos artificiais da natureza no campo e no jardim. Mais tarde, ela iria
ivar a própria natureza para criar um tipo de poder inteiramente
novo que acarretaria mudanças radicais na comunidade, primeiramente
e de modo mais impactante na Inglaterra, que por essa época era mais
188 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

aberta a mudanças do que o resto da Europa, graças à natureza consti-


tucional da monarquia e à existência de uma forte classe média.
Em todos os lugares a sociedade era, nessa época, basicamente
agrícola. A vida no campo pouco havia se alterado desde os primeiros
assentamentos levantinos dois mil anos antes. O antigo arado do medi-
terrâneo cedera o lugar à versão norte-européia do Alto Império Roma-
no, com roda e uma sega que cortava o relvado e em alguma medida o
revolvia, criando sulcos que facilitavam a drenagem dos solos pesados.
Alguns avanços também haviam sido feitos no uso do esterco para a fer-
tilização e desde a Alta Idade Média o arreio havia aumentado o poder
de tração dos cavalos. Mas fora esses avanços menores, pouco havia
mudado.
Durante séculos, a maioria dos habitantes das economias baseadas
na agricultura viveram suas vidas maquinalmente, sob o comando da
natureza. A típica aldeia da Inglaterra do século XVII era formada por
cerca de noventa famílias, com uns 1.300 acres para plantar entre si. A
menor propriedade familiar geralmente consistia em quatro campos,
cada um constituído de uma faixa comprida e estreita sem nenhuma
cerca que as separasse e alguma terra interior de propriedade comum.
As posses totais da vila podiam variar de um a cem acres, mas a média
era algo em torno de 55 acres, com 88 faixas (não necessariamente jun-
tas) e doze acres de terra comum. Cada faixa produzia uma única colhei-
ta de cada vez, e a cada três anos toda a terra era deixada em pousio para
recuperar a fertilidade.
A natureza estabelecia o calendário das atividades sociais: em
setembro, arar; em outubro, semear, gradar e levar o gado ao mercado;
durante os meses de inverno, matar e salgar o porco, debulhar o grão e
reparar os regos e o equipamento; em março, semear os favos e a ceva-
da; em abril, apascentar os animais na terra comum; em maio, cuidar das
crias das ovelhas e vacas; em junho, arar a terra de pousio; em julho,
segar o feno; em agosto, colher o grão e colocar as ovelhas no restolho.
Em setembro, começar tudo outra vez. Este antiquíssimo ciclo, assino
como o modo de vida da grande maioria da população que vivia na ter-
ra, iriam ser totalmente modificados por um novo presente dos fazedo-
res de machados.
Tudo começou quando Sir Richard Weston, proprietário rural de
Guildford, Surrey, que retornara de uma visita à Holanda nos anos 1640|J
RAIZ E RAMO 189

reveu um livro sobre as novas técnicas especializadas de rotação de co-


^tas
itas (que havia visto naquele país e que eram justamente o que procu-

R ram
am cos proprietários ingleses. As inovações holandesas eram novas for-
^^^ieiras (sanfoin, trevos, alfafa) para manter o gado alimentado durante o
10 inteiro. Plantadas nas terras de pousio, elas repunham o nitrogénio do
(embora ninguém soubesse disso naquele momento), além do que o
.-o era especialmente bom para gerar boas safras (razão pela qual a
•ressão "to be in clover" [Viver na abundância] entrou na linguagem cor-
). Outro produto-chave vindo da Holanda foi o nabo, que controlava
a daninha, crescia em solo ruim e, no inverno, alimentava os animais.
A mais popular das novas técnicas de rotação ficou conhecida
o sistema "Norfolk", nome do condado inglês onde foi usada pela
eira vez. Quatro semeaduras sucessivas eram feitas anualmente na
a terra: trigo, nabo, cevada e trevo. O efeito da rotação e das novas
:s era reduzir a quantidade de terras de pousio e aumentar a oferta
forragem animal, o que significava que mais gado podia ser criado
iccendo, por sua vez, mais estrume. Em consequência, a produção
:entou, bem como os lucros. Tendo se espalhado rapidamente a par-
1650, cem anos mais tarde este sistema já era de uso geral. Ele iria,
ai, provocar um massivo crescimento populacional e logo alimen-
população acrescida, a maior parte da qual já há muito havia sido
ulsa da terra, não mais produtora dos alimentos de que necessitava
sobreviver.
As novas técnicas agrícolas tornaram possível cultivar terras antes
rteis e não-econômicas; elas agora podiam se tornar lucrativas o bas-
:e para ser divididas, desmaiadas e cercadas ("enclosed") paia o uso. A
total das novas enclosures inglesas cresceu de 40 por cento da terra
em 1500 para 75 por cento em 1700. A enclosure era um modo mais
iente de usar a terra do que o antigo campo aberto porque propicia-
uma consolidação mais racional da propriedade. A mistura infernal
leis de herança fazia com que muitos agricultores possuíssem faixas
terra espalhadas pelos campos, razão pela qual os novos agricultores
pravam faixas de terra de diferentes proprietários e acrescentavam
s de enclosure recente, formando grandes propriedades, unificadas e
utivas.
190 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

Essas técnicas iriam causar efeitos sociais profundos, porque a


closure separava o pequeno proprietário de seus acres e o meeiro de
direitos comuns de pastagem. Para alguns proprietários, a enclosure
receu também o valioso controle dos direitos sobre os minerais, pe<
rãs e terras edificáveis, valorizáveis a curto prazo, na periferia das
dês. A propriedade rural mudava à medida que os pequenos propri
rios vendiam as terras à nova classe mercantil ascendente, cujas fort
eram baseadas no comércio acrescido pelos avanços da navegação e
tecnologia comercial descritos no capítulo anterior.
Os nouveaux riches* entraram para o recém-lucrativo ramo
negócios agrícolas por duas razões: ganhar mais dinheiro e melhorar
posição social. Os adventícios mudaram o caráter da vida rural porq
por todo o país, agricultores que um dia haviam sido proprietários
pantes eram agora arrendatários trabalhando por salário para um
prietário que vivia e trabalhava em Londres.
Como resultado desses "aperfeiçoamentos", o tamanho médio
propriedades cresceu durante o século XVIII e a paisagem começou a
parecer com o que é hoje. Grandes fazendas eram um risco finan-
melhor: era maior a probabilidade de se tornarem lucrativas com
novas técnicas e uma produção melhorada, seus proprietários tin
maior poder de barganha e faziam uso mais eficiente do trabalho e
capital. Acima de tudo, a enclosure era uma terra mais eficiente pó:
ficava em pousio por períodos mais curtos e o gado, isolado de ani
potencialmente doentes, era mais saudável. No início do século XMIl,
as técnicas "científicas" de aperfeiçoamento desenvolvidas pela Re»
Sociedade e por outras organizações começaram a fazer grande diferes-
ca na criação animal. Somadas aos conhecimentos sobre seleção d
sementes, elas começaram a mudar o perfil dos animais pela primeâá
vez desde a domesticação 12 mil anos antes.
O mais famoso criador inglês foi Robert Bakewell, de Lei
tershire, que em 1745 produziu a nova ovelha de Leicester e a nova v;
longhom. Outro experimentador, Thomas Coke, de Holkham,
Anglia, produziu o carneiro de chifre curto, híbrido resultante de cruza-
mentos do gado Devon. Obteve também o crescimento forçado dos car-
neiros com o uso de centeio e trevo, engordou-os ao limite com nabo^
colocou-os junto às ovelhas e os fez procriar com sua própria prole. C

* Em francês no original [N. do T.]


RAIZ E RAMO 191

iltado foi um animal que crescia com muita rapidez e tinha alta pro-
so de carne para engorda, sendo portanto muito lucrativo: era ven-
»a dinheiro bom e de retorno rápido porque a nova linhagem atingia
te em duas estações em vez de quatro.
Como decorrência dessas técnicas, o peso médio dos animais que
avam ao mercado subiu, naquele século, de 28 para 80 libras,
ies proprietários como Coke deram início às tosquias anuais de
is e exposições agropecuárias, onde as pessoas podiam mostrar
. linhagens e trocar ideias sobre novas técnicas de plantio. O novo
siness especializado de larga escala foi fatal para os pequenos pro-
rios que, em sua maioria, tornaram-se trabalhadores ou passaram
íiras dos pobres desempregados. Sem terras comuns de pastagem,
t não podiam mais alimentar as vacas e galinhas cujo leite e ovos os
iham vivos. A pior situação era a dos trabalhadores temporários,
• antes viviam da caça de coelhos, da queima de carvão vegetal, de
;nos furtos e invasões e cuja fonte de alimentos estava agora cerca-
^ guardada.
O comentarista social William Cobbett, que viajou pela Inglaterra
ócio do século XIX, descreveu o alcance da mudança. Ele relatou que
i fazendeiro do norte de Hampshire, proprietário de uns 8.000 acres,
1.400 acres de trigo e 2.000 acres de cevada. Ocupa o que antes
[ 40 fazendas. É de surpreender que a pobreza esteja crescendo?"
A legislação previdenciária, que sempre fora severa para com os
i e destituídos, era ainda mais agora, quando maior era a separação
;os com-terra e os sem-terra. Juizes de paz, que eram na maioria dos
; os proprietários locais, tinham poderes sumários de prisão, castigo,
eramento e envio para as colónias. A punição para a invasão era
jlarmente dura. Uma pessoa podia ser acusada de invasão e enfor-
i se apanhada com o rosto pintado de negro, que indicava a prepara-
de uma incursão noturna. Em 1689, cinquenta crimes capitais
L sido registrados; em 1800 foram duzentos.
Cobbett atribuía a causa do problema às relações sociais no cam-
, à morte da "família residente nativa, ligada à terra, cujos membros
conhecidos de todo fazendeiro e trabalhador desde a infância, e
frequentemente misturavam-se com eles naquelas atividades em
: todas as distinções artificiais se perdem", e à chegada de novos pro-
ios "que só esporadicamente residem na terra e não sentem qual-
192 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

quer atração pelos prazeres do campo, estrangeiros em suas maneir


distantes e arrogantes, olhando para o solo exclusivamente em funç
de suas rendas, como mero objeto de especulação, não familíariz
com os que cultivam (...), e que retiram sua influência não do conser
mento da vizinhança mas da respeitabilidade de seu poder".
Nessa paisagem nova e estruturada de grandes casas, jardins
mais e plantadores-criadores fidalgos e absenteístas, o direito de me
mentação do trabalhador era rigidamente controlado. Às pessoas só *
permitido viver em uma paróquia (não em mais de uma) por direito i
nascimento, casamento e pátria, se empregadas como criado ou apren-f
diz, ou como inquilino. Certificados eram exigidos, e raramente conce-
didos, de qualquer um que quisesse se mudar de um lugar para outro. |
Pobres dependentes da Previdência eram obrigados a portar a letra '
O escritor Arthur Young, que fora de início um defensor das encl
sures, mudou de ideia em 1801, ao ver o efeito da nova legislação sol
o trabalhador comum, que agora gastava em bebida a maior parte
suas reservas: "Vá a uma cervejaria de uma área tradicional sob enclosmtl
e verá a origem da pobreza e da assistência social. Por quem eles devem |
estar sóbrios? Para quem devem economizar? (São dele as pergunta
Para a paróquia? Se eu for diligente terei permissão para construir ur
casa? Se for sóbrio terei terra para uma vaca? Se for frugal, terei me
acre para plantar batatas? Você não tem nenhum motivo: nada a não ser ]
um funcionário paroquial e uma oficina. Traga-me outra caneca!"
Enquanto para os novos proprietários a agricultura se torna*
mais e mais lucrativa, tendo a produção de trigo aumentado 75 por cen-j
to, a de cevada 68 por cento, e a de aveia 65 por cento, o rebanho
céu um quarto e (nos anos desde 1500) a safra média dobrou. Escreven-
do em 1760, o novelista inglês Tobias Smollett exaltou as virtudes de to-
da essa ordem e controle altamente lucrativos: "Veja os campos da In-
glaterra sorrindo com as plantações: os terrenos exibindo toda a perfei-
ção da agricultura, parcelado em belas enclosures, mílharais, florestas e j
propriedades comuns."
Inovações como a tulipa negra, os cavalos de raça, spaniels e d
de caça, o cultivo administrado da terra e as semeaduras fertilizadas,;
plantação de forragem para a fixação do nitrogénio e as novas linhagem
animais são exemplos das mudanças advindas da nova visão do universo
gerada pelos fazedores de machados do século precedente: esta naturel
za obedecia a leis que podiam ser usadas para manipulá-la.
RAIZ E RAMO | 193

Assim como o botânico sueco Lineu impusera ordem na natureza


mdo nomes para todas as coisas, Capability Brown impôs ordem nas
lisagens com seus "ha-has" (nome que mimetizava a surpresa das pes-
es que as percorriam), seus fossos aquáticos ocultos no limite dos gra-
ados das grandes casas para manter os animais fora dos gramados mas
í jcá-los se aproximar o suficiente para representar a "natureza selva-
MIV existente além das fronteiras do novo mundo dos designers.
Lord Shaftesbury foi um dos primeiros a colocar em palavras o
tgulho pelo controle da natureza: "Aquele que aspira ao caráter de
amem polido e civilizado é cuidadoso na formação de um juízo sobre
s artes e ciências segundo modelos de perfectibilidade. (...) Quem não
r esforçaria para conduzir a natureza também a esse respeito?"
lexander Pope descreveu a nova noção de jogar com a paisagem:

Atinge o objetivo quem faz uma combinação prazenteira


De surpresas e variações e ainda dissimula a fronteira.

Segundo o mestre da arte do paisagismo, William Kent, todo o


: consiste em liberdade disciplinada, uma visão do campo na qual
jreza é "aperfeiçoada" e tem revelada a sua "mais pura verdade"
ao se supunha ser o caso da lista das espécies de Lineu). O objetivo
selecionar formas representativas e evitar (ou eliminar) "acidentes"
s por processos naturais não planejados. Como reflexo dos
ios artificiais gerados pelos instrumentos científicos no século an-
DF, Capability Brown dispôs a paisagem de maneira que um parque
sse ser circundado por um cinturão de bosques para disfarçar a rea-
de desordenada do mundo agrícola atrás dele. Podia haver rupturas
i seus bosques, mas apenas se elas revelassem "vistas agradáveis".
Essas novas técnicas "paisagísticas" exigiam a remoção de habita-
camponesas quando ocorria de elas estragarem a paisagem.
>unt Cobham arrasou a vila de Stowe, em Oxfordshire, para abrir
iho para seu parque, e transferiu os habitantes para outra vila a
i quilómetros de distância. Até os próprios bosques deviam ser artifi-
lente melhorados, com árvores de ramos mais baixos plantadas para
iular a cerca em volta do parque. Dentro do bosque, caminhos cui-
nsamente dispostos conduziriam o caminhante a lugares onde con-
194 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

juntos panorâmicos especialmente desenhados surpreenderiam a visão.


Sempre que possível, a distância média em uma paisagem devia incluir
um corpo d'água criado para represar ou desviar uma corrente, de modo
a propiciar cursos d'água semí-ocultos e pontes surpreendentes.
O racionalismo e a ordem haviam triunfado e a natureza indiscipli-
nada devia agora ser remodelada da melhor maneira. William Kent .
inventou até uma nova lei "científica": "A natureza abomina linhas
retas", cuja epítome é o lago Serpentine, no Hide Park de Londres.
O corte-e-controle da natureza trouxe também a subdivisão r
mecanização dos processos agrícolas à medida que as novas máquina.-
começavam a aparecer — arados de roda, aivecas, arados móveis de ferro
forjado, arados múltiplos de ferro fundido. A semeadeira puxada a ca\ *
Io de Jethro Tull semeava três fileiras de uma só vez, e havia também
debulhadoras de tração animal e joeiras automáticas. No final do século
XVIII, apareceu a primeira segadora mecânica com setouras nas rodas.
A nova palavra de ordem do século XVIII era "progresso". A ideia
era buscar a inovação deliberada, de maneira que tudo pudesse ser l
"aperfeiçoado" pela aplicação do pensamento racional e dos princípios
mecânicos. Em 1753, William Shipley, de Northampton, propôs o esta-
belecimento da primeira sociedade científica oficial desde a fundação i
da Real Sociedade noventa anos antes. Seu plano era uma Real Socie-
dade para o Incentivo da Artes, da Manufatura e do Comércio, que ofe- .
recesse prémios por ideias, invenções e produtos que "estimulassem as
empresas, ampliassem a ciência e refinassem as artes" e, dessa maneira, j
"aperfeiçoassem nossas manufaturas e ampliassem nosso comércio" (em
outras palavras, que fizessem dinheiro).
A Sociedade teve sua primeira reunião em 1754, e em 1762 p:
suía 2.500 membros, incluindo o pintor Joshua Reynolds, o lexicógrafo
Samuel Johnson e o fabricante de móveis Thomas Chippendale. Desde '
cedo a sociedade se concentrou em melhoramentos na agricultura, petol
que o primeiro premiado foi o duque de Beaufort, que recebeu uma
medalha de ouro em 1758 em reconhecimento pelo plantio de vinte e
três acres de bolotas em Gloucestershire. Em 1761, a Sociedade realizou
sua primeira exposição e o próprio Shipley foi premiado com uma
medalha de prata por seu engenho de "luz flutuante", projetado para sal-
var as vidas de marinheiros caídos dos conveses.
R A I Z ER A M O | 195

O número crescente de instrumentos agrícolas possibilitou a


liementação muito mais efetiva do conceito de "aperfeiçoamento". A
nização da natureza não era uma ideia nova. Ela deixara a sua pri-
marca sobre a terra quando a tecnologia dos fazedores de macha-
medievais forneceram aos monges beneditinos meios de pôr em prá-
a sua crença de que a humanidade fora colocada na Terra para fór-
um novo paraíso porque Deus havia sancionado a dominação e o
lê humano sobre a natureza. No século XVIII, o fluxo de novas
cãs e instrumentos revigorou poderosamente este ponto de vista
be os membros da Igreja. Um antigo folheto de autoria de um puri-
o inglês, Ralph Asten, bizarramente intitulado "O uso espiritual de
pomar", afirmava: "Arvores frutíferas e outras criaturas proclamam
deiramente os atributos e perfeições que Deus nos deu."

; puritanos levaram as coisas um pouco mais longe. Sua visão era de


r assim como as partes mais selvagens da natureza podiam ser domes-
s, os humanos também podiam ser aperfeiçoados, especialmente
tendências e desejos pessoais pudessem ser controlados. O traba-
laperfeiçoava o caráter e a labuta incessante era o quinhão da huma-
le e a chave da salvação, por isso a aplicação persistente das novas
t práticas era vista, de modo muito conveniente, como prova de um
rito obediente. Ao mesmo tempo, cada degrau na conquista da
reza era um degrau na direção do Milénio e do Segundo Advento,
í ocorreria em uma Terra cortada-e-controlada por meio do aperfei-
snto geral da condição humana. A exploração do meio ambiente
l orna coisa boa porque a natureza fora criada por Deus com este pro-
i exclusivo.
O trabalho era virtuoso porque estimulava mais trabalho e por isso
ade incansável, o trabalho produtivo e a racionalização da vida de
i com a ética protestante (através da qual o controle social torna-
mais eficaz) traziam sua recompensa. Deus também aprovava o
•> e os puritanos aprendiam que era obrigação dos pais educar uma
iça para alguma "vocação legal e lucrativa".
Não havia conflito entre a crença protestante e o capitalismo, de
> que as virtudes protestantes da diligência, da moderação, da
196 O PRESENTE DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

sobriedade e da parcimônia harmonizavam-se com as qualidades qi


também levavam ao sucesso comercial. Era tolice, disse o ensaísta int
Richard Steele em The Tradesman's Calling, um homem recusar '
partido daquilo que a Providência pusera em suas mãos". O sucesso :
negócios era visto como sinal de graça concedida, porque o home
(excepcionalmente uma mulher) havia trabalhado duro em uma v<
cão dada por Deus.
Essas novas crenças se harmonizavam com as mudanças ocasior
das pelos sistemas industrial e económico da época. À medida que
crentes da ciência talhavam os novos mundos fabricados pelo homer
criação animal e a produção da paisagem, seus pares da economia
vam-nos de uma maneira diferente com um novo instrumento: o
tal. Os aperfeiçoamentos dos grandes proprietários de terras, o traba
duro dos artesãos protestantes e as viagens de exploração comercial
bilizadas pelos cartógrafos geraram grandes quantidades de reser
monetárias, muitas das quais eram dirigidas para a atividade socialme
te desejável de aquisição de terras.
A ética puritana foi tão bem-sucedida na geração de riquezas
houve reservas monetárias suficientes no sistema para acionar a rev<
cão financeira do século XVIII, da qual surgiu outro presente de faze
rés de machados para a organização e o controle da sociedade. A revc
cão financeira, como as mudanças agrícolas que a precederam, ir
mais tarde isolar e dividir as pessoas e possibilitar o uso do dinheiro j
manipular o seu comportamento. O capital era um tipo novo e excit
te de instrumentos pelo potencial aparentemente ilimitado de autocr
cimento, fato que estava perfeitamente de acordo com o novo conce
científico de universo infinito e que agora trazia junto, em uma nc
dinâmica, a ciência e o capitalismo.
As instituições financeiras criadas naquele momento inspirar
se primordialmente no trabalho de John Locke, que convenientemer.
reconciliou, de um modo novo e lucrativo, os conceitos de leis uni\
sais, domínio sobre a natureza e lucro. Locke via o crescimento das pi,
tas e o movimento celeste como provas de um universo planejado
funcionava segundo leis. Acreditava que o mundo fora evidentemer
construído de acordo com a ordem e a razão. Por conseguinte, o de
nio de Deus para com a natureza era comparável ao seu desígnio
com o Homem — "Deus espera que os homens façam alguma cois
RAIZ E RAMO 197

escobrindo a lei natural e optando por agir de acordo com ela, o


Homem estaria seguindo o Plano Divino, com base no pensamento
cional e não na fé cega.
A lei natural deve ter sido, por conseguinte, planejada por Deus
•a o aperfeiçoamento e a preservação da humanidade. Qualquer coi-
que pusesse em risco tal preservação devia ser evitada ou combatida,
passo que tudo que ajudasse a preservação merecia ser incentivado,
leis sociais e o governo deviam, em consequência, agir pela preserva-
da existência ordenada do indivíduo. Os indivíduos (que não são
'Sós) deviam percebê-lo e dar às leis sociais seu apoio incondicional.
O interesse próprio iria assegurar que as pessoas obedecessem às
is que visassem preservar a propriedade privada. O único crime da pro-
priedade era não explorá-la para o bem geral, portanto, uma vez que a
e as propriedades estivessem assim asseguradas, o indivíduo estava
.TC para seguir uma vida sã e racional (em outras palavras: "use-a ou
jferca-a"). Disse Locke: "O maior e mais fundamental objetivo (...) dos
bomens se unirem em comunidades económicas é a preservação da pro-
priedade."
Um antigo matemático da Real Sociedade, William Petty, havia
começado a aplicar a nova abordagem "científica" à preservação das
finanças nacionais. Em 1665 ele descobriu o "valor" da população intei-
calculando o consumo inglês de mercadorias básicas. Se os seis
ões de habitantes consumissem bens no valor de 4,5 pence ao dia, o
consumo anual valia, portanto, 40 milhões de libras.
Petty calculou que o valor de todas as formas de bens de capital da
«acão era de cerca de 250 milhões de libras e que esses bens de capital
geravam renda a uma taxa média de 6 por cento, o que produzia 1,5
milhão de libras por ano. Para Petty, a diferença para o valor total de 40
milhões de libras de bens consumidos (i.e., 38,5 milhões de libras) só
podia ter sido gerada pelo trabalho. Petty havia calculado, portanto, o
«alor nacional do trabalho. Sua Aritmética Política nunca pretendeu ser
precisa, mas mostrou pela primeira vez que essas coisas podiam ser cal-
culadas e que os dados podiam provar ser úteis aos governos na busca de
inhos cada vez mais eficientes de controlar eficiente e lucrativa-
te a população.
No final do século XVII, um outro administrador, Dudley North,
meçou onde havia parado William Petty. Ele via o comércio como
198 j O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

um instrumento público tanto quanto uma vocação privada e em 1692


publicou o Discurso sobre o comércio, claramente enraizado no pensa-
mento fazedor-de-machados. North escreveu ao irmão: "Este método de
raciocinar foi introduzido com a nova filosofia" (ele queria dizer o méto-
do de Descartes). "O velho método" (ele queria dizer a escolástica medie-
val) "lidava com abstrações e não com verdades, e era empregado na for-
mulação de hipóteses que se adequassem a uma farta quantidade de
princípios precários e insensíveis, como a trajetória direta ou oblíqua
dos átomos no vácuo (...) [mas] o conhecimento se tornou em larga medi-
da mecânico, palavra cuja interpretação não exige que eu faça mais do
que anotar que ela aqui significa 'construído sobre verdades claras e
evidentes.'"
Dudley aplicou o raciocínio científico à riqueza, que provinha,
segundo ele, da produção, e especialmente da manufatura. Dudley pro-
pôs uma nova lei universal, a "lei do comércio", pela qual todos os preços
eram ditados pela oferta e procura. Esta análise mecanicista sugeriu
novas leis para o dinheiro: pouco comércio demandava pouco dinheiro;
a oferta de dinheiro dependia de quanto metal precioso existia e quanto
era cunhado; o juro era um preço; nada podia baixar as taxas de juros
exceto o aumento do capital.
North foi o primeiro a construir uma análise, baseada em princí-
pios gerais, que possibilitava uma teoria simples, mecânica, da econo-
mia: deixe as coisas em paz para que elas encontrem seu próprio "equi-
líbrio". A ideia pegou junto à comunidade capitalista: "O comércio tem
seus princípios tanto quanto as outras ciências", disse o comerciante de
Bristol, John Cary, em 1717.
O presente para transformar essas novas teorias em uma realidade
modificadora-do-mundo apareceu primeiro em Amsterdam, onde havia
sido criada, no início do século XVII, a Companhia da índias Orientais
Holandesas para buscar oportunidades comerciais no Extremo Oriente.
As autoridades políticas holandesas criaram também um Banco do
Comércio Exterior para levantar e administrar o fluxo dos capitais que
financiavam o empreendimento. O banco se houve tão bem que logo
estava fazendo o mesmo trabalho para o Estado, pelo que lhe foi conce-
dido o monopólio altamente lucrativo do câmbio.
Com o respaldo do governo, o novo banco oferecia uma segurança
financeira sem precedente, razão pela qual os recursos externos afluí-
RAIZ E RAMO 199

nn para a Holanda, incluindo o Parlamento britânico, a Corte dinamar-


mpesa e a república de Veneza. Graças a isto, o banco foi capaz de suprir
m comerciantes com a moeda estrangeira de que necessitavam para as
pesas e a emissão de títulos. O banco também pagava todos os títulos
> depositantes, transferindo de seus depósitos notas escritas no mon-
ite a ser debitado sem transferir de fato o precioso metal. Os depósi-
; deram à moeda holandesa uma estabilidade que rapidamente trans-
nou Amsterdam no centro financeiro da Europa.
A acumulação de capital que se seguiu encontrou muito trabalho
or fazer graças ao fato de que boa parte da Holanda estava junto ou
ixo do nível do mar. O Estado holandês tomou pesados empréstimos
> Banco para a execução de obras públicas como a melhoria dos portos,
agem das terras baixas, sistemas de canais e recuperação de terras.
l capital foi também usado para desenvolver indústrias nacionais espe-
zadas, como tintura e acabamento de roupas, refino de açúcar e pro-
amento de tabaco (preparatórios à reexportação dessas mercadorias
isatlânticas para o resto da Europa);
Em 1694, o Banco da Inglaterra foi criado para fazer o mesmo ser-
para a finança inglesa, gerenciar os empréstimos e a captação de
Io a suprir o Estado com empréstimos para suas guerras ou explora-
; financeiras. Em 1720, a existência do Banco incentivou por sua vez
especialização no novo mundo da finança: bancos privados foram
criados para se concentrar no comércio, agricultura e empresas ultrama-
25.
Estas fizeram surgir, por sua vez, novos instrumentos financeiros.
Dinheiro para financiar as explorações ultramarinas surgiu dos novos
fcgjstros de terras criados para avaliar as propriedades, de modo que os
proprietários pudessem tomar empréstimos contra elas através de novas
companhias hipotecárias. Bancos regionais proliferaram rapidamente
|ntistiam 400 fora de Londres em 1800) para fazer empréstimos locais,
tansferir pagamentos de e para Londres e ajudar na coleta de impostos
governamentais. Acima de tudo, os bancos levantavam dinheiro para
•nanciar um número crescente de empreendimentos públicos como
canais e melhorias de estradas.
Parte do dinheiro levantado por essas novas entidades criou as
»vas companhias de seguro, que absorviam parte do risco das empresas
lomésticas e ultramarinas. As companhias de seguro liquidaram o modo
200 i O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

antigo e pouco lucrativo como o comércio ultramarino operava na épo-


ca precedente, quando para se proteger contra a pirataria era obrigado a
navegar em frotas que viajavam na velocidade do navio mais lento ou
esperar semanas por uma escolta naval. Com isso chegavam todos os
navios ao mesmo tempo e suas cargas criavam superoferta, puxando os
preços para baixo.
Embora o seguro fosse tão antigo quanto a China de quatro mil
anos antes, a primeira Câmara de Seguros foi criada em Amsterdam em
1598, e a ideia espalhou-se como fogo. Os seguros eram extremamente
lucrativos porque os prémios geralmente excediam as perdas em dois
terços. O seguro holandês era tão sólido e bem regulado que até mesmo
durante a guerra anglo-holandesa um grande número de navios ingleses
se seguravam na Holanda. Antes, chegava-se ao valor do prémio por adi-
vinhação e regateio. Mas à medida que avançava o século XVII, mate-
máticos como Blaise Pascal passaram a fazer análise de risco, dando aos
novos empresários o cáculo de probabilidade de que necessitavam para
calcular as chances de sucesso e as expectativas de lucro. Para atrair ain-
da mais financiamento para o comércio, o seguro espalhou-se da nave-
gação para os incêndios e a vida.
Os financiadores foram, além do mais, protegidos pelo surgimento
das novas sociedades por ações, inventadas inicialmente para a constru-
ção de canais em toda a Inglaterra. A ideia dos canais era facilitar o trans-
porte de carvão, muito pesado para ser feito economicamente por estra-
das. Os canais foram um sucesso instantâneo; no final do século XVIII a
Europa estava possuída pela mania dos canais. Dada a imensa quantida-
de de capitais envolvidos, muitas fortunas foram construídas e perdidas
em meio a uma imensa especulação.
O sucesso de todos esses novos sistemas de geração e administra-
ção de capitais levou ao surgimento de mais um mundo novo, compará-
vel àquele criado pelos instrumentos científicos da Real Sociedade.
Henry St. John referiu-se, em 1709, a "uma nova participação (...) um
tipo de propriedade desconhecido há vinte anos". Ele se referia ao novo
mundo do mercado de ações. Passada a oposição inicial à negociação de
bens outros que não a propriedade imobiliária, as pessoas começaram,
pela primeira vez, a ganhar dinheiro comprando cotas de empresas
comerciais com as quais não tinham nenhuma conexão. Graças à prote-
RAIZ E RAMO 201

do seguro, a falta de conhecimento especializado não mais consti-


um risco.
O segredo consistia em compreender a atividade do mercado de
s e criar a riqueza simplesmente fazendo o dinheiro girar. Dois
vos especialistas dominaram a cena: o corretor de ações e o agente de
js, que utilizavam ambos as novas leis mecânicas do investimento
i novo cálculo de probabilidade para avaliar e prever o valor do que
arria no mundo real do comércio e dos negócios.
Neste novo mundo, o equivalente financeiro do laboratório da
Sociedade foi a Jonathan's Coffeehouse, situada em Exchange
ey, Londres, até 1773, quando, após uma infrutífera tentativa do Par-
snto de fechar o mercado, os corretores se mudaram da Jonathan's
uma outra casa, situada na esquina de Threadneedle St., perto de
ie fica hoje o Banco da Inglaterra. Inicialmente a nova casa ia ser cha-
"New JonathanY', mas os corretores decidiram batizá-la "Stock
change Coffee House". A admissão diária custava seis pences e os
?stidores potenciais eram atraídos por listas de ações fixadas nas jane-
í dos escritórios dos corretores.
O capital gerava também grandes mudanças no comportamento
( à medida que o salário alterava a natureza do trabalho e a relação
ré empregado e empregador. Tempo e esforço eram cada vez menos
;idos no sentido tradicional, como expressão das responsabilidades
jas entre empregado e empregador, mas em dinheiro vivo.
A medida que amadurecia, o sistema tomava o caminho usual do
te-e-controle. A manipulação do capital e dos recursos fragmentava o
processo produtivo, subdividia as ocupações em escopo e grau de espe-
cialização e desqualificava os trabalhadores. O conhecimento ficando
imitado à tarefa imediata, os homens eram reduzidos à condição de
•eras unidades de produção, mais eficientemente utilizáveis, mais facil-
mente organizáveis e com menor probabilidade de protestar e exigir
•rudanças. Um novo tipo de vida foi criado: a repetição embrutecedora
ir tarefas sem significado, executadas na velocidade das máquinas.
Um visitante de uma metalúrgica escreveu, em meados do século
Irai:
Em lugar de empregar a mesma mão para acabar um botão,
ou qualquer outra coisa, eles subdividem a tarefa em quantas mãos
202 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

diferentes seja possível, sem dúvida acreditando que as faculdades


humanas confinadas à repetição da mesma coisa se tornam ma»
expeditas e mais confiáveis do que se fossem obrigadas a passar de
uma tarefa a outra. Um botão passa então por cinquenta ma
por cada uma delas talvez mil passem em um dia; e por este me»
o trabalho se torna tão simples que, cinco vezes em seis, criança!
de 6 a 8 anos o executam tão bem quanto um homem.

Essa nova maneira de fazer as coisas foi canonizada em 1776 rxx


Adam Smith em A riqueza das nações, o livro de cabeceira dos proprietá-
rios de fábrica, no qual o autor usou a ideia das leis naturais para desen-
volver uma análise sistemática da economia e da criação da riqueza. EB
essencial, em sua visão, a repartição do trabalho, uma vez que ele repre-
sentava a verdadeira riqueza de uma nação, essencial para a melhoria d
produtividade nacional. A divisão do trabalho já estava bem enraizada
nas indústrias maiores, particularmente nas metalúrgicas, onde a separai
cão física entre força hidráulica, fornos, forjas e usinas há muito deman-l
dava artífices especializados trabalhando em lugares diferentes.
Smith recolheu na indústria de alfinetes o exemplo de divisão do
trabalho que advogava:

Eu vi uma pequena manufatura deste tipo, onde ha%


somente dez homens empregados e onde alguns deles desemp
nhavam, por consequência, duas ou três operações distint
Embora fossem muito pobres e portanto mal adaptados ao maqi
nário, eles eram capazes, quando se aplicavam, de produzir entra
si cerca de doze libras de alfinetes em um dia. Em uma libra exis-
tem uns quatro mil alfinetes de tamanho médio. Essas doze pes-
soas associadas podiam fazer, por conseguinte, cerca de 48.000
alfinetes em um dia. Pode-se considerar então que cada indivíduo
produzia a décima parte de 48 mil alfinetes, isto é, 4.800 alfinetei
em um dia. Mas se estivessem trabalhando isoladas e independen-
tes, e considerando que nenhum deles foi treinado para este negó-
cio em particular, eles certamente não poderiam ter produzido
nem vinte, talvez nem um único alfinete por dia cada um; isto não
é, com certeza, a ducentésima quadragésima, talvez nem a quadri-
milésima octigentésima parte do que são capazes de realizar agora.
R A I Z E RA M o i 203

em consequência da divisão e combinação adequadas de suas dife-


rentes operações.

As leis da produção matematicamente expressas de Smith copia-


^B as da antiga Revolução Científica. De acordo com sua nova "lei",
seria aplicada por governos e instituições com eficácia cada vez
•r, o estímulo para a divisão do trabalho era a ampliação do merca-
,e este, por sua vez, dependia da facilidade do intercâmbio entre mer-
arias e capital. O crescimento continuado requeria um mercado em
anente expansão no qual os transportes e os instrumentos finan-
; eram ferramentas essenciais.
Os elementos envolvidos nesta interação agiam como "forças" da
newtoniana: o preço "natural" de um produto cobria o custo de
cão a taxas "naturais" de salários, mais lucro e renda; o preço "de
peado" estava acima ou abaixo do preço "natural", dependendo da
entre a oferta e a procura dos consumidores dispostos a pagar
juer que fosse o preço. Em tempos de escassez de produtos, o pre-
ibia.
A força primordial que impulsionava tudo isso era o que Smith
ava o "interesse próprio" do mercado, que governava a subida e
; dos preços tal qual a gravidade afetava o equilíbrio entre os cor-
movimento. Quando um preço estava alto, a atração do lucro
içava que mais mercadorias eram produzidas. A oferta expandida
i então o mercado e por isso os preços caíam, o que levava os pro-
res a dispensar trabalho ou reduzir suas despesas de capital. A ofer-
j^ntão caía, a demanda subia em consequência e o ciclo começava
i vez. Tudo dependia da "lei natural" do interesse próprio de todas
tes envolvidas: capitalista, produtor, mão-de-obra, comprador. A
; do interesse próprio agia como todas as forças, como "mão invisí-
' guiando tudo "no interesse da sociedade".
Smith olhava ao seu redor e via esta lei em acão. A revolução agrí-
ifazia cresceras colheitas e oferecia empregos aos trabalhadores gra-
uma sequência de safras abundantes em mais de trinta anos de
perfeito, no início do século. O alimento era barato e havia mui-
abalho. As pessoas sentiam confiança suficiente para casar cedo e
(•filhos. Por isso a população começou a crescer rapidamente e a se
204 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

tornar mais jovem. Logo, houve um aumento massivo da demanda de


artigos domésticos e alimentos. Então os lucros subiram e foram rein-
vestidos em equipamentos aperfeiçoados ou injetados no próspero mer-
cado de dinheiro e ações das metrópoles, onde o boom das bolsas de
valores atraía capitais para novos investimentos e melhorias.
A economia estava pronta para decolar. Tudo o que era preciso era
um novo meio de produção menos dependente do limitado número de
trabalhadores qualificados. Ele devia ser também mais controlável, mais
confiável, mais reducionista e mecânico, mais previsível em termos de
produção e mais apto a usar o trabalho com eficiência. Acima de tudo,
devia absorver trabalho não qualificado porque não havia mais tempo
nem condições para o lento aprendizado do período das guildas. Quan-
do surgiu, o novo presente fez tudo isso e muito mais. Era a máquina a
vapor.
Adam Smith havia mostrado o caminho e os tecnólogos vieraaí
logo atrás, abrindo canais para o transporte mais barato do carvão para
fábricas barulhentas, com sua recém-inventada maquinaria têxtil que
mesmo uma criança não treinada podia (e muitas vezes o fazia) operar
usando o presente da máquina a vapor. A Revolução Industrial que o
vapor tornou possível viria a ser o maior de todos os triunfos fazedores-
de-machados da história até então; ela iria mudar o mundo inteiro. A
Revolução não começou em um front extenso, mas em pequenas disci-
plinas artesãs dentro da indústria têxtil. Por todo o país, homens e
mulheres vinham fazendo em suas casas algumas das muitas tarefas
necessárias para a produção de roupas acabadas: cardar, fiar, tecer, cos-
turar etc. Assim fragmentada, a produção era lenta e acima de tudo difí-
cil de controlar e administrar.
A tecnologia revolucionou a produção de roupas passo a passo. A
lançadeira voadora (que levava o fio para frente e para trás) acelerou o
trabalho do tecelão provocando por sua vez o desenvolvimento
máquinas de fiar capazes de produzir o suficiente para dar conta de
novos teares movidos a água e suas velozes lançadeiras. Em 1769, ur
máquina de fiar aperfeiçoada deu à Inglaterra o monopólio da indústria
têxtil ao automatizar o processo de produção de linhas, desde o fio bru-
to até o cone acabado. A spinning jenny, desenvolvida em 1764, fazia o
mesmo com tecidos leves, ao passo que a "mula" foi um híbrido que, em
1779, produzia um tecido ao mesmo tempo leve e forte.
RAIZ E RAMO 205

Essas invenções mudaram a indústria têxtil porque puseram toda


a produção sob o mesmo teto em uma "manufatura" (termo mais tarde
jrtado para "fábrica"). De 1780 a 1812, a quantidade de fusos cres-
i na Inglaterra de l,7 para 5 milhões; mais de 100 mil pessoas não-qua-
adas trabalhavam na indústria. Para dar conta das máquinas de fiar,
; teares a vapor, introduzidos em 1791, contavam-se em quase 250 mil
• ano de 1850.
A Revolução Industrial foi o primeiro exemplo das mudanças mas-
i que seriam provocadas pelas várias disciplinas da ciência e tecnolo-
desenvolvidas graças às velhas aspirações de controle social das
:iedades para a propagação do conhecimento" europeias. Tra-
lando em prol das necessidades do comércio, essas diferentes ativi-
ies especializadas também se combinariam para produzir resultados
ciais inesperados em um tipo inteiramente novo de produção de
adanças. As disciplinas industriais e científicas que proliferavam
íieçaram a interagir, com resultados sempre mais imprevisíveis. A
jdança logo se tornaria a única constante da vida.
O primeiro grande exemplo de inovação interativa seria o presen-
; que deu início à Revolução: o motor a vapor de James Watt, no sécu-
> XVIII. Ele precisava de pistões de alta precisão que se mantivessem
feitamente selados, os quais foram produzidos pela nova máquina
jratriz de John Wilkinson, feita de um novo tipo de aço original-
ite desenvolvido por um fabricante de relógios chamado Benjamin
itsman que, em busca de molas de melhor qualidade, deparou-se,
L uma vidraçaria, com técnicas de fusão em alta temperatura que lhe
am a ideia de fazer o mesmo com o aço.
O aço de Huntsman era tão forte que servia com perfeição para as
»olas de alta elasticidade requeridas pelo cronometro de alto-mar de
(ohrj Harrison. A nova precisão possibilitada pelos cronômetros alimen-
tou o desenvolvimento de sextantes mais precisos, que por sua vez cria-
zam a demanda de maior precisão na graduação de escalas. Esta foi satis-
feita pela invenção, por Jesse Ramdsen, de um sistema que usava um
pequeno parafuso situado na tangente de uma grande chapa circular, na
qual os instrumentos (cujas escalas deviam ser marcadas) eram coloca-
dbs e então escalados com extrema precisão.
206 ' O P R E S E N T E 0o F A Z E D O R DE M A C H A D O S

Este tipo de precisão produziu os sofisticados instrumentos de


medição de terras que possibilitaram os primeiros trabalhos de levanta-
mento topográfico e a grande medição da índia do início do século XIX.
Nem mesmo Watt podia ter previsto que sua bomba de drenagem de
minas levaria à descoberta do Monte Everest pelos cartógrafos.
A perfuratriz de precisão de Wilkinson, acabada com aço especial,
também abriu caminho para os revólveres leves e de tambor pequeno
que permitiram a Napoleão introduzir a artilharia móvel no campo de
batalha, vencer todos os seus compromissos militares e mudar a face
política da Europa. À medida que peças de ferro maiores e mais pesadas
se tornavam disponíveis, o novo aço cortante também tornava possívd
as máquinas operatrizes (tornos e máquinas de cortar, micrômetros e
cortadoras helicoidais), que por sua vez facilitaram a manufatura de
peças metálicas tão uniformes que se tornaram intercambiáveis (concei-
to primeiramente usado em mosquetes, nos anos 1790, pelo norte-ame-
ricano Eli Whitney, e depois na manufatura das próprias operatrizes).
O significado das peças mecânicas intercambiáveis era que traba-
lhadores não-qualificados podiam manter e consertar máquinas simples-
mente trocando uma peça intercambiável por outra. Essas novas máqui-
nas desqualificaram os trabalhadores, usando-os intercambiavelmente
como se fossem, eles próprios, peças de máquinas. O primeiro e melhor |
exemplo desse processo e seus efeitos naquela época foi a produção de
blocos de roldanas. Eram estruturas de madeira que sustinham as rolda-
nas das cordas de arrasto usadas nos navios da Marinha Britânica. Cem
mil blocos de roldanas eram necessários a cada ano para esses navios e
para operações de carregamento nas docas. Eram necessários blocos de
três tamanhos diferentes e a produção de blocos suficientes para o supri-
mento de um ano levava normalmente cinco anos.
O engenheiro inglês Henry Maudslay desenvolveu um novo siste-
ma, baseado na manufatura de ferramentas de precisão, para produzir
componentes intercambiáveis de blocos de roldanas em uma linha de
produção que dividia a operação entre 43 máquinas. Num processo de
corte-e-controle social que se tornaria cada vez mais comum, as máqui-
nas de Maudsley produziam 130 mil blocos em um ano, reduzindo a for-
ça de trabalho de 110 homens especializados para 10 não-especializados.
A Revolução Industrial vinha também trazendo desenvolvimentos
a campos científicos relacionados com a produção, como a química.
RAIZ E RAMO 207

tabelecendo assim o padrão para o tipo de inovação científica que iria,


lí para a frente, alargar cada vez mais o fosso entre os fazedores de
achados e o público desinformado, mudando a vida de um modo sur-
preendente.
No início do século XIX, por exemplo, a nova iluminação usava
gás obtido da queima do carvão, que criava por sua vez enormes quanti-
dades de alcatrão. Foi durante experiências com este material que em
f!857 um químico inglês chamado William Perkin descobriu o primeiro
corante artificial de anilina.
Os corantes de anilina são um exemplo particularmente bom da
maneira interativa e imprevista pela qual a descoberta científica e tecno-
lógica é provocada. Perkin procurava na verdade uma versão química
artificial do quinino, porque administradores imperiais ingleses estavam
morrendo em grande número, nos trópicos, de malária. Em nenhuma
das colónias inglesas havia quinino natural, que vinha do córtex da cin-
chona, árvore que crescia na América do Sul hispânica e na colónia
1
holandesa de Java. Depois de muitos meses de experiências, Perkin
i havia fracassado na fabricação do quinino artificial, mas a lama negra
que ele produziu veio a ser o primeiro corante sintético de anilina.
Novas cores logo surgiram do alcatrão de carvão, e erri 1876 o quí-
mico alemão Heinrich Caro descobriu o azul-de-metileno. Poucos anos
mais tarde, um pouco deste corante espirrou acidentalmente sobre um
recipiente de cultura bacteriana e produziu uma mancha seletiva que
latingia somente a bactéria. Estava criada uma nova ciência, a bacterio-
logia, que usou o corante pela primeira vez através de Robert Koch, em
sua pesquisa do bacilo do cólera. O trabalho sobre frações destiladas de
alcatrão de carvão também levou à descoberta do ácido carbólico, usado
inicialmente na assepsia por cirurgiões como Lister, de Edimburgo, que
desenvolveu métodos de aspersão do líquido. No final do século XIX, o
engenheiro alemão Wilhelm Maybach usou o conceito do spray para
projetar o primeiro carburador moderno.
À medida que inovação provocava inovação, deve ter parecido aos
hderes ocidentais do século XIX que não havia limite para o que podiam
fazer com a ajuda dos fazedores de machados. Por toda a Europa, a ter-
ra dividida era fértil, a oferta de dinheiro crescia, os mercados, como a
população, estavam em constante expansão, os motores a vapor troa-
vam e (uma vez que a iluminação a gás tornara possível o turno da noi-
208 ' O PRESENTE DO FAZEDOR DE MACHADOS

te) os altos-fornos das fábricas iluminavam o céu com uma fúria produ-
tiva insaciável.
As máquinas trabalhavam sem parar, infalíveis,incansáveis. O úni-
co presente que agora se exigia dos fazedores de machados era aquele
que fora descrito por Wordsworth — um que transformasse os homens
em máquinas.
Capítulo 8

ATO DE
CLASSE

O homem rico em seu castelo,


O homem pobre em seu porão
Deus os fez, nobre e humilde
Cada um na sua condição

HINO VITORIANO
A o longo da história, os misteriosos conhecimentos dos fazedores
t machados reforçaram sempre a conformidade social, ao mesmo tempo
•e aumentavam a distância entre os produtores de mudanças e seus
lores institucionais e o público cujas vidas controlavam. A escala e a
tidade dos novos sistemas de controle gerados pelos tecnólogos e
resários do final do século XVIII alargaram esse fosso e impuseram a
formidade com uma rigidez nunca vista. O ritmo da inovação indus-
foi tão forte que provocou mudanças súbitas e fundamentais na so-
ide, que não estava política e administrativamente pronta para lidar
elas. Essas mudanças iriam, por sua vez, dar à luz novas maneiras de
ipular o proletariado que, graças às fábricas, ali estava para ser mani-
do. O novo presente era um instrumento de controle ideológico.
No início do século XIX, as pessoas começaram a perceber a rapi-
com que as coisas estavam mudando e a se questionar o que isto sig-
va em suas vidas. Em 1828, uma revista publicada por trabalhado-
de uma fábrica inglesa resumiu a crescente percepção das massas
a situação de falta de poder a que haviam sido reduzidas pelos pre-
ites dos fazedores de machados. Elas pouco compreendiam da mági-
científica e tecnológica que parecia transformar o mundo diariamen-
"Nascemos ignorantes, crescemos ignorantes, vivemos ignorantes e
•emos ignorantes. Somos homens tateando na negra escuridão."
A Revolução Industrial sugou milhões de homens do campo para
novas cidades industriais num ritmo rápido demais para que as auto-
ides urbanas pudessem controlá-los efetivamente. O resultado do
ero crescente de trabalhadores fabris e dos novos "desempregados",
condições inenarráveis em que eles eram obrigados a trabalhar e
T e, acima de tudo, do inflexível regime de trabalho que não lhes pro-
ionava nenhuma liberdade, nenhuma educação e nenhum poder
212 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

político, começou a aparecer no final do século XVIII na forma de revol-


tas e distúrbios civis.
As medidas draconianas impostas pelas autoridades para reprimir J
e controlar a crise social, bem como o aparecimento simultâneo de uma l
contracultura autónoma representativa dos interesses dos trabalhadores
formalizaram em termos predominantemente "classistas" a divisão
social gerada pelos presentes industrializantes dos fazedores de macha-
dos. O processo começou na Inglaterra, primeiro país a sofrer o impacto
total da industrialização.
Em 1798, o Parlamento inglês respondeu aos distúrbios suspen-
dendo o direito de habeas corpus e aconselhando todos os cristãos a
apoiar a medida como justa e adequada aos princípios "daquela religião
verdadeiramente sublime que exorta ao apoio e à submissão aos altos
poderes". A Igreja Anglicana reagiu prontamente ao impacto revolucio-
nário dos Direitos do homem de Tom Paine e seus ataques subversivos
contra os privilégios:

O homem não entra na sociedade para ficar pior do que i


vá nem para ter menos direitos do que tinha antes, mas para ter l
melhor assegurados aqueles direitos. Seus direitos naturais são a
base de todos os seus direitos civis. (...) Quando examinamos a con-
dição deplorável do homem sob os sistemas monárquicos e heredi-
tários de governo, arrancado de seu lar por um poder ou expulso
pelo outro, e empobrecido pelos impostos mais que pelos ini
gos, torna-se evidente que esses sistemas são maus e que uma re\
lução geral dos princípios e da construção do governo é necessá

Um dos propagandistas que trabalhavam em favor do gover


para neutralizar esse tipo de radicalismo era a poetisa e teatrólog
Hannah More, que escreveu sobre a questão da disciplina social eu
folhetos que alcançaram um sucesso impressionante — dois milhe
deles circularam em um ano. A solução de More para a crise crescentJ
era ensinar a submissão total à autoridade e incentivar a resignação cris-1
ta em face da privação e da adversidade. O libelo chamado "Vill
Politics" foi escrito, segundo ela, "para combater as doutrinas pernic
sãs que, devido à Revolução Francesa, estavam se tornando seriamentçl
ATO DE C L A S S E 213

ibimantes para todos os amigos da religião e do governo em todas as


prres da Europa".
More escreveu uma série de peças vulgares, amplamente lidas,
adas "Histórias para as Camadas Médias da Sociedade e Contos
as Pessoas Comuns", escritas com o intuito de "melhorar os hábitos
var os princípios da massa do povo numa época em que os perigos
is tentações morais e políticas multiplicavam-se mais que em qualquer
tro período da história".
Desde início do século XIX, o movimento de classe média
ada Moral Evangélica também pregava a disciplina e o autocontro-
para as ordens inferiores. O comentarista social inglês William
ibett sugeriu que seu verdadeiro objetivo era "ensinar as pessoas a
rrer de fome sem fazer barulho e evitar que os pobres cortem os pes-
s dos ricos". Os principais escritos evangélicos entre 1795 e 1829
tiam sempre o mesmo tema: "Expressar verdades morais (...) e delas
r regras de conduta pelas quais os habitantes deste país, cada um
sua posição particular, possam ser ajudados a adquirir conhecimen-
5 e a cumprir suas diversas obrigações."
Membros do movimento evangélico se infiltraram em instituições
•ncárias e governamentais e muitos deles serviram nas forças armadas,
!o-se como a linha de frente da luta pela estabilidade social. O evan-
mo, com seu jargão de guerra, sua luta contra o mal e sua ênfase na
m e na disciplina, ajudou a canalizar a perigosa insatisfação social
direções patrióticas mais aceitáveis.
Mas para muitos dos cada vez mais numerosos radicais políticos da
rda, as "reformas morais" evangélicas não eram nada mais do que pro-
ida a favor de um sistema industrial autoritário e repressivo, um instru-
ito de corte-e-controle das forças da lei, da ordem e da manufatura para
icão de uma classe operária sóbria, disciplinada e obediente.
A resposta da esquerda à condição em que se encontravam os tra-
idores foi a organização. Em 1818, os radicais haviam penetrado as
s manufatureiras das cidades e vilas das Midlands e do norte da
terra com uma rede de clubes dedicados à discussão e agitação polí-
e estreitamente ligados à nova imprensa operária, cuja publicação
influente era o Black Dwarf. Seu principal mecanismo institucio-
a assembleia de classe semanal, foi copiado dos metodistas.
214 | O P R E S E N T E DO FAZEDOR DE MACHADOS

No início, o movimento não tinha um caráter propriamente opesk


rio, mas populista. Em 1819, seu objetivo era o bem de "todos o
homens", e não só dos que trabalhavam nas fábricas. A liderança refletá
uma aliança populista de artesãos, mestres e lojistas.
Mas em 1824 entrou em cena um outro grupo de trabalhadores, a
Sociedade Cooperativa de Londres, e as coisas começaram a mudafi
Diante do poder avassalador do capitalismo vitoriano, a Sociedade luãi
vá para manter os valores operários de mutualidade e camaradagem, e
para proclamar nada menos que uma ordem social alternativa à da
capitalistas. A Sociedade objetivava antes de tudo acabar com a depeJ
dência dos trabalhadores em relação aos salários e armazéns da compaj
nhia, através da criação de lojas coletivamente sustentadas para a obtea^
cão tanto de mercadorias a preços mais baixos quanto de lucros a sere^
usados em prol do movimento.
E o objetivo não era só económico. A declaração de intencõ*
dizia: "Exigimos para o trabalhador os direitos de um agente rnorall
racional (...) [uma vez que ele é] o ser cujo esforço produz todas as riq«
zás do mundo; reivindicamos os direitos do homem e condenamos a fifc
sofia que transforma o trabalhador em mera mercadoria a ser compradN
e vendida, multiplicada e subtraída, segundo regras que só servem paa
decidir sobre a fabricação de chapéus."
Em 1829, a Associação Britânica para a Promoção do Conhd
cimento Cooperativo ampliou o âmbito da Sociedade. Seu manifesli
encontrou uma audiência receptiva nas áreas manufatureiras, onde inaf .: —*
cooperativa autóctone já se desenvolvera, com sua própria rede de p
cações. Estima-se que no final de 1831 já existiam mais de 500 sociedaiH
--
cooperativas. O movimento publicou diversos jornais, realizou conferâ
cias regionais, organizou muitas assembleias e criou sedes locais. t-"aajl
delas ficava em Birmingham, onde em 1928 a Sociedade Cooperativa pf
o governo diante do espectro do socialismo: ela declarou em seu esta
que tinha por objetivo "a propriedade comum das terras e dos bens".
O estdblishment contragolpeou pela base, com a mais antiga e
caz das "reformas" destinadas a combater as tendências socialistas, a
sistema educacional, onde iria enfrentar uma oposição menos org;
da. Os fazedores de machados haviam criado um problema. A industri^
lização e a comida barata haviam causado a superpopulação e o dese«
prego. Para as autoridades, a delinquência cada vez maior entre •
ATO DE C L A S S E 215

> desempregados mostrava uma clara necessidade de mais supervi-


disciplina. Por isso foram criadas novas escolas monitoriais, decla-
lente destinadas à educação mas na prática apenas ao treinamen-
fes crianças na disciplina fabril de seus pais.
Essas escolas foram o fruto da imaginação de um ex-administrador
donial Office na índia, Andrew Bell, e eram efetivamente dirigidas
; próprios alunos para treiná-los no reforço da disciplina que iriam
tarde vivenciar nas fábricas. As escolas eram divididas em classes,
í cada uma um aluno monitor designado cujas responsabilidades
: *[a] moral, o aperfeiçoamento, a boa ordem e a limpeza de toda a
. É sua obrigação fazer relatórios de progresso diários, semanais e
BS e especificar o número de lições executadas e de meninos pre-
e ausentes". O monitor devia também redigir listas de páginas
: palavras aprendidas pela classe. Desse modo, o processo de edu-
>foi reduzido a uma espécie de linha de produção.
O ensino da ortografia e da aritmética por meio de ditados reduzia
etização e o aprendizado numérico a uma mera repetição, forne-
t à criança não mais do que o estritamente necessário para realizar
10 fabril. Na aula de aritmética, um "cifrador" lia as somas em
e a classe as repetia, num processo reiterativo muito parecido
Io trabalho fabril dos pais. Não era considerado socialmente seguro
í meninos da classe operária se envolvessem com teoria matemáti-
^Bbr isso somente as tabuadas eram ensinadas. "Dessa forma", escre-
fieli, "qualquer menino de 8 anos de idade que mal sabe ler e contar
fcapto a ensinar, com o uso do guia que contém as somas e as chaves,
imeiras quatro regras da aritmética (...) com tanta precisão quanto
^Báticos que frequentaram escolas durante anos."
Tal como os adultos nas fábricas, as crianças trabalhavam em filei-
fcfcandonando seus lugares somente para se dirigir aos postos de lei-
Unde a recitação e a cantilena eram os principais meios de aprendi-

f
Os textos que memorizavam continham mensagens de conformi-
e obediência.

\
Vinte pence são um [xe/zm]-e-oito-pence
Lavar o rosto e se pentear
Trinta pence são dois-e-seis-pence
Todo dia da escola cuidar.
216 | O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

O método de leitura "Lancaster", largamente aplicado, utilizava


mesmas técnicas para induzir a uniformidade: o texto de aula era
único livro de letras grandes cujas páginas eram coladas em um qua
e penduradas na parede. Vinte meninos se postavam em torno do q
dro (em seus "postos de leitura") e depois que tivessem repetido a li
em voz alta podiam ir embora para praticar soletração, enquanto ou
grupo vinha estudar no quadro. Desse modo, duzentos meninos pod
repetir a mesma lição em três horas.
Era de particular importância para as autoridades que a escrita não
fosse ensinada às crianças pequenas: era um presente que podia inci
pensamentos radicais. Sem a escrita, no entanto, eles não poderiam
expressos adequadamente. Como disse Hannah More: "Eu não admi
a escrita para os pobres. Meu objetivo não é formar fanáticos, mas trei-
nar as classes baixas nos hábitos da indústria e da devoção."
A mais bem-sucedida de todas as inovações educacionais, a es
dominical, foi introduzida com o intuito de neutralizar os compo
mentos potenciamente perturbadores. As escolas dominicais foram cria-
das em 1785 por Robert Raikes (um filantropo cujo trabalho fora inicia-
do com presidiários da prisão local de Gloucester) para limpar as ruas de
domingo dos jovens desocupados, numa época em que ideias perigosa-
mente libertárias se espalhavam no rastro da Revolução Francesa.
As escolas só funcionavam aos domingos para não interferir comd
trabalho dos alunos nas fábricas, durante a semana. Em 1787 o sistema
absorvia 250 mil crianças e em meados do século XIX mais de dói»
milhões, todas aprendendo a ler e sendo "instruídas nas obrigações paiJ
com a religião cristã, com especial atenção para o comportamento boa
e industrioso em sua formação de trabalhadores e serviçais". Em 1846.»
secretário do Comité de Educação do Conselho Britânico definiu a fina-
lidade das escolas como sendo a de "erguer uma nova raça de trabalha»
dores — satisfeita, respeitosa, trabalhadeira, leal e pacífica".
Enquanto isso, uma alternativa de esquerda tentava se estabe
cer, originalmente inspirada por Robert Owen, industrial de N
Lanark, Escócia, que em 1816 reformou sua fábrica como uma com
dade, com lojas, escola e hospital. A experiência de New Lanark foi dês
crita em seu famoso texto "Uma nova visão da sociedade", no qua
Owen enfatizou a importância das escolas infantis e dos jogos, e a necea
sidade de as crianças serem saudáveis e "ativas, alegres e felizes".
ATO DE C L A S S E 217

Mas já nas primeiras atividades de Owen se observam tendências


corte-e-controle por detrás da fachada libertária. Havia em New
erk um "Instituto para a Formação do Caráter" cujo objetivo, ambi-
50 segundo quaisquer padrões, baseava-se na crença de que o pro-
sso humano seria impossível sem a prévia eliminação da ignorância.
Instituto, as crianças aprendiam a ler, escrever e contar, além de cos-
e tricô. No final do dia, os quartos eram "limpos e ventilados e, no
io, iluminados e aquecidos para ficarem bem confortáveis" para a
tssão noturna das crianças mais velhas e adultos.
A "Nova Visão" de Owen foi o ponto de partida do socialismo
Aderno. Seu movimento atingiu o ponto mais alto no início da década
'1550, quando trabalhadores "owenistas" criaram comunidades coope-
•iras, organizações para a promoção do conhecimento cooperativo e
pnais para disseminar a ideologia oweniana. Em 1840, os owenistas de
éster construíram seu próprio Salão da Ciência (um imenso edifí-
gótico com três mil lugares) com recursos levantados na venda de
de uma libra aos trabalhadores locais. Em poucos meses, o Salão já
ia aos seus membros uma rica agenda de atividades contendo aulas
imas, escolas dominicais para ambos os sexos, bailes, piqueniques,
-iões, um ocasional Festival Social com jantar e dança e até uma
||oestra que dava espetáculos regulares nas manhãs de domingo.
Em 1842, foram abertos salões em mais de vinte centros owenis-
jue se tornaram focos da vida cultural do trabalhador. O Instituto
ú Salford "formou um bom acervo musical, treinou cantores, publi-
jm livro de hinos e estruturou uma espécie de ritual [para] o encon-
iminical". Mas os hinos não eram cristãos e os sermões tratavam de
sociais. Esta apropriação dos ritos sacramentais aumentou o anta-
10 entre os socialistas e o clero quando o owenista James Morrison
'véu, em 1834: "Os rituais causam uma profunda impressão na
do público, produzindo resultados mais firmes e duradouros do
a maioria dos discursos eloquentes."
A verdade institucionalizante por atrás do owenismo ficou de-
•strada quando ele advertiu outros socialistas: "Façam seu próprio
aonial, urn cerimonial rival que ganhe as pessoas para o seu lado,
do as mesmas técnicas com que reis, generais, bispos e monges de
_- =? épocas garantiram a própria popularidade. Mas essas eram as
lõnias dos tiranos. Que as suas sejam as cerimónias do povo."
218 j O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

Do outro lado do muro, as autoridades vitorianas também usavaj»


as cerimónias da Igreja para fins doutrinários, com hinos que agora cooi
tinham poderosas mensagens de propaganda. O hinário oficial viria a
ter, só pelo seu tamanho, um efeito potente e de longo prazo sobre i
público (até o final do século XX). A edição de 1861 do Hymns Anc
and Modern anglicano vendeu 4,5 milhões de cópias em seus primei
sete anos.
Os hinos pregavam o valor da submissão:

E mesmo quando curvado sob o fardo


Do quinhão terreno dado por Deus
Olhe para o alto! e alcançarás a casa abençoada
Espera, espera com resignação e não digas nada.

Enfatizavam também a moral do trabalho:

Vivemos felizes quando o dom de Deus enche


De trabalho nossas mãos e de zelo os corações
Quanto mais servimos, mais amamos.

O sistema fabril acostumava as pessoas com a economia de temi


e o corte-e-controle de seu dia em períodos de trabalho e descanso. Pç
isso, os hinos incentivavam a pontualidade:

Dê a todo minuto fugaz


Alguma coisa que guardar
Trabalhe, porque logo chega a noite
Em que o homem não trabalha mais.

Os evangélicos usavam símbolos militares para exaltar a luta e ,


vitória:

Lute a boa luta com toda a tua energia


Cristo é tua força, Cristo é tua direção.
Leva uma vida regrada e ela será
A tua alegria e teu eterno descanso.
ATO DE CLASSE 219

Os hinos exortavam o cantor a andar direito, a suportar o sofri-


jcnto com nobreza, a jogar o jogo e a ser decente e justo. Havia tam-
pn hinos voltados para setores específicos da população: um livro de
não-confessionais de 1868 tinha um para cada ocupação e classe
J, que as incentivava a aceitar pacificamente a sua posição na vida
i mesmo tempo enfatizava repetidamente o trabalho duro e a aquies-
cia social. Muitos hinos tinham uma atitude admonitória, advertin-
do crente contra o envolvimento em atos que pudessem desqualificá-
ara o ingresso no céu.
Como era de se esperar, a imensa maioria dos hinos era escrita
doutrinar os jovens na escola dominical, onde causavam uma
ssão profunda e duradoura. Fortemente didáticos, os versos enfa-
jvam o valor fundamental da obediência:

Devemos ser dóceis e pacíficos


O sofrimento e a aflição infantil
Suportando sempre com paciência.

Os filhos dos operários fabris, pobres a não mais poder, eram ensi-
js que as riquezas dificultavam a salvação:

Nesta pobre e baixa situação


Se vê claro, Senhor, a tua graça.
Pois se ricos e importantes fôssemos
Como seriam cruéis os nossos corações!

"Father in Heav'n", de Rudyard Kipling, contém todos os ingre-


ites do corte-e-controle: patriotismo, racismo, obediência, apelo à
ade, valorização do trabalho e um chamado às armas em defesa da
estabelecida:

Land of our birth we pledge to thee


Our love and toil in years to be,
When we are grown and take our place
As men and women with our race.
Land of our birth, our faith, our pride,
220 O PRESENTE DO FAZEDOR DE MACHADOS

O motherland, we pledge to thee


Head, heart and hand through the years to be*

As autoridades vitorianas criaram também um mito para refor orçar


ainda mais a aspiração à conformidade e obediência, instilando na clas-J
se média o medo do "resíduo", uma vasta, informe e inidentificável clas-
se de pobres, enfermiça e perigosa. O darwinismo social deu um
te pseudocientífico à ideia de que o resíduo era algo inatural, ensinand
que somente os mais bem-adaptados podiam sobreviver e que
devia ser feito pelo inadaptado. O resíduo era definido, portanto, p<*
uma perversão da mais recente das ciências, como o produto do excess»
de saúde pública e caridade, que tornavam possível a sobrevivência de]
crianças física e moralmente doentes, as quais iriam, mais tarde, infectar]
o corpo social.
Em J 884, o economista Alfred Marshall, de Cambridge, suger
que fossem criados, fora de Londres, campos de trabalho para o resíduí
porque não havia "trabalho mais verdadeiramente benéfico do que pril
var o progresso de sua parcial crueldade ajudando aqueles que ficaJ
embaixo das rodas de sua carruagem". Apinhada em cortiços
decência e existência saudável eram impossíveis, esta vasta populaç
de "degenerados" era tida como uma ameaça à civilização.

Já no início do século começou a aparecer aos administradores que a tec-f


nologia sempre mais sofisticada não seria proveitosa se não fossem fé
tos esforços para treinar mais trabalhadores em técnicas fabris. Um l
chamado Pmctical Observations on the Education of the People tor
se um bestseller, alcançando a marca das vinte edições em seu prime

* Terra do nosso nascer, nós te empenhamos


Nosso amor e trabalho pelos anos afora,
Em que cresceremos e ocuparemos nosso lugar
Como homens e mulheres de nossa raça.
Terra de nosso nascer, nossa fé e nosso orgulho,
Por cujo benefício morreram nossos pais,
Ó terra-mãe, nós te empenhamos
Mãos, mente e coração pelos anos afora.
ATO DE CLASSE 221

Ele defendia a criação de clubes, grupos de discussão e bibliotecas


: as técnicas necessárias seriam ensinadas ao trabalhadores no final
B de trabalho. E dizia também que os livros de matemática deviam
ecer somente um conhecimento aprofundado das propostas mais
; e suas aplicações aos propósitos práticos". Palestras públicas sobre
Aia mecânica, química, matemática, astronomia e geologia seriam
fznàe proveito".
Em 1824, o novos Institutos de Mecânica abertos em diversas cida-
£ Inglaterra ministravam aulas das oito da manhã às nove da noite,
vezes por semana durante seis meses, além de palestras sobre geo-
ss. hidrostática, química aplicada, eletricidade, astronomia e fran-
3 Instituto tinha um claro objetivo: atender à demanda crescente
•sse trabalhadora por educação e conhecimentos outros que não
lês ligados ao seu trabalho imediato; mas tudo sob estrito controle
ndustriais que forneciam os recursos. Alguns Institutos ofereciam
B de economia política com o intuito de "corrigir" os pontos de vis-
piivocados" dos trabalhadores sobre a natureza do capitalismo.
Em 1827, foi fundada a Sociedade para a Difusão do Conhe-
§to, entidade pró-capitalista que dizia ter em perspectiva "o com-
imento da informação útil entre todas as classes da comunidade,
rmente aquelas que não podem proporcionar a si mesmas pro-
; experimentados ou que preferem aprender espontaneamente",
i começou a classe média a patrocinar a auto-ajuda dos trabalhado-
, embora alguns livros amplamente difundidos pela Sociedade fos-
anuais técnicos úteis, a maioria deles foi recebida com desprezo
t radicais da classe operária. Em 1832, o Poor Man s Guardian des-
a SDC como "a repugnante associação [que] sob a máscara da
difusão de informações úteis tem espalhado mais lamúrias, menti-
te perniciosidades do qualquer outra que já existiu". O semanário
Magazine, da Sociedade, foi também duramente criticado por
• um monte de tagarelices sem sentido (...) e totalmente inúteis,
; aos pobres".
Em 1829, numa resposta contra os efeitos propangandísticos dos
institutos oficiais, Rowland Detrosier, um fiador de algodão
ata, liderou um movimento pela criação de um Instituto de Me-
i independente, controlado pelos trabalhadores. Como outros tan-
lis, ele via a falta de instrução do povo como parte de um mode-
222 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

Io mais amplo de exploração e empobrecimento oriundo da industrializa


cão. Ele escreveu: "Nossa população trabalhadora não é mais formada de
servos da terra, mas de escravos do comércio vítimas de maus governos.™
Para a massa do povo, a sua educação "não lhes apresenta naáa.
além de exemplos de ignorância e brutalidade. As classes dominantes só
estão interessadas em cultivar uma de suas virtudes, a sua indústria, e
em assegurar que nenhum sofrimento seja poupado e que não se des-
perdice nenhum meio que possa ser ditado pela avareza ou imposto pei*
pobreza das vítimas". E Detrosier acrescentou: "O governo é considera-
do território particular de uns poucos; o trabalho e a submissão, a oiafl
gação da maioria."
O mais eficaz aliado das autoridades vitorianas no trabalho de n»-
nar a reivindicação radical de que os programas de esquerda eram a úm-
ca esperança para melhorar a sorte dos trabalhadores foi Samuel Smikv
cujo livro Self-Help, publicado em 1859 com um estrondoso sucesso, íoí<
de longe o mais famoso trabalho de seu género. Smiles via a educação
como um instrumento de genuína liberdade e independência e desça»
tava com desdém a ideia conservadora de que a educação popular le\a-1
ria os operários a desafiarem a ordem estabelecida: "Bem-vinda a educa-J
cão que fará com que os homens se respeitem a si mesmos e aspirem a
privilégios mais elevados e maiores liberdades do que desfrutam hoje.*
Smiles atacou o problema dos trabalhadores, degradados e trans-
formados em radicais pelas condições do trabalho na indústria e pelas
insuportáveis condições sociais, enfatizando o desenvolvimento intelec-
tual e moral e afirmando que o resultado final da auto-ajuda seria um io-
divíduo dotado de insuperável caráter e nobreza de espírito: "Podemos
elevar a condição do trabalho associando-o a ideias nobres, que confei
rem a virtude às camadas mais baixas tanto quanto às mais elevadas. (_|
Ainda que o autocultivo possa não trazer riquezas, ele sempre trará ai
companhia de pensamentos elevados." Como complemento dos esfor-
ços do governo para diluir os efeitos da propaganda anticapitalista.
Smiles alegava que o realmente importante não era o sucesso material,
mas o desenvolvimento do espírito e do caráter.
Mas Smiles não foi capaz de varrer para debaixo do tapete a que*|
tão das diferenças de classe, uma vez que no último capítulo ele cc
dava todos a aspirarem a se tornar verdadeiros cavalheiros: "Riquezas e
nível social não têm uma relação necessária com as genuínas qualidades
ATO DE C L A S S E 223

um cavalheiro. O homem pobre pode ser um cavalheiro em espírito


'na vida cotidiana. Pode ser honesto, honrado, polido, equilibrado,
ajoso, respeitador de si mesmo e independente, vale dizer, um verda-
nro cavalheiro. O homem pobre dotado de espírito rico é, sob todos os
:tos, superior ao rico de espírito pobre." O viés corte-e-controle
se mostrava: "A grande maioria dos homens, em todas as épocas,
ao importa o quão instruídos, deve continuar sendo de trabalhadores."
Mas o problema criado pela falta de educação técnica não acaba-
. O Relatório sobre a Instrução Técnica de 1884 veio para responder
Crescente preocupação com a capacidade de a indústria britânica
rentar a concorrência estrangeira (especialmente a norte-americana).
i comissão recomendou a inclusão, nos currículos escolares, do dese-
básico e de mais aulas sobre técnicas industriais e agrícolas, e tam-
i chamou a atenção para a necessidade do treinamento de professo-
de ciências, além de recomendar que os proprietários das fábricas
fcáassem escolas para os trabalhadores. Crianças inteligentes da classe
deveriam ter acesso (e bolsas) às escolas técnicas.
No final do século XIX, todas as nações ocidentais já haviam acei-
i as exigências de treinamento técnico e criado as instituições neces-
as. Na maioria dos casos isto aumentou significativamente a influên-
i do Estado na vida do indivíduo, embora a mudança nem sempre fos-
:bem-vinda, mesmo para os que estavam no poder. O velho sistema de
;ndizado havia tido êxito na doutrinação para a conformidade, o que
; com que se manifestassem preocupações quanto à eficácia do novo
ito de vista. Mas o sistema educacional vinha se tomando rapida-
ite inadequado às demandas do progresso tecnológico, que andava
jre à frente da capacidade de acompanhamento das autoridades. As
nvias, por exemplo, vinham criando uma demanda enorme e nem
ipre satisfeita de engenheiros. Desde então, as taxas de mudanças
zedoras-de-machados ultrapassariam sempre os educadores.
Mas o novo presente da educação tecnológica não viria a estar
. disponível para a maioria do que a escola que a antecedeu. O ensi-
i vocacional tinha por objetivo criar novas formas de profissionalismo
clusivo e, em consequência, as novas profissões de classe média come-
am a criar associações para representar e proteger seus interesses. Na
Alemanha e na Inglaterra, as associações propiciavam aos seus membros
•eios complementares de autoformação, como foi o caso dos engenhei-
224 'i O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

ros. Havia poucos engenheiros antes da metade do século XVIII, na


em 1771 foi formada a Sociedade dos Engenheiros Civis e em 1818 ta
via bastantes deles para sustentar uma verdadeira organização profissn
nal, o Instituto dos Engenheiros Civis, que foi o protótipo de muitas IM
tituições similares na Inglaterra e Estados Unidos. Essas instituições
por sua vez, iriam dar uma grande contribuição para o surgimento d
uma elite gerencial.
Ao mesmo tempo, os efeitos corte-e-controle da Revoluçãi
Industrial promoviam uma ampla mudança no perfil da sociedade. A
novas indústrias haviam rompido e acabaram por destruir as estrut
tradicionais da sociedade rural. Em épocas anteriores, os indivídi
viviam dentro de redes familiares densas e amplas em comunidac
rurais onde a mobilidade social era limitada e o trabalho envolvia pov
mais do que a provisão da subsistência.
As novas cidades industriais separaram os novos imigrantes
natureza e da preocupação com ela, retiraram deles todo sentido de >
gem, aumentaram o isolamento do indivíduo e, finalmente, fragmer
ram as técnicas familiares. O sistema fabril introduziu também sã
em dinheiro, que premiaram a juventude e o vigor prejudicando, e,
destruindo, a autoridade dos mais velhos. A natureza das comunidad
urbanas mudou à medida que as classes médias abandonavam os
tros urbanos para retornar somente no final do século XX.
Os industrialistas também mudaram o sentido individual do te
pó. Anteriormente o trabalho era definido pela natureza da tarefa >
ritmo era determinado por estágios sazonais de produção, alterna
períodos de trabalho intenso e inatividade. Agora, nas novas fábricas, <
trabalho era somente uma questão de horas despendidas e unidades j
duzidas. Um pregador metodista da época assinalou: "Eu observei ta
bem que a maquinaria parece levar a hábitos de cálculo (...). Em ali
condados mais ao norte este hábito de calcular os tornou extremame
perspicazes de muitas maneiras notáveis. Suas grandes associações t
perativas nunca teriam chegado a um desenvolvimento tão imens
frutífero não fosse o cálculo induzido pelo uso da maquinaria."
Quadros de horário foram introduzidos no trabalho, da mesma:
ma que fiscais, informantes e multas por atraso; os relógios das fábric
estavam sempre trancados de modo que não pudessem ser mexidos, i
1770, um dos primeiros defensores dessa visão da existência orient
ATO DE C L A S S E 225

pelo tempo, William Temple, defendeu que as crianças pobres, ao com-


pletar 4 anos de idade, fossem enviadas para as oficinas, onde recebe-
riam duas horas de educação diária, ficando o resto do tempo emprega-
das na manufatura: "Há uma considerável utilidade em que elas sejam,
de um modo ou de outro, ocupadas pelo menos doze horas por dia, pos-
sam ou não ganhar suas vidas; porque dessa forma esperamos que a
acão que surge fique tão habituada ao trabalho constante que ele
;abará se lhes tornando agradável e divertido."
No final do século XIX, a filosofia do corte-e-controle já havia, com
is efeitos, modelado o mundo moderno. O trabalho já estava retalha-
do e disposto em uma ordem sequencial, dominado pela necessidade de
conformidade com a máquina. Ao mesmo tempo, a proliferação de dis-
plinas especialistas havia gerado uma quantidade crescente de formas
Dtéricas de conhecimento industrial e técnico das quais a imensa
aioria do público estava excluída. A educação da Igreja, bem como a
Estado, serviam principalmente para assegurar o controle social por
sio da doutrinação das virtudes da obediência e da uniformidade.
Contra isso se colocavam os sistemas alternativos emergentes e
jalmente conformistas do socialismo e do comunismo. Em 1884, a
idação Social Democrática defendia a propriedade social dos meios
: produção e intercâmbio e via o controle do poder político pela classe
abalhadora como o principal instrumento para alcançar este objetivo.
final da década de 1880, grandes sindicatos de trabalhadores não
alificados foram criados sob a liderança dos socialistas, o que reforça-
i o vínculo entre atividade política e organização industrial que vinha
faltando desde o início. Ao mesmo tempo, os novos socialistas embar-
cavam em um programa próprio de educação e propaganda.
Foi William Morris, em particular, quem disseminou a visão de
uma sociedade onde o trabalho seria prazeroso e a educação um direito
; todos. Segundo Morris, para adquirir uma verdadeira humanidade as
ssoas deviam ter prazer no trabalho, o que era impossível se a divisão
i trabalho atava cada trabalhador a uma única operação específica. O
sduto de um tal trabalho, dizia Morris, era de interessse exclusivo do
dustrial e, acima de tudo, "necessariamente estúpido e desprovido de
ilquer traço de humanidade". Este tipo de trabalho transformava o
abalhador na "máquina perfeita que é sua suprema obrigação se tor-
nar", levando assim à "completa destruição da individualidade".
226 O P R E S E N T E DO FAZEDOR DE M A C H A D O S

Morris achava que não se alcançaria a estabilidade social enquanto


perdurassem tais condições: "Condenar uma imensa população a \r-er
em South Lancashire enquanto a arte e a educação se desenvolvem em'
lugares decentes é como banquetear-se na frente de um torturado." L na
nova sociedade somente poderia surgir da eliminação das divisões dei
classe e seria baseada na cooperação, não na competição: "Sejamos cama*
radas trabalhando associados e em harmonia para o bem comum, istoM
para a maior felicidade e o completo desenvolvimento de todos os seres]
humanos da comunidade." A nova sociedade seria aquela cujas "riquJ
zás, recursos e meios de produção fossem de propriedade da comunxi*-!
de para o benefício de todos, conduzindo em última instância à comin*
zação dos produtos da indústria e dos meios de produção e ao estabeieõ-
mento da total igualdade de condições entre todos os homens".
Para Morris, o trabalho era a fonte primeira da atividade humanJ
da fruição e do autodesenvolvimento, por isso em uma sociedade soei»!
lista a fábrica haveria de ser um centro fundamental de educação. El
expôs esta ideia num artigo intitulado "Uma oficina como deve ser"j|
descrevendo uma comunidade "onde poderemos trabalhar pelo susteJ
to e pelo prazer, não pelo lucro". Marx considerou essa combinação ae
aprendizagem e trabalho a chave para a educação do futuro. Morris ad»
tou essa ideia no contexto do seu conceito de uma sociedade cornai
nitária e livre de artistas e cientistas, na qual as fábricas seriam cercadas
por jardins, as construções seriam bonitas e os operários se dedicariamJÉi
um trabalho honroso e dignificante.
Nesse sentido, a fábrica socialista forneceria "trabalho leve em
duração e não opressivo em género, educação na infância e na juvenil
de, ocupação séria, relaxamento divertido e mais descanso para o '.
dos trabalhadores (...) [e] aquela beleza dos arredores e poder de prc
zir acolhimento que serão com certeza exigidos por aqueles que té
lazer, educação e uma ocupação séria."
Na segunda metade do século XIX, pois, a industrialização fa2
ra-de-machados havia gerado duas "verdades" paralelas — socialismo l
capitalismo —, presentes ideológicos para o corte-e-controle do mi
inteiro, dividindo-o entre si por cerca de cem anos.
l
ATO DE C L A S S E 227

Enquanto isso, no final do século XIX, as demandas insaciáveis da


nova economia industrial por matérias-primas conduzia à criação de um
outro novo mundo ocidental, o das colónias. Com todo o poder industrial
do Ocidente, a crença cristã de que o controle da natureza era uma dádi-
ra de Deus podia ser agora aplicada ao planeta inteiro e a seus habitantes
menos avançados tecnologicamente. Muitos achavam que o "destino
manifesto" do Ocidente era levar ao mundo seu superior modo de vida
"cristão", assegurando assim o abastecimento e o funcionamento conti-
nuado de uma estrutura social industrializada e voltada para o consumo.
Dentre todos os poderes das elites colonialistas a responder a esse
novo apelo, o grupo mais seguro do bem que fazia ao cortar-e-controlar
o mundo destruindo suas tradições e substituindo-as pelos modelos e sis-
temas ocidentais era o dos missionários cristãos. Já no século XV eles
haviam encabeçado o impulso de conversão dos nativos das Américas
recém-descobertas. Essa tradição de apropriação de terras recém -
encontradas radicava-se na repartição papal das Américas, estabelecida
no século XV, entre Espanha e Portugal.
Nas índias Ocidentais francesas, justificou-se a segregação institu-
cionalizada em um memorando governamental no século XVIII que
dizia: "A separação é cruel mas necessária em um país onde há quinze
•scravos para cada homem branco. Não se pode estabelecer distância
bastante entre as duas espécies. Não se pode instilar nos negros respeito
suficiente por aqueles a quem servem. (...) A administração deverá cui-
dar severamente para que eles mantenham a distância e o respeito."
O jesuíta francês Labat escreveu que a dependência em relação
nos bens ocidentais era um boa técnica para criar a escravidão, porque
'precisarão tanto deles que não poderão dispensá-los e então oferecerão
|_) todo o seu trabalho, seu comércio e sua indústria".
Os europeus subestimavam deliberadamente as capacidades das
sociedades nativas a que submetiam; as colónias foram colocadas sob
controle direto dos administradores ocidentais, que comandavam mas
não treinavam o trabalho nativo não-qualificado e não-instruído. Mais
tarde eles construíram ferrovias e portos para facilitar a movimentação
de matérias-primas, maquinaria pesada, além do exército e da polícia.
Acima de tudo, o país era sempre organizado de acordo com as
diretrizes ocidentais, levando em conta a localização de suas reservas
estratégicas e ignorando os sistemas sociais e tribais preexistentes.
~L rsse modo, os governos ocidentais neutralizavam eficazmente todo e
228 ' O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

qualquer talento gerencial e mercantil que pudesse existir (partii


mente nos casos da índia e da Malásia, onde as organizações nativas
comércio haviam sido razoavelmente sofisticadas).
Uma vez negados aos nativos coloniais os meios de expressarea
seus próprios talentos organizacionais, eles podiam então ser descrito^
como "desorganizados, improdutivos e preguiçosos". Poder-se-ia argúiç
por outro lado, que essas pessoas não possuíam, nem poderiam jamais ta
possuído, um sistema de valores. Já no início do século XVIII, o natiw
havia sido classificado pelos comerciantes das índias Orientais coma
"insensível à ética; ele não apenas representa a ausência de valores; ele i
(...) o elemento corrosivo que destrói tudo o que está por perto".
Esta atitude era particularmente eficaz no que respeita às índia
britânicas. Durante a ocupação da índia pelos ingleses e franceses, nu
século XVIII, os intelectuais ocidentais se puseram fascinados pelas n»
guas hindus antigas, e a educação dos nativos foi subsidiada pefa
Companhia da índia Oriental. Mas no início do século XIX a superioõ-
dade da manufatura têxtil da índia vinha sendo neutralizada pela tecno-
logia ocidental, e a Inglaterra havia começado a buscar mercados ultra-
marinos para absorver o excedente da sua própria produção industriai!
Foi nessa altura que os europeus começaram a propagar o mito de qaé
a submissão de milhões de hindus havia sido organizada pelas mãos d
um punhado de ocidentais para a introdução de uma melhor organiza-
ção e um de conhecimento superior. Considerava-se agora que os hnr
dus (e os chineses) haviam sido vítimas do próprio estágio de conheci
mento em que se encontravam, graças aos efeitos deletérios do clima am
como resultado da miscigenação com grupos "inferiores".
Os europeus estavam convencidos de que haviam adquirido 4
direito de assumir a sua "responsabilidade de homem branco" e de H
tornarem "senhores do género humano". Mary Kingsley, escritora ingla
sã que viajou à África (e que passava por admiradora daquele continen-
te), escreveu em seu regresso à Inglaterra, em 1895: "Tudo que eu pç
dizer é que, estando de volta de uma temporada na África, o que me de
xá orgulhosa de ser inglesa não são as nossas maneiras e costumes (...]
aquilo que está corporificado nas ferrovias. (...) É a manifestação: -^
superioridade da minha raça."
No final do século XIX, a percepção dos ocidentais em relaçãc
não-ocidentais como os aborígines australianos, os ianomâmi amazó;
ATO DE C L A S S E 229
i

l cos e os kung africanos havia sofrido uma mudança radical. Esses eram
agora todos "selvagens" ou, de acordo com a palavra de ordem da nova
antropologia, "primitivos".
A ciência ocidental era vista como um instrumento eficaz para
, enfraquecer a adesão dos nativos às suas próprias crenças, e os missioná-
f rios utilizaram a ferrovia e o telégrafo para exaltar o Deus cristão como
o: u
único poder divino verdadeiro. Um administrador colonial escreveu
1853 que os europeus podiam "derrubar toda a ideologia dos hindus
l com
con a previsão de um eclipse". O atraso material era cada vez mais as-
sim
similado ao paganismo, e por isso os núcleos missionários começaram a
ensinar técnicas agrícolas ocidentais e os hospitais a disseminar os con-
ceitos ocidentais "superiores" de limpeza e higiene.
Em 1890, escritores políticos franceses como Arthur Girault recla-
•am para os europeus o direito de apropriação dos recursos nativos,
ic pertenciam a pessoas a quem se dizia faltar energia, iniciativa e sen-
so de propósito. A não colonização e desenvolvimento desses países era
imoral e contrário às "obras da ordem natural". Em 1849, o novelista fran-
cês Victor Hugo escreveu: "A França recorre à guerra (...) apenas na
medida em que ela é necessária à civilização. O que se afirma aqui é que
<fa deve ter em suas mãos a luz e a liberdade. Ela sabe que, para um povo
Ivagem, ser ocupado pela França significa ser livre, e para uma cidade
bárbaros, ser queimada pela França é começar a ser iluminada".
Em 1878, o conde inglês Carnaervon fez um discurso em que dizia:
"Enormes populações como as da índia, sentadas como crianças na som-
bra da dúvida, da pobreza e do sofrimento olham para nós em busca de
orientação e ajuda. Para eles é nossa obrigação dar leis sábias, bom gover-
no e uma finança bem estruturada. (...) Cabe a nós supri-los de um siste-
ma em que o mais humilde possa desfrutar da liberdade contra a opressão.
|_) Em que a luz da religião e da moral possa penetrar na mais escura das
-r : :dências. (...) Esta é a verdadeira força e o significado do imperialismo."
Por trás de toda essa retórica estavam os verdadeiros objetivos,
imo expressos por Cecil Rhodes (de Rodésia): "Eu anexaria os planetas
pudesse." Os europeus precisavam de espaço onde assentar sua força
de trabalho agora excedente, gerada pelo crescimento populacional pro-
vocado pela Revolução Industrial. O assentamento e a colonização
resolveriam o problema do desemprego europeu e criariam trabalho
para os degenerados do resíduo urbano (que, ao ir para as colónias, eli-
minariam a si mesmos e suas doenças da sociedade decente).
230 O P R E S E N T E DO FAZEDOR DE M A C H A D O S

Cecil Rhodes escreveu: "Para salvar os quarenta milhões de


tantes do Reino Unido de uma sangrenta guerra civil, nós, governac
coloniais, temos de adquirir novas terras para assentar o excesso de popi
lação e criar novos mercados para os bens produzidos nas fábricas (
minas. (...) Para evitar uma guerra civil, é preciso se tornar imperialista."
Em 1880, a África era o último grande prémio, e por isso foi dh
dida e controlada na Conferência de Berlim, em 1884. Como disse
importante economista francês: "Não é natural nem justo que as pop
lações civilizadas do Ocidente fiquem para sempre aglomeradas, asfr
das em seus pequenos territórios de origem (...) e que tenham de dei
quem sabe a metade do mundo para pequenos grupos de usuários ig
rantes e sem nenhum poder, na verdade crianças retardadas disper
em um território sem fronteiras."
Na Conferência de Berlim os delegados fixaram as regras da
são colonial do mundo, tentando evitar conflitos. Todo país ocide
que reclamasse uma parte da África tinha de declarar sua intenção >
anexar, e fazer a declaração da ocupação, antes que a soberania pude
ser considerada válida. Depois de ocupar, todos os tratados assina
pelos europeus com governantes africanos eram legítimos títulos •
soberania. Em 1910, o "título por ocupação" estava quase comple
uma vez que as fronteiras africanas haviam sido redesenhadas
Europa sem nenhuma consideração para com a distribuição
naqueles casos em que os próprios chefes locais não conheciam os i
lhes (o que era o caso na maioria das vezes).
Nessa época foi feito o mapa do moderno Terceiro Mundo,
final, ficaram criados na África quarenta e oito Estados, a maioria i
quais erarn entidades artificiais, cujos criadores não tinham nenhum i
resse na realidade etnocultural, geográfica e ecológica do continente. A
guns estados eram imensos, como o Sudão, Argélia e Nigéria, outros er
minúsculos, como Gâmbia, Lessoto e Burundi. Alguns possuíam es
sós litorais, outros eram encravados, como Mali, Chade e Uganda,
riquezas minerais e as terras férteis eram desigualmente distribuída^
Argélia e o Chade eram quase que completamente formados de deser
As administrações coloniais asseguraram que as terras mais fér
estivessem disponíveis para os ocupantes europeus, à exceção daqi
consideradas por demais insalubres para eles, caso em que os nath
eram "assistidos" na produção das matérias-primas necessárias. E m ;
ATO DE CLASSE 231

; colónias, notadamente as da Bélgica e Portugal, os nativos eram for-


as a produzir espécies vegetais específicas, como algodão e sisal, se-
ido metas de produção estritamente estabelecidas. Em muitos casos,
: trabalho reduzia a extensão da agricultura local de subsistência a tal
ito que a comida tinha de ser importada da Europa. Os preços dos
jortados e exportados era deixado nas mãos das companhias oficiais
i mineração tornou-se reserva exclusiva das companhias ocidentais.
A ambiguidade inerente ao colonialismo foi claramente expressa
outro administrador colonial, James McQueen, que retornou em
52: "Se queremos verdadeiramente o bem da África, devemos ensinar
seus filhos selvagens que os homens brancos são superiores,
lente por esta via podemos assegurar a sua obediência. Sem a obe-
icia deles, nunca conseguiremos torná-los industriosos nem ensinar-
; nenhum ramo do conhecimento."
Em meados do século XVIII, os fazedores de machados haviam for-
nido os meios de mudar a forma de uma tulipa. Apenas três gerações
i tarde seus presentes davam ao Ocidente os meios de mudar a forma
' planeta. A visão corte-e-controle da produção industrial havia tam-
retirado e separado a maioria dos membros da sociedade europeia
sua anterior relação direta com a terra. Em um exemplo que seria
lido pelo restante do mundo desenvolvido, a maioria da população
agora em grandes cidades, com sua sobrevivência dependente do
íeiro das fábricas, por sua vez dependentes das matérias-primas das
mias. A vida cotidiana era agora programada segundo as exigências
i sistema fabril e moldada, no capitalismo como no comunismo, pela
imposição da comunidade em "unidades de trabalho produtivo".
Sob o comando da indústria, a ciência e a tecnologia haviam gera-
centenas de disciplinas especializadas; que começavam a interagir
ando mudanças sempre mais radicais e imprevistas na vida cotidia-
mesmo da maioria mais desinformada. Graças aos fazedores de
chados, as instituições políticas, financeiras e industriais eram agora
pazes de moldar cada minuto da vida produtiva individual. Só faltava
ara moldar o próprio corpo.
Capítulo 9

ORDEM
MÉDICA

Antigamente, quando a religião era forte e a ciência fra-


ca, os homens pensavam que mágica era medicina; agora
que a ciência é forte e a religião fraca, os homens pensam
que medicina é mágica.

THOMAS SZASZ
o. s presentes dos fazedores de machados nos cativaram com suas
remessas durante toda a história. Com seus bastões entalhados e o
ihecimento das estações, os mágicos paleolíticos sabiam indicar a
:a mais propícia para a caça. Com seus esquemas escritos da irriga-
io e do inventário dos celeiros, os governantes da Mesopotâmia e do
ito podiam prometer o abastecimento regular de alimentos. Os nave-
gantes gregos, munidos da leitura das estrelas, podiam assegurar aos
seus senhores que os navios retornariam ao porto com seus carregamen-
E A Igreja medieval prometia a salvação das penas do inferno e os
lustriais da Revolução Industrial ofereciam um salário regular.
Mas a proposição talvez mais sedutora veio da medicina do século
L, quando pela primeira vez, em troca de conformidade e obediência,
fazedores de mudanças ofereceram a vida. Em resposta às epidemias
ic dizimavam a população crescente que eles próprios ajudaram a
'rar, os fazedores de machados desenvolveram técnicas médicas que
;s dariam a capacidade de usar a faca reducionista no corpo humano.
A capacidade de reduzir pessoas a números e gráficos acabaria por per-
mitir aos especialistas prever o destino dos indivíduos e comunidades
•l: precisamente quanto seus predecessores previam a produção das
fabricas e o movimento dos planetas.
As primeiras tentativas ocidentais de aplicar as técnicas de corte-e-
controle à doença foram lentas e ineptas, porque não existiam ferramen-
tas para reduzir e examinar a condição física e, de todo modo, ninguém
sabia em 1800 de que doença realmente se tratava. A taxionomia o havia
tentado mas fracassara porque o método cartesiano de reduzir fenóme-
nos a listas de características (no caso das doenças, os sintomas), embora
valioso como meio de identificar a presença de diferentes condições,
dizia pouco ou nada sobre a própria doença. O valor terapêutico das téc-
236 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

nicas descritivas taxionômicas era, no melhor dos casos, dúbia:


exemplo, a condição patológica classificada como "nostalgia" era
da como "uma urgente necessidade de voltar para casa".
Não havia nenhum meio de reduzir ou subdividir os sintomas,
de dissecar corpos vivos para investigar as doenças, porque a doença
era considerada uma condição localizada. Era vista como um es
geral, um distúrbio geral do organismo assim descrito pelo médico
Sydenham: "É minha opinião que a razão principal de ainda não te
uma história precisa das doenças provém da suposição generalizada
que elas não são mais do que a confusão e o funcionamento irregular
uma natureza desordenada e debilitada."
Antes que o reducionismo fazedor-de-machados os houvesse
rado, corpo e mente eram um só; portanto a personalidade e o
emocional do paciente era a preocupação primeira. Nessas circun:
cias, a visão do paciente acerca de sua própria condição era virtu,
a única ferramenta de diagnóstico. Uma vez que a decisão de se o
te estava ou não doente cabia ao próprio paciente, a condição que
frequentemente se apresentava aos médicos era a hipocondria.
Quase tudo o que a profissão médica do século XVIII podia of<
cer era o jeito de lidar com o doente. Sem ferramentas de diagnó:
adequadas e curas eficazes, o médico ficava à mercê das expectativ
paciente, como explicou o satirista e teatrólogo francês Molière: "O
blema com as pessoas importantes é que quando estão doentes
insistem com veemência em ser curadas."
O estudo de anatomia era não apenas possível como produ
porque havia abundância de cadáveres disponíveis; mas uma vez q
corpo do paciente era visto como uma entidade pessoal e idiossin
ca, a descoberta de quaisquer leis anatómicas gerais era conside
improvável. Em todo caso, a pesquisa era considerada irrelevante,
mo por grandes figuras como Sydenham, que ensinava que a pró:
de médico era "curar doenças e mais nada".
O primeiro movimento em direção a uma visão propriamente
te-e-controle aconteceu no final do século XVIII, na França, onde
guerras revolucionárias deixaram tantos doentes e feridos que o p
ma da terapia geral eficaz tornou-se uma urgente prioridade s
Considerando que o reducionismo havia sido em parte provocado
queda da cosmologia aristotélica, é irónico que o passo seguinte n
ORDEM MÉDICA 237

lesma direção em termos de medicina fosse dado por um francês que


se especializara em mecânica celeste.
Em 1798, foi publicado o primeiro dos trabalhos de Pierre Simon
Dlace sobre a questão, o qual o tornou famoso em toda a Europa. Seu
ito de vista sobre o que a matemática podia fazer para ajudar as auto-
ades políticas a prever e controlar o comportamento social era ani-
ÍBador:

Podemos considerar a presente condição do Universo como


o efeito de seu passado e a causa de seu futuro. Um intelecto que
num momento dado conhecesse todas as forças que animam a
natureza e a posição relativa de todos os entes que a compõem, se
esse intelecto fosse vasto o suficiente para submeter tais dados à
análise, poderia condensar em uma única fórmula o movimento
dos grandes corpos do universo e aquele dos átomos mais leves;
para um tal intelecto nada poderia ser incerto; e o futuro, tal qual
o passado, estaria presente ante seus olhos.

Para os médicos, a expressão-chave era: "nada poderia ser incerto",


matemática probabilística de Laplace parecia oferecer à medicina a
chance de encontrar a certeza no diagnóstico, uma vez que ele dizia ser
capaz de utilizá-la para extrapolar regressivamente e para derivar a cau-
sa do efeito. Em 1802, o governo francês lhe deu a chance de aplicar sua
teoria em grande escala.
No dia 22 de setembro daquele ano, Laplace calculou o número de
«ascimentos ocorridos, nos três anos anteriores, em um universo de
aproximadamente dois milhões de cidadãos. O resultado foi um nasci-
pjento por ano para cada 28,352845 habitantes, e portanto, se a taxa
anual do país naqueles anos fora de 1,5 milhão (como pensava Laplace),
isto significava que com toda probabilidade a população do país era de
-I "29.267 habitantes. Utilizando sua nova matemática probabilística
íssiva, Laplace anunciou que havia apenas 1:1,161 de chances de
que esta cifra populacional fosse superada em mais de meio milhão.
Por muito impreciso que tenha sido o estudo, Laplace havia inven-
tado o conceito de amostra estatisticamente significativa, que, como fica-
ria demonstrado, era um dos mais valiosos presentes destinados ao con-
trole social. A possibilidade de reduzir o comportamento de grandes mas-
238 , O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

sãs de indivíduos a fórmulas matemáticas recebeu o apoio ent


de um dos principais pensadores do Iluminismo francês, o
Condorcet, membro da Academia de Ciências, que influenciou <
mente o desenvolvimento da nova "ciência da sociedade". Conde
um matemático cuja crença no progresso inevitável da razão o fezj
car um manifesto, em 1793, no qual dizia: "Passamos por impere
gradações do bruto ao selvagem e do selvagem para ... Newton."
Para Condorcet, a história era uma ciência cujo estudo
imensamente facilitado pela matemática probabilística. Como
ele acreditava que todos os fenómenos eram "igualmente suscetn
serem calculados: e tudo o que é necessário para reduzir a totalie
natureza a leis similares às que Newton descobriu, com a ajuda do<
Io, é um número suficiente de observações e uma matemática st
temente complexa". A história era, acima de tudo, "uma ciência ]
prever o progresso da raça humana", que tornaria possível "sul
futuro". Os agentes do progresso eram os cientistas e, por isso,
mais apoio o Estado desse ao seu treinamento, mais chances tinha a
babilidade estatística de "descobri-los" na população em númemj
ciente para assegurar o progresso. Essa ideia vem impulsionando <
nejamento ocidental desde então.
Condorcet pensava que a manipulação das massas pelos ntn
requeria dois tipos de coleções de dados: da observação do conjuj
população (pela aplicação da matemática) e do exame intensivo <
número cicunscrito de espécimens (pela aplicação da medicina)/
estudos tornariam possível "o aperfeiçoamento ilimitado das facv
humanas e da ordem social". O uso do cálculo de probabilidades m;
tizaria os fenómenos sociais, introduzindo a previsibilidade e a lei i
no comportamento das comunidades. Condorcet confiava na conl
dade: "Dado que todos os homens que habitam um mesmo país têm
ou menos as mesmas necessidades, e uma vez que possuem todc
geral os mesmos gostos e a mesma ideia de utilidade, aquilo que
valor para um geralmente tem para todos." Com uma suficiente :
lação de dados e a aplicação do cálculo de probabilidades, o Estado p
ria, então, ser governado pelos matemáticos sociais. Para Laplace.<
para Condorcet, a administração da nova ciência da tomada de da
sociais devia ser tarefa exclusiva de pessoas que soubessem mate
A profissão médica estava ansiosa para pôr as mãos nas nc
nicas matemáticas, que podiam reduzir a incerteza no tratamento)
l ORDEM MÉDICA 239

tico de uma quantidade de certezas individuais isoladas (os pacientes),


l que poderiam ser então comparadas umas com as outras de modo a usar
os padrões de convergência estabelecidos para fazer previsões. A medi-
cina clínica já podia começar a tratar o paciente como um de uma série
de dados patológicos reprodutíveis ao infinito, presentes em todos os
pacientes que padecessem das mesmas condições.
Felizmente, pelo menos para tal empreitada, as guerras revolucio-
L nárias francesas fizeram doentes e feridos em quantidade suficiente
' para que a técnica pudesse ser aplicada em larga escala. Em 1807, época
em que os hospitais de Londres abrigavam cerca de três mil pacientes,
os de Paris tinham 37 mil, uma abundante fonte de anamneses. A força
motriz da implementação da nova técnica foi um médico e ministro de
• governo chamado Pierre Cabanis, que em 1798 publicou um influente
estudo intitulado "Sobre o grau de certeza na medicina". Cabanis fora
membro de uma conspiração fazedora-de-machados chamada "Círculo
de Auteuil", onde se reuniam regularmente pensadores como Franklin,
Condillac, Diderot, D'Alembert e outros.
A situação em que se encontravam os pacientes hospitalares da
• pós-revolução estabeleceu o padrão de relacionamento entre médico e
paciente que veio até os tempos modernos. Os pacientes dos hospitais
franceses eram em geral ignorantes, soldados analfabetos acostumados à
disciplina militar e à obrigação do comportamento uniforme. Tinham
• pouco ou nenhum senso de privacidade e estavam acostumados a ser
tratados com rudeza pelos oficiais superiores. E por terem vivido em
acampamentos militares, a falta de privacidade das grandes enfermarias
l não era nada excepcional.
Com esses camponeses feridos começou a moderna reverência
L para com os doutores em medicina, que daí em diante passaram a igno-
rar seus pacientes. A medicina estava livre para se deslocar da terapia e
cura (o que queria o paciente) para o diagnóstico e classificação da doen-
ça (o que o médico queria). Mais uma vez se alargava o fosso entre o
especialista e o não-iniciado.
A atitude passiva da nova classe de pacientes gerou o estilo de trei-
namento da clínica médica, agora que cirurgiões e médicos em treina-
mento podiam espetar e furar, despir, examinar e receber obediência
instantânea de seus súditos. Essa afortunada — para os médicos —
situação contribuiu significativamente para a disseminação do ensino
240 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

de medicina em escolas como a Ecole de Santé, instituição tão prestigio-


sa que Cabanis demitiu-se do posto de embaixador nos Estados Unidos
para se tornar seu primeiro diretor.
Em 1802, um dos protegidos de Cabanis, Philippe Pinei, escreveu
Medicina clínica, livro no qual foram, pela primeira vez, estabelecidas
regras para o uso das estatísticas médicas. Pinei incentivava a observa-
ção reiterada do paciente, bem como o registro regular e uniforme dos
achados e a comparação dos dados ao longo do tempo, exatamente
como nas ciências pesadas. Pinei seguia a máxima de Laplace: "Para des-
cobrir o melhor remédio para uma doença, basta experimentar cada uin1
deles em um certo número de pacientes mantendo-se iguais todas as ,
demais circunstâncias. A superioridade do melhor tratamento mais cla-
ramente se manifestará à medida que cresce o número de casos."
A redução do indivíduo a uma unidade numérica manipulável
ganhou ímpeto adicional com a descoberta das unidades físicas básicas
por Xavier Bichat, aluno de cirurgia de Pinei. O objetivo de Bichat era
encontrar um elemento irredutível no corpo humano. Entre 1800 e l
1802, ele fez experiências com mais de 600 cadáveres, retalhando,
vendo, fritando, congelando e derretendo. Bichat era atraído pelo novo
movimento natural-filosófico que se iniciara na Alemanha como resulta-
do, ao menos em parte, dos primeiros trabalhos matemáticos de Gow
fried Leibniz. A medição das mudanças infinitesimais na aceleração dos'
planetas em órbita levou Leibniz à suposição de que o mesmo calculai
poderia ser feito para medir as unidades infinitesimais da matéria cons-'
tituinte da existência. Ele chamou essas unidades irredutíveis de "mor
das", consideradas pelo movimento filosófico-natural como o substrato
comum de toda a vida, a ligação última entre o homem e a natureza.
Bichat imaginou que essas unidades podiam ser observadas Cl
medidas como meio de estabelecer as leis matemáticas das formas de
vida, da mesma forma como Leibniz e Newton haviam feito para a cos-
mologia. As mônadas de Bichat eram tecido humano, identificado c
classificado em vinte e um tipos cuja descrição foi expressa na lingua-
gem da Revolução Industrial. Bichat descreveu os órgãos humanos '
como "pequenas máquinas na grande máquina" e mostrou que o teckfcj
formava a estrutura básica de todas essas pequenas máquinas.
A Anatomia geral de Bichat soa como um tratado sobre técnicas dei
produção fabril: "Analise com precisão as propriedades dos tecidas
vivos; mostre que todo fenómeno patológico deriva em última instância
I ORDEM MÉDICA

desses fenómenos; que todo fenómeno patológico depende do aumento


de seu tamanho; que cada fenómeno terapêutico deve produzir o retor-
241

no deles à condição inicial da qual se desviaram." Bichat havia inventa-


do a anatomia patológica.
Com a ajuda da estatística e da patologia, a medicina começava ago-
ra a fazer com a doença o que a classificação havia feito com a botânica, o
que a lógica havia feito com a discussão e o que a imprensa havia feito com
as línguas. A estatística e a patologia definiram a medicina e seus objetivos
nos termos de suas técnicas próprias, de modo que o que a medicina não
favestigava não era doença. E uma vez que o estudo da doença não envol-
via pessoas, ao contrário, implicava o distanciamento entre médico e
| paciente, outros presentes de fazedores de machados vieram viabilizá-lo.
Os termómetros já vinham sendo usados desde o século XVIII e a
temperatura padrão de aproximadamente 37°C já havia sido estabeleci-
da. No final do século XIX, um médico vienense com pendores musicais,
Leopold Auenbrugger, inventou a percussão e o apalpamento do peito
para identificar a posição do coração e o estado dos pulmões. Em 1816, o
tnédico francês Théophile Laennec inventou a "auscultação indireta".
Identificava os ruídos do peito com um cilindro rígido de cartolina enro-
|~bda e, mais tarde, utilizou exames post-mortem para correlacionar certas
alterações dos tecidos doentes com sintomas identificados em pacientes
TTVOS. Com a auscultação, Laennec era capaz de identificar enfisema,
•pdema ou gangrena nos pulmões, pneumonia e tuberculose, sem mais
ajuda do paciente do que uns poucos movimentos obedientes.
Em 1829, o cartão enrolado de Laennec transformou-se em este-
toscópio. O manual de patologia de Paris recomendou o seu uso, assim
como o da percussão, de acordo com um conjunto de instruções gerais
para diagnóstico: tome o histórico do paciente e de sua família, a histó-
ru da doença atual, o estado do paciente, detalhe o término da condição
e ;é claro!) divida cada categoria em diversas subcategorias.
A medicina logo encontrou formas de reduzir os dados sobre o cor-
po humano a muitas outras subcategorias. Em 1833, a química tornou
possível a análise da urina com o primeiro teste de albumina. Em 1841,
Becquerel analisou as quantidades de albumina, ácido úrico, ácido lático,
água e sais inorgânicos na urina, estimou estatisticamente a quantidade
de secreção por período de vinte e quatro horas e chegou a uma defini-
ção dos estados "saudável" e "doente". Em 1855, Vierordt usou um siste-
242 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

ma de pesos e um estilete para apresentar os dados do pulso em forma d


gráfico, e em 1844 a função respiratória foi medida com um espirômetH
Mas o microscópio foi de longe a mais eficaz tecnologia par.
tar-e-controlar o paciente. Em 1841, Gabriel Andral analisou o sang»
em suas propriedades visíveis, aspectos microscópicos e composiçâl
química, calculou as proporções de "glóbulos, material fibroso, sólida»
água no saudável e no doente", produzindo uma descrição numérica A
sangue a ser usada no diagnóstico.
A endoscopia permitiu que os médicos olhassem para dentro :
corpo. Em 1851 Helmholtz desenvolveu o oftalmoscópio e em 1855
professor londrino de canto chamado Garcia inventou o laringoscópi^
O otoscópio veio em 1856 e em 1858 espelhos e lâmpadas de queroseaj
foram acrescentados aos endoscópios. A nova palavra de ordem em
"Não ver é não acreditar." Mas só o médico podia olhar. Como resulta*
dessas novas técnicas o médico e os pacientes não eram mais iguais, pá
que agora era o médico e não o paciente quem decidia se a doença es*
vá presente. O médico não mais consultava o paciente, a não ser supa
ficialmente, e os instrumentos diziam coisas sobre o paciente que esÉ
não podia saber ou compreender.
Em 1868, Karl Wunderlich completou o isolamento do indivíduoaj
reduzir todos os dados relevantes a um único quadro padronizado i
guarda da cama. Depois de estudar 25 mil pacientes, Wunderlich
véu um clássico fazedor-de-machados chamado Sobre a temperatura
doenças, no qual detalhava trinta e duas condições e como elas afetav
a temperatura corporal do paciente. Sua máxima "a temperatura é a i
ca da doença" expressava aquilo que ele e muitos outros acreditavam«
a "lei da doença". O quadro de Wunderlich continha números sot
temperatura, o pulso e a respiração, de modo que num simples olhar (r
mo que o paciente estivesse inconsciente ou adormecido) qualquer i
co ou enfermeiro podia monitorar seu progresso e decidir o tratamed^J
A medicina ia se tornando uma ciência, como a química e a
à medida que a tecnologia tornava a doença tangível, visível e audi\
reduzia os dados de milhares de indivíduos a mapas e desenhos pac
zados. Os médicos podiam agora reforçar sua já considerável exck
dade compartilhando esses dados esotéricos entre si através de put
coes especializadas.
ORDEM MÉDICA 243

novas técnicas de corte-e-controle só começaram a fazer efeito sobre


do público em geral depois do surgimento, em 1831, da primeira
emia de cólera, que já havia matado cinquenta milhões de pessoas
ta seu caminho da índia à Inglaterra nos quarenta anos precedentes. O
lio de que a Inglaterra estivesse particularmente exposta aos terríveis
feitos da cólera devia-se ao fato de ser o país mais industrializado do
rondo na época. A população nacional cresceu de 9 milhões em 1800 a
pase 13 milhões em 1850, e entre 1801 e 1841 a população de Londres
bbrou, chegando a dois milhões de habitantes. Além disso, a população
t2 móvel, os pobres afluíam do campo para as cidades industriais em
ttsca de trabalho. Por isso, a doença espalhou-se rapidamente.
No fim do inverno de 1831, a cólera havia matado mais de 32 mil
ioas e as autoridades pareciam incapazes de detê-la. Foram tentadas
ias, purgantes, suadouros, óleo de rícino, conhaque, ópio, cataplas-
, enemas de tabaco e areia quente. As casas das vítimas eram caia-
encharcadas de vinagre, terebintina e extrato de cânfora, explodia-
Ivora e queimavam-se barris de piche. Mas era tudo inútil. No iní-
1832 houve distúrbios de rua porque a epidemia continuava a se
ar. Desde o ponto de vista das autoridades, o aspecto mais pertur-
r da doença era que ela parecia preferir os pobres e destituídos,
urrando-os à anarquia.
Davam-se muitas explicações para o desastre. Segundo um bispo
cano muito conhecido, a doença havia sido enviada para "elevar os
líritos e aperfeiçoar o caráter moral das massas", mas um certo clérigo
vá que se tratava do julgamento de Deus por ter o país, protestan-
desafiado o papado. Outro eclesiástico atribuiu a causa ao fato de os
tores terem votado em candidatos políticos judeus e da Igreja france-
e não nos membros da Igreja Anglicana. Mas a ideia mais bizarra veio
reverendo Theophilus Toye, vigário de uma igreja próxima ao epi-
•o da epidemia, no nordeste da Inglaterra, que anunciou que a cóle-
fora enviada para impedir que os homens se casassem com as irmãs
esposas falecidas.
O medo da desordem que podia sobrevir a uma epidemia incitou
vitorianos a se voltarem para o único meio disponível de enfrentar a
stão: se o problema não podia ser resolvido, podia pelo menos ser
ntificado. Em 1834, um servidor público com inclinações para a
tística chamado Edwin Chadwick foi designado secretário da
244 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

Comissão da Lei dos Pobres. Em 1836 o governo aprovou um inc


projeto de lei que criava um registro nacional de nascimentos, casar
tos e mortes para aqueles que não pertencessem à Igreja oficial (pr
palmente os membros da Igreja livre). Chadwick tratou de transfor
esta lei em um instrumento de coleta de informações estatísticas de.
ga escala que pudesse dar ao governo uma visão sinótica da situaç
social no país.
Chadwick conseguiu acrescentar uma cláusula vital no proje
exigindo a notificação da causa da morte. Em 1837, a lei criou o Cartc
de Registro Geral, cujos dados começaram a jorrar de 553 distritos t
toda a Inglaterra. Apoiado na força dos novos dados e no repentino ;
recimento do tifo (14 mil casos em Londres em 1838), Chadwick per
diu as autoridades a sancionar uma investigação de pequena esc
sobre a possível relação entre as condições sanitárias e a doença em i
co áreas pobres da capital: Wapping, Highgate, Stepney, Whitechap
Bethnal Green.
O relatório, divulgado no final daquele mesmo ano, apoiou a i
nião geral de que os pobres bebiam demais, negligenciavam a vacinaç
relutavam em entrar nos hospitais e não se lavavam suficienteme
Mas sugeria também que a causa da sua vulnerabilidade à doença
am ser as condições gerais em que viviam, rodeados das imundícies i
latrinas, cloacas e escoadouros estagnados, respirando os miasmas <
terrenos alagadiços, cemitérios e abatedouros desprovidos de drenag
e com pouco ou nenhum acesso à água limpa. O relatório assinalava í
essas condições podiam ser melhoradas com a construção de esg
abastecimento d'água e coleta do lixo, e com regulamentos da edifíc
que impedissem a superocupação do solo.
As autoridades ficaram alarmadas o bastante para darem o sinal i
de a Chadwick para produzir um relatório mais ambicioso, de alça
nacional, sobre as condições sanitárias das "classes laboriosas". Qua
foi publicado, em 1842, este relatório atingiu o coração da sociedade |
riana, provocando medidas que iriam criar uma forma de relação rac
mente nova entre o Estado e o cidadão, primeiro na Inglaterra e dep
em todos os países ocidentais. Tais medidas deram às instituições
cãs poderes sem precedentes sobre a vida privada do indivíduo.
O que chocou a classe média vitoriana foi a revelação das estarre
doras condições sociais existentes nas cidades industrializadas. Os sis
ORDEM MÉDICA 245

as de esgotos eram completamente inadequados, construídos que


i para populações muitas vezes menores do que as agora existentes,
: sempre constituídos de enormes cavernas de tijolos, de fundo pla-
. banhadas por um fio d'água e fabricadas com a finalidade principal de
jmular depósitos. A cada cinco ou dez anos, os trabalhadores dos esgo-
i abriam caminho pela alvenaria, retiravam o conteúdo e deixavam-no
ruas à espera dos carros de limpeza. Os "montes de ouro", como
i eufemisticamente chamados, chegavam a atingir vários pavimentos
í altura até serem levados pelas carroças para o despejo nos campos.
A higiene pessoal era quase inexistente entre os pobres. Geral-
ite, três casas compartilhavam cada uma das latrinas agrupadas ao
go das valas a céu aberto que corriam no eixo das ruas. Mais da meta-
• da água fornecida em caráter privado era repassada, suja e sem trata-
jnto, diretamente do rio ao consumidor. A maioria dos pobres não
ia água encanada e era obrigada a fazer filas em bombas públicas,
ficavam ligadas duas horas por dia e eram abastecidas por poços
litas vezes infectados pela inundação das cloacas. Mesmo as situações
loradas eram bem pouco melhores. Em Edimburgo, a companhia
abastecimento de água fornecia um galão por dia por pessoa, de
io que muita gente guardava água e a usava repetidamente até que
i servisse para limpar o chão.
As acomodações eram igualmente más. Em algumas cidades, qua-
tita pessoas chegavam a viver em uma única casa, com duas famílias
i cada quarto, e em Liverpool contabilizaram-se 40 mil pessoas viven-
i em porões, em grupos de até doze pessoas. Em 1840, havia 12 mil
sças de gado em Londres, e em Reading, uma cidade importante
da capital, havia perto de quatrocentas pocilgas espalhadas em
L500 casas. Porcos e vacas eram criados nos mesmos pátios abarrotados
c imundos onde as crianças brincavam, e, como consequência, grassa-
lam a tuberculose e outras doenças dos pés, da boca e dos pulmões.
Rua por rua, cidade por cidade, a análise de Chadwick, acompa-
nhada de estatísticas e ilustrações, mostrava que as doenças, infecções,
mortalidade infantil, viuvez e orfandade grassavam e que a vida dos
pobres era reduzida em pelo menos dez anos devido à falta de salubrida-
de e ao fornecimento de água poluída. Mas a classe média estava choca-
da mais do que tudo pelos problemas morais explicitados nos relatórios:
bastardia frequente, incesto comum, crianças forçadas a viver nas ruas
246 j O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

como pedintes e prostitutas. O relatório sugeria a necessidade de n


reforma urgente se se quisesse evitar uma revolução.
A capacidade que tinham esses relatórios de produzir provas es
tísticas de todos os tipos se devia, no essencial, aos esforços de \\ i&
Farr, assistente de Chadwick, que estudara a nova medicina estatísij
em Paris. Farr padronizou as estatísticas vitais e presenteou as autoJ
dês com uma valiosa ferramenta de corte-e-controle que ele chamo^j
"biômetro". Munido do biômetro, ele analisou por categorias os dai
de um distrito que qualificou de "saudável" (com uma taxa de mortahi
de de dezessete por mil): idade, número de pessoas atingindo certa x
de, número de mortos naquela idade e taxa de mortalidade e expecH
vá de vida em todas as idades. Os dados mostraram uma clara ligaç
entre a expectativa de vida média, nascimentos, mortes e taxa de mor
lidade. Se um distrito apresentasse variação em relação a esse padi
causa era o que Farr chamava de condições "passíveis de prevenção"
ta de higiene, superpopulação, dieta inadequada etc.).
Farr usou as estatísticas para mostrar, com grande precisão,
quanto mais próximas de um rio as pessoas moravam, mais probabil
de tinham de contrair cólera. Seu relatório apareceu justo na época<
mais uma epidemia de cólera, em 1848. Esta foi bem pior do que a j
meira. Matou cerca de 70 mil pessoas e convenceu as autoridac
aprovar a Lei de Saúde Pública e a Lei de Remoção de Flagek
Prevenção de Doenças. Essas novas leis deram ao governo poderes <
pulsórios, em situações de emergência, para efetuar remoções, limpi
de ruas, desinfecção de casas (com ou sem consentimento) e até a j
cão de uma pessoa infectada para um hospital isolado (com ou sem i
sentimento, também). As considerações de saúde pública iriam cai
intervenção direta do Estado na vida privada do indivíduo.
O medo de que os surtos de cólera ocorressem em "distritos:
ticos afastados" e depois se espalhassem para áreas mais saudáveis \
uma nova ofensiva de propaganda. Palestras no Working Men's Ce
de Londres agora incluíam discursos sobre "O modo como a lei de
e as leis dos homens afetam a saúde e a doença", ou sobre "A cólera t
desordem social". Em 1861, a Associação de Mulheres pela Difusãoi
Conhecimento Sanitário" distribuiu 140 mil panfletos sobre "O p<
da água e do sabão". Em uma carta pastoral, o bispo de Londres ad
tiu que era "certo que as pessoas mergulhadas na miséria e imune
ORDEM MÉDICA 247

sem esperança eram em sua maior parte inacessíveis à palavra de Deus".


Em 1856 foi revogado o imposto sobre o sabão. O preço caiu um terço e
em 1861 o consumo havia dobrado. A limpeza agora aproximava a graça
de Deus, e, como disse o sanitarista alemão Treitsche à sua turma na
V Diversidade de Berlim: "Os ingleses acreditam que sabão é civilização."
A máquina de propaganda da saúde entrou com força em ação,
tornando a higiene uma disciplina autónoma dentro da medicina.
Difundia-se agora a ideia de que a pele limpa era flexível, funcionava e
"respirava" melhor do que a pele suja, proporcionando "um repouso infi-
nitamente mais reparador, que dá a todo o corpo um novo vigor e ener-
í gja". Um médico francês chamado Clerget observou que os que mais
bofriam eram os que prestavam menos atenção às regras da higiene e da
Impeza. Clerget estava certo de que a limpeza traria pouco a pouco a
urdem social: "Limpeza pede limpeza; casas limpas pedem roupas lim-
pas, corpos limpos e, em consequência, moral limpa."
Um panfleto inglês sobre a higiene intitulado "A sujeira e uma
palavra sobre a lavagem" advertia: "O pobre trabalhador que pega sebo
Sniserável e cinzas e os transforma em sabão que destrói a sujeira está
mzendo um nobre serviço. É o que o Ser Divino faz com a natureza (...)
Suieira é veneno. (...) Ela se mistura ao sangue, e o corrompe. (...) O
k>mem normalmente sujo dificilmente pode ser religioso. Ele está que-
ffctando uma das primeiras leis da natureza. A limpeza de uma pessoa
.prepara a pureza do coração."
Uma outra abordagem do problema da saúde pública era a melho-
tàa da condição do indivíduo através da atividade disciplinada ao ar livre.
Havia a esperança de que, retirando-se das grandes aglomerações urba-
nas, as pessoas escapariam do contágio. Em 1860, a ginástica virou
•ioda, especialmente nas escolas. As British Schools' Boards ensinaram:
"Esportes viris, jogados como devem ser, tendem a desenvolver o espíri-
to abnegado, a determinação, o autocontrole e o espírito público." Me-
pinos que jogam críquete "para se tornarem melhores jogadores, tornam-
se meninos melhores".
Nas escolas privadas, os jogos se tornaram codificados e compulsó-
ios. O objetivo, como sempre, era ensinar as qualidades coletivas da
obediência, compromisso físico, aceitação das regras, trabalho em equi-
pe, resistência e firmeza, na perspectiva de que "meninos corajosos
fezem homens corajosos". Os novos esportes (e a introdução de exerci-
248 O P R E S E N T E DO FAZEDOR DE M A C H A D O S

cios nas salas de aula) também iriam melhorar a condição física i


homens, necessária para o serviço militar. Além disso, como defe
Chadwick, se as crianças fossem mais adaptadas, "três meninos faris
trabalho de cinco em uma fábrica".
Esta ênfase no esporte disciplinado foi promovida, principa
na Inglaterra e nos Estados Unidos, por um novo movimento cor
como "Cristandade Musculosa". Algumas escolas privadas inglesas, i
dadas pelo movimento, introduziram a ideia, que depois se disser
de dedicar metade do dia escolar aos esportes ao ar livre. Deus, ap
temente, amava o atleta (e além disso demasiados recrutas haviam í
rejeitados para o serviço militar durante a guerra da Criméia por me
de deficiência física). Como disse lorde Roseberry: "De nada va.e
império sem uma raça imperial."
Enquanto isso, a epidemia de 1853 provocava novas pesquisas<
as causas da cólera. Um detalhado estudo estatístico de John Snow
trou, um ano mais tarde, que a água contaminada das margens lonc
do Rio Tamisa tinha nove vezes mais probabilidade de causar cólera l
que a água retirada de uma fonte não contaminada, situada a mont
da cidade. Snow também provou conclusivamente que quando a
abastecida era filtrada, as taxas de mortalidade caíam dramaticamení
Em 1866, a última grande epidemia de cólera matou mais
mil pessoas e, em apoio à teoria de Snow, descobriu-se que mais de:
terço das mortes ocorria naquelas áreas de Londres que ainda não i
abastecidas de água filtrada. Com tudo isso, ninguém ainda sabia o i
era a doença, mas os esforços da quantificação estatística e o cor
social draconiano pareciam funcionar. O sucesso ditou o padrão da í
rã intervenção do Estado em casos que passaram a ser definidos
"questões de interesse público".

O valor das estatísticas e da probabilidade matemática para fac


determinação, previsão e controle do comportamento social ga
especial importância devido à crise de cólera e o risco de instabi
social generalizada que ela trouxe em seu rastro. No início do sé
XIX, a Alemanha, líder em estatísticas, ampliou a sua rede de cólera i
dados para obter informações que pudessem ser relevantes para a ac
ORDEM MÉDICA 249

•stração mais eficiente do comportamento social. As autoridades ale-


Bãs descobriram que seu poder de cortar-e-controlar a comunidade
^odia ser imensamente reforçado com dados da geografia, clima, econo-
cia, agricultura, demografia, doenças e história natural. A palavra "esta-
fenca" reflete o uso dos números pelo Estado.
Em 1826, Moreau de Jonnes escreveu que as estatísticas eram como
fbs hieróglifos do antigo Egito, onde as lições da história, os preceitos da
BÒedoria e os segredos do futuro eram guardados em caracteres misterío-
•ns". Parte da corrida às estatísticas do século XIX se deu sem dúvida por
lousa da desordem social que se seguiu à Revolução Francesa; na
bglaterra, as estatísticas pareciam oferecer uma ferramenta para contro-
fcr o desarranjo social causado pela industrialização acelerada.
O salvador da pátria das autoridades foi Adolphe Quetelet, um
atemático belga que estudou astronomia em Paris nos anos 1820 e
i influenciado mais do que todos por Laplace. Em 1835, O homem e
senvolvimento de suas faculdades: uma física social, de Quetelet, tor-
i-se um bestseller instantâneo. Nele, Quetelet descreveu a ferramen-
i estatística que tornaria o corte-e-controle social mais acurado do que
aça, um modo que inventara de reduzir a individualidade a uma nor-
: chamada "homem médio".
Usando terminologia e analogias oriundas da astronomia, ele ten-
i calcular a lei que governava o comportamento social nos mesmos ter-
; das leis de erro originalmente formuladas pelos astrónomos e mate-
icos para calcular as imprecisões criadas pelos instrumentos e fatores
;tivos na observação de fenómenos celestes. O homem médio, dizia
telet, era o análogo social do centro de gravidade da física, "o meio-
no em torno do qual flutuam os elementos sociais". Quetelet estava
nvencido do poder de previsão de seu sistema: "Seremos capazes de
• as leis às quais [os homens] têm estado sujeitos em diferentes nações
de seu nascimento, vale dizer, seremos capazes de seguir o curso dos
ftntros de gravidade de todas as partes do sistema."
Quetelet estudou as estatísticas sobre o crime na França e afir-
ÉDU: "Podemos dizer de antemão quantos serão falsificadores e quantos
rrão envenenadores, quase da mesma forma como se pode prever o
•imero de nascimentos e mortes (...). A sociedade contém os germes de

E s os crimes que serão cometidos, bem como as condições sob as


> eles se desenvolvem. É a sociedade que lhes prepara o terreno, o
250 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

criminoso é o seu instrumento." Quetelet produziu uma lei estatístic


que pretendia prever como continuariam no futuro as regularidacksj
comportamentais, alegando que estas surgiam da uniformidade subji
cente às condições e à dinâmica da sociedade.
Em 1833, o primeiro Comité de Estatísticas permanente foi foi
mado em Cambridge. Quetelet propôs que os ingleses criassem ujad
Sociedade Estatística nacional, cuja formação, em 1834, estimula
outros países a fazer o mesmo. A primeira conferência estatística Lntew
nacional seria realizada em Bruxelas, em 1853.
A Sociedade Londrina mostrou um interesse especial no tema d»
controle social: "A estatística busca apenas coletar, dimensionar e com-
parar aquela classe de fatos que, sozinhos, podem formar a base das cem
clusões corretas a respeito do governo político e social. (...) Como outra»
ciências, [ela] busca deduzir de fatos bem-estabelecidos certos principia
gerais que interessam e afetam a humanidade." Os esforços de Queteíet
se seguiram à busca de meios cientificamente confiáveis para alcançar J
ordem social através da manipulação preditiva do comportamento deJ
massa. Esta nova ciência se tornaria conhecida como "sociologia".
As epidemias e as condições sociais que tornaram tão devastadores!
os seus efeitos serviram para reforçar o controle do Estado sobre J
comunidade em geral. A institucionalização da saúde pública, ajudaJB
pelos desenvolvimentos da tecnologia médica, iria reforçá-lo ainda maaj
O impulso para descobrir a origem da doença iria, mais do que isscu
reduzir o status do indivíduo. A ferramenta necessária foi produzia»
entre 1825 e 1830 por J. J. Lister, um comerciante de vinhos londmm
entusiasta da óptica, que resolveu os principais problemas do microíc*
pio em sua época. Imperfeições nas lentes criavam comas, ou áreas ei»J
baçadas, no centro como na borda da imagem, o que levava a sérios errai
por parte daqueles que usavam os instrumentos. Em 1823, por exempla
Milne-Edwards havia afirmado que qualquer tecido, independente dm
tipo, era constituído de glóbulos de aproximadamente 1/300 mm de dá-J
metro. O microscópio aperfeiçoado de Lister usou uma série de lentz*j
de curvatura variada que cancelavam as aberrações recíprocas. Em 1521
o uso do microscópio composto de lentes triplas de Lister revelou quei
corpúsculos sanguíneos não eram globulares mas bicôncavos.
As descobertas se seguiram, muitas e rápidas. Em 1831, Matthi
Schleiden viu claramente os núcleos das células pela primeira vez. Ed
ORDEM MÉDICA 251

34, os movimentos ciliares das bactérias foram identificados por


irkinje. Ao mesmo tempo, Theodor Schwann examinava todos os
eidos conhecidos, confirmando o que parecia ser a unidade básica tão
idamente procurada pelos filósofos naturais da medicina. Em 1839 ele
;: "Existe um princípio universal de desenvolvimento das partes ele-
itares dos organismos, por mais diferentes que sejam, e este princí-
i é o da formação de células." A existência das células mostrou que a
não era um fenómeno dependente de uma "força vital" imensurá-
, mas uma entidade quantificável (e manipulável) como aquelas reve-
as pelas ciências físicas.
O avanço-chave da patologia celular foi realizado por um radical
lítico e físico alemão chamado Rudolf Virchow, tão influente que era
uhecido como o "papa da medicina alemã". Em 1848 ele disse: "Os
dicos são os advogados naturais dos pobres, os problemas sociais po-
riam ser, em larga medida, resolvidos por eles (...) A medicina é uma
icia social e a política não é mais do que medicina em larga escala."
Em 1845, Virchow publicou um clássico do paper fazedor-de-
chados sobre "A necessidade e a correção da medicina baseada na
iagem mecanicista", onde sustentou que a vida nada mais é, essen-
Jmente, do que atividade celular. As células, ele sustentava, eram a
lidade básica da existência, e a vida não era mais do que a soma de
5menos celulares que agora podiam ser submetidos a leis físicas e
liças normais. E se toda a vida são células, então a doença (sendo
ícões das células) não é nada mais do que vida em condições altera-
. Portanto, se essas condições pudessem ser evitadas, a saúde pública
dramaticamente melhorada. Graças a Virchow, o microscópio se
fiaria um novo instrumento de controle social.
Virchow estabeleceu uma outra conexão com as ciências físicas ao
crever a célula como "a molécula orgânica, análoga ao átomo quími-
»ou físico. (...) Não precisamos ir mais longe que a célula. Ela é a liga-
i última, sempre presente na grande cadeia de estruturas mutuamen-
; subordinadas que compõem o corpo humano". Virchow e seus con-
iporâneos acreditavam que a medicina tinha finalmente atingido seu
rçetivo reducionista. Mas ainda viria mais.
Os patologistas, à medida que aprendiam sobre os aspectos
roscópicos da doença, aumentavam seu controle sobre os clínicos
i hospitais. Na década de 1860, a divisão do trabalho entre os dois gru-
252 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

pôs estava bem estabelecida e movia ambas as disciplinas em direçâo;


uma maior especialização. Tão logo os clínicos perceberam que sem
diagnósticos podiam estar sujeitos a correção por meio de provas patdi
gicas, os hospitais tecnologicamente avançados trataram de organiza
mais "conferências patológicas" em que os clínicos submetiam seus di^fl
nósticos aos patologistas para confirmação. O diagnóstico dava muiíi
passos mais para longe do paciente.
Os fortes tons sociais dos pontos de vista de Virchow sobre a retí
cão entre a medicina e o Estado foram enfatizados por seu discíp J
Ernst Haeckel, cujo trabalho acabaria por influenciar Hitler. Haeckel f
lava das células como cidadãos respeitadores da ordem em um Kultum
taat ordenado, que cresciam e se tornavam mais poderosos graças à <
são do trabalho. Segundo Haeckel, as células formavam "repúblicas i
plantas e monarquias nos animais", os órgãos eram como ministéric
organismo como um todo era governado centralmente via sistema ne»
voso. Com Haeckel, a linguagem social penetrou o vocabulário méd»
através de termos como "território das células", "culturas", "colónias*
"migração de células".
O movimento final para reduzir o paciente a uma estatística á
feito por Robert Koch, clínico-geral de uma pequena cidade na Prúsãj
Oriental que tinha grande interesse em carbúnculos e que chegoc ao
maior presente da medicina através de um público insuspeitado. Eai
1850, urn parasitologista francês chamado Davaine relatara a transnd
são de carbúnculos em ovinos através do sangue dos animais já mor»
pela doença. Davaine havia encontrado organismos microscópicos em
forma de bastão no sangue de carneiros mortos e confirmou que carneí
ros cujo sangue não era portador desses organismos em forma de bastM
não ficavam doentes.
Em 1876, Koch isolou e fez a cultura do bacilo do carbúnculo, viind
produzir esporos no tecido dos animais, e viu os esporos, por sua vez, paf
duzirem novamente o bacilo. Koch descobriu que os esporos do cari;
culo podiam permanecer na terra durante meses antes de entrar no ;
gue de um animal e reatívar o bacilo, ocasião em que o animal
via o carbúnculo. Koch passou três anos examinando todos os aspectos«
ciclo de vida do bacilo e mostrou que podia infectar à vontade ar
saudáveis através de experiências, fornecendo a primeira evidência i
de que um microorganismo específico causava uma doença específica.
ORDEM MÉDICA 253

Em 1878, Koch publicou matéria sobre a bacteriologia das feridas


fefectadas e, percebendo que um grande número de bactérias podia
estar envolvido, avançou uma certa quantidade de regras para ajudar os
pesquisadores. Conhecidas como "os postulados de Koch", essas regras
definiram todas as futuras diretrizes para a investigação de doenças: um
Biicróbio podia ser aceito como causa de uma doença somente se esti-
nesse presente em quantidade incomum quando a doença estava ativa;
se pudesse ser isolado do paciente doente; e se causasse a doença quan-
b inoculado em um sujeito saudável.
Quando Koch elaborou novas técnicas para desenvolver bactérias
err: gelatina de algas, ele deu à medicina a capacidade de manipular a

»•atureza ao nível microscópico. Isto liquidou de vez com a necessidade


éa presença do paciente, porque o cultivo da doença e o posterior con-
trole de seu desenvolvimento não requeria mais do que uma simples
Jkpta de sangue.
O primeiro sucesso importante de Koch se deu em 1882, quando
fce anunciou os resultados de seu trabalho sobre a tuberculose. Naquele
I que ficou conhecido como "o dia D da história da bacteriologia", Koch
prlatou à plateia da Sociedade Fisiológica de Berlim como, em seis
peses de tentativas de isolar e identificar o bacilo (que era particular-
•Knte difícil de encontrar e cultivar) e trabalhando de acordo com seus
próprios postulados, ele provou que o bacilo causava a doença. Um ano
•BIS tarde, quando usou as mesmas técnicas na índia para encontrar o
pacilo da cólera, Koch ligou as duas culturas, a microscópica e a social,
«ientificando positivamente a fonte do bacilo em águas estagnadas e
rfectadas que haviam sido ingeridas e utilizadas para o banho.
No final do século, a nova ciência da bacteriologia de Koch havia
ntificado os micróbios responsáveis pela tuberculose, pneumonia,
te bubônica, carbúnculo, febre tifóide, tétano, difteria, gonorréia,
rã, gripe, lepra, actinomicose, malária, disenteria amebiana, febre
idiva e tripanossomíase.
Um colega de Koch, Paul Ehrlich, também descobriu que alguns
utos químicos que manchavam as bactérias matavam seletivamen-
algumas delas, usando-os então para desenvolver a primeira "cápsula
ágica" de Salvarsan, para tratar da sífilis. Ehrlich também introduziu a
ioterapia e criou o moderno ponto de vista de que o centro de aten-
da medicina devia ser a doença e não a pessoa.
254 ' O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

Graças às técnicas bacteriológicas, o diagnóstico podia agora


xar por completo os hospitais. Como dissera o grande diagnosticisia
francês Claude Bernard em 1877: "Bem dotada de dados coletados m
hospitais, a medicina pode agora ir para o laboratório." De início, a
novos laboratórios de patologia ficavam nos hospitais: no St. George ea
Londres, no Bellevue em Nova York e no Johns Hopkins em BaltimoseJ
Mas em 1893, os custos crescentes levaram à criação dos laboratório
públicos, o primeiro deles em Nova York, onde se fazia o diagnóstico)
difteria. Tubos contendo nutrientes eram distribuídos gratuitar
aos médicos, que punham na cultura o material retirado da garg
infectada e deixavam o tubo na botica mais próxima. O tubo era cc
do e no dia seguinte o médico recebia um relatório do laboratório.
primeiros três meses, o novo laboratório ajudou as autoridades da !
Pública de Nova York a identificar e tratar 301 de 431 casos de difte
Em 1895 o laboratório também fazia testes de tuberculose.
Os laboratórios de saúde pública trouxeram os presentes comi
dos do microscópio e da bacteriologia ao controle da saúde pública <
liquidaram com o envolvimento do paciente. Havia agora um núr
crescente de especialistas e instituições preocupados com a doença <
seu comportamento, para os quais os pacientes constituíam pouco i
do que uma fonte de material de estudo. Os sucessos nos laboratc
deram ímpeto aos esforços da saúde pública para o corte-e-controle i
doença na população em geral, graças aos dados disponibilizados
engenheiros sanitários, médicos, epidemiologistas, estatísticos vit
advogados, enfermeiros e administradores. Americanos que iam est
na Alemanha voltavam e ensinavam os novos métodos bacteriológ
Em 1901, a bacteriologia estava sendo empregada para estudar o ai
cimento de água e o esgotamento sanitário em Massachusetts. O es
mostrou que a febre tifóide era transmitida pela água poluída e,
resultado, provocou o desenvolvimento de métodos quantitativos
medir a presença da bactéria no ar, na água e no leite.
Um efeito social básico dos laboratórios foi desviar a atenção <
autoridades dos problemas mais amplos e difusos do abastecimei
d'água, da limpeza urbana, da reforma habitacional e das condições
vida. A bacteriologia era mais "moderna" e também mais fácil e barata i
administrar do que o ponto de vista tradicional da saúde pública. O i
ponto de vista epidemiológico foi expresso pelo diretor de epidemic
ORDEM MÉDICA 255

Centro de Saúde de Minnesota em um livro muito influente, A nova


pública. Ali ele afirmava que os modernos métodos científicos
muito melhores do que a antiquada visão da reforma social. Para
alar a tuberculose não era mais necessário melhorar as condições de
i de cem milhões de americanos, mas apenas supervisionar e contro-
rcs 200 rnil casos ativos e limitar seu potencial de infectar terceiros.
Em 1915, quase metade do primeiro Manual de Saúde Pública dos
ios Unidos era dedicada a doenças contagiosas, com seções muito
Dres para a higiene industrial, habitação, abastecimento d'água e
ação pública. Essa estreita visão bacteriológica da doença iria per-
der predominante durante décadas.
Graças à cólera, portanto, os fazedores de machados médicos do
i XIX criaram um novo instrumento de controle social através das
íidas de saúde pública que virtualmente suprimiram o direito indivi-
à privacidade em questões definidas (pelo Estado) como "de inte-
público". Antes, somente a religião havia penetrado tão longe na
do indivíduo. A ideologia do corte-e-controle servia à medicina
i uma luva, porque o diagnóstico e o tratamento requeriam a con-
idade do pessoal médico e a obediência do paciente.
Hoje, a sedutora atração do mundo dos médicos, com seus jalecos
icos, instrumentos brilhantes e presentes salvadores-de-vidas, foi
rsucedida na "medicalização" da sociedade, ao mesmo tempo que a
agem e a ética do hospital entraram na vida cotidiana. O médico é
•ovo xamã, estreitamente associado aos valores materialistas de
rões de vida crescentes, melhor saúde individual e crescimento da
stência comunitária. Acima de tudo, o médico representa o modo
itífico", objetivo, de julgar o comportamento social (em termos que
aram o vocabulário da medicina e das estatísticas) como "saudável",
sntio" ou "anormal".
Ironicamente, ao mesmo tempo que a atividade especializada mais
íitamente ligada às preocupações pessoais do indivíduo, a medicina
Ivez o mais esotérico e exclusivo dos campos de exploração científi-
, dado que os que mais se preocupam com a saúde (os pacientes) são
t que menos estão envolvidos.
Graças à revolução bacteriológica e à concentração reducionista
; fenómenos microscópicos, a dimensão humana da saúde é hoje jul-
i como inquantificável pela maioria das pessoas, tendo praticamen-
256 j O PRESENTE DO FAZEDOR DE MACHADOS

te desaparecida da medicina. Existe na ciência médica um lugar


para a totalidade humana e outro menor ainda para as culturas
dentais e sua maneira não-reducionista de compreender a relação
saúde individual e meio ambiente, porque os fazedores de ma*
ocidentais destruíram quase que completamente o vínculo entre
Com a medicina ocidental nós separamos o corpo humano da
ma maneira como separamos, através da história, o fazedor de madJ
dos do não-fazedor de machados, os súditos do deus-rei, o comunpJ
do padre, nação de nação e as pessoas da terra. Dissecamos e dividíJ
o mundo e seus habitantes para que eles possam ser manipulados cci
unidades económicas e políticas intercambiáveis entre si. Ao fazia
retalhamos o indivíduo do mesmo modo como picamos o planM
metendo o machado em partes específicas sem olhar para o todo. Ca
se pode ver, este processo nos trouxe à beira da catástrofe.
JUNTANDO O5
CAÇOE
Capítulo 10

O FIM DA
JORNADA

O que ainda resta da rica terra de outrora é como o esque-


leto de um homem enfermo; desperdiçada toda a terra
farta e doce, somente a nua estrutura permaneceu.
Muitos dos nossos montes foram antes colinas férteis e os
pântanos de hoje eram planícies plenas de solo rico; as
montanhas já foram cobertas de florestas e produziam
pastagens ilimitadas que agora só produzem comida para
as abelhas. E mais, a terra era enriquecida o ano inteiro
pelas chuvas, que não eram perdidas como agora, fluindo
da terra nua para o mar.

PLATÃO (QUINTO SÉCULO A.C.)


urante quase 120 mil anos, os fazedores de machados nos ajuda-
vam a realizar a grande viagem de colonização da Terra. Hoje nos apro-
ximamos do fim da jornada. Nas muitas ocasiões em que a comunidade
•cve de enfrentar desafios ao longo desse caminho, os fazedores de
michados ofereceram os presentes com os quais os enfrentamos e resol-
Lemos. Nossos líderes e instituições sempre aceitaram os presentes pelo
seu valor imediato, ignorando seu custo a longo prazo. Nas circunstân-
cias, o que mais se poderia fazer? Mas o problema era que um presente
ponduzia a outro. Os fazedores de machados se tornaram indispensáveis
com o passar do tempo e seus presentes atrativos demais para recusar,
porquanto os acontecimentos a cada vez conspiravam para nos conven-
cer de que o nome do jogo era: "Use-o ou perca-o para sempre".
O primeiro desses presentes apareceu quando o machado introdu-
pu um novo tipo de mudança de-uma-vez-por-todas nos processos cícli-
cos da natureza. O machado redirecionou também o desenvolvimento e
a seleção dos indivíduos nas sociedades humanas, provocando o surgi-
Biento de instituições como a chefia e a religião organizada que, dispon-
do do uso exclusivo do conhecimento fazedor-de-machados, adquiriram
c domínio da natureza e o controle da comunidade. Ao seu comando, os
machados cortavam uma faixa no meio ambiente onde quer que os
humanos chegassem, clareando o caminho e tornando mais fácil o nos-
so progresso.
No início, mal se notavam as marcas deixadas por nossos macha-
em meio às incomensuráveis riquezas do planeta. Por isso demos
jucá atenção à destruição, olhamos sempre em frente na direção de
um horizonte inalcançável. Mas podemos ter uma medida do que fazía-
mos há dezenas de milhares de anos a partir do último e mais bem pre-
servado registro do machado deixado no Éden. O acontecimento em
262 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

questão se deu há não mais de mil anos, quando os maoris chegaa


Nova Zelândia.
Na época, o animal predominante era o moa, um grande pá»
incapaz de voar. Pesava alguma coisa entre 10 e 200 quilos e, não hx
do nenhum mamífero ameaçador, ele assumiu o papel comiuaj
comedores de ervas e frutas. Os moas eram tão numerosos que ocnp
tes europeus posteriores tinham frequentes dificuldades para arar a (
rã por causa da quantidade de ossos deles deixadas. Mas passados
nhentos anos desde a chegada dos maoris, os moas da Nova Zela
haviam desaparecido. Evidências arqueológicas mostram que a i
moa era tão farta que sustentou os primeiros grupos maoris, que i
vam a ter cinquenta membros, sem necessidade da agricultura. Os s
ris se apossaram do moa como um lanche gratuito e só mais tarde i
brirarn que isso não existia.
E também queimaram grandes áreas de vegetação onde pouqu
mas espécies eram resistentes ao fogo, de modo que em poucas
nas de anos os ocupantes haviam transformado áreas de ecologia :
diversa em semidesertos. Só as samambaias cresciam, porque eram j
tentes ao calor e não precisavam do moa para espalhar suas semê
Tendo desfrutado no início uma dieta rica e variada, os ocupa
maoris se viram ao final condenados a viver de raízes de samambaia.
A destruição maori de seu próprio meio ambiente na
Zelândia é somente a última de um extenso catálogo de devastações i
lizadas pelas culturas da Idade da Pedra. A ilha da Páscoa, hoje de
pada e exposta aos ventos, foi um dia uma exuberante ilha subtrc
Na Austrália, a devastação foi ainda mais dramática depois que o i
nente foi ocupado, há cerca de 60 mil anos. Desde então, uns estir
86 por cento da megafauna (animais pesando mais de 44 quilos)
extintos. Nem todos os arqueólogos concordam, mas existem consi
veis evidências de que foram os humanos que varreram pelo menos'
grandes espécies vertebradas, incluindo um canguru de 2 mettuj
altura e uma tonelada de peso, um fascólomo do tamanho de um ríi
ronte e um casuar que pesava 100 quilos. Essas e muitas outras
locais eram relativamente desimportantes para os humanos pré-l'
cos porque seus benefícios a curto prazo suplantavam de longe
quer efeitos ecológicos negativos que, em todo caso, se dariam em •
O FIM DA J O R N A D A 263

zo longo demais para preocupar qualquer indivíduo de um pequeno


i em uma grande vastidão selvagem em qualquer futuro previsível.
Com o passar do tempo, a pronta aceitação dos presentes tornou-
costume que por sua vez nos ensinou a prestar atenção especial
fes que os ofereciam. Os machados também conferiam poder àque-
i poucos dentre nós que sabiam manejá-los para dominar a comunida-
por meio do mito e da mágica, ou de seu equivalente posterior, a
ncia e a tecnologia. Por causa disso, os fazedores de machados têm
i ao longo da história incentivados pelos detentores do poder a inovar
eles, sem quaisquer obstáculos. Este ato de interesse próprio por
te das instituições e autoridades tem sido geralmente mascarado pela
iadosa definição da atividade fazedora-de-machados como "livre
sstigação".
Em especial, os presentes tornaram mais fácil para os líderes
aliar o poder de moldar e governar suas comunidades por meio do
línio crescente da informação. Os que sabiam usar o bastão de
jntgaudier, as representações de mercadorias das montanhas irania-
a escrita cuneiforme da Mesopotâmia, o alfabeto da Grécia, o tipo
vel de Gutenberg e os símbolos da matemática e da medicina e da
icia eram em geral livres para agir como se a Terra fosse ainda tão ili-
ada quanto fora para os remotos fazedores de machados da África.
Em virtualmente todos os casos, no entanto, o uso do conheci-
rto fazedor-de-machados trouxe imediatos benefícios à comunidade,
: em favor deles abdicou do poder e da responsabilidade em troca de
lhe fosse assegurada a sobrevivência e um padrão de vida sempre
elhor. Este capítulo trata da maneira como esses belos presentes de
prazo geraram problemas desagradáveis a longo prazo devido à
ia como interagem, causando efeitos inesperados à medida que pro-
sram as inovações.

) breve catálogo de calamidades que se segue neste capítulo revela o


•amanho da corda que os presentes dos fazedores de machados nos
ideram para que nos enforcássemos. Os presentes mesmos não fizeram
•ada que causasse dano ou alarme imediato. Mas cada um que era acei-
to causava uma mudança na forma como os humanos viam sua relação
264 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

uns com os outros e com a natureza. A sociedade dispensava, delibi


ou inadvertidamente, descartava os valores antigos e adotava outrc
restrições comportamentais exigidas pelo uso de cada novo pré
pareciam relativamente menores, e em todo caso compensadoras,
do aos benefícios envolvidos. Mas os efeitos acumulados seriam:
Há doze mil anos, a agricultura foi uma solução rápida para
problema de curto prazo. Quando nossos ancestrais pararam de
se fixaram nas primeiras aldeias, os fazedores de machados der
novas comunidades o presente da sobrevivência por meio das tét
de cultivo dos alimentos. Uns poucos cereais locais se tornaram a i
dieta básica e o cultivo cuidadoso dos solos úmidos produziu as
tas que asseguraram a sobrevivência das novas comunidades,
tempo as colheitas se tornaram grandes o bastante para gerar exc
tes e, em consequência, a população começou a crescer.
Daí em diante, os fazedores de machados elevaram a cai
produtiva da terra com técnicas cada vez mais sofisticadas: a ii
egípcia assegurou a água quandofaltaram as chuvas; os arados ror
sulcaram os solos pesados das terras ricas do norte, tornando-as
veis; as novas forragens vegetais do século XVII nitrogenaram o
Holanda e fizeram triplicar a produção; cem anos mais tarde, a qi
criou fertilizantes para ajudar a alimentar as populações da Revc
Industrial que se multiplicavam.
Na década de 1950, o atendimento da demanda acarretou
coes nas técnicas de produção de alimentos que vieram a ter efe
colaterais inesperados e de largo alcance. Milhões de pessoas for
vás da morte no Terceiro Mundo pelo último milagre especialista, a <
mada "Revolução Verde", que introduziu variedades novas e altai
produtivas de cereais e arroz e propiciou saltos espetaculares na pr
cão de alimentos. As novas estirpes solucionaram uma variedade <
blemas locais devido à sua relativa insensibilidade às diferenças de t
e clima, extremamente variados em áreas semitropicais.
No caso do arroz, a nova variedade produzia safras maiores,:
quaisquer condições, porque os plantadores usaram um gene híbrk
variedades de arroz do Japão e dos Estados Unidos, além de prát
agronómicas padronizadas, para obter um talo curto e robusto e
espiga muito maior. Com fertilização massiva e água abundante, <
O FIM DA J O R N A D A 265

e-se um aumento de dois terços no ganho biológico total. Parecia que


B bons tempos haviam chegado finalmente.
A armadilha estava no fato de essa técnica ser um presente de faze-
br de machados que, para ter êxito, devia tomar o lugar das práticas agri-
das nativas. Portanto, a alternativa de aumentar a produção pelos méto-
bs tradicionais foi descartada como insuficiente para o curto prazo. O
lesenvolvimento de "tecnologias intermediárias", adaptadas às circuns-
íncias locais, não elevaria tanto a produtividade mas manteria a intensi-
bde do uso do trabalho e garantiria aos produtores locais sua indepen-
fencia em relação às importações. Mas as circunstâncias locais foram
pioradas, por motivos de curto prazo. Nenhuma iniciativa foi tomada
ãando à manutenção e ao reforço da dieta tradicional de grãos e legu-
•es do local. Aceitar as novas técnicas era aceitar a modernidade.
Toda objeção sócio-política local que pudesse inibir a introdução
bs novas técnicas eram classificadas como "entraves ao progresso". Em
966, o presidente norte-americano Lindon Johnson bloqueou a libera-
lo de recursos para o alívio da seca até que o país concordasse em ado-
m por completo o pacote da Revolução Verde.
No início da mesma década, o responsável pelas pesquisas e desen-
Dtvimento de novas estirpes de arroz na índia foi forçado por pressões
tíernacionais a se demitir, depois de nove anos de trabalho, por haver
rsistido a ceder idioplasma de arroz ao novo instituto de pesquisas da
iução Verde, nas Filipinas, e exigido publicamente restrições con-
B a adoção das novas variedades. Mas em geral houve pouca ou nenhu-
ta oposição ao esquema por parte dos agricultores locais, cujos interes-
ES eram tipicamente (e não de modo inatural) guiados pela necessidade
c ganhar dinheiro e sustentar suas famílias.
Nos anos 60, técnicas similares produziram uma variedade supe-
or de trigo que fez dobrar a produção da quase totalidade dos campos
icxicanos. Em 1967, as novas variedades de arroz foram produzidas na
•donésía. Em 1965, o trigo mexicano estava no Paquistão e em 1970
B responsável por metade da produção do país. De 1965 a 1970, a índia
•ou as novas variedades de arroz e trigo para elevar a produção em mais
t metade e em 1985 as novas supersafras forneceram mais da metade
b arroz e do trigo do Terceiro Mundo (em particular, mais de três quar-
» do grão latino-americano e quase todo o arroz da China). Entre 1965
266 O P R E S E N T E DO FAZEDOR DE M A C H A D O S

e 1980, a produção global desses dois géneros elevou-se em três qu


com 20 por cento de crescimento da terra cultivada.
O problema com as variedades da Revolução Verde é que i
ignorava a experiência dos agricultores do Terceiro Mundo com i
meio ambiente local e, ao contrário, levava-os a se apoiarem forter
em fertilizantes oriundos do Primeiro Mundo. De 1965 a 1975, o i
fertilizantes respondeu por mais da metade do aumento da prc
nos países em desenvolvimento, corroborando a afirmação feiti
1967 por Norman Borlaug (ele receberia, em 1970, o Prémio Nofc
seu trabalho com as novas linhagens: "Não há mensagem mais vi
que esta: os fertilizantes darão [à índia] mais alimentos."
Entre 1970 e 1973, a armadilha estava montada. Com o ,
aumento do preço do petróleo, os preços dos fertilizantes quac
ram enquanto o produto da Revolução Verde apenas dobrou. .1
teceu o mesmo em 1980. Enquanto isso, de 1950 a 1975, a área dei
cultivada em todo o mundo cresceu apenas um quinto, enquanto <
global de fertilizantes caros cresceu sete vezes.
As novas variedades vegetais também precisavam de mais et
e atenção do que as tradicionais. Plantá-las exigia mais maquinário,!
investimento de capital e, acima de tudo, mais moeda estrangeirai
pagar os extras ocultos. O efeito social de longo prazo, na índia, foi (
grandes áreas foram reservadas para a introdução dos novos v
causa do suprimento de água abundante, das infra-estruturas agríc
larga escala já instaladas e da pronta disponibilidade de qualifica
capital, com o que a produção concentrou-se nas mãos dos grandes i
deiros. Quando os preços dos fertilizantes derivados do petróleo SL
os pequenos fazendeiros foram obrigados a vender suas terras, ra2
qual os grandes fazendeiros se tornaram ainda maiores. Os trabal
desempregados liberados para o mercado mudaram-se então pá:
novas áreas urbanas em crescimento, aumentando as tensões sociais.
A Revolução Verde foi, em muitos casos, tão espetacular
bem-sucedida que reduziu radicalmente a variedade de produtos Ic
deixando o Terceiro Mundo dependente de umas poucas monocuir
vulneráveis a pragas e doenças. Em muitas áreas rurais, aqueles quei
haviam se beneficiado da Revolução Verde devido à escassez ou:
laridade do suprimento de água deixaram a terra para encontrar)
cidades nada além do desemprego. Acima de tudo, a Revolução V<
O FIM DA J O R N A D A 267

colocou o Terceiro Mundo em débito com o Ocidente por causa da


importação de energia, pesquisa, matéria-prima, transporte marítimo,
|»ocessamento, marketing e maquinaria.
A atual situação precária da agricultura talvez se deva ao fato de
que, graças aos sucessos espetaculares da agricultura científica, 90 por
centro do alimento mundial é agora derivado de apenas oito espécies
. animais e quinze espécies vegetais. Conseqúentemente, a base genética
| das futuras fontes alternativas de alimentos foi drasticamente reduzida,
i da mesma forma que a base de conhecimento tradicional, fornecedora
das futuras técnicas alternativas. Uma vez mais, o ganho de curto prazo
é pago em consequências de longo prazo.
A técnica da irrigação foi outro presente salvador que mudou nos-
atitudes, há cinco mil anos. Quando os primeiros sistemas de irriga-
o e suas técnicas de administração foram desenvolvidos na China,
[ Egito, Mesopotâmia e no Vale do Indo, eles alimentaram e organizaram
Micentracões populacionais cada vez maiores, provocando o início da
ivilização.
Desde então, os engenheiros têm assegurado suprimentos de água
ipre maiores: os shadufs (antigos alcatruzes egípcios com contrape-
s) elevavam água; barragens e canais supriam uma ampla gama de
áquinas medievais movidas a água; bombas de sucção extraíam a água
Renascimento; os poços de hoje são mais profundos do que nunca
ças às brocas de carborundo; enormes volumes de água estão dispo-
reis nos reservatórios para a produção hidrelétrica e a irrigação; até
smo os rios foram desviados para abastecer países inteiros. E todas as
ss, as técnicas promoveram o aperfeiçoamento material da vida para
i número cada vez maior de pessoas.
Mas no século XX a demanda de água cresceu a tal ponto que as
ites perenes estão sendo drenadas mais rápido do que a natureza é
de repor. O resultado disso é que a água é hoje talvez o recurso
i escasso da Terra. Um terço de toda a produção global de alimentos
L de 17 por cento de toda a terra irrigada do mundo. Na China, Japão,
iia, Indonésia, Israel, Coreia, Paquistão e Peru a terra irrigada produz
ade do produto nacional. Setenta por cento da água doce tomada do
hidrológico global, usada pela agricultura, é essencial para os 35
• cento da terra global que sem ela seria deserta. A área total irrigada
sceu um terço nos últimos vinte anos.
268 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

As previsões não são boas. O uso global de água, domést


industrial, quadruplicou desde 1950 e espera-se que a demanda d
até o ano 2000, ficando a maior parte do consumo extra a cargo da
sés em desenvolvimento. No ano 2000, espera-se que os racionarei
de água afetem 450 das 644 cidades das planícies do norte da Q
onde a demanda ainda excede a oferta. A escassez é hoje comum <
países, incluindo a Rússia, o Oriente Médio, partes da índia, a Áf
sudoeste dos Estados Unidos. Na Grande Planície americana, o i
to subterrâneo gigante de Ogallala, formado durante a última Ic
Gelo, está sendo rebaixado a uma taxa de seis pés por ano: doze •
mais rápido do que as taxas de reposição. Enquanto isso, polít
preços que não incluem custos sociais ou de substituição a longo p
convidam o norte-americano médio a gastar quatro vezes mais á§
que o suíço médio e setenta vezes mais do que um ganes.
Há mais de 70 mil anos, os presentes especializados dos fa
de machados asseguraram a sobrevivência das populações costeiras t
arpões, anzóis e redes de pesca. Ao longo dos séculos passados
então, retiramos alimento do mar em quantidade sempre maior gr5z
melhores navios, navegação mais segura, previsão do tempo, rac
muitas outras invenções industriais, que tornaram mais fácil si
oceanos em busca de suas ricas colheitas. Usamos também os
como terrenos baldios para jogar o lixo gerado pelas indústrias.
Hoje, em consequência, a produção de peixe está caindo e os<
nos estão morrendo. Segundo a Organização das Nações Unidas
Alimentos e a Agricultura, quatro das dezessete zonas de pesca do i
do já estão superexploradas. Entre 1950 e 1990, a captura quadruf
e muitos acreditam que ela atingiu o limite mundial de sustentabilk
A contaminação também está causando grandes problemas i
águas salgadas e doces. Depois da construção da represa de As
Egito, em 1965, a descarga natural do Nilo praticamente cess
efeitos catastróficos para os pescadores do Sudoeste do Medit
Na Baía de Chesapeake, um dos estuários mais ricos do mundo, a ;
cão reduziu a produção dos bancos de ostras de oito milhões de ale
rés por ano há um século para um milhão de alqueires nos anos 80.
As atividades humanas que envolvem desflorestamento,
cão, dragagem e erosão produzem sedimentos que enchem os reser
rios, lagos e rios. Sedimento contendo nutrientes, como fertili
O FIM DA J O R N A D A 269

isam massivas florações de algas e, conseqúentemente, altos índices


: mortandade de peixes. A sedimentação também provoca uma condi-
i fatal em recifes de coral chamada "branqueamento". Ela foi observa-
ipela primeira vez em 1987, no Caribe, mas agora aparece no mundo
•iro, e mais severamente na Ásia. Embora os recifes cubram apenas
' por cento da superfície oceânica, eles sustentam uma ampla diver-
je biológica e o alimento que fornecem pode sustentar um quarto
• todos os tipos de peixes do mundo em desenvolvimento. Com as
ais taxas de destruição, estima-se que os outros dois terços dos recifes
i mundo serão perdidos nos próximos quarenta anos.
Há seiscentos mil anos, um dos primeiros grandes presentes
)is do machado foi o fogo. O calor mantinha o inverno sob controle
íkitroduziu a mágica do alimento cozido. Nos milénios seguintes, as
stas foram despreocupadamente podadas para a obtenção de com-
ivel, porque se acontecesse de alguma tribo viajante retornar ao
smo lugar, ela sempre estaria recomposta por si mesma.
Na época do Império Romano, o suprimento de madeira combus-
sl escasseou, e na Europa medieval já se cavavam minas de carvão a
aberto em busca de combustível alternativo. Mais tarde, no século
í, físicos e químicos como Nicola Tesla e Benjamin Silliman ganha-
o dia com os geradores elétricos e o petróleo, que forneciam supri-
tos aparentemente ilimitados de energia. Uma vez mais, parecia
: o céu era o limite.
Hoje não acreditamos, mas nesse meio tempo o efeito do consumo
controlado de energia tem sido globalmente devastador. O consumo
sce com virtual inobservância das suas consequências. Os Estados
ios usam um quarto do suprimento global de energia embora pos-
a vigésima parte da população mundial, enquanto o Terceiro
uido, com mais de três quartos da população do planeta, quadrupli-
i seu consumo de energia desde 1960. Em 1991, os EUA consumiam
i quarto da produção mundial de carvão, petróleo, gás natural e eletri-
ie. Estima-se que se as atuais taxas de consumo global se mantive-
i, as reservas de petróleo durarão apenas cinquenta anos e as de gás
ias dois séculos. O carvão durará cerca de 3 mil anos, mas muito
as países do Terceiro Mundo o possuem.
No século XVIII, os sistemas de produção em massa de Watt,
i, Priestley, Lavoisier e outros causaram o surgimento de inovações
270 ' O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

industriais que iriam provocar o atual uso massivo de eneqgB


Revolução Industrial aconteceu para satisfazer a demanda de bem
uma população em rápido crescimento, que comia bem e tinha i
filhos devido aos anteriores aperfeiçoamentos dos produtos agrícotai
Por toda a Europa, a energia hidráulica deu lugar ao vapor, e
resultado os manufatureiros podiam locar suas linhas de prod
campos de carvão e deslocar os trabalhadores para as fábricas. N
de trabalhadores agrícolas afluíram do campo para as novas ci<
busca de todos os benefícios que o salário regular podia :
enquanto a propriedade fundiária concentrava-se em mãos ciei
número menor de pessoas e o desemprego rural crescia. Em quaiÉ
caso, a vida na fazenda não era nenhum piquenique e as cidades ••
triais eram lugares mágicos onde as pessoas podiam enriquecer
mente. Infelizmente as ruas não eram calçadas de ouro, apesar
diziam as baladas irlandesas. A curto prazo, os padrões de vida
dramaticamente, mas logo as condições insalubres e a superpo;
prevalecente nas cidades industriais provaram ser fatalmente a
para o bacilo da cólera. Centenas de milhares morreram do que
havia trazido o seu novo estilo de vida industrial assalariado.
Hoje os fazedores de machados já resolveram muitos daqueles
blemas de saúde criados com a industrialização, mas os efeitos da
cão em massa podem ser observados nos níveis de poluição que
çam todas as partes do planeta. As estimativas globais de 1990 in
a liberação, na atmosfera, de 9 milhões de toneladas de dióxido
co, 68 milhões de toneladas de dióxido de nitrogénio, 57 m
toneladas de partículas em suspensão e 177 milhões de toneladas
xido de carbono. A poluição do ar está agora definitivamente lig
aumento da incidência de doenças cardíacas e pulmonares e, per™.
áreas altamente industrializadas, a poluição também causa danos
ga escala à vegetação e à vida selvagem. Poluentes gerados pelo
estão agora concentrados nos países industrializados, onde desde l
frota de veículos cresceu dez vezes e poderá, segundo as prev
dobrar nos próximos vinte anos.
Os limiares de risco da qualidade do ar são frequentemente
didos em muitas das grandes cidades. Nos casos de Los Angeles, T
e México, as concentrações geralmente excedem quatro vezes as
zes da Organização Mundial de Saúde. A Cidade do México é um
O F I M DA J O R N A D A 271

particularmente extremo, onde cinco e meio milhões de toneladas de


contaminantes são liberados para a atmosfera por 36 mil fábricas e mais
de três milhões de automóveis. Em 1988, mais da metade dos recém-nas-
cídos na cidade carregavam na sua corrente sanguínea chumbo bastan-
te para causar danos neurológicos e motores. Um estudo de 1992 reve-
lou que a quantidade média global de nanogramas de chumbo absorvi-
dos diariamente na corrente sanguínea do adulto cresceu, entre os tem-
pos paleolíticos e os dias de hoje, de 0,3 para 6.400 no ar, de 2 para 1.500
na água e de 210 para 21.000 na comida. Tudo em nome do progresso.
A OMS relata que mais de seiscentos milhões de pessoas estão
expostas a níveis perigosos de dióxido sulfúrico decorrente da queima
í combustível fóssil. Estima-se em US$ 40 bilhões os custos de assistên-
i à saúde devidos à poluição e à produtividade perdida. A Rússia é um
mar de problemas. Em 1993, estudos revelaram que uma em cada dez
crianças sofria defeitos de nascença e mais da metade das crianças em
idade escolar tinha problemas de saúde relacionados com a poluição. Os
índices de doenças e mortes prematuras ainda cresciam no grupo etário
de 25 a 40 anos e a expectativa de vida declinava.
O despejo de lixo industrial também tem contribuído, desde 1993,
para a poluição geral. Uma centena de toneladas de metais pesados tóxi-
cos e trinta toneladas de matéria química tóxica afluem do Reno ao Mar
éo Norte a cada dia, enquanto, desde 1985, os níveis de trítio que en-
tram no mesmo mar vindos do Rio Meuse cresceram em três quartos.
Cem quilómetros quadrados estimados do Mar Báltico são um depósito
He lixo ecológico sem nenhuma vida até 80 metros de profundidade, o
que o torna um dos mares mais poluídos do mundo, graças principal-
liKnte a efluentes vindos de fábricas, fazendas e residências. O Mediter-
tâneo recebe um total anual de 12 milhões de toneladas de lixo orgâni-
po, 320 mil toneladas de fósforo, 800 mil toneladas de nitrogénio, 100 to-
•eladas de mercúrio, 38 mil toneladas de chumbo, 2.400 toneladas de
•momo, 21 mil toneladas de zinco e 60 mil toneladas de detergentes. Gra-
|cas ao presente original que tornou possível a produção em massa de
Ifcens em massa, nós agora vivemos em um meio ambiente perigosamen-
[te degradado.
Em termos do que poderíamos chamar de "marca-machado", cada
•ovo instrumento vem deixando, desde os tempos pré-históricos, seu
legado individual de curto prazo, na forma de áreas de florestas destruí-
272 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

das pelo corte-e-queima ou retalhadas para a retirada de


bustível, de dezenas de quilómetros quadrados de terras es
montes de escória oriunda da mineração do carvão, de um rio c
do por efluentes fabris, de uma pequena cidade poluída pela fui
chaminés das fábricas. Mas o mundo moderno está agora tãc
nectado que esses efeitos locais começaram a formar padrões
destruição que penetram a mais fundamental fonte de susfc
planeta, a qual vai sendo rapidamente degradada pelo efeito
de ingenuidade: a terra.
Três mil anos são necessários para a recomposição natural
polegadas de solo superficial necessárias para o cultivo. A perda
polegada de solo pode reduzir em seis por cento a produção de
trigo. Todo os anos, seis milhões de hectares de terra arávd
degradados pela perda de solo que têm de ser abandonadc
degradação do solo ocorrem principalmente devido aos efeitos
sobre a terra depois de arada, da mineração, ou do fluxo que 9
remoção da cobertura florestal. Isto está agora afetando mais
de toda a terra do planeta e reduzindo a capacidade produtiva
cultiváveis entre 25 e 100 por cento. Um quinto de toda a
vel foi irrecuperavelmente perdida devido à degradação, bem
quarto das terras antes biologicamente produtivas mas até
cultivadas. Desde 1984, a área total destinada à produção paro»
mente de crescer. Mas o número de bocas para alimentar, não.
Calcula-se que a remoção de solo superficial desde l
ordem de quinhentos bilhões de toneladas, uma taxa de
quarenta vezes mais rápida do que o ciclo de substituição na
índia, a quantidade anual equivale à área do Estado de IV.'
A perda tembém ocorre devido à desertificação, falta de água,
desmatamentos, que fazem com que anualmente 21 milhões
rés de terras (onde vivem 850 milhões de pessoas) se to
demais para usar. O crescimento da área irrigada total em
últimos dois séculos gerou também maiores problemas de
da mesma forma que o crescente rebaixamento das fontes de
A terra é o recurso definitivo e nós a estamos perdendo rap
O mais antigo de todos os presentes que vieram para
sorte da humanidade surgiu há dois milhões de anos. Trata-se
do, ao qual este livro é dedicado. Com o machado fizemos os,
O FIM DA J O R N A D A 273

madeira que nos ajudaram a sobreviver: abrigos, armas e cabos para


ramentas de todos os tipos. Com o crescimento da população (e com
i a necessidade de mais de tudo), a madeira se tornou a matéria-prima
idamental da construção. E, tendo os fazedores de machados forneci-
i os meios para construí-los, e colocá-los no mar, o segundo grande uso
í madeira foram os barcos e flutuantes.
Até há pouco na história, as viagens terrestres eram impossíveis
; períodos de mau tempo, que duravam meses, e por isso a maior par-
te da atividade comercial tomou o caminho dos mares. Não chega a sur-
snder, portanto, que os núcleos populacionais se desenvolvessem ao
igo da costa e que logo começassem a sentir fome de madeira. Já na
récia Antiga os decretos governamentais indicavam uma crescente
ocupação com as perdas de florestas. No século XVII, quando a cons-
jção de uma frota marítima demandava mil carvalhos, havia por toda
iuropa proibições oficiais do uso das florestas para outros propósitos.
Tais dificuldades históricas localizadas empalidecem de insignifi-
icia, no entanto, ao lado dos problemas de hoje, quando as florestas
aparecem diante de implacáveis serras elétricas. A perda média
de 1700 até hoje, equivale ao território da Suíça, porém mais da
tade da perda total se deu depois de 1950. Só na década passada a
rda foi igual ao território da Malásia, Filipinas, Gana, Congo e
quador juntos. As estimativas mais otimistas são de que a África já per-
três quartas partes de suas florestas climáticas originais e a Ásia dois
cos.
Em países densamente florestados como o Brasil, o corte-e-queima
da expansão agrícola descontrolada e a apropriação de terras para o
assentamento de populações são a causa de grandes desflorestamentos.
3 mesmo ocorre na índia e Java. Muitos países em desenvolvimento
gravemente endividados também começaram a lançar mão da venda de
suas florestas.
Com o crescimento da população e a limitação das fontes nativas
de energia, os países do Terceiro Mundo retalharam as suas florestas
também para a obtenção de madeira combustível, pois não podem pagar
o carvão, o petróleo e o gás importados. Um círculo vicioso se desenvol-
ve: ganhos de produtividade agrícola insuficientes, causados pela distri-
buição desigual da terra e pela introdução de métodos ocidentais de alto
custo, tornam necessário um desflorestamento crescente com devasta-
274 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

dores efeitos a longo prazo. Devido a este tipo de desfloresrai


vertentes de captação do Himalaia, 500 milhões de pequenos
rés hindus e paquistaneses vivem agora em um regime de
seca.
Com o desaparecimento das florestas, ecossistemas in
sendo transformados em "ilhas" biológicas isoladas. E a
suas ligações vitais com outros ecossistemas estão causando o
flora e da fauna. O número total de espécies existentes é de
mas acredita-se que seja da ordem de 30 milhões, um terço
vive nas florestas tropicais. Na floresta úmida peruviana, por
um certo tipo arbóreo é o habitat de 43 diferentes espécies de
Essa diversidade biológica está sendo drasticamente reduzida
os lugares pela extinção em massa provocada por poluição, chi
inundações, degradação de terras e desflorestamento.
A raça humana vai assim eliminando formas de vida e a
interativa da ecosfera torna difícil avaliar seu efeito global. Algam
mativas consideram que essa perda ocorre hoje num ritmo dez ai
mais veloz do que antes do advento da raça humana. Se asszn: £,
mós perdendo espécies em uma velocidade sem precedente, a
brados e pássaros desaparecendo a uma taxa de cem a mil veaa
rápida do que a natural. E nós prosseguimos assim, embora na»
mós se o que está acontecendo é catastrófico ou o próprio i
O maior perigo da perda das florestas tropicais é que elas
historicamente, fonte de reabastecimento genético após as
naturais que tendem a acontecer a uma taxa média de urnas |
espécies a cada milhão de anos. Com as atuais taxas de derrubada^
da de florestas tropicais nos próximos trinta anos poderá ser da
de 15 por cento. A perda de florestas sul-americanas poderá endS
responsável pelo desaparecimento de 15 por cento de todas as
vegetais e mais de 70 por cento dos pássaros existentes. O Silent
de Rachel Carson se tornará realidade.
Os efeitos mais importantes dentre aqueles causados pelos
tes dos fazedores de machados sobre o planeta foram talvez :
Revolução Industrial. Ela causou, a partir do início do século llH
rápida elevação dos padrões de vida e conquistas para todos, l
imensa onda de consumo de combustíveis fósseis para alimer
rés a explosão e gerar eletricidade causou mudanças imperce
O FIM DA J O R N A D A 275

osfera, devido à geração de uma quantidade crescente de dióxido de


•bono.
Este gás (e outros, como o metano) captura a energia solar existen-
na atmosfera, impedindo-a de irradiar-se de volta para o espaço. A
osfera então aquece, processo conhecido como "efeito estufa",
maioria dos especialistas crê que se parássemos imediatamente a
emissão desses gases, a quantidade de calor acrescentado pelo efeito es-
tufa ainda causaria um aumento da temperatura média entre 4 e 7 graus
Fahrenheit.
Mas o ecossistema é tão interativo que os mecanismos retroali-
tadores poderiam reforçar em muito o efeito dessa quantidade apa-
temente inócua de calor adicional. E ele não é tão inócuo quanto
cê. Os seguintes eventos foram gerados no passado por uma eleva-
da temperatura global média de apenas 7° F: a descida dos homens
árvores há mais de 13 milhões de anos; a última Idade do Gelo há
mil anos; a colonização da América a partir da Sibéria pré-histórica
cerca de 18 mil anos; o nascimento da civilização no Oriente Médio,
índia e China há 6 mil anos.
No passado recente, o COz gerado pelos combustíveis fósseis pro-
veio principalmente dos países industrializados (mais de dois terços da
emissão global em 1990), mas, se as populações do Terceiro Mundo con-
tinuarem a crescer no ritmo atual, a sua emissão terá mais que dobrado
em 2025, elevando em cinquenta por cento a taxa global. Prevê-se que
haverá o dobro de gases de efeito estufa em 2025.
As possíveis consequências do efeito estufa deveriam preocupar a
todos. O derretimento das calotas polares causaria a elevação do nível
do mar e grandes florestas morreriam devido à incapacidade de as espé-
cies vegetais se adaptarem à elevação da temperatura. O mesmo seria
verdadeiro para a produção agrícola. Uma pequena elevação da tempe-
ratura do mar causaria tempestades maiores e mais frequentes no
Sudeste da Ásia, Austrália, Caribe e Costa Leste dos Estados Unidos. O
aquecimento global poderia causar também a degeneração e morte do
Fitoplâncton oceânico que retira da atmosfera três bilhões de toneladas
de carvão por ano, deixando-o no ar para alimentar ainda mais o efeito
estufa. E a elevação do nível do mar causaria grandes deslocamentos e
mortes entre os dois terços da população mundial que vive nas terras
276 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

baixas costeiras. Mais uma vez, não sabemos exatamente o quanto


coisas vão mal, mas continuamos fazendo.

Todas essas causas e efeitos do corte-e-controle descontrolado


quais fomos indulgentes ao longo da história trouxeram result
lamentáveis. Mas um fator está sempre presente, tornando as coisas;
da piores: o crescimento populacional. Ironicamente, o aumento*
quantidade de seres humanos era até bem pouco tempo conside
como o maior dos grandes sucessos, porque assinalava o surgimer
métodos cada vez mais eficazes no combate contra a morte causada |
fome e pela doença. Em todos os momentos do passado, popi
maiores e mais saudáveis, sempre mais bem alimentadas, vestidas e;
gadas eram o mais convincente argumento para aceitar todas as ofai
dos fazedores de machados.
E no caso do crescimento populacional, dada a natureza sernfi
mais interativa do mundo, os presentes funcionaram muito bem. Ap
os primeiros benefícios em alimentos, calor e abrigo, as taxas de sobrei
vencia aumentaram significativamente, mesmo em épocas prir
graças ao conhecimento do valor medicinal das plantas. Na época <
gregos, uma variada farmacopeia natural curava males e salvava
No Renascimento, novas técnicas cirúrgicas foram desenvolvidas
a passo com os grandes avanços da anatomia.
Os espetaculares avanços bacteriológicos do início do século
derrotaram a maioria das doenças respiratórias, a febre tifóide, a vá
a difteria, a malária e a maior parte das doenças parasitárias. Dur
II Guerra Mundial, novas técnicas de saúde pública foram impleme
das em larga escala para proteger as tropas aliadas, especialmente as <
serviam nos trópicos e no Extremo Oriente. O problema da malária e«
febre amarela foi atacado por meio da imunização e vacinação em i
sã, bem como pela introdução da fumigação em larga escala dos fo
potenciais de malária. A tecnologia ocidental foi também introdt
para a drenagem das terras tropicais paludosas e o controle de epider
com o uso massivo do DDT.
Depois da II Guerra Mundial, a disseminação dessas técnicas;
retou mudanças que tornaram a vida ao mesmo tempo dramaticar
O F I M DA J O R N A D A 277

melhor e desastrosamente pior. A taxa de mortalidade caiu como uma


l pedra nos países do Terceiro Mundo, com a virtual eliminação das pra-
gas e da pestilência em uma única geração. O mundo estava repentina-
mente muito mais saudável. Este bocado de boas novas foi seguido de
uma repentina e espetacular elevação do crescimento populacional.
O inevitável resultado é que a raça humana se aglomera hoje em
grupos cada vez maiores. Em 1950, a Cidade do México tinha 3,1
milhões de habitantes, mas em 1989 este número havia crescido para 19
milhões, com uma densidade populacional quatro vezes maior que a de
Londres. Calcutá cresceu de 4,5 milhões em 1950 para mais de 10
milhões em 1994. A maioria dos países asiáticos espera dobrar a popula-
ção urbana até 2010 e em 2025 haverá 639 cidades com mais de um
milhão de habitantes, 486 das quais no Terceiro Mundo. Nenhuma des-
sas cidades será capaz de sustentar e abastecer de água, esgotamento
sanitário e deposição de lixo as suas populações, que viverão em uma
pobreza abjeta em meio a doenças. Boas notícias?
Cem milhões de pessoas espalhadas por todo o planeta são hoje
sem-teto, 490 milhões sofrem de desnutrição grave, 800 milhões delas
são analfabetas e 360 milhões não têm trabalho. O padrão de pobreza
absoluta de 1992, equivalente a uma renda anual de menos de 500 dóla-
res, atinge 750 milhões de pessoas, a maioria das quais vive na África.
Inovações com pouca ou nenhuma observância dos efeitos sociais de
longo prazo trouxeram a raça humana ao limiar da superpopulação pla-
netária. No ano 2000, 40 por cento da população enfrentará uma grave
escassez de terra e 1,2 bilhão estará sob risco de fome. Enquanto os
Estados Unidos gastam US$ 5 bilhões por ano com dietas, o cidadão
médio de um país industrializado consome duzentas vezes mais recur-
sos do que o do Terceiro Mundo.
As previsões populacionais são catastróficas porque mesmo que as
taxas mundiais de natalidade tenham caído de fato nos últimos anos, o
um bilhão de seres humanos ainda situados abaixo da faixa dos quinze
anos, que irá crescer e ter filhos, significa que a população provavelmen-
te mais que dobrará, chegando a l i bilhões no ano 2060. Se levarmos até
2040 para reduzir a família média do Terceiro Mundo a dois filhos, a
população global poderá chegar a 15,3 bilhões em 2100.
Essa população terá uma composição muito diferente da de hoje.
Segundo o Instituto de Recursos Mundiais, em 2050 oitenta e quatro
278 O P R E S E N T E DO FAZEDOR DE M A C H A D O S

por cento da humanidade estarão vivendo no que é hoje o Ts


Mundo, a metade disso em apenas 5 países. Essas mudanças na de
de e distribuição da população terão sérias implicações sobre os,
tos, a distribuição de recursos e a constituição política do plane
1994, os Estados Unidos eram a única democracia industrializada í
os cinco países mais populosos, mas em 2025 todas as atuais
cias industrializadas serão nações de "pequenos números". A pç
dos Estados Unidos será menor que a da Nigéria, o Ira terá o de
do Japão e a população do Canadá será menor que a de Madagí
Síria.
Com tudo isso, a sorte da Terra dos machados parece ser dit
equação populacional de Stanford, criada pelo biologista Paul
"Impacto sobre a biosfera = tamanho da população x uso de ré
efeitos tecnológicos sobre o meio ambiente." No momento, um i
novos seres humanos nasce a cada cinco dias. Que consequências, i
terá a equação de Ehrlich, e como se poderá lidar com elas?
Em 1798, um obscuro clérigo e fazedor de machados inglês i
dor chamado Malthus escreveu diversos textos pessimistas sobre :
lação. Para Malthus, o problema fundamental era que enquanto a |
lação crescia geometricamente (l, 2, 4, 8, 16, 32), a produção de ,
tos crescia aritmeticamente (l, 2, 3, 4, 5, 6, 7). Portanto, a raça hu«
excederia sempre e inevitavelmente as suas reservas de alimei
Embora isto pareça raramente acontecer, Malthus calculou que i
haver um mecanismo limitador em funcionamento.
Malthus acreditava que enquanto a população crescia aci
que podia ser alimentado pela terra, o mais efetivo índice do crés
to era geralmente a morte. Mas esse tipo de crescimento popi
geométrico ocorria tão raramente que Malthus chegou à conck
que havia em ação outros fatores. Um, que ele chamou de "prev
atuava em momentos de escassez, quando as pessoas posterga^
casamento e a reprodução. O outro, que ele chamou de "positivo", i
obstáculos resultantes de guerra, doença e fome, quando as taxas de i
talidade ascendentes reduziam "positivamente" os níveis de popi
Mas Malthus viveu antes da Revolução Industrial, cujos fer
tes químicos e tecnologia agrícola reforçaram artificialmente a caj
de produtiva da terra e forneceram suprimentos alimentares sufici
para populações cada vez maiores. O resultado foi dramaticamente <
O FIM DA J O R N A D A ' 279

rente de qualquer coisa que Malthus podia ter previsto, graças a um


fenómeno chamado "transição demográfica".
Durante a maior parte da história, altas taxas de natalidade foram
•lantidas através de práticas religiosas, códigos morais, leis, práticas edu-
cacionais, hábitos de casamento e estruturas familiares. Essas foram tra-
.dkionalmente contrabalançadas por taxas igualmente altas de mortali-
dade causadas por doenças, fome, guerras e epidemias. A industrializa-
[ção alterou então o equilíbrio em favor do crescimento populacional.
Maiores facilidades de saúde pública, alimentos e abastecimento d'água
[levaram à queda da taxa de mortalidade e ao crescimento da expectati-
va de vida. Nessas condições, o crescimento da população se acelerou.
Neste ponto, por volta da metade do século XVIII, a urbanização
í ; industrialização começaram a afetar a taxa de fertilidade. Padrão de
vida crescente, melhores oportunidades de emprego, salários mais altos
e poupança acrescida tornaram o trabalho infantil menos importante.
(Depois, a oferta de ensino retirou as crianças do mercado de trabalho. A
medicina reduziu as taxas de mortalidade infantil e com isso mais crian-
ças sobreviveram até a idade adulta e as famílias já podiam ser menores.
No início do século XX, com a economia em expansão e pessoas com
mais empregos e em melhor situação, a renda crescente levou a popula-
ções declinantes. Ao mesmo tempo, a maquinaria poupadora de traba-
fco gerou excedentes de mão-de-obra, de modo que a taxa de crescimen-
to populacional dos países industrializados caiu a quase zero.
O que pode ser feito para ajudar o Terceiro Mundo do século XXI
a alcançar a transição demográfica antes que sucumba à fome em mas-
sa? Dado que a crise global descrita neste capítulo foi causada pelos efei-
tos de longo prazo de soluções de curto prazo, é improvável que se che-
gue a uma solução apoiando-se em estratégias 'comprovadas' do passa-
do. A velha resposta, um grande empurrão para a industrialização de
todo o planeta, está manifestamente fora de questão. Mas nesta, como
odas as demais situações difíceis criadas pelos presentes dos fazedo-
res de machados, não será fácil para os eleitores de nenhum país decidir
como escapar, porque eles sabem muito pouco. Ao longo dos séculos, a
Tnaioria da comunidade foi sendo excluída da informação — sempre
mais especializada — sobre a qual seus líderes e instituições se apoiaram
para tomar decisões políticas.
280 ', O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

Nestes tempos modernos, em que é moda chamar a infor


"mercadoria do futuro", talvez valha a pena lembrar o modo como a i
mação tem sido sempre usada como uma "possessão" artificial por;
lês que a detêm. Na época em que o Australopithecus talhava o pr
implemento de pedra (e com ele os meios de fazer coisas que ainda»
existiam), os hominídeos tinham uma relação tão interdependente ca
meio ambiente que se poderia dizer que formava parte dele. Entá
machado trouxe à luz algo distinto dessa realidade compartilhada. Ga
ao machado e aos presentes que o seguiram, havia agora um elenol
novo e inatural na vida. Esta entidade se tornaria conhecida ca
"conhecimento" e serviria para mudar o mundo e controlar as pessoaM
Ao longo dos séculos, o conhecimento proliferou sob muitas í
mas diferentes: bastões de osso, sistemas de irrigação, alfabetos, *9|
números, teologia, experimentação, máquinas a vapor, títulos de DO
graduação e burocracias. Em todas as épocas, apenas uma pequena!
cão de qualquer comunidade particular teve acesso a esses instrumtJ
de mudança, e os avanços mais eficazes no conhecimento foram aM
lês que tornaram possível a manufatura de mais conhecimentc E
o armazenamento da memória externa e os aparatos de comunicai
como objetos, letras e números, papiro, imprensa, telégrafo e rádio pi
vocaram todos o surgimento de inovações que reforçaram a posicâoi
detentores do poder.
O nó da questão cada vez parecia ser sempre que os detentora!
conhecimento podiam criar coisas mágicas que somente eles mea
podiam ver ou utilizar. Eram mundos intelectuais somente acessiu
pessoas capazes de ler e escrever, usar silogismos, olhar através dei
cópios e microscópios, emitir sinais de rádio e desintegrar os át
Até o século XX, mesmo os membros da comunidade global que:
da existência desses mundos ficavam isolados, a braços com o pr
de entendê-los.
Os efeitos sociais dos presentes dos fazedores de machados da
rientaram com frequência até mesmo as instituições sociais porqJ
modo como a inovação provoca mais inovação tornou a vida muito•
complexa. Artefatos simples parecem produzir efeitos os mais inespai
dos. Por exemplo, a imprensa tornou possível a produção de mapas q
podiam ser regularmente corrigidos e reimpressos. Para fazê-k^
Holanda do século XVII, os capitães de navios que retornavam de«
O FlM DA J O R N A D A 281

i eram legalmente obrigados a entregar seus diários de bordo e cartas


í navegação, ficando sujeitos a inquéritos detalhados.
Tornou-se possível desse modo a obtenção de dados cartográficos
ilizados e padronizados, que eram então postos à disposição de
as mercadores para reduzir os riscos de suas viagens. Isto tornou o
;io da exploração mais fácil, atraindo investidores interessados, e
\ de modo inatural, em altas perspectivas de lucro. Cresceram então
ivestimentos em viagens e, num esforço de geração de fundos para
lanciadores, os ingleses inventaram o Registro de Imóveis, que faci-
i o uso da terra como garantia para a tomada de empréstimos junto
fnovas companhias hipotecárias criadas para este propósito. .
Enquanto uma parte do dinheiro emprestado ia para o pagamento
: navios e o financiamento de viagens, quantidade ainda maior ia para
avo negócio dos seguros, recentemente estabelecido para reduzir o
das viagens. E o risco foi ainda mais reduzido pela invenção da
janhia limitada, interagindo com outra nova entidade, a Bolsa de
rés, que por sua vez precisava de um tipo de administração finan-
í estável que somente um novo banco nacional poderia fornecer. O
aeiro banco foi, não de modo surpreeendente, criado na Holanda.
DS retirados de mapas, Registros de Imóveis e contratos de seguros
Janços bancários deram finalmente aos governos o controle dos
itos financeiros de seus países porque tornaram possíveis novas
iças mercantilistas baseadas nesses meios de monitoramento da ati-
: comercial. E tudo isso veio da impressão de mapas.
Mesmo se uma antevisão extraordinária pudesse, neste caso parti-
i, ter imaginado a ligação entre mapas, exploração, seguros, ações e
inças, em geral o efeito complexificador da inovação é aleatório
ais para permiti-lo. Por exemplo, a teoria de Venturi sobre a pressão
i água, no século XVIII, levou, através da aplicação da teoria do spray
h-séptico no século XIX, ao moderno carburador que ajudaria a gerar
iBoodo de vida norte-americano propiciado pelo automóvel. Em 1912,
ikireresse do meteorologista inglês C.T.R. Wilson pelo arco-íris levou-o
rstudá-lo no laboratório com uma máquina de fazer nuvens artificiais,
e mais tarde revelou a existência de partículas subatômicas, que tor-
••am possível a bomba de Hiroshima.
Como vimos neste capítulo, os problemas que o mundo enfrenta
•nalmente são o resultado de descobertas surpreendentes, que trouxe-
282 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

ram benefícios imediatos mas que também interagiram ao longo do te


pó e geraram efeitos complexos que nunca poderiam ter sido esper
Se a sociedade espera encontrar respostas de longo prazo para os pr
mas críticos que enfrenta hoje, ela precisa encontrar um meio de i
par da visão de curto prazo típica de nossos instintos primitivos (refo
da por milénios de presentes para soluções rápidas que nunca puc
recusar). Precisa também encontrar urgentemente um meio de <
lar o próprio processo de mudança.
Existe alguma solução simples? Provavelmente não. O mi
interdependente demais para mais soluções rápidas e fáceis. O me
que se pode esperar é acharmos um meio de avaliar as limitadas op
que nos restam e os efeitos de longo prazo das decisões que tomar
Não existe uma solução única para os problemas que enfrentamos, l
presentes dos fazedores de machados tornaram a vida complk
demais.
Ironicamente, dada a esmagadora participação do crescime
populacional em tudo isso, o primeiro passo em direção a uma rés
pode vir de um instrumento inventado para gerenciar o seu ene
crescimento no final do século passado, nos Estados Unidos. O
instrumento foi um presente quintessencial dos fazedores de mac
porque tornou mais fácil e mais eficaz do que nunca a produç
conhecimento e o corte-e-controle da sociedade. É também irónico <_
esse mesmo sistema possa dar uma solução à miríade de problemas cm
que nos defrontamos hoje precisamente por propiciar uma mudad
radical da nossa relação com os próprios fazedores de machados.
Capítulo 11

EM FRENTE, RUMO
AO PASSADO

Os seres humanos são a única espécie que tem história. Se


tem também um futuro não está tão claro. A resposta está
na perspectiva de movimentos populares firmemente enrai-
zados em todos os setores da população, dedicados aos valo-
res que foram reprimidos ou postos à margem da ordem
social e política existente: comunidade, solidariedade, preo-
cupação com o frágil meio ambiente que deverá sustentar as
gerações futuras, trabalho criativo sob controle voluntário,
pensamento independente e verdadeira participação popular
em todos os aspectos da vida.

NOAM CHOMSKY
l
r omo este livro tentou documentar, o futuro se nos defronta com
sias dificuldades herdadas desde o passado distante.
Milénios atrás, antes do aparecimento do machado, a existência
atidiana do indivíduo se estendia a duas dezenas de quilómetros talvez,
í j a distâncias continentais. Para a maioria de nós, este ainda é o caso.
[a trinta mil anos, as pessoas do Paleolítico Superior conheciam, na
•elhor das hipóteses, de cinquenta a duzentos indivíduos. Este ainda é
• caso.
Até trinta mil anos atrás, os processos mentais humanos haviam
aluído para lidar basicamente com problemas imediatos: decidir que
is comer, como sobreviver ao inverno, como evitar animais perigo-
e quando buscar abrigo. Eram os mecanismos com que a evolução
havia preparado para manipular o mundo. Nossas predisposições
ntais, como as de todos os outros animais, eram circunscritas ao hori-
ite imediato e aos problemas de curto prazo. Isto era em todos os sen-
"natural", porque poucos motivos haveria para um indivíduo se
cupar com o longo prazo se ameaças como os tigres e o inverno não
sem debeladas.
Nossos ancestrais também nunca tiveram de lidar com a humanida-
: inteira como um fator, porque na maior parte da história eles só toma-
conhecimento de um número muito pequeno de indivíduos envol-
35 em suas atividades particulares, em um mundo também muito
queno. Podiam cortar e queimar uma floresta, ou extinguir várias
écies, e depois ir embora, porque havia muita terra e éramos poucos,
iça havia necessidade de considerar o planeta inteiro por ser ele gran-
1
demais para que nossa presença tivesse um impacto significativo.
Mas hoje a humanidade não é mais constituída de uns poucos ban-
insignifior-ites dispersos pelo planeta. A humanidade é agora um
286 ' O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

monstro que produz muito mais pessoas em um mês do que as que<


vam vivas antes da primeira revolução agrícola e com um peso :
maior do que qualquer outra espécie terrestre.
Devido ao fato de nossas vidas terem mudado muito desde aqs
tempos primevos, é imperativo acima de tudo que revisemos nossa l
tualizada percepção do mundo, de modo a expandir nosso pensari
go, pequeno e de curto prazo em direção a horizontes mais longín
e mudanças mais frequentes. Muitos comentaristas dos probfcj
atuais parecem acreditar que uma alteração lógica ou psicológi
maneira como nossas mentes trabalham irá, sozinha, realizar a £a
Mas nós estamos mentalmente tão isolados do mundo natural
cerca pelos presentes de fazedores de machados que durante
moldaram todos os aspectos de nossas vidas, que os próprios pr
terão de fazer parte da solução do problema, tanto quanto a muc
nossa consciência.
A dificuldade está em que os seres humanos modernos não i
percebem diretamente o mundo em que vivem e cujas condições i
tam. Como ficou demonstrado em Chernobyl, o mundo é agora i
e complexo demais para que possamos fazê-lo. E de todo modot
podemos mais jogar fora toda a tecnologia moderna e retornar a i
vida arcadiana. Mesmo que um mundo assim tenha existido um i
que algum de nós pudesse sobreviver a um tal meio ambiente
maioria da população (que não sabe plantar) não iria querer. De
por isso achar um meio realista de atacar o problema usando as
mentas que já temos em mãos: presentes de fazedores de machados^
poníveis que possam servir para esta nova tarefa. E dado que o
urge, precisamos agir a curto prazo pensando a longo prazo.
Nós já estamos de posse do presente com o qual iniciar a ne
ria mudança. Mas devemos estar preparados para o fato de que seal
pode acarretar as mais radicais mudanças já vistas na história: i
podem levar nossas mentes de volta ao que eram antes que o pi
presente fazedor-de-machados mudasse o modo como elas se dês
viam e selecionavam.
O instrumento em questão veio à luz em 1888, em Balti
Mariland, quando Herman Hollerith, jovem engenheiro assisten
Diretoria de Estatísticas Médicas do censo norte-americano de
conversou com seu cunhado sobre os problemas que se apresent
EM FRENTE, R U M O AO P A S S A D O 287

ira os recenseadores. O fluxo de imigrantes europeus havia alcançado


^porções quase inimagináveis: o censo anterior (de uma população
iito menor), dez anos antes, havia levado mais de cinco anos para se
ipletar. Com as novas taxas de crescimento, iria levar mais de dez
para contar a população. Pode-se imaginar o problema.
O cunhado de Hollerith trabalhava na indústria têxtil e falou a
ian sobre o tear de seda Jacquard, que usava um sistema de folhas
papel perfurado para controlar a execução das padronagens. A pre-
iça ou ausência de um furo na folha permitia ou impedia a entrada de
ou mais dentre um conjunto de ganchos com molas, cada um dos
ais, ao passar pelo furo, levava a linha necessária para aquela etapa.
Hollerith adaptou essa ideia usando cartões em que cada estatística
ividual era expressa como um furo. A contagem e análise eram feitas
ssionando-se o cartão contra um conjunto de agulhas. Ali onde um
permitisse a passagem, a ponta da agulha atravessava fazendo con-
com um fio elétrico do outro lado, que enviava um sinal para uma
}uina elétrica de contar. O exame dos dados era feito com gabaritos
: mostravam quais furos estavam descobertos. Desse modo, uma cate-
escolhida, por exemplo as avós greco-americanas da primeira gera-
i ou os carpinteiros de origem japonesa, podia ser fácil e rapidamente
ilizada. Depois de terminado o censo, Hollerith levou esse sistema de
itagem a um grupo de investidores, e estes criaram então uma compa-
que tornou-se conhecida como "Internactional Business Machines"
3M). Em cinquenta anos, os cartões perfurados de Hollerith haviam
substituídos por teclados e chips eletrônicos em uma máquina
lecida como computador, o maior de todos os presentes dos fazedo-
: machados para o corte-e-controle da informação.
Se a natureza esotérica, inesperada e interativa dos processos faze-
;s-de-machados descritos ao longo deste livro foi responsável pela
itutenção de instituições e líderes no poder durante mais de dois
iões de anos, então o novo potencial de produção de conhecimento
computador iria reforçar este poder de um modo nunca visto. Em
jcas décadas desde a sua invenção, o computador acarretou mudan-
; em quase todas as esferas da vida moderna, e tornou a sociedade tão
iplexa e interdependente, que o velho modo corte-e-controle de pen-
r. de natureza reducionista, tornou-se uma operação demasiado arris-
para ser feita à moda antiga, isoladamente.
288 O P R E S E N T E DO FAZEDOR DE M A C H A D O S

O computador em rede começou, como a maioria das inc


tecnológicas, como um brilhante presente de curto prazo projetaáo;
dar solução a um problema imediato. Os primeiros terminais de i
interligavam a cadeia ártica de estações de radar norte-americ
formando o sistema de defesa "Dewline", projetado para prot£
Estados Unidos das primeiras bombas atómicas soviéticas.
Em 1960, os computadores já haviam provado ser ideais parai
fas repetitivas consumidoras de tempo e trabalho; logo eles es
substituindo os humanos em serviços rotineiros de escritório. As máj
nas tornavam disponíveis as informações, processando-as em u ma l
Ia e um ritmo nunca vistos e gerando um tipo de trabalho que só i
sua assistência podia ser realizado.
A disponibilidade dessa nova ferramenta de controle de dbd|
mudou a maneira de pensarmos a informação, o modo como pod
usada, o quão acessível deveria ser, como poderia ajudar na tonsj
decisões em todas as áreas especializadas e o quão rapidamente
novas mudanças. Os efeitos da introdução do computador foram 31
cão de novos tipos de dados e atividades e o incentivo à expansão, ej
cipalmente diversificação, de todos os tipos de organização. Em
palavras, o computador reforçou a ideia de que as entidades e
estabelecidos poderiam mudar mais rapidamente e com menos i
que antes.
O melhor exemplo deste efeito é justamente o primeiro,
quando os computadores deixaram a arena militar e adentraram o i
do civil. A tecnologia "Dewline" foi adaptada para se tornar a base <
sistema de reserva de passagens aéreas conhecido como SABERj
uma só tacada, o novo instrumento tornou possível a administra
planilhas aéreas muito mais extensas e complexas, alterando i
mente o mundo dos negócios.
O computador construiu sua influência desenvolvendo-se
rapidamente do que qualquer outra inovação na história, e por i
alterou também a nossa percepção da velocidade com que as pr
taxas de mudança podem mudar. Nas últimas quatro décadas, as
cãs de processamento de dados têm mudado tão depressa e com
frequência que se tornam às vezes obsoletas antes mesmo de cheg
mercado.
EM FRENTE, R U M O AO P A S S A D O 289

Os avanços e números envolvidos no desenvolvimento da compu-


tação são tão extraordinários que se tornam difíceis de apreender.
Desde 1950, o número de circuitos por pé cúbico subiu de 1.000 para
muitos bilhões. O tempo despendido na realização de uma operação foi
reduzido de 300 microssegundos para menos de cinco nanossegundos.
O custo do processamento de um milhão de instruções básicas caiu de
USS 280 para menos de um décimo de cent. O número de caracteres
que podem ser armazenados cresceu de 20 mil para centenas de milha-
res de milhões. Máquinas que costumavam funcionar sem problemas
durante horas agora o fazem durante anos. Desde 1965, o número
médio de chips componentes dobrou a cada ano, e os recentes progres-
sos em nanotecnologia de nível molecular prometem aumentos ainda
mais impressionantes. Os computadores domésticos individuais têm
boje mais poder de processamento do que os disponíveis aos aliados na
n Guerra Mundial, e seu poder cresce ano a ano.
Muito cedo no desenvolvimento dos computadores, as inovações
da tecnologia das comunicações produziram também redes de dados de
alta velocidade que tornaram o trabalho do computador mais acessível e
mudaram nossa percepção espacial da informação — o lugar onde arma-
;ená-la e a relevância da locação física dos dados.
Em dezembro de 1958, incentivado pelos sucessos do Sputnik
iético, o satélite norte-americano "Score" demonstrou que sinais de
azes poderiam ser transmitidos desde uma estação orbital. Em 1965, a
anização Comsat estabeleceu o primeito satélite comercial atlântico,
Intelsat l, que levava 240 circuitos telefónicos two-way para voz e
lados, e um canal de TV. As corporações transnacionais podiam agora
itralizar operações mundiais mais facilmente do que nunca.
Nos anos 70, os sistemas convergentes de telecomunicações e
formática começaram a produzir mudanças sociais generalizadas uma
vez que a transferência eletrônica de fundos alterava radicalmente a
natureza, o alcance e a função das instituições financeiras nacionais e
internacionais. A transferência de fundos em larga escala e a grandes
elocidades entre instituições financeiras e organizações económicas
domésticas e internacionais minou a capacidade dos governos nacionais
imporem regulamentos eficazes de controle do intercâmbio.
À medida que o crescimento do crédito era facilitado pela eletrôni-
ca, a renda pessoal disponível se tornou uma espécie de mercado futuro
no qual o potencial de compras do consumidor representa uma garantia
290 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

financeira. Esta capacidade de explorar o futuro financeiro inc


multiplicado um milhão de vezes começou a afetar os arranjos
ciais e alterou as relações ocidentais de exportação-importação,;
do por sua vez as taxas de intercâmbio, a estrutura da indústria, o <
cio e as relações políticas no mundo inteiro.
O supercomputador apareceu no início dos anos 70. Em
anos ele era capaz de realizar mais de um bilhão de cálculos por:
do. A maioria dos supercomputadores atinge suas altas velocidade
vês do processamento paralelo, que envolve a ligação em rede de
certa quantidade de processadores, cada um com controle próp
memória e programado para realizar um tipo específico de tarefa. I
modo, o processamento paralelo divide um trabalho em muitas pá
processadas simultaneamente. O primeiro sistema prático de pfm
samento em paralelo, a Connection Machine, tinha 65 mil processai
interligados.
Nos anos 80, governos e instituições privadas mantinham rot
ramente milhões de arquivos contendo dados pessoais que podiam
muitos casos, ser vendidos a corporações privadas como listas de •
direta. Hoje é praticamente impossível para um indivíduo deixares
ma. Tendo-o em mente, o potencial da interligação de dados le\7
outras questões acerca da privacidade. Uma pequena infração, ca
um tíquete de estacionamento, por exemplo, poderia provocar a 9
tacão de um perfil que colocaria informações médicas, genéticas e «
cacionais de um indivíduo nas mãos da polícia.
Em uma escala social mais ampla, os efeitos da convergênos
telecomunicação e do processamento de dados desde a II Ga
Mundial forneceram o mais claro exemplo possível do modo
inovações tenderam a tornar o mundo mais interdependente. À ;
que novos desenvolvimentos tecnológicos colocam mais infor
dentro do sistema social, novas redes vêm à luz, ligando esferas da i
cotidiana antes isoladas. No próximo século, tais redes poderão
possível uma administração social altamente centralizada porque, <
to mais estritamente controlada for a difusão da informação, maisi
cera a produção de conhecimentos especializados de corte-e-cont
EM F R E N T E , R U M O AO P A S S A D O 291

Ao longo da história novos sistemas de comunicação provocaram


mudanças no modo de condução da sociedade (e no nosso modo de pen-
sar), porque quando òzís* de informação são reunidos sob novas formas
tendem a gerar inovação que é mais do que a soma de suas partes. Na
Antiga Mesopotâmia, ao ligar a astronomia à engenharia hidráulica o
presente da escrita criou o início da civilização e um novo sentido de
lugar". Os apêndices bíblicos impressos do século XV reuniram espe-
cialistas cujo conhecimento compartilhado fez nascer os "novos mun-
dos" dos instrumentos científicos. No século XIX, o telégrafo uniu as es-
-rídas de ferro ao Sistema Americano de Manufatura e tornou os Esta-
dos Unidos um superpoder industrial e o indivíduo um dente da engre-
nagem. No próximo século, as redes permitirão ligar trilhões de bits de
informação de maneiras igualmente imprevisíveis, com efeitos que mal
podem ser imaginados. Muitas pessoas temem que isto possa, mais
adiante, dividir a sociedade. Em resumo, estamos mais animados.
Tal qual todos os progressos anteriores nas técnicas de produção
do conhecimento, o computador também poderia introduzir um novo
tator na equação. O efeito faria lembrar o modo como a sociedade paleo-
lítica era dirigida por xamãs providos de bastões de osso, ou como os sis-
temas de irrigação egípcios eram organizados por burocratas, como a
tecnologia de guerra da Europa medieval só podia ser usada por aristo-
itratas, como a imprensa era controlada por censores civis e religiosos ou
como avanços científicos do século XIX, tais como o telégrafo e o tele-
fone, eram controlados pelos governos e pelo Estado.
No século XXI, um novo tipo de fazedor de machados surgirá em
resposta a um velho problema: a inovação tem sido geralmente limitada
pela falta de especialistas qualificados no seu gerenciamento, o que é
particularmente verdadeiro no caso da tecnologia dos computadores.
Mas neste caso, novos especialistas podem não ser necessários graças ao
recente aparecimento, no âmbito da própria tecnologia, de dois novos
sistemas.
O primeiro é o "agente" eletrônico, um software capaz de atuar em
efício do usuário do sistema pesquisando os dados solicitados, pro-
sando-os da maneira adequada e apresentando os resultados da for-
ma requerida. A sua extraordinária velocidade de operação possibilitará

' Designativo da expressão "dígito binário"


292 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

o gerenciamento de taxas de mudança radicalmente altas. E a pr


de conhecimento em grande quantidade acontecerá sem nece
de que a comunidade gere milhares de especialistas a mais (cujas <
ficações serão, em qualquer caso, de valor apenas temporário
própria taxa de acelerada mudança).
A segunda inovação, o "sistema de base cognoscitíva", se
capacidades do especialista humano, que em alguns casos su:
existem muitos milhares desses sistemas em uso, seja porque
tem disponíveis especialistas humanos suficientes, seja porque xst
cunstâncias são perigosas demais para a operação humana. Esses!
mas trabalham simulando aspectos do raciocínio e dedução hi
Sua combinação com o "agente" poderia gerar os primeiros faze
machados eletrônicos que, usando os supercomputadores, com i
acelerariam muito a produção do conhecimento.
Não há nada de novo em máquinas que fazem coisas qi
homens não podem fazer. Ao longo da história, substitutos me
dos homens no processamento e comunicação de informações^
como o alfabeto, a escrita, a imprensa e o telégrafo, impulsior
evolução, a diferenciação e a fragmentação da sociedade. Tal pr
gerou novas disciplinas, novas maneiras de pensar sobre o mi
novas hierarquias de corte-e-controle.
Essas estruturas e comunidades incapazes de admini
mudança adaptando-se aos novos processos foram, em muitas,
maioria das ocasiões, superadas pelos acontecimentos. O exemplo i
recente é um tipo de colonialismo eletrônico que já está reconfor
as relações entre os países que possuem e os que não possuem uma!
de qualificação computacional. O poeta inglês do século XIX
Belloc descreveu um efeito similar do high-tech sobre os "prii
encontrado durante a expansão colonial europeia naquele século:

Nós temos, eis o fato chão,


O canhão Gatling e eles não.

Mas o que é diferente desta vez é a velocidade com que a


cão computadorizada do conhecimento e seus efeitos estão cré
se acelerando. No mundo antigo, havia apenas uma ciência — a et
EM FRENTE, R U M O AO PASSADO 293

logia — da qual fluía todo o conhecimento; mas desde a época dos gre-
gos o conhecimento tem se desenvolvido em grupos de disciplinas eso-
téricas cada vez mais isoladas umas das outras. Depois do aparecimento
do reducionismo no século XVII, cada uma das novas grandes discipli-
nas cedo ou tarde fragmentou-se em dezenas, às vezes centenas, de sub-
disciplinas especializadas. A botânica, por exemplo, subdividiu-se e
ligou-se a outras disciplinas para tornar-se biologia, química orgânica,
histologia, embriologia, biologia evolucionária, fisiologia, citologia, pato-
logia, bacteriologia, urologia, ecologia, genética populacional e zoologia.
Este processo se repetiu em muitos outros campos, e o último balanço
indica que existem hoje mais de 20 mil matérias tecnológicas e científi-
cas distintas. Especialistas sabem cada vez mais sobre cada vez menos,
não especialistas sabem cada vez menos sobre cada vez mais.
É cada vez mais difícil lidar com o conhecimento especializado
porque ele prolifera sem parar, tornando-se mais e mais inacessível à
medida que cada novo grupo de especialistas desenvolve seu próprio
vocabulário arcano no interesse da maior precisão. Basta um breve olhar
sobre qualquer um dos mais de 195 mil periódicos que hoje se publicam
todo ano.
O problema é que devido à natureza esotérica desse tipo de conhe-
cimento, quando liberado para a comunidade, ele é sempre apresentado
como um fait accompli frente ao qual a comunidade tem de reagir como
pode. Naturalmente que a capacidade da comunidade lidar com a situa-
ção é em geral limitada pelos sistemas disponíveis no momento, razão
pela qual em muitos casos o resultado da surpresa é outra surpresa. O
efeito "detonador" tem sido em geral da maior significação.
Por exemplo, a maquinaria têxtil que ajudou os donos de fábricas
a levar a Inglaterra à liderança industrial no século XVIII também con-
duziu, graças à velocidade com que crescia a população das novas cida-
des industriais, a condições de vida que trariam o país ao limiar de situa-
ções pré-revolucionárias jamais desejadas por qualquer industrial. Os
sistemas político, educacional e de saúde pública eram desatualizados
pela velocidade em que mudavam as circunstâncias.
A descoberta da América, no século XV, por gente que buscava
um caminho rápido para as especiarias, tornou incerta a maior parte do
conhecimento ocidental e desequilibrou totalmente a ordem social por-
294 , O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

que, até então, a autoridade se apoiava na reiteração inquestiona


antigo conhecimento clássico e não possuía nenhuma técnica «
mental com que avaliar os novos dados.
A proposição copernicana de um novo sistema solar heliocêi
desenhado para facilitar o cálculo da Páscoa minou o conjunto <
tura política e teocrática da Europa do século XVI porque, até i
todos os sistemas sociais e intelectuais haviam se baseado na
inalterável da cosmologia aristotélica.
O problema da adaptação à mudança também se tornou maãa
do devido à obsessão institucional com a preservação do segredi
conhecimento. O conhecimento dá poder de controlar pessoas quei
o possuem, razão pela qual o acesso à informação ainda era
àqueles que fossem capazes de passar nos testes de iniciação
Monarcas e governos, ao longo de toda a história, nunca revê
"questões de Estado" assim como os países de hoje e as corporaç
operam no mercado livre provavelmente não revelarão uns aos ou
seus projetos domésticos e de pesquisa.
Agora, o conhecimento gerado por computador começa a na
mundo tão rápida e surpreendentemente que o processo está pre
pôr fora de controle até mesmo as nossas capacidades evolucic
adaptativas básicas. Por exemplo, se dois computadores de grande j
estivessem "falando" um com o outro e alguém usasse o teclado
velocidade de um digitador veloz para dizer-lhes "Escutem, IBM-i
Cray-3YY, vocês podem me dizer sobre o que estão conversar
tempo despendido para digitar essas palavras dois computadores!
muns poderiam ter alterado todo o conteúdo da Enciclopédia Brií
mais de uma centena de vezes. E os computadores estão se ton
ainda mais rápidos.
Mas se a tecnologia do século XXI gera uma base de conheci
to que se expande em velocidade astronómica, será que as coisas scl
narão astronomicamente piores? Se a especialização esotérica pr
dividirá ela a sociedade em grupos isolados incapazes de se cor
rem uns com os outros devido à natureza cada vez mais fragment
seu conhecimento? E quando os produtos da interação entre as .
nas se tornarem públicos, na forma de inovações modificador
sociedade, num ritmo mais forte e em quantidades maiores do que i
ca, como será o público em geral informado sobre o que está aconte
EM F R E N T E , R U M O AO PASSADO 295

> se a mídia já abandonou o fórum comum em favor de centenas de ca-


; a cabo de interesse especial dedicados à luta na lama ou ao cultivo
: begônias? Esta não é uma possibilidade distante à Ia Buck Rogers. É
»hoje de alguns e o amanhã de todo o resto.

Jm fator-chave a influenciar a abordagem do problema é a nossa arcaica


visão de mundo de curto prazo, incrustada em nós ainda mais profunda-
mente por séculos de inovações para soluções rápidas. Hoje, por exem-
plo, em parte devido a doutrinação e em parte devido a nossas tendências
•natas, é fácil ignorar que o custo mundial anual do enfisema e do traba-
fco perdido com o smog é muitas centenas de vezes maior do que custa-
ria limpar o smog em um período de dez anos. Na Cidade do México, 72
ar cento das crianças têm atualmente no córtex cerebral e no sangue,
i quantidades de chumbo que os danificam, o que significa que 72 por
ento da população da Cidade do México (e quantidades similares em
nuitos países do Terceiro Mundo) irão sofrer de desenvolvimento cere-
al limitado. Isto perpetuará o ciclo de pessoas subinstruídas e improdu-
'tívas no Terceiro Mundo. Alguém se preocupa o bastante para mudar?
Não será fácil, uma vez que mesmo na Europa do Norte, nas últimas
décadas, foram necessários quinze anos de campanhas para eliminar
uma fração do chumbo de apenas uma parte da gasolina.
A mesma lentidão afeta também as questões de longo prazo, como
a produção agrícola excessiva do Primeiro Mundo, o efeito da dívida do
Terceiro Mundo, a pobreza urbana, a reconstrução das economias do
bloco oriental, a assistência psiquiátrica à comunidade, o crescimento
populacional global, o uso dos recursos e muitos outros.
Portanto, como mudar a nossa maneira de pensar a tempo de evi-
tar a catástrofe? Temos duas ferramentas para ajudar. Uma é nova: a
tecnologia da informação, cujo potencial para o mal acabamos de des-
crever. A outra é antiga: o cérebro.
Os seres humanos vivem em uma grande variedade de climas por
todo o planeta, das florestas úmidas ao Artico e ao deserto, alimentando-
se com uma dieta enormemente variada que contém desde carne ver-
melha e arroz até insetos, e realizando trabalhos surpreendentemente
diversos, do corte de cabelos à caça de tigres e corretagem financeira,
296 J O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE MACHADOS

fabricação de doces, engenharia genética, pesquisa do universo e!


mais que existe pelo caminho.
Que uma espécie possa abarcar tantos tipos diferentes de,
expressão deve-se à extraordinária flexibilidade do cérebro ht
Embora tenhamos vindo ao mundo com certas capacidades, como»
mentar-nos e olhar em torno, e com talentos por desenvolver t
aprender idiomas ou andar sobre os dois pés, cada um de nós
dotado de muitas outras capacidades latentes que temos chance <
ceber durante o tempo de uma vida. E nossos cérebros são, dentre!
os mamíferos, os mais incompletos ao nascer. Este aspecto faz coia»
nosso meio ambiente inicial jogue um papel crucial na deterrm
daquilo que seremos.
As pesquisas sobre a forma como a experiência afeta o
estão apenas começando. No passado, a maioria dos psicólogos e j
fisiologistas supunha que nossos cérebros eram fixos e que aprenc
o melhor que podíamos dentro dos limites estabelecidos pela gê
Mas os novos estudos mostram que as bases de nosso funcior
são modificadas pela experiência. Isto mostra o quão importante é,
liar, de tempos em tempos, as maneiras como estamos formando e rsi
mando o mundo para melhor entender o efeito que o mundo moáfi
do pode nos causar. A clássica máxima da computação, GIGO= ~e
lixo, sai lixo"), aplica-se aqui: você pode ser o que você come, mas '
também o que você vê, ouve, cheira, prova, sente e faz.
O que "ser flexível" implica é que se não gostamos das tenc
até aqui inseridas em nossos cérebros pelo mundo construídc
machados, não estamos atados a eles. Tais tendências podem ser eiss|
prias modificadas pelos mesmos instrumentos com que foram cr
porque as modificações no cérebro acontecem de maneira freqúe
natural. Como demonstramos, os próprios atos de escrever e ler são i
náncias principais do processo "natural" de desenvolvimento menfc
Alguns aspectos mais permanentes são lançados, é claro, no]
"crítico", entre l e 3 anos de idade. Por exemplo, se uma criança:
desenvolve nesses anos a visão binocular (por ser vesga ou ter um i
deficiente) ela não a desenvolverá mais tarde. Limitações menos <
mas, no entanto, tais como deficiências de linguagem e privação >

* Garboge In, Garbage Out. [N. do T.]


EM F R E N T E , R U M O AO P A S S A D O 297

são mais provavelmente suscetíveis de melhora com a prática. Mas para


superar os problemas do nosso meio ambiente construído-pelos-macha-
dos, precisamos descobrir quando, como e de que forma podemos fazer
uso dessa flexibilidade e ensinar ao nosso cérebro novas técnicas.
A chave da questão pode estar no modo como a função cerebral
parece envolver o mesmo tipo de combinação fortuita de dados do pro-
cesso de inovação. Pensar, como inovar, parece consistir em juntar as
coisas de novas maneiras. Mas ao contrário da lógica sequencial dos
fazedores de machados, o pensamento imaginativo parece funcionar de
um modo não-linear. Não nos aparece como coisa natural seguir os silo-
gismos passo a passo de Aristóteles ou reduzir os problemas às suas
menores partes à maneira de Descartes, ou listar todas as possibilidades
como um computador, mas sim flutuar casualmente, para frente e para
trás, pelo córtex cerebral, de um modo mais parecido com a descrição do
poeta W. B. Yeats:

Como voa na correnteza o mosquito de longas pernas


A sua mente se move no silêncio.

Como diria um fazedor de machados, parece haver um elemento


'irracional" na maneira como o pensamento imaginativo, não-lógico, per-
mite ao cérebro usar dados menos que completos ou exatos quando ele
chega às suas conclusões mais intuitivas, ou pensar em termos de inter-
valos inexatos, "esfiapados", como "ao azar", ou tomar decisões com base
na experiência de formas que podemos não ser capazes de quantificar ou
mesmo descrever. Este último caso é frequentemente observado quando
programadores de sistemas de computação de base cognoscitiva pedem
aos especialistas humanos para explicar como eles fazem o que fazem.
Outros chamam este tipo de pensamento de "a-racional", e não o
vêem como uma faculdade do pensamento inferior à lógica mas como
complementar ao pensamento sequencial e racional. Trata-se do tipo de
pensamento que, em geral, começou a ser podado depois da aparição do
primeiro machado. Hoje, no entanto, muitos indivíduos, de pensadores
religiosos a chefes de Estado e de grandes corporações, estão começan-
do a perceber que esta capacidade de ver a totalidade do mundo, de per-
ceber acontecimentos enquanto eles se combinam, trabalhando junto
298 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

com a capacidade de analisar problemas sequencialmente, pode ti


papel vital a desempenhar na construção do futuro.
Ninguém sabe ainda em detalhes o que é o "pensamento", na
parece envolver um processo que faz o maior e mais rápido cornpd
na Terra parecer simples. A esse respeito, vale a pena relembrar»
segundo o qual o mais poderoso processador de dados atinge níveas
nitivos apenas levemente superiores aos de uma lombriga. Quer o
bro opere com um número gigantesco de neurônios fisicamente n*
nectados e agrupados em minúsculas redes de "conceitos nucfca^
quer seja estruturado em hierarquias que lidam, cada uma, com o
do processando-o através de níveis de reconhecimento, quer com<
sistema qualquer, o número de maneiras pelas quais as cente
bilhões de neurônios do cérebro podem interagir é maior que o i
de átomos do universo. E todos possuímos um desses sistemas.
entre nossas orelhas.
A razão pela qual os novos sistemas de processamento de d
podem trazer mudanças radicais nas nossas relações com os fazcdí
de machados e na maneira como eles sempre organizaram, indireti^l
te, nossas sociedades e nosso pensamento, está relacionada ao:
como o cérebro funciona. Parece existir uma correspondência <
aspectos não-fazedores-de-machados, intuitivos ou "a-racionaís".
processos de pensamento descritos acima e algumas das capacid
mais complexas e ínterativas da próxima geração de tecnologia^
informação que estão sendo hoje desenvolvidas.
Os novos sistemas podem apresentar ao usuário dados em :
de "teia", na qual toda a informação contida em urna base da dada
interligada. Por exemplo, uma cadeia simples de ligações em teia p
ser: "rolos de papel higiénico, inventados em resposta às cerâmics
tárias, resultantes dos desenvolvimentos sanitários do século XK. ?
vocados por uma epidemia de cólera, cujos efeitos sociais trouxe
legislação de saúde pública, que estabeleceu os laboratórios de
gia, capazes de funcionar devido a técnicas de coloração de tecidos^
usavam tintura de anilina, descoberta durante a pesquisa do qi1
artificial, em alcatrão de carvão que era subproduto da indústria dai
minação a gás, que iluminava as aulas noturnas dos primeiros trai
dores, em fábricas que fiavam algodão norte-americano, proce
pelas descaroçadeiras de algodão de Eli Whitney, seguindo o deser
EM F R E N T E , RUMO AO PASSADO 299

mento das peças intercambiáveis para mosquetões, que tornaram possí-


vel a fabricação de máquinas operatrizes, para linhas de produção que
introduziram técnicas de processo contínuo que um dia produziriam os
rolos de papel higiénico".
Qualquer ligação nesse ciclo de inovações e acontecimentos inter-
relacionados serve de ponto de partida para outros ciclos nos quais qual-
quer ligação poderia começar em outros ciclos, e assim por diante.
Existem dois atrativos principais nessa maneira de processar infor-
mações. Primeiro, ela é fácil de operar porque o usuário pode entrar na
teia em um ponto de entrada compatível com o seu nível de conheci-
mento que poderia ser, portanto, algo tão complexo quanto uma equa-
ção de física quântica ou tão simples quanto um rolo de papel higiénico.
Segundo, a natureza interconectada da teia, que possibilita passar do
ponto de entrada a qualquer outro através de uma ampla gama de rotas,
uma das quais melhor se adaptará aos interesses idiossincráticos e ao
nível de capacidade do usuário.
Em todo estágio da jornada, qualquer ligação prepara o usuário
para a ligação seguinte devido à maneira como todas as ligações se inter-
relacionam. Ainda mais, em qualquer ligação existe um número de rotas
alternativas a tomar, e é aqui que o usuário pode fazer escolhas baseadas
em seu interesse pessoal e sua experiência. Portanto, não é inconcebível
que uma jornada pudesse começar com o rolo de papel higiénico e con-
duzir no final a todos os dados necessários para o entendimento da físi-
ca quântica, da fabricação de vasos, ou do latim medieval.
Uma vez não havendo nenhum caminho "correio" para chegar aos
dados-alvo designados, digamos, uma necessidade curricular, no proces-
so educacional que a teia viabiliza, ela poderia oferecer ao usuário um
meio de "aprender" a informação-alvo chegando a ela por seu próprio
caminho. O "conhecimento" seria então a experiência de ter viajado na
teia, como nas ruas de uma cidade. A viagem seria, por conseguinte,
mais valiosa do que a chegada e as relações entre dados mais valiosas
que os próprios dados. Poderia ser que viéssemos finalmente a avaliar a
inteligência não mais através da recuperação de informações mas pela
imaginação com que o estudante construísse a sua jornada.
O atrativo da teia é que o usuário não precisa de nenhuma qualifi-
cação para entrar, e o processo de exploração é tão fácil ou complexo
quanto queira o usuário. A teia contém a soma dos conhecimentos, por-
300 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

tanto a experiência de uma viagem liga de alguma forma os usuán


todos os demais usuários. As maneiras pelas quais uma teia poderu
acessada, ligada ou reestruturada seriam tantas quantas seus usiia
decidissem.
Mais que tudo, o uso da teia acostumaria as pessoas a se tor
mais e mais familiarizadas com a noção de que o conhecimento
constituído de "fatos" isolados, desconectados, mas um conjunto
mico. A experiência na teia poderia também trazer uma conscié
maior dos efeitos sociais da introdução de qualquer inovação, graç
modo como o produto dos dados inter-relacionados na teia reflet
maneira como a inovação afeta a comunidade em geral. Cada vez
um usuário viajasse na teia e fizesse novas ligações entre dados, as:
conexões a reestruturariam basicamente da mesma maneira
teriam rearrumado a sociedade se tivessem sido aplicadas em ter
reais. Nesse sentido, a teia poderia se tornar um microcosmo da pr
sociedade. Poderia servir como meio de geração de cenários da pr
cão de conhecimento e de seus potenciais efeitos sociais. Finalmer
teia poderia, é claro, se tornar o modo geral de envolvimento nos pr
sós sociais, quer pessoalmente quer mediante o uso de "agentes" elt
nicos pessoais. O poder do indivíduo seria enormemente aumentac
Uma vez que a natureza associativa da teia também reflete, i
modo limitado, os processos básicos do pensamento não-fazedc
machados, a-racional e não-linear, nenhuma iniciação seria reque
para usá-la. Ela daria acesso a todo corpo de conhecimento que hoje<
disponível apenas àqueles que possuem as "qualificações" certas. Da
estrutura interligada da teia, seria também desnecessário que os
rios soubessem exatamente que perguntas fazer. Um sistema de
dos, aliado a softwares de lógica imprecisa (a abordagem "ao azar", >
no típico "Eu acho que tem algo a ver com...") e prompts, tornaria i
vãmente fácil identificar a área de interesse mesmo a partir de afii
coes ou perguntas pouco precisas. Isto poderia ser útil, digamos, qua
o usuário estivesse procurando informação que o ajudasse a tomar •
decisão política ou profissional.
EM F R E N T E , R U M O A O P A S S A D O 301

Devido à escala e velocidade em que cresce o processamento de infor-


mações de todos os tipos, as bases de dados e poder de processamento
necessários para suportar a teia poderiam estar disponíveis no ano de
2010. Compact-discs, contendo cada um dois mil textos a um custo de
menos de dez cents por livro, já estão disponíveis no mercado e a tecno-
logia está projetada para se expandir com um incremento de armazena-
gem de pelo menos dez vezes na próxima década. Isto significa que uma
grande biblioteca poderia ser armazenada em cerca de cem discos e ficar
disponível a estudantes de qualquer lugar. Livros suplementares à
biblioteca "básica" de dois milhões de volumes poderiam ser facilmente
"baixados" desde uma fonte central pela mesma tecnologia que hoje dis-
ponibiliza o vídeo no mundo desenvolvido.
Por essa razão, a representação do conhecimento antes alcançado
através do bastão dos fazedores de machados e depois expandido pela
escrita cuneiforme mesopotâmica, pelo alfabeto, por Gutenberg, pelo
método de Descartes, e pela televisão, está prestes a passar por outro sal-
to quântico. E a capacidade de armazenamento da nanotecnologia do
ano 2030 fará com que mesmo os maravilhosos sistemas aqui descritos
pareçam papiro.
Muitas instituições de ensino, especialmente nos Estados Unidos,
estão conscientes de tudo o que a nova tecnologia poderia oferecer à
educação e começam a reconhecer as limitações da velha abordagem
reducionista do ensino quando comparada com o potencial das novas
técnicas relacionais. Em algumas escolas, os primeiros passos experi-
mentais estão sendo dados em cursos interdisciplinares de primeiro ano,
sob títulos como "Ciência, Tecnologia e Sociedade".
Mas o uso da teia também levanta a perturbadora questão de quais
informações estarão disponíveis para as bases de dados, por quem e para
quem. Muito ainda pode ser negado, porque é pouco provável que as
corporações permitam o livre acesso aos seus laboratórios de pesquisa
ou que o políticos exponham de livre vontade suas atividades ao escrutí-
nio público, ou que os profissionais renunciem à base de poder de sua
especialidade.
Aqueles que poderiam, a partir da mídia, tornar a questão mais
aberta para discussão estão também sujeitos às pressões dos interesses
estabelecidos. Muitas das antigas técnicas fazedoras-de-machados foram
refinadas no século XX para controlar um público cada vez mais instruí-
302 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

do e informado. Um verbete da Enciclopédia de ciências sociais de


proclamava que "os homens poderosos" não deveriam sucum
"dogmatismos democráticos segundo os quais os homens são os
rés juizes de seus próprios interesses". Recentemente, no conflito
nico nas Falklands e nas invasões norte-americanas do P;
Granada e Iraque, o bloqueio do acesso aos acontecimento;
com que somente informações selecionadas fossem publicamente dai
gadas. Foi assim assegurada a aprovação inicial das ações militares, i
xando a contabilidade dos custos financeiros e humanos para
de, quando o fervor tivesse esfriado.
Noam Chomsky, que estudou o controle da informação púhi
escreve:

Em um amplo espectro da opinião articulada considera*


que o fato de a voz do povo ser ouvida nas sociedades demooJI
cãs é um problema a ser superado garantindo-se que os porta-«ts
digam as palavras certas. A concepção geral é a de que c
nos controlam, e não nós que os controlamos. Se a população
fora de controle e a propaganda não funciona, o Estado é f<
a passar à clandestinidade, com operações clandestinas e
secretas; a escala das operações encobertas é muitas vezes
boa medida da dissidência popular.

Mas Chomsky é otimista em alguns momentos: "Existem ampi


oportunidades para ajudarmos a criar um mundo mais humano e n
decente, se decidirmos agir sobre ele. (...) Um política de comunicacã
democrática (...) deveria buscar o desenvolvimento de meios de expn
são e interação que reflitam os interesses e as preocupações da jx
H - r —

cão em geral, e incentivar a sua auto-educação e a sua ação individus


:
coletiva."
5i:-r_.
Um certo número de razões nos dá a esperança de que um sis
democrático de comunicação tal como propõe Chomsky virá.
mós alguns dos muitos exemplos na história em que as instituições fora*
forçadas a elevar o acesso à informação e aos novos modos de pensar 1
nando especialistas extras. Este processo inevitavelmente (e em ais
medida acidentalmente) serviu também para elevar o nível de educ
e qualificação geral. Além disso, embora a especialização tenha at
EM F R E N T E , RUMO AO PASSADO 303

agora níveis de complexidade sem precedentes, as pessoas comuns estão


- em maior número do que antes — em geral mais instruídas, dado o
acesso à informação propiciada pelos serviços on-line, o rádio e a televi-
são. Mais informação de aluguel já está chegando, com versões digitaliza-
das de coleções de dados, como os da Biblioteca do Congresso dos
Estados Unidos, e que propiciarão a qualquer indivíduo ou escola acesso
a quantidades de informação muito maiores do que as disponíveis hoje.
E essas pessoas poderiam comunicar seus sentimentos pela rede.
Com o acesso à informação cada vez maior, ficaria mais difícil pro-
pagandear e excluir o público em geral dos processos de tomada de deci-
são. E quanto menos limitado fosse ficando o acesso à teia, a mera quan-
tidade de usuários modificando, acrescentando e reestruturando as liga-
ções internas do sistema tornaria difícil evitar que os hackers quebras-
sem códigos de segurança desenhados para bloquear o acesso a uma par-
te qualquer da teia.
Um outro fator poderia acelerar este processo. Para viajar na teia,
os usuários não precisariam "saber" nada, no sentido corrente de ser
qualificado em um conhecimento único, especializado, para toda a vida.
Isto não é uma nova virada nos acontecimentos, problema muito discu-
tido (por Platão dentre outros) depois do aparecimento do alfabeto, ou
quando a imprensa tornou a memória redundante no século XV, ou ain-
da quando, mais recentemente, as pessoas passaram a confiar menos em
suas próprias habilidades de cálculo com o uso generalizado das calcula-
doras. Portanto, se a teia fosse capaz de fornecer aos usuários meios de
achar e compreender qualquer dado em seus próprios termos, o proble-
ma da delegação de competência para a tomada de decisões sociais
poderia ser resolvido.
Especialistas são hoje treinados para dar consultoria sobre tudo, da
agricultura do Terceiro Mundo à criação de empregos urbanos, passan-
do pela venda de carros último tipo. Na maioria dos casos, o processo de
avaliação e posterior implementação de propostas se move de cima para
baixo. O que ocorre é que os alvos dos tomadores de decisão (de agricul-
tores que compram fertilizantes que não podem pagar a consumidores
que compram uma nova máquina enquanto a velha ainda funciona)
podem, sempre que necessário, ser consultados através de pesquisas de
opinião e até referendos. Mas muito frequentemente as pesquisas se
baseiam na presunção de que o que a maioria deseja é a solução de cur-
304 ; O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

to prazo oferecida naquele momento. Em qualquer caso, o obji -


toda análise de opinião pública é frequentemente pouco mais do
descobrir como as pessoas reagirão a um produto ou política depôs ^
ele for para o mercado. A atitude institucional tende a ser (pararrasa
do Henry Ford): "Você pode ter qualquer cor de carro, desde que •
preto."
Este processo faz completo sentido em um mundo fazedoí
machados, dado que ninguém espera que um amador "não-qualifiaÉJ
contribua para o desenvolvimento da genética vegetal ou para a nued
eletrônica de combustível. Mas esta atitude ignora o fato de que a
se todos os casos a inovação causa mudanças no modo de vida >
soas, e que nessa questão a maioria delas é altamente competenre.
Outro aspecto importante da questão, ao lado do envolvir
público nos processos de tomada de decisão, é a escala dos prol
que enfrentamos. A principal característica distintiva dos presentes»
fazedores de machados que provêem soluções de curto prazo par
problemas com que a humanidade se defronta desde os primórdios é
vez o modo como eles concentraram o controle social. E dado
comunidades maiores significam poderes maiores, os líderes e insH
coes também têm se preocupado em impulsionar o crescimento
grande tem sido o belo desde que ele atingiu a sua primeira apoteoa
Egito.
Mas o conceito de crescimento ilimitado nasceu em tempos i
remotos quando, como descrito no primeiro capítulo, a Terra
não ter fronteiras. Ninguém poderia ter concebido então um '
recursos" que levasse à contenção das aspirações ao crescimento •
meio do aumento da produção de alimentos, dos sistemas de transpi
e das redes de comunicação e através de serviços de energia mais an^l
que impulsionassem processos industriais mais velozes, operados
mais e mais especialistas.
Hoje, o outro lado deste tipo de "progresso" vai se clareandfcj
medida que as limitações do mundo natural, até então fora de corai
ração, começam elas próprias a se fazer sentir. O ideal do créscimo*!
sempre ignorou o fato fundamental de que existe um limite para o pá
em que o meio ambiente pode suportar a demanda de recursos*
absorção de dejetos.
EM FRENTE, RUMO AO PASSADO 305

Historicamente, em um mundo de fazedores de machados com


razoável confiança nas economias de escala, as autoridades também
deram por certo que as pequenas estruturas sociais são ineficientes e agi-
ram contra elas. À medida que cresceu, o poder de Estado apagou povoa-
dos e cidades independentes, liquidou corporações locais e uniões muni-
cipais, acabou com a terra comum, estabeleceu leis padronizadas e a
cunhagem centralizada de moedas, construiu burocracias imensas para
reforçar a conformidade e, finalmente, forneceu todos os serviços sociais
que haviam voltado a ser necessários porque ele próprio os destruíra a
nível local. Como todos os demais presentes que não pudemos recusar, o
modelo do crescimento tornou-se uma profecia auto-realizável.
Os efeitos de longo prazo dessa política estão agora destruindo as
poucas comunidades auto-sustentáveis remanescentes no Terceiro
Mundo, de um modo que reflete toda a história do Ocidente no século
XIX. A industrialização está marginalizando as economias locais de
pequena escala, reduzindo-as ao papel de meras fornecedoras das cida-
des. E no meio urbano, os membros de comunidades outrora cooperati-
vas se tornaram indivíduos competitivos, sem vínculos locais ou familia-
res, ressentidos com a pressão, que vem de todos os lados, para a confor-
midade com os modelos ocidentais.
Nos lugares de onde vieram estas pessoas, o conhecimento autóc-
tone tradicional está sendo alijado. A escola ocidentalizante se concen-
tra no ensino de especializações não realisticamente relacionadas com a
natureza da sociedade local e com suas condições ambientais imediatas.
As pessoas aprendem técnicas ocidentais que não podem aplicar,
enquanto perdem técnicas autóctones de que necessitam, em salas de
aula em que são isoladas da sabedoria local acumulada durante séculos.
Mesmo os reformadores de alto nível que advogam uma redistri-
buição "justa" da riqueza mundial mantêm um compromisso com o
crescimento económico continuado e o desenvolvimento da alta tecno-
logia, que consideram indispensável para gerar a riqueza necessária para
pagar por suas reformas. Mas as próprias reformas requerem uma cen-
tralização ainda maior do controle, uma vez que a tarefa da redistribui-
ção exige autoridades supranacionais. Entretanto, como tentamos
demonstrar, o resultado final de tais políticas centralizadoras orientadas
para o crescimento são os problemas ambientais e sociais que o mundo
enfrenta hoje.
306 i O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

O potencial político da teia talvez seja uma solução, mas poáe


gir, no entanto, uma atitude radicalmente diferente para com 3^çm
vacas sagradas longamente cultuadas, mais que todas aquela quí
tempos recentes, tem mantido no poder as instituições sustentada
fazedores de machados que dão a esse poder uma aparência quaM
vel: a democracia representativa.
Se as questões políticas e sociais relacionadas à tecnologia se H
rem cada vez mais complexas, se o acesso à informação relevante s
nar, como indicamos, universal, e se os agentes eletrônicos esím
disponíveis (e estarão ao longo da década) para agir em benefício dw
víduo, então a democracia participativa informada se tornará pá
Quando os meios tecnológicos estiverem prontos, uma franquia i
da o exigirá, porque, como escreveu Rousseau:

A soberania (...) consiste essencialmente na vontade g


vontade não pode ser representada. Ou é ela própria ou
mais; não existe o meio-termo. Os deputados do povo, por
guinte, não são nem podem ser seus representantes; são
te seus agentes (...) do instante em que uma pessoa escolhe
sentantes, não é mais livre.

Aristóteles pensava que a polis deveria ser pequena e a


cão similarmente direta:

Se os cidadãos de um Estado julgam e distribuem


acordo com o mérito, então eles devem conhecer os respe
caracteres; se não têm esse conhecimento (...) a eleição a um
(...) não funcionará.

A tecnologia da informação já está tornando mais factível <


de comunidade de pequena escala sem forçar seus membros a :
os benefícios da vida moderna. Cinco ecovilas já se separaram do
ma económico na Suécia e estão desenvolvendo alternativas de j
na escala de base ecológica. Outros modelos existem sob formas aã
radicais, e a experiência de cada um pode ter contribuição a dan as i
panhias de beneficiamento de madeira de propriedade dos própr
balhadores do noroeste do Pacífico, a comunidade movida a
solar de Davis, na Califórnia, a democracia consensual dos qt
EM F R E N T E , RUMO AO P A S S A D O 307

sociedades não-hierárquicas da África Oriental, as colónias Amana em


lowa, e outras. A teia poderia facilitar este tipo de desenvolvimento,
dando a outras comunidades todas as ferramentas de conhecimento de
que precisam para funcionar autonomamente.
Mas a virtude-chave, política, das comunidades de pequena escala
sustentadas pela teia e governadas pela democracia direta é que elas pro-
piciam fóruns de debate perdidos para nós desde a Grécia. O debate não
precisa demandar envolvimento pessoal da parte de todos os indivíduos.
Esta foi a base sobre a qual proliferaram experimentos similares na déca-
da de 1960. Naquela época (e ainda mais provavelmente agora) as pes-
soas eram simplesmente ocupadas demais para perder tempo diaria-
mente com todo e qualquer item dos assuntos comunitários. Mas agora
existem técnicas para criar "agentes" capazes de representar ampla e
fielmente os indivíduos e de registrar (e atualizar) eletronicamente os
seus pontos de vista sobre qualquer questão. Pode ser instrutivo, a este
respeito, refletir sobre o antigo slogan fazedor-de-machados que vem
subvertendo de maneira tão satisfatória o processo democrático: se a vox
populi foi realmente algum dia a autoridade última, como pretendeu,
por que a expressão termina com: vox dei?
O sistema social aberto possibilitado pela democracia participativa
da pequena comunidade é também mais difícil de subverter e controlar.
A estrutura incentiva a participação e o consenso, e o contato mais
estreito entre as comunidades e seus ambientes atua no sentido de uma
maior consciência da necessidade de economias auto-sustentáveis não
poluentes.

Todas as mudanças até aqui sugeridas são complexas e de largo alcance,


mas não exigem um tempo necessariamente longo para acontecer. De
modo geral, se a informação relevante está disponível e é compreendida,
as pessoas mudam suas vidas com uma rapidez extraordinária.
Os cientistas sociais dos anos 60 escreveram textos dizendo que
seriam necessárias décadas de constante pressão governamental para
persuadir os norte-americanos a alterar seus hábitos reprodutivos. O
costume familiar de ter tantos filhos quanto se pudesse sustentar era
considerado próprio da natureza humana.
308 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

Mas no início dos anos 70, nos Estados Unidos e na Es


Ocidental, a mudança em direção às famílias pequenas somente l
três anos e ocorreu sem necessidade de nenhuma pressão governa
tal. As pessoas tomaram consciência de que os problemas econâ
eram causados por seus hábitos de reprodução, e por isso mudara*
No que se refere ao problema populacional nas culturas na
dentais, o que poderá funcionar não são os preservativos gratuÃ
palestras sobre planejamento familiar, que de fato não ajudam a
poneses hindus a terem menos filhos, mas o acesso à informaçãi
mudanças sociais subsequentes: transferência à mulher da ca
poder que lhe é devida, além do atendimento da demanda por seg
ca social, emprego e independência financeira na idade madura. J
soas não terão, portanto, tanta necessidade de filhos para cuidar i
velhice.
Esta não é uma teoria fantasiosa que exija níveis de especi
computacional e instalações técnicas inexistentes fora das nações;
çadas. Ela já aconteceu, em parte devido à influência comi
governo, em uma comunidade pequena e de baixo padrão te
o Estado de Kerala, no sudoeste indiano, e foi objeto de intenso i
nas duas últimas décadas.
Nos anos 70, os planejadores do desenvolvimento que lidam*
problemas da população mundial encontraram em Kerala um i
nal exemplo de região tropical onde as taxas de natalidade e de:
dade infantil estavam caindo, onde a expectativa de vida média,
mava-se dos 70 anos, onde a larga maioria dos adultos sabia ler <
ver e onde as mulheres eram mais numerosas que os homens,
isto fora alcançado sem mudanças políticas violentas.
Kerala não se havia industrializado, permanecia larga
dependente da agricultura. Sua renda per capita estava bem at
média indiana. O modelo de Kerala indicava que políticas cuk
centradas na igualdade de acesso às necessidades básicas melhc
vida dos habitantes sem nenhuma revolução, vermelha, verde ou i
trial.
Em 1975, a ONU publicou em Nova York um relatório que í
zava as "aquisições positivas" de Kerala em matéria de "eqi
desenvolvimento sócio-econômico equilibrado". O relatório salie
fato de "um estado relativamente pobre" e com baixa disponibilic
EM FRENTE, R U M O AO P A S S A D O 309

capita de alimentos ter realizado "avanços notáveis em (...) saúde e edu-


cação" que resultaram em uma "diferença perceptível na qualidade de
vida".
Causou grande impacto no resto do mundo a avaliação de que o
controle populacional fora bem-sucedido em Kerala. O relatório acen-
tuava as "evidências de uma queda sensível nas taxas de natalidade em
Kerala" e sugeria que elas resultavam de "mudanças nas atitudes sociais
frente ao tamanho da família, resultantes de uma expectativa de vida
mais longa, da redução da mortalidade infantil e da educação da
mulher", que por seu turno resultavam de substanciais investimentos
governamentais em saúde e educação.
Já nos anos 20, uma análise do governo britânico concluíra que
mesmo as castas inferiores viam a educação como "a porta para uma
nova Terra e um novo céu". O sistema educacional de Kerala estimulou
uma ética mais exigente de igualdade de oportunidades que, a partir dos
anos 30, impulsionou a disseminação da educação. As pessoas queriam
educação para seus filhos e por isso os governos, conscientes da necessi-
dade de serem populares, destinaram mais recursos para as escolas.
Depois de cem anos, a participação política chegava para a maioria dos
habitantes de Kerala através do sistema de ensino.
O sistema escolar tornou-se básico em Kerala porque tanto as cas-
tas mais altas quanto as seções cristãs locais sempre acreditaram no valor
da educação. As escolas a que enviavam seus filhos eram sustentadas
pelas próprias famílias até que uma estrutura de supervisão governa-
mental fosse organizada, na década de 1860. Além disso, por associarem
educação com status, as castas hindus inferiores afluíram prontamente
às escolas abertas por missionários europeus. Logo se tornou óbvio que
a educação abria as portas para o emprego no comércio em expansão e
no próprio serviço público.
Décadas de participação pública generalizada na política estimula-
ram uma intensa competição política depois da independência, em
1947, envolvendo uma parcela da população maior do que em qualquer
outro lugar da índia, como ilustram sobejamente as eleições em Kerala.
O mais baixo índice de participação em uma eleição em Kerala desde
1957 era ainda oito por cento mais alto do que o mais alto índice de toda
a índia. Um observador escreveu: "Um eleitorado interessado e exigen-
te e eleições frequentes [durante muito tempo elas aconteciam a cada
310 O P R E S E N T E DO FAZEDOR DE M A C H A D O S

dois anos], empurraram os políticos de Kerala a seguir prograai


educação, reforma agrária e saúde que proporcionaram melhorias
ceptíveis na vida das pessoas."
O acesso à informação e o acesso à escolaridade têm sido
mentais em Kerala. Milhares de professoras receberam salários
quase um século e a educação das meninas elevou a idade do
to. Mulheres instruídas cuidam melhor de seus bebés do que as coe
têm instrução. As escolas são a principal indústria de Kerala, respi
vel, em 1984, por 38 por cento dos gastos anuais do governo. Asai
e a universidade são focos de uma intensa competição entre estiai
governamentais e não-governamentais. Os grandes interesses es
dos na educação dão às organizações comunais uma substância
doura e a competição entre eles tem ajudado a tornar a política
sã rotineira e respeitada.
Escrevendo sobre o fenómeno Kerala, o economista e ex
dor na índia John Kenneth Galbraith sugeriu em 1982: "A
vem em primeiro lugar. Nós [economistas] tínhamos uma s
equivocada de prioridades. Pensávamos poder começar pelos
mentos de capital; deveríamos ter começado pelo investimento
cação."
O escritor australiano Robin Jeffrey, em um texto de
cluiu: "Políticas democráticas, envolvendo grandes segmentos da
cão, podem ser levadas a cabo para fornecer os serviços que as
precisam e, conseqíientemente, usam. Mulheres instruídas e
transformarão, como administradoras domésticas, esses serviços
melhor saúde para homens e mulheres. A taxa de natalidade cairá-
se exige é um estágio ulterior no qual seja produzida riqueza s
garantida a sua justa distribuição, de modo a assegurar índices
mais altos de bem-estar para todos. Só um movimento visível n
cão poderá, nos anos 90, fazer de Kerala um modelo a ser copiado.'
A experiência de Kerala indica que mudanças de atitude
controle da população podem ser obtidas no Terceiro Mundo,
necessidade da transição demográfica pós-malthusiana que
Ocidente, no século XIX, por meio da industrialização. Se o
humanidade depende de mudanças no modo de vida e nos
Kerala oferece claras evidências de que as sociedades podem p
EM F R E N T E , R U M O AO P A S S A D O 311

transformações rápidas e dramáticas, e de que boa parte das chances de


sucesso está nas mãos das mulheres emancipadas.
Em suma, à medida que adentrarmos o século XXI, nos defronta-
remos com uma escolha importante: continuar confiando nos presentes
destinados às soluções de curto prazo ou começar a pensar em nós mes-
mos como membros capazes da comunidade global, porque é na escala
global que a humanidade começa a causar dano ao planeta. Nenhuma
outra espécie multiplicou-se tanto e colocou o meio ambiente sob tanta
pressão quanto o animal humano.
A fragmentação política do pós-guerra fria pode ser um indicativo
da direção que devemos tomar. A tecnologia tornou ineficaz o estado-
nação, hoje incapaz de proteger seus cidadãos das ameaças de terroris-
tas urbanos armados do conhecimento nuclear, com economias não
mais isoladas do mundo exterior, suas leis não mais soberanas, suas moe-
das não mais estáveis.
A fragmentação dessas monolíticas comunidades centralizadas
onde, durante séculos, as anomalias culturais internas foram reprimidas,
podem representar uma promessa mais do que uma ameaça. Grupos
étnicos vociferantes que emergem de décadas de silêncio revelam uma
diversidade cultural ainda florescente, a qual, como a diversidade do
mundo natural, representa uma flexibilidade de resposta valiosa para a
sobrevivência global.
Quanto mais examinamos essa diversidade, mais somos lembrados
que os espaços culturais existentes entre nós podem não ser tão grandes
quanto parecem. As línguas vivas mais antigas do mundo têm somente
três mil anos de idade, as religiões são quase tão jovens e a mais velha
das chamadas identidades "nacionais" que distinguem um grupo de
outro no mundo moderno são relativamente recém-chegadas. A huma-
nidade permaneceu como uma grande mistura de raças durante os cem
mil anos anteriores à Mesopotâmia. Os arménios, mongóis e escoceses
modernos se associaram a seus "países" há menos tempo que a duração
de uma centena de vidas. Culturalmente, somos quase inteiramente
paleolíticos, fato que manifestamos toda vez que jogamos sal sobre o
ombro, que evitamos passar por debaixo da escada ou que cruzamos os
dedos.
Se um bebé fosse transportado da Idade da Pedra para os dias
atuais, vestido adequadamente poderia passar despercebido e seria
;
312 O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

capaz, a seu tempo, de aprender todas as técnicas modernas, E*=~


portanto, no mundo moderno, mais próximos dos "primitivos" ao
poderíamos suspeitar. O que nos separa é nossa superconfiança nopÉ
samento sequencial fazedor-de-machados e a falta de um meio de a
nicacão comum.
Em uma carta enviada ao reverendo Bouvet, em 1703, o rr^íai
tico alemão Gottfried Leibniz disse ter sonhado que um dia h;

(...) um tipo de escrita universal com as vantagens do


chinês, que todos poderiam entender em sua própria língua, i
muito superior a ele porque poderia ser aprendido em pá
semanas, uma vez que seus caracteres estariam relacionados (
a ordem e a conexão das coisas.

Desde a escrita cuneiforme da Mesopotâmia, passando pelo s£t


to grego, por Gutenberg e, em especial, pela representação do mundo
computadores modernos, começamos a compreender o sonhqj
Leibniz. Como resultado, todo homem hoje cresce para assumir o <
lê de um mundo muito mais complexo e heterogéneo do que teria!
seu destino biológico. Desde a Mesopotâmia e a Grécia, aprenc
representar o mundo abstratamente em cadeias de letras lidas em i
direção. Usamos a matemática para predizer o movimento das es
dos veículos espaciais, e para governar o mundo computadorizado
que vivemos. Nesse processo, as habilidades básicas da mente, me
no espaço, ouvir e falar, tornaram-se de importância secundária.
E assim sendo, deixamos de perceber que as crianças passa» j
mudanças radicais de desenvolvimento quando aprendem a dói
este mundo artificial. Mas com o êxito do programa enunci
Leibniz, governar o mundo da informação do século XXI será mais i
para muitas pessoas porque existirá um modo novo e menos es
delas se expressarem. A capacidade de ver relações e fazer as
moverem no espaço pode ser intelectualmente tão valiosa com os<
putadores icônicos quanto já foi, com a imprensa, aprender eqi
quadráticas ou decorar a tabela periódica. Quando a maior parte dal
balho rotineiro da mente estiver automatizado, os talentos esj
intuitivos, "navegacionais", podem ser muito mais adequados para i
sar o conhecimento, que estará estruturado mais de acordo com o i
EM FRENTE, RUMO AO PASSADO 313

do natural do que reduzido a códigos alfanuméricos. Ler e escrever pode


se tornar menos importante.
Nos últimos séculos, a educação foi basicamente constituída do
ensino da língua e das habilidades numéricas. Isto se dá, em parte, em
função da maneira como a informação vem se apresentando, inalterada
desde o tempo do alfabeto grego e dos números mesopotâmios. Porjsso,
aprender sobre Rembrandt, Beethoven ou Einstein exigia a capacidade
de ler sobre eles. Mas se os novos sistemas derem aos indivíduos um
acesso mais direto às técnicas de pintura de Rembrandt ou às diferentes
maneiras de se construir uma sinfonia, então as técnicas requeridas
serão primariamente visuais, auditivas e tácteis. Com isto em mente, é
fácil ver a emergência do pluralismo étnico do pós-guerra fria como
oportunidade mais do que um problema, pois com o advento dos com-
putadores icônicos do tipo Mac, a "instrução", que seria o traço distinti-
vo de uma pessoa educada, poderia, pela primeira vez desde a Grécia,
não ser mais essencial.
Os antropólogos identificaram uma certa quantidade de caracte-
rísticas comuns à maioria das sociedades não-tecnológicas passadas e
presentes. Essas sociedades tendem a valorizar o conhecimento prático
mais do que o abstraio, seus rituais "primitivos" são parte das realidades
cotidianas regulares da vida, os grupos tendem a não sustentar especia-
listas outros que o xamã, todos os membros do grupo podem, até certo
ponto, desempenhar qualquer tarefa e todos dividem a responsabilidade
pelos demais. Mais que tudo, o "primitivo" tem um ponto de vista holis-
tico da vida que examina todas as decisões sociais pelos seus efeitos
sobre a comunidade e sobre o meio ambiente.
Esses valores sociais podem ser adequados à comunidade da teia
de meados do século XXI porque são mais apropriados às estruturas so-
ciais pequenas e relativamente simples, que foram desaparecendo à me-
dida que a vida sob o machado assumia uma escala mais ampla e maior
padronização. Dado que é improvável um retorno aos mitos arcadianos
e à vida bucólica, a teia (e todos os processos de suporte que ela pudesse
fornecer) tornaria novamente viáveis as pequenas comunidades, com
um funcionamento que se faria comum por todo o planeta, e cuja máxi-
ma seria: "Pensar global, agir local." E somente seriam necessários siste-
mas de energia renovável já disponíveis, solar, geotérmica e eólica, para
tornar tais comunidades energeticamente independentes e assegurar a
314 j O P R E S E N T E DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

sobrevivência de culturas que de outra forma terão de enfr<


machado nas próximas décadas.
Enquanto as "supernas de comunicação" e as teias às
nos ligarão não forem assaltadas pela mais poderosa elite info:
da história (e este é um grande "se") elas poderão nos ajudar a vi
onde estávamos antes que os presentes dos fazedores de mac
sem o primeiro talho no mundo e começassem a aplicar o pr<
corte-e-controle à natureza humana e à natureza da qual nos ori,
Para essas comunidades, as técnicas mais valiosas serão as SBiB
listas. Elas valorizarão a capacidade de conectar, pensar imagm»
mente e entender como os dados se relacionam, de ver padrões sm
vações geradas-pela-máquina e de avaliar seus efeitos sociais anã
liberá-los para a sociedade.
Essas são habilidades que o cérebro já possui em todas as ca
dades, dos corretores de Wall Street aos homens de lama da >
Guiné. Todo cérebro humano possui a capacidade de expressar talcri
idiossincráticos diversos e por isso, em certo sentido, todo cérebn»'
próprio uma cultura inteira. Desde o tempo do primeiro mac!
meios de manifestação dessa cultura têm sido reprimidos por
incansável pressão para a conformidade, que rebaixou a div<
natural da auto-expressão humana e manteve a proeminência da •
fazedora-de-machados.
Hoje, no entanto, bilhões de talentos humanos poderiam es*
portas da auto-expressão se quiséssemos assumir novos pontos de TI
ver aonde eles nos iriam levar. Mais do que em qualquer época ame
temos hoje meios de assegurar que todos "vemos" — percebemos
uma nova maneira. Até aqui, sempre que defrontados com a mudi
tivemos poucas opções. Da mesma forma como a capacidade institi
nal de cortar-e-controlar foi talhada pelos instrumentos fazedore
machados de cada época, assim também foi a flexibilidade de nossoi
temas sociais e a forma e o alcance de nossa resposta individual,
exemplo, pouca liberdade de ação pessoal era possível na Suméria, 1
o único instrumento organizacional era a instrução cuneiforme, <
volvida basicamente para o inventariamento. Ao longo da hist<
conformidade centralmente imposta vem aplicando este tipo de et
contra visões anárquicas, que não podem ser adequadamente ad
tradas.
EM F R E N T E , R U M O AO P A S S A D O 315

Mas com as novas tecnologias da informação, a comunidade pode-


rá visualizar padrões de mudança com facilidade e rapidez, simular o
efeito de uma ou outra opção e fazer a sua escolha, baseando-se em mais
conhecimento prévio do que nossos ancestrais jamais tiveram. Poder-se-
ia argumentar que tais cenários poderiam ser tão imperfeitos quanto as
suposições em que se baseiam, mas eles são em qualquer caso melhores
do que nada, que é o que temos tido até agora.
A visão indicada neste livro é apenas uma dentre muitas possíveis
(da mesma forma como nosso tema é apenas uma das maneiras de enca-
rar o problema). Ao nos concentrarmos nas comunidades de pequena
escala, no conhecimento autóctone, na educação em teia e na democra-
cia participativa, deixamos de considerar outras possibilidades. Há
quem considere que os problemas de recursos, alimentos e poluição
poderiam ser totalmente resolvidos pela engenharia genética, a biotec-
nologia e a nanotecnologia. Outros depositam suas esperanças no gover-
no mundial centralizado, no controle da população e na consciência
ecológica. Mas qualquer que seja o ponto de vista, a decisão sobre quais
são os problemas e soluções mais relevantes terá de ser tomada com base
no tipo de comunidade informada e liberada aqui descrita.
Se a sociedade vai ou não tomar o caminho aqui sugerido é algo
que depende de conseguirmos ou não escapar do confinamento do pen-
samento fazedor-de-machados, o que por sua vez dependerá de já estar-
mos ou não condicionados demais para pensar a-racionalmente tanto
quanto racionalmente.
O primeiro passo é perceber que podemos usar a nossa tecnologia
da mesma forma como ela foi usada outras vezes na história. Podemos
usá-la para mudar as mentes, só que desta vez por nossas próprias
razões, nos nossos próprios termos e no nosso próprio ritmo; usar as tec-
nologias futuras para o que elas devem servir — ser instrumentos de
liberdade. A natureza altamente interativa do mundo moderno torna
menos fácil impedi-lo pelos velhos caminhos da hierarquia e da divisão.
Mas em qualquer caso, o que sempre nos manteve escravizados às insti-
tuições foi a nossa ignorância desse tipo de conhecimento que, em bre-
ve, será tão acessível & compreensível que será perda de tempo conhecê-
lo. Ao imprimir seus livros, Gutenberg reduziu enormemente o poder
da memória e da tradição. As novas tecnologias reduzirão o poder do
conhecimento arcano, especialista. E quando o fizerem, todos nós retor-
316 O PRESENTE DO F A Z E D O R DE M A C H A D O S

naremos, em certo sentido, ao que éramos antes do prime-: |


A cultura na qual vivemos, que se baseia na influência st
da linguagem sobre o pensamento e opera segundo as regras i
tas da filosofia grega e da prática reducionista, tem exercido ml
do poder. Ela nos deu de bandeja as maravilhas do mundo i
Mas ela também fomentou crenças que nos ataram, durante!
instituições centralizadas e indivíduos poderosos, crenças
temos de nos livrar se quisermos nos adaptar ao mundo que i
mós: a de que é possível extrair indiscriminadamente os recia
tários, a de que os membros mais valiosos da sociedade são os •
tas, a de que as pessoas não podem viver sem líderes, a de qocf
mecânico e só pode ser curado com facas e drogas, a de que <
única verdade superior, a de que as únicas capacidades hv
vantes são o modo sequencial e analítico de pensar e a de quei
funciona como um presente de fazedor de machados.
Acima de tudo (e muito recentemente), fomos também
dos a pensar que a diferença é inaceitável e a sequer recoai
existem entre nós diferentes capacidades. Mas nossa soou
depende da percepção e expressão da imensa diversidade
Somente se utilizarmos aquele que parece ser o presente deâ
fazedores de machados — os sistemas de informação vindow
alimentar esta diversidade individual e cultural, somente se cd
nossas diferenças ao invés de reprimi-las, teremos chance de t
riqueza do talento humano que há milénios vem sendo ignoc
agora pede para ser urgentemente liberado em todo o mundo.
Bibliografia
Selecionada

PRÓLOGO

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CAPÍTULO 1: UM Fio DE VANTAGEM

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orvente de como rios, humanos,
usamos nossas mentes ao longo da história, de um modo que nos levou
aos nossos maiores sucessos, mas também aos nossos maiores problemas.
E termina com uma sugestão provocativa sobre como a moderna tecnologia
da informação pode, paradoxalmente, materializar tanto os últimos frutos
dessa abordagem quanto as sementes de sua superação."
Massaçhussets Institute of Technology

"Este livro incomum e de agradável leitura traça â história da ciência


e da invenção, dos primeiros fazedores de machados até os dias de hoje.
Ele trata das inseparáveis consequências, para o bem e para o mal,
de nossas invenções.

: : Professor James Lovelock


: ;v ^ r v".' -" - - - ' • - = „ - " • •-••==< •.... \ '-'-. • '...'
"O Presente do Fazedor de Machados condensa milhões de anos
de história humana em um livro excitante, para ser lido de um só fôlego.
Fatos conhecidos emergem da narrativa com um frescor extraordinário,
interpretados pela inteligência aguda e vasto conhecimento dos autores
acerca do comportamento humano. É um livro que define algumas das
questões centrais de nosso tempo.
Mihaly Csikszentmihalyi

"Este livro é um triunfo. Não creio que possa ser igualado em sua
combinação de erudição e agudeza de pensamento prospectivo, ambos
da mais alta qualidade."
Robrrt Cidldini

BERTRAND BRASIL
ISBN 8 5 - 2 8 6 - 0 6 8 6 - 4

9 "788528"606867"
iste é um livro sobre as pessoas que nos
deram o mundo em troca de nossas mentes.
No encerramento deste século de criatividade
e descobertas, humanistas e cientistas se
perguntam: como é possível que, com todo
o seu talento, os seres humanos - esses
"fazedores de machados", dotados do génio
de inventar, comandar, inspirar e projetar -
tenham levado o mundo à beira da destruição?
As respostas podem ser encontradas em
O Presente do Fazedor de Machados,
uma história imaginativa e brilhantemente
informada a respeito dos dois gumes da
cultura humana James Burke, expert da
interação tecnologia-sociedade, e Robert
Ornstein, pioneiro no estudo da evolução da
consciência, mostram como o mundo e,
mais importante, o nosso próprio modo de
pensar são continuamente remodelados pela
interação entre as inovações e o cérebro
humano.
Fazendo da totalidade da história humana
e da cultura ocidental a sua tela este livro
magnífico retraía como, em cada grande
etapa de inovação, do primeiro machado
de pedra aos supercomputadores do mundo
moderno, uma minoria dotada da capacidade
de análise sequencial (os fazedores de
machados) gerou tecnologias que lhe deram
poder de controlar e moldar o restante da
comunidade. Outras formas de tecnologia,
mais antigas, nascidas da intuição e dos
múltiplos talentos não-verbais do cérebro,
foram desvalonzadas. acabando por permanecer
amplamente ignoradas. Hoje, dizem os
autores, os efeitos cumulativos da tecnologia
fazedora-de-machados nos trouxeram até
um ponto em que é; possível e absolutamente
necessário, para a nossa sobrevivência, nos
reapropriarmos dessas antigas formas do
conhecimento, que^ ainda sobrevivem nas
culturas não-fazedoras-de-machados do
mundo moderno.
De tempos em tempos aparece um livro
que muda nosso modo de pensar sobre nós
mesmos, nossa cultura, nosso futuro.
Brilhante, radical e extraordinariamente
abrangente, O Presente do Fazedor de
Machados faz as perguntas certas e
começa a achar as respostas certas, num
momento crítico. E indica um caminho
sofisticado e original para recuperarmos a
esperança no futuro.

James Burke é um premiado escritor e


apresentador de TV famoso pelo êxito de sua
série Connections. Os livros que acompanham
essa e outras de suas séries, dentre eles
O Dia em que o Universo Mudou, são best-sellers.
E colaborador regular da Scientífic American.

Robert Ornstein é autor de mais de vinte


livros, dentre eles New World, New Mind,
The Psychology of Consaousness, além de um
importante livro-texto de psicologia. Dirige
o Instituto para o Estudo do Conhecimento
Humano de Los Altos, Califórnia.

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