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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ 1ª Edição 2009

Reitor
Alex Bolonha Fiúza de Mello
Vice-Reitora © Orlando Maneschy e Ana Paula Felicissimo de Camargo Lima
Regina Fátima Feio Barroso Todos os direitos e as responsabilidades sobre as
Pró-Reitora de Administração imagens e textos pertencem aos seus autores.
Iracy de Almeida Gallo Ritzmann
Pró-Reitor de Ensino de Graduação e Administração Direção de Arte
Acadêmica Orlando Maneschy e Ana Paula Felicissimo de Camargo Lima
Licurgo Peixoto de Brito
Pró-Reitora de Extensão Projeto Gráfico
Ney Cristina Monteiro de Oliveira Melissa Barber y
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação
Roberto Dall’Agnol Coordenação Editorial
Pró-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento Orlando Maneschy e Ana Paula Felicissimo de Camargo Lima
Sinfrônio Brito Moraes
Pró-Reitora de Desenvolvimento e Gestão de Pessoal Revisão
Sibele Maria Bitar de Lima Caetano Claudio Maneschy e Ana Paula Felicissimo de Camargo Lima
Prefeito do Campus
Marcus Vinícius Menezes Neto Ficha Catalográfica
Chefe de Gabinete Graça Pena
Sílvia Arruda Câmara Brasil
Realização
Universidade Federal do Pará - UFPA
EDUFPA Programa de Extensão Processos Artísticos e Curatoriais Con-
Diretora: Laïs Zumero temporâneos
Grupo de Pesquisa Bordas Diluídas
GRÁFICA UNIVERSITÁRIA Mirante - Território Móvel
Diretor: Jef ferson Wagner e Silva Galvão
Orlando Maneschy e Ana Paula Felicissimo de Camargo Lima
INSTITUO DE CIÊNCIAS DA ARTE
organizadores
Diretor
José Afonso Medeiros Souza
Diretora Adjunta
Lia Braga Vieira
Diretor da Faculdade de Artes Visuais
Néder Charone

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Já! Emergências Contemporâneas /organização


Orlando Maneschy e Ana Paula Felicissimo de Camargo
Lima. - Belém: EDUFPA/Mirante - Território Móvel,
2008

ISBN: 978-85-247-0496-3

1. Arte Moderna Sec. XXI. 2. Crítica de Arte. 3. História


da Arte. I. Título. II. Maneschy, Orlando. III. Lima, Ana
Paula Felicissimo de Camargo.

CDD - 709.04
Apresentação
Orlando Maneschy
Ana Paula Felicissimo de Camargo Lima 008 Não Esquecer Claudia Leão 063

Ichingmentar Paulo Bruscky 011 Flow System Ken Friedman 065

Darwin Melissa Barbery 013 Carta Social Maria Christina 067


regiões de sombra dos 80
O Espaço Global: O TODO Walter Zanini 015 (& diamantes) Ricardo Basbaum 070

Entrevista Ana Paula Felicissimo de Camargo Lima 019 Encontros Bresser-Moca Sinval Garcia 077
Equipe 9

Coleção Regina Melim 032 A Procura de... Solon Ribeiro 079


Território de liberdade
Um museu de arte contemporânea
durante a ditadura militar no Brasil Cristina Freire 034 Campo de Força Mario Ramiro 090

Gallus Sapiens Victor de La Roque 047


Contra Gravitropismo:
arte e as alegrias de levitação Eduardo Kac 093

Dias de Artista Oriana Duar te 103


GLOBALSTRIKE.NET Sergio R. Basbaum 051 gerAção Comum / a mania de dizer
A GENTE: Portas Lógicas e Conexões
Periféricas para entender a Amizade
Entre Mariano Klautau Filho 061 como Polarização da Arte Edson Barrus 105
Modelo 5 Vanessa Schultz 117 São tantas as imagens... Valzeli Sampaio 167

especificidade e (in)traduzibilidade
Jorge Mascarenhas Menna Barreto
Raquel Garbelotti 119 Presente Risco Rubens Mano 173

Sem Título Acácio Sobral 129 Vorazes, Grotescos e Malvados Christine Mello 175

Será... Renato Palumbo 131 Minotauro Grupo Empreza 181

Sem Título Bené Fonteles 135 Desentranhando Futuros Suely Rolnik 183

Cachorro Pequenês / quadrupede Josinaldo 137 Inimigos à Vista Eduardo Falesi 193

Já! Ontem, Agora Marisa Mokarzel 139 Sem Título Fernando Hage 195

Nem que L. tenha 100 anos Lúcia Gomes 145 Passaporte da Alegria Tadeu Costa 199

Entrevista
Ana Paula Felicissimo de Camargo Lima
Adriana Barreto e Bruna Mansani
148 Pum e Cuspe no Museu Paulo Herkenhoff 201

Salto para um mundo cheio de Deuses Mário Ramiro 161 Cancelado


Orlando Maneschy
Ana Paula Felicissimo de Camargo Lima 207
Right Now! Contemporary Emergencies Já!Emergências Contemporâneas
The environment in which it is originated and it is spread, flower bed or yard where
exchanges are sowed to be transplanted afterwards. Apprenticeship. Se[men]ed. Meio no qual se origina e do qual se propaga, canteiro onde se semeiam trocas que
depois serão transplantadas. Tirocínio. Semen[te].
Right Now! Contemporary Emergencies is a project that gathers feelings of the current
tension in the form of texts, images, instructions, contaminations, strengths and Já! Emergências Contemporâneas é um projeto que reúne instâncias da tensão atual sob a
hyper texts organized in on initial printing layout. As a workshop in the format of a book, forma de textos, imagens, instruções, contaminações, potências, hiper textos organizados
it is launched as a first step of communication and distribution. Created in an open- numa estrutura inicial de publicação. Sendo um seminário na forma de livro, acontece
minded way, it can also happen in presence using this ‘book-platform’ as a set that can como plataforma de comunicação e distribuição. Trabalhado de forma aber ta, pode
be rearranged in the most different ways and collections. For the presence realization it is também ocorrer de maneira presencial, usando-se esse livro-index como um conjunto que
necessary to consider the variety of authors and geographic (experiences) regions, taking pode ser reorganizado das mais diversas maneiras e agrupamentos. Para a realização
also in consideration that par ticipants belonging to just one single area or language does presencial, consideramos a necessidade de se contemplar a diversidade de autores e
not make sense, once the contamination and strangeness is the emergencial core of this regiões geográficas, nunca podendo ocorrer com par ticipantes de uma única região ou
project. linguagem, já que a necessidade de estranhamento e contaminações é uma dos extratos
de emergência desse projeto.
It is a device triggered in difficult situations. A sudden combination of unexpected and
unpredictable circumstances that request immediate action. Flourish or emerge, make it Dispositivo acionado em situações difíceis. Combinação inesperada de circunstâncias
clear. imprevistas e que exigem ação imediata. Trazer ou vir à tona, explicitar.

Dear par ticipant, Caro par ticipante,

You are invited to take par t in this project expanding reflections from what is considered a Convidamos você para tomar par te neste projeto ampliando reflexões a par tir daquilo que
vital contemporary emergency. considera uma vital emergência contemporânea. Para que a pulsação seja latente, o prazo
é condensado possibilitando que esta emergência transpareça no ritmo da construção de
Looking forward to your par ticipation. sua reflexão. Emergência e urgência num mesmo movimento.

Best wishes, Cer tos de seu aceite, receba o nosso abraço,

Ana Paula Felicissimo and Orlando Maneschy Ana Paula Felicissimo e Orlando Maneschy

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Melissa Barbery

O espaço global: O TODO

A compreensão é complexa se não nos detivermos numa referência: a nossa participação ambiental, a experiência
neste sentido é fundamental; desta forma, o espaço em que vivemos, a atmosfera que nos envolve, tudo pode estar
sujeito a um constante estado de análise. Os elementos, os objetos, as imagens, necessitam de uma visão mais
introspectiva, e aí estará, talvez, a resposta a várias indagações.
A análise de qualquer acontecimento e a pesquisa sobre seus aspectos, poderão levar-nos a diversas considerações.
Vinte minutos é o processo, o desenvolvimento, o envolvimento, a atitude, a participação, as reações, a transformação
(momentânea) de ambientes, a documentação, a fusão de espaços: a experiência. Estes são os objetivos.
Vivemos nove segundos, somos nove segundos. O que são nove segundos? – É o momento e o momento somos nós, a
nossa existência em relação ao núcleo maior que é a cidade.
A cidade vista em aspectos diversos: parques e jardins, praças, demolições, vida, morte, movimento. O olhar
interrogativo dos que andam em busca de não se sabe o quê.
A cidade de São Paulo num aspecto urbano: além desta indagação não muito clara, existe a periferia: que envolve o
núcleo: o aspecto rural, o primitivo, a natureza.
Na situação urbana podemos determinar muitos ambientes, pequenas comunidades: a escola, por exemplo, e a
indagação torna-se agora mais objetiva:
“QUE VOU FAZER DO SER QUE SOU?”
Em vinte minutos é necessário que o contemplativo passivo seja transformado: a condensação das reflexões, uma
saturação especial!
De uma tarefa de seminário, este grupo de quartanistas da Fundação “Armando Álvares Penteado” soube extrair
a proposição de uma obra. Aguda. Envolvente. Madura. Feita de pedaços da vida. Provocante: à atitude reflexiva
interpõe-se a ação de questionar. Alguns conceitos essenciais são desenvolvidos num complexo unificado de
imagens dialéticas e seqüenciais: a situação individual, a cidade, a comunidade escolar. O poema de Laforgue serve
à identificação, à indagação, à mensagem. Amalgama-se aos nomes da equipe:
“QUE VOU FAZER DO SER QUE SOU?”
Nos cenários pesquisados e confrontados misturam-se o amor, a dor, a fantasia, a realidade, a disposição e o
implacável na sua indiferença. A expressão da idéia e a expressão do visível não recorrem a qualquer tipo de
sofisticação – mas o desenho que fazem aflorar através de recursos tecnológicos é autêntico e profundo. As
palavras impressas, dispersas, as imagens fotográficas, a captação fílmica, a intervenção musical, as vozes, os
ruídos, a poluição do ar, na simultaneidade da ocorrência e seu crescendo, dimensionaram o espaço/tempo que
se vive. O grupo – Elisabeth, Lélia, Lídia, Luiza, Maria de Lourdes, Maria Emília, Maria Irene, Solange e Valdete –
ultrapassa a beleza magistral das imagens que criou e que nos envolvem numa saturação ambiental. Impregna-nos
no denso lirismo de sua juventude do mesmo modo que nos transmite a inquietante perspectiva do universo onde é
impelido a avançar.

Walter Zanini
Diretor do Museu de Arte Contemporânea
Universidade de São Paulo

In: Impresso da Exposição 20’9” – São Paulo: MAC – USP, 03 a 07 out. 1973.
Participantes: Elisabeth Yatio Takeda, Lélia Rosa Occhini, Lídia Kinue Sano, Luíza Aiko Kira, Maria de Lourdes Anjos Silva, Maria Emília Rodrigues Bueno,
Maria Irene da Silva Ribeiro, Solange Lopes Silva, Valdete Doroti Sommer Arnoni.
(Acervo da Biblioteca do MAC – USP)
Entrevista sobre 20’9” e/ou “O espaço-global: o TODO”.

Em pesquisa ao acervo documental do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP em


março de 2008, encontramos na Biblioteca, junto a material impresso produzido durante a direção
de Walter Zanini (1963 a 1978), um folder-catálogo da exposição 20’9” que aconteceu entre 03
a 07 de outubro de 1973. De imediato o texto “O espaço-global: o TODO” nos chamou atenção
por sua atualidade bem como o projeto gráfico no qual o leitor, saindo de uma atitude passiva,
precisava desdobrar o impresso e girá-lo para ler o texto.
Em seguida, ao telefonarmos para o Prof. Dr. Walter Zanini e perguntar sobre esta exposição
assim como pedir autorização para publicar tal texto no JÁ! Emergências Contemporâneas, foi
significativo ouvir suas lembranças sobre o evento. Prontamente comentou que era um ambiente
interativo e vivo proposto por suas alunas quartanistas da Fundação Armando Álvares Penteado
(FAAP – SP). Ficava no centro do espaço expositivo do MAC – USP (sediado na época no Ibirapuera)
atraindo muita gente devido à soma de informações visuais, sonoras, olfativas e trazia o movimento
da cidade para dentro do museu num processo engajado à idéia de mudança e tempo. Falou
também que posteriormente as artistas participaram de uma das JACs mas depois não teve mais
notícias dessas alunas. Foi então que nos sugeriu procurá-las para obter outros olhares sobre o
trabalho e seu processo, ou seja, buscar e ouvir a voz do artista quando se faz uma pesquisa sobre
artes.
A entrevista a seguir, conduzida por Ana Paula Felicissimo de Camargo Lima, aconteceu
em São Paulo em 08 de junho de 2008, após intensa procura pelas artistas, cujo encontro foi
felizmente possível devido ao auxílio da internet e do guia telefônico, e também da ajuda das
próprias participantes - principalmente de Lídia Kinue Sano a quem agradecemos.

Para identificar os participantes da entrevista, usaremos as seguintes abreviações:


APL – Ana Paula Felicissimo de Camargo Lima
LRO - Lélia Rosa Occhini
LKS – Lidia Kinue Sano
EYT – Elisabeth Yatio Takeda
MLA – Maria de Lourdes Anjos Silva
SLS – Solange Lopes Silva

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1. APL - Em outubro de 1973, vocês fizeram uma exposição no Museu de Arte Contemporânea da 2. APL - Como aconteceu o processo de criação de 20’9”? Quais eram as referências e interesses
USP chamada 20’9”. Na época vocês eram alunas do Prof. Dr. Walter Zanini que lecionava na FAAP de vocês na época? Vocês podem descrevê-lo e como aconteceu no MAC – USP pois somente
– SP mas também dirigia o MAC – USP. Como foi este período da faculdade e da exposição? encontramos na Biblioteca o folder-catálogo de 20’9”.
LKS – Nossa época foi privilegiada porque a maioria eram professores que atuavam, atuantes. MLA – Na FAAP só foi a apresentação do dia [da aula] e ele [Walter Zanini] chamou todo mundo
Tinha o Zanini, também o italiano. que estava nas outras salas para ver em seguida.
SLS – O italiano que era diretor: Donato Ferrari. E tinha o Donatinho também. O Flusser. Era um EYT – Nós apresentamos nosso trabalho na sala de aula mesmo. Preparamos tudo. Eram seminários
pessoal muito bom. Era uma faculdade forte, bem concorrida. Hoje tá tudo diferente por lá. que o Zanini escolhia o tema. O nosso era sobre arte conceitual.
LKS – A gente podia usar os ateliês mesmo depois de formado. Tinha o Juan no ateliê de cerâmica. LRO – Mas eram só três semanas para preparar. E não havia material em português. O Zanini que
O Ubirajara Ribeiro, o Evandro Carlos Jardim, o D’Amore, o [Herbert] Duschenes. E o japonês. conseguiu o material para a gente.
SLS – O Tomoshigue [Kusuno]. O Mário Ishikawa. SLS – Eu perguntei: mas professor, isto não é no Brasil? Como a gente faz? Ele respondeu: não sei,
LKS – Eu o encontrei e até falei com ele. Ele deu cursinho para mim. E aí ele falou: você fez parte vocês precisam viajar então. Daí nós pensamos fazer o trabalho e não um seminário.
daquela turma. Foi um cursinho [pré-vestibular] que eles fizeram, acho, de última hora. Três meses EYT – E quando nós apresentamos, ele gostou e pediu para repetirmos em seguida para quem
– dezembro, janeiro e fevereiro. estivesse na Faculdade.
SLS – Nós entramos em março [na FAAP]. Na mesma turma, mas eu conheci a Lidia no primeiro LRO – Ele saiu chamando as pessoas e não deu tempo para eu rebobinar o Super-8.
dia, na primeira aula do cursinho. A gente tava subindo a [Avenida] Angélica e ainda eu falei assim, MLA – Ele gostou e logo convidou para irmos para o MAC com este trabalho.
eu tava com minha mãe, aquela menina estava na minha classe. Ai ela falou assim: você vai pegar SLS – E quando nós chegamos lá, ele deixou que escolhêssemos o lugar. Ele tinha visto na Polônia
o ônibus? Vou, então começamos a ir junto. Que ônibus você vai pegar? Mercado da Lapa. É eu alguns jovens trabalhando no museu, não sei se eram alunos também. Acho que foi daí que veio a
também vou pegar Mercado da Lapa. Aí depois, andamos, andamos e ela falou assim: onde você idéia de nos convidar, para experimentar também no Brasil.
vai descer? Eu vou descer na Praça da Árvore. Eu também vou descer na Praça da Árvore. E aí LRO – Nós tínhamos uma parede com [a projeção do] Super-8, outras com projeção de slides e
descemos na Praça da Árvore e ela: para que lado você vai? Vou para este lado. Eu também vou outra com a frase. Daí precisávamos ter quatro paredes.
para este lado. E aí que nós fomos ver que estávamos morando a 50 metros de distância uma da MLA – E por aqui [passagens laterais] as pessoas entravam.
outra. EYT – Era tudo escuro. Tinha um cheiro.
LKS – Entramos na FAAP, na mesma classe, e até hoje nós nos falamos. Que coincidência. Até hoje SLS – Não era um cheiro bom. E as pessoas não entendiam bem porque tinham que passar por
nós nunca perdemos contato. É a única pessoa que eu nunca perdi contato. Que gozado! umas fitas, ir encontrando caminho para entrar.
LRO – E nós [Beth, Malu e Lelia] íamos as três porque eu tinha um carrinho. EYT – Era cheiro de espiral para mosquito. Sabe?
SLS – A única que tinha carro era a Lelia. LKS – E tinha informação em todos os lados.
LRO – Um fusquinha que eu abria qualquer fusquinha com a chave do meu. Eu me lembro que um LRO – A pessoa precisava se virar para ir vendo tudo que tinha lá.
dia eu saí da faculdade e entrei num fusca vermelho mas o meu era verde. MLA – Era grande, cabiam umas 100 pessoas. Sempre tinham umas vinte. Só no dia da inauguração
EYT – Tinha muito fusca. que ficou muito cheio porque todo mundo convidou a família e os amigos.
LRO – Daí eu entrei e olhei e vi que tinha uma bola ali. Gozado, eu não estou lembrada disto aqui. SLS – Teve um artista que reclamou do espaço que nós tivemos. A Aracy Amaral apareceu um dia
Daí eu falei: ah, porque eu abri com minha chave, mas nunca fechava. O cara deve ter aparecido, e criticou. A [Maria] Bonomi também.
descobriu que a porta estava aberta quando ele voltou. Ela [Malu] ia para minha casa e eu passava MLA – O grupo ficou forte no museu. O trabalho ficou pronto e a gente passou a vivenciar porque,
para pegar a Bethinha. Nós três tínhamos o contato maior. Eu me casei antes, tendo filho e acabei sabe, nós tínhamos que ficar lá todo dia.
dando uma distanciada mas eu nunca parei. SLS – Era um período para cada uma.
MLA – Nós íamos todos os dias, este grupo [Elisabeth, Lidia, Lelia, Solange e Maria de Lourdes]
mais a Valdete era o grupo permanente.

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SLS – Por isto que está aqui: Elisabeth, Lelia, Lidia, Maria de Lourdes, Solange e Valdete. Quer dizer [sic] quando nós colocamos o poema na entrada da FAAP, no chão. Daí foi o Gerson [Zanini que]
que o grupo mesmo inicial, que era o mais unido. Nós tínhamos o vínculo não só como colega de fez esta outra foto com todas nós no MAC. A outra foto, junto do texto, nós que fizemos do poema
classe, mas também, como o Zanini pediu, nós formamos um grupo que já tinha amizade. Estas no chão do Viaduto do Chá.
três [Maria Irene, Maria Emilia e Luíza] foram enxertadas por ele no grupo. E aí não teve alternativa SLS – O texto [impresso] obrigava a girar o folder para ler. Estava junto do desenho do espaço que
para nós. tivemos, com as paredes arredondadas e as entradas laterais. Tudo em cima da nossa foto [feita
LRO – Foram só três semanas, daí ou pegava no tranco ou pegava. pelas artistas] no centro da cidade.
MLA – Mas era muito divertido depois. Lembra?
EYT – Eu tenho lembranças ótimas. 5. APL - Como foi a escolha do poema de Laforgue contido no texto do folder-catálogo? Havia
LKS – Na impressão daquelas tiras, o que ela [Maria Irene] brigava. As tiras tinham que ser do outros interlocutores em 20’9”?
tamanho ideal. MLA – Foi a irmã da [Maria] Irene que deu para ela trazer. Ela [irmã] fazia Literatura.
EYT – E cada letra de um tamanho. E a gente tinha que cortar direito. SLS – Ela se sentiu demais. Foi o que eu senti. Eu não tive muita empatia com ela.
LRO – Quantas tiras não fizemos, hein? LRO – Ninguém teve. Nosso grupo não teve.
SLS – Tinha que cobrir tudo. SLS – Ela foi uma das enxertadas pelo Zanini.
EYT – E para passar o rolo. Rolo de serigrafia. Não tinha técnica, nada, só as letrinhas, uma por MLA – Mas nós trabalhamos o poema do Laforgue e fizemos um texto nosso sobre o processo.
uma para fazer.
SLS – Foi tudo muito manual, artesanal. 6. APL - Como foi dado o título 20’9” ao trabalho? Este me fez lembrar de alguns trabalhos de John
LRO – Mas foi isto que acabou fazendo a gente se envolver. Cage denominados também como intervalos temporais (ex. 4’33”, 30”, 2’33” e 1’40” da década
LKS – Todo mundo. E o que a gente não sabia, aprendia. de 1950). Há alguma relação com o música?
EYT – Nós éramos em nove [artistas/ alunas participantes]. Cada uma ficava vinte minutos no
3. APL - Como era o diálogo com o Prof. Zanini? espaço. Era o tempo de cada uma junto com o número [de integrantes] do grupo.
SLS – Ah, o Zanini era muito legal. Ele trazia muita coisa para gente. Naquele semestre ele dividiu a SLS – Mas cada um dos vinte minutos nunca se repetia.
turma para os seminários. Ele gostou da nossa apresentação e de repente já convidou para irmos MLA – Tinha a música sim. Nós fizemos uma montagem sonora com barulhos da cidade.
expor o trabalho no MAC. Foi meio de surpresa. LRO – Tava tudo sincronizado com as imagens que eram projetadas. Começava com o nascer do
EYT – Daí nós fomos mesmo sem saber como ia ser. Nós tínhamos pensado só para apresentar na sol e o som de um galo cantando. Depois ia para coisas da cidade.
FAAP.
MLA – Ele foi acompanhando o processo. Discutia com a gente e pedia para irmos trazendo o que 7. APL - Por que trazer a cidade para dentro do museu foi importante? Como isto aconteceu?
preparávamos. Ele comentava. LKS – Esta foto [presente na contracapa do folder-catálogo] nós tiramos no Viaduto do Chá. O
LKS – Ah, seria legal se nós encontrássemos como o Zanini depois de tanto tempo. poema está no chão; como aconteceu na FAAP, nesta foto.
SLS – O Zanini, depois de saber que íamos ao Viaduto do Chá, pediu para que tirássemos autorização
4. APL - Como foi pensado e produzido o folder-catálogo de 20’9”? com o DOPS. Antes ele precisou ir tirar da cadeia um outro artista que andou levantando um cartaz
LRO – O que a gente acumulou de material foi fantástico. Esta foto foi do Gerson [Zanini] que em branco por lá. Qualquer coisa podia ser pensada como errada. Acho que ele não queria passar
trabalhava também no museu. Mas na contracapa [do folder-catálogo] é uma foto nossa junto da de novo por isto, então deu esse conselho.
planta do espaço, o texto para forçar o leitor a girar o papel. O catálogo tinha o mesmo processo do MLA – Tudo acontecia no centro da cidade.
trabalho: sobreposição. Era dobrado para a pessoa descobrir o que estava dentro [internamente LRO – Nós pensamos que além de colocar o poema na [centro da] cidade e depois trazer para o
há o texto]. museu, poderíamos também levar uns balões cheios de ar para dar para as pessoas. Daríamos um
LKS – Nós levamos estas fotos para o Zanini para colocar no catálogo mas ele não gostou. Foi feita balão para cada pessoa como se estivesse dando um sonho porque depois os balões iram voar.

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Mas não deu certo, nós precisamos de repente entrar no fusca e soltar todos os balões de uma que continuamos unidas inclusive na JAC [Jovem Arte Contemporânea].
vez. LKS – Ela [Maria Irene] queria que tivesse o nome dela no catálogo. Ela viu no trabalho um degrau
para subir. Ela já era monitora na parte de gravura, com o Jardim [Evandro Carlos Jardim]. Naquele
8. APL - Como foi a participação dos visitantes? Isto era preponderante no trabalho 20’9”? Parece momento o trabalho abria um leque para todas nós, mas como ela já estava na gravura e via um
que a mostra foi prorrogada permanecendo pelo mês de outubro inclusive coincidindo com o degrauzinho ali, então ela insistia que o texto tinha que ir só com o nome dela. Mas é lógico que era
período da 12ªBienal Internacional de São Paulo quando muitos artistas boicotaram tal evento. um trabalho de grupo, onde cada uma fazia o que precisava.
Como foi esta interação e contigüidade com a Bienal? SLS – Nós dividíamos muito as tarefas porque todo mundo estava muito ocupado. Já dávamos
SLS – Havia a ‘bienal dos recusados’. Naquela época tinha um esquema elitista na seleção. Muita aula.
gente ficava de fora mas encontrava um lugar para mostrar o que fazia. O Zanini abrigou o pessoal LKS – E era muita coisa que a gente tinha para fazer.
no museu. SLS – Você fica encarregada do Super-8, você fica encarregada do som, você tira foto. Ela [Maria
LRO – Qual era a Bienal que nós pegamos? Irene] trouxe o texto mas mesmo assim o grupo trabalhou. E ela queria uma autoria dela. Ninguém
SLS – Era nona? Ou era a décima primeira? A do Flusser? concordou lógico. Isto não é um trabalho de equipe? Ou então todo mundo ia fazer a mesma coisa?
LRO – O Zanini aproveitou e colocou nosso trabalho nesta bienal paralela e trazia todos os artistas Então diante da situação, nós estávamos dividindo as tarefas para conseguir em tempo fazer o
para nos assistir. Você lembra disso? Todos passaram por nosso trabalho. E foi muito importante. trabalho. E aí não teve muita empatia.
Ele [Zanini] gostava desta interação, dos artistas conhecerem os artistas, os alunos. Os artistas LKS – Mas até que foi. Daí no segundo trabalho [O circo, na JAC de 1973], o grupo era o original.
queriam sair para conhecer São Paulo, eram muito receptivos. Ela não participou.
MLA – A data [da exposição 20’9”] seria de 3 a 7 [de outubro], e não seria nem uma semana. E EYT – Mas o texto, todo mundo discutia. Sobre a cidade, o trabalho.
a bienal ainda não havia começado. Aí começou a bienal e ele [Zanini] esticou, ele foi esticando o LKS – Ela defendia que a idéia da criação foi dela.
negócio para bater com o período da Bienal. MLA – Ela só trouxe o poema, né?
LKS – Daí você sabe como é o museu. É museu aberto. Com este trabalho, a fluência mudou. O LKS – Mas o trabalho era tudo, né?
MAC – USP era no mesmo andar da Bienal. LRO – A gente tinha muita coisa para fazer. Na época, eu tinha ido num casamento numa chácara
EYT – Ficava no terceiro andar. de flores. Ai eu falei: gente, eu fui num lugar, fui a noite mas aquilo durante o dia tem material
LKS – Mas o Zanini deixava uma passagem e muita gente não sabia que ali terminava a Bienal e imenso para o nosso trabalho. Daí fui eu, Valdete, Bethinha. Nós fomos em três, passamos o dia lá,
começava o museu. Todo mundo ia ver nosso trabalho. Sempre tinha gente. O Zanini trouxe muito fotografamos e aí esta parte já estava resolvida. Foi uma parte que tomou muito tempo.
artista para nos conhecer, para conversar com a gente. SLS – Eu fui atrás do frigorífico. Fiz as fotos que ficavam projetadas numa parede.
SLS – Eu lembro que ele vinha junto com os artistas para nos apresentar. Ele estava sempre LRO – E do som.
animado no museu. Ele gostava muito daquilo. SLS – O som também era uma montagem como as fotos projetadas. Começava com o sol nascendo
e um galo cantando. Aí passava coisas que podem aparecer num dia. Terminava com o pôr-do-
9. APL - Como vocês criaram o coletivo “Equipe 9”? Por que a vontade de trabalhar coletivamente? sol.
Quando me formei em Artes pela FAAP em 1993 também desenvolvi alguns trabalhos com colegas LRO – Nós fomos de fusca para fazer a foto do pôr-do-sol no Parque do Ibirapuera. Ficamos lá
da faculdade (Adriana Cavallaro e Paula Perissinotto) e me lembro que ao apresentá-los os visitantes esperando o momento certo. Daí um guarda veio falar que podia ser perigoso.
freqüentemente nos perguntavam qual era a parte de cada uma no trabalho mas estranhavam por EYT – Tinha muita coisa da cidade, de você na cidade, porque você andava na cidade.
respondermos que não havia autoria individual mas sim totalmente coletiva. Isto aconteceu com MLA – Realmente. E a Lelia cuidou do Super-8. Mas ela [Maria Irene] encasquetou com o tal do
vocês? texto e queria porque queria que tinha que ir com o nome dela.
MLA – Foi o Zanini que montou o grupo para o seminário. Nós já tinhamos amizade mas daí veio a LKS – Ela [Maria Irene] se fechou. Ficou de tromba com a gente, né?
[Maria] Emília, a Luíza e a [Maria] Irene. Acho que por isto chamamos de ‘Equipe 9’. Mas nós seis LRO – Mas o texto do trabalho é nosso, foi trabalhado por nós. Era só o conceito, a pergunta que

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ela trouxe.
SLS – Quando começou o trabalho do circo, ela saiu.
LKS – Ela e outras meninas [Maria Emília e Luíza].
MLA – A Maria Emilia tava noiva. Ela entrou meio que por acaso. Caiu de pára-quedas no trabalho,
mas depois ela abriu o jogo: gente, eu não vou, eu vou casar, têm os preparativos para o casamento.
Não é? Era alguma coisa assim.

10. APL - Qual a diferença das propostas efetuadas por vocês na exposição, com uma série de
experimentações e o que vocês vêm hoje em dia nos eventos de arte?
LKS – O consumo de arte mudou muito. Nestes últimos dez anos, com esta coisa da instalação.
Antes tudo girava em torno de alguma montagem. Hoje não tem nada a ver com o nosso trabalho.
Na época não tinha instalação. Vocês lembram disso.
SLS – É verdade. Nós não buscávamos este aspecto. Nós chegamos neste momento aqui por causa
de um trabalho. Aconteceu no MAC.
Lidia – Em nosso terceiro trabalho [ O Circo]. Pelo primeiro trabalho ser conceitual, a gente
continuou.
Beth – Na época estavam começando este tipo de trabalho.
Lidia – Foram os primeiros passos.
EYT – Exatamente.
LKS – O que você vê agora é uma saturação daquilo. Você vê que há uma volta aquilo, à tela. Eu
acho que, como tudo na vida, até os valores se perderam. Então em termos de arte, também, tá
todo mundo sem caminho a seguir. Quando eu terminei a faculdade, eu procurei fazer escultura, e
procurei o grupo Sakai [do Embu]. Eu fui lá e um dia eu convidei o Zanini para visitar a exposição.
E ele falou assim: mas você regrediu? Né? E eu falei assim: não. Porque é assim uma questão de
você retornar num ponto que eu estava precisando. De um confronto comigo, com o meu trabalho.
Com o meu potencial; o que eu conseguia fazer ou não. Porque na FAAP a gente não teve esta parte
do figurativo. Não faltou? É verdade.
SLS – Outro dia eu vim ver a feira de arte no Parque Ibirapuera. Tinha muita coisa que parecia
antiga mas era feita hoje em dia. Uma feira mesmo e acho que foi só um ou dois trabalhos que
me chamaram atenção. Antes era diferente pois as pessoas queriam experimentar, experimentar o
trabalho.

11. APL - Em seguida vocês participaram da Jovem Arte Contemporânea (JAC) entre 28 de
novembro a 12 de dezembro de 1973. Como “Equipe 9”, vocês mostraram O CIRCO. Como foi esta
experiência? Como foi a Jovem Arte Contemporânea de 1973?
LRO – Da JAC ? Era o circo, com palhaço, mágico, jaula.
Imagens fotográficas fornecidas pelas ar tistas na ocasião da entrevista.

26
EYT – E o Zanini perguntou o que nós iríamos trabalhar na JAC. E era o circo. LKS – Eu lembro que nós fomos os palhaços. E fizemos o corpo inteiro bem comprido, da altura das
LKS – Daí ele falou: gente, olha lá o que vocês vão fazer. Circo é coisa séria. colunas. Um palhaço era bem magrelo e o desenho era enorme.
SLS – O espaço era invertido. Tinha uma grade que colocava o público no picadeiro e nós, estávamos
livres. Nós fomos de manhã no circo para saber como trabalhavam aquelas pessoas. Era difícil. Nós 13. APL - Há quanto tempo vocês não se reencontravam? Neste período vocês continuaram a
ficamos o dia todo lá. Até fomos no trapézio. Era muito sofrido. produzir? Qual foi a relevância da FAAP, seus professores, a comunicação e troca entre artistas que
LRO – E você saltou do trapézio. Tinha o mágico, os palhaços, apresentadora. vocês trazem consigo até hoje?
LKS – Ainda na Bienal, havia um trabalho que foi similar ao nosso só que eram aparelhos de LRO – Eu não vejo a Beth a mais de 30 anos.
televisão. Vários aparelhos de televisão e passavam cenas do cotidiano. Vocês lembram? Era de um SLS – Não? A gente tem mais de 30 anos para contar.
grupo brasileiro. Acho que era de Porto Alegre, mas não lembro exatamente de onde eram.
Solange – Era um grupo do sul.

LKS – Só que era com televisão, e naquela época, era vídeo. Só que num plano. Será que não tem
na documentação do museu, como bienal paralela? Tem que ver em 1973.
SLS – Agora deve ter na internet.
LKS – Foi com o Flusser.
SLS – Ele também foi da Bienal.
LKS – Então, foi quando nós começamos a tomar contato com estes outros artistas. O Zanini
deixava a porta aberta e assim o pessoal que ia para a Bienal, continuava.
EYT – Eles achavam que fazia parte, entendeu?
MLA – Mas ficou uns dois, três meses.
APL – Todo este tempo, vocês se revezando?
Todas – É!
LKS – Quase todas davam aula no estado e isto era uma vantagem. Nós podíamos tirar falta
abonada.
LRO – No início eu tinha pouca aula e então dava para achar um intervalo.

12. APL - Vocês tiveram oportunidade de realizar outros trabalhos coletivamente? Vocês
apresentaram mais de uma vez algum dos trabalhos do coletivo “Equipe 9”? Vocês imaginam ser
possível expor novamente 20’9”? Como isto aconteceria?
Todas – Não.
MLA – Aconteceu e daí saia outra coisa. Não dava para ser igual.
EYT – E todo mundo participando ali. Sempre era diferente. E tinha uma geração nova que pensava
Imagens fotográficas fornecidas pelas ar tistas na ocasião da entrevista.
em criar novos conceitos. Fotografo: Gerson Zanini
LRO – Nós fomos fazer o desenho lá em casa. Era grande e ocupava todo o comprimento da
garagem. E nós ficamos até de madrugada. Meu pai perguntou se ninguém ia dormir.
SLS – ‘O Circo’ foi tão corrido e nem documentamos o processo.

28 29
EYT – Quando eu me formei, como nós todas, continue dando aula. Me aposentei e assim, de artes
assim, não fiz, não produzi não.
SLS – Mas a Beth tinha um potencial muito bom.
LKS – Lá na FAAP usávamos muito o ateliê de cerâmica. O Juan nos ajudava porque ele sabia
ensinar.
EYT – Mas a gente vai escolhendo um caminho, né. No final eu não produzi muito mais não. Agora
eu tô retomando alguma coisa.
LKS – Tá retomando. A irmã da Beth faz, como é o nome mesmo?
Beth – Batik.
Lidia – É batik e a Beth assessora ela nesta parte.
EYT – Eu ajudo sim.
LKS – Nós chegamos a fazer uma exposição juntas. De cerâmica. Logo depois da faculdade.
EYT – Depois eu fiz uma sozinha.
SLS – Você trabalhou com cerâmica também?
LKS – É. Nós trabalhamos com objetos, não do tipo escultura, tipo utilitário. Tinha uma pessoa para
fazer, para bolar e a gente fazia. Punha no forno. Acabou fazendo uma exposição.
Solange – Que legal. E a Maria de Lourdes?
MLA – Eu continuo morando em São Caetano. Eu fiquei muito tempo assim, afastada desta coisa de
arte. Só pensando em dar aula. Agora em 2000, meu marido morreu. E como eu perdi pai e marido,
assim tudo junto, eu fiquei muito mal. Então a minha sobrinha falava assim para mim: tia, você tem
que procurar alguma coisa; procura suas amigas; faz alguma coisa. E lá perto de casa tinha um
lugar que dava aula de pintura a óleo e eu fui lá. E aí, sabe quando de repente você vai, vai e vai.
Daqui um pouco você tem amiga aqui, sabe, a Beth, agora eu tenho um monte de amigas tudo
ligadas assim como coisa da arte. E agora que as coisas estão realmente começando a acontecer.

14. APL - Vocês vêem atualidade no texto “O espaço-global: o TODO”? Hoje vocês ainda
elaborariam relações com a pergunta do poema “QUE FAZER DO SER QUE SOU”?
LRO – Mas foi um trabalho que marcou as nossas vidas. A Valdete não está aqui, mas se ela tivesse
ela falaria a mesma coisa. Mas depois, cada uma, foi uma pena, porque mulher é aquela coisa. Você
faz uma vida assim. Quando você tem casa, filho, né? Como você faz? É muito difícil conduzir. Por
isto para homem manter grupo é muito mais fácil. Algumas vezes eu fiquei imaginando se a gente
tivesse continuado. O que teria acontecido?
SLS – Talvez esta seja a hora de retomar.
LRO – Com certeza. Eu até hoje dou este poema para meus alunos trabalharem.

30
c o l e ç ã o

Cada artista é representado por um carimbo confeccionado mediante


suas instruções, uma almofada com tinta de impressão e um bloquinho
de folhas, cujo verso traz indicações sobre o trabalho e o propositor.

Expostos sobre uma mesa, os carimbos ficam à disposição do público,


que poderá realizar sua própria coleção imprimindo-os nas folhas
correspondentes, inserir na embalagem destinada para este fim e,
finalmente, levar consigo a (sua) exposição.

Desde o início deste projeto, a idéia foi pensar num tipo de


dispositivo curatorial que intensificasse a participação do público.
Da mesma forma, a difusão e circulação dos trabalhos, que neste caso
passaram a ser vislumbrados muito mais como proposições, como algo
que estaria à disposição de qualquer um para ser realizado.

A motivação por realizar esta exposição surgiu também da


confrontação de que carimbos são para nossa cultura um tipo de
certificado, utilizado para “tatuar” nossos documentos garantindo-
lhes exatidão e autenticidade. E foi com essa apropriação,
ironicamente sancionada por Paulo Bruscky, que nos lançamos sob a
sua chancela de que está confirmado, é Arte.

regina melim
outono de 2008
Território de liberdade
Um museu de arte contemporânea durante a ditadura militar no Brasil1
Cristina Freire

6a. Jovem Arte Contemporânea 1. Publicado originalmente


Museu de Arte Contemporânea da USP ( 1972) como : Territory for
Arquivo MAC-USP Encontro “Cidade Y Campo” imagens da ação realizada por Artur Barrio freedom. A museum of
em 1970 num catálogo da Documenta de Kassel (2002). Há tempos tentava contemporary art under
military dictatorship in
localizar esses diapositivos adquiridos pelo então diretor do Museu de Arte Brazil in : Liam Gillick , Maria
Lindt (editors) Curating with
Contemporânea, Walter Zanini, diretamente do artista. Nessa série de imagens, light luggage. reflections,
Barrio registra uma ação em que espalha bocados de pães amarrados com discussion and revisions.
Kunstverein München,
barbantes vermelhos em vários pontos da cidade do Rio de Janeiro. Revolver Books, 2005.
Três décadas depois, observo que, no acervo do Museu, esse trabalho não
teve a mesma sorte que outros. O formato (diapositivo) fez com que fosse, pelo 2. Ver: Freire, Cristina.
Poéticas do Processo. Arte
menos até aquele momento, esquecido. Esse exemplo ilustra a situação em que Conceitual no Museu. São
Paulo, Iluminuras, 1999.
a coleção de arte conceitual permaneceu nesse Museu por quase três décadas.
Um conjunto de cerca de 2000 trabalhos ficou vários anos desconhecido do
público e distante dos procedimentos museológicos mais corriqueiros. A
coleção a que me refiro compreende fotografias, projetos de instalações e de
performances, textos, diapositivos, livros de artistas, vídeos e filmes realizados
anos 1960 e 702.
Minha estratégia crítica parte aqui da análise das ausências que, acredito,
pode revelar como se organiza a visualidade em cada tempo histórico.
Nesse sentido, o museu é um lugar estratégico, pois aí surgem e devem
ser enfrentados problemas afeitos à curadoria da arte contemporânea, como
por exemplo, temas relativos à transitoriedade das obras, à definição mesma
de objeto de arte, às relações dialéticas entre obra de arte e documentação. Em
resumo, esse embate revela a necessidade urgente de novos parâmetros para a
documentação, preservação, exibição e guarda da arte de nosso tempo.
Artur Barrio é um dos muitos artistas cuja produção só bem recentemente
foi assimilada pelos acervos museológicos.
O acolhimento desse trabalho do artista, em plena ditadura, opera numa
certa dialética dos contrários. Isto porque as décadas de 1960 e 1970 no Brasil
são marcadas pelo ausente. Nesse período, o regime militar foi responsável pelo
exílio de muitos intelectuais e artistas. Do ponto de vista da memória cultural,
a amnésia forçada coincidiu com a transitoriedade de muitas proposições
artísticas. Essa história recente nos revela as estratégias de um sistema de
produção e distribuição artístico cujas potencialidades não se esgotaram e

35
ainda são ricas em implicações. As exposições organizadas nessas décadas e o cinema, o teatro e a música são os mais visados. Na Universidade, o acervo 3. Congresso do Comitê
Internacional para Museus e
iniciais pelo primeiro diretor do Museu, Walter Zanini, são significativas nessa de “obras-primas” garantia a estabilidade ao Museu ligando-o ao passado ao Coleções de Arte Moderna,
história. Professor universitário, erudito e vanguardista, Zanini integra uma confirmar as expectativas conservadoras do público médio em suas concepções 9 a 12, Dezembro 1969.

geração de intelectuais idealistas brasileiros que pretendia ver seu país em limitadas sobre museu, obra de arte e artista. O futuro antevia-se na arte como
4. Localizado em seu
diálogo próximo com o mundo, deixando para trás o isolamento econômico e idéia, nos processos e conceitos que tornavam o museu não um acervo de apartamento, rue de la
geográfico. Foi nomeado diretor do recém criado Museu de Arte Contemporânea obras inertes ou um edifício marcante, mas um gesto pleno de significados. Pépinière, Bruxelas,
Bélgica. 1969.
da Universidade de São Paulo em 1963, imediatamente após seu retorno de um Entre a idéia convencional sustentada no imaginário social e essa outra,
longo período de estudos na Europa. completamente nova para seu meio, o professor Zanini procura um ponto de
Nos primeiros anos no Museu, preocupado com o vazio cultural nas equilíbrio no MAC-USP. Por um lado, como diretor de um museu universitário,
cidades do interior e outras capitais brasileiras, acalentou a idéia de um trem de responde às expectativas da burocracia dirigente que, via de regra, interessada
arte, inspirado nas utopias da Revolução Russa, que pudesse levar exposições em manter o poder, impede a expansão, sem subverter o instituído. Procura,
às cidades mais distantes, na esperança de que descentralização seria sinônimo sem dúvida, tornar visível o fabuloso acervo do Museu, considerado um dos
de democracia. Procurava agir sobre as mentalidades, entendendo que a função mais importantes da América do Sul. Mas, ao mesmo tempo, atende o apelo
de um museu deveria ir além de suas tarefas tradicionais de guardar obras de da vocação contemporânea dessa instituição recém-criada num país marginal
arte. ao sistema hegemônico. Ao estimular a experimentação, organiza o Museu em
Em diversas oportunidades, sobretudo em fóruns qualificados como bases pós-modernas, colocando em suspensão noções aceitas e naturalizadas
CIMAM (Comitê Internacional de Museus de Arte Moderna), ligado ao ICOM de uma história da arte linear e excludente, e interroga os lugares institucionais
(Conselho Internacional de Museus), e também em reuniões técnicas com de criação e exposição. Desde 1968, e durante todo o período que durou boicote
diretores de museus no Brasil e no exterior, o professor Zanini sempre buscou à Bienal de São Paulo, o MAC foi esse espaço de resistência e acolhimento à arte
incluir o Brasil e a América Latina no mapa das exposições organizadas a contemporânea. Talvez, por serem incompreendidas, muitas das exposições
partir dos centros hegemônicos. A consciência da situação periférica do país que organizou passaram incólumes pela censura naquela época, e, ainda hoje,
num sistema centralizado nos Estados Unidos e Europa animava a idéia de esse vanguardismo permanece em grande parte não assimilado.
que os museus da América Latina poderiam se unir para enfrentar problemas No entanto, as exposições/manifestações do período revelam desde os
comuns. anos 1960 uma idéia de museu que, se não se perpetuou no tempo, permanece
O período de efervescência de criação nas artes propiciou, no Brasil, o como um conteúdo latente a questionar os fundamentos e práticas dos museus
surgimento do Cinema Novo e da Bossa Nova. Essa vitalidade foi interrompida de arte contemporânea no Brasil.
com o Golpe Militar de 1964. Os que não partiram para o exílio procuraram Causou profundo impacto ao professor Zanini, bem como aos demais
desenvolver estratégias de sobrevivência num meio hostil. Nas grandes cidades, participantes do Comitê Internacional de Museus de Arte Moderna (CIMAM) de
em especial em São Paulo e no Rio de Janeiro, as universidades mantinham-se Bruxelas (1969)3, a visita ao “Museu de Arte Moderna, Departamento da Águias,
como um ponto de resistência à ditadura. Seção Século XIX”4, que Marcel Broodthaers havia instalado em sua casa,
Se Maio de 1968 remete à imagem dos estudantes franceses que naquela cidade. O espaço doméstico foi transformado pelo artista belga numa
pichavam nos muros palavras de ordem contra instituições como o museu, em citação irônica aos princípios museais.
São Paulo, o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, pelo Caixas de transporte vazias ocupavam os cômodos do apartamento,
contrário, mantinha suas portas abertas e funcionava como um verdadeiro numerados como galerias, e nas paredes mais de 30 cartões postais de “obras-
território livre para artistas, estudantes, professores e quem mais viesse. No primas” da pintura francesa do século XIX. Ao designar seu próprio estúdio
final desse mesmo ano de 1968, a censura às artes torna-se ainda mais ferrenha, como museu o artista condensa num mesmo espaço a produção e a recepção,

36 37
5. CRIMP, Douglas. revelando sua interdependência e chamando a atenção para a determinação Mas, ao contrário do que vemos hoje com a arquitetura espetacular 6. ZANINI, Walter.
On the Museum’s ruins. “O museu e o artista”.
Cambridge: MIT Press, ideológica dessa separação. Museu e estúdio, observa Douglas Crimp5, tornam- dos museus contemporâneos, naquele momento, o museu ainda podia ter a V Colóquio da AMAB.
1993. se um só elemento, o que tem implicações profundas na forma de pensar o transitoriedade e precariedade das propostas como projeto. Nesse sentido, Junho 1972. Boletim
informativo 172
museu, a obra de arte, a criação e a recepção. Não parece casual a importância prevê Zanini num artigo de época (1976): MAC-USP.
que o trabalho desse artista belga tem tido com o passar dos anos.
Essa condensação do espaço de produção com o espaço da recepção “É um fato que uma parcela decisiva da instauração artística de hoje 7. ZANINI, Walter.
“O museu e os novos meios
artística traz novos papéis não apenas para o museu, mas também para o não recorre mais ao espaço, mas efetua-se na dimensão do tempo. de comunicação”.
O Estado de São Paulo,
artista e o público, ao confrontá-los com novos paradigmas. Nesse caso, e Isto significa que devemos prever mudanças para própria concepção 7 de Março de 1976.
foi essa a tônica do projeto de museu e programa de exposições de Zanini, a arquitetônica que vem regendo o espírito do edifício museal”.
ênfase é dada ao artista e não mais ao objeto de arte. Na relação arte e vida
resultante, o cotidiano aproxima-se do museu. Artista e público são, assim, Um “espaço operacional”6 seria, então, o elemento que melhor expressaria
papéis intercambiáveis que se misturam. Não se tratava, a exemplo de Duchamp, uma museologia revolucionária ao nível da ênfase experimental das tendências
de deslocar um objeto banal para o espaço do museu, conferindo-lhe, desta conceituais. O museu, nessa concepção, deixa de entrar em cena depois da
maneira, o estatuto de “obra de arte”. Numa operação de reciprocidade, trata- obra, tornando-se concomitante a ela. Assume, assim, uma posição ativa, pois
se de tornar artístico o gesto cotidiano e, naquele contexto dos anos 1970 no “deixa de ser um órgão expectante e exclusivo, armazenador de memórias, para
Brasil, isto era quase heróico, tornar cotidiano o gesto artístico. agir no núcleo das proposições criadoras, e a participação direta dos artistas é
Nessa reciprocidade entre arte e vida, desconstrói-se a autonomia do decisiva”7.
cubo branco para que o museu se torne o epicentro da subversão das normas Ao longo dos anos que Zanini esteve à frente do museu, completamente
rígidas, e das noções aceitas e naturalizadas. No pólo contrário, está o museu isolado dos críticos, que pouco ou nada entendiam de suas propostas,
convencional, que enfatiza o objeto de arte e fornece parâmetros para o mercado. foi vivamente incentivado por artistas que, junto com ele, organizaram
Explicitamente ou não, a política deixa de ser uma esfera autônoma. Mais do exposições coletivas no Brasil e no exterior, estimulando o uso do museu para
que objetos de arte isoladamente, interessam aqui as estratégias utilizadas o desenvolvimento de projetos, cursos, palestras e como fórum de debates.
nesse momento pelos artistas. A transitoriedade dos meios e a precariedade Assim, como o trabalho artístico não estaria desvinculado de todo seu contexto,
dos materiais utilizados, sobretudo frente à realidade sócio-econômica da a exposição também deveria ser organicamente ligada a seu tempo. E dentro
América Latina, são alternativas críticas. Isto porque, para alguns artistas, era desse espírito são realizadas as exposições de Jovem Arte Contemporânea
necessário no Brasil, naquele momento, estabelecer a relação entre o valor (JAC), durante todo o período da ditadura militar.
econômico dos materiais utilizados e sua relação a círculos de privilégio. A 6ª JAC, ocorrida em 1972, por exemplo, tinha como objetivo declarado
É constante também uma atitude crítica frente às instituições artísticas, alargar o âmbito da exposição, tornando-a uma verdadeira manifestação numa
assim como certas particularidades nas formas de circulação e distribuição, época em que qualquer demonstração, ou mesmo reunião de algumas pessoas
nas quais o correio tem papel privilegiado. Esses projetos de instalações, em espaço público, era proibida. A exposição, de fato, configurou-se como
performances, fotografias, registros de ações, poesia visual, arte postal e livros um processo. Os participantes permaneceram ocupando o museu nas duas
de artistas chegavam para as exposições pelo correio. Ao público, cabia tornar- semanas de realização da mostra.
se mais permeável às transformações, ao novo, e, para tanto, era necessária A ênfase era deslocada do objeto produzido para os processos de
uma atitude menos conservadora e mais inventiva e atenta. Em suma, a produção e visava, sobretudo, a consciência de suas significações. Pedia-se a
condição passiva vivida no cotidiano daqueles anos difíceis não se reproduziria todos os participantes propostas escritas sobre as intenções básicas de seus
no Museu. trabalhos – que eram debatidas publicamente. Ao se recusar o júri ou qualquer

38 39
8. McShine projetou o autoridade externa, a participação dos inscritos ocorre sem qualquer censura ou uma função não assimilada de museu do que começar a encontrar os meios 9. ZANINI, Walter. Colóquio
espaço com o auxílio do de Museus em Bruxelas.
produtor Charles Froomm. restrição. O espaço de 1000 m² foi loteado e os lotes sorteados, depois trocados, para transformar ficção e utopia em realidade” 9. O Estado de São Paulo,
Ver: STANISZEWSKI, vendidos etc., entre os inscritos. A possibilidade de confronto, colaboração, Foram significativos, também no contexto internacional, os encontros 21 de fevereiro de 1970.
Mary Anne. The Power
of Display. A History of auxílio, permuta, construção e destruição, além da discussão permanente entre com outros curadores que defendiam práticas alternativas para os museus
Exhibition Installations at 10. GAUDIBERT, Pierre.
the Museum of Modern os participantes, concretizou a autoria coletiva da exposição. Em pleno regime de arte contemporânea, entre eles Werner Hoffmann, Jean Cassou, René Action Culturelle:
Art. Cambridge: MIT Press, militar, realiza-se na exposição/manifestação um exercício experimental de d’Hanoncourt e também Pierre Gaudibert. intégration et/ou
1998, p. 270. subversion. Paris:
liberdade. Aboliu-se, assim, qualquer juízo de valor ou critério para a inclusão Sobre o impacto de maio de 1968 na França, Gaudibert traça limites Casterman, 1972.
dos 120 sorteados, entre artistas e grupos. Tal processo parece desconcertante distintos entre a cultura acadêmica sustentada pela burguesia tradicional e a
pelo caos que invade o ambiente asséptico do museu. O planejamento prévio do cultura de vanguarda. A primeira, segundo Gaudibert10, é carregada de normas
espaço dá lugar às decisões tomadas em comum acordo entre os participantes tradicionais, onde se assenta o gosto médio e a ordem social estável. Dispõe de
onde não se distingue artista de público. Não há um curador, e mesmo o poder um considerável sistema de aparelhos de controle e de difusão (escolas, salões,
executivo do diretor do museu é rebaixado. O museu define-se, assim, como um imprensa, etc.) que mantém o controle sem mexer nas relações sociais.
microcosmo do possível, e tem como horizonte a liberdade. Pelo contexto de Para a cultura de vanguarda, o protesto volta-se para as formas herdadas,
exceção que se vivia no Brasil daqueles tempos, radicaliza-se nessa exposição os hábitos visuais, as leis internas já consolidadas e, no nível ideológico, visa
um espaço público de participação. a alterar as estruturas do imaginário e da sensibilidade, liberando o “desejo”
É certo que exposições paradigmáticas anteriores ocorridas na Europa contra o sistema instituído. Recusa o mercado e contesta a ordem estética e,
(When Attitudes become form - Kunsthalle - Berna - Suíça, 1969), de Harald por conseguinte, a ordem moral e ideológica reinante.
Szeemann, e Information (Nova York, 1970) também se pautaram por princípios
distantes do convencional, no entanto, algumas distinções são significativas. Na Pelo correio
Information, o caráter de pura informação, foi muito criticado e a curadoria de O uso dos correios como forma de circulação alternativa foi amplamente
Kynaston McShine8 projetou um espaço branco, limpo e neutro para a mostra, utilizado nesse momento. Aí não é possível identificar isoladamente cada artista,
sem dispensar os tradicionais elementos da museografia tradicional, como uma vez que o todo do sistema de comunicação - emissor-receptor, mensagem e
vitrinas e bases. O máximo de participação da figura do artista parece ter sido suporte (correio) - formam o sistema no qual tal rede se constitui e se reproduz.
o projeto de Vito Acconcci, que passa a buscar sua correspondência no museu A experimentação de novos meios como o xerox, pela sua possibilidade fácil
(Área de Serviço, 1970) durante a exposição. Quanto ao público, esse participa e rápida de reprodução, aliou-se facilmente, para os artistas da década de 70
na enquete de Hans Haacke que confrontava o visitante com informações e no Brasil, à abrangência e universalidade da arte postal que se multiplica fora
perguntas nas quais solicitava uma tomada de consciência e posicionamento do circuito fechado das galerias e museus. Durante a repressão política, o uso
em relação à interdependência das esferas da arte e da política. de instrumentos portáteis de reprodução como o mimeógrafo, por exemplo, é
proibido, e, não por acaso, a fotografia é bastante freqüente como possibilidade
Estratégias para reprodução e veiculação de idéias.
No programa do MAC, Zanini buscou sempre ampliar seus horizontes Ao se valerem dessa rede de correspondência internacional, são
no diálogo com o resto do mundo, ao incluir o Brasil no mapa das exposições participantes das exposições do MAC os membros do Fluxus, sobretudo Dick
internacionais. Seleciona e envia artistas e obras para exposições no exterior, Higgins, Wolf Vostell e Ben Vautier, além do Coletivo de Arte Sociológica, que
até mesmo estimulando os artistas locais a experimentarem novos meios. teve presença significativa e constante em várias exposições ao longo dos
Entendia que sua função como diretor de um museu de arte anos 1970. Artistas hoje consagrados no sistema artístico, como os poloneses
contemporânea no Brasil, naqueles anos difíceis, era “menos convencer sobre Krzysztof Wodiczko, Jaroslaw Koslowski, e também Klaus Rinke, o catalão
Antoni Muntadas, John Cage, Janis Kounellis, Friederik Pezold, entre tantos

40 41
11. Os artistas uruguaios outros, enviam trabalhos para o Museu. Além da recusa às leis do mercado, esses Pelas margens 13. Agradeço aqui ao
Clemente Padín e Jorge artista Gabriel Borba pelas
Caraballo foram presos envios postais implicam numa aceleração e abertura à propagação de conteúdos Nesse mesmo período, as publicações de artistas em forma de revistas idéias sobre internet
pelo regime militar e arte postal.
de 1977 a 1982.
artísticos. artesanais eram abundantes, e também foram distribuídas pelo correio.
Como observa o artista Ulises Carrión (Cidade do México, 1941–1995): Proliferaram-se periódicos de várias confecções, jornais, fanzines, selos,
14. ZANINI, Walter.
12. PADÍN, Clemente. carimbos, cartões e uma quantidade significativa de listas de endereços tipo “Os museus e os novos
Mail art in Latin America meios de comunicação”.
“A arte postal transfere o foco do que é tradicionalmente chamado de arte, “quem é quem”. Nesse sentido, esses artistas13 foram precursores da internet, O Estado de São Paulo,
– Part. 1
para o conceito mais amplo de cultura. Essa mudança é o que faz a mail art pois a rede postal era uma “internet” menos ágil e mais preocupada com a 07 de março de 1976.
realmente contemporânea. A arte postal enfatiza estratégias culturais onde relação forma-conteúdo. Essa pré-história do uso do computador para projetos
estariam os limites entre o trabalho do artista e a organização e distribuição de artistas faz sua primeira experiência já em meados da década de 1970. Zanini,
15. ZANINI, Walter. Idem.

desse trabalho. Os artistas podem escolher o sistema de distribuição como privilegiado por sua situação marginal aos centros irradiadores, analisa:
estrutura mesma desse trabalho. Nesse sentido tais estratégias são suas
componentes formais”
“As tradicionais limitações do circuito habitual de acesso à arte-museu,
galeria, colecionador particular, tendem a ser rompidas pela irradiação
Não por acaso, é notável a quantidade de artistas oriundos de uma grande ubíqua do trabalho. Obviamente este fenômeno foi provocado mais
diversidade de países que participaram do movimento de mail art. Nessa rede, diretamente pelas correntes conceituais, sendo mais do que uma
integram-se países que em outras circunstâncias estariam fora do circuito artístico suposição o que nos faz acreditar que esta disposição amplamente
hegemônico dos Estados Unidos e da Europa Ocidental. Além dos vizinhos latino- dialógica da arte – característica aguda da década de 70 – tende a
americanos, é bastante significativa a participação de artistas poloneses e tchecos consolidar-se no futuro.”14
que enviam seus trabalhos pelo correio para o MAC-USP nos anos 1970. Como bem
definiu o prof. Zanini na ocasião, a arte postal “é uma poética surgida na urgência de Naquele tempo, muitos foram os projetos híbridos, que articularam a
estruturas de substituição, em nível internacional”. arte postal com o livro de artista, uma espécie de coletâneas de off-set, xerox
Na América Latina, o conteúdo desses trabalhos, especialmente nos difíceis e cartões.
anos 1960 e 1970, é eminentemente político. Também a arte postal constitui-se, Sobre essas propostas, observa Zanini:
nesse momento, como uma estratégia de liberdade diante de um contexto político
repressor. “Conseqüência central dessa ordem de coisas é a desprivatização do
Clemente Padín11 (Lascano, Uruguai,1939), por exemplo, foi preso pela ditadura usufruto da mensagem. A substituição dos sistemas de expressão visual
militar em 1977. Para o artista uruguaio, também a arte postal é um processo de de outras circunstâncias por mecanismos flexíveis de apresentação
descentralização artística: faz desaparecer a mística da obra-prima única com suas implicações
combinadas de valor estético e valor econômico.” 15
“Quando mensagens artísticas podem ser enviadas de qualquer pequeno
lugarejo para qualquer canto do mundo, em contraste com os “corretos” Essa mística foi tenazmente combatida pelo professor Zanini, ao manter
pólos hegemônicos implantados depois da II Guerra Mundial, quando um o museu afastado de qualquer apelo mercadológico, numa época em que se cria
sistema de galerias, museus, críticos, curadores controla um aparato restrito a Bolsa de Valores em São Paulo e a arte corre o risco de ser confundida com
de marketing e prestígio que se impõe sobre a arte universal, arte postal ações para um mercado ávido por qualquer coisa.
surge na intenção da criação de novos processos de significação artística, Pensa o museu como laboratório, espaço de participação, e, as exposições/
num projeto ideológico que poderia resumir-se em: ‘novos objetos para manifestações de arte contemporânea, a única possibilidade de torná-lo
novos sujeitos” 12. vivo, sem apartá-lo de sua realidade social, mas de se integrar a ela como

42 43
16. ZANINI, Walter. um contraponto à falta de perspectivas, pois entende que o artista trabalha sem cortes, onde as falhas são significativamente incorporadas à narrativa, o
Artes Plásticas no seu
presente passado e futuro. sempre consciente de seu contexto cultural, político e social. A pregnância que aproxima os trabalhos sem edição destes vídeos pioneiros das técnicas
O Estado de São Paulo, da realidade social de fato distingue, nessa época, as proposições brasileiras psicanalíticas de sondagem do inconsciente, como a associação livre, por
17 de set. de 1972
e latino-americanas daquelas oriundas dos Estados Unidos e da Europa, que exemplo.
têm como figuras-chave, entre outros, Joseph Kosuth e o grupo inglês Art Isto é, não se trata de um jogo especular narcisista que a câmera
and Language. A vinculação dos artistas à realidade social define a distinção registra, mas é o corpo político que ganha o primeiro plano em cenas, não
deste conceitualismo como uma manifestação de “arte conceitual vivencial”16, raro, contundentes. Em “Estômago Embrulhado” (1975), de Paulo Herkenhoff,
expressão surgida naquele período. a câmera registra o artista que recorta notícias de jornais que se remetem à
censura e as enfia na boca. São tantas as páginas que mastiga lentamente que
Pelas novas tecnologias provocam náuseas no espectador.
A fotografia e, posteriormente, o vídeo, por exemplo, situam-se entre a O museu, no espírito desse mesmo tempo que tornou possível essas
obra e sua documentação e se tornam os meios privilegiados para o registro de imagens, deixa de ser fundo, perde a pretensa neutralidade e revela-se como
ações e situações efêmeras que interrogam, não raro, o papel das instituições. gesto resultante da dialética entre arte e vida, ao concretizar, mesmo que por
Isto porque, nessas fotografias e filmes de ações e performances do período, a um breve período no tempo, a fusão entre estética e ética.
obra de arte mistura-se com sua documentação, afrontando, assim, o fetichismo Ao serem reabilitadas ao público hoje, depois de décadas, muitas obras
do objeto, afeito às expectativas do mercado; desafia-se ainda a própria idéia realizadas naqueles anos difíceis recolocam o problema das construções
aceita e naturalizada do que seja uma autêntica e única obra de arte. arbitrárias da história e da parcialidade dos juízos de valor, ao atestarem sua
Muitos desses projetos fundamentais para os anos 1970 foram ações e significativa atualidade. Podem ser consideradas, assim, imagens dialéticas,
situações efêmeras que hoje só existem como registros. No entanto, essa relação pois condensam no presente, o passado e o futuro.
entre documento e obra, apesar do pioneirismo de alguns, como o professor Como contraponto, observamos que, já há algumas décadas, esse
Walter Zanini, ainda encontra, no Brasil, resistências dentro de muitos museus museu-gesto dos anos 1970 foi vencido pelo museu-edifício. Esse novo museu-
de arte contemporânea, que operam com o paradigma moderno de autonomia templo, afeito ao culto da obra de arte como fetiche, tende à supervalorização
da obra de arte. da arquitetura. E ainda mais do que o edifício imponente ou de seu público
Atento à noção de museu como laboratório, no qual os artistas poderiam contabilizado como cifra, torna-se uma imagem de consumo a circular, puro
criar com as novas tecnologias, Zanini adquire um aparelho de vídeo e convida artifício mercadológico num mundo que se pretende globalizado.
os artistas interessados em trabalhar com o novo equipamento no MAC-USP.
Organiza ainda uma primeira mostra de videoarte brasileira a ser
enviada, clandestinamente, para os Estados Unidos em 1975.
Se tomarmos como referência a produção brasileira mais ampla,
especialmente os vídeos pioneiros realizados entre 1974-77, observamos que,
de fato, outros referenciais são necessários para sua interpretação, mas, nesse
caso, estes vêm das Ciências Sociais.
Corpo, no caso dos pioneiros artistas brasileiros do vídeo, muito
freqüentemente, significa também o corpo social. Este corpo é marcado,
costurado, deglutido e rejeitado. Sem o recurso da edição, que não era
tecnicamente viável naquele momento, os artistas valem-se da filmagem direta,

44 45
Victor de La Roque
GLOBALSTRIKE.NET
Sérgio R. Basbaum, por GRAPETE 2.0

1. globalstrike.net envolve um manifesto digital bilíngue (www.globalstrike. 1. Recebemos também


mensagens de Allaric
net) que diz respeito à convocação de uma greve mundial de 5 minutos, ao Elton, Shannon Smart,
Benitta Shipley, Lewiss
lado de um conjunto não linear de proposições poéticas sobre a paisagem Ignacio, Jed Armond e
contemporânea. Estão apresentados num website em construção, que está muitos outros.
sendo preparado para receber textos, imagens, sons e vídeos carregados
a partir de quaisquer localidades pelos próprios grevistas-usuários -- bem
como textos, imagens, sons e vídeos produzidos por personagens fictícios
criados pelos membros do GRAPETE 2.0

2. Como um complemento a estes conteúdos, e como um instrumento


para promover discussão mais ampla a respeito das questões levantadas
por globalstrike.net, o projeto envolve um blog e um fórum, uma net-list e
também uma biblioteca com artigos escritos pelo GRAPETE 2.0 ou autores
convidados, e -- naturalmente -- links para websites e artigos relacionados
aos temas discutidos. As páginas que apresentam proposições -- on-line,
sob o link [digital cosmophagia] -- sugerem questões relevantes às bases
teóricas do projeto, a serem linkadas a páginas wiki, para que sejam
interpretadas e desenvolvidas em comunidade.

3. globalstrike.net tem estado on-line em forma ainda incompleta desde


agosto de 2006. Desde então, já recebemos dúzias de mensagens
questionando, apoiando ou discutindo as nossas proposições. Entre estas
mensagens, gostaríamos de citar os nomes de alguns artistas e teóricos
relevantes na paisagem contemporânea, como Brian Holmes, Christina
McPhee, Mark Shepard e Gloria Monti1. Pelo cronograma original, o projeto
deveria estar no ar em julho de 2007. Isto não foi possível precisamente
pelos mesmos motivos pelos quais globalstrike.net foi concebido.

4.Dentre as questões levantadas pelo projeto globalstrike.net estão,


portanto:

-- a pressão produtiva imposta pela ubiquidade da mediação digital em


suas múltiplas formas;
-- questões de vigilância e controle, bem como da liberdade, nas sociedades
tecnológicas;
-- a dissolução das fronteiras identitárias entre realidade e ficção, bem
como a própria noção de “real”;
-- os paradoxos levantados pela relação entre as superfícies experienciáveis
e os códigos de programação, portanto o desafio da caixa-preta
flusseriana;

51
“Mãos Dadas: Não serei -- a questão da percepção digital -- a instalação do campo percebido por voltarmos a acreditar na liberdade, juntos. Então, enviamos para 3. sms foi acrescentado
o poeta de um mundo posteriormente.
caduco./ Também meio de incessantes infossensações -- e a partilha deste campo percebido um site vídeos, relatos, imagens, descrições destes cinco minutos,
não cantarei o mundo
futuro./ Estou preso como ambiente vivido (a partilha do sensível); tal qual vividos pelos grevistas em quaisquer lugares do planeta. 4.http://virose.pt/vector/
b_10/sergio_basbaum.
à vida e olho meus -- o (não) lugar reservado à arte na paisagem contemporânea; Depois, marcaremos outros cinco minutos. E quem sabe depois html
companheiros./ Estão
taciturnos mas nutrem -- as fronteiras entre práticas poéticas como ativismo político e do ativismo dez.... Quando completarmos uma hora, estaremos na mira do
grandes esperanças./
Entre eles, considero a político como arte; FBI.
enorme realidade. / O -- o emprego de tecnologias de mediação móveis como metáforas de
presente é tão grande,
não nos afastemos muito, processos cognitivos numa perspectiva não localizacionista. Este manifesto foi escrito em 20043 , e publicado pela primeira vez no
vamos de mãos dadas./
/ Não serei o cantor de artigo Na cibersala de aula sem paredes da aldeia -- arte, utopia, cultura
uma mulher, de uma
história,/ não direi os 5. O MANIFESTO digital, na revista eletrônica Vector4 , do website virose.pt. A idéia da
suspiros ao anoitecer, greve global deriva da evidente pressão produtiva que nos tem sido
a paisagem vista da
janela,/ não distribuirei O manifesto a seguir está no ar em www.globalstrike.net: imposta pela presença ubíqua de aparatos digitais, de tal modo que a
entorpecentes ou cartas
de suicida,/ não fugirei velocidade determinada ao cotidiano arrebenta inevitavelmente quaisquer
para as ilhas nem serei O QUE NÓS TEMOS DE FAZER É PARAR DE VIVER NA RESSACA possibilidades de viver senão imerso em práticas produtivas, com finalidades
raptado por serafins./ O
tempo é minha matéria, HISTORICISTA DO PÓS_HISTÓRICO, PÓS_HUMANO, PÓS_MODERNO, utilitárias. O presente tecnológico dita os padrões (“average levels”) de
o tempo presente, os
homens presentes, / a PÓS_INDUSTRIAL, PÓS_TUDO, E PASSARMOS A VIVER O PORRE eficiência, rapidez, produtividade, segundo uma dinâmica imposta por
vida presente.” Carlos
Drummond de Andrade: UTOPISTA DO PRÉ_QUALQUER_OUTRA_COISA QUE SEJAMOS CAPAZES um parque tecnológico que chamamos, por vezes carinhosamente, de
Antologia Poética DE CONCEBER -- DE PREFERÊNCIA A PARTIR DO PRESENTE POÉTICO. “rede” -- denominação que ilumina apenas seus aspectos mais positivos.
(1983: 108)
O parque tecnológico não dorme, não cansa, manipula uma quantidade
Ressaca: eu sou você amanhã, um remédio amargo para a ilusão incalculável de cálculos 24/7/365, daqui em diante, e por toda a eternidade
desmedida. concebível pela nossa imaginação; e sobretudo, tem a vocação da gestão:
se por um lado deveríamos nos perguntar se é por acaso que formas
Porre: êxtase infinito enquanto dura. expressivas da arte contemporânea, que emergem já em meio a uma
cultura profundamente influenciada pelo pensamento cibernético, tenham
globalstrike.net sido nomeadas performance e instalação -- palavras tão familiares a uma
sensibilidade tecnológica --, muito mais deveríamos notar o uso cada vez
Não nos afastemos muito mais freqüente da palavra gestão em inúmeras instâncias do cotidiano.
Vamos de mãos dadas (Carlos Drummond de Andrade)2 Do artista, há quem espere que se torne um gestor de imagens. Essa
perspectiva risível tem a vantagem de expor um aspecto decisivo da
O que faremos então? Que tal uma greve global? Articulada via reversão imposta sobre a linguagem pela cultura digital: se as linguagens
internet, via email fwd, sem líderes - e disparada por sms massivo. orais, em sua origem, têm a vocação intensa da poesia, do dizer o mundo
A idéia é mostrar que há um volume razoável de pessoas no planeta em imanência e transcendência, por outro lado os computadores têm a
interessadas em questionar o mundo tal qual se está instalando (e inescapável e mal-disfarçada vocação para a gestão: o arquivamento, a
não em parar para comer chocolates, como diz hoje um outdoor ordenação e a manipulação dos dados numéricos de um real amplamente
espalhado em São Paulo). Burocracia digital, controle, vigilância, parametrizado e quantificado.
compulsão produtiva, concentração abusiva de renda, realidade nas
mãos de corporações, culto à eficiência, à precisão, ao tecnológico, 6. TECNOESTÉSE X TECNOPOETICAS
desrespeito ao espaço público, esvaziamento do significado
existencial do êxtase sinestésico em tecnotranse, institucionalização Da adversidade esquizodinâmica do vórtex informacional vivemos
corporativa da arte por via do impacto de marketing da tecnologia,
que vai por si etc... Marcaremos um horário: no dia tal, em tal As linguagens orais nasceram para dizer o mundo; as tecnologias digitais,
horário, pararemos todos por cinco minutos. Isto não deverá para calcula-lo e controlá-lo. Computadores, portanto, têm muito mais
comprometer nossas vidas por um fio - nossos projetos, nossos a vocação da gestão do que a da poesia. Essa conclusão nos permite,
empregos, nossos compromissos, o assédio moral do sistema sobre interessantemente, compreender porque falta à maior parte da produção
todo mundo. Mas nos daremos cinco minutos de liberdade. Para que emprega suportes tecnológicos variados uma dimensão poética

52 53
5. Ver GERE, Charlie: escancarada pelas artes ao longo do século XX -- e daí plena de sentido 7. GRAPETE 2.0
Digital Culture. London:
Reaktion Books político. Cálculo, sem dúvida, já fazia parte da obra de arte: somos a
(2002:107-9). civilização do cálculo e do conceito, como poderiam estas estampas do GRAPETE é um coletivo de artistas, professores e teóricos. Originariamente,
Ocidente não contaminar e mesmo agenciar -- e até mesmo turbinar! Grêmio Recreativo de Arte, PErcepção e TEcnologia, um desdobramento
6. A esse respeito, ver
BRISSAC, Nelson: O
-- em alguma medida, as práticas artísticas? Entretanto, há uma curiosa natural de certas proposições teórico-estéticas examinadas por seus
cinema, a pintura, a cisão que se opera no início dos anos 70: aqueles artistas mais afeitos à integrantes ao longo dos últimos 15 anos. Entrementes, nos perguntamos
fotografia e a luz. In
XAVIER, ISMAIL (ed.): O poesia e ao conceito se distanciam daqueles afeitos à técnica, ao cálculo e em assembléia se não seria melhor considerarmos uma nova versão,
cinema no século. Rio de à ciência5 . A arte conceitual dos anos 70 atingiu picos poéticos com que Grêmio Recreativo de Arte, PErcepção e TEoria, uma vez que, embora
Janeiro: Imago (1996).
as produções tecnológicas parecem, com raras excessões, sequer flertar a centralidade da mediação tecnológica do presente seja um dos temas
7. Sobre a questão
(no mais das vezes preferem mesmo ignorar, pelos embaraços conceituais favoritos nos encontros do GRAPETE, e globalstrike.net envolva e discuta
do mundo sem ruído, que essa herança lhe impõe). essencialmente os dispositivos de mediação digital, não reconhecemos
BASBAUM, Sérgio: A
obra de arte na era Lamentavelmente, não se verá, no território das poéticas tecnológicas, mais as poéticas tecnológicas senão no terreno mais amplo da arte, que
do ruído sem ruido. In quem lembre, por exemplo, que a arte não vem dizer o indizível, mas é justamente onde podem ser pensadas de maneira mais conseqüente
MONO1. Porto: Editora
FBAUP (2007: 78-9) lembrar que ele não pode ser dito6 . Na euforia do fluxo informacional -- na sua positividade singular, mas também sem negar sua condição e
pouco se pensa na arte, muito se celebra mal discutidas positividades do historicidade. Tal posição deve ser assumida, na pior das hipóteses, e no
suporte. mínimo, como provocação e em função de que toda a unamidade é burra,
E muito menos se discute as especificidades deste último. O projeto como dizia Nélson Rodrigues. E, embora tenhamos feito muito esforço
globalstrike.net certamente se insere na chamada categoria da mídia-arte para pensar o contrário, deliberamos:
-- o que nos dá álibi incontestável diante de quaisquer insinuações de que
nossa reflexão crítica às determinações inscritas no suporte, bem como i. nada sustenta uma euforia cega em torno da instalação tecnológica
seu impacto na cultura de modo geral, tenha um caráter tecnófobo; além corrente e sua compulsão pela gestão, ainda que com suas possibilidades
disso, globalstrike.net certamente examina, flerta com, operacionaliza e semióticas e experienciais curiosamente novas. Daí que globalstrike.net é
interroga as possibilidades da rede. Mas o que é viver em rede? Trata- um projeto apropriado às intervenções do GRAPETE 2.0;
se, em primeiro lugar, de viver tecnologicamente expandido e também
tecnologicamente sitiado. Pensar criticamente tal contexto, entretanto, ii. dispositivos digitais trazem um overload -- para usar um termo que lhes
além de ser uma linha de fuga quanto à apropriação descontrolada do é familiar -- de inscrições embutidas em sua materialidade, inscrições cuja
eventual valor da obra de arte pelas corporações de gestão e tecnologia, utopia é a do um mundo de fluxo perfeito, imaculado, de informação, a
é acolher positivamente o legado crítico da arte conceitual que denunciou utopia de um mundo sem ruído. Daí sua resistência à apropriação poética
amplamente a eventual transparência da linguagem, do suporte e do e os limites da experiência sensível por eles inaugurada, que se limita
circuito de arte. ao âmbito calculável do mundo. E diante da complexidade experiencial
Daí que quando falamos no impacto perceptivo da tecnologia sobre o do vivido, qualquer complexidade informacional é trivial. É justamente
cotidiano (Benjamin; McLuhan, etc.), é porque pouco se fala das implicações esse excesso desconcertante que constitui a experiência do mundo que
da percepção que está sendo formada nas interações incontroláveis conduziu aos inúmeros dispositivos de recorte que, desde a câmera
-- compulsórias ou até mesmo compulsivas -- que praticamos todo o escura, passaram a reduzir o mundo observável a enquadramentos
tempo com o domínio pervasivo dos aparatos digitais. Pouco se fala dessa tratáveis pelo observador; seu ponto de inflexão é a câmera fotográfica
tecnoestése, desse modo de perceber e significar o mundo, um mundo que e sua apresentação objetiva das superfícies das coisas. Daí para a
ora nos chega sob o filtro dos cálculos das próteses informacionais, ora é apresentação objetiva do cálculo numérico das superfícies e das dinâmicas,
percebido com um corpo percipiente que se constitui cada vez mais nessas e da configuração mesma das coisas em termos numéricos, foi o salto
interações -- daí projetar na constituição mesma dos objetos cotidianos e cibernético cuja floração é a cultura digital contemporânea;
dos objetos de linguagem a ontologia informacional do mundo sem ruído7
, ou da gestão do ruído, o que dá na mesma. iii. entretanto: por exemplo: refletindo: boa parte da sustentação
institucional das artes do pós-II Guerra pode ser atribuída a apropriação
da radicalidade formal, conceitual e poética da produção artística como
vitrine da liberdade dos países capitalistas do lado ocidental do Muro de
Berlim; trata-se de um gesto estratégico, mostrar o quanto, pelas bandas

54 55
8. ibid. ocidentais, se poderia ser livre. O que aconteceu de interessante foi o Se nosso negócio é resistir, globalstrike.net propõe a criação de uma 9. A Máquina de Fazer
Nada é um interessante
modo como tal espaço foi ocupado, com uma inteligência e radicalidade moeda, meio essencial de troca em ambientes de negócios. Os estados projeto de Leopoldo
irrecuperáveis pelas instâncias de poder que dela pretendiam fazer uso e as corporações trocam créditos de carbonos, euros, petrodólares, etc.. Lima.

-- digamos que, da mesma forma como a Guerra Fria plantou milícias globalstrike.net, ao celebrar a dúvida como superior à certeza, institui
10. Ver BASBAUM,
terroristas no Oriente Médio, que tornaram-se autônomas e dificilmente para os membros de sua comunidade algo que poderíamos chamar talvez Sérgio (2004): Na
controláveis, possibilitou um espaço da arte contemporânea que configurou de “duvidólar”, assim designado: ?$. Quantias serão grafadas “?$ 100,00”, cibersala de aula sem
paredes - arte, utopia,
milícias simbólicas no âmbito daquilo que já chamamos “guerrilha “?$ 4.517,00”, etc., sob uma perspectiva qualitativa em que os números cultura digital (nota 4)
perceptiva”8, igualmente -- mas problematicamente -- autônomas e são plásticos e aleatórios. O estabelecimento desta moeda corrente para
também dificilmente controláveis (o que se vem tentando é o fim do apoio trocas no âmbito da partilha do sensível é a celebração da dúvida como 11. www.globalstrike.
net/digitalcosmophagia
institucional às artes e a transferência do fomento ao âmbito corporativo). princípio, meio e fim: in doubt we trust.
Isso quer dizer que, enquanto se dá a instalação do mundo sem ruído, No mais, para que pode servir o duvidólar? Ainda não sabemos, pode
há um certo caos e certos espaços menos distópicos a serem percebidos, ser que não sirva para nada -- se assim for terá sido extraordinário, e se
perseguidos, desenhados, inventados e ocupados. Isto não anula as provocar um riso terá sido suficiente. Os participantes podem significa-
consequências de uma percepção formada no âmbito das interações lo de diferentes modos: para fazer frente à desertificação do sentidos
experimentadas segundo as condições de uma computação pervasiva, do vivido, globalstrike.net quer justamente trazer depoimentos que
mas abre espaços de respiro possíveis desde que se entenda onde signifiquem e celebrem o real do modo mais plural possível.
estamos e se desista, em definitivo, de qualquer visão ingênua quanto à De posse de muitos duvidólares os usuários poderão adquirir, por
transparência dos suportes. O desafio é que os termos dromocráticos da exemplo, uma Máquina de Fazer Nada®9 , ou aplicativos especialmente
contemporaneidade dificultam o exercício tão humano da reflexividade. desenvolvidos para a Anti-Gestão, como o Detetor de Planilhas, o
De todo modo, GRAPETE 2.0 entende que há, sim, um espaço aberto à Esticador de Prazos, o Embaralhador de Dead-lines, o Medidor Qualitativo
intervenção e globalstrike.net atua nesse pequeno espaço imaterial; de Liberdade Individual e Coletiva, e, finalmente, a plataforma de Gestão
de Porra Nenhuma (GPN) -- que será aberta em prazo factível, por meio
iv. se os termos impostos pela vocação gestora dos aparatos informacionais de um edital, a aplicativos desenvolvidos pela comunidade e voltados ao
determinam que todas as coisas vivas ou mortas sobre ou sob a terra nada.
sejam pensadas em termos de cálculo de eficiência e geridas como
negócios, enquanto artistas, resistir é nosso negócio. Resistimos a tudo 9. COSMOFAGIA DIGITAL
-- menos a uma tentação. Resistance is our business.
Se a linguagem -- ao menos nos termos de uma certa filosofia, que passa
8. RESISTANCE IS OUR BUSINESS -- ?$ IS OUR MONEY por Wittgenstein, Heidegger e Flusser, por exemplo -- é o limite do nosso
mundo, o que são os aparatos digitais, senão devoradores de linguagem?
De fato, se a proposição artística guarda certa potência de operar Nada pode ser digitalizado se não tiver antes sido configurado como
deslocamentos em relação ao cotidiano, configurando novas disposições objeto de linguagem. Em contrapartida, tudo aquilo que pode ser posto
experienciais capazes de fazer perceber diferentes instâncias do mundo em linguagem de qualquer natureza pode ou poderá ser digitalizado -- o
vivido, de tal modo que se constitui numa modalidade particular de que não significa que se possa computar o seus aspectos semânticos (o
conhecimento que não pode ser limitado por norma, técnica ou método,
que cria um enorme desafio em termos de web 3.0). Em síntese, se o
resistir à apropriação da significação do mundo por qualquer norma, técnica
que é linguagem é cosmos, o computador é o dispositivo cosmofágico.
ou método que guarde em si a ambição de hegemonia, que veja com bons
olhos a totalização do real num número menos ou mais amplo de certezas Assim, já dissemos10 , nesse sentido, que a obra de arte deve estar para a
imutáveis ou máximas definitivas deve ser implodida. Artistas sabem que cosmofagia digital assim como a cenoura está para a mula, que a persegue
resistir é seu negócio. Essa proposição mesma se autodestruirá em 15 sem que possa captura-la. [digital cosmophagia]11 apresenta proposições
segundos, deixando-nos com o desafio do caos relativista X formigueiro que desenvolvem o conteúdo sintético da seguinte afirmação:
funcionalista. No caos relativista já estamos: a única certeza que sustenta
o real é, justamente, a rede tecnológica -- tudo o mais é volátil, líquido. Extensão cosmofágica do nosso sistema nervoso, o computador
Adiante, desenha-se a distopia do grande formigueiro, deserto do sentido. engole vorazmente o universo através de uma estratégia algorítmica
Há quem diga que as formigas, pelo menos, não aborrecem umas às e atomista, vomitando um caos de signos digitais multiplicados
outras. Mas também não pranteiam seus companheiros mortos. exponencialmente.

56 57
São nove proposições, dispostas em páginas em que se vê também o vi.
código-fonte html, de modo a explicitar as relações superfície-código: “DEUS não joga dados” (Einstein)

i. “Só a poesia possui as coisas vivas


CAOS X COSMOS Todo o resto é necropsia” (Mario Quintana)
Língua é realidade (Flusser): cosmos Flusser e a poesia;
(o que pode ser trazido para dentro da linguagem)
Heidegger, cibernética e poesia.
ii.
HISTORIA(s) do DIGITAL
A Máquina Universal de Turing
O aparato narco-protético (McLuhan) vii.
UN COUP DE DÉS
iii. (Mallarmé, 1985)
HISTORIA E PÓS-HISTORIA Poesia Concreta Brasileira (2 de Campos
Flusser: + 1 Pignatari - 1952)
Pré-historia: das primeiras imagens aos primeiros textos cyber
Historia: dialética texto-imagem verbi
Pós-historia: depois da fotografia voco
v is
Lipovetsky: (u)s
Hipermoderno: circunstância contemporânea al(l)

iv. viii
UM CERTO CONJUNTO DE FORÇAS N’ABOLIRAS PAS
Tecnologias emergem de um certo contexto social e técnico, que (Program: a permutation of concepts {
automatizam: clear ;
Reificando-o (tornam parte do cotidiano); &;
Ocultam-no (tornando-o inacessível); $distinct ;
Nova experiência da cultura (Benjamin). }
; a game
exemplo simples: o piano - Flusser:
“The gr
v. ound we step on”.
COSMOFAGIA )
Todos os caminhos possíveis levam ao digital
Algumas narrativas possíveis que levam a esse mesmo lugar ix.
(ao qual tudo converge); LE HAZARD
cultura digital;
bancos-de-dados, algorítimos, redes As nove proposições têm o propósito de serem desenvolvidas pelos usuários-
grevistas na forma de textos wiki, a serem feitos, refeitos, reconfigurados,
completados, interpretados, poetizados, num jogo incessante de produção
de significado. A participação no jogo da produtividade de sentido permite
acumular duvidólares.

58 59
12. email recebido em 10. CINCO MINUTOS + UM CAMPO MORFOGÊNICO = ZERO MÁRTIRES
8/2006

Brian Holmes questionou a aparente timidez de uma greve de cinco


minutos: “you should do a whole day!”12. Trata-se, em primeiro lugar, de
algo que se verifica historicamente em todos os movimentos libertários:
grupos que têm uma consciência distinta do jogo de forças do presente
sacrificando-se em nome de muitos que não apenas não percebem o que
se passa, como eventualmente não concordam -- e têm todo o direito a
fazer sua própria leitura do real -- com a paisagem contemporânea tal qual
a descrevemos; ou então não apreciam tais estratégias de resistência; ou,
finalmente, o que é pior: aproveitam-se de que alguns estão ocupados em
resistir para tomar seus lugares no formigueiro -- a isso, hoje, chama-se
“competição & adaptação”, ética verdadeiramente selvagem, sustentada
com argumentos darwinianos pelos prosélitos da civilização.
Precisamente, globalstrike.net quer implodir essa lógica do martírio. Nos
basta um inventário de quem, no formigueiro-to-be globalizado, partilha
uma certa leitura do presente, partilha um certo desejo, o da produção de
paisagens utópicas, de proposições de mundos que possamos perseguir
juntos, enquanto as grandes corporações tecnológicas buscam planejar
e instalar os próximos 20 ou 50 anos. Basta criarmos uma espécie de
ressonância -- um campo morfogênico, poderíamos dizer, homenageando
Sheldrake. O real existe, mas é também uma alucinação. Resistência,
bem como a construção do real, demanda a sutileza de um Bobô.
Transformação demanda imaginação. E um mundo vivível demanda
poesia & obras de arte. Por essa razão tanto faz que os personagens de
globalstrike.net sejam reais ou fictícios: importa que nos façam pensar
sobre, lançar questões novas, ajudar a reinventar os sentidos do real.
Alguém ainda crê na veracidade objetiva dos documentários? Ou melhor:
existe algo mais real que o sentido?

Mariano Klautau Filho. Imagens da instalação fotográfica “Entre”. 2006


60
Não-esquecer

Venho pensando sobre qual a necessidade de tanto se fotografar. O porquê de tantas imagens.
Qual a necessidade do registro onipresente e excessivo no qual nos deparamos? Tenho feito alguns
procedimentos para entender o que significam essas imagens que nos acompanham a vida.

Pensar sobre essa necessidade excessiva de imagens me lembrou uma história. No livro Os Amores
Difíceis, do autor Ítalo Calvino, o amor de Antônio por Bice inicia-se exatamente com a necessidade
inexorável de fotografar. Fotografar tudo o que seria possível e que estivesse a volta de Bice, era
assim que Antônio fazia para demonstrar o seu amor. Eram os registros (sobreposições de registros),
que faziam com que ele não deixasse que nada passasse para o território do esquecimento, como se
tudo fosse possível de ser fotografado e esgotado como imagem, inclusive as ausências de Bice, que o
abandona por não agüentar tal obsessão.

Vivemos nesse cenário com a mesma obsessão. Tudo o que “eu olho, eu preciso registrar”. Antônio
defendia, porém que, “qualquer pessoa que você resolva fotografar, ou qualquer coisa, você tem que
continuar a fotografá-la sempre, só ela, a todas as horas do dia e da noite”. A fotografia só tem sentido
se esgotar todas as imagens possíveis. ( CALVINO, 1993, p.63). Capturar a mesma cena por diversos
enquadramentos, ângulos, horários, luzes, enfim, faz a diferença no sentido de perceber o que lhe pode
interessar como imagem ou, o que eu quero olhar somente de diversas maneiras, em possíveis outros
olhares sobre a mesma coisa, ou pessoas.

O que se observa, no entanto, é uma grave dispersão daquilo que seria possível ter como registro.
Com o surgimento das câmeras digitais, fotografar virou quase uma imposição. É necessário olhar
tudo e registrar tudo a todo instante, ou tudo agora é muito importante? Virar o rosto, comer um pão,
correr, andar de bicicleta, fazer uma pose, olhar a árvore que faz uma sombra, a janela do quarto,
um sorriso, dormir, uma cortina em contra luz, descer do ônibus, os sapatos jogados... Todos os dias,
todas as horas. Tudo o que nos olha será olhado também. As imagens estão e sempre estiveram em
todos os lugares, prontas a serem capturadas pra dentro dos pequenos aparatos. Olhar tudo como se
fosse possível ver, e não esquecer nunca mais. Assim, não oferecemos ao momento a possibilidade de
transitório, da dúvida, e porque não do esquecimento. Com esse procedimento, ao que parece, dotamos
o aparelho fotográfico 1 do status de aparelho de memória, um extensor, uma prótese de todas as nossas
memórias. “Minha câmera digital é a minha caixa de lembranças”; de todas as lembranças que não
podemos mais deixar de ter, de lembrar. Temos medo de esquecer ou de sermos esquecidos.

Flusser afirmava em Filosofia da Caixa Preta, que “as fotografias nos cercam. Tão onipresente são”
(67:1993) e que estando em todos os lugares espalhados sobre os mais diversos suportes, faz com que
de alguma maneira nos habituemos com ela e o hábito faz com que não percebamos algumas alterações.
Para ele, as “cenas são eventos”, acontecimentos, se expandirmos a cena como evento, direcionamos
nesse caso a uma escala muito maior produzindo o que passei a chamar de “protocolo de infinitas
imagens do cotidiano”. Feitas com um único objetivo de não perder um sequer movimento, uma olhar.

63
Nesse caso os “fotografadores” produzem cerca de 100 imagens diárias, 400 em um final de semana.
O que será produzido em uma ano, em 10 anos. Onde e como estarão essas imagens?

É como se disséssemos com isso: não tenho mais capacidade de somente olhar as coisas, sem que
com isso seja imediatamente necessário o registro. O olhar que nos aproxima à distância, captura
pelo olho onipresente da lente e faz com aquilo que antes poderia somente ser visto passe a ser uma
imagem, próxima e ao mesmo tempo distante: agora ela é minha, está comigo. Olhar e fitar apenas,
tornou-se uma exceção. O que olhamos sem intenção de fotografar, parece que não existiu, aquele
momento deverá ser fotografado obsessivamente. Imagens não podem passar para o território do
esquecimento. Vivemos na condição de lembrar compulsivamente, como se houvesse essa capacidade. Sunday
Não nos lembramos que esquecemos. Precisamos esquecer, essa é uma das nossas condições para não December

31st
enlouquecer. Temos no espaço da memória, um grande espaço para os esquecimentos, segundo Borges
em uma citação do filósofo de nome Spiller, afirmou “que as memórias completas de um homem de 60
ou 70 anos dificilmente ocupariam um dia e meio ou dois. Borges suspeitava que Spiller exagerava. Flow System
Sua experiência pessoal lhe indicava que a evocação de todas as memórias de sua vida ocuparia um
tempo muito menor” (apud IZQUIERDO, 15:2004). Anyone may send an
object or a work of any
Voltando ao Antônio: como se esgotam todas as imagens possíveis? Ou seria por que não queremos Kind to the exhibition.
esquecer? Everything received is
displayed.
Cláudia Leão
Any Visitor to the
Exhibition may take
1. Segundo Flusser, o aparelho fotográfico produz a imagem técnica e a primeira inventada foi a away an object or work
fotografia. Como instrumentos, os aparelhos, são prolongações de órgãos do corpo, dessa maneira
podem ser mais poderosos e eficientes. (A Filosofia da Caixa Preta) Ken Friedman, 1972

Referências Bibliográficas:
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 5ª Edição, 1993.
CALVINO, Ítalo. As Aventuras de um fotógrafo. In Os amores difíceis: Companhia das Letras. 1992.
FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Editora Hucitec, 1985
IZIQUIERDO, Ivan. A ar te de esquecer. Cérebro memória e esquecimento. Rio de Janeiro: Viera & Lent. 2004.

64
Monday
January

1st

Write where you wish

Car ta Social . Maria Christina


Ricardo Basbaum
regiões de sombra dos 80 (& diamantes) êxtase hipnótico da repetição do refrão, entretanto, que se revelam os recalques e
Ricardo Basbaum esquematismos de uma vida em sociedade. Quem passou por ali sabe: diversas outras
formas de ação e intervenção contribuiram para a sustentação necessária da tensão criativa
do período, e cabe trazer à tona outras histórias (outras ficções) e percursos ◊ nesse
para quem viveu a agitação cultural dos anos 1980 na área das ar tes visuais não há como sentido, os 1980 seriam exemplares na sintomatização de uma cer ta psicopatologia
não se sentir decepcionado diante do que é recuperado daquele momento através dos sociocultural cotidiana que nos assola nesta região dos trópicos: qual a extensão deste
museus, coleções, crítica, história da ar te: o que se diz, coleciona, guarda, é muito pouco, recalque local? (há um recalque global – que talvez nos sirva de consolo – que se estende
muitíssimo pouco, do que realmente podia interessar e marcar o período ◊ as coisas a par tir do rico ocidente e seu umbilical e perverso projeto econômico neoliberal [Reagan-
realmente interessantes, impor tantes, singulares, não são referenciadas, coletadas, Thatcher], e deriva para a queda do Muro de Berlim e fim da antiga URSS). Não é complicado
guardadas, revelando procedimentos no mínimo estranhos de relacionamento com as de se determinar quão limitados são os mecanismos de institucionalização da ar te enquanto
atividades e ações ar tísticas. Percebe-se um circuito exercendo suas funções de modo filtros de processos e fatos. E quando se quer caracterizar uma época através da ar te, o
natural, como se seu contínuo funcionamento – simplesmente por se mostrar efetivo – que isso significa? É fácil de se perceber que neste processo de ‘exemplarização’ –
indicasse qualquer valor (se há algum, este só pode ser de eficiência e funcionamento, constituição de modelos e índices representativos – o que se mostra de modo mais evidente
deslocamento sem atritos que não se pensa nem se vê, e que oculta os sujeitos sociais não são as escolhas, mas a trama de processos e métodos que forjaram o processo seletivo,
envolvidos e diretamente interessados em seu projeto, que se quer totalizador e generalista) as características da máquina de filtro ◊ não existem totalizações, não acreditamos nisso: os
◊ e o que seria estranho, na verdade, revela-se como o seu oposto: tudo isso é processos deixam lacunas, resíduos, vazios, e o que se transmite de uma camada a outra
assustadoramente normal, aceito, referendado, legitimado, positivado, enfatizando um tipo sofre os efeitos próprios de uma mudança de estágio: transformam-se os códigos, cristalizam-
de processamento que imediatamente se tipifica como exemplar e se implanta no ritmo se clusters [aglomerados] de sentido, demarcam-se lugares, modifica-se o olhar ◊ encontrar
habitual das coisas ◊ estranho, então, seria observar como as coisas se normalizam e criam um encaminhamento de sentido, entretanto, não aquieta a questão: permanece o espanto
seus percursos, impondo-se no tecido social e construindo suas vias de normalização – diante do processo, continuam visíveis os limites; talvez alguns se acalmem diante da
processos políticos, econômicos, sociais que constituem as coisas e o mundo e junto ao qual ‘explicação’, outros se exasperem; mas a maioria sossega diante do signo conveniente e
temos que negociar nossa localização ◊ o que não significa aceitá-los ◊ enfatizo aqui que confor tável ◊ mais interessante e impor tante é perceber que no recalque de cer tos percursos
esses processos têm no campo da ar te sua modelização singular, uma vez que a tramitação ar tísticos e discussões, não se está excluindo de um debate público mais amplo apenas um
das coisas através desse micro-setor da sociedade é reveladora (torna visível) das condições conjunto de obras e linguagens: está sendo lançado à sombra um projeto cultural ali inscrito
e personagens do jogo, assim como diversas modalidades de relações (que fique bem claro: (que tornou essa produção possível), por tador de outros caminhos nem tão hegemônicos
não há representação ou mimesis, mas jogo autônomo, compreensível em registro próprio: ou eficientes para o processo ar tístico local. Sem dúvida que os instigantes e problemáticos
política das ar tes, política das linguagens, políticas da percepção). Repetindo-me: “[U]ma (carregados de expectativas em 2003; frustrantes e dramáticos em 2006) destinos atuais
vez começada a par tida as cadeiras de pista, arquibancadas, cadeiras especiais, numeradas do país lançam nova luz ao panorama de vinte anos atrás, quando hoje chega ao poder um
e camarotes irão transpor tar-se automaticamente para dentro do gramado. É aí que se par tido criado em 1980 e que teve entre seus fundadores um crítico de ar te militante (Mário
passa o jogo: no lugar de onde se assiste, com quem se assiste, e não o contrário” ◊ a Pedrosa); logo, por derivação direta, processos ar ticulados desde aquele período informam
fluência e o (semi)automatismo da escrita talvez sejam os equivalentes das emissões de traços decisivos da dinâmica da atualidade do circuito de ar te, ar ticulando outros focos de
voz, do pensamento através da fala que tornou célebres Lacan (e MD Magno): seminários & interesse ◊ mirar o panorama do anos 1980 não significa simplesmente ‘olhar para trás’,
seminários; ou que faz lotar auditórios para aulas de Foucault e Deleuze, que não se dão em mas recuperar algo de nossa atualidade, admitindo que se traga para a boca de cena
estádios de futebol, nem através de emissões de rádio; exemplos de pensamento que se processos que insistiram em se manter ativos, recusando-se a obedecer as primeiras
quer percebido através do corpo; voz, canto ao seu modo ◊ retomando: a vivência dos instruções de aquietamento e domesticação. Gestos como este adviriam, sobretudo, da
acontecimentos significativos dos anos 1980 nas ar tes visuais é antípoda de seus registros prosaica atividade de olhar-se no espelho: desde a modernidade, sabemos que o reflexo
institucionais oficiais: nestes, fala-se apenas da “volta à pintura”, de modo automático. É no não mais existe como cópia, e que a única imagem possível se entrega através do outro – as

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correntezas de uma política de alteridades são o único caminho possível para a economia da circulação internacional, rediagramadas, repletas de anúncios, é característica da época
cultura, que se esforça para regular tal tarefa. O processo desta recuperação se daria como (aqui tivemos títulos como Galeria e Guia das Ar tes, querendo ocupar tal espaço, mas sem
alteração perceptiva, em que elementos de cena que compunham o que se supunha ser um projeto editorial que efetivamente as singularizasse: esta incapacidade de se posicionar
apenas fundo, subitamente são percebidos como personagens ativos da trama, que não mais aber tamente seria índice de nosso recalque e incapacidade de olhar para frente, para
podem ser suprimidos; mas, o que pode ser mais dramático e assustador é o reconhecimento trás e para os lados e se perceber o que há em torno), assim como o aquecimento do
de que muitos dos principais papéis da trama poderiam ser atribuídos a antigos figurantes: mercado e a aceleração das galerias – voltadas para uma atuação mais agressiva junto ao
nesse momento, o diretor se retira para reescrever o roteiro, sem perceber que as cenas mercado e à sociedade – indicam também o mesmo tom vibratório de expectativas e
avançam em sua dinâmica própria ◊ de modo que seria impor tante tornar clara a indagação: demandas: tirar par tido da aceleração dos novos dinheiros e seu apetite pela legitimação
se algo havia para ser visto, e não foi percebido, esse ‘isto’ só poderia ser notado a par tir cultural ◊ o que nos espanta, entretanto, é como as manobras de institucionalização da ar te
de uma concreta transformação da percepção. Os anos 1980 trazem um outro olhar, não mergulham efetivamente no nó da questão (seria demasiado esperar tal atenção do
desafiador ao seu modo, que desconcer ta cer tas programações de corpo: algo fica no meio circuito?), deixando-se capturar pela sedução imediata da imagem ar tesanal, como moeda
do caminho, entre visões enrijecidas, deslocamentos pouco fluidos, subjetividades excluentes de troca de liquidez mais imediata, ou melhor, institucionalização de maior eficiência. Mas o
– matéria de delineamento difícil, mas que parece exibir de modo incontornável um éthos vetor que move essa conversa seria mesmo a indagação acerca da não percepção dos outros
pós-moderno que não se deixa simplesmente caracterizar como decadentismo de fim de processos que corriam em paralelo ◊ na ar te (brasileira) do período, parece ter ocorrido
século (apesar do hedonismo e do espectro da Aids a ele associado no momento): a uma súbita despolitização (quando comparado a momentos anteriores, de debate crítico
compor tamentalidade revigorada que se anuncia desdobra diretamente as conquistas do mais agudo), em que a conversa sobre o circuito e a própria economia das ar tes visuais
feminismo e dos direitos civis que se seguem aos impasses de 68 e da contracultura, e que deixou-se arrebatar pela demanda mais imediata do novo regime do capital: a eficiência e
se replica no circuito de ar te através da permanência da ar te conceitual enquanto impor tante circulação transformados em valores, ou o impacto perceptivo hipnotizante de um
operador estético (apesar de sua aparente rejeição), a retomada da discussão da imagem acontecimento estético auto-contido, isolado de suas remissões ao contexto ◊ eficientes
(agora telemática e digital, ainda que de modo dominante produzida com tinta sobre máquinas de filtro recor tam o que lhes interessa: nessa manobra, o projeto que se implanta
superfície em obras que se insiste ainda em chamar de ‘pintura’) e a formalização efetiva do a par tir de 1980 envolve a pavimentação de estradas, viadutos e túneis, que possam
ar tista multimídia (meios, tecnologias, linguagens, disciplinas variadas, costurados em conduzir com segurança a ar te brasileira ao circuito internacional, estabilizando impor tantes
receitas mais ou menos revigorantes, conforme o caso). Ao contrário do que se pensa, há relações de mercado – obras, obras, obras ◊ o que não pode ser esquecido, sob o preço de
lugar aí para o um heroísmo modernista, transformado entretanto, já que as questões que um empobrecimento ainda maior de nossa já precária discussão e de uma simplificação
fundam o campo moderno não desaparecem e sim sofrem inflexões ◊ a sintomatologia se faz excessiva do campo, são as trajetórias próprias da ar te contemporânea de problematizações
presente em toda sua agudez quando a velocidade do novo capitalismo tecnológico consecutivas e sucessivas de seu próprio fazer, em um trabalho de inflexão das mediações.
rapidamente se apropria de traços desse novo lugar de produção do saber – entre nós, isso Nosso circuito, de modo amplo, ainda não aprendeu a lidar com trajetórias de espelhamento,
se dá de forma mais grave: ainda vivendo sob regime militar (em passo acelerado para evita questionar sua auto-imagem, sem enxergar os limites como traços materiais positivos
dissolução: em 1979 o general João Batista Figueiredo ocupa o poder), a geração de ar tistas que implicam em uma constante plasticidade – isso, claro, através do jogo de linguagens e
que aparece nos anos 80 é saudada como indicadora dos novos ares da redemocratização suas políticas, aqui, localmente, dificilmente assumidas enquanto multiplicidade ◊ os trajetos
política; nesse contexto (como também em outros países da América Latina), a nova economia recalcados nos anos 1980 são aqueles que questionam o circuito e a circulação enquanto
de mercado é igualmente recebida como liber tadora, por tando novas promessas de valores genéricos e propõem uma ampla politização de linguagens e dos processos
emancipação a par tir do colorido das inéditas ar ticulações entre capital e cultura tornadas institucionais. Esta lacuna, sentida de modo amplo, é tratada de modo caricatural em livros
possíveis pela conjunção entre informática, biologia e capital ◊ a avassaladora hiper- de auto-ajuda institucional (alguém conhece alguns dos títulos?). Mas se há qualquer projeto
institucionalização do circuito de ar te a par tir da década de 80 é indicativa da rapidez e político que poderia ser implicado a par tir das regiões de sombra, seria aquele que se
agilidade do novo capital tecnológico em se reterritorializar, estruturando-se a par tir de conecta com as amplas transformações da ar te após a Segunda Grande Guerra, indicando a
alianças com a esfera da cultura: a presença renovada de muitas revistas de ar te de necessidade de reestruturar o pensamento e a concepção de corpo a par tir da influência

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das biotecnologias e da informática: sobretudo seus impactos éticos e estéticos já há
décadas têm produzido intensa transformação nas práticas e jogos ar tísticos. ◊ um outro
olhar não existe além-mar, mas é aquele que está em nós, entre-nós, e resguarda potenciais
de estranheza – suas regiões de sombra, longe de nos aniquilar e deixar desguarnecidas as
defesas, indica locais, espacialidades a par tir das quais girar o corpo e rever ter o campo ◊
o que foi dito aqui pode também, de algum modo, pairar sobre a dinâmica da cultura de
qualquer momento pontual, com suas idas vindas e conflitos ◊ mas é par ticularmente
produtivo – e estrategicamente impor tante – apontar os limites da recepção dos anos 1980
(que para o senso-comum intelectual – isso existe! – são uma época decadente e
conservadora) para, a par tir de uma dramatização dos sintomas (para quem os quer visíveis,
claro), rever ter a habitualidade dos processos de construção do presente ◊ ALERTA: ESTE
GESTO ENVOLVE RISCOS. SOMENTE PARA QUEM QUISER!

Encontros Bresser-Moca I . Sinval Garcia


76
A Procura de...

Minha formação é de fotografo: a primeira atividade profissional foi com a fotografia e foi
com a fotografia que as dúvidas com a linguagem e com a filosofia surgiram, dúvidas estas
que me levaram a algumas crises existenciais. Por pensar que a fotografia é mais complexa
que a atividade fotográfica, no começo da década de 80, eu abandonei completamente a
fotografia jornalística que praticava em São Paulo, foi quando fui morar e estudar artes em
Paris.

Eu nunca tive o desejo de estudar fotografia “pura’’, mas refletir e praticar uma fotografia
em cotejo com as outras linguagens, a fotografia dita pura, não me interessava, o que estava
em jogo era criar relações entre os diversos códigos, verbal, musical e visual, em busca de
um processo performático.

Não pela arte, queria desembaraçar-me da memória.

Por isso escolhi uma escola de arte multidisciplinar como é a ENSAD, uma espécie de Bauhaus,
foi um período muito prazeroso, estava completamente livre para desenvolver ações sem
nenhuma amarra comercial ou ideológica, no bom sentido era um jovem estudante, ou
melhor, um amador, um fato importante em toda essa aventura é que a primeira vez que
peguei numa maquina fotográfica foi para registrar o delírio ambulatório de Hélio Oiticica,
na ação coletiva mitos vadios no estacionamento da rua Augusta, em São Paulo.

A fotografia, Hélio Oiticica, a da crise da linguagem e do Homem.

O começo da aventura.

Em Paris comecei a desenvolver alguns ensaios, um dos primeiros estava ligado ao ato
fotográfico, À idéia era registrar a atividade do fotografo, o ato fotográfico, ou seja, o
fotografo fotografando, acompanhado de um pequeno relato, uma descrição de qual o
sentido daquela foto, todo o ensaio estava ligado a um desejo de elaborar uma reflexão
sobre o ritual da fotografia amadora.

No segundo momento criei um objeto, uma miniatura de fotografo, em homenagem ao


fotografo Eugéne Atget .

Encontros Bresser-Moca II . Sinval Garcia

79
Saia todo dia com meu objeto, espécie de marionete de fotografo, e tentava seduzir os a impossibilidade da existência.
transeuntes para que pousassem para aquele fotografo e registrava meu pequeno Atget
em ação. A fotografia é uma máquina mortífera, elogio à morte.
Foram muito divertidos todos aqueles passeios, boa cumplicidade.
Como o verme do poema “Os Mortos de Sobrecasaca”, de Carlos Drummond, inicio umas
Logo após teve a época das meninas de Atget, a idéia era realizar todo dia a ultima foto que ações de puro vandalismo em prol da fotografia.
seria uma menina de pernas abertas e Atget fotografando a origem do mundo, depois Atger São retratos de família realizados do início do século 20, em Paris, que foram garimpados ao
se perdeu, talvez tenha encontrado uma companheira, sinto saudade do meu pequeno longo dos anos, derramando sobre os originais elementos químicos, como água sanitária,
fotografo, talvez outro Atget fosse interessante para perambular por outras cidades. esponja de aço, e tintas diversas.

A reflexão sobre o ato fotográfico sempre foi uma das minhas preocupações. Em seguida Os retratos ganham marcas, depois, como que para ratificar a morte do retratado, executo
a essa experiência, decidi aliar a pratica fotográfica a uma reflexão teórica, que me levou golpes com tesoura e faca, perfurando e rasgando a imagem, com o objetivo de libertá-las
a uma pesquisa Histórica sobre a função da fotografia popular, o objetivo era analisar do estado de fixidez.
como a fotografia tornou-se uma prática popular e determinar o papel social da fotografia
ambulante no nordeste do Brasil. Esta pesquisa resultou no livro: Lambe-Lambe, Pequena O que me interessa é pôr em cheque a noção de morte no Ocidente, como algo aceito por
Historia da Fotografia Popular. sua inviabilidade. Todos os retratados já faleceram, mas insistem em permanecer entre
os vivos através das fotografias. Parece não assumir a condição de mortos. Porque as
Em referência direta a técnica utilizada pelos lambes-lambes, desenvolvi uma maquina, fotografias não devem acompanhar a decomposição do corpo?
onde me torno parte integrante do aparelho, Trata-se de uma caixa de 2mx2m, transparente,
com filtro vermelho. Chega de memória, chega de rastro, chega de indício...
No interior uma espécie de laboratório fotográfico e uma câmera fotográfica de grande
formato, com negativo de 18x24cm. Uma das intervenções reúne quatro retratos emoldurados colocados no chão sobre um
fundo preto cercados de velas. Sentado próximo aos retratos, participo da cena fumando
Para tornar mais rápida as etapas da revelação do negativo e do positivo substitui o filme charuto e baforando fumaça sobre as imagens, como que despachando o santo, libero os
fotográfico pelo papel fotográfico, podendo assim realizar um retrato em questões de retratados novamente mortos por meio de suas imagens para partirem em suas viagens
minutos, o público poderia ver-me trabalhando no interior da caixa, fotógrafo e aparelho espirituais – quem sabe em definitivo dessa vez.
se confunde na mesma peça.
Denominei esta ação de: Todas essas ações não foram realizadas em prol da arte, queria desembaraçar-me da
RELAMBIDA DRAGOFLEX ,TECH POP PHOTOGRAPHE. memória e tinham como alvo me certificar que a memória só existe em estado líquido.

No interior da caixa tem uma caixa de som, a música, é um item importante da engrenagem. Esta série é denominada:
Não se tratava totalmente de fotografia, ou melhor o ato fotográfico se estabelecia como “Nascimento e Morte da Foto-grafia”.
espetáculo, e o operário – fotógrafo, se apresentava como peça da maquinaria, como
‘’artista’’, livre do aparelho. Por ter me afastado do aparelho fotográfico, continuo fotógrafo. Sinto-me confortável no
mundo, no qual a arte perdeu sua nobreza, o fim da arte, talvez signifique a valorização da
A meu ver é - no entre – que reside o caráter constitutivo das ações que tento realizar, o vida, na qual cada gesto por mais simples, ganhe um significado, por fazer parte do grande
espaço seria o do entre. Um que escapa ao controle da razão, ao limite do ser – do homem ritual, do jogo, que é a arte do prazer. O que me interresa é a consagração da perda da
no mundo. Seria a partir dele que se poderia elaborar ainda uma construção criativa para aura.

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me dizia algo”.
“Dê-me tua voz que te darei meu corpo confissões AD. Infinitum” Eu cheguei à arte através de um vaso sanitário, que me levou a
Monalisa,
Tem como foco a fala. O homem se faz presente através da fala. A exposição é uma sala com Mas a Monalisa tinha bigode e o cú quente.
uma projeção do próprio autor, de costas, falando.
As pessoas entram na sala e depositam sua fala.
Quando eu aqui chequei museu e supermercado era a mesma
A fala tem sido subestimada pelas ditas artes visuais, em prol da visualidade priorizaram o coisa,
silêncio, mas a História nem sempre foi assim, Uma maquina já tinha parado o tempo e
No inicio era o verbo. Foi preciso a invenção da escrita, Deus estava morto.
para que a imagem dominasse o espaço.
É preciso assegurar que não há vazio no espaço. Através do vaso sanitário o máximo de certeza que eu encontrei foi
É preciso afirmar a fala. um cara que prometia que rasgando o azul do céu, encontraríamos
Toda imagem é um discurso, o visual é apenas a superfície. no invisível algo que talvez pudessem denominar de arte.
O verbo é a chave, para adentrar no espaço. Além de surdos estamos cegos.
Mesmo com toda a materialidade de Richard Serra, A participação do público, em alguns momentos permitiu a ilusão
porque não há nada a ser visto, tudo está além da visualidade. de comunhão, de ritual em torno da arte,
Não há nada de incomodo no silêncio de Marcel Duchamp, meio século e tudo têm girado em torno do vaso sanitário,
porque não há silêncio, o que há, é uma grande falação. ou da roda de bicicleta sobre um banco.
Ele é o verbo.
É preciso esculpir com a fala.
Se as esculturas elaboradas pela fala, não são vistas, Que venha a luz. Talvez só a ciência possa nos levar a um novo século,
Fechemos nossos buracos para termos acesso a visão e Todos continuam cegos. Só a fala que aqui está.
nos une e de olhos fechados, penetraremos no visível. Enquanto a ciência nos anuncia a possibilidade de um novo ser,
E todos continuarão cegos. nascido totalmente no laboratório,
a arte tem dado poucas possibilidades de se desmaterializar.
É um acervo de falas, de confissões do público sobre a situação da arte ou sobre outras
questões. Na parede ao fundo da sala é projetado um texto: A instalação “Dê-me tua voz que te darei meu corpo,
Confissões, AD. Infinitum” .
Quando eu aqui cheguei a música já era ruído; É uma maneira de dividir o poder de reflexão do artista,
um negro tocava fogo, na sua guitarra, com outras pessoas.
e uma branca gritava Mercedes-Benz. O cinema sempre me pareceu uma atividade lúdica, uma grande brincadeira. Minha
infância aconteceu dentro de salas de cinemas, entravamos-nos naquelas salas, como quem
Eu amava uma língua que não era a mesma que eu me comunicava, penetra em qualquer recinto de uma casa, algo corriqueiro. O cinema era um monte de
eu não entendia nada do que eles falavam e tudo o que entendia figurinhas que juntas contavam uma história. E era o que fazíamos, em casa fabricávamos
eu não amava. projetores com caixa de sapato, e aquelas figuras dispersas ganhavam um novo significado,
não muito diferente do que realizo atualmente.
Na minha língua só um cara que mandava “Tudo para o inferno’’ A coleção dos fotogramas ficou guardada no cofre com chave por trinta anos, justo ao

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falecimento do meu pai, sem nunca ser aberto. Com a morte dele, o cofre foi aberto. Se no primeiro momento foi efetuado o corte, agora o que interessa é colar
São seis filmes de curta duração.
Tem um comentário do meu pai que é representativo do amor que tinha pela coleção:
“para mim, quando morre um ator/atriz é como se eu tivesse juntado e quando vejo um Inferno (02:05seg.) é dividido em duas partes, na primeira parte são detalhes de vários
envelhecer, é mesmo que observar o meu envelhecimento, é que eu vivi a vida deles.” fotogramas até o fotograma onde está inscrito a palavra “the end”.
Na segunda parte, repete a mesma ordem dos fotogramas vistos inteiros, até o fotograma
O acervo de fotogramas de cinema (década de 20 a 60), a coleção é constituída de “the end”.
10. 000 (dez mil) fotogramas sem contar, os que não estão arquivados,
coleção iniciada por meu pai, Manuel Eduardo Pierre Solon de 1936 a 1967 No filme Descoberta do Amor (05m59 seg.) o texto é montado a partir de legendas de
fazem parte do banco de fotogramas clássicos do cinema como: diversos filmes, os fotogramas foram retirados de um saco com diversos fotogramas soltos,
uma espécie de poema dadaísta.
Judy Garland em O Mágico de Oz; Humphrey Bogart e Ingrid Bergman em Casablanca; Para a ação de retirar os fotogramas foi convidada a escritora Érica Zíngaro.
Marilyn Monroe em Os Homens Preferem as Louras;
Marlon Brando em O Selvagem; Brigite Bardot em Brotinho de Outro Mundo; A Procura de...
Grace Kelly e James Stewart em Janela Indiscreta; Orson Welles em O amanhã é Quase um filme míni-Western, Um piloto de avião da 2º guerra mundial procura uma
Eterno; Rodolfo Valentino em O Filho de Sheik; mulher.
Fotograma da cena do primeiro beijo do cinema, trocado por Mary Irvin e John C. Ao final o único fotograma com legenda de uma mulher na garupa de uma moto com a
Rice. frase:
“na boca do estomago”
O acervo conta, também, com quase mil fotogramas do cinema nacional: vários fotogramas Fissura: o texto erótico da escritora Natércia Pontes, lido em off pela atriz Letícia Novais.
do clássico O Cangaceiro de Lima Barreto; Carmem Miranda em Uma Noite no Rio; Oscarito É ilustrado com fotogramas de casais de diversas épocas do cinema de Hollywood.
em Matar ou Correr; Zé Trindade, Nelson Gonçalves, Emilinha Borba e John Herbert em O
Feijão é Nosso, e muito outros como Grande Otelo, Ângela Maria e Tônia Carreiro. B. B.: quase uma dança, onde me movimento com o pufe ao qual são projetados vários
fotogramas de ícones do cinema com destaque para Brigite Bardot.
Durante o inventário, houve um sorteio para ver, com quais dos irmãos ficaria a coleção,
minha irmã foi sorteada e ela me presenteou com a coleção. Em todos os filmes a música é elemento essencial para a constituição de uma quase
Fiquei cinco anos sem tocá-la, tinha algo de sentimental em relação àqueles fotogramas, narrativa.
que era uma parte da minha infância, e agora se tornou parte da minha existência.
Penso que meu pai realizou um corte na vertical, enquanto eu realizo um corte na horizontal, No vídeo B.B. foram feitas várias colagens de músicas: Brigite Bardot de Tom Zé, Lili Marlene
então corte sobre corte. com Marlene Dietrich, My Heart Belongs to Daddy com Marylin Monroe,Serge Gaisborg /
Brigite Bardot.
O primeiro projeto, que realizei depois que a coleção me foi confiada foram filmes, bastante
primitivos. O pufe que se encontra na sala em frente à televisão é peça fundamental da instalação,
A instalação ‘‘o “golpe do corte” se apresenta como uma sala de estar, uma televisão no sobre o pufe, são projetados fotogramas de ícones do cinema, como se eles fossem
chão em frente um pufe, na televisão passam pequenos filmes, todos foram realizados telespectadores, outra possibilidade é do participante doar seu corpo como uma tela, para
sobre a lógica da montagem, um fotograma colado a outro fotograma, não há a presença receber a projeção dos ícones
da câmera, apenas no vídeo B.B. foi feito o registro da performance.
Com o vídeo as relações são de linguagem e de edição, o que interresa é a colagem. Todos esses foram seguindo o método do Godard, primeiro monto, para depois

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elaborar algo parecido com “roteiro” Gardner, etc, projetam-se pelo chão, pelas paredes, encontrando-
se na caixa do desejo, para quem sabe descontinuamente elaborar-
Sinto-me um deslocador de função, estes fotogramas fora do seu contexto tanto no se num novo quase cinema.
tempo como no espaço, quando se juntam a outros, ou mesmo sozinhos, tem um sentido
todo próprio. A projeção e fotogramas ampliados e expostos na parede: quebra
o ritmo cinematográfico e revela o que é um filme: um amontoado
Minha intenção era que fosse visto como um álbum de fotografia, um cinema sem câmera, de fotografias.
Sem montagem, algo entre a fotografia e o cinema. Decompõe o todo em suas mínimas partes. Ela é antiilusionista ao
interromper o espetáculo.
Penso em retornar a estes projetos para radicalizar mais, trabalhar somente com um
Fotograma, individualizar cada item da linguagem cinematográfica. Ao mostrar que ele é irreal. Ao expor sua lógica técnica e nos
mostrar como ele funciona E mesmo quando as mínimas partes
Sinto-me feliz de participar deste momento em que o cinema começa a se libertar. Da nos são apresentadas em movimento, reproduzindo a ilusão
literatura, da antropologia e da psicologia, onde o cinema abandona a caverna de Platão e fílmica, tal filme é um híbrido, uma bricolagem: um todo formado
torna-se simplesmente imagem, um cinema totalmente “impuro”. por partes de outros todos.
Mais de século e a dita “sétima arte” não atingiu a grandeza do branco sobre o branco de
Malevich, nem o vazio do teatro de Samuel Beckett. Não há aqui qualquer possibilidade do espectador se identificar
com o filme.
Penso que para atingir o mínimo do minimalismo é preciso atravessar pelo buraco do Talvez com vários filmes, mas de relance, num lapso de segundo.
barroco. Sem permitir, portanto, uma ação mnemônica. Ou mimética.
Navegar é preciso e um lance de dados é necessário.
Não há espaço para melancolias, recordações, identificações
com fatos da vida de cada um que frui neste ambiente. Em outras
Gostaria de inserir o texto de Alexandre Barbalho, sobre o projeto de instalação e livro palavras, não há catarse.
designado: Se, como diz Robert Stam, a arte, ao longo de todo o seu
desdobramento espacial e temporal, tem vivido na tensão
O GOLPE DO CORTE. constante entre o ilusionismo e a reflexividade, Solon Ribeiro opta
pelo segundo pólo. Em vez de ressaltar a coerência, coloca luz “nas
“A ilusão do cinema: suas 24 fotos por segundo. A realidade em brechas, nos furos, nas ligaduras do tecido narrativo”.
movimento.
Segunda desconstrução. A ilusão do cinema: a arte de construir
A partir de uma coleção de fotogramas de cinema da década mitos. Nossas estórias, nossos ídolos, nossos arquétipos
de 20 a 60, a exposição “O Golpe do corte” retira alguns destes contemporâneos, todos com pretensão universal, mas made in
fotogramas de seu contexto e sorrateiramente abrindo janelas Hollywood.
em molduras que insinuam o quase nada, distribui a fantasia do
mito de Hollywood. Novos autômatos. Fábrica do impensável, da A força da indústria cultural ou de entretenimento como
não convivência, da distância e da elaboração do gosto, imagens de sintomaticamente prefere chamar os estadunidenses, que a
mitos como: Marlene Dietrich, Marylin Monroe, John Wayne, Eva

86 87
análise critica da economia política da cultura e da comunicação sujeito a novos formatos de apresentação.
revela no seu mais íntimo funcionamento.
A instalação “Sage” se constitui a partir do desdobramento da razão de ser da fotografia
Certamente, não é o caso da obra de Solon Ribeiro. Ela não opera e do cinema e da construção de um corpo capaz de acolher o encontro da diversidade de
por aí. Não se pretende um discurso acadêmico transvertido em linguagens.
arte.
Para provocar o efeito de suspensão no conceito de cada uma das linguagens exposta e
Sua ação é mais sutil e opera no nível do simbólico. possibilitar outra vivência. O encontro da linguagem do cinema com a arquitetura (igrejas,
O que ela nos permite é a quebra da nossa identificação com estes piscina, teatros, praças, etc.) procura provocar uma estranheza, de forma que estes espaços
mitos modernos, com estes personagens do Olímpio: as grandes sejam Re-configurados, em telas de projeção e em cenário. O encontro dessas imagens que
estrelas do cinema. pertence a outro tempo-espaço traz a possibilidade de um olhar distinto e outro ritmo para
a paisagem da cidade.
Afinal, todos aqueles personagens, homens, mulheres e mesmo O discurso constitui-se a partir da utilização da paisagem urbana como um laboratório
animais que marcaram nosso imaginário não passam disso: velhos para se pensar um cenário que seja resultado da ação da projeção dos fotogramas. Esse
fotogramas, mofados, queimados, descoloridos com o passar do cenário se apresentará como outra possibilidade de espaço expositivo, no qual o motivo
tempo. principal seja operar um deslocamento dos fotogramas, criando uma nova espacialidade
para a linguagem cinematográfica, num ambiente estranho a ela.
Possivelmente todos já morreram, com todo o seu envelhecimento
acompanhado pela imprensa, ruga por ruga. A não–narrativa da instalação ‘’Sage’’ é de um personagem N.N. a procura de sua memória,
que foi roubada pela indústria do cinema.
Ao colocar em xeque os olimpianos, como diria Edgar Morin, Solon Uma mulher que tem a possessão do código de passagem ‘‘02BC4” que a faz dissimular-se
Ribeiro nos puxa o tapete: em árvores ou em outras mulheres, no final a morte do cinema e a ressurreição do eu.
Já não é possível o happy end, o final feliz. O herói simpático, com A arte corporal que acontece atualmente, na sua maioria, não faz o elogio da dor, a frase da
quem nos identificamos, ou pior, amamos, não tem vez aqui. “artista” Orlan:
“Viva a heroína, abaixo a dor” é representativa deste momento.
O que nos traz de volta à dimensão trágica da vida. E questionamos
o cantor popular: nossos ídolos ainda são os mesmos?” O que busco é realizar um corte no sistema da linguagem do cinema. Um fotograma, uma
música. Um zoom, o mais profundo em direção à abstração total do detalhe.
No projeto de instalação “Sage” que atualmente desenvolvo se propõem a elaborar um A tela branca e a projeção da luz.
espaço, partir da projeção de fotogramas de cinema da década de 30 a 60, sobre a paisagem
urbana e o registro do encontro dessas imagens de ícones como: Marilyn Monroe, Brigitte
Bardot, Judy Garland, Orson Welles, Humprey Bogart, entre outros. solon ribeiro

No projeto, existe uma preocupação em valorizar o gesto do operador, em relação ao


do criador-autor, realizando um corte no tempo cinematográfico, os fotogramas são
deslocados de sua função habitual.
O que apresento é um laboratório em processo, os vídeos dependendo do espaço, estará As imagens dos trabalhos citados encontram-se nos blog:
http://solonribeiro.multiply.com
http://solonribeiro.zip.net

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Mario Ramiro
Contra Gravitropismo: arte e as alegrias de levitação 1
Eduardo Kac

-
O poderoso gesto de desafiar a gravidade na arte pode ser resgatado a 1. Originalmente publicado sob

Campo de Força (1989/2002) partir dos inovadores escultores do início de século XX, como Calder e
o título ‘Against Gravitropism:
art and joy of levitation’ em
Mario Ramiro Moholy-Nagy. Enquanto o primeiro reduziu o apoio maciço de estruturas KOSTIC, Aleksandra (ed.).
I Levitate, What’s Next ...
a um único ponto suspenso com o seu “Mobiles”, o segundo foi tão longe (Maribor, Eslovênia: Kibla,
“Campo de Força” é o nome de outra série de esculturas elétricas quanto experimentando diretamente a levitação sem absolutamente 2001), p. 88-97. Atualizado e

que se caracterizam por uma fonte de irradiação de calor instalada nenhum suporte físico. Em seu livro original “ Vision on Motion ”, publicado
publicado em francês e inglês
no Space Art, A. Bureaud,
em sua estrutura material. A idéia de um campo de força, tal como postumamente em 1947, Moholy-Nagy aparece levitando um cinzel com J.-L. Soret (dir.), catálogo do

certamente se originou na ficção cientifica, é algo que nos remete à ajuda de ar comprimido. A fotografia é impressionante: vemos Moholy-
‘Festival @RT Outsiders 2003’,
numéro especial, Anomos,
idéia de um corpo cercado por uma barreira de energia (normalmente Nagy de perfil e, a frente dele, o objeto suspenso no ar sem nenhum apoio. Paris, set. 2003, p. 196-199.

invisível) que o protege do contato com elementos estranhos. Algo que Nos livros anteriores, Moholy-Nagy articulou noções sobre a evolução
Também publicado em Tate in
Space, 2003 <http://www.
encerra também a idéia de perigo e de proibição. Como todo volume da forma escultórica, sugerindo que o volume virtual - volume criado tate.org.uk/space> e Art

tridimensional, estas esculturas são definidas espacialmente por sua opticamente pelo movimento acelerado de um objeto - era uma nova
Catalysts, 2003 <http://www.
artscatalyst.org>. Atualizado e
altura, largura e profundidade, da mesma forma que sua plasticidade “é possibilidade para a escultura. Em seu filme “Design Workshops” (1946), publicado em Zero Gravity: A

definida esteticamente pelos materiais empregados na sua construção ele apresentou uma seqüência, com menos de um minuto de duração,
Cultural Users Guide (Londres:
The Arts Catalyst, 2005), p.
e pelo trata mento a que se submeteram”. No entanto elas apresentam na qual bolas coloridas de ping-pong flutuam um jato de ar. Como um 18-25. Publicado em alemão no

algo mais que o nosso olhar não pode perceber em sua quase soberania. artista cruzando muitas fronteiras disciplinadoras, Moholy-Nagy também “Gegen den Gravitropismus”,
Der Freund, N. 4, Setembro
As ondas de calor, irradiadas pelas resistências elétricas, “modelam” considerou que, no futuro, a neutralização de gravidade poderia ser um de 2005, Hamburg, p. 80-88.

o espaço ao redor do objeto por meio de turbulências produzidas na instrumento útil no desenho [design]. Isto aconteceu até a década de 1960 A versão original deste texto
com respectivas imagens pode
atmosfera. Esta “modelagem” do espaço pelo calor define um outro quando várias idéias visionárias poderiam encontrar interesses monetários. ser vista em http://www.ekac.

volume ao redor do objeto, cuja presença para nós é normalmente A escultura de Hans Haacke “Sphere in Oblique-Jet Air” (1967), apresenta, org/levitation.html. Tradução
para português por Ana Paula
invisível. Ao contrário de outras esculturas, tradicionalmente definidas justamente aquilo que indica ao público em seu título: um balão sustentado Felicissimo de Camargo Lima

por um volume visual, nesse trabalho a percepção do volume expandido que estavelmente paira no espaço. A escultura realiza esta façanha por com revisão de Amadeu Sergio
Bandieri.
imaterialmente se dá pelas vias do tato, pelas sensações criadas na meio daquilo que é conhecido como ‘princípio de Bernoulli’, segundo o
superfície da pele através da variação térmica no espaço. qual uma corrente de ar (ou líquido) tem menor pressão do que o ar (ou
2. Gravitropismo é um termo
Isso permite ao observador sentir a “espessura” do campo irradiado ao líquido) parado. Em termos práticos, isto significa que o movimento do ar botânico. Raízes realizam

redor do objeto. Nesse trabalho as diferentes estruturas feitas em aço, pode criar um elevador aerodinâmico. Gravitropismo positivo porque
crescem na mesma direção das
cobre e cerâmica eram consideradas “suportes” para as irradiações forças gravitacionais (ou seja,

de calor, ou “bases” materiais visíveis para “esculturas imateriais Apesar do Construtivismo húngaro não explorar este conceito em suas para abaixo). Contrariamente,
caules têm Gravitropismo
invisíveis”. Essas esculturas ansiavam por um prolongamento na próprias esculturas, a levitação e a conquista do espaço atraiu a atenção negativo, pois crescem contra a

superfície da fotografia, uma vez que a imagem seria o meio mais dos artistas que trabalhavam na década de 1950. O movimento espacial gravidade (ou seja, para cima).

imediato para revelar a existência desses “volumes imateriais”. Isso de Lucio Fontana, por exemplo, fez referências directas ao espaço. Em
coincidia com o enunciado “do mais avançado dos estágios da evolução 1951 ele afirmou claramente: “A real conquista humana do espaço é seu
3. In: KAC, Eduardo. Sintaxe,
da escultura”, descrito por Moholy Nagy (1929), o dos “volumes desprendimento da Terra”. A série de fotografias de Aaron Siskind, de 1950, Leitura e Espaço na Holopoesia.

virtuais”, determinados pela luz e pela velocidade de registro de suas chamada “Terrors and Pleasures of Levitation” apresenta o espectador Arte e Palavra. Rio de Janeiro:
Fórum de Ciência e Cultura da
qualidades. com órgãos humanos contorsidos e aéreos. Estas imagens incontornáveis,
Universidade Federal do Rio
que evocam o mítico sonho de voar da humanidade, parece se originar de Janeiro, 1987.(catálogo da

diretamente num programa de treinamento para astronautas. Enquanto exposição)

que é realmente a metáfora de espaço e de levitação que é trazida para a


discussão, ou seja, o uso do magnetismo para suspender formas no espaço
tornou-se o elemento-chave para o inovador trabalho do artista grego

93
cinético Takis. Em 1938 Gyorgy Kepes produziu uma série de fotografias brasileiro Paulo Bruscky propôs, em 1974, a criação de uma aurora boreal
e fotogramas nos quais experimentou as propriedades visuais dos ímãs artificial, segundo a qual seria produzida por aviões colorindo formações
e limalha de ferro, porém foi Takis que, em 1959, introduziu a estética de nuvens. Bruscky publicou anúncios nos jornais para tanto documentar o
da levitação magnética escultural com sua elegante “Télésculpture”. projeto como informar o público. Os anúncios serviram também como um
Esta escultura é composta por três pequenas peças cônicas metálicas instrumento na sua busca de patrocinadores. Foram publicados em jornais
que estão ligadas por finos fios a três pregos. As três peças cônicas são brasileiros como ‘ Diário de Pernambuco ’ de Recife em 22 de setembro
suspensas sobre num plano irregular e levitam na frente de um ímã. Essa de 1974 e ‘ Jornal do Brasil ’ do Rio de Janeiro em 29 de dezembro de
foi a origem de um complexo conjunto de trabalhos que através desta 1976. Durante o período de parceria no Guggenheim, em Nova Iorque, ele
mágica da levitação propiciou investigar o poder expressivo de forças também publicou anúncios no ‘ Village Voice ’ de Nova Iorque em 25 de maio
invisíveis. Em setembro de 1959, a Lua foi visitada pela primeira nave de 1982. A criação de auroras artificiais foi realizada em 1992 – não pelo
espacial soviética chamada ‘Lunik 2’. Como a primeira sonda a impactar Bruscky mas pela NASA como parte de uma pesquisa ambiental. Cerca
a Lua, Lunik 2 tornou evidente que o deslocamento humano no espaço de sessenta mini-auroras artificiais foram criadas empregando armas
era possível. Fascinado pelas implicações desta idéia, Takis realizou um eletrônicas para lançar raios de fogo na atmosfera a partir do ônibus
evento em 1960 na Galeria Iris Clert, em Paris, intitulado “L’Impossible, Un espacial Atlantis. O céu foi também o ambiente de “Searchlight”, uma
Homme dans l’Espace” (O impossível, um homem no espaço). Colocando obra criada por Forrest Myers em 1975. Myers utilizou quatro canhões
uma “Space Suit” concebida por Takis, vestindo um capacete, e ligado a de luz fazendo-os convergir para um ponto sobre Artpark em Lewiston,
uma haste metálica presa ao chão, Sinclair Belles foi “lançada” através Nova Iorque. Essa escultura de luz criada sob a forma de uma pirâmide,
da galeria sobre uma rede de segurança. O evento orquestrado por oscilava entre a realidade material de uma intervenção urbana efêmera e
Takis apontou para o desconhecido: o lógico e biológico que regem a a imagem de um monumento imemorial.
existência humana na Terra não serão facilmente aplicáveis em nossa
vida no espaço. Também respondendo à estimulação visual e intelectual O uso artístico de ‘skywriting’ foi posteriormente estendido para as
fornecidas pelos primeiros passos da humanidade para além da Terra, o performances aéreas estabelecidas nos manifestos Futuristas. Além
“Leap into the Void” de Yves Klein (1960) foi uma fotomontagem aludindo dos conhecidos trabalhos do fundador do Futurismo, Filippo Tommaso
à nova condição do corpo considerada concreta em relação ao cosmos Marinetti, é de particular relevância o manifesto de 1919 chamado
(lembramos que isto era da sua série ‘Siskind’). Vale a pena notar que “Futurist Aerial Theatre”, por Fedele Azari, no qual escreveu: “EU
outros artistas atuantes na década de 1960 elaboraram o vocabulário do MESMO TENHO REALIZADO [PERFORMED], EM 1918, MUITOS VOOS
magnetismo. O escultor venezuelano educado em Harvard, Alberto Collie, EXPRESSIVOS E EXEMPLOS DO TEATRO AÉREO ELEMENTAR SOBRE O
criou levitadores eletromagnéticos para esculturas inovadoras chamadas CAMPO DE BUSTO ARSIZIO. Eu percebi que era fácil para os espectadores
absolutos espaciais. Em suas esculturas, emprega discos de titânio que seguir todas as nuances dos estados de espírito dos aviadores, dada a
flutuam livremente (ou seja, sem nenhum ponto de ligação) em um campo absoluta identificação entre o piloto e seu avião, o qual se transforma em
eletromagnético. Se o disco se move, um sistema de retroalimentação uma extensão de seu corpo: seus ossos, tendões, músculos, nervos até se
fortalece o campo, mantendo assim o disco em um estado de equilíbrio. estender a fuselagem e fios metálicos.” Outra importante, embora pouco
conhecido antecedente, é o “Dimensionist Manifesto”, publicado em 1936
Uma abordagem peculiar para a suspensão de formas (efêmeras) no pelo poeta húngaro Károly (também conhecido como Charles) Sirato e
espaço é a uso de substâncias gasosas através de uma técnica conhecida assinado por ARP, Delaunay, Duchamp, Kandinsky, Moholy-Nagy e Picabia,
como ‘Skywriting’ que consiste na escrita ou desenho feito pela fumaça entre outros. O “Dimensionist Manifesto” foi publicado em Paris como um
liberada por um avião no céu, normalmente a cerca de 10 mil pés de encarte no interior da revista Revue N + 1. A sua proposta mais ambiciosa
altitude. No final dos anos 1960 e início dos anos 1970, artistas como é uma escultura com quatro dimensões: “Ensuite doit venir la creation
James Turrel, Sam Francis e Marinus Boezem começaram a empregar o d’un art nouveau absolument: l’art cosmique (vaporisation de la sculpture,
‘skywriting’ como um meio de comunicação. Os ‘skypoems’ de David Antin teatre Syno-Sens - denominations provisoires). La conquête totale de l’art
foram criados sobre Los Angeles e San Diego entre 1987 e 1988. Estes de l’espace à quatre dimensions (un “Vacuum Artis” jusqu’ici). La matière
e outros artistas e escritores criaram formas evanescentes naquilo que rigide est abolie et remplacée par des matériaux gazéfiés. l’homme au
é conhecido como troposfera, isto é, a mais baixa camada atmosférica. lieu les regarder les objects d’art, devient lui-même et le centre et le
Trazendo o conceito de arte celeste dentro da idade espacial, além sujet de la création, et la création consiste en des effets sensoriels dirigés
de acrobacias aéreas e o desenho de formas evanescentes, o artista dans un espace cosmique fermé.” 4 Esta abordagem visionária se tornaria

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4. “Em seguida, deve vir realidade não somente pela utilização de gases e vapores como novos um eletroímã regulado por um foto-sensor mantém uma forma metálica
a criação de uma arte
absolutamente nova: arte
materiais artísticos (Pierre Huyghe’s “L’Expédition Scintillante, Acto II: flutuando no espaço em um estado de levitação. Libertado de uma base
cósmica (vaporização da Untitled (light show)”, de 2002, vem a minha mente), assim como a bidimensional, e de qualquer outro ponto de apoio no espaço, este objeto
escultura, teatro Syno-Sens
contínua utilização de ‘skywriting’ como um meio de comunicação na arte está verdadeiramente em um espaço cinético tridimensional. Esta forma
- denominações provisórias).
A conquista total da arte do contemporânea, que aqui exemplificamos por “En el Cielo”, uma exposição em levitação de Ramiro apresenta relações de inversão de volumes: a
espaço a quatro dimensões
de projectos de ‘skywriting’ criados por vários artistas para a Bienal de área de maior massa do objeto pode ser vista na parte superior. A parte
(um “Vacuum Artis”, até
então). A materialidade rígida Veneza em 2001 e organizado pelo TRANS>, um organização de Nova inferior, a tradicional base do objeto, não precisa apoiar o volume que
é abolida e substituída por
Iorque que apresenta arte experimental. Apesar do seu apelo aos artistas, está acima.
materiais gasosos. O homem ao
invés de os ver como objetos ‘skywriting’ é a própria forma de arte desvanecendo, e que tem sido
de arte, torna-se ele mesmo o
enormemente substituída no mundo comercial pela técnica mais rápida A conclusão inevitável é que a gravidade zero é a próxima fronteira.
centro e o sujeito da criação,
criação que consiste nos efeitos conhecida como ‘skytyping’, no qual vários aviões voam em formação Obras de arte têm sido colocadas a bordo de naves espaciais desde 1969,
sensoriais direcionados a um e usam rádios controlados por sinal de computador para emitir sinais de quando “The Moon Museum”, uma pequena peça cerâmica com desenhos
espaço cósmico fechado.”
fumaça na forma de letras. de artistas como Andy Warhol e Robert Rauschenberg, foi levada para a
Lua a bordo do foguete ‘Saturn V’ pela Apollo 12. Um desenvolvimento
A proposta de Bruscky explorou uma escala maior do que a da ‘Land Art’ significativo foi a instalação permanente da escultura do artista Paul Van
ou ‘Earthworks’ típicos do período, uma vez que sua visão de uma aurora Hoeydonck (nascido na Antuérpia em 1925) sobre a superfície da Lua em
boreal artificial iria atingir milhões de pessoas de uma só vez, pois veriam o 1971, também levado pelo foguete ‘Saturn V’ da Apollo 15 [sic]. Intitulados
trabalho simplesmente ao olhar para o céu. Em contrapartida, as obras de “Fallen Astronaut” (em alumínio e com 8,5cm de comprimento), os
magnetismo manipulado ou eletromagnetismo frequentemente têm uma trabalhos foram colocados no lugar de aterrisagem da Hadley-Apennine
menor, porém mais íntima, escala. Se o trabalho de Takis tem um poder pelos astronautas americanos Dave Scott e Jim Irwin (Apollo 15). Ao
forte e natural que emana de seu manuseio sem artifícios de materiais lado da escultura, inserido no solo lunar está uma placa comemorativa,
como ferro e aço, bastante diferentes são os projetos de levitação do homenagem aos astronautas e cosmonautas que perderam suas vidas
artista americano Thomas Shannon. Shannon tem criado desde o início de no decurso da exploração espacial. Em 1989 Lowry Burgess voou com
1980 uma série de esculturas baseadas em matérias como o bronze, ouro objetos na ‘Shuttle’ como parte de um trabalho artístico conceitual,
e mármore, assim como madeira pintada, no qual a fonte de magnetismo intitulado “Boundless Cubic Lunar Aperture”. Estas obras são passos
não é visível. Ao invés de procurar tornar evidente a tensão que resulta importantes na direção de uma arte que se engaja materialmente com
quando pólos opostos se atraem, as esculturas de Shannon buscam por um o espaço extraterrestre, mas eles não foram criados nesse espaço ou
sentido calmo de equilíbrio, repousando sobre a harmonia visual criada pela concebidos especificamente para investigar novas possibilidades de arte
presença de dois componentes básicos: a base e os elementos flutuantes. na verdadeira imponderabilidade. Os primeiros trabalhos feitos então são a
Encontrando, no domínio da ciência e dos fenômenos naturais, uma rica escultura “S.P.A.C.E.”, criada fora da Terra pelo artista americano Joseph
fonte de pesquisa visual, o vocabulário de Shannon leva a levitação na McShane em 1984, e a escultura “The Cosmic Dancer”, criada em 1993
realidade de uma reduzida articulação de formas esculturais onde o por Arthur Woods, um artista americano que vive na Suíça.
aparecimento de objetos estruturam a experiência magnética.
O trabalho de McShane foi lançado ao espaço em 5 de outubro de 1984 a
Muitos desenvolvimentos artísticos no século XX levaram a uma redução bordo da nave espacial norte-americana ‘Challenger’. A peça de McShane
radical no uso da matéria física à forma escultural do volume e os apoios foi produzida sob o vácuo do espaço e em condições de gravidade zero
e apresentações deste volume no espaço. A partir das construções de e retornou a Terra em estado alterado. Uma esfera com uma válvula e
Gabo(1919/20) às perfurações de Fontana, a partir das obras cinéticas de atmosfera terrestre dentro foi aberta certa vez em órbita. O vácuo do
Moholy-Nagy aos móbiles de Calder, temos assistido a um movimento para espaço liberou a esfera, a válvula foi fechada, e ao vácuo do espaço foi,
libertar a escultura moderna dos constrangimentos de forma fechada e então, contido no interior desta. Para McShane, o trabalho de arte não
estática que repousa sobre a superfície bidimensional do pedestal. Artistas é um objeto de vidro per se, mas a contenção do espaço externo em seu
como Takis e Shannon – e o escultor brasileiro Mario Ramiro que em 1986 interior, a maravilha potencial gerada por trazer o vácuo para a Terra e
criou um levitador eletromagnética auto-regulado intitulado G0 (que aproximar os espectadores. A questão relativa à recepção da arte espacial
signifca “gravidade zero”) - têm dado continuidade a essa pesquisa de implica necessariamente em uma reflexão sobre a experiência do que está
libertação da escultura do gravitropismo. No “Gravidade Zero” de Ramiro, no espaço. Os espectadores inicias do “The Cosmic Dancer” viveram com

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os “terrores e prazeres de levitação” em condições de gravidade zero. vestindo brilhantes trajes coloridos realizavam [performed] em estado
Com uma forma angular acentuada lançada à Estação Espacial ‘Mir’ em de levitação, antes de serem empurrados para o chão por mudanças de
22 de maio de 1993, “The Cosmic Dancer” salientou a dimensão cultural gravidade, e de subirem no ar novamente, e assim por diante, enquanto
do espaço, uma vez que criou uma experiência artística que integrou o o avião fazia suas parabolas. Após oito parabolas, Zivadinov permitiu que
ambiente humano para além da Terra. O vídeo que documenta o projeto o público deixasse seus lugares e participasse deste eufórico estado de
mostra o desempenho [a performance] de dois cosmonautas russos suspensão corporal; uma forma única de empatia audiência-ator e, sem
Alexander Polischuk e Gennadi Mannakov (rodando, pairando, voando) com dúvida, um novo nível para os antiquados dispositivos dramatúrgicos uma
a escultura nos limites interiores da ‘Mir’, onde a escultura foi deixada. vez descritos por Aristotle como catarse.
Os resquícios de chama da estação espacial ‘Mir’ mergulharam no sul do
[oceano] Pacífico em 23 de março de 2002. Enquanto Zivadinov converteu a aeronave num conjunto teatral, e Woods
empregou uma estação espacial como um elemento auxiliar no completo
No caso de Arthur Woods, o desempenho [a performance] dos cosmonautas potencial antigravitróopico de sua escultura, o artista midiático,
complementa seu projeto. Assim que se observa a documentação em arquiteto, e designer Doug Michaels, em 1987, propôs a concepção da
vídeo, sente-se que os cosmonautas ficaram em uma posição substituindo melhor estação espacial tanto como trabalho artístico como “arquitetura
todos os espectadores, isto é, todos aqueles que no futuro tiverem a alternativa”. Como co-fundador do grupo de design ‘Ant Farm’ (1968
oportunidade de experimentar espaço como um meio social e cultural, a 1978), Michaels foi o co-criador de obras emblemáticas do período,
e não apenas como um laboratório de investigação. Evidentemente, o como o ‘Cadillac Ranch’ (dez carros enterrados de ‘nariz para baixo’
desempenho [a performance] do organismo em um ambiente desprovido num campo de trigo localizado a oeste de Amarillo, Texas em 1974)
de as forças da gravidade é esteticamente rico em sua própria forma. e ‘Media Burn’ (uma performance de 1975 em que Michels dirigiu um
Esta importante questão tem sido o foco do trabalho do coreógrafo Cadillac por meio de uma pirâmide de aparelhos de televisão em fogo).
francês Kitsou Dubois por mais de uma década. Desde 1991 ela tem voado Em 1986 ele criou o ‘Doug Michels Studio’ para prosseguir seus projectos
em vôos parabólicos de microgravidade e explorado o gestual, cinestético inovadores em arquitetura e design. Michaels, que faleceu em 2003,
e o potencial proprioceptivo da dança sem peso. Ela tem voado sozinha desenvolveu com os seus colegas, em 1987, uma nave espacial para
mas também com outros bailarinos. Dubois é única em sua implacável acolher artistas e cientistas interessados na interacção e comunicação
investigação da gravidade zero. Além de permanentemente perseguir entre humanos e golfinhos. O projeto ressoou com o trabalho pioneiro
novas oportunidades de levitação, ela tem extensas publicações sobre de John Lilly, um cientista que defendeu a idéia de que os golfinhos têm
o assunto, e obteve título de Doutor com esta pesquisa que foi tema consciência e inteligência num período em que este fato ainda não estava
de sua tese, além de recriar suas experiências em teatro com também cientificamente comprovado. Como resultado da sua investigação, Lilly
suas instalações. Como um subproduto de seu trabalho coreográfico, virou autora livros como “Man and dolphin” (Garden City, NY, Doubleday,
Dubois também desenvolveu um método de treinamento para astronautas 1961), “The Mind of the dolphin: a nonhuman intelligence” (Garden City,
baseado em seus novos protocolos para a dança em gravidade zero. NY, Doubleday, 1967) e “Communication between man and dolphin: the
possibilities of talking with other species” (New York: Crown Publishers,
O espectro das artes vivas no espaço seria incompleto sem o teatro. Em 1978). Na sua pesquisa de janeiro-fevereiro de 1987, publicada na revista
1999, o diretor esloveno, Dragan Zivadinov, apresentou seu ‘Noordung ‘The Futurist’ produzida pelo projeto ‘Bluestar’ de Michaels, um pensador
Zero Gravity Biomechanical Theater’ sobre o céu de Moscou a bordo da levitação em gravidade zero” significava incluir tanto os seres humanos
de uma aeronave de treino. A tripulação consistia em quatorze pessoas: como os golfinhos. De acordo com a proposta de concepção, as emissões
seis atores e um público de oito pessoas. Uma série de onze parábolas ultrasônicas dos mamíferos marinhos seriam usadas para programar o
aerotransportadas com alterações de gravidade oscilando da normal para computador central. Esta proposta foi além desta visão.
o dobro do usual e episódios de 30 segundos de microgravidade, não é
a estrutura temporal mais propícia para um demorado jogo dramático. Em 1993, mesmo ano em que Woods lançou seu “The Cosmic Dancer”,
Isto não trouxe problemas para o diretor Zivadinov, cuja visão de teatro o artista chinês Bo Niu começou “The Zero-Gravity Project”, o qual ele
abstrato está bem acompanhada pela experiência de imponderabilidade. seguiu de avião do Japão em vôos sob a forma de arcos parabólicos a 20
Zivadinov colocou um cenário vermelho na parte de trás do avião e de mil/25 mil pés de altitude. Bo cobriu o interior do avião com arroz papel
assentos para a platéia de oito pessoas junto de cada parede da aeronave. e utilizou uma tinta produzida a partir da mistura de vários elementos.
Lançados a partir do palco para o espaço vazio, antes disso, os agentes

98 99
blocos de grafite), é possível a criação de regiões estáveis para levitação
Para criar esta pintura o artista combinou tinta nanquim, aquarela e
diamagnética.
óleo entre outras matérias, e a colocou em balões. Durante a primeira
imponderabilidade dos vôos em microgravidade, ele lançou a tinta. Com
Artistas que procuram explorar a levitação além do magnetismo e
seu “Space Atelier”, Bo pretende transmitir como os impressionistas
eletromagnetismo podem investigar técnicas atualmente avançadas apenas
que abandonaram os seus estúdios para explorar as possibilidades de luz
encontradas em laboratórios de pesquisa. Um levitador de alta temperatura
natural, uma nova cultura será criada quando artistas deixam a superfície
eletrostática permite o controle do aquecimento e de levitação de forma
da Terra.
independente e, ao contrário de um levitador electromagnético, não exige
que o objeto flutuante seja um condutor de carga elétrica. Levitadores
O artista espanhol e performer Marcel.li Antúnez Roca criou ‘Dedalus’,
acústicos permitem a suspensão de líquidos em um estado de equilíbrio
uma série de microperformances realizadas em 2003, durante dois vôos
através da força de radiação acústica. Além disso, líquidos podem ser
parabólicos a bordo do avião Tupolev, voando no centro de treinamento
suspensos por um jato de gás e estabilizados por forças acústicas.
‘Cosmonauta Gagarin’, Star City, na Rússia. Este trabalho foi parte de
Levitadores superconductores permitem que os objecos flutuem sobre um
um projeto maior apoiado pela organização britânica ‘The Arts Catalyst’,
ímã num nevoeiro de nitrogênio líquido. Com um levitador a laser é possível
a qual se destina a possibilitar que artistas trabalhem em condições de
roubar bolhas de gás na água e criar uma condição de levitação estável,
microgravidade. Desempenhando [performing] uma interface na forma
aplicando pressão da radiação óptica de um feixe de luz horizontalmente
de um exoesqueleto sem fio e com o robô ‘Requiem’, os movimentos
e verticalmente. Chips atómicos permitem a captura e manipulação de
involuntários de Roca ativam vídeos pelo significado de potencímetros no
nuvens de átomos, os quais magneticamente levitam sobre a superfície
circuito da pele do esqueleto [dresskeleton]. Os vídeos exploram temas que
do chip. Laboratórios quantum portáveis prometem a continuar a expandir
o artista considera evocativos de uma iconografia exobiológica, como a
o controle magnético de nuvens de átomos levitando em espaço livre.
bioquímica/microbiologia, organismos superiores transgénicos e biorobôs.
Por fim, como levitação enconsta em biologia, o magnetismo molecular
está subordinado à aplicação simples mas forças magnéticas muito fortes
Trabalhos artísticos são cada vez mais discutidos num abertura de um
cobrem objetos regulares. As forças são direcionadas para cima e tomam
novo domínio de inquérito especulativo a respeito do futuro da arte em
partido da resposta de fraco magnetismo do objeto presente no campo,
mundos diferentes e além da Terra. Enquanto ue nós permanecemos
permitindo a levitação de objetos normalmente não considerados capazes
confinados ao planeta azul, três possibilidades abrem-se para a arte que
de levitação (tais como plásticos) e de organismos vivos (plantas, insetos,
se ocupa com a chamada “sensibilidade da gravidade zero”. Em primeiro
pequenos animais - e concebivelmente seres humanos, se o campo
lugar, é evidente que o potencial de magnetismo e eletromagnetismo na
conseguir estar suficientemente forte). A manipulação das propriedades
arte está longe de ser esgotado. Em segundo lugar, o aumento do acesso
magnéticas de objetos nanométricos também é uma possibilidade, a qual
às facilidades da microgravidade na Rússia forçarão a abertura de novos
poderia incluir manifestação macroscópica do comportamento quantum
mercados na Europa, Japão e Estados Unidos, permitindo ainda mais
desses objetos muito pequenos. Estas técnicas oferecem um olhar sobre
artistas e performers a explorar a imponderabilidade. Em terceiro lugar,
o que poderia ser possível quando a vida na estação espacial internacional
como os planos de turismo espacial evoluem, a gravidade zero poderia
torna-se mais comum, quando a colonização da Lua sair da ficção científica
também se tornar mais acessível, embora num ritmo mais lento, uma vez
para a realidade científica, e quando o programa espacial superar aquilo
que os custos permanecem elevados neste futuro previsível. O turismo
que, na opinião pública, é seu mais excitante desafio: desembarque
espacial foi lançado em 28 de abril de 2001, quando a detonadora blasted
de seres humanos a Marte. A criação de novas ligas e compostos em
russa ‘Soyuz-U’ levou dois cosmonautas russos e um turista pagante – o
gravidade zero e as perspectivas de colonização interplanetária sugerem
milionário americano Dennis A.Tito - para órbita num encontro com a
que a exploração espacial é mais do que uma metáfora na arte. Trata-se
Estação Espacial Internacional.
de um desafio material e intelectual que deve ser cumprido.

Electromagnetismo detém um grande potencial para a levitação escultural.


Ainda não explorada, por exemplo, há uma propriedade conhecida como
Veja também: “Space Poetry”, de Eduardo Kac, originalmente publicado
diamagnetismo. Materiais diamagnetizados repelem os dois pólos [positivo
em: KAC, Eduardo. Hodibis Potax . Ivry-sur-Seine, (França)/Maribor
e negativo] de um ímã. Todos os materiais são pouco diamagnéticos, mas
(Eslovênia): Édition Action Poétique/ Kibla, 2007.p. 119-121.
é difícil levitatar objetos ordinários. Entretanto, com um forte campo
magnético e materiais fortemente diamagnezados (como ímãs neodímio e

100 101
Dias de Artista . Oriana Duarte
gerAção Comum / a mania de dizer A GENTE: Portas Lógicas e Conexões Periféricas
para entender a Amizade como Polarização da Arte
Edson Barrus

: uma construção crítica comum ao sistema de arte que se tece na atividade de


diversos coletivos em todo o Brasil na virada do século 21

O Panorama da Arte Brasileira 20011 evidencia o espaço conquistado no circuito


da arte contemporânea, pelos diversos coletivos de artistas sediados em Porto
Alegre, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Fortaleza, São Paulo, Brasília, Goiânia,
Recife, Macapá; que vive uma fase de tomada de posição pelas Ações e os discursos
desses “coletivos”, revelando o irrompimento de um exercício da amizade como
política que constituindo força frente ao circuito, resulta em algo que se
configura na idéia de Antiarte e situa o artista dentro de uma necessidade de
comunicar algo ‘em Grande escala’…com a proposição de obras inacabadas’2. Grupo,
Laranjas, Atrocidades Maravilhosas, Rés do Chão, Beth Vai a Guerra, A.N.T.I.cinema,
EmpreZa, Urucum, Formigueiro, Transição Listrada, Núcleo Performático Subterrânea,
Entorno, Camelo, são alguns desses coletivos que, ao ‘dirigir-se para a sociedade’,
deslocam a noção de artista, que passa a ser a de um propositor, de um educador; e
deslocam também a noção do publico que deixa de ser a de ‘um espectador passivo
da arte’ e passa a participar livremente da proposição artística.

Diluir o artista na sociedade é equiparar Arte=vida. Esses eventos são temporários,


essas experiências são de pico: são operações extraordinárias de liberação de
uma ‘área’ de tempo, de imaginação, de terra, e se dissolver para se refazer em
outro lugar. Outro momento3. Nesses grupos há somas e há subtrações, as autorias
são hibridizadas dando surgimento a um « outro » expandido e precário.

Fundamentando-se na consolidação de dezenas de « coletivos » pipocando pelo Brasil,


diluindo a autoria da obra de arte na coletivizaçao dos eventos e problematizando
a realidade social e cultural da região em que estão sediados. A pluralidade
desses agrupamentos permite a manifestação de uns aos outros enquanto agentes
indicadores de uma identidade coletiva constituindo-se publicamente e representa
um papel importante para o debate sobre o aparecimento de uma arte política e de
articulação à margem do sistema das artes no início deste século.

105
:Portas Lógicas e Conexões Periféricas para entender a Amizade como Politização à inspiração, ao aumento de potencial. Diz respeito ao pensamento e à ação de
da Arte tomar, não de pedir e mendigar”11. O que possa significar essa `turbulência` na
sociedade, pode nos ajudar a entender a `recusa` que significou esse `cruzar-os-
Tentar tratar as ações desses coletivos por Ação Comum=agir comum, considerando braços-mas-não-sair-de dentro`, denunciando o conservadorismo do circuito, além
com Antonio Negri a noção de comum como ‘o compromisso cotidiano que se revela de desmerecer os artistas que se submetiam à produção mercantilista. Disturbando
como potência produtiva presente’4, para tentar perceber o “agir comum” como força toda uma ordem estabelecida, esses bandos festivos, representaram uma forma de
prática e circulação de necessidades singulares cuja finalidade se constrói na resistência ao poder e constituiu-se como uma alternativa que dominou a cena
vida sobre a necessidade para a produção. Tentar traçar uma trajetória dessas cultural e produziu os eventos de maior repercussão no alvorecer do milênio.
Ações Comuns é dirigir-se mais ao sentido dos « movimentos de contracultura »
do que em direção às vanguardas históricas da arte5, para perguntar sobre os Por contracultura entendemos a idéia de que a subversão funciona melhor quando
deslocamentos e rearranjos de poder dentro do Circuito de Arte, que as Ações misturada com humor inesperado. Essa noção da imaginação como arma desenvolvida
Comuns colocaram em processo. pelo Provos antecipou e inspirou os diversos movimentos de contestação jovem nos
A percepção do comum como filosofia prática, da nossa época, talvez nos ajude a anos 60, inclusive a esquerda hippie norte americana e os manifestantes do Maio
entender esses ‘gestos’6 que contém uma intencionalidade que sugere a superação de 68 francês; e pode nos revelar que Antiarte e Contracultura guardam entre
da lógica da individualidade pela lógica do coletivo. si além do desejo de destruição do império da mercadoria, também a semelhança
de utilizar a imaginação e a ironia como contra-arma de resistência ao poder
Nesse inicio dos 2000, o Brasil vive um Esperado momento de transição de sentido constituído.
do Poder. As tendências culturais e políticas`a flor da pele7, em sintonia com
manifestações em Seattle e Genova, seriam o principal motor desta geração8. A A vivência e a festa enquanto práticas de engajamento político, foram usadas
articulação entre arte e política se dá na medida em que « nós vivemos, nas áreas como atitudes de reivindicação, e ao mesmo tempo, como resposta a uma estrutura
artística e política, uma crise vocabular, uma crise de sentido, uma crise das estabelecida. Há um momento em que os artistas param a produção de objetos, ou
categorias legadas pela tradição. Um tal vazio semântico exige uma postura, uma então de mostrá-los como resultado de suas pesquisas plásticas, e começam a
vontade de inserção que está presente nesses grupos»9. valorizar o jogo, a imaginação, a ação, a teatralidade, ao mesmo tempo em que se
reúnem aos bandos para cozinhar, deitar na rede e ver um vídeo, ou fumar e beber
Os Dias de Ação Global Contra o Capitalismo, os movimentos feministas e anti- e sorrir. Atividades que ninguém normalmente interpretaria como um ato criativo
raciais, paradas gls, manifestações-bloqueios dos Sem Terra, dos Sem Teto, do individual, mas que são formas que possibilitam sabotar a cultura mercantilista
Greenpeace, do Act-up, as festas Reclaims The Strets10 e Black Block...Há um processo em que toda a produção estética é reduzida pura e simplesmente a mercadoria. K-7s,
de fusão e diluição entre os discursos da arte e da sociedade nas participAções fotografias, vídeos12, impressos, adesivos e panfletos são práticas utilizadas
dos coletivos de artistas nos fóruns sociais anti-globalização, dissolvendo as de modo performático por essa nova turma, além da intervenção urbana, para
poéticas da arte em levantes, em eventos coletivos e transitórios, evidenciam firmar sem regra a priori, novas possibilidades de co-existência; de jogar e
novas possibilidades de interação de forças na construção do comum. Apostar produzir, talvez, rearranjos éticos/estéticos dentro do Circuito de Arte Brasileira
nas ações diretas, diluir-se no coletivo e na realidade pelo exercício de formar -`recusando-se (o que implica a criação continua de possibilidades existenciais e
opinião em um processo de discussão coletiva/comum/publico/político. “A Ação libertarias) e contrapondo-se aos aspectos engessados das instituições e de suas
Direta diz respeito a percepção da realidade, é a tomada por si próprio de imóveis normas de domínio e de perpetuação de privilégios`13.
uma ação concreta para transformá-la. Diz respeito ao trabalho coletivo para Um grupo como atividade, agir comum, em devir, visando a sua multiformidade histórica
resolver nossos próprios problemas, fazendo o que refletidamente achamos ser no porvir, o grupo-forma apontando para o processo de sua auto-constituição.
a forma correta de ação, sem considerar o que as várias « autoridades » julgam Pretendendo encorajar a experimentação, esses coletivos enfatizaram a noção
aceitável. Diz respeito à ampliação das fronteiras do possível, diz respeito de programa aberto que semelhante ao conceito de ‘programa vazio’ de Foucaut, é

106 107
a renúncia a propor qualquer programa, pois levaria consigo a normativização Fluxus e na Ação Direta dos grupos contra o capitalismo, a semelhança de ‘estar
e o privilégio de determinados modos de existência, proibindo outras formas no lugar’, ‘encontrar-se dentro’, e de lá tentar produzir um curto-circuito. Há
de sociabilidade. Esse programa aberto seria preenchido de acordo com as também o caráter de formação de redes e de internacionalização. São resistências
necessidades de cada individuo. Ora, a possibilidade de concebermos o comum como anticapitalistas e antiautoritárias acompanhadas da recompensadora alegria
um processo, no qual os agentes implicados trabalham na sua transformação, na que surge de estar na companhia de semelhantes, de aparecer em publico e agir
sua invenção é no fundo experimentar um `programa aberto`, uma relação ainda por conjuntamente; de inserir-se no mundo pelas palavras e pelas ações.
criar valorizando o jogo, a imaginação, a ação, a teatralidade. Um programa aberto
capaz de oferecer ferramentas para a criação de relações variáveis, preparando Dada era um modo de vida compartilhado por indivíduos que se diferenciavam em
o caminho para formas de vida sem prescrever um único modo de existência como relação à idade, ao status e a atividade social, conduzidos a relações intensas
correto. Um novo ‘direito relacional’ exprime esse apelo pela criação de novas que não se assemelham a nenhuma relação institucionalizada, culminando em uma
formas de vida. Uma relação ainda por imaginar, aberta, na qual cada indivíduo ética e uma cultura15. Apesar das leituras tradicionais para entender o fenômeno
deve formar a sua própria ética da amizade. Dada ressaltarem o seu caráter de ruptura, há uma tendência a voltar ao ‘curso
natural da historia da arte’, amputando este outro percurso dos desdobramentos
A Ação Comum não tem nada a ver com comunidade, nem com o que “temos em comum”, Dada enquanto ruptura e ato fundador de um segmento que desemboca na
e sim, com a construção do comum, do agir comum. É no sentido de que, somos contracultura. «Dada, significa o primeiro som emitido pela criança e expressa
muito diferentes, que precisamos construir algo em comum para estarmos juntos, o primitivismo, o começar do zero, o novo em nossa arte», nesse sentido, Dada é um
e depois desfazê-lo e construir de novo e assim por diante...não implica afirmar estado de espírito16 fundamental, que se propagou rapidamente a outros países
uma forma de vida em particular, mas as suas múltiplas formas e possibilidades, indicando o caráter internacional do movimento. A idéia de estado de espírito
uma vontade de formaAção, uma vida na qual o importante é como se vive. O internacional aparece também no Fluxus ‘que fazia parte de uma silenciosa
poder transgressor da Ação Comum consiste nessa possibilidade que representa revolução conceitual que estava ocorrendo no mundo da arte no final dos anos
de construir a comunidade e a sociedade ao nível de um tipo de relação livre e 50 e no começo dos 60’17 questionando o limite entre as obras de arte e o resto das
não institucionalizada, e aspirar à criação de um direito relacional ampliável coisas. Esta mesma idéia de zeitgeist vai aparecer na referencia as festas contra
a outros tipos de conflitos sociais: essa faculdade de revelar alguma pista o capital: “...eles apareceram em Seattle, Chiapas, Porto Alegre, Praga, Washington,
para o ser da ação em contraposição a mera existência corpórea da arte depende Londres, Quebéc, São Paulo, Paris, Gênova e em todos os lugares, incluindo Wall
de iniciativas para constituir a própria existência segundo critérios estÉticos. Street e o Vale do Silício. Organizados nos bate-papos que atravessam aqueles
Podemos tentar orientar a reflexão sobre as Ações Comuns em torno da imagem do mesmos computadores e da mesma rede que prometiam a Nova Economia e a Nova
político como a máquina de guerra14, existindo somente por um instante, o tempo de Ordem...e eles vieram como muitos blocos de carnaval, para estragar a festa do
um raio, de um acontecimento, já que, após sua emergência, vai ser incorporado ao Dinheiro18. Esta mesma rede de computadores na qual ‘jovens artistas em todo
aparelho Estatal. A máquina de guerra - metáfora do aberto, da contingência, do o Brasil, que acreditam atacar a maquina da globalização neoliberal, contra
acontecimento, das metamorfoses, das transformações constantes e da amizade - se o desmanche das instituições culturais e contra o canibalismo da produção
reconstrói permanentemente após o encontro com o aparelho Estatal. A máquina artística pelo sistema comercial, com postura anti-institucional e articulação
de guerra existe somente nas metamorfoses, nesse gozo de esboçar uma imagem ou em grupos, busca por espaços independentes para expor seus trabalhos, produção
metáfora, que vai ser traduzida pelo aparelho estatal em imagens conhecidas e de viés político e crítico essencialmente’19.
institucionalizadas. À essa imagem sucede uma outra e assim por diante.
Festas contra o capital: a ação direta de grupos anticapitalistas na luta contra a As Ações Comuns dos coletivos contemporâneos e dos movimentos Dada e Fluxos,
globalização dos mercados; festas contra a guerra: a ação niilista dos dadaístas; suscitam críticas mais próximas das atuais Ações Diretas Contra o Capitalismo,
festas contra a estética: fluxus; festas contra o circuito da arte: as ações distanciando-se cada vez mais, dos argumentos tradicionais da crítica formalista
comuns dos jovens artistas em todo o Brasil. Há na Ação Comum, como no Dada, no da arte, sendo a crítica social mais adequada como instrumento para um possível

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entendimento da atividade dessas iniciativas: Para além de “o que Hannah Hoch, Assim como Dada, Fluxus foi um grande movimento coletivo multimídia de
Raoul Hausman, Johannes Baader e Richard Huelsenbeck tentaram fazer com o vanguarda, a unir artistas em torno de idéias de transformação da cultura e
Dada em Berlim está refletido no Fluxus por Henry Flint, George Maciunas e Bem da sociedade. Hans Arp escreveu: ‘em Zurique, em 1915, tendo perdido o interesse
Vautier. O Dada Nova Iorquino - Marcel Duchamp e Man Ray - tem paralelos com pelos matadouros da guerra mundial, voltamos nos para as Belas Artes. Enquanto
George Brecht, Yoko-Ono e Robert Watts etc, e no Dada Parisience de Tristan Tzara, o troar da artilharia se escutava à distância, colávamos, recitávamos com toda
etc, se pode ver paralelos com Dick Higgins, Alison Knowles e Larry Miller, etc”20. a nossa alma, buscávamos uma arte elementar que, pensávamos, salvasse a espécie
Marciunas tinha nítidos ideais coletivistas. Ele se referia ao fluxus como Neo- humana da loucura desses tempos.’ Herdeiro do dadaísmo, fluxus trouxe para a
Dada, mas ele tinha também uma certa visão política que tem algumas afinidades arte o happening e o entrecruzamento de linguagens para a arte e a filosofia
com alguns movimentos mais radicais do século. ‘As aspirações fluxus são sociais zen-budista – “antiarte é vida, é a natureza. É a verdadeira realidade, é o único
(não estéticas)’, escreve em 1964. e o todo. A chuva é antiarte, um espirro é antiarte...”(Marciunas), Fluxus mantém
ainda em comum com o Dada a Idéia de zeitgeist: Fluxus Nasceu de uma necessidade
Em um certo sentido, são todas iniciativas cujos alvos é o capital e que se em 196121.
desenvolvem produzindo uma estÉtica do aberto, do imprevisível, do precário, do
experimental, da construção do comum como experiência de liberdade: A Ação Comum O Dada foi um fenômeno de atravessamento que trouxe consigo a oportunidade
dos coletivos de arte que acredita atacar a maquina da globalização neoliberal, histórica de abrir virtualidades relacionais e afetivas, inscrevendo diagonais
contra o desmanche das instituições culturais e contra o canibalismo da produção no tecido cultural, que permitiriam o surgimento dessas virtualidades. Nesse
artística pelo sistema comercial, com postura anti-institucional e articulação sentido, Dada22 assume uma ascendência histórica, por definir-se como ruptura e
em grupos, buscando espaços independentes (residências,esquinas, praças, tapumes, fundar as bases de uma noção de contracultura, com sua rejeição ao militarismo
pontes, armazéns, etc); Dada que revela esse problema na pergunta de Tristan e a adoção de um pensamento radicalmente livre, incorporando ao instrumental
Tzara: ‘é propósito da arte fazer dinheiro e agradar ao amável burguês?’. da arte o elemento político (público) em suas `outras`formas mais abertas de
manifestações, e que podemos visualizar revelando-se mais tarde no Fluxus e nos
A reação ao capital nota-se também na setença:“até o fim dos anos 70, através ritos coletivos contra a sociedade consumista do Movimento Provos de Amsterdam,
da liderança de George Marciunas, O Fluxus teve como determinação rejeitar os no Maio de 68 francês, no movimento hippie e nas recentes manifestações-bloqueios
valores e o meio que cercava as `Artes Eruditas` e o caráter comercial que dominou e os Dias de Ação Global Contra o Capitalismo. A ação direta coletiva, nascidas
o mercado internacional da arte após o fim da Segunda Guerra Mundial”; e na Ação de raves, de squats23 e infoshops anarquistas, tem gerado verdadeiras batalhas
Direta contra o capitalismo globalizado, ao afirmar em comunicado do Black Block nas ruas, constituindo-se em um fator importante de ‘deslegitimação’, senão
Anti-Estadista, Filadélfia,de 9 de outubro de 2000. “Em um sistema baseado na busca das instituições capitalistas como um todo, ao menos do pensamento econômico
do lucro, a Ação é mais eficaz quando ataca o bolso dos opressores. A destruição neoclássico que tem pautado de forma absolutista as políticas ditadas pelas
da propriedade, como forma estratégica de ação direta, é uma estratégia eficaz instituições reguladoras do capitalismo global24.
para atingir esse objetivo. Isso não é uma teoria....é um fato”. A ação dos black
blocks se inscrevem de fato numa superação dos modos de manifestação política « A arte não seria um recinto especial do real, senão uma forma de experimentar
tradicionais. Eles praticam uma desobediência civil ativa e a ação direta, qualquer coisa - a chuva, um espirro, o vôo de uma borboleta...Maciunas passou
afastando assim a política do teatro da mídia e reinserem a ação no meio da a conceber uma série de festivais com as realizações mais radicais e menos
contestação. Possibilitam assim, um assalto direto sobre os elementos do sistema tradicionais de artistas plásticos, músicos e cineastas de países diversos25.
que eles rejeitam. Os Black Blocks se declaram inteiramente a favor da ação Festivais fluxos, Soireés e matinées dadaítas, raves dos dias de ação global,
ofensiva contra as estruturas de poder, tomando ao pé da letra o famoso slogan: vivências festivas da Ação Comum. Festejar é uma forma de engajamento político
‘o capitalismo não se desmorona sozinho. Ajudemo-lo!’ que descredita a obra de arte com o cultivo do gesto e da ‘não superioridade do
artista como criador’. Essa preocupação fundamental do Dada se reflete na idéia

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de ‘licença’ do Fluxus que sugere que “qualquer um pode fazê-lo”. Um conceito da :a mania de dizer A GENTE
antiarte, instaurado pelo ready made de Duchamp e utilizado deliberadamente nas
Edições Fluxus e que vai refletir também na idéia de dissolução do artista na (Se) a Ação Comum aspira à criação de um novo direito relacional, que permita
sociedade colocada pela Ação Comum. Uma música feita por todos que não precise as formas de relações possíveis em vez de impedi-las ou bloqueá-las. Ressaltar
de ensaio, como reivindicou Jonh Cage quando escreveu: “finalmente precisamos a importância da amizade enquanto Política, experimentando outras formas de
de uma música que não estimule a participação do público, pois nela a divisão sociabilidade, com ênfase na pluralidade dos participantes, constituiria-se como
entre músicos e público não mais existe”. Política da imaginação, um gosto pela um exercício do político ante essa sociedade que limita e prescreve as formas
experimentação e a criação de algo diferente, como as vivências do Ùnicacena e de relacionamento28, e um estímulo crucial para a reflexão sobre a identidade
do Rés do Chão, e do Açúcar Invertido26. A política entendida como noção da ação em e o significado de suas inter-relações. Sem precisar de suporte institucional,
liberdade, da ação num mundo despolitizado como resistência. A identidade ‘agente’ sem vincular o espaço publico ao estado, existem múltiplas possibilidades de
aparece então como realização no espaço público e não como dada. É então, um ação política, múltiplos espaços públicos que podem ser criados e redefinidos
processo público, e acontece no mundo, nas lutas contra as formas de subjetivação; constanteMente; esta nova ética procuraria jogar dentro das relações de poder
constituindo-se no mundo compartilhado com outros agentes à procura de novas com um mínimo de dominação e criar um tipo de relacionamento intenso e móvel que
formas de subjetividade e sociabilidade, como a Amizade. impeça que as relações de poder se transformem em estados de dominação.

Sempre que os indivíduos se liguem através do discurso e da ação: agir é Que elementos considerar nas análises sociológicas e filosóficas do fenômeno da
começar, experimentar, criar algo. Talvez, uma genealogia das Ações Comuns na amizade? Que influência e em que aspectos a prática crítica da contracultura
qual, a constituição do comum no mundo contemporâneo, permita uma reconstrução poderia nos servir como ferramenta para entender melhor a atuação desses grupos,
histórica, remontando assim até as origens Dada(modernas) da Ação Comum na como continuidade da reavaliação que as idéias do pensamento de esquerda passou
cultura ocidental. Foucault percebe que um mundo em que as instituições sociais a partir da ultima década do século XX? Atravessar a História dos Discursos da
contribuem para limitar o numero possível de relacionamentos decorre do fato de Amizade, experimentar outras imagens para essa tentativa de pensar as Ações
que uma sociedade que permitisse o crescimento das relações possíveis seria muito Comuns como vontade de agir, de transgredir e superar os limites na procura de
mais difícil de administrar e de controlar. A Ação Comum impossibilita o poder de outras construções do político. Problematizar a Ação Comum como acontecimento,
classificar e de se impor ao destruir os mecanismos de controle da lógica burguesa tentando responder às perguntas acerca de nossa situação presente, visando as
da individuação e classificação. Auto-definindo-se pela irreversibilidade e estratégias de resistência desenvolvidas ante a despolitização e a massificação
imprevisibilidade; ou seja, enquanto operação de desclassificação, a Ação Comum, da sociedade contemporânea.
manteria afinidades com as categorias de ’entropia’ e ‘pulsação’ do conceito do
Informe desenvolvido por Rosalind Kraus e Yves-Alain Bois a partir de Bataille. Podemos observar nos últimos anos um crescente interesse na filosofia francesa
Falar do coletivo é falar de pluralidade, experimentação, liberdade, pela amizade e por um novo pensamento de comunidade e sociabilidade. Uma série
desterritorialização; que representando uma alternativa às formas de de pensadores, entre eles Maurice Blanchot, Michel Foucault, Jaques Derrida,
relacionamento prescritas e institucionalizadas27. Apresenta, no entanto, uma Gilles Deleuze, Felix Guattarri, Jean-Luc Nancy, têm colocado a questão da amizade
relação com o outro que não tem a forma, nem a unicidade consensual. Trata-se e da comunidade no centro de sua filosofia, com freqüência no contexto de uma
de uma relação que é ao mesmo tempo incitação recíproca e luta, tratando-se não tentativa de recuperar o político para a comunidade, de re-pensar, re-construir, o
tanto de uma oposição frente a frente quanto de uma provocação permanente. São político e a democracia. Ou seja, a amizade sendo deslocada de uma esfera privada,
relações agonísticas, de combates livres que apontam para o desafio e para a da intimidade, para o mundo, a sociabilidade, o público. Um estudo histórico
incitação recíproca e não para a submissão ao outro. do fenômeno da amizade e uma análise de sua dimensão política/ética/estética
permitir-ia investigar a noção de comum nos textos destes e autores afins; e
reconstruir a partir desses textos, o exercício da amizade como reinvenção do

112 113
político, uma ética de amizade no contexto de uma possível atualização da estética Notas:
1. Mostra Coletiva - Curadores: Paulo Reis, Ricardo Basbaum, Ricardo Resende, Museu de Arte Moderna, São Paulo. 25 de outubro
da existência, permitindo transcender o quadro da auto-elaboração individual 2001a 6 de janeiro 2002. Museu de Arte Moderna, Rio Janeiro. 22 de janeiro a 3 de março 2002. Museu de Arte Moderna, Salvador. 13
para se colocar numa dimensão coletiva, como alternativa ao esvaziamento da de abril a 19 de maio 2002.
2. Oiticica, Helio; Aspiro ao Grande Labirinto,Rocco, Rio de Janeiro, 1986; sobre o reaparecimento da antiarte na arte contemporânea.
esfera pública. 3. “Há muito a arte não fala mais do vínhamos chamando de arte. A narrativa gerada por esse sistema hegemônico, onde uma certa
idéia de arte é mantida por meio de suas instituições (critica, museus, salões) chegou ao seu fim. Testemunhamos já há alguns
anos a saturação de uma certa noção de obra, de artista, de circulação e distribuição do que possa ser considerada obra de
Uma política não centrada no Estado, e sim existencialista, na procura de arte.”Na opinião de Cristina Freire, nas experiências coletivas, o cotidiano e as formas simples são privilegiados. Trata-se de
uma arte que se pauta no processo, mais do que numa obra acabada. Folha de São Paulo, Mais. São Paulo, domingo, 6 de abril de
autenticidade, o que permite fazer uma ponte entre o pensamento de Foucault, 2003. A explosão do artivismo.
Derrida, Deleuze e os de Hannah Arendt, como sinaliza Ortega29 ao defender a tese 4. Negri, Antonio. Kairòs, Alma Vênus, Multitudo.Nove lições ensinadas a mim mesmo, Rio de Janeiro, DP&A editora, 2003.
5. Apesar de essas vanguardas guardarem desde o impressionismo o traço de `cooperação`entre os participantes e de `reação` grupal
de que todos esses autores, no fundo, visam a uma alternativa política que vai aos padrões estabelecidos, desde os Salões dos Recusados, essas `criticas coletivas` se deram no plano da pesquisa estilística e
além de uma política partidária e que propõe a recuperação do espaço público: não da política (publico). A reação dos fauves (1905) aos impressionistas e a filiação estilística do Futurismo(1920) ao Cubismo,
podem nos orientar para os pontos que nortearam a crítica e a discussão pela substituição de padrões dessas vanguardas.
a política compreendida como atividade de criação e de experimentação. Política As respostas às questões surgidas são todas da esfera da capacidade individual. O alvo dessas vanguardas é a academia e os
como dinâmica, acontecimento e começo, como interrupção de processos automáticos. padrões de representação, mesmo que o alvo dos Construtivistas tenha sido a sociedade. Mas, o alvo-dadá é cultura.
6. Os gestos (contra os salões, as ordens instituídas remontam às origens da instituição dos museus e salões no século 18) são
Nesse sentido, a amizade, representa, um ‘exercício do político’, um apelo a ainda hoje simbólicos, pois há uma intencionalidade que sugere que a lógica da identidade (individual) é superada pela lógica
da identificação (coletiva).
experimentar formas de sociabilidade e comunidade, procurando alternativas às
7. Uma concisa introdução às ideais situacionistas nos possibilitaria uma visão do que foi o ambiente que gerou o Maio de 68
formas tradicionais de relacionamento. francês. Através da análise dos textos mais amplamente divulgados, traduzidos, distribuídos e influentes da Internacional
Situacionista enquanto ela esteve ativa e pretendia ser uma organização política que tinha como objetivo a ação subversiva
contra o capitalismo.
Este projeto se constitui, portanto, como uma proposição aberta ao estudo das 8. Juliana Monaquesi, Folha de Sao Paulo, Mais. São Paulo, domingo, 6 dea brail de 2003. a explosão do artivismo.
9. Luis Camilo Osório. Folha de São Paulo, Mais. São Paulo, domingo, 6 de Abril de 2003. “A explosão do artivismo”.
articulações entre a literatura, a filosofia, o direito e os problemas políticos 10. Reclaim The Streets (RTS) – surgido na Inglaterra no inicio dos anos 90 a partir da luta antiestradas,foi inicialmente o
institucionais, para perceber uma outra história da arte que se constituiria por principal impulsionador na Europa, e tavez no mundo, do mecanismo de coordenacao de movimentos sociais chamado Acao Global
dos Povos(AGP). Foi também um dos grandes impulsionadores dos primeiros Dias de Ação Global; caracteriza-se por uma autocrítica
passar por fora daquilo que se inscreve na rubrica Arte, e por que não dizer, severa. Essa reflexividade e autocrítica talvez tenha sido o motivo que levou o RTS a compreender a limitação da pratica e
por passar longe da historia do ‘muro’30 do Museu. A possibilidade de se pensar provavelmente o fez reduzir sua iniciativa na organização e divulgação de Dias de Ação Global Contra o Capitalismo.
11. Do texto: A política das ruas.
uma outra história da arte contra essa ‘elite reduzida de experts’ que o museu 12. Há uma afinidade do vídeo enquanto meio e essas ações comuns, são eventos para serem gravados por acaso e exibidos
imediatamente. O vídeo é um meio de registrar um evento e o exibir imediatamente, sem um intervalo neutro, um espaço e um tempo
representava para Hélio Oiticica. Uma outra história que compreenda esse artista
equilibradores. A exibição imediata intensifica e comprime o evento. Desperta a necessidade de repeti-lo. O mesmo vale para os
resituado, que direcionou o seu alvo da arte para a sociedade, e que ao fazer isso outros suportes.
13. Cecília Cotrin, in dois vários rios, Nós Contemporâneos, NY. 8 de janeiro de 2004.
dissolveu sua imagem de artista na de “outro” personagem. 14. Deleuze, Mil Platôs.
18. Ned Ludd(org), Urgência das Ruas, Conrad editora, São Paulo, 2002.
19. Folha de São Paulo.
20. Jon Hendricks. O que é Fluxus, o que não é Fluxus. Porque?. CCBB. Rio de Janeiro.
21.Jon Hendricks.Op.cit.
22. Arp: Dada visou destruir as razoáveis ilusões do homem e recuperar a ordem natural e absurda. Dada quis substituir o contra-
senso lógico dos homens de hoje pelo ilogicamente desprovido de sentido. É por isso que golpeamos com toda força no grande
tambor de Dadá e proclamamos a virtude da não-razão. Dadá deu a Vênus de Milo um enema e permitiu a Laocoonte e seus filhos
que se libertassem, após milhares de anos de luta com a boa salsicha Pyton. As filosofias tem menos valor para Dadá do que a
velha escova de dentes, e Dadá abandona-as aos grandes lideres mundiais...’
23. Casas ou prédios abandonados, que são transformados em locais de morada e centros culturais e sociais.
24. (BM)Banco Mundial,(OMC) Organização mundial do Comercio, BID, FMI e a OTAN (orgnização do tratado do atlântico Norte - Ned Ludd
in Urgência das Ruas, Conrad Editora, São Paulo,2002.- (Coleção Baderna).
25. Jon Hendricks. Op.cit.
26. Quarentenas promovidas pelo Espaço Experimental Rés do Chao, RJ, que se constitui de vivências com o objetivo de revelar e
discutir os sintomas da cultura contemporânea; em dimensão menor, os Ùnicacenas sao vivencias de uma noite
27. Ortega, Para uma política da amizade
28. Foucault.
29. Para uma política da amizade.
30. A história da arte moderna confunde-se, segundo Rosalind Kraus, com a história da ‘expansão’ do muro do Museu e a tentativa
de ‘pular para o lado de dentro’ desse muro. In: Caminhos da Escultura Moderna.
Fonte: Núcleo de Estudos da Subjetividade da PUC/SP (http://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade).

114
Modelo 5 . Vanessa Schultz

117
especificidade e (in)traduzibilidade
Jorge Mascarenhas Menna Barreto
Raquel Garbelotti

1. Embora a expressão site


specific seja uma construção da
Este entre-texto é um espaço de desaceleração do uso do termo site língua inglesa, o processo de
specific 1 para pensá-lo em tempo dilatado, transcriado 2 e apropriado no tradução implicado aqui está
mais focado nas especificidades
contexto da ar te brasileira. nor te-americanas do que na
de outros países de língua
inglesa que também utilizam
A rápida aceitação do termo site specific, traduzido por local específico, ou esse termo.

mais precisamente, ar te desenvolvida em local específico, gera um espaço 2. CAMPOS, Haroldo de. A
Operação do Texto . São Paulo:
residual — inqualificável — inviabilizando abordagens mais abrangentes Perspectiva, 1976, p. 10.
do termo. A impossibilidade de pensar o espaço físico sem recair sobre 3. Maharaj descreve o
questões nostálgicas do lugar intensifica-se à medida em que o capitalismo apar theid gerado pelo senso
de opacidade a serviço da
tardio lida com realidades permeadas por signos de dominação global. doutrina da barreira epistêmica ,
Assim, o processo de intervenção física no local ofusca necessidades de criada para institucionalizar
o senso radical de etnia,
outras ordens (inter territoriais) de apreensão dos lugares por imagens, separação e diferença cultural.
O eu e o outro deveriam estar
palavras, signos visuais e textos. Por outro lado, o desapego da idéia de fechados em seus espaços
lugar como local físico pode gerar a posição de assimilação acrítica. A puros. O hibridismo é uma
tentativa otimista de triunfo da
postura entre estas duas posições é uma tentativa de desenhar linhas intraduzibilidade. O duplovínculo
através do otimismo e
inter-culturais da barreira epistêmica . 3 pessimismo, do opaco e cristal-
puro , que ativa o jogo entre
os pólos.
Buscaremos aqui a construção de um método que descreva estes processos
de tradução de um para outro contexto. Alguns conceitos elaborados
pelo teórico de ar te Sarat Maharaj — no ensaio Perfidious Fidelity: the
Untranslatability of the Other — ajudou-nos a pensar a visualidade do
conceito de tradução que queremos tratar. Em seu texto, Maharaj desenvolve
a idéia da tradução em sentido mais amplo; do textual para o visual e
ou perceptivo, assim alcançando lugares de (in)compreensão em comum.
Esse sistema torna complexo e problematiza ordens locais e globais dessa
compreensão. O autor, neste ensaio, descreve pares visuais no esforço
da tradução entre termos de idiomas diferentes. Nomeia opacidade e
transparência as diferentes instâncias do processo de tradução que se
agregam ao termo Outro.

Nossa tentativa será, no entanto, de espacialização de conceitos


relacionados à tradução do termo site specific como de sua leitura crítica,
da possibilidade de apreensão e apresentação de um processo. Uma
operação não apenas dentro da linguagem mas pela materialização ou
118 119
4. In MAHARAJ, Sarat. Perfidious visualidade do processo mesmo entre duas forças: a de sofrer assimilação chamar espaçamento, devir-tempo do espaço (temporização). E é esta a 7. DERRIDA, Jacques. Margens
Fidelity: the Untranslatability da Filosofia. trad. de Joaquim
of the Other. Global Visions. e a de identidade e diferença, em ‘... reversíveis instâncias entre eu e o constituição do presente, como síntese originária e irredutivelmente não- Torres Costa e Antonio M.
London: Kala Press: INIVA,
1994.
outro’ 4, entre distintos contextos na tradução. simples, e por tanto, stricto senso, não-originária, de marcas, de rastros, Magalhães, Rés Editora Ltda,
p. 43–44. 8 LUPTON, Ellen and
de retenções, de pretensões... 7 MILLER, J. Abott. Design Writing
5. O hibridismo segundo Research. Writing on Graphic
Maharaj é como um duplovínculo O termo site-specific será tratado, por tanto, em dois momentos: seu Design. London: Phaidon Press
entre forças positivas e
negativas, pela opacidade
contexto e cultura originais e o contexto local, brasileiro, como forma de A hipótese de Derrida questiona as possibilidades de representação que Limited,1999, p. 4.

entre uma língua e outra, pela geração de uma identidade e diferença que nos ajudarão a estabelecer habitam a realidade. Abre-se a possibilidade de tornar externas imagens 8. LUPTON, Ellen and MILLER,
soma dessas opacidades (cada J. Abott. Design Writing
língua parece ter seu próprio o território da tradução X tradução imediata como campo indiferenciado. de coisas em sua própria essência. Derrida afirma que o sistema intelectual Research. Writing on Graphic
sistema, sentido, construção
de significado), cria-se algo
Em seguida estabeleceremos o espaço crítico entre esses dois polos. O (o episteme) constrói oposição entre realidade e representação. Segundo Design. London: Phaidon Press
Limited,1999, p. 4.
híbrido. O hibridismo poderia método adotado tentará entender essas instâncias, incorrendo por vezes Derrida, External/Internal, image/reality, representation/presence, such in
estar relacionado à idéia de 9. CRIMP, Douglas. On the
fracasso da tradução, da ilusão em riscos de hibridismo 5 em seu processo. the old grid to wich is given the task of outlining the domain of science. And Museum’s ruins. USA: Mit Press,
de transparência na passagem
de um idioma para outro.
what of science? Of a science that can no longer answer to the classical 1995, p. 17.

Esse ar tigo entre-texto passa a ser o local de visualização/espacialização concept of the episteme because the originality of its field – an origina-
6. EINSENMAN, Peter. The futility
of objects – Decompositions desse processo. lity that it inaugurates – is that the opening ‘image’ within the simple
and process of differentiation,
em Lotus, n.42, Milão, fevereiro,
difference and the uncompromising exteriority of ‘image’ and ‘reality’ of
1984, p. 63–75. Apud: O método de in(traduzibilidade) e différance ‘outside’ and ‘inside’ of ‘appearance’ and ‘essence’. 8
ARANTES, Otília Beatriz Fiori. O
Lugar da Arquitetura depois dos
Modernos. 2a. ed. EDUSP, São
Paulo, 1995, p. 85.
O método adotado aqui aproxima-se do conceito da différance do filósofo
Jacques Derrida. Différance tem sido traduzido para o por tuguês como: especificidade
diferência, diferênça, diferânça. O termo trata da concepção de um
pensamento in process em que objeto e processo ocupam a um mesmo A prática do site specific , hoje disseminada na ar te contemporânea, surge
tempo o mesmo espaço. 6 com o Minimalismo a par tir do final da década de 60 do século XX no
circuito da ar te nor te-americana como uma possível resposta a alguns
Na conferência La Différence, pronunciada em 1968 na Sociedade paradigmas da ar te moderna, tal como o da autonomia da obra em relação
Francesa de Filosofia, Derrida descreveu: A diferança é o que faz com que ao seu contexto.
o movimento de significação não seja possível a não ser que cada elemento
dito presente, que aparece sobre a cena da presença, se relacione com Conforme citado por Catherine David em palestra no Instituto Goethe em
outra coisa que não ele mesmo, guardando em si a marca do elemento Por to Alegre em outubro de 1998, a ar te contemporânea ainda enfrenta
passado e deixando-se já moldar pela marca da sua relação com o elemento três paradigmas herdados do pensamento clássico e que também se
futuro, relacionando-se o rastro (trace) menos com aquilo a que se chama aplicariam à ar te moderna. Seriam eles: a ilusão de ubiqüidade, que se
presente do que aquilo a que se chama passado, e constituindo aquilo a refere à noção de que uma obra terá o mesmo significado independente de
que chamamos presente por meio dessa relação mesma com o que não onde ela se encontre; a ilusão de transparência, que diz respeito à noção
é ele próprio: absolutamente não ele próprio, ou seja, nem um passado de que o significado de uma obra está contido todo nela mesma e que ela
ou um futuro como presentes modificados. É necessário que um intervalo fala por si; e a ilusão de permanência, que nos diz que uma obra tem a sua
o separe do que não é ele para que ele seja ele mesmo, cindindo assim, impor tância fixa independente do seu contexto histórico. A autonomia da
como o presente, tudo o que a par tir dele se pode pensar, ou seja, todo obra, que é gerada a par tir desses três paradigmas, facilita o sistema de
ente, na nossa língua metafísica, par ticularmente a substância e o sujeito. mercantilização da mesma. De acordo com Douglas Crimp no seu livro On
Esse intervalo constituindo-se dinamicamente, é aquilo a que podemos the Museums Ruins 9, a dependência do lugar e da situação das primeiras

120 121
10. SERRA, Richard. Writings, obras site specific tinham uma intenção crítica em relação ao comércio de O termo site specific tem sido usado maciçamente por instituições
Interviews. Chicago: University
of Chicago Press, 1994, p. 203. ar te por sua recusa de mobilidade e circulação. Assim, a insistência da de ar te e discursos do meio ar tístico, não só na sua língua de origem
11. A expressão site é
ar te na especificidade poderia ser considerado um dos eixos impor tantes como em outras línguas. O uso indiscriminado do termo, assim como o
aqui apropriada a par tir da de crítica que o pensamento contemporâneo exerce em relação a alguns desconhecimento do contexto histórico em que emergiu, parece amor tecer
expressão site specific. Refere-
se ao lugar da obra. aspectos do projeto moderno. a sua intenção crítica inicial e diluir o seu conceito como mais um gênero
12. MEYER, James. The
da ar te contemporânea.
functional site; or, the Inicialmente, a expressão site specific foi mais empregada para definir
transformation of site
specificity. In: SUDERBURG,
a obra que incorporava as condições físicas de uma cer ta localidade No Brasil esse termo foi absorvido sem tradução. É comum ouvirmos e
Erika. Space, Site, Intervention: como par te impor tante na sua concepção, apresentação e recepção. A lermos a expressão site specific em discussões de ar te brasileira e entre
situating installation ar t. USA:
University of Minnesota Press, arquitetura servia, então, como base para tais intervenções. A formalização ar tistas que falam sobre essa prática.
2000, p. 23–37. do trabalho era determinada pelo espaço físico e dele dependia. O trabalho
do americano Richard Serra exemplifica bem os paradigmas vigentes nas É possível ulilizarmos o termo para caracterizar aspectos da obra em
primeiras aparições da ar te dita site specific: “The specificity of site-
seu contexto ou lugar na ar te contemporânea brasileira? Sobre quais
oriented works means that they are conceived for, dependent upon, and
referências as práticas atuais ditas site specific no Brasil se calcam?
inseparable form their location.” 10
O que chamamos hoje de site specific no Brasil está muito mais relacionado
A par tir daí, a noção de site 11 expandiu-se e passou a incluir outros
aspectos do lugar até então não considerados. Trabalhos como os de Hans às primeiras noções do apego da obra em relação à fisicalidade do lugar
Haacke e Daniel Buren repensaram o site , como lugar fenomenológico no (ou ao site ) fenomenológico, conforme Miwon Kwon, do que exatamente
Minimalismo, a par tir de uma reflexão crítica sobre o museu e a galeria, aos desdobramentos de sua discussão. E mesmo dentro dessa tipologia,
expondo assim aspectos de seu funcionamento e revelando a sua falsa a noção crítica de apego ao lugar como recusa de mercantilização que
neutralidade como supor te para a obra. Tal ampliação tornou a noção de é implicada nas primeiras noções de site specific não parece fazer
site mais inclusiva e complexa, alterando também a maneira como a obra sentido dentro do circuito ar tístico brasileiro que nunca foi aquecido
se relacionaria com esse lugar. Aspectos sociais, econômicos, históricos e economicamente a ponto de podermos ou querermos resisti-lo.
políticos tornam-se assim ingredientes impor tantes dessa relação.
Como utilizar o termo site specific em inglês no Brasil sem a problematização
A par tir da década de 90 do século passado, as práticas orientadas para em nosso contexto de Ar te?
um lugar específico começaram a operar a par tir de perspectivas de
impermanência, descontinuidade, ambigüidade e desterritorializações. O O termo site specific faz sentido em relação a um contexto específico. Sua
lugar e a obra transcendem a sua noção identitária, fixa e sedentária e transposição para o contexto brasileiro deveria sofrer uma elaboração,
adquirem um modelo nômade e itinerante cujas fronteiras são de difícil tradução, ou canibalização, sob o risco de esvaziamento do teor de
visibilidade. O exercício de per tencimento da obra em relação a esse reflexão e crítica implicados pelo termo, para que em seguida se possa
lugar ganha novos contornos num território que agora é fluído e disperso. retomar bases de compreensão em contextos diversos.
O lugar da obra deixa de ser somente um local literal e torna-se um
informational site 12 como caracteriza o autor James Meyer, que inclui desde expecificidade
o lugar físico (sem priorizá-lo), até fotografias, textos, vídeos e objetos
que não se encontram confinados a uma localidade específica e nem literal O termo site specific aponta para as relações de especificidade que a
e que remetem a outros lugares e situações num exercício infinito de obra tem com o seu contexto, e não somente as relações de interioridade
associações e encadeamentos. que são possíveis estabelecer, como as relações formais, de cor, textura,

122 123
composição, etc. Assim, podemos dizer que par te da discussão sobre site- mais fluência, a afirmação da diferença e da especificidade parecem gerar 13 In David Harvey, From
Space to Place and Back Again:
specific diz respeito à exterioridade da obra de ar te. É na relação com saliências nos espaços lisos do capitalismo tardio, mostrando por tanto o Reflections on Condition of
o seu contexto que a obra começa a formar o seu significado e a sua caráter contestatório e crítico das práticas que tem a especificidade como Posmodernity, texto para UCLA
GSAUP Colloquium, May 13,
complexidade. É nas relações com o seu entorno que o objeto ou instalação ingrediente. 1991. Apud: KWON, Miwon. One
place after another: site-specific
ar tística detona a sua potencialidade. A primeira sugestão para começar o ar t and locational identity. USA:
processo de aterrissagem da expressão site-specific do inglês no contexto Conforme Frederic Jameson 13, o achatamento de topografias irregulares é MIT Press, 2002, p. 156.

da língua por tuguesa é a substituição da letra ‘s’ da palavra especificidade claramente um gesto tecnocrático que almeja uma condição de ausência 14 In Frederic Jameson,
Posmodernism, or, the Cultural
pela letra ‘x’, caracterizando por tanto uma possível relação com a palavra de lugar ou de identidades locais. Ao passo que o cultivo do lugar e suas Logic of Late Capitalism.
exterioridade e as relações que estão fora da obra propriamente dita, ou diferenças teria a capacidade de retomar a pré-história do local, seu passado Durham: Duke University Press,
1991. Apud: KWON, Miwon. Op.
seja, no seu entorno. arqueológico, seus subseqüentes cultivos e transformações através do Cit., p. 157.

tempo. Assim, poderíamos retomar a diferenças que o constituem. 15 BITTENCOURT, Francisco.


expessura Dez anos de experimentação.
In Catálogo da Exposição 7.
Para David Harvey 14, a constituição de identidades que estejam apegadas Depoimentos de uma geração
1969-1970; Galeria de Ar te
Continuando o processo de reflexão sobre o termo site specific, sugiro a um local ou situação específicos tornou-se impor tantíssimo em um BANERJ, Rio de Janeiro, 1986.
associar esse conceito às diversas camadas que podem ser relacionadas mundo de diminuições das barreiras espaciais para que haja o comércio,
às noções de especificidade e localidade de um projeto de ar te. A o trânsito e as comunicações.
contemporaneidade trouxe consigo uma verdadeira profusão de camadas
do que chamamos de lugar. Aspectos sociológicos, antropológicos, A evocação da noção de situ nessa operação de tradução pretende,
históricos, físicos, geográficos, filosóficos, ar tísticos e outros mais parecem por tanto, tocar as questões apontadas por esses pensadores.
intersectar-se na discussão sobre local, lugar ou localidade. Descrever um
lugar hoje é tarefa árdua, pois esse lugar mostra-se mais como um prisma contexto
multifacetado do que como propriamente um objeto. A alusão à noção de
espessura busca por tanto apontar nessa direção de leitura espacial. Um Na exposição Do corpo à terra, organizada por Frederico Morais e realizada
espaço espesso é um espaço que não se rende a uma primeira leitura e no Parque Municipal em Belo Horizonte no ano de 1970, os ar tistas —
que concentra sempre outras camadas de significado passíveis de serem mineiros e cariocas — são convidados a desenvolver ações específicas para
acessadas. o evento. Luiz Alphonsus queimou uma faixa de pano de 30 metros; Teresa
Simões empregou carimbos com palavras-denúncia: dir ty, verbotten para
expessitu marcar as calçadas. No entanto, para o crítico Francisco Bittencour t: “foi
em Cildo Meireles (que queimou animais vivos) e Ar tur Barrio (que lançou
Aqui adicionamos uma remissão ao fragmento situ que vem do latim situs e trouxas com carne e ossos no Ribeirão das Arrudas) que a manifestação
significa lugar ou posição. A questão da especificidade em relação a um lugar, assumiu o tom sombrio de uma situação limite. Ninguém antes deles reagiu
que é uma das preocupações dos trabalhos site specific, aborda também com tal intensidade dentro do campo estético à realidade do momento.
a questão da diferenciação dos lugares. No momento em que afirmamos Os trabalhos que fizeram em Belo Horizonte ultrapassaram na verdade
especificidades, estamos apontando o que esse lugar tem de diferente em a simples polêmica estética — como no caso do porco empalhado de
relação a outros. Ao trabalharmos especificidade, produzimos diferença e Nelson Leirner num Salão de Ar te em Brasília — para adquirir a feição de
par ticularidade. E esse parece ser o atrator oculto do termo e das práticas luta pela vida de todo um povo” 15. Essas manifestações ocorridas no país
site specific para a autora Miwon Kwon. Num mundo de globalização e, durante a ditadura militar, foram definidas por Frederico Morais como uma
por tanto, achatamento das diferenças para que o capital possa girar com ar te de guerrilha.

124 125
16 GALVÃO, Edilamar. O A exposição Do corpo à terra descrita acima pode ser utilizada aqui para O que se busca aqui é uma operação poética e criativa e não a tradução
Estranhamento da Tradução
na Criação. In NUNES, Sandra entendermos as relações de especificidade da obra em relação ao seu literal. Uma tradução literal do termo site-specific provavelmente originaria
(org.). Estranhas Travessias.
Osasco: Edifeo, 2004, p. 59–63.
contexto no cenário brasileiro. algo como sítio específico no por tuguês. Tal literalidade incorre nos riscos
de confusão em relação à obra com o lugar físico. No inglês, a expressão
O paralelismo temporal com a discussão sobre especificidade que ocorria sitespecific é usada como um adjetivo para caracterizar a especificidade
nos Estados Unidos, caracterizado na palavra site-specific, mostra uma da obra de ar te. A expressão sítio específico em por tuguês qualifica
coincidência histórica com as questões sendo discutidas nessa exposição o lugar físico como sendo específico e não a obra. Funciona como um
na mesma época no Brasil. Ao serem convidados para desenvolver um substantivo.
trabalho para a exposição, os ar tistas não se detêm às noções literais do
espaço físico, perfurando até camadas mais profundas que tocam a própria Assim, é necessário haver um aprofundamento na história, par ticularidades
organização política da realidade brasileira da época. e singularidades do termo a ser traduzido em busca de seus problemas,
imperfeições e contradições. O ato de traduzir não traz termos definitivos,
A intensidade de relação que esses trabalhos têm com o seu contexto mas é visto como um problematizador de linguagem; apresenta as
social e político parece transbordar o conceito primeiro ou fenomenológico imperfeição das línguas à medida que deixa transparecer o problema do
de site-specific nor te-americano. Ainda, se a crítica ao sistema de significado atado ao modo de significar.
mercantilização da obra de ar te interessava aos nor te-americanos ao
exercer apego ao lugar físico, alguns ar tistas brasileiros apontavam o Esse apego ao modo de significar nada mais é do que a especificidade de
interesse na discussão que poderia ser gerada sobre a realidade política relação. A língua é entendida a par tir das suas relações de especificidade
da ditadura no Brasil. No contexto local da década de 70, o comércio de com o lugar e sua história. Edilamar Galvão lembra que Walter Benjamin
obras tinha pouca ou nenhuma impor tância nas reflexões dos ar tistas “coloca que uma língua só significa a si mesma. Que aquilo que uma
brasileiros. Neste sentido, existe um espaço de diferença entre as práticas língua comunica, não se comunica através da língua, mas se comunica
que levam em consideração a especificidade nesses dois pólos: o contexto na língua.” 17 A língua revela-se como lugar; e a palavra uma construção
Brasileiro e o nor te-americano de Ar te. específica desse lugar.

A par tir das relações de exterioridade, de espessura e de localidade


existentes na exposição Do corpo à terra é possível pensar a utilização do
termo expessitude para aborda

a tradução como leitura crítica

A par tir do exercício de transpor te de sentido proposto no texto acima,


podemos considerar que o termo expessitude seja uma versão possível
da expressão site specific do inglês para o contexto brasileiro. Podemos
entender que a tradução, como leitura crítica, é um procedimento para
pensar as fissuras ou aber turas para intervenções na linguagem. 16

126 127
Acácio Sobral

129
Será


foi

Renato Palumbo

130
132
Sem titulo, 1973 . Bené Fonteles
Sem titulo, 1980 . Bené Fonteles Quadrupede . Josynaldo Ferreira

137
JÁ! ONTEM, AGORA
Mariza Mokarzel

Na arte pós-moderna, a idéia, a


atitude por trás do artista é decisiva .
Mário Pedrosa, 19681

As minhas contaminações se processam constantemente, são textos, imagens e lugares


(presenciais ou virtuais) que percorro há longo tempo, ou desde um minuto atrás. A mente armazena o
que já não posso reter com organização e controle. Em algum lugar acumulam-se dados, sentimentos,
vivências e sem saber o lugar exato em que se encontram os códigos transmissores da minha memória
vêm à tona determinadas experiências que se entrecruzam, proporcionando uma inter-relação de
tempos e conceitos.
A imagem da publicação Neovanguardas: Museu de Arte Pampulha 50 anos2 perfura a nebulosa
caixa guardada à sete chaves por Mnemosyne, vejo-me, então, diante de Frederico Morais e das ações
ocorridas em 1970 em Belo Horizonte. Do mesmo modo saltam aos olhos as imagens das obras de
Bruno Vieira que constam do catálogo da exposição O infinito agora3 , realizada em Recife. E por último
deparo-me com imagens veiculadas na internet de obras de Lúcia Gomes, expostas posteriormente em
Belém, na coletiva Contigüidades e na individual Madonna4. É por aqui que começo.
Não houve um critério de seleção rigoroso que me conduzisse com precisão em direção da
escolha dos três segmentos motivadores de uma reflexão sobre a arte, mas uma mistura de acaso e
de uma emergência pessoal de pensar os fluxos por onde circulam arte e vida, em um tempo anterior
ou logo agora.
Em abril de 1970 em Belo Horizonte Frederico Morais foi responsável por dois importantes
eventos, que aconteceram simultaneamente, Do Corpo à Terra e Objeto e Participação, este foi
apresentado no Palácio das Artes e o outro se desenvolveu no Parque Municipal de Belo Horizonte.
O crítico mineiro trabalhou com dois conceitos básicos o de Objeto que em 1966 ele já definia
como “[...] o veículo mais adequado para expressar as novas realidades propostas pela arte pós-
moderna” e depois o ampliou absorvendo a afirmação de Hélio Oiticica de que “o Objeto é a descoberta
do mundo a cada instante, ele é a criação do que queiramos que seja. Um som, um grito podem ser
um Objeto”. O outro conceito utilizado por Morais considerava as “áreas externas como extensão de
museus e galerias”5 , trata-se de um pensamento que havia utilizado em outro evento realizado em
1968, quando o Aterro do Flamengo foi visto como extensão do Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro.

Cachorro Pequenês . Josynaldo Ferreira 139


Em 1970, ano em que Antonio Manuel apresenta a performance O corpo é a obra já se havia Mais do que nunca mapas e histórias estão sendo refeitos. Tempo e distâncias tornam-se
presenciado o entrelaçamento de arte e política, sem esquecer as questões próprias da arte. Paralelas relativos e movimentos migratórios alteram o perfil da população. O circuito arte e vida entrou em um
às passeatas as exposições se sucediam, a Opinião 65 acontecia no MAM do Rio de Janeiro, Pare na fluxo constante e instável, delineador de um universo praticamente inapreensível ao qual temos que
galeria G-4 e o Seminário Proposta 66 seria realizado em São Paulo. Hélio Oiticica anos antes havia nos adaptar, fazer escolha e marcar espaço. Tarefas quase inglórias, mas necessárias.
aliado samba e arte e criado os Parangolés e em 1967 na Nova Objetividade Brasileira mostra o Lucia Gomes, artista paraense que atualmente reside na Suíça, nas colinas de Dickbuch, um
penetrável ou ambiente-obra “Tropicália”. Neste mesmo ano Nelson Leirner envia o Porco Empalhado lugar quase isolado em plena Europa, experimenta esta móvel e instável distância que se amplia ou
para o 4º Salão de Brasília, questionando o papel da crítica e merecendo resposta de todos que encurta conforme o meio de comunicação onde se estabelece e concretiza relações afetivas e labutais.
participaram do júri, menos de Clarival do Prado Valladares6 . Via internet a artista pôde fazer circular suas obras mais recentes, organizar uma exposição individual
Esta inquietude e efervescência que testemunharam a morte de Edson Luís de Lima Souto e a e participar de outra, coletiva, encontrando-se geograficamente tão distante. Todavia, mais do que
passeata dos Cem Mil, denotavam um momento profícuo da arte que estava preste a conviver com um reconhecer que os meios digitais e eletrônicos possibilitam ações de várias naturezas, é perceber o
ato institucional que a afetaria, assim como o cinema novo, o teatro de Zé Celso, a música de Caetano que se agrega ao viver e à arte quando o lugar de onde se veio se mistura ao outro lugar onde agora
Veloso, Gilberto Gil, a vida do povo brasileiro. O AI-5 chegava em dezembro de 1968 trazendo uma se está.
forte censura acompanhada de atos radicais de repressão que geraram múltiplos exílios. Em constante contato com o Brasil, mais precisamente com o Pará, Estado onde nasceu, Lúcia
Era este o contexto em que se situavam os dois eventos criados por Frederico Morais, Do corpo Gomes lê constantemente os jornais de Belém, intera-se das notícias, alimenta-se do que acontece em
à Terra durou apenas três dias e os artistas que dele participaram receberam uma ajuda de custo. sua terra. Foi assim que soube que a Prefeitura de Belém anunciava um novo destino ao prédio onde
Foram trabalhos (ações) realizados especialmente para o evento. “Lee Jaffe (Oiticica) fez uma trilha de funcionava, no começo dos anos 2000, uma importante galeria responsável pelo lançamento de jovens
açúcar na terra vermelha da Serra do Curral” 7 , Cildo Meireles ironicamente homenageou a Semana artistas. Preocupada e indignada com esta situação, Lúcia decreta em ato performático A MORTE da
da Inconfidência, criando Tiradentes: totem-monumento ao preso político, quando ateou fogo em dez Galeria Municipal.
galinhas amarradas ao porte. Ato político? Sem dúvida. Um protesto que acontece em outro continente e repercute no local
A instalação Territórios realizada nos jardins do Museu de Arte da Pampulha – MAP aconteceu onde a artista viveu grande parte de sua vida. A paisagem onde agora se encontra é muito diferente
um ano antes dos dois eventos propostos por Morais, colocou em prática o conceito, já citado: “áreas do cenário tropical da Amazônia. O que fazer? Como fazer? Talvez estas tenham sido algumas das
externas como extensão de museus e galerias”. A instalação polêmica inscrita e premiada no 1º Salão perguntas que perpassaram sua mente. Lúcia Gomes optou pela foto-performance irônica, lúdica,
Nacional de Arte Contemporânea foi realizada coletivamente pelos artistas mineiros Dilton Araújo, quase-debochada. Construiu uma narrativa que, quadro a quadro, se assemelhou aos contos de fadas.
Lotus Lobo e Luciano Gusmão. Este tipo de conto que teve origem na oralidade e difundiu-se em infinitas recriações e adaptações
Em relação à obra Territórios vale apresentar trechos da carta8 de Frederico Morais dirigida impressas, emigrou, na performance de Lúcia, para a foto digital. A seqüência de imagens coloridas,
a Luciano Gusmão, escrita em 04 de fevereiro de 1970, semana antes de encerrar o Salão. Sobre a primeiramente circulou na internet, só depois integrou a exposição Contigüidades.
retirada do trabalho do Jardim da Pampulha, o crítico afirma que na sua opinião a obra “deve ficar Sem fada madrinha a personagem promoveu ações nos fundos da sua própria casa, em frente
lá até transformar-se em lixo, melhor, em natureza”. Mais adiante, dirigindo-se ao grupo de artista, a uma espécie de garagem, lugar onde se guarda o carro, transporte que podia servir de metáfora
argumenta: “deixando o trabalho de vocês se dissolver na grama do Museu, provavelmente mais tarde, e levá-la para onde quisesse, inclusive até a Galeria Municipal. Mas, seria a garagem uma despensa?
alguém perguntará: o que houve aqui neste jardim?”. Morais considera que “nada dura ou permanece. Se assim fosse poderia guardar mantimentos para que pudesse se alimentar o tempo necessário até
[...] Quanto a arte, a eternidade não é mais a sua medida. Aliás, nunca foi”. chegar ao outro lado da montanha, ao outro lado do oceano, ao outro lado do rio. E se no lugar de
Nota-se que mais de trinta anos depois, o pensamento de Frederico Morais permanece atual. mantimentos lá estivessem armazenados sentimentos? Aí não sei o que aconteceria. A brincadeira
Muitos trabalhos e ações desenvolvidos “ontem” ressoam em obras recentes. Vocabulários e expressões que era doce podia tornar-se infinitamente triste.
que começaram a ganhar força no final de 1960, começo de 1970 tornaram-se usuais. O emprego da No cenário suíço coberto de neve, a personagem vestiu-se com um casaco branco, no bolso
palavra (no plural) “Territórios” é de uma inegável atualidade. Na carta a Luciano Gusmão o crítico uma rosa vermelha da mesma cor do tecido que envolveu a cintura e desceu além dos pés. A calda
mineiro vaticina “num país continental como o nosso a arte é uma forma de apreensão geográfica e alongada deixou rastros no gelo e tornou volumoso o corpo daquela que, indiferente ao frio, à distância,
territorial. É preciso refazer o mapa e depois a história”. tentou armar a rede (trazida de onde? De Quatipuru 9?). Uma ponta prendeu-se ao teto da fachada da

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despensa/garagem, a outra ponta não se conectou a lugar algum. O corpo inerte sobre a rede sentiu Notas:
1. Esta frase de Mário Pedrosa encerra o texto Do Porco Empalhado ou os critérios da crítica em que apresenta sua resposta a Nelson Leirner. O texto
nas costas a fria e sólida água. O conto de fadas perdeu-se entre a narrativa inconclusa e a ponta da foi publicado primeiramente em 1968 e reeditado na coletânea Mundo, Homem, Arte em crise, organizado por Aracy Amaral e editado pela Perspectiva,
rede que, sem exercer a sua condição de rizoma, silenciou. em segunda edição, em 1986.
2. Trata-se de uma publicação da exposição de mesmo nome realizada no Museu de Arte da Pampulha em Belo Horizonte no período de 22 de setembro
Ambivalências distribuíram-se em camadas – o lúdico pôde ser triste. O discurso sobre a de 2007 a 16 de março de 2008, resultante da pesquisa de Marconi Drummond, Marcio Sampaio, Marília Andrés e Fabíola Moulin, e composta por
galeria é o discurso de si mesmo, o ato político é o ato privado, arte é vida. Dickbuch é Belém, coleções dos acervos do próprio Museu, de outras instituições e particulares. Nesta publicação estão veiculados textos de Frederico Morais.
3. Esta exposição realizou-se na Galeria Marcantonio Vilaça, no Instituto Cultural Banco Real, com curadoria de Marisa Florido, no período de 23 de agosto
Quatipuru. Cidades identificáveis em mapas, cartografias moventes de um imaginário submerso em a 30 de setembro de 2007.
tessituras pessoais e sociais. Novamente ecoa a voz de Frederico Morais “é preciso refazer o mapa e 4. A coletiva da qual Lucia Gomes participou teve consultoria de Paulo Herkenhoff, curadoria de Alexandre Sequeira, Marisa Mokarzel e Orlando Maneschy,
e reinaugurou em 19 de março de 2008, o antigo Palácio dos Governadores, ex - Museu do Estado do Pará – MEP e atualmente Museu Histórico do
depois a história”. Mapas e histórias estão sendo refeitos. Estado do Pará – MHEP. A mostra individual aconteceu na Galeria do CCBEU (Centro Cultural Brasil Estados Unidos) entre 6 e 20 de maio de 2008.
Associo essa efêmera cartografia a outro artista, Bruno Vieira que cria cidades fictícias, feitas 5. Todas as citações transcritas neste parágrafo pertencem ao texto Do Corpo à Terra, que integra a publicação: Neovanguardas. Belo Horizonte: Museu
de Arte da Pampulha, 2008, p.30.
de areia, de gelo. “Lugares que não chegam a ser lugares”10 . A mesma areia que serviu de matéria às 6. Esta informação consta do livro de Frederico Morais, Artes Plásticas: a crise atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. O júri do 4º Salão de Brasília, foi
colunas sucumbe pouco à pouco com o movimento da maré, integrando-se a horizontalidade primeira composto por Mário Pedrosa, Walter Zanini, Mário Barata, Fredericdo Morais e Clarival do Prado Valladares.
7. Afirmativa de Frederico Morais que integra o livro acima citado, p.104.
de onde surgiu. Ruínas imaginárias de um tempo imaginário. A beira do mar é o lugar que o artista 8. A carta datilografada foi publicada no catálogo Neovanguardas; Museu de Arte da Pampulha 50 anos, já citado, p.23-27.
escolhe para construir seus territórios. Arquiteto do efêmero, retorna às águas salgadas e próximo 9. Município do Estado do Pará, onde Lúcia Gomes realizou uma performance em que distribuía aos habitantes do lugar beijus com a inscrição “amai-vos”.
10. Comentário de Marisa Florido que consta do catálogo, citado, da exposição Infinito Agora.
delas ergue outra cidade, desta vez de gelo. A destruição não vem mais das águas, mas do céu. A luz
do sol rapidamente aquece as colunas de gelo e estas retornam a sua condição líquida. “Nada dura ou
permanece”.
Lúcia Gomes ao finalizar sua performance, repousando o corpo inerte sobre a rede, deixou
em meio aos rastros flores vermelhas, que, em curto tempo, tornaram-se totalmente brancas,
mimetizando-se, deixando seus contornos delineados no chão úmido. O solo de neve cravado pela flor
transformou-se em gravura de gelo.
Frederico Morais na carta que escreveu a Gusmão, referindo-se a obra Territórios, comenta
“quando do trabalho de vocês sobrar apenas lixo, a natureza (o jardim do Museu) será arte. O mesmo
se poderá dizer dos trabalhos de terra, água, ar, gelo [...]”. Dos trabalhos de Bruno Vieira e Lúcia
Gomes sobraram o lixo (ou nem isso). Pode-se dizer então que a natureza tornou-se arte, assim como
as fotografias que não apenas registraram o instante ou fixaram o efêmero, mas adquiriram corpo
próprio, transmutaram-se em Foto-performance, Foto-instalação.
Dos anos 1960 e 1970 ficaram mais que vestígios, permaneceram atitudes que ainda encontram
ressonâncias no presente. Todavia, por mais proximidade que exista, são apenas referências, os
tempos e contextos são outros. Alguns sonhos e crenças sucumbiram. As passeatas tornaram-se
compartimentadas. Globalizou-se o mundo e fragmentaram-se cada vez mais os indivíduos. E como diz
Mário Pedrosa “na arte pós-moderna, a idéia, a atitude por trás do artista é decisiva”. A emergência
de ontem, a emergência de agora é a atitude, a idéia que inter-relaciona arte e vida, escreve a poética
que nos faz repensar o mundo.

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Nem que L. tenha 100 anos . Lúcia Gomes

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Sem Destino de 1975/83 = pensado por uma pessoa e produzido em estratégia ‘bumerangue’
(enviado por alguém que espera recebê-lo de volta), permanecer incógnito, escapar da
censura, circulação e dispersão de mensagens urgentes na época, acaso e escolha do
destino, contar com a sor te pois não se conhece o percurso do retorno, que informações
poderiam circular...então como fazer.

Com Destino de 2007 = pensado em dupla para par ticipação coletiva, presentear e/ou
surpreender o destinatário, cada par ticipante pode produzir seu ‘com destino’ como desejar,
conjunto de ar te postal dentro de uma coleção par ticular ou melhor numa coleção de ar tista
que está ultimamente sendo (re)descober ta, produção não escolhida pelo colecionador,
estratégia de per tencimento e diálogo com coleção de Paulo Bruscky e futuro acolhimento
pelo sistema de ar te...podemos pensar num novo ‘lugar ao sol’ coletivo, numa ‘homenagem”
estratégica a Paulo Bruscky já (re)conhecido como ar tista postal.

Semelhanças Sem Destino e Com Destino = estratégia de ar te postal (supor tes e sistema de
circulação), inesperado, par ticipação dos remetentes com envio dos trabalhos, confiança no
sistema dos correios, descober ta do percurso a posteriori (pelo endereço do destinatário
e/ou carimbo dos correios).

Envio do ‘kit vernissage’ para usufruto de Paulo Bruscky (e seus convidados)...reverberações


do momento da gênese da proposta (escolha dos itens pautada na amizade com Paulo) e
também ao sistema de ar te que institui o vernissage como momento para iniciados em ar te,
coptados pelo sistema que endossarão o que se expõe, compar tilhar com pares e amigos.

Fonte de Sem Destino é retomada... Sem Destino como marca já aceita pelo sistema de ar te
inclusive reproduzido em publicação sobre produção de Paulo Bruscky e ar te dos 70s e
também ser fonte cursiva que remete a grafia pessoal porém que usufrui da multiplicação
devido a ser aplicada por carimbo. Fonte escolhida numa tentativa de deixar híbrido a relação
pessoal da correspondência com o procedimento impessoal do instrumento carimbo coptado
pela indústria e mercado (até mercado cultural) para acelerar procedimentos.

Distância temporal entre Sem Destino e Com Destino... pensar as mudanças destes mais
de vinte anos na Ar te e Industria Cultural, na comunicação e diálogo a distância, como a
produção postal se tornou Ar te.

Pensar Paulo Bruscky como colecionador que recebeu envelopes do Sem Destino conferindo
lista de amigos postais e/ou destino escolhidos e agora recebendo ‘Com destino’ onde os

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parceiros foram escolhidos por Adriana e Bruna. 2.
APL. Em relação a Paulo Bruscky e seu Sem Destino que circulou entre 1975 e 1983, por que
Pensar a amplitude de Com Destino como trabalho único, como trabalho formado por outros retomar uma estratégia do uso postal quando atualmente a comunicação interpessoal parece
trabalhos, como coleção dentro de outra coleção. Potencializar conjunto(s). Pensar a concentrar-se no uso veloz oferecido pela troca de e-mails, blogs e fotoblogs, internet?
condição de coletivo durante a criação e construção. Seria talvez um novo fôlego para indicar a não separação entre Ar te e Vida colocada nos
anos 1960 e sua permanência na produção contemporânea?
Coleção de Paulo Bruscky é organizada por conjuntos e Com Destino seja talvez novo um
conjunto que mesmo indicado pelas curadoras através da convocatória (car ta-convite) à A&B. A relação pessoa à pessoa; a comunicação e a troca; novos vínculos possíveis; o
par ticipação, tem uma configuração instável pela par ticularidade de escolha de cada ar tista compar tilhamento entre desconhecidos-conhecidos, a temporalidade diferenciada; exercício
no que diz respeito à par ticipação ou não. de inurgência em uma experiência e meio impregnado de história; o encanto pelas malhas de
compar tilhamento desinteressado-interessado... poderiam ser levantados como justificativa
Pensar no olhar atual que já institucionaliza a produção de Paulo Bruscky a qual no passado e impulso... contudo, especificamente sobre a Mostra, o fato é que citando, homenageando e
era recusada em salões e coleções brasileiras. mesmo “clonando” o “modus operandi” de Paulo em uma re-atualização Com Destino, a via
e vivência não poderia ser outra! Além disso, o circuito postal perdeu muito terreno para a
Algumas questões (é claro que estão completamente aber tas a sugestões de vocês): comunicação via internet, hoje em dia quase não se recebe uma car ta, tornando-a algo raro,
especial, desejado. Existem outros fatores, por exemplo, o fato de que numa car ta existem
1. outras possibilidades sensíveis em oposição à internet, pois se pode proporcionar ao seu
Ana Paula Lima. Para começarmos, eu pediria para que vocês contassem como Com Destino destinatário experiências palpáveis, como cheiro, gosto, textura, etc. ...
começou a ser pensado e seu desenrolar a par tir deste ponto de par tida?
3.
Adriana Barreto & Bruna Mansani. Assim como você Ana, com sua pesquisa sobre o Fluxus, APL. Como foram escolhidos os parceiros de Com Destino? Chamo de parceiros aqueles que
Paulo Bruscky foi convidado para uma conversa sobre sua produção, no Seminário sobre receberam o convite de vocês e posteriormente remeteram Com Destino a Paulo Bruscky.
Relações Espaço-Obra, Circuitos e Sistemas, que Regina Melim oferece no PPGAV-CEART- Haveria alguma prévia idealização dos resultados a par tir dessa escolha inicial? Os parceiros
UDESC. Foi onde tivemos a opor tunidade de conhecê-lo pessoalmente. A par tir de então, em são usuários da Ar te Postal como em outrora? Será que ‘Com destino’ recuperou o desejo
seu cur to período por Florianópolis, pudemos entrar em contato com par ticularidades de sua de troca de trabalhos e fazer coletivo nos convidados?
produção atual e anterior, a postura do ar tista frente a seu meio, diálogos possíveis, além
de que ficamos encantadas com tamanha simpatia e acessibilidade! A&B. Já que Com Destino par tiu, em sua concepção, de um impulso afetivo, nossa lista de
convidados não podia ser diferente! Listamos todos os ar tistas cuja prática nos interessa,
Motivadas pela curiosidade de Paulo Bruscky quanto a nossa produção e a dos ar tistas bem como muitos e muitos amigos. [risos]. E então par timos em busca dos respectivos
daqui da região, e ainda seu reiterado interesse por intercâmbios, encontramos uma forma endereços, muitas vezes apelando à conhecidos dos convidados, para não ter que pedir
de satisfazer e recompensar os bons momentos de sua estada, através de um diálogo bem diretamente e estragar a surpresa do convite.
humorado, “clonando” uma de suas próprias práticas ar tísticas em relação ao circuito e a
critica institucional tão presentes em sua fala. Não houve uma prévia idealização dos resultados da Mostra, essa par te estende-se pros
ar tistas que acataram a proposta e, principalmente Paulo Bruscky, que faria dela o que
Então em 24 de julho de 2007 lançamos, em nossa primeira incursão curatorial em parceria, a quisesse. Mas, como ar tistas também, imaginávamos possibilidades de intervenção, conteúdo,
mostra Com Destino, que, segundo algumas informações recebidas tempos depois, acontece subversões... aliás, não sabemos exatamente como ocorreu, mas por exemplo Alex Cabral,
em Recife/PE, com a par ticipação em potencial, de ar tistas de várias regiões do país. um dos ar tistas que compôs a primeira leva, teve como ponto focal de sua par ticipação

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justamente quebrar o caráter surpresa da Mostra à seu destinatário!... caráter surpresa se voltando pra nós também! Por que o fator surpresa e a curiosidade
são qualidades peculiares de nossa parceria... pode-se mesmo dizer que são a mola para
Claro que pensamos que em algum momento poderíamos ter a opor tunidade de conhecer a várias ações que realizamos. Curiosidade de experimentar; por pessoas desconhecidas; pelo
configuração da Mostra, e também Recife [risos] mas isso nunca foi um pressuposto. meio ar tístico ao qual buscamos nos inserir;... e quanto a mostra? Curiosidade sim, pelos
trabalhos enviados; os não; os recebidos ou não; quantos; como; quem; ... são múltiplas
No mais era o prazer de colocar a idéia em movimento, expectativa com a recepção das curiosidades... elas existem e só. De algum modo as informações chegam, não é?... até não
car tas-convite, ou seja, o impulso inicial, o presente ao Paulo, como você fala,... é um work- resposta é resposta!. Aliás Ana Paula, o que mesmo você enviou? [risos]
in-progress sem espectativas quanto a resultados. O que vier como resposta, é o que vier...
e estaremos felizes!... 5.
APL. Eu enviei alguns dos stickers da série “PARA CUIDAR” adesivados externamente e
Sobre o desejo de troca de trabalhos, ele existe cer tamente, e também uma grande internamente em um saco plástico, tipo zip e da dimensão de um car tão postal. Pensei
curiosidade em relação ao que pode acontecer, mas não podemos dizer que Com Destino se numa obra aber ta, neste invólucro que permite ao usuário - Paulo Bruscky e outros - inserir
encaixe exatamente naquele caráter de ´corrente´ da Ar te Postal, pois não se trata de uma elementos e assim o trabalho ser também interativo e coletivo. Mas contem mais...
corrente que vai crescendo ou que pode se quebrar caso alguém não par ticipe... O caráter
de troca está presente como um possibilidade em aber to. Também não podemos afirmar A&B ... Há! Então... Quanto a novos trabalhos à par tir do meio postal, é interessante ressaltar
que a Mostra tenha recuperado o desejo de troca e/ou fazer coletivo, toda a situação é que fizemos o nosso ‘debut’ com a Mostra Com Destino, temos idéias sim para outros
hipotética. trabalhos, mas isso não dá pra falar porque é surpresa! It’s just the beginning! [risos]

Mas, Ainda sobre a questão do impulso pra troca, nós não temos muito conhecimento de 6.
até aonde vai a prática postal da maioria dos nossos convidados-parceiros, mas sabemos APL. Como vocês imaginaram trabalhar com o elemento do acaso, da surpresa, do imprevisível
da nossa, que era igual a zero! [risos] só em abrir uma caixa postal já foi uma festa! Então, no Com Destino? O acaso, a sor te e jogo são elementos pensados antecipadamente neste
se a proposta servir como um impulso também pra quem ainda não tinha muita proximidade diálogo a três (vocês enviando Com Destino ao parceiro que enviará sua realização a Paulo
com este meio, também ficaremos felizes! Bruscky)? Há lugar para o lúdico e a criação de ar tistas personagens como ocorreu em
produções que vocês realizaram anteriormente, por exemplo ‘Vale convite’ e ‘Vale um lugar
4. ao Sol’ (ambos de 2006)?
APL. Vocês já tiveram retornos do Com Destino? Estes fizeram vocês (re)pensar na estratégia
escolhida e sucesso da empreitada? Ou suscitaram novos trabalhos, quiçá coletivos A&B. As “ar tistas personagens” somos nós, personagens de nós mesmas, isso é um elemento
novamente? do nosso trabalho em parceria independentemente do projeto que estejamos realizando
no momento. Tanto neste, como em trabalhos anteriores, criamos uma situação que abre
A&B. Paulo Bruscky, em um postal lindo que nos enviou, sinalizou a vontade de produzir um possibilidades de interlocuções, encontros, o fator acaso está sempre presente, pensamos
catálogo. Mal sabe ele que a Mostra tem duração indefinida. Quantos anos durou mesmo a em situações que propiciem também uma surpresa para nós como vender rifas cujo prêmio
ação Sem Destino? [risos] se tratava de passar um dia ou uma noite conosco, como em Ação Beneficente 1, ou que
alguém nos levasse para um circuito em São Paulo, como em Ação Beneficente 2, as duas
Volta e meia nos surpreendemos com car tas, postais, trabalhos de ar tistas par ticipantes da de (2004), ou então passar 24h viajando com uma pessoa desconhecida advinda de um
Mostra que chegam a nossa caixa postal, Recebemos alguns feedbacks positivos de vários sor teio, como foi o caso de VALE Lugar ao Sol (2006). Já em Com Destino, nós passamos a
ar tistas dizendo que gostaram da experiência... Sabemos ainda, de casos em que o Paulo bola ao ar tista convidado, um jogo mesmo...
respondeu, e também aconteceu de ar tistas solicitarem um segundo envelope! olha aí o

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Além do mais, aqui seria legal elencar nossos “ídolos” do humor-ar te, e enfatizando também 9.
o quanto o hedonismo está presente nas ações. E isso dentro de uma prática que se vale APL. Vocês já têm notícia da realização do vernissage e/ou compar tilhar do trabalho entre
da vida, como já acontecia nas idéias e ações do Grupo Fluxus, por exemplo, ou como diria Paulo Bruscky e seus próprios amigos e convidados? Como isto ocorreu?
Allan Kaprow, ar te-como-a-vida, todo lugar como um playground, em uma vida de an-ar tista!
Neste caso podemos citar gênios da auto-promoção com cerne crítico como Marcel Duchamp, Resposta para 8 e 9
Marcel Broothaers, Andy Wahroll Maurizio Cattelan, Andrea Fraser, evidentemente Paulo
Bruscky, sem esquecer sua parceria com Daniel Santiago. E já que tocamos em parcerias, A&B. Como reverberou? Continua reverberando!... Ao que sabemos Paulo parece ter gostado,
tem Gilber t & George, Fischlli & Weiss, Eva & Adele... pelas respostas que nos enviou e também por comentários dos ar tistas par ticipantes com
quem tivemos opor tunidade de conversar, como você, por exemplo. O que só nos motiva.
7. Aliás, não sabemos ao cer to a disposição de Paulo Brusky em receber, mas a nossa em
APL. Vocês têm conhecimento se algum parceiro ‘quebrou a corrente’ desta empreitada enviar propostas está super viva! [risos] volta e meia formamos um lote novo!...
postal? O que vocês pensam a respeito?
Então,... Pensamos em um Kit Vernissagem de sucesso garantido. Nada de muito original,
A&B. A empreitada não foi pensada como corrente que não pode ser quebrada, a proposta porém com um tempero florianopolitano, claro! Além do que a caixa-sedex era bastante
é aber ta, com liberdade para os ar tistas par ticiparem se quiserem. O único problema seria grande, já daria para ajudar na organização da Mostra no arquivo caso Paulo quisesse!
para o próprio ar tista, que não enviando sua car ta deixaria de par ticipar da Mostra e, [risos] Mas na verdade não temos idéia exata de como e com quem a Vernissagem foi
consequentemente, de dar um “upgrade” no currículo, caso precise, é claro! [risos] Nós aproveitada...
por sinal, com esta curadoria contaremos com + 10 pontos no Currículo Lattes! Se tiver
catálogo, é claro! [gargalhadas]. Brincadeiras à par te, conhecemos sim alguns ar tistas que Sabemos que você foi pra Recife à estudo conhecer o arquivo do Paulo, você poderia falar
não enviaram a car ta, muitos também disseram que ainda estavam pensando sobre o que um pouquinho de sua experiência? Gostaríamos de aproveitar e agradecer as lindas fotos!
enviariam, etc. Se pensarmos na relação com o Sem Destino do Paulo, que também implicava
no envio de car tas dentro de outros envelopes a amigos em diversas par tes do mundo, APL. Minha ida a Recife aconteceu recentemente para pesquisar o acervo de Paulo Bruscky
esses amigos tinham que apenas jogar a car ta numa caixa de correio para funcionar, não e também ir à exposição que ele curou sobre o Fluxus, fiquei uma semana trabalhando
havia a demanda de um trabalho, algo ativo para além do próprio envio sendo solicitado. diretamente com este ar tista-colecionador-agitador cultural ou melhor ‘ar tista-etc’. Esta
A estória estava mais centrada na questão do circuito mesmo, do circuito postal e seu viagem foi a ‘mais fluxus’ possível, um mergulho ímpar no precioso material que Paulo
funcionamento na época da ditadura e, como você mesma aponta, com relação à circulação recebe/recolhe/guarda/conhece/pesquisa sobre o Fluxus - tema de minha futura tese de
de informações perigosas, sigilosas, possivelmente comprometedoras. Com Destino, estaria doutorado. Muitas vezes me vi sem bóia e outras, usufrui de bússola e direções oferecidas
talvez mais relacionado à uma relação com circuitos de ar te e suas brechas, além do que generosamente por Bruscky. Ele também me mostrou alguns trabalhos do Com Destino e
demanda um envolvimento por par te dos convidados, mas já na convocatória, a car ta-convite desejou fazer um primeiro vernissage convidando amigos. Por fim, fizemos algumas fotos na
ficava bem claro que a pessoa estava sendo convidada, mas podia par ticipar se quisesse. galeria-cozinha de seu ateliê, mas não houve tempo para inaugurarmos o ‘kit vernissage’
Realmente não existe quebra de ‘corrente’, existe inclusão! que vocês mandaram e ele adorou. Paulo contou que ficou muito surpreso ao receber o
envelope onde havia, na mesma fonte e cor de seu ‘Sem Destino’ de outrora, a inscrição Com
8. Destino. Parece que este primeiro envelope não continha a car ta-convite feita por vocês e
APL. Sobre a comunicação entre vocês e Paulo Bruscky, como reverberou a recepção de Com isto aguçou ainda mais a curiosidade dele...
Destino? E sobre o ‘Kit vernissage’ remetido diretamente a Paulo por vocês? Aliás vocês
podem revelar o que continha o ‘kit vernissage’ e o por quê? A&B. Sim! Nossa intenção com a Vernissage não era explicar o que iria ocorrer de modo
algum! Queríamos apenas sinalizar para algo... Inclusive a enviamos após o primeiro lote de
convocatórias, ou seja, talvez a Mostra tenha começado antes da Vernissage!...
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10. APL. A permanência de Com Destino no acervo de Paulo Bruscky seria um ‘futuro lugar ao
APL. Para que Com Destino chegue ao destinatário, há um intervalo temporal aber to, pois sol’ nas Ar tes e Mercado Cultural?
depende da temporalidade dos parceiros e também a dos correios. Esse hiato temporal
suspenso é significante a vocês quando pensaram a duração de Com Destino? Haveria um A&B. Com cer teza! [risos] é cer to que Paulo Bruscky já doou seu arquivo, Ana? Pra qual
intervalo determinado para a produção, execução e envio dos trabalhos? instituição mesmo, pro MAC?

A&B. Como já dissemos, a duração é indeterminada. A Mostra como se configura é mais uma APL. Paulo é muito generoso e deve com cer teza ter oferecido outros itens, inclusive
idéia, um jogo lançado, do que algo concreto. Gostamos muito da temporalidade da car ta, documentação que ele coleta e armazena minuciosamente, ao Museu de Ar te Contemporânea
essa suspensão temporal é par te indissociável desta ‘situation specific’. Além disso, como (MAC) da USP de forma a permitir futuras exposições e pesquisa - lembro que atualmente há
dissemos acima o processo segue aber to, temos ainda várias car tas para enviar, e volta e uma impor tante mostra retrospectiva de sua produção no MAC – USP chamada ‘Ars brevis’
meia um ar tista pergunta se ainda há tempo para par ticipar...sempre respondemos que sim! com curadoria de Cristina Freire que, aliás, lançou neste ano de 2007 o livro “Paulo Bruscky:
sempre haverá tempo para Com Destino... Ar te, Acervo e Utopia” resultante de sua pesquisa de mais de dez anos. Mas esta exposição
é em grande par te composta por trabalhos feitos por Bruscky e per tencentes a sua coleção
11. par ticular. Há também tratativas com o Museu de Ar te Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM)
APL. Vocês acreditam que a possibilidade de se refazer imageticamente o percurso é de Recife que mostra no momento o acervo Fluxus de Paulo Bruscky. Mas não conversei
relevante ao indicar uma conexão que extrapola vizinhanças locais e temporais? Estaria aí o profundamente sobre este assunto com o Paulo...
traçado do conceito ‘destination specific’ que vocês constroem?
A&B. ... Esta questão da institucionalização em si, já é bem interessante por tratar-se da
A&B. ‘Destination Specific’ é uma variação do nosso conceito base ‘Situation Specific” que inserção de ações alternativas e periféricas dentro de um sistema mais “sério”, apesar de
por sua vez deriva das recentes concepções de ‘Site Specific” como as conceituadas por não se saber ao cer to como esse arquivo será acolhido e principalmente, disponibilizado,
Miwon Kwon e James Meyer. Esta designação foi pensada como uma resposta ao próprio enfim... A própria Cristina Freire comenta a esse respeito em seu livro “Poéticas do
Sem Destino, obviamente o destinatário especifico é Paulo Bruscky, mas também cada um Processo”, quando se debruça sobre a produção de ar te conceitual, ar te postal, livro de
dos destinatários a que endereçamos a car ta-convite! Quanto ao percurso imagético que ar tista, e outras coisas per tencentes ao acervo do MAC–USP, onde comenta a necessidade
você fala, e aqui não sabemos se entendemos muito bem o que você quis dizer com esse de outros procedimentos teóricos e práticos pra fruição desses trabalhos... (ana, aqui nos
aspecto... apropriamos de uma par te que, como já pretendíamos assinalar entendemos como uma
APL. ... seria o percurso visto retrospectivamente tanto pela informação do local de par tida contribuição de sua par te a referenciazinha sobre a Cristina. Vc notou?)
contida no endereço do remetente e no carimbo do correio mas também na indicação e
significado que o próprio termo ‘destino’ pode conter... Carla Zaccagnini também questiona tenazmente em sua disser tação de mestrado o aspecto
de arquivamento e seu caráter institucional, de modo que até onde podemos supor, a Mostra
A&B. ...então, seria algo criado a par tir da relação subjetiva que cada par ticipante cria Com Destino estará completamente diluída na profusão sem fim de outras milhões de coisas
com esse circuito. Ele acontece, as provas estão ali, mas o percurso em si, é sempre algo interessantes que compõem o arquivo em questão e que nós ainda não tivemos o prazer de
experimentado na imaginação, nessa reconstituição do caminho, e também na imagem que conhecer, mas você sim, não é Ana?
se cria quando se imagina a reação das pessoas ao receber a proposta, a surpresa causada
no Paulo etc. E pensar no Destino, nesse caso, também tem a ver, com criar possibiidades Mas em verdade, voltando à questão, essa institucionalização não era o fundamental da
de agenciamentos, possibilidades de desdobras dentro de uma situação que nós mesmas proposta. Como já dissemos anteriormente, a própria auto-proclamação como curadoras,
arquitetamos...criar possibilidades de Destinos... a possível, e em par te concreta, par ticipação de ar tistas de diferentes pontos do país,
12. o prazer em convidar ar tistas que muitas vezes nem nos conhecem, muito menos nossos

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trabalhos em parceria, os retornos que recebemos sem esperar, a curiosidade instigada em “Hoje a Ar te é este comunicado” mas isto nem sempre permanece potente no mecanismo
todas as instancias... Poderia isso ser considerado um “Lugar ao Sol”? Nós consideramos museológico aplicado. Na exposição Fluxus no MAMAM há uma imagem enorme de “My
que sim! mailbox is your gallery” numa das paredes e, devido ao trabalho realizado pelo educativo do
museu com os visitantes, se faz uma oficina de ar te postal que terá no fim da mostra envios
APL. O acervo Paulo Bruscky é um mundo e também uma experiência a qual permite dos trabalhos àqueles que par ticiparam e também formaram uma lista de endereços. No MAC
um mergulho por seu processo criativo e modus operandi, além do encontro com outros – USP há um acervo postal impor tantíssimo formado durante a gestão de Walter Zanini. Este
ar tistas que estão lá potencialmente por meio de trabalhos, car tas, postais, lembranças. É indica também como os ar tistas encontraram um meio de não perder a voz num período de
uma enorme constelação cuja luz coletiva e constante indica diversas direções. Lá está um vigilância militar severa. Isto é único, o acolhimento naquela época pelo museu nos revela
Fluxus vivo; a indissociação entre ar te, vida e investigação que eles usufruíram sempre, por quão visionário o professor Zanini é. Aliás eu vi uma das convocatórias feitas em nome do
exemplo. Há preciosidades como convocatórias de produção postal e em trânsito, revistas e MAC – USP num jornalzinho informativo de Klaus Groh pela International Ar tists’ Cooperation
catálogos, correspondência que revelam uma dinâmica que não esbarra em dificuldades de de 1976 per tencente ao acervo do Paulo Bruscky. Há também a história do postal enviado
idioma ou geográficas. Há também uma utopia – como indica Cristina Freire –, um esperanto por Bruscky ao MAC –USP: após ver seu postal num catálogo que saiu na época, Paulo
tecido pela comunicação entre as diferentes vozes que revivem a cada caixa ou envelope que enviou uma car ta a Walter Zanini agradecendo pela publicação mas informando que a obra
abrimos e se enriquecem ainda mais ao serem acompanhados de relatos do colecionador e saíra de cabeça para baixo. Exemplos como este indicam que a instituição precisa sempre
outras informações desse incansável pesquisador que é o Bruscky. E ele tem uma memória praticar auto-reflexão e buscar ajuda dos próprios ar tistas para pensar suas práticas e
fantástica, de detalhe... além da prosa envolvente. seu papel. É impor tante que acervos possam ampliar a permanência da produção cultural,
porém a experiência aber ta e transformação constante devem ser elementos intrínsecos à
13. vida institucional. O público não se sentirá convidado e estimulado se adentrar num pseudo-
APL. Como vocês pensam que se dará a memória de Com Destino? E talvez como imaginam cemitério onde somente estão restos materiais para um culto anestesiado. A recente atenção
uma futura exposição em locais oficiais da Ar te? É possível revelar uma crítica institucional dada à formação de acervos postais faz transparecer como após mais de 40 anos ocorre um
por meio do Com Destino? Como isso se dá? novo olhar ao fechamento imposto pela ditadura. Mais uma vez os ar tistas, como termômetros
de seu tempo, conseguiram pela produção postal não deixar de falar...e reforçando o coro
A&B. Com Destino é algo presente, ainda não paramos pra pensar na memória... o trabalho com Bruscky, a comunicação é impor tante tanto na Ar te quanto na Instituição, ela é o meio
segue!... para que trocas e aber turas ocorram.

Com Destino se dá independentemente de qualquer instituição, fazendo funcionar outro A&B. Sim Ana, isso é super impor tante, e também nos faz pensar nas relações possíveis entre
circuito apesar de tangenciar questões institucionais. todas essas par tes, mesmo por que, instituição, curadoria e ar tistas, não são todos par te de
uma mesma instituição ar te? Quando existe uma verdadeira aber tura para a comunicação
Uma futura exposição em locais oficiais da ar te? Não sabemos ainda ao cer to, se o ponto e troca, essas par tes realmente só podem se enriquecer, e criar projetos interessantes
‘Destination Specific’ estaria presente em tal mostra, o movimento do trabalho poderia juntos, de forma a alastrar essa comunicação também para o público... mas você bem sabe
parecer engessado, não é isto que acontece, com a ar te postal em geral, quando apresentada que essas situações são muito raras e que geralmente cada um está ali defendendo os seus
em forma de exposição institucional, fora de seu contexto original? Talvez você Ana, possa próprios interesses, mais burocráticos que qualquer outra coisa...
comentar melhor a esse respeito!...
Mas, voltando a tua outra questão, de qualquer maneira, já consideramos o arquivo de Paulo
APL. Pois é, há acervos de ar te postal institucionalizados e muitas vezes a preocupação Bruscky como uma quase instituição oficial. Quando futuramente for sobreposto à alguma
com a materialidade fica em primeiro plano fazendo sombra sobre a dinâmica do trânsito, da outra já serão outras questões...
relevância da informação e comunicação ai contidas. Paulo Bruscky já indicou em 1976 que

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E também não somos do tipo que nega as instituições oficiais. Salto para um mundo cheio de deuses*
Aliás nós adoramos as instituições de todos os tipos pois elas nos servem de inspiração, Mario Ramiro
material de trabalho, diálogo, supor te...

Critica institucional? Embrulhada pra presente! A relação de mais de duas décadas entre o filósofo Vilém Flusser e a Bienal de São
Paulo, documentada por meio de sua correspondência, arquivada na Escola Superior de
Arte e Mídia de Colônia (na Alemanha), pode nos oferecer uma idéia bastante abrangente do
engajamento cultural e da forma de exercer a filosofia desse intelectual polêmico e ousado
no seu estilo de pensar, falar e escrever sobre temas que, segundo ele, estavam remodelando
toda a história do Ocidente.
As suas várias tentativas de coordenar um projeto de reformulação da estrutura da
Bienal de São Paulo, nos anos 70 e 80, demonstram também a sua vontade de poder integrar
o Brasil na cena internacional, transformando a “periferia” em modelo para o mundo. Em
todos os momentos em que se envolveu com o assunto, Flusser concebeu a Bienal de São
Paulo como um laboratório mundial para a criação de uma verdadeira “cultura de massas”.
Seu primeiro projeto, elaborado nos anos 70, pretendia aglutinar num trabalho de pesquisa
criativa artistas, críticos, teóricos e especialistas em comunicação, na concepção de um
setor da Bienal que, segundo ele, poderia “ter sua importância sempre aumentada até
transformar-se talvez na própria Bienal”.
Em 1971, Flusser apresentou à Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA) sua
primeira proposta para uma reformulação da estrutura da Bienal. Em seu texto ele afirmava
que: “as Bienais têm obedecido a estruturas “discursivas”, relegando o consumidor [o
público] a mero receptor das mensagens. As Bienais nunca estabeleceram conscientemente
que tipo de mensagem desejam transmitir: se querem comunicar ao máximo, se querem
informar ao máximo, ou se querem procurar um ótimo meio termo”.
Como alternativa para superar esse impasse ele propunha três itens: “1) estudar
um método de fazer participar o consumidor da programação das Bienais futuras,
transformando-as de “exposições” (na realidade: “imposições”), em diálogos com feedback;
2) decidir provisoriamente se a meta da próxima Bienal é informar (apresentar máxima
originalidade), ou comunicar (apresentar alguma originalidade em ambiente parcialmente
redundante); 3) instituir um grupo de comunicólogos (inclusive sociólogos, psicólogos etc.)
que acompanhem constantemente os trabalhos preparatórios e executivos das Bienais
futuras”.
No ano de 1972, Flusser seria chamado por Francisco Matarazzo Sobrinho, presidente
da Fundação, para elaborar o projeto de regulamentação da Bienal, atendendo assim às
resoluções deliberadas pela Associação Internacional de Críticos de Arte. É a partir daí que
se inicia um relacionamento de colaboração e luta entre o filósofo, hoje reconhecido como
um dos mais emblemáticos pensadores do final do século XX, com a mais importante Bienal
das Américas.

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O projeto encabeçado por Vilém Flusser propunha que a vinda para a Bienal de sentia-se envergonhado por ter que admitir isso. “Eu não tenho jeito para insistir em coisa
São Paulo não fosse de obras, mas de equipes especializadas em trabalhos estéticos, “com tão vergonhosa [pois] parece que estou pedindo, quando na realidade continuo botando
aplicabilidade prática nos mais variados campos de atividade”. Ele havia sugerido que as dinheiro [no projeto] sem tê-lo”. E, apesar de tudo, ele ainda dizia, “continuo entusiasmado,
representações nacionais deveriam ser compostas por artistas, teóricos, museólogos e a despeito. Não largarei tão cedo, agora que a coisa está quase ao alcance da mão, e pode
especialistas em comunicação de massa para a elaboração das diretrizes do evento. Ele vir a ser um evento sem paralelo. (...) Creio que devemos dar tudo agora, já que se trata
afirmava que o efeito desse projeto “deverá ser de impacto imediato nos campos de atividades de oportunidade que não voltará tão cedo. Não se deixe desanimar por dificuldades que
escolhidas (laboratórios, escolas, indústrias etc.), tanto no Brasil, quanto no estrangeiro”. surgem sempre quando se trata de realizar coisa séria. Eu também as tenho”.
Uma dessas propostas, intitulada “Ambiente humano diário”, de Manfred Eisenbeis e
Alexandre Bonner, do Institut de l’Environnement de Paris, procurava enfocar o ambiente de Na sua correspondência com “Ciccilo” Matarazzo, Flusser passa, em poucos meses, do
trabalho na indústria e nos escritórios, a partir de pressupostos estéticos. Outra enfocava os entusiasmo à inquietude ao sentir a relutância do Conselho da Fundação Bienal quanto ao
problemas artístico, arquitetônico e urbanístico da “janela”; enquanto outra seria referente projeto. Ele dizia ter assumido “vários sacrifícios” de bom grado, esperando, naturalmente,
à “escola”, além dos trabalhos de elaboração de um novo símbolo para a Bienal. “o apoio moral, legal, financeiro e administrativo” para seus esforços. Flusser solicita de
Em seu projeto para “Uma Organização das Futuras Bienais em Base Científica”, Matarazzo uma posição a esse respeito: “Considere, ao me fazer sua proposta, que não viso
Flusser vai defender a criação de um espaço de comunicação que tire os “detentores da lucro no meu empenho, mas que, de outro lado, não posso arcar com a totalidade de prejuízo
cultura” do seu isolamento, como também fazer com que a arte volte a ter “influência proveniente do abandono temporário das minhas fontes de renda no Brasil”.
significativa na vida diária do homem moderno”. A ruptura do isolamento dos “detentores da Como filósofo, ele procurava deixar claro qual era a sua intenção de trabalho: “Deve ser
cultura” -- os emissores e transmissores dos códigos culturais -- tinha por objetivo criar uma esclarecido o seguinte: o aparelho legal e administrativo da Bienal não me interessa, (...) já
rede de interações entre artistas, críticos, teóricos, políticos, economistas e comunicadores, que não viso ser empregado da Bienal. O que me interessa, isto sim, é a realização do meu
com uma massa de “receptores” formada pela juventude acadêmica, estudantes das escolas projeto. Para tanto preciso ter a certeza que as minhas iniciativas serão transformadas em
secundárias, a classe média e os trabalhadores, “ainda não substituídos definitivamente realidade pela Fundação Bienal. Não quero uma confirmação legal de minhas funções, mas
pela automação”. a certeza de que as minhas iniciativas terão a ressonância devida.”
Mais do que uma grande feira internacional de artes a Bienal de São Paulo poderia Ao final de 1972, depois de muitas cartas e telegramas enviados e das muitas promessas
se transformar num fórum cultural com implicações mais profundas na vida de todos que abandonadas pela presidência da Fundação, Flusser se desliga definitivamente de
dela se aproximassem. suas funções. Suas idéias foram apenas parcialmente integradas ao “Laboratório de
Ao retornar no início dos anos 70 para a Europa, Flusser irá manter, de Genebra, Comunicações”, um dos “núcleos” expositivos da 12. Bienal Internacional de São Paulo,
uma intensa correspondência com o Ministério das Relações Exteriores em Brasília, com a inaugurada em 1973.
presidência da Fundação Bienal em São Paulo, com vários curadores de museus europeus,
com artistas, com a imprensa internacional e com seus dois assistentes na capital paulista,
Gabriel Borba e Alan Mayer. Um modelo para o mundo
A manutenção dessa rede transoceânica acabou gerando uma carga enorme de trabalho
para um homem envolvido ainda com conferências, publicações e com o trabalho constante
à frente da máquina de escrever; pois como intelectual, Flusser mobilizava seu pensamento Mesmo depois de sua primeira tentativa frustrada, Flusser parecia disposto a se
como uma fonte de renda para si e sua família. engajar num novo projeto cultural que colocasse o Brasil à frente da cultura internacional.
Em carta de novembro de 1972, endereçada a Gabriel Borba, ele afirmava que com relação Em agosto de 1981, ele preparou um texto, intitulado “Encontro: analogia das linguagens”,
ao dinheiro, as coisas o preocupavam. “São coisas ridículas que me faltam (comparadas no qual apresentava a sua participação na 18. Bienal de São Paulo como convidado para um
com a importância da Bienal), mas podem destruir tudo. Não é inacreditável?”. Numa ciclo de conferências e como um de seus “animadores” já que, por seu intermédio, haviam
outra carta, Flusser dizia não poder enviar toda a documentação referente aos projetos sido convidados dois artistas franceses, Louis Bec e Herve Fischer.
que ele havia sugerido, por falta de dinheiro. Ele, como qualquer um numa situação dessas, Procurando ampliar as discussões sobre as “analogias de linguagem”, Flusser

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convidou um grupo de artistas, cientistas e críticos de arte para um encontro informal na eles o preço da alienação individual e coletiva. Poderá saldar tal dívida apenas se conseguir
aldeia provençal em que vivia, para participar de um “laboratório de idéias”, com o objetivo elaborar modelos alternativos, e exportá-los para o Ocidente”.
de preparar um elenco de sugestões a ser discutido na Bienal de São Paulo e servir como Nessa perspectiva, o país não precisaria perder tempo seguindo os passos dados
uma espécie de suporte teórico, visando as mostras futuras, tal como ele já havia definido pela Europa no longo processo de alfabetização das massas. Como ele disse em 1988, numa
no terceiro item de sua proposta de 1972. de suas palestras do ciclo “Casa da Cor”, em São Paulo, o Brasil poderia dar um salto sobre
Flusser havia preparado um breve discurso para a abertura desse encontro e esse processo histórico linear e emergir diretamente no novo contexto regido pelas imagens
esperava que a sua divulgação pudesse interessar às pessoas que se sentissem “desafiadas técnicas. O evidente fascínio do brasileiro pelos meios audiovisuais (rádio e televisão), já lhe
pelo tema a ser dialogado”. Ele parecia sentir uma certa urgência em aproveitar o momento parecia ser uma prova de que no país haveria uma pré-disposição “inata” para o pensamento
e o contexto histórico-geográfico em que se encontrava, que lhe proporcionava um “campo relacional, ‘mosaical’ e mágico; uma pré-disposição em construir redes entre os homens
para reflexões com espírito calmo e em clima de liberdade”. O encontro seria ainda motivado num “mundo cheio de deuses”.
pela perspectiva, já apontada em seus textos e palestras, de que as novas formas de trabalho
emergentes nas sociedades do ocidente já estariam produzindo uma mudança do foco de Mas apesar de todas as tentativas encaminhadas às várias presidências e curadorias
atenção, até então colocado sobre os objetos, para uma nova categoria “desmaterializada” que passaram pela organização da Bienal, nenhuma alteração substancial proposta pelo
de arte. Com o interesse cada vez mais voltado para a própria informação, seria necessário filósofo chegou a ser incorporada ao programa dessa grande mostra. Mesmo tendo a
iniciar uma discussão urgente, estimulada pelo trânsito das informações “em quantidade e sorte de contar com o entusiasmo de um intelectual como Vilém Flusser, empenhado em
variedade por ora inimagináveis”. Nesse cenário, as “analogias de linguagens” se tornariam oferecer uma alternativa cultural que se irradiasse do Parque do Ibirapuera para o mundo,
um dos problemas centrais da vida cotidiana: um estágio a partir do qual o “nó” entre “arte” a impressão que fica é a de que ainda temos muito trabalho pela frente, para fazer da Bienal
e “vida” estaria desatado. de São Paulo “um fórum cultural com implicações mais profundas na vida de todos que dela
Ele considerava que a preponderância das imagens técnicas (fotografias, tv, filme, se aproximem”.
vídeo e as imagens computadorizadas), como meios de transporte das informações, estaria
substituindo a língua falada e escrita no seu papel de veículo das informações decisivas
às necessidades culturais. Na sua forma de pensar, o que caracteriza a nossa sociedade
é o “pensamento linear, histórico, conceitual e computacional“ (calculador), e esse fator,
preponderante nas culturas do Ocidente, já estaria sendo desafiado por outras formas, “pelo
pensamento em mosaico e pelo pensamento ‘imaginístico’, mágico, das tecno-imagens”.
Para ele, trazer essa discussão para o núcleo central da Bienal de São Paulo
significava poder transformar todo o enorme capital de trabalho, dinheiro e inteligência
nela investidos, “num centro modelar, não apenas para o Brasil, mas para a atualidade
toda”.
No ínicio dos anos 80, o filósofo parecia ter sido novamente tomado pelo mesmo
entusiasmo da década anterior, ao vislumbrar a possibilidade de surgimento de uma nova
cultura, de “um novo homem” no Brasil. Além do que, essa reformulação da Bienal num
“centro modelar para a atualidade” seria uma das formas que o Brasil teria de “saldar” a sua
dívida externa. Sobre isso ele já havia escrito: “Os modelos que o Brasil emprestou da Europa
e dos Estados Unidos, e os que continua emprestando (modelos de automóveis, de usinas
atômicas, de sistemas econômicos e administrativos, de modas, de sociedade, de filosofias,
de cultura de massa e da elite) são todos modelos ligeiramente ultrapassados e cobrados
excessivamente”. Para ele, “o Brasil importou modelos imprestáveis, e está pagando por
*Uma primeria versão reduzida deste artigo foi publicada no Caderno mais!, da Folha de S. Paulo, em 26 de maio de 2002.

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são tantas as imagens ....
Valzeli Sampaio

O computador é uma ferramenta? A afirmação desta pergunta implica dizer que o


computador é um objeto autônomo que podemos dirigir, um objeto que podemos escolher
usar ou não usar. Analogamente isso significa dizer que um carro é somente um veículo.
Nós sabemos que o carro é muito mais; é uma força presente em nossas vidas, em nossa
sociedade, e no mundo. Eu não dirijo e não tenho carro mais sei que as minhas escolhas,
como o lugar onde moro, a comida que eu como, a minha imagem pessoal – tem sido
afetada, se não, governada pela existência do carro. Parece radical, mas a existência
do carro é uma coisa fundamental para a nossa percepção de distância, por exemplo,
no enunciado: “eu moro a três mil quilômetros de distância daqui”, essa mensuração é
definida pelo carro.

Esta percepção do espaço-tempo não é comparável ao modo como o computador afeta nossa
percepção da distância. O computador nos tornou muito mais próximos, disponibilizando
informações, lugares de difícil acesso, pessoas conhecidas e desconhecidas. E, para, além
disso, inaugura a percepção de um espaço polidimensional da informação, e também das
relações que fomentam a criação e a troca em espaços coletivos, multiusuário, espaços
sem centros.

Quando focamos o computador como uma ferramenta, nós deixamos de ver as mudanças
de ambientes educacionais, nos escritórios, nas mídias de comunicação, na imediaticidade
da informação, em outras palavras, os brotos que rebentam para além do computador
como ferramenta.

A implicação é poderosa. Se focarmos o modem, por exemplo, como uma simples ferramenta
para transmitir arquivos, nós não vemos o modem como uma parte da infra-estrutura de
informação, que tem alterado a definição de trabalho como nós conhecemos. E nós não
vemos como uma força, que pode mudar onde nos vivemos e o que fazemos para viver.

Pensando ainda de forma análoga. Poderíamos colocar o computador em um campo


diferente? Onde ele poderia estar fora do seu contexto? Eu projeto a sua existência em
contextos como no topo de uma montanha remota, num barco perdido no alto do rio
Amazonas, nas escolas públicas de Joanes, vilarejo do arquipélago do Marajó, no norte do
Pará, no Brasil. Depois deste exercício de abstração, eu não consigo pensar em nenhum
lugar no qual o computador de uma forma ou de outra, poderia ser implausível.

Observando um outro aspecto da expansão do uso das mídias digitais e de comunicação


é o do discurso difundido de que a aquisição dos novos produtos tecnológicos representa
o progresso, e estas novas tecnologias dirigem sociedade contemporânea e digital. A
idéia corrente é que ser contemporâneo é uma operação acessível a todos através dos
mais recentes avanços tecnológicos. A publicidade pressiona e persuade para adesões ao
progresso, e isto é mais verdadeiro e possível através do computador.

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Ver um computador como uma ferramenta sugere que ele existe para atender as nossas que percebemos as coisas no mundo, as significamos, e, na mesma velocidade devolvemos
intenções a partir de nossas escolhas. Acredito que estamos além da escolha se permitimos a essa rede movediça, líquida, o nosso mundo íntimo, privado em tempo real.
ou não os computadores em nossas vidas, assim como, estamos além da escolha se o carro
é ou não parte de nossas vidas. Se olharmos esta expansão digital como uma miríade de Pouco se sabe sobre as formas de percepção dessas novas tecnologias digitais na cultura
pequenos pedaços interconectados dentro de um sistema, nós estaremos aptos a conseguir contemporânea, mas buscando uma analogia dos impactos do computador, a convergência
uma visão clara do que queremos neste sistema. dessas tecnologias aponta para a reconfiguração do espaço simbólico contemporâneo.

Vivemos hoje o rápido desenvolvimento de tecnologias complexas disponibilizadas como No momento do surgimento da tecnologia do cinema e da fotografia veio na bagagem da
ferramentas que nos permitem manipulá-las em acessos remotos, mas não paramos para novidade, temores, dúvidas e novas certezas, o mundo passou a ser visto do ponto de vista
avaliar o quanto elas reorganizam as nossas vidas. desses novos meios de comunicação. Essa nova maneira de ver o mundo também afeta
a maneira que nós o percebemos e que narramos nossa experiência no mundo. Muitos se
O computador não é uma ferramenta, assim como o carro não é um veículo. Eu insisto nesta perguntaram sobre o que acontecia com a inserção destes novos meios. Walter Benjamim,
afirmação porque se nos permitimos por um momento a vê-los como ferramentas, nós por exemplo, pensando sobre a fotografia e o cinema apresentou-nos um cenário crítico
ignoramos as ramificações proporcionadas por eles que controlam nossas vidas. Pergunto- que envolvia o rebaixamento da cultura, o rebaixamento da informação, e o aparecimento
me quão profundamente estamos afetados pelos computadores e suas extensões, como de uma nova forma de narrar o mundo. Para ele modificou-se a relação que tínhamos
os sistemas de comunicação. Considerando as novas formas de espaço de trabalho, de com a arte, e o surgimento da fotografia e do cinema provocou a reinvenção da estética
diversão e de comunicação que construímos para nós mesmos. Nosso meio ambiente está e a doutrina do belo. Essa revolução nos meios tecnológicos de produção de imagens
modificando-se e acomodando-se às novas demandas das mídias digitais. modificou o modo como pensávamos a arte, por exemplo, se resignificou a filosofia da
arte, abandonando-se a teoria do belo. A estética passou a ter um caráter de uma teoria
Num nível superficial, o telefone celular é uma ferramenta de reconfiguração para da percepção.
transportar pessoas e bens, e o computador é uma ferramenta de reconfiguração para
análise e tradução da informação de uma forma para outra. Mas, ainda são aspectos Pensar a estética como uma teoria da percepção retoma o sentido da palavra aiesteisis,
superficiais destas mudanças. Se observarmos mais atentamente, podemos ver que o na origem desta palavra está a percepção e não o belo, a aestesisis é percepção. Na
carro modificou a forma como construímos o nosso meio ambiente, e o computador mudou origem da palavra percepção existe uma ligação com um impacto e com uma idéia que
a maneira como vivemos e trabalhamos neste ambiente. Agora, talvez, o telefone celular me ocorre a partir dele. Diferentemente as sensações são definidas pelos nossos sentidos
esteja mudando a maneira como vivemos entre nós, como nos relacionamos, e como doce, amargo, quente ou frio, úmido ou seco, caloroso ou ríspido... As máquinas reformam
produzimos imagens. a nossa percepção do mundo, ou seja, reconfiguram a maneira que somos impactados por
elas.
A convergência de tecnologia digital e da telefonia móvel vem provocando um fenômeno
que vem modificando a nossa forma de estar no mundo. Estamos imersos neste fenômeno O olhar que dirigimos ao mundo está cada vez mais mediado pelas máquinas, e o mundo é
da frenética produção de imagens digitais. E a percepção dessa produção se dá não mais cada vez mais percebido pelos aparelhos. Existe, portanto, uma valorização da percepção.
em termos de movimento, mas em termos de largura de banda. A realidade vem sendo percebida através das máquinas: a bússola, o telescópio, a fotografia,
o cinema o rádio, a televisão, o raio x, as ressonâncias magnéticas, a Internet, a realidade
Os celulares com suas micro-câmeras de baixa resolução nos fazem reviver os primórdios virtual... Os aparelhos aproximam a distância entre nós e as coisas no mundo, entre nós
da fotografia. A maioria das câmeras acopladas nos celulares tem a resolução muito próxima e o nosso universo particular de hemácias, hemoglobinas, veias, músculos e ossos. Neste
das primeiras tentativas de registrar a imagem, que acabou originando a fotografia. campo de conhecimento o desenvolvimento é muito rápido, aparelhos cada vez menores
Compreender a câmera do celular como uma ferramenta é percebê-la meramente como e baratos transformam o state-of-the-art dos sistemas de imagens na área da saúde.
outra fase na história do desenvolvimento dos meios de comunicação. São desenvolvidos base de dados digitais com sistemas de arquivamento de imagens
usadas nos departamentos de radiologia de hospitais pemitindo inúmeras facilidades e
Podemos assimilar uma evolução técnica óbvia: crescimento da resolução, melhores lentes, adaptações às necessidades da medicina. Tradicionalmente, um radiologista, olharia um
mais produtos. Esta é uma história previsível. O que não se pode prever é a maneira como raio x através de uma mesa de luz, hoje em dia, os exames de imagem são avaliados
estas mídias vêm afetando consumidores, profissionais e usuários. Qual será o impacto eletronicamente e podem facilmente ser disponibilizados em redes abertas de hospitais,
no campo da fotografia, na percepção dos indivíduos, na produção da arte? Estamos clínicas, e atravessarem regiões.
criando e recriando formas de entender, de perceber o mundo através de imagens? Como
digerimos essa combinação de produto e mobilidade? As câmeras de celulares implicam

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Esses equipamentos não apenas deslocam o aspecto natura do mundo, mas mudam a deste mesmo indivíduo.
percepção do mundo. Reestruturam a percepção do mundo que passa a ser mediada pelos As máquinas configuram nosso espaço-tempo, nossas relações e identidades. Esse novo
aparelhos. É a perda da aura da percepção, e passamos a ter uma outra relação com essa sujeito modelado pelas máquinas mantém, paradoxalmente, a mesma relação entre imagem
perda, essa ausência coloca uma urgência na linguagem do moderno que é uma escrita da e imaginação daquele incógnito homem das cavernas que registrou à posteridade a sua
imagem. A moda, a arquitetura, o design passam e ler aquilo que nunca foi escrito. Existe experiência no mundo. Nesse sentido, são tantas as imagens que mediam nossa existência
uma libertação da escrita na forma do livro, e surgem outras formas de escrever as nossas no mundo, que nos revelam e nos ocultam que nos enganam que nos lançam numa busca
experiências no mundo diversas do livro. As técnicas da reprodução contribuem para esse apaixonada da imagem, e mergulhamos como narcisos, no abismo.
processo. Fotografia provocou a desauratização da percepção, remetendo-nos a questões Por essa relação de amor e curiosidade com as coisas, somos capazes de produzir a ilusão
ontológicas, como por exemplo, a questão do ser. de humanidade, como o fez Bioy Casares. A cada novo meio reinventamos o nosso amor
pelas coisas e cessamos a experiência vazia de significados produzida pela eterna repetição
Na mesma medida, as novas mídias digitais nos libertam das referências, do mundo das imagens, como aquelas projetadas pela máquina de Morel foram interrompidas pelo
mimetizado, apontando-nos para espaços de simulação. E passamos a perceber o mundo fugitivo, que mergulha sem medo na busca por Faustine.
através de outros, outros espaços, outros lugares. Passamos a organizar um outro tempo-
espaço que é criado pelo gesto que consome o tempo. Paul Virilio 1 define o nosso tempo “Minha alma ainda não se tornou imagem; do contrário, eu haveria morrido, haveria deixado
como a era paradoxal, quando a imagem atinge a alta definição, não apenas na resolução de ver (talvez) Faustine, para estar com ela em uma visão que ninguém recolherá.” 2
técnica, mas, sobretudo como substituição do real. A imagem define o real, portanto o
absorve e o elimina. Nesta era o tempo real prevalece sobre o espaço real, a imagem
prevalece sobre o objeto. Tudo fica reduzido ao tempo. No decorrer das eras passamos da
eternidade à instantaneidade. Neste tempo absoluto fundem-se imagem e objeto em uma
imagem virtual.

A imagem virtual não é o registro de um momento passado, não está inscrita em qualquer
suporte, não é presentificação de uma ação passada, não é a presença de um tempo
distinto. A realidade virtual é a presença do objeto em tempo real tendo como único
suporte a memória visual.

Com as novas mídias digitais a forma de percepção e de cognição desloca-se de uma


cultura de sensibilidade de leitor, telespectador, espectador para uma cultura de usuário
e interator. O mundo que resulta disso não pode ser mais o mundo da harmonia, de formas
perfeitas, e o que nos retorna é o mundo dionisíaco, despedaçado. O mundo que volta é um
mundo percebido em detalhes e em fragmentos. A ordem e a temporalidade são explodidas.
Da mesma forma que existe um inconsciente emocional - que é o nosso aparelho ótico,
existe outra percepção do mundo através dos novíssimos aparelhos digitais que explodem
nas mais diversas áreas do conhecimento. Passamos desta forma a construir outra forma
de estar e perceber as coisas no mundo.

Essa idéia de construção significa ergue outro sujeito, outra identidade. E a existência só
se constitui nessa relação, eu e o outro e as inúmeras formas de mediação dessa relação. Notas:
Essa nova identidade é formada pela interação entre a sociedade e as novas identidades 1. Virilio, p. 1980
2. Casares, 2006.
deste sujeito pós-industrial, que são várias. Para esse sujeito não existe mais uma única
identidade, a identidade segura e coerente é uma fantasia.
Referências Bibliográficas:
Estar total ou parcialmente deslocado em toda parte, não estar totalmente em lugar Casares, Bioy, “ A invenção de Morel”.-São Paulo: Cosac & Naif.- 2006.
Virilio, P. Lésthétique de la desaparition. Paris: Galiée, 1980.
nenhum pode ser uma experiência desconfortante e perturbadora. As novas máquinas que Banjamim, Walter. “Pequena História da Fotografia”., “A obra de ar te na época da sua reprodutibilidade técnica”,in: “Walter Benjamim-
mediam as relações do indivíduo com as coisas no mundo contribuem na desterritorrialização obras escolhidas-volume1. Magia, Técnica, ar te e política- ensaios sobre literatura e história da cultura”:Brasiliense, 1993.

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Rubens Mano

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Vorazes, grotescos e malvados
Christine Mello

“Faça uma pintura doente


ou um readymade doente”.
Marcel Duchamp, em Green Box

Desconcerto. Angústia. Repulsa. Cada sociedade vivencia a seu modo a tradução


desses sentimentos. Não se trata de crise, trata-se do enfrentamento da obsolescência
dos sistemas organizados pelo homem e de um momento de expansão de suas formas
expressivas. É quando o mundo causa a impressão de ser a sua imagem vista pelo
ângulo da loucura, do alternativo, do extra-oficial.

Tente pensar na realidade em que você vive. Tente pensar para além dos espaços
protegidos em que habita. Tente pensar pela lógica do estranho. Que atitude você
escolheria? Irônica? Carnavalesca? Contraditória?

Neste século XXI, vivemos em uma sociedade sob o signo da violência e da


vulnerabilidade, que se oculta sob falsas noções de proteção e privilegia os
interesses privados em detrimento de uma construção mais coletiva de realidade.
Em contraponto, é possível observar manifestações singulares que enfrentam essas
questões por meio de sentimentos ora cínicos, ora de indignação. No universo
expressivo, também encontramos, em situações repletas de tensão, pequenas ações
ou atitudes desestabilizadoras da visão vigente. Elas possuem a capacidade de
movimentar e afetar as realidades que tocam.
No contexto das práticas artísticas emergentes produzidas hoje no Brasil, temos a
sensação muitas vezes de vivenciarmos experiências sob a lógica da neutralidade
e da imparcialidade, como se tais circunstâncias de vida não tivessem o poder de
afetar domínios sensíveis e poéticos. Cabe, portanto, conhecermos onde residem
certos gestos anômalos que nos aproximem de um mundo diverso do oficial.

O espaço dessa discussão foi apresentado sob a forma de um projeto curatorial


(realizado em São Paulo, no Paço das Artes), em outubro de 2005, que parte do
filme Feios, Sujos e Malvados (Brutti, Sporchi e Cattivi), realizado em 1976 pelo
italiano Ettore Scola. Nele, o ator Nino Manfredi partilha, com seu sarcástico
personagem Giacinto, substratos da periferia romana. É do núcleo de uma família de
aproximadamente 20 pessoas, reunidas em um mesmo barraco, que seu personagem
procura defender o dinheiro que recebeu como indenização pela perda de um olho.
Para empreender tal jornada, Scola opta por um personagem de caráter irônico,
encontrado freqüentemente no cerne do realismo grotesco.

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Práticas curatoriais como práticas de observação e discussão Inconformados e impuros

“Vorazes, grotescos e malvados” diz respeito a uma prática curatorial realizada como Inconformados e impuros: é dessa maneira que artistas como Carlo Sansolo e Erika
exercício de observação da realidade em que vivemos. Nessa direção, procura abrir Fraenkel, Dora Longo Bahia — acompanhada de Aline van Langendonck, Amanda
um espaço para a discussão de instâncias de tensão da vida contemporânea, tomando Mei, Ana Elisa Carramaschi, André Drokan, André Komatsu, Andrezza Valentin, Dario
como princípio problemas de valor e postura em práticas artísticas que coabitam Felicíssimo, Fellipe Gonzalez, Hugo Frasa, Letícia Larín, Marcelo Cidade, Mariana
universos sociais e políticos permeados de perda de controle e precariedade. Nesse Juliano, Marie Lanna, Mauro Giarda, Naiah Mendonça, Nicolas Robbio, Olívia Helena
âmbito, as escolhas são baseadas na atitude e no modo como alguns criadores vêm Sanches, Paula Garcia, Renata Har, Thais Albuquerque e Wagner Viana — luiz duVa,
se articulando em torno dessa realidade diversificada. Eles foram escolhidos porque Marcelo Cidade e o VJ Spetto mostram suas experiências desestabilizadoras.
revelam uma inteligência voltada ao inconformismo, à hibridez e à desorganização
das formas. No campo das estratégias sensíveis da arte contemporânea, há o convívio dessas
manifestações com aquilo que Edmond Couchot denomina “desespecificação das
As circunstâncias observadas dizem respeito a processos de degeneração e violência práticas artísticas” e que revela, segundo ele, uma hibridação generalizada, estendida
social, de corrosão do sentimento ético, tanto no campo da macro quanto da agora a todo universo dos modelos fornecidos pela tecnociência. Por meio desse
micropolítica. raciocínio, podemos compreender uma nova forma de organização das proposições
artísticas que denota ondas expansivas e libertárias. Tal circunstância é assumida
Nesse fluxo de vivências instáveis e imprevisíveis, é possível notar que algumas como uma forma de instaurar uma visão particular de mundo e furar bloqueios na
ações artísticas desenvolvem-se em plena zona de risco. Trata-se de uma metáfora constituição de um percurso alternativo nos universos de linguagem.
para a compreensão de um mundo desmontado. Como um método de intervenção
e reversão às normas estabelecidas, tais ações apresentam-se como uma nova Essas circunstâncias são também observadas nas novas sensibilidades fornecidas pelo
perspectiva artístico-política, estabelecida entre a esfera pública e a privada. Dessa mundo urbano-digital das transmissões e construções ao vivo. Nelas, as mudanças
maneira, é acentuado o fato do universo criativo não ocupar, na sociedade, um papel de percepção são redimensionadas pelas dinâmicas sociais nômades e online das
complacente e sim assumir uma postura crítica e uma força desestabilizadora capaz redes de comunicação. Trata-se da condição contemporânea de “viver intensamente
de originar gestos de insubordinação e novos processos de subjetividade. o tempo presente”. O filósofo Horácio usava o termo carpe diem para designar a
prática de aproveitar o presente sem pensar no futuro. Já para o filósofo Vilém
Para a crítica de arte e psicanalista Suely Rolnik, a resistência, hoje, tende a não Flusser, o tempo é abismo em nossa sociedade pós-industrial. É como um vórtice
mais se situar por oposição à realidade vigente, numa suposta realidade paralela, do presente que suga tudo. Para ele, o presente é a totalidade do real, instância em
mas seu desafio é “enfrentar a ambigüidade desta estratégia contemporânea do que todas as virtualidades se realizam. Em extensão às idéias de Horácio e Flusser,
capitalismo, colocar-se em seu próprio âmago, associando-se ao investimento do verificamos hoje que viver o tempo presente é viver sugado pelas suas múltiplas
capitalismo na potência criadora, mas negociando para manter a vida como princípio realidades vorazes, traduzidas como verdadeiros espaços virtuais de constituição do
ético organizador” 1. Do abismo, como num momento de transição, os criadores aqui sujeito na contemporaneidade.
reunidos discutem problemas de valor nas práticas artísticas sob esta nova lógica
e assim plasmam seus universos vorazes, grotescos e malvados. Vorazes porque Às indagações sobre a “espetacularização” da sociedade e seus rituais coletivos,
devoram, subvertem ou consomem a realidade em tempo presente; grotescos Carlo Sansolo e Érika Fraenkel respondem com o riso nervoso e a paródia em Abject
porque são incompatíveis com as normas preestabelecidas da linguagem e revelam Station – Jueguitos (2005). Nesse projeto instalativo, eles assumem o universo das
a expansão das formas expressivas; malvados porque enfrentam constantemente imagens que circulam na Internet, dos brinquedos infantis e do videogame como
os circuitos de risco da produção artística, posicionam-se diante de suas idéias banalizadores da violência e capazes de alternar ternura e ódio. Como um pequeno
e são como vozes destoantes no cenário brasileiro por suas atitudes, modos de espetáculo produzido a partir de noções de precariedade e agressividade, simulam,
comportamento e reflexão social. nesta obra, ambiências e organicidades desordenadas — como uma cápsula dentro
de outra cápsula — tanto quanto questões demolidoras relacionadas à produção
Como pequenas subversões que determinam novos processos de linguagem, faz parte simbólica e à imbecilização dos discursos filosóficos na contemporaneidade.
da estrutura dessas práticas que a nossa orientação de mundo falhe. Muitas de suas
experiências desenvolvem-se como intervenções críticas entre o espaço institucional Com a visão dirigida à desmaterialização e ao disforme, Dora Longo Bahia dá
e não-institucional da arte, ou como um antídoto às normas preestabelecidas de prioridade ao processo, não ao produto final, e ironiza os paradigmas tradicionais
linguagem. de autoria, curadoria, exposição e mercado de arte. Para tanto, ela gera, em ( )

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(2005), uma espécie de apologia da deriva ao empreender uma subcuradoria e de acordo com as gramaturas imagéticas depositadas nas telas. É neste conjunto de
propor uma ocupação cíclica e colaborativa, a partir do convite feito a um conjunto ações disformes, estabelecidas com a linguagem, que reside o risco da invenção em
de jovens artistas para criarem dezesseis exposições individuais de um dia (das 17 sua obra, à medida que essa pulsão de síntese dá uma autonomia à imagem perante
às 19 horas). Além disso, solicita a entrada gratuita no Paço das Artes no horário as suas estruturas narrativas e performáticas. Por meio dessa vivência experimental,
das vernisages, gera um fanzine e um bar no espaço institucional, disponibiliza ao luiz duVa nos sinaliza que não é a nossa subjetividade que explica essas imagens e
público instrumentos de rock para sessões abertas aos sábados e exibição de filmes sons, mas é a partir delas que teremos acesso a essa subjetividade.
com pipoca aos domingos. Tais experiências ocupam um lugar extra-oficial no interior
das articulações institucionais. Ao utilizar-se de tais ações, ela opera nesta obra por Marcelo Cidade apresenta dois trabalhos que coexistem na chamada intertextualidade:
meio de construções em abismo (como a curadoria dentro da curadoria e a exposição a presença de uma confluência de vozes entre eles e o restante da exposição, e a
dentro da exposição), elevada agora à dimensão desconstrutiva do próprio circuito presença de um fluxo de respostas entre todo o conjunto possui a capacidade de
da arte. significar por meio da dialética existente entre uns e outros. Um desses trabalhos é
Intramurus (2005) — uma intervenção com cacos de vidro, instalados ao longo do alto
Longo Bahia traz o humor e a transgressão (ou a carnavalização), fruto de suas dos painéis existentes no espaço expositivo do Paço das Artes — e o outro Quando
investigações em torno da definição da arte como jogo, símbolo e festa do filósofo Não Há Diálogo (2005). Este último, é um vídeo de sete minutos que aborda uma
alemão Hans-Georg Gadamer. De sua pesquisa, traz conceitos de Gadamer, nos quais situação de desentendimento nos bastidores de uma exposição de arte, documentada
o “jogo” é considerado um movimento que não está ligado a uma finalidade última, em tempo real e posteriormente editada e transformada em ficção. Em ambos, há
o “símbolo” é a possibilidade de reconhecimento de nós mesmos e a “festa” é a o objetivo de empreender uma metacrítica aos espaços institucionais de maneira
coletividade e a essência da comunicação recuperada de todos, com todos. mais ou menos profunda/agressiva, como uma forma de posicionamento diante da
dimensão pública e social da arte. Neles, Cidade desloca o foco do objeto artístico e
luis duVa oferece, em Grotesco Sublime Mix (2004), uma nova proposição de chama a atenção para as estruturas “protetoras” da obra, das quais freqüentemente
linguagem para a imagem e som em meios eletrônicos. Nesta videoinstalação, a partir não nos damos conta. Ao problematizar em seu trabalho o espaço crítico do cubo
da manipulação em tempo real de vídeo, ou o chamado vídeo ao vivo, ele trabalha branco, ele faz referência ao aspecto não-oficial desse tipo de espaço e realiza
em três telas a sonoridade do elemento visual como uma composição audiovisual, em pequenas subversões, ou alterações, como forma de interferência nos ambientes
que a imagem tem a capacidade de produzir som. Nesta única sessão de 16 minutos domesticados da arte.
(sem edição adicional) — por ele documentada e reapresentada contínuas vezes, a
partir da recombinação e repetição (o looping) no ambiente instalativo — há três O VJ Spetto cria um espaço para a instalação de dupla mão e lança visões divergentes.
corpos que se decompõem em performance. Esse tipo de visão orgânica permite a Em O Barato Sai Caro (2005) ele promove uma crítica ácida e voraz ao universo
inserção do vídeo como elemento de indeterminação e acaso. Contudo, é com esse da classe política, de ordem nacional e internacional. Nele, ele mostra de forma
tipo de ação efêmera — da ordem do improviso — que Duva devolve tal experiência ambígua a animação digital de pequenas baratas que se movimentam sobre um jorro
ao campo representacional, criando imagens minimalistas de forte impacto poético, ininterrupto e labiríntico de imagens de líderes políticos e governantes de Estado,
na qual há a distenção do tempo e a desconstrução do movimento e do som. como o americano George Bush e o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva. Tal atitude é
afirmada pelo contexto social em que Spetto se posiciona (como um VJ ou um visual-
No ambiente sensório que luiz duVa produz, ele não oculta a estrutura de montagem jockey). Nesse contexto, ele não populariza apenas a performance audiovisual, mas
dos equipamentos. Ao contrário, além dele dar visibilidade e os incluir nos significados os próprios meios de produção. Seguindo a lógica de gerar deslocamentos e inversões
da obra ele também permite ao público neles interagir por meio da sombra de seus entre as figuras públicas do poder e os espaços sacralizados da arte (como galerias
corpos que interferem nas imagens projetadas nas telas. Recupera, assim, a partilha e museus) Spetto os dessacraliza, por um lado, por meio da ironia e, por outro lado,
da obra com o público, tão definidora dos espetáculos de live-images que proporciona por meio da contaminação de sua obra com os ambientes de massa da cena noturna
na cena eletrônica. eletrônica.

Em seu trabalho, a imagem e o som são manipulados por um tipo de ranhura, ou O trabalho do VJ Spetto refere-se ao recolhimento e ao reprocessamento dos resíduos
scratch, no time line da edição ao vivo. Eles travam um profícuo diálogo com a arte de uma sociedade capitalista, pautada no consumo imagético e gerenciada por meio
cinética: possuem ao fundo um pulso de luz que cintila durante todo o decorrer da de bancos de dados distribuídos pelas mídias de massa, como a Internet e a televisão.
obra, para que o público “entre” neles de uma forma mais imersiva e para que os Essas imagens são consideradas imagens-mercadorias, commodities, extraídas de
sentidos possam também ser apreendidos de maneira mais sinestésica e tátil. O um acervo de imagens tecnológicas produzidas no mundo contemporâneo.
espaço arquitetônico por ele constituído possui, assim, diferentes escalas de leitura

178 179
Para o VJ Spetto, sua ação criativa produz uma forma de documentário em que a
imagem e o som são inscritos de forma imprevisível e em tempo real. Esse fenômeno
é possível porque o VJ, ao se apropriar e ao remixar as imagens, desconstrói e
reordena seus elementos visuais sob o pretexto de uma exploração documental em
torno dessas imagens. Ele afirma que — por se tratar da reutilização de um banco de
dados universal (extraído da mídia impressa, televisiva ou online) — o trabalho do VJ
consiste em documentar o inconsciente coletivo imagético da nossa atualidade.

Esse conjunto de interferências criativas acima relacionadas tem assim a propriedade


de interagir como uma espécie de sintaxe radical ao veicular contra-informações
no próprio sistema simbólico. Uma parte considerável de sua força encontra-se
menos em seu estado de acabamento e mais em seu estado de inacabamento, na
efemeridade e no caráter processual das experiências como um todo.
Dentro dos limites do espaço institucional, essas interferências são como pequenas
subversões e atitudes consideradas disformes no painel da arte brasileira atual. Elas
permitem, de certa maneira, algumas permutações entre agenciamentos convencionais
e alternativos. Tal potencialidade provém do modo como os trabalhos questionam e
tensionam a linha tênue que separa a condição de se estar ou não protegido nesses
tipos de espaços. Proporcionam, dessa maneira, discussões críticas relacionadas à
esfera da arte e as associam ao universo mais amplo do contexto social.

Embora façam parte, os sentimentos contidos nos gestos artísticos não são de
destruição ou de fracasso, e sim – como em tantos outros momentos da vida e da
arte – de resistência e de abertura a outros pensamentos e imagens.

Nota:
1. ROLNIK, Suely. Despachos no museu: sabe-se lá o que vai acontecer... In: Caderno Videobrasil. São Paulo: Associação Cultural Videobrasil, v. 1, n. 1, 2005, p. 81.

Referências bibliográficas
COUCHOT, Edmond (2003). A tecnologia na arte: da fotografia à realidade virtual. Porto Alegre: Editora da UFRGS.
FLUSSER, Vilém (1983). Pós-história: Vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: Duas Cidades.
ROLNIK, Suely. Despachos no museu: sabe-se lá o que vai acontecer... In: Caderno Videobrasil. São Paulo: Associação Cultural Videobrasil, v. 1, n. 1, 2005.

180
Desentranhando futuros
Suely Rolnik

O movimento de crítica institucional na arte que se desenvolve pelo mundo ao


longo dos anos 1960 e 70 transforma irreversivelmente seu regime e sua paisagem.
Naquelas décadas, como sabemos, artistas em diferentes países tomam como
alvo de sua investigação o poder institucional do assim chamado “sistema da
arte” na determinação de suas obras: dos espaços físicos a elas destinados e
da ordem institucional que neles toma corpo, às categorias a partir das quais
a história (oficial) da arte as qualifica, passando pelos meios empregados e os
gêneros reconhecidos, entre outros tantos elementos. Explicitar, problematizar
e superar tais limitações passam a orientar a prática artística, como condição de
sua potência poética – a vitalidade propriamente dita da obra. Desta vitalidade
emana o poder que terá uma proposta artística de ativar a sensibilidade ao
concentrado de forças que ela presentifica na subjetividade daqueles que a
experenciam; e, por extensão, ativar a sensibilidade dos mesmos às forças que
transbordam a cartografia vigente em seu entorno e lhes exigem um trabalho de
criação que redesenhe seus contornos.

Na maioria dos países da América Latina – bem como em outras regiões que, como
nosso continente, encontram-se então sob regimes ditatoriais –, tal movimento
ganha uma textura singular. Às camadas do território institucional da arte que
passam a ser problematizadas, agrega-se nestes contextos a dimensão política.
Porém, tais praticas só as conhecemos por sua exterioridade e, assim mesmo,
de maneira lacunar. É que sua potência ‘revulsiva’ – como designou a força
transformadora da arte, Edgardo Antonio Vigo, um dos importantes artistas do
período na Argentina – foi soterrada por efeito do trauma das ditaduras.

Neste estado de coisas se impõe a urgência de ativar esta potência, libertando-a


Minotauros no Prado. Madrid, 2008 . Grupo Empreza

de sua interrupção defensiva, de maneira a lhe dar continuidade em função das


forças que pedem passagem em nosso presente. Vou apresentar algumas idéias
que venho elaborando como ferramentas possíveis para que as compartilhemos
nesta complexa tarefa que só pode ser empreendida coletivamente.

183
Despertando da anestesia Micro & macropolítica

A singularidade e a heterogeneidade das propostas artísticas dos anos 1960/70 Antes de responder a esta pergunta, é importante assinalar que macro e
na América Latina, sob regimes ditatoriais, não tem a ver com o fato de que, neste micropolítica compartinham um mesmo ponto de partida : a urgência de enfrentar
contexto, artistas teriam decidido tornar-se militantes e/ou solidários com os as tensões da vida humana nos pontos em que sua dinâmica de transformação se
oprimidos. O que os faz agregar a camada política da realidade à sua investigação encontra travada. Ambas têm como alvo a liberação do movimento vital de seus
poética é o fato da ditadura incidir no corpo do artista, como no de todos mais, estrangulamentos, o que faz delas atividades essenciais para a ‘saúde’ de uma
sob a forma de uma atmosfera opressiva onipresente em sua experiência sociedade – isto é, a afirmação de seu potencial inventivo de mudança, quando
cotidiana, constituindo assim uma dimensão nodal das tensões sensíveis que o esta se faz necessária. Entretanto são distintas as ordens de tensões que cada
forçam a criar. E, mais especificamente, o fato de que a ditadura incide no próprio uma enfrenta, assim como as operações de seu enfrentamento e as faculdades
território da arte, levando seus diferentes protagonistas a viverem a experiência subjetivas que elas envolvem.
da opressão na medula de sua atividade criadora. Se esta se manifesta, mais
òbviamente, na censura aos produtos do movimento de criação, bem mais A operação própria da ação macropolítica intervém nas tensões que se produzem
grave é sua manifestação na ameaça de paralisia da própria deflagração deste na realidade visível, estratificada, entre pólos em conflito na distribuição
movimento – ameaça que paira no ar pelo impacto traumático do terror. Este dos lugares estabelecidos pela cartografia dominante num dado contexto
leva a associar o impulso da criação ao perigo de um sofrimento que pode chegar social (conflitos de classe, de raça, de religião, de gênero, etc). São relações de
à morte. Tal associação inscreve-se na memória do corpo e desentranhá-la é uma dominação, opressão e/ou exploração onde a vida daqueles que se encontram
tarefa sutil e complexa, que pode prolongar-se por trinta anos e, na maioria dos no pólo dominado tem sua potência diminuída por se converterem em objeto
casos, só possível na segunda ou terceira geração. instrumentalizado daqueles que se encontram no pólo dominante. A ação
macropolítica inscreve-se no coração destes conflitos, tendo por objetivo lutar
Enfrentar a experiência do terror como parte da obra passa a ser um elemento por uma configuração social mais justa.
fundamental da maioria das práticas artísticas do período e constitui sua marca
singular. É evidente que a questão política se coloca na época de distintas Já a operação própria à ação micropolítica intervém na tensão da dinâmica
maneiras igualmente nas práticas artísticas que se fazem nos EUA e na Europa, paradoxal entre, de um lado, a cartografia dominante com sua relativa
mas na maioria dos casos sob a forma militante da denúncia (por exemplo, dos estabilidade e, de outro, a realidade sensível em constante mudança, efeito da
descalabros da Guerra do Vietnã). O que faz a diferença das propostas mais presença viva da alteridade como campo de forças que não páram de afetar
contundentes que se inventam na AL no período, é que a questão política se nossos corpos. Tais mudanças tensionam a cartografia em curso, o que acaba
coloca nas entranhas da própria poética. Presentificada na obra, a experiência provocando colapsos de sentido. Estes se manifestam em crises na subjetividade,
onipresente e difusa da opressão torna-se visível e/ou audível num meio em que que nos forçam a criar, de modo a dar expressividade para a realidade sensível
a violência traumática do terrorismo de Estado tem por efeito cegueira e surdez que pede passagem. A ação micropolítica inscreve-se no plano performativo,
voluntárias, por uma questão de sobrevivência. não só artístico (visual, musical, literário ou outro), mas também nos planos
conceitual e/ou existencial. É evidente que o que acabo de afirmar só faz sentido
Neste contexto, estão dadas as condições para superar uma cisão entre micro se entendermos a produção tanto de conceitos como de formas de existência
e macropolítica que se reproduz na cisão entre as figuras clássicas do artista (sejam elas individuais ou coletivas) enquanto atos de criação. Em qualquer uma
e do militante. Tal cisão encontra-se na base do conflito que caracterizou a destas operações micropolíticas tendem a se produzir mudanças irreversíveis
conturbada relação de amor e ódio entre movimentos artísticos e movimentos na cartografia vigente. Ora, ao tomar corpo em criações artísticas, teóricas e/
políticos ao longo do século XX, responsável por muitas das frustrações de ou existenciais, tais mudanças tornam as mesmas portadoras de um poder de
tentativas coletivas de mudança (a começar pela revolução russa). Mas o que contágio em seu entorno. Como escreve Guattari em 1982, em Micropolítica.
diferenciaria exatamente ações micro e macropolíticas?

184 185
1. Guattari, Félix e Rolnik, Cartografias do Desejo, livro que fizemos em co-autoria: « Quando uma idéia é o germe não é reconhecível na arte, então o categorizamos na política e tudo 2. -O Ato Institucional
Suely, Micropolítica. no 5, promulgado pela
Cartografias do desejo. válida, quando uma obra de arte corresponde a uma mutação verdadeira, não é permanece no mesmo lugar – o abismo entre micro e macropolítico se mantém; ditadura militar em 13
São Paulo: Vozes, 1986; preciso artigos na imprensa ou na TV para explicá-la. Transmite-se diretamente, aborta-se o que está por vir, Ora, o estranhamento constitui uma experiência de dezembro de 1968,
8a ed. revista e ampliada, permitia punir com prisão
2007. P. 269. Versão em tão depressa quanto o vírus da gripe japonesa ». Ou em outro momento do crucial porque é a expressão sensível das forças da alteridade em nosso corpo, qualquer ação ou atitude
espanhol: Micropolitica. consideradas subversivas,
Cartografias del deseo. mesmo livro: « Considero a poesia como um dos componentes mais importantes que colapsam a cartografia vigente; sua anestesia significa, portanto, o bloqueio sem direiro a habeas
Madrid: Traficantes da existência humana, não tanto como valor, mas como elemento funcional. da potência crítica que caracteriza fundamentalmente a ação artística. corpus.
de Sueños, 2006. P.
263; ou Micropolitica. Deveríamos receitar poesia como se receitam vitaminas. » 1
Cartografias del deseo.
Buenos Aires: Tinta Limón No Brasil, a crítica à instituição artística manifesta-se desde o início dos anos
(colectivo Situaciones), Em suma: do lado da macropolítica, estamos diante das tensões dos conflitos 1960 em práticas especialmente vigorosas e se intensifica ao longo da década, já
2006. P. 328. Versão em
francês. Micropolitiques. no plano da cartografia do real visível e dizível (plano das estratificações que então no bojo de um amplo movimento contra-cultural, o qual persiste mesmo
Paris: Le Seuil (Les
empêcheurs de penser delimitam sujeitos, objetos e suas representações); do lado da micropolítica, após 1964, quando instala-se no país a ditadura militar. É nesse momento que a
en rond), 2007. Versão estamos diante das tensões entre este plano e o que já se anuncia no diagrama dimensão política agrega-se à poética da crítica institucional na arte. No entanto,
em inglês: Molecular
Revolution in Brazil. Nova do real sensível, invizível e indizível (plano dos fluxos, intensidades, sensações no final da década, o movimento começa a esmaecer por efeito das feridas das
York: Semiotext/MIT, 2007.
e devires). O primeiro tipo de tensão é acessado sobretudo pela percepção e o forças de criação ocasionadas pelo recrudescimento da violência da ditadura
segundo, pela sensação. Explico-me brevemente: a percepção incide sobre as militar com a promulgação do AI5 em dezembro de 1968.2 Muitos artistas são
formas, que associamos a representações de nosso repertório e as projetamos forçados ao exílio – seja por terem sido presos ou por correrem o risco de sê-lo,
sobre tais formas, de modo a lhes atribuir sentido. Enquanto que a sensação seja simplesmente porque a situação se tornara intolerável. Como todo trauma
é efeito das forças do mundo tal como afetam nossos corpos, produzindo coletivo deste porte, como já mencionado, o debilitamento do poder crítico da
estranhamento e pondo em crise o referido repertório. É esta tensão que nos criação por efeito do terrorismo de Estado estende-se por mais uma década depois
força a pensar/criar e é por presentificar-se na obra, no conceito ou no modo da volta da democracia nos anos 1980, quando se instala o neoliberalismo no país.
de vida que criamos que tal tensão pode reverberar na sensibilidade daquele Com exceção de um breve período de agitação cultural no bojo do movimento
que as encontra – uma oportunidade lhe é oferecida de enfrentar tal tensão e, pelo fim da ditadura, no início dos anos 80, só mais recentemente a força crítica
conseqüentemente, ativar sua própria potência de invenção. da arte volta a ativar-se por iniciativa de uma geração que se afirma a partir da
segunda metade dos anos 1990, com questões e estratégias concebidas em
Criação cafetinada função dos problemas trazidos pelo novo regime, cuja hegemonia internacional
coincide com o surgimento desta nova safra de artistas. Neste contexto, como
A figura clássica do artista costuma estar mais do lado da ação micropolítica e a sabemos, o conhecimento e a criação convertem-se em objetos privilegiados de
do militante do lado da macropolítica. É esta separação que passa a ser superada instrumentalização a serviço da produção de capital, levando alguns autores a
em muitas das propostas artísticas criadas na América Latina nos anos 1960/70. qualificar o neoliberalismo globalizado de ‘capitalismo cognitivo’ ou ‘cultural’, e de
Deste ponto de vista, talvez não seja adequado designar tais propostas de ‘cognitariado’ a nova classe trabalhadora da qual se passa a extrair mais-valia.
‘conceituais’, para diferenciá-las das práticas que a História da Arte categorizou
com este nome. Em todo caso, se mantemos esta designação, é totalmente A situação favorece a retomada de um movimento de superação da dissociação
equivocado qualificar tal conceitualismo de ‘ideológico’ ou ‘político’, como ficou entre micro e macropolítica, agora com outras estratégias, já que é outro o
estabelecido em certas correntes que não por acaso são obra de autores que regime de opressão, se comparado ao que opera a ditadura militar. Como em
não viveram esta experiência. É que se encontramos aí um germe de articulação práticas similares que se fazem hoje por toda parte, muitas propostas artísticas
entre política e poética, mas todavia impossível de nomear e, portanto, frágil, tendem a uma deriva extraterritorial e, freqüentemente, se aproximam do
chamá-lo de ideológico ou político é um modo de negar o estranhamento, que ativismo. Tal deriva se deve a uma anestesia do estranhamento no próprio
faz ruído e causa desconforto, apelando-se para o repertório que se conhece. Se terreno da arte. O novo regime ativa o impulso de criação (e não só na arte), mas

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para instrumentalizá-lo: ao invés do impulso orientar-se pela escuta dos efeitos artísticas. Neste êxodo criam-se outros meios de produção artística como 3. ‘Perceptores’ é uma
sugestão do artista paulista
da alteridade no corpo, de modo a integrá-los à cartografia do presente, ele se também outros territórios de vida (daí a tendência a organizar-se em coletivos, Rubens Mano, para designar
orientará desde fora, a partir das imagens de mundos prêt-à-porter veiculadas que se relacionam entre si, juntando-se muitas vezes em torno de objetivos o tipo de relação que se
estabelece em propostas
pela mídia e que respondem exclusivamente às demandas do mercado. comuns seja no terreno cultural ou no político, para retomar a autonomia tão artísticas cuja realização
depende de seu efeito na
logo se realizem tais objetivos). Nestes territórios, voltam a respirar tanto a subjetividade de quem delas
Imagosfera relação sensível com uma alteridade pulsante (ou seja, a experiência estética), participa. Noções como a
de receptor, espectador,
quanto a liberdade do artista de criar em função das tensões indicadas pelos participador, participante,
usuário, etc, são inadequadas
A lógica mercantil-midiática que o capitalismo cultural impôs no terreno afetos do mundo em seu corpo – o que tende a chocar-se contra muitas barreiras para este tipo de proposta.
da arte atua dentro e fora do mesmo. Dentro, a operação é mais evidente: ela intransponíveis no território institucional da arte.
consiste em associar práticas artísticas ao logo de grandes empresas e bancos,
agregando-lhes com isso “poder cultural”, o que incrementa seu poder de A dimensão política que se ativa neste tipo de práticas artísticas é o que as
sedução no mercado. O mesmo vale para cidades que hoje têm nos Museus de aproxima dos movimentos sociais na resistência à perversão do regime em curso.
Arte Contemporânea e suas espetaculosas arquiteturas um de seus principais Tal aproximação encontra sua recíproca nos movimentos sociais, os quais, por
equipamentos de poder para inserí-las no cenário do capitalismo globalizado, sua vez, são levados a incorporar uma dimensão micropolítica ao seu ativismo
tornando-as assim pólos mais atrativos para investimentos. É certamente por tradicionalmente limitado à macropolítica. Isso acontece na medida em que no
sentir a exigência de enfrentar a opressão da dominação e da exploração em novo regime, a dominação e a exploração econômicas têm na manipulação da
seu próprio terreno – que resulta da relação específica entre capital e cultura subjetividade via imagem, uma de suas principais armas, senão “a” principal.
sob o neoliberalismo –, que muitos artistas passaram a optar pelas estratégias Sua luta, portanto, deixa de restringir-se ao plano da economia política, para
extradisciplinares, agregando a dimensão política às poéticas de suas ações. englobar os planos da economia do desejo e da política da imagem. A colaboração
entre artista e ativista impõe-se muitas vezes na atualidade como uma condição
Entretanto o bloqueio da potência crítica da criação se faz também fora de seu necessária para levar a termo o trabalho de interferência crítica que tanto
terreno, pois a lógica mercantil-midiática não só tem nas forças de criação uma de um como outro empreendem, cada qual num âmbito específico do real, e cujo
suas principais fontes de extração de mais-valia, como mencionei anteriormente, encontro gera efeitos de transversalidade em seus respectivos terrenos.
mas sobretudo ela opera uma instrumentalização das mesmas para constituir o
que chamarei aqui de “imagosfera”, a qual hoje recobre inteiramente o planeta. Revolver, ativar, revulsionar
Refiro-me à camada contínua de imagens que se interpõe como um filtro entre
o mundo e nossos olhos, tornando-os cegos à tensa pulsação da realidade. Tal Nesta nova situação, as intervenções artísticas que preservam sua potência
cegueira, acrescida da identificação a-crítica com estas imagens (que tende a micropolítica seriam aquelas que se fazem a partir do modo como as tensões
se produzir nos extratos sócio-culturais mais variados da população por todo o do capitalismo cultural afetam o corpo do artista e é esta qualidade de relação
planeta) é o que prepara e condiciona as subjetividades para submeter-se aos com o presente que tais ações podem convocar em seus ‘perceptores’3. E quanto
desígnios do mercado, permitindo assim que sejam aliciadas todas suas forças mais precisa sua linguagem, maior o poder das mesmas de liberar a expressão e
vitais para a hipermáquina de produção capitalista. suas imagens de seu uso perverso. Ativam-se outros modos de relação com as
imagens, outras formas de recepção, mas também de invenção e sua expressão,
Considerando que a vida social é o destino final da força inventiva assim as quais podem introduzir novas políticas da subjetividade e de sua relação com
instrumentalizada – sistematicamente desviada de seu curso para a produção da o mundo – ou seja, novas configurações do inconsciente no campo social, em
intoxicante imagosfera –, é precisamente a vida social o lugar que muitos artistas ruptura com as referências dominantes.
tem escolhido para armar seus dispositivos críticos, já impulsionados a lançar-
se numa deriva para fora da atmosfera igualmente intoxicante das instituições

188 189
Em outras palavras, o que este tipo de prática pode suscitar naqueles que comprados pelos grandes museus norte-americanos e europeus e, mais
são por ela afetados não é simplesmente a consciência da dominação e da recentemente, também por colecionadores, antes mesmo que tenham voltado
exploração, sua face visível, representacional, consciente, macropolítica, mas a respirar – para o deleite financeiro da cafetinagem da arte pelo capitalismo
sim a experiência destas relações de poder no próprio corpo, sua face invisível, cultural; deleite que é também e sobretudo político, porque movido pelo desejo
inconsciente, micropolítica, que interfere no processo de subjetivação lá onde de vê-los definitiva e irreversivelmente desaparecidos da memória de nossos
este se torna cativo. Diante desta experiência, tende a ser mais difícil ignorar corpos. É ‘pra’ já.
o mal-estar que esta perversa cartografia nos provoca. Isso pode nos levar a
romper o feitiço da imagosfera neoliberal sobre nossos olhos, despertando a
potência vibrátil dos mesmos de seu estado doentio de hibernação, reduzido que
estão à sua capacidade retiniana. O que se ganha é uma maior precisão de foco
para uma prática de resistência efetiva, inclusive no plano macropolítico. Esta
em compensação se debilita quando tudo que diz respeito à vida social volta a se
reduzir exclusivamente à macropolítica, fazendo dos artistas que atuam neste
terreno meros cenógrafos, designers gráficos e/ou publicitários do ativismo
(o que, além do mais, favorece as forças reativas que predominan no território
institucional da Arte, ao lhes fornecer argumentos para justificar sua separação
da realidade e sua despolitização. (Ex : Bienal de SP).

Uma nova aliança entre arte e ativismo estaria se estabelecendo no século que
ora se inicia? Se este não é um sonho datado historicamente que insistimos
em sonhar, que novos problemas estaria nos colocando tal articulação neste
novo contexto? A resposta a estas e outras perguntas muito se enriqueceria
se fizéssemos um esforço coletivo em direção à travessia do trauma que nos
separa da complexa inventividade com que estas questões foram vividas em
nosso países antes das respectivas ditaduras. Mas tal esforço não tem como
meta conquistarmos lugares mais gloriosos e/ou glamurosos do que o papel de
figurantes ou até de ‘sem papel’ que nos cabe na História (oficial) da arte, escrita
pela Europa Ocidental e os Estados Unidos; sua meta tampouco consiste em
traçarmos outra(s) história(s) da arte, mas mantendo a mesma lógica e apenas
trocando os sinais (a ‘nossa’ história no papel de paradigma); e menos ainda em
ficarmos gozando no papel de vítima, dando voltas e mais voltas no interior do
próprio trauma, coçando a casquinha da ferida. Ao invés disso, se tal esforço
de fato vale a pena, é porque ele pode contribuir para ‘curar’ suficientemente
a interrupção do processo por efeito do trauma, de modo a liberar o acesso aos
“futuros que ficaram soterrados”, como tão bem o formulou Walter Benjamin.
Ativar as potências de futuros para que nutram nosso presente, é a meu ver uma
tarefa primordial das mais urgentes, se não quisermos assistir passivamente
à rápida transformação destes futuros em museus de cera – arquivos mortos

190 191
Eduardo Falesi
195
Fernando Hage

196 197
Tadeu Costa

198 199
Pum e Cuspe no Museu.
(Para Walter Zanini, por sua notável sensibilidade pelos pequenos gestos)

Qual o lugar dos pequenos gestos na época em que exposições se alinham


na cultura do espetáculo e as cidades competem por media na cena
internacional através de seus museus (isto é, nos centros onde a arte
é parte dos mecanismos de status, os acervos museológicos são emblemas
de poder)?

Qual o lugar de obras de arte feitas de pequenos gestos tais como


o livro-de-artista, fanzine, gibi, fotonovela, ex-libris, gadget, selo,
rótulo, volante, sticker, decalque, flyer, button, broche de plástico,
LP, CD, caixa de fósforos, lápis, camiseta, micro-gravuras, azulejos,
fantasia de carnaval, borracha, slide, web-art, cartão postal, infra-

?
mince, Caminhando, ato, Parangolé vivencial, inserção em jornal, desenho
no banheiro, carimbo, olfático, grafite modesto, atos mínimos, infra-
performance, planta daninha, pão, cédula, moeda de artista nas coleções
públicas Para o mercado, só quando um objeto representar valor de

troca suficiente para justificar uma margem de lucro compatível com seus
custos operacionais. Paga quem quer. Bart de Baere lançou esta questão
na conferência Stopping the Process, realizada em Lofoten (Noruega), no
Pólo Norte. Suas preocupações ainda persistem congeladas por museus
no Brasil. Em 2002, o Museu Nacional de Belas Artes não possuía em seu
acervo um único livro-de-artista. É que, além de não dominar o conceito
e de não estar criticamente capacitado para reconhecer o valor estético
desses objetos, a estrutura do museu alegava que essa categoria de obra
não se enquadrava nas hipóteses de classificação do Sistema Donato
de catalogação de obras de arte. O Sistema Donato é o mais usado entre
os museus de arte do Brasil. A Burocracia às vezes se parece com a
cultura da Agronomia, então, a arte dos pequenos gestos se iguala às
ervas daninhas. Diz a agronomia das daninhas “competem por espaço e
nutrientes” ou que “sua beleza não tem valor comercial”, até que Rosana
Palazyan resgata a planta por pequenos gestos para o campo do sublime.
“O que eu faço é muito difícil”, diz a artista. O pequeno gesto não é a
arte do fácil.
O que constrange a expressão? Não é mais apenas uma questão de
envelhecimento do olhar de antigos poetas e cineastas outrora radicais
e abertos, mas a intolerância irracional ao experimentalismo e a
impermeabilidade a entender seu debate conceitual que têm se tornado
201
no Brasil do século XXI irmãs e aliadas da censura. Alguém se comove quilos de chumbo empregado? Ou o número de pessoas utilizadas (sempre
com a censura aos pequenos gestos? rondando... o espectro da mais valia...)? O que é a submissão do grafitão
institucionalizado em galerias e museus? Mudar o nome para street art
Qual o lugar do pequeno gesto numa época de predomínio no Brasil da repotencializa o procedimento depois de sua perda da potência do ato
síndrome adolescente da escultura Serra-macho (o centauro que é metade não mais transgressivo?
a vontade de fazer escultura com o vigor da obra de Richard Serra e
metade com um caráter fálico) e da expenditure perdulária de materiais As cédulas de Zero Cruzeiro de Cildo Meireles, produzidas aos milhares,
e de esforço? O pequeno gesto pode ser tenso. Que o diga o Floor Pole aparecem agora no mercado com uma estrutura comodificada (reduzida
Prop de Serra. Uma obra de 1000 kg de Serra pesa mil quilos. E uma obra à condição de commodity, mercadoria): em caixas-molduras que impedem
de uma tonelada de um imitador de Serra está longe de ter mil quilos... sua circulação mão a mão como meio circulante e agora circulam como
O pequeno gesto não é só o leve. Quanto tempo os museus levaram para mercadoria. Valor atual: US$ 10.000,00. Valor há uns três anos atrás: US$
descobrir que um traço de Mira Schendel como um fio de cabelo tinha a 250. O que se valorizou neste caso em US$ 9.750,00 foi a moldura ou houve
força de uma viga (Max Bense na Pequena Estética)? O que é a potência uma hiper-corrida no mercado pelas cédulas de Cildo? É evidente que não
política de uma micro-xilogravura de Rubem Grilo? O pequeno gesto não se trata aqui da mais mínima alusão crítica ao artista, mas de colocar
é arte povera. No Manifesto do 3º Mundo (1969), Barrio afirma que o alto em marcha um olhar crítico sobre os mecanismos perversos do mercado
custo dos materiais históricos da arte estava impedindo a expressão. de arte que o próprio artista introduziu no sistema brasileiro com sua
É uma reivindicação do direito aos pequenos gestos e aos materiais Árvore do dinheiro, cuja etiqueta anuncia que seu maço-volume é formado
não-canônicos como conquistas contra a hierarquização da arte como por 100 notas de 1 cruzeiro e que seu valor é 2.000 cruzeiros. Que
história dos materiais. Ou o pequeno gesto só “vale” (para a filosofia da operação artístico-financeira é esta? Acumulação, capitalização, juros
arte e o mercado) se for feito em mármore de Carrara ou mármore belga? ou poupança? Ocorre uma irônica transparência da agregação de “valor”.
A universidade está preparada para o conhecimento dos pequenos gestos A operação expõe o valor agregado pelo fator “arte” e exaspera o público.
ou persiste em sua micro-fobia? Ao juntar tudo (moeda, preço, valor de troca, obra de arte, trabalho)
Árvore do Dinheiro questiona, escreveu Meireles, a “defasagem entre
Num país cada vez mais paulistocêntrico (o etnocentrismo regionalista valor de troca e valor de uso, ou entre valor simbólico e valor real”. Ao
fundado por Mário de Andrade finalmente chega ao poder), qual é o lugar confrontar os conceitos marxistas de “valor de uso” e “valor de troca”,
do pequeno gesto de um artista de uma região periférica sem mercado? Cildo Meireles esclarece a operação de constituição imaginária do objeto
Qual o lugar dos recursos da renúncia fiscal de impostos federais para de arte como um valor de troca de signos numa crítica à distribuição
a formação de museus se as decisões se concentram nas empresas que não da obra de arte. O artista exibe as incongruências entre valor e preço
são sediadas no Norte e Nordeste, cujos consumidores não interessam ao no sistema monetário capitalista. Desmonta a ilusão monetária do
Departamento de Marketing dessas corporações? Qual a autonomia dos valor como dissimulação da exploração da força do trabalho e critica
museus para decidir sobre de seus acervos frente às decisões desses a comodificação da obra de arte. Para o mercado, a arte é um presunto
Departamentos de Marketing sobre os recursos públicos? como outro qualquer, escreveu Mário Pedrosa. Qual é o lugar daquilo que
não cabe na ARCO ou outra feira de arte? Qual o lugar estético de um
Qual é o lugar daquilo que não é bienalizável? Qual é o lugar contrato (Paula Trope converte suas parcerias em sujeitos econômicos
daquilo que é materialmente pouco numa Bienal que se orgulhasse de da obra) componente de uma obra de arte onde a artista se dispusesse a
transportar toneladas de ferro de arte? E num sistema onde um artista acabar com a mais-valiasimbólica extraída da miséria do Outro?
apresente sua novidade como a capacidade de ampliar a quantidade de
A experiência real aberta do Parangolé não é sua propriedade e comércio.

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É necessário reivindicar a parangoléização da arte da vivência e o daquilo que se produza num lugar geográfico sem galeria? Sem galeria
olhar para os pequenos gestos contra sua presuntificação. A vivência em Belém ou qualquer outra parte, a obra de Lúcia Gomes ou Armando
do Caminhando de Lygia Clark é irredutível à condição de mercado. Queiroz não é arte? São, então, pequenos gestos que não podem estar nos
Onde é o lugar do ato se, para Clark, o “sujeito-objeto se identificam museus?
essencialmente no ato”? E quando ela insiste em propor “o momento do
ato como campo da experiência”, isto é, como o irredutível à apropriação Qual museu brasileiro tem a moeda de Zero Centavo ou de Zero Cent de
capitalista ou de qualquer outra ordem? E se, finalmente, Clark reitera Cildo Meireles? São muito pequenas para darem o incômodo de serem
que “o instante do ato não é renovável. Ele existe por si próprio: o recolhidas e catalogadas? São irrisórias para merecerem muito cuidado?
repetir é lhe dar uma outra significação. Ele não contém nenhum traço Muito fáceis de se perderem, muito fáceis de se roubar? A moeda instituída
da percepção passada. É um outro momento em que ele se desenrola, ele já por Cildo Meireles traz uma pequena crise à instância combinatória
é uma coisa em si. Só o instante do ato é vida. Por natureza, o ato contém do cálculo, do valor operatório. Moeda é troco e zero é troco de que?
em si mesmo seu próprio excesso, seu próprio vir-a-ser. O instante do ato Como meio de troca, a moeda de papel moderna é representação do valor,
é a única realidade viva em nós mesmos. Tomar consciência já é ser no que Cildo Meireles remete à questão da representação na arte. Zero
passado. A percepção bruta do ato é o futuro de se fazer. O passado e o Cruzeiro e Zero Dollar tratam do espaço bidimensional (plano/pintura)
futuro estão implicados no presente-agora do ato”? e as moedas de Zero Centavo e Zero Cent do tridimensional (volume/
escultura). Qual é, então, o lugar daquilo que Cildo Meireles denominou
Se “a resposta da economia capitalista a essa nova situação [ruptura do humílimominimalismo? “Eu me metamorfosei em zero das formas”, disse
estatuto social da arte a partir do cubismo] foi a organização do mercado Malevitch de seu suprematismo. O poeta Murilo Mendes não se fantasiou
como conhecemos hoje. Um sistema com características particulares e de zero, mas de cuspe no carnaval carioca. Qual a importância do cuspe
destinado não apenas a absorver produtos de arte, mas a solicitá- para a arte? O filósofo Georges Bataille aponta o cuspe como exemplo de
los, a orientá-los e a dirigi-los. Um sistema com velocidade suficiente bassesse. Para ele, a bassesse fundamenta uma dimensão escatológica do
para acompanhar o processo de produção e que funciona mais ou menos informe, mecanismo de conhecimento para uma arte que já não se dá mais
como um aparelho ideológico: sua função social é registrar e acumular na modernidade por efeito da beleza, mas por uma função epistemológica.
os sentidos dos trabalhos para, em seguida, devolvê-los à circulação O cuspe subverte, então, o pensamento racionalista hegeliano na cultura,
devidamente inscritos com as marcações ideológicas dominantes. Um diz Bataille. Freud estabeleceu as relações de correspondência simbólica
canal por onde estão obrigados a passar todos os trabalhos de arte, na entre fezes e ouro.
medida mesma em que pretendam sê-lo” (Ronaldo Brito, Neoconcretismo, pp.
15/16)... qual é, então, o estatuto ontológico dos pequenos gestos? Então, Uma função potente de todo artista é a conversão do baixo escatológico
qual o papel da crítica dos pequenos gestos? É produzir sentidos a em arte, como a bassesse para Bataille é um mecanismo de estruturação
serem registrados e inscritos pelo mercado? O que não recebe sentidos do pensamento. Qual é o lugar do objeto como a Caixa de Baratas de Lygia
desta crítica perde sua condição ontológica de arte? E qual o papel da Pape? O abjeto é sempre uma ameaça de contaminação (Kristeva)? E se a
crítica de gabinete-universidade-mercado? Seria atuação da crítica um arte dos pequenos gestos contaminar e trincar o gosto marmóreo? Em sua
mecanismo de produção de recalque do estatuto artístico dos pequenos etimologia, a palavra escatologia se forma do grego eschatos (último) e
gestos porque obras inúteis em termos mercadológicos? Como distinguir logos (ciência ou discurso). Depois do início discreto da Merz do dadaísta
a ação dos críticos colados em galerias das campanhas das agências de Kurt Schwitters em Hannover em 1918, a Merda d’artista (1961) de Piero
publicidade? Os museus precisam da sanção do mercado para construir Manzoni e o uso de lixo, gilettes e tampões para menstruação usados,
suas coleções de pequenos gestos? sangue na obra de Barrio (1969-1970) conduzem a escatologia pós-moderna a
Qual o lugar daquilo que não se reduz à condição de mercadoria ou um estágio de radicalidade anti-burguesa. Ivens Machado defecou em sua

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instalação no MAM carioca em 1975. Mário Pedrosa aparece na imagem do
cartaz da exposição Isso É que É (Rio de Janeiro, Petite Galerie, 1975)
em que Antonio Manuel pratica o ato político de urinar numa garrafa
de Coca-Cola. Pedrosa declarou então que “a arte é a única coisa que
é contra a entropia do mundo”. A escatologia aqui toma emprestado o
questionamento filosófico do sentido último das coisas, uma indagação
crucial presente nos grandes sistemas metafísicos. O artista é o que
rompe os processos inexoráveis da entropia. Qual o lugar do cuspe,
metáfora para uma performance escatológica no museu? Qual o lugar
do escatológico no acervo? Um elegante Marcel Duchamp pensa o infra-
mince (o infra-slim), que são os pequenos rumores e nuances surgidos
entre as coisas. O seu exemplo é o barulho do roçar das pernas de uma
calça de veludo. É um “quase-nada” significativo.
Os grunhidos do Porco Empalhado de Nelson Leirner alertam: sem
respostas a essas perguntas, os museus brasileiros estarão operando
num ambiente pré-moderno, retidos no cânon do século XIX. Se não
chegaram ao século XX, como poderão pensar o XXI? A visão de arte
brasileira desses museus pode ser, então, confundir o próprio pum com
o rumor do infra-mince.

Rio de Janeiro, 2 de junho de 2008.


Paulo Herkenhoff

Ana Paula Felicissimo de Camargo Lima


Orlando Maneschy
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