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lavar as maos, descolonizar o futuro Denise Bernuzzi de Sant’Anna Quando Semmelweis propés aos obstetras que lavassem as m4os, seus colegas néo o levaram a sério. Lavar as m4os entre a dissecacdo de um cadaver e um parto viria a reduzir significativamente o nimero de mortes, causadas pela febre puerperal. Contudo, na época de Semmelweis, havia o pressuposto de que era comum morrer no parto, ainda mais se tratando de mulheres pobres. & digno de nota que Céline, ele préprio médico e obstetra, tenha comecado a sua carreira literaria com um livro sobre Semmelweis. Céline exaltou a inventividade deste médico, em contraste com quem nao admitia novas teorias porque estas ameacavam poderes @ vaidades. Para o escritor, devido a estupidez de alguns, 0 singelo gesto de lavar as maos foi adiado, e muitas mulheres continuaram a morrer de febre puerperal. Ha, sem divida, uma resisténcia bem conhecida a novidade, tipica de alguns membros da comunidade cientificay hd também uma histéria das mentalidades que nao pode ser ignorada, assim como o papel do paradigma cientifico de cada época e a episteme de cada cultura. H4, enfim o medo daqueles médicos de perderem a autoridade se admitissem serem eles o veiculo da morte das parturientes. Nao obstante todos esses fatores, o que Céline nos obriga a pensar, € que a pandemia do Covid-19 explicita, é a pequenez dos estipidos e o quanto eles sao maléficos, especialmente quando tém poder. Somente depois da morte de Semmelweis, em 1665, houve o desenvolvimento da microbiologia e uma mudanca significativa no imaginario dos “monstros invisiveis”. Especialmente nas Ultimas duas décadas do século XIX, 0 estudo dos micrépios ampliou milhares de vezes o territério do medo e da prevencao: ndo bastaria evitar os eflivios nauseabundos, vindos de cemitérios, hospitais ou locais considerados pestilentos. Os conhecidos cuidados em defumar a casa, usar rapé © habitar regidées distantes dos ares infectos deixavam de ser estratégias suficientes para cultivar a boa satde. Qs micrébios exigiram vigilancias até entdo incomuns e, a principio, todos eram igualmente vitimas da mesma ameaga invisivel a olho nu. Mas, vapidamente, a desigualdade social se impés: os pobres teriam mais micrébios do que os ricos. Prostibulos € tabernas seriam lugares propicios ao contagio. Acreditando ou néo nessas suposicées, lavar as m&os tornou-se uma obrigacdo incontestavel aos trabalhadores dentro dos hospitais. 0 cenario das cirurgias também mudou, demandando a esterilizacao, pelo calor, dos instrumentos médicos, ¢ o emprego do Acido fénico como desinfetante. Nascia a moderna assepsia enquanto caia no esquecimento a cren¢a nos antigos miasmas, tanto quanto o sossego de crer que a sujeira estava apenas no que se via a olho nu. Por um lado, o medo dos micrébios e a luta para combat&-los integram uma longa historia, repleta de tentativas para detectar o perigo, torn4-lo visivel, isolavel e controlavel. Por outro, esse perigo foi intmeras vezes apropriado por interesses espirios, denegado ou transformado em oportunidade para as piores exclusdes. Se o gesto de lavar as m4os, assim como o famigerado enunciado, comportam varios sentidos - religioso, profilatico, politico e anti semita - por tras destes, podemos encontrar os ideais de cada época e também a estupidez. E ela, como bem viu Céline, fornece um recorte extemporaneo a esses miltiplos sentidos. Pestes e monstros Recordemos rapidamente algumas monstruosidades e solugSes encontradas para as epidemias do passado. A peste bubénica, que assolou a Europa no século XIV, foi muito diferente do antigo flagelo da lepra. Em sua versao pulmonar, ela podia matar em dois dias. © contagio se espalhou com uma rapidez assustadora. Intimeras cidades do Mediterraneo foram devastadas, provacando um deslocamento do eixo comercial rumo A Europa do Norte, incluindo Flandres. Diante de seus tragicos efeitos, o contagio entre os humanos se tornou um tema fundamental, levantando a desconfianga sobre as missas e os eventos que favoreciam a aglomeragao de pessoas. Nao demorou muito para que suspeitas antigas fossem evocadas: a peste seria um castigo de Deus aos pecadores. Preces, queima de imagens demoniacas, autoflagelacao... as formas de exorcizar o mal confirmavam a crenca em uma dependéncia incontestavel entre as forcas sobrenaturais ¢ a vida humana. Mas também houve quem anunciasse que os judeus eram 0S culpados porque teriam envenenado os pogos de Agua, provocando a peste. Muitos foram perseguidos e mortos em fogueiras. 0 fogo, pensavam, tudo purifica. Os “missionarios de Satanas” também podiam ser mulheres consideradas devassas, judias ou nao, homens acusados de pederastia, pessoas suspeitas de feitigaria. Em meio ao cendrio diabélico promovido pelos humanos, surgiu a hipétese de que os ratos seriam uma pista importante para detectar a causa do mal. Bem mais tarde, a propaganda nazista se encarregou de juntar “judeus e ratos”, como se fossem igualmente infecciosos. Mas, na época dos nazistas, j4 se sabia que o transmissor do mal nado eram os ratos e sim o bacilo transmitido pelas pulgas instaladas naqueles roedores. Toda a milenar histéria das pandemias foi pontuada pela insisténcia em “cagar os culpados” e por perseguigdes que em nada contribuiram para reduzir as mortes € a doenga. Junto aos progressos da microbiologia dos séculos XIX e XX, por exemplo, a associacdo entre corticos, preguica, alcoolismo e degeneragdo acirrou a suspeita sobre populacées consideradas “naturalmente perigosas”. Nao por acaso, no mesmo ano do advento da Comuna de Paris, a capital francesa foi acusada de ser a “tumba da raga”, o antro do “virus da revolta”. As sucessivas epidemias de colera e tifo ajudavam no declinio demogratico da Franca e no aumento do medo de perder a guerra para os prussianos. Autoridades piblicas anunciavam na imprensa que a maior parte dos problemas concentrava-se no écio 6 na promiscuidade daqueles que, conforme um célebre livro de Louis Chevalier, eram considerados pertencentes as “classes perigosas”. Em meio ao progresso industrial, a ameaga dos micrébios serviu para agucgar o medo da “raga degenerar” e o temor dos varées perderem a virilidade. Como em outros momentos da histéria, os casos de sifilis eram vistos como a expressdo de uma podridao do sexo, transmitida pelas mulheres. Mas, agora, a invencdo das histéricas vinha ao encontro da necessidade de converter as taras masculinas em problemas naturais da sexualidade feminina. Com a importancia intrigante que Freud deu ao inconsciente, © ideal viril da burguesia triunfante e colonizadora estremeceu mais uma vez. 0 imagindrio de um sujeito em meio a monstros externos invisiveis e, no seu intimo, descentrado e cindido, contribuiu para que os poderes securitaérios se desenvolvessem em forma de pregadores, policiais e eugenistas, defensores das supostas virtudes da castidade e do trabalho. A hecatombe da Primeira Guerra mundial acabou por expor mais um novo tipo de abalo no ideal das ‘ragas superiores”. Por um lado, nesta guerra, diferente das anteriores, os homens foram reduzidos a ratos dentro das trincheiras ou a ras a rastejar em meio a terrenos minados. Por outro, o mundo que nasceria desta guerra, e também dos caddveres da “gripe espanhola”, em 1918, que matou mais de cinguenta milhdes de pessoas, seria o de uma mobilizacéo médica e cientifica sem precedentes. As novas armas da Primeira Guerra ndo provocavam os mesmos ferimentos causados pelas conhecidas espadas ou balas de revolver, pois os estilhacos das bombas dentro dos corpos dos soldados tinham uma trajetoria incerta, miltipla, dificil de perceber. Lembrava © formigar de micrébios nos corpos dos doentes da gripe espanhola: espalhavam-se e entranhavam-se em érgaos, veias € nervos. Dificultavam a cirurgia, a reconstituigao dos tecidos, 0 avanco das infeccdes Os famosos “gueules cassés” (caras quebradas), mostrados nos jornais de varios paises, impunham ao mundo o estilhagar irreversivel da figura humana e que, certamente, determinaria todas as tecnologias de poder e as artes dos anos seguintes Pestes € guerras, médicos e militares, doentes e monstros invisiveis: esses personagens sao centrais para compreender a memoria que hoje forja boa parte de nossos medos e acées diante da pandemia provocada pelo Covid-19. sta também vem sendo vivida em meio as duas tendéncias enunciadas por Céline - a estupidez e a inventividade. Contudo, as armas de ataque e defesa sao outras. As possibilidades de scbreviver e de antecipar um futuro mais justo também. Pandemia em tempos de autonomia e “no em goteira” Diferente da Peste Negra, o Covid-19 surgiu numa épaca de crescente pressdo mundial para que a “gestao” da prépria sate seja um investimento pessoal e uma responsabilidade individual, com prego e valor de mercado. © numero crescente dos aplicativos de satide, com lembretes didrios scbre a performance fisica e mental de cada usuario, é apenas um entre os diversos exemplos da ambicdo de normalizar o auto diagnéstico e a auto avaliagdo permanentes. Contudo, a gestdo auténoma de si parece abrir faléncia durante a pandemia. A comegar por um dos locais mais sensiveis da batalha contra os seus estragos: o hospital. Atualmente, é em seu interior que a maior parte da populagao nasce, dé a luz e morre. Microcosmo dos limites da condic¢do humana, o hospital maximiza e escancara o que, fora dali, nao se quer ver. Lugar do teste final, do desmonte das vaidades dos pacientes deitados nos leitos, sem suas roupas, distantes de suas casas, apartados de suas rotinas, de seus entes queridos e de suas profiss6es, reduzidos a condicaéo de organismos, como se pudessen se tornar, por um tempo indefinido, “elementos inertes”. Os trabalhadores de um hospital presenciam essa espécie de desumanizacao, dia e noite. Mesmo perante a condicdéo limitrofe dos internados nas UTI, os enfermeiros, médicos e faxineiros sequen trabalhando, submetidos a rigorosos protocolos e a algo que nao é particular ao meio hospitalar e que pode ser resumido nas sequintes frases: 6 preciso capitalizar o que se faz, o que se é, 0 que se tem; € preciso investir em empreendimentos que resultem em excelentes avaliacées; € dever de cada um majorar infinitamente o seu capital de satde, alegria e otimismo. Ocorre que, com o Covid-19, os riscos de contagio dentro dos hospitais aumentaram. multiplicaram-se, portanto, os niveis de ansiedade e estresse, nado apenas na lida com pacientes altamente contagiosos, que passam semanas reduzidos a organismos inertes, mas diante da necessidade de escolher quem vive € quem morre. Ha ainda o dever de tratar dos demais pacientes, que continuam a chegar aos hospitais, inconscientes ou ndo, com inimeras dores 2 demandas. Era o caso de perguntar: quando a escala de contaminados é muito maior do que os leitos hospitalares, como ficam as avaliagées de exceléncia dos enfermeiros, os pontos para conseguir se manter no emprego ou nele obter a performance exigida? Quando faltam equipamentos de protegdo individual aos médicos ¢ enfermeiros e que eles, com razdo, se recusam a reutilizar as mascaras e outras protegées, como ficam as famigeradas “habilidades para lidar com situagdes desafiantes”? Do lado dos pacientes, a situagaéo também nao € facil: como suportar se ver totalmente dependente dos outros se, nos altimos anos, ha um insistente elogio a responsabilidade individual pela propria satide e pela propria felicidade? De que valem a concorréncia e a autonomia promovidas no ideal empresarial contemporaneo - presentes no trabalho e nas relacdes familiares - quando se esta com febre alta e falta de ar, ou quando ha entes queridos nesse estado e o servico de safde colapsa? Entretanto, o que se passa dentro do hospital é€ apenas um concentrado do que ocorre fora dele. Quanto mais a pandemia se alastra, mais pessoas 840 Coagidas a lavar as m4os tendo como parametro nao apenas a higiene e sim a assepsia. Com a quarentena, milhares de pessoas foram levadas a se comportar como se ja estivessem dentro do espago hospitalar. Tudo se passa como se o hospital estivesse em toda parte, alcangasse o interior das casas e o foro intimo de cada um. Em alguns paises, a pratica médica de utilizar mascaras generalizou-se. Ou entdo o uso de luvas, tal como os cirurgides. A televisdo brasileira e as redes sociais mostraram intmeras vezes que ninguém sabia lavar as m4os de verdade. os brasileiros, entre outros povos, descobriram que era preciso ensaboar as duas m4os, além dos pulsos, durante pelo menos vinte segundos, tal como fazem os profissionais da salide dentro dos hospitais. Era 0 caso de dizer, agora, de fato, o Brasil virou um “imenso hospital”.! Q advento do Covid-19 também instituin uma contabilidade e uma vigilancia de gestos que lembra © aprendizado de soldados e cirurgides: preciso se manter em estado de alerta permanente, como na guerra, exceto quando se esta sozinho na propria casa que, nessas condigdes, se distancia de um lar e assemelha-se a uma caserna. Se a Aids exigiu preservativo nas relagées sexuais, agora, com 0 Covid-19, 6 preciso se afastar de toda e qualquer relagdo presencial com os outros. além disso, a pandemia possui, mais do que qualquer outro exemplo do passado, o poder de forgar uma quantidade crescente de pessoas a se curvar para dentro dela propria. Do Ocidente ao Extremo Oriente, passando por pequenas e grandes cidades, o Covid-19 parece engolir todos os outros tempos e restar apenas preocupagées tipicas do meio hospitalar: quantos dias de incubacdo, quantos meses faltam para baixar a curva dos casos, quantas semanas de confinamento, quantas horas o virus permanece fora do corpo, quantos mortos. Dentro e fora do hospital, hé o perigo do contagio ea ameaca do caos. Ha os que se revoltam porque precisam lidar com 0 cotidiano sem suas faxineiras, cabelereiras e cozinheiras. — ha os que perdem o 1 Expresséc do médico Miguel Pereira em 1916, referindo- se 4 situagdo da moléstia de Chagas existente no meic rural brasileiro. emprego € nado tém como sobreviver. Coisa do diabo que 56 Deus pode curar, anunciam os novos crentes. Mas quem trabalha para manter a 4gua escorrendo das torneiras, a energia elétrica, o abastecimento e © transporte de alimentos, entre outros servigos essenciais durante a quarentena, so seres bem humanos, incluindo judeus, afrodescendentes, “nordestinos” e homossexuais. Em meio a pandemia, aquela autonomia que parecia taéo facil e vencedora, pregada pelos empreendedores da autoajuda, nado se sustenta sem o trabalho coletivo dos mais variados tipos humanos, dedicados a manter a vida de todos. A concorréncia e o “cada um por si” também nao aguentam sozinhos 0 tranco da pandemia, cujos efeitos pedem ciéncia mas também empatia, sentimento impossivel de ser contabilizado numa planilha de custos e gastos. Muitos internados pelo Covid-19 est4o fadados a perecer sem os seus, como milhares de soldados j4 faleceram no campo de batalha, como os pestilentos medievais, ou como um Zé ninguém contemporaneo, sem direito a velério. Sofrimento conhecido na historia da humanidade. Tucidides, ao narrar uma grave peste que assolou Atenas, refere-se a cadaveres insepultos, uma vez que quem os tocasse estava decretando a prépria morte. Antecipacdo e atraso Mas quem pode lavar as m4os e se isolar? Quem tem condicées para uma assepsia segura? “Pediram isolamento. vamos nos isolar onde?” Pergunta um morador de rua na cidade de sao Paulo. Em sociedades nas quais a quarentena € privilégio de uma minoria, a maioria ndo tem meios para evitar © contagio. Os entregadores em suas bikes e motos tém dificnldade para encontrar um banheiro durante © dia. O que é Obvio e comum saltou aos olhos: milhares de pessoas nado podem escapar a aglomeracao dos transportes piblicos. Blas ndo vivem em moradias bem construidas, abastecidas e seguras. Se ficam em casa, gastam mais luz e gas. Se saem, nao tém como lavar as m4os. Para escapar da fome, sao obrigadas a continuar a arriscar a propria satde diariamente, contando com a sorte, com Deus, ou com quem delas tiver compaixdo. Sado coagidas a enfrentar © Covid-19 desarmados, com a cara nua. Para escapar de serem “bucha de canhéo”, elas precisam “dar no em goteira”. agora, sdo alertadas para lavar frequentemente as maos sem ter acesso a agua. A pandemia atual escancarou o quanto a estupidez e a neglig@ncia, existentes ha séculos no Brasil, vao custar caro. Muitos ainda teimam em ndo pagar essa conta. 0 regime escravocrata atualiza-se entre os brasileiros a cada vez que empregadas domésticas - entre as mais de seis milhdes existentes no Pais - ndo tém direito a dispensa remunerada de seus servigos para que possam ficar em suas casas. Mas a pandemia também tornou visivel a inventividade e o coletivismo de muitos. Na Italia ena Franga, grupos de trabalhadores organizaram-se para reivindicar o direito ao afastamento remunerado, na tentativa de evitar que o énus da tragédia recaia apenas sobre os seus ombros. Em varias comunidades brasileiras, formaram-se Comités de Crise e de ajuda coletiva. Ou seja, eles se anteciparam para enfrentar os efeitos nefastos da pandemia. Na verdade, 0 Covid-19 surgiu numa época em que o “cada um por si” - especialmente num Brasil dominado por brancos privilegiados perdia a fantasia, embora ainda tentasse a todo custo desfilar com salto alto. Na Franca, 0 Covid-19 levou Dior, Givenchy @ Guerlain a produzir 4lcool gel. Ao invés das empresas produtoras de luxo se inspirarem nos “pobres” para conceber espetdculos da moda - tal como um destile polémico de John Galliano em 2000, quando as roupas das manequins imitavam os sem abrigos - em épocas de pandemia, é preciso inverter: fabricar o necessario para a maior parte da populacdo. Mas ha empresarios que nem sob a hipétese de “limpar” a marca da empresa produzindo Alcool gel esto dispostos a mudar seus investimentos. Para eles, “os pobres” sdo 0 outro da Patria, incluidos apenas na hora de pedir um voto. Ocorre que os milhares de cidadas e cidad&os com baixa renda, com ou sem abrigo, dentro e fora da moda, integram a nagéo brasileira. Ndo sdo uma excrecéncia, a parte que ndo deu certo. & isto que é escancarado por todos os lados, em rea¢ées crescentes a exclusdo do direito 4 saide e a prevengdo. A populacdo brasileira precarizada vem reagindo contra essa espécie de pecha que lhe foi atribuida ao longo dos séculos, de ser a parte maldita, malvista, malquista do pais. Ela ndo 6 a parte, ela faz parte; s, sem ela, a Nacdo perde toda a nogdo do que seja uma comunidade nacional, assim como a possibilidade de ter futuro. Curioso perceber 0 quanto o atual flagelo também provocou uma série de declaragdes favoraveis aos “pobres” e aos servicgos piblicos de satde, justamente por quem se habituou a despreza-los. Conforme um twitter do jornalista espanhol Pedro Vallin, “o medo de morrer convertia ateus em crentes, mas acontece que transforma neoliberais em keynesianos”. Subitamente so anunciadas qualidades do Estado de bem estar social vindos daqueles que o queriam minimo. Assim, o Covid-19 jogou milhares de pessoas no duro chao de uma realidade que sempre existiu e que agora precipitou-se. A montanha despencou em cima de Maomé e seus dogmas. As reagées mais ébvias apareceram na midia: para Donald Trump, o virus comegou por ser uma fantasia, ndo tardou a mutar e a se tornar um estrangeiro imigrante e, logo a seguir, o inimigo chins. Na China, o médico que alertou para o perigo do virus foi perseguido, preso e acabou morrendo contaminado. © caso lembra o injusticado obstetra hangaro, narrado por Céline. outro exemplo € 0 do governo brasileiro. para Bolsonaro, 0 Covid 19 comecou por ser uma fantasia, passou a ser uma histeria coletiva, para tornar- se uma realidade dentro de sua propria comitiva. A pandemia escancarou 0 fato do Brasil ter um presidente que governa apenas para a sua faccgdo. Entre nacdo e faccdo ha somente uma rima comum, tudo o mais 6 diferente. Mas, atenc&o: Bolsonaro se antecipa. Ele nao se antecipa como as comunidades que percebem a catastrofe iminente = se unem em grupos para salvar © amanha. Ele se antecipa ao jogar as soluc6es mais excludentes, estipidas @ reaciondrias para 0 tempo 14 na frente, apos a pandemia. Ele expressa a vontade de outros brasileiros em deixar morrer agora para que o seu proprio cla sobreviva melhor no futuro. Estamos diante de uma légica de antecipagao do atraso. Qs que culparam o diabo, os judeus e as mulheres pelas doengas ao longo da historia voltavam-se para as crengas do passado, tentavam frear os progressos da ciéncia, tal como os obstetras que ignoravam as causas das mortes das parturientes e nado lavavam as m4os. Agora, ha quem lave as mios, reativando © gesto de Pilatos, no sentido que a historia lhe atribuiu, para nao mudar o rumo dos proprios negocios. Dizem que se trata de uma gripezinha, esperando que os proprios interesses possam se livrar de uma vez por todas daquela antiga parte malvista e que a economia possa enfim funcionar em beneficio de um grupo restrito. Felizmente, a historia nao é univoca e as sucessivas pandemias 0 demonstraram de modo exemplar. Durante 9 Covid-19, ha quem pretenda antecipar o atraso e ha os que se antecipam ainda mais: batalham para estar A frente do que é atrasado hoje com efeitos destrutivos para o amanha; sao homens e mulheres comuns, que tomam a frente na difusdo de informagées sobre os riscos, na realizagao de mutirdes, na agdo de grupos solidarios e de ajuda coletiva. Por isso, pode parecer dificil entender o Brasil. Milhares de brasileiros nao sdo principiantes. Com poucos recursos, eles conseguem inventar precaugdes e produzir sistemas coletivos de sobrevivéncia, desconhecidos por muitos dos que tém condigdes de obedecer a A Central Unica das favelas a sua contribuicdo: “Favela Recado dado pela musica que comprando, nada vai acabar, norma da quarentena. - CUFA - 4A divulgou contra o virus”. alerta para “nao sair manter a calma 2 nfo se desesperar.” Uma observagao: quem quiser saudar o Covid-19, agradecé-lo porque mostra as resisténcias ou uma mudanga para melhor, est& enganado. 0 virus nao é uma conspiragao, uma ocasido ou uma ruptura com valor messianico, é uma tragédia; e querer encontrar nela uma oportunidade é téo estupido quanto os médicos que se opuseram a Semmelweis. Do Corona ao Covid-19 Afinal, o que € este virus? © minimo que se pode dizer de um virus é que ele € estranho. © essa estranheza provoca a necessidade por parte das sociedades de tentar humanizd-lo. Tendéncia milenar diante do desconhecido: buscar algum trago familiar, algo que torne compreensivel o que néo se apreende. Antes de ser chamado de Covid-19, 0 novo coronavirus ganhou uma popularidade muito maior do que o anterior, surgido em 2002. Com as redes sociais, inexistentes na época da SARS, 0 novo coronavirus conquistou fotogenia e virou o “Corona”. Sua imagem ampliada milhares de vezes transformou © virus num planeta repleto de antenas vermelhas, ou com pinos de pano, como se fosse uma bola bordada no espago. Também adquiriu a feigdo de um elemento marinho, uma célula psicodélica, que quando aparece entre os seus, confunde-se com um cenario alucinégeno. Com a atual tecnologia, a imagem do Coronavirus veiculada pela midia ganhou o estatuto de um “ser” palpavel, dando-se a ver a olho nu. Ora, este cendrio mudou completamente quando o virus adquiriu a nomenclatura de Covid-19. Para os ouvidos leigos, ela soa mais cientifica e sisuda do que a outra. Houve logo quem a associasse A uma nave espacial apinhada de alienigenas. outros, detectaram no 19 a referéncia ao ano de nascimento do surto. Mas a gravidade alcangada pela pandemia inibiu o riso. Este foi transferido para 08 politicos que ainda denegam e mentem de forma caricata sobre a pandemia, ou entdo migrou para as solugées hilariantes e mirabolantes que tantas pessoas confinadas inventaram para “ficar bem", dentro das quarentenas. A sigla rapidamente engoliu © nome. © Covid-19 ndo se parece com quase nada que ndo seja ele mesmo. Prodigio cientifico este, comum a outras siglas igualmente cientificas que tendem a reenviar o pensamento 4 “caixa branca” da ciéncia, inacessivel aos leigos Quando surgiu a epidemia de AIDS, as narrativas para se apropriar do entendimento da doenga também torceram a sigla para varios lados, até ela virar ‘ais de mim” em brasileiro. Mas a abreviagdo do nome do virus, HIV, ofereceu maior resisténcia a este exercicio, justamente quando se percebia a letalidade dos casos e quando ficou amplamente conhecida a expressdo “grupo de risco”. Acontece que o Covid-19 também intriga os especialistas que buscam produzir uma vacina. os virus usufruem da particularidade de nao serem nem uma coisa nem outra, e isto nao € um modo de falar que nada diz. um virus € um intrigante tema, cientifico e filosético. Roberto Burioni lembra que um virus nado 6 exatamente um ser e nem se pode facilmente pensar que ele esta vivo como um boi ou ndo vivo como um bife. Um virus 4 algo esquisito do ponto de vista cultural e biologica.? “Ele” so pode se replicar dentro de um hospedeiro. Portanto, fora do hospedeiro, o virus é inerte. Nunca foi fcil perceber o que 6 o inerte. Habituamo-nos aos opostos entre vivo e morto, surpreendemo-nos quando os inertes emergem em nossas vidas, ou sdo criados e estudados em laboratérios e indistrias. 2 Roberto Burioni, Virus. La grande sfida, MilSo:Rizzoli, 2020, p.80. “paulistano parado é seguranca” A guarentena tem custos elevados. Ocorre que ha culturas e cidades para as quais parar significa rebelar-se contra a prépria identidade que lhes foi forjada historicamente. & 0 caso de Sao Paulo. “Paulistano parado s6 pode ser seguranca”, afirma um dito sobre a suposicdo de que, sobretudo em S30 Paulo, vive-se sempre o corre-corre, ou que principalmente os paulistanos estariam completamente subjugados 4s obrigagSes do proprio emprego, da propria carreira. Desde o mito bandeirante até aquele do paulistano 100% produtivo, encontramos uma histéria repleta de ufanismos e de estresse diante da imagem de pessoas que ndo param, que trabalham incessantemente e que, por conseguinte, ndo sabem ficar em casa, nao sabem ficar com elas mesmas, em sil€ncio, desligadas das redes sociais... fugitivas do écio porque o confundem com um tempo vazio ou com a vadiagem. A imagem de pessoas altamente empreendedoras © acessiveis a responder prontamente todos os e-mails laborais, casou-se muito bem com o marketing de um produtivismo individual acelerado, em voga desde a década de 1980. S40 Paulo seria um exemplo de produtividade, seus habitantes, mais do que quaisquer outros brasileiros, incarnariam o ideal do homem investidor e empresdrio de si mesmo, capaz de tornar rentavel todos os aspectos da vida. Este ideal baseia-se na suposigdo de que 4 preciso fazer render e deixar perecer aqueles gue nao acompanham © ritmo altamente acelerado e concorrencial. Trata- se de apostar em um tipo votado a realizar mais 6 mais projetos, a preencher mais e mais planilhas de avaliacSo - no trabalho, nas universidades, nas escolas e nos hospitais. Um tipo habituado a retirar contentamento de seu af& tarefeiro e de suas iniciativas empreendedoras. Um tipo, enfim, que mal percebe o quanto o valor do investimento escorregou do trabalho para 0 lazer, contaminando suas relacgées afetivas, transformando-as em performances “com sucesso”. No limite, este tipo transforma qualquer experiéncia numa oportunidade de ser bem sucedido. Nenhuma idade escapa, nenhuma opcdo identitaria ou sexual esta isenta da seguinte auto cobranca: faca tudo render ou caia fora. Todos devem ser os seus proprios investidores, “ta ligado?” Giria que substituiu o velho conselho “preste atengao”. Alias, quem quer perder tempo dando ou ouvindo um conselho? Hoje ha Coaching. E ele tem prego e lugar no mercado. Bo invés de ser atento, ligue-se. £ nunca mais desligue, porque nesse mundo nada pode ser deixado ao acaso, nada pode ser de graca, nem injecdo na testa, exceto a de Botox, que também tem prego e valor. Ora, durante a pandemia, é preciso parar, retornar 4 cozinha, ao cuidado com os filhos e os mais velhos, A vida lenta, A contemplagao sem pressa da paisagem pelas janelas, A gratuidade das brincadeiras e das relagdes amorosas, ao convivio com muito daquilo que ndo tem prego nem valor de mercado. H& quem seja obrigado, ou viciado, em home office, full time, agendando reuniées e tarefas pela internet. H& quem se mantenha seduzido pela postagem compulsiva de imagens de si, repletas da inten¢do de aumentar o crédito pessoal. Outros ainda preenchem freneticamente planilhas de avaliacéo, contabilizam mais € mais produgdes em seus préprios curriculos, buscam formas de gostar de si entre quatro paredes, continuam em busca de likes e de outputs (os termos em inglés sao importantes) . Entretanto, com a iminéncia do contagio, do sumigo ou da redugao dos empregados, sob a ameaca do colapso do atendimento de satide, inclusive do privado, além de todos os sinais da futura e gigantesca crise econémica que se avizinha, como continuar a acreditar na utilidade daqueles sistemas de avaliagdo e pontuacdo, na autonomia crescente dos individuos, nos likes e dislikes, e, ainda, nos mesmos valores concorrenciais? A mudanga que se pode fazer ndo é para depois que a pandemia passar. A hora é agora. Que a classe média nao fique apenas assistindo pelas telas essa disputa terrivel entre os que querem antecipar um amanha restrito A uma gangue de privilegiados e os que adiantam-se para descolonizar o futuro e dele retirar a Casa Grande e a Senzala. Ultima lembranca: no comeco de Massa e Poder, Elias Canetti lembrou que todas as distancias que o ser humano criou em torno de si, mas também todas as formas dele se perder na massa, surgiram a partir do temor de ser tocado. Que este temor nao massacre o que ha de mais inventivo, e de fato moderno, em nossas sociedades. Que cada vez mais pessoas antecipem um futuro com relagdes sem prego nem valor de mercado, independentes da alta do délar e dos compulsivos likes e dislikes. Afinal, a autonomia de cada um depende dos outros, a redugdo da estupidez necessita da gratuidade das paixdes e da abertura ao contraditério. N&o sabemos o quanto sairemos melhores ou piores desta pandemia. Mas sabemos que esta ndo foi a primeira e ndo sera certamente a Gltima. No entanto, esperemos que ndo seja necessdrio um Covid-21 para gue se aprenda a viver consigo mesmo, para melhor estar com os outros. Lavar as mfos para eliminar micrébios e nado para livrar-se de mais da metade da populagdo de um pais. Que se criem condic6es, enfin, para qué ao menos os mais jovens aprendam que amar nao € perder tempo, ficar consigo ndo € sindnimo de isolamento ou abandono, e que cuidar dos outros ndo serve para tirar nem dar pontos a ninguém. S80 Paula, 26 de marco de 2020 Denise Bernuzzi de Sant’Anna € professora livre docente de Histéria da PUC-SP e pesquisadora do CNPq. Publicou varios livros, entre os quais: Gordos, magros e obesos, uma histéria de peso no Brasil, (Bstagéo Liberdade, 2016) © Historia da beleza no Brasil (Contexto, 2014). Coordena #acondicaocorporal (instagram). Desde que escreveu sobre 0s usos da 4gua em Sao Paulo (Cidade des aguas, Senac, 2007), interessa-se pelas histérias de “lavar as mios”. Foi paraguedista. Pertence ao grupo de risco.

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