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Alfred Jarry

UBU CORNUDO
COLEÇÃO
TEATRO
NACIONAL
SÃO JOÃO
Ubu Cornudo
Ubu Cornudo
Título original Ubu cocu (1895-96)
Autor Alfred Jarry
Tradução e notas Luísa Costa Gomes

Direcção editorial João Luís Pereira, Pedro Sobrado


Direcção gráfica João Faria
Capa e paginação Dobra

© 2020, Teatro Nacional São João


e Edições Húmus, Lda.
Apartado 7081
4764-908 Ribeirão – V.N. Famalicão
T 92 637 53 05
humus@humus.com.pt

1.ª edição: Março de 2020


ISBN 978-989-54352-0-3

Resultado de uma parceria com as editoras Campo das Letras (2007-08)


e Húmus, a Colecção Teatro Nacional São João privilegia a edição de textos
originais e novas traduções encomendados para a encenação de espectáculos
produzidos pelo TNSJ ou integrados na sua programação.

Este livro não segue a grafia do novo acordo ortográfico.

A presente edição é gratuita, estando proibida tanto a sua comercialização


como a sua modificação e disponibilização em outros sítios da Internet,
sem autorização expressa dos editores.

O TNSJ É MEMBRO OPERAÇÃO CENTENÁRIO MECENAS DO CENTENÁRIO


ALFRED JARRY

UBU CORNUDO

Tradução e notas
Luísa Costa Gomes
Ubu Cornudo

Cinco actos.

Versão integral, tal como foi representada


pelas marionetas do Teatro das Phynanças.
Este texto foi publicado pelas Éditions
des Trois Collines em 1944.
Ubu Cornudo

Personagens

Dom Ubu
Sua Consciência1
Dona Ubu
Achras2
Rabonado3
Mémnon4
Merdampo
Mousched-Gogh
Quatrozonelhas, Os Três Empaladores
O Sapateiro Cortacouros5
O Crocodilo
Um Criado
Um Cão Com Meias De Lã

A cena passa-se em casa de Achras.


Duas portas laterais, uma porta ao fundo
que dá para uma casinha-de-banho.
ACTO I

CENA I
Achras.

Achras: Mas é qué, não sei se estais a ver, não tenho a bem dizer
razão para não estar satisfeito com os meus poliedros: fazem
filhos de seis em seis semanas, são piores que coelhos. E é bem
verdade que os poliedros regulares são os mais fiéis e os mais
afeiçoados ao dono; só que o Icosaedro revoltou-se esta manhã
e vi-me obrigado, não sei se estais a ver, a afinfar-lhe uma esta-
lada em cada uma das faces. E ficámos entendidos. E o meu tra-
tado, não sei se estais a ver, sobre os costumes dos poliedros lá
vai avançando: só falta fazer vinte e cinco volumes.

CENA II
Achras, O Criado.

O Criado: Senhor, está ali um sujeito que quer falar ao senhor.


Arrancou a campainha, à força de tanto puxar, partiu três cadei-
ras a sentar-se.
(Entrega-lhe um cartão-de-visita.)
Achras: Mas o qué que vem a ser isto? Senhor Ubu, antigo rei da
Polónia e de Aragão, doutor em Patafísica. Não é coisa que se
entenda. O que será isto da Patafísica? Enfim, não interessa,
deve ser pessoa distinta. Quero ter um gesto de boa vontade
para com esse estrangeiro mostrando-lhe os meus poliedros.
Manda entrar o senhor.
12  ALFRED JARRY

CENA III
Achras, Ubu (em fato de viagem, com uma mala.)

Dom Ubu: Pancichouriça, chiça!, senhor, vossa casa está em con-


dição lastimosa: deixaram-nos à porta a dar ao badalo mais de
uma hora; e quando os senhores vossos criados lá se decidiram
a abrir, vimos à nossa frente um orifício de tal maneira minús-
culo, que ainda estamos para saber como é que a nossa pança
lá conseguiu passar.
Achras: Mas é qué, desculpai: não estava à espera da visita de tão
gorda personagem… se estivesse, garanto que teríamos man-
dado alargar a porta. Mas haveis de desculpar o embaraço de
um velho coleccionador que é, ao mesmo tempo, atrevo-me
a dizê-lo, um grande sábio.
Dom Ubu: Isso dizeis vós, mas estais a falar a um grande patafísico.
Achras: Perdão, senhor, como dizeis?
Dom Ubu: Patafísico. A Patafísica é uma ciência que nós inventá-
mos e cuja necessidade se fazia geralmente sentir.
Achras: Oh, mas é qué, se sois grande inventor, havemos de nos
entender, não sei se estais a ver; pois, entre grandes homens…
Dom Ubu: Sede mais modesto, senhor! Não vejo por aqui outro
grande homem para além de mim. Mas, já que insistis, condes-
cendo em fazer-vos uma grande honra. Sabei que a vossa casa
nos convém e que decidimos instalar-nos.
Achras: Oh, mas é qué, não sei se estais a ver…
Dom Ubu: Dispenso-vos dos agradecimentos. – Ah!, a propósito,
já me esquecia: como não é justo que o pai esteja separado dos
filhos, brevemente virá juntar-se-nos a nossa família: Dona Ubu,
os nossos filhos Ubu e as nossas filhas Ubu. São pessoas muito
sóbrias e educadíssimas.
UBU CORNUDO  13

Achras: Oh, mas é qué, não sei se estais a ver, temo que…
Dom Ubu: Nós compreendemos: temeis incomodar. Por isso é que
não vamos tolerar a vossa presença aqui senão a título gracioso.
Além disso, enquanto inspeccionarmos as vossas cozinhas e
sala de jantar, ireis buscar os nossos três caixotes de bagagem,
que omitimos no vestíbulo.
Achras: Oh, mas é qué – isto é inédito, instalarem-se assim sem
mais em casa das pessoas. É impostura manifesta.
Dom Ubu: Postura magnífica! Perfeitamente, falastes verdade, uma
vez na vida.
(Achras sai.)

CENA IV
Dom Ubu, depois a sua Consciência.

Dom Ubu: Teremos razão em agir assim? Pancichouriça, pla nossa


candeia verde, vamos aconselhar-nos com a nossa Consciência.
Está ali dentro da mala, toda coberta de teias de aranha. Vê-se
bem que não nos serve muitas vezes.
(Abre a mala. Sai A Consciência, com a aparência de um homen-
zinho gordo, em camisa.)
A Consciência: Senhor, e assim por diante, fazei a fineza de tomar
umas notas.
Dom Ubu: Perdão, senhor! Não gostamos nada de escrever, embora
não duvidemos de que tenhais coisas interessantíssimas para
nos dizer. E, a propósito, pergunto-vos como tendes o topete
de aparecer diante de nós em camisa?
A Consciência: Senhor, e assim por diante, a Consciência, como
a verdade, não anda normalmente em camisa. Se a vesti, foi por
respeito pela augusta assistência.
14  ALFRED JARRY

Dom Ubu: Ora esta, senhor ou senhora minha Consciência, fazeis


uma grande chinfrineira. Respondei antes a isto: faço bem em
matar o senhor Achras, que ousou vir insultar-me na minha
própria casa?
A Consciência: Senhor, e assim por diante, é indigno de homem
civilizado pagar o bem com o mal. O senhor Achras acolheu-
-vos, o senhor Achras abriu-vos os braços e a sua colecção
de poliedros, o senhor Achras e assim por diante é excelente
homem, e bem inofensivo e seria uma cobardia, e assim por
diante, matar um pobre velho incapaz de se defender.
Dom Ubu: Pancichouriça, chiça! Senhor minha Consciência, ten-
des a certeza de que ele não se pode defender?
A Consciência: Absolutamente, senhor. Por isso, seria grande
cobardia assassiná-lo.
Dom Ubu: Obrigado, senhor, já não precisamos de vós. Mataremos
o senhor Achras, pois não há perigo e havemos de vos consultar
mais vezes, porque sabeis dar melhores conselhos do que ima-
ginávamos. Prà mala!
(Fecha-a.)
A Consciência: Nesse caso, senhor, creio que podemos, e assim
por diante, ficar por aqui hoje.

CENA V
Dom Ubu, Achras, O Criado.
Achras entra às arrecuas, em vénias de medo diante
dos três caixotes vermelhos que O Criado empurra.

Dom Ubu: (Para o Criado.) Vai-te embora, saguim. – E a vós,


senhor, tenho de vos falar. Desejo-vos mil prosperidades e venho
rogar de vossas boas graças um favor de amigo.
UBU CORNUDO  15

Achras: Tudo o qué, não sei se estais a ver, se pode esperar de um


velho sábio que consagrou, não sei se estais a ver, a estudar os
costumes dos poliedros, sessenta anos da sua vida.
Dom Ubu: Senhor, soubemos que Dona Ubu, nossa virtuosa
esposa, nos engana indecentemente com um egípcio chamado
Mémnon, que acumula as funções de relógio, de madrugada;
limpa-latrinas ao barril, de noite; e de dia, encorna-nos. Pla-
neámos praticar nele, pancichouriça!, uma vingança terrível.
Achras: No que a isso se refere, não sei se estais a ver, senhor,
a serdes cornudo, tendes a minha aprovação.
Dom Ubu: Portanto, decidimo-nos pelas sevícias. E não vemos
nada que mais convenha, para castigar o infame, que o suplí-
cio do empalamento.
Achras: Perdão, mas ainda não estou bem a ver, não sei se estais
a ver, como poderei ser-vos útil.
Dom Ubu: Pla nossa candeia verde, senhor, desejando não falhar
a acção de justiça, ficaríamos felicíssimos se um homem res-
peitável experimentasse preparatoriamente a estaca, para ver
se funciona bem.
Achras: Mas é qué, não sei se estais a ver, nunca na vida. É demais.
Lamento, não sei se estais a ver, não poder prestar-vos esse
favorzinho; mas é que isto é inédito. Roubastes-me a casa, não
sei se estais a ver, pusestes-me na rua, e agora quereis mandar-
-me matar, ora essa, isso já é um abuso.
Dom Ubu: Não vos deveis afligir, senhor nosso amigo. Era só uma
brincadeira. Voltaremos quando tiverdes acabado completa-
mente de manifestar terror.
(Sai.)
16  ALFRED JARRY

CENA VI
Achras, depois Os Três Empaladores,
que saem dos caixotes.

Os Três Empaladores:6
Cá estão os Empaladores,
Cá estão os Empaladores,
Fuças de coelho, senhores!
Mas mesmo assim
Mui bem preparados
Pra matazar os mais abonados
Nós Somos os Em –
Nós somos os Dores
Nos somos os Empaladores.
Merdampo:
Em caixas de lata
De qualquer maneira
Empilhados a semana inteira
É só ao domingo que a gente
Sai pra respirar livremente
Orelha ao vento, sem se pasmar;
E quem nos vê pela frente
Na marcha firme a passar
Toma-nos por militar.
Os Três Empaladores:
Cá estão os Empaladores, etc.
Mousched-Gogh:
Acordamos de alvorada
A pontapés no traseiro
Desce-se a escada, numa cegada
UBU CORNUDO  17

Fecha a sacocha, abotoa a farda


E todo o dia à martelada
Partimos focinhos em barda
A Dom Ubé no fim levamos
A massa dos que matazamos.
Os Três Empaladores:
Cá estão os Empaladores, etc.
(Dançam. Achras, horrorizado, deixa-se cair numa cadeira.)
Quatrozonelhas:
Co’ esta farpela grotesca
Corremos a cidade inteira
Para gáudio da soldadesca
Partimos a cara a quem queira
Não ser cá à nossa maneira.
Morfamos por uma charneira
Mijamos por uma torneira
E respiramos com zelo
Por um tubo em cotovelo!
Os Três Empaladores:
Cá estão os Empaladores, etc.
(Fazem uma roda à volta de Achras.)
Achras: Oh, mas é qué, não sei se estais a ver, é absurdo, isto
não tem jeito nenhum. (Por baixo da cadeira, surge a estaca.)
Ora esta, isto não ficou nada entendido. Se fôsseis poliedros
meus, não sei se estais a ver… Tende piedade deste infeliz sábio.
Vede… Não sei se estais a ver. Mas isto não tem jeito nenhum!
(É empalado e erguido no ar, apesar dos seus gritos. É noite escura.)
Os Três Empaladores: (Revistando os móveis e tirando sacos de
phynanças.) É dar finança – a Dom Ubu. Dai a finança toda –
a Dom Ubu. Que não reste nada – nem um tostão – escape – aos
18  ALFRED JARRY

rapaces rufias – que a vêm buscar. Dai toda a finança – a Dom


Ubu! (Entrando nas caixas deles.) Cá estão os Empaladores, etc.
(Achras desmaia.)

CENA VII
Achras, empalado, Dom Ubu, Dona Ubu.

Dom Ubu: Pla minha candeia verde, minha doce menina, vamos
ser tão felizes nesta casa!
Dona Ubu: Só falta uma coisa à minha felicidade, meu amigo: ver
o respeitável anfitrião que nos deu estas mordomias.
Dom Ubu: Bem, lá por isso… Prevendo vosso desejo, mandei que
o instalassem no lugar de honra.
(Mostra a estaca. Gritos e crise de nervos da Dona Ubu.)

Fim do Acto I
ACTO II

CENA I
Achras, empalado, A Consciência, meia saída da mala.

A Consciência: Senhor.
Achras: Rom.
A Consciência: E assim por diante.
Achras: O que é qué foi agora, rom, mas o qué? Devo estar morto,
deixe-me em paz.
A Consciência: Senhor, embora a minha filosofia condene abso-
lutamente a acção, como o que o senhor Ubu fez foi demasiado
indigno, vou-vos desempalar.
(Estica-se até chegar à altura de Achras.)
Achras: (Desempalado.) Isso não se recusa, sanhor.
A Consciência: Senhor, e assim por diante, desejo ter convosco
uma pequena conversa, sentai-vos, por favor.
Achras: Oh, mas é qué, não sei se estais a ver, nem pensar nisso.
Não cometeria a indelicadeza de me sentar na presença de um
puro espírito que é meu salvador, e além disso, não sei se estais
a ver, é coisa que não me agrada lá muito.
A Consciência: O meu senso íntimo e o sentimento de justiça impõem-
-me o dever de castigar o senhor Ubu. Que vingança projectais?
Achras: Bem, mas é qué, não sei se estais a ver, há muito que
está tudo pensado. Vou só abrir o alçapão da cave… hã… pôr
o cadeirão na borda, não sei se estais a ver; e quando o fulano,
não sei se estais a ver, voltar do jantar, desaba tudo, essa é que é
essa, e assim ficamos entendidos!
A Consciência: Será feita justiça, e assim por diante.
20  ALFRED JARRY

CENA II
Os mesmos, Dom Ubu.
A Consciência esconde-se na mala.

Dom Ubu: Pancichouriça, chiça! Senhor, não ficastes onde vos pus.
Já agora, que ainda estais utilizável, não haveis de vos esquecer
de dizer à cozinheira que tem o hábito de servir a sopa muito
salgada e o assado passado de mais. Não gostamos assim. Não
é que não pudéssemos, em virtude da nossa ciência em Patafí-
sica, fazer surgir da terra as iguarias mais requintadas; mas são
os vossos processos, senhor, que nos indignam!
Achras: Oh, mas é qué, não voltará a acontecer. (Dom Ubu cai no
alçapão.) Não sei se estais a ver.
Dom Ubu: Pancichouriça, chiça, senhor! Que brincadeira é esta?
O vosso sobrado está num estado deplorável. Vemo-nos obri-
gados a recorrer à sevícia.
Achras: Mas é só um alçapão, não sei se estais a ver.
A Consciência: O senhor Ubu é gordo de mais, não conseguirá passar.
Dom Ubu: Pla minha candeia verde, um alçapão tem de estar ou
aberto ou fechado. A beleza do Teatro das Phynanças reside no
bom funcionamento dos alçapões. Este aqui estrangula-nos,
esfola-nos o cólon transverso e o grande epíploo. Se não nos
tirardes daqui, ainda morremos.
Achras: O que posso fazer, não sei se estais a ver, é encantar estes
vossos instantes pela leitura de algumas passagens caract’ísticas,
não sei se estais a ver, do meu tratado sobre os costumes dos
poliedros e da tese que demorei sessenta anos a compor sobre
a superfície do candrado. Não quereis? Bem, então vou-me
embora, não quero ficar a ver isto, é triste de mais.
(Sai.)
UBU CORNUDO  21

CENA III
Dom Ubu, A Consciência.

Dom Ubu: Minha consciência, onde estais? Pancichouriça, dáveis-


-me bons conselhos. Como penitência, depositaremos em vos-
sas mãos uma fracção do que tomámos. Nunca mais havemos
de fazer saltar miolos.
A Consciência: Senhor, nunca quis a morte do pecador, e assim
por diante. Estendo-vos esta mão caridosa.
Dom Ubu: Despachai-vos, senhor, que morremos. Tirai-nos
depressa deste alçapão e outorgar-vos-emos um dia de folga
fora da vossa mala.
(A Consciência, depois de ter libertado Ubu, atira a mala para
o alçapão.)
A Consciência: (Gesticulando.) Obrigado, senhor. Senhor, não
há exercício mais salutar que a ginástica. Perguntai a qualquer
higienista.
Dom Ubu: Pancichouriça, que chinfrineira! Para vos provar a nossa
superioridade nisto, como em tudo, vamos fazer o salto perigi-
glioso,7 o que pode parecer espantoso, dada a enormidade desta
minha pança.
(Põe-se a correr e a pular.)
A Consciência: Senhor, peço-vos, não, ainda fazeis um buraco no
chão e desapareceis aí nalgum alçapão. Admirai a nossa leveza.
(Fica pendurado pelos pés.) Oh, socorro! Vou partir a espinha,
vinde ajudar-me, senhor Ubu.
Dom Ubu: (Sentado.) Oh, não. Nada faremos, senhor. Neste
momento, estamos a fazer a nossa digestão e a mínima dila-
tação da nossa pança matar-nos-ia instantaneamente. Daqui
a umas duas ou três horas, no máximo, a nossa digestão terá
22  ALFRED JARRY

terminado e voaremos em vosso auxílio. E, além do mais, não


é nosso hábito andar por aí a apanhar penduras.
(A Consciência agita-se e cai em cima da pança de Ubu.)
Dom Ubu: Ah, não, senhor, isso não, não tolero que abusem de nós
e não sereis vós a começar!
(Não encontrando a mala, agarra A Consciência pelos pés,
abre a porta do fundo e atira-a de cabeça pelo buraco entre os
dois assentos de pedra.8)

CENA IV
Dom Ubu, Os Três Empaladores
(de pé dentro das caixas).

Os Três Empaladores: Quem se lixa prà sua barbicha – são os


tolos e parolos – que podem bem – antes de amanhã – muito se
arrepender. Porque ele não quer – que a sua pessoa – seja mal-
tratada nem gozada. Porque ele não quer – que a sua bojoa –
seja ri-di-cu-lari-za-da. Aquele barril qu’ali vem, ’ril qu’ali vem,
’ril qu’ali vem, é o Dom Ubu.
(Entretanto, Dom Ubu acende a candeia verde, chama de hidro-
génio no vapor do enxofre, a cuja, construída segundo o princípio
do Órgão Filosófico, emite um som contínuo de flauta. Pendura
na parede dois letreiros: Aqui pica-se à máquina – Cortam-se
gatos e onelhas.)
Merdampo: E esta, sénhor!? Sempre há gente que sofre muito.
O senhor Rabonado passou onze vezes esta manhã pela Pinça-
-Porco, na Praça da Concórdia. Hã!
Mousched-Gogh: Sénhor, como mandastes, fui levar uma caixa
de murraças explosivos ao senhor ***, e um vaso cheiinho de
merdra ao senhor ***. Hã!
UBU CORNUDO  23

Quatrozonelhas: Fui ao Egipto, sénhor, e trouxe o Mémnon


cantor. Em consequência do qual, como não sei se tem de se
lhe dar corda todas as manhãs, deixei-o na Câmara das Pata-
cas. Hã!
Dom Ubu: Calados, estúpidos idiotas. Deixai-nos meditar. –
A esfera é a forma perfeita, o sol é o astro perfeito, e em nós
nada é mais perfeito que a cabeça, sempre erguida para o sol
e tendendo para a sua forma, à excepção do olho, espelho
desse astro e semelhante a ele. A esfera é a forma dos anjos. Ao
homem só é dado ser anjo incompleto. Mais perfeito que o cilin-
dro, menos perfeito que a esfera, do barril irradia o corpo hiper-
físico. Nós, seu isomorfo, somos belo.9
Os Empaladores: Quem se lixa prà sua barbicha – são os tolos
e os parolos que podem bem – antes de amanhã – passar na
máquina dos miolos.
(Dom Ubu, que estava sentado à mesa, levanta-se e põe-se a andar.)
Os Empaladores: Este barril qu’ali vem, ‘ril qu’ali vem, ‘ril
qu’ali vem, é o Dom Ubu. E sua panc’imensa, panc’imensa,
panc’imensa, é como um…
Dom Ubu: Non cum vacaveris, pataphysicandum est, disse Séneca.
Seria urgente mandar arranjar o nosso fato de lã filosófica.
Omnia alia negligenda sunt, mostra de certeza muito pouca
reverência, ut huic assideamus, empregar em usos infames de
despejo de barricas e barris, o que é insultar gravemente o aqui
presente Mestre das Finanças. Cui nullum tempus vitae satis
magnum est, para isso inventámos este instrumento, que não
hesitamos de modo nenhum em qualificar com o nome de
bomba de merdra!10
(Tira-a do bolso e coloca-a em cima da mesa.)
Os Empaladores: Hã, sénhor!
24  ALFRED JARRY

Dom Ubu: E agora já se faz tarde, vamos ir dormir. – Ah, já me


esquecia: haveis de nos trazer, na volta do Egipto, sebo de
múmia para a nossa máquina, embora se diga que correm
muito depressa, pancichouriça!, e sejam difíceis de capturar.
(Leva a candeia verde e a bomba e sai.)

CENA V
Os Empaladores imóveis cantam, enquanto se ergue, a meio
da cena, a estátua de Mémnon, cujo pedestal é um barril.

Os Empaladores:
Temei e tremei do Mestre das Finanças,
Ó mais abonados, que de mão n’algibeira
Só pensais em gritar quando sois esfolados!
Plo Empalador nojento de luneta faceira
Sois degolados!
Ubu acorda ao raiar o dia
A faina começa sem atrasá-la –
Abre com estrondo a porta da sala
Onde dorme a piolhosa canalha da empala.
Torce a orelha e abate-a silvando,
Sobre o Empalador que acorda guinchando,
Sem mais aquelas, que regalo de estalo!
E de roldão, ao som do tambor,
Formar na parada! Com todo o rigor!
Dom Ubu lê as disposições
Que fixa a todos as suas missões;
Dá-lhes uma côdea, três cebolos crus
E despacha-os pra fora a pontapés no cu…
Regressa ao seu quarto em passo magistral
UBU CORNUDO  25

E vai ver as horas no pêndulo de âmbar…


– Seis da manhã! Credo! Não me posso atrasar!
– Acordai, sodona Ubança.
Dai-me o sabre da merdra e o gancho da Finança.
Mas, diz Dona Ubu, senhor Dom Ubom
E lavares o focinho não será de bom tom?
O que não agrada ao Mestre das Finanças.
Fecha a correia da sacocha letal.
E, sol ou chuva, pràs suas andanças
Sai, curvado ao vento matinal.

Fim do Acto II
ACTO III

CENA I
Os Empaladores atravessando a cena.

Os Empaladores:
Marchemos prudentes e vigiemos constantes.
Tal a vigilância dos bravos Empaladores; e
Saibamos, sensatos, distinguir se quem vai
São os piores sacripantas ou meros passantes.
Olhai o traje, penachos, meia de fantasia,
Não engana ninguém, é ricaço abonado,
Miserável cobarde, carão odiado,
Levas mil bordoadas que é uma alegria.
Tenta debalde acalmar os Empaladores.
É amarrado e esmurrado e outros horrores.
O senhor Dom Ubu ficará mui agradado,
Haverá ao jantar miolos de Rabonado.
(Saem.)

CENA II
Rabonado, Achras.
Vindo um da direita, outro da esquerda.
A primeira estrofe ao mesmo tempo.

Rabonado: Ah, é indigno, é revoltante! Um pobre funcionário.


Só tenho 3700 francos de rendimento e o senhor Ubu exige-
-me todas as manhãs o pagamento de uma lista de finanças
de oitenta mil francos. Como não posso pagar em dinheiro,
UBU CORNUDO  27

faz-me passar pela Pinça-Porco, estabelecida em permanência


na Praça da Concórdia; e o custo de cada sessão é de quinze mil
francos. É indigno, é revoltante!
Achras: Oh, mas é qué, não há maneira de ficar em casa. O senhor
Ubu deu-me a entender, não sei se estais a ver, que teria de pas-
sar a porta; e aliás instalou, com vossa licença, uma bomba de
merdra, não sei se estais a ver, no meu quarto. Oh, vem alguém!
É um Empalador!
Rabonado: Que vejo? Um emissário do senhor das Finanças?
Vamos pela lisonja. Viva o senhor Ubu!
Achras: Ainda me empalam outra vez, o melhor é imitá-lo, não
sei se estais a ver. Matazai, não sei se estais a ver! Fazei saltar os
miolos, cortai as onelhas!
Rabonado: Prà Pinça-Porco! Morte aos Abonados! Máquina
co’eles!
Achras: É empalá-los, não sei se estais a ver.
(Avançam um para o outro.)
Rabonado: Ai! Socorro! Assassino!
Achras: Esta agora! Socorro!
(Acotovelam-se a querer fugir.)
Achras: (De joelhos.) Sinhor Empalador, perdão, não sei se estais
a ver. Não foi de propósito. Sou dedicado servo do senhor
Ubu.
Rabonado: É revoltante! Sou zeloso defensor do senhor das
Finanças!
Achras: Oh, mas é qué, não sei se estais a ver, sinhor, acaso sois
mestre d’armas?
Rabonado: É indigno, senhor, mas não tenho essa honra.
Achras: Pois porqu’é què, não sei se estais a ver, ou melhor, se não
sois mestre d’armas, dou-vos o meu cartão.
28  ALFRED JARRY

Rabonado: Senhor, nesse caso é inútil continuar a dissumular.


Sou, de facto, mestre d’armas.
Achras: Ora pois então (dá-lhe um estalo), dai-me o vosso cartão
agora mesmo, por favor, não sei se estais a ver. É que eu trato
à estalada todos os mestres d’armas que encontro, para que
me dêem o cartão deles, não sei se estais a ver; e depois vou
e mostro os cartões-de-visita dos mestres d’armas aos não mes-
tres d’armas para lhes fazer medo, porque sou homem pacífico,
e assim ficamos entendidos, ora pois então!
Rabonado: É revoltante, senhor. Podeis fazer o que quiserdes, que
não lutarei convosco. Além de que a luta seria muito desigual.
Achras: Lá por isso, não sei se estais a ver, não vos preocupeis,
serei magnânimo na vitória.
(Um cão com meias de lã cruza a cena.)
Rabonado: Que indignidade! Aquele animal, enviado pelo senhor
Ubu, privou os meus pés dos seus invólucros.
Achras: Vossas meias de fantasia e vossos sapatos, não sei se estais
a ver. E eu que ia propor-vos que fugísseis comigo.
Rabonado: Fugir? Para onde?
Achras: Fugir, para lutarmos, quero eu dizer, mas longe do senhor
Ubu.
Rabonado: Para a Bélgica?
Achras: Ou melhor, não sei se estais a ver, para o Egipto. Vou
apanhar umas pirâmides para a minha colecção de poliedros.
Quanto aos vossos sapatos, não sei se estais a ver, vou mandar
cá vir o sapateiro da esquina e o mal será reparado.
UBU CORNUDO  29

CENA III
Rabonado, os Empaladores,
Mémnon, este em cima do barril.
Rabonado vai sentar-se; no mesmo instante,
Mémnon preludia na flauta, pois o dia chega.
Rabonado ouve, horrorizado, o que segue, diante do pedestal,
o que faz com que os Empaladores, que aparecerão do outro
lado para acompanhar o refrão, não o vejam.

Mémnon:
Fui tempos sem fim marceneiro ebanista,
Paróquia de Santos, ao Campo de Marte;
A esposa exercia profissão de modista,
E nunca nos faltou nada – digo eu em aparte.
E se a manhã de domingo vinha soalheira
Vestíamos o nosso melhor fatinho
E íamos ver saltar mioleira
À Rua do Esquentadinho.
Olhai, olhai a máquina a girar,
Olhai, olhai o miolo a saltar,
Olhai, olhai os ricos a abanar…
Os Empaladores:
Urra! Cornos-no-Cu, viva o Dom Ubu!11
Mémnon:
Os dois miuditos todos lambuzados
De doces, geleias e mais rebuçados,
Brandindo contentes os seus bonequinhos.
Iam na carroça bem alto sentados,
Rolando prà Rua do Esquentadinho.12
Lançamo-nos todos à grossa cancela,
30  ALFRED JARRY

Andamos ao murro para ficar à frente;


Para um monte de pedras subo à cautela
Ou sujo os sapatos no sangue ainda quente.
Olhai, etc.
Os Empaladores:
Urra! Cornos-no-Cu, viva o Dom Ubu!
Mémnon:
Eu e a patroa, brancos da mioleira.
Os miúdos petiscam-na, a gente saltita.
E o Empalador alça a espada certeira
E faz feridas várias e um número catita.
E vejo ao cantinho, ao pé do engenho,
As fuças dum barão que logo me irrita.
Meu caro, digo, conheço-te o focinho:
Roubaste-me, não te lamento a desdita.
Olhai, etc.
Os Empaladores:
Urra! Cornos-no-Cu, viva o Dom Ubu!
Mémnon:
Sinto que a patroa me puxa pla manga:
Ó lesma, diz ela, eis a minha proposta,
Dá-lhe nas fuças co’um bocado de bosta,
Aproveita que o Empalador não se zanga.
Ao ouvir raciocínio assim superior,
Agarro na bosta e coragem bastante
E atiro ao Ricaço uma merdra gigante
Que s’espalma ai! no nariz do Empalador.
Os Empaladores e Mémnon:
Olhai, etc.
UBU CORNUDO  31

Mémnon:
Sou logo lançado por cima da cancela,
Empuxado e levado pla turba possessa
E atirado de cabeça pela clientela
No buraco negro donde não se regressa.
E é nisto que dá ir ao domingo passear
À Rua do Esquentadinho ver o miolo a saltar,
Mais o Desmancha-Comanches e a Pinça-Porco:
Pra lá vai-se vivo, pra cá vem-se mozorto!
Os Empaladores e Mémnon:
Olhai, olhai a máquina a girar,
Olhai, olhai o miolo a saltar,
Olhai, olhai os Ricos a abanar…
Urra! Cornos-no-Cu, viva o Dom Ubu!

CENA IV
Os Empaladores entram nos caixotes ao verem a luz.
Achras chega, seguido de Cortacouros,
trazendo a sua insígnia e um sortido de sapatos
numa banquinha de vendedor ambulante.
Mémnon, Rabonado, Achras, Cortacouros.

Achras: Para não estragar, não sei se estais a ver, a unidade de


lugar, não pudemos transportar-nos até à vossa banquinha.
Instalai-vos (abre a porta do fundo) neste recantozinho, com a
vossa insígnia por cima da porta, e o meu jovem amigo apre-
sentar-vos-á o requerimento.
Rabonado: Senhor Sapateiro, eu é que faço a fuga para o Egipto
com o meu respeitável amigo, senhor Achras. Os cães com meias
de lã desnudaram-me os pés e eu impetro de vós outros sapatos.
32  ALFRED JARRY

Cortacouros: Isto aqui, senhor, é artigo excelente, apesar de ino-


minável, a especialidade da casa, os Esmaga-Merdras. Assim
como há diferentes espécies de merdras, há Esmaga-Merdras
para a pluralidade dos gostos. Estes são para os cagalhões fres-
cos, estes para a bosta de cavalo, estes para as caganitas já anti-
gas, estes para a bosta de vaca, estes para o mecónio do bebé de
berço, estes para a caganeira de polícia, estes para as fezes de um
homem nem muito novo nem muito velho.
Rabonado: Ah, senhor, levo estes, acho que me convêm. Por
quanto é que os vendeis, por favor, Dom Sapateiro?
Cortacouros: Catorze francos, pois honrais os sapateiros remen-
dões.
Achras: Fizestes mal, não sei se estais a ver, em não ter ficado antes
com – não sei se estais a ver – aqueles para a caganeira de polí-
cia. Ter-lhes-íeis dado mais uso.
Rabonado: Tendes razão. Dom Sapateiro, afinal fico com aquele par.
(Vai-se embora.)
Cortacouros: Eh lá! E o pagamento, senhor?
Rabonado: Então, mas eu troquei-os por aqueles coisos para
homem nem muito velho nem muito novo.
Cortacouros: Mas tampouco pagastes esses!
Achras: Então, mas ele não os vai levar, não sei se estais a ver.
Cortacouros: Pois é.
Achras: (Para Rabonado.) O truque já não é novo, não sei se
estais a ver; mas para um sapateiro velho é mais, não sei se estais
a ver, proporcionado: ele bota-lhe solas novas.
(Achras e Rabonado, prontos para sair, dão de caras com
Os Empaladores.)
UBU CORNUDO  33

CENA V
Os mesmos, Os Empaladores.

Os Empaladores: (Fora de cena.) Marchemos prudentes, etc.


Mousched-Gogh: Entremos depressa, é dia claro, fecham-nos
os caixotes.
Merdampo: Ó Empalador 3246, olha-me uma, apanha-a e mete-a
no teu caixote.
Quatrozonelhas: Agarrei-te, Dona Múmia. O senhor Ubu vai
ficar todo contente.
Achras: Oh, mas é qué, se isto já se viu! Larguem-me mas é, não
sei se estais a ver! Não me reconheceis? Sou o senhor Achras, já
fui empalado uma vez.
Rabonado: Senhor, deixe-me em paz, é um atentado revoltante
à liberdade individual. Esperam-me a todo o momento na
Pinça-Porco.
Merdampo: Atenção, vai ali uma grande a fugir.
Quatrozonelhas: Ei, que depressa que ela vai!
(Luta.)
Rabonado: Socorro, senhor Sapateiro, eu pago-vos os sapatos!
Achras: Enxotai-os daqui, não sei se estais a ver, dai-lhes!
Cortacouros: Eu dou mas é à sola! (Um Empalador deita-lhe
fogo ao cabelo.) Que noite! Dói-me o cabelo.
Os Empaladores: Miserável cobarde, etc.
(Deitam fogo ao Sapateiro e fecham a porta. Sai uma última
chama pela janela. Atiram Achras e Rabonado para o pedestal-
-barril de Mémnon que, para ser destronado, é atirado para o chão.)
Os Empaladores: (Afastando-se.)
Os cães co’as meiaz de lã, meiaz de lã…
Os coelhos da finança, pinça da finança…
34  ALFRED JARRY

O sôr Rabonado, de tanta abastança,


Está bem tramado antes de amanhã;
E os passantes lá vão a torcer-se de rir,
Ninguém o consola, entre os que ficaram.
Os camelos das finanças são os últimos a ir.
Os camelos das finanças… não ganharam.

Fim do Acto III


ACTO IV

CENA I
Entretanto, Mémnon levantou-se,
ajeitou o capacete de três pontas e borzeguins
de limpa-latrinas e vai fazer sinal à porta.
Mémnon, Dona Ubu.

Mémnon: Oh, doce Dona Ubu, podes vir, estamos sós.


Dona Ubu: Oh, meu amigo, tive tanto medo de que te tivesse acon-
tecido alguma coisa ao ouvir este alarido todo.
Mémnon: Tenho pena é do meu barril.
Dona Ubu: Não tenho pena nenhuma do Dom Ubu.
Mémnon: Observam-nos: vamos conversar para outro lado.
(Entram para o quarto do fundo.)

CENA II
Os mesmos, no quarto do fundo, cuja porta fica entreaberta.
Voz do Dom Ubu e dos Empaladores, de fora.

Voz de Ubu: Pancichouriça! Rapinámos a finança ao senhor


Achras, empalámo-lo e ficámos-lhe co’a casa; e, nesta casa, agora
buscamos, levados pelo remorso, maneira de lhe restituir a parte
material do que lhe tomámos, ou seja, do jantar.
Os Empaladores: Em grandes caixas de lata…
Dona Ubu: É o senhor Ubu, estou perdida!
Mémnon: Por este postigo em forma de ás de ouros, vejo-lhe os
cornos a cintilar ao longe. Onde é que eu me escondo? Ah!,
aqui dentro.
36  ALFRED JARRY

Dona Ubu: Mas nem pensar, meu querido pequeno, vais-te matar!
Mémnon: Matar-me? Por Gog e Magog, ali dentro vive-se, respira-
-se. É ali que eu trabalho. Um, dois, upa!

CENA III
Os mesmos, A Consciência.

A Consciência: (Emergindo como um verme, no momento em


que Mémnon mergulha.) Ufa, mas que choque! Fiquei com a
cabeça a zumbir!
Mémnon: Como um barril vazio.
A Consciência: A vossa não zumbe?
Mémnon: Nada.
A Consciência: Como um pote rachado. Fiquei d’olho nele.
Mémnon: Tem mais o ar de um olho no fundo de um penico.
A Consciência: Na verdade, tenho a honra de ser a Consciência
do senhor Ubu.
Mémnon: Foi ele que atirou para o buraco vossa imaterial pessoa?
A Consciência: Mereci-o; atormentei-o, castigou-me.
Dona Ubu: Pobre jovem…
Vozes dos Empaladores: (Muito próximos.) Orelha ao vento,
sem se pasmar…
Mémnon: Por isso vais voltar lá para dentro, e eu também e a Dona
Ubu também.
(Descem.)
Os Empaladores: (Atrás da porta.) Morfamos por uma charneira…
Dom Ubu: Entrai, ó pancichouriça!
(Entram de rompante.)
UBU CORNUDO  37

CENA IV
Os Empaladores, com candeias verdes.
Dom Ubu, em camisa.

Dom Ubu: (Sem dizer palavra, toma assento. Desaba tudo. Ree-
merge em virtude do princípio de Arquimedes. Então, muito sim-
ples e digno, em traje que se tornou mais escuro.) Então, mas a
bomba de merdra não funciona? Respondei, ou faço-vos sal-
tar os miolos.

CENA V
Os mesmos, Mémnon, mostrando a cabeça.

A Cabeça de Mémnon: Não funciona, está parada. É como a


vossa máquina de fazer saltar os miolos, uma boa trampa, não
tenho medo dela. Como vedes, não há nada como os barris.
Descendo e subindo, mais de metade do serviço está feito!
Dom Ubu: Pela minha candeia verde, vou-te arrancar os olhos, bar-
ril, abóbora, refugo da humanidade!
(Empurra-o para baixo, depois fecha-se com os Empaladores
na casa-de-banho do fundo.)

Fim do Acto IV
ACTO V

CENA I
Achras, Rabonado.

Rabonado: Senhor, assisti a um espectáculo bem curioso.


Achras: Julgo, senhor, não sei se estais a ver, que vi precisamente o
mesmo. Mas não interessa, dizei, logo veremos se ficou entendido.
Rabonado: Senhor, vi na Gare de Lyon os oficiais da alfândega
abrirem uma caixa que vinha destinada adivinhai a quem?
Achras: Acho que ouvi dizer que era para o senhor Ubu, à Rua
do Esquentadinho.
Rabonado: Perfeitamente, senhor, e lá dentro vinham um homem
e um macaco empalhado.
Achras: Um macaco grande?
Rabonado: Que entendeis por macaco grande? Os símios têm
sempre dimensões medíocres, reconhecíveis pela pelagem mais
a tender para o escuro e colar piloso branco. O grande porte é
indício da tendência da alma para se elevar ao céu.
Achras: Como as moscas, não sei se estais a ver. Quereis que vos
diga? Eu cá acho que eram múmias.
Rabonado: Múmias do Egipto?
Achras: Sim, senhor, e fica entendido. Havia uma que parecia um
crocodilo, não sei se estais a ver, ressequida, com o crânio acha-
tado como os seres primitivos; a outra, senhor, não sei se estais
a ver, tinha testa de pensador e ar respeitável, ou então, a barba
e os cabelos todos brancos.
Rabonado: Senhor, não sei o que quereis dizer. Aliás, as múmias,
incluindo o respeitável macaco velho, saltaram dos caixotes no
UBU CORNUDO  39

meio dos gritos dos funcionários do imposto da circulação de


mercadorias e apanharam, para grande espanto dos passantes,
o eléctrico da Ponte de Alma.13
Achras: Ess’agora! É espantoso, também viemos nesse transporte,
ou melhor, não sei se estais a ver, nesse eléctrico.
Rabonado: Estava a pensar nisso mesmo, senhor. É extraordiná-
rio que não nos tenhamos encontrado.

CENA II
Os mesmos.
Dom Ubu, abrindo a porta, Os Empaladores iluminam-no.

Dom Ubu: Ah, pancichouriça! (Para Achras.) E vós, fora daqui,


já vo-lo tínhamos dito.
Achras: Oh, mas é qué, não sei se estais a ver, estou em minha casa.
Dom Ubu: Corno d’Ubu, senhor Rabonado, sois vós, já não me
restam dúvidas, que vindes a minha casa pôr-me os cornos, ou
seja, confundir nossa virtuosa esposa com um penico. Qual-
quer dia seremos pai, graças a vós, de um archeoptéryx, pelo
menos, que não se parecerá nada connosco! No fundo, pensa-
mos que encornamento implica casamento, donde o casamento
sem encornamento não é válido. Mas como pro forma resol-
vemos recorrer às sevícias. Empaladores, atirem-mo ao chão!
(Os Empaladores dão uma carga de pancada a Rabonado.)
Iluminai aqui, e vós, senhor, respondei: sou cornudo?
Rabonado: Uuuuuuuuu, uuuuuuu!
Dom Ubu: Que porcaria. Não consegue responder, porque caiu
em cima da cabeça. O cérebro deve ter-se estragado, com cer-
teza, na circunvolução de Broca, onde reside a faculdade de dis-
correr. Essa circunvolução é a terceira circunvolução frontal
40  ALFRED JARRY

à esquerda, logo à entrada. Perguntai ao porteiro… Meus senho-


res, perdão, perguntai a todos os filósofos: “Esta dissolução inte-
lectual é causada por uma atrofia que invade a pouco e pouco a
superfície do cérebro, e em seguida a massa branca, produzindo
uma degenerescência adiposa e ateromatosa das células, dos tubos
e dos capilares da substância nervosa!”14 – Deste senhor não se
pode fazer nada. Contentemo-nos em torcer-lhe o nariz e as one-
lhas com extracção da língua e ablação dos dentes, laceração
do traseiro, retalhamento da espinal medula e arranque parcial
ou total do cérebro pelos calcanhares. Primeiro, será empalado,
depois decapitado e, por fim, retalhado. Em seguida, o senhor
ficará, em virtude de nossa mansidão, livre de poder ir para o raio
que o parta. Não se lhe fará mais mal, porque quero tratá-lo bem.
Os Empaladores: Hã, sénhor!
Dom Ubu: Pancichouriça, que me esqueci de consultar a minha
Consciência!
(Entra para o quarto do fundo. Entretanto, Rabonado foge,
e Os Empaladores vão atrás dele, berrando e cantando. Dom
Ubu aparece, com A Consciência na mão.)

CENA III
Achras, Dom Ubu, A Consciência.

Dom Ubu: (Para Achras.) Pancichouriça, chiça! É que não quer


mesmo pôr-se a andar. É como a minha consciência, também
não me consigo livrar dela.
A Consciência: Senhor, insultais a desgraça de Epicteto.15
Dom Ubu: O Pica-Testa é, sem dúvida, um instrumento enge-
nhoso, mas a peça já vai longa e não estamos a pensar servir-
-nos dele hoje.
UBU CORNUDO  41

(Ouve-se tocar, como para anunciar a chegada do comboio, depois


o Crocodilo, bufando, atravessa a cena.)

CENA IV
Os mesmos, o Crocodilo.

Achras: Oh, mas é qué, não sei se estais a ver, que é aquilo?
Dom Ubu: É um passarinho.
A Consciência: É um réptil bem caracterizado, e aliás (tocando-o)
as mãos dele possuem todas as propriedades das das serpentes.
Dom Ubu: Então é uma baleia, pois a baleia é o pássaro mais
inchado que existe, e este animal parece estar bastante inchado.
A Consciência: Estou a dizer-vos que é uma serpente.
Dom Ubu: O que deve provar ao senhor minha Consciência a sua
estupidez e o seu absurdo. Já o pensáramos muito antes de ele
o ter dito, é de facto uma serpente, até mesmo uma cascavel!
Achras: (Cheirando-o.) O certo é, não sei se estais a ver, que não
se trata de um poliedro.

Fim
NOTAS

1 La Conscience parece ser a transfiguração do professor de Filosofia


de Jarry no Liceu de Rennes, M. Bourdon, que ele estimava.
2 Achras, pêra, em grego; de notar que a cabeça de Ubu é em forma
de pêra e que o professor de Matemática do Liceu de Rennes se
chamava M. Périer. Por ironia do destino, havia ainda um tal M. Jarry
que era professor de Moral.
3 Rebontier, rentier e abonné, ou seja, que vive das rendas, abonado.
4 Mémnon, a múmia. Mémnon é, por um lado, figura da mitologia grega
(rei dos Etíopes, filho da Aurora, durante a guerra de Tróia foi morto
em combate por Aquiles), mas também refere os colossos de Mémnon,
estátuas de pedra com dezasseis metros de altura, à entrada do templo
funerário que existiu em Tebas; o colosso da direita, aparentemente
devido a uma fissura na pedra, emitia sons harmoniosos ao nascer do sol.
5 Scytotomille, o sapateiro, o seu nome aparentemente significa
Corta-Couro em grego.
6 A “Canção dos Empaladores” aparece no Archeoptéryx, Acto III,
cena V, embora a medida do verso seja diferente. Este Archeoptéryx
(archeopteryx lithographica) foi descoberto em meados do século XIX
nos maciços do chamado calcário litográfico de Solnhoffen, na Baviera,
e saudado como o elo que ligava os sáurios e os pássaros.
7 périgiglyeux, mistura de périlleux e de gigue (giga), mas, conhecendo
a Patafísica, provavelmente salto bastante mais filosófico.
8 semelles de pierre: cenografia anal, duas solas de pedra e, no meio,
o orifício da porta do cabinet.
9 a esfera é a forma perfeita: “Ubu existe porque tem barriga, porque
é barriga, e porque esta se confunde com os próprios limites do
universo. Ser é ser tudo. Como Ubu” (do Prefácio de Noël Arnaud
a Ubu, Gallimard, Folio).
10 bomba de merdra: relacionada sem dúvida com a clisobomba de
Ubu no Outeiro.
44 

11 cornez-au-cul, grito da luta bretã. A luta bretã ou Gouren é uma


forma de luta tradicional celta, variação da luta greco-romana, cujo
objectivo é fazer com que o adversário bata com as costas no chão,
preferencialmente atirando-o. Era, como se calcula, forma de luta
popular entre os estudantes.
12 Rue de l’Échaudé era a antiga morada da editora e da revista Mercure
de France.
13 Pont de l’Alma, Paris, sobre o Sena.
14 a circunvolução de Broca (o texto citado por Ubu é de Théodule Ribot,
considerado o pai da Psicologia Científica, e está no livro Les Maladies
de la mémoire. “Em 1865, surgiu a primeira demonstração científica
duma desigualdade de funções entre os dois hemisférios cerebrais.
Nesse ano, o cirurgião parisiense Paul Broca apresentou na Sociedade
de Antropologia uma série de argumentos comprovativos de que
‘a perda da faculdade da linguagem articulada’ estava ligada a uma
lesão situada no hemisfério esquerdo, mais precisamente na parte
posterior da circunvolução frontal inferior (área do cérebro hoje
conhecida por ‘área de Broca’), sugerindo uma ligação entre uma
função cerebral, a linguagem falada, e uma parte específica do
cérebro, o seu hemisfério esquerdo. Mais tarde, no ano de 1876,
Karl Wernicke descobriu que a lesão de uma parte diferente do
cérebro, no seu hemisfério esquerdo, causava também problemas na
linguagem mas mais ao nível da compreensão do que da expressão”
(in Celso Oliveira, texto online, Lateralidade e Dominância Cerebral:
Abordagem Histórica).
15 Epictète-Pique-Tête-Epicteto, filósofo estóico, nasceu em Hierápolis,
na Frígia, por volta do ano 50 da nossa era. Foi escravo e depois de
liberto dedicou-se ao estudo da filosofia moral. Teve de abandonar
Roma com os outros filósofos, expulsos pelo decreto de Dominiciano
no ano 87 d.C. Como os outros estóicos, Epicteto defendeu os preceitos
racionais em ética. Um dos seus discípulos transcreveu oito volumes
de lições, de que o mais importante é o Echiridion, ou seja, O Manual.
Melhor orador do que escritor, o objectivo de Epicteto era confessadamente
o de “persuadir os seus ouvintes a praticarem a virtude”.
Dom Ubu: Oh! Oh! Oh! E então, já acabaste? Agora começo
eu: torção do nariz, arrancanço dos cabelos, penetra-
ção do pauzinho nas onelhas, extracção do cérebro
pelos calcanhares, laceração do traseiro, supressão par-
cial ou mesmo total da espinal medula (se ao menos
assim se conseguisse tirar-lhe os espinhos do carácter),
sem esquecer a abertura da bexiga natatória e por fim
a grande degolação renovada de São João Baptista, tudo
isto tirado das Santíssimas Escrituras, tanto do Antigo
como do Novo Testamento, organizado, corrigido
e aperfeiçoado pelo aqui presente Mestre das Finanças!
Convém-te assim, ó minha seresma?

Tradução e notas Luísa Costa Gomes

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