Vous êtes sur la page 1sur 19

- "

OP SSAO BUROCRATICA:
o Ponto de Vista do Cidadão*

Elisa Pereira Reis

comportamento administrativo imprimem


1. IntroduçAo defmitivamente suas marcas no can\ler da
ordem política. Como o Programa Nacional
m 1979. o governo brasileiro inaugu­ de DesburocratiUlçAo atuou no sentido de
.....,
r o u o P r o g r a m a N a c i o n al d e reduzir os excessos burocráticos, suas po­
_ Desburouatizaçllo. des tinado à refor­ lencialidades e suas IimitaçOes foram obje­
ma d a burocracia: simplifi car rotinas to de um artigo anterior. e essas questões
t
administrativas. cortar a papelada e outras não sedo tratadas aqui.
medidas correlatas foram as metas escolhi­ O objetivo desle artigo é refletir sobre a
das. jumamenle com reformas legais e o opresSlio burocrática. explorando o diálogo
avanço dos padrões democráticos da cida­ entre o público e o minislrO extraor::dinário
dania. Nesle sentido. as meras estabelecidas .
Para a DesburocratiUlçAo. a autoridade má-
2
- libelar o cidadllo comum da opressao xima do program a.
burocrática e aperfeiçoar os mecanismos de Com esse propósito, trabalhamos com
distribuiçAo dos bens e serviços públicos­ base em uma amostra de trezentas cartas
foram concebidas como parIe da estratégia dirigidas ao minislro e com uma colerãnea
delineada para liberalizar de dentro para de palestras e discurSos que ele dirigiu ao
fora o regime autoritário. público. A análise de discursos escritos e
Na verdade. levando-se em considera­ falados pode desempenhar um papel impor­
ção que a burocracia pública constitui um tanle no enlendimento da política, urna vez
ponto nevrálgico no confronto entre o Esta­ que o eixo força-diálogo lem a ver direta­
do e seus cidadlios. é evidenle que os valo­ menle com a dualidade violência-legitimi­
res. as normils e as práticas que regulam o dade intrínseca ao poder do Estado.
,

-Trab&1ho orilin.Jm...... . 1*La22',do na ui lnu:matianal Confua'ICC M lhe Criticai AnIlyÃl 01 Bwa.ucn.c:y, Goalicb
DunWCIiJ.c:rFoundation. Ru.chikonflurieh, 1984.
AJ;radoço • M',;n Peirano " TIIIIia Sal"", pela crllicaI e.upt6es quando da elabouçlo dClte artigo.
No... Eata tnduçio é de Fnnc:iaco de Cuuo Azevedo..

úc.dO& Hilf6rit:0I. Rio de Janeiro.. "ol 3, n. 6, 1990. p.161-179.



162 ESruooS HISTÓRICOS - 1990/6
• •

A análise de práticas discursivas é legi­ o que define o caráter político de um


timada por diferentes perspectivas teóricas. discurso não é o fato de 'falar sobre
Assim, por exemplo, Acendt viu a comuni­ política' (critério semântico), mas o fato
dade política como o domínio da ação e da de que realiza cenos atos de transforma­
palavra e chamou a atenÇllo para as funções çllO nas relações intersubjetivas (crité­
)
inspiradoras e simbólicas da linguagem. rios sintáticos ou pragmáticos): ele
Para Habermas, a comunicaÇllo distorcida coloca em ação atores 'autorizados'
constitui o ponto crítico da dominaÇllo e da (aqueles que têm O direito de falar), es­
a1ienaÇllo . Ele identifica a luta por diálogos tabelece obrigaçOes, cria 'expectativas',
?
autênticos com a busca da autonomia e da reforça a confiança etc."
4
responsabilidade pela humanidade. Para
Edelman, o que confere à política sua pecu­ Finalmente, a última premissa de análise
liaridade é precisamente a linguagem, por­ diz respeito ao status de um discurso no
que, como ele diz, domínio da cultura: aqui considera-se um
discurso como sujeito e objeto de atividade
"... é exatamente o emprego da lingua­ cultural. Assim, a teia de significaçOes que
gem para santificar a ação que toma a ele comunica envolve tanto expressão
política diferente de outros métodos de quanto criaÇllo de significados sociais. Sob
,s
atribuiçllO de valores: o aspecto de diálogo, o texto implica trans­
fonnaÇllo bem como reproduÇllo de valores
NaturaJmente, a análise do discurso po­ e cognições sociais. Como agente dinâmico
de prestar-se a objetivos de pesquisa diver­ de significados culturais, o discurso desen­
sificados e seguir caminhos metodológicos cadeia uma atividade viva de tradução, da
variados, alguns dos quais exigem sofisti­ qual derivam sllas potencialidades confli­
cadas técnicas interdisciplinares. Nas pági­ tantes: conservação e transformação de
8
nas seguintes, realizaremos uma análise ideologias dominantes.
bastante simplificada, que leva em conta as As carias, que constituem o primeiro
dimensões semântica e interacional dos tipo de discurso aqui apresentado, foram
aIOS de fala. aleatoriamente selecionadas de uma cole­
Nosso ponto de partida é a premissa de ÇlIo de 27.367 cartas endereçadas à autori­
que "os discursos nllO são apenas 'objetos' dade máxima para a desburocratização no
lingüísticos isolados, mas partes integran­ período 1980-1982. No Ministério da Des­
tes de atos comunicativos em determinada burocratizaÇllo elas foram classificadas de
6
situaÇllo s6cio-cultural". Depois, aceita­ acordo com as áreas de administração a que
mos o pressuposto de que, como "texto" pertenciam as questOes que levantavam. No
inserido em um "contexto", o discurso po­ caso de referir-se a mais de uma área do
lítico tem, além do significado particular programa, uma carta era copiada, tendo,
dado por seu conteúdo real, um sentido portanto, mais de uma entrada nos arquivos.
mais amplo que diz respeito a seu impacto Esse critério não apenas proporcionava
como atividade discursiva em si mesma: uma visão de conjunto, que possibilitava
avaliar a incidência relativa dos problemas
"Independentemente dos valores reais segundo as áreas do programa, como tam­
expressos, os discursos políticos têm co­ bém ia de encontro a suas necessidades
mo conseqüência (como resultado pri­ operacionais: a maioria das cartas recebidas
meiroou objeto imediato) a definição ou levava a consultas em órgãos governamen­
transformaÇllo do significado das rela­ tais específicos encarregados das áreas
çOes entre os atores envolvidos. Assim, substantivas que elas mencionavam. Em

'. .
OPRESSÃO BUROCRÁTICA 163

geral, o crÍlério de classificação coincidia Quem escreve ao ministro? Não existe


com a dislribuição das áreas do programa informação precisa e sistemática que nos
entre os diversos ministérios: Trabalho, permita urna conclusão definitiva sobre o
Previdência, Justiça etc. Somente em pou­ universo dos missivistas. Todavia, alguns
cos casos a recorrência de um tema particu­ dados gerais podem ser encontrados. São
lar conduzia a uma classificação mais adultos, normalmente de cidades grandes e
e$pecífica. pequenas, sendo menos freqüentes cartas
O segundo tipo de documentos analisa­ vindas de áreas rurais. São, obviamenle,
dos - os discursos e pronunciamentos do alfabetizados, que por vezes escrevem em
ministro da Desburocra'iz.ação - cobre o nome de analfabetos. Homens e mulheres
período 1979-1983. Esses discun;os foram enviam cartas, mas as mulheres que o fa­
dirigidos a audiências variadas: autoridades zem são. na maioria das vezes. viúvas ou
civis, oficiais militares, associaçOes priva­ divorciadas, o que sugere que, apesar do
das, grupos profissionais e o público em caráter privado da cana, o homem é o ator
geral. A análise inclui ainda as freqüentes "natural" para dirigir-se a uma figura públi­
declaraçOes do ministro divulgadas pelos calO
meios de comunicação. Também diversificado é o status sócio­
Existe algo de específico sobre as cartas econômico dos correspondentes, como se
consideradas aqui? Dirigir-se pessoalmente pode inferir das ocupações relatadas, habi­
a autoridades públicas parece ser uma prá­ lidades manifestadas na escrita e soluções
tica comum no cenário político brasileiro. propostas. O órgão burocrático relatado co­
As pessoas escrevem ao presidente, aos mo problemático também permite conclu­
ministros e a outras autoridades, pedindo sOes de ordem global sobre a classe social
favores ou fazendo sugestões. Escrevem de quem escreve a carta. Assim, por exem­
também aos parentes das autoridades. No plo, aqueles que relatam problemas relati­
entanto, é impossível comparar nossa vos aos órgãos da p r e v idência são
amosua com as outras correspondências, predominantemenle pessoas de classe so­
pois não se dispõe de informações sistemá­ cial baixa. Por sua vez, os problemas rela­
ticas sobre estas últimas9 Em todo caso, de tivos a práticas alfandegárias ou a direitos
forma puramente impressionista, diríamos de propriedade são tipicamente encaminha­
que o número de cartas endereçadas ao dos por quem desfruta de melhor situação.
ministro da Desburocratização foi alto, uma Naturalmenle, existem áreas da admi­
vez que ele encorajou explicitamente as nisuação que afetam cidadãos de diferentes
pessoas a escrever-lhe para relatar mazelas estratos sócio-econômicos. Não se pode
burocráticas e apresentar sugestões sobre a conseguir na correspondência uma estima­
desburocratização. Também peculiar pare­ tiva precisa do peso relativo de cada cate­
ce ter sido a determinação do ministro de goria sócio-econômica em particular. Em
que toda carta fosse respondida. De fontes todo caso, pode-se com certeza afirmar que
dispersas, pode-se concluir que canas sem pe$Soas de diferentes substratos sócio-eco­
resposta são bastante comuns na correspon­ nômicos estão representadas na amostra.
dência das autoridades governamentais. Todavia, levando-se em consideração tanto
Neste sentido, o fato de o ministro da Des­ a habilidade de escrever quanto as soluções
burocratização pedir às pessoas que escre­ encaminhadas, pode-se concluir que os me­
vessem e garantir-lhes que leriam resposta nos privilegiados tendem a escrever mais
faz do discurso escrito a ser examinado uma que os integrantes das classes média-alta e
forma de comunicação política fonemente alta. Finalmente, deve-se dizer que, embora
legitimada. a correspondência incluísse cartas enviadas
'64 ESruooS HlSTÓRJCOS - 1990/6

por empresas. associações e outras entida­ número significativo extrapola essa situa­
des coletivas, nossa amostra abrangeu ape­ ção individual, apresentando alternativas
nas cartas de pessoas ffsicas. para lidar com a administração de proble­
O item a seguir usa as cartas para ilustrar mas específicos.
as características opressivas da burocracia Não obstante, a correspondência não se
pública que são relatadas com maior fre­ limita a matérias estritamente burocráticas:
qüência pelos correspondentes. No item 3 muitos enviam cartas pleiteando emprego,
são tratadas as representações sociais da casa e até mesmo mudança na grafia de
burocracia e outras noções políticas básicas palavras correntes, para que, como mais de
que emergem do discurso dos correspon­ um sugere, "o português, escrito da maneira
dentes. Em vez de considerar as propostas como se fala, se tome menos burocrático".
específicas apresentadas, concentramo-nos Outros apresentam sugestões específicas
nos valores e crenças relativos ao universo para melhorar os serviços da previdência,
político que o discurso escrito revela. O reguiar os direitos do consumidor, mudaros
item seguinte é dedicado ao exame das falas crilérios de taxação, aumentar a produtivi­
do ministro, a fim de remontar o diálogo dade econômica, regular os bancos pri va­
entre ele e o público. Finalmente, concluí­ dos, e assim por diante. Se aqueles que
mos com alguns comentários gerais sobre adiantam sugestões tendem a generalizar
as implicações do diálogo em questão e mais e a escrever de maneira mais impes­
com algumas observações sobre as pers­ soal, muito comumente eles também rela­
pectivílS de se substituir os padrões opres­ tam experiências pessoais a partir das quais
sivos da administração por práticas sugerem mudanças ou inovações.
administrativ;lS mais democráticas. Pelo exposto, observa-se que os corres­
pondentes definem como pertencente ao
domínio da burocracia não apenas questões
administrativas correntes, mas ainda tudo o
"
2. O cldad30 oprimido fala que pensam que a autoridade pode mudar.
Além disso, eles percebem as normas buro­
Atendendo ao apelo do ministro, as pes­ cráticas, as prescrições legais e as regula­
soas escreveram para relatar problemas ções de políticas como matér ias
particulares que enfren taram com a buro­ relacionadas. Identificam, ainda, não ape­
cracia pública e apresentar sugestões de nas O efeito combinado desses elementos
mudança nas rotinas administrativas. Em sobre suas oportunidades concretas de vida,
suas cartas, elas reclamam de problemas como também as tensões e contradições
relacionados a assuntos como aposentado­ freqüentes dentre e entre as leis, os progra­
ria, fundos de pensão, hospitalização e as­ mas e as nQnnas administrativas.
sistência médica, fundo de garantia por O que os correspondentes percebem co­
tempo de serviço, impostos, aquisição de mo "problemas burocráticos" são sobretu­
casa própria, obtenção de documentos pes­ do incidentes ou situações em que se vêem
soais etc. O que elas relatam são normal­ como vítimas de normas, exigências ou
mente s i t u a ções e m q u e n o r m a s e comportamentos a que estão expostos
exigências irracionais, burocratas desinte­ quando tratam com órgãos públicos. As
re&sados, falta de recursos financeiros ou narrativas escritas são muito freqüentemen­
simplesmente ineficiência administrativa te relatos dramáticos de choques rotineiros
as impedem de ter acesso a direitos legal­ entre os cidadãos e o aparelho do estado.
mente adquiridos. Mas, se a maioria trata a Embora verdadeira, a dramatização pode
questão como um problema pessoal, um ser um recurso que o correspondente mani-
OPRESSÃO BUROCRÁTICA 165

pula na tentativa de tocar emocionalmente cos aos direitos legalmente estabelecidos


o destinatário. De fato, o valor estratégico não é incorreta. Os ponloS para os quais os
da carta como forma de comunicação pes­ correspondentes chamam a atenção - má
soal parece estar precisamente na oponuni­ administração dos recursos disponíveis. ro­
dade que ela propicia para a utilização de tinas e exigências supérfluas. informação
recursos de linguagem significativos na
inadequada aos clientes e tratamento des­
perspectiva de quem escreve. Em oposição
respeilOso por pane dos servidores públicos
à esterilidade e ao vazio da linguagem bu­
- constituem fontes reais de opressão para
rocrática, a carta possibilila o uso calculado
de recursos expressivos capazes de trans­ aqueles que não rem outra alternativa senão

mitir o significado de situações que são procurar o serviço médico público.


efetivamente vividas como dramas pes­ O recebimenlO da aposenladoria é outra
soais. Não obstante, é precisamente a recor­ situação comum que expõe os cidadãos (os
rência dessas situações, bem como as idosos e os inválidos) a um tralamento hu­
semelhanças entre narrativas singulares, milhante pela burocracia dos guichês e pe­
que confere à opressão burocrática uma las infindáveis rotinas. Muitos exprimem
dimensão dramática na sociedade brasilei­ ansiedade face às exigências burocráticas.
ra.
cujos propósitos não conseguem apreender.
Para muilOs, a burocracia simplesmente
Nas palavras de um dos que encaminham o
transforma direilOs legalmente adquiridos
problema,
em ficção. Assim, por exemplo, embora
deduções feilaS nos salários dêem direilO ao
pagamenlO regular das contribuições à pre­ "Tenho ido àquela repanição tanlaS ve­
vidência, os benefícios correspondentes zes! A cada vez eles me dizem que pre­
ciso de mais um documenlO antes de

são muilaS vezes frustrados. E impressio-


nante o número dos que contam hislÓrias começar a receber. Depois de pagar mi­
sobre a permanência de horas e horas na fila nha contribuiçãO durante tanlOS anos.
- às vezes, de um dia para o outro - a fim enquanto eu trabalhava. por que não
de conseguirem um formulário que dá di­ posso colher os frutos de meus esforços
reito a uma consul� médica gratuita. Em e viver minha velhice em paz?"
muilOs casos, a longa espera é frustrada
porque a quantidade de formulários é me­ As viúvas com direilO a pensão relatam
nor que a procura ou porque o indivíduo não problemas semelhantes: incontáveis rotinas
tem à mão a documentação pessoal exigida. administrativas rem de ser superadas até
O acesso à hospilalização é ainda mais que tenha início o pagamento mensal da­
problemático. Numerosas canas solicitam
quele dinheiro vital. Essas viúvas se lamen­
a intervenção pessoal do ministro como o
tam sobretudo da necessidade de apresentar
único meio de superar os obstáculos buro­
repetidamente prova documentada de que
cráticos. "Por favor, o senhor é a minha
eslAo vivas. como condição para receberem
única esperança; ajude-me a conseguir a
internação de meu filho", ou variações des­ sua pensão:
se apelo desesperado, não é uma mensagem
incomum na correspondência. "Ter que ir ao médico para pegar o ates­
Naturalmente. existem outros proble­ tado de que. sim, estou viva é uma carga
mas que contribuem para a inadequação muito grande para mim. ESlOU velha de- .
dos serviços de atendimento médico. Con­ mais para enfrentar filas repetidas vezes
tudo. a percepção dos obstáculos burocráti- com a finalidade de consultar um médi-
166 ESTUDOS HISTÓRICOS· 1990/6

co para dizer oficialmente que ainda não "Os documentos que eu tive de juntar
morri!" para consegwr o empresumo que o go-
" .
.

verno faz aos pequenos produtores já


A referência a processos adm inislTativos pesam mais de"um quilo!"


simples que continuam durante anos e anos
é bastante freqüente. As pessoas relatam, "Em seis meses fui sete vezes à Delega­
por exemplo, que continuam lutando pelo cia da Receita para conseguir informa­
útulo de propriedade definitivo de uma ter­ ção sobre minha declaração de renda. E
ra ou casa que compraram há cinco, dez c para obter um empréstimo pessoal tive
até lfinta anos! de ir ao mesmo órgão federal 36 vezes
Alguns missivistas sequer gastam tempo em sete meses!"
em relatar as peculiaridades de seu caso
específico. Eles apenas utilizam uma pala­ Mesmo quando os correspondentes rela­
vra-símbolo para pedir a ajuda do ministro: tam problemas ou sugerem medidas não
"O senhor poderia, por favor, desburocra­ atinentes à esfera "burocrática" convencio­
tizar meu processo número tal e tal, preso nal, eles o fazem na maioria das vezes para
na seção 'X' do órgao 'Y'?" A palavH! colocar questiles relacionadas com o domí­
"desburocratizar" indica superação de exi­ nio dos direitos legais ou naturais. Quem.
gências absurdas, processamento irracional por exemplo, pede desesperadamente um
ou quaIsquer outras ClrcunstanCI3S InJUSlaS emprego já percorreu em vilo o mercado de
. . _ . . .

com que o cidadão venha a se deparar em trabalho e não vê outra alternativa senão
seus contatos com a burocracia pública. implorar a intervenção da autoridade para
poder exercer seu direito de ganhar a vida
Em outros casos, simplesmente é posta­
trabalhando. Os pobres que pedem casa são
do para o ministro um formulário burocrá­
mais um exemplo do recurso à autoridade
tico de uso corrente, mas particularmente
para a garantia de exercício de um direito
longd e difícil de ser preenchido,juntamen­
natural. Na mesma direção, sugestOes para
te com a mensagem lacônica: "Por favor,
a introdução de programas de bem-estar
livre-nos deste absurdo!"
social ou propostas de mudança na política
Pela correspondência são inúmeros os
tributária, por exemplo, vão de encontro, no
exemplos de contatos com a burocracia pú­
fundo, a um anseio de se ter regcas mais
blica experimentados como humilhação e
justas e igualitárias,
frustração:
Embora a consciência dos direitos hu­
manos ou da cidadania não emerja clara­
"Fiquei na fila durante .12 horas, sob mente, como se discutiIá no item seguinte,
chuva pesada, para receber o abono sa­ as cartas atestam inequivocamente que, em
larial de que eu precisava desesperada­ geral, os correspondentes indicam soluçiles
mente.. sem qualquer resultado. Por que individuais ou coletivas para as sitU3ÇileS
"os trabalhadores· têm que ser submetidos opressivas a que o cidadão brasileiro está
a tratamento tão desumano?" submetido. E mesmo que algumas dessas
situaçiles não se restrinjam propriamente à
"Já juntei 425 documentos para atender administração burocrática SlriCIO sonsu,
as exigências feitas pelo governo federal ainda assim as pessoas as identificam como
na tentativa de conseguir uma deClara- pertencentes ao domínio comum da bW'O­
.
ção de que cumpri corretamente com as cracia, da 'lei e da ordem, e como conse­
obrigações fiscais de minha pequena fir­ qüências de ações ou omissiles nesses
ma!" . terrilórios conúguos.

OPRESSÃO BUROCRÁTICA 167

Para concluir este item, deve-se lembrar certas noções ideológicas aparecem de ma­
.
que nem a violação burocrática dos direitos neira bastante genérica na correspondência,
nem qualquer outra circunstância opressiva constituindo elementos de um imaginário
e injusta para as quais os correspondentes social. Assim, a idéia aqui não é apreender
chamam a atenção constituem realidades as representações ideológicas de um "cida­
desconhecidas do público. Evidências dire­ dão médio" artificial nem calcular uma "vi­
tas ou indiretas surgem diariamente de uma são média do mundo". Aquilo a que nos
enorme quantidade de situações em que as referimos como cognições. valores e cren­
pessoas são desrespeitadas como cidadãos ças sociais típicos são simplesmente repre­
e como seres humanos em seus contatos sentações positivas e normativas típicas,
com o aparelho estatal. Mas as narrativas expressas nas cartas.
pessoais das cartas conseguem transmitir o Com as qualificações feitas acima em
sentido existencial de experiências que, nas mente, quatro aspectos emergem claramen­
reportagens da imprensa, perdem seu con­ te como noções bastante genéricas entre os
teúdo dramático em razão do anonimato e correspondentes:
da impessoalidade que, no fundo, são a a) o mito da "boa" autoridade;
tradução burocrática de dramas essencial­ b) burocracia como um "mal" absoluto;
mente humanos. c) carisma da autoridade versus regras
burocráticas; \
d) "direitos" como "favores".
A seguir, comentamos cada um desses
3. 51mbolos e mitos nos discursos aspectos, com exemplos tirados da corres­
escritos pondência.

Além de reclamações, pedidos e suges­ a) O milO da "boa" aUlOridade


tões específicos apresentados nas cartas, o
discurso escrito examinado até aqui nos A autoridade política, sobretudo em suas
introduz a temas mais amplos pertencentes instâncias superiores, é normalmente con­
ao domínio das sócio-cognições e do sócio­ cebiaa pelos correspondenleS como gene­
imaginário. Vale dizer, as formas de comu­ rosa, esclarecida e moralmente saudável.
nicação efetivameme empregadas nos Mas é importante observar-se que a bonda­
permitem penetrar nas percepções, crenças de atribuída à autoridade assume, na maio­
e valores que constituem representações so­ ria das vezes, uma qualidade mítica ou
- ' t2
ciais do universo político. Aqueles que es­ arqueuplca. E sempre que as percepções
crevem ao ministro exprimem concepções empíricas contradizem esta noção ideal,
particulares sobre as interações entre o Es­ tende-se para uma imediata diferenciação
tado e a sociedade, que moldam sua percep­ entre o detentor "desviante" do poder e a
ção da opressão burocrática, do papel da natureza intrínseca da autoridade. Por outro
autoridade, dos direitos e obrigações do lado, quando não se vê nenhum desvio, os
cidadão e assim por diante. que desempenham O papel de autoridade
Naturalmente, representações culturais lendem a ser percebidos como encarnações
estão sujeitas às amplas variações de clas­ do modelo arquetípico que sempre se colo­
ses, grupos e outros critérios de diferencia­ ca do lado das causas justas. ,
ção. Além disso, como atos individuais, as Na mesma linha, a autoridade só acarre­
cartas transmitem a subjetividade de quem ta opressão quando aqueles que a exercem
as escreve. Entretanto, sem poder apresen­ fazem uso imoral de seus recursos de poder.
tar precisão estatística, sustentamos que Nesse contexto, imoralidade é toda apro-
,

'68 ESnIDOS HISTÓRICOS - 1990/6

priaçDo do papel de aulOridade com o obje­ "Por favor, resolva meu problema com
tivo de coloca( imeresses particulares aci­ sua boa vontade para com os direitos dos
ma daqueles gerais. E inversamente, o que trabalhadores."
impede o abuso do poder político é o com­
promisso como um imperativo moral que "Apelo para a sua generosidade no scn­
idealmente constiwi a pauta-chave para as tido de ajudar o pobre."
decisões da autoridade. O imperativo moral
é a proteçlio da sociedade como um IOdo, "Estou-lhe pedindo um favor porque sei
que Vossa Excelência é dotado de "um
por meio de benefícios compensatórios pa­
coração generoso."
ra os desafortunados em qualquer situação
per�bida como socialmente desigual. A
"Por favor, resõ1va este problema com a
desigualdade é vista como natural, mas
atenção e o interesse que o senhor tem
igualmente natural é a força da aUlOridade
demonstrado em favor dos brasileiros
para compensar aqueles que são "mais (ra-
• tAo carentes de atenção e ajuda!"
coso e/ou coibir os "mais fortes". E a uni-
versalidade do princípio da autoridade que "Eu louvo seu maravilhoso trabalho em
a compele a proteger O pobre, o fraco, o prol de uma vida melhor em nossa pá­
desprivilegiado, porque essa proteção re­ tria! ..
concilia a sociedade consigo mesma. Em
um mundo social percebido como dicotô­ No entanlO, embora as pessoas acredi­
mico, a misslio da autoridade é neutralizar tem na conformidade do ministro aos pa­
as divisões sociais que surgem da desigual­ drOes éticos da boa autoridade, elas também
dade, reforçando, assim, os interesses do temem que ele possa se sentir tentado a
IOdo social ameaçado pelo egoísmo dos desviar-se da rota moral. E caso isso venha
mais bem situados na vida. . a acontecer, elas não vêem outra saída a não
Entre as cartas da amostra, apenas duas ser a condenação moral para punir o deten­
se mostram céticas quanto à conformidade IOr faltoso do poder. Assim, advertem ao
do ministro aos padrOes do arquétipo da ministro contra a dor do remorso que angus­
tia aqueles que negligenciam as preocupa­
aulOridade. A gl8nde maioria dos que escre­
çOes morais da aulOridade. Nas palavras de
vem obscurece explicitamente a distinção
um dos correspondentes: "Eu o aconselho
entre a noçlio ideal e sua encarnação na
a não fazer pouco caso do pobre e do fraco.
figura do ministro. A maioria dos apelos à
De outra forma, O senhor sentirá vergonha
sua intervenção lança mlio do imperativo
de olhar nos olhos de seus nelOs!"
moral antes mencionado.
Alguns poucos exemplos, a título de b) Burocracia como um mal absolUlo
i1ustraÇlio:
O que é "burocracia" do ponto de vista
"Peço-lhe ajuda porque acho que o se­ de quem envia cartaS? E claro que'a noção

nhor é uma pessoa de boa vontade, que ideal de um corpo de servidores públicos
tenta melhorar um bocado a vida dos que implementam decisões tomadas por au­
pobres." IOridades políticas nlio tem lugar no univer­
s o da política r e p r e s e n t a d o p e l o s
"O senhor é o ministro dos fracos, o missivistas. Sintomaticamente, a expressão
senhor que fez tanto em favor daqueles "servidor público" jamais é utilizada em
que precisam de proteção..... seu disc urso. Ao contrário, a burocracia
OPRESSÃO BUROCRÁTICA 169

parece constituir a negação do serviço pú­ cujas características psicológicas nacionais


blico na mente das pe ssoas. Na verdade, ela conduzem à opressao burocrática: "Nossa
é empregada como sinOnimo de "complica­ indolência e passividade seculares devem
ção desnecessária, rigidez e fonnalismo es­ ser responsabilizados por aquilo em que a
téril", uma fonte de problemas e de burocracia se transfonnou." Em qualquer
infelicidade social. caso, seja como vítimas inocen.tes de lega­
Além do mais, se a aUlOridade inCOrp<r8 dos coloniais, como portadores das mazelas
caracterfsticas avaliadas positivamente, a humanas universais ou como parceiros nos
burocracia parece constituir seu pólo opos- vícios nacionais, os brasileiros são repre­
10 entre os correspondentes: é um mal míti­
sentados como vítimas de algo que trans­
co. Nesse sentido, ela transcende as
cende seu controle: "Somos tod!?S vítimas
iritençOes e motivaçOes dos burocratas,
deste mar de papéis e carirpbos que nos
através dos quais a optessao se materializa.
Pode-se até denunciar burocratas irrespon­ sufoca!"

sáveis, ambiciosos, desinteressados e Naturalmente, os correspondentes le-


cruéis, mas mesmo neste caso enfarjza-se vam em conta o fato de que a optessao
que os mal-feitos da burocracia transcen­ burocrática nao atinge a todos do mesmo
dem as características particulares de bu­ modo. Eles indicam que os desvalidos (os
rocratas �specíficos. Como um correspon­ fracos. os pequenos. os pobres. como cha­
te aruma, depois de relatar uma série de mam) são inuilO mais vulneráveis a ela.
obstáculos enfrentados na tentativa de con­ uma vez que dependem mais das medidas
seguir um financiamenlO para a casa pró· da autoridade e que o mal burocrático tem
pria a que estava legalmente habilitado: como efeito principal a distorção das deci-
"Não censuro ninguém. É culpa da burocra­ sões do poder. E como se, para preservar o

cia." milO da boa aulOridade, eles pt· sasse m


Mesmo quando as pe ssoas se queixam representar sua negaçAo mítica - e é para.
de injustiças espcx:.íficas deste ou daquele islO que existe a burocracia.
órgão ou burocrata, nunca atribuem a culpa A burocracia é a infiltração do JIta\ naS
a funcionários concretos, pois a responsa­
boas intenÇ(leS da aUlOridade.
bilidade por urna detenninada conduta está
Isso é ilustrado por aflrrnaçOes como:
em algum outro lugar - pensam elas. As
raízes do mal burocrático sao reconstituídas
de maneiras variadas, mas sempre ficam "EsIOU escrevendo para informá-lo de
fora da responsabilidade e do controle tanto que as características burocráticas ainda
dos clientes quanto dos burocratas persistem na administração federal, nlIo
Alguns vêem a burocracia como uma obstante seu empenho ativo, e em mui­
doença genética: "Nós a herdamos de nos­ lOS casos bem-sucedido, de elimirtá­
sos colonizadores portugueses." Outros las."
atribuem seu desenvolvimento negativo a
um pecado original que marca a humanida­ "Escrevo-lhe para protestar contra a ver­
de, portanlO independente da volição hu­ gonhosa burocracia que nos penaliza."
mana: "Os homens têm esta inclinação
natural para complicar as coisas, IOrná-las "A máquina administrativa deste país
desnecessariamente difíceis e atrapalha­ está bloqueada, emperrada pela gro tesca

das... É por isso que a burocracia existe." e repugnante burocracia."


Em outras cartas ainda, o pecado original é •

percebido como peculiar aos brasileiros, "Mata a burocracia, de. Beltrao."


. 170 ESTUDOS HISTORlCOS - 1990/6

A impessoalidade da burocracia é vista Se a burocracia é a fonte de todos os


como sinal de sua natureza maligna, de suas males na esfera pública, a única chance de
inclinaçOes desumanas: salvar os cidadaos/vítimas é a interferência
de uma autoridade carismática. Somente
"Este corpo monstruoso nlIo deve sequer ela pode desafiar as barreiras administrati­
escutar qual é meu problema real!" vas que impedem as pessoas de exercer seus
direitos básicos. Somente o carisma de uma
"Como Vossa Excelência fala nossa lin­ boa autoridade pode garantir às pessoas
guagem, eu suplico por IOdos nós, brasi­ bens e serviços públicos: "Uma só palavra
leiros mártires da burocracia!" sua basta para resolver meu problema!"
De certa forma, o conflito entre a auto­
ridade e a burocracia retratado pelos corres­
c) Carisma da autoridade versus buro-
pondentes evoca um paralelo com a visa0
craClO

weberiana do mundo afetado pela adminis­


tração burocrática opressiva, sem qualquer
As representações sociais da autoridade salda a não ser pela motivação interior que
e da burocracia antes comentádas tornam­
o líder político tenha para resistir à "gaiola
se ainda mais claras quando os correspon­
de ferro" da burocratização.
dentes expressam sua visão do Program a de
Desburocratização e, particularmente, de
d) "Direitos" e "favores"
sua autoridade máxima Enlllo, o que as
pessoas concebem é a luta entre o bem e o

Se ascànas constituem relatos inequívo­


mal. Graças a qualidades carismáticas, a
cos sobre a opressao burocrática e a viola­
autoridade tem, do seu ponto de vista, os
ção dos direitos, a noção de direitos que elas
recursos para desafiar as "forças demonía­
transmitem é peculiar. Em primeiro lugar,
cas da burocracia". O ministro incorpora a
os direitos naturais e os de cid3dania não
figura de santo e herói: "Davi contra Go­
sao diferenciados. Depois, para aqueles que
lias", como um dos correspondentes suge�
escrevem esses direitos pressupOem uma
re, ou "alguém como o lendário Alexandre,
vontade ativa da autoridade que lhes conce­
o Grande, uma vez que atacar a burocracia
de favores. Nesse sentido, também os direi­
é atacar o cerne de nossos problemas!"
tos sao percebidos como conc essões da boa
Heroísmo e santidade, qualidades consi­ autoridade: "Agradeço-lhe, Sr. Ministro,
deradas essenciais para reduzir o mal buro­ pela esperança que nos deu de que alcança­
crático, não coincidem com as virtudes remos nossos direitos." Acredita-se que,
individuais que todos podem possuir. Elas embora as pessoas estejam legalmente ha­
dizem respeito a um dom extraordinário, a· bilitadas a direitos específicos, estes não se
uma graça concedida àqueles que detêm materializarão a menos que a autoridade
autoridade: seja compassiva:

"Nossa única esperança é Deus e Vossa "Suplico a Vossa Excelência que mostre
Excelência" simpatia para com minha pobre mãe,IlI0
velha, 1lI0 doente. Ela deu duro para
"Louvo sua santa cruzada contra a buro­ ganhar a vida; e agora, ao término de sua
cracia." jornada, merece proteção e segurança."

"Somente o senhor, doutor, pode livrar­ Nesse exemplo, como em muitos outros,
nos do vampiro burocrático." a pessoa pela qual o correspondente inter-

OPRESSÃO BUROCRÁTICA 171

cede tem o direito legítimo de receber uma ge da correspondência. Idealmente, as liga­


pensA0, mas mesmo assim O discurso suge­ ções diretas com autoridades dos altos es-

re que está nas mãos da generosidade do calões sAo vistas como a melhor maneira de
minisuo tomar efetivo esse direito. se escapar da opressAo burocrática. As pa­
Também não existe correspondência lavras de um dos correspondentes ilustram
clara entre os direitos e as obrigaçOes do bem esse ponto:
cidadão na percepçllo de muitos dos corres­
pondentes. Para estes, obrigaçOes sAo sinô­ "Trabalho para um gIande jornal, de mo­
nimo de conduta apropriada frente a pais e do que tenho acesso a um canal poderoso
superiores que demonstram respeito ou para dar voz a um protesto vigoroso.
conformidade aos princípios morais em ge­ T odavia, acredito que seja mais eficiente
rai. Assim, para validar suas demandas por e mais democrático dirigir-me - como
direitos/favores, eles afirmam: "Sempre fui um cidadão comum - ao ilustre minis­
um bom pai." "Sou um homem honesto." tro.
''Trabalhei duro a vida toda." "Sou um bom
filho."
Todavia, se as provas morais legitimam
o apelo a um direito, elas não sAo percebi­ 4. O diálogo entre autoridade e
das como um meio adequado para pagar o cldadAos
favor solicitado. Para retribuir a generosi­
dade da autoridade que lhes garante seus Os valores e crenças que identificamos
direitos, os correspondentes devem fazer nos discursos escritos têm sido freqüente­
uma oferta pessoal. Como podem retribuir? mente inteJpretados na literatwa como ex�
Poder-se-ia pensar em "trocas" pessoais va­ pressões de visoes tradicionais do mundo,
lorizadas na esfera política como as ofertas como remanescências culturais condena­
mais prováveis. Todavia, das trezentas car­ das a serem gradualmente substituídas por
tas examinadas, apenas uma menciona representaÇões ideológicas mais afmadas
"quauo votos para o partido do governo em com uma ordem política moderna.
troca da generosa ajuda do ministro". O que Sintomaticamente, esses valores e cren­
normalmente se promete é pedir a bênção ças têm sido, de maneira geral, tomados
de Deus para o minisuo e sua famOia: "Pe­ como expressões de grupos marginais, co­
direi a Deus pela sua saúde." "Rezarei aos munidades rurais e regiões atrasadas. Nossa
santos pelo bem-estar de sua família." posição é avessa a semelhante interpreta­
Resumindo, essas representações so­ ção, pois a persistência de "legados" cultu­
ciais apontam para a imagem de um univer­ rais merece explicação tanto quanto o seu
so político em que os recursos de autoridade desaparecimento. Se a visAo da política ex­
pressa nas páginas anteriores está enraizaila
. .

consbtuem os mstrumentos cnucos para a


� .

consecução dos direitos. Uma perspectiva em tradições longínquas, ela foi de alguma
rousseauniana extremada acaba colocando forma recriada e revita1izada ao longo do
a autoridade muito acima das leis, nonnas processo de modernizaçãO.
e práticas que regulam a sociedade. O re­ O que é que preserva a capacidade dessa
curso à patronagem é colocado acima de visão política para seguir conferindo senti­
quaisquer tentativas de se garantir direitos do a experiências políticas cotidianas? Em
por meio de estratégias sociais de solidarie­ outras palavras, consideramos as percep­
dade. çOes expressas nas cartas aqui examinadas
Conseqüentemente, nenhuma percep­ - mesmo que se suponha serem elos pecu­
ção crítica da centralização do poder emer- liares a segmentos particulares da socieda-
ESTIJOOS IDsroRlCOS · 1990/6

de brasileira nao constituem um mundo


- impõe como antiburocrática O conteúdo
ideológico separado. Fs""s representações explícito da cana-resposta, por outro lado,
culturais encontram algum espaço dentro revela uma padronização burocrática extre­
dos padrões culturais dominantes no âmbi­ mada. Sob fOllua telegráfica, a mensagem
to da política Nesse sentido, as imagens e nOllualmente é: "Obrigado por sua cana.
os sinais que as pessoas Ulilizam para des­ Sua reclamação está sendo examinada."
crever fenOmenos políticos ideais OU empí­ "Obrigado por syas sugestões cívicas." Em
ricos sao parte de um processo dinâmico de geral, não se faz qualquer referência ãs
conhecimento. Dessa forma, quando al­ questões específicas em jogo.
guém se dirige ao ministro da Desburocra­ Além de desempenhar um importante
tizaçAo, está também produzindo, pela ritual de personaliz,ação, a resposta da auto­
interação, conhecimento sobre o processo ridade também pode atuar no sentido de
político em curso. iniciar um novo ciclo de comunicação. As­
Do que se disse acima segue que, para se sim, muitos escreveram uma segunda vez,
captar o sentido dinâmico das cartas como e até uma terceira, pois, como dizem:
fatos culturais, é necessário levar em consi­
deração sua dimensao de diálogo: os que "Como o senhor foi Ião gentil em me
escrevem estão envolvidos em uma intera­ responder, estou escrevendo de DOVO pa­
ção conversacional com a autoridade esta­ ra falar sobre outros problemas burocrá­
belecida. As cartas nAo sAo aperias ticos que me aferaram ."
instrumentos "técnicos" para o processa­
mento de pedidos. A correspondência é em Ou:
si mesma uma atividade política Quando
as pessoas escrevem, elas tentam convencer "Como o senhor deu atenção à minha
o ministro a agir em seu benefício ou a cartaantenor, els-me aqUl com novas
• • •

realizar mudanças administrativas que con­ .


sugestOes."
sideram oponunas. ,

Além das conseqüências empúicas que Todavia, na maioria das vezes a justifi­
tentam produzir, os correspondentes estão caÇA0 alegada para o envio da carta sao as
lOdos envolvidos em uma atividade política mensagens do ministro nos meios de comu­
de intercâmbio discursivo. E, intercam­ nicação:
biando palavras, eles também se engajam
,

na reprodução ativa de valores, crenças e "Estou lhe contando meu problema por­
cognições. que o senhor disse na TV que qualquer
O próprio minislro demonstrou explici­ pessoa poderia denunciar-lhe as distor­
tamente seu compromisso com o diálogo ao ções burocráticas" ."
determinar que toda carta recebida tivesse
,

resposta individualizada. Entretanto, essas "Li nos jornais que o senhor está enco­
respostas nAo são um instrumento efetivo rajando as pessoas a entrar em cootato
de diálogo. Elas valem sobretudo como com o senhor caso enfrentem dificulda­
uma reafmnação simbólica do valor dado des ao lidar com a administração públi­
ao diálogo. O intercâmbio real de palavras ca."
significativas ocorre entre as falas públicas
do minislro e as cartas dos cidadãos. Nas "Tive a oponunidade de ouvi-lo no rádio
respostas individuais enviadas pelo progra­ dizendo que aqueles que eslão com pro­
ma, o aspecto-chave é a identidade do des­ blemas para receber a aposentadoria p0-
tinatário que, sendo personalizada, se diam escrever-lhe."
OPRESSÁO BUROCRÁTlCA 173

Vê-se, portanlO, que é sobreludo às falas mos excessivos e procedimentos burocráti·


públicas que as pessoas reagem. Nesse sen­ cos rígidos.
tido, essas mensagens constilucm uma fon­ Seu discurso também sugere que a ini­
Le indispensável que deve ser examinada ciaLiva de agilizar a burocracia deriva de
para se captar a dimensão interativa do diá­ preocupaçOCs morais da aUloridade, que o
logo entre os cidadãos c a auLoridade. Que presidente eslá pessoalmente comprometi­
represenlaÇOCs ideológicas essas falas pú­ do com a democratização do sistema poll­
blicas transmitem? Como o ministro retrata tico brasileiro e que o Programa Nacional
a aUlOridade, a burocracia e os direitos dos de Desburocratização é parte de sua agenda
cidadãos? Que noção ideal de organização li beral izante:
social seu discurso emula?
Deve-se observar, antes de tudo, que as "Com o processo de liberalização polfti­
mensagens ministeriais são altamente relÓ­ ca e o restabelecimento gradual da de­
ricas. Muitas de suas observaçoes mais fre­ mocracia, surge a oportunidade de
qüentes são até mesmo utilizadas como relOmar uma antiga preocupação minha
slogans na propaganda da desburocratiza­ que diz respeito à mudança dos padroes
ção. Ademais, à medida que se lêem seus da administração pública. A reforma
discursos, a repetição difllsa de sentenças­ admnistrativa que tentei antes toma ago­
ra novo impulso e adquire seu verdadei­
chave atesta claramente seu caráter retóri­
ro significado político, graças à firme
co. Da mesma forma que a retórica dos
determinação do presidente de conferir
cidadãos que enviam cartas, a do ministro
prioridade à tarefa de desburocratizar o
transmite significados e valores. E o aspec-
I ... 1 3
pa's
10 imponante a ser observado aqui são pre­
..

cisamente as representaçOCs da política e as


Assim, a autoridade máxima do país é
noçOCs políticas básicas que emergem da
apresentada como totalmente de acordo
utilização dos recursos de linguagem.
com os padroes ideais atribuídos à "boa"
Para começar, a grande determinação de
autoridade. E o ministro, como pessoa res­
estimular a comunicação direta e pessoal
ponsável por levar adiante sua boa vontade,
com o público por Pleio de canas atesta o
orienta a luta contra a opressão burocrática.
esforço do ministro em diferenciar a "auto­ Conferindo prioridade às ligaçoes diretas
ridade" da "burocracia", fato que encontra com o público, ele minirniza os riscos de
paralelo entre aqueles que lhe escrevem. distorção das boas intenç()es do presidente.
Criticando a esterilidade e a impessoalida­ Esta é também a rnzão pela qual o ministro
de dos procedimentos burocráticos, ele tanto insiste em passar uma imagem de seus
apresenta a si mesmo e ao Programa Nacio­ colaboradores como situados no lado opos­
nal de Desburocratização como comprome­ to ao do corpo burocrático. O Programa
tidos com a restauração de padroes simples Nacional de Desburocratização é em várias
e significativos de comunicação entre o es­ ocasioes descrito como apenas um pequeno
tado e os cidadãos: "Propomos o retomo à número de assistentes muito competentes e
simplicidade e ao princípio saudável da flexíveis que aDIam em contato direto e
confiança mútua", afirma com freqüência. permanente com o ministro.
A idéia de voltar a um padraO anterior de A burocracia é represen'ada no discurso
interação, a um passado pré-burocrático, do ministro como uma "praga", como algo
acarreta referencia a um passado mítico, em que trabalha contra os interesses de todos e
que as preocupaçoes substantivas da aUlD­ os da nação. Nós somos Sllas vitimas, diz
ridade estavam desvinculadas de formalis- ele, e, "salvo alguns casos patológicos, nin-
114 ESlUOOS lDSTÓRlCOS 199016
-

guém é a favor da burocracia, nem mesmo a valores negativos. O presidente e o minis­


o burocrata, que é no fundo vitima do pro­ tro são pela democracia, pela justiça, pela
cessO" .14 Por que entao as coisas chegaram proleÇiIo aos desprivilegiados. Assim, eles
a esse ponto? As razOes que ele identifica se ojlOem à burocracia, que na expressão do
são duas: primeiro, o legado colonial portu­ ministro é "a própria negação da democra­
guês, da qual deriva uma tradiçilo adminis­ cia". o domínio do "fonnalismo estéril" e
trativa demasiado formalIstica e centraliVl­ do universalismo deletério, uma vez que,
da; segundo, a crescente complexidade so­ como ele aftrma, "contrariando o princípio
.
cial, que imjlOe a necessidade de mais for­ fundamental da eqüidade, que consiste pre­
malizaçilo. ·.!ste último aspecto, no entanto, cisamente em tratar de f01llla desigual os
por ser universal, nDo é um problema nacio­ desiguais, a BUROCRACIA trata da mes­
nal e, como tal, é menos abordado em suas ma forma o grande e o pequeno, a grande
falas. Muito freqilentemente, os aspectos empresa multinacional e a microempresa
negativos da administração pública são cre­ ,
familiar.' 16
ditados sobretudo à herança portuguesa.
Na medida em que a autoridade e a bu­
Dessa forma, retira-se a responsabilidade
rocracia se pautam por princípios tao con­
tanto do Estado brasileiro quanto da socie­
trastantes , O Programa Nacional de Desbu­
dade. Na verdade, o ministro reforça o a­
rocratização conduz uma guerra sem tré­
centuado contraste existente entre a cultura
guas contra valores e práticas administrati­
brasileira e a cultura burocrática com que
vas inveterados. O programa se esforça pa­
convivemos:

ra eliminar as ambigüidades entre as cultu­


ras popular e burocrática, forçando a última
..... ao contrário do que pode parecer, o
a tomar-se congruente com os autênticos
Programa de Desburocratização nada
valores nacionais. A contenda é descrita
tem de utópico ou quixotesco. Seria utó­
como lUla política, batalha cultural, com­
pico se a herança burocratizante se tives­
bate filosófico, nas palavras do ministro.
se incorporado à "cuhura" de nosso
Em qualquer caso, é afllTIlado claramen­
povo. Felizmente, isto não ocorreu. O
te que o que está em jogo não é "uma
brasileiro é visceralmente contrário à
simples reforma administrativa", resaita a
burocracia. Como explicamos, aquela
preocupaçOes de eficiência. A autoridade
herança ficou confinada à administra­
çDo, onde se enrai zaram a centralização, está comprometida com um empreendi

a complicaçDo, o formalismo e a descon­ mento muito mais radical, que vem a ser
fiança; contrariamente, o brasileiro é ge­ uma "mudança revolucionária". Nilo se tra­
ralmente simples, informal e confiante. ta do tipo de revolução que acarreta violên­
Essas três manchas culturais, que per­ cia e subversão da ordem política vigente,
manecem vivas na administtação. não mas, como ele diz, "( ...) a revoluçllo que o
permeiam a mentalidade do brasileiro povo brasileiro deseja. A única cujas pro­
comum. Vivemos , assim, uma situação postas são inspiradas pelo bom senso co­
inaigante: uma burocracia formalista e mum e pelo respeito à dignidade h umana
desconfiada divide o espaço com um que é a razão de ser do Estado". 11 Trata-se
poVO S .lm pI es, InIQrm
. r al e coof'lante.,,15 de uma revolução dirigida para a abolição
dos males burocráticos , unindo os cidadllos
Claramente, os sinais OPOSIOS atribuídos entre si e com a autoridade estabelecida:
à autoridade e à burocracia encontram res­ uma revolução consensual, cuja vitória nDo
sonância no discurso oficial: a aUloridade é conduz a uma ruptura radical, mas a "mu­
associada a valores positivos e a burocracia danças lentas , graduais e seletivas",


OPRESSÃO BUROCRÁTICA 17'

o apoio popular é considerado crucial A preocupação maior do programa, diz


para a obtenção do triunfo antiburocrático. ele, é a liberação da opressão administrati­
Mas o papel estratégico pertence à autori­ va, que na prática nega ao cidadão comum
dade: "Sem o vivo interesse e o apoio deli­ o exercício efetivo de seus direitos. No
berado do presidente, nada poderíamos. enlanto, o caminho para tomar esses direi­
,, tos reais exige, antes de tudo, a boa vontade
Deus o abençoei 18 Dessa maneira, um lu­
da autoridade, e não garantias constitucio­
gar importan te é reservado aos recursos
nais aos canais institucionalizados de parti­
carismáticos como wn meio de reduzir a
cipação política do cidadão. Assim,
burocracia. E determinação no exercício da
enquanto '0 papel das pessoas é sobretudo
liderança é um aspecto-chave. Diz o minis­
apoiar as iniciativas governamentais, a no­
tro:
ção de "direitos" mantém-se próxima à de
ufavores".
"E não devemos aguardar a reforma de
Que concepção normativa de uma or­
braços cruzados. Para dar impulso ao
dem sócio-política emerge do discurso da
processo descentralizador, impõe-se
desburocratização? Seguindo bem de perto
desde já uma corajosa decisão política
as representações popul<l'es de autoridade,
do governo federal, no sentido de redu­
burocracia, direitos da cidadania, e das re­
zir voluntariamente o seu campo de exe­ lações entre esses elementos, as falas ofi­
cução direta e aumenlllr gradativamente,
ciais também exprimem um ideal
através de convênios e outros instrumen­ paternallstico do Estado. Autoridade e soli­
tos, a utilização dos serviços estatais e
dariedade aparecem como aspectos indis­
municipais,� o volume de recursos à sua
sociáveis, não existindo lugar para a
disposição. 19
distinção entre o Estado e a sociedade civil.
De acordo com o que se disse acir(la, a
Os direitos dos cidadãos constituem uma sociedade brasileira é representada como
preocupação central no discurso do minis­ um todo hierárquico, e a autoridade tem o
tro: dever moral de preservar esse todo contra
divisões por meio de compensações conce­
"O Programa Nacional de Desburocrati­ didas àqueles que se encontram na base da
zação ( ... ) inscreve-se por inteiro no hierarquia social. O papel atribuído aos ci­
processo de abenura democrática em dadãos é dar apoio ao governo estabeleci­
curso no país, porque está intimamente do: os cidadãos ''pequenos'' agem dessa
ligado aos ideais de liberdade e ao con­ maneira porque assim garantem beneficios
ceito de cidadania. (A democracia) não compensatórios; e os "grandes" porque, de
se esgota com a grande abenura política, outra forma, a harmonia social acabaria
a reconquista das liberdades básicas e a comprometida em prejuízo de todos. Essa
garantia dos direitos humanos funda­ visão das coisas 13mbém é responsável pela
mentais. Para que a abenura possa esten­ ênfase que o ministro dá às soluções con­
der-se ao cotidiano dos humildes, é sensuais. Tanto seu discurso quanto suas
necessário que se cuide igualmente da iniciativas concretas evitam cuidadosa­
pequena liberdade, do pequeno direito mente toda matéria conflitiva A verdade é
humano, valores que são diariamente que a "estratégia seletiva" do ministro exi­
negados ao cidadão na humilhação das ge o atendimento das necessidades pragmá­
fIlas, na tonura das intermináveis espe­ ticas para evitar oposição da própria
ras, na indiferença, na desconfian?1l e na burocracia e/ou de interesses sociais parti­
frieza dos balcões e dos guichês." o culares. De qualquer forma, a ênfase forte-

176 ES111DOS lDSTÓRlCOS 1990/6
-

mente colocada sobre os fatos de que "nin­ cidadãos por meio da patronagem do Esta­
guém, nem mesmo os burocratas, são bene­ do.
ficiários da burocracia existente", e de que
as metas do Programa Nacional de Desbu­
IOC13IÍVlçãO são consensuais, também re­
força o mito da sociedade como uma 5.
hierarquia harmoniosa.
O discurso oficial reconhece o significa­ O diálogo entre o público e o ministro da
do político de burocracia, conforme atesta Desburocratização revela grandes seme­
a it:'sistência do ministro em afirmar que seu lhanças no que diz respeito tanto à identifi­
programa nAo se reduz a uma "mera refor­ cação da opressão sistemática e às viola­
ma administrativa". Todavia, na medida em ções de direitos inerentes às práticas buro­
que diferencia tlio nitidamente entre autori­ cráticas correntes quanto às representações
dade e burocracia, ele acaba reservando um ideológicas do universo político. Esses
lugar para o poder político acima do poder pontos de identidade entre as partes em
administrativo. Isso explica, até certo pon­ conversação nAo devem surpreender-nos.

to, por que seus argumentos sobre a neces­ Armal de contas, para angariar o apoio po­
pular, o ministro deliberadamente se serve
sidade de descentraliVlçlio são de certa
da linguagem popular e das representações
forma ambíguos. A descentralização que
sociais que dela emergem. Como ele afirma
ele propõe limita-se apenas ao domínio da
explicitamente "C...) para nós, o povo eslá
administração. A autoridade decide quan­ ,
sempre certo.'''
''
do, como e até que ponto desburocratizar;
Devemos entlio concluir com a asserção
além disso, ela é a única a assegurar a
simples e trivial de que o discurso oficial
responsabilidade administrativa, uma vez
traduz oportunismo e manipulação políti­
que nenhum papel é reservado a canais
cos? Não podemos endossar uma conClusão
institucionalizados do controle por parte da
tlio simplista sobre as implicações e poten­
cidadania.
cialidades do discurso político como diálo­
Assim, o cidadão permanece como
go. Antes de mais nada, é necessário
cliente do Estado. E se a burocracia age em
observar-se que a audiência a que o minis­
seu detrimento, SÓ lhe resta relatar o fato à
Ira se dirige é diversificada. Apesar de seus
autoridade e esperar pela iniciativa desta.
apelos a uma sociedade consensual, que
Em outras palavras, a autonomia dos cida- • sofre dos mesmos males burocráticos, ele
dãos frente à burocracia pressupõe um po- fala a diferentes grupos sociais, inclusive
der mais alto. E é por isso que as ligações autoridades políticas competidoras e os
diretas com O programa substituem os ins­ próprios burocratas. Assim, na tentativa de
trumentos autônomos de controle político evitar dissensões, suas mensagens etlfati­
da sociedade. Nesse contexto, a imagem VIm valores e cognições amplamente parti­
curiosa do ministro da DesburocratiVlção lhados na sociedade brasileira.
como "o ombudsman do governo militar" Nesse contexto, nAo importa sequer co­
adquire seu significado. A expressão - que mo o ministro se relaciona pessoalmente
aparece em uma das cartas da amostra - com as diversas representações sociais. A
exprime a idéia contraditória de um gover­ primeira conclusão importante a ser eXlraí­
no autorilário que procura implementar a da aqui é que as imagens normativas e
democracia de cima para baixo. E aponta positivas discutidas nas páginas anteriores
também em direção às ambigüidades en­ não constituem uma subcultura típica dos
volvidas na promoção da autonomia dos setores atrasados e marginais da população,
OPRESSÃO BUROCRÁTICA 177

como muitos argumentaram. Elas sugerem, tar as potencialidades de emancipação. O


antes, que as noçOes identificadas de "auto­ significado das palavras não é independen­
ridade", "burocracia" e "direitos" e o mo� te da prática concreta. Na realidade, a es­
dela ideal de organização social associado treita interação de linguagem e ação promo­
a esses elementos são centrais na sociedade ve tantO a mudança quanto a continuidade.
brasileilll e, nessa mesma medida, infor­ Nesse sentido, se as iniciativas do programa
mam os esforços de legitimação do Estado. contribuem para tomar efetivo o exercício
Sugerem, ainda, que a fenomenologia da dos direitos legalmente estabelecidos, ele
cidadania no Brasil está profundamente certamente contribui para diferençar a no·
imersa em uma visão do mundo que reforça ção de "direitos" daquela de "favores" con­
a naturalidade da desigualdade e da missão cedidos pela autoridade. Cranston afirma
ideal da autoridade para compensá-Ia. Ob­ que "nada é mais importante para a com­
viamente, esta ideologia dominante não en­ preensão de um direito do que o reconheci­
,,23
globa tudo no wliverso social. Mas, dentro mento de que um direito não é um ideal.
dos parâmetros do regime autoritário, as Parafraseando-o, poderíamos dizer que na­
oponunidades de livre manifestação de sis­ da distingue tanto um direito de um favor
temas simbólicos alternativos são severa­ quanto tomar o patronagem supérflua.
mente limitadas. Assim, para reforçar a cidadania, os ga·
Em segundo lugar, deve-se observar que nhos alcançáveis pelo Programa Nacional
o diálogo político contribui para perpetuar de Desburocratização foram essencialmen­
as representaçOes culturais mencionadas Le os mesmos que o ministro em algum
como fenômenos políticos, contribuindo, lugar desprezou como "meras reformas ad­
assim, para evitar a difusão de perspectivas ministrativas". Vale dizer, dados os parâ­
alternativas. Como Edelman indica: metros políticos dentro dos quais o progra­
ma teve que se movimentar. as metas mais
"As associaçOes mágicas que permeiam ambiciosas, que envolviam profundas mu­
a linguagem são importantes para o danças políticas, estavam condenadas ao
componamento político, porque confe­ fracasso. Somente ganhos relativos em efi­
rem autoridade às percepçOes conven­ ciência podiam ser realisticamente previs­
cionais e às premissas socialmente lOS sob a ordem autoritária estabelecida.
valorizadas, tomando difícil ou impossí­ Sem a garantia de que os cidadãos tivessem
vel a percepção de possibilidades ai ter­ qualquer panicipação ativa para resistirem
,,22
nativas. à opressão burocrática, a única coisa que
eles podiam esperar era beneficiar-se tle
Nesse sentido, o discurso da desburocra­ rotinas administrativas simplificadas e de
tização tem claras implicaçOes conservado­ melhorias semelhantes na administração
ras. Sancionando wna visão do mundo em burocrática. De qualquer forma, na medida
que os recursos da autoridade são a única em que tais melhorias atuam no sentido de
alternativa para se reduzir a opressão buro­ reduzir a necessidade da mediação da auto­
crática, ele contribui para reforçar o mito de ridade, elas cenamente tendem a contribuir,
wna sociedade impotente, composta de ci­ até cena ponto, para a redução da imponân­
dadãos dispersos que nada mais têm a fazer cia do patronato e a conseqüente introdução
além de buscar a palrOnagem do poder. de mudanças nas representaçOes sociais da
Em terceiro lugar, apesar de suas impli­ política.
caçoes conservadoras, o discurso oficial em Finalmente, é importante observar que a
favor da desburocratização, como anefato desburocratização parece depender muito
cultural, também contribui para incremen- mais da democratização do que é reconhe-
118 ESltIDOS HISTóRICOS 199016
-

cido explicilamente tanlO no discurso do 5. Murray Edelman, TM symbolic uses of


público quanlO no do minisuo. Ou seja, poJilics, Urbana. Universicy of minois Press,

plOdllzir alternativas paIlI a administtação 1964, p. 114.


6. Teun A. Van Dijk, "Discourse analysis: its
burocrática exige um ambiente político
developmenl and application lo lhe structure of
mais abertO do que aquele em que nos mo­
news"Journal ofCol'1ll1UaJion,
Ulic v. 33, n. 2, p.
víamos. Embora seja verdade que em qual­ 20-43. AC;laçlo i da p. 24.
quer lugar a burocracia acarreta a ruJe by 7. Eric LandowsJci. "La parole efficace, pour
rwbody opreSSOOl, os graus de opressao va­ une applOche sémiotique du discours politique",

riam segundo a natureza dos regimes, sendo trabalho apresentado no xn Congress of the
mais provável que alternativas para a orga­ Intemational Political Science Association, Rio
nização burocrática da vida social swjam de Janeiro, 1982.
denuo de contexlOS políticos que concedem 8. O conceito de ideologia usado aqui refere­

aos cidadlJo� canais legais de participação. se às representações sociais ou a um sistema


cultural no contexto da definiçio de Geertz:
Talvez isso não passe de uma concepção
"sistemas de símbolos que interagem ou padrões
formalística da democracia e de uma abor­
de significados que b"abalham interativamente"
dagem simplista de suas potencialidades de (file inlerpretaJion ofcwlwes, New York, Basic
emancipação. Não obstante, resta o fato de Books, 1973, p. 207).
que a sociedade brasileira precisa urgente­ 9. A única exceçio que conhecemos refere-se
mente de procedimentos formais que IOr­ à análise qualitativa de uma coleção de cartas
nem viável a busca de um modo mais pessoais dirigidas a diferentes políticos e a bu­
democrática de vida. Não negligenciemos, rocratas dos altos escalões, [aundo pedidos re­
uma vez mais, os efeitos mutuamente refor­ lacionados à aquisição de casa própria: Tereza
M. Oliveira, "Cartas: impressão e expressão",
çados de opressão que têm o poder e sua
Rio de Janeiro, Iuperj. 1984. As conclusões da
organização.
autora coincidem em grande parte com aquelas
a que chegamos a partir de nossa amostra, rela-
.
Uvamente as representaÇoes SOCHUS que emer-
, - ' .

gem das cartas.


10. Ver Tania Salem, "Mulheres faveladas:
Notas
com a venda nos olhos", em Perspectivas QI1Jro­
pológicas da rruúher, I , Rio de Janeiro, Zahar,
1 . Elisa P. Reis e Joio Batista A. e Oliveira, 1980, p. 49-99. Como a aula/8 demonstra, para
"De-Bureaucratization, political loyalty and so­ as mulheres de classe baixa no Rio de Janeiro, é
cial justice", tratalho apresentado à I Internario­ como se, para efeito da distinção entre as esferas
nal Confe�mce on lhe Criticai Ana1ysis of privada e pública, houvesse uma especialização
Bmeaucrac\'. Goulieb Duuweiler FOlUldarion, correspondente por sexo, de modo que aos ho­
Rtlschlikcr�Zurich, 1982. mens se atribuem vantagens comparativas para
2. O ministro Hilio Beltrio pediu demissão agir na 6rbita pública.
no finaI de 1983. O Programa Nacional de Des­ 1 1 . Naturalmente, pedidos como os de em­
burocnti1.8ç1o perdeu então seu slaJu.s ministe­ prego podem parecer conb"ários a esta afinna­
rial. transformando-se em uma secretaria ção. Esperamos, contudo, que o item 3 deste
especial da Presidência da República. artigo demonsb"e que até isto é percebido como
3. Hannah Arendt, TM human condi/ia", atinente às preocupações da autoridade.
New York, Doubleday/Anchor, 1959. 12. Diversos esrudos antropológicos concluí­
4. Jurgen Habmnas, '70wards a theory or ram pela presença de semelhantçs arquétipos de
communicative competence"" lnquiry. 13. win­ autoridade enb"e certas categorias sociais, como
ter, 1970. Ver também. do mesmo autor: Know­ camponeses e outros grupos periféricos. Ver, pOr
I�dge anti hlU1t(U1 inlere.sls, Boston, Beacon exemplo, Luiz EduardQ Soares, CampesinaJo:
Press, 1971, ap.; Inlrodwclian lo IMory and ideologia epoWica, Rio de Janeiro, Zahar, 1981,
pTaclice. London Heinemann, 1974. p. 58-9.
OPRESSÃO BUROCRÁTICA 179

13. Hélio Behrão. "Desburocratização, des· 18. Hélio Beltrão, "A pequena e média em­
centralização e liberdade", palestra proferida em presa..." , p 5 . .

São Paulo a 3 de dezembro de 1980, p. 5. Uma 19. Hélio Beltrão, "Descentralização admi·
coletânea dediscursos do ex·ministro Hélio Bel­ nisO'ativa e federação", palestra proferida em
trão foi recent.emente publicada sob o titulo de Salvador a 1 7 de março de 1981, p. 3:
DescenlraJizaçdp e liberdade (Rio de Janeiro, 20. Hélio Beltrão. conferência na Escola Su­
Record, 1984). Mas todas as citações de seus perior de Guerra em 12 de jwtho de 1981, p. 4.
discursos aqui são tiradas das publicações feitas 21. Hélio Beltrão, no I Encontro Nacional
pelo Programa Nacional de Desburocratização para a Desburocratização, Brasília. 1 5 de julho
em Brasilia. de 1981, p. 10.
14. Idem, p. 5 . 22. Edelman, op. dI.. p. 121.
15. Idem, p. 4. 23. Maurice Cranstol1, "Are there any human
16. Hélio Beltrão, "A pequena e média em· rights?", Daedai..." v. 112, n. 4, 1983, p. 1·17. O
presa como fator de estabilidade política. econô­ trecho citado é tirado das p. 12·13.
mica e socia]", palesb'8 proferida no Rio de
Janeiro a 1 1 de novembro de 1981, p. 2.
17. Hélio Belb'ão, no I Encontro Nacional
Elisa P. Reis é professora do Instinno Univer­
para a Desburocratização, BrasOia, 1 5 de julho
sitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e
de 1981, p. 9. do InstitulO de Medicina Social da UERJ.

Vous aimerez peut-être aussi