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A. Santos Silva e J. Madureira Pinto (1986).

Metodologia das Ciências Sociais, Porto: Edições


Afrontamento, 29-53.
Capítulo 1

A RUPTURA COM O SENSO COMUM NAS CIÊNCIAS SOCIAIS

Augusto Santos Silva

1. O PROBLEMA DA RUPTURA

A constituição das ciências sociais esteve directamente relacionada com a possibilidade


histórica de afirmação da autonomia do social, quer dizer, com os desenvolvimentos
socioeconómicos, políticos e teóricos que, nos séculos XVII, XVIII e XIX, impuseram a ideia da
existência de uma ordem social laica e colectiva não directamente determinada pela vontade
divina, irredutível à acção individual e submetida a leis ("relações necessárias que derivam da
natureza das coisas", na célebre frase de Montesquieu). Segundo ritmos desiguais para as
várias disciplinas, foi-se consolidando, no decurso da centúria passada, um saber
especializado, assente na reflexão teórica e na observação empírica, que ia assim marcando as
suas diferenças para com a tradição filosófica, as cosmovisões religiosas e o conhecimento de
senso comum.

Coube, na viragem do século, ao sociólogo Émile Durkheim a principal teorização, nestes


termos, sobre a legitimidade da análise dos factos sociais. E toda essa teorização se polariza na
tese de que a investigação científica deve começar pela ruptura com as pré-noções típicas do
conhecimento corrente. "O homem - explica Durkheim1 - não pode viver no meio das coisas
sem fazer delas ideias segundo as quais regula o seu comportamento". "Produtos da
experiência vulgar", tais noções "têm, antes de tudo, como objectivo pôr as nossas acções em
harmonia com o mundo que nos rodeia; são formad[as] pela prática e para ela. Ora uma
representação pode ser capaz de desempenhar utilmente este papel, sendo ao mesmo tempo
teoricamente falsa". Cumpre ao cientista, definindo rigorosamente os seus conceitos,
submetendo as suas hipóteses à comprovação empírica, contrariar as interpretações vulgares,
e mormente, para o nosso autor, os elementos metafísicos, psicologistas e individualistas nelas
implicados.

Posteriormente, a epistemologia de Gaston Bachelard, insistindo no carácter construído do


conhecimento, na descontinuidade radical entre ciência e saber corrente, e na
imprescindibilidade da ruptura com os "obstáculos epistemológicas" – veio dar um novo apoio
às prevenções durkheimianas. Tornou-se usual sublinhá-las, actualizando-as normalmente do
seguinte modo. As disciplinas sociais são especialmente permeáveis às interpretações de senso
comum. Ao passo que a física ou a astronomia romperam já há alguns séculos, por vezes em
circunstâncias dramáticas, com o senso comum, construindo uma linguagem conceptual e

1
ÉMILE DURKHEIM, As Regras do Método Sociológico, tradução portuguesa, Lisboa, Presença, l980, pp. 41-42. Ed.
original: 1895.
processos de demonstração específicos que as imunizam, em grande parte, à influência
daquele, as ciências sociais, mais recentes, não possuem ainda, em geral, códigos e
instrumentos exclusivos. Depois, a realidade social surge, aos olhos da maior parte das
pessoas, como mais facilmente explicável do que o universo físico. Aliás, os homens
necessitam de produzir ideias determinadas e consistentes sobre as instituições e as situações
colectivas, que possam racionalizar e orientar a sua prática. Por último, todos - e logo,
também, Os psicólogos, os economistas, os sociólogos, etc. - estamos integrados em
estruturas sociais, pertencemos a certos grupos. E daí que, quando se trata de tomar por
objectos as próprias relações sociais, seja para o investigador mais forte o risco de, mesmo
inconscientemente, conceber como guias ou resultados de pesquisa aquilo que constitui,
apenas, a interpretação que, como actor social membro de um dado grupo, com uma dada
condição, em dadas circunstâncias de tempo o de lugar, ele tende a assumir.

A ilusão da transparência, da familiaridade do social – que autoriza a produção, a baixo preço,


de sociologias ou economias "espontâneas" - e os sistemas de atitudes e acções ligados às
condições sociais objectivas - que obrigam à produção a qualquer preço, de sociologias ou
economias "espontâneas" – representam os mais poderosos obstáculos à análise científica.
Eles estão por detrás dessa “resistência profunda" que provém, nas palavras de Alain
Touraine2, "da nossa ligação à crença de que os factos sociais são comandados por uma ordem
superior, metassocial" – seja esta a vontade divina, o espírito humano, a motivação individual,
a acção dos "grandes homens", a nossa natureza biológica, o sentido da história… A regra
metodológica de Durkheim – explicar o social pelo social e só pelo social – constitui ainda um
princípio-chave para a superação de tais obstáculos, se a entendermos precisamente como
afirmação de que não há elementos metassociais que possam dar cientificamente conta dos
factos sociais.

Faz-se, porém, muitas vezes, uma interpretação demasiado restritiva do trabalho de ruptura
com o senso comum – ora pensando que uma simples afinação terminológica e a utilização de
técnicas de pesquisa especializada permitem realizá-lo; ora que através dela facilmente se
demarcam dois continentes cognitivos – o vulgar e o erudito – tomados assim incomunicáveis.
O certo é – e várias correntes sociológicas, antropológicas e históricas o têm mostrado – que
os factos humanos são sempre factos interpretados, o que os distingue radicalmente dos
eventos físicos; a consciência dos actores é o elemento constitutivo decisivo do mundo social.
Importa, pois, dar conta das representações colectivas, quotidianas, da sociedade – as imagens
e as noções construídas no decurso da vida de todos os dias e que configuram o património
cognitivo partilhado pelos membros de um dado grupo, as maneiras de pensar e de sentir, em
suma, aquilo a que chamamos senso comum forma um dos objectos centrais de qualquer
ciência social. Uma atitude que relegue o conhecimento prático para o estatuto de conjunto de
meras pré-noções, pré-conceitos, que a ciência deve ultrapassar e esquecer, bloqueia a análise
dos processos sociais simbólicos.

2
ALAIN TOURAINE, Pour la Sociologie, Paris, Seuil, 1974, pp. 13-14.
Por outro lado, subjaz a essa atitude restritiva face à ruptura uma arrogância erudita, herdeira
do cientismo positivista, que já não tem grande sentido no panorama actual do conhecimento,
incida ele sobre a cultura ou a natureza. A oposição entre ciência e senso comum é uma
oposição relativa; quer dizer, não se trata de uma clivagem, entre a concepção vulgar,
enganosa, ilusória, espontânea, dos factos, e a construção especializada, demonstrativo,
"verdadeira", produzida por profissionais, clivagem que pudesse ser feita à partida, por um
qualquer exorcismo inicial e definitivo. Em rigor, a oposição entre ciência e senso comum é
também uma oposição intenta ao trabalho e ao meio científico. Manifestação simbólico-
ideológica, o conhecimento prático desempenha funções sociais precisas, e os cientistas
compartilham com demais actores sociais pressupostos e operadores ideológicos que podem
tornar-se eventualmente obstáculos epistemológicos.

E preciso, portanto, reagir à tentação unanimista, e ter em mente que, só se fazendo a ruptura
por viu da construção teórica testável, há várias "rupturas" como há várias construções. Não
vamos falar de uma tarefa consensual entre os especialistas, pela qual todos se distinguiriam
identicamente do vulgo, mas sim de uma operação conflitual, na qual pensamos a nossa
própria relação com o saber prático e a prática ideológica.

Por isso mesmo, o presente texto procurará analisar a questão considerando os três níveis a
que podem emergir obstáculos ao conhecimento científico sobre o social: o nível das
representações mais "imediatas", mais "espontâneas", sobre a realidade, a que chamaremos
senso comum ou conhecimento prático; o das concepções mais trabalhadas, enquadradas em
formações ideológico-doutrinárias precisas; o das ramificações de umas e outras no interior de
disciplinas científicas consolidadas. Claro que os obstáculos surgem como tais apenas de um
ponto de vista teórico específico – o qual se irá esclarecendo pela própria crítica àqueles.

Para clareza da exposição, convirá distinguir elementos axiais das interpretações do social em
termos não sociais que, de facto, andam associados. Deixaremos de lado interpretações
tradicionais contra as quais se ergueram as próprias disciplinas sociais que têm vindo a perder
impacto – como a imputação dos fundamentos da ordem social a vontade divina. Centrar-nos-
emos em três questões face às quais, e pelas razões que iremos vendo, o conhecimento
corrente, as representações ideológicas e mesmo as teorias científicas continuam a revelar-se
inseguros: as relações entre natureza e cultura; entre individuo e sociedade; entre o "eu" e o
"outro". Simplificando, diremos que o senso comum tende muitas vezes a produzir
interpretações naturalistas, individualistas e etnocentristas dos factos humanos, procurando
explicá-los por características que pensa ligadas à "natureza" da humanidade ou de certos
grupos dela, por factores (disposições psíquicas e comportamentos) individuais, e em função
dos valores dominantes na sociedade ou na classe a que pertencem os interpretadores.
Tentaremos mostrar, sucessivamente, a falsidade de tais concepções, a permeabilidade a elas
de algumas teorias científicas, e os princípios necessários para a ruptura.
2. NATUREZA E CULTURA

Uma das formas mais correntes de tentar explicar factos sociais invocando “causa” de ordem
metassocial é a interpretação de tipo naturalista- quer dizer, e nas palavras de A. Sedas Nunes,
a descrição/interpretação do social “a partir de factores ditos 'naturais' (real ou supostamente
físicos, biológicos ou psicológicos), isto é, de factores que se consideram 'inerentes à natureza
humana' ou inerentes à 'natureza' de um povo, de uma área geográfica, de uma raça, de cada
um dos sexos, etc.". “Este género de descrições/interpretações – continua o autor – implica a
afirmação do 'carácter natural' (=absoluto) dos fenómenos cuja explicação assim se apresenta
[...]. Simultaneamente, tende a erigi-los em factos 'indiscutíveis', incontroversos, que, por
exprimirem 'a própria natureza das coisas', devem permanecer ao abrigo de toda a
'relativização' – o que é formalmente contraditório com qualquer tentativa de 'explicar o social
pelo social"3.

Quando se diz que frequentam os museus as pessoas que possuem certos "dons", "dotes"
artísticos, um certo gosto estético, e que, portanto, as diferenças na frequência dos museus se
devem a diferentes aptidões, "naturais", que estão para lá de condicionalismos económicos,
educacionais ou familiares; e quando se diz que as diferenças biológicas entre homens e
mulheres conduzem a diferentes comportamentos, uns "naturalmente" masculinos e outros
femininos – exprimem-se duas interpretações, bastante correntes em termos de senso
comum, de fenómenos sociais. Elas ilustram as duas variantes discerníveis no "naturalismo". A
última sugere que factores naturais – biológicos – são causas eficientes de factos culturais; a
primeira não invoca declaradamente características físicas ou biológicas, mas vive de um efeito
de naturalização dos factos sociais, quer dizer, da sua imputação a propriedades, mormente
psicológicas, tidas por absolutas, inerentes a condição geral ou a condições particulares da
nossa espécie – inerentes, em suma, à chamada "natureza humana".

Apresentadas assim, na formulação típica do saber prático, estas interpretações parecem


facilmente superáveis. Trata-se, porém, de uma ilusão. Por detrás delas, está uma questão
central do conhecimento – a da relação entre a natureza e a diversidade dos contextos sociais
criados pelo homem. A tendência para escamotear estes recorrendo àquela ressurge a cada
passo – no senso comum como na investigação científica.

Tomemos o exemplo do biologismo – reservando a palavra para designar os reducionismos


analíticos que pretendem dar conta da realidade social a partir de determinismos tidos por
biológicos. Ele constitui a via mais seguida e ideologicamente mais produtiva das
interpretações de tipo naturalista.

Ora bem: uma extensa lista de pesquisas antropológicas, sociológicas e históricas tem
demonstrado a falsidade das "explicações" biologistas das relações entre os sexos ou entre as
raças, evidenciando precisamente quanto essas relações variam segundo os diferentes
contextos socio-históricos e são determinadas por eles. Mas o certo é que nas últimas três
décadas pôde intensificar-se, no meio científico, um movimento biologista, que atingiu o cume
com a formação da sociobiologia e que percorre persistentemente os mais diversos domínios.

3
A. SEDAS NUNES, Sobre o Problema do Conhecimento nas Ciências Sociais: Materiais de uma experiência pedagógica, 5ª ed.,
Lisboa, G.I.S., 1981, p. 9.
Assim, a etologia humana pretende ser o alargamento à nossa espécie da problemática e do
método que, a partir dos anos trinta, foram aplicados com êxito ao estudo das bases biológicas
do comportamento animal. Ora, a tentação de extrapolar directamente teorias construídas em
pesquisas sobre animais para o domínio do homem e da cultura, vai atravessando a disciplina
e causando ambiguidades analíticas que não raras vezes desembocam em puro biologismo.
Por seu lado, a sociobiologia afirmou-se desde logo como uma "nova síntese" capaz de garantir
às ciências humanas um suporte biológico tido por indispensável, na medida em que
pressupõe ter todo o comportamento social uma base biológica e de acordo com os cânones
darwinistas - um valor adaptativo, estando pois sujeito à selecção natural. No entanto, as
teorias biológicas actuais estão muito longe de autorizara aplicabilidade universal do esquema
de evolução por selecção natural, o inatismo absoluto e, novamente, a extrapolação do animal
para o homem que prevalecem na abordagem sociobiologista.

Do ponto de vista das ciências sociais, as condicionantes biológicas representam um dado


continuamente utilizado e transformado pela sociedade. O reconhecimento dessas
condicionantes (a vida e a morte, a existência corporal individualizada num certo lugar e num
certo tempo, o património geneticamente herdado, as consequências das desregulações
fisiológicas, e assim por diante) vai de par com o reconhecimento de que, em tais limites, os
conteúdos e as formas de conduta são tipicamente culturais – e, no caso, é deles que se trata.
Mais: a acção do homem está em permanente tensão com as suas bases e limites biológicos.
Por exemplo, a sexualidade constitui um imperativo biológico; as formas de comportamento
sexual são, porém, culturalmente determinadas, e podem ir contra as aparentes "indicações"
físicas; o mesmo se passa com a alimentação, a divisão sexual do trabalho, a intervenção nos
ecossistemas, etc. E a acção humana depressa transforma atributos biológicos em factos
sociais: no nosso contexto, o sexo, a morte, a idade, a reprodução, a doença mental... são
sobretudo propriedades, instituições ou processos sociais, quer dizer, o que são é em muito
determinado pelas estruturas e práticas colectivas. Em geral, deve dizer-se que o homem está
sujeito a constrangimentos biofísicos decisivos - mas nenhum deles, nem mesmo a vida e a
morte; e absoluto, é independente do modo como o homem o apropria e transfigura.

Nesta base, a recusa de qualquer forma de reducionismo naturalista – biologista ou fisicalista –


permite precisamente a troca produtiva de informação entre as disciplinas sociais e as
naturais, permitindo explorar as influências recíprocas de características e fenómenos naturais
e culturais. E, no que toca à investigação social, torna possível integrar, nos modelos
explicativos, dados de ordem biológica ou física, desde que convenientemente incluídos em
conjuntos de factores sociais, porque só aí ganham sentido.

Para ilustrá-lo, basta pensar em áreas de charneira como a demografia e a geografia humana.
Quando lidamos com conceitos como os de fecundidade e de natalidade, lidamos com
complexos de factores sociais e biológicos, que mantêm entre si importantes relações de
implicação: se as características naturais dos homens e das mulheres impõem um certo
número de constrangimentos e acarretam um certo número de motivações e atitudes, não é
menos verdade que os actores criam, segundo os contextos, maneiras específicas de "cumprir"
necessidades biológicas e estratégias dirigidas à sua alteração (lembre-se as várias formas de
controlo da natalidade, como a subida da idade média ao casamento, o prolongamento da
amamentação, o uso de meios anticoncepcionais, etc.). Por isso mesmo, só faz sentido falar da
demografia como ciência social.

A evolução recente da geografia constitui outra clara ilustração do que argumentamos.


Sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, ela afirma-se decididamente como disciplina
social. Abandonando as concepções que a limitavam ao estudo da diferenciação regional da
superfície terrestre, das relações entre o homem e o meio, ou da paisagem – a nova geografia
propõe-se analisar as dimensões espaciais da vida social, a função do espaço na dinâmica das
sociedades. Insiste-se em que o meio natural só se toma meio geográfico na medida em que as
colectividades, no decurso da história, o modelam. O espaço constitui um sistema que
relaciona elementos do meio físico (relevo, água, clima, vegetação…) e do meio social
(estruturas demográficas e sociais das populações…). O meio físico representa um dado para a
conduta humana – e implica condicionamentos ecológicos que a geografia tem em conta. Mas,
no essencial, a paisagem é uma criação colectiva. Não há uma relação directa entre meio físico
e homem: intervêm nela crucialmente factores económicos, sociais e culturais, que constituem
o sistema de relações no contexto do qual – e apenas nele – é possível invocar determinações
físicas e ecológicas.

Como explicar, então, a persistência das interpretações de tipo naturalista, como explicar,
sobretudo, que correntes científicas (quer dizer, produzidas nos meios profissionais
especializados) as adoptem e procurem fundamentar? Será pouco mais que inútil atribuir, por
exemplo, o reducionismo biologista a qualquer "atraso" na evolução teórica. As razões são de
outra ordem.

A emergência da sociobiologia e do que ela representa – o retorno ao inatismo, a busca de


comportamentos universais, comuns a várias espécies, a biologização da investigação social –
percebe-se melhor se pensamos nas orientações científicas e ideológicas que a ela
conduziram. Em primeiro lugar, constitui até certo ponto uma previsível tentativa de
capitalização do desenvolvimento convergente de disciplinas como a genérica, a ecologia e a
etologia, com a aplicação a nossa espécie de modelos testados por exemplo na análise das
"sociedades" de insectos. Em segundo lugar, os biologismos têm muito a ver com o paradigma
positivista ainda forte nas ciências sociais, e a sua sugestão de que a cientifização dos estudos
sobre os agrupamentos humanos se fará pela importação de modelos das disciplinas naturais.
Depois, a forma como toda uma tradição da antropologia e da sociologia estabelecia uma
dualidade absoluta entre natureza e cultura, recusando-se a admitir qualquer influência
daquela sobre esta, acabou por reforçar as próprias reduções biologistas. Aliás, convém ter em
conta que, em vários aspectos, a questão da relação entre natureza e cultura está em aberto.

Mas não são apenas nem fundamental mente razões de ordem teórica que explicam o relativo
sucesso dos biologismos: até porque estes carecem de fundamentação biológica e os biólogos
foram dos primeiros a denunciá-los. As determinantes ideológicas jogam aqui um papel
crucial. Sobretudo em temos de opinião pública, a força de propostas como a da sociobiologia
deriva directamente de que ressuscitam, em linguagem especializada, o darwinismo social – ou
seja, a doutrina que pretende deduzir da diversidade dos seres vivos a inevitabilidade das
desigualdades de aptidões e oportunidades e a inutilidade das estratégias sociais igualitárias.
As três formas de dominação mais necessárias à, e mais características da, ordem social
contemporânea – as dominações de classe, de sexo e de "raça" – encontram justificação na
sociobiologia. O significado político de tal tentativa de legitimação é claro.

Se agora retornarmos às formulações de senso comum, importará reter uma outra dimensão
do problema. Os argumentos de tipo naturalista são maioritariamente usados em contextos de
conhecimento corrente que não se organiza em representação ideológico-política precisa. E
essa produção cognitiva e simbólica desempenha uma função decisiva, na racionalização do
comportamento dos actores sociais e no que os sociólogos designam por conversão das
probabilidades objectivas em expectativas subjectivas dos actores.

Consideramos um exemplo. Na nossa sociedade, é concepção corrente que as diferenças


biológicas entre homens e mulheres implicam necessariamente diferentes "naturezas"
psíquicas, de tal modo que caberia falar de vocações tipicamente masculinas e de vocações
tipicamente femininas. Uma prova particularmente elucidativa poderia ser encontrada na
estrutura da procura de cursos universitários segundo o sexo. Em Portugal, há uma forte
clivagem entre os sexos: a esmagadora maioria das raparigas escolhe os cursos de Letras,
Medicina e Ciências Exactas e Naturais; os rapazes preferem as Tecnologias, e depois
Economia e Gestão, Medicina e Direito. Ora bem: tratar-se-ia de opções congruentes com as
diversas motivações e aptidões atribuíveis em última instância a constituições biológicas
diversas – os homens, mais activos, empreendedores, técnicos, optavam naturalmente por
cursos preparadores de carreiras sólidas, bem remuneradas, na maior parte dos casos liberais;
as mulheres, mais afectivas, menos preparadas para as posições decisivas da actividade
económico-social, mas mais dotadas para as profissões que exigem qualidades afectivas
intensas, naturalmente preferiam os cursos de formação de professores e certas
especialidades de Medicina.

É fácil mostrar, quer lógica quer empiricamente, que as causas da sub-representação das
raparigas na população universitária portuguesa e da imposição a elas de certos cursos,
normalmente os menos valorizados na hierarquia dos títulos escolares e dos empregos
possíveis, têm a ver com diversas condições sociais e não com diversas naturezas biológicas e
psicológicas. Desde logo porque se se tratasse de pura determinação física seria de esperar
comportamentos universais – e basta pensar que a taxa de feminização dos cursos
tradicionalmente masculinos tem aumentado nos últimos anos, facto que está seguramente
associado as transformações da condição da mulher entre nós. E, depois, porque a questão
central não se põe em termos de pura discriminação sexual – nem os rapazes nem as raparigas
apresentam condições sociais homogéneas; pelo contrário, cada um destes subconjuntos é
atravessado por fracturas económicas, sociais e culturais importantíssimas – que se
repercutem em procuras heterogéneas.

Uma explicação sociológica partiria da análise das diferentes condições sociais, segundo o
sexo, a origem e a trajectória social, e dos diferentes processos de socialização dominantes na
estrutura sócio-histórica considerada; e também da análise da estrutura da oferta de cursos
universitários. Este conjunto de factores define para cada grupo um certo número de
probabilidades objectivas de ingresso na Universidade e nos seus cursos. Ora, as
interpretações correntes de tipo naturalista, que tendem precisamente a tornar opaco aquele
conjunto, desempenham uma função decisiva dentro dele – a imagem da vocação feminina
para certas tarefas tidas por menores constitui um vector ideológico decisivo dos esquemas de
socialização preferencialmente dirigidos ao sexo feminino; e a persistência das justificações da
frequência de cursos escolares em termos de escolha e de vocação está intimamente
relacionada com a conversão pelos actores sociais das suas probabilidades objectivas em
expectativas subjectivas – sujeitos aos modelos inculcados pelas mais variadas instâncias e
formas de socialização e também à necessidade de racionalizarem o seu comportamento, os
actores tendem a viver como decisões pessoais naturais as condições impostas, tendem a
transformar em vocação o que é destino4.

A persistência e a eficácia das interpretações de senso comum não podem, pois, ser imputadas
à "ignorância" popular dos conhecimentos científicos, superável através da educação. A raiz é
mais profunda e tem a ver com a imagem coerente que os actores tendem a produzir acerca
do mundo social em que vivem, com as representações simbólico-ideológicas que
constantemente criam e a que constantemente estão sujeitos, e que constituem o principal
cimento da ordem social. As ciências sociais estão, assim, numa situação peculiar: ou evitam a
ruptura, decerto incomoda, e ficam condenadas à reprodução mais ou menos sofisticada e
esotérica dos operadores ideológicos e de senso comum; ou a assumem até ao fim, e têm
então de assumir integralmente a postura crítica em que se colocam.

Tínhamos visto que as interpretações de tipo naturalista não se limitavam apenas a


biologismos ou fisicalismos. Não se invoca, para explicar os factos sociais, somente a natureza
física; invoca-se muitas vezes também a natureza psíquica, moral, política, etc., da
humanidade – quer dizer, invoca-se comportamentos supostamente universais,
independentes de tempo, espaço e contexto, porque devidos a qualidades absolutas e perenes
da nossa espécie ou de fracções dela. Surgem normalmente argumentos de duas Índoles: ou
se sustenta que certos fenómenos são regulados por leis naturais – sobretudo, de ordem
psicológica – e, portanto, não há lugar para a relativização imprescindível às explicações
científico-sociais, ou seja, não há lugar para pô-los em causa, presumi-los variáveis, pelo
contrário há que tomá-los como dados estabelecidos de uma vez para sempre; ou se sustenta
que certos atributos não são redutíveis à abordagem em termos de estruturas e práticas
sociais, porque estão para lá das determinações sociais, não se podendo, pois, constitui-los em
objecto de análise científico-social.

O trabalho de historiadores, geógrafos, antropólogos e sociólogos tem-se desenvolvido, em


larga medida, na permanente "conquista" de novos domínios de estudo – isto é, na análise de
propriedades e factos até então considerados como não-analisáveis, porque universais ou
naturais. São conhecidos dois célebres estudos históricos que mostram, precisamente, como,
de um lado, as normas de civilização, ou seja, de gestão do corpo, e, do outro, as regras da
vida familiar e as atitudes face às crianças, que tendemos a assumir como naturais e, portanto,
absolutas, independentes de qualquer contexto que não seja o do “atraso” cultural – como

4
Usei a ideia e a informação empírica contidas em MARIA EDUARDA CRUZEIRO, "A população universitária portuguesa: uma nota
estatística", Análise Social, vol. VIII, nº 32, 1970 e actualizei-a recorrendo às Estatísticas da Educação referentes e 1977/78 (cfr.
AUGUSTO SANTOS SILVA, A ruptura com as interpretações de tipo naturalista em ciências sociais – relatório da uma aula prática,
Porto, Faculdade de Economia, 1984). Como o numerus clausus começou a ser implementado nesse ano lectivo, o peso da sua
influência na estrutura da procura ainda é reduzido. Para o desenvolvimento destas questões cfr. também A. SEDAS NUNES, A
Situação Universitária Portuguesa. Elementos para o seu estudo, Lisboa, Horizonte, s/d. e sobretudo JOSÉ MADUREIRA PINTO,
"Epistemologia e didáctica da sociologia", Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 14, 1984.
elas são tão recentes, e como o seu desenvolvimento se deveu a transformações sócio-
históricas determinantes5. Mas uma tal abordagem, como a abordagem científica das técnicas
do corpo, da sexualidade, da religião, da produção artística, etc. – tem sempre deparado com
fortíssimas resistências, com base exactamente no argumento de que se trata de factos ou
qualidades que estão para lá das determinações sociais.

Assim, o discurso dominante, quer ao nível do senso comum, quer mesmo ao nível de certa
crítica estabelecida, tende a pensar a competência artística como matéria de "vocação", em
que as práticas e as preferências se devem ao puro prazer, ao "amor da arte", às inclinações
individuais e "naturais" (no sentido de irredutíveis a qualquer determinação) das pessoas.
Contudo, vários estudos sociológicos têm mostrado, por exemplo, a relação entre o nível de
instrução, a categoria profissional e o nível de rendimento, por um lado, e a frequência dos
museus, por outro, e ainda a relação entre o gosto estético e a posição social6. Evidentemente,
a imagem da arte como puro prazer ou amor irredutível forma um vector axial da ideologia e
da valorização profissional dos meios intelectuais e artísticos – e eis al uma das mais fortes
razões da resistência às análises sociológicas, sempre tendencialmente desmistificadoras.

Mas não se trata, ainda aqui, de obstáculos exteriores à comunidade científica. O postulado da
existência de leis naturais e, portanto, de pressupostos absolutos e indiscutíveis é um
postulado central de várias teorias. A melhor prova pode ser encontrada no campo de uma das
primeiras disciplinas sociais a aceder ao estatuto de ciência: a economia. Os economistas,
como se sabe, estão há muito tempo bastante divididos quanto ao corpo de princípios e
pressupostos sobre o qual se deve construir a teoria económica. Ora, aqueles ligados ainda ao
paradigma clássico e neo-clássico – que em muitos contextos institucionais ocupam a posição
dominante – não se libertam de uma concepção a que keynesianos, marxistas e "heterodoxos"
chamam de bom grado naturalista. E, de facto, aqueles partem de postulados que supõem
inerentes à condição humana e universais (independentes de circunstâncias de tempo, lugar e
meio): todo o indivíduo seria um ente racional, capaz de efectuar escolhas em função da
maximização do seu proveito ou do seu prazer, em função, portanto, de cálculos sobre a maior
ou menor utilidade de tal bem ou actividade. Em consequência, grande parte dos economistas
neo-clássicos sustenta a universalidade das leis elaboradas na suposição dessa racionalidade
"natural", e separa persistentemente o "económico" e o social: assumindo que o "económico"
é sempre autónomo ou autonomizável e que as características sociais (políticas, culturais, etc.)
constituem dados exógenos, que o economista aceita mas com que não trabalha, os neo-
clássicos mais fervorosos fazem da cláusula coeteris paribus o alfa e o ómega das suas
construções conceptuais. Daí, por exemplo, o facto bem estranho de a ciência económica
dominante abandonar por completo a elucidação das condições económicas de produção das
disposições (como as "necessidades") que ela própria postula.

5
NORBERT ELIAS, Uber den Process der Zivilisation (Sobre o Processo da Civilização), vol. l, 1ª ed., 1939 (com traduções francesa e
inglesa); PHILIPPE ARIÈS, L'Enfant et la Vie Familiale sous l’Ancien Régime, Paris, Plon, 1960.
6
Cfr. PIERRE BOURDIEU e ALAIN DARBEL, L'amour de I'Art. Les Musées Européens et leur Public, 2ª ed. rev., Paris, Minuit, 1968;
PIERRE BOURDIEU, La Distinction, Paris, Minuit, 1979.
Aliás, a força com que hoje se subscreve ainda a teoria de Pareto que sugere a invariância da
desigualdade de repartição do rendimento, independentemente do estado de
desenvolvimento da economia e do respectivo sistema político – é bem um indício seguro da
permeabilidade a argumentos de tipo naturalista, ela mesma só explicável pela função
ideológica que estes desempenham no corpo da doutrina, individualista e liberal, a que anda
normalmente associado o paradigma neo-clássico.

3. INDIVÍDUOS E SOCIEDADE

A crítica dos mecanismos de naturalização dos factos sociais mostrou bem como as
concepções de senso comum – o modo como se formam e se reproduzem, os seus conteúdos
axiais – só podem ser cabalmente analisadas por referência às práticas, interesses e
representações ideológicas dos grupos sociais. Por isso mesmo, justificar a permeabilidade das
ciências sociais aos obstáculos epistemológicos contidos em muito conhecimento corrente
invocando apenas a "juventude" daquelas, a qual não teria ainda permitido a completa
especialização e elaboração "científica", é ignorar o essencial. A consistência e a eficácia desses
obstáculos são socialmente determinadas, quer dizer, estão relacionadas com a força dos
contextos e dos grupos que os produzem.

As interpretações do saber prático tendem a ser unitárias. Distinguir uma componente


"naturalista" e outra "individualista" constitui uma operação um pouco arbitrária, porque
distingue o que de facto anda bastante combinado. A justificação de dadas condutas por
razões, Ieis, naturais implica quase sempre – salvo nos casos extremos de crença em
determinações metassociais absolutas, como por exemplo imposições divinas – apresentá-las
como frutos de vontades e decisões individuais.

Trata-se, porém, de uma distinção muito útil, em termos lógicos e de exposição. Sobretudo
porque, ao contrário do "naturalismo", que surge mais como concepção difusa do que
propriamente representação ideológica precisa (até porque as ideologias em que ele ocupava
lugar-chave, dominantes nos regimes pré-liberais, foram ultrapassada pelas sociedades
modernas – embora ressurjam com subtileza e alguma ironia nos países do Leste europeu, em
que o Estado e mesmo "leis" históricas aparecem como entidades supra-históricas), o
individualismo constitui uma matriz ideológica decisiva do mundo contemporâneo.

No século XIX, a burguesia liberal usou o utilitarismo e o individualismo como bandeiras e


armas doutrinárias para a implantação do sistema político e económico liberal. Nesse
contexto, a ideia de que a sociedade é um agregado de indivíduos singulares e de que a
prossecução dos seus interesses por parte de cada um deles serve de melhor garantia para a
harmonia colectiva, funcionou como postulado central. Não só do senso comum e da filosofia
política – mas também, e coerentemente, de teorias científicas.

De novo, o recurso à economia dar-nos-á uma ilustração exemplar. É a ligação estreita entre as
teorias clássicas e neo-clássicas e o liberalismo político que explica a assunção pelas primeiras,
como axiomas indiscutíveis, dos pressupostos individualistas. O homo economicus é o agente
racional, que calcula os seus actos em função do prazer e da utilidade que deles pode retirar; a
análise global do circuito macro-económico deveria partir das escolhas individuais e estas
seriam intermutáveis – quer dizer, para lá da distinção empresário/consumidor, nenhuma
relação assimétrica entre pessoas, de estatuto, de etnia, de sexo, de cultura, etc., interessaria
ao economista.

Há ainda outra dimensão que importa rever. O que está em causa é, enfim, não só a nossa
resistência (de "senso comum", se quiserem) a perceber em toda a amplitude a relação entre
indivíduos e sociedades – mas também as nossas dificuldades (de "especiaIistas") em
esclarecê-la. Não se trata, pois, como já não se tratava com o "naturalismo", de uma maleita
de leigos que não ouvem as explicações dos sábios, mas de algo bem mais fundo, que
atravessa uns e outros. A melhor prova pode ser encontrada, a contrario, no modo como, em
sociologia, da tradição durkheimiaria ao estruturalismo, se tem procurado resolver o problema
pela evacuação do actor do objecto da análise, actor quase reduzido a mera consequência de
determinismos sociais que escapam à sua consciência.

Tudo aconselha, assim, a que desdobremos a nossa análise em dois pontos. Primeiro,
tentaremos perceber como, do ponto de vista das ciências sociais, é possível encarar a
dialéctica entre acção individual e determinismos sociais, e ultrapassar os preconceitos
ideológicos a esse propósito. Depois, situar-nos-emos no âmbito das próprias disciplinas
sociais, e tomando como ilustração o triângulo psicologia – sociologia – psicologia social,
mostraremos a persistência da questão e algumas ramificações ideológicas nas teorias
científicas.

Formas de individualismo extremo conduzem, como é lógico, à contestação da própria


existência de ciências sociais. Se só os indivíduos são "reais" – então, e nas palavras de A.
Sedas Nunes, a sociedade será "apenas um conjunto de pessoas, todas individualizadas,
singulares, diferentes umas das outras, agindo e inter-agindo de acordo com ideias, interesses,
sentimentos, aspirações, motivações que se considera serem-lhes 'imanentes' e tomando a
cada passo 'decisões' que se supõe resultarem unicamente do seu próprio livre-arbitrio"7. A
análise em termos de regularidades e determinismos sociais estaria assim prejudicada, quer
logicamente – os sujeitos seriam de todo em todo diferentes uns dos outros – quer eticamente
– visto que levaria à depreciação da liberdade humana.

Trata-se, claro, de um caso-limite, embora periodicamente ressurja com alguma força em


atitudes de senso comum face as explicações científicas. A forma mais corrente não nega a
necessidade e a validade genérica destas – mas procura restringir a todo o custo o seu alcance.
Quatro argumentos centrais são invocados, no contexto de uma tal concepção. Primeiro: há
certamente regularidades observáveis à escala supra-individual – mas elas são homólogas às
observáveis à escala individual; a explicação sociológica ou económica deve ser, pois, obtida
através da extrapolação de atributos "individuais" ou, pelo menos, tomando-os por base de
fundamentação. Em segundo lugar, e por consequência, as regularidades que caracterizam a
colectividade (e a que cada agente está, na verdade, de algum modo sujeito) representam o

7
A. SEDAS NUNES, Sobre o Problema do Conhecimento..., ob. cit., p. 9.
produto combinado das acções individuais e das interacções (inter-individuais) – únicos
vectores dinâmicos admitidos. Ora, tais acções são, ao nível pessoal, livres e orientadas pelas
motivações, interesses e aspirações, pelas "ideias" dos actores. Terceiro: de entre essas
acções, importa salientar as dos líderes (dos sujeitos que, por natureza psicológica ou por
posição no grupo, conduzem os movimentos colectivos) – e, correlativamente, importa
também centrar a atenção nos sistemas de ideias, elaboradas por pensadores ou ideólogos,
que desempenham uma idêntica função motora ao nível das aspirações e expectativas dos
indivíduos. Por último, tudo isto implicaria que as explicações científico-sociais, seguramente
válidas, teriam contudo um alcance limitado: porque deveriam conformar-se às leis
psicológicas; porque não seriam deterministas; porque um certo número de características
relevantes da condição humana, independentes do contexto social, lhes escapariam.

Como se vê, em jogo continua a estar o velho e talvez eterno problema da relação entre
indivíduo e colectividade. As ciências sociais não pretendem resolvê-lo, nas suas dimensões
filosóficas, éticas ou religiosas. Mas não podem aceitar, do ponto de vista dos seus postulados
teóricos (quer dizer, ao fim e ao cabo, daquilo que lhes permite construir os seus objectos de
análise), submeter-se a lógicas de registo diverso, não-científico, a imposições directamente
ideológicas ou doutrinárias. Por isso mesmo, nenhum daqueles quatro argumentos – que
constituem o esqueleto das interpretações individualistas e psicologistas do social – é
admissível.

E desde logo porque a questão de fundo está mal posta. A análise social – seja histórica,
antropológica, geográfica, psicológica, económica, linguística, sociológica, estética, etc., etc. –
não é pura nem automaticamente a análise dos "factos colectivos". Indivíduos e sociedade não
são realidades separáveis (a não ser, decerto, logicamente) de tal modo que se pudesse
estudar um dos termos evacuando o outro – abordar o indivíduo independentemente do
supra-individual (tentação do psicologismo) ou a sociedade omitindo a acção intencional dos
sujeitos (risco do sociologismo). Mais: nem sequer é muito rigoroso sugerir-se, como o fazem
as críticas "doces" do individualismo que acabam por não romper com ele, que o actor deve
ser integrado no "meio social ambiente" – os indivíduos biológicos são actores precisamente
porque são já indivíduos (corpos) socializados. Nas palavras de Pierre Bourdieu8: "A sociedade
existe sob duas formas inseparáveis: de um lado as instituições que podem revestir a forma de
coisas físicas, monumentos, livros, instrumentos, etc.; do outro, as disposições adquiridas, as
maneiras duradouras de ser ou de fazer que encarnam nos corpos [...]. O corpo socializado (o
que se chama indivíduo ou pessoa) não se opõe à sociedade: é uma das suas formas de
existência".

A dualidade actor/sistema é pois ultrapassável, por análises que possam dar conta
combinadamente dos dois pólos. Os sociólogos tem desenvolvido bastante esta linha teórica.
Vejamos, por exemplo, como Anthony Giddens se propõe resolver a questão. A sociologia, diz
ele, estuda as formas de produção e reprodução da sociedade. Ora, isso está longe de ser um
processo mecânico: é outrossim o resultado complexo da acção activa dos seus membros.
Mas, por sua vez, esta acção não é indeterminada, não é realizada em condições escolhidas

8
PIERRE BOURDIEU, Questions de Sociologie, Paris, Minuit, 1980, p. 29. O autor designa esses sistemas de disposições por
habitus. Para ele, o habitus é o elemento conceptual que articula estruturas e práticas, condições e condutas.
pelos sujeitos. A reprodução de uma série de práticas é que garante a estruturação das
estruturas; só que, se as estruturas se constituem, assim, através da acção, esta, por seu turno,
só se constitui nas condições fixadas por aquelas. Quer dizer, "as estruturas surgem como
consequência e condição da produção da interacção"9.

Estamos já longe da interpretação em termos de simples comportamentos individuais ou inter-


individuais. E longe, também, da tentação sociologista de evacuar o sujeito e a acção
intencional do objecto de análise. Na nova história poderemos encontrar exemplos bem
ilustrativos desta dupla superação. Tendo abandonado os velhos esquemas oitocentistas que
conferiam aos heróis e aos líderes a dinâmica histórica e aos factos uma singularidade
irredutível a qualquer explicação científica; mas pondo ainda em causa o paradigma que
imediatamente lhe sucedeu e que induzia a atender exclusivamente às estruturas, aos
movimentos de longa duração, à "história imóvel" – os mais recentes especialistas têm
procurado uma análise capaz de integrar factos únicos e regularidades, acontecimentos e
estruturas, condutas intencionais, determinações estruturais e os efeitos do acaso.

Assim, o velho argumento de que a explicação científica nega o livre-arbítrio e a autonomia da


acção individual só faz sentido para os que concebem a ciência segundo os parâmetros de
determinismo absoluto há muito ultrapassados - nas disciplinas sociais como nas físicas.
Numas como nas outras, as leis são da ordem da probabilidade, o determinismo que invocam
é um determinismo estocástico, cabe falar do acaso para todas.

Por outro lado, a consideração das condutas não equivale, longe disso, a aceitar a
racionalidade delas. O pressuposto central da teoria neo-clássica em economia, sobre a
racionalidade das escolhas individuais, e a teoria do valor-utilidade são anteriores às
descobertas da psicologia e da psicanálise no nosso século – que sublinham a importância
decisiva dos elementos subjectivos, afectivos, "irracionais", de conduta. Hoje, estas
descobertas representam dados adquiridos – e face a eles as concepções de senso comum,
herdeiros no caso do Iluminismo, sobre ir soberania do individuo esboroam-se nas próprias
bases em que se apoiavam, isto é, na análise das acções individuais.

Não faz, portanto, qualquer sentido adoptar uma última sugestão comente para a divisão de
"territórios" entre ciências sociais e pretensas disciplinas "individuais". Do mesmo modo que
seria absurdo distinguir as condutas ou mesmo as características supostamente devidas
apenas a determinantes biológicas das devidas a determinantes culturais, também o seria
reservar atributos ou factos exclusivamente aos processos intra-individuais.

Abordemos, como ilustração, um problema em relação ao qual são claras a eficácia e a


necessidade – em termos de racionalização dos comportamentos e da conversão das
probabilidades objectivas de sucesso em esperanças subjectivas – das interpretações de senso
comum: o problema da génese e desenvolvimento diferencial da inteligência e,
nomeadamente, a sua relação com o sucesso escolar. As concepções correntes combinam,

9
ANTHONY GIDDENS, New Rules of Sociological Method. A Positive Critique of Interpretative Sociologies, reed., Londres,
Hutchinson, 1977, p. 157 (1ª ed. ; 1976).
decerto, argumentos de tipo naturalista e individualista: a carreira escolar teria a ver com a
inteligência e as "capacidades" de cada aluno, e a inteligência seria um "dote", um "dom
natural" (muitas vezes imputado apenas à hereditariedade). Ora, a força de tais interpretações
– que tendem, portanto, a considerar que a inteligência está para lá do objecto possível da
análise social – deve-se às suas funções simbólico-ideológicas, visto que carecem de qual quer
fundamentação científica. Desde logo, em psicologia, o principal estudioso do
desenvolvimento intelectual, Jean Piaget, considerava que este se devia a quatro ordens de
factores: a maturação do sistema nervoso; ir experiência adquirida pela acção sobre os
objectos; os factores sociais – a linguagem, a interacção e a cooperação grupal, a educação
familiar e escolar; os mecanismos de "equilibração", "auto-regulação", postos em prática pelas
crianças (Piaget fala, como se sabe, em temos de psicologia genética). No quadro de uma tal
concepção construtivista e interaccionista, psicólogos sociais têm desenvolvido pesquisas
sobre o papel causal desempenhado pela interacção social, sustentando, evidentemente, que
se trata de uma causalidade não unidireccional, mas "circular e progredindo em espiral"10.

A isto se acrescenta a investigação em sociologia da educação que mostra à evidência as


regularidades que pautam o insucesso escolar (fenómeno massivo, constante, precoce,
cumulativo…) e as fortes correlações entre insucesso e origem social; partindo para uma
análise que o considera como resultado de uma relação negativa entre alunos, portadores de
diversas condições sócio-culturais, e a instituição escolar. Neste quadro, o estudo aprofundado
e relacional dos estudantes, das suas personalidades e histórias pessoais, das famílias e meios
respectivos, da escola e do sistema de ensino em geral, das práticas educativas, constitui uma
abordagem central – incomensuravelmente distante porque qualitativamente distinta das
interpretações correntes de senso comum, e que psicólogos, psicólogos sociais e sociólogos (e
também historiadores ou economistas) enriquecem, a partir das perspectivas, diferentes, que
caracterizam as suas disciplinas.

Falámos de psicólogos, psicólogos sociais e sociólogos. E vamos aproveitar o triângulo algo


conflituoso que eles formam para, na linha de exposição teórica que adoptámos, mostrar mais
uma vez que seria uma ilusão nefasta pensar que as ciências sociais ultrapassaram já
cabalmente os pressupostos e preconceitos mais caracteristicamente ideológicos e de senso
comum – porque estes tendem, por razões sociais, institucionais e teóricas precisas, a ressurgir
com frequência e por várias vias na prática científica. Ou seja, a ruptura não é um processo
feito de uma vez por todas, é uma atitude e um trabalho de vigilância crítica e construção
conceptual permanente.

Quando a sociologia se constituiu como disciplina universitária, nos finais do século XIX, a
divisão consagrada do saber atribuia à psicologia o estudo das disposições – motivações,
atitudes, intenções, emoções... – características do homem, e dos actos que elas comandavam.
Parecia, pois, que competia à psicologia estabelecer as regularidades comportamentais em
que se baseariam as análises das escolhas racionais de bens e serviços – a economia –, dos

10
"A interacção permite ao indivíduo dominar certas coordenações que lhe permitem então participar em interacções mais
elaboradas que por seu turno se tornam fonte de desenvolvimento cognitivo para o indivíduo" – WILLEM DOISE, L'Explication en
Psycologie Sociade, Paris, P.U.F., 1982, pp. 63-54.
factos e das ideias passadas – a história –, das tradições e costumes populares – a etnografia.
O principal promotor do acesso da sociologia à dignidade académica, Émile Durkheim, teve de
colocar-se numa postura radicalmente anti-psicologista, até porque ambicionava, para a sua
especialidade, o mesmo tipo de totalitarismo analítico que invocavam os psicólogos.

A polémica que estalou não conheceu ainda fim. De um lado, os que sustentam que as ciências
sociais devem partir das regularidades verificáveis pelo estudo dos processos intra e inter-
individuais, e se estribam assim numa pretensa soberania do indivíduo; do outro, os que
defendem que tais regularidades só podem ser apercebidas pela análise dos factos e
instituições sociais, porque nestes se concentram as causas determinantes das condutas
pessoais. Quer dizer que nos meios especializados encontramos um debate em tudo idêntico
às querelas filosóficas, ideológicas ou de senso comum em torno do indivíduo e da
colectividade. Vimos já como esta dualidade tinha de e podia ser ultrapassada. Só que, do
ponto de vista institucional – em virtude dos interesses e compromissos que se perfilam por
detrás da divisão académica da investigação social em várias disciplinas – as resistências são
enormes.

Assim, muitas vezes se define a sociologia como o estudo das sociedades humanas e se
constrói sobre a definição um império ao qual se submetem a história, a antropologia, a
demografia e até a economia e a própria psicologia. A tradição durkheimiana vai neste sentido,
e já vimos o preço que ela paga por isso; a evacuação dos actores sociais do objecto de análise.
Por sua banda, os psicólogos costumam definir a sua disciplina como a descrição e a explicação
(de forma verificável) das condutas dos organismos – o que permite posturas analogamente
hegemonistas. O que parece caracterizar a psicologia, entretanto, é que ela situa a sua
abordagem teórica ao nível individual e privilegia os métodos experimental e clínico. Contudo,
o que entender por "nível individual"? Desde logo, individual aqui não é o "único" – trata-se de
uma prática científica e o que em cada indivíduo é estritamente único cai fora do domínio da
ciência. Depois, trata-se da análise de condutas, ou seja, de acções dotadas de sentido, que
integram elementos de vária sorte, racionais e "irracionais“, intelectuais e emotivos, pessoais e
relativos a grupos e culturas. E ainda: qualquer indivíduo é, por definição, actor social.

Por isso mesmo, os psicólogos mais consequentes (na perspectiva teórica deste texto)
sublinham o lugar de charneira da sua ciência, insistindo em que ela constantemente se cruza
com a biologia – e daí a psicofisiologia – e com a sociologia – daí a psicologia social. Só que a
ambiguidade e os equívocos não acabam aqui. A começar pela própria designação: psicologia
social ou sociologia dos actores, psicossociologia ou sociopsicologia? Na obra de síntese já
citada, Willem Dois propõe que se distinga, face a uma realidade complexa e única, quatro
níveis teóricos: o nível intra-individual (quer dizer, o estudo do modo como o indivíduo
estrutura a sua experiência do meio social); o nível inter-individual e situacional (estudo dos
processos que se desenrolam entre indivíduos considerados como intermutáveis); o nível
posicional (que tem em conta as diferenças de estatutos e de posições sociais); o nível
"ideológico" (que integra na análise as representações, crenças, valores e normas colectivos).
Não se contestando, claro, a pertinência de cada um destes níveis, o objecto próprio da
psicologia social seria a sua articulação.
Só que as correntes dominantes na psicologia social, sobretudo nos Estados Unidos (país em
que mais se desenvolveu a disciplina), têm-se limitado à análise dos dois primeiros níveis e têm
pretendido explicar as dinâmicas sociais a partir deles: o que é, ao fim e ao cabo, incorrer em
interpretações de tipo individualista. E, de facto, procuram substituir a investigação sociológica
pelo que designam de "estudo psicológico dos factos sociais" – o que no limite significaria
regressarmos à situação académica anterior à institucionalização da sociologia.

4. NÓS E OS OUTROS

A palavra "etnocentrismo" foi introduzida nos princípios do nosso século e tem servido para
designar duas atitudes intimamente relacionadas: a sobrevalorização do grupo e da cultura,
local, regional, nacional ou transnacional, a que pertencem os sujeitos – e a correlativa
depreciação das culturas e das organizações sociais diferentes; a universalização dos valores
próprios do grupo e da cultura de pertença, assumindo que esses valores constituem as
normas de referência para a avaliação de estruturas e práticas sociais diversas.

No fundo, trata-se de uma maneira de entender a relação, decisiva a todos os níveis de acção e
interacção, entre o "eu", ou mais precisamente, o "nós'' definidor da identidade de um certo
grupo, classe, etnia, nação ou área civilizacional, e os "outros" – os outros grupos, classes,
etnias, nações, civilizações. De entendê-la como relação de poder. A actividade etnocentrista é
a afirmação legitimadora, muitas vezes inconsciente, do domínio – afirmação no plano do
conhecimento e da representação simbólica. O seu núcleo não está, aliás, em rigor, na
ostentação imediata da superioridade social ou rácica – mas, mais subtilmente, na operação
de fechamento do que é cognoscível, no pressuposto de que o que vale a pena conhecer e,
portanto, o que serve de padrão único para o conhecimento dos outros, são os factos e as
ideias interiores à nossa própria área cultural, ao "nós" que é o nosso.

Daí ambiguidade da relação corrente com o etnocentrismo – talvez se possa até dizer que este
constitui o obstáculo cuja superação mais vezes se tem anunciado e cuja ressurreição, em
variados registos e ocasiões, é mais regular. De entrada, dos três tipos de interpretações que
temos vindo a analisar, ele é o que, quanto a declarações formais, mais consenso desperta. Se
os defensores de posturas naturalistas e/ou individualistas são numerosos e a si próprios se
reconhecem como tais, a atitude etnocentrista é por norma estigmatizada, pela invocação de
valores humanistas.

Por outro lado, a história surge como um repositório de exemplos da crueza inadmissível das
formas mais extremas de etnocentrismo – o racismo, o fanatismo religioso, o genocídio
colonial. A independência política da generalidade dos países do Terceiro Mundo, o fim do
colonialismo, em sentido restrito, a crescente afirmação geoestratégica do hemisfério Sul –
crescente em termos de longa duração, claro – tudo parece indicar que o domínio das nações
industrializadas sobre o mundo em vias de desenvolvimento, que havia constituído o principal
cadinho do etnocentrismo moderno, está em transformação.

Os mais avisados sustentam, contudo, que não se deve restringi-lo às suas formas históricas
particularmente extremas ou evidentes – e sobretudo, que não se deve restringi-lo aos
aspectos políticos. Porque a dominação política, económica, cultural, e a imposição de valores
alheios a populações dominadas prosseguem para lá da independência formal. Porque mesmo
as expressões mais violentas de etnocentrismo, longe de constituírem exclusivo das relações
inter-civilizacionais, persistem nas relações intra-civiIizacionais – por exemplo, nas relações
entre as nações desenvolvidas da Europa do Norte e as da periferia sulista. Porque cabe falar
também de "etnocentrismo" para as relações entre grupos diferentes da mesma sociedade –
os sociólogos falam de etnocentrismo de classe para caracterizar as expressões simbólicas e
cognitivas da dominação de classe: e qualquer investigador em trabalho de campo sente bem
os seus efeitos.

Mas fez-se ainda necessário avançar um pouco mais. Do ponto de vista da produção de
conhecimentos científicos sobre a realidade social – que é o que aqui nos interessa – cumpre
sublinhar que os obstáculos mais pertinazes se encontram com frequência nas formas não
elaboradas e inconscientes de etnocentrismo. É relativamente fácil contrariar e superar o
racismo, o fanatismo, o colonialismo, o classismo que se apresentam explicitamente, como
atitudes ideológicas e teses doutrinárias. Mas é mais difícil contrariá-los quando surgem de
forma implícita, quer dizer, não são assumidos nem elaborados, mas representam disposições
duráveis a fechar o campo do cognoscível. A propensão para o etnocentrismo constitui, ao
nível do senso comum, um factor de identificação do grupo, do "nós", um vector de
legitimação da dominação, um instrumento decisivo da luta simbólica entre os grupos. Ora, a
forma tipicamente etnocentrista de pensar por preconceitos – por ideias-feitas, que se toma
por absolutas, indiscutíveis, inavaliáveis pela análise científica –, preconceitos de toda a
espécie, de raça, de sexo, de classe, de profissão, de religião, de civilização, representa um
obstáculo no qual constantemente tropeçam os cientistas sociais: até porque tem por si a
ilusão da transparência do que nos é familiar, do que é "nosso", constitutivo da nossa
identidade de grupo. Finalmente, poderá sugerir-se que o etnocentrismo – essa resistência a
assumir que a relação entre "nós" e os "outros" contém dois pólos igualmente dinâmicos, esse
fechamento do "nós" sobre si próprio – para lá de estar intimamente articulado com os
postulados de índole naturalista e individualista (o que é claro), estará na sua base. O que é o
"naturalismo" corrente senão a tentativa de absolutizar os valores constitutivos da identidade
de certos grupos, de os impor como a "natureza humana" – e correlativamente postular a
fatalidade dos valores "negativos" dos grupos que dominamos? E o que é o "individualismo"
senão a imposição, como único quadro possível de referência, da ideologia que o Ocidente
industrializado consagrou?

Quando se fala da permeabilidade das ciências sociais ao etnocentrismo ocorrem sempre os


exemplos conhecidos da história e da antropologia. Estudando culturas diferentes da nossa
(ocidental contemporânea), diferentes porque situadas noutras coordenadas de tempo (caso
da história) ou de lugar e "estádio de evolução" (para a antropologia), as duas disciplinas eram
constantemente presas do etnocentrismo.

Os historiadores preocupam-se especificamente com o anacronismo – o seu "pecado capital",


como dizia Lucien Febvre. Caímos no anacronismo quando analisamos uma época projectando
nela os quadros mentais da nossa, quando aplicamos os nossos conceitos sem curar de testar a
sua adequação à especificidade da sociedade que estudamos – quando, portanto, postulamos
uma natureza humana universal cujas propriedades seriam as normas e os usos da civilização
em que vivemos, e postulamos uma grade conceptual, um conjunto de instrumentos
heurísticos e interpretativos de aplicabilidade igualmente universal.

Atenção, porém: confunde-se bastantes vezes a comparação, o confronto inter-epocal com o


anacronismo; ou diz-se que, como a história parte sempre do presente, das duas uma – ou não
se faz qualquer comparação e teorização, ou o anacronismo torna-se inevitável. O argumento
é, aliás, estendido a todas as formas de etnocentrismo – a única superação possível seria a
ausência de comparação e teoria. Nada mais falso. A análise histórica implica, por definição, o
diálogo do presente e dos seus valores, por via do historiador, com o passado – não há outro
ponto de vista. Ela parte, portanto, de valores que não são, geralmente, os das sociedades que
indaga, e usa instrumentos conceptuais de produção sempre recente. Se isto faz perfilar, de
imediato, o anacronismo como obstáculo, não obriga a cair nele – porque cair nele significa (e
apenas) ignorar a relatividade dos contextos sociais e querer explicar uns pela projecção de
conceitos só validados para outros11.

Da antropologia sabe-se (e o leitor recorrerá ao capítulo Vl do volume para mais


desenvolvimentos) como, até bem entrado o nosso século (e, porventura, em alguns casos
ainda agora), ela balançou entre o olhar romântico sobre o "selvagem" exótico e os serviços
prestados às administrações coloniais. Durante longas décadas, foi, assim, o estudo dos
"primitivos", daqueles que o evolucionismo colocava no estádio mais elementar – e bárbaro –
do processo civilizacional que teria culminado na cultura europeia e norte-americana; desses
"selvagens" que, numa exemplar postura etnocentrista (que, aliás, viria a abandonar), Lévi-
Bruhl dizia possuirem uma mentalidade "pré-lógica" (porque, assumindo apenas uma relação
de "participação mística" com os objectos, ignoravam os princípios de causalidade e de
contradição constitutivos do nosso raciocínio lógico). Tese cuja falsidade variadíssimas
pesquisas se encarregariam, evidentemente, de demonstrar.

Se, historicamente, antropologia e história foram das disciplinas sociais mais permeáveis ao
etnocentrismo – contudo, elas representam também instrumentos decisivos para a ruptura
com ele. Não há, aqui, contradição. Estudando, por definição, culturas alienígenas, os riscos de
permeabilidade aumentam – mas cresce ainda a possibilidade de mostrar analiticamente a
relatividade dos contextos sociais e contrariar, assim, a universalização de valores e o
fechamento do campo de conhecimento característicos da atitude etnocentrista.

Para mostrá-lo, recordemos um debate já clássico da ciência económica em que a contribuição


da história e da antropologia económicas se revelou exemplar. A questão de fundo era esta: a
"teoria económica" – quer dizer, o corpo de conceitos, substantivos e processuais, construído
na Europa moderna pela análise das economias liberais e industriais à maneira inglesa – será
de aplicabilidade universal? A resposta tradicional dos neo-clássicos era positiva: ou, melhor

11
Para dar o exemplo mais célebre: no seu Le Probléme de l’lncroyance au I6ème Siècle. La Religion de Rabelais
(Paris, Albin Michel, 1942), Lucien Febvre paste em cruzada contra a imagem feita de que Rabelais teria sido um
ateu, um precursor dos livres-pensadores – mostrando, justamente, como o conceito de ateísmo carece de sentido
pano seculo XVI, que a descrença nele evidenciável nada tinha de análogo com a do racionalismo contemporâneo.
dizendo, para eles esta questão não fazia sentido. Sendo a economia, de acordo com a célebre
definição de Lionel Robbins, "a ciência que estuda o comportamento humano como uma
relação entre fins e meios escassos com usos alternativos" – o modelo teórico que construia
partia de postulados universais, a respeito das motivações básicas e das consequências da
acção humana em situação de escassez, e princípios derivados desse modelo poderiam ser
aplicados a qualquer regime económico. Embora os keynesianos abandonassem já a ideia de
uma teoria económica, global e coerente, foram os antropólogos, historiadores e economistas
do desenvolvimento – quer dizer, especialistas de formações económicas não-industriais (pelo
menos à nossa maneira) – que colocaram a questão, respondendo-lhe pela negativa, em
ruptura clara com a economia clássica e evidenciando o etnocentrismo nesta implicado.

A "teoria económica", argumentam, consolidou-se na análise de casos em que, em virtude da


acção do mercado, a economia se encontrava desvinculada da estrutura social, em que,
portanto, se tomava legítimo, até certo ponto, separar o económico do não-económico. Ora,
essas economias constituem uma excepção, um caso especial: regra geral, "a economia do
homem encontra-se submergida nas suas relações sociais", nas palavras de Karl Polanyi. Por
isso mesmo, seria impossível estudar as economias pré-industriais por mera transposição dos
conceitos e proposições validados na análise da industrialização. A não ser que queiramos,
como dizia ironicamente o antropólogo Melville Herskovits em 1940, acreditar em leis que
constituem "uma média estatística baseada num único caso"12.

Não se pense, contudo, que a propensão a universalizar os nossos quadros mentais e a avaliar
outras formas de conduta tornando-os por padrões de referência é fonte apenas na análise
das economias históricas ou "primitivas". No estudo das economias camponesas e sobretudo
nas questões ligadas ao desenvolvimento, economistas e sociólogos correm constantemente o
risco de assumir consciente ou inconscientemente preconceitos etnocentristas. O debate
sobre a aplicabilidade dos modelos e das políticas ensaiadas no Norte industrializado às

12
Para mostrar como as acções especificamente económicas estão, nas sociedades pré-liberais, combinadas com
condutas de parada, relações sociais, redes de alianças políticas, motivações e normas religiosas, etc. – e, assim, não
se pode falar em rigor de "acções especificamente económicas"; e como os princípios e as regras de
comportamento económico a que estamos habituados não são universais, os antropólogos e historiadores invocam
vários exemplos, entre os quais o kula e o potlach são dos mais famosos. O primeiro é um sistema de trocas,
característico de certas ilhas da Melanésia, que consiste em transacções que não são propriamente comerciais,
porque circulam apenas objectos de adorno desprovidos de utilidade, e porque, sob pena de exclusão, cada
interveniente deve ter no fim de cada ciclo os objectos que tinha no seu início. A função de um tal sistema é
assegurar as condições para que as trocas comerciais efectivas tenham lugar – embora estejam sempre
estritamente separadas, estas ocorrem ao lado das trocas "nobres". O potlach é característico dos Índios do
Noroeste americano, mas práticas semelhantes foram reconhecidas em muitas outras culturas. No contexto de
competições por posições de prestígio e autoridade, um dado chefe ou notável oferecia solenemente certas
riquezas a um rival ou destruia-as à sua frente para desafiá-lo, humilhá-lo ou marcar laços de dependência. Não
podendo recusar o dom, o rival ou não retribuia e confessava assim a sua inferioridade social, ou retribuia o dom
oferecendo ou destruindo mais bens do que os que recebia. O potlach envolve, assim, formas de consumo e
investimento que escapam à lógica que é a nossa – daí que, no passado, economistas e políticos canadianos,
argumentando que se tratava de puro desperdício de riqueza, tenham tentado eliminá-lo.
(diversas) situações do hemisfério Sul, constitui um dos grandes debates científicos da
actualidade13.

5. AS CONDIÇÕES DA RUPTURA

Um dos mais importantes princípios de explicação em ciências sociais estipula que a razão de
ser dos factos sociais deve ser procurada em outros factos sociais – e, consequentemente,
implica a permanente relativização das propriedades desses factos e a afirmação, de método,
de que são sempre explicáveis através de sistemas (lógicos) de relações entre elas. Esta
postura determinista – não no velho sentido do determinismo absoluto, mas no sentido em
que toda a ciência, porque ciência, o é – desperta fortíssimas resistências, a vários níveis, quer
ao nível do conhecimento prático dos actores sobre as Situações em que estão envolvidos,
quer ao das formas mais elaboradas de representação ideológica. Seria, evidentemente,
abusivo pensar que as visões do mundo de senso comum e as ideologias, por serem
interpretações não-científicas da realidade, são necessariamente anti-científicas. Mas o certo é
que os princípios cruciais da pesquisa social põem em causa alguns dos mais arreigados
preconceitos e alguns dos vectores mais decisivos de ideologias correntes: nomeadamente, a
ideia de transparência de certos factos, que seriam imediatamente compreensíveis, e da
opacidade de outros, por natureza ininterpretáveis (os "dons", por exemplo); e a ideia de que
certos atributos e situações estão para lá dos determinismos sociais, porque se devem a
causas metassociais – sejam elas a vontade de Deus ou os interesses do Estado, o génio de
certos homens ou a natureza biológica, a civilização ou o livre-arbítrio.

O choque entre a argumentação típica de senso comum e as exigências analíticas do trabalho


de investigação é, assim, muito frequente – e assume tanta maior intensidade quão centrais
para a coerência e a reprodução dos saberes práticos ou das matrizes ideológicas são as
questões em debate. Focamos aqui as que pensamos ser, no actual contexto sócio-cultural e
teórico das sociedades ocidentais, as mais importantes: as relações entre natureza e cultura,

13
Entre as peças mais célebres das polémicas aqui recordadas, leia-se: KARL POLANYI, "A nossa obsoleta
mentalidade mercantil" (1947), trad. portuguesa in Revista Trimestral de Histórias e Ideias, nº 1, 1978; DUDLEY
SEERS, "Os limites do caso especial” (1963), trad. no nº11° 2, 1978, da mesma revista. Segui de perto a
apresentação crítica de ROBERT ROWLAND, "O conceito de capital e a antropologia económica: contribuição à
crítica do etnocentrismo económico", publicado no bº 1 da revista citada – que me parece colocar bem o problema
no que respeita às relações entre antropologia económica e economia: "é impossível analisar uma economia
primitiva sem formular questões económicas, e [...], em primeira instância, é à economia que compete fornecer
estas questões. Mas isto não significa que conceitos económicos possam ser transpostos de maneira acrítica de um
tipo de sociedade para outro, porque é preciso desconfiar dos pressupostos invisíveis que estão subjacentes a esses
conceitos" (pp. 37-38). Escrevi acima que nas economias de mercado se torna legítimo até certo ponto separar o
económico do não-económico. Não posso entrar aqui na discussão dessa restrição mas lembro que ela constitui um
problema perante o qual economistas e sociólogos se encontram profundamente divididos – e no contexto do qual,
conto já vimos a propósito do "naturalismo", o uso excessivo da cláusula coeteris paribus é uma falsa solução. Ver,
ainda, DUDLEY SEERS, "Os indicadores de desenvolvimento: o que estamos a tentar medir?" (1972), trad. in Análise
Social, vol. XV, nº 60, 1979.
entre indivíduos e sociedade, entre grupos e culturas diferentes. Mas poderiam ser invocadas
mais – interessa sim perceber a lógica da argumentação não-científica para poder superá-la.

Já que é de uma ruptura frontal e global que se trata. A pesquisa científica, sob pena de se
negar a si própria, deve partir de princípios e problemáticas e deve utilizar conceitos e
proposições claramente distintos dos que estruturam o conhecimento comum. E, portanto,
deve pôr sempre este em dúvida (pelo menos metódica). Ruptura não significa superação
"absoluta": cremos bem que tal não é possível. As ciências contêm sempre elementos
ideológicos mais ou menos explícitos, repousam sobre certas pressuposições de valor.
ldeologias e saberes práticos não são teorias pré-científicas, que o progresso científico se
encarregaria de eliminar e em relação às quais os especialistas pudessem estabelecer
fronteiras intransponíveis – são, antes, formas de racionalização do mundo, formas de
classificar os factos, as pessoas e os objectos, instrumentos de coesão e de tensão social, e aí
radica precisamente a sua eficácia. E não se pense que estes são problemas exclusivos dos
estudos sobre grupos humanos. Basta pensar na biologia (mas demonstrações análogas foram
feitas para a física, por exemplo) para notar que em geral, com maior ou menor intensidade,
por estas ou aquelas vias, todas as disciplinas científicas estão sujeitas à influência de
elementos simbólico-ideológicos.

Contudo, a posição que concluiria pela impossibilidade ou pela inutilidade da ruptura é


também falsa. Se é permeável aos obstáculos epistemológicos de senso comum, a pesquisa
científica dispõe, por outro lado, de meios para analisá-los, criticá-los e superá-los. Aliás, é na
exacta medida em que toma consciência da ilegitimidade do sonho oitocentista de uma futura
era científica, sem ideologias nem religiões; em que toma consciência de que constitui apenas
uma (particularmente elaborada, decerto, e continuamente validada) forma de apropriação de
um real inesgotável: é nessa medida que a ciência pode reivindicar com mais sentido que, no
seu domínio, são inaceitáveis princípios e modelos que não obedeçam às regras de construção
e validação que ela própria vai definindo. Se e porque reconhecemos que as teorias científicas
implicam elementos ideológicos e axiológicos, afirmamos que: a) é possível designá-los; b) é
possível pô-los à prova da análise científica e, portanto, exercer sobre eles uma permanente
vigilância crítica; c) tais elementos são, assim, eles mesmos transformados pela prática
científica que condicionam. Nesta base, são inadmissíveis em ciência preconceitos
(proposições indemonstráveis por dedução lógica ou por teste teórico-empírico, e sustentadas
apenas em nome de convenções ou imperativos), como são inadmissíveis, como axiomas,
hipóteses ou leis, afirmações puramente ideológicas (isto é, que não possam ser trabalhadas
pela própria pesquisa).

A ruptura com o senso comum não constitui, por tudo isto, um trabalho realizado, de uma vez
por todas, na fase inicial de investigação; nem uma operação terminológica, que contraporia à
vulgaridade e polissemia das noções correntes o esoterismo da linguagem especializada, de
sentido supostamente unívoco; nem consiste, muito menos em evacuar as "evidências" do
senso comum do objecto de análise, postulando que as vivências dos actores não interessam à
ciência. Representa, outrossim, um processo continuado e sempre incompleto. E um processo
em que a ciência se questiona a si própria, porque questionada por valores, doutrinas, saberes
práticos. Mesmo quando estes implicam obstáculos à produção de conhecimentos sobre o
social, o facto de interrogarem ou contestarem a pesquisa é, ainda assim, positivo – e
imprescindível para o desenvolvimento desta.

Temos usado o singular para falar de ciência – mas por razões de comodidade de exposição. Já
vimos com abundância quão ilusório seria querer contrapor ao senso comum, tomado por
corpo homogéneo de preconceitos, uma "Ciência" dotada de unidade analogamente mítica. As
interpretações mais caracteristicamente ideológicas da realidade ramificam-se no interior das
práticas científicas. Romper com aquelas implica, portanto, também romper com as
problemáticas e as teorias que, nas diversas disciplinas, as prolongam. O que, evidentemente,
só se faz em nome de outras problemáticas e outras teorias.

Chegamos, assim, ao nó da questão. Na linha de Gaston Bachelard, distinguimos no processo


de produção de conhecimentos científicos três "actos epistemológicos" - a ruptura, com as
"evidências" de senso comum que possam constituir obstáculos àquele processo; a
construção, do objecto de análise, das teorias explicativas; a "verificação", da validade dessas
teorias pelo seu teste, quer dizer, pelo confronto com informação empírica. Os três são
indissociáveis. E a construção teórica desempenha, nesta relação, um papel central. Do mesmo
modo que os processos de verificação dependem das teorias que verificam, a ruptura vale o
que valer a construção – quer dizer, a problematização e a teorização – que a suporta. Ou
então, se quisermos falar em paradigmas – articulando os três termos numa só unidade de
princípios, perspectivas, conceitos, modelos teóricos e resultados empíricos cruciais – diremos
que cada paradigma teórico rompe (ou não rompe) a seu modo com as pré-noções de senso
comum e os operadores ideológicos que obstem, do ponto de vista desse paradigma, à
produção de conhecimentos científicos sobre o social.

Falamos, em certa extensão, de paradigmas transdisciplinares, ou de formas de fazer a


ruptura, a construção e a verificação comuns a paradigmas estabelecidos na história, na
antropologia, na geografia, na economia, na sociologia, etc. E, neste sentido, a atitude
problematizadora própria da ciência e os princípios de que parte a pesquisa social constituem
os instrumentos fundamentais da ruptura.

Em primeiro lugar, uma operação axial consiste na relativização dos fenómenos humanos. Ao
mostrar que estes não podem ser imputados a qualquer absoluto, não podem ser explicados
por propriedades universais, e só podem ser analisados nas coordenadas de tempo e de lugar
e nos contextos sócio-históricos em que se integram – a relativização inerente à abordagem
científica invalida, desde logo, os pressupostos naturalistas e etnocentristas, e permite situar o
nosso trabalho bem para lá deles. Perceber que as regras de parentesco melanésias são
radicalmente diversas das dos Portugueses contemporâneos, e que estas, por sua vez, diferem
das dominantes na Alta Idade Média, representa um ponto de partida indispensável para, por
exemplo, a história e a sociologia da família.

Em segundo lugar, a relacionação dos factos constitui uma outra operação decisiva, que
também ela contribui para a superação dos argumentos de senso comum invocados,
nomeadamente dos de tipo individualista. Os factos sociais só podem ser explicados por
sistemas de relações entre eles – a análise produtiva é, portanto, a que estabelece correlações
(ou seja, relações empiricamente testáveis) entre os fenómenos que estuda. Perceber, por
exemplo, que há correlações estreitas entre o nível de instrução dos pais e a frequência dos
museus pelos filhos constitui um ponto de partida indispensável para a história e a sociologia
de arte (aliás, foi este o principal alcance da revolução conduzida por Durkheim, quando
mostrou que as taxas de suicídio eram diferentes segundo a situação familiar e a confissão
religiosa).

Em terceiro lugar, uma das condições cruciais para a superação das concepções do senso
comum e ideológicas deriva precisamente do facto de que a pesquisa social pode tomá-las
objecto da sua própria análise – quer dizer, pode submetê-las aos seus próprios mecanismos
de controlo. Tal constitui, é bom não esquecê-lo, um passo indispensável para a ruptura: é
porque é capaz de pôr sistematicamente em causa os conhecimentos adquiridos, quer por
saber prático, quer por vinculação doutrinária, quer mesmo por investigação científica – é
porque o questionar, o problematizar, representa a própria essência do seu trabalho, que a
ciência é capaz de continuamente romper, no seu domínio, com as noções que não se
adequem às suas negras.

Ruptura nunca completa, decerto, nem unitária, que, estabelecendo fronteiras entre prática
científica, de um lado, e senso comum, do outro, divide também as práticas científicas. Mas
será talvez redundante escrever que sem esta continuada e conflitual separação de territórios
não haveria ciência.

ORIENTAÇÃO BIBLIOGRÁFICA

A principal análise sobre o problema da ruptura continua a ser a de PIERRE BOURDIEU, JEAN-
CLAUDE CHAMBUREDON e JEAN-CLAUDE PASSERON, Le Métier de Sociologue. Préalables
Epistémologiques, 2ª ed., Paris – Haia, Mouton, 1973 (1ª ed., 1968). Em Portugal, o texto
fundamental pertence a JOSÉ MADUREIRA PINTO: "Epistemologia e didáctica da sociologia",
Revista Crítica de Ciências Sociais, n° 14, 1984. As considerações dos autores a propósito da
sociologia podem e devem ser alargadas às restantes ciências sociais. Os estudos de PIERRE
BURDIEU, NORBERT ELIAS e LUCIEN FEBVRE citados nas notas do texto constituem excelentes
demonstrações de como se superam as interpretações de senso comum no quadro de
pesquisas empíricas determinadas. Os ensaios do antropólogo EDMUND LEACH, sobre
"Natureza/Cultura" e sobre "Etnocentrismos", publicados na Encoclopédia Einaudi (vol. V da
edição portuguesa – Imprensa Nacional, 1985), fornecem abundante suporte teórico e
empírico para o aprofundamento das respectivas temáticas.

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