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A potencialidade da etnografia:
uma experimentação
1 patricia.osorio@gmail.com
2 gvstavvs@gmail.com
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aldeia, pela comunidade, pela cidade ou pelo ciberespaço? O foco das
pesquisas antropológicas está nos encontros, nos desencontros, enfim,
na experiência vivida.
Na busca pelo Outro, a etnografia coloca-se como um instru-
mento primordial. Neste sentido, se foi dito anteriormente que a
Antropologia foca a experiência vivida, a etnografia também cons-
titui-se como experiência. Mas, falaremos desta questão um pouco
mais adiante. Agora, é importante elencarmos alguns aspectos a fim
de percebermos o significado da etnografia em sua potencialidade.
Talvez esteja aqui a maior contribuição que os antropólogos possam
oferecer a outras áreas do saber. E talvez esteja aqui a potencialidade do
diálogo interdisciplinar, principalmente entre antropólogos e poetas,
antropólogos e cineastas, antropólogos e escritores, antropólogos e
comunicólogos.
O intuito não é o de delimitar a etnografia à Antropologia, mas
o de precisar perspectivas interessantes nas quais possamos entendê-
la. Na Antropologia, a etnografia se constitui num fazer, mas é ainda,
ser e estar. Isto é essencial na medida em que cada vez mais este é um
termo que tem se diluído e penetrado em diversos setores. O proble-
ma não está na diluição, mas no uso pragmático do fazer, ser e estar
etnográfico. É preciso ter atenção ao uso pragmático da etnografia.
José Guilherme Magnani em “Etnografia como prática e experiência”
alerta para o interesse crescente pela etnografia em contextos de pes-
quisas de mercado, por exemplo. A utilização da etnografia para fins
pragmáticos pode trazer uma série de mal-entendidos, uma vez que
causa a descontinuidade entre o método e o esquema conceitual que
a coloca em ação (Magnani, 2009, p. 132).
Não é sem razão que nenhum antropólogo publicou um manual
de como fazer etnografia3. Além da questão levantada no parágrafo
anterior, ou seja, da conexão entre o fazer e o pensar etnográficos que
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traz uma complexidade cujos manuais não conseguem dar conta, há
outras questões envolvidas. Tais questões referem-se ao fato de enten-
dermos a etnografia como uma experiência, a qual para sua realização
não basta seguir os passos preconizados em manuais técnicos que
ditam o como fazer.
Quais perspectivas são importantes para nos aproximarmos do
ato etnográfico numa acepção não pragmática? Poderíamos pensar
em três panoramas fundamentais para definirmos a etnografia:
1. A etnografia como um instrumento metodológico, um modo
de construção do conhecimento alicerçado na empiria. No
caso da Antropologia, um recurso utilizado para se apro-
ximar do ponto de vista do Outro e conhecer os universos
pesquisados. A etnografia como ferramenta metodológica
pressupõe o trabalho de campo e nele uma série de técnicas
como a observação, observação participante, questionários,
entrevistas, etc.
2. A etnografia como um modo de pensamento, um empenho
intelectual especial, como diria Clifford Geertz, o esforço
para a descrição densa. O esforço que nos permite diferen-
ciar uma piscadela marota de um tique nervoso. O objeto da
antropologia localiza-se em meio à “hierarquia estratificada
de estruturas significantes em termos das quais um gesto
é produzido, percebido e interpretado e sem as quais ele
de fato não existiria” (Geertz, 1989, p. 17). Nossos dados
são nossa própria construção das construções de outras
pessoas (p. 19). “A análise cultural é (ou deveria ser) uma
adivinhação dos significados, uma avaliação de conjunturas
(...) e não a descoberta do Continente dos Significados” (p.
30-31).
3. A etnografia como uma narrativa. Além de ser um recurso
metodológico, um esforço intelectual particular, a etnografia é
também um produto. Em sua proposta de escrever cultura(s),
os etnógrafos elaboram narrativas, TEXTOS que comportam
mundos. Cabendo mundos, cabem também nas etnografias,
as representações, criações e imaginações dos etnógrafos.
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Pelo exposto acima, a etnografia pode ser entendida como
uma experimentação. Uma experiência repleta de fluxos que estão
inter-relacionados no ato etnográfico. O antropólogo Helio Silva
(2009) os descreve como: o andar, o ver e o escrever. A etnografia
é assim o relato de um percurso. O andar na experiência etno-
gráfica pressupõe um percurso marcado pela intersubjetividade,
pelas interações estabelecidas por meio de acordos e entreveros
advindos das andanças em campo. O ver na experiência etnográ-
fica significa que estamos observando uma cena da qual fazemos
parte. Segundo Silva uma cena etnográfica só é confiável quando
o etnógrafo se inclui na paisagem. O empreendimento etnográfico
exige a consciência de si: a projeção da identidade e os significados
que o etnógrafo adquire na interlocução, na interação (p. 181). Isto
demonstra o caráter duplo que a observação etnográfica compor-
ta: um caráter subjetivo, uma vez que observamos uma cena da
qual fazemos parte; e a noção objetiva da presença, a consciência
de si (p. 180). Finalmente, para o autor, o ato de escrever envolve
uma tensão em campo: observar e participar, reter, memorizar e
colocar no papel o que observou e aquilo de que participou. A
escrita modela a matéria da visão, da audição, do olfato, do tato,
do paladar, “mas sobretudo as sensações compósitas, as percepções
produzidas (...) pelos cruzamentos áudio-táteis, palato-visuais ...”
(p. 182-183). Andar, ver e escrever são fluxos que envolvem o pes-
quisador em campo e que fazem parte de seu percurso. Andar, ver,
escrever, influem, fluem para dentro; inspiram, sugerem e exercem
influência na produção etnográfica.
O que queremos dizer é que pensar a etnografia como experiência
coloca o papel do etnógrafo para além da reprodução do discurso
do Outro. Utilizar a etnografia como uma ferramenta metodológica
significa sublinhar o caráter reflexivo, intersubjetivo e interpretativo
da pesquisa. A etnografia representa a ação, ela configura essa ação.
Como sugere Cornelia Eckert e Ana Luiza Rocha (1998), a etnografia
é uma poiesis, ou seja, a enunciação da narrativa do etnógrafo, sendo
uma solução poética para o paradoxo do método: fazer convergir o
tempo da ação e o tempo da narração.
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Antropologia e literatura: modelando narrativas
4 Um bom exemplo para percebermos tal situação são os diários de campo utilizados para
o registro dos dados coletados. Ver Um diário no sentito estrito do termo de Bronislaw
Malinowski.
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da etnografia: que não é um amontoado de dados, informações a
serem analisadas, interpretadas; mas uma discursividade construída
a partir de uma relação (Gonçalves, 2008, p. 194). A produção etno-
gráfica e imagética não parte daquilo que o antropólogo filma, e sim
do que é construído a partir da relação propiciada pela pesquisa. A
produção não se esgota nas imagens que mostra, mas no processo de
sua realização (p. 190). Rouch é uma das vozes e não o dono da voz.
No ato etnográfico há a constituição de uma relação e uma ênfase
na presença consciente. O conhecimento advém da explicitação da
relação entre pesquisador e pesquisado, onde o objetivo é mostrar
o que as pessoas pensam sobre si mesmas a partir da relação com o
etnógrafo. Dentro desta perspectiva, a câmera e o que ela captura não
é um mero instrumento de trabalho e de coleta de dados, mas uma
das condições do diálogo5.
Aqui retomamos o debate sobre realidade e ficção. Na experi-
mentação proposta por Rouch, a ficção é um modo de penetrar a
realidade. A verdade é construída pelo cinema, pela etnografia. Tudo
isso porque as realidades sociais para Rouch são as narrativas pelas
quais são representadas. Retomando o título da obra de Gonçalves, o
real sempre é imaginado.
O escritor e o etnógrafo
A estrada nova fica para trás. E com ela os tristes campos carboni-
zados. Daqui a Cuiabá, por todo este perímetro só tocos de árvores
queimadas, tudo negro, tudo queimado, nada em pé, só devastação
e destruição. Nem pássaros, nem coisa viva, nem nada. Entram
numa região diferente: aqui crescem grandes árvores onde ninguém
tocou. Direção a Rondônia, a Vila Bela, tudo diferente. Uma hora
5 No entanto, Gonçalves (2008, p. 63) alerta para o fato de que a antropologia compar-
tilhada não deve ser entendida a partir de um romantismo simplista, uma vez que a
presença do antropólogo em campo produz tensões, conflitos e discordâncias sobre a
produção etnográfica.
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depois quando já está quase de noite, escurecendo já, embicam num
riozinho, onde a estrada se acaba, mas continua do outro lado. E
agora, como atravessá-lo? A gasolina está também ao fim. E a Kombi
velha está com problemas no motor que Palinuro, mecânico velho,
conhece. Conhece desde tudo por aqui. Foi um dos operários que
trabalhou nesta estrada, nos idos de 60. E ligou o canal sueco que
vinha salmodiando durante todo este tempo (Dicke, 2006, p. 55).
6 Cabe lembrar que não estamos excluindo sua condição “etnográfica”, mas dando atenção
ao fato de que foi escrito inicialmente como conto literário.
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o antropólogo como autor, acaba chamando a etnografia de mula, um
gênero que se move tanto sobre a linguagem científica quanto sobre
a literária; mas que, sem dúvida, se embriaga e se mantém torpe nos
terrenos da arte.
A aproximação da etnografia com a literatura está no escrever,
na atitude de colocar sobre o papel signos culturais experimentados.
O etnógrafo, assim como o escritor, assume a palavra como tradução
do mundo. A tradução está vinculada à apreensão dos fenômenos, à
percepção do etnógrafo que, em campo, acaba sofrendo e exercendo
influência: seus olhos, ouvidos e o próprio caminhar são instrumen-
tos de imersão no campo que, constantemente sofrem e produzem
sentido. A palavra-escrita, surge como um encerramento do campo e
o retomar da vida acadêmica. O campo ficou, mas ele é estendido até
o gabinete, ao mundo acadêmico onde o pesquisador busca escrever
seus relatos (GEERTZ, 2009, p. 170).
O produto final etnográfico, afastado do campo e submetido
aos filtros subjetivos do pesquisador, nunca buscará a verdade, tão
pouco o real do ponto de vista cientificista: sua pretensão, longe da
visão objetiva que tende a esquecer que “a ciência busca tratar com
precisão uma realidade imprecisa” (Demo, 2001, p. 48), está centrada
na transcriação. Uma busca pelo Outro que é mediada por um con-
fronto de visões e experiências particulares, no qual o pesquisador
acaba inventando a cultura estudada fazendo constantes analogias
com sua própria dimensão de mundo (Wagner, 2010, p.40).
O etnógrafo sempre escreveu o discurso social, elaborando ver-
dadeiros “compêndios romanceados” sobre a cultura estudada; deste
modo, por que não admitir escrevê-lo em forma de conto ou romance,
admitindo a ficção como parte da construção científica?
Geertz toca num termo interessante e provocativo, chamado
“ficção realista”, como um “texto imaginativo sobre pessoas reais,
em lugares reais e em épocas reais” (GEERTZ, 2009, p. 184); ou seja,
um texto fictício que teria como base um texto cultural. A própria
linguagem cinematográfica, como o cinema experimental de Jean
Rouch, se aproveita desta “ficção real”. Na ficção realista podemos
traçar uma comparação significativa com o romance, e nos orientar
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na busca por um novo produto etnográfico.
O romance, mais do que um produto narrativo voltado para o
entreter, é um gênero do discurso7 complexo, carregado de múltiplas
vozes culturais, sendo uma expressão discursiva altamente elaborada;
ele, segundo Bakhtin, é
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acentua sua estilística textual tal qual Joseph Conrad8. No caso, sua
função estaria voltada à ciência, mas necessariamente não excluiria as
outras devido à multiplicidade subjetiva do próprio texto.
Uma visão inversa nos mostra o antropólogo Roberto DaMatta
(1983) que atribui o título de “etnógrafo” a vários autores da literatura
brasileira, devido à visão peculiar destes na apresentação da cultura
brasileira, como é o caso de Lima Barreto e Érico Veríssimo. Tal visão,
assim como a apresentada no parágrafo anterior apenas nos faz voltar
o pensamento para a “ficção realista” e reconhecê-la, não como algo
inovador, mas real e presente no nosso contexto. A função, o interlo-
cutor e o contexto são explorados em todo ato de escrita – por todo
escritor, seja de ficção ou não – marcando o texto com a posição ética
e estética daquele que escreve.
O “etnógrafo ficcionalista”, sabendo destas dimensões paradoxais
e plásticas da linguagem, poderia construir sua visão de realidade e
dar voz aos seus “informantes” os tornando comentadores do seu
próprio discurso. Equivaler o discurso não utilizando os enunciados
dos informantes (como citação), mas utilizando destes enunciados
para construir outros, seria uma maneira de reconhecer a ficção como
parte do texto científico e assumir a linguagem como um produto de
diálogo acompanhado de alteridade.
O ato de escrever ficção pelo pesquisador possibilitaria uma
abertura conceitual, transformando o pesquisador num fabulador,
num contador de história que conseguiria desnudar a si mesmo no
contato com o Outro e com a cultura visitada. A imaginação sempre
foi um veículo de experimentação do homem, pois nela nos inserimos
para encontrar o real e as possibilidades do real. O ato de imaginar,
de criar, leva o pesquisador a uma reflexão maior de suas próprias
atitudes.
E já que estamos falando de imaginação, por que não imaginar
um produto etnográfico que seja elaborado a partir de uma etnografia
entendida como recurso metodológico, como uma narrativa, mas
8 Uma análise sobre as aproximações entre Malinowski e Conrad foi feita por James
Clifford (2008) em A experiência etnográfica. Ver capítulo “Sobre a automodelagem
etnográfica: Conrad e Malinowski”.
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acima de tudo como uma experimentação? A imersão no campo, a
coleta de dados sistemática poderia fluir em uma experimentação
metodológica em que a etnografia tenha como um de seus produtos,
a produção de contos literários.
A experimentação imaginada coloca-se como uma possibilidade
de construção significativa da “realidade” pautada tanto na visão do
pesquisador como na visão dos “informantes”, ou seja, dos tradutores
culturais que são modificados/atingidos pelo pesquisador em campo.
Uma construção que tentará escrever conjuntamente com os tradu-
tores, contos literários que possam revelar a cultura estudada, dar voz
a esses sujeitos que vivem e experimentam a própria cultura, além de
demonstrar que a vida pode ser transcriada pela literatura; ou melhor,
demonstrar que arte e vida se entrecruzam, formando nossa própria
maneira de ver a realidade.
A ficção realista, longe de ser um produto inovador ou até mes-
mo um manual “salva-vidas”, possibilita problematizar a visão do
encontro, desnudando a posição ética e estética do autor perante
sua construção textual da cultura estudada. Clarificar a função – ou
a hibridização dela, no caso da ficção realista – permite incluir o et-
nógrafo como parte da paisagem, podendo se inserir como uma das
vozes do coro e não como a única voz.
É importante repetir que algumas das observações presentes
neste texto já foram (e ainda são) constantemente acentuadas dentro
da teoria antropológica e literária; mas seu eco significativo ainda
reverbera no tempo e a reflexão constante sempre se faz presente de
maneira quase inerente. Talvez se assumirmos a ficção como parte da
realidade, poderíamos – além de admitir a realidade como um todo
complexo e imensurável – produzir textos etnográficos mais literários
e textos literários mais etnográficos.
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