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A construção narrativa da alteridade:

por um diálogo entre antropologia e literatura


Patricia Silva Osorio1
Gustavo José Jordan Prado2

(...) alguma coisa une o estudo antropológico ao


texto de ficção: ambos falam do Outro e elaboram
um discurso sobre a alteridade
Milton Hatoum.

A intenção do artigo é a de provocar reflexões sobre o acionamen-


to de ferramentas metodológicas construídas a partir de um diálogo
entre Antropologia e Literatura, mais especificamente, entre um dos
pilares da Antropologia, a etnografia, e a obra literária. Alertamos os
leitores para o fato de que as questões aqui trabalhadas não são novas.
Vários antropólogos (como Clifford Geertz e George Marcus) e escri-
tores (como ilustra a epígrafe de Milton Hatoum que abre este artigo)
já abordaram tais relações. Assim, nosso propósito não é inovador, mas
tão somente o de realizar uma compilação de alguns destes autores
e reforçar a potencialidade da produção de textos etnográficos mais
literários e de textos literários mais etnográficos.

A potencialidade da etnografia:
uma experimentação

Desde a sua consolidação como ciência na segunda metade do


século XIX, a Antropologia se dedica a uma busca: a busca pelo Ou-
tro. Esteja este Outro nas ilhas Trobriand, nos prédios conjugados de
Copacabana ou mesmo no espaço virtual. A busca equivale à apro-
ximação do ponto de vista do Outro, à apreensão do saber local, à
identificação e tradução de formas locais, e ainda ao “olhar de perto
e de dentro”. As perguntas são: como os atores sociais transitam pela

1 patricia.osorio@gmail.com
2 gvstavvs@gmail.com

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aldeia, pela comunidade, pela cidade ou pelo ciberespaço? O foco das
pesquisas antropológicas está nos encontros, nos desencontros, enfim,
na experiência vivida.
Na busca pelo Outro, a etnografia coloca-se como um instru-
mento primordial. Neste sentido, se foi dito anteriormente que a
Antropologia foca a experiência vivida, a etnografia também cons-
titui-se como experiência. Mas, falaremos desta questão um pouco
mais adiante. Agora, é importante elencarmos alguns aspectos a fim
de percebermos o significado da etnografia em sua potencialidade.
Talvez esteja aqui a maior contribuição que os antropólogos possam
oferecer a outras áreas do saber. E talvez esteja aqui a potencialidade do
diálogo interdisciplinar, principalmente entre antropólogos e poetas,
antropólogos e cineastas, antropólogos e escritores, antropólogos e
comunicólogos.
O intuito não é o de delimitar a etnografia à Antropologia, mas
o de precisar perspectivas interessantes nas quais possamos entendê-
la. Na Antropologia, a etnografia se constitui num fazer, mas é ainda,
ser e estar. Isto é essencial na medida em que cada vez mais este é um
termo que tem se diluído e penetrado em diversos setores. O proble-
ma não está na diluição, mas no uso pragmático do fazer, ser e estar
etnográfico. É preciso ter atenção ao uso pragmático da etnografia.
José Guilherme Magnani em “Etnografia como prática e experiência”
alerta para o interesse crescente pela etnografia em contextos de pes-
quisas de mercado, por exemplo. A utilização da etnografia para fins
pragmáticos pode trazer uma série de mal-entendidos, uma vez que
causa a descontinuidade entre o método e o esquema conceitual que
a coloca em ação (Magnani, 2009, p. 132).
Não é sem razão que nenhum antropólogo publicou um manual
de como fazer etnografia3. Além da questão levantada no parágrafo
anterior, ou seja, da conexão entre o fazer e o pensar etnográficos que

3 Poderíamos pensar em Manual de Etnografia, livro publicado em 1947, de Marcel Mauss.


A obra é uma compilação de notas de aulas e seminários do antropólogo francês. Ao
contrário do que o título possa sugerir, o leitor não encontrará conteúdo análogo ao
que nos deparamos nas estantes de livrarias, principalmente em seções intituladas de
Metodologia: livros ensinando a fazer “etnografia”, “trabalho de campo” e “observação
participante”.

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traz uma complexidade cujos manuais não conseguem dar conta, há
outras questões envolvidas. Tais questões referem-se ao fato de enten-
dermos a etnografia como uma experiência, a qual para sua realização
não basta seguir os passos preconizados em manuais técnicos que
ditam o como fazer.
Quais perspectivas são importantes para nos aproximarmos do
ato etnográfico numa acepção não pragmática? Poderíamos pensar
em três panoramas fundamentais para definirmos a etnografia:
1. A etnografia como um instrumento metodológico, um modo
de construção do conhecimento alicerçado na empiria. No
caso da Antropologia, um recurso utilizado para se apro-
ximar do ponto de vista do Outro e conhecer os universos
pesquisados. A etnografia como ferramenta metodológica
pressupõe o trabalho de campo e nele uma série de técnicas
como a observação, observação participante, questionários,
entrevistas, etc.
2. A etnografia como um modo de pensamento, um empenho
intelectual especial, como diria Clifford Geertz, o esforço
para a descrição densa. O esforço que nos permite diferen-
ciar uma piscadela marota de um tique nervoso. O objeto da
antropologia localiza-se em meio à “hierarquia estratificada
de estruturas significantes em termos das quais um gesto
é produzido, percebido e interpretado e sem as quais ele
de fato não existiria” (Geertz, 1989, p. 17). Nossos dados
são nossa própria construção das construções de outras
pessoas (p. 19). “A análise cultural é (ou deveria ser) uma
adivinhação dos significados, uma avaliação de conjunturas
(...) e não a descoberta do Continente dos Significados” (p.
30-31).
3. A etnografia como uma narrativa. Além de ser um recurso
metodológico, um esforço intelectual particular, a etnografia é
também um produto. Em sua proposta de escrever cultura(s),
os etnógrafos elaboram narrativas, TEXTOS que comportam
mundos. Cabendo mundos, cabem também nas etnografias,
as representações, criações e imaginações dos etnógrafos.

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Pelo exposto acima, a etnografia pode ser entendida como
uma experimentação. Uma experiência repleta de fluxos que estão
inter-relacionados no ato etnográfico. O antropólogo Helio Silva
(2009) os descreve como: o andar, o ver e o escrever. A etnografia
é assim o relato de um percurso. O andar na experiência etno-
gráfica pressupõe um percurso marcado pela intersubjetividade,
pelas interações estabelecidas por meio de acordos e entreveros
advindos das andanças em campo. O ver na experiência etnográ-
fica significa que estamos observando uma cena da qual fazemos
parte. Segundo Silva uma cena etnográfica só é confiável quando
o etnógrafo se inclui na paisagem. O empreendimento etnográfico
exige a consciência de si: a projeção da identidade e os significados
que o etnógrafo adquire na interlocução, na interação (p. 181). Isto
demonstra o caráter duplo que a observação etnográfica compor-
ta: um caráter subjetivo, uma vez que observamos uma cena da
qual fazemos parte; e a noção objetiva da presença, a consciência
de si (p. 180). Finalmente, para o autor, o ato de escrever envolve
uma tensão em campo: observar e participar, reter, memorizar e
colocar no papel o que observou e aquilo de que participou. A
escrita modela a matéria da visão, da audição, do olfato, do tato,
do paladar, “mas sobretudo as sensações compósitas, as percepções
produzidas (...) pelos cruzamentos áudio-táteis, palato-visuais ...”
(p. 182-183). Andar, ver e escrever são fluxos que envolvem o pes-
quisador em campo e que fazem parte de seu percurso. Andar, ver,
escrever, influem, fluem para dentro; inspiram, sugerem e exercem
influência na produção etnográfica.
O que queremos dizer é que pensar a etnografia como experiência
coloca o papel do etnógrafo para além da reprodução do discurso
do Outro. Utilizar a etnografia como uma ferramenta metodológica
significa sublinhar o caráter reflexivo, intersubjetivo e interpretativo
da pesquisa. A etnografia representa a ação, ela configura essa ação.
Como sugere Cornelia Eckert e Ana Luiza Rocha (1998), a etnografia
é uma poiesis, ou seja, a enunciação da narrativa do etnógrafo, sendo
uma solução poética para o paradoxo do método: fazer convergir o
tempo da ação e o tempo da narração.

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Antropologia e literatura: modelando narrativas

É percebendo a etnografia como uma experimentação que ins-


tauramos a “conversa”, as aproximações e as trocas entre Antropologia
e Literatura.
Autores como George Marcus e Michael Fischer (1999) e James
Clifford (1998) definem a etnografia como a tradução da EXPERI-
ÊNCIA para a forma de texto, experiência essa marcada por subje-
tividades e relações de poder. No que implica a tradução? Em uma
complexa situação de intersubjetividade4. Os textos etnográficos são
textos polifônicos. A tradução da experiência para a forma de texto
não revela apenas a situação real da pesquisa etnográfica, mas expõem
a complexidade dos encontros e a parcialidade dos produtos baseados
em trabalho campo (cf. Geertz, 2009).
Com isto não estamos afirmando que as etnografias são falsas.
Mas gostaríamos de dar algumas ênfases nas formas de compreensão
do ato etnográfico. Pensar a etnografia como um texto, uma narrativa,
uma representação, uma modelagem ou uma ficção envolve algumas
questões importantes.
Em primeiro lugar, tal perspectiva pressupõe desdobramentos na
construção narrativa da alteridade. Compreender a etnografia como
um texto construído e modelado problematiza a discussão sobre a
natureza das categorias utilizadas na construção do conhecimento.
Não há uma oposição radical entre as categorias do pesquisador e as
categorias do pesquisado.
Marco Antônio Gonçalves em O real imaginado nos traz um
exemplo do que foi exposto no parágrafo anterior a partir da análise da
antropologia compartilhada erigida por Jean Rouch. Em Jean Rouch
- antropólogo e cineasta - o produto final da etnografia é imagético,
fílmico. Analisando uma das obras de Rouch, Jaguar, Gonçalves enfati-
za que aqui os “informantes” exercitam a imaginação e a interpretação
etnográficas. A antropologia compartilhada deriva do significado

4 Um bom exemplo para percebermos tal situação são os diários de campo utilizados para
o registro dos dados coletados. Ver Um diário no sentito estrito do termo de Bronislaw
Malinowski.

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da etnografia: que não é um amontoado de dados, informações a
serem analisadas, interpretadas; mas uma discursividade construída
a partir de uma relação (Gonçalves, 2008, p. 194). A produção etno-
gráfica e imagética não parte daquilo que o antropólogo filma, e sim
do que é construído a partir da relação propiciada pela pesquisa. A
produção não se esgota nas imagens que mostra, mas no processo de
sua realização (p. 190). Rouch é uma das vozes e não o dono da voz.
No ato etnográfico há a constituição de uma relação e uma ênfase
na presença consciente. O conhecimento advém da explicitação da
relação entre pesquisador e pesquisado, onde o objetivo é mostrar
o que as pessoas pensam sobre si mesmas a partir da relação com o
etnógrafo. Dentro desta perspectiva, a câmera e o que ela captura não
é um mero instrumento de trabalho e de coleta de dados, mas uma
das condições do diálogo5.
Aqui retomamos o debate sobre realidade e ficção. Na experi-
mentação proposta por Rouch, a ficção é um modo de penetrar a
realidade. A verdade é construída pelo cinema, pela etnografia. Tudo
isso porque as realidades sociais para Rouch são as narrativas pelas
quais são representadas. Retomando o título da obra de Gonçalves, o
real sempre é imaginado.

O escritor e o etnógrafo

Façamos a leitura de um fragmento textual que será mote de


algumas indagações:

A estrada nova fica para trás. E com ela os tristes campos carboni-
zados. Daqui a Cuiabá, por todo este perímetro só tocos de árvores
queimadas, tudo negro, tudo queimado, nada em pé, só devastação
e destruição. Nem pássaros, nem coisa viva, nem nada. Entram
numa região diferente: aqui crescem grandes árvores onde ninguém
tocou. Direção a Rondônia, a Vila Bela, tudo diferente. Uma hora

5 No entanto, Gonçalves (2008, p. 63) alerta para o fato de que a antropologia compar-
tilhada não deve ser entendida a partir de um romantismo simplista, uma vez que a
presença do antropólogo em campo produz tensões, conflitos e discordâncias sobre a
produção etnográfica.

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depois quando já está quase de noite, escurecendo já, embicam num
riozinho, onde a estrada se acaba, mas continua do outro lado. E
agora, como atravessá-lo? A gasolina está também ao fim. E a Kombi
velha está com problemas no motor que Palinuro, mecânico velho,
conhece. Conhece desde tudo por aqui. Foi um dos operários que
trabalhou nesta estrada, nos idos de 60. E ligou o canal sueco que
vinha salmodiando durante todo este tempo (Dicke, 2006, p. 55).

O trecho, carregado de acentos subjetivos, poderia facilmente ser


chamado de etnográfico se não fosse um conto chamado “Toada do
Esquecido”, do escritor mato-grossense Ricardo Guilherme Dicke6.
É claro que como fragmento e retirado de um contexto de leitura,
poderíamos lhe dar a conotação etnográfica. Contudo, o trecho acima,
e tantos outros que poderiam servir de exemplo, marca uma reflexão
tão pertinente no âmbito da produção científica que nos faz lembrar
do quanto estamos e somos inscritos na linguagem.
Seguindo os preceitos da Antropologia Interpretativa, dizemos
que o “etnógrafo ‘inscreve’ o discurso social” (Geertz, 1989, p. 29)
transformando-o num texto carregado de significações; símbolos
que são “incorporações concretas de ideais, atitudes, julgamentos,
saudades ou crenças” (p.105). O texto inscrito funciona como um
filtro da visão cultural do etnógrafo sobre a visão cultural do “nativo”,
sendo uma interpretação da interpretação, uma maneira de escrever
densamente a cultura experimentada.
O trecho de Dicke, mais do que um texto, traz dados culturais
relevantes, como a geografia, o clima, os aspectos sociais e históricos
da região, da mesma forma que uma etnografia. A diferença está
acentuada na maneira de produzir o texto. Enquanto o pesquisador
se compromete com a ciência e produz etnografia; o escritor busca a
arte produzindo literatura. São linguagens aparentemente indiscutí-
veis, com diferenças pertinentes e voltadas para públicos específicos;
contudo, linguagens que se tocam e por vezes, se misturam. Pensando
nesta questão, Clifford Geertz (2009, p. 25, p. 184), em Obras e Vidas:

6 Cabe lembrar que não estamos excluindo sua condição “etnográfica”, mas dando atenção
ao fato de que foi escrito inicialmente como conto literário.

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o antropólogo como autor, acaba chamando a etnografia de mula, um
gênero que se move tanto sobre a linguagem científica quanto sobre
a literária; mas que, sem dúvida, se embriaga e se mantém torpe nos
terrenos da arte.
A aproximação da etnografia com a literatura está no escrever,
na atitude de colocar sobre o papel signos culturais experimentados.
O etnógrafo, assim como o escritor, assume a palavra como tradução
do mundo. A tradução está vinculada à apreensão dos fenômenos, à
percepção do etnógrafo que, em campo, acaba sofrendo e exercendo
influência: seus olhos, ouvidos e o próprio caminhar são instrumen-
tos de imersão no campo que, constantemente sofrem e produzem
sentido. A palavra-escrita, surge como um encerramento do campo e
o retomar da vida acadêmica. O campo ficou, mas ele é estendido até
o gabinete, ao mundo acadêmico onde o pesquisador busca escrever
seus relatos (GEERTZ, 2009, p. 170).
O produto final etnográfico, afastado do campo e submetido
aos filtros subjetivos do pesquisador, nunca buscará a verdade, tão
pouco o real do ponto de vista cientificista: sua pretensão, longe da
visão objetiva que tende a esquecer que “a ciência busca tratar com
precisão uma realidade imprecisa” (Demo, 2001, p. 48), está centrada
na transcriação. Uma busca pelo Outro que é mediada por um con-
fronto de visões e experiências particulares, no qual o pesquisador
acaba inventando a cultura estudada fazendo constantes analogias
com sua própria dimensão de mundo (Wagner, 2010, p.40).
O etnógrafo sempre escreveu o discurso social, elaborando ver-
dadeiros “compêndios romanceados” sobre a cultura estudada; deste
modo, por que não admitir escrevê-lo em forma de conto ou romance,
admitindo a ficção como parte da construção científica?
Geertz toca num termo interessante e provocativo, chamado
“ficção realista”, como um “texto imaginativo sobre pessoas reais,
em lugares reais e em épocas reais” (GEERTZ, 2009, p. 184); ou seja,
um texto fictício que teria como base um texto cultural. A própria
linguagem cinematográfica, como o cinema experimental de Jean
Rouch, se aproveita desta “ficção real”. Na ficção realista podemos
traçar uma comparação significativa com o romance, e nos orientar

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na busca por um novo produto etnográfico.
O romance, mais do que um produto narrativo voltado para o
entreter, é um gênero do discurso7 complexo, carregado de múltiplas
vozes culturais, sendo uma expressão discursiva altamente elaborada;
ele, segundo Bakhtin, é

Uma diversidade social de linguagens organizadas artisticamente,


às vezes de línguas e de vozes individuais. A estratificação interna
de uma língua nacional única em dialetos sociais, maneirismos de
grupos, jargões profissionais, linguagens de gêneros, fala de gerações,
das idades, das tendências, das autoridades, dos círculos e das modas
passageiras, das linguagens de certos dias e mesmo de certas horas
[.. ] (Bakhtin, 2010, p. 74).

O romance, assim como a etnografia, se fundamenta na lin-


guagem, tomando como objeto a vida e tudo que nela significa e se
significa. O escritor experimenta a vida escrevendo, enquanto o etnó-
grafo precisa experimentar a vida para escrevê-la. Ambos organizam
vozes, relacionam culturas e constroem realidades, mas acabam se
mantendo presos, mesmo que sutilmente, à ficcionalidade – no caso
do escritor – e à autoridade científica – no caso do pesquisador. Todo
ato enunciativo, escrito ou oral, pressupõe uma função – científica,
técnica, publicística, oficial, cotidiana, confessional – um interlocutor
– mesmo que seja o próprio escritor – e um contexto – um lugar no
tempo e no espaço. Estas características acabam moldando o produto
final e possibilitando que o mesmo material – a linguagem cultural –
possa ser substância para criar diferenciados produtos, como é o caso
da etnografia e do romance. Em Malinowski (1976), Os Argonautas
do Pacifico Ocidental, por exemplo, podemos encontrar em alguns
pontos do texto, um escritor de romance – além do etnógrafo – que

7 Os gêneros discursivos são formas relativamente estáveis de expressão humana. São


compostos por três elementos: forma, conteúdo e estilo; dentro de uma esfera de
atividade humana (Bakhtin, 2003). Além do romance e da etnografia e seguindo esta
estrutura, podemos elencar outros gêneros discursivos, como o conto, a receita, o manual,
a carta pessoal, o bilhete, o diálogo do cotidiano, dentre outros. Para maios detalhes
ver o capítulo “Os gêneros do discurso” in “Estética da criação verbal” de M. Bakhtin
já referenciado na bibliografia.

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acentua sua estilística textual tal qual Joseph Conrad8. No caso, sua
função estaria voltada à ciência, mas necessariamente não excluiria as
outras devido à multiplicidade subjetiva do próprio texto.
Uma visão inversa nos mostra o antropólogo Roberto DaMatta
(1983) que atribui o título de “etnógrafo” a vários autores da literatura
brasileira, devido à visão peculiar destes na apresentação da cultura
brasileira, como é o caso de Lima Barreto e Érico Veríssimo. Tal visão,
assim como a apresentada no parágrafo anterior apenas nos faz voltar
o pensamento para a “ficção realista” e reconhecê-la, não como algo
inovador, mas real e presente no nosso contexto. A função, o interlo-
cutor e o contexto são explorados em todo ato de escrita – por todo
escritor, seja de ficção ou não – marcando o texto com a posição ética
e estética daquele que escreve.
O “etnógrafo ficcionalista”, sabendo destas dimensões paradoxais
e plásticas da linguagem, poderia construir sua visão de realidade e
dar voz aos seus “informantes” os tornando comentadores do seu
próprio discurso. Equivaler o discurso não utilizando os enunciados
dos informantes (como citação), mas utilizando destes enunciados
para construir outros, seria uma maneira de reconhecer a ficção como
parte do texto científico e assumir a linguagem como um produto de
diálogo acompanhado de alteridade.
O ato de escrever ficção pelo pesquisador possibilitaria uma
abertura conceitual, transformando o pesquisador num fabulador,
num contador de história que conseguiria desnudar a si mesmo no
contato com o Outro e com a cultura visitada. A imaginação sempre
foi um veículo de experimentação do homem, pois nela nos inserimos
para encontrar o real e as possibilidades do real. O ato de imaginar,
de criar, leva o pesquisador a uma reflexão maior de suas próprias
atitudes.
E já que estamos falando de imaginação, por que não imaginar
um produto etnográfico que seja elaborado a partir de uma etnografia
entendida como recurso metodológico, como uma narrativa, mas

8 Uma análise sobre as aproximações entre Malinowski e Conrad foi feita por James
Clifford (2008) em A experiência etnográfica. Ver capítulo “Sobre a automodelagem
etnográfica: Conrad e Malinowski”.

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acima de tudo como uma experimentação? A imersão no campo, a
coleta de dados sistemática poderia fluir em uma experimentação
metodológica em que a etnografia tenha como um de seus produtos,
a produção de contos literários.
A experimentação imaginada coloca-se como uma possibilidade
de construção significativa da “realidade” pautada tanto na visão do
pesquisador como na visão dos “informantes”, ou seja, dos tradutores
culturais que são modificados/atingidos pelo pesquisador em campo.
Uma construção que tentará escrever conjuntamente com os tradu-
tores, contos literários que possam revelar a cultura estudada, dar voz
a esses sujeitos que vivem e experimentam a própria cultura, além de
demonstrar que a vida pode ser transcriada pela literatura; ou melhor,
demonstrar que arte e vida se entrecruzam, formando nossa própria
maneira de ver a realidade.
A ficção realista, longe de ser um produto inovador ou até mes-
mo um manual “salva-vidas”, possibilita problematizar a visão do
encontro, desnudando a posição ética e estética do autor perante
sua construção textual da cultura estudada. Clarificar a função – ou
a hibridização dela, no caso da ficção realista – permite incluir o et-
nógrafo como parte da paisagem, podendo se inserir como uma das
vozes do coro e não como a única voz.
É importante repetir que algumas das observações presentes
neste texto já foram (e ainda são) constantemente acentuadas dentro
da teoria antropológica e literária; mas seu eco significativo ainda
reverbera no tempo e a reflexão constante sempre se faz presente de
maneira quase inerente. Talvez se assumirmos a ficção como parte da
realidade, poderíamos – além de admitir a realidade como um todo
complexo e imensurável – produzir textos etnográficos mais literários
e textos literários mais etnográficos.

Referências

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