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O JOGO RITUAL E AS PEDAGOGIAS DO SUL: PRÁTICAS

PEDAGÓGICAS PARA A DESCOLONIZAÇÃO DO ENSINO DO TEATRO

The ritual play and the pedagogies of the south: pedagogical practices for the
decolonization of the teaching of theater

Robson Carlos Haderchpek1


Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Resumo: Este artigo discute a prática da educação bancária presente no


ensino do teatro no Brasil e desenvolve um recorte epistemológico trazendo à
luz uma experiência de ensino do teatro desenvolvida no âmbito da UFRN
com o Grupo Arkhétypos. A partir de uma metodologia empírica de caráter
experimental o grupo desenvolve uma prática com a poética dos elementos, o
jogo ritual e reflete sobre a importância das pedagogias do sul.

Palavras-chave: Práticas Pedagógicas; Jogo Ritual; Epistemologias do Sul.

Abstract: This article discusses the practice of banking education present in


the teaching of theater in Brazil and develops an epistemological clipping
bringing to light an experience of teaching theater developed within the scope
of UFRN with the Arkhétypos Group. From an empirical methodology of
experimental character the group develops a practice with the poetics of the
elements, the ritual play and reflects about the importance of the pedagogies
of the south.

Keywords: Pedagogical Practices; Ritual Play; Epistemologies of the South.

1 Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN.

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Robson Carlos Haderchpek

A fim de instaurarmos uma reflexão acerca das autoritário e unilateral, é preciso repensar a
pedagogias da cena é importante reconhecer prática pedagógica a partir dos sujeitos que a
o modelo de ensino que impera na compõe e lembrar que os processos
contemporaneidade brasileira. Convém educativos são vias de mão dupla.
considerar que nós somos fruto de um
processo de colonização que teve início no [...] embora diferentes entre si, quem
final do século XV e início do século XVI, e forma se forma e re-forma ao formar e
quem é formado forma-se e forma ao ser
desde esta época somos guiados por um formado. É neste sentido que ensinar não
modelo de educação colonizada. Cientes é transferir conhecimentos, conteúdos,
desta situação histórico-social e reconhecendo nem formar é ação pela qual o sujeito
criador dá forma, estilo ou alma a um
que nós temos um modelo de educação
corpo indeciso e acomodado [...] Quem
colonizado, a questão que paira sobre nossas ensina aprende ao ensinar e quem
cabeças é: como desenvolver uma pedagogia aprende ensina ao aprender. (FREIRE,
teatral que transcenda o modelo do 1996, p.23)
colonizador?
Apesar dos numerosos esforços de
Há cerca de quinhentos anos vimos pesquisadores da área do Teatro e da
reproduzindo nas escolas o que o pedagogo Educação para romper com este modelo, o
brasileiro Paulo Freire (1996) chama de campo da pedagogia teatral ainda reproduz o
“educação bancária”, uma educação em que o mesmo modelo. Muitos professores de teatro,
aluno senta-se no banco de forma passiva e o nas diversas instâncias educacionais
professor lhe transfere o conhecimento. Na acreditam que devem ensinar os conteúdos do
tentativa de romper com este modelo Freire teatro aos seus alunos, e para tanto se apóiam
nos propõe uma alternativa: no modelo do teatro europeu, herdado no
processo de colonização.
É isto que nos leva, de um lado, à crítica e
à recusa ao ensino “bancário”, de outro, a Seria ingênuo pensar num teatro que não
compreender, que apesar dele, o tivesse a influência do teatro europeu, visto
educando a ele submetido não está que o colonizador chegou ao Brasil se
fadado a fenecer; em que pese o ensino
“bancário”, que deforma a capacidade utilizando do teatro para catequizar os índios.
criativa do educando e do educador, o E desde então, vimos reproduzindo
educando a ele sujeitado pode, não por inconscientemente este modelo de
causa do conteúdo cujo “conhecimento”
catequização nos palcos brasileiros.
lhe foi transferido, mas por causa do
processo mesmo de aprender, dar, como Geralmente quando perguntamos a uma
se diz na linguagem popular, a volta por
cima e superar o autoritarismo e o erro pessoa que estuda teatro o que ela está
epistemológico do “bancarismo”. (1996, p. aprendendo ela responde o nome de um
25) autor, de um dramaturgo ou de um pensador
do teatro europeu ou russo. Vez por outra
É no processo, na relação entre o aprender e o encontramos alguém que diz estudar as
ensinar que se estabelece entre o professor e linguagens provenientes do teatro oriental,
o educando, que se encontra a chave para entretanto, o ponto chave da discussão não é
romper com este sistema de educação a origem dos estudos teatrais, e sim a origem

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O jogo ritual e as pedagogias do sul:
práticas pedagógicas para a descolonização do ensino do teatro

de um pensamento sobre teatro que é Shakespeare, Commedia dell’arte, etc.. Mas,


formulado a partir de padrões externos à será que o teatro brasileiro não poderia ser
nossa cultura. algo para além disso? Não existe teatro para
além da Grécia e da Europa? Sim, alguns
Dito isto surge uma segunda questão: mas, se
pesquisadores teatrais como Eugênio Barba
o Brasil é um país miscigenado, como
(2012) foram estudar as raízes do teatro
podemos pensar num modelo de teatro que
balinês, e das danças orientais, mas será que
seja genuinamente brasileiro? Seria possível
o chamamos hoje de teatro é teatro? Será que
pensar numa forma teatral diretamente
não haveria outra forma de se pensar o teatro?
relacionada à nossa raiz ancestral?
Será que não haveria outro teatro?
Antes dos colonizadores chegarem à Terra de
Mais do que apresentar respostas este artigo
Santa Cruz2, uma variedade de etnias
busca desencadear uma reflexão. Segundo o
indígenas habitava este local. Será que estes
pesquisador e pedagogo espanhol Jorge
povos não realizavam nenhum rito? Será que
Larrosa, estamos vivendo um momento
eles também não adoravam os seus deuses
histórico em que mais importante do que
como faziam os povos da Grécia na
encontrar as respostas, o essencial é refazer
antiguidade clássica? Com o processo de
as perguntas:
colonização e posteriormente com o processo
de escravidão, o Brasil dizimou boa parte da Penso que o maior perigo para a
sua população indígena que hoje sobrevive Pedagogia de hoje está na arrogância dos
em reservas demarcadas pela FUNAI e que que sabem, na soberba dos proprietários
muitas vezes são desrespeitadas pelos de certezas, na boa consciência dos
moralistas de toda a espécie, na
grandes fazendeiros e latifundiários. Não é tranqüilidade dos que já sabem o que
raro também ouvir a notícia de que inundaram dizer aí ou o que se deve fazer e na
uma reserva indígena para construir uma segurança dos especialistas em repostas
hidrelétrica, e assim, junto com as águas que e soluções. Penso, também, que agora o
urgente é recolocar as perguntas,
afogam milhares de animais e plantas, reencontrar as dúvidas e mobilizar as
afogam-se também os saberes de um povo inquietudes. (2006, p. 08)
que mais uma vez é expulso de suas terras e
posto à margem como algo descartável. Desde 2010, ano em que me tornei professor
no Curso de Licenciatura em Teatro da UFRN,
Desde que fomos colonizados vimos
venho refletindo sobre minha prática
reproduzindo um conhecimento estanque que
pedagógica e me recolocando algumas
vem importado dos modelos europeus, o
perguntas. Quando cheguei na citada
teatro que conhecemos hoje é fortemente
Universidade assumi as disciplinas da área de
arraigado nas tradições do teatro europeu e do Atuação e tive que lecionar os conteúdos do
teatro russo. Muitos estudam Stanislavski,
teatro clássico ocidental: teatro realista e teatro
Brecht, Meyerhold, Grotowski, Eugênio Barba,
épico. Sempre procurei em minhas aulas fazer
uma ponte entre a teoria estudada – ações
2 Primeiro nome dado ao Brasil pela esquadra de Pedro físicas, análise ativa, circunstâncias dadas,
Álvares Cabral.

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efeito de distanciamento, gestus social, etc. – e sobre a imaginação da matéria, passando pela
a realidade brasileira. Contudo, sempre me tetralogia dos elementos:
intrigava o fato dos alunos necessariamente
terem que revisitar sistematicamente estes Com efeito, acreditamos possível
conteúdos. estabelecer, no reino da imaginação, uma
lei dos quatro elementos, que classifica as
Anos depois, em 2013, já como coordenador diversas imaginações materiais conforme
elas se associem ao fogo, ao ar, à água
do Curso de Teatro propus uma reforma ou à terra. E, se é verdade, como
curricular que permitiu uma maior abertura acreditamos, que toda matéria deve
para os saberes locais, manifestações receber componentes – por fracos que
populares e criações artísticas híbridas, entre a sejam – de essência material, é ainda
essa classificação pelos elementos
dança e o teatro, entre o teatro e a música e materiais fundamentais que deve aliar
entre o teatro e o ritual. Foi neste momento mais fortemente as almas poéticas. Para
que comecei a sistematizar uma prática que um devaneio tenha prosseguimento
pedagógica junto ao Grupo Arkhétypos, grupo com bastante constância para resultar em
uma obra escrita, para que não seja
de pesquisa e extensão da Universidade simplesmente a disponibilidade de uma
Federal do Rio Grande do Norte que dialoga hora fugaz, é preciso que ele encontre
em ampla medida com os Cursos de sua matéria, é preciso que um elemento
Graduação em Teatro e Pós-Graduação em material lhe dê sua própria substância,
sua própria regra, sua poética específica.
Artes Cênicas. A esta prática pedagógica (BACHELARD, 2013, p. 3-4)
demos o nome de poética dos elementos.
Através desta substância material, própria da
A Poética dos Elementos imaginação, buscamos potencializar os
diferentes tipos de energia provenientes de um
Desde a sua criação em 2010 o Grupo processo de criação, sempre tomando como
Arkhétypos vem trabalhando numa referência um universo simbólico de
perspectiva laboratorial e tem construído seus dimensões arquetípicas. Com base neste
espetáculos a partir de um mergulho no princípio, a busca dos atores do Grupo
universo simbólico de cada ator, sempre Arkhétypos segue no sentido de encontrar
associando a prática artística com a busca metáforas que possam reconectar o homem
pelo autoconhecimento. É comum em seus com os eternos universais, religando-os à
processos de criação3 que o Grupo escolha essência da imaginação material
um elemento da natureza como mote criativo: (BACHELARD, 2013).
terra, água, fogo e ar. Chamamos este
Dentro de um processo de criação de natureza
trabalho de poética dos elementos, inspirados
ritualística o ator torna-se um canal de
por Gaston Bachelard (2013) que escreve
manifestação das paixões, criando fissuras no
tempo e no espaço e permitindo que o
3 Cada um dos processos de criação de criação do Grupo inconsciente coletivo (JUNG, 2012) se revele
Arkhétypos foi guiado por um dos elementos da natureza, através das figuras arquetípicas/personagens
e a partir da poética dos elementos foram construídos
quatro espetáculos: Santa Cruz do Não Sei (2011) que foi que se materializam no “jogo ritual”.
inspirado pela água, Aboiá (2013) que foi guiado pela
terra, Revoada (2014) que foi conduzido pelo ar, e Fogo
de Monturo (2015) que foi alimentado pelo fogo.

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O jogo ritual e as pedagogias do sul:
práticas pedagógicas para a descolonização do ensino do teatro

Compartilham deste pensamento os astrologia, pensamento oriental e a visão


professores Patricia Bélières e Alejandro particular de Gaston Bachelard.
Adicionamos a isso a contribuição
Cancela, fundadores da Escuela de enriquecedora dos Centros Energia.
Interpretación Bélières-Cancela da Argentina e Agora, como integrar esse conhecimento
autores do livro El cantante popular y la para nosso propósito - o fato artístico - e
interpretación: Una proposta metodológica mais particularmente, para a interpretação
na música popular?5 (2013, p.47)
integradora de saberes (2013). Os
pesquisadores vieram ao Brasil em 2016 O trabalho dos dois pesquisadores é
participar do Intercâmbio Latino Americano de direcionado principalmente para cantores, mas
Teatro Ritual, realizado na UFRN, e eles trabalham também com atores e
partilharam com os docentes e discentes sua dançarinos. Eles dão vários cursos itinerantes
visão metodológica sobre a poética dos quatro e já estiveram em várias partes do mundo
elementos. compartilhando a metodologia elaborada por
Os pesquisadores argentinos, tal como nós do eles.
Grupo Arkhétypos, se pautam no conceito de O foco principal do trabalho desenvolvido pelos
imaginação material proposto pelo filósofo dois pesquisadores são os Centros de
Gaston Bachelard a fim de elaborarem a sua Energia, mais conhecidos como chakras6, e
proposta pedagógica. Para eles cada um dos eles associam os chakras ao trabalho com os
quatro elementos corresponde a uma elementos. Para fazer isso eles se apóiam no
particular imagem afetiva e uma apreensão que há de mais concreto no trabalho do ator, o
própria da realidade: corpo:

Nas imagens poéticas, os quatro Vamos começar com o mais concreto: o


elementos não estão separados de forma corpo. Os quatro elementos não precisam
rígida, mas podem ser relacionados; ar e ser adquiridos porque já estão em nós; só
fogo, por exemplo, tem elevação, precisamos "lembrá-los", levá-los à
ascensão. Do mesmo modo, cada um consciência. Não há nada esotérico neles.
deles corresponde a uma rede particular [...] Como professores, começamos,
de imagens afetivas e a uma apreensão então, com uma realidade concreta:
da natureza e da matéria. Os quatro usamos uma linguagem simples (terra,
elementos nos farão viajar através de um fogo, água e ar são termos que todos
rico mundo simbólico.4 (BÉLIÈRES e conhecemos) e trabalhamos a partir do
CANCELA, 2013, p. 39)
5 Tradução livre do autor.
Para os pesquisadores Bélières e Cancela o 6 No livro El cantante popular y la interpretación: Una
estudo da poética dos elementos é fruto de proposta metodológica integradora de saberes (2013)
Patricia Bélières e Alejandro Cancela nos apresentam os
uma proposta integradora de saberes: sete chakras: Muladhara chakra (centro bajo),
Swadishthana chakra (centro lumbo-sacro), Manipura
chakra chakra (centro medio), Anatha chakra (centro
Até agora consideramos os quatro cardíaco), Visuddha chakra (centro laríngeo), Ajna chakra
elementos a partir de diferentes (centro frontal) e Sahasrara chakra (centro coronário). No
abordagens: pensamento ocidental, trabalho dos pesquisadores argentinos o primeiro chakra
é associado ao elemento terra, o segundo e o terceiro ao
elemento fogo, o quarto ao elemento água e os três
4 Tradução livre do autor. últimos ao elemento ar.

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corpo. O aluno pode, assim, reconhecer a dos gestos, do canto, da dança etc.).
sua terra, o fogo, a água e o ar no corpo e (2007, p. 41, grifo nosso)
na voz.7 (BÉLIÈRES e CANCELA, 2013,
p. 47) O “jogo ritual” origina-se dessa ideia do
Grotowski (2007) da não separação entre
No Grupo Arkhétypos nós também atores e espectadores. O “jogo ritual” não pode
trabalhamos a partir do corpo, mas ativamos ser considerado um “jogo dramático”8 (LOPES,
essa energia dos chakras através de um 1989) porque o “jogo ritual” é feito para ser
“estado alterado de consciência” que é visto e o jogo dramático convencional é feito
decorrente do “jogo ritual”. O nosso processo é para se jogado por todos. Dentro do “jogo
desencadeado por um dispositivo inconsciente ritual” nós convidamos o público para observar
que permite que cada ator dentro do processo as ações mágicas do ator e entrar na história
também descubra a sua terra, o seu fogo, a com ele. Também não podemos dizer que o
sua água e o seu ar. “jogo ritual” seja um “jogo teatral” (JAPIASSU,
2001), pois no jogo teatral convencional existe
Entendemos que cada pessoa traz uma
uma separação clara entre o ator e o
qualidade de água, de fogo, de terra e de ar, e
espectador. De acordo com Ricardo Japiassu:
que cada um destes elementos apresenta
nuances que variam de acordo com as
Os jogos teatrais são procedimentos
experiências individuais de cada indivíduo. E lúdicos com regras explícitas. Para
este conteúdo vem sendo atualmente entender a diferença entre o jogo teatral e
trabalhado nas disciplinas de Jogo e Cena I e o jogo dramático, é preciso lembrar que a
Atuação III, respectivamente no primeiro e no palavra theatron, que significa “local de
onde se vê” (platéia). Já a palavra drama,
quarto semestre do Curso de Licenciatura em também oriunda da língua grega, quer
Teatro. dizer “eu faço, eu luto” (Slade, 1978,
p.18). No jogo dramático entre sujeitos,
O Jogo Ritual portanto, todos são fazedores da situação
imaginária, todos são “atores”. No jogo
teatral, o grupo pode se dividir em equipes
Há três anos o conceito de “jogo ritual” vem que se alternam nas funções de
sendo pesquisado pelo Grupo Arkhétypos, que “jogadores” e “observadores”, isto é, os
toma por base os princípios ritualísticos da sujeitos jogam deliberadamente para
outros que os observam. (2001, p. 25)
cena. Para formular este conceito partimos de
uma definição de Grotowski que diz: No caso do “jogo ritual”, todas essas opções
são possíveis. O que o “jogo ritual” retoma é a
O teatro era (e permaneceu, mas em um
âmbito residual) algo como um ato origem primitiva do jogo e propõe uma
coletivo, um jogo ritual. No ritual não há situação entre, ou seja, um jogo em que o
atores e não há espectadores. Há espectador é convidado a observar e a
participantes principais (por exemplo, o interagir com a cena, emancipando-o da
xamã) e secundários (por exemplo, a
multidão que observa as ações mágicas 8Em seu livro Pega Teatro (1989) Joana Lopes defende a
do xamã e as acompanha com a magia perspectiva do jogo dramático espontâneo, em que todos
são atuantes, mas nem todos se tornam atores. Vivenciar
a experiência teatral faz parte dos processos de
metamorfose do sujeito, mas nem todos escolhem o
7 Tradução livre do autor. caminho do teatro como profissão.

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O jogo ritual e as pedagogias do sul:
práticas pedagógicas para a descolonização do ensino do teatro

situação de mero espectador e atribuindo-lhe o limiar entre a dança e o teatro, entre o teatro e
papel de viver o sentido da cena junto com o a música e entre todos estes e o ritual, por isso
ator. Na proposta do “jogo ritual” as fronteiras o termo “jogo ritual” tem refletido a nossa
entre palco e plateia são borradas e o público busca cênica e a nossa proposta pedagógica.
participante integra o ato de comunhão O “jogo ritual” retoma a origem primitiva do
ritualístico completando o sentido da ação, jogo e o coloca numa categoria anterior à
assumindo o papel de espectador emancipado divisão entre jogo dramático e jogo teatral.
(RANCIÈRE, 2002).
Dentro do círculo do jogo, as leis e
Este tipo de jogo remete a uma ação própria costumes da vida quotidiana perdem a
dos rituais dos povos antigos, povos estes que validade. Somos diferentes e fazemos
habitavam a América antes da colonização e coisas diferentes. Esta supressão
temporária do mundo habitual é
que traziam saberes que podem e devem ser inteiramente manifesta no mundo infantil,
resgatados. mas não é menos evidente nos grandes
jogos rituais dos povos primitivos.
No Grupo Arkhétypos e nas disciplinas de (HUIZINGA, 2010, p. 15-16)
Jogo e Cena I e Atuação III nós buscamos nos
reconectar com esses saberes trabalhando Os saberes dos povos primitivos podem ser
numa perspectiva de jogo que parte do resgatados então a partir de uma prática
encontro do ator com si mesmo, com o seu pedagógica que transcende os sabres do
universo interior, e o coloca numa dimensão colonizador europeu nos colocando em
limiar, que será compartilhada posteriormente diálogo com uma dimensão que está para
com o público. Por isso, o “jogo ritual” se além do conceito de teatro e para além de uma
aproxima mais da festa e da dança do que do técnica: a dimensão da experiência e da troca.
teatro propriamente dito. É tal como coloca
Se o ator e/ou o bailarino não estiverem
Johan Huizinga:
abertos para o “jogo ritual” ele não acontece, e
Existem entre a festa e o jogo, estamos tratando aqui de uma espécie de
naturalmente, as mais estreitas relações. “estado alterado de consciência”, ou um tipo
Ambos implicam uma eliminação da vida de “transe consciente”. De fato não há uma
cotidiana. Em ambos predominam a perda da consciência, o que acontece é uma
alegria, embora não necessariamente,
pois também a festa pode ser séria. imersão tão grande do ator/bailarino nessa
Ambos são limitados no tempo e no suspensão do tempo que ele deixa de seguir a
espaço. Em ambos encontramos uma sua lógica convencional cotidiana e passa a
combinação de regras estritas com a mais
adotar uma lógica ficcional, uma lógica
autêntica liberdade. Em resumo, a festa e
o jogo têm em comum suas ancestral, que transcende a ideia da
características principais. O modo mais personalidade, do eu interior e atinge uma
íntimo de união entre ambos parece dimensão arquetípica, universal.
encontrar-se na dança. (2010, p. 25)
Em seu livro Grotowski estados alterados de
No nosso caso, como trabalhamos na consciência: teatro, máscara, ritual a autora
perspectiva do Teatro Ritual, nós criamos num Joice Aglae Brondani reúne uma série de

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Robson Carlos Haderchpek

artigos que discutem os “estados alterados de mágica. E com o hieróglifo de uma


consciência” no trabalho do ator. Um artigo em respiração quero reencontrar uma ideia
de teatro sagrado. (ARTAUD, 1993,
especial escrito por Giuliano Campo, professor p.149-150)
em Drama pela Universidade de Ulster na
Irlanda do Norte “A Arte do Ator e a Este experiência desenvolvida no âmbito da
Possessão: os estados alterados de UFRN nos permitiu re-encontrar o sentido
consciência (asc) nas suas inter-relações com primordial da cena, sentido este anterior ao
o teatro” fala sobre os vários tipos de transe conceito de teatro que nos foi trazido pelo
construindo uma gradação. No caso do “jogo colonizador europeu, e a partir desta
ritual” o tipo de transe oscila entre o transe experiência e desta mudança de perspectiva,
avançado do quarto tipo e o transe do ritual de pudemos redimensionar tanto a nossa prática
possessão (CAMPO apud BRONDANI, 2015, artística quanto pedagógica.
p. 89).
Pedagogias do Sul
Cada participante dentro do “jogo ritual” tem
um percurso muito particular, e ao fazer suas
Uma das reflexões mais importantes que
escolhas, o ator/bailarino acessa imagens do
surgiu ao longo desta experiência da UFRN se
seu inconsciente concretizando-as e/ou
deu quando nos demos conta de que não
traduzindo-as no seu corpo. E é na busca da
estávamos falando de uma pedagogia teatral,
compreensão do significado destas imagens
mas sim de pedagogias teatrais.
que o jogo de fato se instaura, pois, dentro de
um universo infinito de probabilidades, uma Ao longo dos últimos 12 anos atuando no
imagem material se manifesta no processo de ensino superior, pude perceber que cada qual,
criação gerando um sentido e trazendo à tona dentro da sua perspectiva e da sua realidade
um manancial de significados que vão povoar desenvolve uma pedagogia, ou seja, o nosso
a imaginação do intérprete, e em seguida a do fazer teatral é múltiplo, variado e inclui no seu
espectador. modo de fazer uma série de procedimentos
que estão diretamente relacionados com o
Trabalhamos com as Artes do Corpo, da
sujeito, ou com os sujeitos que integram este
Dança e do Teatro e nos desafiamos a
fazer. Por isso, não há como se pensar numa
transcender os limites de um e de outro para
“educação bancária” dentro do teatro e não se
nos encontrarmos numa região entre, numa
pode querer que todos façam o mesmo tipo de
zona de encontros onde o que o impera é a
teatro.
sabedoria das cadeias mágicas capaz de
reconectar o ator e o espectador com a cena, Durante os últimos anos tem-se focado muito
é tal como diz Artaud: na questão da técnica, como algo que pode
ser partilhado e universalizado. Contudo, é
Saber antecipadamente que pontos do salutar considerar que toda técnica é datada e
corpo é preciso tocar significa jogar o
espectador nos transes mágicos. É cada técnica diz respeito a um contexto
[dessa] espécie preciosa de ciência que a histórico e cultural específico, por isso, nem
poesia no teatro há muito se sempre o que serve a um serve a todos e esta
desacostumou. Conhecer as localizações ideia de universalização está equivocada. É tal
do corpo é, portanto, refazer a cadeia

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O jogo ritual e as pedagogias do sul:
práticas pedagógicas para a descolonização do ensino do teatro

como coloca Paulo Freire: “[...] transformar a os conhecimentos abstratos, mas sob as
experiência educativa em puro treinamento práticas de conhecimento e seus impactos nas
técnico é amesquinhar o que há de práticas sociais:
fundamentalmente humano no exercício
educativo: o seu caráter formador.” (FREIRE, É à luz delas que importa questionar o
1996, p. 33). Precisamos romper com este impacto do colonialismo e do capitalismo
modernos na construção das
pensamento colonizado e descobrir novos epistemologias dominantes. O
modos de fazer. colonialismo, para além de todas as
dominações porque é conhecido, foi
No teatro todo modo de fazer está intimamente também uma dominação epistemológica,
relacionado a um modo de pensar, ou seja, uma relação extremamente desigual de
toda prática cênica está relacionada a um saber-poder que conduziu à supressão de
muitas formas de saber próprias dos
conhecimento, a uma teoria que se faz carne povos e nações colonizados, relegando
na efemeridade da cena. Por isso, é de muitos outros saberes para um espaço de
fundamental importância dar espaço ao novo e subalternidade. (SANTOS; MENESES,
repensar as pedagogias da cena 2009, p.07)
transcendendo essa ideia de técnica.
Quando Boaventura fala das epistemologias
O teatro europeu vem há muito tempo do sul, ele fala da metáfora9 de um sul
difundindo os mesmos princípios, e nós sem colonizado, fala de um campo de desafios
exercermos o nosso senso crítico, vimos epistêmicos que procuram ganhar voz diante
reproduzindo os mesmos modelos sem nos dos danos e impactos historicamente
darmos conta da riqueza que temos em nossa causados pelo capitalismo. Boaventura define
terra, dos saberes que estão presentes em as epistemologias do sul da seguinte forma:
cada região do país e dos modos de fazer que
emergem de realidades tão distintas. Trata-se do conjunto de intervenções
epistemológicas que denunciam a
É muito difícil se pensar numa arte brasileira, supressão dos saberes levada a cabo, ao
num teatro brasileiro, numa pedagogia teatral longo dos últimos séculos, pela norma
epistemológica dominante, valorizam os
brasileira se não pensarmos os diversos brasis saberes que resistiram com êxito e as
que temos dentro do Brasil. Precisamos reflexões que estes têm produzido e
valorizar os saberes da nossa gente, da nossa investigam as condições de um diálogo
cultura, da cidade onde moramos e revisitar os entre conhecimentos. (SANTOS;
MENESES, 2009, p. 07)
saberes que foram relegados e
desconsiderados pelos colonizadores.

Convidando-nos a revisitar esses saberes o


sociólogo Boaventura de Sousa Santos nos 9 Ao falar das epistemologias do sul Boaventura (2009)
propõe um mergulho nas epistemologias do não se refere a uma localização geográfica, mas sim a um
conhecimento que foi colocado à margem, que foi
sul. Segundo Boaventura (2009) não há esquecido e/ou desconsiderado. O conhecimento do sul
pode estar localizado geograficamente no norte do globo
epistemologias neutras, para ele a reflexão terrestre, como o é o caso do México, por exemplo, que
epistemológica deve incidir não somente sobre guarda heranças históricas da cultura Maia, mas ainda
sim traz um conhecimento próprio do sul.

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Robson Carlos Haderchpek

É na busca de um diálogo horizontal de devido cuidado, pois há tesouros que os


conhecimentos que seguimos pelos caminhos colonizadores não conseguiram usurpar, há
da pedagogia teatral e nos propomos a tesouros que estão escondidos dentro de nós.
repensar este fazer teatral contemporâneo que
Estamos vivendo num mundo onde somente
relega os saberes das manifestações
aqueles que atingem grandes feitos são
populares e os sabres do povo deste lugar.
reconhecidos, e o artista às vezes sucumbe à
Muitos professores de teatro, diretores e demanda do mercado e deixa de lado o seu
pedagogos ainda pautam o seu fazer artístico- processo de pesquisa e de descobertas
pedagógico num modelo de teatro que tem pessoais. Vivemos um período de cobranças,
uma dramaturgia, um texto e uma técnica onde há pouco espaço para o erro e para as
específica. Grande parte desses professores perguntas; temos que mostrar resultado aos
acredita que existe um “jeito certo” de se fazer órgãos de fomento e por isso, às vezes,
teatro e que este “jeito certo” reflete os moldes atropelamos a nós mesmos.
de um teatro europeu, fundamentado numa
Entretanto, vale destacar que o artista recria o
técnica e numa linguagem vanguardista. Uma
mundo através da arte, lendo-o de forma
grande maioria acredita que ensinar teatro é
simbólica e ampliando o significado da vida. Se
transferir um conhecimento, ou seja, reproduzir
a vida deixou de pulsar e de fazer sentido, é
a prática da “educação bancária”.
hora de reagir e ampliar o significado das
Será que não podemos pensar numa arte nossas ações; é hora de recriar o mundo, de
teatral e numa pedagogia que se constroem apresentar novas leituras sobre ele e de
junto com os sujeitos envolvidos na ação? produzir novos símbolos. É hora de produzir
Será realmente que existe um “jeito certo” de junto, considerando as nossas heranças
se fazer teatro? Será que existe somente um européias, indígenas e todas aquelas que
teatro? Será que o que estamos fazendo hoje trazemos conosco.
e chamando de teatro é de fato teatro? Será
Pensar uma ação pedagógica conjunta entre o
que não podemos pensar numa pedagogia do
professor e o aluno, entre o ator e o diretor é
sul, ou melhor, em pedagogias do sul?
ampliar o significado da vida e criar espaço
Muitas são as perguntas que emergiram ao para o surgimento do novo. Precisamos
longo desses 12 anos de docência, e romper com o paradigma de que ensinar teatro
precisamos tomar cuidado para que não nos é transferir uma técnica ou um conhecimento a
deixemos levar pela ação de controlar o certo alguém, precisamos alargar as fronteiras e
e o errado, pois isto nos faria incidir na mesma olhar para os brasis que existem ao nosso
proposta catequética do colonizador europeu. redor.

Falar de uma ação pedagógica dentro do E se recordarmos das palavras de Paulo Freire
universo artístico sem dar liberdade para o que diz que: “ensinar não é transferir
surgimento de antíteses, que se contrapõem conhecimento, mas criar as possibilidades
ou que abrem brechas no pensamento original para sua própria produção ou a sua
seria ir contra a própria pedagogia, a própria construção” (FREIRE, 1996, p. 47), se
arte e o próprio teatro. Precisamos abraçar as pensarmos desta forma, podemos criar novas
pedagogias do sul e olhar para elas com o possibilidades de produção e de construção de

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O jogo ritual e as pedagogias do sul:
práticas pedagógicas para a descolonização do ensino do teatro

um saber teatral, não aquele arraigado nos Fondazione Pontedera Teatro, Editora
modelos do teatro europeu, mas aquele que Perspectiva, 2007.
usa os modelos para transcender a ideia
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo
original e propor um teatro a partir de uma
como elemento da cultura. São Paulo:
realidade epistemológica do sul, dialogando
Perspectiva, 2010.
com a realidade na qual estamos inseridos, no
nosso caso, a realidade de um nordeste JAPIASSU, Ricardo. Metodologia do Ensino
múltiplo, plural e miscigenado. do Teatro. Campinas, SP: Papirus, 2001.

Recebido em: 17/03/2018 JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o


inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes,
Aceito em: 28/04/2018 2012.

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São Paulo: Martins Fontes, 1993. Horizonte: Autêntica, 2006.

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ensaio sobre a imaginação da matéria. São Papirus, 1989.
Paulo, Martins Fontes, 2013. RANCIÈRE, Jacques. O Mestre Ignorante:
BARBA, Eugenio e SAVARESE, Nicola. A cinco lições sobre emancipação intelectual.
Arte Secreta do Ator: Dicionário de Tradução de Lilian Valle. Belo Horizonte:
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Realizações, 2012. SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES,
BÉLIÈRES, Patricia; CANCELA, Alejandro; Paula Maria (org.). Epistemologias do Sul.
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interpretación: Una proposta metodológica
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BRONDANI, Joice Aglae. (org.) Grotowski


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FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia:


saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 1996.

GROTOWSKI, Jerzy; POLASTRELLI, Carla;


FLASZEN, Ludwik. O Teatro Laboratório de
Jerzy Grotowski 1959-1969. São Paulo:

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