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I.

Dar Lugar ao Inesperado


O tempo da calamidade e o tempo da graça
À primeira vista, e partindo da nossa experiência concreta, nós diríamos que não
tem nada a ver, porque a calamidade é uma espécie de lugar distópico, contrário de uma
utopia: uma desgraça. E o tempo da graça é o inverso, é a utopia, é o tempo idealizado, é
essa espécie de plenitude do desejo. Ora entre a linha da calamidade e a linha da graça,
parece que há uma distância que não se vence. E que elas são duas paralelas destinadas a
nunca coincidir. Porém, nós somos desafiados a encontrar e a construir interceções entre
a linha distópica e a linha utópica, se quisermos, entre a linha da calamidade e a linha da
graça.
Os gregos falavam do tempo como uma espécie de calamidade, porque o kronos
é o titã que engole os seus próprios filhos – então essa experiência de devoração e de
ameaça é alguma coisa que está inerente à nossa própria experiência do tempo. Mas eles
usavam também outra palavra para designar o tempo - a palavra kairos - que significa
tempo oportuno; o instante iminente; o lugar da própria revelação.
Somos desafiados a perceber que, dentro daquilo que nos parece ser apenas uma
linha distópica, há espaço para alguma coisa se manifestar e para algo de bom poder acon-
tecer. E aqui está o nosso grande desafio: a acreditar que não estamos condenados a viver
nesta impossibilidade de cruzamento, mas que há, quotidianamente, interceções entre as
duas linhas. Que, no fundo, representam este tempo agudo de crise que estamos a viver –
mas, se quisermos, em linhas gerais representam também a nossa própria vida. E este é
sobretudo um tempo de aprendizagem, penso eu... Nós temos de aprender a viver este
momento. E um dos aspectos para mim mais significativos é permitir que, neste espaço de
calamidade, o tempo da graça nos possa visitar.
Como é que o tempo da graça nos visita? Penso que esta epidemia, esta pandemia,
vem introduzir dinâmicas que são anti-humanas, e por isso nos sentimos tão confinados,
tão constrangidos, tão impossibilitados, tão desactivados. Porque nós somos seres comu-
nitários, somos seres de relação, nós precisamos de tocar a vida, de sentir de uma forma
táctil o próprio tempo, o espaço, as relações. E tudo isso, de certa forma, está suspenso,
está vedado. Mas temos de inventar outra tactilidade para o mundo e para a vida.
Como é que o tempo da graça nos visita? Penso que nos visita sempre na vizin-
hança, na proximidade. Ainda que não possamos tocar, ou sair de casa, ou ir a determina-
do lugar, ou falar com determinada pessoa de forma presencial, a verdade é que há uma
proximidade que podemos construir. Por exemplo, através da palavra, mas também
através do pensamento, através da oração, através de formas de comunicação, de partilha
de imagens – sejam as imagens exteriores, sejam aquelas imagens interiores.
Através da proximidade, de uma proximidade inventada e reinventada, o tempo

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da graça é capaz de visitar o tempo da calamidade. Mas também - e isso penso que a
tradição bíblica nos ensina de forma muito clara - o tempo da graça também se manifesta
pela surpresa. Dar lugar ao inesperado, dar lugar ao diverso, dar lugar à surpresa. E isso é
alguma coisa muito importante.
Nestes tempos tenho-me interessado muito por ler, seja do ponto de vista religio-
so, seja até do ponto de vista judiciário, relatos de pessoas que estão habituadas a viver o
confinamento. Um monge, por exemplo, está habituado: a sua natureza é o confinamento.
Da mesma forma, um detido também tem os escassos metros da sua cela para viver o
confinamento. E têm me interessado muito esses relatos. Há duas coisas que vejo em
comum entre aquilo que leio nos relatos de prisão e nos relatos dos mosteiros. Um é a
importância - ao contrário daquilo que nós pensamos - da repetição. É muito mais fácil
suportar um tempo que é igual. Isto é, que tem as horas certas, que tem os seus ritmos
regulares, em que as coisas têm uma espécie de circularidade, de uma disciplina, de uma
ascética. Isso torna o tempo muito mais suportável.
Mas há outra coisa em que ambos coincidem - é que em cada dia se deve aprender
alguma coisa que não conhecemos. E isso é espantoso se pensarmos que há pessoas que
vivem anos e anos da sua vida confinados a um pequeno espaço. Que coisas há para apren-
der naquele espaço? É uma pergunta que nos deve habitar. Porque se calhar há tantos
recursos dentro de nós, que habitualmente não precisamos sequer de activar, que agora é
o momento de os pôr em prática.

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II.
Relançar a espera
O nosso lugar em tempos de inquietação
Nós sofremos por estarmos confinados. É alguma coisa que não corresponde à
nossa natureza, à nossa vocação, às nossas escolhas, às nossas necessidades. Porém, a
situação actual também representa uma oportunidade para nós. E, nesse sentido, vem-me
ao pensamento aquele princípio que o Papa Francisco repete muitas vezes - e que talvez
seja o momento certo para redescobrirmos -"o tempo é superior ao espaço".
Nós, habitualmente, somos seres de espaço. Ocupamos, colonizamos; 'isto é
nosso', 'isto é meu'; cremos que isto é definitivo, vivemos em rotinas mais ou menos férreas
e cegas - mesmo quando não damos por isso - e achamos que tudo tem de ser assim e que
o mundo tem a forma que nós lhe demos, e que não pode ser de outra forma. Quando nós
consideramos que o tempo é superior ao espaço, nós percebemos que as formas do
espaço são relativas, e que o tempo é fluido, é flexível, é móvel; enquanto o espaço tende
a cristalizar. Tende, muitas vezes até, a bloquear. Ora um momento como este é também
uma grande oportunidade para redescobrir que a vida não começa e acaba aqui. Que há o
tempo. E que o tempo não é apenas o cronómetro que me faz correr, mas o tempo é pensar
- de onde venho e para onde vou.
O tempo é albergar - é hospedar na nossa vida uma respiração que é maior do que
nós. Saber que há um passado muito maior do que nós, que há um presente, que é o nosso,
e que há um futuro. E que nós somos seres que vivem neste trânsito permanente. Nós não
podemos viver obsidiados, simplesmente, pelo presente que temos ou que não temos.
Precisamos olhar o futuro. E esperar do futuro.
Este é também de relançar a espera. E, nesse sentido, também, a esperança. Há
uma expectativa, no coração da nossa própria existência, que o momento imediato, e que
este espaço a que estou confinado - se me dou conta e se não me dou conta, como na rotina
anterior que tinha - que este espaço é pouco para traduzir aquilo que somos.
É claro que há uma certa inocência, há uma certa ingenuidade quando nós
pensamos que existe só o presente. Lembro-me de uma história que ouvi da Sophia de
Mello Breyner em que falava de uns índios, de uma tribo amazona, que quando eram
presos morriam, definhavam, porque só tinham presente. Penso que nós temos mais do
que presente, e este também é o momento para redescobrir. Para redescobrir que há um
futuro, que nos temos de empenhar nele, todos, que temos de o perspectivar; e que este é
um tempo talvez de grande germinação, de grande gestação.  Aliás, vê-se por tantas inicia-
tivas que estão a acontecer: coisas novas, uma energia de vida, uma afirmação de esper-
ança que se traduz em tantas partilhas, tantas condivisões. Exactamente porque nós não
somos apenas seres de presente.
Nós não temos apenas âncoras, temos também asas.

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III.
Uma arte de resistência
No meio do caos, a beleza pode resistir
Este é certamente um tempo dramático, onde muitas, muitas lágrimas são chora-
das. Penso aqui na situação italiana, a que assisto mais de perto. Pensar, por exemplo, que
uma pessoa que fica doente deixa de poder ser acompanhada pelos seus, que muitas vezes
só reencontram as suas cinzas, que nem podem fazer um funeral religioso, ou uma
expressão de luto, é alguma coisa que nos estremece profundamente e que nos faz colocar
tantas perguntas. Por isso, a beleza pode resistir? Pode, se nós cuidarmos dela, se tivermos
consciência que, de facto, isto é um trauma profundo.
O Freud dizia que um trauma é uma agressão inesperada, que nos apanha sem
defesas e que muda, estilhaça a nossa visão do mundo e dos valores, e nos atira para a
angústia. E, de certa forma, é isso que colectivamente estamos todos a experimentar. Mas
há uma arte de resistência de que nós precisamos viver, mesmo nesta situação traumática. 
Aqui, penso que aquilo que os psiquiatras e os psicanalistas dizem, sobre os vários
passos da reconstrução pessoal no trauma, é importante recuperar. Uma delas é acreditar
que as coisas não voltam à forma exacta que tinham anteriormente, mas que é preciso
encontrar uma forma nova. Isto é, nós não conseguimos resolver completamente esta
crise, ou evitar os seus efeitos, mas podemos tentar todos caminhar para uma etapa nova,
que pode ser uma etapa provisória, mas que tem de ser diferente daquela anterior. E hátrês
passos que são muito importantes.
Um é afidarmo-nos, confiarmo-nos à memória do amor. Cada um de nós saber que
é amado; que é infinitamente amado por Deus, que é amado nesse amor que Jesus nos
revela de uma forma impressionante, de uma forma sem limites. Mas cada um de nós tem
as suas experiências de amor, do amor dos pais, do amor da família, do amor dos amigos,
o amor das coisas belas. Acordar essa memória do amor de dentro de nós é fundamental
nesta hora. Esta é uma hora para avivarmos em nós essa experiência de que somos
amados. 
O segundo passo é a necessidade e o bem que é podermos contar as nossas
histórias a alguém. Este não é um tempo de silêncio, é um tempo para a palavra. É impor-
tante que não seja a palavra colonizada; a mesma imagem, o mesmo boneco, o mesmo
vídeo caseiro que se envia e que se reenvia automaticamente mil vezes, mas que seja o
lugar para a palavra verdadeira, para uma palavra que ainda não foi dita. Porque cada um
de nós traz dentro de si tantas palavras que não foram ditas, palavras sufocadas, palavras
submersas, palavras que era importante agora trazer à superfície. Agora é que é o momen-
to para dizer certas palavras, em vez de colonizarmos o nosso espírito com as banalidades
mais óbvias. Precisamos de contar a nossa história. Este é momento para contar a nossa
história. Por isso, também será o momento para os romancistas, os poetas, os escritores,
os artistas, os músicos. É um tempo de grande criatividade, porque há esta necessidade
profunda, e tem de ser aproveitada.
Por fim, o terceiro passo. Se nós não pudermos contar a nossa história a ninguém
- porque também isso acontece. Há momentos em que não há ninguém para escutar a
nossa história. Que possamos acordar dentro de nós uma imagem de vida, uma imagem
de beleza, que possa servir-nos como bússola nesta viagem tormentosa. 

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IV.
Olhar os lírios do campo
A beleza de que somos protagonistas
Penso muitas vezes que grandes obras da arte e do pensamento foram criadas em
contexto de pura adversidade. Um dos grandes pensadores do século XX, Rosenzwieg,
escreveu a sua obra prima, ‘A Estrela da Redenção’, nas trincheiras da Primeira Guerra
Mundial, e escreveu-a em pequenos bilhetes postais que mandava à mãe.
Se pensarmos que Messiaen compôs uma das suas obras mais inspiradas para ser
interpretada pela primeira vez num campo de concentração, ou que Picasso fez a Guerni-
ca no impacto da guerra; tantas obras que nos alimentam tiveram, de facto, essa adversi-
dade como chão fértil.
E por isso nós podemos compreender aquilo que diz uma das grandes místicas
contemporâneas, a Etty Hillesum, que num campo de concentração fez um caminho de
transformação extraordinário e que escreveu um dos mais belos diários da contempora-
neidade. E ela dizia isto: este tempo em que a nossa alma é derrotada, que parece que vem
abaixo, é precisamente o tempo para olhar os lírios do campo. E eu acredito profunda-
mente nisto. Este é o tempo para olharmos os lírios do campo.
É também uma oportunidade para a própria arte e para a própria criação, porque,
a meu ver, um dos aspectos que ameaça a arte contemporânea, tornando-a um exercício
de pura contrafacção, é, de facto, o impacto que tem o mercado. Há uma espécie de
mercantilização da arte. Tudo tem um preço, tudo é em função de um preço. Este momen-
to, que é um momento também de risco, de empobrecimento - também porque os artistas
têm de comer - ao mesmo tempo os coloca perante aquilo que o Rilke dizia nas ‘Cartas a
um Jovem Poeta’ - tu só és poeta se disseres, se eu não escrever eu morro! Tu só és músico
se tu disseres: se eu não compuser, ou se eu não cantar, eu morro! Tu és só és pintor se
disseres, se eu não pintar, eu morro! - não é apenas uma questão da vida material. Há aqui
também um reencontro com a experiência mais vital daquilo que é a arte, que é uma razão
de vida ou de morte. Que, agora, cada um pode sentir.
E uma última palavra para dizer que penso que este também é o tempo para
descobrir a beleza de que cada um de nós pode ser protagonista, que é beleza do cuidado,
e a beleza da compaixão. Este é o tempo em que o coração humano precisa de ser consola-
do - há tantos corações humanos que precisam ser consolados. Não pensemos só no nosso
coração. 

José Tolentino Mendonça

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