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ARQUIVO DE ARTIGOS ETC

sábado, agosto 22, 2009

Lya Luft O Alzheimer e a luz da alma


da veja
"É dramático assistir ao abandono dos bons modos, 
ao isolamento social, ao desconhecimento dos familiares 
e amigos e, por fim, à reclusão total num aparente nada"

Atenção aos que criticam quando retomo assuntos: é intencional, eu faço isso, seja
aqui, seja na ficção ou na poesia. Todos temos dentro de nós temas que retornam,
ressurgem, transfigurados, com diversas máscaras e roupagens, e insistem em aparecer:
são os fantasmas de cada um. Em geral, manifestam-se na forma de sonhos, inexplicados
medos, breves euforias. O assunto que hoje retomo é a doença de Alzheimer, abordado
frequentemente em reportagens, artigos médicos, palestras de psiquiatras, e experiências
dramáticas da vida real. Terrível doença que acompanhei intimamente por mais de uma
década, quando foi ocupando, em minha velha mãe, tudo aquilo que antes tinha sido ela –
que passou a não ser ninguém, ou a ser um enigma.
Aos poucos, de filha, fui me tornando a cuidadora, a visita e, por fim, a estranha. Seu
universo fora reduzido ao próprio mundo interior: ali comemorava 15 anos, ali era noiva ou
tinha um bebê, ali me tratava de "senhora", ou me entregava algum pequeno objeto
invisível que para ela devia ser muito precioso. "Cuidado!", me recomendava, "cuidado
com isso!", e eu o recebia com as duas mãos em concha, para que ela não se afligisse.
Foi ficando mais bem-humorada na alienação do que nos últimos anos de lucidez
ameaçada, nos quais eventualmente perguntava: "Será que estou ficando louca?". E a
gente respondia, tentando parecer natural: "Que bobagem, eu estou muito mais esquecida
do que você!".

Um dos dramas de quem convive com isso é aprender a entrar nesse mundo, e não
tentar algemar a pessoa doente ao que para nós é a "realidade", pois isso provoca
angústia inútil. De alguma forma, aprendemos a acompanhar a pessoa amada para dentro
dos limites de seu novo registro, procurando amenizar, não atormentar mais, até que isso
se torna impossível. Quem amamos não sabe mais de nós. É dramático assistir ao
abandono dos bons modos, ao isolamento social, ao desconhecimento dos familiares e
amigos e, por fim, à reclusão total num aparente nada.

Eventualmente minha mãe parecia a mulher elegante de outros tempos: "Você quer
uma bebida?", perguntava dez vezes, porque ao indagar já o tinha esquecido, naquele
território onde eu não era ninguém. O que se passaria naquela paisagem para mim vazia?
Certamente havia cons-ciência: pois minha mãe falava, ria, cantava baixinho para alguém
que ninguém mais via, cada vez mais fechada ao meu desejo de algum contato. De mulher
grande e saudável passou a uma velhinha minúscula, mas resistia à morte: essa tem lá a
sua medida de tempo, que nunca entendemos. Quando é a sua hora, chega como uma
faminta ave de rapina, ou aguarda como um lento animal que hiberna. Chega muito cedo,
ou espera demais, às vezes.
Aconchegada na sua cápsula de fantasias, da última vez que vi minha mãe doente,
ela, que havia muito não falava, entreabriu os olhos e disse nitidamente para si mesma,
para alguém – para ninguém: "Que bom estar assim, tão leve e tão jovem". Nem mais uma
palavra, nem um brilho de reconhecimento no olhar quando me inclinei para ela. Logo se
enrolou de novo nos lençóis e na ausência. Poucos dias depois, simplesmente não
acordou mais. Fechava-se a última porta desse tão longo corredor pelo qual minha mãe
tinha se perdido. A Senhora Morte chegou, com grande atraso, e num gesto casual
recolheu a lamparina em que já não havia luz. Levou consigo a velha dama que na
verdade fazia muitos anos deixara o palco da sua vida, cortinas ainda abertas e, nos
bastidores, algumas vezes, o que parecia ser a sua voz, seu passo enérgico, e seu riso
alegre – tudo que mais recordo dela agora.

Por que de repente resolvi voltar ao triste assunto? Talvez porque essa grande peste
do século, sobre a qual pouco se sabe, seja um tão duro aprendizado para quem observa
do lado de cá desse mistério. Não é preciso, aliás, haver motivo para uma crônica, pois
muitas vezes elas se manifestam sozinhas: querem ser escritas, e eu assisto enquanto,
neste computador, elas mesmas se escrevem
Disponível em: <http://arquivoetc.blogspot.com/2009/08/lya-luft-o-alzheimer-e-luz-da-
alma.html> Acesso em 10 de dezembro de 2019

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