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ANO 13 / Nº 153 R$ 18,00

20 22 32
PETROBRAS ACORDO COM O TALIBÃ COMPRAR A PUREZA PERDIDA

PRIVATIZAÇÃO EM RETIRADA AMERICANA AS SINGULARES RELAÇÕES


ÁGUAS PROFUNDAS NO AFEGANISTÃO ENTRE ISRAEL E ALEMANHA
POR ANNE VIGNA POR GEORGES LEFEUVRE POR DANIEL MARWECKI

LE MONDE
00153

diplomatique
9 771981 752004

BRASIL

COBERTURA ESPECIAL

CORONA
VIRUS
A pandemia de Covid-19 transformou
o mundo. Enquanto alguns celebram
a oportunidade de fazer bons negó-
cios, como a indústria farmacêutica
(pág. 8), a Amazon (pág. 12) e os tuba-
rões do ensino a distância no Brasil
(pág. 18), outros questionam: o vírus
mataria tanto se as políticas de auste-
ridade não tivessem desmantelado os
serviços públicos (págs. 6, 10 e 13)?
Além disso, quais ações são urgentes
para combater o contágio nas favelas
brasileiras (pág. 16)?
2 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2020

PREPARANDO-SE PARA O PÓS-CRISE

Desde já
POR SERGE HALIMI*

U
ma vez superada essa tragédia, mudaram (ler artigo na pág.6). Espe- um aumento espetacular do endivi- Ela não pensava necessariamente
tudo começará de novo como cialmente quando – como a nossa – damento público, a ampliação orça- nas restrições contínuas que seriam
antes? Durante trinta anos, ca- sua própria vida está em perigo. mentária, a nacionalização dos ban- impostas às liberdades públicas sob o
da crise alimentou uma espe- A maioria de nós não passou dire- cos, o restabelecimento parcial do pretexto da luta contra o terrorismo,
rança irracional de um retorno à ra- tamente nem por uma guerra, nem controle dos capitais. Em seguida, a muito menos na Guerra do Iraque e
zão, de uma tomada de consciência, por um golpe militar, nem por um to- austeridade lhes permitiu retomar o nos inúmeros desastres que essa de-
de uma parada. Imaginamos o confi- que de recolher. No entanto, no final que haviam deixado de lado, em um cisão anglo-americana iria provocar.
namento e depois a reversão de uma de março, quase 3 bilhões de habi- salve-se quem puder planetário, e Vinte anos depois, não é necessário
dinâmica sociopolítica da qual cada tantes já estavam confinados, com mesmo realizar alguns “avanços”: os ser poeta ou profeta para imaginar a
um teria enfim mensurado os impas- frequência em condições extrema- funcionários trabalhariam mais, por “estratégia de choque” que está to-
ses e as ameaças.1 A debandada da mente difíceis; a maioria não eram mais tempo, em condições de maior mando forma.
Bolsa de 1987 iria conter a irrupção escritores observando a camélia em insegurança; “investidores” e pes- Corolário do “Fique em casa” e do
das privatizações; as crises financei- flor em torno de sua casa de campo. soas que vivem de renda pagariam “distanciamento”, toda a nossa socia-
ras de 1997 e de 2007-2008 fariam Aconteça o que acontecer nas próxi- menos impostos. Por essa mudança bilidade corre o risco de ser perturba-
cambalear a feliz globalização. Mas mas semanas, a crise do coronavírus radical, os gregos pagaram o mais al- da pela digitalização acelerada de
não foi o que aconteceu. terá constituído a primeira angústia to tributo, já que seus hospitais públi- nossas sociedades. A emergência de
Os ataques do 11 de Setembro, por planetária de nossa vida: isso não se cos, em dificuldades financeiras e saúde tornará ainda mais urgente, ou
sua vez, provocaram reflexões críti- esquece. Os líderes políticos são for- sem medicamentos, observaram o completamente obsoleta, a questão
cas sobre a arrogância norte-ameri- çados a levar isso em conta, pelo me- retorno de doenças que eles acredita- de saber se ainda é possível viver sem
cana e questões desoladas do tipo nos parcialmente. vam ter desaparecido. a internet.2 Toda pessoa já deve car-
“Por que eles nos odeiam?”. Isso tam- Assim, a União Europeia acaba de Assim, o que inicialmente sugere regar seus documentos com ela; em
bém não durou. Porque, mesmo anunciar a “suspensão geral” de suas um caminho para Damasco poderia breve, um telefone celular não será
quando caminha na direção certa, o regras orçamentárias; o presidente levar a uma “estratégia de choque”. apenas útil, mas requisitado para
movimento das ideias nunca é sufi- Emmanuel Macron adiou uma refor- Em 2001, uma hora após o ataque ao fins de controle. E, como as moedas e
ciente para travar as máquinas infer- ma previdenciária que teria prejudi- World Trade Center, a assessora de as notas constituem uma fonte po-
nais. Os seres humanos sempre aca- cado o pessoal da saúde; o Congresso um ministro britânico havia enviado tencial de contaminação, os cartões
bam se intrometendo. E é melhor dos Estados Unidos votou o envio de uma mensagem a altos funcionários de banco, transformados em garan-
então não depender dos governantes um cheque para a maioria dos norte- de seu ministério: “Este é um dia tia de saúde pública, permitirão que
responsáveis pela catástrofe, mesmo -americanos. Mas há pouco mais de muito bom para trazer de novo à bai- cada compra seja listada, registrada,
que esses piromaníacos saibam fazer dez anos, para salvar seu sistema em la e fazer passar discretamente todas arquivada. “Crédito social” no estilo
cena, tentar apagar o fogo, fingir que perigo, os liberais já haviam aceitado as medidas que precisamos tomar”. chinês ou “capitalismo de vigilância”,
ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 3

© Mark Claus/Unsplash
o recuo histórico do direito inaliená-
vel de não deixar vestígios de sua pas-
sagem quando não se transgride ne-
nhuma lei se instala em nossa mente
e em nossa vida sem encontrar outra
reação que não seja uma irritação de
adolescente imaturo. Antes do coro-
O olhar da cidadania
navírus, já era impossível pegar um
trem sem revelar o estado civil; usar
sua conta bancária on-line exigia tor-
nar seu número de celular conheci-

Na luta
do; andar por aí ao léu era certeza de
estar sendo filmado. Com a crise da
saúde, um novo passo foi dado. Em
Paris, os drones monitoram as áreas

pela
cujo acesso é proibido; na Coreia do
Sul, sensores alertam as autoridades
quando a temperatura de um resi-
dente representa um perigo para a
comunidade; na Polônia, as pessoas
precisam escolher entre a instalação
de um aplicativo de verificação de
construção
confinamento em seus celulares ou
visitas sem aviso prévio de policiais a
suas casas.3 Em tempos de catástrofe,
tais dispositivos de monitoramento de uma
são aprovados pela população. Mas
eles sempre sobrevivem às condições
que lhes deram origem.
As turbulências econômicas que
estão tomando forma também con-
sociedade
solidam um universo em que as liber-

mais justa,
dades estão se estreitando. Para evi-
tar qualquer contaminação, milhões
de lojas de alimentos, cafés, cinemas
e livrarias fecharam em todo o mun-

solidária e
do. Eles não dispõem de um serviço vamente, não se tratava de escolhas gadores, de seus operadores de caixa.
de entrega em domicílio e não têm a ditadas pelas leis da natureza. Hoje, Todo mundo também sabe quanto
chance de vender conteúdos virtuais. sem dúvida, entendemos melhor. O custa para o planeta ter sofrido des-
Após a crise, quantos deles serão rea- confinamento também é um mo- matamentos, deslocalizações, acú-

sustentável.
bertos e em que estado? Em compen- mento em que todo mundo para e mulo de dejetos, mobilidade perma-
sação, os negócios serão melhores pensa... nente – Paris recebe 38 milhões de
para gigantes da distribuição como a Com a preocupação de agir. Des- turistas todos os anos, mais de dezes-
Amazon, que se prepara para criar de já. Porque, ao contrário do que o sete vezes seu número de habitantes,
centenas de milhares de empregos presidente francês sugeriu, não é e se orgulha publicamente disso.
para motoristas e gerentes de manu- mais uma questão de “questionar o O protecionismo, a ecologia, a jus-
tenção, ou o Walmart, que anuncia o modelo de desenvolvimento com o tiça social e a saúde estão agora liga-
recrutamento adicional de 150 mil qual nosso mundo se comprometeu”. dos. Eles constituem os elementos-
“associados”. Quem melhor que eles A resposta é conhecida: é preciso al- -chave de uma coalizão política
para conhecer nossos gostos e nossas terá-lo. Desde já. E, já que “delegar anticapitalista poderosa o suficiente
Quartas, às 17h,
escolhas? Nesse sentido, a crise do nossa proteção a outras pessoas é para impor, desde já, um programa Rádio USP (São Paulo: 93,7 FM
coronavírus poderia constituir um loucura”, deixemos então de sofrer de ruptura.   Ribeirão Preto: 107,9 FM)
ensaio geral que prefigura a dissolu- dependências estratégicas para pre-
ção dos últimos focos de resistência servar um “mercado livre e sem dis- *Serge Halimi é diretor do Le Monde
ao capitalismo digital e o advento de torções”. Macron anunciou “decisões Diplomatique. Quartas, à meia-noite
uma sociedade sem contato.4 de ruptura”, mas ele nunca tomará TV Aberta SP, canais 9 da NET, 8 da
A menos que... A menos que vozes, aquelas que são necessárias. Não 1   L er Serge Halimi, “Le naufrage des dogmes Vivo Fibra e 186 da Vivo.
gestos, partidos, povos e Estados per- apenas a suspensão temporária, mas libéraux” [O naufrágio dos dogmas liberais], e
Frédéric Lordon, “Quand Wall Street est de-
turbem esse script escrito com ante- a denúncia definitiva dos tratados venu socialiste” [Quando Wall Street se tor-
cedência. É comum ouvir: “Política europeus e dos acordos de livre-co- nou socialista], Le Monde Diplomatique, res-
não é da minha conta”. Até o dia em mércio que sacrificaram as sobera- pectivamente, out. 1998 e out. 2008.
2   Ler Julien Brygo, “Peut-on encore vivre sans
que todos entenderem que foram as nias nacionais e erigiram a concor- Internet?” [Ainda podemos viver sem a inter-
escolhas políticas que forçaram os rência como valor absoluto. Desde já. net?], Le Monde Diplomatique, ago. 2020.
médicos a separar os pacientes que A partir de agora, todo mundo sabe o 3   C f. Samuel Kahn, “Les Polonais en quarantai- observatorio3setor
ne doivent se prendre en selfie pour prouver
eles tentarão salvar daqueles que de- que custa confiar a cadeias de supri- qu’ils sont chez eux” [Os poloneses em qua-
vem resolver sacrificar. Estamos nes- mentos espalhadas pelo mundo e rentena devem tirar selfies para provar que
estão em casa], Le Figaro, 24 mar. 2020.
se ponto. Isso é ainda mais verdadei- operando sem estoques a tarefa de
4   Craig Timberg, Drew Harwell, Laura Reiley e observatorio3setor
ro nos países da Europa central, nos abastecer um país em dificuldades Abha Bhattarai, “The new coronavirus eco-
Bálcãs e na África, que há anos veem com milhões de máscaras de saúde e nomy: A gigantic experiment reshaping how
seu pessoal médico emigrar para re- produtos farmacêuticos dos quais we work and live” [A nova economia do coro-
navírus: um experimento gigantesco que está www. observatorio3setor.org.br
giões menos ameaçadas ou para em- depende a vida de seus doentes, de remodelando a forma como trabalhamos e vi-
pregos mais bem remunerados. No- suas equipes médicas, de seus entre- vemos], The Washington Post, 22 mar. 2020.
4 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2020

EDITORIAL

A polícia política
POR SILVIO CACCIA BAVA

O
motim da Polícia Militar do combater o “inimigo interno”, ou se- anos, líder do Movimento dos Traba- foram consequência do enfrenta-
Ceará e a forma como o gover- ja, os críticos ao governo e todos lhadores Sem Teto de Minas Gerais, mento entre grupos rivais pelo con-
no federal tratou a questão aqueles que o governo viesse a desig- morto com um tiro na nuca pela PM trole do narcotráfico, o aumento da
abrem um novo momento na nar como seus inimigos. no dia 5 de março deste ano.2 criminalidade serviu aos interesses
escalada autoritária em nosso país. São muitos os comportamentos No motim ocorrido no Ceará, PMs da PM ao gerar pânico e insegurança
Para compreender o alcance dessa das PMs que ultrapassam os limites lançaram mão de ações intimidató- na população, situação que melhora
operação é preciso contextualizar es- legais, com a anuência de seus ofi- rias, ocuparam quartéis e buscaram as condições da negociação de seus
se motim e avaliar seus possíveis ciais superiores, dos governos e da disseminar o pânico na população. interesses na paralisação.
desdobramentos. Justiça. O terror imposto nas favelas Ao estilo das milícias, em carros par- Há a preocupação da parte de go-
Com uma estrutura herdada da pela PM desconhece os limites da lei. ticulares, com o rosto coberto – usan- vernadores que o motim venha a se
ditadura (1964-1985), as PMs contam O assassinato sistemático de jovens do balaclava – e de arma na mão, im- espalhar para outros estados. Ala-
com 425 mil policiais militares hoje negros moradores de favelas pela PM puseram ao comércio local toque de goas, Espírito Santo, Rio Grande do
no país,1 que devem obediência ao é denunciado como genocídio no recolher, e não se tem ideia ainda de Sul, Paraíba, Santa Catarina e Mato
governo de cada estado da Federa- âmbito internacional. A violenta re- quantos eles assassinaram. Grosso do Sul estão entre os estados
ção. Uma força armada maior que o pressão às mobilizações de rua, aos O estado registrou 456 homicídios onde as PMs expressam insatisfação.3
Exército brasileiro, que se estima te- protestos da cidadania, é outra face no mês, 312 deles durante a paralisa- O motim no Ceará e a insatisfação
nha 300 mil militares. Em sua cria- da atuação dessa força repressiva. A ção dos policiais militares, que durou em outros estados têm origem em
ção a PM foi concebida para o patru- tudo isso se somam as investidas da treze dias. Foram 26 homicídios por questões salariais e corporativas. Em
lhamento ostensivo e a preservação PM contra líderes de movimentos so- dia, num total de 292 assassinatos a sua maioria, as PMs estaduais não
da ordem. Durante o período da dita- ciais, alguns executados por poli- mais do que no ano anterior, um au- têm reajuste salarial há cinco ou seis
dura, a PM passou a ser comandada ciais. Um dos casos mais recentes é o mento de 178% no mês. Embora a im- anos. Além da questão salarial, entre
por oficiais do Exército e também a de Daniel de Oliveira dos Santos, 40 prensa tenha alegado que as mortes suas reivindicações está a unificação

© Claudius
ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 5

do plano de carreira em nível federal, querda não exercem de fato poder e constituem parte importante de sua própria PM, mas o motim continuou
o que inclui um novo plano de cargos controle sobre essa estrutura”.6 base eleitoral desde quando era de- tanto pelo interesse de suas lideran-
e salários, que viria a corrigir a exis- Roberto Romano, professor da putado federal. Pesquisas realizadas ças se projetarem eleitoralmente este
tência de legislações estaduais diver- Unicamp, denuncia que “é grave que em São Paulo antes das últimas elei- ano, como para promover o desgaste
sas e desencontradas. nenhum comandante militar se le- ções mostraram que 92% dos poli- do governo do PT. E o motim, agora se
Embora proibidas pela Constitui- vante contra tal desmonte do mono- ciais e suas famílias votariam em compreende, tem viés ideológico.
ção, as greves dos policiais militares pólio legítimo da força física. Há toda Bolsonaro.10 José Vicente da Silva Filho, coronel
foram 52 entre 1997 e 2017.4 Os movi- uma vasta operação para desmontar Se a afinidade com a PM vem de da reserva da PM, alerta para o uso
mentos paredistas na área da segu- o Estado brasileiro, aqui instaurando longe, lembremos também sua rela- político do motim, que constitui um
rança pública vêm se intensificando pequenas repúblicas conduzidas por ção de proximidade com Adriano foco de oposição nos estados admi-
desde 2013, impulsionados por suas milícias”.7 Magalhães da Nóbrega (ex-capitão do nistrados por governos de esquerda.
associações e pautas corporativas. As Bope) e Fabricio Queiroz (policial mi- Neste momento, com as revoltas
sucessivas anistias que o governo fe- BOLSONARO E AS PMS litar aposentado). Quando assumiu a das PMs podendo se alastrar por vá-
deral e estaduais deram aos amotina- A relação de Jair Bolsonaro com as Presidência da República, Jair Bolso- rios estados, o presidente propõe a
dos geraram a sensação de impuni- PMs vem de longa data, desde os tem- naro passou a defender abertamente criação da lei orgânica da PM, uma
dade e o empoderamento dessas pos em que o capitão, na ativa, em medidas em favor das PMs. Sua pre- antiga reivindicação da corporação
corporações. 1987, criticou na revista Veja a políti- sença em eventos nos quartéis refor- que está sendo elaborada, por inicia-
A situação se torna ainda mais de- ca salarial do Exército, ameaçou de çou suas relações com a corporação. tiva de Bolsonaro, em conjunto com
licada quando se verifica a letalidade morte uma jornalista e planejou em A reforma da Previdência favore- as associações de PMs, desde o ano
da ação desses policiais. Em 2019, a conjunto com outros militares colo- ceu os militares e o primeiro indulto passado. Trata-se de criar uma legis-
PM matou 6.220 pessoas, o que cor- car bombas em quartéis do Exército e natalino anistiou policiais militares. lação federal para a PM, com plano
responde a dezessete assassinatos explodir a adutora de água do Rio de Bolsonaro sancionou lei que abole a de carreira, de cargos e salários, que
por dia, segundo o Fórum Brasileiro Janeiro como formas de pressão para punição disciplinar na PM e encami- unificará as legislações estaduais e
de Segurança Pública.5 E é preciso a negociação salarial. nhou ao Congresso projeto de lei que (atenção!) sua visão de atuação. Com
considerar também o envolvimento Por unanimidade, em 19 de abril isenta de julgamento mortes violen- a lei orgânica, policiais acreditam
da PM com o crime organizado, com de 1988, o Conselho de Justificação tas provocadas por policiais milita- que terão mais autonomia em relação
as milícias. do Exército declarou Bolsonaro cul- res, o conhecido projeto de “exclu- aos governadores. O projeto de lei or-
O Conselho de Direitos Humanos pado das acusações a ele imputadas e dente de ilicitude” – na prática, gânica está sendo preparado para ser
das Nações Unidas recomendou, em decidiu que fosse “declarada sua in- licença para matar. enviado ao Congresso.
2012, a extinção da PM. A ONU de- compatibilidade para o oficialato e Há um interesse direto da Asso- Expressando sua preocupação, o
nuncia a existência no Brasil de es- consequente perda do posto e paten- ciação das Entidades Representativas governador de São Paulo, João Doria,
quadrões da morte formados por po- te, nos termos do artigo 16, inciso I da de PMs e Bombeiros Militares no ex- levanta questões quanto ao modo
liciais militares. lei n. 5836/72”.8 cludente de ilicitude. Em 2019, os ser- como o governo federal e o presiden-
Tomando conhecimento da pre- Esses fatos foram desconsidera- viços de inteligência apenas da PM te da República estão tratando o mo-
paração do motim da PM, com a ocu- dos no julgamento do Superior Tribu- paulista identificaram 845 mortes em tim do Ceará: é “o estímulo ao mili-
pação de quartéis, o Ministério Pú- nal Militar, que o inocentou em 16 de situações de “excludente de ilicitude” ciamento das polícias” e pode
blico do Ceará ingressou com uma junho de 1988, ignorando inclusive a – vale dizer, assassinatos. A Rota, tro- “comprometer essa relação institu-
Ação Civil Pública contra a Aspra (As- ameaça de morte feita pelo réu à re- pa de elite da PM paulista, matou 98% cional em todos os estados, não só
sociação dos Praças do Estado do pórter da revista durante seu mais pessoas em 2019 que no ano an- em São Paulo”.12
Ceará), a APS (Associação dos Profis- depoimento. terior; foram 101 pessoas, segundo a A situação é inquietante. Uma for-
sionais de Segurança Pública), a As- A notoriedade adquirida por Bol- ouvidoria da PM. ça militar com 425 mil homens arma-
sof (Associação dos Oficiais da Polí- sonaro na caserna se deveu à defesa dos pode tornar-se uma polícia polí-
cia Militar e do Corpo de Bombeiro que ele fez do aumento dos salários O MOTIM DO CEARÁ tica. Sem os controles e os limites
Militar do Estado do Ceará), a Aspra- para os militares, mesmo que para is- Bolsonaro e seu ministro da Justiça e impostos pela Constituição, essa for-
mece (Associação de Praças da Polí- so se utilizasse de insubordinação e da Segurança Pública, Sérgio Moro, ça militar corre o risco de ser tomada,
cia Militar e Corpo de Bombeiros Mi- terrorismo. Esse prestígio deu a ele a fizeram de tudo para não criticar o em sua direção, pelos fascistas que
litar do Ceará) e a ABSS (Associação possibilidade de se eleger vereador do motim da PM e seus responsáveis. O estão no governo. Sua identidade
Beneficente dos Subtenentes e Sar- Rio de Janeiro em 1988, com 11.062 diretor da Força Nacional de Segu- com Bolsonaro o coloca como o líder
gentos). A ação foi acatada e determi- votos, vindos em sua grande maioria rança Pública enviado por Moro ao a ser seguido, não importando as ins-
nou-se a prisão dos policiais milita- de militares e suas famílias. Ceará, coronel Aginaldo de Oliveira, tituições. 
res que aderirem ao movimento. Nem “A partir desta data, por norma da visitou um quartel amotinado e elo-
por isso policiais militares amotina- corporação, Bolsonaro entra para a giou os revoltosos. Essa atitude foi 1   IBGE, 2015.
2   Disponível em: www.metropoles.com/brasil/
dos deixaram de paralisar os serviços reserva não remunerada e, como ve- considerada pelo presidente da Co- coordenador-do-mtst-e-morto-pela-pm-em-u-
de segurança nas cidades e ocupar reador, inicia um intenso trabalho missão Nacional de Direitos Huma- berlandia.
quatro quartéis no estado. como defensor dos interesses da clas- nos da OAB, advogado Hélio Leitão, 3   “ Do Ceará a São Paulo, governadores vivem
embate com suas polícias”, Folha de S.Paulo,
Nesse cenário preocupante é pos- se militar, sem que para isso tenha um “empoderamento irresponsável 20 fev. 2020.
sível reconhecer certa autonomia das representatividade ou delegação, ar- das forças de segurança, que está se 4   José Vicente Tavares dos Santos e Ana Paula
PMs, que não se submetem nem ao guindo, contrapondo e acusando de convertendo em uma força política Rosa, UFRGS.
5   Anuário Brasileiro de Segurança Pública, ano
Exército nem aos governadores. A Ins- forma descabida autoridades consti- que coloca em risco a democracia”.11 13, 2019.
petoria Geral das Polícias Militares tuídas nos mais diversos níveis”.9 Vários dos líderes do motim são 6   André Barrocal, “Forças de segurança são
(IGPM), órgão do Exército brasileiro Eleito deputado federal em 1990, identificados como fiéis seguidores incontroláveis, não importa o partido”, Carta
Capital, 20 fev. 2020.
cujo objetivo são ações de controle ele defendeu, ao longo de seus sete de Bolsonaro. Capitão Wagner e Sol- 7   André Barrocal, op. cit.
sobre as polícias militares e os corpos mandatos consecutivos como depu- dado Noelio, deputados estaduais; 8   Eduardo Reina, “Os documentos que levaram
de bombeiros militares, não se mani- tado federal, as pautas da corporação Sargento Reginauro, vereador em o Exército a expulsar Bolsonaro: ‘a mentira do
capitão’”, DCM, 26 dez. 2018.
festou com relação ao motim. e a anistia aos amotinados em várias Fortaleza; Sargento Ailton, vereador 9   Relatório do CIE no item 14, página 2, informa-
Segundo o sociólogo José Claudio das insurreições das PMs. em Sobral; Cabo Sabino, ex-deputado ção n. 394, de 27 de julho de 1990. Citado
Souza Alves, da Universidade Federal Segundo o deputado Paulo Ramos federal. Essas lideranças apoiaram a por Reina, op. cit.
10  André Barrocal, op. cit.
Rural do Rio de Janeiro, especialista (PDT-RJ), ex-policial militar, há uma candidatura de Bolsonaro e apoiam 11 Rede Brasil Atual – Conversa Afiada –
em milícias, “a estrutura de seguran- proximidade ideológica entre Bolso- seu governo. 03/03/2020.
ça pública é algo incontrolável. Eles naro, que é repressor, e a PM, que é O governo do Ceará, do PT, havia 12  Igor Gielow, “Bolsonaro desrespeita Congres-
so e Judiciário e estimula ‘miliciamento’ de polí-
têm uma autonomia de atuação mui- repressiva. “Os policiais militares são feito um acordo salarial com a PM cias” (entrevista com o governador João Doria),
to grande. Mesmo governos de es- doentes por Bolsonaro”, diz ele, e que foi considerado muito bom pela Folha de S.Paulo, 14 de mar. 2020.
6 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2020

COBERTURA ESPECIAL – CORONAVÍRUS

Até o próximo fim do mundo...


A pandemia de Covid-19 transformou o mundo. Passear com um amigo é cada vez mais impensável quanto respeitar as
metas fiscais: o banal torna-se a exceção; o inimaginável, cotidiano. Enquanto alguns celebram a oportunidade de fazer
bons negócios (págs. 8, 12 e 18), outros se perguntam: salvar vidas justifica ameaçar o livre-comércio (pág. 10 e abaixo)?
Nos prontos-socorros como nas salas de reunião, uma questão lancinante se espalha: o vírus teria matado tanto se as
políticas de austeridade não tivessem desmantelado os serviços públicos (pág. 13)? No Brasil, a necessidade de ações
voltadas para a população trabalhadora e que convivem com condições de moradia inadequadas (pág. 16)
POR RENAUD LAMBERT E PIERRE RIMBERT*

A
arte da prestidigitação consiste registrados em 1970 foram reduzidos salvou vinte vezes o número de vidas dores da logística saídos por uma vez
em direcionar a atenção do pú- para 2,8 em 2016.1 Segundo a Organi- perdidas devido à doença. É menos das sombras por estarem expostos a
blico para que ele não perceba zação Mundial da Saúde (OMS), a Itá- uma questão de concluir que as pan- um risco que os mais abastados des-
o que está diante de seus olhos. lia tinha 9,22 leitos dedicados a “ca- demias são benéficas que de medir denham. Trabalhadores a distância
No coração da epidemia de Covid-19, sos graves” por mil habitantes em quão ruins são nossos sistemas eco- enclausurados em um apartamento
o truque de mágica tomou a forma de 1980, contra 2,75 trinta anos depois. nômicos para a saúde. Mesmo na au- apertado onde reinam os ruídos das
um gráfico de duas curvas, transmi- Em todos os lugares, uma palavra de sência de coronavírus”.4 O furo dessa crianças; pessoas sem-teto que gos-
tido por televisões de todo o mundo. ordem: reduzir custos. O hospital viagem para o país do absurdo não tariam muito de ficar em casa.
Na abscissa, o tempo; na ordenada, o funcionaria como uma fábrica de au- estava nem no risco de escassez de
número de casos graves da doença. tomóveis, no modo just in time. Como medicamentos após a deslocalização ABORDAGEM COLETIVA,
Uma primeira curva na forma de um resultado, em 6 de março, a Socieda- das cadeias produtivas nem na obsti- COORDENADA E AMPLA
pico agudo mostra o impacto da epi- de Italiana de Anestesia, Analgesia, nação dos mercados financeiros em Em sua “tipologia dos comportamen-
demia se nada for feito: ela quebra a Reanimação e Terapia Intensiva castigar a Itália quando o governo to- tos coletivos em tempos de peste” en-
reta horizontal que indica as capaci- (Siarti) comparou o trabalho dos mé- mava suas primeiras medidas sanitá- tre os séculos XIV e XVIII, o historia-
dades máximas de acolhimento dos dicos de emergência transalpinos à rias. Mas atrás das portas dos hospi- dor conservador Jean Delumeau
hospitais. A segunda curva ilustra “medicina de catástrofe”. E alertou: tais. Estabelecida em meados da observa esta invariante: “Quando
uma situação em que as medidas de dada a “falta de recursos”, “poderia década de 2000, a “tarifação da ativi- aparece o perigo do contágio, de iní-
confinamento permitem limitar a ser necessário estabelecer um limite dade” (T2A) proporcionou o finan- cio as pessoas tentam não enxergá-
propagação. Ligeiramente abobada- de idade para o acesso à terapia in- ciamento dos estabelecimentos pelo -lo”.5 O escritor alemão Heinrich Hei-
da, como um casco de tartaruga, ela tensiva.”2 “Medicina de guerra”: um número de procedimentos médicos ne observa que após o anúncio oficial
desliza para baixo do limiar fatídico. termo agora comum. realizados, cada um cobrado como da epidemia de cólera em Paris, em
Exibido de Washington a Paris, Assim, a crise do coronavírus se em uma loja, e não de acordo com o 1832, “os parisienses saracoteavam
passando por Seul, Roma e Dublin, o deve tanto à periculosidade da doen- planejamento de necessidades. Se ti- com ainda mais jovialidade nas ave-
gráfico aponta uma urgência: diluir o ça quanto à deterioração organizada vesse sido aplicado durante a crise nidas” pelo fato de “fazer um tempo
ritmo da contaminação ao longo do do sistema de saúde. Eterna câmara atual, esse princípio do cuidado-mer- ensolarado e agradável”.6 Em segui-
tempo para evitar a saturação dos ser- de ressonância do credo contábil, a cadoria importado dos Estados Uni- da, os ricos fugiram para o campo.
viços de saúde. Chamando atenção grande mídia evitou o exame crítico dos rapidamente teria estrangulado Depois, o governo colocou a cidade
para as duas ondulações, os jornalis- dessas opções para convidar leitores os estabelecimentos que recebem os em quarentena. Então, de repente,
tas escondem um elemento importan- e ouvintes para um debate filosófico pacientes mais afetados, uma vez que explica Delumeau, “os laços familia-
te: essa linha reta, discreta, no meio estonteante: como decidir quem sal- as formas críticas do Covid-19 exigem res foram abolidos. A insegurança
do gráfico, que representa o número var e quem deixar morrer? Dessa vez, antes de tudo a aplicação de uma não surgiu apenas da presença da
de leitos disponíveis para acomodar porém, será difícil esconder a ques- ventilação mecânica, um procedi- doença, mas também de uma deses-
os casos graves. Apresentado como tão política por trás de um dilema éti- mento oneroso em termos de tempo, truturação dos elementos que cons-
um dado caído do céu, esse “limiar co. A epidemia de Covid-19 desvela mas menos remunerador na grade ta- truíam o ambiente cotidiano. Tudo
crítico” deriva de escolhas políticas. aos olhos de todos uma organização rifária que muitos exames negados ficou diferente”. Os habitantes confi-
Se é necessário “achatar a curva”, econômica ainda mais aberrante do por causa da epidemia... nados de Wuhan, Roma, Madri ou
é porque há décadas as políticas de que todos suspeitavam. Enquanto as Por um tempo, o micróbio por trás Paris experimentam isso em uma es-
austeridade diminuíram a altura da companhias aéreas operavam seus das medidas de confinamento mais cala sem precedentes.
reta ao retirar dos serviços de saúde aviões vazios para manter os slots severas já imaginadas em tempos de As grandes pestes da Idade Média
sua capacidade de acolhimento. Em abertos, um pesquisador explicava paz pareceu romper as barreiras do e do Renascimento eram frequente-
1980, a França dispunha de onze lei- como a burocracia liberal tinha de- espaço social: o banqueiro de Wall mente interpretadas como um sinal
tos hospitalares (todos os serviços sencorajado a pesquisa básica sobre Street e o trabalhador chinês não do Juízo Final ou da fúria de um Deus
combinados) por mil habitantes. Ho- os coronavírus.3 Como se fosse preci- eram subitamente submetidos à mes- vingador desencadeada sobre um
je há apenas seis, que um ministro da so sair do habitual para entender o ma ameaça? E então o dinheiro reto- mundo que chegava ao fim. Então,
Saúde macronista propunha em se- desvio, Marshall Burke, professor de mou seus direitos. De um lado, os cada um se virava alternadamente
tembro entregar aos bons cuidados Ciência de Ecossistemas da Universi- confinados das mansões, que traba- em direção ao céu para implorar gra-
dos bed managers (administradores dade de Stanford, observou esse pa- lham a distância com um pé na pisci- ça e em direção à vizinhança em bus-
de leitos), responsáveis por alocar es- radoxo: “A redução da poluição at- na; de outro, os invisíveis do cotidia- ca de culpados – os judeus, as mulhe-
se recurso escasso. Nos Estados Uni- mosférica causada pela epidemia de no, cuidadores, agentes de superfície, res. Na Europa do século XXI, a
dos, os 7,9 leitos por mil habitantes Covid-19 na China provavelmente caixas de supermercado e trabalha- epidemia de coronavírus se abate so-
ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 7

© Giorgia Massetani
bre sociedades secularizadas, mas, além do cálculo de custo/benefício e
desde a crise financeira de 2008, afe- implementar um planejamento eco-
tadas em graus variados pelo senti- lógico envolveria socializar a maioria
mento de uma “perda de controle” dos serviços essenciais à vida das so-
ecológica, política, financeira, demo- ciedades modernas, da limpeza às re-
gráfica, migratória etc. des digitais, passando pela saúde:
Nessa atmosfera de “fim do mun- uma oscilação tamanha que rara-
do”, em que se misturam imagens da mente ocorre em tempos comuns. O
Notre-Dame de Paris em chamas e olhar de um historiador sugere que as
debates sobre o colapso que se apro- mudanças de regime, trajetória, mo-
xima, os olhos se voltam para o poder do de pensar a vida coletiva e a igual-
público: o Estado, fonte de agrava- dade permanecem fora do alcance
mento do problema por sua obstina- das deliberações políticas comuns.
ção em quebrar o sistema de saúde e “Em todos os momentos”, escreve o
única instância, no entanto, capaz de historiador austríaco Walter Scheidel,
ordenar e coordenar uma resposta à professor de Stanford, “os maiores
epidemia. Mas até onde ir? Durante o achatamentos resultaram dos cho-
mês de fevereiro, o confinamento ques mais severos. Assim, quatro ti-
obrigatório por várias semanas de 56 pos de rupturas violentas consegui-
milhões de habitantes de Hubei, na ram aplanar as desigualdades: guerra,
China, o fechamento forçado das fá- quando envolveu uma mobilização
bricas, o chamado à ordem dos mora- em massa, as revoluções, as falências
dores da cidade por drones equipa- estatais e as pandemias mortais”.11
dos com câmeras e megafones Estaríamos nessa situação? Por outro
provocaram na Europa comentários lado, o sistema econômico mostrou
ridículos ou circunspectos sobre o ao longo de sua história uma extraor-
punho de ferro do Partido Comunis- dinária capacidade de absorver os
ta. “Nenhuma lição pode ser aprendi- choques cada vez mais frequentes a
da com a experiência chinesa sobre a que sua irracionalidade dá origem.
duração potencial da epidemia”, ex- Tanto é assim que as convulsões mais
plicou a revista L’Express, em 5 de brutais geralmente beneficiam os fia-
março. “Ela desacelerou lá por causa dores do status quo, que se apoiam na
de medidas drásticas de confina- catástrofe para estender o domínio do
mento, provavelmente inaplicáveis mercado. Esse capitalismo do desas-
em nossas democracias.” Cansados tre dissecado pouco antes da grande
diante dos vírus insensíveis à supe- recessão de 2008 por Naomi Klein
rioridade de “nossos” valores, deve- zomba do esgotamento de recursos
mos decidir colocar a decisão centra- naturais e das instituições de prote-
lizada no primeiro plano e o ção social capazes de amortecer as
liberalismo econômico no segundo. crises. Num ímpeto de otimismo, a
O diretor-geral da Organização cionismo, como Daniel Cohen, se se- cionalidade do mercado que fixa um ensaísta canadense observou: “Nem
Mundial da Saúde (OMS), Tedros guem há anos. preço de acordo com a oferta e a pro- sempre reagimos a choques regredin-
Adhanom Ghebreyesus, especifica cura, desconsidera o improvável e do. Em tempos de crise, às vezes cres-
que “é possível repelir a epidemia, A IGNORÂNCIA DOS ESPECIALISTAS modela o futuro por meio de equa- cemos – e rápido”.
mas apenas com base em uma abor- É preciso que a razão de mercado te- ções em que as sociedades não valem É uma impressão desse tipo que o
dagem coletiva, coordenada e am- nha reconfigurado profundamente os nada. Essa cegueira da economia-pa- presidente francês Emmanuel Ma-
pla, que envolva todo o maquiná- entendimentos para que apenas a drão, elevada a seu ponto mais alto cron quis passar ao expressar, em 12
rio.”7 Coletivo, coordenação, Estado: eclosão de uma pandemia mortal nas salas de negociação, atingiu o ex- de março de 2020, seu desejo de
o inverso do mercado. Em alguns possa tornar audíveis ao poder os -corretor e estatístico Nassim Nicho- “questionar o modelo de desenvolvi-
dias, as estruturas de interpretação truísmos que os profissionais da área las Taleb. Em um livro publicado al- mento em que nosso mundo se lan-
do mundo social se revertem como médica enunciaram durante décadas: guns meses antes da crise de 2008, ele çou há décadas e que revela suas fa-
uma luva: “Tudo está diferente”. As “Sim, deve haver uma estrutura hos- observou sobre os futurólogos de cur- lhas à luz do dia, questionar as
noções de soberania, de fronteira, de pitalar pública com leitos permanen- to prazo: “O problema com os espe- fraquezas de nossas democracias. O
limite e até de despesas públicas, as- temente disponíveis”, resumiram os cialistas é que eles não têm ideia do que essa pandemia revela a partir de
sociadas há meio século nos discur- médicos André Grimaldi, Anne Ger- que estão ignorando”.9 Negligenciar o agora é que os cuidados de saúde gra-
sos públicos ao “nacional-populis- vais Hasenknopf e Olivier Milleron. imprevisto em um mundo marcado tuitos, independentemente da renda,
mo” ou à Coreia do Norte, de repente “O novo coronavírus tem o mérito de pela multiplicação de eventos inespe- carreira ou profissão, e nosso Estado
tomam a forma de uma solução em lembrar o óbvio: não pagamos aos rados, os “cisnes negros”, é, segundo de bem-estar não são custos ou en-
um mundo até então regulado pelo bombeiros apenas para ir apagar o fo- ele, absurdo. No final de março de cargos, mas bens preciosos, bens es-
culto aos fluxos e à austeridade go, queremos que eles estejam presen- 2020, qualquer um que ouvisse à sua senciais quando o destino ataca. O
orçamentária. tes e prontos em seus quartéis, mesmo janela o argumento do silêncio da ci- que essa pandemia revela é que exis-
Estimulada pelo pânico, a van- quando estão apenas polindo o cami- dade confinada podia meditar sobre a tem bens e serviços que devem ser
guarda editocrática de repente des- nhão enquanto aguardam a sirene.”8 obstinação do Estado em se despojar colocados fora das leis do mercado.
cobre aquilo que estava tentando ig- Prever o que acontece sem aviso não apenas dos leitos de reanimação, Delegar nossa alimentação, nossa
norar. “Não podemos dizer também (incêndio, doença, cataclismo, crise mas também de seus instrumentos de proteção, nossa capacidade de cuidar
que, no fundo, essa crise nos convida financeira): foi incorporando essa de- planejamento, agora monopolizados de nosso ambiente de vida a outras
a repensar áreas inteiras da globali- manda popular em suas instituições, por algumas multinacionais de segu- pessoas é loucura. Devemos recupe-
zação: nossa dependência da China, muitas vezes contra sua vontade, que ro e de resseguro.10 rar o controle disso tudo”. Três dias
do livre-comércio e do avião?”, per- o capitalismo se perpetuou e se reno- A fissura causada pela pandemia depois, ele adiava a reforma da previ-
guntou na France Inter, em 9 de mar- vou entre a crise de 1929 e o fim da Se- pode reverter esse curso? Reimplan- dência, outra do auxílio-desemprego,
ço, Nicolas Demorand, ao microfone gunda Guerra Mundial. Planejar o tar o eventual e o fortuito na condu- depois decretava a implementação
diante do qual os carrascos do prote- inesperado exigia romper com a ra- ção dos assuntos públicos, enxergar de medidas consideradas até então
8 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2020

A FEBRIL INDÚSTRIA DO VÍRUS

Uma mina de ouro


impossíveis – limitação das demis-
sões, abandono de todas as restrições
orçamentárias. As circunstâncias
acentuarão por si mesmas essa redu-

para os laboratórios
ção: com o colapso dos valores do
mercado de ações, a obsessão do pre-
sidente em levar a poupança e as
pensões dos executivos para os mer-
cados de ações soa como um golpe de
gênio visionário. No entanto, suspen-
der a lei trabalhista, restringir as li- A França revelou-se incapaz de rastrear maciçamente os doentes com Covid-19,
berdades públicas, financiar as em- revelando a dependência da saúde pública em relação aos laboratórios privados
presas de guichês abertos, isentá-las
das contribuições para a previdência POR QUENTIN RAVELLI*
social nas quais se ampara o sistema
de saúde não marca uma ruptura ra-
dical com as políticas anteriores. Es-
sa transferência maciça de dinheiro © Deposit Photos
público para o setor privado é uma ideia da rentabilidade econômica da
reminiscência do resgate dos bancos saúde, justificando cortes orçamen-
pelo Estado em 2008. A conta tinha tários cada vez mais restritivos para
assumido a forma de austeridade im- funcionários e pacientes. Na França,
posta aos funcionários e serviços pú- com a saturação das salas de reani-
blicos. Menos leitos? Sim: era preciso mação e dos serviços de emergência,
socorrer os bancos. já lutando há meses no coletivo Inter-
É por isso que a epifania do chefe -urgences para pedir mais recursos,
de Estado evoca aquela que atingiu os profissionais devem fazer esco-
Nicolas Sarkozy em um dia de setem- lhas dramáticas entre os cuidados
bro de 2008, logo após o colapso do vitais, cuja lista está diminuindo, e
Lehman Brothers. Diante de seus aqueles que são sacrificados, sempre
apoiadores estupefatos, o presidente mais numerosos. Em alguns casos,
da República anunciou solenemente: como na Alsácia, a questão já passa a
“Uma ideia de globalização termina ser quem deve ser mantido vivo e
com o fim de um capitalismo finan- quem se deve deixar morrer. Mas co-
ceiro que havia imposto sua lógica a mo explicar que, em 22 de março, já
toda a economia e tinha contribuído houvesse 271 mortos na região do
para pervertê-la. [...] A ideia de que os Grande Leste, enquanto a poucos
mercados estão sempre certos era passos de distância, do outro lado do
uma ideia louca”.12 Algo que não o im- Reno, em Baden-Württemberg, onde
pediu de, passada a tempestade, reto- a população é duas vezes maior e a
mar o curso da loucura habitual.  epidemia mais precoce, houvesse
apenas 23, ou seja, mais de dez vezes
*Renaud Lambert  e Pierre Rimbert são menos?
jornalistas do Le Monde Diplomatique. Uma das respostas a essa pergun-
ta pode ser encontrada no papel po-
1   F onte: OCDE. 85% dos remédios são consumidos em países com 17% da população mundial lítico que a indústria farmacêutica
2   “ Raccomandazioni di etica clinica per l’ammis-
desempenha em nossos sistemas de

A
sione a trattamenti intensivi e per la loro sos-
pensione” [Procedimentos clínicos éticos s crises econômicas são tão se- fermagem, e os testes de triagem per- saúde. É ela quem produz as ferra-
para a admissão em tratamentos intensivos e letivas quanto as epidemias: manecem inacessíveis à grande mentas que permitem fazer a tria-
para sua suspensão], Siaarti, Roma, 6 mar.
2020. em meados de março, enquan- maioria após três meses de epidemia? gem do vírus, nos vacinar contra ele
3   Bruno Canard, “J’ai pensé que vous avions to as Bolsas de Valores entra- Por que esses testes estão no centro ou tratá-lo. Ainda que a França seja
momentanément perdu la partie” [Eu pensei vam em colapso, as ações do labora- do debate global, da Coreia do Sul aos extremamente carente dos kits de
que havíamos perdido temporariamente o
jogo], declaração de 5 mar. 2020, disponível tório farmacêutico Gilead subiam Estados Unidos, passando pela Ale- triagem – cuja tecnologia por reação
no site da Academia, https://academia.hypo- 20% após o anúncio dos testes clíni- manha, Austrália e Lombardia, mas de polimerase em cadeia (PCR) iden-
theses.org. cos do remdesivir contra a Covid-19. continuam sendo cuidadosamente tifica o vírus amplificando seu DNA
4   Twitter, 9 mar. 2020.
5   Jean Delumeau, La Peur en Occident, XIVe-X- As da Inovio Pharmaceuticals au- evitados na França, onde o diretor- –, estes são, no entanto, simples de
VIIIe siècle [Medo no Ocidente, séculos XIV- mentavam 200% após o anúncio de -geral de Saúde, Jérôme Salomon, só fabricar. Muitas empresas se lança-
-XVIII], Fayard, Paris, 1978. uma vacina experimental, a INO- considera seu uso maciço “no final do ram nesse mercado colossal, que
6   Heinrich (Henri) Heine, De la France, Galli-
mard, Paris, 1994. 4800. As da Alpha Pro Tech, fabrican- confinamento”? Ao contrário dos acaba de emergir como um gêiser:
7   New York Times, 9 mar. 2020. te de máscaras de proteção, saltaram anúncios do governo, longe de ser Abbott, Quiagen, Quest Diagnostics,
8   Le Monde, 11 mar. 2020. 232%. Quanto às ações da Co-Diag- uma guerra contra um vírus cuja úni- Thermo Fischer, Roche, BioMé-
9   Nassim Nicholas Taleb, The Black Swan. The
Impact of the Highly Improbable [O cisne ne- nostics, subiram mais de 1.370% gra- ca arma seria a quarentena, a batalha rieux... A técnica é barata – cerca de
gro. O impacto do altamente improvável], ças ao seu kit de diagnóstico molecu- diz respeito à nossa própria organiza- 12 euros por um kit vendido por 112
Random House, Nova York, 2007. lar do Coronavírus 2 da Síndrome ção econômica e social. É uma crise euros na França, dos quais 54 euros
10  Razmig Keucheyan, La Nature est un champ
de bataille. Essai d’écologie politique [A natu- Respiratória Aguda Grave (Sars- de nossa política de saúde, pesquisa e cobrados dos pacientes. No entanto,
reza é um campo de batalha. Ensaio de ecolo- -Cov-2), responsável pela pandemia produção, na qual a indústria farma- ela pode ser objeto de acordos tarifá-
gia política], La Découverte, Paris, 2014. de Covid-19. cêutica desempenha um papel cen- rios proibitivos em um contexto de
11  Walter Scheidel, The Great Leveler. Violence
and the History of Inequality from the Stone Como explicar que, no centro da tral, mas cuidadosamente mantido a monopolização do mercado entre al-
Age to the 21st Century [O grande nivelador. turbulência, seja possível enriquecer distância do debate público. gumas grandes empresas, como Ab-
A violência e a história da desigualdade desde assim, mesmo quando há falta de Nas últimas semanas, a pande- bott ou Roche, que vende platafor-
a Idade da Pedra até o século XXI], Princeton
University Press, 2017. máscaras de proteção, inclusive para mia de coronavírus revelou as falhas mas tecnológicas caras a laboratórios
12  Discurso de Toulon, 25 set. 2008. os médicos e para as equipes de en- de um modelo social baseado na menores.1
ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 9

MAIS PESQUISAS SOBRE chinês, o favipiravir – o princípio ati- tes, cuja terceira arma – as vacinas – Comissão Europeia, dizendo que era
OBESIDADE QUE INFECÇÕES vo do antigripal Avigan, produzido já está repleta de exemplos. Donald preciso se antecipar”.3 O pesquisador
Mesmo com essas limitações econô- pela empresa japonesa Fujifilm – te- Trump, por exemplo, propõe a com- pode afirmar que “a ciência básica é
micas, como explicar que a França ria dado “resultados muito bons” pra da patente da vacina contra o co- nosso melhor seguro contra epide-
tenha realizado, em 20 de março, contra o vírus, reduzindo o tempo de ronavírus da empresa alemã CureVac mias”4 e constatar que certos ramos
quase metade do número de testes cura. Outro candidato, o Kezvara, um para uso “somente nos Estados Uni- da virologia e da bacteriologia per-
por milhão de habitantes que o Irã ou anticorpo monoclonal que inibe os dos”, causando uma recusa categóri- manecem os primos pobres da pes-
a Áustria? Que, com menos de 40 mil receptores da interleucina-6, indica- ca por Angela Merkel e uma conces- quisa – quer se trate de pesquisa far-
testes realizados até essa data, esteja do para a poliartrite reumatoide, ava- são relâmpago de 80 milhões de macêutica aplicada ou microbiologia
muito atrás dos 316.644 da Coreia do liado numa parceria entre Sanofi e euros da União Europeia. Essa corri- básica. O “chamado instantâneo” da
Sul, dos 167 mil da Alemanha, dos Regeneron, poderia reduzir a reação da diplomática, não desprovida de Agência Nacional de Pesquisa, dota-
143.619 da Rússia ou dos 113.615 da pulmonar inflamatória do vírus em segundas intenções eleitorais, reflete do de 3 milhões de euros, parece irri-
Austrália? 2 Na Coreia do Sul, as pes- pacientes gravemente afetados pela uma realidade industrial: como a sório quando chega após anos de de-
soas podem ser testadas no carro ou Covid-19. Essas reconversões de mo- pesquisa é feita principalmente por sinvestimento e de outras epidemias
em cabines de vidro, onde os profis- léculas em regime de urgência signi- incentivo financeiro e por patentes, semelhantes. Após o coronavírus
sionais colhem amostras com luvas ficam uma falta de planejamento pa- as grandes empresas farmacêuticas responsável pela síndrome respirató-
de borracha. A triagem sistemática, ra problemas de saúde e uma estão reduzindo seus investimentos ria do Oriente Médio (Mers) em 2015
acompanhada do monitoramento de febrilidade oportunista em vez de em áreas médicas essenciais, das e pela Sars de 2003, que surgiu na
cada pessoa infectada, possibilita uma política industrial. quais fazem parte as infecções, se- China (8.096 pessoas infectadas em
romper as cadeias de transmissão, jam elas bacterianas ou virais. Mas cerca de trinta países, causando 774
isolando aqueles que estão doentes, e aqui novamente o ritmo real da pes- mortes), a Coreia do Sul finalmente
não os outros. Consequentemente, as A França realizou, em 20 quisa não está adaptado: a empresa reorientou suas políticas de saúde
medidas de confinamento são muito de março, quase metade Moderna Therapeutics, considerada pública e preparou as bases para sua
menos restritivas, a taxa de mortali- a primeira a desenvolver uma vacina, ação atual. Para que os governos se
dade dos pacientes positivos é mais
do número de testes por só poderá colocá-la no mercado da- lembrem, o trauma obviamente pre-
baixa e, acima de tudo, o número de milhão de habitantes qui a vários meses – o que não impe- cisa ser forte e repetido. E, mesmo as-
mortes é bem menos elevado que na que o Irã ou a Áustria diu que suas ações dessem um salto sim, geralmente é a amnésia que pre-
França, apesar da proximidade do fo- após o anúncio de seu projeto. valece. 
co infeccioso chinês. Muitos diriam que, por definição, Esses impasses da pesquisa priva-
Se a triagem é um dos pontos cegos é impossível predizer uma pandemia da não são compensados pela pes- *Quentin Ravelli é pesquisador do Cen-
da luta francesa contra a epidemia, e que a pesquisa está fadada a ser pe- quisa pública. Os cortes orçamentá- tre National de la Recherche Scientifique,
também existe outro ponto cego no ga de surpresa. Esse argumento não rios geralmente caem como da França, e autor de La stratégie de la
interior deste: a escassez de reagentes, se sustenta: podemos prever, orientar guilhotinas em projetos paciente- bactérie [A estratégia da bactéria], Le
esses componentes químicos essen- a pesquisa com base em uma visão mente desenvolvidos. Em 4 de março, Seuil, Paris, 2015.
ciais para a triagem, que atestam a geral da ciência, da medicina, da eco- o pesquisador Bruno Canard, espe-
presença do vírus. Dessas moléculas logia. Essas pesquisas não podem ser cialista em replicação dos “vírus para 1   C omunicado de imprensa, Observatoire de la
quase nada se sabe: nem de onde elas realizadas a curto prazo, com impe- RNA” – um vírus cujo material gené- Transparence dans les Politiques du Médica-
ment [Observatório da Transparência nas Po-
vêm, nem para que servem, nem rativos de lucro. Elas são conduzidas tico consiste em ácido ribonucleico –, líticas de Medicamentos], 18 mar. 2020.
quanto custam realmente. Por que a longo prazo, de acordo com as reais como o coronavírus, explicava numa 2   Esteban Ortiz-Espina e Joe Hasell, “How
não levantar todos os segredos indus- necessidades da população. No en- coluna: “A partir de 2006, o interesse many tests for Covid-19 are being performed
around the world?” [Quantos testes para o
triais, todos os segredos comerciais e tanto, essas necessidades não corres- dos políticos pelo Sars-CoV desapa- Covid-19 estão sendo realizados em todo o
todas as patentes sobre a composição pondem estruturalmente aos merca- receu; não sabíamos se ele voltaria. A mundo?], plataforma de dados Our World in
desses reagentes tão preciosos para a dos solventes: 85% dos medicamentos Europa se retirou desses grandes pro- Data, 20 mar. 2020. Disponível em: https://
ourworldindata.org.
saúde de bilhões de seres humanos, e são consumidos em países que abri- jetos de antecipação em nome da sa- 3   Bruno Canard, “Coronavirus: la science ne
conscientizar o público sobre a ori- gam 17% da população mundial, e há tisfação dos contribuintes. Agora, marche pas dans l’urgence!” [Coronavírus: a
gem de suas matérias-primas, bem mais pesquisas sobre medicamentos quando um vírus emerge, pede-se ciência não funciona em termos de urgên-
cia!], site Université ouverte, 4 mar. 2020.
como sobre as vias de sua fabricação? para depressão e obesidade que para aos pesquisadores que se mobilizem Disponível em: https://universiteouverte.org.
Além da triagem, a segunda arma doenças infecciosas, que são a princi- urgentemente e encontrem uma so- 4   Bruno Canard, “La science fondamentale est
essencial nessa guerra é a da droga pal causa de mortalidade no mundo. lução para o dia seguinte. Com cole- notre meilleure assurance contre les épidé-
mies” [A ciência básica é nosso melhor segu-
que permitiria curar a Covid-19. De Quando a crise ocorre, essa dis- gas belgas e holandeses, enviamos há ro contra epidemias], CNRS Le Journal, 13
acordo com um anúncio do governo crepância leva a situações aberran- cinco anos duas cartas de intenção à mar. 2020.
10 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2020

ESTRATÉGIA DA IMUNIDADE COLETIVA NO REINO UNIDO

A tentação indivíduos em risco (idosos ou so-


frendo de comorbidades), para que
estes se beneficiassem da imunidade
asiáticos (China, Cingapura, Taiwan)
sobre o Sars-CoV-2 graças à proibição
do movimento de populações seria

de recorrer
adquirida pelos primeiros. Embora uma farsa segundo essa teoria, pois,
apenas os britânicos tenham se atre- assim que os países se reabrissem ao
vido a expor essa abordagem de for- movimento interno e externo de pes-
ma explícita, outros a consideraram. soas – uma abertura percebida pelos

ao “inevitável”
Quando o primeiro-ministro ho- especialistas britânicos como um
landês, Mark Rutte, diz que espera princípio inevitável da organização
que 60% da população da Holanda das sociedades –, novos focos de in-
seja infectada eventualmente,3 ele fecção apareceriam e exigiriam novas
não diz nada demais. Os Estados Uni- e caras medidas de bloqueio. Essa si-
dos também aplicaram tal aborda- tuação já é confirmada pela “impor-
Preocupado com os riscos de estagnação econômica, gem durante a primeira fase da epi- tação” de novos casos chineses.5 Con-
o primeiro-ministro britânico Boris Johnson lançou demia: enquanto, em meados de sequentemente, não há outra solução:
março, o vírus Sars-Cov-2 circulava o vírus precisa se espalhar, mas retar-
uma aposta arriscada: a da imunidade coletiva. no território norte-americano e a dando sua circulação.
Em poucos dias, deu uma guinada de 180º grande maioria dos casos não estava
ligada a nenhum foco identificado, o ABORDAGEM LIBERAL
POR THÉO BOURGERON* governo federal tomou apenas medi- DAS EPIDEMIAS
das menores ou simbólicas (como a A ordem neoliberal segredou suas re-
© REUTERS/Hannah McKay interrupção de voos de países em ris- gras e suas instâncias de coordena-
co), deixando para cada estado fede- ção internacional no campo das epi-
rado ou até para cada agência de saú- demias, sendo a linha de frente a
de os cuidados para gerenciar o risco, OMS. A instituição defende uma
em um país onde quase 27,5 milhões abordagem global do problema e pro-
de pessoas não têm acesso à cobertu- move o gerenciamento “aberto” da
ra de saúde e um dia de hospitaliza- disseminação de vírus: ela se apoia
ção custa, em média, R$ 21 mil. Até o no confinamento de cidades e re-
reforço das medidas de distancia- giões decretado pelos Estados dos
mento social anunciadas em 12 de países afetados, mas recusa o fecha-
março, a doutrina francesa não esta- mento de fronteiras (descrito como
va radicalmente distante desta. contraproducente por não ser 100%
A abordagem britânica, porém, eficaz e impedir a rastreabilidade dos
mostra uma tendência neoliberal e li- pacientes) e defende o embargo de
bertária da ordem das coisas, em um insumos médicos – gerando compor-
mundo “aberto” caracterizado por tamentos de pânico que levam ao ex-
sistemas de saúde e sanitários desi- cesso de armazenamento nos países
guais. Segundo Patrick Vallance, ex- que aguardam a epidemia e à penúria
-diretor de pesquisa e desenvolvi- nos países já amplamente afetados
mento da gigante farmacêutica pela pandemia. Em suma, essa orga-
GlaxoSmithKline (GSK), que se tor- nização constitui o cerne de um con-
O primeiro-ministro, Boris Johnson, primeiro optou por “criar imunidade de grupo” nou o principal consultor científico junto de regras multilaterais destina-
do governo britânico, o coronavírus das a gerenciar epidemias em um

E
m 12 de março, o primeiro-mi- mortos.2 Sob tais circunstâncias, necessariamente continuará a circu- mundo composto por Estados supos-
nistro britânico, Boris Johnson, Johnson reconheceu em 12 de março: lar e poderá se tornar anual. Se é pos- tamente cooperativos, mas dos quais
anunciou que levaria seu país a “Todos precisam se preparar para a sível contê-la completamente por um bom número rejeita precisamen-
uma aposta arriscada. Ao con- perda precoce de entes queridos”. meio de medidas drásticas como os te a ordem do jogo internacional mul-
trário da doutrina de confinamento Diante da pressão da Organização chineses fizeram, não é concebível tilateral herdado das décadas de 1990
radical decretada por vários países Mundial da Saúde (OMS), da opinião que um país como o Reino Unido e 2000. E, entre estes, o principal são
asiáticos e pela Itália, o Reino Unido pública e de muitos cientistas, o pri- apoie confinamentos de mais de al- os Estados Unidos.
decidiu “conter [...] mas não erradi- meiro-ministro ajustou sua política gumas semanas – menos ainda se a Um exemplo: como as regras da
car o vírus”, a fim de “criar imunida- quatro dias depois. Finalmente, proi- situação se repetir todo ano. Vallance OMS podem se aplicar a um país co-
de de grupo” dentro a população:1 biu certas reuniões esportivas, impôs baseia-se aqui no conceito de “fadiga mo o Irã, submetido a um embargo
sem confinamento de indivíduos, confinamentos aos doentes e elevou social”, desenvolvido pela Equipe de norte-americano, obrigado a comer-
sem fechamento de escolas ou mes- a perspectiva de um aperto gradual Percepções Comportamentais, ou cializar com a China para sua sobre-
mo proibição de grandes eventos, das políticas de distanciamento so- “Unidade Nudge”, célula de economia vivência apesar da epidemia e para o
principalmente os futebolísticos. cial de acordo com a taxa de preen- comportamental criada em 2014 por qual até o direito soberano de receber
Sem conhecer o nível exato de chimento de UTIs no país – sem, no David Cameron junto ao Gabinete do ajuda humanitária é questionado? 6
contaminação necessário para a entanto, mudar radicalmente a aná- primeiro-ministro britânico para in- Deixar essa potência regional de 81
imunidade desse grupo (a proporção lise de que se trata de uma epidemia troduzir o behaviorismo nas princi- milhões de habitantes tornar-se um
da população que deveria ser conta- “inevitável”. pais decisões governamentais do repositório de Covid-19 é condenar a
minada para que o vírus parasse de Do ponto de vista científico, con- país.4 Essa estrutura foi reforçada pela Europa e a Ásia ao constante ressur-
se espalhar), especialistas do gover- tudo, a abordagem britânica inicial- chegada, à Downing Street n. 10, de gimento de contaminações.
no britânico definiram como hipóte- mente desenvolvida não era irracio- Dominic Cummings, consultor espe- A doutrina britânica é um novo
se pessimista a taxa de 80% da popu- nal. Em vez de procurar erradicar a cial de Boris Johnson, ele próprio um passo na abordagem liberal das epi-
lação britânica. O benefício de tal epidemia, concentrava-se em con- fervoroso admirador da economia demias. Desenvolvida entre 2010 e
estratégia? Assim que a meta for al- trolar a propagação do vírus na po- comportamental. Medidas estritas de 2017 por meio de vários relatórios do
cançada, o Reino Unido poderá pros- pulação. O objetivo era evitar uma contenção não são apenas prejudi- Ministério da Saúde e do Serviço Na-
perar novamente no comércio inter- disseminação descontrolada, con- ciais do ponto de vista econômico, cional de Saúde (NHS), baseia-se não
nacional sem medo de focos futuros centrando a infecção nas pessoas mas também socialmente insustentá- apenas em pesquisadores e médicos
de contágio. Seu custo? Até 500 mil menos vulneráveis e confinando os veis a longo prazo. A vitória dos países de epidemiologia matemática, mas
ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 11

também em psicólogos sociais e eco- nês. Em fevereiro, o editorialista do MAIS LIBERDADE AOS GOVERNOS? *Théo Bourgeron,  pós-doutor em Econo-
nomistas comportamentais, reunidos France Culture Brice Couturier cha- No entanto, essa pandemia também mia Política e Sociologia da Saúde da Uni-
no grupo consultivo da estrutura de mou a crise de “o Chernobyl de Xi exaspera os sentimentos de revolta versity College Dublin, é pesquisador asso-
preparação para a gripe pandêmica. Jinping”, tratando de deslegitimar a das populações diante do imenso so- ciado do laboratório Instituições e
Tomando como base de trabalho as atuação do Partido Comunista chi- frimento a que são submetidas. As Dinâmicas Históricas de Economia e So-
principais pandemias de gripe do sé- nês da mesma forma que Chernobyl centenas de milhares de mortes es- ciedade (Idhes-Nanterre).
culo XX, da gripe espanhola de 1918- deslegitimou a União Soviética.10 Aos peradas por especialistas dos países
1919 à gripe suína de 2009-2010, o gru- olhos de alguns comentaristas, a cri- ocidentais, ou “a perda de muitos en-
po observou a impossibilidade de se realmente oferecia a possibilidade tes queridos” prometida por Boris 1   “ Coronavirus: science chief defends UK plan
conter uma pandemia no Reino Uni- de um experimento econômico em Johnson, são suficientes para causar from criticism” [Coronavírus: chefe de ciência
defende plano britânico contra críticas], The
do dada sua relação econômica com o grande escala. De um lado (China, uma inquietação considerável. Sabe- Guardian, Londres, 13 mar. 2020.
resto do mundo: “A circulação em Hong Kong, Cingapura) estariam as -se que o vírus provocou fortes pro- 2   “Johnson under fire as coronavirus enters dan-
massa globalizada própria do mundo soluções estatais clássicas de confi- testos na China: discursos na inter- gerous phase” [Johnson sob ataque quando o
coronavírus entra em fase perigosa], Financial
moderno permite que o vírus se espa- namento autoritário e interrupção da net, barricadas nas estradas de Times, Londres, 12 mar. 2020.
lhe rapidamente por todo o planeta. circulação interna e externa da popu- Hubei, revolta em Hong Kong contra 3   “Coronavirus: pas de confinement aux Pays-
[...] Isso significa que é impossível lação até a erradicação do vírus no a entrada em seu território das popu- -Bas, où le gouvernement prône ‘l’immunité de
groupe’” [Coronavírus: não há confinamento
conter ou erradicar o vírus em seu território. Do outro (países ociden- lações do continente chinês. Da mes- na Holanda, onde o governo defende a imuni-
país de origem ou na chegada ao Rei- tais ricos, entre eles o Reino Unido à ma forma que a livre circulação de dade coletiva], France 3 Hauts de France, 17
no Unido. É de esperar que o vírus se frente), soluções de autorregulação mercadorias causou imensa tensão mar. 2020.
4   Tony Yates, “Why is the government relying on
espalhe inevitavelmente, e todas as organizadas pelo Estado, sem fecha- social no Reino Unido no século nudge theory to fight coronavirus?” [Por que
medidas destinadas a bloquear ou re- mento ou confinamento, com base XIX,14 o sentimento de livre circula- o governo está confiando na teoria do empur-
duzir sua propagação [...] certamente na canalização da contaminação pa- ção da Covid-19 causa considerável rão para lutar contra o coronavírus?], The
Guardian, 13 mar. 2020. Ler também Laura
terão um impacto muito limitado ou ra os grupos menos vulneráveis. No preocupação entre a população. Pes- Raim, “Pire que l’autre, la nouvelle science
parcial e não poderão nem sequer ser final do experimento, as medidas se- quisas recentes sobre o assunto des- économique” [Pior que a outra, a nova ciência
utilizadas de forma paliativa para ga- riam analisadas de forma retroativa e tacam esse fato: a opinião pública es- econômica], Le Monde Diplomatique, jul.
2013.
nhar tempo”.7 Desde então, o governo seria possível determinar as caracte- tá pressionando os governos por 5   C f. Shivani Singh e Winni Zhou, “China’s im-
britânico não tem escolha a não ser rísticas de cada um desses dois mo- medidas mais radicais de distancia- ported coronavirus cases rise as local infec-
deixar o vírus se espalhar pela popu- delos – em número de mortes, falên- mento social, e não o contrário. No tions drop again” [Casos importados de coro-
navírus na China aumentam, enquanto as
lação, “minimizando picos” de conta- cias, queda do PIB. Uma experiência Reino Unido, 41% dos britânicos en- infecções locais caem], Reuters, 14 mar.
minação e “assegurando uma comu- natural, sem dúvida, mas com um trevistados acreditam que seu gover- 2020.
nicação eficaz” que evite o pânico. custo exorbitante: centenas de mi- no não está tomando medidas sufi- 6   C f. Eli Clifton, “Amid coronavirus outbreak,
Trump-aligned pressure group pushes to stop
A promulgação dessa nova doutri- lhares de mortes. cientemente fortes, contra os 12% de medicine sales to Iran” [Em meio à pandemia
na ilustra o desenvolvimento de dire- Londres parece ter finalmente re- opinião contrária.15 Na França, as de coronavírus, grupo aliado a Trump pressio-
trizes de poder e doutrinas de saúde cuado dessa proposta. Sem dúvida, medidas de distanciamento social, na para interromper a venda de medicamen-
tos ao Irã], The Intercept, 5 mar. 2020.
radicalmente individualistas, nota- as respostas à crise da Covid-19 são como o fechamento de escolas, rece- 7   “ UK Influenza Pandemic Preparedness Strate-
damente dentro do arcabouço ideoló- limitadas pelo esgotamento do siste- bem apoio maciço (82% dos entrevis- gy 2011” [Estratégia de preparação para a
gico estatal do Reino Unido e dos Es- ma produtivo.11 Com a prática, nas úl- tados são a favor do fechamento de pandemia de Influenza, 2011], Department of
Health, Londres, 2011.
tados Unidos. Na última década, timas quatro décadas, de produção a estabelecimentos de ensino). Para- 8   Len Shackleton, “Compulsion is not the ans-
muitos comentaristas mostraram co- “estoque zero” e just in time, cujo ob- doxalmente, a medida menos bem wer to the recent fall in vaccination uptake”
mo o núcleo ideológico do Partido jetivo é “recuperar alguns pontos do recebida entre as anunciadas em 12 [Obrigatoriedade não é a resposta para a re-
cente queda nos índices de vacinação], Insti-
Conservador mudou gradualmente capital empregado” e maximizar o de março foi a manutenção do trans- tute of Economic Affairs, Londres, 9 out.
da centro-direita para os think tanks “valor para o acionista”,12 as empre- porte público.16 Diante da implemen- 2019.
da Tufton Street, nome da rua no dis- sas europeias se veem impotentes tação de novas doutrinas sanitárias, 9   Sam Bowman, “A neat solution to the vaccine
problem” [Uma solução prática para o proble-
trito de Westminster onde se locali- diante das cadeias de fornecimento pode-se esperar movimentos popu- ma da vacinação], Instituto Adam Smith, Lon-
zam empresas de consultoria alinha- interrompidas. Sujeitos ao imperati- lares e reações proporcionais ao so- dres, 18 fev. 2015.
das à direita radical da era Thatcher, vo da competitividade fiscal, os Esta- frimento a que a população está 10  Brice Couturier, “L’épidémie de coronavirus
peut-elle être le Tchernobyl de Xi Jinping?” [A
frequentemente céticas em relação à dos também pressionaram seus gas- submetida. epidemia de coronavírus pode ser a Cher-
União Europeia e a questões de clima tos: serviços públicos e leitos Não se deve dar aos governos nobyl de Xi Jinping?], Le Tour du Monde des
e libertárias. Muito antes da crise do disponíveis em hospitais foram “oti- mais liberdade do que têm. Em tem- Idées, 10 fev. 2020.
11  C f. a tribuna de Cédric Durand e Razmig
coronavírus, apesar do ressurgimen- mizados”, assim como as estratégias pos de crise, eles foram surpreendi- Keucheyan, “L’emboîtement de quatre crises
to de epidemias de sarampo no Reino de estocagem, de modo que a França dos pelo conflito entre as estruturas met en lumière les limites des marchés” [En-
Unido, essas instituições recomenda- viu a pandemia se aproximar de seu produtivas de seus países e o sofri- cavalamento de quatro crises marca os limi-
tes dos mercados], Le Monde, 13 mar.
ram o abandono das políticas de vaci- território sem nenhum estoque de mento popular causado pela pande- 2020.
nação obrigatória para doenças da in- máscaras protetoras do tipo FFP2.13 mia. O que se revela neste momento 12  Frédéric Lordon, “La ‘création de valeur’ com-
fância. Algumas delas consideraram Os países que passaram pela virada – e já havia sido experimentado com me rhétorique et comme pratique. Généalogie
et sociologie de la ‘valeur actionnariale’” [A
a “imunidade de grupo” adquirida neoliberal da década de 1980 são eco- a epidemia da aids – não são as esco- “criação de valor” como retórica e como práti-
pela vacinação voluntária suficiente- nomicamente capazes de organizar lhas políticas individuais, mas o mo- ca. Genealogia e sociologia do “valor para o
mente alta8 e outras propuseram um confinamento nos modelos chi- do como uma situação-limite – uma acionista”], L’Année de la Régulation, v.4,
p.115-164.
substituí-la por estratégias de merca- nês ou de Cingapura? Se foi ofensivo pandemia – é administrada em um 13  Clémentine Maligorne, “Coronavirus: la Fran-
do. Think tank liberal, o Instituto ouvir Emmanuel Macron colocar la- regime de acumulação neoliberal. A ce ne parvient pas à répondre à la demande
Adam Smith propunha, por exemplo, do a lado a defesa dos mais vulnerá- doutrina britânica de gerenciamen- de masques de protection” [Coronavírus: a
França não conseguiu responder à demanda
que os pais fossem remunerados pela veis e o apoio às empresas em seu dis- to da Covid-19 é apenas uma doutri- por máscaras de proteção], Le Figaro, 26 fev.
vacinação de seus filhos em nome da curso no dia 12 de março, os fatos na: sob pressão do povo, o governo 2020.
externalidade positiva, o que sugere estão aí: são necessários pelo menos Johnson já começou a recuar. Mas as 14  Karl Polanyi, La Grande Transformation [A
grande transformação], Paris, Gallimard,
que a sociedade como um todo se be- quinze dias para sair do neoliberalis- doutrinas não são onipotentes, tam- 1983 (reedição).
neficia sem apoiar o custo.9 mo, enquanto a produção emergen- bém não são apenas elucubração: 15  Toby Helm, “Only 36% of Britons trust Boris
Durante a fase chinesa da epide- cial de serviços médicos, remédios, elas revelam como os intelectuais de Johnson on coronavirus, polls find” [Apenas
36% dos britânicos confiam em Boris John-
mia, muitos editorialistas liberais ce- máscaras, respiradores artificiais e um regime buscam soluções para son em relação ao coronavírus, dizem pesqui-
lebraram a ideia de que a crise dispa- alimentos urgentes para a vida dos salvá-lo de suas próprias contradi- sas], The Guardian, 14 mar. 2020.
rada pelo Covid-19 demonstraria a habitantes não tem outro apoio se- ções e crises. Um regime que exige 16  Etude Elabe e Laurent Berger, pesquisa publi-
cada pela BFM TV em 14 de março, realizada
superioridade do sistema neoliberal não as infraestruturas econômicas medidas de salvação desumanas pela internet nos dias 12 e 13 de março de
ocidental sobre o autoritarismo chi- herdadas de quarentenas passadas. merece ser salvo?  2020.
12 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2020

AUMENTO DE ATIVIDADE E DA INSEGURANÇA NA AMAZON

Por trás dos


muros da “fábrica
de encomendas”
Em todo o mundo, os funcionários dos armazéns logísticos
da Amazon enfrentam um afluxo sem precedentes de
pedidos. O que está acontecendo nas gigantescas
plataformas da transnacional norte-americana?
POR JEAN-BAPTISTE MALET*

Funcionários dos armazéns da Amazon enfrentam um afluxo sem precedentes

E
m tempos de confinamento, co- essenciais para os italianos. O que Enquanto isso, na sede da multi- win-Planque (norte). “Entrei na Ama-
mo obter tapete de ginástica, vejo nos carrinhos? Esmaltes de nacional em Seattle, Washington, os zon em 7 de março”, ela nos diz por
halteres, cortador de grama, es- unha, bolas de espuma, brinquedos executivos acumulam as mensagens telefone, enquanto lida com a febre.
preguiçadeiras, churrasqueira sexuais.” confidenciais que os informam dos “Dez dias depois, tive de parar porque
ou massinha para manter as crian- “Meu armazém não é um depósito casos de funcionários que testaram meu médico me diagnosticou com o
ças ocupadas? Para milhões de pes- de alimentos, vendemos menos de 5% positivo para o Covid-19. No dia 1o de coronavírus. Entrei então em contato
soas obrigadas a ficar em casa, a res- desse tipo de produto”, anuncia Fou- março, a Amazon reconheceu ofi- com os recursos humanos da Ama-
posta está em seis letras: Amazon. zia Benmalek, delegada sindical da cialmente dois primeiros casos ita- zon para avisá-los, a fim de que eles
No auge da pandemia, como um gê- Confederação Geral do Trabalho lianos. Em 3 de março, o primeiro protegessem outros funcionários. A
nio saído de sua lâmpada mágica, (CGT) do armazém da Amazon em doente norte-americano. Segundo os única coisa que disseram foi que eu
apesar das instruções das autorida- Montélimar (Drôme). “Rodas de car- sindicatos, ao longo do mês os casos tinha sido contratada pela Adecco
des, o número um do mundo em ven- ro, videogames, discos... Em uma dú- se multiplicaram nos armazéns ita- [uma agência de recrutamento de
das on-line está atendendo aos mais zia de carrinhos que inspecionei lianos, espanhóis, franceses e ale- temporários] e que, portanto, eles não
variados desejos. aleatoriamente ontem, não havia ne- mães, assim como nos Estados Uni- iam se ocupar de mim! A Amazon não
A situação é paradoxal. No mundo nhum produto de primeira necessi- dos, sem que o vendedor on-line oferece nenhuma proteção no local.
inteiro, fábricas estão fechando. Li- dade.” Na região de Sevrey (Saône-et- declarasse oficialmente a maior par- Do vestiário ao relógio de ponto, pas-
vrarias, lojas de esportes e outros es- -Loire), “somos especializados em te deles. sando pelas estações de trabalho, to-
tabelecimentos especializados cerra- sapatos e roupas!”, afirma Antoine dos estão aglomerados.”1 O mesmo
ram as portas, e alguns infratores Delorme, delegado da CGT. “É o mes- “SE FICAREM DOENTES, cenário ocorre em Barcelona e nos ar-
receberam multas pesadas. Mas, nos mo comigo na Alemanha, em Bad A CULPA É SUA” mazéns italianos da Emília-Roma-
arredores das grandes cidades, há lu- Hersfeld”, observa Christian Em San Fernando de Henares, um su- nha, do Piemonte e da Lombardia.
gares onde se amontoam mais de mil: Kraehling, do Ver.di – o sindicato uni- búrbio de Madri, Douglas Harper, se- Durante todo o mês de março, os
os armazéns logísticos. No final de ficado dos serviços. “Meu armazém cretário-geral da Confederação Sin- sindicalistas solicitaram insistente-
março de 2020, plataformas de distri- envia principalmente roupas, sapatos dical das Comissões de Trabalhadores mente o fornecimento de máscaras,
buição em massa, centros de triagem e garrafas de bebidas alcoólicas.” (CCOO), fulmina: “Em 19 de março luvas, óculos de proteção e gel desin-
postal e hangares de vendas on-line nós registramos oficialmente quatro fetante. Em vão. No Japão, um fun-
estavam a pleno vapor. NENHUMA PROTEÇÃO NO LOCAL casos positivos na região. Mas, na cionário do armazém de Odawara
“É simples, nunca vi tanta ativida- Para responder a esse pico de ativida- realidade, são mais de cem trabalha- (prefeitura de Kanagawa) nos disse
de no meu armazém Amazon”, resu- de sem precedentes, são necessários dores que apresentam os sintomas de em 20 de março que, com exceção da
me Giampaolo Meloni, da Confedera- braços. Em 16 de março, a Amazon pessoas infectadas com coronavírus. instalação de um dispenser de solu-
ção Geral Italiana do Trabalho anunciou o recrutamento de 100 mil Todos estavam em contato no traba- ção hidroalcoólica na entrada da
(CGIL), na região de Castel San Gio- trabalhadores temporários apenas lho com esses quatro casos positi- cantina, nenhuma medida de prote-
vanni (Emília-Romanha). Na França, nos Estados Unidos. Acrescentados vos”. Por causa da urgência da situa- ção contra o coronavírus havia sido
durante a semana de 2 a 8 de março, o aos 800 mil funcionários regulares, ção, a CCOO solicitou o fechamento tomada: “Um gerente nos disse que,
crescimento das vendas on-line foi além do uso maciço de trabalhadores imediato do armazém madrilenho, se ficássemos doentes, a culpa seria
quatro vezes maior que o das lojas fí- temporários em outros continentes, a bem como sua completa desinfecção. nossa e que cabia a nós respeitar as
sicas, no entanto tomadas de assalto. empresa lidera um exército indus- A Amazon recusou. “Em vez de fazer distâncias de segurança. Ele nos avi-
Desde então, a tendência se acen- trial de pouco menos de 1 milhão de uma investigação no armazém”, con- sou que, em caso de ausência, não se-
tuou, e a Amazon, que geralmente trabalhadores em todo o mundo. “No tinua Harper, “a empresa recrutou ríamos pagos, e nos estimulou a vir
capta 20% das compras on-line feitas Reino Unido”, constata Mick Rix, outros trabalhadores temporários trabalhar com febre”.
pelos franceses, teve forte impulso. coordenador nacional responsável para substituir os doentes. Alguns só Em reunião com sindicalistas em
“Desde o início da crise, o que ob- pela Amazon no sindicato GMB, conseguiram trabalhar por alguns 19 de março, o CEO da Amazon Fran-
servo em meu armazém milanês é “agora a maioria dos funcionários dias, porque, assim que entraram, ce Logistique, Ronan Bolé, reconhe-
obsceno”, confessa Antonio Bandini, trabalha 50 horas por semana e não é desenvolveram os sintomas.” ceu violações em matéria de segu-
da CGIL na Lombardia. “Ao contrário incomum que alguns façam jornadas Foi o caso de uma funcionária rança em seus armazéns e admitiu a
do que a propaganda da Amazon diz, de 13 horas. O recurso às horas extras temporária francesa que trabalhava necessidade de “melhorar as coisas”.
entregamos poucas coisas realmente é intenso.” no turno da noite na região de Lau- Para Muriel Leblanc, médica do tra-
ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 13

A SAÚDE EM BAIXA

Austeridade,
© Divulgação
“VIDEOGAMES SÃO
PRODUTOS ESSENCIAIS”
Para incentivar os trabalhadores a se

a grande
aglomerarem em locais potencial-
mente contaminados, a empresa to-
mou uma medida incrível: aumentar
os salários. Temporariamente, os

ceifadora
funcionários de logística ganharão
US$ 2 adicionais por hora nos Esta-
dos Unidos e 2 euros em alguns paí-
ses europeus – os poloneses, que
produzem encomendas enviadas
principalmente para a Alemanha, se
contentarão com 60 centavos – para Estudo conduzido durante dez anos pelo epidemiologista
um montante total de US$ 350 mi- britânico Michael Marmot demonstra: as políticas de
lhões. “Você pode imaginar, eu não
tenho nada contra aumentos sala- contração orçamentária colocadas em prática a partir
riais”, explica Rix, do outro lado do da crise de 2008 ampliaram o fosso que separa ricos
Canal da Mancha. “Mas isso multi- e pobres em termos de expectativa de vida
plicará o número de trabalhadores
doentes nos armazéns, os quais con- POR MICHAEL MARMOT*
taminarão outros funcionários, o
que levará a mais recrutamentos. Es-
sa estratégia da Amazon não é ape-
nas perigosa, mas completamente

E
balho responsável pelo monitora- irresponsável.” m termos de progresso social, o Para esse indicador, uma classifi-
mento do armazém de Montélimar, Sob pressão, o vendedor on-line Reino Unido perdeu dez anos, e cação das regiões de acordo com o ín-
seria “mais prudente em termos de decidiu fechar e desinfetar alguns lo- é nítido. Avaliada em termos de dice de privação múltipla – que reúne
saúde interromper a atividade da cais, como, em 19 de março, a plata- expectativa de vida, a saúde dos dados sobre renda, emprego, educa-
empresa”. O inspetor do trabalho en- forma de conexão aeroportuária de britânicos está se deteriorando, de- ção, treinamento, saúde e condições
carregado de monitorar o armazém Nova York, ao lado do aeroporto, e La- pois de um período em que melhorou de vida e se aproxima do índice mul-
de Sevrey, Sébastien Deplanche, por Guardia, no bairro do Queens. Jeff Be- sistematicamente ano após ano. Ao tidimensional de pobreza usado, por
sua vez, recomendou “o confina- zos, presidente e CEO da Amazon, mesmo tempo, as desigualdades na exemplo, pelas Nações Unidas – reve-
mento dos funcionários, mesmo sem agora quer “priorizar o armazena- saúde estão aumentando. E o que é la a existência de um gradiente social
um caso comprovado de Covid-19”. mento e a entrega de itens essenciais”.2 verdade para a Inglaterra é ainda (variação de acordo com os níveis so-
Nesse ponto, está alinhado com os “Os videogames são produtos essen- mais para a Escócia, o País de Gales e ciais) tão forte quanto constante. Em
sindicatos poloneses, espanhóis, ita- ciais porque ocupam as crianças con- a Irlanda do Norte. outras palavras, quanto mais uma re-
lianos e franceses seja quanto ao fe- finadas”, explicou Bolé aos represen- Quando a saúde de uma popula- gião sofre privações, menor é a ex-
chamento, seja quanto à limitação de tantes dos sindicatos franceses. Desde ção não está mais melhorando, a so- pectativa de vida dos que vivem ali.
remessas apenas a material médico e 21 de março, a Amazon repete na mí- ciedade como um todo está parada. Durante o período de 2016 a 2018, os
produtos alimentícios. Enquanto is- dia que entrega apenas produtos “es- Dados globais confirmam que o esta- homens residentes nos territórios
so, mais de cem funcionários france- senciais” – sem definir essa categoria. do de saúde é um bom indicador de britânicos considerados os 10% mais
ses exerceram seu direito de afasta- Mas cinco dias após esses anúncios, progresso econômico e social, de mo- favorecidos viveram nove anos e
mento, dando origem a essa resposta ainda era possível receber uma coleira do que o desenvolvimento de uma so- meio a mais do que os residentes nos
da Amazon enviada por e-mail: “As de cachorro com GPS... ciedade tende a se expressar também territórios considerados os 10% me-
condições de higiene de seu local de O episódio nos convida a tomar na melhoria da saúde de sua popula- nos favorecidos. Para as mulheres, a
trabalho estão em conformidade consciência da ligação de causa e ção. Por outro lado, profundas dispa- diferença foi de 7,7 anos. O gradiente
com os regulamentos em relação ao efeito entre o serviço individual ao ridades econômicas e sociais se tra- social na expectativa de vida saudá-
Covid-19 (confirmado pelos RHs). A consumidor prestado pelos gigantes duzem em desigualdades na saúde. vel é ainda mais pronunciado. O tem-
situação de trabalho não representa digitais e a nocividade coletiva mui- A maneira como o sistema de saú- po gasto com problemas de saúde até
perigo sério e iminente e, de acordo tas vezes oculta no qual seu modelo de de um país é financiado e admi- aumentou entre 2009-2011 e 2015-
com a posição do governo, o direito econômico se baseia. “Há anos, a nistrado é obviamente crucial, mas a 2017, passando de 15,8 para 16,2 anos
de afastamento não é, portanto, jus- Amazon tenta evitar impostos otimi- saúde de seu povo não depende ape- para homens e de 18,7 para 19,4 anos
tificado, e qualquer ausência do car- zando suas empresas em termos fis- nas disso. Baseia-se, de maneira mais para mulheres. Por fim, apesar da au-
go não será remunerada”. cais onde quer que se estabeleça”, ampla, nas condições de vida e traba- sência de estatísticas regulares sobre
Na Itália, os delegados convoca- lembra Christy Hoffman, secretária- lho, no gerenciamento do envelheci- o assunto, os números disponíveis
ram uma greve para garantir que o -geral da UNI Global Union, a confe- mento e das desigualdades na distri- sobre a incidência de origem étnica
gigante de Seattle respeitasse o pro- deração internacional que reúne os buição de poder e recursos. Juntos, indicam que metade das minorias –
tocolo regulatório para a proteção principais sindicatos atuantes na esses fatores são determinantes so- principalmente negros, asiáticos e
dos trabalhadores, assinado em mea- Amazon. “E hoje é exatamente essa ciais no campo da saúde. mestiços – tem uma expectativa de
dos de março pelas organizações pa- empresa que mais se beneficia com A expectativa de vida no Reino vida sem deficiência física significa-
tronais, pelo governo e pelos sindica- esta crise histórica!” Motivo, segun- Unido, que vinha aumentando desde tivamente menor do que a dos britâ-
tos. “Mas, infelizmente, no momento do ela, para modificar o equilíbrio de o final do século XIX, começou a cair nicos brancos.
em que a atenção da mídia se concen- forças.   drasticamente em 2011. Entre 1981 e Essa deterioração está longe de ser
tra na dramática situação dos hospi- 2010, prolongou-se cerca de um ano a inevitável. Em 2008, profundamente
tais italianos e as manifestações de *Jean-Baptiste Malet  é jornalista. cada cinco anos e meio para as mu- preocupado com a magnitude das
protesto são estritamente proibidas, lheres, e a cada quatro anos para os desigualdades em saúde no país, o
é muito difícil alertar para o perigo à 1   A pesar de nossas repetidas solicitações, as
homens. Entre 2011 e 2018, essa pro- governo trabalhista de Gordon Bro-
saúde que os armazéns da Amazon empresas Amazon e Adecco se recusaram a gressão diminuiu consideravelmen- wn nos encarregou de fazer propos-
representam para toda a população”, responder a nossas perguntas. te: as mulheres ganham apenas um tas para reduzi-las. Com minha equi-
2   “A message from our CEO and founder” [Uma
lamenta Massimo Mensi, coordena- mensagem de nosso CEO e fundador], blog
ano a cada 28 anos, e os homens, a ca- pe do então futuro Institute of Health
dor nacional da CGIL. da Amazon, 21 mar. 2020. da 15 anos. Equity (Instituto de Igualdade em
14 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2020

Saúde), criado alguns anos depois,

© Rômolo D’Hipólito
em 2011, formamos nove grupos de
trabalho de mais de oitenta especia-
listas que se propuseram a revisar os
dados disponíveis. Um comitê de es-
pecialistas se reuniu para discutir es-
ses resultados.
O ponto culminante dessa pes-
quisa foi a publicação, em 2010, do
relatório Fair Society, Healthy Lives
[Sociedade justa, vidas saudáveis],
mais conhecido como “Relatório
Marmot”.1 Embora encomendado
pelos trabalhistas, o relatório foi
bem recebido pela recém-formada
coalizão governamental liderada pe-
los conservadores. Uma pesquisa da
Royal Society for Public Health reali-
zada junto a seus membros e um pai-
nel de cientistas também a classifi-
caram entre os três principais
sucessos de saúde pública do Reino
Unido no século XXI, proibindo o ta-
baco em locais públicos e de traba-
lho, e introduzindo o imposto sobre
refrigerantes. No entanto, a demons-
tração central do relatório, de que
políticas públicas ambiciosas para
todas as idades poderiam incidir po-
sitivamente sobre os determinantes
sociais da saúde e reduzir a desi-
gualdade, permaneceu amplamente
ignorada.
De fato, a austeridade orçamentá-
ria se tornou o principal slogan do
governo levado ao poder em 2010, as-
sim como o do gabinete conservador
eleito em 2015. Os gastos públicos acesso a educação e treinamento con- Não é segredo, no entanto, que a pri- Entre os efeitos perniciosos da di-
passaram de 42% do PIB em 2009- tínuo; melhorar as condições de em- meira infância é um estágio crucial minuição de compromissos sociais
2010 para 35% em 2018-2019, tudo prego e trabalho; fornecer a todos os da vida, no qual são adquiridas com- por parte do Estado, é difícil dizer
sob o pretexto de retomar o cresci- recursos necessários para viver em petências e habilidades que determi- quais têm maior impacto nas desi-
mento econômico. boa saúde; e desenvolver espaços e nam o futuro cognitivo, linguístico, gualdades de saúde, porque todos
Os líderes britânicos obviamente bairros sustentáveis. Concluímos que social, emocional e comportamen- estão correlacionados. No entanto,
teriam protestado se fosse declarado a austeridade teve consequências ca- tal. O desenvolvimento satisfatório as palavras que escrevemos há dez
que a verdadeira intenção dessas tastróficas em quase todos os deter- de crianças pequenas pode auspiciar anos no Relatório Marmot ainda são
medidas era empobrecer ainda mais minantes sociais da saúde, agravan- um bom desempenho acadêmico, o relevantes hoje: “As desigualdades
os pobres e permitir ao 1% mais rico do as desigualdades na área. que, por sua vez, pode garantir me- na saúde podem ser evitadas e muito
ficar mais rico o mais breve possível lhores oportunidades profissionais e reduzidas, na medida em que resul-
após a crise financeira mundial. No condições de vida mais saudáveis na tam de desigualdades sociais que
entanto, esse é exatamente o efeito A pobreza infantil idade adulta. são evitáveis”. 
que suas políticas produziram, e não passou de 28% no Em outro nível, a crise imobiliária
surpreende: os benefícios sociais fo- resultou em uma explosão no núme- *Michael Marmot é diretor do Instituto
ram reduzidos em 40%; os gastos
período 2009-2012 ro de pessoas sem-teto, mas também pela Igualdade em Questões de Saúde da
públicos locais, em 31% na área me- para 31% no período em um aumento na proporção de bri- Universidade College de Londres (UCL).
nos favorecida (contra uma redução 2015-2018 tânicos que gastam mais de um terço Uma versão deste texto foi publicada no
de 16% nas mais favorecidas); e o fi- de sua renda com moradia. Embora British Medical Journal, em fevereiro de
nanciamento na área da educação esse aumento afete todas as classes, 2020.
dedicado às últimas turmas do ensi- A pobreza infantil passou de 28% também há, sem surpresa, um forte
no médio e ensino superior, em 12% no período 2009-2012 para 31% no gradiente social. Em 2016-2017, 38%
por aluno. 2 período 2015-2018, depois de incor- das famílias que estão no grupo dos 1   M ichael Marmot, Fair Society, Healthy Lives ‒
Os arquitetos dessas medidas po- porar o custo da habitação. Quase 10% mais pobres estavam nessa si- The Marmot Review. Strategic Review of
Health Inequalities in England Post-2010 [So-
dem ter pensado que todos os benefi- mil creches e estruturas de acolhi- tuação, em comparação com 28% ciedade justa, vidas saudáveis – Relatório
ciários desses auxílios jogavam di- mento da pequena infância envolvi- uma década antes. Marmot. Revisão estratégica das desigualda-
nheiro pela janela, mas os fatos das no Sure Start, um programa go- Em geral, uma parte crescente da des em saúde na Inglaterra], Institute of
Health Equity, Londres, 2010.
provaram que eles estavam errados. vernamental de apoio à infância e à população não pode mais se dar ao 2   Jack Britton, Christine Farquharson e Luke Si-
No novo estudo que estamos publi- paternidade implementado em nível luxo de manter uma boa saúde e deve bieta, Annual Report on Education Spending
cando, dez anos após o Relatório Mar- local, precisaram fechar suas portas recorrer a bancos de alimentos para in England [Relatório Anual dos Investimentos
em Educação], The Institute for Fiscal Stu-
mot,3 fazemos um balanço de cinco por causa de cortes nos gastos públi- se nutrir. Os abandonados à própria dies, Londres, 2019.
das seis principais recomendações cos locais – perda que o louvável es- sorte estão se multiplicando, com 3   H ealth Equity in England: The Marmot Review
feitas por nossa equipe em 2010: per- forço feito em favor de crianças pré- condições de vida miseráveis que 10 Years On [Igualdade em saúde na Inglater-
ra: o Relatório Marmot 10 anos depois], Insti-
mitir que cada criança obtenha o me- -escolares um pouco mais velhas nem sequer deixam espaço para es- tute of Health Equity, Londres, 2020. Disponí-
lhor começo de vida possível; garantir não é suficiente para compensar. perança de melhoria. vel em: www.instituteofhealthequity.org.
ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 15

UMA INDICAÇÃO

Viralização e
Bem que usaríamos esse tempo
em suspenso para refletir sobre três
viralizações pouco controladas: a vi-
ralização dos poderes se alinhando

confinamento
uns aos outros, tentados pelas políti-
cas repressivas que isolam as nações,
as famílias, as pessoas; a viralização
das tecnologias, que, investindo o
humano depois de ter pilhado a natu-
POR DENIS DUCLOS* reza, tenta realizar o pensamento
“indubitável” pela persuasão especi-
ficada dos espíritos que ela generali-
za na velocidade da luz; a viralização,
por fim, do dinheiro, acelerada pelas
duas primeiras e as acelerando por
sua vez, e que responderá a qualquer
boa vontade (de fabricar testes, vaci-
nas ou máscaras eficientes sem des-

É
estranho ser um participante nela já existe na globalização atuali- dentes, menos conectadas (incluindo cartá-las a cada hora etc.).
desarmado diante do cresci- zada: incerteza e desconfiança sobre as redes de comunicação utilizadas Suponhamos que cada uma des-
mento de um cataclismo e dese- as causas, hesitações sobre os efeitos por seus gestionários para vigiar as sas viralizações mundiais designe
jar ser observador. Paixões con- adversos, viralização cada vez mais multitudes). indiretamente um problema que ca-
trárias nos atravessam. A indiferença rápida (vírus informático – oficioso Será que a apresentação de uma be aos 98% dos sobreviventes da Co-
forçada e o medo descontrolado: a ou oficial como o cookie – ou reações batalha que se trava com máscaras e vid-19. A dupla vírus/confinamento
primeira pede que se continue como instantâneas da Bolsa em 2008), difi- proibições, desembocando em hospi- não sintetiza então a questão da
se não fosse nada; o segundo, que se culdade de contramedidas, perigos tais que se desmontam tão logo são ação imposta aos modos de vida co-
vigie e se puna qualquer movimento crescentes de conflitos, crises eco- construídos, não participa de uma munitário, familiar, pessoal? Seria
proibido. nômicas, erros políticos, distancia- teatralização por si só viral, da qual preciso, num futuro próximo, limi-
Deixemos as equipes de cuidado mentos autoritários do Estado de di- um motivo é, por trás da necessidade tar mobilizações de despesa, po-
(e os especialistas em infectologia, reito etc. legítima de agir juntos, a repugnân- luentes e regimentadas. A experiên-
epidemiologia ou virologia) determi- No entanto, diferentemente das cia de se prevenir com relação às cau- cia do trabalho a distância e da
nar a medida de uma e outra atitudes. globalizações econômica e tecnoló- sas das tragédias planetárias? escola a distância merece ser retida,
Desde Plínio, o Ancião (23-79 d.C.), gica que levam a tendências pouco Claro, a feira ilegal de animais com a condição de que evolua para
vendo as pessoas deixar tranquila- reversíveis, o surto atual evolui em selvagens de Wuhan era frágil, mas atividades “em si”, liberadas de ou-
mente a chuva de cinzas sobre Pom- direção a uma cura provável, a des- ninguém pode dizer com certeza de tras ligações de frequentação para
peia carregando almofadas – as más- peito de seu tributo de mortos. Ques- onde veio o vírus, já que diversos dos além da submissão às hierarquias
caras da época –, trabalhamos para tionamos a escolha do melhor per- primeiros contaminados não tive- centralizadas do emprego e da ins-
perceber alguns traços que percor- curso, e não a finalidade do processo ram nenhum contato com ela. Em trução. Ou seja, o contrário do confi-
rem nossa “sociedade-mundo” a res- de cura e de suas restrições, even- muitas áreas, a ciência conheceu namento. E que preservariam os co-
peito da matemática do contágio. tualmente contestadas. Existiria as- orientações perigosas e sistemáticas, munais democratizados, suscetíveis
Em um passado recente, pande- sim, no fundo da dramaturgia do ví- a ponto de alguns imaginarem que o de contrabalançar nossas eternas
mias com níveis equivalentes – como rus, desta vez representada por todos vírus poderia ter escapado de um la- tentações de poder vertical, de saber
a “gripe russa” de 1889 (atingindo os humanos, um frágil otimismo ig- boratório instalado não muito longe absoluto e de acumulação monetá-
uma a cada duas pessoas) – ou piores norado pela variante colapsológica da feira. Uma preocupação filantró- ria do nada.
– como a “gripe espanhola” de 1918, do ecologismo. Isso sem falar de um pica e sanitária autêntica pode fre- Em suma, o Vírus mundial não é
que fez diversas dezenas de milhões “benefício” que continua sendo um quentemente ser acompanhada por somente um inimigo: é uma indica-
de mortos – não provocaram nenhum tabu: a redução imediata e efetiva da erros e desvios. ção. De quê? Do fato de que a globali-
pânico mundial ou local. Mas, há al- poluição e do desperdício dos recur- Ainda que não tenha havido esca- zação, nunca vivida com tanta inten-
gum tempo, a humanidade se deixa sos energéticos, com os quais o vírus pe dos patógenos estudados nos dois sidade pelo gênero humano, deve
emocionar pelos perigos planetários nos bonifica – claro, em contraparti- grandes laboratórios de virologia de reduzir as angústias imemoriais que
associados a nossos excessos diver- da ao desemprego técnico e de sua re- Wuhan, o inconsciente coletivo só levam este às certezas invasivas: do-
sos. Não há nenhuma relação entre o percussão financeira, cuja fatura nos pode se lembrar da cultura que favo- mínio do outro pelo poder político,
peso dessa angústia e o fato de que aguarda... rece a doença-mundo. Na Gotham domínio dos objetos e dos corpos pe-
uma doença comparável às que so- Ainda é preciso perceber os para- planetária, a batalha dos super-he- la tecnociência, domínio do todo pe-
fremos desde sempre pudesse mobi- doxos dessa esperança. Sob o ativis- róis opõe aquele que, “pelo Bem”, lo mercado financeiro. O que nos as-
lizar os combates a este ponto? mo da resposta quase militarizada à com jaleco imaculado, agita tubi- susta no Vírus – a incerteza de sua
Em 1996 suspeitamos que a doen- pandemia, subsiste uma reticência a nhos de ensaio e inteligências artifi- natureza e de seu destino – é a ima-
ça da vaca louca transmitida ao cére- se orientar em direção às maneiras ciais, ao outro, cujo riso desesperado gem do que nos aterroriza em nossa
bro do homem representava, via as de viver que um futuro sustentável inflama a rua. Duas encarnações ju- vida, e isso mais ainda porque uma
farinhas animais que alimentavam o exigiria. A oposição guerreira entre venis da mesma dificuldade em se empresa de gestão da população nos
gado, o canibalismo imposto a nos- vírus e confinamento dos povos sina- comprometer, por fim, com um em- leva a crer que ela pode decidir tudo e
sos pobres bovinos1 e, portanto, um liza a dificuldade de uma vitória: se prego sábio da universalidade. Prati- regular o espaço de nossos compro-
espectro de Soleil vert [Sol verde] os grandes ajuntamentos de traba- quemos então os melhores rituais metimentos mútuos. 
(1973), filme de Richard Fleischer em lho, educação, lazer, os cruzamentos protetores, sem que para isso preci-
que jovens humanos sobrevivem de- gigantes do deslocamento e do con- semos qualificar como traidores *Denis Duclos  é sociólogo.
vorando a carne dos velhos. Treze sumo se revelam no início “pontos de aqueles que perguntam em que, para
anos depois, a epidemia da gripe partida”, iniciando as trajetórias ex- salvar vidas de uma doença, seria
H1N1 criou preocupações sobre as plosivas do vírus, isso nos indica uma preciso que todos fôssemos impedi- 1   Ler “Raisons et déraisons d’une psychose”
manipulações possíveis para uma coisa que tínhamos recusado a ver. A dos de viver.... Correndo o risco de [Racionalidades e irracionalidades de uma
guerra bacteriológica.2 sociedade de um futuro possível deve aumentar outras mortalidades epi- psicose], Le Monde Diplomatique, dez. 2000.
2   Ler “Psychose de la grippe, miroir des socié-
Não é preciso procurar mais para ser organizada por entidades meno- dêmicas já maciças, como os suicí- tés” [Psicose da gripe, espelho das socieda-
a Covid-19. Tudo o que nos dá medo res e mais conviviais, menos depen- dios e as depressões. des], Le Monde Diplomatique, set. 2009.
16 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2020

POR UMA GEOGRAFIA RADICAL E CIDADÃ

O combate ao até agora anunciadas para a conten-


ção do vírus em assentamentos pre-
cários pareçam tímidas. Em 23 de

coronavírus nas favelas


março, o presidente da África do Sul,
Cyril Ramaphosa, se dirigiu à nação e
qualificou o vírus como extrema-
mente perigoso para uma população
com um grande número de pessoas
com imunidade deprimida por causa
Em função das condições sociais e geográficas, a pandemia do coronavírus adquire no do HIV e da tuberculose e altos níveis
Brasil um grau alarmante de perversidade. Se entre o vírus e o hospedeiro se estabelece de pobreza e desnutrição.3 Entre vá-
rias medidas anunciadas estão o re-
uma relação de ordem natural, quando se trata de sua difusão epidêmica ou pandêmica forço de abastecimento de água com
são as relações e as condições socioespaciais que passam a ordenar o processo caminhões-tanque nas favelas e a
criação urgente de novos abrigos pa-
POR RENATO BALBIM* ra os sem-teto.
Voltando ao caso brasileiro e ana-
lisando os esforços da sociedade civil
relativos à contenção da propagação

A
velocidade da contaminação cesso ainda relativo, têm debatido Como se pode verificar pelo ma- do vírus nas favelas brasileiras, pode-
pelo coronavírus implica rápi- soluções para quando o coronavírus peamento on-line (https://bit.ly/ma- -se constatar: 1) as iniciativas até
das transformações sociais. entrar nas “quebradas”. Infelizmente, pa-RJ) dos casos na cidade do Rio de aqui existentes partem de profissio-
Em meados de março ressaltei o Centro de Modelagem Matemática Janeiro, a evolução intraurbana da nais e militantes anteriormente en-
(Diplô Brasil Online, 17 mar. 2020) a de Doenças Infecciosas da London pandemia tem um padrão geográfico gajados com o tema das favelas; 2) há
necessidade de medidas urgentes e School avalia que a subnotificação no claro. Ela reproduz a segregação so- enorme preocupação em buscar al-
adaptadas ao contexto socioespacial Brasil é enorme – apenas 11% dos ca- cioespacial de nossas cidades. O ví- ternativas para as medidas já anun-
das favelas brasileiras para conter a sos têm sido notificados. Ou seja, rus vem das áreas ricas, em contato ciadas de contenção do vírus, que de-
expansão do vírus. Naquele momen- centenas de pessoas em cada comu- com o exterior, e adentra aos poucos finitivamente não funcionam nas
to, o tema dos assentamentos precá- nidade podem estar infectadas e as áreas mais pobres em função das favelas; 3) informação e solidarieda-
rios ainda não era, nem aqui nem no transmitindo a doença. Saberemos a relações de trabalho, em especial do de são os principais “remédios” até
exterior, uma preocupação específi- dimensão do problema apenas quan- trabalho doméstico. Até março, no agora apontados; 4) não existe ou é
ca relacionada à pandemia. do contarmos nossos mortos. Rio de Janeiro, os bairros ricos como baixa a interação entre essas iniciati-
Passados poucos dias, observo Em função das condições sociais Barra da Tijuca, Leblon e Ipanema li- vas e o setor público, sendo o SUS e a
com esperança que diversas organi- e geográficas, a pandemia do corona- deravam o número de casos diagnos- Defesa Civil os principais “braços” do
zações comunitárias e grupos vir- vírus adquire, aqui, um grau alar- ticados, enquanto Bangu, Madureira, Estado citados nesses grupos; 5) há
tuais têm se mobilizado para que a mante de perversidade. Se entre o ví- Piedade e outros bairros-dormitórios uma visão clara de que a Covid-19 é
informação suba o morro, adentre rus e o hospedeiro se estabelece uma contavam com apenas um caso con- uma doença de rico “importada” pa-
becos e vielas. relação de ordem natural, quando se firmado em cada bairro. ra dentro das favelas, com potencial
Além da informação, esses grupos trata de sua difusão epidêmica ou Não à toa, as duas primeiras víti- de transformar-se em um genocídio,
têm feito esforços em mapear áreas pandêmica são as relações e as con- mas fatais no Brasil foram uma em- o que reforça relações históricas de
precárias, casos de doentes, acessos à dições socioespaciais que passam a pregada doméstica no Rio de Janeiro violência entre a “cidade formal” e o
água e, com bastante empenho e su- ordenar o processo. e um porteiro em São Paulo. Além Estado contra as favelas e os pobres;
disso, diversos relatos dão conta da 6) surgem diversas campanhas para
© Andy Falconer/Unsplash

perversidade de parte da classe mé- doação de recursos, em especial para


dia e dos ricos tratando “seus” em- a preservação da vida das emprega-
pregados como cidadãos de segunda das domésticas; 7) particularmente
ordem, pessoas que devem continuar no Rio de Janeiro, como em outras si-
trabalhando, zelando inclusive pelo tuações, a organização do tráfico
bem-estar de seus senhores doentes.1 ocupa o vazio deixado pelo Estado; 8)
Por outro lado, há o entendimento há uma perda substancial de energia
dos moradores das favela de que os dedicada a combater as ações da ne-
“gringos”2 e os ricos são os responsá- cropolítica do Estado brasileiro, em
veis pela iminente contaminação dos particular vindas do governo federal,
mais pobres. a exemplo da MP da Morte (Medida
Passados alguns dias, verifico Provisória n. 927/2020).
também algumas iniciativas em âm- O que se pode apreender até o
bito internacional que buscam pres- momento é qual parcela da socieda-
sionar agências da ONU (Habitat e de está sensível quanto à gravidade e
OMS, em particular) para que pres- à urgência da evolução da pandemia
tem atenção específica aos assenta- nos assentamentos precários. Essa
mentos precários em todo o mundo. preocupação é compartilhada com
A expectativa nesse sentido é enor- parte do aparato estatal, em especial
me; o Brasil é o primeiro país com a parcela dos governos locais e esta-
grande número de pessoas morando duais que forma a linha de frente de
em condições precárias a ter disse- enfrentamento de situações de cala-
minação comunitária do vírus. midade pública. Além disso, consta-
Na África, por causa da pobreza ta-se que as condições geográficas
estrutural e dos conhecimentos ad- cumprem importante papel na dis-
quiridos com a transmissão do ebola seminação dos casos, sendo possível
e mesmo do HIV, governos nacionais afirmar que a gravidade e a letalida-
O vírus vem das áreas ricas e adentra aos poucos as áreas mais pobres em parecem estar mais atentos a essas de estão associadas às condições sa-
função das relações de trabalho particularidades, ainda que medidas nitárias e de saúde prévia dos grupos
ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 17

populacionais, como já anterior- dar por meio de ações comunitárias descrever o fenômeno de intercone- Outra ação a ser tomada com a
mente tratado. de limpeza urbana e melhorias habi- xão mundial por meio de tecnologias máxima urgência é diminuir a densi-
Essa sensibilidade social e o co- tacionais de urgência, com foco no midiáticas. Meio e mensagem, tec- dade dessas ocupações e isolar aque-
nhecimento prévio da questão têm abastecimento de água potável, bem noesfera e psicoesfera, produzindo les que estiverem doentes. Definiti-
levado grupos de especialistas, téc- como em melhorias de ventilação e essa ideia de que vivemos próximos, vamente, não há maneira de conter a
nicos e ativistas a produzir levanta- insolação. A organização deveria ainda que fisicamente distantes. transmissão do vírus em lugares em
mentos e mapeamentos de dados ocorrer em escala local, com envol- Visto que nenhum homem é uma que diversas pessoas convivem em
com o objetivo de agir de maneira vimento em rede da comunidade, ilha e que fronteiras não detêm o ví- um mesmo pequeno quarto rodeado
eficiente e eficaz contra o coronaví- com o uso de aplicativos em smart- rus, assim como não contêm as mu- de outros quartos com tantas e tantas
rus. Entretanto, devemos também phones conectados gratuitamente à danças climáticas, deveríamos lidar outras famílias, sem insolação, venti-
ser tempestivos diante da urgência internet. com essa condição partindo do que é lação e com muita umidade.
imposta por um vírus que no Brasil O par de conceitos tecnoesfera e particular em nosso desenvolvimen- Para tanto, a sugestão que vem
dobra o número de infectados a cada psicoesfera, também proposto por to, aquilo que Santos chamou de “fle- sendo feita é a ocupação de imóveis
dois dias. Santos, é fundamental, tanto para a xibilidade tropical” para se referir à vazios ou ociosos. Em diversas cida-
Partindo da análise geográfica leitura da atualidade, como para a su- capacidade, sobretudo, do “circuito des, o número de imóveis “disponí-
proposta pelo professor Milton San- peração das condições dadas e possí- inferior da economia urbana”, de dar veis” supera o déficit habitacional.
tos, sugiro a seguir algumas medidas vel construção de um mundo novo os seus jeitinhos. Ou seja, neste mo- Ou seja, há um estoque de imóveis
a serem colocadas em execução e após a crise. mento em que os princípios econômi- que permite uma ação de alto im-
elenco outras que já circulam em di- A esfera técnica – objetos, produ- cos que regem o dito setor formal es- pacto na contenção do vírus. Neste
versos grupos. Entendo que essas tos, infraestruturas – é sempre acom- tão colocados em xeque, deveríamos caso, mais uma vez, tecnoesfera e
medidas vão além daquelas de res- panhada por seu par indissociável, a incentivar as soluções locais, as ações psicoesfera podem se juntar na cons-
ponsabilidade exclusiva do Estado no esfera psicológica. Não há novo pro- de vizinhança, aquelas que reciclam trução de uma nova solidariedade,
enfrentamento da crise urbana es- duto técnico sem a existência das ideias e improvisam materiais. na busca de uma consciência coleti-
trutural. São medidas a serem toma- condições psíquicas, inclusive pré- Uma sugestão para o desabasteci- va. Imóveis e famílias poderiam ser
das pela sociedade como um todo no vias, para que este seja aceito como mento e para assegurar a alimenta- facilmente cadastrados em aplicati-
enfrentamento de uma crise conjun- necessário e, assim, passe a ser utili- ção das pessoas nas favelas poderia vos que assegurariam total transpa-
tural potencializada por déficits zado. É a psicoesfera, por exemplo, ser destinar a merenda das escolas, rência ao processo. Por outro lado, a
históricos. que transfere ao aplicativo de mapas agora fechadas, para essas localida- vasta tecnologia social dos movi-
Em seu livro Por uma outra globa- a nossa capacidade de nos guiar na des, compondo esforços com a comu- mentos sociais de luta por moradia
lização: do pensamento único à cons- cidade, o que concomitantemente nidade organizada para que as entre- facilmente asseguraria o sucesso de
ciência universal, Santos apresenta a nos torna reféns dessa tecnoesfera. gas sejam realizadas e, novamente, uma empreitada como essa. Para
globalização de três maneiras. Pri- Na atual crise, a tecnoesfera é gerenciando esses esforços por meio aqueles que não acreditam ser possí-
meiro, como uma fábula vendida por lembrada no número de leitos, nos de aplicativos simples instalados em vel, sugiro que aproveitem a quaren-
guias turísticos, filmes, produtos glo- aeroportos e voos internacionais que smartphones. Soma-se aqui a opção tena e assistam a um destes docu-
bais etc. Em seguida, como uma per- trazem o vírus, no sistema de trans- de compras públicas de cestas de mentários sobre o tema: À margem
versidade, ou seja, como o que real- porte urbano, na qualidade da urba- hortifrútis provenientes da agricul- do concreto (2006), Leva (2011) ou Era
mente ela é, a globalização do nização, incluindo sua precariedade. tura familiar e de distribuição nessa o Hotel Cambridge (2016).
dinheiro em seu estado puro, uma A psicoesfera vai do “apocalipse mesma rede, assegurando também a As características da urbanização
busca incessante pela mais-valia zumbi” à ideia da “gripezinha”, e é renda básica ao produtor rural. brasileira, seu desenvolvimento “cor-
universal. E, por fim, a globalização produzida segundo interesses de in- Outras sugestões e reivindica- porativo e fragmentado” e sua confi-
como pode vir a ser, a globalização vestidores ou políticos que buscam ções estão sendo feitas por grupos de guração excludente e segregadora
em sua dimensão humana. Essas três minimizar perdas ou gerar ganhos, pesquisadores, movimentos sociais, impõem à sociedade optar por uma
formas convivem, ainda que as duas como pastores de igrejas evangélicas associações de classes e militantes série de ações a princípio radicais e
primeiras sejam mais proeminentes que negam a gravidade da situação e reunidos em torno da reforma urba- que, justamente por isso, podem sal-
ou visíveis em tempos de normalida- recusam fechar suas igrejas. na e dos direitos humanos, preocu- var milhares de vidas. Ou se pode
de das condições capitalistas. Combater o alastramento da Co- pados não apenas com a questão das continuar naturalizando a existência
Em contexto de crise, afloraram vid-19 nas favelas e assentamentos favelas, mas também com a dos as- das favelas e a existência de cidadãos
expressões dessa outra forma possível precários passa pela produção de sentamentos precários e da pobreza de segunda classe, historicamente
de globalização, essa que é relaciona- uma psicoesfera saudável, baseada urbana em geral. Uma das princi- excluídos pela necropolítica das be-
da ao que o autor chamou de “período na distribuição de informações sem pais, e que conta com apoio da ONU, nesses do desenvolvimento.
popular da história”. É nesse período, inibições, constrangimentos ou vetos é a implementação imediata da Ren- Ações radicais são necessárias e
iniciado no século XXI, que podere- de cunho religioso ou ideológico. Os da Básica de Cidadania Emergencial, urgentes e, como verificado em ou-
mos chegar a uma consciência uni- movimentos jovens relacionados ao a exemplo do que já foi feito por ou- tros países, devem se pautar, funda-
versal, à compreensão empírica da to- funk, as associações comunitárias, tros países. mentalmente, pela construção de
talidade que supera dicotomias como as igrejas efetivamente comprometi- A necessidade, sobretudo neste mecanismos de inclusão, solidarie-
homem e natureza e refunda o co- das com a vida, as mídias engajadas momento, de haver paz nas áreas dade e justiça social. 
nhecimento, superando, inclusive, na superação da crise e na manuten- mais pobres das cidades também é
conceitos insustentáveis no capitalis- ção da vida de todos, as ONGs etc. po- um ponto que une diversos grupos. Renato Balbim, geógrafo-urbanista, é
mo, como o de sustentabilidade am- deriam se reunir em uma tecnoesfera Para tanto, duas principais propos- pesquisador e professor visitante da Uni-
biental. Essa consciência universal – redes virtuais – comprometida com tas têm aparecido. A primeira, já versidade da Califórnia em Irvine (UCI).
que surgirá de uma nova globalização a formação de uma psicoesfera soli- chancelada por representantes do
foi bem representada no filme Avatar, dária, comunitária e saudável. Ministério Público, trata da suspen-
uma dica para a quarentena àqueles É essa esfera psicológica a única são por período determinado de des- 1   D jeff Amadeus, “A estranha quarentena com
que podem se isolar em casa. garantidora das condições de repro- pejos e remoções forçadas. Pede-se empregada doméstica no ‘Brazil Corona”,
Carta Capital, 15 mar. 2020.
A sugestão imediata que tiro des- dução da vida e permanência da or- também que cessem as incursões 2   Chico Regueira, “Turismo em comunidades
sa compreensão teórica é a necessi- dem perante as dificuldades de desa- policiais violentas nas favelas, fato como a Rocinha deixa moradores vulneráveis
dade de reconectar o homem à natu- bastecimento e esgotamento do que se tornou ainda mais corriqueiro ao coronavírus, diz pesquisadora da Uerj”, G1,
17 mar. 2020.
reza, ao seu meio, tendo a tecnologia sistema de saúde que milhões de pes- nos últimos anos. Paz, aqui, significa 3   South African Government, “President Cyril
como uma ferramenta de ação soas estão enfrentando. diminuir o grau e a imprevisibilida- Ramaphosa: Escalation of measures to com-
popular. Hoje, mais do que nunca, vivemos de da vida e possibilitar que milha- bat Coronavirus COVID-19 pandemic” [Presi-
dente Cyril Ramaphosa: escalada de medidas
Fazendo frente ao Covid-19 nas naquilo que Marshall McLuhan cha- res de famílias possam se programar para combater a pandemia de Covid-19 coro-
favelas brasileiras, isso poderia se mou em 1962 de aldeia global para diante da crise. navírus], 23 mar. 2020.
18 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2020

UNIVERSIDADES BRASILEIRAS

Coronavírus e
cial exclusão dos estudantes que
simplesmente não conseguirão
acompanhar os cursos presenciais
de forma remota. Sim, existem estu-

a “volta às aulas”
dantes universitários que não pos-
suem computador em casa, embora
quase todos tenham acesso à inter-
net, pelo menos por meio de smart-
phones. Celulares, por seu turno,
O isolamento forçado expõe as desigualdades internas das instituições não substituem computadores para
de ensino superior. Nas universidades públicas, a pandemia vai abrindo flancos os complexos fins de leitura e escrita
acadêmica. Além disso, as dificulda-
para o desmonte do ensino presencial, bem como oportunidades de negócio des dos estudantes não acabam aí.
para parceiros do governo federal Para os mais pobres, não é a falta
de aulas que gera mais apreensão
POR SALOMÃO XIMENES E FERNANDO CÁSSIO* neste momento, mas a possibilidade
de não conseguirem sobreviver em
razão da eventual descontinuidade
de políticas de assistência estudantil

O
fechamento generalizado das que as megauniversidades lucrativas tomar decisões difíceis e urgentes, o (restaurantes universitários, mora-
instituições de ensino superior – e menos organizadamente tam- caos e o improviso iriam se estabele- dias, auxílios financeiros etc.). Tudo
por conta da pandemia do novo bém, pois é difícil transpor para cer em torno do tema. aquilo que parece natural a professo-
coronavírus impõe desafios “EaD” um ensino superior presencial Com efeito, os primeiros dias de res universitários de classe média
enormes a estudantes, professores, de boa qualidade em um passe de suspensão das aulas nessas institui- não é necessariamente natural para
familiares e gestores. Enquanto os mágica –, essas universidades tam- ções foram marcados por imensas e seus alunos. Como vivem? O que co-
governos ainda patinavam nas ações bém estão replanejando suas ativida- cacofônicas chuvas de ideias a res- mem? Ou melhor: será que comem?
de contenção do surto pré-pandêmi- des e tratando de colocar o bloqui- peito de como prosseguir com as ati- Seu mau desempenho nas provas se-
co, universidades públicas e privadas nho do ensino remoto na rua. De uma vidades. Isso se deu principalmente rá fruto de preguiça, desleixo ou de
tomaram a iniciativa de suspender semana para outra, docentes e dis- em listas de e-mails e em redes so- uma jornada de trabalho extenuan-
atividades administrativas regulares centes tiveram de aprender a usar no- ciais utilizadas por membros das co- te? Terão crianças para cuidar em ca-
e de ensino. vas ferramentas, umas oferecidas por munidades universitárias. sa durante o isolamento? Terão casa?
Na retomada do ano letivo, ante o suas próprias instituições e outras Antes disso, um grande número Essas questões estão colocadas há
crescimento exponencial do contá- disponíveis gratuitamente. Aos pou- de docentes, movidos por certo he- muito tempo em uma vasta literatura
gio pelo mundo, já se prefigurava que cos, enfim, estão voltando à “sala de roísmo de propósitos para o enfren- sobre a democratização do ensino
as coisas se complicariam rapida- aula”. Estudantes e professores, jun- tamento da crise, já havia decidido superior no Brasil: é a dimensão da
mente no Brasil. Ainda assim, com tos e isolados, cada um na sua casa. individual e informalmente ofertar “permanência”.
raras exceções, a pandemia pegou as seus cursos de forma remota. Não fo- Qualquer ação emergencial que
universidades públicas de surpresa, VOLUNTARISMO EM MEIO AO CAOS ram poucos os que já haviam convo- transponha em ferramentas digitais
em plena programação de atividades A rápida resposta das instituições cado seus estudantes a continuar os o ensino presencial excluirá parte
letivas, organização de grandes e pe- privadas se baseia em duas coisas. A cursos, buscado ferramentas on-line dos estudantes em trancamentos se-
quenos eventos e planejamento de primeira é o pressuposto – equivoca- e agendado aulas via plataformas ou micompulsórios de matrículas, re-
pesquisas de campo. do, por vezes – de que todos os seus aplicativos de comunicação. Muitos provações e abandono de cursos,
Fechadas preventiva e depois estudantes têm acesso suficiente à estudantes também participaram do problema que se estende a pessoas
obrigatoriamente, as instituições de internet e a computadores, dispõem esforço inicial de viabilizar o segui- com diversos tipos de deficiência –
ensino superior passaram a debater de condições ambientais adequadas mento dos cursos, mobilizando-se costumeiramente excluídas também
sobre o que fazer com suas ativida- para estudo doméstico e possuem solidariamente para descobrir quais nos contextos de ensino presencial.
des de ensino diante de um lockdo- um capital cultural que lhes assegure de seus colegas teriam eventuais difi- Assim, já se espera que as soluções de
wn que, ao que tudo indica, deve du- uma rápida adaptação ao cenário culdades de acesso à internet ou a momento venham a amplificar dis-
rar meses. O fechamento incentivou emergencial de isolamento. A segun- computadores em suas casas. criminações, revertendo negativa-
um sem-número de iniciativas, indi- da é a lógica consumerista que pres- Em muitos casos, a confusão foi mente parte dos esforços inclusivos
viduais ou institucionais, de mudar siona essas instituições a dar uma estimulada pelas próprias universi- das instituições. Será preciso lidar
a oferta de cursos e disciplinas da resposta de continuidade que justifi- dades, que, por meio de notas curtas, com essas consequências – se não
modalidade presencial para algum que o pagamento das mensalidades. convocaram seus professores a uma agora, assim que forem retomadas as
tipo improvisado de educação a dis- Já nas universidades públicas, o força-tarefa para “salvar” o período atividades didáticas presenciais.
tância (EaD). quadro é bem mais complexo. Esta- letivo e evitar os temidos calendários
Nas universidades privadas, a mos falando de instituições de ensi- de reposição de aulas. As respostas a TÁ LIBERADO!
mudança se deu quase imediatamen- no superior com estruturas adminis- esses estímulos foram variadas e O crescente experimentalismo justi-
te, sob uma lógica de continuidade trativas e cadeias decisórias quase sempre baseadas em soluções ficado pela pandemia multiplica ini-
do serviço pago e regido por contrato. completamente diferentes das priva- locais ou individuais. ciativas que não podem ser formal-
As instituições privado-mercantis, das – mais capilarizadas, transparen- mente caracterizadas como EaD,
que há muito tempo barateiam sua tes, democráticas e inclusivas. Por DESIGUALDADES INTERNAS ainda que incentivem práticas de en-
oferta presencial em modalidades se- sorte, não é possível aos reitores das Passados alguns dias do experimen- sino não presenciais. As gestões re-
mipresenciais ou 100% remotas de universidades públicas “decretar” a to anárquico que se seguiu à inter- centes do MEC vêm progressivamen-
qualidade ainda mais baixa, segui- implantação da modalidade EaD, as- rupção das aulas, várias universida- te atendendo ao pleito de
ram trabalhando. Algumas das boas sim como não é possível implementá- des públicas recuaram e decidiram flexibilização das regras de oferta de
universidades privadas, por sua vez, -la com qualidade, em grande escala suspender o período letivo em defi- EaD, modalidade que é tida pelo se-
baixaram diretrizes internas e ofere- e de forma rápida em instituições nitivo ou até que se construam res- tor privado-mercantil como saída pa-
ceram treinamento a jato para seus cujos procedimentos de empenho e postas institucionais aos problemas ra a preservação das taxas de lucro
professores e estudantes, disponibi- execução de recursos financeiros se- práticos identificados. Além dos li- em tempos de crise econômica e de
lizando plataformas e ferramentas guem normas extremamente rigoro- mites materiais e institucionais para restrição do Fies (Programa de Fi-
para a organização de salas de aula sas e transparentes. Logo, era de es- a implantação imediata de cursos nanciamento Estudantil), além de
virtuais. Embora mais lentamente do perar que, diante da necessidade de em EaD, outro “problema” é a poten- vista como alternativa ao programa-
ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 19

do subfinanciamento do setor públi- prazo de quinze dias. De um lado, o é grátis. O preço das “soluções” ofere- tuições de ensino superior. Contudo,
co. Em 2017, Michel Temer promoveu MEC enxerga a possibilidade de flexi- cidas será, no mínimo, o de transferir é preciso ter a sensibilidade de com-
ampla reformulação das regras da bilizar regras e incentivar o improvi- um grande volume de informações preender que muitos deles ficarão de
EaD (Decreto n. 9.057/2017). Na edu- so didático nas universidades públi- sobre alunos, professores e institui- fora das “balbúrdias” a distância, fei-
cação superior, foco da mudança, fi- cas; de outro, de conseguir uma ções de ensino superior para os ban- tas em caráter emergencial e movidas
cou permitida a abertura de universi- inédita e maciça adesão das institui- cos de dados das empresas. Estas, pelo melhor dos voluntarismos.
dades e faculdades com oferta ções a um tipo rebaixado de EaD, aproveitando-se de uma trágica crise “Compreender”, nesse caso, não é
exclusiva de cursos de graduação e de que, se neste momento emergencial humanitária, querem produzir nas simplesmente colocar a mão no om-
pós-graduação a distância. Além dis- poderia ser de alguma serventia, de- universidades públicas, “de forma bro dos estudantes em sinal de soli-
so, as instituições ficaram livres para pois servirá – assim como nas univer- gratuita”, uma cultura pedagógica dariedade, mas, uma vez terminado
criar novos polos de EaD sem autori- sidades privado-mercantis – para ba- dependente da utilização de recursos o isolamento, arregaçar as mangas
zação prévia do MEC. ratear o ensino presencial nas educacionais pagos. para lidar com as perdas que advirão.
Em dezembro de 2019, Abraham melhores universidades do país. A “Compreender” é entender que as de-
Weintraub, ministro da Educação de médio e longo prazos, portanto, o “É A VIDA” sigualdades não são coisas da vida.
Bolsonaro, baixou novo regulamento que está em jogo nas universidades Se os abutres do empresariado edu- Se o bate-bola entre o MEC e o fa-
desse decreto, ampliando de 20% pa- públicas são os sentidos da docência cacional fazem marketing digital di- risaísmo educacional está correndo
ra até 40% o limite de disciplinas em e da educação superior pública como recionado no meio do pandemônio, é solto e seduzindo uma fração ames-
EaD na carga horária de cursos pre- política social.2 porque sabem que alguém deseja ou- quinhada das comunidades universi-
senciais de graduação (Portaria n. A conversão do ensino presencial vir seus grasnados. Sabem que o he- tárias, é preciso deixar claro que to-
2.117/2019). Não obstante ampliados em EaD nas universidades públicas roísmo didático e o voluntarismo flo- das as soluções tecnológicas para
e flexibilizados ao máximo, ainda sempre gozou da simpatia do MEC e rescem em um ambiente acadêmico enfrentar os efeitos do isolamento
existem limites normativos e peda- do Ministério da Economia de Bolso- coalhado de individualismo. são “emergenciais” e obviamente não
gógicos para a prática da EaD no Bra- naro, pois a liberalização dessa mo- Embora a grande maioria dos do- dão conta de atender à complexa ga-
sil, não se admitindo, por exemplo, a dalidade consegue ser, a um só tem- centes realmente queira fazer o me- ma de atribuições de ensino, pesqui-
mera transmutação de um curso ou po, um ramo de negócios familiares3 lhor trabalho possível, com ou sem sa e extensão que caracterizam as
disciplina regular presencial em EaD. e uma “solução” para o subfinancia- EaD, alguns também pontificam que, universidades públicas, tampouco a
A oferta, em cursos presenciais, de mento planejado da educação supe- se alguns alunos vão ficar para trás diversidade de seus estudantes. O de-
disciplinas em EaD deve estar previs- rior pública. Junto a seus aliados no durante o período de isolamento, bate acadêmico sobre EaD nas uni-
ta em projetos pedagógicos previa- mercado educacional, o MEC parece “são coisas da vida”. Outros, ainda, versidades públicas é de outra ordem,
mente aprovados, e alterações nessa vislumbrar na pandemia uma opor- manifestam grave preocupação com partindo de bases bem diferentes das
oferta não podem ser realizadas a tunidade de negócio sem preceden- a questão dos direitos autorais rela- de agora.4 Neste momento singular, a
qualquer tempo.1 tes; assim, o empresariado educacio- cionados às importantíssimas aulas ordem do dia deveria ser oferecer o
Nas universidades públicas, regi- nal aposta na conquista de um em vídeo que eles, servidores públi- melhor das universidades para com-
das por normas de gestão democráti- valioso e simbólico mercado: as me- cos e fantásticos didatas, teriam de preender e enfrentar esta crise, para
ca e colegiada, isso pressupõe apro- lhores universidades do país. gravar para a temporada de estudos minimizar as perdas e a solidão de
vação em diversas instâncias, com a A oportunidade aberta pelo MEC remotos. Alguns alunos, por sua vez, nossos alunos – durante e após o iso-
participação de estudantes e demais não demorou a ser aproveitada. Pou- se solidarizam com os colegas que lamento – e para impedir que as ins-
membros da comunidade universitá- cos dias após a publicação da Porta- perderão o quadrimestre/semestre tituições de ensino superior públicas
ria. Sabendo disso, o MEC baixou ria n. 343/2020, nossas caixas de letivo, desde que eles próprios não se- e de qualidade que temos no Brasil
emergencialmente a Portaria n. 343 e-mail começaram a ser bombardea- jam obrigados a sofrer com eventuais sejam devoradas não apenas pela Co-
(17 mar. 2020), que flexibiliza e in- das por spams de grandes firmas do atrasos nos cursos. “É a vida”, afir- vid-19, mas pelos oportunistas liga-
centiva formalmente o ensino remo- mercado educacional de soluções mou um estudante de Engenharia em dos ao mercado e a esse governo. 
to improvisado nas universidades tecnológicas e de produção de con- um grupo do Facebook. “Não dá pra
públicas e privadas em caráter ex- teúdos para ensino a distância. A salvar todo mundo”, lamentou um *Salomão Ximenes  é doutor em Direito,
cepcional: “a substituição das disci- chamada de uma dessas mensagens é segundo. Esses já estão, como se vê, professor da UFABC e autor de Direito à
plinas presenciais, em andamento, cinicamente comovente: “CORONA- bem educados no hiperindividualis- qualidade na educação básica: teoria e crí-
por aulas que utilizem meios e tecno- VÍRUS – SOMOS RESPONSÁVEIS PE- mo universitário. tica , Quartier Latin, São Paulo, 2014; e
logias de informação e comunicação, LOS OUTROS E PARA OS OUTROS”. Os comentários dos autodenomi- Fernando Cássio é doutor em Ciências,
nos limites estabelecidos pela legisla- As empresas prometem acesso gra- nados “pragmáticos”, os sincerões professor da UFABC e organizador de Edu-
ção em vigor”. Na forma redigida, tuito a todo o seu conteúdo de “solu- com computador, internet e espaço cação contra a barbárie: por escolas demo-
contudo, a portaria arriscava ser inó- ções para a educação a distância” e adequado para estudar/trabalhar em cráticas e pela liberdade de ensinar, Boi-
cua, pois remetia à “legislação em vi- fazem um agradecimento ao MEC casa, não deixam de nos remeter aos tempo, São Paulo, 2019.
gor”, que impõe uma série de condi- por editar a nova regra. Para as multi- diagnósticos daqueles que, diante da
ções para a tal “substituição de nacionais do ensino, “o momento que explosão da mortalidade de idosos 1   Isso consta da própria Portaria MEC n.
disciplinas”. Como o primeiro objeti- estamos vivendo preconiza ainda em países europeus, são capazes de 2.117/2019.
2   A resposta mais dura aos movimentos de
vo do MEC é justamente respaldar o mais o exercício de nossas crenças enxergar efeitos previdenciários be- afrouxamento da legislação por parte do MEC
informal e o ilegal, oferecendo segu- para o bem comum”. No entanto, em néficos na pandemia: o popular “an- veio de diversas universidades federais, que
rança jurídica ao que (ainda) não vez de franquear livre acesso aos con- tes eles do que eu”. aprovaram normas internas proibindo a ado-
ção de EaD para a continuidade de cursos
tem fundamento normativo e dando teúdos, a generosa oferta é mediada A situação dos estudantes univer- presenciais durante o período de isolamento.
apoio moral às iniciativas de impro- por uma relação comercial ordinária: sitários neste período de isolamento 3   As relações do ministro da Economia, Paulo
visação em curso, dois dias depois, as universidades interessadas devem é preocupante. Sua saúde física e Guedes, com fundos de investimento que lu-
cram com educação superior privada e a dis-
em uma nova portaria (n. 345, 19 procurar um “consultor”. “Fale co- mental, seu bem-estar e sua necessi- tância são conhecidas desde antes de Bolso-
mar. 2020), o MEC eliminou todas as nosco e conheça os detalhes!” Fala- dade de manter uma vida minima- naro assumir a Presidência. A irmã do ministro,
referências à legislação proibitiva mos, e descobrimos que o acesso aos mente funcional. Preocupações, Elizabeth Guedes, é a atual presidente da As-
sociação Nacional de Universidades Particula-
preexistente. materiais depende de uma integra- aliás, que temos em relação à nossa res (Anup). Ver Tomás Chiaverini, “Planos para
ção dos conteúdos das empresas às própria vida neste momento. É certo a educação devem enfraquecer professores e
“FALE CONOSCO E plataformas de ensino das universi- que, nos próximos meses, os estu- beneficiar negócios de Guedes”, Agência Pú-
blica, 12 dez. 2018.
CONHEÇA OS DETALHES!” dades e que a gratuidade se encerra dantes precisarão ser lembrados de 4   Catarina de Almeida Santos, “Educação a dis-
O outro objetivo do MEC com essas no dia 30 de junho de 2020. A partir alguma forma (e remotamente) que tância: tensões entre expansão e qualidade”.
portarias é acelerar a decisão, obri- daí, a continuidade do uso depende- ainda são estudantes e que ainda es- In: Fernando Cássio (org.), Educação contra
a barbárie: por escolas democráticas e pela
gando as universidades a “aderir” à ria do correspondente pagamento. tão matriculados, no caso das uni- liberdade de ensinar, São Paulo, Boitempo,
“substituição de aulas” no exíguo Nem no meio da pandemia o almoço versidades públicas, em ótimas insti- 2019, p.53-58.
20 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2020

A MAIOR TRANSNACIONAL LATINO-AMERICANA VENDIDA EM FATIAS

Petrobras, privatização
empresa”.1 Mas esse é um projeto im-
popular, e não apenas dentro das
Forças Armadas:2 segundo pesquisa
do Instituto Datafolha, realizada em

em águas profundas
agosto de 2019, 65% dos brasileiros se
opõem à privatização da Petrobras
(contra 27% que a desejam). O que fa-
zer quando se planeja uma operação
que a população desaprova? Negar o
Formado na Escola de Chicago, o ministro da Economia, Paulo Guedes, não esconde plano: “A privatização da Petrobras
suas convicções liberais. Segundo ele, a intervenção do Estado prejudica a economia: não está nos planos do governo fede-
ral”, tentou tranquilizar Salim Mat-
o jeito então é recorrer à sabedoria do mercado... Ainda que Brasília negue o projeto de tar, secretário especial de Desestati-
privatizar a Petrobras, a joia nacional começa a sentir os efeitos dessa visão de mundo zação, Desinvestimento e Mercados
do Ministério da Economia, em feve-
POR ANNE VIGNA* reiro de 2020.
Então há ou não há privatização?
No fim das contas, a resposta a essa

V
inte mil funcionários mobiliza- gigante brasileira do ouro negro, a (responsável pela impressão do di- pergunta importa pouco, pois, para
dos, 130 usinas, plataformas e maior empresa da América Latina, nheiro). A lista incluía algumas além das declarações contraditórias
refinarias bloqueadas. Durante que nasceu mista, mas, em 1995, era “joias”, como o maior produtor de do governo, a venda da empresa já co-
25 anos, o setor petrolífero bra- 75% pertencente ao Estado, contra eletricidade da América Latina, a Ele- meçou. “Parece uma privatização
sileiro não conheceu uma greve co- 50,2% hoje. trobras, e o maior porto da América ‘por partes’, um pedaço de cada vez”,
mo a de fevereiro de 2020. Segundo De acordo com o governo, no en- Latina, localizado em Santos. Mas explica Felipe Coutinho, presidente
Sérgio Borges Cordeiro, membro da tanto, não há venda da Petrobras. nada da Petrobras. da Associação dos Engenheiros da
direção da Federação Única dos Pe- Quando, em julho de 2019, o ministro Estariam os funcionários da em- Petrobras (Aepet): “Claro que a dire-
troleiros (FUP) do estado do Rio de da Economia, Paulo Guedes, anun- presa paranoicos? Nem tanto. O no- ção prefere falar em ‘estratégia de de-
Janeiro, o movimento representa o ciou seu “ambicioso” programa de me da empresa não foi dito, mas esta- sinvestimento’”. E qual é o motivo
desejo, por parte dos grevistas, de venda de empresas públicas, ele va na cabeça de todo mundo. Guedes dessa ação em pequenas etapas? Um
“alertar a população” para uma mencionou dezessete companhias, nunca escondeu suas ambições em deles é o tamanho da Petrobras, uma
ameaça: “O governo quer privatizar a de serviços postais a bancos, passan- relação a isso e, um mês depois, con- joia que poucos bolsos podem ban-
Petrobras”. E o que é a Petrobras? A do pela loteria e a Casa da Moeda firmou a “intenção de privatizar a car. Mas, acima de tudo, a necessida-
de de contornar o Congresso: “Ven-
der a companhia de uma só vez
© Tânia Rêgo/Agência Brasil

implicaria que a venda passasse por


aprovação parlamentar, exigência
para a privatização de qualquer em-
presa pública. Mas, para isso, o go-
verno não conta com maioria entre
deputados e senadores”.

MARGEM DE MANOBRA FINANCEIRA


Fatiar a gigante do petróleo como
quem fatia uma linguiça nem sempre
foi o projeto do Brasil. A ideia surgiu
no governo interino de Michel Temer,
em 2016, após a destituição da presi-
denta Dilma Rousseff. Até então, a Pe-
trobras tinha um papel fundamental
na maneira como o Estado dirigia a
economia, especialmente desde a
descoberta, em 2005, de gigantescos
depósitos oceânicos localizados en-
tre 5 mil e 7 mil metros de profundi-
dade, abaixo de uma camada de sal
cuja espessura pode atingir 2 mil me-
tros: as reservas do pré-sal. Enquanto
Luiz Inácio Lula da Silva esteve no po-
der (2003-2010), o Brasil viu na Petro-
bras um instrumento de estímulo ao
desenvolvimento econômico do país:
para ele, a imensa riqueza petrolífera
deveria permitir o desenvolvimento
de estaleiros, estimular a pesquisa e o
desenvolvimento, impulsionar o flo-
rescimento de pequenas indústrias
subcontratadas, criar milhares de
empregos. Em suma, facilitar a diver-
sificação do parque industrial brasi-
leiro. Na época, a Petrobras combina-
va a expansão de sua produção de
Durante 25 anos, o setor petrolífero brasileiro não conheceu uma greve como a de fevereiro de 2020 petróleo com a de suas refinarias:
ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 21

produção, processamento e distribui- dos em quatro anos), mas os dividen- da corrupção”. Em outras palavras, o barris de petróleo a serem explorados
ção eram pensados como um todo. dos de 2020 foram anunciados em al- intervencionismo estatal e sua tenta- na bacia do pré-sal. Ansioso para
A destituição de Dilma Rousseff, ta: 2,7 bilhões de euros, contra 1,6 tiva de usar a grande empresa para atrair as multinacionais, o Brasil
no dia 31 de agosto de 2016, foi um bilhão em 2018. garantir o desenvolvimento do país também reduziu sua exigência de
ponto de inflexão. A nova direção da Apesar dos números sedutores, teriam levado ao colapso, estimulan- conteúdo local – a exigência, imposta
empresa decidiu se concentrar na ex- William Nozaki, pesquisador do Ins- do a prevaricação. às empresas estrangeiras, de utilizar
ploração das reservas do pré-sal, a tituto de Estudos Estratégicos de Pe- ferramentas e tecnologias do Brasil
fim de abrir uma margem de mano- tróleo, Gás Natural e Biocombustí- EM PRIMEIRO LUGAR, para explorar as reservas.
bra financeira, mesmo que isso signi- veis Zé Eduardo Dutra (Ineep), não vê NÃO ASSUSTAR O MERCADO Segundo a ideologia em curso no
ficasse vender a maior parte de suas motivo para aplausos: “A Petrobras Professor de Economia Política da Fa- país, a concorrência e a abertura fa-
atividades de “logística”. Em 2017, está fazendo mudanças que vão na culdade de Direito da Universidade vorecem o investimento, sem neces-
70% de seus 34 mil postos de gasolina contramão de todo o resto no setor, de São Paulo (USP) e autor de um es- sidade de imposição de regras: “Re-
(BR Distribuidora) foram colocadas seja ele público ou privado. Enquanto tudo sobre o assunto,5 Gilberto Ber- gulamentação excessiva assusta o
no mercado. Em 2019, 90% do capital as outras empresas buscam ‘integrar’ covici propõe outra leitura da situa- mercado”, explica Décio Oddone,
da Transportadora Associada de Gás suas atividades, controlar o conjunto ção: “A falência da Petrobras é um presidente da Agência Nacional do
(TAG), sua rede de 4.500 quilômetros da cadeia produtiva, a distribuição, a mito para justificar sua privatização”. Petróleo, Gás Natural e Biocombustí-
de gasodutos no norte do país, caiu venda e os produtos derivados, em Lembrando que uma dívida não é ne- veis (ANP), responsável pela regula-
nas mãos da francesa Engie e da ca- suma, estar presentes ‘do poço à cessariamente ruim, desde que sirva ção do mercado de energia no Brasil.
nadense Caisse des Dépôts, em troca bomba’, a Petrobras agora se conten- para preparar uma atividade futura, “Estou fazendo de tudo para abrir es-
do equivalente a 7,8 bilhões de euros. ta em exportar petróleo bruto. Uma ele explica que a dívida da Petrobras se setor à concorrência, a fim de au-
A Petrobras encerrou todas as ativi- renúncia ainda mais incompreensí- “é resultado de um investimento de mentar os investimentos que a Petro-
dades no exterior: na África (Nigéria, vel quando se considera que a empre- quase 272 bilhões de euros entre 2009 bras não pode mais assumir.”
Angola, Gabão, Benin e Guiné Equa- sa possuía instalações que permi- e 2014, com o objetivo de dominar a Para William Nozaki, a declara-
torial); na América Latina (Argentina, tiam não se limitar à produção”. tecnologia de perfuração em águas ção é risível: “Sempre ouvimos dizer
Uruguai, Chile, Colômbia e Para- muito profundas. Ela não tem nada a que o setor privado pode ‘finalmente’
guai), onde abandonou suas ativida- ver com corrupção, como querem nos investir, depois que o público abre es-
des de joint venture na exploração e Fatiar a gigante fazer crer. A dívida era grande, mas os paço para isso. Mas a história nos en-
distribuição de petróleo; e nos Esta- do petróleo como projetos eram rentáveis. E isso pode sina que as coisas não são bem as-
dos Unidos, com a venda da refinaria ser constatado hoje”. No mundo do sim”. Em 1954, o presidente Getúlio
de Pasadena à Chevron por 509,7 mi-
quem fatia uma petróleo, a Petrobras é considerada o Vargas queria criar uma “companhia
lhões de euros. No final de fevereiro linguiça nem sempre que há de mais avançado em termos nacional de petróleo, mas de capital
de 2020, o presidente da companhia, foi o projeto do Brasil de exploração de depósitos deep privado”. O capital privado não veio,
Roberto Castello Branco, anunciou a offshore, ou ultraprofundos. pouco interessado na exploração de
venda de 51% do capital da Gaspetro, No entanto, a decisão de vender a petróleo em um território tão grande.
uma rede de distribuição de gás de 10 Consequência: desde 2016, o Bra- empresa tem menos relação com Foi por isso que nasceu a empresa
mil quilômetros. Ele se comprometeu sil elevou suas exportações de petró- uma questão de raciocínio econômi- pública Petrobras, que teve de inves-
a vender, neste ano, oito das treze re- leo bruto, de menor valor agregado, co do que com uma leitura ideológica tir, sozinha, durante vinte anos, até
finarias que a Petrobras possui no mas passou a importar mais gasolina do mundo: o atual presidente da Pe- descobrir as primeiras reservas.
Brasil. A empresa também planeja e óleo diesel. A maior parte das ex- trobras foi nomeado pelo ministro da Nada mudou em 1997, quando o
abandonar suas usinas de fertilizan- portações vai para a China, e 60% da Economia, de quem é amigo íntimo. governo neoliberal de Fernando Hen-
tes nitrogenados, seus projetos na gasolina vem dos Estados Unidos. Ambos se formaram na Universidade rique Cardoso acabou com o mono-
área petroquímica e de biocombustí- Daí o apelido pouco lisonjeiro de de Chicago no fim dos anos 1970. Mo- pólio da Petrobras sobre os hidrocar-
veis, além de vender suas operações “nova colônia no século XXI” que a netaristas convictos, eles acreditam bonetos do país: o setor privado não
onshore (em terra) e offshore, em Aepet deu ao país. Outrora, o Brasil que o Estado não pode competir com substituiu o público para a explora-
águas pouco profundas. Mas não exportou cana e importou açúcar; o mercado: assim, defendem, mais ou ção. “Durante a década de 1997-
existe “privatização”! hoje, exporta petróleo bruto e impor- menos discretamente, uma acelera- 2007”, continua Nozaki, “ninguém se
A estratégia deu resultado: em ja- ta gasolina. Essa lógica parece ainda ção das privatizações. E o chefe de arriscou no campo de prospecção em
neiro de 2020, pela primeira vez na menos convincente neste momento Estado, Jair Bolsonaro, eleito em 2018, águas profundas. A Shell e a Chevron
história, a Petrobras ultrapassou a em que o preço do barril está afun- os ouve: seu governo vendeu as ações estudaram o assunto por um tempo,
barreira de 4 milhões de barris de pe- dando, por causa da crise do da Petrobras detidas pelo Banco Na- depois recuaram, considerando os
tróleo equivalente por dia, um salto coronavírus. cional de Desenvolvimento (BNDES) riscos grandes demais. Assim, a Pe-
de 100% em relação a 2012.3 Segundo A justificativa da Petrobras para e pela Caixa Econômica, reduzindo o trobras se lançou sozinha.”
relatório da agência especializada em essa estratégia de desinvestimento é controle estatal da companhia para Resumindo: para o setor público,
energia Rystad Energy,4 a Petrobras é o endividamento muito elevado, re- 50,2%, contra 62,7% quando Bolso- a exploração cara; para o privado, a
a empresa de petróleo cuja produção sultado, segundo sua direção, da má naro assumiu a Presidência. lucrativa. 
mais cresce no mundo. A partir de gestão e da corrupção, revelada a Da mesma forma, após a desco-
2030, ela também pode se tornar a partir de 2014. Em 2015, o endivida- berta das reservas de petróleo do pré- *Anne Vigna  é jornalista (Rio de Janeiro).
companhia nacional com maior pro- mento da companhia alcançou US$ -sal em 2005, o Brasil as vendeu em
1   “ Guedes retoma processo de privatização da
dução do planeta, superando a russa 100 bilhões, para um volume de ne- leilão, reservando à Petrobras o “di- Petrobras iniciado na gestão Temer”, O Esta-
Rosneft e a chinesa PetroChina. gócios de US$ 70 bilhões: ela pode, reito preferencial” sobre a concorrên- do de S. Paulo, São Paulo, 22 ago. 2019.
Seus lucros, em 2019, também portanto, ser considerada uma das cia, o que era justificado pelos inves- 2   Ler Raúl Zibechi: “Que veulent les militaires
brésiliens?” [O que os militares brasileiros
atingiram um recorde. Em 2013, o fa- empresas mais endividadas do mun- timentos feitos pela companhia para querem?], Le Monde Diplomatique, fev. 2019.
turamento da companhia foi de 50 do. Para Adriano Pires, consultor do descobrir o “butim”. Ela adquiriu os 3   Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e
bilhões de euros, com um lucro de Centro Brasileiro de Infraestrutura principais blocos à venda. O governo Biocombustíveis (ANP).
4   U cube Research and Analysis, Rystad Energy,
4,7 bilhões de euros. Em 2019, o fatu- (agência privada de consultoria), a atual, além de desejar abolir um dis- nov. 2019.
ramento aumentou 21%, e o lucro, constatação é simples: “A Petrobras positivo que considera um “privilé- 5   Gilberto Bercovici, “A inconstitucionalidade
mais de 130%! – resultado ao mesmo foi destruída pelo PT. Eles controla- gio” da Petrobras “diante de seus do regime de desinvestimento de ativos das
sociedades de economia mista”, Revista de
tempo da venda de ativos, do aumen- vam o preço na bomba, supostamen- concorrentes”,6 multiplicou os leilões Direito da Advocef (Associação Nacional dos
to da produção e da redução dos cus- te para conter a inflação, e obrigaram das reservas. De acordo com os cál- Advogados da Caixa Econômica Federal),
tos. No mesmo ano, a massa salarial a empresa a construir refinarias no culos do Ineep, a Exxon, a Total e a BP Brasília, 2019.
6   “Perda de preferência não incomoda Petro-
foi reduzida em 8,9% (com um total Nordeste, com o objetivo de criar em- passaram a deter, respectivamente, bras”, Valor Econômico, São Paulo, 21 jan.
de 22.900 postos de trabalho corta- pregos artificialmente. Isso sem falar 11 bilhões, 6 bilhões e 4 bilhões de 2020.
22 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2020

UM ACORDO DE PAZ QUE NÃO É UM ACORDO DE PAZ

Debandada norte-americana
los Estados Unidos, também obriga
os outros países da coalizão a fazer o
mesmo, e na mesma proporção. O
restante das tropas deve partir den-

no Afeganistão
tro de nove meses e meio.
Os norte-americanos também se
comprometeram – em nome do go-
verno afegão, que não foi consultado
– a libertar 5 mil prisioneiros do Tali-
Curioso o acordo entre os talibãs e Washington, que ratifica a retirada das tropas bã “antes de 10 de março”, bem como
norte-americanas sem praticamente nenhuma contrapartida. Já o governo central a eliminar, até 27 de agosto, a lista de
sanções e a lista de membros do Tali-
está paralisado. Nem o secretário de Estado, Mike Pompeo, em visita no dia 23 de bã cuja cabeça está a prêmio. Até o
março, conseguiu resolver a questão. Consequência: os Estados Unidos cortaram momento, nada disso foi feito.
a ajuda de US$ 1 bilhão que davam ao país Em comparação com os restriti-
vos compromissos assumidos pelos
POR GEORGES LEFEUVRE* Estados Unidos, as concessões do Ta-
libã parecem muito leves e muito va-
gas. Eles concordam em negociar
com os “lados afegãos” (afhgan si-

E
m 29 de fevereiro, Zalmay Kha- centivos a ataques contra os Estados mento de vitória. O cessar-fogo, que des), mas o texto não especifica quais
lilzad, dos Estados Unidos, e o Unidos a partir do solo afegão e ga- deveria ser um pré-requisito, foi são os “lados”, pois o Talibã não reco-
mulá Abdul Ghani Baradar, do rantias de segurança para a retirada substituído por uma curta semana de nhece o governo de Cabul. Quanto ao
Talibã, finalmente assinaram gradual das tropas. “redução da violência” antes da assi- cessar-fogo, ele é apenas um item na
em Doha o acordo que vinha sendo Embora Khalilzad, que inclusive é natura, enquanto o diálogo interno agenda da dita negociação. Garantir
negociado desde setembro de 2018. de origem afegã, não tenha poupado no Afeganistão nem começou a virar a segurança da retirada é do seu inte-
Acordo de paz? Longe disso. O uso energia para isso, ele não conseguiu realidade. Os termos práticos do tra- resse, pois está no cerne do que eles
abusivo da palavra “paz” desde o iní- quase nada da delegação do Talibã tado mostram que as concessões fei- chamam de vitória.
cio do processo distorceu a análise e desde a primeira rodada, em janeiro tas pelos Estados Unidos ocupam Em compensação, o compromis-
criou falsas esperanças. Quando a as- de 2019. Invertendo a ordem das coi- mais espaço no texto do que as feitas so de romper com a Al-Qaeda é muito
sinatura do acordo foi anunciada, sas, o mulá Baradar sempre recusou por seus adversários, que são frouxas mais duvidoso, pois o número dois da
muitos afegãos pularam de alegria, o cessar-fogo antes da retirada e e imprecisas. A proposta inicial de direção executiva do Talibã não é ou-
até descobrir, no dia seguinte, que o qualquer diálogo com um governo Trump era retirar rapidamente meta- tro senão Serajuddin Haqqani, filho
Talibã mantinha os combates. Na descrito como um “fantoche”; o Tali- de de suas tropas, e a outra metade de Jallaluddin Haqqani, ex-chefe da
realidade, nunca se tratou de nego- bã concordava apenas em garantir a em quatro ou cinco anos; as tropas rede terrorista de mesmo nome. Ele
ciar a paz1 – algo que seria impossí- segurança da saída das tropas e em se dos outros membros da coalizão in- faz o papel de interface da Al-Qaeda
vel, uma vez que o governo afegão es- comprometer a cortar todo o apoio a ternacional – mais de 8 mil soldados dentro dessa direção, assim como
tava excluído das negociações –, mas grupos terroristas. Obviamente, a de- – deveriam ficar o tempo necessário seu pai junto ao mulá Omar: este ha-
de encontrar as condições para a reti- claração de dezembro de 2018 inver- para garantir o treinamento do Exér- via oferecido a Osama bin Laden a
rada das forças norte-americanas, teu a relação de forças em detrimento cito afegão. Mas, no tratado final,2 os possibilidade de instalar sua primei-
sem muita desonra e de maneira im- de sua própria delegação, já que o Estados Unidos prometeram retirar ra base, em 1986, em Djadi, um dos
periosa, já que essa era uma promes- presidente Trump exibia então o de- todos os militares, em catorze meses, feudos Haqqani; depois permitiu o
sa de campanha ruidosamente rea- sejo de encerrar a questão antes de bem como todos os civis não diplo- desenvolvimento da Al-Qaeda quan-
firmada por Donald Trump em entrar em campanha para sua reelei- matas, agentes privados de seguran- do elementos vindos, entre outros, da
dezembro de 2018. Desejava-se tam- ção, em novembro deste ano. ça, conselheiros, encarregados de Chechênia, Uzbequistão e Xinjiang
bém que o Talibã, em troca da retira- treinamento etc., seguindo um cro- (China) se instalaram em suas áreas
da, aceitasse quatro concessões: o es- CONCESSÕES BEM PEQUENAS nograma apertado: 135 dias para de influência (Paktya, no Afeganis-
tabelecimento do cessar-fogo, a Nas ruas de Cabul, a (modesta) festa evacuar cinco bases militares e redu- tão, e Waziristão, no Paquistão). Mas
negociação com o governo afegão, o popular não durou muito. O Talibã zir os efetivos em um terço. Curiosa- provavelmente nada disso é sério aos
compromisso de que não haverá in- continuou expressando seu senti- mente, o acordo, assinado apenas pe- olhos dos talibãs, apenas uma página
ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 23

da história que eles assumem. Du- locutor. No momento em que este ar-
rante as negociações de Doha e por tigo é redigido, a mesma briga se dá CONFUSÃO, MENTIRA E INCOMPETÊNCIA
meio de seu site oficial, Voice of em torno das eleições de 28 de se-
Jihad,3 eles também afirmaram estar tembro de 2019, ocasionando uma Em 9 de dezembro de 2019, o jornal The Washington Post revelou os “Afghanis-
comprometidos com a luta contra o nova desagregação do poder central. tan Papers”, milhares de páginas de entrevistas com altas autoridades norte-a-
terrorismo, pois combatem incansa- O negociador dos Estados Unidos, mericanas que, interrogadas entre 2014 e 2018 pelo Escritório do Inspetor-Geral
velmente o Estado Islâmico. Khalilzad, luta para resolver a crise; Especial para a Reconstrução do Afeganistão, revelam o lado oculto da guerra
É tamanha a lacuna entre a reali- os talibãs comemoram: eles não ti- travada no país desde 2001
dade sem solução desse tratado e o nham interlocutores para as nego-
entusiasmo da mídia que o acompa- ciações que deveriam começar no “Em termos de dotação orçamentária, o Congresso nos dava o que o governo
nhou – manchetes competindo no dia 10 de março. Dez dias depois, o pedisse. A ideia era que, se não gastássemos, o Governement Accountability Of-
tema “nunca o Afeganistão esteve jogo continua parado. fice [órgão de auditoria do Congresso dos Estados Unidos] ou outro comitê do
tão perto da paz” – que a comunida- Congresso iria nos impedir de obter mais fundos. Isso nos levou a gastar, gastar,
de internacional e essa mesma mídia RETIRADA SEM GLÓRIA gastar. [...] Estávamos investindo em enormes projetos de infraestrutura, com o
permaneceram em silêncio quando Como sempre, uma solução, mesmo único objetivo de mostrar que poderíamos gastar o dinheiro alocado para nós, e
o Talibã retomou os combates, no que frágil, será encontrada, mas es- construindo uma infraestrutura que os afegãos nunca poderiam manter, ou mes-
dia 1º de março. O site norte-ameri- ses dois impasses expressam as duas mo usar.”
cano Long War Journal inventariou, fraturas que marcam o Afeganistão. Douglas Lute, conselheiro adjunto de Segurança Nacional para o Iraque e o Afega-
entre 1º e 10 de março, 147 ataques A das áreas pachtos alimenta as in- nistão, durante os mandatos dos presidentes George W. Bush e Barack Obama
em 27 das 35 províncias. Mas, em surreições das quais o Talibã se nu-
conformidade com o tratado, eles tre; 5 a disputa recorrente entre Gha- “Quando fomos ao Afeganistão [em 2009], havia apenas um oficial da Força In-
pouparam as forças estrangeiras, ni e Abdullah representa a fissura ternacional de Assistência e Segurança que sabia falar dari. Mas ele ficou lá por
pois esse é seu único compromisso! territorial: o norte não pachto do pouco tempo. A Força Aérea dos Estados Unidos o transferiu, em julho, para o
Na versão do Voice of Jihad, em país é o domínio eleitoral de Abdul- Japão. Nós rimos, porque isso mostra a que ponto o sistema é louco. [...] Estamos
pachto, uma fatwa (pronunciamento lah, ex-companheiro do comandan- até hoje no Afeganistão, e me diga quantos militares, autoridades políticas ou di-
religioso) lembra que “o Talibã con- te Massoud, cujos apoiadores estão plomatas sabem falar dari ou pachto. É uma vergonha e é uma decisão política.”
tinuará o jihad até o advento do Emi- cansados do excessivo peso político Michael Flynn, ex-diretor-chefe do serviço
rado Islâmico do Afeganistão”.4 Além pachto há mais de dois séculos, en- de inteligência da Otan no Afeganistão
disso, o presidente afegão, Ashraf quanto o feudo eleitoral de Ghani,
Ghani, furioso por não ter sido con- embora exceda as clivagens étnicas, “Talvez nosso maior projeto, infeliz e acidentalmente, tenha sido o desenvolvimen-
sultado, inicialmente se recusou a li- situa-se naturalmente na área tribal to da corrupção em massa. O fenômeno atingiu tais proporções que é incrivel-
bertar os 5 mil prisioneiros. Depois pachto, de onde é originária sua tri- mente difícil, se não impossível, contê-lo.”
decidiu libertar alguns, mas a conta- bo Ahmadzai. Ryan Crocker, ex-embaixador dos Estados Unidos no Afeganistão (2009-2012)
-gotas: 1.500, sendo cem por dia, a Essas são sutilezas da história e da
partir de 7 de março; depois 3.500, antropologia política que, por si sós, “No final, o que ganhamos depois de gastar US$ 1 trilhão? Valeu a pena?”
sendo quinhentos a cada duas sema- explicam a resiliência insurrecional; Jeffrey Eggers, oficial que trabalhou sob as administrações Bush e Obama
nas, após o início das negociações os estrategistas norte-americanos “Não paramos de mentir para os norte-americanos.”
com as quais o Talibã se comprome- quase não prestam atenção nelas, e
teu. O Talibã recusa categoricamen- Trump muito menos. Uma aborda-

© Johnny Bivera/ Forças Armadas dos Estados Unidos


te a oferta, afirmando que não have- gem antropológica pela reconcilia-
rá negociação com o regime de Cabul ção da nação afegã, na falta de uma
antes da libertação de todos os solução mágica, teria pelo menos
prisioneiros. atrapalhado o grande retorno do Ta-
Três semanas após a assinatura, libã. Mas está feito: os acordos de
os acordos de Doha permanecem Doha não são acordos de paz, eles
presos mais uma vez em um impas- apenas estabelecem a retirada ingló-
se, de mesma natureza que aquele de ria de um país exausto e marcam o
2014 – essas recorrências lançam retorno vigoroso daqueles que são os
cruamente luz sobre o mal que devo- exércitos mais poderosos do mundo,
ra o Afeganistão. Antes, tratava-se da os Estados Unidos à frente de uma
retirada de tropas da Organização coalizão de 38 países, que deveriam
do Tratado do Atlântico Norte vencer até o fim. 
(Otan), que deveria ser precedida
por um “acordo de segurança bilate- *Georges Lefeuvre é antropólogo, ex-
ral” – situação mais ou menos com- -consultor da União Europeia no Paquistão
parável à de hoje para a retirada das e pesquisador associado do Institut de Re-
Forças Armadas residuais. Isso ocor- lations Internationales et Stratégiques
reu no meio de uma eleição presi- (Iris), França.
dencial particularmente caótica. O
presidente que então deixava o po-
der, Hamid Karzai, não podia, de 1   L
 er “Les trois jours qui ont ébranlé le destin de
l’Afghanistan” [Os três dias que abalaram o
acordo com a Constituição, disputar destino do Afeganistão], Le Monde Diplomati-
um terceiro mandato, recusando-se que, abr. 2019.
a assinar o acordo, para não assumir 2   Disponível no site do governo dos Estados
Unidos: “Agreement for Bringing Peace to
a responsabilidade de seu sucessor. Afghanistan” [Acordo para levar a paz ao Afe-
Mas o processo eleitoral durou oito ganistão], 29 fev. 2020. Disponível em: www.
meses, com uma disputa feroz entre state.gov.
3   Disponível em: www.alemarahenglish.com.
Ashraf Ghani e Abdullah Abdullah. 4   Voice of America, Washington, 7 mar. 2020.
Oito longos meses durante os quais o 5   Ler “La frontière afghano-pakistanaise, source
Poder Executivo afegão esteve total- de guerre et clef de la paix” [A fronteira entre
o Afeganistão e o Paquistão, fonte de guerra e
mente desagregado, privando os chave para a paz], Le Monde Diplomatique,
norte-americanos de qualquer inter- out. 2010. Os norte-americanos se comprometeram a libertar 5 mil prisioneiros do Talibã
24 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2020

DESAFIOS DA LUTA CONTRA O POPULISMO AUTORITÁRIO E O FASCISMO NEOLIBERAL

Fortalecer a resistência e
te de políticos de direita, a mentira é
uma mistura de performance e espe-
táculo usada para desacreditar qual-

mobilizar a ação coletiva


quer tentativa de responsabilizá-los
por suas ações, enquanto por outro
lado minam esferas públicas como a
educação e as artes, tão necessárias
para formar cidadãos informados e
imaginativos. Os cortes no financia-
A forma fascista neoliberal de fazer política precisa ser fortemente contestada. mento das políticas sociais têm pou-
Em parte, isso significa criar uma nova linguagem, de fundamentação socialista, mas co a ver com o equilíbrio dos orça-
mentos e muito a ver com o ataque
reinventada, para a política, a vida cívica, o bem público, a cidadania e a justiça social aos bens, serviços e outras esferas da
vida pública que são cruciais para o
POR HENRY A. GIROUX E GUSTAVO O. FIGUEIREDO*
funcionamento da democracia.
O neoliberalismo criou uma so-
ciedade na qual a dor e o sofrimento
são vistos como entretenimento; a
guerra, como um estado permanente
de existência; e o militarismo, como a

V
© Fiorella Gonzaga
ivemos em tempos perigosos. força mais poderosa que molda a
Governos populistas autoritá- masculinidade. A política saiu da éti-
rios estão em ascensão pelo ca e, portanto, a questão dos custos
mundo, ameaçando todos aque- sociais está divorciada de qualquer
les considerados descartáveis pelo forma de intervenção no mundo. Es-
sistema. O combate à ascensão do fas- sa é a métrica ideológica dos zumbis
cismo neoliberal pode começar ex- políticos e a moeda que financia o
pondo o regime de governo baseado fascismo neoliberal. A palavra-chave
em mentiras, notícias falsas e espetá- aqui é atomização, maldição imposta
culos fabricados. É essa linguagem por sociedades neoliberais e autori-
fortemente ideológica que permite a tárias, que representa uma ameaça
normalização de condições bizarras e terrível a qualquer forma viável de
catastróficas, que tornam os discur- democracia.
sos autoritários uma fonte poderosa Essa forma contemporânea, rea-
de fantasia, sadismo e rentabilidade. cionária e perigosa de fazer política
Esta é uma época em que vivemos está em desacordo com os princípios
as consequências do capitalismo glo- mais básicos de igualdade, liberdade,
bal, que criou um cenário de preca- solidariedade e justiça. A forma fascis-
riedade e miséria em todo o mundo ta neoliberal de fazer política precisa
com suas medidas de austeridade fis- ser fortemente contestada. Em parte,
cal, terceirização do emprego e uma isso significa criar uma nova lingua-
ganância incontrolável por lucros em gem, de fundamentação socialista,
detrimento de maior exploração da mas reinventada, para a política, a vi-
mão de obra dos trabalhadores. O da cívica, o bem público, a cidadania e
neoliberalismo está criando uma cri- a justiça social. O que é necessário é
se no mundo contemporâneo com uma linguagem de possibilidades, de
enormes desigualdades sociais, in- militância, que Gregory Leffel chama
tenso acúmulo de riquezas e concen- de linguagem de “futuros imagina-
tração de poder. No meio dessa crise No Chile e diversos outros países, as pessoas estão se organizando contra um dos”, que “pode nos tirar do mal-estar
há uma crescente rejeição, por parte sistema neoliberal fascista sociopolítico atual para que possamos
das populações, às elites tradicionais imaginar alternativas, construir as
e seus modos de liderança. A imple- particulares em considerações sistê- mundo onde quase nada mais é ver- instituições de que precisamos para
mentação da lógica neoliberal tem micas mais amplas. Mentir se tornou dadeiro, tudo o que se resta para esco- chegar lá e inspirar um compromisso
exigido a adoção de políticas cada vez uma ferramenta tóxica de poder e, lher parece ficção ou filme de terror social”. Não há política sem esperança
mais repressivas, punitivas e violen- como aponta o romancista Toni Mor- bizarro. Uma consequência é que as e não há senso de resistência, a menos
tas em muitos países do mundo. Em rison, funciona “como um coma na instituições cívicas e a cultura públi- que se possa imaginar um futuro em
alguns, como no caso de Estados população”, impondo miséria e trau- ca que ainda nutrem a capacidade de que a democracia importe e valha a
Unidos, Israel e Brasil, esse populis- mas tão profundos e cruéis que ma- dizer a verdade começam a murchar. pena lutar por ela. O que deve ser lem-
mo autoritário tem assumido carac- tam a imaginação e purgam os ideais Numa época em que os apelos à brado é que a história está aberta e que
terísticas fascistas. Isso é o que Gi- democráticos. verdade e os esforços para responsa- é hora de pensar de outra forma, para
roux tem denominado de fascismo Infelizmente, a crise da economia bilizar os poderosos por suas ações agir de outra maneira, especialmente
neoliberal.1 foi acompanhada por uma crise das são rapidamente descartados como se queremos imaginar e lutar por fu-
Para políticos alinhados a essa ideias. Em vez de reafirmarem a im- fake news, a ignorância se torna ter- turos alternativos e novos horizontes
ideologia, a mentira é reduzida a um portância do humanismo, dos ideais reno fértil para o ódio e para uma de possibilidade. Precisamos alimen-
artifício retórico no qual tudo o que é democráticos e da ação coletiva a ser- cultura que ataca a memória históri- tar a imaginação radical para criar al-
politicamente importante é negado, viço da igualdade social, muitas so- ca, destrói qualquer entendimento ternativas ao crescente autoritarismo
e a razão perde seu poder de iluminar ciedades se agarraram a um discurso sobre a importância dos valores dos governos.
decisões que impactam a vida coleti- apocalíptico, que necessita de ho- compartilhados, se recusa a tornar a No Chile, Bolívia, Colômbia, Equa-
va. Ao mesmo tempo, a linguagem mens fortes com ideias simplistas, tolerância um elemento inegociável dor, México, Argentina, Brasil e diver-
banal serve para infantilizar e despo- não se importando com o modo como do diálogo cívico e permite que os sos outros países, as pessoas estão se
litizar, pois não oferece espaço para eles reprimem as críticas e zombam poderosos militarizem o discurso organizando contra um sistema neo-
os indivíduos traduzirem problemas cinicamente da verdade. Em um cotidiano. Para um número crescen- liberal fascista que nega assistência
ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 25

médica, aposentadoria decente, edu- -los. Exibindo um espetáculo de dis- profundo – que aponta para a cons- problemas que as pessoas enfrentam
cação de qualidade, transporte públi- tração e uma propensão ao absurdo trução de identidades particulares, em seu cotidiano. Por exemplo, é im-
co, distribuição de renda, e corta, sem político, Bolsonaro recentemente valores, relações sociais ou, mais am- portante que os movimentos sociais
negociação, investimentos em bens e chegou a acusar falsamente o ator plamente, agência em si. O ponto articulem uma linguagem que ressoe
serviços públicos para o que eles con- Leonardo DiCaprio de “financiar a in- central de tal reconhecimento é o fa- política e emocionalmente as neces-
sideram uma subclasse de pessoas, cineração deliberada da floresta ama- to de que a política não pode existir sidades, os valores e as relações so-
objetos descartáveis. Em outras pala- zônica”. Entretanto, Bolsonaro não é sem que as pessoas invistam algo de ciais cotidianas das pessoas, ao mes-
vras, dois tremores políticos distintos só um palhaço. O que ele fala é muito si nos discursos, imagens e represen- mo tempo que adotam os valores
estão abalando o mundo: por um la- mais perigoso do que uma inocente tações que surgem diariamente. Em fundamentais da igualdade, liberda-
do, a disseminação da resistência e da palhaçada. Seu discurso falacioso e vez de sofrer sozinhos, atraídos pelo de, solidariedade e justiça.
luta contra o neofascismo (evidente ridículo é intencional. Assume uma frenesi da emoção odiosa, os indiví- A atomização de indivíduos em so-
em países como Brasil, Estados Uni- linguagem que difunde alienação e duos precisam ser capazes de identi- ciedades fascistas e neoliberais en-
dos, Europa e Israel); por outro lado, ódio, chegando inclusive a elogiar o ficar – ver a si mesmos e a sua vida co- contra sua contrapartida na fragmen-
uma nova onda de formas maciças de golpe militar de Augusto Pinochet no tidiana – dentro de críticas tação política muitas vezes fatal que é
resistência popular contra o neolibe- Chile em 1973 e a declarar, mais de progressivas às formas de dominação frequentemente vista na esquerda
ralismo (evidente em nações como uma vez, seu apoio à violenta ditadu- existentes e como elas podem abor- com sua proliferação de diferentes
Chile, Equador, Bolívia e Colômbia). ra militar brasileira que ocorreu entre dar essas questões não individual- grupos articulando e abordando for-
Isso sem falar nos protestos mais ex- 1964 e 1985. Diante dos protestos da mente, mas coletivamente. mas de opressão de uma única ques-
plícitos por democracia, como ocor- oposição, ele se baseia no manual de Hoje, esse é um desafio particu- tão, estejam elas enraizadas em algu-
rem na China, Rússia, Irã, Arábia Sau- Donald Trump e produz novos bodes larmente difícil, porque o flagelo da ma versão de políticas de identidade
dita, Turquia e Egito. expiatórios para distrair. atomização é reforçado diariamente ou em instâncias específicas de domi-
Esses eventos podem parecer não Todavia, a resistência ao autorita- não apenas por um ataque neoliberal nação, como questões associadas às
relacionados, mas na verdade fazem rismo do governo Bolsonaro está coordenado contra qualquer noção mudanças climáticas. Isso não signi-
parte de tendências entrelaçadas que crescendo no Brasil, especialmente viável do social, mas também por fica que essas lutas não sejam impor-
estão transformando o cenário políti- com a libertação do ex-presidente uma cultura autoritária e baseada em tantes politicamente. Pelo contrário,
co em todo o mundo. Esses movimen- Luiz Inácio Lula da Silva, considera- finanças que une uma noção rígida o que é crucial e igualmente impor-
tos de resistência e ação coletiva re- da uma prisão política para impedir a de privatização a uma fuga de qual- tante é o imperativo estratégico de
presentam uma reação aos múltiplos candidatura do mais importante lí- quer senso de responsabilidade so- uni-las em torno de uma política de
abusos produzidos pela fusão do au- der de esquerda nas eleições de 2018 e cial e moral. Além disso, sob a dinâ- solidariedade que consiga trabalhar
toritarismo político e do neoliberalis- considerada ilegítima até mesmo pe- mica de uma máquina política por meio de narrativas que, como ar-
mo contemporâneo, marcado por po- la ONU. Os protestos algumas vezes fascista, o poder está concentrado gumentam Nancy Fraser e Houssam
líticas predatórias cruéis, pelo lotam as ruas; outras muitas vezes nas mãos de uma pequena elite fi- Hamade, unem lutas pela emancipa-
desdém aos direitos humanos e pelo ocorrem silenciosos no cotidiano da nanceira que promove divisões e ódio ção e pela igualdade social. 
impulsionamento de grupos fascistas micropolítica no Brasil. A população por meio de apelos ao nacionalismo,
de extrema direita, com seu discurso começa a sair da resistência e a orga- ao racismo, à discriminação, à violên- *Henry A. Giroux  é professor da McMas-
higienista de ódio e limpeza social. nizar ações de enfrentamento, embo- cia e à supressão de dissidência. ter University do Canadá (Chair for Scholar-
Enquanto isso, no Brasil, o gover- ra não na mesma escala em que ocor- A pedagogia, como política de per- ship in the Public Interest/The Paulo Freire
no Bolsonaro tem atacado repetida- rem em outros países da América suasão, formação de identidade e re- Distinguished Scholar in Critical Pedago-
mente grupos indígenas que traba- Latina, como na Colômbia, Bolívia, sistência, oferece a oportunidade pa- gy); e Gustavo O. Figueiredo é doutor em
lham para proteger o meio ambiente Chile e Equador, provavelmente por ra tais movimentos falarem de uma Psicologia da Comunicação e professor da
contra ruralistas, madeireiras e mi- conta da imposição de censura, da visão de mundo que defenda os valo- Universidade Federal do Rio de Janeiro.
neradoras ilegais que se articulam em difusão do medo generalizado e das res fundamentais da justiça, igualda-
redes infratoras para exploração e crescentes ameaças às forças de opo- de e solidariedade, ao mesmo tempo  enry Giroux, American Nightmare: Facing
1   H
destruição da Amazônia e do Panta- sição, numa crescente onda de re- que critica a desigualdade econômi- the challenge of Fascism [Pesadelo norte-a-
nal. Ao fazer isso, o governo brasileiro pressão estatal.  ca, o poder corporativo e a injustiça mericano: enfrentando o desafio do fascis-
mo], San Francisco, City Lights Books, 2018;
deu luz verde a grupos que pilham ile- O cerne de qualquer tipo de políti- racial. Em vez de falarem de forma e Henry Giroux, The Terror of the Unforeseen:
galmente a floresta tropical e amea- ca que deseje desafiar essa fuga ao abstrata sobre liberdade, igualdade e Rethinking the Normalization of Fascism in the
çam matar povos indígenas, peque- autoritarismo não é apenas o reco- justiça, é crucial que grupos políticos Post-Truth Era [O terror do imprevisível: re-
pensando a normalização do fascismo na era
nos agricultores, agentes da lei e nhecimento de estruturas econômi- progressistas definam uma nova lin- da pós-verdade], Los Angeles, Los Angeles
qualquer outra pessoa que tente detê- cas de dominação, mas algo mais guagem em relação às experiências e Review of Books (Larb), 2019.
26 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2020

REGIÃO DE BANGSAMORO PERMANECE SOB A TUTELA DO ESTADO

Autonomia enganosa nas Filipinas


Um Bangsamoro ampliado, com parlamento próprio, mais autonomia e mais recursos. Nas Filipinas, essas
reivindicações antigas se tornaram realidade. Um governo de transição foi nomeado e tem três anos para
assentar as bases de uma paz duradoura na região – uma perspectiva que desperta tanto esperanças como dúvidas
POR PHILIPPE REVELLI*, ENVIADO ESPECIAL

© Amanda Daphne

F
az um ano que as províncias in- nável, com 88,57%.1 Cenas de júbilo nao e Lanao do Sul, na parte central um setor terciário importante; a mi-
tegrantes da Região Autônoma se seguiram ao anúncio dos resulta- da ilha de Mindanao (além de alguns neração limita-se aos depósitos de ní-
do Mindanao Muçulmano vota- dos. “Bangsamoro = paz”, proclama- territórios da província limítrofe de quel de Tawi-Tawi e, por causa do con-
ram pela criação da “Região Au- vam as faixas. Cotabato do Norte), bem como as flito armado, o turismo é inexistente.
tônoma Bangsamoro do Mindanao Essa autonomia é a concretização ilhas de Basilan, Sulu e Tawi-Tawi. Ao Majoritariamente rural, a popula-
Muçulmano” – seu nome oficial. Em do acordo de paz assinado em 2014 contrário da antiga região autônoma, ção de Bangsamoro representa 3,7%
21 de janeiro de 2019, apesar das entre o governo de Benigno Aquino o novo Bangsamoro será liderado, a dos habitantes das Filipinas. Mais da
ameaças de ataques terroristas de III (2010-2016) e os insurgentes da partir de 2022, por um parlamento metade dela (57%) vive abaixo da li-
grupos islâmicos radicais, centenas Frente Moro de Libertação Islâmica eleito, com mais recursos financeiros nha da pobreza.2 Desse modo, a re-
de professores de todas as religiões e (FMLI). Ela dá uma conclusão oficial e maior controle sobre os recursos na- gião não tem um peso decisivo na vi-
orientações políticas garantiram a a mais de quatro décadas de um con- turais – enquanto isso, há um governo da econômica do país, e a autonomia
abertura das seções de votação. A flito que deixou cerca de 160 mil mor- e um parlamento de transição interi- que lhe foi concedida não é um terre-
participação foi maciça (87,8%, o tos e milhões de pessoas deslocadas. nos, ambos nomeados por Manila. moto político. Porém, para o presi-
equivalente a 1,738 milhão de eleito- A nova entidade administrativa Mas o território não conta com um dente Rodrigo Duterte, cuja imagem
res), e a vitória do “sim” foi inquestio- abrange cinco províncias: Maguinda- grande porto, não tem indústrias nem internacional se resume basicamente
ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 27

aos montes de cadáveres produzidos nas no parlamento de transição. Es- ge de se diferenciar do neoliberalis- Prova disso foi a tomada da cidade de
por sua “guerra às drogas”, é um su- sas duas concessões pesaram de for- mo de Manila, pretende surfar na on- Marawi, no dia 27 de maio de 2017,
cesso incontestável. ma decisiva no “sim” indígena ao da de rápido crescimento econômico por um comando do grupo Maute
referendo de janeiro de 2019. e estender o tapete vermelho ao capi- apoiado por elementos de Abu Sayyaf
DIREITOS INDÍGENAS RECONHECIDOS Essa representação na nova enti- tal estrangeiro. “A criação do novo que prometeram lealdade ao Estado
Embora seja decididamente uma opo- dade administrativa estava justa- Bangsamoro, destinada a estabelecer Islâmico (ler reportagem na página
sitora, Janel Pesons reconhece: “A au- mente na ordem do dia da Reunião as condições necessárias para a res- anterior). E a militarização da ilha,
tonomia de Bangsamoro foi uma eta- Intertribal organizada pelo CIDev em tauração da paz e da ordem em Min- que há três anos está sob lei marcial,
pa indispensável no caminho da paz”. julho de 2019 no município de Upi danao, despertou muito interesse en- não mudou. Os grupos islâmicos per-
Diretora do Movimento do Povo de (província de Maguindanao). O ilus- tre os investidores árabes”, afirma manecem escondidos e aproveitam
Mindanao pela Paz, que reúne uma tre convidado Romeo Saliga, um dos John Carlo Tria, presidente da Câma- todos os recursos disponíveis, tiran-
ampla gama de associações locais e dois deputados indígenas que inte- ra de Comércio e Indústria de Davao.5 do partido da frustração de ex-com-
regionais em torno da coexistência gram o parlamento de transição, foi À frente da Câmara de Comércio e In- batentes da FMLI e da MNLF que
pacífica entre as comunidades (mu- bombardeado com perguntas sobre o dústria de Jidá (Arábia Saudita), San- nunca se desarmaram completa-
çulmana, indígena, cristã) da ilha do mesmo assunto: “Por que os repre- dra Sema, deputada do 1º Distrito da mente, dos mal-entendidos causados
sul, ela fez campanha pelo “sim”. “Mas sentantes indígenas dos municípios e província de Maguindanao, pediu o pela aliança cordial entre a FMLI e
a autonomia não é uma cura milagro- barangays (vilas) foram nomeados de estabelecimento de uma “zona eco- Manila, dos incontáveis solavancos e
sa”, pondera. “Prova disso é a expe- cima para baixo, sem consulta prévia nômica especial halal” na cidade de atrasos na reconstrução de Marawi,
riência da antiga região autônoma.” às comunidades envolvidas?”. Cons- Cotabato.6 Já Zajid Mangudadatu, po- dos conflitos fundiários, do abando-
Em 1997, Nur Misuari, chefe histó- trangido, tudo o que ele pôde fazer foi lítico aliado de Duterte e membro de no de comunidades rurais e do des-
rico da Frente Moro de Libertação prometer encaminhar as preocupa- um dos clãs mais poderosos da ilha, garramento dos jovens que se veem
Nacional (MNLF), signatário de um ções de seus interlocutores. deseja confiar a empresas chinesas, privados de futuro. “A autonomia de
acordo geral de cessação das hostili- israelenses ou do Oriente Médio a ex- Bangsamoro foi uma etapa necessá-
dades com o governo do general Fidel ploração das reservas de gás do sub- ria, mas com certeza insuficiente”,
Ramos (1992-1998), tornou-se o pri- solo de Liguasan Marsh, uma enorme afirma Pesons. “Se o novo governo
meiro governador da região autôno- “A atribuição de conces- zona úmida que se estende sobre par- não cumprir suas promessas e não
ma. Alguns anos depois, tomada pela sões de mineração e a te das províncias de Maguindanao, enfrentar as causas profundas do
corrupção, a região autônoma se Cotabato do Norte e Sultan Kudarat,7 conflito armado – sendo as primeiras
transformou em uma vaca leiteira pa-
expansão de monocultu- um desejo que Ebrahim ecoou, após delas a pobreza e as dificuldades de
ra clãs regionais, que negociavam seu ras de exportação serão algumas precauções oratórias sobre acesso à terra –, a decepção será pro-
apoio (e seu eleitorado cativo) com os feitas à custa de nossos o necessário respeito ao meio am- porcional à imensa esperança gerada
políticos em Manila. Em vez de dimi- territórios ancestrais” biente e ao interesse das populações pelo resultado do referendo. E quem
nuir, a pobreza aumentou – enquanto locais, “incentivando as empresas de ganhará com isso serão os grupos
no resto do país ela caiu –, e a FMLI, mineração a investir”.8 jihadistas.” 
excluída do acordo de paz, assumiu a A isso se soma o emblemático
tocha da luta armada. Hoje é seu líder, “BUILD, BUILD, BUILD” “Build, Build, Build” [Construir, *Philippe Revelli  é jornalista.
El-Hadj Mourad Ebrahim, que dirige Encaminhar como? No governo de Construir, Construir], um programa
o governo de transição. É difícil não transição (nomeado pelo presidente faraônico de grandes obras de in- 1   S omente a província de Sulu, reduto do grupo
ter uma sensação de déjà-vu e não se Duterte), quarenta assentos foram fraestrutura muito caro ao presiden- jihadista Abu Sayyaf, votou pelo “não”, que
perguntar se as novas disposições se- atribuídos à FMLI, vinte a represen- te Duterte e amplamente dependente obteve ali 54,3%.
2   Jodesz Gavilan, “Fast facts: Poverty in Minda-
rão suficientes para que as vozes dos tantes do governo central, nove à MN- do capital chinês, que também diz nao” [Fatos rápidos: pobreza em Mindanao],
mais desfavorecidos sejam ouvidas; LF e oito às mulheres, aos jovens e às respeito à região autônoma. Entre Rappler, Manila, 28 maio 2017. Disponível
para que as políticas econômicas minorias não moro; nenhum foi parar eles está o Bangsamoro Road Net- em: www.rappler.com.
3   Carolyn O. Arguillas, “BARMM Chief Minister
adotadas pelas elites moro tendam a com a oposição. Quanto aos governos work Development Project [Projeto to constituents: monitor performance of offi-
reduzir a pobreza e a desigualdade; e provinciais e municipais, eles costu- de Desenvolvimento da Rede Rodo- cials” [Ministro-chefe da Região Autônoma
para que a violência – endêmica na mam ficar nas mãos de clãs familiares viária de Bangsamoro], que prevê a Bangsamoro do Mindanao Muçulmano para
os constituintes: monitorem o desempenho
região e da qual o conflito armado é e seus acólitos. Esses potentados lo- construção ou a ampliação de uma dos funcionários], Minda News, 1º abr. 2019.
apenas uma faceta – diminua. cais, que muitas vezes mantêm verda- rede de 200 quilômetros de rodovias Disponível em: www.mindanews.com.
“Devemos garantir a participação deiros exércitos particulares, formam e pontes conectando a região às ou- 4   Dos doze postos de senador, oito foram para
apoiadores de Duterte, quatro para “figuras
do povo na avaliação e no acompa- alianças de geometria variável, sem se tras partes de Mindanao. Não é certo independentes” e nenhum para a oposição.
nhamento dos resultados, da ativida- preocupar com ideologia ou crença que isso atenda às necessidades das Na Assembleia Nacional, o partido do presi-
de e das deficiências de nossa admi- religiosa, e são capazes de empreen- comunidades rurais, abandonadas dente (PDP-Laban) e seus aliados conquista-
ram quase todos os 234 assentos, conceden-
nistração”, declarou Ebrahim ao der guerras sangrentas. pelos poderes públicos. Mas com cer- do apenas dezoito deputados ao Partido
assumir a liderança do governo de As eleições de meio de mandato teza essas vias de comunicação servi- Liberal do ex-presidente Benigno Aquino III e
transição.3 “Participação do povo”, de 13 de maio de 2019, marcadas pela rão de argumento para atrair investi- seis aos grupos Makabayan (esquerda radical
de inspiração comunista).
comenta Alim Bandara, “é exatamen- esmagadora vitória do campo presi- dores e facilitarão a penetração no 5   Antonio L. Colina IV, “Davao Chamber VP:
te o que reivindicamos, mas...” Presi- dencial,4 fortaleceram ainda mais a território do agronegócio, da indús- Bangsamoro sparks interest of Arab investors
dente do Centro para o Desenvolvi- hegemonia do conjunto formado pela tria florestal e das mineradoras. Ban- in Mindanao” [Vice-presidente da Câmara de
Davao: Bangsamoro desperta interesse de
mento Indígena (CIDev), ele luta pelo FMLI e o governo – inimigos de ou- dara não alimenta muitas ilusões: “A investidores árabes em Mindanao], Minda
reconhecimento dos direitos dos in- trora e hoje aliados – e o peso das di- atribuição de concessões de minera- News, 10 abr. 2019.
dígenas nos textos fundadores de nastias locais: quase todos os gover- ção e a expansão de monoculturas de 6   “ Maguindanao solon goes to Saudi on 2-day
investment mission” [Representante de Ma-
Bangsamoro e por sua presença nas nadores e prefeitos eleitos na região exportação serão feitas à custa de guindanao vai para a Arábia Saudita em mis-
instâncias representativas. A Indige- autônoma eram candidatos de Du- nossos territórios ancestrais e de to- são de dois dias para atrair investimentos],
nous People Rights Act [Lei dos Direi- terte. Todos esses fatores indicam dos os pequenos agricultores, seja Manila Standard, 5 fev. 2019.
7   “Senate bet wants China, Israel to explore Li-
tos dos Povos Indígenas], aprovada que não haverá uma mudança pro- qual for sua fé. Isso aumentará a pres- guasan Marsh oil deposits” [Aposta do Sena-
em 1997, que afirma suas prerrogati- funda nas estruturas de poder em são sobre a terra... a mesma terra que do quer que China e Israel explorem os depó-
vas sobre seus domínios ancestrais, Bangsamoro. está na raiz do conflito armado em sitos de petróleo de Liguasan Marsh],
ABS-CBN News, 13 mar. 2019. Disponível
bem como seus direitos à integridade Também não há ruptura à vista na Mindanao”. em: https://news.abs-cbn.com.
cultural, ao autogoverno e à justiça política econômica. Pelo contrário, Um conflito cujo desarmamento 8   Pia Ranada, “Murad encourages ‘pro-people,
social, também foi integrada ao cor- as declarações de representantes do dos combatentes da FMLI, timida- pro-environment’ mining in Bangsamoro” [Mu-
rad incentiva mineração “amigável ao povo e
pus jurídico de Bangsamoro, e dois mundo dos negócios e de políticos mente iniciado em setembro de 2019, ao meio ambiente” em Bangsamoro], Rappler,
assentos são reservados aos indíge- moro sugerem que Bangsamoro, lon- não será suficiente para encerrar. 9 ago. 2019.
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FILIPINAS

O futuro sorri para


o Estado Islâmico
Em 23 de maio de 2017, centenas de combatentes do Estado Islâmico tomaram a cidade de Marawi.
O Exército filipino precisou de cinco meses de cerco e bombardeio intensivo para reavê-la. Embora a
população ainda culpe o Estado Islâmico pela destruição da cidade, a desconfiança e o ressentimento
em relação às autoridades também têm aumentado
POR ANTOINE HASDAY E NICOLAS QUÉNEL*, ENVIADOS ESPECIAIS

D
ois anos após a sangrenta Bata- gados sobrevivem na mais alta preca- um edifício devastado. Ela será deto- pela chuva. Apenas uma estela de pe-
lha de Marawi, as máquinas riedade, expostos ao calor tropical, às nada diante da imprensa em algumas dra desafia os elementos e torna pos-
ainda trabalham para limpar chuvas torrenciais e às doenças. A semanas. É preciso cuidar da sível identificar o local: “Aqui jazem
os escombros, em uma paisa- lentidão da burocracia faz a comida e comunicação. aqueles que caíram durante a bata-
gem apocalíptica. Por causa da escala a assistência médica demorarem O sultão Abdul Hamidullah Atar, lha de Marawi. Nós lembramos. Nun-
da destruição, essa área, a mais dura- muito a chegar – isso quando não de- chefe tradicional, não está com hu- ca esqueceremos!”. Como um lem-
mente atingida pelos confrontos, saparecem no caminho por causa da mor para festas. “Eles falam sobre li- brete do profundo ressentimento de
passou a ser chamada pelos morado- corrupção. “Não posso ir para minha bertação, mas que libertação?”, ful- parte da população. “Nós temos pro-
res de “Marco Zero”. Em 23 de maio casa, pois ela foi requisitada. Esta- mina. “Libertação significa liberdade, vas de violações do direito interna-
de 2017, centenas de combatentes da mos com raiva, mas o que podemos direito à informação e à justiça. Onde cional humanitário durante a bata-
Organização do Estado Islâmico to- fazer?”, lamenta Alaissa – de 31 anos, está a justiça quando 7 mil casas e 27 lha, mas precisamos esperar até o fim
maram a cidade. O Exército filipino cabelo preso em um rabo de cavalo e mesquitas estão destruídas e cente- da lei marcial para levar o caso à jus-
precisou de cinco meses de cerco e vestindo camiseta do Los Angeles La- nas de milhares de pessoas não têm tiça”, diz Atar. A lei marcial acaba de
bombardeio intensivo para tomá-la kers –, que vive em uma barraca no nada?” Oficialmente, os cinco meses ser renovada pelo terceiro ano
de volta e retirar a bandeira negra. campo de desabrigados de Sarima- de cerco deixaram 920 mortos entre consecutivo.
O conflito causou o deslocamento nok com o marido e os cinco filhos. os jihadistas, 168 nas Forças Armadas Há muito tempo, a corrupção, a
de mais de 300 mil pessoas, 70 mil Alguns dias antes do segundo e 47 entre os civis. Mas, para nosso in- precariedade imposta a grande parte
das quais ainda esperam para poder aniversário da libertação de Marawi, terlocutor, esse último grupo é o que da população – que se aprofundou
voltar para casa. A maioria delas está em 23 de outubro, a atenção das auto- conta o maior número de vítimas. desde a batalha – e a desconfiança
vivendo em campos para desabriga- ridades estava em outro lugar. No Apenas trezentos jihadistas teriam si- histórica da população muçulmana
dos, em barracas ou, para quem tem centro do “Marco Zero”, entre pré- do mortos, e a maioria teria consegui- de Mindanao em relação a Manila
mais sorte, em alojamentos improvi- dios destruídos e mesquitas arruina- do fugir antes do final da batalha. constituem um terreno fértil para
sados. Embora a população ainda das, os desarmadores de minas tra- A poucos quilômetros da cidade, grupos armados. Incluindo o grupo
culpe o Estado Islâmico pela destrui- balhavam debaixo de chuva. um terreno baldio foi convertido em que chegou mais recentemente, o Es-
ção da cidade, a desconfiança e o res- “Encontraremos bombas durante cemitério improvisado. Mais de du- tado Islâmico, nascido da união de
sentimento em relação às autorida- dez anos”, diz um deles. Hoje, eles es- zentos corpos não identificados esta- vários grupos islâmicos locais ou de
des também têm aumentado. tão desenterrando uma munição não riam nesse lote abandonado, já co- suas facções mais radicais: Maute,
Para quem perdeu tudo, é sempre detonada de 118 kg que foi enterrada berto pelo mato. Nas placas, a maioria Abu Sayyaf, Bangsamoro Islamic
difícil imaginar o futuro. Os desabri- a 5 metros de profundidade, junto a das inscrições desapareceu, levada Freedom Fighters (Biff) e Ansar Kha-
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© REUTERS / Erik De Castro


lifa Philippines (AKP). Seus ativistas “Lenta mas seguramente, ela está re-
juraram lealdade ao “califa” Abu Ba- cuperando o poder que tinha em 2017
kr al-Baghdadi em 2014 e renovaram e conta com várias centenas de mem-
os votos em 2019, como mostram bros”. O coronel garante que não res-
muitos vídeos divulgados pela orga- tam mais do que “vinte militantes
nização terrorista. Para encontrar jihadistas” na província de Lanao,
voluntários, eles contam com o te- onde fica Marawi.
souro de guerra acumulado durante Embora seja verdade que o Estado
o saque de Marawi. Islâmico tenha sofrido muitos reveses
Dinheiro, exatamente: Ernesto1 militares nos últimos meses, essa es-
afirma que essa foi sua principal mo- timativa parece pouco provável. Bas-
tivação. O homem de 30 anos e si- tam algumas mensagens pelo celular
lhueta esbelta juntou-se à organiza- para conseguir fotografias de mem-
ção Abu Sayyaf em 2011. “Recebemos bros das células dormentes, que esta-
uma arma e quase 50 mil pesos [cer- riam escondidas em Marawi mesmo.
ca de R$ 5 mil, uma quantia muito Em 7 de outubro de 2019, a organiza-
significativa na região]”, explica en- ção anunciou seu retorno, assumindo
quanto ajeita nervosamente o boné. o assassinato de um soldado nos arre-
De origem camponesa, desemprega- dores da cidade. Mas, para além do
do e pai de sete filhos, ele foi uma número de voluntários recrutados,
presa fácil para o recrutador, que são sobretudo suas habilidades que
soube muito bem explorar o ressenti- preocupam o coronel: “O retorno da-
mento de grande parte da população queles que partiram para a zona sírio-
em relação ao poder central. “Ele me -iraquiana e o influxo de combatentes
disse que devemos ficar bravos com o estrangeiros mudaram profunda-
governo das Filipinas, que oprimia os mente sua maneira de lutar”. Prova
muçulmanos”. Ernesto fazia parte da disso é o crescente uso de dispositivos Mulher nas ruínas da casa de sua família em Marawi, Filipinas
facção de Isnilon Hapilon, o número explosivos improvisados e o apareci-
dois da Abu Sayyaf, que jurou lealda- mento de atentados suicidas. [na Indonésia] e Sabah [na Malásia]”, mento local, cuja missão será admi-
de ao Estado Islâmico em 2014 e foi Apesar de décadas de conflito no detalha o pesquisador. São antigas nistrar a região e tirá-la da pobreza
morto em Marawi. Durante a bata- sul das Filipinas, o arquipélago, ao “rotas do jihad” que os membros da (ler artigo virando a página). O go-
lha, Ernesto fugiu após duas sema- contrário da vizinha Indonésia, nun- organização terrorista continuam verno prevê ainda uma cooperação
nas, “quando as bombas começaram ca havia sofrido ataques suicidas, usando, apesar da cooperação refor- entre a FMLI e o Exército na luta con-
a cair”. Encurralado, sabendo-se ca- mas desde 2018 já foram pelo menos çada entre os países da região. Em tra o Estado Islâmico. Porém, em
çado, ele decidiu se render ao quatro. O primeiro foi realizado em 2018, o cientista político filipino uma região onde a cultura tribal pre-
Exército. 31 de julho de 2018 por um marroqui- Rommel Banlaoi indicava a presença valece sobre o respeito às institui-
Imelda, que esconde o rosto e o de no cujo nome de guerra era Abu Kha- de uma centena de jihadistas estran- ções, é difícil imaginar que os mem-
seu bebê debaixo do niqab preto, tam- tir al-Maghribi. Ele explodiu um veí- geiros em seu país – número contes- bros da organização denunciarão
bém participou da batalha. A mulher culo em um posto de controle do tado pelas autoridades, mas conside- indivíduos que, em geral, são oriun-
de 35 anos, mãe de oito crianças, con- Exército em Basilan, matando dez rado crível por diversos especialistas. dos da mesma família ou da mesma
ta que foi com o marido para o Estado pessoas, entre elas uma mãe e seu fi- “Eles vêm principalmente de países vila que eles. “O simples fato de haver
Islâmico. A pedido dele, deixou a cida- lho. Em seguida veio o ataque à cate- vizinhos, mas também do Oriente um novo governo local, resultante do
de no início dos combates, para prote- dral de Jolo, em 27 de janeiro de 2019, Médio, do Magreb e da Europa, como processo de paz, é uma coisa impor-
ger a família. Ela conseguiu fugir na por um casal de indonésios: vinte mostra a prisão de um sueco próximo tante. Ele representa a luta do povo
companhia de outros seis combaten- mortos e 111 feridos. Seis meses de- ao general Santos [Cotabato do Sul] moro pela igualdade e impedirá os
tes e daquele que era então o emir da pois, em 28 de junho de 2019, dois ho- no final de setembro”, resume o pes- extremistas de instrumentalizarem
organização terrorista, Owaydah Ma- mens, um deles filipino, realizaram quisador independente Robert Pos- a injustiça social, mesmo que os de-
rohombsar, conhecido como Abu Dar. um ataque suicida a bomba tentando tings. “O problema é que não são ne- safios sejam consideráveis”, acredita
Rejeitada por seus parentes e com entrar em um acampamento do Exér- cessários muitos combatentes Zia Alonto Adiong, membro da auto-
poucas opções, ela se entregou às au- cito em Indanan. Pelo menos sete estrangeiros para fazer a diferença ridade de transição de Bangsamoro,
toridades. Imelda reconhece aberta- pessoas foram mortas. Por último, no terreno”, explica Abuza. O coronel que garante o estabelecimento da fu-
mente ter apoiado o estabelecimento em 8 de setembro de 2019, uma mu- Cuerpo confirma: “Eles trazem novas tura administração autônoma.
de um califado islâmico. “Estávamos lher detonou um colete explosivo no habilidades, como a fabricação e o No entanto, se a velha guarda da
brigando pelo Alcorão, pelos hadiths”, posto de controle do Exército. Ela foi manuseio de dispositivos explosivos, FMLI está ligada ao processo de paz,
diz ela calmamente, enquanto sua fi- a única vítima. e contribuem para o treinamento de a geração jovem se mostra mais radi-
lha de 4 anos mastiga a camiseta rosa Esses eventos levantam dúvidas militantes locais em combate urba- cal e não exclui inteiramente a reto-
da Hello Kitty. sobre a narrativa sustentada pelo go- no”. Nos próximos meses, a ameaça mada da luta armada. “As autorida-
Ambos dizem que lamentam suas verno das Filipinas. Especialista em poderá aumentar. Cerca de cinquen- des criaram uma catástrofe social. O
ações e que desistiram da ideia de movimentos de insurgência e terro- ta combatentes indonésios detidos presidente [Rodrigo] Duterte precisa
jihad armado. Mas somente o futuro rismo no Sudeste Asiático, o profes- na Síria, juntamente com suas famí- agir, ou a população acabará se vol-
dirá se esses “arrependidos” voltarão sor Zachary Abuza, do National War lias, teriam escapado em outubro, tando contra ele”, adverte Noor Lu-
a pegar em armas. O coronel José Ma- College de Washington, chega a pen- durante a ofensiva turca contra as cman, escritor e ex-candidato legisla-
ria Cuerpo, comandante da 103ª Bri- sar que Mindanao “se tornará o prin- forças democráticas sírias. tivo, que ajudou setenta pessoas – a
gada de Infantaria, tenta parecer cipal destino dos combatentes es- Para lidar com isso, o governo de maioria delas cristã –, escondendo-as
tranquilizador: “Desde que elimina- trangeiros na região”. A ilha sempre Manila também conta com a princi- em casa durante o cerco. Se isso
mos seu emir, Abu Dar, há alguns foi um importante ponto de encon- pal guerrilha separatista muçulma- acontecer, o Estado Islâmico só pre-
meses, os islamistas têm tido dificul- tro, mas o fenômeno poderia acen- na de Mindanao, a Frente Moro de cisará recolher seu prêmio. 
dades para atrair voluntários e mobi- tuar-se com a perda do domínio ter- Libertação Islâmica (FMLI), com a
lizar suas tropas”, afirma. O pesqui- ritorial do Estado Islâmico no Iraque qual fechou um acordo de paz após *Antoine Hasday e Nicolas Quénel são
sador independente Paweł Wójcik e na Síria. décadas de conflito. O acordo deve jornalistas.
não compartilha da mesma visão. Se- “Já existem redes logísticas no Ka- culminar, em 2022, na criação de 1   O
 s entrevistados identificados apenas pelo
gundo ele, a organização está ativa: limantan oriental e na região de Poso uma região autônoma e de um parla- primeiro nome preferem manter o anonimato.
30 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2020

65 ANOS APÓS A LIBERTAÇÃO DO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO

Em Buchenwald, antifascistas
perderam a batalha da memória
Com a libertação do campo de concentração de Buchenwald em abril de 1945, encerrou-se um calvário e começou
uma história, a dos prisioneiros, em geral comunistas, que salvaram vidas ao custo de escolhas impossíveis. Mas seu
gesto, celebrado pelo regime da Alemanha Oriental, foi brutalmente questionado após a queda do Muro. Os vencedores
da Guerra Fria começaram então a reescrever a história
POR SONIA COMBE*

T
oda comemoração é um ato po- manejada conforme os desafios do campos de extermínio situados no disso uma religião de Estado – e, do
lítico. Ouvem-se discursos do- momento. Aberto em julho de 1937, leste foram evacuados. Milhares de campo-museu de Buchenwald, inau-
mingueiros cuja fraseologia, esse foi um dos primeiros campos de sobreviventes desses “degraus da gurado em 1958, uma espécie de tem-
quase sempre convencional e concentração construídos pelo regi- morte” afluíram. Em janeiro de 1945, plo. Todos os anos seria ali recordado
repetitiva, dissimula certas inten- me nazista. Funcionou até 11 de abril Buchenwald contava com 100 mil o “juramento de Buchenwald”, feito
ções. O 75º aniversário da libertação de 1945, quando o Exército norte-a- prisioneiros. Quando os norte-ameri- em 19 de abril de 1945 pelos prisio-
do campo de extermínio de Ausch- mericano, a caminho de Weimar, o canos assumiram o controle do local, neiros comprometidos em lutar pela
witz, este ano, é mais uma prova dis- descobriu. Destinado a arrebanhar encontraram 21 mil sobreviventes. A paz e pela liberdade. Mas, se os so-
so. Em 27 de janeiro, cada país, perse- os adversários do regime nazista e resistência clandestina, que pegara breviventes dos campos são os heróis
guindo objetivos próprios, enunciou afastá-los da sociedade, principal- em armas com vistas a uma insurrei- oficiais, nem por isso deixaram de fi-
sua (re)visão da história. Em Israel, o mente comunistas e sociais-demo- ção, entregou-lhes os últimos SS cap- car fora dos postos de poder – quando
historiador Zeev Sternhell não econo- cratas, acolheu perto de 10 mil judeus turados. À frente dessa resistência não sucumbiram aos expurgos stali-
mizou palavras. Este ano, a comemo- presos por causa da Noite dos Cris- encontravam-se os prisioneiros polí- nistas do início dos anos 1950, pois
ração do genocídio terá assim servido tais, em 9 de novembro de 1938, bem ticos alemães, majoritariamente esses quadros comunistas, fortaleci-
de “pretexto para a anexação” dos ter- como ciganos, testemunhas de Jeová comunistas. dos por treze anos de prisão e campo,
ritórios palestinos (Haaretz, 31 jan.).1 e homossexuais – sem contar os que o se revelaram menos dóceis que os
Tomados como reféns, os sobreviven- regime considerava “associais”. PROMOÇÃO DE HISTÓRIA HEROICA egressos de Moscou, cuja obediência
tes se viram relegados ao papel de fi- Foi aos prisioneiros comuns que a “De Stettin, no Báltico, a Trieste, no à URSS se tornou um hábito.
gurantes, enquanto a lembrança de Schutzstafel (“Esquadrão de Prote- Adriático, uma cortina de ferro des- Assim, em 1958, apareceu na Re-
seus sofrimentos e de sua luta justifi- ção”, SS) delegou a princípio a admi- ceu sobre o continente”: mal a Guerra pública Democrática da Alemanha
cava oficialmente o evento. nistração interna do campo, até que, Fria foi declarada por essa frase de (RDA) o romance de Bruno Apitz, Nu
A próxima comemoração ocorrerá em 1942, os prisioneiros políticos os Winston Churchill, pronunciada em entre os lobos, o qual, traduzido para
em abril, em Buchenwald, o primeiro destituíram ao cabo de uma luta apa- 5 de março de 1946, apareceu o rela- cerca de trinta línguas, obteria suces-
campo de concentração da Alema- rentemente feroz, mas, pelo consen- tório de um historiador do Exército so no mundo inteiro.5 O autor, que
nha a ser libertado. Uma cerimônia so geral, salutar. Decidindo forçar a norte-americano, Donald Robinson, também esteve em Buchenwald, con-
rigorosamente supervisionada. O população aprisionada a contribuir intitulado “As atrocidades comunis- ta a história de um garoto judeu polo-
memorial se situa no Land da Turín- para o esforço de guerra, a SS com- tas perpetradas em Buchenwald”. No nês de 3 anos que, despertando a sim-
gia, onde, com 23,4% dos votos nas preendeu que os “triângulos verme- âmbito do novo equilíbrio de forças patia de alguns detentos políticos, foi
eleições legislativas de outubro últi- lhos”2 estavam bem mais aptos a prestes a se estabelecer na Europa, salvo por eles. O romance inspirou
mo, a extrema direita encarnada pela preencher as funções de comando. esse relatório alimentou o discurso um filme, com o mesmo título, do ci-
Alternativa para a Alemanha (AfD) Colocados em postos estratégicos, antissoviético. Mas foi O Estado SS, li- neasta alemão-oriental Frank Beyer,
ocupa o segundo lugar no Parlamen- como a divisão dos prisioneiros em vro do sociólogo Eugen Kogon (não que em 1963 recebeu o prêmio de me-
to regional, depois de A Esquerda grupos de trabalho, o despacho de comunista, preso em Buchenwald), lhor direção no Festival de Moscou,
(Die Linke), que conquistou 31%. comboios para campos como Dora, publicado em 1946, que ganhou cre- onde competiu com Oito e meio, de
Em Buchenwald, mais ainda que onde a sobrevivência média era de dibilidade.4 Sem ignorar os conflitos Federico Fellini6. O ator preferido de
em Dachau, Sachsenhausen ou Ra- duas semanas,3 ou Auschwitz, no ca- entre os detentos nem a relação de Rainer Werner Fassbinder, Armin
vensbrück, membros da AfD irrom- so dos que deveriam morrer (judeus e forças, Kogon se esforçou para escla- Müller-Stahl, faz o papel principal.
pem para fazer discursos negacionis- ciganos), os prisioneiros políticos ti- recer o modo pelo qual os prisionei- Vários outros atores e figurantes são,
tas. O diretor do memorial, Volkhard nham poder de decisão, limitado mas ros políticos alemães conseguiam eles próprios, sobreviventes de cam-
Knigge, vê aí “o indício cada vez mais real, sobre a sorte dos detentos. manter ao menos uma aparência de pos nazistas, e o filme foi rodado nos
gritante de um enfraquecimento da Após o início da guerra, encontra- ordem, impedindo a generalização locais onde se deram os fatos. Então,
consciência histórica” (Der Spiegel, mos em Buchenwald membros das do “cada um por si”. em Moscou, um espectador reconhe-
23 jan. 2020). Sem dúvida. Mas resta resistências de todos os países, prin- Na Alemanha Oriental, país cria- ceu a história de seu sobrinho, cha-
saber em que medida a reescritura do cipalmente cerca de 26 mil franceses, do em outubro de 1949, o novo regi- mado até aquele momento de “garoto
combate antifascista após a queda do e soldados soviéticos, dos quais 8.483 me fundou sua legitimidade no com- de Buchenwald”. Stefan Jerzy Zweig
Muro, da qual o Memorial de Bu- foram executados pela SS com tiros bate dos militantes antifascistas. tinha sido identificado.
chenwald foi um dos vetores, não te- na nuca. Inicialmente concebido pa- Voltando da União Soviética, onde Baseando-se num acontecimento
ria contribuído, querendo ou não, pa- ra 8 mil prisioneiros, o campo abri- haviam amargado seu exílio, os que real, a narrativa de Bruno Apitz, em-
ra esse enfraquecimento. gou no fim do conflito uma superpo- tomaram as rédeas da parte oriental bora romanceada, desempenhou na
Com efeito, do início da Guerra pulação espantosa. A partir do da Alemanha divulgaram uma histó- RDA a função de romance nacional,
Fria até hoje, a história de Buchen- outono de 1944, em consequência do ria heroica de resistência ao nazismo, e o salvamento da criança se tornou
wald vem sendo incessantemente re- avanço do Exército Vermelho, os da qual se diziam herdeiros. Fariam o símbolo do humanismo dos comu-
ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 31

nistas nos campos de concentração. as vítimas da Shoah, o “garoto de Bu- neiros políticos, nas quais era preciso cia alemã-oriental, veiculada nas mí-
Como não raro acontece, a ficção su- chenwald”, figura emblemática da fazer escolhas em situações extremas. dias e em obras científicas, e explora
perou a história real e foi nesse relato narrativa alemã-oriental, acabou Stéphane Hessel, autor de Indignez- o ressentimento de parte da popula-
que se inspirou a cenografia do cam- sendo jogado fora com a água do ba- -vous! [Indignai-vos!],8 Imre Kertész, ção alemã-oriental, colocada no pa-
po-museu que, até o fim do regime, nho. De resto, 904 crianças foram Prêmio Nobel de Literatura em 2002, e pel ora de vítima do regime comunis-
exaltaria a ação dos comunistas. A salvas em Buchenwald, façanha que ainda Jorge Semprun, em Le Mort qu’il ta, ora de colaboradora de uma
questão das relações entre os prisio- se deve creditar à resistência faut [O morto certo] (Gallimard, ditadura.
neiros políticos e os SS, e entre os clandestina. 2001), nunca esconderam ter sido sal- Em Buchenwald, restabelecer os
próprios prisioneiros, está excluída vos da mesma maneira que Stefan Jer- fatos e os méritos impõe-se como uma
da narrativa alemã-oriental. Essa zy Zweig, cujo nome fora riscado de das primeiras medidas a serem toma-
“zona cinzenta”, alheia segundo Pri- Aberto em julho de 1937, uma lista de deportações de crianças das para refutar o discurso negacio-
mo Levi, autor de É isso um homem?, Buchenwald foi um dos pelos “chefões vermelhos”. O livro de nista. Já é tempo de pensar nisso. 
à competência de qualquer tribunal Rousset não foi traduzido para o ale-
humano, iria, no entanto, encontrar
primeiros campos de mão. Escrever sobre o cotidiano dos *Sonia Combe,  historiadora, é autora de
seus juízes na Alemanha reunifica- concentração construí- campos nazistas sem tê-lo lido é mais Une vie contre une autre. Échange de victi-
da. Como se não houvesse nada mais dos pelo regime nazista ou menos como se historiadores fa- me et stratégies de survie dans le camp de
urgente, o remanejamento do Me- lassem sobre os campos de trabalhos Buchenwald [Uma vida por outra. Troca de
morial de Buchenwald esteve entre forçados soviéticos ignorando O Ar- vítima e estratégias de sobrevivência no
as prioridades da Alemanha do pós- Desconstruindo meticulosamen- quipélago Gulag, de Alexander Solje- campo de Buchenwald], Fayard, Paris,
-Guerra Fria. Uma de suas primeiras te o que passou a ser chamado de nítsin. Em Buchenwald, uma exposi- 2014, e, mais recentemente, La Loyauté à
iniciativas foi a redescoberta de Spe- “mito do antifascismo” da RDA, al- ção intitulada Leitmotive der DDR [As tout prix: Les floués du “socialisme réel” [A
ziallager, campo onde os soviéticos guns historiadores produziram, no lendas da RDA] chega a se concentrar lealdade a qualquer preço: as falácias do
haviam, em 1945, internado (sem calor da reunificação, uma obra que inteiramente na desconstrução do “socialismo real”], Le Bord de l’Eau, Lor-
dúvida em grande escala) os quadros ainda goza de credibilidade. Em O “mito”. Denunciam-se aí os “crimes” mont, 2019.
do Partido Nacional-Socialista dos antifascismo depurado,7 eles enuncia- dos prisioneiros políticos. Depois dis-
Trabalhadores Alemães (NSDAP, na ram a tese segundo a qual aqueles so, que resta dos pais-fundadores des- 1   O “plano de paz” apresentado em 28 de janei-
sigla alemã), o partido de Adolf Hi- que chamam de “chefões vermelhos” se Estado que reivindicava a herança ro por Donald Trump reforça as ameaças de
anexação das colônias situadas nos territórios
tler, dos quais três quartos morre- sobreviveram em detrimento dos ou- antinazista? da Cisjordânia conquistados por Israel na
ram de fome. Em 1999, as autorida- tros. A solidariedade só teria existido Baseando-se no conceito de tota- Guerra dos Seis Dias, em 1967.
des inauguraram um memorial entre eles. Tanto os tabloides quanto litarismo, a interpretação dominante 2   Cada categoria de detentos tinha um triângulo
de cor diferente, preso por um alfinete na ca-
inteiramente “revisto e corrigido”. a imprensa séria se apropriaram da da história da RDA promove a equi- misa. O dos políticos era vermelho; o dos de
Os ventos haviam mudado, a pers- história do “garoto de Buchenwald” e valência entre o regime comunista e direito comum, verde.
pectiva também, e Volkhard Knigge, dos “chefões vermelhos”, transforma- o sistema nazista.9 A política memo- 3   Campo onde, em instalações subterrâneas,
eram fabricadas as bombas V2.
o novo diretor do lugar – um histo- dos em colaboradores da SS. A equi- rial encorajada, financiada e divulga- 4   Eugen Kogon, L’Enfer organisé. Le système
riador vindo da Alemanha Oriental valência “comunistas = nazistas” se da, notadamente, pela Fundação pa- des camps de concentration allemands [O in-
–, concebeu uma narrativa oposta à estreitou, suscitando em algumas ra a Reavaliação da Ditadura do ferno organizado. O sistema dos campos de
concentração alemães], La Jeune Parque, Pa-
antiga. O olhar se deslocou dos he- pessoas a sensação de terem sido en- Partido Socialista Unificado da Ale- ris, 1947.
róis para as vítimas, tendendo à per- ganadas pelo discurso alemão-orien- manha (Bundesstiftung zur Aufar- 5   Bruno Apitz, Nu parmi les loups [Nu entre os
sonalização dos atores. Se não foram tal. A tese do historiador Ernst Nolte, beitung der SED-Diktatur) confirma lobos], Les Éditeurs Français Réunis, Paris,
1961.
totalmente excluídos, os comunistas de que os campos de extermínio eram que, se o antifascismo foi a religião de 6   Ver Bill Niven, The Buchenwald Child: Truth,
desapareceram como grupo social. A uma reação defensiva ao bolchevis- Estado da RDA, o anticomunismo foi Fiction and Propaganda [O garoto de Bu-
placa que comemorava o salvamento mo (Frankfurter Allgemeine Zeitung, 6 a da RFA (República Federal da Ale- chenwald: verdade, ficção e propaganda],
Camden House, Rochester, 2007.
de Stefan Jerzy Zweig também desa- jun. 1986), ganhou terreno, enquanto manha [Ocidental]). 7   Lutz Niethammer (org.), Der gesäuberte Anti-
pareceu – os protestos do interessa- a assimilação entre comunistas e na- Essa abordagem veio a calhar pa- faschismus [O antifascismo depurado], Aka-
do, então septuagenário, foram inú- zistas contaminava o senso comum. ra a AfD, que a utiliza sem escrúpu- demie Verlag GmbH, Berlim, 1994.
8   S téphane Hessel, Indignez-vous! [Indignai-
teis. Por seu turno, a romancista Contudo, em Les Jours de notre los. Produto da direita extremista -vos!], Indigène Éditions, Montpellier, 2010.
Elfriede Jelinek se mostrou indigna- mort [Os dias de nossa morte] (Édi- vinda do oeste da Alemanha para se 9   Ver Carola Haehnel-Mesnard, “La RDA dans
da, mas a falta de tato e a teimosia do tions Pavois, 1947), o ex-deportado firmar sobre as ruínas da RDA, esse le (rétro)viseur. Plaidoyer pour une autre per-
ception” [A RDA no (retro)visor. Apelo a uma
diretor do memorial prevaleceram. francês David Rousset descreve situa- partido se vale de uma representação outra percepção], Symposium Culture@Kul-
Se Anne Frank passou a simbolizar ções vividas diariamente pelos prisio- unívoca e demonizante da experiên- tur, v.2, Berlim-Toulouse, 2020.

A crise permanente Júbilo (ou os tormentos O Brasil


Para Marc Chesney, o atual
do discurso religioso) como destino
crescimento econômico é Bruno Latour analisa a tradição Neste livro que ora ganha sua segunda
artificial, baseado cristã por um viés singular: as edição, a socióloga Eva Blay reconstrói
principalmente na explosão da dificuldades encontradas por a história da imigração judaica para
dívida global. Neste livro, ele aqueles cujo propósito não é São Paulo, retraçando as causas desse
apresenta um inventário falar sobre religião, mas sim processo, seus percalços e motivações,
objetivo da situação mundial, falar religiosamente. Mergulha e analisando o propósito que esses
com a financeirização da nos meandros do discurso imigrantes trouxeram com sua
economia, o papel dos grandes religioso, utilizando para isso bagagem: o estabelecimento de um
bancos e fundos de investimento uma escrita totalmente vínculo perene com a nova nação.
neste processo e o declínio de original, na qual forma e
uma civilização que confunde o conteúdo se completam e
ser com o ter e o aparecer. contribuem para que o leitor se
aproxime do objeto de análise. Produzir conteúdo
Compartilhar conhecimento.
Desde 1987.
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32 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2020

ALEMANHA PROCURA RECUPERAR SEU PRESTÍGIO PERDIDO

As singulares relações
germano-israelenses
Logo após a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha Ocidental tentou comprar uma imagem de pureza ao apoiar
a construção do Estado de Israel. Desse modo, Bonn desempenhou no Oriente Médio um papel tão importante
quanto desconhecido. Ao longo dos anos 1950 e 1960, contudo, essa diplomacia nem sempre conseguiu mascarar
a existência de um passado prestes a ressurgir
POR DANIEL MARWECKI*

E
© Darko M/ Unsplash
m abril de 2018, o Parlamento
alemão se reuniu para comemo-
rar o aniversário de 70 anos da
criação do Estado hebreu. No
decorrer das discussões, Martin
Schulz, falando em nome do Partido
Social-Democrata (SPD), declarou:
“Ao protegermos Israel, nós nos pro-
tegemos dos demônios do passado”.1
O porta-voz do partido ecologista, de
centro-esquerda, resumiu em uma
frase a quintessência do debate: “O
direito à existência de Israel não é
maior ou menor que o nosso”.
Quando a classe política do além-
-Reno fala de Israel, fala sobretudo de
si mesma. Suas relações com esse Es-
tado formam a base sobre a qual a
Alemanha pós-nazismo assenta sua
identidade progressista. A atitude dos
alemães em relação a Israel nos diz
mais sobre seu próprio estado de espí-
rito que sobre essas relações bilate-
rais, sua história e seu verdadeiro teor.
República Federal Alemã (RFA) e
Estado de Israel: dois países nascidos
na esteira da Segunda Guerra Mun- Sede do parlamento alemão, onde está escrita a frase “Dem deutschen Volke” - “Ao povo Alemão”.
dial e do genocídio dos judeus. A
aproximação ocorreu com o “acordo audiência, ele explicou sua política Quanto ao Estado dirigido por David mento das reparações alemãs. Embo-
de reparações” entre Alemanha e Is- de reparações em que “expiar ou re- Ben-Gurion, fundado depois dos hor- ra preparasse o terreno para uma in-
rael, concluído em 10 de setembro de parar [os crimes alemães contra os rores da solução final, por que teria denização individual, que seria
1952. Como explicar esse movimento judeus] era a condição sine qua non aceitado a mão manchada de sangue estabelecida futuramente, dizia res-
apenas alguns anos depois que o Ter- para recuperar nosso status interna- que lhe estendia uma Alemanha Oci- peito mais especificamente às repa-
ceiro Reich quase conseguiu exter- cional”. E acrescentou: “Ainda hoje, o dental que fazia pouco havia abando- rações devidas ao Estado de Israel. A
minar o povo judeu, com o apoio de poder dos judeus não deve ser subes- nado o nazismo? Os sobreviventes do República Federal comprometia-se
grande parte de sua população? timado, sobretudo na América”. extermínio representavam um terço assim a pagar 3,45 bilhões de marcos
Difícil acreditar na retórica oficial Portanto, aos olhos de Adenauer, da população de Israel na data de sua alemães, o equivalente a cerca de 7
alemã, que insiste na base “moral” de as reparações decorriam menos de criação. Raros eram os israelenses que bilhões de euros hoje. Dois terços
suas relações com Israel. Como de- uma questão moral do que da neces- não contavam com algum morto em dessa soma foram alocados sob for-
monstraram profusamente os histo- sidade de recuperar o prestígio perdi- sua família ou em seu círculo. O país ma de mercadorias (matérias-pri-
riadores, antigos responsáveis pelo do da Alemanha. Sua segunda justifi- havia sido literalmente construído mas, máquinas, barcos etc.). Um ter-
regime nazista ainda ocupavam altas cativa surpreende mais. Ao evocar o por refugiados traumatizados da Eu- ço do montante total destinou-se à
funções na Alemanha vencida, en- “poder dos judeus”, ao qual ele acres- ropa. Uma única razão poderia expli- compra de petróleo bruto junto a em-
quanto a sociedade em geral estava centou um revelador “ainda hoje”, car sua aproximação com a Alema- presas britânicas. O acordo marcou o
mergulhada na negação diante da Adenauer retomava de fato um dos nha: a satisfação de suas necessidades lançamento de um programa de in-
barbárie que ela havia desencadeado temas do repertório antissemita. Sua materiais, pois, após sua guerra de in- dustrialização cujo abastecimento
pouco tempo antes. política em relação a Israel apoiava- dependência, marcada pelo êxodo de combustível estava assegurado.
Talvez Konrad Adenauer, primei- -se em dois pilares: a vontade de rea- forçado da maior parte da população Nahum Goldmann, à época presi-
ro chanceler do pós-guerra e símbolo bilitar a Alemanha e uma avaliação palestina, o jovem Estado encontrava- dente do Congresso judeu mundial e
do “renascimento” de seu país, nos exagerada da influência judaica so- -se em uma posição frágil no Oriente principal negociador israelense, qua-
esclareça melhor sobre esse assunto. bre a opinião pública ocidental. Médio. Além disso, estava exangue do lificou o acordo de “salvamento em
Entrevistado em 1966 pela televisão ponto de vista econômico e militar. regra”. Para a Alemanha, o custo foi
alemã, dois anos depois de se retirar EM NOME DOS NORTE-AMERICANOS O acordo de 1952 foi o primeiro baixo, pois as despesas anuais pre-
do poder, em um horário de grande Essas eram as motivações alemãs. grande tratado definindo o paga- vistas pelo tratado nunca ultrapassa-
ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 33

ram 0,2% de seu PIB. Melhor: a pro- rea, os tanques alemães dominavam “vitória relâmpago”, o general is- colonizado e na Europa, raras eram as
dução dos setores exportadores se viu os combates no solo do Egito. Infor- raelense Moshe Dayan foi aplaudido, incitações para reconhecer o infortú-
estimulada pelas indenizações, ali- mados da contribuição da República enquanto os exércitos árabes venci- nio de um povo que não conseguia ele
mentando o “milagre econômico”. Federal ao esforço de guerra is- dos sofriam um desprezo que exalava próprio fazer sua voz ser ouvida.
Inicialmente econômica, a “nor- raelense, os representantes dos Esta- o feroz triunfalismo alemão de uma No seio do governo alemão, as dis-
malização” logo ganhou o terreno dos árabes raramente deixavam de época passada. cussões sobre ajuda humanitária aos
militar. Na sequência da crise do Ca- se queixar. Última curiosidade dessas singu- refugiados estavam centradas no im-
nal de Suez, em 1956, até a guerra de- lares relações bilaterais: as reflexões perativo de criar um impulso de boa
cisiva de 1967 (a Guerra dos Seis ESTRANHA MUTAÇÃO de Rolf Pauls, primeiro embaixador vontade nos Estados árabes – os quais
Dias), a Alemanha tornou-se, ao lado Outro aspecto capital da ajuda alemã alemão em Israel e ex-general da desconfiavam, com justa razão, que a
da França, o principal apoio do Exér- foi um empréstimo de 644,8 milhões Wehrmacht (as Forças Armadas ale- Alemanha fornecia a Israel um apoio
cito israelense. Grande arquiteto da de marcos alemães. Disfarçada com mãs durante o regime nazista) con- bem mais importante do que ela que-
cooperação militar com esses dois o nome de Operação Business Friend, decorado com a Cruz de Ferro. Suas ria admitir. Os dirigentes alemães, no
países, o dirigente israelense Shimon essa transação efetuou-se sob sigilo, anotações pessoais associam regu- entanto, zelavam para que essa assis-
Peres resumiu bem a situação: “Os assim como o envio de armamento. larmente seus interlocutores is- tência humanitária não os colocasse
Estados Unidos nos dão dinheiro, Em 1965, uma vez estabelecidas as raelenses ao dinheiro e ao poder. Em em uma posição de “responsabilidade
mas não armas. A França nos dá ar- relações diplomáticas entre os dois 1965, indignou-se com os israelenses indireta”. A Alemanha encoraja hoje a
mas, mas não dinheiro. A Alemanha países, o empréstimo foi convertido que “falam de moralidade, mas só autodeterminação do povo palestino,
viu aí um modo de virar a página do em ajuda ao desenvolvimento oficial. pensam em dinheiro”. Convencido defendendo a solução de um Estado
regime nazista fornecendo-nos ar- Ao se expressar décadas depois, em de que “a influência de Israel e dos ju- que englobaria a Cisjordânia, Gaza e
mas sem nada pedir em troca”. 2015, nas colunas do jornal conserva- deus nos grandes centros mundiais Jerusalém Oriental, mas suas relações
De acordo com os arquivos do dor pró-israelita Die Welt, Hans Rüh- onde se molda a opinião pública [era] com Israel permanecem prioritárias.
Ministério das Relações Exteriores le – um especialista em proliferação determinante”, Pauls estimou que a Uma primeira virada nas relações
alemão, a ajuda militar a Israel teve nuclear com altas responsabilidades Alemanha não se encontrava em po- entre Alemanha e Israel ocorreu logo
início em 1957. Consistia, essencial- no Ministério da Defesa alemão e na sição de cortar as provisões de Tel após a guerra de 1967, quando a alian-
mente, no fornecimento de armas Organização do Tratado do Atlântico Aviv, pois na falta delas “os judeus ça entre Estados Unidos e Israel se
leves, aviões e navios de guerra e pro- Norte (Otan) – afirmou que esse di- [soltariam] os cães, de Jerusalém a manifestou, reservando à República
gramas de treinamento. O primeiro nheiro tinha servido para financiar o Londres, passando por Nova York”. Federal apenas um papel secundário.
grande contrato de armamento data programa nuclear israelense. Levan- A política israelense da República Essas ligações bilaterais evoluíram
de 1962, com o fornecimento por do-se em consideração o papel da Re- Federal é hoje objeto de debates que, em seguida ao sabor dos sobressaltos
parte da Alemanha de artilharia pública Federal na consolidação do por natureza, tocam a moral. Seus da Guerra Fria, da integração euro-
pesada, aviões, helicópteros, navios e Estado de Israel, a teoria é plausível, detratores também adoram lembrar peia e do conflito israelo-palestino,
submarinos. Em 1964, Washington mas de difícil averiguação. que a Alemanha se mostra muito com a queda do Muro de Berlim e a re-
ordenou a Bonn que acrescentasse a Ironia da história, as relações ger- mais preocupada com a segurança unificação alemã imprimindo final-
essa lista 150 tanques Patton em nome mano-israelenses evoluíram muito de Israel que com a sorte daqueles mente uma mudança mais radical. 
dos norte-americanos. Preocupados mais rapidamente que o processo de que foram caçados de suas terras pe-
em se colocarem como mediadores confrontação da Alemanha com seu la criação desse Estado. Mas essa crí- *Daniel Marwecki, professor-pesquisa-
neutros no conflito árabe-israelense e próprio passado. Essa defasagem en- tica negligencia um aspecto funda- dor da School of Oriental and African Stu-
em não despertarem a cólera dos gendrou uma estranha mutação no mental: na realidade, a virada alemã dies (Londres) e da Universidade de Leeds,
nacionalistas árabes, os Estados antissemitismo à moda antiga, in- em favor de Israel nunca teve nada a é autor de Germany and Israel: White-
Unidos preferiram evitar armar dire- crustado na tela de fundo das rela- ver com a moral. washing and Statebuilding [Alemanha e Is-
tamente Israel, pelo menos até 1967. ções com Israel. Um único exemplo No pós-guerra, enquanto suas re- rael: whitewashing e construção de Esta-
O apoio alemão revelou-se cru- basta para nos convencer disso. Em parações e seus armamentos partici- do], Hurst, Londres, com lançamento
cial. Em 1965, desde sua instalação na 1961, Gerhard von Preuschen, chefe pavam da construção do Estado de Is- previsto para 30 de abril de 2020.
Embaixada de Israel em Bonn, Asher da delegação de observadores ale- rael, a Alemanha tinha naturalmente
Ben-Nathan, primeiro titular da fun- mães durante o processo de Adolf Ei- consciência da existência dos refugia- 1   E
 sta citação e as seguintes foram extraídas da
obra do autor Germany and Israel: White-
ção, confiou ao chanceler Ludwig chmann, conclui seu relatório final dos palestinos. Mas, em uma época
washing and Statebuilding [Alemanha e Is-
Erhard que um conflito no Oriente com um elogio “à juventude israelen- em que os deslocamentos populacio- rael: whitewashing e construção de Estado],
Médio “não duraria mais que alguns se, que se destaca das gerações pre- nais eram moeda corrente no mundo Hurst, Londres, 2020.
dias. Israel [devia], portanto, ficar cedentes de maneira muito promis-
constantemente em alerta. A ajuda da sora. Esses jovens – as crianças dos
Alemanha [havia feito] muito pelo imigrantes judeus alemães – não DOUTRINA DE DOIS GUMES
desenvolvimento do país, e seu apoio apresentam quase nenhuma das ca-
militar [havia sido] igualmente deter- racterísticas que habitualmente as-
Se a República Federal Alemã era uma aliada fundamental de Israel, a Repúbli-
minante para sua segurança”. sociamos aos judeus. Altos, em sua
Tivemos a confirmação disso dois maioria loiros de olhos azuis, com ca Democrática Alemã (RDA) havia tomado o partido dos palestinos. Essa sime-
anos depois. A guerra árabe-israelen- rostos de traços regulares, autôno- tria perfeita refletia mais do que as divisões da Guerra Fria. Assim, o regime da
se de 1967 durou apenas seis dias, e o mos e livres em seus movimentos, Alemanha Oriental era tão implacavelmente antissionista como seu homólogo do
apoio militar alemão teve seu papel. eles encarnam uma forma de judei- Ocidente era pró-sionista.
Quarenta e oito horas após o fim do dade desconhecida até aqui”. A transposição desse conflito germano-alemão ao Oriente Médio deve tam-
conflito, o embaixador alemão em Is- Impressionante por seu racismo
bém muito à “doutrina Hallstein”. Ministro dos Assuntos Exteriores do chanceler
rael enviou a Bonn um telegrama assumido, elegantemente descrito,
breve, mas eloquente: “Segundo um essa declaração reflete uma percep- Adenauer, Walter Hallstein havia estabelecido em 1955 que a Alemanha Ociden-
oficial do Estado-Maior, os modernos ção um pouco egocêntrica de Israel: o tal consideraria o reconhecimento da RDA por outro país como um “gesto hostil”
carros blindados que lhes fornece- Estado hebreu se tornou ariano. Esse suscetível de desencadear sanções, até uma ruptura das relações diplomáticas.
mos não poderiam dar melhor prova gênero de paradoxo pontua a história Esse princípio daria paradoxalmente aos Estados árabes conduzidos pelo Egito
de seus méritos”. das relações entre os dois países. Um de Nasser uma formidável alavanca: podiam agora ameaçar reconhecer diploma-
O próprio desenrolar dessa guer- narcisismo comparável transpirava
ticamente a RDA para se opor ao apoio alemão a Israel. Por isso, Bonn preferiu
ra ilustra a importância conjunta da da cobertura da guerra de 1967 pela
França e da Alemanha para Israel na imprensa do além-Reno, em particu- dissimular esse apoio sob um véu pudico, mesmo com os israelenses afirmando
época. Enquanto os Mirages france- lar a do grupo Springer. A vitória is- desde 1956 sua vontade de normalização diplomática. (D.M.)
ses se sobressaíam na campanha aé- raelense foi saudada aí como uma
34 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2020

ESTABILIDADE DAS INSTITUIÇÕES FRANCESAS A DESPEITO DO RESPEITO AO OUTRO

A V República em coma político


Nenhuma Constituição ocidental dá tanto poder a uma pessoa quanto na França, onde o presidente
encarna uma espécie de “monarca republicano”. Imposta pelo fogo da Guerra da Argélia sobre os
escombros da IV República, essa visão das instituições ainda faz sentido enquanto se multiplicam os
desafios coletivos, sejam sociais, sanitários ou geopolíticos?
POR ANDRÉ BELLON E ANNE-CÉCILE ROBERT*

V
isivelmente interpelado pela conferir às instituições uma solidez a se não mais, do conquistador do Ély- seus concidadãos, esquecendo que
amplitude da mobilização con- qualquer prova, o que ganhou o apeli- sée do que de seus eleitores. Interro- eles deveriam ser antes de tudo os
tra a reforma da previdência, do de “golpe de Estado permanente” gada sobre as deserções em seu grupo porta-vozes de seus eleitores.
este político do partido Les sob a pluma então afiada de François (uma dúzia desde 2017), a deputada
Républicains deixa escapar um grito Mitterrand.3 “Nunca, desde o fim do do partido La République en Marche IMPERIOSA NECESSIDADE
sincero: “Vocês se dão conta: se a século XIX [...], a vida política conhe- da região de Yvelines, Aurore Bergé, DEMOCRÁTICA
gente estivesse na IV República [1946- ceu tal estabilidade”, escrevia com ên- confirmou isso candidamente em co- Protegido contra os sobressaltos da
1958], o governo já teria sido derruba- fase o historiador Mathias Bernard no letiva de imprensa no dia 29 de janei- vida parlamentar, o governo pode
do”.1 E o homem, que é oponente do mesmo tom do discurso dominante.4 ro de 2020. Ao evocar a provocação de “reformar” sem temer, sob a ordem
presidente Emmanuel Macron, van- A maioria parlamentar viu sua Cédric Villani, apesar da advertência da única autoridade que conta: a Pre-
gloria os méritos da “estabilidade” submissão ao Executivo acentuada de Macron, ela exclamou: foi o “presi- sidência da República, ela mesma in-
das instituições francesas. Ainda as- pela inversão do calendário eleitoral dente da República que permitiu que tocável por cinco anos. Macron não
sim, tanto o Élysée (palácio presiden- decidida pelo primeiro-ministro Lio- ele se tornasse parlamentar, como corre o risco de ter nenhum de seus
cial) quanto o Matignon (residência nel Jospin em 2001: desde então, com permitiu a mim e a todos os deputa- projetos recusados ou vetados pelo
do primeiro-ministro) parecem, des- a votação presidencial precedendo dos da situação”.5 Nessa visão, os de- Senado. O referendo de iniciativa po-
de o início do movimento dos coletes sistematicamente as legislativas, a putados se transformam em repre- pular é concebido como uma exceção
amarelos, fortalezas sitiadas jogando eleição dos deputados depende tanto, sentantes do chefe de Estado junto a difícil de ser realizada. Pensando
sobre a multidão de manifestantes o
óleo fervente da repressão policial.

© EV/Unsplash
Ainda que tudo indique que a re-
forma da previdência seja rejeitada
pela maioria dos eleitores – greves
múltiplas e de longa duração, mani-
festações frequentes em toda a Fran-
ça, fundos de greve bem alimentados
–, nada na Constituição permite que
se impeça essa mudança legislativa.
O chefe de Estado e seu governo dis-
põem de todo um arsenal jurídico, a
começar pelo artigo 49-3, que lhes
permite desprezar as oposições po-
pulares, por mais maciças que se-
jam.2 E isso mesmo com uma legiti-
midade eleitoral frágil: Macron só
teve 17% votos dos inscritos na elei-
ção presidencial de 2017 e apenas
47% no segundo turno, enquanto Jac-
ques Chirac tinha tido 62% numa
confrontação idêntica com a extrema
direita. Pela primeira vez, a Assem-
bleia Nacional foi eleita por uma mi-
noria de eleitores, e a abstenção atin-
giu o nível recorde de 57,36% nas
eleições legislativas de junho de 2017.
Tendo chegado ao poder nessas con-
dições, o partido La République en
Marche se protege atrás do “manda-
to” confiado pelos eleitores, mandato
sujeito a interpretações, em particu-
lar sobre as aposentadorias. Como se
estes tivessem assinado um cheque
em branco.
Traumatizados pela extrema ins-
tabilidade da IV República, os redato-
res da Constituição de 1958 quiseram Macron não corre o risco de ter nenhum de seus projetos acusados ou vetados pelo senado
ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 35

derrubar as acusações de autoritaris- de um tiro só que erra regularmente o fossem decididos, em vez do autori- vez de fazerem disso um assunto po-
mo que se multiplicam em sua dire- alvo de suas aspirações políticas. Mo- tarismo presidencial? lítico arbitrado pelos eleitores, as ins-
ção,6 o chefe de Estado na verdade nolítica, a prática institucional anes- Essenciais, as relações de força tituições atuais mergulham a França
confirmou o diagnóstico de decadên- tesia qualquer debate contraditório. ideológicas e as lutas populares de- em um coma político profundo, per-
cia da democracia francesa. “Uma di- “Não há mais democracia quando na- vem encontrar sua expressão nas ins- mitindo aos dirigentes fechar os ou-
tadura é um regime no qual uma pes- da do que vem do povo é ouvido”,8 es- tituições, sob pena de vê-las surgir vidos a qualquer contestação. Con-
soa ou um clã decide as leis”, afirmou creveram quinze personalidades em sob outras formas. Muito logicamen- tradição inesperada: enquanto, no
em 24 de janeiro de 2020, mal escon- uma tribuna no dia 29 de janeiro de te, diante do bloqueio das institui- espírito de seus criadores, a V Repú-
dendo sua raiva. “Uma ditadura é um 2020. Ao fazer isso, a legitimidade do ções hoje, quando as desigualdades blica deveria dar à França toda a sua
regime no qual não se mudam jamais poder não é atingida? 9 econômicas e sociais aumentam, for- força para enfrentar as questões in-
os dirigentes”.7 Ainda que pudésse- Pois a democracia surgiu, com o mas de violência se desenvolvem, ternacionais de então, elas favorecem
mos contestar o termo “ditadura”, político Clístenes de Atenas, na Gré- cujo símbolo reside nas violências aos hoje a submissão do Estado a todas as
não podemos negar que a Constitui- cia antiga, para responder às contra- domicílios dos eleitos da situação du- ordens da globalização financeira ou
ção atual permite efetivamente que dições que atravessam a sociedade e rante o verão de 2019 e o inverno de de Bruxelas. Diante de uma geopolí-
um “clã” “decida as leis” a despeito do fornecer uma solução vinda de um 2019-2020. Manifestantes constroem tica em movimento, a Constituição
“respeito ao outro” (o opositor, o elei- processo aceito por todos.10 Assim, até mesmo guilhotinas de papelão. francesa estampa sua especificidade:
tor, o cidadão). A “virada do rigor” de- ela é ao mesmo tempo um instru- Do presidente do Senado, Gérard Lar- a quase impossibilidade de derrubar
cidida em 1983 por Mitterrand vio- mento de adaptabilidade e uma bus- cher, ao antigo guarda dos selos Ro- o governo ou mudar a situação ao
lando seus compromissos eleitorais ca por estabilidade. A história da bert Badinter, passando pelos princi- longo do mandato.
de 1981 foi um sinal precursor. França oscila entre, por um lado, a pais chefes políticos, todos pedem Evidentemente, uma mudança de
Essa lógica não impede que o che- aspiração ao chefe tranquilizador calma. Mas, para ser crível, a conde- instituições não reestabelecerá num
fe de Estado se coloque excepcional- que ignora qualquer contestação, co- nação dos excessos deve levar em toque de mágica uma vida democrá-
mente sob o julgamento dos cida- mo Napoleão III liquidando fisica- conta a violência social sofrida pela tica mais adaptada às necessidades
dãos, mesmo que a Constituição não mente os oponentes ao golpe de Esta- população e a resposta policial extre- da população e aos interesses do país.
o obrigue a isso. Mas ele o faz, sobe- do de 1851, e, por outro, a mamente brutal às manifestações. Só há sentido se ela se apoiar em uma
ranamente, segundo sua boa vonta- representação política dos conflitos Pode haver respeito aos eleitos quan- reconstrução do povo republicano,
de, ao convocar, por exemplo, um que permite as evoluções necessá- do estes não respeitam os eleitores? A quer dizer, em uma reapropriação da
plebiscito a cujo resultado ele tem a rias, como foi o caso no final do sécu- adoção do Tratado de Lisboa pelo coisa pública pelos cidadãos. Ao
liberdade de obedecer ou não: em lo XIX, período que não deixa de lem- Parlamento abriu uma ferida que não construir a relação de forças, o movi-
1969, o general De Gaulle pediu de- brar o atual. Depois da queda do fechou. Isso explica, sem dúvida, a mento social deve, como sempre, fa-
missão após a rejeição do projeto de Segundo Império, do massacre da popularidade do referendo de inicia- zer evoluir o direito. É o sentido das
regionalização pelos eleitores, o que Comuna de Paris e da breve passa- tiva cidadã reivindicado por diversas reivindicações de milhares de mani-
não foi o caso de Jacques Chirac, que, gem de Adolphe Thiers pelo poder, o associações e manifestantes desde o festantes e de militantes que pedem
em 2005, depois da vitória do “não” presidente Patrice de Mac-Mahon movimento dos coletes amarelos. novas instituições.14 “Não podemos
no referendo sobre o Tratado Consti- (1873-1879) tentou estabilizar e legi- resolver um problema”, dizia Albert
tucional Europeu, se contentou em timar um regime de ares monarquis- O POVO, UM CONCEITO DESPREZADO Einstein, “com o mesmo modo de
responsabilizar seu primeiro minis- tas. Duas eleições legislativas e sena- Claro, a natureza das instituições pensar que aquele que o gerou.” 
tro, Jean-Pierre Raffarin. Seu suces- toriais consecutivas vencidas pelos não explica tudo. Alain Supiot, pro-
sor, Nicolas Sarkozy, foi pior: ele igno- republicanos conduziram à sua de- fessor do Collège de France, demons- *André Bellon é presidente da Associa-
rou o voto, recusando um novo missão e à instalação da III Repúbli- trou como, ao apresentarem a globa- ção por uma Constituinte; e Anne-Cécile
referendo sobre um tratado idêntico ca. Qualificaríamos hoje de desesta- lização como um fato de natureza e Robert é jornalista do Le Monde
em 2008 (Tratado de Lisboa), o que bilizadora a célebre interjeição do não como uma construção humana Diplomatique.
era imposto pelo princípio do parale- deputado Léon Gambetta a Mac- discutível, as principais forças políti-
lismo das formas jurídicas. No caso -Mahon em 15 de agosto de 1877: cas podem constituir uma deficiên- 1   E ntrevista informal com os autores.
da reforma da previdência de 2010, “Quando o povo terá se pronunciado, cia diante dos eventos ou um fator 2   C f. Bastien François, Le Régime politique de
ele chegou a contradizer abertamen- será preciso se submeter ou se demi- agravante de derivas gerais. A nocivi- la Ve République [O regime político da V Re-
pública], La Découverte, Paris, 2010 (1. ed.
te suas promessas de campanha. tir”? Se, na época, a Câmara dos De- dade da Constituição atual explode, 1998).
A “estabilidade”, portanto, custa putados, depois o Senado, pôde ser assim, em pleno dia ao aumentar o 3   Plon, 1964.
caro para a democracia francesa. O eleita contra a vontade presidencial, efeito das negações da esquerda de 4   M athias Bernard, Histoire politique de la Ve
République [História política da V República],
descrédito nos últimos anos da IV Re- foi precisamente porque as duas legi- governo, das confusões ideológicas Armand Colin, Paris, 2008.
pública, cujo debate institucional timidades não eram interdependen- surgidas com o desaparecimento da 5   Assembleia Nacional, coletiva de imprensa,
herdou, permitiu por muito tempo tes. Na verdade, a questão hoje ainda União Soviética e do aperto imposto 29 jan. 2020.
6   Ler Mathieu Chaigne, “Le moment autoritaire
que se impedisse qualquer reflexão é: qual é o papel da democracia na pelos tratados europeus. Depois da d’Emmanuel Macron?” [O momento autoritá-
sobre a imperiosa necessidade demo- construção do contrato social? queda do Muro de Berlim, a globali- rio de Emmanuel Macron?], Figarovox, 10 jan.
crática. Invocada desde então como A estabilidade política, alfa e zação serve de bússola ideológica pa- 2020. Disponível em: lefigaro.fr.
7   Radio J, 24 jan. 2020.
um talismã, a “estabilidade” inverte ômega de todos aqueles que se assus- ra os dirigentes ocidentais. As insti- 8   “ Non, monsieur Macron, nous ne sommes plus
as hierarquias, relegando a legitimi- tam com qualquer tipo de mudança, tuições, por isso, ampliaram a en démocratie” [Não, senhor Macron, não es-
dade popular ao segundo plano: im- frequentemente gera como conse- distância entre os cidadãos e os re- tamos mais na democracia], L’Humanité, 29
jan. 2020.
porta que o poder dure, não necessa- quência a instabilidade social. Claro, presentantes.12 Então não é por acaso 9   Ler “Bonapartisme ou Constituante” [Bo-
riamente que tenha apoio dos podemos dizer, como o primeiro-mi- que se vê como a ideologia oficial napartismo ou Constituinte], Le Monde Diplo-
cidadãos. Ainda que um regime par- nistro Jean-Pierre Raffarin, que “não despreza o próprio conceito de povo13 matique, abr. 2014.
10  Ler “Pas de démocratie sans conflit” [Não há
lamentar possa desfigurar a demo- é a rua que governa” e que “a política quando este aparece como um estan- democracia sem conflito], Le Monde Diploma-
cracia sob o efeito de uma obsessão foi justamente inventada para subs- darte nas manifestações que se mul- tique, jun. 2009.
similar, a concentração atual dos po- tituir a violência”.11 Mas o que foi in- tiplicam pela França. É essa diver- 11  Tuíte de 26 de julho de 2019.
12  C f. Alain Supiot, L’esprit de Philadelphie. La
deres na mão presidencial, sem equi- ventado há mais de 2 mil anos por gência que subentende a famosa justice sociale face au marché total [O espírito
valente no Ocidente democrático, tor- Clístenes para substituir a violência sentença de Jean-Claude Junker, en- da Filadélfia. A justiça social diante do merca-
na a vida política dependente das não foi a política em geral, mas a de- tão presidente da Comissão Euro- do total], Seuil, Paris, 2010.
13  Ler “Peu(ple) leur chaut!” [Pouco (povo) im-
qualidades pessoais do locatário do mocracia. E, quando a tensão social peia: “Não há democracia contra os porta!], Le Monde Diplomatique, nov. 2003.
Élysée, que pode usar e abusar de sua se exacerba (manifestações repeti- tratados que já foram ratificados”. 14  Ler Martin Cadoret, “Ces mouvements cito-
situação sem contrapeso. Superdeter- das e maciças, greves em profusão Como então qualificar o Brexit? yens qui veulent renouveler la démocratie”
[Esses movimentos cidadãos que querem re-
minante, a eleição presidencial se tor- etc.), o recurso ao sufrágio universal Ao deixarem a “estabilidade” nas novar a democracia], Reporterre, 9 mar. 2017.
na para o eleitor uma espécie de fuzil não deveria permitir que os conflitos mãos somente do chefe de Estado, em Disponível em: reporterre.net.
36 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2020

UM DESPREZO INTOCADO 40 ANOS APÓS A MORTE DO FILÓSOFO

A recusa de Sartre
Em 19 de abril de 1980, o enterro de Jean-Paul Sartre mobilizou uma multidão, como o de Victor Hugo, pouco menos
de cem anos antes. Com a morte de Sartre, uma época de engajamentos e de recusa da etiqueta burguesa parece ter
terminado. O exibicionismo midiático e o encastelamento universitário hoje em dia caracterizam os dois polos do mundo
intelectual, ambos distantes do modelo sartriano
POR ANNE MATHIEU*

E
xiste um “paradoxo Sartre”. da literatura... As carteiras dos estu- cunstância particular de sua vida, le- set. O RDR morreu com a saída de
Aquele que simboliza “o intelec- dantes pulularam durante muito vou em consideração sua responsabi- Sartre (outubro de 1949); e esse foi
tual total, presente em todas as tempo com essas piadas de mau gos- lidade de escritor”.5 seu único engajamento em um parti-
frentes do pensamento (filósofo, to – e chegaram até as salas de aula do político. De meados de 1952 ao fim
crítico, romancista, teatrólogo)”,1 mal dos universitários, disfarçadas de le- COMPANHEIRO DO de 1956, ele flertou com o Partido Co-
encontra um lugar póstumo, digno gitimidade científica. Justamente em PARTIDO COMUNISTA munista Francês (PCF), amplamente
desse nome, em seu país. O paradoxo literatura é que Sartre continua pou- A guerra estimularia o engajamento motivado pela repressão policial e ju-
é acentuado pela disseminação cada co estudado. Mas convém reler seu de Sartre. Mobilizado em setembro dicial de que este era então objeto,
vez mais intensa do pensamento e dos primeiro romance, A náusea (1938), de 1939 e aprisionado em junho de mas que se insurgira violentamente
escritos sartrianos no estrangeiro. É sua coletânea de contos, O muro 1940, foi transferido para um stalag contra ele até então. Com efeito, o
que a França se ilumina agora com as (1939), sua trilogia injustamente ig- (campo de prisioneiros) em Trèves. presidente da União dos Escritores
lanternas do conformismo consen- norada e subestimada, Os caminhos Ali conheceu a camaradagem, a fra- Soviéticos o havia chamado em 1948
sual ao que os (pseudo)debates televi- da liberdade (1945-1949). Belos tex- ternidade; escreveu e encenou uma de “hiena datilógrafa”. Sartre rompeu
sivos e radiofônicos nem sequer che- tos, variados estilística e narrativa- peça de Natal, Bariona ou o Filho do com o partido em novembro de 1956,
gam a dar a ilusão de um sopro mente, que “falam” a todo mundo, Trovão. Libertado em março de 1941 quando a URSS esmagou o motim
desestabilizador. O medíocre e o con- afetando para sempre a formação in- fazendo-se passar por civil, Sartre húngaro. Como seria sempre o caso,
vencional ficavam bem longe daquele telectual e pessoal: marca das obras- voltou a Paris decidido a agir. Fundou seu ímpeto jornalístico se impregnou
que nunca deixou, após a Segunda -primas. Seu teatro? Também ele di- com Maurice Merleau-Ponty o grupo da temática e do léxico dos compa-
Guerra Mundial, de fustigá-los, de se verso, inventivo e... atual. Além de efêmero “Socialismo e Liberdade”, nheiros que escolheu. São assim os
lançar ao combate, de assumir riscos. Entre quatro paredes (1944) e As mãos imaginando organizar um movimen- textos publicados no France-U.R.S.S.
Uma certa intelligentsia recusa a Sar- sujas (1948), suas peças mais conhe- to de resistência com a ajuda de An- em 1955, que não devem nada à fra-
tre seu status de representante do in- cidas e mais montadas até hoje, a for- dré Gide e André Malraux, na zona li- seologia dos comunistas ortodoxos.
telectual engajado “à francesa”. Única ça de denúncia de Nekrassov (1955) e vre. Sua peça As moscas fala em Não obstante, os artigos sartrianos
obra a conseguir unanimidade: As pa- Sequestrados de Altona (1959) conti- resistência na Paris ocupada. Em desse período oferecem uma reflexão
lavras (1961). Sobram elogios sobre “a nua intacta: no caso da primeira, a da 1943-1944, colaborou nas Lettres sempre atual sobre a mistificação dos
obra-prima do escritor”, o que não é mistificação da informação e do ali- Françaises, órgão do Comitê Nacional dirigentes e da imprensa: “Todos os
por acaso: essa autobiografia na qual ciamento; no caso da segunda, a do dos Escritores fundado na clandesti- nossos leitores sabem que considera-
ele narra sua infância e juventude não fim e dos meios em períodos violen- nidade por Jacques Decour e Jean mos nefasta a política do governo e
perturba ninguém. O pensamento tos da história. Paulhan.6 Mas isso foi tudo: Sartre que desprezamos os homens que a
único de direita, assim como o de es- não seria nem Georges Politzer nem inspiram; mas nossa tarefa consiste
querda, soube identificar a obra que Claude Bourdet. Antes da Segunda em demonstrar isso sem descanso.
lhe permitia poupar unilateralmente O radicalismo da Guerra Mundial, o que impressiona é Somente demonstrando é que pode-
o intelectual e, ao mesmo tempo, rele- subversão de Sartre a ausência de qualquer horizonte po- mos esperar servir. Insistiremos: se é
gá-lo à “loja de acessórios” datados, lítico. Diga o que disser Simone de proibido chamar Bidault de crimino-
ultrapassados.2
se medeia à luz do ódio Beauvoir e malgrado a novela O muro, so, nós o chamaremos de grande cul-
Ultrapassados e gastos até a me- que inspirava aos donos ele permaneceu distanciado do que pado; se nos recusarem o direito de
dula do erro. Pois, como tantas vezes de lojas literárias e acontecia na Espanha.7 Quando le- falar sobre o sangue que ele tem nas
nos recordam, Sartre estaria errado o jornalísticas mos sua correspondência com Simo- mãos, falaremos das escamas que ele
tempo todo3 – a menos que essa acu- ne, o “Castor”, ficamos estupefatos ao tem nos olhos. Mera questão de
sação não se volte contra os acusado- notar a primeira menção política terminologia”.8
res. Façamos nossas as palavras revi- Há também, é claro, seus textos apenas em julho de 1938, dois meses Os últimos meses de flerte com o
gorantes de Guy Hocquenghem políticos. Pois é aí que está o proble- antes de Munique. Além disso, os dois PCF coincidiram com a luta de Sartre
alguns anos depois da morte do autor ma: Sartre incomoda porque está não sabiam muita coisa da Frente Po- contra a Guerra da Argélia. Essa foi
de Caminhos da liberdade: “Almas “inserido”. Ele disse em Os tempos pular. Esse distanciamento político sua grande batalha.9 E aqui está o que
avaras e pobres, puritanas e teoris- modernos (1945): “O escritor está in- no entreguerras o levou durante a vi- alguns nunca perdoarão: seu antico-
tas, vocês quiseram cem vezes matar serido em sua época: toda palavra re- da inteira a caminhar lado a lado com lonialismo visceral, a insistência de
Sartre. Mas, quanto mais o renegam, percute. Todo silêncio também. Con- o fantasma de Nizan, seu amigo de seu discurso em colocar os franceses
mais o reanimam. Quanto mais o sidero Flaubert e Goncourt juventude que, ele sim, se engajara to- face a face com suas responsabilida-
empurram, mais ele os abraça, mais responsáveis pela repressão que se talmente desde o fim dos anos 1920. des históricas, intelectuais e morais.
os leva consigo na morte. O verdadei- seguiu à Comuna porque não escre- Sartre entrou em fevereiro de 1948 “Falsa candura, fuga, má-fé, solidão,
ro Sartre escapa ao túmulo do respei- veram uma linha para impedi-la. para o comitê diretor do Rassemble- mutismo, cumplicidade recusada e
to renegado e da traição onde vocês Não era da conta deles, dirão vocês. ment Démocratique Révolutionnaire por fim aceita, eis o que chamáva-
quiseram encerrá-lo”.4 Mas o processo de Calas era da conta (RDR) [União Democrática Revolu- mos, em 1945, de responsabilidade
Desde sua morte em 1980, pouca de Voltaire? A condenação de Dreyfus cionária], cujo projeto havia sido ela- coletiva. Na época não aceitávamos
coisa foi poupada àquele que muitos era da conta de Zola? A administra- borado anteriormente por jornalistas que a população alemã fingisse ter
temeriam enfrentar enquanto vivo. ção do Congo era da conta de Gide? e intelectuais de esquerda e extrema ignorado os campos de concentra-
Sartre seria um filósofo que falou mal Cada um desses autores, em uma cir- esquerda, entre os quais David Rous- ção. ‘Ora, vamos’, dizíamos. ‘Eles sa-
ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 37

© Fernando Frazão/Agência Brasil


biam de tudo!’ Tínhamos razão, eles
sabiam de tudo, e somente hoje pode-
mos entender isso, pois nós também
sabíamos. [...] Ousaremos ainda con-
dená-los? Ousaremos ainda nos
absolver?”10
Alguns, frequentemente os mes-
mos, não aceitam também sua ami-
zade com o psiquiatra e ensaísta
martinicano Frantz Fanon, então
quase no ostracismo, e do qual prefa-
ciou Os condenados da terra (1961),
ensaio que serviu de farol para o ter-
ceiro-mundismo. No prefácio, ele vi-
lipendia a mentira de uma nação or-
gulhosa que é apenas a sombra de si
mesma: “Quanta conversa fiada! Li-
berdade, igualdade, fraternidade,
amor, honra, pátria, que sei eu? Isso
não nos impediu ao mesmo tempo de
proferir discursos racistas: negro su-
jo, judeu sujo, rato sujo”.11
O radicalismo da subversão de
Sartre se medeia à luz do ódio que ins-
pirava aos donos de lojas literárias e
jornalísticas. Ninguém se insurgiu as-
sim nem sequer contra Céline, salvo
por certa crítica que admirava seu es-
tilo. Pois, se não era antissemita, Sar-
tre cometeu o grande erro de confra-
ternizar com aqueles que se
revoltavam contra o opressor francês.
As calúnias se multiplicavam. Um O vírus vem das áreas ricas e adentra aos poucos as áreas mais pobres em função das relações de trabalho
desses valentões de salão não temeu o
ridículo ao acusar Sartre de “tentativa foi só nessa área que ele aliciou discí- lectual se torna digno desse nome 2   C f. Dossier Sartre, Europe, Paris, out. 2013.
3   C f. Claude Imbert, “Sartre, la passion de l’er-
de assassinato contra Camus”. Tudo pulos”.13 Mas, com os diabos, por que por seu pensamento, sua atuação, reur” [Sartre, a paixão do erro], Le Point, 14
isso, bem entendido, tendo por pano tanta dimensão humana? sua obra, sua determinação, nunca jan. 2000.
de fundo a Guerra da Argélia e o elogio Para empreender “uma defesa po- por suas aparições nas mídias ou por 4   Guy Hocquenghem, Lettre ouverte à ceux qui
sont passés du col Mao au Rotary [Carta
de Camus como “o filósofo que nunca lítica de Sartre”14, o melhor é conside- seus amigos poderosos. Aos prati- aberta àqueles que não usaram colarinho Mao
se enganou”.12 Em nome da complexi- rar sua obra “inserida”, avaliar nela cantes do pensamento pronto, sem- no Rotary] (1986), Agone, Marselha, 2003.
dade da situação pessoal, justificava- tanto os erros, os exageros e as fra- pre a repetir que os tempos muda- 5   Jean-Paul Sartre, “Présentation des Temps
Modernes” [Apresentação de Os tempos mo-
-se a posição equivocada do autor de quezas quanto o brio, a pertinência e ram, que as lutas e as reivindicações dernos], Les Temps Modernes, 1º out. 1945
O estrangeiro perante os desafios do a atualidade. Atualidade? Se esse mo- só são admissíveis dentro de limites (reeditado em Situations II, Gallimard, Paris,
momento histórico. Desdenhava-se o delo do intelectual engajado saiu de estreitos, pode-se replicar que ne- 1948).
6   C f. Michel Contat e Michel Rybalka, Les Écrits
combate corajoso... e perigoso. A casa moda, não há motivo nenhum para nhuma mudança pelo bem comum de Sartre [Os escritos de Sartre], Gallimard,
de Sartre foi alvo de um atentado com regozijo. Em 1983, três anos após a ocorreu quando se sussurrou “sim”, 1970; cf. também Annie Cohen-Solal, Sartre,
explosivo plástico cometido pela ex- morte de Sartre, Pierre Bourdieu ex- mas quando se bradou “não”. No iní- Gallimard, 1985.
7   C f. Anne Mathieu, “Jean-Paul Sartre et l’Es-
trema direita – em nome do direito plicou que “as condições conjuntu- cio da luta há sempre a recusa. Os in- pagne: du ‘Mur’ à la préface au Procès de
dos povos de disporem de si mesmos. rais, mas também estruturais, que telectuais e jornalistas que rejeita- Burgos” [Jean-Paul Sartre e a Espanha: de O
As mídias não deixaram de zombar de [...] tornavam possível [o intelectual ram Sartre sabem disso muito bem, muro ao prefácio do Processo de Burgos],
Roman 20-50, jun. 2007.
Sartre discursando em Billancourt por excelência] estão hoje desapare- embora seus discursos digam o con- 8   Jean-Paul Sartre, “À nos lecteurs” [Aos nossos
sobre um tonel, na época de sua ca- cendo: as pressões da burocracia de trário. Deformar e cobrir de opróbrio leitores], Les Temps Modernes, maio 1954.
maradagem, em 1970, com os maois- Estado e as seduções tanto da im- a palavra sartriana é sufocar a liber- 9   Ver “Jean-Paul Sartre et la guerre d’Algérie”
[Jean-Paul Sartre e a guerra da Argélia], Le
tas da esquerda proletária. prensa quanto do mercado de bens dade de nos opormos à pressão das Monde Diplomatique, nov. 2004.
Há alguns meses, no Figaro, Jac- culturais, unidos para reduzir a auto- convenções e dos poderes. É induzir- 10  Jean-Paul Sartre, “Le colonialisme est un sys-
ques Julliard, membro da Academia nomia do campo intelectual e de suas -nos a crer que todas as palavras se tème” [O colonialismo é um sistema], Les
Temps Modernes, mar.-abr. 1956 (reeditado
Francesa e encarnação perfeita do instituições próprias de reprodução e equivalem e contribuir para degra- em Situations V, Gallimard, 1964).
intelectual oficial, institucional e consagração, ameaçam o que havia, dá-las num momento em que a res- 11  Jean-Paul Sartre, “Préface à Frantz Fanon”,
consensual, emitiu seu veredicto so- sem dúvida, de mais raro e mais pre- ponsabilidade do intelectual consis- Les Damnés de la terre [Os condenados da
terra], “Cahiers Libres”, Maspero, Paris,
bre Sartre: “Mau romancista, drama- cioso no modelo sartriano do intelec- te às vezes em recorrer, conforme 1961.
turgo tedioso, filósofo prolixo, mas tual e que mais contrariava de fato as dizia o próprio Sartre, a “revólveres 12  Michel Onfray, “La tentative d’assassinat de
sem originalidade, eis aí um amante disposições ‘burguesas’: a recusa dos carregados”.  Sartre contre Camus” [A tentativa de assassi-
nato de Sartre contra Camus], Le Point, 5 jan.
da liberdade que sempre adulou to- poderes e privilégios mundanos (o 2012; “Le philosophe qui ne s’est jamais trom-
das as ditaduras, uma grande alma Prêmio Nobel, por exemplo) e a afir- *Anne Mathieu  é mestre de conferência pé. Comment Sartre a tenté de le tuer” [O filó-
que justificou todos os massacres mação do poder e do privilégio pro- em Literatura e Jornalismo da Universida- sofo que nunca se enganou. Como Sartre
tentou matá-lo], idem.
desde que fossem inspirados pelo so- priamente intelectuais de dizer ‘não’ de de Lorraine, França, e diretora da revis- 13  Jacques Julliard, “Pourquoi les intellectuels
cialismo [...]. É um impostor de boa- a todos os poderes temporais”15. ta Aden. n’aiment pas la liberté” [Por que os intelec-
-fé que reservou sua severidade, e às A recusa de Sartre a que assisti- tuais não gostam da liberdade], Le Figaro, 1º
jul. 2019.
vezes seu ódio, aos regimes liberais e mos é o inverso da lógica da home- 1   P
 ierre Bourdieu, “Sartre, l’invention de l’intel- 14  C f. Ian H. Birchall, Sartre et l’extrême gauche
que viu na ostentação da má cons- nagem. Má consciência dos intelec- lectuel total” [Sartre, a invenção do intelectual française [Sartre e a extrema esquerda fran-
ciência do escritor um álibi para sua tuais televisivos ou apadrinhados, total], Libération, 31 mar. 1983; reeditado em cesa], La Fabrique, Paris, 2011.
Agone, n.26-27, 2002. 15  Pierre Bourdieu, op. cit.
tranquilidade intelectual. Até hoje, ele nos lembra (e a eles) que um inte-
38 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2020

MISCELÂNEA

livros internet
lista e reducionista de democracia e de ditadura do NOVAS NARRATIVAS DA WEB
líder da II Internacional.
Lenin mostra que os anseios por uma “democra- Sites e projetos que merecem seu tempo
cia pura” por parte do autor austríaco seriam não só
profundamente idealistas (deixariam de considerar MAPA DO CORONAVÍRUS
o elemento classista da própria democracia bur- Nos servidores da Universidade Johns Ho-
guesa), mas também marcados por um viés mani- pkins (EUA), uma tela com dados automati-
DEMOCRACIA E pulador: a aura de intelectual respeitável colocaria camente atualizados sobre o coronavírus no
LUTA DE CLASSES Kautsky, aparentemente, acima das classes; porém, mundo todo, por países, com detalhes inclu-
Vladímir Ilitch Lênin, a posição desse renegado autor seria aquela de al- sive de regiões em alguns casos, é o melhor
Boitempo guém que busca uma revolução sem revolução, uma mapa da evolução do Covid-19 produzido
luta que permanece pura ao mesmo tempo que, ob- até então. Os pesquisadores abriram o có-

O rganizado por Antonio Carlo Mazzeo, o livro traz


uma excelente e atual compilação de textos
de Lenin. A gama de temas tratados nos escritos
jetivamente, só pode se dar na imaginação.
Lenin caracteriza-se por um ímpeto concreto. Cri-
tica as soluções imaginárias e traz a apreensão da
digo para que qualquer um possa replicar ou
melhorar a ferramenta. Brasil está lá tam-
bém, com números atualizados quase em
é grande, mas tem uma unidade e uma linha ver- realidade como critério para a práxis. Analisa a Co- tempo real – uma vez que a plataforma está
melha. Passando pela questão da organização da muna de Paris com cuidado e, ao mesmo tempo, tem conectada a fontes oficiais, como a Orga-
classe trabalhadora, pela atividade dos revolucio- em mente e à sua frente as tarefas da Revolução nização Mundial da Saúde (OMS) e outras.
nários e pelos grandes debates que perpassam os Russa. Trata da liberdade e da igualdade mostrando <https://coronamap.org>
meandros da revolução e da contrarrevolução, a co- como esses ideais nada têm de simplesmente abs-
letânea aborda elementos essenciais para o enten- tratos, mas possuem um conteúdo concreto e, em PRIMEIRAS IMPRESSÕES
dimento da grande Revolução Russa. Esse grande verdade, classista. Assim, o revolucionário russo traz Uma experiência de realidade virtual feita
acontecimento dá a tônica dos embates que per- as ideologias ao seu devido lugar e solo social: em pela equipe do jornal inglês Guardian, que
meiam o livro e a época do autor. meio aos embates sobre a Revolução Russa e seus tenta reproduzir o ponto de vista de um bebê
É patente nos posicionamentos leninianos, ao rumos, tem-se uma real demonstração sobre o que recém-nascido. É uma narrativa imersiva
mesmo tempo, vigor revolucionário e rigor analítico. significa uma verdadeira batalha das ideias, que, cla- para mostrar o desenvolvimento da visão, da
Isso aparece de modo claro, por exemplo, quando ro, remete aos embates de uma época e às classes audição e motor. Lentamente, quem assis-
o autor russo entra em um firme embate com Karl sociais que a caracterizam de modo mais marcante. te percebe mais cores, mais tons, objetos,
Kautsky, principal expoente da II Internacional. Por percepção de profundidade, sempre com o
muito tempo considerado um grande marxista or- [Vitor Bartoletti Sartori] Doutor em Filosofia do olhar na altura onde estaria o bebê – chão,
todoxo e um legítimo herdeiro teórico de Marx e de Direito pela USP e professor da Faculdade de Direi- colo, cadeirão. A “viagem” é narrada pelo
Engels, Kautsky é criticado em A revolução proletá- to e Ciências do Estado da UFMG. Trata de temas professor Charles Nelson, doutor em Pedia-
ria e o renegado Kautsky. O autor de Democracia e relacionados à filosofia marxista e à crítica marxista tria em Harvard. O projeto também inclui um
luta de classes ataca a concepção jurídica, forma- ao Direito podcast sobre a visão na infância e a rela-
ção desse desenvolvimento com nossa cog-
nição, e um artigo sobre o Sussex Baby Lab,
escola de psicologia que estuda o desenvol-
vimento da visão em bebês e crianças.
mentos centrais do Estado de direito e fragilizaram <https://bit.ly/visaoebebes>
a democracia no país, bem como a transição de
uma situação na qual os brasileiros estavam rela- SAPATOS DESAMARRADOS
tivamente satisfeitos com nossa democracia e em Aparentemente é apenas um site que ven-
pouco tempo se viram em uma situação de crise de sapatos para homens e mulheres. O de-
institucional generalizada –, o autor lança mão de sign de site de vendas, no entanto, é uma
O PÊNDULO conceitualizações desenvolvidas por autores clássi- reportagem sobre a história de Evie Ruddy
DA DEMOCRACIA cos das Ciências Humanas, como Hannah Arendt, e suas questões pessoais sobre gênero.
Leonardo Avritzer, Jürgen Habermas, Pierre Bourdieu, Max Weber e Adultx agora, passou a usar pronomes e
Todavia Sérgio Buarque de Holanda. Mas também recor- formas desconectadas do masculino ou do
re criticamente a autores que se debruçam sobre feminino para se referir a si mesmx (e aqui

E sse livro supera as habituais interpretações cau-


sais, criticadas pelo filósofo Friedrich Nietzsche
(1844-1900), nas quais as relações de consequên-
questões políticas mais recentes, como Steven Le-
vitsky e Daniel Ziblatt, André Singer e Jessé Souza,
de quem há discordância quanto ao papel estrutural
uso o “x” em lugar de “o” ou “a”, outra forma
que se popularizou no Brasil quando se trata
de não determinar o gênero das palavras). A
cia são comumente explicadas por justificativas es- da classe média no apoio a pautas conservadoras. indústria de sapatos (e da moda, em geral)
colhidas e fáceis em que se excluem como causa o Apesar de o livro ter sido publicado no calor do é altamente separada em caixas de mascu-
estranho, o novo e o não experimentado. Em con- momento e sua análise ir até maio de 2019, é notá- lino e feminino. O site é uma proposta para
traposição, Leonardo Avritzer circunscreve a eleição vel a profundidade da discussão, reflexo de anos de entender a vida de Ruddy, ao mesmo tempo
de Jair Bolsonaro em um espectro maior de tempo estudos sobre a conjuntura brasileira. Impressiona, que questionamos esses limites da moda.
e, a partir daí, coloca-o num movimento histórico de por outro lado, a identificação do interesse circuns- <www.untied.shoes>
pêndulo democrático em que ora há forte otimismo tancial de parte da sociedade brasileira em Bolsona-
e períodos democratizantes (1946-1954 e 1985- ro, que, no fim das contas, torna-se pequeno diante [Andre Deak] Diretor do Liquid Media
2014), ora oscilação na direção da contrademocra- de um problema maior para nós, brasileiros: o for- Lab, professor de Jornalismo e Cinema na
cia (2014-2018). talecimento da democracia por uma longa duração. ESPM, mestre em Teoria da Comunicação
Ao buscar compreender as regressões da demo- pela ECA-USP e doutorando em Design
cracia brasileira a partir de 2013 – questionando [João Lorandi Demarchi] Historiador e mestrando na FAU-USP.
como entender as mudanças que abalaram os ele- em Geografia pela FFLCH-USP.
ABRIL 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 39

CANAL DIRETO SUMÁRIO


LE MONDE

diplomatique
BRASIL

Contra a pandemia, ecologia


Ano 13 – Número 153 – Abril 2020
Excelente artigo! O melhor que li até agora! www.diplomatique.org.br
Mariana Reis, via Instagram
DIRETORIA
Diretor da edição brasileira e editor-chefe
Silvio Caccia Bava
Editorial: Desigualdade Diretores

Sensacional! Para quem tem senso crítico,


02 Preparando-se para o pós-crise
Desde já
Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e
Rubens Naves
essa é a melhor revista que circula no Brasil Por Serge Halimi
Editor
atualmente! Luís Brasilino
Thiago M., via Instagram 04 Editorial
A polícia política Editora-web
Por Silvio Caccia Bava Bianca Pyl

06 Cobertura especial – Coronavírus Editor de Arte


Cesar Habert Paciornik
Até o próximo fim do mundo...
Além das matérias fantásticas, os cartunis-
Por Renaud Lambert e Pierre Rimbert Estagiária
tas mostram seus talentos. Parabéns pela Gabriela Bonin
excelência no material! Uma mina de ouro para os laboratórios Revisão
Luís Gustavo Bruzdzensky, via Instagram Por Quentin Ravelli Lara Milani e Maitê Ribeiro

Gestão Administrativa e Financeira


A tentação de recorrer ao “inevitável” Arlete Martins
Por Théo Bourgeron Assinaturas
A mídia em guerra contra Bernie Sanders assinaturas@diplomatique.org.br
Sempre a mídia escolhendo “democratica- Por trás dos muros da “fábrica de encomendas”
Tradutores desta edição
mente” seus candidatos. Por Jean-Baptiste Malet Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira,
Luzia Oréfice, via Facebook Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant
Austeridade, a grande ceifadora
Conselho Editorial
Por Michael Marmot Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles
Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius
Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor
Viralização e confinamento
Governar pelo ódio Por Denis Duclos
Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S.
Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau
Imperdível é o artigo do Christian Dunker Dowbor, Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki,
nesta edição : “Diário do ano da peste”. O combate ao coronavírus nas favelas
Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião
Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles.
Recomendo a leitura! Por Renato Balbim
Marcelo De Luca Marzochi, via Facebook Assessoria Jurídica
Rubens Naves, Santos Jr. Advogados
Coronavírus e a “volta às aulas”
Por Salomão Ximenes e Fernando Cássio Escritório Comercial Brasília
Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior

20 A maior transnacional latino-americana Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110 – jh@marketing10.com.br


A economia de Francisco – Programa Le vendida em fatias Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação
Monde Diplomatique #36 Petrobras, privatização em águas profundas da associação Palavra Livre, em parceria com o
É evidente que esse sistema sempre foi Por Anne Vigna Instituto Pólis.

insustentável, é só observarmos quantas Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque


crises tivemos nos últimos dois séculos, e 22 Um acordo de paz que não é um acordo de paz
Debandada norte-americana no Afeganistão
São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil – Tel.: 55 11 2174-2005
diplomatique@diplomatique.org.br
estas sempre punem os mais pobres, rou- Por Georges Lefeuvre www.diplomatique.org.br
bando-lhes inclusive a vida. Assinaturas: Leila Alves
Eudoxio Sales, via YouTube 24 Contra o populismo e o fascismo neoliberal
Fortalecer a resistência
assinaturas@diplomatique.org.br
Tel.: 55 11 2174-2015
e mobilizar para a ação coletiva
Impressão
Por Henry A. Giroux e Gustavo O. Figueiredo Plural Indústria Gráfica Ltda.
Av. Marcos Penteado de Ulhôa
Muito bom, esse programa é excelente!
Parabéns à TV PUC, TVT e Le Monde Diplo-
26 Filipinas
Autonomia enganosa em Bangsamoro
Rodrigues, 700 – Santana de Parnaíba/SP – 06543-001

MISTO
matique Brasil! Por Philippe Revelli, enviado especial
Igor Rocha, via YouTube O futuro sorri para o Estado Islâmico
Por Antoine Hasday e Nicolas
Quénel, enviados especiais
Distribuição nacional

Participe de Le Monde Diplomati-


30 65 anos após a libertação
do campo de concentração
DINAP – Distribuidora Nacional de Publicações Ltda.
Av. Dr. Kenkiti Shimomoto, 1678 – Jd. Belmonte –
Osasco/SP – 06045-390 – Tel .: 11. 3789-1624
que Brasil: envie suas críticas e Em Buchenwald, antifascistas
perderam a batalha da memória
sugestões para diplomatique@ Por Sonia Combe
LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA)

diplomatique.org.br As cartas são Fundador

32
Hubert BEUVE-MÉRY
Alemanha procura recuperar
publicadas por ordem de recebi- seu prestígio perdido Presidente, Diretor da Publicação
mento e, se necessário, resumidas As singulares relações germano-israelenses Serge HALIMI

para a publicação. Por Daniel Marwecki Redator-Chefe


Philippe DESCAMPS

Os artigos assinados refletem o


34 Instituições francesas
A V República em coma político
Diretora de Relações e das Edições Internacionais
Anne-Cécile ROBERT

ponto de vista de seus autores. E Por André Bellon e Anne-Cécile Robert Le Monde diplomatique
1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France
não, necessariamente, a opinião da 36 Um desprezo intocado 40 anos secretariat@monde-diplomatique.fr
www.monde-diplomatique.fr
coordenação do periódico. após a morte do filósofo
A recusa de Sartre Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava
Por Anne Mathieu com 37 edições internacionais em 20 línguas:
32 edições impressas e 5 eletrônicas.

Capa: © Rafael Coutinho


38 Miscelânia ISSN: 1981-7525
Entrevistas com:

Mariana Vieira Galuch Natalia Timerman Camila Rocha


Lidiane Soares Rodrigues Edson Teles Grazielle Albuquerque
Eliete Barbosa Natália Neris Ludmila Costhek Abilio
Maria Rita Kehl Gabriel Ferreira Zacarias Vinicius Valle
Juliano Medeiros Weber Lopes Goés Julián Fuks
Deivison Nkosi Suely Rolnik Danielle Tega
Leonardo Sakamoto Eduardo Reina Eliza Capai
Daniel Hirata Maíra Marcondes Moreira Alexandre Fuccille
Marina Yukawa Sergio Haddad Claudia Rosalina Adão
Rodolfo Vianna Joana Barros e Gustavo Prieto Renata Souza
Ricardo Abramovay Natasha Neri Anne Rammi e Monica Seixas
Patrícia Maeda Fabio Luis Barbosa dos Santos Henrique Carneiro
Helena Silvestre Carlos Rittl Thiago B. Mendonça
Larissa Pelúcio e Richard Eduardo Fagnani Marcia Tiburi
Miskolci Bianca Santana Rogério de Campos
Raquel Rolnik José Paulo Guedes Pinto Fábio Mallart
Daniel Santini Sávio Cavalcante Ladislau Dowbor
Armando Boito Álvaro Borba e Katia Maia Rosana Pinheiro-Machado
Ana Lesnovski Renan Quinalha Luciana Zaffalon
Daniela Alarcon e Glicéria Leda Paulani Jessé Souza
Tupinambá Ricardo Antunes Henrique Costa
Gabriel Feltran Sabrina Fernandes Esther Solano
Paulo Nogueira Batista Jr. Ana P. Corti e Fernando Cássio

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