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AMO-TE ON-LINE

Cristina Flora
Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança
De imenso amor, de esperança louca

Alexandre O’Neill

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Para a Filipa e para o Rui

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Ao acordar, o gesso no pé fá-la recordar a queda da véspera. “Malditos passeios”,
balbucia para os lençóis. “Ai, que raiva!” Desta vez, o grito e o soco na almofada
despertam Cassandra, e a gata acaba por saltar para o tapete.
Tenta erguer-se com bastante dificuldade, procurando com o olhar a canadiana caída no
chão, por entre o caos do seu quarto cor-de-rosa. Os cortinados, as almofadas, os quadros,
os candeeiros, o computador, o telefone, tudo era róseo. E o império de tal tonalidade
prolongava-se até à casa de banho, onde cortina, escovas, saboneteiras, loiças e todos os
demais acessórios não fugiam à cor. Sorriu satisfeita. Era essencial que tudo,
absolutamente tudo, fosse rosa.
- Bom dia, Cassandra – saúda-a em voz alta, agarrando-a contra a sua vontade e
cobrindo-a de beijos. – Já são sete horas! O tempo passa depressa, não é, minha linda?
Vamos ajudar a dona a tomar banho, sim?
De novo, a gata procura escapulir-se, desta vez, para debaixo da cama. Rindo com a
reacção do felino, Joana segue até ao chuveiro. Odeia a sua súbita falta de mobilidade,
mas já está mentalizada para, durante dois meses, usar saltos rasos…
Enquanto a água corre e enche a banheira, liga a aparelhagem e introduz o CD que
reproduz a mesma música, gravada vezes sem conta. O som dos Aerosmith mistura-se
com o vapor do banho: Pink, it's my new obsession / Pink, it's not even a
question / Pink, on the lips of your lover (oh) / 'Cause Pink is the love
you discover / Pink, as the bing on your cherry / Pink, 'cause you are so
very / Pink, it's the color of passion / Ah, 'cause today it just goes with
the fashion.
Quando, por fim, relaxa na água quente, alçando a perna para fora da banheira, Joana
pensa na montanha de trabalho que a espera. Felizmente, pode fazer tudo através do
computador. Vai ter de rever uma quantidade de papelada e introduzir as mudanças
esperadas pelo director da empresa. Mas, pelo menos, iria trabalhar na tranquilidade do
ambiente caseiro. Eles, depois, que se entendessem nas reuniões, para as quais sentia ter
cada vez menos paciência… Há muito que os outros a aborreciam por somente existirem.
Estaria a ficar uma solitária convicta? Teria de começar a combater a sua natureza
selvagem. Viver sozinha só tinha servido para infernizar a vida a uma gata inocente. Mas
o problema não era só dela. Não diziam que a solidão se apresentava como a doença do
séc. XXI? “Antes só, do que mal acompanhada”, pensa, esticando o braço na direcção da
gilette.
Porém, aos trinta anos, a vida devia ser mais animada. Não se podia queixar em termos
de trabalho, o qual, graças à sua massa cinzenta e bela aparência, nunca tinha escasseado.
Já os homens eram um assunto diferente. Um punhado de namorados fora o suficiente
para que refinasse o seu cinismo e amargura. As pessoas queriam-se e traíam-se com a
facilidade de um voltear de páginas. O problema não era a ausência de sexo, mas antes a
falta de um projecto em comum, uma vida traçada a dois. As relações humanas
ofereciam-se tão descartáveis como as lentes de contacto que usava.
Hidratada e envolta num robe turco, regressa ao quarto para passar a meia hora do
costume a contemplar um guarda-roupa cheio de peças, desesperando com o facto de
achar que nada tem para vestir. Os conjuntos alinhados não lhe despertam qualquer ideia,
embora seja criativa por profissão. Mas estar em casa e vestir o quê? Nem sequer
esperava visitas. Não se iria pavonear com um look de executiva na sua nova e patética
situação de manca.

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Suspirando, acaba por optar por uns velhos jeans e uma camisola de lã confortável.
Depois, por mera rotina, maquilha-se. “Estúpidos hábitos, mas nunca se sabe se o vizinho
nos vem bater à porta e pedir um pacote de leite emprestado, ou assim”, e o vizinho até
era um pedaço. Custava-lhe perceber como é que ele tinha acabado com uma mulher tão
roliça como a dele, mas homens giros e “cegos” constavam da lista de raridades
masculinas que nunca tinha provado.
Sentindo-se airosa dos tornozelos para cima, Joana decide aquecer um café antes de ligar
o computador. Gosta de ter posicionado a secretária junto daquela janela ampla. Pelo
menos, iluminação não lhe falta e, a vista de uma avenida sulcada de prédios, conseguia
ser atraente à noite, como se vivesse num mundo de néons.
A primeira coisa que faz é ver o correio electrónico. Como esperava, lá estava mais um
pedido do director apelando para a sua imaginação. Afinal, quantos grafismos novos
queria ele? Mas entre o monte de lixo que recebera, um e-mail de uma amiga fê-la sorrir.
Seria possível que Inês estivesse assim tão extasiada com os amigos virtuais que somara
ao longo das últimas semanas? A mensagem era também um convite para ela aderir ao
programa que prometia amizades além-fronteiras. Pareceu-lhe um disparate mas aceitou
entrar na página dela.
Para sua surpresa gostou da apresentação da coisa. As pessoas preenchiam um pequeno
formulário que pretendia dá-las a conhecer aos outros e podiam acrescentar fotografias
para compor o cartão de visita. Por curiosidade, começou a escrever. Nome: Joana Lima.
Profissão: directora criativa. Idade: 32 anos. Localidade: Lisboa. Filme preferido: “Não te
Mexas”, de Sergio Castelitto. Música preferida: “In the End”, dos Linkin Park.
Passatempos: Jogar ténis e montar a cavalo. Expressão popular preferida: A vida não é
um mar de rosas. Opção sexual: heterossexual. Altura: 1,75 metros. Peso: 65 quilos.
Número de soutien, em caso de ser mulher: 38. Cigarros fumados por dia, em caso de ser
fumador: 20. O maior desejo: ganhar uma fortuna e ir viver para o estrangeiro. Melhor
acção praticada: um salvamento numa praia. Qualidades num amigo: ser colorido. Frase
inesquecível: “Às vezes, sinto que não tenho cabeça” dita por um ex-namorado, ao
mesmo tempo em que, pela primeira e única vez, ela o vira chorar. Animais de estimação:
uma gata, que dá pelo nome de Cassandra. Escolha uma das três opções por que aderiu ao
Real Spiders: a) engatar homens; b) engatar mulheres; c) deambular ao acaso.
Joana ri-se. Escolhe a terceira opção – ciente de que essa é a que deve ser o verdadeiro
engatómetro – e selecciona, do seu álbum digital, três fotografias que a favorecem. Na
primeira está sentada em cima de um elefante, na Índia, na segunda, aparece em biquíni
numa praia sul-americana e, na terceira, uma mais antiga, de estúdio, posa a preto e
branco para um fotógrafo profissional.
Com a página feita, admira-se com as centenas de visitantes que já foram vasculhar a
virtualidade de Inês e interroga-se sobre o que o destino lhe reservará. Mas depressa
esquece a brincadeira e dedica-se a imaginar e a planear enquadramentos gráficos de
imagens e textos, de forma a tornar apelativas as novas páginas das velhas revistas.
Também as publicações têm de arejar para não saturarem os leitores, embora haja sempre
os descontentes que só idolatram o modelo antigo, chegando mesmo a suspenderem a
assinatura, inconformados com o novo visual.
Ciente de todos os riscos e possibilidades, Joana arregaça as mangas e lança-se ao
trabalho, o qual só interromperá para alimentar e acarinhar Cassandra.

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***

Após uma semana, algumas noções muito concretas daquilo que é preciso para vender o
produto já estão delineadas na mente e no papel. As imagens serão mais importantes do
que o texto, terão todo o espaço que merecem. Os estudos de mercado indicam que só
uma percentagem mínima de leitores se interessa pela prosa e a revista é para todos os
outros: aqueles que se estão a marimbar para as palavras, sonhando com os destinos
propostos através de um pôr-do-sol num cenário exótico, de uma praia de areias brancas e
águas verdes, ou de lojas e cafés trendy numa qualquer cidade cosmopolita.
Quando Joana decide enviar um e-mail a apaziguar a ansiedade do director, repara num
novo convite de alguém que pretende ser seu amigo virtual. A celeridade destes contactos
não deixa de a surpreender. Ultimamente, rejeitara uns tantos por não gostar das
fotografias e de algumas respostas inoportunas no já referido questionário de
apresentação. Mas esta foto é diferente e também ela a devora com interesse. Trata-se,
obviamente, de um soberbo exemplar masculino, o que logo lhe desperta a dúvida da
veracidade da mesma. Curiosa, visita a página dele, antes de tomar qualquer decisão. O
rapaz tem um blogue e, de novo, se admira com ele. “Bonito e poeta”, pensa, divertida.
“Que verdade haverá em tudo isto?”
O galã apresenta-se com o nome de Camões e legendou a sua foto com um verso célebre:
“Erros meus/ má fortuna/ amor ardente.” Uma legendagem interessante para quem se
apresenta num nu artístico, ocultando as ditas partes pudibundas. “Vê-se bem como é de
uma constituição deliciosa e ausente de pêlos”, aprecia. O rosto, de perfil, não podia ser
mais sedutor. “Só pode ser um modelo” reflecte, ampliando a imagem. “Ou pior: um
modelo homossexual, com a minha sorte”, lamenta-se, antes do tempo. “E isto, se a
fotografia for mesmo dele”, duvida, uma vez mais.
No entanto, sente-se incapaz de o rejeitar. Não só o aceita, como lhe envia uma
mensagem: “Os erros e a fortuna sobejaram/ que para mim bastava amor somente.”
Depois, sorri satisfeita com a retaliação. As pedras estavam lançadas. Logo se veria a
habilidade dele. E nessa noite, o gesso no pé, já não a maçou tanto.

***

“Um poeta gosta que o compreendam! E eu gostei! Deixo-te o meu e-mail. Beijos.” Joana
sorri com a mensagem e, por sua vez, passa-lhe também o e-mail dela. “Não tenho nada a
perder. Talvez só a ganhar”, pensa, mordendo os lábios ao ver pela enésima vez a
fotografia dele.
Mais inspirada, prossegue com o trabalho. Mas nessa mesma tarde verifica, com agrado,
que ele já lhe respondeu para o seu correio electrónico: “Este poeta gostava de falar
contigo” era a frase que acompanhava o convite para o MSN Messenger. “Hum… Este
rapaz é muito afoito”, constata divertida e, sem pensar duas vezes, movida pela eterna
atracção física entre os sexos, adiciona-o à lista e decide manter o programa aberto pela
tarde fora.
Já estava quase a fechar o computador quando ele entra nessa dimensão estranha de fios e
cabos ópticos:

Camões diz:

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Olá!
Joana diz:
Olá! Como estás?
Camões diz:
Bem. E tu? Que fazes?
Joana diz:
Trabalho. Mas estou em casa.
Camões diz:
Trabalhas em quê?
Joana diz:
Num projecto gráfico. Vi o teu blogue. Parabéns.
Camões diz:
E gostaste?
Joana diz:
Muito.
Camões diz:
Também gostas de poesia?
Joana diz:
Prefiro os poetas. Como tu. És mesmo o da foto?
Camões diz:
Tens câmara?
Joana diz:
Tenho.

Camões está a convidá-la para iniciar envio de imagens da câmara Web. Pretende aceitar
(Alt+C) ou recusar (Alt+D) o convite?

Aceitou o convite para iniciar envio de imagens da câmara Web.

Joana diz:
Já aceitei. Estás a ver-me?
Camões diz:
Perfeitamente.
Joana diz:
Também te quero ver.
Camões diz:
Deixa-me verificar se a secretária já saiu.
Joana diz:
OK.
Camões diz:
Ela ainda está cá, mas vou tentar.
Joana diz:
Força!!!

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Camões está a convidá-la para iniciar visualização de imagens de câmara Web. Pretende
aceitar (Alt+C) ou recusar (Alt+D) o convite?

Aceitou o convite para iniciar visualização de imagens de câmara Web.

Camões diz:
Gostas do ângulo?
Joana diz:
Gosto de ver que és mesmo o rapaz da foto e que não aldrabaste o perfil 
Camões diz:
Essa imagem já tem uns três anos. É de estúdio. Tu também tens uma.
Joana diz:
Gostaste da minha?
Camões diz:
Este poeta só fala com senhoras belas 
Joana diz:
Tens mais de 300 amigas na tua página…
Camões diz:
São virtuais…
Joana diz:
Fico feliz por seres genuíno! A sério! Pensei que fosse foto de um modelo…
Camões diz:
Estavas à espera de encontrar um pescador desdentado…  Que idade tens?
Joana diz:
Trinta e dois. Não leste o questionário da minha página?
Camões diz:
Li, claro, mas é que pareces mais nova. 25/26.
Joana diz:
Obrigada. Dizem-me sempre isso. Principalmente, quando ouvem a minha voz. É bom
por um lado e, por outro, nem por isso. Acabo por nunca ser levada muito a sério…
Camões diz:
Uma miúda nova e gira como tu também não deveria querer levar tudo tão a sério…
Não achas?
Joana diz:
Sim, mas, às vezes, é preciso.
Camões diz:
E então? O que faz a senhora gráfica?
Joana diz:
Sou directora criativa. Pagam-me para ter ideias.
Camões diz:
E trabalhas em casa?
Joana diz:
Não. Parti o pé. Está engessado. Olha, vou mostrar-to.

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E Joana levanta a perna frente à câmara, controlando a imagem através da sua pequena
janela, igualmente aberta no monitor. Porém, no meio da acção, desequilibra-se e quase
cai. É a rir que retoma a conversa.

Camões diz:
Tens um sorriso muito bonito.
Joana diz:
E tu és muito atraente. És poeta?
Camões diz:
Não. Só nas horas vagas. Sou licenciado em Economia e trabalho numa correctora.
Joana diz:
Ligada a algum banco?
Camões diz:
Sim. Interessa-te o mundo financeiro, é?
Joana diz:
Não! Pouco percebo de contas e de investimentos. Sou mais dada a despesas 
Camões diz:
É típico…
Joana diz:
Menos usual é um jovem yuppie dedicar-se à poesia…
Camões diz:
É um escape. E já publiquei, sabes? O último livro saiu há dois meses. Chama-se
“Asas Quase Partidas”.
Joana diz:
Que título tão curioso… 
Camões diz:
Tem a ver com a nossa teimosia de recomeçarmos sempre e sempre 
Joana diz:
E assinas com que nome?
Camões diz:
Tomás Stockley.
Joana diz:
A sério?
Camões diz:
A sério.
Joana diz:
Mas esse é mesmo o teu nome?
Camões diz:
Sim. A minha mãe é inglesa. Mas eu nasci cá. E tu?
Joana diz:
Sou alfacinha 
Camões diz:
Não te queres levantar… e dar uma voltinha para mim?
Joana diz:
E depois… fazes o mesmo?
Camões diz:

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Estou a trabalhar. E se entra alguém?
Joana diz:
Tem de ser troca por troca. Senão nada feito.
Camões diz:
Está bem. Vou apontar a câmara para a porta e vou até lá. Queres que vista o blazer?
Joana diz:
Sim, para te apreciar de fato completo 

Joana observa-o, enquanto ele se ergue da cadeira e muda o ângulo da câmara. Primeiro,
esta foca a porta e, depois, o rapaz dirige-se para lá e volteia-se pouco à vontade.

Camões diz:
Agora tu.
Joana diz:
Podias ter sido mais lento, mas está bem. Vou tentar dar o meu melhor, só que o fio da
câmara é muito curto.

Joana levanta-se e tenta, com a câmara na mão, dar uma perspectiva geral do seu corpo.
Apesar da camisola de lã e dos jeans sabe que tem uma silhueta apetecível, uma vez que
é dada a uma alimentação saudável e a exercício físico mais ou menos regular.

Joana diz:
Gostaste?
Camões diz:
Adorei 
Joana diz:
Pedes logo, assim, que dêem uma voltinha para ti? És atrevido…
Camões diz:
E tu mostras logo uma panorâmica do teu corpo?
Joana diz:
Foi a pedido…
Camões diz:
És muito obediente… Sim, senhor.
Joana diz:
E que mais mordomias tens?
Camões diz:
Um gabinete só para mim e uma secretária que me mima 
Joana diz:
Tratas-te bem.
Camões diz:
Sim. Preciso de concentração. Tenho de acompanhar muita coisa. Mas és muito mais
interessante do que os índices e gráficos que tenho por aqui. Acredita.
Joana diz:
Gosto de o ser… para ti…
Camões diz:
Mostra-me mais qualquer coisa 

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Joana diz:
O que é que queres ver?
Camões diz:
Da lindeza vossa, dama, quem a vê, impossível é que guardar-se possa. Se faz tanta
mossa ver-vos, quem se guardaria?
Joana diz:
Isso é Camões?
Camões diz:
Sou eu, pois! A pedir para te mostrares…
Joana diz:
És muito físico… Fala-me ao coração, ó poeta!
Camões diz:
Isso é um desafio?
Joana diz:
Vocês funcionam por motes, não é?
Camões diz:
Eu funciono pelo que vejo e me agrada. Por ânsias e pasiones minhas.
Joana diz:
E eu sou uma ânsia ou uma paixão?
Camões diz:
És desejo. Sem dúvida.
Joana diz:
Ena! Muito directo 
Camões diz:
Não tens calor com essa camisola?
Joana diz:
Parece-me que já me despes com o olhar… Assim, quando te afastas mais do monitor.
Vejo-te muito concentrado e, ao mesmo tempo, sexy 
Camões diz:
És provocadora e esquiva. Adoro o contraste.
Joana diz:
E eu acho-te giríssimo mas tenho de ir 
Camões diz:
Já vais?
Joana diz:
Sim, o dever chama por mim.
Camões diz:
E deixas-me sem ver o teu corpo?
Joana diz:
É assim tão importante?
Camões diz:
Já que a tanto tormento não se acha quem resista, eu, senhora, me contento, de terdes
meu sofrimento por alvo de vossa vista…
Joana diz:
Vá, não quero que sofras. Fazemos assim: se amanhã adivinhares a cor da minha
lingerie, eu mostro-ta. Que tal?

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Camões diz:
Não podemos reduzir as hipóteses das cores?
Joana diz:
Vou dar-te um 50/50. Será vermelha ou preta.
Camões diz:
Não é uma mistura das duas?
Joana diz:
Não. Ou é uma, ou é outra.
Camões diz:
OK. Prepara-te para cumprires a promessa.
Joana diz:
E tu prepara-te para adivinhar. Só a resposta certa dá direito a brinde 
Camões diz:
Nós, os poetas, somos ajudados pelas musas. Não te preocupes.
Joana diz:
Então, até amanhã. Besitos.
Camões diz:
Beijos… e sede piedosa. Amanhã, não te quero por rigorosa.

E Joana sai do Messenger tão satisfeita como a gata Cassandra, quando se enrosca no
colo dela a ronronar. Depois, parece hesitar mas acaba por telefonar a Inês. Pede-lhe para
ela passar numa livraria e trazer-lhe um livro de poesia intitulado “Asas Quase Partidas”,
da autoria de um Tomás Stockley.

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Joana diz:
Bem, não sabes…
Joana diz:
A alegria que me deste…
Joana diz:
Quando a minha amiga me trouxe da livraria
Joana diz:
O teu livro!!!
Camões diz:
Gostaste?
Joana diz:
Não me tinhas dito que era poesia erótica…
Camões diz:
Sou muito dado à sensualidade.
Joana diz:
Nisso somos parecidos.
Camões diz:
Não te esqueças da promessa de ONTEM.
Joana diz:
Desagrada-te olhar para o meu rosto?
Camões diz:
Adoro! Desde que teus olhos vi que yo ni como, ni bebo, ni hago vida sin ti.
Joana diz:
É apanágio dos poetas tanto exagero?
Camões diz:
Não é exagero, pois por vós me perdi, e neste estado Amor me pôs.
Joana diz:
Amor é uma palavra forte…
Camões diz:
Seja desejo, então. Olha, e quanto à tua lingerie…É mesmo só uma das duas cores, não
é?
Joana diz:
Já te disse que sim. Ou é preta, ou vermelha. Concentra-te bem!
Camões diz:
OK. É vermelha.
Camões diz:
Acertei?
Joana diz:
Como é que adivinhaste?
Camões diz:
Pacto com as musas 
Joana diz:
O prometido é devido.
Camões diz:
Mas devagar. Com gestos lentos.

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Joana prepara um ângulo e dirige-se até à parede. Com muita calma, abre o botão e o
fecho de umas calças pretas de cabedal. O vermelho vivo da lingerie sobressai como uma
labareda. Ondula as ancas e puxa a camisola preta – debruada a pele de coelho nas
mangas e decote –, para cima, exibindo o soutien. Depois, veste-se e regressa ao teclado.

Joana diz:
Gostaste?
Camões diz:
És um doce.
Camões diz:
Deixa-me tirar o casaco que já fiquei cheio de calor.
Joana diz:
É bom começar assim o dia, não é?
Camões diz:
O melhor motivo para eu entrar neste edifício cinzento.
Joana diz:
Também quero ver qualquer coisa.
Camões diz:
Toda a pessoa discreta, terá, senhora, assentado que um bem muito desejado se há-de
alcançar por dieta pêra ser sempre estimado.
Joana diz:
Que grande lata! Eu saciei a tua curiosidade e tu pões-me a dieta? Quero ver-te!
Camões diz:
Podem entrar no meu gabinete. Tu estás sozinha.
Joana diz:
Usas boxers ou cuecas?
Camões diz:
Não gosto de calções com bonecada.
Joana diz:
Não me digas que tens umas cuecas azul-bebé?
Camões diz:
Não. São azuis escuras. Pronto, vou mostrar-te.

Levanta-se, desaperta o cinto e exibe uns calções curtos e justos, de algodão escuro.

Joana diz:
Ah, bom! Esse modelo é bem giro! Pensei que me ias horrorizar com uma tanga.
Camões diz:
E também não faço culturismo 
Joana diz:
Podias fazer-me um poema.
Camões diz:
Quando estiver contigo podes crer que não me vou pôr a compor poesia.
Joana diz:
Ou seja, não te inspiro…
Camões diz:

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Ó, se me inspiras… Anda lá, mostra-te outra vez.
Joana diz:
Mas que guloso…
Camões diz:
Foste muito rápida. E eu quero que sejas virtualmente minha.
Joana diz:
Vou mostrar-te as maminhas.

Perante o ar derretido dele, Joana aproxima-se da câmara e volta a ficar com o soutien e,
depois, sem ele.

Camões diz:
Nunca ninguém me tinha feito isso numa web-cam!
Joana diz:
Para mim, também é uma novidade…
Camões diz:
Só vos posso dizer, senhora, que traçais meu destino com a força da vossa formosura.
Joana diz:
Hum… Receio que contigo seja tudo palavras doces, esperanças longas e recados
falsos.
Camões diz:
Lisonjeias-me, Joana. Bonita resposta… mas receio infundado.
Joana diz:
Ah, sim? E porquê?
Camões diz:
Meus desejos impelem-me a ter-vos nos braços e a dar-vos mil beijos! Céus! Que
corpinho…

Joana tem a imagem da câmara ainda focada nos seus seios. Sente que é ousada, em parte
pela distância física proporcionada pela conversa virtual. Aquele homem atraente, do
outro lado de lá, quase que se lhe afigura irreal…

Camões diz:
És única, sabias? Adoro ver-te.
Joana diz:
Deves pensar que sou louca…
Camões diz:
Não. Penso que és verdadeiramente fantástica. E que vendo-te… eu é que enlouqueço.
Joana diz:
Gosto de falar contigo.
Camões diz:
Eu também. Quanto mais, mais desejo!
Joana diz:
Falar?
Camões diz:
Sim. E a glória do que imagino 

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Joana diz:
E lá está Camões  Vou esperar que acabes esse telefonema.
Camões diz:
Um minuto.

Joana fica a vê-lo, divertida com o ar sério que, de repente, ele assume.

Camões diz:
Que azar! Tenho uma reunião e vou ter de sair.
Joana diz:
Ó! Que pena!
Camões diz:
Continuamos mais logo?
Joana diz:
OK. Beijos e boa reunião.
Camões diz:
Beijos carregados.

Inexplicavelmente, o monitor perde todo o interesse. Ela retoma o trabalho com


curiosidade pelas melhores horas que virão…
Nessa mesma tarde, recebe, por e-mail, um poema dele:

Percorro com os dedos o teclado


E imagino-me a penetrar-te de lado
Envolvo com o olhar o monitor
E sinto-me tão teso, amor.

Deslizo com o rato no tapete


E adivinho como seria comer-te
Esqueço-me que a câmara está ligada
E suponho-te lânguida e molhada.

Vigio os teus olhos escuros e ardentes


Fantasio a minha língua no teu corpo
E divago sobre morder-te os seios quentes

Joana cora, satisfeita. Sente-se envaidecida por um poeta publicado pensar nela e dedicar-
lhe uns versos. Mas o que a queima não é tanto o poema, mas a incrível situação de este
partir de um rapaz que, para além de inteligente e atencioso, tem um corpo divino. E uma
junção dessas sempre lhe parecera impossível na vida real. Se bem que a vida deles, de
um e de outro, ou melhor, o envolvimento de ambos, não fosse uma realidade mas antes
uma virtualidade. Quantos casais existiriam assim, espalhados pelo mundo? Não
estaríamos perante um novo tipo de romance? Sem tabus, os amantes virtuais podiam
dizer e fazer o que lhes passasse pela cabeça, trocar as frases mais tórridas, despir-se sem
preconceitos ou medo, na segurança das suas casas ou escritórios. E em vários idiomas.

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Um francês podia apelar: "Rends-moi fou, mon amour" e, uma latina podia responder-
lhe: "Te quiero todo ahora mismo." Ela podia despir-se para ele e dançar em frente da
câmara. Tocar-se, até… Levá-lo à loucura total. Os dois conheceriam um prazer sem
limites, ausente dos dramas das relações mais convencionais. Afinal, se pensasse bem, o
que é que podia acontecer de pior a dois amantes virtuais? “Um corte de energia que
deitasse a rede abaixo”, equaciona, sorridente. E isso era o menor dos males.
Os olhos dela regressam ao poema. “Como é que se responde a uma coisas destas?”,
pensa, meditativa. “Tenho que manter o nível e, o melhor, é socorrer-me com Neruda”,
lembra-se, em bom tempo. Mais motivada, escreve: Y de esperarte cuando no te espero,
pasa mi corazón del frío al fuego... Besos.
Quando acaba de enviar a resposta, o telemóvel dela toca. O nome de Inês aparece no
pequeno ecrã.
- Então, como é que vai o romance?
- Qual romance? – pergunta, fazendo-se despercebida.
- Deixa de ser sonsa comigo…
- Ele enviou-me um poema.
- A sério? Lê-mo!
- Não posso.
- Começo a desconfiar da existência desse Camões. Nem sequer me deixas ver a
fotografia dele, caramba!
- Adivinha lá porquê – declara, furiosa, ao lembrar-se de Inês ter levado a melhor quando
ambas haviam saído com um fotógrafo de uma das revistas.
- Está bem, não te zangues. E como vai o teu pé?
- Na mesma.
- Queres que passe aí logo à noite?
- Amanhã seria melhor. Mas traz um filme.
- Já viste quase todos. Nunca sei o que escolher para vermos.
- Quero uma comédia romântica.
- Estás apaixonada? Não acredito! Vou gozar-te tanto!
- Como é que me posso apaixonar por uma pessoa virtual, espertinha?
- Não sei. Mas não costumas ser tão misteriosa e, com este, estás muito caladinha…
- Não sejas parva. É só um amigo virtual.
- Claro. Já pensaste que ele pode ser um predador ou um serial-killer? Nunca se sabe
quem anda na net. Até pode ser um pedófilo.
- Sim, claro. Atraído por mulheres na faixa dos trintas.
- Está bem, riscamos a última hipótese.
- Ele trabalha na correctora de um banco. Tem um gabinete espantoso.
- Deve ter um cargo importante, não?
- Acho que é director de qualquer coisa.
- Pois. Mas como tua amiga tenho o dever de te avisar para teres cuidado.
- Sim, claro. Terei e agradeço a tua preocupação.
- Só te levo uma comédia romântica se me leres o poema dele – avisa, mais divertida.
- És tão chantagista, Inês. Mas está bem. Olha, é bom que acertes no filme. Caso
contrário, não há leituras para ninguém. Traz-me uma coisa pirosa e ficas a ver navios.
- Não te preocupes. Beijocas.
- Besitos.

17
***

Camões diz:
Pensei que estivesses off-line, pela hora já tardia.
Joana diz:
Obrigada pelo teu poema!!!
Camões diz:
Não ficaste irritada, pois não? É apenas uma brincadeira. Fantasiamos…
Joana diz:
Claro que não. Gosto de te inspirar.
Camões diz:
Já estás mais avançada no teu trabalho?
Joana diz:
Sim, parece que, de algum modo, ganhei sangue novo 
Camões diz:
Adoro entrar no Messenger e encontrar-te.
Joana diz:
É bom termos quem nos espere. Ainda que num espaço virtual.
Camões diz:
Mas se quiseres podemos alterar isso.
Joana diz:
Tenho o pé partido, remember?
Camões diz:
É verdade!
Joana diz:
Como é que imaginas a minha voz?
Camões diz:
Não sei. E tu?
Joana diz:
Uma voz afectada, à tio.
Camões diz:
Wrong answer.
Joana diz:
E também pensava que fosses homossexual.
Camões diz:
??????????
Joana diz:
Por seres tão bonito e apareceres nu na fotografia 
Camões diz:
Asseguro-te que sou heterossexual. Não gostas que o seja?
Joana diz:
Adoro 
Camões diz:
Mas voltando à voz…
Camões diz:
96 345 89 23

18
Joana diz:

Camões diz:
E o teu?
Joana diz:
E a tua namorada não se importa?
Camões diz:
A pergunta inevitável! E o teu?
Joana diz:
Não tenho namorado.
Camões diz:
Não? Nem um amigo colorido?
Camões diz:
Uma relação?
Camões diz:
Nada?
Joana diz:
Também não sou nenhuma freira…
Camões diz:
Eu tenho uma relação mais ou menos.
Joana diz:
Moi aussi.
Camões diz:
Sinceridade acima de tudo.
Joana diz :
Claro!
Camões diz:
A minha relação é mais para o menos do que para o mais…
Joana diz:
A minha também. Olha, vou deitar-me.
Camões diz:
Ficaste aborrecida?
Joana diz:
Não! Gosto da sinceridade mas estou tremendamente cansada. Beijos.
Camões diz:
Beijos. Até amanhã!

Dois minutos volvidos, Joana envia-lhe um SMS: “Gostei deste preâmbulo antes do meu
sono. Besos.” E dessa forma passou-lhe também e, por sua vez, o número de telemóvel…
A resposta não se fez tardar: “Dorme bem! Mil beijos.”

19
Passaram-se três longos e penosos dias sem que tivesse oportunidade de voltar a falar
com Tomás no Messenger. No entanto, no final de todas as tardes, recebera um SMS
dele. Tivera de viajar para a Suíça, em trabalho, mas enviava-lhe grous bisous.
Respondera-lhe, também por escrito, declarando a espera um exercício exasperante.
Ultimamente, mantinha-se sempre on-line, na esperança de uma eventual comunicação. E
depois, criticava-se a si própria por estar a ficar tão envolvida com alguém que nunca vira
na vida. Pelo menos, da forma habitual como as pessoas se vêem umas às outras.
Dava por si a combinar peças de roupa, a esticar o cabelo, a caprichar na lingerie, como
se tivesse sempre um encontro marcado com um namorado que queria seduzir, e muito.
Cuidar do visual para estar todo o dia sentada frente a um computador, entre quatro
paredes, parecia-lhe o maior dos disparates. Estava quase a desistir de tanto esmero
quando, de súbito, lhe tocaram à porta. Intrigada, uma vez que não esperava ninguém, lá
se arrastou com a ajuda da canadiana.
- Olá! O que é que te aconteceu?!
“Ainda bem que arranjei o cabelo e que tenho vestida esta mini-saia tão sexy. Obrigada,
Deus!”, pensa, devolvendo um sorriso rasgado ao vizinho.
- Olá Ricardo. Como vês, tenho o pé partido, uma maçada. Entra, não faças cerimónia.
- Desculpa incomodar-te. Mas… precisas de alguma coisa? Se quiseres que te vá à rua
comprar algo, diz – sugere, entrando.
- Não, obrigada. Está tudo bem. Isto é, dentro do possível. Bebes um chá comigo?
- Sim, claro. Queres que seja eu a fazê-lo? Só tens que me dizer onde é que está a
chaleira.
- Naquele armário. É eléctrica.
- Temos uma igual. A Marisa não lhe dá grande uso.
“Pudera! Se essa gorducha bebesse mais água talvez conseguisse perder alguma banha”,
pensa, maldosa e irritada pela referência àquela mulher insignificante que, mesmo assim,
pescara um homem de fazer parar o trânsito. Enquanto ela, bela e inteligente, não
conseguia segurar ninguém. Até o poeta andava desaparecido…
- Nunca mais te vi no café. Vim ver se estavas bem mas não contava nada com isto.
Podias ter dito qualquer coisa. Afinal, somos vizinhos e amigos, certo?
- Não quero dar trabalho a ninguém.
“E desde quando é somos, assim, tão amigos? Lá porque eu vos ofereci uns pastéis de
cenoura que fiz em doses industriais”, reflecte, desolada.
- Vejo que continuas a trabalhar – comenta, olhando para o computador ligado.
- Sim, uns projectos de reformulação.
- A Marisa também trabalha imenso, coitada. Não tem sido nada fácil para ela.
- Sempre te despediram da empresa?
- Sim, mas ainda não recebi qualquer subsídio. Odeio estar desempregado. Sinto-me um
parasita, percebes? O que me vale é ela.
“A Marisa isto, a Marisa aquilo, céus! Não haverá mais assunto de conversa?”, divaga,
enquanto retira as chávenas do móvel.
- Deixa-te estar quieta. Aproveita o facto de eu estar aqui.
“Aproveito? Nem sabes como te aproveitava”, calcula, voltando a sorrir, bem disposta.
- Tens razão. Traz as chávenas e vamos para a sala que é mais confortável – concorda.
- Ainda bem que não és daquelas que se servem do conforto da casa para andar em
pijama todo o dia, ou em fato de treino.

20
- Nunca fui, graças a Deus! Acho isso deprimente! A minha mãe ensinou-me a andar
sempre impecável para poder fugir para a rua, em caso de incêndio. Mas também, ela tem
um imaginário muito dado a desgraças…
- Eu só visto o meu quando vou para a cama.
- Fazes bem. O Sr. Alberto vai despejar o lixo dele de pijama…
- É viúvo… Se calhar, sem a Marisa eu também era capaz de perder o tino!
“E lá está a Marisa, outra vez! Mas que mal fiz eu a Deus? Terei sido uma déspota numa
vida anterior? Ou uma espécie de Mata-Hari cruel e abusadora destes pobres
desgraçados? Quantos corações masculinos terei despedaçado sem o mínimo remorso?”,
interroga-se, desesperada.
- Já estou a ouvir a chaleira. É só um minuto.
Quando Ricardo regressa, avisa-a:
- O teu computador emitiu um toque.
- A sério? É melhor ir ver. Não me demoro.
“Não! Agora não! Porque é que quando as coisas acontecem têm de ser todas ao mesmo
tempo? Tantas horas à espera e, logo agora”, lamenta-se, espreitando o monitor.

Camões diz:
Enviei-te um toque. Não estás por aí?
Joana diz:
Podes voltar daqui a meia hora?
Camões diz:
OK
Joana diz:
Então, até já! Beijos.

- Desculpa, mas era do trabalho – declara, ao mesmo tempo que pensa que é bom que
Tomás não a julgue sempre ali, à disposição dele.
- Se quiseres, volto noutra altura.
- Não, deixa-te estar. Há tempo.
Ricardo encosta-se no sofá e os olhos dele passeiam pelas estantes.
- Gostas mesmo de ler – comenta, admirado.
- E tu?
- Prefiro ensaios e coisas mais técnicas.
- Também acreditas que o romance literário morreu?
- Não! – exclama, a rir. – Isso é a teoria de alguns intelectuais que, de vez em quando,
gostam de lançar achas para a fogueira. O que lamento é a morte de autores
extraordinários.
- Ainda bem que pensas assim. E então? Já enviaste o teu currículo?
- Montanhas.
- E nada?
- Até agora, zero. Com a crise e tal. É de prever…
- Mas não desanimes.
- Obrigado.
- Gostas do chá? É de lima.
- Muito bom. Tenho de dizer à Marisa para o comprar.

21
“Pronto, é agora! Não aguento mais! Calma. Respira fundo. Conta até dez, fixa o sorriso
dele, ou o cabelo, ou os ombros largos, ou a forma perfeita como os jeans lhe caem sobre
as ancas. Isso. Relaxa”, obriga-se a si mesma. E fica a ouvi-lo falar dos outros chás que a
mulher compra mas que, antes de serem bebidos, ficam sempre fora do prazo. Ele próprio
prefere café, algo mais forte que o estimule.
Por fim, o rapaz levanta-se:
- Bem, vou deixar-te trabalhar. Qualquer coisa já sabes, conta comigo! – despede-se,
presenteando-a com o mais sublime dos sorrisos.
- Claro. Obrigada.
Assim que Ricardo sai, corre, uma correria não tão veloz como aquela que seria, não
fosse o lamentável estado físico em que se encontra, e mergulha no teclado. “Sou uma
contradição”, pensa. “Quero tanto falar com ele, que até temo o momento.”

Joana diz:
Cheguei!
Camões diz:
Até que enfim! O que andas a fazer?
Joana diz:
Um vizinho melga, com muito mau feitio. Coisas de condomínio.
Camões diz:
Não me fales nisso. No meu prédio ninguém se entende.
Joana diz:
Aqui é a mesma coisa. Não há uma pessoa que se aproveite.
Camões diz:
Exceptuando tu.
Joana diz:

Camões diz:
Vou ligar a câmara.
Joana diz:
Está bem.

E rapidamente passa o batom pelos lábios, ajeita o cabelo e puxa a camisola.

Camões diz:
De gola alta.
Joana diz:
Está imenso frio.
Camões diz:
Fica-te bem. Fizeste alguma coisa ao cabelo?
Joana diz:
Não o encaracolei.
Camões diz:

Joana diz:
Como é que o preferes? Esticado ou encaracolado?

22
Camões diz:
Pela web-cam é difícil. Deixa-me ver…
Camões diz:
Assim. Hoje, prefiro-te assim. Pareces ainda mais miúda.
Joana diz:
Espera até me veres, ao vivo e a cores 
Camões diz:
Isso seria bom. Sem dúvida!
Joana diz:
E a viagem? Correu tudo bem?
Camões diz:
Sim! De vez em quando tenho de lá ir, a convite de clientes nossos.
Joana diz:
Nunca fui. Dizem que é um país muito limpo. E depois, há os fondues…
Camões diz:
És gulosa 
Joana diz:
Pareces cansado…
Camões diz:
Mas, senhora, a minha enfermidade não se cura com descanso…
Joana diz:
Cura-se com quê?
Camões diz:
Com o que os meus olhos vêem. E hoje…estás toda tapada!
Joana diz:
Não te esqueceste de mim durante estes três dias. Gostei que me tivesses enviado
SMS.
Camões diz:
A verdadeira afeição na longa ausência se prova.
Joana diz:
A sério. Não estava nada à espera que justificasses o teu súbito desaparecimento.
Gostei.
Camões diz:
Que nunca se viu prazer, senão quando não se espera… Tiveste saudades?
Joana diz:
Parece disparatado mas… sim, senti a tua falta.
Camões diz:
E eu a tua. Estás de jeans?
Joana diz:
Não. Mini-saia cor-de-rosa.
Camões diz:
Ainda bem! Adoro mini-saias cor-de-rosa!
Joana diz:
Tenho os aquecedores todos ligados para não enregelar.
Camões diz:
Vais despir-te toda para mim? É hoje!!! 

23
Joana diz:
És mesmo tarado…
Camões diz:
Vá lá! Tira, tira, tira!
Joana diz:
Primeiro tu!
Camões diz:
Estou no trabalho. Não posso.
Joana diz:
Temos pena…
Camões diz:
Vou mostrar-te os boxers. Serve?
Joana diz:
OK.

Tomás afasta-se e volta a desapertar o cinto, como já antes fizera, exibindo a roupa
interior e mostrando parte de umas pernas que se adivinham musculadas e firmes. “Dá
vontade de trincar”, pensa Joana, divertida.

Joana diz:
Podias mostrar-me o peito.
Camões diz:
Se desaperto a camisa e entra alguém fico em maus lençóis…
Joana diz:
Please…
Camões diz:
Vou tentar.

Ergue-se de novo e desfaz o nó da gravata, desapertando dois botões da camisa e


mostrando um bocado do peito liso e sem pêlos.

Camões diz:
Corri um grande risco. As coisas que faço por ti!
Joana diz:
Foste tão rápido…
Camões diz:
Bolas! Fiz o que pude!
Joana diz:
Está bem. E então, o que é que queres ver?
Camões diz:
Tudo!
Joana diz:
E se hoje não me despisse?
Camões diz:
Ah, senhora, que me matais! Se vós já nunca me ouvis, ou me ouvis e vos calais, dizei
porque me provocais, se me vós a mim fugis?

24
Joana diz:
Eu não fujo, não. Mas porque é que me queres ver toda nua?
Camões diz:

Joana diz:
Já sei! Pensas que sou um travesti e queres confirmar!
Camões diz:
Sim, é isso.
Joana diz:
Imaginas que seja a mata do Monsanto ou o deserto do Sahara?
Camões diz:
O deserto.
Camões diz:
Acertei?
Joana diz:
Mesmo que tenhas acertado, a resposta correcta não dá direito a brinde 
Camões:
OK. Não insisto.
Joana diz:
Vou mostrar-te apenas a minha lingerie que é muito sexy. De acordo?
Camões diz:
Siimm!
Joana diz:
Os mimos que te dou!
Camões diz:
És uma querida! Pois a vida sem ti não presta nada!
Joana diz:
Achas que quando nos encontrarmos vamos sentir a mesma química?
Joana diz:
E se não gostarmos das vozes um do outro?
Camões diz:
Podemos descobrir isso já. Queres?
Joana diz:
Ligo-te ou ligas-me tu?
Camões diz:
Eu ligo-te.

E ela segue-lhe os gestos, vendo-o segurar no telemóvel e marcar o número dela. Vinha
aí um novo patamar de comunicação, ou de realidade, ou de aproximação. Esperava-o,
divertida e extasiada com o sorriso dele.

- Estou?
- Olá Tomás.
- Olá Joana. Como estás?
- Bem. E tu?
- Então? A minha voz assusta-te?

25
- Não. Parece-me simpática.
- Às vezes, o que parece não é.
- O que queres dizer com isso? É algum aviso, género, as aparências iludem?
Ele ri-se.
- Vou desligar o Messenger – avisa. – Imaginava a tua voz mais grossa. É o que digo:
pareces e soas a uma miúda de vinte anos. Não quero com isto dizer que a tua voz não
seja bonita. Pelo contrário. Agrada-me imenso.
- Obrigada. Porque é que desligaste o Messenger?
- Vou ter de sair. Mas podíamos combinar uma hora para falarmos amanhã. Que tal
depois de almoço?
- Está bem.
- Eu telefono-te ou envio-te uma mensagem. Agora tenho de ir.
- Fica bem, Tomás. Beijinhos.
- Beijos.

“Que diálogo tão rápido”, pensa, entre a decepção da brevidade e a satisfação da


novidade. “A voz dele é o máximo! Uma voz educada, segura, tranquilizadora. E também
viril e sensual! Que voz! Que belo complemento para um corpo de sonho”, congratula-se,
feliz. “Tenho de me acalmar, caramba! Até parece que acabei de ganhar o euromilhões!”

26
- Quero encomendar uma pizza quatro queijos.
- Tamanho? – pergunta a voz do serviço take-away.
- Média.
- Temos uma promoção. Paga uma e pode levar duas.
Joana suspira resignada. De que adianta dizer que não vale a pena, pois ela está sozinha e
não precisa da maldita promoção para nada? Talvez convidasse a amiga para a ajudar a
devorar aquela massa estaladiça.
- Está bem. Pode ser uma Primavera também.
- Quinze minutos e agradecemos que tenha a quantia certa.
- Não há problema. Até já.
Em breve, tanto a pizza como Inês chegam à porta dela, perfumadas e apetitosas. Joana
envaidece-se por ter uma amiga tão bonita, mas ao mesmo tempo teme sempre a
concorrência.
- Então, como é que vai o novo amiguinho? – dispara logo, antes mesmo de lhe espetar
um beijo na cara.
- Apressado e com reuniões diárias.
- Já foste rifada?
- Tira daí a ideia. Este é meu – declara, com uma nítida animosidade.
- Também não estou interessada.
- Já foste ver a fotografia dele à minha página, não foste? Confessa lá.
- Por acaso fui – admite, aliviada por poder expressar a opinião dela. – Ninguém
consegue resistir a um corpo daqueles!
- Não comeces, Inês. Se metes a colherada, és uma mulher morta!
- Está descansada. Jamais te trairia. Ao contrário do que os homens pensam não somos
assim tão cabras umas para as outras.
“Que ideia!”, pensa Joana, que ainda não tinha digerido a derrota com o dito fotógrafo.
- Mas tem cuidado. Afinal, não sabes nada dele.
- Quando estiver boa do pé tenciono encontrar-me com ele. Já tenho o telemóvel, sabias?
- Já vão aí? – pergunta, admirada.
- E já falámos. Ontem, pela primeira vez.
- E então?
- Foi tudo muito rápido. Ele perguntou-me se a voz dele me assustava.
- E assustou-te? Falava achim, ou tinha pronúncia nortenha, ou uma voz cavernosa, como
se estivesse debaixo de uma tumba?
- Céus! Nada disso. A voz dele é muito bonita e bem-educada. Muito masculina e
envolvente.
- Ainda bem! Mas o que disseram mais?
- Pouca coisa. Ele estava com pressa. Combinámos que nos veríamos quando estivesse
totalmente recuperada.
- É muito estranho romper o cenário virtual… – opina, com um olhar vago.
- Já o fizeste?
- Nunca tive coragem.
- Quem não arrisca, não petisca. Vamos ver se é mesmo como dizem.
- Mas quando o vês na web-cam, achas que é o mesmo rapaz da foto maravilha?
- Parece-me que sim. As câmaras adoram-no – completa, deliciada.

27
- Se ele te deu o telemóvel é porque confia em ti.
- Ora, nem mais!
- Mas um homem tão bonito não pode estar sozinho…
- Não sei porquê. Eu sou uma mulher lindíssima e estou sem ninguém.
- Os homens devem andar cegos, minha querida.
- Não. Sou muito permissiva e boazinha. Eles abusam por causa disso. Devia ser uma
safada. Essas têm sorte.
- E quando te encontrares com ele, já sabes onde é que vai ser?
- No café da esquina da rua.
- És maluca? Mesmo ao lado da tua casa?
- O que é que tem? Não lhe vou apontar o meu andar…
- E se não gostares dele?
- Acabo.
- Acabas com uma relação virtual. Isto está bonito, está.
- O lema dele é “sinceridade acima de tudo”. Parece-me bem.
- Ele só deve querer ir para a cama. Deve ser casado.
- Não. Tem uma relação mais ou menos.
- É incrível! Tem uma namorada e está a meter-se contigo!
- Se fosse feliz na relação, “nós” nunca teríamos acontecido…
- Mas porquê ele?
Joana lança-lhe um olhar de gozo:
- Tenho de ampliar a foto para te explicar melhor?
- Pareces um homem. Eles só olham para o físico…
- Mas já te disse que o Tomás é inteligente. Além disso, dá-me imensa atenção. Quando
não pode estar on-line, envia-me sempre um SMS.
- Parece namoro de laboratório. Entras, escolhes um tipo e depois sais com ele.
- E então? É melhor do que conhecer pessoas à noite, a tresandarem a álcool, desinibidas
pelo efeito da bebida.
- Sim, pelo menos está sóbrio e a trabalhar – concorda, a rir.
- O Tomás é especial.
- Tem um nome bonito.
- E gostaste do livro de poesia?
- Adorei!
- Pareces encantada com esta história.
- Correcção: estou encantada.
- Quando é que tiras o gesso?
- Ainda falta. Sabes que o meu vizinho apareceu cá em casa?
- O que é que o Ricardo queria?
- Saber como eu estava. Tão querido… – ironiza.
- Esse também é tão ambíguo.
- É um tarado. Olha-me como se eu fosse a última Coca-Cola no deserto e, depois, passa
a vida a falar na Marisa.
- Está a ver se tu te atiras. Assim, ele fica sem culpas no cartório.
- Deve ser. Pode esperar sentado. Não sou desse tipo.
- Eles ensaiam todas as possibilidades. Simulam ser uma coisa e depois são outra. Por
isso, tem cuidado com esse Tomás. Ele deve ser um engatatão.

28
- Já chega de falar do Tomás! Vais à editora logo à tarde?
- Vou. Queres que leve alguma coisa?
- Sim, leva-me esta pasta ao Alexandre e pede-lhe para ele me ligar.
- Fica descansada.
Apesar da conversa e do prazer da companhia de Inês, Joana sente-se ansiosa com o tal
encontro à hora de almoço que, aparentemente, não irá acontecer…

***

Camões diz:
Desculpa mas só agora consegui um tempo.
Joana diz:
Tudo bem. Muito trabalho?
Camões diz:
Montes de contactos. É agoniante…
Joana diz:
Coragem!!!
Camões diz:
Dá-me um minuto.

Joana observa-o a falar ao telemóvel. Aproveita para calmamente se ir despindo frente à


câmara, provocando-o com gestos sensuais. Quando ele acaba a chamada, o sorriso
mantém-se, a par com os olhos esbugalhados.

Camões diz:
Que surpresa, querida! Juro que não percebi nada do que os gajos queriam! Só dizia:
“sim”, “hum, hum”, “sim.”
Joana diz:
Foi só para animar a chamada.
Camões diz:
Adoro falar ao telefone contigo à minha frente!!! 
Joana diz:
Gosto de mimar quem tanto trabalha…
Camões diz:
E eu hoje até estava de mau humor.
Joana diz:
Por mim, prometo levantar-te…
Joana diz:
O humor!
Camões diz:

Joana diz:
Estou doida para tirar este gesso do pé!
Camões diz:
Imagino…
Joana diz:

29
O que fazes aos fins-de-semana?
Camões diz:
Vou até à quinta de uns amigos descontrair. Fazemos TT.
Joana diz:
Programa de homens. Lama & rodas…
Camões diz:
Estou à espera que a Cinderela tire o sapatinho de gesso, remember?
Joana diz:
E a tua relação mais ou menos?
Camões diz:
E a tua?
Joana diz:
Não estou com ele aos fins-de-semana.
Camões diz:
Não?
Joana diz:
Aposto que vives com a tua relação mais ou menos…
Camões diz:
O que queres que te diga? Que a amo loucamente? Não é verdade. Que a detesto?
Também é mentira.
Joana diz:
Isso, como deves imaginar, desmotiva-me…
Camões diz:
Pois, senhora, a quem vos ama, sois tão desarrazoada. Esquecei-vos da outra dama,
ignorai a namorada.
Camões diz:
Além disso, também me disseste que tinhas alguém…
Joana diz:
É um facto, mas não sou feliz…
Camões diz:
Então, porque estás com ele?
Joana diz:
Porque não sou feita de ferro, sei lá!
Camões diz:
Isso é verdade. És mesmo muito bem feita 
Joana diz:
E ainda não viste um nu integral.
Camões diz:
Ora, aí está uma proposta irrecusável!!!
Joana diz:
Prepara-te então.

Como se estivesse habituada a despir-se desde sempre para uma audiência imaginária, a
rapariga começa a desembaraçar-se de toda a roupa, mostrando peça a peça frente à
câmara. Depois, toda nua, empoleira-se na cadeira e retoma a conversa. Do lado de lá, os
olhos do poeta abrem-se e fecham-se, seduzidos pela nudez de um corpo jovem e

30
harmonioso. Talvez ele nunca acreditasse que ela fosse tão longe. Ela própria parece
alheada aos gestos de sedução que emana, como se entre a mente e o corpo a cisão fosse
total. O corpo era só algo que ele queria ver. A mente era tudo o que ela queria analisar,
na sua sedenta curiosidade pelos outros.

Camões diz:
Estou a transpirar das mãos. Isso não se faz.
Joana diz:
Gostaste?
Camões diz:
Um homem vê mas não pode tocar… Céus! Que aflição! Vivo, senhora, só de
contemplar-vos!
Joana diz:
Com sede?

Tomás bebe de uma garrafa de água, sem tirar os olhos dela:

Camões diz:
Estou com vontade de comer o monitor.
Joana diz:
Fico contente por me desejares tanto…
Camões diz:
E não queres passar para a realidade?
Camões diz:
Ó Bela Ninfa, porque não respondes? Fugis de dar a meus males cabo.
Joana diz:
Meu caro Tomás… És um homem ocupado…
Camões diz:
Não és daquelas pessoas que se satisfazem apenas com a web-cam, ou és?
Joana diz:
Nunca tinha feito isto com ninguém. Despir-me assim, em frente ao computador.
Mas…
Joana diz:
Acredita que prefiro a outra versão…
Camões diz:
Estás a pouca distância de ser minha e sabes isso 
Joana diz:
Por acaso, até não sei. E deixa de ser convencido. Sabes lá a que distância é que eu
estou…
Camões diz:
Caramba! Quero mesmo ir para a cama contigo! Sentir a maciez da pele que adivinho.
Joana diz:
É complicado 
Camões diz:
Pede-me o desejo, dama, que vos veja. Não queres pensar nisso durante o fim-de-
semana?

31
Camões diz:
Envia-me um e-mail. Só tens de dizer local e horas.
Joana diz:
Que implacável! Bebe mais água e tenta acalmar-te, meu querido – sugere ela, com
voz lânguida.
Camões diz:
Como é que queres que faça isso? – explode ele, impaciente.
Joana diz:
Acompanhas-me bem 
Camões diz:
Todos os ritmos e mais alguns.
Joana diz:
Está a ficar muito calor. Sinto-me a ferver…
Camões diz:
Ó, mulher! Tu não dês cabo do meu coração!
Joana diz:
És tão bonito. Levas-me a fazer loucuras…
Camões diz:
Só vós podeis ser remédio do que peno…
Joana diz:
Mas falo com Camões ou com Tomás? Deixa o poeta! Sê tu, por uma vez. Queria-te
tanto… mas sem ela.
Camões diz:
E por amor verdadeiro tudo se pode deixar…

Tomás sopra, visivelmente perturbado. Vê-la, sem perceber se ela vibra na realidade, ou
se simula uma imagem magnífica de êxtase e sensualidade feminina. Joana é
endiabrada…

Camões diz:
Estás a pôr-me completamente louco.
Camões diz:
É a pior das torturas… mas o cenário delicia-me 
Joana diz:
Gosto quando me olhas assim. Como se quisesses comer-me com os olhos.
Camões diz:
Que remédio! Não deixas que seja de outra forma… É só quereres. Triste do que vive
amando, sem ter outro mantimento…
Joana diz:
Que encantadores e submissos, os homens. Então, e a outra?
Camões diz:
Deixa lá a outra! Eu maço-te com o outro?
Joana diz:
Ora, ainda bem que perguntas! É que eu não vivo com o outro, nem falo com ele todos
os dias como falo contigo.
Camões diz:

32
E eis que ela começa a revelar coisas nunca antes ditas…
Joana diz:
Estou a marimbar-me para um gajo que só está comigo quando calha. Mas sou incapaz
de prejudicar a tua namorada. Desculpa. Mas, no fundo, respeito-a. Não queria que me
fizessem o mesmo.
Camões diz:
Não existes... Mas admiro-te.
Joana diz:
Zombais de mim…
Camões diz:
Nada disso. Percebo que te dispas porque te seduzo. Temes ir até ao fim… mas
lembra-te, querida, sempre a Razão vencida foi de Amor… Hás-de ceder.
Joana diz:
Gosto muito do teu rosto e das tuas expressões, sabes? As câmaras adoram-te. Já a tua
fotografia é um sonho 
Camões diz:
Um sonho que se esticasses ambos os braços e pulasses a vedação virtual bem podias
abraçar.
Joana diz:
É bom o desejo. Impede-nos de dormir, faz-nos saltar as refeições e fumar ainda
mais…
Camões diz:
Mas porquê tantos entraves? Tu queres, eu sei que queres.
Joana diz:
Não digo o contrário. Até posso querer.
Camões diz:
No entanto, dás-me para trás. Que grande encantamento…
Joana diz:
Mas é verdade que estou muito encantada contigo.
Camões diz:
Vou fingir que acredito.
Joana diz:
É como se tivéssemos um compromisso, ainda que on-line. Vemo-nos todos os dias e
eu dispo-me para ti.
Camões diz:

Joana diz:
E um dia vais saturar e dizer: “Ó, não! Aquelas maminhas outra vez!”
Camões diz:
Não. Nunca me iria cansar de te ver. É o efeito chocolate: como-o, desde miúdo, e
continuo a apreciá-lo, de cada vez que ele se derrete na minha boca…
Joana diz:
Vocês saem-se com cada uma!
Camões diz:
Estou a ouvir uma música muito bonita. Vou passar-ta e quero que oiças o poema com
muita atenção. Prometes?

33
Joana diz:
Claro.
Camões diz:
Tenho uma reunião de condomínio daqui a bocado. Vou ter de sair, assim que acabar a
transferência.
Joana diz:
Tudo bem.
Camões diz:
Estonteante fome, áspera e cruel/ Que nada existe que a mitigue e a farte.
Joana diz:
Isso é Florbela 
Camões diz:
Não, Joana. É mesmo a fome que me dás 
Joana diz:
É um contentamento descontente…
Camões diz:
Agora, já me estás a citar.
Joana diz:
És mesmo convencido. Entrares com o nome do grande poeta!!! É assim que seduzes
as incautas!
Camões diz:
É um não querer mais que bem querer…
Joana diz:
Já vi que me queres bem, mas, insisto, estás ocupado…
Camões diz:
Ó, mulher! Tu sabes o que acontece por virtude do muito imaginar?
Joana diz:
Não, Camões, diz-me lá – provoca ela, de mamilos arrebitados.
Camões diz:

Camões diz:
Desconcentras-me…
Joana diz:
Qual é a parte do corpo feminino que gostas mais?
Camões diz:
Seios.
Joana diz:
Eu também! Adoro as minhas maminhas que cabem perfeitas na mão de um homem,
ou numa taça de champanhe. E também gosto das da minha prima.
Camões diz:
Da tua prima?
Joana diz:
Foi só para tornar a coisa mais picante…
Camões diz:
De mais! 

34
E ri-se, recostando-se para trás na cadeira, um riso que ela imagina alegre e bem disposto.

Joana diz:
Ao menos, divirto-te! Para quem passa tanto tempo em reuniões, até merece finais de
tarde como este 
Camões diz:
Não há dúvida que sabes tratar bem um homem!
Joana diz:
Então, e o que é que acontece por virtude de tanto imaginar?
Camões diz:
A situação clássica: Que mais deseja o corpo alcançar?
Joana diz:
Hum… Parece-me que estás a alterar o sentido do poema.
Camões diz:
Não. Nunca fui bem interpretado, o que é diferente. A ideia da alma transformada já
era.
Joana diz:
Calculo…
Camões diz:
O corpo é que interessa. E o teu, sobremaneira 
Joana diz:
Camões vai dar voltas no túmulo.
Joana diz:
Deve estar furioso contigo e vai assombrar-te em breve.
Camões diz:
Minha querida, o poeta reencarnou em mim e deseja-te. É só. Quero visitar-te e
arrebatar-te. Porque resistes? Deves ter um escudo protector…
Joana diz:
Talvez. Gosto de brincar mas não sou uma mulher fácil – avisa ela, com má cara.
Camões diz:
Nunca te vi como sendo uma mulher fácil. Nem muito menos coloco as coisas nesse
plano! – reage ele, surpreendido.
Joana diz:
Ainda bem!
Camões diz:
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo…
Joana diz:
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo…
Camões diz:
Ena! Mas tu andas a ler-me nas horas vagas? Não te vejo a espreitar para nenhum
livro. Tens isso tudo na cabecinha, é?
Joana diz:
Pensavas que era uma loura burra, não?
Camões diz:
O teu poder de resposta é surpreendente, o que me leva a associar os nossos diálogos
aos filmes do Manoel de Oliveira.

35
Joana diz:
Meu Deus! Agora são os intelectuais que vão querer a tua pele!
Camões diz:
Ao menos, que alguém me deseje …
Joana diz:
Mas eu desejo… e muito.
Camões diz:
Não me venhas com mais “mas”. Decide-te, mulher! 
Joana diz:
Acabou a transferência. Parece que tens de ir, não?
Camões diz:
Com muito custo… É que tu estás aí cativa, no teu apartamento, de pé engessado mas,
no fundo…
Joana diz:
No fundo, o quê?
Camões diz:
No fundo, és tu que me tens cativo 
Joana diz:
Tens cá um descaramento! Já usaste essa deixa com a chinesa, lembras-te? Aquela que
não sobreviveu ao naufrágio.
Camões diz:
Desisto! Vou ter de me esforçar mais  Fica bem. Beijos.
Joana diz:
Beijos!

E envia a sua piscadela preferida, uns lábios que enchem o monitor e reproduzem o som
de um beijo. Logo de seguida recebe a dele, vários lábios que deixam o seu registo de
beijos simulados desenhando-se no ecrã. Todas as despedidas virtuais de ambos
terminariam assim, com esses beijos de animação gráfica.

36
- Que papéis são estes? – pergunta, Inês, evitando sentar-se em cima de algumas folhas
soltas.
- Cuidado! É o questionário que o Tomás me preencheu! – adverte Joana, a tempo de
salvar as páginas do traseiro em forma de coração da amiga.
- Questionário? Mas vocês falam on-line todos os dias…
- Sim, só que te esqueces de que existem coisas que não são fáceis de perguntar, ou de
responder. Exigem alguma concentração. E para o analisar melhor tive a ideia de
fazermos um questionário e de o enviarmos um ao outro. É muito engraçado porque,
ainda que de forma diferente, acabámos por querer saber as mesmas coisas.
- Estás mesmo empenhada em lhe beber o sangue – comenta, com a sua típica ironia
vampírica.
- Claro que estou. Só que tenho um pequeno e grande problema: a namorada dele.
- Ele não vai acabar com ela só porque tu, de repente, apareceste na vida dele – opina,
deixando-se esparramar no sofá, entretanto desimpedido.
- Eu sei. Também não abririas mão de uma coisa sem teres experimentado a outra. E logo
tu, não é? – pergunta, maldosa.
- Por isso é que o compreendo. Mas és tão santa que tem de ser tudo à tua maneira. Ele
ainda foge. E depois estou para ver o drama…
- Mas qual drama, mulher? Ai, já estou a falar como ele e tudo – arrepende-se, logo de
seguida. – Não existe, nem existirá, drama algum. O pior que nos pode acontecer é um
corte de energia, certo?
- Lá estás tu, com a ideia de que o virtual não faz mal… Pois, estou cá para ver.
- Olha Inês, não sejas má, está bem? Eu até pensava partilhar contigo uma ou outra
resposta do rapazinho…
- Sim! – adere, bem disposta. – Vamos a isso!
Joana coloca os óculos de armação cor-de-rosa e faz um tom que imita a voz do director
da empresa:
- Vejamos o perfil do candidato. Não te rias – vira-se para a amiga que já está perdida de
riso. – Isto é a sério. Estamos a falar do meu futuro namorado! Prosseguindo: à pergunta
sobre o que achava mais importante numa mulher respondeu “o carinho, a compreensão e
o sentido de humor”.
- Beleza e inteligência, nada?
- Tu não és o candidato. Cala-te e ouve – repreende-a, a rir. – À pergunta que visava
contabilizar antigas namoradas, amantes e casos – Ah! Deixa-me explicar-te que se
tratam de respostas múltiplas, com a última alínea a sugerir outra resposta possível – eu
coloquei-lhe aqui umas cifras jeitosas, mas o Tomás respondeu assim: “Ao contrário do
Barão Vermelho que na Primeira Guerra Mundial fazia um “X” na carlinga do seu avião
por cada inimigo que abatesse eu não contabilizo dessa forma. Talvez me incline para a
B, sem certezas absolutas.”
- Fogo! Qual era a B?
- Entre 15 e 25.
- Ele tem 35 anos, não é? Partindo do princípio que começou a dar o corpo ao manifesto a
partir da adolescência, até não está exagerado. É uma média simpática.
- Não achaste um charme, a resposta dele?
- É parecido contigo a falar. Vocês devem fazer um par e tanto.

37
- Por isso é que nos damos bem e ainda nos vamos dar melhor. Se ele for inteligente,
como, aliás, parece ser o caso, só tem a ganhar.
- Continua. Estou a achar o máximo!
- Na cama gostas de – e eu coloquei como alternativas – a) fazer tudo e controlar o
processo; b) iniciativa da parte dela, ou c) uma troca permanente de comando. O menino
respondeu: “Depende da disposição. Gosto da combinação de a, b, e c.”
- Ele gosta de cama! Dê lá, por onde der! É cá dos meus!
- Mau Maria! Nada de demonstrações de regozijo. Estou aqui a analisar uma séria
candidatura. Adiante: “Qual é a tua posição sexual preferida?” Vou passar a resposta
dele.
- Vá lá – protesta, com veemência –, nada de censura! Sou a tua melhor amiga! Já vi, pela
tua carinha, que é a mesma de que tu também gostas. Perfeito. Vocês vão deitar o prédio
abaixo, só pode!
- Inês Isabel, se continua a comentar as respostas, a avaliação não chegará ao seu término
– volta a avisar, sorrindo. – Sim, é a mesma posição que eu também gosto e não, não
vamos deitar o prédio abaixo porque, antes disso, terão de haver outras baixas. Já lhe
disse, a ele, que tem de acabar com a namorada.
- Ela incomoda-te assim tanto? O Tomás parece não se importar… – analisa, friamente.
- Minha querida, o que ganharia eu com isso? Para que quero um homem ocupado?
Desejo alguém para mim a tempo inteiro. Meias só nos pés, dizia a minha santa avó, que
Deus a tenha em descanso e que me ajude aqui na Terra a conquistar este poeta vadio.
- Ele tem pinta, admito. Essa, do poeta, deixa-te mesmo virada!
- Um homem que fale ao meu coração é o que mais ambiciono. Sabes que o Alexandre
não conta, só me telefona quando está desesperado e, o Ricardo, enfim, palavras para
quê?
- Mas o Alexandre não tem apitado? Vocês já andam, há quê? Dois anos e meio?
- Correcção: Nós não andamos e nunca andámos.
- Sim, mas…
- Justamente. Apenas boa conversa e óptimo sexo. Nada mais. O que não me deixa
propriamente nas nuvens…
- É uma pena… Vocês têm tanta química…
- Mas só isso não chega! E agora apontei a artilharia pesada para este e quero ver como é
que as coisas vão acabar.
- Sou a primeira a achar que mereces alguém que verdadeiramente te estime. És muito
querida e especial. Céus! Estou quase a chorar mas é verdade. Gosto tanto de ti! – e
levanta-se para abraçar a amiga.
- Está bem, Inês. Também gosto muito de ti – responde, embaraçada, habituada a ocultar
os afectos desde tenra idade. – Aqui vai outra: disse-me que vive há três anos com a tal
rapariga, embora com meses de separação pelo meio…
- Tal como tu e o Alexandre. Passam meses sem se verem.
- Sim, mas nunca vivi sequer com ele.
- Creio que se tivesses vivido não terias gostado. Ele é um bocado desleixado, não é?
- Um grande bocado. Os homens quando vivem sozinhos são assim. Não há nada a fazer.
Mas queres saber? O Tomás já foi casado!
- Essa agora!

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- Sim. Diz ele que casou aos vinte e muitos, mas só permaneceu um ano com a mulher.
Agora são bons amigos, embora não cultive o hábito de tomar cházinho com a ex.
Encantador, não é?
- E é pai?
- Não, mas deseja muito vir a sê-lo.
- E com esta, também ainda nada?
- Nada.
- Que estranho… Se quer ser pai, o que o impede?
- Justamente. Se a relação é interrompida, não deve ter muitas certezas.
- Mas tu não queres ser mãe… – observa.
- Posso mudar de ideias. Afinal, só tenho 32 anos e está tudo em aberto, ou não?
- Claro. Mas continua.
- Perguntei-lhe o que é que o prendia à companheira: se o sexo, a cumplicidade ou a casa
limpa e arrumada. Respondeu: “Uma combinação das três hipóteses, no entanto, é difícil
responder porque se trata de uma relação mais ou menos.”
- Os gajos saem-se com cada uma…
- Ele tem razão. É tudo e não é nada. As velhas questões da solidão e do comodismo.
- Pois sim, adiante.
- Diz que não me envia SMS aos fins-de-semana porque não quer interferir em algo que
desconhece, uma vez que eu lhe disse que também tinha uma relação mais ou menos.
- Não lhe devias ter dito. Essa relação que tens é uma treta.
- É uma merda! Podes dizê-lo e tens toda a razão. E é por isso que vai acabar.
- Despacha o Alexandre.
- Mas eu já o avisei, na cara, olhos nos olhos: “No dia em que tiver um namorado a sério,
és rifado sem o mínimo remorso.”
- E ele?
- Nem pestanejou. Limitou-se a responder com um sorriso safado: “Ao menos, espero
que não te esqueças da nossa amizade.”
- Que grande lata!
- É mesmo. Uma lata descomunal!
- Mas o Tomás é igual! Ele não quer é que tu interfiras na vida organizada que ele tem lá
com a outra e, depois, desculpa-se com o facto de não te querer incomodar a ti! Homens!
- Homens… Ah! Diz aqui também que lhe dá gozo falar pelo Messenger mas que não
tem problemas em usar o telefone.
- Nota-se – ironiza, acompanhando o riso da amiga.
- Quanto ao que nos espera no futuro e sabendo que não vou aceitar papéis secundários,
refere que são viáveis várias hipóteses – sermos só amigos, namorados, amantes – mas
que se registe, salienta, que gostava imenso de ir já para a cama comigo…
- Lá está! O descaramento de novo!
- Está apenas a expressar o seu desejo. É bonito, deixa lá. Para ele, a importância do sexo
numa relação é de 75 por cento.
- Deve ser um animal na cama! – comenta, sorridente. – Aliás, só o aprovo por adivinhar
muita acção naqueles quadris!
- Caramba, Inês! Só pensas nisso? Tu és mais 100 por cento, não?
- Joana, minha santa e louca, o sexo é o melhor que há na vida!

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- Pois, mas já te disse que de sexo estou eu bem servida. Quero mais! Um homem a
tempo inteiro que me estime e respeite. Juro que até era capaz de parir, se fosse esse o
caso, o que, conhecendo-me como me conheces, sabes bem, é o meu baixar de armas
total, rendição absoluta. Seria mãe se encontrasse o tipo certo e bom.
- Se todas avaliássemos os “candidatos” como tu, dessa forma exaustiva e obstinada, a
taxa de natalidade cairia a pique…
- E viva a diferença! Bom, parece-me que ele também já teve um desgosto amoroso – e
não creio que tenha sido o casamento a provocá-lo – mas, pela resposta dele, soube sarar
as feridas e prosseguir com a vida.
- Isso é bom! O gajo é decidido e confiante! Não é choramingas!
- Gosta mais de cães do que de gatos – o que é um problema, com a Cassandra – e
preocupa-se com a decoração da casa, na qual gosta de investir. Tem um boxer.
- Estás feita!
- E já é o segundo boxer. Este ainda tem meses. Quanto ao seu look, e para finalizar,
encontrou o estilo certo e gosta de fazer compras sozinho porque…
- Não tem pachorra para os centros comerciais, como todos eles – conclui Inês, com um
encolher de ombros.
- Nem mais.
- E ele veste-se bem?
- Sim. Está sempre de fato. Mas depois do trabalho enfia-se nuns jeans e T-shirt.
- O clássico… que tanto aprecias.
- Não querias que fosse apreciar aquelas calças nojentas com os bolsos do traseiro na
dobra dos joelhos, ou o estilo motard?
- Estariam condenados.
- Logo à partida.
- Embora não se deva…
- Condenar à partida…
- Uma ciência que se desconhece.
- Lá está! Uma frase acertada que nos fica na memória – remata Joana, animada pela
afinidade que vive junto da amiga.
- E então, como é que foram as perguntas dele?
- Parecidas. Queres ver uma? Onde é que as deixei? – procura numa outra pilha de papéis
o inquérito feito por ele. – Cá está! Vejamos: “Qual é a parte que consideras mais
sensível no teu corpo?” e, perante as alternativas, respondi “lábios”. A outra também era
só pescoço…
- Ah, bom!
- Foi mais contido nos números das relações anteriores. Deixou-me optar entre mais de 3
ou 6.
- Segue – declara, a rir. – Santa Joana!
- Fogo! Também não sou assim tão santa!
- Já rejeitaste muito bom rapaz…
- Adiante: perguntou-me se achava mais excitante realizar um projecto gráfico ou fazer
amor.
- Um projecto gráfico – espicaça, divertida.
- Quis saber se eu era dominadora ou passiva.
- Somos sempre as duas coisas. Depende da disposição. O que lhe respondeste?

40
- Que gostava de alternar, claro. Ah! O meu objectivo na vida: se era casar e ter filhos ou
viver na desbunda sem compromissos.
- E tu?
- Respondi-lhe: “Ser amada e respeitada por todos aqueles que também amo e respeito.”
- Previsível. Vives para meia dúzia de pessoas.
- Cala-te, mulher! Queres ouvir ou não? Que melga, meu Deus! – declara, a rir. – Esta é
gira: o que é que eu nunca faria na cama.
- Que hipóteses é que ele pôs? – pergunta, endireitando-se no sofá.
- Interessa-te, não é? Sua devassa – censura, a brincar. – Deu-me duas opções: relações
anais ou engolir esperma.
- Homens…
- Homens… Adiante: se eu preferia estar no campo e descobrir trilhos novos, ou estar no
café com os amigos.
- Tu és praia, mar e sal, o ano inteiro!
- Se bebia álcool social ou habitualmente, se consumia cocaína ou haxixe…
- Hum… Ele também fez um inquérito severo!
- Claro que lhe respondi o que já sabes.
- Ele vai ficar desmotivado – opina, a abanar a cabeça vagarosamente. – Devias ter
mentido como o caraças!
- Não vou mentir ao meu futuro namorado, não achas? Depois, não alinhava em nada e
era uma chatice. Assim, já fica a saber que não sou dada a álcool e a drogas. Enfim, um
tinto de vez em quando, com uma bela pizza. Esta tem piada – prossegue. – Quis saber se
eu, em termos físicos, me considerava boa como o milho, ou atraente e olhada pelos
homens quando passava na rua.
- Vê-se bem que nunca andou contigo na rua. Espero que não seja ciumento, caso
contrário, estás frita! E as mini-saias vão todas para a fogueira!
- Também se interessou pelas minhas actividades altruístas – ele é todo ceia dos sem-
abrigo no Natal, etc. – e, por último, deixou-me esta: “Quando estás prestes a envolver-te
emocionalmente com alguém novo, entregas-te incondicionalmente e nunca olhas para
trás, ou dás pequenos passos para teres a certeza de quem está a entrar na tua vida?”
- Pequenos passos, tão pequenos que dir-se-ia que os pés nem saem do chão…
- Nem mais! Chegámos ao final. Foi maçador?
- Achas? Ficava a ouvir mais não sei quantas perguntas e respostas. A ideia foi bem
divertida! E acedeste a imensas coisas novas sobre o teu poeta.
- Sim, mas ele é muito ambivalente. Tão depressa me pergunta se dou pequenos passos
como, sabendo que assim é, quer logo um golo directo!
- Nem os fãs de futebol são assim tão exigentes – concorda, a sorrir com a metáfora
futebolística.
- Claro. Há que comprar o bilhete, petiscar na roulotte, assobiar aos adversários, cantar a
música da equipa, saltar no estádio, fazer a onda, suar e insultar meio mundo, ficar rouco
de tanto achincalhar o árbitro ou o guarda-redes e, só depois de tudo isto, com muita sorte
de uns e azar de outros, é que se chega ao golo. Às vezes, acontece mesmo no último
minuto, ou no prolongamento. Mas este maluco quer o golo já, antes mesmo de todos os
rituais que antecedem o lance decisivo.
- A minha alma está parva! Não te sabia tão por dentro do relvado.

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- Temos de usar exemplos que eles conheçam. E agora, este deu-me jeito para te explicar
a situação.
- Compreendo. É como entrarmos numa loja e experimentarmos logo a peça que vamos
comprar, sem primeiro e, por puro gozo, vestirmos todas as outras que achamos curiosas
mas que sabemos, à partida, que não vão abandonar os cabides.
- Sim, é um bom exemplo. A ideia é divertimo-nos ao longo de um processo sem
ficarmos obcecados com o desfecho do mesmo. E a sedução é o melhor de todos os jogos
possíveis. Adoro cada momento. Sabes que ele conta as semanas que vão passando entre
nós?
- Já vão em quantas?
- Quatro.
- Isso é engraçado. Por isso é que ele quer acelerar. Já deve ser muito tempo para ele.
- Para mim, não é. Um mês de namoro virtual é muito pouco tempo.
- Consideras mesmo a hipótese de existir outro tipo de namoro entre vocês?
- Não sei. Gosto de pensar cor-de-rosa. Logo se vê. Também se a coisa correr mal, não
vou ficar destroçada, como adivinhas…
- E o Alexandre volta a ser convidado.
- Estou a reunir coragem para o deixar. Não é fácil.
- Para ele, é.
- Talvez.
- Não quero falar mais de gajos. Chega por hoje.
- Quando é que tiras o gesso?
- Falta pouco.
- Que bom! Ainda podemos ir aos saldos!
- Já fizeste boas compras? – pergunta Joana, saudosa das montras.
- Claro!

E as duas amigas entretêm-se a falar de peças de roupa por metade do preço, vernizes
para as unhas, sombras e rímeis, acessórios para a neve, e tudo o mais que anima o final
de uma estação. Com os saldos, o Inverno parecia despedir-se e, a Primavera, já Joana a
sente no ar há quase quatro semanas…

42
Tomás entra no jipe sentindo-se cansado após mais um dia de trabalho. Às vezes, de
acompanhar tanta subida e descida de acções, sente uma pressão tão grande na cabeça,
como se esta estivesse na iminência de explodir. Antes de arrancar, procede à limpeza de
mensagens no seu telemóvel. “Talvez não fosse má ideia ter um outro para as minhas
brincadeiras”, pensa, enquanto apaga os SMS enviados para Joana e também os que
recebera em resposta. “Qualquer dia, sou apanhado em flagrante delito por causa deste
amiguinho”, reflecte, divertido com a sua própria dependência pelo telemóvel.
Depois de eliminar as frases comprometedoras sente-se mais leve. “Apto a regressar ao
lar”, suspira tranquilo.
Enquanto conduz, pensa na gata Joana. Aliás, pensa muito nela. “Já fiz amor contigo.
Vezes sem conta. Estou com ela, penetro-a, e penso em ti. Um dia, vais ser minha e, tu
sabes.”
Gosta de conduzir sem grande velocidade. É suave nas travagens, atento aos espelhos
retrovisores, prudente nas curvas. E como a Rita detesta aquela condução meticulosa.
Para a namorada, ele devia ser mais ousado na estrada. E depois, está sempre a irritá-lo
por causa do ar condicionado. Tem medo de se constipar. “Mas para que raio quero os
extras se não posso usá-los como me dá na real gana?”
Por vezes, as discussões entre ambos começavam assim, com ninharias semelhantes: “Já
foste passear o Atlas?” E ela: “Pensas que não tenho trabalho para fazer? É só chegares a
casa, teres o jantar pronto, veres a televisão e cama?” E Tomás respira fundo, antes de lhe
lembrar: “Telefonei-te a pedir que o passeasses. Quando faço isso é porque estou podre.
Mas deves achar que passo o dia inteiro no escritório a fazer aviões de papel…” E ela:
“Por acaso, já te ocorreu que também chego a casa cansada? E sou sempre eu que
cozinho, não é? Caem-te os parentes à lama por estrelares dois ovos?” E ele: “Quando
vieste viver comigo, já sabias que não tinha vocação para os tachos e panelas. Porra!
Deixa estar. Não te incomodes, que vou eu passeá-lo!”
A casa era dele, o cão era dele. Ela limitava-se a ser uma espécie de inquilina e, ainda por
cima, ingrata, não cumpria funções e deveres. Mas, por vezes, surpreendia-o pela positiva
e, esses mimos, quando Rita se esmerava na perna de borrego, ou no bacalhau com natas
e no tinto escolhido a dedo, nas velas e na mesa romântica, na doçura do seu olhar de
menina perdida, todo esse conjunto de variantes aplacava-lhe a cólera.
Sim, porque muitas vezes tinha a noção de que era esse sentimento de fúria que ele
tentava controlar quando ambos estavam juntos. Um acesso de raiva motivado por tanto a
ter desejado num passado longínquo. “Quando sentia o tal aperto no estômago por tua
causa, esse aperto que me anestesiou o cérebro e me fez voltar para ti uma e outra vez.
Perdoando-te aquilo que mais tarde assumiste, mas que todos os nossos amigos sabiam. E
eles disseram-me para te esquecer. Para gastar o meu sentimento e, por fim, deixar-te só.
Tentei. Fiz até o impossível: casei-me com outra desgraçada. Passado um ano, corri de
novo para ti. Por isso, é que me dá gozo encornar-te. Para me vingar da minha própria
pieguice. Para ver se, alguma delas, te apaga de vez. E é isto que nunca posso contar a
nenhuma: que te engano porque me quero sentir livre de ti. Quero ser o único senhor do
meu destino.”
Tomás estaciona o carro na garagem e sobe directamente pelo elevador. Antes de abrir a
porta, permite-se um último pensamento: “Minha doce Joana, faz-me sorrir, aconteça o
que acontecer.” E depois, roda a chave e, de cócoras, saúda Atlas.
- Olá querida – anuncia, ao entrar na sala.

43
- Olá – responde-lhe, concentrada na página que continua a ler.
Rita está sentada de pernas cruzadas no chão, veste um robe de lã, tem o cabelo apanhado
e um creme espalhado no rosto. Circundam-na várias folhas de papel.
- Este projecto está a dar-me cabo dos nervos. Estou há horas a tentar encontrar um fio à
meada – queixa-se, olhando-o, por fim. O típico olhar de desorientação, o qual tanto
fascinara Tomás, antes da traição dela…
Não sabia explicar porquê mas Rita conseguira, como ninguém, despertar-lhe o instinto
protector. Numa outra vida, parecia-lhe, quisera apenas mimá-la e tomar conta dela.
Claro que sabia que a década de 40 estava ultrapassada, e que as mulheres sobreviviam
sem o auxílio dos homens. No entanto, proteger quem amava era algo que estava
profundamente imbuído na sua maneira de ser.
- Queres ajuda, é? Deixa-me primeiro tomar um duche.
- Tens salada e fruta na mesa da cozinha.
- E passeaste o Atlas?
“Que merda de pergunta”, pensa Rita, tentando não explodir de imediato. “Será que não
tens olhos na cara? Não me vês afogada em trabalho? Quem é que te mandou comprar
aquele horrível canídeo de beiças caídas e húmidas? Às vezes, detesto-te. E espero bem
que hoje não me peças para fazer amor. Não estou com cabeça para isso.”
- Não te importas de o levares à rua? Desde que cheguei, ainda não tive tempo para me
coçar – mente, descaradamente.
“Ter tempo, até tive. Para tomar um duche, após ter feito alguns exercícios no ginásio que
instalaste cá em casa e que já não utilizas há meses. Mas depois, ainda fui fazer a salada e
descascar a fruta e pôr a mesa e, sinceramente, não sou tua criada e, muito menos, ama-
seca desse cachorro, cuja baba me enoja.”
- Eu vou passeá-lo mas, se queres que te diga, não me lembro da última vez que o
passeaste. Para aí… hum… deixa-me pensar… há uns dois meses?
Rita não lhe responde. Ainda passeou o cão na semana passada durante dias seguidos.
Não gostava nada dos puxões que ele dava na trela. Tinha de andar depressa e quase que
estivera para o largar antes de regressar a casa. Mas se tivesse “perdido” o bicho, teria de
aturar as recriminações de Tomás durante uma eternidade e não esteve para essa maçada.
Por enquanto, sabia-lhe bem estar debaixo do tecto do namorado. Poupava dinheiro, já
que ele fazia questão de pagar sozinho as prestações bancárias da casa dele. E as restantes
despesas divididas, com o ordenado de ambos, não ofereciam dificuldades. Ainda lhe
sobrava verba para os cremes e roupas de marca. Gostava de se produzir, mas já há muito
que não se arranjava para ele. Esmerava-se mais quando iam sair com outros amigos,
com aquela tribo maldizente que já a tentara escorraçar. “Bando de idiotas, que só tolero
porque não quero dar azo a novos afastamentos. E eles são peritos em lavagens cerebrais.
Mas comigo, não levam a melhor. Se soubesses como detesto os empertigados dos teus
amigos. Têm a mania, só porque são professores. Mas eu não me sento em nenhuma
carteira e estou-me nas tintas para esses stôres que se têm em tão boa conta. Sempre a
opinarem sobre tudo e mais alguma coisa. Esses jantares de sexta-feira deprimem-me
como o caraças. Mas não te deixo ir sozinho porque já não te viram mais contra mim.
Essa, te garanto. Que guardem o veneno para eles próprios, trinquem as línguas e morram
longe.”
- De facto, pareces concentrada – comenta, passando por ela, com uma maçã numa mão e
a trela na outra. – Já venho.

44
- Está bem.
- Não me dás um beijo?
- Claro, querido – responde, erguendo-se e dando-lhe um beijo rápido e nada caloroso.
“No princípio, antes do cão, quando chegavas a casa, massajavas-me os ombros e
tomávamos um duche juntos. E dizias que querias um filho. Há quanto tempo é que me
evitas quando sabes que estou no período de ovulação? Porque reagiste com tanta raiva
quando te disse que tinha deixado de tomar a pílula? É também por isso que não me
apetece fazer tanto amor como dantes. Porque sei que evitas deliberadamente os filhos.
Mas se pensas que te vês livre de mim com essa facilidade, estás enganado. Coitado! No
fundo, acabas sempre por regressar. Sempre foi assim. É mais forte do que tu. Achas-me
uma cabra, mas não és capaz de te impor. Estás tão acomodado como eu.”
Enquanto passeia Atlas pelas ruas desertas e frias, mastigando uma maçã e sentindo-se
ainda suado do dia, Tomás pensa em Joana: “O que estarás a fazer neste momento?
Pensarás em mim? Beijar-me-ias de uma maneira diferente? Neste momento, sinto com
toda a certeza que os meus lábios serão teus… Doce Joana. Tenho uma mulher que se
despe para mim e me entra pelo monitor adentro e, outra, vestida e resmungona, instalada
em cima da minha tapeçaria persa. Devem estar trocadas. Se tivesse perante mim um
tabuleiro de xadrez, avançava com a rainha. O problema é que ainda não a distingo. Uma
é segura, já tenho toda uma história vivida com ela, fez-me penar como o diabo… E a
outra, incerta… Ainda não a conheço, apesar de a desejar. E sempre me fez confusão
optar por uma coisa, ou por outra. Desde puto, é-me difícil escolher. Apetece-me ter
todas a que tenho direito! Uma mulher por semana! Variar! E a Internet facilita isso…
Quem disse que o ser humano era monogâmico? Quem é que inventou essa grande
cretinice?”
Atlas pára, fareja uma parede e urina. Tomás espera que ele acabe, depois dá-lhe uma
festa na cabeça e solta-lhe a trela, deixando-o correr para um recanto arborizado entre os
prédios. O cão fareja a relva, exultante por respirar fora de casa.
“Céus! Também me estou a sentir como tu! Parece-me que respiro a liberdade quando
estou longe dela… mas depois, é como se me faltasse qualquer coisa. Dá-me gozo tê-la
reconquistado. E aquele olhar de moça perdida ainda me faz ficar com pele de galinha,
mas já não é a mesma coisa… Caraças! Não a amo e não a detesto. Porque alimento esta
incerteza, dia após outro?”
De súbito, dá por si a fazer algo que nunca antes fizera: de pé, junto ao tronco de uma
velha árvore, também ele urina. O jacto quente desfaz pequenos torrões de terra seca e
afasta as folhas que rodopiam numa dança louca.
“Que porcaria” – admite para si próprio –, “mas que alívio. Com a pressa de sair nem
sequer me apercebi de que estava tão aflito. Eu e tu, Atlas. Ambos a precisarmos de
aliviar a bexiga. Se ela me visse agora, passava-se da cabecinha. Toda ela cuidados,
dietas e boas maneiras. E aposto que hoje se vai cortar outra vez. Só quer, quando sabe
que pode engravidar. Agora, deu-lhe para ser mãe. Mas não tenho desejo de alimentar
esse laço entre nós. Algo está mal. Sinto isso. Falta-me qualquer coisa. Caso contrário, se
tivesse certezas, por que motivo me atrairia tanto seduzir outras? Não, Atlas. Não sou um
Casanova. Mas preciso de me sentir desejado e de desejar aquela com a qual vou para a
cama. E a Rita, já não a desejo da mesma maneira. Faço e é bom. Mas penso na Joana. E
antes da Joana, pensei em mais umas tantas. É só sexo. Ou não. Talvez seja um sintoma

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de que algo entre nós está mesmo a quebrar. Só que nenhum dos dois tem a coragem de
abordar o assunto. Temos feridas cicatrizadas e receamos abri-las. É isso.”
Tomás sacode o pénis e lembra-se de Joana lhe ter perguntado quantos centímetros
media. Respondera-lhe em polegadas para lhe dificultar o cálculo. E ela rira-se e teclara:
“Uma polegada são 2,5 centímetros, querido! Espero bem que estejas a dizer a verdade.”
Ora, a verdade era sempre muito incerta no universo on-line. Embora a resposta dele
tivesse sido honesta. O seu pénis era grande e bonito e, se ela quisesse saber mais alguma
coisa, que deixasse de o provocar e marcasse um local e horas, averiguando por conta
própria o deleite que a esperava. O pé engessado era apenas um pormenor. E para ele, o
menor de todos. Se Joana lhe desse luz verde, mesmo que se abatesse um nevão histórico
sobre a cidade, nada ou ninguém o travaria. Não escrevera um outro poeta que “sempre
que o homem sonha o mundo pula e avança”? E sempre que um homem quer? E ele
queria-a. Ó se a queria… Como nunca pensara voltar a querer. Depois? Logo se veria…
- Atlas! – chamou – Vamos para casa! – e apercebeu-se de que o seu tom de voz
entristecera ao pronunciar a última palavra.

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Joana não consegue deixar de pensar no desafio proposto por Tomás. Aquela história de
ter somente de dizer um local e horas para eles se encontrarem. Com esse ousado convite
parecia-lhe que Tomás queria unicamente uma coisa: ir com ela para a cama. Talvez ele
fosse realmente um desses predadores da net. Porém, fosse Tomás o que fosse, a verdade
é que já há muito que não se sentia tão motivada por algo ou alguém. Aprendera a ligar o
computador, antes mesmo de acender as luzes, ou de abrir as janelas. Estava viciada na
conversa, na sucessão dos episódios, com a mesma dependência sentida pelas donas de
casa devoradoras de telenovelas.
Pensara e repensara na ousadia dele. Porém, sentia-se igualmente culpada. Não tinha sido
ela a despir-se frente ao monitor? Não o provocara o suficiente para ele soprar do outro
lado de lá, naquele escritório cinzento? É certo que o fizera por puro divertimento. E
talvez alguma atracção física e intelectual que estupidamente despontava. Um discurso
moral da parte dela não faria muito sentido… Porém, também não se comparava às fãs do
poeta que inundavam de comentários bajuladores o seu blogue. Essas criaturas não
poupavam elogios: “Escreves tão bem”, diziam, “não há dúvida que surpreendes sempre
com a tua sensualidade.” Algumas até deixavam o número de telefone, sentindo-se
seduzidas pelas palavras e fotografia do rapaz.
E Joana começava a desconfiar, de novo, dessa imagem tão perfeita. Na realidade, ele
estava de perfil e, não podia jurar a pés juntos, que fosse o mesmo. Mas a web-cam
trazia-lhe diariamente a imagem de um homem igualmente bonito. E por isso, que
interessava a autenticidade da fotografia? Talvez só revelasse alguma insegurança da
parte dele, ou pior, um sentido de humor dirigido ao engate fácil.
Para ela, que nunca tinha experimentado brincadeiras do género, o mundo virtual parecia-
lhe mais inócuo do que nocivo. Porém, como Inês lhe lembrara várias vezes, sabia que
deveria ter cuidado. Por outro lado, não via motivo que justificasse cortar com algo que
tanto a divertia… Ela era inteligente e sensata. Jamais iria para a cama através de
encontros on-line. O seu interesse era quase psicológico. Até onde iria a brincadeira? Por
que razão precisava um rapaz tão bem parecido e com miolos de recorrer àquele universo
virtual para seduzir mulheres? E por que estranha razão se sentia ela uma espécie de alvo
a abater? Quem ganharia a batalha final e como? Cederia ela ao charme dele, ou levá-lo-
ia a desarrumar uma vida aparentemente perfeita de namorada em casa e boxer à porta a
dar-lhe as boas-vindas?
Com tudo isto em mente, sentou-se e começou a escrever-lhe um e-mail, cujo título o
deixaria em brasa: “Local & Horas”. Depois, com um sorriso travesso começou a teclar:

Local & Horas

1 – Dentro de um jipe estacionado de forma a termos uma vista panorâmica do


Grand Canyon, esse lugar “tão fora deste mundo que é como se alguém tivesse
aportado num lugar extinto de outro planeta. Uma partida da natureza, maravilhosa,
bizarra, enorme.”

Por estrada: 130 km a norte de Flagstaff, Arizona, pela Arizona 64.

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Horas: 07h00 de uma manhã de Junho. Extremamente quente no pino do Verão…

2- Na Golden Gate, em São Francisco, um cenário de torres de aço, poderosos cabos


e um tabuleiro suspenso. Mais de 1000 pessoas despediram-se aqui deste mundo
cruel, mas nós iríamos mesmo esperar pelo nevoeiro que vem do Pacífico – nessa
altura só os altos pilares podem, por vezes, ser vistos por entre a neblina – para
darmos asas aos nossos desejos…

Horas: Depende do referido nevoeiro…

3 – Na piscina do Palácio Hearst, a 70 km a norte de San Luís Obispo, a meio


caminho entre São Francisco e Los Angeles, numa colina sobre o Pacífico. A piscina é
enorme, rodeada por colunas e estátuas gregas e utiliza a água de uma nascente.
Para a sua concepção, Hearst baseou-se na praça e colunata de São Pedro, em Roma.
Seria o mesmo que mergulharmos num Vaticano cheio de água… absolutamente
pecaminoso…

Horas: 15h00 de uma tarde de Agosto.

4 – No pequeno apartamento – outrora utilizado por Eiffel – na última plataforma da


Torre mais conhecida de Paris. Mais uma vez, um exímio cenário onde os
trabalhadores tão bem montaram o aço…

Horas: Diariamente das 9h30 às 23h00 (das 9h00 à meia-noite em Julho e Agosto).

5 – No centro da estrutura pré-histórica de Stonehenge, em Inglaterra. A partir de


Londres pela M3/A303 (140 km) 16 km a norte de Salisbury (estação mais próxima).
Considero este local das “pedras suspensas” ideal para procedermos ao nosso ritual
de acasalamento…

Horas: Durante o solstício de Verão, a 21 de Junho e, claro, ambos vestidos de


druidas… com flores no cabelo e tal.

6 – Ao lado de uma nascente de água quente, quando os géisers da Islândia fervem e


explodem… Céus! Que sensualidade! Neste lugar quente, de tantas fendas, a nossa
actividade vulcânica contrastaria com o próprio calor que vem do centro da Terra…

Horas: 13h30 de um dia de Junho ou Agosto.

7 – Veneza é inundada 100 vezes por ano. Existe algo de profundamente erótico
nesta cidade de mercadores que tão molhada fica…

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Horas: Imediatamente…

8 – Hotel Taj View (luxuoso hotel com a melhor vista sobre o Taj Mahal), na Índia.
Comove-me a história da construção do Taj Mahal. Imagino o cabelo preto do
imperador Shah Jahan tornar-se grisalho, de repente, com a perda da sua esposa.
Imagino-o a decretar um imenso luto, proibindo quaisquer celebrações, ouvir música,
usar jóias ou perfumes. Imagino-o, ainda, a recrutar arquitectos, engenheiros
escultores e calígrafos na Pérsia, no Império Otomano e na cidade de Samarcanda.
E, imagino-o, por fim, a mandar cortar as mãos dos mestres canteiros que o haviam
construído para que não pudessem tornar a fazer nada igualmente encantador.

Horas: Anytime…

9 – Na profunda selva cambojana entre os pagodes dos templos reais de Angkor Vat.
Outrora a mais bela cidade da Ásia e palco dos sonhos eróticos do rei khmer
Suryavarman II, povoados por uma bela rapariga destinada a copular com o rei… Aos
poucos, a floresta reclamou a terra e grossas raízes cobrem as pedras dos templos.
Como é que a floresta pode abraçar esta arte majestosa, arruinando-a, se bem que,
ao mesmo tempo, amparando-a? Não será dessa maneira que todos os homens nos
abraçam?

Horas: Meia-noite de 24 de Dezembro.

10 – Ao ar livre, vendo a Pedra de Ayers, na Austrália, incendiar-se com a luz do


pôr-do-sol. Escolho este coração vermelho sagrado para os aborígenes porque é de
vermelho que as minhas faces se tingem quando penso em tudo aquilo que
poderíamos fazer…

Horas: Ao pôr-do-sol, de um dia de Abril.

Espero que tenhas apreciado a minha lista top-ten dos locais por mim eleitos. Fi-la
com muito prazer e dedicação      BESOS

Depois, satisfeita com a lista, enviou-a com malícia. Logo à tarde, esperaria as reacções
do poeta atrevido. Ele, se pensava que a tinha na mão, enganava-se redondamente.

***

Camões diz:
Adorei o teu top-ten! Estava o máximo!
Joana diz:
Ainda bem! 

49
Camões diz:
Tudo bem?
Joana diz:
Estive para aqui a pensar…
Camões diz:
O quê? Diz.
Joana diz:
Costumas ler os comentários do teu blogue?
Camões diz:
Às vezes. Antes lia mais. Porquê?
Joana diz:
Conheces algumas das pessoas que te tecem aqueles comentários?
Camões diz:
Pessoalmente não. Já visitei alguns blogues deles.
Joana diz:
Mas já conheceste alguém através do MSN?
Camões diz:
Vá, sê lá mais objectiva! Pretendes saber o quê? Quantas mulheres já “papei” por
causa do MSN, é isso?
Joana diz:
Se queres pôr as coisas assim...
Camões diz:
É isso? Ou não?
Joana diz:
Sim, é isso!
Camões diz:
2 ou 3.
Joana diz:
Isso é uma estimativa real?
Camões diz:
Como assim?
Joana diz:
Estás a arredondar por baixo ou por cima?
Camões diz:
Não estou a arredondar coisa nenhuma... Já te disse que a sinceridade está acima de
tudo.
Joana diz:
Muito bem. E dessas 2 ou 3 experiências que resultados extraíste?
Camões diz:
No mato, tudo é rudeza. Nada se aprende entre as cabras  Umas boas horas de sexo e
nada mais! Mas tu és diferente!
Joana diz:
Sou? Aposto que dizes o mesmo às outras 300…
Camões diz:
És a única delas com quem falo. Já te tinha dito que as outras são apenas virtuais.
Querem ser minhas amigas e eu aceito-as mas não converso com elas.

50
Joana diz:
Não ficaste seduzido em particular por nenhuma? E o que é isso de “nada se aprende
entre as cabras”?
Camões diz:
É difícil seduzir este Camões…
Joana diz:
E nessas 2 ou 3 experiências andavas com a tua namorada actual?
Camões diz:
Numa sim, nas outras não. Estávamos separados.
Joana diz:
E não te custa nada ser-lhe infiel?
Camões diz:
Sei bem que a traição é um acto repugnante.
Joana diz
Mas achas que ela também já te traiu? Fazes isso por vingança?
Camões diz:
Não sei. Se calhar, traiu.
Joana diz:
Achas que ela está muito apaixonada por ti?
Camões diz:
Está obcecada.
Joana diz:
Como é que sabes?
Camões diz:
Sinto, sei lá...sou muito sensível aos sentimentos dos outros.
Camões diz:
Detecto com facilidade.
Joana diz:
Achas que a tens na mão e podes fazer o que quiseres porque ela te perdoa e te aceita
sempre de volta?
Camões diz:
Nada disso.
Camões diz:
Não é esse o filme, Joana.
Camões diz:
Não sou manipulador.
Joana diz:
Então, agrada-te teres a tua namorada obcecada por ti? Isso não te faz retribuir o afecto
dela da mesma maneira…
Camões diz:
Não me agrada
Camões diz:
É mais complicado do que isso, Joana.
Joana diz:
Mas sendo tu um rapaz giro e inteligente, o que te leva a engatar mulheres via MSN?
Não tens segurança? És mais ousado no virtual e acanhado no real?

51
Camões diz:
Primeiro: não engato mulheres via MSN.
Camões diz:
O que aconteceu foi um acaso, não foi premeditado.
Camões diz:
Segundo: como deves compreender, já tive outros casos que não foram via net.
Joana diz:
Sim, mas 3 via net não podem ser todos por acaso… ou podem?
Camões diz:
Podem.
Joana diz:
E o que achas que te faz ser tão bem sucedido?
Camões diz:
Não sei… Talvez o que diz o signo dos beijos taurinos que me enviaste. Ou outra
coisa... sempre assim foi.
Camões diz:
Não estou a ser convencido.
Joana diz:
Queres dizer que sempre tiveste facilidades com o belo sexo, com ou sem net.
Camões diz:
Sim.
Camões diz:
É um facto
Camões diz:
E sempre me deu gozo conquistar o belo sexo… Nem que seja com uma troca de
olhares.
Camões diz:
E que não passe disso.
Camões diz:
Mas tu sabes o que quero dizer... Também és assim.
Joana diz:
Folgo muito de saber que sois amante tão fino…
Camões diz:

Joana diz:
Achas que as mulheres são todas umas cabras?
Camões diz:
A minha opinião sobre elas é a mesma que tenho dos homens.
Camões diz:
Ou seja, são pessoas, com problemas, felicidades e objectivos.
Joana diz:
Estava curiosa com essa resposta. Quando se somam encontros sexuais através da
Internet parece que se desrespeitam as pessoas. Passam a mercadoria. Não te parece?
Camões diz:
Não sei. Há mulheres que não oferecem resistência alguma. Queres que as apelide de
quê?

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Joana diz:
São assim tantas?
Camões diz:
As pessoas cansam-se da vida que têm e buscam emoções que julgam inócuas.
Joana diz:
Estás a referir-te à queca com um estranho?
Camões diz:
Nem é preciso ir tão longe. O simples facto de vocês se despirem já é perigoso.
Joana diz:
Que exagero… 
Camões diz:
Não acreditas? As miúdas usam a net na brincadeira e desconhecem o lado negro da
lua.
Joana diz:
O que queres dizer com isso?
Camões diz:
Não te quero assustar. Vejo que és nova nestas andanças…
Camões diz:
Elucidar-te seria como levar-te numa viagem a um mundo feio e sórdido.
Joana diz:
Leva-me. Quero saber tudo.
Camões diz:
Não queres, não.
Joana diz:
Por favor, Tomás. A sério que quero.
Camões diz:
Já que insistes... Olha, há gajos que vos tiram fotografias, enquanto vocês se despem
como tontas solícitas. Essas imagens roubadas são depois trocadas entre amigos, estilo
colecção de cromos. É feio… muito feio… Mas vocês põem-se a jeito.
Joana diz:
Isso é nojento… Tiraste-me fotografias?
Camões diz:
Não. Mas podia tê-lo feito e não davas por nada.
Joana diz:
Deixas-me nervosa…
Camões diz:
Sou sério, Joana. Caso contrário, ter-te-ia deixado na ignorância.
Joana diz:
Quantas mulheres saberão isso? É preciso ter algum programa especial?
Camões diz:
Sim, mas qualquer tipo o instala no computador num abrir e fechar de olhos. Não é
preciso ser informático.
Camões diz:
Mas fica tranquila. Juro-te que me limito a ver-te e nunca me passou pela cabeça usar
a tua imagem. Gosto de ti. Da tua inocência. Incito-te é a abrir os olhos. A teres
cuidado.

53
Joana diz:
Estou estupefacta…
Camões diz:
E há sites inteirinhos de fotos roubadas: mulheres na praia em topless com os
namorados que são apanhadas pela câmara do gordo que anda por lá… Nádegas de
quem se bronzeia ao sol descontraidamente… Um banco inteiro de imagens para gajos
depravados.
Joana diz:
Que horror… Até numa praia, quando uma pessoa está tão descansada…
Camões diz:
Quem se pavoneia em público arrisca-se. O pior são as outras, as que pensam que se
despem na segurança das casas ou trabalhos delas, convencidas de que o fulano, do
outro lado de lá, está a uma distância serena. E ele a sacar as mamocas para mostrar
aos amigos. E o mais que elas exibirem…
Joana diz:
Não quero saber… Pensei que o universo on-line fosse mais ético…
Camões diz:
Ainda há coisas bem piores. Mas fiquemos por aqui… Gostas mesmo do meu blogue?
Joana diz:
Adoro! Foi por causa dele que decidiste chamar-te Camões?
Camões diz:
Sim. E porque gosto e escrevo poesia, claro.
Joana diz:
E falar de ti na terceira pessoa, conforta-te mais?
Camões diz:
Estilo… dizer o Camões?
Joana diz:
Sim.
Camões diz:
Acho que não… Mas diverte-me muito.
Joana diz:
Gosto muito da poesia de Camões, confesso.
Camões diz:
Claro! Como podias não gostar?
Joana diz:
É por causa dele que me envias sempre mil beijos? Já vi que os mil estão sempre
presentes: mil segredos, mil damas, mil alegrias, mil descansos alheios, mil vidas, mil
esperanças, mil almas, mil flores e mil anos. Puxa!
Camões diz:
Dois mil acidentes namorados, cem mil graças e duzentas mil mudanças. Depende da
disposição, querida 
Joana diz:
Lamento mesmo é que tenhas uma namorada…
Camões diz:
Podia ter mil  Gostavas mais?
Joana diz:

54
Quando regressas a casa e a vês… o que é que sentes?
Camões diz:
Ainda bem que estou deitado na cadeira... Ora bem, depende da disposição! Umas
vezes, sinto-me bem, outras, nem tanto.
Joana diz:
Mas gostas mais de a ver a ela ou ao boxer?
Camões diz:
Esse está num outro nível. É cão.
Camões diz:
Pelos animais nutro um sentimento diferente.
Joana diz:
Estou apenas a ver como se processam essas canalizações e graus de afecto. Muito
bem, um cão é um cão.
Camões diz:
Até agora está tudo bem? Ou seja, sou normal?
Joana diz:
E nos jantares de sexta-feira, com os amigos, ela também vai contigo?
Camões diz:
Claro! Ela é ciumenta como o caraças!
Joana diz:
Se ela te apanhasse com outra, o que achas que faria?
Camões diz:
Não sei. Mas não seria nada de bom.
Camões diz:
Ou talvez não. Não sei.
Joana diz:
Faria um escândalo ou resolvia as coisas contigo em casa?
Camões diz:
Não sei.
Joana diz:
Quer dizer, que por mais incrível que pareça, até agora ela nunca desconfiou de nada.
Das infidelidades via net e… não só.
Camões diz:
Não! Também não sou um “papa gaijas”, que esteja sempre a correr esse tipo de
riscos.
Camões diz:
Não sou um D. Juan.
Camões diz:
Renego essa condição.
Joana diz:
Ou seja, quando papas “gaijas” tens de estar quase sempre “zangado” com ela?
Camões diz:
Não é condição essencial.
Camões diz:
Às vezes, apetece-me ser irresponsável, percebes? Fazer o que bem me dá na telha!
Camões diz:

55
Apetece-me conquistar o mundo!
Joana diz:
Talvez por não te sentires comprometido com ela?
Camões diz:
Não sei… É tudo uma questão de sentir.
Joana diz:
E quando eras casado também deste alguma facadinha?
Camões diz:
Não.
Camões diz:
Bem, vais receitar-me Xanax, é?
Joana diz:
Nada disso. É que adoro conversar contigo.
Camões diz:
Hum...
Joana diz:
Mas, diz-me lá, estavas apaixonadíssimo pela mulher com a qual casaste?
Camões diz:
Acho que nunca estive verdadeiramente apaixonado.
Camões diz:
Talvez a Patrícia, uma antiga colega.
Camões diz:
Mas mesmo assim, acho que não era verdadeira paixão.
Joana diz:
E qual é a tua ideia da paixão?
Camões diz:
Era mais desejo… O desejo, muitas vezes, confunde-se com paixão.
Camões diz:
Não sei explicar o meu conceito de paixão. Terá que ser algo arrebatador, demolidor,
não sei.
Camões diz:
Um constante aperto. Aquele que se sente no início de uma relação.
Joana diz:
Certo. Quando consumas o desejo achas que ele diminui logo a seguir, ou mantém-se
mais algum tempo? O que é que te mata o desejo?
Camões diz:
A rotina mata tudo e mais alguma coisa.
Camões diz:
Mas para que servirá este confessionário? 
Joana diz:
E esforças-te por combater a rotina, ou esperas que essas ideias partam da outra
pessoa?
Camões diz:
Se, de alguma forma, perdi o interesse, talvez seja eu próprio a contribuir.
Camões diz:

56
Ou não. Depende. É tudo uma questão de sentir. A melhor sentinela que temos somos
nós próprios, a nossa alma, ou coisa que o valha
Joana diz:
És sempre muito vago... Sim, não, depende. Talvez não existam respostas objectivas
para tudo mas os sentimentos podem não ser os melhores guias...
Camões diz:
Os sentimentos são os melhores guias, Joana. Caso contrário, entras em rota de colisão
contigo mesmo.
Joana diz:
Mas nem todos nós deixamos que os sentimentos se expressem. Enfim, não é por aí.
Diz-me lá, o que é mais importante para ti: uma nova conquista sexual ou arranjares
uma namorada nova que te estimule mais?
Camões diz:
Se colocas nesse nível, escolho a segunda opção, como é óbvio! Não são situações
comparáveis.
Camões diz:
Embora, da primeira possa resultar a segunda.
Joana diz:
Achas que ninguém abre mão de uma coisa sem experimentar primeiro outra?
Camões diz:
Não te sei responder a isso.
Camões diz:
Misturo muitas vezes desejo com outras coisas.
Joana diz:
OK. Adiante. Achas que o desejo que sentes é algo que vais sentir sempre durante
toda a tua vida? Ou seja, dificilmente deixarás de querer outras e outras mulheres?
Camões diz:
Também não sei responder a isso, Joana. Não faço previsões de coisas que
desconheço.
Camões diz:
Acho que não. Mas não sei.
Camões diz:
Mas volto a dizer, não sou um papador de mulheres, aí a torto e a direito.
Joana diz:
Quando vais para a cama com uma mulher nova o que é que te faz sentir melhor
contigo próprio?
Camões diz:
A situação. O consumar do desejo.
Camões diz:
Só vou para a cama com mulheres que desejo.
Camões diz:
E isso já não acontece há algum tempo.
Joana diz:
Mas como é que podes desejar uma mulher que vês apenas através de uma web-cam?
Há tantas coisas que ficam por sentir: a expressividade do olhar, o sorriso, os gestos, a
química que se desprende...

57
Camões diz:
Nunca fui para a cama com uma mulher pelo simples contacto da web-cam.
Camões diz:
Há sempre a quebra do virtual para o real.
Joana diz:
Quer dizer que foi isso que aconteceu com os referidos casos?
Camões diz:
Os referidos casos não foram através de web-cam sequer.
Joana diz:
Mas disseste que foi através da net, sem imagem ainda é mais intrigante...
Camões diz:
Foto.
Camões diz:
Mas não fui para a cama, sem antes sair.
Joana diz:
Quantas vezes saíram?
Camões diz:
Ou seja, não foi combinada nenhuma queca pelo MSN, compreendes?
Camões diz:
Já te disse, 2 ou 3, não me lembro... Talvez 4, não sei.
Camões diz:
Não contabilizo, já te disse.
Joana diz:
E foi tipo café, almoço, jantar?
Camões diz:
Por aí, sim.
Joana diz:
Café é mais rápido. Almoço, meio apressado. Jantar mais intimista. Então?
Camões diz:
Café um dia, depois almoço… Sei lá... A partir do momento que a barreira virtual é
quebrada, as coisas decorrem de uma forma perfeitamente natural.
Camões diz:
Não é premeditado.
Joana diz:
E eram elas que te procuravam mais, ou o contrário?
Camões diz:
Ambas as situações… Se o interesse era mais da minha parte, como é óbvio, fazia-me
à vida para obter o que desejava.
Joana diz:
Porque dizes que não és nenhum D. Juan?
Camões diz:
Porque não ando à caça… a coleccionar troféus.
Camões diz:
As coisas acontecem porque têm de acontecer. Simples.
Camões diz:
Fogo! Andaste a ler os comentários do meu blogue e tudo! Que honra!

58
Joana diz:
Ou seja, respeitas a ordem natural dos acontecimentos e não buscas nada de concreto.
Camões diz:
Exacto, não busco.
Joana diz:
Li todos os comentários.
Camões diz:
Todos?
Joana diz:
Todos.
Camões diz:
Fogo... São para aí uns 2000 comentários.
Joana diz:
Pois é, e alguns comentadores reincidem.
Camões diz:
Sim, alguns voltam.
Joana diz:
Uma legião de fãs. Não admira que tenha sonhado contigo transfigurado em…
Joana diz:
Líder.
Camões diz:
Sonhaste?
Joana diz:
Fanático de um movimento.
Camões diz:
O movimento para o regresso à pátria dos poetas exilados!
Camões diz:

Joana diz:
Sim. Era um movimento político e revolucionário.
Camões diz:
Ena!
Camões diz:
Moi! Político.
Joana diz:
E eu estava abismada com a quantidade de seguidores que tinhas!!!
Camões diz:

Joana diz:
Pois é… Sonho imenso.
Camões diz:
Isso quer dizer algo.
Camões diz:
Esse teu sonho.
Camões diz:
Acho que te andas a retrair… Daí, o sonho.

59
Camões diz:
Penso que te devias mesmo era entregar ao líder do movimento…
Joana diz:
Não penses isso. Foi o blogue e os comentários. Claro que já sonhei também outra
coisa…
Camões diz:
O quê?
Camões diz:
Líder de um movimento gay.
Joana diz:
Não. Tem a ver com a fotografia.
Joana diz:
Estava a discutir contigo por causa dela. Não acreditava que fosses o modelo e tu já
estavas a ficar passado comigo.
Camões diz:
E não acreditas, é?
Joana diz:
Às vezes, acredito. Quando te vi na web-cam, acreditei logo. Mas depois, há
momentos em que fico na dúvida…
Camões diz:
Se quiseres, levo-te ao estúdio comigo. Mas dado que comi a fotógrafa, aviso desde já,
que teremos de fugir escadas abaixo  Ela não deve ficar contente com o reencontro.
Ainda por cima, se me vir com outra miúda! Muito mais gira do que ela, diga-se de
passagem…
Joana diz:
És terrível…
Camões diz:
Olha, e porque não aumentas o top10
Camões diz:
Estilo top11
Camões diz:
E com algo enfim… mais viável… Não sentes desejo, é isso?
Joana diz:
Para me juntares às 2, ou 3, ou 4, e umas, não boas, mas antes soberbas e
inesquecíveis horas de sexo?
Camões diz:
Não vejo motivo para veres as coisas dessa forma.
Camões diz:
Tirando a parte das soberbas horas de sexo… que contigo devem ser maravilhosas!
Joana diz:
Somos diferentes, mas mentia se não dissesse que me atrais imenso. E sim, claro que
sinto um grande desejo por ti mas também estou a resistir.
Camões diz:
A resistir a quê?
Joana diz:
Ao desejo que sinto.

60
Camões diz:
Intrigante… Resistir ao desejo.
Joana diz:
Sim, para ti deve ser quase uma novidade.
Camões diz:
A sério que leste todos os comentários?
Joana diz:
Já te disse que sim. És uma pessoa que me interessa e muito!
Camões diz:
Estilo, um objecto de estudo?
Camões diz:
Ou estilo, o homem da tua vida?
Camões diz:
Estás a hesitar…
Camões diz:
Hesitar.
Joana diz:
És um magnífico objecto de estudo, sem dúvida. Quanto à segunda hipótese de seres o
homem da minha vida... não sei. És ocupado.
Camões diz:

Camões diz:
Bom, que seja a primeira. Como é óbvio, quero saber as conclusões do ensaio. Já vejo
o título: “Manual do Cabrão Infiel.”
Joana diz:
É uma sugestão a considerar 
Camões diz:
Minha doce Joana, que tanto desejo. Vou sair.
Joana diz:
Beijinhos.
Camões diz:
A personagem quer comer a autora. É original, sem dúvida.
Joana diz:
Original, q.b.
Camões diz:
Mil beijos e fica bem.
Joana diz:
Beijos.

E Joana desliga o MSN, cada vez mais seduzida pela mente de um conquistador que não
se assumia como tal, o novo tipo de galã desconcertante. Maldita fotografia! Se nunca a
tivesse visto não teria induzido aquela imagem magnífica no seu imaginário…

61
Então, como é que vai a minha personagem do “Manual do Cabrão Infiel”?  Seria um
título aliciante, sem dúvida…
A verdade é que me inspiras imenso… Não vou acrescentar à lista um 11º local mais
viável. Em vez disso, levo-te comigo. Só tens de imaginar que os amantes somos nós:

Ela surpreende-se com o olhar dele, o sorriso que tanto existe, como se evapora, o
próprio calor e a firmeza dos gestos daquelas mãos. Por mais real que ele se lhe
afigure naquele quarto anódino de hotel, ela surpreender-se-á sempre com ele. No
fundo, ainda o vê como uma imagem: um homem captado por uma pequena câmara
que, à distância, com palavras diárias, aprendera a amar. E que ninguém lhe
reprovasse a insanidade daquele amor. Não fora por cartas que Cyrano de Bergerac
conquistara o coração de Roxane? No caso dela, somava palavras e imagens,
intenções e voragens.
Tudo deveria ter ficado estagnado, nesse plano imenso mas árido de possibilidades
reais. Contudo, um dia, sem que nenhum dos dois a tivesse previsto tão próxima, a
realidade bateu-lhes à porta. O desejo, esse, foi mais longe e trancou-os num
quarto.
E é lá que eles estão neste momento. Ela sempre a olhá-lo, surpreendida por o ver,
incrédula por o sentir tão palpável e real, nas pernas que se cruzam, na respiração
ofegante que ouve e sabe ser sua.
O êxtase que sente soltar-se-á em gemidos quebrados. Talvez grite. Se isso
acontecer, ele ver-se-á obrigado a tapar-lhe a boca. Ele ainda não sabe dessa
vertigem dela, de como o prazer a arrebata e eleva.

- Na realidade, desejas-me assim tanto?

Dir-se-ia que ela se ausenta e, de novo, deixa de ser real. Ouve-o, sem o escutar.

Existiremos mesmo, neste quarto de hotel, ou isto não passa de uma outra fantasia?

Ele beija-lhe os lábios, os beijos prometidos de água doce e salgada, e é como se o


quarto mergulhasse com eles. Arrastada, flutua e atinge uma dimensão profana.
Tudo se desmorona: as defesas, a altivez. Enredada nos braços dele, a ânsia é
apenas a de prolongar o momento, desejar que ele continue a perpetuar o movimento
persistente dos quadris, o qual acompanha o ritmo contínuo da chuva que bate na
vidraça.

- Se pudesse, engolia-te. Quando desejamos tanto, enlouquecemos com a falta da


posse.

62
Molhada. Há um rio que corre por entre as suas pernas e ela quer acreditar que a
força dessa corrente a vai transportar para um lugar melhor. Ela segreda-lhe, ou
parece fazê-lo quando, na realidade, é o delírio que a enrouquece:

- Põe-me de quatro e puxa-me os cabelos.

E ele obedece, solícito:

- É assim que queres? É assim que gostas?


- É, é assim!

Talvez tenha respondido. Ou não. O prazer quando é grande esmaga-nos a voz. Mais
tarde, ela sorrirá com o brilho que lê nos olhos dele. Um olhar que é tão tímido,
quanto arrojado, tão terno e, paradoxalmente, ausente.

- Em que pensas quando deixas de me ver?


- Não sei. Fazes-me tantas perguntas. Não penso em nada. Memorizo-te. Acho que é
isso. Guardo-te na minha memória.

É passado. Já se saciaram. Quando isso acontece, tudo volta a parecer banal. E ela
acende um cigarro e atira anéis de fumo que se dissolvem no ar.

Porque procuram as pessoas a felicidade com tanto afinco?

Da janela, espreita os outros que se debatem com a chuva e o vento. Uma brisa
empurra-lhe os cabelos para trás, e os mamilos tornam-se insinuantes. Ele soergue-
se e puxa-a pela cintura, arrastando-a de novo à cama de lençóis húmidos e revoltos.

- Quero-te outra vez.

Quantos amantes teriam sido surpreendidos pela mesma chuva e quantos desejariam
banhar-se nela? De novo, entrelaçada a ele, pensa que esta só pode ser a chuva dos
amantes. E que estes eram tão inconstantes como o fenómeno pluvial: umas vezes
mais suave, e outras, insuportável, vergastadas de água. E depois, como tudo aquilo
que começava, também a chuva acabava, dando lugar ao arco-íris e ao sol que todos
os dias teimava em nascer.

Talvez por isso, ambos sorrissem. Ainda que exaustos e suados. Por saberem um
amanhã.

Joana volta a sorrir, satisfeita com o e-mail que acaba de lhe enviar. A verdade é que não
consegue deixar de pensar nele, esperar pela conversa da tarde. E as palavras de Inês

63
soam-lhe demasiado agrestes: “Cuidado! Estás a brincar com o fogo. Vais cair no jogo
dele, vê lá o que fazes.” Que mania! Sempre tinha de existir alguém a chamá-la à razão,
quando tudo o que queria era libertar-se um pouco da monotonia dos dias.

Camões diz:
Olá dear.
Joana diz:
Olá! 
Camões diz:
Adorei o teu 11º mas…
Camões diz:
Ainda estou à espera…
Camões diz:
De um 12º local e horas!!!
Joana diz:
Fogo! És mesmo exigente!
Camões diz:
Deixas-me com água na boca…
Joana diz:
E tu a mim…
Camões diz:
Temos de quebrar esta barreira.
Joana diz:
Talvez…
Camões diz:
Não gostavas?
Joana diz:
Anseio pelo mais ditoso fim.
Camões diz:
Ena! Promissor…
Joana diz:
Quero ver-te. Prepara aí o melhor ângulo da web-cam 
Camões diz:
Não posso. Tenho a porta aberta.
Joana diz:
Porquê? Aberta?
Camões diz:
Assassinei dois irlandeses no escritório e agora isto cheira um bocado mal.
Joana diz:
A sério? 
Camões diz:
Velhos e chatos como tudo. Fumadores de charutos...
Joana diz:
Ah! Então é por isso.
Camões diz:

64
Quero-te. As palavras do teu e-mail incendiaram-me. Vem ter comigo.
Joana diz:
Estou presa em casa…
Camões diz:
Nunca um pé me angustiou tanto. O teu, claro.
Joana diz:
Já falta pouco.
Camões diz:
E depois só tomamos um café, como amigos.
Joana diz:
Claro! Não queres?
Camões diz:
Claro que quero! Nem sequer vou olhar para mais nada a não ser para a chávena do
dito.
Joana diz:
Isso! Tens de te portar muito bem, e já te estou a dar o benefício da dúvida.
Camões diz:
Sim, podes começar por isso, por me dar esse benefício.
Joana diz:
Há uma coisa que não percebo…
Camões diz:
O quê?
Joana diz:
Porque é que queres que te diga logo horas e local. Com as outras aderiste a umas
saídas primeiro…
Joana diz:
As outras que conheceste só por foto e falaste através do MSN…
Camões diz:
Tu és especial. Abro-me contigo, como nunca fiz com ninguém. A ti, conto-te tudo.
Camões diz:
E as outras não interessam. És a mais bonita das minhas amigas.
Joana diz:
Obrigada. Eu também te acho lindo de morrer!
Camões diz:
Mas está difícil, não é? Achas… e achas… mas não prometes nada.
Joana diz:
Dá tempo ao tempo. Como te disse, existem vários impeditivos…
Camões diz:
Estou a ver mais e-mails teus. Ena! Comentaste o meu poema para o “pobão” perceber!
Joana diz:
Foi só uma brincadeira. Já reparaste no comentário daquele “trovador”? Ele não
compreende como é que tens tantas miúdas a comentarem o teu blogue…
Camões diz:
É preciso ter este ar à James Dean, não achas?
Joana diz:
Estás a ser, de novo, convencido. O pior é que és convencido e convincente.

65
Camões diz:

Joana diz:
És mesmo um mistério.
Camões diz:
Porquê?
Joana diz:
Um rapaz bonito e inteligente que anda à caça na net…
Camões diz:
Já te disse que não ando à caça!
Joana diz:
Mas não tens amigos verdadeiros na tua página. Parece que foi feita apenas a pensar no
engate…
Camões diz:
Tenho lá uma amiga. Acho. Mas já não falo com ela há algum tempo.
Joana diz:
Actualizei a minha página com mais fotos. Já as viste?
Camões diz:
Não. Vou vê-las agora.
Joana diz:
Também não precisas de ir ver já.
Camões diz:
Estou aqui na mesma. Deixa lá ver o visual da directora criativa 
Joana diz:
Não gozes.
Camões diz:
Esta, na piscina, vai trazer-te muita gente. Hum… Esta, em Cuba, também. E, claro,
então a da mota de água, nem se fala! É só boa vida, a menina!
Joana diz:

Camões diz:
Porque é que puseste mais fotos na tua página? Não acho boa ideia. 
Joana diz:
Sei lá! Apeteceu-me. Foi para te agradar. É que you put a spell on me…
Camões diz:
Então, deixa lá esse spell começar a funcionar e retira as fotos!
Joana diz:
Ciúmes?
Camões diz:
Estou a brincar.
Joana diz:
Ah, bom!
Joana diz:
Acho um bocado injusto.
Camões diz:
O que é que é injusto?

66
Joana diz:
Tu vês-me, e eu tenho de te estar sempre a pedir para te ver. E agora, com esse pretenso
mau cheiro e porta aberta, estou para aqui, condenada a comer apenas sopa de letras…
Camões diz:
Deves sentir-te como eu, quando escrevi aquele verso: Já que vos não vejo, pêra que é
viver? Certo?
Joana diz:
Não sejas pavão…
Camões diz:
Mas diz lá… começas a ficar caídinha aqui pelo poeta, ou não?
Joana diz:
Isso querias tu! Vá lá… mostra-te!
Camões diz:
Mas quem te disse, amor, que por vos verdes a vós também me vísseis a mim?
Joana diz:
Camões não era assim tão sádico…Aposto que tratava melhor as damas…
Camões diz:
Vocês não gostam de gajos bons. Apaixonam-se sempre pelos piores.
Joana diz:
Isso é um mito 
Camões diz:
Antes fosse…
Camões diz:
Olha, ao meu primo, um grandessíssimo canalha, nunca lhe faltaram mulheres. Morreu
a dar uma, sabes? No funeral dele, estávamos lá todos, família e amigos, e a namorada, a
“viúva”, lá estava…
Joana diz:
Não me digas que também a comeste?! Poupa-me!
Camões diz:
A minha tia a chorar…
Camões diz:
E a miúda vai e apresenta-se como a namorada dele. Ficámos todos a olhar para ela.
Joana diz:
Coitada! Deve ter-se sentido tão mal. Era gira?
Camões diz:
Não tanto como tu mas… há quem tenha comido pior a pagar.
Joana diz:
Isso é muito baixo…
Camões diz:
Pois é. Desculpa. Às vezes, apetece-me chocar-te. Irrita-me que sejas tão ingénua aos
32 anos.
Joana diz:
E então, armas-te em professor e dás-me lições de vida…
Camões diz:
Preferia não saber o que sei… Talvez inveje a tua inocência. Quando encontramos uma
paisagem muito limpa acabamos sempre por a poluir.

67
Joana diz:
Deves estar a tentar bater o recorde do teu primo…
Camões diz:
Não, querida. Estou apenas a apresentar-te à família.
Joana diz:
Não deixa de ser original a maneira como procedes a essas apresentações!
Camões diz:
E diz-me lá… quando é que te despes de novo?
Joana diz:
Que obsessão pelo meu corpo…
Camões diz:
Se o fizeres, depois do que eu te disse, demonstras a tua total confiança em mim…
Camões diz:
Era bonito…
Joana diz:
Sabes o que acho? Que és muito batido nestas doidices!
Camões diz:
Não. Já te disse que com uma web-cam és a primeira mulher. O que não me impede de
ser um gajo informado.
Joana diz:
Que honra! Agora vais ficar fã… da web-cam!
Camões diz:
Desde que ela te capte a ti, podes dizer isso. Dá-me gozo conversar contigo assim.
Mostra-te, querida! Agora, já me podes ver também!
Joana diz:
Vou confiar… Aqui vai! For your eyes only…

E Joana repete o ritual de se despir em frente ao monitor e ao “olho” atento da câmara.


Ensaia poses e aproximações, maneios e outras seduções. Ele ri-se, sopra, tira o casaco.
Assemelha-se a um falcão que, do alto de uma falésia, observa todos os gestos da sua
presa.

Camões diz:
Magnífico.
Joana diz:
Contente?
Camões diz:
Delirante! 
Joana diz:
És um doce e eu adoro ver-te mas…
Joana diz:
Tenho de ir porque vou reunir cá em casa daqui a bocado e tenho de preparar a
papelada.
Camões diz:
Sabes muito…
Camões diz:

68
Toma lá, Tomás! Um bocado do teu próprio remédio!
Joana diz:
É a sério. Custa-me imenso.
Camões diz:
Vê lá a quem é que vais mostrar essa sexy lingerie…
Joana diz:
Já te disse que me dispo só para ti…
Camões diz:
À distância… Hum… Durante quanto tempo mais?
Joana diz:
Está tudo na tua mão.
Camões diz:
Vou pensar em ti durante o fim-de-semana.
Joana diz:
Eu penso sempre em ti.

E desliga o MSN, não sem antes ter enviado primeiro e, recebido, os beijos de animação
gráfica. Talvez o fim estivesse próximo, pressentiu. O fim de algo que começara apenas
no mundo virtual… Mas seria bom vê-lo, pelo menos uma vez, com os seus próprios
olhos. Talvez Tomás nunca deixasse a namorada, talvez ele só quisesse mesmo umas
horas de sexo, como as que teve com as outras. E os restantes homens que também já a
tinham contactado através da net? Procurariam o mesmo prazer furtivo e sem
consequências?
Tomás obrigara-a a apagar um piloto giríssimo. Dissera-lhe que não passava de um
gigolo. Claro que ela disparara logo: “O que o torna tão diferente de ti?” E Tomás
assegurara-lhe, uma vez mais: “Eu não sou assim. Tu, melhor do que ninguém, saberás
ver a diferença.” E ela respondera-lhe: “Mas eu vejo-te com toda a minha subjectividade
e encanto.” E ele: “Sabes o que seria um verdadeiro encanto? Tu vires até à correctora,
pasta no braço, dizias que tinhas uma entrevista marcada comigo. Ele mandava-te subir e
depois…” Joana rira-se: “Levava apenas um casaco de peles e tu atiravas-me para cima
da tua secretária.” Tomás explicara-lhe: “Não. Um casaco de peles dava muito nas vistas.
Uma gabardina, sem nada por baixo. E não seria na minha secretária mas antes na mesa
de reuniões. É mais robusta.”
Joana deixara-o prosseguir com a fantasia, rindo-se com o descaramento dele. Quem se
cansaria primeiro do jogo do gato e do rato? E o que faria o vencedor de tal batalha?

69
Camões diz:
Olá!
Joana diz:
Olá! Então, como estás?
Camões diz:
Bem. Estou a ver o meu correio. Ena! Um e-mail teu.
Camões diz:
Logo irei ler com mais atenção! Posso imprimir?
Joana diz:
Claro que podes imprimir

Camões está a convidá-la para iniciar envio de imagens da câmara Web. Pretende aceitar
(Alt+C) ou recusar (Alt+D) o convite?

Aceitou o convite para iniciar envio de imagens da câmara Web.

Joana diz:
E então? Posso ver-te ou continua o mau cheiro dos velhos irlandeses assassinados?
Camões diz:
Já ligo… Ainda está cá muita gente.
Joana diz:
Está bem.
Joana diz:
Vamos fazer um pequeno exercício, ok?
Camões diz:
Vamos.
Joana diz:
A ideia é comentar um poema, de acordo?
Camões diz:
Seja.
Joana diz:
Aqui vai:
Joana diz:
Desatino que sejas somente um amor virtual
Uma fantasia, uma quimera, uma nuvem passageira
Como eu te queria eterno e real
Palpável ao meu tacto, rijo contra mim
Joana diz:
Sei-te tão belo e forte
Que é um suplício não te ter nos meus braços
Entre as minhas pernas, o teu olhar fixo no meu
Devorando-me com ardor

Camões diz:
Hum…

70
Joana diz:
Ring a bell?
Camões diz:
Tlim!
Camões diz:
É teu?
Joana diz:
Não, claro que não.
Joana diz:
Mas foi-te enviado....
Camões diz:
A mim?
Joana diz:
Claro. Por uma Matilde.
Camões diz:
Está no blogue?
Joana diz:
Sim.
Camões diz:
Acho que já sei.
Camões diz:
A Matilde é uma rapariga do Algarve.
Joana diz:
Sim, mas porque é que ela te enviou este poema em concreto?
Camões diz:
Mas já não falo com ela há imenso tempo.
Joana diz:
Amor virtual…
Camões diz:
Ela enviou esse poema porque estava apaixonada pelo Camões.
Joana diz:
Estou a ver…
Camões diz:
Mas nunca a vi pessoalmente. Aliás, ela é casada.
Joana diz:
Um dia, alguém escreveu: “Os engates são sempre a mesma treta.”
Camões diz:
Como assim?
Camões diz:
Não engatei a moça.
Joana diz:
Não te esqueças que estamos a meio de um exercício, composto por o que elas dizem
e o que tu escreves.
Camões diz:
Aliás, ela enviou-me imensos poemas.
Joana diz:

71
Estou a ver: “Encontros em espaços reais ou virtuais que conduzem a amores tão
instantâneos como uma sopa de pacote, estilo de quantos minutos precisas para te
vires?”
Camões diz:
Vejo que continuas a desmontar o blogue…
Camões diz:

Camões diz:
Sim, isso foi um artigo.
Joana diz:
Inspirado em quê?
Camões diz:
Inspirado na vivência. Metida tenho a mão na consciência e não falo senão verdades
puras que me ensinou a viva experiência.
Joana diz:
Hum… Não esquecendo que: “A troca de fluidos exige cuidados e atenções. Protejam-
se, meus amigos, não corram riscos desnecessários.”
Camões diz:
Tinha que escrever algo mais, não achas?
Camões diz:
E é verdade, certo?
Camões diz:
Nada de errado nessas palavras.
Joana diz:
Olha, e estas: “Acaba com ela! O que esperas? Já toda a gente sabe que ela te traiu!
Vais ficar de braços cruzados! Manda-a pastar!”
Joana diz:
Foram inspiradas em quê?

Acaba de enviar um Toque!

Camões diz:
Joana, dá-me uns minutos, por favor.
Camões diz:
Tenho que resolver um problema aqui.
Camões diz:
Já volto, ok?
Camões diz:
Adoro que estejas a desbravar o blogue.
Camões diz:
Já volto.

Interrompeu a visualização das imagens da câmara Web com Camões.

Acaba de lhe enviar um Toque!

72
Camões diz:
Já cá estou.
Camões diz:
Mas posso ter que voltar a sair por minutos, ok?
Camões diz:
Continuemos.
Joana diz:
Então? Já resolveste o problema? Mas que homem tão despachado!
Camões diz:
Está meio resolvido.
Camões diz:
Por isso, talvez tenha que sair mais um bocado.
Joana diz:
Olha, e estas palavras: “Acaba com ela! O que esperas? Já toda a gente sabe que ela te
traiu! Vais ficar de braços cruzados! Manda-a pastar!”
Camões diz:
Isso foi um devaneio.
Joana diz:
Foram inspiradas em quê?
Camões diz:
Não faço a mínima ideia… Deu-me para aí.
Camões diz:
Às vezes sinto… muita energia dentro de mim… e tem que sair… saiu dessa forma.
Camões diz:
Mais.
Joana diz:
Mas, por exemplo, quando escreves algo, de certa forma, isso está relacionado com a
tua vivência, certo? Como aquele passeio à quinta dos teus avós, por exemplo, ou o
dia do sexo sem fronteiras?
Camões diz:
Dos meus avós, sim. Dia do sexo sem fronteiras?  Não me lembro.
Joana diz:
Não te lembras? Picaste-te imenso com um dos comentadores. Ele esperava palavras
mais ousadas e tu recorreste ao erotismo. O “gritem o meu nome a meio do acto” foi
delirante.
Camões diz:

Camões diz:
Nessa altura, estava mais empenhado com o blogue.... E a prosa era direccionada para
os fulanos que a liam.
Camões diz:
Ou seja, escrevia conforme a corrente.
Joana diz:
Compreendo. Vejamos, o que então dizias, sobre algo que te é muito caro: o desejo.
Joana diz:

73
“Desejos incumpridos todos têm. Realizam-se quando arregaçamos mangas mas assim
que são uma meta a magia perde-se algures.”
Camões diz:

Joana diz:
E então?
Camões diz:
Complicado...
Joana diz:
O que pensas hoje sobre isto?
Camões diz:

Joana diz:
Vá, diz lá.
Camões diz:
Penso que, às vezes, devo ser mesmo doido para escrever cenas dessas.
Joana diz:
Não pensas nada. Na realidade, há um certo fio condutor na forma como escreves e
sobre o que escreves
Camões diz:
Achas?
Joana diz:
Sim. Consegues ter um filtro muito bom na forma como expões as várias temáticas.
Camões diz:
Fogo… Nunca o blogue foi tão dissecado.
Joana diz:
E sobre a bela da sedução:
Joana diz:
“Não há tensão maior do que aquela entre o sedutor e o seduzido. Aquela sensação de
um aperto no estômago. As palhaçadas. O desespero que a ausência de um provoca no
outro.”
Camões diz:
Correcto.
Joana diz:
Então, isto já não é doideira?
Camões diz:
Não. É a realidade.
Joana diz:
E estavas a sentir-te assim quando escreveste aquilo?
Camões diz:
Não.
Joana diz:
Mas querias estar?
Camões diz:
Conheço muito bem esse estado.
Joana diz:

74
Entregas-te com facilidade ao jogo da sedução?
Camões diz:
Talvez... Se me interessar.
Joana diz:
E para te interessar, como é que alimentas esse interesse, ou como é que ele finda?
Afinal: “O Paraíso está sempre ao lado do Inferno”…
Camões diz:

Joana diz:
Esforça-te.
Camões diz:
És o máximo, Joana.
Joana diz:
Vá, não fujas.
Camões diz:
Passa quando acaba a emoção, como é óbvio.
Joana diz:
E a emoção acaba consumado o sexo?
Camões diz:
Claro que não.
Joana diz:
Fodeu/esqueceu?
Camões diz:
A emoção acaba por vários motivos.
Joana diz:
Por exemplo.
Camões diz:
Certamente não será por uma queca.
Camões diz:
Rotina.
Camões diz:
Saturação.
Camões diz:
Isso sim. Acaba com a emoção.
Joana diz:
Mas por exemplo, explica-me uma coisa, se souberes, claro.
Joana diz:
Com aquelas meninas dos tais encontros rápidos e gostosos, a coisa prolongou-se por
algum tempo, ou não? E se não, porquê?
Camões diz:
Umas não. Outras sim. Durou… Sei lá... um mês.
Camões diz:
Eu tento explicar-te.
Joana diz:
E o que é que faz durar umas, e outras não? A performance? O interesse por algo em
específico?

75
Camões diz:
Não deve ser fácil manter... cativado, com interesse e emoção, um tipo como eu. Não
sou pêra doce.
Camões diz:
É uma luta constante.
Camões diz:
Ninguém é perfeito, não é?
Joana diz:
Muito bem. Admitindo que não és pêra doce, e que és difícil de aturar, como é que,
com a legítima – digamos assim – a coisa rola há tanto tempo?
Camões diz:
Passamos da análise do blogue para análise pessoal, é?
Joana diz:
Isto é difícil de separar: o blogue e a tua mente.
Camões diz:
Porque, provavelmente, já não sou como era... Talvez agora seja mais tolerante… Não
sei… Também não sei explicar.
Joana diz:
O que é que toleras?
Camões diz:
Eu próprio.
Camões diz:
O que é difícil!
Joana diz:
Mas se tu és difícil, ela também não deve ser fácil. Dirias que estão bem um para o
outro?
Camões diz:
Não.
Camões diz:
Não diria isso.
Joana diz:
Então, dirias o quê?
Camões diz:
Se estivéssemos bem um para o outro, não estaria aqui a conversar contigo desta
forma.
Joana diz:
Mas talvez gostes de conversar comigo porque sabes que me atrais. É bom sermos
desejados, não achas? Quererem saber de nós e das pequenas coisas que nos passam
pela mente.
Camões diz:
Cá para mim, para além do blogue, queres desmontar também a minha cabeça!
Joana diz:
Tu é que desmontaste os irlandeses aí no teu escritório, lembras-te? Desmembrados e
serrados, enfiados em sacos de lixo, os pobres coitados!
Camões diz:

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Não, eu quero mesmo é comer-te! Sentir o tal aperto que escrevi no blogue. E, depois,
logo se verá! Isso, sim, é o que eu quero!
Joana diz:
Ena! Comer-me... pois sim. É uma possibilidade.
Camões diz:
Repara: esta nossa labuta, luta, seja o que for, vai ter que chegar a algum lado.
Joana diz:
Tudo corre para algo, se até os rios correm para o mar.
Camões diz:
Estás a pôr-me o cérebro a fervilhar! E eu adoro essa sensação.
Joana diz:
Mas tu não esperas que inaugure algo que nunca aconteceu antes, segundo tu próprio o
disseste.
Camões diz:
Nada espero; mas de mim crede este fero, que em ser vosso, vos quero tudo o que
posso, e não posso quanto quero!
Joana diz:
Não podes esperar, Tomás Stockley, que eu, Joana Lima, combine uma queca contigo
via net, não é?
Camões diz:
Dito dessa forma, quase que me levas a concordar.
Camões diz:
Mais!
Joana diz:
Estás muito exigente hoje, querido! Que ansiedade…
Camões diz:
Mentes a fervilhar, e não pode ser só a minha!
Camões diz:
Mais!
Camões diz:
E do blogue? Nada mais te faz confusão? Já esclareceste tudo?
Joana diz:
Tu realmente és um devorador. Comes-me as palavras a uma velocidade voraz.
Voltemos ao blogue.
Joana diz:
Terminas sempre, ou quase sempre, os teus primeiros textos com um verso de
Camões. Porquê? Misturas artigos e poemas…
Camões diz:
Inicialmente, escrevia só poemas. Mas, depois, apeteceu-me falar de outras coisas,
sentimentos meus, estilo diário. Acabei por misturar as duas vertentes: a poética e a
intimista. Um blogue é para escrevermos sobre tudo o que quisermos! Mais!
Joana diz:
Hoje, estás febril!
Camões diz:
Sim, mas tu é que começaste.
Joana diz:

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É verdade. Vamos analisar mais uns excertos, ok?
Camões diz:
Seja.
Joana diz:
“Engolir em seco é atroz. Nem o nosso estômago gosta de ser enganado. Dói como
facadas quando percebemos que fomos ludibriados. A ilusão… O pior jogo a manter.”
Camões diz:
Confesso que está bem observado, não achas?
Camões diz:
Isso deve-se à realidade.
Joana diz:
Está lindo!
Camões diz:
Ninguém gosta de engolir em seco.
Joana diz:
Mas quando escreves estas coisas, de certeza que não espelham momentos da tua
alma, experiências vividas e descritas, ainda que de forma vaga, ambígua e indirecta?
Camões diz:
Talvez descrevam… Afinal toda a gente já engoliu em seco.
Joana diz:
Uma coisa engraçada é que as pessoas que te lêem, algumas, não percebem patavina
dos textos mas gostam deles na mesma. O que achas disto?
Camões diz:
O povo, mesmo quando não percebe, elogia.
Joana diz:
Mas, e quando as meninas fazem amor contigo, ficam contentes com a descoberta do
teu corpo de estátua grega? Considera-lo a tua melhor arma de sedução?
Camões diz:
Não sei se é a melhor arma... Aliás, até existem opiniões por aí, de que estou magro.
Joana diz:
Pessoalmente, gosto muito da junção corpo/mente. Acho que és bastante inteligente e,
isso atrai-me muito.
Camões diz:
Claro que sou inteligente! Mais! Do blogue? Nada mais que te faça comichão?
Joana diz:
Caramba! Nem me deixas respirar.
Joana diz:
“Assumir a verdade, de peito aberto e rosto erguido. Gosto de agarrar a vida pela
frente, sem receio do amanhã.”
Camões diz:
Sim.
Joana diz:
Costumas dar a carinha, é?
Camões diz:
Quando é preciso.
Camões diz:

78
Esse texto tinha um significado.
Joana diz:
Vamos a ele!
Camões diz:
Foi uma história.
Camões diz:
Passa à frente.
Joana diz:
“Pensar no futuro, fugir do vulgar e lutar com força por aquilo que mais se deseja!”
Joana diz:
Como vês o teu futuro, tu que nada buscas de concreto?
Camões diz:
Já te disse. Família. Ser pai. Mais!
Joana diz:
Constituir família é a tua grande prioridade?
Camões diz:
Talvez. Tenho que deixar uns camõezinhos por aí.
Joana diz:
Só por pura cagança.
Camões diz:
Sim, cagança pura e dura!
Joana diz:
Todos queremos algo na vida. E a família pode ser uma opção. Mas para isso tens de
te portar BEM!
Camões diz:
Sei disso.
Joana diz:
Vamos ao teu último texto.
Camões diz:
Sim, a foto que o acompanha é gira.
Joana diz:
“A indecisão é uma das inglórias desta vida. Hoje queremos e, amanhã, já não nos
apetece. Será que desejamos para ter, ou não temos para desejar?”
Camões diz:
Desejo e posse. Água e azeite. Um exclui o outro.
Joana diz:
Parece-me cruel. E diz-me lá, recebes muitas fotos e textos de outras pessoas para o
teu blogue. Gostas desse convívio virtual?
Camões diz:
Sim. E publico sempre que me enviam.
Joana diz:
Como te consideras face à net? Dependente ou nem por isso?
Camões diz:
Nem por isso. São fases. No princípio estava quase dependente. Pelo blogue. Agora
não.
Joana diz:

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Já são três anos de vida…
Camões diz:
Dá-me gozo ver os meses a passarem no grafismo da página. Mais!
Joana diz:
“E o passado mistura-se no presente, mas não consigo perspectivá-lo em futuro porque
este era mas já deixou de o ser.” Queres comentar? O que é que no teu presente já não
tem futuro?
Camões diz:
Alucinações.
Joana diz:
Haxixe, LSD, cocaína ou ectasy?
Camões diz:
Não, são mesmo impulsos cerebrais naturais.
Joana diz:
“Gosto da vida superficial, da banalidade dos gestos, do egoísmo de todos”…
Camões diz:
Estava a ser irónico.
Joana diz:
Ai, essa mordacidade!
Camões diz:
Quando é que tiras esses maldito gesso do pé?
Joana diz:
Em breve, muito em breve.
Joana diz:
Gostas mesmo de pintura, ou é só porque ficam bem as imagens no blogue?
Camões diz:
Gosto.
Joana diz:
Algo em especial? Um pintor? Um estilo?
Camões diz:
Nada em especial. Gosto de apreciar cada pintura como uma obra única, sem
preferência por artistas ou escolas.
Joana diz:
Que palavras sábias.
Joana diz:
Achas normal que te dividas em duas personalidades? O Tomás e o Camões?
Camões diz:
Acho.
Camões diz:
No fundo, são a mesma pessoa.
Joana diz:
O que esperas alcançar com o teu blogue? Espalhares mais reflexão pelos cibernautas?
Camões diz:
Não. Pura satisfação pessoal. Nada mais. Não quero, nem pretendo evangelizar.
Joana diz:
És um homem que coloca a tua satisfação acima de tudo, já reparaste?

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Camões diz:
Não concordo. Mas aceito que talvez seja um pouco egocêntrico.
Joana diz:
E em relação à Fotografia. Interessa-te o mundo das imagens, ou nem por isso?
Camões diz:
Sim. E todos os versos do mundo. Sou poeta, certo?
Joana diz:
Porquê? Achas que os versos resumem bem a coisa?
Camões diz:
Claro. “É condensar o mundo num só grito! E é amar-te, assim, perdidamente…”
Espanca, claro.
Joana diz:
Entre o mundo virtual e o real, se tivesses de escolher, optavas por qual?
Camões diz:
Real, vivo no mundo real.
Joana diz:
Às vezes, custa-me acreditar nisso.
Camões diz:
Mas é a pura da verdade.
Camões diz:
Ah, senhora, em quem se apura a fé de meu pensamento! Vamos ficar por aqui hoje...
Vou sair.
Joana diz:
Beijos.
Camões diz:
Mil beijos. Gostei muito, imenso, muitíssimo!!!

***

“Que querida! A desbravar-me o blogue”, pensa Tomás, enquanto contempla uma


pirâmide de tomate enlatado.
A voz de Rita trá-lo de novo à realidade do hipermercado:
- É esse aí, à tua frente. Em pedaços. Estás à espera do quê? Tira duas latas, por favor.
“Odeio estas compras. E ainda te falta metade da lista”, suspira, resignado.
- Já foste buscar as especiarias, querida? – pergunta, tentando esquecer-se da conversa da
tarde.
Na realidade, algumas das frases que Joana seleccionara tinham muito a ver com o seu
passado e com o de Rita, a qual empurrava o carrinho de compras à frente dele, ao
mesmo tempo que riscava da lista o que ia retirando das prateleiras.
Mas como poderia ele ser sincero com Joana? Poderia a honestidade seduzir uma
mulher? Queria-a rendida com o melhor de si próprio e, a namorada e o abismo que ela
lhe abrira, não faziam parte do glamour a transmitir.
Engolir em seco… Isso acontecera há muito, quando percebera a dimensão da dor. E lá
estavam também registadas, a sangue e lágrimas, as opiniões dos amigos que achavam

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que uma traição não tinha desculpa. Foram mais longe: chamaram-na de puta. E ele
pediu-lhes para o ajudarem a esquecer.
Sem a conseguir odiar mas votando-lhe um desprezo e uma raiva até então
desconhecidos, Tomás passou a coleccionar mulheres. Seguiram-se umas às outras, em
espaços reais ou virtuais. Horas de sexo sem moral a extrair, apenas e tão só, uma troca
de fluidos protegida. Não era nenhum tarado inconsciente. E, sim, os casais que gritassem
o nome dele, o nome que ela havia esquecido quando, tão pronta, se entregara a um outro.
Talvez rindo e fazendo troça do que tinha em casa.
Nessa altura, também Tomás suprimira desejos incumpridos. Se Rita o havia traído e
admitido a aventura – com muitas lágrimas à mistura e falso arrependimento – ele
aproveitara para arregaçar mangas e passara a atingir metas. A magia, essa, perdera-se.
Evaporara-se no exacto momento em que a primeira lágrima de Rita acompanhara a
inaudita confissão: “Traí-te com o teu primo. Não mereço o teu perdão. Aconteceu.” E
ele: “E agora? O que tencionas fazer? O meu primo é como se fosse meu irmão.” Mas
depois pensara: “Que grande filho da puta de irmão. Sabia que eu adorava esta mulher e,
mesmo assim, teve de a comer. E aposto que o fez na minha casa porque sempre teve
vergonha da dele.”
- E os iogurtes? Já tens os iogurtes?
Sem ter noção da força exercida, Tomás espreme o tubo de pasta de tomate concentrado.
A visão súbita e inesperada do molho de um vermelho intenso no chão claro deixa-o
pensativo: “Quando uma pessoa não se vinga e perdoa é melhor do que as outras e
merece o céu, ou não passa de mais um pobre diabo?”, reflecte, segundos antes da
censura previsível:
- Céus, Tomás! Que desastrado! É molho de tomate por todo o lado! E isso custa imenso
a sair. Espero bem que não tenhas sujado a camisa.
“Ó! Cala-te! Desaparece da minha vida!”, apetece-lhe gritar. Mas acaba por dizer:
- Não sei como isto aconteceu. Já devia estar aberto. Estilo as amostras dos produtos de
cosmética que gostas tanto de experimentar – ironiza.
- Já vem aí uma empregada ajudar. Tens de ter mais atenção, querido – acrescenta
quando a funcionária está tão próxima que pode ouvir o comentário.
- Tens razão, querida. Não sei o que me passou pela cabeça.
“Talvez apertar-te o pescoço e ver se o sangue também assumia ao teu olhar. Não. Não
sou assim. Foi a imagem que me ocorreu. Imaginei-te com o meu primo, os dois como
coelhos, em cima da minha cama. Mas isso é passado. Perdoei-te por não saber viver sem
ti e já me vinguei o suficiente. Ou não. Se calhar, vou vingar-me o resto da vida. Vou
foder todas as mulheres do mundo.”
- Não se preocupem que já limpamos isto. Acidentes acontecem – tranquiliza a mulher do
hipermercado, ao mesmo tempo que passa um toalhete a Tomás.
O casal prossegue com as compras e, nesse momento, é igual a tantos outros casais que
fazem o mesmo. Embora, interiormente, tenha mais peso aquilo que os afasta, do que
aquilo que os deveria unir.
Rita inquieta-se com as ironias despropositadas que vão surgindo todos os dias. Também
não é alheia ao secretismo que ele vota agora ao telemóvel. Nunca mais o deixou pousado
pela casa, desliga-o quando estão juntos e, quando não o faz, recebe umas mensagens que
disfarça na hora. E ela sente-o mais alheado, quase feliz. E nada a irrita mais do que vê-lo
sorrir sem que descortine o motivo por detrás de tal sorriso. Talvez seja isso o que mais a

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enerva: sentir que algo lhe escapa, que, propositadamente, ele a marginaliza. Desconfia
de uma eventual mulher, porém, o deslize dela, impede-a de o confrontar directamente.
Daí, o reforço em serem pais. Se engravidasse dele, teria todos os mimos do mundo. Não
lhe dissera Tomás que adorava ser pai? E agora? Porque a evitaria sempre que sabia que
ela estava a ovular?
“Se te apanhar com outra, não te perdoo”, pensou, nervosa. “Não tenho a tua bondade. E
vocês nem sequer sabem disfarçar. Eu confessei porque quis. Caso contrário, jamais
saberias. Mas fi-lo por despeito contra o Tiago. Esse teu primo que nunca me amou. Foi
para a cama comigo, como foi com tantas outras e, agora, já está debaixo de terra.
Coitado… Mas quando a coisa rolou entre nós fingiu que me amava. E eu acreditei
porque o meu corpo precisava de sentir outras mãos a percorrerem-no. Já estava farta da
nossa rotina, do sexo ao sábado.”
- Espargos?
- Sim, dois molhes. E aquelas alfaces francesas. Estão ali, Tomás.
Quando o vê afastar-se, Rita aprecia o facto de ele ser um homem bonito e alto, seguro no
seu andar. O Tiago era muito mais baixo e até tinha uma pequena barriga de cerveja, da
vida boémia que levava. Mas isso tornara-o atraente, ou menos obsessivo com o corpo do
que Tomás, o qual lhe instalara um ginásio em casa para ambos suarem no intervalo das
saladas e das frutas.
“Nunca conheci ninguém tão contraditório”, pensa, ao mesmo tempo que enfia uns
limões num saco de plástico. “No fundo, talvez até seja por isso, que me sinto desafiada.
Ama-me e odeia-me, procura-me e rejeita-me, fala-me docemente e não consegue
disfarçar uma certa aversão”.
- Já só falta o vinho.
- Sim, escolhe os tintos da tua eleição, querido. Eu vou para os brancos.
“Detesto vinho tinto. Até nisso, somos diferentes. Só aprecio verdes e brancos. O Tiago é
que sabia viver a vida! Vinho verde e marisco. Os almoços deliciosos que fiz em nossa
casa, durante a tua ausência. Que belas recordações da cozinha, quando ele me tirava as
calcinhas e sentava-me na bancada de mármore… E era justamente aí, no local de tanto e
bom sexo, que à noite encontrarias o teu prato de comida fumegante… A minha vingança
contra a queca de sábado à tarde e contra o teu cansaço de segunda a sexta. E também
contra a mania excessiva da dieta e da falta de doces na nossa casa. O Tiago era o meu
bolo de ananás e chantilly proibido, a minha trouxa-de-ovos, o meu leite-creme”.
- Está tudo?
- Sim, amor. Vamos para a caixa.
- Finalmente!
“Se o Tiago não me tivesse feito sentir tão puta, teria ficado bem calada. Mas não
suportei que ele me tivesse trocado pela outra, aquele pãozinho sem sal que o enviou
desta para melhor! Bem feito! Foi por isso que te disse que te tinha traído com ele. Para
lhe ires à cara. Mas, palerma como és, perdoaste-me e limitaste-te a cortar relações com
ele… E, na realidade, fiquei a ganhar. O teu primo tinha um pénis mais pequeno e torto,
nada que se compare ao teu. E não fazia amor como tu, mas fazia quando eu queria. Era
só telefonar-lhe e ele vinha logo. Às vezes, nem tomava banho. E não se vestia tão bem
como tu. Na verdade, continuo a achar que és o homem mais bonito que já tive. Sou tão
contraditória e complexa como tu”.
- Satisfeita com as compras? – pergunta, ao vê-la sorrir.

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- Sim Qualquer dia, estamos a comprar aqueles frascos para bebé. Não seria o máximo?
Tomás sorri-lhe em resposta, mas tem consciência de que o seu sorriso é amarelo.
- Olha lá, Joana, sabes muito bem que podias ir um pouco até à rua – desafia Inês,
impaciente, sentada em cima da mesa da sala de jantar, com ambas as pernas a
balançarem a grande velocidade. – Não percebo como é que aguentas tanto tempo aqui
fechada!
- Tenho uma imagem de diva a defender, minha querida – riposta, olhando-a divertida. –
Estás a ver se cais daí abaixo para me fazeres companhia, é?
- Tens muita sorte de o patrão aturar isto! Eu obrigava-te a sair e a arejar. Vais dar em
maluca, sabes?
- Para a semana tiro o gesso.
- Finalmente!
- E depois vou sair com o Tomás! Estou tão ansiosa que fumo cigarros, uns atrás dos
outros.
- Não devias – comenta a olhar enojada para o cinzeiro. – Não receias um cancro no
pulmão?
- Acho que nenhum fumador pensa nisso. Caso contrário, ninguém fumava. “Enquanto o
destino mo conceder, continuarei fumando”, Fernando Pessoa, claro.
- Mas que poética – observa, surpreendida. – E novidades desse amor on-line?
- Os nossos cérebros fervilham – revela com um grande sorriso. – Mal posso esperar pela
reacção dos corpos.
- És parva? Já te disse para não facilitares! – avisa, com má cara.
- Tranquila, Inês. Isto é só um desabafo entre nós. É evidente que não vou saltar para os
braços dele. Já te disse que quero ser namorada, e não um encontro casual e fogoso.
- Ó santinha! Mas como é que queres ser namorada de um tipo que já tem uma?
- Sou tarada, admito. Meti isto na cabeça. O que é que queres? Já há muito tempo que não
namorava. Assim. Todos os dias.
- Sim, sem dúvida que és excêntrica e doida, como toda a boa aquariana. Mas, não
estiques a corda. Ela vai rebentar-te nas mãos e, depois, é que quero ver!
- Ave agoirenta!
- Mas vocês falam tanto sobre o quê? Como é que se namora on-line?
- Namorando-se. Falamos de tudo e de nada. Tento compreendê-lo. Invento jogos, sei lá.
Gosto tanto quando estou a escrever com o MSN ligado e, de repente, vejo o aviso de que
ele está a entrar. Adoro quando o Tomás entra – profere, concupiscente.
- És mesmo maluca! A net avaria o disco rígido dos seres humanos.
- Hum… Talvez. Mas estou a divertir-me imenso!
- Não sei como é que te consegues divertir dessa maneira. É como se estivesses a ler um
bom romance. É um gozo individual, percebes? Não sentes a partilha, por muito boa que
seja a leitura.
- Bem pensado e bem dito! Mas sabes, este é um daqueles casos em que não podemos
dizer que a realidade ultrapassa ou supera a ficção, mas antes, que a virtualidade se
sobrepõe a ambas.
- Medicação! Ar! Qualquer coisa que salve essa cabecinha! – apela, entre risos.
- Deixa lá! Para a semana já estou de regresso à normalidade e ao “real, impossivelmente,
real, certo, desconhecidamente, certo”. Pessoa, de novo. Ai, o amor! – suspira, encantada.

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- E depois não podes estar tantas horas com o Tomás na net. Às vezes, nem tens tempo
para te coçar. Directas, fecho às tantas da manhã, milhares de horas a paginar e a
repaginar – lembra, Inês.
- Não me recordes isso. Acho que vou partir qualquer coisa outra vez…
Inês sacode a cabeça e, os seus cabelos louros esvoaçam, soltos e lisos. Olha para a
amiga, como se esta precisasse de um tratamento urgente:
- Estás mesmo apaixonada por um tipo através de uma web-cam. Nunca pensei assistir a
um fenómeno desses em toda a minha vida.
- Há um momento para tudo. O que há de errado com o amor virtual?
- Tudo! Absolutamente tudo! É anti-natural, anti-racional, sei lá. Não faz sentido. As
pessoas não se apaixonam assim.
- E no passado, quando só escreviam cartas?
- Mas tinham fotografias.
- E eu tenho imagem animada! Ainda é melhor, ou não? Olha, no outro dia, quando ele
entrou, ficou imenso tempo sem teclar nada. E eu, à espera. Às tantas, depois de o ter
cumprimentado duas ou três vezes sem resposta, envio-lhe um toque. Só então é que o
Tomás pareceu despertar e diz-me com um ar sonhador: “Estava a olhar para ti.” Não é
lindo?
- Electrizante…
- Não sejas má. É este o amor on-line. Falamo-nos, vemo-nos, desejamo-nos…
- E não se têm! Isso é o amor sádico e disparatado.
- Fogo! Hoje estás para me contrariar…
- O que te interessa dissecar o blogue ou a mente dele? Porque procuras todas as
explicações? Pensas de mais. E isso leva-te aonde? No fundo, ambas sabemos que nunca
te meterás nesse barco.
- Certo. Mais um motivo para serenares. Isto é só uma brincadeira. Ou um estudo, se
quiseres.
- Estudo do quê?
- Da mente depravada dos rapazes que caçam na net.
- Verdade?
- Claro.
- Hum… Mas quando fazes um estudo e analisas vários sujeitos também concluis. Porém,
ainda te vejo a cismar neste.
- É porque este caso, em particular, exige redobrada atenção. Ele não é uma pêra doce,
sabes? – lembra, a rir.
- Então, investigas este primeiro e, depois, seguir-se-ão outros?
- Certamente. O Tomás é o grande filão, entendes? Depois de desmontado, dá-me
referências para enquadrar as características vindouras e, como espero, chegarei ao
padrão do sedutor virtual.
- Isso parece-me uma desculpa científica para ocultar a tua paixão. Não acredito que
queiras fazer isso. Independentemente do final com este, sei que nunca mais brincarás aos
amores virtuais. Cansas-te demasiado depressa.
- Caramba! Desisto! – conclui, a rir.
- Não me enganas, Joana. Podes enganar-te a ti própria, mas eu conheço-te.
- Seja. Bebes um chá, ou já estás de partida?

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- Queria levar-te comigo para a rua. Veste lá o casaco e agarra na canadiana. Até parece
que não tens elevador no prédio!
- “Para a rua inacessível a todos os pensamentos”…
- Deixa lá a poesia. Anda, sê uma querida e faz-me este prazer.
- Ai, que melga! Está bem. Mas tenho de apanhar o cabelo. E deve estar montes de frio.
Não me apetece nada arcar com mais uma maleita, estilo uma constipação que me
obrigue a usar um lenço, de dois em dois minutos.
- Ficava mal no ecrã, era?
- Vês, como até sabes? Agora tenho de defender a minha imagem. A real. A que é
virtualmente absorvida. E a ficcional. A que desejo que aconteça, mas ainda é só
imaginação, uma mera fantasia.
- Céus! Veste lá o casaco, ou terei de te arrastar pelos cabelos? O ar vai fazer-te
maravilhas. Estás a ficar obsessiva.
- Que horror! A sério? Não quero ser assim! Achas mesmo que estou a ser maçadora?
Vamos já falar do catálogo das cores que vou usar e do novo tipo de caracter, as fontes, o
que achares mais aliciante. Que tal? – propõe, irónica.
- Deve ser por isso que te adoro, sei lá!
E ambas saem, bem dispostas, do apartamento. Mas nesse dia, Joana perderá a vontade de
voltar a rir. Sem saber porquê, Tomás não só não entra on-line, como ao contrário do que
sempre sucedia quando não lhe era permitido aceder à net, remete-se ao maior dos
silêncios e nem um SMS lhe envia… Joana ficará pensativa e curiosa. Ter-se-á Tomás
cansado do jogo? Pensará ele que não vale a pena investir mais numa rapariga que não
lhe dá as certezas que ele quer? Ou estará a testá-la? A ver se a mudez dele a incomoda?
Esperará Tomás que ela lhe telefone para saber o motivo da ausência? Ou pretenderá ele
avaliar, até que ponto, a distância em relação a Joana o incomoda ou não? Estar-se-á a
testar a ele próprio, antes de tomar qualquer resolução?
A mente de Joana contempla variadíssimas hipóteses. E quando acorda, no dia seguinte,
lembra-se de ter sonhado com Tomás. Ele entrara no seu sonho, com o mesmo aviso do
MSN, ou seja, surgindo-lhe no canto direito, replicando o alerta sobejamente conhecido e
desejado. O mesmo que, todos os dias, via surgir no monitor do seu computador e que
dizia: “Camões acaba de iniciar a sessão.”
Joana ri-se sozinha. O desejo dela por ele já se imiscuíra no mundo desconexo dos
sonhos…
Porém, olho por olho, dente por dente. Se ele queria silêncio, ia tê-lo. Não seria ela a
quebrar o muro tão inesperadamente erguido. Aliás, não pretendia sequer ligar o MSN
nessa tarde. Se ele quisesse, que lhe apitasse para o telemóvel. Inês estava errada. A
obsessão não fazia parte da vida de Joana. O passado mostrara-lhe amargamente que
ninguém valia isso.

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“Olá,

Ontem fiquei sem ligação ADSL e, só hoje, depois de várias reclamações, é que os
fulanos arranjaram isto…
Por onde andas???”

Joana contempla o e-mail de Tomás, com renovada satisfação. Uma avaria técnica
explicava de forma tão simples o silêncio da véspera. E ela, os filmes todos que fizera na
sua cabeça. “Não há dúvida que a Amélie Poulain estava cheia de razão”, pensa, sorrindo,
evocando o filme francês que tanto lhe agradara. “Os homens podem ter a explicação
mais simples deste mundo para as suas acções e, nós, na nossa mente, deixamos passar o
mais rebuscado filme de aventuras e conjunturas. Pensamos que, se ele não diz nada, é
porque foi raptado, amordaçado, levado enrolado num tapete para o Afeganistão,
sequestrado pelos piores bandidos do mundo.”
Enfim, merecia que ela voltasse a entrar no MSN. E mal o fez, recebeu logo um toque:

Joana diz:
Olá, seu mauzão!
Camões diz:
Olá.
Camões diz:
Mauzão?
Joana diz:
Sim. Não só me deixaste pendurada, ontem, a chorar copiosamente a tua ausência,
como não me enviaste qualquer SMS, nem sequer respondeste aos meus e-mails.
MAUZÃO!
Camões diz:
Ontem foi daqueles dias para esquecer…
Camões diz:
Sem net e, depois, tive que sair para resolver uma treta, zanguei-me com um gajo…
Enfim…
Camões diz:
As minhas desculpas.
Joana diz:
Está bem, eu desculpo-te. Desta vez! Para a próxima quero um SMS, estilo: “Querida,
hoje não dá. É um daqueles dias.”
Camões diz:

Joana diz:
E então? Gostaste do excerto que te passei do Ghandi?
Camões diz:
Muito.

87
Joana diz:
Fico contente
Joana diz:
E porque é que não respondeste às novas perguntas que te fiz?
Camões diz:
Ainda não tive tempo, rapariga!!! Mas irei responder.
Joana diz:
Está bem. É que, como respondeste ao e-mail, sem teres comentado nada sobre isso
estranhei. Só por isso.
Camões diz:
Sim, mas irei responder.
Joana diz:
Já estava com saudades tuas.
Camões diz:

Camões diz:
Moi aussi.
Joana diz:
Gostei que tivesses introduzido aquele texto do Pessoa no teu blogue.
Camões diz:
Qual? A “Tabacaria”, de Álvaro de Campos?
Joana diz:
Sim! Adorei! Não o conhecia e, depois, ficaram-me frases na memória 
Camões diz:
“Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada”?
Joana diz:
Não foram essas. Mas estas: “Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.”
Camões diz:
Continuas tão racional, querida 
Joana diz:
Não me digas que penso de mais.
Camões diz:
Sabes bem que sim.
Joana diz:
Quem escreve poesia também tem de puxar pela massa cinzenta…
Camões diz:
Há tempo para escrever e tempo para amar. Uma coisa leva a outra e vice-versa. Meu
amor não se rege por razão. Não posso perder, logo, a esperança…
Joana diz:
E queres amar-me, é?
Camões diz:
Que prémio querer posso mais que amar-te?
Joana diz:
Talvez um dia isso aconteça, se…

88
Camões diz:
“Tu que consolas, que não existes e por isso consolas”…
Joana diz:
Isso é Pessoa  Mas eu existo! Asseguro-te!
Camões diz:
Pois.
Joana diz:
Mas ultimamente, andas mais fugidio da poesia erótica…
Camões diz:
Não penses assim. Toda a poesia é erótica, como dizia Pablo Neruda.
Joana diz:
Ele disse mesmo isso?
Camões diz.
Claro!
Joana diz:
Olha, eu penso que Bocage é mais ordinário do que erótico. E tu?
Camões diz:
Ainda bem que estou sentado, caso contrário dava-me uma coisa má! Bocage é
deliciosamente erótico, Joana! Como podes achá-lo ordinário?
Joana diz:
Já li umas coisas dele e não gostei.
Camões diz:
“Mais doce é ver-te de meus ais vencida/ Dar-me em teus brandos olhos desmaiados/
Morte, morte de amor, melhor que a vida”. Conheces?
Joana diz:
Bem… Não conhecia esses versos. São dele?
Camões diz:
Sim!
Joana diz:
Mas eu sei que ele esteve preso por ser ordinário.
Camões diz:
Isso foi por causa da “Epístola a Marília”. Mas olha lá, achas que a prisão serve para
reeducar alguém?
Joana diz:
Não acho isso. Mas até parece que não sabes que ele escrevia coisas obscenas.
Camões diz:
Sei muito bem o que o Manuel Maria escrevia. Era um génio. E a um génio, cara
Joana, não se impõem limites. Percebes? E também, só volvidos 50 anos da sua morte, é
que se publicou o seu legado erótico…
Joana diz:
Não gosto dele!
Camões diz:
Vamos deixá-lo em paz, ok? Um dia, quem sabe, talvez o venhas a apreciar.
Joana diz:
Não creio. E eu gosto imenso dos poemas que escolhes, ou fazes, porque não são
ordinários.

89
Camões diz:
Também tenho lá poemas de mulheres.
Joana diz:
Eu vi.
Camões diz:
A Manuela Amaral, por exemplo. Acha-la ordinária?
Joana diz:
Não. Apesar das palavras mais ousadas, consegue produzir… sei lá… uma espécie de
magia.
Camões diz:
“Fui ordinária/ requintada/ tímida/ misturei poesia com vários palavrões/ gritei/ uivei/
gemi/ rasguei almofadas e lençóis/ Fui Carnaval de amor/ no circo de uma cama.”
Joana diz:

Camões diz:
Às vezes, imagino como é que tu serás… na cama.
Joana diz:
É como diz esse poema: somos um pouco de todas essas coisas, e eu não sou
excepção 
Camões diz:
Estou bloqueado, sabes? É por isso que já não escrevo poesia há algum tempo.
Joana diz:
Estás a precisar de inspiração, é? 
Camões diz:
Siiiimmmm!
Joana diz:
Quem escreve poesia erótica gosta mais de sexo do que os outros?
Camões diz:
Não. É um estilo tão culto e erudito, como qualquer outro. Não quer dizer isso. Não
aceito que penses assim.
Joana diz:
Também não é preciso ficares zangado 
Camões diz:
Como é que me posso zangar contigo? O objecto do meu desejo?
Joana diz:
Vou lançar-te um desafio, está bem?
Camões diz:
Venha ele!
Joana diz:
Imagina que fizemos amor.
Camões diz:
Não tenho imaginado outra coisa…
Joana diz:
Escreve um poema sobre isso. Algo que descreva, condense, a nossa intimidade. És
capaz?
Camões diz:

90
Já te escrevi um poema.
Joana diz:
Sim, mas esse estava ligado à virtualidade. Agora, imagina que consumámos mesmo,
na vida real.
Camões diz:
Ou seja, continuo no plano da abstracção…
Joana diz:
Vá lá! Gostava muito!
Camões diz:
Gostavas muito do poema, ou de fazer amor comigo?
Joana diz:
Das duas coisas 
Camões diz:
Hum… Adoro saber isso, minha doce Joana.
Joana diz:
Mas entre a ideia de gostar e, o fazer de facto, vai uma grande diferença…
Camões diz:
Odeio esses “mas”…
Joana diz:
Então, e quando é que o príncipe encantado almoça com a cinderela?
Camões diz:
Quando o sapatinho de gesso não for mais impeditivo. E claro, se me prometeres
uma sobremesa especial…
Joana diz:
No dia em que sairmos, será como amigos.
Camões diz:
Fogo! Estava a pensar no doce da casa, tipo bolo de bolacha, ou assim.
Joana diz:
Isso já tem a ver com o restaurante, e não comigo.
Camões diz:
Mas olha lá, é complicado escrever-te um poema, como o que me pediste, se te vir
apenas como uma amiga. Os amigos não vão para a cama, Joana!!!
Joana diz:
Eu sei.
Joana diz:
Mas achas que se me vires, só como amiga, perdes o teu interesse por mim? Penso
que devemos avançar devagar, conhecermo-nos melhor. E isto parece-te… sei lá…
parece-te o quê?
Camões diz:
Basicamente, parece-me uma treta. Corta aquele aperto inicial no estômago.
Joana diz:
Não percebo como é que queres sentir isso, se és um homem… hum… já
comprometido. Embora conclua que, essa tua relação, não é impeditiva de nada… Mas,
por muito que me sinta atraída por ti, custa-me facadas ir para a cama assim…
Camões diz:
Não se fala mais no assunto. Não te quero causar qualquer tipo de mal-estar, miga.

91
Joana diz:
Óptimo!
Joana diz:
Mas como é que tu nos vês?
Camões diz:
Como amigos, miga. Claro.
Joana diz:
Ainda bem.
Camões diz:
E diz-me lá, miga, queres o poema em que fase? Antes, durante ou depois de termos
feito amor?
Joana diz:
Deixo isso ao teu critério.
Camões diz:
Na fase do cigarrinho, é?
Joana diz:
Escolhe tu. Já te dei o mote 
Camões diz:
És uma miga muito querida. E adorei os teus e-mails.
Joana diz:
Fico contente.
Camões diz:
Vou pensar no poema durante o fim-de-semana. Agora tenho de ir, miga. Besos.
Joana diz:
Bom fim-de-semana. Besos.

Mas Joana fica verdadeiramente irritada. Parece-lhe que idealizou um homem. Um amor
on-line que, o mais certo é não passar disso. Considera um abuso tanta referência ao sexo,
quando se fala num hipotético encontro real. Será que Tomás, ao contrário do que
esperava dele, apenas queria cama? Devia ser um tarado da net, e ela a pensar num futuro
namorado e tudo o mais. E aquela insistência idiota no termo “miga” só mesmo para a
achincalhar… Afinal, o que queria ela? Ser ou não amiga dele? Sim, sem dúvida que sim.
Mas se a relação evoluísse teria de ser após alguns encontros reais. Sentia que se
continuasse a falar com ele somente on-line, a coisa já se revestia de algum carácter
doentio… E pior do que isso, percebeu que era ele e, não ela, quem controlava a situação.
Quando tirasse o gesso do pé, talvez Tomás não viesse logo ao seu encontro. Supunha
que o rapaz só viria mesmo com a certeza de umas horas de sexo… Tal pensamento,
provoca-lhe uma enorme agonia. E, acometida por alguma raiva, decide enviar-lhe um
SMS: “Olá Tomás. Esquece o poema. Aliás, esquece tudo. Felicidades e bom jantar.”
Pensa que fechou aquele estranho e delirante capítulo da sua vida. Está dividida entre o
alívio e a mágoa. No fundo, não era este o final idealizado para tantas horas de
conversa…
Após alguns breves minutos obtém a resposta dele: “Não sejas tão impulsiva! Besos.”
Sorri com a mensagem. É bem verdade que ela funcionava assim, decidindo ainda a
quente, impaciente e com tendência para o melodrama. Por isso, admirada com a

92
sagacidade do comentário, decide retorquir-lhe: “Tens razão. Pareces conhecer-me!
Besos.” E ele: “Assim gosto mais. Mil besos.”
Não sabia dizer se tinha ficado melhor ou pior. Talvez mais satisfeita por um lado e, mais
triste, por outro. Alguma coisa teria de acontecer. Caso contrário, enlouqueceria…

Podem as palavras fazer amor?


Perguntavas-me naquele início de noite, sem a luz solar para se intrometer.
E eu vi nos teus olhos o crepúsculo, enquanto a lua, se ajeitava no céu escuro.
O que pode ser mais belo que acariciar os sentidos?
Sentir a poesia do toque?
Sou eu que te acaricia, não as letras, sou eu, não um verso ou um poema. São
as minhas mãos que sentem o teu corpo, o encontro da pele, da minha
pele, da tua!
Meu corpo é o paraíso
Perfeito para o teu corpo sedento.
Com os lábios anulámos as palavras
Sentimos a generosidade do corpo
Desnudando o silêncio.
Entre o ser,
O prazer de ouvir com os sentidos
O momento mágico do pulsar
Do orgasmo do outro

Joana lê e relê o poema dele, enviado por e-mail. Está surpreendida. Não que duvidasse
da sensibilidade de Tomás. Mas admira-se com o jogo mental. O que lhe tinha dito ele,
logo no início da conversa de ambos? Algo como: “Primeiro, tens de ser virtualmente
minha.” E ela sentia-se tão vulnerável como a Christine, personagem d’ “O Fantasma da
Ópera”, de Loyd Webber. Só lhe ocorriam as frases compostas pelo fantasma, para o
“Don Juan”:

In your mind
you've already
succumbed to me
dropped all defenses
completely succumbed to me -
now you are here with me:
no second thoughts,
you've decided,
decided . . .
Past the point
of no return -
no backward glances:
the games we've played

93
till now are at
an end . . .
Past all thought
of "if" or "when" -
no use resisting:
abandon thought,
and let the dream
descend . . .

Seria possível? Teria ela também alcançado o ponto sem retorno? Poderia ainda
retroceder, se assim o desejasse? Ou os jogos estavam finalmente a chegar ao fim? A
verdade é que, mentalmente, já imaginara tudo. E, agora, as palavras pareciam-lhe secas.
Cada vez lhe custava mais resistir à ideia do amor que ambos poderiam fazer e pelo qual
tanto ansiava. Apesar de toda a lógica, dos “se”, “mas” e “quando”, temia estar a
fraquejar e a ceder mais e mais. Tomás envolvia-a por completo: “Sou eu que te acaricia,
não as letras, sou eu, não um verso ou um poema.” E isto era de mais para Joana.
Por tanto o querer, a frase impunha uma verdade: ele desejava-a tanto, como ela o
desejava a ele. E céus, que suplício a racionalidade! Se Tomás soubesse mesmo como o
corpo dela estava sedento, talvez não acreditasse. Ele imaginava-a com um parceiro. Mas
desde que tudo começara, Joana eliminara o amigo colorido. Já não sabia, nem queria
saber de Alexandre. Não por qualquer espécie de retaliação, mas por se saber de novo
capaz de amar, ou de desejar, e de sentir o retorno dessa ânsia.
Tomás estava certo. Por vezes, o desejo confundia-se com uma série de coisas. Era difícil
avaliar a tempestade que a assolava. Ideias que se entrechocavam, noções, sensações,
deveres e prazeres. Tudo à deriva…
Enfim, teria de lhe responder. Não com o coração nas mãos, pois isso seria um erro
crasso. Antes de teclar qualquer mensagem decidiu afundar-se de novo no trabalho para
apaziguar o espírito. Não queria ficar obsessiva e fantasiar por aí além. “Os pés têm que
estar assentes no chão”, pensa. “E se eu não fosse tão alheada, teria evitado ter partido
um.” Se havia algo que Joana não queria repetir eram essas tremendas e aparatosas
quedas…

***
Camões acaba de lhe enviar um Toque!

Camões diz:

Joana diz:
Olá! Já viste os meus e-mails?
Camões diz:
Olá! Estou a ler.
Joana diz:
OK.
Camões diz:
Interessante.
Joana diz:

94
Já leste alguma coisa do Paul Auster?
Camões diz:
É o que estou a ler.
Joana diz:
Ah!
Camões diz:
Experiência interessante.
Joana diz:
É tudo interessante!
Joana diz:
Já leste?
Camões diz:
Já. Obrigado por partilhares este excerto comigo. Gostei!
Joana diz:
E o teu fim-de-semana foi bom?
Camões diz:
Sim, bastante descanso.
Camões diz:
E o teu?
Joana diz:
Também. Calminho.
Joana diz:
Aproveitei para ver a “Cat Woman”, no Premium, que ainda não tinha visto.
Camões diz:
Também não vi.
Joana diz:
É giro, em especial para quem gosta de gatos 
Camões diz:
Sim, que é o teu caso.
Camões diz:
A gata Joana gosta de gatos.
Joana diz:
Adoro gatinhos!!! E vejo imensos nas minhas traseiras. Andam de um pátio para o
outro. E sobem as escadas de serviço.
Joana diz:
Se o teu boxer os apanhasse era uma carnificina...
Camões diz:
O Atlas ainda não sabe que os gatos são inimigos. Ainda é cachorro.
Joana diz:
Bem, mas os gatos não são inimigos! Os idiotas dos meus vizinhos que têm cães estão
sempre a atiçá-los contra os pobres dos miaus... É uma palermice. Cães e gatos deviam
crescer a estimar-se.
Camões diz:
Gostaste do que escrevi para ti? Não deve estar grande coisa, mas acredita que foi
feito unicamente a pensar na senhora!!!
Joana diz:

95
Adorei!
Joana diz:
Muito!
Joana diz:
Fiquei toda contente!
Joana diz:
Acho que escreves muito bem.
Camões diz:
Sim, fiz um esforço danado para tornar tudo mais pessoal.
Joana diz:
Mas ficou muito bem! Devias escrever-me mais vezes assim!
Camões diz:
Escrevo delírios, nada mais.
Joana diz:
Mas podes manter essa pluma ao meu serviço. Talvez te surpreendesses com o
resultado…
Camões diz:
Olha, não te quero ver com mais impulsividades como na sexta… ok?
Camões diz:
Não se deita tudo a perder num SMS.
Joana diz:
Sei lá. Sou impulsiva, sim, mas surpreendeu-me a tua resposta. Por isso, reconsiderei.
Camões diz:
Mas a menina, antes dessas impulsividades, deve respirar fundo, parar um bocadinho e
ponderar.
Camões diz:

Joana diz:
É verdade. Devo ser mais calma.
Camões diz:
Mas alguma vez, alguém despacha este Camões por SMS... Assim? Secamente? Ora
essa!
Joana diz:
Mas tu massacraste-me imenso. Com essa da miga a toda a hora. Migas são de broa.
Camões diz:
Eh! Eh! Eh!
Camões diz:
Adoro-te.
Camões diz:
Eh! Eh! Eh!
Joana diz:
Não me estou a rir, seu mauzão.
Camões diz:
Tu é que me fizeste mudar o estatuto para "amiga".

Camões está a convidá-la para iniciar envio de imagens da câmara Web. Pretende aceitar
(Alt+C) ou recusar (Alt+D) o convite?

96
Joana diz:
Mas tu pões-me maluca! Eu já te disse vezes sem conta que não pode ser assim, via
net!
Joana diz:
E, só te deixo ver-me, se te mostrares também!

Camões está a convidá-la para iniciar visualização de imagens de câmara Web. Pretende
aceitar (Alt+C) ou recusar (Alt+D) o convite?

Aceitou o convite para iniciar visualização de imagens de câmara Web.

Camões diz:
Aviso já que estou de fato.
Joana diz:
Que novidade!

Aceitou o convite para iniciar envio de imagens da câmara Web.

Camões diz:
Sim, hoje resolvi ousar… na cor da gravata.
Joana diz:
É bonita.
Joana diz:
Estou à procura de um ângulo.
Joana diz:
Então, pouca gente por aí?
Camões diz:
Sim, hoje não há horas extras.
Camões diz:
Embora ainda cá tenha gente.
Joana diz:
Estás muito sério.
Camões diz:
Estava para ir cortar a trunfa hoje.
Camões diz:
Mas não está lá o Maurício.
Joana diz:
Olha, eu pensei que já o tivesses feito e que tivesses ficado tão mal que tivesses
vergonha de te mostrar na web-cam...
Camões diz:
Nunca fico mal de cabelo curtinho.
Camões diz:
Corto o cabelo uma vez por mês.
Joana diz:
Voltámos ao estado de convencido!
Camões diz:

97
OK. Não sei se fico mal de cabelo curtinho. Acho que não, mas não sei.
Joana diz:
Sabes, fiz uma aquisição muito louca!
Camões diz:
Então? Já podes sair de casa?!
Joana diz:
Pedi à Inês para me ir comprar uma coisa. Para te fazer uma surpresa.
Camões diz:
Quem é a Inês?
Joana diz:
É a minha melhor amiga e adora vestir-se de vermelho. Prepara-te para uma loucura!
Camões diz:
Mas é o quê?
Joana diz:
Não posso dizer mas quarta-feira prepara-te para um show fora de série!!!
Camões diz:
Ena!!!
Camões diz:
Só quarta?
Joana diz:
Sim, tenho que esperar que a coisa fique arranjada à minha medida.
Camões diz:
Hum... Isso promete
Joana diz:
Vais ser abordado por uma nova criatura…
Camões diz:
Ena!
Camões diz:
Dá-me só umas achegas.
Joana diz:
Ela é muito querida, prestável, solícita...
Joana diz:
E não posso revelar mais.
Camões diz:
Solícita... Hum... Agrada-me.
Joana diz:
Imagino que sim. Mas não abuses da rapariga!
Camões diz:
Sim, sabes bem que não sou abusador.
Joana diz:
Sim, eu sei. Por isso é que tens direito a este brinde visual.
Camões diz:
Caraças… A minha colega impingiu-me uma treta de cigarros que não consigo fumar.
Camões diz:
Russos.
Joana diz:

98
Não conheço. Fumo tabaco grego.
Camões diz:
Sim, os teus são "in".
Joana diz:
Não. São de senhora. Muito finos e compridos, como os meus dedos 
Camões diz:
Dedos finos e compridos, sinal de inteligência.
Camões diz:
Também tenho os dedos compridos.
Joana diz:
Mais uma afinidade...
Joana diz:
Para além da altura.
Camões diz:
Sim, a altura.
Camões diz:
És grande.
Camões diz:
Ficas bem ao pé de mim.
Joana diz:
Como é que sabes? Já me viste alguma vez?
Camões diz:
Vi a tua altura nos teus dados pessoais.
Joana diz:
És tímido?
Camões diz:
Tímido?
Joana diz:
Tenho cá para mim que és muito acanhado na vida real…
Camões diz:
Tens em ti que sou acanhado... às tantas.
Joana diz:
E por isso, surpreende-me esse contraste que adivinho entre o Tomás virtual e o
Tomás real. Estarei enganada?
Camões diz:
Estilo… tímido, introvertido, meio gago e muito acanhado?
Joana diz:
Também não exageres...
Camões diz:
Então? Só acanhado?
Joana diz:
Um estilo contido e muito pouco revelador.
Camões diz:
Ou seja, sou uma pessoa tímida que liberta os seus demónios virtualmente.
Camões diz:
É isso?

99
Joana diz:
Sim, acho que sim!
Camões diz:
Às tantas, é isso.
Joana diz:
Acho que és muito dado ao mundo virtual, de mais, até.
Camões diz:
Um ser virtual.
Camões diz:
Que se satisfaz na net.
Joana diz:
Não. Não creio que te satisfaças na net, mas custa-te sair do aquário.
Camões diz:
Um pouco anti-social, que só encontra algum aconchego nas amizades virtuais.
Joana diz:
Hum... Ao telefone?
Camões diz:
Sim.
Joana diz:
É importante?

E, provocadoramente, sobe a camisola, exibindo os seios.

Camões diz:
As minhas amigas!
Joana diz:
Não comeces a irritar-me com as amigas, Tomás! Olha, que ainda me dá outro flash!
Camões diz:
Flash Gordon! Adorava! O inimigo dele era o Ming.
Camões diz:
E depois havia aquela música dos Queen e tudo.
Joana diz:
Cultura BD! Muito bem!
Camões diz:
Flash! Ah! Ah! King of the universe!
Joana diz:
Sim, mas os meus flashes são célebres!
Camões diz:
Célebres, como?
Joana diz:
Ocorrem em situações que ficam históricas por isso. Por exemplo, um dia
Joana diz:
Um “amigo” meu propôs-me:
Joana diz:
Ah! Ele estava a tentar coiso e tal.
Joana diz:
E vai daí e diz-me:

100
Camões diz:
Coiso e tal?
Camões diz:
Queca?
Joana diz:
Méridien? Ritz? Four Seasons? Escolhe!
Joana diz:
E eu deixei-o pendurado no meio da Av. da Liberdade. Saí do carro, assim. Num
flash.
Joana diz:
Percebes? São flashes desses.
Camões diz:
Tu és um mulherão. É natural que tenhas amigos que queiram coiso e tal, leia-se
quecar. Deves estar preparada para isso.
Joana diz:
Sim, mas não reajo muito bem. Aliás, esse menino, conseguiu levar-me a jantar e
Joana diz:
Bebeu duas garrafas de vinho tinto.
Joana diz:
E ainda…
Joana diz:
Whisky, até cair para o lado.
Joana diz:
E depois, com aquele hálito indescritível, ainda teve a lata de…
Camões diz:
Então, mesmo que fosses para o Ritz com o moçoilo, nada de mais iria acontecer.
Joana diz:
Querer coiso e tal outra vez.
Joana diz:
Um alcoólico terrível. Aconselhei-o a deixar de beber se ele quisesse dar prazer a uma
mulher.
Joana diz:
Muito desejo mas pouca acção. É esse o efeito dos copos.
Joana diz:
E ele ficou ofendido comigo. Estilo: sou capaz disso e muito mais.
Joana diz:
Resultado:
Camões diz:
A beber dessa forma... Deve ser o Baco, o gajo.
Joana diz:
Tive de o conduzir até à casa que, curiosamente, partilha com a namorada...
Camões diz:
Pois.
Camões diz:
Sim.
Joana diz:

101
Como vês, os filmes são assim.
Camões diz:
Dependem muito do realizador também.
Camões diz:
E do guião.
Camões diz:
É lixado, sabias? Decorar aquela treta toda.
Joana diz:
Pois, sim.
Camões diz:
Por acaso, gostava de entrar numa coisa a sério. Numa peça de teatro.
Joana diz:
Mas eu não gosto de sair com gente que bebe até à saturação. No dia seguinte, diz ele
ao telefone, após meia garrafa de whisky: “Queres ir à praia?”.
Camões diz:
Caramba! Ele, tu e a namorada. Os três no Meco.
Joana diz:
E eu: “Talvez não seja boa ideia.” E ele: “Fala mais devagar porque tenho dificuldade
em entender-te. Já bebi meia garrafa.” Depois do meu sermão da véspera...
Camões diz:
E no final do dia, vão petiscar àqueles barzecos, comer uns mexilhões.
Joana diz:
Nunca podíamos ir os três ao Meco. A namorada dele é campeã de Judo. Estás a ver.
Camões diz:
Hum…
Camões diz:
Pois. Compreendo…
Joana diz:
É verdade, juro!
Joana diz:
Passei-me com ele! Até caiu, vê lá. Quando me tentou beijar, cambaleou e ficou
agarrado à cadeira. O pessoal do restaurante a olhar... Uma vergonha.
Camões diz:
Ah! Tentativas de beijos e tudo. Ena!
Joana diz:
Sim, mas isso é normal, não?
Camões diz:
Sim, se o gajo te queria comer é natural que iniciasse o ritual com uns beijinhos.
Joana diz:
Sou um bocado parva nessas coisas.
Joana diz:
E penso que um beijo, ou outro, não tem assim tanto mal.
Camões diz:
Pensavas que eram beijos de amizade?
Camões diz:
Só como ele estava bêbado, não acertava na cara.

102
Joana diz:
Sim, duvido que acertasse no que quer que fosse. Mas voltando aos beijos, uma vez,
deixei que o irmão de uma amiga minha me beijasse.
Joana diz:
Tive pena dele, percebes? Por ser paraplégico.
Camões diz:
Pois... Isso é diferente.
Joana diz:
E depois achei que, se fosse o contrário, eu ficaria feliz.
Joana diz:
Mas, como a Inês me avisou, não tinha nada que me ter armado na Madre Teresa de
Calcutá dos beijinhos...
Camões diz:
Quer dizer, amanhã, quando nos encontrarmos para almoçar, podemos beijar-nos na
boca... Não levas a mal, pelos vistos.
Camões diz:
Ah! E não bebo duas garrafas de vinho.
Joana diz:
Não é isso. Mas claro que sim, que gostava de te beijar.
Joana diz:
O problema com o paraplégico é que não me ocorreu que ele fosse... tão abusador,
percebes? Pensei: “Está na cadeirinha e tal, e não faz mal a uma mosca.”
Camões diz:
Mas o rapaz quis mais.
Joana diz:
Pois. E aí a coisa ficou preta.
Joana diz:
Embora…
Camões diz:
Deste-lhe uma estalada e caiu da cadeira.
Joana diz:
Eu sentisse uma curiosidade mórbida em saber do que é que ele seria capaz.
Curiosidade.
Camões diz:
Ele queria quecar, como é óbvio.
Joana diz:
Pois, mas estando naquele estado, não te parece impossível?
Camões diz:
Não, se te sentasses na cadeirinha.
Joana diz:
E sentei.
Camões diz:
E tinha travões?
Joana diz:
Claro. Ele tem muita massa, por causa da indemnização do acidente. A cadeira é mais
leve do que as normais e tudo. Um material bom.

103
Joana observa-o a rir loucamente do outro lado de lá, naquele escritório cinzento. Tomás
ri-se com gosto, incontrolavelmente, e acaba por a contagiar.

Camões diz:
Deixas-me desarmado.
Joana diz:
Mas é verdade!
Camões diz:
Mas, se calhar, o problema esteve na forma como te sentaste.
Joana diz:
Ele até tem um carro todo desportivo, artilhado para deficientes.
Camões diz:
Foi de lado e o fulano queria que abrisses as pernas e te sentasses ao colo dele.
Joana diz:
Não foi nada disso. Sabes que as pessoas que andam nestas cadeiras têm muita força
nos braços e eu sempre adorei braços masculinos fortes e viris.
Camões diz:
Hum…
Joana diz:
E ele puxou-me para o colo.
Joana diz:
Eu não tinha força para impedir isso, não é?
Camões diz:
Claro, nos braços fortes e viris.
Joana diz:
Sim. E depois, não passámos dos beijinhos. Não houve mais nada. E ele ficou a
importunar-me via telemóvel.
Camões diz:
Coitado do rapaz.
Camões diz:
Queria algo mais.
Camões diz:
O teu espírito altruísta deveria ter funcionado de outra forma.
Joana diz:
Sim, mas caramba! Não estou assim tão desesperada que me agarre a um paraplégico.
Embora, ele até fosse querido.
Camões diz:
E tem o carro desportivo… Embora artilhado para deficientes, mas não deixa de ser
uma grande máquina.
Joana diz:
Sim, já andei nesse carro com ele. Apesar do acidente continua adepto de grandes
velocidades. Mas o dinheiro só atrai as pessoas que não o têm, certo?
Camões diz:
Dinheiro atrai dinheiro.

104
Camões diz:
Sabes uma coisa?
Camões diz:
Acho que falamos de coisas que não lembram nem ao diabo!
Joana diz:
É verdade. Tu, uma vez, disseste algo peregrino que até hoje me deixa pensativa...
Camões diz:
O que foi?
Joana diz:
Disseste que os nossos diálogos se assemelhavam aos filmes do Manoel de Oliveira.
Camões diz:
Alguns parecem cópias.
Camões diz:
Mas são o máximo.
Joana diz:
Porquê?
Camões diz:
Porque é bem ao estilo dele.
Camões diz:
Embora não goste dos filmes.
Joana diz:
Não estou a ver qual é o estilo dos filmes dele, meu querido, mas está bem, se o dizes
é porque deve ser verdade.
Camões diz:
Olha, e quando é que ficas verdadeiramente apaixonada por mim? E com esta te
deixo... Mil besos, cariño.

Camões interrompeu a visualização das imagens da câmara Web consigo.

Joana diz:
Quer dizer, só quando me souberes apaixonada é que vens ter comigo, é isso?
Camões diz:
Não é obrigatório.
Camões diz:
Mas quero ver-te em desespero… de paixão, é claro!
Joana diz:
Tu és terrível! E porque é que desligaste a tua web-cam? Já vais?
Camões diz:
Sim, vou sair.
Joana diz:
Então, olha, Tomás/Camões, vou pensar na paixão. E tu vê lá se pensas em algo mais
REAL!
Camões diz:
Esta agora!!! Eu sou real e penso real.....Estás a criar essa ideia que sou mais virtual e
acanhado mas estás enganada.

105
E seguem-se as habituais reproduções do “Screen kiss”, de ambos os lados…

E se ele fosse mesmo tímido na vida real? Mas não era esse o filme e, Tomás ri-se com
gosto, enquanto se dirige para a esplanada onde o espera um grande amigo de infância, o
Diogo.
Está orgulhoso consigo mesmo. Gostou daquela saída airosa: “Quando é que ficas
verdadeiramente apaixonada por mim?”. E depois, desligara a câmara para a deixar com
água na boca. De mais.
Vislumbra o amigo sentado numa mesa e absorto na leitura de um jornal. Aproxima-se
sorridente:
- Grande Diogo!
- Olha o gajo! Então? Estás bom?
Depois de se cumprimentarem com um abraço, sentam-se os dois, maravilhados por
aquele dia quente de Fevereiro.
- Há sempre uma semana fantástica neste mês, já reparaste?
- São os sete magníficos – concorda Tomás, a sorrir.
- Estás óptimo! Da última vez que te vi, parecias mais em baixo…
- Uns dias bem, outros mal. Acontece a todos.
- És inconstante como o caraças.
- Mas sou o teu amigo mais bonito. O que tem as gajas todas – provoca, bem disposto.
- Como é que está a Rita?
- Não cortes a onda – censura, não se deixando abater. – Olha para os meus braços –
pede, tirando o casaco e arregaçando as mangas da camisa –, são fortes e viris? Ou
preciso de malhar mais nos pesos?
- Estás a passar-te ou quê? Achas que tenho cara de gay?
- Não, mas podes dar-me a tua opinião de heterossexual frequentador de ginásios…
Diogo ri-se com a súbita e inesperada hesitação do amigo. Tomás sempre se tivera na
melhor conta. Aliás, as histórias com as garotas eram tantas que tinham gerado, inclusive,
confusão no velho ciclo de amigos. Por vezes, some guys have all the luck, como cantava
Rod Stewart. E Tomás tinha essa sorte toda. Nascera uma pessoa bonita e fizera-se
inteligente. Não precisara nunca de se esforçar para acumular namoradas. No liceu, eram
elas que o perseguiam. E Diogo recordava-se bem desses tempos.
- Bíceps e tricípites em ordem – assegura, com um olhar de gozo. – Afinal, quem queres
seduzir? Pensei que já estivesses mais off.
- Queres ir correr comigo amanhã? Tenho de estar em forma. No meu melhor, mesmo.
- Hum…
- Quero que o meu corpo seja o paraíso para uma pessoa que é um doce.
- A Rita parece estar satisfeita…
- Mau! Que insistência… Deixa lá a Rita! Por acaso, falo-te da Mónica, quando me
contas as tuas excursões por terrenos alheios?
- Não. Mas eu não vivo com ela. E tu estás com a Rita há três anos e leva-la para os
nossos jantares. Não me lixes. É oficial. A malta afeiçoa-se.
- Ela encornou-me. Lembra-te disso…
- Não a julgo, quando o meu melhor amigo, o visado, já a perdoou. Ou não foi assim?
- Foi, claro.

106
“Mas que caraças! És meu amigo ou agora viraste defensor da minha namorada? Cortas-
me o gozo de te contar aquilo que me aquece a alma. Grande parvo”, pensa, pedindo um
sumo de laranja natural.
- Já foste ver o bebé da Isabel? – pergunta, Diogo.
- Fui lá no fim-de-semana. Ainda não têm nome para a criança. É engraçado, não é? O
grupo está a crescer, a multiplicar-se como Deus nos manda fazer.
- O puto é um espectáculo. Todo cor-de-rosa.
“Bebés em casa, bebés na esplanada, céus! Estou a ser perseguido por gigantescos bebés
cor-de-rosa e quase já sinto as olheiras das noites mal dormidas. Que porra de conversa!
Quero lá saber de bebés! Prefiro o pulsar do orgasmo sem consequências nocivas.”
- Se saísses com um mulherão, onde é que a levavas a almoçar?
Diogo dá um gole na sua imperial, antes de responder:
- Durante a semana?
- Claro. Querias que fosse ao fim-de-semana com a tua querida Rita a assistir?
- Não exageres. Só gosto dela por ser a tua namorada. E acho que se a vais enganar, de
novo, isso já começa a ser doentio. Porque não acabas?
- Um tipo tem de avançar com calma. Depois, logo se vê.
- O teu “logo se vê” tem a duração certa de um mês. Não sei como é que a Rita não
desconfia ou não te apanha…
- Não sou um papa-gaijas. Já viste que, desde que começámos a falar, só me sabes
criticar?
- Docas. Levava-a às docas. Longe dos restaurantes vizinhos aos escritórios. O rio é
inspirador.
- Hum… Tens razão.
- E quem é o doce?
Tomás ri-se, sentindo uma imensa alegria só por poder falar nela:
- É uma miúda muito gira que tive a sorte de encontrar.
- Onde é que a conheceste?
- Não posso falar dela. Prometi-lhe isso. Resguardá-la dos outros. É o meu segredo.
“E não quero concorrência. Odeio ver gajos novos na página dela, não suporto os
comentários bajuladores e embora a incentive a aceitar quase toda a gente – menos os
gigolos que saltam à vista – na realidade, preferia ser o único a pairar por lá. Mas sei que
na mente dela, a resistência já está a ser quebrada. Não sei explicar. Sinto isso. Sou muito
sensível ao que os outros sentem. É como se não tivessem escudos protectores para me
enfrentarem. No final, cedem sempre.”
- Estás apaixonado?
- Fogo! Achas? – admira-se, Tomás. – Desde quando é que é preciso estar apaixonado?
Quero ir para a cama com ela. Isso é o que mais quero.
- E ela?
- Também quer. Mas está a fazer-se difícil. Como tu, recorda-me a todo o momento que
sou um homem ocupado, que tenho namorada e blá blá. Uma maçada…
“Para a próxima, não digo que tenho namorada. Um gajo é honesto e só se lixa com isso.
Mas como é que depois justifico o facto de nunca poder sair aos fins-de-semana? Não
posso desculpar-me sempre com reuniões e excesso de trabalho… Caraças! Tenho de
organizar a minha vida. És capaz de ter razão, Diogo. Isto assim, já se torna meio
doentio.”

107
- Pelo menos, demonstra que tem princípios. Isso encorajava-me.
- Depende das expectativas. Já conheci muita miúda maluca e gostei. O sexo pelo sexo –
recorda Tomás, acabando o seu sumo.
- Mas aí, andavas a bater mesmo mal por causa da Rita.
- Foi a minha descida aos infernos…
“Sim, nessa altura comi tudo o que se pôs à minha frente”, pensa. “E o pior é que nunca
ficava saciado porque nenhuma delas – do meu agrado ou não – substituía a Rita. O
buraco permanecia em mim por mais jovens sacrificiais que somasse. Passava de uma
cama para outra, sem o menor escrúpulo. Pensava nela e no meu primo. A raiva
persegue-me, desde então. É curioso. No fundo, nunca lhe perdoei. Tenho de admitir isso
para mim próprio. Limito-me a queimar o sentimento, a gastá-lo até à última. Mas que
não me peça bebés. Isso seria uma monstruosidade. A mulher que há-de parir os meus
filhos tem de ser a tal. E a Rita não é. Sei que não é.”
- Respeito os princípios dos outros, acredita. Não forço ninguém a fazer nada que não
queira. Jogamos pelas regras dela. Quando ela quiser, acontece. É só ela querer, que eu
vou – declara, recordando Joana, de novo.
- Nunca pensas nas consequências. Nos sentimentos delas. Envaidece-te apenas seduzi-
las e senti-las apaixonadas por ti. Nem que seja só uma troca de olhares e que não passe
disso. Eu conheço-te.
– Ouve lá, lembra-me uma virtude, ou duas, da minha pessoa para não me sentir tão mal.
Que raio de amigo…
- És um tipo porreiro, desde que deixes as moças em paz…
- Hum… Impossível. A vida sem o belo sexo não é vida. Adoro mulheres, e tu sabes.
- Não. Gostas é de ti próprio e, o olhar delas, apenas reflecte a tua vaidade. Agrada-te
seres olhado como um deus grego. Gostas das mulheres porque elas te permitem essa
experiência de estares numa sala de espelhos como as que existem nas feiras, onde vês a
tua imagem multiplicada por todo o lado. Elas babam-se por ti e, daí, o teu fascínio pelo
teu próprio reflexo. És um narcisista e um egocêntrico. Por isso, nunca te apaixonaste.
Estás demasiado envolvido contigo mesmo. Desculpa a franqueza, mas sabes que sou
directo.
- Caramba! Nunca ninguém me falou assim…
- Um dia, tinha de acontecer. Antes eu, que outro qualquer.
- E a Rita? Nunca me apaixonei por ela?
- Não – responde Diogo, a rir. – Ela só é diferente das outras porque teve a insensatez de
te encornar com o teu primo. E ferido de morte, fingiste perdoá-la só para a poderes
humilhar. Achas que um tipo que engana, uma e outra vez, a namorada é porque gosta
dela? Poupa-me!
- Ela só me magoou porque eu gostava dela. Se ela me fosse indiferente, eu não teria
sofrido dano algum. Destroçou-me. Penso que me vês de uma maneira demasiado cruel.
Eu não sou assim. Amei a Rita, sei que a amei. Foi ela que estragou tudo. Apesar de seres
meu amigo, estás a passar dos limites.
- Desculpa se te ofendi.
- Foi pior. Entristeceste-me. E eu até estava bem disposto. Olha, vou andando. Falamos
depois.
- Tomás! A sério, pá! Desculpa. Falamos de futebol. Não sou tão crítico nessa matéria.

108
- Não gosto de futebol e não percebo nada disso. Sou do Belenenses, lembras-te? Os
grandes clubes não me dizem nada. São como as pessoas: quanto maiores, mais pequenas
se tornam. Fica bem.
E saiu, deixando uma nota em cima da mesa. Estava furioso. Só lhe faltava ouvir sermões
de indivíduos que já tinham partido a loiça toda. Que mania a dos outros de ajuizarem
sobre tudo e nada. Quem é que o amigo se julgava para lhe dizer aquelas barbaridades?
“És um palhaço, Diogo. Não sei que bicho te mordeu. Que me lembre nunca comi
nenhuma das tuas namoradas. E não tenho culpa que as mulheres gostem de mim e me
achem giro. Não vou pedir desculpas por isso a ninguém. Se calhar, escondes uma
paixoneta pela Rita. Isso explicaria parte do teu discurso. Agora que penso nisso, vejo-te
sempre muito cúmplice com ela nos nossos jantares. Não me digas que és o seu novo
confidente, o que veio substituir o meu priminho? Se fores, desejo-vos, aos dois, boa-
sorte. Até me fazes um favor, já que não sou capaz de a mandar embora. Facilitas-me o
trabalho. E desta vez, não ficarei destroçado. Ou surpreendido. Aprendi que as pessoas
que mais nos magoam são aquelas que dormem ao nosso lado e nos fingem amar. E isso
só acontece porque lhes damos margem para tal. Abrimos o nosso coração a gente
ingrata. E o meu está fechado, tens razão. E dificilmente, alguém o abrirá de novo. Talvez
a Joana, se ela conseguir ser mais do que a mera novidade. Veremos.”

109
Inês entra no apartamento com dois sacos distintos. Antes de os pousar sobre o sofá, olha
para a amiga divertida:
- Sabes lá, a vergonha que passei! Tive de dizer que era para o Carnaval!
Joana precipita-se para os sacos, radiante com o conteúdo dos mesmos.
- Ó Inês, minha querida! És um anjo de amiga! Adoro-te!
- Só tu, para te lembrares de uma coisa destas!
- Não vês que o Tomás se limita a fantasiar? E já que assim é, agora vai ter mesmo
motivos para dar asas à imaginação…
- Sem dúvida! Vai ficar completamente virado! Olha, digo-te uma coisa: adorava ser gajo
e alguém fazer-me o que lhe vais fazer! Passava-me!
- A ideia é essa – admite, com volúpia.
- E então? Para a semana vais tirar o gesso.
- É verdade! E vou fazer uma jantar de comemoração cá em casa.
- Boa! O Alexandre vem?
- Achas? Esse já não dá sinais de vida há mais de um mês…
- Mas ele disse-me que não lhe respondeste ao último SMS dele…
- E o que há para responder, Inês? Além disso – observa, desconfiada. – Qual é o teu
interesse em saber se ele vem, ou não? Agora és a sua confidente?
- Nada disso, Joana. Sou tua amiga até ao escalpe.
- Essa é nova. Mas tem piada. Fazes-me rir.
- E quem é que vais convidar?
- O gato do Ricardo e a idiota da Marisa.
- Esses?
- Sim, ele tem sido bastante atencioso. Ainda hoje, de manhã, carregou-me nos braços.
- Repete lá isso! – exclama, admirada.
- Não é o que estás a pensar. Eu queria sentar-me no sofá, e ele pegou-me ao colo e
depositou-me entre as almofadas.
- Só?
- Depois disse-me que eu tinha a pele muito macia.
- Acho que estás a ocultar informação – censura, de olhos abertos. – Deixaste-o acariciar-
te?
- Umas carícias não fazem mal a ninguém. Foram inocentes. Até me massajou o pé
saudável. E que bem que me soube!
- Pois. Sim. Acredito.
- Ah! E desta vez não falou na Marisa uma única vez…
- Pudera! O momento era de grande proximidade física.
- Mas sabes que não sou egoísta. E então, ofereci-me para lhe massajar as costas com o
óleo de aroma a citrinos, aquele que comprámos quando nos ofereceram uma massagem
no ginásio, lembras-te?
- Hum… Adoro essa fragrância tão fresca como… sei lá… uma aragem do mais belo
pomar.
- Não divagues – comenta, a rir. – E quando comecei a massajar-lhe as costas…
- Ele virou-se para ti, segurou-te os pulsos e beijou-te?
- Não. Senti todos os seus músculos tensos, sabes? Ah! E o Ricardo tem uns
abdominais… Nunca dirias que um fulano que passa o dia sentado, debruçado sobre um
estirador, tivesse um corpo tão definido, enxuto, sem qualquer pneu.

110
- Mau! Mas massajaste-lhe as costas ou os abdominais?
- Ele teve de tirar a camisa, não é? E não sou cega, graças a Deus!
- És louca! Se a Marisa viesse à procura dele, era o bom e o bonito!
- Bom e bonito é o Ricardo, minha querida!
- E depois?
- Então, a seguir, ele sugeriu massajar as minhas. Como uma retribuição, mais nada.
- Não foste daí abaixo?
- Ou seja, achas que uma mulher que passa o dia mergulhada no teclado de um maldito
computador não tem direito a aliviar as dores? – inquire, visivelmente divertida.
- Brincas com o fogo…
- Perguntei ao Ricardo se ele sabia dar aquelas massagens que ele tanto gabava, as dos
banhos árabes. Desde que lá esteve, em Granada, não se cala com isso.
- Claro que ele deve ter dito que as sabia dar. Só para te ver nua, claro.
- Bom, mas entre a nudez e o que se pode… hum… praticar nesses estados mais
impróprios, vai uma grande diferença, ou não?
- Que exibicionista do caraças! Não acredito, Joana! Despiste-te para ele? Pensei que só o
Tomás, ultimamente, tivesse esse privilégio.
- Deixa lá estar o Tomás quietinho, que ele não é para aqui chamado. Agora, estou a
falar-te do Ricardo.
- Despiste-te, ou não?
- Correcção: eu não me despi.
- Ah! Bom!
- Ele é que me despiu…
- O quê? O “Marisa isto, Marisa, aquilo”, “Ai, vivemos tão apaixonados um para o
outro”, teve a lata de te despir?
- Verdade pura e dura.
- E?
- Massajou-me, claro. Deixo o resto à tua imaginação…
- Já sabes que tenho uma mente depravada – adverte, entre risos. – Agora, a santa Joana,
que só faz com paixão… Custa-me a crer.
- Pois é! Mas não sou de ferro e, o Tomás anda a pôr-me doida, sabes? Sinto uma grande
sensualidade e um desejo de ser fêmea domada. É a vida: uns inspiram, outros
concretizam. Não se pode ter tudo…
- És mais maluca do que pensava. Vou retirar-te o cognome de santa.
- Que alívio! É que nunca me vi como tal. Se bem que, uma vez…
- O que virá para aí agora?
- Uma das minhas primas suíças, a Marta, já te falei dela?
- Creio que sim.
- Um dia, surpreendeu-me em casa com o meu namorado. Ainda vivia com os meus pais.
E eu estava só com ele, certo? E era o meu namorado, por isso, qual era a dela? Mas,
mesmo assim, a fulana teve que se ir chibar à minha mãe: “A Joana não é nenhuma
santa.” Nunca me esqueci disto. Devo ter descido uns pontos valentes na consideração da
minha prima…
- Onde é que vocês estavam?

111
- Em cima da máquina de lavar? Não, estou a brincar. Estávamos na única cama de casal
daquele apartamento, no quarto da minha mãe. Uma bela cama, aliás. Dona Maria. Uma
antiguidade.
- Ela ficou chocada…
- A Marta? Não. Aquilo foi outra coisa. Ressentimentos. Mas continuo a gostar muito
dela. Aliás, gosto de toda a minha gente. Mas gostava de me dar melhor com o meu pai.
- Lembro-me dele: sempre distante e a olhar-nos como se fossemos um estorvo.
- Sim, conheceste-o também em miúda. Quando ele avançava na minha direcção, aquilo
era automático: fazia logo chichi pelas pernas abaixo. Vivia aterrorizada. Levava estalos
por tudo e por nada. Mas a minha madrasta é amorosa. Coitada! Espero que ele a trate
melhor do que me tratou a mim e à minha mãe. Sabes, o que gostava mesmo, era que ela
arranjasse um namorado. Só para fazer pirraça àquele idiota.
- Talvez isso aconteça. Temos de ter cuidado com o que desejamos.
- Pode tornar-se realidade, é? Quem me dera!
- Mas diz-me, quem mais convidaste para o teu jantar?
- Da editora, a Guida, a Patrícia e a Mafalda.
- Só mulheres?
- São a minha equipa de confiança e têm aguentado o departamento de arte
maravilhosamente bem. Estou radiante com as minhas garotas!
- E o informático que anda sempre a zumbir à volta do teu computador?
- Estás louca? Convidei o Hugo e o Vasco.
- Hum…
- E podes trazer um dos teus homens…
- Gostava de conhecer novos – contrapõe Inês, com um sorriso travesso. – Mas, de
acordo. Vou trazer o Filipe, para animar a festa.
- Boa ideia! – aprova, satisfeita. – Como é que ele vai? Ainda trabalha na empresa do
pai?
- Sim. Tem tido imensos projectos esgotantes mas, ultimamente, encharca-se em tanto
anti-depressivo, que anda sempre com um sorriso de orelha a orelha…
- Pois. Mas é um dos teus indefectíveis…
- É verdade. E quem é que vai cozinhar?
- Vou mandar vir de fora. Não estou para ficar a cheirar a comida, na noite em que
celebro o meu regresso ao mundo.
- Fazes bem – aprova Inês.
- Achas que peça salgadinhos e essas coisas?
- Sim! Uma festa em grande! O Filipe sabe fazer cocktails óptimos!
- Boa!
- E vais vestir o quê?
- Não sei. Daqui até lá, penso nalguma coisa.
- Adoro jantares entre amigos! Assim: em casa uns dos outros.
- Mas quando os organizamos, pensamos sempre que tudo vai correr mal, não é? Fico
muito ansiosa, a imaginar que ninguém vai aparecer e, eu para aqui, com quinhentos
pratos em cima da mesa – fantasia, Joana.
- Que horror! Isso faz-me lembrar um filme que vi, já há algum tempo. Uma miúda
organiza uma festa para a passagem de ano e, como os convidados demoram, vai
bebendo, bebendo, até cair, completamente inconsciente. Entretanto, Nova Iorque em

112
peso irrompe-lhe pelo apartamento e a festa é o máximo, só que ela, a organizadora,
como desesperou antes do tempo, perdeu o melhor. E depois, quando acorda e descobre o
que aconteceu, passa-se da cabecinha!
- Isso é muito animador, Inês… O que haveria de ser de mim sem ti? – ironiza.
- Morrias de tédio – responde-lhe a rir.
Joana também ri. Está feliz com a perspectiva de tirar o gesso do pé, abraçar a
normalidade do desfile diário das suas tarefas, regressar à vida e, com alguma esperança,
vibrar nos braços de Tomás. O episódio com o vizinho não se revestia de qualquer
importância ou significado de maior. Acontecera. Não era assim que os homens
justificavam as facadas que davam, a torto e a direito? E as mulheres, por que razão
haveriam elas de ser diferentes?
“Regras da vida? Sabe bem. O prazer sobrepõe-se à razão, não existem deveres ou
obrigações, esquece-se a lealdade, afinal, garantida, e procedemos àquilo que nos dá na
telha. As regras existem para ser quebradas ou subvertidas. Onde está a liberdade que
prometi a mim própria? Eu, que como o resto do povo, vivo entre a casa e o trabalho? Se
o poeta pode falar do cume da montanha, do pedestal, por que razão não arrebatar duas
ou três, ou talvez quatro ou cinco daquelas moças que se oferecem, quase como as
virgens da Gruta que Chora, da praia da Sununga? Porque é que não percebo que já
esbarrei com o destino na minha vã tentativa de fuga? Ou é ele que tenta escapulir-se de
algo que adivinha fatalmente diferente?”, congemina, tão inquieta como uma bandeira
açoitada pelo vento.

***

Camões acaba de lhe enviar um Toque!

Camões diz:

Joana diz:
Olá! Então, tudo bem?
Camões diz:
Olá!
Joana diz:
O que contas?
Camões diz:
Estou cansado… Esta treta anda a apertar.
Camões diz:
Quero férias e muito, muito sol!!!
Camões diz:

Joana diz:
Acredito… E já tens destino planeado?
Camões diz:
O bem me será maior, se vos levar, meu amor.
Camões diz:

113
Já te imaginaste de férias comigo?
Joana diz:
És doido! Tens namorada.
Camões diz:
Até lá, posso acabar com ela, ou não?
Joana diz:
Por mim, podes acabar hoje mesmo 
Camões diz:
Para me fazeres o quê?
Joana diz:
Sê ousado, atrevido e … venturoso.
Camões diz:
Desesperais quem vos ama e vos adora…
Joana diz:
Se isso fosse verdade, já eras meu.
Camões diz:
Quando é que nos beijamos, meu doce?
Camões diz:
Quando? – pergunta ele, a trepar às paredes.
Joana diz:
Ah! Ainda não tirei o gesso mas falta pouco… – responde ela, num tom promissor.
Camões diz:
Mas a sério... Qualquer dia, dá-me um ataque de ansiedade.
Joana diz:
Mesmo? Temos de evitar isso….
Joana diz:
Falta pouco….
Joana diz:
Em breve.
Joana diz:
Também ando morta de ansiedade…
Joana diz:
Se soubesses quanto. Nem imaginas. É impossível. Às vezes, sinto-me enlouquecer.
Acho que criei uma imagem de prazer que me esmaga por antecipação. Aniquila-me,
amor.
Camões diz:
Ena! Estamos inspiradas!
Joana diz:
És tu que me inspiras!
Camões diz:
Só eu?
Joana diz:

Joana diz:
Claro. Estou obcecada.
Camões diz:

114
Sim.
Camões diz:
Pois.
Camões diz:
Mas….
Joana diz:
Não comeces….
Camões diz:
Mudemos de tema…
Camões diz:
Olha, tenho que sair por volta das 18h00. Ainda vou passar numa agência e, depois, às
19h00, meto o meu cabelo nas mãos do Maurício 
Joana diz:
Mas eu tenho um show para ti!

Camões está a convidá-la para iniciar envio de imagens da câmara Web. Pretende aceitar
(Alt+C) ou recusar (Alt+D) o convite?

Joana diz:
Olá, meu amo e senhor….

Camões está a convidá-la para iniciar visualização de imagens de câmara Web. Pretende
aceitar (Alt+C) ou recusar (Alt+D) o convite?

Aceitou o convite para iniciar envio de imagens da câmara Web.

Aceitou o convite para iniciar visualização de imagens de câmara Web.

Joana diz:
Isto é uma grande produção, babe. Leva o seu tempo, percebes?
Camões diz:
De mais!
Joana diz:
Qual é a cor do meu cabelo?
Camões diz:
Preto.
Joana diz:
Sim! Asa de corvo! Vês o que faço por ti?
Camões diz:
Ena!!!
Joana diz:
E é lindo! Mas assim, na web-cam, não dá para ver grande coisa…
Joana diz:
Já viste esta crista em bordado? Magnífica, não é?
Camões diz:
E o avental e tudo. Cinco estrelas!
Camões diz:

115
Mas… Continua.
Camões diz:
Quero ver...
Joana diz:
Pois é. Preto e branco!
Camões diz:
Deus do céu!

E Joana, ergue-se da cadeira e, com gestos lentos e estudados, exibe a sua fantasia de
empregada doméstica. Tem tudo a que tem direito: farda preta bem curta, com bordados
brancos na gola e nas mangas, meias de ligas elásticas, lingerie a jogar com os tons
pretendidos. A cabeleira é deliciosa, de cabelos negros e lisos, tão sedosos como a
própria volúpia que a envolve. Esteve a beber champanhe e, os passos de dança que exibe
demonstram uma alegria extrema pela vida. Um grito de liberdade! E vivam os insanos!

Joana diz:
Que tal? Te gusta?
Camões diz:
Siiiiiii me gusta muchooooo!
Camões diz:
Ai, Jesus!!!
Joana diz:
Pois é, não sei quais são as tuas fantasias... com uma sexy mexican maid... Aliás, nem
sequer sei se gostas do tema.
Camões diz:
Adoro! O tema é o ideal!!! E a sexy mexican maid está de mais!
Camões diz:
E a lingerie... Minha nossa senhora!!!
Joana diz:
Achas que sou doida, não é?
Camões diz:
Não.
Camões diz:
Acho é que estás apetitosa como o caraças, isso sim, acho!
Joana diz:
Pois ainda bem!
Camões diz:
Mas levanta-te mais um bocadinho.
Joana diz:
Pois não sei, esta lida doméstica... dá cabo de mim.
Joana diz:
Só mimos...
Camões diz:
E que mimos!
Joana diz:
Aqui da sopeira boazona...

116
Camões diz:
És o máximo, Joana!
Camões diz:
Ai! Mãe do céu!
Joana diz:
Valeu a pena? Não sei se sabes mas as empregadas são vítimas de uma acérrima
perseguição...
Camões diz:
Se te apanhasse agora, estavas tramada Joana...
Camões diz:
Eh, eh, eh!

E Joana exibe uma ilustração emoldurada de um desenho de José Vilhena, que mostra
uma empregada a desviar-se de um apalpão da entidade patronal...

Joana diz:
Vilhena dixit.
Camões diz:
És a melhor sexy maid que já vi!
Joana diz:
Gracias cariño. Comprei a farda só para ti!!!!!
Camões diz:
Sério?
Joana diz:
Juro! Grande inauguração!
Camões diz:
Tens que a ter aí, sempre à mão. Só por essa fantasia merecia de meus males algum
fruito; que inda não quero muito pêra o muito que queria…
Joana diz:
Hum... O que pedirias a uma empregada doméstica?
Camões diz:
Que me limpasse o pó.
Joana diz:
Gosto muito disso em ti! Sim, senhor! Guarda-me essas palavras para os momentos
certos!
Camões diz:
Como assim?
Joana diz:
Estilo, quando estivermos a falar num ambiente mais propício... isto, se chegarmos até
lá, claro.
Camões diz:
Claro que chegaremos.
Camões diz:
Alguma vez este Camões deixaria uma sexy maid como tu para trás? Nunca, jamais,
em tempo algum!
Joana diz:

117
Não sei. Este pé partido uniu-nos mas também nos separa…
Camões diz:
Como podes dizer isso? Estaremos juntos, sim.
Joana diz:
Se eu não te vejo, não ganho confiança. É básico.
Camões diz:
Vou tentar amanhã que dê para irmos almoçar... Dava para ti?
Joana diz:
Hum...
Camões diz:
Para me veres de cabelo curtinho.
Camões diz:
Ah! E não precisas de ir estilo sexy maid.
Joana diz:
Isto é só virtual, babe!
Camões diz:
Eu sei!
Camões diz:
Ligo-te de manhã, ok?
Joana diz:
Mas ainda não tirei o gesso...
Camões diz:
Joana... Quero lá saber do gesso....
Camões diz:
Não me importo com isso!
Joana diz:
Mas olha, o melhor é sairmos noutro dia. Quando já não tiver esta treta, percebes?
Camões diz:
Please...
Camões diz:
Ligo-te por volta das 10h30, pode ser?
Joana diz:
Hum... Vou ter de acordar mais cedo...
Camões diz:
11h00.
Camões diz:
11h30!
Camões diz:
Está bem?
Camões diz:
Às 11h30, já estás a pé!
Joana diz:
Está bem, querido. Adorava!!!!!
Joana diz:
Mas olha, que é só almoçar!
Camões diz:

118
Sim, fica combinado. Às 11h30 ligo-te.
Camões diz:
Já sei. Como amigos.
Camões diz:
Sem beijos na boca.
Camões diz:
Uma coisa normal.
Joana diz:
Talvez um beijo, não sei… Ando muito encantada contigo.
Camões diz:

Camões diz:
Tenho mesmo de ir!
Joana diz:
Tudo bem! Besos.

Joana piscadelas:

Reproduzir "Beijo"

Camões piscadelas:

***

“Bonne chance, chérie”, deseja-se a ela própria, enquanto se revê no espelho. Na


realidade, já não tem o gesso no pé. Fez bluff com o rapazinho. Mas alguma vez, vaidosa
como era, sairia sem estar no seu esplendor máximo? E ri-se com o que Inês diria se a
visse arranjada como ela estava: “Vestida para matar?” Sim, sem dúvida. Tudo escolhido
a dedo, desde a ponta dos pés à ponta dos cabelos, encaracolados no cabeleireiro, logo de
manhã cedo. Se o queria subjugado, valia a pena investir na beleza. E o espelho devolvia-
lhe essa imagem de arrasar tão pretendida.
Segura do seu look, fechou a porta de casa, apanhou um táxi e foi ter com Tomás ao local
por ele sugerido: um restaurante nas docas. Há imenso tempo que não via o rio, embora
amasse muito mais o mar. A devoção pela água salgada ganhara ainda encanto maior
quando ele lhe começara a enviar beijos com sabor a maresia… Eis que, por fim,
contemplaria na realidade o ser virtual que a tirava do sério. O seu coração batia a
duzentos à hora.

119
Foi fácil reconhecê-lo. Depois de tantas horas de conversa com a câmara ligada, já lhe
distinguia o vulto à distância. Sorriu e acenou-lhe, enquanto caminhava na direcção dele.
- Olá! Não estás aqui há muito tempo, pois não? – pergunta, cuidadosa.
- Não. Cheguei agora. Estás a andar perfeitamente bem…
- É verdade. O gesso já não é um empecilho. Ou um inimigo a abater – declara, sorrindo.
- Óptimo. Entramos?
- Sim, claro – concorda, tomando a dianteira.
Curiosamente, não se sente minimamente embaraçada na presença dele. Ela, que até é
algo reservada e altiva, considera que aquele estranho é, e não é, um desconhecido. Por
um lado, nunca o tinha visto, mas por outro lado, já se tinha despido para ele…
- Queres ficar junto à janela?
- Sim, escolhe a mesa – diz-lhe, atencioso.
- Hum… Esta.
- Perfeito.
Joana despe a gabardina branca e exibe uma mini-saia e uma camisola cor-de-rosa, com
uma enorme gola à barco. Ele observa-a com muita discrição.
- Gosto muito de massas – aprova, passando os olhos pelo menu.
Depois de fazerem os pedidos, ambos acendem um cigarro.
- Fumas muito – avalia, lembrando-se de a ver acender cigarro atrás de outro.
- Uma vez estive um ano sem fumar. Talvez tente de novo. Mas, ultimamente, ando algo
nervosa – provoca, com um sorriso travesso.
- Eu vou voltar a correr. Tenho o equipamento no carro. Talvez retome o exercício físico
hoje mesmo.
- Boa! Estamos decididos! E isso é fantástico, sabes? Puxar pelo corpinho, impede-nos de
fumar tanto.
- Pois é – concordou ele.
- E então? Muito trabalho?
- Algum… Já estou cansado, sabes? O ritmo financeiro é desgastante. Apetece-me
mudar.
- E fazer o quê?
- Sei lá! Entrar numa peça de teatro! – declara, com um sorriso franco.
- Ficas muito bem de fato – elogia.
- De novo, decidi ousar!
- Fazes-me lembrar aquele filme, o “Nove Semanas e Meia”. Viste-o?
- Claro.
- Ele, o Michey Rourke, andava sempre com calças pretas e camisa branca. Isto, claro,
antes de as operações e tudo o mais que o desfiguraram. Nesse filme estava o máximo.
Mas, às tantas, ela, a Kim Basinger, vai espreitar as coisas dele. Típico de as mulheres
quando se apanham sozinhas no apartamento dos respectivos… Enfim, a rapariga
descobre que ele só tem mesmo camisas brancas e calças pretas, repetidas até à exaustão.
Assim és tu, com os teus fatos.
- Parece sempre o mesmo, eu sei. Mas juro que tenho vários.
Joana ri-se com aquele súbito embaraço.
- Vamos beber tinto ou branco? – questiona ele, mudando de assunto.
- Prefiro branco. O tinto é muito encorpado.

120
- Gosto mais de tintos, mesmo com peixe. Mas está bem. Então, e o que é que a senhora
sugere?
Joana vê a lista e pede ao seu gosto. Ele aprova e continuam a conversar. De vez em
quando, o olhar dela perde-se no rio. Já sentia saudades do cenário. Ele consegue
perceber isso, a atracção que a água desperta nela.
- É bom estar aqui contigo. Sem a câmara de permeio – declara, por fim. – És expansiva.
- Sim. Esperavas outra coisa?
- Não sei o que esperar… Mas que gosto de te ter à minha frente, gosto!
- E esses jantares de fim-de-semana com os teus amigos? Devem ser regadíssimos com
tinto…
- Bebemos a nossa dose, é certo. São amigos de infância. Mantemos o ritual de nos
encontrarmos. São quase todos professores.
- Pessoas interessantes?
- Muito. Embora me tenha zangado com um deles, já lá vão dois anos. Por causa da
namorada. Um mal-entendido. É mais a fama que outra coisa – justifica, a sorrir.
- O que queres dizer com isso?
- Tentei que ela se sentisse à vontade no grupo. Pedi-lhe para se apresentar e contar
qualquer coisa sobre a vida dela. Mas a fulana interpretou mal o meu interesse e deve ter
envenenado o André. Ele virou-se para mim, de braços abertos, um olhar magoado e
disse-me: “Puxa, pá! É a minha namorada!” E eu: “Mas não fiz nada!” A verdade é que
ele nunca mais me falou…
- Tinhas namorada na altura?
- Não.
- Ora, ele deve ter tido ciúmes…
- Como é óbvio, nunca me meteria com a namorada de um dos meus melhores amigos!
- Percebo. Também me zanguei com um grande amigo. Uma pessoa com um feitio
especial. Sabes aqueles indivíduos que, quando, finalmente, arranjam uma namorada
parecem que partem para outra galáxia longínqua?
- Sim, estou a ver o género – admite, com um sorriso.
- E depois também houve umas confusões de grupo: o disse que disse que não disse.
Enfim, a saga das inconfidências…
- Gerir o bem-estar dentro de um núcleo de amigos não é fácil. São várias cabeças, não é?
Cada qual tem a sua visão própria e, a verdade de uns, pode não coincidir com a de
outros…
- A quem o dizes…
- São rápidos aqui. Ainda bem, porque daqui a bocado, já me estão a chatear.
- Tem de ser tudo a correr, não é?
- Passamos a vida assim, numa correria despropositada. O que fazer?

Quando terminam o almoço, ambos se despedem no parque de estacionamento. Joana vê-


lo avançar decidido para o carro, estacionado ao lado do dela, e, antes que Tomás abrisse
a porta da viatura, não consegue impedir-se de sugerir:
- Posso beijar-te?
- Claro que podes – responde ele, sem hesitar.
Trocam um beijo suave mas rápido, demasiado rápido. Ela sente que poderia ter ficado
toda a tarde a beijá-lo sem se cansar. Mas a urgência do trabalho dele e, algum

121
desnorteio, ditam o desfecho. Antes de arrancar, Tomás ainda acende um cigarro. Talvez
esteja nervoso, ou apenas terrivelmente apressado.
Joana regressa a casa sem qualquer explosão de grande júbilo. A suavidade foi boa. As
mãos dele mantiveram-se sossegadas. E ela gostou disso. Teria detestado qualquer sinal
de avidez. Em particular, dado o estado dele. Se não tivesse namorada, tudo poderia fluir
de um modo diferente. Mas era como se ambos vivessem uma perfeita mentira. E esse
pensamento tirou-lhe o prazer do beijo.

***

Camões diz:
Olá!
Joana diz:
Então? Como está o menino?
Camões diz:
Um pouco cansado. Final de tarde atribulado.
Joana diz:
O que é que aconteceu?
Camões diz:
Oscilações no mercado.
Camões diz:
Chegaste bem?
Joana diz:
Sim. Nem te agradeci o almoço! Obrigada! Gostei muito!
Camões diz:
Não precisas de agradecer. O prazer foi meu 
Joana diz:
Gostaste de estar comigo?
Camões diz:
Muito.
Camões diz:
E tu? Gostaste de estar comigo?
Joana diz:
Sim!!!
Joana diz:
Prefiro estar a conversar contigo a sério, do que assim, on-line.
Joana diz:
Também gosto mas é diferente.
Camões diz:
Eu também.
Joana diz:
Mas és um bocado tímido…
Camões diz:
Achas? A sério que não sou.
Camões diz:
Porque dizes isso?

122
Joana diz:
Vou ter uma opinião diferente de todo o mundo.
Camões diz:
Mas porque dizes isso?
Joana diz:
Sinto um certo embaraço da tua parte, uma reserva que, se calhar, até é natural.
Camões diz:
Não sinto que seja tímido... E tentei, tal como combinado, comportar-me naquela base
da amizade.
Joana diz:
Claro! Acho muito bem.
Joana diz:
Também confesso que não gostava nada de me encontrar com alguém que me
percorresse como se eu fosse uma guitarra espanhola…
Camões diz:

Joana diz:
Antes assim.
Camões diz:
Mas gostei imenso, e apetecia-me ter ficado a tarde toda a beber uns copos e a
conversar contigo.
Joana diz:
Também eu! Não tivemos o tempo do nosso lado.
Joana diz:

Joana diz:
Mas é bom falarmos. E podemos sempre fazê-lo com mais tempo, numa próxima
oportunidade. Isto é, se não me tiveres achado muito...atrevida.
Camões diz:
Com todo o gosto, e claro que não te achei atrevida!
Joana diz:
A sério? Ainda bem.
Joana diz:
E o nosso beijinho? Foi muito rápido... não foi?
Camões diz:
Sim, foi rápido, respeitando as tuas condições.
Joana diz:
Certo.
Joana diz:
Já percebi que só arrancas mesmo quando é para partir a loiça toda...
Camões diz:
Como assim?
Joana diz:
Como os carros quando arrancam.
Camões diz:
Não percebo.

123
Joana diz:
Eu explico:
Joana diz:
Acho que só partes para a coisa, se souberes que não fica pelos chamados rituais
iniciáticos. Claro que posso estar enganada…
Camões diz:
Mas referes-te propriamente ao beijo?
Joana diz:
A que mais?
Camões diz:
Ó, mulher de Deus!!! Um gajo é preso por ter cão e por não ter... Quer dizer…
primeiro, dizes-me que é na base da amizade... Eu, como é óbvio, controlei-me… para
depois não ser acusado de abusador, ou não cumpridor do acordo. Agora, vens-me
com esta história dos carros...
Joana diz:

Camões diz:
Para a próxima, eu digo-te como vai ser!
Joana diz:
Descontrai, querido! Não sabes que as mulheres dizem umas coisas quando querem
dizer outras?
Camões diz:

Camões diz:
Vou sair... Compras para a casa.
Joana diz:
Está bem. Bom fim-de-semana. Besos.
Camões diz:
Mil besos.
Camões diz:
Gostei mesmo muito de ter estado contigo.

***

Inês ajuda-a a levar os pratos para a mesa de apoio. Na aparelhagem, a voz de Will
Young canta Your Love is King, acentuando na sala um ambiente festivo. Existem velas
espalhadas por vários recantos, incenso, e as janelas abertas deixam entrar uma brisa
nocturna morna.
- Não pareces muito animada – declara, olhando para a amiga que parece meia alheada de
tudo.
- É a tal ansiedade pré-festa de que te falei – tranquiliza-a, com um sorriso –, mas creio
que não devem demorar a chegar com a comida. A não ser que tenham sido obrigados a
fazer uma travagem brusca e, a estas horas, os meus gratinados de gambas, quiches de
cogumelos e alho francês, rolinhos de presunto e salsichas e tudo o mais, esteja estatelado
num passeio qualquer…
- Não é só isso. O que é que se passa? Não gostaste do encontro?

124
- Gostei. Claro que gostei!
- Então? Do que é que não gostaste?
- Sei lá, Inês. Talvez do facto de ele não me ter feito carícia alguma. Beijou-me sem tirar
a mão das chaves do carro, as quais, entretanto, já estavam metidas na porta.
- Pois. Isso é tão mau como dar um beijo com as mãos nos bolsos. Mas ele é parvo, ou
quê?
- É convencido: queres um beijo, então, toma lá. Eu deixo-te provar um bocadinho…
- Hum… Não quis abusar.
- Por amor de Deus, Inês! Tanta conversa, milhares de beijos enviados e, quando,
finalmente me pode beijar é assim? Bolas! Fiquei desiludida!
- E ainda foste tu que tomaste a iniciativa…
- Já viste? Sou uma parva. Não lhe devia ter dado nenhum beijo…
- Your kisses ring/ round and round and round my head – trauteia Inês, acompanhando a
música.
- E digo-te, nunca irei com ele para a cama, enquanto não largar a outra. Sou lá mulher
para ficar como a segunda opção, sempre à mão. Ele deve estar doido se pensa que me
tem assim!
- Concordo em absoluto! Mas essas coisas definem-se no princípio. Imagina, se facilitas
e, mais tarde, lhe dizes a clássica: “Ou eu, ou ela”, corres o risco de ficares para trás… O
Tomás está a fazer o velho jogo, o do mais vale um pássaro na mão, do que dois a voar…
- Jogos! Estou saturada! – profere, impaciente.
- O ideal, aquilo que te deixaria feliz, era ele acabar com a namorada para começar a
andar contigo. E se o Tomás fosse um tipo sério fazia isso. Mas talvez ele só queira
brincar… Uma distracção.
- Eu sei. Mas ele disse-me que a relação não era boa. Se fosse, também “nós” não
teríamos existido.
- Mas se o Tomás não opta e não toma qualquer decisão… E tu és muito inocente, uma
presa fácil porque, quer queiras quer não, és tenrinha nestas coisas.
- Ó Inês! Depois de um ciclo de namorados bons e, um outro interminável de estupores,
pelas regras da vida, do destino, sei lá, pela lógica que reina o mundo, está na hora de me
sair na rifa um tipo bom de novo!
A amiga ri-se, enquanto reúne o talher e dispõe os guardanapos de papel:
- Tens razão. Mas já devias identificar os predadores e parece-me que ainda não o sabes
fazer.
- Eles não andam para aí com sinais luminosos a anunciarem as pestes que são.
- Mas há sinais. Temos é de os saber interpretar.
- E que leitura fazes do Tomás?
- Sinceramente e, desculpa-me dizer-te isto porque sei o quanto já começas a estar
envolvida, mas acho que ele só quer dar uma por fora.
- És capaz de ter razão – concorda, murcha.
- Mas anima-te! Afinal, és uma miúda tão bonita e inteligente! Mereces encontrar alguém
que te estime de verdade!
- Não sei o que fazer…
- Compreendo.

125
- Ele nunca me liga aos fins-de-semana. Se quisesse, podia raspar-se da presença dela e
enviar-me um SMS. Só para dizer que tinha saudades ou qualquer coisa. Mas não me
parece que o Tomás queira infligir um único beliscão àquela estória.
- Ora, aí tens um bom sinal! Se ele não quer prejudicar aquilo que tem, é porque lhe dá
valor. Ainda que, um valor à escala dele, já que a traiu vezes sem conta, não é?
- Sim, mas pode tê-lo feito por despeito. Na volta, está preso. Sabes? Pode ser dependente
dela em termos afectivos. Não faço a mínima ideia do que se passa entre eles.
- Já viste alguma fotografia dela?
- Não, e nunca na vida lhe vou pedir isso. Para quê? Ela pode ser bonita ou feia. O que é
que isso interessa? É com ela que ele está, não é? E a beleza é tremendamente subjectiva.
Sei que é morena e um ano mais nova do que eu. Gestora de qualquer coisa. Não me
interessa, não quero saber!
- Estás a fazer o papel das outras. Lembras-te daquele teu namorado que te enganava?
Agora não és a legítima traída mas a potencial presa do traidor…
- Que imagem… E este, ainda me disse que tinha namorada. Aposto que o Afonso nem
sequer dizia às fulanas que andava com alguém. Fui tão enganada… E perdoei-lhe, feita
anta. Valeu-me de muito!
- Deixa lá! Esse tipo também nunca vai fazer ninguém feliz. E o Tomás é parecido com
ele, todo falinhas mansas e bem-educado. Sabem fazer as coisas com requinte.
- Pois é. Às vezes, penso nessa miúda que é a namorada do Tomás. Podia ser eu. Fui eu,
no meu tempo com o Afonso. É indecente.
- Olha, respira fundo e pensa bem no que queres fazer.
- Vou começar a cortar-me. É isso. Vou deixar de estar on-line e desculpar-me com meia
dúzia de tretas. Vou fugir de algo que não me parece correcto.
- Tu é que sabes. Decidas o que decidires, conta sempre com o meu apoio. Olha, estão a
tocar. Deve ser a comida! Vá, anima-te! Afinal, daqui a bocado chegam os teus
convidados! E eu tenciono ouvir as tuas características gargalhadas.
- És uma querida, Inês! Dás-me imensa força! Adoro-te!
Os empregados do catering dispõem os pratos na mesa central já decorada para o efeito.
A chegada de tantas cores e aromas alegra a atmosfera. Tudo se apresenta absolutamente
impecável, e Joana respira aliviada.
- Já podem começar a chegar. Espero que não me façam esperar a noite inteira, caso
contrário ainda começo a beber como aquela criatura do filme que viste – avisa Joana,
rindo-se.
- Já bebíamos um aperitivo. Vou arranjar dois.
- Com pouco álcool, não abuses – pede, divertida.
Não têm de esperar muito mais pelos amigos, os quais começam a chegar. Todos elogiam
a decoração e o requinte da sala. E a anfitriã é mimada com vários presentes que visam
festejar a sua recuperação física.
- Vá, dança lá um bocadinho para testemunharmos essa saúde de ferro – incita Ricardo,
que é fã de Barry White. E, depois, estende-lhe a mão e fá-la rodopiar, sob o olhar gélido
da mulher.
Joana não sabe recusar uma proposta de um homem bonito. É algo que a vida ainda não
lhe ensinou a fazer. Como tal, deixa-se conduzir.
- Nunca ninguém dançou tão depressa comigo – murmura-lhe ao ouvido. – Estás divina
nesse vestido preto.

126
- A Marisa não parece muito contente. Vamos convidá-la para que se junte a nós –
sugere.
- Ménage… Porque não?
- Disseste que ela não era ciumenta.
- E não é. Queres ver? Marisa! – chama. – Anda cá, amor. Dança connosco. Dancem
todos.
E Joana fica estupefacta com a descontracção natural do rapaz. Entretanto, Guida,
Patrícia e Mafalda observam os lugares.
- Sentamo-nos alternados, não é? – interroga, Inês.
- Sim: ali fica o Filipe, depois tu, a seguir o Vasco, depois a Mafalda, o Hugo, a Guida, o
Ricardo e a Marisa, e eu e a Patrícia. Mas podem alterar a ordem! Sentem-se ao lado de
quem quiserem! – declara, bem disposta.
- Estes salgados são uma delícia – aprova uma das raparigas.
- Posso lançar-me aos cocktails?
- Claro, Filipe. Ouvi dizer que és um expert… – comenta Joana, olhando-o com um
sorriso divertido.
O rapaz anuiu, também ele animado pelo ambiente caloroso:
- Bem, trabalhei como barman, enquanto cursava. Foi uma maneira de custear a coisa e,
pelos vistos, faz jeito! Tens muito gelo?
- Imenso. E máquina para o picar.
- Óptimo. Caso contrário, ainda deslocava o ombro com as caipirinhas que prevejo fazer.
- Anda! Vou mostrar-te onde está tudo e ajudar-te também!
- Não precisas de fazer nada! Diz-me só onde guardas os utensílios e pisga-te para junto
dos teus amigos! Esta noite é tua!
Joana sorri com a simpatia do namorado de Inês. Enquanto lhe passa as coisas para as
mãos, aprecia as costas de ombros largos, os braços fortes que as mangas da camisa
dobradas deixam vislumbrar, e suspira satisfeita. A casa dela parece reunir as pessoas
mais bonitas da capital.
- Joana! O teu telemóvel! – alerta Inês.
- O meu?
- Sim, a música não deixa margem para dúvidas.
- Pois. Ainda não tive disposição para a mudar – desculpa-se, embaraçada com o toque
natalício.
A anfitriã olha para o monitor e, disfarçadamente, volta a pousar o telefone, enterrando-o
entre as almofadas do sofá.
- Não atendes? Quem é? – pergunta Inês, admirada.
- O Alexandre.
- Estranha ressurreição…
- Sim. Não me apetece falar com ele.
- Então, esquece. Porque não o desligas?
- Não. O Tomás pode sempre perder a cabeça e enviar-me um SMS. Nunca se sabe.
- Olha lá – sussurra, aproximando ainda mais da amiga. – O Ricardo está diferente.
Parece mais… feliz.
- Sim, está enérgico.
- E não disfarça nada. Olha para ti, de uma maneira…
- Tenho um efeito estranho sobre as pessoas. Não é isso que me dizes a toda a hora?

127
- Só espero que a mulher dele não faça nenhum escândalo. É que ele nem sequer disfarça.
Come-te com os olhos.
- Deixa-o lá.
- Olha, tens uma mensagem. Vai ver.
Joana segue angustiada para o sofá e pesca o aparelho. Mas, para sua surpresa o SMS é
de Tomás: “Proposta (in)decente: tomar um copo, hoje, 22h45, em Lisboa. Local a
combinar. Aceite?”
“Lá está a avalanche de novo: ou nada acontece, ou atropela-se tudo”, pensa, angustiada.
Mas o que era mais importante? Sem dúvida, não podia deixar os seus convidados. No
entanto, ele rompera o silêncio característico dos fins-de-semana. Sem pensar duas vezes,
responde-lhe: “Adorava!” E ele: “Então, no bar do Fred. Ou tens outra sugestão? Nunca
ninguém me respondeu tão depressa a um SMS.” E ela: “Onde é que é o bar do Fred?” E
Tomás dá-lhe as coordenadas. Ela conclui: “Lá estarei, querido!”
E só então, olha para todos os seus amigos e um frio começa a instalar-se-lhe na barriga.
“Ai, minha mãe! E agora, o que vou dizer a esta gente?”, apercebe-se, aterrorizada.
“Bom, o melhor é sentarmo-nos e começarmos a petiscar”, tranquiliza-se. “Também
ainda falta um bom par de horas e, até lá, pensarei numa solução.”
- Caipirinhas? – pergunta Filipe, entrando com um tabuleiro.
- Uma! – suplica, avançando para os copos de limas esmagadas.
Inês observa-a, divertida:
- Não era o Alexandre, pois não?
- Por incrível que pareça…
- O Tomás ousou…
- Pois. Mas está tudo bem. Vamos sentarmo-nos? – sugere, bebendo um valente gole.
- Não tens de tirar os gratinados do forno?
- Sim, claro. Vem ajudar-me.
E ambas se dirigem para a cozinha, onde, por sorte, os gratinados ainda não
queimaram… De regresso à sala, todos elogiam o cheiro apetitoso que se desprende das
travessas.
Joana repara como as pessoas se servem, conversam e parecem animadas. Está tudo a
correr lindamente bem. Talvez os outros nem sequer se apercebam de que ela está pálida,
a olhar para o relógio, de dois em dois minutos, e a brincar com a comida no prato.
Fala-se de religião, política, assuntos mundanos e exposições de arte. Os temas são tão
abundantes, como a diferença de opiniões, algumas mais vincadas do que outras. E de
súbito, uma nova SMS de Tomás: “Joana, lamento profundamente, mas algo menos bom
aconteceu. Ligou-me a minha mãe, a minha tia caiu e foi para o hospital. Tenho que ir
lá.”
A decepção deixa-a paralisada.
- Más notícias? – pergunta Filipe.
- Não. Só um amigo que não pôde vir – desculpa-se, aproveitando para responder a
Tomás: “Espero que a senhora tua tia recupere.” E ele: “Não sejas sarcástica, Joana.
Estou a dizer a verdade. Amanhã, explico-te! Mais uma vez, desculpa!”
Joana já não lhe retalia. A sua atenção regressa ao jantar, ao grupo que se juntou, afinal,
por convite seu, e acaba por esquecer o dissabor. Talvez até tivesse sido melhor assim.

***

128
No dia seguinte, Joana acorda para mais um domingo. Na realidade, acha estes dias os
mais maçadores do calendário. Impõe-se a arrumação da casa, o que sempre lhe dá algo
para fazer. Ao domingo, tem por hábito agarrar num livro e sair para um jardim, em dias
de sol. Mas o céu está cinzento e ameaçador.
Depois de lavar a loiça e quando se preparava para aspirar o chão da sala, o toque do
SMS lá soou: “Mais uma vez, mil desculpas por ontem. Mas a minha tia que já é velhota
bebeu lixívia por engano. Só há bocado teve alta. Besos.”
Espantoso… Ou a tia bebeu lixívia até cair para o chão, ou a tia caiu para o chão sob o
efeito da lixívia bebida, ou Tomás vira o seu esquema de “fuga” interrompido por um
motivo qualquer e dera-se ao trabalho de inventar aquela estranha estória… Acreditar em
quê?
O elemento positivo tinha sido a quebra do silêncio ao fim-de-semana. Mas a forma
como decorrera, ou melhor, não decorrera a interrupção do sagrado descanso, deixara-a
desconcertada. O que dizer? A primeira coisa que lhe ocorreu: “Ainda bem que teve alta.
Estou a ouvir música. Beijos.” E depois ficou a pensar: “E amanhã? Ligo-me on-line, ou
não? Agora, se não o fizer, parece que, de certa forma, estou a duvidar dele. E não
estarei?”
Aborrecida, enfrenta o aspirador e procede a uma limpeza vigorosa, a qual a faz suar em
bica. “Que chatice! Sei lá o que é que devo fazer!”

***

Meu querido,

Nota positiva: teres quebrado o silêncio dos fins-de-semana. Boa! Estamos a ousar 

Nota negativa: Ou a tia bebeu lixívia até cair para o chão, ou a tia caiu para o chão
sob o efeito da lixívia bebida…

Nota positiva: encontro real na sexta-feira.

Nota negativa: Beijo dado com as mãos “nos bolsos”. Ao menos, uma festinha/carícia
facial ou capilar…

Nota positiva: Sorriso e olhar encantadores…

Nota negativa: Mais apressado do que o Donald Trump…

Nota positiva: Cavalheiro, bem-educado.

Nota negativa: Tens de saber a minha morada para me apanhares a caminho e


evitares que eu parta sozinha para a noite…

129
Nota positiva: Revelas interesse.

Nota negativa: Receio que esse interesse seja apenas para uma troca de fluidos sem
qualquer significado por aí além…

Nota positiva: Inteligência e perspicácia avassaladoras: “impulsiva” e


“sarcástica”/irónica são mesmo alguns dos traços da minha personalidade!
Deslumbra-me esta sapiência, como se me conhecesses desde sempre!

Nota positiva: Suscitas-me um desejo ainda maior de te beijar. E muito!

Perspectivas: Tudo em aberto…

Enviado o e-mail, Joana suspira satisfeita. Apercebe-se de que gosta de partilhar os seus
estados de espírito com ele. Isso alivia-lhe o fardo das responsabilidades. Ou das culpas,
aquelas que, mais tarde, se atiram sempre à cara um do outro.
Após ter ido almoçar com os colegas, não resiste a espreitar a sua caixa de correio. Agora
que regressara à editora, mal tinha tempo para se coçar. Mesmo assim, tentaria equilibrar
os ritmos: o frenético da casa e o acelerado do seu próprio interior. E lá estava, a resposta
dele. Alínea por alínea, um comentário às notas dela. Na da tia, por exemplo, dizia-lhe
que não era a primeira vez que ela fazia uma coisa daquelas. Isso deixou-a pensativa:
teria a senhora tendências suicidas? Pior: seria hereditário? Não! Já estava, de novo, a
fazer um filme, um drama de terror psicótico.
Tomás reconhecia a pressa do encontro de ambos e acrescentara: “Pois… estilo toca e
foge… tenho que remediar esse ponto negativo.”
Joana ri-se com um sedutor assumido que se gaba de conquistar mulheres mas,
paradoxalmente, parece tão acanhado e nervoso à frente dela. “O que até lhe dá um certo
charme, se não for um efeito estudado”, considera.
“A morada tens de ser tu a dar-me, de livre vontade.” Porque não? Como é que podia
continuar a gostar e a recear uma pessoa ao mesmo tempo? Teria de pensar nisso.
De resto, Tomás concordava com ela sobre o facto de estar tudo em aberto. Dizia-lhe que
não valia a pena esgotarem todas as probabilidades que o futuro lhes poderia reservar mas
deixarem as coisas acontecerem e seguirem o seu rumo natural. De novo, acusava-a de
pensar de mais.
Joana não sabe porque meteu na cabeça que quer aquele rapaz. Para mais, alguém que
tem namorada e que admite já tê-la enganado. “Se enganou a namorada, o que me garante
que não me enganaria também? Não faz sentido nenhum”, admite. “Talvez a minha
solidão se tenha cruzado na esquina errada com a atenção dele.”
No fundo, trocara mais palavras com Tomás do que com Alexandre, o qual sempre
defendera uma relação aberta e liberal, sem qualquer compromisso…
“Podem as palavras fazer amor?”, perguntara-lhe o poeta. Ela achava que sim. Fosse no
Messenger, ou através de SMS, o contacto diário revelava um enorme desejo de ambas as
partes. E o encontro real proporcionara-lhe algo novo: gostara de se ter visto nos olhos
dele, como se, de facto, as afinidades os geminassem.

130
Poderia ser ele o tal? Já estava saturada de homens difíceis, distantes e frios. Ansiava por
alguém que lhe aquecesse a alma. E se ela já ouvia os pássaros na rua, e sorria com o sol
que começava a aligeirar as roupas de Inverno, isso só podia ser um bom sinal: “Meu
amor”, pensa “não sei porquê mas oiço os pássaros cantarem. Apesar dos carros, da
poluição, dos rostos tristes e cinzentos… oiço a sinfonia canora. E não sei se o canto é
deles ou meu. Sinto que há algo que me enche e transborda. Uma sensação de plenitude,
um hino à vida.
Na realidade, existe um ladrão furtivo que me roubou as horas de sono. Não durmo. Não
consigo dormir. E acordo todos os dias com olheiras a partilharem um sorriso beatífico.
Visto-me sem saber bem se o top combina com a saia, ou se os botins justificam a cor das
calças. Sou uma decadente à procura da tua cadência, uma desesperada que anseia por
uma esperança tua, uma solitária que vê em ti o sol.
E eu espero-te tanto, meu amor. Tanto, que as minhas mãos enlouquecem. Elas acariciam
o ar, desenhando-te a partir do nada. Creio que estão profundamente apaixonadas…
Procuram-te, sedentas e esvoaçantes, até ficarem trémulas. Elas amam-te para a vida,
como cantava Bécaud.
Agarro o volante e os meus dedos tacteiam incansáveis: “Onde está aquele que nos
obceca? Aquele a quem já tudo demos?”
Queria agradecer-te por fazeres a Primavera renascer no meu Inverno… Mas que sei eu?
O que fazer com estas mãos que, frenéticas, te procuram? Só me resta deixá-las partir e
esperar que regressem… inebriadas de ti.”

131
Tomás gosta de tomar duche, ao mesmo tempo que ouve música. Mas hoje está tão feliz
que também ele canta. Decidiu que vai sair com Joana, der por onde der. E, como tal,
quase se esqueceu que vive um dia de sábado, ou melhor, o início de uma noite. Por seu
lado, Rita, que mostrara interesse em sair com umas amigas, acaba por mudar de ideias e
opta por ficar em casa. Porém, isso não altera a decisão de Tomás que já enviara um SMS
a Joana, convidando-a para se encontrar com ele no bar do Fred. E uma vez que ela
aceitara de imediato, incendiava-o agora a perspectiva de estar com ela.
Quando sente o cheiro agradável do gel de banho e a espuma a descer-lhe pelo corpo bem
constituído e ausente de pêlos, Tomás interroga-se, maravilhado, se nessa noite
acontecerá algo entre eles.
“Entre um homem e uma mulher acontece sempre alguma coisa, ou não. E no nosso caso,
não sou eu que vou deixar cair a bola”, reflecte, limpando-se vigorosamente a uma toalha
turca e enrolando-a à cintura.
Contempla os seus vários produtos de cosmética e aplica a espuma de barbear. “Hoje,
quero ter uma pele suave e bem hidratada, onde possas roçar a tua carinha sem te sentires
arranhada.”
No quarto deles, Rita admira-se com tanta alegria. Quando lhe dissera que ia sair com
umas amigas, Tomás encolhera os ombros: “Fico contente, querida. Até acho bem que te
divirtas com elas. Por que motivo temos de sair sempre com os meus amigos?” E ela
respondera-lhe: “Talvez porque nunca gostaste dos meus.” E Tomás concluíra: “Hoje não
me apetece discutir. Estou demasiado bem disposto para isso.”
E embora Tomás, por feitio, não gostasse de provocar ou prolongar discussões, a sua
súbita retirada do diálogo e agora a cantoria que lhe chegava da casa de banho, deixavam
Rita desconfortável. Ele estava a tramar algo. Mas o tiro sair-lhe-ia pela culatra.
Dirigiu-se à cozinha e fez aquele preparado infalível que sempre a fazia vomitar. Depois,
apressou-se a entrar na casa de banho deles, evitando de propósito a social, pois o
objectivo era mesmo um show.
Tomás estava a hidratar as faces lisas com uma loção francesa, quando, através do
espelho, a viu entrar e debruçar-se junto à retrete. Depois, o vómito dela fê-lo agir mais
depressa:
- O que tens, querida? Sentes-te mal? Queres que te aperte a barriga?
- Não – protesta Rita, com uma voz débil. – Tudo menos isso. Por favor, não me apertes a
barriga.
- Mas ajuda-te sempre – recorda-lhe.
- Desta vez é diferente, querido. Julgo que estou grávida…
- O quê?!
Se alguém lhe tivesse dito: “A tua mãe morreu”, o choque teria sido idêntico. Tomás não
consegue reagir. Pensa que ficou congelado naquele instante, em que deu um passo para
trás, largando as mãos da cintura dela e olhando-a, tão incrédulo quanto furioso.
Controla-se para não lhe perguntar: “E estás segura de que sou eu o pai?” Lentamente,
recupera do embate inicial, respirando de novo – sim, até a sua respiração ficara suspensa
e, talvez por a ter bloqueado, tivesse sentido uma ligeira tontura, como se fosse desmaiar.
Por fim, articula:

132
- Tens vomitado muito, é?
- São os sintomas todos: náuseas, enjoos, vómitos. Sinto-me tão agoniada…
- Há quanto tempo é que estás sem o período?
- Duas semanas? Sabes que nunca fui certa…
- Ainda é pouco tempo – reage, mais aliviado. – Pode ser um atraso. Caramba! Nunca
tiveste um atraso?
- Claro que sim – responde, com um sorriso condescendente. – Porém, nunca vomitei por
causa disso.
- Ah, bom… Isso muda tudo, não é? Os vómitos e tal.
- Pois.
- Só temos uma hipótese – declara, começando a vestir-se apressadamente.
- Qual? – pergunta Rita, cautelosa.
- Vou a uma farmácia de serviço comprar os testes de gravidez e já venho. Qual é a
marca mais fiável?
- Penso que qualquer uma serve… Mas porquê hoje? Já é tarde. Temos amanhã e depois.
Se estiver grávida, o bebé não foge da minha barriga, pois não?
E havia naquela pergunta uma seriedade e uma inocência tão híbridas, que Tomás ficou
sem resposta:
- Vou deitar-me no sofá e ver um pouco de televisão. Fazes-me companhia, querido?
Apetecia-me ficar enroscada em ti…
- Sim, já vou.
Rita volta-lhe as costas com um sorriso vitorioso que Tomás não vê: “Ele já não vai sair
com ninguém, que descalce a bota como quiser”, pensa. “E quanto à falsa gravidez, desde
uma possibilidade histérica a um atraso menstrual, tudo serve para uma eventual
desculpa. Tenho é de evitar fazer já os testes. Mas pareces decidido a comprá-los.. Em
último caso, posso sempre pintá-los e alterar o resultado. E se te convencesse, durante um
longo período de tempo, de que estou mesmo grávida? Só para te atazanar a vida? E se
engravidasse, mesmo de um outro, já que te armas em parvinho?
O que vale é que te soube apanhar bem, ou não fosse aquela noite em que viestes da
correctora com uma vontade tão grande de fazer amor, que até me surpreendeste.
Esqueceste-te que deixei de tomar a pílula e tudo. Por isso é que ficaste calado agora, e
não me atiraste com nenhuma grosseria à cara. Sabes muito bem que podes ser o pai. Só
não sabes é que inventei o bebé para te lixar a noite. Esta e todas as outras.
Ou pensas que não te senti a fazer amor comigo de uma maneira diferente? Nunca
fechaste tanto os olhos, como se desejasses alguém que não eu… De vez em quando
sorrias e, esse sorriso, ainda te ausentava mais porque não era partilhado. Não creio estar
a imaginar coisas. Aliás, a minha imaginação nunca foi tão boa como a tua, autor de
devaneios eróticos, os quais, não escreves há muito…
Quando saíres do quarto e estivermos abraçados frente à TV, vou pensar que está tudo
bem entre nós, que me amas tanto que não quiseste que saísse com as minhas amigas sem
a tua companhia, e que ficaste tão feliz com a notícia do bebé que me abraçaste,
rodopiaste no ar e me disseste que eras o homem mais feliz do mundo.”
E nesse momento, uma lágrima verdadeira rolou pelo rosto de Rita e salgou-lhe os lábios.

133
De novo no quarto, Tomás acaba de se vestir e decide enviar um novo SMS para Joana,
explicando-lhe que a tia ingeriu lixívia em vez de água. Entre tanto disparate, aquele
parece-lhe o mais inofensivo da noite. E depois também não era mentira. A tia dele, que
já era pessoa bem idosa, costumava cair nesse engano doloroso e, de vez em quando, lá
tinham eles, família, de rumar para o hospital. Podia ser que a tia-madrinha se quisesse
suicidar, mas essa parecia-lhe uma hipótese muito romântica para uma senhora com
aquelas cataratas.
Não gostara do sarcasmo da resposta de Joana, mas compreendera o desapontamento
dela. Ele próprio detestava combinar e desmarcar. Porém, os eventos tinham sido mais
implacáveis do que os seus princípios. E agora, custava-lhe digerir a novidade e ter de
enfrentá-la, a ela, Rita, a senhora cuja barriga cresceria, invadindo com a sua nova massa
corporal mais território dentro daquele apartamento. Pior: trazendo um autêntico
extraterrestre para a casa dele.
“Como é possível, meu Deus? Realmente, bate certo. Foi há umas semanas atrás, que
após ter visto a Joana toda nua fiquei… fora de mim. Desejei-a tanto, e depois bebi
naquele bar. Maldito álcool. Não consegui segurar-me e esqueci-me da ratoeira da
ovulação. Bingo! Apanhado em cheio.
O que fazer da minha vida? Não lhe posso pedir para abortar, uma vez que a Rita quer
tanto um filho meu. E sou demasiado crente para contrariar os desígnios do Senhor.
Joana, afinal, parece que sou eu que vou ter de deixar cair a bola, ainda que
profundamente contrariado. Mas se já tens tanta dificuldade em aceitar-me com uma
namorada, como reagirias se te contasse que ia ser pai? Nunca mais me olhavas para a
cara. E eu gosto tanto de entrar no MSN e de encontrar-te… Acho que, se não te tiver
mais na minha vida, nem sequer volto a entrar nessa porcaria. Só me interessa conversar
contigo, divertir-me com os desafios malucos que me preparas. És de mais! E o pior é
que ainda não me sinto preparado para abrir mão de ti. Mas porque é que aquela tontinha
se deixou engravidar? Apanhou-me, caraças! Estou feito”.
Tomás atira-se para cima da cama e fixa o candeeiro de tecto que trouxera de uma
viagem à Tunísia. Nesse tempo era livre. Viajara com um amigo de longa data e ambos se
tinham divertido como nunca. Até pintara o cabelo de loiro, antes da viagem. Só para ter
um ar o mais ocidental possível. E de cada vez que revia as fotografias que então fizera,
ria-se com a sua própria figura: magro, pintado e ousando vestir outras cores que não o
azul e o cinzento.
Depois, tudo mudara. Conhecera Rita, casara com Madalena, divorciara-se volvido um
ano, e regressara aos braços da primeira. Não sabia explicar porquê mas parecera-lhe que
só com ela alcançaria alguma estabilidade. Rita inspirava-lhe o tal sentimento de
protecção que ele tanto gostava de alimentar em relação às mulheres, enquanto Madalena
o importunava com as suas manias de advogada importante. Ela é que socorria os outros,
autoritária e eficiente, embaraçando-o sempre que o criticava. Tomás teve consciência de
que se anulava ao lado dela. Por tanto lhe querer agradar, acanhava-se. Os amigos
diziam-lhe que ele ficava diferente sempre que saía na companhia dela. Estilo, mais
hirsuto e de poucas conversas. Igualava-lhe a distância e o ar blasé e ninguém lhe ouvia
as tiradas certeiras e os remoques trocistas com os quais sempre presenteara os amigos
para gáudio de todos.
“Como é que uma pessoa pode apagar a personalidade de outra, ou melhor, fazer-lhe
sombra? Porque deixamos de ser quem somos quando queremos agradar a alguém à viva

134
força? Jurei para nunca mais e, cá estou eu de novo, a não reagir como me apeteceria, no
fundo, calando o meu desagrado perante este cenário tétrico. Só me apetece bater com a
porta e pôr-me a caminho do bar. Mas seguirei para a sala e anestesiar-me-ei com um
filme qualquer. Triste sina a minha”.
No dia seguinte, ainda entorpecido pela novidade, mas movido por alguma esperança,
dissera à companheira: “Vai comprar os testes à farmácia e liga-me, assim que souberes o
resultado. Seja ele qual for, quero saber logo. Ouviste?” E ela: “Já sabes que deve ser
positivo. Isso entristece-te?” Mas Tomás não lhe respondera, deixando-a só e
embaraçada.
Uma vez no escritório, responde ao e-mail de Joana, a qual lhe enviara uma série de notas
positivas e negativas relativas ao único encontro de ambos. Retaliara-lhe mantendo o
humor habitual.
De facto, estivera algo retraído durante aquele almoço. E até se sentia agora, um pouco
aliviado por não ter ido mais longe, e por ter sabido resistir tão bem ao charme e à beleza
da rapariga. Parecia que adivinhava que o seu futuro iria ser tão negro como a pasta de
arquivo escura, soterrada entre elásticos, esquecida sobre a secretária.
Tentara e cumprira o acordo de um encontro entre amigos. Mas as mulheres eram mesmo
seres misteriosos, com os seus recuos e avanços muito próprios e inexplicáveis, na
maioria dos casos. O beijo rápido que haviam trocado também o surpreendera. Não pelo
atrevimento dela mas, por nos dias seguintes, ter sentido tanto a falta daqueles lábios…
Tomás suspira, resignado. O jogo estava suspenso por um fio. As próximas horas seriam
vitais para o desenvolvimento ou extinção da coisa…

Quando Rita lhe telefonou, mais tarde nesse dia, a confirmar as suas piores premonições,
o mundo abriu-se-lhe aos pés, e Tomás sentiu-se sugado para o centro da Terra, ele
próprio um feto dentro do útero do planeta mãe, receoso de ser expulso e enviado para
um mundo traiçoeiro porque real, demasiado real.

135
Camões acaba de lhe enviar um Toque!

Camões diz:
Boa tarde!
Joana diz:
Olá Tomás!
Camões diz:
Olá Joana. Tudo bem?
Joana diz:
Tudo! Já viste a inundação do teu correio?
Joana diz:

Camões diz:
Como assim?
Joana diz:
As fotos que te enviei.
Camões diz:
Sim. Adorei as fotos. És um doce amoroso!!!
Joana diz:

Camões diz:
Aquela rapariga é a tua amiga Inês?
Joana diz:
É.
Camões diz:
Bonita.
Joana diz:
Estou com ciúmes!!!
Camões diz:
Não precisas. Olha lá, morada, fotos tuas, fotos da casa, da amiga… Hum… Estás
apaixonada, ó Joana!!!
Joana diz:
Querias!
Camões diz:
E é daquelas arrebatadoras.
Joana diz:
Deve ser.

E envia-lhe a piscadela de um coração cor-de-rosa.

Reproduzir "Coração"

Camões diz:

136
És um doce.
Camões diz:
Estou a brincar contigo.
Camões diz:
O teu SMS com aquelas opções todas do outro dia...
Joana diz:
Gothic vampiress, sally girl, harem dancer, school girl, flapper, nurse?
Camões diz:
Sim, isso tudo…
Joana diz:
O que tem?
Camões diz:
Vais prendar-me com algumas dessas mil, porém, diversas fantasias, nas quais eu
sempre ando e sempre sonho?
Joana diz:
Claro. A nurse, em primeiro lugar.
Camões diz:
Nurse, dói-me a cabeça e preciso mesmo de cuidados médicos 
Joana diz:
Mas sabes, hoje não vai dar. Ainda aqui estou na editora…
Camões diz:
Hum…
Camões diz:
Muito trabalho?
Joana diz:
Uma loucura. Talvez faça uma directa.
Camões diz:
Sinto que algo não está bem...
Joana diz:
Sentes tanta coisa... Ouve lá, e quando é que te apaixonas por mim?
Camões diz:
Isso agora... Às tantas, até já posso estar... mas sou um gajo reservado e tímido…
como dizes.
Camões diz:
Mas tu estás?
Joana diz:
E és tímido.
Joana diz:
Só posso responder que nem às paredes confesso.
Camões diz:
Mau! Agora, vens-me com fado.
Camões diz:
Mas devias confessar.
Joana diz:
Há coisas que devem permanecer secretas.
Camões diz:

137
Imagino que sim.
Joana diz:
Os segredos são terríveis.
Camões diz:
Terrível é estares fechada em copas. Vá, diz lá! Diz, quero saber!
Joana diz:
És tão exigente e tão dominador, querido... on-line, of course.
Camões diz:
Lá está ela com o on-line.
Joana diz:
É que tu és uma multiplicidade...
Camões diz:
Sim, já sei: ousado on-line, tímido e introvertido na realidade.
Joana diz:
E não só. És uma multiplicidade em tudo.
Joana diz:
Por isso, é que ando doida a arranjar mil e uma identidades! Para saberes resistir às
outras! 
Camões diz:

Camões diz:
Resisto ao que quiseres. Aliás, só quero saber de ti.
Joana diz:
Só queres saber de mim mas tens namorada…
Camões diz:
Dás muita importância a algo que, até nem é tão importante assim... Ou melhor, que
não tem muito significado para mim, e que cada vez tem menos…
Joana diz:
Pois...
Joana diz:
Sim...
Joana diz:
Factos são factos.
Camões diz:
É um facto.
Camões diz:
Bem, vou sair... Acho que hoje não estivemos muito em sintonia... As minhas
desculpas, no que concerne ao meu lado da questão... Amanhã será um dia melhor, por
certo!
Joana diz:
Mas não percebo porque é que não estivemos em sintonia. Não sinto isso. Besos
Camões diz:
Eu senti… Mil besos.

E Joana fica algo inquieta. Poderia ele duvidar do prazer que todas as tardes lhe dava?
Resolveu tranquilizá-lo com um SMS: “Como é que podes achar que não estou em

138
sintonia contigo? Adoro e anseio por todos os nossos momentos. Beijos
tranquilizadores.” E depois, fecha a janela no monitor, agarra a pasta e segue,
prontíssima, para a reunião.

***

Camões diz:
Olá!
Joana diz:
Olá naco!
Camões diz:
Olá doce Joana.
Joana diz:
Hum... Quando vejo um homem destes entrar-me pelo hospital adentro, até me dá uma
onda de calor...
Camões diz:

Camões está a convidá-la para iniciar envio de imagens da câmara Web. Pretende aceitar
(Alt+C) ou recusar (Alt+D) o convite?

Joana diz:
Aviso-te já que estou com um ar pró ordinário.

Aceitou o convite para iniciar envio de imagens da câmara Web.

Camões diz:

Joana diz:
E eis a bela da enfermeira 
Camões diz:
Ena!
Camões diz:
Fato completo.
Joana diz:
Gostas do meu estetoscópio?
Camões diz:
Sim!
Joana diz:
Adivinha a cor do meu cabelo...
Camões diz:
Hum… Enfermeira loira.
Camões diz:
És de mais!!!
Camões diz:
Ena!!!

139
Camões diz:
Máximo!
Camões diz:
Uau!!!
Joana diz:
Curtinho e loiro.
Camões diz:
Five stars.
Joana diz:
O que vale é que, até agora, tens gostado de todos os looks, mas este cabelo é mesmo
rebelde...
Camões diz:
A condizer com a farda.
Camões diz:
Está o máximo!
Joana diz:
Claro!
Camões diz:

Camões diz:
Lingerie a condizer e tudo.
Joana diz:
Vê lá, o que não faço por ti...
Camões diz:
És de mais, não me canso de o dizer.
Joana diz:
E então? Muitas dores de cabeça?
Camões diz:
Sim sra. enfermeira.
Camões diz:

Joana diz:
Tive de roubar o estetoscópio ao meu tio…
Camões diz:
O chapéu também é giro.
Camões diz:
Mas levanta-te…Quero ver-te bem.
Joana diz:
Quer dizer, eu para aqui feita miss e nem sequer posso ver as expressões de júbilo do
meu amado...
Camões diz:
Estou a fazer horas extraordinárias e alguém pode entrar…
Joana diz:
Fica-me bem o cabelo curtinho?
Camões diz:
Muy bien.

140
Camões diz:
Levanta-te.
Joana diz:
Mas preferes assim, ou mais longo?
Camões diz:
Nesta farda, prefiro assim.

Joana levanta-se e exibe a nova fantasia de enfermeira, cujo vestido é tão curto que
permite ver logo as ligas elásticas das meias marfim. As calcinhas, como as cores da
farda, são vermelhas e brancas…

Camões diz:
Uauuuuuu!
Camões diz:
Último grito na moda das enfermeiras…
Camões diz:
De mais!!!
Joana diz:
Ainda bem que gostas…
Camões diz:
Onde arranjaste a farda?
Joana diz:
Porquê? Queres comprar uma para ofereceres a outra gaja, é? Nem penses que revelo
os meus locais licenciosos...
Camões diz:
Não!
Camões diz:
Gostava de saber quem é o fornecedor, só isso.
Joana diz:
Se te disser que tive de viajar até ao submundo lisboeta, ias achar que estava a
imaginar coisas...
Camões diz:
Ai, foi?
Joana diz:
Claro que sim. Vi um espancamento e tudo. Algo inédito na minha vida.
Camões diz:
Ena!
Camões diz:
Com os chuis?
Joana diz:
Os chuis e o INEM chegaram depois.
Joana diz:
Foi mesmo violento: pontapés na cabeça.
Camões diz:
Fogo!
Joana diz:

141
Não estou a inventar.
Camões diz:
Mas entre quem?
Joana diz:
E eu: “Caramba! Tinha de ser logo hoje, quando decidi vir ao submundo...”
Camões diz:

Joana diz:
A vítima era um negro e os cinco agressores pareciam indianos, mas de várias idades.
Camões diz:
Tudo em família, então.
Joana diz:
Mas aí, só adquiri uns acessórios.
Joana diz:
As fatiotas foram num local mais civilizado.
Joana diz:
Fiquei a saber que um par de algemas custa 22 euros. Pensei que fossem mais caras.
Joana diz:
Mas relaxa! Não comprei algemas 
Camões diz:

Joana diz:
Se te algemasse podia dar-me um daqueles flashes e deixar-te amarrado num local
qualquer...
Camões diz:
Sim. Ficar lá para sempre. Amarrado.
Joana diz:
Sim. Como castigo por seres fabuloso e indisponível.
Camões diz:
Fabuloso, sim! Indisponível… já é mais discutível…
Joana diz:
Pois. Estrago-te com elogios, é o que é!
Camões diz:

Joana diz:
Então e o teu dia, correu bem?
Camões diz:
Não.
Camões diz:
Estou com uma carga de stress que nem imaginas.
Camões diz:
Mas hoje já decidi!!!
Camões diz:
Vou correr.
Joana diz:
Precisas de cuidados médicos…

142
Camões diz:
Tenho aqui o equipamento, saio e vou direito ao estádio universitário.
Joana diz:
Muito bem!
Camões diz:
Veste o teu e vai lá ter comigo!
Joana diz:
Ó querido! Eu e tu, suados no meio do mato... Não sei bem que tipo de corrida
faríamos...
Camões diz:

Camões diz:
Isso agora… Só Camões sabe.
Joana diz:
Camões é uma tentação... sem dúvida. Nunca sei quando falo com um, ou com outro.
Camões diz:
Mas já sabes:
Camões diz:
Camões o ousado,
Camões diz:
Tomás o recatado.
Camões diz:

Joana diz:
Ah! Daí a famosa imagem... Mas não sei se o recatado não será assim… uma espécie
de efeito estudado...
Camões diz:
Estilo... um esquema bem pensado e montado?
Joana diz:
Sim. Se fosses mesmo tímido não dirias certas coisas. Sei lá! Estou algo desconcertada
contigo…
Camões diz:
Estilo... A receita para apanhar as gajas. Camões combina com Tomás: eu serei
ousado e atrevido... Tu serás reservado e tímido... Como dizem que no meio é que está
a virtude, o equilíbrio entre nós os dois vai ser tiro e queda!!!
Joana diz:
Tu é que o disseste...
Joana diz:
Essa é boa para o manual.
Joana diz:
Explica o comportamento psicótico do sedutor virtual...
Camões diz:

Camões diz:
Sedutor virtual...
Camões diz:

143
Não gosto desses termos.
Joana diz:
Pronto... Não te zangues... Na realidade, não te vejo assim.
Camões diz:

Camões diz:
Olha, temos que ter contacto real outra vez.
Joana diz:
Gostava muito...
Camões diz:
Um momento.
Camões diz:
Telefonema.
Camões diz:

E Joana aproveita para se levantar e pavonear diante da câmara, subindo ainda mais o
reduzido vestido e brincando com o elástico das calcinhas.

Camões diz:
Adoro estes telefonemas.
Camões diz:
São incríveis!
Camões diz:
Não presto atenção nenhuma ao que me dizem.
Camões diz:
Vou dizendo…sim, pois, hum.
Joana diz:
Distraio-te, mas por uma boa causa, não é?
Camões diz:
yessssssssssssssssssssssss
Joana diz:
Sabes, sou muito compreensiva com o pessoal da alta finança que trabalha horas
seguidas...
Camões diz:
Sra. enfermeira…Vou equipar-me....
Joana diz:
Ok. Boa corrida, meu querido!
Camões diz:
Aparece lá!
Joana diz:
Não posso. Mas estarei lá em tudo o que vires e respirares. Uma densidade divina no
ar. A mãe terra.
Camões diz:

144
Camões diz:
Besos. Fica bem, meu doce.
Joana diz:
Besos.

Inês está à porta do gabinete de Joana. Entra com uma pasta na mão e um café na outra, e
senta-se na única cadeira disponível, à frente da secretária da amiga.
- Contente por habitares de novo o teu cantinho? – pergunta, oferecendo-lhe o copo de
plástico, meio de café fumegante. – Não tem açúcar. Como gostas.
- Estava mesmo a precisar. Obrigada.
- Leio a tua mente – brinca, com um sorriso cúmplice.
- Ai, sim? Então diz-me o que fazer… Estou tão confusa.
- Não admira… Ontem vestiste-te de quê? Liza Minnelli versão Cabaret?
- As fantasias são meras brincadeiras decorativas. Dão-me gozo. Não é isso.
- Estás a ficar maluca!
- Queres falar mais baixo?
- Desculpa. Sabes como é: entusiasmo-me e nem me apercebo dos meus guinchos.
- Pois. Mas diz-me.
- Digo-te o quê?
- Isto está tudo errado. Ele tem namorada e, eu feita parva, a fazer estes jogos todos…
Para quê?
- Divertem-te.
- Sim, mas também têm um lado depressivo.
- Como o artista de circo quando tira a maquilhagem frente ao espelho e se apercebe de
que está sozinho no camarim…
- És tão animadora! Bravo! Continua assim e dá-me o golpe de misericórdia…
- Calma. Acho que fazes bem em manter os teus princípios. Só queres avançar, se ele a
largar. Muito bem, só te resta esperar…
- Mas enlouqueço, Inês. Sinto que gosto dele.
- O Tomás devia acabar com a namorada. E sem saber se te tem garantida, ou não. Ser
homem, caramba! Ou achas bem que ele largue uma, com a certeza da outra? Parece-me
condenável… E quem te garante que, no futuro, não te enganará a ti? – insurge-se Inês.
- Lá está ele: o golpe de misericórdia. A minha cabeça rola neste chão, com o sangue
ainda a esguichar do pescoço… E tu, carrasco, tens o cutelo manchado nas tuas mãos.
- Pronto. O que é que andas a tomar? Sacaste comprimidos ao Filipe, foi?
- Estou a tomar café. Já viste? Tem a cor do meu futuro. Absolutamente negro…
- Também não te quero desanimar…
- Ah, sim? Pois, não parece…
- Como tua amiga, abro-te os olhos – declara Inês, com um sorriso. – Mas, de facto,
nunca se sabe. Ele até pode gostar mesmo de ti e passar a ser do tipo fiel. No entanto, vais
sempre desconfiar… desconfiar… Porque sabes como ele já agiu. E dizem que quem
engana uma vez…

145
- Engana duas e três!
- Ora bem!
- Realmente, és um portento de animação. Prossegue!
- Não sejas sarcástica, Joana… No fundo, sabes que tenho razão. Só não queres admitir
porque estás apanhada por ele.
- Não estou… e estou. Mas não posso estar! Céus! Acho que ele nunca a vai deixar… E
depois diz-me aquelas tretas todas.
- Quais tretas?
- Por exemplo, disse-me que para ele, a namorada tinha cada vez menos importância.
Mas está com ela, não é? E depois pediu-me desculpa pelo lado que lhe dizia respeito na
questão… É de loucos.
- Do género: quero comer-te e, desculpa lá ter namorada, mas quando é que passamos à
queca?
- Não sejas ordinária…
- É um mau princípio, Joana. Eu não alimentava essa brincadeira. Pode ser que, um dia,
já não lhe consigas pôr travões…
- E caio no esquema dele…
- E depois ainda ficas pior… A ouvir a tua música francesa deprimente… Tenho de
reunir o esquadrão rosa. Precisas de ocupar o teu cérebro com algo que não o Tomás.
- É verdade. Convoca uma reunião de urgência e prepara o nosso cadillac. Preciso de
acção!
- Óptimo! A Patrícia comprou uma casa que vai mandar restaurar num bairro muito
sossegado. Vamos até lá, levamos o Ricardo que se ofereceu para fazer o projecto de
arquitectura e arejas a cabeça.
- O Ricardo? Não sei se é boa ideia…
- Ele porta-se bem. Leva um apertão primeiro, se for necessário.
- Não. Se as agentes do esquadrão rosa lhe põem as mãos ele fica desfeito. Inutilizado
para a vida.
- É menos um homem com o qual terás de te preocupar. Eliminação eficaz, saudável e
definitiva. Caramba! Soei como um anúncio, não?
- Por algum motivo estás na publicidade…
- Isso é verdade! Dava para promover a depilação, por exemplo!
- Ou um veneno para baratas.
- Ou ratos.
- Que nojo! Olha lá, um dia temos de parar de inventar estas brincadeiras. Já não temos
idade para isto!
- Claro que temos!
- Um esquadrão cor-de-rosa, com um cadillac cor-de-rosa… O que é que bebemos nessa
noite?
- Vodka.
- Logo vi…
- Quando é que deixas de fumar? – pergunta, incomodada com os cigarros sucessivos.
- Comecei a reduzir. A sério.
- Para a semana vamos correr, de acordo?
- O quê?
- Vá. Faz-te bem, Joana. Relaxa o corpo e a mente agradece.

146
- Isso é algum provérbio chinês?
- Não é, mas podia ser.
- Está bem. Deixa-me reduzir o fumo e para a semana acompanho-te.
- Boa! Fico à espera. Ah! E compra uns ténis novos.
- Porquê?
- Tenho mesmo de responder a isso?
- Vá, desaparece! Preciso de trabalhar – declara, com um sorriso.
- Para a semana!
- Está bem!

E Joana fica agradecida à amiga por esta ser tão prática, cruel e saudável…

***

Camões diz:
Olá, bela Joana!
Joana diz:
Como está o príncipe dos poetas?
Camões diz:
Dividido entre o amor apaixonado e sensual e a ideia neoplatónica do amor espiritual.
E tu?
Joana diz:
Céus! Estamos inspirados! 
Camões diz:
Sabes uma coisa?
Joana diz:
Diz.
Camões diz:
Tenho vontade de te ver ao vivo outra vez.
Joana diz:
Hum...
Camões diz:
Hum?!
Joana diz:
Hum... de satisfação. Tipo, quando saboreias um gelado e fazes hum...
Camões diz:
Ah! Esse tipo de hum.
Camões diz:

Joana diz:
Esta semana vai estar sempre um tempo muito mau.
Camões diz:
Dizem que sim.
Joana diz:
Quinta piora.
Camões diz:

147
Neve nas terras altas.
Joana diz:
Ficavas bem como homem de meteorologia.
Joana diz:
São sempre pessoas atraentes.
Camões diz:
Sim, a apresentar o boletim.
Camões diz:
Atrás, as nuvens…
Camões diz:
E os sóis…
Camões diz:
E eu, com os braços a apontar…baixas depressões…
Camões diz:
Chuva e granizo.
Joana diz:
Estou a adorar!
Camões diz:

Joana diz:
E depois dizias: Temperaturas elevadas e, começavas a desfazer o nó da gravata...
Camões diz:
Eh! Eh! Eh!
Joana diz:
As donas de casa já todas malucas…
Joana diz:
Queremos saber o tempo para amanhã!!!!!!
Camões diz:

Joana diz:
Se trabalhasse numa televisão, dava-te esse cargo.
Camões diz:
Era? E pagavas bem?
Joana diz:
Isso dependia.
Camões diz:
Da cor da gravata?
Joana diz:
Se me fizesses sentir o sol a acariciar-me a pele ou a chuva sobre...
Camões diz:
Ena!
Camões diz:
Eu gostava.
Camões diz:
Até que era engraçado…abandonar a correctora e apresentar o boletim meteorológico.
Joana diz:

148
Ganhavas bem.
Camões diz:
Olha, hoje sonhei e lembro-me do sonho!!!
Joana diz:
Sonhaste? Conta!!!!!!!
Camões diz:
Estranhíssimo…
Camões diz:
Sonhei com aliens… Não sei que raio de interpretação pode ter… Eram umas luzes
que flutuavam no ar... Sabia que eram aliens… Estranhíssimo.
Joana diz:
Hum...
Camões diz:
E depois eu tentava apanhar aquilo.
Joana diz:
De facto, és muito dado a fenómenos celestiais.
Camões diz:
Vê lá, que acordei… eram 4h30.
Camões diz:
Eu que nunca acordo…
Joana diz:
Quer dizer que dormes como uma pedra?
Camões diz:
Sim. Tiro e queda.
Camões diz:
Estilo…posso bem dormir umas 10 horas seguidas.
Joana diz:
Acordaste e depois? Voltaste a adormecer bem?
Camões diz:
Sim, levantei-me e bebi água.
Camões diz:
E depois adormeci.
Camões diz:
Não é normal.
Camões diz:
Sonhar com extraterrestres….
Joana diz:
Apanhar luzes que são aliens... Está bonito, está! Pode ser que não fossem aliens mas
luzes estranhas à tua normalidade, focos para outras direcções 
Camões diz:
Talvez... Mas tive a nítida sensação que eram aliens.
Camões diz:
Mas imensos. Com cores.
Joana diz:
Hum... Cores é positivo.
Joana diz:

149
Não viste nenhum filme de ficção científica antes de adormeceres?
Camões diz:
Não. Deitei-me cedo e tudo. Eram para aí 23h00 e já estava deitado.
Joana diz:
Acho que essas luzes são benéficas. Tens de agarrá-las para perceber o seu
significado.
Joana diz:
Mesmo que te levem para outros mundos.
Camões diz:

Camões diz:
Foi bem estranho.
Joana diz:
A Inês quer que eu vá correr com ela para a semana… Com os cigarros que fumo, não
vai ser fácil…
Camões diz:
Nós vamos deixar os dois de fumar ao mesmo tempo.
Joana diz:
Achas? Era engraçado.
Camões diz:
Estilo uma promessa mútua.
Joana diz:
E depois ninguém controla ninguém, e fumamos nas costas um do outro 
Camões diz:
Se prometer, claro que jamais faria isso.
Camões diz:
Ou melhor, se fumasse, confessava depois.
Joana diz:
Lindo! Temos um rapaz sincero on-line!
Camões diz:
Sim.
Joana diz:
Tens escrito poesia?
Camões diz:
Estou num sono profundo.
Joana diz:
Não pode ser! Os comentadores do teu blogue já devem estar tristes com a tua falta de
verve…
Camões diz:
Estou cansado do blogue! Vou trespassá-lo.
Joana diz:
Não faças isso! Declara Camões apaixonado! Vais ver a chuva de comentários.
Camões diz:
É uma ideia. Talvez faça isso.
Joana diz:

150
Camões diz:
Meu doce… Tenho de ir.
Joana diz:
OK. Beijinhos.
Camões diz:
Besos.

***

Meus caros,

Shakespeare apaixonou-se, lembram-se do filme? Cervantes também acabou por


ceder ao fogo do amor, o tal que arde sem se ver. E agora eu, Camões, confesso-me
aqui, no meu blogue, igualmente apaixonado. Se me vem tanta glória só de olhá-la…
Sinto-me num estado incerto, em que, sem causa, juntamente choro e riu. Mas vocês
já sabem o que é este desconcerto. Suspeitam que a minha ausência se deve a uma
senhora e assim é. Seja por cego e apaixonado tido. É tamanha bem-aventurança tê-
la na minha vida que descurei-vos e, já deviam estar a pensar, por onde andaria este
Camões. Imaginaram-me de regresso à Índia? Ai, la vuestra falsa fé y el amor mio…
O que dizer-vos da minha amada? Conheço o muito a que se atreve a vista. Vejo-a
com regularidade. Mas ai de mim! Se não a vejo em pessoa, tenho-a na minha alma e,
em ausência, a vejo. A mim que não rejo os olhos ao que desejo, na memória e na
firmeza, me concede a Natureza, de a ter sempre comigo.
Que mais vos dizer, se o amor é brando, doce e piedoso? Voo sem asas; estou cego e
guio. Julgam-me vocês por perdido. Mas eu, com este amor, sinto-me engrandecido e
verto lágrimas de imortal contentamento. Sou ditoso por a ver, mais ditoso se a
tivesse, mas ainda a esperança não perdi. Irei amá-la quanto devo e quanto posso e
celebrar a sua graça em poemas mil e oito, mas vocês terão de se aguentar sem
novas do poeta. Pois que o meu pensamento só nela se ocupa e não concebo maior
glória que na vida se ofereça.

Joana lê e relê, extasiada, o texto de Tomás no blogue. Camões estava, oficialmente,


apaixonado.

***

- Mas quando é que vocês saem outra vez? Caramba! Que drama mexicano!
- Não te entusiasmes, que a casa da Patrícia é já no próximo quarteirão. Tens de
estacionar, Inês! Olha, tens ali um lugar!
Já na rua, Joana saboreia a brisa fresca que lhe arrefece o rosto e enfia as mãos nos bolsos
do casaco de pele, decidida:

151
- Vamos lá ver esse palácio!
- Tens de ter o projecto do Ricardo nas mãos. Só assim poderás ter uma ideia de como a
casa vai ficar.
- Pois. Ele também vem, não é?
- Já lá deve estar. Mas diz-me, quando é que vocês planeiam encontrar-se?
- Não sei. Quando calhar…
- Que par tão peculiar… Seduzem-se um ao outro com palavras. Extraordinário.
- Não gozes, Inês.
- Estou apenas impressionada com o teor do romance que se produz hoje em dia… Digo
que te amo através de um mísero ecrã, envio-te mensagens escritas para o telemóvel e,
não passa disto. Que pachorra, cara amiga!
- Sabes como é…
- Por acaso, não sei!
- Não achas a pressa ordinária? Sinto que tenho todo o tempo para o conhecer. E estou a
conhecê-lo, ainda que, admito, num formato pouco convencional.
- Mas assim não se conhece a pessoa por inteiro.
- “O amor, quando se revela, / Não se sabe revelar.”
- E pronto! Agora é só poesia nessa cabeça!
- Olha, lá está o Ricardo!
Cumprimentam-se à entrada de uma velha vivenda geminada com outra igual. O rapaz
traz o projecto arquitectónico nas mãos e parece satisfeito com o trabalho realizado. À
medida que entram, Ricardo explica às amigas como cada divisão será transformada.
Haverá lances de escada por todo o lado, níveis subidos e descidos, núcleos separados por
patamares e, sobretudo, prevalecerá a ideia de um espaço aberto.
- Mesmo entre os degraus haverá espaço. Não são fechados, percebem?
- Mas as escadas vão ter corrimão, ou não?
- Sim, claro.
- Parece-me que vai ficar lindíssima!
- Invasores! – anuncia a sorrir a proprietária que acaba de chegar.
- Patrícia! Parabéns! Tens aqui muito dinheiro para gastar mas é um belo investimento!
- O Ricardo já vos disse como é que me vai fazer a garagem? Vai ficar debaixo da
cozinha suspensa, a qual vai ter uma ilha e, quem estiver na sala, pode ver-me as pernas!
Uma loucura!
- O que trazes aí?
- Máquina fotográfica. Quero que a Joana tire umas fotos minhas com o Ricardo na casa
tal como está. Para posterior contraste. O antes e o depois. Como aqueles programas do
People & Art.
- Boa!
Inês aproveita a troca de impressões entre Patrícia e Ricardo para segredar à amiga:
- Ainda não falou da Marisa…
- Nem vai falar mais. Só se fosse cara de pau.
- Mas ele olha para ti, cá de uma maneira…
- Não vai acontecer mais. É muito giro, mas vive com a Marisa.
- Pois… Não parece nada apoquentado com isso.
- Eu estou.
- Arrependida?

152
- Só em parte – confessa com um sorriso divertido. – Afinal, já olhaste bem para ele?
- És fresca…
- Shut! Não quero que ninguém saiba que cedi aos encantos dele. E foi só uma vez.
- Sim. Os homens com relações mais ou menos perseguem-te – ironiza.
- Com o Ricardo, admito o pecadilho, a imperfeição, o que quiseres. Mas, quanto ao
Tomás, terá de ser diferente. Gosto dele.
- Sim, deixa-te em ponto de rebuçado…
- Sei bem que devia ter repelido o Ricardo mas, dadas as circunstâncias, não fui capaz.
Não sou de ferro!
- O Alexandre disse-me que estás a fazer uma birra histórica…
- Eu quero que o Alexandre vá passear…
- Há uma brasileira que está interessada nele…
- Ai, sim?
- Sim.
- Pagava para ver: ela de biquini, a querer sambar em cima de um icebergue… Coitada!
Não deve haver homem mais frio no mundo.
- Eh! Eh! Isso é verdade. Estás inspirada…
- Tanto, que talvez escreva um manual prático, estilo como sobreviver a relacionamentos
virtuais desastrosos…
- Porque dizes isso?!
- Não sei… Estou triste.
- Mas se o Tomás se confessa apaixonado…
- Se estivesse, encontrava-se comigo e conversaríamos calmamente. Ou resolvia a estória
dele com a pseudo namorada…
- Isso também não compreendo. Se ele não é feliz com ela…
- Mas, pelos vistos, também não é infeliz… Olha, Inês, o que não quero é ser apenas mais
uma aventura na vida dele. Nesse caso, prefiro cortar o mal pela raiz.
- E és capaz disso?
- Porque não?
- Acho difícil. Sinto-te tão envolvida… Há muito que não te via tão bem disposta e feliz.
- Pois… Mas não percebes que a virtualidade também mói? Estou farta! Queria olhá-lo
nos olhos e ser olhada por ele sem ser através de uma web-cam e dizer-lhe o que me vai
no fundo da alma…
- Só que ele não se encontra contigo, não é?
- Combinamos e, à última hora, desmarca sempre, por um motivo ou outro. Juro que não
aguento.
- Deixa lá, não penses mais no Tomás… Dá um tempo. Já lhe frisaste o teu ponto de
vista. Se ele gostar mesmo de ti, acredita, será ele a procurar-te.
- Adorava que isso acontecesse…
- Adoravas o quê? – pergunta Ricardo, aproximando-se sorridente das duas. – Vocês
estão para aqui a cochichar há séculos.
- Conversa de mulheres – esclarece Inês, com um sorriso enigmático.
- Pois… Venham dar a vossa opinião sobre o aproveitamento do piso de cima.
- É para já.
E os três subiram o lance de escadas pouco iluminado e passaram o resto da tarde a
debater ideias e sugestões para a nova casa de Patrícia.

153
Tomás dissera a Joana que sonhara com aliens. Só não lhe dissera que esse sonho
também significava que Rita estava grávida e que iria parir, de acordo com o medo
fantasista que crescia nele próprio, um ser monstruoso de outra galáxia. Será que todos os
pais do mundo sonhavam que iam ter alienígenas soltos pela casa? No cenário onírico,
Tomás queria apanhar as luzes. E ele sabia bem o que isso queria dizer: “Uma vida nova
é uma luz. Não tenho o direito de a apagar. É um mistério demasiado grande, que só a
Deus diz respeito. Seria um pecado matá-lo. No sonho, tento apanhar as luzes e sigo-as,
curioso. Não tenho qualquer intenção de destruí-las, mas antes de aprender com elas.”
Joana, claro, interpretara o sonho de maneira a valorizar o lado dela na questão. E Tomás
apreciava-lhe a inteligência. Se ela quisesse, podia enriquecer simulando ser uma vidente,
uma dessas mulheres que lêem cartas, estrelas, mãos, pedras e todas essas tretas. A sua
facilidade de interpretação divertia-o. Já quando Joana analisava a mente dele, Tomás
achava-a brilhante. E seduzido por ela – apesar da crise – tinha anunciado no blogue que
Camões estava apaixonado.
“Que belo par faríamos, querida. Nós, que passamos o tempo inteiro a rir. Os dois
apreciadores de fantasias e de liberdade total, pródigos em reinventar a sensualidade – tu,
com as fatiotas e cabeleiras que compras de propósito para mim, eu, com os poemas que
me inspiras –, ambos sensíveis às palavras e ciumentos delas, já que nos roubam os
gestos que ficarão por desenhar sobre as nossas peles… Seria nossa a felicidade total…
mas, um pequeno alien vem a caminho, coitado, sem ter culpa de nada. Não sei como é
que te hei-de dar esta notícia, rapariga. Juro que não sei… Já passou um mês, e a Rita
está na mesma. De vez em quando, vomita. É essa a única diferença. Minto. Parece
mais… deprimida. Creio que chora pelos cantos. Mas até agora, ainda não pronunciou
uma única vez a palavra aborto. E o corpo, em primeiro lugar, é dela. Respeitarei a
decisão que venha a tomar, seja ela qual for. Desde o princípio, que lhe repito a minha
solidariedade. Mas sei que ela gostaria de me ver mais feliz e envolvido com a ideia. Só
que não consigo. Aliás, nunca mais lhe toquei. Dormimos como irmãos. A Rita deve
julgar-me um sacana insensível…
Gostava tanto que ela não estivesse grávida! Adorava recuar no tempo… para te ter
escolhido, Joana. Se não tivesse sido tão… cobarde, estaríamos juntos agora. A fazer
amor, a beber champanhe e a comer morangos! Tu, vestida de enfermeira, com aquela
farda única de tantos botões. Hum… super sexy. Ou de mexican maid. E tudo o mais que
a tua inesgotável imaginação ditasse. E eu a seguir-te, divertido, com o meu olhar, mas
sem ecrã pelo meio, nós dois, seres reais do mundo verdadeiro, composto por animais,
vegetais e minerais, ambos a respirarmos o ar da mesma sala, enternecidos com a
generosidade dos nossos corpos.
Acariciava-te as ancas – tão bonitas que são – e puxava-as contra mim, talvez te
segurasse também pelas célebres ligas elásticas, aquelas pretas e vermelhas, que te pedi
para não mostrares a mais ninguém. Embora, claro, não tivesse o direito de formular

154
qualquer pedido do género. Mas o que queres, quando sempre te senti minha, desde o
primeiro exacto momento em que te vi na web-cam? Disse para mim próprio: “Esta
miúda é igualzinha às fotografias. Tem um sorriso lindíssimo, um olhar irónico e
tranquilo.” Depois, vimos o corpo um do outro. Despimo-nos, num ritual exibicionista e
convidativo. E aí entrou o fio dental, e estragou tudo. Nessa altura, deu-se o clique. Vou
ter contigo, disse-te. E fui.
Que loucura a nossa: apaixonarmo-nos on-line… Tu, a não quereres confessar. Eu a
seguir-te a ambiguidade dos afectos, mas ambos cientes de que estávamos caidinhos um
pelo outro. A célebre e aparatosa queda, que o povo da minha mãe assume literalmente:
to fall in love. Cair em amor. As pessoas caem, Joana. E partem mais do que o pé. Partem
o coração: don’t break my heart. Podem ser muito fleumáticos, os britânicos. Mas são os
mestres do vocabulário. Designam as coisas pelos nomes. E agora, dear? O que
fazemos?”
Todas as recordações de Tomás se misturam, enquanto ele, inconscientemente, carrega
repetidas vezes no play do computador, que lhe traz a “Chuva”, na voz por ele venerada
da fadista Marisa: “As coisas vulgares que há na vida/ não deixam saudade/ só as
lembranças que doem/ ou fazem sorrir/ Há gente que fica na história/ da história da gente/
e outros de quem nem o nome/ lembramos ouvir/ são emoções que dão vida/ à saudade
que trago/ aquelas que tive contigo/ e acabei por perder.”
Tomás, que a elege como uma das suas músicas preferidas, apercebe-se agora, de como
aquele poema, lhe condensava a vida e o desespero da perda.
“Enquanto puder, Joana, vou comunicando. Envio-te mensagens e telefono-te. Já sei que
não te verei, embora te faça crer que sim, que te vou ver. No fundo, tenho consciência de
que não te quero magoar mais do que o necessário. E com alguma habilidade da minha
parte, deixas-me tu, saturada das minhas evasivas. É jogo duro. Mas sentirás que ficaste a
ganhar. E creio que para o teu feitio – idêntico ao meu – isso far-te-á sentir melhor.
Desculpa-me, meu doce. Não era este o desfecho planeado, ou pretendido. Acredita. Uma
vontade maior cortou-me as asas. Camões já não voa. Camões morreu, e o blogue
acabou.

Rita começa a sentir várias oscilações. A noção de ter travado o ímpeto do seu parceiro
trouxera-lhe prazer e amargura. Por um lado, regozijava-se por o saber de novo preso a
ela, mas por outro, entristecia-a notar que Tomás não desejava o bebé de ambos. Isto é, se
o bebé existisse de facto. Ou seja, Rita sofria com a mentira por ela inventada, como se
esta tivesse entretanto e, por artes mágicas, adquirido um peso real.
“Como é que posso sofrer por não quereres um bebé que não existe? Mas sofro, sabes?
Porque se fosse verdade, se estivesse mesmo grávida, era assim que agirias, meu grande
estupor…
Só posso concluir que não me amas. Se me amasses, terias ficado radiante e não andavas
com esse semblante pesado, por aí. Nem sequer me tocas. Sinto-me portadora de um
vírus maligno. Nunca pensei que pudesses ser tão cruel. E o que mais me apoquenta é: se
não gostas de mim, porque é que ficaste sempre? Crês que, eu sem ti sou alguma inútil
incapaz? Como te enganas! Sou como os gatos, querido. Caio sempre de quatro. Posso
chorar e arranhar-me toda, lamentar a perda de algumas regalias mas, paciência! Também

155
nunca me deste um casaco de pêlo de Marta, ou um anel de diamantes e, felizmente, há
mais homens neste mundo!
Para ti, sou apenas uma criada, apesar da ucraniana que contrataste. Sou eu que cozinho,
trato das roupas delicadas, te descasco a porcaria da fruta, vou às compras, tenho de
passear o teu rafeiro e visito os teus pais, em nossa representação, porque andas sempre
muito ocupado… E não suporto a tua mãe, nunca a suportei. É de uma ignorância aflitiva.
Já o teu pai é um senhor, e sempre me tratou com respeito. Agora, ela, sempre a gabar-te
sem ver o que salta à vista de todos. Mas quem é que a tua mãe pensa que é para me olhar
com tanto desdém? Claro, deves ter-lhe contado que te traí com o sobrinho dela. Só
podes. Para a virares contra mim.
O Diogo tem razão: não me mereces. Sou boa de mais para ti. Tens-te na conta de um
garanhão, que a todas seduz. E a verdade é mesmo outra: não passas de um corno manso.
Podias ter partido a cara ao Tiago. Era isso o que eu queria e, daí, a mea culpa. Mas nem
sequer me soubeste vingar. Estou cheia de raiva, percebes? Não és só tu. A fúria é dos
dois. Cada dia que passa abomino-te mais e mais.
É claro que podia chegar ao pé de ti e anunciar-te que tinha abortado. Ficavas logo todo
satisfeito, aposto. E voltava tudo ao mesmo: a perfeita mentira vivida pelos dois queridos.
Eu regressava a fada do lar e tu, seguirias os teus instintos mais básicos, os mesmos que
te levam a copular, desde o liceu, com qualquer rabo de saia. No final do dia, jantaríamos
juntos e conversaríamos sobre banalidades, ou melhor, discutiríamos os passeios do
canídeo.
Não é este o meu projecto de vida! Podes ser um homem bonito, mas a beleza não é tudo.
Já não tapa a miséria a que a nossa relação chegou. Relação ou envolvimento, a palavra
que preferires. Também gostas muito de me torturar com o uso correcto das palavras,
como se fosses o arauto da língua portuguesa. Vai-te lixar, Tomás! Não és meu professor.
Guarda as aulas para os jantares com os tolos dos teus amigos, dos quais só se aproveita o
Diogo.
Estou tão danada contigo por rejeitares o meu bebé no silêncio, sim, nem sequer tens
coragem de olhar-me nos olhos e dizer o que pensas na realidade. Deixas-me o peso da
decisão, mas de uma maneira facciosa e suja. E ainda te armas em solidário. Davas um
perfeito nazi. Deve ter sido por isso que, um dia, pintaste o cabelo de loiro. Só te faltaram
as lentes de contacto azuis e a farda do Hugo Boss. Depois, já podias assumir-te, como o
demónio que és. Ai, que ódio!!! Estou capaz de fazer uma asneira. Toda eu fervo por
dentro!”
E Rita atira-se para o sofá, agarra-se às almofadas de design italiano e chora
copiosamente.

156
Uma bela tarde, Joana não aguentou mais. Desiludida por Tomás ter falhado outro
encontro, decide enviar-lhe um e-mail terminando a relação. “Que irónico, estou a acabar
uma coisa que nunca começou. Ou melhor que só viveu no universo on-line. Como é que
foi possível deixar-me envolver tanto? Sonhar exaustivamente com ele? Desejá-lo com
tanta gana? Devo ser doida varrida.”
Nessa mesma tarde, recebe um SMS dele: “Estou doente, em casa. Mas estive de manhã
na correctora e li o teu e-mail. Respeito a tua decisão, embora muito tenha ficado por
esclarecer da minha parte. Quero-te muito bem na vida. Besos.”
A mensagem deixara-a de rastos. Esperou que ele procedesse a eventuais esclarecimentos
nos dias seguintes, mas Tomás nada…
Joana recusava-se agora a entrar no universo on-line, por atribuir a este uma espécie de
maldição, a qual havia condenado o amor deles apenas aos cabos ópticos, como se ambos
fossem génios aprisionados em lâmpadas e habitassem somente um belo conto árabe.
Por duas vezes, perguntara-lhe via SMS se ele estava melhor. Em ambas as ocasiões,
obteve resposta imediata e besos quentes de 39 graus de febre e ainda besos febris.
Depois, de novo, o silêncio…
Mergulhada cinco dias nessas trevas, decidiu procurar de novo a luz. Num novo SMS
dizia-lhe sentir a falta das conversas de ambos e dos besos. E ele respondera-lhe, apesar
de alguma demora: “Também tenho pensado em ti. Besos.” Pareceu-lhe uma mensagem
demasiado seca. Em particular, porque mais nenhuma se lhe seguiu. E Joana questionava-
se: “Se muito ficou por esclarecer, se pensas em mim, por que motivo não falas comigo?”
Voltou a entrar no MSN mas ele estava sempre off-line, e nada a deprimia mais do que
essa ausência. O ícone do boneco vermelho congelava-lhe o sangue. Teria sido
demasiado agressiva na sua despedida? Ela nem sequer se tinha querido despedir. Apenas
estava cansada de esperar por ele, de ver que, na vida real, Tomás não comparecia ao seu
encontro. Punira-o e, ao fazê-lo, punira-se a ela própria, pois a saudade esmagava-a.
Pensou e repensou e, por fim, decidiu enviar-lhe um novo e-mail. Se um tinha estragado
tudo, podia ser que outro recuperasse o romance. Além disso, lembrou-se de que Sartre, o
filósofo francês, defendia que a sedução e a escrita bebiam da mesma fonte, ou seja,
partilhavam o mesmo processo intelectual. Animada por esse velho sedutor, iniciou o
texto que Tomás leria na segunda-feira e, nesse fim-de-semana, rezou a todos os
santinhos…

A DECISÃO

- Meus senhores, não se trata de uma decisão mas antes de uma proposta – declara a
líder parlamentar do PFC sabendo, à partida, que a unanimidade não seria fácil de
alcançar naquela, ou nas eventuais sessões posteriores.
Os deputados dos diferentes partidos tinham tomado a questão a peito, e o ar que
se respirava no Parlamento era pesado.

157
- A doutora sabe perfeitamente que se analisa uma proposta, e que se comunica uma
decisão. A semana passada, o PFC apresentou a decisão de um modo bastante
unilateral... – recorda, pacientemente, a oposição. – E agora, porque não obteve o
resultado pretendido, vem abrir este debate e propor, então, a análise.
- Certo. Tudo isso é correcto – responde a deputada, sem se deixar intimidar. – Mas
se vivemos em democracia é justo que tudo seja passível de discussão e análise. Não
há nada mais constrangedor do que o silêncio.
- O silêncio surge na consequência de um corte abrupto e radical. Repare, que a
própria expressão “abandonar” é bastante forte quando aplicada a um indivíduo algo
egocêntrico e que, já uma vez lembrara, que não se deitava tudo a perder com um
seco SMS…
O sorriso do deputado cresce, ao lembrar à mulher que o enfrenta do outro lado da
bancada tal episódio. E com um toque de ironia, o político ainda acrescenta:
- Se bem me lembro, foi nesse momento aconselhada a respirar fundo, parar um
bocadinho e ponderar antes dessas impulsividades. As quais deveriam ser evitadas.
Verdade ou mentira?
A líder parlamentar do PFC fulmina-o com o olhar. Mas antes que pudesse responder,
uma outra deputada, curiosamente de um outro partido da oposição, interveio em
defesa dela:
- O senhor deputado esquece-se do contexto da coisa. É normal que numa situação
irregular, digamos assim, as pessoas se sintam confusas. Não é fácil chegar a
conclusões quando toda a matéria em questão é de uma profunda ambiguidade.
- Mas que ambiguidade, cara deputada?
- Uma relação mais ou menos é ambígua. Não é carne nem é peixe – responde, sem
desviar o olhar, ignorando o burburinho dos seus companheiros de bancada, eles
próprios admirados por ela estar a apoiar a líder da oposição.
- Mas o que, desde o princípio, estava em jogo era bastante claro. A labuta, luta,
fosse o que fosse, teria de chegar a algum lado. O desejo, o aperto no estômago
existia de parte a parte. Tudo corre para algo, se até os rios correm para o mar. E
quem é que se lembrou de sair da corrida?
- Essa é a grande questão – concorda serenamente a líder parlamentar do PFC,
retomando o seu ponto de vista e lançando um olhar de cumplicidade feminina para a
deputada que interviera a seu favor. – Você empenha-se quando se sente estimulado.
Agora, experimente marcar o encontro ideal, o jantar planeado e tudo o mais que a
sua imaginação ditar e receber os costumados: “Meu doce, não vai dar, com muita
pena minha.” Aí, você já vacilava, não era? Já percebia que o poder da relação mais
ou menos é suficientemente forte para impedir que a coisa pule e avance. Apesar de
lhe ter sido dito que você dava demasiada importância a algo que cada vez mais
perdia a dita importância. Isto, caro doutor – conclui, com o típico brilho vitorioso no
olhar – é por si bastante contraditório. Afinal, onde fica o desejo? Que asas tem
esse desejo que não voa ao nosso encontro? Não lhe parece um autêntico bluff?

158
O adversário político pigarreou, algo surpreendido com a argumentação. E foi a vez
de um deputado da mesma bancada intervir:
- E é motivo para cortar?
- Se quando sentimos que a coisa não passa de sedução virtual sem intenção real,
porque não? Os sentimentos são os nossos melhores guias. Caso contrário, entramos
em rota de colisão connosco.
- Mas porque vai buscar sentimentos quando o que se propunha era tão só uma
simples troca de fluidos?
A mulher reflecte, antes de responder. Lembra-se de lhe ter dito após um primeiro,
único e fugaz beijo: “Um beijo não rouba a alma.” E da resposta dele: “É só uma
troca de fluidos.” Ela temia o roubo da paz de espírito, a obsessão de quem ama. Ele
já mecanizava o processo, comercializando o afecto e retirando-lhe a essência.
- Não. Se fosse só isso, ele tinha vindo. Nem que um nevão se abatesse sobre a
cidade. Você é homem e sabe bem. Não há nada ou ninguém que trave o desejo.
- Entramos no campo da especulação…
- Sem dúvida. Muito ficou por esclarecer e eu não tenho respostas para tudo –
responde a política, algo exausta.
- Mas o que a perturba neste momento? Se percebeu que a coisa não ia andar para o
caminho que você queria e se a cortou, por que motivo ainda se questiona?
- Há coisas que não se explicam… Ele deu-me muito com o pouco que me deu. Um
afecto, um carinho, um contacto diário de palavras doces que há muito não ouvia.
Iluminou o meu lado sombrio e depois condenou-me, de novo, às trevas…
- Você é uma lírica exagerada – observa.
- Não. O que devo fazer com tudo o que sei?
- Mas o que é que sabe?
- Sei que ele só veste fatos azuis e cinzentos – e a voz da líder parlamentar do PFC
começa a suavizar-se e os seus olhos a ausentarem-se da assembleia –, sei que corre
com uns velhos calções porque abomina o contacto das calças de fato de treino nas
pernas, sei que adora escrever poesia erótica, sei que tem um boxer que ainda é um
cachorro, sei que está habituado às oscilações financeiras dos mercados mas que
gostava de encontrar estabilidade no amor, sei que é alto e fica lindamente ao meu
lado, sei que adora os seus amigos que são professores e gosta de jantar com eles às
sextas-feiras, sei que não é nenhuma pêra doce e que é um homem difícil de ser
cativado com interesse e emoção, sei que um primo dele morreu durante o sexo, sei
que a tia-madrinha bebe lixívia em vez de água e vai parar ao hospital de quando em
vez, sei que vai ao cinema no velho Fonte Nova, sei que não considera Bocage
ordinário, sei que uma vez por outra se irrita com os clientes e que, inclusive, já
assassinou dois velhos irlandeses no escritório, sei que gosta de Espanha, sei que
tem um sorriso adorável, sei que teve muitas namoradas no liceu, sei que gosta de
assumir a identidade de Luís Vaz de Camões, sei que é muito inteligente, sei que,
apesar de ter uma namorada sente que as coisas entre eles estão mal, só não sei, por
que razão fica com ela…

159
O discurso longo apanhou os deputados de surpresa. Porém, o líder do grupo
parlamentar da oposição volta a contra-atacá-la:
- A doutora não imagina que ele deixe uma mulher que tem segura, digamos assim,
por uma outra que ele ainda desconhece e que já teme as suas impulsividades…
- Sim, sei isso tudo. E nada sei. Desconheço os seus medos ou receios. Quando
seduzimos mostramos apenas o nosso lado mais forte e confiante. O que quer que
lhe diga? O silêncio dele magoa-me. Preferia que ele me dissesse o que ficou por
esclarecer da parte dele, ou se pensa em mim, pensa em que termos. Preferia tudo,
menos a sua ausência, a qual me surge como uma imensa planície norte-americana.
Está a ver aquelas pradarias? Uma vastidão de quilómetros desertos sob o sol
escaldante. E o sol é tão perturbador, quando não temos uma sombra aonde nos
refugiar…
- Percebo a sua confusão – declara o opositor, provocando quase um escândalo nas
bancadas. – Na realidade, há que dar tempo ao tempo, percebe? O que tiver de
acontecer acontece. E, às vezes, no amor, para se avançar, há que recuar primeiro.
- Sem dúvida, deputado.
- Vamos declarar esta sessão encerrada?
- Declare-a você – pede a mulher política, com um sorriso coquete. – Receio voltar a
encerrar coisas que, depois, só me dão vontade de reiniciá-las de novo.
- Assim seja. Declaro a sessão encerrada. Celebremos a unanimidade e esperemos
que o amanhã nos traga paz, concórdia e o fim do implacável silêncio.
Os deputados erguem-se e alguns abandonam a sala, enquanto outros preparam
novas matérias a serem debatidas, de acordo com o agendamento do dia.

***

Para felicidade de Joana, ele respondera-lhe na segunda-feira, via SMS: “Olá! Desculpa o
silêncio. Estive em Nova Iorque uns dias e não me tenho ligado. Mas amanhã vou à
correctora e falaremos. Mil besos.” E ela: “Gostei dos mil besos! Até amanhã, então.
Espero que não entres mais em silêncio comigo. Matas-me de desgosto. Besos
encantados!”
E depois, ficou a pensar como os homens eram tão diferentes das mulheres. Eles até
podiam estar apaixonados, mas sabiam separar as coisas. Continuavam a trabalhar e, ao
contrário delas, não ficavam sempre a cismar no mesmo.
“Tomara que me fales amanhã porque morro de saudades. Não consigo tirar-te da cabeça.
Sonho tanto contigo que, uma noite destas, era eu que, por afinidade, andava a apanhar
luzinhas celestiais… Devo ser mesmo maluquinha”.

***

Camões diz:
Olá!

160
Joana diz:
Até que enfim! Estás bem?
Camões diz:
Nem por isso.
Joana diz:
Porquê? O que se passa?
Camões diz:
Estou cheio de trabalho…
Joana diz:
Já tinha tantas saudades tuas…
Camões diz:

Joana diz:
Não me ligas nenhuma. Nem sequer respondeste ao SMS que te enviei hoje…
Camões diz:
Só cheguei agora ao escritório, meu doce. Tive reuniões o dia inteiro.
Joana diz:
Não admira que andes stressado.
Camões diz:
A partir de terça-feira já estou mais livre.
Joana diz:
Acho bem! Adoro que me chames “meu doce”. Gosto imenso dos teus miminhos!
Camões diz:
E eu gostava de ter tempo para te mimar ainda mais.
Joana diz:
Nunca tens…
Joana diz:
Foi por isso que te escrevi o tal e-mail. Desculpa tê-lo feito, mas é duro não podermos
estar com quem queremos.
Camões diz:
Também sinto a tua falta, Joana. Acredita.
Joana diz:
Já não te vejo há tanto tempo, querido, que não me lembro das tuas feições. Aliás, não
me lembro de mim, quando vos vejo. Bloqueio.
Camões diz:
Ena! Não há dúvida de que te marquei 
Joana diz:
E isso deixa-te contente?
Camões diz:
Gosto de saber que pensas em mim. Eu também penso em ti. Muito.
Joana diz:
E o que pensas quando pensas em mim?
Camões diz:
Tanta coisa!
Joana diz:
Por exemplo.

161
Camões diz:
Imagino-me contigo.
Joana diz:
A fazer o quê?
Camões diz:
A discutir projectos de lei na Assembleia da República  És mesmo tontinha! O que
vais buscar!
Joana diz:
Gostaste?
Camões diz:
Claro. Sou fã dos teus e-mails. Mas não um desses fãs psicóticos.
Joana diz:
Se fosses mesmo fã, a tua atenção não andava tão DESAPARECIDA!!!!
Camões diz:
Tu é que quiseste cortar. Limitei-me a respeitar a tua decisão.
Joana diz:
Mas arrependi-me… Fazes-me falta. E tu sabes.
Camões diz:
Eu estou aqui. E NÃO TE VOU ABANDONAR, ok?
Joana diz:
É tão bom saber isso! Deixas-me tão contente, querido! 
Camões diz:
A menina é toda impulsos. Hoje quer, amanhã já não lhe apetece. Em que ficamos?
Joana diz:
A culpa não é inteiramente minha…
Camões diz:
Esquece os outros. Às vezes, apetece-me largar tudo e ir ter contigo. Sem te avisar,
sequer. Aparecer e levar-te comigo. Para bem longe daqui.
Joana diz:
Porque não o fazes? Seguir-te-ia na hora.
Camões diz:
Não é suficiente saberes que é a ti, e só a ti, que desejo, pois não?
Joana diz:
É bom, mas também tortuoso. Não te compreendo…
Camões diz:
E eu também não te compreendo. Afinal, o que queres?
Joana diz:
Já sabes: devias fazer uma opção.
Camões diz:
E se não puder?
Joana diz:
Só não podes, se não quiseres. A vida é tua. Há sempre um caminho bipartido no nosso
percurso e só nós sabemos por qual enveredar.
Camões diz:
Há tantas outras coisas, Joana. Não é assim tão simples.
Joana diz:

162
Devíamos estar a falar a sério, como dois adultos civilizados, num local qualquer,
REAL. Mas preferes escudar-te nesta distância virtual. Já estou cansada de dizer que te
quero ver.
Camões diz:
Para a semana terei mais tempo livre.
Joana diz:
Sim, marcamos e, à última hora, inventas um pretexto qualquer e não apareces. Porque
o fazes?
Camões diz:
Isso não aconteceu assim tantas vezes.
Joana diz:
Mas aconteceu. E não percebo porquê. Queres e não queres. Pareces confuso, dividido.
O que se passa? O teu desejo por mim morreu?
Camões diz:
Não! Claro que não! Tenho tido imenso trabalho, já te disse.
Joana diz:
Mas eu também tenho montes de trabalho e não é por isso que deixo de querer falar
contigo.
Camões diz:
E houve a tua decisão pelo meio, lembras-te?
Joana diz:
Não a podemos esquecer? Só quero saber se “nós” temos alguma hipótese… de sermos
namorados.
Camões diz:
Para que queres ser namorada de um tipo como eu?
Joana diz:
Correcção: não de um tipo como tu. Quero-te quando fores um homem livre.
Camões diz:
Estás apaixonada?
Camões diz:
Continuas a não querer responder…
Camões diz:
Não faz mal.
Joana diz:
Estás farto de o saber…
Camões diz:
Por acaso, não estou. Caramba! Estás ou não? Diz!!!
Joana diz:
Estou!!! APAIXONADA! Por uma pessoa com a qual só estive duas horas, mas que
me virou a cabeça, que mexeu comigo através desta porra deste MSN, uma paixão
desenfreada!
Camões diz:
 Acalma-te…
Joana diz:
Não me digas para ter calma! Se soubesse que me ias deixar tanto tempo no silêncio
nunca teria começado esta brincadeira. Agora é tarde de mais.

163
Camões diz:
Eu também estou apaixonado por ti, meu doce. Mas as coisas não correm de feição.
Temos de saber esperar. Dar tempo ao tempo, como escreveste. Não tenhas pressa. Sê
paciente.
Joana diz:
Tens prazer em torturar-me…
Camões diz:
Não. Nada disso. Já te disse que não sou manipulador.
Joana diz:
Então, abre o jogo! O que se passa? Querias-me em desespero? Pois bem, estou
desesperada! Sonho imenso contigo, anseio por um toque teu, sou mais andróide do que
humana, sempre ligada à maldita máquina, à espera que te dignes dizer olá. Isto não é
vida, Tomás! Quero mais!!!
Camões diz:
Confia em mim. Sinto que em breve tudo se resolverá.
Joana diz:
Lá vens tu com o que sentes. Sente isto: eu estou a passar-me deste lado de cá! A
perder o tino, a ensandecer cada vez mais!!!
Camões diz:
Não te quero sentir assim. Tranquiliza-te. Dá-me um tempo. Preciso de resolver
assuntos pendentes. Eu adoro-te, minha ensandecida 
Joana diz:
Tu gozas… Divertes-te com a minha ansiedade.
Camões diz:
Fogo! Como podes dizer isso?
Joana diz:
Andas diferente. Percebeste que estou apaixonada e já não investes mais na sedução. É
isso. Perdeste o interesse.
Joana diz:
Só te diverte o jogo pelo jogo, e não a concretização. Na net és o maior, mas na vida
real és tímido, acanhado e… foges. Porquê?
Camões diz:
Tens uma ideia errada sobre a minha timidez…
Joana diz:
Se tenho, não nasceu por espontaneidade…
Camões diz:
Já viste que estás sempre a criticar-me? Se desdenhas tanto…
Joana diz:
Não te armes em convencido, ok? Critico-te porque me enervas! Porque não sei o que
pensar de ti!
Camões diz:
Mas sabes. Caso contrário, porque te apaixonarias?
Joana diz:
Porque sou tarada, excêntrica, carente, sonhadora, utópica, idealista, vulnerável,
tonta, etc.
Camões diz:

164
Ena! Que grande lista! E eu sou o quê?
Joana diz:
És querido, atencioso, falas-me ao coração, mostraste-me desejo, uma fome que me
contagiou, vejo o teu corpo como o tal paraíso para o meu, que está sedento, muito
sedento. Fantasio o pulsar do nosso orgasmo. Esse teu poema atingiu-me como uma seta
de Cupido.
Camões diz:
Quem diria… 
Joana diz:
Quero ver o crepúsculo nos teus olhos e quero que o vejas nos meus. Mas já nem
sequer te vejo na web-cam e fazes-te tão difícil na vida real. Matas-me lentamente. É isso
que fazes.
Camões diz:
Sou um estupor egoísta, obcecado pelo trabalho, incapaz de me decidir, um
torturador que faria corar Torquemada e, no entanto…
Joana diz:
Se sou inoportuna na tua vida, diz-me, e deixar-te-ei em paz.
Camões diz:
Não sejas parva. Já te disse que te quero. Com essas explosões e emotividade toda à
flor da pele! E nunca te critico. Sempre te achei única, de mais, apetitosa como o caraças!
Sabes que é verdade.
Joana diz:
É como se estivéssemos perdidos numa selva. Andamos às voltas, fazemos círculos
perfeitos. Passamos pelas mesmas pedras e árvores, rios e sendas, mas nunca chegamos a
lado algum.
Camões diz:
Havemos de chegar. Porque não acreditas nisso, meu doce?
Joana diz:
É verdade que estás mesmo apaixonado por mim?
Camões diz:
Não minto, Joana.
Joana diz:
Muito?
Camões diz:
Penso em ti todos os dias. É a melhor parte que eles têm. Quando atravessas os meus
pensamentos, sinto-me calmo. Imagino o calor dos teus lábios. Continuo a DESEJAR-TE
IMENSO!
Joana diz:
Fico contente! 
Camões diz:
Tenho de ir! Até mais, bela Joana! Besos.
Joana diz:
Besos.

E fica a olhar para o monitor, para aqueles beijos gráficos dele, que lhe metem agora,
uma certa raiva, por não serem simplesmente reais…

165
- Joana, devias mesmo ler este artigo – declara Inês, irrompendo-lhe pelo gabinete
adentro.
- O que se passa? – pergunta, atordoada com a súbita invasão.
- É sobre relações virtuais! Vem aqui tudo! Tens de ler!
- Sim, mais logo. Deixa-o aí.
- Não! Tem de ser agora. Pelo menos, estes excertos que te sublinhei.
- Ah! Andaste a sublinhar-me partes e tudo! Que honra! Um artigo para a amiga tarada
que se apaixonou pela Internet!
- Sabes perfeitamente que não te acho nada disso. E olha, tens muita razão nalgumas
coisas que me disseste. Ouve isto: “Sofrer uma perda neste tipo de relacionamentos
equivale ao mesmo sofrimento causado pela angústia de se ficar sem alguém na vida real.
Uma perda é uma perda, independentemente do local onde ocorre.”
Joana ouve a amiga, tentando mostrar-se menos curiosa do que na realidade está.
- Ainda bem que alguém foca esse ponto, em vez de se desvalorizar e gozar com o que se
passa na rede – declara, admirada.
- E há mais: “O mito de que só se encontram pessoas perigosas é facilmente ultrapassado
quando aprendemos a seleccionar o parceiro para as nossas conversas.” E depois
oferecem uma lista de dicas para evitarmos os tarados: “Procure homens que sejam
francos e confirme a imagem da fotografia através de uma web-cam; como em todo o
conhecimento faça perguntas sobre a vida dele e responda sobre a sua, mas sem entrar em
grande intimidade; não fale sobre si o tempo inteiro, oiça também o que ele tem para lhe
dizer; verifique se têm amigos ou conhecimentos em comum; mantenha-se alerta para os
sinais que ele vai emitindo, logo perceberá se ele quer apenas uma amiga ou algo mais;
evite indivíduos que usem linguagem obscena ou escrevam com erros ortográficos de
palmatória; saiba dosear a curiosidade e deixe sempre algo para o dia seguinte, como
Sherazade; dê preferência a homens bonitos, divertidos e inteligentes. Se tem acesso à
imagem, para quê escolher barrigudos ou carecas?” Não é o máximo? – pergunta Inês,
sacudida pelo riso.
- Hilariante – concorda Joana, contagiada pelas gargalhadas da amiga.
- E depois, quando a coisa passa para o real: “No primeiro encontro, certifique-se de que
escolhe um local público, onde circulem outras pessoas. Confirme as suas impressões,
antes mesmo de se aproximar dele. Nesta etapa, você já deve ter tido conhecimento da
voz dele pelo telefone e, se seguiu em frente, mantenha-se atenta. Uma voz e uma cara
bonitas são já meio caminho andado como o código postal. Mas agora você vai descobrir
como ele fala, os gestos e o olhar, as expressões que nos podem seduzir ou repugnar.
Depois de uma primeira abordagem positiva, deixe as coisas progredirem com
naturalidade. Não pressione ou force a relação. Isto é válido para toda e qualquer uma.”
- E se não gostou do sujeito? Fuja a sete pés e nem sequer olhe para trás! – exclama
Joana, perdida de riso.
- Sim. Diz aqui: “Se já o topou e percebeu que não vai dar certo, não se arme em
socialmente correcta. Proceda a uma saída discreta e deixe-o à espera de Godot.” Isto não
se percebe lá muito bem.
- À espera de nada. É o que quer dizer. Continua.
- Já te li o mais divertido. Agora, lês o resto quando quiseres. Deixo-te a revista. Mas
antes de me ir embora, diz-me lá, em que pé estão as coisas com o Tomás?
- Péssimas.

166
- Não te respondeu?
- Sim, regressou.
- Então?
- Foi um mau regresso. Está diferente. Mais ausente. Continua a dizer que sim, mas
depois…
- Não sentes que está a gozar contigo?
- Às vezes.
- Não percebo como é que aguentas essa situação…
- Fui eu que cortei a relação. Senti que tinha de ser também eu a reatá-la. Não consegui
ficar quieta. Olha, à espera de Godot.
- Mas qual é a desculpa dele para vocês não se encontrarem?
- Trabalho e assuntos pendentes. Sei lá! Não tem tempo. Mas continua a aceitar
amiguinhas na página dele e a trocar mensagens com elas! Que raiva!
- Como é que sabes?
- Li, não é? Estilo: “Obrigada por me teres aceite e pelas mensagens.”
- Mas não fazes o mesmo? Não tens aceitado mais amigos e comentários, a torto e a
direito?
- Se visses as fotos delas… umas ordinárias. E ele responde-lhes!
- Deixa-o brincar! Também te divertes assim!
- Não é igual. O Tomás aceita pessoas sem… nível.
- Joana, não sejas preconceituosa.
- Ele disse-me que não lhes ligava nenhuma mas liga, vês? Alimenta-lhes a fantasia.
Detesto-o!
- Estás é roidínha de ciúmes. Isso é que estás! – exclama, a rir.
- Não estou nada! Desapontada é diferente!
- Como queiras. E o que vais fazer?
- Nada. Já voltei atrás e mostrei-me arrependida da minha implacabilidade. Agora, se o
Tomás quiser, que se faça à vida!
- Sentes-te diferente das outras mas, para ele, talvez sejam todas iguais. E alguma há-de
ceder, com namorada ou não. Sabes disso.
- Julgamo-nos sempre únicos. O problema é que aquilo que me estás a dizer faz todo o
sentido. Sinto-me a mulher mais parva do mundo…
- Também não exageres. A beleza desnorteia. Foi sempre assim.
- Achas que o Tomás também chama às outras “meu doce”?
- Não sei. Talvez.
- Esqueci-me da tua vertente de carrasco…
- Desculpa não te dizer aquilo que gostarias de ouvir.
- Caramba, Inês! Não tens de te desculpar. Faz-me bem ouvir umas verdades. Para ver se
volto a pousar os pés no chão. Sabes o que vou fazer? Vou partir para outra e dizer-lhe
bye-bye!
- Outra vez?
- Não sejas irónica. Agora é diferente.
- Porquê?
- Ora… Porque estou decidida mesmo a sério.
- Não. Estás é furiosa por saber que Camões continua a seduzir e Tomás a não escolher.
- Viraste vidente?

167
- Prefiro antes psicóloga.
- Se calhar, devia consultar as cartas.
- Já estivemos a falar melhor, Joana. Sabes que isso é uma charlatanice pegada.
- Sim. Talvez. Mas sempre era mais um ângulo para a coisa. E há uma mulher aqui que
faz isso.
- Quem? – pergunta, surpreendida.
- Como não acreditas, não te posso dizer. Mas vou vê-la. Hoje mesmo.
- Não devias…
- Que se lixe! Sempre quero saber o que ela me vai dizer.
- Ligo-te logo, está bem? E sê sensata.
- Claro. Fica bem.

Uma vez alertada para a possibilidade de visionar o que o futuro lhe reservava através da
leitura das cartas, a mente de Joana – por norma racional e pouco dada aos fenómenos do
oculto – fervilha de expectativa.
À hora de almoço decide visitar a tal mulher e, como quem não quer a coisa, aparece-lhe
no gabinete.
- Olá Filomena. Incomodo-te?
- Não. Estava a arrumar uns dossiers.
- Já almoçaste?
- Ainda não – responde, curiosa.
- Olha, não sei bem como te pedir isto…
A outra ri-se, bem disposta.
- Vocês só me procuram quando querem algo. De resto, vêem-me como uma lunática.
Sei-o bem.
Por muita vontade que Joana tivesse de lhe responder: “Ó, não! Nada disso!”, as roupas
extravagantes da redactora do Zodíaco impediram-na de enveredar por aí. Assim,
limitou-se a suspirar:
- Gostava que me lesses as cartas.
- Calculava – assentou, com um sorriso. – E o que queres saber?
- Tenho que te dizer?! – questiona, surpreendida.
- Se queres uma resposta, tens de fazer a pergunta – explica, pacientemente, sacando de
um baralho de cartas e começando a baralhá-lo. – Vá, parte.
Joana olha-a, um pouco corada:
- Há este homem – começa, sentindo a garganta seca – que me apareceu assim de repente.
E eu gosto dele. Mas quase nunca o vejo. Quero saber porquê. Se ele vai ficar comigo, ou
não.
- Hum… É alto? – pergunta, observando as cartas, entretanto, dispostas em séries de
quatro.
- Sim! – responde entusiasmada – muito alto! Consegues vê-lo aí?
- Não está muito definido.
- Lá isso é verdade! Ele não se define – lamuria-se.
- Este homem está na tua vida porque o deixaste entrar. Vejo que ele veio ao teu encontro
e que o acolheste.
- Sim. Foi mais ou menos isso – concorda, extasiada.

168
- Mas há aqui muita confusão e inquietude. Vejo vários cortes.
- É a minha vontade de o querer deixar. Por ele não se decidir.
- Hum… Há mais. Ele traz um problema.
- Qual?
- Não tem a ver contigo mas com uma outra mulher.
- Pois – admite, embaraçada. – Ele tem um compromisso com ela. E eu sou a má da fita e
a destruidora de lares. Mas quero-o! E se ele estivesse bem, também não me tinha
procurado.
- O teu homem está a sofrer.
- A sofrer? Isso já é mais duvidoso – discorda, imaginando o teor das mensagens por ele
enviadas àquelas descaradas: “Que bela foto. Estás tão sensual, meu doce?”, pensa,
furiosa.
- Está encostado à parede. Existe uma força que o pressiona e o faz ficar, ainda que
contrariado.
- Estás mesmo a ver isso?
- Claro. Transparente como a água.
- E mais? O futuro? Fico com ele?
- Existem outros homens à tua volta.
- Mas não quero saber desses. O alto, concentra-te nele – pede, desesperada.
- Muita indecisão…
- Céus…
- Calma. Estou a ver que far-se-á luz na vida dele. Muito em breve. Uma mudança
significativa.
- Ele vai deixá-la, certo?
- Estranhamente, a mudança ocorre em relação a ela.
- Não me digas que vai casar uma segunda vez e que eu fico a ver navios…
- Nada disso! O casamento não aparece.
- Então, aparece o quê?
- Vai dar-se uma reviravolta. Vejo turbulência. Dor. Perda.
- Mãe do céu! Não vês nada de bom?
- No final, ficarás bem. Terás um homem que te ama de verdade.
- Mas é ele?
- Não consigo perceber se é ele, ou não. Devido à mudança, percebes? A partir de um
certo ponto, fica tudo nublado.
- E eu fico bem? De certeza?
- Sim.
“Óptimo! Deve ser ele! Só pode ser!”, rejubila-se. “Não será o Alexandre que já me
conhece há tanto tempo e nunca mudou o registo do nosso envolvimento. Ou o Ricardo, o
qual tem a Marisa e só pequei com ele um poucochinho de nada. E dos antigos, também
não estou a ver. De resto, não há mais ninguém… ou há?”
- Estou exausta. Vamos almoçar?
- Claro, Filomena. Vem daí, que o almoço é por minha conta! Estou muito mais contente
com as perspectivas do meu futuro! Obrigada!
- Mas não faças disto um vício – adverte-a, arrumando o baralho de cartas. – Elas nunca
se repetem, e a visão tem de ser entendida como um fragmento intemporal. Num dado
momento, tudo se irá realizar de forma única e irrepetível. Assim é a vida.

169
- Certo. Percebi tudo. O oráculo falou e sobre o mesmo tema assunto encerrado.
- Sim. Podes equacionar dessa forma – aquiesce, com um sorriso.
Enquanto se dirigem para o elevador, Joana pensa que Tomás está cada vez mais perto
dela. Sente-se radiante e esperançosa: “Não acredito que estejas a sofrer, meu Camões
perverso. Só espero é que o Tomás mude mesmo, e para o meu lado! E que tu
desapareças, poeta fingido, que a todas declaras o teu amor. Apaixonado, blogue
desactivado, mas continuas a rodeares-te de damas. Já sei que me vais dizer que elas é
que te procuraram. Mas aceitaste-as, e isso é igual! Sim, são virtuais. Como se a
virtualidade tudo desculpasse! Como odeio essa multiplicidade de mulheres na tua
página! Nem mesmo os meus disfarces, as minhas cabeleiras e fantasias conseguiram
travar a tua curiosidade por todas as outras. És horrível, Camões! Se eu soubesse como,
contratava alguém para te exorcizar do Tomás. Pobrezinho! Não merece ter um
destruidor de corações, porque não dizê-lo, um arranca corações, como alter-ego.
Estás a miná-lo, é isso que estás a fazer. A pôr-lhe ideias loucas naquela cabeça. O
Tomás deseja-me e não me quer abandonar. Agora tu! Quantas vezes abandonaste
aquelas que seduziste? Um poema é como um tiro certeiro. Depois de encantadas, que se
danem. Boa noite e boa sorte deve ser o lema da tua vida, a frase com que te despedes das
incautas. Maldita beleza, ó poeta, que a empregas em tão vis acções. Volta lá para Goa,
ou para outro destino exótico e bem distante, e deixa-me o Tomás sereno e tranquilo.
Sabes, Tomás, um dia vais acordar e perceber a minha diferença. Não serás tão carnal no
teu desejo por mim – isso nem é culpa tua, mas antes do zarolho que te habita – e sentirás
que nos completamos. Sim, que somos únicos e feitos um para o outro. Que encaixamos
como peças de um jogo de crianças. Pressionados, bem coladinhos, juntos e simétricos,
uma espécie de gémeos da harmonia. Sintonizados na mesma onda!
Um homem e uma mulher completam-se. O encontro da pele, da minha pele, na tua!
Será divina a nossa união! Como anseio por te beijar, acariciar e por sentir!
No final deste calvário, quando estivermos sós, sem Camões e as musas, olhar-me-ás e
dir-me-ás: “Joana, os meus lábios são teus, o meu coração é teu, o meu pénis é teu, os
meus sonhos só fazem sentido quando os povoas, a minha mente tranquiliza-se quando te
evoco, és o ar que respiro, o tic-tac do meu peito, a razão de me ter registado naquela
treta, és o mundo para mim e, se me deixares, juro que me mato. Ou pelo menos, que
viverei miseravelmente o resto dos meus dias, errando de cidade em cidade, infeliz e
esmagado pela dor.” Sim. Parece-me um bom discurso para ti”, conclui, sorridente.
- Vejo que ficaste mesmo feliz – observa Filomena.
- Desculpa! Perdi-me nos meus pensamentos! É este o restaurante de que te tinha falado.
E as duas mulheres entram, e Joana esforça-se por se concentrar apenas no menu…

170
Rita está sentada no sofá da sala e bebe uma garrafa de vinho branco, copo após copo,
como se quisesse ganhar coragem.
Quando Tomás entra em casa, surpreende-se por ver a companheira tão abstraída e
silenciosa, bebendo sozinha.
- O que se passa, querida? Não devias estar a beber. Isso faz mal ao bebé – comenta,
dirigindo-se para ela com a intenção de lhe afastar a garrafa.
- Deixa estar! – impede-o ela, com a voz já alterada pelo álcool. – Como se te
preocupasses – queixa-se, num murmúrio.
- Claro que me importo!
- Senta-te. Tenho uma confissão a fazer-te.
- Outra? – pergunta, sentindo o sangue gelar-se-lhe.
“A última vez que me confessaste algo foi para me dizeres que tinhas ido para a cama
com o Tiago. O que se segue agora? Terás abortado, e é por isso que bebes?”
- Queria muito ter um bebé teu. Sabes bem que é verdade. Mas não assim. Contigo a
fazeres-me sentir absolutamente indesejada. Quando é que morreu o teu desejo por mim?
Porquê essa mania do sexo agendado?
- Acho-te piada. Lá porque prefiro fazê-lo aos fins-de-semana, quando estou mais
relaxado, não significa que não o façamos mais vezes. Tu é que o tens agendado para os
dias em que sabes que estás a ovular. A calculista aqui és tu! – explode, impaciente.
- Não! Se fosse saberia calcular a distância que há muito nos separa. Na verdade, nunca
tive jeito para a matemática, essa disciplina que os teus queridos amigos leccionam, entre
outras.
- Não vais começar a criticar os meus amigos! Já não tenho pachorra para ouvir as tuas
diatribes!
- Estou-me a marimbar para eles e para ti! Estou farta do teu egoísmo e das tuas mentiras!
- Mentiras? Tens uma grande moral para falares nisso…
- Acrescenta mais uma à lista – grita, de cabeça quente. – Inventei este bebé! Ele nunca
existiu!
- O quê? Repete lá isso – rosna, incrédulo.
- Foi o que ouviste. Inventei-o para … nada.
Tomás tenta controlar a fúria que o invade, como se uma onda de calor, iniciada na ponta
das orelhas, o transfigurasse numa tocha humana. Todo ele ferve.
- Como é que foste capaz de uma baixaria dessas? – pronuncia, medindo as sílabas, uma a
uma.
- E tu, como é que és capaz de fingir que não existe outra mulher, ou outras, sei lá eu
contabilizar as faltas de atenção, os toques de telemóvel que disfarças, os SMS trocados
debaixo do meu nariz, as tuas súbitas mudanças de humor, os silêncios inexplicáveis, a
aversão que mal disfarças quando olhas para mim? Se somarmos todas essas baixarias,
qual é o resultado? Se ainda adicionarmos o facto de eu saber que não me amas e que
também não me odeias, se juntarmos à conta esta tua gritante indiferença, o que obtemos?
Diz-me lá, Tomás, porque és tão cobarde e ficas quando queres partir e partes só para
puderes voltar. E insultas-me para me pedires desculpas e desculpas-te para me poderes
humilhar de novo. O que é isto? Como é que chegámos aqui?
- Estás nervosa – responde, mais calmo, sentando-se à distância de um módulo. – Como é
que se pode falar com uma pessoa que bebe pelo gargalo da garrafa? Está tudo dito!
- Não te armes em professor de etiqueta. Não, agora, Tomás.

171
- Ouve Rita – pede, cruzando os braços e fitando-a com cansaço. – Não era necessário
inventares um bebé. Isso é tão perverso. O que é que te deu? Não podíamos ter
conversado?
- Pergunto-te o mesmo.
- Reconheço que não sou fácil. Às vezes, mal me tolero a mim próprio. Mas foste longe
de mais com esta estória. Fizeste-o para me segurar, não foi? Um acto desesperado.
- Não te enalteças e não me amesquinhes. Fi-lo porque me apeteceu atazanar-te. A
verdade é essa. Só para te chatear, para dizer que esta é a tua casa, mas eu vivo aqui, e
tens de me saber respeitar. Não é trazeres cá para dentro essas traições na tua cabeça. És
tão transparente. Sei muito bem que, quando andas estranho, é porque estás a tramar
alguma.
- Não sei o que te dizer…
- Esta é a parte em que eu digo que vou para casa da minha irmã, e tu ajudas-me a fazer
as malas.
- É mesmo isso o que queres fazer? Ou é o vinho a falar por ti?
- Não me tortures mais. Pensei que a minha decisão te fizesse feliz…
“Mesmo que faça, não vou dar pulos de alegria. Não sou assim tão monstruoso. Quero
que partas segura da tua decisão, para depois não me apareceres de novo. Já não te amo,
Rita. Esse golpe foi o mais baixo de todos. Inventares um filho! E és tão tontinha que
ainda o confessas. Podias ter-me dito que tinhas abortado. Mas sendo assim, fazes-nos
um favor. Acabou-se o teatro nesta casa. E eu vou atrás da Joana e ninguém me irá
impedir de a ter. Muito menos tu.”
- A tua indiferença obriga-me a partir. Faço-o contrariada, porque ainda gosto de ti. Mas
tenho de aprender a gostar mais de mim. No fundo, tudo o que fiz foi apenas para te
acordar dessa estranha letargia em que há muito mergulhaste…
- Claro – respondeu, negando-se a continuar a alimentar a discussão.
- Tudo ficou minado com a minha aventura com o teu primo, não foi? E quando se
recupera algo perdido, nunca se recupera de todo. Vem estragado.
- Vou fazer-te um café – declara, incomodado com as palavras dela.
- Duplo, com montes de açúcar.
“Enfia-te na cozinha. Foge, uma vez mais. Já nem sequer tens argumentos para me
contrariares. É o desinteresse total, o grande final, brindado a café. Juro que se me
seguires, a implorar para regressar para ti, mandar-te-ei à merda. És abominável! Um
canalha controlado. No fundo, disfarças a tua satisfação. Até deves assobiar no teu
interior, aliviado com a minha partida. Já não te suporto! Não te suporto! Vivemos uma
mentira e ainda tive de ser eu a aumentá-la para a podermos ver bem nítida aos nossos
olhos. Que triste. Sou obrigada a deixar quem amo. Mas será amor? Não será antes
comodismo e segurança? Estava tão bem aqui, neste ninho. Agora que o vou deixar, os
passeios do Atlas não me parecem assim tão aborrecidos. É mesmo verdade aquilo que
dizem: nunca estamos contentes com o que temos e só lhe damos valor quando o
perdemos.”
- É noite. Não preferes dormir cá hoje?
- Não. Já telefonei para a minha irmã. Ela está à minha espera. Só preciso de empacotar
três anos da minha vida e sair por aquela porta!
- Que fique bem claro, que te foste embora por livre e espontânea vontade. Não quero o
teu irmão a massacrar-me o juízo.

172
- Podes ficar descansado. Ninguém da minha família te pedirá satisfações.
- O que lhes disseste? Toma o teu café.
- Obrigada – aceita a chávena com as mãos trémulas. – Nada de complexo. Apenas que
tínhamos chegado à conclusão de que não fazia mais sentido continuarmos juntos.
- Fizeste bem. Quanto menos explicações melhor. A vida é nossa. Não é deles.
“Que haveria de lhes dizer? Pois é, Luísa, há uns tempos atrás, encornei o Tomás com o
primo porque achei que ele não me dava atenção e, depois, o primo dele morreu a fazer
amor com uma outra fulana, pela qual, entretanto me trocara, sem a mínima satisfação.
Contei o episódio ao Tomás para ele dar uns murros no outro, mas ele limitou-se a deixar
de lhe falar e, entretanto, fez questão que continuasse com ele. De lá para cá, tem-me
encornado alegremente, creio que, apenas para se vingar. Porém, há dois meses que anda
mais distante e penso que um dos seus flirts ganhou mais seriedade do que os outros. Até
me quis deixar sozinha, num sábado à noite, vê lá tu! Decidida a estragar-lhe o esquema,
fingi que tinha engravidado. Vomitava e tudo. Mas cansei-me do jogo e contei-lhe a
farsa. Ele reagiu inicialmente com algum despeito e raiva, mas lá serenou e passou a
tratar-me com a indiferença costumeira. Com alguma condescendência, inclusive.
Sempre a armar-se em grande senhor, o cavalheiro da treta, nove horas, café duplo, podes
ficar cá esta noite se quiseres, a decisão é tua e… cá estou eu, à tua porta, de novo em tua
casa! Contente por me veres, mana?”
- Liga-lhe outra vez e diz que vais amanhã. Não estás bem. Não devias partir assim.
- Ó cala-te, Tomás! Vou hoje! E levo as minhas coisas todas para não ter de regressar a
esta tua casa. Nunca foi nossa. Foi sempre tua. Agora, fica com ela e transforma-a num
harém que estou-me bem a lixar!
- Isso nunca vai acontecer.
- Não quero saber. Cala-te!
E depois Rita começa a rir-se:
- Não tenho molduras para levar! Nunca puseste uma fotografia minha em exposição em
porra de prateleira alguma! É fantástico. Vivi três anos como uma hóspede neste
apartamento! Ao teu lado e, rodeada dos nossos pertences, mas sem nunca me sentir parte
integrada! Apenas de passagem! Já era um sinal e, eu feita burra, não o soube interpretar!
Três anos a viver com um gigante egoísta!
- Oscar Wilde.
- Vai à merda, Tomás!

173
“Uma sessão na Assembleia da República. Esta miúda lembra-se de cada uma”, recorda
Tomás, enquanto estaciona o jipe.
Nos últimos dias tem pensado em muita coisa: na gravidez simulada de Rita, na
possibilidade de tornar real a sua atracção por Joana, na viagem de cinco dias que terá de
realizar a Nova Iorque, nos pais dele que o irão massacrar quando souberem que, uma
vez mais, ele e Rita falharam. O namoro que mantinham de altos e baixos nunca fora do
agrado da família, principalmente da mãe. Na verdade, ela nunca gostara da namorada, e
Rita até tinha razão para se queixar dos olhares zombeteiros com que a “sogra” a
brindava.
O apartamento dele parece-lhe mais vazio. Após algumas incursões, a rapariga com quem
partilhara os últimos três anos da sua existência retirara tudo quanto lhe apetecera, sem
que ele contestasse objecto algum. De certa maneira, sentira-se culpado. Em parte, por a
ter enganado sucessivas vezes e, em outra parte, por ter sido tão frio e agressivo com a
estória da gravidez. Falsa ou não, ele só soubera passado algum tempo e, se tivesse
ocorrido na realidade, reconhecia que não tinha sido o melhor dos companheiros…
Atlas olha-o satisfeito. Há muito tempo que o cão não mostrava um comportamento tão
feliz. Brincava mais, perseguia-o por todo o lado e, quando o apanhava sentado, saltava-
lhe para o colo disposto a lambê-lo até ser corrido.
Tomás partilhava a felicidade do seu filhote de quatro patas. Agora eram dois machos
com a casa só para eles. Podia convidar as mulheres que lhe apetecesse. Deslumbrá-las
com a vista e os luxos que se preparava para obter. Sem dúvida, um plasma, uma
banheira com jacuzzi, o sofá em L, uma estante rotativa, estilo passagem secreta para um
quarto de massagens e outros prazeres. Sim, queria fazer tudo isso e o dinheiro não era
problema. Afinal, para a idade dele ganhava bem, muito bem mesmo.
“E onde é que tu encaixas aqui, minha doce Joana? Queres ser minha namorada, mas eu
despachei agora aquela e, de momento, envolver-me a sério com outra parece-me a
loucura total. Podia dizer-te que tinha acabado com a Rita, convidar-te para sair, trazer-te
até aqui… Ficavas radiante, não sei se facilitarias à primeira ou não, mas acabavas por
ceder. Sei que sim. Mas depois, não te convidava mais vez nenhuma e arrasava com o teu
mundo lírico. E sabes? Não me apetece ser eu o causador desse desmoronamento. É
melhor deixarmos as coisas como estão. Vou deixar de aparecer na net. Não te vou
responder mais ou procurar-te. Existem centenas de raparigas que não põem os teus
entraves e às quais não me custa nada comê-las e deixá-las. Elas é que são umas parvas e
se põem a jeito. Não são o filet mignon, é certo. Mas dá-me gozo. Nunca te disse que
enviava quarenta convites para miúdas diferentes e que desses, pelo menos quinze,
tinham resposta. Não te quis chocar com os números porque percebi que eras ingénua. Já
papei muitas mulheres via net, sim. Se isso faz de mim um canalha, tanto pior. E faz das
mulheres o quê?”
- Quieto, Atlas! Já vamos à rua. Deixa-me beber qualquer coisa, tranquilo – insurge-se
contra as manifestações de afecto caninas.
Tomás prepara o seu Martini branco, depois de ter desfeito o nó da gravata e de ter
atirado o blazer para as costas do sofá mais próximo. O seu olhar demora-se no sofá.
Tenta lembrar-se do nome da rapariga que, há uns tempos se debruçara nele, mas não
consegue. E o que interessavam os nomes?
“Um tipo diz-lhes meia dúzia de frases e já está. Então as do “hesitei muito antes de
entrar em contacto contigo mas não resisto mais, desculpa lá este meu atrevimento”

174
nunca falha. Nada de presunção ou de entrar a matar. As mulheres convencem-se com
palavras atenciosas e, em particular, com a noção de que encontraram um fulano giro,
bom partido e bem sucedido. Entregam-se logo e fantasiam castelos. Ou melhor,
fantasiam-se a elas senhoras do castelo. Nada de mais errado. São apenas prisioneiras da
torre, divertimento para uma noite, ou tarde, sem repetições. Lembro-me da minha
primeira, que foi ter ao hotel onde eu a mandei ir, vestida com o que eu quis, cumpridora
das minhas fantasias e ainda se ofereceu para pagar a conta… Era novinho mas já
navegava na net como um peixe na água. Torna-se viciante esta treta. Tentei parar
quando estava com a Rita mas como a relação correu mal, quando dei por mim, já estava
a combinar de novo quecas on-line. E tu, Joana, não percebes porque é que um homem
atraente precisa disto. Mas os vícios instalam-se em nós sem hora marcada ou cara
escolhida. As pessoas são estranhas. Eu não sou melhor nem pior do que os demais. Os
meus amigos, por exemplo, quando saem à noite, querem sempre que eu vá com eles. Por
me estimarem loucamente? Não. Para lhes servir de chamariz para as miúdas. E eu vou.
Mais uma nota para o teu “Manual do Cabrão Infiel”. Ajudo-os a conseguirem as gajas. E
se me apetecer acompanho-os e sou tão predador como eles. A noite está uma selva,
Joana. Cada vez, tudo é mais fácil.”
Tomás pousa os olhos no portátil e sorri. Sabe bem o que aquela máquina consegue fazer.
Conhece de cor as fotos, os filmes, os diálogos armazenados. Todas elas estão ali, para
troca entre amigos ou gáudio pessoal. Todas as tontas desta vida, presas fáceis, cromos de
uma colecção alucinante.
“O objectivo, Joana, não é nenhum. Passo o tempo assim. Divirto-me. Nem sequer penso
muito no assunto. Talvez me tenhas levado a pensar mais sobre isto com os teus
inquéritos exaustivos. Não percebo porque queres saber. Fazes-me lembrar uma amiga
minha, psiquiatra. Um dia, na Holanda, ela viu uma prostituta lindíssima numa montra.
Segundo essa minha amiga, a mulher era tão bonita, com os seus longos cabelos pretos e
olhos verdes rasgados, com o seu corpo nu e perfeito de formas, que as cortinas passavam
o tempo todo a abrir-se e a fechar-se. Os clientes sucediam-se, uns atrás dos outros e
ninguém ficava lá a hora completa que haviam pago. O entusiasmo devia ser tanto que,
em pouco minutos, resolviam a ânsia. Cansada de ver o espectáculo, a minha amiga
decidiu ela própria avançar. Disse que pagava a hora para não lhe prejudicar o trabalho
mas que era psiquiatra e só queria conversar com ela. A outra olhou-a admirada e meio
desconfiada. Perguntou-lhe se ela queria sexo oral. A minha amiga não se deixou ir
abaixo e insistiu: “Só quero saber como é que uma mulher tão bonita como tu, que podia
ser uma modelo, acabou prostituta exposta em vitrina, a aceitar todos estes barrigudos,
feios e imberbes que vi entrar em menos de meia hora. Porque o fazes?” E ela, à espera
que a outra lhe explicasse que na infância tinha sido violada pelo pai e o irmão, ou pelo
tio, e vai a holandesa e diz-lhe: “Estou aqui porque gosto. Sou engenheira mas ganho
bem aqui e dá-me gozo ser desejada por todos os homens que passam.” Nessa altura, a
psiquiatra foi-se embora, derrotada, sem a explicação ou a resposta que esperava ouvir.
Percebeu que não valia a pena perder o seu tempo com alguém que se prostituía por
prazer. E isto só demonstra que há muitos comportamentos que não precisam de ter
causas, ou grandes e conturbadas estórias a antecedê-los. As coisas acontecem porque as
pessoas querem que aconteçam. Diverte-as. Assim, sou eu, o teu Camões, na net. Para
que é que queres entrar na cabeça de um gajo como eu?”

175
O telemóvel dele toca e Tomás olha-o aborrecido. Não gosta de ser interrompido quando
divaga nos seus pensamentos, de pernas esticadas sobre a mesa de apoio, a bebericar um
aperitivo ao final do dia. Lê no monitor que é uma das mais insistentes criaturas dos
últimos dias, uma tal de Catarina. Já esteve com ela mas, embora a mulher seja uma
estampa, bailarina no Casino, repugna-o a insistência e os convites descarados.
“Mulher bonita não sabe lidar com rejeição”, pensa, divertido. “Quanto mais lhe dou para
trás, mais ela me persegue. E absolutamente nas tintas para a namorada. Como vês,
Joana, há quem não se importe com compromissos, desde que tenha a sua satisfação. Mas
esta querida pode tirar o cavalinho da chuva que, por agora, preciso de tempo só para
mim. É isso. Tempo para pensar. Basta-me saber que ela está à minha disposição. Se a
noite me correr mal, já sei que com ela, safo-me. É um elemento de reserva mas não dá o
estímulo de uma sedução de raiz. Sim, porque a primeira vez é que interessa. Pela
novidade. Pelo concretizar do desejo acumulado. Por saber que sou capaz de as atrair
com poucas palavras. Sou um gajo giro. Tenho de agradecer a Deus por isso.”
O telemóvel avisa-o de que tem uma nova mensagem. Tomás suspira, resignado a saber
novas da amiga Catarina: “Olá Tomás. O que fazes? Não queres dormir logo em minha
casa?”
A preparar novo Martini, hesita entre apagá-la ou responder: “E esta desconhece que eu e
a Rita acabámos… Se a convidasse para vir ter connosco, é tão maluca que ainda se
punha a caminho. Uma experiência interessante. Vou responder-lhe: “Queres fazer amor
a três com a minha namorada?” E depois, ri-se. “O melhor é não lhe dizer nada. Assim,
sempre a mantenho em banho-maria.”
O cachorro parece inconformado com a passividade do dono. Por fim, cansa-se e deita-se
num sofá próximo, fixando-o sempre, na esperança de ver a trela, sinal inequívoco da
passeata tão almejada. Mas Tomás está sonolento. Como passa as noites de sexta-feira e
sábado na borga, acordado até às tantas, dorme mal nas restantes, aquelas da semana de
trabalho. Aturdido pela insónia, as horas diurnas pesam-lhe cada vez mais. Sente as
pálpebras a querem cerrar e esforça-se por se manter desperto.
“Bolas! Se durmo agora, não volto a conseguir adormecer mais logo. Tenho de estabilizar
o meu horário de sono. Qualquer dia, adormeço sobre o teclado e ainda falho. Isso não
me pode acontecer. Nunca, nunca. É melhor ligar a um amigo. Talvez o João queira ir ao
cinema comigo. Isso já me entretinha um bom par de horas.”
- Vamos Atlas! Um passeio curto antes do anoitecer – decide-se, por fim.
E fica radiante por ver o seu cachorro saltar. “O Atlas não tem mais ninguém na vida.
Sou eu que cuido dele. Depende de mim. É o meu companheiro. E é leal, ao contrário
daquela cabra e de todas as outras da mesma laia.”

176
Inês diz:
Então, Joana? Novidades do Tomás?
Joana diz:
Nunca mais disse nada… É muito estranho.
Inês diz:
Há quanto tempo é que ele está no silêncio?
Joana diz:
Um mês e picos. E eu também não lhe disse mais nada. Apaguei-o dos meus
contactos.
Inês diz:
Fizeste bem. E estás triste?
Joana diz:
Não. Surpreendida. Mas não me atrevo a fazer interpretações porque as nossas são
sempre tão diametralmente opostas das deles. Sei lá o que lhe passou pela cabeça!
Inês diz:
Eu sei. Arranjou outras que facilitaram logo.
Joana diz:
E lá vem a tua vertente de carrasco 
Inês diz:
Querias que te dissesse que por te respeitar e com medo de te magoar fez uma
retirada cavalheiresca? Soava melhor, não era? Mas a verdade é bem mais crua.
Joana diz:
És má…
Inês diz:
Não sou não. Mas tenho tantos amigos homens que já penso como eles. Às vezes é
um privilégio, outras vezes, um verdadeiro suplício…
Joana diz:
Imagino…
Inês diz:
Quando jantamos juntos, eles contam tudo uns aos outros. Os detalhes mais
escabrosos. Esquecem-se que eu também estou presente. Por incrível que pareça torno-
me invisível.
Joana diz:
Sim? Isso é incrível porque falas pelos cotovelos 
Inês diz:
Um dia destes, estavam a comentar a festa de aniversário de um amigo do Filipe.
Joana diz:
Conheço-o?
Inês diz:
É aquele tipo baixinho. O Rui Miguel.
Joana diz:
Já sei quem é. Muito baixinho mesmo.
Inês diz:
E então vê lá: estão uma série de amigos, em casa do tal que fazia anos, casais e tudo
e, de repente, entram uma dez ou mais garotas de programa…
Joana diz:

177
Que linda festa…
Inês diz:
O Filipe disse que os casais começaram discretamente a sair… E depois, como ele
ficou meio sem jeito, vira-se o anfitrião e diz-lhe: “Então, como é que é pá? Casas ou
descasas?”
Joana diz:
O que é que ele queria dizer com isso?
Inês diz:
Queria saber se o Filipe alinhava no esquema com as garotas ou não.
Joana diz:
E o mestre dos cocktails ficou ou partiu?
Inês diz:
Acho que o Filipe pode ser acelerado mas é moderado nas alturas certas. Virou-se
para o anfitrião e disse-lhe: “Olha, não me leves a mal, mas vou-me embora porque esta
tua festa está a fazer lembrar-me um título do Garcia Marquez”.
Joana diz:
Eh! Eh! Eh! Grande resposta.
Inês diz:
Fartei-me de rir também 
Joana diz:
Já há imenso tempo que não saio.
Inês diz:
Não queres. Farto-me de te convidar…
Joana diz:
Hum… Talvez vá contigo à inauguração do tal restaurante.
Inês diz:
Que bom! Estás a falar a sério? É já amanhã.
Joana diz:
Eu sei. Apanhas-me em minha casa, ou queres que vá ter contigo?
Inês diz:
Não vale a pena levarmos dois carros. Eu apanho-te. Leva uma mini-saia das tuas.
Aquela de ganga. E um top com renda, sexy.
Joana diz:
Viraste conselheira de moda? 
Inês diz:
Não há melhor investimento do que investirmos em nós próprias. Se te sentires
bem, tudo te corre melhor. Acredita. Além disso, vão lá estar homens estonteantes. A
sério. Muito giros.
Joana diz:
O destino atraiçoa-me. Continuo à espera do tal… Muito difícil.
Inês diz:
Há-de aparecer quando menos esperares. É sempre assim. Não vale a pena fazer
planos ou criar expectativas.
Joana diz:
De braços cruzados é que nada acontece… Enfim. Vou a essa inauguração para
espairecer. Não quero que pensem que estou ressabiada ou infelicíssima.

178
Inês diz:
Nunca pensei isso de ti. Adoro a tua companhia, o teu sentido de humor e, claro,
as tuas risadas contagiantes 
Joana diz:
Então vá, querida. Tenho de acabar um trabalho. Liga-me logo para combinarmos
hora para amanhã.
Inês diz:
OK. Fica bem. Gosto muito de ti, Joana. És especial.
Joana diz:
E eu de ti, Inês. Beijinhos.
Inês diz:
Muitos beijinhos.

Joana sai do MSN e mergulha de novo no trabalho. Ao fazê-lo, esquece-se dos olhares de
Ricardo que tanto a aborrecem porque, afinal, ele continua com Marisa, esquece-se da
ausência virtual de Tomás e do silêncio magoado de Alexandre. Porque precisa de um
bode expiatório decide culpar a vidente de todo o seu miserabilismo. Não viu ela nas
cartas um homem que a amava? E onde estava ele, afinal?

***

- Estás muito bonita – elogia Ricardo, quando se cruzam no hall do prédio.


- Obrigada – responde com um sorriso ambíguo. – E a Marisa? Está boa?
Não sabe porque é que perguntou pela outra. Talvez somente para o fazer ir embora mais
depressa. Porém, falar da companheira não é algo que o intimide.
- Está óptima. Satisfeita por me ver a trabalhar de novo. Ficar parado na nossa idade
mata-nos aos poucos. Envelhece-nos mais depressa.
- É verdade. Ia enlouquecendo com o pé partido… Tantos dias fechada.
- Azar para uns e sorte para outros. Nas guerras, há sempre quem beneficie, quem
enriqueça.
- Hum… Regressas filosófico a casa – comenta com ironia. – Talvez mais logo também
eu regresse cheia de lições de vida.
Ricardo sorri, com as chaves na mão, sem ter chamado ainda o elevador.
- Pela produção… calculo que vás a uma festa.
- Vou sim. A Inês está lá fora à minha espera. Tenho de ir.
- Ouve, Joana…
- Sim? – pergunta, enfrentando-lhe o olhar.
- Nunca te disse mas… gostei muito do que aconteceu entre nós. Não queres repetir… um
dia destes?
- Tenho namorado. Lamento.
- Eu percebo. Mas se quiseres…
Joana não lhe responde mais. Está furiosa com o convite mas sabe que tem culpas no
cartório. Por isso, apressa o passo e enfia-se no Citroen da amiga.
- Desculpa a demora, Inês. Mas o Ricardo apanhou-me à saída.
- Ah sim? E o que queria ele? – inquire, divertida.

179
- O que estás a pensar. E sugeriu-o sem rodeios.
- E tu?
- Disse-lhe que tinha namorado. Quero lá saber do Ricardo! Estou farta de homens com
namoradas! Será que já não existem gajos livres?
- Não. Mas podem acabar com a namorada para andarem contigo.
- Que engraçada! – comenta acompanhando a amiga no riso.
- Mas é verdade. Os giros estão todos ocupados.
- Mas que grande crise…
- O Filipe disse-me que ia levar um amigo muito simpático.
- Só espero que não seja por minha causa. A sério, Inês! Detesto panelinhas. Homem meu
escolho eu.
- Uau! Isso é algum provérbio?
- Quanto muito, um lema. Não gosto que as amigas me tentem arranjar um namorado.
Isso é muito piroso.
- Claro. Mas é só um amigo dele. Tens de conhecer mais pessoas. Passas muito tempo na
editora, com directas. Assim, nunca vais privar com outros fora do teu circuito.
- Isso é verdade. Mas por favor, não me empurrem ninguém para cima. Fico doente só de
pensar nisso. Cuidado! Não passes o vermelho!
- Estava distraída com a conversa. Olha, vamos divertir-nos esta noite, ok?
- Claro que sim!

O restaurante situa-se numa das artérias menos movimentada da cidade. O espaço joga
com um mobiliário confortável de cadeiras largas e mesas baixas, uma luz muito ténue,
onde se harmonizam peças de artesanato de diversos países. Dir-se-ia que as pessoas que
o haviam decorado tinham percorrido o mundo à procura de artefactos.
- Gosto. Está muito étnico – aprecia Joana, encantada com umas esculturas africanas.
- Olá! Finalmente, as senhoras chegaram! – saúda Filipe aproximando-se delas.
São feitas algumas apresentações rápidas:
- Joana, apresento-te o Hugo. Este rapazinho aqui é o meu primo, o Kiko. A Maria e a
Clarinha.
Joana sorri e distribui os beijos da praxe. O grupo é simpático e embala em conversas
banais. Há olhares que se trocam e se prolongam, cumplicidades que despertam ao
referirem-se amigos e locais comuns.
Discretamente, Filipe puxa Joana de lado e pergunta-lhe:
- Porque é que nunca aceitaste o meu convite do Messenger?
- Desculpa?
Apanhada desprevenida, Joana busca uma resposta plausível:
- Talvez por seres o namorado da minha melhor amiga?
- Eu só quis ser amigo dela para me aproximar de ti. Há muito tempo que te acho uma
mulher linda, Joana. E não creio que a Inês esteja apaixonada por mim. Nunca esteve.
Incomodada, Joana procura a amiga com o olhar. Inês está entre dois rapazes e uma
rapariga morena, a rir, descontraída.
- O que me dizes é a loucura total, Filipe. Não posso acreditar que te estás a atirar a mim,
sabendo como eu e a Inês somos unidas.
- Sei sim. Mas se não te dissesse nada, ficava a pensar que era um cobarde a vida inteira.
Sou doido por ti, desde o primeiro momento em que te vi, no aniversário das gordas,

180
lembras-te? E quando fizeste o jantar em tua casa fartei-me de olhar para ti. Estavas um
espanto. Achei-te ainda mais bonita. E hoje… céus! És linda, sabes?
- Não acredito nisto…
- Quando ficámos os dois sozinhos na cozinha… tive a impressão que não te era
indiferente. Apanhei-te um olhar guloso. É verdade. Não sorrias. Diz-me que não sentes
nada e esquecemos esta conversa.
Joana acende um cigarro nervosamente. Julga-se a mulher mais culpada e desleal do
mundo mas acaba por admitir:
- Se não te achasse um homem atraente deveria ser internada num hospício.
O olhar de Filipe tranquiliza-se. Pensa que aquela mulher já passou por coisas boas e más
no passado, as quais conhece via Inês. Mas tem a noção de que Joana também sabe muito
sobre ele, por ambos partilharem a mesma fonte. Conhecem-se profundamente sem nunca
terem tido uma conversa íntima. Talvez ela saiba da dependência dele pelos anti-
depressivos, tal como ele está ao corrente das suas loucuras on-line. Mas há algo de
muito intenso e excitante que fervilha dentro dele e essa sensação é como uma onda que
tudo quer varrer e apagar para recomeçar nova vida, ao lado dela, sem se importar com o
que ambos deixam para trás das costas.
“Se as pessoas vivessem presas aos seus medos e vícios passados não evoluíam. Se eu
temesse dizer que te amo porque o disse a outras não estava a ser honesto comigo. Na
verdade, Joana, há muito tempo que te quero e agora, apesar de estares algo agitada, não
vou deixar passar a oportunidade. Vou buscar-te mais uma bebida… e outra. E depois
rapto-te para minha casa. E a Inês? Não quero pensar nela agora. É uma miúda querida
mas se gostasse mesmo dela não a tinha usado como isco.”
- O que estás a beber? Vou buscar-te outra vodka laranja. Venho já. Não fujas –
acrescenta com um sorriso meigo e uma carícia no rosto – E não te preocupes com a Inês.
Nós resolvemos isso a seu tempo, ok?
- Filipe, escuta, isto não está certo…
- Não sinto nada de errado. Bem pelo contrário – declara confiante.
“Não comeces a hesitar. O melhor é enviar-te um SMS para te tranquilizar”, pondera, a
caminho do bar. Saca do telemóvel e escreve: “Não te apoquentes, Joana. És a mulher
mais linda que aqui está. Fica comigo e ignora o resto. Vou tratar bem de ti.”
Enquanto espera que o sirvam, Filipe vê o sorriso desenhar-se no rosto dela. “O envio de
mensagens nunca falha”, comprova, com uma expressão vitoriosa. “As mulheres adoram
estes mimos, e eu sei como te deixas seduzir por palavras. Mas quero-te comigo mesmo a
sério porque te amo há muito, apesar de nunca to ter dito.”
Quando volta para junto dela sente-se ainda mais seguro. Discretamente, passa-lhe a mão
pelas costas, ergue-lhe um pouco o top e acaricia-lhe a pele. Joana não o impede e ele
encontra-lhe o olhar sedento que nunca viu em Inês.
Não resiste à piada mordaz:
- Quando nos perguntarem como é que nos conhecemos, fazes um ar muito inocente e
dizes com um sorrisinho: “Eu era amiga da namorada dele.”
- Vou passar por uma cabra completa – argumenta num fio de voz, perturbada pela
excitação que o toque dele e o humor corrosivo lhe provocam.
“De facto, só estes homens nos fazem tremer as pernas. Os certinhos não têm este picante
que torna a vida tão apetecível. Ó, meu Deus! A Inês nunca mais me vai falar na vida! E
será que vale a pena? Mas eu não consigo travar. Juro que não consigo. A mão dele está a

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deixar-me louca. Ou a vodka. Estou a ficar mais sensível e menos racional. E ela não me
roubou aquele fotógrafo? Que se dane! Agora fico eu com o Filipe. É uma brasa e, pelo
que ela me contou, tem muitos mais predicados. Hum… Será delicioso descobri-los.”
- Ficamos mais um bocado ou… vamos embora sem nos despedirmos? – provoca, num
sussurro que lhe roça o ouvido.
Joana dá um passo atrás e fixa o sorriso dele, o olhar brilhante, ouve aquela voz hipnótica
de uma masculinidade que a vira do avesso, deixa o olhar percorrer os braços que já tanto
cobiçara e acaba por lhe responder:
- Já que vamos ser o casal escândalo, sugiro uma retirada rápida e discreta.
E ambos saem de fininho, cientes de que a felicidade de uns começa quando a de outros
acaba.

182
SEIS MESES MAIS TARDE

Quando te vejo entrar, ainda me sobressalto. Dou por mim a pensar: não, isto não está a
acontecer, é bom de mais para ser verdade. Mas pelo menos, já não sorrio sempre que
penso em ti. Já consigo moderar a coisa. No princípio, sentia-me um anormal. Sempre a
sorrir quando te evocava.
A nossa primeira noite deixou-me ávido. Só queria mais. Absolutamente viciado em ti,
nos teus beijos. Não me saías da cabeça. Na empresa, quando enviava e-mails de
trabalho, lembrava-me do teu corpo nu e, lá estava o sorriso. Todos a pensarem que eu
devia andar a snifar qualquer coisa por transbordar tanta energia. Souberam que tinha
largado a Inês, claro. Essas coisas espalham-se e comentam-se. E mais espantados
ficavam – colegas e amigos – por me verem andar nas nuvens.
Não lhes disse logo que estava contigo. Pediste-me, toda receosa: “Não digas. Já basta os
amigos saberem, quanto mais os colegas. Depois pensam que sou mesmo uma devassa
traidora. E eu não quero falatório. Deixa lá os outros. Guardemos sigilo para já.” Sou um
respeitador e, aqui quem manda é a senhora. Por isso, mantive-me caladíssimo.
Guardei para mim o prazer de te ter tido em minha casa. Foi tão bom. Mas duro. Dormi
três horas e insististe em regressar ao teu apartamento. Sei agora que ter-te é também
respeitar o teu espaço. Gostas de dormir na tua cama sozinha e só raramente ficas na
minha. Paciência. Aceito todas as tuas excentricidades porque te amo. E muito. E tu, toda
preocupada: “Bebe um café duplo, querido. Sinto-me péssima por não teres dormido
mais.” E eu logo: “Já bebi triplo, mas se voltasse atrás, tinha feito directa!”
Memorável, essa nossa primeira noite. Quando saímos do restaurante, mantive o registo
das mensagens escritas. E tu, completamente surpreendida: “Mas estamos juntos…
Verbaliza”, desafiaste com o teu sorriso encantador. Mesmo assim, enviei-te nova
mensagem e lês-te: “Antes de chegarmos ao final da rua vou fazer uma coisa.” E fiz.
Pespeguei-te um beijo daqueles. Sim, um beijo que te deixou pelo beicinho.
Depois, já em minha casa, ainda acabámos com o resto da vodka que lá tinha. Quando
demos por nós, estávamos enrolados no sofá. E o desejo venceu a tua resistência, Joana.
Mas não te preocupes. Nunca te considerei fácil por isso. Na nossa idade, sabemos bem o
que queremos e o que não queremos. Os que julgam os outros são uns frustrados e uns
falsos beatos. A resistência fica bem aos motores e mais nada!
Logo a seguir, comecei a sentir algo que nunca tinha sentido com a Inês: medo. Um
pavor absurdo de te perder. Uma sensação horrível que se instalou em mim, ao mesmo
tempo que um estranho aperto no estômago. Felicidade e angústia em simultâneo. Muito
duro. É o risco de se ter um mulherão como tu, mas vale a pena corrê-lo. Um dia,
habituar-me-ei ao olhar faminto dos outros quando passam por ti. De momento, ainda
lido mal com isso. Apetece-me bater-lhes. A sério. O fenómeno Joana que tudo arrasa à
sua passagem. Observei esse teu encanto em todos os momentos que partilhei contigo,
ainda que à distância. E agradeço aos céus, todos os dias, ter tido a coragem de deixar a
Inês. Mais: rejubilo com o facto de nunca ter sido pai antes porque meti na cabeça que só
tu serás a mãe dos meus filhos. Devem ser tão bonitos, os nossos filhotes. Estou doido
por abraçar esse dia. Estou quase a convencer-te, sabes bem. Já começas a contemplar a
hipótese. E a sorrir com a ideia. O que é delicioso!

183
Uns separam-se… outros juntam-se… será assim tão cruel? Não creio. Será obsessivo?
Talvez. Mas quando é a sério, quando sinto que o arrebatamento é total, não consigo ser
de outra maneira. E quero-te, como nunca quis ninguém. Totalmente viciado em ti e nos
teus beijos. Na maneira de te expressares, quando arrastas as palavras que dizes para me
provocar. Tu não és provocadora. És a provocação, a tentação, o desejo. Sabes o que
queria mesmo? Era achar uma palavra só para ti… que explicasse esta necessidade de ti,
o pensar constante, o sonhar coisas a dois. É forte.
Não sei o que o futuro nos reserva mas saboreio a paixão e, se depender de mim, saberei
prolongá-la no tempo. Quero que o nosso amor dure para sempre, que nunca te canses e
eu me desencante… Suponho que é o desejo universal de todos os enamorados e um
disparate pegado para os cínicos deste mundo. No fundo, os afectos sempre foram
ridicularizados, embora seja moda agora falar-se neles… A coisa mais fashionable que
me aconteceu nesta Primavera/Verão foi mesmo a novidade de me apaixonar por ti.
Adoro-te, querida. Amo-te muito. E digo-o a marimbar-me para todos aqueles que acham
que estas palavras são pirosas. Piroso é quem não sente o amor, rotula os outros e vê a
caravana passar. Tu és a mulher que Amo! Apetece-me gritá-lo ao mundo. Dançar
contigo.
Às vezes, ainda lamento os meses perdidos e a minha hesitação. Mas foste tão
compreensiva quando te falei da minha timidez e dos meus excessos. E isso também me
tocou muito. E, depois, para além de bonitona, és bem-humorada. A boa disposição que
sinto ao teu lado é extraordinária. Que felicidade a minha por te ter encontrado! Não me
canso de o pensar.
Mas apetece-me ver-te desligada da Internet, em particular das Real Spiders. Não gosto
que fales assim com outros, por razões óbvias. E já te pedi, várias vezes, para actualizares
o teu perfil. Mas a senhora nada. Gosta de brincar, de continuar a fazer amigos. Habilitas-
te a que te mande um vírus um dia destes. A sério. Já sabias que isto ia acontecer. Ciúmes
do teu tempo junto ao computador. Medo de eventuais rivais e novos encantamentos da
tua parte. É claro que me tranquilizas, mas manténs-te na tua. Que raiva! Qualquer dia
discutimos por causa de pessoas que nunca vimos em carne e osso. Isso sim, já seria
patético mas, ao mesmo tempo, algo plausível. Tenho ciúmes. É lógico, não? O que
queres? Sou inseguro, sou. Amo-te de mais, deve ser por isso.
E não me canso de ti. Quando fazemos amor, apetece-me repetir a noite toda. E de
manhã, também sinto o desejo. Volvidos seis meses, será toda esta ânsia normal? Neste
momento, só me imagino a acompanhar os teus nove meses de gravidez, a elogiar-te o
tom da pele, a beleza que ainda se tornará mais visível. Quero-te redonda, pois é.
Redonda de nós. Não dizem que a felicidade é redonda? E então, porque esperas, meu
amor?
Gosto quando me olhas com alguma agressividade: “Que mania! Ainda agora estamos
juntos. Quero usufruir de nós!”, dizes, sempre na defensiva. E o tempo, querida? Esperará
ele por nós? Que conceito estranho esse. Eu, que até nem uso relógio…
Vou mandar tatuar um desenho no meu ombro. Assim, quando o beijares – essa tua
estranha fixação pelos meus ombros e braços – lembrar-te-ás do meu desejo supremo: ser
pai de um filho nosso. E não me importo nada que me vejas como um tarado obcecado
com a paternidade. Quero muito e, quando se quer com tanta força, as coisas acontecem.

***

184
Filipe diz:
Bom dia querida! Como estás?
Joana diz:
Radiante! Feliz! Muito, muito contente!
Filipe diz:
Passaste ontem pela farmácia?
Joana diz:
Lá estás tu com isso! Mas para que hei-de comprar os testes, se sei que não estou?
Filipe diz:
Como é que sabes? Não tomas a pílula, ó senhora alérgica.
Joana diz:
Mas tu tens cuidado, ou não?
Filipe diz:
Sou obrigado…
Joana diz:
Hoje, deram-me um projecto novo.
Filipe diz:
A fugir à conversa. Previsível…
Joana diz:
Estás a ficar psicótico com isso.
Filipe diz:
Serei um caso único? Vais receitar-me algo, é?
Joana diz:
Sim. A tatuagem demonstra bem a tua perturbação  Onde é que já se viu tatuar um
pato no ombro?
Filipe diz:
Confessa lá que não gostas.
Joana diz:
Dos ombros? Já sabes que sim. Mas gosto bem mais da tua voz.
Filipe diz:
E eu adoro o teu rabo macio Eh! Eh! Como a pele de um bebé.
Joana diz:
Pois… E quando o bebé nascer vais tatuar o quê?
Filipe diz:
Vou dar cor ao pato. Vais ver. 
Joana diz:
É um disparate…
Filipe diz:
Ainda gostas de mim como no princípio?
Joana diz:
Não. Apesar dessa loucura de quereres ser pai à força toda, amo-te cada vez mais 
Filipe diz:
Não é nada loucura. Preferia que fizesses como eu. Fechasses os olhos… e te
lembrasses de nós juntos, a sorrir. Merecemos. É lindo.
Joana diz:

185
Ainda não estou mentalizada.
Filipe diz:
Nunca estarás porque tens preconceitos contra mulheres grávidas. Mas não te
preocupes. Quando fores tu, essas ideias parvas caem por terra.
Joana diz:
Acho-te uma graça. À Inês não a chateavas tu com essa conversa.
Filipe diz:
Ela nunca foi a minha mulher. E é assim que eu te vejo. É diferente, percebes?
Joana diz:
No outro dia, estive parada frente a uma montra de roupa para crianças. Sabias que a
Trussardi tem peças minúsculas e fantásticas? Mas isso não desvaneceu a sensação de me
sentir como aquela rapariga do filme “A Semente do Diabo”, do Pollanski, com a Mia
Farrow.
Filipe diz:
Fogo! Que exagero!
Joana diz:
Pois é! Todos interessados no raio do bebé.
Filipe diz:
Sendo tu tão bonita e eu um belo exemplar macho, não achas que os nossos filhotes
seriam um portento?
Joana diz:
Vou fazer haraquiri, não tarda…
Filipe diz:
OK. Por hoje chega de massacre.
Joana diz:
Jantamos fora? Ou preferes que te faça caril pela enésima vez?
Filipe diz:
Hoje cozinho eu.
Joana diz:
Mas não sabes e odeias…
Filipe diz:
Viver implica que todos os dias se possa mudar. Transformações permanentes.
Aprendi a fazer pato com laranja. Não te preocupes com nada. Já comprei os peitos e
tudo.
Joana diz:
Estou surpreendida. Dizem que esse prato é afrodisíaco.
Filipe diz:
A sério? Não sabia 
Joana diz:
Gosto tanto que me surpreendas!!!
Filipe diz:
E eu gosto de te fazer feliz. E ADORO-TE, já sabes.
Joana diz:
Também te adoro 
Filipe diz:

186
Importas-te que seja na minha casa? Assim, se estiveres muito cansada sempre
podes perder a cabeça e ficar…
Joana diz:
Logo se vê. Sabes que gosto de regressar à base.
Filipe diz:
És selvagem, mas isso resolve-se. Nada de preocupante.
Joana diz:
Diz o roto ao nu…
Filipe diz:
Significando que…
Joana diz:
Também acho selvagem que continuemos a falar assim.
Filipe diz:
Porquê querida?
Joana diz:
Já estou a ficar saturada do Messenger…
Filipe diz:
Preferes SMS?
Joana diz:
Preferia ter-te aqui, ao meu lado.
Joana diz:
Em particular, dado que estás a duas divisões de distância 
Filipe diz:
Deixa-me acabar de pagar as contas na net e já vou ter contigo, ok?
Joana diz:
Mas despacha-te, por favor!!!
Filipe diz:
E a senhora ama-me?
Joana diz:
On-line e ao vivo e a cores.
Filipe diz:
É tão bom saber isso!
Joana diz:
Vens dar-me um beijo daqueles magníficos que me deixam de rastos?
Filipe diz:
Corro o risco de não efectuar os pagamentos… nos próximos minutos.
Joana diz:
Minutos… ou horas? 
Filipe diz:
É uma autêntica exploração… E depois não quer ter filhos… e queixa-se…
Joana diz:
Quero sim! A seu tempo, ó apressadinho!!!
Filipe diz:
Amo-te muito. Quero casar contigo e fazer-te muito feliz.
Joana diz:
E eu também te AMO!!!

187
Filipe diz:
Vou ter contigo. Até já, querida.
Joana diz:
Até já, meu amor.

E ele irrompe pela sala e transporta-a até à mesa, cobrindo-a de beijos húmidos e longos,
beijos que nada têm a ver com os simulados no ecrã, por serem verdadeiros, sentidos e
desesperadamente arrebatadores. Antes de cerrar os olhos, Joana olha para o portátil que
não tivera tempo de desligar e vê a imagem do monitor apagar-se. Os seus dedos
cansados das teclas afundam-se nos caracóis macios do namorado. “Ama-me sempre”,
pede, ao mesmo tempo que se enrosca nele. “Sempre, sempre”, foi a resposta que ouviu,
antes de ela própria ficar, por sua vez, desligada de tudo…

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