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CANAVIAIS E AÇÚCAR NO ESPAÇO INSULAR ATLÂNTICO

Questões de meio ambiente e Técnica

ALBERTO VIEIRA
CEHA-MADEIRA
avieira@avieira.net//avieira@madinfo.pt

"Dificilmente se encontrarão formas de utilização dos recursos dos


solos que se possam rivalizar com a agro indústria canavieira
quanto à capacidade de condicionar um tipo de sociedade e de eco-
nomia, de modelar um tipo de paisagem e de estruturar um tipo
de arranjo económico do espaço ". (Mário Lacerda de Melo, O
Açúcar e o Homem, 1975)

"Já afirmou alguém, com muita razão, que o cultivo da cana-de-


açúcar se processa em regime de autofagia: a cana devorando tudo
em torno de si, engolindo terras e mais terras, dissolvendo o
húmus do solo, aniquilando as pequenas culturas indefesas e o
próprio capital humano, do qual a sua cultura tira toda a vida. E é
a pura verdade... Donde a caracterização inconfundível das dife-
rentes áreas geográficas açucareiras, com seu ciclo económico, com
as fases de rápida ascensão, de esplendor transitório e de irreme-
diável decadência. Ciclo este que se processa tanto mais rapida-
mente quanto menores os recursos de terras disponíveis. Daí a
semelhança de aspectos entre áreas diferentes como o Haiti, Cuba,
Porto Rico, Java e o Nordeste brasileiro ". (Josué de Castro, Geo-
grafia da Fome, R. Janeiro, 1952, p.73)

A cana-de-açúcar é considerada, com propriedade, a cultura mais importante


da História da Humanidade. A ela se deve os maiores fenómenos de mobilida-
de humana, económica, comercial e ecológica. A afirmação como cultura agríco-
la é milenar e abrange vários quadrantes do planeta. É, ainda entre todas as
plantas domesticadas pelo Homem, a que lhe trouxe maiores exigências. Ela
quase que o escraviza, esgota o solo, devora a floresta e dessedenta os cursos de
água. A exploração intensiva, que ocorre no espaço atlântico a partir do século
XV, gerou grandes exigências de mão-de-obra, sendo, por isso mesmo, respon-
sável pelo maior fenómeno migratório à escala mundial que teve por palco o
Atlântico, isto é, a escravatura de milhões de africanos. Ligado a tudo isso está
também um conjunto variado de inovações técnicas e manifestações culturais.

Foi o Oriente que descobriu a doçura da cana-de-açúcar, tendo a Papua Nova


Guiné como berço. Os árabes fizeram-na chegar ao ocidente, ficando para a His-
tória como os principais arautos da expansão, deixando aos genoveses e vene-
zianos o comércio nos principais mercados europeus. No processo de transmi-
gração da cultura para o Ocidente, desde o Mediterrâneo ao Atlântico, as ilhas
foram o principal viveiro da afirmação e divulgação: Creta e Sicília no Mediter-
râneo, Madeira, Açores, Canárias, Cabo Verde e S. Tomé no Atlântico Oriental,
Santo Domingo, Cuba, Jamaica, Demerara (…) nas Antilhas.

A realidade sócio-económica, que serve de suporte ao avanço do açúcar no


espaço e no tempo, é diferenciada, sendo marcantes as singularidades e
mudanças no percurso do Pacífico/Índico para o Mediterrâneo/Atlântico.
Assim, no primeiro caso nunca assumiu uma posição dominante na economia
agrícola e de mercado, enquanto no segundo é patente o efeito dominador na
economia e sociedade em associação ao escravo, situação que começa no Medi-
terrâneo e se reforça e afirma em pleno no Atlântico.

A Madeira surge, nos alvores do século XV, como a primeira experiência de


ocupação em que se ensaiaram produtos, técnicas e estruturas institucionais.
Tudo isto foi, depois, utilizado, em larga escala, noutras ilhas, litoral africano e
americano. O arquipélago madeirense foi o centro de irradiação dos sustentácu-
los da nova sociedade e economia do mundo atlântico: primeiro os Açores,
depois os demais arquipélagos e regiões costeiras onde os portugueses aporta-
ram. Daqui resultou para a Madeira o papel fundamental de difusão das cultu-
ras existentes na Europa e que tinham valor mercantil ou pela necessidade para
assegurar a subsistência. Depois com a revelação de novos espaços do Atlântico
e Índico tivemos o retorno de outras culturas e produtos que vieram enriquecer
o cardápio europeu.

No traçado das rotas oceânicas situava-se o Mediterrâneo Atlântico com um


papel primordial na manutenção e apoio à navegação atlântica. As ilhas da
Madeira e Canárias surgiram nos séculos XV e XVI como entrepostos do comér-
cio no litoral africano, americano e asiático. Os portos principais da Madeira,
Gran Canaria, La Gomera, Hierro, Tenerife e Lanzarote animaram-se de forma
diversa com o apoio à navegação e comércio nas rotas da ida, enquanto nos
Açores, com as ilhas de Flores, Corvo, Terceira, e S. Miguel, foram a escala
necessária e fundamental da rota de retorno. A posição demarcada do Mediter-
râneo Atlântico no comércio e navegação atlântica fez com que as coroas penin-
sulares investissem aí todas as tarefas de apoio, defesa e controle do trato
comercial. As ilhas foram os bastiões avançados, suportes e os símbolos da
hegemonia peninsular no Atlântico. A disputa pela riqueza em movimento no
oceano fazia-se na área definida por elas e atraiu piratas e corsários ingleses,
franceses e holandeses, ávidos das riquezas em circulação. Uma das maiores
preocupações das coroas peninsulares foi a defesa das embarcações das investi-
das dos corsários europeus. A área definida pela Península Ibérica, Canárias e
Açores foi o principal foco de intervenção do corso europeu sobre os navios que
transportavam açúcar ou pastel ao velho continente.
Podemos definir para a História do Açúcar nas ilhas define-se por dois momen-
tos distintos. Os séculos XV a XVII em que as mesmas assumem um papel na
expansão da cultura e definição do mercado atlântico-europeu para o açúcar.
Depois de um hiato de quase duas centúrias a cultura retorna aos campos insu-
lares por condições diversas e em posição distinta. Assim, a segunda metade da
centúria oitocentista foi marcada pela dominância dos canaviais em algumas
das ilhas, assumindo na Madeira um protagonismo evidente. Apenas os Açores,
havia abandonado definitivamente a cana sacarina, apostando na ilha de São
Miguel noutro recurso, a beterraba, para produzir açúcar e álcool.

ILHAS COM E SEM AÇÚCAR. A rota do açúcar, na transmigração do Medi-


terrâneo para o Atlântico, tem na Madeira a principal escala. Foi na ilha que a
planta se adaptou ao novo ecossistema e deu mostras da elevada qualidade e
rendibilidade. Deste modo a quem quer que seja que se abalance a uma desco-
berta dos canaviais e do açúcar, na mais vetusta origem no século XV, tem obri-
gatoriamente que passar pela ilha. Aqui que se definiram os primeiros contor-
nos da realidade económico-social, que teve plena afirmação nas Antilhas e Bra-
sil. Aqui surgiram os primeiros contornos sociais (a escravatura), técnicos
(engenho de água) e político-económicos (trilogia rural) que materializaram a
civilização do açúcar. Por tudo isto é imprescindível uma análise da situação
insular, e de forma especial madeirense, caso estejamos interessados em definir,
exaustivamente, a história do açúcar no mundo atlântico.

Na Madeira a cultura confunde-se com a conjuntura de expansão europeia e


dos momentos de fulgor do arquipélago. A presença é multissecular e deixou
rastros ainda hoje evidentes na sociedade madeirense. É, entre todos os espaços
insulares, aquele onde os testemunhos presenciais são mais evidentes. Perdu-
ram alguns canaviais e três engenhos que apenas laboram para o fabrico do mel
e aguardente. A poncha e o bolo de mel são responsáveis por esta sobrevivência.
Dos séculos XV e XVI ficaram os imponentes monumentos, pintura e a ourive-
saria que os embelezou e que hoje jaz quase toda no Museu de Arte Sacra. Do
século XIX e do primeiro quartel da nossa centúria perduram ainda a maioria
dos engenhos da nova vaga de cultura dos canaviais. A cana diversificou-se no
uso industrial, sendo geradora do álcool, aguardente e, raras vezes, o açúcar.
Nos demais arquipélagos a cultura é ainda mais residual. Assim nas Canárias a
presença é apenas notada em Gran Canária e La Palma. Nos Açores desapare-
ceu para dar lugar à beterraba açucareira, enquanto em Cabo Verde subsiste em
algumas ilhas [Santiago, Santo Antão e S. Nicolau), por força do uso da aguar-
dente em algumas bebidas típicas, como o grog, bandoi e ponche 1 .

O açúcar é de todos os produtos que acompanharam a expansão europeia aque-


le que moldou, com maior relevo, o quotidiano das novas sociedades e econo-
mias que, em muitos casos, se afirmaram como resultado dele. A cana sacarina,
pelas especificidades de cultivo, especialização e morosidade do processo de
transformação da garapa em açúcar, implicou uma vivência particular, assente

1 João Lopes Filho, O Corpo e o Pão, Oeiras, 1997, 212.


num específico complexo sócio-cultural de vida e convivência humana. A cana-
de-açúcar é, ainda, entre todas as plantas domesticadas pelo Homem a que mais
implicações tiveram na História da Humanidade. Ainda hoje são evidentes as
transformações operadas na agricultura, técnica, química e siderurgia, por força
da cultura da cana sacarina, beterraba e da produção de açúcar, mel, aguarden-
te, álcool e rhum 2 . Foi no Atlântico que a cultura atingiu a plena afirmação eco-
nómica, assumindo posição dominante nas trocas. Fernand Braudel define de
modo claro a forma de intervenção e as mudanças provocadas pelo açúcar:
“Devastadora do antigo equilíbrio, a cana é tanto mais perigosa quanto é apoiada por
um capitalismo poderoso, que, no século XVI, Provem tanto de Itália, como de Lisboa ou
de Antuérpia, e ao qual ninguém consegue resistir. “ 3 Vitorino Magalhães Godinho
acrescenta que, “a génese do mundo atlântico está pois, em grande parte, ligada àquilo
a que Fernand Braudel chama muito apropriadamente dinâmica do açúcar.” 4

Na verdade, a cana sacarina começou por ser uma cultura do mundo insular, e
em todo o processo de expansão nos diversos espaços as ilhas foram importan-
tes áreas de aclimatação, mas foi nos continentes que adquiriu maior dimensão
e pujança. As grandes inovações relacionadas com a cultura e tecnologia do
açúcar aconteceram nas ilhas. A primeira muda de cana é originária das ilhas,
pois foi na ilha Papua da Nova Guiné que o homem iniciou o processo de
domesticação, mas hoje é conhecida mais pela expressão que tem nos espaços
continentais do que no mundo insular. Cuba, por exemplo, que durante muito
tempo ocupou uma posição cimeira na produção açucareira, perdeu protago-
nismo.

No processo de transmigração para Ocidente as ilhas mediterrânicas, de Chipre


e Sicília, foram destacados entrepostos de alargamento da cultura ao mundo
ocidental e que, segundo a tradição as primeiras mudas de cana terão chegado à
Madeira a partir da Sicília que. Depois, foi a expansão no Atlântico com as ilhas
a serviram de novo como anteparo. Não fica por aqui o protagonismo das ilhas,
pois aos insulares para além da dimensão divulgadora da cultura foi-lhes ainda
atribuída a tarefa de inventar novas formas e técnicas de transformação do pro-
duto adequadas à dimensão da área cultivada. Acresce ainda o papel recente da
Madeira na adaptação da tecnologia, usada na Europa para a transformação da
beterraba em açúcar, ao fabrico do açúcar de cana sacarina.

O açúcar é, entre todos os produtos com valor comercial, o que foi alvo de
maiores inovações tecnológicas para o fabrico, por força da pressão do mercado
e do ciclo vegetativo da cultura. No caso do vinho a tecnologia pouco ou nada
mudou desde o tempo dos Romanos. Várias condicionantes favoreceram a
2 Existe um conjunto variado de textos que valoriza o papel da cana como motor do progresso em vários sectores: Luiz

del Castilho, A Fabricação do Assucar de Canna. Notas e formulas…, Rio de Janeiro, 1893, p.5; P. Horsin-Déon, Le Sucre et
L’Industrie sucrière, Paris, 1894, p.5 ; D. Sidersky, Manuel du Chimiste de Sucrerie, Paris, 1909 ; IDEM, Aide-Mémoire de
Sucrerie, Paris, 1936, pp.3 ; F. A. Lopez Ferrer, Fabricación de Azúcar de Caña Mieles y Siropes Invertidos com su Control
Técnico-Quimico, Habana, 1948, p.V; IDEM, Maquinaria y aparatos en los Ingenios de Azucar de Caña, La Habana, 1949 ; A.
C. Barnes, Agriculture of the Sugar-Cane, Londres, 1954, p. IX ; Andrew Van Hook, Sugar its Production, Technology and
uses, N. York, 1969, p.III .
3 O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico, Lisboa, 1983 [1ª edição em 1966], p.178
4 Mito e Mercadoria Utopia e Prática de Navegar. Séculos XIII-XVIII, Lisboa, 1990, p.478
necessidade de permanente actualização da tecnologia de fabrico do açúcar,
situação que se tornou mais clara no século XVIII com a concorrência da beter-
raba. Mesmo assim ainda hoje persistem em alguns recantos do Mundo, na
China, Índia ou Brasil, onde a tecnologia da revolução industrial ainda não
entrou.

O fabrico do açúcar está limitado pela situação e ciclo vegetativo da planta. A


cana sacarina tem um período útil de vida em que a percentagem de sacarose
era mais elevada 5 . A cana estava pronta para ser colhida e a partir daqui um dia
que passasse era uma perda para o produto. Acresce que depois de cortada tem
pouco mais de 48 horas para ser moída e cozida, pois caso contrário começa a
perder sacarose e inicia o processo de fermentação. Daqui resulta a necessidade
de acelerar o processo de fabrico do açúcar através de constantes inovações tec-
nológicas que cobrem o processo de corte esmagamento e cozedura 6 . A isto jun-
ta-se o aumento da mão-de-obra, que se faz à custa de escravos africanos. A
cana-de-açúcar não está na origem da escravidão africana mas no processo de
afirmação a partir da Madeira. Enquanto a cultura se fazia em pequenas parce-
las a maior parte das questões não se colocavam, mas quando se avançou para
uma produção em larga escala houve necessidade de encontrar soluções capa-
zes de resolver a situação, através da aceleração do processo de moenda e fabri-
co. A viragem aconteceu a partir de meados do século XV na Madeira e deverá
ter implicado mudanças radicais na tecnologia usada e na afirmação da escrava-
tura dos indígenas das Canárias e negros da Costa da Guiné. É por isso que se
assinala a partir da Madeira importantes inovações tecnológicas no sistema de
moenda da cana com a generalização do sistema de cilindros.

A história tecnológica evidencia que a expansão europeia condicionou a divul-


gação de técnicas e permitiu a invenção de novas que contribuíram para revo-
lucionar a economia mundial. Os homens que circularam no espaço atlântico
foram portadores de uma cultura tecnológica que divulgaram nos quatro cantos
e adaptaram às condições dos espaços de povoamento agrícola. Aos madeiren-
ses foi atribuída uma missão especial nos primórdios do processo.

Na Madeira, um dos aspectos mais evidente, da revolução tecnológica iniciada


no século XV prende-se com a capacidade do europeu em adaptar as técnicas
de transformação conhecidas a circunstâncias e às exigências de culturas e pro-
dutos tão exigentes como a cana e o açúcar. O tributo foi evidente. Ao vinho foi-
se buscar a prensa, ao azeite e aos cereais a mó de pedra. Por outro lado esta-
mos perante uma permuta constante de processos tecnológicos e formas de
aproveitamento das diversas fontes de energia. A tracção animal, a força motriz
do vento e da água foram usadas em simultâneo com os cereais e cana sacarina.
As mudanças ocorridas a partir de finais do século XVIII, com a plena afirma-
ção da máquina a vapor, conduziram a uma transformação radical do complexo
açucareira que assume a dimensão espacial de uma fábrica, onde todas as ope-
5Cf. J. de Laguarrique de Survilliers, Manuel de Sucrerie de Cannes, Paris, 1932, pp. 29.
6Cf. Nilo Cairo, O Livro da Canna de Assucar, Curitiba, 1924, pp. 85-86, 109; A. Bernard, A Evolução das Moendas de
Canas, Brasil Açucareiro, XXXVIII, 2, 1951, pp. 73, 76.
rações se executam em série apenas numa planta. A revolução industrial legou-
nos a fábrica, fez aparecer o laboratório, uma peça chave no fabrico do açúcar, e
obrigou a uma especialização dos técnicos envolvidos. O mestre de engenho dá
lugar ao engenheiro químico. Paulatinamente o processo de transformação da
cana sacarina em açúcar retirou espaço à presença de mão-de-obra escravo,
fazendo-a substituir por emigrantes europeus, indianos e chineses.

Até ao advento do açúcar de beterraba em princípios do século XIX a tecnologia


de moenda e fabrico do açúcar não sofreu muitas modificações. Ao nível da
moagem da cana houve necessidade de compatibilizar as estruturas com a
expansão da área e o volume de cana moída, avançando-se assim dos ancestrais
sistemas para a adaptação dos cilindros. Entre os séculos XV e XVII as inova-
ções mais significativas ocorrem aqui. Os cilindros passam a dominar todos os
sistemas, de tracção animal, humana, vento e água, destronando o pilão, o
almofariz e a mó. Do simples mecanismo de cilindros duplos horizontais, evo-
lui-se para os verticais, que no século XVII passam a ser de três, o que permite
uma maior capacidade de moenda e aproveitamento do suco da cana. Com os
dois cilindros poder-se-á aproveitar apenas 20% do suco da cana, enquanto com
três até 35%. As técnicas experimentadas na moagem vão no sentido e um
maior aproveitamento do suco disponível no bagaço da cana. A situação de
Cuba na década de setenta do século XIX pode ser elucidativa da realidade 7 .

Uma maior capacidade na moenda implica maior disponibilidade de garapa a


ser processada para se poder dispor do melado ou do açúcar. Uma situação
empurra a outra conduzindo a soluções cada vez mais avançadas. As dificulda-
des com a obtenção de lenhas ou os elevados custos do transporte até ao local
do engenho conduzem a soluções que paulatinamente vão sendo adoptadas por
todos. Primeiro reaproveita-se o bagaço da cana e depois através de um meca-
nismo de fornalha única consegue-se alimentar as cinco caldeiras de cozimento.
O sistema ficou conhecido por trem jamaicano, por, segundo alguns, ter tido aí
origem, mas na verdade temos informação do seu uso, não tão apurado na
Madeira e Canárias, no século XVI. Em 1530 Giulio Landi descreve o sistema de
fabrico de açúcar com cinco caldeiras agrupadas: Os lugares onde com enorme
actividade e habilidade se fabrica o açúcar estão em grandes herdades, e o processo é o
seguinte: primeiramente, depois que as canas cortadas foram levadas para os lugares
acima referidos, põem-nas debaixo de uma mó movida a água, a qual, triturando e esma-
gando as canas, extrai-lhe todo o suco. Aqui há cinco vasos postos por ordem, para
cada um dos quais o suco saído das canas passa um certo tempo em ebulição, depois,
passando para os outros casos, com fogo brando, dão-lhe com habilidade a cozedura, de
modo que chegue a espessura tal que, posto depois em formas de barro, possa endurecer.
A espuma que se forma ao cozer o açúcar, deita-se em barricas, excepto a que sai da pri-
meira cozedura, porque esta se deita fora; mas a outra, que se conserva, é muito seme-
lhante ao mel" 8 . A situação surge também nas Canárias no século XVI. Aqui as
caldeiras reuniam-se em grupos de três ou cinco, sendo servidas por distintas

7 João José Carneiro da Silva, Estudos Agrícolas, Rio de Janeiro, 1872, p.94
8 António Aragão. A Madeira Vista por Estrangeiros.1455-1700, Funchal, 1981, 85-86.
fornalhas ou apenas uma. No engenho de Cristóbal Garcia del Castilho em Tel-
de refere-se que “as fornallas que son todas juntas en el…” 9

Jamaica esteve na frente das inovações da tecnologia açucareira a partir da


segunda metade do século XVIII. Os ingleses deram o passo definitivo para a
mudança radical através da introdução da máquina a vapor. O primeiro enge-
nho horizontal de tipo moderno foi desenhado em 1754 por John Smeaton na
Jamaica, recebendo a partir de 1770 o impulso da máquina a vapor. A nova tec-
nologia, que se aperfeiçoou com o andar dos tempos, poderá acoplar até 18
cilindros em sistema de tambor, tornando mais rápida e útil a moenda. Com
cinco cilindros o aproveitamento do suco pode ir até 90%, enquanto que com os
tambores de 18 cilindros quase se atinge a exaustão com 98%. Por outro lado
nos engenhos tradicionais a média de moenda por 24 horas não ultrapassava as
125 toneladas, enquanto que com o novo sistema a vapor começa por atingir
mais de três mil toneladas de cana.

Segue-se o processo de fabrico do açúcar que se distribui por quatro momentos:


purificação da garapa, evaporação da água e, finalmente a clarificação e cristali-
zação. Até aos inícios do século XIX o processo poderia durar de 50 a 60 dias,
mas as aportações tecnológicas, conduziram a que o mesmo se passasse a fazer
em apenas um mês em 1830 e apenas 16 horas em 1860, através do novo sistema
de centrifugação. As primeiras mudanças ocorrem ao nível do processo de clari-
ficação. Em 1805 Guillon, refinador do açúcar em New Orleans preconiza o uso
do carvão para purga xarope, em 1812 Edward Charles Howard constrói a pri-
meira caldeira de vacuum, conhecida como “howard saccharine evaporator”, que
veio revolucionar o sistema de fabrico do açúcar. Três anos depois surge em
Inglaterra o sistema de filtros de Taylor. O evaporador de múltiplo efeito foi
inventado em 1830 por Norbert Rillius [1806-1894] de New Orleans, sendo usa-
da nos primeiros engenhos desde 1834. Deste modo torna-se mais fácil a retira-
da de cerca de 85% de água que existe no suco da cana e um maior aproveita-
mento do açúcar. As novidades na clarificação e cristalização ocorrem num
segundo momento. Assim, em 1844 o alemão Schottler aplicou pela primeira
vez a força centrífuga na separação do melaço do açúcar branco, mas foi Soyrig
quem construiu em 1849 a primeira máquina de centrifugação, que abriu o
caminho para o fabrico do primeiro açúcar granulado, em 1859. Este sistema
vinha sendo utilizado desde 1843 na indústria têxtil. Os equipamentos contri-
buíram para acelerar o processo de purga do açúcar permitindo que se passasse
do moroso processo de quase dois meses para apenas 16 horas e hoje em apenas
alguns segundos.

A segunda metade do século XIX foi o momento da aposta definitiva na enge-


nharia açucareira, contribuindo para importantes inovações. O mercado ociden-
tal foi inundado de açúcar de cana e beterraba. O desenvolvimento da indústria
de construção de equipamentos para o fabrico de açúcar, seja de cana ou de
beterraba, aconteceu em países onde esta assumia uma posição significativa na

9 Manuel Lobo, El Ingenio en Canárias, in História e Tecnologia do Açúcar, Funchal, 2000, p.110-112
economia. Deste modo a França e a Inglaterra assumiram a posição pioneira no
desenvolvimento da tecnologia. Os Franceses detinham importantes colónias
açucareiras nas Antilhas, enquanto os Alemãs apostavam forte em Java. Os
ingleses surgem por força da colonial nas Antilhas e Índia e os Estados Unidos
da América com New Orleans e, depois o Havai. Cuba foi um dos espaços açu-
careiros onde mais se inovou em termos tecnológicos. As primeiras décadas do
século XIX foram de plena afirmação da ilha, que se transformou em modelo
para a indústria açucareira.

Em França tudo começou com o químico Charles Derosne (1779-1846) que mon-
tou em 1812 uma fábrica de construção de aparelhos de destilação continua.
Nesta empresa passou a trabalhar em 1824 J. F. Cail na qualidade de operário
de carvão, que em 4 de Março de 1836 passa à condição de associado. A socie-
dade Derosne et Cail manteve-se até 1850, altura em que passou a chamar-se J. F.
Cail et Cie, que em 1861 passou a cooperar com a nova Cie Fives-Lille, especiali-
zada no fabrico de equipamentos para fábricas de açúcar e caminhos-de-ferro.
Os equipamentos, saídos da empresa Cail, chegaram às colónias holandesas,
espanholas, inglesas e francesas, México, Rússia, Áustria, Holanda, Bélgica e
Egipto. À indústria francesa juntaram-se outros complexos industriais na Euro-
pa: Inglaterra (Glasgow, Birmingham, Nottingham, London, Manchester,
Derby), Holanda (Breda, Roterdão, Schiedam, Ultrecht, Delft, Hengelo, Ams-
terdam), Estados Unidos da América (Oil City, Ohio, Denver, New Jersey),
Alemanha (Magdeburgo, Zweibruecken, Halle, Dusseldorf, Sangerhausen,
Ratingen, Halle), Bélgica (Bruxelas, Tirlemont).

Na Inglaterra foi desde meados do século XVII um dos mais importantes cen-
tros de refinação de açúcar na Europa. As refinarias proliferam nas cidades de
nas cidades de Bristol, Essex, Greenock, Lancaster, Liverpool e Southampton 10 .
Isto justifica o desenvolvimento tecnológico. Aqui, merece destaque a iniciativa
de Mirless Watson. A abertura às inovações tecnológicas, como forma de tornar
concorrencial o produto, acarreta algumas consequências para a indústria ao
nível nacional. Os investimentos são vultuosos e, por isso mesmo só se tornam
possíveis mediante incentivos do Estado. A inovação e recuperação da capaci-
dade concorrencial só se tornaram possível à custa da concentração. Tanto em
Cuba como no Brasil a década de oitenta foi marcada pelos grandes engenhos
centrais.

AS ILHAS DO AÇÚCAR: ATLANTICO E CARIBE. A implantação de cana-


viais não deriva apenas da disponibilidade de uma reserva florestal e de água
abundante para o regadio e laboração dos engenhos, juntando-se outras condi-
ções oferecidas pelo clima e orografia. As ilhas da América Central e do Golfo
da Guiné ofereciam melhores condições que a Madeira ou as Canárias. Deste
modo em ambos os arquipélagos macaronésicos a orografia estabeleceu um tra-
vão à afirmação da cultura extensiva dos canaviais. De acordo com estas condi-

10 . John M. Hutcheson, notes on the Sugar Industry of the United Kingdom, Greenock, 1901; Frank Lewis, Essex and sugar,

1976.
ções a produção madeirense dos séculos XV e XVI nunca ultrapassou as 1584,7
toneladas, atingidas em 1510. Apenas no século XX, com a expansão dos cana-
viais, de novo a toda a ilha, se conseguiu suplantar este valor, tendo-se alcança-
do em 1916 as 4943,6 toneladas. O incremento da produção açucareira foi tra-
vado nos anos imediatos por meio dos decretos de 1934-1935 e 1937 regulamen-
tadores da área de produção.

Em S. Tomé os canaviais tiveram melhores condições para se afirmarem e


suplantarem a produção madeirense. Na primeira metade do século dezasseis a
ilha, com uma extensão de 857 m2, (mais que a Madeira com 728) produzia o
dobro, cifrando-se em 950 toneladas. O clima, o solo permitiram que a produ-
ção de açúcar em S. Tomé cedo suplantasse a madeirense. As canas cresciam
três vezes mais que na Madeira e faziam-se duas colheitas.

O conjunto das 21 ilhas produtoras de açúcar no espaço atlântico oferece um


total de 271.993 m2, dos quais oferece apenas uma ínfima parcela dedicada à
agricultura. Para além da disponibilidade do espaço agrícola adequado, torna-
va-se necessário a disponibilidade de uma reserva silvícola, sem a qual os enge-
nhos não podiam laborar. Na Madeira a situação era paradigmática. A superfí-
cie cultivada pouco ultrapassa um terço da área da ilha, sendo o restante espaço
constituído pela reserva silvícola.

A situação das ilhas do outro lado do oceano é também diferente da ma-


deirense. As condições semelhantes às encontradas em S. Tomé fizeram com
que os canaviais se afirmassem aí, a partir do século dezassete. Deste conjunto
de ilhas apenas um reduzido número (S. Cristóvão, Nevis, Antigua, Montserrat)
se assemelha à Madeira, em termos orográficos. Aí deparámo-nos com ilhas de
superfície menor que a Madeira (Antigua, Barbados, Nevis, St. Vicent, Trini-
dad) mas com uma produção açucareira superior. Facto evidente sucede com as
ilhas de Trinidad, Antigua e Barbados, que dispondo de uma reduzida superfí-
cie conseguem produzir mais açúcar que a Madeira. A ilha de Trinidad com a-
penas 301 m2 produziu entre 1850 e 1940 uma média anual de 57862 toneladas
de açúcar, enquanto a Madeira se ficou pelas 1659 toneladas. Em Montserrat e
Nevis, com uma superfície total quase igual à da área ocupada pelos canaviais
na Madeira, conseguem atingir valores de produção semelhantes.

Diversa é também a estrutura fundiária que serviu de base à cultura nos distin-
tos espaços insulares. Enquanto na Madeira a orografia e o sistema de posse da
terra definiram a plena afirmação da pequena e média propriedade, em S. Tomé
ou nas Antilhas estávamos perante a grande propriedade, activada pela grande
força de trabalho escrava. Em Barbados, entre 1650 e 1834, 84% dos proprietá-
rios de canaviais era detentor de mais de cinquenta escravos, enquanto na
Madeira apenas 2% era possuidor de mais de 10 escravos. Por outro lado a área
dos canaviais assumida por cada proprietário era também elevada, pois 64%
destes possuíam canaviais cuja extensão ia de 40 a 121 hectares, situação que es-
tava muito aquém da assumida pelos produtores madeirenses. Na Madeira
apenas um produtor se aproxima deste valor (Pedro Gonçalves com uma área
de 36,9 hectares), sendo os demais com valores inferiores. Os lavradores com
mais de 22 toneladas de produção e com uma área de terreno superior a 14 hec-
tares representam em 1494 apenas 1,3% e 5% para o período de 1509 a 1537.

AS ILHAS: ALGUNS DADOS PARA UMA VISÃO COMPARADA. A geo-


grafia é determinante na função económica a atribuir aos espaços humanizados.
No mundo insular atlântico o arquipélago da Madeira assume uma posição par-
ticular, fruto da quase total ausência da dimensão arquipelágica. Na verdade,
apenas, duas ilhas que mereceram ocupação humana mas, uma pelas dificulda-
des de abastecimento de água, o Porto Santo, não permitiu a definição de uma
situação sócio-económica assente na complementaridade dos espaços. Enquan-
to nos Açores, Cabo Verde e Canárias, devido à existência de diversas ilhas,
tivemos formas de exploração agrícola assente na complementaridade, no caso
madeirense esta dever-se-á buscar dentro do espaço da ilha ou nos arquipélagos
vizinhos.

A par disso a Madeira apresenta-se em termos orográficos com múltiplas con-


dições adversas ao avanço da exploração agrícola do solo. A configuração pira-
midal, dominada por uma costa alta, de quando em vez cortada pelas bacias
das ribeiras, fruto da erosão provocada pela força das ribeiras, torna o acesso
difícil e limita as possibilidades de agricultura limitadas. A costa elevada
condiciona as possibilidades de navegação costeira, que, mesmo assim, à déca-
da de cinquenta do século XX, foi o meio privilegiado de contacto entre as
diversas localidades. A orografia dificultava o transporte terrestre e apenas o
automóvel do século XX conseguiu vencer os veleiros e vapores costeiros. Por
tudo isto o processo de povoamento foi condicionado. A falta de água levou ao
quase abandono do Porto Santo e na Madeira as dificuldades de penetração no
interior conduziram a que tivéssemos um povoamento costeiro, assente nas cla-
reiras abertas pelas ribeiras, áreas de fácil acesso, mas também férteis, por força
das aluviões de terras trazidas pela água. O acesso a norte, muito limitado por
terra e mar, conduziu a que a área tardasse na ocupação e valorização económi-
ca em relação ao que sucedeu na vertente sul.

A configuração geográfica condiciona ainda a diversidade de microclimas, na


Madeira, como nas Canárias, o que conduz à valorização, para o caso madei-
rense, das chamadas fajãs ou a possibilidade de escalonamento das culturas em
altitude, procurando aproveitar as condições climáticas. Estas cambiantes per-
mitem que dentro do espaço da ilha se possa estabelecer uma complementari-
dade assente nas culturas de subsistência e mercado externo. A maioria das
ilhas com uma área agrícola bastante limitada obrigaram a uma exploração
intensiva do solo, provocando problemas na exploração agrícola com o esgota-
mento do solo a obrigar ao sistema de pousio ou rotação de culturas, o que limi-
tavam as possibilidades de afirmação de uma produção agrícola em larga escala
e capaz de concorrer em pé de igualdade no mercado. As possibilidades de
sucesso de uma cultura não dependiam tanto das condições da ilha mas do
mercado. Enquanto a Madeira produzia açúcar de forma isolada os madeiren-
ses conseguiram elevada riqueza, mas quando tivemos de competir com outros
mercados perdemos capacidade de intervenção por força da limitação do espa-
ço, das condicionantes atrás anunciadas e da menor carga fiscal sobre os lavra-
dores nas ilhas Canárias 11 .

A ocupação de um novo espaço obedece a determinados requisitos. Primeiro


deve propiciar condições para que sejam garantidas as condições de sobrevi-
vência das populações. Assim para além da disponibilidade de água deve apre-
sentar um solo adequado ao cultivo dos produtos básicos da subsistência, que
no caso dos europeus do século XV assentava nos cereais e na vinha. Estas exi-
gências são ainda mais importantes quando se fala de ilhas isoladas no solo,
onde as condições de acesso a outros espaços estão muito condicionadas por
força do nível de desenvolvimento da navegação à vela.

Na Madeira o processo de povoamento foi muito rápido por força da inexistên-


cia de populações e a necessidade de ocupação deste espaço para assegurar o
controlo do espaço atlântico. Ao longo dos últimos quinhentos anos a riqueza
dos madeirenses foi gerada por força do seu esforço. Um solo de recursos limi-
tados e de difícil domínio foi o pesado fardo no quotidiano que chegou até aos
nossos dias. Sucede que os avanços do povoamento e da população conduziram
a inúmeros problemas. Os recursos da terra, por serem mal distribuídos e limi-
tados não se ajustavam Ao crescimento populacional, obrigando desde o início
à abertura de válvulas de escape com a emigração, que funcionam ao longo do
tempo nos diversos momentos de crise. Até meados do século XIX podemos a
afirmar que a agricultura foi dominada por um permanente afrontamento entre
os interesses da subsistência e aquilo que demandava o mercado. Esta realidade
é testemunhada de forma clara em 1530 por Giulio Landi: A ilha produziria maior
quantidade se semeasse. Mas a ambição das riquezas faz com que os habitantes descui-
dando-se...se dediquem apenas ao fabrico do açúcar, pois deste tiram maior proveito." 12
A precariedade da economia madeirense não deriva apenas da posição de
dependente em relação ao velho continente, que consumia os produtos e a abas-
tecia do que necessitava, mas também das diminutas possibilidades de usufruto
dos 741 Km2 de superfície da ilha.

Õ processo económico, quando assume uma posição de sucesso, mercê da


inserção no mercado mundial, provoca obrigatoriamente a uma forma de
exploração intensiva que provoca inevitavelmente o desequilíbrio entre aquilo
que o quadro natural possibilita e o Homem exige. Na Madeira a exploração
económica fez-se de forma intensiva e de acordo com as solicitações do merca-
do exterior, o que contribuiu ainda mais para agravar o afrontamento entre o
Homem e o quadro natural, arrastando os espaços para uma situação de total
deterioração. O primeiro testemunho surge já em meados do século XV com

11 Na Madeira os encargos sobre o açúcar chegaram a 25% enquanto nas Canárias não ultrapassava os 4,5%. A. Bernal e

a. M. Macias, Factor Institucional y Crecimiento Económico. El Ejemplo de Canárias, Congresso Internacional Las Econo-
mias Insulares en Perspectiva História, La Laguna, 2005.
12
António Aragão, A Madeira Vista por Estrangeiros, Funchal, 1981, p.84
Cadamosto: "As suas terras costumavam dar a princípio, sessenta por um, o que pre-
sentemente está reduzido a trinta e quarenta, porque se vão deteriorando dia a dia " 13 . A
situação resulta da solicitação para a exploração intensiva por obrigação geral
dos madeirenses em abastecer as cidades do reino e praças africanas de cereal.
O cereal, que no início da ocupação do solo havia sido a cultura da prosperida-
de, rapidamente cedeu lugar aos canaviais, que em pouco tempo dominaram o
espaço agrícola. A indústria para o fabrico do açúcar exigiu muito do quadro
natural, lançando a ilha para um processo de desflorestação, de consequências
imprevisíveis, e o solo agrícola para a quase total exaustão. A situação é teste-
munhada em 1689 John Ovington: "A fertilidade da ilha decaiu muito relativamente
ao período das primeiras culturas. A cultura sem descanso dos terrenos tornou os fracos
espaços em muitos lugares e de tal modo que os abandonam periodicamente, tendo de
ficar de poisio três ou quatro anos. Depois desse tempo, se não crescer nenhuma giesta
como sinal de fertilidade futura, abandonam-nos, com estéreis. A aridez de muitas das
suas terras atribuem-na simploriamente ao aumento dos seus pecados".

O quadro particular da Madeira encontra situações similares em outras ilhas e


arquipélagos. Mas para podermos entendermos melhor a situação do impacto
provocado pelos canaviais e açúcar no ecossistema de cada ilha deveremos ter
em conta a dimensão de cada uma e as áreas de floresta e arável disponíveis. O
Quadro a seguir apresenta alguns elementos que permitem um melhor enqua-
dramento da realidade açucareira e medir a dimensão e velocidade do impacto
ecológico dos canaviais.

A Madeira é entre todos os arquipélagos referenciados o que apresenta um


espaço agrícola muito condicionado pelas condições orográficas. Tenha-se em
conta que a superfície da ilha é de 300.000 Ha, em que a área cultivada terá che-
gado aos 30.000 Ha e hoje é penas 9.000 Ha 14 . Por outro lado um quarto da
superfície situa-se acima dos 1.000 m de altitude e cerca de 11% em declives
inferiores a 16%. Hoje, a área de floresta laurisilva, que o século XV ocupava a
totalidade do espaço da ilha, limita-se a 15.000 Ha. A última situação veio a
gerar um sistema de culturas por andares, situando-se a cana-de-açúcar no
patamar até 200 metros de altitude 15 . Situação semelhante sucede nalgumas
ilhas das Canárias 16 .

Vista a superfície de cada um dos espaços insulares podemos de imediato con-


cluir pela maior dificuldade de algumas das ilhas em conseguir assegurar um

13
Ibidem, pp.36-37
14 O eng. Amaro da Costa fixou em 22.500 Ha a área cultivável e em 50.300 Ha a de florestas e terrenos incultos, mas o
Eng.o. Júlio Augusto de Leiria refere 30.750 Ha, e o Engº Mota Prego em 30.000 Ha. Cf. Ramon Honorato Correa Rodri-
gues, Questões Económicas, vol. I, Funchal, 1953, p.34.
15 Cf. Orlando Ribeiro, A Ilha da Madeira até Meados do Século XIX. Estudo Geográfico, Lisboa, 1985, cap.III; José Manuel

Azevedo e Silva, A Madeira e a Construção do Mundo Atlântico (séculos XV-XVII), Funchal, 1995, vol. I, pp.56-65.
16Agustin Naranjo Cigala e outros, Características Bioclimáticas del Território Antiguamente Cultivado de Caña de

Azúcar en las Islas Canarias, in Açúcar e Quotidiano, Funchal, 2004, pp.271-299; Octávio Rodríguez Delgado, Evolución y
Aprovechamientos de la Vegetación Canaria, Derivados del Cultivo de la Caña de Azúcar, in Açúcar e Quotidiano, Fun-
chal, 2004, pp.283-302.
equilíbrio entre a área dedicada aos canaviais e a disponibilidades de recursos
florestais.
AÇÚCAR E FLORESTA

Área florestal
Produção
Arquipélago Lenha
de açúcar
(ilhas) toneladas Área % em
arrobas
cortada relação
em ha ao total
AÇORES 2.000 3 0,01
(Terceira, S. Miguel)
CABO VERDE 4.000 6 0,03
(Boavista, São Nicolau, Santo Antão e Santiago)
CANÁRIAS 320.000 4.800 24,00
(Gran Canaria, Tenerife, La Gomera, La Palma)
MADEIRA 144.000 2.160 10,80
(Madeira)
S. TOMÉ e PRÍNCIPE 250.000 3.750 18,75
(S. Tomé)
SICILIA 3.030 45 0,22
CRETA
CHIPRE

A cultura dos canaviais divulgou-se no espaço Atlântico a partir dos arquipéla-


gos do Atlântico Oriental. Começou na Madeira, donde passou aos Açores,
Canárias, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Todavia não mereceu em todos a
mesma importância, podendo-se definir apenas como ilhas do açúcar as da
Madeira, Gran Canária, Tenerife, La Palma, La Gomera e São Tomé. Nos Açores
e em Cabo Verde a presença foi pouco significativa no século XVI.

MADEIRA. A cana-de-açúcar na sua primeira experiência além Europa


demonstrou as possibilidades de rápido desenvolvimento fora do habitat medi-
terrânico. Gaspar Frutuoso testenunha isso mesmo ao referir que "esta planta
multiplicou de maneira na terra, que he o assucar della o melhor que agora se sabe no
mundo, o qual com o beneficio que se lhe faz tem enriquecido muitos mercadores foras-
teiros e boa parte dos moradores da terra" 17 . Tal evidência catalizou as atenções do
capital estrangeiro e nacional que apostou no crescimento e promoção, pois só
assim se poderá compreender o rápido arranque da mesma. Esta que, nos pri-
mórdios da ocupação do solo insular, se apresentava como uma cultura subsi-
diária, passou de imediato a cultura e produto dominante, situação que mante-
ve por pouco tempo.

Na Madeira a cana sacarina, usufruindo do apoio e protecção do senhorio e


coroa, conquista o espaço ocupado pelas searas, atingindo todo o solo arável da
ilha em duas áreas: a vertente meridional (de Machico à Calheta), com um clima
quente e abrigada dos alíseos, onde os canaviais atingem 400 m de altitude,
dominado pelas plantações da capitania de Machico (Porto da Cruz e Faial até
Santana), solo em que as condições mesológicas não permitem a sua cultura
além dos 200 metros numa produção idêntica à primeira área. Deste modo a
capitania do Funchal agregava no seu perímetro as melhores terras para a cul-
tura da cana-de-açúcar, ocupando a quase totalidade do espaço da vertente

17 Ob.cit., p.113.
meridional, restando para Machico apenas uma ínfima parcela área e todo um
vasto espaço acidentado impróprio para a cultura.

Criadas as condições a nível interno por meio do incentivo ao investimento de


capitais na cultura da cana-de-açúcar e comércio de seus derivados, do apoio do
senhorio, da coroa e da administração local e central, a cana estava em condi-
ções de prosperar e de se tornar, por algum tempo, no produto dominante da
economia madeirense. O incentivo externo do mercado mediterrânico e nórdico
aceleraram este processo expansionista. Em meados do século XV os canaviais
foram motivo de deslubramento para Cadamosto e Zurara. O primeiro refere
que os açúcares "deram muita prova", enquanto o segundo dava conta dos "vales
todos cheios de açúcar de que aspergiam muito pelo mundo" 18 .

A fase ascendente, que poderá situar-se entre 1450 e 1506, não obstante a situa-
ção deprecionária de 1497-1499, é marcada por um crescimento acelerado. Esta
forte aceleração do ritmo de crescimento nos primeiros anos do século XVI irá
marcar o máximo, atingindo em 1506, bem como o rápido declínio nos anos
imediatos. Note-se que apenas em quatro anos se atingiu valor inferior ao do
início do século. A situação agrava-se nas duas centúrias seguintes. Mas, a par-
tir de 1521 a tendência descendente é global e marcante, de modo que a produ-
ção do fim do primeiro quartel do século situava-se a um nível pouco superior
ao registado em 1470. Na década de trinta consumava-se em pleno a crise da
economia açucareira e o ilhéu viu-se aos poucos na necessidade de abandonar
os canaviais e de os substituir pelos vinhedos. Giulio Landi, que na década de
trinta visitou a ilha, refere que os madeirenses, levados pela ambição da riqueza
se dedicam "apenas ao fabrico do açúcar, pois deste tiram maiores proventos" 19 .

A historiografia tem apresentado múltiplas explicações da crise assentes fun-


damentalmente na actuação de factores externos. Fernando Jasmins Pereira com
o seu estudo sobre Açúcar Madeirense contraria esta opinião definindo a crise
açucareira madeirense como resultado das condições ecológicas e sócio-
económicas da ilha: "...a decadência da produção madeirense é, primordialmente,
motivada por um empobrecimento dos solos que, dada a limitação da superfície aprovei-
tável na cultura, vai reduzindo inexoravelmente a capacidade produtiva". Deste modo
a crise da economia açucareira madeirense não é apenas resultado da concor-
rência do açúcar das Canárias, Brasil, Antilhas e S. Tomé mas deriva, acima de
tudo, da conjugação de vários factores de ordem interna: a carência de adubos,
a desafeição do solo à cultura e as alterações climáticas. A concorrência do açú-
car das restantes áreas produtoras do Atlântico, bem como a peste (em 1526) e a
falta de mão-de-obra apenas vieram agravar a situação de queda. A tudo isto
acresce em finais do século os efeitos do bicho sobre os canaviais, como é teste-
munhado para os anos de 1593 e 1602. O último quartel do século foi o momen-
to de viragem para outras culturas de maior rendibilidade, como a vinha. A
documentação testemunha a mudança. Em 1571 Jorge Vaz, de Câmara de

18 António ARAGÃO, A Madeira Vista por Estrangeiros, Funchal, 1981, p.37; Crónica de Guiné, Porto, 1973, cap.II, p.17.
19 António ARAGÃO, ob.cit.p.86.
Lobos, declara em testamento um chão que "sempre andou de canas e agora mando
que se ponha de mallvazia para dar mais proveito...". Depois, em 1583 Álvaro Vieira
vende a Diogo Pires no Caniço um serrado que fora de canas "e agora anda de
pão" 20 .

Não é fácil estabelecer o número exacto de engenhos que laboraram nas ilhas.
As informações disponíveis são, em muitos dos casos, díspares. Assim, para a
Madeira em 1494 são referenciados apenas 14 engenhos, quando noutro docu-
mento de 1493 se dava conta da existência de 80 mestres de açúcar. Note-se
ainda que Edmund von Lippmann 21 refere para o Funchal 150 engenhos no iní-
cio do século XVI, número que não se coaduna com os valores razoáveis para a
extensão arável da ilha e a produção dos canaviais. Depois, em finais do século
XVI, Gaspar Frutuoso refere-nos 34 engenhos, sendo nove na capitania de
Machico e os restantes na do Funchal 22 . No século dezassete o número de enge-
nhos era reduzido. Assim, em 1602, Pyrard de Laval 23 refere a existência de 7 a
8 engenhos em laboração.

AÇORES. As primeiras socas de cana deverão ter chegado aos Açores a partir
de 1474 por mão de Rui Gonçalves da Câmara, filho do capitão do Funchal,
João Gonçalves Zarco, que na mesma data adquiriu a capitania da ilha de S.
Miguel e se instalou em Vila Franca com a sua família. Os canaviais chegaram
às ilhas de Santa Maria, S. Miguel, Terceira e Faial, mas só temos notícia da
produção para os anos de 1502 e 1510 em que os valores não ultrapassaram um
terço da produção madeirense 24 .

CANÁRIAS. As Canárias são apontadas como uma das áreas concorrentes


da Madeira, sendo o facto mais significativo de terem sido os próprios madei-
renses a promovê-la, estando a afirmação inegavelmente ligada à sua presença.
Os incentivos à produção de canaviais nas ilhas de Gran Canaria e Tenerife
permitiram que muitos madeirenses abandonassem a Madeira e aqui se fixas-
sem 25 . Foi no momento de crise do açúcar na Madeira que mais se notou aí a
presença de madeirenses, o que prova a emigração orientada dos técnicos liga-
dos à cultura. As socas de cana chegaram às ilhas de Gran Canaria, Tenerife, La
Palma e La Gomera, não alcançando às ilhas de Lanzarote, Fuerteventura e
Hierro, devido à esterilidade e fundamentalmente à falta de água.

20 Fernando Jasmins PEREIRA, Ibidem, p. 158; Em 26 de Março de 1527 (ARM. CMF, nº.1305, fl.23vº) os funchalenses

fizeram ver ao Rei o prejuízo que lhes causava a concorrência do açúcar de S. Tomé, mas a resposta evasiva da coroa só
surgiu a 8 de Fevereiro de 1528 (ARM. DA, nº.66); Isabel Drumond BRAGA, "A acção de D. Luís de Figueiredo de
Lemos. Bispo do Funchal.1585-1608", III CIHM, 1993, p.572; ARM, JRC, fls. 499vº-500vº, 30 de Maio; fls. 52vº-88, 20 de
Agosto.
21 História do açúcar desde a época mais Remota até ao começo da Fabricação do açúcar de Beterraba, 2 tomos, Rio de Janeiro,

1941-1942.
22 ARM, RGCMF, T. I, publ. in AHM, Vol. XVI, p. 87, doc. 21 Junho 1493; História do Açúcar desde a época mais remota até ao

começo da publicação do açúcar de beterraba, Rio de Janeiro, 1941, p. 13; Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada,
1979, pp. 99-135
23
François Martin Pyrard de Laval, Voyage de François Pyrard, de Laval, Contenat sa Navegation aux Indes Orientales, aus Malu-
ques e tau Brésil, Paris, 2 vols, 1615.
24 Alberto Vieira, O Comércio Inter-insular nos Séculos XV e XVI, Funchal, 1987, 114.

25 Tenha-se em conta que na Madeira os direitos senhoriais oneravam em cerca de 25% e nas Canárias não ultrapassa-

vam os 5%. Cf A. Bernal e a. M. Macias, Factor Institucional y Crecimiento Económico. El Ejemplo de Canárias, Congres-
so Internacional Las Economias Insulares en Perspectiva História, La Laguna, 2005.
A mesma dificuldade surge quando pretendemos reconstituir os engenhos das
Canárias, pois não existem dados precisos sobre o número exacto, sendo as
informações avulsas. Talvez, a mais precisa seja a de Thomas Nichols em 1526 e
Gaspar Frutuoso na última década do século XVI. Todavia, enquanto os dados
fornecidos pelo primeiro podem ser considerados fiáveis, os de Gaspar Frutuo-
so não parecem corresponder à verdade 26 . O mesmo refere para Gran Canaria
vinte e quatro engenhos, enquanto Tenerife surge apenas com três.

ENGENHOS DE AÇÚCAR NAS CANÁRIAS.SÉCULOS XVI-XVII


1502 1515 1520 27 1526 1540 1556 1560 1580 28 1590 29 1632 1634-43

GRAN CANARIA - 25 38 12 - 12 12 8 24 5-9 30 2

TENERIFE - - 16 12 - 12 8 3 - 2

LA PALMA 2 - 4 4 - - - 5 - 3

LA GOMERA - - 6 1 5 - - 1 - -

TOTAL 2 25 64 29 5 24 16 33 5-9 7

A documentação pouco nos diz sobre a evolução da cultura e dos valores da


produção, pois os dados disponíveis são esparsos. Para os séculos XV e XVI as
informações são escassas, mas alguns dados disponibilizados na documentação
permitem avaliar a importância da cultura na economia destas ilhas.

PRODUÇÃO DE AÇÚCAR EM CANÁRIAS em arrobas


Ilha 1502 1507-1508 1510 1520 1534 1600 1583 1590
Tenerife 66.600 80.000
La Palma 4.667 20.000
Gran Canaria 400.000 190.000
La Gomera 30.000
total 470.000 71.267 59.790 320.000 725.220 326.430 435.300 87.070
Fonte: António Macias, Canárias. 1480-1680. Economia Azucarera y Crecimiento Económico, in História do
Açúcar- Rotas e Mercados, Funchal, 2002, pp.157-191; António Santana Santana, Evolución del Paisaje de Gran
Canaria(Siglos XV-XIX), Las Palmas, 2001.

A Historiografia nota que, a partir de meados do século XVI, a concorrência de


outros mercados e o avanço descontrolado dos vinhedos levaram à crise da cul-
tura dos canaviais. Nisto não está de acordo Manuel Lobo Cabrera 31 que dá
conta de um certo fulgor do comércio durante o reinado de Filipe II. Tal como
refere a crise surge como resultado da concorrência do antilhano e acima de

26 Vide A. CIORANESCU, Thomas Nichols, Mercador de Azúcar, Hispanista y Hereje, La Laguna, 1963; Livro Primeiro das
Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1984.
27 A. Bernal e a. M. Macias, Factor Institucional y Crecimiento Económico. El Ejemplo de Canárias, Congresso Internacio-

nal Las Economias Insulares en Perspectiva História, La Laguna, 2005.


28 E. Marco Dorta, Descipción de las Islas Canárias por Virtud del Mandato de Su Majestad por un tio del Licenciado

Valcárcel, Revista de Historia, La Laguna, 63 (1943), 198


29 Gaspar Frutuoso, Livro Primeiro das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1966; Para Gran Canaria Manuel Lobo[El Comer-

cio Canrio Europeo Bajo Felipe II, Funchal, 1981, p.115] refere apenas 12.
30 Segundo Elisa Torres Santana [El Comercio de las Canárias Orientales en Tiempos de Felipe III, Las Palmas, 1991, pp.295-

296] são nove engenhos


31 El Comercio Canario-europeo bajo Filipe II, Funchal, 1988, pp.7, 115-116.
tudo do encerramento do mercado nórdico, nomeadamente Amberes ao açúcar
canario, provocado pela política belicista do monarca.

CABO VERDE. A presença dos canaviais está documentada nas ilhas de


Cabo Verde desde a segunda metade do século XV, mas não temos dados sobre
a evolução. A primeira referência à produção de cana-de-açúcar surge apenas
em 1490.A cultura terá começado na ilha de Santiago e só depois no século XVII
se espalhou às demais como S. Nicolau, Brava, Maio, Boavista e Santo Antão
para fabrico de aguardente usada no comércio de escravos na costa africana 32 .
Foi em Santiago e Santo Antão que a cultura encontrou melhores terrenos e
acabou por adquirir maior importância. Para a primeira Gaspar Frutuoso 33 refe-
re que “dá muito açúcar e fazem-se nela muito boas conservas, ainda que nada disto
chega ao da ilha da Madeira”. A única referência que temos à produção reporta-se
a 1510 em documento que dá conta do dizimo cobrado na Madeira, Açores e
Cavo Verde. Para este arquipélago, fundamentalmente a ilha de Santiago, o
dizimo incidiu sobre a produção de 4000 arrobas de açúcar 34 . Segundo Gabriel
Soares de Sousa 35 as primeiras mudas de cana foram levadas para o Brasil des-
de a Madeira e Cabo Verde.

SÃO TOMÉ E PRINCIPE. Não sabemos a data exacta da plantação das


primeiras socas de cana, mas temos referência em 1485 da existência de um
imposto sobre a exportação de açúcar, o que indica que já existiam canaviais na
ilha nos inícios da década de oitenta do século XV. Sem dúvida que o momento
de plena afirmação do açúcar sãotomense foi no século XVI. Na primeira meta-
de da centúria estão documentados 60 engenhos 36 em funcionamento e uma
produção superior a 150.000 arrobas. A produção manteve-se em crescendo nas
décadas de 50 a 70. Em 1595 refere-se que os negros amotinados, sob o comando
de Amador, destruíram 70 engenhos. Esta situação, em conjunção com a inva-
são e ocupação holandesa (1600, 1641), condicionou a evolução da produção
açucareira da ilha, recuperando mais tarde na centúria seguinte, pois em 1625
refere-se a produção de 100.000 arrobas em 45 engenhos. A segunda metade do
século XVII foi o golpe definitivo de morte para o açúcar de S. Tomé. Em 1672
em 31 engenhos produziu-se apenas 27.000 arrobas.

anos SÃO TOME PRINCIPE


engenhos Produção engenhos Produção
arrobas arrobas
1517 14 100.000
1529 123.170
1535 135.860
1545 150.000
1550 60
1578 175.000

32 Cf. António Carreira, Estudos de Economia Caboverdiana, Lisboa, 1982, pp.237-287; João Lopes Filho,”Fabrico do mel e
do grogue”, Cabo Verde. Retalhos do Quotidiano, Lisboa, 1995, pp.155-169
33 Livro Primeiro das Saudades da Terra, Ponta Delgada, p.117
34 Arquivo dos Açores, III, pp.200-201.

35 Cf. Tratado Descritivo do Brasil em 1587, S. Paulo, 1938.


36 Um documento refere para a primeira metade da centúria mais de 300 engenhos, enquanto Labat fala em 400. Cf.

Carlos Agostinho das Neves, ob. cit., p.22


1580 24.000
1591 12.000
1592 64.000
1595 70
1600 9000
1602 40000
1605 60.000 5 1.000
1610 45 200.000
1614 62
1625 45 100.000
1634 20.000
1638 30.000
1645 54 100.000
1651 40.000
1660 37 110 2.000.000
1672 31 27.000
1688 5.109
Fonte: Carlos Agostinho das Neves, S. Tomé e Príncipe na Segunda Metade do Século XVIII,
Funchal, 1989; Isabel Castro Henriques: São Tomé e Príncipe. A Invenção de uma Sociedade,
Lisboa, 2000; Cristina Maria Seuanes Serafim, As Ilhas de São Tomé no Século XVII, Lisboa,
2000.

AS ILHAS. Não é fácil estabelecer uma comparação do conjunto das ilhas refe-
rido. Primeiro somos confrontados com a questão do número de ilhas e a super-
fície disponível para a cultura. A Madeira apresenta-se apenas com 738 Km2 de
superfície, enquanto as quatro das Canárias surgem com 4672 Km2. Assim, nas
Canárias a área disponível para a cultura subdivide-se em pelo menos quatro
ilhas, podendo jogar aqui a seu favor a lógica da complementaridade económi-
ca, que permite um avanço confortável da cultura, sem qualquer dificuldade de
orientação de política económica de subsistência. Perante isto a cultura terá
maiores condições para se desenvolver. E se juntarmos as isenções fiscais esta-
belecidas, teremos uma situação marcadamente desigual que penalizará a
Madeira a partir do momento que estas ilhas atingem a sua plenitude, isto é, no
segundo decénio do século XVI.

As possibilidades comparativas surge apenas com a ilha de São Tomé, com 859
Km2 de superfície, que, embora os dados não o espelhem correctamente terá
atingindo os níveis de produção de açúcar mais elevados. Segundo alguns auto-
res teríamos aí arrobas de açúcar, só que este era de inferior qualidade e de
menor valia no mercado europeu. O grande momento foi a segunda metade do
século XVI em que temos referências de 200 a 400 engenhos e uma produção de
cerca de 450.000 arrobas 38 , valor que se aproxima das Canárias em 1502, com 4
ilhas ocupando uma superfície cinco vezes superior.

37 . A. T. Matos, Os Donos do Poder e a Economia de S. Tomé e Príncipe no Início de Seiscentos, Mare Liberum, 6, 1993,
182.
38 . Carlos Agostinho das Neves, S. Tomé e Príncipe na Segunda Metade do Século XVIII, Funchal, 1989, pp.22-23
800000
700000
600000
500000
Madeira
400000
Canarias
300000 S. Tomé
200000
100000
0
1502 1510 1520 1534 1583

PRODUÇÃO DE AÇÚCAR EM ARROBAS


ARQUIPÉLAGO 1502 1507 1510 1520 1534 1583 1590 1600
MADEIRA 114.778 39 176.985 144.065 87.868 54.077 35.202
CANARIAS 470.000 71.267 59.790 320.000 725.220 435.380 910.270 326.430
SÃO TOMÉ 100.000 40 123.170 41 135.860 42 24.000 43 12.000 44 9.000

ENGENHOS DE AÇÚCAR .SÉCULOS XVI-XVII


ARQUIPÉLAGO 1502 1515 1520 45 1526 1540 1556 1560 1580 46 1590 47 1632 1634-43

MADEIRA 16 48 34 4

SÃO TOMÉ 14 49 60 50 70 51 45 52

CANÁRIAS 2 25 64 29 5 24 16 33 5-9 7

Maiores são ainda as dificuldades quando pretendemos estabelecer uma com-


paração entre as ilhas do açúcar no Atlântico e no Mediterrâneo. No conjunto
das três ilhas açucareiras do Mediterrâneo (Sicília, Chipre e Creta) temos em
qualquer dos casos uma superfície superior, por exemplo ao conjunto das qua-
tro ilhas açucareiras das Canárias e mesmo assim os poucos dados disponíveis
sobre a produção de açúcar são insignificantes quando comparados com as
ilhas do mundo Atlântico. O caso mais significativo, e para o qual dispomos de
mais documentação e estudos, é o da Sicília, que com 25.710 Km2 de superfície

39 . Em 1501
40 Em 1517
41 Em 1529
42 Em 1535

43 Em 1580
44 Em 1591
45 A. Bernal e a. M. Macias, Factor Institucional y Crecimiento Económico. El Ejemplo de Canárias, Congresso Internacio-

nal Las Economias Insulares en Perspectiva História, La Laguna, 2005.


46 E. Marco Dorta, Descipción de las Islas Canárias por Virtud del Mandato de Su Majestad por un tio del Licenciado

Valcárcel, Revista de Historia, La Laguna, 63 (1943), 198


47 Gaspar Frutuoso, Livro Primeiro das Saudades da Terra, Ponta Delgada, 1966; Para Gran Canaria Manuel Lobo[El Comer-

cio Canrio Europeo Bajo Felipe II, Funchal, 1981, p.115] refere apenas 12.
48 Em 1494
49 Em 1517

50 em 1550
51 em 1595
52 em 1625
não ultrapassa as 30.000 arrobas de produção de açúcar. Entre 1472 e 1517 os
valores oscilam entre o referido e as 10.000 arrobas.

A disponibilidade de um espaço agrícola e os valores alcançados com a produ-


ção de açúcar, quando comparados com o mundo atlântico poderão indicar
uma incapacidade de aumentar os níveis de produção por força da tecnologia
disponível. Os aspectos particulares do ciclo vegetativo da cana indicam um
processo muito rápido entre o período de maturação, o corte e o processamento
da matéria-prima. A tecnologia mediterrânica não se ajustava a esta situação
obrigando a que a área de cultivo fosse limitado e os valores de produção fosse
também baixos.

A partir da segunda metade do século XV ocorre a verdadeira revolução do


mundo do açúcar. A cultura chega ao Atlântico, onde encontra condições ideais
para produzir em grande quantidade e aí o insular foi forçado a transformar o
processo de moenda e fabrico do açúcar de modo a ajusta-lo às novas necessi-
dades. Na Madeira, quando na década de setenta do século XV se suplantam os
valores da produção siciliana, começam a surgir as referências a uma nova tec-
nologia para a moenda com o uso dos cilindros 53 . Esta tecnologia propiciou um
ritmo acelerado de progresso dos canaviais, de modo que na década de noventa
da centúria se ultrapassou o patamar das 100.000 arrobas.

ARQUIPÉLAGO ENGENHOS, Nº SUPER PRODUÇÃO DE


(ILHAS) FÍCIE AÇÚCAR
KM2 DATA ARROBAS
DATA NÚMERO
Terceira 396,75
AÇORES S. Miguel 759,41
total 1.156 1510 2.000
Boavista 2.733
Brava 64
S. Nicolau 343
Santo Antão 779
CABO VERDE
Maio 269
ATLÂNTICO Santiago 991
total 5.179 1510 4.000
Gran Canaria 1.560
Tenerife 2.034
CANÁRIAS La Gomera 370
La Palma 708
total 64 4.672 320.000
MADEIRA 34 738 1510 144.000
(Madeira)
S. TOMÉ e PRÍNCIPE 400 859 1580 240.000
(S. Tomé)
SICILIA 1517 31 2.5710 3.030
MEDITER-
CRETA 9.331
RÂNEO
CHIPRE 9.250

53 Cf. Alberto Vieira, A Madeira, a Expansão e História da Tecnologia do Açúcar, in História e Tecnologia do Açúcar, Fun-

chal, 2000, pp17-19


Arquipélago Produção de açúcar área Engenhos
(ilhas)
data arrobas Ha Arrobas nº Produ-
/ha ção/arrobas
AÇORES 1510 2.000 115.600 0,01
(Terceira, S. Miguel)
CABO VERDE 1510 4.000 6,80
(Boavista, S. Niculau, Sto Antão e Santiago)
CANÁRIAS 320.000 545.519 1,58 64 5.000
(Gran Canaria, Tenerife, La Gomera, La
Palma)
MADEIRA 144.000 73.800 1,95 34 1.235
(Madeira)
S. TOMÉ e PRÍNCIPE 250.000 85.900 2,91 400 625
(S. Tomé)
SICILIA 1517 26.666 2.571.000 0,01 31 860
CRETA 933.100
CHIPRE 925.000

A CANA-DE-AÇÚCAR E A PAISAGEM DAS ILHAS ATLÂNTICAS.


Alguém terá dito em 1789 que a "lavra, reparação e plantio das doces e domésticas
canas de que o açúcar é feito, é a actividade mais laboriosa e cara jamais descoberta na
terra, e a mais difícil e, ao mesmo tempo engenhosa (...) não há modo de começar sem
uma grande e considerável despesa, em instalações e nas infalíveis reposições em todos
os aspectos". Estava lançado anátema que marcou no Atlântico a aliança do
Homem, ao açúcar. E não será sem razão que Mário Lacerda de Melo, no livro
"O açúcar e o Homem” (1975) afirmou de forma peremptória que "dificilmente se
encontrarão formas de utilização dos recursos dos solos que se possam rivalizar com a
agro-indústria canavieira quanto à capacidade de condicionar um tipo de sociedade e de
economia, de modelar um tipo de paisagem e de estruturar um tipo de arranjo económico
do espaço". Já Paul Vidal de la Blanche 54 havia afirmado em 1941 que a História
do açúcar se confunde com a do Homem. A cana-de-açúcar, na verdade foi
companheira do europeu no seu processo de transmigração no espaço atlântico,
fazendo-o escravo, dando-lhe em contrapartida riqueza que pouco soube apro-
veitar. A cana dominou o homem e devorou a paisagem. A mata foi derrubada
para dar lugar aos canaviais e depois para alimentar as fornalhas das caldeiras.

A presença do homem no processo de cultivo e produção de açúcar materializa-


se numa duradoira relação de amor e ódio. Para uns foi o apelo da riqueza e do
luxo, ficando aos demais a parte amarga, como o suor, o sangue e as lágrimas.
A cana exige muito do homem, mesmo a sua escravização. Foi isso que aconte-
ceu no espaço atlântico. Os extensos campos de canaviais extasiam a vista, mas
os engenhos fazem-nos lembrar algo diferente. Já em 1627 Andrés de Gouveia
havia afirmado que "um engenho é inferno e todos os senhores deles estão condena-
dos". O próprio Padre António Vieira descobriu nele a imagem do Inferno 55 . Em
1633 do alto do púlpito da capela do engenho do Recôncavo baiano traçava de
forma peremptória o retrato daquilo que os seus olhos acabavam de presenciar:
"...gente toda de cor da mesma noite, trabalhando vivamente e gemendo tudo ao mesmo
tempo sem momento de tréguas, nem de descanso; quem vir enfim toda a máquina e

54 Principes de géographie humaine, Paris : A. Colin, 1941


55 Sermão Decimo Quarto Pregado na Baia à irmandade dos Pretos de um engenho em 1633, p.40
aparato confuso e estrondoso daquela Babilónia, não poderá duvidar, ainda que tenha
visto Etonas e Vesúvios, que é uma semelhança de inferno". Mais próximo de nós,
Joaquim Nabuco (1849-1910) o pai de abolição da escravatura no Brasil, retoma
esse discurso para a política, desvendando melhor essa faceta negra do branco
açúcar: “a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do
Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contacto foi a
primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela
povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas,
seus encantamentos, insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas
lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem amargos, suas
alegrias sem causa, sua felicidade sem dias seguintes..." O escravo negro é o aliado da
cana no périplo atlântico. J. de Maia Penna, num livro que leva um título signi-
ficativo de "Em Berço Esplêndido” (1974) afirmou: ”sensualidade, glutonaria e ócio
eis a tríplice alicerce paradisíaco de sociedade que se criará na época colonial..., ao longo
de todo o litoral atlântico do Amazonas no Rio de Janeiro, passando pelo Nordeste. A
sensualidade de um grupo humano ordenado exclusivamente na base do exotismo. A
gula de uma economia organizada em torno do cultivo do açúcar. A pachorra de um
estado escravocrata cujo senhor não precisará senão de levantar o chicote para obter o
seu sustento.”

Afinal a água comandou todo o processo de valorização sócio-económica do


espaço insular. Assim, no entender dos cronistas, o insucesso da ocupação do
Porto Santo não foi apenas fruto da praga dos coelhos, pois prende-se mais com
a ausência de água para alimentar as culturas de regadio e fazer accionar os
engenhos. Ao invés, na Madeira a água foi sempre abundante. A orografia do
terreno actuava a favor e contra o curso de água. Por um lado obrigava o íncola
a redobrado esforço na condução aos socalcos: levar a água aos canaviais e
engenho foi um processo complicado. Por outro os declives permitiam um
melhor aproveitamento da força motriz. Apenas um curso de água era capaz de
mover as pedras de um moinho, os eixos do engenho e a engrenagem de uma
serra de água. A harmonização de todas estas actividades estava o segredo do
progresso económico da Madeira nos séculos XV e XVI. E cedo a coroa o enten-
deu a situação, mantendo a água como património comunal. Diferente foi o que
sucedeu nas Canárias onde a pouca água disponível foi cobiçada e dominada
por privados.

Desde tempos imemoriais que a água foi o motor da História. Saciou a sede os
sedentos, serviu para aproximar os homens, ou para substitui-lo em algumas
tarefas e dar vida e riqueza aos campos. Por tudo isto a água assume uma fun-
ção vitalizadora da economia. Desta relação dominante da água chegou-se à
teorização de que os grandes empreendimentos hidráulicos são resultado de
teocracias despóticas. O despotismo egípcio e oriental foi uma necessidade
premente resultante da subjugação à água. Para Wittgofel 56 as necessidades
resultantes do sistema de irrigação obrigaram a formas de governo despóticos.
Segundo Fernand Braudel a cultura de sequeiro identifica-se com a liberdade e

56
A. Wittfogel, Despotismo Oriental. Estúdio comparativo del Poder Totalitário, Madrid, 1966.
a de regadio com a escravatura. Foi isso, na verdade, que aconteceu nas ilhas,
pois o Homem para dispor da água de regadio amordaçou-se a si próprio. Os
escravos traçaram as levadas e os heréus envolveram-se numa subjugação total
à água, alimentada, por vezes com querelas.

Em qualquer dos espaços onde os canaviais medraram era abundante a água e a


floresta. São estes os condimentos do sucesso da cultura. Após alguns anos de
afirmação, quando a cultura é abandonada deixa para trás um rastro desolador.
Tal como afirmou Sergio Buarque 57 os colonos “colheram o fruto sem plantar a
árvore”. O descuido levou a que a mata desse lugar a um amplo espaço escam-
pado, palco das ervas daninhas. Para travar este processo o homem aguçou o
engenho, pois tal como afirmara Sampaio e Mello em 1812 " se a abundância tem
sido a causa da nossa preguiça, principia a necessidade de ser a causa da nossa indús-
tria".

Desde muito cedo que temos noticia de medidas das autoridades no sentido da
preservação da floresta e de evitar o desbaste acelerado das terras, de forma a
evitar a erosão dos solos. Mas de pouco serviram estas medidas para travar o
desastre ecológico. Foi o engenho do homem que contribuiu para travar o pro-
cesso, com o chamado sistema de fornalhas agrupadas, que ficou conhecido a
partir do século XVII como trem jamaicano, uma inovação no sistema de forna-
lhas e de disposição das caldeiras que permitiu uma notável poupança de
lenhas. Apenas com uma fornalha era possível levar calor às cinco caldeiras. A
isto juntou-se em muitos sítios, excepto no Brasil, o uso do bagaço da cana como
combustível. O homem serve-se da própria cana para atear o fogo que a con-
sumirá, contribuindo assim para a preservação da floresta.

A cana, tal como afirma Josué de Castro, é autofágica 58 . A realidade histórica


dos últimos cinco séculos, em que ela assumiu um estatuto de produção em
larga escala, assim o confirma. Aquilo que aconteceu na Madeira dos séculos
XV e XVI repetiu-se nas Canárias, Caraíbas e só não atingiu idênticas propor-
ções no Brasil, porque a mata atlântica era extensa. Gilberto Freire 59 afirma que
"o canavial desvirginou todo esse mato grosso de modo mais cru pela queimada. A cul-
tura da cana… valorizou o canavial e tornou desprezível a mata". O processo é sim-
ples. Para plantar a cana derruba-se ou queima-se a floresta. Depois para fabri-
car o açúcar essa floresta faz falta para manter acesa a chama dos engenhos, ou
construir estas infra-estruturas. A cana tem na floresta o seu maior amigo e ini-
migo. Um exemplo apenas evidência a dimensão que assumiu este processo.

A cultura da cana sacarina só subsistiu em locais onde estavam garantidas as


exigências adequadas ao cultivo e processo de fabrico. Obrigava a um clima
singular, que no caso das ilhas da Madeira e Canárias dói uma cultura de rega-
dio, o que limitou a expansão no espaço cultivado. O processo de laboração do
açúcar implicava ainda o recurso a outras fontes de energia, como a lenha, pelo
57
Raizes do Brasil, Rio de Janeiro : José Olympio, 1936
58 Geografia da Fome, Rio de Janeiro, 1952, p.73
59
Aspectos e Influência daCana sobre a Vida e a Paisagem do Nordeste do Brasil, Rio de Janeiro, 1985.
que uma área açucareira deveria estar servida de uma rectaguarda de mata.
Finalmente, o processo de laboração do açúcar implica uma especialização téc-
nica e a montagem de uma estrutura de custos elevados. Perante isto podemos
afirmar que a cana só poderá existir em espaços servidos de água, próximos da
floresta e a disponibilidade de capital para o necessário investimento tecnológi-
co. A forma de afirmação da cultura nos espaços insulares tem a ver com a
garantia ou não destas condições. De um modo geral podemos dizer que foi a
água que comandou o processo de implantação dos canaviais nas ilhas e dentro
destas escolheu as áreas agrícolas, maioritariamente vizinhas das ribeiras.

Hoje é conhecida a relação entre a produção açucareira e o avanço do desbaste


da floresta. A presença de uma área de floresta era indispensável para o fabrico
do açúcar, pois era aí que se ia buscar as madeiras para construção dos enge-
nhos e, acima de tudo, as lenhas que mantinham acesas, dia e noite, as caldei-
ras. Na costa granadina, a partir da primeira metade do século XVI, são eviden-
tes as consequências do funcionamento dos engenhos na mata, surgindo recla-
mações dos vizinhos e condicionamentos por parte das autoridades. É neste
quadro que temos notícia sobre o dano diário causado pelas fornalhas do enge-
nho. Assim cada engenho nos 8 meses de actividade gastava diariamente até 40
cargas de lenha, o que equivale a cerca de 9600 cargas por safra. Incluso refere-
se o caso da ilha da Madeira onde o gasto diário poderia ir até 10 cargas de
lenha 60 . Em Gran Canaria sabemos que em 1503 foram necessárias 4620 cargas
de lenha para a produção de 1190,5 arrobas de açúcar, o que equivale à média
de 3,88 arrobas por carga de lenha 61 . No caso do Brasil estabeleceu-se que para
o fabrico de 1 kg de açúcar era necessário 15 Kg de lenha, correspondendo 200
toneladas de lenha a 1 hectare de floresta 62 . A partir daqui podemos definir
uma medida padrão que permite avaliar a relação da produção açucareira com
a reserva florestal.

Em áreas de exploração intensiva, em que a reserva florestal era limitada, as


dificuldades rapidamente se fizeram sentir e a sobrevivência da cultura só foi
possível com o recurso a alguns processos engenhoso como o trem jamaicano,
que permitiram a poupança de 10 kilogramas de lenha por cada kg de açúcar
produzido 63 . O sistema consiste num conjunto de caldeiras servidas por uma
única fornalha e recebeu esta designação por ter surgido na ilha de Jamaica no
século XVII, mas em Cuba ficou conhecido por trem francês, por ter sido usada
a versão aperfeiçoada pelos franceses, que foi divulgada por Jacques François
Dutrône de la Couture(1749-1814) 64 .

60Antonio Malpica Cuello, El Médio Físico y sus Transformaciones a Causa del Cultivo de la Caña de Azúcar en época
Medieval. El Caso de la costa de Granada, in História e Tecnología do Açúcar, Funchal, 2000, 103.
61 Acarga de lenha era a quantidade de lenha que um animal podia transportar, sendo o seu peso variável. António

Santana[Revolución del Paisaje de Gran Canaria(siglos XV- XIX), Las Palmas, 2001] que cada carga corresponderá a cerca
de 11,5 kgs. ]Eduardo Aznar Vallejo, Ana Viña Brito, El Azúcar en Canárias, La Caña de Azúcar en Tiempos de los Grandes
Descubrimientos. 1450-1550. Actas del Primer Seminário International, Motril, 1989, p.180.
62 Warren Dean, A Ferro e Fogo, São Paulo, 1996, p.97.

63 ibidem, p.191

64 Manuel Moreno Fraginals, O engenho, vol. I, S. Paulo, 1988, p.109. Cf. J. F. Dutrône de la Couture, Précis sur la Canne et

sur les Moyens d’en extrair ele sel essentiel, suivi de plusieurs Mémoires sur le sucre, sur le vin de canne, sur indigo, sur les habita-
tions & sur l’état actuel de Saint-Domingue, Paris, 1790.
A devastação da floresta causou efeitos destrutivos considerados catastróficos.
A situação foi mais evidente nas ilhas onde o hinterland era reduzido. A primei-
ra imagem disto está na ilha de Chipre, onde a construção naval e a exportação
de lenhas e madeiras levaram a que perdesse rapidamente o epíteto de ilha
verde, dado pelos antigos. A situação repete-se na Madeira, Canárias e na maio-
ria das Antilhas. As primeiras consequências da cultura açucareira para a flores-
ta ocorreram já nas ilhas e costas do Mediterrâneo. Chipre ficou conhecida pelos
antigos como a ilha verde, pela abundância de floresta, mas rapidamente per-
deu o epíteto com a exploração açucareira 65 . Na Sicília, Carmelo Trasselli 66
chama a atenção para o facto de a cultura açucareira ter acabado com o equilí-
brio precário que existia entre o homem e a natureza, conduzindo ao paulatino
desboscamento do entorno de Palermo e, por consequência às alterações climá-
ticas do século XV. O mesmo sucedeu na costa espanhola, nomeadamente em
Motril, Salobreña e Algeciras 67 .

Foi nas ilhas, onde o espaço florestal é limitado, em que o equilíbrio entre este
recurso e a agro-indústria de exportação é precário. A história do Açúcar reve-
la-nos que o período médio de afirmação das culturas não chegava a um século.
Sucedeu assim na Madeira, como em nalgumas ilhas das Canárias e nas Anti-
lhas, como foi o caso de Jamaica.

Os arquipélagos da Madeira e Canárias foram os primeiros no espaço atlântico


a sentir os efeitos depredadores da cultura sobre a floresta. A Madeira foi bus-
car o nome ao denso arvoredo que a cobria à chegada dos primeiros europeus.
Cem anos mais tarde a situação da vertente sul era distinta. O processo agrícola
em torno da cana sacarina fez abater as árvores de grande porte para abrir
caminho aos canaviais. A laboração dos engenhos obrigou ao desbaste de
madeiras e lenhas para construir e alimentar os engenhos. Em pouco tempo as
encostas sobranceiras ao Funchal ficaram escalvadas. Os reflexos da situação
cedo se fizeram sentir obrigando as autoridades a intervir no sentido de limitar
o avanço das áreas de cultivo e de controlar o abate de madeiras e lenhas. Em
1466 os moradores do Funchal contestavam o regime de concessão de terras de
arvoredos e do modo de as esmoutar, pelos efeitos nefastos que causava à safra
açucareira. Perante a reclamação, o senhorio ordenou aos capitães e almoxarifes
que cumprissem os prazos estabelecidos e que fosse interdito o uso do fogo. No
entanto, em 1483, o capitão de Machico continuava a distribuir de sesmarias os

65 J. V. Thirgood, Man and the Mediterranean Forest. A History of Resource Depletion, Londres, 1981, p.124. Sobre o açúcar
veja-se: Sidney M. Greenfield, Cyprus ant he Beginnings of Modern Sugar Cane Plantations and Slavery, in La Caña de
Azucar en el Mediterraneo. Actas del Segundo Seminario International, Motril, 1992, 23-42; Marie-Louise Von Wartburg,
Desing and Technology of thr Medieval Refineries of the Sugar Cane in Cyprus. A Case of Study in Industrial Ar-
chaelogy, in Paisajes del Azucar. Actas del Quinto Seminario International, Motril, 1995, 81-116.
66 Gloria de lo Zucchero Siciliano, Roma, 1982, pp. 96-99; Antonino Morreale, Lo Zuccherificio e l’impatto sull’ambiente in

Sicília tra XV e XVII secolo, in História e Meio-ambiente o Impacto da Expansão Europeia, Funchal, 1999, 159-180; Cf. Henri
Bresc, La Canne a Sucre Dans la Sicile Medievale, in La Caña de Azucar en el Mediterraneo. Actas del Segundo Seminario
International, Motril, 1992,43-57.
67 Antonio Malpica Cuello, Médio Físico y Territorio: el Ejemplo de la Caña de Azúcar a finales de la Edad Media, Actas

del Quinto Seminario de la Caña de Azúcar. Paisajes del Azúcar, Granada, 1995, 11-40; Idem, El Médio Físico y sus Transfor-
maciones a Causa del Cultivo de la Caña de Azúcar en época Medieval. El Caso de la costa de Granada, in História e
Tecnología do Açúcar, Funchal, 2000, 87-104.
montes próximos do Funchal, com excessivo prejuízo para os lavradores do
açúcar e, por isso, D. Manuel repreendeu-o, solicitando que tais concessões
deveriam ser feitas na presença do Provedor. E, finalmente, em 1485, o mesmo
proibiu a distribuição de terras de sesmaria nos montes e arvoredos do norte da
ilha, para em princípios do século XVI (1501 e 1508) acabar definitivamente com
a concessão de terras em regime de sesmaria, a única ressalva eram as terras
que pudessem ser aproveitadas em canaviais e vinhedos.

Deste modo, logo desde o século XV até ao presente, é interminável o conjunto


de regulamentos, ordenações e posturas sobre o assunto. As medidas poderão
resumir-se à preservação daquilo que existe através de limitações ao abate de
árvores e recuperação do coberto florestal com uma política de reflorestação das
zonas ermas ou em abate. A salvaguarda da floresta passava não só pelo estabe-
lecimento de ordens rigorosas que controlassem o abate, que deveria estar sujei-
to a licenças camarárias, mas também ao ataque em todas as frentes aos agentes
devastadores, onde se incluíam o fogo e o gado solto. As queimadas, tão
comuns desde o povoamento, foram um dos principais agentes devastadores e
por isso insistentemente proibidas. O gado é obrigatoriamente acantonado a
espaços circundados por um bardo. A floresta não era para os nossos avoengos
um espaço de diversão mas sim algo fundamental para a economia da ilha.
Vedar-lhe o acesso era impossível. Daí as acções disciplinadoras do uso de
acordo com um processo económico harmonioso.

A legislação florestal madeirense é prolixa, sendo de destacar o regimento das


Madeiras de 1562, o mais antigo que se conhece pois faltam notícias sobre o de
1515, o regimento das matas e arvoredos de 1839, o plano de organização dos
Serviços Florestais de 1886 e o Regimento do Serviço de Polícia Rural e Florestal
de 1913. Estas regulamentações genéricas tiveram réplica nas posturas Munici-
pais e recomendações dos corregedores lavradas nas correições completam o
quadro das medidas protectoras do manto florestal. Daqui se conclui que não
houve esquecimento e falta de regulamentação. As contingências de cada época
ditaram, sem dúvida, a sua ineficácia. Em 1817 Paulo Dias de Almeida acusa os
carvoeiros da situação em que encontra a ilha: "...as montanhas que não há muitos
anos vi cobertos de arvoredos, hoje os vejo reduzidas a um esqueleto. O centro da ilha se
acha, todo descoberto de arvoredo, com apenas algumas árvores dispersas, e isto em
lugares onde os carvoeiros não tem chegado".

As reclamações dos moradores e as medidas consequentes do senhorio atestam


a pressão do movimento demográfico sobre a concessão de terras. Na Madeira,
das facilidades da década de 20 entra-se na década de 60 com medidas limitati-
vas, como forma de preservar o pascilgo de usufruto comum e de apoiar os
principais proprietários de canaviais, cuja exploração dependia da existência
dos referidos montes e arvoredos. As exorbitâncias dos capitães, desrespeitando
as ordenações régias e senhoriais, conduziram à sua diminuição. O próprio D.
Manuel contrariou, em 1492, o regimento de dadas de terras ao permitir que o
capitão do Funchal distribui-se terras, na serra para currais e cultivo de cereais e
das bermas das ribeiras para a plantação de árvores de fruto.
O litígio entre as capitanias do Funchal e Machico quanto ao usufruto da flores-
ta foi uma constante no século XVI. Acontece que a capitania do Funchal dispu-
nha da maior área de produção de açúcar da ilha, superior a dois terços, mas
era na de Machico que se encontra o mais importante manto florestal necessário
para alimentar os engenhos. O Vedor da Fazenda Real determinava em 1581
que a fruição das madeiras destinadas ao fabrico do açúcar fossem de fruição
comum. A situação manteve-se nos anos imediatos sendo necessária a interven-
ção da coroa. No sentido de controlar o consumo de lenhas pelos engenhos a
câmara nomeava um estimador de lenhas, que através de uma bitolha ”de sinco
palmos e meio de largo e de altura dous e meio” 68 .

Na Madeira, desde meados do século XV, a aposta na cultura dos canaviais e


fabrico do açúcar conduziram inexoravelmente à destruição da parca floresta da
ilha. Abatia-se árvores para plantar soca nova mas, acima de tudo, para poder
dispor de madeiras para construir os engenhos e lenhas necessárias ao fabrico
do açúcar. Se tivermos em conta que, para o fabrico de um quilograma de açú-
car eram necessários 15 Kgs de lenha, teremos a indicação da área que anual-
mente era vítima de desbaste na floresta.

PRODUÇÃO DE AÇÚCAR LENHA KGS


Área floresta
PERÍODO Área canaviais 69
EM KGS EM KGS
em ha % do total
em ha % do total
1455-1499 8.395.477 8394 2,80 125.750.180 628 0,20
1501-1537 43.537.476 40.329 13,44 641.224.746 3.206 1,06
1581-1586 15.858.425 3171 1,06 237.876.498 1189 0,40
1637-1698 1.048.800 609 0,20 17.117.414 85 0,02
total 68.840.178 52.503 17,50 1.021.968.838 5.108 1,70

Para os dados acima referidos temos que o fabrico de açúcar entre 1455 e 1698 condu-
ziu ao corte de mais de 5.000 Ha de floresta da ilha, sendo a média anual de cerca de
106Ha ano. O período de maior produção, de 1493 a 1537, foi também o de maior
depredação das zonas altas da vertente sul, com mais de 3.834Ha, atingindo de forma
especial a vertente sul. Deste modo redobraram-se as atenções das autoridades munici-
pais e as medidas determinadas em vereação no sentido de controlar o abate desmedido
de árvores.

As Canárias foram o segundo grupo de ilhas a receber o impacto negativo da


cultura açucareira 70 . Desde finais do século XV que os canaviais, trazidos da

68 ARM, CMF, nº.1328, fl.20: 16 de Maio de 1637.


69 De acordo com A. Macias [Canárias. 1480-1680. Economia Azucarera y Crecimiento Económico, in História do Açúcar-
Rotas e Mercados, Funchal, 2002, pp.157-191] a cada 100 toneladas de cana corresponderia em média um hectare de área
cultivada.
70 Cf. Alfredo Herrera Pique, La Destrucción de los Bosques de Gran Canaria a Comienzos del Siglo XVI, in Aguairo,

92(1977), 7-10; James J. Persons, Human Influences on the Pine and Laurel Forests of the Canary Islands, in Helen
Wheatley, Agriculture, Resource Exploitation and Environmental Change, Hampshire, 1997, 169-187; Richard Grove, Con-
serving Eden. The (European) East India Companies and their Environmental Policies on St. Helena, Mauritius and in
Western India, 1600-1854, in, ibidem, pp. 319-320; Agustin Naranjo Cigala e outros, Características Bioclimáticas del
Madeira, tiveram grande incremento nas ilhas de Gran Canaria, La Gomera, La
Palma e Tenerife, as únicas do arquipélago onde a reserva de água e floresta foi
suficiente para manter a cultura num curto lapso de tempo. Na ilha de Gran
Canaria a cultura dos canaviais aconteceu numa faixa abaixo dos 600 metros de
altitude, compreendendo Las Palmas, Telde, Guia La Aldea, Agaete, Tirajana e
El Ingenio. A floresta vizinha, nomeadamente em Las Palmas, Tamaraceite,
Telde, Arucas e Palmital de Guia, sofreu rapidamente o efeito devastador da
produção açucareira. Assim, de acordo com o Libro Rojo 71 “toda la madera que ay
en las mantañas de la dicha ysla se reparten entre elllos(os engenhos) para fabricacion de
azucares”. As ordenanzas de 1531 72 insistem no estado deplorável dos montes
da ilha, em especial a montanha la Lentiscal, que se encontrava “ muy cortada y
muy talada y en toda ella no hay leña gruesa a cuasa de que los señores de ingenio han
cortado”. Passados trinta anos o inglês T. Nichols referia que a madeira era a
coisa mais desejada na ilha 73 . Perante esta situação as autoridades insulares
foram forçadas a estabelecer medidas de preservação da floresta, regulamen-
tando o abate para lenhas e madeiras a serem usadas nos engenhos de açúcar 74 .
Os Acuerdos do Cabildo de Tenerife 75 e as ordenanzas 76 de algumas das ilhas evi-
denciam-se bem desta luta das autoridades pela preservação da floresta, em que
o principal carrasco é o açúcar.

LENHA EM KGS- para produção de Açúcar 77


Ilha 1502 1507-1508 1510 1520

Kgs de Área Kgs de Área Kgs de Área Kgs de Área


lenha desbas- lenha desbas- lenha desbas- lenha desbas-
tada em tada em tada em tada
ha ha ha em ha
Tenerife 765.900 4 920.000 4
La Palma 53.670 0,3 23.000 0,1
Gran Canaria 4.600.000 23 2.185.000 11
La Gomera 345.000 2
total 5.505.000 27 819.570 4 687.585 3 3.680.000 18

Território Antiguamente Cultivado de Caña de Azúcar en las Islas Canarias, in Açúcar e Quotidiano, Funchal, 2004,
pp.271-299;
71 P. Cullen del Castillo, Libro Rojo de Gran Canaria, Las Palmas, 1947.

72 F. Morales Padrón, Las Ordenanzas del Concejo de Gran Canaria(1531), Las Palmas de Gran Canaria, 1974.
73 Alejandro Cioranescu, Thomas Nichols, mercader de Azúcar, Hispánista y Hereje, La Laguna, 1963.
74. Cf. Ana Viña e Manuela Ronquillo, El Control Normativo del Azúcar en Canarias, in O Açúcar e o Quotidiano, Fun-

chal, 2004, pp.303-341.


75 E. Serra Ráfols, Acuerdos del Cabildo de Tenerife(1497-1507), La Laguna, 1996; E. Serra Ráfols, e L. De La Rosa Olivera,

Acuerdos del Cabildo de Tenerife (1514-1518), La Laguna, 1965; E. Serra Ráfols, e L. De La Rosa Olivera, Acuerdos del Cabildo
de Tenerife(1518-1525), La Laguna, 1970; L. De La Rosa Olivera e M. Marrero, Acuerdos del Cabildo de Tenerife (1525-1533),
La Laguna, 1986; L. De La Rosa Olivera e M. Marrero, Acuerdos del Cabildo de Tenerife(1525-1533), La Laguna, 1986; M.
Marrero, M. Padrón e B. Rivero, Acuerdos del Cabildo de Tenerife(1538-1544),La Laguna, 1996; M. Marrero, M. Padrón e B.
Rivero, Acuerdos del Cabildo de Tenerife(1545-1549),La Laguna, 2000;
76 J. Peraza de Ayala, Las Antiguas Ordenanzas de la Isla de Tenerife, La Laguna, 1935; F. Morales Padrón, Las Ordenanzas

del Concejo de Gran Canaria (1531), Las Palmas de Gran Canaria, 1974; A. Viña e E. Aznar Vallejo, Las Ordenanzas del
Concejo de La Palma, Santa Cruz de Tenerife, 1993; M. A. Ladero Quesada, Ordenanzas Municipales y Regulación de la
Actividad Económica en Andalucia y Canárias. Siglos XIV- XVII, II Colóquio de Historia Canário Americana, Las Palmas de
Gran Canaria, 1979; Alberto Vieira, Introdução ao Estudo do Direito Local Insular. As Posturas da Madeira, Açores e
Canárias nos séculos XV e XVII, VII Colóquio de Historia Canário Americana, vol. II, Las Palmas de Gran Canaria, 1990,
677-711.
77 Deverá ter-se em conta que a arroba nas Canárias equivalia a 11,5 Kgs, enquanto na Madeira até 1504 era de 12,852

kgs, passando para 14,688Kgs.


Para o Brasil no século XVIII cada quilo de açúcar equivale a 15 kg de lenha
queimada, dando média anual de 210.000 toneladas. A cada hectare correspon-
dia 200 toneladas. A evolução recente da mata atlântica no Brasil, passados
mais de cem anos sobre o incremento da máquina a vapor nos engenhos, conti-
nua a ser tragada por outros agentes. Assim entre 1985 a 1990 ela perdeu 5.330
km2, ficando em 83.500km2, isto cerca de 8% da floresta encontrada portugue-
ses em 22 de Abril de 1500. A continuada acção devastadora é assim descrita:
"Durante quinhentos anos, a Mata Atlântica propiciou lucros fáceis: papagaios, coran-
tes, escravos, ouro, ipecacuanha, orquídeas e madeira para o proveito de seus senhores
coloniais e, queimada e devastada, uma camada imensamente fértil de cinzas que possi-
bilitavam uma agricultura passiva, imprudente e insustentável. A população crescia
cada vez mais, o capital "se acumulava", enquanto as florestas desapareciam; mais capi-
tal então "se acumulava" - em barreiras à erosão de terras de lavoura, em aquedutos,
controle de fluxos e enchentes de rios, equipamentos de dragagem, terras de mata plan-
tada e a industrialização de sucedâneos para centenas de produtos outrora apanhados de
graça na floresta. Nenhuma restrição se observou durante esse meio milénio de gula,
muito embora, quase desde o início, fossem entoadas intermitentes interdições solenes
que, nos dias atuais, são contínuas e frenéticas." A situação, não obstante a extensa
mata disponível, provocou alguns problemas. Deste modo em 1660 o município
de Salvador da Baía definiu um conjunto de medidas, que não foram suficientes
uma vez que em 1804 no Recôncavo era evidente a falta de lenhas e madeiras. O
desaparecimento da floresta próxima dos engenhos fazia aumentar os custos de
fabrico do açúcar, agora onerados com os da lenha.

A crise açucareira da segunda metade do século XVI não surge apenas como
resultado da concorrência do açúcar de novas áreas, mas acima de tudo das
dificuldades internas da própria cultura. O espaço da ilha é de recursos limita-
dos que facilmente se esgotam. Sucedeu assim na Madeira como nas Canárias.
As ilhas, pela limitação do espaço, foram os primeiros espaços a ressentir-se da
realidade. Sucede assim em ambos os lados do Atlântico, apontando-se como
única excepção as ilhas de S. Tomé e Príncipe. Nas Caraíbas a situação é igual.
Na então ilha de Santo Domingo, hoje Haiti e Rep. Dominicana, a cultura da
cana teve um apogeu curto de pouco mais de cinquenta anos, pois que em 1550
a notória escassez de lenha conduziu ao abandono de muitos engenhos desde
1570. Já em Jamaica, a promoção pelos ingleses da cultura, levou à busca de
soluções. Primeiro o trem jamaicano que terá sido a solução mais eficaz. Com
este sistema de fornalha o aproveitamento de lenha era evidente, pois apenas
com uma só fogueira se conseguia manter as três fornalhas. Concomitantemen-
te tivemos o recurso ao bagaço como combustível. Note-se que ambas as situa-
ções difundem-se primeiro nas Antilhas inglesas a partir da década de oitenta
do século XVII e só depois atingem as demais áreas açucareiras. A generaliza-
ção do sistema aconteceu primeiro nas ilhas, carentes de lenha, e só depois che-
gou ao Brasil. A sua entrada definitiva na indústria açucareira do Brasil é de
1806, altura em que Manuel Ferreira da Câmara, na Baía, adaptou o seu enge-
nho a esta nova situação. Todavia nesta época a grande inovação era já a
maquina a vapor, que começou a ser usada no Brasil a partir de 1815. Entretan-
to a Caldeira de vacum, inventada em 1830 por Norbert Rillius de New Orleans,
foi a técnica que revolucionou o fabrico do açúcar e que mais contribuiu para a
economia de combustível.

A EXPANSÃO DOS CANAVIAIS A PARTIR DAS ILHAS. O mais significa-


tivo da situação do novo mercado produtor de açúcar é que o madeirense está
indissociavelmente ligado. Na verdade, a Madeira foi o ponto de partida do
açúcar para o Novo Mundo. O solo madeirense confirmou as possibilidades de
rentabilização da cultura através de uma exploração intensiva e de abertura de
novo mercado para o açúcar. É a partir da Madeira que se produz açúcar em
larga escala que veio a condicionar os preços de venda, de forma evidente nos
finais do século XV. O madeirense foi também capaz de agarrar esta opção, tor-
nando-se no obreiro da difusão no mundo Atlântico. A tradição anota que foi a
partir da Madeira que o açúcar chegou aos mais diversos recantos do espaço
atlântico e que os técnicos foram responsáveis pela implantação. O primeiro
exemplo está documentado com Rui Gonçalves da Câmara, quando em 1472
comprou a capitania da ilha de S. Miguel. Na expedição de tomada posse da
capitania fez-se acompanhar de socas de cana da Lombada, que entretanto ven-
dera a João Esmeraldo, e dos operários para a tornar produtiva. Seguiram-se
depois outros que corporizaram diversas tentativas frustradas para fazer vingar
a cana-de-açúcar nas ilhas de S. Miguel, Santa Maria e Terceira 78 .

Em sentido contrário avançou o açúcar em 1483, quando o Governador D.


Pedro de Vera quis tornar produtiva a terra conquistada nas Canárias. De novo
a Madeira surge disponibilizar as socas de cana para que aí surgissem os cana-
viais e o primeiro engenho em 1484. Todavia, o mais significativo é a forte pre-
sença portuguesa no processo de conquista e adequação do novo espaço a eco-
nomia de mercado. Os portugueses, em especial o madeirense, surgem com fre-
quência nas ilhas ligando-se ao processo de arroteamento das terras, como
colonos que recebem datas de terras na condição de trabalhadores especializa-
dos a soldada, ou de operários especializados que constroem os engenhos e os
colocam em movimento. No caso de La Palma refere-se um Leonel Rodrigues,
mestre de engenho que ganhou o estatuto em 12 anos de trabalho na Madeira 79 .
É de referir também idêntico papel para as ilhas Canárias na projecção da cultu-
ra às colónias castelhanas do novo mundo. Assim, em 1519 Carlos V recomen-
dou ao Governador Lope de Sousa que facilitasse a ida de mestres e oficiais de
engenho para as Índias 80 .

78 Gaspar FRUTUOSO, Livro Quarto das Saudades da Terra, Vol. II, pp. 59, 209-212; V. M. GODINHO, ob. cit., Vol. IV, F.

Carreiro da COSTA, "A cultura da cana-de-açúcar nos Açores. Algumas notas para a sua História" in Boletim da Comissão
Reguladora do Comércio de cereais dos Açores, nº 10, 1949, 15-31.
79Conquista de la Isla de Gran Canaria, La Laguna, 1933, p. 40; José PÉREZ VIDAL, Los Portugueses en Canarias. Portugue-

sismos, Las Palmas, 1991; Felipe FERNANDEZ-ARMESTO, ob. cit., 14-19; Pedro MARTINEZ GALINDO, Protocolos de
Rodrigo Fernandez (1520-1526). Pimera parte, La Laguna, 1982, pp. 67, 84-90; Guilhermo CAMACHO Y PÉREZ GALDOS,
"El cultivo de la cana de azúcar y la industria azucarera en Gran Canaria (1510-1535) in AEA, nº 7, 1961, 35-38; Maria
LUISA FABRELLAS, "La producción de azúcar en Tenerife" in Revista de História, nº 100, 1952, 454/475; Gloria DIAZ
PADILLA, e José Miguel RODRIGUEZ YANES, El Señorio en Las Canarias Occidentales..., Santa Cruz de Tenerife, 1990, p.
316.
80 CF. José PEREZ VIDAL, "Canarias, el azúcar, los dulces y las conservas", in II Jornadas de Estudios Canarios-America,

Santa Cruz de Tenerife, 1981, p. 176-179.


O avanço do açúcar para sul ao encontro do habitat que veio gerar o boom da
produção, deu-se nos anos imediatos ao descobrimento das ilhas de Cabo Ver-
de e S. Tomé. Todavia, só na última, pela disponibilidade de água e madeiras,
os canaviais encontraram condições para a sua expansão. Deste modo em 1485 a
coroa recomendava a João de Paiva que procedesse à plantação de cana do açú-
car. Para o fabrico do açúcar refere-se a presença de “muitos mestres da ilha da
Madeira” 81 . É, alias, aqui que se pode definir o prelúdio da estrutura açucareira
que terá expressão do outro lado do Atlântico.

Colombo abriu as portas ao Novo Mundo e traçou o rumo da expansão da


cana-de-açúcar. A cultura não lhe era alheia, pois o navegador tem no curricu-
lum algumas actividades ligadas ao comércio do açúcar na Madeira. O navega-
dor, antes da relação afectiva ao arquipélago, foi, a exemplo de muitos genove-
ses mercador do açúcar madeirense. Em 1478 ele encontrava-se no Funchal ao
serviço de Paolo di Negro para conduzir a Génova 2400 arrobas a Ludovico
Centurione. Com esta viagem e, depois da larga estância do navegador na ilha,
Colombo ficou conhecedor da dinâmica e importância do açúcar da Madeira 82 .
Em Janeiro de 1494 83 , aquando da preparação da segunda viagem, o navegador
sugere aos reis católicos o embarque de 50 pipas de mel e 10 caixas de açúcar da
Madeira para uso das tripulações, apontando o período que decorre até a Abril
como o melhor momento para o adquirir. A isto podemos somar a passagem do
navegador pelo Funchal no decurso da terceira viagem em Junho de 1498
podemos apontar como muito provável a presença de socas de canas da Madei-
ra na bagagem dos agricultores que o acompanhavam. Neste momento a cultu-
ra dos canaviais havia adquirido o apogeu na ilha, mantendo-se uma importan-
te franja de canaviais ao longo da vertente sul 84 .

A tradição anota que as primeiras socas de cana saíram de La Gomera. Todavia,


a cultura encontrava-se aí nesse momento em expansão, enquanto na Madeira
estava já consolidada. Estão por descobrir as razões que conduziram Colombo,
no decurso da Terceira viagem, a fazer um desvio para escalar o Funchal. Na
verdade, a Madeira foi a primeira área do Atlântico onde se cultivou a cana-de-
açúcar que, depois, partiu à conquista das ilhas (Açores, Canárias, Cabo Verde,
S. Tomé e Antilhas) e continente americano. Por isso mesmo o conhecimento do
caso madeirense assume primordial importância no contexto da História e
Geografia açucareira dos séculos XV a XVII.

O açúcar da Madeira ganhou fama no mercado europeu. A qualidade diferen-


ciava-o dos demais e fê-lo manter-se como o preferido de muitos consumidores
europeus. O aparecimento de açúcar de outras ilhas ou do Novo Mundo veio a
gerar uma concorrência desenfreada ganha por aquele que estivesse em condi-

81 Isabel Castro Henriques, O Ciclo do açúcar em S. Tomé nos séculos XV e XVI, in Albuquerque, Luís de (dir.), Portugal

no Mundo, Lisboa, sd, vol. I, pp.264-28O


82 VIEIRA, Alberto, "Colombo e a Madeira", Actas III Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, CEHA, 1993.,

IDEM, “Colombo e a Madeira: tradição e história”, Islenha, 1989, Nº 5, pp. 35-47.


83 Consuelo Varela, Cristóbal Colón. Textos y Documentos Completos, Madrid, 1984, p.160.
84 Cristóbal Colón, Textos y Documentos Completos, Madrid, Alianza Editorial, 1984, p. 160; Fray Bartolomé de las CASAS,

Historia de las Indias, Vol. I, México, Fundo de Cultura Económica, 1986, p. 497.
ções de ser oferecido ao melhor preço. Francisco Pyrard de Laval testemunha a
situação: “Não se fale em França senão no açúcar da Madeira e da ilha de S. Tomé, mas
este é uma bagatela em comparação do Brasil, porque na ilha da Madeira não há mais de
sete ou oito engenhos a fazer açúcar e quatro ou cinco na de S. Tomé” 85 . E refere que
no Brasil laboravam 400 engenhos que rendiam mais de cem mil arrobas vendi-
das como da Madeira.

A partir do século XVI a concorrência do açúcar das Canárias e S. Tomé apertou


o cerco ao açúcar madeirense o que provocou a natural reacção dos agricultores
madeirenses. Sucederam-se queixas junto da coroa, que ficou testemunho em
1527 86 . Em vereação reuniram-se os lavradores de cana para reclamar junto da
coroa contra o prejuízo que lhes causava o progressivo desenvolvimento da cul-
tura em S. Tomé. A resposta do rei, no ano imediato 87 , remete para uma análise
dos interesses em jogo e só depois, no prazo de um ano, seria tomada uma deci-
são, que parece nunca ter vindo. A exploração fazia-se directamente pela coroa
e só a partir de 1529 surgem os particulares interessados nisso.

Enquanto isto se passava nas ilhas, do outro lado do Atlântico davam-se os


primeiros passos no arroteamento das terras brasileiras. E, mais uma vez, é
notada a presença dos canaviais e dos madeirenses como os seus obreiros. A
coroa insistiu junto dos madeirenses no sentido de criarem as infra estruturas
necessárias ao incremento da cultura. Aliás, o primeiro engenho aí erguido por
iniciativa da coroa, contou com a participação dos madeirenses. Em 1515 a
coroa solicitava os bons ofícios de alguém que pudesse erguer no Brasil o pri-
meiro engenho, enquanto em 1555 foi construído por João Velosa, apontado por
muitos como madeirense, um engenho a expensas da fazenda real 88 . A aposta
da coroa na rentabilização do solo brasileiro através dos canaviais levou-a a
condicionar a força de mão-de-obra especializada, que então se fazia na Madei-
ra. Assim, em 1537 os carpinteiros de engenho da ilha estão proibidos de ir à
terra dos mouros 89 .

O movimento de migração de mão-de-obra especializada do engenho acentuou-


se na segunda metade do século XVI, por força das dificuldades da cultura em
solo madeirense. O Brasil, nomeadamente Pernambuco, continuará a ser a terra
prometida para muitos. Em 1579 90 refere-se que Manuel Luís, mestre de açúcar,
que exercera o ofício na ilha estava agora em Pernambuco. Muitos mantêm con-
tactos com a ilha, nomeadamente quanto ao comércio de açúcar, é o caso de
Francisco Álvares e João Roiz 91 . Acontece que este movimento de operários
85 Viagem de Francisco Pyrard de Laval, Vol. I, Porto, 1944, p. 228.
86 ARM, CMF, Vereações 1527, fl. 23vº, 26 de Março.
87 ARM, D. A., nº 66: 8 de Fevereiro 1528.
88 Cf. Basílio de Magalhães, O Açúcar nos Primórdios do Brasil Colonial, Rio de Janeiro, 1953; David Ferreira de Gouveia, A

Manufactura Açucareira Madeirense (1420-1550). Influência Madeirense na Expansão e Transmissão da Tecnologia


Açucareira, in Atlântico, Funchal, 1987, nº.10; Maria Licínia Fernandes dos Santos, Os Madeirenses na Colonização do Brasil,
Funchal, 1999, pp.46-60.
89 Alberto LAMEGO, "onde foi iniciado no Brasil a lavoura canavieira, onde foi levantado o primeiro engenho de açú-

car" in B. Açúcar, nº 32, 1948, pp. 165-168; Arquivo Geral da Alfândega de Lisboa, livro 54, fl. 41; Documentos para a História
do Açúcar, ed. I, A. A. Vol I, Rio de Janeiro, 1954, pp. 121-123, 5 de Outubro 1555; ARM, RGCMF, T. I, fl. 372vº.
90 ARM [Arquivo Regional da Madeira], Misericórdia do Funchal, nº.711, fls.114-115: 7 de Março.
91 ARM, JRC [Julgado de Resíduos e Capelas], fls. 391-396: 11 de Setembro de 1599.
especializados era controlado pelas autoridades, no sentido de evitar a concor-
rência de outras áreas com o Brasil. Sucede que em 1647 92 Richarte Piqueforte
vendera um escravo, “oficial de asucares”, a um mercador francês que o preten-
dia conduzir a S. Cristóvão. A coroa entendia que a saída não deveria ser auto-
rizada e que o escravo deveria ser adquirido e embarcado para o Rio de Janeiro
às ordens do Provedor da Fazenda, para aí ser vendido.

Com tais condicionantes e colocados perante o paulatino decréscimo da produ-


ção açucareira na ilha, muitos madeirenses foram forçados a seguir ao encontro
dos canaviais brasileiros. Em Pernambuco e na Baia, entre os oficiais e proprie-
tários de engenho, pressente-se a forte presença madeirense. Alguns destes
madeirenses se tornaram em importantes proprietários de engenho como foi o
caso de Mem de Sá, João Fernandes Vieira o libertador de Pernambuco. É a par-
tir daqui que se estabelece um vínculo com a Madeira, continuado através do
trato ilegal de açúcar para o Funchal ou então ao mercado europeu com a
designação da Madeira. Este movimento seguia as ancestrais ligações entre os
que do outro lado do Atlântico via florescer a cultura e aqueles que na ilha fica-
vam sem os seus benefícios. Veja-se, por exemplo, o caso de Cristóvão Roiz de
Câmara de Lobos que em 1599 declara ter crédito em três mestres de açúcar de
Pernambuco em cerca de cem mil réis de uma companhia que teve com Francis-
co Roiz e Francisco Gonçalves 93 .

Os dados, embora avulsos evidenciam a presença dos madeirenses em todas as


capitanias aonde chegou o açúcar. São eles, purgadores, carpinteiros, mestres,
mas também senhores de engenhos 94 . Muitos arrastaram consigo a família, de
modo que algumas se notabilizaram. É o caso dos LEME, flamengos que fize-
ram da Madeira trampolim para a afirmação no Brasil 95 .

CONCLUSÃO.

A Europa sempre se prontificou a apelidar as ilhas de acordo com a oferta de


produtos ao mercado. Deste modo, sucedem-se as designações de ilhas do pas-
tel, do açúcar e do vinho. O açúcar ficou como epíteto da Madeira e de algumas
das Canárias, onde a cultura foi a varinha de condão para a riqueza que trans-
formou a economia e vivência das populações. Também do outro lado do ocea-
no elas se identificam com o açúcar, uma vez que serviram de ponte à passagem
do Mediterrâneo para o Atlântico. Daqui resulta a relevância do estudo das
ilhas, quando se pretende fazer a reconstituição da rota do açúcar. A Madeira é
o ponto de partida, por dois tipos de razões. Primeiro, porque foi pioneira na

92 NA [Arquivos Nacionais]. PJRFF [Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal], nº.980, fls. 182-183: 3 de Setembro.
93 Em 1579 (ARM, Misericórdia do Funchal, nº 711, fls. 114-115) Gonçalo Ribeiro refere ser devedor a Manuel Luís, mestre
de açúcar, "que agora está em Pernambuco". José António Gonsalves de MELLO, João Fernandes Vieira. Mestre de Campo do
terço da infantaria de Pernambuco, Vol. II, Recife, 1956, pp. 201-267. ARM, J.R.C., fls. 391-396: Testamento de 11 de Setem-
bro de 1599.
94 Cf. David Ferreira de Gouveia, ibidem, p.127.
95 Cf. John G. Everaert, Les Lem, Alias Leme Une Dynastie Marchande d’ origine Flamande au Service de l´Éxpansion

Portugaise, in Actas do III Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1992, pp.817-838.
exploração da cultura e, depois, porque jogou papel fundamental na sua expan-
são ao espaço exterior próximo ou longínquo, desde os Açores e Canárias, Cabo
Verde, S. Tomé e Príncipe, até ao Brasil e, de forma indirecta, às Antilhas.

A partir da segunda metade do século XVI, perante a situação do mercado açu-


careiro atlântico e a melhor capacidade concorrencial doutras áreas, o açúcar
insular estava irremediavelmente perdido. Os canaviais foram desaparecendo
paulatinamente das terras, dando lugar a outras culturas ou actividades. Ape-
nas a conjuntura da segunda metade do século dezanove permitiu o retorno.
Mas foram efémeras as tentativas para a produção de açúcar e mesmo assim só
possível mediante uma política proteccionista. Os canaviais perderam a função
de produtores do açúcar, o ouro branco dos insulares, mas em contrapartida
favoreceram uma produção alternativa de mel e aguardente. Hoje não mais se
fala do ouro branco, mas sim do rum ou aguardente e mel, os herdeiros da cultu-
ra nas ilhas.

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