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LEITURAS CRUZADAS: CONVERSAS LITERÁRIAS NA BIBLIOTECA

21.01.2016

HEINER MÜLLER
E O SÉCULO DOS DENTISTAS

AJAX POR EXEMPLO

1 A pílula é um truque imundo


Ajax é que limpa a fundo.
(Da sabedoria popular)
Nas livrarias pilhas de
5 Bestsellers literatura para idiotas
A quem não basta a televisão
Ou o cinema que embrutece mais lentamente
Eu dinossauro não de Spielberg estou sentado
Pensando na possibilidade
10 De escrever uma tragédia Santa ingenuidade!
No hotel em Berlim capital irreal
Através da janela os olhos pousam
Na estrela da Mercedes
Girando melancólica no céu nocturno
15 Por sobre os dentes de ouro de Auschwitz e outras filiais
Do Deutsche Bank no cimo do Europacenter
Europa O touro foi abatido a carne
Apodrece na língua o progresso não deixa escapar uma vaca
Nunca mais os deuses te visitarão
20 O que te resta é o Ah! de Alcmena
E o fedor da carne queimada que diariamente
O vento sem terra te traz das tuas margens
E por vezes das caves da tua abundância
Murmura a cinza canta a farinha de OSSOS
25 O noticiário electrónico na Kurfükstendamm anuncia ao mundo
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21.01.2016

PETER ZADEK MOSTRA 0S DENTES A BERLIM


BEWARE OF DENTISTS apetece dizer-lhe
Na Guerra dos Camponeses a maior tragédia
Da história alemã lia eu abanando a cabeça
30 Em estado de inocência em quarenta e oito
Como pode uma revolução ser uma tragédia?
Nas notas de Brecht MÃE CORAGEM
Foi arrancado à Reforma o seu dente canino
Hoje estou em condições de escrever a continuação Da
35 Revolução Francesa nas guerras napoleónicas
Do parto prematuro do socialismo na guerra fria

Desde então a história voltou a dançar o tango


Um excurso sobre revolução e medicina dentária
Escrito no século dos dentistas
40 Duas próteses dentárias um Prémio Büchner
Que está a chegar ao fim O próximo
Será dos advogados o tempo
Está à venda no mercado imobiliário
No arranha-céus por baixo da estrela da Mercedes
45 Nos andares da Administração Cultural
Que palavra! Quem administrou Fídias
Segundo POLIDORO um negociante de tapetes de Esmirna
Também a arte não vive apenas de pó
Ainda há luz fumegam as cabeças porque há que poupar
50 Os amputados ensaiam o seu passo aprumado
Com muletas de fibra de vidro emprestadas
Vigiados pelo senador das finanças
TUDO PARA O DINHEIRO TENDE TUDO DO DINHEIRO DEPENDE
Cerne Fausto no sarcófago de Goethe em Weimar
55 Com a voz rachada de Einar Schleef
Ensaiando os seus coros no crânio de Schiller

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21.01.2016

Eu dinossauro no zumbir do ar condicionado


E também na espiral dos impostos até ao pescoço
A soberania do Estado assenta no dinheiro O dinheiro
60 Tem de comprar Trabalho é prisão Pátria é
Onde chegam as contas diz a minha mulher
Lê Sófocles o AJAX por exemplo Descrição
De uma vivisseccção tragédia amarelecida
De um homem com quem uma deusa caprichosa
65 Joga à cabra-cega diante de Tróia no fundo dos tempos
Arnold Schwarzenegger na TEMPESTADE NO DESERTO
Para me fazer entender pelos leitores de hoje
EU AJAX VITÍMA DE DUPLO EMBUSTE
Um homem em Stalinstadt província de Frankfurt-Oder
70 Ouvindo a notícia da mudança de clima em Moscovo
Tirou da parede sem uma palavra o retrato do amado
Guia da classe operária do comunismo mundial
Espezinhou a imagem do ditador morto
Enforcou-se no gancho que ficara livre

75 A sua morte não teve honras de notícia Uma vida


Para a trituradora ou NENHUM OU TODOS
Era o falso programa para todos não chega
O último objectivo de guerra é o ar que se respira
Ou então libertado pelo Exército Vermelho
80 Do gulag de Hitler depois de quatro dias de marcha a pé
Ouve a mulher gritar de uma janela destruída
Vê um soldado do glorioso Exército Vermelho
Atirá-la para cima da cama esquece o ABC
Do comunismo racha a cabeça ao camarada
85 Libertador Faz a sua autocrítica falando com o morto
Sem dar ouvidos à mulher que continua a gritar
E visto pela última vez no transporte

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21.01.2016

Para o gulag de Estaline a sua segunda epifânia


Canta a Internacional no vagão de gado
90 Se morreu ainda hoje canta
Com os comunistas mortos debaixo do gelo
A felicidade da escrita nos anos cinquenta
Naquele mundo seguro do verso branco
Entre as pranchas do navio fantasma a adornar
95 Protegidos pelo pathos irónico do verso de pé-quebrado
Só as sílabas fortes é que contam
Contra a pedra solta dos monumentos
Na eternidade do instante
Na miséria da informação “BILD” LUTA POR SI
100 A narrativa cai na prostituição "BILD" LUTA
A tragédia solta o último suspiro Estaline por exemplo
Desde que os seus totems estão à venda
Sangue coagulado na lata das medalhas
Na Porta de Brandeburgo para os netos de Hitler
105 Que texto lhe posso eu pôr na boca
Ou enfiar no focinho depende do ponto de vista
Na coutada dos seus dentes amarelos
Na sua dentadura de lobo do Cáucaso
Na sua noite no Kremlin à espera de Hitler
110 Quando aparece Lenine sem fala a voz
Entaramelada da vodka e berrando depois da segunda apoplexia
O motor do mundo a quem a língua
Já não quer obedecer LENINEDADA
O seu mundo é um quadrado de Malevitch
115 O tártaro que já não entende
A lei da estepe fez-se romano fora de tempo
E que o seu carrasco o do Cáucaso traz no sangue
Ou Trotzki com o cutelo de Macbeth ainda cravado no crânio
O punho cerrado na saudação bolchevista

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120 Na torre do blindado alemão Hamlet o Judeu


Ou Bucarine a cantar na cave
O favorito do Partido filho da AURORA
Com Hitler talvez ele possa falar de homem para homem
Ou de besta para besta depende do ponto de vista
125 O que enterra os mortos e o Führer dos mortos
Ao cabo de dez anos de guerra Tróia estava pronta para o museu
Matéria para a arqueologia
Só uma cadela uiva ainda á volta da cidade
Entre as ossadas o vingador fundou Roma
130 Prémio uma mulher em chamas em Cartago
Mãe dos elefantes de Aníbal
Roma amamentada pela loba que deixou em herança ao vencedor
A Grécia uma província onde se ia buscar a cultura
3000 anos depois do sangrento
135 Nascimento da democracia com banho rede machado
OH NOITE MÃE NEGRA na casa dos Átridas
A tenaz quem a leva é Atena nascida da cabeça
Rasteja a terceira Roma prenhe de desgraças
Para Belém para assumir a sua nova forma
140 O murmúrio das velhas imagens O cansaço
Atrás de mim o eco infinito
Do programa de televisão CONNOSCO VOCÊ ESTÁ
NA PRIMEIRA FILA A dificuldade
De fazer valer o verso contra o staccato
145 Da publicidade que chama para a mesa os voyeurs
O CRIME NOSSO DE CADA DIA NOS DAI HOJE
Da minha memória emerge o título de um livro
A PRIMEIRA FILA notícia de mortes na Alemanha
Comunistas caídos na guerra contra Hitler

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150 Jovem como os incendiários de hoje sabendo


Pouco talvez como os incendiários de hoje
Sabendo outras coisas e não sabendo outras coisas
Apanhados por um sonho que leva à solidão
No eterno círculo de mercadoria com a mercadoria
155 Os seus nomes esquecidos e apagados
Em nome da nação o que quer que isso seja ou possa vir a ser
Na mistura actual de violência e esquecimento
No frio sem sonhos do espaço cósmico
EU AJAX QUE DERRAMOU O SEU SANGUE
160 CURVADO SOBRE A ESPADA NA PRAIA DE TRÓIA
No ruído branco
Os deuses regressam depois do fecho da emissão
Arde a nostalgia pela rima pura
Que muda o dia em sonho o mundo em nada
165 No espaço einsteiniano a rima é uma piada
A onda luminosa não traz espuma agarrada
O monumento a Brecht é uma árvore desfolhada
E assim por diante até esgotar a língua
Ou o dicionário de rimas
170 O último programa é a invenção do silêncio
EU AJAX QUE DERRAMOU

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21.01.2016

A MORTE DE SÉNECA

1 Que pensou Séneca (sem o dizer)


Quando o capitão da guarda pessoal de Nero mudo
Tirou da couraça a sentença de morte
Selada do discípulo para o mestre
5 (Tinha aprendido a escrever e selar
E a desprezar todas as mortes em vez
Da própria: regra de ouro de toda a arte da política)
Que pensou Séneca (sem o dizer)
Quando proibiu de chorar os convidados e os escravos
10 Que tinham partilhado com ele a última refeição
Os escravos no topo da mesa AS LÁGRIMAS SÃO ANTIFILOSÓFICAS
TEMOS DE ACEITAR O QUE FOl DECIDIDO
E QUANTO A ESTE NERO QUE MATOU
A MAE E AS IRMÃS PORQUE É QUE ELE
15 HAVIA DE ABRIR UMA EXCEPÇÃO PARA O SEU MESTRE PORQUÊ
PRESCINDIR DO SANGUE DO FILÓSOFO
QUE LHE NAO ENSINOU A DERRAMAR SANGUE
E quando mandou que lhe abrissem as veias
Primeiro as dos BRAÇOS e à mulher
20 Que não queria sobreviver à sua morte
Com um corte feito por um escravo provavelmente
Também a espada sobre a qual Bruto se deixou cair
No fim da sua esperança republicana
Teve de ser empunhada por um escravo
25 Que pensou Séneca (sem o dizer)
Enquanto o sangue lento de mais abandonava
O seu corpo velho de mais e o escravo obedecendo ao senhor
Abria também as veias das pernas e da dobra dos joelhos
Murmúrio com as cordas vocais já secas
30 AS MINHAS DORES SÃO PROPRIEDADE MINHA

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A MULHER QUE VÁ PARA O QUARTO AO LADO QUE VENHA O ESCRIBA


A mão já não conseguia segurar o estilete
Mas o cérebro continuava a trabalhar a máquina
Produzia palavras e frases anotava as dores
35 Que pensou Séneca (sem o dizer)
Entre as letras do seu último ditado
Deitado na otomana do filósofo
E quando esvaziou a taça o veneno de Atenas
Porque a morte se fazia ainda esperar
40 E o veneno que a muitos ajudara antes dele
Só podia escrever uma nota de pé de página no seu
Corpo já quase sem sangue mas não um texto em letra de forma
Que pensou Séneca (finalmente sem fala)
O terraço foi ao encontro da morte no banho de vapor
45 Enquanto o ar lhe dançava diante dos olhos
O terraço escurecia de um confuso bater de asas
Provavelmente não de anjos a morte também
Não é anjo no tremular das colunas ao reencontrar
A primeira folha de erva que tinha visto
50 Num campo perto de Córdova alta como árvore nenhuma

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O BLOCO DE MOMMSEN
para Felix Guattari

What authorities are there


beyond Court tittle tattle
(Mommsen a James Bryce,1898)

1 Os motivos que terão levado o grande historiador


A não escrever o quarto volume da sua
HISTÓRIA DE ROMA o tão esperado
Sobre o período imperial ocupam
5 Os historiadores que se seguiram
Não falta quem adiante boas razões
Deixadas em cartas boatos suposições
A falta de inscrições Quem escreve com o cinzel
Não tem assinatura As pedras não mentem
10 A literatura não lhe inspirava confiança INTRIGAS E
MEXERICOS PALACIANOS Mesmo os argênteos fragmentos
Do lacónico Tácito só leitura para poetas
Para quem a história é um peso
Insuportável sem a dança das vogais
15 Nos túmulos contra a força da gravidade dos mortos
E o seu medo do eterno retorno
Não gostava deles dos Césares do período tardío
Nem do seu cansaço dos seus vícios
Deu-lhe que fazer o único Júlio
20 A quem dava valor como à sua própria pedra tumular
Até para DESCREVER A MORTE DE CÉSAR dizia
Quando lhe perguntavam pelo quarto volume
Que faltava JÁ NÃO TINHA ENTUSIASMO
E OS SÉCULOS EM DECOMPOSIÇÃO depois dele

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25 TODO CINZENTO TUDO NEGRO Para quem


O epitáfio? Que Bismarck era a parteira
E também o coveiro do Império
Essa coisa nascida de um falso despacho telegráfico
Podia deduzir-se do terceiro volume
30 Em Charlottenburg apodrecendo
Duas vezes ao dia o passeio de “carro americano”
No pó dos livros e manuscritos quarenta
Mil na casa dos Mommsen Machtstrasse oito
Doze filhos no subterrâneo A CORAGEM DE ERRAR
35 QUE FAZ O VERDADEIRO HISTORIADOR AGORA INFELIZMENTE
SEI O QUE NÃO SEI Por exemplo Por que razão
Se afunda Um império As ruínas não respondem
O silêncio das estátuas doura a decadência
O QUE COMPREENDEMOS SÃO AS INSTITUIÇÕES
40 MAS ELE ESTA CANSADO E MUlTO CHElO DE PÓ
Escreveu o devoto Dilthey ao conde de Iorque
DAS CAMINHADAS PELAS ESTRADAS DA FILOLOGIA
INCRIÇÕES E POLÍTICA PARTIDÁRIA
SEM A NOSTALGIA DO ESPÍRITO PELO IN-
45 VISÍVEL REINO O seu reino era o palpável
Numa carta a uma filha a senhora Wilamowitz
Sonha com uma vilIa perto de Nápoles
Não para aprender a morrer Vem o tempo vem a morte
E não há remissão UMA FÉ TOSCA
50 PARA CONDES E BARÕES o Cristianismo
Uma doença que ataca a árvore desde a raiz
Um cancro minado por serviços noticiosos
Os doze apóstolos doze agentes secretos
O traidor fornece a prova da existência de Deus
55 E a marca registada Saulo um cão de fila
Colonizado faz o papel do social-democrata

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Agora Paulo por obra de uma queda do cavalo


E cordeiro-mor do Deus desconhecido
A quem serve atraindo as ovelhas ao redil
60 Para as escolher Salvação ou danação
Só perante os vermes os mortos são iguais
Um bufo da polícia o primeiro Papa
Só João em Patmos afundado na droga
O herege o guia dos mortos o terrorista
65 Viu a nova besta que aí vem
O sonho de Itália é um sonho de escrita
O estímulo do luar sobre ruínas
Com o orgulho divino DOS ANOS DA MINHA JUVENTUDE
DOS MAIS JOVENS PELO MENOS QUE JOVEM NUNCA FUI
70 O que fica é a DIVINA CRUEZA A POOR
SUBSTITUTE No pântano as águias Porquê
Escrever isso só porque a turba o quer ler
Que nos pântanos há mais vida do que
Lá em cima sabe-o a biologia
75 Como é que havemos de fazer entender as pessoas
E para quê que o primeiro decénio do reinado de Nero
O artista falhado o Sanguinário
Se torna música negociada por alto preço na fase da decadência
Quando se diz tudo as vozes começam a ficar doces
80 Foi um tempo feliz para o povo de Roma
Talvez o mais feliz da sua longa história
Tinha o seu pão os seus jogos Os massacres
Passavam-se nas filas superiores
E tinham um alto nível de audiência
85 Um incêndio na casa dos Mommsen causado
Não por um zelo cristão contra as bibliotecas
Como há dois mil anos em Alexandria
Mas por uma explosão de gás na Machtstrasse número oito

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Fez nascer a terrível esperança


90 De que o grande sábio tenha afinal escrito
O quarto volume há muito esperado
Sobre o período imperial e que o manuscrito
Ardeu com o resto da biblioteca por exemplo
Quarenta mil volumes mais os manuscritos
95 Salvou-se O FRAGMENTO DA ACADEMIA
Sete páginas em esboço emolduradas pelo fogo
AS PALAVRAS DE MOMMSEN ARDIDAS VÃO ENTRE COLCHETES
Como escrevem os responsáveis da edição
Cento e doze anos depois do incêndio
100 Os jornais dão a notícia do fogo
Nietzsche leitor de jornais escreve a Peter Gast:
“Leu a notícia do incêndio na casa dos
Mommsen? E que arderam as suas notas, talvez os
Trabalhos preparatórios de maior peso feitos por um
105 Sábio vivo? Diz-se que ele se lançou várias vezes
Para as chamas, até que tiveram de o dominar à força
Já todo cheio de queimaduras. Projectos como os de Mommsen
Devem ser muito raros, porque é raro encontrarem-se
Uma memória colossal e a correspondente
110 Perspicácia crítica e sistematizadora
De uma massa de materiais como aquela, pelo
Contrário, as duas coisas costumam excluir-se. — Quando
Ouvi esta história, o coração parecia querer saltar-me
Do peito, e ainda sofro fisicamente quando penso
115 Nisso. Será compaixão? Mas que tenho eu a ver
Com o Mommsen? Eu nem simpatizo com ele!”
Um documento do século da epistolografia
O receio da solidão escondido no ponto de interrogação
Quem escreve para o vazio não precisa de pontuação
120 Permita-me que fale de mim Mommsen Professor

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O maior historiador depois de Gibbon diz Toynbee


(Ou será que ele disse a par de? O eterno receio dos famosos
Consumidos pela suspeita de que a fasquia mente)
Em vida residente em Charlottenburg Machtstrasse oito
125 Duas ou três páginas Para quem escrevemos
A não ser para os mortos omniscientes no pó Uma ideia
Que talvez lhe não diga nada a si professor da juventude
O esquecimento é um privilégio dos mortos
Ainda assim o Senhor mesmo proibiu
130 Por testamento a publicação das suas lições
Porque a leviandade na cátedra atraiçoa
Os esforços à secretária Até a ENElDA
Vocé queria ver queimada segundo a vontade
Do malogrado Virgílio Céptico até
135 Perante a glória de Augusto construtor de Roma
Porque ela silencia o abismo força a imortalidade
A DIVINA COMÉDIA nunca tenha sido
Escrita ou seria menos perene
Sem o seu veredicto contra o fogo
140 E eu bem gostava que pudesse ler Kafka Professor
No seu jazigo de mármore no seu pedestal
As bombas da Segunda Guerra Mundial como sabe
Não pouparam a Machtstrasse Nem poupada foi
A sua Academia das Ciências
145 Da queda do despotismo asiático produto
De uma falsa leitura e falsamente chamado
Socialismo segundo o grande historiador
Do capital Que o Senhor nunca aceitou
Trabalhador que era de uma outra pedreira
150 Antes de a estátua ser posta no seu pedestal
Pelo tempo de um Estado O pedestal voltou a ser o seu assento
A entrada da Universidade a que os senhores de uma ilusão

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Deram o nome de Humboldt


(Eles não tinham lido a sua História de Roma
155 Nem Marx que silenciou essa leitura
Se ele tivesse vivido mais poderia dizer-se que o fez
Talvez por inveja do dinheiro do seu prémio Nobel o Judeu)
Preso nas malhas dos Césares vermelhos
Que escandiram o texto DELE com botas de soldados
160 Como é que se limpa um campo de minas? perguntou Eisenhower
Vencedor da Segunda Guerra Mundial a um outro
Vencedor Com as botas
De um batalhão em marcha respondeu Shukov
Cantou-se O GRANDE OUTUBRO DA CLASSE OPERÁRIA
165 Voluntariamente Com esperança Ou sob o duplo aperto
Estrangulador de muitos E ainda de goelas cortadas
Uma trovoada de Verão à sombra do Banco Mundial
Foi uma dança de mosquitos sobre túmulos tártaros
WHERE THE DEAD ONES WAlT
170 FOR THE EARTHQUAKES TO COME
Como talvez dissesse Ezra Pound outro Virgílio
Que apostou em falsos Césares malogrado também ele
É que os fantasmas não dormem
O seu alimento preferido são os nossos sonhos
175 Desculpe Professor o tom amargo
A Universidade a que deram o nome de Humboldt
Em cuja entrada o Senhor está de novo no seu pedestal
Muito tempo depois da sua morte está a ser saneada
Neste preciso momento do suposto esterco
180 Da nova tosca fé já não para condes e barões
Ontem ao jantar num restaurante distinto
De Berlim a capital de novo limpa
Eu folheava os apontamentos das suas lições
Sobre o período imperial romano ainda frescos dos prelos

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185 Dois heróis dos novos tempos banqueteavam-se na mesa ao lado


Lemures do capital cambistas e vendilhões
E ouvi o seu diálogo ansioso
Por alimento para a minha náusea do aqui e agora:
“Estes quatro milhões / Têm de ser nossos, e já // Mas [Não é possível //
190 Mas ninguém vai dar por isso // Se não
Tens unhas para tocar esta viola / Estás perdido Viste
O que aconteceu ao X / Não teve unhas // Tens de lhe meter /
Isso na cabeça senão está feito e é pena // Receio
Mesmo / Que o encostem à parede E ele fica ali pendurado A espernear a
195 espernear // Como urna alforreca // Eu acho que ele é um bom angariador
Para as jogadas preparatórias / Mas quando é preciso dar duro... // Aí ele passa a bola para outras
mãos // Mas depois a questão é saber
Serão as nossas mãos tão boas / Que consigam virar o espeto //
Temos que o meter nos eixos // Temos de o comprar para o
200 Deutsche Bank // Nós é que temos de o puxar cá para dentro / É só
eu ter o alicate certo / Vou-lhe mostrar como é que se faz Depois é
que ele vai ver / 0 que é ganhar dinheiro.”
Cinco ruas mais adiante como as sirenas deixam perceber
Os pobres batem nos mais pobres
205 E quando a conversa dos senhores se torna íntima charutos cognac
Seguindo à risca o manual de economia política
Do capitalismo: "A mim queriam / Mandar-me para
[A escola especial // A minha mãe foi peremptória / Contra todos
Vais fazer o curso dos liceus / 0 corpo docente estava sempre
210 Dividido / Havia professores que achavam que eu era estúpido.”
Gritos animalescos Quem havia de querer anotar isto?
Com paixão O ódio não compensa o desprezo dá em nada
Percebi pela primeira vez as suas reservas em escrever
Camarada Professor sobre o período imperial romano
215 O reconhecidamente feliz do consulado de Nero
Sabendo como o texto não escrito é uma ferida

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De onde corre o sangue que nenhuma fama póstuma estanca


E a enorme lacuna na sua História
Foi uma dor neste meu corpo que não sei quanto tempo ainda
220 Respirará E veio-me à lembrança o pó do seu jazigo de mármore
E o café frio às seis da manhã
Em Charlottenburg na casa dos Mommsen Machtstrasse oito
No seu lugar de trabalho cercado de livros

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