Vous êtes sur la page 1sur 1524

#18.

ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

17th to 19th of oct 2019

ANAIS
1
18º Encontro internacional de Arte, Ciência Tecnologia
18th International Meeting of Art, Science and Technology
18º Encontro internacional de Arte, Ciência Tecnologia
18th International Meeting of Art, Science and Technology

Edição I Edition

ISSN: 2238-0272
#18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

ORGANIZAÇÃO I ORGANIZATION
Instituições | Institutions
Cultivamos Cultura - Associação Cultural (Portugal);

Instituto de Investigação e Inovação em Saúde – i3S – Universidade do Porto


(Portugal);

Universidade de Lisboa – Faculdade de Belas Artes (FBAUL) (Portugal) / CIE-


BA: Centro de Investigação e Estudos de Belas-Artes (Portugal);

Universidade de Aveiro – Departamento de Comunicação e Arte (Portugal) /


ID+ - Instituto de Investigação em Design, Media e Cultura (Portugal);

Universidade de Brasília (Brasil);

Universidade Federal de Goiás (Brasil);

A COMISSÃO RESPONSÁVEL pelo evento é constituída por uma equipa de Chairs


que transversalmente asseguram a realização o Encontro Internacional juntando-se
em cada ano a equipas de prestígio reconhecido em diferentes Instituições de Ensi-
no/Investigação.

The COMMITTEE RESPONSIBLE for the event is constituted by a team of Chairs that
transversally ensure the accomplishment of the International Meeting agglomerating
each year to prestigious teams recognized in different Teaching / Research Institutions.

Paulo Bernardino Bastos - Univ. de Aveiro – Dep. de Comunicação e Arte (PT)

Antenor Ferreira – Univ. de Brasília (BR)

Maria Manuela Lopes – Investigadora i3S - Universidade do Porto (PT)

Cleomar Rocha – Univ. Federal de Goiás (BR)

A COMISSÃO ORGANIZADORA do #18.ART foi constituída por uma equipa de In-


vestigadores reconhecidos nas áreas de investigação propostas pelo tema do even-
to e apresenta-se com os seguintes elementos:

The ORGANIZING COMMITTEE of the # 18.ART was constituted by a team of Resear-


chers recognized in the research areas proposed by the theme of the event and presented
with the following elements:

4
#18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Antenor Ferreira – Univ. de Brasília (BR)

Cleomar Rocha – Univ. Federal de Goiás (BR)

João Paulo Queiroz - Univ. de Lisboa/FABUL (PT)

Luís Graça - Univ. de Lisboa (PT)

Maria Manuela Lopes – Investigadora I3S - Porto (PT)

Marta de Menezes – Cultivamos Cultura (PT)

Mónica Mendes - Univ. de Lisboa/FBAUL/ITI/LARSYS (PT)

Paulo Bernardino Bastos - Univ. de Aveiro – Dep. de Comunicação e Arte (PT)

Suzete Venturelli – Univ. de Brasília (BR)

A COMISSÃO CIENTÍFICA do #18.ART é constituída por um grupo de Investigado-


res de reconhecido mérito nas áreas temáticas propostas deste ano e apresenta a
seguinte constituição:

The ORGANIZING COMMITTEE of the # 18.ART was constituted by a team of Resear-


chers recognized in the research areas proposed by the theme of the event and presented
with the following elements:

Adérito Marcos | Univ. Aberta (PT)

Andrés Burbano | Univ. dos Andes (CO)

Antenor Ferreira | Univ. de Brasília (BR)

António Valente | Univ. de Vila Real (PT)

Antonio Wellington de Oliveira Junior | Univ. Federal do Ceará (BR)

Celso Guimarães | Univ. Federal Rio de Janeiro (BR)

Cláudia França | Univ. Espírito Santo (BR)

Cláudia Mariza Brandão | Univ. Fedreal de Pelotas (BR)

Cleomar Rocha | Univ. Federal de Goiás (BR)

Daniel Tércio | Univ. Nova de Lisboa (PT)

5
#18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fabiana Wiellevick | ISCE Douro (PT)

Fátima Lambert | Inst. Politécnico do Porto | InED (PT)

Filipe Rocha da Silva | Univ. de Évora (PT)

Francisco Piquer | Univ. Politécnica de Valencia (ES)

Francisco Providência | Univ. de Aveiro (PT)

Gilbertto Prado, ECA-USP | UAM (BR)

Graça Magalhães | Univ. de Aveiro (PT)

Inês Moreira | Univ. do Porto | FBAUP(PT)

José Alberto Gomes | CITAR/ Univ. Católica Portuguesa (PT)

João Paulo Queiroz | Univ. de Lisboa/FBAUL (PT)

João Vilnei de Oliveira Filho | Univ. Federal do Ceará (BR)

Julio Borlido Santos | Univ. do Porto (PT)

Kathleen Rogers | Univ. Creative Arts (UK)

Laís Guaraldo | Univ. Federal do Rio Grande do Norte (BR)

Lucia Santaella | Pontifícia Univ. Católica de São Paulo (BR)

Luís Graça - Univ. de Lisboa (PT)

Luisa Paraguai | Univ. Campinas (BR)

Luísa Ribas | Univ. de Lisboa/FBAUL (PT)

Maria Luiza Fragoso | Univ. Fed. Rio de Janeiro (BR)

Maria Manuela Lopes | Investigadora I3S - Universidade do Porto (PT)

Mário Gandra | ISCE Douro (PT)

Marta de Menezes | Ectopia | Cultivamos Cultura (PT)

Miguel Carvalhais | Univ. do Porto/FBAUP (PT)

Milton Sogabe | Univ. Anhembi Morumbi (BR)

6
#18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Mirian Tavares | Univ. do Algarve (PT)

Mónica Mendes - Univ. de Lisboa/FBAUL/ITI/LARSYS (PT)

Nara Cristina Santos | Univ. Fed. Santa Maria (BR)

Nelson Zagalo | Univ. de Aveiro (PT)

Paulo Bernardino Bastos | Univ. de Aveiro (PT)

Paulo Luís Almeida | Univ. do Porto | FBAUP (PT)

Philip Cabau | Inst. Politecnico de Leiria (PT)

Priscila Arantes | Paço das Artes (BR)

Rachel Zuanon | Univ. Estadual de Campinas (BR)

Rogério Câmara | Univ. Brasília (BR)

Rosangella Leote | Univ. Estadual Paulista (BR)

Sérgio Eliseu | ISCE Douro / UA(PT)

Silvia Laurentiz | Univ. São Paulo (BR)

Suzete Venturelli | Univ. Brasília, Univ. Anhembi Morumbi (BR)

Tania Fraga | Univ. São Paulo (BR)

Vasco Branco | Univ. do Porto (PT)

Wojciech Owczarski | Univ. Gdansk (PL)

Design I Design

Eloá Ribeiro | Media Lab - BR

7
#18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

#18.ART Encontro | The Meeting


Temos vindo a verificar, ao longo das passadas edições do Encontro Internacional
#ART, que alguns temas tratados têm vindo a apresentar reflexões visando desvelar
a complexa relação política, social e identitária, como forma de evidenciar o pen-
samento artístico. Emergem noções que permitem compreender e aprofundar as
teorias que nascem a partir de novos paradigmas criativos vinculados à simbiose do
pensamento sistêmico, artístico, científico, tecnológico, estético, geográfico, ecoló-
gico, comunicacional e político.

O Encontro Internacional #ART, vem contando com parceiros internacionais, como,


os apoiados pelo programa de cooperação da União Europeia denominado “Euro-
pe-pays tiers: le Bresil”, cuja proposta afirma que a arte não fica indiferente à tensa
relação entre o local e o global - por um lado, esta sujeita aos constrangimentos polí-
ticos, sociais, económicos de um território, por outro lado, sofre a pressão da grande
dimensão de informação das mídias e das tecnologias de comunicação.

Throughout the past editions of the International Meeting, #ART, we have been able to veri-
fy that some of the themes dealt with have been reflections aimed at revealing the complex
political, social and identity relationship, as a way of highlighting artistic thinking. New
concepts emerge which allow us to understand and deepen the theories that are born from
new creative paradigms linked to the symbiosis of systemic, artistic, scientific, technologi-
cal, aesthetic, geographic, ecological, communicational and political thinking.

The International Meeting #ART has counted on international partners, such as those
support-ed by the European Union’s cooperation program called “Europe-pays tiers: le
Bresil; whose proposal affirms that art is not indifferent to the tense relationship betwe-
en local and global - on the one hand, it is subject to the political, social and economic
constraints of a territory, on the other hand, it is under pressure from the great dimension
of media information and communication technologies.

DA ADMIRÁVEL ORDEM DAS COISAS:


da arte, emoção e tecnologia
Partindo de duas obras – “Admirável Mundo Novo” (1931), Aldous Huxley; “A Estra-
nha Ordem das Coisas: A Vida, os Sentimentos e as Culturas Humanas”, António Da-
másio (2017) – desejámos que o #18.ART sirva como plataforma de discussão que
pretende coalescer os mundos da arte, saúde, ciência e tecnologia.

No distópico romance de Huxley, discutem-se avanços tecnológicos em várias facetas


da sociedade (reprodução, aprendizagem durante o sono ou medicamentos para a
felicidade). Uma construção ideológica sobre a desumanização dos seres humanos,

8
#18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

onde se alude a que o preço da liberdade é a vigilância eterna. Esta ideia de evolução
ultrapassa o Homem enquanto individuo, por outro lado, vemos cada vez mais, hoje
em dia, estados de presença e ausência, materialidade e imaterialidade que são en-
carados no domínio da hauntologia - enquanto sensibilidade construída à volta da
ideia de espectro, do simultaneamente presente e ausente. Esta dupla condição de
corpo e imagem pode ser compreendida na dependência da vigilância da tecnologia,
nos fluxos de dados negociados na vivência em rede digital e na proposta de moni-
torização da saúde ou na investigação científica. Vemos como que um contraponto
entre esta hipotética civilização ultra-estruturada (tendo com objetivo a obtenção da
felicidade de todos indivíduos) e as impressões humanas e sensíveis do “anormal” que,
visto como algo aberrante, faz desenvolver um fascínio estranho entre nós.

O uso da tecnologia para construção da felicidade pode por outro lado ser enten-
dida como meio de produção artística, como emergência emocional caraterística
da excecional inteligência humana, auxiliada pela linguagem. Em “A Estranha Or-
dem das Coisas”, Damásio afirma que os sentimentos – de dor, sofrimento ou pra-
zer antecipado – foram as forças motrizes primordiais do empreendimento cultural,
os mecanismos que impulsionaram o intelecto humano na direção da cultura. Nas
suas palavras: “os seres humanos distinguiram-se de todos os outros seres ao criarem
espantosas criações de objetos, práticas e ideias conhecidas coletivamente como
«culturas».” Damásio propõe que os sentimentos monitorizaram o sucesso ou o fra-
casso das nossas invenções culturais, associando cultura a homeostasia tornando
relevante a ligação à natureza aprofundando a humanização do processo cultural,
criando uma interdependência das ideias, praticas culturais, objetos e biologia.

O Encontro Internacional “#18.ART: DA ADMIRÁVEL ORDEM DAS COISAS: arte, emoção


e tecnologia”, procurará analisar conceitos que surgem da prática artística, tecnológica
e científica dos seus participantes, e confrontá-los com as noções oriundas do pensa-
mento contemporâneo dos autores nomeados ou de outros inter-atores propostos.

Verificamos que através dos anteriores eventos deste Encontro Internacional, ficou
claro que a arte - com as condições proporcionadas pelo discurso da ciência, tec-
nologia e dos média - oferece um potencial - inteligente e potenciador - onde os
média e as tecnologias estão engajadas no pensamento crítico e de elocução para
as artes e onde se desvanecem distinções ontológicas pré-concebidas. No entanto,
as qualidades simbólicas e estéticas, bem como o pensamento critico e os aspetos
investigativos e de confronto teórico da “pré-média arte”, também se apresentam ser
tão importantes para a “pós-media arte”, obrigando a produção e o discurso artístico
a manter uma mediação entre a matéria e o assunto - realidades e utopias, devolven-
do à arte latu senso a questão central da sua existência.

O #ART Encontro Internacional de Arte e Tecnologia permite a criação de estratégias e


metodologias de apresentação, registo e análise crítica interdisciplinar num processo

9
#18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

de mapeamento da ação e do pensamento, que permitem a construção de uma pla-


taforma de discussão e consulta e uma análise crítica e sistemática das suas múltiplas
aceções. Contribui também para a criação de públicos com as diversas exposições si-
multâneas e para a criação de um legado de investigação, um aprofundamento da
compreensão de um território que se inscreve alem dos seus limites físicos em per-
pétuo movimento. Um mapa, simultaneamente, estético, político, cultural e afetivo.

Convidamos a submissão das suas propostas de participação em formato de artigo/


poster e sua apresentação, trabalho para exposição e/ou artist talk, para que juntos
possamos explorar e produzir experiências inovadoras.

OF THE ADMIRABLE ORDER OF THINGS:


art, emotion and technology
Departing from two books - “Brave New World” (1931), Aldous Huxley; “The Strange Or-
der of Things: Life, Feelings and Human Cultures,” Antonio Damasio (2017) - we wish that
# 18.ART functions as a platform for discussion seeking to coalesce the worlds of art,
health, science and technology.

In Huxley’s dystopian novel, technological advances are discussed in various facets of


society (reproduction, learning during sleep, or medicines for happiness). An ideological
construction on the dehumanization of human beings, where it is alluded to that the
price of freedom is eternal vigilance. If in one hand this idea of evolution surpasses Man
as an individual, on the other hand, we witness more and more, nowadays, states of pres-
ence and absence, materiality and immateriality that are seen in the field of hauntology
- as sensibility, built around the idea of spectrum, is simultaneously present and absent.
This dual condition of body and image can be understood depending on the surveillance
of the technology, on the data flows negotiated in the digital network experience and
on the proposal of health monitoring or scientific research. We see it as a counterpoint
between this hypothetical ultra-structured civilization (aiming at the attainment of the
happiness of all individuals) and the human and sensitive impressions of the “abnormal”
which, viewed as something aberrant, develops a strange fascination between us.

The use of technology for the construction of happiness can be understood as a means
of artistic production, as an emotional emergence characteristic of exceptional hu-
man intelligence, aided by language. In “The Strange Order of Things,” Damasio states
that feelings - of pain, suffering, or anticipated pleasure - were the prime driving forces
of cultural endeavor, the mechanisms that propelled the human intellect toward cul-
ture. In his words, “human beings have distinguished themselves from all other beings
by creating astounding creations of objects, practices and ideas collectively known
as” cultures. “Damasio proposes that feelings monitored the success or failure of our

10
#18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

cultural inventions, associating culture with homeostasis making the connection to


nature relevant by deepening the humanization of the cultural process, creating an
interdependence of ideas, cultural practices, objects and biology.

The International Encounter “# 18.ART: OF THE ADMIRABLE ORDER OF THINGS: art, emo-
tion and technology”, will seek to analyze concepts that arise from the artistic, techno-
logical and scientific practice of its participants, and confront them with notions derived
from contemporary thoughts of the nominated authors or other proposed inter-actors.

Through the previous events of this International Meeting, it was clear that art - with
the conditions provided by the discourse of science, technology and the media - offers a
potential - intelligent and enhancer - where media and technologies are engaged in crit-
ical thinking and of elocution for the arts and where preconceived ontological distinc-
tions fade. However, the symbolic and aesthetic qualities, as well as the critical thinking
and the investigative and theoretical aspects of the “pre-media art”, also appear to be so
important for the “post-media art”, forcing the production and the artistic discourse to
maintain a mediation between matter and subject - realities and utopias, restoring art
latu senso to the central question of its existence.

The #ART International Meeting on Art and Technology allows the creation of strategies
and methodologies for presentation, recording and critical interdisciplinary analysis in a
process of mapping action and thinking, which allows the construction of a platform for
discussion and consultation and a critical analysis and their multiple meanings. It also
contributes to the creation of publics with the various simultaneous exhibitions and to
the creation of a legacy of investigation, a deepening of an understanding of a territory
that is inscribed beyond its physical limits in perpetual movement. A map, simultaneous-
ly, aesthetic, political, cultural and affective.

We invite you to submit your proposals for participation in an article/poster format and
its presentation, exhibition work, and/or an artist talk, so that together we can explore
and produce innovative experiences.

Datas | Dates
Encontro em Lisboa | Meeting in Lisbon city
Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa
17 a 19 de Outubro

Exposição | Exhibiton
EmMeio#11
17 a 19 de Outubro

11
#18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Temas | Themes

Ciência e Tecnologia [Media Arte]


Fluxos de Dados: Visualização e Sonificação;
Harmonias Sonoras: Homeostasia;
Instalação e Espaço/Design Interativo.

Science and Technology [Media Art]


Data Flows: Visualization and Sonification;
Sound Harmonies: Homeostasis;
Installation and Space / Interactive Design.

Arte, Afetos e Sentimentos


Arte e Biologia: Distopias e Utopias;
Matéria e Memória;
Saúde, Imortalidade e Algoritmos.

Art, Affects and Feelings


Art and Biology: Dystopias and Utopias;
Matter and Memory;
Health, Immortality and Algorithms.

Arte de Ver: Portas da Perceção


Histórias e Teorias da Arte;
Imagem, Desenho e Conhecimento;
Praxis e Poiesis: da Prática para a Teoria.

Art of Seeing: Doors of Perception


Art Stories and Theories;
Image, Design and Knowledge;
Praxis and Poiesis: from Practice to Theory.

12
#18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

KeyNotes

Irina Aristarkhova (USA)

Irina Aristarkhova is a theorist of contemporary art and culture, born in Moscow in


1969. She is the author of the book “Hospitality of the Matrix: Philosophy, Biomedi-
cine, and Culture” (2012, Columbia University Press, Russian translation 2017, Ivan
Limbakh), and editor of the collection “Woman Does Not Exist: Contemporary Stu-
dies of Sexual Difference” (2000, in Russian) and Luce Irigaray’s Russian translation of
“An Ethics of Sexual Difference.” In 2011 the artist Ana Prvacki and Irina Aristarkhova
collaborated on a publication “The Greeting Committee Reports...,” which was part of
DOCUMENTA (13) exhibition in Kassel, Germany.

Her next book, “Arrested Welcome: Hospitality in Contemporary Art,” will come out
in early 2020 from the University of Minnesota Press. Currently teaching at the Uni-
versity of Michigan’s Penny W. Stamps School of Art & Design and the Digital Studies
Institute, Aristarkhova previously worked at Penn State University’s College of Liberal
Arts and the School of Visual Art. Aristarkhova is also a Visiting Professor in Media Art
& Culture Program at the Department of Image Science, Danube University Krems,
Austria. Between 2001-2005, she was the Director of Cyberarts Research Initiative at
the National University of Singapore. Her writing has been translated into Chinese,
Greek, Romanian, Portuguese, German and Slovenian. Aristarkhova currently works
on two projects: an edited collection on Post-Soviet new media art and machinic
futures of affection.

13
#18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Gilbertto Prado (BR)

Gilbertto Prado é artista e coordenador do Grupo Poéticas Digitais. Estudou Artes


e Engenharia na Unicamp e obteve o doutorado em Artes na Universidade Paris I
– Panthéon Sorbonne em 1994. Tem realizado e participado de inúmeras exposi-
ções no Brasil e no exterior como XVI Bienal de São Paulo, (Mail Art, 1981); Welcomet
Mr. Halley , Paço das Artes (1985); City Portraits/Art-réseaux, Galerie Donguy, Paris
(1990); Mutations de l’image –Art-Réseaux, Vidéothèque de Paris (1994); Arte e Tec-
nologia - MAC-USP (1995), Mediações, Itaú Cultural (1997), City Canibal, Paço das
Artes SP (1998), II Bienal do Mercosul, Porto Alegre (1999), Link_Age / MECAD, Barce-
lona; XXV Bienal de São Paulo (Net Arte, 2002); Corpos Virtuais, Oi Futuro, RJ; Cinético
Digital, Itaú Cultural (2005); Interconnect@ between attention and immersion, ZKM,
Karlsruhe (2006); Memória do Futuro, Itaú Cultural (2007); Chain Reaction, Museum
of the City of Skopje, Macedonia (2008); Galeria Expandida, Luciana Brito, São Paulo;
Emoçao Art.ficial 5.0, Itaú Cultural (2010); EmMeios#3, Museu Nacional da Repúbli-
ca, Brasília (2011); III Mostra 3M de Arte Digital: Tecnofagias, Instituto Tomie Ohtake,
(2012); Singularidades/ Anotações: Rumos Artes Visuais 1998-2013, Itaú Cultural,
(2014); Caixa dos Horizontes Possíveis, Paço das Artes (2014); 6th Media Art Biennale
WRO 2015, Wroclaw, Polônia (2015); ISEA 2017/16Th Image Festival, Manizales, Co-
lombia (2017); Naturaleza Viva – Muntref, BIENALSUR, Buenos Aires (2017); Parado-
xo(s) da Arte Contemporânea, MAC USP (2018); Circuito Alameda, Laboratório Arte
Alameda, México DF (2018). Recebeu o 9º Prix Möbius International des Multimé-
dias, Beijin, 2001; Prêmio Rumos, 2000, Transmídia, 2002 - Itaú Cultural e o 6º Prêmio
Sergio Motta de Arte e Tecnologia, 2006, entre outros. Trabalha com arte em rede
e instalações interativas. Atualmente é Professor dos Programas de Pós-Graduação
em Artes Visuais da ECA – USP e do PPG Design da Universidade Anhembi Morumbi.

www.gilberttoprado.net

www.poeticasdigitais.net

14
#18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fátima Vieira (PT)

Fátima Vieira is Associate Professor (with “Agregação”) at Faculdade de Letras da Uni-


versidade do Porto, where she teaches since 1986. She was the Chairperson of the
Utopian Studies Society /Europe from 2006 to 2016. She is currently the Coordinator
of the Porto branch of CETAPS – the Centre for English, Translation, and Anglo-Por-
tuguese Studies – where she coordinates the research project “Mapping Utopianis-
ms”. At ILCML – Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, she was the Co-
ordinator of the three editions of the research project “Literary Utopias and Utopian
Thought: The Portuguese Culture and the Western Literary Tradition” (2001-2010)
and is now the Coordinator of the multidisciplinary research project ALIMENTOPIA/
Utopian Foodways. Fátima Vieira is also the director of the collection “Nova Biblio-
teca das Utopias” (Afrontamento), and Book Review Editor for the North-American
Journal Utopian Studies (Penn State) since 2006. She is currently the Vice-Rector for
Culture of the University of Porto.

15
SUMÁRIO
Artigos / papers - Edição Lisboa 17
Fluxo de Dados: Visualização e Sonificação 18
Data Flows: Visualization and Sonification

Harmonias Sonoras: Homeostasia 137


Sound Harmonies: Homeostasis

Instalação e Espaço/ Design Interativo 192


Installation and Space / Interactive Design

Arte e Biologia: Distopias e Utopias


421
Art and Biology: Dystopias and Utopias

Matéria e Memória 582


Matter and Memory

Saúde, Imortalidade e Algoritmos 724


Health, Immortality and Algorithms

Histórias e Teorias da Arte 738


Art Stories and Theories

Imagem, Desenho e Conhecimento 902


Image, Design and Knowledge

Praxis e Poiesis: da Prática para a Teoria 1034


Praxis and Poiesis: from Practice to Theory

Artigos / papers - Edição Brasília 1315

Artist Talks 1441

Posters 1456

Exposição EmMeio#11 1459


#18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

artigos / papers
EDIÇÃO LISBOA

ANAIS

17
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fluxo de Dados:
Visualização e Sonificação
Data Flows: Visualization and Sonification

18
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Artur Cabral Reis1


Apontamentos sobre  arte e a web em seus “pontozeros”
Notes on art and the web at its “pointzeros”

Resumo
A dinâmica da cultura na internet em seus vários estágios, desafia e movimenta
todos os aspectos sociais, inclusive a arte. Esse texto busca explorar a trajetória
dos fenômenos da web em suas múltiplas gerações e fazer alguns apontamen-
tos através de exemplos de trabalhos artísticos nacionais e internacionais e de
como a arte dialoga com essas mudanças. Dentre os trabalhos artísticos aqui re-
latados, apresentamos também a obra desenvolvida dentro do MediaLab/UnB
intitulada de “Flores de Plástico não Morrem”. Desenvolvida a partir do diálogo
poético com os paradigmas e questões da WEB 4.0, essa instalação interativa,
luminosa e constituída de plástico apresenta-se no encontro das tecnologias de
objetos conectados e Internet das Coisas, onde criamos uma selva artificial, com
plantas e flores de plástico interconectadas mediante uma rede interna (Intra-
net), as quais formam um biótopo computacional.
Palavras-chave: Pontozeros, Gerações da Web, Arte computacional, Internet das Coisas.

Abstract
The dynamics of Internet culture in its various stages challenges and moves all so-
cial aspects, including art. This text seeks to explore the web phenomena trajecto-
ry in its multiple generations and make some notes through examples of national
and international artistic works and how art dialogues with these changes. Among
the artistic works reported here, we also present a work developed at the new me-
dia laboratory MediaLab/UnB, entitled “Plastic Flowers Don’t Die”. Developed from
the poetic dialogue with the paradigms and questions of WEB 4.0, this interactive,
luminous and plastic installation is presented in the meeting of connected object
technologies and the Internet of Things, where we created an artificial jungle, with
plants and flowers interconnected upon an internal network (Intranet), creating a
computational biotope.
Keywords: Pointzeros, Web generations, Computational art, Internet of Things.

1 Mestrando em Artes Visuais pela Universidade de Brasília. Pesquisador resideWnte no MediaLab/


UnB e bolsista CAPES.

19
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Introdução
Os avanços e transformações tecnológicas mudam a forma de nos relacionar com
as pessoas e com as coisas do mundo. Transformamos nossa perspectiva de encarar
a vida, como por exemplo, a internet proporcionou quebras de paradigmas desde
a forma de como nos relacionamos uns com os outros, passando pela economia,
comunicação, arte e até o próprio modo de viver.

Mesmo que o advento da internet seja recente, essa já passou por várias transforma-
ções significativas e por mudanças paradigmáticas. Para se referir a essas mudanças
técnicas, econômicas e sociais nas gerações da internet, tentamos classificá-las em
pontozeros. Decorrente das grandes transformações na rede mundial de computa-
dores, criamos uma espécie de “versionamento” da internet, passando da versão web
1.0 (1 pontozero), que teve como marco a abertura do espaço online para uso comer-
cial, para a versão “web 2.0” (2 pontozero), onde o foco era centrado no usuário e em
sua produção. Chegou-se na versão 3.0 (3 pontozero) onde a “web” ficou conhecida
como internet semântica, e agora para se referir ao momento atual da internet, que
estreita o limite do virtual e o físico, tem-se referido a esta geração como “web 4.0 (4
pontozero)”.

Em cada mudança de paradigma nas várias versões da web criamos esperanças ro-
mânticas e utopias por meio de promessas propostas por novas tecnologias, que
escondem problemas cada vez mais complexos. Esses problemas frequentemente
estão ligados a questões econômicas, mercadológicas e de consumo, como exem-
plo a promessa da web 2.0 de criar uma comunidade, que acabou encadeando o
capitalismo exploratório de dados ou nos transformando em empregados não re-
munerados de grandes monopólios econômicos e tecnológicos. Como é de se espe-
rar, os artistas e a própria arte também são impactados por essas mudanças tecno-
lógicas. Além de nos fazerem repensar vários aspectos do nosso cotidiano, também
nos fazem reavaliar algumas convicções da própria noção do papel da arte e do ar-
tista na contemporaneidade. A cada transformação na rede de internet, artistas vêm
trazendo com maior destaque suas reflexões e problematizações dessas mudanças
tecnológicas e sociais, por meio da sua própria prática artística.

WEB 2.0
Em função do barateamento dos computadores pessoais e câmeras digitais, softwa-
res com preços mais acessíveis e a expansão do movimento de software livre, houve
uma espécie de democratização na criação e no acesso aos conteúdos na rede por
parte do usuário comum no final dos anos 90 e início dos anos 00. Isso fomentou o
surgimento do que chamamos hoje como “web 2.0”, dando destaque aos websites
da “World Wide Web” que enfatizam conteúdos gerados pelo usuário, como Wikipe-
dia e as plataformas de blogs.

20
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O termo “web 2.0” foi criado por Tim O’Reilly (2005) para se referir na época aos vá-
rios desenvolvimentos técnicos e sociais da internet, dando foco então a um novo
paradigma centrado na produção de conteúdo distribuído e gerado pelos usuários,
na folksonomia e na colaboração em massa.

Artistas profissionais se apropriaram das possibilidades proporcionadas pela internet


e usuários comuns descobriram por meio do “fazer artístico” áreas não tocadas por
aqueles que possuem um maior capital simbólico, como aponta Manovich (2008).

A popularização das redes sociais entre os anos de 2007 e 2008 foi um importan-
te catalisador para democratização do acesso e distribuição de conteúdo na web.
Neste período já se tinha uma quantidade significativa de produções de áudio e/ou
visuais criadas por usuários comuns e publicados em plataformas sociais e de hos-
pedagem de portfólios online. Produções essas, criadas por meio de técnicas como
a de remix, que consiste na mistura da informação, do recurso e do caminho para a
distribuição deste conhecimento na sociedade. Nesse período também a mídia tra-
dicional, a academia e os artistas cada vez mais se interessavam pelos os espaços da
web 2.0, uma vez que a internet tinha se tornado uma grande mídia de comunicação
entre os usuários, incluindo também as conversas em torno de conteúdo gerado
pelo usuário (Manovich, 2008).

Manovich (2008) escreve em seu texto, “Art after web 2.0”, publicado no livro “The
Art of Participation”, que entre as celebrações do conteúdo criado pelo usuário as
discussões acadêmicas a respeito dos avanços da web, em sua versão 2.0, não está-
vamos nos fazendo algumas perguntas básicas, como: “Em que medida o fenômeno
do conteúdo gerado pelo usuário é impulsionado também pelas próprias empresas
de mídias sociais – que estão no negócio em busca de obter o máximo de tráfego
possível para seus sites para que possam ganhar dinheiro com a venda de publicida-
de e os usos de nossos dados?” Em uma análise sobre as indústrias e meios de comu-
nicação que “nasceram digitalmente”, dentro do contexto da web 2.0, é perceptível
uma nebulosa diferença entre estratégias e táticas no sentido proposto por Certeau
(apud Manovich, 2008). As estratégias e táticas criadas por essa indústria digital es-
tão agora ligadas em uma relação interativa, e muitas vezes suas características são
invertidas. O paradigma da Web 2.0 representa a mais dramática reconfiguração da
relação estratégia/tática até hoje, respondendo às facilidades e disponibilidade de
acesso e produção gerada pelo usuário, empresas criaram poderosos produtos cha-
mados redes sociais.

Como indica Manovich:

As estratégias hoje utilizadas pelas empresas de mídias sociais muitas vezes parecem mais as táticas
da formulação original de De Certeau – enquanto as táticas parecem mais estratégias. Uma vez que
as empresas que criam plataformas de mídias sociais ganham dinheiro a partir da quantidade máxi-

21
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

ma de usuários a visitá-los (eles também ganham com a publicação de anúncios, venda de dados de
utilização para outras empresas, com a venda de serviços extras, etc), elas têm um interesse direto
em ter os usuários entregando o máximo possível de suas vidas para essas plataformas. Por conse-
guinte, elas concedem aos usuários espaço ilimitado de armazenamento para guardar todas as suas
mídias, a capacidade de personalizar sua “vida on-line” (por exemplo, controlar o que é visto e por
quem) e expandir a funcionalidade das próprias plataformas. (Manovich, 2008, p. 290).

Diariamente, as redes sociais aumentam seus números de usuários, que dão a cada
acesso mais detalhes do seu cotidiano, criam e fazem upload de suas mídias ou es-
crevem posts que se tornaram públicos.

Todas as promessas da “web 2.0”, de contribuição para um conhecimento coletivo e


formação de uma comunidade nos seduziu. Hoje percebemos que a versão 2.0 da
web foi um dos fatores que desencadeou o atual capitalismo de extração de dados,
disponibilizados por nós nas plataformas das redes sociais. Na ilusão de estarmos
apenas construindo o conhecimento em conjunto, acabamos nos localizando hoje,
na “web 3.0” , como produtores de conteúdo não remunerados em um valioso jogo
de crowdsourcing impulsionado por empresas milionárias.

Algumas iniciativas vêm tentando ir contra essa lógica, ou nos alertar sobre os eventu-
ais problemas que podemos ter ao cair nessas tentações tecnológicas propostas pela a
grande indústria digital. O movimento de software livre por exemplo, tem nos propor-
cionados ferramentas livres e abertas de uso comum, como alternativas a esses serviços
ofertados pelas grandes corporações tecnológicas. Os artistas também têm tido um
papel importante ao especular e fomentar uma discussão a respeito das possibilidades
e armadilhas dessas novas ferramentas digitais.

Como na obra “With Elements of Web 2.0” realizada em 2006 pela dupla zombie_and_
mummy, que de forma sarcástica traz uma séries de gravuras em silkscreen para ironizar
os usuários da Web 2.0. Através de posters, os artistas Olia Lialina e Dragan Espenschied
trazem um retrato brando, mas cruel da web, sua evolução e involução além de suas
confusões entre a comercialização e o DIY (faça você mesmo).

Frederick Mader comenta a obra escrevendo:

The resulting imagery of ’With elements of Web 2.0’ is chilling and familiar in its re-enactment of
primeval spiritual representation. In ’Constellations’ the starry night backdrop seems belittled by
the gigantic figures of Holy Mother and Son as they blankly stare beyond us sided by the duality of
the micro-market and the ominous reaper figure of the rating stars, all so big and anodized yellow
as in a new age trinity of blind faith and ruthless democratic order. The vision of ’Dimension’ is
even more repulsive as all life as now evicted our space, the white evil layout of the faked note-
book looks scarred and empty like a corpse sucked out of its blood, besides it the spiked techno
skeleton of the ominous zoom slider is a cross without a prophet. This map is our cemetery: Only
Zombie and Mummy can dig us out of the web’s fresh new grave. (2006)

22
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 1. Imagens da série “With Elements of Web 2.0” da dupla Zombie_and_mummy


Fonte: Blog With Elements Of Web 2.02, 2006 .

Figura 2. Imagens da série “With Elements of Web 2.0” da dupla Zombie_and_mummy,


Fonte: Blog With Elements Of Web 2.0, 2006 .

2 Disponível em :<http://withelementsofweb20.blogspot.com/0>. Acesso em dez. 2018.

23
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 3. Imagens da obra #Prece_ de Artur Cabral


Fonte: Arquivo pessoal do autor, 2017 .

Nesse momento, temos um aumento significativo na quantidade de dados dispo-


níveis na internet, que em sua grande parte são disponibilizados ingenuamente por
usuários comuns. Esse fenômeno, conhecido como “big data”, fomenta a criação e
a evolução dos algoritmos de inteligência artificial, que por sua vez quanto mais
alimentados com dados, mais precisa é sua performance.

A evolução dos algoritmos de inteligência artificial (IA) tem de fato impactado a nos-
sa sociedade, inclusive a arte e o seu mercado. Alguns episódios têm evidenciado
esse impacto, como a recente venda da obra artística produzida por uma IA, vendida
pela Christie’s por US$432,5003, ou mesmo as obras desenvolvidas por IA que se pas-
sam por criações humanas. Outro exemplo é o trabalho do artista Eric Maillet, onde
uma inteligência artificial constrói textos automatizados de crítica de arte.

A arte sempre teve um papel crítico em relação às novas descobertas tecnológi-


cas. É inegável a importância da atuação da arte no imaginário tecnocientífico. O
nosso imaginário referente as inteligências artificiais, devem muito aos livros e fil-
mes de ficção científica. Na “web 3.0”, onde as inteligências artificiais tem ganhado
bastante destaque em função das abundância de dados na rede, os artistas têm
desempenhado um papel importante ao criar estratégias de especular, sabotar e
hackear essas novas tecnologias.

3 Is artificial intelligence set to become art’s next medium? Disponível em: <https://www.christies.
com/features/A-collaboration-between-two-artists-one-human-one-a-machine-9332-1.aspx>.
Acesso em dez. 2018

24
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 4. Imagens da obra Portrait of Edmond Belamy vendida pela empresa Christie’s4
Fonte: Página da empresa Christie’s .

Um dos meus exemplos favoritos é o projeto artístico “Social Bonds” desenvolvido


por um grupo de artistas, designers e cientistas, o projeto especula sobre o que está
acontecendo a portas fechadas no laboratório da rede social Facebook, com acesso
aos mais recentes dispositivos de imagem cerebral e em cooperação com o Labora-
tório Neuro-Comportamental da ABL-Aalto, o projeto realiza um experimento, me-
dindo a atividade cerebral de um sujeito e rastreando os movimentos dos seus olhos
durante uma sessão de 45 minutos no Facebook. Em seguida, esses dados são “tra-
tados” por meio de um algoritmo que analisa a atividade de regulação emocional do
sujeito, ou seja, faz uma análise de LPP (Late Positive Potential). O resultado é uma
especulação de um cenário provável, no qual o Facebook obtém diretamente “laços
financeiros” de nosso investimentos emocionais nas redes sociais.

4 Disponível em: <https://www.christies.com/features/A-collaboration-between-two-artists-one-


-human-one-a-machine-9332-1.aspx>. Acesso em dez. 2018.

25
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 5. Imagens da obra Social Bonds do laboratório ABL-Aalto


Fonte: Página do projeto Social Bonds5.

Um outro exemplo interessante é o trabalho do artista James Bridle, chamado de


“Autonomous Trap 001”, onde o autor cria uma espécie de armadilha para carros
autônomos. De uma forma bem sarcástica, Bridle cria um círculo de sal contínuo e
um outro pontilhado ao redor de um carro autônomo, levando em consideração a
inteligência artificial que analisa a visão computacional do carro, a mesma entende
que não pode ultrapassar a faixa branca de sal, inviabilizando a saída do mesmo do
círculo. Com esse trabalho, James expõe as falhas da IA usada para carros autôno-
mos e nos alerta sobre a relação de confiança que criamos com as IAs. Como indica
a crítica de arte Régine

Debatty, a respeito da relação da arte-novas tecnologias, em um texto publicado em


seu website:

I’m not afraid for artists. I trust them to unfold all the expressive forms of AI technology, to use,
abuse, hack, sabotage AI just like they do with any new medium. And as for us, the public, i sus-
pect we’ll start treasuring human fallibility just like we are amused by the glitches in the machines
nowadays. (2018).

5 Disponível em : <http://socialbonds.org>. Acesso em dez. 2018.

26
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 6. Imagens da obra Autonomous Trap 001 de James Bridle


Fonte: Página do artista James Bridle6.

WEB 4.0
Como resposta ao atual contexto das tecnologias baseadas na web, temos também
o surgimento do coletivo artístico denominado de additivism. O nome do coletivo
cria uma brincadeira com os processos de fabricação digital aditiva. Em seu manifes-
to, o coletivo declara as suas intenções em expandir as tecnologias de impressão 3D
e outros processos de fabricação digital aos seus limites absolutos, além do campo
do provocativo e do estranho. Um dos trabalhos relevantes desenvolvido pelo cole-
tivo é o livro “The 3D Additivist Cookbook”, que os autores descrevem como:

… a compendium of imaginative, provocative works from over 100 world-leading


artists, activists and theorists. The 3D Additivist Cookbook contains 3D .obj and .stl
files, critical and fictional texts, templates, recipes, (im)practical designs and metho-
dologies for living in this most contradictory of times.(2017)

6 Disponível em: <https://jamesbridle.com/works/autonomous-trap-001>. Acesso em dez. 2018.

27
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Estamos entrando em uma nova geração da web, a chamada “web 4.0”. A denomi-
nação 4.0 vem como uma referência a indústria 4.0, onde máquinas podem interagir
de maneira exógena entre si, por meio da rede de internet. Essa interação possibilita
uma nova forma de produção industrial, acelerando os processos de fabricação e
algumas ações de logística por meio do uso das inteligências artificiais. A chegada
dessa “web 4.0” é marcada pela fisicalidade atual da web, por meio de novos pro-
cessos de fabricação e do fenômeno da internet das coisas. Estamos passando por
um borramento das distinções entre físico e virtual, o biológico e o artificial. Isso é
intensificado por exemplo no fenômeno da internet das coisas, onde os objetos co-
nectados estão modelando uma realidade informacional, que por sua vez impacta
de forma significativa o real.

Assim como os outros pontozeros anteriores da web, somos pegos por uma política
de dominação econômica, escondido por trás de promessas de uma transformadora
tecnologia social. A respeito disso, Sangüesa alerta:

…. the horizon drawn by 4.0 is homogeneous and continuous with the other pointzeros: to a
policy of economic dominance based on the exceptional use of another technology and its com-
binations with others that already exist, all based on information.(2018)

É nesse contexto onde estamos dentro do laboratório de novas mídias MediaLab/UnB


desenvolvendo uma instalação interativa intitulada Flores de plástico não morrem, a
qual é constituída, de filamentos plásticos e sistemas luminosos. A partir do encon-
tro das tecnologias de objetos conectados e da Internet das Coisas, criamos uma sel-
va de plástico, com plantas e flores interconectadas que formam uma rede, ou seja,
um biótopo telemático computacional com características do cerrado. Biótopo, é um
conjunto de condições físicas e químicas que caracterizam um ecossistema ou bioma.
Nesse bioma, pétalas generativas, flores de plástico, disseminação de luz formam uma
atmosfera especial desse ecossistema.

Nessa proposta cada flor é constituída de hastes formadas por cano PVC reaprovei-
tados, no qual variam de altura a cada produção. As pétalas, sépalas e pedúnculo
partem de uma morfogênese digital e generativa. Para o desenvolvimento de cada
flor são coletados dados mediante sensores ( resistência galvânica ) acoplados a
plantas, as quais cultivamos no Medialab/UnB. Paralelamente um software desen-
volvido pela equipe cria fenômenos biológicos simulados por meio de algoritmos
computacionais, que dão origem a um vida artificial unicelular.

28
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 6. Esquema da obra Flores de Plástico Não Morrem


Fonte: Arquivo pessoal do autor.

Como resultado temos a formação de um bioma computacional, uma selva de plás-


tico e componentes eletrônicos, na qual um conjunto de interações complexas em
uma rede local (intranet) fomentam o surgimento de comportamentos emergentes,
dando origem a um sistema autogerativo e objetos interativos os quais estabelecem
relações cibernéticas entre máquina-máquina atuando em um ecossistema com at-
mosfera e espaço-tempo singular. Acredito que a mensagem principal apresentada
por esta instalação é de que a apropriação de tecnologias por artistas ou designers
é uma ação, que nos permite agir sobre questões urgentes e não somente permane-
cer como um simples consumidor.

Considerações finais
As gerações anteriores da web nos seduziu, com promessas de construção de uma
comunidade, com a possibilidade de uma comunicação democrática na rede e com
a acessibilidade de dados. E por fim nos conduziu para situação atual, onde é evi-
dente a privatização da comunicação em rede, a centralização de informações, os
controles de vigilância privados, a venda e uso de dados sem autorização, as crises
de privacidade, os exércitos de bots eleitorais, além dos algoritmos misteriosos que
controlam diariamente o que é exibido em nossas timelines.

29
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Se tratando das novas gerações da internet (inclusive a 4.0), um exercício necessá-


rio e urgente se dá pela especulação sobre as direções futuras das tecnologias que
permeiam a rede de computadores. Na instalação “Plantas de Plástico não Morrem”
buscamos conjecturar essas direções, mediante um jogo complexo e orgânico diri-
gido por regras simples, o qual em sua dimensão poética questiona como a biotec-
nologia, a conectividade de múltiplos objetos e organismos na rede estão impactan-
do na biosfera. Assim como, anseia revelar as mudanças de civilização que estamos
experimentando, bem como sua mudança climática, em função do meio ambiente
degradado.

E este é um dos papéis delegados aos artistas, além do papel de estimular uma refle-
xão e ceticismo moderado por meio da criação de novas narrativas e modelos, criar
uma articulação entre todas as dimensões sociais de uma nova tecnologia, infiltran-
do-se em discussões virtuais e eventualmente agindo na realidade concreta.

Referências

Allahyari, M. & Rourke, D. (2015). The 3D additivist manifesto. Recuperado em 14


de novembro, 2018, de https://additivism.org/manifesto

Atkins, R., Frieling, R., Groys, B. & Manovich, L. (2008). The art of participation. Mi-
chigan: Thames & Hudson.

BRIDLE, J. (2017). Autonomous trap 001. Recuperado em 26 de novembro, 2018, de


https://jamesbridle.com/works/autonomous-trap-001

DERAKHSHAN, H. (2015). The web we have to save. Recuperado em 14 de novem-


bro, 2018, de https://medium.com/matter/the-web-we-have-to-save-2eb1fe15a426

DEBATTY, R. (2018). Does art have any relevance “in the Age of AI”?. Recuperado
em 14 de novembro, 2018, de http://we-make-money-not-art.com/does-art-have-
-any-relevance-in-the-age-of-ai.html

MAILLET, E. (2017). Documentsdartistes.org. Recuperado em 26 de novembro,


2018, de http://www.documentsdartistes.org/artistes/maillet/repro6.html

MADRE, F. (2006). Space Alien Scrolls (on black). Art.Teleportacia. Recuperado em


26 de novembro, 2018, de http://art.teleportacia.org/observation/alien/

SANGUESA, R. (2018). The 4.0 revolution and its tunes. CCBBLAB. Recuperado em 14 de
novembro 2018, de http://lab.cccb.org/en/the-4-0-revolution-and-its-tunes/?fbclid=-
IwAR1rMsmUBspgQvXrX_0XAHbR2uCtvfevqK0zSDR92v4QZOTTAY9qyGSxVzo

30
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Bonds, S. (2016) What is the brain’s emotional response while on social media’s
not so digital reality? Does Facebook use this data in order to maximize their pro-
fit?. Recuperado em 26 de novembro, 2018, de http://socialbonds.org/

Lialina, O. & Espenschied, D. (2007). With Elements of Web 2.0. Art.teleportacia.


Recuperado em 26 de novembro, 2018, de http://art.teleportacia.org/exhibition/
with_elements/

O’REILLY, T. (2005). Web 2.0: compact definition? Recuperado em 28 de março,


2007, de http://radar.oreilly.com/2005/10/web-20-compact-definition.html

31
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Catarina Sampaio1, Luísa Ribas2 and


Pedro Ângelo3
Do Retrato ao Data Portrait
Visualização de dados pessoais e a reconceptualização do retrato
From portraits to data portraits
Visualization of personal data and the reconceptualization of portraiture

Resumo
O presente artigo visa a exploração das possibilidades conceptuais e das prá-
ticas criativas associadas ao conceito de data portrait enquanto mecanismo de
representação e de expressão da identidade individual.4 Para esse fim, o estudo
procura evidenciar de que forma o retrato, enquanto género de representa-
ção, pode tomar partido da actual proliferação de dados digitais e meios com-
putacionais para produzir retratos que representem o ser humano através de
características que estão para além da sua aparência física, podendo também
representar a variabilidade das mesmas ao longo do tempo. Segundo este pro-
pósito, aborda-se a evolução do retrato no sentido de acompanhar e reflectir

1 Catarina Sampaio é designer de comunicação e aluna do doutoramento em Belas-Artes, espe-


cialidade Design de Comunicação, na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, encon-
trando-se a desenvolver pesquisa na área dos novos media e da visualização de dados pessoais. É
mestre em Design de Comunicação e Novos Media, pós-graduada em Novos Media e Práticas Web
e licenciada em Design Gráfico e Multimédia.
2 Luísa Ribas é professora auxiliar na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa onde leccio-
na Design de Comunicação. É doutorada em Arte e Design (2012), mestre em Arte Multimédia (2002)
e licenciada em Design de Comunicação (1996) pela FBAUP. A sua investigação dedica-se ao estudo de
sistemas computacionais enquanto artefactos estéticos. Actualmente integra o CIEBA e colabora com
o ID+, tendo contribuído para a organização de conferências internacionais como xCoAx.org.
3 Pedro Ângelo é consultor independente de investigação para projectos criativos e docente assistente
convidado no departamento de Design de Comunicação da Faculdade de Belas-Artes da Universidade
de Lisboa. Está a terminar o doutoramento em Digital Media no programa UT Austin|Portugal, focado
no desenvolvimento de melhores ferramentas para o design colaborativo de sistemas interactivos.
4 Esta caraterística inerente ao retrato é explicada por van Alphen (2005) da seguinte forma “Cada
imagem é um aumento de ser e é essencialmente determinada como representação, que vem-à-
-apresentação. No caso especial do retrato, essa representação adquire um significado pessoal, na
medida em que, aqui, um indivíduo é apresentado de forma representativa. Isso significa que o
sujeito representado se representa através do seu retrato e é representado por ele. O retrato não é
apenas uma imagem e certamente não é apenas uma cópia, ele pertence ao presente ou à memória
presente do homem representado.”

32
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

mudanças no contexto social, cultural e técnico que potenciam o surgimento


dos data portraits no final dos anos 1990. Deste modo, o estudo procura realçar
de que forma os data portraits se tornam relevantes enquanto experimentações
criativas desenvolvidas em torno da representação da identidade e como esta é
moldada pelo actual contexto cultural e tecnológico.
Palavras-chave: Data portrait, retrato, dados pessoais, visualização, auto-etnografia.

Abstract
This paper aims to explore the conceptual possibilities and creative practices as-
sociated with the concept of data portrait as a mechanism of representation and
expression of individual identity. To this end, the study seeks to highlight how por-
traiture, as a representation genre, can take advantage of the current proliferation
of digital data and computational media to produce portraits that represent human
beings through characteristics that are beyond their physical appearance, while
also expressing their variability over time. According to this purpose, we address the
path and evolution of portraiture in light of changes in the social, cultural and tech-
nical context that revert to the emergence of data portraits in the late 1990s. In this
manner, the study seeks to highlight how data portraits become relevant as creative
experiments developed around the representation of identity and how it is shaped
by the current cultural and technological context.
Keywords: Data portrait, portrait, personal data, visualization, autoethnography.

Introdução
O retrato enquanto representação simbólica da identidade individual tende a ser
um reflexo do contexto social, cultural e técnico no qual é criado. No actual momen-
to histórico, em que a mediação tecnológica é omnipresente, artistas e designers
exploram os limites do retrato através de experimentações criativas em torno da
representação da identidade, baseadas na visualização de dados pessoais.

Assim, os data portraits emergem como formas de retrato que se propõem em re-
presentar a identidade individual a partir de dados pessoais, produzidos no decorrer
de actividades quotidianas dos sujeitos. Estes dados são continuamente registados
por meio de tecnologias digitais que incluem várias aplicações de uso corrente, as-
sim como uma rede dispositivos permanentemente ligados à internet, capazes de
recolher uma vasta quantidade de dados, com ou sem o envolvimento activo do ser
humano. Como tal, estes registos estendem-se no tempo e, quando visualizados e
contextualizados, adquirem valor simbólico e significado emocional configurando-se
como potenciais repositórios biográficos.

33
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Reconhecendo este potencial expressivo, a presente investigação explora o uso de


dados pessoais como matéria-prima para a construção de retratos. O estudo começa
por circunscrever o conceito de retrato e a sua evolução, à medida que este se liberta
da sua função mimética, favorecendo uma maior abstracção formal e lançando as
bases conceptuais para o surgimento dos data portraits. Prossegue-se, de seguida,
a uma análise das possibilidades conceptuais e práticas criativas associadas ao con-
ceito de data portrait. Procura-se assim suscitar uma reflexão sobre os modos de
conceptualização do retrato, realçando de que forma os data portraits se tornam
relevantes enquanto experimentações criativas em torno da representação da iden-
tidade, moldada pelo actual contexto cultural e tecnológico.

O retrato: conceito e evolução


O retrato é uma construção artística que pretende representar simbolicamente o
indivíduo, não apenas através das suas características físicas, como também através
fragmentos das suas emoções, experiências, comportamentos e até conhecimen-
tos (West 2004, 21). Para tal, o retrato recorre tradicionalmente a imagens do cor-
po como significante, principalmente do rosto devido à sua riqueza cognitiva, pois
transmite sumariamente a identidade do sujeito em termos de género, raça, faixa
etária, assim como exprime estados de humor e os efeitos cumulativos de expres-
sões faciais várias vezes repetidas (Donath 2001). Além disso, o retrato evoca igual-
mente convenções culturais, através do uso de elementos externos como objectos,
inscrições, poses e espaços passíveis de retratar a personalidade, estatuto e psique
do sujeito (West 2004, 71).

O objectivo do retrato é assim criar um modelo visual de uma pessoa real, ou seja,
ser uma mimesis do ‘eu’, apresentando-se como único ao mesmo tempo que lida
com as contingências do contexto cultural no qual é produzido. Desta forma, o retra-
to utiliza uma enorme variedade de meios, tradicionalmente a pintura, o desenho, a
escultura, a gravura e a fotografia, estendendo-se a outras manifestações artísticas
como o vídeo, a performance e a instalação.

Segundo van Alphen (2005), o retrato refere-se sempre a um ser humano que está
(ou esteve) presente fora do retrato; representa um elo importante com o passado
e a memória, cumprindo funções biográficas ao documentar a identidade de um
indivíduo no momento e contexto específicos em que foi registado. Por este moti-
vo, a sua função principal é sempre a de representar o sujeito perante o outro e/ou
perante si mesmo. Além desta função documental, e devido às suas características
ontológicas de veículo de representação, o retrato consolida a identidade do sujeito
representado ao conceder-lhe uma forma exterior, podendo ser usado como veículo
de auto-exploração e expressão pessoal, sendo a sua disseminação um reflexo de
uma crescente valorização da identidade individual.

34
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Deste modo, o retrato tende a florescer em culturas que privilegiam a noção de in-
dividualidade, daí ter tido o seu apogeu na época Renascentista, em que conceitos
como identidade, individualidade e auto-consciência passaram a ser amplamente
valorizados. Actualmente assistimos a um revivalismo destas tendências, relaciona-
das com a afirmação da identidade individual, auto-consciência e desenvolvimento
pessoal, em paralelo com a democratização de tecnologias pessoais (como os smar-
tphones) e dos meios de difusão de informação (como as redes sociais). A dissemina-
ção do retrato e do auto-retrato representa então, segundo Hall (2014), uma respos-
ta ao anonimato experienciado por muitos no seio das sociedades contemporâneas,
ao permitir um “acesso privilegiado à alma do sujeito”. 5

Ao analisar a evolução do retrato verificamos que, ao longo da história, os retratos


não mostram apenas informação sobre as pessoas que representam, mas expressam
igualmente aspectos do contexto social, cultural e técnico no qual são produzidos.
Embora mantendo algum grau de verosimilhança com o indivíduo retratado, o retra-
to é sempre produto de determinadas correntes artísticas, estilos pessoais, técnicas
e meios, ou um reflexo dos contextos em que é criado.

Por exemplo, na Idade Média, valorizava-se a espiritualidade em detrimento da com-


ponente material da experiência humana e, por esse motivo, o retrato não repre-
sentava a real aparência física do sujeito, mas sim uma idealização da mesma. Deste
modo, a identidade não era expressa através da semelhança física, mas antes através
de símbolos de estatuto e posição social, tais como o escudo de armas ou o brasão.
Com o surgimento de um interesse pelo mundo natural e pela Ciência no final da
Idade Média e no Renascimento, a verosimilhança passou a ser a finalidade princi-
pal do retrato. O retrato realista, no sentido mimético, surgiu na primeira metade do
século XV pela mão dos pintores da Flandres, tendo sido refinado posteriormente
por Jan Van Eyck, cujos retratos vieram “conquistar a realidade”, representando os
sujeitos com tal verossimilhança, ao ponto de incluírem as suas idiossincrasias e im-
perfeições (Gombrich 1995, 236-245).

A produção destes retratos era morosa e obrigava a uma série de encontros e ne-
gociações entre o artista e o sujeito que, mais tarde, o desenvolvimento de novos
meios técnicos como a fotografia veio tornar desnecessários. A disseminação da fo-
tografia, no início do século XX, marca um ponto de viragem na história do retrato,
separando pela primeira vez o olhar do artista do corpo do sujeito por meio de um
‘aparato tecnológico’ (Flusser, 1998) – a câmara fotográfica. Neste momento, a pro-
dução do retrato foi pela primeira vez mediada pela tecnologia e esta mediação do-

5 Segundo Hall (2014) “O auto-retrato migrou muito além da igreja, palácio, estúdio, academia, mu-
seu, galeria, plinto e moldura. (...) Agora as selfies fotográficas são onipresentes. É amplamente acei-
te – e esperado – que os auto-retratos dêem acesso privilegiado à alma do sujeito e, assim, superem
a alienação e o anonimato experimentados por tantos nas sociedades urbanizadas modernas”.

35
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

tou-o de um carácter mecânico e imediato, atribuindo às imagens assim registadas


a qualidade de índices do real, acentuando o seu valor documental.

Como consequência desta mediação, a produção de imagens miméticas passou a


ser uma tarefa mecânica de registo pictórico e, como resposta, a Arte visual tornou-
-se cada vez mais abstracta e conceptual. Neste contexto, a artista Americana Kathe-
rine Dreier produziu, em 1919, um dos primeiros retratos totalmente não figurativos,
Abstract Painting of Marcel Duchamp (1919). Para Dreier a representação mimética
é uma forma imperfeita de transmitir a essência do sujeito e, portanto, os retratos
devem usar forma e cor para evocar, ao invés de descrever, os atributos da pessoa
retratada (Dreier 1922, 112, apud Adès 1992, 95).

Na sequência deste raciocínio, o género do retrato tornou-se cada vez mais versátil,
acomodando uma série de novas possibilidades conceptuais e técnicas, seguindo a
tendência de se desligar da representação mimética do corpo físico no sentido de
uma maior abstracção formal. Por exemplo, a obra Portrait of Deb from 1988-199?
(2012-2013) de L. J. Roberts, procura desafiar concepções binárias estritas de género
e abordar o seu impacto na identidade. Sendo concebida a partir de uma série de
emblemas bordados coleccionados por Deb, esta obra é uma forma de retrato ‘físico’
feito por meio do inventário dos seus objectos pessoais, baseando-se na noção de
que estes objectos expressam significado (Goodyear et al. 2016). Este tipo de obras
vêm questionar as barreiras do retrato, enquanto género de representação, ao pos-
sibilitar a mesma exploração da identidade que caracteriza o retrato convencional,
empregando para isso técnicas de enumeração e inventário pessoal.

Portrait of Deb from 1988-199?, L. J. Roberts, 2012- 2013 – Colecção de emblemas bordados.

36
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O que Roberts e outros artistas pós-modernos fazem no seu trabalho é “desviar a


atenção das qualidades icónicas do retrato para as suas qualidades indiciais” (West
2004, 212),6 ao prioritizar um sistema de representação simbólico em detrimento de
um sistema de representação literal.

Auto-etnografia, dados pessoais e visualização


No seguimento da ideia anterior encontramos vários artistas que vêm desenvol-
vendo trabalho com uma forte componente auto-etnográfica, caracterizada pela
hiper-observação do quotidiano, em que a recolha de dados e sua documentação
se torna uma forma de produzir artefactos estéticos que permitem a exploração
da identidade individual.7 Este tipo de trabalho artístico é reflexo de um novo
interesse pela observação do quotidiano e pela forma como vivemos as nossas
vidas, associado ao desenvolvimento de uma ‘sociologia do dia-a-dia’ (Ellis, Adams
e Bochner 2011), ou aquilo que Perec (1999, 210) designa como “antropologia ‘en-
dótica’ do infra-comum”.8

As obras assim produzidas apropriam-se de técnicas das disciplinas científicas que


se baseiam na recolha de dados e que exprimem factos e ocorrências sobre o dia-
-a-dia do sujeito. Estes dados podem ser entendidos como valores ou “conjuntos de
registos extraídos do fluxo do real” (Whitelaw 2008), funcionando como índices de
vivências pessoais e sendo, por isso, denominados dados pessoais.

Quando falamos em dados pessoais referimo-nos a qualquer informação relativa


a um indivíduo identificado ou identificável, sendo que uma pessoa identificável é
aquela que pode ser identificada, directa ou indirectamente, em particular por re-
ferência a um nome, número de identificação, dados biométricos, impressões digi-
tais, ADN, ou ainda, outros fatores específicos da sua identidade física, fisiológica,

6 Do original: “(...) shift attention from iconic qualities of portraiture to indexical ones” (West 2004, 212).
7 Por exemplo, Sophie Calle pode ser considerada uma espécie de etnografa do quotidiano que uti-
liza técnicas etnográficas para produzir obras artísticas a partir das suas vivências pessoais, através
de processos de observação hiper-detalhada e recolha de dados, utilizando estratégias complexas de
vigilância, registo e documentação.
8 Do original: “‘endotic’ anthropology of the infra-ordinary” (Perec 1999, 210). Perec sugere que “o
que talvez seja necessário é, finalmente, fundar a nossa própria antropologia, uma que fale sobre
nós, que busque nós mesmos aquilo que há tanto tempo tentamos encontrar no outro. (...) Não mais
o exótico, mas o ‘endótico’” (1999, 210).

37
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

mental, económica, cultural ou social.9 Neste contexto, a noção de dados pessoais


pode também incluir um conjunto de dados recolhidos por dispositivos tecnoló-
gicos digitais e que são relativos a aspectos da vida quotidiana de um indivíduo.10

A disseminação destas tecnologias resulta na actual tendência para a quantificação


de todos os aspectos inerentes à vida humana, incluindo aspectos do foro psicoló-
gico e emocional, tidos até então como inquantificáveis. Esta tendência é também
expressa pelo movimento Quantified Self, que se refere à utilização de tecnologias
de self-tracking, ou seja, tecnologias digitais destinadas à recolha e arquivo de da-
dos pessoais, com o objectivo de optimizar a experiência humana. A particularidade
destas tecnologias reside no facto de, tal como explica Selke (2016), o utilizador não
precisar mais “de tomar nenhuma decisão porque o sistema e os seus sensores reco-
lhem constantemente diferentes tipos de dados”,11 muitas vezes, de forma passiva,
sem necessitarem da intervenção directa do indivíduo.

Esta constante vigilância digital levanta questões relacionadas com privacidade e se-
gurança, tal como expresso em obras como a performance Poisonous Antidote (2016)
de Mark Farid12 que explora o quão intimamente é possível conhecer uma pessoa
apenas através da sua pegada digital. Farid argumenta que a acessibilidade 24 horas
por dia aos nossos dados pessoais faz com que a nossa privacidade (e verdadeira
identidade) sejam erodidas e trocadas por uma identidade cultural hegemonizada e
globalizada, armazenada pública e permanentemente, em conformidade com ide-
ais políticos, sociais e culturais vigentes.

9 De acordo com o Regulamento Geral de Protecção de Dados (EU Publications, 2016).


10 Podendo ser dados relacionados com acções (comunicações efectuadas, actividade nas redes
socais), consumos (alimentos consumidos, qualidade do ar circundante), estados mentais (humor,
excitação) e desempenho (rítmo cardíaco, níveis de oxigênio no sangue), seja mental ou físico.
11 Do original: “The logger no longer has to make any decisions because the system and its sen-
sors constantly collect different data (...) This is how a person’s “digital aura” slowly emerges (Hehl,
2008) which can contain data on health, locations, productivity, finances, hormone levels or moods,
depending on the person’s data preference. Lifelogging can be understood as a technical form of
self-observation and a passive form of digital archiving” (Selke 2016).
12 Durante um mês, Farid apresentou publicamente todos os seus e-mails, mensagens, telefonemas,
histórico de navegação, coordenadas de localização, posts nas redes sociais, bem como quaisquer
fotografias ou vídeos capturados pelo seu telefone. Ao mesmo tempo, um sistema de visualização
alimentou uma impressora 3D com um feed de todos esses dados, criando uma escultura abstrata
formada por 30 peças adjacentes, cada uma representando um dia da ‘vida digital’ do artista.

38
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Poisonous Antidote, Mark Farid, 2016 – Performance e conjunto de objectos físicos.

Paralelamente a estas questões, outros artistas encaram a actual proliferação de da-


dos pessoais numa perspectiva positiva de auto-expressão e auto-conhecimento.
Para Laurie Frick, “estamos a meio de uma década em que os humanos mudam de
seres misteriosos para algoritmos de big data, em que tudo sobre nós será conheci-
do. Em vez de me preocupar, antevejo uma época em que os dados pessoais são um
vislumbre único da nossa personalidade oculta” (sd.).13 De igual modo, para Giorgia
Lupi e Stefanie Posavec, autoras do projecto Dear Data (2015), os dados pessoais não
devem ser encarados como intimidantes, mas ao contrário – devem ser valorizados
pelo seu lado humano (Lupi e Posavec 2016).14 Estas artistas desenvolvem a sua
prática no campo da visualização, utilizando os seus dados pessoais na criação de
artefactos estéticos.

Os artefactos assim criados baseiam-se na premissa de que os dados por si só são


conceitos abstractos e, por isso, isentos de significado; apenas quando organizados
e contextualizados por um sistema de representação simbólica produzem informa-
ção (Whitelaw 2008). Assim, o termo visualização refere-se, por um lado, à formação
de ideias resultantes da capacidade de raciocínio do ser humano, i.e. à criação de

13 Do original: “We’re halfway thru the decade when humans shift from mysterious beings - to Big
Data algorithms, where everything about us will be known. Rather than worry, I envision a time
when personal data is a unique glimpse into our hidden personality” (Frick sd.).
14 Do original: “instead of using data just to become more efficient, we argue we can use data to beco-
me more humane and to connect with ourselves and others at a deeper level” (Lupi e Posavec 2016).

39
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

uma imagem mental e, por outro lado, à materialização de uma imagem que permi-
te representar algo visualmente, ou seja, à conversão de conceitos em imagens ou
formas visíveis. Isto significa que visualizar é representar visualmente algo abstracto
para o tornar acessível aos sentidos – neste caso à visão – e, ao mesmo tempo, tornar
algo inteligível através da percepção e interpretação humanas (Almeida 2017).

No seguimento deste enquadramento, identificamos o surgimento dos data por-


traits, no ínicio dos anos 1990, enquanto sistemas de visualização de dados pessoais
que visam representar a identidade do sujeito com base na sua pegada digital.

Emergência dos data portraits


A primeira referência que encontramos relativa ao termo data portrait encontra-se
num artigo de Xiong e Donath (1999) sobre um sistema de visualização que visa re-
presentar o histórico de cada utilizador de um forum de discussão online, ou seja “uma
visualização de cada utilizador gerada a partir dos seus dados de interacção” (1999).15

PeopleGarden, Rebecca Xiong e Judith Donath, 1999 – Visualização digital.

Posteriormente, Donath (2017, 187) define data portraits como “representações de


pessoas feitas por meio da visualização de dados, produzidos por elas e sobre elas”.16
Ou seja, os data portraits exploram a identidade através da utilização de dados pro-
duzidos pelos sujeitos, enquanto subprodutos das suas actividades, recorrendo a
meios de representação simbólica – neste caso à visualização de dados – como for-
ma de lhes dar expressão.

No entanto, apesar de se encontrarem no domínio da visualização, os data portraits


tendem a empregar um elevado nível de abstracção formal, como forma de repre-

15 Do original: “We have not found a single visualization that combines all of the above. Our solution
is the data portrait, or user visualization based on interaction data” (Xiong e Donath 1999).
16 Do original: “depictions of people made by visualizing data by and about them” (Donath 2017, 187).

40
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

sentar a subjectividade humana sendo, ao mesmo tempo, visualizações de natureza


subjectiva. Neste contexto, entendemos como representação subjectiva aquela que
valoriza o ‘ponto de vista’ do autor sobre a pessoa retratada e que resulta de decisões
sobre quais os dados mostrar e de que forma, com o objectivo de obter determina-
dos resultados sensoriais como efeito da experiência. Deste modo, os data portraits
podem ser considerados formas únicas de visualização que, ao contrário daquilo
que é habitual nas visualizações de cariz analítico, valorizam a representação subjec-
tiva dos dados, cuja natureza numérica é inerentemente objectiva.17

Ainda assim, este elevado nível de subjectividade pode, no entanto, ser relacio-
nado com a noção de Realismo. Em particular, podemos evocar o conceito que
Min (2015) designa como ‘realismo digital’, para designar sistemas de visualização,
que produzem imagens formalmente abstractas, mas que podem, no entanto, ser
consideradas realistas, uma vez que a sua forma é resultado directo dos dados que
estão na sua origem.18 Neste contexto, o papel da visualização é o de promover
um acesso directo à ‘realidade’ através da tradução de dados extraídos do fluxo do
‘real’ em imagens. Tal como refere Renaud (2003), a visualidade destas imagens
não é mais fruto de um processo de registo pictórico, ou o resultado “da forma de
um mundo fenomenal, com os seus rostos, as suas paisagens, os seus eventos”,
mas sim uma construção simbólica, resultante “da multiplicidade elementar cons-
titutiva de uma nebulosa de dados que um interface-ecrã irá distribuir e organizar
em matrizes de pontos luminosos, sob uma legislação puramente convencional de
organização discursiva”.

Desta forma, e no que respeita às suas funções, os data portraits evocam muitas
das funções do retrato tradicional, decorrentes do seu carácter documental. Estas
funções estão essencialmente ligadas à representação do sujeito perante o outro
e/ou perante si mesmo. Por um lado, os data portraits podem cumprir uma função
de proxy, substituindo a presença física dos indivíduos em comunidades online, re-
velando os seus padrões de comportamento nessas mesmas comunidades e ten-
do um impacto sobre como os outros agem perante eles. Por outro lado, podem
actuar como um espelho de dados (data mirror), ou seja, um retrato projetado para
ser visto apenas pelo sujeito, funcionando como veículo para a auto-exploração
da identidade, ao reflectir padrões de comportamento de uma forma autodirigida
(Donath et al. 2014).

17 De acordo com Donath (2017, 187) “o objectivo da visualização é frequentemente a precisão; é


uma ferramenta para análise científica ou sociológica. Um retrato é uma produção artística, moldada
pela tensão entre os objetivos muitas vezes antagónicos do sujeito, artista e público”.
18 Segundo Min, os dados digitais podem ser um meio para o Realismo. “Os dados digitais são, até
certo ponto, puros. Ao nível da superfície, não há fantasia ou ilusão no universo dos dados” (Min, 2015).

41
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Os data portraits podem ainda desempenhar um papel político, chamando a aten-


ção para a perda de privacidade e controle sobre os nossos dados pessoais. À me-
dida que a vigilância digital se torna cada vez mais ubíqua os data portraits posicio-
nam-se como meios de reapropriação de dados pessoais dispersos no domínio do
big data, devolvendo-os à esfera privada e doméstica do universo small data. Tal é o
caso da obra de Mark Farid, referida anteriormente, ou Spigot (Babbling Self-Portrait)
(2010) de Jason Salavon, que é um mapeamento do histórico das suas pesquisas
pessoais, que o Google manteve em arquivo.19

Spigot (Babbling Self-Portrait), Jason Salavon, 2010 – Instalação com ecrãs digitais.

Por fim, e de acordo com Lupton (2016), os data portraits podem também promover
um vínculo afetivo com os dados pessoais como efeito de sua instanciação. Quando
representados, os dados adquirem um valor simbólico que pode gerar sentimen-

19 O projecto utiliza dados referentes a mais de 10.000 pesquisas pessoais, que o Google manteve
em arquivo durante três anos. O sistema de mapeamento re-executa aleatoriamente pesquisas
feitas anteriormente por Salavon, criando visualizações a partir das datas (timestamps) e textos
dessas pesquisas. O resultado é um fluxo de vídeo que representa esses dados através de uma
grelha de quadrados coloridos, acompanhados por uma voz robotizada que lê os termos empre-
gues nas pesquisas.

42
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

tos de pertença e continuidade, associados à noção de identidade.20 Assim, os data


portraits podem produzir um efeito semelhante ao das fotografias expostas numa
casa, adquirindo valor biográfico e, portanto, emocional, associado à sua natureza
documental e à sua capacidade em evocar o que está ausente.

Apesar de existirem várias similaridades entre os data portraits e as formas de retrato


tradicionais, existem também características que são inerentes ao facto de os data
portraits serem baseados em sistemas de visualização de dados e ao facto de serem,
na maior parte das vezes, produzidos algoritmicamente (Dragulescu 2009).

Uma das características principais é o facto de os data portraits basearem a repre-


sentação do sujeito em aspectos da sua personalidade que não podem ser inferi-
dos pela sua aparência física. Como explica West (2004, 71) em relação ao retrato
clássico, os retratos bem sucedidos mostram similaridades relativas à aparência
física das pessoas e, além disso, utilizam objectos do seu dia-a-dia para ilustrar
os seus interesses e estatuto. Desde a Antiguidade que, em muitos retratos, os
indivíduos são representados junto de certos objectos com uma carga simbólica
específica, envergando determinada indumentária, ou assumindo certas poses,
com o objectivo de complementar e refinar a representação da sua identidade
através destes sinais exteriores. Para Xiong e Donath (1999), este aspecto inspirou
o desenvolvimento do conceito de data portrait, pois “o equivalente online des-
ses objectos são dados relativos às interacções passadas [dos sujeitos]” (1999).21
Um exemplo deste tipo de representação baseado em traços que não são directa-
mente observáveis é o projecto The Art of the Thrill (2014), que tem por objectivo
registar a emoção (thrill) que uma pessoa sente ao conduzir um automóvel.22 A
emoção, apesar de ser fugaz, tem repercussões ao nível fisiológico e, em The Art of
the Thrill, este estado psicológico é inferido a partir de dados biométricos mensu-
ráveis, como o rítmo cardíaco, transpiração e temperatura corporal.

Outra característica particular dos data portraits relaciona-se com o facto de estes

20 Lupton (2016) indica que quando se mostram visualizações dos seus próprios dados aos sujeitos,
novos tipos de laços afetivos emergem entre eles e os seus dados pessoais, passando estes a estar
investidos um novo significado: “os números adquirem novo significado emocional (...) tornando-se
um repositório biográfico de significância e significado para o utilizador” (Lupton 2016).
21 “This second aspect is an inspiration for our work. The on-line equivalent of one’s objects is data
about one’s past interactions (Xiong e Donath 1999)”.
22 No projecto The Art of the Thrill (2014), desenvolvido pela Sosolimited para a Porsche foram se-
leccionados 25 condutores para experimentarem a emoção de conduzir um novo automóvel. Uma
amostra de dados biométricos e de geolocalização foi recolhida através de métodos de self-tracking,
para registar a emoção (thrill) que cada participante sentiu durante a condução do veículo. Quando
experienciamos emoções fortes o nosso ritmo cardíaco aumenta, a nossa respiração torna-se mais
rápida e menos profunda, a nossa temperatura corporal sobe (Sosolimited 2014).

43
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

permitirem representar no mesmo retrato a evolução da identidade ao longo do


tempo. Muitos artistas, como Rembrandt, Van Gogh e Munch, produziram séries de
auto-retratos com o objectivo de documentar e explorar determinados períodos
das suas vidas. Nestes casos, os retratos funcionam como representações explora-
tórias de mudanças psicológicas, mapeando as alterações operadas pelo decorrer
do tempo. Esta variabilidade pode ser representada, não apenas através de séries
de retratos mas também de forma dinâmica, com recurso a novos meios técnicos. A
introdução de meios computacionais torna possível a concepção de data portraits
dinâmicos, alimentados por fluxos de dados em tempo-real, bem como atribuir-lhes
propriedades interactivas. Este tipo de retratos têm assim a capacidade de se actu-
alizar no tempo, simulando uma das mais importantes características da existência
humana; o facto de ser contínua (Viola 1982)23.

Por fim, podemos afirmar que, ao evocar o ser humano através de características que
estão para além da sua aparência física e ao simular a evolução dessas característi-
cas ao longo do tempo, os data portraits têm a particularidade de representar o ser
pela experiência. Observamos esta tendência em vários dos data portraits analisa-
dos neste estudo, como por exemplo o projecto The Sixth Sense (2016), que tem por
objectivo capturar a experiência de cada participante num espectáculo de música.
À entrada do evento, era fornecida uma pulseira com sensores incorporados para
capturar dados biométricos, assim como movimento e deslocação e associá-los a
timestamps. Durante o evento os dados de cada participante foram mapeados em
tempo-real e projectados no local, permitindo visualizar como cada indivíduo expe-
riencia o mesmo ambiente de formas diferentes.

The Sixth Sense, Clever Franke, 2016 – Instalação, performance, visualização dinâmica, impressão.

23 Do original: “Possibly the most startling thing about our individual existence is that it is conti-
nuous” (Viola 1982).

44
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Conclusão
O retrato, enquanto construção artística que pretende representar o ser-humano,
começou por ter como principal referente imagens do corpo, sendo essencialmente
definido pelas suas funções documentais decorrentes deste carácter mimético. No
entanto, o conceito de retrato tem vindo a expandir-se, acompanhando os avanços
tecnológicos e culturais. A sua prática distancia-se da representação do corpo físico
indo ao encontro de uma crescente abstracção formal e passando a empregar téc-
nicas de visualização de dados que dão origem a data portraits. O uso destas técni-
cas representa assim uma mudança de paradigma no retrato, transferindo o foco no
processo de registo pictórico para o processo de construção simbólica de sentido.
Desta forma, a função principal do retrato deixa de ser a de descrever a aparência do
sujeito, passando a ser a de evocar a sua experiência.

Podemos então concluir que os data portraits, apesar de serem visualmente abstrac-
tos, seguirem uma abordagem quantitativa e serem muitas vezes gerados algoritmi-
camente, permitem representar traços da identidade que não estão totalmente acessí-
veis aos modos de retrato tradicionais. Ao representar traços da identidade individual
que não são directamente observáveis e ao mapear a experiência humana ao longo
do tempo, os data portraits expressam a natureza fluída da identidade, moldada pelos
fluxos constantes de informação a que, actualmente, estamos expostos.

Com este estudo espera-se realçar a relevância dos data portraits enquanto experi-
mentações criativas em torno da representação da identidade individual e a forma
como esta é moldada pela cultura digital. Ao mesmo tempo, procura-se reflectir so-
bre o modo como as práticas aqui exploradas, promovem uma reconfiguração do
próprio conceito de retrato, informada pelo contexto actual da sociedade de infor-
mação e da vivência num quotidiano imerso dados.

Referências
Almeida, Pedro. 2017. Visactivism: A Visualização de Informação na Perspectiva
do Design Activista. Repositório da Universidade de Lisboa. [último acesso: 03-12-
2018] <http://repositorio.ul.pt/handle/10451/29334>.

Donath, Judith. 2017. The Social Machine - Designs for Living Online. Massachu-
setts: MIT Press.

———. 2001. “Mediated Faces”, Sociable Media Goup. [último acesso: 05-01-2018] <http://
smg.media.mit.edu/papers/Donath/MediatedFaces/MediatedFaces.CT2001.pdf >.

Donath, Judith; Alex Dragulescu; Aaron Zinman; Fernanda Viégas; Rebecca Xiong, e Yan-
nick Assogba. 2014. “Data Portraits”, Sociable Media Goup. [último acesso: 18-05-2017]
<http://smg.media.mit.edu/papers/Donath/DataPortraits.Siggraph.final.graphics.pdf>.

45
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Dragulescu, Alex C. 2009. “Data Portraits: Aesthetics and Algorithms”, Sociable Me-
dia Goup. [último acesso: 18-05-2017] <http://smg.media.mit.edu/Papers/dragu/
data_portraits_thesis.pdf>.

Dreier, Katherine. 1922. ‘Western Art and the New Era’, New York, apud Adès D., ‘Du-
champ’s Masquerades’, in Clarke G. (Ed.). The Portrait in Photography. London: Re-
aktion Books Ltd.

Frick, Laurie. (sd.). “Your Life Makes Beautiful Patterns. Exploring the Future of Data
About You“, Laurie Frick Personal Website. [último acesso: 10-10-2018] <http://www.
lauriefrick.com/>.

Gombrich, Ernst H. 2015. The Story of Art. London: Phaidon.

Goodyear, Anne C.; Jonathan Walz, Kathleen Campagnolo, e Dorinda Evans. 2016. This Is a
Portrait If I Say So: Identity in American Art, 1912 to Today. Yale: Yale University Press.

Ellis, Carolyn; Tony. E. Adams; e Arthur. P. Bochner. 2011. “Autoethnography: An Over-


view”, Qualitative Social Research. [último acesso: 02-08-2018] <http://www.qualita-
tive-research.net/index.php/fqs/article/view/1589/3095>.

Flusser, Vilem. 1998. Ensaio Sobre a Fotografia - Para uma Filosofia da Técnica.
Lisboa: Relógio d’Água.

Hall, James. 2014. The Self-Portrait: A Cultural History. London: Thames & Hudson Ltd.

Lupi, Giorgia; e Stefanie Posavec. 2016. Dear Data. London: Penguin Random House UK.

Lupton, Deborah. 2016. “You are Your Data: Self-Tracking Practices and Concepts of
Data”, Lifelogging - Digital Self-tracking and Lifelogging – Disruptive Technolo-
gy and Cultural Transformation. Berlin: Springer VS. (pp. 61-79).

Min, Sey. 2015. “Data Visualization Design and the Art of Depicting Reality”, MoMA. [úl-
timo acesso: 12-12-2018] <https://www.moma.org/explore/inside_out/2015/12/10/
data-visualization-design-and-the-art-of-depicting-reality/>.

Perec, Georges. 1999. Species of Spaces and Other Pieces. Harmondsworth: Penguin.

Renaud, Alain. 2003. “O Interface Informacional ou o Sensível no Seio do Inteligível”.


(Cruz, M. T. trad.). In Poissant, L. (org.), Esthétiques des Arts Médiatiques, Interfa-
ces et Sensorialités. pp. 65-89. Québec: Presses Universitaires du Québec. (Original
em Francês, s.d.).

Selke, Stefan. (Ed.) 2016. Lifelogging - Digital Self-tracking and Lifelogging – Disrup-
tive Technology and Cultural Transformation. Berlin. Springer VS.

46
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Van Alphen, Ernest. 2005. “The Portrait’s Dispersal: Concepts of Representation and
Subjectivity in Contemporary Portraiture”. Art in Mind: How Contemporary Ima-
ges Shape Thought. Chicago: University of Chicago Press. (pp. 21-34).

Viola, Bill. 1982. “Will There Be Condominiums in Data Space?”, The New Media Rea-
der. (Ed. Wardrip-Fruin, Noah). 2003. Massachusetts: MIT Press.

Whitelaw, Mitchell. 2008. “Art Against Information: Case Studies in Data Practice”, The
Fibreculture Journal. [último acesso: 08-01-2018] <http://eleven.fibreculturejournal.
org/fcj-067-art-against-information-case-studies-in-data-practice/>.

West, Shearer. 2004. Portraiture. Oxford: Oxford University Press.

Xiong, Rebecca; e Judith Donath. 1999. “PeopleGarden: Creating Data Portraits for
Users”, Association for Computing Machinery. [último acesso: 10-10-2018] <https://
dl.acm.org/citation.cfm?id=322581&dl=ACM&coll=DL>.

47
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

César Felipe Carvalho Daher1


Horóscopo manual: uma ferramenta astrológica contemporânea
Manual horoscope: a contemporary astrological

Resumo
Este artigo apresenta uma reflexão acerca do projeto de desenvolvimento de um
artefato interativo para uso em astrologia ocidental. Aqui discute-se a astrologia
como conhecimento de base pré-científica, mas que se desenvolveu paralela-
mente à ciência e que mesmo nos dias atuais possui apelo a parte da popula-
ção. A astrologia enquanto conhecimento não científico não produz explicações
concretas para os fenômenos naturais, mas sim narrativas ou metáforas que se
utilizam de símbolos provenientes da natureza e que apelam às pessoas sob uma
dimensão afetiva e subjetiva. Sendo assim, há um público que se interessa por ela,
mas que não se aprofunda ou apenas o tangencia, devido à complexidade de seu
sistema de signos. Com esta base, foi possível propor um objeto astrológico com
as tecnologias atuais e que fosse relevante para este público. O projeto em ques-
tão teve como objeto de estudo um diagrama bidimensional conhecido como
horóscopo, considerado a ferramenta básica da astrologia ocidental. Propôs-se
traduzi-lo para uma estrutura tridimensional e interativa, simulando seu dese-
nho e demonstrando a hierarquia entre as informações que contém. Por meio de
uma análise visual, foi decifrada sua estética, elementos constituintes e maneira
de expressar informações, possibilitando transformá-los em formas, encaixes e
mecanismos. Utilizando tecnologia de corte a laser em madeira, desenvolveu-se
sucessivos modelos em escala 1:1, até se obter uma configuração formal que fosse
visualmente inteligível, funcional e esteticamente coerente.
Keywords: astrologia, design de informação, fabricação digital, cultura maker.

Resumo/resumen/resumé
This article presents a reflection regarding the development of an interactive artifact
for western astrology. Here, astrology is discussed as a pre-scientific knowledge that
has developed in parallel to science and even today appeals to a part of the popula-
tion. As a non-scientific knowledge, astrology does not give concrete explanations to
the natural phenomena, instead giving out narratives or metaphors that utilize natu-
ral symbols and appeal to people subjectively and through affection. There is a group

1 Formado em Design com habilitação em Programação Visual e Projeto de Produto pela Universida-
de de Brasília (UnB). Mestrando em Mídia, Arte e Design pela Bauhaus-Universität Weimar.

48
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

of people that takes an interest in it, but only superficially because of its complexion.
Knowing this, it was possible to use the current technologies to propose a new astro-
logical object that would be relevant to this audience. This project studied the structure
of the horoscope, a two-dimensional diagram that is considered to be the basic tool
for western astrology. The proposal was to translate it into an interactive three-dimen-
sional structure that simulates its design and demonstrates its informational hierar-
chy. By means of visual analysis, it was possible to decipher the horoscope’s aesthetic,
components and informational language and transform them into forms, joints and
mechanisms. Many 1:1 models were created in succession, resulting in a final model
that was visually intelligible, functional and aesthetically coherent.
Palavras-chave/Palabras clave/Mots clefs: astrology

Introdução

A astrologia é um dos conhecimentos mais antigos desenvolvidos pela civilização hu-


mana, sendo também um dos mais transversais entre as culturas, pois sabe-se que
diferentes sociedades ao redor do globo foram capazes de criar seus próprios sistemas
astrológicos. Tester (1996, traduzido pelo autor) define a prática astrológica como “a
interpretação e prognóstico e eventos na Terra e das disposições e caráteres humanos
a partir do mapeamento dos movimentos e posições relativas dos corpos celestes”.
Com esta definição, é possível imaginar que as mais diversas culturas seriam capazes
de interpretar o céu para seus próprios fins, mas com convergências entre si.

Thorndike (1955) defende que os sistemas astrológicos eram considerados lei univer-
sal para interpretação e previsão de fenômenos astrológicos até o advento da lei de
gravitação universal de Newton. Isso significa que o desenvolvimento do método cien-
tífico como principal ferramenta de compreensão do mundo tornou a astrologia uma
prática marginal que é muitas vezes vista com maus olhos sobretudo por cientistas.

Além do caráter impreciso e não confiável do astrologia perante à ciência, pode-se men-
cionar que a falta de conhecimento histórico acerca do assunto por parte de céticos con-
tribui para a má fama da astrologia. No entanto, isso não se dá somente pela aversão
ou falta de interesse, mas também pelo fato de que as fontes bibliográficas referentes
ao assunto não são confiáveis, como defendido por Tester (1996). Ele menciona que há
uma grande polarização entre autores pró e contra astrologia e mesmo os textos mais
confiáveis são acríticos e se valem de poucas fontes primárias. Vale lembrar, no entanto,
que por ser uma prática vernacular e interpessoal, muito da sua produção vem de uma
cultura oral que carece de documentação, mas que é ainda assim muito rica.

A astrologia é hoje usada principalmente como método de adivinhação, muito as-


sociada à espiritualidade e ao autoconhecimento. (Daher, 2019, no prelo) Essa asso-

49
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

ciação entre astrologia e espiritualidade, e até mesmo à magia e ao sobrenatural não


é historicamente equivocada; tomando como exemplo a prática espiritual da Roma
Antiga, sabe-se que os planetas vistos no céu levavam nomes de divindades, o que
possibilita imaginar que os planetas eram considerados as próprias divindades.

É importante mencionar que apesar de ser espiritual, a astrologia sempre foi tam-
bém racional e natural, não havendo uma distinção clara entre estes aspectos.
(Daher, 2019, no prelo) Enquanto tratava-se de adivinhações para o futuro, também
alimentava a geometria, a matemática, a geografia, dando a base para a astronomia
científica moderna.

Mesmo tendo perdido este caráter holístico na modernidade, é um equívoco afirmar


que a astrologia não tem mais valor enquanto prática. Por mais que ela não substitua
a psicologia, meteorologia, ciência política, etc., ela atende à demanda daqueles que
buscam maneiras alternativas de compreender o mundo e a si mesmos, o que é vá-
lido se feito com a devida seriedade. (Daher, 2019, no prelo) No entanto, é inegável
que existam aqueles que a utilizem de má fé ou como forma de charlatanismo e é
neste aspecto que se validam grande parte das críticas feitas ao seu uso, uma vez
que não exista uma regulação para a sua prática.

O projeto aqui descrito, no entanto, não foi uma tentativa de dar credibilidade à as-
trologia para aqueles que não a valorizam, mas criar um produto que fosse capaz de
tangibilizar alguns de seus elementos mais básicos para aqueles que já possuem in-
teresse. Isso significa mostrar ao público que a astrologia não é um conhecimento à
parte de tudo que elas conhecem, e sim algo que fez parte do desenvolvimento da
civilização humana e que se relaciona com a própria natureza. Não se espera que este
produto forme astrólogos profissionais, mas que atenda uma demanda de parte da
sociedade que é de se adentrar nesta maneira tão antiga de compreender o mundo.

Método

O desenvolvimento deste objeto se deu por meio de pesquisa e experimentação.


A pesquisa teórica se deu principalmente por meio de artigos e sites devido a uma
escassez de referências acadêmicas e científicas sobre o assunto, bem como pelo
caráter oral e prático do tema. Buscou-se também referências históricas de objetos
astrológicos em um âmbito conceitual, bem como referências de objetos contempo-
râneos fabricados por meio de fabricação digital.

A etapa de experimentação foi muito inspirada por projetos associados à cultura


maker, sobretudo no uso de fabricação digital, que permitem fabricação unitária de
objetos com alto nível de acabamento e pouco desperdício (Chicca Jr; Castillo, 2014).
Além disso, dentro da cultura maker dá-se grande ênfase no processo de experi-
mentação com modelos com, entendendo que este contato direto com o material
permite maior compreensão formal.

50
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Dado este referencial, foi feito um processo de experimentação visual com os sím-
bolos astrológicos, o que gerou uma proposta de como funcionaria a interface entre
usuário e objeto. Este processo se deu por meio de desenhos manuais e vetoriais.
Posteriormente, foram feitos modelos virtuais tridimensionais, que posteriormente
foram fabricados utilizando a tecnologia de corte a laser. Devido ao baixo custo de
maquinário e materiais, foi possível criar sucessivos modelos em escala 1:1, que fo-
ram testados junto a astrólogos e simpatizantes. Deste modo, foi possível aprimorar
o objeto versão a versão, lapidando sua forma enquanto recurso de comunicação,
expressão e representação não verbal, como defendido por Siqueira (2006).

Horóscopo

Para muitos, o primeiro contato com astrologia foi por meio dos signos do zodíaco e
seus símbolos. Por este motivo também é comum reduzir toda a prática astrológica
ao nome signos. Outro ícone da prática astrológica, para aqueles que possuem al-
gum aprofundamento, é a imagem do horóscopo (também conhecido como mapa
astral), um diagrama bidimensional que demonstra as posições relativas dos astros
em determinado instante (vide Figura 1). O desenho de um horóscopo é uma ferra-
menta indispensável na prática astrológica, uma vez que ele sintetiza todas as infor-
mações importantes sobre a disposição dos astros em uma só imagem. O formato
apresentado na figura é o mais utilizado em sites e softwares astrológicos.

Figura 1. Exemplo de horóscopo. Fonte: Astro.com.


51
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Pela imagem, observa-se que a geometricidade é muito importante em seu dese-


nho. Como verificado no trabalho de March e McEvers (1981), cada parte do horós-
copo representa algum aspecto do céu visível:

• Centro: círculo central que representa um observador na Terra;

• Zodíaco: anel exterior contendo os símbolos dos signos que representa o cami-
nho que o Sol faz ao redor da Terra ao longo do ano;

• Ascendente: linha horizontal (indicada por AC) que representa o horizonte sob
a perspectiva do observador e aponta para o leste;

• Meio do céu: linha vertical (indicada por MC) que aponta para o ponto do céu
em que se vê o Sol a pino;

• Casas astrológicas: espaço intermediário entre zodíaco e Terra que representa


o caminho que o Sol faz no céu ao longo de um dia, dividido em doze partes;

• Planetas: os símbolos dos planetas representam suas respectivas posições em


relação ao observador.

Analisando a estrutura deste diagrama, é possível perceber características temporais,


espaciais e relacionais, utilizando as definições dadas por Meirelles (2013). Cada horós-
copo marca um instante no tempo, embora o diagrama em si não contenha elementos
temporais, como horários ou datas. Também pode ser considerado um mapa astral,
pois indica posições relativas a um espaço delimitado. No entanto, não se trata de um
espaço geográfico cartesiano, mas sim de um espaço imaginário delimitado por coor-
denadas polares e sem qualquer preocupação com distâncias lineares.

Em um horóscopo, as distâncias angulares são as mais relevantes, indicadas pelas li-


nhas vermelhas e azuis que ligam os símbolos dos planetas (vide Figura 1). Embora
essas linhas sejam opcionais, elas representam certas distâncias regulares (sobretudo
60°, 90° 120° e 180°), indicando diferentes tipos de relações entre os astros. Uma outra
maneira de visualizá-las é por meio da tabela apresentada à esquerda, que apresen-
ta-as por meio de símbolos geométricos (ex.: triângulo para 120°; quadrado para 90°).

É possível perceber, portanto, que existem várias camadas de informação presen-


tes no desenho de um horóscopo, dificultando o entendimento daqueles que não
possuem familiaridade. Por isso também é comum que venha acompanhado de
uma legenda como no exemplo. Levando em consideração que os ciclos dos as-
tros, sobretudo da Lua e do Sol, são essenciais para a compreensão do clima, da
geografia e o próprio passar do tempo, percebe-se que não existe nada essen-
cialmente sobrenatural no estudo da astrologia, sendo apenas uma compreensão
mais metafórica do mundo.

52
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Tratando-se de um modelo tão consolidado de visualização do céu, a ideia deste


projeto não foi criar um modo de visualização completamente novo, mas otimizar o
já existente adicionando um elemento tridimensional e interativo. Entendendo que
o horóscopo possui uma estrutura básica comum, modificando-se de acordo com as
coordenadas dadas, viu-se a possibilidade de criar um objeto que contivesse todos
os seus elementos constituintes, mas com partes móveis que permitissem a monta-
gem de diferentes horóscopos.

Uma característica importante das ferramentas astrológicas antigas, como relógios


solares e astrolábios é o caráter mensuratório; com tecnologias ainda muito rudi-
mentares, elas eram empregadas para medir as posições dos astros para realização
de cálculos, por exemplo. Atualmente, no entanto, a medição e o cálculo são instan-
taneamente realizáveis por meio de softwares. Sendo assim, uma nova ferramenta
astrológica deve atender a uma outra demanda, neste caso a de facilitar a visualiza-
ção de dados já existentes.

Tradução visual
O processo de tradução do bi para o tridimensional foi muito inspirado no trabalho
desenvolvido pro Trogello, Neves e Silva (2015), no qual desenvolveram uma esfera
celeste didática, descrita como objeto de aprendizagem, termo que é descrito por
Tavares (2010 apud Trogello et. al) como ferramentas que apresentam características
do fenômeno que se pretende simular” que “têm a característica de ser reutilizado,
ou seja, representam um dado fenômeno, ou parte dele, em uma escala reduzida,
analógica e até mesmo de forma paralela.”

Figura 2. Esfera celestial didática. Fonte:Trogello (2015).

53
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A Figura 2 apresenta o artefato desenvolvido pelos autores. Trata-se de um objeto


que simula analogicamente conhecimentos da astronomia feita com materiais bas-
tante simples e que pode ser utilizado em salas de aula. Nela, apresenta-se os pontos
cardeais, bem como o caminho feito pelo Sol no céu e as constelações visíveis. De
acordo com os autores, uma motivação para sua criação foi a necessidade de novas
metodologias para desenvolver a linguagem entre professor-aluno, substituindo
ilustrações e quadros de giz por uma solução visual mais completa, o que se relacio-
na com as motivações do presente projeto.

Foram feitos diversos experimentos e modelos ao longo do projeto com o intuito de


tratar as informações contidas no horóscopo de modo que sejam transponíveis para
um objeto. Para isso, a principal referência foram diagramas astrológicos antigos. A
Figura 3 é um diagrama desenhado em 1552 por Johannes Honterus que eviden-
cia a ordem de distância dos planetas em relação à Terra. Pelo fato de os símbolos
planetários estarem dispostos em diferentes posições, deduz-se que este diagrama
representa algum tipo de horóscopo. A principal diferença entre este e a Figura 1 é a
apresentação de cada planeta em sua própria órbita, o que facilita a visualização por
exemplo quando dois planetas se encontram em posições muito próximas. Além
disso, o espaço vazio pode ser usado para outras anotações, como foi feito neste
caso para apresentar o nome dos planetas por extenso.

Figura 3. Ordnung des Planetensystems. Fonte: SLUB / German Photo Library, Cristoph Vorschauer.

54
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Inspirado por este modelo, foi desenvolvido um formato de desenho de horóscopo


(vide Figura 4) para representar a superfície de visualização do objeto. Ele possui
os mesmos elementos presentes na Figura 1, porém apresenta órbitas planetárias
como na Figura 3.

Outra modificação foi trazer a tabela de distâncias angulares como parte parte in-
tegrante do diagrama, utilizando os símbolos geométricos em azul ou vermelho no
espaço vazio de cada órbita. Por exemplo, se quisermos saber qual é a relação entre
Lua e Mercúrio, basta encontrar o símbolo da Lua e verificar se existe algum símbolo
geométrico alinhado a ele dentro da órbita de Mercúrio. Neste caso, por haver um
triângulo, verifica-se que a distância entre eles é próxima a 120°.

Figura 4. Novo modelo de horóscopo.

55
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Também foi feita uma classificação dos elementos do horóscopo em fixos ou móveis,
a fim de guiar os tipos de peça que o objeto deveria conter e como eles deveriam
estar dispostos e relacionados. Os elementos tidos como fixos são relativos ao ponto
de vista do observador, que se mantém estático na Terra, sendo eles: centro, ascen-
dente e casas astrológicas. Os elementos móveis são aqueles que mudam ao longo
tempo e são observáveis no céu, sendo eles: zodíaco, meio do céu e planetas.

Modelagem
Desenvolveu-se diversos modelos em escala 1:1 até chegar a um tabuleiro circular,
dado o nome de horóscopo manual. Visualmente, sua estrutura é bastante pareci-
da com o modelo apresentado na Figura 4, porém com peças tridimensionais. Sua
montagem é feita pela sobreposição e colagem de peças planas cortadas a laser,
como apresentado na Figura 5. À esquerda, estão mostradas apenas as partes fixas
do objeto, que mantêm a sua coesão. É possível diferenciar as casas astrológicas por
suas marcações radiais; o objeto também possui sulcos que recebem as peças pla-
netárias, aqui representados como anéis coloridos, assim como o zodíaco, represen-
tado como um anel grosso com doze setores que alternam em quatro cores; o meio
do céu é representado na forma de um marcador em sua parte superior; por fim, o
ascendente é representado por uma seta que mantém as peças móveis acopladas
ao restante do objeto.

Figura 5. Modelo tridimensional do horóscopo manual.

Conceitualmente, a ideia de ciclos foi muito importante. Sabemos que os planetas


fazem ciclos ao redor do Sol, e eles são a base da maioria dos conceitos astrológicos.
Sendo assim, desenvolver peças rotacionáveis foi a forma que pareceu mais cabível
para representar elementos de um horóscopo.

56
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Foi possível também aplicar soluções gráficas simples mas eficazes nas peças. A tec-
nologia de corte a laser permite que se faça marcações no material, possibilitando
criar demarcações e símbolos na superfície das peças. Foi aplicado um código cro-
mático tanto no zodíaco como nas peças planetárias, diferenciando-as entre si e per-
mitindo uma rápida assimilação. No zodíaco, as cores aplicadas foram relativas aos
quatro elementos ocidentais (fogo, terra, água e ar), enquanto cada planeta recebeu
uma cor baseada em suas características astrológicas: Marte é tradicionalmente as-
sociado à guerra e leva a cor vermelha; Saturno é associado ao tempo e à morte,
levando a cor preta, etc.

Por fim, as diferenças angulares foram aplicadas em cada peça planetária como mar-
cações gráficas, como na Figura 6. Sendo este um objeto completamente analógico,
seria impossível apresentar uma solução que se adaptasse a cada horóscopo. Por isso,
foram marcadas na órbita de cada planeta as distâncias de 60°, 90°, 120° e 180° com
seus respectivos símbolos. A leitura é feita da mesma forma explicada para a Figura 4.

Figura 6. Esquema das peças planetárias para Lua e Mercúrio, com marcações geométricas
e a uma distância angular de 120°.

57
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Considerações
A solução proposta para este projeto consistiu em um artefato analógico e interati-
vo, porém ainda com uma estrutura plana. Embora houvesse interesse em explorar
as possibilidades tridimensionais, houve também um receio de que excessos pudes-
sem prejudicar a comunicação, entendendo que o horóscopo em si já é bastante
complexo.

O desenvolvimento deste artefato gerou questionamentos acerca do papel da astro-


logia e que tipo de ferramentas podem auxiliar a sua prática na atualidade. Questio-
nou-se inclusive os modelos astrológicos vigentes, abrindo espaço para experimen-
tação com outros tipos de visualização de horóscopo.

Conclui-se com esta proposta que o tratamento tridimensional da informação per-


mite uma visualização mais facetada do que um simples diagrama plano. Também
se destaca a interação por meio da simulação dos movimentos astrológicos e astro-
nômicos como uma alternativa para facilitar a sua compreensão e aproximar usuário
e conhecimento.

Referências
Chicca Jr, N. A.; Castillo, L. G. (2014). Impressão 3D na cultura do design contemporâ-
neo. In: Anais do 11º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design
[= Blucher Design Proceedings, v. 1, n. 4]. São Paulo: Blucher. p. 2344-2353.

Daher, C. (2019). Astrologia interativa: um projeto de horóscopo manual. Brasília:


UnB. No prelo.

Machado, C. (2006). A falência dos modelos normativos de filosofia da ciência: a as-


trologia como um estudo de caso. Rio de Janeiro: PUC.

March, M.; McEvers, J. (1981). Curso Básico de Astrologia — Princípios Fundamentais.


v. 1. Tradução de Carmem Youssef. São Paulo: Editora Pensamento.

Meirelles, I. (2013). Design for Information. Beverly: Rockport Publishers.

Siqueira, N. (2006). Laboratório da Forma – uma proposta de pesquisa em design. In:


Repositório Institucional da UnB.

Tester, J. (1996). A History of Western Astrology. Suffolk: Boydell Press.

Thorndike, L. (1955).“The true place of astrology in the history of science”. In: Isis. Vol.
46, No. 3 (Sep., 1955), pp. 273-278.

58
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

César F. C. Daher1 , Flávio S. Nazareno2 ,


Gabriela A. R.de Sá3 e Tiago B. P. e Silva4
O tempo em perspectiva: uma interface interativa
Time in perspective: an interactive interface

Resumo
O presente artigo descreve o desenvolvimento de uma interface digital interativa
para visualização e comparação entre diferentes ferramentas de medição e registro
do tempo existentes na história da humanidade. O projeto se desenvolveu a partir
de uma série de investigações pertinentes ao tema nos âmbitos teórico, da percep-
ção de possíveis usuários e do funcionamento das ferramentas em questão, tendo
como motivação a hipótese de que a percepção que temos sobre o passar do tempo
atualmente é guiada pelas ferramentas que utilizamos para medi-lo. Com a coleta
dessas informações, as ferramentas foram analisadas e agrupadas, gerando os requi-
sitos necessários para o desenvolvimento da interface: visualização comparativa das
ferramentas ao longo da história e visualização detalhada de cada ferramenta. Esses
requisitos permitiram seis distintos tipos de visualização, que variam a grandeza de
tempo, a sua estrutura e a base teórica, fornecendo uma visão informativa sobre o
contexto cultural do artefato representado. A partir da proposta de uma narrativa de
navegação mínima pautada em apresentação, instruções e a informação efetiva, foi
confeccionado um protótipo de interface. Sua identidade gráfica seguiu os precei-
tos da mimese cartográfica, apoiada pela abstração estética de micro e macro pro-
porções. Palavras-chave: tempo, historiografia, metadesign, ferramentas, interface.

Abstract
This article describes the development of an interactive digital interface with the
purpose of visualizing and comparing different tools for measuring time that exist-
ed throughout history. The project was developed by first investigating theoretical,

1 Bacharel em Design com habilitação em Programação Visual e Projeto de Produto pela Universida-
de de Brasília (UnB). Mestrando em Mídia, Arte e Design pela Bauhaus-Universität Weimar.
2 Bacharelando em Design com habilitação em Programação Visual na Universidade de Brasília
(UnB).
3 Bacharela em Design com habilitação em Programação Visual pela Universidade de Brasília (UnB),
com pesquisa em mulheres na História do design. Interessa-se em historiografia e materialidade.
4 Bacharel em Design, Mestre em Psicologia e Doutor em Artes. Professor Adjunto do Departamento
de Design da Universidade de Brasília (UnB).

59
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

perceptive and functional aspects of the tools. The motivation was the hypothesis
that our perception of time is guided by the tools we use to measure it. After col-
lecting this information, the tools were analyzed and grouped, creating the basic
requirements for the interface: its comparative historical and detailed visualization
for each one. Six different types of visualization were developed, based on time scale,
functional structure and theoretical basis. The navigation narrative proposed for the
interface was: introduction, usage instructions and effective information, allowing
for the creation of a prototype. Its graphic identity was based on cartographic mi-
metics and supported by the abstraction of micro and macroproportions. Keywords:
time, historiography, metadesign, tools, interface.

Introdução
Há tempos a humanidade tem a necessidade de marcar a passagem do tempo, seja
para situar-se ou para registrar eventos decorridos. (Daher et al., 2019, submetido à
publicação) A princípio, a observação dos ciclos naturais do Sol e da Lua eram a prin-
cipal maneira de se situar no tempo, mas à medida que as sociedades se desenvol-
veram cultural e tecnologicamente, foram surgindo também diferentes ferramentas
para esta finalidade. (Daher et al., 2019, submetido à publicação)

Entendendo que as tecnologias criadas ao longo da história se resultam do sincretismo


entre conhecimentos já existentes e novas descobertas, é possível perceber uma pro-
gressão tecnológica que se inicia na observação dos ciclos naturais e resulta nas ferra-
mentas contemporâneas. Motivado por um questionamento da percepção e registro
do tempo como “conhecimento intrínseco”, o artigo Mapeando o tempo: visualização
interativa para comparação entre ferramentas de registro do tempo (Daher et al., 2019,
submetido à publicação) apresenta um estudo acerca desta progressão, investigando
a estrutura de funcionamento das principais ferramentas, bem como a percepção de
usuários em termos de familiaridade e convenções de linguagem. Além disso, foram
estudadas maneiras de agrupá-las a partir dos seguintes parâmetros: escala de tempo
(grandeza), mensuração (pontual ou local), funcionamento (finalidade e disposição
gráfica) e historiografia (contexto histórico e social das ferramentas).

Com base nestes insumos, o presente artigo relata o desenvolvimento de uma in-
terface digital interativa cujo objetivo geral é a visualização comparativa entre fer-
ramentas de registro do tempo. Para tanto, espera-se: (a) definir a estrutura de na-
vegação da interface; (b) esboçar wireframes e estrutura das telas; (c) desenvolver a
linguagem e identidade gráfica; (d) desenvolver protótipo funcional para realização
de testes e futura implementação.

A interface projetada é, portanto, um recurso informacional para aqueles que dese-


jam compreender as diferentes maneiras de se experienciar a passagem do tempo
e como elas contribuíram para a percepção que temos atualmente sobre o assunto.

60
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Método
O método aqui relatado apresenta um tratamento dos insumos relatados no artigo
supracitado para aplicação na interface, entendendo que o produto desenvolvido
deve apresentar uma narrativa que seja coesa e coerente com o assunto abordado.

Base teórica
A busca bibliográfica teve foco no design de informação, sobretudo em termos de lin-
guagem e estruturas de visualização, citando como base Envisioning Information (Tufte,
1990), Visual Insights (Börner & Polley, 2014) e Design for Information (Meirelles, 2013).

Estrutura de navegação
Para que a interface apresente seja coerente, inteligível e didática, foi necessário de-
finir uma narrativa de navegação que fizesse sentido para a visualização dos agrupa-
mentos gerados durante o processo de pesquisa, sendo eles:

• Contexto de uso

• Base teórica

• Estrutura de funcionamento

• Estrutura de visualização

• Historiografia

• Grandeza de tempo

Esboço de wireframes
Definida a narrativa a ser apresentada, foi definido um fluxo de navegação da inter-
face com diferentes etapas. Para cada etapa, foram desenhados wireframes em baixa
fidelidade a fim de estudar quais elementos deveriam estar presentes em cada tela,
como deveriam ser dispostos e como se daria o intercâmbio entre telas.

Apresentação da interface
Foi necessário desenvolver também uma identidade gráfica para os elementos de
navegação e informação. Ela deveria ser adequada a diferentes suportes digitais e
também ser coerente com o assunto tratado. Para tal, fez-se uso da metalinguagem
ao buscar referências visuais nas próprias ferramentas estudadas. As percepções de
usuários obtidas no estudo anterior também foram importantes neste processo.

61
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Prototipação
A fim de avaliar e viabilizar a implementação da interface, foram feitos dois protó-
tipos. O primeiro tratou apenas da aplicação da identidade gráfica sobre os wire-
frames, possibilitando o desenvolvimento de um protótipo completo por meio da
plataforma online gratuita Quant-UX.

Resultados
Neste artigo trazemos em detalhe principalmente os resultados obtidos pelas eta-
pas de execução da interface, uma vez que os insumos teóricos estão descritos em
maior detalhe no artigo anterior.

Pesquisa teórica
Os conceitos trazidos por Isabel Meirelles em Design for Information (2013) foram
muito importantes. De acordo com a autora, a maioria dos sistemas de mensura-
ção de tempo são cíclicos, refletindo a experiência material de viver os ciclos dos
astros, como o nascer e pôr do sol, bem como o movimento das estrelas e as quatro
estações. (p.84) É desenvolvido no texto também que os sistemas de escrita de uma
cultura influenciam na ordem de disposição dos elementos e sua percepção cogni-
tiva (p. 88).

Utilizou-se também o livro Information Interaction Design: a unified field theory of de-
sign (1999) de Nathan Shedroff e seu diagrama de Espectro do Aprendizado, em
que “a tradução do dado em informação pelo produtor do conteúdo é apenas um
estímulo que necessita de contexto e experiência para produção do conhecimen-
to - e o entendimento do conhecimento, a partir da experiência e contexto, gera a
sabedoria.” (apud Daher et al., 2019, submetido à publicação)

Figura 1: ‘Chart of Biography’ criado por Joseph Priestley, 1765. Exemplo ilustrativo das convenções
analisadas por Isabel Meirelles. (Ilustração de domínio público).

62
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Foram trazidas também convenções gráficas utilizadas na construção de linhas do


tempo, trazidas também por Meirelles (2013) na análise dos trabalhos de Priestly
(Figura 1). De acordo com Meirelles (2013), são elas:

• Escala de tempo: uniforme e representada de maneira aritmética, seguindo a


noção Newtoniana de tempo como absoluto;

• Indicador de tempo: datas são inscritas no topo e rodapé e conectadas por


linhas para facilitar a percepção de divisão temporal;

• Seções temáticas: horizontalmente separadas por linhas (podendo ter qual-


quer critério temático);

• Indicadores de linhas: os comprimentos de linhas são utilizados para determi-


nar durações;

• Diferenciadores de linhas: níveis de incerteza são demonstrados graficamen-


te pela qualidade da linha (sólida ou pontilhada);

• Código cromático: diferenciadores de parâmetros.

Por fim, utilizou-se os conceitos trazidos por Kandinsky em Ponto, linha, plano: Contri-
buição para a análise dos elementos picturais (1987), muito importantes para o esboço
das principais visualizações e também para o desenvolvimento da linguagem gráfica.

Estrutura de navegação
Para garantir que seja possível a visualização e comparação entre as distintas fer-
ramentas, foi definido que a interface deveria: possibilitar distintas visualizações
baseadas nos parâmetros comparativos; conter visualizações intercambiáveis;
conter informações a respeito de cada ferramenta. A seguir, apresenta-se a lista
de ferramentas:

1. Relógio de Água 10. Calendário Juliano


2. Relógio de Incenso 11. Relógio Mecânico
3. Ampulheta 12. Cronômetro
4. Relógio Solar 13. Calendário Persa
5. Sino de Igreja 14. Calendário Ateniense
6. Relógio de Vela 15. Calendário Hebraico
7. Smart Watch 16. Calendário Egípcio
8. Relógio Digital 17. Calendário Islâmico
9. Merkhet 18. Calendário Gregoriano

63
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Seguindo os requisitos determinados e também os agrupamentos realizados durante


o estudo, foram definidos três tipos de visualização principais. No primeiro, dispõe-se
as ferramentas ao longo do tempo histórico como em uma linha do tempo, com a
possibilidade de utilizar os parâmetros de agrupamento para gerar outros tipos de
comparação. No segundo, visualiza-se informações a respeito de cada ferramenta in-
dividualmente. No último, compara-se duas ferramentas à escolha do usuário.

O fluxo de navegação foi determinado de acordo com a Figura 2. A princípio apre-


senta-se o projeto, seguido de instruções sobre como navegar pelas visualizações, até
finalmente chegar às telas principais. Para isso, dividiu-se também as ferramentas em
dois tipos de visualização em termos de escala de tempo: microescalas (menores que
um dia) e macroescalas (calendários).

Figura 2: Fluxo de navegação da interface.


Wireframes
Foram desenhados wireframes de cada tela, apresentando suas principais funciona-
lidades. Apresentamos nas figuras 3, 4 e 5, os esboços para as telas de visualização.

64
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 3: Estrutura da tela de visualização de ferramentas com microescalas de tempo.

Figura 4: Estrutura da tela de visualização de ferramentas com macroescalas de tempo.

65
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 5: Estrutura das telas de cards de cada ferramenta.

Na Figura 3, a tela de visualização de ferramentas micro apresenta as ferramentas


ao longo da história. Para isso, é feita uma linha do tempo em estrutura circular, na
qual a distância em relação ao centro indica o período de tempo histórico. Círculos
intermediários indicam períodos específicos, como marcações em uma régua. Distri-
buem-se então as ferramentas como pontos no espaço, de modo que suas posições
em relação ao centro indicam a época em que foram inventadas. Utiliza-se uma linha
do tempo literal na parte inferior que traduz a estrutura circular, trazendo uma visu-
alização mais familiar aos usuários.

Por meio de filtros localizados na parte superior esquerda, o usuário pode segmentar o
círculo de diferentes maneiras com base em parâmetros. Essa função permite a visuali-
zação da estrutura de maneira similar a um gráfico de setores, demonstrando os agru-
pamentos. Junto aos filtros, localiza-se um botão que permite a alternância entre visua-
lização de ferramentas de micro e macroescalas. Ao clicar em cada ferramenta, o usuário
também pode ser levado para a sua tela de informações, chamadas aqui de cards.

Na Figura 4, a tela de visualização de ferramentas macro apresenta as ferramentas


em comparação de escala de tempo. Nesse sentido, sobrepõe-se diferentes tipos de
calendário, demonstrando a escala de tempo de cada um, bem como suas subdivi-
sões. Cada calendário corresponde a uma linha, e com o clique o usuário também é
levado para uma tela de card com informações adicionais.

Na Figura 5, demonstra-se a tela de cards de informações. Nela, há uma ilustração de


cada ferramenta, bem como suas informações principais baseadas no agrupamento
e palavras-chave.

66
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Identidade gráfica e prototipagem


Partindo dos esboços, a identidade gráfica foi desenvolvida seguindo preceitos da
mimese cartográfica, apoiada pela abstração estética de micro e macro-proporções.
Também foram utilizados recursos da plataforma Quant-UX, para que a identidade
pudesse já ser prototipada enquanto desenvolvida.

A categorização das ferramentas de microescalas é uma das principais caracterís-


ticas da identidade desenvolvida. Ao invés de representá-las em forma de pontos
indiferenciáveis, utilizou-se uma iconografia (disponibilizada pelo Quant-UX) para
categorizá-las em termos de seus funcionamentos (vide Figura 6).

• Estrela: ferramentas que funcionam por meio de parâmetros astronômicos.


Exemplo: relógio solar.

• Gota: ferramentas que funcionam por meio do escorrimento de um fluido.


Exemplo: ampulheta.

• Régua: ferramentas que funcionam por meio do desgaste de um material ao


longo do tempo, medido por uma coluna. Exemplo: relógio de incenso.

• Engrenagem: ferramentas que funcionam por meio de sistemas mecânicos.


Exemplo: relógio de ponteiro.

Figura 6: iconografia usada para ferramentas com microescalas de tempo. Fonte: Quant-UX.

A Figura 7 apresenta uma versão prototipada da tela apresentada na Figura 3. Ob-


serva-se aqui que a estrutura circular junto aos ícones já demonstram as duas princi-
pais categorizações. As restantes são selecionadas por meio de filtros e apresentadas
pela setorização dos círculos. No exemplo, as ferramentas consideradas pragmáticas
em sua base teórica se posicionam na parte superior, enquanto as teóricas estão na
parte inferior. Ao passar o mouse sobre um ícone, ele aumenta de tamanho, indican-
do ser um objeto clicável.

A Figura 8 apresenta um protótipo da tela esboçada na Figura 4. Foram mantidas as


características do esboço, sem grande desenvolvimento gráfico.

67
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A Figura 10 apresenta um protótipo da tela esboçada na Figura 7. Neste exemplo, é


apresentada uma ampulheta, cujo nome é acompanhado do símbolo de gota. Além de
suas informações, há uma ilustração animada indicando sua forma e funcionamento.

Figura 7: Protótipo da tela comparativa de ferramentas de microescala.

Figura 9: Protótipo da tela comparativa de ferramentas de macroescala.

68
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 10: Protótipo da tela de informações individuais relativas à ampulheta.

Considerações
O desenvolvimento da interface demonstra que o trabalho em design de informa-
ção necessita de um bom entendimento sobre aquilo que se deseja demonstrar. O
aprofundamento no tema possibilitou diferentes maneiras de se compreender as
ferramentas estudadas a partir de suas semelhanças e diferenças, o que pôde ser
traduzido nas visualizações propostas.

Além disso, evidenciou-se a importância de compreender as convenções gráficas


vigentes para aplicá-las de maneira eficaz e também para que seja possível subver-
tê-las de maneira coerente e que não prejudique o conteúdo a ser apresentado.

A implementação idealizada para o futuro do projeto pretende analisar o teste com


os usuários para validação da linguagem verbal e visual da solução implementada,
bem como mensuração quantitativa das respostas dos usuário.

References
Daher, C.; Nazareno, F.; Sá, G.; Silva, T. (2019). Mapeando o tempo: visualização intera-
tiva para comparação entre ferramentas de registro do tempo. Anais do 9º Congres-
so Internacional de Design da Informação | CIDI 2019. Belo Horizonte. Submetido à
publicação.

Grafton, A.; Rosenberg, D. (2010). Cartographies of time. New York: Princeton Archi-
tectural Press.

69
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Kandinsky, W. (1987) Ponto, linha, plano: Contribuição para a análise dos elementos
picturais. Lisboa: Edições 70.

Meirelles, I. (2013). Design for Information. Beverly: Rockport Publishers.

Shedroff, N. (1999). Information Interaction Design: a unified field theory of design.


In: Jacobson, R. E. (Ed.) Information design: pp. 267-292. Cambridge: MIT Press.

70
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Felipe Bernardes Duarte1


Connexĭo: A Tecnologia como ferramenta de fluxo e
experiências entre artistas

Resumo
Ao escrever Admirável Mundo Novo, Audous Huxley nos apresenta um univer-
so distópico possivelmente caracterizado pelo progresso da tecnologia e suas
influências no período em que viveu. O autor foi capaz de perceber que emer-
gentes avanços tecnológicos influenciariam não apenas a maneira em como a
sociedade iria interagir, mas também como essa sociedade em eterna vigilância
teria suas sensações e valores transformados. O presente artigo é feito a partir
de um trabalho que busca explorar influências e potenciais possibilidades para
a criação artística através da tecnologia. Este trabalho traz consigo a mesma pre-
ocupação abordada por Huxley, porém de forma a acreditar que a tecnologia
seja uma ferramenta capaz de nos aproximar e assim transformar nossas rela-
ções interpessoais.
Palavras-chave: arte contemporânea, arte e tecnologia, poéticas digitais, new media.

Abstract
In the book Brave New World, Audous Huxley presents us with a dystopian universe
possibly characterized by the progress of technology and its influences in the period
in which it lived. The author was able to see that emerging technological advances
would influence not only how society would interact, but also how this ever-vigi-
lant society would have its sensations and values transformed. This abstract is made
from a work that seeks to explore influences and potential possibilities for artistic
creation through technology. This work brings with it the same concern addressed
by Huxley, but in order to believe that technology is a tool capable of bringing us
closer and thus transforming our interpersonal relationships.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: contemporary art, art and technology, digital
poetics, new media.

1 Felipe Bernardes Duarte é técnico em eletrônica pela Escola Técnica Estadual Monteiro Lobate - CI-
MOL (RS), formado em artes visuais / bacharelado em desenho e plástica pela Universidade Federal de
Santa Maria -UFSM (RS) e mestre em Práticas Artísticas Contemporâneas pela Faculdade de Belas Artes
da Universidade do Porto (Portugal). Atua com pós produção de imagem, vídeo, arte e tecnologia.

71
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Tecnologia digital
Ao pensar que desenvolvimento digital, tecnológico e midiático seja cada vez mais
forte e presente na sociedade atual, ainda existem inúmeros questionamentos que
preocupam artistas, curadores, filósofos da arte e pesquisadores. Entre tais receios,
o transe maquínico que a relação entre o homem e o objeto técnico pode causar
preocupada drasticamente o rumo da sociedade de acordo com o avanço tecno-
lógico. Eu acredito portanto, que ao referenciar o uso da tecnologia digital cada
vez mais presente no processo de criação, exposição de arte contemporânea e até
mesmo sua aplicação para repensar obras já consagradas pelo sistema da arte, este
artigo possibilita uma contribuição para a discussão sobre os novos horizontes que
a tecnologia pode nos possibilitar.

A expansão no uso das tecnologias como meios de criação na arte trouxe uma progres-
siva transformação na experiência artística, na crítica de arte e na estética. A produção
de imagens e os meios para seu acesso aumentaram muito através da popularização
dos meios tecnológicos. O ciberespaço e a interatividade tornaram-se novas manei-
ras de acesso e interação da cultura. Na verdade, as redes de informação derrubam
fronteiras e traçam os contornos virtuais daquilo a que o filosofo canadense Herbert
Marshall McLuhan chama de “The Global Village”, num mundo em que todos estariam,
de certa forma, interligados com influência de novas tecnologias eletrônicas.

Tais tecnologias são pensadas pelo autor Pierre Lévy, o qual acredita que seremos
capazes de um desenvolvimento de maneira mais humanista e em seu Livro Ciber-
cultura, ele espera ver na tecnologia potencialidades mais positivas, seja nos pla-
nos econômico, político, cultural e humano. O autor faz questionamentos sobre as
implicações culturais das novas tecnologias. Para ele, o virtual não se opõe ao real
mas sim ao atual: virtualidade e atualidade são apenas dois modos diferentes da
realidade. “É virtual toda entidade “desterritorializada”, capaz de gerar diversas ma-
nifestações concretas em diferentes momentos e locais determinados, sem contudo
estar ela mesma presa a um lugar ou tempo em particular.”

Essa conexão entre um processo reflexivo da tecnologia e das mídias é importan-


te para que a sociedade seja capaz de perceber seu trajeto. Muitas pessoas podem
discordar do papel político que a arte é capaz de exercer numa esfera global ou
nos meios de produção vinculados ao capital. Porém, se observarmos a influência
que o compartilhamento de imagens e informação trouxe em importantes decisões
políticas na última década (como eleições e pesquisas de opinião pública), torna-se
evidente que a fotografia e o vídeo são extremamente importantes nas decisões
tomadas pela sociedade. Tal como no livro “Admirável Mundo Novo”, a sociedade
contemporânea talvez também demonstre processos de condicionamento em nos-
sas formas de interação cultural e isso fica ainda mais evidente através dos nossos
meios para compartilhamento de informação e imagem.

72
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Esse texto é motivado por reflexões artísticas desse instante extremamente impor-
tante para a sociedade. Um exemplo disso, trata-se da a atual situação política no
Brasil, onde o presidente eleito em 2018, Jair Messias Bolsonaro ocupa o cargo exe-
cutivo de maior importância do país e compartilha todos os dias através de redes
sociais opiniões e discursos que são no mínimo inadequados. Sua campanha foi
apoiada por imagens de Jair Messias Bolsonaro em roupas de herói e até mesmo
em montagens fotográficas como um cavaleiro sobre um cavalo enquanto vestia
as cores da bandeira do Brasil. Parte da população foi influenciada em determinado
ponto pelo discurso conservador de Bolsonaro e acreditou nele como sendo de fato
um herói que iria libertar o Brasil de uma crise política e financeira. Muitas pessoas
passaram a adotar o discurso do até então candidato a presidência e é inegável que
as imagens e vídeos de discursos de Jair Messias Bolsonaro tenham contribuído para
polarizar a opinião política no Brasil.

A guinada cultural e política do Brasil em sentido a uma direita mais conservadora


é um fenômeno que pode ser observado também em outros países. O Reino Unido,
a França e a Alemanha são três exemplos recentes de países na Europa que viram a
expressão eleitoral da direita crescer nos últimos anos. Mesmo com variações, um
aspecto comum que distingue os movimentos de extrema direita é uma combina-
ção de autoritarismo com o que pode ser chamado de nativismo, através de uma
ideia de que os interesses dos habitantes nativos de um determinado país devem se
sobrepor aos interesses de imigrantes que podem ser vistos como uma ameaça não
apenas econômica, mas também cultural.

Muitas pesquisas e eventos atuais com foco em arte contemporânea tem forte influ-
ência da tecnologia digital e da possibilidade de compartilhamento de fotografias
e vídeos através da internet. Através deles, eu passei a ter contato e ganhei gran-
de interesse pelas possibilidades de transformação de imagens e a sua reprodução
através de diferentes interfaces. Ao acompanhar análises recentes tanto em âmbito
cultural quanto político, é claramente notável que a polarização política através da
manipulação de imagens e a distorção de informações vitais para compreensão da
sociedade podem acabar por aumentar a desigualdade entre as pessoas.

Destaco a seguir dois exemplos de festivais de cinema que utilizam da tecnologia


digital para exibição em 360º da obra de artistas de produtores que podem simbo-
lizar uma diferente maneira de utilizar a imagem digital para transformar o que está
em torno de nós:

Festival de Cinema Imersivo


O Festival que teve sua primeira edição em 2009 e até 2017 contou com obras variadas
e prestigiadas produções de cinema provenientes de diversos países, apresentadas
em vários Planetários do globo. Sua última edição, ocorrida em 2017 contou com

73
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

produções de: Portugal, Suiça, Holanda, Japão, Reino Unido, EUA, Espanha, Itália, Fran-
ça, Alemanha, Canadá, Austrália, Polónia, Grécia, Nova Zelândia, Brasil, entre outros.

O Festival de Cinema Imersivo é também um convite aberto aos produtores de con-


teúdos para cúpula, aceitando inscrições de todos os campos, desde a arte à visuali-
zação científica. O Festival divulga-se como uma ocasião para reunir a comunidade
do Cinema Imersivo, produtores, animadores, cineastas, artistas, estudantes, profes-
sores e profissionais de diversos planetários. A intenção do Festival é tornar-se um
local para cativar membros ativos do cinema em geral para este novo meio, discutir
ideias e criar parcerias, mas acima de tudo, para promover o desenvolvimento deste
campo do cinema. De acordo com entrevista ao site www.publico.pt:

Ele ocorre de maneira Bienal e apresentou no ano de 2017 15 filmes a mais do que na
sua edição de 2015. Teve em estréia nacional mais de 90% das obras e contou com
quatro produções nacionais, e ainda uma outra que, embora produzida na Suíça,
teve direção portuguesa.

“Fomos o primeiro festival de cinema imersivo da Europa, quando ainda não se fazia
nada nesta área a título competitivo e a produção para ecrãs a 360 graus ainda era
escassa, mas entretanto houve uma grande evolução e a própria produção portu-
guesa ganhou força”, declara à Lusa o astrónomo António Pedrosa, director do even-
to e do planetário de Espinho.

IMMERSPHERE - Festival FULLDOME de Brasília


Assim como o exemplo da cidade de Espinho em Portugal, também é importante
destacar o Festival Internacional de Fulldome de Brasília que ocorreu entre 1 e 5 de
novembro de 2017 no Planetário de Brasília. Teve curadoria de exposições de arte
Computacional feita por Suzete Venturelli e a Curadoria da Exibição FULLDOME por
Marilia Pasculli e Ricardo Dal Farra.

As atividades, como oficinas, mesas redondas e apresentações artísticas, foram reali-


zadas no Planetário de Brasília. Inaugurado em 15 de março de 1974, com o projeto
do arquiteto carioca Sérgio Bernardes (1919-2002), o Planetário de Brasília recebeu
o equipamento mais avançado na época – o projetor central astronômico Space-
master da empresa alemã Carl Zeiss. Em 2009 o Planetário de Brasília passou por um
processo de modernização com ajustes no sistema Spacemaster e instalação do sis-
tema digital PowerDome VIII Special composto de oito projetores digitais fulldome
com contraste de 50.000:1, resolução total na cúpula de 4K e sistema de sonorização
digital surround 5.1.

As obras que participaram do Festival poderiam ser enviadas por quaisquer artistas,
produtores e realizadores sem restrição geográfica, dando caráter internacional ao
evento. Além de exibições de filmes, o Festival também contará com exposição de

74
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Arte e Tecnologia, oficinas e simpósio, com o objetivo de fomentar discussões e de-


bates artísticos sobre conteúdos imersivos e audiovisuais.

Mudanças tecnológicas em meios expositivos


Tais festivais demonstram uma tendência também encontrada em galerias e museus
conforme pode ser evidenciado na fala de Helena Barranha no dia 12 de outubro
2017 em aula magna na FBAUP / Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto,
onde falou sobre como relações entre as tecnologias digitais e os museus multipli-
caram-se em encontros, publicações e os projetos curatoriais, designadamente no
campo da digitalização de coleções de arte, ao ter em vista a sua divulgação em
plataformas de acesso aberto. Helana aborda uma perspectiva na transição entre
os séculos XX e XXI, onde a arte digital e em rede constituiu mesmo um importante
campo de experimentação arquitetônica e museográfica, tanto através da concep-
ção de espaços expositivos puramente virtuais como do desenho de novos edifícios.
Helana Barranha acredita o caráter inovador ou mesmo utópico desses projetos aca-
bou por condená-los, com freqüência, ao insucesso.

Helena Barranha aborda o surgimento de projetos por todo o mundo a serem re-
presentativos da procura de modelos institucionais e espaciais que consentiam
com os desafios tecnológicos do momento. Para ela, os exemplos mais relevantes
desse período, marcado por uma visão tendencial e otimista da revolução cultural
desencadeada pela Internet, destacam-se a Gallery 9, um projecto online do Walker
Art Center (1997-2003)4 e o Guggenheim Virtual Museum, projectado pelo atelier
Asymptote Architecture (1999-2002). Nas palavras da autora em sua comunicação
no #16.ART - 16º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia:

“O carácter algo utópico destes projetos, bem como o ritmo acelerado a que as tec-
nologias da informação evoluem e se tornam obsoletas, parece tê-los condenado
um registro histórico antecipado, à margem da realidade museológica da arte con-
temporânea. Contudo, e curiosamente, a sua influência no plano teórico e concep-
tual ainda persiste.” p30

A autora menciona alguns dos principais museus e centros de arte contemporânea,


na Europa e nos Estados Unidos como promotores de projetos interessantes na área
de arte e tecnologia, embora muitas vezes correspondam a iniciativas singulares ou
com uma continuidade limitada. Intensifica a expectativa de que o MAAT – Museu
de Arte, Arquitetura e Tecnologia, inaugurado em 2016, em Lisboa, desenvolva uma
linha de atividades com o foco de difusão da arte digital.

Um exemplo é a Conferência Internacional Post-Internet Cities realizada pelo MAAT


– Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia em Lisboa que o contexto da exposição
UTOPIA/DISTOPIA, organizada pelo MAAT, a conferência pretendia promover uma

75
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

reflexão crítica sobre o modo como as tecnologias digitais têm afetado o conceito
e a vida das cidades. Como podem a arte e a arquitetura responder a esta condição
incerta e instável. Procuram discutir como a globalização da Internet e mais recen-
temente o fenômeno das redes sociais, re-configuram o espaço urbano, desdobran-
do-o em múltiplos territórios que coexistem e se confundem, numa crescente ambi-
güidade entre os domínios público e privado, real e virtual.

Mundo em conexão
Eu acredito que a transformação em festivais e meios expositivos de arte menciona-
dos sejam um exemplo de como mudanças na maneira de observarmos o que está
em nossa volta podem ser evidenciadas através do cinema e da arte. Tais festivais de
cinema expandido podem influenciar estímulos em nossa criatividade e em nossa
percepção do mundo em nossa volta cada vez mais tecnológico. De acordo com o
avanço dos meios de produção em massa, uma parcela grande de processos arte-
sanais e operários serão automatizados através da indústria em questão de poucos
anos. O avanço da inteligência artificial pode causar um crescimento tecnológico
desenfreado e mudanças irreversíveis a sociedade.

Portanto, é fundamental que sejamos capazes cada vez mais de observarmos e dar-
mos atenção em como seremos capazes de utilizar a tecnologia para ampliar nosso
olhar e nos tornarmos cientes dos rumos para o sociedade cada vez mais automatiza-
da está a se direcionar. Se utilizarmos de redes locais e da WEB para conectarmos ga-
lerias, museus e festivais, talvez possamos criar mostras de arte constituídas para ação
em tempo real de artistas em diferentes lugares do mundo por meio da tecnologia.

A possibilidade de aproximar artistas através de redes digitais e permitir a troca de


experiências para criação de novas imagens é algo extremante importante em meu
percurso acadêmico desde a faculdade. Meu positivismo encontra-se conectado
com a uma reorganização da sociedade e imagináveis progressos coletivos através
do acesso tecnológico. Eu acredito que assim nos tornaremos capazes de elaborar
possíveis inovações na maneira em que a relação das pessoas se estabelece com a
cultura e a sociedade. Eu penso que assim seremos capazes de utilizar a experiência
que obtivemos até o presente para investigarmos ainda mais as possibilidades de
criação artística através da cibercutura.

Referências
ARCHER, Michael. Arte Contemporânea, Uma História Concisa. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.

CARVALHO, Ana; LUND, Cornelia. THE AUDIOVISUAL BREAKTHROUGH. Berlin, 2015

76
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

CASTELLS, Manuel. Sociedade em Rede. Conferência realizada no Centro Cultural


de Belém, 2005.

CHAN, Fang Lin. AR | RA: A Arte Na Realidade Aumentada. São Paulo, 2011.

COSTA, Mario. O Sublime Tecnológico. PUC - Rio. 1995.

COUCHOT, Edmond. A Tecnologia Na Arte: Da Fotografia a Realidade Virtual.


Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003.

DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004

JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. Editora Aleph, 2015

JOHNSON, Steven. Cultura da Interface. Rio de Janeiro, 2001

LEMOS, André. Arte Eletrônica e Cibercultura. Revista FAMECOS, Porto Alegre, 1997.

LEVY, Pierre. Cibercultura. Editora 34, Ltda. São Paulo, 1999.

GIANNETTI, Claudia. Estética Digital, Sintonia Da Arte, A Ciência e a Tecnolgia. C/


Arte, Belo Horizonte, 2006;

KRAUSS, Rosalind. O Fotográfico. Editora: Gustavo Gili, 2002;

KRAUSS, Rosalind. A Escultura no Campo Ampliado: Rio de Janeiro: Gávea, 1984.

MCLUHAN, Marshall. The Global Village: The transformage in the world life and
media in 21st Century. Oxford University Press Inc, 1992.

MANOVICH, Lev. The Poetics of Augmented Space. Volume: 5 issue: 2, 2006.

PARENTE, André. Imagem Máquina - A Era Das Tecnologias Do Virtual. São Paulo:
Editora 34, 1993.

PARENTE, André. Cinema e Tecnologia Digital. FACOM - UFJF, 1999.

PARENTE, André. Entre Cinema e Arte Contemporânea. São Paulo: Galáxia. Núme-
ro. 17, 2009.

PENAFRIA, Manuela; MARTINS, India Mara. Estéticas do Digital, Cinema e Tecnolo-


gia. Covilhã, 2007.

PRENSKY, Marc. Digital Natives, Digital Immigrants. MCB University Press, Vol. 9
No. 5, 2001.

77
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

ROCHA, Cleomar. Pontes, Janelas e Peles - Cultura, Poéticas e Perspectivas Das


interfaces Computacionais. Goiânia, 2014.

WELBEL, Peter. Expanded Cinema. Video and Virtual Environments. MIT Press, 2003.

YOUNGBLOOD, Gene. Expanded Cinema. Nova York: P. Dutton & Co., Inc., 1970.

78
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Felipe Merker Castellani1 and


Alessandra Bochio2
Transduções e imagem performativa: ponto de contato entre
materialidades distintas
Transduction and performative image: a contact point between different materialities

Resumo
O presente trabalho visa analisar nossa pesquisa artística recente, mais precisamente
as performances Turbulências (2018) e Transduções (2019), as quais possuem como
ponto central as inter-relações entre imagem, som e corpo. Partindo de estratégias
operatórias que geram simultaneamente resultantes sonoras e visuais, buscamos a
constituição de uma série de relações de interdependência mútua entre os diferen-
tes meios de expressão artísticos solicitados nas obras. Para analisar estes trabalhos,
lançamos mão do conceito de transdução, da noção de imagem performativa pro-
posta por César Baio e da teoria corpomídia de Christine Greiner e Helena Katz.
Palavras-chave: Transdução; Imagem performativa; Corpomídia.

Abstract
The present work aims to analyze our recent artistic research, precisely the audiovi-
sual performances Turbulências (2018) and Transduções (2019), the main questions
of this research are the interrelations between image, sound and body. These perfor-
mances explore operative strategies that simultaneously generate sound and visual
results, thus constituting an environment of mutual interdependence between the
different means of artistic expression. In order to analyse this works, we define as
starting points the concepts of transduction and performative image.
Keywords: Transduction, Performative image, Bodymedia

1 Alessandra Bochio é artista multimídia, pesquisadora e professora. Como artista se dedica a criação
de performances e instalações audiovisuais. É doutora em artes visuais pela Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo (2015), com estágio de pesquisa na Université Sorbonne Nou-
velle Paris 3. É professora adjunta do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul e líder do Grupo de Estudos e Práticas em Arte Mídia.
2 Felipe Merker Castellani é artista sonoro e multimídia, pesquisador e professor. Como artista de-
senvolve instalações interativas, videoinstalações e performances audiovisuais em parceria com ar-
tistas de diversas áreas. É doutor em música na área de Processos Criativos junto ao Instituto de Artes
da Unicamp (2016), com estágio de pesquisa na Université Paris 8. É professor adjunto do Centro de
Artes da Universidade Federal de Pelotas e líder do grupo de pesquisa Corpo-imagem-som: pesqui-
sa artística e práticas experimentais.

79
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Introdução
O presente trabalho aborda as performances audiovisuais Turbulências3 (2018) e Trans-
duções 4 (2019), as quais se constituem a partir das convergências e inter-relações entre
imagem, som e corpo. Por meio de estratégias operatórias que geram simultaneamen-
te resultantes imagéticas e sonoras, os ambientes performativos se configuram en-
quanto uma rede de retroalimentações entre informações de natureza distinta, entre
meios materiais e imateriais, entre analógico e digital, entre corpo, espaço e público.

Como ponto de partida para a presente investigação recorremos ao conceito de


transdução, a noção de imagem performativa (BAIO, 2015) e a teoria corpomídia
(GREINER e KATZ, 2001, 2002).

Transdução
Entendido enquanto um processo de transformação energética, o conceito de trans-
dução serve de base para a compreensão de diferentes fenômenos sonoros do mun-
do físico e para a construção de diferentes aparatos tecnológicos. Nas performances
aqui analisadas, transdução energética e tradução informacional se interligam e ser-
vem como ponto de contato entre materialidades distintas.

O conceito de transdução perpassa campos do conhecimento distintos; na biologia,


pode ser entendido como um processo de reprodução pelo qual o DNA de uma bac-
téria é transferido para outra por meio de um vírus, ou ainda, como um processo pelo
qual uma célula transforma um tipo de estímulo em outro, a chamada transdução de
sinais, responsável por grande parte da nossa percepção de estímulos ambientais,
como a luminosidade. Saindo da escala celular, encontramos processos transdutivos
em outras dimensões de nosso corpo, como em nosso aparelho auditivo. A energia
acústica (variação de pressão) é transformada pelo tímpano em energia mecânica,
utilizada para movimentar os ossículos do ouvido médio (martelo, bigorna e estri-
bo). Posteriormente esta energia irá novamente se transduzir em impulsos elétricos
na cóclea. Já no campo da engenharia, transdutores são aparatos que modificam um
tipo de energia, transformando-a em outro. Por exemplo, os microfones que trans-
formam a energia acústica em energia elétrica ou os alto-falantes, que executam
a tarefa inversa, transformando a energia elétrica em energia mecânica (vibração).

3 Turbulências é uma performance audiovisual criada por nós em colaboração com a artista Isabel
Nogueira e o artista Luciano Zanatta. Um registro audiovisual do trabalho pode ser acessado no
seguinte endereço da web: https://www.youtube.com/watch?v=bolLNkv-3XQ&t=6s
4 Transduções são uma série de performances audiovisuais desenvolvidas por nós desde o início
de 2019 e que se configuram contínuo processo de investigação de estratégias performativas au-
diovisuais. Um registro do trabalho pode ser acessado no seguinte endereço da web: https://www.
youtube.com/watch?v=bRENNVfRgPU&t=53s

80
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O filósofo Gilbert Simondon (2011) também se valerá do conceito de transdução


para compreender os processos de individuação. O autor parte da compreensão da
transdução enquanto um processo interativo no qual cada camada de estruturação
serve de base às outras e consolida os seres em suas múltiplas camadas: física, psí-
quicas, sociais, dentre outras.

Entendemos por transdução uma operação física, biológica, mental, social, pela qual uma atividade
se propaga pouco a pouco no interior de um campo, fundando essa propagação numa estruturação
do campo operada passa a passo: cada região seguinte, de modo que uma modificação se estende
progressivamente e simultaneamente a esta operação estruturalmente (SIMONDON, 2011, p. 32).

Compreendendo o caráter plurívoco e transdisciplinar do conceito de transdução, o


tomaremos de forma múltipla em nossa pesquisa artística. Em um sentido operacio-
nal, o conceito serve de base para o estabelecimento de situações performativas au-
diovisuais, como a subversão da utilização tradicional dos alto-falantes em Turbulên-
cias. O trabalho parte da movimentação gerada em dois alto-falantes pela emissão de
baixas frequências em um limiar inaudível aos ouvidos humanos. O processo comum
de transformação de energia mecânica (movimentação dos alto-falantes) em energia
acústica (estímulos sonoros audíveis) tem seu sentido invertido, permitindo que os
sinais sonoros sirvam como forma de gerar e controlar o movimento das câmeras de
vídeo e dos objetos depositados sobre os cones dos alto-falantes. A partir da captura
em tempo real dessa movimentação são geradas diferentes configurações sonoras e
imagéticas que se desdobram em um intenso fluxo audiovisual (Figura 1 e 2).

Em Transduções, a materialidade dos meios de circulação das informações sonoras


é colocado em questão. Microfones de contato são submersos em uma vasilha com
água, quando as mãos da performer entram em contato com o líquido são geradas
interferências sonoras, ocasionadas devido à alteração do fluxo da corrente elétri-
ca gerada pelo corpo (Figura 3). Os campos eletromagnéticos gerados por câmeras
analógicas obsoletas, lâmpadas incandescentes e pequenos motores também são
transduzidos em fenômenos sonoros por meio de indutores eletromagnéticos. Tais
fenômenos tornam-se subsídio para a construção do percurso improvisatório reali-
zado pelos artistas no momento da performance (Figura. 4).

81
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 1. Turbulências, 2018. Performance audiovisual. Fotos de Ricardo de Carli

Figura 2. Turbulências, 2018. Performance audiovisual. Acervo pessoal dos artistas.

82
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 3.Transduções, 2019. Performance audiovisual. Acervo pessoal dos artistas.

Figura 4.Transduções, 2019. Performance audiovisual. Acervo pessoal dos artistas.

83
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Retornemos a concepção do filósofo Gilbert Simondon: a transdução entendida en-


quanto um processo gradual e reiterativo no qual cada etapa de estruturação serve
de base para a subsequente. Os exemplos citados anteriormente se referem a ma-
neira pela qual o conceito de transdução é apresentado de maneira operacional em
nossa pesquisa artística, apresentando-se nos modos pelos quais se constituem as
estratégias de construção audiovisual das obras, colocando em jogo materialidades
distintas. Os sinais analógicos, presentes na movimentação dos alto-falantes, nos
microfones de contato e nos indutores eletromagnéticos tornam-se elemento inicial
de estruturação dos processos de captura e transformação das informações digitais
sonoras e visuais. Formam-se assim ciclos de retroalimentação entre imagem, som
e corpo que estando em um estado de interdependência mútua consolidam-se em
ambientes performativos, nos quais cada configuração audiovisual é provisória e
serve de base para outras, igualmente provisórias.

Corpo, imagem e som se constituindo de maneira interdependente enquanto am-


biente performativo, eis um ponto central em nossa pesquisa artística. Neste ponto,
convém nos atermos as relações entre corpo e imagem, problematizadas a partir
do surgimento das imagens técnicas e elencadas a partir da noção de imagem per-
formativa. Posteriormente, nos dedicaremos a reflexão acerca das possibilidades de
interação entre corpo e ambiente, lançando mão da teoria corpomídia.

Dimensão do corpo na imagem


A dimensão do corpo na imagem é compreendida aqui a partir da imagem perfor-
mativa proposta por César Baio e da teoria do corpomídia de Christine Greiner e
Helena Katz.

César Baio (2015) compreende a imagem performativa por meio de uma reflexão
a respeito da dimensão estética dos atuais regimes de sentido da imagem digital
e da passagem dos regimes de absorção para os regimes de projeção da imagem.
Nos primeiros, o espectador é convidado a mergulhar na imagem, tais como nos
ambientes virtuais; é decorrente do sistema de representação perspectivista do Re-
nascimento, sendo progressivamente potencializado pela fotografia, pelo cinema e
pelas tecnologias digitais.

Arlindo Machado (2011) relaciona o surgimento das imagens técnicas à objetividade


e à verossimilhança. Afirma que estas imagens emergem a partir da construção de
dispositivos técnicos criados no Renascimento italiano para dar coerência à produ-
ção de imagens. Assim, a imagem digital é, para o autor, um retorno aos cânones
renascentistas, pois ao mesmo tempo em que lança mão da coerência e objetivi-
dade, “realiza o sonho renascentista de uma imaginação puramente conceitual, em
que a imagem seria encarada e praticada como uma instância de materialização do
conceito” (MACHADO, 2011, p. 210).

84
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Já os regimes de projeção da imagem são fruto da superação da dualidade entre


os espaços físico e informacional. Nestes, a imagem se projeta rumo ao mundo e é
percebida como um objeto concreto no universo de nossa experiência, rompendo
com uma postura baseada na tentativa de criar uma outra realidade. Neste contexto,
a imagem digital, bem como os procedimentos decorrentes das tecnologias digitais,
são, então, assumidos em sua capacidade de estar no mundo.

Nos regimes de projeção, a imagem é compreendida como “um fenômeno no inte-


rior dos aparatos com o qual o sujeito se relaciona de maneira concreta” (BAIO, 2015,
p. 155). Isto quer dizer que, se nos regimes de absorção o espectador é levado a en-
trar na imagem, como se esta se constituísse como uma outra realidade, nos regimes
de projeção, a imagem é parte da experiência sensível do espectador.

Conforme Baio, a passagem dos regimes de absorção para os de projeção da ima-


gem nos auxilia a compreender uma condição pós-virtual da imagem e uma natura-
lização da mediação tecnológica. Entendemos aqui o prefixo ‘pós’ não como ruptura
ou abandono. Mas como desenvolvimento, que se dá a partir da disseminação das
tecnologias digitais e transbordamento delas de sua esfera específica. Neste sentido,
os regimes de projeção da imagem corroboram com uma mudança cultural após
a reviravolta ocasionada pela ampla informatização e pelas redes comunicacionais.
Compreende-se que há uma transformação ainda em andamento, que acarreta mu-
dança nos modos como nos relacionamos com essas tecnologias.

Notamos que as imagens que se projetam nos aparelhos técnicos digitais, como pro-
põe Baio, não podem ser compreendidas como um conjunto homogêneo. Assim,
a imagem performativa diz respeito a uma imagem atravessada pela performance.
Envolve a condição de presença, a experiência, o compartilhamento e o tempo real.

Observar a imagem sob a ótica da performance - enquanto produção de presença, que


transcende as próprias manifestações artísticas para ser estabelecida como uma condi-
ção existencial do sujeito imerso em seu ambiente (ZUMTHOR, 2007) - significa perce-
bê-la partir de uma situação de encontro entre sujeito, imagem e ambiente. A presença
aparece aqui como um vetor para pensar a própria imagem; desloca-se, assim como a
arte da performance, o interesse do objeto para a presentificação, para a situação vivida.

A noção de imagem performativa quando observada a partir dos trabalhos artísticos


aqui analisados é percebida como um disparador que objetiva provocar a reflexão
acerca das retroalimentações entre corpo, imagem e som, as quais se consolidam
como o ambiente performativo das obras em questão. A partir da constituição de um
jogo entre as ações dos performers e suas resultantes, percebidas enquanto projeções
sonoras e imagéticas, as imagens passam a ter, então, uma condição de presença.

Em Turbulências e Transduções, a performer manipula no interior de um alto-falante


um antigo bolso de um casaco, alguns botões, um novelo de lã, algumas chaves e

85
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

pequenos potes de vidros. Ao mesmo tempo que tais ações são capturadas por câ-
meras de vídeo, que após passarem por processamentos digitais, são projetadas no
ambiente, os sons provenientes de tais objetos são capturados por microfones, pro-
cessados digitalmente, mixados a outros sons e igualmente devolvidos ao ambiente.

As imagens e os sons resultantes são obtidos pela interação entre os performers,


assim como da interação dos performers com os aparatos tecnológicos e com o pú-
blico. O resultado perceptivo se dá pelo encontro entre a visibilidade da imagem, a
audibilidade dos sons e a presença dos performers e do público. Ao observarmos a
totalidade dessa configuração, percebemos que as obras se configuram como um
campo instável de situações possíveis, não como um produto finalizado cerrado em
si mesmo. Nomearemos esse campo de ambiente performativo. Nos cabe então, re-
fletir sobre a maneira pela qual ambiente e corpo se consolidam suas trocas e se
consolidam mutuamente.

Para nos auxiliar nesta reflexão recorremos agora à teoria corpomídia de Christine
Greiner e Helena Katz, proposta a partir de estudos interteóricos; no cruzamento da
filosofia, psicologia, biologia, semiótica e algumas vertentes das ciências cognitivas.

Para as autoras, o corpo é a mídia de processos em andamento. Propõem a inexistên-


cia do corpo fora do âmbito cultura; não há distinção entre corpo ontologicamente e
culturalmente construído, nem tampouco, o corpo é tido como recipiente ou veículo
por meio do qual se acumulam ou transitam informações. Corpo e ambiente se de-
terminam mutuamente.

O que está fora adentra e as noções de dentro e fora deixam de designar espaços
não conectos para identificar situações geográficas propícias ao intercâmbio de in-
formação. As informações do meio se instalam no corpo; corpo, alterado por elas,
continua a se relacionar com o meio, mas agora de outra maneira, o que o leva a pro-
por novas formas de troca. Meio e corpo se ajustam permanentemente num fluxo
inestancável de transformações e mudanças (KATZ e GREINER, 2001, p. 71).

Isto quer dizer que corpo e ambiente sempre estão em um estado transitório ou pro-
visório; apenas se constituem a partir de suas trocas, a medida em que se acomodam
ou se desacomodam na relação com os contextos, que são produzidos a partir dessa
relação ao longo do tempo. O corpo resulta, com isso, de negociações constantes de
informação com o ambiente.

O objetivo de apresentar o corpo como mídia passa pelo entendimento dele como sendo o
resultado provisório de acordos contínuos entre mecanismo de produção, armazenamento,
transformação e distribuição de informação. Trata-se de instrumento capaz de ajudar a com-
bater o antropocentrismo que distorce algumas descrições do corpo, da natureza e da cultura
(KATZ e GREINER, 2002, p. 94).

86
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Compreender os trabalhos artísticos enquanto ambiente performativo coloca em


evidência os fluxos de informação (sonora, visual e tátil), suas possibilidades de
modulação e os circuitos de retroalimentação que se estabelecem em tempo real a
partir das ações dos performers. Ao agir para produzir determinado evento, os per-
formers devem lidar com as suas resultantes sonoras e visuais e perceber as possi-
bilidades de modificação que elas apresentam no espaço-tempo da performance.
Prevendo assim, rupturas ou continuidades nas texturas imagéticas e sonoras pro-
duzidas. Contudo, nem sempre são causais as relações entre uma determinada ação
e suas resultantes, abrindo espaço para perturbações momentâneas que requerem
uma consciência das múltiplas possibilidades de ramificação que os percursos au-
diovisuais podem apresentar. Soma-se a isso a distribuição dos mecanismos de con-
trole entre os dois performers, dados sonoros podem modificar uma determinada
imagem, e vice-versa, turvando ainda mais a causalidade dos eventos produzidos
no ambiente.

Ao lançarmos mão da teoria corpomídia vislumbramos a possibilidade de uma re-


lação intrínseca entre corpo e ambiente, entre as ações dos performers, os aparatos
tecnológicos e suas resultantes audiovisuais. Assim, cada ação se consolida a partir
da modificação provisória que opera na rede de elementos interligados que com-
põem os ambientes e igualmente serve de base para as demais modificações que
ocorrerão no espaço-tempo das performances. Podemos compreender Turbulên-
cias e Transduções como espaços de negociação entre corpo, imagem e som, como
ambientes em que a cada momento as causalidades entre os diferentes meios so-
licitados são rompidas e novos acordos, igualmente provisórios, são estabelecidos.

Referências
BAIO, C. (2015). Máquinas de imagem: arte, tecnologia e pós-virtualidade. São
Paulo: Annablume.

BAIO, C. (2012) Performatividades. A presença e o gesto na estética audiovisual. In


SOUZA, G.; CÁNEPA, L., BRAGANÇA, M., CARREIRO, R. (Orgs). XIII Estudos de cinema
audiovisual Socine (v. 1). São Paulo.

KATZ, H (2010). O papel do corpo na transformação da política em biopolítica. In


GREINER, C. (Org.). O corpo em crise: novas pistas e o curto-circuito das representa-
ções. São Paulo: Annablume.

KATZ, H., GREINER, C. (2001). Corpo e processo de comunicação. Revista Fronteiras


- estudos midiáticos, (2), 65-74.

KATZ, H., GREINER, C. (2002). A natureza cultural do corpo. In PEREIRA, R. (Org.).


Lições de Dança 3. Rio de Janeiro: UniverCidade.

87
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

MACHADO, A. (2011). Pré-cinemas & pós-cinemas. Campinas: Papirus.

PADOVANI, J. H. (2014, agosto). Acerca da transdução: princípios técnicos, aspec-


tos teóricos e desdobramentos. Anais Congresso da ANPPOM, São Paulo, 24.

SIMONDON, G. (2011). L´individuation à la lumière des notions de forme et d’in-


formation (P. Ferreira & F. A. Caminati, Trad) Paris: Édition Jérôme Millon, pp. 23-26.
Recuperado em 01 de abril, 2019, em https://cteme.files.wordpress.com/2011/05/
simondon_1958_intro-lindividuation.pdf.(Obra original publicada em 1958).

ZUMTHOR, P. (2007). Performance, recepção, Leitura. São Paulo: Cosacnaify.

88
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Heiko Schmid, Zurich


Magical interfaces.
Animation and the revision of digital things

Abstract
In this paper digital network-technologies are reframed within the context of magic
and animation. New technological interfaces and interaction processes highlight
today the presence of non-human actors in the so-called stack. It is argued that
magic (phantasmagoric) strategies, as a result of digitization, did gain in the last
years a significant relevance for the human lifeworld. Contemporary technologies
are hence depicted as means to render the human reality as magical.
Keywords: Magic, Animation, Interface

The realities of the stack


Our present time is full of unusual, even spooky technological phenomena. Diverse
weird reactions of Amazons Echo stations are well known examples. One can find a
ton of documents on the internet showing Echo stations starting to laugh or to play
music without any explicit reason. Another more evaluated example of technolog-
ical “misbehavior”, is brought up by the author James Bridle in his book . As Bridle
highlights, disturbing child-videos on you-tube are currently emerging in some kind
of technological “limbo”, in which AIs recombine content by analyzing trigger topics
and incoming links.1 What is striking in this context, is, that we are faced with obvi-
ously “irrational” phenomena produced by technological actors. We are faced with
phenomena resisting the suspected rationality of algorithm-based machines.

In order to comprehend and contextualize the highlighted phenomena, it is neces-


sary to address the question of the interconnected lifeworld in the “stack”. According
to his concept of the stack, the cultural scientist Benjamin Bratton describes our daily
reality as defined by technical “layers” like “Earth”, “Cloud” and “City”. As Bratton ar-
gues, in order to function in everyday life man must constantly interact with (distant)
“non-human” co-users via “interfaces”.2 According to Bratton, nowadays man lives
entangled with digital entities, which are opaque in their function plus presence.
Out of this reason these digital entities can no longer be controlled by direct orders.

This classification by Bratton is special because it fundamentally opposes the classi-


cal concept of the Graphical User Interface (GUI).

1 Bridle, New Dark Age.


2 Bratton, The stack: On software and sovereignty.
89
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Xerox Alto Graphical User Interface (1973)

Graphical User Interfaces (GUIs), as they are still central for many personal computers,
do define interaction processes with digital machines as feedback-based control op-
erations. Classical GUIs promise to form powerful human-machine interfaces by plac-
ing a human user-subject in the center. If one considers smartphone apps, one has
to speak of simple relays to a cloud-based infrastructure, respectively to server based
functionalities, which clearly oppose the classic idea of the GUI. One has to speak of
structures, which are rather installed to analyze than to support human users.

Our digital infrastructure did change gravely during the last years. We are basically
now living in a huge surveillance network world, in which any human move is con-
stantly tracked, while the service the user is opting for, is of secondary relevance. As
the cultural scientist Nishant Shah approves, it is no longer possible to understand
user interfaces as an infrastructure facilitating control.3 Contemporary “interfaces”
like Amazons Echo stations are rather defining “zones”, in which dynamic relation-
ships are created between people, machines, equipment, digital processes and net-
works, as well as entire organizational structures. 4 While talking about contempo-
rary digital technology, we are so obliged to question the concept of a powerful

3 Shah, „From GUI to No-UI: Locating the interface for the Internet of Things“.
4 Hookway, Interface.

90
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

user-subject, which was mainstreamed with the help of the Graphical User Interface
and is still considered to be crucial for our interaction with digital technology. This
paper proposes that such a rationality critique can be carried out by (re-)activating
the historic (European) concept of magic.

Magic
The term “magic” is versatile and has a long history. Originally derived from Persian
– the “Magi” were a Persian priest caste – the word is today deduced from the Greek
translation “mageia” and the Latin “magia”.5 The root of the term magic lies therefore
in European antiquity.

There are numerous discourses on the subject of magic in the history of science, that
from toady’s perspective can be categorized as highly problematic. The term magic
was for example functionalized to constitute the “image” of a scientifically rational
and enlightened European modernity. 6 The term “magic” has not only been repeat-
edly abused and transformed in its meaning throughout history. It undergoes a dy-
namic transformation in its present content and still remains a subject to/of perma-
nent change. Nevertheless, by turning to language (through the concept of magic),
respectively the (poetic) potential of language, central “qualities” of the (historical)
concept of magic can be specified.

Actually the term “magic” has etymologically a clear reference to the ritualized
speaking, to the “effect” of direct invocations. Magicians for sure never understood
themselves as linguists who address connections between signs, metaphors, for-
mulas and symbols. Magic invocations (ideally) transform symbolic or expressive
processes into reality. Those invocations avoid letting characters represent things
or events, but update them in targeted effects. Magic word professionals hence
claim to be able to create (phantasmagoric) connections between physical forces
and discursive strategies. They establish “communication models” with non-human
beings, by using a specific style of speech. In speaking or addressing in the famous
magic formula magicians underline a potential synthesis between word and desire,
between magical expression and its effect.

Animation
Animation techniques do have a central relevance, within the context of contem-
porary discussions on magic. As Philippe Descola describes in his book Beyond Na-
ture and Culture the idea of a material continuity linking all organisms and things

5 Otto, Magie.
6 Frederici, „Caliban and the Witch“.

91
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

together is common to most animist ontologies. Descola points out that as for the
animists, every non-human being has a subject-position equivalent to humans. Out
of this perspective one could analyze the stack as an animist environment, in which
subjectivity and reality evolve in interaction with non-human beings. And one can
claim that this situation already refers to historic artistic animations.

If one draws attention to Sergei Eisenstein’s famous classification, that it was the
“plasmacity”, meaning the permanently changing surfaces of contours, bodies and
things that made the early animated film revolutionary, it is already possible to get
close to what one might call the magic dimensions of artistic animation. Artistic an-
imation evidently has the potential to fuse mind and material in such a way, that it
produces sympathetic updates of “fantasies” or “desires” in material. Via animation
techniques man enables himself to create (magically) independent “materialities”, to
give things a quasi-magical (artistic) life.

This classification of artistic animation techniques, as “magical” formats, can be fund-


ed further through the history of animation movies. Especially in the early animation
films or sketches, such as J. Stuarts Enchanted Drawing or Windsor McCays Gertie
the Dinosour, it was common for the draftsman to represent himself as a (kind of )
magician in his film or show.

J. Stuart Enchanted Drawing (1900)

92
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Historically, artistic animators demonstrated actively their ability to make the world
dance. They demonstrated how to facilitate sympathetic connections between
things, actions and phenomena that are not to be linked rationally.

Playing with the magic of phantasmagoric or plasmatic “things” has gained a re-
newed, pop-cultural presence in the early 21st century. If one considers that anima-
tion is one of the core elements of contemporary interface-design, that allows users
of digital technologies to interact with the networks they are embedded in, anima-
tion is a fundamental element of our “new” digital lifeworld. One can even state, that
humans (embedded in the technical layers of the stack) are in need of animated
interfaces in order to formulate their wishes, in order to interact with non-human
co-users. Hence, those animation technologies are fundamental to contemporary
interfaces, as they allow defining “zones”, in which dynamic relationships can be cre-
ated between people, machines, equipment, digital processes and networks, as well
as between entire organizational structures.

Warren Ellis Injection (2017)

93
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Magic interfaces
According to this perspective it is even possible to claim, that contemporary interfaces
rely on magic or phantasmagoric strategies. In those interfaces the users have to learn
to communicate their “Eros” in interaction with opaque (demonic) non-human beings.
In contemporary animation technologies the ancient art to revive “things” magically,
which means to interact with the “demonic” anima of the things surrounding us, is
reactivated. Humans transform symbolic or expressive interaction processes into re-
alities by using digital animation technologies. For contemporary beings embedded
in the stack, interface animation creates a magic immediacy, that enables users not
only to re-categorize the world, but also to address relevant non-human co-users. In-
terface animation thus also creates (phantasmagoric) connections between physical
forces and discursive strategies. It is in this perspective, that I want to claim, that the
sympathetic synthesis between desire and word, between expression and its effect
(which characterizes magic strategies), has been updated in contemporary interaction
or communication processes. In other words, I am arguing, that in the digital networks
of our time, the magic spell was transformed into the “magic interface”.

Especially contemporary media-art is interpreting this development since years.


One notably striking example is the video artwork Der Sandman produced by Stan
Douglas. Artists have always captured and worked with the magical “recalcitrance”
of things, whereas the artwork of Douglas specifically reflects the magic presence of
non-human beings in contemporary displays.

Stan Douglas Der Sandman (1995)

94
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

In fact, the whole artwork is defined by a rupture, that divides the screen image
in two parts: in this way it prevents the viewer from engaging in an easy percep-
tion process. We are faced with a phenomenon resisting the suspected rationality
of the camera machine. This rupture defining the image formation in Der Sandman
epitomizes strikingly the subconscious tensions that have always been established
in technological interfaces. It depicts the tensions between subjects and objects,
nature and culture as well as between the psyche and the material world. Douglas’
work reflects the sympathetic synthesis between desire and word, between magic
expression and its effect, which is performed in contemporary image production. It
therefor depicts a magic dimension of contemporary technology, which has to be
re-evaluated as crucial factor in our contemporary life world.

References
Adamowsky, N. (2011). Affektive Dinge: Objektberührungen in Wissenschaft
und Kunst. Wallstein.

Bennett, J. (2010). Vibrant matter: A political ecology of things. Duke University Press.

Bracken, C. (2008). Magical criticism: The recourse of savage philosophy. Univer-


sity of Chicago Press.

Bratton, B. H. (2016). The stack: On software and sovereignty. MIT press.

Bridle, J. (2018). New Dark Age: Technology and the End of the Future. Verso Books.

Crafton, D. (2012). Shadow of a Mouse: Performance, Belief, and World-Making


in Animation. Univ of California Press.

Descola, P. (2013). Beyond nature and culture. University of Chicago Press.

Eisenstein, S. (2012). Disney. PotemkinPress.

Essler, M. (2017). Zauber, Magie und Hexerei: Eine etymologische und wortges-
chichtliche Untersuchung sprachlicher Ausdrücke des Sinnbezirks Zauber und
Magie in indogermanischen Sprachen. BoD – Books on Demand.

Franke, A., & Generali Foundation. (2011). Animismus Moderne hinter den Spie-
geln ; [Ausstellung 16. September 2011-29. Januar 2012, Generali Foundation
Wien. Köln: König.

Frederici, S. (2004). Caliban and the Witch. Women, The Body and Primitive
Accumulation.

Gell, A. (1988). Technology and magic. Anthropology Today, 4(2), 6–9.

95
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Greenwood, S. (2009). The Anthropology of Magic. Berg Publishers.

Gunn, J. (2002). HP Blavatsky and the Magic of Esoteric Language. Journal of


Communication & Religion, 25(2).

Hammond, D. (1970). Magic: A Problem in Semantics. American Anthropologist,


72(6), 1349–1356. Abgerufen von JSTOR.

Hookway, B. (2014). Interface. MIT Press.

Otto, B.-C. (2011). Magie: Rezeptions- und diskursgeschichtliche Analysen von


der Antike bis zur Neuzeit. Berlin: De Gruyter.

Papapetros, S. (2012). On the animation of the inorganic: Art, architecture, and


the extension of life. University of Chicago Press.

Shah, N. (2017). From GUI to No-UI: Locating the interface for the Internet of Things.
In Digitisation (S. 179–196). Routledge.

Telotte, J. P. (2010). Animating Space: From Mickey to Wall-E. University Press


of Kentucky.

96
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Iain Mott1 and Thibaud Keller2


Three-dimensional sound design with Mosca
Spatialisation tri-dimensionnel avec Mosca

Abstract
Mosca is a software extension class of the SuperCollider language for sound
synthesis and algorithmic composition. It produces three-dimensional sound
fields via an intuitive graphical user interface controlling a variety of hidden
internal methods. Drawing from ambisonics’ adaptable form of surround
sound applicable to wide-ranging loudspeaker configurations and head-
phones, Mosca is suitable in a variety of applications. Recent improvements to
the software include the incorporation of high-order ambisonics and the OS-
SIA/score project, enabling sophisticated control of audio spatialisation and
synchronisation with a variety of media. Additionally, current development
will bring location sensitivity to Mosca. Together with existing head-tracking
capacities for binaural audio reproduction, the software will be highly useful
in mixed and virtual reality projects.
Keywords: ambisonics, surround sound, electroacoustic music, SuperCollider,
OSSIA/score

Résumé
Mosca est une extension pour l’environnement de programmation audio SuperCol-
lider. Cette extension permet la production de champs sonores tridimensionnels à
travers une interface graphique intuitive et différentes méthodes internes. Tirant
profit de la flexibilité du format ambisonique, compatible avec le rendu au casque
et une large gamme de configurations d’enceintes, Mosca peut s’adapter à un grand
nombre d’applications. Ce programme est actuellement développé par les auteurs
pour intégrer des ordres ambisoniques supérieurs, et davantage de techniques de

1 Sound artist, composer and lecturer in sound design and voice at the Departamento de Artes
Cênicas, Instituto de Artes, Universidade de Brasília, http://cen.unb.br. Doctorate in arts from the
University of Wollongong entitled “Sound Installation and Self-listening”. Personal website: https://
escuta.org. Institutional email: iainmott@unb.br.
2 Software technician and system administrator at SCRIME, University of Bordeaux, https://scrime.u-
-bordeaux.fr. Member of the OSSIA team, https://ossia.io. Masters in computer music programming
from the university of Saint-Etienne, https://musinf.univ-st-etienne.fr/index.html. Personal page: ht-
tps://github.com/thibaudk. Organisation page: https://github.com/scrime-u-bordeaux. Institutional
email: thibaud.keller@u-bordeaux.fr.

97
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

spatialisation, ainsi que le projet OSSIA/score, permettant un contrôle sophistiqué


et la synchronisation, avec différents médias. En outre, les développements actuels
apporteront à Mosca une localisation GPS de l’auditeur. Avec les possibilités actu-
elles de suivi du mouvement de la tête pour le rendu binaural, le programme pourra
facilement être utilisé pour des projets de réalité virtuelle et mixte.
Mots clefs: ambisoniques, spatialisation, musique électroacoustique, SuperCollider,
OSSIA/score

Introduction
Mosca is a software extension class (or quark) of the SuperCollider language for
sound synthesis and algorithmic composition, and was initially developed as part
of a research project entitled Cerrado Ambisônico by Iain Mott, assisted by the MCTI/
CNPq in the Edital Universal. The software produces surround sound and offers an
intuitive graphical user interface (GUI) for direct control. A variety of ambisonic and
spatial audio techniques are used to render three dimensional sound designs on
both headphones and wide-ranging loudspeaker configurations. Mosca makes ex-
tensive use of the the Ambisonic Toolkit (ATK) code library for ambisonic processing
and the Automation quark to sequence control data. Recent work by Thibaud Keller
has brought improvements to the GUI and seen the inclusion of additional spatial
audio libraries. Furthermore, communication with the multimedia sequencer OSSIA/
score is now enabled, facilitating live performances and synchronisation with other
real-time multimedia systems. Current work also includes location sensitivity via GPS
and accelerometers, derived from Mott’s sound mapping installation Botanica, pre-
sented in the proceedings of #16.Art.

As an extension of SuperCollider, Mosca is open source and runs on Linux, Mac and
Windows platforms. This article describes both current capabilities of Mosca and the
work in progress. Along with the documentation for the Mosca quark in SuperCol-
lider, this article serves as a practical guide to the software and provides the reader
with information to realise their own projects.

Ambisonic sound
Sound is not a static object. It is liberated from a source and propagated through
space by way of compression and rarefaction of air molecules. On a mild day of
20 degrees centigrade, it moves in waves through the air at the speed of approxi-
mately 343 metres per second. Various sounds arrive at our ears from all directions,
either directly or after having first come into contact with surrounding objects and
materials. Ambisonics aims to both capture or synthesise and reproduce such
multidirectional sound fields for a certain region in space. Developed by Michael

98
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Gerzon and others in the UK and the USA in the early 1970s 3, ambisonics involves
encoding and decoding steps. To encode ambisonics is to process a sound source
or sources, for example a solo musical instrument or a flock of birds, by capturing
the waveform’s inherent phase and level information over a number of channels
and along specific spatial axes. Encoding may be done synthetically, by way of
digital or analogue processing, or acoustically, using a so-called soundfield4 mi-
crophone (Fellgett, 1975) first developed by Michael Gerzon and Peter Craven in
the 1970s (Batke, 2009) with a number of capsules to capture the incoming sound
from multiple angles at once. As a convention, sound fields are generally encod-
ed in the multichannel B-format, which may exist at different spatial resolutions,
or ambisonic orders (Hollerweger, 2008) and is independent of the loudspeaker
configuration used for reproduction. The rendering of an ambisonic sound field
is performed in the decoding step, where the signal is processed for a specific
loudspeaker array, whether it be a 2-dimensional arrangement of loudspeakers
surrounding an audience, or a three-dimensional array of loudspeakers and even
headphones, delivering a full spherical sonic experience.

Sound Sources
Mosca takes a flexible approach to encoding and decoding. Sound sources may
be any combination of mono, stereo or B-format material and the signals may
originate from file (loaded into memory or streamed from disc), from hardware
inputs (physical or from other applications like a DAW via the Jack Audio Connec-
tion Kit (Jack)5) or from sound synthesis processes inside SuperCollider itself (Mc-
Cartney, 1996; Wilson, Cottle, & Collins, 2011). A particular source is first selected
by right-clicking in a blank section in the GUI (Figure 1), then selecting its index
from the drop-down menu, with the total number of sources defined when initial-
ising Mosca. Once a source is selected, it can be assigned an input and the defined
sources appear as numbered circles in the GUI. The centre of the larger blue circle
defines the location of the listener or audience and its periphery marks the max-
imum audible distance from the listening point. Sources may be positioned and
moved in space by clicking and dragging.

3 For information on the origins and nature of ambisonics and extensive lists of early publications
on the subject, see: www.michaelgerzonphotos.org.uk. Ambisonics is under ongoing development
and many of the leading researchers participate in the email discussion group “Sursound”: https://
mail.music.vt.edu/mailman/listinfo/sursound. The website http://www.ambisonic.net alsoprovides
resources and the Wikipedia page on ambisonics provides an excellent technical introduction: ht-
tps://en.wikipedia.org/wiki/Ambisonics.
4 For information about encoding conventions see: https://www.ambisonic.net/fileformats.html
5 http://jackaudio.org

99
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figure 1. Typical Mosca work session

In order to spatialise the sound sources, mono and stereo inputs are processed
on a per-source basis by a selection of algorithm set from the “Library” pull-down
menu in the GUI. Users may choose between the ATK6, HOALib7 (Guillot, Paris, &
Deneu, n.d.), Ambitools (Grond & Lecomte, 2017)8, ADT(Heller & Benjamin, 2014)9,
BF-FMH, Josh and VBAP libraries10. The ATK and Josh are both restricted to 1st or-
der ambisonics, BF-FMH can either encode in 1st or 2nd order whereas Ambitools,
HOALib and ADTB offer up to 5th order ambisonics. The default ambisonic order of
Mosca is 1, however the user may enter a maximum order as an instantiation argu-
ment to perform higher order encoding and decoding. Josh is a simple ambisonic
granulator effect. VBAP on the other hand is a non-ambisonic method of sound
spatialisation unaffected by the “maxorder” argument. The acronym stands for
vector based amplitude panning (Pulkki, 1997) and involves the panning of sound
sources between adjacent loudspeakers in an array, the details of which—angular

6 http://www.ambisonictoolkit.net
7 http://hoalibrary.mshparisnord.fr/en
8 https://github.com/sekisushai/ambitools
9 https://bitbucket.org/ambidecodertoolbox/adt
10 The last three libraries are provided by the official supercollider plugin repository

100
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

location and distance—must be passed to Mosca in the creation arguments for


the Mosca instance. Regardless of the chosen technique for a particular source,
stereo signals are treated as two distinct mono signals, separated spatially by an
adjustable angle parameter.

B-format signals up to 5th order, when used as input to Mosca, have no need to
undergo ambisonic encoding. The signal can be oriented and transformed directly
in various ways. The user can load or stream existing archival B-format material or
create their own audio files, either by using Mosca itself to record B-format files from
manipulated sources (mono, stereo or B-format) or record their own material acous-
tically with a sound field microphone. Most commonly available soundfield micro-
phones are so-called A-format devices. Recorded signals using these microphones
will therefore need to be processed into B-format for use. The original Mosca project
has made use of such a microphone, the Core Sound Tetramic along with a TASCAM
DR-680 digital recorder and B-format material has been generated from raw record-
ings using the Linux software Tetraproc (Adriaensen, 2007). The methodology used
and a sample processing script are available online.11

Mosca uses two techniques for positioning B-format sources in space. Either the
push transformation from the ATK library or the Beam formation techniques avail-
able in Ambitools (Lecomte, Gauthier, Langrenne, Berry, & Garcia, 2016). Both effects
diminish as the source approaches the centre point, surrounding the listener and
allowing the inherent ambisonic coding of the original signal to dominate. With the
ATK, this signal can also be gradually striped of its directional attributes with the “Di-
rectivity” control. Fully rolled back, this parameter renders B-format inputs as omni-
directional signals with constituent sounds surrounding the listening point equally
from all directions. Additionally, rotation of incoming ambisonic sound fields around
their Z-axis can be performed with the “Rotation” parameter.

Mono and stereo sources are fully contracted by default, setting a focused position
in space. When fully de-contracted with the contraction control in the GUI, the signal
becomes omnidirectional. B-format sources, on the other hand, are de-contracted
by default and contraction causes them to become spatially focussed. The parame-
ter thus offers continuous control over the source’s width, from a narrow point to an
enveloping mass. When mono or stereo signals are de-contracted, the spread and
diffuse GUI options of the ATK library offer two different types of spectral smearing
over the spherical ambisonic image. Both have distinct rendering qualities and users
may find that one suits a specific class of sounds better than the other, as is the case
with all available libraries.

11 http://escuta.org/en/proj/research/ambiresources/item/222-shell-script.html

101
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Distance and reverberation


Along with angular location, Mosca’s source signals are attenuated proportionally
to their distance from the origin, inside an audible radius of one-hundred metres. In
this way, as sources move from the centre of the GUI towards the periphery, they be-
come quieter before being silenced once outside the large blue circle. All sources are
subject to high-frequency attenuation with distance. Additionally, a proximity effect12
is available via the ATK as well as a near field compensation13 through Ambitools.

Reverberation plays an important psychoacoustic role in the perceived distance of


a sounding object. Typically, as a sound approaches, the ratio of direct to reflected
sound—for example from walls, floor and ceiling—increases. In other words, distant
sounds generally appear more reverberant than close sounds. Mosca provides two
reverberation controls, close and distant, each with a selectable reverberation types.
Along with the Freeverb14 and a plain all-pass option, convolution reverberation can be
used to accurately simulate the resonance of natural environments. The Mosca project
has created B-format tail room impulse responses (RIR) to that effect using Linux based
software written by Fons Adriaensen (2007). The methods used have been document-
ed online. 15 Banks of such RIRs may be passed to Mosca as initiation arguments.

The implementation of convolution reverberation, under the close control, can be


described as a 2nd order diffuse A-format reverberation. This technique produces re-
verberation weighted in the direction of sound events encoded in the dry ambisonic
signal and involves conversion to and from A-format in order to apply the effect. The
encoded 2nd order ambisonic signal is converted to a 12-channel A-format signal
and convolved with a B-format RIR which has been upsampled to 2nd order and con-
verted to A-format impulse spectrum, a process that is performed automatically on
first initialisation. A final step converts this reverberated A-format signal back to 2nd
order B-format for decoding and audition (Anderson, 2011).

Presently in Mosca, the distant reverberation control attenuates a type of reverberation


described by John Chowning as local, whereby the return signal from the reverberation
process16 is mixed back with the source signal before the spatialisation phase, producing
a tightly spatially focused reverberant signal at the same angular location as the source.
Conversely in our implementation, the close reverberation control attenuates what

12 http://doc.sccode.org/Classes/FoaProximity.html
13 http://www.sekisushai.net/ambitools/hoa_encoder
14 https://ccrma.stanford.edu/~jos/pasp/Freeverb.html
15 http://escuta.org/en/proj/research/ambiresources/item/222-shell-script.html
16 In the case of Mosca, fed by the w component of the source’s B-format encoded signal.

102
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Chowning described as global reverberation, a type of reverberation that envelopes


the listener, albeit, in our implementation, with a source-directed weighting. The overall
effect is that as the source recedes from the listener, and as it moves from close to dis-
tant control, the width of the reverberant field narrows (Chowning, 1977). In the future,
Mosca will also offer the option of applying A-format convolution reverberation under
distant as well as close control.

Movement, control and automation


Mosca is well disposed to create sound fields with moving sound sources and its
name was inspired in part by ambisonic recordings of flies—moscas in Portuguese—
made inadvertently during field recordings in the national park of Chapada dos Vea-
deiros 17. It is also a reference to Trevor Wishart’s recordings of bluebottle flies for his
electroacoustic composition Red Bird. After attempts of recording a fly affixed to a
substrate, he discovered that only with a fly in motion—achieved by waving a blue-
bottle attached to a stick in a stereo field—“could the aural image ‘fly’ be recreated”
(Wishart, 1996, p. 151). To reproduce this characteristic of moving sound, a scalable
Doppler effect is implemented in Mosca for each source.

Creating movements and animating parameters in Mosca can be done in a number


of ways. A quick and intuitive method relies on the Automation quark 18 and direct
interaction with the GUI. If users select record in the automation transport without
selecting play, any changes made with the interface—for instance loading particular
audio files, positioning sources, adjusting various level controls—are recorded as a
single register in memory and may be saved and later recalled as such, in a named
directory. If play is selected while recording, users may record the spatial movement
of sources and changes to the controls, as a continuous stream of data. The transport
may be rewound any number of times to overlay additional changes or to override
prior alterations of the controls. Again, the recorded data may be saved and later
reloaded from a named directory for playback. The transport may be synchronised
to a digital audio workstation (DAW) using Midi Machine Control (MMC) messages
by selecting the slave to MCC checkbox in the GUI 19. This allows Mosca to spatialise
multitrack audio compositions, the individual tracks being sent to Mosca via Jack to
individual sources with HW-in selected20.

17 B-format audio recordings from this field work are available online on an interactive map: https://
escuta.org/mapa
18 https://github.com/neeels/Automation
19 This method has been tested to work with the open source DAW Ardour on Linux.
20 When selected in the GUI, the user must enter the number of channels and the starting bus number.

103
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Mosca can run without an active GUI by reading stored Automation data21 and may
also be controlled entirely through coded commands by way of proxies for the GUI
elements. Calling “myMoscaInstanceName.xboxProxy[i].value”, for example, will re-
turn the current x-coordinate of the source at index “i”. With the “valueAction” meth-
od, new values can be set in real time for any given parameter proxy. A full list of
available proxies is given in the help file for Mosca.

A major focus of Mosca’s rework was to enable communication with the intermedia se-
quencer OSSIA/score22 (Celerier, 2018). This open source project can be described as a
graphical language to formulate software interactions in time. The approach expands
on a traditional sequencer interface with the addition of flexible durations, parallel
timelines, conditional branches and a host of communication protocols. Developed
as a virtual conductor, OSSIA/score allows the creation of scenarios where events and
processes obey “when”, “while” and “switch case” statements represented as Triggers,
Loops and Conditions. Open Sound Control (OSC) (Schmeder, Freed, & Wessel, 2010)
and OSCQuery23 compliant applications like Mosca can then be remotely controlled
and synchronised together inside a single scenario. Exposed on the network with the
OSSIA quark24 for supercollider, all of Mosca’s parameters appear within the device ex-
plorer of OSSIA/score. This new feature not only greatly improves the integration with
other systems, it also provides high level functionalities for editing large-scale spatial
audio compositions and real time interactive projects of all kinds.

Figure 2. OSSIA/score scenario example

21 Using initialisation arguments.


22 ossia.io
23 https://github.com/Vidvox/OSCQueryProposal
24 https://github.com/OSSIA/ossia-sclang
104
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Decoding
A variety of options are available for decoding, each dependent on the rendering
system used (binaural, 2D ring or 3D array). A SuperCollider decoder object, chosen
from a number of types, may be passed to the Mosca instance in an initialisation
argument. If none is provided, raw ambisonic components of the chosen order are
outputted for processing with an external decoder, such as Ambdec (Adriaensen,
2011). The AmbiDecoderToolbox library for Octave and Matlab (Heller & Benjamin,
2014) may also be used and is recommended for higher-order decoding. It enables
users to create custom decoders calibrated specifically for their setup. The scripting
and compiling steps for ADT are described in the SC-HOA quark tutorials (Grond &
Lecomte, 2017). As mentioned, VBAP involves neither ambisonic encoding nor de-
coding, however Mosca does require VBAP to be initialised with an array of loud-
speaker coordinates (2D or 3D) passed as an initialisation argument.

When a binaural ambisonic decoder is used for headphone reproduction, it may be


advantageous to use a head-tracking device. In this way the sound field rotates cor-
respondingly with rotations of the head and the listener may better audition each
source. Mosca provides support for the Arduino 9-Axes Motion Shield25 sensor with
the Arduino Uno26 microprocessor. The Mosca help file provides information on how
the head-tracker should be installed and configured. Movements of the head are
displayed in the GUI as values of heading, pitch and roll as well as corresponding ro-
tations of sound sources. These orientation controls, like the origin parameters, only
affect the relative spherical coordinates for every source, leaving the absolute Carte-
sian coordinates intact. Both types of coordinates are available in OSSIA/score when
exposed to the network.

Current work
Work is currently underway to bring location sensitivity to Mosca using SuperCol-
lider code developed in the sound art project Botanica (Mott, 2017). The code will
enable Mosca to import a map and then calibrate it to position a mobile listener in
accordance with their physical location. Longitude and latitude serial data may be
used as input, be it from GPS or from any location sensing device. The system de-
veloped uses a Ublox NEO-6M GPS module27 which is wired directly to the Arduino
Uno with 9-Axes Motion Shield. Coupled with head tracking, listeners will be able to
walk in a direction of their choice, or travel by some other means, to explore sound-
scapes spanning physical space. Together with existing head-tracking capacities for

25 https://store.arduino.cc/usa/9-axis-motion-shield
26 https://store.arduino.cc/usa/arduino-uno-rev3
27 https://lastminuteengineers.com/neo6m-gps-arduino-tutorial/

105
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

binaural audio reproduction, location sensitivity will lend Mosca broad application
in mixed and virtual reality projects. The OSSIA quark is also under development to
take over from the now deprecated ossia-supercollider28 project, currently the only
way to enable OSCQuery communication. It will soon be reconfigured and based on
Pierre Cochard’s wsclang29 fork of SuperCollider and the changes then submitted to
the official SuperCollider repository.

Resources
The home page for Mosca is http://escuta.org/mosca. To use Mosca, SuperCollider
must be installed on a Linux, Mac or Windows computer along with SuperCollider’s
assortment of plugins, including HOA30 and the ATK31. Like SuperCollider and the
ATK, the Mosca source code and accompanying Arduino source for head-tracking,
are available on the Github site.32 As well as including the SuperCollider source code
for Mosca and help files, the repository, as mentioned above, contains the source
code for the Arduino-based head-tracker and should be loaded onto the device us-
ing the Arduino IDE33 software. The Mosca quark and additional prerequisite quarks
including the ATK may be loaded via the Quarks.gui interface in SuperCollider. Once
loaded, the user may access the Mosca help file and guide with full instructions and
code examples, by running the help command on the class name Mosca. Addition-
ally, the moscaproject.zip file contained within the git source may be used. Once
extracted, the archive contains the basic file structure for a Mosca project as well as
an example RIR file. A much larger project directory with B-format audio files is also
available on the site Escuta.org.34

Acknowledgements
Participation in this event was made possible with assistance from the Fundação de
Apoio a Pesquisa do Distrito Federal (FAP DF). The authors gratefully acknowledge
Joseph Anderson (ATK), Pierre Lecomte (Ambitools), Florian Grond (SC-HOA), Pierre

28 https://github.com/OSSIA/ossia-supercollider
29 https://github.com/pchdev/wsclang
30 https://github.com/scrime-u-bordeaux/sc3-pluginsHOA
31 http://www.ambisonictoolkit.net/download/supercollider
32 https://github.com/escuta/mosca
33 https://www.arduino.cc
34 http://escuta.org/tmp/moscaproject.zip. The archive includes a B-format audio recorded by Iain
Mott in Chapada dos Veadeiros and Brasilia as well as a Spitfire recording by John Leonard, provided
with kind permission.

106
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Guillot (HoaLib), Neels Hofmeyr (Automation), Jean-Michël Celerier (OSSIA/score),


Pierre Cochard (ossia-supercollider & wsclang) and members of the SuperCollider
users and dev lists for their assistance and valuable suggestions.

References
Adriaensen, F. (2007). A Tetrahedral Microphone Processor for Ambisonic Re-
cording. Presented at the Linux Audio Conference, Berlin.

Adriaensen, F. (2011). Ambdec 0.4.2 User Manual. Retrieved from http://kokki-


nizita.linuxaudio.org/linuxaudio/downloads/ambdec-manual.pdf

Anderson, J. (2011). Authoring complex Ambisonic soundfields: An artist’s tips


& tricks. Presented at the Digital Hybridity and Sounds in Space Joint Symposium,
University of Derby, UK. Retrieved from https://www.researchgate.net/publica-
tion/273944382_Authoring_complex_Ambisonic_soundfields_An_artist%27s_
tips_tricks

Batke, J.-M. (2009). The B-Format Microphone Revised. Ambisonics Symposium, 5.

Celerier, J.-M. (2018). Authoring interactive media: A logical & temporal approach
(PhD thesis). University of Bordeaux, France.

Chowning, J. M. (1977). The Simulation of Moving Sound Sources. Computer Music


Journal, 1(3), 48–52.

Fellgett, P. (1975). Ambisonics. Part one: General system description. Studio Sound,
17(8), 20–22, 40.

Grond, F., & Lecomte, P. (2017). Higher Order Ambisonics for SuperCollider. Pre-
sented at the Linux Audio Conference.

Guillot, P., Paris, E., & Deneu, M. (n.d.). La bibliothèque de spatialisation HOA pour
Max/MSP, Pure Data, VST, FAUST. Revue Francophone d’Informatique et Musique.
Retrieved from https://revues.mshparisnord.fr:443/rfim/index.php?id=245

Heller, A. J., & Benjamin, E. M. (2014). The Ambisonic Decoder Toolbox: Extensions
for Partial-Coverage Loudspeaker Arrays. Presented at the Linux Audio Confer-
ence, Karlsruhe, Germany.

Hollerweger, F. (2008). An Introduction to Higher Order Ambisonics. Retrieved


from http://flo.mur.at/writings/HOA-intro.pdf

Lecomte, P., Gauthier, P.-A., Langrenne, C., Berry, A., & Garcia, A. (2016). Filtrage direc-
tionnel dans un scène sonore 3D par une utilisation conjointe de Beamforming et

107
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

d’Ambisonie d’ordre élevé. 13ème Congrès Français d’Acoustique Joint Avec Le


20ème Colloque VIbrations, SHocks and NOise, CFA/VISHNO. Presented at the Le
Mans, Sarthe, France. Le Mans, Sarthe, France.

McCartney, J. (1996). SuperCollider: A New Real Time Synthesis Language. Interna-


tional Computer Music Conference, 257–258. Hong Kong: International Computer
Music Association.

Mott, I. (2017). Botanica: Navigable, immersive sound art. Presented at the 16o
Encontro Internacional de Arte e Tecnologia, Porto, Portugal.

Pulkki, V. (1997). Virtual Sound Source Positioning Using Vector Base Amplitude Pan-
ning. Journal of the Audio Engineering Society, 45(6).

Schmeder, A., Freed, A., & Wessel, D. (2010). Best Practices for Open Sound Control.
Presented at the Linux Audio Conference.

Wilson, S., Cottle, D., & Collins, N. (Eds.). (2011). The SuperCollider Book. Cambridge,
Massachusetts & London: MIT Press.

Wishart, T. (1996). On Sonic Art (2nd ed.; S. Emmerson, Ed.). Amsterdam: Harwood
Academic Publishers.

108
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Ludmila Queirós and Paulo Bernadino Bastos

Mulher Instrumento: A Enxara árida da Mulher, corpo e


mente, na arte.
Woman Instrument: Woman’s arid path, body and mind, in art.

Resumo
Este artigo explora a investigação realizada para a construção da Dissertação de
Mestrado em Criação Artística Contemporânea que tem como título: “Escutar com
os olhos: Recital Visual”, uma Performance/Instalação, que procura abordar meta-
foricamente o local de fronteira entre as artes, particularmente o som e a imagem.
Nesta construção conceptual de discurso em torno da intersecção (entre som e
imagem), surge o uso de tecnologia para amplificar o espaço dessa mesma inter-
secção, inclusive, no instrumento de utilização - sendo que, uma das peças será
preformada integrando o corpo de uma Mulher. Desta forma procuraremos visar
questões de género na arte: a forma como a Mulher, indagada, se redefine num
destino próprio no âmbito da arte contemporânea, em termos de posicionamen-
to, uma outra abordagem daquilo que é a presença da Mulher no mundo da Arte.
Aqui, sugere-se um questionamento sobre que lugar poético é este que pretende
percecionar onde se situa o corpo da mulher (aludindo a questões da Body Art),
enquanto artista, obra ou instrumento de algo, de forma a possibilitar a constru-
ção de um possível recombinado “universo sinestésico”, utilizando a tecnologia de
forma a complementar a fronteira entre diferentes sentidos e artes.
PALAVRAS-CHAVE: Mulher, Tecnologia, Imagem; Som; Música; Poesia; Intersecção;

Abstract
This article explores the research carried out for the construction of the Master ‘s
Dissertation in Contemporary Artistic Creation, whose title is: “Listening with the
eyes: Recital Visual”, a Performance / Installation, which seeks to metaphorically
address the border of the arts, particularly sound and image. In this conceptual
construction of discourse around the intersection (between sound and image),
there is the use of technology to amplify the space of this same intersection, in-
cluding, in the instrument of use - one of the pieces will be performed by integrat-
ing the body of a Woman. In this way, we will seek to address gender issues in art:
the way in which the Woman, researched, redefines herself in a fate of contem-
porary art, in terms of positioning, another approach to what is the presence of
Women in the world of Art.

109
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Here, it is suggested a question about what poetic place is this one that intends to
perceive where the woman’s body (alluding to Body Art issues) is situated, as artist,
work or instrument of something, in order to enable the construction of a possible
recombined “synesthetic universe,” using technology to complement the boundary
between different senses and the arts.
KEYWORDS: Women, Technology, Image; Sound; Music; Poetry; Intersection;

INTRODUÇÃO
Neste artigo, encontram-se elementos que são parte integrante da minha Dis-
sertação de Mestrado em Criação Artística Contemporânea, na Universidade de
Aveiro (Portugal), versando, as intersecções poéticas entre Som e Imagem abor-
dando a temática do género para a construção de peças visuais. Esta inquietação
sobre o papel da mulher contemporânea e a sua representação social e artística
irá ser abordada de forma subjetiva na construção de linguagem visual (vídeo e
fotografia) preformada através de recurso a tecnologia num corpo de uma mu-
lher, numa das peças.

O corpo sempre assumiu um papel importante no devir da Humanidade, desde a


Pré́-Historia, onde o seu carácter era meramente utilitário e onde, principalmente
o corpo da mulher, era sinonimo de fertilidade e de conservação da espécie (Jana,
1995). Corpo este que de ser uma construção física medeia e reforça uma experiên-
cia social, “Ah, você pensa que só se constroem as casas?, exclama Moscarda – Eu
construo-me continuamente e construo-o a si e você faz a mesma coisa.”1 (Piran-
dello, 1989, p. 65) esta sensação de que se é um, ninguém e cem mil2 leva a ultrapas-
sar vários limites, inclusive o da própria percepção do corpo, do próprio género3, do
próprio papel na sociedade. Baudrillard menciona, precisamente, a mulher libertada
e a libertação do seu corpo, enquanto ser sexual, se confundem herança de uma
“hipoteca puritana”. (2008, p. 181)

A exploração do corpo, sensualidade e sexualidade, de Carolee Schneemann e as


questões de identidade de Ana Mendieta e a sua ligação à terra, Joan Jonas e Maria

1 Slotherdijk indica que há “uma experimentação sobre si mesmo, sobre os seus próprios limites, que
pode levar a rutura com a própria identidade.” Que a melhor maneira de um indivíduo se conservar
a si mesmo é experimentar-se a si mesmo. (Sloterdijk, 2001, p. 11)
2 Título da obra de Pirandello (Pirandello, 1989) em que quanto mais oportunidades a vida nos dá,
mais seres ela desperta em nós.
3 O termo género foi utilizado primeiramente no âmbito da periodização literária e gramatical para
distinguir o masculino do feminino (Macedo & Amaral, 2005, p. 87). Com o decorrer da segunda
metade do século XX ganhou novos significados e viu o seu âmbito alargado à dimensão política,
histórica, cultural e social.

110
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Evelia Marmolejo com os seus trabalhos ligados à idiossincrasia da sua linguagem


visual e finalmente as transformações/transgressões do seu próprio corpo de Lady
Jaye e Genesis Breyer P-Orridge e de Stelarc, são os artistas que permitem que
esta investigação percorra esta “enxara árida” que se pretende fértil. Que mulher é
esta, que (se) constrói ainda, metaforicamente, num espaço previamente ocupa-
do? Deleuze diz que “o desejo nunca deve ser interpretado, é ele que experimenta.”
(Deleuze & Parnet, 2004, p. 18), cruzando esta ideia4 com a de Baudrillard acima
apresentada surge-nos a libertação pelo desejo, a libertação pelo corpo que se
impõe, que se afirma através da razão, do conhecimento, da eliminação da igno-
rância – “(...) cativeiro da insensatez (...)”. (Wollstonecraft, 2017, p. 217)

A percepção da Mulher e sua posição na sociedade foi um constante percurso de


luta. Desde uma ideia expressão do ideal feminino que era a Vénus de Willendorf
(Figura 1)5 às Guerrilla Girls passando pela Marie Gouze6 que escreveu a Declara-
ção dos direitos da mulher em 1791, que defendia a igualdade entre o Homem e a
Mulher (Poirier, 2013).

Fig. 1: “Vénus de Willendorf”, Reprodução Fotográfica

De acordo com Seyla Benhabib, uma das principais tarefas da teoria feminista con-
temporânea é encontrar respostas para a seguinte pergunta: como podemos ser
constituídos por discursos sem sermos determinados por eles? (Benhabib, 1992)
Simone de Beauvoir, dá-nos de alguma forma uma indicação sobre este caminho
- implicaria libertar-se da condição do determinismo biológico que uma das suas
mais célebres frases menciona: “não se nasce mulher, torna-se mulher” (1949) como
um processo de comunhão com o próprio Ser.

4 Esta ideia é cruzada, embora Deleuze e Parnet façam do desejo e do prazer inimigos ao longo do
seu discurso.
5 Fonte: https://medium.com/midium/o-que-é-ser-mulher-para-a-arte-fc12f75976d acedida a 10
de Julho de 2019.
6 Utilizava o pseudónimo Olímpia de Gouges, dramaturga e ativista política.

111
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

EXPLORAÇÃO: IDENTIDADE, SENSUALIDADE E SEXUALIDADE


A história da arte é dominada por imagens do corpo nu das mulheres, criadas por
homens. Joan Jonas ao falar do seu trabalho (Cooke, 2018) refere que este espaço de
novas intersecções na arte (performance e vídeo arte por exemplo) permitem que
as mulheres possam ocupar um espaço de liberdade, um espaço de experimentação
na arte que ainda não era dominado pelos homens (como a pintura ou a escultura)
e é neste campo de experimentação que surgem mulheres como a Carolee Schnee-
mann7, que transforma a definição de arte – principalmente o discurso sobre o cor-
po, sexualidade e género (Schneemann, 2019).

Fig. 2: Carolee Schneemann, “Fuses”, 1965

A ideia de centrar o seu discurso sobre o corpo, de forma a desconstruir inclusive a


ideia da Mulher, o seu poder de procriação, de permitir a continuidade do Mundo.
Assim sendo, a “Vagina Mulher” controlada pelo Homem seria toda uma Humanidade
controlada pelo Homem. A sua ideia, de forma genérica era “libertar a Mulher” do tabu:
da ideia do sagrado, usando o seu próprio corpo, a sua própria sensualidade e sexuali-
dade, uma das obras de Schneemann é o filme mudo “Fuses” (1965) (Figura 2)8, que foi
uma construção de colagem e sequências pintadas duma filmagem de um ato de sexo
entre a própria e o seu parceiro da altura.

7 Carolee Schneemann (1939-2019), foi uma artista multidisciplinar, conhecida pelos seus trabalhos
multimédia sobre o corpo, sexualidade e género.
8 Fonte: https://www.artsy.net/artwork/carolee-schneemann-fuses, acedida a 21 de Julho de 2019.

112
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fig. 3: Carolee Schneemann, “Interior Scroll”, 1075

“Interior Scroll” (1975) (Figura 3)9 foi uma peça determinante, Schneemann lia um per-
gaminho com textos feministas que ela retirava do interior da sua vagina. Há um dis-
curso que perpassa as suas obras, a marginalização das minorias, a violência (por vezes
explícita, outras vezes discreta sob a voz dos padrões sociais) praticada às mulheres.

Outra artista que dá destaque a questões vinculadas ao feminismo e à violência con-


tra a mulher é Ana Mendieta, utilizando a escultura e a performance, ambos inti-
mamente ligados ao conceito de body art e, quase sempre, registrados por meio da
fotografia. Mendieta relacionava as suas obras às suas próprias experiências, ao seu
corpo e à sua forte ligação espiritual com os elementos da natureza, de forma que,
em determinados momentos, podendo ser considerada sua arte como autobiográ-
fica. Por meio de performances que visavam chocar, Mendieta pretendia denunciar
os abusos sofridos pela mulher na sociedade da altura, abusos que ainda ocorrem na
sociedade atual. Há assim latente no seu trabalho um local sem tempo, conectando
(corpo) verdadeiramente com um lugar (terra).

Fig. 4: Ana Mendieta, “Silueta Works in Mexico”, 1973–77/1991

9 Fonte: https://www.artsy.net/artwork/carolee-schneemann-interior-scroll-6, acedida a 28 de Julho


de 2019.
113
Fluxo
A de “Silueta”
série Dados: Visualização
(Figura 4)
e Sonificação #18.ART
conta com cerca de 200 fotografias • 2019 • ISSN:
realizadas 2238-0272
entre 1973-
78, no México e nos Estados Unidos, onde Mendieta utiliza o próprio corpo para criar
silhuetas na natureza, considerando sempre sua ligação pessoal com a terra, a efe-
meridade da presença humana e as simbologias que envolvem o corpo feminino.
Chamadas também de “esculturas de terra-corpo” (earth body art) (Blocker, 1999), essas
intervenções na natureza são extremamente efêmeras, pensadas e executadas para
sobreviverem apenas na fotografia. A maior parte das silhuetas foram criadas a partir
de materiais orgânicos, ligados aos elementos da natureza, utilizando galhos, pedras,
folhas, flores, barro, areia, água e até mesmo fogo. Como a própria indica (Mendieta as
cited in Lagnado et al., 2006, p. 10) através das suas obras cria um diálogo entre a pai-
sagem e o corpo feminino, é o retorno à fonte materna, a forma de se tornar una com a
Terra, uma extensão da natureza e a natureza uma extensão do seu corpo.

Que signo (corpo) é este [de eleição e salvação como Baudrillard menciona (2008,
p. 174)] que pode determinar a construção do símbolo (identidade)? A mulher no
seu percurso de se libertar dos signos e símbolos do “belo contemporâneo” para sua
própria (re)construção.

IDIOSSINCRASIA DO CORPO FEMININO


Joan Jonas10 é conhecida pelos seus trabalhos experimentais que interseccionam
vídeo, performance, instalação. Escultura, desenho e internet para produzir uma lin-
guagem visual idiossincrática11. Explorando a experiência do espetador e confun-
dindo a sua percepção entre o real e o ficcional.

Foi com a Série “Mirror Piece” (Figura 5)12 que Joan Jonas estabeleceu-se como uma fi-
gura predominante no campo das artes performativas. Motivada pelas suas ideias femi-
nistas, esta série explora as hierarquias de género, o poder do olhar (alheio e próprio) e
as noções de percepção e representação, os rituais do corpo e a simbologia dos gestos.

Fig. 5: Joan Jonas, “Mirror Piece II”, 2018, Fotografia por Graem Robertson/The Guardian

Na Série “My New Theater” (Figura 6)13, cuja começou em 1997 (com o “My Theater
I: Tap Dancing”) e aqui Jonas elabora “caixas de teatro” que são construções de

13 Fonte: https://www.wsj.com/articles/joan-jonas-a-video-star-1412265443, acedida a 20 de Julho


de 2019.
114
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

madeira incorporando monitores ou projeções e por vezes alguns pequenos ade-


reços no interior. Esta estrutura também se tornou parte de instalações maiores,
tais como “Reanimation and Lines in the Sand”. Pretendem dar a alusão a antigos
instrumentos de visualização de imagem (tal como a câmara escura) e pretendiam
dar uma noção de performance com a ausência física do performer. Nos vídeos ela
deturpava a noção de espacialidade tanto a nível da intimidade como da noção
física a nível da percepção.

Fig. 6: Joan Jonas, “My New Theater III- In the Shadow a Shadow”, 1999

Há uma presença muito forte da análise do que mostramos e ocultamos no trabalho


de Joan Jonas, entre o espaço íntimo e o espaço público para abordar questões de
género, tal como María Evelia Marmolejo14 lida com o papel da mulher na sociedade,
além de abordar questões ambientais.

Tal como todas as artistas anteriores o corpo, os gestos e os rituais servem um po-
cionamento de intervenção na sociedade, é designada como uma das mais radicais
artistas da década de 80 na América Latina.

Esta inscrição no “feminismo essencialista” por parte da sociedade poderá ter sido uma
das causas da curta carreira artística de Marmolejo (produção foi apenas de 1980 a
1985 quando engravidou e auto exilou-se em Espanha). A Série “Anonimo” começou
com “Anonimo 1” em 1981 (Figuras 715 e 816 ) e em toda esta série de performances

14 María Evelia Marmolejo (1958), nasceu na Colômbia e é uma artista performativa e feminista
radical.
15 Fonte: https://www.pinterest.com/pin/550635491938941847/?lp=true. Acedida a 28 de Julho de 2019.
16 Fonte: http://myartguides.com/exhibitions/maria-evelia-marmolejo-engagementhealing/atta-
chment/scan-130726-0002-copy/, acedida a 28 de Julho de 2019.

115
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Marmolejo cobria a cabeça com gazes para acentuar o anonimato, e autoinfligia-se


ferimentos de forma a denotar que aquilo de que pretendia “falar” não era “apenas”
artístico ou intelectual, mas visceral, urgente e apaixonado (apaixonante).

Numa das suas performances da série “Anonimo” utilizou a sua menstruação para
evidenciar não a fragilidade, mas a força da mulher, o corpo e as funções de um cor-
po de mulher como natural e digno de celebração. Há uma forte ligação ao longo do
seu trabalho à terra e do corpo em particular à terra, ao natural.

“(...) tudo hoje testemunha que o corpo se tornou objeto de salvação. Substitui lite-
ralmente a alma, nesta função moral e ideológica” (Baudrillard, 2008, p. 168). Nova-
mente abordamos questões de liberdade, sob diferentes perspetivas, mas o corpo
como definição de género e como definição de espaço social ocupado. E como a
arte e os/as artistas definem a visão sobre este papel do corpo, seja numa localização
física/psicológica, seja como uma afirmação visceral sobre o mundo.

Fig. 7: María Evelia Marmolejo, “Anónimo 3”, 1982

Fig. 8: María Evelia Marmolejo, “Anónimo 3”, 1982

116
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

TRANSGRESSÃO/TRANSFORMAÇÃO: CORPO E TECNOLOGIA NA ARTE


Há um local limiar, onde as possibilidades de intersecção permitem a recombinação,
permitem a “transgressão” e nesse sentido permitem novas possibilidades, “Mais es-
sencial do todo o estabelecimento de regras é que o homem encontre a sua morada
na verdade do Ser.” (Heidegger as cited in Han, 2016, p. 90).

Fig. 9: Lady Jaye e Genesis Breyer P-Orridge, Frames do Filme


“The Ballad of Genesis and Lady Jaye”, 2011

Genesis Breyer P-Orridge17 é uma compositora, cantora, poetisa e performer, autoprocla-


mava-se como uma “engenheira cultural” e artista conceptual. Identifica-se como fazendo
parte do terceiro género/sexo18, era casada com Lady Jaye19 (em 1993) e o casal começou o
processo de se tornarem imagens espelho, recorrendo à cirurgia plástica (a partir de 2000)
moldando um único ser ao qual chamavam “Breyer P-Orridge”. “As a couple, we want to be-
come more and more one (…)” (Genesis Breyer P-Orridge as cited in Perrone, 2007). Intro-
duziu o termo “pandrogenia”20, pretendendo assim desconectar-se da identidade definida
pelos pais, familiares, amigos, educadores, e criar essa nova possibilidade de ser em união.

17 Genesis Breyer P-Orridge (1950) nasceu no Reino Unido como Neil Megson.
18 Terceiro género/sexo “descreve” indivíduos que não se consideram como do sexo masculino ou
feminino, sendo esta assunção um questionamento ao sexo biológico do indivíduo, ao papel social
relativo, identidade e orientação sexual atribuída ao género.
19 Lady Jaye Breyer P-Orridge (1969 – 2007), nascida em Inglaterra como Jacqueline Breyer, era en-
fermeira, teclista e cantora.
20 Pandrogenia: alquimia e cirurgia plástica para transcender a dualidade.

117
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Genesis P. Orridge pretendia chocar com o seu trabalho artístico, e com isso foi expulsa
de seu país. A sua personalidade proclamada excessiva estava disposta a cruzar todas
as fronteiras morais fê-la ultrapassar limiares - mesmo que numa questão de estilos
e perspetivas. A exaltação do masculino e feminino na sua diversidade parece ser a
maneira mais natural de sublimar a obra e transmutar o possível. Este dilema permite
evocar a diferença entre Baudrillard e Sartre: para o primeiro o inferno era ele mesmo
e para o segundo os outros (o outro). O casal registou em documentário este processo
de se parecerem cada vez mais um único, até chegar ao ponto além do gênero no do-
cumentário “The Ballad of Genesis and Lady Jaye” 21 (Figura 9)22, de 2011.

Um artista que evidencia a existência de corpos híbridos a partir de seu trabalho artísti-
co, é Stelarc 23, que desenvolveu múltiplas performances a partir de várias tecnologias.
Sempre integrando o corpo com tecnologias. Stelarc apresentou performances com
o seu corpo em suspensão, com próteses robóticas, ligado a Internet, modificado por
implantes, de várias maneiras para defender a ideia de um “pós-evolucionismo”, onde
entende o corpo como um acessório destinado ao desaparecimento. (Stelarc, 2019)

As performances “The Third Hand” (Figura 10)24, visavam amplificar os sinais e sons do
corpo e tinham a intenção de analisar a falta em lugar do excesso (que poderia ser a pre-
sunção visto adicionar uma prótese a um corpo que possuía ambos os braços), uma rela-
ção íntima entre a prostética, a tecnologia e o seu próprio corpo, tornando-se tudo uno.

O que nos parece possível afirmar é que em Stelarc e Lady Jaye e Genesis Breyer P-Or-
ridge, a tecnologia permitiu uma transgressão de fronteiras entre masculino/feminino,
humano/máquina, tempo/espaço, o transplante da técnica para o interior do corpo –
uma forma de colonização do corpo (Giannetti, 2010, p. 54) onde o ser humano apa-
rece não mais imerso na memória genética, mas reconfigurado no campo expandido
da presença corpórea na contemporaneidade, com os novos paradigmas - tais como a
ubiquidade, temporalidade, virtualidade, artificialidade, desmaterialização, entre outras,
trazendo um novo olhar sobre a media art.

21 Trailer: https://www.imdb.com/title/tt1821635/videoplayer/vi340368921?ref_=tt_pv_vi_aiv_1
acedido a 20 de Julho de 2019.
22 Fonte: https://ultraculture.org/blog/2012/10/25/genesis-p-orridge-lady-jaye/, acedido a 02 de
Julho de 2019.
23 Stelarc (1946), pseudónimo de Stelios Arcadiou é um performer, reconhecido como o “artista
mutante”. (Stelarc, 2019)
24 Fonte: https://ucsdvis159.wordpress.com/2015/02/01/stelarc-and-his-exploration-into-post-hu-
man/, acedida a 02 de Julho de 2019.

118
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fig. 10: Stelarc, “Third Hand project”, 1980 -1998

MULHER INSTRUMENTO: RECITAL SINESTÉSICO (SOM E IMAGEM)


“Do vaso emergem, vermelhas, as flores,
o fumo do incenso em volutas claras, nem pergunta
nem resposta.
No chão, o ruyi25 caído de través.
Dian deixou morrer o som da sua cítara, Zhao abstém-
-se de tocar o alaúde:
há em tudo isto uma melodia que se pode cantar, que
se pode dançar!” (Sun Dongpo as cited in Han, 2016, p. 71)
Ao apresentar-se como o aspeto material do ser humano, o corpo testemunha as
transformações da humanidade ao longo do tempo, cristalizando os seus avanços e
as suas crises. Uma vez que a evolução das sociedades está associada à evolução tec-
nológica, o ser humano em contato com suas próprias criações transforma seu meio.
Assim, no encontro entre o biológico, que apresenta o corpo a partir de suas quali-
dades isentas de interferência humana direta e o tecnológico, enquanto construção
humana potencializadora dessas características do corpo, surgem corpos cuja na-
tureza encontra-se entre esses dois aspetos, ou seja corpos híbridos, estes tornam
situam-se na fronteira entre o natural e o artificial.

25 Ruyi, literalmente: “como se deseje”. Trata-se de um cetro abundantemente enfeitado, que traz
felicidade, longevidade e prosperidade. Mas a palavra pode também referir-se a uma coçadeira para
as costas. (Han, 2016, p. 71)

119
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

É no cruzamento deste âmbito do corpo híbrido (natureza e tecnologia) e o levantamen-


to de questões de género que surge esta investigação como processo de construção da
performance do Dissertação por Projeto “Recital Visual: Escutar com os Olhos” (Figura 11
apresenta fotografias do processo de construção), sendo que apresentará uma constru-
ção performática de algo que se assemelhará a um Recital (associado simbolicamente à
música) porém surgirão imagens como sendo sons, recorrendo a um instrumento que
através de computação física ao ser manipulado despoletará imagens, porém, uma das
peças (são 5 peças no total do Recital) – “A Mulher Instrumento” será tocada diretamente
numa mulher (recorrendo ao mesmo processo tecnológico).

Fig. 11: Ludmila Queirós, “Recital Visual: Escutar com os Olhos”, 2019

Tratar do corpo humano e suas mutações e interações requer também tratar das
relações de gênero, uma vez que práticas de poder atravessam o corpo ao longo da
história. Assim, as relações de gênero são abordadas nesta performance e em par-
ticular nesta peça enquanto fundamento para o entendimento dos corpos híbridos
e do possível papel da Mulher de forma de entendimento subjetivo, relacionando a
alguns aspetos da modernidade como instabilidade e transitoriedade, as reconfigu-
rações de espaço e tempo, as interações simbólicas e suas implicações na constru-
ção da identidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Basta traçar uma circunferência no chão e passam, de imediato, a existir dois espa-
ços – o de dentro e o de fora. E um limite. E com o limite, leis distintas.

Um, dois. Dentro, fora. Eis como tudo começa. E nem sempre o que começa é bom.”
(Tavares, 2013, p. 30) Ao definir-se limites propõe-se também uma conjuntura de de-
limitação da liberdade, ao estar num espaço híbrido propõe-se uma infinidade de re-
combinações sobre a possibilidade, sobre um espaço limiar - um lugar potenciador de
ação. O silêncio [“a cultura vigente implicou a representação do feminino enquanto
ausência, tabula rasa, vazio, negação ou silêncio (...)”(Vicente, 2012, p. 19)] presente na
construção do caminho das Mulheres (na arte e na vida em geral) poderá implicar uma
necessidade de traçar novas circunferências, novas leis, novos limites e agir.

120
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Em silêncio, considerar-se-á a totalidade do estar presente, enquanto Mulher, enquan-


to Ser, “o silêncio dá a medida da aptidão para a ação”, pois “se alguém está seguro de
si, seguro do poder, e se resolve agir, não diz nada” (Kierkegaard, 1986, p. 111)

RECONHECIMENTO

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciên-
cia e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UID/DES/04057/2019.

BIBLIOGRAFIA
Baudrillard, J. (2008). A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70.

Beauvoir, S. De. (1949). O Segundo Sexo - Volume 1. Lisboa: Quetzal Editores.

Benhabib, S. (1992). Situating the self. Gender, community and postmodernism in con-
temporary ethics. New York: Routledge.

Blocker, J. (1999). “Body” in: Where is Ana Mendieta? Duke - EUA: Duke University Press.

Cooke, R. (2018). Joan Jonas: ‘You don’t know what you’re doing sometimes. You
just begin’. Retrieved June 25, 2019, from https://www.theguardian.com/artandde-
sign/2018/mar/04/joan-jonas-video-art-pioneer-tate-modern-exhibition-interview

Deleuze, G., & Parnet, C. (2004). Diálogos. Relógio d’Água.

Giannetti, C. (2010). O Sujeito-Projeto: Metaperformance e Endoestética. São Paulo: Im-


prensa Oficial.

Han, B.-C. (2016). O Aroma do Tempo Um Ensaio Filosófico sobre a Arte da Demora. Lis-
boa: Relógio d’Água.

Jana, J. E. (1995). Para um história do corpo humano. Lisboa: Edições Piaget.

Kierkegaard, S. (1986). Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra como Escritor. Edições 70.

Lagnado, L., Pedrosa, A., Freire, C., Roca, J., Martinez, R., & Volz, J. (2006). COMO VIVER
JUNTO: CATALOGO DA 27a BIENAL DE SAO PAULO. São Paulo: FUNDAÇAO BIENAL DE
SAO PAULO.

Lissoni, A., Lorz, J., & Ribas, J. (2018). Joan Jonas - Catálogo de Exposição. (J. Larz & A.
Lissoni, Eds.). Trento, Itália: Hirmer.

Macedo, A. G., & Amaral, A. L. (2005). Dicionário da Crítica Feminista. Porto: Edições
Afrontamento.

121
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Perrone, P. (2007). Lady Jaye Breyer P-orridge - Psychic TV keyboardist and singer. Inde-
pendent. Retrieved from https://www.independent.co.uk/news/obituaries/lady-jaye-
-breyer-p-orridge-397604.html

Pirandello, L. (1989). Um, Ninguém e Cem mil. Presença.

Poirier, A. (2013). Revolutionary feminist Olympe De Gouges in the race for a place in
France’s Panthéon.

Schneemann, C. (2019). CAROLEE SCHNEEMANN. Retrieved June 25, 2019, from http://
www.caroleeschneemann.com

Sloterdijk, P. (2001). Ensaio sobre a Intoxicação Voluntária. Um diálogo co Carlos Oliveira.


Fenda.

Stelarc. (2019). Stelarc. Retrieved July 1, 2019, from https://stelarc.org/

Tavares, G. M. (2013). Atlas do Corpo e da Imaginação. Alfragide: Editorial Caminho, SA.

Vicente, F. L. (2012). A arte sem história Mulheres e cultura artística (Séculos XVI - XX).
Athena.

Wollstonecraft, M. (2017). Uma vindicação dos direitos das mulheres. Lisboa: Antígona
Editores Refractários.

122
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Silvia Laurentiz1
Alguns desafios para a Visualização de Dados
Some challenges for data visualization

Resumo
A visualização de dados é uma representação gráfica que transmite ideias com-
plexas, com grande quantidade de informações, de forma clara, precisa e efi-
ciente. Um dos grandes desafios para a visualização de dados é o aumento da
quantidade de informação disponível, o que pode gerar alguns problemas na
análise e compreensão desses dados. Mas não é este problema que nos interes-
sa no momento. Mais do que desafios quantitativos, nos preocupam os modelos
conceituais e perceptivos das visualizações de dado. Nesse sentido, a visualiza-
ção criativa de dados, utilizando metáforas, diferentes formatos de representa-
ção, técnicas com soluções híbridas, com narrativas dinâmicas e interativas, será
o foco deste trabalho. Utilizaremos modelo de pesquisa exploratória, sendo seu
propósito proporcionar maior familiaridade com o assunto, envolvendo levan-
tamento bibliográfico e análise de casos, que serão obras de artistas que explo-
ram a visualização de dados poeticamente.
Palavras-chave: Arte, Dados, Modelos, Cognition, Percepção.

Abstract
Data visualization is a graphical representation that conveys complex ideas with a
large amount of information in a clear, precise and efficient way. One of the great
challenges for data visualization is the increase in the amount of information avail-
able, which can generate some problems in the analysis and understanding of
this data. But it is not this problem that interests us now. More than quantitative
challenges, we are concerned with the conceptual and perceptual models of data
visualization. In this sense, the creative visualization of data, using metaphors, dif-
ferent formats of representation, techniques with hybrid solutions, with dynamic
and interactive narratives, will be the focus of this paper. We will use an explorato-
ry research model, its purpose being to provide greater familiarity with the subject,

1 Profa. Dra. Silvia Laurentiz, Livre-docente, Professora Associada da Universidade de São Paulo,
Brasil. Desde 2010 criou e lidera o Grupo de Pesquisa Realidades (http://www.eca.usp.br/realida-
des), sediado em CAP-ECA-USP, certificado pela Instituição e reconhecido pelo CNPq, É docente do
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV-ECA) desde 2003, onde orienta mestrado e
doutorado. É docente do Departamento de Artes Plásticas, ECA, USP desde 2002. É uma das editoras
da Revista ARS (São Paulo).

123
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

involving a bibliographical survey and case analysis, which will be the works of art-
ists who explore the data visualization poetically.
Keywords: Art, Data, Models, Cognition, Perception.

Introdução2
Inicialmente temos que definir nosso objeto de estudo. De acordo com KHAN &
SHAH (2011), visualização de dados tem muitas definições, e pode ser:

the use of computer-supported, interactive, visual representations of data to amplify cognition,


where cognition means the power of human perception or in simple words the acquisition or use
of knowledge. Visualization is a graphical representation that best conveys the complicated ideas
clearly, precisely, and efficiently. These graphical depictions are easily understood and interpret
effectively. The main goal of Visualization is to find out what insight. Visualization is the transfor-
mation of Symbolic representation to geometric representation. The goal of visualization is to
analyze, explore, discover, illustrate, and communicate information in well understandable form.
Visualization is used to present huge amount of information coherently, compactly, from different
viewpoints, and provides several levels of details (KHAN & SHAH, 2011, p. 1-2).

Notoriamente, a principal questão é como apresentar ideias complexas e com gran-


de número de dados 3 utilizando formas de visualização gráfica destas informações
e de maneira clara, precisa e eficiente. Portanto, trata-se de manipulação de repre-
sentação simbólica, ou seja, linguagem. Mas, mais do que isso, conforme os auto-
res acima citados, o objetivo da visualização é analisar, explorar, descobrir, ilustrar
e comunicar informações de forma compreensível. Eles também apresentam tipos
diferentes de visualização:

Data visualization - visually represents quantitative data with or without axes in schematic or
diagrammatic forms e.g. Table, Line chart, Pie chart, Histogram, and Scatter plot etc. Information
visualization is an interactive interface of data to increase cognition or perception ability. Trans-
form data into a changeable image, through which users can interact during manipulation, e.g.
Data map, Tree map, Clustering, Semantic network, Time line, and Venn/ Euler diagram etc. Con-
cept visualizations - are methods use to elaborate ideas, plan, concepts, and analyze it easily, e.g.
Mindmap, Layer chart, Concentric circle, Decision tree, Pert chart etc. Strategic visualization - is a

2 Apoio parcial da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo nº
2019/15178-6.
3 Não é tarefa fácil diferenciar Dados de Informação. Veja o estudo exaustivo de Rafael SEMIDÃO
(2014) sobre isso. Muitos os consideram conceitos sinônimos. Mas no âmbito da tecnologia pode-
mos perceber sutis diferenças. No contexto deste trabalho, Dados constituiria o patamar menos
dotado de significação enquanto Informação surge a partir da reunião e agregação de sentido aos
dados. Não estamos privando os Dados de significados, mas trataremos “dados como percepção
descontextualizada, informação como dados contextualizados” (SEMIDÃO, 2014, p.57).

124
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

systematic approach in which an organization visually represent it strategies of development, for-


mulation, communication, implementation, and some time its analysis, e.g. Organizational chart,
Strategy map, Failure tree, and Portfolio diagram etc. Metaphor visualization - organizes and
structure information graphically. They convey insight of information through key characteristics
of metaphor that is employed, e.g. Metro map, Story template, Funnel, and Tree etc. Compound
visualization - is the complementary use of different graphic representation formats in one single
schema or frame, e.g. Cartoon, Rich picture, Knowledge map, and Learning map etc (idem, p.3).

Reconhecendo que um dos grandes desafios para a visualização de dados é o au-


mento da quantidade de informação disponível, o que pode gerar estratégias para
análise e compreensão desses dados; não podemos esquecer a premissa inicial de
que visualização de dados é, por natureza, um campo interdisciplinar, que envolve
programação, percepção visual, design e estatística.

Em 1996, Ben SHNEIDERMAN já havia desenvolvido uma taxonomia para sistemas


interativos de visualização de informação, baseada na correlação entre tipos de da-
dos (categorizados em sete tipos diferentes) e em tarefas relacionadas a eles.

To sort out the prototypes and guide researchers to new opportunities, I propose a type by task
taxonomy (TIT) of information visualizations. I assume that users are viewing collections of items,
where items have multiple attributes. In all seven data types (1-, 2-, 3-dimensional data, temporal
and multi-dimensional data, and tree and network data) the items have attributes and a basic se-
arch task is to select all items that satisfy values of a set of attributes (SHNEIDERMAN, 1996, p. 337).

Para o autor, a questão da interatividade traz muitas questões importantes: consul-


tas com manipulação direta; partilhamento de conceitos de exibição visual de ações
(interfaces dos controles deslizantes ou botões) e objetos (incluindo os resultados
da consulta); desenvolvimento de estratégias para o uso de ações rápidas, e rever-
síveis; bem como, exibição imediata de feedback, de dados que retroalimentam o
sistema em tempo real.

É interessante ainda notar que dados com uma, duas, três dimensões, dados tempo-
rais e multidimensionais e dados em estrutura de árvore e em rede, pela proposta
de SHNEIDERMAN (1996), são maneiras de organizar dados que carregarão atributos
e formas de seleção. Estas atenderão aos valores de um conjunto de atributos. En-
quanto que visualização de dados, de informação, de conceitos, de estratégias, de
metáforas e composição de visualização da proposta de KHAN & SHAH (2011) são
métodos e processos organizados lógica e sistematicamente. A nosso ver, as propos-
tas se complementam uma a outra4.

4 Mais técnicas, métodos e uma introdução a visualização de informações pode ser encontrada em:
https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/19398/000300210.pdf (acessado em setembro
de 2019). No artigo Introdução a visualização de informações, de Carla Freitas et al., RITA, Vol. VIII,

125
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Esta breve apresentação foi necessária para posicionar nosso objeto, e o foco deste
trabalho serão os modelos conceituais e perceptivos das visualizações de dados, e
consequentemente, quais os processos envolvidos para a formação de novos mode-
los representacionais.

Já a partir deste propósito, consideramos que um sistema de categorização é im-


portante, mas caduca com o tempo, e precisamos continuamente atualizar nossos
sistemas de filtragem, seleção, classificação e restrição de informação.

Outro ponto a destacar é o argumento de Stephen FEW (2013), que para se atingir
resultados satisfatórios com a visualização de dados, a apresentação visual destes
dados deve alcançar:

- Clearly indicates how the values relate to one another […].


- Represents the quantities accurately.
- Makes it easy to compare the quantities.
- Makes it easy to see the ranked order of values […].
- Makes obvious how people should use the information - what they should use it to accomplish
and encourages them to do this (idem, idem).

Isto já denota que são criadas relações causais, e estas devem ser claras, entre dados,
informações, diferentes tipos de representações e entre os resultados visualizáveis. E
essas relações são mantidas por argumentos e correlações entre os elementos e suas
partes. E isso tem que ser visualmente reconhecido, sem necessidade de um texto
ou outro tipo de reforço qualquer.

Hans ROSLING (2006) ficou conhecido pelos seus gráficos dinâmicos, defendendo que
grandes quantidades de dados, observados em outra escala e durante um certo perí-
odo de tempo podem surpreender com conclusões que não seriam deduzidas a partir
de outros formatos de apresentação destes dados. Em sua apresentação no TED Talk
de 2006, tendências globais em saúde e economia ganharam vida, e podemos perce-
ber visualmente considerações que não eram perceptíveis de outra maneira.

Suzete VENTURELLI e Marcilon Almeira de Melo acreditam que foi “a partir dos anos
2000 que ocorreu uma explosão de interesse pelas técnicas e pela estética visual das vi-
sualizações de dados. [...]exposições como a Design and the Elastic Mind realizada em
2008 pelo Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA) e a exposição Data Dynamics
Exhibit realizada pelo Whitney Museum of American Art em 2001” (VENTURELLI, 2019,
p. 205) exemplificam o argumento. Portanto, diferentes áreas, biológicas, humanas,

número 2, 2001. E na tese de doutorado de Luis Carli, FAU-USP, de 2015, Processos de Design de Visu-
alização de Dados, in https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16134/tde-08032016-165055/
publico/luiscarli.pdf (acessado em agosto de 2019).

126
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

científicas e artísticas começam a utilizar de recursos e técnicas de visualização de


dados a partir de seus próprios interesses.

Outra referência importante nesse assunto é o Projeto Visual Complexity de Manuel


LIMA. A experiência ainda se encontra no site http://www.visualcomplexity.com/vc/
(acessado em setembro de 2019), mas seu conteúdo teórico foi transformado em li-
vro homônimo (LIMA, 2011). Este projeto traz um compêndio de trabalhos na rede
internet que tratam de visualização de dados. Os endereços de sites estão cataloga-
dos nas categorias: Art (74); Biology (60); Business Networks (50); Computer Systems (39);
Food Webs (16); Internet (35); Knowledge Networks (141); Multi-Domain Representation
(70); Music (47); Others (77); Pattern Recognition (53); Political Networks (34); Semantic
Networks (44); Social Networks (135); Transportation Networks (70); World Wide Web (55).

Percebe-se, pelas categorias listadas a abrangência e dificuldade de catalogação.


Apenas exemplificando, na categoria Pattern Recognition, podemos encontrar o tra-
balho The Football Drawings (1982), de Susken Rosenthal (in http://tinyurl.com/2a-
v79h - acessado em setembro de 2019) que mostra traços (desenhos) dos movimen-
tos da bola durante um jogo de futebol visto de cima. Esses traços acabam gerando
padrões emergentes e nos fazem compreender certas ações que não eram percep-
tíveis. Cada trabalho é um registro de um jogo específico como na partida final da
Copa do Mundo da FIFA 1986 contra a Alemanha. Como num esboço sismográfico,
os movimentos da bola são traçados simultaneamente à ação no campo: movimen-
tos individuais, cantos e objetivos podem ser reconhecidos, bem como a estratégia
e a relação de força entre as equipes competidoras. O resultado é um embaralhado
de linhas, cuja densidade aumenta com a energia do jogo. Isso acontece em um
conceito estrito de tempo (90 minutos) e forma (o campo de futebol) - conforme
consta no site oficial do trabalho. Apesar de listado na categoria Pattern Recognition,
este trabalho repercute em diferentes áreas, que, conforme o site, “at the same time
these graphic series are a work of abstract art”. O curioso, e até mesmo incomum, é
que os desenhos são feitos a mão, seguindo o movimento da bola durante a partida.
Ou seja, independe de uma tecnologia sofisticada e digital o pensamento para se
pensar a estruturação da visualização de dados.

Na categoria art, um dos 74 projetos catalogados é o Celestial Mechanics (2005), dos


autores Scott Hessels, Gabriel Dunne (in http://gabrieldunne.com/celestialmechani-
cs/ acessado em set 2019). A Celestial Mechanics é uma obra baseada na visualização
estatística, de dados e protocolos de tecnologias aéreas feitas pelo homem - uma
exibição gráfica dos caminhos e funções das máquinas pairando, voando e flutuan-
do em nosso planeta. O céu está cheio de aeronaves que transportam pessoas de
um lugar para outro, realizam tarefas utilitárias, ajudam nas comunicações, promo-
vem missões militares ou vagam acima de nós como escombros. Esta obra combina
ciência, exibição estatística e arte contemporânea, apresentando padrões e compor-
tamentos mecânicos em uma experiência visual dinâmica.

127
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

VENTURELLI e Melo (2019) indicam que o interesse artístico no uso de Data Art ou a
visualização de dados acabam gerando

fantasia, ilusão e ficção, assim como também podem mobilizar e criar consciência crítica sobre
as questões políticas e éticas inerentes a forma como os dados são capturados, analisados e uti-
lizados. Jer Thorp (2012), artista e pesquisador de data art, autor de livros como Beautiful Visuali-
sation e Data Flow 2, diz que é a abordagem acrítica das características individuais dos datasets
que apresenta uma das grandes falhas dos projetos que utilizam dados como material artístico”
(VENTURELLI, 2019, p.206).

O trabalho Zoom Pavilion (2015-16) de Rafael Lozano-Hammer (http://www.lozano-


-hemmer.com/zoom_pavilion.php, acessado em setembro de 2019) não é tradicio-
nalmente um trabalho de visualização de dados, mas traz um ponto de vista interes-
sante sobre como estruturar e apresentar dados complexos. O Zoom Pavilion é uma
instalação interativa que consiste em projeção imersiva em três paredes, alimentada
por doze sistemas de vigilância informatizados e treinados ao público. A peça uti-
liza algoritmos de reconhecimento facial para detectar a presença de pessoas no
ambiente e registrar sua relação espacial dentro do espaço da exposição. Conforme
descrição no site da obra, Zoom Pavilion é uma plataforma experimental de auto-re-
presentação e um microscópio gigante para conectar o público um ao outro e ras-
trear seus encontros e performances. Toda a instalação encontra-se em movimento
de câmera, destacando diferentes participantes e criando mudanças com base na
amplificação e rastreamento ópticos.

Este trabalho, conforme consta em sua documentação, enfatiza a construção tem-


porária do espaço conectivo em relação às tecnologias predatórias de detecção e
controle. E, apesar de não ser explicitamente um trabalho de visualização de da-
dos, apresenta visualmente dados que outrora não eram estruturados (as imagens
de câmeras) e que agora são organizados logica e sistematicamente, por atributos
que podem ser selecionados atendendo a valores definidos, utilizando algoritmos
sofisticados de detecção e reconhecimento facial, projeções mapeadas interativas,
tracking, banco de dados, que nos fazem ver informações complexas que não seriam
perceptíveis sem o uso destes modelos.

Primeiras Análises
Os exemplos citados atingem apenas algumas das características indicadas por FEW
(2013), apresentadas no início deste artigo. Retomando suas ideias, para atingirmos
melhores resultados através da visualização de dados temos que: indicar claramente
como os valores se relacionam uns com os outros; representar as quantidades com
precisão; tornar fácil comparar as quantidades; facilitar a visualização da ordem de
classificação dos valores; e, tornar óbvio como as pessoas devem usar as informa-
ções, sem a necessidade de reforços e outros argumentos. Entretanto, temos que

128
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

ter em mente que estas são condições para que a comunicação da informação seja
eficiente. Como vimos, técnicas de visualização de dados podem ser também utili-
zadas como um poderoso instrumento para agrupamentos e relacionamentos de
informações na geração de resultados criativos, experiências sensíveis e modelos
perceptivos não-convencionais.

Nos interessa também o que KHAN & SHAH (2011, p.3) chamaram de Metaphor vi-
sualization (citado acima). A proposta para Visualização de metáforas destes auto-
res seria aquela que organiza e estrutura informações graficamente, transmitindo
o substrato da informação através da característica principal da metáfora que é uti-
lizada, por exemplo, o uso de modelo em árvore para estruturar um fluxograma de
informação. Mas este é um uso restrito das metáforas, como observaremos a seguir.

Anteriormente já desenvolvemos uma pesquisa sobre metáforas (LAURENTIZ et al.,


2005). Naquele momento, apresentamos alguns autores que serão brevemente re-
lembrados para auxiliar nosso argumento. Para Modesto Carone Neto, por exemplo,
metáfora é uma “junção de elementos incongruentes que aponta para um terceiro ter-
mo e que desse se diferencia” (CARONE Netto, 1974:15); e, mais importante, o fenôme-
no relacional produzido por uma metáfora parece nomear algo que “se situa além da
experiência verbalizável” (idem, idem). Em outras palavras, uma expressão metafórica
é capaz de produzir um efeito que não seria capaz de ter sido dito de outra forma
(idem, idem). Ora, esta é uma característica, como vimos, que deve acompanhar
toda e qualquer forma de visualização de dados. Portanto, tendemos a considerar
que há muito de metafórico nas estratégias de visualização de dados.

Já para Paul RICOEUR (1992:145), o processo metafórico é regido tanto pela cognição,
quanto pela imaginação e emoção, e isto significa dizer que não estaremos apenas
substituindo uma coisa por outra, provocaremos uma tensão pelo distanciamento e
suspensão da referência sígnica de um fato ou objeto, e a sua proximidade com ou-
tro(s) fato(s) ou objeto(s). Assim, uma metáfora é inovadora, conclui RICCOEUR. Há um
paralelismo criado pelo apagamento do sentido literal e que fornecerá novos referen-
ciais ao signo. Portanto, apagamentos, suspensões, distâncias, desvios, proximidades,
conceitos gerais e aspectos singulares fornecerão modelos gerados por mediações
intersignos. “A possibilidade ou compreensão da construção metafórica requer, assim
sendo, uma habilidade intelectual peculiar e um tanto sofisticada (... ): uma habilidade de
entreter dois pontos de vista diferentes ao mesmo tempo” (RICOUER,1992:155).

O texto de Max BLACK, More about Metaphor (1993), inicia-se apresentando sua te-
oria de interação, sugerindo relações das metáforas com seus fundamentos de se-
melhança e analogias, na esperança de aproximar a conexão entre os conceitos de
metáforas e modelos. E há ainda fatores culturais que fortemente direcionam a cria-
ção e interpretação de metáforas além das suas características literais e referenciais.

129
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Já podemos perceber que processos de comparação, por semelhança e analogias,


paralelismos, são ações de emparelhamentos condicionais de informações, criando
relações causais antes distantes, e que de alguma forma devem ser consideradas
na visualização de dados. Neste artigo, nos concentraremos num tipo de metáfora
especial: a poética e criativa.

I-FLUX

Fig. 1: Detalhe da obra I-FLUX, da 6ª bienal internacional Emoção art.ficial, exposição Instituto
Itaúcultural em São Paulo, 2012.

O trabalho I-FLUX, de coautoria de Silvia Laurentiz e Martha Gabriel, com som desen-
volvido por Fernando Iazzetta, esteve exposto em 2012 no Instituto Itaúcultural em
São Paulo, na 6ª bienal internacional Emoção art.ficial (https://www.itaucultural.org.
br/iflux-silvia-laurentiz-martha-gabriel-e-som-de-fernando-iazzetta-emocao-art-fi-
cial-6-0, acesso em set de 2019).

I-FLUX (LAURENTIZ, 2013, 2013b) era uma obra sistêmica, interativa e dinâmica, que
trabalhava com fluxos de informações de diferentes naturezas. O coração do sistema
esteve localizado em uma instalação, que agia como o “hub central” (dispositivo que
interligava computadores de uma rede local), concentrando as interações dos fluxos
do ambiente em que esteve abrigado. O sistema evoluía por meio de estados locais
e do diálogo e transmutações das informações do lugar em que se encontrava (no
caso, o prédio do Itaú Cultural, SP, Brasil). Este fornecia os dados de fluxos para a ins-
talação: redes internas, rede elétrica, rede hidráulica, entradas e saídas de pessoas,
diferentes fluxos de informações que movimentavam diariamente a vida daquele
edifício. Cada tipo de dado era representado por um padrão, que era visualizado
como uma constante chuva projetada na parede da instalação e agia sobre uma
“criatura” (Fig. 1), uma espécie de regulador do ecossistema. Havia chuvas de diferen-
tes cores, cada uma representando um tipo de fluxo de dados.

O aumento e diminuição do fluxo da chuva modificava o nível do “tanque” onde se


encontrava a criatura, através do modelo representacional criado. Um tanque com

130
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

maior quantidade de chuva significava que a criatura teria maior mobilidade e trân-
sito; enquanto que, em contrapartida, um tanque com menor nível fazia a criatura ter
menor mobilidade, e, portanto, alterava seu comportamento devido a esta situação
de compressão/contenção de espaço. A criatura com espaço reduzido modificava
seus movimentos e sons, e de maneira oposta, também alterava seus movimentos e
sons, estando num tanque transbordando de informação.

A proposta do trabalho I-FLUX foi aplicar um conceito científico de coleta, armazena-


mento e distribuição de dados de diferentes naturezas, na criação de novas técnicas de
visualização, a partir de uma aproximação poética a estes dados. A criatura imersa se mo-
vimentava sugerindo/simulando que ‘estaria nadando’ no ambiente, e relacionava esta
representação com os dados colhidos do edifício. Numa relação metafórica, criava-se
relações entre coisas distantes até então, - [criatura marinha nadando em ambiente líqui-
do] e [dados de fluxos de um edifício], com a intenção de criar análogos por associação
e paralelismos. E quando este ambiente modificava sua área por acréscimo, redução ou
dissipação de dados, e esta transformação no espaço reduzia ou aumentava a área de
movimentação da criatura marinha, alterando seu comportamento quando encontrava
estados limites; na verdade, este processo de abstração ficcional, esta narrativa, acabava
gerando uma forma nova de visualizar dados. Estes dados, entretanto, eram adquiridos
pelo sistema e mantinham uma conexão direta com suas fontes. Pois, um medidor de
temperatura, por exemplo, (e temperatura foi uma das informações utilizadas no traba-
lho) recebia os dados analógicos de um sensor de temperatura que convertia este sinal
em graus Celsius. Portanto, os dados antes de serem convertidos em sinais digitais, eram
valores contínuos capturados de uma fonte também de dados contínuos (os fenômenos
que nos rodeiam são quase sempre contínuos) e preservam-se algumas de suas caracte-
rísticas por esta conexão que lhe estabelecia seu estatuto representacional.

Há uma transformação do sinal analógico para o digital e a conversão trazia mudan-


ças mais ou menos significativas também. Mas é importante ressaltar que o sinal ori-
ginal trazia sintomas, índices, dos atributos daquele edifício, e que não eram sinais
arbitrários. Mas apesar disso, o trabalho criava uma narrativa própria, fornecendo
uma visão poética dos fluxos daquele edifício. Evidente que se criava uma relação
causal entre dados e criatura, mas a relação semântica era formada quando esta re-
ferência se estabelecia.

Em seu estatuto plástico, a experiência causava um efeito estético, dinamico e visual


em si, mas, e além disso, aqueles que conseguiam decifrar o código (chuva-tanque-
-criatura versus dados-fluxos-edifício)– neste caso aplicados arbitrariamente (pois
não havia relação imediata entre criatura marinha e edifício)– eram capazes de inter-
pretar o estado em que se encontrava aquele edifício, naquele momento.

Existem várias taxonomias de visualização atualmente, e I-Flux questionava estas ta-


xonomias quando apresentava uma solução híbrida, uma solução poética. Reiterando

131
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

o que já dissemos, categorizações caducam com o tempo, e precisamos continua-


mente atualizar nossos sistemas de filtragem, seleção, classificação e restrição de in-
formação. Soluções inovadoras e criativas mantém grau de abertura suficiente para
revisão dos modelos instituídos.

R-SCUTI

Fig.2: Montagem da instalação R-SCUTI – objeto e adesivos em parede – no Espaço das Artes, Cid.
Universitária, USP, 2019.

O trabalho R-SCUTI – quando as estrelas tocam (http://www2.eca.usp.br/realidades/


pt/r-scuti/), do Grupo Realidades5, ECA-USP, 2018-2019, foi apresentado pela primei-
ra vez no Espaço das Artes, Cid. Universitária – USP. R-SCUTI é uma instalação que
utiliza a cimática como forma de visualizar dados astronômicos por meio do som. A
curva de luz (variação do brilho ao longo do tempo) da estrela R Scuti, disponível na
base de dados da AAVSO (American Association of Variable Star Observers - https://
www.aavso.org/ acessado em setembro de 2019), é utilizada para gerar frequências
sonoras. Os sons são reproduzidos por um alto falante em uma estrutura que contém

5 Membros do Grupo autores do trabalho: Beatriz Murakami, Bruna Mayer, Cássia Aranha, Clayton
Policarpo, Dario Vargas, Loren Bergantini, Marcus Bastos, Sergio Venancio, Silvia Laurentiz. Rodrigo
G. Vieira foi o astrônomo colaborador do trabalho.

132
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

água, criando padrões visuais a partir desta vibração. Uma lâmpada reflete no teto
da sala as ondas produzidas na água.

R Scuti, localizada na constelação de Scutum, é uma estrela supergigante amarela


que apresenta variabilidade em seu brilho devido a pulsações estelares. A AAVSO
disponibiliza mais de 110.000 observações desta estrela, obtidas ao longo de mais
de um século. A memória da variação luminosa da estrela é transposta em sons.
Cria-se um ciclo de dados: a memória do toque luminoso da estrela nos telescópios
é transformada em dados numéricos, códigos computacionais os traduzem em fre-
quências sonoras que tocam na água, e a fonte luminosa reflete a superfície aquosa,
retornando padrões visuais para o céu novamente (representado pela projeção no
teto do ambiente expositivo, Fig. 2).

Um aspecto interessante é a relação criada entre frequência luminosa e sonora, e as di-


versas traduções intersemióticas entre dados de diferentes modalidades perceptivas.
Isto em si já traduz diferentes aspectos representacionais, intersignos e entre modali-
dades perceptivas. Outro ponto é que o objeto construído lembra, por sua aparência,
um instrumento antigo de astronomia. Foi construído especialmente para este traba-
lho e com a intenção de trazer à tona a sensação de se estar diante de um aparelho de
medição e reflexão do sol e estrelas. Esta carga sensorial, simbólica e cultural, cumpre
com o papel de criar a ponte de relacionamento entre arte e ciência daqueles dados.

Além disso, há uma inversão instigante em alguns momentos do processo da visuali-


zação. Por conta da qualidade das frequências sonoras utilizadas, certos trechos são
inaudíveis, embora provoquem muita ondulação na água, e portanto, maior altera-
ção da imagem projetada no teto; e em outros momentos, ao contrário, escutamos
nitidamente o som, mas este é incapaz de vibrar a água com muita potência, e por-
tanto, quase nenhuma mudança é provocada na imagem projetada.

Considerações Finais
1. A visualização de dados é um desafio. Atualmente temos vários dados de dife-
rentes naturezas, dinâmicos e em fluxos contínuos, e tratar a forma como visualiza-
remos/interpretaremos estes tipos de dados, tem sido foco de algumas pesquisas,
tanto na área das ciências exatas como na das humanidades. Com as obras apresen-
tadas neste artigo podemos perceber que existem diferentes atuações para a visu-
alização de dados. Numa visualização poética de dados, como no caso do trabalho
I-FLUX foi criada uma narrativa para uma situação que se alguém souber o código
que está por detrás será capaz de traduzir e interpretar as dinâmicas daquele edifí-
cio, e por outro lado, a narrativa em si carrega qualidades sensíveis suficientes para
causar uma experiencia estética. Os trabalhos Celestial Mechanics e R-SCUTI mesclam
formas de conhecimento, fortalecendo relações entre áreas e intersignos, flagrando
seu campo interdisciplinar.

133
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

2. O envolvimento de estratégias de programação, percepção visual, design e esta-


tística tem sido bastante explorado, mas o trabalho Football Drawings demonstra
claramente que independe de tecnologia, ou mesmo de técnica específica, o de-
senvolvimento do pensamento para a visualização de dados. O que se estabelece
é uma estratégia para visualizar muitos dados, observados em certo período, e que
organizados sistematicamente nos fazem perceber algo que não tínhamos acesso
de outra forma.

3. Zonas de interação. Não estamos apenas tratando de interfaces capazes de intera-


ção entre dados, informações, conceitos e metáforas. No caso do trabalho I-FLUX, po-
de-se perceber que os dados assumem diferentes zonas de interação: a) Uma zona
local, onde a câmera captura os movimentos da sala; e um microfone capta sons e
ruídos do local naquele momento. A variação destes dados colhidos do ambiente
da instalação leva a alterações no comportamento da criatura; b) Uma zona de inte-
ração com a estrutura do edifício onde está localizada a instalação. O edifício trans-
mite seus dados e fluxos, e a variação de temperatura, potência, temperatura do ar
externo, umidade, modificam a quantidade de dados no tanque da criatura, e este,
por sua vez, altera o comportamento da criatura; e c) Uma interação global, através
do Twitter, e também da rede interna de dados do edifício. Essas três camadas, essas
três zonas de alguma maneira se organizam, interagem e sintetizam a visualização
de dados da obra I-FLUX.

4. Estruturação de dados. Até pouco tempo atrás uma câmera de vídeo não poderia
ser utilizada da maneira que a utilizamos hoje. A imagem de uma câmera de vídeo
digital pode agir como sensor para entrada de dados, como demonstrado no traba-
lho Zoom Pavillon de Rafael Lozano-Hemmer. Das imagens das câmeras podemos
extrair dados parametrizáveis, e de alguma maneira conseguir inferir outras ações
e consequências para esses dados. Foi o caso também da obra I-FLUX, onde uma
câmera captava os movimentos das pessoas na sala, e fazia com que a variação de
movimento afetasse o comportamento da criatura no trabalho. Consequentemente,
as ações da criatura atingiam e afetavam as ações locais das pessoas e assim retroa-
limentavam o sistema. A área de visualização computacional está bem desenvolvida
atualmente. Já podemos reconhecer objetos, número de pessoas, padrões, cores a
partir de imagens capturadas por câmeras. No futuro, poderemos, além de rotula-
dores, somadas as técnicas de aprendizagem de máquina, reconhecer conteúdos
e contextos nas imagens, e em uma tomada de câmera de vigilância urbana, por
exemplo, poderemos distinguir uma manifestação, de uma festa ou um congestio-
namento de carros. A obra Zoom Pavillon alerta, todavia, para os problemas advin-
dos da detecção e controle.

5. Emparelhamento condicional. Qual técnica de agrupamento e relacionamentos


de informação serão propostos na geração de modelos e entre modelos para a visu-
alização de dados futuros? A técnica de classificação, por exemplo, muito utilizada

134
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

na
DataInteligência Artificial, agrupa
Flows:Visualization coisas que são semelhantes
andSonificationSound por parâmetros
Harmonies: Homeostasis que
satisfazem algum critério de seleção, de norma ou lei. Processos de discriminação
(muio usado em Machine Learning do tipo GANs), impõem restrições a partir de cer-
tas condições e circunstâncias. E, em se tratando de arte, como relacionar diferentes
estímulos sensíveis, emparelhar emoções e sentimentos, classificar a experiencia es-
tética? R-SCUTI e I-FLUX trouxeram um tipo de relacionamento poético entre dados
de diferentes naturezas. As relações proporcionadas por estes trabalhos, entre sinais
e dados de diferentes áreas de conhecimento, acabam se relacionando ao que vimos
sobre a geração de metáforas criativas ao criar narrativas, e ao simular um ciclo de
retroalimentação de dados (especificamente como no trabalho R-SCUTI). E não dá
para verbalizar a experiencia produzida, pois como vimos anteriormente, o efeito
causado por uma metáfora é indizível, e tem que ser experienciado tacitamente.

6. Aprendizado de Máquina (Machine Learning - ML) é um subcampo da ciência da


computação da inteligência artificial. É um método de análise de dados que auto-
matiza a construção de modelos analíticos. A visualização de dados, como vimos,
é mais do que apresentação de informações em formato imagético, metafórico,
diagramático ou gráfico que possibilita compreender conceitos ou identificar no-
vos padrões, podendo ser inclusive interativa. A tendência atualmente é contarmos
com uma mistura entre tecnologias e processos, ou seja, algoritmos de aprendizado
de máquina, filtragem de informações e visualização de dados estariam todos num
mesmo contexto. Assim sendo, as considerações apresentadas neste artigo devem
ser consideradas dentro deste grande universo da inteligência artificial.

Referências
BLACK, Max (1993), More about Metaphor , in ORTONI, Andrew. Metaphor and Thou-
ght, Cambridge:University Press.

CARONE NETTO, Modesto (1974). Metáfora e Montagem, São Paulo:ed. Perspectiva,


coleção debates.

FEW, S. (2013). 35. Data Visualization for Human Perception, in Soegaard, Mads &
Friis Dam, Rikke. The Encyclopedia of Human-Computer Interaction, 2nd Ed. 2013 (In
https://www.interaction-design.org/literature/book/the-encyclopedia-of-human-
-computer-interaction-2nd-ed/data-visualization-for-human-perception (acessado
em setembro de 2019).

ROSLING, H. (2006). The best stats you’ve ever seen, TED talks, in https://www.ted.
com/talks/hans_rosling_shows_the_best_stats_you_ve_ever_seen (acessado em
setembro de 2019).

LIMA, M (s/). Visual Complexity, in http://www.visualcomplexity.com/vc/ (acessado


em setembro de 2019)

135
Fluxo de Dados: Visualização
e Sonificação #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

LIMA, M (2011). Visual Complexity – Mapping Patterns of Information, New York:


Princeton Architectural Press.

LAURENTIZ, S. (2013). I-flux-um sistema poético interativo e as relações dinâ-


micas entre suas partes, 11º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia, #12art,
2013, in https://art.medialab.ufg.br/up/779/o/i-flux_Laurentiz_20132.pdf (acessado
em setembro 2019).

LAURENTIZ, S. (2013b). I-flux- I-FLUX – Uma visualização poética de dados. 22º


Encontro ANPAP, in in http://www.anpap.org.br/anais/2013/ANAIS/simposios/09/
Silvia%20Laurentiz.pdf (acessado em setembro 2019).

KHAN, M. & SHAH, S. (2011). Data and Information Visualization Methods, and In-
teractive Mechanisms: A Survey. International Journal of Computer Applications.
34. 1-14. In https://www.researchgate.net/publication/264623537 (acessado em se-
tembro de 2019).

RICOEUR, Paul (1992). O Processo Metafórico como cognição, imaginação e senti-


mento , in SACKS, Sheldon (org.). Da Metáfora. São Paulo:Educ, pgs 145-160.

SEMIDÃO, Rafael Aparecido Moron (2014). Dados, Informação e Conhecimento


enquanto elementos de compreensão do universo conceitual da ciência da infor-
mação: contribuições teóricas, Dissertação de Mestrado em Ciência da Informação
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Univer-
sidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). In https://www.marilia.
unesp.br/Home/Pos-Graduacao/CienciadaInformacao/Dissertacoes/semidao_ram_
me_mar.pdf (acessado em setembro de 2019).

SHNEIDERMAN, B. (1996). The Eyes Have It: A Task by Data Type Taxonomy for Infor-
mation Visualizations, Proceedings 1996 IEEE Symposium on Visual Languages, IEEE,
p. 336-343. DOI: https://doi.org/10.1109/VL.1996.545307

VENTURELLI, S., & MELO, M. (2019). O visível do invisível. ARS (São Paulo), 17(35), 203
- 214. https://doi.org/10.11606/issn.2178-0447.ars.2019.152451

136
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Harmonias Sonoras:
Homeostasia
Sound Harmonies: Homeostasis

137
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Ianni Luna1
sonoridades emergentes: performances sonoras e a
estética do ruído
emergent sonorities: sound performances and noise aesthetics

Resumo
Efeitos de sentido gerados a partir de trabalhos de arte sonora em circuitos con-
temporâneos se mostram potencialidades para proposições em percepção e
fruição estéticas. O presente texto busca apontar para uma dimensão poética
dos fenômenos sonoros através da análise de projetos e artistas específicos, atu-
ando nos interstícios de uma estética do ruído, em processos experimentais de
interação com diversas tecnologias sonoras. A espacialidade, que se evidencia
acusticamente ao ocupar lugares e direções; se coaduna com a presença, carac-
terística de ações poéticas situadas no âmbito da performance. Por meio do con-
ceito de emergência, o texto busca realizar aberturas semânticas que enfatizam
aspectos relacionais entre humano, natureza e máquina, a partir de uma pers-
pectiva dos desdobramentos entre arte e ciência. Nesse ínterim, a teria geral
dos sistemas complexos elucida práticas de co-criação entre artistas e aparatos,
o que vem a fornecer elementos que apresentam o som como aglutinador de
processos eminentemente estéticos.
Palavras-chave: arte sonora, performance, arte e tecnologia, emergência, barulho.

Abstract
Effects of meaning generated from works of sound art in contemporary circuits
show potentialities for propositions in aesthetic perception and fruition. The present
text seeks to point to a poetic dimension of sound phenomena through the analysis
of specific projects and artists, acting in the interstices of a noise aesthetics, in exper-
imental processes of interaction with different sound technologies. Spatiality, which
shows itself acoustically when occupying places and directions; joins presence, char-
acteristic of poetic actions within the scope of performance. Through the concept of
emergency, the text seeks semantic openings that emphasize relational aspects be-
tween human, nature and machine, from a perspective of the unfoldings between

1 Ianni Luna é doutoranda em Arte e Tecnologia pela Universidade de Brasília (UnB). Sua pesquisa
atualmente se concentra na estetização dos fenômenos sonoros por meio do arcabouço teórico
gerado a partir dos desdobramentos da arte sonora na segunda metade do século XX. Como artista
desenvolve trabalhos em instalação, vídeo e performance. Contato: 141277@gmail.com.

138
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

art and science. In this regard, the general theory of complex systems elucidates
practices of co-creation between artists and apparatuses, which comes to provide
elements that present the sound as agglutinator of eminently aesthetic processes.
Key-Words: sound art, performance, art and technology, emergence, noise.
Frente a possíveis esgotamentos dos chamados regimes de visualidade, seja em fun-
ção do excesso, da superabundância de imagens veiculadas; seja em função do con-
teúdo que essas formas adquirem, ocorre na contemporaneidade uma abertura em
direção ao campo expandido da imagem que mobiliza e gera realidades perceptuais
de outras ordens. Neste artigo, a ênfase se dará no senso da audição e a pletora de
manifestações de caráter teórico e poético que as artes sonoras fizeram emergir na
segunda metade do século XX.

Os espaços fronteiriços, de mescla dos meios, que caracterizam os circuitos de arte


contemporânea, tornam significativos procedimentos que apresentam o som como
aglutinador de processos estéticos, em especial por sua característica englobante.
“O som me envolve de perto no que vejo; puxa o visto para mim enquanto me agarra
pelos ouvidos” (VOEGELIN, 2010:11) 2. O aspecto invisível, impalpável da materialida-
de peculiar do fenômeno sonoro adquire uma relevância conceitual importante. A
experiência auditiva se dá enquanto situação de potência poética em redor da qual
as subjetividades constroem e compartilham significados. Há um caráter construtivo
da situação sonora, que constitui-se como via sensória eminentemente produtiva,
inclusiva. Os fenômenos sonoros abarcam as circunstâncias do contexto de sua pró-
pria fruição. Isso traz consequências poéticas significativas e anuncia soluções estéti-
cas pertinentes às instâncias corpóreas a partir das quais tais experiências adquirem
significado no sistema de arte.

Pois

ao contrário de outros órgãos dos sentidos, os ouvidos são expostos e vulneráveis. Os olhos po-
dem ser fechados, se quisermos; os ouvidos não, estão sempre abertos. Os olhos podem focalizar
e apontar nossa vontade, enquanto os ouvidos captam todos os sons do horizonte acústico, em
todas as direções (SCHAFER, 2011:55).

A experiência sônica exerce seu fascínio na medida de seu poder de infiltrar-se, de ser
incontrolável, irresistível, irrestrita. Nas palavras do artista e teórico da arte Brandon
Labelle: “O som é intrinsecamente e inegavelmente relacional: emana, propaga, comu-
nica, vibra e agita; deixa um corpo e entra nos outros; une e atordoa, harmoniza e trau-

2 Do original “Sound involves me closely-in what I see; it pulls the seen towards me as it grasps me
by my ears” (VOEGELIN, 2010:11).

139
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

matiza; manda o corpo se mover, a mente sonhar, o ar oscilar. Convenientemente esca-


pa a definições, ao mesmo tempo que possui um efeito profundo” (LABELLE, 2015: ix)3.

Ocorre o delineamento de uma concepção do som que passa a inscrevê-lo no pen-


samento expográfico a partir do movimento de sua inserção em circuitos mais ou
menos institucionais, em sua maioria, não comerciais, de arte. Esse cenário acaba
por legitimar esses experimentos e práticas, o que gera, a seu tempo, novas metodo-
logias de exibição, armazenamento e distribuição desse material, em conformação
a demandas específicas. “Enquanto os objetos visuais podem ocupar um espaço
controlado e delimitado, os objetos sonoros invadem o espaço, espalham-se por
ambientes adjacentes e interferem nas obras que habitam seu entorno” (CAMPESA-
TO, 2007:65). A partir de uma espécie de deslocamento do predomínio da visão em
direção a outros sentidos e realidades sensórias; experimentações com o som nas ar-
tes se voltam para essa substancialidade sem forma da matéria poética, produzindo
sentidos através de proposições estéticas que ecoam o legado do pensamento da
arte conceitual acerca da “desmaterialização da arte” nos anos 1960 (LIPPARD, 2013).

Tornar musicais os sons em geral, entrecruzar elementos sonoros de maneira que


adquiram uma tessitura, ocupando espaços. A arte sonora vai atuar nos meandros
dessa (in)visibilidade, tornando estéticas as proposições que instituem o evento
acústico como sendo, também, um evento intersubjetivo. O som como fenômeno
que opera, de maneiras imediatas, por modos de espacialidade de um agora que
percorre pontos, entrelaça sensações, gera ambientes.

Presenciamos assim a “dinâmica relacional” do som (LABELLE, 2015), que se daria abar-
cando as tensões inerentes ao acontecimento estético sonoro, que se justifica em
termos do Outro em sentido amplo. Para LaBelle, haveria uma tendência do som a
tornar-se público, expresso em sua capacidade de incutir vínculos, fomentar a inven-
ção cultural e definir espaços ao mesmo tempo em que é flexível. O som é uma ‘coisa’
que se move através de sua própria produção. Seu tempo e espaço são simultâneos e
complexos. Funcionam em camadas. Seus elementos nunca se encontram ao lado um
do outro, e sim, produzem dimensões potencialmente, poeticamente infinitas.

Som em Emergência
A teoria geral dos sistemas (TGS), busca desenvolver princípios unificadores que
atravessam verticalmente os universos particulares das diversas ciências, com o ob-
jetivo de instaurar processos de conhecimento mais abrangentes e interdisciplinares.

3 Do original: “Sound is intrinsically and unignorably relational: it emanates, propagates, communi-


cates, vibrates, and agitates; it leaves a body and enters others; it binds and unhinges, harmonizes
and traumatizes; it sends the body moving, the mind dreaming, the air oscillating. It seemingly elu-
des definition, while having profound effect” (LABELLE, 2015: ix).

140
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Tendo sido amplamente utilizada em diferentes setores de nossa sociedade, desde


a administração de empresas até a cibernética; a teoria dos sistemas reconhece a
necessidade de se observar os fenômenos a partir de um entendimento holístico
que integra as diversas partes de sua estrutura e funcionamento de maneira a reco-
nhecer padrões em escalas de diversas magnitudes.

Um sistema constitui-se de elementos interdependentes entre si, que interagem e


transformam-se mutuamente. Há sistemas fechados e abertos, sendo, estes últimos,
foco de nosso interesse na medida em que representam o que experienciamos. Os
sistemas abertos são sistemas complexos compostos de vários elementos que
interagem entre si, além de sofrerem interações com o ambiente onde estão inseridos.
Tais interações – e não a simples soma de suas partes – é que definirão as caraterís-
ticas dos sistemas definidos, gerando informações imprevistas e específicas ao seu
funcionamento global. (BERTALANFFY, 1975). Essa abordagem difere em muito das
metodologias de pesquisa pautadas nos princípios analíticos cartesianos. O conjun-
to geral de um sistema complexo abarca suas partes, e vai além, dinamizando pro-
cessos causais e sofisticando a experiência do todo fenomênico. Nesta perspectiva o
todo é mais do que a soma das partes.

Há um elemento fundamental que interessa às artes e que diz respeito à habilidade


dos sistemas complexos de gerar recorrências ao longo do tempo. Essa habilidade é
a emergência. A emergência é a capacidade que tem um sistema complexo de fazer
emergir comportamentos padrão a partir de uma grande quantidade de interações
pequenas e muito simples (GALANTER, 2004). Qualquer sistema constituído por par-
tes que apresentem algum grau de complexidade está propenso à emergência. São
regras simples criando resultados complexos. Como um acontecimento, a emergên-
cia surge e apresenta algo que não estava previsto a partir do que já sabíamos. É algo
com o que nos deparamos, uma surpresa, uma revelação.

O exemplo clássico é a colônia de formigas, um organismo que possui comportamentos clara-


mente definidos, lógicos e coerentes observáveis em duas escalas diferentes. Quando estudamos
os padrões de cada formiga, vemos que cada uma tem necessidades, habilidades e respostas de
feromônio que definem seu comportamento como inseto individual. Mas quando estudamos o
comportamento coletivo da colônia, vemos padrões comportamentais sofisticados; a colônia
atua como uma cidade, com fábricas, defesas e instalações de eliminação de resíduos. O que é no-
tável é o fato de que esses padrões macro não são formados por meio de um design ou intenção
central: eles não são mais do que subprodutos dos comportamentos locais auto-interessados dos
indivíduos coletivamente. Esses comportamentos, aparentemente insignificantes no nível micro,
formam um macro-organismo mais complexo quando vistos coletivamente (GALANTER, 2004:7).

Historicamente, a emergência foi objeto de investigação copiosa em áreas como a


biologia de insetos, a neurociência, a sociologia urbanística e a engenharia de sof-
tware (JOHNSON, 2003). Com relação aos processos da consciência, por exemplo

141
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

não se sabe com precisão como esse comportamento de nível mais alto aparece,
mas sabemos que “é invocado pelas interações de feedbacks locais de agentes in-
conscientes, pelo complexo sistema de adaptação que chamamos de mente huma-
na. Nenhum neurônio individual é senciente e, de alguma forma, a união de bilhões
de neurônios cria a autoconsciência” (JOHNSON, 2003:151).

A partir de intrincadas relações que estabelece com diferentes espectros da tecno-


logia, o conceito de arte vem abrangendo o entendimento da teoria dos sistemas
enquanto elemento precipitador de novas estéticas. Enquanto fenômeno que atra-
vessa essas diferentes instâncias do saber a emergência opera como poética a partir
da qual proposições artísticas produzem efeitos discursivos.

Esse espaço intermediário e indefinido de parcial ordem e parcial desordem propicia-


dos pela emergência desde um ponto de vista da questão da autoria da obra de arte,
apresenta problemáticas importantes. No caso de experimentos em arte sonora, o sis-
tema instaurado pelo/a artista recebe mais ou menos determinações de início, mas, a
partir das interações estabelecidas, adquire significações próprias, em maior ou menor
grau. “Os comportamentos emergentes, assim como os jogos, vivem dentro dos limites
definidos pelas regras, mas também usam esse espaço para criar algo maior do que a
soma das partes” (JOHNSON, 2003:135). Os resultados dessas proposições investigativas
desde a morfogênese4 geram obras com forte caráter experimental que, em muitos ca-
sos, apresentam versões posteriores de si mesmas, sendo a própria modificação de seus
códigos e instruções item de ação poética dentro do curso de vida do projeto.

Nesse ínterim podemos estabelecer ressonâncias entre o que estamos chamando


de sonoridades emergentes e propostas nas quais o trabalho de arte não resulte
apenas de uma vontade pessoal, estritamente individual de composição, mas onde
qualquer som ou sua ausência, possam ser considerados musicais, contanto que se-
jam propostos enquanto tal. Um aspecto importante é a criação com a colaboração
de sistemas generativos não-humanos. O objeto e a máquina – em sentido amplo
– tendem a constituir nuances dessa estética que, no acionamento de potencialida-
des tecnológicas, gera aberturas poéticas. A emergência ocorre quando um/a artista
opta por ceder algum grau de controle a um sistema externo, e o trabalho resulta
em mais do que apenas a atuação de uma ou outra parte. São trabalhos nos quais
elementos reais ou virtuais interagem entre si, originando eventos complexos e im-
previstos pelo/a artista, expandindo os conceitos tradicionais de criação e autoria.
“Ninguém seria capaz de dizer o que aconteceria apenas olhando o conjunto ori-
ginal de regras. Você tem que fazê-lo viver antes de compreender como funciona”
(JOHNSON, 2003:123).

4 “Morfogênese é a capacidade de todas as formas de vida de desenvolverem progressivamente


corpos mais elaborados a partir de inícios incrivelmente simples” (JOHNSON, 2003:11).

142
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 1: Alvin Lucier, I am sitting in a room, 19695

A obra ‘I am sitting in a room’ de 1969, foi concebida como um trabalho para voz e
fita eletromagnética. Na ocasião de sua primeira performance, Alvin Lucier registra a
gravação de um texto, narrado por ele mesmo, sentado num quarto. Em seguida, re-
produz a gravação no mesmo ambiente, regravando-a. O novo material é então repro-
duzido e novamente regravado, diversas vezes, até tornar-se uma massa sonora densa
e sermos incapazes de reconhecer o texto enunciado inicialmente. Neste processo de
iteração algumas frequências sonoras são gradualmente acentuadas, sobressaindo-se
em intensidade. Essas frequências abstraem os sons específicos primeiramente gera-
dos e se transformam numa espécie de paisagem sonora, de caráter único, pois se
estabelece a partir da ressonância dos materiais particulares àquele quarto. “O som da
voz registrada vai dando lugar ao som da própria sala” (CAMPESATO, 2007: 51).

É um trabalho sobre os processos mais elementares do ato de gravar, da captura


de um corpo sonoro e sua manipulação. O espaço passa a ser o ponto central da
obra, pois se revela a partir das gravações, como quando uma imagem fotográfica
se revela quimicamente. O gesto do artista, seu primeiro texto falado, se dissolve
no tempo para dar lugar a um som-paisagem, uma atmosfera. “I am sitting in a rom”
inspirou grande parte do público interessado em artes experimentais e desde seu
lançamento se tornou uma referência para artistas que trabalham o som nas artes. A
performance do mesmo texto proferido por Lucier já foi feita por diversos/as artistas
em diferentes quartos ao redor do mundo, até o ponto de se tornar uma espécie de
homenagem6. O próprio Lucier refez sua performance no MoMA de Nova York em
20147, reatualizando uma obra fundamental para as artes sonoras e visuais.

5 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fAxHlLK3Oyk. Acesso em Setembro, 2019.


6 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zjiX4oc8e2U. Acesso em Setembro, 2019.
7 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=v9XJWBZBzq4&t=149s. Acesso em Setembro, 2019.

143
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 2: Zimoun, Untitled, (frame de vídeo), 20158.

Na obra Untitled 240 caixas de papelão (60x20x20cm) estão dispostas na vertical


e espalhadas pela sala de paredes brancas. No interior das caixas, estão acoplados
motores de corrente contínua que fazem soar, de maneira multiplicada em função
da escala, uma massa sonora que extrapola em muito o som que cada item emite em
isolamento. A fonte sonora nos é ocultada de maneira que nos colocamos a tarefa
de imaginá-la, ou abstraí-la. A experiência sonora adquire sentidos próprios, se com-
plexificando quando associada à sua materialidade no local de sua exibição9. O som
em repetição infinita perde suas características individuais para adquirir formações
derivativas que excedem e transmutam o gesto inicial. As caixas parecem pequenos
organismos em reação, gerando, desde o elemento operacional da passagem do
tempo, o efeito conjunto de uma sonoridade agigantada, exercendo uma força es-
tética de emergência.

“Deixar os sons serem eles mesmos”


Nesse campo de pesquisa e experimentação no qual regras elementares geram
comportamentos imprevisíveis, projetos de arte sonora encontram eco na geração
de sonoridades emergentes, uma noção que se condensa na articulação do compo-
sitor e artista sonoro John Cage de “deixar que os sons sejam eles mesmos” (CAGE,
2012: s/p)10. Cage foi um compositor e artista sonoro estadunidense cujos trabalhos de
caráter experimental são propostos durante o auge do chamado expressionismo abs-
trato na pintura. Por meio de sua incorporação de instrumentação não convencional e

8 Disponível na página do artista em: http://www.zimoun.net/works.html.Acesso em Setembro, 2019.


9 Imagine-se ouvindo o som contínuo, de longe, no espaço da galeria, antes de entrar na sala e
efetivamente ver as caixas. Além disso, as caixas são opacas e os motores e o material que eles fazem
girar permanecem desconhecidos.
10 Do original: “Let the sounds be themselves” (CAGE, 2012: s/p).

144
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

da idéia de música ambiental ditada pelo acaso, Cage foi uma das principais figuras
da vanguarda do pós-guerra. Sua abordagem à composição foi profundamente in-
fluenciada pelas filosofias asiáticas, voltando-se para a relação do humano com a
natureza em sua amplitude.

Teve como importantes colaboradores Merce Cunningham e Robert Rauschenberg,


parcerias que surtiram interseções importantes entre os vários domínios da produ-
ção artística. Em meados dos anos 1960, os happenings e performances ocorriam de
maneira coletiva, usualmente desde a participação de vários/as artistas e inaugura-
ram uma era de experimentação em todos os medium. Nas obras de Cage identifica-
mos uma abordagem radical baseada na improvisação e na construção aleatória de
sons e, mais especificamente, na composição baseada na valorização da existência
singular dos sons, no que têm de válidos por serem como são. “Música nova: nova
escuta. Não é uma tentativa de entender algo que está sendo dito, pois, se algo esti-
vesse sendo dito, os sons receberiam as formas das palavras. Apenas uma atenção à
atividade dos sons” (CAGE, 2012: s/p)11.

Figura 3: Michele Spanguero, Replay, 201312.

11 Do original: “New music: new listening. Not an attempt to understand something that is being
said, for, if something were being said, the sounds would be given the shapes of words. Just an at-
tention to the activity of sounds” (CAGE, 2012: s/p).
12 Disponível na página do artista em: http://www.michelespanghero.com/works/replay/. Acesso
em Setembro, 2019.

145
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Na obra Replay de 2013 um vídeo mostra uma sala de ensaios com os instrumentos,
amplificadores e microfones típicos de uma apresentação musical em conjunto. Os
aparelhos estão ligados e garrafas de bebida e latinhas de cerveja estão no chão,
simulando uma situação em suspenso. Aos poucos, percebemos o desenrolar de
uma composição que é gerada a partir de um áudio anteriormente gravado das res-
sonâncias do espaço. O acionamento desses sinais interage, por meio de feedbacks
(retroalimentação), com os instrumentos, amplificadores, microfones e alto-falantes
ligados em sistema. Aquelas freqüências iniciais incitam uma massa sonora que se
dá como um acontecimento estético relacional, sendo o resultado interativo entre a
máquina, a idéia e o espaço acústico.

Figura 4: Cecilia Lopez, RED (Issue Project Room, Brooklyn NY), 201713.

Cecilia Lopez é compositora, musicista e artista sonora argentina. Seu trabalho ex-
plora as fronteiras entre composição e improvisação, bem como as propriedades de
ressonância de diversos materiais através da criação de performances e instalações
multimídia. A artista constrói sistemas de som que operam a partir de material que
pode ser pré-gravado ou produzido ao vivo, passando por diversos processos de

13 Disponível na página da artista em: http://www.cecilia-lopez.com/r-e-d/. Acesso em Setembro, 2019.

146
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

filtragem e pós-produção. RED (Imagem 32) é uma investigação sobre o compor-


tamento de sistemas instáveis de retroalimentação sonora. A matéria do trabalho é
produzida no local e é afetada pelas circunstâncias espaciais, materiais e contextuais
de cada ambiente. As luzes vermelhas (do inglês red) também fazem parte da ge-
ração de sinais que compõem a obra, numa experiência que ocorre, a cada vez, de
maneira diferente.

Figura 5: Maria Chavez, (Abstract Turntable Concert, Milan, Italy) 201614.

A artista e curadora peruana Maria Chavez vem experimentando com as intersecções


entre som e imagem há mais de uma década. Ao longo dos anos, Chavez explorou as
linguagens da pintura, da fotografia e da instalação até atingir limiares nos quais as
fronteiras entre linguagens artísticas perdem sentido em função de um entendimento
do trabalho de arte enquanto espaço de atravessamentos. Tendo sido dj de vinis por
muitos anos, começou a realizar pesquisas com pequenos sistemas de toca-discos,
mesa de som e caixas amplificadoras que aos poucos foram se tornando performan-
ces sonoras imprevisíveis e sempre diferentes umas das outras. Esses eventos sonoros
são gerados a partir de pedaços de vinis – quebrados na hora, ou restos de outros

14 Disponível em: https://www.ursss.com/2016/07/maria-chavez/. Acesso em Setembro, 2019.

147
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

discos – que são, de maneira mais ou menos aleatória, lidos pelo toca-discos em mo-
vimento. A artista manipula esses pedaços de som com técnicas como o scratching15 e
uso de efeitos e controles de volume e velocidade, através da mesa de som. A narrativa
sem sentido que se dá, segue algum tipo de estrutura rítmica (gerada pela rotação
contínua automática do aparelho) e adquire nuances estranhamente eloquentes.

Num artigo pertinentemente intitulado “Nas mãos de Maria Chavez o som não vai
para onde esperamos” de 201716, em entrevista, a artista afirma: “É um toca-discos,
uma coleção de agulhas, que são como os meus lápis de som, e uma coleção de
discos de vinil, partidos e inteiros, que combino para criar ideias de som impro-
visadas”. E continua: “Além de manipular os sons gravados nos vinis, exploro as
qualidades electroacústicas dos discos em simultâneo com as diferentes fases das
agulhas. Incorporo o acaso, as falhas do material. Não uso samples17. Não vês isto
no turntablism de hip-hop, onde tudo tem de estar no sítio”. A artista se refere
a suas performances como uma “conversa sônica com o público” durante a qual
ocorre “permitir que a deterioração faça parte do processo artístico”. Chavez faz
referências a outros medium para estabelecer as poéticas e articulações discur-
sivas sobre sua prática. “Isto para mim não é a música, são esculturas de som que
existem por um pequeno período de tempo”.

Estratégias artísticas destrutivas e que carregam elementos de indeterminação em


arte sonora invariavelmente estabelecem dinâmicas com o ruído. Se no senso comum
o ruído está associado a sons indesejados, insalubres; nas diferentes esferas das artes
do som, o ruído (noise, no inglês) se estabelece como categoria fluida e complexa,
amplamente empregada em circuitos de música eletrônica experimental. “Onde quer

15 (Cf: www.wikipedia.org) Scratching, às vezes chamado de scrubbing, é uma técnica de DJ e turn-


tablism de mover um disco de vinil para frente e para trás em uma mesa giratória para produzir sons
percussivos ou rítmicos. Um crossfader em uma mesa de som (mixer) pode ser usado para desvane-
cer entre dois toca-discos simultaneamente.
16 Disponível em: https://www.publico.pt/2017/06/29/culturaipsilon/noticia/nas-maos-de-maria-
-chavez-o-som-nao-vai-para-onde-esperamos-1777397. Acesso em Setembro, 2019.
17 (Cf: www.wikipedia.org) Sample corresponde à amostra ou fragmento obtido de algo maior, do
qual fazia parte. É um termo genérico, usado nas mais diversas áreas, embora seja bastante conhe-
cido para se referir, em música, a pequenos trechos sonoros recortados de obras ou gravações ante-
riores para posterior reutilização em outra obra musical, não necessariamente no mesmo contexto
da original. Um sampler é um software ou um hardware dedicado, feito para armazenar amostras de
áudio em arquivos de diversos formatos, de origem digital ou analógica, que são alocadas em uma
memória usualmente digital, com a finalidade de poder serem reproduzidas e/ou reprocessadas
posteriormente, uma a uma ou de forma simultânea.

148
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

que estejamos, o que ouvimos é principalmente barulho. Quando nós o ignoramos,


isso nos perturba. Quando ouvimos, achamos fascinante” (CAGE, 2012: s/p)18 .

O ruído, por estar carregado de potencialidades de sentido, se presta poeticamente


inclusive para discursos estéticos de outros medium, como referências à granulação
de uma imagem fotográfica, ou às dificuldades de comunicação e transmissão. “Ru-
ído é qualquer som que interfere. É o destruidor do que queremos ouvir” (SCHAFER,
2011:57). Há, portanto, uma abertura sensível, uma atitude de escuta estética em
relação ao mundo, que faz emergir o ruído como significante. “Ruído é som que fo-
mos treinados a ignorar” (SCHAFER, 2011:120). Em eletrônica o ruído está associado
a interferências na corrente ou tensão de um sinal elétrico e é classificado a partir de
seus chiados característicos (ruído marrom, ruído rosa, ruído branco, entre outros).
Há dois aspectos sobre o ruído que são poeticamente significativos: o ruído diminui
a precisão dos processos e, ainda, diversas formas de ruído são intrínsecas, oriundas
da própria existência dos dispositivos. Nesse espaço de falha inata, de impureza de-
sejada, localizamos a estética de uma escuta em devaneio, que encontra no ruído,
material musical em emergência. “Em geral, o uso do ruído em arte significa, na ver-
dade, uma filtragem do ruído para deixar que, a partir dele, emerja algo significante”
(CAMPESATO, 2013:13).

No ano de 1913, o pintor italiano Luigi Russolo (1885-1947) membro do movimento


Futurista, escreveu um manifesto intitulado “A Arte do ruído” (no italiano L’Arte dei
Rumori). Este texto tornou-se posteriormente um dos mais relevantes sobre estética
musical de vanguarda no século XX. De maneira teórica articula a noção dos ruídos
se tornarem musicais, serem sistematicamente categorizados, forjando-se enquanto
objetos sonoros, o que servirá para que o ruído possa ser tratado como uma espécie
de ready-made por futuras gerações.

Por música-ruído entendo a produção que utiliza o ruído como recurso extremo no conjunto de
práticas compostas por vários gêneros musicais que se configuraram a partir do final da década
de 1970 sob a influência de diferentes manifestações do rock e dos movimentos experimentais un-
derground, tanto musicais quanto da performance art no contexto das artes visuais. A música ruído
mais recente é frequentemente associada a gêneros como: industrial noise, japanoise, noise rock, no
wave, black metal, harsh noise, harsh noise wall, glitch, entre outras etiquetas (CAMPESATO, 2013:5).

Essas práticas incluem o uso do ruído gerado por inúmeras fontes sonoras, por ins-
trumentos acústicos (amplificados ou não), eletrônicos, samplers e mídias de áudio
fisicamente manipuladas ou processadas computacionalmente. Por transmissão de
sinal de rádio, sons naturais e voz humana processada ao vivo; por ruídos produ-

18 Do original: “Wherever we are, what we hear is mostly noise. When we ignore it, it disturbs us.
When we listen to it, we find it fascinating” (CAGE, 2012: s/p).

149
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

zidos por processos randômicos, estocásticos; por equipamentos eletrônicos em


curto-circuito, glitch19, distorções 20, feedbacks e microfonias 21. Há uma miríade de
elementos a serem experimentados nos processos em música-ruído (no inglês noise
music), sendo estreita a relação com elementos estéticos extremos. Usualmente são
performances sonoras ao vivo – material posteriormente lançado em outras mídias
– de uma ou mais pessoas, com uso de maior ou menor quantidade de instrumen-
tos, máquinas e objetos; numa ação que se desenvolve em trajetória temporal rela-
tivamente incerta e irrepetível.

De maneira geral a música ruído é baseada na improvisação ou no desenrolar de um processo único,


longo e contínuo, muitas vezes formado por uma massa sonora complexa esvaziada de articulações
e de conteúdo mimético. Outra característica é a ênfase dada às altas frequências e ao volume exces-
sivo que extrapolam o limite da dor no sistema auditivo humano (CAMPESATO, 2013:6).

As estratégias estéticas dessas ações performáticas do ruído ressoam, em larga me-


dida, os (des)usos de objetos sonoros em função de um experimentalismo quase
metodológico. Nesse sentido, é um sistema complexo vivo, que adquire potências
generativas, numa poética da emergência dessa espécie de organismo sonoro fugi-
dio e idiossincrático. Essas camadas paralelas confluentes de material se articulam
desde uma concepção do espaço imersivo da experiência estética, e isso se daria
em função de “uma transformação ocorrida principalmente na segunda metade do

19 (Cf: www.wikipedia.org) Glitch corresponde um mau funcionamento repentino, uma falha de


curta duração em um sistema ou aparelho eletrônico, que difere de um bug de software, que é um
problema mais grave, de efetiva quebra de funcionalidade. De um modo mais geral, todos os tipos
de sistemas, incluindo naturais e humanos, apresentam algum glitch em seus processos, tendo estes
sido utilizados, em proposições estéticas, como elementos de uma espécie de poética da falha, a
exemplo da Glitch Art.
20 (Cf: www.wikipedia.org) Distorção é a alteração da forma ou outra característica de alguma coi-
sa. Em comunicações e eletrônica, significa a alteração da forma de onda de um sinal portador de
informação, tal como um sinal de áudio representando som ou um sinal de vídeo representando
imagens, num dispositivo eletrônico ou canal de comunicação. Distorção e overdrive, (usados como
termos semelhantes) são formas de processamento de sinais de áudio usadas para alterar o som de
instrumentos musicais elétricos amplificados, geralmente aumentando seu ganho e adicionando
harmônicos sustentados. Originalmente, isso acontecia quando se aumentava o volume de ampli-
ficadores a ponto de haver muita eletricidade circulando no sistema e a onda original aparecia de
forma diferente em seus circuitos. Desde então, foram desenvolvidas várias outras maneiras de gerar
distorção de forma proposital.
21 Microfonia é a realimentação de áudio que ocorre quando um microfone capta o som do disposi-
tivo que emite o som do próprio microfone. Em geral, esta realimentação provoca um ruído de alta
frequência. Qualquer ruído que entra pelo microfone ganha corpo nos amplificadores e sai mais
alto pelas caixas de som. Se o microfone estiver perto demais dos alto-falantes, acaba captando o
próprio ruído que sai deles, que, por sua vez, retorna ao amplificador, e sai de novo pelas caixas am-
plificadoras e volta a alimentar o microfone, criando um círculo de retroalimentação sonora.

150
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

século XX em que uma concepção linear do tempo cede lugar a uma espécie de
simultaneização das coisas: um tempo múltiplo (...) concentrado no presente” (CAM-
PESATO, 2007:143). São processos que têm espaço em resposta a uma estética que
se dá em se “conhecendo como os fenômenos amorfos afluem às formas e as preen-
chem para depois afluírem novamente ao informe” (FLUSSER, 2017:21).

O ruído, o silêncio e a miríade de efeitos e manipulações de material, a partir de


um entendimento da experiência estética sônica que se configura com a arte so-
nora; passam a integrar o espectro de sons musicais. Em especial, as performances
sonoras de música-ruído derivativas das práticas experimentais da música eletro-
acústica contemporânea, estabelecem uma estética que opera em campo expan-
dido, tangenciando diversos media em proposições que atravessam as linguagens
artísticas. Performances sonoras de eletroacústica mista e live electronics num certo
sentido recuperam a relevância da presença como instituinte da experiência. São
apresentações que nunca se repetem exatamente, acionando de maneira particular,
as funções fenomenológicas da escuta. “Como sempre prefiro concertos a discos de
música instrumental. Que ninguém imagine que, ao possuir uma gravação, ele te-
nha a música. A própria prática da música (…) é eminentemente uma celebração de
que possuímos nada” (CAGE, 2012: s/p)22.

Na arte sonora a ideia de ponto culminante, de momentos mais ou menos impor-


tantes muitas vezes se dilui numa disponibilidade da obra à fruição, abrindo espa-
ço para situações de tempo sincrônico, vinculado a superposições de referências e
estímulos que se estabelecem num mesmo instante. São experiências que se dão
através do corpo, como paisagens de vibrações, que viabilizam sensações em ação.
“Não consigo congelar o som, não há espaço para contemplação, narração da meta-
-posição, há apenas a pequena lasca do agora que é uma influência poderosa, mas
difícil de rastrear” (VOEGELIN, 2010: 31)23.

No âmbito das artes contemporâneas, a tecnologia é utilizada tanto como instru-


mento estrutural para a construção dos trabalhos, como função poética das relações
entre as pessoas e as máquinas que as circundam na conjunção de suas subjetivi-
dades. Essa produção dinâmica designa as instâncias perceptivas que se dão sen-
sorialmente, de maneira imediata, no momento mesmo da experiência estética, ca-
racterizando o engajamento de dimensões muitas vezes negligenciadas em nossos

22 Do original: “As ever, I prefer concerts to records of instrumental music. Let no one imagine that
in owning a recording he has the music. The very practice of music (…) is a celebration that we own
nothing” (CAGE, 2012: s/p).
23 Do original: “I cannot freeze sound, there is no room for contemplation, narration of meta-
-position, there is only the small sliver of now which is a powerful influence but hard to trace”
(VOEGELIN, 2010:31).

151
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

corpos e consciências cotidianas. Sensações auditivas carregariam pois, em situação


de proposição estética, potencialidades multifacetadas, em caráter ignoto, capazes
de acionar espaços inter e intra subjetivos.

Lista de Figuras
Figura 1: Alvin Lucier, I am sitting in a room, 1969.
Fonte:http://rateyourmusic.com/release/album/alvin_lucier/i_am_sitting_in_a_
room/

Figura 2: Zimoun, 25 woodworms, 2009.


Fonte:http://www.zimoun.net/tl_files/zimoun/works/2009/woodworms1/zimoun_
woodwoorms_800px.jpg

Figura 3: Michele Spanguero, Replay, 2013


Fonte: http://www.michelespanghero.com/works/replay/

Figura 4: Cecilia Lopez, RED (Issue Project Room, Brooklyn NY), 2017.
Fonte:http://www.cecilialopez.com/wpcontent/uploads/2015/02/MariodeVega_Ceci-
liaLopez_CourtesyISSUEProjectRoom_02162017byCameronKelly15-768x1024.jpg

Figura 5: Maria Chavez, (Abstract Turntable Concert, Milan, Italy) 2016.


Fonte: http://www.ursss.com/wp-content/uploads/2016/07/pic1_fb2-640x338.jpg

Referências Bibliográficas
BERTALANFFY, Ludwig Von. Teoria Geral dos Sistemas. São Paulo: Ed. Vozes,1975.

CAGE, John. Silence: Lectures and Writings. Middletown, Connecticut: Wesleyan


University Press, 2012 (s/p). Disponível em: https://archive.org/stream/silencelectu-
resw1961cage/silencelecturesw1961cage_djvu.txt. Acesso em Setembro, 2019.

CAMPESATO, Lílian. Arte Sonora: uma metamorfose das musas. CMU. São Paulo:
USP, 2007.

_________________. “Limite na musica-ruído: musicalidade, dor e experimentalis-


mo”. In: Anais do XXIII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Gradua-
ção em Música ANPPOM, Natal, 2013.

FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comuni-


cação. São Paulo: Ubu Editora, 2017.

GALANTER, Philip. What is emergence? Generative murals as experiments in the


philosophy of complexity, 2004. Documento online. Disponível em: http://philipga-
lanter.com/downloads/ga2004_what_is_emergence.pdf. Acesso em Setembro, 2019.

152
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

JOHNSON, Steven. Emergência: a vida integrada de formigas, cérebros, cidades


e softwares. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2003.

LABELLE, Brandon. Background Noise: Perspectives on Sound Art. London:


Bloomsbury, 2015.

LIPPARD, Lucy & CHANDLER, John. “A desmaterialização da arte”. In Revista Arte &
Ensaios n. 25, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2013 (p. 151-165).

SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Ed Unesp, 2011.

VOEGELIN, Salomé. Listening to noise and silence. Towards a philosophy of sou-


nd art. New York: Continuum, 2010.

153
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Krishna Passos1

Arte Viva
Som, fogo, fumaça, luz, seres vivos, elementos/forças criativas
Living Art
Sound, fire, smoke, light, living beings, creative elements / forces

Resumo
O texto que se segue contém tópicos sobre propostas artísticas em fase embrio-
nária, que partem de pesquisas poéticas fundadas no som e em experimentos
de interação das vibrações sonoras com, diferentes elementos/forças e organis-
mos que integram os estudos desenvolvidos pelo autor. Tal prática levam-no
a averiguar potenciais criativos incomuns em arte, resultantes de conjunturas
fluidas e efêmeras surgidas dessas proposições artísticas em que o som é a força
transitória ativadora para a criação. Assim, Krishna Passos elabora sistemas in-
tuitivos nos quais induz de forma simples, mecanismos de convergência entre
elementos para explorar a natureza de tais ‘matérias-primas’ encadeadas. Essas
circunstancias podem levar à introversão do participante e, muitas vezes, pos-
sibilitar a percepção de outras realidades sobre os componentes da obra evi-
denciando forças que regem o comportamento dos (i)materiais escolhidos, ou
sugerir realidades incomuns em proposições artísticas.
Palavras-chave: Arte Sonora, Cimática, Vibração, Frequências, Som

Abstract/resumen/resumé
The following text briefly describes some embryonic artistic proposals - in sound-
based poetic research, and experiments with the interaction of sound vibrations and
different elements / forces and organisms - and brings together a number of stud-
ies by the author. This practice has led him to discover creative artistic potentials of
sound as a “transient activating force” for creation within these fluid and ephemer-
al conjunctures. This paper elaborates intuitive systems which induce convergence
mechanisms between elements to explore the nature of such coupled ‘raw materi-
als’. These situations may lead the participant to meditate on, and either perceive

1 Krishna Passos, é artista e Doutorando do Programa de Pós Graduação em Artes Visuais pela Uni-
versidade de Brasília (UnB). Embora trabalhe com diferentes mídias (objetos, instalações, interven-
ções urbanas, e videoarte, etc.), nos últimos anos tem concentrado suas pesquisas poéticas em arte
sonora, Cimática, fenômenos físicos, fenômenos acústicos, eletroquímicos e eletromagnéticos, den-
tre outras formas para criações artísticas.

154
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

other realities of the components of the work, through the highlighting of the forces
governing the behavior of the chosen (im)material, or to infer them through the ar-
tistic proposals.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: Sound Art, Cymatics, Vibration, Frequen-
cies, Sound

Dos rascunhos aos processos: Idéia, trabalho, prática, execução e materiali-


zação criativa - Desdobramentos, testes e futuros possíveis
Processo criativo

Em geral, no processo criativo percorre-se um enorme caminho entre as idéias, a


imaginação inicial, a concepção no plano mental e a sua realização prática, até o
alcance de sua concretização. Em casos muito raros a materialização é bastante pró-
xima da idéia original mas, na maioria das vezes, a dinâmica é outra e a realização de
um plano levam-nos a distanciarmo-nos, ou melhor, a transformar a própria idéia.
Muitas vezes, inclusive, chega-se a uma quase negação da idéia original, realizando-
-se algo diametralmente oposto ao inicialmente pensado. Isso não é bom nem ruim,
tão pouco indica que o planejamento não foi eficiente; simplesmente, este é um
caminho necessário a se percorrer para a descoberta das direções e procedimentos
a serem reordenados e a retomada de fluxos que continuam retro-alimentando as
idéias que levam as decisões de como melhor orientar os processos de formação
de uma realidade do agora ao futuro almejado em sua realização, ou seja, em obra.

Essa breve reflexão embora possa parecer complexa, para alguns, é apenas uma ten-
tativa de conciliar todo tipo de retorno (output) que as experiências bem sucedidas
e aquelas não tão felizes como experiências singulares para o aprimoramento da
própria vivencia em si e das análises motivadas por esta circunstancia. Como conhe-
cer sem o desconhecer?! Como aprender a andar sem antes tropeçar, por vezes, cair?

Uma vez que: os resultados de qualquer investigação não dependem exclusiva-


mente do empenho ou do conhecimento daquele que investiga, e sim de fatores
externos ao seu controle e suas vontades, consideramos aqui que, tentar algo já é
conseguir, embora, nem sempre, com os resultados desejados. Muitas vezes a não
satisfação das expectativas pode se justificar mais pelo ao excesso de expectativas
criadas e á concepções fechadas, por aqueles que pesquisam, do que, propria-
mente, dos resultados obtidos. Seguindo essa lógica: resultantes esperadas con-
dicionariam a obtenção de resultados positivos confirmando aquilo que se espe-
culava-se anteriormente e não a sua verificação mais aprofundada independente
da confirmação ou não do que se pressupõe, afastando assi, a revelação real da
daquilo que se pesquisa. Embora os motivos para a criação dessas expectativas
pareçam justificáveis e sigam dinâmicas endógenas da pesquisa, essa postura
frente ao objeto pesquisado muitas vezes não permite sua real imparcialidade

155
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

para se tangenciar o objeto pesquisado com a humildade da ignorância, criando


assim uma relação passional com a pesquisa que podem torná-la um lugar de au-
toafirmação quase cega daquilo que se espera dela em detrimento do desapego
que as possíveis negações de ideias podem abarcar nas entrelinhas das hipóteses,
dos acertos e dos, (suposto) erros (acertos diferentes) não hierarquizando-os na
dinâmica do conhecimento visto que, um tende a levar ao outro, confirmação e
negação de hipóteses.

No caso da atividade encampada aqui, damos importância especial à experiência e


ao processo, tanto ou mais do que ao produto: o objeto de arte em si. Para a essa
pesquisa em arte, então é apropriado uma abertura conforme propõem Humberto
Eco, em que: a obra é aberta e só se completa naquele a experimenta. Ou seja, as
tentativas de controle e a pré determinações extremadas podem ser tornar prisões
que limitam as percepções daquele que cria sobre a sua própria criação, sem que este
jamais alcance as largas dimensões possíveis em suas criações. Logo, toda e qualquer
especulação e possibilidade aventada nos apontamentos trazidos aqui, podem em
algum momento revelar-se contrárias a si mesmas, a outras teorias, afinal, o saber
tende a avançar, e isso, na grande maioria das vezes implica em revisões levando por
vezes á negações do que foi proposto anteriormente, alternadas a reafirmações. Por
se tratas de obras processo, os supostos erros e falhas contidas aqui são ruídos ine-
rentes aos procedimentos e a metodologia que acolhe-os como parte fundamental
para a tentativa de se mapear labirintos desconhecidos. Assim como as obras podem
trazer marcas de sua trajetória processual e suas rasuras, agregando informações de
descaminho de sua “vida própria” as reflexões e análises derivadas delas também
contém errâncias por entre as linhas que desenham as idéias.

Motivações, hábitos, formação de interesses e assimilações

Levando-se em consideração que, sempre há motivações que nos conduzem em


nossas escolhas, interesses, afinidades e opções, na arte é necessário ir fundo e bus-
car as razões mesmo que elas pairem em níveis inconscientes, experiências adorme-
cidas e hábitos passados. Nas reflexões sobre tais forças motrizes que desencadeiam
a presente pesquisa, além dos pensamentos e associações conexas á ideias de ou-
tros pensadores, a vivência do som e da musica, a influencia dos LPs de clássicos
eruditos e musica barroca; aos clássicos do Rock, dos precursores da musica ele-
trônica, o estudo de Percussão sinfônicas, percussão e ritmos populares do Brasil
e do mundo, aproximaram-nos á vivencia do som e, posteriormente as influencias
de bits eletrônicos assim questões das vibrações, deslocamentos pulsantes, movi-
mentos, fluxos, alternâncias, suas reações e relações em contextos em que o som é
o condutor formou-se esse campo de interesse para o trabalho desenvolvido aqui.
Algumas teorias indicam processos orgânicos químicos desencadeados pelo som
alto indicando inclusive para possibilidades de vicio em som alto. Segundo a fono-
audióloga Keila Knobel:

156
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

“O som intenso não provoca só reações dentro do nosso ouvido. Gera outras reações no corpo. Uma
delas é o despejo da adrenalina no sangue. A propósito, essa adrenalina é viciante. A pessoa sente pra-
zer pela exposição ao som elevado (…). Exposto a volumes intensos, o cérebro envia uma ordem para
a glândula suprarrenal, que produz noradrenalina a partir de alguns aminoácidos. A noradrenalina,
por sua vez, transforma-se em adrenalina, que é passada imediatamente para a corrente sanguínea
e, consequentemente, para todo o corpo. “Ela provoca todas essas reações, além de aumentar o me-
tabolismo do açúcar. Digamos que é uma reação de estresse provocada por som intenso, mesmo que
seja prazeroso, que seja a escolha da pessoa para se divertir.... “Por mais que a descarga de adrenalina
aconteça por uma expectativa de perigo interpretada pelo cérebro, que prepara o corpo para a luta
ou para a fuga, a sensação, dentro de uma balada, pode ser prazerosa. A exposição a altas doses do
hormônio levaria a uma maior disposição e animação, condições que fazem com que a pessoa fique
mais tempo na condição perigosa.”2

Além dessas influencias, desde a década de 1990 o autor dessa tese, vivencia obras
de musica experimental e arte sonora frequentando concertos de musica eletroacús-
tica, intervenções sonoras e afins. Como não poderia deixar de ser, esse arcabouço
impregnado em memórias possibilitam aguçaram sentidos a sensibilidade sonora
voltadas as questões debatidas aqui e da audição imanentes ao fenômeno sonoro.

Generalidades criatórias3

Como processo criativo dessa pesquisa, em geral há a observação e coleta de infor-


mações de modo totalmente intuitivo e solto. Assim, algum elemento observado
com mais cuidado começa a se destacar e associar-se a outro(s). Imaginativamente,
essa relação pode revelar-se fonte de algo a ser experimentado poéticamente como
possibilidade a indicar a percepção de outras formas e estímulos, ocultos na reali-
dade, material e, por vezes, sua transitoriedade entre o conhecimento ordinário e
outras formas de assimilarmos essas realidades.

Nos casos tratado aqui, o som e suas propriedades metamórficas tem se mostrado
um rico manancial para este estudo de casos. Podemos atribuir ás ações vibrató-
rias uma série de reações e influencia em diferentes meios, funcionando quase
como uma interface para atividades em que elas podem operar tanto na criação
e manipulação de imagens pela Cimática, na manipulação e síntese de diferentes
materiais (Sonoquímica) como, também, em abordagens mais subjetivas como a
Psicoacústica, as sutilezas mágicas, intuitivas e etéreas (místicas) dos som, as quais
atribui-se poderes “sobrenaturais” (paranormais? Para-Psicológicos? Mágicos?
Ocultos?), bem como, fenômenos adjacentes operados por frequências vibratórias
e seus resultantes.

2 GARDENAL, Isabel. Disponível em: < http://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2013/06/07/som-


-alto-em-balada-pode-viciar-avisa-especialista > visitado em 05/02/2019.
3 - em alusão a criadouros: local onde se criam animais.

157
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Em esquemas e esboços mentais e rascunhos de caderno os elementos observados


se ligam uns aos outros e as idéias começam a tomar formas com a reunião de mate-
riais e aditivos para experimentação e a solução das questões surgidas no desenvol-
vimento prático de execução das idéias. Essa parte do trabalho demanda bastante
tempo, experimentos e incontáveis testes para se buscar resultados a exemplo das
seguintes indagações surgidas nos trabalhos com a Cimática em liquidos:

- Qual o tamanho de auto falantes e a potência sonora e necessária para criar uma
Cimática visível em um espelho d`água e, qual distancia entre ele e a superfície

- Como fazer um alto falante funcionar dentro da água mantendo o seu melhor de-
sempenho?

- Que tipo de som pode ser criado para aumentar a percepção dos efeitos cimáticos?

- Como fazer formas duas Cimáticas dialogarem entre si numa mesma superfície li-
quida?

- Qual a melhor angulatura e iluminação para se conseguir registros em foto e vídeo


mais aproximados do que é a obra/experiência?

- Onde conseguir os materiais em bom estado sem necessariamente ter que com-
prá-los e/ou produzir mais refugos, descarte e lixo?

- Como o publico/participante pode melhor absorver a experiência, entrando em


contato com aquilo que talvez ele desconheça?

- Como aumentar a vida útil dos falantes?

- Como funcionaria a Cimática com óleo ao invés de misturas a base de água?

Nessa etapa é feito uma série de especulações e tentativas, surgem adversidades e,


aparentemente, o trabalho determina o seu próprio caminho e redireciona os pro-
cedimentos para seu desenvolvimento. Cada uma das variantes acima pode con-
secutivamente alterar uma ou mais variantes conseguintes que, por sua vez, inter-
ferirá em outras variantes dessa equação sistêmica na qual o resultado é a sinergia
de associações criando a composição artística. Conectores, tomadas, cabos, solda,
fios, recipientes, auto falantes, isolantes, equipamentos, tempos, ritmos, volumes,
textura visuais e sonoras se somam. Uma boa quantidade de materiais e detalhes
são reunidos, protocolos de funcionamento são aprimorados. Assim, numa metodo-
logia que pode parecer inicialmente aleatória, são determinadas pelas dinâmicas de
forças que a própria criação, por vezes requer para seu afloramento para que a obra
se auto defina.

158
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Assim como reúne-se os item acima, são determinantes aqui para o ato criativo
reunir condições de espírito resultantes de determinados hábitos e processos inter-
nos e externos que contribuem para a tentativa de se aguçar a percepção e, assim,
potencializar a identificação e captação dessas diretrizes que, podem ser, por vezes,
reveladoras, quando evidenciada em convergências criatórias trazendo indícios de
forças invisíveis conjugadas em obra.

Idéias em processo: abaixo seguem três idéias embrionárias em


desenvolvimento.

Caso Laser

Embora os experimentos relatados abaixo não sejam objeto principal da pesquisa e


não tratem especificamente da Cimática, serve-nos como exemplo do de trabalho
de processo, onde as composições artísticas se formam, entre as ações e reações
possíveis, dos ritos em que se alternam trabalho manual e ruminações sobre as
idéias que a atividade instiga.

Entendendo luz como um fluxo de energia com características que se aproximam,


em parte, à qualidades de propagação e deslocamento das vibrações sonoras, a luz
e o seu comportamento também é elemento que requer destaque nas reflexões e
criações dos processos trados aqui. É importante também, por constar no comporta-
mento dos fótons estudos sobre conceitos da física quântica, com amplas aplicações
e ativações a níveis atômicos bastante complexos, como no caso dos feixes de fótons
colimados em um rio Laser4. Assim, como parte dessa pesquisa, optamos por incluir
experiências em ateliê, com o uso de feixes de Laser.

Na trajetória de curiosidade maquínica e cientifica diletante, como boa parte dos


outros trabalhos, ao acessar casualmente (se é que existe acaso) a fonte inicial da
idéia surgida aqui, um aparelho de Laser com defeito, e a tentativa de um “desven-
damento poético” para além da estrita precisão em que o aparelho fora elaborado.
Em busca de uma reativação criativa, não tardou a curiosidade em desmontá-lo e
averiguar o que haveria ali para além do que já era sabido.

Quais seriam as possibilidades dos feixes de luz tão precisamente desenvolvidos em


sua exatidão e em acumulo de conhecimentos tão complexos?

4 Light Amplification by Stimulated Emission of Radiation < Gould, R. Gordon (1959). “The LASER, Light
Amplification by Stimulated Emission of Radiation”. In Franken, P.A. and Sands, R.H. (Eds.). The Ann
Arbor Conference on Optical Pumping, the University of Michigan, 15 June through 18 June 1959.
p. 128.> OCLC 02460155.

159
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Que entropias estariam disponíveis para escoá-las em fora de arte e reverter, ou me-
lhor, reciclar as forças dessa entropia? Com essas indagações e uma curiosidade ex-
trema, vem a parte pratica com o feixe de laser descrita abaixo passo a passo:

1º – Desmontar e observar com cuidado seu funcionamento. Pesquisar sobre o fenô-


meno ocorrente ali. Com o feixe experimentar:

2º – reflexões, espelhos, refrações com a incidência do laser em diferentes superfícies

3º – seu atravessamento na água, experimentá-lo em uma piscina

4º – sua refração em diferentes tipos de vidro, cristais, cilindros de vidro e afins

5º – seu atravessamento em fumaça e poeira

6º – o deslocamento do feixe a partir dos gases de calor

7º – gás butano no laser

8º – o laser e sistemas associativos em lentes e objetos explorando plasticidades


possíveis

9º – Reunir aparelhos para possível protótipo de parafernália semi analógica

10º – Aprofundar os estudos sobre o fenômeno em si

11º – Permitir o repouso das idéias e as reflexões filosóficas e existenciais que as


idéias iniciais e as teorias implícitas no seu conhecimento provocam. Essa etapa, na
maioria das vezes reverbera na própria forma de se observar a natureza dos mate-
riais usados e seus comportamentos em diferentes situações criadas para reconheci-
mento de forças e campos de ação possíveis.

Ao artista, que se dedica a esse tipo de processo investigativo acreditamos que o mes-
mo possa promover conhecimentos distintos sobre parte daquele todo do qual ele
participa e atua como catalizador, reunindo emanações dessas forças e muitas outras,
para além do que ele sabe a priori.

Essa dinâmica criativa está intimamente ligada à curiosidade de se descobrir com um


olhar quase ingênuo

O que acontece se fizermos tal coisa com o elemento X?

E se fizermos aquilo outro?

E se colocarmos o elemento X em interação com o elemento Y?

160
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Dessa forma aparentemente despreocupada respostas levam a outras questões, as-


sim, as idéias surgem a partir da materialização da obra que, toma forma como se
houvesse algum tipo de autonomia própria, que se desenvolve como se o trabalho
(antes ideia) solicitasse determinados procedimentos, o que, nesse caso apaga os li-
mites entre as criações, que indicam caminhos e, a intuição do artista, que leva a cabo
a experimentação, como se fossem uma única inteligência intuitiva ente a obra e seu
executor. (SHELDRAKE, 1999).

No momento a proposta em específico, está em curso mas, já são claras as ligações


entre ele e idéias sobre a física quântica, os espaços vazios, os vazios cheios de luz, os
corpos luminosos amórficos, as propagações de ondas eletromagnéticas, fantasma-
gorias plasmáticas, dentre outras realidades abstrativas de matérias e energias sutis
que se tornam perceptíveis por meio de uma canalização artística.

Trata-se de imagens abstratas em movimento projetadas por sistema constituído de


um copo de cristal lapidado, o feixe de laser, em uma base de toca disco antigo, crian-
do uma projeção que se move mudando a todo tempo com a rotação do cristal lapi-
dado que recebe o raio e projeta-o em uma superfície/tela.

Fig. 01 e 02: Testes com o Laser para projeções e ocupação luminosa de espaços-tempos

Fig. 03 e 04: Testes com o Laser para projeções e ocupação luminosa de espaços-tempos

161
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Caso Epicentro Binários - Objeto da Série Epicentro (retomando).

Assim como em Epicentro Ouro, é um objeto contendo Cimática e uma composição


previamente construída para a criação das formas e movimentos na superfície do
liquido criando interação entre duas Cimáticas, em seu primeiro teste, há também
o uso, no espelho d`água, pequenos fragmentos recobrem-no criando uma fina
camada, no entanto essa tentativa não se mostrou tão estigante como imaginado
inicialmente.

Diferentemente de Epicentro Ouro, em Epicentro Binário há o uso de dois auto fa-


lantes com sons distintos, criando interação sonora e visual das Cimáticas se “atra-
vessando”. Em alguns momentos os falantes entram em sintonia e ressoam em
uníssono, em outras perdem sincronia e entram em dissonância. A ideia está em
fase de testes e aperfeiçoamentos e resultará em obra para futura exposição pública.

A composição:

Numa espécie de inter-relação em que há influencias, sintonias, dissonâncias,


harmonia e trocas, desenvolveu-se uma composição imaginando-se o emparelha-
mento de dois elementos (sons, formas e movimentos derivados deles) dinâmicos
que estabelecem uma espécie de narrativa, um diálogo. Nessa sucessão, ambos
falantes iniciam em silêncio. Um deles inicia sua atividade com a frequência de
396Hz. Em seguida o outro inicia atividade em frequência de 741Hz. Após alguns
instantes o primeiro dos falantes para e ao poucos, sintoniza-se com o outro falan-
te, a partir dai há uma alternância entre eles que estão hora em sintonia e uníssono,
hora em dissintonia e dissonantes criando um intervalo harmônico (que, de forma
bastante resumida, seria o intervalo entre uma nota e outra distinta) após essa
relação se desenrolar, o falante que iniciou a ação em 396 Hz, sustenta agora a fre-
quência de 741 Hz. O segundo falante, por sua vez, ao invés de emitir os 741 Hz do
início, emite os 396 Hz. Como contaminações, cada um dos falantes trocou a sua
frequência inicial pela do outro, após a relação, espelhando a frequência emitida
pelo outro no início do processo, tornando-se, em parte, aquilo que o outro falante
emanava. As frequências foram escolhida tendo como base a escala de Solfegguio.

O Processo material:

Inicialmente, foi feita arrecadação para doações de auto falantes, assim, possibili-
tou-se experimentar tamanhos diferentes, além do reaproveitamento de materiais
descartados. Após a localização e busca, foram feitos testes em 15 auto falantes,
poucos em pares, alguns em péssimo estado e apenas 5 com a emissão de sinal
confiáveis, sem estarem estourado, falhando ou defeituosos. Assim, para a execução
dessa primeira fase, optou-se pela compra de novos falantes para manter a confia-
bilidade e a similaridade do par bem como, dispor de falantes idênticos reserva para

162
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

reposição. Consecutivamente, foram realizados os seguintes procedimentos com


devidos tempos estimados para o trabalho:

- Tratamento com impermeabilizante para tecido, silicone e isolantes (três dias)

- Composição da faixa (duas tardes)

- Em posse do recipiente, com 70cm. de diâmetros e 30cm. de profundidade iniciou-


-se o processo de montagem do objeto, a solda dos falantes e seus cabos de alimen-
tação, medição das distancias, afixação dos falantes no recipiente, conectividade e
teste de som do sistema. (uma tarde)

- Estudos de enquadramentos e reflexos para o melhor registro (um dia )

- O derramamento da água e a submersão dos falantes, controlando-se o nível para


se manter a fina camada de água entre o ar e o falante, realizando assim os testes
Cimáticos e registros. (três dias)

- Em uma das montagens há o elemento verde repousando na superfície da água,


essa influência provém da observação do comportamento de Ginkgo-biloba30 em
pó, adicionado ao café, usados no cotidiano do processo criativo em questão.

Contratempo 1 – Foi necessário refazer a faixa para se obter uma dinâmica mais flui-
da entre as duas Cimáticas.

Contratempo 2 - Problemas com o auto falante. Solução: Esvaziar o recipiente, refazer


solda substituindo o falantes, esperar secagem do recipiente, remontar e refazer os
testes. Procedimento que foi necessário por duas vezes durante os testes e registro.

Contratempo 3 – Com dependência da iluminação natural do sol os registros preci-


sam ser bem planejado e, mesmo assim, foi necessário refazer, e remontar algumas
vezes para conseguir registrar.

Conclusão para nova etapa a ser futuramente desenvolvido:

- Refazer a composição para conseguir melhorar o dialogo entre as Cimáticas

- Testar a Cimática no óleo para evitar a perda de auto falantes, a constante reposição
e, explorar outros efeitos possíveis com a diferença de densidade do fluido.

- Além de um objeto, o trabalho pode funcionar bem como intervenção na paisa-


gem instalando-se o par de falantes em espelhos d`água, e derivações em videoarte,
assim como em Epicentro - Paisagem Falante, uma das obras iniciais da pequis, dis-
ponível em: https://youtu.be/cur2ZFudaKQ.

163
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fig. 05 e 06: Teste, Epicentro Binários (sem e com erva na superfície do espelho) -
Objeto da Série Epicentro.

Para a obra são usadas inicialmente as seguintes frequências:

MI - 528 Hz: promove transformação, produz milagres, repara o DNA

FA - 639 Hz: promove relacionamentos e a conexão com as pessoas; (LEIROS, 2010, p. 91)

Equipamentos e necessidades técnicas:

- Auto falantes previamente tratados

- Amplificador, sintetizado ou player (variando se for executado ao vivo ou pré-gra-


vado), extensão elétrica.

- Recipiente, água, orégano

- Iluminação solar natural

Dimensões: (75cm diâmetro X 50cm altura)

164
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Caso Epicentro – Sistema Realidade Flexível - Interface sonora para


manipulação de imagens

Fig. 07: Sistema usado nos estudos para Epicentro - Sistema Realidade Flexível Interface
sonora para manipulação de imagens

Partindo do estudo de caso acima, Epicentro Binário, surgiu uma outra linha de inves-
tigação com o uso da Cimática a partir do mesmo sistema usado. No entanto, há a in-
versão do ponto de vista, ao usarmos uma câmera submersa para registrar o efeito da
Cimática de dentro do fluido (água) para a superfície. Para nossa surpresa o sistema
desenvolvido apresentou grande potencial de uso como um processo para a manipula-
ção da imagem a partir das Cimáticas, ou seja, o sistema pode ser explorado como uma
interface de manipulação da imagem a partir do som e seu efeito na água. Seria então
uma forma de se intervir na imagem partindo do contato direto entre imagem (lente
água) e som, se tornando unidade, indistintos, um do outro nesse resultante/registro.

Eis ai um dos exemplos em que a obra parece criar a si própria, requerendo seus pró-
prios procedimentos para o avanço das idéias tanto no rumo de novos questiona-
mentos e visões, como, a seu tempo, ás novas perspectivas possibilidades criativas
refratárias aos paradigmas que as precedem, abrindo-nos outras diretrizes a serem
averiguadas para o trabalho e pesquisa em arte.

165
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fig. 8: Frames extraídos de vídeo Epicentro - Sistema Realidade Flexível – Interface sonora para
manipulação de imagens

Caso Epicentro circulatório


Fig. 9: Falante usado para o experimento

Em Epicentro Circulatório, a experiência se dá quando o participante segura os falantes


virados para a palma de suas mãos. Para o processo, recomenda-se que a pessoa fique
em pé e com olhos fechados em ambiente silencioso segurando os dois falantes pro
cinco minutos, até o final da faixa. A faixa sonora usada é a 2a versão composição usada
em Epicentro Binário, assim, há a alternância, sincronia e dessincronia das frequências
em 741 Hz e 396 Hz, nas mãos direita e esquerda, conforme mencionamos em etapa
anterior provocando tremores simultâneos e também alternados nas palmas das mãos.

166
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Como primeiras impressões, na participação do procedimento, há a sensação de


formigamento e dormência nas mãos, ao final sente-se um pouco de tonteira e
vertigem ao se abrir os olhos. As mãos permanecem com as sensações acima por
alguns minutos depois do fim da experiência, como se elas estivessem energi-
zadas, com grande circulação sanguínea, alguma dormência ou atividade neuro-
lógica e tátil ativadas. Estes efeitos talvez sejam resultados de fenômenos sutis
como a própria Sonoquímica nos sugere a possibilidade de ocorrências análogas
as cavitações e à lipocavitação.

Crismatica Cisálida (projeto)

Ambiente auto-IN suficiente: o trabalho encontra-se em fase de projeto e estudo


comportamentais das iterações entre borboletas e plantas. Pode ser realizado em
um cilindro transparente, sala ou vitrine. Nele encontram-se, uma muda de mara-
cujá. A planta alimenta lagartas de borboletas laranjadas, no topo do cilindro há
um falante ecoando para as lagartas e crisálidas o som de mantras e bowls (tigelas
semelhantes a sinos usados em meditações) Após um período de quatro semana ali-
mentação como lagartas elas se tornam pupas e, cinco dias depois, eclodem como
borboletas que após esticarem e suas assas poderão voar para a liberdade indefini-
damente seguindo seus instintos em busca de parceiros para reprodução e outras
plantas para colocar seus ovos reiniciando o ciclo de vida e transformação. A tenden-
cia é que as borboletas retornem ao local onde elas eclodiram e para a colocação
de ovos e, assim, perpetuarem a existência delas, tornando a obra, literalmente, com
vida própria e uma duração determinada pelo equilíbrio próprio do sistema.

Fig. 10: Esboço para Crismatica Cisálida. Cilindro transparente em


acrílico ou tela, terra, pé de maracujá, lagartas, crisálidas, borboletas e auto falante.
Dimensões 1,80m.

167
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fig. 11, 12 e 13: Lagartas e borboletas criadas em


ateliê para estudos de Crismatica Cisálida

Epicentros Gasosos (Rascunho para projeto)

A idéia aqui é trabalhar com gases da fumaça incensos e o plasma de uma labare-
da de fogo aplicando-lhes sons enquanto eles percorrem os tubos que canalizam
fumaça e chama para sua movimentação a partir dos falantes instalados no tubo,
experimentando assim um tipo de Cimática não horizontal mas, vertical.

Para isso serão usados , cilindros transparentes, de acrílico ou vidro, por onde tran-
sitarão de forma fina e retilínea os fluidos (fumaça e plasma do fogo) subindo da
base para o topo, como chaminés. Em ambos os casos o tubo está com furos onde
encontram-se auto falantes instalados. Com o uso do som nesses falantes tanto a
fumaça do incenso quanto a labareda de fogo oscilarão sinuosos sobre influencia do

168
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

mesmo som, criando interdependência entre elas a partir da sincronia do som apli-
cado. Idéias semelhantes ás relações descritas acima em Epicentro Binário também
poderão surgir, como diálogos e narrativas entre os movimentos ocorrentes nos dois
objetos. Além dos tubos, outros materiais importantes para sua montagem serão:
falantes, amplificador, som, gás, bico de maçarico e incensos.

Fig. 14: Epicentros Gasosos (Rascunho para projeto).

Reinicio de ciclo – o intervalo entre duas ondas

Similares ao som, que se expande concentricamente para todos as direções, a partir


de sua fonte de emissão, as idéias e atividades esboçadas aqui, estão encadeadas e
se direcionam para todos os sentidos. Como o som, as idéias também podem rever-
berar em seus “receptores”, assim, esperamos que todas as atividades relacionadas
ás idéias contidas aqui, ecoem espalhando-se em fluxo reverberante e incessante:

Capta > Cria > Recria > Expande > Capta > Cria > Recria > Expande >

169
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Esperamos modestamente que, em última instância, os processos descritos aqui e


suas correlações possam contribuir não só para clarificar a própria pesquisa artística
em questão mas, para revisão de entendimentos previamente estabelecidos acerca
dos assuntos abordados, e assim, contribuir de alguma forma com a construção de
futuras bases epistemológicas para a criações com o uso das forças vibráteis. Alme-
jamos assim que, alcancemos relações mais genuínas com os (i)materiais, nos apro-
ximando ás questões postas por Bergson, ao conjugar a união ente alma e corpo, no
caso, entre a materialidade e imaterialidade (BERGSON, pg. 210). Acreditamos que,
dessa forma, engendrar-se-ão correlações mais diretas e puras entre participante e
processo/obra como reverberações internas não analíticas e sim, correspondentes
aos afetos à medida, que as experiências traspassa-nos sintonizando algo em nós,
via obra, correspondente a nós mesmos.

Numa próxima etapa da pesquisa serão traçadas aproximações, semelhanças e dis-


tinções entre criações, teorias e processos alinhados as nossos, que tentam abarcar
questões e assuntos adjacentes, ou seja: sobre criações artísticas, fundadas nas for-
ças vibratórias e sutilezas que compõe os fenômenos do som e, voltadas para a con-
dição não só objectual da obra, a exemplo da obra Desluz de Gilberto Prado (fig.: 15),
uma obra constituída com ondas de ultrassom e luz infravermelho imperceptíveis ao
visitante desavisado, Segundo ele, é “um trabalho sobre a descoberta do invisível, nos-
sos lugares provisórios, nossos fluxos e grades, camadas que se sobrepõem sutilmente e
nos atraem sem que as vejamos e traem nossos sentidos” (PRADO, s.p).

Fig. 15: Desluz, Gilberto Prado, 2009

170
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Por aqui outras idéias já se anunciam, para futuro aprofundamento e amadurecimen-


to,a Cimática dos batimentos é um assunto a ser investigado, bem como a Cimática
em ótica, mas, por hora, almejamos apenas que os ritmos Cimáticos de nossas ideias
movimente percepções assim como o de nossos pensamentos ensaiados aqui.

Como não poderia deixar de ser, em todos os tempos da história humana o som foi
e enquanto houver vida humana, cremos que, vibrações sonoras continuarão sendo
condutor de processos ritualísticos, transes, hipnoses, magias a sintonizar transfor-
mações e, em alguns casos, alteradoras de consciências. Com essas noções é bem
provável que num breve futuro aprendamos usufruir melhor em suas sutilezas e po-
tencias disponíveis.

Certos de que tudo o que há está encadeado a outros haveres (existir), agradecemos
a atenção e interesse partilhados aqui, partilhando desse campo partilhado.

<<<<<<< Silencio é ser som >>>>>>>>>

>>>>>>>> Som é matéria <<<<<<<<<<<

Referências:

Lista de Figuras:

Fig. 1 e 2: Testes com o Laser para projeções e ocupação luminosa de espaços-tem-


pos. Acervo do artista.

Fig. 3 e 4: Testes com o Laser para projeções e ocupação luminosa de espaços-tem-


pos. Acervo do artista.

Fig. 5 e 6:Teste, Epicentro Binários (sem e com erva na superfície do espelho) - Objeto
da Série Epicentro. Acervo do artista.

Fig. 7: Sistema usado nos estudos para Epicentro - Sistema Realidade Flexível Interfa-
ce sonora para manipulação de imagens. Acervo do artista.

Fig. 8: Frames extraídos de vídeo Epicentro - Sistema Realidade Flexível – Interface sono-
ra para manipulação de imagens. Acervo do artista.

Fig. 9: Falante usado para o experimento. Acervo do artista.

171
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fig. 10: Esboço para Crismatica Crisálida. Cilindro transparente em acrílico ou tela,
terra, pé de maracujá, lagartas, crisálidas, borboletas e auto falante. Dimensões
1,80m. Acervo do artista.

Fig. 11, 12 e 13: Lagartas e borboletas criadas em ateliê para estudos de Crismatica
Crisálida. Acervo do artista.

Fig. 14: Epicentros Gasosos (Rascunho para projeto). Botijão de gás, fogo, incenso,
cilindros de acrílico, falantes e amplificação. Acervo do artista.

Fig. 15: Desluz, Gilberto Prado, Disponível em: <http://www.poeticasdigitais.net/desluz.


html>. Visitado em 09/11/2018

Bibliografia utilizada

Bergson, Henri. Matéria e Memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espí-
rito. Martins Fontes. São Paulo 1999.

Borges, Valter Da Rosa. A Realidade Transcendental - Uma Introdução À Trans-


cendentologia, Edições Bagaço, Recife, 1999.

Cage, John. Para los Pajaros, Caracas-Venezuela: Mote Ávila Editores, 1981.

Cage, John. The future of Music in: FERREIRA, Glória e COTRIM, Cecília.(org) Escritos
de Artistas – Anos 60/70, Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 2006.

Eco, Umberto, Obra Aberta, São Paulo, Perspectiva, 2005.

Jenny, Hans. CYMATICS - A Study of Wave Phenomena and Vibration I 1967 e II 1974.

Leros, Martha. Musica a chave do universo, Editora Cube dos Autores, 2010. E-book
Disponível em: <https://books.google.com.br/books?hl=pt-R&lr=lang_pt&id=qz-
BSBQAAQBAJ&oi=fnd&pg=PA32&dq=Chladni+arte+Hans+Jenny&ots=L3JM647M-
dx&sig=338m9BqFwRpphee9bG8wG0clkF8 >, Editora Cube dos Autores, 2010.
Acessado em 14/07/2016.

Maeda, John. As Leis da Simplicidade: Vida, Negócios, Tecnologia, Design. Edito-


ra Novo Conceito, 2006. Disponível em: <http://www.repia.art.br/ear/ear_colabora-
coes/as_leis_da_simplicidade_john_maeda.pdf >, acessado em 06/07/2019

Nepomuceno, Luíza de Arruda, Elementos de Acústica Física e Psicoacústica. São


Paulo: Edgard Bucher LTDA, 1994.

172
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Artigos acadêmicos, Anais de eventos e Revistas

Gardenal, Isabel. Disponível em: < http://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2013/06/07/


som-alto-em-balada-pode-viciar-avisa-especialista > visitado em 05/02/2019.

Gordon, Gould, R.”The LASER, Light Amplification by Stimulated Emission of Ra-


diation”. In Franken, P.A. and Sands, R.H. (Eds.). The Ann Arbor Conference on Optical
Pumping, the University of Michigan, 15 June through 18 June 1959. p. 128.> OCLC
02460155.

Passos, Krishna. Epicentros Cimáticos no Brasil. Disponível em: <https://art.me-


dialab.ufg.br/up/779/o/Krishna_Passos.pdf> . Acessado em 06/08/2018.

Passos, Krishna. Silencio: O Som – Apontamentos. Universidade do Porto – Facul-


dade de Belas Artes – FBAUP, Porto, Portugal.Disponível em:<https://drive.google.
com/file/d/1fh6zXjl7zyLi0nRJZWVjCIBoLWlXiZY7/view > Acessado em 06/08/2018.

SHELDRAKE, Rupert. A Mente Ampliada Disponíel em: <https://archive.org/details/


AmenteAmpliadaRupertSheldrake/page/n11>. Acessado em 20/12/2019.

Rolnik, Suely. Molda-se uma alma contemporânea: o vazio-pleno de Lygia Clark,


1999. < https://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Molda.pdf >
Acessado em: 02/03/3019.

Dissertações de Mestrado

Petraglia, Marcelo Silveira. Estudo sobre a ação de vibrações acústicas e música


em organismos vegetais. Mestrado em Biologia Geral e Aplicada (UNESP). Disponí-
vel em: <http://www.ouvirativo.com.br/mp7/pdf/tx_mp_dissertacao.pdf> Acessa-
do em 15/08/2016.

Zolnerkevic, Igor. Acústica de fluidos ideais análoga à gravitação, Disser-


tação de Mestrado: Instituto de Física Teórica Universidade Estadual Paulista,
São Paulo, 2004. Disponível em: <https://repositorio.unesp.br/bitstream/hand-
le/11449/132729/000855317.pdf?sequence=1> visitado em novembro de 2018.

Web sites

Lucier, Alvin. Alvin Lucier. Disponível em: <http://alucier.web.wesleyan.edu/works.


html>. Acessado em 05/09/2016.

173
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Lucier, Alvin. As Chimney Draws. Disponível em: <http://supanickblog.blogspot.


com.br/2011/07/alvin-luciers-queen-of-south.htm>. Acessado em 05/09/2016

Lucier, Alvin. The Queen of the South Returns: Alvin Lucier. Disponível em: <http://
tvonm.editions75.com/articles/1973/the-queen-of-the-south-returns-alvin-lucier.
html> Acessado em 05/09/2016

Sem Autor - Ginkgo-biloba: <https://www.tuasaude.com/ginkgo-biloba/ > Acessado


em 05/01/2019

174
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Victor Hugo Alves Araújo1

Oferendas Performativas – Poéticas Ritualísticas como


arquiteturas de consagração
Performative Offerings - Ritualistic Poetics as Consecration Architectures

Resumo
O artigo investiga o processo criativo no campo da arte-tecnologia em obras
denominadas Oferendas Performativas. As obras são experienciadas enquanto
um organismo estético configurado no sistema artista-obra-observador. A con-
figuração desse sistema se dá no exercício de consagração dos espaços. Esse
processo evoca conexões ancestrais da religiosidade afro-brasileira no contexto
da arte contemporânea em Poéticas Ritualísticas. Nelas são utilizadas sonori-
dades digitais capturadas através do sampleamento das narrativas míticas da
musicalidade dos Orixás, a fim de modelar esculturas sonoras. Essas narrativas
míticas possuem um caráter pedagógico que se contrapõe à uma pedagogia
da modernidade exercida no sistema de arte. A hipótese trabalhada no artigo é
que a reconexão com saberes da ancestralidade pode fomentar propostas cria-
tivas que operam uma reconfiguração das relações do humano com a natureza,
através de uma arte que considera enquanto potências criativas: a religiosidade
afro-brasileira, a performatividade e a tecnologia.
Palavras-chave: Oferendas Performativas, Poéticas Ritualísticas, Performance-Ritual

Abstract/resumen/resumé
The article investigates the creative process in the field of art technology in works
called Performative Offerings. The works are experienced as an aesthetic organ-
ism configured in the artist-work-observer system. The configuration of this system
occurs in the exercise of the consecration of spaces. This process evokes ancestral
connections of Afro-Brazilian religiosity in the context of contemporary art in ritual-
istic poetics. They use digital sounds captured by sampling the mythical narratives
of Orixás musicality to model sound sculptures. These mythical narratives have a

1 Victor Hugo Alves Araújo, Mestre em Artes Visuais pelo Programa de Pós-graduação da Universi-
dade de Brasília. Pesquisador nos campos da performance, arte-tecnologia e arte-sonora, investiga
as práticas performativas em um entrelaçamento das poéticas da religiosidade afrobrasileira, da
arte-tecnologia, e da arte-sonora. O artigo aqui apresentado é uma revisão de duas seções de sua
dissertação de mestrado denominada: Oferendas Performativas - Esculpindo sonoridades digitais
no panteão afrobrasileiro.

175
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

pedagogical character that contrasts with a pedagogy of modernity exercised in the


art system. The hypothesis worked in the article is that the reconnection with the
knowledge of ancestry can foster creative proposals that operate a reconfiguration
of human relations with nature, through an art that considers as creative powers:
Afro-Brazilian religiosity, performativity and technology.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: Performative Offerings, Ritualistic Poetics, Per-
formance-Ritual

Oferendas Performativas

Imagem 1 - Oferenda Performativa 1 - LAROYÊ EXU! EXU MOJUBÁ!


Registro: Phil Jones

176
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Imagem 2 - Oferenda Performativa 2: Ogum Yê! Patakori Ogum!


Registros: Téo Augusto

Imagem 3 - Oferenda Performativa 3: Polifonia Alquímica Registro: Fábio e Letícia - Laboratório


Nano2 – Universidade Federal do Rio de Janeiro

2 “O núcleo laboratorial NANO foi instituído em setembro de 2010, e atua no âmbito da graduação e
do Programa de Pós Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes – UFRJ. Tem por finalidade
desenvolver pesquisas prático-teóricas na área de artes com foco específico em sua intersecção com
a tecnologia e a ciência, dispondo de espaço laboratorial para pesquisa prático-teórica neste eixo
temático.” Acessado em 05/10/2019 em: http://www.nano.eba.ufrj.br/
177
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

As imagens apresentadas acima são registros das obras denominadas: Oferendas


Performativas. Essas obras propõem um exercício experimental entre arte, tecnolo-
gia e religiosidade afrobrasileira. As obras apresentadas não pretendem ser pedago-
gias para rituais a fim de formatar liturgias. 3 As obras são executadas de modo a não
espetacularizar as manifestações da religiosidade das culturas populares no âmbito
afrobrasileiro. As culturas populares podem ter sua definição como um conjunto
heteróclito 4 de manifestações culturais concebidas, trabalhadas e preservadas por
diversas comunidades, em diferentes períodos históricos, nas quais envolvem arte,
religiosidade e medicinas naturais em seu contexto. (Carvalho, 2010, p.44) Essas ma-
nifestações culturais são concretizadas de forma independente da estrutura oficial
do Estado e estabelecem relações constantes de troca entre si. (Carvalho, 2010, p.44)
A religiosidade afrobrasileira é aqui tratada em um recorte dos cultos considerados
afrocêntricos em suas variações mais sincréticas, ou menos, tais como: a macumba, a
umbanda, a pajelança, a jurema, o catimbó, o candomblé, o xangô.

Na investigação deste artigo são feitas análises transversalizadas das práticas e ex-
periências ritualísticas da religiosidade afrobrasileira com as práticas e experiências
das tradições esotéricas. As tradições esotéricas tratadas aqui são “uma corrente de
pensamento e espiritualidade que surgiu também como uma reação muito parti-
cular à modernidade e suas conquistas materiais e filosóficas.” (Carvalho, 2006,
p.7) As tradições esotéricas em suas práticas podem fazer alusão ao um movimento
de reativação de uma religiosidade antiga em seus ensinamentos e iniciações. Essa
corrente esotérica de pensamento opera enquanto contraparte às manifestações
religiosas exotéricas das grandes religiões (cristianismo, islamismo e judaísmo). A re-
ligiosidade exotérica se caracteriza pelas práticas de auto-realização serem excluídas
dos rituais ou colocadas em um estado genérico, trivial, e sem a constituição de uma
mística 5, pois a compreensão das práticas de contato com o divino é intermediada
por uma hierarquia de princípios e o por um exercício de poder, acessível somente a
esfera sacerdotal. As obras aqui apresentadas trabalham a religiosidade no sentido
do autoconhecimento em uma manifestação esotérica de exercício na construção

3 “A palavra liturgia compreende uma celebração religiosa pré-definida, de acordo com as tradições
de uma religião em particular; pode incluir ou referir-se a um ritual formal e elaborado ou uma ativi-
dade diária.” Acesso em: 17/08/2019. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Liturgia
4 Adjetivo com o significado o que contraria as regras da arte, o que é excêntrico, fora do comum,
composto por elementos distintos e variados, heterogêneo. Definido pela sua diversidade de estilos
e gêneros; eclético. Acesso em 30/06/2019. Disponível em https://www.dicio.com.br/heteroclito/
5 Segundo Jakob Böhme (1983), a mística “enfatiza a atenção imediata da relação direta e íntima
com Deus, ou com a espiritualidade, com a consciência da Divina Presença. É a religião em seu mais
apurado e intenso estágio de vida. O iniciado que alcançou o segredo é chamado um místico. Os
antigos cristãos empregavam a palavra”“contemplação” para designar a experiência mística.” Acesso
em: 17/08/2019. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Misticismo

178
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

do artista. Sua investigação trabalha a relação entre a sonoridade, a tecnologia, a


religiosidade e arte.

A pesquisa é articulada no artigo de forma transdisciplinar (Couchot, 2001) e sistê-


mica (Nóbrega, 2009) entre diferentes domínios de conhecimento acadêmico e não-
-acadêmico tais como: arte, natureza, mitologia e ciências. Essa articulação trabalha
com duas noções no movimento investigativo da pesquisa: a noção de diálogo, e a
noção de entrelaçamento. No âmbito da articulação sistêmica da pesquisa ocorre
o movimento de diálogo entre esses domínios, pois cada domínio é observado de
forma específica em suas relações com outros domínios. Por exemplo, a ressonância
pode ser investigada especificamente nos domínios da física, da música e da religio-
sidade em uma articulação sistêmica, que faz emergir as possibilidades de diálogo
entre os domínios manifestadas na potencialidade do som. No âmbito da articula-
ção transdisciplinar da pesquisa ocorre o movimento de entrelaçamento6 desses do-
mínios nas práticas artísticas e na jornada de construção do artista. Esse movimento
fornece a conexão para os domínios e amplia a perspectiva analítica da pesquisa. Por
exemplo, nas práticas artísticas a ressonância pode ser investigada em sua potência
no campo afetivo criado pela interação artista-obra-observador, em uma noção de
campo ligada à física. Na jornada do artista o entrelaçamento pode ser evidenciado
nas experiências de construção do conhecimento que remontam a uma série de
saberes acadêmicos e não-acadêmicos em uma perspectiva em rede. Por exemplo,
a ressonância investigada nos rituais afrobrasileiros relacionada à atuação da magia.
Essa rede de saberes possui elos que conectam ciência e ancestralidade em pontos
de mutação 7 da jornada do artista.

Neste artigo o relato da pesquisa é feito na primeira pessoa do plural utilizando a


perspectiva do artista em uma abordagem antropológica êmica 8, na qual ele está
inserido no recorte cultural pesquisado, neste caso praticante da religiosidade afro-

6 Esse conceito está relacionado com o conceito de “entrelaçamento quântico (ou emaranhamento
quântico, como é mais conhecido na comunidade científica) [que] é um fenômeno da mecânica
quântica que permite que dois ou mais objetos estejam de alguma forma tão ligados que um objeto
não possa ser corretamente descrito sem que a sua contraparte seja mencionada - mesmo que os
objetos possam estar espacialmente separados por milhões de anos-luz.”
Acesso em: 17/08/2019. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Entrelaçamento_quântico
7 Segundo Capra, F. (1982), o ponto de mutação é o ponto de desconstrução dos paradigmas anti-
gos ligados ao método reducionista, científico ou mecânico para um método holístico ou sistêmico
que utiliza uma visão do todo como um sistema, um organismo em funcionamento.
8 Segundo Rosa, M. & Orey, D C. (2012, p.867), “a abordagem êmica procura compreender determi-
nada cultura com base nos referenciais dela própria. Em outras palavras, a abordagem ética é a visão
externa, dos observadores e investigadores que estão olhando de fora, em uma postura transcultu-
ral, comparativa e descritiva, enquanto a abordagem êmica é a visão interna, dos observados que
estão olhando de dentro, em uma postura particular, única e analítica.”

179
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

brasileira. (Rosa & Orey, 2012, p.867) A utilização da primeira pessoa do plural é um
recurso estilístico para criar uma ressonância entre o relato da pesquisa, as obras
apresentadas e jornada de autoconhecimento do artista. Assim, a utilização dos pro-
nomes pessoais e possessivos na transcrição da pesquisa gera um movimento de
dissonância entre a essa escolha estilística, obras apresentadas no artigo e a jornada
de construção do artista. Tal uso implicaria na construção de um olhar segregado
do recorte cultural pesquisado ao tratar a alteridade, e atribuiria uma separação do
artista em relação ao público, e sua consequente atribuição soberana como autor
das obras. Desse modo, o discurso desempenhado nesta dissertação em seu sentido
êmico, procura afirmar a psique enquanto “multiplicidade” (Bernier, 2016, pp. 25-26),
e almeja relatar os processos artísticos em uma possibilidade diferenciada do “mo-
delo burguês de artista.” (O´Doherty, 2002, p.86)

Onilé - Terra Mater


As sociedades que participam do denominado “modelo ocidental” possuem como
característica a prevalência de três campos de atuação: a ciência, a tecnologia, a eco-
nomia. (Berger & Domingues (Eds), 2003, p.41) Na arte essa atuação cria um sistema
de arte constituído por: artistas, galerias, museus, negociantes e público. Nos cam-
pos de atuação desse modelo ocidental a noção de materialidade é o que valida o
natural. Isso acarreta na exclusão de outras noções do natural de domínios que dia-
logam fora dessa noção de materialidade, como por exemplo a religiosidade. Nessa
noção esses domínios são reduzidos a um estado de subcultura, e somente o conhe-
cimento científico contém uma possibilidade de verificação universal. Esse “ciência-
-centrismo” torna-se uma crença que unifica o modelo de modernidade ocidental.
(Berger & Domingues (Eds), 2003, p.41) Essa crença surge da perspectiva colocada
por Descartes 9 baseada na distinção entre o homem e o animal, na qual o animal
é tratado como insensível, inconsciente, e imune ao sofrimento. Essa perspectiva
fomenta a crença de uma humanidade diferenciada, separada dos demais processos
da natureza, consequentemente a natureza torna-se um objeto. Hoje sabemos das
consequências graves que esse discurso produziu desde do processo escravista, na
qual diversos povos foram tratados como meras ferramentas de trabalho, a explo-
ração de diversas espécies de animais para fins mercadológicos, até a completa de-
vastação de vários ecossistemas. Esse discurso, conforme destaca Viveiros de Castro
(2012), fomenta uma distinção fundacional das ciências humanas no projeto da mo-
dernidade, onde a ordem do cosmológico e a do antropológico, natureza e cultura
são separadas. (p.152)

9 Essa perspectiva é colocada em: Descartes, R. (1973). Discurso do método. (Trad. J. Guinsburg e
Bento Prado Jr.). (Coleção Os pensadores, vol. XV). (pp. 33-80). São Paulo: Abril Cultural.

180
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

No campo das artes esse processo de separação foi enaltecido e promulgado no pro-
cesso civilizatório das Américas. Esse processo civilizatório subjugou diversos povos
como meras ferramentas de trabalho, teve na arte a expressividade de um discurso
que arquitetou a passagem do modo rural para o modo urbano de vida. Portanto,
não se trata apenas de um discurso científico, técnico ou econômico, mas sim de
uma relação onde a construção de uma identidade objetifica e manipula a alterida-
de, e a arte nesse aspecto legitimou esse discurso em seu projeto de modernidade.

Entretanto, no atual contexto em que as consequências desse modelo ocidental de


modernidade tornam-se cada vez mais evidentes, “laços de outrora, que recusam
a separação, se tecem para abrir um horizonte a descobrir”. (Berger & Domingues
(Eds), 2003, p.40) Nesse contexto as relações estão cada vez mais interligadas o iso-
lamento, a separação são sobrepujados pela sociedade em rede10. Podemos notar
nessa configuração o alcance dos laços das tecnologias como um movimento de
“uma aspiração de encontrar nossos laços com nossas origens.” (Berger & Domin-
gues (Eds), 2003, p.40) Neste sentido, acreditamos que as manifestações religiosas
afrobrasileiras podem nos fornecer possibilidades para essas aspirações, pois sua ri-
tualística está ligada a natureza de forma inseparável. Nessa religiosidade o humano
não é um produto ou resultado da natureza, ele é a própria natureza manifestada na
forma humana, em sua conexão com as divindades. Mas como a constituição desse
espaço sagrado de conexão acontece?

Mircea Eliade (1992) nos ajuda na obtenção de uma resposta, pois em sua perspec-
tiva a constituição de uma espacialidade sagrada acontece em uma hierofania, ou
seja no ato de manifestação da sacralidade, em um movimento que determina os
espaços que são sagrados e outros espaços que não sagrados. Nessa manifestação
a espacialidade não é homogênea, pois possui roturas, quebras e existem porções
de espaço qualitativamente diferentes das outras. (Eliade, 1992, p.17) Nessas roturas
na espacialidade está a ontologia11 da constituição do mundo, pois emerge delas
uma realidade absoluta em contraposição a uma realidade extensiva que circunda o
humano. Nessa realidade absoluta está situado em um eixo central, um Axis Mundi12

10 O conceito de Sociedade em Rede crivado por Manuel Castells (1999) aborda o contexto mediado
pelas novas tecnologias de informação e comunicação como remanejadores das estruturas sociais.
Castells, M. (1999). A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra.
11 “Qualquer religião, mesmo a mais elementar, é uma ontologia: ela revela o ser das coisas sagradas
e das figuras divinas, mostra o que é realmente e, ao fazê-lo, funda um mundo que já não é evanes-
cente e incompreensível.” Eliade, M. (1989). Mitos, Sonhos e Mistérios. (Trad. Samuel Soares). (p.10).
Lisboa: Edições 70.
12 Axis mundi significa “centro do mundo”, “pilar do mundo” é um símbolo ubíquo que atravessa as
culturas humanas. A imagem representa um centro no qual a eternidade e a terra encontram-se
entre os quatro cantos do mundo. Acesso em: 17/08/2019. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/
wiki/Axis_mundi

181
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Na mitologia afrobrasileira Olodumare13 é essa força criativa central que criou o cos-
mos de um êxtase de si mesmo. Cabe a Olodumare dirigir e animar o cosmos, o que
garante a dinâmica da vida e composição do mundo para cosmos não se tornar no-
vamente caos. Portanto, a fundamentação cósmica é consequência da manifestação
do sagrado na extensão de todo cosmos. Nessa mitologia as manifestações da na-
tureza estão diretamente ligadas aos Orixás, como sendo as próprias manifestações,
ou seja uma ontofania 14 e uma hierofania estão unidas. Deste modo, as relações
com natureza exercem o papel do laço que nos chama, pois nelas estão as conexões
com o espaço na manifestação da sacralidade. Podemos fazer um paralelo com a
hipótese da Terra como um superorganismo 15, onde cada Orixá tem seu espaço e
onde se relacionam, e se integram. Dessa relação surgem crenças ligadas ao Orun
(Céu) e a Aiê (Terra) em uma cosmogonia. Esse paralelo também é encontrado em
diversas culturas em imagens, esculturas e artefatos, com uma gama muito variada
de formas, que se remetem a Terra Mater ou a Tellus Mater16. (Campbell, 2015) Na
mitologia afrobrasileira essa divindade é Onilé. Onilé carrega nela a base de toda a
vida, nascimento e morte é a “Dona de Ilé”, “Dona da Terra”, recebe também a alcunha
de “Aiê”17. (Prandi, 2003, p.568)

As práticas, em uma arte que está ligada a uma perspectiva diferente do modelo
ocidental, incorporam saberes não estabelecidos pelo discurso da modernidade.
Por esse motivo acreditamos que tais práticas nos trazem novas possibilidades de
integração entre as esferas científicas, éticas, estéticas e religiosas, criando pontes
onde havia um gap metafísico. Esse gap metafísico é a noção cartesiana da dualida-
de supranatural entre nós e mundo, entre o corpo e mente. (Fogliano, F., Rocha &
Santaella (Eds). 2017, p.22) Em nossas proposições artísticas de arte-tecnologia essa
noção dualidade busca ser refutada no contexto de interação das obras. Portanto,
o público tratado anteriormente apenas como sujeito contemplador das obras, por

13 Conforme Prandi (2003, p.568), “Olodumare: Deus Supremo. Criou os orixás e deu a eles as atribui-
ções de criar e controlar o mundo”.
14 O mito em sua “manifestação vitoriosa de uma plenitude de ser, torna-se o modelo exemplar de
todas as atividades humanas: só ele revela revela o real, o superabundante, o eficaz.” Eliade, M. (1992)
O sagrado e o profano (Trad. Rogério Fernandes). São Paulo: Martins Fontes.
15 Conforme aponta Lovelock, J. E. (1997), sua hipótese é que a Terra com sua biosfera e os com-
ponentes físicos da Terra: atmosfera, criosfera, hidrosfera e litosfera integrados formam um sistema
que procura manter o processo de homeostase como um superorganismo. Lovelock, J. E. (1997). A
Terra como um organismo vivo. In: WILSON, E. O. (Ed.). Biodiversidade. (pp. 619-623) Rio de Janeiro:
Nova Fronteira.
16 Mãe Terra. (tradução nossa)
17 Conforme Prandi (2003, p. 68) aponta: “Orixá feminino pouco conhecido no Brasil, homenageado,
contudo, em candomblés tradicionais da Bahia e candomblés africanizados, especialmente no início
do Xiré (ritual).”

182
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

meio dos recurso técnicos torna-se um “interator”, “interagente” e possivelmente um


“co-autor” do processo criativo. (Rocha, 2014). Nesta pesquisa o público está deno-
minado como “observador”, pois tal denominação faz referência ao tipo de abertura
interativa executada nas obras. Trata-se de um observador emancipado, ativo, re-
configurado pelas noções da física moderna, e considerado integrado ao contexto
observado. Nessas obras de arte-tecnologia o processo pode ocorrer por meio de
instruções poéticas, nas quais a interação aciona a experiência estética. No caso das
obras aqui apresentadas, esse recorte se dá na relação da audiência com o perfor-
mer, os recursos técnicos da tecnologia, e os elementos da religiosidade afrobrasilei-
ra. Nesse sentido, concordamos que a arte-tecnologia pode provocar “uma mudança
radical em nossa relação percebida com a realidade”, em possibilidades integrativas
das interações experienciadas nas obras. (Ascott, 2003, pp.280-319) Percebemos que
essa mudança provoca novas possibilidades sensitivas, nas quais o sentido de indiví-
duo cede ao sentido da interface. (Ascott, 2003, pp.280-319) O sentido das interfaces
trabalha em zonas fronteiriças que por vezes tornam-se indiscerníveis, consequen-
temente essa atuação pode nos permitir perspectivas diferenciadas do espaço e o
tempo em relação à percepção psíquica e à sensorialidade ordinária. Nessa pers-
pectiva, a noção de temporalidade linear é alterada e saímos de uma consciência
histórica para experienciamos uma consciência ligada a um tempo mítico, mágico.
(Flusser, 1984, p.7)

Poéticas Ritualísticas - arquiteturas de consagração


Na religiosidade afrobrasileira existem instrumentos para o processo de consagração
de território, eles são: Assentamentos, Firmezas e Ferramentarias. Nesta consagração
o aporte para esse processo é performado pelo o que denominamos de Poéticas
Ritualísticas. Mas o que nos motiva ao processo de consagração de um território?
Numa religiosidade imersa na natureza o cosmos está aberto e acessível ao humano.
O cosmos aberto significa acesso e comunicação com as divindades no processo de
integração do humano, em uma sacralidade que transita entre o mundo material e o
mundo espiritual.(Eliade, 1992, p.21) Como vimos em uma hierofania é consagrado
um espaço, onde essa religiosidade tem seu Axis Mundi. Nela nenhum ato é tratado
como trivial, pois os atos compõem um rito, e os ritos compõem um ritual. Em nossa
experiência na religiosidade afrobrasileira, essa composição articula o processo de
sacralização. A partir dessa experiência, podemos fazer um paralelo, referenciado do
ato relacionado às ações de organização ou preparação operativa do sagrado - por
exemplo macerar as ervas em um pilão. No caso do rito podemos relacionar pontos
de contato e agregação com o sagrado - por exemplo os ritos de iniciação. No caso
dos rituais podemos relacionar com os processos de comunicação com o sagrado -
por exemplo as oferendas ritualísticas.

Na constituição dessa poética do espaço sagrado podemos demarcar os seguintes


elementos ritualísticos: o tempo mítico, às relações com a Natureza, o conjunto dos

183
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

utensílios e a consagração do espaço, nos quais nos ritos e rituais são imantados
com o Axé dos Orixás. Esse processo está ligado às funções vitais do espaço sagrado
seja: templo, moradia, locais de alimentação, sexualidade, trabalho ou os próprios
corpos. Portanto, a constituição dos espaços sagrados é ativada, quando se reproduz
enquanto obra dos Orixás. Assim, o corpo é esse espaço sagrado que possui uma
mitologia inscrita, pois nele o axé “se materializa por meio do provisório transe e
de marcas permanentes.” (Camargo, 2014, p.35) Observamos que o espaço sagrado
está em movimento para gerar permanência ou passagem. Nesses fluxos do Axé,
podemos exemplificar a permanência evocada nos rituais de iniciação, e a passagem
evocada nas danças cerimoniais.

Esse fluxo acontece em um Axis Mundi, pois o mundo é entendido como heterogêneo,
e o espaço seja qual for é portador de Axé18. “Esteticamente um ser humano ou um
objeto é belo porque traz consigo uma determinada qualidade e quantidade de axé
e realiza assim uma comunicação entre ele e a comunidade” (Barbára, 2000, p.151).

O projeto da modernidade em sua separação natureza e humano, objetificou os atos


e institucionalizou os ritos e rituais em uma religiosidade exotérica. Contudo, nesse
projeto o processo de constituição da sacralidade dos espaços não foi abolido, mas
apenas deslocado. Na arte percebemos esta objetificação manifestada nas galerias.
Nelas as paredes são pintadas de branco, o chão é polido ou encarpetado e o teto
possui uma iluminação artificial. Essa proposta caracteriza o que podemos denomi-
nar de cubo branco. (O´Doherty, 2002) Tal proposta sugere um espaço homogêneo
e hermético derivado do ascetismo ritual proveniente da idade média, onde “não se
come, não se bebe”, “não se enlouquece, não se canta, não se dança.” (O´Doherty,
2002, p.XIX) A religiosidade afrobrasileira opera em contraponto a esse ascetismo19,

18 Conforme Prandi (1991, pp.1-50), “Axé é força vital, energia, princípio da vida, força sagrada dos
orixás. Axé é o nome que se dá às partes dos animais que contêm essas forças da natureza viva, que
também estão nas folhas, sementes e nos frutos sagrados. Axé é bênção, cumprimento, votos de bo-
a-sorte e sinônimo de Amém. Axé é poder. Axé é o conjunto material de objetos que representam os
deuses quando estes são assentados, fixados nos seus altares particulares para ser cultuados. São as
pedras e os ferros dos orixás, suas representações materiais, símbolos de uma sacralidade tangível e
imediata. Axé é carisma, é sabedoria nas coisas-do-santo, é senioridade. Axé se tem, se usa, se gasta,
se repõe, se acumula. Axé é origem, é a raiz que vem dos antepassados, é a comunidade do terreiro.
Axé se ganha e se perde.”
19 O ascetismo é uma relação com a religiosidade em um estilo de vida austero visando ao desenvol-
vimento espiritual, ou seja “muitos ascéticos acreditam que a purificação resultante do corpo com a
prática ascética ajuda a purificação da alma, a compreensão acerca de uma divindade ou a encontrar
a paz interior. Tais objetivos também poderiam ser obtidos com a automortificação, rituais, ou uma
severa renúncia ao prazer. Ascéticos defendem que essas restrições auto impostas trazem grande li-
berdade em várias áreas de suas vidas, tais como aumento das habilidades para pensar limpidamen-
te e para resistir a potenciais impulsos destrutivos.” Acesso em: 17/08/2019. Disponível em: https://
pt.wikipedia.org/wiki/Ascetismo_(filosofia)

184
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

pois no ritual se come, se bebe, se dança, se canta e até mesmo o “enlouquecimento”


é permitido nos estados de transe ocasionados pelas possessões dos Orixás. Entre-
tanto, alguns artistas a partir dos anos 60 e 70, tais como: Michael Heizer, Robert
Smithson, Lygia Pape, Iole de Freitas, Nuno Ramos e José Resende promoveram uma
estratégia poética para abertura do cubo branco.

O sítio específico20 propõe o processo criativo de obras voltadas às conformidades


de um ambiente num espaço determinado. Essa estratégia se dá com o planejamen-
to de criações artísticas com uma temporalidade efêmera, baseadas em um chama-
mento ao público para comparecer a um determinado local, onde a obra dialoga
com a ambiente. Essa proposta incorpora os espaços e traz a possibilidade de rela-
ção com a natureza, como, por exemplo, nas obras de land art 21. A estratégia de sítio
específico tem como mote o rompimento com uma arte formalista, onde a natureza
é uma representação, para uma arte que natureza é a própria obra. Ao propormos
aberturas no cubo branco a arte pode torna-se pública e acessível, contudo essa es-
tratégia ainda é experienciada e retida no sistema de arte. Portanto, essa estratégia
poética sugere um caráter político na qual o contexto torna-se conteúdo.

O cubo branco em sua constituição é um instrumento de controle da temporalida-


de, pois tenta “descorar o passado e ao mesmo tempo controlar o futuro” operando
como um sistema fechado que sacramenta a arte pela reclusão, exclusão e o enve-
lhecimento (O´Doherty, 2002, p.XXI). A conceituação de arte passou a ser “o que
era colocado lá dentro, retirado e reposto regularmente.” (O´Doherty, 2002, p.102)
Contudo, a proposta de arte ambiente não é uma inovação que surge a partir dos
anos 60, 70. Desde do início do século XX algumas obras executam esse movimento,
no qual obra enquadra a galeria e seus preceitos e o contexto torna-se conteúdo das
obras. Podemos citar os exemplos de obras conhecidas por intervenções ou instala-
ções que executavam esse movimento: “Merzbau”(1923) de Schwitters ou “1200 Sa-
cos de Carvão”(1938) de Duchamp. Observamos, nessas obras a tentativa de romper
com o projeto homogêneo da galeria modernista e sua sacralidade. Podemos fazer
um paralelo entre o processo de construção da arte nas instalações artísticas, o pro-
cesso de constituição dos espaços sagrados na religiosidade. Ambas manifestações
são uma ocupação do cosmo mediante um ritual para a tomada da posse de um
território. Entretanto, em uma religiosidade ligada à natureza, como o caso da reli-
giosidade afrobrasileira esse espaço está aberto para o contato e comunicação com
outras camadas do cosmos. O espaço não está objetificado, ele está em movimen-

20 Ver em: SITE Specific. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú
Cultural, 2019. Acesso em: 10 de Junho. 2019. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.
br/termo5419/site-specific Verbete da Enciclopédia.
21 Movimento artístico dos anos 60, 70 que propuseram no ambiente natural ou áreas urbanas.
Podemos citar os artistas como: Christo, Jeanne Claude, Anne Cauquelin.

185
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

to como uma “máquina para habitar” o universo. (Eliade, 1992, p.32) Essa máquina
para habitar está conectada ao seu operador em sua jornada mitológica. Conforme
aponta Pierre Verger, na mitologia dos Orixás houve um movimento nesse sentido
decorrido do fluxo da diáspora africana: “Quando o africano foi transportado para
o Brasil, o orixá assumiu um caráter individual, ligado ao destino do escravo, agora
separado de seu grupo familiar originário.” (Verger, 2002, p.33).

Nesse sentido, Verger (2002) complementa que o assentamento deixou de ser de


responsabilidade coletiva e se tornou uma responsabilidade individual. Decorrente
desse sentido a uma reelaboração das relações do humano com a mitologia. Ocorre
um processo de significação total, pois o indivíduo estabelece suas relações de acordo
com sua própria gramática afetiva. (Segato, 2005, p.412) As obras apresentadas nes-
ta pesquisa são instalações, nas quais a poética ritualística provêm de religiosidade
afrobrasileira. São denominadas de Oferendas Performativas que evocam o processo
comunicacional dessas poéticas ritualísticas na interação do corpo do performer com
as sonoridades digitais, os elementos da natureza e os observadores em uma arquite-
tura do espaço sagrado na egrégora dos Orixás. Podemos citar outros artistas que em
jornadas mitológicas na religiosidade afrobrasileira produziram suas obras em suas
gramáticas afetivas como: Denise Camargo, Ayrson Heráclito e Dalton Paula.

Imagem 4 - Conjunto de registros da performance Bori, 2009.


Registro Fotográfico: Marcelo Terça Nada
Acesso em: 14/08/2019 Disponível em: http://ayrsonheraclitoart.blogspot.com.br/

186
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Imagem 5 - Conjunto de registros da performance Bori, 2009.


Registro Fotográfico: Marcelo Terça Nada
Acesso em: 14/08/2019 Disponível em: http://ayrsonheraclitoart.blogspot.com.br/

No âmbito da interação, a possibilidade participativa foi usada com astúcia pelo sis-
tema da arte, pois a partir dos anos 80, ela proporcionou a geração de um mercado
que transforma a arte em espetáculo. (Basbaum, 2007, p.120) Nesse tipo de arte a
alteridade é exotizada, estereotipada. Podemos fazer um paralelo desse movimen-
to com a junção do formato tradicional dos museus de belas artes com os museus
nacionais, ou seja, o templo da arte formalista se unifica com o templo da arte ob-
jetificada, estereotipada. Trazemos aqui a definição do antropólogo José Jorge de
Carvalho para esse processo:

Defino “espetacularização” como a operação típica da sociedade de massas, em que um evento,


em geral de caráter ritual ou artístico, criado para atender a uma necessidade expressiva especí-
fica de um grupo e preservado e transmitido através de um circuito próprio, é transformado em
espetáculo para consumo de outro grupo, desvinculado da comunidade de origem. (Carvalho,
2010, p.45)

O processo de espetacularização trabalha em uma tríade: apelo, atração e atenção


para gerar o aprisionamento do olhar dos observadores. A oposição na relação com
a alteridade, constrói essa tríade de poder sobre o olhar “em um espaço comum e fa-
miliar aberto às trocas”. (Carvalho, 2010, p.50) Não necessariamente o processo des-
sa tríade acontece em uma galeria, pois na estratégia poética do sítio específico é
possível haver uma troca “de posições, entre quem olha e quem é olhado.”(Carvalho,
2010, p.50) Essa condição no sistema de arte, de objetificação do olhar está voltada
ao consumo da participação aprisionada na ilusão da interação, como possivelmen-
te algo até pedagógico para uma proposta de se pensar sobre as artes. Essa pedago-
gia da modernidade na arte onde o artista propõe um espetáculo por meio de uma
ideia se contrapõe à pedagogia mitológica, pois o ensinamento do mito se dá de
forma opaca em jornada de autodesenvolvimento. Essa opacidade está relacionada

187
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

a troca de saberes através da oralidade, na qual a origem dos saberes pertencem à


coletividade. Conforme O´Doherty afirma: Atualmente fazemos algumas das velhas
perguntas sobre a ausência do público e para onde ele foi. A maioria das pessoas
que hoje contempla a arte não está contemplando a arte; elas contemplam a ideia
de “arte” que têm na cabeça. (2002, p.94)

Nesse sentido, nas Oferendas Performativas uma atitude recorrente ocorreu no


processo de interação artista-obra-observador. Ao ser ativada a sensorialidade os
observadores comumente faziam perguntas sobre os elementos de ativação dessa
interação. O que significa esse incenso nessa religiosidade? O que significa a relação
dessa vela com a planta? Porque a obra está posicionada dessa forma no ambiente?
O que determinadas palavras ou ritmos significam nessa religiosidade? Um exemplo
dessa recorrência aconteceu no Museu Nacional da República, em um evento inter-
nacional de arte-tecnologia, na Oferenda Performativa 2: Ogum Yê! Patakori Ogum!

Imagem 6 - Oferenda Performativa 2: Ogum Yê! Patakori Ogum!


Registro: Teo Augusto

Nessa obra notamos diversas manifestações para inclusão de um caráter pedagógi-


co as obras, no qual os observadores estão habituados no sistema de arte. Esse tipo
de manifestação teve seu clímax quando um observador afirmou para outro obser-
vador sobre a planta utilizada na obra: - essa é uma Espada de São Jorge. São Jorge
na religiosidade afrobrasileira é geralmente sincretizado com Orixá Ogum. Outro ob-
servador prontamente respondeu: - essa é uma espada de Iansã, eu sei porque um
dos meus alunos é filho de santo dessa religiosidade e me explicou que essa é uma

188
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

espada de Iansã. A convicção desse observador no caráter pedagógico foi tamanha,


que ao responder o outro observador ele imediatamente saiu e não leu o título da
obra com referência ao Orixá Ogum. Portanto, percebemos que ao estabelecermos
um diálogo das artes com a religiosidade afrobrasileira as obras podem ser expostas
a um caráter de espetacularização, pois a poética ritualística dessa religiosidade é re-
conhecida como pertencente a uma alteridade que pode ser objetificada. Contudo,
as culturas populares são redutos de resistência “à pressão das elites para homoge-
neizar uma cultura nacional segundo a perspectiva da cultura erudita ocidental.”(-
Carvalho, 2010, p.44) Oferendas Performativas ao consagrarem os espaço em uma
jornada mitológica individual sugerem a inversão do jogo de captura do sistema de
arte através da espetacularização, pois são parte de uma manifestação devocional:
interventiva, singular e híbrida, enquanto proposta de resistência, com seus aromas,
sons, cores, texturas, com sua magia.

Considerações Finais
A pesquisa aqui considerada, analisou a religiosidade afrobrasileira, a performativida-
de dos corpos e elementos da natureza, e a tecnologia por meio da arte sonora como
aporte para obras no campo da arte-tecnologia em uma jornada mitológica individual
na construção do artista. Essa sonoridade pode proporcionar práticas artísticas que
buscam uma ruptura das fronteiras das hierarquias impostas culturalmente pelo mo-
delo ocidental, através da distinção entre formas eruditas e populares. Essas práticas,
em uma arte que está ligada a uma perspectiva diferente do modelo ocidental, in-
corporam saberes não estabelecidos pelo discurso da modernidade. Esse processo de
ruptura se dá em uma reconfiguração aflorada das Poéticas Ritualísticas que exercem
na Performance-Ritual a construção do espaço sagrado, em um fluxo que se remete a
criação de um Cosmos no sistema artista-obra-observador, enquanto obras no campo
da arte-tecnologia. A pesquisa investigou o jogo de captura do sistema de arte através
da espetacularização da alteridade. Nas propostas das obras é estimulada uma inver-
são do jogo de captura do sistema da arte. Esse movimento, onde o contexto torna-se
conteúdo, ocorre na contraposição ao caráter pedagógico operado por esse sistema
que objetifica e exotiza à alteridade, por um caráter pedagógico das narrativas mitoló-
gicas dos Orixás em Poéticas Ritualísticas.

Referências Bibliográficas
Ascott, Roy. (2003). Telematic Embrace: Visionary Theories Of Art, Technolo-
gy, And Consciousness. (Roy, Ascott. (Eds). & Edward, A.). Los Angeles, California:
Shanken University Of California Press Berkeley.

Barbára, Rosamaria S. (2000). A dança Sagrada do Vento. (In: Faraimará, o caça-


dor traz alegria: Mãe Stella, 60 anos de iniciação, Org. Cléo, Martins. & Raul, Lody.).
(pp.150-166). Rio de Janeiro: Pallas.

189
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Basbaum, Ricardo. (2007). Além da pureza visual. Rio de Janeiro: Editora Zouk.

Boehme, J. (1983). O Príncipe dos Filósofos Divinos. (1. Ed., p.29). (In: Composto e
Impresso na Grande Loja do Brasil). Curitiba, Paraná: Biblioteca Rosacruz.

Bernier, N. (2016). O Eneagrama - Símbolo de Tudo e Todas as Coisas. Brasília:


Gilgamesh.

Camargo, Denise. (2014). Imagética do candomblé. Uma criação no espaço míti-


co-ritual. Brasília: Fundação Cultural Palmares.

Campbell, Joseph. (1997). O voo do pássaro selvagem: ensaios sobre a universa-


lidade dos mitos. (Trad. de Ruy Jungman) Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos.

Campbell, Joseph. (1990). O poder do mito / Joseph Campbell, com Bill Moyers.
(Trad. de Carlos Felipe Moisés). São Paulo: Palas Athena.

Campbell, Joseph. (2015) Deusas: Os Mistérios do Divino Feminino. (Trad. Carlos


Felipe Moisés). (Org. por Betty Sue Flowers). São Paulo: Palas Athena,

Carvalho, José Jorge de. (2010). Revista ANTHROPOLÓGICAS. (Ano 14, Vol.2, pp.
39-76). Caracas, 28 de Novembro de 2008.

Carvalho, José Jorge de. (2006). Uma Visão Antropológica do Esoterismo e uma
Visão Esotérica da Antropologia. (Série Antropologia Vol. 406). Brasília: DAN/UnB.

Capra, F. (1982). O Ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix.

Couchot, Edmond. (2001). Pour une pensée de la transversalité. (In: SOULAGES, F.


(Eds.) Dialogues sur l’art et la technologie). Paris: L’Harmattan.

Domingues, D. (2003). Arte e Vida no Século XXI: Tecnologia, ciência e criativida-


de. São Paulo: Editora UNESP.

Eliade, M. (1992). O sagrado e o profano. (Trad. Rogério Fernandes). São Paulo: Mar-
tins Fontes.

Eliade, M. (1989). Mitos, Sonhos e Mistérios. (Trad. Samuel Soares). Lisboa: Edições 70.

Flusser, V. (1984). Towards a Philosophy of Photography. Germany: European Pho-


tography.

Nóbrega, C.A.M. (2009). Art and Technology: coherence, connectedness, and the
integrative field. (Tese apresentada à Universidade de Plymouth em cumprimento
parcial para o grau de doutorado). School of Art & Media, Faculty of Arts. Plymouth,
Inglaterra.

190
Harmonias Sonoras: Homeostasia #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Rocha, C. (2014). Pontes, janelas e peles: Cultura, poéticas e perspectivas das


interfaces computacionais. Goiânia: MédiaLab/UFG.

Rocha, C., & Santaella L. (2017). Ignições [recurso eletrônico] / organização. (Cole-
ção Invenções). Goiânia : Media Lab/UFG.

Rosa, Milton., & Orey, Daniel Clark. (2012). O campo de pesquisa em etnomode-
lagem: as abordagens êmica, ética e dialética. (Vol. 38, n. 04, pp. 865-879). São
Paulo: Educ. Pesqui.

O’ Doherty, Brian. (2002). No Interior do Cubo Branco - A Ideologia do Espaço da


Arte. (Trad. Carlos Mendes Rosa). São Paulo: Martins Fontes.

Prandi, Reginaldo. (1991). Os candomblés de São Paulo. São Paulo: Hucitec.

Prandi, Reginaldo. (2003). Mitologia Dos Orixás. São Paulo: Companhia Das Letras.

Segato, Rita Laura. (2005). Santos E Daimones: O Politeísmo Afro-Brasileiro E A


Tradição Arquetipal. (Vol. 1, 2ªed). Brasília-DF: Ed-UNB.

Verger, Pierre Fatumbi. (2002). Orixás. Salvador: Corrupio.

Viveiros De Castro, Eduardo. (2012). “Transformação” Na Antropologia,

Transformação Da “Antropologia”. (Vol. 18, pp. 151-171). São Paulo: Mana.

191
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Instalação e Espaço/
Design Interativo

Installation and Space /


Interactive Design

192
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Angela Maria Gonçalves Cardoso1

Trânsitos do Laboratório - Arte e Tecnologia,


Pablo Palazuelo e Victoria Vesna.
Transits of the Laboratory - Art and Technology, Pablo Palazuelo
and Victoria Vesna

Resumo
A exposição retrospetiva PABLO PALAZUELO Proceso de Trabajo. MACB-5-12-06 a
18-2-07; e a conferência (ln) Tangibles: Nanopercepció i Mon Quantic. Vitoria Vesna,
David Peat, CCCB- 24-3- 07, criam uma perspetiva da relação Arte-Ciência-Tecno-
logia. Essa perspetiva é aqui apresentada nos argumentos evidenciados pela obra
deste artista e desta nanocientista. A obra, na sua função figurativa emergente, flui
entre dois tempos: o da vida de Palazuelo (Madrid, 1915-2007) e Vesna (Washing-
ton D.C.,1960). Estas figurações materializam-se através da pintura e escultura em
PaIazueIo e em instalações interativas, ambientes digitais virtuais, performances
polisensoriais, em Vesna. Este “tête a tête”, conquista um espaço introdutório para
a criação de obras unidas numa temática: a Mandala. A transição entre imagens de
grãos de areia que revelam ondas padrão aparecendo a uma escala nanométrica,
é evidente na referência formal e concetual na obra de Palazuelo. Assim sendo, as
formas na matéria emergem seja pela via de atelier ou de laboratório.
Palavras-chave: Arte-ciência, Laboratório, Linguagem Gráfica

Abstract/resumen/resumé
The retrospective exhibition PABLO PALAZUELO Proceso de Trabajo. MACB-5-12-06
a 18-2-07; and the conference (ln) Tangibles: Nanopercepció i Mon Quantic. Vito-
ria Vesna, David Peat, CCCB24-3-07, create a perspective of the Art-Science-Tech-
nology relationship. This perspective is presented here in the arguments evidenced
by the work of this artist and this nanocientist. The work, in its emergent figurative
function, flows between two times: that of the life of Palazuelo (Madrid, 1915-2007)
and Vesna (Washington D.C., 1960). These figurations materialize through the

1 Artista Visual e Professora Universitária. Doutoramento: U. Barcelona, Faculdade de Belas Artes &
UTAD. Mestrado: Univ. do Porto & Faculdade de Belas Artes. Jurada do IPC. Expõe em Portugal, Es-
panha e França. O seu trabalho abrange áreas como desenho, pintura, instalação e videoarte. Inves-
tigadora nos temas: Arte e Ativismo, Relação Arte-Ciência-Tecnologia, Leonardo DaVinci. “TIMELES-
SNESS, IDENTITY AND SELF REPRESENTATION ON LEONARDO´S MONA LISA”. Docência na U.Minho,
Instituto Piaget e UTAD.

193
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

painting and sculpture in PaIazueIo and in interactive installations, digital virtual


environments, polysensorial performances, in Vesna..”This “tête a tête”, conquers an
introductory space for the creation of works united in a theme: Mandala. The tran-
sition between images of sand grains that reveal standard waves appearing on a
nanoscale scale is evident in the formal and concetual reference in Palazuelo’s work.
Thus, the forms in matter emerge either by atelier or by laboratory.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: Art-Science, Laboratory, Graphic Language

PABLO PALAZUELO E VITORIA VESNA, LABORATÓRIO DE FORMAS

Fig.1 - Estúdio de Pablo Palazuelo. La Peralega. Galapagar. Madrid 1969


Fig.2 - Scanning Tunneling Microscop. PICOLAB. UCLA 05

O conteúdo deste tema, evoluirá desde o acontecimento até a um argumento


como contributo constitutivo da pergunta “como equacionar a relação arte, ci-
ência, tecnologia?”.

Consideramos ser definitivo no desenvolvimento deste estudo o facto de em 2007


termos tido a oportunidade de presenciar dois acontecimentos seguintes: A exposi-
ção retrospetiva PABLO PALAZUELO Proceso de Trabajo. MACB-5-12-06 a 18-2-07;
e a conferência (ln) Tangibles: Nanopercepció i Mon Quantic. Vitoria Vesna, David
Peat, CCCB- 24-3-07.

194
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fascinados pelo conjunto de 350 obras de Pablo Palazuelo e igualmente atraídos


pela visão alargada de Vitoria Vesna, aconteceu um fechar no tempo como inves-
tigadora, a que correspondeu uma abertura para uma outra perspetiva da relação
arte-ciência- tecnologia dada por estas manifestações. A relação arte-ciência ficaria
intuitivamente gravada em nós como um espaço mental em que “sob a aparência do
universo, do Tempo do Espaço e da Mobilidade está sempre encoberta uma realida-
de substancial, uma verdade fundamental em energia infinita.2“

Essa realidade tentaremos retomá-la aqui nos argumentos evidenciados pelas obras
destes dois artistas. A obra, na sua função figurativa3* emergente, flui entre dois tem-
pos: o da vida de P. Palazuelo (Madrid, 1915-2007) e V.Vesna (Washington D.C.,1960).

Ambas manifestam entre si diferença e repetição, e o que pesa afinal nestes artistas
é a sua liberdade, é a finalidade específica das suas vidas.

Estas funções figurativas materializam-se através da pintura, escultura e escrita em


Pablo PaIazueIo; e em instalações interativas, ambientes digitais virtuais, performan-
ces polisensoriais, artigos académicos, por parte de Vitoria Vesna.

P. Palazuelo, pintor, escultor, artista reflexivo, vivendo em Paris, no ano de 1952, na


Rue St. Jaques (Notre-Dâme), rodeado de editores e livreiros especializados em lite-
ratura cabalística e esotérica, entrou na livraria La Tour de St. Jaques, atraído pelos
livros expostos cheios de diagramas e signos. Aí conhece Claude d’Yge.

Em relação a esse momento refere: “Claude acabara de publicar una Anthologie de la


Poesie Hermetique y Nouvelle Assemble des Philosophes Chymiques. (...) A partir de
aquel encuentro se fue estableciendo una relación de amistad, más de maestro- dis-
cípulo que tuvo varias consecuencias para mí. Siguiendo su sindicaciones, comencé
el estudio de algunos tratados de alquimia.

Esos estudios, que exigen esfuerzo y paciencia los continúo aún hoy día. (...) De la
Iectura pasaba al trabajo gráfico (...).4“

2 Vesna, Victoria - in - http://nano.arts.ucla.edu


3 Zambrano, Maria. O Sonho Criador, p.79.
* “Função figurativa, modo propriamente criador que se dá em argumentos, nos quais a história
declara o seu sentido e se salva em forma de poesia.”
4 Palazuelo, P. - Processo de Trabajo. p. 284-285
* P. Palazuelo - 1995-2005.Museo Reina Sofia. ”(...) en sus escritos Palazuelo alude constantemente
a la ‘imaginación activa’ e insiste en que es la energia que genera su obra. Corbin se expande sobre
este significado en los siguientes términos: ‘(...) es el órgano que permite la transmutación de los es-
tados espirituales internos en externos, en visiones que existen en una relación simbólica con dichos
estados internos. Se alcanza el camino hacia el espacio espiritual, o es esta transmutación la que da
un carácter espacial a este espacio, crea espacio, proximidad, distancia y lejanía (...) esta es la razón
porque Palazuelo afirma que una vez que la abstracción se ha inventado ya no hay vuelta atrás.”
195
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Na sua vasta e profunda obra vinculada ao estudo do número, da física, do pensamen-


to científico e pensamento oriental, a imaginação activa* funciona como catalisador
dessa realidade oculta e o mundo real como um órgão de conhecimento.

Por outro lado, Vitoria Vesna, artista, catedrática do Dept. de Design/Media Arts.
UCLA, diretora do Art/Sci Center e do VC Digital Arts Research Network, tem vinculada
à sua obra e investigação a relação entre nanotecnologia, arte e cultura;

V. Vesna afirma: “(...) procuro uma aproximação desde a perceção mais subtil no
trabalho artístico tendo como finalidade os aspetos precetivos da física quântica.5“

Paralelamente colocamos aqui as afirmações de Kevin Power acerca do aspeto per-


cetivo na produção artística de P. Palazuelo: “Palazuelo está embarcado en un ‘relato’
de Io que sabe, de Io que há percebido, sentido e visto como subyacente a todo.
Busca las formas que subyacen a todas las formas, las energias que hacen que toda
Ia energia se mueva, los cúmulos que guían a los campos de fuerza. Su obra trata
del os ritmos de Ia percepción, de las estructuras y los patrones geométricos que
subyacen a toda manifestación de vida y que están en nosotros e en Ia naturaleza,
de las intuiciones de la percepción desnuda* y eI carácter revelador de Ia visión.6“

Este longo relato de que fala Kevin Power, o relato “de lo que há percebido, sentido e
visto como subyacente a todo (...)7 “ é realizado no PICO LAB da UCLA (05) através de
um instrumento, o SCANNING TUNNELING MICROSCOP (STM).

A magnificação na era da realidade virtual coloca a investigação no sentido de os


cientistas conseguirem progressivamente alta definição da imagem a nível nanomé-
trico. Uma equipa especializada da IBM encontrou um meio de manipular e mover
átomos e moléculas, afirmando que não há limitações físicas.

O STM representa o paradigma em que o ver é substituído pelo tocar, sentir. Estão
abertos novos campos criativos pela expansão de campos percetivos. Poderemos
dar como exemplo a obra INNERCELL (03) de Vitoria Vesna, que permite uma expe-
riência espaciotemporal, em analogia com o nano-espaço. A manipulação atómica
provoca uma alteração nos sentidos, complicando a normativa perceção do corpo e

5 http://sinapse.art.ucla.edu
* Gil, José - Imagem Nua e Pequenas Percepções, p.18: A “Imagem Nua” caracterizada por no mo-
mento da sua percepção se encontrar despojada de significação real, pode encontrar-se em todo
o domínio do real visível, em todas as representações de que os seus correspondentes verbais não
se incluam, contendo uma carga não consciente de sentido. Verificamos então que estamos mergu-
lhados num mundo de imagens nuas. A percepção de imagens nuas provoca um apelo de sentido.”
6 Palazuelo, PabIo - Desdobrável da Exposição MACB.06-07
7 Idem

196
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

a compreensão da escala. Por outro lado, SENCESPACES, Vitoria Vesna (O3), pressen-
tindo a saturação da imagem, cria a uma escala atómica a experiência de apreender
através da subtileza do toque.

As palavras nanotecnologia, molécula, gene e virtual tornam-se os elementos chave


desta experiência. Perceber e sentir a nível do não-visível, são referências na obra de
Palazuelo que afirma: “(...) sujeto e objeto se interpenetran e se encuentran integrados
en un todo que constituye un sistema vivo (...) la nueva visión de la realidad se funda
en la toma de conciencia de que existe una interdependencia entre todos Ios fenóme-
nos físicos, biológicos, psicológicos, sociales e culturales. (...) habría que formular una
red de conceptos e modelos que pasarán por encima de las distribuciones convencio-
nales entre disciplinas y utilizaran cualquier Ienguaje siempre que este sea apropiado
para describir Ios diferentes aspectos de Ia estructura de múltiples niveIes.8“

O argumento de alargamento de consciência percetiva, como meio e método para


chegar à manifestação da representação, testemunhado múltiplas vezes nas afirma-
ções de Pablo Palazuelo ao longo da sua vida, tem também na reflexão de Vitoria
Vesna a preocupação de permitir a um grupo cada vez mais vasto de pessoas o co-
nhecimento proporcionado pela instrumentalização da nanociência.

V. Vesna afirma: “Num curto período da história muitas coisas novas apareceram,
criando as condições perfeitas para uma simbiose natural entre arte-ciência-tec-
nologia. Outra década passaria antes que as pessoas que ocupam estes mundos
criativos expandissem o seu campo percetual relacionando os pontos de vista uns
dos outros. Há uma necessidade genuína de abraçar novos sentidos, uma troca da
perceção visual por outro tipo de perceções. A nanociência, a escala nanométrica, e
a media art são poderosas sinergias que podem promulgar, no séc. XXI, a emergên-
cia de uma nova 3ª cultura; abarcando trocas biologicamente inspiradas, uma nova
estética e diferentes conceptualizações.9“

Palazuelo, em 1976, falava deste plano de interceções da seguinte forma: “La ciencia
penetra cada vez más profundamente en eI misterio de Ia materia formada, y el arte
puede hacerlo también por sus propios medios, buscando allí otras cosas que aún
no han sido reveladas.10 “

Vitoria Vesna, em conferência na ARCO (Madrid-2006), falava sobre as tecnologias de


comunicação afetam o comportamento coletivo, e como a perceção da identidade
se relaciona com a inovação científica.

8 Palazuelo, Pablo- Processo de Trabajo. E1 Paseante n°4, p.1986. MACB, p. 290.


9 Vesna, V. - The Nanosindrome – http://sinapse.artsucla.edu
10 Amon, Santiago –Conversación com Pablo Palazuelo, p.10

197
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O impacto da nanociência na consciência, de uma forma experiencial, leva-a a con-


cluir o seguinte: “Trata-se de compreender e manipular essa complexidade a níveis
cada vez mais insuspeitados. Acredito que esta ciência precisa de outra forma de
arte para inter-relacionar, projetar e movimentar as pessoas numa nova forma de
pensar para o mundo que vivemos.11”

Este “tête a tête” que aqui colocamos entre estes dois artistas conquista um espaço
introdutório para a referência de obras unidas numa mesma temática comum aos
dois artistas, a temática da Mandala.

Mandala (do sânscrito manda-essência, la-contentor) tem como significado hindu o


círculo concêntrico de energia. Este símbolo encontra-se no Oriente e também nas
Mandalas cristãs da Idade Média. Constitui um sistema de representação psico-cós-
mico, “onde a ação de criação de uma Mandala é devolvida a um domínio interior e
sagrado que é forte e objetivo, contendo a unidade vida-consciência, revelador da
Imanência e do seu potencial em nós mesmos, o retorno à unidade pela delimitação
de um espaço sagrado e atualização de um tempo divino.12”

A escolha das obras, a seguir indicadas, reflete não só a abordagem da mesma te-
mática, mas também a relação arte, ciência e tecnologia na abertura que o cerne
deste trabalho coloca: a diferença e repetição como fundamento para a sua análise
conceptual e formal.

As obras em causa são: Pablo Palazuelo (1960-2007): MANDALA II – 1964 (1,46 x


88) - Coleccion Sres René G. Zentner; MANDALA III - 1965 (2,35 x 1,44) – Coleccion
Sres René G. Zentner; Vitoria Vesna: Monges Budistas Tibetanos. Mosteiro de Gaden
Lhopa Kangtsen; SANDMANDALA - 2006 - (8m x 8m). Los Angeles County Museum;
NANOMANDALA - 2006 - (nano escala) - Instalação multimédia. Los Angeles County
Museum. Pico Lab. VCLA.

A afirmação deleuziana que subtitula este capítulo, “todos os acontecimentos co-


municam um único acontecimento13” enuncia a circunstância em que diferença e
repetição, em cada obra, se mostra como algo que está aqui subjacente à ideia de
infinitamente grande e infinitamente pequeno. Citando Jorge Wagensberg argu-
menta-se que: “a procura é a (...) beleza: Io que se repite dentro de una misma cosa.
(...) Ia inteligibilidad: Io que se repite en cosas diferentes.14”

11 Vesna, V - The Era of Posthuman Engineering - International Arts Experts Forum - ARCO 06
12 Power, K. - La Imagínacion Activa. P. Palazuelo, p.20
13 Deleuze, Gilles- Diferença e Repetição, p.57
14 Wagensberg, J.- EI Gozo Intelectual, p.149

198
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Neste caso os instrumentos da mente, o método da ciência, e os meios da téc-


nica aproximam-se para afirmar em diferença a ideia que leva até à visibilidade
do apresentado.

PABLO PALAZUELO MANDALAS. MODUS OPERANDIS


“No hablemos de quadros sino de ideas.”

Abarcar o pensamento, o seu “corpo colossal de pensamento”, e a obra deste artista


não se justificaria neste contexto. Assim, para além da informação essencial ao enten-
dimento da estrutura da sua mente íntima, processual, restringir-nos-emos à análise
das obras MANDALA. Pablo Palazuelo atravessaria o portal da passagem do século
num entorno de muitas outras circunstâncias artísticas, culturais, sociais e políticas. A
perspetiva de Kevin Power sobre a sua colocação na história da arte é a seguinte: “ (...)
se diferencia de la abstracción clássica en que no busca Ia autonomia de las formas
sino Ia tensión entre ellas, el proceso de transformación que ellas sufren. (...) de ahí que
las investigaciones formales de Palazuelo constituyen una ruptura de los postulados
modernistas, con Ia salvedad de que Ia Iiteralidad en su obra es fruto de un proceso
interior, reflexivo, a diferencia de Ia Iiteralidad objectual del minimalismo.15”

Esta transformação e o seu processo criador poderão enquadrar-se nos seguintes


itens. Pablo Palazuelo refere que tudo se passa num espaço universal e mental, afir-
mando: “Mi visión del cosmos es atemporal. EI universo es atemporal. EI universo
como un enorme pensamiento.16”

Em relação ao carácter revelador da visão diz: “La visión es una forma de ver Io que
no se ofrece a nuestra vista. Su papel en el fenómeno de Ia percepción es superior
al que juegan los sentidos?17” A imaginação ativa, conceito fundamental da função
criadora, para Palazuelo tem um potencial visionário: “EI inconsciente pude producir,
con grand efectividad y de modo espontáneo, Ia representación de una estructura
matemática que sea expresión de una orden. (...) es Ia idea de epifanía, movida por
fuerzas psico-espirituales Ia que domina a percepción. (...) una doctrina filosófica y
científica que proporciona Ia traducción de una visión el mundo interior y exterior
basado en ritmos o microcósmicos 18”.

Em relação a este assunto Kevin Power afirma: “(...) EI mundo imaginalis, mundo de
la imagen, sería entonces un mundo tan real que desde el punto de vista ontológico

15 Power, Kevin- La Imagínación Activa, In Pablo Palazuelo, Processo de Trabajo, p. 11


16 Power, Kevin- Geometria y Visión. Una Conversación con Pablo Palazuelo, p.27
17 Power, Kevin- Espiritualidade Orgânica de Palazuelo, p.15
18 Idem

199
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

como el mundo de los sentidos y del intelecto, un mundo que requiere una facultad
de percepción que Ie pertenezca, una facultad cognitiva (…).19”

Em relação à energia e à forma, tão importante na conceção a nível da manifesta-


ção pictórica, o artista afirma: “Es Ia imaginación Ia que va añadiendo a las formas
aqueIIo que les falta para hacerse. Este seria eI deseo verdadero, el deseo que no
puede tener la iIusión de pararse en una forma definida y fija pues su objeto son
las formas dela vida ilimitada. (...) Ia forma se manifiesta siempre con Ia energía e
la materia. (...) las energías del universo contienen, como nos dice Jung, ‘todas las
condiciones y cualidades que determinan las formas’. Estas condiciones y cualidades
son imperceptibles e irrepresentables hasta que no Ilegan al umbral de Ia conciencia
donde adoptan las imágenes de estructuras numerales y geométricas.20”

Falando da forma, Pablo Palazuelo acrescenta: “La imaginación activa, se comporta


como el hiIo de pescar Ianzado a las aguas oscuras, sin fondo, para captar un pez
‘ictus’, que a su vez es señal ‘icnos’, como escucha profunda que oye Io que de allí vie-
ne. (…). Las formas con las que trabajo tienen su propia historia genética, su historia
familiar, pues siempre proceden unas de las otras y siempre son semejantes - en el
sentido matemático - dentro de una determinada familia o Iinaje.21“

Abordando a ideia da importância do desenho na sua obra, o artista tece a seguin-


te reflexão: “Dibujar es tener una conciencia crepuscular, un estado ligeramente
conciente. EI acto de repetir, forma parte de esa conciencia crepuscular y sirve para
provocar una transformación de Ia conciencia en una conciencia de duermevela.
(...) Cuando dibujo se producen movimientos estructurales y otras alternancias en
el despliegue de las sucesivas conformaciones que integran Ia composición, en
todo momento pueden seguir moviéndose, según Ia coherencia interna de sus
formas componentes. 22”

A afirmação do artista: “Si se mira bien, dibujar es cosa enigmatica23*” remete-nos


para as primeiras obras sobre o tema Mandala no sentido da sua evolução estrutural.

19 Idem, p.19
20 Palazuelo, Pablo- Energia, Materia y Forma, in P. Palazuelo- Processo de Trabajo, I995-2005. p.48
21 Idem, p.53
22 Esteban, Claude- Pablo Palazuelo, p. 20
23 Idem, p.32
* Mandala ‘el ojo filosófico’ o ‘el espejo de la sabiduría’. Las formas laberínticas de Palazuelo de los
anos sesenta pueden ser entendidas como Mandalas. El Mandala no es tan solo un medio sino que
también reacciona sobre su creador. Cierto que Palazuelo no esta creando “Mandalas” en el sentido
estricto del término, pero lo es que intenta crear ‘imágenes’ contemporâneas que sean capaces de
situarse dentro de un dominio sagrado similar”.

200
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Na correspondência entre Claude Esteban e Pablo Palazuelo, publicada pela galeria


Maeght de Barcelona, há uma carta de Palazuelo que encerra com a seguinte per-
gunta: “Que és Io inmemorial, extraño que uno quiere conocer?”24

Esse imemorial, poderá ver-se em resquícios visíveis de desenhos na obra MANDALA


(1958) (Fig. 5). A presença da linha na sua absoluta pureza de movimentos é, na obra
de Palazuelo, indicador dessas formas que segundo o artista, são “signos y merices
de todos Ios signos de todos Ios Ienguajes, legibles e ilegibles (…).”25

O conceito de transgeometria abordado pelo artista, (na partícula trans - trânsito,


passagem interior de um para o outro e matra - medida, matéria), usado como dis-
tinção entre a geometria de Palazuelo e a praticada pela maioria dos pintores, é as-
sim descrito: “(...) yo buscaba otra expresión diferente a Ia mera combinación de un
triángulo y un rectángulo.

Un Ienguaje que goza de un aceso al entendimiento de las formas, de todas las co-
sas, ya que Ia materia-prima, cuyo símbolo es el agua, la fluidez y Ia fertilidad, el
estado continuo de cambio. 26“

Fig.3 - MANDALA (39,5 x 25cm) Frente. 1956


Fig.4 - MANDALA (39,5 x 25cm) Verso 1956

O conjunto de Mandala é claramente um exemplo desse trânsito da forma em que


o artista mede forças com a íntima proporção da natureza na sua natureza. As “ma-

24 Palazuelo, P & Esteban, Claudic- Palazuelo, p.49


25 Idem, p.108
26 Power, Kevin - Espiritualidad Orgânica de Palazuelo, in P. Palazuelo, p.21

201
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

nifestações” apresentadas nas (Figs. 3,4), estão geradas a partir de linhas retas que se
cruzam, linhas essas que, no entender de ViIIel Borja e José Cuyás, “ (...) van del infinito
al infinito. No son composiciones cerradas, sino abiertas, en expansión rítmica.27 ”

Fig.5 – MANDALA,1958. Carnegie Institute. Pittsburg

A Mandala de 1958 (Fig. 5) é de suma importância para a repercussão Internacional


da obra de Paulo Palazuelo. No ano em que faz uma exposição individual na galeria
Maeght de Paris, consumaria nos Estados Unidos o seu reconhecimento ao obter o
prestigioso Prémio Carnegie.

Esta obra é nitidamente parte evolutiva das de 1956, sendo que o traçado da line-
aridade do desenho desaparece quase totalmente abrindo um espaço pictórico de
matéria em pulsação de formas Iatentes.

Este é o registo de ritmos Cristalográficos de uma matéria superficial ou, como diria
o seu autor; “rumor imperceptible Ilegado de outra escala del mundo. 28“; ou, como
Claude Esteban escrevia numa das suas cartas ao seu “Querido Palazuelo: “La musica-
lidad que se desprende de Ia composición e del encadenamiento de figuras, como un
regreso aI unísono, tras eI concierto desordenado, caótico, de las voces singulares. 29“

O seu fundo é negro como ainda no seu consciente fundo, fundado sem forma e
contendo todas as formas, fundo literal em devir. Este fundo manter-se-á na evo-
lução destas obras temáticas, desocultando no trabalho do artista as matérias e a
sua energia fundadora, abrindo-se em cor reveladora. As investigações formais de

27 Cuyas, José & Villell-Borja, M.- Diálogos de los Números. in Palazuelo, Proceso de Trabajo. p.38
28 Esteban, Claude- Palazuelo. p.117
29 Idem, p.125

202
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Palazuelo sobre o ritmo falam-nos de relações entre a obra e a composição musical,


referindo-se a elas nestes termos:

“(...) lo que ellos llaman ‘envolturas de sonido’ inscritas en un polígono sugiere la


onda. Se trata de una metamorfosis através de muchas operaciones gráficas.30”

Fig.6 – P. Palazuelo, Mandala III, (2,35x1,44) 1965. Coleccion Sres René G. Zenner
Fig.7 – P. Palazuelo, Mandala II, (1,46x88cm) 1980. Galeria Maeght - Barcelona.

Para além da manifestação de espaços ondulatórios provenientes da onda de energia


dos polígonos, as obras apresentadas abarcam ainda outro elemento pictural, a cor.

Não obstante a presença de branco, negro, vermelho e amarelo na sua obra, tam-
bém aparece o verde e o azul. Resultado de um “processo informante”, as Mandalas
de 1964-65 (Figs. 3,4) são dominadas pelo vermelho, laranja, amarelo e ocre. Sobre a
cor Palazuelo diz: “Me interesa la “trans-formación”, o pasajes (...). EI “rojo” estaria mas
cerca del ‘enrojecer’ que de Io ‘rojizo’, y al mismo tiempo, violeta o naranja... y muy a
menudo ennegrece o azulea31. “

Santiago Amon, em entrevista ao artista, pergunta: “Cabe estabelecer un particular


simbolismo vital, desde el punto de vista estritamente cromático?32 “

Em relação à operação alquímica e ao valor simbólico da cor, Pablo Palazuelo res-


ponde: “En los procesos de sublimación de transformación de la sustancia, el alma

30 Palazuelo, P.- in Palazuelo. Amon, Santiago p.10


31 Idem, p.11
32 Ibidem, p.11

203
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

humana ‘imagina’ la aparición de los colores en un orden que es casi constante. Pasa
por el ‘negro’ (imaginado, primero como substancial-tenebroso), por el ‘citrino iri-
discente’ (amarillo-verdoso, que evoca la multiplicidad de transformaciones), por el
‘blanco’ (Ia iluminación), y llega al ultimo ‘rojo’ que el artífice imagina rubió carbunclo
por su orden cristalino y por ser ‘receptáculo de Ia luz’ (y del fuego). La aparición de
una ‘forma feliz’ es siempre un acontecimiento maravilloso, (...) Io que colma los de-
seos del artista, que anuncia el ‘fin’ de sus trabajos.33“

Cabe-nos acrescentar que esse “fin” como finalidade de encontro íntimo, na elabo-
ração das Mandalas, inscreve-se no simbolismo da cor destas Mandalas, absoluta-
mente realizado, correspondendo ao esquema de um princípio conciliador entre a
“diversidade” da natureza e a “unidade” do espírito. Palazuelo continua afirmando ser
necessário: “Levantar las infinitas arquitecturas de Ia vida. De la materialidad. EI dios
que canta es Orfeo.34“

VITORIA VESNA MANDALA. NANOMANDALA | MODUS OPERANDIS


Cabe-nos agora dar início à apresentação e análise de uma obra que tendo como refe-
rência uma artista com formação de cientista, apresenta no seu trabalho semelhanças
conceptuais com a obra de Pablo Palazuelo. Matéria e forma encontram realizações
dissonantes que apesar disso se reúnem num único espaço de reflexão.

Fig.8 - Monges tibetanos, Gaden Kangtsen. Country Museum, L.A. 06

33 Ibidem, p.12
34 Ibidem, p. 10

204
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A relação arte-ciência é cabalmente assumida pelos dois, sendo seus referentes, por
um lado, o tangível na ciência através da tecnologia, e na obra de Pablo Palazuelo o
“tangível” na metafísica, através do experienciável na produção artística.

A Mandala de areia realizada pelos monges tibetanos do mosteiro Gaden Kangtsen,


Índia, no Los Angeles County Museum (2006) em interação com a instalação multi-
média NANOMANDALA de VICTORIA VESNA. 35 (Los Angeles County Museum & Pico
Iab.UCLA. 2006), é representativo do ideário desta artista-cientista. A disposição in-
tencional de átomos cria semelhanças com o método que os monges usam, para
Iaboriosamente criarem imagens de areia, partícula a partícula; contudo as culturas
ocidentais e orientais usam esta prática com diferentes perceções e propostas.

A instalação incorpora a Mandala (um diagrama cósmico e símbolo ritualista do uni-


verso, usado no hinduísmo e budismo, cuja tradução do sânscrito é de “todo”, “círculo”,
“zero”), em conjugação com a exposição de Arte Budista no County Museum de L.A.

Fig.9 - Esquema Projectual e Técnico


NANOMANDALA

A obra NANOMANDALA** foi concetualizada da seguinte forma36: Num suporte de


oito metros de diâmetro coberto de areia branca, uma sequência de Mandala criada

35 Vesna, Victoria- http://nano.arts.ucla.edu


* Ucla - Design Media Arts
36 http://nano.arts.ucla.edu

205
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

pelos monges ao vivo e reproduzida num laboratório nanotecnológico, com um


microscópio ótico de scanner por eletrões, são projetadas ambas as imagens.

Esta aproximação de arte, ciência e tecnologia é uma interpretação moderna de uma


tradição que consagra o planeta e os seus habitantes para conseguir purificação e
cura. Esta Mandala nunca tinha sido feita nos Estados Unidos. Depois de a Mandala
de oito metros de diâmetro estar concluída, dois dos monges na companhia do nano
cientista James Gimzewski 37, recriaram o centro da Mandala diretamente sob o STU.

Foi decidido pelos monges fazê-lo no espaço onde Vesna e Gimzewski fazem o seu
trabalho de investigação (PICOLAB). O uso tecnológico de materiais muito mais
delicados que a areia não intimidou os monges.

A criação da Nanomandala a nível microscópico começou com a transição do fim da


magnificação obtida com a câmara digital para a do microscópio ótico. Amostras de
areia que os monges usaram foram montadas no Microscópio Scanner de Electrões (SEM).

Fig.10 – Centro de Chahrasamvara, Monges tibetanos James Ginzewski.

Com alta definição; as imagens foram gravadas em resoluções que ultrapassavam as do


microscópio ótico. Criar a transição entre imagens de dois grãos de areia no SEM foi um
desafio para a equipa. As imagens finais revelavam ondas padrão aparecendo a uma
escala nanométrica. A ideia seria criar uma única imagem de Mandala até à nano escala;
no entanto a tecnologia não estava preparada para lidar com um database de 300.000
imagens. A equipa decidiu por fim criar uma animação recorrendo a efeitos especiais.

37 http://lwwwdigicult.it/digimag/article.asp?id=668 - James Gimzewski (1956), Feynman Prize em


nanotecnologia (97), Duddle Prize (O1); membro honorário da Royal Academy de engenharia.

206
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fig.11 – Ondas padrão a uma escala Nanométrica. NANOMANDALA


Fig.12 - Nanomandala. PICOLAB. UCLA. 06
Fig.13 - Nanomandala. PICOLAB. UCLA. 06

Esta experiência de magnificação vivenciada como intermediária de expansão per-


cetiva cria a seguinte reflexão em Vitoria Vesna: “Vivemos numa cultura científica.
Acontece em todo o lado e isto tem já um grande impacto no papel da arte. Artistas
e humanistas tomam o papel de intérpretes e levantam questões sobre os pressu-
postos científicos.

Eu abraço a tecnologia, mas como qualquer artista tomo liberdade para transgredir,
redesenhá-la e questionar sobre o papel que ela tem na nossa vida.38“ Estes territó-
rios invisíveis confrontam-nos com múltiplos valores de escalas e articulam-se em
diferentes níveis.

Estamos perante uma viagem em novos campos de criação que nos mostram a dinâ-
mica do infinitamente pequeno, convidando-nos a procurar conhecer mundos para-
lelos e mentais de profunda carga imaginativa. Neste trabalho, Vitoria Vesna coloca
o público literalmente dentro de um grão de areia; através da ciência que manipula
a matéria até à escala do nanometer.

REFLEXIVO DIFERENÇA E REPETIÇÃO

Figs. 14,15 – Pablo Palazuelo. Nanomndala. 2006


Fig. 16 - Pablo Palazuelo. Mandala II. 1964

38 Vesna, Victoria- http:///ucdametorg/projects/networkphp

207
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

As imagens produzidas pelo PICOLAB-UCLA (2006) são indissociáveis das obras


Mandala lI e Mandala III (1964-65). Parece-nos pertinente, trazer a este aspeto da
reflexão a análise da sua relação, (Figs. 14,15,16). Fazê-lo a nível conceptual e for-
mal, pressupõe uma área de pensamento que permita manobrar a evidência desses
corpus. Encontrámo-lo na obra do filósofo Gilles Deleuze, Diferença e Repetição, e na
obra de Michel Foucault e Gilles Deleuze Theatrum Philosophicum.

Não podemos ter a pretensão de abarcar esse modo profundo de entrar no mundo,
o do filósofo clarividente, como é o pensamento e o ideário de Gilles Deleuze. Esta
é uma abordagem sintética, pois enunciamos neste estudo, apenas as ideias essen-
ciais que nos pareceram relevantes na compreensão do fenómeno pelas semelhan-
ças, diferença e repetição nas obras apresentadas.

Os termos dedutivos passam pela conceptualização das obras Mandala e Nanoman-


dala. O seu pressuposto é comum. Podemos enunciar na procura de uma espiritu-
alidade conduzida através de um ritual de representações simbólicas, em que os
arquétipos relacionados com o micro e macrocosmos emergem no ato da “imagem
no seu aparecer”.

À representação subjaz um denominador comum enunciado na seguinte afirmação


de Deleuze: “Chamamos representação à relação do conceito com o seu objeto, sob
este duplo aspeto, tal como se encontra efetuado na memória e na autoconsciên-
cia.39” Partilhando desta dedução, ambas as obras se vinculam a teorias formuladas
a partir dos centros de consciência que, como no oráculo de Delfos que diz “conhe-
ce-te a ti mesmo”, toma consciência de quem és, são um reflexo especular do universo
mental. Essa mente, que em Iabor tecnológico se aproxima da infinitesimal matéria,
é também a peculiar peça motriz de ambos os artistas.

Para além de todos os elementos mentais e processuais das três propostas: a do


artista, místico e cabalista Pablo Palazuelo, a dos contempladores, os Monges Tibeta-
nos do Mosteiro Gaden Khangsten e a da interativa, artista e Professora Universitária
Vitcoria Vesna ficam sob o nosso olhar as provas que toda essa circunstância de re-
flexão sobre o tempo, o ser, a tecnologia e a obra; essas provas testemunhais são-nos
dadas em pintura no atelier de Madrid de Palazuelo em 1956, em trabalho Iaborioso
do ritual de pintura granular pelos monges tibetanos e em observação indiscreta da
íntima matéria do mundo pela tecnologia do laboratório PICOLAB da Universidade
da Calofórnia, Los Angeles.

Voltamos à ideia inicial de repetição, como potência de linguagem. A análise agora


é formal. Situamo-la na ideia de fundo manifestada nestas representações como
matriz fundadora.

39 Foucault, M & Deleuze, G.- Theatrum PhilosoPhicum, p. 72

208
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Sobre esta problemática Deleuze escreve: “(...) a liberdade não mediatizada do fun-
do, a descoberta de um fundo atrás de qualquer outro fundo, a relação do sem-fun-
do com o não-fundado, a reflexão imediata do informal e da forma superior, cons-
titui o eterno retorno.40“ Estando longe de percorrermos um pensamento circular: é
necessário acrescentar que a repetição se opõe a todas as formas de generalidade.

O que também acontece aqui é que tentamos converter esta ideia de repetição
num “novo”, em relação com a diferença constitutiva das obras. Essa manifesta-se
singularmente através da nanotecnologia, que nos permite dizer o que aqui apare-
ce como exterior ao conceito, mas inerente a ele. Ou seja, a função, a mecânica ins-
trumental, dependeu na sua conceptualização técnica do fim em vista. Seríamos
levados a dizer que apenas existe repetição entre estas obras, encontramo-nos
perante elementos da mesma identidade (os que estão vinculados à estrutura da
matéria na forma) que atravessam o mesmo conceito e se revêm em diferentes
médiuns. Repete-se o conceito, sem diferenciação entre as representações, pois
são o mesmo na sua anterioridade.

Deleuze: “Devemos distinguir um sujeito secreto que se repete através deles, o ver-
dadeiro sujeito da repetição.41” A questão da inovação tecnológica e científica e da
sua influência na produção artística recoloca atualmente a questão dos limites da
ciência através das UBIQUIDADES e MATERIALIZAÇÕES da arte.

Assim sendo, poderíamos inverter a questão dizendo: há influência da arte na ino-


vação tecnológica e científica, sendo que as formas na matéria manifestam algo de
essencial ao conhecimento da arte, seja por via do atelier ou por via do laboratório.

BIBLIOGRAFIA
Amon, Santiago. Matéria, Forma e Linguage Universal. Conversación com Pablo
Palazuelo, 1/6/76, Revista de Occidente.

Cuyas, José & Villell-Borja, Manuel. (2006) Diálogos de los Números. in Palazuelo,
Proceso de Trabajo

Deleuze, Gilles (2000) Diferença e Repetição. Lisboa: Relógio D’Água.

Esteban, Claude. (1984) Pablo Palazuelo. Galeria Maeght. Barcelona

Foucault, M & Deleuze, G. (1982) Theatrum PhilosoPhicum. Madrid: Anagrama

Gil, José. (1995). A Imagem Nua e as Pequenas Perceções, Lisboa: Relógio D’Água.

40 Deleuze, Gilles- Diferença e Repetição, p.137


41 Foucault, M & Deleuze, G.- Theatrum PhilosiPhicum, p. 36

209
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Palazuelo, Pablo. (1995-2005) Energia, Materia y Forma, in P. Palazuelo.

Power, Kevin. Pablo Palazuelo –1995 -2005, Madrid: Museo Reina Sofia.

Power, Kevin. (1995-2005) La Imaginacion Activa - Conversaciones con Palazuelo

Power, Kevin. (1995) La Imagínación Activa, in Pablo Palazuelo, Processo de Trabajo

Power, Kevin & Palazuelo, Pablo. (1995) Geometría y visión : una conversación con
Kevin Power. Granada: Diputación Provincial de Granada

Palazuelo, Pablo. (1995) Energia, Materia y Forma, in P. Palazuelo, Processo de Trabajo

Power, Kevin - Espiritualidad Orgânica de Palazuelo, in P. Palazuelo

Vesna, Victoria. (2006). The Era of Posthuman Engineering, International Arts Ex-
perts Forum – Arco

Wagensberg, J. (2007) EI Gozo Intelectual. Madrid: Tusquets

Zambrano, Maria. (1999) O Sonho Criador. Lisboa: Relógio D’Água’

210
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Brenno de Oliveira1 and João Filho2


QuixadAR: Experiências com Realidade Aumentada no
Museu Municipal
QuixadAR: Augmented Reality Experiences at the Municipal Museum

Resumo
Este artigo apresenta o estado do projeto QuixadAR que usa a realidade au-
mentada com o objetivo de produzir uma nova forma de interação e divul-
gação do Museu Histórico Jacinto de Souza, da cidade de Quixadá, Ceará.
Adaptando o espaço de consumo de conteúdo passivo do museu para uma
forma mais dinâmica e interativa, visando atingir uma geração digital acostu-
mada em ter mais influência nas relações de consumo e divulgação de mídia.
O QuixadAR é um projeto de desenvolvimento de um sistema digital mobile
produzido como trabalho de conclusão de curso para receber título de gra-
duação em Design Digital e que tenta diminuir a distância entre o visitante e
a obra do museu. O sistema oferece aos usuários novas formas de interação
com as obras, como as capturar e expor utilizando realidade aumentada, per-
sonalizando a cidade com uma exposição virtual participativa, divulgando o
museu e suas obras para pessoas que utilizam o aplicativo e então, atraindo
novos visitantes. O projeto baseia-se nos conceitos de realidade aumentada e
compreende o espaço museológico tomando como base estudos de Jacques
Le Goff, Renata Andreoni e Antonio Gilberto.
Palavras-chave: Museu, cidade, realidade aumentada, Quixadá, aplicativo.

Abstract/resumen/resumé
This article presents the current state of the QuixadAR Project that uses augmented
reality to produce a new form of interaction and divulgation of the Jacinto de Sou-
za Historical museum, from the city of Quixadá, Ceará. Adapting the space of pas-
sive content consumption of the museum to a more dynamic and interactive way,

1 Brenno Nogueira de Oliveira, designer digital, artista 3D e ilustrador. Graduando em Design Digital
do Campus Quixadá da Universidade Federal do Ceará-UFC. Diretor de Arte no Núcleo de práticas
da UFC campus Quixadá.
2 João Vilnei de Oliveira Filho, artista visual e performer. Professor do Campus Quixadá e do PP-
GARTES, ambos da Universidade Federal do Ceará. Doutor em Arte e Design pela FBAUP (2017).
Mestre em Criação Artística Contemporânea pela UA/Portugal (2009) e Bacharel em Publicidade e
Propaganda pela UFC (2006). Líder do LICCA/UFC e do “Locomô”, ambos registrados no Diretório dos
Grupos de Pesquisa do CNPq. Membro também do i2ADS/FBAUP e do iD+/UP/UA.

211
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

aiming for reach a digital generation used to have more influence in the consume
relations and media outreach. The QuixadAR is a development project of a mobile
digital system produced as work to earn a bachelor degree in Digital Design and
that try to reduce the distance between visitors and museum pieces. The system of-
fers to the users new ways of interaction with the museum pieces, like capture and
expose using augmented reality, customizing the city with a participatory virtual
exhibition, promoting the museum and their pieces to people that uses the app and
then, attracting new visitors. The Project is based on augmented reality concepts
and understands the museological space based on Jacques Le Goff, Renata Andre-
oni and Antonio Gilberto studies.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: Museum, city, augmented reality, Quixadá, app.

Introdução
Os museus possuem um importante papel de preservação histórica na sociedade.
Inicialmente sendo formulados como um conjunto ou depósito de objetos histó-
ricos, como afirma Andreoni (2011, p. 168), conceito que ao decorrer do tempo foi
sendo modificado, passando a ser entendido como um espaço discursivo e inter-
pretativo, que além da preservação histórica tem como dever comunicar e refletir
sobre o passado.

A reinterpretação do museu teve como um dos fatores impulsionadores a trans-


formação do conceito de patrimônio, quando seu sentido deixou de ser limitado
pela fisicalidade e passou a abranger também a categoria de patrimônios imateriais,
compostos por objetos intangíveis e culturais, como danças, comportamentos, me-
mórias, dentre outros (NOGUEIRA, 2014).

Mesmo com as transformações do museu, ainda existe a necessidade de o ade-


quar a uma “geração digital” de usuários, participante de uma cultura participa-
tiva (JENKINS, 2014) marcada pela autonomia de consumo e maior influência em
relação aos conteúdos consumidos. Segundo Ferreira de Souza e Gobbi (2014), a
dinâmica de consumo passiva apresentada pelo museu pode ser pouco atraente
para esse público, sendo necessária a criação de formas de aproximar o museu
aos visitantes, aumentando a interação e influência deles no espaço, permitindo
que saiam da posição de espectadores passivos e participem de um processo pro-
dutivo de conteúdo.

Uma forma de realizar essa aproximação com o museu é por meio da tecnologia,
que possibilita a criação de novas formas de interagir com o espaço, de modo que
os visitantes tenham experiências diferentes do que teriam em uma visitação nor-
mal, potencialmente aumentando a taxa de revisitação, incentivando o visitante a
retornar ao museu em busca de conteúdos novos. Dentre as tecnologias que podem

212
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

ser incrementadas ao museu, destaca-se a realidade aumentada (RA) por relacionar


o meio físico com informações virtuais simultaneamente. A RA permite incremen-
tar a dinâmica de visitação, viabilizando interações que antes não eram possíveis e
complementando os objetos físicos com dados virtuais intensificam e expandem a
realidade, sem necessitar da criação de uma realidade virtual.

O processo de adaptação tecnológica não é uma necessidade de hoje, tanto que


existe museus que já oferecem experiências digitais em seu acervo, normalmente
localizados em cidades grandes, distantes de moradores do interior. Nesse contex-
to, este projeto utiliza como objeto de estudo o Museu Histórico Jacinto de Souza
(MHJS), museu municipal localizado em Quixadá, interior do Ceará, que por ser um
museu com processos totalmente analógicos, não oferece possibilidades de intera-
ção digital entre suas obras e o público. Para elevar o número de visitantes nos ou-
tros meses, a dinâmica digital com RA pode funcionar como atrativo para visitantes
novos e também para visitantes antigos sentirem vontade de revisitar.

Diante disso, este trabalho tem o intuito de investigar o comportamento e intera-


ção de visitantes com o MHJS e propor uma alternativa de interação dos visitantes
com as obras com o uso de RA. O uso de RA terá a utilidade de levar o museu a
lugares onde ele não estaria normalmente, dando ao visitante a possibilidade de
espalhar as obras do museu pela cidade, transformando-a em um grande museu
digital a céu aberto.

Metodologia
O projeto foi desenvolvido a partir dos requisitos e dados adquiridos em uma série
de pesquisas com visitantes e não-visitantes do museu. Primeiramente, foram feitas
visitas técnicas para conhecer melhor o espaço e os recursos do museu. Além dos
recursos, foi realizada uma entrevista com Camila dos Santos Magalhães (diretora
do museu) para conhecer detalhes mais técnicos e organizacionais do museu. Para
gerar os requisitos que seriam utilizados como base do sistema, foram feitas entre-
vistas com moradores de Quixadá sobre o museu e seus gostos em relação a visi-
tação de espaços do tipo. A entrevista foi adaptada como questionário online para
serem analisadas opiniões de outros locais além de Quixadá para poder comparar
suas opiniões e necessidades com os visitantes locais. Com os dados das entrevistas
e questionário analisados, foi possível gerar um conjunto de características do pú-
blico alvo e seus gostos.

acordo com os requisitos, foi desenvolvido um protótipo do sistema por meio de um


programa de desenho de interfaces e foi aplicado um teste de usabilidade com um
grupo de usuários para identificar possíveis problemas de interface e usabilidade
que seriam resolvidos antes da implementação do sistema na plataforma Unity.

213
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Conceitos
Realidade Aumentada

O termo RA, segundo Eliseu (2016), é atribuído à Tom Claudell por volta de 1990, que
o utilizou ao se referir ao sistema HMD 3 que exibia informações digitais para orientar
em tempo real trabalhadores de uma fábrica de aviões da Boeing. Segundo ele, o
sistema estava aumentado a realidade por possibilitar o acesso a informações que
não estariam disponíveis na realidade normal.

A RA pode ser definida como a sobreposição de conteúdos digitais sobre o mundo


real, visualizados com auxílio de dispositivos tecnológicos. Inicialmente, o conceito
de RA era usado para abordar apenas a sobreposição de conteúdos visuais, o que foi
alargado para incluir a agregação de informações às percepções sensoriais do usuá-
rio (FEINER apud ELISEU, 2016), como sons, cheiros, toques, dentre outros estímulos.

Uma aplicação em RA pode ser dividida em três partes: o mundo real, a informa-
ção virtual, e o dispositivo móvel que funciona como janela para visualização das
informações virtuais. Os dados virtuais precisam de um ponto de referência real
para serem situados no espaço e uma das técnicas mais comuns em RA é o uso de
marcadores e/ou coordenadas. Enquanto os marcadores funcionam como imagens
gatilho que servem de ponto de referência para uma projeção virtual quando lidas,
o uso de coordenadas utiliza uma posição de GPS passa situar modelo a ser exibido.

A RA trouxe novas possibilidades de exibição de conteúdo, sendo possível o seu uso


em diversas áreas, como educação, registro histórico, ativismo, entre outros. Em rela-
ção ao marketing e turismo, segundo Jung et al. (2016), a popularização dos disposi-
tivos de realidade virtual (RV) e do crescimento de formas mais simples e baratas de
desenvolvimento, foram responsáveis por incentivar o uso de RA e RV no marketing.
A RA foi inicialmente usada como forma de exibir informações sobre objetos e com
o tempo foi aplicada como forma de intensificar a experiência dos usuários com o
ambiente. De acordo com os estudos de Jung et al. (2016), o uso de RA em experi-
ências turísticas tem efeitos significativos no visitante, como a influência positiva na
experiência educacional, estética, de escape e principalmente de entretenimento,
sendo o último um dos maiores impactos registrados.

A vantagem do uso da RA está principalmente no seu contato com o ambiente real,


por permitir exibição e interações entre informações virtuais e o ambiente real, não
existindo limitações sobre onde e como as informações digitais devem ser postas.

3 HMD ou Head-Mounted Display é um dispositivo de display, usado na cabeça ou como parte de


um capacete que pode possuir um pequeno display na frente de um dos olhos (HMD monocular) ou
um pequeno display na frente de cada olho (HMD binocular). Comumente utilizados para visualiza-
ção de conteúdo em realidade virtual, jogos ou aplicações industriais. (SHIBATA, 2002).

214
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A liberdade se dá pelas informações não ocuparem necessariamente o espaço, mas


ainda estarem no local.

Para Eliseu (2016), a RA foi responsável pelo surgimento de uma nova temporalidade,
mais dinâmica, com a criação de novos significados e formas de leitura de conteúdos.

A Democratização da RA

No século XX, para realizar um projeto com uso de RA eram necessários computado-
res com alta capacidade de processamento para renderizar os gráficos tridimensio-
nais baseados nas imagens do mundo real (ELISEU, 2016, p. 33). Com o decorrer do
tempo, a popularização de dispositivos móveis como smartphones e tablets, a cada
ano em versões mais potentes, tornou viável o uso de RA nos mais diversos casos, de
maneira simples e móvel.

Em conjunto com esse desenvolvimento técnico dos aparelhos, sistemas de game


engines 4 usadas para o desenvolvimento de jogos, como a Unity e a Unreal, que
possuem versões gratuitas para projetos acadêmicos e sem fins lucrativos e podem
ser utilizadas para o desenvolvimento de aplicações em RA e RV. Além das engi-
nes, existem APIs que podem ser adicionadas às plataformas como plugins, e que
possuem ferramentas e elementos que auxiliam o desenvolvimento de aplicações
em RA e RV, com câmeras especiais para visualização de modelos 3D e sistema de
identificação de marcadores já programado. Alguns exemplos de APIs são Vuforia,
ARToolKitX, Kudan, Wikitude, entre outros, responsáveis por democratizar cada vez
mais o desenvolvimento de realidades mistas5.

Museu

A ideia de museu foi inicialmente voltada para o armazenamento e exposição de


objetos históricos.Com o tempo, o seu conceito foi passando de “arcabouço do pas-
sado e guardião da verdade” para espaço de discussão e interpretação da história,
como afirma Andreoni (2011). Um dos fatores para essa atualização foi a mudança
do conceito de patrimônio.

Segundo Nogueira (2014), o patrimônio era definido exclusivamente em relação a


objetos físicos, patrimônios materiais. A ideia de patrimônio era dividida em dois
conceitos: o monumentum e documentum. O monumentum (monumento) refere-
-se a tudo que pode resgatar o passado e perpetuar a recordação, “o monumentum
é um sinal do passado” (LE GOFF, 1990, p. 526). O monumento aborda obras físicas,
construções comemorativas de arquitetura ou escultura, como o Arco do Triunfo,

4 Em conjunto com esse desenvolvimento técnico dos aparelhos, sistemas de game engines
5 Kudan, Wikitude, entre outros, responsáveis por democratizar cada vez mais o desenvolvimento
de realidades mistas

215
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

como exemplifica Le Goff. Já o documentum (documento), segundo Le Goff (1990,


p. 526), é derivado de docere, “ensinar”, evoluiu para o significado de “prova”, co-
mumente usados no vocabulário legislativo, até que atingiu o sentido moderno de
testemunho histórico, no século XIX. O documento, mesmo tratando de relatos, se
limitava apenas à fisicalidade dos registros. Isso gerou o questionamento se outras
formas de registros não poderiam ser consideradas patrimônios históricos, resultan-
do no alargamento do conceito de documento para abordar patrimônios que não
possuíssem uma forma física (material), como dança, teatro, paisagens, tradições
orais, práticas sociais, entre outros, como afirma Nogueira (2014, p. 52).

O museu é um espaço de memória e preservação do passado existente na sociedade


desde o século XVII (MUSEUS, [entre 2005 e 2019]). Para Nogueira (2014), os espaços
de memórias como o museu estão criando uma sociedade que vive em uma experi-
ência de tempo onipresente, onde o passado e o futuro são cotidianamente fabrica-
dos de acordo com as necessidades da sociedade, desenvolvendo simultaneamente
o medo da amnésia (coletiva e individual) e a vontade de nada esquecer.

Mesmo com as atualizações do museu, ainda existe uma postura distanciadora entre
a entidade museu e o visitante. Como afirma Roque (2017), o museu estabelece a
obra como um objeto sagrado em um altar, distanciando-a do visitante, definindo
papéis de detentor do conhecimento (museu) e pessoa em busca do conhecimento
(visitante). Essa distância fica mais marcante para uma geração acostumada com a
autonomia de consumo dada por mídias digitais. Introduzida em um conceito de
cultura participativa (JENKINS, 2014) onde o público possui influência na produção
e divulgação do conteúdo midiático consumido. Em uma geração acostumada a ser
bombardeada por informações o tempo todo, tendo total poder de escolha e influ-
ência no conteúdo a ser consumido, estar em uma experiência linear passiva pode
não gerar envolvimento. Essa lacuna entre visitantes e museu pode ser sanada por
meio da tecnologia, primeiramente reimaginando a experiência de visitação e crian-
do novas formas do usuário interagir com o espaço.

Como os museus possuem, entre outras, a função de preservação histórica, algumas


técnicas permitem que os usuários interajam com as peças sem precisar ter contato
direto, como RA e RV. Possibilitando incrementar o objeto virtualmente com intera-
ções e informações novas por meio da RA ou criar uma nova realidade onde se inte-
rage com o objeto com a RV. Neste projeto, foi escolhido o uso de RA para referenciar
o objeto físico por possibilitar que o usuário tenha contato com representações vir-
tuais dos objetos históricos físicos, sem se distanciar do espaço do museu.

QuixadAR
O QuixadAR é um sistema digital para dispositivos móveis que utiliza a RA para
possibilitar que visitantes do museu capturem as obras expostas e as exponham

216
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

virtualmente pela cidade. O sistema tem o objetivo de dar mais opção de interação
com o museu, saber mais sobre os objetos e personalizar o espaço físico, ainda que
virtualmente, como desejar.

No QuixadAR, o usuário pode fazer 4 ações principais: Capturar uma obra do museu,
acessar sua galeria pessoal de obras, expor uma obra virtual em qualquer lugar e
visualizar obras expostas por outra pessoa.

Para possibilitar a captura, cartões marcadores são postos próximo a suas respecti-
vas obras. Quando os cartões são lidos pelo sistema, o usuário recebe um modelo
3D da obra referente àquele cartão e pode acessar mais dados sobre ela. A obra cap-
turada é armazenada em uma galeria pessoal do usuário, que a pode acessar para
visualizar os modelos ou ler mais sobre eles.

Também é possível expor a obra capturada. Ao expor uma obra, o usuário deve se-
lecionar o local desejado para a obra e, quando confirmar, ela ficará na posição sele-
cionada (identificando a posição do usuário por geolocalização), e qualquer usuário
do aplicativo que passar pelo local poderá visualizá-la por meio de RA.

Figura 1: Exemplo de cartão marcador usado para a captura de obras.

Teste de Usabilidade
Para a realização do teste de usabilidade, foram desenvolvidas todas as possíveis
telas que os usuários teriam acesso e interligadas com o uso do Adobe XD para pos-

217
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

sibilitar que os participantes utilizassem o protótipo em um dispositivo móvel e pu-


dessem clicar e se deslocar pelas telas como se estivessem usando um aplicativo
comum e não um protótipo.

O teste de usabilidade foi aplicado antes da implementação do sistema para encontrar


problemas de usabilidade do aplicativo, sendo mais fácil realizar as correções na etapa
de protótipo do que quando o sistema já estivar desenvolvido na plataforma final.

O teste foi aplicado com 9 usuários, e cada participante deveria realizar 5 tarefas no
sistema . As tarefas eram referentes as atividades principais realizadas, como: Efetuar
login, capturar uma obra, acessar a galeria de obras, ver mais detalhes sobre uma
obra, expor uma obra. Durante o teste, o comportamento dos participantes era ob-
servado e as ações na tela do dispositivo e o áudio eram gravados para análise pos-
terior. Ao fim de cada teste, era feita uma entrevista sobre as opiniões e dificuldades
dos usuários com o sistema usado.

Para que os usuários compreendessem as funções do aplicativo QuixadAR e como


usá-lo. Para isso, é apresentado um slide tutorial sobre as principais funções, prevenin-
do possíveis dúvidas. Caso o usuário ainda sinta dúvidas durante o uso, ele pode aces-
sar os botões de dúvida ou se orientar pelos balões de dicas presentes na interface.

Após analisar as entrevistas, foram realizadas 4 mudanças no sistema: 1) Mudar o


ícone do botão de menu para o símbolo de “menu sanduíche” para não dar a ideia
que tem que deslizar (Figura 2b); 2) Colocar sombras nos botões para destacá-los da
interface (Figura 3b); 3) Colocar o botão de perfil nas opções do menu (Figura 2b); 4)
Colocar ícones do menu diretamente na tela inicial.

Figura 2: Tela principal com menu aberto do protótipo inicial (a) e do sistema atual (b)

218
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 3: Tela de confirmação de tutorial do protótipo inicial (a) e do sistema atual (b).

Das sugestões apresentadas, apenas a quarta não foi implementada, pois poderia
distrair o usuário durante o uso, além de ocupar espaço da tela que o usuário usaria
para ver as obras expostas. Logo, as opções de menu ficarão contidas em um único
botão que as exibe quando acionado.

Além das sugestões, foi notado durante o teste que os usuários sentiam-se confusos
em relação a ordem dos itens do menu. A ordem era: “Expor aqui”, “Minhas obras” e
“Capturar obra”. O que gera a confusão dos usuários lerem a primeira opção e não
saberem o que podem ou se têm algo para expor. As opções foram reorganizadas
de acordo com o fluxo de ação do usuário foi imaginado: “Capturar obra”, “Minhas
obras” e “Expor obra” (Figura 2b).

Estado de desenvolvimento

No início do desenvolvimento, uma das dificuldades foi selecionar o SDK 6 de RA que


seria usado em conjunto com a Unity. Foram analisados o ARcore, ARkit e Placenote.
O ARcore (atual substituto do projeto Tango) só é compatível com dispositivos An-
droid mais atuais e o ARkit e o Placenote são compatíveis com dispositivos IOS. Além
deles, também foram analisados o ARToolKitX (versão atualizada do ARToolKit), o
Vuforia e o Kudan. ARToolKitX e o Vuforia são mais voltados para o desenvolvimento
de aplicações que usam marcadores, o que impossibilita a utilização de coordenadas
de GPS na aplicação. Já o Kudan traz ferramentas para desenvolvimento de aplica-
ções de RA sem marcadores, porém não possui tutoriais e documentação da sua ver-

6 A sigla SDK corresponde à Software Development Kit ou kit de desenvolvimento de software. SDK
é o conjunto de ferramentas de desenvolvimento de software que permite o desenvolvimento de
aplicações para uma plataforma específica.

219
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

são atual, e não é plenamente compatível com a última versão do Unity (2019.2.4),
o que tornaria necessário utilizar uma versão anterior do software.

Por último, foi selecionado o Wikitude por permitir o desenvolvimento dos dois tipos
de aplicação, baseada em marcadores e GPS. Outra vantagem do SDK é não existir a
necessidade de estar em conjunto do ARCore ou ARkit para ser usado em dispositi-
vos móveis, possibilitando assim que dispositivos mais antigos (que possuam versão
do sistema Android a partir da 4.4) utilizem o sistema.

Conclusão
Este trabalho apresentou um projeto que trabalha com RA baseada na localização
por GPS. Durante o seu desenvolvimento, foi possível perceber que mesmo com a
democratização do desenvolvimento de aplicações em RA, ainda existe a dificul-
dade da integração de RA e geolocalização. Os recursos de RA mais difundidos e
acessíveis são, no geral, aqueles que fazem uso de marcadores e reconhecimento
de superfícies. Foram encontradas limitações específicas com o uso de RA baseada
em geolocalização como restrição de software apenas para aparelhos mais atuais
(ARCore e ARkit), falta de documentação atual (Kudan) e restrição de sistema opera-
cional compatível (Placenote).

Por conta dos problemas de desenvolvimento, a função de expor e visualizar obras


expostas serão implementadas na última fase de desenvolvimento. O foco mudará
para as outras funções importantes e que não utilizam de geolocalização, como cap-
turar e armazenar obra.

O projeto em si servirá como parte de uma campanha de marketing para o museu,


atraindo a atenção de novos visitantes com conteúdos inusitados e a partir do po-
tencial da integração das obras históricas com obras virtuais. A expectativa é que o
potencial interativo do aplicativo ajude a aumentar o interesse de possíveis visitan-
tes pelo museu, ampliando sua divulgação.

Referências
Andreoni, R. (2011). Museu, memória e poder. Em Questão, 17(2), 167 - 179.

Eliseu, S. (2016). O mundo como uma C.A.V.E (Doutorado). Universidade do Porto.

Ferreira de Souza, J., & Gobbi, M. (2014). Geração Digital: uma reflexão sobre as rela-
ções da “juventude digital” e os campos da comunicação e da cultura. Revista Gemi-
nis, 5(2), 129 - 145.

Jenkins, H., Green, J., & Ford, S. (2014). Cultura da Conexão. São Paulo: Editora Aleph.

220
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Jung, T., Dieck, M., Lee, H., & Chung, N. (2016). Effects of Virtual Reality and Augmen-
ted Reality on Visitor Experiences in Museum. Inversini A., Schegg R. (Eds) Informa-
tion And Communication Technologies In Tourism.

Le Goff, J. (2003). História e Memória (5th ed.). Campinas: Editora da UNICAMP.

Nogueira, A. (2014). O campo do patrimônio cultural e a história: itinerários concei-


tuais e práticas de preservação. Antíteses, 7(14), 45 – 67. Retrieved from http://dx.
doi.org/10.5433/1984-3356.2014v7n14p45

Museus. (s.d.). Notas sobre a história dos museus. Retrieved 27 May 2019, from http://
www.museus.art.br/historia.htm

Roque, M. (2017). A reinvenção do museu e as metamorfoses do objeto. Retrieved 29


April 2019, from https://amusearte.hypotheses.org/1964

Shibata, T. (2019). Head mounted display. Displays, 23(1 - 2), 57 - 64. Retrieved from
https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0141938202000100?via%3Dihub

221
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Bruna Christófaro1, Mónica Mendes2 and


Pedro Ângelo3
Entre o Real e o Sonho: o uso de Tecnologias de Interatividade
na criação do Espaço Cênico
Between reality and dream: The use of interactive technologies in the creation of
the Scenic Space

Resumo
A pesquisa “Entre o Real e o Sonho: o uso de Tecnologias de Interatividade na
criação do Espaço Cênico” trata da criação de um ambiente expressivo e dota-
do de significado que usufrui das tecnologias de interatividade. Nosso trabalho
perpassa por diversos campos do conhecimento, a saber: Human Computer Inte-
raction, Programação, Artes Visuais e Artes Performativas. Em seu viés prático, foi
concebido de modo colaborativo por artistas e pesquisadores das áreas citadas.
Este artigo pretende publicitar o processo criativo da obra interativa RainBow:
Entre o Real e o Sonho, as conclusões teóricas sobre as relações entre os diversos
campos do conhecimento e suas possibilidades de aplicação. Propomos a dis-
cussão acerca da magia, do encantamento e do inacessível na exploração de um
elemento da natureza com recursos de interatividade.
Palavras-chave: Instalação interativa, HCI – Interação Humano-Máquina, Espaço
Cênico, Arco-íris, Arte e natureza.

1 Bruna Christófaro (Brasil), doutoranda em Artes na Universidade de Lisboa, Mestre em Artes Cêni-
cas e Arquiteta. Professora no Departamento de Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Pre-
to, onde leciona Cenografia, Caracterização e Materiais Expressivos para os cursos de interpretação,
direção e licenciatura em artes. Pesquisadora em Artes Digitais Interativas e Teatro. <http://lattes.
cnpq.br/3970387883673691>
2 Mónica Mendes (Portugal), professora da área de Arte Multimédia da Faculdade de Belas-Artes da
Universidade de Lisboa – FBAUL, designer e pesquisadora em Artes Digitais. É investigadora do Inte-
ractive Technologies Institute – ITI/LARSYS, colaboradora do CIEBA e co-fundadora do hackerspace
altlab. Interessada num ambiente mais sustentável, tem vindo a concretizar explorações interactivas
no âmbito do colectivo ARTiVIS.
<http://monicamendes.artivis.net>
3 Pedro ngelo (Portugal), consultor independente de investigação para projectos criativos e docen-
te assistente convidado no departamento de Design de Comunicação da Faculdade de Belas-Artes
da Universidade de Lisboa. Está a terminar o doutoramento em Digital Media no programa UT Aus-
tin|Portugal, focado no desenvolvimento de melhores ferramentas para o design colaborativo de
sistemas interactivos.

222
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Abstract
The research “Between Reality and Dream: The Use of Interactive Technologies in the
Creation of Scenic Space” Deals with the creation of an expressive and meaningful
environment that takes advantage of interactive technologies. Our project encoma-
passes many fields of knowledge, such as Human Computer Interaction, Program-
ming, Visual Arts and Performing Arts. In its practical learning, it was conceived in
a collaborative way by artists and researchers of the aforementioned areas. This
article intents to report on the creative process behind the interactive work Rain-
bow: Between Reality and Dream, the theoretical conclusions about the relations
between many fields of knowledge and its application possibilities. We propose the
discussion about magic, enchantment and the unapproachable in the exploration
of an element of nature with the resources of interactivity.
Keywords: Interactive installation, Human-Computer Interaction, Scenic space,
Rainbow, Art and nature.

Introdução
O conto “O ex mágico da taberna minhota” do escritor Murilo Rubião apresenta-nos
um mágico que surge sem passado, em frente ao espelho de uma taberna minhota.
Esse mágico tem poderes fantásticos. Mas, paradoxalmente, quanto mais mágicas
faz, e quanto mais encanta o público, menos o personagem está feliz, porque seus
poderes são incontroláveis, não dependem de sua vontade ou humor. Para livrar-se
do que acredita ser uma maldição, torna-se funcionário público, pois ouviu que “ser
funcionário público é suicidar-se aos poucos” (Rubião, 2014. p.24). Assim, perde a
capacidade de magia, mas agora sente saudades daquela época.

Inspirados por esse texto a explorar sobre a eterna insatisfação humana, desejamos
criar uma obra que nos lembre que o mundo é também feito de luz e magia, para
além da burocracia e do tédio do cotidiano. Procuramos refletir sobre como o ser hu-
mano interage com o ambiente cotidiano e com a possibilidade da intervenção da
magia nesse dia-a-dia, e até que ponto a magia é necessária ou mesmo suportável.

Na procura por um algo que possa representar a insatisfação humana e um desejo


constante de modificação do ambiente em que se encontra - característica marcante
do personagem de Rubião, avaliamos a presença de alguns elementos visuais no
conto e optamos por executar com o uso de tecnologias de interatividade um dis-
positivo cênico com a imagem do arco-íris, que é citado de forma melancólica pelo
personagem principal: “Por instantes, imagino como seria maravilhoso (...) Erguer o
rosto para o céu e deixar que pelos meus lábios saísse o arco-íris. Um arco-íris que
cobrisse a Terra de um extremo a outro” (Rubião, 2004. p.26). O arco-íris é, por si, um
elemento da natureza que suscita o encantamento e, com sua carga simbólica, é o

223
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

prenúncio de tempos melhores após a tempestade. Elemento etéreo que trazemos


ao espaço, a ser criado e manipulado pelos espectadores da obra.

O arco-íris como objeto de trabalho


Simbolicamente, o Arco-íris é a ponte entre o que é real e o que é sonho. Na natu-
reza, é um fenômeno natural belo e colorido, de forma perfeita (o círculo ou o arco,
parte do círculo). O Arco-íris não existe para o consumo ou subsistência humana. É,
por si, a interação entre dois elementos vitais: a luz do sol e a água (Francisco, 2002).

Talvez seja justamente por sua “inutilidade” que a carga simbólica esteja tão presen-
te na história dos povos. É um símbolo presente nas religiões, seja como meio de
comunicação, de transcendência ou como meio de transporte de entidades divinas.
Citado na Bíblia, no livro de Gênesis, o arco-íris é a comunicação de Deus com Noé,
o “lembrete” de que é o momento de cessão do dilúvio. É considerado a ponte entre
o divino e o terreno: “Eu porei o meu arco nas nuvens, e ele será o sinal do concerto,
que persiste entre mim e a terra” (Gênesis 9: 15). Os budistas avaliam a translucidez
do arco-íris como uma transcendência do corpo físico, “o ‘corpo do arco-íris’, alcan-
çado através de intensa e solitária meditação (...) se alguém morrer em tal estado,
o seu corpo dissolver-se-á em luz com as cores do arco-íris” (ARAS, 2012). Segundo
os seguidores do candomblé, religião de origem africana existente no Brasil, o orixá
Oxumarê é a divindade que visita a Terra descendo pelo arco-íris, e representa “ri-
queza, vida longa, os ciclos e os movimentos constantes da natureza. Ele exprime
a união de opostos, que se atraem e proporcionam a manutenção do universo e da
vida. Sintetiza a duplicidade de todo o ser: mortal (no corpo) e imortal (no espírito)” .4

Elemento encantador, inesperado (é sempre uma encantadora surpresa se deparar


com um arco-íris) e inacessível, surge em diversas lendas e histórias de tradição oral5,
algumas contam que há um tesouro que pode ser encontrado por quem chega ao
final do arco, este, por sua vez, é guardado por um ser elemental, o duende irlandês
Leprechaun 6.

Por sua suavidade, por aparecer após uma chuva ou tempestade quando retorna a luz
do sol, o arco-íris é capaz de nos causar sensação de conforto, de encantamento e nos
deixa maravilhados por sua raridade, por suas cores e por seu esplendor, mas, acima
de tudo por ser intocável, inalcançável e inacessível, o arco-íris é o nosso escolhido

4 https://ocandomble.com/os-orixas/oxumare/ - recuperado em 10, agosto, 2019


5 Ver os livros de Luís da Câmara Cascudo, sobre o arco-íris e suas lendas brasileiras: Dicionário do Fol-
clore Brasileiro (19?); Literatura Oral no Brasil (2006. 3ªed.); Locuções Tradicionais no Brasil. (1977. 2ªed.).
6 Sobre Leprechaun, ver The encyclopedia mythica, de Micha F. Lindemans (1995).

224
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

para ser representado em nossa obra interativa. Um elemento poético desejado, mas
inatingível, que representa a insatisfação humana, a ponte entre o mundo real e o di-
vino, a perfeição.

O projeto
Inspirados pela “magia” e encantamento do arco-íris, propusemo-nos criar perspec-
tivas desconhecidas deste elemento visual tão fértil no nosso imaginário. Optamos
por realizar uma instalação interativa. Na instalação os participantes se encontram
imersos em um ambiente de movimento e fantasia - e são os criadores das formas
do arco-íris. Com abordagens em torno do espaço e da performance, procuramos
dar ao público um momento de se realizar a “magia”, assim como fazia o “ex-mágico”.

Na instalação, o Arco-Íris é o input para novas possibilidades de movimento dos cor-


pos. A obra tem em si a necessidade de interação entre espaço e corpo. Pergunta-
mos: Como o espaço estimula o corpo? Como o corpo altera o espaço? Consegue
unir os desejos? Consegue controlar ou usufruir seus sonhos?

Desde o princípio percebe-se a necessidade de uma equipa multidisciplinar para


responder essas questões. A interdisciplinaridade é discutida no texto Interdiscipli-
nary Collaboration, de Scott Kim (Kim, 1990), que trata da relação criativa e executo-
ra entre Designers e Programadores. É preciso salientar que, no presente trabalho, a
designer e o programador uniram-se a uma cenógrafa, pois o resultado final não se
daria em um ecrã bidimensional, mas sim em um espaço de uma sala em um edifício.

Segundo Kim, cada disciplina tem suas preocupações primordiais, o que as comple-
mentam ou podem ser motivo de conflitos, pois cada disciplina tem sua prioridade
nas etapas de criação. “When people from different disciplines get together, their
values collide. What one person finds valuable others do not even notice” (Kim, 1990).

O trabalho que inclui tecnologias interativas e artes solicita a presença de um pro-


gramador-artista ou de um artista-programador - a diferença entre essas duas de-
nominações parte da ideia do início da formação do artista que trabalha com tec-
nologias ou do programador que deseja aplicar seus conhecimentos nas artes. Mas
também é possível que haja a interação das duas áreas (arte e programação) a partir
do diálogo entre os profissionais que aprendem, juntos, a linguagem específica de
um ou outro campo de atuação.

Percebe-se que quanto mais a equipa encontra formas de comunicar o pensa-


mento, melhor se torna a dinâmica de trabalho. Reuniões, storyboards, maquetes,
desenhos ilustrativos, desenhos técnicos e planilhas de produção auxiliaram na
realização da proposta.

225
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Para iniciar a execução do trabalho, realizamos uma residência artística de 48 horas,


na SMUP - Sociedade Musical União Paredense (Parede, Portugal), e passamos a tes-
tar equipamentos com água e luzes, dentro e fora de uma sala, a fazer e ver arco-í-
ris. Após explorarmos bastante a luz natural do sol, repetimos a experiência em um
espaço fechado e escurecido, com luz artificial. E, embora fosse bonito o efeito do
vapor de água dentro da sala, ainda não nos era possível manipular as cores do ar-
co-íris. Ao projetar um desenho de arco-íris diretamente no vapor de água, este sim
controlado por nós, vimos a possibilidade de utilizar a câmera com sensor (kinect)
para nos permitir movimentar as cores pelo ar humedecido (Figura 1).

Esse primeiro experimento resultou em uma exibição na galeria da Faculdade de


Belas-Artes da Universidade de Lisboa, onde o público permanecia dentro da galeria
e, da sala, manipulava o arco-íris que era formado no pátio, visto através de um plano
de vidro que dividia ambos os espaços (Figura 2).

Em um segundo momento, trouxemos o arco-íris para dentro da sala, no Espaço


Santa Catarina, em Lisboa, durante o evento Inshadow, festival de dança e tecnolo-
gias. Neste espaço há um antigo tanque, no qual conectamos a água que usamos
para o vapor. O arco-íris surgia sobre esse tanque, nas gotículas de água (Figura 2).

Figura 1 - Primeiros testes de criação. FONTE: Arquivo dos autores.

226
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 2 - Exibições. À esquerda, o arco-íris visto a partir da galeria da Faculdade de Belas-Artes


da Universidade de Lisboa (Portugal). À direita, o arco-íris sobre o antigo tanque do Espaço Santa
Catarina, durante o Festival Inshadow (Lisboa/Portugal). FONTE: Arquivo dos autores.

Após as duas exibições, percebemos que o consumo de água era grande e que era
complicado o domínio da água a cair, molhando o chão para além da área do ar-
co-íris. Começamos a pensar em possibilidades de criar um circuito-fechado para a
água, para o consumo ser estável e proteger o piso das salas. Queríamos um arco-íris
que pudesse ser montado tanto em um espaço exterior quanto interior.

Com esse mote em mente, participamos da residência artística Expand, promovi-


da pelas associações culturais O Espaço do Tempo e Audiência Zero, que teve lugar
em Montemor-o-Novo, Portugal, durante duas semanas em dezembro de 2018. A
Residência Artística tinha como objetivo a realização de obras de arte e tecnologia
a serem exibidas no Pavilhão do Conhecimento, Centro de Ciência Viva, em Lisboa,
Portugal, no mês de março de 2019.

Uma residência artística possibilita a imersão dos autores no trabalho e possibilita,


assim, a resolução de eventuais problemas de execução da obra de forma rápida e
dinâmica, tanto pela presença da equipa quanto pelo compartilhamento do espaço
de criação com outros autores da mesma área.

Trabalhos relacionados
Nas instalações de arte é comum a presença da natureza manipulada como objeto
artístico. Seja a nuvem da obra Nimbus (Berdnaut, 2015) 7 ou mesmo os arco-íris –
ora situado em um espaço interior, no caso da obra Beauty (Olafur Eliasson, 1993)8,
ora situado em um espaço exterior, como no trabalho The Rainbow Machine (Recec-
ca Cummins, 1998)9, a natureza é, por muitas vezes, evidenciada na exploração do

7 Nimbus: https://www.wired.com/2015/06/berdnaut-smilde-nimbus/, recuperado em 10, agosto, 2019.


8 Beauty: https://www.olafureliasson.net/, recuperado em 10, agosto, 2019.
9 The Rainbow Machine: https://www.rebeccacummins.com/work#/new-page-1/, recuperado em
10, agosto, 2019.

227
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

artista ao refazer um elemento cuja origem não é humana. Uma arte que busca o
cientificismo da reprodução de fenômenos naturais e, ao mesmo tempo, expõe o
saber e o domínio da natureza pelo homem.

Mas, diferentemente dos artistas citados, tínhamos conosco as perguntas: Como in-
teragir com esse fenômeno? Como um fenômeno natural pode alterar o espaço e a
presença de quem o observa? É possível ter experiências estéticas interagindo com
a natureza? O próprio público pode criar e manipular a natureza para além de seu
posicionamento ótico?

Uma obra inspiradora para o nosso trabalho é The Treachery of Sanctuary de Chris
Milk (2012). 10 Nesta obra, Milk posiciona lado a lado três ecrãs de aproximadamente
três metros de altura, onde é projetada a sombra do espectador, agora personagem
em uma história de nascimento, morte e transfiguração - cada parte da narrativa
ocorre em uma tela. A sombra, como extensão do corpo, faz com que o espectador
sinta que o que nasce, morre e transfigura é ele mesmo. Para distanciar o corpo da
câmera kinect, há um espelho de água entre o usuário e a sombra que, através da
reflexão, insere a imagem do espectador na obra.

Como explicitado, há maneiras de se manipular a luz solar e a água de modo a ver-


mos nosso próprio arco-íris. Mas esses modos não nos possibilitam a manipulação
de sua luz refratada, que era nosso objetivo. Então, ao fazermos nosso próprio ar-
co-íris, não realizamos a refração da luz, como o trabalhou Eliasson na obra Beauty
(1993) ou Cummins em The Rainbow Machine (1998).

O arco-íris que realizamos não é uma cópia naturalista do fenômeno real, pois “não
é a natureza do objeto copiado que define uma arte (tenaz preconceito de todos os
realismos), é o que o homem lhe acrescenta reconstituindo-o: a técnica é o próprio
ser de toda a criação” (Barthes, 1968, p. 22-23). Nessa perspectiva também se funda-
menta a arte computacional onde “recompõe-se o objeto para fazer aparecer fun-
ções, e é, se assim se pode dizer, o caminho que faz a obra” (Barthes, 1968, p. 22-23).

Em nosso trabalho, a projeção possui as cores e a transparência do arco-íris e, assim


como o arco real, surge em nossa visão ao tocar a água. Remete imediatamente a sua
imagem, com semelhança. Walter Benjamin afirma que “(…) é o homem que tem a
capacidade suprema de produzir semelhanças.” Benjamin chama a isso de “faculda-
de mimética” (Benjamin, 1987 p.108-114).

A produção
Para a participação na Residência Artística Expand propusemos tornar a natureza in-
terativa através da execução desse arco-íris dentro de um espaço fechado (Figura 3).

10 http://milk.co/treachery , recuperado em 10, agosto, 2019


228
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A obra é um dispositivo entre a escala humana e a escala arquitectónica, cujo espaço


é um cubo visualmente transponível, com arestas discretas. No ar, quando a imagem
projetada toca a superfície de gotículas de água vaporizadas, o arco-íris surge a par-
tir dos movimentos dos corpos dos espectadores e/ou performers. Seu formato é
definido e alterado pelos movimentos de quem interage com a obra.

Figura 3 - Projeto de obra enviado para seleção de participação em Residência Artística. No projeto
havia a ideia de um reservatório de água para o circuito fechado realizado pela bomba de pressão.
A bomba de água conduz a água para o vaporizador, a 3 metros do solo. FONTE: Ilustração de
Bruna Christófaro.

Figura 4 - testes com bomba de água. FONTE: Arquivo dos autores.

Logo ao início das atividades realizamos as experiências com a bomba de água, para
verificar se a pressão seria suficientemente forte para formar o vapor (Figura 4). Ao
percebermos o funcionamento, verificamos que uma fina camada de água no piso
já seria suficiente para a sua sucção e, com a lona preta submersa, o piso tornou-se
um imenso espelho. Esse espelho de água, diferentemente do que aparece na obra
de Chris Milk, citada acima, reflete as imagens criadas pelo movimento do corpo e as
projeta no ambiente, ampliando o efeito de imersão.

O formato coletivo da Residência, com vários artistas executando diversas obras


num mesmo edifício, possibilitaram visitas dos artistas entre as obras durante as ho-
ras do dia. Cada um podia colaborar com outro de acordo com sua área de formação

229
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

e atuação (Figura 5). Eram, ao todo, dez obras a serem realizadas naquele mesmo
tempo nos espaços do Convento da Salvação. O tempo de residência foi utilizado
para testes, aplicação de materiais, montagens, ajustes na programação e, por fim,
apresentação da obra ao público. Para alinharmos entre a equipa e para comunicar-
mos nossas ideias entre os demais participantes da Residência Artística, durante as
atividades realizamos maquetes, esboços, mini-montagens e reuniões diárias.

A ideia inicial era termos um cubo metálico que delimite o espaço e suporte a água
vaporizada. O movimento do público é captado por uma câmera Kinect, e após pro-
cessamento através de software é gerada uma imagem que sendo projetada na cor-
tina de água gera o arco-íris.11

Por fim, decidimos realizar o cubo no tamanho final de 3 metros de arestas com
suporte para os tubos de vaporização. Para valorizar seu posicionamento, a fina “pis-
cina” que o suporta passou a ter 4,50m X 4,50m, ultrapassando as arestas do cubo,
diferentemente do projeto inicial em tamanho e profundidade. Dividido em peças
de 1 metro, sua montagem é feita por encaixes (Figura 6).12

Figura 6 - Montagem e testes. FONTE: Arquivo dos autores.

11 Utilizamos a câmera Kinect - Sensor de movimentos com câmera RGB, sensor de profundidade
(infra vermelho), microfone embutido, processador e software próprios, e que detecta 48 pontos de
articulação do nosso corpo, ou seja, possui uma precisão sem precedentes (https://pt.wikipedia.org/
wiki/Kinect, recuperado em 15, agosto, 2019).
12 Requisitos técnicos: Projetor de imagens de 4000 lúmens ou maior, computador e Kinect, meca-
nismo e estrutura para os de aspersores, bomba de água de pressão - circuito fechado de água para
gerar o ecrã, piso plástico para receber a água que vai retornar ao aspersor.

230
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 7 - Primeiros experimentos. Na figura à esquerda, a refração da luz branca. Na figura à


direita, a nitidez do desenho projetado na água. FONTE: Arquivo dos autores.

O primeiro teste de funcionamento aberto ao público foi realizado no último dia


de atividade da residência. Os demais artistas participantes e convidados externos
puderam realizar seu arco-íris pessoal.

Ao longo do processo de execução a estrutura sofreu mudanças estéticas, o primeiro


desenho foi suavizado, alargado e afinado, de modo a evidenciar o plano espelhado
e fortalecer a fixação do sistema nebulizador da água.

Ao realizarmos o espelho de água, sentimos a necessidade de valorizar o desenho


do arco-íris, pois ele era visto de forma nítida, projetado no plano horizontal da água
(Figura 7). A artista Júlia Bianchi (cargocollective.com/juliabianchi) nos forneceu um
padrão de cores e texturas com a sequência do arco-íris, ampliando a interdisciplina-
ridade de nossa obra para o campo da pintura e transformando o espelho de água
em tela de pintura. O arco-íris ficou mais suave e texturizado. Os efeitos de círculos
e caleidoscópios, conseguidos por erro de decodificação do programa, foram apro-
veitados esteticamente. E os raios brancos passaram a projetar figuras geométricas
na água. Essas três possibilidades eram postas em looping, assim, o espectador não
saberia de antemão qual o padrão de seu desenho no ambiente.

A grande diferença entre o espaço de exposição do Pavilhão do Conhecimento


e a sala do Convento da Saudação, onde a estrutura foi montada e testada, é a
extensão. De escala monumental, o Pavilhão possui grandes dimensões e suas pa-
redes são iluminadas. O desenho de iluminação desta exposição colectiva não nos
permitiu obter o ambiente escuro que encontramos em Montemor, diminuindo
o efeito de refração da luz branca. Neste espaço o cubo não era mais tão grande
como nos pareceu, anteriormente, quando ocupava toda a extensão da sala. Esta-
va em um bom tamanho.

O público agora não era composto pelos artistas e seus convidados. Era composto
pelo público do próprio Pavilhão, por estudantes e transeuntes. Avaliamos que a
formalidade do evento, a formação de filas, os equipamentos de segurança exigidos
pela instituição - que não deixavam o público se aproximar da água ou da kinect

231
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

sem a fita à altura da cintura a indicar o seu posicionamento, deixaram o público


mais contido. Mas, por vezes, algumas crianças e grupos de jovens se permitiam
dançar e criar seu arco-íris (Figuras 8 e 9).

Realizamos o trabalho de observação e diálogo com o público, para registrar suas


percepções e impressões. Frases e adjetivos como: “Gostaria de ter um desse em
meu quarto”, “encantador”, “bonito” e “divertido” foram ouvidas por nós com bastan-
te entusiasmo. Também houve sugestões quanto ao desenho do arco-íris que era
refletido na água e questionamentos de quando a luz ficava completamente branca
e, nesse momento, a refração era menos colorida, visível somente para quem esti-
vesse posicionado do lado oposto à kinect. Quanto à nossa observação do público,
pudemos constatar que a predominância de movimentos é a dos braços, sem muito
uso do restante do corpo. E, embora houvesse bastantes crianças, a altura do sensor
não as captava. Elas eram carregadas pelos acompanhantes para poder participar.

Figura 8 – Montagem no Pavilhão do Conhecimento, Lisboa. Fonte: Arquivo dos autores.

Figura 9 – Interação do Público. Fonte: Arquivo dos autores.

Arte, Espaço e Interatividade – Reflexões


Nesta instalação interativa, desenvolvemos experiências sensoriais em artes eviden-
ciando as relações entre natureza, tecnologia, espaço, objetos, performers e audi-

232
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

ência. Nosso trabalho abrange a criação interdisciplinar entre o trabalho de progra-


madores e artistas. Trabalhamos com tecnologias interativas para criar um espaço
poético em um espaço concreto, um espaço onírico em um espaço de realidade.
Sentimos que experimentos artísticos com aplicação de tecnologias de interativida-
de é quase como fazer magia.

A interseção entre a criação em artes e o uso de tecnologias interativas é discutida


por teóricos do HCI (Human-Computer-Interaction) e por filósofos de diversas ma-
neiras - neste artigo nos restringimos à análise metafórica de programas interativos
serem criados como se trabalha o Teatro (Laurel, 2004) e às discussões sobre intera-
tividade (Wardrip-Fruin, 2012).

Podemos modificar o espaço real através da interatividade com o espaço virtual? Como
as pessoas que estão nesse espaço são modificadas sensorialmente durante a interação?
Queremos que as pessoas realmente sintam a mudança do espaço. Ora como agentes
da mudança, ora como observadores, ora estimulados pelo próprio espaço.

Segundo Laurel, “John Walder (founder and president of Autodesk, Inc.) (…) attri-
butes the notion of ‘conversationality’ in human-computer interfaces (…) where a
person does something and a computer respondes – a tit-for-tat interaction” (Laurel,
2004. p. 3). Mas, segundo Laurel, não devemos considerar a interatividade como um
jogo de perguntas e respostas. Porque a ação e seu resultado vão se modificar de
acordo com a pessoa que estará a interagir. No nosso caso, varia também entre os
atores e os espectadores, que são os agentes que iniciam a ação.

Na arte interativa há um ambiente inabitado entre o humano e o computador que


é preenchido a partir da interação e só surge a partir dela. Neste trabalho acompa-
nhamos o conceito dado por Noah Wardrip-Fruin (professor de mídias computado-
rizadas da Universidade da Califórnia) para o termo traduzido na língua portuguesa
como “interatividade”. É o próprio autor quem nos diz que o termo é contestável e
adota para tal o seguinte conceito:

I am defining it as a change to the state of the work – for which the work was designed—
that comes from outside the work. Interaction takes place through the surface of the work,
resulting in change to its internal data and/or processes. In many cases, some trace of in-
teraction is immediately apparent on the surface (e.g., an audience member types and the
letters appear as they are typed, or an audience member moves her hand and a video ima-
ge of her hand moves simultaneously), but this is not required. Interaction, while it always
changes the state of the work, can be approached with the primary goal of communication
between audience members – as when communicating through a shared (a) virtual world.
(Wardrip-Fruin, 2012. p.11 e 12)

233
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Wardrip-Fruin afirma que a interatividade possibilita aos usuários o compartilha-


mento de um mesmo espaço virtual, comumente, isso se dá através da “intercone-
xão de computadores” (Levy, 1999). Podemos observar que formas de interativida-
de conhecidas na computação gráfica primam por introduzir o usuário no mundo
virtual. É como se o usuário “entrasse” na tela, ou só pudesse ver o que ocorre no
ciberespaço através de uma superfície, seja dos óculos de Realidade Virtual, do ecrã
do telemóvel ou da tela do computador.

No caso da nossa obra de arte interativa, há a relação direta homem-máquina e o


produto dessa interação não é compartilhado no espaço virtual, mas, sim, no espaço
real da sala de exposição. Não é o interator que vai ao ciberespaço e, sim, o próprio
mundo virtual que se encontra no espaço real e pode ser realmente tocado, sem
nenhuma interferência plana. A tridimensionalidade do vapor de água possibilita
que a projeção torne-se um objeto inserido no espaço destinado à exposição do
trabalho. O espaço virtual transpõe-se ao espaço real.

Conclusões e aplicações
Diferentemente do que ocorre no ciberespaço, onde “o humano é convidado a pas-
sar para o outro lado da tela e a interagir de forma sensório-motora com modelos
digitais” (Lévy, 1999), neste trabalho convidamos o que estaria no ciberespaço a ser
materializado no mundo real, de forma visível e tangível.

Há, em nossa instalação interativa, uma real “interação sensório-motora com um


modelo computacional” (Lévy, 1999).A interface de saída auxilia diretamente na co-
municação com a audiência. E o retorno do esforço realizado no movimento capta-
do amplia a sensação de “realidade na interação” (Lévy, 1999, p.37) com o mundo
virtual que, neste caso, não está além do plano da tela, está no mesmo ambiente
que o interator.

Nesta obra, para além da sensação, podemos realmente entrar na imagem gerada
pelo programa, sem aparatos tecnológicos anexados ao corpo. Podemos dançar sob
a imagem, podemos nos molhar com sua névoa e podemos ter nossa cor alterada,
ao ficar sob seus fachos de luz. Quando à distância, alteramos seu formato e somos
estimulados a realizar diversos movimentos. Somos também transformados em
obra quando estamos sob o olhar de outros espectadores, que passam por aquele
espaço ou que aguardam sua vez.

Deleuze, no livro Diferença e Repetição, afirma que “a estrutura é a realidade do vir-


tual.” (DELEUZE, 1988, p.336). Uma de nossas preocupações neste trabalho foi criar
um bom suporte para o arco-íris. Se o queríamos no ar, como se flutuasse sem um
ecrã, a busca por sua estrutura física moldou toda a trajetória de criação da obra -
então encontramos a névoa de água, quase não vista a olho nu.

234
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Segundo Hauser, “o valor artístico de uma obra não depende da natureza dos meios
técnicos que o artista utiliza, mas simples e unicamente do modo como os usa”.
(HAUSER, 1988, p.291). O modo como usamos a projeção, para além do já conhecido
ecrã, faz com que haja a imersão do virtual no espaço real e, consequentemente, a
imersão do espectador no ambiente criado pela obra.

Os corpos estão presentes. “Não apenas uma imagem de seu corpo, mas (a) dimen-
são essencial de sua manifestação física” (Lévy, 1999). A presença e ação do corpo no
espaço aproxima nosso trabalho ao campo das Artes Performativas.

No livro Computers as Theatre, Brenda Laurel (2004) propõe que a criação de um


programa interativo seja realizado como se produz um drama teatral, com caracte-
rísticas típicas da ação dramática e da criação de um personagem no enredo teatral.
Para a autora, mais do que utilizar o teatro como uma metáfora, as ferramentas
narrativas do teatro servirão também para a contextualização das experiências de
interatividade. No referido livro encontramos as semelhanças nas duas áreas de
atuação. A autora traça um paralelo entre os dois caminhos, o do design da experi-
ência de interatividade entre homem e computadores e o da arte do teatro. Laurel
afirma que o teatro tem (a) “ability to represent things that have no real-world re-
ferents (and) Computers are representation machines that can emulate any known
médium” (Laurel, 2004 p.38).

Se Laurel propõe considerar o teatro como uma base promissora para pensar sobre
e realizar o design do HC experiences, desejamos o caminho inverso na continuida-
de desta pesquisa. Investigamos o que o Design do HC experiences acrescenta ao
espetáculo e à experiência do público. Laurel insere elementos do teatro na criação
de jogos interativos, já nós, deslocamos a programação para a cena ao criar uma
instalação interativa a ser utilizada nas artes performativas.

É justamente Brenda Laurel quem nos explicita a semelhança da criação de um tra-


balho do campo do HCI com o trabalho do cenógrafo: “In many ways, the role of the
graphic designer in human-computer interaction is parallel to the role of the thea-
trical scene designer. Both create representations of objects and environments that
provide a context for action” (Laurel, 2004, p.14).

David Levine, artista e professor na Universidade de Harvard, aproxima a arte da


Instalação às Artes Performativas no artigo Installation (2016). O autor afirma que
no século XXI o termo Instalação de arte mudou de um gênero para uma técnica
artística. Mas, ao mesmo tempo, tanto o termo como sua técnica passaram a ser
mais utilizada nos trabalhos de artes performativas. Para o autor, “if minimalism had
turned art into theatre, installation had turned it into set design”.

É quase natural, portanto, mesclarmos o trabalho do programador e do cenógrafo


para trabalhar a luz como um novo objeto de cena (o arco-íris). Para ocorrer uma

235
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

interatividade entre humanos e máquinas é sempre necessária a ação que altera


o estado inicial do objeto. E, a partir desta ação, também o objeto passa a propor
novas formas de interação entre os habitantes desse mundo virtual. Neste caso, a
criação com recursos de interatividade faz com que o objeto vá além de si mesmo,
ao ter um comportamento próprio.

Se o objeto é passível de responder e propor movimentos, podemos dizer que é um


objeto “vivo”, que, inserido no espaço, torna o próprio espaço um elemento “vivo”,
cujo significado inicial (sala de exposição ou sala de ensaios) se modifica e altera
a sensação e a percepção de quem o habita, sejam eles espectadores ou atores de
uma cena. O que vai de encontro à nossa busca inicial, da magia presente no espaço
cotidiano. Mesmo que somente por alguns minutos.

Agradecimentos
Universidade Federal de Ouro Preto (Brasil) - Pró Reitoria de Administração (PROAD/
UFOP/Brasil), Universidade de Lisboa (Portugal), Interactive Technologies Institute
(Portugal) – ITI / LARSYS, ARDITI - Agência Regional para o Desenvolvimento da
Investigação, Tecnologia e Inovação (Portugal), O Espaço do Tempo, Audiência Zero.

Referências
ARAS: The Archive for Research in Archetypal Symbolism (2012). O livro dos símbo-
los: Reflexões sobre imagens arquetípicas. Köln: Taschen.

Barthes, Roland (1968). A atividade estruturalista In: Coelho, Eduardo Prado (org.).
Estruturalismo — antologia de textos teóricos (pp.19-27). Lisboa: Portugália.

Benjamin, Walter (1987). Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura
e história da cultura. Obras escolhidas, vol.1. Trad.: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense. 3ª ed.

Bíblia Sagrada, edição ecumênica (1977). GÊNESIS 9: 12-16. Trad.: Padre Antônio
Pereira de Figueiredo. Rio de Janeiro: Barsa.

Deleuze, Gilles (1968). Diferença e Repetição. Trad.: Luiz Orlandi e Roberto Machado.
Rio de Janeiro: Graal.

Francisco, Regina H. P. (fev. 2002). A poesia do arco-íris. Revista eletrônica de Ciên-


cias n.4 (artigo 4), São Carlos. Recuperado em setembro, 2017, de

http://www.cdcc.usp.br/maomassa/mostras/2011/anaisVIIIMOSTRA.pdf.

Hauser, Arnoud (1988). Teorias da arte. Lisboa: Editorial Presença.

236
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Kim, Scott (1990). Interdisciplinary Collaboration. In: Laurel Brenda. The art of Hu-
man-Computer Interface Design (pp.31-44). MA: Addison-Wesley.

Laurel, Brenda (2004). Computer as Theatre. Massachusetts: Addison-Wesley Pub.


Co. 2th edition.

Levine, David (2016). Installation. Recuperado em 19, agosto, 2019, de www.inter-


msofperformance.site

Lévy, Pierre (1999). Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34.

Rubião, Murilo (2014). Obra Completa. São Paulo: Companhia de bolso. 7ª reimpressão.

Wardrip-Fruin, Noah (2012). Expressive Processing: Digital Fictions, Computer Ga-


mes, and Software Studies. The MIT Press.

237
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Diogo Vieira1, Liliana Soares2 and


Manuel Ribeiro3

Novos Materiais e Novos Contextos: O Processo de design no


âmbito do equipamento para o bem-estar social
New Materials and New Contexts: design process in the field of equipment for
social well-being

Resumo
Este artigo indaga em que medida a aplicação de novos materiais no desenvol-
vimento de equipamento para o espaço de trabalho, pode ser a chave de leitura
para interpretar os novos comportamentos socias e as exigências do novo espa-
ço de trabalho que caracterizam a complexidade e a fluidez da realidade atual.
Em termos de aplicação, este estudo resulta de um parceria com duas empresas
que operam estes conceitos. Por um lado, a Value Optimize, orientada para o
deenvolvimento de mateiriais, nomeadamente, a folha de pedra. Por outro lado,
a Cadeinor, que opera no âmbito do mobiliário de escritório para o novo con-
texto de espaço de trabalho. Com este artigo pretende-se demonstrar que o a
criação de conexões entre âmbitos distintos permite a transferência de valores,
conhecimento e experiência e, por essa razão, a introdução de um novo material
com competência ecológica no desenvolvimento de equipamento para espaço
de escritório, pode ser uma ocasião para determinar produtos inovadores e pro-
porcionar bem-estar emocional e social.
Palavras-chave: Design e Materiais, Workspace, Bem-Estar Social, Equipamento.

1 Formação superior em Design do Produto no Instituto Politécnico de Viana do Castelo, a frequen-


tar atualmente a formação para o grau de Mestre na mesma instituição no curso de Design Integra-
do. Atualmente integra o gabinete e equipa de design da empresa Cadeinor (Fafe, Portugal) que
atua no mercado de desenvolvimento e produção de equipamentos de escritório.
2 Professora adjunta e coordenadora da licenciatura em Design do Produto do Politécnico de Viana
do Castelo. É doutora em design (U. Aveiro), licenciada em design (FA-UL) e investigadora do CIAUD
e do ID+. O seu interesse incide na teoria e crítica do design, semiótica e espaço. Colabora em re-
vistas e eventos científicos. É membro de comissões científicas de conferências e em revistas da
especialidade. Orientou mais de 25 teses de mestrado e orienta teses de doutoramento. É co-autora
do livro ‘Sei progetti in cerca d’autore’ Alinea E (2012).
3 Professor adjunto no Instituto Politécnico de Viana do Castelo, integra o grupo disciplinar de Mate-
riais e Tecnologias de Produção da mesma instituição. Realizou toda a sua formação na Universidade
de Aveiro tendo se formado em Engenharia Cerâmica e do Vidro, Mestrado em Engenharia dos Ma-
teriais e Doutorado em Ciência e Engrenharia dos Materiais.

238
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Abstract/resumen/resumé
This article examines the extent to which the application of new materials in the
development of workspace equipment may be the key to reading the new social be-
haviors and demands of the new workspace that characterize the complexity and
fluidity of current reality. In terms of application, this study results from a partner-
ship with two companies that operate these concepts. On the one hand, Value Op-
timize, oriented towards the development of materials, namely the stone sheet. On
the other hand, Cadeinor, which operates under office furniture for the new work-
space context. This article aims to demonstrate that the creation of connections
between different scopes allows the transfer of values, knowledge and experience
and, for this reason, the introduction of new ecologically competent material in the
development of office space equipment can be an occasion to determine innovative
products and provide emotional and social well-being.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: Design and Materials, Workspace, Social Wel-
fare, Equipment.

INTRODUÇÃO
As oscilações constantes e a fluidez da realidade atual solicitam soluções para uma
modernidade “líquida” mais dinâmica que a modernidade “sólida” que a suplantou
(BAUMAN, 2000). A passagem de “estado físico” da modernidade acartou consigo mui-
tas mudanças nos aspetos da vida humana. Começamos a viver num mundo repleto
de sinais confusos que propõem mudanças bruscas de forma rápida e imprevisível.
Nesta sociedade contemporânea, “interrupção, incoerência, surpresa são as condições
comuns de nossa vida. Elas se tornaram mesmo necessidades reais para muitas pes-
soas, cujas mentes deixaram de ser alimentadas por outra coisa que não mudanças
repentinas e estímulos constantemente renovados…Não podemos mais tolerar o que
dura. Não sabemos mais fazer com que o tédio dê frutos.” (VALÉRY cit. in BAUMAN,
1999: 7). Este tipo de realidade não influência só os aspetos pessoais do ser humano,
mas invade também a sua postura profissional e o seu espaço de trabalho como expli-
ca o sociólogo Zygmunt Bauman (1999). Isto constituí que a efemeridade das relações
ligada ao pensamento colaborativo é a nova norma das organizações empresariais, ou
seja, “o pensamento funcional cruzado é a nova norma e esforçamos para unir as equi-
pes da maneira mais significativa para fazer seu melhor trabalho”4 (HAWORTH, 2016:
10). Este tipo de pensamento colaborativo estimula novas atitudes e um espaço que,
como alude a designer Patricia Urquiola, é mais um tipo de paisagem doméstica, nós
moramos no lugar onde estamos a trabalhamos. Esta constatação leva o profissional
que opera em mutua existência com outras personalidades a ter de trabalhar em co-

4 Tradução livre de autor: “Cross functional thinking is the new norm and we strive to bring teams toge-
ther in the most meaningful way to do their best work” (HAWORTH: 2016, p.10).

239
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

munidade e de modo inclusivo para o bem-estar social de todas as partes intervenien-


tes no espaço, porque “trabalhar em comunidade é ser flexível e entender os diversos
modos de ser e de estarmos juntos” 5 (URQUIOLA, 2016: 12). Esta parece ser a nova
postura o espaço de trabalho exige às pessoas, porque saber trabalhar em comuni-
dade é sentir que o bem-estar só está completo quando o outro também alcança a
sua tranquilidade, no sentido de uniformidade de qualidade de trabalho para todo o
grupo que opera nos sistemas da empresa. “Uma condição de bem-estar justamente
desejada por cada um de nós deriva de fato da complexidade das relações que têm
lugar na sociedade da qual fazermos parte (…) é justamente partindo desse conjunto
de relações que cada um encontra (ou não encontra) o seu bem-estar social próprio.”
(MANZINI, 2002: 59). É neste âmbito que se foca esta investigação e se alude à cultura
dos materiais e à folha de pedra para propor um equipamento portador de grande
componente ecológica, capaz de interpretar os novos comportamentos sociais e as
exigências deste novo espaço de trabalho.

PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO
Objetivos

Neste artigo pretende-se demonstrar que a transferência de valores de um âmbito


para o outro – neste caso a introdução, pela primeira vez, da folha de pedra num
sector e numa empresa – pode desencadear experiências de conhecimento e, con-
sequentemente, proporcionar o bem-estar na vida das pessoas. “O design é uma dis-
ciplina autónoma que vive do relacionamento com outros saberes que podem de-
senvolver-se, igualmente, aplicando a sua ação metodológica” (SOARES, 2012: 102).
A aplicação de um novo material numa empresa pode ser um elemento catalisador
de inovação e, consequentemente, proporcionar a abertura de novas oportunida-
des de negócio para a empresa.

As empresas que embarcaram nesta investigação apresentam-se no mercado em


dois âmbitos distintos. Por um lado, a ValueOptimezed, criada em 2013 é detentora
do contexto material da folha de pedra. Por outro lado, a empresa Cadeinor focada
no âmbito do mobiliário de escritório que já reflete uma cultura de projeto nesta
mesma visão do “new work space” e colaborativo. Deste processo criativo em con-
junto com estas duas empresas de sectores distintos espera-se alcançar novos con-
ceitos reflexo deste novo espaço e dos novos mercados de atuação.

No contexto da investigação o objetivo será averiguar em que medida os novos ma-


teriais se convertem em vinculares de sensações e conhecimento em função dos no-

5 Tradução livre de autor: “To work in community is to be flexible and understand many ways of being,
and being together” (URQUIOLA: 2016, p.12).

240
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

vos comportamentos humanos e do bem-estar social. De igual modo, pretende-se


validar a metodologia participativa do design do produto no desenvolvimento de
novos materiais para o contexto do espaço de trabalho.

O espaço de escritório como âmbito experimental

A necessidade de projetar um sistema de produto portador de experiências de sen-


sações e de conhecimento remete este estudo para a década de 70 do século passa-
do quando Clino Trini Castelli, Andrea Branzi e Antonio Petrilo desenvolverem o con-
ceito de Design Primário. “Algo que é primário é muito subtil em termos da energia
que expressa, mas quando esse nível de energia subtil está presente em uma escala
maior, torna-se importante. Nesse ponto, torna-se algo muito fundamental e forte
do ponto de vista da sensação ou comunicação” (CASTELI, 2015: 2). Neste estudo, a
utilização da folha de pedra torna-se o elemento subtil que pretende gerar um efeito
sensorial, fazendo a diferença no equipamento e no espaço. Aquele será o elemento
que transportará a sensação de bem-estar que nos transmite os elementos naturais
envolvente com outros materiais sintéticos que também são selecionados e utili-
zados com o mesmo intuito. “Quando trabalhados ao estilo de um Design Primário
abordamos delicadamente vários efeitos na luz, cheiro, cor, no toque, em muitas
manifestações do material onde isso se torna expressivo no ponto de vista figurativo
e muito significativo na sua expressão.” (CASTELLI cit. in TEIXEIRA, 2015: 2).

Um caso que comprova esta verdade remonta da década de 80 do século passado,


quando Clino Trini Castelli desenvolveu um escritório “High Touch” para a empresa de
mobiliário Herman Miller. Clino Trini Castelli rompeu com os estigmas do mobiliário
americano de 1981 e 1982 que seguia um tipo de organização militar, apresentando
um sistema de produto de mobiliário de escritório onde introduzindo uma multiplici-
dade de cores e de outros aspetos que fez o ambiente ficar semelhante ao ambiente
doméstico, “(...) projetar um sistema de produto “(...) significa projetar unitariamente e
de maneira integrada os produtos singularmente analisados e as relações (físicas, fun-
cionais, performativas, construtivas, formais, etc.) existentes em cada um dos produtos
que pertencem ao sistema” (CHIAPPONI cit. in APARO, 2010: 172).

Hoje, o projeto da década de 80 de Clino Trini Castelli continua a ser contemporâneo


e pertinente, porque esta realidade é constatada nos dias de hoje porque o “nosso
espaço de trabalho é cada vez mais uma espécie de paisagem doméstica (…) Vive-
mos no lugar onde estamos a trabalhar” (URQUIOLA: 2016, p.10). No projeto “High
Touch” para a Herman Miller, o projetista utilizou elementos ligados e aplicados con-
forme o modelo do Design Primário, “(…) esquema policromática cor, muitos teci-
dos de luxo, materiais, papéis de parede ambientais, e madeiras - Lotes de madeiras
de luxo” (CASTELLI: 2015, p.5). O objetivo não era só mudar, radicalmente, a perce-
ção dos ambientes de trabalho daquela realidade.

241
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 1 6- Da esquerda para a direita: Biblioteca e catálogo de cores para Herman Miller no projeto
“Hight Touch / Design da estação de trabalho do sistema de ação do escritório para
Herman Miller 1983. Fonte6

Naquele tempo, existia também o intuito de fazer algo diferente do que o mercado
apresentava e as pessoas esperavam ser influenciadas pelo tempo, pelo espaço e
pelas circunstância (Brown, 2009). Como esclarece Clino Trini Castelli, o ambiente de
escritório do futuro era imaginado como um lugar agradável, com um diagrama de
cores secas, futurista e com muita tecnologia, mas este negando este modulo imagi-
nário e afirmando que o seu modelo acabou por desenhar um modelo de espaço de
trabalho, assim como de produtos, que se mantem até aos dias de hoje.

O panorama atual do espaço de trabalho:


A “filosofia” dos escritórios da Google

Conhecido como o motor de busca mais utilizado e famoso do mundo ocidental


ainda são poucas as pessoas que conhecem a sua realidade empresarial. Para quem
a conhece é-lhe reconhecido a inovação do espaço de escritórios que impressionam
pelo número de espaços, pela estética, a funcionalidade e pela dinâmica, pelo que
fala-se mesmo de uma “filosofia Google” de trabalho. O que passava de um simples
projeto de pesquisa de Larry Page e Sergey Brin, em 1996 desenvolvido na Univer-
sidade de Stanford, transformou-se num verdadeiro caso sério no mundo das pes-
quisas online. Na universidade o objetivo do projeto era o desenvolvimento de uma
tecnologia que permitisse uma única biblioteca, integrada e universal digital das
propriedades matemáticas da world wide web e da compreensão das estrutura de
links como gráficos. A 4 de Setembro de 1998 nasce a a empresa a Google Inc., na
garagem de um amigo, em Menlo Park, Califórnia. Ao longo da sua história esta em-
presa teve um percurso ascendente, foi recebendo alguns financiamentos e entrou

6 MITCHELL, C. Thomas (1996). NEW THINKING IN DESIGN . Estados Unidos da América: Jane Dege-
nhardt. Copyright by Vab Nortrand Reinhold . p.66

242
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

em novos mercados muito diversificados. Esta dinâmica disseminou-se, um pouco


por todo o mundo, com a criação de outros polos de investigação e trabalho que
primam pelas caraterísticas já mencionadas.

Desde a sua fundação, a marca mais reconhecida do mundo faz lucros anuais im-
pressionantes e investe parte desses proveitos na criação de melhores e mais diver-
tidos ambientes de trabalho, isto porque sabe que “a felicidade e a produtividade
andam de mãos dadas.” (REIS: 2017, p.1). Uma empresa que alberga mais de 50 mil
funcionários e 70 escritórios em todo o mundo tem feito um investimento em au-
tênticas casas, oferecendo mesmo a possibilidade dos colaboradores dormirem nos
escritórios. Esta é uma boa medida implementada para os trabalhadores que traba-
lham fora da sua zona de residência, “as condições são tão boas que, de acordo com
as respostas a um inquérito do Quora, alguns empregados escolheram viver nas
instalações, desfrutando das infraestruturas disponíveis e da comida grátis. Não é
suposto isso acontecer, mas a segurança da empresa parece não colocar obstáculos.”
(ANTÓNIO: 2014, p.1). A filosofia desta empresa está assente num pensamento, “se
eu quero que aquele talento trabalhe comigo, vou proporcionar-lhe tudo para que
se mantenha na empresa. (GOOGLE cit in REIS: 2017, p.1) isto porque os talentos de
uma empresa são o cérebro e a chave para a inovação.

O design nestes espaços tem um papel de excentricidade. Enquanto a norma do


escritório do passado seria um espaço impessoal, na Google os colaboradores têm
produtos móveis para se deslocarem nos seus locais de trabalho, escorregas em
formas de tubos e pequenos espaços verdes para libertarem o streess com jogos e
chaiselong colocados para vista lindíssimas, “os gestores são claros: queremos criar o
local de trabalho mais feliz e produtivo do mundo” (REIS: 2017, p.1). Intitulados pela
comunicação social como os espaços mais criativos, divertidos e nada convencio-
nais, a Google apresenta escritórios em todos os continentes e diversificado a sua
estética, o número de ambientes e a originalidade dos produtos. Em vários casos
verifica-se um design adequados à cultura da cidade onde a empresa está sediada.

O projeto dos sistemas de equipamento dos escritórios da Google

Considerando que esta estudo se orienta para aplicação de um novo material em


equipamaento para espaço de escritório, interessa analisar como a Google interpre-
ta este exercício.

Através de uma seleção fotográfica e informativa sobre o tema selecionaram-se


espaços e produtos que apresentam a implementação de um novo material na sua
superfície. Desta análise verifica-se a inclusão de paredes de escalada em espaços
de lazer que são projetados com para entreter os colaboradores. Durante a análise
averiguou-se, igualmente, que a utilização de produtos para organizar o espaço de
trabalho aberto. Designadamente, produtos com a forma de um ovo gigante em

243
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

cápsula com um aspeto muito acolhedor que proporciona um local de trabalho


ou descanso privados. Ou ainda, soluções de produtos com uma forma irregular
suspensos na parede. Ainda no âmbito dos equipamentos para lazer e descanso
há uma chaiselong7 inovadora em forma de capsula que isola todos os barulhos
do espaço, proporcionando um momento de sesta ao colaborador. Um outro caso
que interessa examinar é um jogo de xadres gigante implementado no corredor
da sede da empresa em Londres (Inglaterra). Trata-se de hipótese de criar um es-
paço lúdico onde os colaboradores se divirtem e convivem. Outro espaço que se
preza pela qualidade em qualquer empresa da Google é a zona de restauração.
Neste espaço, para além de um ambiente bem decorado e acolhedor nada falta
em termos de alimentação e de cafetaria para a pausa mais importante do dia de
trabalho do colaborador da empresa.

Figura 28 - da esquerda para a direita, cima para baixo: Paredes de escalada na Google em Seattle
e na Google em Ontári / Zonas trabalho ou descanso em forma de ovo na Google em Zurique
/ Solução de espaço privado de trabalho ou descanso na Google em Zurique / ChaiseLong para
sestas da GooglePlex na Califórnia / Xadrez gigante no corredor da Google em Londres. Fonte7

O caso mais interessante e fora do comum das empresas Google surge na sede de
Amesterdão e na sede da empresa na Califórnia (GooglePlex). As empresas são tão
grandes que os colaboradores podem deslocar-se entre espaços de bicicleta e tro-
tinete através das mini-ciclovias projetadas e organizadas dentro da empresa, “(…)

7 Este produto surge proveniente da GooglePlex, a maior empresa da Google fundada na Califórnia (EUA).
8 https://pt.ihodl.com/lifestyle/2017-07-11/26-fotografias-que-mostram-que-google-tem-os-escri-
torios-mais-cool-do-mundo/ (Aced. a 07/2019)

244
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

por vezes esquecemo-nos de que a Google é uma empresa “comum”, com departa-
mentos, áreas funcionais administrativas e uma rotina de trabalho como a de todas
as outras empresas (…) O conceito já começa a ganhar o mundo. (REIS, 2017: 1).
Segundo a Google, a política de trabalho assente na criação de um ambiente em que
há preocupações de motivar os trabalhadores e de desenvolver um sentimento de
comunidade faz aumentar a produtividade. Esta parece ser uma política que agrada
aos novos sistemas empresariais e em Portugal que já se começaram a verificar de
norte a sul do País exemplos de sucesso da mesma com empresas como a Uniplaces,
Outsystems, Subvisual, Prozis, Mindera, Kinematix District, Farfetch e SONAE Bit.

Estes casos são importantes para este estudo, porque proporcionam a possibilidade
de aplicar o projeto participativo ou Co-Design.

Método e sequência operacional do projeto


Em termos operacionais este estudo assenta no método empírico e misto e divide-se
em 6 partes:

A escolha do tema de projeto: esta fase consiste na análise histórica e na evolução


no contexto do material em estudo e do “workspace” (BROWN, 2009), em função
da nova realidade (BAUMAN, 1999). No âmbito do sistema de produtos, o estudo
foca-se no projeto de superifice para equipamento. Isto constitui que com a mesma
racionalidade, o projecto proporcionaria tantas aparências possíveis de saciar o gos-
to individual. Nesta fase é fundamental o estudo do conceito de Design Emocional
(NORMAN, 2003) e ainda o domínio que se contempla a competência da semiótica
no design (LATOUR, 2008) no âmbito do desenvolvimento do projeto de seperfície
para equipamento para o espaço de escritório.

A Leitura, análise e interpretação dos intervenientes: Na segunda parte desta in-


vestigação analisam-se as entidades parceiras do estudo - a Value Optimeze e a
Cadeinor - e, possivelmente, outras empresas que venham a agregar esta inves-
tigação a fim de criar ligações fomentar parcerias. Este trabalho consistirá no le-
vantamento da visão e objetivos das entidades, materiais, técnicas e processos
tecnológicos com que ambas operam, assim como conhecer os produtos e os seus
processos de produção para deste modo conhecermos os limites das empresas
intervenientes na investigação.

O Trabalho de Experimentação. A terceira parte consiste o reconhecimento de pro-


priedades, limites e deficiências das amostras de materiais para o projeto assim
como testar as tecnologias coloquiais ou as novas tecnologias que possam surgir
para serem utilizadas no processo de transformação do material. Esta fase consite,
igualmente, na análise, na interpretação e na experimentação do novo material apli-
cado no âmbito do novo espaço levando esta fase a um nível semiótico e sensorial

245
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

onde será importante também a experimentação através da intervenção da persona


que habita no nosso novo espaço. Neste processo colaborativo de intervenção social
cabe ao design ser o fio condutor entre o “modelo de mercado” presente no compor-
tamento das empresas parceiras e o “modelo social” que se pretende implementar
nesta investigação. “O objetivo primário do design para o mercado é criar produtos
para venda. De modo contrário, o objetivo primordial do design social é a satisfação
das necessidades humanas. Contudo, nós não propomos o “modelo de mercado” e
o “modelo social” como opostos binários, mas sim vê-los como dois polos de uma
constante.” (MARGOLIN: 2004; p.44). Nesta fase pretende-se testar as experiências,
utilizando o processo aberto e participativo do Co-design (Soares, Aparo, Moreira
da Silva, 2017), enunciando soluções úteis paras as pessoas que utilizam os espaços
de escritório. Esta parte da investigação será sempre uma parte em aberto e a ser
realizada nas restantes partes que seguem da mesma, porque a cada passo dado
ao longo desta investigação e enquanto avançamos para a parte de materialização
do projeto todos os conceitos e soluções materiais e projetais geradas devem ser
levadas a uma experimentação.

A Criação de Hipóteses de Projeto. A quarta fase consiste no desenvolvimento de hi-


póteses de projeto para gerar as ideias formais do equipamento para interpretar os
novos comportamentos sociais e as exigências do novo espaço de trabalho. Espera-
-se desenvolver um projeto tendo em consideração um dos cincos casos de atuação
apresentados por Nigel Cross (2006) na etapa de “geração de soluções” ou “hipóteses
satisfatória” durante o processo de Design. Nesta fase é possível atuar com um pro-
cesso de “Fixação”, ativando a hipótese de projeto resultante de soluções anteriores
e de recursos do projeto, iniciando o processo de criação com um comportamen-
to de afeiçoamento a conceitos primários (simples). Num método completamente
distinto dos anteriores inicia-se um processo de “geração de alternativas”9, que se-
gundo teóricos e educadores é o mais recomendado. Este processo consiste no de-
senvolvimento de uma ampla gama de conceitos de soluções de forma adequada e
equilibrada, “gerando poucos conceitos alternativos e gerando um grande número
eram estratégias igualmente fracas, levando a soluções de design más”10 (FRICKE cit
in CROSS, 2006: 84). Segundo o protocolo de FRICKE (1993, 1996) gerar poucas ideias
pode levar a uma fixação no concreto, por outro lado, gerar muitas ideias leva a um
gasto de tempo enorme a organizar e a gerir o conjunto de variantes, em vez de
avaliarem cuidadosamente as necessárias alterações nas alternativas que possam
vir a ser propostas inicialmente. Por último, neste momento da investigação será

9 Cognição proposta no protocolo de Fricke (1993,1996)


10 Tradução livre de autor: “(…) generating few alternative concepts and generating a large number
of alternatives were equally weak strategies, leading to poor design solutions.” (FRICKE, cit in CROSS:
1982 , p.84)

246
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

importante recorrer à criatividade 11, considerando o enquadramento do problema e


a ponte conceitual entre o espaço deste com a sua solução, e ao “Sketching” 12 como
uma “ferramenta chave” para auxiliar o processo de criação na disciplina dos autores,
“os estudos sobre o papel do Skeching (…) enfatizaram o seu poder inerente como
uma ajuda de design”13 (CROSS, 2006: 92). Todas as hipóteses de projeto formuladas
nesta fase serão sempre validadas em conjunto com as entidades parceiras.

O Projeto e a prototipação. Esta última fase da investigação é concluída com a mate-


rialização, a execução e a produção do protótipo final selecionado entre as hipóteses
de projeto que surgiram na parte anterior. Os resultados desta parte de investigação
estão assentes na boa relação entre todas as entidades parceiras e ainda no conhe-
cimento das propriedades, manuseamento e aplicação correta do material e deste
envolvente com os aspetos formais do produto e com os outros matérias com que
vai conviver no mesmo projeto. Nesta etapa o projeto estará exposto a fatores so-
ciais, comportamentais e tecnológicos bem como à visão e à mentalidade visionária
e ao fator de risco das empresas parceiras, além destas o cumprimento do calendário
por parte de todas as partes intervenientes será importantíssimo para alcançar um
bom resultado. Espera-se que o protótipo emergente desta investigação reflita o en-
tendimento a mais valia da intervenção do design no meio empresarial. Esta fase fica
dependente das últimas experimentações a fim de limar possíveis falhas que ainda
possam surgir durante a produção deste último protótipo. Trata-se de um momento
de projeto em que a materialização deverá dar resposta à questão de investigação
e tornar-se um projeto que demonstra que os novos materiais se conseguem con-
verter em veiculares de sensações e conhecimento em função dos novos comporta-
mentos humanos e do bem-estar social assim como demonstrar as vantagens que
a metodologia participativa do design do produto acarta no desenvolvimento de
novos materiais para o contexto do espaço de trabalho.

11 Cognição proposta pela Akin and Akin (1996)


12 Cognição proposta por Schön e Wiggins (1992)
13 Tradução livre de Autor: “Studies of the role of sketching (…) emphasised its inherent power as a
design aid.” (CROSS: 1982, p.92)

247
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 3 – Mapa mental e gráfico do Método e Sequência Operacional do Projeto. (Fonte: VIEIRA,
Diogo – Autor da investigação)

248
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Projeto Piloto
O desenvolvimento do projeto piloto resulta da aliança entre duas empresas do Nor-
te de Portugal de contextos diferentes e que nunca trabalharam juntas. O processo
utilizado pode ser defidnido como uma abordagem interativa com empresários, in-
vestigadores e artesãos que combinaram programas, discussão e protipagem. Espe-
ra-se que este processo transdisciplinar permita a compreensão correta de ambos os
setores. Por um lado, a empresa Value optimised que oferece soluções inovadoras de
revestimento, como é o caso da folha de pedra. Por outro lado, a empresa Cadeinor
que desenvolve mobiliário de escritório fundamentado no conceito de conforto do-
méstico e open space. Com esta metodologia a proposta de projeto incidirá em novos
conceitos assentes na experiência prévia para criar oportunidades para a inovação.

A empresa Valeu Optimized14

A Value Optimized, Lda nasceu em 2013 por mão de Diogo Ribeiro, empreendedor
e com 13 anos de experiência na área das madeiras. Depois da sua passagem pela
SONAE, inicia este projeto dedicado ao estudo e ao desenvolvimento de novos pro-
dutos tecnologicamente, inovadores, e ecológicos direcionados para a decoração e
a construção.

Tendo a Península Ibérica como o seu espaço de atuação no mercado, esta empresa
é formada por 3 vendedores distribuídos entre Lisboa, Porto e Vigo, e uma equipa
sub contratada que realiza as operações de montagem.

As suas marcas próprias e as que representam confluem num vastíssimo leque ino-
vador de aplicações, criando ambientes únicos, tanto de interior como de exterior,
com especial utilização nos setores da decoração, nomeadamente, na hotelaria, na
restauração, no comércio e na habitação.

Na sua gama de produtos conta com 3 linhas de soluções inovadores de revesti-


mentos para decoração de interiores: a broDesign, Golden Glass e VStone. A broDe-
sign é um produto de origem alemã que consite em mosaicos decorativos 100% em
madeira natural com uma variedade de desenhos, padrões, estruturas, madeiras e
acabamentos que resultam em soluções decorativas para aplicações em ambientes
de interior. A Golden Glass são painéis decorativos em vidro ou acrílico provenientes
de Italia com base em papéis estruturados e/ou com efeitos 3D, a nobreza do vidro
com a versatilidade do acrílico, permitindo a criação de ambientes únicos. Por últi-
mo, a gama VStone a que pertence a folha de pedra flexível e com uma face superior
(rosto) 100% natural e a fase inferior (base) constituída por uma resina poliéster
ser opaca (ST) ou translúcida (UV). Este material/produto é proveniente da india,

14 Fonte: Entrevista a Diogo Ribeiro - CEO & Founder / Site da empresa indicado pelo mesmo

249
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

desenvolvido através de um processo produtivo manual e inovador. Nesta coleção


podemos encontrar 40 referências diferentes de folha de pedra.

Com esta gama de produtos a Value optimez procura corresponder à visão e à mis-
são pela qual se move e foi fundada. Ou seja, liderar pela inovação, desenvolvendo
novas áreas de negócio que acrescentem valor, com produtos e soluções inovado-
ras para os sectores da Decoração, Arquitetura, Design de Interiores e Construção,
disponibilizando novos produtos e soluções, de forma profissional e competitiva,
recorrendo às mais inovadoras tecnologias, posicionando-se como um verdadeiro
parceiro de negócios.

A empresa CADEINOR15

A empresa CADEINOR - Mobiliário de Escritório Integrado, Lda. foi fundada em 1996


na freguesia de Quinchães-Fafe pelos irmãos e Manuel Marinho Pereira e José Ma-
rinho Pereira. Em 2001 (5 anos) com a entrada do 3º irmão, Florentino Marinho Pe-
reira no corpo social da empresa, esta alterou a sua sede para a Zona Industrial do
Socorro em Fafe, onde se fixou até aos dias de hoje contando já com dois edífios, um
dedicado à produção e logística e o outro dedicado ao design e desenvolvimento de
produtos assim como a sua exposição através do shoroom.

No panorama atual a empresa conta com distribuidores em todos os distritos a nível


nacional e ainda um pouco por todo mundo, Espanha, França, Irlanda, Marrocos,
Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Suazilândia e São Tomé e Príncipe.

Manuel Marinho, CEO & Founder Cadeinor, aponta 5 fatores importantes para es-
tar no pódio das empresas mais conceituadas no setor do mobiliário de escritório:
flexibilidade de resposta, o leque abrangente de produtos, especificações próprias,
prazos de entrega curtos e principalmente a inovação, “Conhecemos os riscos que
inovar comporta, mas estamos conscientes da importância que tem para as organi-
zações nos dias de hoje” (MARINHO; 2001).

A inovação é um ponto de referência para a empresa CADEINOR por isso existe um


investimento constante sobre este fator para poder acompanhar as tendências do
mercado. Os elementos-chave na definição da identidade da empresa tem sido o
foco na constante materialização de produtos e a aposta no desenvolvimento pró-
prio e numa relação sustentada pela ética informal que antecipa as necessidades
dos clientes.

A CADEINOR trata-se de uma empresa que garante a sua inovação através da ener-
gia da sua estrutura horizontal construtivamente insatisfeita que ambiciona romper

15 Fonte: Entrevista a Manuel Marinho - CEO & Founder / Site da empresa indicado pelo mesmo

250
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

com a rotina diária do ser humano, “transformar os espaços é também transformar


a dinâmica das relações dentro do ambiente de trabalho, a globalização alterou o
mundo corporativo, nesse sentido é necessário projetar de acordo com as exigên-
cias de um contexto empresarial cada vez mais fluido.” (MARINHO, 2001)

Como valores existem três pilares para a empresa, inovação, eficiência e conforto
apostando em relações baseadas na ética e confiança e como missão a empresa pre-
tende acompanhar o ritmo e fluidez do mobiliário de escritório enquanto âmbito,
propondo diferentes tipologias de produtos com altos e rigorosos padrões de qua-
lidade. Para isso existe uma insistência num processo multidisciplinar que permite
criar produtos capazes de aliar o conforto à estética, e a qualidade ao preço.

A Visão da empresa está comprometida com a compreensão da modernidade fluída


em que vivemos (BAUMAN, 2000) propondo soluções capazes de acompanhar o flu-
xo do contexto em que a empresa estar inserida. A CADEINOR segue atentamente as
tendências que condicionam o aspeto dos produtos assumindo que esta é a postura
mais adequada no desenvolvimento de produtos que devem ser capazes de integrar
as novas personalidades do espaço.

Dentro da sua gama de produtos a empresa apresenta 3 segmentos, o primeiro, “Se-


ating Soluttions” é subdividido em cinco categorias, a “XT Collection”; a “Premium
Collection”; “Standard Collection”; “Auditório” e “Waiting Collection”. As 3 primeiras
categorias pertencem à família das cadeiras rodadas e não rodas, sendo a “XT” uma
gama média, a “Premium” a gama mais alta e a “Standard” a gama mais acessível.
A categoria de Auditório como o nome indica é destinada a esse mesmo espaços.
Por último a categoria da Waiting Collection abrange a tipologia dos produtos de
sofás, mesas de centro e micro arquiteturas para a pensar nas salas de espera das
empresas.

O segundo segmento “Horeca Collection”, abrange uma coleção de mesas, cadeiras


e bancos para o contexto de hoteleiro e de restauração. O último segmento, “Office
Ideas” é constituído pela linha “Estilo” uma linha de mobiliário de escritório com ele-
vados padrões de qualidade.

Premissas de Projeto e conceito


O Design Biofilico sustentado pelo estudo “O Impacto Global do Design Biofílico no
Ambiente de Trabalho” do Prof. Sir Cary Cooper e Bill Browning será a premissa que
irá orientrar esta investigação a fim de facilitar a elaboração e a gestão do projeto.
Este conceito aparece referenciado em 1964 por meio de Erich Fromm, psicólogo e
filósofo, mas só em 1984 começa a ser popularizado pela mão do biólogo Edward O.
Wilson quano este lançou um livro a explicar a afinidade inata dos seres humanos
pelo mundo natural e os benefícos desta conexão. O Design Biofilico é uma forma

251
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

inovadora de aproveitar a afinidade e os benefícios de estar ligado à natureza para


criar ambientes, atrativos, benéficos e saudáveis para o ser humano. Este tipo de de-
sign conciste num desenvolvimento de um desenho onde seja pensado a aplixação
de elementos naturais para dentro de um ambiente urbano, de forma direta ou indi-
reta, real ou simulada. No âmbito do workspace o Design Biofilico é uma ferramenta
de extrema importância, porque pode ajudar os trabalhadores a recuperarem men-
talmente das tarefa que finalizaram ou aliviar o strees do dia-a-dia com um fim no
bem-estar mental e físico.

Devido à rápida urbanização que nos últimos 60 anos o mundo sofreu, devido ao
seu crescimento económico e tecnológico, cada vez mais existem áreas cobertas por
construções humanas e as pessoas deslocam-se da zona rural para as zonas urbanas à
procura de novas oportunidades pessoais e profissionais. Mas o ser humano tem uma
necessidade inata de de estar em contacto com a natureza, então é necessário pensar
na biofílico de forma a invadir estas construções humanas que nos afastam daquela.

Através do estudo que usamos como premissa para a nossa investigação consta-
tamos diversas experiências realizadas que demonstram os benefícios da Biofilia
e do Design Biofilico, desde o bem-estar, da recuperação mental, do aumento da
produtividade e criatividade ao aumento da saúde do trabalhador são inúmeros
os benefícios deste âmbito.“O bem-estar torna-se tangível através do ambiente de
trabalho, o que não se resume a uma questão de espaços de trabalho ergonômicos ou
confortáveis. Acreditamos que o ambiente de trabalho realmente pode ser um local
que faça com que as pessoas saiam mais saudáveis do que chegaram.” (HICKEY cit in
COOPER & BROWNING, 2015: 18).

De acordo com este estudo os elementos naturais mais desejados para um ambiente
de trabalho são a luz natural, as plantas, o silêncio, a vista para o mar e as cores vivas
associadas à natureza. Mas, este conceito não é tão simples de por em prática como
parece. Desde o produto à organização de espaço e à cultura do país onde está sediada
a empresa, para ser bem aplicado o design biofílica tem de ser pensado e bem organi-
zado. Os elementos naturais devem estar enquadrados com o ângulo de visão do co-
laborador enquanto trabalha. O espaço deve ter todos os seus elementos organizados,
como “formas eficazes de criar conexões simbólicas com a natureza dentro do escritório
compreende a inclusão de elementos naturais tais como fontes de água corrente, plantas
madeira e pedra; Oferecer condições de ventilação natural (por exemplo, janelas operáveis
e varandas) e utilizar tecidos que remetam às texturas de materiais naturais.” (COOPER &
BROWNING, 2015: 30) Devemos tirar proveito dos elementos naturais que estão no es-
paço exterior de maneira a transportá-los para o interior e é preciso conhecer a cultura
do território para conhecer os significados dos elementos associados a este mundo na-
tural e do bem-estar. Neste sentido, tem-se constado pelo estudo do Prof. Sir Cary Coo-
per e Bill Browning que, de país para país, os ambientes de escritório das empresas ren-
didas ao Design Biofilico são bastante distintos em termos de elementos naturais. Por

252
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

exemplo, no Reino Unido o elemento natural mais utilizado nos espaços de trabalho a
fim de proporcionar bem-estar do colaborador no interior dos escritórios é a pedra.16

O design Biofilico constitui um elemento de importância para esta investigação por-


que o seu fim no bem-estar do trabalhadores é o mesmo propósito desta investigação,
o que nos leva a considerar esta área, os seus conceitos e as suas experiencias como
ferramentas parceiras para utilizar e ter em conta para a investigação e o seu desenho.

Figura 4 – Mapa mental da ação efeito do impacto do Design Biofílico desde do colaboradore a
entidade empregadora (Fonte: Espaços Humanos: O impacto do Design Biofílico no Ambiente de
Trabalho; COOPER & BROWNING, 2015: 30)

16 Fonte: ESPAÇOS HUMANOS: O Impacto Global do Design Biofílico no Ambiente de Trabalho

253
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Conclusões
Antevê-se uma investigação intensa de 6 partes, sendo a parte 3 e 5 as mais desafia-
doras por todos os limites e experimentações que vão acartar. Esta será uma cami-
nhada a 5 que pretende envolver aluno, orientadores e empresas, numa atmosfera
de investigação. Será importante em cada fase da investigação ter em consideração
a opinião e a avaliação das entidades intervenientes porque são estas as detentoras
do conhecimento teórico e prático que irão encaminhar a investigação no caminho
correto e irão validar as melhores soluções e propostas.

Para a materialização do equipamento será oportuno analisar as tecnologias e com-


ponentes á disposição e idealizar um número equilibrado de hipóteses de satisfató-
rias de desenhos que tomem esta análise em consideração e consigo corresponder
aquilo que é pretendido. Não se descarta a procura por novas tecnologias, compo-
nentes ou materiais.

No final desta investigação entremos num processo de projeto participativo ou Co-


-Design que será feito através de uma amostra de indiviuos pertencentes a um espa-
ço de escritório. Sem nenhum conhecimento ou influências antecipadas, para deste
modo conseguirmos resultados mais verdadeiros e espontâneos iremos avaliar aas
questões sensoriais e emocionais do projeto. Nesta fase do projeto, a fim de formu-
lar um bem estar social será importante transportar para a investigação conceitos e
práticas provenientes da semiótica, design emocional e design biofílico.

Os espaços de escritórios da empresa Google seria o cenário ideal para validar a in-
vestigação, mas as limitações geográficas afastam uma experiência na primeira por
isso em alternativa serão usadas as empresas em Portugal que se verifiquem com
esta metodologia.

Para o mundo empresarial esta investigação pretende demonstar os benefios do


design como parceiro tanto ao nível interno e estrutural, quando apresenta medidas
e ferramentas como o design biofílico para ssim promover o bem estar e a produti-
vidade dos colaboradores mas também a nível de mercado porque demonstramos
que o design é capaz de fumentar parcerias empresariais e abrir novos contextos de
mercados ao nível de produtos e serviços.

Referências
CROSS, Nigel (2006). DESIGNERLY WAYS OF KNOWING. Londres: Springer. (Aced. a
03/2019)

BAUMAN, Z. (1999). MODERNIDADE LÍQUIDA. BRASIL: Editora Zahar (Aced. a 06/2019)

254
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

BROWN, T. (2009) . CHANGE BY DESIGN: HOW DESIGN THINKING TRANSFORMS OR-


GANIZATIONS AND INSPIRES INNOVATION. Harper Business. (Aced. a 06/2019)

TEIXEIRA, João (2016). O PROCESSO EM DESIGN NO DESENVOLVIMENTO DE UMA


PRANCHA DE SURF EM CORTIÇA . Tese de Mestrado, Artes e Humanidades, Artes,
Design – Instituto Politécnico de Viana do Castelo. Disponível em: http://hdl.handle.
net/20.500.11960/1742 (Aced. a 06/2019)

HAWORTH, Design Studio.; URQUIOLA, Patricia (2016) . IMMERS TABLES . A Haworth/


Studio Urquiola Partnershio . Catálogo de produtos . Disponível em: haworth.com
(Aced. a 06/2019)

BROWNING, Bill.; COOPER, Sir Cary (2015) . IMPACTO GLOBAL DO DESIGN BIOFÍLICO
NO AMBIENTE DE TRABALHO . Relatório de pesquisa da Espaços Humanos . Disponí-
vel em: www.humamspace.com . (Aced. a 06/2019)

LATOUR, Bruno. (2008) A Cautious Prometheus? A Few Steps Toward a Philosophy of


Design (With Special Attention to Peter Sloterdijk), in Proceedings of the 2008 Annu-
al International Conference of the Design History Society, Falmouth, 3-6 September
2009, e-book, Universal Publishers, pp. 2-10. (Aced. a 07/2019)

MANZINI, Ezio; VEZZOLI, Carlo. (2005) O DESENVOLVIMENTO DE PRODUTOS SUS-


TENTÁVEIS : OS REQUISITOS AMBIENTAIS DOS PRODUTOS INDUSTRIAIS. São Paulo
: Edusp (Aced. a 07/2019)

MARGOLIN, Victor.; MARGOLIN, Sylvia. (2004) UM “MODELO SOCIAL” DE DESIGN:


QUESTÕES DE PRÁTICA E PESQUISA Revista Design em Foco, julho-dezembro, año/
vol. I, número 001 Universidade do Estado da Bahia. Salvador, Brasil. pp. 43-48 (Aced.
a 07/2019)

PAPANEK, Victor. (1997) DESIGN FOR THE REAL WORLD: HUMAN ECOLOGY AND SO-
CIAL CHANGE. London : Thames and Hudson (Aced. a 07/2019)

255
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Emilio José Martínez Arroyo1 and Fabiane


Cristina Silva dos Santos2
Pantallas mutantes. Proyecciones panorámicas e
interactividad
Mutant screens. Panoramic projections and interactivity

Resumen
En esta investigación abordamos el concepto de pantalla como dispositivo en
las proyecciones audiovisuales panorámicas y la introducción de elementos in-
teractivos en las instalaciones artísticas.
Las tecnologías digitales y las nuevas tecnologías de proyección audiovisual han
facilitado la experiencia artística contemporánea en dos direcciones iniciales,
uno en el desbordamiento de los límites de la pantalla convencional y otra en la
construcción de un espacio panorámico de representación. Finalmente veremos
como la utilización de elementos interactivos propician un espacio de represen-
tación diferente a partir del concepto de pantalla ampliada.
Pantallas mutantes es un proyecto de investigación que nos permite explorar
desde la práctica artística las posibilidades de la pantalla extendida a partir de la
videoinstalación interactiva “idea-imatge-Universitat RELOAD” en una pantalla
semipanorámica cilíndrica
Palabras clave: Proyección; audiovisual; panorama; interactividad Projection; au-
diovisual; panorama; interactivity

Abstract
In this research we address the concept of screen as a device in panoramic audio-
visual projections and the introduction of interactive elements in art installations.
Digital technologies and new audiovisual projection technologies have

1 Artist and professor of the Department of Sculpture of the Faculty of Fine Arts of the Polytech-
nic University Valencia, Spain. Member of the research group Laboratorio de Luz of the Polytechnic
University of Valencia with which he develops different projects of interrelation art, technology and
public space. He develops his research and artistic works in new media in the Espai214_LAB (http://
www.espai214.org/espai214lab/) https://orcid.org/0000-0001-6794-9032
2 Intermediate Artist / Researcher. PhD in Visual and Intermediate Arts from the Polytechnic Universi-
ty of Valencia. He develops his research and artistic works in new media in the Espai214_LAB (http://
www.espai214.org/espai214lab/) around participatory art and new media, carrying out works both
in the physical space and in virtual space. https://orcid.org/0000-0003-1200-8598

256
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

facilitated the contemporary artistic experience in two initial directions, one in


the overflow of the limits of the conventional screen and another in the con-
struction of a panoramic representation space. Finally we will see how the use
of interactive elements create a different representation space based on the ex-
tended screen concept.
Mutant screens is a research project that allows us to explore from the artistic prac-
tice the possibilities of the extended screen from the interactive video-installation
“idea-imatge-Universitat RELOAD” in a semi-dynamic cylindrical screen.
Keywords/: Projection; audiovisual; panorama; interactivity

The term “mutant screen” arises to refer to a set of concerns, research and tests
around the concept of expanded screen beyond its original standard format that
we have been developing in the research group Laboratorio de Luz. Although we
extend the term to the wide field of experimentation on the concept of screen and
image projection that different contemporary artists have been developing, which
evolve the concept of ‘screen art’ that emerged at the end of the last century linked
to the appearance of the projector of video (Brea, 1999), incorporating through the
software solutions of integration in the space and participation of the spectator.

Laboratorio de Luz is a research group created at the Polytechnic University of Va-


lencia two decades ago that is still working today on the technical image, creation,
projection and reflection, experimented with the image and its projection in space
in different supports as well as the possibilities of interaction of the spectator with
the work or the artistic proposal.

The last years we have developed a series of works as prototypes in which to test
the possibilities of video projection along with an extended concept of projection
screen that we have called a ‘mutant screen’. Recently we presented at the exhibition
“idea-imatge-RELOAD University” at the La Nau Cultural Center of the University of
Valencia, a projection device consisting of a cylindrical screen of 24 meters perime-
ter and two and a half height on which we made a panoramic projection with three
video projectors on which a room was superimposed that could be operated by the
public by modifying the whole projection. This device allowed us to carry out a se-
ries of tests and projections and continue the reflection on the artists and the artistic
proposals that they have experimented with these concepts and their contributions.

….

The appearance of the video projector and its technical evolution in the last decades
of the twentieth century allowed artists to explore a territory in which the spatiality
of the experience, the place of the projection-exhibition and the spectator took a

257
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

leading role. The spatiality of the place linked to the experience accompanies the
artistic experience from its origins, it is enough to mention from the first known cave
paintings to the relationship with the architectural space throughout history. We are
especially interested in the immersive capacity of the image linked to the place that
is identified with the great pictorial panoramas of the 19th century.

The term Panorama was used in the 19th century to designate gigantic circular paintings, which
were the logical generalization of the Renaissance perspective, a type of painting that allowed
a 360 ° view to the viewer, who was always given a leaflet that emphasized that circular vision
(Bastida de la Calle, 2001, p. 206)

The idea of panorama initially attributed to Robert Barker for his view of the city of
Edinburgh in 1788, was developed in Paris and in other European cities throughout
the 19th century (Bastida de la Calle, 2001)

These scenarios arising from the new scientific-technical possibilities of the 19th
century and from curiosity about the new ways of representing the world, were will-
ing to be open, to appear in venues specially designed for them, to participate in the
public, to the spectators of the epoch, while expanding their spatial perception of
the environment, offering them an experience in which spectacle and knowledge
went hand in hand.

Video projection develops rapidly in the last decades of the twentieth century, from
the mere projection of the document or audiovisual work to becoming a way of
doing. The initial limitation of the audiovisual presentation of the monitor box or on
the screen - wall of the space that could only be exhibited under certain conditions
of ambient brightness, is overcome with the new technological developments of
projection. The versatility product of the technical development of video projectors
and the accompanying software allow from micro projection on specific objects to
projection on large architectural objects, facades, buildings, as well as the power of
the projection allows greater autonomy with with respect to the luminosity condi-
tions of the space in which it is projected, which does not require total darkness,
and can sometimes be projected under conventional ambient light conditions. All
these developments allow experimenting with multiscreen concepts that will lead
to a spatialization of the projection space.

The pioneer artists who worked with the video image had experimented with the
physical, object component of the reproduction apparatus giving rise to the concept
of video sculpture, the works of Nam June Paik, Wolf Wostel, and the exhibitions of
the Fluxus group are well known in the 60s, and later on video installation with Bill
Viola or Bruce Nauman, among others. The videographic image gave rise to a subge-
nre of to the point that many artists declared themselves and declared themselves
video creators. However, the videographic image has crossed these limits and is cur-

258
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

rently another element, as was the photographic image, used by numerous artists
who take advantage of the possibilities of this moving image at the service of their
personal poetics and their proposals artistic.

Over time the projection space becomes the protagonist and the screen in the
device that activates it, works such as “Between Darkness and Light (After William
Blake)”, 1997, by Douglas Gordon or “Hors-champs”, 1992, by Stan Douglas, use a
floating screen displaced from its conventional location, in a central position in the
room, offering a double projection surface that forces the viewer to move around it
to visualize the whole projection. In Douglas Gordon’s work, he uses a semi-trans-
parent screen that allows the joint view of both sides of the projection playing with
the spooky image and with the viewer by allowing the shadow cast by the viewer
when approaching the screens in excess to interrupt part projection and allows you
to prioritize the projection on the opposite side

This type of interaction of the viewer with the projected that in the case of Douglas
Gordon was carried out in a “quasi-accidental” way from the possibilities of the own
form of exposure that the projection allows, has had a wide development from the
use of devices technology that make interaction with the viewer their main interest.

….

The experiences with the multiscreen projections will soon give rise to the experi-
ence with the space that the projection itself delimits and in which the viewer will
have a capital importance, since it is only his presence in front of the images that
surround him and his movements through these spaces. which allow the reading of
the work, sometimes define its meaning and always become a unique experience
that can only be acquired by the presence of each particular viewer.

The multiple screen allows you to restructure a pre-existing space or build your own.
From the initial concept of “graphic art” or its use in video installation, it gives rise
to interventions in which the screen design defines its own space. Initially the mul-
tiscreen used by video artists such as Isaac Julien, Eija-Liisa Ahtila allowed to expand
the projection surface under the concept of ‘screen art’ and create an interrelation
between projections, between different times, spaces, scenes. On the other hand,
artists such as Steve McQueen use the image as the protagonist in their installa-
tions with positions and camera movements, producing a perceptual and emotional
experience in the viewer. In the work “Western Deep”, 2002, he invites us to enter
a small projection room in which the image of a forklift is projected, used in the
descent to one of the deepest gold mines in the world in South Africa, that great
speed is accelerated, so that the spectators are involved in the vertigo of a descent
into the darkness under the thunderous mechanical noise of the forklift, linking the
perceptual experience with the critical reading of the image that is proposed to us in
terms of darkness and oppression in a colonial world.

259
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Steve McQueen’s Western Deep (2002) showed South African miners descending
into the hellish underworld of a gold mine. Enormous jarring sounds of mechani-
cal equipment and metallic screeching and crashing accompanied the descent into
darkness, with occasional flashing lights offering glimpses of the miners as they de-
scended ever farther, getting out of the lift at its occasional subterranean stops. The
message seemed to be that labour in a capitalist society is a hell of exploitation and
humiliation. (McEvilley, T. 2002)

We are interested in the proposals of authors who have worked on the arrange-
ment of the screens to generate autonomous spaces in which the image requires
the presence of the viewer, their movement in space and their perceptual experi-
ence. Authors such as Doug Aitken begin with proposals from the expanded ‘screen
art’ released from the main plane to acquire interesting spatial configurations that
transform the exhibition space “Altered Earth” , 2012, as their experimentation with
cylindrical screens in “New ocean floor” , 2001,

The appearance of the video installation - as an effective integration of the presence of the video
in the context of a dispersed set of significant elements - and that of all that new tradition that
we can call from the screen art feed heavily on this research in the possibilities of use of the vid-
eo, of the videographic image, finally released for presentation-presentation of the integration of
the “monitor object”. We could even distinguish two very different directions of search for formal
solutions: on the one hand those that point to flat, two-dimensional configurations, approaching
in their presentation language the pictorial model (solutions intensely welcomed by the museum
of course); on the other, those others that rather articulate the presentation of the image in a
volumetric arrangement, closer to a post-sculptural approach. (Brea, 1999)

Digital technologies and their artistic applications in the last two decades, since the
end of the 20th century and the beginning of the 21st, expand the possibilities of
spatialization that arose in the ‘screen art’ in its relationship with the viewer, which
has to do with the immersive and interactive capacity of the installation. A paradig-
matic example is found in “Landscape One”, 1997, by Luc Courchesne, in which, on a
panoramic panoramic projection with four screens that delimit a space, it reproduc-
es a landscape, the Mont-Royal park in Montreal, and testing the possibilities of in-
teraction of the public of the room in which it is exposed, with the virtual personnel
that appear on the projected landscape.

….

One of the most characteristic elements of the use of multiscreens is the fragmenta-
tion of the temporal and spatial linearity of the video image, these concepts present
since its inception in modern art and the artistic avant-gardes of the early twentieth
century, had a development after through the irruption of photography, but it is the
authors who have worked on these concepts through the generation of technical

260
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

devices that interest us. The interdisciplinarity of the work of Juan Downey and his
first forays into video installation and his connection of the perceptual device to the
critical issues he addressed. The construction of precinematic devices in Marin Kasi-
mir, and particularly the development of prototypes for capturing and projection of
the image of Edmund Kuppel.

Figure 1. 3d image “idea-imatge-Universitat RELOAD”

In the exhibition “idea-imatge-Universitat RELOAD” [Figure 1], realized thanks to


the State Subprogram of Knowledge Generation. Ministry of Science, Innovation
and Universities. HAR2017-87535-P project, we present a cylindrical screen of eight
meters in diameter, twenty four perimeter by two and a half high with a projec-
tion surface of 48 square meters that allowed us to make a video projection with
three projectors synchronized with a panoramic image that alternated with three
independent images. Each of the videos was about a topic linked to the concept of
University: as an institution of knowledge, as an architectural, historical and urban
physical place, and for its involvement in the society of its time.

Figure 2. Fragment of the inside of the projection

261
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Each of these themes was developed with images of the university itself. In the first
video, we use the library, the documentation and archiving systems of knowledge
from the first codices that are preserved in the historical archive such as the first me-
dieval reproductions of the Ptolemy map or the codices about nature. The second
video is about the physical place, universities have accompanied the development
of their own societies that occupy privileged urban places and have become factual
references in cities through their architectural presence, in the case of the ‘University’
located in the old Jewish quarter of the medieval city has witnessed and is a re-
flection of the successive architectural transformations of the city of Valencia. In the
third video we gather the participation of the university, of university students in the
evolution of the social of society in society, in this case through testimonies of the
events that occurred in student mobilizations in the transition of the dictatorship to
society democracy in Spain in the last quarter of the twentieth century.

Figure 3. Operation scheme of the 4th video projector

Each of these projections was shown independently occupying contiguous spaces


on the screen, although at times one of them was transformed into a panoramic
projection that occupied the whole on the screen, overlapping the others, hiding
them, mixing with them, or hiding them to occupy the entire projection surface,
generating cross readings between the three levels or themes that were proposed.

In the center of the projection there was a tripod [Figure 3] with a projector that the
viewer could move on its horizontal axis, projecting its image on the main projec-
tion. This fourth projector, based on its position, projected data related to the image
on which it was superimposed, generating a new projection that was activated by
the viewer, which transformed the images and the reading of the projections had
become the operator of the installation itself.

262
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figure 4. Fragment “idea-imatge-Universitat RELOAD”

References
Bastida de la Calle, M. (2001). El Panorama: una manifestación artística marginal del
siglo XIX. Espacio Tiempo y Forma. Serie VII, Historia del Arte, 0(14). Recovered 2 Sep-
tember 2019 from: doi:https://doi.org/10.5944/etfvii.14.2001.2378

Brea, J. L. (1999). Transformaciones contemporáneas de la imagen-movimiento:


postfotografía, postcinema, postmedia. Acción paralela: ensayo, teoría y crítica de la
cultura y el arte contemporáneo, Nº 5. ISSN: 1136-7369

Courchel.net. (2019). courchel.net. [online] Recovered 2 September 2019 from:


http://courchel.net/

Douglas Gordon. Between Darkness and Light (After William Blake). 1997 | MoMA.
[online] Recovered 4 September 2019 from: https://www.moma.org/collection/
works/102420

The Museum of Modern Art, MoMA Highlights since 1980, New York: The Museum
of Modern Art, 2007

Baumgartner F. Stan Douglas / Hors-champs. (2019). Recovered 5 Sep-


tember 2019 from: http://www.newmedia-art.org/cgi-bin/show-oeu.as-
p?ID=150000000027577&lg=GBR

McEvilley, T. Documenta 11. (2019). Recovered 2 September 2019 from: https://


frieze.com/article/documenta-11-1

263
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Doug Aitken Workshop. (2019). Recovered 2 September 2019 from: https://www.


dougaitkenworkshop.com/

— Doug Aitken Workshop. (2019). Recovered 2 September 2019 from: https://www.


dougaitkenworkshop.com/selected-works/new-ocean

— Doug Aitken Workshop. (2019). Recovered 2 September 2019 from: https://www.


dougaitkenworkshop.com/selected-works/altered-earth

Edmund Kuppel: Projections 1970–2010 | 19.03.2011 (All day) to 15.05.2011 (All day)
| ZKM. (2019). Recovered 2 September 2019 from: https://zkm.de/en/event/2011/03/
edmund-kuppel-projections-1970-2010

264
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fabio Henrique Sales Nogueira1 and Maria


Angélica da Silva2
Perseguindo corpos que criam: mediações entre o
conhecimento, os tempos da cidade, a memória e o digital.
Chasing creative bodies: mediations between knowledge, urban times, memory
and the digital.

Resumo
Sob o impulso de aliar a produção do conhecimento acadêmico, o design de
produtos culturais e as tecnologias digitais, o presente trabalho relata o pro-
cesso de concepção e construção do evento “Édubanguê”, produzido pelo Gru-
po de Pesquisa Estudos da Paisagem e do Laboratório de Criação Taba-êtê, da
Universidade Federal de Alagoas. A denominação do evento evoca o período
colonial brasileiro, trazendo à tona a questão dos afro descentes bem como as
suas formas de expressão. Baseado em um extenso trabalho de pesquisa sobre
universo ligado aos saberes vernaculares, o evento moveu-se pelo estímulo de
pensar o tema da memória, do patrimônio bem como os vínculos entre a infor-
mação gerada pela pesquisa e as possiblidades abertas pela arte. Nesta conflu-
ência, ressalta-se o papel do corpo na sua esfera perceptiva e lúdica, bem como
os tracionamentos trazidos na atualidade pelo digital.
Palavras-chave: Digital, Memória, Patrimônio imaterial, Design.

Abstract
Under the impulse of combining the production of academic knowledge, the design
of cultural products and the digital technologies, this paper reports the process of

1 Docente no curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Tiradentes de Alagoas. Ar-


quiteto e urbanista, mestre pela Universidade Federal de Alagoas e doutorando pela mesma institui-
ção de ensino superior trabalhando o tema das mídias digitais. Como pesquisador atua nas áreas de
projeto e arquitetura contemporânea abordando interfaces entre os espaços físicos e as tecnologias
digitais. É o atual coordenador do Laboratório de Criação Taba-êtê e membro do Grupo de Pesquisas
Estudos da Paisagem.
2 Professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Alagoas,
Graduada pela Escola de Arquitetura - UFMG e mestre pela Pontífícia Universidade do Rio de Ja-
neiro. Doutorado pela Universidade Federal Fluminense/Architectural Association School, Londres,
pós doutorado pelas universidades de Évora e Bolonha. Bolsista de Produtividade do CNPq. Líder
do Grupo de Pesquisas Estudos da Paisagem, coordenou os vários projetos do Grupo relativos ao
patrimônio imaterial.

265
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

conception and construction of the “Édubanguê” exposition, produced by the Land-


scape Studies Research Group and the Creation Lab. Taba-êtê, from the Federal
University of Alagoas. The name of the event evokes the Brazilian colonial period,
bringing up the issue of afro descendants and their forms of expression. Based on
an extensive research background related to the vernacular knowledge, the event
moved under the impulse to think about the theme of memory, heritage as well
as the links between the information generated by research and the possibilities
opened by art. In this confluence, the role of the body in its perceptive and playful
sphere is emphasized, as well as the traction brought by the digital today.
Keywords: Digital, Memory, Imaterial heritage, Design.

Introdução
Trazer o corpo para a problematização do espaço e da arquitetura é atitude que de-
manda ser constantemente repensada. As analogias antropomórficas comparecem
nos clássicos da teoria renascimental seja na referência do corpo como medida, pre-
sente nos tratados, ou quando consideramos a arquitetura e a cidade no processo
de se instrumentalizarem rumo a uma sociedade industrial, como ocorreu, séculos
depois, no contexto do Movimento Moderno, experiência usualmente exemplifica-
da no escopo da teoria e prática corbusianas. Na contemporaneidade, estas relações
se tornaram ainda mais complexas a partir das possibilidades abertas pelo advento
das tecnologias digitas nas décadas finais do século XX. Dos pesados computadores
compartilhados aos portáteis notebooks com amplo acesso à internet, da fruição
mediada pelas telas dos tablets e smartphones aos espaços de realidade virtual, po-
demos dizer que as tecnologias digitais se configuram como um elemento determi-
nante no cotidiano das sociedades atualmente, com reflexos em todas as suas esfe-
ras. Este intricamento entre mundo físico e digital faz com que passemos a vivenciar
uma realidade que acaba sendo, de certo modo, coproduzida por estas instâncias,
como já nos dizia Paul Virilio em seu livro “O espaço crítico” (2014). Assumindo esta
forte presença do digital na existência humana, mais do que somente assistir de for-
ma apática sua “invasão”, pode-se aventar sobre seu potencial em criar outros modos
de capturar, analisar e produzir conhecimento.

Nesta perspectiva, se insere uma série de experimentos realizados pelo Grupo de


Pesquisa Estudos da Paisagem e seu Laboratório de Criação Taba-êtê3. Dentro de um
formato acadêmico preconizado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cien-
tífico e Tecnológico (CNPQq)/ Base Lattes4, desde 1998 reúne docentes e discentes

3 Sobre o Grupo e seu Laboratório, ver http://www.fau.ufal.br/grupopesquisa/estudosdapaisagem/


4 O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) é o orgão ligado ao go-
verno federal responsável pelo fomento a pesquisa científica e tecnológica e a formação de pesqui-

266
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Alagoas bem


como parceiros de instituições nacionais e internacionais, no sentido de realizar ta-
balhos de pesquisa que se associam à arte e ao design de produtos culturais.

Desde sua constituição, a opção metodológica do Grupo se fez vocacionada pelo


impulso de experimentar os espaços. Portanto, tratava-se de abandonar o espaço
institucional e por-se a caminho, numa postura de engajamento do corpo em suas
várias instâncias. A príncipio, na condição de deriva. Sob inspiração situacionista5,
o propósito era deixar os corpos se moverem pelo imprevisto e pela observação
sensorial e afetiva dos espaços. As situações vividas trariam a motivação para os tra-
balhos posteriores, livremente escolhidos pelos participantes da experiência. Outras
andanças se faziam a seguir, agora com um olhar mais dirigido, como aponta o pro-
ceder da micro história, apresentado por Ginzburg (1989), em busca de sinais.

O envolvimento com o que está sendo estudado, de certa forma, inibia uma postu-
ra sobre a arquitetura e urbanismo que apenas cooptasse o corpo ergonômico de
músculos e ossos ou que contemplasse a cidade a partir de uma base cartesiana,
ampliando as exigências para além do manuseio da geometria para o estudo e pro-
posta de espaços.

Este outro entendimento do corpo e dos lugares, as viagens e registros de imagens,


a captação de depoimentos e de sons, acabaram por impulsionar experimentos es-
téticos, voltados à realização de produtos culturais. Desse modo, o saber produzido
dentro da academia pôde se projetar para fora dela, e de certo modo, se valer de
formatos mais palatáveis para alcançar um público maior e mais diverso. Nessa traje-
tória de mais de vinte anos, foram inúmeras as realizações que asusmiram formatos
diversos tais como exposições, instalações espaciais, livros, cartilhas, vídeos, filmes,
dentre outros6. Mais do que trabalhar aspectos ligados a divulgação dos estudos
sobre a arquitetura e a cidade, essa etapa de elaboração de artefatos culturais aca-
bou por motivar a reflexão sobre uma série de questões contemporâneas, como por
exemplo, a dimensão do lúdico, as imbricações entre conhecimento e arte e o papel
do corpo físico na efetivação destas experiências.

sadores. A plataforma Lattes integra o curriculo de pesquisadores, grupos e instituições de pesquisa


em um sistema de informações unificado.
5 Os trabalhos sobre a temática situacionista foram amplamente divulgados no Brasil a partir das
publicações produzidas pela professora da Universidade Federal da Bahia Paola Berenstein Jacques,
a exemplo do “Apologia da deriva” lançado em 2003
6 Estes trabalhos foram realizados a partir do atendimento a inúmeros editais estaduais e nacionais,
como os promovidos pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnologico (CNPq),
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de Alagoas (Fapeal), Petrobrás, Banco do Nordeste e outros.

267
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Contudo, o caminhar dos trabalhos e dos tempos veio a colocar o desafio de não
mais apenas inserir o corpo nos lugares mas também de deixá-lo exposto aos mean-
dros dos meios digitais. Este processo ocorreu de forma contínua e quase espontâ-
nea, desde a necessidade de organização de bancos de dados, da própria busca de
informações, chegando ao momento em que o conteúdo armazenado e propiciado
pela rede se fez apresentar como um outro universo, amplo, pleno de possiblidades
de intercomunicações entre tempos e espaços.

A partir de um impulso de problematizar o lugar da memória em tempos digitais,


pensar estas relações com as mídias se apresentou como uma outra entrada para
refletir acerca das relações urbanas, sobre corpos que carregam em si uma comple-
xidade não só física mas também da ordem conceitual, que se presentificam para
além da existência material ao assumir perfis diversos nos espaços e tempos criados
na rede mundial de computadores.

Diante deste cenário e compreendendo a cultura como expressão humana de es-


tar e construir o mundo, buscou-se refletir como se entrelaçam as relações entre
o conhecimento e os estudos da arquitetura e da cidade, na sua vocação em criar
memórias e histórias.

Reconhecendo portanto, o crescente engajamento entre corpo e máquina, que,


com o avanço das tecnologias cada vez mais se entranham, e do conhecimento que
se potencializa pelas possibilidades trazidas pela mídias, serão apresentadas e ana-
lisadas algumas ações artísticas efetivamente empreendidas no sentido de pactuar
corpo e arquitetura, cidade e memória, construindo pontes entre o conhecimento
produzido na academia e as possiblidades de manejo do digital na esfera do estéti-
co, alimentando outros inputs de reflexão e produção de expressões culturais.

Um suporte de grande importância para a proposta que será apresentada, adveio


do engajamento em trabalhos de pesquisa sobre o patrimônio imaterial7, Depois
de realizar vários projetos dentro deste campo, a partir de demandas expressas pelo
Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (IPHAN)8, o Grupo foi incumbido de um
desafio de maior escopo: levantar dados sobre 48 municípios do estado de Alagoas.
Nesta investida, novas andanças. Percorreu-se mais de 3.000 km de estradas e 150

7 Apesar da preocupação com as expressões culturais populares já remontasse ao contexto de cria-


ção do IPHAN nos anos de 1930, apenas nos anos 2000 foi instituido o Registro de Bens Culturais de
Natureza Imaterial e o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (Decreto 3.551/2000) e a metodo-
logia do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC). (Iphan, 2006)
8 O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) é uma autarquia federal vinculada
ao Ministério da Cidadania que responde pela preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro. Cabe
ao Iphan proteger e promover os bens culturais do País, assegurando sua permanência e usufruto
para as gerações presentes e futuras (Iphan, 2019).

268
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

km de barco descendo o importante rio São Francisco. Imergiu-se em pequenos po-


voados, na fríngia das cidades, e levantou-se um riquíssimo material sobre lugares,
saberes, sobre a arquitetura vernacular, artesanato, festas e celebrações.

Muitos tracionamentos foram então necessários para que o Grupo realizasse um


passo além da pesquisa, que seria retornar de alguma forma, a experiência colhida
em campo e generosamente ofertada pelos depoentes, para os cidadãos de uma
forma geral. Afinal surgiu a oportunidade da montagem de um evento onde se bus-
cou entrelaçar arte, mídia, memórias, imagens e o corpo9. Tínhamos o desafio de
colocar em movimento um enorme acervo de informações para um público amplo
mas mais que isso, buscávamos também atender a uma demanda de aproximar os
saberes tradicionais das mídias. Pois mesmo nos menores lugares visitados, a pre-
sença do celular e a demanda pela internet já se fazia notar. Portanto, uma das pre-
missas da proposta foi mesclar a experiência viva do campo com as possiblidades do
digital. Esse experimento tomou o nome “Édubanguê”. Este neologismo foi criado no
sentido de captar a sonoridade da palavra “banguê” e criar uma curiosidade sobre o
sentido da expressão.

A palavra “bangüê” era usada para denominar os engenhos alagoanos, onde se pro-
duzia o açúcar no período colônial, imperial e republicano, chegando até os dias de
hoje na forma atualizada das usinas. O termo de origem africana, resumia grande
parte das ações dos escravos ao se remeter ao ato de carregar. Carregar os grande
maços de cana, carregar a lenha para manter as fornalhas acesas, carregar o dono
e suas bagagens nas duras viagens. Hoje, a palavra pouco conhecida, foi escolhida
para relembrar estes fatos e alinhar as expressões do patrimônio imaterial às suas
evidentes raízes nas funções de trabalho, onde se destacam os afro descentes.

O Edubanguê
O evento buscou cruzar os resultados advindos do extenso projeto de mapeamento
de referências culturais no estado de Alagoas com a presença dos próprios artistas
populares. Contou com uma feira de artesanato e culinária e uma programação cul-
tural com oficinas, tomando para isto, um formato misto que agregou uma amostra
na Casa do Patrimônio, sede da superintendência estadual do IPHAN, e a feira e pal-
co montados em um trecho de rua frente a este local.

O processo de desenvolvimento da parte expositiva enfrentou o desafio de conciliar uni-


versos aparentemente muito distantes: as manifestações populares ligadas ao patrimô-
nio, a memória da herança canavieira do estado de Alagoas com as linguagens digitais.

9 O projeto foi realizado a partir do atendimento a um edital municipal de incentivo a cultura “Prê-
mio Eris Maximiniano” no ano de 2015. Os autores deste texto, coordenadores do Laboratório de
Criação Taba-êtê e do Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem, estiveram à frente dos trabalhos,.

269
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A concepção da exposição buscou ser, ela mesma, uma etapa de pesquisa e de


aprendizado. Colocando em contato um grupo com diferentes backgrounds rela-
tivos a etapas e percursos de formação, os primeiros passos da concepção buscou
realizar processos de brainstorm objetivando, diante de um extenso material coleta-
do fruto da pesquisa, encontrar sínteses com potencial de figurar na exposição. Este
momento buscou se ancorar em interfaces físicas utilizando palavras-chave tentan-
do estabelecer relações como as de proximidade, afastamentos, sobreposições, au-
sências, dentre outros.

Figura 1: Atividades de brainstorm. Fonte: Acervo Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem (2018).

A partir deste encadeamento foram eleitos alguns temas para serem representados
na proposta da exposição e estruturar sua setorização. Foram eles: a abordagem for-
mal cartográfica do registro das paisagens do nordeste brasileiro, onde se incluia a
cana de açúcar, as manifestações ligadas ao patrimônio imaterial enquanto práticas,
saberes e ofícios e um núcleo conectado à esfera doméstica e das crenças religiosas.

O círculo foi escolhido como figura icônica do evento, tanto por fazer referência ao
objeto físico da moenda característico dos engenhos de açúcar do Brasil, como por
lembrar vários passos dos folguedos e práticas religiosas tradicionais. Desse modo
este conceito se materializou em um dispositivo físico, uma mesa circular, com três
metros de diâmetro, coberta por 50 kilos de açúcar. A roda girava a partir da intera-
ção do público e figurou como elemento de destaque. Ao redor da mesa dispôs-se o
conteúdo expositivo em um movimento que buscou delinear as macro e micro pai-
sagens alagoanas. Desse modo foram expostas desde iconografias (mapas e vistas)
seiscentistas, a uma projeção do curta-metragem inspirado, entre outros elementos,
por estas iconografias e uma série de imagens ligadas ao registro do patrimônio ima-
terial. Em seguida estavam os espaços ligados às celebrações religiosas na sua diver-
sidade, indo da tradição católica aos cultos afro, presentes tanto através de elemen-
tos tangíveis, quanto por meio de uma “audiozona”, que os visitantes podiam imergir
nas músicas de rituais religiosos e folguedos, reproduzidos em fones de ouvido.

270
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Dentre as muitas possibilidades oferecidas pelas tecnologias digitais, os recursos


interativos se alinham com as intenções da proposta em desenvolvimento ao ne-
cessitar da ação dos usuários para sua completude. Desse modo, a roda foi o objeto
desenvolvido enquanto interface física como suporte ao recurso da interatividade. A
concepção partiu do desejo de incitar o gesto do movimento onde o girar da mesa
disponibilizava vídeos com temáticas diferentes sobre o mote da exposição. Os víde-
os que se projetavam sobre a roda guardavam um conteúdo que buscou combinar
imagens atuais com iconografias antigas, fazendo referência aos hábitos e costumes
ligados à cultura da produção do açúcar. Do ponto de vista do seu funcionamento
técnico, foi desenvolvido um algoritmo no software Max, que utiliza uma linguagem
de programação visual, para operar as transições no vídeo conectadas ao movimen-
to da roda. Uma webcam foi posicionada para captar essas mudanças. O giro da
roda, responsivamente fazia as alterações entre as projeções.

O preenchimento com açúcar, produto precioso nos séculos coloniais mas também
tão atraente na dieta atual, produziu uma superfície de reflexos e brilho, cumprindo
sua função como elemento que informava unido aos propósitos estéticos e ao lúdico.

Figura 2: Imagem do espaço interno da exposição. Fonte: Acervo Grupo de


Pesquisa Estudos da Paisagem (2018).

Dentro do espectro da interatividade se faz importante realizar uma diferenciação en-


tre este conceito e o de responsividade que pode ser definido como aquilo, ou algo,
que responde a determinados estímulos. Assim, a arquitetura, ambientes, ou disposi-
tivos responsivos, são aqueles que podem reagir a provocações diversas como o pró-
prio meio inserido, gestos, movimentos, dentre muitos outros. “In the technical sense,

271
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

responsiveness implies sensitivity to selective stimuli by sensors and some form of


translation of that input into a reactive response”10 (Oxman & Oxman, 2014. p. 328).

Usman Haque (2006), em seu artigo intitulado “Arquitetura, interação e sistemas”


aprofunda as reflexões sobre estes conceitos nos fornecendo parâmetros de reco-
nhecimento e distinção entre as duas ideias.

Fundamentalmente, interação diz respeito a transmissão de informações entre dois sistemas, por
exemplo, entre duas pessoas, entre duas máquinas, ou entre uma pessoa e uma máquina. A cha-
ve, porém, é que essa transmissão deverá ser de alguma forma circular, caso contrário, ela será
somente “reativa” (Haque, 2006, p. 68).

Esta definição encontra argumentos similares na fala de Kas Oosterhuis que estabe-
lece a relação input-output como determinante na definição da interação.

What exactly is interactive architecture? Let me first clarify what is not. Interactive architecture
(iA) is not simply a structure designed to be responsive or adaptative to changing circumstances.
It is not a response to pushing a button, as when switching on the lights. It is much more than
that; it is based on the concept that bi-directional communication requires two actives parties.
Communication between two people is interactive naturally; they each listen (the input), think
(the processing part) and talk (the output)11 (Oosterhuis in Oxman & Oxman, 2014, p. 353).

Para além do experimento responsivo com a roda, o objetivo de convocar as mídias


digitais para o projeto expositivo foi de que elas perpassassem o conteúdo da mos-
tra, promovendo essa espécie de mistura com a instância física. Nesta perspectiva,
sobreposições foram utilizadas buscando romper com essa dualidade ligada ao ma-
terial e o imaterial digital. Foi o caso do segmento da exposição que apresentava
os registros iconográficos (mapas e vistas) sobre o Brasil colonial. Uma das imagens
utilizadas na exposição foi realizada pelo cartógrafo holandês Johannes Vingboons
sobre a paisagem da então capitania de Pernambuco. Com o passar do tempo estas
terras foram intensamente utilizadas para o cultivo da monocultura da cana-de-açú-
car e o recurso da animação computacional foi empregado para não apenas ilustrar
esse destino, mas também provocar a reflexão sobre as mensagens que são passa-

10 No sentido técnico, responsividade implica sensibilidade à determinados estímulos e alguma


forma de tradução destes para uma resposta reativa. (tradução nossa).
11 O que é exatamente uma arquitetura interativa? Deixe-me primeiro esclarecer o que não é. Arqui-
tetura interativa (Ai) não é simplesmente uma estrutura projetada para ser responsiva ou adaptativa
à mudança das circunstâncias. Não é uma resposta ao apertar um botão, como quando se liga as lu-
zes. É muito mais do que isso; baseia-se no conceito de que uma comunicação bi - direcional requer
duas partes ativas. A comunicação entre duas pessoas é naturalmente interativa ;ambos escutam
(entrada), pensam (processamento) e falam (saída). (tradução nossa).

272
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

das por determinados modos de representação ao tempo que também permitem


conjecturar sobre as transformações na paisagem.

Figura 3: Captura da sobreposição da animação computacional e iconografia histórica


(acima) e localização da mesma dentro da exposição (abaixo). Fonte: Acervo do
Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem (2018).

Ainda no âmbito da animação computacional ela foi novamente adotada em um


suporte híbrido, físico e digital, para funcionar como um holograma. Foi executa-
da sobre uma estrutura com base e moldura em madeira, fechada por um material
translúcido onde foi aplicada uma película específica para este fim. Sobre ela, foi
projetada uma animação computacional a partir de desenhos realizados in loco nos
lugares visitados que guardavam, de certo modo, o frescor da experiência ao se ter
contato com as localidades e referências culturais.

273
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 4: Imagens da animação que compõem o holograma (acima) e projeção das mesmas na
exposição. Fonte: Acervo do Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem (2018).

Porém, o grande desafio da exposição não era apenas sair da esfera do tema da res-
ponsividade e buscar uma real interatividade pelos meios digitais mas a de colocar
as várias dimensões corpóreas – “naturais” e trazidas pela tecnologia - em evidência
ou até mesmo em confronto. Portanto, se por um lado, a exposição respondia a uma
demanda de testar e promover a interação digital com toda a sua potência para
informar e impulsionar a imaginação e a criatividade, por outro, a colocava perante
ingredientes seculares ligados à vida “real” que palpitava nas pequenas cidades ala-
goanas. A feira, as oficinas, as apresentação dos folguedos cumpriam este papel mas

274
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

ao final, como um transbordamento, realmente adentram pelo espaço dos experi-


mentos digitais, como se comentará a seguir.

Na esfera da memória, esse cruzamento entre digital e os saberes populares que


nortearam o desenvolvimento da exposição, evidenciam a possibilidade de se tra-
balhar estes temas, aparentemente opostos, de forma mais complexa. As diversas
manifestações ligadas ao patrimônio imaterial se perpetuam pelos tempos se va-
lendo dos recursos da oralidade e do intenso engajamento das pessoas com estas
experiências. Sobre o artifício social para a sobrevivência dessas práticas ligadas es-
sencialmente à memória, Pierre Lévy nos diz que:

As rimas e os ritmos dos poemas e dos cantos, as danças e os rituais têm, como as narrativas, uma
função mnemotécnicas. Para evitar qualquer viés teleológico, poderíamos apresentar a mesma
ideia da seguinte maneira: as representações que tem mais chances de sobreviver em um am-
biente composto quase que unicamente por memórias humanas são aquelas que estão codifica-
das em narrativas dramáticas, agradáveis de serem ouvidas, trazendo uma forte carga emotiva e
acompanhadas de música e rituais diversos (Lévy, 2011, p.83).

Nos tempos digitais o movimento que se vende é o da perene duração da memória,


se a entendermos apenas sob a face do registro. Neste sentido as várias possibi-
lidades de documentação, descrição e captação das diversas formas de expressão
popular materiais e imateriais podem ser “eternizadas” no espaço ilimitado da rede
mundial de computadores “independentemente” de seus suportes.

As diferentes categorias profissionais envolvidas enfrentavam os problemas de apresentação


e contextualização de acordo com tradições próprias, com a especificidade de seus suportes
materiais. Os tratamentos físicos dos dados textuais, icônicos ou sonoros tinham cada qual
suas próprias particularidades. Ora, a codificação digital relega a um segundo plano o tema
do material. Ou melhor, os problemas de composição, de organização, de apresentação, de
dispositivos de acesso tendem a libertar-se de suas aderências singulares aos antigos subs-
tratos. (Lévy, 2011, p.103)

Entretanto, talvez habitar em apenas um desses extremos não traga as respostas


que as sociedades contemporâneas necessitam acerca desta temática. O esforço do
grupo nestas ações espaciais foi o de cruzar, sobrepor, tensionar, os caminhos da
memória de forma não polarizada. Sendo assim, talvez o grande momento do even-
to tenha se dado quando os dois polos expositivos se interligaram. Não apenas com
o adentrar dos integrantes de um folguedo próprio de Alagoas e ligado à tradição
do engenho. Estes usaram a passagem pelo “canavial”, uma enorme cortina formado
por milhares de fios verdes, e que preparavam o acesso para o local da roda. Mas
principalmente quando o grupo do Mané do Rosário, formado pelos descentes dos
trabalhadores do campo, cruzaram a sala. A vigorosa emoção dos corpos com os

275
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

rostos cobertos não apenas para ativar o caráter de segredo do folguedo12 mas tam-
bém porque a prática cotidiana com a cana demandava proteger o máximo possível
o corpo contra os filetes das folhas que cortam a pele de forma aguda se contrapôs
ao cenário das imagens e dos efeitos produzidos.

Considerações finais
Não conseguirmos saber o que o Mané do Rosário levou da exposição. Não sabemos
o impacto afetivo e emocional daquela apresentação que realizaram na cidade mais
importante do estado, sua capital Maceió. O que foi para eles ver a imagem de si
mesmos ou de pessoas muito próximas a eles, na roda ou fazendo parte do projeto
da exposição. Porém, para nós, este momento de união entre diversas camadas de
materialidade, corpóreas, audiovisuais, imagéticas, digitais, compuseram um univer-
so compartilhado, sem distinção entre instâncias ou suportes.

Figura 5: Membro do folguedo “Mané do Rosário” apreciando a exposição. Fonte: Acervo do Grupo
de Pesquisa Estudos da Paisagem (2018).

12 O folguedo “Mané do Rosário” é uma manifestação tipicamente alagoana e sua origem é datada
do século XVIII. Os dançadores vestem-se com trajes femininos, cobrem o rosto com uma fronha e
trazem no braço direito uma toalha ou xale. Usam meias para cobrir as mãos e parte dos braços. Na
cabeça usam chapéus de palha e colocam chocalhos presos à cintura. Os Bobos de usam terno com-
pleto, chapéu de palha ou de “baieta” e pintam o rosto com carão. (www. http://www.cultura.al.gov.
br/politicas-e-acoes/mapeamento-cultural/cultura-popular/folguedos-dancas-e-tores/folguedos-
-de-festas-religiosas/mane-do-rosario/mane-do-rosario, recuperado em 06, Setembro, 2019).

276
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Referências
Berenstein, P. J. (Org.). (2003). Apologia da Deriva: escritos situacionistas sobre a
cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra.

Diégues, M. J. (1990). O Banguê das Alagoas. Maceió: Edufal.

Ginzburg, C. (1989). Mitos, Emblemas e Sinais. São Paulo: Companhia das Letras.

Haque, U. (2006, dezembro). Arquitetura, interação e sistemas. Revista AU, N. 149.


p. 68-71. Recuperado em 12 de Janeiro de 2016 de http://www.haque.co.uk/papers/
intersecao149.pdf .

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. (2006). O Registro do Patri-


mônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Traba-
lho Patrimônio Imaterial. Brasília.

Lévy, P. (2011). As Tecnologias da Inteligência: O Futuro do Pensamento na Era


da Informática. (2. ed.) São Paulo: Editora 34.

Nogueira, F. H. S. (2016). Entre algoritmos e afetos: a arquitetura, o espaço e o


digital. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Alagoas, Alagoas, Maceió,
Brasil. Disponível: http://www.repositorio.ufal.br/handle/riufal/1352

Oosterhuis, K. (2014). Move that body: building components are actors in a complex
adaptative system. In Oxman, Rivka & Oxman, Robert. Theories of the digital in
architecture. Nova Iorque: Routledge.

Oxman, R. & Oxman, R. (2014). Theories of the digital in architecture. New York:
Routledge.

Sadler, S. (1999). The situationist city. Massachusetts: The MIT Press.

Sibilia, P. (2003). O homem pós-orgânico. Rio de Janeiro: Relume Dumará.

Silva, M. & Azevedo, A. V. W. S. (2011). Breves linhas sobre o corpo e a arquitetura.


Revista Vivência. N.37 , 105-122.

Silva, M. & Aprígio, E. (2011). A arquitetura que pulsa: a experiência do corpo na tare-
fa de projetar. Anais do V Projetar: Processos de Projeto: teorias e práticas, Belo
Horizonte, Minas Gerais.

Virilio, P. (2014). O Espaço crítico. Rio de Janeiro: Editora 34.

277
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Irene Alfaro Ulate1

The iteration in the interdisciplinary creative process


La iteración en el proceso creative interdisciplinario

Abstract
This article analyzes interdisciplinary artistic creation from a systemic perspec-
tive, which explains the processes of information flow in its dual characteristic of
being input and output within an information system in which the processes are
iterative and qualitative. It also explains how the whole affects the parts and the
parts affect the whole; i.e. any information that is entered will affect the system
as a whole and the information that affects the whole will affect each of its parts.
The case study that allows this reflection is the artwork Dispositivo Espacio Ti-
empo. In the process of creation, the participation of the diverse disciplines and
personal conceptions about time and space made necessary the implementa-
tion of strategies, methods and work instruments that facilitated the communi-
cation, the consensus and the advance to reach a defined product thanks to the
interdisciplinary creative process.
Keywords: art, science, technology, space, time, collective creation.

Resumen
Este artículo analiza la creación artística interdisciplinaria desde la óptica sistémica, que
explica los procesos del flujo de la información en su doble característica ser insumo y
producto dentro de un sistema de información en el que los procesos son iterativos y
cualitativos. También explica cómo el todo afecta a las partes y las partes afectan al
todo; es decir que cualquier información que se introduzca afectará al sistema en su to-
talidad y la información que afecte la totalidad afectará a cada una de sus partes. El
estudio de caso que permite esta reflexión es la creación -Dispositivo Espacio Tiempo-;
en el proceso de creación la participación de las diversas disciplinas y concepciones per-
sonales sobre el tiempo y el espacio hizo necesaria la creación de estrategias, métodos

1 Irene Alfaro Ulate is a professor of graphic design and visual arts at the Escuela de Arte y Comunica-
ción Visual (EACV) of the Universidad Nacional (UNA) in Costa Rica. In 2011 she received her master’s
degree in Visual Arts and Multimedia at the Universitat Politècnica de València. She is currently a
doctoral candidate in the Doctorate Programme in Art: Production and Research at the Universitat
Politècnica de València.

278
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

e instrumentos de trabajo que facilitaran la comunicación, el consenso y el avance para


alcanzar un producto definido gracias al proceso creativo interdisciplinario.
Palabras clave: arte, ciencia, tecnología, espacio, tiempo, creación colectiva.

Art, finally, whatever definition we prefer to give it, is a language, an instrument of knowledge
and communication. A way of illuminating little known spaces of our being, making unknown
territories visible, taming the ghosts and fears that haunt the human being from the moment he
recognizes himself mortal. Diego Levis.2

The iteration in the creation of the visual arts is a common practice, it is enough to
see the amount of time that the authors dedicate to the development of sketches
on a topic in which they are working, and that constitute the physical manifestation
of the visual thought; a universally recognized example is the amount of studies of
horses made by Leonardo da Vinci visualizing the anatomy, postures and heads to
be able to create the final proposal of a sculpture in bronze. This process was also
carried out in pictorial works, in the indirect technique of oil painting, it is frequent to
find pentimento3 in the final execution, term that refers to the changes made by the
author in order to modify and correct parts of his work that are covered by the final
execution, being thus undetectable to the naked eye of the observer. It is thanks to
techniques such as X rays, infrared reflectography, examinations with lights (flush,
ultraviolet, etc.) that is possible to visualize these changes and identify how, during
the creative process to restructure a part, it ends up modifying the final result of the
work. This digression is intended to show the importance of iteration in individual
artistic processes; but in this case the question is to identify whether it is equally or
more important in interdisciplinary creation processes.

For this purpose, the project Dispositivo Espacio Tiempo (DET)4 developed in Costa
Rica by the National University (UNA) during the year 2016 and shown to the public
in November of the same year, will serve as a case study. This link between science
and art is generated through dissimilar epistemological, axiological and methodo-
logical principles, posing a challenge for the generation of a system capable of fa-
cilitating the flow of information in an environment of democratic and horizontal
participation. Another challenge faced by the project was to make uncertainty a

2 Free translation by the author.


3 Italian term used by conservers and restorers.
4 Developed in the context of the Interdisciplinary Initiatives Program of the Centro de Investiga-
ción Docencia y Extensión Artística (CIDEA), which annually awards a base fund for the implemen-
tation of an interdisciplinary project. The preliminary project presented by Irene Alfaro Ulate of the
Escuela de Arte y Comunicación Visual (EACV) and Esteban Picado Sandí of the Physics Department
of the UNA was selected to develop the interdisciplinary proposal from February to November 2016.

279
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

strength of the project, that is to say, in interdisciplinary creation, if one wants to be


consistent, there cannot be pre-determined conceptions that limit group creativity,
which translated into not having, at the beginning of the process, any definition of
the final product that was being sought. Musicians, composers, graphic designers,
modern dancers, programmers, textile designers, new media specialists and a sound
machine designer joined the project. With this team, we worked in a systemic way in
interdisciplinary creation, through the application of heuristic stages for the concep-
tion and design of the DET.

Interdisciplinarity
In the classic work Social History of Literature and Art (Hauser, 1998), he indicates that
artistic manifestations respond to the social, technological and economic conditions
of the context, thus he explains that in ancient cultures knowledge was conceived in
an integral way. During the Middle Ages there is a concentration of information, and
therefore of power, within the Catholic Church. With the advent of the modern era
in the West, that has been called a rebirth in the history of art. Radical changes are
presented in society and consequently, in the understanding of the world and of the
human being. By the 18th century, the industrial revolution phenomenon brought
along new forms of power, and technological and social relations that led to a model
of specialization as opposed to the agricultural and artisanal model in the produc-
tion of goods and services. This specialization occurs in all areas of knowledge and
will continue to grow to the present day.

At the end of the 17th century, Newton presents his theory of the absolute mea-
surement of time and space, but afterwards, in the beginning of the 20th century,
Einstein presents his theory of relativity contradicting Newton, hence provoking dis-
cussions and debates between what has been rationalized until now and relativism
as a mode of thought. The same behavior can be observed in spheres such as art,
according to Giannetti (2002), who comments that this relativism can be observed
through different manifestations, as experimentalism becomes an essential part of
the piece, in addition to the radical changes in how it is received; the initiatives to
link the different artistic spheres and boost the relations between art, science and
technology; what is manifested intermediate works or mixed media, interventionist,
interdisciplinary.

As an example of the above, the so-called Russian Ballets of S. Diaguilev, worked


their proposals of pieces for classical ballet with artists like Picasso and Matisse in
visual arts, Stravinski and Ravel in music, and Nijinsky and Pavlova in Dance, just
to name a few of the most recognized. They added their knowledge in a classical
ballet project that was enriched by the quality of the participants in their own and
distinct disciplinary fields. This is the most recurrent form of collaborative work in
the performing arts, where there is a director with a general vision of the desired

280
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

product and to this the other disciplines are subordinated in order to achieve the
objective. In short, in a disciplinary or multidisciplinary process, each participant
knows very well what the objective is to be achieved and what must be done to
achieve it; this means that there is a guide beforehand that indicates what should
be done, when and where.

However, there is also the creative creation work called interdisciplinary, which
arises as a necessary practice of relating different disciplines for the generation of
new knowledge and practices, given the complexity of the problem that needs to
be solved integrally. In interdisciplinarity, Steinheider and Legrady (2004) say that it
is hoped that by bringing together the knowledge of experts from different areas,
synergistic effects can be expected, which will allow the result to be a different set
than a simple sum of the parts. As well as the integration of the diverse approaches,
methods and strategies allow for a multifaceted point of view of the problem and
therefore it collaborates in increasing the creative potential of the members of the
team; which is possible as long as there is a shared understanding of the problem
and of the different approaches to solve.

In accordance with the above, due to the characteristics that informed the creation
of the TED, it is clear that it is an interdisciplinary project, in which different phases of
interaction between disciplines were crossed. Therefore, in a first phase, disciplinary
information of the approach of the space-time thematic was socialized; with initial
questions such as what have been the historical conceptions of time and space for
the human being in his disciplinary environment?, or what cultural manifestations
make it possible for us to visualize the subject matter? Also, what were the scientific
and philosophical reasonings about the theories of time and space? In order to have
an overview of the understanding and implications of physical notions in the deve-
lopment of the discipline, this sharing allowed us to have a common language for
referring to terms and understanding phenomena.

One of the first consensus of the team was to begin with a series of talks organized
by the different disciplines, socializing theories and conceptions of time and spa-
ce from the disciplinary particularity, which, by the format of those talks, allowed
the discussions in situ for a team feedback. Afterwards, a consensus was reached on
concepts which led to a new starting point for another phase of exchange, discus-
sion and elaboration, and so on. Based on these standards, work was carried out on
the day-to-day effects on the ordinary citizen, for example, how is time and space
conceived? And how is time and space lived today? and so on. As a result of the de-
epening of disciplinary interactions, the understanding of knowledge could be seen
materialized in the proposal shown to the public, since it offered the translation of
concepts for reflection, understanding or clarification of the intelligences of space
and time in an integral manner.

281
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A particularity of interdisciplinary work in art, as Steinheider and Legrady (2004)


indicate clearly, is that “Creativity can only occur when a task involves complex and
ill-defined problems that require the development of novel and useful solutions”. Seen
from a systemic and a project methodology perspective, the conclusion is that in
an interdisciplinary project, it is not possible to define from the beginning the pro-
ducts that will be obtained at the end, since to raise a solution apriori implies that
there is no problem or at least not in the enunciated complexity, since it is known
beforehand that a specific methodology exists that allows to give solution to the
problem. This makes it inappropriate to resort to the hybridization of methodologies
adapting them to the needs of the project in search of a multifaceted solution to the
problem. In this sense, the process began without having a clear idea of what it was
intended to produce but having a clear general theme: namely time and space, and
the intention to present a product to the public, which would socialize notions of
the theme through different sensory channels. This caused for uncertainty to be a
constant companion from the beginning of the creative process.

As the interdisciplinary team expanded with the integration of specialists required


by the project in the advancement of its phases, partial synergistic advances were
made in knowledge and products such as process outputs, which replenished new
information inputs in a constant qualitative iteration. The qualitative character of
the iteration is indicated because it is not a loop in itself, but rather that with each
process, the decanting of the information within the system was carried out with a
selection of binary type (relevant / non-relevant), according to parameters pre-esta-
blished by the equipment. This did not imply that it was possible to go back and take
back some element previously discarded as a feedback and adjustment of the sys-
tem from some control process. Shared knowledge or exchange of knowledge was
given thanks to good communication, perseverance in face-to-face work meetings
and understanding of the different professional profiles present in the team, which
led to the setting of agreed objectives.

It is illusory to think that everything is mellow in interdisciplinary work, and it is im-


portant to mention that the initial team was grouped by affinity of personalities and
approaches to collaborative work, in addition to curiosity about the subject and the
possibility of being able to carry out a project of this nature in an academic envi-
ronment. However, it should not be hidden that in this process a problem arose be-
cause one of the professionals did not feel comfortable with interdisciplinary work
and could not change his way of disciplinary processing of a problem to be solved,
so that sometimes he wanted to advance at his own pace and independent of the
team, pretending that the product generated would be placed (as if it were a patch)
in the final product. Despite the team’s efforts to integrate him and follow strate-
gies for resolving the situation, this professional ended up leaving the project saying
that he could not tolerate the system of interdisciplinary creation. Unfortunately this

282
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

is not an isolated case in interdisciplinary artistic initiatives, hence the importance


of understanding that professional participation also implies a personal decision
to participate in a group with positive attitudes such as truthfulness, commitment,
willingness, affinities and common interests, solidarity, respect and the ability to
communicate clearly, directly and critically.

Case of study5
As Sempere (2017) indicates, “it must be recognized that interdisciplinarity opens up
a very interesting and fruitful field of hybridizations, beyond the specificity of the crea-
tive thinking that is put into practice in each area of knowledge”6, accordingly, within
artistic interdisciplinarity, it is possible to apply for the arts what Hernandis raises
in Sempere (2017), in relation to the solution of problems of product design by
industry, when it indicates that “systemic methodologies make it possible to take into
account multiple factors and the effects caused by the various alternatives according
to their objectives”7. That is, to apply to interdisciplinary artistic creation a systemic
vision that allows awareness of the cycles of entry, processing and exit of diverse
information, exercising mechanisms of control and self-adjustment of the system
for the improvement of processes and the achievement of the objectives served
by the system. In other words, when the creation is done individually, the iteration
passes through different filters and control mechanisms of the subject’s psyche,
history, feelings, technical and contextual information, among others. With each
iteration, part of the information is eliminated, and more information is added that
will lead to the formal synthesis in a determined time, which will depend in each
case on the creative subject. In other words, most individual creative processes are
characterized by what in system theory is called a black box, the input and output

5 Project Dispositivo Espacio Tiempo (DET), multimedia creation that was concretized by involving
art, science and technology, to account for the intellections of space and time through the interdis-
ciplinary creation of analogies conceived in 7 immersive and interactive installations, namely: linear
and absolute time in an unmodifiable and independent space. Cyclic time that establishes as a unit
of measure the loop in an independent space when time happens; time and space as a single dy-
namic and modifiable category (general relativity); time and space as independent and modifiable
entities (special relativity); space-time as a real entity that curves, vibrates, oscillates and generates
a sound (unified vision); all of them connected by corridors or steps that functioned as transitions
in a two-storey building, occupying an approximate space of 1400m2; in the city of Heredia, Costa
Rica. Members of the creative team: Irene Alfaro and Esteban Picado from the Universidad Nacional
(UNA), Ana Carolina Zamora and Esteban Campos from the Universidad Estatal a Distancia (UNED),
Espacios Autogestores: La Jauría (Joan Villalobos) and Lo que es arriba (César Alvarado); Indepen-
dent professionals: Juan Carlos Martínez, Nicol Mora, José Chavarría, Marjorie Navarro, Andrea Cata-
nia, Melissa Rivera, Katherina Moya and Karina Moya.
6 Free translation by the author.
7 Free translation by the author.

283
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

of the system is known, but not the processing mechanism that has been given to
the information. This would be unthinkable in interdisciplinary creation because
the complexity of the problems, diversity of disciplinary fields, personalities, me-
thodological approaches, would make it, if not impossible, at least inefficient in
order to achieve the objectives, and in principle the very subsistence of the system
would be threatened. Therefore, collective creation in this case becomes chaotic
and favors the loss of valuable information, reduces the capacity for feedback of
previously discarded processes, hinders communication and does not favor con-
sensual decision making. In addition, it would be frequent to witness disciplinary
power struggles where the dominant voice would be the one that decants and
determines the synthesis of form. Having said this, it can be inferred that the ideal
for interdisciplinary work is to promote the use of a white box for the treatment
of information, so that the registration, processing and output of the information
is clear for the participants, thus facilitating the making of consensual decisions
based on the transparency of the process that will lead to the achievement of the
objectives of the project.

To exemplify the above, in the case of TED it was decided to create a device based
on what Costa (1998) has expressed about the analogy: that it is a universal me-
ans of knowledge and thought, which captivates precisely by being knowledge. It
also indicates that within the main types of analogies, correspondence is identified
with the acquisition of knowledge and understanding of the world (complementary
correspondence), which functions by synthesis of complementarity, as the analo-
gy maintains a permanent tension between correspondence and complementari-
ty, where the forms created correspond to phenomena and are complementary to
them insofar as they make them intelligible, penetrable and comprehensible. This
made it possible to achieve the objective of communicating the intellections of time
and space to the users of the device. Because

“A new fact or phenomenon, when apprehended and endoprojected, will inexora-


bly open deep or barely perceptible cracks in our cognitive edification; not because
the new phenomenon increases a kind of deposit in which the empiria is engraved
as a specular image, but because of our need to elaborate it and convert it into a
concept. The idea, in such a way, is not a conclusion but a beginning, a project.”.
(Zátonyi, 2016)

284
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figure 1. Graphing process and public display of the multimedia installation about relative time.
Photographs by Irene Alfaro Ulate. 2016.

How could we communicate the special relativity raised by Einstein? During the in-
formation exchange process, Esteban Picado explained that special relativity is cal-
led special because it studies particular cases where subjects move with constant
velocities, and constant velocity has to be comparable to the velocity of light. With
the basic assumption that nothing travels faster than the speed of light within the
universe, Einstein found a series of paradoxes within physics, and the only way to
resolve these paradoxes was to allow space and time to change, not to be rigid, and
that change in space and time translated into a different view of how time happens;

285
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

because time now does depend on how the subject moves, it cannot yet be tou-
ched. What is changing is that when the subject moves, the intervals of time and
the intervals of space (i.e. distances) change, and that change depends on the ob-
serving subject and the way in which he moves, which means that time is no longer
universal (as Newton put it). All of this means that within this theory, subjects have
an active role in measuring times and spaces. Therefore, in one of the immersive TED
installations, a key criterion was that time may elapse differently between two peo-
ple or objects. In terms of describing the above-mentioned installation, Irene Alfaro
states that it could be considered, a priori, one of the most “simple” rooms vissually,
because it has no physical objects in the space, but rather it is worked through ligh-
ting and pre-recorded video projection of identical twin dancers using different time
intervals. The projection was arranged to generate a dialogue between the space,
the moving image and the dancers. The same dancers of the video intervened the
space in situ performing a choreography in which they interacted with each other,
with the video and the public. The room was partly illuminated with red light and
partly with blue light. The color code is important because the red (warm color) is
perceived to “approach”, and the blue (cold color) to “move away”. This coincided
with the notion represented in physics of accelerating and decelerating speeds and
propitiated the perception of different sensations on the passing of time.

Figure 2. System diagram, by Irene Alfaro Ulate. 2016.

286
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

The costumes of the dancers were intervened with microprocessors that detected
their movement in space and the speed in which they did it, causing the LEDs sewn
to the costumes to change to blue if they increased the speed, and to turn to red if
they slowed down their movements. With this brief description we try to make clear
the analogy that was made between the intellection of time and space, a physical
theory (special relativity) and the language of the new media to communicate.

From a systemic perspective, the functioning of the system involved inputs of infor-
mation from physics, dance, video, lighting, space design, color theory, program-
ming language, which were processed and transformed through heuristic methods
for creation such as brainstorming, graphics and conceptual models, among others,
always passing through the control filter of curatorships in art and science, which
evaluated the relevance or not of the outputs, as well as the activation of feedback
mechanisms to initiate a new iterative process.

Conclusions
In artistic creation, the weight of disciplinary tradition makes interdisciplinary crea-
tion sensibly difficult, given that it is very difficult for artists to change towards forms
of collective creation, where they depend on others for the resolution of a problem.

Iteration is a normal process in artistic creation, however, it is in interdisciplinary


creation where it gains relevance by changing the processes of information trans-
formation, by moving from the black box to the white box, therefore making the
processes transparent and democratizing them, which is necessary for the efficiency
of the system by avoiding the loss of relevant information and enabling control and
feedback. All of this favors the achievement of objectives and the subsistence of the
system created for this purpose.

The iteration in interdisciplinary work also allows processes of identification, rapport


and understanding of the problem from new approaches ranging from an initial ad
hoc problem, through production, to a final one focused on execution and evalua-
tion. In all these processes the participation and identification of the participants in
time and space is fundamental for the good achievement of the objectives and the
maturity of the group dynamics.

Bibliography
Costa, J. (1998). La esquemática, visualizar la información. Buenos Aires: Editorial Paidós.

Giannetti, C. (2002). Estética digital: sintopía del arte, la ciencia y la tecnología. Bar-
celona: L’Angelot.

287
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Hauser, A. (1998). Historia social de la literatura y el arte. Random House Mondadori.

Steinheider, B., & Legrady, G. (2004). Interdisciplinary Collaboration in Digital Media


Arts: A Psychological Perspective on the Production Process. Leonardo, 315-321.

Zátonyi, M. (2016). Aportes a la estética desde el arte y la ciencia del siglo XX. Buenos
Aires: la marca editora.

288
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Jardel Anderson Fonseca1, Ana Cristina


Puygcerver Santos2, Débora Luana Ferreira3,
Tamires Alexandra Oliveira4, Marcillene
Ladeira5 and Adriano Márcio Nascimento6

ESTUDO E PRODUÇÃO DE MATERIAL PEDAGÓGICO:


experiência em Iniciação Científica oriunda de “práticas em
arte”, realizadas na UNIPAC/Barbacena-MG
STUDY AND PRODUCTION OF PEDAGOGICAL MATERIAL: Experience in Scientific
Initiation from “Art Practices”, carried out at UNIPAC / Barbacena-MG

Resumo
O nível superior de formação implica a promoção de diferentes ações em prol de
competências que assegurem qualidade de atuação e autonomia profissional.
Portanto, este artigo tem como objetivo compartilhar uma pesquisa em anda-
mento, na modalidade de Iniciação Científica, realizada pelo “Grupo Veia”, o qual
debruça-se no estudo da compreensão e da produção de material pedagógico,
constituído de um personagem – Mascote – de própria autoria, e cujo suporte
adotado é o papel impresso. Trata-se de uma iniciativa instaurada por parceria
entre a UNIPAC/Barbacena e o Centro de Ciências da Universidade Federal de
Juiz de Fora (ambos situados no estado de Minas Gerais, Brasil).
Palavras-chaves: educação formal, formação de professores, material pedagógi-
co, personagem.

1 Aluno bolsista (PROBIC), curso Pedagogia, UNIPAC/Barbacena/MG.


2 Aluna bolsista (PROBIC), curso Publicidade e Propaganda, UNIPAC/Barbacena/MG
3 Aluna Bolsista (PROBIC), curso Pedagogia, UNIPAC/Barbacena/MG.
4 Aluna Bolsista (PROBIC), curso Pedagogia, UNIPAC/Barbacena/MG.
5 Professora Orientadora, Artista Visual com galeria representante e líder do grupo. Mestra em Pro-
cessos Criativos pelo PPGAV-EBA-UFBA; especialista em Docência do Ensino Superior; Graduada
(Licenciatura e Bacharelado) pelo Instituto de Artes e Design da UFJF, com passagem inicial pela
EBA-UFRJ.
6 Professor Colaborador da Pesquisa. Coordenador do Curso de Pedagogia, do Curso de Pós-gradua-
ção em Educação Inclusiva e Diretor Pedagógico da Secretaria do Estado de Educação de Minas Gerais.

289
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Abstract
The higher level of education implies the promotion of different actions in favor of
competences that assure quality of action and professional autonomy. Therefore, this
academic article aims to share an ongoing research, in the Scientific Initiation modal-
ity, conducted by the “Veia Group”, which focuses on the study of the understanding
and production of pedagogical material, consisting of a character – Mascot – au-
thored by themself, and whose support is the printed paper. It is an initiative estab-
lished by a partnership between UNIPAC / Barbacena and the Science Center of the
Federal University of Juiz de Fora (both located in the state of Minas Gerais, Brazil).
Keywords: formal education, teacher training, pedagogical material, character.

Introdução
O nível superior de formação implica a promoção de diferentes ações em prol de
competências que assegurem qualidade de atuação e autonomia profissional. Este
artigo busca, portanto, compartilhar os desenvolvimentos de uma pesquisa em
andamento no Centro Universitário Presidente Antônio Carlos (UNIPAC/Barbace-
na-MG), na modalidade de Iniciação Científica, sendo essa realizada pelo grupo de
pesquisa intitulado “VEIA – Vertentes Ensinagem Integração e Arte” 7, formalizado no
curso de Pedagogia, com participação direta do curso de Publicidade e Propaganda.
Portanto, o principal objetivo desse é proporcionar aos alunos bolsistas ampliarem
o gosto pela educação pautada na pesquisa, estabelecendo mais curiosidade e criti-
cidade para com o processo de construção de conhecimento. Paulo Freire (1996) em
suas elucubrações quanto ao ato de ensinar afirma: “ensinar não é transferir conhe-
cimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção” (p.12,
grifo do autor) – sendo esse um dos saberes indispensáveis que o formando, desde o
princípio mesmo de sua experiência formadora necessita. Ou seja, a experiência, na
prática, se torna uma exigência do processo formativo dos educandos, uma deman-
da necessária em si mesma. Ora, exclama, o célebre educador brasileiro:

A prática de velejar coloca a necessidade de saberes fundantes como o do domínio do barco, das
partes que o compõem e da função de cada uma delas, como o conhecimento dos ventos, de sua
força, de sua direção, os ventos e as velas, a posição das velas, o papel do motor e da combinação
entre motor e velas. Na prática de velejar se confirmam, se modificam ou se ampliam esses sabe-
res. (Freire, ibid., loc. cit.).

7 A letra “v” corresponde a “Vertentes” equivale ao lugar geográfico sede da Universidade Presidente
Antônio Carlos, Campus Barbacena/MG. Como um todo, “Veia” em sua definição científica equivale
ao vaso sanguíneo que transporta o sangue em direção ao coração; no sentido metafórico (“veia-
-artística”), diz das aptidões individuais do ser humano. Nome que em si, já carrega a sensibilização
que se pretende.

290
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Em complementação, Antônio J. Severino (2007, pp. 22-23) assevera que a educação


superior possui uma tríplice finalidade, sendo a pesquisa “o ponto básico de apoio e
de sustentação de suas outros duas tarefas, o ensino e a extensão”. Como metodolo-
gia, o projeto, em seus primeiros passos de caminhada debruça-se no levantamento
bibliográfico, de modo a estudar processos educacionais voltados para a experiên-
cia sensível em oposição à educação mecânica praticada em sala de aula – enten-
de-se que um dos grandes desafios para a educação do século XXI é tornar a escola
e os próprios conhecimentos escolares, atrativos e dinâmicos, visto que, a estrutura
escolar e até mesmo a divisão e não comunicação das disciplinas tem sido uma bar-
reira a ser rompida na construção de um modelo mais dinâmico de ensino. Nesse
passo, absorve a ludicidade provocada pela presença de um personagem – Mascote
– de própria autoria. A intenção é a de que esse, se torne um símbolo mediador das
proposições lançadas pelo grupo; sendo ele fruto de parceria estabelecida entre a
UNIPAC/Barbacena e o Centro de Ciências da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Assim sendo, o recorte da pesquisa assenta-se na temática: Material Pedagógico;


para esse, adotando-se a compreensão de ser “todo tipo de objeto que atua como
instrumento facilitador do processo de ensino-aprendizagem na sala de aula, da
Educação Básica” (ensino formal). Molda-se para tal, a modalidade elaboração de
materiais pedagógicos complementares aos livros didáticos, cujo suporte é o papel
impresso. Prevê-se para sua publicação o financiamento concedido por outras em-
presas parceiras. Nesse segundo momento, se trabalhará com a Análise do Discur-
so Francesa (AD)8, bem como, com a pesquisa de campo, realizando-se uma ponte
entre o Ensino Superior e a Educação Básica. Ao final, espera-se que o material seja
distribuído na rede pública de ensino.

O Centro Universitário Presidente Antônio Carlos/UNIPAC


Fundado em 1963, o Centro Universitário Presidente Antônio Carlos/UNIPAC tem
como sede o campus de Barbacena/MG, sendo esse elevado a Universidade em 1997
(Portaria MEC nº 366, de 12 de março). Antes, de 1963 a 1965 foi chamada de Fundação
Universitária da Mantiqueira, se referindo as duas primeiras instituições universitárias
da cidade, a qual mudaram a realidade dessa e de seu entorno. Suas primeiras unida-
des educacionais foram instaladas em 1966: a Faculdade de Filosofia com os cursos de
Letras, Pedagogia e História e a Faculdade de Ciências Econômicas, Contábeis e Ad-
ministrativas com o curso de Ciências Contábeis. O curso de Pedagogia instaurou-se,
então, nessa primeira leva, tendo hoje (2019) cinquenta e três anos de existência.

8 “Metodologia” baseada nas obras de Michel Pêcheux, tendo seu desdobramento no Brasil a partir
dos trabalhos de Eni P. Orlandi. A escolha se deve ao fato de ela abarcar técnicas de tratamento e
análise do discurso pronunciado em diferentes formas de comunicações: escritos, orais, imagens,
gestos, sons, etc.

291
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

No decorrer dos anos, novos cursos foram fundados em Barbacena: curso de Mate-
mática e a Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais, com o curso de Direito, datado
de 1968; a Faculdade de Medicina, 1971; a Faculdade de Ciências Econômicas e Ad-
ministrativas, com a graduação em Administração de Empresa, 1975.

Para além desse município, novas unidades nasceram, a cidade de Ubá recebeu seu
campus9 em 1970; Visconde do Rio Branco 1975; Leopoldina 1991; Ipatinga 1993;
Juiz de Fora 1996; Conselheiro Lafaiete, Bom Despacho e Araguari 2001; Teófilo Oto-
ni 2002; Uberlândia, Governador Valadares e Uberaba 2003; Betim 2005; Contagem
2006 – destaca-se que uma segunda demanda na área de Pedagogia foi evidenciada
nesse mesmo ano, 2006, em vistas a exigência dada pela Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (LDB/96), a qual determinou que, a partir daquele ano, a formação superior
seria imprescindível para atuação dos professores em sala de aula. Em 2002, fundou-se
então, a Rede de Ensino Normal Superior com as Faculdades de Educação e Estudos
Sociais, sendo instaladas em mais de 200 cidades do estado de Minas Gerais – uma
iniciativa que proporcionou grande revolução educacional no interior mineiro.

Hoje, com mais de 55 anos de Fundação, além dos cursos descritos, outros tantos
surgiram, como Curso de Publicidade e Propaganda, Arquitetura e Urbanismo, Odon-
tologia, Medicina Veterinária, etc., sendo a UNIPAC, uma instituição responsável pela
formação de milhares de universitários em todo cenário brasileiro. Além de atuar
na graduação, também oferta cursos de pós-graduação lato sensu e de formação
continuada em curta duração. Em 2018, foi oficializada a modalidade de Iniciação
Científica através do Programa de Bolsas de Iniciação Científica (PROBIC) para alu-
nos e professores orientadores; o grupo “VEIA” apresenta-se como resposta a essa
demanda institucional.

O Centro de Ciências da UFJF


O Centro de Ciências da Universidade Federal de Juiz de Fora/MG refere-se a um
órgão suplementar da Reitoria, estando localizado desde 2017, no campus univer-
sitário, Rua José Lourenço Kelmer, s/n – Bairro São Pedro. Trata-se de um dos mais
completos polos de pesquisa e divulgação científica do país, estando na definição
de educação não-formal de ensino10. Nesse lugar há a concentração de todas as
áreas de formação que a UFJF oferece, como: biologia, física, química, astronomia
e arte. O objetivo do espaço é ajudar na “desconstrução da ideia de que a ciência é
para poucos, e disseminar a importância que o estudo tem para a vida das pessoas”.

9 1ª sede: Campus São José, localizado ao lado da antiga Escola Agrotécnica; 2ª sede: Campus Barba-
cena, situada no bairro Colônia Rodrigo Silva/Campolide.
10 Aquela que ocorre fora do sistema formal de ensino (sala de aula), sendo complementar a este.
É um processo organizado, mas cujos resultados de aprendizagem não são avaliados formalmente
(notas e boletins).

292
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Isso acontece através de visitas dos alunos da rede formal de ensino ao seu acervo,
sendo ele constituído por diferentes ambientes como os laboratórios e os salões
de “brinquedos científicos”. Muitos desses equipamentos são construídos dentro
de sua própria dependência; a exemplo cita-se a “Tabela Periódica Interativa” de
2 metros de altura por 3 metros de comprimento (uma das maiores do Brasil) – a
qual a professora orientadora dessa pesquisa fez parte; ou, ainda, a partir do de-
senvolvimento de projetos em parcerias com outras instituições, a exemplo do cir-
cunstanciado nesse pesquisa (UNIPAC/Barbacena/MG). Existem outros, como com
a Fundação Oswaldo Cruz (Museu da Vida), através do projeto “Cadê a química” –
esse nos convida a uma fascinante experiência imersiva em uma animada casa com
7 cômodos; momento no qual os sentidos e a imaginação são aguçados. Em um
balanço de visitas ao Centro de Ciências da UFJF, datado de 2017, registrou-se um
quantitativo de 37 mil visitas anuais.

Discussão 1: a Produção de Material Pedagógico


Conforme esclarece Fiscarelli (2007, p.1) Material Pedagógico Educativo11 se refere
a “todo ou qualquer material que o professor possa utilizar em sala de aula; desde
os mais simples como o giz, a lousa, o livro didático, os textos impressos, até os
materiais mais sofisticados e modernos. Ou como apresenta-se nas Orientações
Curriculares para o Ensino Médio (2006, p.154):

Pode-se dizer, em linhas gerais, que material didático é um conjunto de recursos dos quais o pro-
fessor se vale na sua prática pedagógica, entre os quais se destacam, a grosso modo, os livros
didáticos, os textos, os vídeos, as gravações sonoras (de textos, canções), os materiais auxiliares
ou de apoio, como gramáticas, dicionários, entre outros.

Ou ainda como complementa Denise Bandeira (2009, p.14), “o material didático tam-
bém compreende os produtos pedagógicos, como jogos, ábacos, blocos lógicos e
brinquedos educativos.”

Wander Soares (2002), explica que o material didático ampliou sua função precípua,

... além de transferir os conhecimentos orais à linguagem escrita, tornou-se um instrumento peda-
gógico que possibilita o processo de intelectualização e contribui para a formação social e política
do indivíduo. O livro instrui, informa, diverte, mas, acima de tudo, prepara para a liberdade.

Sua existência está condicionada a um determinado pressuposto: “ao suporte que


possibilita materializar o conteúdo”. Conforme traz Bandeira, trata-se de uma condição

11 Material instrucional que se elabora com finalidade didática, sendo também identificado como
Material Didático; Recurso Didático; Produto Pedagógico; etc.

293
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

teorizada pelo “historiador francês Chartier (2002, p. 61s) ao afirmar que o texto não
existe fora dos suportes materiais que permitem sua leitura (ou sua visão) e nem fora
da oportunidade na qual pode ser lido (ou sua audição).” Assim, conclui Bandeira, o
material didático (“conjunto de textos, imagens e de recursos “) ao ser concebido com
a finalidade educativa, implica na escolha de um suporte, estando esse condicionado
também as épocas histórias, de modo a transladar entre as primeiras constituições de
papel12 (do latim papyrus), às novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs)
eclodidas no final do século XX. (Chartier apud Bandeira, ibid., p.15).

Lúcia Santaella em sua trilogia (1992; 2003 e 2007) explica que primeiro passou-se
da cultura de massa (1960) para a cultura das mídias (1980); posteriormente, com a
conectividade à rede mundial de computadores – internet – (1990), têm-se a cultura
virtual ou cibercultura, agregando uma fusão dos mais variados gêneros de lingua-
gens que o computador é capaz de acolher, e acrescentando agora, a era dos aplica-
tivos. Computador, celulares, TV digital, entre outros, passam a constituir o habitat
diário das novas gerações e como explica autores como González-Navarro em “Los
nuevos entornos educativos” (2009) e Eucidio Arruda em “Ciberprofessor” (2004), a
absorção rápida desses, pelos alunos, exige que a educação também se renove, ge-
rando novos processos de aprendizagem.

Mesmo com o avanço das TICs e o aumento considerável da oferta de produtos didá-
tico-pedagógicos desabrochados com as novas possibilidades de combinações des-
ses diferentes meios e tecnologias, a maioria do material didático continua sendo
produzido em mídia impressa – é o que constata autores como Bandeira (ibid., p.16).
Segundo ela, isso se deve, pois, o material impresso não requer equipamento ou
recurso tecnológico para sua utilização (muitas escolas ainda não foram equipadas
e nem mesmo possuem acesso à Internet para toda a comunidade escolar). Da pró-
pria experiência, enfatiza-se também o tempo como um fator determinante. Isto é,
o tempo de duração de cada aula é curto: 45 ou 50 minutos no Ensino Fundamental
(1º e 2º ciclo) e no Ensino Médio, e os equipamentos (quando as escolas os dispõem)
não ficam instalados na sala, o que gera demora para sua configuração adequada,
chegando, em muitos casos, não efetivar-se a aula (o fio está danificado pelos inú-
meros deslocamentos, o plug sumiu, ...).

Em outras situações, os alunos precisam ser deslocados para os laboratórios apro-


priados – fatores que reduzem, também, o tempo útil da aula. Considera-se ainda
que, muitas das vezes, os próprios alunos não estão preparados para tal utilização
e até mesmo os professores – o que torna, portanto, o material impresso, mesmo

12 Papiro refere-se a uma planta que cresce nas margens do rio Nilo no Egito, da qual se extraia
fibras tanto para a escrita, como para o fabricação de cordas e barcos. O papel teria sido inventado
na China 105 anos depois de Cristo (d.C.), por T’sai Lun. A técnica foi guardada tendo em vista o
comércio lucrativo, revelando-se graças aos monges budistas coreanos, somente 500 anos depois.

294
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

que com longa tradição, o recurso de maior presença em sala de aula; sendo o mais
fácil, tendo em vista a sua mediatize. Embora, reconheça-se a necessidade de uma
diversificação de usos.

Em um levantamento realizado por Ribeiro e Guerra (2015, p.1) quanto a temática


em pauta, os pesquisadores constataram que as pesquisas mais recorrentes assu-
mem subdivisões como: “ ‘análise de materiais existentes no mercado’, ‘uso ou falta
de uso de livro didático nas aulas’, ‘elaboração de materiais didáticos complemen-
tares a livros didáticos adotados’ e a ‘opção de não adotar, mas elaborar os pró-
prios materiais didáticos’ ”. Essa pesquisa de Iniciação Científica situa-se na opção
elaboração de material pedagógico complementar a livros didáticos adotados, cujo
suporte empregado, de imediato, será o papel impresso; partindo-se para outros
propostas ao decorrer...

Ana Mae Barbosa (2012) pondera: “as práticas de ensino atuais derivam não apenas
de ideários pedagógicos, como também de encaminhamentos legais”. Logo, diante
de uma análise efetuada na Base Nacional Comum Curricular (2017/2018) – docu-
mento ainda em processo de implementação – e o uso de material pedagógico é
possível identificar, ao todo, 10 aparições do termo (material e/ou recurso didático).
Essas, estão entre discorrer sobre os livros didáticos adotados e materiais didáticos
complementares ao processo de ensino-aprendizagem. Entre os trechos, recorta-se:
“selecionar, produzir, aplicar e avaliar recursos didáticos e tecnológicos para apoiar o
processo de ensinar e aprender”. Portanto, tal verificação comprova que a temática
da presente pesquisa se faz pertinente, estando dentro das ações necessárias que
asseguram aprendizagens essenciais definidas para cada etapa da Educação Básica.
(BNCC, 2018, p. 16). Também nas Diretrizes Curriculares do Curso de Pedagogia bra-
sileira tal orientação se faz presente. Nessa há quatro aparições do termo (pp.4, 11,
12 e 22), firmando-se entre utilização, criação e avaliação de materiais pedagógicos;
cuja exigência requer vivências práticas, em grau cada vez mais complexos e abran-
gentes. Por essa via, compreende-se que o assunto da pesquisa vai de encontro,
também, as exigências legais de formação a nível de graduação.

Discussão 2: o uso de personagens como mediador


Na adoção quanto ao uso de Personagem autoral, partiu-se do princípio que con-
forme afirma Smith (2006 como citado em Gurgel & Stephania, 2006, p.2), “os per-
sonagens são responsáveis pela maior parte das lembranças que recordamos dos li-
vros”, isto é, são um elemento fundamental para garantir o envolvimento do público.
“Muitas vezes se tornando uma representação icônica e peça primordial” – completa
Meretzky (2001). Também há de se compreender a importância da imagem no mo-
mento atual; consoante Eliane M. Borges, vive-se na Era Comunicacional da Imagem.
Assim, expressa:

295
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

De fato, passou-se da comunicação oral, predominante na sociedade ocidental até a idade mé-
dia, para a comunicação escrita, que começa a adquirir caráter de massa a partir da invenção
da tipografia, de Gutemberg. Com o advento dos chamados meios de comunicação de massa
em especial a televisão, o mundo ingressa em outro momento comunicacional: o da imagem.
(Borges, 2009, p. 109).

Donis A. Dondis (2007, p. 27), pesquisadora de comunicação na Boston University


School of Communication, quanto ao uso sistemático da imagem, na atualidade,
enfatiza: “a capacidade intelectual decorrente de um treinamento para criar e com-
preender as mensagens visuais está se tornando uma necessidade vital [...]”. Ele, “o
alfabetismo visual pode nos ajudar a ver o que vemos e a saber o que sabemos”,
sendo pois, “um dos paradigmas fundamentais da educação”; estando diretamente
ligado a disciplina de Arte.

Voltando a implementação do personagem no material pedagógico, Gurgel & Ste-


phania (2006) afirmam que “não são meramente representações gráficas, mas repre-
sentações gráficas de uma personalidade”. Com ar de curiosidade e investigação, a
imagem seguinte apresenta, enfim, o personagem dessa pesquisa:

Figura 1 – Personagem da Pesquisa. Nome: Quark.


Fonte: Arquivo pessoal dos autores.

Quark é seu nome, sendo esse oriundo da Física de Partículas, que ao lado do Lép-
ton, representam os elementos básicos que constituem a matéria. A personalidade

296
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

que absorve, está na iconografia de um Quati (do tupi akwa’tim, que significa “nariz
pontudo”); em outras palavras, se refere a um mamífero que se assemelha a um gua-
xinim, e cujos hábitos alimentares se baseiam em minhocas, frutas, insetos e ovos.
Vivem em grupos de fêmeas e machos jovens; os machos adultos só se unem ao
bando para reprodução. Ele foi desenvolvido pela Professora Orientadora do Projeto,
quando em atuação no Centro de Ciências da UFJF (2008-2013), tendo sido selecio-
nado pelo grande número de animais que viviam ao derredor do espaço, torneado
por uma mata atlântica preservada13.

Na imagem apresentada (Figura 1), foi realizado na presente data (2019), pela bol-
sista do Projeto Veia, aluna do curso de Publicidade e Propaganda da Unipac/Barba-
cena/MG, sob orientação docente. Nessa versão, suas roupas transmitem uma ideia
de cientista aventureiro, tendo em vista a proposição didática em construção: As
aventuras de Quark. Partindo efetivamente para campo (Pedreira), o primeiro livro
contará a história do mármore: extração e uso, na arte e na arquitetura.

Assevera-se que elementos visuais, como formas, cores, texturas, ritmo – são caracte-
rísticas responsáveis em “dar vida” a um personagem. São elas, que evocam o pensa-
mento através das percepções sensoriais, como a visão; mas também, são capazes de
desenvolver sensibilizações de emoção e afeto. Gomes e Azevedo (2005, p. 6) explicam:

a criança sentirá que faz parte do universo psicológico do personagem e essa atração está ligada à
sua dimensão psíquica. O personagem imaginário toca a criança diretamente, e ela se sente ‘conti-
da’ na imagem. Após o apelo visual, é o apelo emocional e a afetividade que tornarão personagem
e público cúmplices de uma mesma história.

Comprovação também evidenciada em estudos atuais sobre o cérebro, como os


de Norman (2004), cientista cognitivo que atesta o quanto à emoção é valiosa para
o processo cognitivo. Em suas próprias palavras, há escrito (p.28): “sem diversão e
prazer, alegria e entusiasmo, e até ansiedade e raiva, medo e fúria, nossas vidas se-
riam incompletas”. Ainda complementa: “em paralelo às emoções, há também outro
ponto importante: estética, atratividade e beleza”. E finalmente conclui: “emoção e
cognição estão absolutamente entrelaçadas; a emoção é capaz de nos tornar mais
inteligentes”. A identificação catártica também se configura como fator determinan-
te quanto a atração do público (especialmente o infantil) sobre um personagem.
Por exemplo, Mônica (personagem de Maurício de Sousa) representa uma garotinha
esperta e cheia de personalidade, sendo esse o sonho de toda criança: ser aceita,
adorável e reconhecida em seu potencial. A constante reiteração de vistas a mesma
imagem também se faz significativo nesse processo.

13 Primeira sede, anexo ao lado Colégio de Aplicação João XXIII, bairro Santa Helena, Juiz de Fora – MG.

297
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

De acordo com a Resolução nº 1/2006/CNE/CP o egresso do curso de Pedagogia


deverá estar apto a atuar, de forma interdisciplinar e adequada aos diferentes níveis
escolares da Educação Básica e/ou às diferentes fases do desenvolvimento humano;
bem como no ensino dos variados componentes curriculares. Por essa via, para a
aplicação da proposição dessa pesquisa em sala de aula, é possível apresentar, em
uma rápida descrição (BNCC, 2018):

1. Educação Infantil: (etapa pré-esquemática) atende a necessidades motoras e


emocionais. A relação dos estudantes com o material poderá ser basicamente lú-
dica, sem a existência de uma consciência crítica das imagens que chegam a eles.

2. Ensino Fundamental (anos iniciais, 1º ao 5º ano): um pouco mais desenvolvida, a


criança passa a uma maior socialização, com identificação de características especí-
ficas do grupo. O mesmo acontece com os materiais pedagógicos, isto é, nesse mo-
mento é possível a apresentação de trabalhos progressivamente mais elaborados,
tendo em vista o uso da linguagem visual.

3. Ensino Fundamental (anos finais, 6º ao 9º ano): os alunos já são capazes de dis-


tinguir vários níveis de localização, relacioná-los entre si e adquirir a consciência de
estar em um mundo muito mais amplo do que as fronteiras entre sua casa e a escola.
Começa a inserção em grupos de interesse e a diferenciação entre os sexos. Têm-se
a capacidade de identificar detalhes das imagens com descrições em profundidade,
bem como estabelecer correlações dessas, com a realidade social.

4. Ensino Médio: é marcado pela mudança de personalidade, devida à passagem


da adolescência para a idade adulta. Se tornam mais críticos e questionadores em
relação ao que recebem em aula. Tendem também a ter uma desconfiança natural (e
saudável) em relação aos meios, demandando um tipo de material que desafie sua
inteligência. “Nas produções próprias, buscam reproduzir personagens mais próxi-
mos da realidade, com articulações, movimentos e detalhes de roupas que acompa-
nham o que veem ao seu redor.”

Voltando a Resolução nº 1/2006/CNE/CP, ao discorrer sobre o ensino dos variados


componentes curriculares, consta-se em resultados do Inep (2002 a 2018) que a for-
mação de Pedagogos no Brasil permanece em constante crescimento. No entanto, o
Indicador de Adequação da Formação demonstrou que entre os diferentes compo-
nentes curriculares que o Pedagogo está apto a atuar, o pior resultado se refere à dis-
ciplina de arte – apenas 31,5% dos Pedagogos possuem a formação adequada para
ensinar o conteúdo. (Brasil, ...Inep, 2018). Problematização que preocupa os agentes
da pesquisa e também, mais uma vez, comprova sua viabilidade, visto que a Arte
é ponto chave da mesma. Assevera-se que a orientadora possui formação na área,
atuando com seus bolsistas pedagogos, também através da disciplina: Metodologia
do Ensino de Arte.

298
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Considerações Finais
A partir das implementações em andamento passamos a mensurar o quanto o es-
tudo e a produção de Materiais Pedagógicos são mananciais para os bolsistas em
formação, seja da Pedagogia, como também da Publicidade. De outra forma, acredi-
tamos verdadeiramente, no exercício prático e de integração entre os conhecimen-
tos, bem como em proposições que unem a razão e o sonho: conhecer é também
maravilhar-se, divertir-se, brincar com o desconhecido, arriscar hipóteses ousadas,
trabalhar duro, esforçar-se e alegar-se com as descobertas.

Referências
Bandeira, Denise. (2009) Materiais Didáticos. (1ª ed.). Curitiba, PR: IESDE.

Barbosa, Ana Mae. (2011). As mutações do conceito e da prática. In: BARBOSA, Ana
Mae (Org.). Inquietações e Mudanças no Ensino da Arte. (6. ed.) São Paulo: Cortes,
pp. 13-25.

Borges, E. M. (2009) As mídias visuais e seus desafios para a escola. In: MIRANDA,
Sonia Regina; MARQUES, Luciana P. (Org.). Investigações – experiências de pesquisa
em educação. Juiz de Fora: UFJF, pp. 109-121.

Brasil. Orientações Curriculares para o Ensino Médio. (2006). Linguagens, Códi-


gos e Tecnologias. Recuperado em 12 julho de 2018, de http://portal.mec.gov.br/.

______. Portaria MEC nº 1077 de 31/08/2012, DOU 13/09/2012.

______. MEC. (2018). Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep).


Recuperado em 28 de fevereiro, 2018, de http://inep.gov.br/censo-da-educacao-su-
perior.

______. Base Nacional Comum Curricular (BNCC - 2018). Recuperado em 10 janeiro,


2019 de http://basenacionalcomum.mec.gov.br/.

Dondis, A. Donis. (2007). Sintaxe da Linguagem Visual. São Paulo: Martins Fontes.

FISCARELLI, R. B. (2007). O. Material didático e prática docente. In: Revista Ibero-A-


mericana de Estudos em Educação. (v.2, n.1). Recuperado em 16 de março, 2019,
de http://seer.fclar.unesp.br/ ibero-americana/article/ view/454.

Freire, Paulo. (1996). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática


educativa. São Paulo: Paz e Terra.

299
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Gomes, L.C. G. e Azevedo, A. de S. (2005, setembro). A utilização de personagens e


mascotes nas embalagens e sua representação simbólica no ponto-de-venda.
XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Uerj/RJ, Intercon.

Gurgel, Ivannoska & Stephania, Padovani. (2006, novembro). Processo de Criação


de Personagens:Um Estudo de Caso no Jogo Sério SimGP (n.8). Revista Porto Di-
gital: Universidade Federal de Pernambuco, Recife. Recuperado em 03 de abril de
2014, em https://www.cin.ufpe.br/ ~sbgames/proceedings/ aprovados/23157.pdf.

Meretzky, Steve. (2001, novembro). Bulding Character: An Analysis of Character Cre-


ation. Recuperado em 05 de abril de 2014, em http https://www.gamasutra.com/
view/feature/131887/ building_character_an_ analysis_of_.php.

Normam, Donald. (2014). Design Emocional. Editora Rocco Ltda.

Ribeiro, A. & Guerra, D. M. (2015, julho). Produção de materiais didáticos e planeja-


mento de aula em equipe: a experiência de formação de professores do NUPPLES/
UERJ. Anais do IV Simpósio sobre Materiais e Recursos Didáticos, Rio de Janeiro
(PUC-RIO), RJ, Brasil, 28, 29 e 30.

Severino, Antônio Joaquim. (2007). Metodologia do trabalho científico. 23a ed.


SP: Cortez.

Soares, Wander. (2009). O Livro Didático e a Educação. Palavra da diretoria. Recu-


perado em 18 de março de 2019, de http://www.abrelivros.org.br/home/index.php/
14-institucional/palavra-da-diretoria /136-o-livro-didatico-e-a-educacao.

300
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Joana Burd1
Corpo Vibratório: quando o movimento pede pausa
Vibratory body: when movement asks for pause

Resumo
O artigo “Corpo Vibratório: quando o movimento pede pausa” consiste na análi-
se de um processo de criação que parte do desmonte de eletrônicos obsoletos,
apresentando novos objetos ressignificados. Partindo da hipótese de que a tec-
nologia distancia nossos corpos, foram criadas esculturas e instalações interativas
que sensibilizam o observador através da tatilidade de diferentes dispositivos vi-
bratórios. O texto apresenta conceitos como o princípio da vibração através dos
estudos de Neil J. Mansfield e Shelley Trower e da presença do Outro interator
construindo relações com os escritos de J. Lacan, Derrick De Kerckhove e José Gil.
Trata-se de uma reflexão teórico-prática que compôs a pesquisa do Mestrado em
Poéticas Visuais realizada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Palavras-chave: vibração, Outro, arte interativa, arte digital.

Abstract/resumen/resumé
The article “Vibratory Body: when movement asks for pause” consists in the analysis
of a creation process that starts from the dismantling of obsolete electronics, pre-
senting new resignified objects. Based on the hypothesis that technology distances
our bodies, sculptures and interactive art installations were created, that raise pub-
lic awareness through the tactility of different vibratory devices. The text presents
concepts such as the principle of vibration through the studies of Neil J. Mansfield
and Shelley Trower and the presence of the Other interactor building relationships
with the writings of J. Lacan, Derrick De Kerckhove and José Gil. This is a theoreti-
cal-practical reflection that composed the research of the master’s degree in Visual
Poetics at the Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: vibration, Other, interactive art, new media art.

Introdução
O presente artigo é resultado da dissertação de mestrado em Poéticas Visuais rea-
lizada entre 2016 e 2018 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na linha de

1 Joana Burd, mestra em em poéticas visuais, artista, pesquisadora e professora. Concentra sua pesqui-
sa no diálogo entre escultura, mídias digitais e tecnologia, a partir do princípio da vibração. Sua pes-
quisa interage com a área das novas mídias ressignificando objetos descartados como lixo eletrônico.

301
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

pesquisa Desdobramentos da Imagem. Parte de uma observação da nossa vivência


no momento atual, em que os nossos corpos interagem mais com corpos maquíni-
cos e virtuais do que com orgânicos e humanos. A arte digital segue em busca de
espaço para diálogo e propõe diferentes experiências e simulações interativas, entre
elas a sinestésica, uma fusão sensorial.

No processo criativo dos trabalhos apresentados que envolvem a estética que deno-
mino como fundamentalmente tecnológica, busquei através do desmonte de obje-
tos eletrônicos catalogar seus diferentes mecanismos de hardware quando encon-
trei e me familiarizei com os sistemas vibratórios. Qualquer sinal de vibração possui
três qualidades: deslocamento, velocidade e aceleração, que estão inextricavelmen-
te ligados. Segundo o livro Human Response to Vibration (2005) de Neil J. Mansfield:

A vibração é um movimento mecânico que oscila sobre um ponto fixo (geralmente uma referên-
cia). É uma forma de onda mecânica e, como todas as ondas, transfere energia, mas não importa.
A vibração precisa de uma estrutura mecânica para viajar. Esta estrutura pode ser parte de uma
máquina, veículo, ferramenta ou mesmo uma pessoa, mas se um acoplamento mecânico for per-
dido, a vibração não se propagará mais. (MANSFIELD, 2005, p.2, trad. da autora).

É preciso para seu funcionamento que a peça esteja em uma cama protetora para
a propagação de movimento. Logo, é necessário fisicamente enclausurar o corpo
do motor permitindo o giro apenas de sua cabeça, em um berço milimetricamente
confeccionado. Ao realocar motores que se tornam obsoletos, penso criar novos tra-
balhos que podem conduzir modificações ao estado original dos eletrônicos, e en-
tendo essa transformação como uma espécie de hackeamento. Alberto Cupani, no
livro Filosofia da Tecnologia (2013), traz diversas contribuições interessantes sobre
o cotidiano digital e as transformações que estamos vivendo, entre essas destaca:

[...] não se deve prestar atenção apenas ao modo como as tecnologias alteram o pólo
“mundo” do nosso ser-no-mundo. Nossa corporeidade está cada vez mais modifi-
cada pelas tecnologias, e de tal modo que a sua “incorporação” não pode mais ser
percebida como tal (CUPANI, 2013, p.129).

Os trabalhos que desenvolvi neste contexto solicitam um corpo ativo para o seu fun-
cionamento, seja para ser experimento ou para ser experimentado. Desta forma inti-
tulei a pesquisa Corpo Vibratório: quando o movimento pede pausa. Corpo esse
que pode ser o do interator, o meu corpo propositor, o corpo elétrico dos objetos
que crio ou o corpo do texto. Apesar da ambiguidade em entender que o movimen-
to pede pausa, não me refiro ao deslocamento. Refiro-me a necessidade de parar um
pouco nosso pensamento velocitado para reconhecer novas formas de interação e
retomar a sensibilidade do nosso corpo, que tem sido relegada. Corpo digital, dedos
em diálogo silencioso com telas touchscreen, imagens virtuais de corpos cada vez
mais públicos. Incorporamos nosso ser-mente-corpo na estética pós-mídia.

302
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O princípio da vibração
Princípio pode ser o início, o embrião ou a fase de descoberta de um processo de
pesquisa em poéticas visuais. Também é o pressuposto que serve de base filosófica,
o que sustenta um pensamento fundamental. Já a vibração tange materialidades
concretas, é elemento, movimenta o material e é movida através de diferentes subs-
tâncias. Logo, o princípio da vibração foi o encontro com o que viria a ser a minha
maior ferramenta de pesquisa: os componentes vibratórios.

As sensações vibratórias nos rodeiam para além dos motores vibracall dos celula-
res e dildos de prazer. Vivemos imersos em transportes vibratórios, assentos, sinais
sonoros. Ruídos que cruzam nosso cotidiano, atravessam o nosso corpo. Destaco
que ao longo do processo desta pesquisa, fui questionada tantas vezes sobre caráter
sexual da vibração que opto por incluí-lo, entendendo que este não é ponto essen-
cial dos meus trabalhos, mas de certa forma sim, o considero curioso. Me dedico à
vibração como princípio de prazer em relação a todo o corpo do interator, podendo
significar a interação apenas com sua mão ou com o seu pescoço.

Pesquisando sobre as possíveis relações entre corpo e vibração, encontrei o livro de


Shelley Trower Senses of Vibration: A History of the Pleasure and Pain of Sound (2012).
Além de um contexto científico dos dois últimos séculos, há o entendimento da vi-
bração como algo natural e também maquínico, que, como diz o título, podemos
experienciar tanto o prazer quanto a dor. A dor, segundo a autora, estaria localizada
na experiência excessiva de máquinas vibratórias, nos transportes ou mesmo em ou-
tras tecnologias. Também no processo suportado de repressão do corpo da mulher
“histérica”. Já o prazer pode ser referenciado nos momentos em que se busca uma
vibração amplificada e harmonizada, que pode se tornar uma “boa vibração”.

De outra forma, ao introduzir o tema das sensações e afinidades possíveis com a vi-
bração, Shelley Trower (2012) destaca que a ansiedade gerada através das permeabi-
lidades do corpo não deixa de ser algo que o uso excessivo das tecnologias também
ocasionou. A fantasia de termos relações intensas e diretas, mesmo que fisicamente
distantes, cria novas formas de relacionamento com o outro, com os objetos, pois
atribui um novo significado às fronteiras fixas do nosso corpo:

Neste cenário, a distinção entre objeto e sujeito, ou entre o mundo e o eu, novamente colapsa
totalmente. Objetos no mundo externo vibram o eu sensitivo, a própria sensibilidade de quem,
na forma de vibrações, irradia para fora, como o som de um instrumento, para se tornar parte do
mundo. Há um processo de duas vias, em outras palavras, pelo qual as vibrações externas pare-
cem colocar a matéria do corpo em uma tipo vibração simpática; vibrações no corpo então irra-
diam para o mundo além, por sua vez, potencialmente vibrando outra pessoa sensível (TROWER,
2012, p.11, trad. da autora).

303
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Deste modo, os objetos vibratórios que crio não deixam de ser um convite a recone-
xão com nosso próprio corpo. Foram em momentos introspectivos que a vibração
tornou-se um fundamento para minhas intervenções artísticas. Ao mesmo tempo,
sempre fui a primeira interatora de minhas traquitanas. De certa forma, criei esse
experimento na vontade de ser experiência e compartilhá-la com o outro.

Rotações Utópicas e o Devir máquina


Na sua pesquisa, Shelley Trower (2012) traz um estudo sobre a relação da mulher
com as máquinas que vibram, como as máquinas de costura, os trens e as bicicletas.
Descreve os diferentes contextos que tais atividades eram indicadas de forma dico-
tômica, para tratamento de histeria ou pela proibição, por trazer ao corpo feminino
estados de excitação.

Paul Beatriz Preciado no livro Manifesto Contrassexual (2014) retoma a história dos
dildos e instrumentos vibratórios em seu contexto de criação, especificamente para
dois espaços terapêuticos da histeria: a cama matrimonial e a mesa clínica. As pri-
meiras terapias de titilação eram manuais e os médicos nem sempre as considera-
vam efetivas para o combate às “crises histéricas” das mulheres:

O vibrador aparece como instrumento terapêutico da história pouco depois, em 1880, exatamen-
te como uma mecanização desse trabalho manual. O vibrador Weiss, por exemplo, era um apare-
lho eletromecânico que procurava massagens rítmicas tanto do clitóris e da região pélvica como
de outros músculos que eram objeto do tratamento por vibração. Essas “máquinas sexuais”, que
identificarei como estruturalmente vizinhas do dildo, existem em uma zona intermediária entre
os órgãos e os objetos. Assemelham-se de maneira instável, sobre a própria articulação natureza-
-tecnologia (PRECIADO, 2014, p.96-111).

Houve mudanças de significado para esses objetos de desejo. No início eram utiliza-
dos como articulações terapêuticas esquisitas e, no momento atual, como objetos
eletrônicos, agora a serviço da saúde sexual ou a eventos estéticos.

Se interpretarmos a teoria do Objeto A, explicado por Lacan no Seminário X (1962-


63), no ato sexual quando o vibrador entra em cena, a máquina torna-se a pessoa e
o prazer torna-se a máquina, intercambiando seus estados de princípio, invadindo
as fronteiras do corpo.

Projetar esculturas vibratórias que suscitam experiências sensoriais podem ser, por
vezes, invasivas. Mas como questionar o corpo do outro sem, de certa forma, inva-
di-lo? Essa proposta artística permeia invasão, entrar em um status e subvertê-lo de
forma estranha. Seria esse o devir máquina de um motor vibratório? Uma redesco-
berta de um corpo ainda não explorado?

304
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Nas artes visuais, muitos exemplos que encontramos relacionados ao movimento


de motores é com obras que envolvem som e ruído. O artista suíço Zimoun2 projeta
diferentes instalações que fazem uso de conjuntos de motores vibratórios, criando
experiências sinestésicas a partir do lugar de escuta. Em 2017, o artista colocou 658
caixas de papelão, cada uma com um motor acoplado e com uma bola de algodão.
Através da adição dos ruídos gerados pelo movimento do motor que toca a caixa
com um pequeno fio de metal, nos sentimos dentro de uma chuva leve, só que sem
a água e em um ambiente expositivo.

Ao perceber a sinestesia como um fator que abrange todo nosso corpo em suas su-
perfícies sensíveis à vibração, vejo a tatilidade do ruído como um convite particular.
Talvez até na forma mais regressiva um mergulho em uma correnteza de memórias.
No livro Palavras para Nascer a Escuta Psicanalítica na Maternidade (1997), Myriam
Szejer traz que:

Bem antes de haver um sistema auditivo funcional - para isso é preciso esperar o terceiro trimestre da
gravidez -, a criança consegue reconhecer e discriminar as vibrações acústicas repercutidas pelo líqui-
do amniótico. Os haptoterapeutas dizem as vezes que ela - “escuta com a pele. (SZEJER, 1997, p. 80)

Acredito que as obras que serão apresentadas no decorrer do texto estão dentro
deste conceito de transposição da reação vibratória primordialmente uterina, hoje
no que vibra, um convite a escutar através da pele. Uma compensação tangível e
voluntária a novas descobertas através de superfícies sensíveis. Passamos a vida
tentando encontrar nosso devir, e hoje a tecnologia pode ser oferecida como ins-
trumento. Se esta é a conjuntura atual podemos refletir sobre nossa participação de
forma ativa e positiva. Abraçar a tecnologia e usá-la como elemento talvez seja um
caminho para entender no que estamos nos tornando.

A presença do outro
Lygia Clark é uma das primeiras artistas brasileiras a encorajar a participação ativa do
corpo do público em seus trabalhos. Em sua trajetória artística propõe situações que
elegem o corpo do espectador como suporte para suas proposições. Interseccio-
nando seu trabalho artístico ao trabalho terapêutico, ao final da vida recebe pessoas
em seu ateliê para experimentarem seus trabalhos de ordem sensorial e simbólica. A
artista ao comentar o trabalho Dentro e Fora (1965) descreve:

Sou o dentro e o fora, o direito e o avesso. O que me toca na escultura “Dentro e fora” é que ela
transforma a percepção que tenho de mim mesma, de meu corpo. Ela me modifica, estou sem
forma, elástica, sem fisionomia definida. Seus pulmões são os meus. É a introjeção do cosmos. E

2 https://www.zimoun.net/

305
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

ao mesmo tempo é meu próprio eu cristalizado em um objeto no espaço. “Dentro e fora”: um ser
vivo aberto a todas as transformações. Seu espaço interior é um espaço afetivo (CLARK, 1965, p.3).

Diferentemente de Lygia, vejo o meu trabalho como uma aproximação entre fisio-
nomias e barreiras do que como uma transformação da elasticidade das formas. Co-
nheço, pois crio o corpo eletrônico, mas não vejo o público como parte constituinte
do trabalho. Logo, pergunto se existiria um modo de ser deste outro interator?

Talvez o hibridismo e a simbiose dos aspectos tecnológicos da vibração estejam


mais próximos à ideia de José Gil (1997), o significante flutuante. O autor ao explicar
tal termo o descreve como o que não pertence a nenhum código, que nada significa,
desligado de sentidos e de espaços. Discute o lugar que ocupa apenas como uma
referência para melhor se ocultar. Ao meu ver, o significado da conexão entre minhas
esculturas vibratórias e o outro interator é subjetiva. Conforme Gil coloca no livro
Metamorfoses do Corpo: “Ou então é o resíduo do que se transforma em lugar de
permuta e acumulação de energia – e neste caso é um lugar ambulante, transportá-
vel, de um lado para outro, de um corpo para outro (GIL, 1997, p. 31).

Acredito direcionar a experiência ao propor que meus trabalhos sejam experimen-


tados com partes específicas do corpo. Porém, não há necessidade de uma inter-
pretação fechada em relação ao outro (interator). Na multiplicação de sentidos, os
programas deixam de ter uma direção monolítica, apesar de ainda programados
para uma ação específica, liberto os objetos tridimensionais de interpretações
conduzidas. A máquina circunscreve o sujeito quando ele está em contato de for-
ma tátil, visual ou sonora.

Definições sobre o outro


Frank Popper (1997), importante historiador da arte e das possibilidades interativas,
não diferencia participação de interação. Milton Sogabe (2010), artista brasileiro,
pesquisador, professor e integrante do Grupo cAt (ciência/Arte/tecnologia), analisa
os projetos de instalações interativas ao trazer seus elementos como espaço, evento,
dispositivo, interface e público:

O público não é mais considerado apenas um ser visual, ou um ser pensante, ou um ser ouvinte,
mas sim um ser que possui um corpo, com um sistema sensório complexo, que funciona perce-
bendo o ambiente de acordo com sua memória e sua cultura. As sensações corporais, presentes
só num parque de diversões, podem estar também presentes nessas obras e não só as sensações
visuais, sonoras ou a reflexão. Consideramos que estamos num contexto em que a obra não segue
mais o paradigma da eliminação de elementos, mas sim a somatória, a reintegração do que foi
separado. A participação das sensações corporais não pode ser pensada como um impeditivo
para a reflexão, ou como elementos separados (SOGABE, 2010, p. 66).

306
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Na possibilidade de oferecer instalações ou objetos tridimensionais e interativos,


pergunto-me: a quem se destina tal objeto? Apesar de termos uma rasa ideia de pú-
blico para com determinado local expositivo, produzo meus trabalhos na tentativa
de sensibilizar um outro. O psicanalista Jacques Lacan estuda o conceito do outro
(com “o” minúsculo) como o semelhante. Alguém com quem conversamos. Destaco
que até o momento da exposição e experimentação pública dos meus trabalhos,
acredito estar dialogando com o Outro (com “O” maiúsculo).

Inicialmente Lacan define o Outro como um lugar simbólico, próximo do campo


social, na aproximação de inconsciente e linguagem. No meu entender o Outro é
de onde eu recebo minha própria mensagem de maneira invertida, um lugar onde
estão minhas mitologias, minhas memórias esquecidas ou até mesmo meus atos
falhos. O Outro me faz escutar a minha posição de sujeito para além do egóico, um
princípio de alteridade radical. Slavoj Zizek (2010) discute a ideia do grande Outro
apresentada por Lacan ao colocar que:

Apesar de todo o seu poder fundador, o grande Outro é frágil, insubstancial, propriamente virtual,
no sentido de que seu status é o de um pressuposto subjetivo. Ele só existe na medida em que
sujeitos agem como se ele existisse. […] algo pelo qual esses indivíduos estão prontos a dar suas
vidas; no entanto, a única coisa que realmente existe são esses indivíduos e suas atividades, de
modo que essa substância é real apenas na medida em que indivíduos acreditam nela e agem de
acordo com isso (ZIZEK, 2010, p.18).

Até a chegada dos trabalhos em ambiente expositivo, o corpo deste Outro é desco-
nhecido. Uma das hipóteses de destinatário às proposições dessa pesquisa, ainda no
espaço de construção dos trabalhos, é o grande Outro virtual. Acredito que a ideia
de Outro virtual sustenta a projeção dos trabalhos no momento de prototipagem e
testagem. Uma análise comparativa do que vivemos e do que acreditamos viver se
concretiza ao divulgar a possibilidade da interação real em um ambiente físico e pú-
blico. Segundo Zizek “O outro não só se dirige a mim com um desejo enigmático; ele
também me confronta com o fato de que eu mesmo não sei o que realmente desejo,
do enigma de meu próprio desejo” (2010, p. 56).

Dentro desse enigma, reconheço meu desejo por levar os trabalhos ao momento de
exposição para que se concretize o ato do acoplamento e para que o interator ex-
perimente e seja experimento. Entendo que qualquer registro compartilhado com o
outro pode ser uma provocação para os momentos de exposição. Estamos em cons-
tante mudança mental (mind shifting). Todo o tempo que dedicamos a interação
com a tela, seja do celular, computador ou televisão, leva a um inconsciente digital,
ou seja, a um não saber que sabe.

Em 2012, Kerckhove em uma palestra do projeto TED Talks sugere que em breve po-
deremos controlar algo simplesmente por pensar na sua ação. A afirmação se deu no

307
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

contexto de uma experiência em que um computador foi controlado pela emissão


de eletrodos posicionados na cabeça do usuário.

O inconsciente digital é tudo o que se sabe sobre você que você não sabe. Ou o que pode ser
conhecido sobre você que você não conhece. Pensa-se, isso tem muito poder em sua vida como
inconsciente freudiano. Que você também não conhece. Revelar o inconsciente digital pode ser
uma coisa complicada que irá acontecer e várias coisas estão se movendo nessa direção. O fato
permanece apenas indo ao Google seu inconsciente digital já está sendo alimentado pela sua
seleção através de várias coisas que lhe interessam. (KERCKHOVE, 2012, trad. da autora)

Um dos projetos de tecnologia que acredito dialogar com as possibilidades de um


inconsciente digital é o White Lives on Speaker. Criado pelos artistas japoneses Yoshi-
masa Kato e Yuichi Ito, este trabalho inclui o princípio da vibração, tatibilidade, in-
teração entre os observadores e, também, utiliza tecnologias digitais e mecânicas.

Segundo o website do projeto3 é uma escultura inventada através do som. A forma é


um líquido branco (feito com amido de batata dissolvido em água) que se movimen-
ta sobre um alto-falante conforme a vibração. Esta vibração pode vir de duas formas:
de uma frequência programada pelos artistas ou da frequência cerebral traduzida
através de eletrodos da “cabeça” de um observador. Em ambos casos é um computa-
dor que transcodifica e envia informações para o alto-falante.

Importante destacar que parte do amido também é tátil, sendo permitido ao pú-
blico manipular o conteúdo com os dedos, ou seja, tocar em uma forma plástica
modelada por ondas cerebrais. Na proposta de vibrar a mente e da mente vibrar
o mundo vejo o quão interessante é o processo de uma interatividade entre pares.
Não costumamos ouvir o outro através do contato entre os corpos. Se eu encostar
meu ouvido no pescoço do outro, poderei sentir a vibração da sua voz. Novamente
na tentativa de aproximação entre os corpos, monto o trabalho Voz de Dentro (2018)
para uma interação do Outro para o outro.

Interatividade entre pares


Voz de Dentro (2018) é composto por um microfone e uma cadeira de acrílico trans-
parente contornada por uma fita de led azul. No assento e apoio das costas acoplei
seis alto-falantes sem os cones de papel (utilizados para reverberar o som). Entre os
objetos incluí um painel com uma série de traquitanas funcionais que executam a
transcodificação do som captado pelo microfone e o transmitem até a cadeira.

O público é convidado a sentar/sentir e a falar no microfone. A troca entre os dois


interatores primordialmente se dá via vibração. Em um segundo momento, pude

3 http://www.wlos.jp/

308
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

perceber que a comunicação também acontece através da troca de olhares, uma


curiosidade de quem fala em entender a forma como sua voz age sobre o corpo do
outro. Para atrair as pessoas à interação com os objetos, inseri a fita de led azul que
também reage à voz variando o seu brilho e intensidade.

Para ampliar o aspecto vibratório, foram retirados os cones dos alto-falantes e inse-
ridos entre o input (microfone) e output (cadeira) dois amplificadores caseiros. Além
destes, o trabalho conta com um computador que ativa o software PureData, fazen-
do com que o som fique mais lento e grave. Logo, os agudos são eliminados e com
eles qualquer reconhecimento das palavras que estão sendo ditas.

Desenho de protótipo e imagens Voz de Dentro (2018) artista Joana Burd.


Fotografias de Rodrigo Bello Marroni.

Corpo Vibratório
Da vontade de instigar o movimento e o espaço do corpo do outro, convidei a bailarina
e performer Paula Finn para realizar um registro visual que envolvesse o movimento.

309
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Corpo enquanto imagem. Corpo em movimento. Corpos vibratórios. Como diria José
Gil (1997), o corpo que não significa, o corpo permite significar.

No ensaio levei motores vibratórios móveis, com pequenas baterias para serem
manuseados livremente. Destaco que ao apresentar meus motores em diferentes
contextos da pesquisa, desprovidos do restante que constitui meus projetos, ouvi
diferentes relatos sobre o significado de tais componentes. Confeccionados por di-
ferentes metais e fios, podem ser qualquer coisa entre as nossas mãos. Bichos, pás-
saros, ratos. Acredito que isso se deve a transferência de energia vibratória que ao
movimentar uma peça acolhida entre os dedos a torna “viva”.

Paula me mostrou como poderíamos realizar propagações da sensibilidade vibrató-


ria através das articulações, guiando a energia com os motores de forma mais loca-
lizada ou transferindo-a a todo o corpo. Do corpo significante ao corpo significado,
direcionei o foco da câmera a fragmentos do corpo de Paula em movimento. José
Gil coloca que:

O espaço do corpo envolve o próprio corpo com uma tipologia irregular, com fracturas, buracos,
reentrâncias ou pelo contrário, protuberâncias, cabos, apêndices; com texturas variáveis, mais ou
menos poroso, mais ou menos invulnerável, mais ou menos plástico. Resulta da metamorfose do
espaço interior: este, longe de se contentar em não se apresentar (por ser conteúdo de um conti-
nente), longe mesmo de não se exteriorizar se não filtrado (pelos orifícios de comunicação: olhos,
boca, ouvidos, nariz, vagina, ânus), prolonga-se por uma estranha reversão, no espaço exterior
(GIL, 1997, p.8).

Os movimentos repetitivos da performer transformaram-se em uma representação


física e exterior dos motores que tanto carregava em meus bolsos. Ao analisar o re-
gistro, conforme já havia desenhado, optei pelas extremidades do corpo e editei três
diferentes vídeos com fragmentos de cabeça, mãos e pés. Utilizei o software livre Vi-
deo Projecting Tool (VPT) para criar uma interface visual como a que sempre admirei
no trabalho do artista americano Tony Ousler4.

Curioso pensar que o trabalho Corpo Vibratório (2018) resume a forma de interação
mais “clássica”, a fruição estética puramente visual. Ao ler as características fisiológi-
cas do nosso corpo descritas por Neil J. Mansfield (2005), percebi o quanto o sistema
ocular também experimenta estados vibratórios. Conforme Mansfield coloca:

O sistema visual também pode sentir a vibração observando o movimento de outros objetos no
ambiente de vibração. Por exemplo, um espelho retrovisor de um carro pode vibrar, borrando a
imagem; cortinas e luzes podem balançar em resposta ao movimento; a superfície de uma bebida
pode mostrar ondulações (MANSFIELD, 2005, p. 15, trad. da autora).

4 https://tonyoursler.com/

310
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Desenho de protótipo e imagens de Corpo Vibratório (2018) artista Joana Burd.

Através da vibração visual, este trabalho é silencioso, mesmo com o vídeo em movi-
mento, nenhum som concreto saí de sua projeção. O corpo do outro aqui não fala,
não emite nenhum ruído, mas talvez possa comunicar de outras formas e combater
um achatamento sensorial ocular.

Ao longo da criação do trabalho Voz de Dentro (2018) descrito acima, desenhei di-
versas possibilidades de objetos táteis que fizessem vibrar a mão. O último trabalho
apresentado nesta pesquisa consiste em uma peça em formato de mão. Uma cópia
do meu próprio corpo, transparente, feita em resina cristal e nela inseridos dois mo-
tores de celular vibracall e um a mola de espremedor de laranja. Ilustrando essa ideia
de um corpo sensível compartilho com as ideias de Merleau-Ponty (2004):

Visível e móvel, meu corpo encontra-se entre as coisas, é uma delas, está preso no tecido do mun-
do, e sua coesão é a de uma coisa. Mas, dado que ver e se move, ele mantém as coisas em um
círculo ao seu redor, elas são um anexo ou um 110 prolongamento dele mesmo, estão incrustadas
em sua carne, fazem parte de sua definição plena, e o mundo é feito do estofo mesmo do corpo
(MERLEAU-PONTY, 2004, p.20).

311
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Refletindo sobre a pesquisa intitulei este trabalho de Sensível tecnológico (2018),


de maneira que as metáforas que uso estão no núcleo do pensamento simbólico de
meus trabalhos. No objeto, o interator é convidado a impulsionar sua mão contra o
objeto mão, o que comprime a mola e faz o objeto mão vibrar. Mansfield (2005) des-
creve a Vibração transmitida à mão ou ao braço como algo que ocorre sempre que
um indivíduo segura uma ferramenta ou objeto vibratório. Faz parte de um fenôme-
no industrial e o tamanho da área de contato influi sobre a percepção da vibração.

Além de trazer as características do tato como um caminho sensorial que é in-


terpretado através de textura, forma, temperatura, tamanho, movimento e dor, o
autor destaca um fator importante a essa pesquisa: não há como prever a sensibi-
lidade de cada pessoa.

A tentativa do Sensível Tecnológico é gerar estranhamento também por ser uma


mão familiarmente “orgânica” transformada em máquina, translúcida e vibratória.
José Gil (1997) exemplifica o corpo como suporte para a inscrição de conteúdos psí-
quicos ao comentar a ideia antropológica da libertação da mão. Se o corpo pode ser
visto como instrumento do ser humano, a mão será a principal ferramenta para o
desenvolvimento das técnicas da pré-história até os dias de hoje.

Desenho de protótipo Sensível Tecnológico (2018), artista Joana Burd.


Fotografias Rodrigo Bello Marroni e Carina Rocha de Macedo.

312
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Aquilo a que os antropólogos chamam <<a libertação da mão>> é sem dúvida apenas um fenó-
meno exemplar do que se passou em todo corpo do homem: a libertação dos momentos, das
articulações, permitiram a construção de uma infra língua –e, ao mesmo tempo, permitiram à
língua falar e significar (GIL,1997, p. 45-46).

Ofereço então a minha maior ferramenta ao outro. A mão que produziu de forma ar-
tesanal os objetos vibratórios com os dedos que acionaram cada tecla dessa pesquisa.
Não deixa de ser o momento que termino por me autorreferenciar de forma descritiva.
Entrego a minha própria imagem com suas digitais, ou melhor uma versão do meu
corpo transformado em máquina, metamorfoseado finalmente, em vibração.

Conclusão
Espero que algum dia possamos entender essa angústia, veloz ansiedade, de um
corpo a outro, do meu corpo para o corpo do outro. Pergunto ao leitor: o que vibra
então dentro de ti? Quais partes do cotidiano velocitado podem de fato nos equali-
zar? Será uma possibilidade de combater esse achatamento sensorial, o que chamo
de fruição vibratória? Os encontros do texto aqui apresentado fizeram parte da ex-
posição individual Corpo Vibratório, realizada em Setembro de 2018, na galeria da
Casa Musgo, Porto Alegre, Brasil.

Projetar retiros atemporais, repensar o próprio corpo e o quanto cada vez mais nos dis-
tanciamos dele. Uma nostalgia de falsas memórias trazida pelo fetichismo consumis-
ta, a saudade de um antigo rádio e a dependência sensorial dos novos touchscreens.
Ressurgir com essas ideias de forma escrita, talvez possa ser visto como um propósito
dessa pesquisa. Nós as chamamos de novas mídias, mas é bem provável que com suas
transmutações, essas recém chegadas durem para sempre.

Referências
CLARK, Lygia (1965). Nós somos os propositores. Associação Cultural Mundo de
Lygia Clark: Disponível em: <http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT.asp?idar-
qui vo=25>. Acesso em: 02/07/2018.

CUPANI, Alberto (2013). Filosofia da tecnologia: um convite. Florianópolis: Ed. Da UFSC.

GIL, José (1997). Metamorfoses do corpo. Lisboa: Relígio D’água Editores.

KERCKHOVE, Derrick de. Digital mindshifting: TEDxTransmedia. TEDx Talks,


Londres: TEDTaks, 2012. 19:16 minutos. Disponível em: <https://www.youtube.
com/watch?v=mvXaLuIwMxY. Acesso em: 08/12/2018.

LACAN, J. (1962-63). Seminário X, A Angústia. Rio de janeiro, Jorge Zahar Ed.

313
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

MANSFIELD, N.J (2005). Human Response to Vibration, CRC Press, Boca Raton. Dis-
ponível em <http://dinus.ac.id/repository/docs/ajar/Mansfieldhuman-response-vi-
bration.pdf> Acessado em: 06/01/2017.

MERLEAU-PONTY, M (2004). O olho e o espírito. Trad:. Paulo Neves e Maria Ermanti-


na Galvão. São Paulo: Ed. Cosac & Naify.

PRECIADO, Beatriz (2014). Manifesto Contrassexual. Políticas subversivas de


identidade sexual. São Paulo: n-1 edições.

POPPER, Frank (1997). Art of Eletronic Age. New York: Thames & Hudson.

SZEJER, Myriam (1997). Palavras para nascer: a escuta psicanalítica na materni-


dade. São Paulo: Editora Casa do Psicólogo.

SOGABE, Milton (2010). Instalações interativas mediadas pela tecnologia digi-


tal: análise e produção. SCIArts. Metacampo, Itaú Cultural. Disponível em: <https://
www.revistas.usp.br/ars/article/viewFile/52785/ 56628>. Acesso em: 04/05/2018.

TADEU, Tomaz. (org.) (2009). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-huma-


no/organização e tradução. Tomaz Tadeu – 2. ed. – Belo Horizonte : Autêntica Editora.

TROWER, Shelley (2012). Senses of vibration: a history of pleasure and pain of


sound. UK: Continuum Publishing.

ZIZEK, Slavoj (2010). Como ler Lacan. Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Revisão
técnica Marco Antonio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro: Zahar.

314
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

João Fragoso e Castro1, Paulo Bernardino


Bastos2 and Heitor Alvelos3
Afinidades e efeitos na fruição do lugar através de instalações
multimédia
Affinities and effects on place enjoyment across multimedia installations

Resumo
Instalações multimédia interactivas com modulação da percepção na mediação
do espaço de comunicação influenciam a maneira como vemos a realidade e
afectam a formação do significado. A construção de significado e a compreensão
cognitiva podem ser vastamente influenciados pelo ambiente individual, de
modo que interferem no usufruto desse lugar particular e na relação entre os
membros dessa área da população. O ecossistema pessoal é predisposto por an-
tecedentes culturais específicos, associações de validação, reflexos de emoções,
e as estruturas de atenção podem ser operadas positivamente no aumento da
fruição. O processo de interação leva o indivíduo a estabelecer uma variedade
de relações de significado que passam por: sentir, enquadrar e significar. Novas
afinidades geradas por instalações interativas multimédia podem promover um
aumento da sensação de bem-estar na fruição da cidade, criando ambientes
que facilitam o estabelecimento de novos laços entre os indivíduos que experi-
mentam juntos esses eventos e se transformam em um grupo.

Abstract
Multimedia interactive installations with perception modulation at mediation of
the communication space influence the way we see reality and have an effect on
the significance formation. Meaning construction and cognitive awareness can be

1 Author, João Fragoso e Castro, graphic and multimedia Designer, attends to ID+ PhD Program in
Design at University of Aveiro since 2018, researching about Fruition of the Place: influences and
connections by multimedia installations.
2 Co-author, Paulo Bernardino Bastos, Director of the research laboratory “Praxis & Poiesis: from prac-
tice to artistic theory” at ID+, promotes research in areas related to arts, science, media and culture.
Director of the DeCA Postgraduate Program in “Contemporary Artistic Creation”, develops his resear-
ch looking at the images produced by technological mediations.
3 Co-author, Heitor Alvelos, Director of the research laboratory “Lume: laboratory for unexpected media”
at ID+, which aims to recalibrate contemporary and traditional media for the common good. It stems
from the evidence that technological development requires a critical interpretation as well as a cons-
cious implementation and regulation. Professor of Design and New Media at the University of Porto

315
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

greatly influenced by the individual environment, so that they interfere on the en-
joyment of that particular place and the relationship between members of that area
of population. Personal ecosystem is predisposed by specific cultural background,
validation associations, mirroring of emotions, and, our attention structures can be
positively operated to a fruition increase. The process of interaction brings the in-
dividual to establish a variety of significance relationships that undergo through:
feeling, assortment, and meaning. New affinities generated by multimedia interac-
tive installations can uphold an increase of the sense of well-being on city fruition,
creating environments that facilitate new bond establishment between the individ-
uals that experience together these events, and themselves transform into a group.
Keywords: Place, Fruition, Communication Space, Interaction.

Introduction
The following considerations converge on understanding the design role on con-
structing meaningful project scenarios with an inherent desire of citizen’s life quality
improvement. Well-being quest on a territory is not exclusively related to the extent
of healthcare administrated to a population, it is as well a product of the relations
established between people and the fruition of that particular place. A proposal for
multimedia interactive installations reaches out to engage people to actively par-
ticipate on the city. For this matter is important to understand how to generate an
increased affinity, derived from specific essentials’ inclusion to facilitate a positive
effect on the place enjoyment. The way we see reality and the cognitive attribution
of meaning can be largely influenced by the modulation of perception at commu-
nication space mediation. To create with intense beauty towards the establishment
of new proximity relations between people within the city, is needed to understand
the attribution of meaning from the individual towards an event that is experiment-
ing. Emerges the need to project new designs that are actually meaningful. We live
in a spheroid full of everything, plenty of things which some we love, some we hate,
some are useless, some really make the difference, so… what to do next? This ques-
tion arises from the urgency of creating a new and better understanding for what
actually matter to the individuals that dwell in their life supported ecosystems. This
construction of intrinsic value is a consequence of the many levels that contribute
to the cognitive attribution of significance. Information is processed trough mech-
anisms of perception, attention, association, imagination, decision, interpretation,
and memory, and is transformed into understanding. Such information to be ac-
quired, and dealt with, is available all around us in the environment in which we live.

Being at the spot – The individual in the world

Time and again, the question that remarks the proposition to develop a new experi-
ence or artefact is transduced by a simple assertion: how does it make you fell? As a

316
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

matter of fact, the individual often does not choose to attribute a particularly mean-
ing to an object or experience that happened to be drawn inside. In the first place,
the composition of knowing what is happening, of attributing a meaning for the
information burst that our body perceptive tools manage to acquire, always starts
in being at a determined place at a determined time. As an individual, as well as
a group entity, the assumptions that we achieve drive from the interaction estab-
lished trough the manoeuvring and usufruct of a particular occurrence, experienced
as part of the occasion, with the self pivoting the spheroid in which we live.

The interaction circumstance implies being at the front roll of the event, be applied
on the issue in matter, and experience in first hand what is happening. The direction
of attention driven by an intention was brought by the philosopher Martin Heidegger
(1927), student of Edmund Husserl, implying for the use of phenomenological and
hermeneutical concepts. Such assumption manages a variation from the point of view,
focusing on the manners of being the individual in the world that surrounds himself.

As something disclosed, Dasein exists factically in the way of Being with Others. It maintains itself in
an intelligibility which is public and average. When the ‘now that...’ and the ‘then when...’ have been
interpreted and expressed in our everyday Being with one another, they will be understood in prin-
ciple, even though their dating is unequivocal only within certain limits. (Heidegger, 1927, p.463)

Conferring meaning implies, in the first place, that the subject of interaction exists
somehow in the same place and time as the matter in contact. When is aforesaid
somehow, that’s for the grounds that at the present time the matter of interaction
doesn’t need to be physically, or in strict presence of the subject. In fact in some
media of communication, the dematerialized essence of some contents places new
understandings to the well-made assumption of what is an object, or where it is…
and when was it made. How is it, right now, in front of the eyes of the person that
is seeing it for the first time, as it would be crafted as the individual experiences it?
Nevertheless, the relation that the body as with the world we live in is mutable and
specifically proper for each one of us. Maurice Merleau-Pointy (1945) takes us, also,
to think about the role of the body in relation to the world. When he started his
studies about perception, he recognized the importance of understanding that the
body is not only a thing, but also a permanent condition of the experience. There
is an intrinsic body consciousness that the analysis of attribution of meaning must
take into account.

It is a fact that I believe myself to be first of all surrounded by my body, involved in the world,
situated here and now. But each of these words, when I come to think about them, is devoid of
meaning, and therefore raises no problem: would I perceive myself as ‘surrounded by my body’
if I were not in it as well as being in myself, if I did not myself conceive this spatial relationship
and thus escape inherence at the very instant at which I conceive it? (Merleau-Pointy, 1945, p.68)

317
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

So the cognitive construction of meaning is possible first of all because we exist,


because we are in a place called earth, manifesting our presence at this time, not so
much different than before, and perceiving with our body correlations with the eco-
system that we manage to live in. James Gibson (1978), also explicit that the environ-
ment and individuals are not separable. Perceiving directly the environment at any
given moment is a relation established by the being in articulation with his context.
“A frozen form does not specify the solid shape of an object, only some of the invari-
ant features that a solid object must have. And in any case we never see just a form
but a sample of the ambient optic array.” (Gibson, 1978, p.227). These observations
set up the extent in understanding how we establish those correlations that make
the individual perceive his surroundings and interact with the world.

Senses acquired – Perception of the environment


The environment, in each we evolved as Humans, equipped our body with many
tools, kind of Swiss-army-knife of nature, which make us be aware of the surround-
ings. As Merleau-Pointy (1945) recall us, this first stratum of being in the world is our
Human body that perceives the environment and acquire information. However, the
quantity and quality of that inputs received are going to influence the approach the
individual senses an experience. James Gibson (1986) refers to the different ways
our senses catch the multiplicity of stimulus that we are always being bombarded.

Instead of a geometrical point in abstract space, I mean a position in ecological space, in a me-
dium instead of in a void. It is a place where an observer might be and from which an act of ob-
servation could be made. Whereas abstract space consists of points, ecological space consists of
places - locations or positions. (Gibson, 1986, p.59)

Being conscious that we are Humans, in motion, and that we move through the am-
bient, is easy to understand the difficulty of establishing rigid parameters in which a
stimulus correspond directly, like a hard-wire, to an engagement toward a construc-
tion of determined meaning. Perceiving what happens around us just participate in
the inferences of what is a particular reality.

On the other hand, the contribution of perception is fundamental. It would be nearly


impossible to submit an individual to a specific experience without the participation
of the body itself. We, as organic living specie, are covered with sensors that give us
inputs of information to our brain, about the manifestations that are occurring around.
Commonly is understood by sense the faculty in which the body perceives an external
stimulus. The perception senses are usually described to be the touch, taste, smell,
hearing and sight. Touch is a sense inherent to the largest organ that we have in our
bodies, the skin. It can reveal sensations of warm and cold, sharpness or softness of
object form, textures and volume geometry. Is possible to activate some triggers that

318
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

relate the smooth touch of a feather, sliding trough the skin, to a feeling of passionate
evolvement. Also, tasting a fruit can transport the individual to the place and time that
he first experimented the sweetness of a bite and memories of that moment arise.
However, this particular sense is short in accuracy, is very susceptible and can be mis-
leading, being very easy to taste a food saltier after eating some sugar. So, taste is not
so reliable, and also is extensively connected to sense of smell, one of the most power-
ful sensor that nature equipped Humans. Not so evolved as in other animals, the sense
of smell can relate directly memories to the odours that we capture, an evolution fea-
ture that kept Humans alive in the wilderness. While searching for what was eatable,
smells could send the message of freshness, or if an aliment was rotten, preventing the
ingestion of pernicious intakes that could minimize our fragile existence. Nowadays
this evolutionary skills and memories still remain deep inside our brains, some herbal
odours can be easily related to incidents of poisoning, bringing nausea, and sickness.
Furthermore, a strong smell, as the bitter-sweet of cinnamon, can be, in instance, di-
rectly related to a memory of love from a grandmother preparing sweet rice for the
family reunion. Smell is also frequently preponderant to other senses; as something
could look good, felt well, taste marvellous but unfortunately smells like teen spirits,
so the individual often discards that choice.

Other than what smells, is what is heard that usually sets easily the mood. Audition
really realizes emotions. How does it make you fell when the sound of nature, of
birds, the ripple of the ocean or a cosmic white noise set to 432Hz is heard by? Or is it
possible to experience a state of relaxation listening to the “Stress” theme from Jus-
tice? It happens to be extraordinarily tangible that some frequencies induce states
of mind, and arouse memories engraved on the brain, seeing that one music that
was heard on the first encounter with a loved one, when heard again will transport
those to the day and time of that experience and to the emotions that wandered
trough their body. This sense also largely contributes to the perception of the sur-
roundings, as we relay on it to manage our way in a city full of traffic, or to capture
word sound messages codified in language. Perception brings us many possibilities
for communication, for capturing signals full of intention, to catch information that
can be used in our organic system. Is possible to see it better if we can use our eyes…
and yes, for design, a discipline so visual that argues about its aesthetics for a pursuit
of ideals of Beatty, many layers of importance can be inputted to visual perception.
In this contemporaneous postmodernist world, the cultural rules to achieve beauty
were crashed, and relay now, even more than then, on the feelings generated while
a visual encounter is established. Forms, geometry, distances and proportions can
always be feed to eyes, they are so important to give our brain the main picture of
the environment. Also, there certain geometries and figures that are more suitable
to attract an individual to gain some of is time staring, contemplating an object in
detriment of another. But, can our eyes see everything? Certainly, no! Not so, the
visual sense can not retain all aspects of the matter in front of him, as time is going

319
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

short for enquiry, as neither can do it as observer because the individual isn’t static,
the motion that comes for being in an environment makes the visual capture dy-
namic. Our body also has other sets of tools to perceive:

(…) ’extra’ senses have already been mentioned, including proprioception (sense of physical dis-
position of the body and limbs), balance (the sense mediated by the inner ear that is able to
detect gravity and our movement in space), including appetite, because detecting nutrient levels
in our blood and body is another kind of sense. (Burnett, 2016, p.141)

These extra senses bring other layers on information for the cognitive construction
of signification. Proprioception is frequently used to make efficient prosthetic limbs,
as the brain can engage to make it function properly as it manages to be aware of
the artificial member as a ‘natural’ extension that performs equivalently. Is also used
in artistic installations like “The matter of time” made by Richard Serra (2005) present
at Guggenheim Bilbao Museum, which takes the visitor through an installation with
inclined steel walls, in a process of interaction that places the body in a position of
comfort fracture in the relationship between the body and the oblique walls of this
work. The inner ear induces information contrary to visual perception and thus the
play of sensations begins. Therefore, the perceived inputs actuate in the memories,
establishing cognitive bridges that induce states of signification toward the mean-
ing of that particular experience. But can we rely on that inputs? What is their contri-
bution? Are they constrained by a cultural context?

Cultural weight – Contextualization backgrounds


The cognitive process, of attributing meaning to things, is the ability to process the
perceptive information acquired and convert it into knowledge. The information
processed is accessible in the environment in which the individual struggles and is
based on perception, attention, association, imagination, judgment, reasoning, and
memory. In addition, the combination of the individual’s capacities with the reac-
tions to interactions with the surrounding environment makes the subject have a
determined behaviour. A cultural background manifestly moulds this. Often mean-
ing is found on a matter, or artefact, due the cultural heritage of human transactions
and motivations to do it, as both in the ways objects are used. Commercial dynamics
in the social and cultural contexts, both in the present and in the past, socially regu-
lated processes of circulation, territorial ideologies implemented and other contex-
tual layers contribute to restrain the formation of significance.

From the cultural point of view, the production of objects is a cognitive and cultural
process in which artefacts must be produced materially as things, but also culturally,
as being a certain type of thing. People find value in them and they value social re-
lationships. Known for his work on modernity and globalization, the Indian anthro-

320
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

pologist Arjun Appadurai (1990) describes, in his paper “Disjuncture and Difference
in the Global Cultural Economy” these distinctive characteristics can be catalogued
for the understanding of the cultural and circumstantial backgrounds in attribution
of meaning, proposing to study an object according to several social prisms: ethno-
scapes, ideoscapes, mediascapes, techoscapes, and financescapes. The ethnoscapes
are made from the people who make the move between places and the transactions
that take place. It is the individual, or that particularly community, who have the
will, or not, to relate to an activity or matter of fact. The cultural field is very wide
and varies according to the place, “(...) by ethnoscape, I mean the landscape of per-
sons who constitute the shifting world in which we live: tourists, immigrants, refug-
es, exiles, guest workers, and other moving groups and individuals (...)” (Appadurai,
1990, p.589). The characterization of these ethnic spaces of a territory is essential for
the understanding of the dynamics related to the activities and the assumptions of
the use of their local identity artefacts and the attributed meaning. Ideoscapes are
a characterization of the engraved religious and ideological cultural heritages that
assist and constrain the production of meaning, bringing limits and rules to Human
action, establishing boundaries of thought, “(…) ideoscapes are composed of ele-
ments of the enlightenment world view, which consists of a chain of ideas, terms,
and images, including freedom, welfare, rights, sovereignty, representation, and the
master term democracy (...)” (Appadurai, 1990, p.591). Consequently, they can speed
up, or stagnate, the propensity to conceptualization of certain ideas to the detriment
of others. Mediascapes are the ways the information is brought up to, and from, a
particularly group of people. Oral reports, texts, photos, audiovisual and other me-
dium media, reveal identity and intrinsic characteristics of matters. All these reports
are just fragments of a memory that draws meanings about why a given artefact ex-
ists, revealing also reasons that led to the creation of certain objects “(…) produced
by private or state interests, tend to be imagecentered, narrative-based accounts of
strips of reality, and what they offer to those who experience and transform them is a
series of elements (such as characters, plots, and textual forms) (...)” (Appadurai, 1990,
p.591). Techoscapes talk about the necessity for technology in Human activity, which
is evidenced in the materials used, as well as in the tools. “(…) the global configura-
tion, also ever fluid, of technology and the fact that technology both high and low,
both mechanical and informational, now moves at high speeds across various kinds
of previously, impervious boundaries (…)” (Appadurai, 1990, p.589). The allocation
of resources is variable from place to place and these dynamics allow a broader view
of what can be materialized in a given location, so the financescapes make it possi-
ble, or not, to allocate resources for development and research on the creation of
new objects, moulding the access to experiences and the cultural approach, “(...) as
the disposition of global capital is now a more mysterious, rapid, and difficult land-
scape to follow that ever before as currency markets, national stock exchanges, and
commodity speculations move megamonies through national turnstyles at blinding
speed (…)” (Appadurai, 1990, p.590). The intrinsic culture shapes the individual and

321
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

the ways that he thinks and acts in the world that he lives in. It’s no surprise the
acknowledgement that ideas intruded in our minds trough the ages construct mind-
sets that allow, or block, the perceptive inductions that our body receives.

This heritage helps us, to understand the world, and to design more adjusted prod-
ucts, graphics, experiences and services, that respond to the needs of a particularly
group of people. There is a better way to design for a cluster, nevertheless improper to
other cluster that does not share the same acceptations about what is a good aesthet-
ic design. Simple differences in details can make the difference, and help to build or
destroy a meaningfulness design, since the incorporation of a feature that one cultural
cluster love, other might hate. The Dutch psychologist Geert Hofstede (2011) found six
cultural dimensions that influence the way of thinking: power distance, uncertainty
avoidance, individualism vs collectivism, masculinity vs femininity, long vs short term
orientation and indulgence vs restraint. Power distance is related to the way in which
different societies deal inequality among individuals, measuring how much less domi-
nant members in a society accept and expect the uneven sharing. “Power Distance has
been defined as the extent to which the less powerful members of organizations and
institutions (like the family) accept and expect that power is distributed unequally”
(Hofstede, 2011, p.9). Uncertainty avoidance reflects the embarrassment that people
feel with risks, unexpected situations and divergences of opinion. “Uncertainty avoid-
ing cultures try to minimize the possibility of such situations by strict behavioural
codes, laws and rules, disapproval of deviant opinions, and a belief in absolute truth”
(Hofstede, 2011, p.10). Individualism vs collectivism measures the call for people to
concern them, family or organizations they belong. “On the individualist side we find
cultures in which the ties between individuals are loose: everyone is expected to look
after him/herself and his/her immediate family. On the collectivist side we find cultures
in which people from birth onwards are integrated into strong, cohesive in groups,
often extended families (…)” (Hofstede, 2011, p.11). Masculinity vs femininity refers to
the amount of values such as aggressiveness in opposition to the individual value rela-
tionships and shows sensitivity and concern for the well-being of others. “The assertive
pole has been called ‘masculine’ and the modest, caring pole ‘feminine’ ” (Hofstede,
2011, p.12). Long vs short term orientation refers to the extent to which a society main-
tains or adapts its traditions, long term guidance reflects perseverance and effort to
produce results. “Long term oriented are East Asian countries, followed by Eastern and
Central Europe. A medium term orientation is found in South and North European and
South Asian countries. Short term oriented are U.S.A. and Australia, Latin American,
African and Muslim countries.” (Hofstede, 2011, p.15). Indulgence vs restraint is related
to gratification in opposition to control of basic human desires. “Indulgence stands for
a society that allows relatively free gratification of basic and natural human desires re-
lated to enjoying life and having fun. Restraint stands for a society that controls gratifi-
cation of needs and regulates it by means of strict social norms.” (Hofstede, 2011, p.15).

322
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Therefore, culture of a determined group of peoples largely influences the be-


haviour of the individual, constraining and moulding the possibilities of the creation
of meaning. The cognition construction is soaked of behavioural memories, contex-
tualization backgrounds that refine the attention to determined detail of a design,
that is driven by the shape as the individual managed to apprehend reality. Some
habits are acquired trough life and by heritage, and firmly induce strong recog-
nizable patterns of choice. The American anthropologist and social theorist Clyde
Kluckhohn (1951) reminds concerning so as to behaviour expected is moulded cul-
ture. “A conception, explicit or implicit, distinctive of an individual or characteristic
of a group, of the desirable which influences the selection from available modes,
means and ends of action.” (Kluckhohn, 1951, p.395). Behaviour is a combination of
individual capacities through a series of reactions from interactions made with the
environment highly influenced by the patterns learned with others from the cluster.

Attributing labels – Construct of meaning


Toward the understanding how the construction of meaning, how individuals award
significations and the reasons that guide to the choice of certain experiences, and
objects in the detriment of others, we must ask about what emotions arise when
trough the perception of an object? The appearance, the forms and the design em-
anate messages that touch, or not, the person who interacts with it. For this, it is
essential to come across about emotions. An object must have utility or extreme
beauty to be felt the need to possess it, but the true beauty of a thing has to be with
more than that. To be truly attractive this product must also fulfil a function and be
understandable. Donald Norman (2005) has been reflecting on usability, cognitive
psychology and observations of a critical nature in relation to our society. Regarding
the issue of feeling to artefacts Norman presents us with a division into three areas
of attraction to a matter: visceral, behavioural and reflective. Visceral design has to
do with the appearance of objects and with the direct connection that has with na-
ture. Human beings evolved to live in a group, with a visceral predisposition that is
transversal to all, although in detail all individuals have different tastes. “(…) visceral
design is what nature does. We humans evolved to coexist in the environment of
other humans, animals, plants, landscapes, weather and other natural phenomena
(…) as a result, we are exquisitely tuned to receive powerful emotional signals from
the environment that get interpreted automatically at visceral level” (Norman, 2005,
p.65). Behavioural design essentially reflects the use of a given object, as the perfor-
mance and the environment determine if it will deliver performance that satisfies
its user, the development for a purpose, for a function in a given location, “(...) be-
havioural design is all about use. Appearance doesn’t really matter. Rational doesn’t
matter. Performance does.” (Norman, 2005, p. 69). There is function adequacy to the
context, performance is the main point of reference for a person to feel the need or
the will to possess it. On the other hand, new levels of meaning can be created due to

323
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

decontextualization that can mislead the user of an object. The motivation over and
over again proves to be stronger than necessity, and this desire to have something
special becomes a factor of differentiation from the individual to the others giving it
a sense of exclusivity. Reflective design reveals us how important the message of the
object is. Creating a concept, reflective design has the message and culture as the
preponderant role. The message, that the use of a product, intends to send about
the individual’s self-image leads to this approach being completely rationalized. It
is not part of the will but of the image that the person constructs when he wants to
transmit his values, in the purchase of a certain object or in its use. “Reflective design
covers a lot of territory. It is all about message, about culture, and about the meaning
of a product or its use.” (Norman, 2005, p.83). Certain objects are built for a particular
use, designed with parameters that satisfy the behavioural needs of a specific group
of people. But through a rational symbolic construction one can appeal to other
market niches for the use of this same object in the execution of different tasks. The
messages sent by an object are perceived and signified trough the cognitive con-
struction process of meaning. Levels of significance come up, and engage, or not,
the attention of the individual interacting with it.

Meaningfulness matter – Significant virtue


The substance of cognition in the study of behaviour is to help to understand the
mental processes that form the basis of behaviour. Cognitive stimulation are en-
hanced by proper perceptive stimulus, evoking memories, bringing up feelings and
finding meanings to the objects and experiences that we, as humans, manage to
encounter. Donald Norman in “Emotional Design” (2005) refers to the texts of Miha-
ly Csikszentmihalyi and Eugene Rochberg-Halton (1999) authors of the book “The
meaning of things” that leads to the discovery of meanings that people give after
perceiving an object. It is a reflection on the various symbolic representations that
human beings place in the creation of objects, or on the multiple interpretations
they make about them. Nowadays, the number of drawings and shapes of existing
objects indicate an overproduction for the real Human needs. This raises questions
about the meaning that artefacts have for people. Those surround themselves with
objects in which they are revealed, which mean something in their lives. Meanings
attributed to artefacts differ with time, space, and circumstance. Thus, new forms
appear based on the visual, functional or object properties, without taking into con-
sideration the impact they have on their interaction. Some artefacts reach a higher
level of meaning. It can be exemplified by the case of a certain object that may bring
childhood memories, or an artefact offered by someone who is special and who
means more than the object itself, in which the meaning transcends the aesthetic or
functional properties of the same, “(...) is the possibility of transcendence, of discov-
ering new psychic skills and achieving higher forms of relatedness with the cosmos”
(Csikszentmihalyi & Rochberg-Halton, 1999, p.25).

324
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

The texts of Mihaly Csikszentmihalyi and Eugene Rochberg-Halton authors about the
meaning given to matters, bring us three distinct levels of representation: personal,
social and cosmic levels. The personal level of representation is similar to a mirror of
emotions, the objects that are used are often a reflection of what you feel, of what
you aspire to be, of what you think about a subject. We use representations that
demonstrate the wide range of experiences that make up and form our intimate and
that allow us to infer that the object may even have self-consciousness. The trans-
mission of a message through the use of an object, which reflects emotions, soul
state, predispositions or personal choices, is a communicational product in which
the individual mirrors his idea of what interests him and complements his existence,
“(…) we use representations that stand for the vast range of experiences that make
up and shape the self and enable one to infer what the object of self-awareness
is (…)” (Csikszentmihalyi & Rochberg-Halton, 1999, p. 3). The reasons that lead an
individual to demonstrate emotions through an artefact refer to the relation Don-
ald Norman (2005) expresses about the construction of meaning. This attribution of
meaning can be completely intuitive, as well can be, in other hand, behavioural and
reflective. The latter one is based on the use of a rationality that allows the transmis-
sion of a constructed message. It is up to the other side, the recipient of this person-
al information, to decode this message, which can be diffracted by inadequate or
ill-informed contextualization. Toward a thriving decipherment, the object must be
equalized to the image of human emotions and inspired in its cultural memories,
achieving a nature of personification by means of the same representative values. A
social level of representation brings structures of attention to the cognitive process.
The human being does not live alone, it is a gregarious animal that lives in commu-
nity and has close social ties that allowed the species to stay in the face of this planet
through the ages. In the social movement of people, there are predictable patterns
of interaction between people, made possible by shared structures of attention that
have been built on trade between villages and on the social dynamics associated
with fertility, politics, economy or religion. Individual expression has a very strong
social dimension. An object means something to a person through the context in
which it is inserted. But personal representation, which mirrors individual emotions,
is also a reflection of social dynamics. This framework allows the human being to
feel that he is part of a larger or more restricted group, but integrated with other
individuals, “(...) predictable pattern of interaction among persons made possible
by shared structures of attention (...)” (Csikszentmihalyi & Rochberg-Halton, 1999, p.
6). Creating structures of attention that allow transmitting environmental values is
very important. The cosmic level of representation is when the meaning transcends
the object and the significant becomes meaningful. The disaffection of the ancestral
ties, that in the past approached the individual to nature, made the contemporane-
ous human to search for reasons for existence. This need to find a new relationship
between the person and the space in which is inserted has led the current, urban-
ized and artificial individual that surrounds himself with objects, trying to re-estab-

325
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

lish the connection with nature. A reflection of the self, through the social dynamics
of attention, is amplified when the design allows us to re-connect with the universe,
making everything seem to make sense again.

In traditional societies this cosmic level includes the great natural phenomena that control the
rhythm of life: the sun, the moon, the stars; water and fire; wind and earth. Every society has to
make believable connection between is own purpose and those that make the world go round.
(Csikszentmihalyi & Rochberg-Halton, 1999, p. 38)

Designers must include proposals of concept that return to elements that fall back
on nature in the project of new experiences, graphics, products and services, in or-
der to provide a bridge between the existence of the human being and his need to
rediscover himself. Therefore, symbolic representation through artefacts and media
content are a form of personal and social expression in which the public sphere iden-
tifies itself with a given matter, transmitting through the individual’s inner fence and
showing how a particular individual interacts with society. Desired concepts reveal
a message to others of their personal identity. In this way, the human being tries to
find a way of relating his individual existence to the rest of the world, which is, to find
a matter that makes the pieces of life fit, looking for the possibility of transcendence,
discovering new abilities and reaching other forms.

Perception modulation – A see through


The manners we glimpse reality are shaped by several factors, and there are interest-
ing cases of contemporary interactive multimedia installations that bring an under-
standing of how perception can be modulated in the communication space. “New
Angles” is an art installation made by the Shanghai-based interdisciplinary design
studio Super Nature (2010). Composed of 420 hexagonal prisms made of white acryl-
ic that transmit RGB light and form pixelated images in reaction to movement, which
awakens dialogues between imagination and reality, present and future... through
the juxtaposition of subversive thinking and visual perception. This installation was
initially exhibited at Shanghai International Science & Art and is now part of the per-
manent collection at Le Cube in Paris. Also pertinent is the reference to the artistic
installation “In Order to Control”, produced by Note Bene Visual (2011), a multidisci-
plinary studio based in Istanbul, specialized in digital experiences of video mapping,
interactive experiences and installations. In this intervention, a text discussing the
threshold of ethics and morality is projected on the floor. People, who step on the ty-
pographic area to read it, perceive that their silhouette is now projected on the wall
delimiting the text they initially intended to read, and thus the process of interaction
begins. More recently, Nick Verstand’s (2017) audiovisual installation “Aura” materi-
alizes the participants emotions in a perceptible physical form, transforming them
into light. A system developed in collaboration with the Netherlands Organisation

326
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

for Applied Scientific Research, in which biosensors record brain waves, heart rate
and galvanic skin response. Emotional data are analysed and metamorphosed into
their symbolic representation as light, a metaphorical allusion to the materialization
of the metaphysical space in physical space. At the same time, is important to men-
tion “Endless” project of TeamLab (2017), an ultra-technologies interdisciplinary art
group collective, based in Tokyo, whose collaborative practice seeks to navigate the
confluence of art, science, technology, design and the natural world. This installation
explores the effect of resonance through the projection of traces of particles forming
vortices of light. If the interlocutor moves, a force is applied in that direction, result-
ing in a flow, which when it happens faster than the velocity of the surrounding flow,
becomes a phenomenon of rotation, creating a vortex. Movement stimulates these
vortices, which in turn drive the individual to move.

The photopic search of the human being, a moving being looking for light, is ad-
dressed in the Thesis in Image Theory “Ecrã duplo. A Subjectividade Espacial do Es-
pectador na Imagem em Movimento Instalada” (Santos, 2012), a feature that puts the
viewer’s body in charge of visiting the communication space, establishing the path
between the elements in a healthy interactive cohabitation. The projection has a
luminous action that can provoke effects of transformation of the space. “Impressões
da Luz: Articulações da luz, da cor e da forma no espaço” (Zurita, 2010) is a Thesis that
addresses how urban supports can be modified by the light of projections, which
illuminates and launches images, impregnating them, and changing the initial
conditions. Multimedia projections play an important role in the transfiguration of
spaces, of communication, in this process of designing new perceptive layers, which
must be refined, modulated, in order to bring about an improvement in well-being.
The interactive installation “Deep Sea Room” produced by Japanese artist Takahiro
Matsuo (2012), provides a dive into the depths of the sea. The design of the envi-
ronment produces an immersion in the oceanic abyss, being the individual that ex-
periments this installation totally surrounded by jellyfish. A virtual scenario without
the dangers associated with contact with these beautiful marine beings. As visitors
approach or move away from walls, the number and frequency of jellyfish fluctuates.
This installation as the collaboration of architect Akihisa Hirata in the definition of
the spatial experience, where exploration through light, projections and architec-
ture, human interactions are strongly encouraged.

The communication medium is used differently in the artistic installation of Christo-


pher Bauder (2012), from WHITEvoid, based in Berlin. He joined the Philips company
to create the “LivingSculpture 3D” module system made of OLED panels, Organic
Light Emitting Diodes. The sculpture consists of multiple small-mirrored panels that
seem to wave and flow like the ocean above. In an online configurator the lights’
arrangement is ordered, being possible to create almost any composition that the
user wishes. The moving lights can then be controlled using an animated light app

327
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

on an iPad. This work deals with a different way in which light can be projected into
the communication space, such as the way of interacting with the user. The work
“Onde Pixel” by the Italian artist Miguel Chevalier (2016), seeks this counterbalance
of inputs, playing between vision and spatial perception of the individual in his gen-
erative and interactive installation of virtual reality held at the UniCredit Pavilion in
Milan. This fluid universe reacts to the circulation of visitors due to the distribution of
sensors. The movements amplify the distortions of the virtual scenes under his feet
and influence the generative music of Jacopo Baboni Schilingi. The “Trompe l’oeil”
effects interfere on the perception of visitors while creating the sensation of a mov-
ing floor. It refers to Kinetic Art and Op Art, which conducted research on movement,
light or illusion of optics and prefigured digital art. Colours and forms in motion lead
to an imaginary and poetic journey of illusion and optical play.

Also, is important to understand whether factors characterized as beneficial to a ter-


ritory have the desired effect. The experimental work carried out at the Leiden Insti-
tute of Advanced Computer Science in the Netherlands, “The Happiness Cube; an
Approach to Elicit Relaxation and Happiness through Sound, Video, Light and Odor”
(Giannoulis & Verbeek, 2014) is an example of how is possible to study a quantifica-
tion of emotional elicitation and physiological responses, in this case only one emo-
tion, happiness, through the modulation of vision, hearing and smell. During the
experience, each participant, after 7 minutes of relaxation, is exposed to a 14-minute
session where they are exposed to aromas, sounds and images of food, sports, ex-
treme sports, family, babies and sexual intimacy. In order to check if there is a sig-
nificant change in the subjects emotional situation, short questionnaires with ques-
tions about age, gender, marital status, work satisfaction and health are carried out
before and after the session. These factors play an important role in the emotional
status and life satisfaction, allowing obtaining the information desired in the study.

Final considerations
To deliver new forms of design is essential to centre our attention on giving mean-
ingful innovative proposes that are reflections of the individual and collective needs,
and switch on a bright connection to world. Significant and virtuous matters have to
be included on the concepts, to materialize experiences that really make the differ-
ence, and will not be just another thing with a short life expectancy. Filled of that is
this artificial world, a place that urge to be redesigned, as it must discover a way for
a more levelled equilibrium.

This research essay was brought into being as a search for clues that put an empha-
sis on the significant construction of meaning. Through this research were found
other fonts of evidence that could also be note of future awareness. However, the
selected cases and literature show to be of great importance for the understanding

328
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

of this conceptual territory, which is carried out within the field of desire, the re-en-
counter with the sense of place and the emphasis of the significant qualities in the
individual’s relationship with others. Therefore, is educed that significant virtue can
be found on the matters of fact that fell right to interact with, that value the cultural
surrounding heritage, that stage with the stimulus perceived, and that reconnects
our existence.

References
Appaduray, A. (1990). Disjuncture and difference in the global cultural economy.
Oxford Blackwell Publishing.

Bauder, C. (2012). LivingSculpture 3D.


[Web log post] Retrieved from https://design-milk.com/the-livingsculp-
ture-3d-module-system

Baudrillard, J. & Benedict, J. (2005). Le système des objets. Editor: Verso.

Bastos, P. (2006). Intersecção das novas teconologias na criação da imagem nas


artes plásticas no final do séc. XX: a imagem, a tecnologia e a arte. Doctoral
dissertation, University of Aveiro
Retrieved from http://hdl.handle.net/10773/4762

Burnett, D. (2017). The idiot brain. Faber & Faber. Editor: Presença.

Chevalier, M (2016). Onde Pixel.


[Web log post] Retrieved from http://www.miguel-chevalier.com/en/onde-pixel

Csikszentmihalyi, M. (1990). Flow: the psychology of optimal experience. Harper-


Collins Publishers.

Csikszentmihalyi, M. and Rochberg-Halton, E. (1999). The meaning of things: do-


mestic symbols and the self. Cambridge University Press.

Giannoulis, S. & Verbeek, F. (2014). The Happiness Cube; an Approach to Elicit Re-
laxation and Happiness through Sound, Video, Light and Odor. Leiden Universi-
ty. Retrieved from https://www.researchgate.net/publication/203334787

Gibson, J. (1978). The ecological approach to visual perception of pictures.


Pergamon Press.

329
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Gibson, J. (1986). The ecological approach to visual perception. New York: Psy-
chology Press.

Heidegger, M. (1927). Being and Time. Oxford Blackwell Publishing. 1962 ed.

Heidegger, M. (1969). Art and Space, Man and World: An International Philo-
sophical Review.

Heller, E. (2000). Wie Farben auf Gefuhl und Verstand Wirken. Editor: Garamond.
Ed. Pt 2018.

Hills, M. (2002). Kluckhohn and Strodtbeck’s Values Orientation Theory.


Online Readings in Psychology and Culture. Retrieved from https://doi.
org/10.9707/2307-0919.1040

Hofstede, G. (2011). Dimensionalizing Cultures: The Hofstede Model in Context.


Online Readings in Psychology and Culture. Retrieved from https://doi.
org/10.9707/2307-0919.1014

Kluckhohn, C. (1962). Culture and behavior; collected essays. New York: Free
Press of Glencoe.

Matsuo, T. (2012). Deep Searoom. [Web log post]


Retrieved from https://mymodernmet.com/takahiro-matsuo-aquatic-colors/

Merleau-Pointy, M. (1945). Phenomenology of Perception. Editor: Routledge & Kegan Paul.

Miller, D. (1987). Material culture and mass consumption. Oxford Blackwell Publishing.

Norman, D. (2007). Emotional design: why we love (or hate) everyday things. Ba-
sic books.

Nota Bene Visual, Atelier. (2011). In order to Control. [Web log post]
Retrieved from http://www.notabenevisual.com/works/in-order-to-control

Penn, M. & Zalesne, E. (2008). Microtendências. Edição: Lua de papel.

Pombo, F. (2018). Das Coisas Belas e Desenhadas. UA Editora, University of Aveiro.

Santos, A. (2012). Ecrã duplo : a subjectividade espacial do espectador na ima-


gem em movimento instalada. Doctoral dissertation, Lisbon University. Retrieved
from http://hdl.handle.net/10451/6406

330
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Serra, R. (2005). The Matter of Time. [Web log post]


Retrieved from https://www.guggenheim.org/artwork/21794

Super Nature, Atelier. (2010). Angles. [Web log post]


Retrieved from http://www.supernaturedesign.com/art/newangles/

TeamLab, Atelier. (2017). Endless. [Web log post]


Retrieved from https://www.teamlab.art/w/vortices

Verstand, N. (2017). Aura. [Web log post]


Retrieved from http://nickverstand.com/projects/aura

Vitta, M. (2003). El sistema de las imágenes: estética de las representaciones


cotidianas. Barcelona: Paidós.

Young, J. (2001). Heidegger’s Philosophy of Art. Cambridge: University Press.

Zurita, R. (2010). Impressões da Luz: Articulações da luz, da cor e da forma no espaço.


Doctoral dissertation, State University of Campinas. Retrieved from http://reposito-
rio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/284461/1/Zurita_RitaCassiaRibeiro_D.pdf

331
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Julie Pires1 and Marcelo Ribeiro2


Entre-inscrições: reflexões sobre gesto e silêncio
Ambivalent inscriptions: reflecting on gesture and silence

Resumo
A relação entre desenho e gestos reflete diferentes formas de comunicação si-
lenciosa. Para o surdo que vive no Brasil, a LIBRAS pode ser apreendida como sua
primeira língua. Contudo, se há grande semelhança entre o português falado
e escrito em Portugal e no Brasil, o mesmo não ocorre na comunicação entre
surdos portugueses e brasileiros que, por utilizarem universos linguísticos de
origens diferentes, não encontram espelhamentos gestuais equivalentes às so-
noridades e marcas escritas compartilhadas pelos dois países.
O uso de tecnologias, não centradas apenas na visualidade, possibilita o envolvi-
mento dos sentidos humanos e favorece a ideação de imagens e artefatos con-
temporâneos do design/arte, pois a noção da visão como centro da percepção
humana é mais uma sensação que não descarta o toque, o gesto... Ao pensar
na comunicação surda, destacamos formas outras de estar e de agir no mundo
possibilitando, para além da valorização desse grupo, provocar reflexões sobre
articulações entre gesto, palavra e imagem de modo muito mais complexo.
Palavras-chave: design, arte, surdez, gesto, linguagem.

Abstract
A Brazilian deaf might learn LIBRAS as a first language. However, the similarity be-
tween the spoken and written language in Portugal and Brazil is not the same as
sign language for Deaf People in those Countries.
The technologies, not just visuality, can benefit from intervention based on the stim-
ulation of the other senses: that is the condition of contemporary creativity. The hu-
man perception consists of five senses, not only the vision, but also the haptic sense,

1 Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde leciona na Pós-Graduação em Design


e na graduação em Comunicação Visual Design. Tem Doutorado na área de Artes Visuais, atuando
principalmente nos seguintes temas: design visual, arte contemporânea. É lider do grupo Imagem(i)
materia.
2 Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde leciona na Pós-Graduação em Design e
na graduação em Comunicação Visual Design. Tem Doutorado em Design, atuando principalmente
nos seguintes temas: design visual, ilustração, artefatos gráficos. É lider do grupo Imagem(i)materia
[imagemimateria.eba.ufrj.br]

332
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

among others. Thinking about deaf communication, we can find links between ges-
ture, words and images in a very complex way.
Keywords: design, art, deafness, gesture, language.

Design e sentidos
No campo do design, ainda hoje, a ideia de comunicação visual se apoia no mode-
lo passivo de recepção visual e, apesar de algumas resistências, está ancorada no
modelo cognitivo de representação que visa idealizar circunstâncias consideradas
cognitivamente normais, buscando corrigir determinadas situações com a intenção
de obter melhores resultados. Como, por exemplo, o uso das ilusões figurativas nas
narrativas visuais (animações, ilustrações, entre outros) ou o intuito de evitar o que
são considerados erros de comunicação visual provocados por uma representação
particular do mundo (cores, formas, entre outros). Assim, nos parecem existir canais
diferentes que captam a natureza em sons, cores, etc, desconectados e dissociados
uns dos outros nos estudos de muitos autores.

Por outro lado, a utilização de tecnologias, não apenas centradas no aspecto visual,
possibilita o envolvimento dos sentidos humanos e favorece a ideação e criação de
imagens e artefatos contemporâneos do design, pois a noção da visão como centro
da percepção humana é mais uma sensação que não descarta o toque, o gesto, o
olfato, o paladar, entre outros.

Brian Massumi (2016) observa que é um equívoco pensar nessas sensações sepa-
radas como canais específicos. Para este autor, o movimento que acompanha cada
sensação em nosso corpo pode ser comparado à imagem da ponta de um iceberg
experiencial: ou seja, o que imaginamos perceber como um canal específico, por
exemplo, a visão que capta determinada imagem, significa que ao longo da vida
até a fase adulta de um observador já foi “educado e escolarizado” nesta virtual ex-
tensividade de diagramação espacial. Contudo, esta formatação das sensações não
consegue evitar o que Massumi considera como outras regiões desse “iceberg”: “As
regiões imperceptíveis do iceberg são a intensidade da experiência da qual a exten-
sividade da experiência emerge” quando temos a experiência de algum aconteci-
mento. Em alguns momentos, provocados por afetos ou outros fatores essa “parte
do iceberg” se intensifica e atravessa uma espécie de padrão de diagramação espa-
cial que foi configurado anteriormente. O resultado disso é que temos a impressão
de um distúrbio. (MASSUMI, 2016)

Mas, por que essa investigação interessa ao designer? A crença de que nossa percep-
ção é fundamentalmente uma recepção passiva de uma imagem é um tabu ainda
hoje em vários estudos e esta noção precisa ser reavaliada nesta área da pesquisa e
do ensino do design.

333
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Além disso, outros importantes debates se somam a esse tabu, gerando ao que Massu-
mi (2017) denomina como “complexos de espetáculo-espectador” e a “estrutura opres-
siva”. Este autor realiza uma reflexão a partir das ideias do semiólogo Gregory Bateson,
e destaca que, ao se referir à noção de “enquadramento”, o aspecto visual e a lógica se
aproximam por uma longa tradição histórica com a dicotomia exclusão/inclusão:

“Em ambos os casos — o visual e o lógico — é uma questão de exclusão por inclusão. A moldura
do quadro inclui certo número de elementos visuais organizados como uma gestalt perceptual.
A inclusão na moldura coloca em primeiro plano as figuras pintadas que ali aparecem, realçan-
do-as contra o fundo formado por aquilo que a moldura exclui. Um enquadramento visual é
também um enquadramento lógico. É “uma instrução para o espectador de que ele não deveria
estender as premissas que obtém entre as figuras no quadro ao papel de parede atrás dele”.
(MASSUMI, 2014: 128)

Com o intuito de investigar e debater outros modos de pensar o design, o grupo


Imagem(i)matéria (Escola de Belas Artes | UFRJ) nasceu da necessidade de pesquisar
as relações entre linguagem e processos de criação no design visual e na arte. Sua in-
serção se justifica na atualidade, onde distintas redes de comunicação no cotidiano
contemporâneo constituem inumeráveis canais de expressão nos quais designers e
artistas apresentam suas ideias e suscitam reflexões. Esta conexão em redes permite
uma atuação profissional em campo extremamente ampliado, numa ruptura dos li-
mites projetais entre design e arte.

Limites do design e da linguagem


A relação entre desenho e gestos pode refletir diferentes formas de comunicação
silenciosa. No caso específico da cultura surda, o pesquisador Oliver Sacks (1998) no-
tou que a representação dos gestos foi explorada em manuais da língua de sinais de
modo a constituir formas linguísticas no nível da representação por imagem. “Uma
língua completamente visual”, assim descreve a língua de sinais no prefácio do livro
“Vendo Vozes”.

Para o surdo que vive no Brasil, a Língua Brasileira de Sinais pode ser apreendida
como sua primeira língua, contudo constitui desafio linguístico sua transposição
para o português pelas diferenças em diversos aspectos do nosso idioma falado.

Inicialmente, o contato do grupo Imagem(i)matéria com a comunidade surda (in-


cluindo os tradutores Português-Libras, professores e alunos ouvintes e surdos) nos
permitiu observar diferenças entre as reflexões sobre as imagens apresentadas ao
grupo formado por ouvintes e surdos.

Roland Barthes (2006) destacava essa questão ao pensar no sistema em que corpos
de significados implicam “por parte dos consumidores de sistemas (isto é, ‘leitores’),

334
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

diferentes saberes (segundo as diferenças de ‘cultura’)”. A observação de Barthes na-


quele momento visava explicar o porquê de uma mesma lexia (ou grande unidade
de leitura) ser”diferentemente decifrada segundo os indivíduos, sem deixar de per-
tencer a certa ‘língua’”. Para este autor, “vários léxicos - e, portanto, vários corpos de
significados - podem coexistir num mesmo indivíduo, determinando, em cada um,
leituras mais ou menos ‘profundas’”. Assim, mesmo quando pensamos sobre a estru-
tura da língua portuguesa, tal reflexão já nos permite evidenciar uma flutuação de
“corpos de significados” em diferentes momentos de leitura. Barthes enfatizava os
“sistemas mistos que envolvem diferentes matérias (som imagem, objeto e escrita
etc.)” (BARTHES, 2006: 44)

Considerando as nossas interpretações em determinadas cenas, o olhar mais espe-


cífico para detalhes nas imagens, os sentimentos provocados e o modo como as
diferenças entre as línguas (Português e Libras) permitiram outros entrelaçamentos
de leituras, favorecendo nossa curiosidade para essa investigação da cultura surda,
percebendo que as distinções do olhar e os corpos estavam também presentes na
aquisição da linguagem e as relações de afeto nela envolvidos (considerando, entre
outros aspectos, a oralidade e o gesto).

O cérebro não é um receptor passivo de informações através dos sentidos, mas um


buscador ativo de informações para confirmar ou refutar previsões. A neurociência
humana nos ensinou que nossas representações internas da realidade e, portanto,
as previsões com as quais abordam a experiência e a natureza dessas próprias ex-
periências são intrinsecamente multissensoriais. (Nossa tradução. PASCUAL-LEONE,
HAMILTON in: LEVENT, PASCUAL-LEONE. 2014: XIII)

Apesar das línguas de sinais explorarem a visão como principal sentido para um di-
álogo por meio de gestos, ao pensar na comunicação surda, por exemplo, destaca-
mos outras formas de estar e de agir no mundo, o que nos faz notar a importância
do estudo dessas sensações para além da representação e até mesmo da cognição.
Isso possibilita não apenas a valorização desse grupo, mas provoca reflexões sobre
as articulações entre gesto, palavra e imagem na nossa sociedade, de modo muito
mais complexo.

António Damásio (2018) observa que os humanos se distinguem de todos os outros


seres vivos “por criarem uma coleção espetacular de objetos, práticas e idéias conhe-
cida coletivamente como cultura”. As artes, a tecnologia e a ciência estão incluídas
nesta observação do autor que questiona a frequente imposição de uma ideia na
qual a linguagem verbal, a sociabilidade e o intelecto superior seriam responsáveis
fundamentais neste processo. Mais especificamente, Damásio destaca que senti-
mentos, “desde dor e sofrimento até bem-estar e prazer” são raramente invocadas
apesar de serem fundamentais como ponto de partida “na saga das culturas huma-
nas”. (DAMÁSIO, 2018: 8)

335
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Diante disso, os artefatos produzidos no âmbito do design são partícipes da cultura


e para além de constituírem exemplos de sua materialidade, ou objetos de consumo,
influenciam nas práticas e relações sociais humanas, envolvidos pelos sentimentos
diversos que podem suscitar. Embora imersos na complexidade da linguagem e da
língua, escapam a toda e qualquer forma de aprisionamento desta e encontram sua
expressão por meio das imagens que deles surgem e das sensações que provocam.

Neste sentido, nossas investidas teóricas se encontram com a prática do projeto, ten-
do em vista as ações no design/arte, na liberação das intenções de uso ou função.
Deste modo, as reflexões e fabulações são geradoras tanto de objetos para uso co-
tidiano quanto de trabalhos apresentados em exposições e mostras, obras que pro-
vocam o espectador a pensar sobre as relações possíveis entre língua/linguagem/
imagem, entre outras ideações, com características semelhantes às obras artísticas
de caráter visual, como instalações, vídeos, desenhos, artefatos e performances.

Em primeiro lugar, assumimos um exercício da teoria no âmbito do projeto e da cria-


ção. Não nos preocupamos somente com sua aplicação imediata ou seu uso como
justificativa para definições de etapas de projeto. Vemos em cada trabalho a possi-
bilidade de investigação daquilo que não se aplica de imediato. Ao revés, deixamos
aflorar deste exercício teórico o devaneio, o jogo, o encantamento diante do desco-
nhecido, para além de suas intenções de uso ou aplicação ao projeto ou às teorias
do design e da arte.

Entre muitos dos pontos de contato possíveis, nos dedicamos, por exemplo, a pen-
sar sobre a escrita alfabética, sua presença, na dinâmica que produz nos inúmeros
textos e palavras, que podem se expandir em possibilidades da escritura, como dinâ-
mica criadora, pertencente ao processo do designer e do artista em suas pesquisas
e na elaboração de seus trabalhos. Considerando, assim, em alguns momentos, que
esta escrita possa revelar a negação da própria palavra e da letra, transfigurando-se
em códigos diversos, gesto, movimento e transitoriedade de significados. Por meio
do estudo da língua, por exemplo, encontram lugar em nossos trabalhos, o exercí-
cio teórico e prático acerca das relações de significação, afeto e criação, no enfren-
tamento do aprendizado de uma nova língua, uma língua de gestos, neste caso a
LIBRAS, Língua Brasileira de Sinais.

Por outro lado, nos espanta que Língua Gestual Portuguesa (LGP), incluindo tanto a
datilologia quanto os sinais, se diferencie da Libras, levando à reflexão dos modos
como ocorrem as ligações entre o gestual, a língua, as expressões e afetos. Do ponto
de vista histórico, o fenômeno se deu pelo modo como aconteceu a institucionali-
zação das línguas de sinais nesses territórios. Em Portugal, no século XIX, quando o
rei D. João VI fundou um instituto para educação de surdos tendo como orientador
o sueco Per Aron Borg, enquanto no Brasil, há uma origem francesa do alfabeto em
LIBRAS, trazida pelo professor Édouard Huet. Assim, apesar das aproximações cul-

336
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

turais e da oralidade, portugueses e brasileiros tiveram matrizes diferentes em suas


línguas de sinais estabelecendo distinções que acabam por determinar outros mo-
dos e posturas na comunicação.

Tecnologia e olhares-gestos
Considerando os nossos dias atuais, temos a possibilidade de sermos mais capaci-
tados criativamente, liberados de algumas tarefas que são realizadas hoje pelas tec-
nologias, contudo, paradoxalmente, ao reduzir esse dinamismo do corpo em alguns
recursos quando usávamos as mãos, nos tornamos mais vulneráveis à depender das
formas empregadas pelo computador e pela lógica do raciocínio.

Erin Manning e Brian Massumi (2014) notam que as abordagens baseadas nos con-
ceitos de esquema corporal e conhecimento implícito são condicionados ao raciocí-
nio lógico. E, fomentados pelo raciocínio dicotômico e cartesiano, determinam pre-
viamente o dinamismo corporal. Sendo assim, o dinamismo do corpo é readequado
a uma “dependência de uma mentalidade central” expressa em forma lógica e ligada
ao elemento de “significado geral compartilhado pela linguagem”. A oposição bi-
nária entre a mente e o corpo só pode ser desestabilizada quando aceitamos “dizer
que o movimento incorpora nada além de si mesmo. O movimento nunca incorpora
nada. Apenas corpos, a qualquer momento”. (MANNING & MASSUMI, 2014: 38)

O gesto como movimento é então a evocação de outros raciocínios, a possibilida-


de de imaginar novas conexões. Sobre o que podemos pensar quando observamos
semelhanças e diferenças no dinamismo corporal e não somente em olhar um es-
quema corporal na lógica da comunicação? Que sentidos podemos evocar tendo
em vista um dinamismo corporal na sociedade brasileira e portuguesa, para além da
comunicação dos surdos ou da linguagem verbal e visual?

Em primeiro lugar, podemos dizer que pode-se pensar que esses códigos diversifi-
cados nos permitem uma construção diagramática (mapas), cujo objetivo não é a in-
terpretação ou a busca de um sentido global unificado, mas a produção dearranjos
com outras leituras possíveis.

A importância do design nos estudos dessa construção diagramática também se des-


dobram em questões que envolvem formas biológicas-mecânicas híbridas: o designer
já se relaciona com códigos culturais, formas, tecnologias e mecanismos que assu-
mem diferentes implicações e escapam de algum tipo de controle racional por serem
multifuncionais, multiculturais, interativas, atravessados por tecnologias, entre outros.
Deste modo, consideramos que as combinações e ações humanas, das cidades, das
sociedades e das máquinas superam nossas expectativas racionais interpretativas.

Por tais motivos, o objetivo deste estudo não visa se concentrar em recuperar equi-
valências culturais de tradução nessas comunicações, mas observar as inúmeras di-

337
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

ferenças e semelhanças que surgem nessas relações: ou seja, nos chamam a atenção
os detalhes que são evidenciados e produzidos por novos conjuntos e por remon-
tagem. Desenhos, palavras e gestos são como pontos de um mapa: aspectos quase
imperceptíveis das mudanças nas sociedades e na comunicação entre pessoas que
culturalmente pareciam estar sustentadas em uma mesma base sólida e constante,
que envolvem ramificações históricas, práticas sociais, entre outros aspectos, que
têm como elo de significância a Língua Portuguesa.

Preferimos chamar de pontos que formam essa constelação (mapa) que fundamen-
ta não apenas o reconhecimento do código por meio da realidade aumentada, mas
também se apresentam como gráfico. Um gráfico apresenta informações em um
espaço abstrato. Essas anotações-fragmentos trazem à superfície combinações que
não estão perceptíveis em um nível cognitivo ou podem afetar ou serem afetadas
por processos que ocorrem em espaços virtuais.

Um segundo ponto a ser destacado é que essas diferenciações e aproximações entre


gestos, palavras e imagens favorece um dinamismo que desestabiliza os hábitos da
linguagem e oferecem a exploração e descoberta das possibilidades poéticas. Um
desencadeamento de experimentações e expressão criativa a partir desse espectro
de elementos nos mapas, que fazem relação a características próximas, mas também
estão distantes entre si.

Desestabilização da comunicação ideal


Por fim, este trabalho visa, ainda, questionar discursos estabelecidos. Considerando
a lógica formal, pensa-se nas leis da significância que possui uma lógica nos sistemas
de comunicação cognitiva. A ideia é desestabilizar alguns tabus da Língua Portugue-
sa, que inevitavelmente se refletem em questões sociais e históricas. As expressões
cotidianas, os afetos, as máquinas, entre outros, são ações inevitáveis e que compõe
uma cena desafiadora às leis da significância. A escrita, o gesto e as imagens se insta-
lam e reverberam um processo em movimento, mas apesar de um material histórico,
não se limita aos significados convencionados como códigos para a comunicação.

As mensagens linguísticas portuguesa e brasileira oferecem uma rede de significan-


tes que sugerem uma ancoragem/direcionamento pelas leis da significância. Inte-
ressante pensar que a linguagem de sinais no Brasil (LIBRAS) e em Portugal (LGP)
apresentam distinções e dissociações, por não resultar de uma mesma fonte. Se con-
siderarmos a tradução por meio destas linguagens de sinais/gestos, nos distanciare-
mos das tradicionais aproximações culturais entre brasileiros e portugueses. Nessa
perspectiva, a comunicação desestabiliza nossas associações padronizadas e que,
na maioria das vezes, permanecem sustentadas por alguma informação direcionada
pela mensagem linguística, que codifica e evita a ambiguidade gerada pela imagem.

338
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Sendo assim, as dissociações da mensagem na linguagem de sinais e aproximações


da mensagem linguística nos permite pensar na complexidade e artificialidade em
atribuir significado a algum sentimento. A tentativa de expressar sentimentos pela
linguagem envolve inúmeros suportes (audios, livros, revistas, vídeos) e mensagens
(codificadas e não codificadas, considerando icônica, verbal, olfatos, mas também os
artefatos, entre outros).

Potenciais latentes
As organizações e redes e as imagens confeccionadas nos computadores, nos per-
mitem pensar em aproximações e distanciamentos entre Brasil e Portugal que an-
tes não era possíveis. Portanto, este entrelaçamento entre língua de sinais/gestos,
escrita e imagem fica mais evidente com os espaços multidimensionais, a partir da
visualização e operação disponíveis através da tecnologia. Ferramentas do design
como animações, desenhos, gráficos, cores, etc nos permite imaginar um sistema
mais complexo para além das relações do conhecimento ou experiência acumula-
dos pela narrativa Histórica, mas também pelos afetos gerados nas frágeis ações e
dinâmicas cotidianas, entre outros.

O design tem como característica ser interface, explorando no cotidiano aspectos


multisensoriais: o vídeo como captura de movimento, aspectos materiais e textu-
ras, a tipografia como estrutura da mensagem linguística, o desenho ou a fotografia
como mensagens icônicas, o diagrama como possibilidade do pensamento, entre
outros. Todos esses aspectos tornam o designer alguém com potencial transdutor
desses sentidos, mas também deve ser um potencializador de outras dinâmicas para
além dos suportes. Não se deve pensar no sentido de ser uma tradução que visa
restaurar um sentimento único “original”, mas por produzir potenciais latentes para
outras sensações e desdobramentos.

Agradecimentos: este trabalho não seria possível sem a parceria das professoras do
curso Letras-Libras Danielle Mendes e Georgina Martins e a participação dos alunos
do projeto de extensão Imagens em Diálogos Possíveis (EBA e Letras-Libras / UFRJ).

Referências
BARTHES, R. Elementos de semiologia. 16a ed. trad.: lzidoro Blikstein. São Paulo:
Editora Cultrix, 2006.

DAMÁSIO, A. A estranha ordem das coisas: as origens biológicas dos sentimen-


tos e da cultura. Trad.: Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

LEVENT, N.; Pascual-Leone, A. (Org.). The Multisensory museum: cross-discipli-


nary perspectives on touch, sound, smell, memory, and space. N.Y., Rowman &
Littlefield, 2014.

339
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

MANNING, E.; MASSUMI, B. Thought in the Act. Passages in the Ecology of Expe-
rience. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2014.

MASSUMI, B. A arte do corpo relacional: do espelho-tátil ao corpo virtual. Galaxia


(São Raulo, Online), n. 31, p. 05-21, abr. 2016.

MASSUMI, B. O que os animais nos ensinam sobre política. Tradução Francisco.


Trento e Fernanda Mello. São Paulo: n–1 edições, 2017.

SACKS, O. Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos. Tradução Laura Teixei-
ra Motta. São Paulo: Companhia das Letras. 1998.

340
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Maria Jose Martinez1 de Pison and


Trinidad Gracia2
Urban cyclists Mini-projections. Video graffiti and anti-
mapping
Urban cyclists Mini-projections. Video graffiti and anti-mapping

Resumen
El artículo pretende aportar algunas reflexiones sobre las prácticas artísticas de
proyecciones audiovisuales en el entorno urbano que están vinculadas con las
performances, el video graffiti portátil y las prácticas anti-mapping. Con estas
reflexiones queremos contextualizar el marco referencial y conceptual proyecto
que estamos llevando a cabo en las calles de la ciudad de Valencia.
Alejados de una proyección estática y de un ambiente uniforme, se pretende
tener otro tipo de relación con la ciudad y sus habitantes (espectadores) y crear
relaciones dinámicas dentro de la metrópoli contemporánea.
Palabras clave: Proyecciones audiovisuales, Bicicletas, Video graffiti, Anti-mapping

Abstract
The paper aims to provide some reflections on artistic practices of audio-visual
projections in the urban environment. These practices are linked to performances,
portable video graffiti and anti-mapping projections. With these considerations
in mind, we wish to contextualise the referential and conceptual framework of the
project that we are currently carrying out in the streets of the city of Valencia, Spain.
Rather than producing a static projection and a uniform ambiance, the aim is to
create different type of relationship with the city and its people (viewers) and to form
a dynamic relationship within the contemporary metropolis.
Keywords: Audiovisual projections, Bicycles, Video graffiti, Anti-mapping.

1 Visual artist, researcher in interactive digital media. She is Professor at the Universitat Politècnica de
València, teaches at the Master in Visual Arts and Multimedia UPV, and the Master in Contemporary
Technological and Performing Art at the Universidad del País Vasco. She is a founding member of the
Research Group Laboratorio de Luz UPV (1990), and a founding member of the cultural association
HackLab Pluton.cc (2009) based in Valencia.
2 Visual artist, professor at the Universitat Politècnica de València, she teaches image technologies at
the Faculty of Fine Arts in Valencia. She is a founding member of the UPV Light Laboratory Research
Group (1990).

341
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Introduction
In recent years, the practice of video mapping has expanded across many cities, with
large-scale image-light projections being cast over the irregular surfaces of façades
and monuments. Initially, this practice made a contribution to public art through its
strong element of social criticism, as in the case of the work of Krzysztof Wodiczko.
But over time, mainly on account of the spectacular nature of its expression, it has
evolved into a type of grandiose institutional event, using powerful projectors that
obscure everything else with their blinding light. A bombardment of dazzlingly bri-
ght images that hypnotize the public through their scale and impact, putting art at
the service of power. Guy Debord (1967) proclaimed that capitalist policies were
behind the transformation of urban life through the spectacle, where the commodi-
ty and capital become the mediated image.

Given our awareness of these large-scale manifestations, we are presenting a pro-


ject which aims to revive a more intimate and critical ethos. Smaller and fainter
flickering image-light projections insert themselves into the routine of life on the
street at night with mobile projections that move at a pedalling pace, accom-
panying the inhabitants, generating an ambiance of festivity or intrigue, appea-
ring from behind any corner without any prior invitation or announcement. The
aim of this project is to evoke a type of longing or desire, which Roland Barthes
described as “This longing to inhabit [...] it is fantasmatic, deriving from a kind of
second sight which seems to bear me forward to a utopian time or carry me back
to somewhere in myself.” (Barthes, 1999, p.41)

Other key elements of this proposal are bicycles and scooters, vehicles that are trans-
forming our way of getting around the city, because they provide a friendlier way of
travelling, less polluting and generally move at a more human pace. To this we can
add the symbolic nature of the bicycle, a vehicle that has historically offered a means
of emancipation for women since the time of the suffragettes, as pointed out by
Susan B. Anthony: “bicycling… has done more to emancipate women than anything
else in the world” (Bly, 1986). It also symbolizes a stand against polluting traffic emis-
sions, fumes, particles and noise. “Since 2013, more bicycles have been sold in Spain
than cars. What some then blamed on the economic crisis, seems to have become
a trend that has been maintained over time.” (Cabezas, 2017) Among these active
means of transport, which demand a physical effort by the traveller, such as walking
or cycling, the scooter has emerged as a popular non-polluting urban vehicle, its use
becoming increasingly widespread in many cities. Cycling and scootering is the way
in which we are intending to make these small gestures, which, like mobile fireflies,
project light-images in the form of ephemeral graffiti.

Neruda provides us, with a poetic perspective, an analogy between these vehicles
and insects:

342
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

[…] A few bicycles


passed
me by,
the only
insects
in
that dry
moment of summer,
silent,
swift,
translucent;
they
barely stirred
the air. (Neruda, 1997, p. 297)

These elements mingle together in the form of a migrating performance that roams
the streets to reclaim the urban public space. A directionless movement, with no fixed
destination, tracing luminous signals to create a playful and sensorial experience.

“It is one of the ironies of our age that now, when the streets have become the hot-
test commodity in advertising culture, street culture itself has come under siege.
From New York to Vancouver to London, police crackdowns on graffiti, postering,
panhandling, sidewalk art, squeejee kids, community gardening, food vendors are
rapidly criminalizing everything that is truly street-level in the life of a city” (Klein,
2000, p 311).

Figure 1. Némo (2003) Bike graffiti Paris

343
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Artistic References
“Illegibilities of the layered depths of a single place, of ruses in action and historical
accidents. The writing of these evocations is sketched out, ironically and fleetingly in
graffiti, as if the bicycle painted on a wall, an insignia of a common transit, detached
itself and made itself available for indeterminate tours”. (de Certeau, 2002, p. 200)

Némo often paints figures of bicycles riding through the city, surrounded by objects;
a black cat, a kite or a balloon, and a suitcase with their name signifying no-one in Latin.
The beam shining from the bicycle appears like a projection, and the style of his gra-
ffiti bears much in common with a certain everyday innocence breaking the routine
on the streets with simple actions.

The Laser Tag action (2006) by the Graffiti Research Lab is another reference for our
project. They employ video tracking techniques using an open source app deve-
loped by openFrameworks. The work requires viewers to take action, so that they
briefly become graffiti artists who, drawing with the aid of a laser, leave illuminated
ephemeral messages on the street, which the software transforms depending on the
parameters selected.

Figure 2. Drawing based on Laser Tag (2006) by Graffiti Research Lab

A pioneering example of interactive art is The Legible City (1988-1991) by Jeffrey Shaw.
In his work, the presence of a stationary bicycle invites the viewer to ride through a
virtual city, constructed from large three-dimensional blocks of text. Pedalling and
turning the handlebars, the viewer controls where they go and the speed at which
they travel through the legible town. A small monitor placed in front of the bike dis-
plays a map of the city, showing the current position of the cyclist.

344
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figure 3. Drawing based on The Legible City (1988-1991) by Jeffrey Shaw.

The video artists M-O-T-H send out invitations for their projections of small mobile
images to their neighbours. As part of their StreetLight action, they travelled through
the streets of North Kensington presenting a curious illuminated trail of treasures,
which consisted of a mix of stories, performances and guerrilla video type projects.
With the trail of visual clues, images and animations, M-O-T-H offered an alternative
portrait of the neighbourhood, based on real stories and anecdotes told by the local
residents using street graffiti techniques

Figure 4. Image based on StreetLight (2008) by M-O-T-H

Another example of graffiti digital dynamization is Mule (2019) by Escif and n3m-
3da, performed for the 2019 Lyon Biennial. Using a physical device that generates
a local network linked to an App, the residents are able to interact autonomously
and anonymously with each other by introducing augmented reality images or

345
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

texts into the areas of the neighbourhoods where the device is installed. This work
encourages sharing and aims to reactivate walls in several locations in Lyon as
places of free expression.

Fireflies - On the corner


Fireflies - On the corner is the project we are presenting. It is a hybrid urban perfor-
mance, which projects graphic animations generated by the Mosaic software (Maz-
za, Martínez de Pisón, 2019) that reacts with the sound and casts the images as small
illuminated signs onto the streets.

Mounted on bicycles and scooters that are modified to accommodate the projectors
and a portable audio system with Bluetooth connection, the performers ride around
the streets of Valencia’s Carmen neighbourhood.

Figure 5. Mosaic Patch with animation programming

Reading The Survival of the Fireflies (Didi-Huberman, 2012) inspired us to develop


this project, imagining the bikes and scooters to be like those insects mentioned
by Neruda; resilient fireflies whose light projects images on the walls of the building
façades in the neighbourhood. “the fireflies have disappeared in the dazzling bri-
ghtness of the “fierce reflectors” of politics shows, football stadiums and television
studios.” (Didi-Huberman, 2012, p. 22)

346
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figure 6. Fireflies - On the corner (2019)

The images are not projected onto the walls or surfaces in the same place, rather
they mutate over a fluctuating path, moving in no preordained manner, so that the
public/viewers capture a fleeting view of the projections. It is a practice of transien-
ce, with the images escaping, allowing little more to be known about the projections
beyond an ephemeral experience.

These urban performances were not produced in silence, although neither was the-
re a thundering noise. The projections were accompanied by the sound of On the
corner by Miles Davis. When the album was released in 1972, critics dubbed it “the
most hated album in jazz” (Tinge, 2007), and was subject to relentless criticism that
caused it to go underground until 1990, when it became an iconic work for many
young musicians, and today it is considered a precursor to funk, post-funk, electro-
nica and hip hop.

A video recording of one of the performances at https://vimeo.com/341859409

Conclusions
Starting with the earliest research into questions around the relationship betwe-
en bicycles, video graffiti and urban performances, we began to experiment on
the streets of the city. In conclusion, combined with the expectation of future
work, we wish to highlight that these small practices have opened up for us not
only opportunities for expression, but also a reencounter with basic experien-
ces that at one time propelled us and which the frenetic course of our routines
crystallized into pupas, but which that have metamorphized into new illumina-

347
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

ted fireflies. New ideas, paraphrasing the above-mentioned reference made by


Roland Barthes, “seem to bear us forward to a utopic time or carry us back to
somewhere in ourselves”.

“Admirable dialectical vision, on the one hand: ability to recognise in the smallest
firefly a resistance, a light for all thought. Non-dialectical desperation on the other:
the inability to find new fireflies once we have lost sight of the former ones –the «fi-
reflies of youth»” (Didi-Huberman, 2012, p 51)[translator’s translation]

As further work we are currently developing another urban performance entitled Un-
derground Sky, in which the performances record images of the sky and the ground,
which are then sent to a server where a program creates compositions with the ima-
ges. These are then streamed to other performances that subsequently project them.

Acknowledgements
This project has been made possible thanks to the Agencia Estatal de Investigaci-
ón of Ministerio de Ciencia, Innovación y Universidades support for the project De-
sarrollo de sistemas interactivos para la generación y proyección de imagen-luz y
sonido: revisión de su incidencia en arte público. Ref. HAR2017-87535-P-AR , and
the Generalitat Valenciana’s support for the project Ciclope. Visualización creativa de
sonido basada en propiedades perceptuales del sonido aplicada a la realización de
eventos audiovisuales en directo. Ref. GV/2017/028.

We would like to thank the research group Laboratorio de Luz of the Universitat
Politécnica de Valéncia for their support to this project.

References
Barthes, Roland. (1999). Camera Lucida. Reflections on Photography. Farrar, Straus
& Giroux Inc.

Bly, Nellie. (1890). Champion Of Her Sex: Miss Susan B. Anthony. In The New York
World, 2 February de 1896. New York: Pictorial Weeklies.

Cabezas, Dani. (2017). Así mejora la bici tu ciudad. En eldiario.es #16. Movilidad
Sostenible. La ciudad civilizada. (iBook).

de Certeau, Michel. (1984). The Practice of Everyday Life. University of California Press.

Debord, Guy. (1967) La sociedad del espectáculo. Recovered on 10 July 2019, from
http://serbal.pntic.mec.es/~cmunoz11/Societe.pdf

Didi-Huberman, Georges. (2012). Supervivencia de las luciérnagas. Madrid: Abada.

348
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Klein, Naomi. (2000) Reclaim the Streets. In No logo. Great Britain: Flamingo.

Mazza, Emanuele; Martínez de Pisón, María José. (2019). Mosaic, an openFrameworks


based Visual Patching Creative-Coding Platform. In International Conference
on Live Coding. Recovered on 15 July 2019, from https://iclc.livecodenetwork.
org/2019/papers/paper50.pdf

Neruda, Pablo. (1997). Ode to Bicycles. In Pablo Neruda. Antología fundamental.


Santiago de Chile: Andrés Bello.

Tingen, Paul (2007). The most hated album in jazz. The Guardian. Recovered on 18
July 2019, from https://www.theguardian.com/music/2007/oct/26/jazz.shopping

349
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Monica Tavares1, Priscila Guerra2, Juliana


Henno3, Marcelo Yamanoi4 and Carol
Medina5
Desafios e práticas no âmbito de um laboratório universitário
de fabricação digital em apoio a prática artística
Challenges and practices within a digital manufacturing laboratory of a university
in support of the artistic practice

Resumo
Em um espaço de dez anos, laboratórios de fabricação digital – inicialmente dedi-
cados a engenharia e desenho industrial – vêm se proliferando e ampliando sua
abrangência para áreas diversas em que a prática experimental como meio para
criação é elemento focal. Enquanto alguns destes laboratórios permitem o acesso
livre a seus equipamentos ou, de modo diverso, são privados, outros são exclusiva-
mente voltados para o suporte a atividades universitárias. O presente artigo tem
por finalidade destacar a relevância da implantação de laboratórios de fabricação
digital para o ensino, pesquisa e extensão, em contexto artístico acadêmico, com
apresentação de caso específico do ModelaFab, Laboratório de Modelagem e Fa-
bricação Digital do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Em primeiro lugar, apresentare-

1 Monica Tavares é docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da ECA-


-USP, bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 do CNPq, líder do Grupo de Pesquisa em Arte, Design
e Mídias Digitais (GP_ADMD) da ECA-USP, vinculado ao CNPq, professora aposentada do Departa-
mento de Artes Plásticas da ECA-USP, mbstavares@usp.br.
2 Priscila Guerra é mestre em Artes Visuais pela ECA/USP (2017). Bacharel e licenciada em Artes Vi-
suais pela UNICAMP (2013). É professora temporária no curso de graduação em Artes Visuais da
ECA-USP, Edital 14/2018/ECA. priscilaguerra06@gmail.com.
3 Doutora e Mestre em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP). Graduada em
Desenho Industrial pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). É vice-líder do grupo de pes-
quisa GP_ADMD (Arte, Design e Mídias Digitais) da ECA-USP. julianahenno@gmail.com.
4 Marcelo Yamanoi é graduando em Artes Visuais com Habilitação em Escultura pela Escola de Co-
municações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Monitor do ModelaFab, Laboratório de
Modelagem e Fabricação Digitais do CAP-ECA-USP, com bolsa PUB/USP 2018-2019.
5 Carol Medina é graduanda em Artes Visuais com Habilitação em Multimídia pela Escola de Comu-
nicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Monitora do ModelaFab, Laboratório de
Modelagem e Fabricação Digitais do CAP-ECA-USP, com bolsa PUB/USP 2018-2019.

350
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

mos os desafios decorrentes da implementação de um laboratório universitário


de fabricação digital; em segundo lugar, exporemos o processo de instalação do
ModelaFab, sua estrutura e as atividades nele – até aqui – desenvolvidas.
Palavras-chave: Fabricação digital, Ensino, Pesquisa, Extensão, Artes Visuais.

Abstract/resumen/resumé
In a period of ten years, digital manufacturing laboratories - initially dedicated to en-
gineering and industrial design - have been proliferating and expanding their scope
for a variety of application areas in which experimental practice as a medium for cre-
ation is a focal element. While some of these laboratories allow free access to their
equipment or are otherwise private, others are exclusively focused at supporting uni-
versity activities. This article aims to highlight the relevance of the implantation of dig-
ital manufacturing laboratories for teaching, research and extension, in an academic
artistic context, by the presentation of ModelaFab, a Modeling and Digital Manufac-
ture Laboratory that is part of the Department of Fine Arts of the School of Commu-
nications and Arts of the University of São Paulo (ECA-USP). In the first place, we will
present the challenges arising from the implementation of a university laboratory of
digital manufacturing; secondly, we will expose the process of installing ModelaFab,
its structure and the activities there developed up to now.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: Digital Manufacturing, Teaching, Research, Ex-
tension, Visual arts.

Desafios inerentes a laboratórios universitários de fabricação digital


A sociedade digital funciona com base em princípios e inovações desenvolvidos
em laboratórios de pesquisa distribuídos em todo o mundo. Há uma grande pro-
liferação de laboratórios de mídias e, como acrescenta Tanaka (2011), eles podem
ser classificados em laboratórios industriais, laboratórios de arte, laboratórios uni-
versitários e laboratórios incorporados em comunidades locais. O autor lembra
que não há uma definição única para os laboratórios vinculados às mídias digitais
e entende que, com a rápida democratização da tecnologia, a relevância social e o
propósito dos laboratórios de mídias mudam de um enfoque puramente tecnoló-
gico para um viés social.

Tal diversidade de espaços também ocorre no âmbito dos laboratórios de fabrica-


ção digital. Guardando especificidades inerentes às atividades neles desenvolvidas,
esses locais podem ser também denominados como FabLabs, MakerSpaces, Hacke-
rSpaces, etc; todavia, o desafio premente desses espaços colaborativos é estimular a
criatividade e a inovação, por meio da troca e do compartilhamento de informações,
conhecimento e experiência.

351
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Apesar de inicialmente serem utilizados por áreas como engenharia e desenho in-
dustrial6, visando principalmente o desenvolvimento de protótipos, os laboratórios
de fabricação digital podem ser também considerados como espaços para produ-
ção criativa ligados às mais diversas áreas, tais como artes, arquitetura, design, enge-
nharia, etc. Esses locais proporcionam oportunidade de experimentação de novos
materiais, ideias e métodos no ato de projetar e representar um determinado objeto.
Eles utilizam tecnologias digitais e analógicas para a difusão de habilidades técnicas
e a criação de novos produtos.

No caso dos laboratórios de fabricação digitais vinculados a universidades, estes são


locais em que atividades de ensino, pesquisa e extensão se desenvolvem; tais ações
se viabilizam por meio da troca de conhecimento entre os seus usuários.

O interesse pela prática criativa nestes espaços pode ser atribuído ao movimento
maker que se iniciou fora do sistema universitário, e teve como fundamento a cultura
do Do-It-Yourself (DIY), cujos três princípios básicos são os seguintes: a) uso de fer-
ramentas digitais para criação de projetos e prototipagem de novos produtos (DIY
digital); b) compartilhamento de projetos e colaboração online com outras comuni-
dades; c) uso compartilhado de arquivos-padrão, possibilitando o envio de projetos
para fabricação em serviços de produção comercial (Anderson, 2012, p.21).

Atualmente, pesquisadores diversos retratam a atitude das comunidades DIY como


anti-consumistas, rebeldes e criativas, privilegiando uma tendência a produzir em
vez da vocação por simplesmente comprar (Maldini, 2016, p.142 – a partir de Ku-
znetsov e Paulos, 2010). Segundo a autora, o desenvolvimento do movimento DIY
digital tem sido acompanhado por um vasto discurso ideológico, visível principal-
mente na mídia popular, mas também influenciando a produção acadêmica.

Por exemplo, como diz Anderson (2016, p. 25), a personalização e a produção em


pequenos lotes não são mais impossíveis, são, na verdade, o futuro. Anderson (2012)
anuncia uma “nova revolução industrial”, baseada, conforme Maldini (2016, p. 142),
na possibilidade de substituição do modelo tradicional de produção em massa por
um sistema complexo e orgânico, no qual os usuários podem criar seus próprios
projetos, podem fabricá-los em escala doméstica e compartilhá-los online.

Todavia, a autora (2016, p. 143) ressalta que, apesar de o modelo de DIY digital au-
mentar certamente a agência dos usuários e lhes dar autonomia em relação aos

6 Conforme Henno (2016, p.75), atualmente enquanto a Engenharia Mecânica tem produzido par-
tes de motores metálicos para as indústrias espacial e automotiva, a Engenharia Civil com a Arqui-
tetura vêm produzindo até casas inteiras por meio da fabricação digital. Outra área que se beneficia
com a fabricação digital é a Odontologia, com a realização de coroas dentárias personalizadas para
a estrutura bucal. Também na Medicina, a fabricação digital tem produzido um grande impacto, com
a produção de implantes, próteses e medicamentos.

352
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

fabricantes – presumivelmente resultando em uma produção material muito mais


focada nas suas preferências e necessidades individuais – há muitas outras expec-
tativas que emergem desse cenário. A partir de uma pesquisa etnográfica, entre-
vistando pessoas que usaram ferramentas de fabricação digital para produção de
objetos para uso próprio nos últimos cinco anos, Maldini chega às seguintes consi-
derações: a) não há substituição dos objetos produzidos em massa pelos objetos da
produção DIY digital; em vez disso, gera-se um novo tipo de produto, aumentando
a precisão e a relevância do DIY; b) ocorre por parte dos criadores uma valorização
e uma identificação com os objetos produzidos; e c) esse forte apego ao projeto, no
entanto, não implica que os resultados materiais sejam insubstituíveis (e, portanto,
mais duráveis); pelo contrário, os criadores consideram que seus objetos podem
facilmente ser substituíveis.

Maldini (2016, p. 154) ainda afirma que os sentimentos descritos pelos participan-
tes da pesquisa em relação à sua experiência parecem intimamente relacionados ao
sentimento de “fluxo”, descrito por Mihaly Csikszentmihalyi (1991). Ao fazer as coisas
acontecerem, em vez de serem comandadas por agenciamentos externos, as pesso-
as, de certa forma, sentem-se no controle de suas vidas. Para a autora, este é o real
valor do DIY digital: enfim, capacita os usuários a satisfazerem suas necessidades de
maneira autônoma, resultando em uma cultura material, diversa e de “escala huma-
na”, propiciando sentimentos de prazer e realização resultantes da ação. No entanto,
mesmo considerando esse impacto positivo, Maldini ainda observa que se deve ter
em mente as implicações da popularidade dessa tecnologia para o meio ambiente,
uma vez que tal tecnologia implica uma produção de material facilmente acessível e
distribuível (cada vez mais crescente)7.

Ademais, sem perdermos de vista as implicações antes referidas, tem-se ainda que,
no âmbito das universidades, tais espaços podem, segundo Barrett et al (2015),
responder à necessidade do estabelecimento de retroalimentações entre teoria e
prática, fornecendo meios extra-curriculares para que os alunos participem de mais
projetos práticos e desenvolvam uma grande variedade de habilidades. Segundo o
autor, os espaços makers vão além do ambiente tradicional de oficinas, oferecendo
acesso a equipamentos de prototipagem rápida e espaços de design conceitual. Po-
dem, além disso, servir como complemento para os cursos (de graduação e pós-gra-
duação), trazendo benefícios inerentes à habilidade na construção de modelos físi-
cos, assim como à instauração de ambientes de aprendizagem informais, também
abertos à comunidade.

7 Alinhado à preocupação com o meio ambiente, propõe-se no movimento DIY expandido, a mu-
dança do “fabricar” para o “reparar” (Bidoret, 2014). Nesse sentido, a figura do maker como indivíduo
“faz tudo”, seria atualizada para fixer (reparador), ou remaker (refazedor), pois este reutilizaria objetos
e produtos fabricados a partir de modificações, recontextualização e combinações.

353
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Já sob o ponto de vista da prática desenvolvida nos laboratórios de fabricação di-


gital, cabe ressalvar a sua importância para a educação, muito bem explicitada por
Blikstein (2013, pp.206-207). Essa relevância se sustenta, conforme o autor, na assun-
ção de que a educação deve ser mais experimental e conectada a objetos do mun-
do real, ideia originalmente atribuída a John Dewey, mas também a muitos outros
estudiosos e inovadores como Dewey (1902), Freudenthal (1973), Fröbel e Hailmann
(1901), Montessori (1964, 1965) e von Glasersfeld (1984).

Na mesma linha, Blikstein (2013, pp.206-207) refere a contribuição de Freire, em par-


ticular, a que critica a abordagem da “educação bancária” da escola (Freire, 1974, p.
57) e a descontextualização do currículo (Freire, 1974), assim como a colaboração da
noção de construcionismo de Seymour Papert (1980), que se baseia no construtivis-
mo de Piaget. Na perspectiva de uma educação experimental, o construcionismo
preconiza a ideia de a construção do conhecimento acontecer de modo fluente nas
situações em que os alunos constroem, fazem e compartilham publicamente os seus
objetos. Assim sendo, ao defender o uso de computadores na educação, as razões de
Papert estão longe de ser de raiz tecnocêntrica, mas sim, são entendidas a partir da
noção de ferramentas emancipatórias, que colocam os materiais de construção nas
mãos de estudantes. Enfim, essas máquinas protéicas, que permitem aos alunos pro-
jetar e construir, atendem a muitas formas de trabalho, expressão e construção. Como
complementa Blikstein (2013, p.207), a qualidade, inerente à tecnologia, de camale-
onicamente se adaptar, permite o reconhecimento e a adoção de diferentes estilos
de aprendizagem e epistemologias, gerando um ambiente de convívio no qual os
alunos podem concretizar suas ideias e projetos com intenso envolvimento pessoal.

Contudo, por mais encantadoras que sejam as possibilidades do continuum entre


projeto e produção (Kolarevic, 2003, p. 10), deve-se estar atento a distintos cená-
rios (negativos e positivos) levantados por Blikstein (2013, pp.210-219) e relativos
à utilização da fabricação digital na educação. A seguir, não desconsiderando que
o discurso desse último autor se circunscreve ao âmbito da escola, acreditamos ser
possível transpor os principais desafios a se considerar nas atividades desenvolvidas
em um laboratório de fabricação digital no contexto da universidade. Os cenários
serão, aqui, retratados de maneira sintética e destacando aspectos, tomados em re-
lação ao âmbito universitário de um curso de artes visuais.

O primeiro cenário diz respeito aos perigos de se privilegiar um uso banalizado dos
equipamentos, prática em que o produto se sobressaia em relação ao processo. Tal
fato demanda dos educadores a necessidade de se esquivar dos projetos de de-
monstração rápida e levar os alunos a empreendimentos mais complexos.

Não havendo uma única e certa maneira de responder ao problema enunciado, do que
decorre uma prática exploratória para alcance da solução do problema, o segundo ce-
nário se refere ao potencial de os laboratórios de fabricação digital proporcionarem um

354
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

ambiente para experiências viscerais de design, que podem levar a níveis de envolvi-
mento tanto de frustração quanto de excitação, normalmente não comuns à experiên-
cia cotidiana na universidade.

O terceiro cenário corresponde ao poder do trabalho interdisciplinar, desenvolvido


em um laboratório de fabricação digital. As fronteiras artificiais entre disciplinas são
completamente reconfiguradas; por exemplo, a música e a robótica podem se tor-
nar estreitamente relacionadas; tal riqueza resulta em um ambiente intelectual mais
diversificado e acolhedor. O professor é muito mais um facilitador.

O quarto, se relaciona à aprendizagem contextualizada em ciência, tecnologia, en-


genharia e matemática; e claro, devemos acrescentar as artes e a geometria compu-
tacional. Os alunos têm a oportunidade de se deparar com vários conceitos de uma
maneira altamente significativa, envolvente e contextualizada.

Por fim, o último e quinto desafio na prática de um laboratório de fabricação digital


no âmbito da educação é a intelectualização e a reavaliação de práticas familiares,
ao invés de sua substituição. Os alunos trazem suas próprias práticas, experiências,
repertórios, poéticas para o laboratório (artesanato, construção, carpintaria, etc); e,
sobretudo, tais práticas devem ser valorizadas. A maleabilidade dos equipamentos e
o espaço pedagógico em laboratório viabilizam o aumento e o acolhimento de tais
práticas, gerando um ambiente que valoriza múltiplas formas de trabalho.

Portanto, considerando as implicações até aqui expostas inerentes a um laboratório


de fabricação digital, a nossa intenção, a seguir, é apresentar o ModelaFab, Labo-
ratório de Modelagem e Fabricação Digital do Departamento de Artes Plásticas da
ECA-USP, destacando atividades nele desenvolvidas que atenderam ao clássico tripé
das atividades universitárias: ensino, pesquisa e extensão.

Do ModelaFab
O Laboratório de Modelagem e Fabricação Digital – ModelaFab, do Departamento
de Artes Plásticas da ECA-USP – iniciou suas atividades no ano de 2013. Naquele
momento, localizava-se no prédio do Departamento de Artes Plásticas. Contudo,
em razão da inadequação de espaço físico, as suas atividades eram bem restritas,
sendo o seu uso limitado somente às disciplinas de representação gráfica do cur-
so de Artes Plásticas. Primeiramente, com verba proveniente do Convênio Pró-E-
quipamentos – Edital CAPES nº 25/2011 – foi adquirida máquina a laser de corte
plano. Posteriormente, também com auxílio proveniente do Convênio Pró-Equi-
pamentos, mas do Edital CAPES Pró-Equipamentos nº 024/2012, foi viabilizada a
compra de outros equipamentos vinculados à tecnologia de impressão 3D e fresa-
gem digital. Mais recentemente, em agosto de 2018, o Laboratório de Modelagem
e Fabricação Digital passou a se localizar no Espaço das Artes (EdA), da Universidade

355
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

de São Paulo (USP), onde foi possível a distribuição adequada de todos os equipa-
mentos em um único espaço.

O ModelaFab é um espaço voltado para o desenvolvimento de projetos de artes e


design a partir da utilização das técnicas de fabricação digital. O processo de elabo-
ração de projetos envolve inicialmente a produção de modelos digitais por meio de
programas de desenho bidimensional e tridimensional, como por exemplo: Inksca-
pe, Illustrator, AutoCAD – para estruturas 2D; Blender, 3ds Max e Rhinoceros – para es-
truturas 3D. Esses programas integram uma etapa do processo da fabricação digital
chamada Desenho Auxiliado por Computador ou CAD (Computer Aided-Design). Os
objetos e estruturas modeladas, visualizadas no computador, contudo impalpáveis,
podem se tornar objetos físicos e adquirir outras materialidades. Para que isso ocor-
ra, programas intermediários na comunicação entre desenhos bi e tridimensionais
e máquinas (cortadora a laser, impressoras 3D e fresadora digital) são utilizados. Es-
ses programas constituem etapa de Manufatura Auxiliada por Computador ou CAM
(Computer Aided Manufacturing). Por meio do CAM, é possível determinar parâme-
tros de como o desenho será realizado mecanicamente. Normalmente esses progra-
mas são específicos para os determinados tipos de marcas de máquinas.

Para viabilizar a representação física de um objeto, o CAM gera um código deno-


minado G-code, que é uma linguagem utilizada para a programação de controle
numérico. Desse modo, são determinadas as coordenadas de operação mecânica
das máquinas, que funcionam, assim, por Comando Numérico Computadorizado ou
CNC (Computer Numerical Control). Essas três etapas realizam o processo de transfor-
mação de uma forma impalpável em palpável.

O ModelaFab contém três tipos de tecnologias de controle numérico computado-


rizado, com as quais é possível realizar projetos por meio de processos diferentes
(cada projeto requer avaliação sobre o melhor processo e maquinário a ser utilizado):

Processo subtrativo: nesse processo, conforme o próprio nome sugere, há remoção


de material, em método semelhante ao entalhe artesanal (Kolarevic, 2001, p.271). A
fresadora CNC é utilizada nesse processo, pois permite esculpir blocos de material
com espessuras variadas. A ferramenta de corte utilizada é a fresa, que realiza perfu-
rações e cortes laterais, o que difere da broca, muito semelhante em formato, contu-
do, que realiza operações em uma única direção, como perfurações com furadeiras.

Existem fresadoras com formatos e finalidades diferentes. O ModelaFab possui


uma fresadora modelo de grande formato (Figuras 1a, 1b), que permite a utiliza-
ção de uma variedade maior de materiais8, além d para a produção de objetos de
arte e design.

8 Alguns exemplos de materiais são MDF, Compensado, Isopor, entre outros.

356
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figuras 1a (detalhe), 1b (visão geral). Fresadora CNC Router modelo Raptor 1313. Laboratório de
Modelagem e Fabricação Digitais (ModelaFab), Espaço das Artes (EdA), Universidade de São Paulo
(USP), São Paulo. Fonte: Equipe ModelaFab

Processo 2D: nesse processo, realiza-se corte controlado numericamente em duas


dimensões. Máquinas como cortadora a jato d’água, plotter de recorte e cortadora a
laser são exemplos que executam esse processo (Kolarevic, 2001, p.269). O Modela-
Fab conta com um modelo da marca Ruijie Laser (Figuras 2a, 2b).

Figuras 2a (detalhe), 2b (visão geral). Cortadora a Laser Ruijie Laser, modelo RJ-1060.
Laboratório de Modelagem e Fabricação Digitais (ModelaFab), Espaço das Artes (EdA),
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo. Fonte: Equipe ModelaFab

357
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Processo aditivo: materiais são acrescentados camada a camada para se formar o ob-
jeto. As impressoras 3D realizam esse processo. Dentre diversos tipos de impressão
3D, o sistema FDM (Fused Deposition Modeling), modelagem por fusão e deposição
de material, é o mais comum. As opções de material podem variar dependendo do
modelo de impressora com a qual se trabalha, contudo, dois tipos de plásticos são
os mais comumente utilizados: ABS (acrilonitrila butadieno estireno), termoplásti-
co resistente, derivado do petróleo (Micallef, 2015, p.99); e PLA (ácido poliláctico),
termoplástico biodegradável, que possibilita ter uma riqueza de detalhes (Micallef,
2015, p.99). O ModelaFab possui dois modelos grandes e um pequeno de impresso-
ras 3DCloner (Figuras 3a, 3b).

Figuras 3a (detalhe), 3b (visão geral). Impressoras 3DCloner modelo ST e um dos computadores


disponíveis no espaço. Laboratório de Modelagem e Fabricação Digitais (ModelaFab), Espaço das
Artes (EdA), Universidade de São Paulo (USP), São Paulo.Fonte: Equipe ModelaFab

Estrutura do ModelaFab
O ModelaFab possui máquinas anteriormente referidas: uma fresadora CNC Router,
modelo Raptor 1313, uma cortadora a laser Ruijie Laser, modelo RJ-1060, duas im-
pressoras 3DCloner, modelo ST e uma impressora modelo DH. Também possui um
Kit Arduino como componente eletrônico. Em questões de infraestrutura, apresenta
três computadores com diversos software instalados (Inkscape, Illustrator, Blender, 3ds
Max, Arduino, entre outros), mesas, dois armários para armazenar ferramentas, ma-
teriais e equipamentos.

A partir da configuração do espaço físico do Laboratório de Modelagem e Fabricação


Digitais é organizada a dinâmica de funcionamento, que envolve a composição de

358
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

uma equipe de trabalho composta por monitores (alunos da graduação do Depar-


tamento de Artes Plásticas da ECA-USP), supervisores e coordenadores (docentes do
CAP-ECA-USP). As atividades conduzidas pela equipe do ModelaFab abrangem o de-
senvolvimento das seguintes ações: elaboração de materiais de apoio e mostruários
de materiais e propriedades das máquinas, que auxiliam tanto a equipe quanto os
usuários – alunos, professores e participantes externos – na compreensão do funcio-
namento das tecnologias disponíveis, e o desenvolvimento da identidade e da comu-
nicação visuais, que caracterizam e organizam a utilização do espaço. Além de ativida-
des que envolvem a estrutura do Laboratório (Figuras 4a, 4b), propõem-se também o
oferecimento de disciplinas, workshops, e supervisão de projetos de usuários. Desse
modo, pretende-se iniciar um movimento contínuo de ensino, pesquisa e extensão
com as possibilidades de uso da fabricação digital em ambiente acadêmico artístico.
No tópico seguinte, demonstraremos resultados das principais atividades desenvol-
vidas no ModelaFab, quando já localizado no EdA, e realizadas entre os períodos de
Agosto de 2018 a Junho de 2019.

Figuras 4a (detalhe), 4b (visão geral). Estrutura e composição do laboratório. Mesas e cadeiras


disponíveis no espaço. Laboratório de Modelagem e Fabricação Digitais (ModelaFab), Espaço das
Artes (EdA), Universidade de São Paulo (USP), São Paulo.Fonte: Ministrantes da disciplina

Resultados das atividades sediadas no EdA

Ministração de disciplinas de pós-graduação


Em agosto e setembro de 2018, foi ministrada a disciplina “Arte e os Processos Digi-
tais de Fabricação” (CAP-5029), pelos professores Monica Tavares, Juliana Henno e
Gilbertto Prado. A disciplina pretendeu investigar como as tecnologias de fabrica-
ção digital vêm influenciando o desenvolvimento do processo criativo no contexto
da arte. Mais especificamente, visou promover análise crítica acerca de como tais

359
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

sistemas digitais podem potencializar a criação, com vistas a serem utilizados como
instrumento e forma inovadora de representação. Além do mais, o curso intentou
criar um foro de discussão sobre temas de investigação na confluência da arte e dos
processos digitais de fabricação.

O curso se desenvolveu a partir das seguintes atividades: aulas expositivas com discus-
sões em grupo sobre a bibliografia indicada; aulas práticas no ModelaFab; palestras de
artistas e pesquisadores convidados, com vistas a compartilharem informação sobre
tópicos do conteúdo proposto; seminários destinados a articular conhecimentos que
problematizem as relações entre arte e processos digitais de produção.

O curso se justificou dado ao incremento substancial do uso dos sistemas digitais


de fabricação no domínio da arte, concretamente no desenvolvimento de práticas
criativas mediadas pelo sistema CAD/CAM.

O uso do sistema CAD/CAM tem potencializado o surgimento de soluções criativas


inovadoras, que reivindicam consigo uma tendência à fabricação de objetos singu-
lares e customizados. Tal categoria de criação vem destacando uma vocação para
o processo de “manufatura digital” (digital craft), em que a prática artesanal vê-se
intrinsicamente aliada aos sistemas digitais de fabricação.

Ao partir de conteúdos específicos na confluência da arte e das tecnologias de fabri-


cação digital – o fluxo CAD/CAM e o processo de criação; a simulação e a fabricação
digitais no contexto das poéticas visuais; os sistemas de fabricação digital; produção
em massa x produção customizada; multiplicidade; FabLabs, MakerSpaces, HackerS-
paces; a “manufatura digital” (digital craft); sistemas paramétricos e sistemas genera-
tivos; a complexidade como instrumento de criação; as etapas do processo de pro-
dução: da criação à fabricação –, a disciplina procurou capacitar artistas e designers
para o emprego dessas tecnologias como instrumento de criação.

Dentre as atividades práticas realizadas pelos alunos da pós-graduação estão ex-


perimentos que dialogam com as diferentes tecnologias do laboratório. O primeiro
deles foi uma atividade de desenvolvimento de um algoritmo gerativo (não digital)
que sintetizasse as etapas de construção de uma forma. Para tanto, teve-se como
base o agrupamento de tiras de E.V.A., cortadas a laser. Nestas tiras, foram regis-
trados cortes, localizados em posições específicas e utilizados para referência de
codificação da sintaxe que deu origem ao algoritmo. A peça assim configurada foi
multiplicada (Figuras 5a, 5b) para geração de arranjos de elementos. A partir destas
configurações, geradas nessa primeira atividade, foi proposto um segundo exercí-
cio. Neste caso, os alunos utilizaram a ferramenta CAD para criar novas organizações
formais. Esta nova atividade se estabeleceu a partir de uma seleção formal – um
recorte realizado tendo em referência as estruturas geradas no primeiro exercício –,
e da qual decorreu uma superfície, necessariamente delimitada. Cada superfície re-

360
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

tratada sofreu sucessivas ampliações com uma determinada relação de semelhança,


assegurando-se a geração de formas semelhantes (aquelas que possuem ângulos
homólogos iguais e segmentos homólogos proporcionais), a serem dispostas umas
sobre as outras. Cada superfície semelhante, assim gerada, foi secionada na máqui-
na de corte a laser e empilhada para se obter uma tridimensionalidade (Figuras 6a,
6b). De modo a experimentar os processos relacionados com a modelagem 3D, na
terceira atividade, os participantes utilizaram um scanner 3D para obter a volumetria
de seu busto e posteriormente editá-la utilizando um software de tratamento de su-
perfície, antes de executar a impressão 3D (Figura 7). A modelagem 3D em ambiente
virtual também foi realizada na medida em que os participantes foram introduzidos
ao software TinkerCAD (Figura 8) e a partir daí puderam desdobrar a forma 3D obtida
em uma planificação bidimensional passível de ser cortada pela máquina de corte a
laser, e através de dobras e vincos recuperar a referência do formato original.

Figuras 5a (montagem), 5b (estruturas formadas). Arranjos de elementos seguindo definições


estabelecidas pelos participantes a partir da utilização de formas originalmente geradas pelo
agrupamento de tiras de E.V.A., cortadas a laser. Fonte: Ministrantes da disciplina

Figuras 6a (montagem), 6b (estruturas formadas). Exemplos de organizações formais gerados por


empilhamento de formas semelhantes, sendo coladas camada por camada.
Fonte: Ministrantes da disciplina

361
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 7. Bustos impressos em 3D.


Fonte: Ministrantes da disciplina

Figura 8. Construindo uma superfície modular no software TinkerCAD.


Fonte: Ministrantes da disciplina

Ministração de disciplinas de graduação


No primeiro semestre de 2019, foi ministrada a disciplina “Prática de Multimídia e
Intermídia II” (CAP-0280), pela professora Priscila Guerra. A proposta da disciplina foi
apresentar e discutir o processo criativo do artista, com a possibilidade de amplia-
ção de seu potencial com o uso da fabricação digital. De natureza prática, a maior
parte do curso foi destinada à orientação de trabalhos finais e, dessa forma, as aulas
foram dedicadas à elaboração de projetos, com etapas tanto de desenvolvimento
de protótipos, quanto de fabricação dos objetos finais. Aliado a isso, procurou-se
demonstrar de modo teórico-prático a possibilidade de se empregar a poética da

362
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

recodificação, mais especificamente, partiu-se da reutilização de estruturas simbóli-


cas com o objetivo de estimular combinações de processos, tecnologias, imagens e
objetos no âmbito da prática artística.

Para tanto, o curso foi estruturado em aulas expositivas com introdução à fabrica-
ção digital, e a processos de montagem, colagem e bricolagem (para cada processo
procurou-se abranger exemplos de trabalhos artísticos produzidos com a fabrica-
ção digital). As aulas expositivas foram distribuídas ao longo do curso, que também
promoveu aulas práticas visando desenvolver conhecimentos ligados à elaboração
de trabalhos com o auxílio da fabricação digital. Foi dado enfoque à cortadora a
laser, de modo a explorar, de forma aprofundada, soluções de planificação, encaixe e
empilhamento em exercícios, que pretenderam estimular a produção de estruturas
criativas, partindo do bidimensional ao tridimensional.

Conjuntamente, procurou-se conduzir aulas práticas (ateliês) com outras temáticas


focadas no auxílio do desenvolvimento dos projetos dos alunos, foram elas: a utili-
zação do Inkscape e LaserCut, Blender, ClonerGen3D e ClonerMake3D, Eletrônica e Pro-
gramação com Arduino (LED e potenciômetro). Houve documentação fotográfica
do processo de elaboração dos trabalhos, o que possibilitou verificar seu o aperfei-
çoamento no desenvolvimento dos processos criativos, assim como, assegurou-se o
aproveitamento das discussões realizadas em aulas expositivas, garantindo feedback
entre teoria e prática. De modo geral, os trabalhos se caracterizaram por conjuntos
de peças conceitualmente coerentes, que estabeleceram relações entre si; propuse-
ram mescla entre técnicas e tecnologias, e apresentaram acabamento aprimorado.

Cabe também salientar, que na etapa de desenvolvimento de protótipos, os alu-


nos se depararam desafiando as tecnologias (cortadora a laser e impressora 3D), no
sentido de criação de estruturas complexas, reforçadas pela escolha de materiais.
A série de tentativas e erros experienciada pelos alunos, particular desse momento
do curso, sugeriu diálogo com o segundo cenário de desafios a se considerar nas
atividades desenvolvidas em um laboratório de fabricação digital no contexto da
universidade, apresentado no primeiro tópico deste artigo.

Ministração de Workshops
O primeiro workshop oferecido pela equipe do ModelaFab ocorreu nos dias 22/04,
29/04, 06/05 e 13/05 de 2019, às segundas-feiras, das 14h às 16h, resultando em um
total de 8 horas de atividades.

O primeiro encontro “Introdução à Fabricação Digital” foi de ordem teórica, e teve a


intenção de apresentar os equipamentos e maquinários existentes no laboratório,
além de tecnologias e procedimentos complementares. Prezou-se por evidenciar os
primórdios dos laboratórios de fabricação digital, processos envolvidos (processo

363
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

2D, aditivo e subtrativo), e a dinâmica do sistema (CAD, CAM e CNC). Em seguida,


foram apresentados o espaço e as máquinas disponíveis no Laboratório, e exemplos
de artistas que utilizam as tecnologias demonstradas na criação de suas obras. Na
demonstração das possibilidades de elaboração de obras com a fabricação digital,
foi enfatizado o tempo de execução reduzido, precisão técnica e de acabamento, e
novas formas de conceber e executar projetos, que acarretam novas propostas de
envolvimento da percepção do público.

O segundo encontro “Estêncil com Cortadora a Laser” foi proposto com a intenção
de demonstrar a possibilidade de mescla de meios artesanais, de massa e digitais.
Foi introduzido o software livre Inkscape, assim como em todos os outros encon-
tros priorizou-se o uso de programas livres. Os participantes9 realizaram projetos de
estêncil que foram cortados a laser (Figura 9), e houve a possibilidade de discutir
adaptações nos desenhos (CAD). No segundo encontro também foi demonstrado
o funcionamento da fresadora CNC, com exemplo de corte de um círculo de 6cm
de diâmetro. Pelo fato de possuir uma complexidade maior em nível de execução, e
requerer profissionais qualificados no manuseio da máquina, não foram propostos
desenhos a serem cortados com essa tecnologia.

Figura 9. Resultado do workshop “Estêncil com Cortadora a Laser”, realizado no dia 29/04/2019 das
14h às 16h. Laboratório de Modelagem e Fabricação Digitais (ModelaFab), Espaço das Artes (EdA),
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo.Fonte: Ministrantes do workshop.

9 A primeira sequência de workshops oferecidos pela equipe do ModelaFab contou com 15 partici-
pantes inscritos, entre alunos e professores do CAP-ECA-USP e PPGAV ECA-USP.

364
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O terceiro encontro, “Modelagem 3D com Tinkercad”, apresentou o programa livre


online Tinkercad como interface simples e didática de modelagem tridimensional,
e propôs o desenvolvimento de peças pelos participantes. Também houve continu-
ação do segundo workshop com a aplicação do estêncil em papel kraft, conforme
apresentado na Figura 9.

O quarto encontro “Escaneamento e Impressão 3D” apresentou as propriedades da


impressora 3D, materiais utilizados, parâmetros que podem ser escolhidos e suas di-
ferenças, e foi utilizada uma peça modelo elaborada por um dos participantes, para
ser impressa durante o workshop. Em um segundo momento, foi realizada uma di-
nâmica de escaneamento tridimensional com o uso do aplicativo para smartphone
Android SCANN 3D, que permite retirar um conjunto de fotografias, que em seguida
são processadas sob um formato tridimensional (Figuras 10 e 11), passível de ser
exportado em formato aceito para leitura de programas CAD e CAM (.STL).

Figura 10. Processamento da sequência de imagens capturadas com o aplicativo para smartphone
Android SCANN 3D. Laboratório de Modelagem e Fabricação Digitais (ModelaFab), Espaço das Artes
(EdA), Universidade de São Paulo (USP), São Paulo. Fonte: Ministrantes do workshop.

365
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 11. Resultado tridimensional do processamento de imagens capturadas no aplicativo


SCANN 3D. O objeto foi posteriormente editado no programa Meshmixer da Autodesk. Laboratório
de Modelagem e Fabricação Digitais (ModelaFab), Espaço das Artes (EdA), Universidade de São
Paulo (USP), São Paulo. Fonte: Ministrantes do workshop.

As propostas temáticas dos workshops foram direcionadas para o campo artístico e


as atividades foram distribuídas entre a equipe do ModelaFab. Os resultados desse
conjunto de workshops foram satisfatórios, ao se notar o interesse dos participantes
no desenvolvimento das atividades, na exploração dos recursos e na possibilidade
de realização de estudos com/sobre a fabricação digital10. Os programas seleciona-
dos pela equipe para modelagem digital se mostraram apropriados, ao se conside-
rar a facilidade de uso em um primeiro contato com as tecnologias apresentadas.

Elaboração de material de apoio


A equipe do ModelaFab tem desenvolvido material de apoio e mostruário com pro-
priedades da cortadora a laser. Para o mostruário, foi elaborado um desenho padrão
a ser aplicado em todos os materiais para corte (Figura 12). Procura-se elaborar uma
estrutura passível de manipulação pelos usuários do espaço, de modo a identifica-
rem os materiais possíveis de serem cortados, dentre eles tipos de papéis, plásticos,
madeiras e tecidos. Junto a esse processo, tem sido elaborada uma planilha com
indicação de materiais cortados e suas propriedades, como cores e espessuras, além
de configurações de valores de potência e velocidade, para corte, e potência e velo-
cidade, para gravação, de linha e de área.

10 De modo geral, usuários têm demonstrado interesse em explorar as possibilidades das tecnolo-
gias do ModelaFab, e estão encaminhando projetos para supervisão da equipe com a intenção de
viabilizá-los no âmbito do ModelaFab.

366
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Esse material tem se mostrado útil como referência em aulas de disciplinas do Departa-
mento de Artes Plásticas da ECA-USP, conduzidas no espaço do laboratório, assim como
no primeiro conjunto de workshops ministrados nos meses de Abril e Maio de 2019.

Pretende-se dar continuidade na elaboração do mostruário da cortadora a laser com


a inclusão de novos materiais, e iniciar a elaboração dos mostruários da impressora
3D e da fresadora CNC.

Figura 12. Mostruário de materiais para a cortadora a laser, em elaboração. Laboratório de


Modelagem e Fabricação Digitais (ModelaFab), Espaço das Artes (EdA), Universidade de São Paulo
(USP), São Paulo. Fonte: Ministrantes do workshop.

367
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Identidade e comunicação visuais


O logotipo do Laboratório foi desenvolvido no programa Illustrator, assim como
sinalizações das máquinas, avisos gerais com regras de utilização do espaço, e QR
Codes para acesso ao Regulamento e manuais de uso da cortadora a laser, fresadora
CNC e impressoras 3D. O material de identidade e comunicação visuais foi afixado
no ambiente por meio de adesivos (Figura 13). Também foi criado email próprio para
o Laboratório, com endereço eletrônico modelafabdigitais@gmail.com. Essa conta
tem como finalidade auxiliar a equipe na organização de atividades do ModelaFab,
além de estabelecer contato com os usuários, tanto para realização de inscrições
em workshops, agendamento de supervisão de projetos, como para informações e
esclarecimento de dúvidas.

A criação de um template para inscrição de projetos foi elaborada, de modo a ser


preenchida pelos usuários que pretendem utilizar o Laboratório. Os projetos são
analisados e se aprovados serão agendados para acompanhamento da supervisão e
dos monitores do ModelaFab em sua execução.

Regulamento11 de utilização do espaço contendo a missão do ModelaFab, regras de


uso do espaço, uso dos equipamentos, materiais, documentação dos trabalhos rea-
lizados, crédito, equipe e lista de materiais para uso na cortadora a laser (permitidos
e não permitidos), deve ser lido e seguido pelos usuários.

11 O Regulamento ModelaFab (2019) contém informações a respeito de “regras de uso do espa-


ço”, em tópico com o mesmo nome, e estabelece em subtópico que: “Em ordem de hierarquia, a
prioridade para uso do ModelaFab é a seguinte: a) projetos de alunos do CAP-ECA-USP e do PPGAV
ECA-USP que estejam cursando disciplinas ministradas no ModelaFab; b) projetos de alunos do CAP-
-ECA-USP e do PPGAV ECA-USP que estejam em fase de conclusão de curso; c) projetos de alunos do
CAP-ECA-USP e do PPGAV ECA-USP vinculados a disciplinas em curso; d) projetos de professores e
grupos de pesquisa do CAP-ECA-USP e do PPGAV ECA-USP; e) projetos de alunos do CAP-ECA-USP e
do PPGAV ECA-USP que mantenham relação com suas respectivas áreas de pesquisa.”

368
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 13. Adesivos com logotipo, endereço de email, avisos gerais, manuais e regulamento do
laboratório, afixados em portas, paredes e maquinários. Laboratório de Modelagem e Fabricação
Digitais (ModelaFab), Espaço das Artes (EdA), Universidade de São Paulo (USP), São Paulo.
Fonte: Ministrantes do workshop.

Considerações finais
No tocante às atividades desenvolvidas no ModelaFab, constata-se que: a) no que
tange ao ensino, tem-se buscado integrar teoria e prática em fabricação digital, pro-
piciando, de forma contínua, um fazer que enfoque o fluxo entre a fase de projeto e a
fase de fabricação de objetos; b) no que diz respeito à pesquisa, sem desconsiderar o
fluxo referido anteriormente, tem sido meta dar a conhecer os modos específicos de
produção que exploram os recursos tecnológicos do ModelaFab com vistas a poten-
cializar a realização de pesquisas artísticas, dinamizando e amplificando a prática e
a reflexão sobre processos criativos; c) no que se refere à extensão, é meta assegurar
a difusão do conhecimento, relativo às tecnologias de fabricação digital e adquirido
com o ensino e a pesquisa; inicialmente, esta atividade já foi implementada por meio
de workshop e com recorte circunscrito à comunidade do Departamento de Artes
Plásticas da ECA-USP, contudo, intenciona-se ampliá-la com a realização de palestras
e cursos de curta duração abertos a comunidade USP e escolas de nível médio, com
a intenção de vir a cumprir de modo abrangente função pedagógica e social.

369
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Por fim, vale destacar que a equipe do ModelaFab deve sempre estar atenta aos cin-
co desafios, referidos por Papert (1980) e relativos às ações envolvidas no contexto
de laboratórios de fabricação digital: a) uso banalizado dos equipamentos; b) níveis
de envolvimento – de frustração ou excitação – trazidos pelos resultados obtidos no
desenvolvimento de projetos; c) potencialidade do trabalho interdisciplinar como
via para ampliar soluções; d) aprendizagem contextualizada em ciência, tecnologia,
engenharia, matemática, artes e geometria computacional, de modo a assegurar
abrangência de contextos; incorporação de demanda específica de usuários, valori-
zando repertórios e poéticas próprias.

Referências
Anderson, C. (2012). Makers: the new industrial revolution. New York: Random
House.

Barrett, T. W., Pizzico, M. C., Levy, B., Nagel, R. L., Linsey, J. S., Talley, K. G.; Forest, C. R.,
& Newstetter, W. C. (2015). A Review of University Maker Spaces. Proceedings of the
122nd ASEE Annual Conference & Exposition, June 14-17, 2015, Seattle, WA.

Bidoret, J. (2014, August). Bricolage, design, pratiques artistiques et numériques. DN-


SEP (VAE) – ESADHAR. Retrieved June 15, 2019, from https://accentgrave.net/bricoles.

Blikstein, P. (2013). Digital Fabrication and ’Making’ in Education: The Democratiza-


tion of Invention. In Walter-Herrmann, J., & Büching, C. (eds.). FabLabs: Of Machi-
nes, Makers and Inventors (pp.202-222). Bielefeld: Transcript Publishers.

Csikszentmihalyi, M. (1991). Flow: The Psychology of Optimal Experience. NY: Har-


per Perennial.

Dewey, J. (1902). The Child and Curriculum. Chicago, IL: University of Chicago Press.

Freire, P. (1974). Pedagogy of the oppressed. New York: Seabury Press.

Freudenthal, H. (1973). Mathematics as an educational task. Dordrecht: Reidel.

Fröbel, F., & Hailmann, WN. (1901). The education of man. New York: Appleton.

Henno, J. H. (2016). As correlações entre os sistemas generativos e a fabricação


digital no contexto das artes visuais. Escola de Comunicações e Artes / USP. Orien-
tadora: Monica Baptista Sampaio Tavares. São Paulo, SP.

Kolarevic, B. (2003). Architecture in the Digital Age: Design and Manufacturing.


1.ed. New York; London: Spon Press. Taylor & Francis Group.

370
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Kolarevic, B. (2001). Digital Fabrication: Manufacturing Architecture in the Informa-


tion Age. Modeling and Fabrication. Acadia. Retrieved May 29, 2019, from http://
papers.cumincad.org/data/works/att/81b8.content.pdf.

Maldini, I. (2016). Attachment, Durability and the Environmental Impact of Digital


DIY. The Design Journal, 19(1), 141-157. doi: 10.1080/14606925.2016.1085213. Re-
trieved June 10, 2019, from https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/1460692
5.2016.1085213.

Micallef, J. (2015). Beginning Design for 3D Printing. New York: Apress.

Montessori, M. (1964). The advanced Montessori method. Cambridge MA: Bentley R.

Montessori, M. (1965). Spontaneous activity in education. New York: Schocken


Books.

Papert, S. (1980). Mindstorms: Children, computers, and powerful ideas. New


York: Basic Books.

Regulamento ModelaFab. (2019). São Paulo. Retrieved June 22, 2019, from https://
drive.google.com/open?id=1PoHoq64ESid9zGsdsMERTgIsl4GlZipj.

Tanaka, A. (2011). Situating within Society: Blueprints and Strategies for Media Labs.
In Plohman, A. (Org.) et al. A Blueprint for a Lab of the Future. Eindhoven: Baltan-
Laboratories, 2011. pp. 12-20. Retrieved June 10, 2019, from https://research.gold.
ac.uk/14649/1/Atau-BlueprintFinal.pdf.

Von Glasersfeld, E. (1984). An Introduction to Radical Constructivism. In Watzlawick,


P. (ed.). The Invented Reality. New York: Norton.

371
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Priscila Arantes1
Museu Interface:
Um estudo de caso sobre o Museu Paço das Artes

Resumo
Museu Interface:um estudo de caso sobre o Museu Paço das Artes pretende, a
partir de uma abordagem transdisciplinar, discutir como algumas práticas mu-
seais criam interfaces mais expandidas com a realidade social. Museus nômades,
museus que criam práticas efetivas junto a comunidades bem como museus di-
gitais serão alguns dos tópicos abordados na presente apresentação. Utilizare-
mos, para tanto, como estudo de caso, o Museu Paço das Artes.
Palavras chaves: museus digitais, comunidade, interface, ativismo,arte contemporânea.

Abstract
Interface Museum: a case study on the Paço das Artes Museum aims, from a trans-
disciplinary approach, discuss how some museum practices create more expanded
interfaces with social reality. Nomadic museums, museums that create effective
community practices as well as digital museums will be some of the topics covered in
this presentation. We will use, as a case study, the Paço das Artes Museum.
Keywords: digital museums, community, interface, activism, contemporary art.

Introdução
As transformações deste último século trouxeram modificações profundas no campo
da cultura e das políticas culturais públicas. O que se percebe, no caso específico do
Brasil, é um enfraquecimento crescente do papel do Estado na defesa da democrati-
zação cultural entendida aqui, não somente como o acesso a cultura mas, também,
como o atendimento da diversidade cultural. O que se vê muitas vezes é um desman-
telamento da área da cultura, especialmente em tempos de crise econômica, consi-
derada geralmente como uma área de menor importância frente a outras do Estado.

Pensar o papel do museu dentro deste contexto, levando em consideração que a cul-
tura é um direito constitucional (no caso do Brasil implementada pela constituição
de 1988) é, portanto, extremamente necessário.

1 Priscila Arantes é diretora e curadora do Paço das Artes desde 2007 e professora do PPG em Design,
Arte e Tecnologia na UAM/SP e do curso de Arte: história, crítica e curadoria da PUC/SP.

372
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O questionamento do papel institucional vem acompanhado, especialmente no que


diz respeito à esfera pública, por uma percepção de um descompasso entre as prá-
ticas institucionais - que muitas vezes se direcionam exclusivamente ao desenvol-
vimento de propostas espetaculares - e ações que possam criar um diálogo e uma
participação efetiva com a diversidade do público e do espaço social.

O que geralmente se percebe é o desenvolvimento de conteúdos alheios às subje-


tividades heterogêneas e às diferentes classes sociais que permeiam a esfera social.
Muitas vezes o rol das ações institucionais ocultam um discurso que replica modelos
já existentes sem, de fato, propor alternativas mais expandidas e transversais.

A pergunta que se coloca, dentro deste contexto, é:

• Quais seriam as estratégias possíveis dos museus nos dias atuais, considerando
especialmente espaços, como o Paço das Artes, com orçamentos pequenos e
que se situam fora dos grandes centros hegemônicos de produção e circulação
de arte?

• Qual o lugar das instituições de arte que propõem estratégias mais experimen-
tais, diversas daquelas produzidas por espaços voltados para a difusão de pro-
postas espetaculares?

Cubo Branco e Museu Templo


Interessante fazer a abordagem do papel do museu a partir da imagem de espaço
fechado e neutro contido na expressão “Cubo Branco”.

Em seu ensaio “No interior do Cubo Branco”, publicado na revista Artforum em


1976, o artista Brian O’ Doherty tece uma crítica ao espaço expositivo modernista,
tal como instaurado pelo Museu de Arte Moderna de Nova York na primeira meta-
de do século XX.

O’Doherty descreve o espaço da galeria modernista como “construído segundo pre-


ceitos tão rigorosos quanto os da construção medieval”. O princípio fundamental
desse espaço é que o “mundo exterior não deve entrar, de modo que as janelas são
lacradas, as paredes são pintadas de branco. O teto torna-se fonte de luz” diz ele.

Introspectivo e auto-referente, o cubo branco é um espaço-templo, um ambiente


sacralizado, asséptico e atemporal, distante da realidade do mundo. “Nas galerias
modernistas típicas, como nas igrejas, não se fala no tom normal de voz: não se ri,
não se come, não se bebe, não se deita nem se dorme” sinaliza Thomas McEvilley na
introdução do ensaio de O’doherty.

373
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Do Museu-Templo ao Museu-Espetáculo
Os museus como terrenos privilegiados para a exposição dos referentes culturais
basearam-se durante séculos sua atividade numa aura de autenticidade histórica e
cultural dos objetos que colecionavam e exibiam.

Critérios tais como originalidade, especificidade de linguagem, narrativa histórica


universal, espaços sacralizados de exibição, foram durante séculos utilizados para
conferir a construção de narrativas em torno da autoridade cultural dos museus da
modernidade.

O impacto dos meios de comunicação, o advento da cultura digital bem como o fe-
nômeno da globalização, trouxeram modificações profundas para a área da cultura
e, consequentemente, dos museus.

As análises mais pessimistas deste novo momento defendem a idéia de que o pro-
cesso de globalização, ao afastar de forma radical a cultura do seu constrangimento
espacial, promoveu um processo de homogeinização cultural.

A globalização econômica estaria, dentro desta perspectiva, atrelada à globalização


cultural num quadro em que a cultura se transformaria em uma mercadoria pro-
duzida e consumida em escala global. Dentro desta perspectiva vivenciaríamos um
processo de deslocamento do museu-templo para o museu- espetáculo.

Em entrevista à Folha de S. Paulo nos anos 90 o crítico da pós-modernidade Fredric


Jameson sinaliza que a área da cultura é um dos alicerces principais do que ele cha-
ma de capitalismo tardio Diz ele: “É uma imensa ‘desdiferenciação’, na qual as antigas
fronteiras entre a produção econômica e a vida cultural estão desaparecendo. Cultura
é negócio e produtos são feitos para o mercado (...) cultura de massa não é mais um
conjunto de comédias de rádio, musicais e romances de Hollywood. É uma produção
muito mais sofisticada, feita por pessoas talentosas (...) na lógica da ‘coisificação’, a in-
tenção final é transformar objetos de todos os tipos em mercadorias. Se esses objetos
são estrelas de cinema, sentimentos ou experiência política não importa”.

A ‘desdiferenciação’ que nos fala Jameson não se limita, no entanto , a apagar as


antigas fronteiras entre super e infraestrutura, mas arrasta para o consumo de massa
um conjunto de manifestações até então carimbadas como elitistas -como as expo-
sições de arte, por exemplo – que agora se projetam nas agendas midiáticas como
megaeventos. Ocupam museus, centros culturais e espaços ao ar livre, atraem pa-
trocínios e financiamentos públicos e privados aproveitando as leis de incentivo e
isenção tributárias. Mostras itinerantes de Monet, Rodin, Cézanne e Picasso servem
de chamariz para vultosos negócios que começam nas bilheterias e prolongam-se
na venda de catálogos, reproduções de quadros, vídeos, pôsteres, calendários, cami-
setas e outros souvenirs.

374
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Douglas Kellner em ‘Cultura da Mídia e triunfo do espetáculo’ nos oferece um exem-


plo bastante elucidativo da espetacularização da cultura na sociedade atual: “tra-
zendo o espetáculo para o mundo da arte, Thomas Krens, do Guggenheim Museum,
organizou uma retrospectiva sobre Giorgio Armani, o estilista de moda italiano.
Anteriormente, Krens produzira uma exibição de motos no museu e tem desejo de
abrir uma galeria do Guggenheim dentro do Venetian Resort Hotel Casino em Las
Vegas, num prédio de sete andares”.

Não por acaso o teórico alemão Andreas Huyssen (1997:223) pode afirmar que “o
papel do museu como um local conservador elitista ou como um bastião da tradição
da alta cultura dá lugar ao museu como cultura de massa, como um lugar de um
mise-en-scène espetacular e de exuberância operística”.

Essa espetacularização faz-se também através dos edifícios entregues muitas vezes a
arquitetos estrelas, como é o caso do Guggennheim de Bilbao, com projeto de Frank
Gehry, ou o museu MAXXI em Roma , de Zaha Hadid.

Aliado à noção de turismo cultural, muitos dos museus surgidos após os anos 90, in-
corporam grandes projetos arquitetônicos que redimensionam, ao mesmo tempo,
áreas urbanas inteiras, como é o caso do Museu do Amanhã, inaugurado em 2015 no
Rio de Janeiro, com projeto do arquiteto espanhol Santiago Calatrava. Iniciado em
2010, a concepção da obra pelo arquiteto espanhol se relaciona com a remodelação
urbana do entorno da praça Mauá, assim como com o projeto global de requalifica-
ção da região portuária do Rio de Janeiro, do qual o museu se beneficia a partir de
espaços livres resultantes da demolição da Perimetral.

Em muitos casos, como aponta a Rosalind Krauss em seu ensaio The Cultural Logic of
the late capitalism museum ( publicado na October nos anos 90) não é nem o acervo
a questão mais importante da instituição e sim o acolhimento de propostas expositi-
vas espetaculares que tem como objetivo não somente dar visibilidade a instituição,
mas também atrair grandes vultos orçamentários.

Muitas destas instituições tendem a se enquadrar em uma dinâmica espetacular em


que o número de visitantes é um dos principais indicadores de sucesso ou insucesso
da empreitada. Em São Paulo, por exemplo, a exposição “Obsessão infinita” da artista
japonesa Yayoi Kusama, realizada entre 22 de maio e 27 de julho de 2014, no insti-
tuto Tomie Oktake, foi vista por 522.136 pessoas, sendo 43 mil só no último fim de
semana em cartaz. Já o Castelo Rá Tim Bum, realizado no Museu da Imagem e Som,
contou com mais de 80 mil pessoas nos dois meses de exposição.

Por outro lado é possível perceber, em muitas destas mostras mais recentes, um com-
portamento completamente diverso do público em relação ao espaço expositivo.
Muitas pessoas estão à frente dos trabalhos expostos enquanto câmeras de celulares

375
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

ou tabletes registravam sua presença na mostra.; presença que ganharia destaque a


partir dos subseqüentes compartilhamentos da imagem em redes sociais, extravasan-
do e implodindo a noção de cubo branco modernista.

Museus Experimentais e a Museologia radical


Será errôneo de nossa parte, no entanto, acreditar na idéia que este modelo de mu-
seu seria o único do contemporâneo, mesmo por que a idéia de contemporaneidade
sinaliza para uma visão não homogênea, mas heterogênea e híbrida.

Dentro de outra perspectiva podemos ver o museu menos como um espaço de de-
finições e narrativas consagradas, mas uma espécie de laboratório, território para a
criação, experimentação e produção de conhecimento. Não por acaso Walter Zanini,
quando diretor do MAC (Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São
Paulo), escreve no catálogo da VI Exposição de Jovem Arte Contemporânea (JAC),
realizada em 1972:

“(...) os dirigentes institucionais tornaram-se absolutamente cônscios da impossibi-


lidade de suas entidades continuarem a manter-se exclusivamente na condição de
órgãos técnicos de apropriação, preservação e exposição de objetos de arte, ou seja,
de órgão expectantes de produtos destinados às suas salas contemplativas de expo-
sição (Zanini apud Freire, 1999 p.53).

As JACs, idealizadas por Walter Zanini no final dos anos 60 no MAC, podem ser vistas
não somente como espaços para fomentar e legitimar a produção de jovens artistas
brasileiros e para incorporar produções de linguagem com novos meios e técnicas
no espaço do museu, mas também como espaços para aprofundar discussões sobre
o papel do museu de arte contemporânea como fórum e laboratório durante os du-
ros anos da ditadura militar no Brasil (1964-1985).

Sem querer esgotar o assunto gostaria de fazer alusão ao ensaio Museologia Radical,
ou o que é Contemporâneo nos museus de Arte contemporânea de Claire Bishop.

Neste ensaio Bishop parte de uma crítica ao texto de Rosalind Krauss “A lógica cultu-
ral do capitalismo tardio nos museus” em que a critica norte americana em diálogo
com o ensaio A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio de Fredric Jameson, aponta
para a visão de que os museus contemporâneos seriam a expressão de uma lógica
consumista implementada no campo da cultura no momento atual.

Em uma primeira instância Claire Bishop percebe a dificuldade em precisar o que é


contemporâneo, e a impossibilidade dos usos desta noção dentro de uma perspec-
tiva universal e global diante não somente das particularidades locais, mas também
das diferentes tipologias de museus que encontramos na atualidade.

376
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Bishop nomeia de museologia radical as experiências de museus que hoje podem ser
chamados de contemporâneos, e que de alguma maneira conseguiram se desvenci-
lhar de um modelo de museu-espetáculo. Ou seja, são outra alternativa para situar
a instituição museu no século XXI.

Estes museus, de alguma forma, seriam aqueles que podem ser apontados, como
diria Agambem, como espaços institucionais que se localizam no escuro e que acon-
tecem para além dos espaços usuais da indústria do entretenimento, como é o caso
do Museu Paço das Artes.

Paço das Artes: Museu Acesso:


Livro/Acervo, MaPA e Ex-Paço
Questionar padrões museográficos tradicionais, criar dispositivos curatoriais mais
experimentais bem como tornar o acervo mais acessível, criando estratégias mais
ativas de aproximação junto ao ao público tem sido algumas das estratégias coloca-
das em voga pelo Paço das Artes.

O Paço das Artes, equipamento da Secretaria de Estado de São Paulo fundado nos
anos 70, vem ao longo dos anos criando um espaço voltado para o experimental e a
jovem arte contemporânea, com a diversidade de suas linguagens.

Por não ser um museu no sentido estrito da palavra e, portanto, por não possuir
uma coleção de obras de arte - e por atuar na promoção e difusão da jovem arte
contemporânea brasileira – torna seu trabalho de registro e arquivo o eixo funda-
mental de seu ‘acervo’.

Poderíamos dizer que as ações do Paço das Artes constituem uma espécie de Museu
Imaginário, tal como o definiu André Malraux: o acervo do Paço das Artes são os ar-
tistas, as atividades, os curadores, críticos, educadores e público que por lá passaram.

Foi dentro desta perspectiva, de colocar em debate e problematizar o ‘acervo’ insti-


tucional do Paço das Artes, que exatamente não é um museu no sentido estrito do
termo mas de estar alocado dentro do setor de museologia da Secretaria de Esta-
do da Cultura, e de dar voz a outras narrativas, neste caso da jovem arte brasileira,
ou seja de um tipo de produção que ainda não tem representatividade dentro dos
grandes circuitos de arte, que concebi uma série curatorial sobre arquivo e acervo
com mostras cujo objetivo era dar visibilidade e criar um espaço de reflexão para
esta questão. Livro/Acervo, MaPA, Arquivo Vivo e Ex-Paço foram pensados.Longe de
serem projetos curatoriais independentes, eles podem ser visto como um work in
progreess, em que cada curadoria e/ou projeto expandem e reatualizam a discussão
dos projetos anteriores.

377
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Livro-Acervo
O primeiro projeto, Livro Acervo, foi idealizado por mim no ano de 2010 em função
da comemoração dos 40 anos do Paço das Artes. A idéia inicial do projeto foi a de
desenvolver uma ‘grande’ curadoria que não somente pudesse resgatar a memória
do Paço das Artes - os atores e agentes que fizeram parte de sua história, - mas a
de oferecer ao público a possibilidade de ter acesso a uma curadoria para além do
espaço expositivo tradicional.

Foi dentro desta perspectiva que nasceu a idéia de desenvolver não somente uma
curadoria no espaço do livro - como uma espécie de curadoria portátil e circulante
– mas também de desenvolver uma curadoria a partir do ‘arquivo’ e ‘acervo’ da insti-
tuição resgatando um de seus mais importantes projetos: a Temporada de Projetos2.

O projeto foi composto por três partes principais3. Na primeira delas, 30 artistas que
passaram pela Temporada de Projetos foram convidados a desenvolver um trabalho
inédito em folhas de papel (como é o caso do flip book Naufrágio, desenvolvido pela
artista Laura Belém). Estes trabalhos foram impressos como cópias para distribuição
e encartados em conjunto com os outros itens que compunham o projeto. No mes-
mo encarte dos cadernos trabalhados pelos artistas, temos a Enciclopédia, segunda
parte do projeto, com informações sobre cada um dos artistas, curadores e júri que
participaram da Temporada de Projetos desde sua primeira edição. A terceira parte
do projeto era composta por uma obra sonora de até um minuto de duração, en-
cartado em um cd ROM, desenvolvida pelos artistas e curadores que participaram
da Temporada de Projetos. Cabe ressaltar que o projeto (constituído por estas três
partes) recebeu a forma de uma caixa/arquivo fazendo alusão exatamente à idéia de
que este dispositivo contém uma parcela importante da história do Paço das Artes e
de parcela da jovem arte brasileira.

MaPA
Dando continuidade ao projeto Livro/Acervo implantamos em novembro de 2014 o
MaPA: Memória Paço das Artes, uma plataforma digital de arte contemporânea que
reúne todos os artistas, críticos, curadores e membros do júri que passaram pela
Temporada de Projetos desde sua criação em 1996.

2 A vocação experimental do Paço das Artes é constatada principalmente através da Temporada de


Projetos, que foi criada com o objetivo de abrir espaço à produção, ao fomento e à difusão da prática
artística jovem.Concebida em 1996 pelo diretor técnico Ricardo Ribenboim e pela então curadora da
instituição Daniela Bousso, a Temporada de Projetos teve sua primeira exposição realizada em 1997
e se tornou , ao longo dos anos, um rico celeiro para a cena da jovem arte contemporânea brasileira.

3 A partir da idéia inicial do projeto, convidamos os artistas Artur Lescher e Lenora de Barros para o
desenvolvimento e concepção da primeira curadoria do Livro/Acervo.

378
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A plataforma é composta por um banco de dados com mais de 870 imagens das
obras expostas na Temporada de Projetos, aproximadamente 270 textos críticos e
vídeos-entrevistas que foram especialmente desenvolvidos, desde 2014, para este
projeto. Reunindo mais de 240 artistas, 14 projetos curatoriais, 70 críticos de arte e
43 jurados, a plataforma foi construída como um dispositivo relacional e um work-in-
-progress oferecendo ao pesquisador a oportunidade de ter acesso às informações a
partir das relações existentes na Temporada de Projetos.

Já na home do MaPA o público é apresentado por meio de um sistema randômico a


uma série de nomes (de artistas, críticos, curadores e membros do júri que passaram
pela Temporada). Ao passar o mouse sobre qualquer um desses nomes-links, o MaPA
destaca, por meio de negrito, os demais nomes envolvidos naquela edição da Tem-
porada. É assim que se inicia a pesquisa na plataforma MaPA: como um dispositivo
relacional que permite conhecer a trajetória de cada artista juntamente com o crítico
que o avaliou e o júri que o selecionou. O destaque atribuído a essa história “relacio-
nal” explica-se ao dialogar com a proposta da própria Temporada de Projetos que, ao
selecionar artistas, curadores e críticos em início de carreira, atua como um lançador
de talentos no cenário artístico. É por essa razão que a organização e referência às
informações na plataforma são feitas através dos nomes dos artistas, curadores e crí-
ticos, valorizando as trajetórias e o desenvolvimento criativo de todos os envolvidos
na produção e sistema da arte contemporânea.

Finalmente o MaPA pode ser visto não somente como um dispositivo de resgate
de parcela da trajetória do Paço das Artes e do ‘acervo’ da instituição, mas também,
como um dispositivo fértil de pesquisa para todos aqueles interessados nos rumos
da jovem arte contemporânea brasileira.

Por último, mas não menos importante o MaPA é um veículo disparador para a cons-
trução de outras narrativas da história da arte brasileira, da jovem arte brasileira, que
muitas vezes não tem oportunidade ou não aparecem nos discursos da história da
arte oficial.

Ex-PAÇO
Como último projeto desta trilogia gostaria de ressaltar o trabalho em desenvolvi-
mento Ex-Paço4 concebido e idealizado por mim e Sérgio Nesteriuk em função da
perda da sede do Paço das Artes na USP.

4 Idealização e Concepção /Priscila Arantes e Sérgio Nesteriuk/ Realização Memulab (Laboratório da


Memoria e do Museu), Transmidialab, Grupo de Estudos em Design, Arte e Memória e DEED - Grupo
de Pesquisa em Design, Entretenimento e Educação (UAM).

379
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O Ex-Paço é uma réplica virtual tridimensional do Paço das Artes5, com saídas para
computador (local e on-line), celular, cardboards e óculos de realidade virtual. Mo-
delado em 3D a partir da última sede do Paço das Artes, o Ex-PAÇO é não somente
um espaço de memória, no sentido que recuperar em realidade virtual o antigo
espaço/sede da instituição, e neste sentido um espaço político e de resistência se
assim podemos dizer, mas um museu digital voltado para abrigar diferentes cura-
dorias e manifestações da arte contemporânea.

Este novo espaço navegável, sugestivamente alocado no ‘espaço sideral’, é o ponto


de partida para se pensar novas dinâmicas curatoriais e expositivas potencializadas
pelas novas tecnologias. Não se trata, portanto, de obras digitais expostas em um
museu ou site, mas sim do próprio espaço expositivo que se torna digital, virtual,
abrindo, assim, novas possibilidades criativas dentro do campo expositivo.

Se em Livro/Acervo e na plataforma digital MaPA o que estava em foco eram as estra-


tégias de acesso e informação ao acervo do Paço das Artes - no sentido de contribuir
para a construção da narrativa da jovem arte contemporânea brasileira - no projeto
em desenvolvimento Ex-PAÇO o que esta em pauta é não somente a criação de
um museu digital, um museu sem paredes, para o desenvolvimento de curadorias
on-line, mas especialmente de lançar luz para a importância do Paço das Artes como
espaço de criação e experimentação artística.

Neste sentido ele pode ser visto não somente como um espaço móvel, mas como
um espaço virtual político crítico em relação a história da perda de sede do Paço das
Artes, fruto de questões do seu momento.

Conclusão
E é neste sentido que entendemos este ‘museu’, que nomeio aqui como museu in-
terface, um museu que implode o cubo branco e que apresenta estratégias museias
e curatoriais que de alguma forma dão a ver outras vozes que não estão presentes
nos espaços tradicionais e do espetáculo.

A instituição de arte é, neste sentido, chamada a refletir sobre sua prática, espe-
cialmente as instituições públicas que, a princípio, deveriam exercer um papel
democrático e de efetivo acesso aos bens culturais. Trata-se de pensar o museu
como um dispositivo participativo e de ação e não como um espaço fechado em si
mesmo - como um cubo branco na expressão de Brian O’doherty.

5 No final do ano de 2015, o Paço das Artes teve que sair da sede que ocupou desde os anos 90 na ci-
dade universitária. Criado nos anos 70, o Paço das Artes nunca teve uma sede definitiva. Atualmente
a instituição conta com uma sede provisória localizada junto ao MIS (Museu da Imagem e do Som).

380
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O conceito de interface aqui diz respeito a pensar o museu não como um templo, nem
como um espaço do entretenimento, mas como um museu que cria uma interface
social, um museu que incorpora uma visão de cultura mais expandida e transversal.

Bibliografia
AGAMBEM. G. O QUE E O CONTEMPORANEO? E OUTROS ENSAIOS. Chapeçó, 2009.

ARANTES, Priscila. Reescrituras da Arte Contemporânea: história, arquivo e mídia.


Porto Alegre:Ed.Sulinas, 2014.

ARANTES, Priscila. Arte @ Mídia: perspectivas da estética digital.São Paulo,


FAPESP/Editora Senac, 2005.

ARANTES, Priscila. Livro/Acervo.Org. São Paulo, Imesp, 2010.

BELTING, H.O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo,
Cosac Naify, 2006.

BISCHOP, Claire. Radical Museology. London, Koenig Books, 2013.

CRIMP, Douglas. Sobre as Ruínas do Museu. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2005.

DANTO, A. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. São


Paulo, Odyssens Editora, 2006.

FREIRE, Cristina; LONGONI, Ana (org).Conceitualismos do Sul \Sur.São Paulo, Anna-


blume.USP.MAC-AECID, 2009.

GROYS, Boris. Art Power. The MIT Press Cambridge, Massachusetts London, England, 2008 .

KRAUSS,Rosalind.https://www.jstor.org/stable/778666?seq=1#page_scan_tab_
contents. The cultural logic of the late capitalism museum.

O’ DOHERTY, B. NO interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte.São Paulo,


Martins Fontes, 2002.

JAMESON, Fredric. “Falso Movimento”; entrevista a Marcelo Rezende, Folha de S.Paulo,


19 de setembro de 1995.

KELLNER, Douglas. Cultura da Mídia e triunfo do espetáculo. IN: Denis de Moraes


(org). Sociedade Midiatizada.Rio de Janeiro:Mauad, 2006.

HUYSSEN, A.Memória do Modernismo.Rio de Janeiro:URRJ, 1997.

ZANINI, Walter. In: FREIRE, Cristina. Poéticas do processo: arte conceitual no Museu.
MAC, Universidade de São Paulo, Jan 1, 1999.

381
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Rui António1 and Mirian Tavares2


Barthes Plastic Extended: um documentário interativo
Barthes Plastic Extended: an interactive documentary installation
Resumo
Este trabalho explora o processo de criação do documentário interativo, baseado
no texto Le Plastique, publicado nos finais dos anos 50 (1957) por Roland Barthes
na sua obra Mythologies. No texto Barthes revela o fascínio pelo plástico, matéria
que se tornava omnipresente naquela altura, pela sua opacidade e maleabilidade
e, sobretudo, pela sua artificialidade – era um material híbrido, alquímico, com-
posto de outros elementos e, por isso mesmo, não-natural. Passados mais de 60
anos, o texto é revisitado pelo documentário que incorpora a tomada de consci-
ência do impacto ambiental do plástico no meio ambiente. Entre o fascínio pelo
material e a tomada de consciência, convidamos o espetador a construir um per-
curso próprio obtendo novas, e variadas informações, a cada interação.
Palavras-chave: Interatividade, Plástico, Instalação, Documentário, Barthes

Abstract
This work explores the creational process of an interactive documentary based on
the text Le Plastique, published in the late 1950s (1957) by Roland Barthes in his
book Mythologies. In the text Barthes reveals the fascination with plastic - a materi-
al that was becoming omnipresent at that time, due to its opacity and malleability
and, above all, its artificiality - it was a hybrid, alchemical material, composed of
other elements and therefore unnatural. More than 60 years later, the text is revisit-
ed by this documentary that incorporates, in its realization, awareness of the envi-
ronmental impact of plastic on the environment. Between the fascination with the
material and the ecological awareness , we invite the viewer to build a path of his
own, obtaining new and varied information with each interaction.
Keywords: Interactivity, Plastic, Installation, Documentary, Barthes

1 Rui António nasceu na Alemanha. Com formação em Ciência da Computação, obteve seu Mestra-
do em Comunicação Multimedia e Doutoramento em Media Arte Digital. É membro do CIAC (Centro
de Investigação em Artes e Comunicação).Atualmente desenvolve pesquisas no campo dos filmes
interativos.
2 Mirian Nogueira Tavares é professora associada da Universidade do Algarve. Com formação aca-
démica nas Ciências da Comunicação, na Semiótica e nos Estudos Culturais, tem desenvolvido o seu
trabalho de investigação e de produção teórica nas áreas das estéticas fílmica e artística. Atualmente
é coordenadora do CIAC (Centro de Investigação em Artes e Comunicação) e vice-coordenadora do
doutoramento em Média-Arte Digital.

382
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Introdução
No final dos anos 50, o semioticista francês Roland Barthes escreveu uma obra a que
chamou de Mitologias. Neste livro, escrito em tom ensaístico e confessional, quase
romanesco, Barthes descreve uma série de eventos, ou de elementos, que na sua
opinião constituíam, naquele instante, a vida quotidiana dos seus compatriotas. O
que o preocupava era o caráter de naturalidade com que muitos eventos, e factos,
eram encarados, como se fizessem desde sempre, parte de uma cultura ou de uma
civilização. Em trabalhos anteriores já tinha chegado à conclusão que o mito é, antes
de tudo, linguagem. E uma linguagem ideológica que procura reafirmar valores de
uma dada sociedade. No caso específico, a sociedade ocidental dos finais dos anos
50, que vivia sob o fascínio crescente dos media e das novas tecnologias que passa-
vam a fazer parte do dia-a-dia dos cidadãos comuns.

“A semiologia ensinou-nos que a função do mito é transformar uma intenção histórica


em natureza, uma contingência em eternidade.” (Barthes, 2001: 162-3). Nesta mesma
altura, na Inglaterra, estava a ser criado, sob a égide do Independent Group, constituído
por teóricos, designers, fotógrafos e artistas plásticos, o movimento que se consagrou
como Pop Art. Artistas como Richard Hamilton, através das suas obras, ironizavam
os gadgets contemporâneos que passaram a fazer parte dos objetos de desejo das
donas de casa: aspiradores, liquidificadores, televisões e mais uma série de produtos
anunciados, com pompa e circunstância, pela publicidade que se tornava, na altura,
uma autêntica criadora de mitos. Este movimento artístico, idealizado por Lawrence
Alloway, reivindicava para o universo das artes, o imaginário criado pela publicidade
numa sociedade de consumo instalada no pós-II Guerra Mundial um pouco por toda
a Europa, mas sobretudo nos Estados Unidos. As artes não podiam ficar à margem
das imagens que eram produzidas quotidianamente numa velocidade avassaladora, e
consumida por milhares de pessoas. Se o papel do artista moderno era o de contestar
o status quo, nada melhor que fazê-lo de dentro – criando meta-imagens, imagens
que criticavam a produção desenfreada de imagens, e de novos mitos.

Neste sentido, os textos de Barthes, e as suas reflexões, coadunam-se com este espí-
rito crítico que estava presente no universo da criação artística. Quando, anos mais
tarde, Andy Warhol imortaliza a atriz Marilyn Monroe ou a socialite Jacqueline Ken-
nedy, estava a referendar, sem o saber, as teses de Roland Barthes – os mitos contem-
porâneos já não eram os da tradição greco-romana ou judaico-cristã, eram as novas
estrelas celebrizadas nos ecrãs dos cinemas ou das televisões.

Na sua mitologia particular, Barthes refere-se a estrelas do cinema, mas também a


eventos mais banais e a produtos quotidianos. Um dos textos é sobre uma exposi-
ção que visitou que celebrava uma das maravilhas da criação humana – o plástico.
“À entrada do stand o público espera demoradamente, em fila, a fim de ver realizar-
-se a operação mágica por excelência: a conversão da matéria; uma máquina ideal,

383
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

tubulada e oblonga (forma apropriada para manifestar o segredo de um itinerário)


transforma sem esforço um monte de cristais esverdeados em potes brilhantes e
canelados.” (2001:111)

No texto, quase poético, percebemos o fascínio que um material, totalmente artifi-


cial, exerce sobre um público que vê na sua extensibilidade, plasticidade e adaptabi-
lidade, a resposta para as suas demandas de produtos diversos que se tornavam, por
aqueles dias, indispensáveis à vida quotidiana, como se sempre tivessem existido e
como se não fosse possível viver sem eles. Passados mais de 60 anos, a visão do mun-
do sobre o plástico é outra, mesmo que o seu fascínio e usabilidade permaneçam
entre nós. A partir das reflexões de Barthes, criou-se uma obra que procura replicar
o texto e atualizá-lo. Barthes Plastic Extended procura amplificar e estender, através
de uma nova camada de informação, o ensaio original. Não negamos o mito, mas
procuramos revisitá-lo à luz das mudanças processadas nos últimos anos no planeta.
O plástico, segundo Barthes, é alquímico e extensível e são estas características que
orientam a conceção estética-estrutural da obra.

O plástico
Barthes Plastic Extended é um documentário interativo com duas narrativas parale-
las: ouvimos o ensaio original de Barthes, apresentada apenas em formato áudio, ao
mesmo tempo que assistimos a outra narrativa em que imagens e textos dão-nos
conta da crescente preocupação com o papel do plástico no meio ambiente. O es-
petador pode experimentar ambas as narrativas através da interação, pode sobrepô-
-las, criando novas interpretações para o texto através dos seus próprios movimen-
tos corporais que acionam novas informações.

O plástico é um material versátil e durável que surgiu no início do século XX: começa
a ser elaborado em 1860 e, em 1909, após a invenção do polímero pelo químico Leo
Hendrix, pode-se dizer que entramos na “era do plástico”.A capacidade de substituir,
ou simular, diversos materiais de uso doméstico e/ou industrial, tornam o plástico
um material ubíquo e abundante. Quando escreve o texto, em 1957, Roland Bar-
thes, e toda a sua geração, desconhecia o risco biológico e ambiental deste material
“milagroso”: “Assim, mais do que uma substância, o plástico é a própria ideia da sua
transformação infinita, é a ubiquidade tornada visível, como o seu nome vulgar o
indica; e, por isso mesmo, é considerado uma matéria milagrosa: o milagre é sempre
uma conversão brusca da natureza. O plástico fica inteiramente impregnado desse
espanto: é menos um objeto do que o vestígio de um movimento.” (2001:111-2)

A capacidade camaleónica do plástico, a multiplicidade dos seus usos e a sua acessibi-


lidade, transformam-no na matéria-prima por excelência de uma sociedade consumis-
ta e voraz. Para Barthes, o plástico tinha ainda a virtude de ser, ele mesmo, um retrato
da sociedade burguesa que inventou o símile, a cópia, os objetos produzidos em série.

384
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

62 anos depois, a obra Barthes Plastic Extended pretende acrescentar, através do ví-
deo, do texto e dos sons ampliam o texto original, novas camadas de informações
sobre os efeitos nocivos do plástico no ambiente.

O projeto – influências e confluências


As narrativas interativas implicam normalmente a participação do espetador nas
quebras temporais e/ou espaciais ou multilinearidade/multinarrativa em que a ideia
de cinema ou de literatura se aproxima da forma de jogo, fundindo linguagens e
estratégias de narrativa. A combinação da interatividade com a envolvência e pro-
fundidade de um filme convencional resulta claramente numa redefinição do papel
passivo do espetador.

A interatividade fílmica não é propriamente uma novidade, já foi experimentada nos


anos cinquenta por Akira Kurosawa com o filme Rashomon, ou mais recentemente
por Peter Howitt com Sliding Doors (1998) ou Mike Figgis com Timecode (2000) ou
ainda o projeto Late Shift (2016) de Tobias Weber. O que é novo são as possibilidades
acrescidas de interação que as tecnologias digitais oferecem à audiência/espetador
no processo criativo. É a partir do momento em que o espetador interage, intervin-
do na alteração da história, que a narrativa deixa de ser um conjunto de eventos
dispostos de antemão pelo seu autor, para passar a ser uma experiência de eventos
que decorrem no presente. O tempo da representação passa a ser em tempo real, na
medida em que está sincronizado com as ações do espetador sobre a representação,
e o papel do espetador passa a ser o de participante, decidindo a cada momento o
futuro da narrativa. Entende-se aqui por tempo real a relação entre a interação do
espetador e a influência na narrativa de forma praticamente instantânea, criando a
narrativa num tempo presente. A interatividade só é possível no presente.

Os meios interativos permitem por vezes uma envolvência e uma compreensão na-
tural, pois permitem apresentar um grande conjunto de informação ao ritmo dos
utilizadores/espetadores, incluindo a repetição do visionamento e a reapreciação.
Vários cineastas e artistas já experimentaram a criação de obras através da apresen-
tação de narrativas interativas. No entanto, a aplicação da interatividade ao formato
documentário é mais recente.

Em 2013, Elaine McMillion realiza o documentário interativo online “Hollow” (Mc-


Million, 2013), um olhar sobre a migração e o êxodo rural nos Estados Unidos da
América, com foco especial em McDowell County, um condado de West Virginia. O
espetador poderá percorrer o documentário ao ritmo que desejar uma vez que a
sua sequência é determinada pela interação através de scroll vertical com o rato. Os
conteúdos que constituem a narrativa, resultam de um processo de participação da,
e com a, comunidade.

385
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 1 – Hollow, Elaine McMillion, 2013


Fonte: http://hollowdocumentary.com

Em 2014 Daniel Scheinert e Billy Chew realizaram The Gleam (2014) um documentá-
rio curto interativo centrado num jornal local (Guntersville, Alabama, EUA) intitulado
“The Advertiser-Gleam”. O espetador dispõe de um conjunto de pequenos vídeos
em forma de mosaicos que ao serem selecionados são reproduzidos remetendo
para outros vídeos selecionáveis (ver figura 2). A experiência resulta numa apresen-
tação resumida do perfil da comunidade daquela localidade. A banda sonora confe-
re-lhe unicidade e apesar das escolhas do espetador a sequência fílmica mantém-se
coerente. O final do filme é aleatório.

Figura 2 – The Gleam, Scheinert&Chew, 2014. Fonte: https://goo.gl/d9TZxL

386
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Barthes Plastic Extended


O espetador dispõe do texto “Le Plastique” dividido em pequenos trechos de áudio.
A extensão ao texto de Barthes é apresentada sob a forma de um vídeo que exibe
elementos da natureza e legendas que refletem uma preocupação do impacto do
plástico no meio ambiente por parte da comunidade científica e académica. As in-
formações de cariz científico resultam de uma pesquisa em publicações académicas
editadas nos últimos 5 anos.

As legendas são apresentadas em simultâneo com os trechos de voz quando os espe-


tadores interagem com movimentos corporais. A cada trecho de voz está associada
uma legenda. Ao todo são 20 pares voz (Barthes)/texto (Informação). A interatividade
e a imersão realizam-se através da utilização do corpo do espetador como interface
de comando. A transparência da interface resulta da inexistência de botões ou indica-
ções textuais para a concretização da interatividade. Assim, o espetador utiliza apenas
o seu corpo para interagir com o documentário, agindo de forma intuitiva.

A utilização do corpo como interface aproxima o espetador da realidade, através de


movimentos isomórficos, aumentando a sensação de presença no espaço cénico.
Ao contrário das experiências com interfaces não-isomórficas, em que a relação en-
tre a ação do espetador e a representação do movimento é abstrata, o movimento
real relaciona-se com a simulação, podendo aumentar o prazer da experiência do
espetador na sua atividade participativa. Ryan (1999: 201) defende que o uso do
corpo reconcilia a imersão e a interatividade, uma vez que os dois elementos não
entram em conflito.

Segundo Gregersen e Grodal (2009) os interfaces são os meios tecnológicos que


permitem a interação com o ambiente virtual através do mapeamento das ações
do utilizador sobre o sistema. O interface permite ao espetador entrar no processo
de construção, ou ser mais um elemento da obra. É a camada intermédia que liga o
espetador à obra.

Um dos paradigmas de interação humano-computador são os sensores 3D, como


o Microsoft Kinect (Kinect, 2014), a Asus Xtion (Xtion, 2014) , o LeapMotion (Leap,
2014), ou o Structure Sensor (Struture, 2014). Esses sensores podem ser usados para
interpretar gestos humanos específicos, permitindo um controle mãos-livres de dis-
positivos eletrónicos, a manipulação de objetos num mundo virtual ou a interação
com aplicações de realidade aumentada. Muitos desses sensores de reconhecimen-
to de rastreamento e gestos têm uma enorme importância nas indústrias de jogos
de vídeo. Assim, com o software apropriado, os sensores também têm a capacidade
de detetar o esqueleto do utilizador e/ou acompanhamento de um único ou vários
utilizadores, com a possibilidade de replicar com precisão, por exemplo, as mãos e
os movimentos do utilizador de forma tridimensional.

387
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Kinect é um dispositivo composto por uma câmara, microfones e sensores (ver figu-
ra 3). O nome deriva da conjugação das palavras “kinetik” (cinemática) e “connect”
(ligar). Foi criado inicialmente para ser utilizado em jogos de consola, permitindo aos
utilizadores uma interação através de gestos e movimentos do corpo dispensando
os habituais dispositivos de controlo. Contudo, é possível ligar este dispositivo a um
computador pessoal via USB. As suas características e a possibilidade de utilização
de bibliotecas open source mostraram-se de grande valor para experimentações e
investigação na área da visão por computador.

O facto do correto funcionamento deste dispositivo não depender da luminosidade


torna-o ideal para aplicação em filmes interativos, onde o escurecimento do espaço
se torna necessário para um melhor visionamento do filme, o que não seria possível
com uma câmara convencional.

Figura 3- Kinect

Instalação
A instalação é composta por uma tela (ou parede branca), um vídeo-projetor, um
computador e um dispositivo Kinect. O espectador poderá interagir através dos mo-
vimentos do corpo. Uma aplicação de computador interpreta e controla os dados
transmitidos pelo dispositivo kinect (ver Figura 4).

388
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 4- Esboço da instalação.

A imagem do vídeo foi captada com uma lente de plástico. A opção de filmar com
uma lente de plástico foi tomada com o propósito de criar uma ligação conceptual e
estética entre a imagem e o texto original. O vídeo resulta da captação de imagens
na natureza. As legendas do vídeo apresentam informações pesquisadas em artigos
académicos recentes sobre a problemática dos plásticos do meio ambiente (ver figu-
ra 5). O critério de seleção da informação apresentada prendeu-se com a diversidade
e eficácia da mensagem.

Figura 5 – Imagem do documentário Barthes Plastic Extended

389
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Conclusão
O plástico, como material, dominou e domina uma era de produção de artefactos
e a sua maleabilidade e capacidade de criar formas similares, continua a ser uma
opção economicamente mais rentável para a produção industrial. No entanto, com
a degradação do ambiente e com os estudos realizados sobre o impacto do plástico,
o fascínio transforma-se, pouco a pouco, em rejeição. Quando Barthes louvava esta
matéria maleável, extensível e múltipla, não advinhava o papel que o plástico teria
no futuro, sendo um dos grandes responsáveis por desastres ambientais de propor-
ções inimagináveis. No entanto, a compreensão do plástico como um representante
de uma cultura e de um modo de vida, continua a ser uma ideia válida, pois a socie-
dade do consumo, fascinada por gadgets, criticada por Barthes e pelos artistas da
Pop Art, continua viva e vibrante, talvez um pouco mais consciente da pegada eco-
lógica que o consumismo produz. Barthes Plastic Extended reflete sobre o paradoxo
da civilização gerada na “era do plástico” que precisa, urgentemente, de encontrar
uma saída para uma nova era mais sustentável.

Referências
Barthes, R. (2001). Mitologias. São Paulo: Bertrand Brasil.

Gregersen, A.; Grodal, T. (2009). Embodiment and interface. In: Perron, B.; Wolf, M.
(org.). The video game theory reader 2. New York: Routledge.

Ryan, M.L. (2001). Narrative as virtual reality: immersion and interactivity in lite-
rature and electronic media. Baltimore: Johns Hopkins.

Singh, P., Sharma, V.P. (2016). Integrated Plastic Waste Management: Environmental
and Improved Health Approaches. Procedia Environmental Sciences 35, 692 – 700.

390
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Sérgio Eliseu1, Moirika Reker2 and


Gilberto Reis3
INHUMATOS
Quando estávamos a moldar pó
INHUMATOS
When we were shaping dust

Resumo
Artigo acerca do desenvolvimento de uma instalação de cariz artístico designa-
da por “Insepulto Inhumatus Unburied”. Um trabalho de Moirika Reker, Gilberto
Reis e Sérgio Eliseu, exposto na sala da Porta 14, à Sé [Lisboa, setembro de 2018].
Uma obra que conjugou a presença de ferro fundido e de vídeo projeções inte-
rativas de imagens tridimensionais geradas em tempo real. O texto propõe uma
reflexão em torno da iconografia funerária etérea utilizada e do seu posiciona-
mento num plano lumínico, bem como uma apresentação do desenvolvimento
da peça, de como se construiu uma relação entre a quietude de quem se situas-
se no reduzido espaço da galeria e uma gratuita mobilidade de alguém que pas-
sasse no seu exterior. Os conteúdos integram-se, simultaneamente, no âmbito
do cruzamento das investigações individuais dos autores envolvidos, do qual
se espera contribuir para um promissor debate, aberto às questões inerentes à
relação entre as novas tecnologias e a sua utilização na criação de estratégias
narrativas assentes na ação do público.
Palavras-chave: Instalação, Interação, Media Arte.

1 Sérgio Eliseu é doutorado em Arte e Design pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do
Porto; Mestre em Criação artística Contemporânea pelo Departamento de Comunicação e Arte da
Universidade de Aveiro; Licenciado em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra; É Professor convidado no Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de
Aveiro, bem como Professor Adjunto no ISCE Douro: Penafiel, Porto. ID+ (Instituto de Investigação
em Design, Media e Cultura) e NIAM (Núcleo de Investigação em Artes e Multimédia) do Instituto
Superior de Ciências Educativas do Douro.
2 Moirika Reker é doutoranda em Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; Mestre
em Artes Visuais pela School of the Arts da Columbia University, Nova Iorque; Fez o Curso Avançado
de Artes Plásticas no Ar.Co, Lisboa, e frequentou o curso de Free Media na Rietveld Academie de
Amesterdão.
3 Gilberto Reis é formado em escultura pelo Ar.Co, Lisboa, e Licenciado em Antropologia pela Facul-
dade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. ID+ (Instituto de Investigação
em Design, Media e Cultura) e NIAM (Núcleo de Investigação em Artes e Multimédia) do Instituto
Superior de Ciências Educativas do Douro.

391
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Abstract
Article about the development of an artistic installation called “Insepulto Inhumatus
Unburied”. A work by Moirika Reker, Gilberto Reis and Sérgio Eliseu, exhibited in the
art gallery Porta 14, Sé [Lisbon, September 2018]. A work that combined the presence
of cast iron and video interactive projections of three-dimensional images generated
in real time. The text proposes a reflection on the ethereal funerary iconography used
and its positioning in a luminous plane, as well as a presentation of the development
of the piece and how a relation was built between the stillness of those located in the
small space of the gallery and the free mobility of anyone who might pass outside. At
the same time, the contents are part of the intersection of the individual investigations
of the authors involved, which is expected to contribute to a promising debate, open
to the questions inherent to the relationship between new technologies and their use
in the creation of narrative strategies based on public action.
Keywords: Installation, Interaction, Media Art.

INHUMATOS
Tudo começa com histórias. A peça Inhumatos surge da notícia de jornal que dava
conta de corpos deixados insepultos numa floresta por razões político-religiosas,
bem como de uma passagem de Antígona:

“[…] Porque estou viva e sou mãe:


Todos os homens são meus filhos.
Haverei de regressar
Procurando cadáveres insepultos. […]

Antígona (IV, I)

Estas histórias (ouvidas na mesa ao lado, no café; lidas num jornal; relembradas de
noites de contadores de histórias escutadas em criança; semi-sonhadas na leitura
de poesia) são o rastilho que espicaça todo o processo de produção / criação. Ao
que foi lido, ou à sua memória, junta-se a ficção. Não se anotou a notícia, não se
sabe mais onde se encontra o registo dela. No entanto, os dados que dela perma-
necem são o ponto de partida para a pesquisa, sugerem o tema e orientam toda a
investigação. Não obstante, aos poucos, a ficção vai entretecendo e dando corpo à
crueza e secura da notícia, alia-se à investigação. A ideia de corpos insepultos con-
duziu-nos ao estudo de práticas fúnebres várias – como a dos Parsis, Zoroastristas,
que construíam torres de silêncio (dakhmas) onde os seus mortos, em lugar de ser
enterrados, cremados ou embalsamados, ficavam expostos aos elementos atmos-
féricos (Shokoohy, 2007, pp. 61-78) ou à prática de expor os corpos em árvores ou
plataformas, comum entre alguns povos nativos Americanos (Bushnell, 1927) e os
Choctaw (Bushnell, 1920).

392
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Por outro lado, concordamos com Metcalf e Huntington quando dizem que os “ri-
tos mortuários desafiam os nossos paradigmas teóricos ao tornarem inescapáveis
questões que são sistematicamente evitadas noutros contextos” (Metcalf & Hun-
tington, 1991, p. 2). Tudo o que acontecerá neste espaço elegido para uma icono-
grafia funerária vai pertencer ao éter e a um plano lumínico. Insepulto / Inhumatus.
Sobre o chão do quarto um círculo de ferro. É um sumidouro. Abertura por onde
alguma coisa se some. Escoadouro. Lugar onde se perdem de contínuo os objetos
(também um corpo é um objeto), sarjeta, esgoto; mas também é o sumidouro o
curso subterrâneo das águas de um rio, que corre através de rochas; e ainda o é a
sepultura e a própria morte.

Em cadência, uma voz, diz e escreve, em círculos: “Somos mortos insepultos apo-
drecendo debaixo de um céu cruel e vazio / indiferença alheamento quieta non
movere / inhumatus.” E ainda, numa impulsão instintiva que se opõe a todo e qual-
quer exame, mas que guarda um enfim de força oculta, coberta a um só tempo de
agitação inquieta e de tranquilidade, a voz: “ergo iter inceptum peragunt fluvioque
propiquant”4 (Eneida, VI, pp. 361- 462).

QUANDO ESTÁVAMOS A MOLDAR PÓ

Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a
vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim.
Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou.

Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho. Enquanto eu tiver
perguntas e não houver respostas continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas
acontecem antes de acontecer?

(Lispector, 2002, p.13)

A partir da instalação Insepulto Inhumatus Unburied foi surgindo um conjunto de ideias


para a visualizar através de óculos de Realidade Virtual (RV). O que se segue é apenas
uma parte do caminho que percorremos ao tentar construir um trabalho de RV.

A pergunta que se nos colocou foi: como poderia o imersor (aquele que é ou o que
faz imergir) tirar o maior proveito da experiência?

O que emergiu dessa pergunta são mais perguntas, algumas respostas e poucas
certezas. A estas últimas estamos habituados a viver de costas para elas voltadas.
Antecipando o fim, o sujeito da pergunta deixará de ser uma preocupação. Como
sempre, perdemo-nos no entusiasmo de encontrar.

4 “Por essa razão completam a jornada aproximando-se do rio.” (Tradução de João Miguel Fer-
nandes Jorge)
393
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

I - Sabemos que cada um de nós constrói a sua história de acordo com a sua experi-
ência do tempo e dos lugares de onde olha, e de todos elementos da sua natureza
biológica, individual, social e cultural. Cada um na RV terá a sua história. Sabemos
que um livro tem também essa capacidade, mas neles o narrador é o imersor (o
que para nós significa que em RV os utilizadores devem estar livres para explorar e
encontrar o seu próprio caminho).

Dentro da RV as possibilidades para que cada um, de acordo com sua vontade, tome
uma determinação e a percepção ou sensibilidade da posição, deslocamento, equi-
líbrio, peso e distribuição do próprio corpo e das suas partes são enormes, mas não
lhe pertencem por exclusividade. São muitos os exemplos (cavernas, frescos, ciclo-
ramas, câmaras escuras, instalações totais, “Light Reignfall” de James Turrell [da série
Perceptual Cells], ressonância magnética [RM], meditação e mais).

Mas a RV é mais generosa nas probabilidades, ainda que finitas, quando o assunto é o de
estruturar deambulações (assim o pensamos por agora). Talvez não seja necessário fazer
todas estas comparações com outros médios, mas foi este o nosso ponto de partida.

Figura 1 - “Insepulto Inhumatus Unburied”


(Moirika Reker, Gilberto Reis e Sérgio Eliseu, 2018). Porta 14.

II - Desconfiamos da qualidade do já possível quando falamos de materialização no


mundo da RV em confronto com o mundo da Realidade Real (RR). Nesse sentido

394
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

entendemos que os elementos “realistas” a que os programas digitais nos instigam,


funcionam para nós como uma armadilha em relação ao que queremos do trabalho.
Fugimos ao que os meios esperam de nós e utilizamo-los não só como uma ferra-
menta mas também para fazermos uma investigação prática sobre a sua natureza.

Sabemos que não é possível para qualquer arte reproduzir a realidade na sua totalida-
de (nem achamos que seja esse o seu assunto), e estamos conscientes de que não há
apropriação objetiva da realidade – a metáfora de Platão da Caverna a isso nos avisa.

Figura 2 - “Insepulto Inhumatus Unburied”


(Moirika Reker, Gilberto Reis e Sérgio Eliseu, 2019), Work in progress - versão em RV.

III - Aquilo que nos permite será tão diferente de outras matérias com que ao lon-
go do tempo todos os artistas trabalharam? Sabíamos que a capacidade de fazer
conexões abstratas (o mais díspares) é produtora de criatividade. E utilizamos isso
como ponto de partida, como um mapa mental. A imersão em sonhos a partir de
narrativas, sons, imponderáveis, palavras ditas ao acaso (novamente sons), per-
mitiu-nos construir livremente (não é sempre assim), pensar ao acaso. O efeito de
imersão é uma absorção também psicológica, a par da que ocorre no sonho (e
na leitura, cinema, teatro) sendo que a que ocorre na instalação e na RV é a mais
semelhante à do sonho.

Nos sonhos, como refere Bishop, ao falar de “Instalação Total” (Bishop, 2005, p.17) se-
guindo Freud, as situações aparecem-nos, não as pensamos: estamos nas situações,

395
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

vivemo-las. O sonho apenas faz sentido se desmembrado em pequenas partes e


analisado por livre associações, pois de outra forma permanece absurdo. Assim é na
realidade virtual, as associações mentais conscientes e inconscientes juntam-se às
associações culturais e quotidianas e a memórias pessoais, e a criação de sentido de-
pende de todos estes fatores, sendo que grande parte não é controlável pelo artista,
mas aqui estamos perante uma matéria fluida, estamos na presença do éter, talvez
mais próximos do poema de Hans Sachs.

And so you should not regret it


If each year on Saint John’s Day,
Instead of making the people come to you,
You descend from your clouds
And appeal to the people in person.

(Sachs, apud Borchmeyer, 2003, p.194)

Mas imersão provoca passagens de um estado mental para outro e caracteriza-se


por provocar uma diminuição crítica em relação ao que é mostrado, e aumentar o
envolvimento emocional em relação ao que acontece (Grau, 2003, p.28).5

Como dar forma a esta matéria, num espaço caleidoscópico de imagens espaço-
-tempo obrigou-nos a uma estrutura que tem por base primeira o som, a luz e o
seu contrário. Sons e luz universais de afastamento, enjeitamento, estranhamento,
repelência, repúdio, repugnância, repulsa, resistência ou de aproximação, empatia,
afeição, afeto, afinidade, amizade, atração, combinação, confraternidade, fraternida-
de, identidade, igualdade, inclinação, irmandade, simpatia, união, unidade, vincula-
ção, vínculo, tornaram-se os nossos melhores amigos. Mas há mais. Aqui podemos
sempre voltar atrás anulando (Ctrl-Z) ou refazendo (Undo-Redo), (Vial, 2016).6

5 “Immersion can be an intel-lectually stimulating process; however, in the present as in the past, in
most cases immersion is mentally absorbing and a process, a change, a passage from one mental
state to another. It is characterized by diminish-ing critical distance to what is shown and increasing
emotional involvement in what is happening” (Grau, 200, p.28).
6 “L’univers physique tout entier est soumis à l’entropie, c’est-à-dire au désordre croissant. La mort
n’est que l’illustration, à l’échelle du vivant, de l’irréversibilité foncière de l’univers. Pourtant, l’une des
propriétés ontophaniques du phénomène numérique, c’est la possibilité de revenir en arrière. Au
pays de la matière calculée, il est toujours possible d’Annuler (Ctrl- Z) ou Refaire (Undo-Redo). Sur le
terrain de la réception phénoménologique, l’événement est quasi surnaturel pour l’usager: il s’appa-
rente à une annulation de l’irréversibilité fondamentale du monde physique. Et nous sommes déjà
tellement accoutumés à cette ontophanie de la réversibilité que nous regrettons parfois, comme par
réflexe perceptif, de ne pas pouvoir en disposer dans nos expériences non-numériques.”

396
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Já nem mesmo sabemos se o conteúdo das palavras RV, não nos desviam da sua
verdadeira natureza (bem gostaríamos de saber qual é). A pouco e pouco começa-
mos a deixar de estabelecer um paralelo/oposição com a RR e de mãos dadas com
a neurobiologia, aceitamos que o que chamamos realidade é, na verdade, apenas
uma afirmação sobre o que somos realmente capazes de observar. Centramo-nos na
ferramenta e trabalhamos com pensamentos e emoções.

Pressentimos que a sua natureza a isso nos obriga. Somos dados não jogo.

Tateamos este aparente informe. Cair, voar, planar, emergir, submergir, parar, ouvir,
decidir, explorar, contemplar, tatear, sentir o cheiro do fósforo de tanto pensar, tudo
isto é possível se soubermos entender esta matéria que à falta de melhor é poeira
inteligente – música, matemática, poesia.

A pouco e pouco o imersor anónimo deixou de ser uma variável do trabalho. Nós
somos o imersor. Como sempre, perdemo-nos com o entusiasmo de encontrar. É
uma epifania, um abandono do corpo e do tempo ou é ainda com Stéphane Vial
(2016) uma ontofania digital. Construir estruturas líquidas e fosfóricas. Fomos da-
dos não jogo.

Sobre Realidade Virtual


A imersão na imagem digital é uma técnica de interface entre o homem e o com-
putador na qual se dá ao operador a sensação de se encontrar no interior de um
espaço tridimensional constituído por objetos visíveis com volume” (Cadoz, 1994,
p.129). A utilização imersiva da RV, segundo Grau (2003), por contraste em relação
à simulação, que não tem que ser imersiva, descreve um espaço ilusório dirigido
aos sentidos, pois o utilizador recebe uma impressão de movimento ao focar ob-
jetos que se aproximam e afastam dele, enquanto numa pintura, por exemplo, a
profundidade é experimentada ou presumida unicamente de acordo com a ima-
ginação, devendo-se parte desta ilusão a técnicas conhecidas – tais como a pers-
petiva (Grau, 2003).

A tecnologia da RV tem-se vindo a massificar muito graças a dispositivos específicos


como HMDs, Shutter-Glasses ou CAVEs, com os quais os utilizadores começaram a
navegar e interagir com cenários que se podem modificar em tempo real. Com efei-
to, a última década trouxe-nos múltiplos dispositivos funcionais a um preço de con-
sumo de massas e, atualmente, ter um dispositivo de RV pode ser tão trivial como
possuir uma televisão. É possível dizer, com bastante segurança, que é uma tecno-
logia que estabilizou e que se encontra ao dispor do grande público e não apenas,
como no passado recente, concentrada nos grandes centros tecnológicos, tais como
universidades ou outros institutos de investigação. Por consequência, temos vindo

397
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

a assistir a uma cada vez maior utilização desta tecnologia por parte também dos
artistas7, que encontram neste meio mais uma forma de expressão.

Todavia, a tecnologia não é nova e é explorada, pelo menos, desde a década de ses-
senta do século XX. Apenas se tornou mais acessível e com aparatos menos com-
plexos e dispendiosos. Entre os mais famosos equipamentos desenvolvidos no seu
aperfeiçoamento destacou-se, por exemplo, o projeto C.A.V.E., pela sua forte dupla
capacidade imersiva e interativa. Um conceito baseado num cubo com 3x3x3 me-
tros, que está aberto num dos seus lados e onde a ilusão de se encontrar dentro de
um espaço tridimensional/virtual se consegue graças à utilização de óculos 3d, bem
como às projeções exibidas em todas as paredes e no chão (Lieser, 2009). Curio-
samente, o nome “C.A.V.E.” resulta de um acrónimo: Cave Automatic Virtual Envi-
ronment (“Caverna Digital – aludindo à caverna de Platão”) e funda-se numa ideia
visionária do artista e investigador Daniel J. Sandin, para a criação de um espaço
inteiramente virtual. Sandin desenvolveu o princípio nos anos de 1980, numa épo-
ca em que os computadores ainda não podiam gerar ambientes virtuais de grande
complexidade em tempo real. Por esse motivo, a primeira CAVE apenas foi imple-
mentada no ano de 1991. Não se trata de um caso isolado, muitos outros projetos
interessantes no campo da imersão/interação com a imagem digital poderiam aqui
ser referenciados como pioneiros e inovadores de instalações em RV, dado que, pelo
menos desde os anos 70 do séc. XX, estes são explorados pela comunidade artística
nos seus trabalhos.

Contudo, algumas das questões em torno dos nossos sentidos podem revelar-se
bastante perniciosas e escrever sobre RV implica, necessariamente, pensar sobre a
Realidade em si. O terreno é vasto e complexo.

A interrogação filosófica em torno do Real é interminável e acompanha-nos, certa-


mente, desde muito antes de Heraclito e da alegoria da caverna de Platão. Atualmen-
te, olhar para o mundo sensível como um mundo de “meras” aparências, para lá do
qual está uma realidade (apenas) inteligível, é uma posição que ainda recolhe os mais
diversos tipos de adeptos. Em contraponto, a filosofia contemporânea, principalmen-
te com o contributo dos autores do campo da fenomenologia, tem vindo a procurar
questionar esta perspetiva dual sobre aparências/realidade e, na base desta discussão,
podemos encontrar vastas posições relativas à perceção, sendo nela que se centram as
múltiplas configurações que nos permitem aceder à realidade (Eliseu, 2016).

7 Veja-se o exemplo de Laurie Anderson que apresentou no Festival de Cinema de Canes 2019 um
conjunto de três instalações de RV concebidas com a participação de Hsin-Chien Huang. “Aloft”,
“Chalkroom” e “To the Moon”. Ou ainda, em 2018, a presença de trabalhos em RV de alguns artistas
contemporâneos célebres, tais como Marina Abramović e Anish Kapoor, na Feira Internacional de
Arte Basel em Hong Kong.

398
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O estudo do processo de conhecimento da realidade – um caminho bastante longo


– compõs-se essencialmente por duas vias. Uma das vias aborda o conhecimento a
partir das ciências exatas, ou seja, pelo que podemos analisar recorrendo aos sen-
tidos (Empirismo). A segunda via, oposta a esta, tem na Razão a sua base (Raciona-
lismo), dando mais importância às ciências experimentais e sendo o conhecimento
alcançado pela razão e não pelos sentidos.

Segundo Damásio (2013), partilhamos com outros seres humanos, e até com alguns
animais, as imagens em que se apoia o nosso conceito do mundo. Porém, “essas
imagens são baseadas diretamente em representações neurais e são estas que nos
permitem recordar um dado objeto, um rosto ou uma cena” (Damásio, 2013, pp. 138-
139). Portanto, o que obtemos do real é uma mera reprodução, uma interpretação,
uma reconstrução do original (Damásio, 2013). Acontece que “tal realidade, mental
neural e biológica, é a nossa realidade” (Damásio, 2013, p. 301). Nunca poderemos
saber até que ponto o nosso conhecimento da realidade «absoluta» é fidedigno. “O
que precisamos de ter é uma consistência nas construções da realidade criadas e
partilhadas pelos cérebros de cada um de nós” (Damásio, 2013, p. 301). Contudo, a
anterior perspetiva não significa que vemos coisas que não existem. Pelo contrário,
percecionamos uma aparência objetiva e partilhável. Ou seja, como questiona e afir-
ma Latour: “É a realidade construída ou real? Ambos.” (Latour, 1993, p. 35).

Talvez a tecnologia da RV nos permita ir mais além e alcançar um novo conjunto de


pressupostos alternativos, possivelmente através de um estado pós-humano ou pela
criação de um mundo imaginário. Tal como propõe Feyerabend (1975), descobrindo os
traços do mundo real que supomos habitar. Ainda que, porventura numa triste ironia,
na verdade esse mundo imaginário possa não resultar em mais do que um mundo si-
mulado dentro de uma outra simulação na qual já vivemos (Eliseu, 2016). Pois, tal como
defendem os teóricos do simulismo, pelo menos uma das seguintes preposições é ver-
dadeira: (1) É muito provável que a espécie humana se extinga antes de atingir um es-
tágio “pós-humano”; (2) é extremamente improvável que uma civilização “pós-humana”
execute um número significativo de simulações da sua história evolutiva (ou variações);
(3) estamos quase certamente a viver uma simulação de computador. Ou seja, “dificil-
mente a civilização humana irá alcançar um estágio pós-humano a menos que já nos
encontremos a viver dentro de uma simulação” (Bostrom, 2003, pp. 243-255).

Considerações finais
Em arte, acreditamos que o conhecimento se adquire na junção da experiência senso-
rial e racional. Tanto a RR como a RV são simultaneamente motivos e ferramentas que
nos permitem abordar / explorar / descobrir formas de interagir com o mundo e com
o outro. A tecnologia que é um fim em si mesma em arte, está, na nossa perspectiva,
votada ao fracasso. O lápis permite um mundo de possibilidades, mas, em si mesmo, de
pouco vale. O assunto, aqui, são as histórias que podemos construir e explorar através

399
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

destes instrumentos e que nos levam, se forem bem sucedidos, a novas histórias. O
mais importante é o acaso, as possibilidades de se fazerem novas ligações.

Portanto, para além da proposta narrativa inerente ao projeto elaborado e à sua va-
riante em RV atualmente em curso, esperamos contribuir simultaneamente para a
discussão da utilização da tecnologia da RV no campo da investigação académica
em artes e da sua exploração, essencialmente, como ferramenta para novas formas
de contar / experienciar histórias.

Referências
Bishop, C. (2005). Installation art: A critical history, Nova Iorque: Routledge.

Borchmeyer, D. (2003). In Drama and the World of Richard Wagner, Princeton:


Princeton University Press.

Bostrom, N. (2003). “Are You Living in a Computer Simulation?”, Philosophical Quar-


terly, Oxford: Faculty of Philosophy, Oxford University, Vol. 53, No. 211.

Bushnell, D. (1920). “Native cemeteries and forms of burial east of the Mississippi.”
Bureau of American Ethnology Bulletin 71.

Bushnell, D. (1927) “Burials of the Algonquian, Siouan and Caddoan Tribes West of
the Mississippi.” Bureau of American Ethnology Bulletin 83.

Cadoz, C. (1994). A realidade virtual. Lisboa: Instituto Piaget.

Damásio, A. (2013). O erro de Descartes. Emoção, Razão e cérebro humano. 2ª


edição. Lisboa: Círculo de Leitores.

Feyerabend, P. (1975). Contra o método, Rio de Janeiro: Francisco Alves.

Grau, O. (2003). Virtual Art: From Illusion to Immersion, London: The MIT Press Cambridge.

Latour, B. (1993). An interview with B. Latour, (by Crawford, T.H.) Configurations,


Baltimore: The John Hopkins University Press.

Lieser, W. (2009). Digital Art, Langenscheidt: H.F. Ullmann Gmbh.

Lispector, C. (2002). A Hora da Estrela. Lisboa: Relógio d’Água.

Merhad Shokoohy (2007). “The Zoroastrian Towers of Silence in the Ex-Portuguese


Colony of Diu”, Bulletin of the Asia Institute New Series 21.

Vial, S. (2016). “Voir et percevoir à l’ère numérique : théorie de l’ontophanie”, Vi-


vre parm(i) les écrans, Mauro Carbone Anna Caterina Dalmasso Jacopo Bodini
(éd.).Paris: Les presses du reel.

400
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Simone Reis1 and Iain Mott2


Os Mortos: teatro menor em nove fragmentos3
Os Mortos: minor theatre in nove fragments

Resumo
Este artigo investiga o processo composicional de criação de uma instalação
cênica disposta em nove caixas pequenas. Em cada uma há um ocular e fones
de ouvido para que os espectadores assistam cenas interiores nítidas no modo
de um peep-show, os personagens vistos como fantasmas pelo mecanismo do
Pepper’s Ghost do teatro do século XIX. A Literatura Menor de Kafka é referencial
artístico importante além de O Inferno de Dante e Os Cantos de Maldoror. As
caixas representam fragmentos de memórias de deslocamentos e alienações
de personagens humanos, antropofagizados pela performer.
Palavras-chave: Literatura menor, antropofagia, multiplicação dramática, peep-
-show, Pepper’s Ghost.

Abstract
This article investigates the creative compositional process of a theatrical installation
disposed in nine small boxes. Each box has a visor and headphones so that spectators
may watch and listen, in the mode of a peep-show, to the finely constructed scenes
within; the characters seen as phantoms by way of the nineteenth century theatrical
technique, the Pepper’s Ghost. The Minor Literature of Kafka and Dante’s Inferno are
both important artistic references and the boxes represent fragments of memories of
human dislocation and alienation, ‘anthropophaged’ by the performer.
Keywords: Minor literature, anthropophagy, dramatic multiplication, peep-show,
Pepper’s Ghost

1 Atriz e performer brasileira e professora de interpretação no Departamento de Artes Cênicas, Insti-


tuto de Artes, Universidade de Brasília, http://cen.unb.br. Coordenadora do Laboratório de pesquisa
e extensão Teatro Pândego, Doutorado em artes da Victoria University, Australia, intitulado Little
World/Mundinho: An ‘Antropofagic’ and Autobiographic Performance. Site pessoal: http://escuta.org.
Email: simonereismott@gmail.com.
2 Artista sonoro e compositor. Professor adjunto no Departamento de Artes Cênicas na Universida-
de de Brasília (http://cen.unb.br) na área de sonoplastia e voz. Doutorado em artes da University of
Wollongong intitulado Sound Installation and Self-listening. Site pessoal: http://escuta.org. Email
institucional: iainmott@unb.br.
3 Apoio da Fundação de Apoio de Pesquisa do Distrito Federal (FAP DF).

401
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Introdução
Este texto, investiga o processo composicional de criação de uma instalação cêni-
ca, disposta em nove caixas pequenas, com orifícios para que os espectadores ve-
jam cenas interiores nítidas, por meio de peep-shows. As personagens de Os Mortos
são vistas como fantasmas dentro de pequenas cenografias utilizando uma técnica
teatral que vem dos palcos de Londres e Paris do século XIX, o Pepper’s Ghost. A
Literatura Menor de Kafka e sua personagem Josefina, a cantora, são referenciais
importantes. As caixas são fragmentos de memórias de deslocamentos e alienações
de personagens humanos, antropofagizados pela performer. São nove camadas de
significação intensificadas em seus tamanhos miniaturizados. Com uma vista distin-
ta, a audiência poderá desenvolver uma ligação íntima com as cenas. Espectros de
corpos pequeninos e expressivos, multiplicados, re-presentam os mortos que vivem
a vagar em mundos sonoros secretos. Os mortos guardam segredos, que mal sa-
bemos e que poderão ser espiados através de uma brecha. São corpos espectrais,
vivem em estado nupcial de devir outro. São personagens não construíveis que pas-
sam pelo viés do fluxo de nossas memórias fisicalizadas em marcas, que nos movem
em 9 círculos. A obra de Lautréamont, Cantos de Maldoror, atravessa a instalação
cênica com furor e comicidade. O Inferno, de Dante Alighieri, é, também, uma refe-
rência para a criação das nove caixas, tocas nutritivas de Os Mortos. Esse material é
transformado em nove errâncias cênicas pândegas tecnizadas.

Alegria trágica
De acordo com F. Nietzche, “o artista trágico não é um pessimista, ele diz sim a tudo
o que é problemático e terrível, ele é dionisíaco” (Nietzsche, 2006, p. 19). Nessa pers-
pectiva a alegria dinâmica é o pensamento trágico, o qual não está no ressentimen-
to, no niilismo e na culpa, mas na positividade. Segundo Nietzsche trágico é igual a
alegre.O trágico é afirmação do devir. Trágico é o eterno vir a ser, sem contradições e
pathos dialéticos. Uma das alusões que não caricaturiza a tragédia, é a obra da poeta
Hilda Hilst. A personagem diz que tem o coração exposto, Hilst expõe, auto ironi-
camente, a potência e a comicidade de uma mulher desconfiada, por ter nascido
sem pele sobre o coração, em oposição à humanidade de coração engolido. Coração
revelados desses estados de personagens auto ficcionais podem ser vistos de perto
em caixas, por meio de um olhar participativo da audiência. Há vida plena dentro de
cada devir caixão, local onde se habita tragicamente, onde se afirma o múltiplo e seu
devir uno sem opor o apolíneo ao dionisíaco. Tumbas onde se brinca com mortas e
mortos dançantes e se produz espectros desejosos.

Um teatro menor
Gilles Deleuze e Félix Guattari no seu texto “Kafka: por uma literatura menor” (2014,
p. 39), assinalam que as três características da literatura menor de Kafka são: 1) A

402
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

desterritorialização da língua 2) A ligação do individual no imediato-político 3) O


agenciamento coletivo de enunciação. Seguindo os autores, mesmo aquele que
tem a infelicidade de nascer no país de uma grande literatura deve escrever em sua
língua como um judeu tcheco escreve em alemão, ou como um uzbeque escreve
em russo, achando, assim, seu próprio ponto de subdesenvolvimento, seu próprio
terceiro mundo, seu próprio deserto e dialeto singular.

Eles perguntam: Quantas pessoas vivem hoje em uma língua que não é a sua? Ou
então, não conhecem mesmo mais a sua, ou não ainda, e conhecem mal a língua
maior que são forçados a servir? Problema dos imigrados, e sobretudo de seus filhos.
Problema das minorias. Problema de uma literatura menor, mas também para todos
nós: como arrancar de sua própria língua uma literatura menor, capaz de escavar
a linguagem, e de fazê-la escoar seguindo uma linha revolucionária sóbria? Como
devir a nômade e a imigrante e a cigana de sua própria língua? Kafka diz: roubar
a criança no berço, dançar sobre a corda bamba (Deleuze & Guattari, 2014). Nove
caixas menores sequestradas de berços, dançam e riem de si mesmas em Os Mortos.

Figura 1: Modelo das estações da instalação

Os palcos dos nossos teatros menores serão distribuídos em nove peep-shows, ins-
pirados nas próprias caixas de diversão dos séculos passados, populares nas feiras e
salões finos da Europa, China e nos Estados Unidos (Balzer, 1998). Numa referência
aos nove círculos do inferno de Dante, cada palco, representado por uma cenografia

403
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

menor dentro de cada caixa, será ocupado por sombras, Josefinas espectrais. Os peep-
-shows de Os Mortos representarão um miniaturização da técnica visual explorada
por Reis e Mott na instalação O Espelho em 2012 (I. Mott, 2013, p. 68–74)4, e as perso-
nagens serão projetadas como Pepper’s Ghosts (Speaight, 1989) dentro da cenografia
por meio de uma tela de LED, vidro angulado e um computador embutido. Tal como,
e igual as personagens de O Espelho, as mortas e os mortos aparecerão com uma
qualidade holográfica, sendo imagens de duas dimensões (imagens das persona-
gens refletidas pelos vidros na direção do espectador) sobrepostas nas cenografias
de três. Fiel às técnicas antigas dos peep-shows, o espectador verá a cena através de
uma lente de maior diâmetro com os dois olhos. A lente em cada caixa funcionará,
concomitantemente, para limitar a profundidade de campo5 ao redor da personagem
no centro da cenografia, emprestando uma visão de outro mundo, e para criar mu-
danças visuais por meio de aberração cromática da lente convexa simples. A aber-
ração muda sutilmente o plano focal de cada cor vista e junto com a limitação da
profundidade de campo, os dois efeitos amplificam a ilusão de tridimensionalidade.

Figura 2: Caixa mostrando lente e fones de ouvido

O som para cada caixa será composto utilizando um sistema de software chamado
Mosca (I. Mott & Keller, no prelo; I. Mott, 2017) que fornece som tridimensional para

4 https://escuta.org/espelho
5 O alcance de profundidade de uma cena no qual os objetos estão em foco.

404
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

uma variedade de sistemas de reprodução. No caso de Os Mortos, o espectador usa-


rá fones de ouvido para escutar o som dentro das caixas. A voz da sombra presente
na caixa aparecerá dentro da cabeça do ouvinte, enquanto o som do exterior dela,
pode aparecer em qualquer lugar no espaço ou até em movimento. A voz funcionará
como uma âncora dentro da caixa, colocando o ouvinte e a ouvinte numa forma de
coexistência com a personagem; submersos nos seus sons externos. Essa dualidade
do exterior e interior sonoro foi investigado em O Espelho, bem como a co-locali-
zação de observador e personagem, também usado na instalação Close de Mott (I.
Mott, 2009). Os pensamentos soltos, as vozes interiores da personagem, estão livres
para sair e ocupar o espaço exterior e se confundir com o mundo real.

A primeira vez que a performer, Simone Reis, transpôs para o teatro a ideia kafkiana
de literatura menor foi em sua pesquisa de doutorado, em Melbourne, em 2006.
A autora era estudante de doutorado, professora universitária brasileira morando
na Austrália e se sentia desterritorializada e patética, principalmente quando atuava
em inglês, para uma plateia estrangeira. A alienação e o deslocamento eram, para
ela, no mínimo, enigmáticos. Perguntas e vozes interiores como: Quem sou eu? O
que significa ser uma performer latino americana, uma artista brasileira na Austrá-
lia? Como seria atuar como uma atriz menor,sem servir à linguagem cênica maior?
Como roubar o teatro no berço? E como devir cigana, performadora nômade de seu
próprio teatro e de sua língua materna? Quais os ecos de tantas vozes multiplicadas
dramaticamente e de que modo essas vozes exteriores atravessam o meu interior?
Como sair para fora da caixinha? Ouço vozes?

Vale lembrar que o português é uma língua misteriosa, especialmente na Oceania, e


qualquer teatro performativo que a autora fizesse poderia cair no lugar do esquisi-
to, não “exquisite” or “ lovely”. Esse devir-iconoclasta,sempre foi para a performadora
muito fácil de identificar em outras e, principalmente, nessas circunstâncias. Porém,
a performer arrisca afirmar desde os primórdios fez parte da ala das performers de-
sarrazoadas do terceiro e até, do outro mundo: o mundo das mortas, de um outro
lugar quem sabe e ou do universo dissidente de uma atriz de teatro pândego menor.
Ela diz ainda que “nunca foi dessas, mas daquelas”, quando menciona sua lingua-
gem singular de atriz de um teatro tragicômico menor. Reis dissolve fronteiras entre
antropofagia,sentimento órfico, ludicidade louca, desterritorialização e os devires
mundinho e teatro menor, em sua tese de PhD intitulada Little World: an antropofa-
gic and autobiographic performance:

This project presents a performance derived from the unique combination of Brazilian and Aus-
tralian performance practice. It sheds light on the power of the theatrical event for disparate
audiences, and on the performer’s experience of the creative process while generating a new
performance text that addresses the questions: What is it to ‘be’ ‘Brazilian’? Does ‘Brazil’ exist?
What is it to be ‘Latin American’? Does ‘Australia’ exist? This project, Little World: Four ‘Autoeth-
nographic’ Performances, explores the author/performer’s ‘being’‘Brazilian’, being ‘Latin American’ in

405
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

‘Australia’, and a ‘performer’ in ‘minor theatre’, through autobiographical and autoethnographic


performance drawing on the writings of Clarice Lispector, Franz Kafka, and Guillermo Gómez-
-Peña, and the performance practices of Brazilian Candomblé and Japanese Butoh. It attempts
to place the spectator in the position of the performer, encountering ‘Australia’ through another
culture and language. And following Oswald de Andrade’s ‘anthropophagy’, it proposes and
enacts the cannibalising of the ‘foreign(er)’, the digestion of foreign stereotypes to produce new
identities (S. S. R. Mott, 2006).

A autora tem apreço por tudo o que espanta, desconcerta, desloca, faz rir e duvidar,
até de si mesma. Teve a oportunidade de ser orientada pelo professor pesquisador
australiano aborígene, Dr Mark Minchington, que a instigou a cultivar sua identi-
dade artística não fixável. A atriz se define nesse instante como uma performadora
trági-pândega menor, uma vaga lume que tem conexão com outros mundos e com
o deus do teatro, Dionísio. Artista menor auto-irônica e plebeia que diz sim ao que é
incerto, terrível, frágil, insignificante e galhofeiro.

Os pequenos nove infernos de Dante Alighieri do século XIV se atualizam em uma


viagem para dentro de nove círculos manifestados em caixas de surpresas. Sob essa
perspectiva podemos afirmar que Os Mortos, ainda em processo de errância, pre-
tende “ter a força de estar à altura de sua fraqueza, em lugar de permanecer na fra-
queza de cultivar apenas a força” (Pélbart, 2019). Para o filósofo húngaro Pelbart, a
perpetuação do aparecimento de vaga-lumes (os autores substituem os besouros
luminescentes por um teatro pequeno de peep shows, no caso), necessita de pe-
numbra, silêncio, fragilidade e desorganização esquisocênica. O que caracteriza a
esquisocenia, diz Pelbart, é trazer à cena certa experiência-limite em prol de existên-
cias menores. Ele continua a falar do devir-minoritário de cada um:

Ou modos menores de existir, que não se restringem às minorias concretas necessariamente, como
os usuários de saúde mental, uma população excluída e preterida, mas ao devir minoritário de todos
os atores, artistas da cena e de cada um- como dizia Foucault, todos nós temos um lado de plebe, ou
como diria Guattari, todos nós temos virtualmente ao menos um devir-esquiso (2019).

Uma história de Kafka comovente por sua incerteza auto-irônica é a de Josefina, a


Cantora. Essa devir-artista é uma carismática e alegre criatura vampirizada, até certo
ponto, por seu talento. Seria uma impostora, uma farsante ? Uma das estações de
Os Mortos será ocupada por essa criatura, que canta à altura de sua fraqueza e fé
esquisocênica, em seu deserto preterido e povoado por camundongos, chegando a
fingir e ou acreditar ser uma cantora, uma grande artista criadora:

Who is Josefine the Songstress? Josefine is a mysterious and refined singer among simple and rude
people, thats who. She is also the protagonist in another final text, this time Kafkaś last story from
1924, Josefine, the Songstress or: the Mouse People. Josefine has a rare talent among the mouse pe-
ople. She can sing and beautifully so, and she has a dedicated though fickle audience. To the mouse

406
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

people Josefine seems to bring moments of levity with her music--but is it music or escapism? Some
question the veracity of her talent and suspect she is only piping the notes (S. S. R. Mott, 2006, p. 65).

Figura 3: Pepper’s Ghost visto pela lente do visor

À altura de sua fraqueza, Josefina desmaia e canta,desaparece e brilha novamente


em êxtase, livrando-se, assim, de sua individualidade fixa de cantora profissional.
Canta, ri de si mesma, gargalha, grune e entra em conflito? Não se sabe o quanto a
artista de palco se deixa consumir por suas paixões, afinal é sugada frequentemente
por seu maravilhoso talento à serviço do coletivo. Isso a cansa? Sim, parece. Sim, isso
a exaure. Seria Josefina uma escapista, tentativa fracassada de “imitação mal feita” de
uma arte cênica maior e produtiva, uma ironia patética em carne, osso e focinho de
um devir-artista maior? A cativante Josefina parece não sofrer de culpa cristã e po-
derá estar embriagada dionisiacamente de um delicioso fracasso, de ócio e loucura
feliz. Josefina finge ser a maluca de uma sociedade camundonga doente, para abrir
espaço para sua mal compreendida saúde mental?

Tudo isso pode nos remeter, apesar do estilo mais seco de Kafka, à obra satírica e po-
ética Os Cantos de Maldoror, do uruguaio francês Isidore Lucien Ducasse, conhecido
pelo pseudônimo literário de Conde de Lautréamont. De modo paródico e irônico,
Lautréamont imita a retórica tradicional, o estilo rebuscado dos discursos acadêmi-
cos e pregações de oradores religiosos.

Para sua atuação em Os Mortos a pesquisadora tem investigado fragmentos de tex-


tos que façam conexões entre teatro e vida, jogos do acaso, tragédia e alegria, morte

407
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

e desrazão. No momento, os cantos transgressores de Ducasse, poeta desmedido,


que morreu desconhecido aos 24 anos, causam lampejos dramatúrgicos e vertigens,
principalmente, por seus relatos ficcionais absurdos, que mostram com humor as
crueldades, delírios e perversões humanas. Lautreamont, adotado pelos surrealistas
da década de 1920 se tornou o símbolo da rebeldia, apesar da ausência quase total
de biografia, o que adicionou mistério à perplexidade provocada por sua obra, lida
somente 17 anos após sua morte.

Lautreamont atravessará como um fantasma os nove círculos de intertextualidades,


dialogando com a autoficção da atriz, a Divina Comédia de Dante, Josefina de Kafka,
a poesia de Hilda Hilst e os Cantos de Maldoror. Não se sabe exatamente o que está
pode devir, afirma a performer cavalo a ser montada por mortas, mortos, que adora
dar sorte para a possessão, jogar dados para o acaso em seus processos de compo-
sição cênica. No pluriverso de Os Mortos, a dramaturgia pretende associar o per-
formativo tecnizado à overdose de morbidez romântica satirizada e parodiada por
Lautréamont. Sua obra sarcástica e violenta “parece a obra de um louco pois à medi-
da que se vai lendo a consciência vai indo embora”, disse Gaston Bachelart, em 1963
(Lautréamont, 2008). Por exemplo, a história da feiticeira transformada em bola de
esterco, que havia metamorfoseado seus amantes em escaravelho, abutre e pelica-
no é excessiva e potencialmente engraçada. No Canto Primeiro, Isadore Ducasse diz:

Leitor, talvez queiras que eu invoque o ódio no começo desta obra! Quem te diz que não aspirarás,
banhado em inumeráveis volúpias, o quanto quiseres, com tuas narinas orgulhosas, grandes e
esguias, girando sobre teu ventre, como um tubarão, no ar belo e negro…

Direi por assentado, em poucas linhas, que Maldoror foi bom durante seus primeiros anos de
vida, em que viveu feliz; pronto. Logo reparou que havia nascido mau: fatalidade extraordinária!
(...) Não era mentiroso, confessava a verdade e dizia que era cruel. Humanos, ouvistes? Ele ousa
repeti-lo com esta pluma que treme! Assim pois, há um poder mais forte que a vontade… Maldi-
ção! (Lautréamont, 2008)

Figura 4: Fantasma ao volante

408
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

É estimulante o exercício cênico interpretativo de metamorfosear se em feiticeira e


depois de converter seus amantes em escaravelhos transforma-se, por fim, em uma
bola de esterco, com toda a ironia de Lautréamont corporificada. “Merda!” Dizem
atores antes de se lançarem ao rito teatral. Uma bola de esterco poderá ser um bom
presságio para uma criação. Além de toda essa mágica, torna-se fascinante revisitar
o processo de criação de um teatro pândego menor, associando-se à Literatura Me-
nor de Kafka e à sua nada contraditória e trágica personagem movediça Josefina. É
importante assinalar que há o significativo intuito, num devir fluxo esquisocênico,
de adicionar às nove auras fragmentárias, elementos do tenebroso Conde de Lau-
tréamont. Também, dando prosseguimento à inventividade e intensidade poética, a
instalação será veementemente contaminada pela ficcionista, criadora de persona-
gens imundos, a escritora brasileira Hilda Hilst.

Lautréamont e Hilda Hilst são latino americanos, hiperbólicos e sarcásticos. Hilda Hilst,
mesmo tendo afirmado que não queria ser lida como distração, tem em sua obra forte
dose de humor: que segundo a autora, é imprescindível para salvar-se. Uma das nove
estações será baseada em uma crônica chamada Receitas Antitédio Carnavalesco, de
Hilda Hilst, publicada originalmente no jornal Correio Popular em 1993.

Hilda Hilst escreve:

Pequenas sugestões e receitas de espanto antitédio para senhores e donas de casa durante o
carnaval:

Pegue um nabo. Coloque duas ou três palavras dentro dele, por exemplo:bastão, ouro, amplidão.
Chacoalhe. Você não vai ouvir ruído algum. É normal. Aí ajoelhe-se com o nabo na mão e diga:

Com o bastão que me foi dado


Com o ouro que me foi tirado
E sem nenhuma amplidão
De conceitos e dados
Quero renascer brasileira
E poeta
Quem te ouvir vai ficar besta

II

Colha um pé de couve e dois repolhos. Embrulhe-os. Faça as malas e atravesse a fronteira. Tá


na hora. (2018)

Alguns textos de Hilda Hilst, darão vitalidade ao apresentar frações dançantes e mu-
sicais de nonsense dramatúrgico na instalação cênica em constante desmontagem.
De acordo com Pelbart a estética contemporânea ecoa com o que vem do universo
da psicose por ser fracionária e fluxionária, não narrativa e não representacional. Não

409
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

se trata de expressar um universo interior já existente, diz o filósofo, mas sobretudo


de criar um estado, um trajeto, uma pista, uma aura, e nessas passagens (des)enca-
deadas ir produzindo novos alargamentos e novas contrações de tempo, de espaço,
de corporeidade e de afeto, e por fim, um pluriverso à imagem e semelhança desses
deslocamentos.

Pelbart destaca a importância do trágico no sentido mais rigoroso:

Toda a arte dos diretores residiu em recusar o dramalhão sentimental ou psicológico em favor
do trágico no seu sentido mais rigoroso. Seria necessário, para precisar esse tema, novamente
evocar Nietzsche e toda a questão do dionisíaco, da relação dos gregos com a dor e a morte, do
plus de vitalidade que segundo o filósofo eles extraíram do lado tenebroso da vida, da alegre
afirmação do efêmero e do múltiplo que alguns intérpretes de Nietzsche tão bem souberam pôr
em evidência (2000).

O filósofo assinala que em nosso contexto o teatro oferece um campo de arrebatamen-


to privilegiado, um plano de composição onde tudo ganha consistência desde que
passe por uma metamorfose mágica e poética, que deixa o destoante receber lugar,
o pesado ficar leve e o etéreo ganhar corpo. Nessa perspectiva as nove caixas à deriva
são,de fato, nove errâncias enfreáveis em seus nomadismos bizarros. Nove vagabunda-
gens tenebrosas incapturáveis em corpos espectrais atravessados por uma transmuta-
ção processual. Nove formas de vida e de morte e em cumplicidade com um “teatro de
horrores chamado história do Brasil”, desenhando outras maneiras de um devir tragica-
mente alegre, reinventando corporeidades ao longo dos combates e do incognoscível:
jogo de dados que não conseguimos evitar. E como diria Maldoror: maldição!

Teatro é lugar de onde se vê, se escuta, se afeta, se erra e, nesse caso, se multiplica e
entorpece o real em nove pequenos mundos inevitavelmente pândegos e à deriva
teatral e sonora. Os Mortos tem como intuito deixar pistas, fazer viver e deixar mor-
rer, tentar reconhecer o quê, no meio do inferno, não é inferno, e resguardá-lo, e abrir
cosmos, universos de alteridades. A proposta composicional em processo é uma in-
vestigação mágica e coletiva de um teatro tecnológico menor e experimentação po-
lítica de produção de sentidos destoantes,corações expostos,pandemônios, cenas
dos fluxos das possessões de uma performadora pan-teatral porosa atravessada por
seus amigos invisíveis. Solidão povoada de seres e vozes de brinquedo. Caixinhas de
música dissidentes. Josefina dos pepper ghosts a pandegar. Receitas anti tédio de
um Maldoror carnavalesco.

Referências bibliográficas
Balzer, R. (1998). Peepshows: A Visual History. New York: Harry N. Abrams, Inc.

Deleuze, G., & Guattari, F. (2014). Kafka: Por uma literatura menor. Autêntica editora.

410
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Hilst, H. (2018). Hist, Hilda, 132 Crônicas: Cascos & carícias e outros escritos.
Nova Fronteira.

Lautréamont, C. de. (2008). Os Cantos de Maldoror (C. Willer, Trad.). São Paulo: Iluminuras.

Mott, I. (2009). Close: Mute video installation in null extension. Revista do Programa
de Pós-Graduação em Arte da UnB, 8(2), 47–57.

Mott, I. (2013). O Fantasma Acústico. In F. Aleixo, J. T. Martins, & D. D. S. Jacobs, Práti-


cas e Poéticas Vocais (Vol. 2). Uberlândia: EDUFU.

Mott, I. (2017). Botanica: Navigable, immersive sound art. Apresentado em 16o


Encontro Internacional de Arte e Tecnologia, Porto, Portugal.

Mott, I., & Keller, T. (no prelo). Three-dimensional sound design with Mosca. Apre-
sentado em 18o Encontro Internacional de Arte e Tecnologia, Faculdade de Belas
Artes da Universidade de Lisboa.

Mott, S. S. R. (2006). Little World: An antropofagic and autobiographic perfor-


mance (PhD thesis). Victoria University.

Nietzsche, F. (2006). Crepúsculo dos Ídolos: Ou Como se filosofa com o martelo (P.
C. de Souza, Trad.). São Paulo: Companhia das letras.

Pélbart, P. P. (2000). Vertigem Por Um Fio. Iluminuras.

Pélbart, P. P. (2019). Ensaios do Assombro. n-1 edições.

Speaight, G. (1989). Professor Pepper’s Ghost. Theatre Notebook, 43(1), 16–24.

411
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Vasileios Bouzas
Sharing non places
Κοινωνία μη τόπων

Abstract
The paper describes an interactive installation which involves the production
of audiovisual material from passengers’ movements in a ‘non-place’ such as a
subway station. This public intervention aims at investigating the invisible orga-
nic relations which are momentarily structured by the passage of users within
a particular spatial context into a public space that exudes “conventional lone-
liness”. Each passenger is considered to be the light bearer in a spatial arrange-
ment of cells and is in a constant interaction with the installation through his
body movement. The produced visual and sound material is the result of the
relation of the bodies’ movements and positions over a keyboard’s imprint on
the floor, and consequently the result of the multiplicity of their trajectories in
the given space. It also analyzes the way in which this installation constitutes a
mechanism for converting the flow of the bodies’ movements in real space, to
audio and visual signals that can take multiple forms and have multiple uses.
Keywords: Body, Space, Flow, Mapping, Interaction.

Σύνοψη
Το έγγραφο αναφέρεται σε μια διαδραστική εγκατάσταση που αφορά την
παραγωγή οπτικοακουστικού υλικού από κινήσεις επιβατών σε ένα «μη τόπο» όπως
είναι ο σταθμό του μετρό. Αυτή η δημόσια παρέμβαση αποσκοπεί στη διερεύνηση
των αόρατων οργανικών σχέσεων που στιγμιαία δομούνται από το πέρασμα των
χρηστών μέσα σε ένα συγκεκριμένο χωρικό πλαίσιο σε ένα συγκεκριμένο δημόσιο
χώρο που αποπνέει “συμβατική μοναξιά”. Κάθε επιβάτης θεωρείται o φορέας
του φωτός και βρίσκεται σε συνεχή αλληλεπίδραση με την εγκατάσταση μέσω
της κίνησης του σώματός του. Το παραγόμενο οπτικό και ηχητικό υλικό είναι το
αποτέλεσμα του συσχετισμού των κινήσεων και των θέσεων των σωμάτων πάνω σε
ένα αποτύπωμα του πληκτρολογίου στο πάτωμα και κατ’ επέκταση το αποτέλεσμα
της πολλαπλότητας των τροχιών τους στο υπόψη χώρο. Αναλύει επίσης τον τρόπο με
τον οποίο αυτή η εγκατάσταση αποτελεί ένα μηχανισμό για τη μετατροπή των ροών
των κινήσεων των σωμάτων στο πραγματικό χώρο, σε ηχητικά και οπτικά σήματα
που μπορούν να λάβουν πολλαπλές μορφές και χρήσεις.
Λέξεις κλειδιά: Σώμα, Χώρος, Ροή, Χαρτογράφηση, Διάδραση

412
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

The notion of the intervention in a non-place


The vision of space as a field of research and documentation of social relations, de-
veloped between individuals and groups, has started since the beginning of the last
century. Michel de Certeau (2011) states: “Places are fragmentary and inward-tur-
ning histories, pasts that others are not allowed to read, accumulated times that can
be unfolded but like stories held in reserve, remaining in an enigmatic state, sym-
bolizations encysted in the pain or the pleasure of the body. “I feel good here”, the
well-being under-expressed in the language it appears in like a fleeting glimmer is
a spatial practice.” (p.108). He also argues that “places people live in are like the pre-
sences of diverse absences” and that “what can be seen designates what is no longer
there...” He refers to a woman who lives in the Croix-Rousse district of Lyon and gives
an interview to Pierre Mayol saying: “Μemories tie us to that place…. It’s personal,
not interesting to anyone else, but after all that’s what gives a neighborhood its cha-
racter”. The writer adds that: “There is no place that is not haunted by many different
spirits hidden there in silence, spirits one can “invoce” or not” (p.108). Social anthro-
pologist Mark Auge (1995), referring to the no-place concept, writes: “If a place can
be defined as relational, historical and concerned with identity, then a place which
cannot be defined as relational, or historical or concerned with identity is a non-pla-
ce”. Auge characterizes non-places produced by supermodernity as non anthropo-
logical places that “do not integrate the earlier places: instead these are listed, clas-
sified, promoted to the status of places of memory, and assigned to a circumscribed
and specific position.” (p.79). “When Michel de Certeau mentions ‘non-places’, it is to
allude to a sort of negative quality of space, an absence of the place from itself, cau-
sed by the name it has been given” (Auge, 1995, p 85). Auge argues that places and
non-places are opposite entities that “the game of identity and relationships is con-
tinuously re-established” and he thinks that non-places, “which are the real measure
of our time”, could be quantified by totaling among others the airport and railway
stations as well as “the complex skein of cables and wireless networks that mobilize
extraterrestrial space for the purposes of such a communication so peculiar that it
often puts the individual in contact only with another image of himself.” (p.94). For
Auge (1995), non-spaces are certain physical spaces (airports, stations, new commer-
cial places, bands, etc.), as well as the relations that develop between them and the
traveling people. He argues that while anthropological historical spaces create a grid
of organic relations around them, non-spaces, on the contrary, exude a conventional
loneliness. He argues that the word non-place “designates two complementary but
distinct realities: spaces formed in relation to certain ends (transport, transit, com-
merce, leisure), and the relations that individuals have with these spaces”. He goes
on to say that “although these two sets of relationships overlap to a large extent”,
they “are not yet confused with each other, because the non-spaces mediate a whole
mass of relationships with the self and with others, which are only indirectly related
to their purposes” coming to the conclusion that “as anthropological places create

413
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

the organically social, so non-places create solitary contractuality” (p.94) and that
“the space of the non-space does not create unique identities, not only loneliness
and similarity” (p.85).

This intervention in a public space such as the subway station was designed within
the context of non-place theory in which the game of identity and relationships is
constantly redefined. The intervention aims to explore these invisible relations that
are momentarily formed by the passage of the users within a certain spatial context
in a particular public space that exudes this conventional loneliness, in a non-place
such as the transit space of the subway passengers. It aims to explore the relations
developed between personal and shared identities composed by the various cultural
and political practices, ethnicities, social classes as expressed by the places of the ori-
gins of the passengers that interact with the work. Passengers circulating around the
metro station are carriers of memories which are associated with objects, faces with
visible or even invisible elements of their regions identities. When referring to the
user’s memory, we refer to a multi-faceted and multi-recurrent memory that bears
images and sounds from different regions corresponding to the passengers’ origins.
A sliced space is created within the non-place, a space for gathering and seeking out
these relations of passengers’ memories by randomly interconnecting maps, images
and sounds of the various places of their origins all around the globe. The sliced spa-
ce marked by a keyboard’s trace on the floor functions as the area of deterritorializa-
tion where passengers’ identities are deconstructed and merge. When the positions
of the people change within the sliced space, the form of the work changes because
of the interaction between its parts. The “flow of the passengers” control the lighting
of the constructed “cells of information” as well as the audio emitted by the speakers.
It is within this particular fractured space that the non-place acquires a fluid identity
associated with passengers’ memories. Invisible relations arising from the past, thre-
ads of connections and disconnections are uncovered in the contents of the cells
which come to a contrast with the ‘windows’ of the non-spaces that “play no role in
any composition that are not integrated with anything; they simply bear witness, du-
ring a journey, to the coexistence of distinct individualities, perceived as equivalent
and unconnected” (Auge, 1995, p.111). Although the non-place are the opposite of
utopia and do not contain any organic society (Auge, 1995), it is within this negative
dimension of coexistence that invisible organic bonds are sought.

The “form” and the function of the “in situ” installation


The intervention or the interactive audiovisual installation may take different for-
ms depending on the space used and the way passengers interact with it. In other
words, we refer to an in situ installation adapted to the morphology of the space and
the way the users interact. According to the morphology of the site and the needs
of the interaction, the hives may be all gathered together or scattered in the space,
may prevent or not the free passage of the passengers, may take the form of a wall

414
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

or part of a wall or may take the form of a wall-mounted intervention as it is shown


in the existing representations of the installation (the illustrations provided for the
intervention have a specific form after being designed for a particular station). In
any case, the aim is to make the operation of the intervention perceivable by the
passengers and therefore the trace as well as the information hives should be in a
visible position to inform passengers of the flows within the station and not obstruct
the operation of the station.

Figure 1. Front and top view of the installation. The parts of the installation (http://vasileiosbouzas.
artroom7.com/nonplaceflow/function.html)

The intervention consists of the following parts:

a. a red grid on the floor, containing a trace of a keyboard. Alphabetic characters are
inherent in the design and operation of the installation without being visible.

b. the corresponding movement detection sensors of the passengers movements


which are located above each keyboard character and on the ceiling of the space
along with their reflectors mounted on the floor in an analogous configuration in
order to form part of the track.

c. The corresponding sound signal transmitters mounted on the ceiling above each
keyboard character.

415
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

d. The corresponding number of cubes (hexagons which according to Plato symbo-


lize the Earth) which are made of transparent material and carry lights on their back
side. The interior of the cubes or other called information hives or cells, contain the
elements that refer to the memories of the passengers.

The function of the installation concerns the way the local as expressed by the trace
of the sliced space, is linked up to the global as expressed by the audiovisual output
of the cells. The concept of the passengers’ impact on the illumination and readabi-
lity of the cells has multiple meanings and parallels. Each passenger brings the light
to one of the project’s cells and reveals its content. This light stays on for a while just
like the passenger in the station (Figure 2). Each position on the

Figure 2. Front and top view of the installation. For the function of the installation
see author’s URL: http://vasileiosbouzas.artroom7.com/nonplaceflow/.

keyboard corresponds to an optical signal, which is revealed by the illumination of


the layers enclosed in the corresponding hive. At the same time, an audio signal is
emitted by the corresponding speakers. In particular, each sensor corresponds to an

416
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

alphabetic character that is activated by the passage of the subway user. Each pas-
senger’s body, depending on his position, the length of his stay, his direction in spa-
ce and in combination with the rest of the bodies, reveals the audiovisual material of
a beehive for a specific chronic period. The sensors (infrared photoelectric sensors)
located on the ceiling of the building along with their corresponding reflectors on
the floor create an invisible grid of vertical lines which are the beams emitted from
the transmitter to the reflectors and vice versa (Figure 3) that constantly detects
the passengers’ movements (http://vasileiosbouzas.artroom7.com/nonplaceflow/).
Each time a passenger passes under a sensor and over the corresponding reflector
and interrupts the beam sent by the first to the second, the sensor sends a signal
to the corresponding beehive and activates its backlights. The backlights turn the
opaque outer film of the beehive to transparent, revealing a visual assembly of the
layered illustrations. At the same time an analogous signal is sent to the speaker,
which corresponds to the activated sensor, resulting in the emission of a sound for
a certain period. If

Figure 3. The grid of the invisible vertical lines of beams.

the passenger activates a larger number of sensors, the beehives corresponding to


his trajectory are illuminated and disclose a larger portion of the overall image for
a few seconds. An analogous number of sounds is emitted. Thus, the installation
never remains static but is constantly updated, creating new pictorial and sonic
compositions each time the number and the positions of the passengers on the
keyboard’s trace alter.

417
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A network of sites that correspond to the separate parts of the trace is created by the
revelation of the hives’ contents. Each cell is the unit that composes the installation,
the way that the non-linear narrative developed by the flows encompasses the maps
of origin. It is the distinct unit where the memories are enclosed. The existence of
the cell refers to the closet, which as the poet Milosz says is full of the mute turmoil
of memories. When the passenger stays motionless above a position of the trace, or
he moves to the next one, the backlights of the hive are turned off and the images
become invisible. As soon as the backlights of the hive are turned off by the de-
activation of the corresponding position, the content of the cell becomes invisible.
Their revelation remains instantaneous. Nightlife begins again into the cell, capable
to fuel the imagination. Paraphrasing the French poet Charles Cros and putting cells
instead of furniture: to discover the mystery of the hive to reach the imaginary world
through the small mirrors, he needed to have a quick eye well-sharpened in hearing
and attention. It is the attention that prepares the senses for the instant. (Bachelard,
1992). If the secrets were revealed, indiscretion fills, as Gaston Bachelard observes.
The images placed in each box become in a way “secret” since their revelation re-
mains momentary.

Figure 4. A sample of the imagery of a layer enclosed into a cell of the installation.

The imagery enclosed in the cells of the installations do not have a common referen-
ce scale, nor is under any linear dependence. They are parts of maps and illustrations
of remote geographically areas which have been elaborated in many different ways.
Passengers may wander as flaneurs over the trace, uncover a deconstructed “map”
resembling a psychogeographic map and create visual and audio connections
among various distant regions.

The cubes are made of transparent material and their outer surface acts as a reflec-
tor of light, thus it is reflecting the passenger’s images (Figure 2). Each user who is
interacting with the installation is at the same time confronted with his image as
it appears on the reflective boxed surfasse (http://vasileiosbouzas.artroom7.com/

418
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

nonplaceflow/). In this way three distinct spaces interact during the operation of the
installation: the actual space which is mainly defined by the marked areas of interac-
tion, the virtual mirrored space created the reflective surfaces of the cells, and the
“space of places” that corresponds to the interior space of the activated cells and is
uncovered by users’ movements. With each body movement within the real space,
the relationships of the three spaces are readjusted.

The extension of the installation


It is obvious that the installation constitutes an instrument that can acquire multiple
forms, pertaining to the interaction between the movements of the bodies within a
site and the produced audiovisual environment. It is actually an audiovisual instru-
ment that transforms the flows of the movements of the passengers to keywords sin-
ce every position of the keyboard’s trace on the floor corresponds to a letter of the
alphabet, to visual material since maps and images could be revealed, to different
compositions of flat colors since backlights could emit different light frequencies and
finally to various soundscapes. If the cells, instead of printed imagery, contain multi-
ple appropriate displays displaying moving imagery uploaded from on-line databases
consisting of information of classified hypermedia maps and sounds, the installation
acquires new conceptual references since it links up electronically, imagery, sounds
and texts, in an interactive network that refers to people in various geographical con-
texts. Then, the non-place is connected with the “network society”, the “space of flows”
as it is described by Manuel Castells (2000). Through the acquisition of the audiovisual
material from databases, randomness is intensified and acquires a new range.

Figure 5. A lighted cell of the installation.

In any case what remains fixed as a point of reference is the use of the relation between
the motion of the bodies, the flows in a non space territory and the produced audio
and visual material. Of course the design demands the creation and function of many

419
Instalação e Espaço/
Design Interativo #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

computing scripts that control the interaction and contain the secret codes of trans-
formation and there are definitely secondary steps that form the appearance and the
aesthetic values of the final output. Although different forms of the installation were
presented, the possibilities for enlargement and diversification were not exhausted.

Each case involves a new design that is open to explorations and implementations in
public spaces and non spaces in particular. Above all, the installation is an audiovisu-
al work designed to liberate the creative imagination of users, raise questions about
its use and operation, strengthen the socialization in a non conventional way, and
finally acquire the identity of a creative game within a public space.

References
Auge, M. (1995). Non Places: Ιntroduction to an Αnthropology of Super moder-
nity. London,Verso.

Bachelard, G. (1992). Η ποιητική του χώρου. Athens, Εκδόσεις Χατζινικολή.

Castells, M. (2000). The Rise of the Network Society (2nd ed.). West Succex UK,
Willey Blackwell.

Certeau, M. (2011). The Practice of Everyday Life. Berkeley, University of California Press.

420
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Arte e Biologia:
Distopias e Utopias
Art and Biology: Dystopias and Utopias

421
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Antenor Ferreira Corrêa1


Internet das coisas: entre computação pervasiva e distopias
Internet of Things: between pervasive computing and dystopias

Resumo
A implantação da IoT é aqui considerada sob perspectivas artística e distópica.
Nesta leitura, faço uso de passagens do livro Admirável Mundo Novo de Aldous
Huxley como motivador de questões tais como a função da arte na sociedade, o
artista como mediador entre público e tecnologia, vigilância versus liberdade e
as relações entre sensibilidade e conceptualidade. Algumas obras de arte e ex-
posições são analisadas com intuito de promover o diálogo entre arte e tecno-
logia, especialmente na relação da arte com a IoT. Essas análises fundamentam
as considerações finais a respeito da refuncionalização da arte e, consequente-
mente, do papel do artista na sociedade, compreendendo-o não somente como
criador de produtos artísticos, mas como pessoa responsável por harmonizar
imaginação, entendimento, liberdade, beleza e moralidade.
Palavras-chave: internet das coisas, distopia, arte e tecnologia, ciber-vigilância.

Abstract
The IoT establishment is considered under artistic and dystopic perspectives. In this
reading, I use passages from Aldous Huxley’s Brave New World as a motivator for
issues such as the function of art in society, the role of the artist as mediator between
public and technology, vigilance versus freedom, and the relationship between sen-
sitivity and conceptuality. Some works of art and exhibitions are commented intent-
ing to promote a dialogue between art and technology, especially in the relation of
art with IoT. These analysis ground the final considerations on the function of art
and, consequently, on the role of the artist in society, understanding him not only as
creator of artistic products, but as a person responsible for harmonizing imagina-
tion, understanding, freedom, beauty and morality.
Keywords: internet of things, dystopia, art and technology, cyber-surveillance.

1 Professor associado da Universidade de Brasília (UnB); coordenador do MediaLab – Laboratório


de Arte Computacional da UnB; autor dos livros “Análise Musical Como Princípio Computacional”
(2014); “Music in an Intercultural Perspective” (2016). Sítio: www.antenor.mus.br

422
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Introdução
Certa vez, durante uma aula na Universidade da Califórnia em Riverside, todos os
dispositivos móveis (como telefones, pagers e tablets) das pessoas presentes come-
çaram a soar simultaneamente. Estávamos recebendo mensagens por parte de uma
agência do governo do estado da Califórnia que avisava sobre a alta probabilidade
da ocorrência de um terremoto. Como é sabido, o estado da Califórnia é propenso
a frequentes abalos sísmicos por situar-se na borda de uma placa tectônica e na
chamada falha de San Andreas. Tendo conhecimento dessa situação geográfica pe-
culiar, eu recebi a mensagem enviada pelo governo como algo bem vindo e positivo,
pois desse modo a população tinha tempo para evacuar as áreas de maior risco e
tomar outras medidas adequadas para a segurança geral. No entanto, diversas pes-
soas ao receberem aquela mensagem começaram a protestar sob a justificativa de
que não haviam fornecido seus respectivos números de telefone àquela agência
governamental e tampouco consentiam que seus números fossem hackeados pelo
governo sob qualquer pretexto. Ou seja, muitos interpretaram aquele procedimento
como incorreto e o perceberam como invasão de privacidade.

Essa situação aponta para duas maneiras ou reações distintas ao interpretar o mes-
mo fato e, guardadas as devidas proporções, serve para ilustrar o que vem ocorren-
do quando o assunto é a vindoura Internet das Coisas (IoT). As discussões a esse
respeito têm polarizado opiniões, incentivado a criação de teorias da conspiração e
formulado prognósticos apontado para futuros utópicos e distópicos. O grupo dos
que percebem a IoT como a ponte definitiva para um mundo utópico entendem-
-na sob a perspectiva da existência de uma realidade tecnológica que irá conectar
objetos com intuito de sanar problemas e proporcionar uma melhor condição de
vida a todas as pessoas. O grupo distópico analisa a IoT como a porta aberta para a
definitiva invasão da privacidade dos cidadãos, instaurando-se assim um estado de
perene vigilância.

Partindo da constatada dicotomia trazida com essa nova tecnologia, neste artigo,
pretendo considerar a questão da implantação da IoT pelas perspectivas artística e
distópica. Nesta leitura, faço uso de passagens do livro distópico de Aldous Huxley
Admirável Mundo Novo como motivador de certas questões como, por exemplo, a
função da arte na sociedade, o artista como mediador entre público e tecnologia,
vigilância versus liberdade e as relações entre sensibilidade e conceptualidade.

Internet das coisas e Brainternet


A designação internet das coisas leva a entender que há uma internet das pessoas.
Porém, a rigor, pessoas não se conectam à rede mundial, são os aparelhos e máqui-

423
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

nas que o fazem2. As pessoas têm acesso aos dados disponíveis na web por meio de
equipamentos, dispositivos e programas. Ainda estamos no inicio do processo que
permitirá a existência de um ser como o agente Gabriel Vaughan da série de TV nor-
te-americana Intelligence que teve um microchip implantado em seu cérebro e assim
tornou-se o primeiro ser humano a ser conectado diretamente à rede de informações
globalizada. Também não está próxima a mais fantasiosa conexão direta no cérebro
do tipo de equipamento usado por Neo, herói da trilogia Matrix, que o permite fazer
downloads de quaisquer informações diretamente para seu cérebro e a partir daí lite-
ralmente incorporá-las aos seus conhecimentos, mesmo em se tratando de saberes
que demandem um exercício físico motor elaborado, como as lutas marciais.

É sabido que a busca pela integração humano-máquina sem intermediários físicos


não existe somente no plano da ficção científica. Um dos maiores financiadores de
projetos nessa área é certamente o empresário Elon Musk que investe altas somas
de dinheiro em pesquisas para o desenvolvimento da tecnologia Neural Lace, cujo
objetivo é justamente viabilizar a conexão de cérebros humanos com computadores
sem a necessidade de um intermediário físico. A motivação alegada por Musk para
o alto investimento em projetos dessa porte é a necessidade de os humanos acom-
panharem os avanços da Inteligência Artificial, pois se assim não o fizerem, tornar-
-se-ão irrelevantes. Neuralink é uma das empresas de Musk que, segundo ele, tem o
objetivo de criar uma tecnologia que permita “ligar o cérebro humano diretamente
a computadores e outros dispositivos eletrônicos através de implantes cibernéticos
permitindo que a mente faça interface com dispositivos e programas”3.

Na IoT o que existe é a dispensa de controle por parte do elemento humano, desig-
nando, assim, a possibilidade de comunicação direta entre os objetos, que podem
trocar informações prescindindo da autorizações das pessoas. Essa delegação via-
biliza a troca de dados de objetos com outros objetos, com centrais operadoras de
rede de dados, satélites ou mesmo com dispositivos móveis operados por pessoas.

2 O artista britânico Neil Harbisson (1984) tornou-se a primeira pessoa reconhecidamente como
cyborg. Harbisson implantou um sensor diretamente em seu cérebro que lhe permite converter
ondas de luz em ondas sonoras. Dessa maneira, ele consegue, por meio de uma conversão cines-
tésica, ver em cores, já que Harbisson nasceu com uma disfunção que o impede de enxergar as
cores. Harbisson afirma, em sua entrevista no Ted Talks, possuir em seu implante uma espécie de
chip que permite conexão com a internet. Mesmo admitindo essa possibilidade, ainda seria o chip o
responsável por estabelecer a conexão, e não o cérebro de Harbisson. No instituto que criou, outros
adeptos implantaram sensores no corpo, tal como a artista Moon Ribas, que possui um sensor que
capta movimentos tectônicos. Ver: www.cyborgarts.com
3 Linking the human brain directly to computers and other electronic devices via cybernetic im-
plants allowing the mind to interface with gadgets and programs”. Texto original disponível em
https://interestingengineering.com/neuralink-how-the-human-brain-will-download-directly-from-
-a-computer

424
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Há diversos informes divulgados por institutos de pesquisa mostrando que o nú-


mero de objetos conectados à rede já ultrapassa em muito o número de pessoas
conectadas. Na verdade, os objetos como computadores, tablets e telefones celula-
res já estão conectados. Contudo, na IoT os objetos de uso mais corriqueiros como
uma cafeteira, um relógio, uma geladeira, entre todos os outros, ascenderiam para o
estatuto de “smart” e, assim, vão adquirir a possibilidade de trocar dados com outros
objetos smart independentemente de intermediário humano.

Obviamente, refletir sobre esse assunto e sobre essa nova condição sócio-tecnológi-
ca é muito importante, pois afeta a tudo e a todos. Essas discussões já se acirraram
há pelo menos 10 anos, causando a polarização de opiniões já citada na Introdução.
Há inúmeros problemas técnicos a serem solucionados para a implantação da IoT,
sobretudo nos países menos desenvolvidos como o Brasil, onde devido ao excesso
de burocracia, a inaptidão de governantes e à corrupção, as resoluções tendem a de-
morar para acontecer. No plano tecnológico, talvez um dos principais desafios para o
mercado brasileiro será a migração da tecnologia 4G de transmissão de dados, com
todos os equipamentos, dispositivos e programas existentes, para a nova tecnologia
5G. Foi somente em 24 de maio de 2019 que a Anatel (agência brasileira responsável
por deliberar assuntos relativos às telecomunicações) divulgou documento sobre o
regulamento das condições para o uso das faixas de radio frequências de 2,3 GHz e
de 3,5 GHz, faixas estas essenciais para a implantação da tecnologia 5G4. Contudo,
esses aspectos técnicos não são o foco das considerações que aqui pretendo apre-
sentar, tendo somente o intuito de indicar que o processo da IoT no Brasil é demo-
rado. Para análises sobre aspectos técnicos ligados à IoT ver Al-Fuqaha et al (2015) e
Atzoria et al (2010).

As vantagens advindas com a IoT que animam os utopistas seriam a maior comodi-
dade e agilidade na realização e prevenção de certas tarefas. Uma casa com apare-
lhos de ar-condicionado poderia ajustar automaticamente a temperatura ideal em
razão da presença e da ausência de pessoas naquele espaço, economizando, então,
energia elétrica. Câmeras de vídeo podem monitorar produtos nas prateleiras das
lojas e avisar ao fornecedor da necessidade da reposição de itens. Robôs e carros
podem informar sobre a necessidade de manutenção ou iminência de alguma falha.
A agricultura já vem beneficiando-se de aparelhos de irrigação controlados por sen-
sores, que analisam as condições atmosféricas e, a partir desses dados, determinam
se a irrigação se faz ou não necessária.

Dentre os problemas recorrentes apontados com a implantação da IoT estão a ci-


tada perda de privacidade, a perda de empregos e a perda de segurança. Tome-se
como indicativo desse problema a crescente substituição de mão de obra humana

4 Notícia disponível em: http://www.anatel.gov.br/institucional/component/content/article?id=2278

425
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

por autômatos. A empresa suíça ABB desenvolveu um robô (YuMi) que desempenha
a tarefa de controle de qualidade de peso e diâmetro de embalagens de desodoran-
te. Esse robô consegue analisar 24 itens em 10 minutos, enquanto o mesmo serviço
é feito por um humano em 40 minutos5. Atualmente, conectamos computadores,
telefones e tablets à internet. Esses aparelhos preocupam os técnicos em segurança,
pois podem ser hackeados. Imagine-se, então, um cenário no qual todas as coisas,
como máquina de lavar, marca-passo cardíaco, um carro ou um satélite puderem ser
invadidos e usados mal intencionalmente. Alargando as perspectivas preocupantes,
Greenfield e Kim questionam: “estariam os arquitetos das cidades inteligentes sus-
cetíveis à responsabilização democrática, considerando o nível de interferência que
podem exercer na vida das pessoas no contexto atual?” (apud Lacerda, 2015). Deci-
sões de arquitetos são atos políticos em âmbito urbano – do mesmo modo como a
autoria de um algoritmo destinado a promover a distribuição de recursos cívicos em
uma cidade. Se um carro sem motorista atropelar uma pessoa quem será o respon-
sável? o motorista que não dirigia? O operador do radar? Quem escreveu o progra-
ma? Quem administra a empresa que cuida da conexão do carro com o satélite? Se
agências governamentais terão acesso ilimitado a toda informação dos cidadãos,
que uso farão disso?

Essas, dentre outras, são algumas questões que preocupam grande parcela dos pen-
sadores sobre a IoT, sem adentrar ao campo mais fictício de filmes como Terminator
ou Matrix que prevêem o domínio das máquinas e escravidão dos humanos, levando
a uma visão totalmente distópica para o futuro da espécie to tipo “high tech - low life”.

Utopias, Distopias e Arte


Previsões a respeito do futuro desde sempre têm servido de inspiração aos artis-
tas, que profeticamente antecipam situações e acabam também contribuindo para
fomentar análises e discussões sobre assuntos coligados. Nam June Paik, além de
pioneiro da vídeo arte, foi também o primeiro a prognosticar o avanço da rede de
computadores de um modo que viria a conectar e integrar todo o mundo. Em um
texto escrito há 45 anos intitulado “Media Planning for the Postindustrial Society”,
Paik prevê a existência de super rodovias eletrônicas (eletronic superhighways) e
uma rede de comunicação interligando o planeta por meio de satélites. As ideias
a respeito do futuro sempre motivaram Paik a concretizar suas visões em obras de
arte, como é o caso das instalações Electronic Superhighway: Continental U.S., Alaska,
Hawaii (1995) e Internet Dream (1994). Internet Dream (Figura 1), por exemplo, trata
da montagem de 52 monitores de TV que, ao reproduzirem vídeos gerados e pro-
cessados eletronicamente, formam uma espécie de colcha-de-retalhos visual. Nessa

5 https://www1.folha.uol.com.br/seminariosfolha/2019/02/faltam-agua-e-esgoto-para-que-a-in-
ternet-das-coisas-avance-no-brasil.shtml

426
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

obra, Paik vislumbra o que poderia acontecer com Internet (que recém se instaurava
nos lares norte-americanos) em alguns anos, ou seja, o aumento e acúmulo crescen-
te de informação levando a certa saturação ou caoticidade ordenada.6

Figura 1: Nam June Paik, Internet Dream, 1994. Fonte: ZKM

Embora, no início da videoarte, Paik fosse um crítico severo da televisão (veja adian-
te), ele possuía uma visão positiva a respeito da tecnologia e durante sua carreira fez
uso intenso em suas obras de aparatos e conceitos tecnológicos. No entanto, outros
artistas possuíam uma visão menos utópica do futuro da humanidade. Um dos au-
tores que contundentemente apresentou essa visão distópica foi Aldous Huxley. Em
seu livro Brave New World, lançado em 1932, Huxley retrata uma sociedade futura
na qual todos os aspectos da vida são automatizados, programados e controlados. A
sociedade é, assim, dividida em classes e totalmente estruturada com o suposto ob-
jetivo de fazer com que todos se sintam felizes. Admirável Mundo Novo (como o título
foi traduzido ao português) causou grande impacto e gerou uma série de obras ins-
piradas ou baseadas no livro. Recebeu duas adaptações para a TV, em 1980 dirigida
por Burt Brinckerhoff e outra em 1998 dirigida por Leslie Libman and Larry Williams.
No teatro foi adaptada por Dawn King e recebeu montagem do Royal & Derngate,
Northampton em associação com o Touring Consortium Theatre Company, estreada
na Inglaterra em 2015. Além disso, o livro inspirou outros livros como Player Piano

6 Essa obra foi originalmente comissionada pela emissora de televisão RTL, para o foyer de sua sede
em Colônia. No momento da mudança da RTL para Berlim, o trabalho foi doado para o ZKM. Texto
extraído do site da ZKM (https://zkm.de/de/werk/internet-dream). ZKM Centro para Artes e Media é
uma das maiores casas de cultura da Alemanha.

427
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

(1952) de Kurt Vonnegut, Clockwork Orange (1962) de Anthony Burgess e o famoso


1984 (1949) de George Orwell. Na música, Brave New World inspirou o álbum homô-
nimo lançado em 2000 pela banda de heavy metal Iron Maiden. Brave New World é
também o título de uma das canções deste disco. Mesmo no Brasil, o livro de Huxley
inspirou as músicas Admirável Gado Novo (1979) do cantor e compositor Zé Rama-
lho e a canção Admirável Chip Novo (2003) que dá título ao CD de estreia da cantora
Pitty. A artista e ilustradora eslovaca Katarina Macurova inspirou-se no livro para sua
série Brave New World (Figura 2). No âmbito acadêmico, o livro de Huxley motivou
a publicação de diversos artigos como, por exemplo, o artigo de Laura Frost (2006)
intitulado Huxley’s Feelies: The Cinema of Sensation in “Brave New World”, no qual a
autora comenta o fato de Huxley ter-se manifestado contrário à utilização de som no
cinema, isto é, na passagem do cinema mudo para os chamados talkies. Após assistir
ao filme The Jazz Singer (1927) com Al Jolson no papel principal, Huxley escreveu o
ensaio “Silence is Gold” reprovando o cinema com som que, segundo ele, era “o dis-
positivo mais recente e mais assustador de economia de criação para a produção de
entretenimento padronizado”7 (Huxley, apud Frost, 2006, p.443).

Curiosamente, mesmo um visionário como Huxley percebia com muitas reservas


certos avanços tecnológicos. Evidência disso é o Brave New World Revisited (1958),
livro no qual Huxley manifesta-se preocupado com os rumos do mundo que, segun-
do ele, estava caminhando para tornar-se uma ditadura do mesmo tipo descrito em
Admirável Mundo Novo. Especificamente sobre as novas tecnologias, Huxley enten-
de que estas provocam mudanças na condição social e, por vezes, essas transfor-
mações não foram integral ou parcialmente previstas e, quando se instauram, aca-
bam por induzir as pessoas a agir de forma como não gostariam de agir. A televisão,
por exemplo, é o tipo de novidade tecnológica que pode interferir restringindo a
liberdade dos cidadãos, pois sua programação de entretenimento pode criar uma
dependência nas pessoas e também aliená-las. Huxley argumenta que se o mesmo
tipo de programação for veiculado diariamente, essa será a única visão de mundo
que as pessoas terão, e isso levaria à padronização do pensamento, geraria cidadãos
a-críticos, mesmo que estes estivessem felizes com aquilo assistido diariamente na
televisão. Neste sentido, a TV, e consequentemente toda a programação massiva de
entretenimento fútil funcionaria como a “soma” de Admirável Mundo Novo, pílula
medicinal que induzia a pessoa a um estado de felicidade. Paik também parece su-
gerir o mesmo tipo de anestesiamento sob o efeito da programação de entreteni-
mento veiculado pela TV (vide adiante, Figura 3).

Por fim, o livro de Huxley motivou a realização de exibições em galerias de arte ao re-
dor do mundo, como por exemplo, a exposição Brave New Worlds de 2007 da Walker

7 The latest and most frightful creation-saving device for the production of standardized amuse-
ment. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/20479785?seq=1#page_scan_tab_contents

428
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Art Center em Minneapolis, Estados Unidos. De acordo com Doryun Chong, ao lado
de Yasmil Raymond, curador dessa exibição, “a expressão [Brave New Worlds], na lin-
guagem cotidiana, de fato expressa ambivalência em relação ao implacável avanço
da modernidade, e é precisamente isso o que é encontrado no livro de Huxley. Sua
sociedade futura, um possível beco sem saída da modernidade, é em última análise
distópica, mas as pessoas são projetadas para serem eternamente ‘felizes’”.8

Figura 2. Katarina Macurova: série Brave New World.


Fonte: https://www2.3dartistonline.com/image/17887/brave_new_world

Entende-se a ambivalência comentada por Chong, pois o mundo fictício criado por
Huxley, assim como a perspectiva que os analistas atuais apresentam sobre a tecno-
logia de uma maneira geral e, particularmente, sobre a IoT, faz questionar o motivo
de esse mundo ser considerado distópico, uma vez que está totalmente estruturado
objetivando a felicidade das pessoas. E neste ponto a pergunta é inevitável: felicida-
de sim, mas a que preço? O que as pessoas têm que sacrificar para viverem em um
mundo de suposta felicidade? E no caso de Huxley, bem como em outros autores, a
resposta é a liberdade. Além disso, a pergunta deve ser atualizada e refeita quando
pensamos sobre as possibilidades de um futuro no contexto da IoT. Estaria a IoT a
comprometer nossa liberdade, colocando-nos em um estado de perene vigilância? É
preciso enfatizar que essa vigilância é de mão dupla, pois ao mesmo tempo em que
a IoT facilita o total estado de vigilância por parte de agências governamentais e de
hackers mal intencionados, esta também obriga o cidadão comum a controlar seus
equipamentos para assegurar que estes estejam operando em conformidade com

8 “The expression [Brave New Worlds], in daily parlance, actually expresses ambivalence toward the re-
lentless forward movement of modernity, and that’s precisely what’s found in Huxley’s book. His future
society, one possible dead-end of modernity, is ultimately dystopian, but people are engineered to be
perpetually ‘happy.’” Disponível em: https://walkerart.org/calendar/2007/brave-new-worlds

429
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

as suas programações de modo a não causar riscos à segurança do proprietário ou


das demais pessoas. Ainda, no âmbito dessa inevitável realidade tecnológica, qual
a função da arte?

No estado fictício criado por Huxley, a arte é banida sobre o pretexto de promover a
conscientização das pessoas sobre sua condição de seres oprimidos e, consequente-
mente, torna-las insatisfeitas. Essa situação leva á infelicidade, à instabilidade social
e à revolução. A arte, como propiciadora de novas experiências emocionais tem essa
capacidade de apresentar às pessoas percepções para além de seu entendimento
imediato, o que levou Mustafa (o administrador no Novo Mundo) a explicar para
John (o selvagem) que se os cidadãos forem expostos a experiências distintas de
suas próprias, sensibilizados para sua humanidade inata e inspirados a questionar o
significado de sua existência, a sociedade deixaria de funcionar. Ao que o selvagem
replica dizendo que a arte fornece consolo para as inevitáveis tristezas e dificuldades
da experiência humana. Shakespeare, para John, em vez de deixá-lo mais insatisfeito
com sua condição, alivia seu sofrimento mostrando-lhe a universalidade de sua ex-
periência. A beleza e a verdade encontradas em uma peça como Otelo, ele acredita,
valem o sofrimento necessário para compreender a experiência de Otelo. Ao que
Mustafa rebate com a constatação de que “a felicidade universal mantém as rodas
[da sociedade industrial] girando firmemente; verdade e beleza não o podem fazê-
-lo”. Nessa breve passagem, temos um exemplo da duplicidade de entendimentos
pró e contra a arte na sociedade, cuja função de propiciadora de novas sensações
e experiências poderia incitar à instabilidade social, mas também servir como ele-
mento catártico, minimizando o sofrimento das pessoas por meio da empatia e pur-
gação, ou alívio, emocional. Esses atributos político e estético da arte são possíveis
por conta da própria natureza da arte, cujas reações que provoca não podem ser
integralmente previstas. Assim, em um mundo como Brave New World, onde todos
os aspectos da vida são controlados, a arte não poderia ser aceita.

Richard Lebow, comentando sobre os diferentes contextos nos quais os livros de


Huxley e Orwell tiveram como base para a criação de seus mundos fictícios (res-
pectivamente, Estados Unidos e União Soviética), faz a significativa observação: “em
Admirável Mundo Novo as pessoas são pacificadas pelo acesso ao prazer. Já em 1984
elas são mantidas na linha através do medo e da punição” (Lebow, 2012, p.76). Desse
modo, duas formas de controle da população são atingidas, uma infligindo prazer e
outra infligindo dor. Interessante comparação entre esses dois autores foi feita por
Neil Postman (1986): “Orwell temia que a verdade fosse escondida de nós. Huxley
temia que a verdade fosse afogada em um mar de irrelevância. Orwell temia que nos
tornássemos uma cultura cativa. Huxley temia que nos tornássemos uma cultura
trivial, preocupada com algum equivalente das feelies”9 (Postman,1986, p.4). Em Ad-

9 Orwell feared that the truth would be concealed from us. Huxley feared the truth would be

430
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

mirável Mundo Novo, feelies é o nome do cinema de entretenimento e foi motivado


pelas diversões que Huxley percebia no mundo real, tais como os talkies (nome dado
aos filmes com som). No livro, são chamadas de feelies pelo fato de o público poder
sentir a experiência do filme, além de vê-la e ouvi-la. Assim, é possível compreen-
der a indisposição de Huxley para com o cinema falado, pois aquilo que é dito não
precisa ser imaginado (como no cinema mudo), limitando, portanto, a possibilidade
de co-criação entre cineasta e aquele que assiste o filme. Em Admirável Mundo Novo
Revisitado, os libertários civis, sempre alertas para se opor à tirania “não levaram em
conta o quase infinito apetite do homem por distrações”, pelos programas de entre-
tenimento fácil. Opinião também compartilhada por Postman, ao escrever: “a frase
‘televisão séria’ é uma contradição em termos; […] a televisão fala somente em uma
única e persistente voz: a voz do entretenimento”10 (Postman,1986, p.60). Como se
verá adiante, o efeito que a televisão exercia nas pessoas foi muito criticado pelos
artistas pioneiros da vídeo arte, tal como Nam June Paik.

Após esse apartado sobre a função da arte e do perigo do entretenimento fácil e fútil
na sociedade, como apresentado por Huxley, poder-se-ía perguntar: se o futuro tec-
nológico é inevitável (particularmente com o estabelecimento da IoT), como esca-
par não somente do círculo vicioso de entretenimento que gera alienação, mas tam-
bém do pensamento dualista que vislumbra possibilidades utópicas e distópicas.

Arte e IoT
Os artistas, assim como os jornalistas, têm agido como arautos de possíveis cenários
futuros, quer sejam estes futuros expressos distopicamente como no caso de Huxley,
Orwell e tantos outros, ou utopicamente, como mostrado em inúmeras obras de
ficção tal como Star Trek, que além de aventarem prognósticos, acabam também por
inspirar a imaginação dos cientistas. No orbe da IoT, alguns artistas preocupam-se
com questões relacionadas à identidade, como é o caso de Katarina Macurova (Fi-
gura 2) que reflete sobre a diluição da individualidade em meio à massa de cidadãos
padronizados pela estrutura da sociedade pós-Ford imaginada por Huxley. Diversas
exposições têm sido organizadas com intuito de oferecer ao público a visão dos ar-
tistas a respeito do que vem à frente. Uma destas exibições ocorreu em Londres na
Whitechapel Gallery sob o título Is This Tomorrow? (2019) e ofereceu 10 obras de
artistas e arquitetos trabalhando em colaboração de modo a propor respostas artís-
ticas às tecnologias emergentes, especialmente às tecnologias computacionais e da

drowned in a sea of irrelevance. Orwell feared we would become a captive culture. Huxley feared we
would become a trivial culture, preoccupied with some equivalent of the feelies.
10 The phrase “serious television” is a contradiction in terms; […] television speaks in only one per-
sistent voice--the voice of entertainment.

431
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Internet. Segundo os curadores, “em uma era em que a humanidade enfrenta novos
desafios impostos pelo big data, pela bioengenharia e pela mudança climática, a
Whitechapel Gallery convidou dez grupos de artistas e arquitetos para explorar o
potencial da colaboração e oferecer suas visões do futuro”11.

Uma das questões mais sérias que preocupa não somente artistas, mas grande parte
dos estudiosos da implantação da IoT é o problema da vigilância cibernética. A situ-
ação é bem simples de ser compreendida, porém difícil de ser evitada. A perda da
privacidade já tem sido objeto de debates desde muito tempo (a esse respeito ver
Corrêa & Alves, 2017). Contudo, algoritmos para a vigilância de dados dos usuários
da Internet são aperfeiçoados diariamente. Na IoT o número de equipamentos que
poderão ser usados com intuito de coletar dados dos usuários será inumerável, o
que leva a questionar se existe a mínima possibilidade de controle do usuário sobre
seus próprios rastros digitais. O aspecto da vigilância tem sido objeto de reflexão
por parte dos artistas desde muito tempo. Mesmo Nan June Paik, que prognosticou
a revolução na comunicação por meio da banda larga (broadband communication
revolution, 1974), já nas suas obras pioneiras da videoarte considerou o problema da
vigilância, como se vê em TV Budha, também de 1974 (Figura 3). Paik cria um circuito
fechado de TV no qual Buda, a meditar na sua costumeira posição de lótus, assiste
compenetradamente à sua própria imagem na tela de uma TV, como se observas-
se uma imagem capturada por uma câmera de segurança. Ao mesmo tempo, Paik
faz refletir sobre o poder anestésico da televisão, que nesta perspectiva tornar-se-ia
uma religião, invertendo portando os papéis de Buda e da TV. Assim, caminharíamos
do budismo enquanto uma religião para o ato de assistir TV religiosamente.

Similarmente a Paik, diversos artistas subscrevem a essa espécie de estética da vi-


gilância, problematizando a temática da ciber-vigilância e da perda da privacidade,
registrando-se a si mesmos (como Jill Magid), filmando as pessoas que visitam as
exposições, ou na maneira como utilizam os equipamentos (câmara, smartphone,
filmadora, etc). Como informa de Jill Magid, “os vídeos de Evidence Locker (Figura
4) foram encenados e editados pela artista e filmados pela polícia usando câmeras
de vigilância pública no centro da cidade. Vestindo um casaco vermelho brilhante,
ela chamava a polícia de plantão com detalhes de onde estava e pedia para que a
filmassem em poses, lugares ou até mesmo para guiá-la pela cidade com os olhos
fechados”12 (Magid, 2004). Essas obras adquirem diversas formas como video arte

11 In an era when humanity is facing new challenges posed by big data, bioengineering and climate
change, Whitechapel Gallery has invited ten groups of artists and architects to explore the potential
of collaboration and offer their visions of the future. Texto para a exposição Is This Tomorrow? Dispo-
nível em: https://www.whitechapelgallery.org/exhibitions/is-this-tomorrow/
12 Evidence Locker were staged and edited by the artist and filmed by the police using the public
surveillance cameras in the city centre. Wearing a bright red trench coat she would call the police
on duty with details of where she was and ask them to film her in particular poses, places or even

432
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

(Tim Hyde: Bus (2005); Kiki Seror: Modus Operandi (2005)) ou instalações, como 99
Red Balloons: be careful who sees you when you dream (2005) de Jenny Marketou (Fi-
gura 5). Essas obras foram expostas no Krannert Art Museum de Illinois na expo-
sição sob a curadoria de Michael Rush intitulada Balance and Power: Performance
and Surveillance in Video Art (2005). O conceito discutido por Rush nesta exibição foi
justamente a perda da privacidade e a impossibilidade de rejeitar a vigilância. Nas
palavras de Rush “estamos vivendo em um momento em que alertas de segurança,
câmeras de vigilância e Reality TV estão desfocando as fronteiras entre atuação vo-
luntária e involuntária para a câmera”.13

Figura 3: Nam June Paik, TV Buddha, 1974.


Fonte: http://www.medienkunstnetz.de/works/tv-buddha/

guide her through the city with her eyes closed. Disponível em: http://www.jillmagid.com/projects/
evidence-locker-2
13 We’re living at a time when security alerts, surveillance cameras, and Reality TV are blurring the
boundaries between voluntary and involuntary acting for the camera. Texto disponível em https://
kam.illinois.edu/exhibition/balance-and-power-performance-and-surveillance-video-art

433
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 4: Jill Magid, Evidence Locker, 2004.


Fonte: www.evidencelocker.net

Figura 5: Jenny Marketou, 99 Red Balloons: be careful who sees you when you dream (2005).
Fonte: http://www.thing.net/~jmarketo/99RedBalloons.shtml

434
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 6: Yeon Sue Park, Souneil Park, Still Touchable? (2017)


Fonte: http://agile-iot.eu/2017/07/24/adaptation-still-touchable/

A instalação de Marketou foi criada especialmente para a exposição Balance and


Power: Performance and Surveillance in Video Art. Como explicitado já no título, essa
instalação apresenta 99 balões de hélio vermelhos que flutuam na galeria. Em al-
guns balões estão amarradas pequenas câmaras de vigilância (ver detalhe na Figura
5) que filmam os visitantes e transmitem para quatro telas de vídeo montadas no
chão da galeria. Desse modo, Marketou evidencia a inexorável forma de vigilância
onipresente em quase todas as cidades. Envolvidos correlatamente nas preocupa-
ções manifestadas a respeito da vigilância e da identidade, os aspectos ligados à
liberdade ocupam posição central no posicionamento estético ideológico de diver-
sos artistas que refletem sobre a IoT. A liberdade é por vezes tratada como impossi-
bilidade de rejeição à vigilância e ou à cibercultura, a perda da liberdade de preser-
vação ou perda dos aspectos afetivos envolvidos nos objetos que possuíamos, mas
que aos poucos vão deixando de existir. Por exemplo, a obra Still Touchable? (Figura
6) dos artistas coreanos Yeon Sue Park, Souneil Park explora a relação com a infor-
mação e com a substituição das coisas mesmas, e consequentemente de sua memó-
ria afetiva, por dados digitais. “As relações físicas que tínhamos com a mídia, como
cartas, cartões postais, jornais e CDs, começaram a desaparecer quando o toque,
a sensação, as lembranças e as emoções que tivemos com estes desapareceram”14.

14 “Still touchable?” explores our relationships to information. The physical relationships we had
with the media, such as letters, postcards, newspapers, CD, which started to disappear as the touch,
feel, memories and emotions we had with them are disappearing. Disponível em: http://agile-iot.
eu/2017/07/24/adaptation-still-touchable/

435
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Considerações Finais
Baseado nos apontamentos apresentados ao longo desse texto, entendo que a tec-
nologia não é livre de valores éticos e está intrinsecamente unida à cultura. Portanto,
os impactos e responsabilidades sociais de todos os envolvidos na criação, produção,
gerenciamento e estudos sobre tecnologia não podem ser negligenciados sob o pre-
texto de que qualquer tecnologia é em si neutra. Particularmente ao que diz respeito
à IoT, percebo que os responsáveis por sua implantação parecem querer se eximir das
possíveis conseqüências sob a justificativa da neutralidade e imprevisibilidade tecno-
lógica. Todavia, reitero que todos (inventores, desenvolvedores, vendedores, usuários)
temos responsabilidade moral para com a inevitável IoT, e certos efeitos colaterais (tais
como a possibilidade da vigilância onipresente) não podem ser tratados como mera
conseqüência ou contra-parte da comodidade trazida pela IoT.

Em uma passagem de sua Ética a Nicômano, Aristóteles afirma que “toda arte e todo
saber, assim como tudo que fazemos e escolhemos, parece visar algum bem. Por
isso, foi dito, com razão, que o bem é aquilo a que todas as coisas tendem, mas há
uma diferença entre os fins: alguns são atividades, ao passo que outros são produtos
à parte das atividades que os produzem”. (Aristóteles, 1991, p.3). As coisas conecta-
das a satélites estão a ponto de tornarem-se esses produtos resultantes da atividade
criativa e criadora do ser humano e não se pode perder justamente a perspectiva
e objetividade intrínseca a essa produção que é a preservação das espécies e do
planeta (aspectos que para mim são o “bem comum” da citação de Aristóteles). En-
tretanto, algumas pessoas parecem preferir a satisfação de um mundo fictício digital
à liberdade no âmbito da dura realidade do mundo concreto e, desse modo, agem
como o personagem de Matrix que optou por trair os companheiros e retornar a
viver no mundo de fantasia criado pelas máquinas. Há evidências desse tipo de ati-
tude no mundo moderno, como por exemplo, o incomensurável número de pessoas
que fazem das chamadas redes sociais o seu núcleo comunitário mais íntimo, sem
ponderar que quanto mais tempo despendem nas redes sociais, menos tempo vi-
vem de fato em sociedade.

O futuro dominado pela alta tecnologia é inexorável e o estabelecimento da IoT é


inevitável, fato que tornará onipresente a conexão entre praticamente todos os apa-
ratos eletrônicos. Com isso, torna-se imprescindível a participação dos artistas como
agentes capazes de conciliar a relação, as vezes conflituosa, entre a tecnologia e o
ser humano. Artistas são mediadores entre o conceitual e o sensorial, o físico e o vir-
tual, e por isso têm a habilidade de nos fazer escapar não somente do círculo vicioso
de entretenimento fútil que gera alienação, mas também do pensamento dualista
que vislumbra possibilidades utópicas ou distópicas unilaterais. Quaisquer cenários
futuros onde a capacidade criativa seja cerceada ou anestesiada (por máquinas ou
por pessoas) devem ser rechaçados.

436
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O artista, assim como as pessoas vivendo em liberdade, são responsáveis pela ma-
nutenção do potencial criador inerente à nossa espécie, seja essa homo sapiens ou
homo digitalis. Devemos sinceramente continuar sempre visando ao bem comum,
sendo os artistas os encarregados de harmonizar compreensão, técnica e imagina-
ção com a beleza, ética e natureza.

References
Al-Fuqaha, Ala; Guizani, Mohsen; Mohammadi, Mehdi; Aledhari, Mohammed;
Ayyash, Moussa (2015). Internet of Things: A Survey on Enabling Technologies, Pro-
tocols, and Applications. IEEE Communications Surveys & Tutorials, vol.17, Issue:
4, pp. 2347-2376.

Aristóteles (1991). Ética a Nicômano. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim.


São Paulo: Nova Cultural. Disponível em: https://abdet.com.br/site/wp-content/
uploads/2014/12/%C3%89tica-a-Nic%C3%B4maco.pdf

Atzoria, Luigi; Lerab, Antonio; Morabito, Giacomo (2010). The Internet of Things: A
survey. , vol.54, n.15, 28, pp.2787-2805.

Corrêa, Antenor Ferreira; Alves, Lorena Ferreira (2018). Manifestações artísticas e os


processos de vigilância cibernética. In: Anais do Congresso Internacional em Huma-
nidades Digitais. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, pp.429-435.

Frost, Laura (2006). Huxley’s Feelies: The Cinema of Sensation in “Brave New World”.
Twentieth Century Literature. Vol.52, No. 4 (2006), pp. 443-473.

Huxley, Aldous (1958). Brave New World Revisited. Disponível em: https://www.
huxley.net/bnw-revisited/

Lacerda, Flávia (2015). Arquitetura da Informação Pervasiva : projetos de ecos-


sistemas de informação na internet das coisa s. Tese (Doutorado em Ciência da
Informação), Universidade de Brasília, Brasília, 2015. Disponível em: http://reposito-
rio.unb.br/handle/10482/19646

Lebow, Richard Ned (2012). The Politics and Ethics of Identity - in search of our-
selves. New York: Cambridge. Disponível em: https://books.google.com.br/books?

Postman, Neil (1986). Amusing Ourselves to Death. New York: Penguin Books.
HYPERLINK “https://quote.ucsd.edu/childhood/files/2013/05/postman-

437
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Cleomar Rocha1
Afetações de um modus operandi2
Affetions of a modus operandi

Resumo
O artigo discute o modus operandi digital e o analógico, o primeiro relacionado ao
cérebro e ao pensamento, e o segundo ao mundo natural. Discute, à luz da fenome-
nologia, a transição de uma cultura centrada na posse a guarda para uma cultura do
acesso e compartilhamento, bem como as afetações que isso causa na concepção
do mundo. Por fim, verifica como a produção da Arte se inscreve nesse contexto
contemporâneo, por meio da arte tecnológica e da estética da conectividade.
Palavras-chave: Conectividade, estética, arte tecnológica

Abstract
The article discusses the digital and analog modus operandi, the first related to the
brain and the thought, and the second related to the natural world. It discusses, in
the light of phenomenology, the transition from a culture centered on possession to
a culture of access and sharing, as well as the affectations that this causes in the con-
ception of the world. Finally, it verifies how the production of Art is inscribed in this
contemporary context, through technological art and the aesthetics of connectivity.
Keywords: Connectivity, aesthetics, technological art

O cérebro e o mundo
O mundo natural é analógico, regido pela continuidade do espaço-tempo. As coisas
do mundo seguem essa lógica de organização e são igualmente analógicas, seguin-
do a linearidade do espaço-tempo. Esse aspecto lógico pareceu suficiente para que
o ser humano buscasse ordenar seu modo de pensar e agir segundo as regras ana-
lógicas, verificadas no mundo que ele habita. Assim, toda a concepção de conhe-

1 Pós-doutor em Poéticas Interdisciplinares (UFRJ), Estudos Culturais (UFRJ), e em Tecnologias da


Inteligência e Design Digital (PUC-SP), doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA),
Mestre em Arte e Tecnologia da Imagem (UnB) e Licenciado em Letras (FECLIp). Professor na Uni-
versidade Federal de Goiás. Coordenador (MediaLab / UFG). Pesquisador Produtividade do CNPq.
Secretário Municipal de Ciência, Tecnologia e Inovação de Aparecida de Goiânia - GO.
2 Esta pesquisa foi realizada com auxílio do CNPq, a partir da bolsa Produtividade em Pesquisa. A
apresentação teve apoio da FAPEG.

438
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

cimento foi ordenado segundo essa regra, como se pode verificar na organização
de livros, revistas, bibliotecas e produtos de arte como poemas, pinturas etc, cuja
expressão obedeceu ao sistema analógico.

Enquanto modus operandi, o sistema analógico reconhece a continuidade como


eixo, enfrentando dificuldade de manutenção de integridade com seu oposto, a
descontinuidade. Um caminho, para citar um exemplo, segue linearmente e, caso
encontre uma bifurcação, gera dúvidas quanto a continuidade. O sistema de escrita
e leitura observa, igualmente, essa regra, sendo construído linearmente desde a
invenção da escrita, muito em função do suporte adotado, seja argila, pergaminho,
papiro ou papel. Todavia, a sua manutenção na cultura definiu não apenas sua es-
trutura morfológica, mas o fez sintaticamente, na construção de frases, períodos e
estrutura compositiva, orientando as linguagens em suas matrizes.

Embora essas mesmas linguagens, de base constitutiva digital, expressa por seus
elementos em combinações múltiplas, seja um fato, sua aplicação em produtos es-
téticos e intencionalidades poéticas sempre foi orientada por padrões estruturais
analógicos, inclusive na nominação de trabalho finalizado. Os produtos da cultu-
ra, artísticos ou não, seguiram a determinação dos suportes, embora as linguagens,
como elementos mentais, sejam determinados pela lógica digital.

Em meados do século XX, com a Matemática governando o pensamento humano, a


lógica digital deu grande salto, em um estado de emergência (1) que repercutiu em
várias áreas de conhecimento. Da Filosofia até a Ciência da Computação, da Arte até
a Astronomia, a Matemática trilhou talvez seu apogeu, conquistando aplicações que
alteraram o modus operandi no mundo e o pensamento humano.

A descoberta da neuroplasticidade evidenciou que nosso cérebro, mesmo morfolo-


gicamente, segue o princípio digital. As sinapses derrubaram a ideia então vigente
que de as células cerebrais estavam ligadas, como ocorre nos demais tecidos celu-
lares. Os neurônios, afinal, estabelecem ligações pontuais, por meio de descargas
elétricas chamadas sinapses, o que os permite reordenar suas ligações em um infi-
nidade de possibilidades, tal qual a lógica digital. E se nosso hardware principal já
opera nessa lógica, o pensamento voa em relações sintagmáticas e paradigmáticas
(2), em vinculações multilineares.

A partir da instauração da lógica digital, descontínua, na sociocultura mundial, várias


evidências surgem, inclusive no passado, como reivindicação de um legado que é,
de fato, natural. As iniciativas da multilinearidade na Literatura, o pontilhismo e o
impressionismo nas Artes Visuais, a Teoria da Relatividade, na Física, o surgimento
da psicanálise, da semiótica, do hipertexto e da web, tudo indicada uma nova lógica
para o mundo contemporâneo: o digital.

439
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Unidade e diversidade
A tríade religiosa Pai, Filho e Espírito Santo já indicava a possibilidade de uma uni-
dade ser formada por uma diversidade. Na lógica do desenvolvimento das socieda-
des, foi somente com o fim do período medieval que o mundo compreendeu que a
busca por unidade entre as nações resultava em guerras intermináveis. A lógica do
equilíbrio passa, necessariamente, pela diversidade como um princípio. Na Europa,
as guerras que buscavam domínio de um povo sobre o outro somente chegaram
ao fim quando se percebeu que o diálogo era mais efetivo que as guerras. Acordos
comerciais e econômicos resultaram em um bloco mais coeso, embora as tensões
permaneçam.

A lógica digital persevera pela diversidade de suas aplicações. A necessidade de


personalização, escalabilidade e automação resultou na criação de uma poderosa
ferramenta, os circuitos digitais, permitindo que sua lógica, inclusive de programa-
ção, se propagasse por meio das interfaces computacionais (3). O gosto pelo digital
pode ser explicado pela sua metáfora do cérebro, o que permite uma aculturação
naturalizada, ou seja, pela similitude do modus operandi cerebral, é mais fácil ao ser
humano se aculturar nas ferramentas digitais que nas analógicas.

Talvez a prova disso seja a facilidade que a população das FARC, na Colômbia, apre-
sentou ao se deparar com a tecnologia digital, no pós-conflito. Após o histórico acor-
do com o governo, os guerrilheiros deixaram as armas e se integraram à sociedade
civil. Logo de início o choque cultural tornou-se visível: acostumados com as flores-
tas, essa população se encontrou com o século XXI com seus smartphones, redes
sociais e novos métodos de se comunicar. Já com a primeira bolsa recebida, o desejo
estava claro para a maior parte dessa população: o smartphone e as redes sociais. O
processo de aculturação foi quase instantâneo, com curva de aprendizagem curta
e leve. A lógica digital não está restrita a nativos digitais, mas, como toda cultura,
ao processo de aculturação, independentemente de quando as pessoas nasceram.

A lógica digital ganha corpo com a facilidade de mover-se por ela, instaurando uma
cultura baseada nos modos de pensar e organizar o pensamento. Hipertextos e links
se juntam ao modelo científico de gerar conhecimento, reformulando a lógica do
humano. A tecnologia potencializa o método, e o avanço não é algo controlado. A
premência de reinventar o mundo faz surgir produtos, modelos de negócios, for-
mas de produção, distribuição e consumo novos. Vivemos uma revolução cultural,
abandonando a ideia de unidade e vislumbrando na diversidade o equilíbrio entre o
humano e o mundo, o individual e o coletivo, a lógica digital e a lógica analógica. E
é nessa concepção da diversidade que as cidades se reinventam, os produtos são re-
novados, as velhas fórmulas de criar cultura se rendem ao novos ventos que sopram
o mundo, na velocidade de se converter dados em nuvens, liquefazer modernidades
e assumir que o futuro não é uma unidade, mas uma diversidade.

440
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Nessa nova ordem, perde velocidade a cultura da posse guarda, visto que a imateria-
lidade das linguagens, dos códigos e da sociedade, bem como seus bens, alcançam
maior valor que a materialidade. A virtualização e a digitalização passam a ser valo-
rados com maior força que o conceito de ente. Virtualmente somos mais ricos, sábios
e independentes que jamais fomos. O acesso e compartilhamento do conhecimento
catapulta a sociedade a um estágio marcado pelo conhecimento e pela inteligência,
que de tão opulenta salta de cérebros para as coisas do mundo. Os objetos inteligen-
tes se propagam e alcançam cidades inteiras.

A conectividade, protagonista da cultura do acesso e do compartilhamento, é o


meio, a mídia, que dá vazão a essa cultura. E ela, a conectividade, não se esgota na
conexão à internet, mas se lastreia nas conexões de pesquisa, sociais, de cultura, na
certeza de que uma mente conectada pensará mais que uma mente isolada. A lógica
sináptica alcança a escala mundial.

Arte e as sinapses poéticas


A arte não está alheia a esse contexto, pelo contrário ela rompe barreiras e apresenta,
desde o fim do século XIX, os caminhos que resultarão em um novo modelo de arte. A
vertente tecnológica da arte contemporânea, embora surja nos anos 1950, deve parte
de seu DNA a movimentos anteriores, como o pré-modernismo e modernismo.

A conectividade tida nos diálogos entre artistas, filósofos e cientistas foi rotina desde
o século XVIII, tomando cada vez mais fôlego. Se os movimentos de época demora-
vam pouco mais de um século para se firmar, a partir do século XVIII tivemos uma
comunicação mais eficiente e, por conseguinte, uma redução de tempo nos movi-
mentos de época. O século XIX já acomodou uma série de movimentos e estilos de
época, intensificados com o século XX. O modernismo, rótulo guarda-chuva que en-
cerra em si vários movimentos, só foi possível graças aos deslocamentos e diálogos
entre os artistas. Cartas, visitas e uma série de trocas de informações e influências
varreram a Europa, principal área da produção de arte.

Ao fim do XIX e início do XX, a conectividade ultrapassou mares e oceanos, soprando


as novas terras americanas, que inauguraram movimentos articulados com o velho
mundo. A conectividade chega ao ápice com a arte tecnológica, computacional, in-
terativa, trazendo o interator para o sistema da própria obra. As conexões com inter-
net, na web art e na net art, levam a enésima potência as artes digitais, de mundos
virtuais e interativos. Conectividade passa a ser não mais uma estratégia, mas um
modelo de gosto, definida como Estética da Conectividade.

E o gosto pela conexão não se esgota na arte. Está disseminada na Economia, na Me-
dicina, na Comunicação, na Cultura e em todas as áreas de abrangência do humano.
Os equipamentos passam a ser digitais ou operados pela lógica digital, otimizando

441
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

os modos de produção, distribuição e consumo de bens materiais e imateriais. Em-


presas do segmento digital dominam a economia mundial, com seus produtos im-
pensáveis há pouco tempo. Equipamentos automatizados operam na produção de
materiais, sendo mais produtivos que o humano. Olhos digitais identificam placas,
rostos, cores, em um exercício contínuo impossível para o humano. A virtualização
das moedas nos faz operar com cartões e uma abstração chamada números.

O gosto pelo digital é definitivo, não apenas pela luz emitida das telas de compu-
tadores e celulares, pirotecnia que deslumbra (4), mas essencialmente pelo modus
operandi do digital, similar à lógica cerebral, em seus eixos morfológicos e sintáticos,
de hardware e software, do cérebro e do pensamento.

O gosto pela conectividade é a base da sociedade contemporânea. Seu modus ope-


randi é a metáfora do método científico, deflagrador de todas as conquistas hodier-
nas da humanidade.

Conclusão
Estamos, indubitavelmente, afetados (5) pelo digital, marca não apenas de um tem-
po, mas de um modo de compreender a lastrear o cérebro pelo mundo. A lógica di-
gital reivindica a reinvenção social, tendo por base o cérebro. Mais que um programa
de gosto (6), a conectividade é a mídia do digital, é a potência de uma socialização
que se mostra exitosa, inovativa e fundante. Ao se vincular a lógica digital ao modelo
de estruturação e funcionamento do cérebro e do pensamento, alinhamos a base de
uma nova poética, de uma nova ética e de uma nova estética para o humano. A cul-
tura do acesso e do compartilhamento, tal qual fazemos com nossos pensamentos
a partir das linguagens, parece fazer a bússola apontar para o futuro, magnetizados
que estamos pelo presente.

O modus operandi digital se lastreia pela descoberta feita pela Arte há séculos: a
criatividade está na articulação entre formas e cores, sons e letras, sílabas e versos.
As linguagens, já apontava Saussure (7), por serem mentais, seguem a lógica digital,
como é o próprio cérebro. O gozo estético, segundo essa mesma lógica, é tão men-
tal quanto digital, criando um assento natural, embora só tenhamos alcançado esse
reconhecimento no século XX. A epopeia humana avança, agora fundada na lógica
cerebral expandida para o mundo, e não o contrário.

Referências
(1) JOHNSON, Steven (2003). Emergência: A Vida Integrada de Formigas, Cére-
bros, Cidades e Softwares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

(2) PIGNATARI, Décio (2005). O que é comunicação Poética. 8a. Ed. Cotia, SP:
Ateliê Editorial.

442
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

(3) ROCHA, Cleomar (2014). Pontes, janelas e peles: Cultura, poéticas e perspec-
tivas e das interfaces computacionais. Goiânia: FUNAPE: Media Lab / Ciar / UFG.
(Coleção Invenções).

(4) ROCHA, Cleomar (2008). Estéticas tecnológicas e Interfaces Computacionais. In


VENTURELLI, Suzete (org.) Arte e Tecnologia: para compreender o momento atu-
al e pensar o contexto futuro da arte. Brasília: PPG em Arte.

(5) SPINOZA, Baruch (2014). Obras Completas. Orgs. Jacó Guinsburg, Newton Cunha
e Roberto Romano. São Paulo: Perspectiva.

(6) PAREYSON, Luigi (1989). Os problemas da estética. 2ª ed. Trad. Maria Helena
Nery Garcez. São Paulo: Martins Fontes. (Ensino Superior)

(7) SAUSSURE, Ferdinand (2006). Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix.

443
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Hugo Paquete1 and Ana Santos2

O Corpo Terminal do Terceiro Milénio


Rede de Conexões e a Obsolescência Estética
The Terminal Body of the Third Millennium
Connection Network and Aesthetic Obsolescence
Resumo
Propomos uma análise antropológica e tecnocultural que segue a mutabili-
dade da tangibilidade desta matéria, recorrendo a David Le Breton em Adeus
ao Corpo (2003). Explora-se o imaginário tecnocientífico urbano-corpóreo em
completa decadência, precariedade e imperfeição, em que corpos “Post-flesh”
Kroker, (1994) e da “Interzone” (ibid). objetos biomecânicos em repouso man-
têm múltiplas conexões num mundo em expansão no terceiro milénio. Explo-
ra-se os conceitos de obsolescência, e acidente apresentado por William Lurtz
na Associação para acidentes estratégicos de 1990. Apresentamos em para-
lelo ideias de “drug design” farmacologias bioquímicas que permitem novos
regimes percepção que lidam como ideias sobre realidade virtual. Como será
demonstrado no decorrer da argumentação, existe uma relação direta entre
a expansão dos sistemas de imersão tecnológica VR tratados como virulogia
e infecção sobres os sentidos humanos, geradores do efeito secundário do
corpo imobilizado que é resultado de uma “consensual hallucination” (ibid) e
de desejos de fuga ao corpo.
Palavras-chave: Antropologia, Tecnocultura, Estupefacientes-design, corpo, re-
alidade virtual

Abstract/resumen/resumé
We propose an anthropological and technocultural analysis that follows the
changeability of the tangibility of this subject, using David Le Breton in Farewell
to the Body (2003). The urban-corporeal technoscientific imaginary is explored in
complete decay, precariousness and imperfection, in which Post-flesh Kroker (1994)

1 Author, Research grant, (FCT) Ph.D student: Doutoramento em Média-Arte Digital. Aberta Univer-
sity and Algarve University, Portugal. Master in Contemporary artistic Creation, (UA, 2014). (CIAC):
Center for Research in Arts and Communication, University do Algarve, University Aberta. And in the
(ID+ [UA /DeCA) Group: Praxis and Poiesis: from arts practice towards art theory, Research Institute
for Design, Media and Culture, Aveiro University.
2 Coautor, Artist and Ph.D student: ISCTE-IUL Department of Anthropology, Lisbon, Portugal. Resear-
cher at CRIA-Centro em Rede de Investigação em Antropologia. Master in Contemporary Arts (FBAUP).

444
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

and Interzone (ibid) bodies. resting biomechanical objects maintain multiple con-
nections in an expanding world in the third millennium. We explore the concepts of
obsolescence, and accident presented by William Lurtz at the Association for Stra-
tegic Accidents of 1990. We present in parallel ideas of “drug design” biochemical
pharmacologies that allow new perception regimes that deal with ideas about vir-
tual reality. As will be demonstrated in the course of the argument, there is a direct
relationship between the expansion of VR technology immersion systems treated as
virulogy and infection on the human senses, which generate the side effect of the
immobilized body that is the result of a consensual hallucination (ibid). and desires
to escape the body.
Keywords: Anthropology, Technoculture, Narcotic-design, body, virtual reality

O corpo multimédia: infeção imunossupressora e o vírus como modelo


O terceiro milénio na arte e sentir os efeitos de uma infeção viral no corpo multimédia
que nos contamina os sentidos e entorpece o corpo e o espírito com uma sintomato-
logia que podemos denominar de infeção imunossupressora das torrentes de infor-
mação nas redes, sonora, visual e textual por impacto da tecnologia e aparato multi-
média e dos seus dispositivos, que tendem para o vício do entretenimento como
farmacologia ou droga, a par dos sintomas de uma interação pavloviana de resposta
condicionada entre ação e reação nas manifestações artísticas denominadas de inte-
rativas. Assim sendo, é importante considerar a contaminação e o vírus, nesta argu-
mentação, como um elemento que estabelece contagio na cultura das redes que vi-
vemos atualmente e que se encontra ao serviço do modo como a cultura se dissemina
pelos meios de comunicação e na sociedade, influenciando a produção artística, seus
territórios e agentes com um imaginário e conjunto de problemáticas que lidam com
o corpo como interface, representação e dispositivo performativo em oposição ao
interativo. Porque se assume que, em toda a experiência, existe interação e só faz
sentido falar de interação quando esta procura ser quantificada nos modos de usabi-
lidade e esse não é o nosso interesse nem propósito neste ensaio. Então, o vírus e as
suas infeções e efeitos não são unicamente uma metáfora no decorrer do texto, mas
também um sistema operativo quase performativo que reflete o modo como o co-
nhecimento é estabelecido entre disciplinas e modo de ação, infeção para encontrar
e descrever a sintomatologia, efeitos, males, reproduções e transformações e, por fim,
estruturar um diagnóstico e tratamento para determinados sintomas da arte contem-
porânea, com vista à construção de questionamento dos modos como novos para-
digmas circulam nos discursos artísticos, como também das relações parasitárias ine-
rentes às interações tecnológicas com a criação, arte e poder e suas significações
culturais. Esta lógica de infeção viral necessita de um corpo que, nesta argumentação,
é apresentado como o corpo multimédia que é um corpo terminal. Terminal, neste

445
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

contexto, é visto como um corpo do contágio, já sintomático das conexões tecnológi-


cas que se estabelecem com as várias dimensões do atual e do virtual, um corpo infe-
tado, mutante biologicamente como contaminado por dispositivos técnicos, onde já
se simula todo o sistema sensorial e cognitivo, mas que se encontra imóvel como
terminal de ligações num mundo de geografias imaginárias. Corpo que vive e está
imerso na propaganda denominada de arte interativa VR, apoiada na arte e tecnolo-
gia como modo de superação do design biológico e poder de emancipação de um
organismo que procura evadir-se do habitat em direção a mundos imaginários, mun-
dos estes de “persistência retiniana” (Virilio, 1994). O corpo multimédia tem acesso a
informação, conhecimento, entretenimento e cultura disseminadas nas redes onde
tudo é popular e controlável, onde os contágios e infeções biológicos e ideológicos
não matam nem ferem no virtual, não deixam marcas que não possam ser substituí-
das por outros designs no mundo imaginário, para onde a mente imigrou e onde o
corpo foi deixado em coma. Podemos adiantar que estas relações e pensamentos se
encontram por toda a parte disseminados na estetização da atualidade artística e nos
dispositivos que utilizamos constantemente numa narrativa transmedia que atraves-
sa todo o nosso quotidiano como história de um corpo multimédia enredado em
próteses, resultado da interação com telemóveis, computadores, painéis informati-
vos, relógios digitais, telecomandos, entre outros meios que efetuam um desdobra-
mento entre o palpável e o virtual, acompanhados de sintomas de desfragmentação
da atualidade assente na velocidade viral da fibra ótica, bifurcando-se em duas narra-
tivas concorrentes e gerais: a do objeto concreto, suspenso nas materialidades e
substâncias, nos males e limitações do corpo biológico e seus males virais e a do ob-
jeto digital, elaborado no código e simulação, também ele exposto ao contexto de
virologia nos aglomerados de computadores e ramificado no wifi, bluetooth, 4G e
futuramente no 5G, como advento da IOT: Internet das coisas e sua expansão. A Infe-
ção viral está por toda a parte, territórios, órgãos do corpo, mente e ideologia. Pode-
mos dizer, de modo circunscrito, que a infeção e o vírus são uma tendência para o
digital e seus efeitos na rede de significações corporais, sociais e desejos de alienação
ou desorientação. Este é o ponto máximo da desmaterialização do concreto em fusão
no digital, gerando o princípio da unificação, acentuando a ideia de toda a realidade
poder ser uma atualidade infeciosa, onde diferentes configurações virais e de infeção
estabelecem contágios na rede, em corpos estacionários que apreendem as materia-
lidades, substâncias e experiencial, por mediação tecnológica com sentidos filtrados,
alterados e tecnológicos. Assim, neste contexto e aquisição de experiência e produ-
ção artística, encontramos por toda a parte próteses que funcionam como objetos
artísticos, mais ou menos funcionais ou de fusão, que expressam um desejo de liga-
ção com o digital, um desprendimento do corpo que é depois configurado como
conjunto desmembrado de fragmentos, órgãos de uma biologia digitalizada onde só
a mente sobrevive e é o centro da experiência estética. Estes dispositivos de VR pro-
curam por vezes iludir-nos de uma falsa novidade estética ou de potencial formal. São
Gadgets que servem para completar os mecanismos políticos da infeção e o sintoma

446
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

de estagnação do corpo em estado de coma, desenvolvidos com o objetivo de apro-


fundar a experiência estetizada que obtemos no real do terceiro milénio, como um
imaginário vivido num espaço urbano, pensado e estruturado também politicamen-
te para manter em quarentena e num estado de entorpecimento imunológico con-
trolado e sob vigilância os cidadãos, onde se incluem os artistas, também contamina-
dos por estas sintomatologias virais. O parasita já controlou o hospedeiro e a infeção
espalhou-se como necessidade de utilizar a tecnologia de modo positivo, ligada ao
entretenimento e vazia das tensões de contrariedade contra a infeção e o parasita.
Temos, antes de mais, de compreender que estamos todos infetados e que os efeitos
dos sintomas estão visíveis nas nossas opções estéticas e formais, como nas técnicas
e meios pelos quais nos expressamos na arte contemporânea. Por isso, o ponto de
partida é compreender que temos o vírus e o parasita dentro de nós, sabendo que
eles nos procurarão controlar. Cabe-nos, portanto, a nós encontrar uma estratégia de
lidar com a infeção. A nossa, é refletir sobre os seus efeitos e traçar um diagnóstico
que se fundamenta em projetos artísticos que questionam o estado da infeção viral,
o impacto da tecnologia na criação e no corpo multimédia como forma de resistência
performativa que irrompe com o coma, manipular o vírus, seja por assimilação ou
oposição, com base nos tratamentos aplicados, em que os pacientes são obrigados a
deixar o corpo terminal. Como é lógico, este tratamento não pode ser desenvolvido
sem efeitos secundários e sequelas no hospedeiro e na sua arte, visão do mundo e
discursos, visto que o nosso tratamento é bastante invasivo e implica compreender a
tecnologia na produção artística, de um modo mais crítico. Assume-se a infeção e ela
é utilizada para não sermos simplesmente hospedeiros do vírus, mas para o contrariar
e utilizar o seu potencial de vitalidade e possibilidades de mutação teórica, estética e
formal mais pós-digital, assentes numa estética que reflete o digital, o tecnológico.
Deve explorar os seus limites funcionais e transformações, seja nos dispositivos tec-
nológicos, biológicos, naturais ou artificiais, nos modos de aceder ao mundo biológi-
co humano e sua manipulação por processos de hacking ou a uma ligação entre o
humano e outras entidades não humanas que coabitam o espaço e o tempo, em que
a atualidade se desenvolve com a sua autonomia, onde o acidente é a forma de liber-
tação do contágio e da infeção. Como Jussi Parikka afirma acerca da virologia, “Virality
demonstrates the ability of transversal connections that move in intervals, between
stable states. It is hence a molecular vector that increasingly describes the functio-
ning of societies of control” (Parikka, 2007). Se não compreendermos que esta infe-
ção viral é letal, podemos acabar com corpos multimédia que simplesmente geram
entretenimento ou estéticas da obsolescência e aceitam o seu estado de coma e in-
feção viral, sem questionarem os mecanismos que animam a sua vida em suspensão.
Nem compreendendo que a arte e os seus discursos podem ser tanto um vírus como
um antídoto. Existem projetos, ideias e movimentos artísticos que, pela sua radicali-
dade, formam resistência num determinado momento histórico e ficam, por vezes,
excluídos ou esquecidos da grande e convencional história das “grandes artes e
ideias” mais investigadas e documentadas. História essa, sempre em paralelo e

447
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

apoiada pela máquina do mercado económico e político da arte, que implanta e


constrói os significados e infeções, nas revelações e valor e construção de novos de-
sejos. Contudo, estes grupos mais periféricos comportam uma energia vital menos
comprometida com os discursos dominantes, influenciando uma série de artistas,
pensamentos e processos de produção, que é importante trazer da periferia para o
centro da infeção, demonstrando outras oportunidades de tratamento para aplicar
ao corpo infetado. Nestes grupos, podemos observar as implicações do mercado que
faz a história das “grandes artes e ideias”, que não é mais do que uma circulação mer-
cantilista da obra e seus significados programáticos, envolta em discursos que não
entram em conflito nem constituem um paradoxo com o tempo instituído. Digamos
que são grupos e ideias como as da ASA: Association for Strategic Accidents3 de William
E. Kurtz, em “1990” (Meegen, 1998) que apresento com o objetivo de demonstrar um
momento histórico que contribui, na minha opinião, para o conceito de Pós-Digital e
a estética da falha e do conceito de acidente, relacionado com a arte e tecnologia e os
seus modos de produção e conceptualização menos tecno positivistas. O que é im-
portante de salientar é que estas associações aparecem em 1990, dez anos antes do
texto de Kim Cascone4 de 2000, que foi o texto que estabeleceu maior contágio no
que denomino de estéticas pós-digitais. Mas gostaria de reforçar que a infeção serve
para contrariar o tecno-positivismo e o seu vírus crítico ficou em estado de hiberna-
ção durante 10 anos até se revelar e infiltrar-se nos seus hospedeiros. Dito isto, pode-
mos compreender que já existia em circulação uma virologia de mutação, mais crítica
sobre os efeitos tecnológicos e modos de perceção por eles permitidos. Assim, o cor-
po terminal multimédia encontra-se entre o real e o virtual, é um corpo de “Post-flesh”,
(Kroker, 1994) que é o corpo da classe virtual de sujeitos, ou atuantes sencientes,
como prefiro denominar, na era do desaparecimento e do inefável. Este corpo acede
e acede-se por sinergia com a máquina, pelas suas portas num processo de ação
imortalizadora que nos conecta com a dispersão do nosso sistema nervoso na rede,
num mundo de geografia variável nos fluxos do código que anima a nossa interação
entre sistemas complexos dentro e fora da terra, por intermédio de satélites e rela-
ções orbitais onde a consciência navega e simula-se no “deep-space” (ibid) e nos “me-
dia force-fields” (ibid). Frances Dyson define estas condições como um ponto de “my-
tical space” (Dyson, 2009) e “comic space” (ibid), sendo a condição pós-humana da
atualidade. O corpo multimédia emerge neste emaranhado de dispositivos, próteses,
alterações químicas, genéticas e, em suma, biológicas-culturais por intermédio da sua
manipulação tecnológica. Adquire novos membros por mutação viral, ideias e perfor-
matividade, por vezes tendendo para a imobilidade como um estado de coma induzi-
do por uma condição viral, em que o parasita controla o hospedeiro e controla todos

3 Acedido em 05 de Agosto de 2019: https://v2.nl/archive/organizations/association-for-strategic-


-accidents.
4 The Aesthetics of Failure: “Post-Digital’ Tendencies in Contemporary Computer music”. (2000)

448
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

os órgãos infetados, procurando deixá-los para trás como preparação ou mutação


que permita uma melhor adaptabilidade para com o corpo virtual, corpo multimédia
ou corpo do design, repleto de super-órgão e mutações reconfiguráveis no digital,
onde a biologia, como ficção, constrói a necessária distância para com a interface bio-
lógica que é abandonada na parafernália das máquinas que a assistem, envolta por
uma paródia orquestrada pelos circuitos do poder que ditam os desejos e pulsões
desse desligamento do interface-biológico para com o do digital, design e virtual.

Design de drogas: farmacologias para um reformulado conceito de reali-


dade virtual como oposição ao corpo multimédia assistido por máquinas
A libertação do corpo e os modos de acentuar a infeção para estados mais avançados
da experiência dos sintomas e suas consequências no corpo terminal e seus signifi-
cados para com as representações do corpo e das experiências acedidas por o corpo
como-dispositivo e terminal. Podemos observar tendências e pulsões em algumas
práticas artísticas, como, por exemplo, nas obras que utilizam técnicas de realidade vir-
tual, sendo a tendência uma necessidade de evasão do corpo e imersão em mundos
imaginários multimédia, assistidos por máquinas de simulação. Neste tipo de experi-
ência multimédia, elaboram-se algumas condições interessantes de serem refletidas.
Se, por um lado, o corpo-multimédia do participante em algumas das experiências se
encontra imóvel, estagnado e imerso num espaço virtual que reconfigura na mente
um estado de “realidade” por intermédio de simulações computacionais e de óculos
de realidade virtual que servem como prótese de uma experiência semelhante a ci-
nematográfica, por outro acentua-se a ideia do corpo terminal onde a experiência es-
tética se compara a um estado de sonho acordado, conectada por cabos a máquinas
que mantêm o impulso da vida em suspensão ilusória e em mobilidade reduzida, se-
melhante aos ambientes hospitalares ou comparável a uma visita a um oftalmologista.

Figura 1: Prescrição de drogas de design: realidade virtual bio-química.


Hugo Paquete e Ana Santos. 2019

449
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O que propomos como realidade virtual para contrariar estas aplicações é a utiliza-
ção de farmacologias e tecnologias químicas disponíveis para desenvolver “design
de drogas” para fins estéticos e de exploração do conceito de realidade virtual. São
construídas para elaborar complexos estados alterados de consciência para apro-
fundar a experiência estética e as possíveis narrativas desenvolvidas. Não com re-
curso a imagem e estética do cinema ou vídeo jogo, mas com combinação química
que gera uma alteração no cérebro, curto circuito e intoxicação, com vista à fruição
estética num estado de consciência alterada e como solução para uma arte realmen-
te virtual, a qual também liberta o corpo dos mecanismos e de um estado comatoso,
apoiado ainda numa ideia de corpo ciborgue, proveniente do imaginário dos anos
1960-1990, ligado a próteses e animado por energias que não são as químicas. Uma
perfeita imagem do corpo amputado da sua capacidade de lidar com o real e onde
a prótese é o modo de adaptação à velocidade do progresso tecnológico em opo-
sição à adaptabilidade biológica. A nossa abordagem tecnológica é mais invisível e
traz a farmacologia e a tecnologia associadas para construir experiências estéticas
mais sofisticadas com um corpo libertado para a performatividade e afetado, que
explora todo o seu potencial de movimento e conexão. Se pensarmos que as ex-
periências de realidade virtual digitalizam e representam objetos e elementos que
podemos encontrar no mundo não virtual, logo a nossa experiência de realidade
virtual permite uma narrativa mais aberta em que os participantes encontram os
significados e objetos no cenário em seu redor, que é potenciado pela alteração dos
seus estados de consciência, atingindo, assim, uma verdadeira experiência de rea-
lidade virtual mais próxima das estéticas do pós-digital. Neste processo, o erro e o
imprevisível está equacionado como sintomatologias secundárias, manifestadas por
febres, alucinações, desorientação e outros efeitos catárticos, até convulsões. Todas
estas experiências servem acentuar o potencial da experiência estética e as utilida-
des do nosso sistema de realidade virtual. Procuramos também desenvolver, a longo
prazo, com apoio industrial, vírus infeciosos que permitam elaborar um conjunto de
sintomas corporais e psicológicos para explorar estes conceitos que estão próximos
da alucinação e são mediados por complexas tecnologias ao nosso dispor. Procura-
mos, assim, parceiros institucionais ou independentes para explorar estes processos
com fins estéticos e para expandir o corpo multimédia, implantando quimicamente
e de modo viral as condições para interação com os mundos virtuais e suas poten-
cialidades de criatividade e experiência. Os conceitos e técnicas da realidade virtual
devem evoluir, na nossa opinião, neste sentido na arte contemporânea, porque os
sistemas VR não têm a dimensão metafísica necessária para suportar esse argumen-
to, na nossa opinião.

Podemos dizer que alguns projetos de realidade virtual poderiam ser resolvidos
noutros suportes mais tradicionais, tendo em consideração que a única originalida-
de, em alguns casos, se situa unicamente no suporte tecnológico e não no conteúdo.
Existe, por assim dizer, uma dificuldade em separar uma atração generalizada que

450
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

temos pela evolução tecnológica da própria experiência estética integrada nestes


sistemas. Aqui residem outros problemas que se prendem com uma outra sintoma-
tologia contemporânea e que é dependente da sedução que temos da tecnologia
como infeção viral imunossupressora, que nos deixa talvez com incapacidades de
compreender e analisar os conteúdos, daí o efeito catatónico das novas subjetivi-
dades contemporâneas como um estado de “boredom” (Priest cit Ross, 2013). Talvez
o problema fundamental da arte e do discurso contemporâneo seja a “insufficiency
art” (ibid) contra a velocidade do neoliberalismo e do capitalismo que alimenta a
produção da arte e tecnologia, com os meios técnicos e imaginários científicos fu-
turistas que não são nada mais do que sintomas da tecnologia como poder. Porque
no real de fronteiras imaginativas e dado a todas as permutações estéticas que de-
safiam as leis da física, do mundo e seus objetos palpáveis, os eventos são assistidos
pela velocidade da fibra ótica e pelo poder da energia elétrica e seus magnetismos
por onde tudo se projeta e movimenta, sucede e é reflexo duplicado do mundo pal-
pável e dos seus antigos medium, ambientes e paisagens. Por aqui a cultura circula
dentro de novas fronteiras apoiadas por comunidades onde se constroem novos
valores de “Data Trash” (Kroker, 1994) que é “a wavering event-scene: a violent inter-
zone between the will to virtuality and battered (human) flesh” (ibid). O facto sobre o
qual mais me interessa refletir e que complementa o pós-digital é que quanto maior
é a circulação destes conceitos de espaço real e virtual, proporcionalmente cresce o
estático corporal, terminal e corpo multimédia e a velocidade visual e sonora que,
por um lado, são uma sintomatologia resultante das novas tecnologias de comuni-
cação e computação na expansão do digital. Dito isto, se o problema do pós-digital
não residisse nos objetos naturais e construtores de artificialidades ou cultura, não
teria a importância necessária para se tornar num paradoxo e preocupação existen-
cial e criativa, que sustenta e indica o nosso ponto histórico pós-humanismo5 ou

5 “First, the posthuman view privileges informational pattern over material instantiation, so that
embodiment in a biological substrate is seen as an accident of history rather than an inevitability
of life. Second, the posthuman view considers consciousness, rgarded as the seat of human identity
in the Western tradition long before Descartes thought he was a mind thinking, as an epiphenome-
non, as an evolutionary upstart trying to claim that it is the whole show when in actuality it is only
a minor sideshow. Third, the posthuman view thinks of the body as the original prosthesis we all
learn to manipulate, so that extending or replacing the body with other prostheses becomes a con-
tinuation of a process that began before we were born. Fourth, and most important, by these and
other means, the posthuman view configures human being so that it can be seamlessly articulated
with intelligent machines. In the posthuman, there are no essential differences or absolute demar-
cations between bodily existence and computer simulation, cybernetic mechanism and biological
organism, robot teleology and human goals.” (Hayles, 1999)

451
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

pós-biológico6 que reforça a sua problematização. Em 1994, Arthur Kroker previa


os impactos do digital na nossa sociedade e suas alterações cognitivas sobre o cor-
po, espaço e política, extrapolando uma especulação do que ele já enunciava como
uma classe virtual que viveria uma “consensual hallucination” (Kroker, 1994) por in-
termédio do digital na grande autoestrada da informação.

Realidade virtual bioquímica: avanços tecnológicos e estéticos em direção


ao corpo sem terminal por estimulação química e elétrica do cérebro
Se os dispositivos de realidade virtual ou prótese condicionam o corpo na sua li-
gação a um outro tecnológico atuante, que é a máquina ou dispositivo, facilmente
concluímos que existe um estado de condicionamento. Como também os seus
efeitos em termos de representações visuais, sonoras ou textuais se fundamen-
tam em motivos figurativos que nos remetem para um fazer artístico associado
à arte clássica com os seus mitos, lendas e histórias, onde a mente se acelera em
geografias e narrativas ficcionais. Podemos, assim, pensar que as obras de realida-
de virtual exploram processos clássicos de entender o fazer artístico. Então, são
muitas vezes uma sintomatologia contemporânea na arte que, não conseguindo
vislumbrar um futuro além da prótese “óculos VR”, fica retida em experimentações
artísticas com linguagens consensuais, sonoras, visuais e formais assimiladas his-
toricamente para um público mais generalista mantém um interesse trivializado
pelo aparato tecnológico, mas para um público mais informado do estado da arte,
estas manifestações não revelam grande ímpeto. Estas obras produzidas na atu-
alidade só trazem um efeito de pastiche e de retro, uma falta de profundidade
que não questiona de modo algum o impacto do digital e tecnologia na produção
artística e as suas novas materialidades e possibilidades interdisciplinares. Esta é
também uma condição do capitalismo avançado que vivemos atualmente, que
traz as tecnologias e meios de produção potencializados pela democratização
das tecnologias do complexo militar no tecido social, com efeito contagioso pa-
dronizado e com falta de valor crítico. Porque devemos compreender o conceito
de contágio, não unicamente como uma forma de doença no seu sentido mais

6 “Post-biology considers the body as a mosaic of biological, viral, technological, cultural and politi-
cal dynamics, all meshed into one unstable pattern. In this model, the borderline between organic
and non-organic dynamics is quite tenuous and our model of human being is called upon to mingle
and to fuse with what was previously considered un-human, a-human. But if representations of the
living body are really becoming post-biological, then post-biology cannot simply be a model of a
living thing to which technology has been bound. If there is a post-biological model, we could, in
fact, only truly examine it if we ourselves became (at least in part) post-biological. In fact, the pos-
t-biological model is a simulation of the living no longer having anything to do with an original,
fundamental Idea of the living being. Post-biology is a modelling that exists in an entirely different
time and space -- between matter instead of in it -- one that lies outside of organic representation.
Postbiology produces entangled, dynamic, and autonomously functioning simulacra.” (Dyens, 2000)

452
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

médico ou geral ligado à biologia. Podemos compreender o conceito como uma


forma de explorar a ideia de anomalia associada ao capitalismo, tecnologia, arte
e cultura no seu geral. Assim, compreender as relações entre indústria, tecnologia
e as noções de contágio e vírus permite compreender a absorção e contaminação
das anomalias e hipocentro da infeção, sendo o vírus um elemento que pode ser
linguístico, de conexão analógica ou digital, mas que efetua uma transformação
no hospedeiro que, neste caso de estudo, é utilizado para traçar as origens do
corpo multimédia e seus contágios no discurso artístico, estético e crítico, na arte.
Podemos afirmar que foi tendo em consideração as tecnologias disponíveis e pe-
rante uma necessidade de avançar novas possibilidades de relação com o corpo
e sua performatividade, alteração e relação com o tecnológico e seus regimes de
perceção como a VR que decidimos repensar o conceito e as possibilidades futuras
de o expandir dentro da nossa área de investigação.

Solução de drug-design para uma realidade virtual bioquímica


de imersão total

Figura 2: Cápsula. Hugo Paquete e Ana Santos.


Laboratório de design de drogas e experiências de realidade virtual bioquímica, 2019

Por isso mesmo, avançamos com a solução tecnológica mais centrada na química
experimental e design de novas drogas na farmacologia, que é uma cápsula para
podermos elaborar experiências estéticas que consideramos realmente de realidade
virtual e desprovidas de qualquer prótese, utilizando os recursos do corpo biológico.
Como uma forma de libertação do corpo multimédia e sua performatividade em
que o corpo não necessita de ser terminal de ligação. Por isso, o conceito de vírus
e infeção foi fundamental para construirmos uma reflexão e solução que se situa
no controlo dos efeitos secundários das experiências de realidade virtual, que são o
empobrecimento da dimensão performativa, o condicionamento da mobilidade, a
necessidade de dispositivos e a obsolescência estética gerada por uma estética CGI
cinematográfica e narrativa que não explora todo o potencial biológico, químico e
elétrico do cérebro humano e sua metafísica. Digamos que a arte do futuro lidará
com outras técnicas e meios de exploração da experiência e objeto artístico. Este é
o avanço que propomos, na atualidade, para o contexto pós-digital e pós-humano
na arte. Dito isto, o modo como pretendemos desenvolver as nossas experiências de

453
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

realidade virtual e exploração estética de novas formas de experiência arte passa por
utilizar fórmulas químicas com o apoio da indústria farmacêutica ou outros grupos,
públicos e privados, que nos apoiem no design destas substâncias como também na
experimentação que passa pelo controlo do tipo de narrativa e sintomatologia que
podemos obter e gerar, numa tentativa de direcionar a experiência e conceber pro-
dutos estéticos mais apelativos que ativem todos os sentidos do corpo multimédia,
não sendo necessário outro tipo de dispositivo além das nossas cápsulas e seu con-
teúdo. Numa análise dos materiais utilizados, optamos por escolher a molécula de
MDMA7 como base para outras ligações entre moléculas, com o objetivo de desen-
volvermos novos designs mais experimentais como também experiências artísticas
de realidade virtual, cada vez mais complexas, que envolvam todos os elementos do
multimédia, imagem como alucinação, som e fala como alucinação sonora e narra-
tiva textual, entre outras manifestações no corpo, como mudanças de temperatura,
ritmo cardíaco, ansiedade, euforia e outros estados psicológicos e físicos difíceis de
simular nos sistemas de realidade virtuais mais tradicionais. É importante, também,
na nossa investigação a duração duma experiência completamente de imersão,
que tende a durar entre 3 a 6 horas, dando o tempo necessário para que o utiliza-
dor possa usufruir de uma experiência estética de realidade virtual bioquímica que
consideramos satisfatória. Estas experimentações são formas de testarmos o nosso
conceito de realidade virtual bioquímica que apresentamos como novo paradigma
a ser testado artisticamente no campo de interceção entre arte, design e tecnologia.

Figura 3: Molécula de MDMA. Hugo Paquete e Ana Santos. 2016

7 A 3,4-metilenodioximetanfetamina (MDMA), comummente conhecida como ecstasy, é uma droga


psicoativa usada principalmente como uma droga recreativa. Os efeitos desejados incluem sensa-
ções alteradas e aumento de energia, empatia e prazer. Quando tomado por via oral, os efeitos co-
meçam após 30 a 45 minutos e duram de 3 a 6 horas

454
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

“How Much More Lifelike Can We Get?” Implosão técnica para a autopreser-
vação experiêncial
Seguindo uma política implicita nos conceitos farmacológicos, o estado alterado do
corpo o translada para um outro patamar analítico, onde este sobre tais efeitos sinté-
ticos é projetado para um estado liminal (Turner, 1974), onde lhe é apresentado uma
passagem contínua ritualistica entre morte e resurgimento, mais específicamente
entre as dimensões de vírus, catarse e infecção. É neste entre-lugar “VR” onde a pre-
sença do corpo multimédia no seu espaço e tempo ganha significancia perante tal
aparato que aqui apresentamos como corpo terminal. O mesmo tem como príncipio
central culmatar o paradoxo apresentado nos dispositivos de VR, que se categorizam
como um lugar não definível antropológicamente, pois este se asemelha apenas a
uma espécie de local de passagem, como uma via rápida de entrada e saída de cor-
pos em modo automático. Ou seja, eles apenas permanecem ali com a finalidade de
chegar a algum local, o interessante será verificar que este mesmo local por conse-
quência também não existe, deixando portanto o corpo num estado suspenso entre
ida e chegada a lado absulutamente nenhum. Imóvel, este corpo sem lugar passa
a tornar-se um dummy de si próprio, onde o corpo é preparado para o acidente e
apresentado como simulação e autâmato.

O foco académico redirecionado para os estudos do corpo revela que esta contin-
gência é emergente, é notória a reviravolta analítica em relação à noção de coletivi-
dade de uma classe de corpos, sujeitos virtuais e terminais, sendo isto fruto da mu-
tação que o significado sofreu, resultado da interação tecnológica, nomeadamente
dos modos operativos de relação com outros por intermediação tecnologica. Dito
isto, cada vez mais assistimos a um crescente interesse em analisar o corpo através
dos sistemas biomédicos. Podemos então sugerir que existe uma concreta neces-
sidade de voltar a repensar a noção biológica de corpo, sendo que, no presente se
torna imperativo faze-lo seguindo os sistemas biopoliticos pelos quais ele foi pro-
duzido. Estes mesmos sistemas biomédicos em contrapartida, lidam e encorporam
a noção de corpo na sua elasticidade possível, exaltando a própria fisicalidade do
mesmo, uma vez que lidam com a contínua conciencialização da sua existência, seja
na dor, doença ou trauma. É através destes momentos que o corpo reaparece em
cena como passível de ser analisado, porque o mesmo encontra-se num estado de
exaltação de consciência, não só particular, como também, por alteração bioquímica
como propomos como as nossas drogas de design. O corpo assim duplica-se como
um virus e infeção nos sistemas sociais que o reproduzem, como explica Le Breton
no capítulo “A produção farmacológica de si”. Perante tal cenário a fissura provocati-
va está no resgate da coletividade associada à experiência por indução bioquímica
das drogas de design para libertar o corpo multimédia e terminal dos dispositivos
ocular-centricos. Para que, se desenvolvam experiencias de simulação VR mais totais
e centradas na biologia dos sujeitos e não dependente de macanismos. Esta analise
também se traduz para o espaço de experiência artística, uma vez que o próprio se

455
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

colocou numa posição radical, onde a própria experiência emergente do corpo pas-
sa a ser secundária, uma vez que sem conciência de si próprio não destingue ambos
os lugares, porque este mesmo espaço não o translada para um momento associado
a nenhum estado de espírito que o devolva a sua noção de fisicalidade e pertença ao
local. Ademais, apelamos a uma emersão dos sentidos co-modificadora bioquímica-
mente, de modo a que sobre efeito de drogas e farmacologias desenhadas para fins
artisticos e estéticos, a experiência corporal VR performativa seja resgatada na sua
totalidade e aprofundada como imersão e sinestesia no sistema sensorial humano
sem recurso a outros dispositivos.

Conclusão
O corpo multimédia sofre de “infecções” e condições inerentes ao aparato tecnoló-
gico “próteses” e “virologias”, onde estados subjectivos pseudo virtuais de percepção
são simulados. Assim sendo, a “drug desing” como propomos serve explorar sistemas
artísticos e tecnlógicos de realidade virtual mais complexos. Expandindo o pós-di-
gitais desprendido do visual-centrismo e dos meios computacionais de simulação.

Referências
Cascone. K. (2000). The Aesthetics of Failure: “Post-Digital’ Tendencies in Contempo-
rary Computer music”. Estado Unidos: Massachusetts Institute of Technology.

Dixon, S. (2007). Digital Performance: A History of New Media in Theater, Perfomance


art, and Installation. Estados Unidos: Mit Press.

Dyens. O. (2000). “Cyberpunk, Technoculture, and the Post-Biological”, CLCWeb:


Comparative Literature and Culture 2.1. Estados Unidos: Purdue University Press.

Le Breton, D. (2003). Adeus ao Corpo: Antropologia e sociedade. Brasil: Papirus.

Megen.V.E. (1998). ASA: Access All Accidents. Publicado em, “The Art of the Acci-
dent,”. Holanda: V2_, Lab for the Unstable Media.

Parikka. J. (2007). “Contagion and Repetition: On the Viral Logic of Network Culture”,
Ephemera: theory & politics in organization. © ephemera 2007ISSN 1473-2866www.
ephemeraweb.orgvolume 7(2): 287-308.

Turner, V. (1974). “Liminal to Liminoid, in Play, Flow, and Ritual: An Essay in Comparative
Symbology.” Estados Unidos: Rice Institute Pamphlet - Rice University Studies, 60, no. 3.

Kroker, A. and Weinstein, A. M. (1994). Data Trash: the theory of the virtual class. Esta-
dos Unidos: St. Martin’s Griffin.

Virilio, P. (2000). A velocidade de Libertação. Portugal: Relógio D`Água Editores.

456
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Hugo Paquete1, Aderito Fernandes Marcos2


and Paulo Bernardino3
Zoonose
leptospirose e os ritmos espirais como infeção sonora e musical
Zoonosis
leptospirosis spiral rhythms as a sound and musical infection

Resumo
O presente artigo técnico e ensaio procura analisar o impacto dos processos
de sonificação nas artes sonoras, colocando em análise os seus modos de pri-
meira e segunda ordem, na definição das metodologias de produção, tendo
como base o código genético da leptospirose, utilizado no desenvolvimento
de elementos sonoros e musicais com o software Iannix integrados na per-
formance Zoe:Actant (2017), apresentada no Arquipélago Centro de Artes
Contemporâneas dos Açores. Este projeto iniciou-se entre os meses de março
e maio de 2017 num contexto de residência artística, denominada Salutem:
à tua saúde, no Hospital do Divino Espírito Santo, em Ponta Delgada. Houve
colaboração e envolvimento com profissionais e utentes daquele centro hos-
pitalar, em especial com o centro de investigação centrado no estudo da lep-
tospirose e o centro de análises de fluídos mais comuns - sangue, urina, fezes
e expetoração – e, ainda, o centro de virologia.
Palavras-chave: Sonificação, Pós-Digital, Biologia, Artes Sonoras, Data-som

Abstract
This technical article and essay seeks to analyze the impact of sonification pro-
cesses on the sound arts, analyzing their first and second order modes in the defi-
nition of production methodologies, based on the genetic code of leptospirosis,
used in the development of sound and musical elements with Iannix software

1 Author, Research grant, (FCT) Ph.D student: Doutoramento em Média-Arte Digital. Aberta Univer-
sity and Algarve University, Portugal. Master in Contemporary artistic Creation, (UA, 2014). (CIAC):
Center for Research in Arts and Communication, University do Algarve, University Aberta. And in the
(ID+ [UA /DeCA) Group: Praxis and Poiesis: from arts practice towards art theory, Research Institute
for Design, Media and Culture, Aveiro University.
2 Coautor, Ph.D. CIAC, INESC-TEC e LE@D, Universidade Aberta, Portugal.
3 Coautor, Ph.D. ID+ Instituto de Investigação em Design Media e Cultura. Grupo: Praxis and Poiesis:
from arts practice towards art theory. Universidade de Aveiro, Portugal.

457
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

integrated in the performance Zoe: Actant (2017), presented at the Archipelago


Center for Contemporary Arts of the Azores. This project began between March
and May of 2017 in a context of artistic residency, called Salutem: to your health,
at the Divino Espírito Santo Hospital, in Ponta Delgada. There was collaboration
and involvement with professionals and users of that hospital, in particular with
the research center focused on the study of leptospirosis and the most common
fluid analysis center - blood, urine, feces and sputum - and also the virology center.
Keywords: Sonification, Post-Digital, Biology, Sound Art, Data-sound

Zoonose: Introdução às metodologias conceptuais para a construção sono-


ra-musical da obra
A obra Zoe: Actant de 2017 é desenvolvida na extrapolação dos imaginários científi-
cos e técnicos retirados do contexto da residência artística desenvolvida no Hospital
do Divino Espírito Santo, nos Açores, em parceria com o Arquipélago Centro de Artes
Contemporâneas e o Governo dos Açores. Neste artigo, vou expor algumas das me-
todologias centradas na construção da composição sonora desta obra, apresentan-
do algumas metodologias que envolvem sonificação de dados científicos recolhidos
no contexto do hospital, com especial interesse para a investigação no laboratório
de análises clínicas do hospital. Aí efetuei diferentes gravações dos campos eletro-
magnéticos das máquinas hospitalares, com recurso a microfones indutores, que
contribuíram para a construção de livrarias sonoras integradas em instrumentos vir-
tuais “Vsti” construídos para o Kontakt da Native Instrumentas e que, posteriormen-
te, serviram de material sonoro para compor a obra. Este material foi cruzado com a
documentação facultada pelo grupo de investigação UGPM - Unidade de Genética
e Patologia Moleculares - e também pelo grupo IGC: Genetics Research Group BioISI
– Biosystems & Integrative Sciences Institute sediados no HDES, os quais dedicam
parte da sua investigação à leptospirose “is a globally important zoonotic disease
that affects humans (…) as one of the emerging infectious diseases.” (Vieira et al.,
2006). A leptospirose é uma bactéria bastante presente na ilha e estes grupos são
especializados na sua investigação e reconhecidos a nível internacional. A investiga-
dora principal, Professora Doutora Luísa Mota Vieira, foi fundamental para a constru-
ção das minhas ideias. No contacto que tivemos apresentou-me o código genético
da leptospirose e uma série de informações sobre o impacto desta “bactéria” nos
Açores e no mundo, o que me despertou para a importância deste atuante “bactéria”
no contexto local “zoonose” e potencial da sua utilização na construção da obra e
nos modelos e metodologias de trabalho para converter estas informações em som
ou regras de composição sonora e musical numa abordagem “Post-Cagean” (Kotz,
2001). Um dos elementos que me despertou curiosidade foi o código das bácterias
ser representado num círculo.

458
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 1: Código genético da leptospirose, imagem da leptospirose e disco metálico com inscrição
musical para caixa de música Regina, Tecnologia de reprodução musical situada entre 1800 e 1900.

Assim, foi importante estabelecer relações conceptuais entre as imagens que me foram
facultadas e outros conhecimentos científicos e tecnologias que estavam associadas ao
universo musical, como é o exemplo dos discos metálicos de reprodução musical em
caixas de música mecânicas, e também formatos mais recentes, como os discos de vinil
ou o cd. Esta associação foi imediata porque, quando observamos a representação ge-
nética da leptospirose, vemos algo semelhante a três representações de faixas sonoras
no centro do desenho - uma branca, outra azul e outra verde – e, em direção à periferia
do círculo, linhas que partem de um centro e são espaçadas como passíveis de sequên-
cia rítmica. Por sua vez, estas definem temporalidades perante uma possível velocidade
de rotação acompanhada de eventos sonoros “sequencias” que, no todo, constituem
uma peça musical, no caso da imagem dos discos musicais metálicos. Então, existiam
associações que se começavam a desenvolver na observação que efetuei destes ele-
mentos visuais a par da imagem da bactéria leptospirose, que poderiam definir tanto
uma temporalidade ou duração relativa ao seu cumprimento, como também aprovei-
tar o desenho da sua ondulação para serem trascritos para midi e controlar efeitos de
onda e modelação de parâmetros que influenciavam elementos da composição. Desse
modo, foi partindo da imagem médica, científica e das suas representações que foram
pensadas as sonificações dos elementos integrados na composição sonora construída
para a obra. Nesta experimentação, desvendam-se atuants, como vírus e bactérias que
se encontram num estado de imanência e são revelados pela tecnologia. Estes actants
não se limitam ao agenciamento humano e aos seus atores, estendem-se também a
entidades não humanas, numa diligência de aprofundar argumentações que se preci-
pitem para lá do humano centrismo, promovendo formas mais livres de construção do
conhecimento. Não obstante, desde tempos primitivos que a nossa espécie observa
os fenómenos naturais a par de outros fatores e entidades biológicas mais intangíveis,
como vírus, bactérias, fungos, animais e plantas e suas transformações na paisagem, em
sincronia com a evolução cultural, em que se situa a arte ou a medicina. Por conseguin-
te, fabricamos um sistema de relações - sociais, biológicas e institucionais - com o meio,

459
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

onde atuam entidades humanas e não humanas, num sistema de trocas cinestésicas
culturais. Podemos constatar o modelo contemporâneo conceptualizado no “multispe-
cies ethnography” (Kirksay e Helmreich, 2010) proveniente da antropologia, que coloca
estas entidades em diálogo no nosso Terceiro milénio, avolumando o mundo visível,
o território da ação humana. Assim sendo, a sonificação utilizada foi profundamente
cultural, interpretativa e subjetiva, porque os “dados” utilizados não foram traduzidos
cientificamente em tempo real, mas sim interpretados partindo da imagem para de-
finir regras de composição e meios de gerar elementos sonoros. Desse modo, nas so-
norizações e nos seus processos, todas as escolhas encaminham o resultado sonoro
ou musical para o processo de escolha, baseados no estilo, especialmente no contexto
Pós-Cage, em que todos os sons são considerados musicais. Como considero todos os
processos gerados pelas sonificações fabricados, contextualizo este facto no conceito
de simulação ou porque é partindo de um conjunto de “data” informações científicas
sobre a leptospirose que os elementos sonoros e metodologias de composição são
pensados e explorados, tendo sempre em consideração que não estamos a lidar com
nenhum fenómeno sonoro ondulatório, mas sim com informação, e lidando com sis-
temas lógicos de transcrição de um meio para outro, por processos tecnológicos e de
organização. A sonificação permite um modo processual, por intermédio do potencial
computacional e do digital. Então, podemos gerar música ou data-som, porque o re-
curso a algoritmos e outras estratégias conceptuais são utilizados para dar vitalismo
à data e manifestá-la em eventos sonoros. De acordo com Lancaster “It should be that
arranging sound in a music way is part of a new definition of functional sonification”
(Lancaster, 2012). Apresento um organograma do modo como entendo os processos
de sonificação e as suas possibilidades de conceptualização.

Figura 2: Processos de sonificação e modelo de aquisição de conhecimento. Hugo Paquete. 2019

Esta ideia de arranjo implica opções de composição e manipulação da informação


para configurar o conceito que apresento de “data-som, data-evento-sonoro e de
meta-escuta” (Paquete, 2015-2019), que foi utilizado na elaboração desta compo-
sição e metodologias empregues. Assim, posso assegurar que o mais complicado e

460
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

interessante é quando endereçamos estes valores ao estilo, às opções de composi-


ção e expressão. Existem, por assim dizer, determinados valores que são construídos
com base nas opções formais e que estão carregados de conceções culturais do au-
tor, que vão além da “data” que está em análise. Dessa maneira, neste projecto o mé-
todo utilizado centrou-se em processos de sonificação de segunda ordem, optando
por um modelo mais livre e indeterminista de tratar a data e sua conversão, que
se fundamentam em agrupar elementos, combinar valores e gerar associações com
vista a resultados estéticos. Estes agrupamentos, ou grupos de informação e lógi-
cas de composição, são utilizados numa relação de segunda consequência, em que
os algoritmos ou lógicas estabelecidas desenvolvem as relações entre as diferentes
partes do sistema e suas condições, regras para gerar o data-som como proponho.
O data-som gerado, pela ordem da sua natureza secundária que lhe atribui uma vita-
lidade que é o evento, atuante ou objecto externo não sonoro quantificado pelo có-
digo, tecnologias e ambiente digital, não encontra referência, nem lugar, em nenhum
corpo vibrante de onde surge, estando sempre conectado com o princípio e potencial
do digital, que é simulação. Nestes processos, as opções de design estão interligadas
com as relações de organização temporal dos eventos, seus ritmos e sequenciação de
valores e contribuem para a configuração da composição e as suas estruturas, sendo
influenciadas pela estética do artista e, por esse motivo, tal envolve um ato profunda-
mente balançado entre o artístico, estético e cultural. Por conseguinte, a estetização
do modo como a data é organizada configura, por sua vez, elementos da composição,
harmonia, timbre e ritmo, podendo ser utilizado para explorar variações e alterações
de modo mais livre na composição, por processos de repetição, feedback ou retorno
da “data”. Apresento, seguidamente, um organograma que representa os processos de
sonificação e suas dependências técnicas e conceptuais, utilizados na construção da
composição integrada na obra Zoe: actant de 2017.

Figura 3: Processo de sonificação da bactéria leptospirose utilizado na construção da composição


da obra Zoe: Actant. Hugo Paquete, 2017-2019.

Desta forma, foram utilizados processos que contemplam uma segunda ordem da so-
nificação, que não está realmente teorizada a nível académico, mas que está cada vez
mais presente nos processos artísticos das artes sonoras e da música contemporânea,

461
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

como uma outra metodologia ao serviço dos artistas. Compreender estes fatores tor-
na-se fundamental para entender os modos como o som hoje emerge de um conjunto
de práticas em que o próprio som, como elemento vibratório, está ausente. Mas, por
um conjunto de processos analíticos, artísticos e tecnológicos assentes na vitalidade
da informação e tecnologia, é fabricado artificialmente. Os processos referidos esta-
belecem as regras, os modelos de conversão-manifestação e as condições necessárias
para o evento data-sonoro emergir. Estas alterações da natureza do evento sonoro,
que tem uma origem na “data”, mudam a sua ontologia enquanto evento vibrátil e,
por conseguinte, mudam também a sua natureza ou ontologia e existência e, assim,
reconfiguram novos modos de cognição e metodologias processuais de composição
ou sound design. Porque “Music is more than notes” (Middleton, 2003). Este som que
aflora dos processos de sonificação nada tem de semelhante com o som manifestado
numa ordem de natureza primária, que seria o som como o compreendemos, mani-
festado por impactos, fricção, vibração de corpos num meio sólido, gasoso ou líquido.
Desse modo, seja a sonificação utilizada para fins mais científicos de primeira ordem,
onde causas e efeitos são representados diretamente, ou artísticos, ela parte sempre
de um pensamento sobre o sistema que pretende implantar para a obtenção de resul-
tados, dados, informações que, posteriormente, podem ser manipulados em qualquer
instância e momento do processo. Daí a importância do conceito de ontologia simula-
da ou fabricada, porque a sonificação está sempre dependente de uma fabricação ou
organização de um sistema que não pode emergir de forma espontânea. A única coisa
que emerge de modo espontâneo são os dados captados pelo sistema e as lógicas
estabelecidas. Esses mantêm a flutuação e indeterminismo dos objetos ou eventos
que analisam, dentro do que é permitido e calibrado pelos instrumentos de medição,
que confluem em regras de leitura e reconversão dos dados. Tudo o que se segue nes-
ses processos de seleção e organização da data são opções estéticas, formais, opções
práticas e, por último, culturais.

Zoonose: Território, atuante e metodologias técnicas da construção da obra


sonora-musical integrada na performance multimédia Zoe:Actant de 2017
Este projeto tinha como implicação central e solicitação das instituições envolvidas
uma necessidade de refletir o contexto da residência, a sua localidade e contexto,
utilizando tanto os meios técnicos disponíveis como as características da instituição
de acolhimento, o HDES. Essas questões estão integradas no conceito que é a zoo-
nose: “é um termo da medicina que designa as doenças e infeções transmitidas para
o homem através dos animais. É uma palavra de origem grega formada por “zoo”,
que significa “animal” e “noso”, que significa “doença” e, posteriormente, deu origem
ao título da obra Zoe: Actant, 2017. Neste conceito, afiguram-se questões impor-
tantes no desenvolvimento da obra, uma delas era a ideia de atuantes que atuam
no espaço de invisibilidade no território, vida atuante com a qual partilhamos o
espaço e o tempo e que nos afeta, seja pelas condições locais ou pessoais. Porque,

462
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

desde tempos primitivos que a nossa espécie observa os fenómenos naturais a par
de outros fatores e entidades biológicas mais intangíveis, como vírus, bactérias, fun-
gos, animais e plantas e as suas transformações na paisagem, efeitos e reações que
irrompem pela nossa consciência, por intermédio da cognição, em articulação com
as ferramentas técnicas, onde se situa a música e as tecnologias, instrumentos que
construímos para manipular, e expressar-nos no real, acedendo a possíveis conclu-
sões, significados e contextos do mundo representável. Num sistema de relações
- sociais, biológicas e institucionais - e com o meio, onde atuam entidades humanas
e não humanas num sistema de trocas cinestésicas e aquisições, podemos consta-
tar este modelo contemporâneo de conceptualização na “multispecies ethnogra-
phy ” (Kirksay e Helmreich, 2010) proveniente da antropologia, que emerge a par
do desenvolvimento das tecnologias hiper-óticas e hiper-sónicas do nosso século,
que potenciam a expansão do mundo visível e audível, ampliando e amplificando
o território da ação humana, influenciando a cultura, estética e/ou imaginário. Des-
te modo, sobre estes resultados obtidos dos laboratórios e grupo de investigação
UGPM e IGC: Genetics Research Group BioISI no HDES, optei por partir das imagens
científicas como possibilidade de sonificação.

Sonificação da imagem científica do código genético da bacteéria leptospi-


rose convertida para elementos sonoros-musicais.

Figura 4: Representação do código genético da Leptospirose à esquerda e sua representação à


direita já alterada para efetuar a sonificação e conversão para dados midi com base na imagem.
Hugo Paquete. 2017-2019.

Primeiramente, utilizei o código genético da leptospirose para encontrar relação na


imagem que pudesse ser traduzida para som. Nesse ponto, defini alguns princípios

463
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

para gerar a conversão por intermédio do software Iannix. Os princípios foram: utili-
zar os três círculos centrais para definir uma relação de tempo e atividade geral, visto
que esses três elementos centrais são bastante semelhantes a representações espe-
trográficas sonoras. Logo, desenhei três linhas independentes para cada círculo, que
descrevem e acompanham o desenho e os seus picos de atividade onde foram inte-
gradas bolas azuis “trigger” que lançam mensagens midi entre 0-127, contribuindo
para uma duração estável do conjunto de dados que são gerados em notas musicais.
Por conseguinte, observei os marcadores azuis mais evidentes na imagem e com
maior número de concentração ou incidência de informação e optei por integrar
ações respeitando os elementos da imagem científica do código genético em aná-
lise. Nesta opção, descrevi outras trajetórias que partem tanto do centro do código
como da periferia, descrevem círculos e trajetos interpretados e consequentes da
imagem. Essas relações de trajeto estabelecem uma relação com a duração dos “trig-
ger” e, na sua constituição, definem quando as notas midi-musicais são lançadas por
intermédio das linhas cor de laranja que as ativam. Portanto, torna-se evidente que
o tipo de sonificação utilizado é de segunda ordem, tendo em conta que as opções
que efetuei foram culturalmente mediadas pelo modo como interpretei a imagem e,
consequentemente, construí estratégias de organização e implementação do siste-
ma de composição. Assim, gostaria, para clarificar a metodologia e o seu potencial,
de apresentar duas sonificações como exemplo, prova de conceito e resultados fun-
cionais do material sonificado e processo.

Figura 5: Representação visual do código genético da leptospirose e intervenção de sonificação na


imagem. Primeiro Qr code: Documentação vídeo da leitura da sonificação para piano. Segundo Qr
code: Documentação vídeo da leitura da sonificação com o material gravado nos laboratórios do
hospital e integrada em instrumentos virtuais desenvolvidos especificamente para o projeto.

Após a escuta dos resultados, podemos começar a compreender o processo envol-


vido e o seu resultado sonoro-musical como também funcional. É importante referir
que, nestes processos de composição em que envolvo técnicas de sonificação, sigo
meticulosamente a “data” que é a origem do conjunto de intervenções que efetuo.
Tento unicamente estabelecer uma lógica que, muitas vezes, é intuitiva, porque não

464
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

estou a desenvolver uma sonificação, neste caso centrada numa imagem onde o
input da informação não gera variações. O que se expressa neste tipo de sonifica-
ções é a capacidade de elementos casuais encontrarem uma lógica perante a sen-
sibilidade do autor no tratamento dos dados e nas lógicas que aplica nos eventos
gerados e no sistema construído. Porque neste projecto não é um algoritmo que de-
fine uma estratégia sensível, nem o que constrói a experiência estética que se retira
do contacto com a obra. O algoritmo é mais um elemento dentro de um sistema de
interações que são tanto da ordem do técnico, dos objetos e operações, quanto do
estético. O importante é o modo como o output do data-som nos faz sentir e provo-
ca construção de experiência que nos retire da ideia de estarmos diante de um obje-
to comum científico com uma sonificação de primeira ordem puramente ilustrativa.
Para emergir neste sistema que suportou a construção da composição da obra Zoe:
Actant, 2017, é necessário compreender que os eventos sonoros necessitam de con-
ter alguns princípios, tais como, sequências de eventos, duração, variação de pitch,
tempo e harmonia, para que possamos atribuir algum valor estético a estas experi-
ências, sendo esse valor dependente da cultura e das nossas experiências, porque a
arte não partilha qualquer relação com os objetos comuns do design e seu sentido
utilitário. Logo, deve ser analisada com modelos mais abertos, como Lawrence Kra-
mer propõe no seu capítulo em hermenêutica, em que ele aponta para a impossibi-
lidade da música se desconectar de uma dimensão discursiva, “But musical meaning
can be made explicit only by language, and the process of “translation” therefore
presupposes some sort of vital relationship between music and text.” (Kramer, 2003).
Logo, estas relações devem ser mais filosóficas e críticas.

Sonificação da imagem científica da bactéria leptospirose convertida para


elementos sonoros-musicais.
Como é de notar, os processos de sonorização utilizados são, de um modo ou de
outro, sempre processos que envolvem estratégias e opções estéticas, modelos de
conversão fabricados na procura de evidenciar elementos sonoros que têm uma ori-
gem na “data” ou, como denomino, na “data-som” (Paquete, 2019). Este processo só é
conseguido em ambos os modelos por um conjunto de opções estéticas quanto ao
modo como a data é transformada. Nos dois modelos, a única diferença no processo
de reflexão e produção é a complexidade de como a data é tratada esteticamente.
Existe constantemente a simulação e conversão em ambos os processos, mas na se-
gunda ordem afigura-se uma tentativa de implicação do autor e das suas opções
estéticas, uma contaminação do juízo estético, como também a nível da capacidade
de configurar grupos mais sofisticados, que geram resultados mais complexos em
termos formais. Este fator somente acentua a simulação e a funcionalidade dos pro-
cessos de opção estética, nestas metodologias de produção artística. Estas metodo-
logias e práticas processuais estão integradas na estéticas da arte pós-digital, como
“In the postdigital membrane, the inter-reaction between culture and technology

465
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

produces a floating amalgam in which self image, artifact or system and generalized
representations of desire coexist albeit in competition.” (Pepperell e Punt, 2000), e
é dentro desse universo que são discutidas, com todas as subjetividades inerentes,
significações e história. Devemos compreender que o sistema de trocas que está
implicado nas atualidades artísticas que lidam com o fenómeno musical e sonoro
tem diversas proveniências, não centrando a investigação somente na música tradi-
cional, erudita ou em correntes estéticas, mas procurando onde, como, porquê, em
que contextos, grupos, meios, e com que discursos o fenómeno sonoro emerge na
arte contemporânea como uma contra-proposta em oposição a um estado de “bo-
redom” (Priest cit Ross, 2013). Que é um problema fundamental da arte e do discurso
contemporâneo de uma “insufficiency art” (ibid), que não é mais do que “symptoms
of disease but “normal” configurations of contemporary subjectivity” (ibid). O ele-
mento que liga tanto a arte como a ciência nesta relação é a técnica da sonorização
e a partilha de imaginários técnico-científicos que são culturais. Contudo, como é
no campo dos discursos das artes sonoras que centro a minha investigação, é neste
domínio que elaboro estas considerações e condições da minha obra. Assim sendo,
a segunda sonificação foi efetuada tendo como ponto de partida quatro represen-
tações da bactéria leptospira, tendo sido aplicados os seguintes princípios: traduzir
a imagem para diferentes percursos que se associam a diferentes durações na ativa-
ção das mensagens midi entre 0-127 e, consecutivamente, notas musicais; partindo
da imagem, corresponder a cada número de bolas azuis as mesmas em número na
sonificação, para existir uma relação direta entre a imagem e a “data” gerada para
controlar instrumentos virtuais ou analógicos, onde o evento data-sonoro é proces-
sado e manifestado. Gostaria ainda de reforçar que, neste processo, é a imagem que
dita as regras e o resultado sonoro dos elementos integrados na composição.

Figura 6: Imagem da bactéria leptospira e do processo de sonificação implantado.


Hugo Paquete. 2017-2019.

Digamos que este tipo de evento sonoro gerado pela sonorização pode ser com-
preendido como um data-som que, na sua origem, é um silêncio ou mutismo, ob-
tido tanto na ciência como na arte, com base no querer do autor, sua capacidade

466
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

de imaginar as conversões da “data” para “som” através dos seus valores estéticos,
tecnológicos, processuais e formais, como também pelos objetivos do que pretende
trazer ao nível da perceção humana auditiva, procurando as condições necessárias
para a conversão, que é o meio de “trazer à realidade” o data-som, por processos al-
gorítmicos, simulados e fabricados artificialmente por conversões e transformações.
Desse modo, o data-som é um “data-evento-sonoro” que se encontra dependente
das condições computacionais-tecnológicas simuladas, que lhe são proporcionadas
pelo autor e pela ecologia tecnológica envolvente.

Figura 7: Primeiro Qr Code: Documentação vídeo de uma sonificação de piano e sintetizador.


Segundo Qr Code: Documentação vídeo de uma sonificação desenvolvida com o material gravado
no contexto do hospital com recurso a microfones indutores.

São assim apreentados nos seguintes Qr Codes dois processos de sonificação cons-
truídos e integrados nas metodologias da construção da composição final da obra
Zoe.Actant, 2017. Esta experimentação, como pode ser observada nos vídeos, utiliza
a mesma imagem e conjunto de regras para testar resultados que são diferentes em
termos sonoros e musicais nas suas qualidades. Uma delas, a do ritmo, que deve ser
compreendido nesta abordagem como um flow que na composição está ligado à
ordem do movimento, dos micro-sons fora da audição humana e trazidos até ela por
meios tecnológicos. Como também proponho o conceito de ritmo como aplicado
no contexto da academia, numa perspetiva contemporânea “rhythm is a concept,
a property, a practice, and a method that cross diferente fields of study.” (Ikoniadou,
2014). Digamos que este conceito de ritmo apoia a minha metodologia na produção
artística e teórica, permitindo-me transpor disciplinas de um modo mais livre.

Figura 8: Documentação vídeo e áudio da obra Zoe: Actant. Hugo Paquete, 2017

467
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Conclusão
Os processos e metodologias envolvidos nos sistemas de sonificação trazem diver-
sificadas abordagens para as artes sonoras por influência dos meios digitais e ana-
lógicos em circulação socialmente, transformando os discursos e práticas artísticas.
Porque a arte, na sua essência, não lida com processos de comunicação ou ilustração
diretos, mas sim simbólicos e subjetivos, como os que demonstrei nos meus proces-
sos de composição em que utilizo sistemas de sonificação como apoio à criação de
modelos mais imprevisíveis. Este fator molda os significados da sonificação científica
ou artística. Esta questão é fundamental para compreendermos o data-evento-so-
noro fora da ontologia vibracional, como proponho, de onde aparecem um conjunto
de formas de lidar com a informação “data” e que permitem desenvolver sistemas de
transposição, sonificação, leituras, interpretações entre meios, por recurso a algorit-
mos ou estratégias mentais para gerar as condições e modos como o sistema é cons-
truído e as suas operações internas. O objetivo é tentar colocar estes processos em
discussão na musicologia e arte-digital, compreendendo que a transposição entre
disciplinas artísticas e metodologias técnicas implica modos de construção teórica e
sensibilidades diferenciados. Este artigo procurou demonstrar alguns dos processos
envolvidos nas minhas metodologias de criação artística e investigação teórica.

Referências
Helmreich, S. (2016). Sounding the limits of life: Essays in the Anthropology of Bio-
logy and Beyond. Estados Unidos: Princeton University Press, Princeton and Oxford.

Ikoniadou. E. (2014). The Rhythmic Event: Art, Media, and the Sonic. Estados Unidos:
MIT Press.

Kirksey. S. E. Helmreich, A S. (2010). The Emergence of Multispecies Ethnography.


Cultural Anthropology 25:4, journal of the Society for Cultural Anthropology.

Kotz. L: (2001). Post-Cagean Aesthetics and the “Event” Score. Estados Ubnidos: MIT Press.

Kramer, L. (2003). Subjectivity Rampant! Music, Hermeneutics, and History. The Cul-
tural Study of Music: in A Critical Introduction. Autores Clayton, M. Herbert, T. Mid-
dleton, R. Reino Unido: Routledge.

Lancaster. S. (2012). Relationships of sonification to music and sound art. Online:


http://dx.doi.org/10.1007/s00146-011-0337-3

Paquete, H. Marcos. A. Bastos, P. (2019). Ao som dos fluxos da informação: processos


de sonificação nas artes sonoras. Portugal: Avanca: Cine-Clube de Avanca.

468
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Pepperell, R. e Punt, M. (2003). The Postdigital Membrane: Imagination, Technology


and Desire. Reino Unido: Intellect L & D E F a E.

Priest, E. (2013). Boring Formless Nonsense: Experimental Music and the Aesthetics
of Failure. Estados Unidos: Bloomsbury Press.

Vieira. M. Simões. M. J. G. Pereira. C. M, et al. (2003). Human leptospirosis in Portugal:


a retrospective study of eighteen years. International Journal of Infectious Deseases.
Vol. 10, 378-386. https://doi.org/10.1016/j.ijid.2005.07.006.

469
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Joana Rafael1

Quem é o selvagem das nossas reservas? Arte e a


reformulação da natureza em espaços para a sua preservação
Who is the savage in our reservations? Art and the recasting of nature in zoned
spaces for its conservation

Resumo
Nos últimos anos, concepções de natureza como um reino à parte do, e subser-
viente ao, humano estão a ser, cada vez mais, desafiadas em prol do reconheci-
mento de um modo igualitário e inextricávelmente entrelaçado com o modo de
estar-no-mundo dos humanos (sic). Um grupo internacional de artistas e ativis-
tas, com as suas diversas práticas e compromissos conceituais, participou dessa
transformação. Espelhando desenvolvimentos filosóficos recentes (como novo
materialismo, realismo especulativo, ontologia orientada a objetos e novas on-
das de ecofeminismo), estes ajudaram a repensar a relação da humanidade com
a natureza e o meio ambiente, e a resistir ao legado de antigas atitudes utilitárias
e instrumentais em relação a ideias de natureza, bem como a arranjos de reser-
va para a sua conservação. Esta apresentação mostra como esta transformação
desafia a divisão metafísica que influencia negativamente e violentamente no
ambiente planetário.
Palavras-chave: natureza, Amazonia, selvagem

Abstract
In recent years, conceptions of nature as a realm apart from, and subservient to the
human, is growingly being challenged in prol of a recognition of an egalitarian and
inextricably intertwined way with the human (sic) being-in-the world. An interna-
tional grouping of artists and activists, in their various practices and conceptual
engagements, participated in this transformation. Mirroring recent philosophical
developments (such as new materialism, speculative realism, object-oriented on-
tology and new waves of eco-feminism) these have helped to rethink humanity’s

1 Joana Rafael é arquiteta e investigadora. Possui um MRes e um PhD em Culturas Visuais da Gol-
dsmiths, Universidade de Londres. O seu doutoramento investiga causas e soluções para a crise
ecológica e planetária - como esta se manifesta em atos de arquitectura e de reservas -, e examina
como estas são encenadas através de um repertório de ações e formas problemáticas. Actualmente,
para além de continuar esta investigação e praticar arquitectura, leciona Cultura Contemporânea no
ISCE Douro, Penafiel,

470
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

relation to nature and the environment, and to resit the legacy of old instrumental
attitudes towards - and ideas of - nature, as well as the arrangements of reservation
for its conservation. This presentation portrays how this transformation has chal-
lenged the metaphysical division harming, negatively and violently, the planetary
environment.
Palavras-chave: nature, Amazon, savage

Qual o papel da reserva, como ato e estrutura de conservação, na constru-


ção e manutenção de ideias sobre a natureza?
Os incêndios que, em Agosto (de 2019), assolaram vastas áreas protegidas da Ama-
zónia brasileira colocaram a floresta tropical num estado ainda mais crítico de des-
florestação, degradando, irreversivelmente, a maior reserva de biodiversidade da
Terra. Nos dias que se seguiram, o chefe do povo Kayapó, Raoni Metuktire (conheci-
do pelas campanhas de proteção da floresta e seus povos através de Sting), publica
no Guardian mais uma advertência sobre o modo destrutivo como nós, no ocidente,
nos relacionamos com a natureza e o ambiente. A sua mensagem apela a uma res-
ponsabilidade ética (e política) pela defesa do ambiente planetário.

Imagem produzida de extrato de artigo de opinão, publicado no Guardian, 2 de Setembro, 2019

471
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O uso que Metuktire faz dos pronomes We (nós) e You (tu) para transmitir a sua
mensagem elucida o contraste entre visões de mundo dos povos indígenas ame-
ríndios - intimamente ligados à terra -, e da sociedade ocidental, e veicula um im-
portante gesto critico sobre o modo como nós, no ocidente, nos relacionamos com
a natureza. Implícito neste modo esta a nossa concepção de natureza como outro, e
objecto maleável do desejo de controlo da humanidade ou recurso de poder. Uma
concepção que têm vindo a ser também desafiada pelas artes e humanidades como
sendo ao mesmo tempo causais e consequentes da lógica utilitária e instrumental
subjacente aos princípios da modernidade industrial que suporta a sociedade oci-
dental. Mais ainda, uma concepção que está a ser discutida como obstáculo a mode-
los melhores (Latour, 1999; Morton, 2007; Woodard, 2010), contra a comodificação
do mundo da vida e o aumento progressivo e imoderado do consumo do mundo
natural, e importante ponderar.

O tipo de interesse por detrás destas discussões contesta as distinções metafísicas


que separaram e elevaram o homem (sic) do mundo das coisas e da natureza, e que
exemplifica a maquina antropológica (Agamben, 2004). Esta 1) transformou todos
os relacionamentos entre homem e natureza em relações de sujeito-objecto, 2)
definiu as diretrizes de como gerencia-las bem, 3) levou o homem a uma posição
de domínio sobre o planeta, e como os proponentes do antropoceno e do climate
change evidenciam, 4) causou danos graves - e generalizados - no ecossistema pla-
netário. O processo que nos levou a perder frente a catástrofe ecológica instalada, e
que tem vindo a ser criticado por várias (não apenas indígenas) formas de ativismo
civil e organizações de defesa do ambiente. E, o processo em torno da qual impor-
tantes reivindicações e articulações políticas alternativas têm vindo a ser construí-
das e propagadas em defesa de um mundo que reconhece a singularidade de, e a
interdependência entre, todos os seres (humanos e não humanos), assim como a
reciprocidade de processos envolvidos na sua criação. Este é um mundo onde pode
existir luta ecológica mas também cooperação, competição mas também simbiose,
medo mas também prazer (Smith, 2011), mas onde não somos o agente dominante.

Entre estas reivindicações, e no propósito desta apresentação, destaco as de desen-


volvimentos filosóficos mais recentes como novo materialismo, realismo especu-
lativo, ontologia orientada a objetos e novas ondas de eco-feminismo a produzir
modelos criativos de desafiar o pensamento antropocêntrico e reformular os fun-
damentos metafísicos das nossas atitudes em relação à natureza, com impacto no
campo das artes. Muitos destes modelos reconhecem que os modos de vida que
grupos indígenas protegem têm muito a ensinar sobre como nos podemos relacio-
nar com a natureza de maneira não apenas instrumentalista e utilitária mas baseada
em sinergias com a biodiversidade (Viveiros de Castro, 2015; Demos, 2016) - onde
não estamos limitados a um entendimento da humanidade como excepcional e au-
tônoma (Klein, 2014).

472
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Para proponentes do novo materialismo, realismo especulativo, ontologia orientada


a objetos e novas ondas de eco-feminismo, “precisamos de tratar as relações entre
rochas e vento, algodão e fogo na mesma base que a relação entre os humanos e o
que eles encontram” (Harman, 2008) e constroem. Destruir e destilar a diversidade
do mundo - através nossa epistemologia ocidental - significou reduzir e simplificar
este mundo - e os mundos que ele contêm - a uma divisão simplista entre cultura e
natureza e, ao fazê-lo, empurrou outros modelos e sócio-cosmologias para a invisi-
bilidade (Marques, 2014-15).

Neste sentido, da Amazonia provêm não apenas (uma historia de) mensagens de ad-
vertência e de apelo, mas o exemplo de excelência tanto desta simplificação e destrui-
ção, assim como de compreensão e possível ajuste da nossa relação com o mundo.

Como é que a arte descreve, traduz e considera estas ideias e registra novas
concepções de natureza?
A Amazónia, a maior floresta tropical do mundo é um dos espaços mais simbóli-
cos de ambiente idealizado e exotizado como “primitivo”, “prístino” e “selvagem”,
e racionalizado como fonte de vida: “repositório de biodiversidade” e “refugio da
natureza integral”. Ela é um espaço conceitualmente reduzido a outro natural e
inato, legitimado por narrativas de exploradores, naturalistas e etnografos, que
retratavam a Amazonia - com o auxilio de modelos científicos de determinismo
ambiental (Meggers, 1954) - como território inóspito para a civilização. Uma ideia
que serviu de base para impedir o crescimento demográfico, sócio econômico, a
estratificação política, inovação tecnológica e consequentemente o surgimento
de aglomerações urbanas no território, na tentativa de lhe preservar o natural.
Mas que serviu também para naturalizar uma serie de contactos destrutivos (e
sucessivos) que incluiram processos de genocídio e de desapropriação - durante
os séculos de ocupação/colonização europeia - assim como de “integração” das
comunidades indígenas na nossa, durante a segunda metade do século XX. Estes
contactos incluiram processos que facilitaram a progressiva “anulação” dos povos
indígenas em prol de uma estratégia de planeamento, controlo e exploração - de
apoio a industria de extração de reservas naturais (e locais) de petróleo, gás e
minerais. Processos que abalaram crenças espirituais, sistemas religiosos e insti-
tuições sociais e políticas indígenas, e empurraram inúmeras comunidades para
áreas de jurisdição chamadas áreas reservadas, de modo a assegurar a sua sobrevi-
vência, e “independência”. Mas processos que, consequentemente, enfraqueceram
capacidades efectivas de inibição da desflorestação - e de bloqueio de pressões
externas e de corporações - das comunidades indígenas pelo território.

473
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

De forma análoga à reserva de selvagens que Aldous Huxley, em Admirável Mundo


Novo (1932), contrasta com o mundo futurista e civilizado2 - no contexto do impera-
tivo tecnológico e do progresso material e cientifico do pós-primeira Guerra Mundial
- estas áreas podem ser vistas como lugares onde “em razão de condições climáticas
ou geológicas, ou da pobreza dos recursos naturais, não se julgou conveniente rea-
lizar as despesas para civilizar”(1932). São áreas paradoxalmente livres do domínio
ocidental humano, embora remetidas a considerações políticas e jurídicas do mes-
mo. Area que resultam em uma espécie de reserva histórica onde se preservam não
apenas funções vitais na regulação do clima global mas também (e devido a) costu-
mes e tradições “selvagens” e socialmente construídos contra conflitos geopolíticos
e ecológicos actuais, em contraste com o nosso entendimento antropocêntrico do
que é o natural e “humano”.

Na Amazonia brasileira, deu-se inicio a um processo para desmontar o mecanismo


de defesa das areas reservadas, com a passagem da tutela das terras indígenas da
fundação nacional do índio para o ministério da agricultura, mas na equatorial uma
rede de ambientalismo, ativismo indígena e praticas de jurisprudência conseguiram
o reconhecimento da natureza como sujeito e de direitos. Através da contestação da
destruição corporativa e estatal da floresta ameríndia, conseguiram emendas consti-
tucionais e códigos legais importantes como a Lei dos Direitos da Mae Natureza, ins-
tituída em 2008 (no Equador). A artista Ursulla Biemann e o arquitecto Paulo Tavares
expõem este processo na sua instalação multimídia Forest Law (2014).

O interesse do mundo da arte por este território tem exposto uma diversidade de
experiências de estar e viver na Amazonia. Obras de Franz Krajcberg denunciam ci-
clos de destruição e crimes contra a natureza (e a humanidade) que a exploração
de minérios e a desflorestação infligiu na Amazonia brasileira. Roberto Evagelista
padroniza esta destruição com a trazida pelo projeto de colonização. Werner Herzog
mostra-nos a sua decepção com o imaginário edênico construído historicamente
sobre a Amazonia. Nos filmes Aguirre, a cólera dos deuses (1972), Fritzcarraldo (1982)
e mesmo em Burden of Dreams (1982), ele revela as incoerências do projecto civiliza-
dor, das tentativas colonialistas, de modernização da região, e mostra as perspecti-
vas de populações indígenas ameríndios e do perigo da sua extinção. Juan Downey
recorda os hábitos e rituais de uma destas populações, os Yanomami. Nestas diferen-

2 este mundo civilizado, de Aldous Huxley, corresponde ao ambiente de um mundo futurista onde
uma combinação de ciência da observação e de controlo do comportamento alimenta uma socieda-
de ultra-estruturada e assente numa racionalidade de eficiência, tipicamente industrial (632 depois
de Ford!). Neste mundo a eugenia e a produtividade governa a sexualidade e a procriação, e a felici-
dade é atingida através da repressão de tudo o que possa levar ao sofrimento e conduzir o homem
a sentimentos conflitantes, abalar o estado emocional e a estabilidade social. As pessoas são cultas
e iluminadas, consideradas humanas e regidas pelo prazer, promiscuidade e indulgencia, e livres de
restrições morais.

474
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

tes explorações, somos confrontados com a dor das florestas devastadas, e a dos que
a habitam, mas também com intenções éticas e políticas que elucidam um outro
selvagem, bem diferente do idealizado e retratado como exótico ou primitivo.

A luta pela reafirmação do perspectivismo ameríndio, e pela recuperação da cos-


mologia dos povos indígenas como soberana no território, tem sido tão desafiadora
na sua complexidade quanto na sua geografia - estética, política, cultural e afectiva.
Nesse sentido, a mensagem de Metuktire é particularmente inspiradora: a nossa re-
lação com a natureza e o meio ambiente ameaça não só a floresta Amazonia como o
nosso futuro. Insistir em momentos para olhar o que nos tornamos, desafiar e reca-
tegorizar as nossas ideias de natureza para imaginar um futuro mais diversificado e
inclusivo, ou apenas decidir mudar, parece ser uma direção urgente para a produção
e o discurso artístico - se queremos de facto parar com a forma violenta como a nos-
sa influencia impacta no ambiente planetário.

Referências
Agamben, Giorgio, 2004, The Open: Man and Animal, Stranford: Stranford Uni-
versity Press

Demos, T.J., 2016, Decolonizing Natures, Contemporary Art and the Politics of
Ecology, Amsterdam: Stenberg Press

Harman, Graham, 2008, “On the Horrors of Realism: An Interview with Graham Har-
man”, Pli 19: 218-239

Klein, Noami, 2015, This Changes Everything: Capitalism Vs Climate Change, New
York: Simon & Schuster

Latour, Bruno, (1999) 2004, Politics of Nature - How to bring the sciences into de-
mocracy, Harvard: Harvard University Press

Tavares, Paulo, 2017, “In the Forest Ruins”, e-flux: Superhumanity. Online in: https://
www.e-flux.com/architecture/superhumanity/68688/in-the-forest-ruins/

Marques, Pedro Neves, 2014-15, Why the Forest is the School/Where to sit at a
dinner table?, Kadish Foundation

Marx, Karl, 1990, Capital volume I, Harmondsworth: Penguin

Meggers, Betty J., 1954, “Environmental Limitation on the Development of Culture”,


American Anthropologist, New Series, Vol. 56, No. 5, Part I

Morton, Timothy, 2007, Ecology Without Nature: Rethinking Environmental Aes-


thetics, Cambridge: Harvard University Press

475
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Smith, Mick, 2011, Against Ecological Sovereignty: Ethics, Biopolitics and Saving
the Natural World, Menneapolis: University of Minnesota Press

Stengers, Isabelle, (2009) 2015, In Catastrophic Times, Ann Arbor, MI: Open Huma-
nities Press

Viveiros de Castro, Eduardo, 2015, Metafisicas Canibais, Sao Paulo: Cosac Naify

Woodard, Ben, 2010, On an Ungrounded Earth: Towards a New Geophilosophy,


New York: Punctum Books

476
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

João Manuel Marques Carrilho1


Não há pensamento sem sentimento – Não há sentimento
sem pensamento
There is no thought without feeling – There is no feeling without thought

Resumo
Este artigo investiga a relação entre música, cérebro, sentimento e pensamento atra-
vés da análise de três das mais recentes publicações do Brain and Creavity Institute.
A partir de um quadro neurobiológico geral, onde as emoções são definidas como
programas de acção, e os sentimentos como as experiências mentais resultantes,
são investigados os correlatos neurais das emoções expressas através do som, no
sentido de sedimentar um novo campo de investigação: a neuroestética da música.
Palavras-chave: neuroestética da música, emoções, sentimentos, música de
arte, cérebro

Abstract
This article investigates the relationship between music, brain, feeling and thinking
by analyzing three of the latest publications from the Brain and Creavity Institute.
From a general neurobiological framework, where emotions are defined as action
programs and feelings as the resulting mental experiences, we investigate the neu-
ral correlates of emotions expressed through sound, with the aim of providing fur-
ther ground to a new field of research: the neuroaesthetics of music.
Keywords: neuroaesthetics of music, emotions, feelings, art music, brain

Introdução
O som é uma área de fronteira. Fronteira tanto do pensar como do sentir; fronteira
tanto do conhecer como do imaginar. Uma vez que a sua natureza intrínseca é a de
uma caleidoscópica diversidade de saberes, o som requer um pensamento complexo2
(Morin): um polimorfismo das ideias que congregue todas as funções da psique. Há,
no entanto, um equívoco inextrincável que atravessa a história da música, dividindo-a

1 Artista, Compositor e Investigador. Doutorado em Ciência e Tecnologia das Artes. As suas obras
foram apresentadas no Museo Guggenheim Bilbao, na 55ª e 56ª Bienal de Veneza, no 798 Art Dis-
trict (Pequim), no ARoS Aarhus Kunstmuseum, na Galerie Scheffel (Frankfurt), na Logos Foundation
(Ghent), no Museo de Arte Contemporáneo (Santiago do Chile), no Théâtre de la Ville (Paris), no
Arnold Schoenberg Hall (Haia), na Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa), no Centro Cultural de
Belém (Lisboa), na Casa da Música (Porto).
2 C.f. Morin, E. (2008) On Complexity. Cresskill, New Jersey, Hampton Press, Inc.
477
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

em duas metades: uma parte racional (quantificável e objectiva) e outra emocional


(irracional e irredutível à análise).

Recentemente, as neurociências têm investigado a fronteira entre o pensamento e o


sentimento, procurando correlatos neurais de estados mentais. Nas neurociências da
música pesquisam-se as assinaturas neurais das emoções expressas através do som. Os
trabalhos do Brain and Creativity Institute (BCI) têm sido particularmente relevantes nes-
te domínio, revelando que certas regiões do cérebro produzem padrões específicos de
emoções, generalizáveis a sons de diferentes propriedades acústicas. De facto, a cres-
cente investigação intersectando neurociências e música fez nascer um novo campo
do conhecimento: a neuroestética da música - que procura compreender os mecanis-
mos e estruturas neurais envolvidos nos processos perceptivo, afetivo e cognitivo gera-
dores de respostas estéticas. Este artigo oferece uma revisão e síntese de algumas das
publicações mais recentes do Brain and Music Program/BCI, bem como uma reflexão
sobre o potencial da música de arte no estudo da neuroestética e da criação musical.

Partindo da expressividade sonora como elemento essencial da neuroestética da


música, investigamos também os sentimentos como concertos de ações de uma
orquestra oculta (Damásio), no âmbito da problemática entre vida e inteligência
artificial e do futuro maquínico dos afectos. As obras de arte possuem sempre um
valor acrescentado, incongruente com a sua racionalidade construtiva. A escuta está
desarmada sem o pensamento e o sentimento.

Música, sentimentos e o cérebro humano


As origens da música, bem como o seu papel na evolução do ser humano, têm sido
temas de ampla reflexão, especulação e debate3. Darwin, por exemplo, ao analisar
o canto dos pássaros e a música humana no livro A Descendência do homem e Se-
lecção em relação ao Sexo4 (1871), associa-as ao processo evolutivo que denomina
seleção sexual. Já Steven Pinker, um destacado linguista e psicólogo evolucionista,
considera a música como um subproduto da evolução pela selecção natural que
não possui uma explicação funcional adaptativa5, e que pode assim ser classificada
como «cheesecake auditivo»6. No entanto, muitas das expressões sonoras do mundo
animal permanecem inexplicadas sob os pontos de vista da comunicação (estudos
etológicos) ou da natureza acústica (estudos anatómicos e psicológicos).

3 C.f. Wallin, Merker, B. & Brown, S. (eds) (2001) The origins of music. Cambridge, Massachusetts, A
Bradford Book, The MIT Press
4 C.f. Darwin, C. (2004) The Descent of Man, and Selection in relation to Sex. Penguin Books
5 Na perspectiva de S. Pinker, a música é provavelmente um subproduto de outras adaptações,
como (1) a nossa sensibilidade à fala, (2) aos chamamentos emocionais, muito antigos na história
evolutiva dos primatas, e (3) o sistema motor, sobretudo através do ritmo.
6 C.f. Pinker, S. (1999) How the Mind Works, Nova Iorque: W. W. Norton & Company
478
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

No artigo Music, Feelings, and the Human Brain7, Damásio e Habibi apresentam uma
hipótese que coloca a música num nível bem mais profundo. Em primeiro lugar, ve-
rificam que a música pode alterar os sistemas neurais do ser humano em grande
escala, e que estas mudanças não estão confinadas aos sectores auditivos e motores,
ocorrendo também em regiões relacionadas com a regulação dos processos da vida
(homeostase). Com base nesta observação, teorizam que a música possui uma rela-
ção longa e consistente com os dispositivos neurais de regulação da vida humana.
O elevado grau de selecção e replicação de fenómenos musicais (tanto biológicos
como culturais) poderia assim ser parcialmente explicado pela sua estreita conexão
aos sentimentos e emoções, e pela sua eficácia em certos contextos pessoais e so-
ciais, ou seja, pelo seu papel na homeostase.

O artigo desenvolve-se sobre quatro aspectos fundamentais: 1) um quadro neu-


robiológico geral; 2) a distinção entre emoções e sentimentos; 3) a relação entre a
música e a perspectiva neurobiológica, e 4) a revisão de resultados relevantes sobre
a expressão neural de afectos provocados pela música. Estes pontos servem essen-
cialmente para sustentar a hipótese de que a função da música vai para além da
selecção sexual, e que pode ter um papel determinante na sobrevivência e na regu-
lação da vida. Uma vez que a terminologia utilizada pelos autores formula um plano
teórico amplo, e que é consistente ao longo dos artigos que nos propomos analisar,
é importante identificar algumas das ideias-chave: Programas de acção8, Pulsões9,
Emoções10, Sentimentos11 e Homeostase12.

7 C.f. Habibi, A. & Damásio, A. (2014) Music, feelings, and the human brain. In: Psychomusicology:
Music, Mind, and Brain, 24(1), 92-102. Doi: 10.1037/pmu0000033
8 Um conjunto inato de respostas fisiológicas desencadeadas por desvios críticos nos ambientes
interno ou externo que podem produzir a qualidade da função biológica e da sobrevivência. Os
programas de acção visam manter ou restaurar o equilíbrio homeostático. Os programas produzem
mudanças nas vísceras e no meio interno (e.g. alterações na frequência cardíaca, respiração e tem-
peratura), músculo estriado (e.g. expressões faciais e corrida) e cognição (e.g. focando a atenção
num alvo específico e favorecendo certas ideias e modos de pensar). Os principais exemplos de
programas de ação são pulsões e emoções.
9 Programas de ação que visam satisfazer necessidades fisiológicas instintivas básicas. Exemplos in-
cluem fome, sede, líbido, exploração e diversão, cuidados com os descendentes e afeição aos parceiros.
10 Programas de ação desencadeados sobretudo por estímulos externos, percebidos ou recupera-
dos. Exemplos incluem nojo, medo, raiva, tristeza, alegria, vergonha, desprezo, orgulho, compaixão
e admiração.
11 As experiências mentais que acompanham o mapeamento dos estados do meio visceral e in-
terno, como ocorrem naturalmente (sentimentos do estado corporal) ou como são produzidas por
programas de ação (pulsões e emoções).
12 Um termo geral para o processo de manutenção dos parâmetros fisiológicos do corpo (como tem-
peratura, pH, hidratação e níveis de nutrientes) dentro da faixa que optimiza a função e a sobrevivência.

479
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Estes conceitos-chave configuram um quadro neurobiológico geral: a monitorização


ininterrupta que o sistema nervoso central dos mamíferos realiza tanto do interior do
corpo como do ambiente exterior, dá origem a dois tipos distintos de mapas neu-
rais. Determinadas configurações perceptivas expressas nesses mapas, podem origi-
nar programas de acção, que incluem pulsões e emoções. As pulsões direcionam-se
exclusivamente a necessidades fisiológicas básicas, enquanto que as emoções po-
dem incluir respostas sociais complexas (e.g. compaixão). O alcance das acções dos
programas é vasto (incluindo mudanças no ritmo cardíaco, na respiração, na pressão
sanguínea, etc), e cada programa de acção particular é distinto tanto na variedade de
respostas como no grau de envolvimento de cada componente da resposta. Os senti-
mentos, por outro lado, são definidos como experiências mentais, alicerçadas em ma-
pas neurais dos estados do corpo. São assim radicalmente diferentes das emoções e
pulsões (sequências de acções integradas), provenientes de áreas do cérebro distintas.
Enquanto experiências mentais, os sentimentos podem ter duas origens: ou resultam
diretamente do mapeamento do meio interno (sentimentos do estado corporal), ou
resultam de programas de acção como pulsões e emoções.

Se para Schroedinger o fundamento da vida reside na manutenção da neguentro-


pia13, já para Damásio e Habibi o processo primário é a homeostase. Programas de
acção, pulsões, emoções e sentimentos existem, em última análise, pelo seu papel
nesse processo primordial. No entanto, contrariamente ao que o termo parece su-
gerir, a homeostase não é um processo estático. A metáfora é a de um malabarista
inimaginavelmente complexo, que deve preservar em acção um sistema dinâmico
extremamente instável: uma pequena falha do malabarista pode ter como consequ-
ência imediata a morte.

Poderá a música desempenhar alguma função na homeostase? Terá sido ela nasci-
do como expressão direta dos mecanismos de regulação da vida, afastando-se pro-
gressivamente dessas origens através da evolução cultural e da percepção estética?
Apesar da música estar aparentemente distante dos aspectos mais essenciais à so-
brevivência, dois factos estão firmemente estabelecidos: (1) a arte dos sons é capaz
de evocar uma ampla gama de emoções e sentimentos, da alegria e quietude até à
tristeza e ao medo, e (2) os afectos relacionados com a música são frequentemente
acompanhados de mudanças psicológicas e comportamentais.

A música é capaz de mudar o estado do sistema nervoso autónomo, e uma vez que
modula, entre outros, a respiração, o batimento cardíaco e a temperatura, pode
afirmar-se que altera o estado corporal. Consequentemente, os mapas neurais dos
estados internos e viscerais são afectados, nomeadamente nas áreas do cérebro liga-
das à regulação homeostática. Esta corrente funcional está na origem de uma parte

13 C.f. Schroedinger, E. (2012) What is Life? Cambridge: Cambridge University Press

480
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

significativa dos sentimentos induzidos pela música, ou seja, dos sentimentos que
emergem directamente da reacção corporal aos sons e às estruturas sonoras.

Os sentimentos podem também resultar de uma multiplicidade de camadas de pro-


cessos cognitivos (que possuem em si mesmos a capacidade de induzir emoções):
é o caso das “emoções estéticas”, um processo muito complexo, mas que, segundo
Damásio e Habibi, é fundamentalmente coerente com a fisiologia dos sentimentos
que emergem do estado corporal. Neste âmbito, subsiste o debate sobre se é pos-
sível percepcionar o conteúdo emocional da música sem necessariamente sentir in-
ternamente esse estado emocional14. Por exemplo, como é possível sentir alegria a
partir de uma música aparentemente triste? De qualquer forma, é evidente que um
“emoção estética” nunca pode ser totalmente descorporealizada, o que nos remete
novamente para os mapas neurais dos estados internos do corpo.

A hipótese de que a música desencadeia programas de acção inatos, ajudando assim


a restaurar o estado psicológico a níveis aceitáveis pelo “equilíbrio” homeoestático, é
também apoiada pelo facto de que o ser humano é capaz de apreciar música de dife-
rentes culturas (o que sugere ainda a possibilidade de uma considerável universalida-
de das emoções musicais). Cooperando com os processos de regulação da vida, a mú-
sica contribui para o bem-estar individual, facilita funções sociais como a organização
em grupo ou a comunicação, e promove envolvimento na interacção antecipatória do
binómio expectativa/recompensa. Em suma, a música pode ter subsistido na história
da humanidade sobretudo pela sua contribuição ao bem-estar e à sobrevivência.

Na explicação tradicional da escuta, as vibrações mecânicas de um meio são cap-


tadas pelo ouvido, transformadas em impulsos eléctricos, e conduzidas pelo nervo
auditivo desde a cóclea até ao cérebro. Habitualmente, estuda-se então o resultado
no córtex audivo primário e secundário e nas regiões frontais inferiores. No entan-
to, estudos recentes indicam que as bases neurais dos sentimentos evocados pela
música incluem outras áreas, como as estruturas do tronco cerebral, e até percursos
auditivos de múltiplas etapas15. Estas investigações demonstram que as estruturas
do tronco cerebral possuem capacidades de processamento auditivo, para além dos
mecanismos essenciais na regulação homeostática.

Investigações adicionais concluem que há zonas especificas do cérebro correla-


cionadas diretamente com as sensações agradáveis da escuta musical (e.g. núcleo
accumbens), e zonas distintas correlacionadas diretamente com as sensações de-
sagradáveis, como a sensação de dissonância (e.g. hipocampo, amígdala). Apesar

14 C.f. Juslin, P.N. & Sloboda, J. (Eds.) (2010) Handbook of music and emotion: Theory, research, appli-
cations. Oxford University Press
15 C.f. Koelsch, S. (2011) Towards a neural basis of music perception – a review and updated model.
In: Fronteirs in Psychology, 2, 110. doi: 10.3389/fpsyg.2011.00110

481
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

de ajudarem a fundamentar a relação entre a música e a homeostase, estes estudos


levantam algumas questões metodológicas: (1) a maioria das experiências não leva
em consideração o nível de conhecimento e formação musical dos participantes16.
(2) a escolha de estímulos sonoros não é coerente entre os diversos estudos, nem o
grau de familiaridade dos participantes em relação a esses estímulos17. (3) Não são
incorporadas medições fisiológicas, como a temperatura, os ritmos cardíaco e respi-
ratório, ou a resposta galvânica da pele18.

Considerando todos os argumentos e factos apresentados, os autores concluem que


há evidências inequívocas de que os estados emocionais induzidos pela música (e
os sentimentos que os sucedem) accionam no cérebro humano sistemas neurais li-
gados à homeostase, e impelem mudanças fisiológicas em vários sectores do corpo.

O paradoxo da tragédia
Apresentado o quadro neurofisiológico geral, bem como os seus conceitos-chave,
implicações e consequências, importa agora reflectir sobre a aplicabilidade do mo-
delo a questões mais particulares, nomeadamente, à possibilidade de obter prazer
através de música associada à tristeza. Este problema, aparentemente paradoxal, é
investigado por Sachs, Damásio e Habibi no artigo The pleasures of sad music: a sys-
tematic review19.

16 Sabendo que os músicos têm tendência a escutar de forma mais analítica, e que estão muito mais
familiarizados com as estruturas sonoras da sua cultura musical (e.g. tensão crescente e subsequen-
te resolução, no caso da música clássica ocidental), seria desejável que pesquisas futuras incluíssem
a formação musical como variável de controlo e análise.
17 A inexistência de uma metodologia padronizada na escolha de estímulos sonoros e musicais é
também uma limitação decisiva na maioria dos estudos sobre música e as emoções. A psicoacústica,
por exemplo, nasceu e desenvolveu-se precisamente porque se concentrou inicialmente em sons
sinusoidais (inspirada pela análise de Fourier) e isolou os sons num contexto de laboratório, ou seja,
longe das suas condições ruidosas habituais. Por um lado, desenvolveu-se um enorme campo de co-
nhecimento do fenómeno sonoro, baseado na decomposição espectral do som, na reversibilidade e
na periodicidade, mas por outro excluíram-se abordagens como a descrição granular do som, o es-
tudo do ruído e dos transientes, e a maior parte dos fenómenos irreversíveis ou não-periódicos. Este
problema é agravado pela ausência de uma tipologia geral dos sons, apesar de algumas meritórias
tentativas. C.f. Schaeffer, P. (1966) Traité des Objects Musicaux. Paris, Seuil
18 Estudos futuros devem também incorporar medições fisiológicas, como a temperatura e os rit-
mos cardíaco e respiratório, para além da classificação subjectiva dos estímulos em escalas de emo-
ções pré-definidas (e.g. Geneva Emotional Music Scale), bem como selecionar condições de controlo
emocionalmente neutras.
19 Sachs, M., Damásio, A. & Habibi, A. (2015) The pleasures of sad music: a systematic review. In:
Frontiers in Human Neuroscience, 9:404, Dialogues in music therapy and music neuroscience. doi:
10.3389/fnhum.2015.00404

482
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A tristeza é habitualmente classificada como uma emoção negativa, surgindo asso-


ciada a situações adversas ou angustiantes. No entanto, foi ubiquamente explorada
no decurso na história da arte, o que demonstra de forma inequívoca que é possível
retirar prazer e satisfação da tristeza enquanto experiência estética. A música possui
uma aptidão singular para evocar uma vasta gama de emoções e sentimentos, e é
assim especialmente indicada para investigar o porquê de procurar o prazer através
da invocação da dor e do sofrimento. Segundo o quadro neurofisiológico geral, este
prazer pode resultar da correcção de um desequilíbrio homeostático, quando: (1) o
estímulo não é percepcionado como perigoso, (2) a experiência é satisfatória este-
ticamente, e (3) produz benefícios psicológicos tais como a regulação do humor e
sentimentos empáticos. Nesta perspectiva, a neuroimagiologia pode ainda auxiliar
o desenvolvimento de terapias para desordens nas quais a capacidade de experien-
ciar prazer se encontra atenuada (e.g. depressão).

O paradoxo da tragédia antecede Nietzsche20, Hölderlin e a dicotomia entre o dio-


nisíaco e o apolíneo, e consiste na ideia aparentemente contraditória de que apesar
de procurarem minimizar a tristeza nas suas vidas, os humanos retiram dela prazer
num contexto estético. Segundo os longínquos filosófos atenienses, a arte que lida
com as emoções negativas fornece recompensas que nenhuma outra arte é capaz.
Aristóteles, por exemplo, explicava que os benefícios da tragédia grega se realiza-
vam através da catarse21.

Os autores classificam a tristeza como uma de seis emoções básicas (tristeza, medo,
felicidade, ira, surpresa, nojo), e recordam que a importância das emoções negativas
através da história da humanidade pode ser explicada pela vantagem evolutiva que
elas conferem22. A tristeza é um estado complexo da mente e do corpo, o que implica
que a música capaz de evocar tristeza pode ser estudada tanto do ponto de vista
da interpretação subjectiva das emoções como das propriedades acústicas. Algu-
mas dessas assinaturas sonoras mais comuns são a utilização de frequências graves,
tempos lentos, timbres sombrios, modo menor, e melodias confinadas a pequenos
espaços de alturas.23

Uma das maiores divergências conceptuais diz respeito à distinção entre o sentimento
percepcionado e o sentimento induzido pela música. Actualmente, existem três po-

20 C.f. Nietzsche, F. (2008) The birth of tragedy. Oxford World’s Classics. Oxford University Press
21 Segundo Aristóteles, uma descarga emocional provocada por um trauma
22 C.f. Ekman, P. (1992) An argument for basic emotions. Cognition & Emotion 6, 169-200. doi:
10.1080/02699939208411068
23 Juslin, P.N. & Laukka, P. (2004) Expression, perception and induction of musical emotions: a review
and a questionnaire study of everyday listening. Journal of New Music Research. 33, 217-238. doi:
10.1080/0929821042000317813

483
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

sições: (1) a música percepcionada como triste não produz sentimentos de tristeza,
produzindo directamente os sentimentos positivos de prazer, (2) a música produz uma
mistura de emoções agradáveis e de tristeza, e (3) a música induz sentimentos reais de
tristeza, mas que são posteriormente convertidos em sensações positivas.

Filosoficamente, esta distinção manifesta-se em duas grandes correntes de pensa-


mento: a “escola cogitiva” defende que a música não é capaz de evocar emoções
reais, apesar de ser possível percepcionar a emoção através da estrutura musical; a
“escola emotiva” aceita a realidade das emoções induzidas pela música, mas subdi-
vide-se nos que pensam que a sua natureza é diferente das emoções do dia-a-dia,
e nos que defendem que a música é capaz de evocar sentimentos de genuína tris-
teza. Pertencente a este último campo, o filósofo Jerrold Levinson24 classifica oito
benefícios que podem surgir de música com valência negativa: catarse25, apreender a
expressividade26, saborear o sentimento27, compreender o sentimento28, garantia emo-
cional29, resolução emocional30, potência expressiva31 e comunhão emocional32.

Huron, num artigo dedicado a este problema33, sugere que o mecanismo responsá-
vel pelo prazer de ouvir música triste é a hormona prolactina34. Huron refere ainda
que, quando questionados directamente, cerca de 25% dos participantes afirmou
sentir tristeza genuina, e os outros 75% declararam sentir emoções relacionadas,
sendo a mais frequente a nostalgia. Nos estudos que implicaram um distinção clara
entre a emoção “percepcionada” e a emoção “sentida”, os resultados apontam para

24 Levinson, J. (1990) Music, Art and Metaphysics: Essays in Philosophical Aesthetics. New York: Ox-
ford University Press
25 purga de emoções negativas.
26 um entendimento aperfeiçoado das emoções expressas numa obra de arte.
27 a satisfação que emerge do simples sentir de uma emoção, em resposta à arte.
28 a oportunidade para aprender sobre os nossos próprios sentimentos.
29 a confirmação da capacidade individual de sentir intensamente.
30 o conhecimento de que um estado emocional pode ser regulado.
31 o prazer que surge ao expressar os sentimentos próprios.
32 uma conexão com os sentimentos do músico ou dos outros ouvintes.
33 Huron, D. (2011) Why is sad music pleasurable? A possible role for prolactina. Musicae Scientiae.
15(2). 146-158. doi: 10.1177/1029864911401171
34 Segundo esta perspectiva, a música simula tristeza real, levando o cérebro a libertar prolactina
para confortar, consolar e contrariar a a dor mental que está na base da emoção negativa. Mas uma
vez que o ouvinte tem consciência de que não está, de facto, numa situação desagradável, os efeitos
da hormona são produzidos sem a dor, o sofrimento ou tristeza que geralmente os precedem.

484
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

uma mistura de emoções. A diferença entre música alegre e triste reflecte-se em di-
ferenças fisiológicas e comportamentais, e verifica-se também através da neuroima-
giologia35, uma vez que a música triste activa zonas do cérebro associadas a estados
afectivos de tristeza.

Resultados diversos, provenientes das neurociências, sugerem que o prazer emergen-


te da música associada à tristeza é uma consequência de múltiplos processos neu-
rais coordenados36. A valência emocional de um estímulo é avaliada a partir das suas
propriedades acústicas (nas zonas do tronco cerebral e do córtex auditivo primário e
secundário), de associações aprendidas previamente (no hipocampo e amígdala), e de
mudanças no estado corporal induzidas pelo processo emocional. A depressão, pela
sua íntima relação com a tristeza, pode também ajudar a clarificar o paradoxo da tra-
gédia. De facto, pacientes com depressão, se comparados com um grupo de controlo
saudável, revelam uma intensificação da resposta no caso de música associada à triste-
za, e afirmam com maior frequência que a música lhes permite expressar, experienciar
e compreender as emoções. A música, ao trazer as emoções para o primeiro plano
da atenção, contribui assim para a regulação e eventual diminuição dos sentimentos
negativos indicativos de depressão, bem como para a melhoria de uma experiência de
prazer diminuída, característica de várias perturbações do humor.

Apesar dos estudos existentes sobre a ligação entre prazer, música e tristeza serem
limitados e por vezes até contraditórios, os autores apresentam três conclusões ge-
rais sobre a música capaz de evocar tristeza: (1) pode ser agradável porque, sendo
uma arte, não inclui as circunstâncias físicas e sociais imediatas que habitualmente
são associadas a uma valência negativa (2) é plausível que seja considerada mais
bela que a música associada à alegria porque lida com preocupações endemónicas
como a auto-expressão ou o significado existencial (3) pode ajudar a lidar com emo-
ções negativas, dependendo da personalidade, do humor, do contexto social, ou da
evocação de memórias associadas a determinadas músicas.

A forma como todos este factores interagem é finalmente integrada no quadro


neurobiológico geral da regulação homeostática: as emoções foram selecionadas
no decurso da evolução porque reestablecem o equilíbrio homeostático, e as suas
expressões mentais (os sentimentos) são inferências vitais na regulação da vida, uma
vez que impelem o organismo a agir em concordância. A capacidade da música para
provocar prazer (a recompensa por atingir a homeostase) depende da existência de

35 A imagem por ressonância magnética funcional pode ser uma ferramenta importante no estudo
do paradoxo da tragédia, apesar de não existirem ainda estudos neurocientíficos sobre o tema que
apliquem essa técnica.
36 incluindo zonas associadas ao reconhecimento emocional, ao julgamento estético e ao processa-
mento de recompensas, entre outros.

485
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

um desequilíbrio homeostático inicial, e da aptidão da música em corrigir esse dese-


quilíbrio. Respostas positivas a um estimulo musical negativo indicam que a música
poderá ter sido, para os nossos antepassados, um meio para restaurar o equilíbrio
homeostático37. Por outro lado, quando a tristeza é evocada musicalmente são ac-
cionadas as mesmas estruturas cerebrais de rede (e.g. núcleo accumbens) que as
responsáveis pelo processamento de outros estímulos com valor homeostático38.

Descodificando as assinaturas neurais das emoções expressas através do som


O terceiro trabalho do Brain and Creativy Institute que nos propomos analisar cor-
responde a uma das suas mais recentes e mais complexas publicações39. Saben-
do que foram previamente identificadas zonas do cérebro associadas aos afectos
transmitidos pelo som, Sachs, Habibi, Damásio e Kaplan perguntaram-se se essas
regiões respondem de forma idêntica, independentemente da fonte sonora. Para
investigar este problema, os autores realizaram uma experiência onde trinta e oito
participantes escutaram noventa fragmentos provenientes de três fontes sonoras
(voz humana, violino e clarinete), associadas a três tipos de emoções básicas (alegria,
tristeza e medo), enquanto a sua actividade cerebral era medida através de técnicas
de imagem por ressonância magnética funcional. Recorreram também à análise de
padrões por multi-voxel (multivoxel pattern analysis), para testar se as respostas neu-
rais aos sons da voz (específicas de cada emoção) poderiam ser utilizadas para pre-
ver as respostas neurais aos sons instrumentais, e vice-versa. Os resultados indicam
que os padrões de actividade no córtex auditivo primário e secundário, no lobo da
ínsula e no opérculo parietal são, de facto, capazes de prever o conteúdo emocional
expresso através do som, e são generalizáveis a fontes de natureza acústica diversa.
A precisão da classificação no interior da ínsula demonstrou também uma corre-
lação com medidas comportamentais de empatia, o que significa que indivíduos
com maior capacidade empática possuem padrões neurais mais distintos no que se
refere à percepção das emoções.

Combinada com uma classificação cruzada entre dois tipos de estímulos sonoros
(vocal e instrumental), a análise de padrões por multi-voxel40 permite uma categori-
zação dos estados mentais e razoável detalhe na distinção entre diferentes emoções,

37 Para além da sua ligação à selecção sexual, a música possui conexões com a sobrevivência pro-
fundamente enraizadas, e promove a coesão de grupo e a união social, permitindo não só a um
organismo mas também a um grupo regular o processo homeostático.
38 O que não significa que essas regiões sejam exclusivas da música que evoca tristeza.
39 Sachs, M., Habibi, A., Damásio, A. & Kaplan, J. (2018) Decoding the neural signatures of emotions
expressed through sound. In: NeuroImage, vol. 174, 1-10. doi: 10.1016/j.neuroimage.2018.02.058
40 Para a análise de padrões por multi-voxel foi utilizado o software PyMVPA toolbox (http://www.
pymvpa.org), para Python.

486
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

usando padrões de actividade distribuídos espacialmente em vários voxels simulta-


neamente41. Após o registo dos dados, um classificador foi treinado para diferenciar
os padrões de actividade correspondentes a cada emoção. Simultaneamente, para
compreender a contribuição de certas propriedades acústicas particulares, foi com-
parada a precisão da classificação cruzada da ressonância magnética funcional com
a classificação cruzada das propriedades acústicas dos sons. Baseados em trabalhos
anteriores, os autores prevêem que a imagem dependente do nível de oxigénio no
sangue (ou imagem de contraste BOLD) nos córtices auditivo e insular é capaz de
classificar correctamente as emoções para todas as fontes sonoras, e que a precisão
da classificação na ínsula está correlacionada positivamente com a empatia42. Para
os estímulos vocais (não-verbais) foram selecionados os dados do projecto Montreal
Affective Voices43, e para os estímulos instrumentais, a biblioteca de sons Music Emo-
tinal Busts44. A escolha dos estímulos sonoros (voz, violino e clarinete) justifica-se
pela facilidade do violino e clarinete em imitar a voz humana, sendo de duas famílas
distintas (cordas e madeiras), e a escolha das emoções (alegria, tristeza, medo) pren-
de-se com o facto de: (1) serem consideradas emoções “básicas”, universais e utilitá-
rias45, e (2) poderem ser produzidas de forma confiável pela voz, violino e clarinete, e
(3) estarem presentes nos conjuntos de estímulos, tanto vocais como instrumentais.

Estes estímulos foram apresentados segundo duas sequências resultantes de um al-


goritmo genético, onde cada fonte sonora continha dez estímulos de cada emoção (3
emoções × 3 fontes × 10 = 90 estímulos distintos), repetidos três vezes, num total de
270 ensaios46. Para além duma análise ao 47 e a ínsula, utilizando todos os voxels dessas
áreas anatómicas. Os resultados individuais nas quatro regiões de interesse considera-
das foram então correlacionados com os resultados das escalas de empatia, para de-
terminar se a informação sobre previsibilidade emocional nessas zonas corresponde

41 Apesar de o conteúdo emocional ter sido associado, em estudos anteriores, a determinadas regi-
ões do cérebro, permanece em aberto a questão se a actividade nessas zonas representa proprieda-
des acústicas simples dos sons, ou corresponde a uma categoria particular de emoções.
42 Para a medição dos componentes cognitivos e afectivos da empatia, foi utilizado o Interpersonal
Reactivity Index.
43 Belin, P., Fillion-Bilodeau, S. & Gosselin, F. (2008) The Montreal Afective Voices: a validated set of
nonverbal affect bursts for research on auditory affectve processing. Behaviour Research Methods 40,
531-539.
44 Paquette, S., Peretz, I. & Belin, P. (2013) The “Musical Emotional Bursts”: a validated set of musical
affect bursts to investigate auditory affective processing. Fronteirs in Psychology 4:1-7
45 Ekman, P. (1992) An argument for basic emotions. Cognition & Emotion 6, 169-200. doi:
10.1080/02699939208411068
46 Os estímulos foram apresentados aos participantes utilizando o software PsychToolbox, para MATLAB.
47 Utilizando o Harvard-Oxford Atlas planum temporale mask

487
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

a maior empatia emocional. Para extrair as propriedades acústicas dos sons48 conside-
radas relevantes ao conteúdo emotivo, foram efectuadas medições ao timbre49, à di-
nâmica50, às características tonais51, ao ritmo52, à duração e à frequência fundamental.

Os resultados revelam que 85% dos participantes qualificou correctamente as emo-


ções presentes nos fragmentos sonoros. O medo foi a emoção com mais classifica-
ções incorrectas, e a alegria a mais correctamente classificada. A intensidade das
emoções foi ordenada segundo o mesmo padrão, o que demonstra que é mais difícil
identificar uma emoção quando ela é menos intensa. A análise de padrões multi-vo-
xel foi capaz de prever as emoções de forma particularmente convincente no córtex
auditivo e nas três regiões da ínsula. Assumindo a idade e o género como covariáveis
de pouca relevância, verificou-se a hipótese de que a empatia se encontra positiva-
mente correlacionada com a precisão da classificação da ínsula dorsal. Não foram
encontradas correlações entre a formação musical dos participantes e a precisão da
classificação, tanto no córtex auditivo como na ínsula. Relativamente às classificação
através das propriedades acústicas dos estímulos, o fluxo espectral53 e o centroíde
de flutuação54 revelaram-se as duas qualidades mais importantes, o que facilita a
interpretação dos dados da ressonância magnética funcional (em particular sobre a
forma de descodificar emoções auditivas), e sugere que as resposta neurais ao tim-
bre e ao ritmo podem contribuir para a classificação de uma emoção.

Usando os métodos de classificação cruzada multivariável e análise “searchlight”, o


estudo identificou regiões neurais fundamentais no processamento da informação
afectiva produzida pelas três fontes sonoras. Os dados da ressonância magnética
funcional recolhidos na totalidade do cérebro permitiram criar estimadores capazes
de classificar emoções com relativa precisão. A análise “searchlight” revelou que os
córtices auditivos primário e secundário, o opérculo parietal e a ínsula exibem pa-
drões específicos para cada emoção, uma conclusão confirmada também pela ima-
gem dependente do nível de oxigénio no sangue (sinal BOLD). Em suma, o trabalho

48 Para esta tarefa foi utilizado o software MIRToolbox, para MATLAB (https://www.jyu.fi/hytk/fi/
laitokset/mutku/en/research/materials/mirtoolbox), especializado em Music Information Retrieval.
49 spectral centroid, spectral brightness, spectral flux, spectral rolloff, spectral entropy, spectral spread,
spectral flatness
50 rms
51 mode clarity, key clarity
52 fluctuation entropy, fluctuation centroid
53 O fluxo espectral mede a variância do espectro sonoro ao longo do tempo, fornecendo informa-
ção espacio-temporal.
54 O centroide de flutuação mede-se através do espectro de flutuação, que contém informação
sobre periodicidades rítmicas.

488
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

apoia a hipótese de que o significado emocional de um som pode ser associado a


uma única distribuição espacial de padrões neurais, e que esta representação que
não depende exclusivamente das propriedades acústicas dos sons.

Conclusão
Afirma-se frequentemente que o cérebro é o objecto mais complexo jamais encon-
trado no universo, uma vez que associado a uma das fronteiras do conhecimento ac-
tual – a consciência. Sabe-se que o cérebro formula mapas mentais tanto do interior
do corpo como do exterior, o que configura um quadro neurobiológico geral onde
as pulsões e as emoções são programas de acção, e o sentimentos as experiências
mentais correspondentes. Admitir que toda a experiência mental se localiza no in-
terior do cérebro, que nada vê nem ouve directamente, significa admitir como hipó-
tese que quando olhamos o céu numa noite estrelada o nosso verdadeiro crânio se
encontra para lá da via láctea...

Ainda que ignorantes quanto à verdadeira natureza da consciência, podemos ainda


assim procurar os seus correlatos em padrões de actividade neural, identificando as
regiões cerebrais relevantes. Se a mente está incorporada no corpo, esse facto deve
ser sempre levado em consideração (Embodied Cognition): a matéria que constitui
os nossos sentimentos e pensamentos não vem apenas da mente, mas também do
corpo. Sabemos também que os sistemas nervosos (e possivelmente as mentes) são
desenvolvimentos tardios na evolução biológica, e podemos questionar o papel da
emoção e do pensamento nos processos de regulação da vida (homeostase).

A homeostase não implica nem estaticidade nem estabilidade, uma vez que é um
processo dinâmico altamente instável, e que possui uma irreversível direccionalida-
de temporal, dirigida aos limites fisiológicos e psicológicos que são compatíveis com
a vida. Neste sentido, uma das tarefas primordiais do cérebro é a de desenvolver a
capacidade para prever o futuro.

Se ambos concorrem para a homeostase, então não podemos afirmar que os senti-
mentos não são racionais, nem que os pensamentos não são emocionais. Este caso
contrasta em absoluto com a denominada “inteligência artificial”, onde os processos
homeostáticos não existem. Para se aproximar da vida, os algoritmos teriam que in-
corporar a vulnerabilidade, a resolução aparentemente ilógica de problemas, e uma
compreensão e interpretação do mundo acompanhada de experiências pessoais e
subjectivas. Mesmo que mimetizem um dia todos os processos neurais que ocorrem
no cérebro, simulando na perfeição os mapas do interior e do exterior, restará ainda
a questão da consciência. Como afirma Damásio, apesar de construirmos esses dois
tipos de mapas, não edificamos mapas dos sentimentos. O futuro maquínico dos
afectos terá que incorporar concertos de ações de uma orquestra oculta.

489
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A música, pela sua natureza interdisciplinar e pela sua profunda relação tanto com
sentimento como com o pensamento, pode ter uma função fundamental na home-
ostase, como apontam os trabalhos de investigação analisados no presente artigo.
As ideias expostas ajudam também a sedimentar um novo campo de investigação:
a neuroestética da música – que estuda os mecanismos e estruturas neurais envolvi-
dos nos processos perceptivo, afetivo e cognitivo geradores de respostas estéticas.
A imaginação continua a ser a semente da criatividade.

The composer should, in building his sonorous constructions, have a thourough know-
ledge of the laws governing the vibratory system, of the possibilities that science has
abundantly placed, and continues to place, at the service of imagination . The last word
is: Imagination (E. Varèse)

Referências
Belin, P., Fillion-Bilodeau, S. & Gosselin, F. (2008) The Montreal Afective Voices: a
validated set of nonverbal affect bursts for research on auditory affectve pro-
cessing. Behaviour Research Methods 40, 531-539.

Darwin, C. (2004) The Descent of Man, and Selection in relation to Sex. Penguin
Books

Ekman, P. (1992) An argument for basic emotions. Cognition & Emotion 6, 169-200.
doi: 10.1080/02699939208411068

Feyerabend, P. (1987) Creativity: A Dangerous Myth. In: Critical Inquiry, Vol. 13, No.
4. 700-711.

Gotlieb, R., Hyde, H., Immordino-Yang, M. & Kaufman, S. (2018) Imagination is the
seed of creativity. In: The Cambridge Handbook of Creativity. New York: Cambridge
University Press. 709-731.

Habibi, A. & Damásio, A. (2014) Music, feelings, and the human brain. In: Psycho-
musicology: Music, Mind, and Brain, 24(1), 92-102. doi: 10.1037/pmu0000033

Huron, D. (2011) Why is sad music pleasurable? A possible role for prolactina.
Musicae Scientiae. 15(2). 146-158. doi: 10.1177/1029864911401171

Juslin, P.N. & Laukka, P. (2004) Expression, perception and induction of musical
emotions: a review and a questionnaire study of everyday listening. Journal of
New Music Research. 33, 217-238. doi: 10.1080/0929821042000317813

Juslin, P.N. & Sloboda, J. (Eds.) (2010) Handbook of music and emotion: Theory,
research, applications. Oxford University Press

490
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Koelsch, S. (2011) Towards a neural basis of music perception – a review and up-
dated model. In: Fronteirs in Psychology, 2, 110. doi: 10.3389/fpsyg.2011.00110

Lachenmann, H. (1996) Musik als existentielle Erfahrung. Breitkopf & Hartel

Levinson, J. (1990) Music, Art and Metaphysics: Essays in Philosophical Aestheti-


cs. New York: Oxford University Press

Morin, E. (2008) On Complexity. Cresskill, New Jersey, Hampton Press, Inc.

Nietzsche, F. (2008) The birth of tragedy. Oxford World’s Classics. Oxford University
Press

Paquette, S., Peretz, I. & Belin, P. (2013) The “Musical Emotional Bursts”: a validated
set of musical affect bursts to investigate auditory affective processing. Fron-
teirs in Psychology 4:1-7

Pinker, S. (1999) How the Mind Works, Nova Iorque: W. W. Norton & Company

Sachs, M., Habibi, A., Damásio, A. & Kaplan, J. (2018) Decoding the neural signa-
tures of emotions expressed through sound. In: NeuroImage, vol. 174, 1-10. doi:
10.1016/j.neuroimage.2018.02.058

Sachs, M., Damásio, A. & Habibi, A. (2015) The pleasures of sad music: a systematic
review. In: Frontiers in Human Neuroscience, 9:404, Dialogues in music therapy and
music neuroscience. doi: 10.3389/fnhum.2015.00404

Schaeffer, P. (1966) Traité des Objects Musicaux. Paris, Seuil

Schroedinger, E. (2012) What is Life? Cambridge: Cambridge University Press

Wallin, N., Merker, B. & Brown, S. (Eds.) (2001) The origins of music. Cambridge, Mas-
sachusetts: A Bradford Book, The MIT Press

491
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Kathleen Rogers1
Escrever no Corpo - a Matéria Escura do Genoma
Writing in the Body - the Dark Matter of the Genome

Resumo
Pesquisa de arte e marcos teóricos que trabalham no sentido de uma reconceitu-
alização do genoma e da epigenética para especular sobre as ecologias da mente,
corpo, ambiente e evolução. O estudo da epigenética é um campo emergente
nos estudos biossociais e bioculturais, à medida que os biólogos desmantelam
os estudos genômicos humanos fundamentais na hereditariedade para reimagi-
nar o genoma como uma entidade dinâmica e responsiva que sente, apreende
e responde a contextos ambientais, biológicos e culturais. Com base em dados
genealógicos familiares próximos e pesquisas em sistemas históricos de cuidados
infantis institucionalizados, o filme fotográfico / poético, Remembering the Unk-
nown, explora fenômenos epigenéticos transgeracionais associados à transmis-
são de trauma e PTSD (Transtornos de Estresse Pós-Traumático).

Abstract
Art research and theoretical frameworks that work towards a reconceptualization
of the genome and epigenetics to speculate on ecologies of mind, body, environ-
ment and evolution. The study of epigenetics is an emerging field in biosocial and
biocultural studies as biologists dismantle foundational human genomic studies in
heredity to re-imagine the genome as a dynamic and responsive entity that sens-
es, apprehends and responds to environmental, biological and cultural contexts.
Drawing on close family genealogical data and research into historic institution-
alised child care systems, the photo/poetic film, Remembering the Unknown, ex-
plores transgenerational epigenetic phenomena associated with the transmission
of trauma and PTSD (Post-Traumatic Stress Disorders).
Keywords: new-materialisms, epigenetics, PTSD, trauma, memory

Research in the context of biosocial, cultural and philosophical theories in epige-


netics offer non-reductive materialist accounts of inherited PTSD (Post-Traumatic

1 Kathleen Rogers is Professor of Media Arts and Science, Film and Digital Art, School of Fine Art,
Photography and Visual Communication, University for the Creative Arts, UK. She is a London based
artist and researcher working with lens based media within the context of emerging post-human
theory and new materialisms.

492
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Stress Disorders). My art based research and the photo/poetic film production,
Remembering the Unknown, is conceptually framed within studies that explo-
re how meanings of trauma can be materially and symbolically inscribed and
enfolded trans-generationally into bodies, minds and cultures. There is an up-
surge of interest in contemporary interdisciplinary trauma studies with regard
to bio-molecular epigenetics that draw on a growing number of new studies
that support the idea that the effects of trauma can reverberate down as PTSD
in generations to come via epigenetic tags. (Gapp, K et al, 2018, Lacal & Ventu-
ra, 2019) Intergenerational trauma epigenetic researchers have identified nu-
merous non-genetic factors involved in the processing of exposure to extreme
physical and psychological suffering. The epigenetic mechanism is understood
as environmental causation of DNA methylation and histone changes linked to
RNA mechanisms, so that tiny chemical tags are added or removed from DNA in
dynamic response to an individual’s social and biological context (Lacal & Ven-
tura, 2018) and it is these inherited tags that have been identified as potentially
triggering intergenerational PTSD in human and animal populations.

Research into how inherited epigenetic traits associated with trauma may im-
pact intergenerationally, on families and populations shifts our critical appro-
ach and analysis of trauma in historic and contemporary contexts. Theoretical
research in epigenetics is not new, in 1995, Philosopher Eva Jablonka and Biolo-
gist Marion Lamb already noted that the gene was fluid and responsive to the
environment and that the gene was not the sole agency of information in trans-
mitting traits to descendants. (Jablonka and Lamb, 1995)

Trauma research in humans have also focused on medical/clinical data gleaned


from historic periods of war, genocide and famine to show that multiple envi-
ronmental and genetic factors developed under extreme duress during vulnera-
ble periods of a person’s development confer numerous and complex health is-
sues in that individual’s descendants. (Gapp, K et al, 2018, Lacal & Ventura, 2019)

A 2018 animal study found an epigenetic effect associated with inheritable trau-
ma disorders across three generations (Gapp, K et al, 2018). This research evi-
dence implies that multiple epigenetic signatures can lead to heightened sensi-
tivities across generations so that descendants can react with PTSD symptoms
in the context of similar environmental cues to their close ancestors. PTSD, a
condition commonly found in fields of combat in war amongst military servi-
cemen and women, can include emotional symptoms of flashbacks, sensations,
aggression, memory problems, anxiety and avoidance. (Harms, 2015) The inter-
generational aspects of this research raise important issues and questions about

493
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

the socio-cultural, and geo-political context of our shared embodied legacies


marking populations and individuals globally.

Tim Ingold, Chair of Social Anthropology, Aberdeen University is known for his
socio-ecological theories that focus on the continuum of human and non-hu-
man animals, plants, the biosphere and cultural transmission:

Human capacities are not genetically pre-specified but emerge within processes of ontogenetic
development that are at once historical and evolutionary. Replacing the ‘population thinking’ of
the Darwinian paradigm with a ‘relational thinking’ that focuses on the dynamics of developmen-
tal systems leads us to a new vision of anthropology, as a science of engagement in a relational
world. (Ingold, 2004, pp. 209-221)

Non-reductive materialist accounts of evolutionary biology offer conceptual


models of the genome that put environment before the gene. This reversal chal-
lenges the fundamental genotype to phenotype transcription model offering a
holistic comprehension of our biological origins and the continuum of organic
life with psychic and cultural phenomena. (Ingold, 2001)

Antonio Damasio, Professor of Psychology, Philosophy, and Neurology, at the


University of Southern California, and adjunct professor at the Salk Institute, tra-
ces the origins of life, feeling and culture through emergent phenomena em-
bedded in the homeostasis regulation of living systems, theorising how human
motivational processes might be traced and associated with feelings arising
from continuous chemical regulatory factors in our cells. Expanding on bacterial
symbiosis research established by the biologist Lynn Margulis (Margulis, 1970),
he cites chemical bonds within the earliest unicellular life forms as repertoires of
qualitative regulation traced to the earliest biosphere. In his writing he describes
the emergence of “conscious feeling minds” as the ‘Cultural Mind’, and proposes
a biological homeostasis theory of embodiment contiguous with environmen-
tal perception and memory (Damasio, 2018). Damasio’s deep eco-cosmological
concepts intersect with zeitgeist social and biological themes that include the
work of Ingold and Palsson that seek to express the unity between genes, or-
ganisms and environment resonate with contemporary post genomic theories
to offers an enhanced understanding of evolutionary processes that echo the
identification of epigenesis as above/before and not below/after the gene.

The feminist theorist, Karen Barad, Professor of Feminist Studies, Philosophy,


and History of Consciousness at the University of California, Santa Cruz is known
particularly for her theory of agential realism, an epistemology intersecting with

494
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

theoretical physics that offers post human performative accounts of our quan-
tum entanglement with matter, Barad characterises matter is as an active parti-
cipant in the world’s becoming, in its on-going “intra-activity”. Barad argues that
all of the past and all cultural and social phenomena are enfolded materialized
through discrete and partial arrangement of a physical apparatuses, with agen-
cy conceived as performative diffractive operations within matter. (Barad, 2007)

The feminist and socio-political theorist, Noella Davis from The University of New
South Wales argues the significance of Barad’s performative materialist theory in
relation to epigenetic research into materialisation of intergenerational mental he-
alth to note how an individual’s environment, both physical and social, current and
historical, is enfolded and manifests in biology at the molecular level. She describes
how the past cannot be left behind, because materially enfolded, reconfigured and
corporeally manifested, making the interesting feminist observation that:

Politics and feminism are particular, contingent, material histories, with each practitioner recon-
figuring her or his specific biological and social materialization as their present-day political and
feminist actions. (Davis, 2014, 62-77pp)

Critical neuro- bio-sociological, philosophical and feminist theories of the cultu-


ral mind dismantle dualist dichotomies of nature versus culture divide and pro-
vide an ecological vision of our place within the world, with mental structures,
human relations and the natural environment in constellation with each other.
In focussing on ways that bodies are dynamically produced, how nature informs
cultural meaning and how molecular writing in bodies form and give form, they
contribute to a broader conceptual understanding of the culture mind.

The philosopher Catherine Malabou develops concepts of neuronal plasticity in


neurobiology, to invoke the nature of brain plasticity as a persistent, transforma-
tive movement that gives and receives form. Malabou uses the term “destructive
plasticity”, to describe the sculpting of dark neuronal forms that constitute enti-
rely new forms arriving out of nowhere. In her writings, Malabou contests earlier
reductive models of plasticity as “idealized logical development” to offer new
radical descriptions of how the brain can metaphorically explode into “destruc-
tive plasticity”, drawing attention to the multitudes of invisible interactants that
are involved in radically (in)forming and (trans)forming the brain and our sense
of self and agency. (Malabou, 2008)

The cultural psychoanalytic theorist, Cathy Caruth writing on models of trauma


and cognitive processing observes how traumatic experiences are inextricably

495
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

caught up with a paradox in consciousness and argues how trauma is not loca-
table in the original violent event in the individual’s past but identified belatedly
and incomprehensively in “the way it is precisely no known in the first instance
– to return to haunt the survivor later on” (Caruth, 1996, 17 &4)

The photography theorist, Ulrich Bauer uses psychoanalytic theory to re-con-


ceptualize the mechanics of photo operations. His critical interpretations of
photography expand on Trauma studies and cite photography practices as a
means to access their dissociative cognitive anomalies:

Traumatic experiences not only distance and estrange the onlooker but are inherently marked
by a rift between the victim and his or her experience; the shattering force of trauma results from
precisely that brutal expropriation of the victim’s self. Thus, because trauma is dispossession and
radical self-estrangement, it defines the traumatised individual through somethings he or she
does not own. (Bauer, 2005, p20)

His book, Spectral Evidence, The Photography of Trauma features an interesting


chapter on the photographer Mikael Levin’s, 1995 War Story series, described
as form of secondary witnessing of the Holocaust through the literature of his
father’s (Meyer Levin’s) WWII archives. Bauer describes ways that the testimonial
act of second witnessing photography and trauma intersect:

His (Levin’s) photographs illustrate how the knowledge of trauma may be constituted in it’s trans-
mission from one person to another: the knowledge of the Holocaust in Mikael Levin’s work emer-
ges in the relations between his complex photographs, their viewers and his father’s text …. to
obey the logic of a kind of “double haunting” in which the son returns to places that were not
properly laid to rest by his father’s memories at the end of the war. (Bauer, 2005, p19)

PTSD syndrome has been at the heart of critical discourse on trauma in psycho-
logy, psychiatry for decades but now numerous interdisciplinary social, cultural
and philosophical theories and epigenetic studies support the idea that the ef-
fects and experience of Trauma can reverberate down as PTSD in generations
of families to come.

Drawing on Bauer’s second witnessing themes, the photo-poetic/film, Remem-


bering the Unknown, represents a visual arts experiment/research in a new form
of life writing that offers a subjective accounting for perceived epigenetic trauma
signatures of my father and grandmother - re-witnessing of their lives within the
historic institutionalised child care , workhouse and charity school systems in the
UK – and brought to light whilst doing research more than 40 years after my fa-

496
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

ther’s death. Remembering the Unknown is predicated on the concept that inhe-
rited trauma that can be triggered or replicated like a script, activated in relation
to specific environmental cues. The project has enabled me to bring fragments of
an autoethnographic narrative out of the dark - allowing me contemplate on my
own trauma based on my early adult life experiences of repeated and long-term
exposure to cycles of abuse and violence. I have been able to use insights offe-
red in this interdisciplinary research to understand my own PTSD syndrome in the
symbolic context deeper and more difficult to access intergenerational psycho-
logical processes and the tension between knowing and not knowing my father
and grandmother’s lives. Based on the concept that the genome is not the sole
agency in inheritance the work explores epigenetic signatures suffered by gene-
rations of my close family, to be read/interpreted a form of secondary witnessing
and re-enactment to develop transgenerational Trauma narrative through art.
These episodes in my family history should not be lost and the work can be read
as reflexive processes of self-realisation and mourning.

Kathleen Rogers, print from the “I Poor Orphan” series, 2017/


Remembering the Unknown, 2019.

497
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

The film produced and screened within the exhibition context of this conference,
Remembering the Unknown, applies techniques of motion graphics and animated
typographic poetics to combine a number of previous black and white photo series
- I Poor Orphan, Here, There and Everywhere produced at CERN, the European Or-
ganization for Nuclear Research, these works reflected on allusions to memory and
trauma in the wider political and sociocultural collective of remembering of cold war
and conceptual capture of cosmic ray sense data.

Kathleen Rogers, print from the “Here, There and Everywhere” series, 2017/
Remembering the Unknown, 2019.

The photo series, Matrem, was produced whilst working in a scientific stem cell labo-
ratory research context to explore the framing of female absence and to raise ques-
tions about the political and ethical status of the orphaned ethereal subject in the
theoretical context of the feminist philosopher Luce Iragary’s seminal text, Hystera.

498
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Kathleen Rogers, print from the “Matrem” series, 2018, Remembering the Unknown, 2019.

In 2018 I produced the photo series “Home’ based on site visits and photographs that
include those taken from outside the perimeter of HM Styal Prison for women, the
site of my father’s former orphanage in Greater Manchester.

Kathleen Rogers, print from the “Home” series, 2018, Remembering the Unknown, 2019.

499
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

The “Home”, Styal photographs were produced on visits to get closer and imagine
how my father’s life might have been like within the cottage homes orphanage. The
so called, colony was envisaged as a utopian children’s orphanage village set in the
open air and in the countryside beyond the established overcrowded workhouse
conditions and systems of Manchester. (Stanhope Brown, 1989)

Kathleen Rogers, print from the “Home” series, 2018, , Remembering the Unknown, 2019.

My father arrived at Styal Orphanage in 1923, having been abandoned with siblings
by his mother after her impoverished return alone from Canada. She was a WWI
war bride, born in a London Workhouse hospital and later sent to charity schools
before going into domestic service. On arriving at around 2 years old my father had
suffered extreme malnourishment and had the bone disease Rickets. His sister was
sent to Australia as a home child and the family were never reconciled. Life at Styal
Cottage homes in the mid-1920s was harsh. Children in institutional situations like
these learnt that they could only count on themselves and to trust no-one. My fa-
ther was visibly marked by bone deformities caused by childhood rickets and was
deeply psychologically scarred from his early abandonment experience. He spent
his whole childhood and youth there as children were rarely allowed to leave the
enclosed community. It was commented that the Styal “home” children were almost
mute and had difficulties communicating with outsiders. The militaristic regime and

500
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

the endeavour to construct model citizens from orphaned and abandoned children
had an overwhelming impact on all the children who had already experienced ne-
glect – it was a harsh regime where everything was done to a schedule - there was
no self-directed play - everyone would eat at the same time, with each child carrying
out sets of repeated acts and movements according to regulations in states of en-
forced isolation.

Research into my father’s life has been emotionally challenging and difficult – not
surprisingly his orphanage experiences and his abandonment were not something
he talked about in his life time – my research led to the mystery of his own mother’s
past. The kinds of early hardship suffered by my grandmother and my father; the
lack of warmth and affection and socialisation are known to lead to permanent de-
velopmental changes in the fundamental material structures of the body.

I acknowledge that life writing narratives based on subjective accounting of epi-


genetic causation of intergenerational PTSD can be viewed as controversial but
thinking in multi-dimensional ways that trace genetic citizenship as contingent and
inseparable from the feeling and sensing cultural mind and using the visual arts can
help integrate ways of understanding people’s differing responses to traumatic life
experiences to creative, compassionate and therapeutic approaches to the universal
themes of self-hood, identity and healing.

Further information on this and related work can be found on the website pages Cos-
mopolitical Futures – The Anthropocenic Human + Projects - www.kathleenrogers.org

References:
Baer, U., 2005. Spectral Evidence: The Photography of Trauma, MIT Press.

Barad, K., 2007. Meeting the Universe Halfway: Quantum Physics and the Entangle-
ment of Matter and Meaning, Duke University Press.

Caruth, C., 2016. Unclaimed Experience: Trauma, Narrative, and History, JHU Press.

Davis, N., Women Cultural Review ( Volume 25, 2014 – Issue 1 : Feminist Matters:
Politics Materialized: Rethinking the Materiality of Feminist Political Action through
Epigenetics. on-line 09 May 2014 accessed 01.09.2019

Damasio, A., 2018. The Strange Order of Things: Life. Feeling, and the Making of Cul-
tures, Pantheon Books

Gapp, K et al, Molecular Psychiatry (2018), Nature, accessed 01/09/2019


https://www.nature.com/articles/s41380-018-0271-6

501
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Harms, L., 2015. Understanding Trauma and Resilience, Macmillan International Hi-
gher Education.

Ingold, T. & Palsson, G, 2013, Biosocial Becoming’s: Integrating Social and Biological
Anthropology, Cambridge University Press.

Ingold, T. 2001, eds. Cycles of Contingency: Developmental Systems and Evolution,


MIT Press.

Ingold, T, 2005, Social Anthropology, Beyond Biology and Culture. The Meaning of
Evolution in a Relational World, Volume 12, Issue 2, Published online by Cambridge
University Press: https://doi.org/10.1017/S0964028204000291 accessed 01/09/19

Jablonka, E. & Lamb, M.J, 2005. Evolution in Four Dimensions: Genetic, Epigenetic,
Behavioural, and Symbolic Variation in the History of Life (Life and Mind: Philosophi-
cal Issues in Biology and Psychology), The MIT Press.

Lacal & Ventura, Epigenetic Inheritance: Concepts, Mechanisms and Perspectives, ,


accessed 01/09/2019
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6172332/

Malabou, C., 2008. What Should We Do with Our Brain?, trans. (New York: Fordham UP)

Margulis, L, 1970. Origin of eukaryotic cells: evidence and research implications for
a theory of the origin and evolution of microbial, plant, and animal cells on the Pre-
cambrian earth, Yale University Press New Haven.

Stanhope-Brown, J, 1989. A Styal of Its Own (1894-1964), C. Pothecary

What is PTSD, American Psychiatric Association, accessed 01/09/2019


https://www.psychiatry.org/patients-families/ptsd/what-is-ptsd

502
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Láisa Rebelo Cavalcante1 and


Shirley Gomes Queiroz2
Design e consumo no contexto do Antropoceno:
reflexões sobre o porvir
Design and consumption in the Anthropocene context: reflections about the future

Resumo
O Antropoceno surge como uma nova proposta científica para nomear a era geológi-
ca3 presente. As diversas transformações do ecossistema, causadas pelas ações huma-
nas, anunciam um porvir de distopias ambientais permeadas por severas mudanças
climáticas e modificações dos espaços naturais. Ao reconhecer a capacidade humana
de transformar o meio ambiente, diversas áreas de estudo, dentre elas o design e as
artes, passaram a incluir as questões ambientais em suas narrativas. A discussão sobre
o design e o consumo no contexto do Antropoceno promove questionamentos po-
líticos, sociais, tecnológicos e utópicos em relação à sua atuação na transformação da
vida orgânica em sintética. Diante dessas possibilidades, este estudo busca explorar as
relações possíveis entre o Antropoceno, o design e o consumo, a fim de propor uma
reflexão sobre a atuação humana nesta nova era geológica que se desdobra.
Palavras-chave: Antropoceno; consumo; design; arte

Abstract/resumen/resumé
The Anthropocene emerges as a new scientific proposal to nominate the present geo-
logical era. Those transformations in the ecosystem, caused by the human actions,
announce a future of environmental dystopias, permeated by several climate changes
and modifications in the natural spaces. By recognizing the human capacity of trans-
forming of the environment, many studying areas, among them the design and the
arts, are including the environment issues in their narratives. A discussion about design
and consumption in the context of the Anthropocene promotes political, social, tech-
nological and utopian questions regarding its role in transforming organic life into syn-
thetic life. Given these possibilities, this study aims to explore the possible relationships
between the Anthropocene, design and consumption, in order to propose a reflection
on human action in this new geological age that unfolds. Keywords/Palabras clave/
Mots clefs: Anthropocene; consumption; design; art

1 Láisa Rebelo Cavalcante, Mestranda em Design, no Programa de Pós-Graduação em Design, na


Universidade de Brasília laisarebelo@gmail.com
2 Shirley Gomes Queiroz, Doutora em Engenharia de Produção, Professora do Programa de Pós-Gra-
duação em Design da Universidade de Brasília shirley@unb.br
3 O termo Antropoceno foi proposto pelo biólogo Eugene Stoermer (STEEFEN et al., 2011)
503
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Introdução
Na obra Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, a narrativa ficcional soa como uma
premonição sobre um futuro distópico, higienista e excludente, no qual a diversidade
dos povos seria desprezada e os indivíduos seriam alienados por meio de substâncias
sintéticas. A ficção do século XX se aproxima da realidade do século XXI quando a vida
contemporânea se distancia do natural e se torna cada vez mais artificial. Nota-se que
a vida humana vem sendo influenciada pela vasta quantidade degadgets4 e remédios
disponíveis para amenizar as frustrações e ansiedades, além de substâncias que modi-
ficam, ou até mesmo substituem, os alimentos naturais.
Gradativamente a vida se distancia do natural, e se aproxima do artificial, fazendo
com que os próprios indivíduos provoquem mutações em si mesmos. Devido aos
avanços na tecnologia e na medicina, a junção entre os organismos e as máquinas
estão se tornando cada vez mais comuns, transformando os humanos em verdadei-
ros ciborgues (HARAWAY, 2009).

Diversos artefatos sintéticos vêm sendo inseridos e acoplados aos corpos humanos.
Desde os mais simples implantes capilares, silicones e lentes de contato, próteses que
substituem partes do corpo humano e até a aplicação de chips hormonais5 (Figura1)
e esteroides anabolizantes para estimular o desenvolvimento de músculos. Essa ten-
dência de manipular e transformar os corpos humanos naturais em sintéticos, chega
a transpassar para as relações que os indivíduos estabelecem com os espaços e seus
pares, que estão se tornando cada vez mais artificiais.

Figura 1 Microchip Subcutâneo - Fonte: Microchip Biotech®

Essa característica de transformar os espaços e manipular a natureza condiz com


o Antropoceno, que reconhece as atividades humanas como uma força não ape-
nas biológica, mas também geológica, capaz de transformar o meio ambiente a ní-
vel planetário (CHAKRABARTY, 2013). Diferente das narrativas distópicas ficcionais
sobre o futuro, o Antropoceno não é uma narrativa de ficção, pelo contrário, esta
era geológica se assemelha a um diagnóstico do presente que anuncia um futuro
catastrófico possível, e que aparenta estar cada vez mais próximo. As dificuldades
ambientais enfrentadas pelos seres humanos é um reflexo dos impactos negativos
que os próprios indivíduos foram capazes de provocar na natureza. Embora o termo
504
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Antropoceno não seja reconhecido oficialmente como a era geológica atual, sua te-
oria se sustenta em pesquisas científicas que comprovam as diversas modificações
que estão ocorrendo no meio ambiente, como a destruição em massa de espécies,
as alterações climáticas e as catástrofes ambientais que estão se tornando cada vez
mais recorrentes. Essas transformações são tão expressivas que já deixaram seus re-
gistros marcados nas rochosas do planeta (LATOUR, 2017; HARAWAY, 2016; CHAKRA-
BARTY, 2013).

A partir da perspectiva de que os seres humanos atuam como uma força geológica,
entende-se que as diversas atividades culturais, econômicas e sociais, que atuam na
transformação do ambiente natural em artificial, estão relacionadas ao Antropoce-
no. O design faz parte dessas atividades por ser uma atividade que surgiu a partir da
produção industrial, responsável por projetar para os indivíduos e promover rela-
ções de convívio social e transformação dos espaços naturais por meio dos objetos.
Por essas razões, acredita-se que perceber o design no contexto do Antropoceno
pode ser uma forma de provocar novas reflexões, principalmente entre os designers,
sobre o seu papel de projetar não apenas para os seres humanos, mas também para
os outros seres e espaços que os cercam.

A abordagem do Antropoceno nas narrativas do design e da arte é importante para


que o tema possa ecoar para além de seus espaços de atuação, e assim poder ir além
dos estudos da geologia e ciências afins. Espera-se que com essa transdisciplinarie-
dade seja possível ampliar as discussões e gerar novos pensamentos sobre a relação
humana com a natureza. Nesse sentido, Ingold (2016) destaca a importância dessa
aproximação das artes com a ciência, sobretudo nos assuntos ecológicos, por con-
seguirem atingir um posicionamento mais crítico que muitas vezes as ciências não
conseguem alcançar.

De acordo com Anderson (2015), o design crítico, conceitual e especulativo é mais


adequado para tratar o Antropoceno porque estimula o pensamento reflexivo sobre
a relação do ser humano com a tecnologia e a ciência. Portanto, acredita-se que as
abordagens do design e da arte, que incentivam pensar sobre as atividades humanas
como responsáveis pelas transformações, cumprem um papel importante ao pro-
moverem a conscientização humana e provocarem mudanças de comportamento.

Ao assumir o Antropoceno como uma probabilidade de futuro distópico, busca-se


então explorar soluções para sobreviver a esse porvir que se aproxima. Dentre os
caminhos possíveis, o design especulativo demonstra ser uma perspectiva interes-
sante para esta finalidade, porque, além do seu potencial político, consegue recorrer
às utopias para buscar soluções e possibilitar novos pensamentos sobre futuros de-
sejáveis e possíveis (PORTINARI & NOGUEIRA, 2016). Ademais, o design especulativo
questiona o modelo convencional de se fazer design buscando romper com os para-
digmas de produção e consumo vigentes.

505
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O design especulativo, também conhecido como design crítico, questiona diversas


perspectivas do modo tradicional de se fazer design. Ao invés de propor soluções, o
design especulativo investiga quais são as perguntas, volta-se para as questões sociais,
provoca questionamentos sobre o consumo e a cidadania, e entende que é preciso
adaptar os indivíduos para o mundo ao invés de adaptar o mundo para os indivíduos.
Possui também uma metodologia interessante que atua com cenários ficcionais, po-
rém possíveis, para promover reflexões sobre o futuro por meio das utopias (DUNNE &
RABY, 2013). Desse modo, o design especulativo demonstra ser uma metodologia in-
teressante para explorar novas possibilidades de sobrevivência por meio das utopias.

Mas afinal, o que é o Antropoceno?


O Antropoceno surge como uma nova era geológica que reconhece os seres huma-
nos como os principais responsáveis pelas transformações permanentes e visíveis no
planeta. Rodrigues (2017) explica que o sufixo “antropo” vem do grego anthropos, que
significa homem, e “ceno” significa novo, termo da geologia utilizado para nomear as
épocas geológicas referentes ao período Quaternário, no qual se vive atualmente. O
nome Antropoceno foi proposto pelo biólogo Eugene Stoermer, ainda nos anos 1980,
tornando-se popular posteriormente com Paul Crutzen, vencedor do prêmio Nobel da
Química em 1995 (Rodrigues, 2017).

Esta nova nomenclatura questiona o Holoceno – era geológica atual, reconhecida ofi-
cialmente pela Comissão Internacional de Estratigrafia6 – por entender que a ativi-
dade humana é uma força geológica de alto impacto, capaz de provocar mudanças
climáticas e a extinção em massa de espécies, alterando assim o funcionamento do
ecossistema (STEEFEN et al, 2011).

O uso do termo antropo para nomear o período geológico enfatiza as atividades hu-
manas como principais agentes de transformação no planeta, e por isso, tem promo-
vido questionamentos em diversas áreas da ciência. Haraway (2016) argumenta que
as ações antrópicas tiveram efeitos planetários, e aponta para a urgência de nomear o
Antropoceno devido à escala, à relação taxa/velocidade, à sincronicidade e à comple-
xidade provocadas por essas mudanças.

Ao expor a atividade humana como a principal responsável pelas mudanças sofridas no


planeta, o Antropoceno estabelece conexões complexas com outras ciências além da
geologia, principalmente pelo caráter político que o termo carrega. Dessa forma, áreas
como a antropologia, a arte, o design e a filosofia passam a discutir a relação humana
com a tecnologia e a natureza, e assim também promovem discussões sobre a moder-
nidade, a tecnologia, as crises ecológicas e o pós-humanismo (ANDERSON, 2015).

6 A Comissão Internacional de Estratigrafia é o órgão científico constituinte responsável por definir


e estabelecer os padrões globais para a escala fundamental para expressar a história da Terra (http://
www.stratigraphy.org/)
506
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Conforme o Antropoceno vem sendo discutido por diferentes campos do conheci-


mento, surgem discussões sobre quais atividades humanas e quais grupos sociais,
podem ser reconhecidos como força geológica de impacto e transformação do
ecossistema, e também sobre quando a força humana passou a ter essa potência de
atuação e transformação no planeta. Sobre a marcação do seu tempo, há diferentes
perspectivas nesse sentido: para alguns, o Antropoceno pode ter tido seu início com
o desenvolvimento da agricultura, outros com a industrialização, ou ainda, com o
surgimento da globalização (RODRIGUES, 2017).

Diante de tantas possibilidades, surgem diferentes nomenclaturas a partir do An-


tropoceno. Donna Haraway (2016) discute alguns desses termos e apresenta Cht-
chuluceno, Capitaloceno e o Plantationoceno para demonstrar diferentes perspectiva
sobre os responsáveis pelas crises ecológicas. Com tantas possibilidades, percebe-se
a pluralidade de assuntos relacionados ao Antropoceno, que reafirma a complexida-
de existente nas discussões ambientais.

O termo Chutchuluceno, Haraway (2016) faz uma referência ao monstro Cthulhu, da


ficção científica do escritor H.P. Lovecraft, para sugerir que esta era geológica é um
pesadelo racista e misógino. Já com o Plantationoceno, Haraway (2016) o utiliza para
apontar as transformações causadas no solo pelo extrativismo e o agronegócio. Por
sua vez, o Capitaloceno, amplamente utilizado por Jason Moore (2016), possui uma
forte crítica ao capitalismo e ao próprio Antropoceno, por entender que as ativida-
des humanas se tornaram destrutivas a partir do acúmulo de capital.

Diante de diferentes possibilidades de compreensão sobre o Antropoceno, o intui-


to deste termo é ressaltar que as ações humanas possuem um potencial de trans-
formação tão intenso, que passaram a ser reconhecidas como uma força geológica
responsável por modificar a estrutura física do planeta e por provocar mudanças
irreversíveis no ecossistema, as quais colocam em risco a sobrevivência da própria
espécie humana (LATOUR, 2017; HARAWAY, 2016; CHAKRABARTY, 2013).

Arte, design e consumo no contexto do Antropoceno


As atividades que se relacionam com as questões antropológicas, filosóficas, polí-
ticas e econômicas encontram conexões possíveis com o Antropoceno. O design,
por sua vez, se relaciona com o Antropoceno a partir da perspectiva do Capitalo-
ceno, pois surge a partir das demandas da Revolução Industrial e do início do Ca-
pitalismo (CARDOSO, 2000). Nesse sentido, o design se estabelece em um momen-
to histórico e social significativo para o reconhecimento das atividades humanas
como agentes geológicos capazes de provocar alterações e impactos significativos
em escala e tempo no meio ambiente (CHAKRABARTY 2013; MOORE 2016).

Além disso, o design é também uma atividade que relaciona pessoas e objetos,
responsável por manipular a natureza para satisfazer as necessidades humanas,
e trazer artificialidade para a vida cotidiana. Segundo Flusser (2017) o design é
507
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

uma atividade astuciosa que engana a natureza por meio da técnica, e que, ao
potencializar as atividades humanas com objetos fabricados, transforma o natural
em artificial, possibilitando a transformação dos seres humanos, até então simples
mamíferos condicionados, em artistas livres.

Devido ao seu potencial de transformar a natureza e trazer artificialidade por meio da


materialidade, o designer atua na produção de sentidos, gerando significados semân-
ticos capazes de refletir o seu tempo (STEFEEN, 2010; POMPEU, 2016). Afinal, o que
diferencia os seres humanos dos animais é a sua capacidade de produzir cultura e gerar
significados (LARAIA, 2006). Esse atributo do design lhe confere também a possibili-
dade, e responsabilidade, de contribuir para a conscientização dos indivíduos sobre o
momento presente para viabilizar futuros melhores.

No momento em que o Antropoceno responsabiliza os humanos pelas crises ecológi-


cas e anuncia a ideia de um futuro de distopias ambientais, entende-se que o design,
ao se voltar para essas problemáticas, passa a atuar de forma consciente e responsá-
vel, por estar expondo essas questões sobre o presente e o futuro para os indivíduos.
Dentre os meios de se buscar alternativas para essas crises, o design especulativo, ao
construir cenários ficcionais, a partir de um futuro possível, demonstra ser uma pers-
pectiva interessante para pesquisar e especular soluções para sobreviver ao porvir que
esta era geológica anuncia.

Quando a arte também promove discussões relacionadas às crises ecológicas por meio
do Antropoceno, as narrativas provocam reflexões sobre a relação humana com a eco-
logia e seus hábitos, e assim impulsionam o despertar do pensamento crítico sobre o
tema. No Museu do Amanhã (Figura 2), na cidade do Rio de Janeiro, Brasil, o Antropoce-
no faz parte da exposição permanente do local, sendo apresentado de forma bastante
didática, com um suporte tecnológico de arte e design, que leva o visitante a refletir so-
bre o assunto. Deparar-se com o Antropoceno em um museu, que em seu próprio nome
convida o visitante a pensar no futuro, desperta de imediato a inquietação humana so-
bre suas responsabilidades enquanto ser vivo que consome e habita o espaço natural.

Figura 2 Museu do Amanhã - Fonte: Site do Museu do Amanhã

508
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Anderson (2015) pondera sobre as possíveis percepções que as manifestações artísticas


podem promover sobre o Antropoceno, posto que muitas acabam por reafirmar o do-
mínio humano sobre o planeta, e acabarem por reforçar ideias solucionistas, heroicas e
masculinistas7. Mesmo que os discursos artísticos possam provocar esses pensamentos,
acredita-se que ainda assim essas manifestações possuem um impacto positivo, pois,
com a ampliação dos debates sobre as crises ecológicas e a responsabilidade humana
sobre o meio ambiente é possível despertar uma nova consciência.

Da mesma forma que o Antropoceno é uma nomenclatura científica, é também um con-


ceito e uma filosofia, que permite a cada campo científico refletir sobre a sua participação
e responsabilidade no meio ambiente. É importante frisar que a abordagem do Antropo-
ceno não sugere uma disputa entre seres humanos versus meio ambiente, além de não se
tratar de uma proposta de alarde para salvar o planeta, até porque o planeta existiu antes
e existirá depois da espécie humana (SERRES, 1990). Por isso, entende-se que o Antropo-
ceno é, sobretudo, um ponto de partida para provocar uma autocrítica humana.

Por entender que os seres humanos são os principais responsáveis por este futuro
que se assemelha a um futuro distópico, no qual as condições de sobrevivência no
planeta colocam em questão a própria espécie humana, entende-se que é impor-
tante ter uma percepção mais consciente sobre como os hábitos e os estilos de vida
da humanidade estão contribuindo para este porvir catastrófico. Acredita-se que o
consumo, uma das atividades mais importantes para a manutenção do sistema eco-
nômico vigente em quase todo o planeta, que possui uma demanda exagerada dos
recursos da natureza, e que devolve ao meio ambiente diversas formas de resíduos
tóxicos e poluentes, é uma atividade humana que precisa ser transformada.

A autocrítica humana, em tempos de capitalismo e consumo exagerado, pode partir


de diversos projetos que passam a questionar a necessidade dos produtos, os seus
ciclos de uso e até mesmo, se é preciso mesmo ter determinados objetos no cotidiano.

Para afrontar comportamentos, rituais e estilo de vida, o Infinity Burial Suit 8(Figura
3), apontado por Anderson (2015) como uma perspectiva sobre morrer no Antro-
poceno, é um projeto intrigante e polêmico, justamente por abordar a morte, uma
etapa da vida humana pouco discutida no design. O Infinity Burial Suit foi desen-
volvido por Jae Rhim Lee, uma artista visual, designer e pesquisadora americana. A
proposta do seu produto é minimizar os impactos que o corpo humano provoca no
meio ambiente durante a sua decomposição. Dessa forma o projeto promove uma
forma ecológica de decomposição do corpo humano por meio de cogumelos que
decompõem e corrigem as toxinas no tecido humano.

7 Termo utilizado por Anderson (2015) para definir o movimento que prega a igualdade entre ho-
mens e mulheres, ao invés da equidade, sob a perspectiva masculina.
8 http://coeio.com/infinity-burial-project/
509
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 3 Infinity Burial Suit - Fonte: Coeio.com

A importância de produtos polêmicos e intrigantes como o Ininity Burial Suit con-


siste no despertar de reflexões sobre os impactos que o corpo humano provoca no
meio ambiente, em todas as suas fases da vida. De toda forma, acredita-se que, mais
do que pensar nas alternativas posteriores a vida humana, é importante buscar pen-
samentos e alternativas que possam contribuir para mudar o cenário atualmente
e fazer com que a passagem do Antropoceno seja menos danosa à vida humana.

Alternativas para sobreviver ao porvir


Não há soluções prontas para questões complexas da humanidade. No entanto, há ca-
minhos para se refletir sobre o futuro que se pretende viver. Por isso, acredita-se que
para sobreviver ao porvir, possivelmente permeado de catástrofes ambientais, é preciso,
antes de qualquer coisa, se permitir imaginar futuros possíveis e até mesmo utópicos.

As utopias sustentam as possibilidades de se acreditar em outras narrativas e modos de


se viver, permitindo que a imaginação possa ir além da realidade presente. Nesse senti-
do, Stengers (2015, p.147), afirma que “(...) não escolhemos este modo de vida, e todas
as sábias narrativas sociológicas que nos falam do indivíduo moderno”. Portanto, é pos-
sível imaginar que os estilos de vida e os comportamentos possam ser transformados.

No design, acredita-se que essas mudanças podem surgir a partir do design espe-
culativo. Dunne e Raby (2013), que apresentam o conceito de design especulativo,
entendem que as mudanças ocorrem na medida em que os sistemas de crenças e
ideias também mudam, e principalmente, quando há uma aproximação da busca
por soluções com as utopias, por permitirem que novas alternativas sociais e imagi-
nativas possam vir a surgir.

510
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Seguindo este pensamento, Morin (2011) reforça a importância de se repensar em


outras realidades e crer em futuros diferentes do que se prevê, pois, aquilo que pa-
rece funcionar atualmente poderá não funcionar mais. Além disso, enfatiza que um
sistema que não consegue resolver seus problemas e conflitos, ou desmorona ou dá
espaço para que outros possam surgir.

As utopias, muitas vezes vindas das artes e da literatura, viabilizam a imaginação e


ajudam a fomentar a crença em outros futuros, distintos daqueles que o Antropoce-
no anuncia. A importância de se pensar a utopia e imaginar futuros por meio da arte
é salientada por Morin (2011, p. 155), quando ele afirma que “A vida só é suportável
se nela for introduzida não apenas a utopia, mas a poesia, ou seja, a intensidade, a
festa, a alegria, a comunhão, a felicidade e o amor (...)”.

Com esse pensamento, Edgar Morin destaca a importância da arte em abordar te-
mas tão críticos e necessários como o Antropoceno. A arte, com seu potencial de
subjetividade, promove reflexões poéticas que transcendem as narrativas discursi-
vas. Por meio da arte é possível despertar os sentimentos necessários para que se
possa conscientizar e fazer refletir.

Considerações finais
Vivenciar este momento de crise ambiental, que impacta a todos os seres do plane-
ta, desperta sentimentos de descrença e impotência, como se nenhuma mudança
pudesse ser feita. No entanto, ainda assim, há dois caminhos possíveis: o da deses-
perança e aceitação de que nada poderá ser feito, ou o da esperança e crença de que
as realidades podem mudar. Para Morin (2011) a realidade não é inerte, ela possui
mistérios e incertezas e, portanto, não pode ser aceita como um fato consumado.

Ao decidir seguir otimistas e confiantes nas mudanças, é preciso buscar meios de


se imaginar e criar essas transformações. Diante das catástrofes que aludem à ideia
de cenários distópicos, as utopias surgem como antídotos para a criação de novas
realidades. É preciso acreditar nas alternativas, mesmo que sejam fantasiosas ou que
causem pouco impacto, porque cada pequeno êxito, por menor que seja, tem sua
importância (STENGERS, 2015).

Na busca por futuros possíveis, o design pode atender às necessidades urgentes de


mudanças de paradigmas nas relações de consumo ao estimular questionamentos
sobre os comportamentos, sugerindo novas formas de se consumir, além de promo-
ver qualidade de vida por meio de artefatos ecologicamente coerentes. Há diversos
caminhos possíveis para que o design possa se comprometer com as causas am-
bientais despertadas pelo Antropoceno.

Já a importância da relação entre a arte e as crises ecológicas ocorre pelo seu poten-
cial de humanizar as áreas da ciência que se distanciam das propriedades humanas,

511
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

uma vez que a arte consegue despertar sensações que jamais poderiam ser com-
preendidas em números e palavras. Nesse sentido, Morin (2011) entende que um
dos problemas da realidade atual é também devido ao distanciamento do corpo, do
sangue, das paixões, do sofrimento da felicidade e da cultura.

Desse modo, acredita-se que a arte e o design conseguem estabelecer as conexões


dos saberes que Morin (2011) julga serem importantes para pensar em novas reali-
dades, no que se refere à união entre as ciências sociais, o imaginário e o afetivo. As
possibilidades técnicas do design, atreladas às possibilidades subjetivas e afetivas
da arte, viabilizam a imaginação e a utopia necessária para desenhar alternativas
para sobreviver ao porvir.

Referências
Anderson, K. (2015, July). Ethics, ecology, and the future: art and design face the An-
thropocene. In ACM SIGGRAPH Art Papers (pp. 338-347) DOI: 10.1145/2810177.2810180

Cardoso, R.(2000). Uma introdução à história do design. São Paulo, Editora Edgar
Blucher Ltda.

Chakrabarty, D. (2013) O clima da história: quatro teses. (D. Bottmann, F. Ligocky,


D. Ambrosini, P. Novaes, C.Rodrigues, L.Santos L., R.Félix, L.Durazzo L. Trads) Revista
Sopro, 91, p. 4 – 22 (Trabalho original publicado em 2009)

Dunne, A. & Raby, F. (2013) Speculative everything: design, fiction and social drea-
ming. MIT press.

Haraway, D (2016). Antropoceno, Capitaloceno, Plantationoceno, Chthuluceno: fa-


zendo parentes.ClimaCom, v. 3, p. 139-148.

____________ (2009). Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialis-


ta no final do século XX. In: TOMAZ, T. (org.) Antropologia do ciborgue: as vertigens
do pós-humano. Belo Horizonte, MG - Editora Autêntica.

Ingold, T. (2016). From science to art and back again: The pendulum of an anthropo-
logist. ANUAC, 5(1), 5-23. https://doi.org/10.7340/anuac2239-625X-2237

Latour, B. (2017) Anthropology at the time of the Anthropocene: a personal view of


what is to be studied. The anthropology of sustainability (pp 35-49). Palgrave Mac-
millan, New York

Lang, M.; Dilger G.; Neto, J.P. (2016) Descolonizar o imaginário. São Paulo, Editora Elefante

Laraia, R. D. B. (2006). Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro, Editora


ZAHAR.

512
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Manica, D., & Nucci, M. (2017). Sob a pele: implantes subcutâneos, hormônios e gê-
nero. Horizontes Antropológicos, (47), 93-129. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-
71832017000100004

Moore, J.W. (2010). The end of the road? Agricultural revolutions in the capitalist
world-ecology, 1450–2010. Journal of Agrarian Change, v. 10, n. 3, p. 389-413. DOI:
https://doi.org/10.1111/j.1471-0366.2010.00276.x

__________ (2016). Anthropocene or Capitalocene? Nature, History, and the Crisis of


Capitalism. PM Press.

Morin, E. (2011) Rumo ao abismo? Ensaio sobre o destino da humanidade. Rio de Janei-
ro, Editora Bertrand Brasil LTDA

Pananek, V.J (1985) Design for the new world. Chicago, Editora: Academy Chicago Pu-
blishers

Pompeu, Bruno. (2017). A revolução do design: Conexões para o século XXI. In: MEGI-
DO, V.F. São Paulo, Editora Gente.

Portinari, D. B., Nogueira, P. C. E. (2016). Por um design político. Estudos em Design, v.


24, n. 3, p. 32 - 46 DOI: https://doi.org/10.35522/eed.v24i3.379

Rodrigues, M. (2017) O Antropoceno em disputa. Cicência e Cultura, v. 69, n.1, p. 19-


22, 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602017000100010

Serres, M. (1990). Contrato Natural. Lisboa, Editora Instituto Piaget.

Stengers, I. (2015) No Tempo das Catástrofes - Resistir à barbárie que se aproxima. São
Paulo, Editora: Cosac Naify

Steefen, W; Grinevald, J; Crutzen, P; McNeill, J. (2011) The Anthropocene: conceptual


and historical perspectives. Philosophical Transactions of the Royal Society A: Mathe-
matical, Physical and Engineering Sciences, v. 369, n. 1938, p. 842-867. DOI: https://
doi.org/10.1098/rsta.2010.0327

Steffen, D. (2010) Design semantics of innovation. Product language as a reflection


on technical innovation and socio-cultural change, Department of Art and Design
History, Bergische Universität Wuppertal, Alemanha. Disponível em: https://www.
researchgate.net/publication/292699798_Design_semantics_of_innovation

Thorpe, A (2010). Design’s role in sustainable consumption. Design Issues, v.26, n.2, p.
3-16 DOI: https://doi.org/10.1162/DESI_a_00001.

513
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Marinalva Nicácio de Moura1


Corpositivo: entrelaçamento da intercoporeidade com a
tecnologia da computação vestível em performances artísticas
Devicebody: interweaving of intercorporeality with wearable computing
technology in artistic performances

Resumo
Inspirada no pensamento de Merleau-Ponty sobre a intercorporeidade do corpo
com as coisas do mundo, no qual as coisas do mundo são aquilo que falta ao
corpo para fechar seu circuito, e no pensamento de Steve Mann sobre a com-
putação vestível, no qual a máquina deve possuir constância de operação e in-
teração, deve está sempre ligada, disponível, acessível e incorporada ao usuário,
crio brechas de entrelaçamento em performances artísticas utilizando vestimen-
tas que incorporam ao corpo humano ao dispositivo tecnológico. Ofereço como
reflexão a experiência na performance artística, na qual faço uso de uma vesti-
menta com bolsos em plástico vinil que incorporam dispositivos tecnológicos
para interagir simultaneamente com espectadores presenciais e espectadores
“ao vivo” em redes sociais. Até o presente momento, o entrelaçamento da inter-
coporeidade do corpo estesiológico com a computação vestível em performan-
ce, instaura o corpositivo, o toque sensível como encruzilhada de corpos que
amplia, transforma e instaura novos modos de ser no mundo.
Palavras-chave: corpositivo, intercorporeidade, computação vestível, perfor-
mance, onipresença.

Abstract
Inspired by Merleau-Ponty’s thinking about the body’s incorporeality with the things of
the world, where the things of the world are what the body lacks to close its circuit, and
Steve Mann’s thinking about wearable computing, in which the machine must have
constancy of operation and interaction, must always be linked, available, accessible
and incorporated to the user, creating gaps of interweaving in artistic performances
using clothing that incorporate the human body the technological device. I offer as
a reflection the experience in artistic performance, in which I make use of a garment

1 Possuo graduação em Licenciatura em Educação Artística - Desenho, graduação em Licenciatura


em Educação Artística Artes Cênica e mestrado em Educação, todos pela Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (2012). Atualmente sou doutaranda na Universidade de Brasília, no Programa
de Pós-graduação em Arte, na linha de Arte e Tecnologia. Sou professora do Instituto Federal de
Educação e Ciência do Rio Grande do Norte – IFRN e integrante do Grupo Estandarte de Teatro.

514
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

with vinyl plastic pockets that incorporate technological devices to interact simulta-
neously with in-person viewers and “live” viewers on social networks. So far, the in-
terweaving of the intercoporeity of the estiological body with wearable computing in
performance, establishes the devicebody, the sensible touch as a crossroads of bodies
that broadens, transforms, and establishes new ways of being in the world.
Keywords: devicebody, intercorporeality, wearable computing, performance, omni-
presence.

Introdução
O ponto de partida desta pesquisa é que o entrelaçamento do corpo com o disposi-
tivo tecnológico e com o outro, amplia a ontologia da carne e alarga as sensações de
presença, mas especificamente a presença cênica. Para dar início a essa reflexão faz-se
necessário contextualiza-la. Ela é parte dos estudos que venho desenvolvendo na pes-
quisa de doutorado que tem como título provisório “Onipresença cênica: corpo em
performance mediado por dispositivos tecnológicos na telemática”, está sendo reali-
zada na linha de Arte e Tecnologia do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da
Universidade de Brasília. A pesquisa de doutorado tem como objetivo principal inves-
tigar a sensação de onipresença do corpo em performances artísticas fazendo uso de
dispositivos tecnológicos conectados em rede pela telemática, buscando na imersão
a expressão dos efeitos intercorpóreos no corpo estesiológico do artista quando parti-
lha espaço e tempo distinto do espectador. Trata-se de uma pesquisa cartográfica que
busca falar do que se passa no território do desejo, do afeto, do estético, do político
e da experiência vivida quando estamos em performance. Para tanto, performances
artísticas são criadas e o corpo mediado por dispositivos tecnológicos conectados a
telemática são modos, maneiras estilos de experienciar a onipresença, ao buscar reali-
zar comunicação com espectadores presentes, ou seja, no lugar da ação, e com espec-
tadores a longa distância, on line, conectados ao vivo em redes sociais.

Para dar conta do método de investigação foram estruturados objetivo especifico da


pesquisa, sendo eles: criar e a cartografar as performances que instauram a mediação
do corpo por dispositivos tecnológicos conectados a telemática, durante o pré-acon-
tecimento da performance, o acontecimento e o pós-acontecimento; perceber a bre-
cha de presença e não-presença nas sensações corpóreas em interações simultâneas,
com espectadores presenciais e espectadores “ao vivo” em redes sociais; compreender
os elementos que estruturam as potências corpóreas da sensação estesiológica da
onipresença como alargamento do sentir-se aqui, ali e acolá, ao mesmo tempo, um
sentir do corpo no mundo, melhor dizendo, um sentir do corpo no entremundo.

Desse modo, o método de investigação da pesquisa é a criação e a cartografia de


performances artísticas e para dar conta criei três momentos de notação: o pré-a-
contecimento da performance onde são feitas notas em caderno de artista; o acon-

515
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

tecimento da performance onde é realizada a ação performática e registrada por


meio de fotos, gravações de vídeos, capturas de telas, story salvos, entre outros; e
o pós-acontecimento que é o retorno ao caderno de notas onde são descritos as
memórias das sensações do corpo durante a imersão da performance.

Nesse artigo faço um recorte da pesquisa e reflito sobre a relação do corpo estesio-
lógico e sua intercorporeidade entrelaçada ao dispositivo tecnológico e ao outro. De
início faço apontamentos sobre as noções que alicerçam o corpo estesiológico e a
intercoporeidade na fenomenologia de Merleau-Ponty (200, 2004, 2005). Em segui-
da, trago apontamentos sobre a computação vestível a partir das investigações de
Steve Mann (1998), Donati (2005) e Viseu (2003). Ao final ofereço como brecha do
entrelaçamento da intercorporeidade com a computação vestível o neologismo cor-
positivo por meio da descrição da experiência numa performance artística, na qual
faço uso de uma vestimenta com bolsos em plástico vinil que incorpora dispositivos
tecnológicos para interagir simultaneamente pelo toque sensível com espectadores
presenciais e espectadores “ao vivo” em redes sociais.

Sobre o corpo estesiológico e intercorporeidade


Nos seus últimos escritos o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (2004) aponta ser
necessário que o pensamento volte a ser filosofia alegre e improvisadora, na qual meu
corpo desperte corpos associados, para tanto ele aproxima-se da arte... A corporeida-
de passa então a ser intercorporeidade, e essa noção busca dar conta da relação do
corpo com o outro e com as coisas do mundo, evidenciando o mundo como congê-
nere, e não como objeto a ser possuído e manipulado por um sujeito cognoscente.

Habitar o mundo parece ser a busca do corpo estesiológico no pensamento de Mer-


leau-Ponty (2000, 2004, 2005). O tema da estesiologia passa a compreender as refle-
xões do filósofo nas notas sobre o sensível dos cursos que abordavam a ontologia
do corpo e da natureza proferidos no Collège de France, entre os anos de 1956-1960,
e as noções da intercorporeidade, da reversibilidade, da inerência e da transubstan-
ciação são colocadas em primeiro plano. Nesses cursos o filósofo realiza um estudo
aprofundado sobre as concepções de natureza na história do pensamento científico
e filosófico ocidental, circunscrevendo as noções de corpo, corpo humano e esque-
ma corporal, chegando ao corpo estesiológico e a intercorporeidade para dar conta
da nossa experiência vivida, e, junto a ela, a expressão e a expressividade.

A inclusão do tema da estesiologia na ontologia do corpo de Merleau-Ponty é tam-


bém a passagem para uma investigação sobre o lugar do corpo humano no estudo
da natureza, apontando cada vez mais para a percepção implicada por nosso corpo,
e, afastando-se do espetáculo perceptivo, não mais o sujeito que percebe e que des-
creve, mas sim, o corpo em sua expressão estesiológica. Para ele, é preciso retomar a
noção de corpo para fazer aparecer o corpo como sujeito do movimento e sujeito da

516
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

percepção. O corpo humano é então estudado como corpo estesiológico: “o corpo hu-
mano, portanto, é corpo que se move isso quer dizer corpo que percebe” (MERLEAU-
-PONTY, 2004, p.337). Assim, a percepção não se dá mais como espetáculo perceptivo,
e ela não é mais um sobrevôo do corpo e do mundo por uma consciência. A percepção
se dá no próprio movimento do corpo no mundo: “o meu corpo como interposto entre
o que está diante de mim e o que está atrás de mim, o meu corpo levantado diante das
coisas levantadas, em circuito com o mundo” (MERLEAU-PONTY, 2004, p.338).

Essa reflexão amplia a corporeidade como possibilidade de organização dos co-


nhecimentos, inerentes e reversíveis do corpo. A reversibilidade passa a ser uma
condição paradoxal do objeto e do sujeito na pesquisa, e é desse paradoxo que a
pesquisa deve tratar. Nesse sentido, é que se parte em busca da compreensão das
transubstanciações do corpo operante, não mais como porção no espaço, muito
menos como um feixe de funções, mas sim como um traçado de visão e movimento.

A intercorporeidade é uma das noções que sustenta essa ontologia do corpo este-
siológico, ela trata da relação do meu corpo em circuito com o mundo, as coisas do
mundo e com os outros, considerando que todos temos percepção, que ela aconte-
ce em movimento e que somos feitos do estofo mesmo do mundo, ou seja, o mundo
não está diante de mim para ser percebido, eu sou mundo e assim é que acontece
nossa percepção. Somos, portanto, corpo-coisa, e a percepção é uma certa penetra-
ção a distância de sensíveis pelo meu corpo.

Desse modo, o corpo é nosso meio primordial de conhecimento do mundo, mas ele
é também conta entre as coisas do mundo, sendo visível e móvel, encontra-se entre
elas, preso nas tramas do tecido do mundo, carne da sua carne, pois “a carne do cor-
po nos faz compreender a carne do mundo”(MERLEAU-PONTY, 2000). Vale salientar
que o corpo, na fenomenologia de Merleau-Ponty, se é que pode ser comparado,
não é a máquina, mas sim a obra de arte, aberta e inacabada. E o conhecimento do
corpo é linguagem poética no mundo.

Para tanto, é preciso compreender a noção de corpo humano como vidente-visível,


tocante-tocado e senciente-sensível que é feito do mesmo estofo mundo:

Um corpo humano está aí quando, entre vidente e visível, entre tocante e tocado, entre um olho e o
outro, entre a mão e a mão se produz uma espécie de recruzamento, quando se ascende uma faísca
do senciente-sensível, quando se inflama o que não cessará de queimar, até que um acidente do
corpo desfaça o que nenhum outro acidente teria bastado para fazer... (MERLEAU-PONTY, 2004, p.18)

É aqui onde incluo minhas pesquisas, ao lançar mão dessas noções para refletir so-
bre a nossa relação com as coisas do mundo, mas especificamente a relação cor-
po-tecnologia. Os estudos sobre os avanços tecnológicos buscam, justamente, essa
incorporação de corpos, na medida em que anseiam por corporificar a internet ao

517
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

corpo humano e as coisas do mundo. Acredita-se e investe-se na incorporação da in-


ternet ao corpo para isso nos é oferecido inúmeros dispositivos tecnológicos, como
se fosse uma necessidade de existência, uma espécie de dependência de vida. Desse
modo, corpo e internet passam a ser codependente um do outro, implementando
a tecnologia dos dispositivos tecnológicos dentro ou fora do corpo, ou mesmo tor-
nando corpo suportável e transportável desses dispositivos.

É oferecido ao corpo a possibilidade de transportar e interagir com a computação em


qualquer lugar, a interação humano-computador passa a ser constante e sem fios liga-
do a eletricidade. Entramos então nos estudos sobre a computação vestível e veremos
que o indivíduo que porte da internet corporificada é capaz de realizar multitarefas,
assim, não é mais necessário que ele pare o que está fazendo para fazer uso de um
computador, pois o mesmo é portátil e pode ser acessado a qualquer momento.

Mas o que efetivamente posso destacar como sendo indicador dessa corporeidade
na relação de corpos mediados por dispositivos tecnológicos? Como a tecnologia
dos dispositivos tecnológicos desenvolvidos para mediar nossa corporeidade pode
ampliar nossa capacidade perceptiva? Como a experiência em performances artísti-
cas com o uso de dispositivos tecnológicos conectados a telemática pode me fazer
falar sobre a intercorporeidade?

Por hora, entendo que o meu corpo, o dispositivo tecnológico e o outro vivemos
uma relação de ejeção-introjeção, na qual o corpo humano estende-se ao corpo do
dispositivo e estende-se ao corpo do outro, o corpo do dispositivo, por sua vez, es-
tende-se ao meu corpo e ao corpo do outro, ainda tem o corpo do outro que esten-
de-se ao meu corpo e ao corpo do dispositivo. Há, pois, uma relação intercopórea, e
ela estabelece-se na complexidade e na reciprocidade, cuja a qual, há incorporação
do meu corpo ao corpo do dispositivo e ao corpo do outro e do dispositivo ao meu
corpo e ao corpo do outro, nossa relação é uma trama, um quiasma, um entrelaça-
mento de corpos numa espécie de carne maior que é carne do mundo.

Computação vestível
A computação em conato direto com a nossa carne amplia a interação corpo-
-computador. As pesquisas na área da computação vestível oferecem desafios
para refletirmos sobre a relação corpórea que estabelecemos com as máquinas
utilizadas para mediação corpórea, compreendendo-a para além de uma relação
sujeito-objeto, mas sim como uma relação de intercoporeidade, a maneira descrita
por Merleau-Ponty.

A computação vestível é uma área de estudo que investiga a criação de computa-


ção para ser vestida. Ao responder o que é um computador vestível Donati (2005,
p. 94) afirma que:

518
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Ele deve estar incorporado ao espaço pessoal do wearer – usuário, potencializando um uso mais
integrado, sem limitar os movimentos corporais ou impedir a mobilidade. Está sempre ligado e
acessível com uma performance computacional que permite auxiliar o usuário em atividades
motoras e/ou cognitivas, sem, no entanto, ser considerado como uma simples ferramenta. Ele
funciona como uma “segunda pele”, sobreposto, sendo necessário descartar dessa classificação
os implantes, as alterações genéticas e os sistemas dedicados.

Steve Mann, professor do departamento de Engenharia elétrica e computação da uni-


versidade de Toronto, é considerado “Pai do computador vestível”, é também o prin-
cipal desenvolvedor das pesquisas sobre área, desde a década de 80. Os principais
conceitos da computação vestível foram proferido por Steve Mann numa conferência
na Universidade de Toronto em 12 de maio de 1998, entre eles a definição de com-
putador vestível é: “Um computador vestível é um computador que está alocado no
espaço pessoal do usuário, controlado pelo usuário, e possui constância de operação e
interação, ou seja, está sempre ligado e sempre acessível. Mais notavelmente, ele é um
dispositivo que está sempre com o usuário, e permite que o usuário digite comandos
ou os execute, enquanto anda ou faz outras atividades” (MANN, 1998).

O conceito de computador vestível, também conhecido em inglês como wearab-


le computer, busca dar conta de uma área de investigação e desenvolvimento que
descrevem um estilo específico de interface e interações que buscam corporificar
a computação em vestimentas e acessórios do vestuário. Alguns estudos apontam
essa investigação já estava presente desde a criação do relógio de pulso e o anel
ábaco no século XVI.

É importante destacar que o uso da computação vestível aqui na nossa pesquisa


busca entender a relação de entrelaçamento corpo-computador como mediação
para ampliar as capacidades perceptivas do corpo humano na criação performáti-
ca, assim, optamos por encaminhar nossa busca a partir das investigações de Steve
Mann (1998), visto que, para ele: a computação vestível facilita uma nova forma de
interação humano-computador, através de pequenos computadores programáveis
pelo próprio usuários, que estão sempre acessível, ligados e prontos para interação
e que podem ser acessados em qualquer lugar e a qualquer hora.

Para Viseu (2003) os computadores “vestíveis” podem ser entendidos em vários


contextos, entre eles: “‘ubiquitous computing’ – a relação ambiente/rede, ‘wearable
computing’ – a relação corpo/tecnologia e ‘personal computing’ – a relação corpo/
rede”. Essa autora ainda afirma que esses dispositivos podem ser nomeados de bo-
dynets, espécies de corpos com comunicação constante em rede, que enfatizam a
interação entre o corpo humano, a tecnologia e o ambiente. (VISEU, 2003).

Encontro aqui um entendimento do computador “vestível” não apenas na sua capa-


cidade tecnológica, mas ele se expande para a utilização num contexto sociocultural,

519
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

visto que entra em questão a sua potencialidade em estender e projetar atividades e


relações humanas no tempo e no espaço. Assim sendo, o dispositivos não pode ser
considerado apenas como ferramentas passivas, mas como um corpo que age no mun-
do, uma vez que sintetizam algumas tendências contemporâneas como, por exemplo,
mobilidade, contínuo acesso à informação, personalização, controle, trabalho em rede.

Nesse sentido, entendo que a computação vestível funciona como uma outra camada
de pele, uma segunda camada de pele, busca incorporar a computação ao corpo, e
o corpo a computação, na medida que permite a liberdade e a mobilidade do corpo
em deslocamento e portando dispositivos. Este objeto passa então a ser a extensão,
o prolongamento do corpo, posso portá-lo e transportá-lo em deslocamento, sendo
uma das suas principais funções ampliar as capacidades perceptivas do corpo.

Compreendo então que os estudos e avanços tecnológicos apontam para as criações


dos novos dispositivos que buscam corporificar as máquinas no corpo humano, indo
cada vez mais em direção a internet das coisas. Assim sendo, na medida em que a com-
putação vestível busca dar conta da portabilidade e interação do dispositivo no copo
humano, há uma corporificação da máquina na busca de ampliar nossas percepções.
Ouso dizer, que nessas pesquisas a relação corpo-computador é mais que um puro
acoplamento da máquina ao corpo, é um entrelaçamento do corpo ao dispositivo,
chegando a uma espécie de corpositivo. Desse modo, aproximei a computação vestí-
vel nas minha pesquisa, buscando incorporar a computação ao corpo como uma outra
camada da pele, elaborando uma vestimenta que incorpora um o dispositivo “vestível”
para ser usada em performance, a vestimenta está integrada com a própria movimen-
tação do performer, formando uma espécie de camiseta/performance. Ao entrelaçar o
dispositivo a vestimenta, formando uma outra camada de pele, posso realizar ativida-
des comuns como caminhar, conversar, sentar, tocar, sem me preocupar que o dispo-
sitivo fique chame atenção ou caia. Assim o copositivo estabelece uma relação com o
espectador de proximidade toque sensível do corpo no dispositivo.

Corpositivo
O neologismo corpositivo aparece aqui como uma noção que dê conta do toque
sensível, realizado pelo entrelaçamento do corpo a computação vestível e ao outro.
Busco no corpositivo uma relação para além do sujeito cognoscente a coisa do mun-
do e ao outro como objeto, mas sim como relação intercorpórea. O neologismo foi
construído a partir junção das palavras corpo e dispositivo para dar conta da trama
sensível da linguagem corpo-tecnologia-outro e expressar em linguagem a experi-
ência do corpo entrelaçado ao dispositivo tecnológico.

Desse modo, há uma reciprocidade do corpo e do dispositivo, que ocorrem pela in-
serção e entrelaçamento de um no outro. O outro é o que me falta para fechar meu
circuito e faz surgir: um novo esquema corporal de incorporação do dispositivo ao

520
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

corpo, que apresenta-se como indivisão e transubstanciação do corpo, do corpo e


do mundo, do corpo e do corpo do outro, do corpo e do dispositivo. O dispositivo
é incorporado a ação da performance, de modo que um não exista sem o outro. A
performance por sua própria natureza precisa do outro para existir, e essa relação
com o outro é intercorpórea, pois ele é aquilo que me falta para fechar meu circuito
e também abertura, sendo o corpositivo uma trama de sensível em forma de lingua-
gem para dar conta do acontecimento que transforma e instaura nosso novo modo
de ser no mundo em performance.

Considerando essa noção apresento a performance intitulada “CamisetaPerforman-


ce: Vamos conversar sobre feminicídio”. A obra é uma vestimenta para ser usada
numa performance, na qual o corpo do artista e a vestimenta se entrelaçam para
construir a obra junto do espectador. A vestimenta consiste numa camiseta preta
com três bolsos transparentes em plástico vinil, sendo dois nas mangas e um na
parte frontal da camiseta, onde são colocados dispositivos eletrônicos para interagir
simultaneamente por meio de uma conversa com espectadores presenciais e espec-
tadores “ao vivo”, em live, em redes sociais, mas especificamente no instagram: os
espectadores presenciais são convidados para conversar sobre feminicídio explo-
rando o toque sensível, o arrastar e espectar a tela, já os espectadores on line são
convidados a espectar a conversa podendo interagir com comentários que podem
ser textos escritos ou emoji (figura1).

Figura 1. CamisetaPerformance: Vamos conversar sobre feminicídio (2019). Registro da


performance sendo realizada no SESC/GAMA – DF em Março de 2019.

No bolso frontal da vestimenta é colocado um tablet para interagir com especta-


dores presenciais por meio do acessar a tela para ler notícias de mulheres vítimas
de feminicídio, já nos dois bolsos laterais, localizados nas mangas da vestimenta,
são colocados smartphones conectados “ao vivo” em redes sociais para interagir com
espectadores transeuntes que acessam a live e podem participar da conversa re-

521
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

alizando comentários em formato de emoji ou textos. A ação performática se de-


senvolve no espaço presencial e no ciberespaço, em simultâneo, com o performer
deslocando-se em ambientes públicos (ruas, sala de exposição, praça) vestindo a
camiseta com os dispositivos eletrônicos ligados, aproximando-se dos espectadores
e convidando para conversar, com a frase: Vamos conversar sobre feminicídio!

A performance propõe o afeto a partir da conversa como o espectador sobre o femi-


nicídio, estando em jogo a afeição e o afetar. A ação performática com o espectador
presencial tem início com o performer aproximando-se do espectador e chamando
para conversar sobre feminicídio com a frase: Vamos conversar sobre feminicídio! O
performer pede para o espectador arrastar a tela, nela encontra-se print de notícias
sobre feminicídio que ocorreram na cidade/estado que está sendo realizada a per-
formance, a partir do arrastar a tela e da leitura das notícias a conversa entre o espec-
tador e a performer se estabelece (figura 2). As conversas realizadas geralmente têm
como tema o que deve ser feito para acabar com o feminicídio e gastamos tempo
conversando sobre as leis, as vítimas e os atos violentos. Durante a performance per-
cebo que nem sempre a conversa se desenvolve pelo verbo, um gesto é o que basta
para entender o que é dito, a palavra é gesto e sua significação é um mundo. Assim,
tudo que precisa ser dito é expresso pelo gestual, um balançar a cabeça, um arquear
a sobrancelha, uma desaprovação no canto da boca, constituem o suficientes para
que aja a conversa. Destaco também os momentos em que escuto os relatos de pes-
soas próximas do espectador que foram vítimas de feminicídio, como o caso do ra-
paz que teve a mãe morta pelo pai. Numa dessas conversas uma mulher começou a
conversar e aos poucos foi revelando que já esteve em um relacionamento abusivo
na qual ela era vítima de violência doméstica.

Figura 2. CamisetaPerformance: Vamos conversar sobre feminicídio (2019). Registro da


performance sendo realizada no evento Elas por Elas/ Natal – RN em Agosto de 2019

522
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A conversar com os espectadores on line se estabelece por um dispositivo colocado


no bolso que está na manga da camiseta. Para início de conversa o performer abre
uma live no Instagram e anuncia por meio de texto nos comentários que é uma
performance e que ele pode participar comentando com textos ou figuras, daí então
o dispositivo é colocado no braço e se usa a câmera de transmissão frontal do apa-
relho (figura3). As imagens que são enviadas para o espectador on line são captadas
pelo braço do artista durante a conversa com o espectador presencial, o espectador
on line assiste ao que é transmitido pelo movimento do braço do performer e escuta
sons da conversar com o espectador presencial, explora-se a percepção pela visão,
escuta e o movimento do corpo. É importante destacar que a performance não é
anunciada no Instagram busca-se encontrar o espectador transeunte conectado
pela telemática, uma espécie de invasão do ciberespaço na busca de compartilhar o
sensível com aquele espectador que estava lá no ciberespaço e viu que o performer
estava fazendo uma live e acessou esse acontecimento ao vivo. A ideia não é que ele
veja a performance é que ele esteja na performance que é compartilhada com ele,
com o meu corpo posso atrair corpos associados. Ao concluir a transmissão eu tenho
acesso a quem expectou o acontecimento, tem os que apenas acessam a live e não
comentam e tem os que emitem algum comentário.

Figura 3. CamisetaPerformance: Vamos conversar sobre feminicídio (2019). Da transmissão ao vivo


pelo Instagram no SESC – Gama/DF e no evento Elas por Elas – Natal/RN, em 2019

523
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A busca é aproximar esses espaços e tempos interagindo com o espectador presencial


e simultaneamente com espectadores on line para constituir o sensível. O sensível que
se constitui nesse acontecimento é a onipresença mediada, é a ubiquidade corpórea, é
a uma sensação do corpo estesiológico. O sensível de sentir com o outro, de com meu
corpo despertar o próximo e o distante mediados por dispositivos tecnológicos, corpos
que, aproximam-se pela criação de imagens e sons, alargando os sentidos de tempo,
lugar e espaço. O sensível que cria potência de imagens e sons geradas em performance,
que alarga os poderes sensitivos e perceptivos do corpo em está presente em outro es-
paço, outro lugar, outro tempo. O sensível que me faz sentir está aqui, ali e acolá, ao mes-
mo tempo, em vários lugares e em vários espaços. O sensível como fusão das minhas
pertenças em estesia corporal. Durante o acontecimento da performance meu corpo, o
corpo do dispositivo e o corpo do outro somos, portanto, corpo-coisa, uma certa pene-
tração a distância de sensíveis pelo meu corpos, nossa relação é intercorpórea.
Para que eu tenha essa intercoporeidade com o espectador por meio do dispositivo
tela e do dispositivo conectado na live do Instagram, a vestimenta é fundamental.
Ela foi construída com inspiração na computação vestível no intuito de entrelaçar
o dispositivo ao corpo, incorporar o dispositivo a vestimenta de modo que a vesti-
menta passe a ser um prolongamento do meu corpo durante o acontecimento da
performance. Eu, uma mulher, permito que o outro toque meu corpo por intermédio
da mediação do toque sensível do espectador no dispositivo, visto que o toque no
dispositivo passa a ser um toque no meu corpo, e ao mesmo tempo eu o toco por
meio de uma conversa sensível sobre um ato violento. Esse ato de afetar e ser afe-
tado é suficiente para constituir o sensível como um ato artístico, estético e político.
Essa trama do sensível é um convite a ser o próprio corpo no mundo, visto que as coi-
sas do mundo, o outro, são aquilo que falta a meu corpo para fechar meu circuito, são
prolongamentos do meu corpo, extensão da minha carne. Mas é importante refletir que
essa relação intercopórea, com as coisas do mundo e com o outro, não é apenas fecha-
mento, é também abertura do meu corpo a outros corpos, visto que: eu que toco tam-
bém sou tocada, eu que vejo também sou vista, eu que percebo também sou percebida.
Somos todos sentientes sensíveis e podemos perceber o outro como um percepiente, e
tal relação acontece porque somos corpos que percebem-se e que afetam-se.
Assim sendo, a minha conexão com o mundo que se dá pelo dispositivo é também
vivida pelo outro, do mesmo modo a conexão do outro com o mundo também é
vivida por mim, uma relação reversível, o tempo todo. Dito de outra maneira, ali, na
performance, onde meu corpo é no mundo, vê e é visto, toca e é tocado, está numa
relação de reciprocidade e interação, pois o meu esquema corporal é um meio nor-
mal de conhecer os outros corpos e destes conhecerem o meu corpo.

Considerações finais
A relação do corpo com o dispositivo tecnológico e com o outro é tratada como um
diálogo sensível que se revela em forma de linguagem expressa num discurso artístico.

524
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Um acontecimento performático que contitui própria gênese corpórea, visto que


deixo que os efeitos estesiológicos ocorridos na imersão do corpo em performance
revelem a intercorporeidade dos corpos.

Desse modo, ao lançar mão das noções de intercorporeidade e computação vestível


para refleti sobre a nossa relação com as coisas do mundo, mas especificamente a re-
lação corpo-tecnologia. De início, parti das reflexões de Merleau-Ponty sobre o corpo
estesiológico e a intercorporeidade, do corpo com as coisas do mundo, no qual as
coisas do mundo são aquilo que falta ao corpo para fechar seu circuito. Em seguida
apresentei que os avanços tecnológicos da computação vestível mostram, justamen-
te uma busca pela incorporação de dispositivos ao corpo, ou seja, incorporação de
corpos, na medida em que anseiam por corporificar a internet as coisas do mundo e,
principalmente, ao corpo humano. Ao final, cheguei então a noção de corpositivo, um
neologismo como síntese de expressão do entrelaçamento da intercorporeidade do
corpo corpo humano com o dispositivo tecnológico e como o outro em performance
artística. O corpositivo é a emersão da trama sensível da linguagem expressa da rela-
ção corpo-tecnologia, uma linguagem corpo-mundo que revela uma ligação sempre
possível de inserção, entrelaçamento e inerencia, na qual, existe uma espécie de co-
percepção entre os corpos, e, eu que percebo também sou percebido. O toque sen-
sível na tela de um dispositivo abre uma brecha para refletirmos sobre a encruzilhada
de corpos que amplia, transforma e instaura novos modos de ser no mundo. Espero
que essa partilha do toque sensível como ação artística, estética e política, estabeleci-
da na relação corpo-arte-tecnologia, possa ser considerada nas dimensões que ela se
propõe, como um acontecimento social, filosófico e artístico, cujo a qual a experiencia
vivida toma parte de um comum e partilha com o outro.

Referências
DONATI, Luisa Paraguai. Computadores vestíveis: convivência de diferentes espaciali-
dades (2004). Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 3, n. 6, 93-102,

MANN, Steve. Smart Clothing: The Shift to Wearable Computing (1996.). In Commu-
nications of the ACM, 39 (8), 23-24.

MERLEUA-PONTY, M (2000). A natureza. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes.

MERLEUA-PONTY, M (2005). O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva.

MERLEUA-PONTY, M(2004). O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify.

VISEU, A (2003). Shaping technology/building body (nets). Sarai Reader 03: Shaping
Technologies. Sarai: Delhi/Amsterdam; Center for the Study of Developing Societies
and Waag Society, 128-133.

525
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Marina Campos Silva Pimentel1, Cristiane


Mesquita2 and Geraldo Lima3

Design e Saúde: reflexões sobre o papel da transversalidade


Design and Health: reflections about the role of transversality

Resumo
Diante dos campos de Design e Saúde e as suas intersecções, encontros, e
pesquisas que abordam ambas as áreas e argumentam sobre a importância
do designer como modificador da sociedade e projetista de produtos que te-
nham impacto positivo sobre a vida das pessoas, pretende-se, aqui, refletir
sobre a transversalidade entre o Design e a área da Saúde. Propõe-se, então,
levantar os conceitos de design, transversalidade e saúde a fim de compre-
ender a relação entre estes e debater os possíveis benefícios da colaboração
entre os campos, utilizando-se, também, de estudos e ensaios bem-sucedidos
realizados a partir dessa contribuição.
Palavras-chave: design e saúde, transversalidade, conexões.

Abstract
Facing the fields of Design and Health and its intersections, meetings, and rese-
arches that approach both areas, and argue about the importance of the desig-
ner as a society modifier and developer of products that have a positive impact
on people’s lives, this article intends to reflect about the transversality between
Design and Health. Through the concepts of design, transversality and health,
the intention is to comprehend the relation between those concepts, and de-
bate about the possible benefits of the collaboration between both fields, using

1 Bacharel em Design de Moda pela Universidade Anhembi Morumbi, e Mestranda em Design pela
mesma instituição. Atua no mercado como Designer de Estampas.
2 Psicanalista. Doutora e Mestre em Psicologia pelo Núcleo de Estudos da Subjetividade - PUC-SP.
Pós-Doutorado no Departamento de Artes da Goldsmiths, University of London. Professora e pes-
quisadora do Programa de Pós-Graduação em Design da Universidade Anhembi Morumbi.
3 Doutor e Mestre em Design, pela Universidade Anhembi Morumbi, onde também concluiu a
Pós-Graduação Latu Senso em Neurociência aplicada à Educação e em Moda, Arte e Cultura. Pro-
fessor Colaborador no Programa de Pós-Graduação em Design da Universidade Anhembi Morum-
bi. Professor dos cursos Design de Moda e Negócios da Moda da Universidade Anhembi Morumbi,
Pós-Graduação Neurociência aplicada à Educação, e na Pós-Graduação Master em Negócios e
Varejo de Moda.

526
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

also succeeded studies and essays made from this contribution.


Keywords: Design and health, transversality, connections.

Introdução
Os campos de Design e Saúde são ciências de diferentes áreas do conhecimento: a
primeira pertencente às Ciências Sociais Aplicadas, e a segunda às Ciências Biológi-
cas. Contudo, o fato de não estarem categorizadas em grupos iguais não significa
que a colaboração entre os saberes não seja possível – e necessária. Este artigo tem
como objetivo refletir sobre a necessidade e importância de gerar conexões trans-
versais entre os campos de Design e Saúde. Para embasar esta discussão, os concei-
tos de design, saúde e transversalidade serão apresentados a fim de produzir ques-
tionamentos sobre a conectividade das áreas e sobre os seus próprios conceitos. Por
meio do levantamento de estudos que permeiam ambas as faculdades, propõe-se
argumentar acerca da carência de pesquisas sobre o assunto, bem como discutir a
urgência do estímulo de produções transversais entre elas.

O papel do Design
Diante da variedade de significados e definições acerca do design, este artigo não
se propõe a analisar as diversas abordagens sobre o tema, mas buscar reflexões que
contribuem para a construção da discussão aqui proposta. Etimologicamente, de-
sign, do latim designare, significa “desenvolver”, “conceber” (BOMFIM, 2001). Essa
definição, apesar de coerente, é superficial quando o intuito é abordar as funções
e responsabilidades da área. Para além da atividade de desenvolvimento de produ-
tos, o design é orientado por parâmetros ideológicos, sociais, econômicos e políticos
(BOMFIM, 2001) que carregam os valores simbólicos e a subjetividade das responsa-
bilidades do designer.

Ao observar a evolução da área durante a sua (ainda breve) história, de Moraes


(2010) aponta que, à medida em que se afasta gradativamente das exatas e da no-
ção de apenas produzir um objeto, o papel do Design passa a ser discutido a partir
de valores simbólicos e imateriais mais significativos, desvencilhando-se da lineari-
dade e da tecnicidade para assumir uma relação com campos mais humanos, sociais
e fluidos, o que evidencia a sua complexidade. Ao passo em que as necessidades
humanas destacam valores antes considerados secundários (como questões psico-
lógicas e emocionais), o design se apropria desses atributos e adquiri uma relação
consideravelmente mais íntima com o indivíduo (DE MORAES, 2010), ultrapassando
os limites físicos da função do objeto. “Como aponta Bonsiepe (1998), ‘a abordagem
do design busca a produção de coerência’ e tem como critério de sucesso a satisfa-
ção da sociedade. Dessa forma, os seus resultados podem se caracterizar como uma
‘inovação sócio-cultural’ (BONSIEPE, 1998)”. (KRUCKEN, 2008, p. 26)

527
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O conceito proposto pelo ICSID destaca o papel do design na transformação dos


objetos e na humanização das tecnologias:

Design é uma atividade criativa que tem como objetivo estabelecer as múltiplas qualidades dos
objetos, processos, serviços e seus sistemas em todo seu ciclo de vida. Portanto, o design é um
fator central para a humanização inovadora das tecnologias e um fator crucial para a troca econô-
mica e cultural (ICSID, 2005 apud KRUCKEN, 2008, p. 26)

Alguns autores, contudo, consideram o design como ontológico ao ser humano.


Conforme levantado por Bomfim (2001), Bonsiepe argumenta que, desde o instante
em que alguém configurou um material para satisfazer uma necessidade, ou seja,
modificou um objeto para dar-lhe uma função, o design passou a existir. Comple-
mentando essa ideia, Papanek afirma que quase tudo o que fazemos é design, con-
tanto que siga um processo, um princípio metodológico.

A quantidade de autores que buscam estudar e produzir definições para o design é


vasta, e existe uma falta de consenso entre os pesquisadores não só pela relativamente
pouca idade do campo mas também pelo fato de o design ser uma área transversal,
que não se encaixa nos escaninhos das disciplinas, pois transita entre diversos conheci-
mentos ao mesmo tempo e se transforma durante esse processo, estando em constan-
te contato com profissionais das mais diversas formações (BOMFIM, 2001). Contudo, ao
passar por diversas das produções que compõem a “Teoria do Design”, encontra-se um
caminho em comum em relação ao papel do designer: configura artefatos que aten-
dem às necessidades de pessoas, mercados, governos e sociedades (KRUCKEN, 2008;
BOMFIM, 2001), tendo um viés social e político – esteja o designer consciente ou não
desses significados atrelados à sua produção, “o design seria, antes de tudo, instrumen-
to para a materialização e perpetuação de ideologias” (BOMFIM, 2001).

Visto que o Design é um campo diretamente ligado à contemporaneidade e às de-


mandas da sociedade, devendo se adaptar a mudanças e tensões do cotidiano, a
sua teoria não pode ser apenas formada sem passar por revisões. Portanto, a ideia
está viva e deve permanecer em constante renovação e reavaliação, nunca estando
100% constituída, e sim contribuindo para a construção de uma área cada vez mais
abrangente e com mais ligações e conexões com outros saberes.

O conceito de saúde
Para tratar do conceito de saúde, utilizaremos aqui a definição da OMS publicada na
Declaração de Alma-Ata, que, em 1978, discutiu questões inerentes à saúde mundial e
cuidados primários de saúde. Nesse documento, a saúde é definida como “estado de
completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença
ou enfermidade” (OMS, 1978, p. 1), sendo um direito humano fundamental que deve
ter um espaço importante nas metas públicas globais. Assim, a saúde requer atenção

528
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

de diferentes setores além do responsável pela sua promoção, incluindo as áreas so-
ciais, econômicas e educacionais, por exemplo. Diante desse significado, entende-se
que este é dependente também do conceito de bem-estar, sendo necessário conhecê-
-lo e discuti-lo para compreender, de fato, a definição de saúde trazida aqui.

Sá Junior (2004) questiona a efetividade da definição da OMS justamente devido à


subjetividade de bem-estar e à utopia de satisfazer completamente os seus três pila-
res: físico, psicológico e social. Conforme traz em sua discussão, o bem-estar pode ser
uma somatória da noção subjetiva de sentir-se bem (superando “não sentir-se mal”)
com não apresentar sofrimentos e ter as necessidades satisfeitas. Porém, ao trazer
bem-estar juntamente à palavra “completo” (ou “perfeito”, dependendo da tradução),
a definição aqui tratada se torna inatingível, uma vez que atender a todas as deman-
das da humanidade nos três âmbitos citados não é possível, especialmente conside-
rando as particularidades e a constante renovação das carências de cada indivíduo.

Coelho e Filho (2001) contribuem também com essa discussão ao reunir as reflexões
epistemológicas, filosóficas e antropológicas acerca desse conceito, exaltando que
a dificuldade de conceituar saúde existe a muito tempo nos diferentes campos que
tratam do assunto. Os autores atribuem essa dificuldade aos paradigmas científicos
em relação ao tema e levantam a ideia de promover a saúde – e não apenas de curar
a doença – partindo de uma postura individualista para a coletiva.

Ao consultar a Constituição Brasileira, é possível identificar uma posição semelhante


nesta, visto que a mesma

“declara a saúde como direito social(art.6º). É direito de todo cidadão e, conseqüentemente (sic),
dever do Estado (art. 196). Quem se debruçar sobre a Constituição do Brasil verificará que, nela,
saúde significa ‘políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de ou-
tros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação’ (art.196).” (SÁ JUNIOR, 2004, p. 2)

Dito isso, a título de reflexão, questiona-se: seria o conceito de saúde mais bem defi-
nido se fosse considerada a subjetividade humana e um atendimento não “comple-
to” do bem-estar, mas sim equilibrado? Considerado, conforme Scliar (2007), que a
saúde não representa a mesma coisa para todas as pessoas – uma vez que depende,
também, de valores e avaliações individuais, cientificas, filosóficas, e subjetivas –, é
possível definir saúde como algo “completo/perfeito”?

O que é transversalidade?
O conceito de transversalidade é originário da geometria, referindo-se à ideia de “atra-
vessar”, “cruzar diagonalmente” (KRUKEN, 2008), e vem sendo discutido em diversas

529
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

áreas, o que ressalta o seu papel em conectar campos distintos. Aplicando a trans-
versalidade às pesquisas e estudos científicos, ela está relacionada a abordagens não
disciplinares, ou seja, que não sejam restringidas pelos limites das disciplinas conven-
cionais ou pela hierarquia das diferentes ciências e campos do saber (IBIDEM).

Conforme cunhado por Guattari (apud GOMEZ, 2009), é proposto que “se admita
as interrelações que se dão no estudo [...]. É na convergência de diversas áreas de
conhecimento que o estudo ou a análise de um objeto ou fenômeno é realizado”.
Gomez (2009) comenta ainda que a ideia de transversalidade é desvencilhar-se dos
eixos horizontal e vertical para comunicar-se em direções tridimensionais, isto é, em
diferentes níveis e sentidos. Dessa forma, aproxima-se também às ideias de rizoma
trazida por Deleuze e Guattari (1980), e de rede, apresentada por Santos (2000) e
Castells (1999). Este último comenta sobre essas ideias como “um conjunto de unida-
des inter-relacionadas que dependem umas das outras para o desempenho de uma
tarefa em comum” (1999 apud KRUKEN, 2008, p. 25).

Concluindo a apresentação desse conceito, a abordagem de Gallo (2001, apud


KRUKEN, 2008) sobre a transversalidade aponta que “seria justamente a forma de
trânsito por entre os saberes, estabelecendo cortes transversais que articulem vários
campos, várias áreas [...] uma nova atitude diante dos saberes, tanto na sua produ-
ção como na sua comunicação e aprendizado” (GALLO, 2001, p. 24). Complementan-
do a colocação de Gallo, Kruken (2008, p. 26) comenta que “podemos compreender
a transversalidade como o elo que constitui a ligação entre as áreas e permite a in-
tegração de vários referenciais, conduzindo a uma visão mais ampla e integrada”.

A transversalidade no design e na saúde


O ponto em comum entre as abordagens do design supracitadas o definem como
político, tendo responsabilidade social e o dever de prover, conceber e desenvol-
ver soluções para as necessidades do usuário, além de ser também um consenso
a importância do diálogo entre várias áreas. Os parâmetros subjetivos têm grande
importância em tal concepção do design e, uma vez que conquistam mais desta-
que sob o olhar do campo, evidenciam-se as frequentes interações do designer com
profissionais e linguagens de outras áreas, bem como na integração e combinação
de conhecimentos de diferentes saberes. (KRUCKEN, 2008) Como reforça Margolin
(2000, apud KRUCKEN, 2008), “Design é, também, uma atividade integrativa que, em
um sentido amplo, combina conhecimento de múltiplos campos”.

O Design possui “caráter holístico, transversal e dinâmico [...] ao aceitar e propor inte-
rações multidisciplinares” (DE MORAES, 2010, p. 3) e atua realizando a mediação entre
os aspectos mercadológicos de um produto (como produção, viabilidade, ambiente,
consumo) e a sua responsabilidade na humanização das tecnologias (KRUCKEN, 2008).
O potencial de fazer do processo de design uma ferramenta para suprir necessidades

530
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

de usuários visando a saúde é vasto e inerente aos valores intrínsecos ao campo, além
de poder impactar a vida e o bem-estar das pessoas de inúmeras formas.

A definição de saúde apresentada é intimamente ligada ao conceito de bem-estar e


abre portas para discussões que enfoquem a relação do “sentir-se bem” com o aten-
dimento das necessidades do indivíduo (e do coletivo) de forma satisfatória. Mesmo
considerando a subjetividade dos conceitos e a dificuldade de avaliar de forma quan-
titativa o nível de bem-estar ou de saúde de um indivíduo, considerando-se que cada
um pode escolher diferentes fatores para realizar essa autoanálise, é importante, aqui,
relacionar a conexão entre Design e Saúde com um objetivo em comum: atender
necessidades. A própria subjetividade de bem-estar – os três pilares considerados na
definição de saúde (físico, mental e social) – pode ser trazida para uma discussão ain-
da mais vasta: como solucionar problemas em constante mudança? De que maneira
satisfazer a todas as carências de forma coletiva, se cada indivíduo tem a sua própria
percepção do que o faz sentir bem? O trabalho transversal entre as áreas pode ter as
respostas dessas perguntas ou produzir resultados que auxiliem na satisfação de algu-
mas dessas necessidades – devendo, inclusive, afastar-se na binariedade e abraçar e
atravessar diversas outras áreas, criando, de fato, relações diagonais.

Essa pluralidade pode ser abordada também dentro dos campos do Design e da Saú-
de, dado que existem diversas áreas e subáreas que possibilitam uma gama de possibi-
lidades de conexões. Embora ainda seja um assunto pouco explorado, alguns estudos
existentes exploram diferentes tipos de comunicação e colaboração, sendo pesquisas
de caráter inter, multi e transdisciplinar, ou ainda transversal. Podem, por exemplo, co-
nectar psicologia, informática e design de games; fisioterapia, arte e design gráfico;
engenharia, ortopedia e design de moda; entre muitas outras combinações.

Gonçalves et. al (2014) realizaram um estudo focado no desenvolvimento de um pro-


duto assistivo para crianças com câncer: um carrinho lúdico que auxiliasse no cotidia-
no dos pacientes no hospital e minimizasse os desconfortos das crianças. Para tal, foi
necessária não só a coleta de dados de uma e outra área, mas também a utilização de
saberes de psicologia, enfermagem, medicina e design de forma complementar para
que o resultado pudesse ser funcional e coerente com a situação de uso.

Pereira (2008) aborda na sua pesquisa as possibilidades de se utilizar do design de


jogos e ludicidade para estimular e facilitar o uso de técnicas meditativas voltadas a
jovens com TDAH. No desenvolvimento do jogo, a autora reforça a necessidade de
conhecimentos sobre a doença e o seu tratamento, além de saber as maneiras de se
utilizar da ludicidade e de entrevistas com psicólogos para que o jogo atingisse o seu
objetivo de forma responsável e efetiva. Ainda no meio virtual, Rosa (2018) desen-
volveu uma prancha de comunicação alternativa se utilizando de técnicas do design
para auxiliar crianças com transtorno do espectro do autismo a se comunicarem.

531
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Os exemplos acima se referem ao desenvolvimento de tecnologias assistivas para


auxiliar pessoas com necessidades especiais. Porém, o papel da transversalidade
em ambos os campos é mais vasto e abrangente, não precisando limitar-se ao uso
de informações da área da Saúde para que seja criado o produto adequado a de-
terminado público. O design pode ser utilizado, à maneira de Silva (2017), para me-
lhorar o sistema de atendimento nos CAPS a partir do design de serviço, por exem-
plo. Outra opção é a de aplicar o design a diversos equipamentos necessários nos
tratamentos – como, em um laboratório de exames – ou, então, para criar soluções
simples que facilitem o cotidiano de equipes de enfermagem. Ainda, é possível
contribuir para a aplicação dos processos de design na definição de diagnósticos,
na forma ideal de um consultório ou em um artefato que auxilie pessoas acamadas
a ter certo nível de independência. As possibilidades são muitas e, possivelmente,
infinitas, além de poderem colaborar para o aumento do bem-estar individual e co-
letivo. Desde minimizar as dificuldades de pessoas com necessidades especiais até
possibilitar um atendimento mais humanizado e eficiente nos prontos-socorros,
os benefícios da transversalidade entre o Design e a Saúde podem ser muito mais
extensos do que aqui expostos. Por isso, merecem atenção maior dos designers e
pesquisadores, uma vez que o potencial de modificação da sociedade é tão amplo
quanto as conexões que podem ser feitas.

Considerações finais
A intenção deste artigo é tratar da necessidade da transversalidade aplicada ao De-
sign e à Saúde e explorar as suas possibilidades. Porém, esse é um tema que pede e
merece uma discussão mais profunda e abrangente. A melhora nos processos dos
serviços de saúde ou caráter assistivo de produtos criados a partir dessa conexão são
pontos importantes de serem levantados, porém não devem encerrar a discussão.

Diante da reflexão aqui proposta, expõe-se o papel do design aplicado juntamente


à saúde dando destaque para o potencial que a transversalidade tem de modificar a
sociedade e impactar na realidade de diversos indivíduos. Seja por meio de produ-
tos físicos, virtuais ou até de processos, é necessário que sejam desenvolvidos mais
estudos abordando ambos os campos e aplicando conhecimentos das duas áreas
do saber não só na pesquisa acadêmica mas também a fim de tornar possível sejam
aplicados ao cotidiano das pessoas.

Referências bibliográficas
MORAES, Dijon de. Metaprojeto como modelo projetual. Strategic Design Rese-
arch Journal, v. 3, n. 02, p. 63-68, 2010. Disponível em: <http://www.moda.ufc.br/
metodologia_projetual/Metaprojeto.pdf>. Acesso em: 09 jun. 2019.

532
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

BOMFIM, Gustavo Amarante. Notas de aula sobre design e estética. PUC-RIO Depar-
tamento de Arte & Design, Rio de Janeiro, p. 01-61, jan. 2001. Disponível em: <http://
periodicos.anhembi.br/arquivos/Apostila/382670.pdf>. Acesso em: 09 jun. 2019.

COELHO, Maria Thereza Ávila Dantas; FILHO, Naomar de Almeida. Conceitos de saú-
de em discursos contemporâneos de referência científica. História, Ciências, Saúde
- Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 9, n. 02, p. 315-333, maio-ago. 2002. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/%0D/hcsm/v9n2/a05v9n2.pdf>. Acesso em: 09 jun. 2019.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Conferência internacional sobre cuidados


primários de saúde. Declaração de Alma-Ata, URSS, 6-12 set. 1978. Disponível
em: <http://cmdss2011.org/site/wp-content/uploads/2011/07/Declara%C3%A7%-
C3%A3o-Alma-Ata.pdf>. Acesso em: 09 jun. 2019.

JUNIOR, Luis Salvador de Miranda Sá. Desconstruindo a definição de saúde. Jornal


do Conselho Federal de Medicina (CFM), p. 15-16, jul.-set. 2004. Disponível em:
<http://unesav.com.br/ckfinder/userfiles/files/Conceito%20de%20SaUde%20OMS.
pdf>. Acesso em: 09 jun. 2019.

SCLIAR, Moacyr. História do Conceito de Saúde. Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janei-
ro, v. 17, n. 01, p. 29-41, 2007. Disponível em: < https://www.scielosp.org/pdf/phy-
sis/2007.v17n1/29-1/pt>. Acesso em: 09 jun. 2019.

MORAES, Dijon de; KRUCKEN, Lia. (Orgs.) Transversalidades – cadernos de estudos


avançados em design. Centro de Estudos e Desenvolvimento de Projetos de De-
sign - UEMG. Belo Horizonte, caderno 2, v. 1, p. 92, jul. 2008. Disponível em: <http://
eduemg.uemg.br/images/livros-pdf/catalogo-2016/2016_CADERNOS_DE_ESTU-
DOS_AVANCADOS_EM_DESIGN_TRANSVERSALIDADE_VOL_12.pdf>. Acesso em: 09
jun. 2019.

GOMEZ, Margarita Victória. A transversalidade como abertura máxima para a di-


dática e a formação contemporânea. Revista Iberoamericana de Educación,
v. 3, n. 48, p. 12, jan. 2009. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publi-
cation/28243021_A_transversalidade_como_abertura_maxima_para_a_didati-
ca_e_a_formacao_contemporaneas>. Acesso em: 09 jun. 2019.

BRUNNER, Christoph; RHOADES, Troy. Transversal fields of experience. Inflexions, v.


4, p. 8, dec. 2010. Disponível em: <https://www.inflexions.org/n4_Introduction-by-
-Rhoades-and-Brunner.pdf>. Acesso em: 09 jun. 2019.

GONÇALVES, Ana Elise da Silva; ROMANO, Fabiane Vieira; BATTISTEL, Amara Lúcia Ho-
landa Tavares. Design lúdico: carrinho para auxiliar o tratamento oncológico infantil. Rio
Grande do Sul, v. 1, n. 4, set-out 2014. Disponível em <http://pdf.blucher.com.br.s3-sa-
-east-1.amazonaws.com/designproceedings/11ped/00868.pdf> Acesso em: jun. 2019.

533
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

PEREIRA, Lana Carolina Silva. Design lúdico: percurso meditativo como forma de tra-
balhar as funções executivas para público juvenil com TDAH. 2018. Tese (Bacharelado
em Desing) – Universidade Federal do Ceará, 2018. Disponível em <http://repositorio.
ufc.br/bitstream/riufc/36354/1/2018_tcc_lcspereira.pdf> Acesso em: jun. 2019.

ROSA, Valéria Ilsa. Design inclusivo: processo de desenvolvimento de prancha de Co-


municação Alternativa e Aumentativa para crianças com Transtorno do Espectro do
Autismo utilizando Realidade Aumentada. 2018. Tese (Pós-Graduação em Design)
– Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2018. Disponível em <https://www.
lume.ufrgs.br/handle/10183/174392> Acesso em: jun. 2019.

534
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Nara Cristina Santos1 and Manoela Vares2


Neurociência e Arte: percepção como experiência sensível
Neuroscience and Art: Perception as a Sensitive Experience

Resumo
A concepção de Neurociência direciona o argumento curatorial de uma expo-
sição ao articular projetos participativos, interativos, vídeos, instalações e per-
formances no entrecruzamento da Arte, Ciência e Tecnologia. A Neurociência
se abre para um universo de complexidade, onde o corpo humano é capaz de
administrar nossa percepção da realidade, construindo uma relação inédita com
o espaço e o tempo maquínicos, seja ela sensorial, sensível e até mesmo de sen-
timento. Já a contemporaneidade abre-se, como um campo para pesquisa da
expansão das percepções, dos limites das atividades cerebrais, das concepções
do espaço e tempo que são rompidas frente às novas atividades sinestésicas
propiciadas pelas tecnologias. A curadoria compartilhada do FACTORS 3.0 sele-
ciona artistas nacionais e internacionais para, através de suas obras, fazer pensar
e questionar outros aspectos da experiência sensível na Arte.
Palavras-chave: Neurociência, Arte, Tecnologia, Percepção.

Abstract
The conception of neuroscience directs the curatorial argument of an exhibition
by articulating participatory, interactive projects, videos, installations and perfor-
mances in the intersection of Art, science and Technology. Neuroscience opens to
a universe of complexity, where the human body is able to manage our perception
of reality, building an unprecedented relationship with machinic’s space and time,
be it sensory, sensitive and even of feeling. The contemporaneity opens, as a field
for research into the expansion of perceptions, the limits of brain activities, the

1 Pesquisadora da Universidade Federal de Santa Maria, UFSM, Brasil. Pós-Doutorado/ UFRJ e Douto-
rado/ UFRGS, em Artes Visuais, com estágio na Paris VIII, França. Atua no Programa de Pós-graduação
em Artes Visuais/PPGART, em História, Teoria e Crítica, com ênfase transdisciplinar em Arte-Ciên-
cia-Tecnologia. Coordena grupo Arte e Tecnologia/CNPq e LABART. Membro do Comitê Brasileiro
de História da Arte/CBHA, e da Associação Nacional dos Pesquisadores em Artes Plásticas/ANPAP.
2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (PPGAV/UFRGS). É Mestre em Artes Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Ar-
tes Visuais da Universidade Federal de Santa Maria (PPGART/UFSM). Integrante do Laboratório de
Pesquisa Arte Contemporânea, Tecnologia e Mídias Digitais (LABART/UFSM) e do Grupo de Pesquisa
Arte e Tecnologia/CNPq.

535
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

conceptions of space and time that are broken off against the new synesthetic ac-
tivities provided by technologies. Factors 3.0’s shared curatorship selected national
and international artists to think through and question other aspects of the sensi-
tive experience in art.
Keywords: Neuroscience, Art, Technology, Perception.

A curadoria compartilhada do FACTORS 3.0 Festival de Arte Ciência e Tecnologia3


parte de uma concepção transdisciplinar ao aproximar dois campos de conhecimen-
to: Neurociência e Arte. Seleciona artistas nacionais e internacionais, entre reconhe-
cidos e emergentes para questionar outros aspectos da experiência sensível na Arte,
através de obras e projetos participativos ou interativos.

A ‘Neurociência’é um termo guarda-chuva que engloba todas as áreas da ciência - biologia, fisio-
logia, medicina, física, psicologia - que se interessam pelo sistema nervoso: sua estrutura, função,
desenvolvimento, evolução e disfunções. O objeto do estudo mais fundamental da Neurociência
é que o que somos, fazemos, pensamos e desejamos é resultado do funcionamento do sistema
nervoso e sua interação com o corpo. Toda a pesquisa em Neurociência é atualmente baseada
nessa premissa, e busca entender justamente como a estrutura e funcionamento do sistema ner-
voso, juntamente com a história de vida de cada um, a cultura, a sociedade, e a genética fazem
de nós o que somos, individualmente, como seres humanos, e como animais (MORRIS; FILLENZ,
2007. In: Projeto Neuroarte, 2014)4

O conceito de Neurociência também trata de como o cérebro humano se comunica,


e seus processos de memória, cognição, incluindo “a capacidade para escolher entre
alternativas de ação - não ação incluída, e estender nossa faculdade para originar e
forjar ações futuras” (FUSTER, 2015, p. 22). No campo da Neurociência,

A ciência cognitiva, no sentido mais amplo, é o estudo de como os organismos adquirem, reco-
nhecem, manipulam e usam informações na produção do comportamento. Obras de arte visuais
são estímulos intencionalmente projetados para desencadear respostas perceptivas, afetivas e
cognitivas comuns nos espectadores. (CARROL, et alii, In: SHIMAMURA; PALMER, 2011, p. 47-8)

Como argumento curatorial de uma exposição, as relações entre a Neurociência


e a Arte permitem articular diferentes experiências em projetos participativos, in-
terativos, vídeos, instalações e performances na concepção mais abrangente da

3 FACTORS é uma realização do LABART/PPGART/UFSM. www.ufsm.br/labart


4 Projeto NeuroArTE: Museu Itinerante de Neurociência, ao Desenvolvimento de Centros e Museus
de Ciência e Tecnologia; CHAMADA MCTI/CNPq/SECIS n.085/2013 - Apoio à criação e ao desenvolvi-
mento de centros e museus de ciência e tecnologia. Maria Rosa Chitolina, Nara Cristina Santos, Jessié
Gutierres. UFSM, 2014.http://museuarteciencia.ufsm.br/index.php/exposicoes/neuroarte

536
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

transdisciplinaridade entre Arte, Ciência e Tecnologia, tanto dos artistas ao produ-


zirem suas obras, quanto de suas obras e o que elas podem provocar no público.

De um modo geral, a arte contemporânea concentra suas forças em desconstruir as ex-


periências perceptivas e sensoriais pré-estabelecidas, e de um modo particular, a apro-
priação de novos dispositivos tecnológicos torna os modos de sentir a arte extrema-
mente fluídos. Para tanto, é preciso se aproximar do que poderia ser esta experiência.

A única coisa que temos são nossas experiências; somos organismos vivos per-
cebendo-nos e percebendo o entorno; somos agentes exploradores. Deveríamos
nos perguntar como nossa percepção é experienciada. Também, o que é que en-
tendemos por experiência? E o que entendemos por percepção de uma experiên-
cia? (DELANNOY, 2015, p.70)

Para o autor, a Arte seria uma boa maneira de aproximação desta experiência, mas
ele a trata a partir do artista. Neste artigo, a intenção é entendê-la como uma ex-
periência sensível, e pensá-la também a partir do público que participa e interage
com as obras no espaço físico da exposição, considerando um projeto curatorial e
expográfico elaborado com este fim para o Festival.

Nesse sentido, seguindo em parte o pensamento de Delannoy (2015, p.144-143), a


“experiência acontece em um contexto biológico e atualiza os conteúdos de nos-
sa percepção”, ao mesmo tempo em que se dá no entorno, e no espaço percebido.
Afinal se o “espaço físico é distinto do espaço percebido, como se constitui o es-
paço vivido, como espaço corporal e espaço de ação”, inclusive de projeção. Este
questionamento inicial é relevante para pensar como as obras expostas tratam das
relações entre Neurociência e Arte em seu conteúdo, mas também com seu entorno.
Sobretudo, na sua maneira de aproximação com o público, gerando possibilidades
distintas de experiências participativas, interativas e imersivas naquilo que pode ser
entendido como um ciclo de percepção/ação.

A percepção inicia em células receptoras, sensíveis a um ou a outro tipo de energia de estímulo.


A maioria das sensações é identificada com determinado tipo de estímulo. [...] Cada modalidade
sensorial é mediada por um sistema neural distinto, com múltiplos componentes que contribuem
para a percepção. [...] A percepção de um toque na mão inicia quando mecanoreceptores cutâne-
os estimulam uma população de fibras aferentes a dispararem potenciais de ação, estabelecendo,
assim, uma resposta que se propaga nos núcleos da coluna dorsal, e, então do tálamo. Do tálamo,
a informação sensorial flui a diversas áreas do córtex cerebral, cada uma das quais analisa deter-
minados aspectos do estímulo original. Essa representação cortical, está bastante correlacionada
com a percepção consciente humana. (KANDEL, 2014, p. 391-2)

Cada estímulo sensorial possível ou concebível tem uma ‘história’ em virtude de sua
relação ou semelhança com outros estímulos que temos experimentado no passado.

537
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

“[...] Isto significa que todos os estímulos externos percebidos ativam, mediante as-
sociação imediata, um conjunto de cógnitos perceptivos” (FUSTER, 2015, p. 152).

A Neurociência define um campo de complexidade, onde o corpo humano é ca-


paz de administrar nossa percepção da realidade, construindo uma relação inédita
com o espaço e o tempo maquínicos, seja ela sensorial, sensível e até mesmo de
sentimento. E, segundo Damásio (2018), o cenário para a geração de sentimento é
radicalmente diferente de outros fenômenos sensoriais.

“Sentimentos são experiências mentais e, por definição, conscientes [...]” (DAMASIO,


2018, p. 122). Ainda segundo o autor, eles diferem de outras experiências mentais,
primeiro pelo conteúdo que sempre se refere ao corpo do organismo no qual eles
surgem, retratando o interior; segundo como a representação do interior, a experi-
ência do sentimento imbuída da valência, uma característica que traduz a condição
de vida em termos mentais, momento a momento. É a valência que vai definir o
sentimento, e também o afeto.

Valência é a qualidade inerente à experiência, que apreendemos como agradável, desagradá-


vel ou algo entre esses dois extremos. Representações que não se qualificam como sentimen-
tos são bem designadas por temos como ‘ter uma sensação’ ou ’perceber’. Mas as representa-
ções conhecidas como sentimentos são sentidas e por elas somos afetados. É isso que torna
única a classe de experiências que chamamos de sentimentos - junto com a singularidade do
objeto que contém os sentimentos, ou seja, do corpo ao qual o cérebro pertence. (DAMASIO,
2018, p. 125)

Para o autor, as artes estão ligadas à sociabilidade, aos sentimentos provenientes do


grupo, cujo efeito das artes transcendia o indivíduo. “Como imaginar o nascimento
das artes sem fantasiar também o raciocínio de um indivíduo trabalhando na reso-
lução de um problema evidenciado por um sentimento - do próprio artista ou do
outro? ” (DAMASIO, 2018, p. 206-7).

FACTORS 3.0 - Neurociência e Arte


A contemporaneidade apresenta-se como um campo para pesquisa da expansão
das percepções, dos limites das atividades cerebrais, das concepções do espaço e
tempo que são rompidas frente às novas atividades sinestésicas propiciadas pelas
tecnologias, cujas implicações são sensoriais, sensíveis e, como já vimos, de senti-
mentos. Os muitos nós que alimentam as conexões que habitamos, criam uma in-
constância e uma intangibilidade que propiciam uma experiência contínua entre as
interfaces tecnológicas e o corpo humano.

538
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Para a terceira edição do FACTORS, a equipe renovada atua em uma proposta de


curadoria compartilhada5 , em um trabalho conjunto de pesquisadores das áreas de
Artes Visuais e Bioquímica, também da Informática. O Festival passa a convidar artis-
tas internacionais, desta vez de Portugal e Argentina, além dos nacionais, e destaca
um conceito específico para reafirmar a concepção transdisciplinar das exposições.

Em 2016, o Festival tem como argumento curatorial a Neurociência, que como con-
ceito nomina o Festival: Neurociência e Arte, percepção como experiência sensível.
Apresenta os seguintes artistas e obras: Mindscapes (2011), performance audiovisual
de Fernando Velázquez (que não aconteceu in loco); The Assessment (2011/12), vi-
deoinstalação de Maria Manuela Lopes; Jardim de Epicuro 2 (2014), instalação inte-
rativa de Tania Fraga; No fundo de tudo há um jardim (2012-2016), instalação de Ma-
riela Yeregui; Compressão (2016), performance audiovisual de Fernando Codevilla,
Fernando Krum e Rafael Berlezi; Não pare de assistir (2016), fotos em loop de Carlos
Donaduzzi; EmMeio (2016) de Raul Dotto; Inutilidade Mecânica (2016), arte robótica
de Rosangela Leote e Daniel Seda; e, Neuro Body Game (2010), instalação interativa/
computador vestível de Rachel Zuanon.

Fernando Velázquez, com a performance audiovisual desenvolvida a partir de al-


goritmos generativos e redes neurais, Mindscapes (2011), explora a memória e os
modos de percepção por meio de paisagens relacionadas à atividade cerebral, seus
processos e fluxos. O artista propõe que possamos também nos permitir a interpre-
tação e modificar nosso modo de enxergar e compreender estímulos visuais através
das cores, dispondo-as em uma composição que trabalha nos intervalos de tempos,
com cores que oscilam rapidamente em contrastes do escuro ao claro, estimulando
de modo astucioso nosso cérebro.

Maria Manuela Lopes, em The Assessment (2016) aborda a memória e a falta dela em
pacientes com a doença de Alzheimer, através de experiências contínuas entre o
fora e o dentro do corpo, entre diferentes subjetividades e seu contexto. Durante a
sua pesquisa, a própria artista se submeteu a três testes de avaliação neuropsicológi-
ca semelhantes aos submetidos a pacientes durante um ensaio clínico para um novo
medicamento terapêutico. A obra é visualizada como uma projeção dupla, e o que
se percebe, é resultado de uma compilação de vídeos que se realizaram como regis-
tro de várias destas vivências, funcionando também para o trabalho per se como um
recurso poético. O vídeo final apresentado é uma tela dividida em quatro narrativas
que se dispõem, nesse momento, a acontecer simultaneamente.

5 Curadoras, Andrea Capssa, Giovana Casimiro, Manoela Vares e Nara Cristina Santos. Mestran-
das e professora orientadora LABART/PPGART/UFSM. Colaboradoras, professoras Maria Rosa
Chitolina PPGBIOTOX/UFSM (Ciências/Bioquímica)e Juliana Vizzotto PPGI/UFSM (Informática/
Tecnologia da Informação).

539
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 1: The Assessment (2011/12), Maria Manuela Lopes. Fotografia: Artista para LABART/UFSM

Ao refletir sobre o modo como essa compilação é apresentada, a sequência editada de


vários acontecimentos, as experimentações com os objetos dos testes realizados em
laboratório, mapeamentos cerebrais realizados por máquinas, desenhos feitos pela
artista, entre outros, entende-se como esses acontecimentos e registros se entrecru-
zam, se sobrepõem, se miscigenam e esvanecem sob o olhar, o que remete à própria
questão de como nossos cérebros são capazes de trabalhar em uma organização de
vivências, lembranças e acontecimentos cotidianos. A mistura e a confusão organiza-
da na disposição dessas imagens, lança o desafio de entender também como funcio-
naria o cérebro de uma pessoa com Alzheimer, pelo menos na parte em que faz alusão
às suas lembranças, visto que as “memórias” ali dispostas não pertencem a alguém, e
facilmente se misturam e desaparecem, sem referência de tempo e espaço.

Jardim De Epicuro 2 (2014), de Tania Fraga, leva o público a experimentar um am-


biente que se propõe imersivo, uma espécie de jardim virtual, trazendo reflexões
sobre uma natureza que se extingue a cada vez que se modifica. O ambiente da obra
caracteriza-se principalmente pelo encontro entre as emoções humanas, e as tradu-
ções delas, realizadas em números pelas tecnologias. Segundo a artista,

Ele oferece um locus onde números e emoções humanas se miscigenam para criar um jardim virtual,
suas flores, fungos e insetos. Inspira-se em Epicuro, filósofo grego da antiguidade, e seu jardim na
periferia de Atenas onde ensinava filosofia. É uma obra de arte computacional para fruição, para a
expressão de qualidades poéticas e estéticas, para a experimentação imersiva com sensações. Visa
propiciar uma simbiose onde os estados emocionais de um interator afetam os reinos virtuais do
jardim onírico dentro do computador alterando suas configurações. (FRAGA, 2017, p. 2631)

540
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 2: Jardim de Epicuro 2 (2014), Tania Fraga. Fotografia: Carlos Donaduzzi para LABART/UFSM

Pode-se dizer que essa obra, além de ser gerada a partir das emoções humanas, pro-
voca diferentes modos de emocionar-se a partir da visualização e da consequente
sensação de imersão produzida pelo computador e pela projeção da imagem. A per-
cepção das suas inúmeras cores e formas, todas com mudanças que vão se deixando
perceber de maneira sutil, faz lembrar elementos da própria natureza em constante
transformação, como se o jardim das emoções projetado pela artista também esti-
vesse em constante processo de metamorfose, de nascimento e desaparecimento,
proliferando-se em novas formas.

Tania discorre sobre os desafios dos artistas que se aventuram a realizar projetos em
Arte Computacional e com isso, proporcionar outras percepções ao público que se
dispõe a interagir com seus trabalhos. Ela se concentra em refletir e desmitificar alguns
processos subjetivos que envolvem a produção artística, sobre como pensar e enten-
der os signos, sobre as sensações e emoções que povoam o cérebro humano e uma
possível codificação delas, em um processo de tradução tecnológica para um resulta-
do perceptível como objeto poético e estético, passível de uma experiência sensível.

Em No fundo de tudo há um jardim (2012-2016), Mariela Yeregui chama atenção


para jardins que surgem em lugares não propícios, tanto fisicamente como emocio-
nalmente. “É um jardim para um ex-centro clandestino, mas também pode ser um
jardim pessoal, íntimo, que cresce na alma. É um jardim de luz, é um espaço inci-
piente que pode dilatar-se, expandir-se e eclipsar as sombras” (YEREGUI, 2012, s./p.).

541
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A ideia de um jardim constantemente construído e reconstruído, demarca o seu cará-


ter itinerante e a possibilidade de montá-lo e emprestá-lo para qualquer outro lugar.
A cada nova montagem, outra composição de luzes é formada, e um novo jardim é
proposto. Mantem-se a oposição entre a terra, escura, bruta, natural e concentrada
sobre uma superfície, e os feixes de luz saindo de dentro dela, luminosos e vibrantes,
próprio do artificial; daquilo que cresce em meio a algo natural, e improvável.

Figura 3: No fundo de tudo há um jardim (2012-2016), Mariela Yeregui.


Fotografia: Carlos Donaduzzi para LABART/UFSM

A percepção desse jardim impossível, em meio a uma exposição, leva a algumas


questões: a que memórias, vivências (ou jardins) esses jardins subjetivos remetem?
Quais são os jardins que crescem em lugares não propícios? Afinal, que parte deles
se deixa exposta e a partir de que momento se compartilha com o outro? E sobre os
lugares, quais são os seus limites, se os têm, ou se permite que invadam os lugares
de outros indivíduos?

Compressão (2016), de Fernando Codevilla, realizado junto a Fernando Krum e Ra-


fael Berlezi, intensifica a ideia de um espaço transformado em uma ação temporal,
através de uma paisagem que é modificada de acordo com sinais sonoros produzi-
dos durante a execução de uma performance audiovisual. Para o trabalho, o artista
faz uso de diversas imagens de paisagens urbanas, principalmente da arquitetura,
coletadas por ele em outros espaços-tempos, e que agora dialogam entre elas. As
imagens editadas para o vídeo impossibilitam distinguir o que está sendo visualiza-
do, senão como composições geométricas, quase abstratas. O vídeo é marcado por

542
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

um elemento musical eletrônico, que dá o ritmo e o compasso para a percepção das


imagens e das suas interferências, como se a edição dependesse exclusivamente da
execução da batida da trilha sonora.

Ao refletir sobre diferentes percepções e experiências propiciadas por dispositivos


tecnológicos, dois artistas tratam da passividade e/ou interferência do público em
relação à sua ação. Na obra Não pare de assistir (2016), uma série de fotografias em
um loop de 5 segundos, de Carlos Donaduzzi, o artista busca ampliar a sensação
do estado de inércia em que se situa o espectador comum, diante de um aparelho
televisivo, e como ele acaba por se subordinar, mesmo sem querer, a um aparelho
eletrônico. As fotografias do artista, apresentadas em sequência contínua, fazem re-
ferência ao modo como as imagens, principalmente de publicidade, são organizadas
na programação da televisão, e como são consumidas pelo público passivamente
durante os comerciais. Afinal, até que ponto deixamos nos subordinar a um mundo
de imagens? Em Não pare de assistir, cabe a cada indivíduo decidir quanto tempo de
sua atenção dedicará às fotografias da obra.

Já no trabalho EmMeio (2016), Raul Dotto investiga o movimento de situar-se justa-


mente entre dois distintos modos de ação: entre ser um participante envolvido com
outros espectadores, ou apenas um observador passivo. O trabalho é composto de
um vídeo em formato de filme, exibido também em loop em um monitor. As ima-
gens apresentadas caracterizam-se por suas distintas temporalidades em relação à
percepção. Uma delas apresenta emojis em movimento que direcionam o observa-
dor do trabalho, e acaba por sobrepor-se a uma outra imagem, que é manipulada di-
gitalmente e encontra-se na composição de modo passivo, gerando assim um jogo
que se situa “no entre” participativo e “no apenas” contemplativo. O título do traba-
lho remete ao fato de que qualquer pessoa presente no espaço da obra, irá situar-se
em meio a essa perambulação de imagens, e em meio à decisão de em qual imagem
permanecer, qual absorver e de fato, “consumir”.

O projeto de Rosangela Leote e Daniel Seda traz uma aproximação com a robótica,
contrariando as expectativas de funcionamento de uma tecnologia, agora sub-
missa às interações humanas. Em Inutilidade Mecânica (2016), os artistas colocam
um semiautômato subordinado à aproximação de outros objetos ou pessoas, que
interferem em sua movimentação. Com uma performance totalmente dependen-
te da interação de outros, o autômato também apresenta deslocamentos desa-
jeitados, desequilibrados e por vezes, encontra-se em situações que não conse-
gue mais operar, precisando da ajuda humana para novamente seguir exercendo
sua “função”. A proposta questiona a estrutura de funcionamento e desempenho
perfeitos esperados de um dispositivo tecnológico, à medida em que ele lembra
um organismo vivo que se move diante de seus reflexos e impulsos, percebendo
quem dele se aproxima.

543
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

De modo distinto, na instalação interativa Neuro Body Game (2010/16), a artista Ra-
chel Zuanon propicia que um jogo e um computador vestível reajam à atividade
cerebral do usuário no momento em que ele interage. Na obra, o público pode jogar
uma versão de videogame a partir de suas ondas cerebrais, emoções e movimentos
do corpo, graças ao uso de coletes anatômicos gerados como computadores vestí-
veis, chamados pela artista de “Computador Vestível Afetivo Co-evolutivo”. Quando
eles são colocados junto ao corpo do usuário, reconhecem suas alterações emocio-
nais a partir da medição e análise de seu fluxo sanguíneo, oxigênio e sua resposta
neuroemocional ao jogo.

Figura 4a: Neuro Body Game (2016). LABART/UFSM.


Figura 4b: NeuroBodyGame (2010), Rachel Zuanon. Fonte: http://rachelzuanon.com.br/

A artista colabora para ampliar a comunicação entre o homem-máquina-homem, atra-


vés de uma percepção sensório-motora delicada. O computador exibe ao público da
exposição, através de um sistema de cores na superfície do colete, se o interator está
tranquilo ou nervoso com os desafios presentes no jogo. As cores variam em tons de
azul, quando o jogador está calmo e concentrado, amarelo em uma situação interme-
diária, e vermelho quando ele encontra-se completamente desconcentrado. Também,
a partir das luzes amarelas, com um sistema de vibração, o computador avisa ao inte-
rator, completamente entretido, que ele deve se acalmar e votar a se concentrar, caso
contrário, as vibrações devem continuar e se tornarão mais intensas, atrapalhando a
sua atuação no jogo. Neuro Body Game ultrapassa a simples questão de conectar o
corpo a um computador, pois permite que o próprio cérebro envie sinais a ele, possibi-
litando a troca de informações entre um corpo humano e uma máquina.

Finalizando
Uma tendência comum entre os artistas do FACTORS 3.0, diz respeito a uma pesquisa
transdisciplinar que explora também outros campos do conhecimento na produção

544
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

de obras, promovendo um entrecruzamento entre diferentes linhas de pensamento.


Essas obras resultantes de investigações individuais ou colaborativas, contam tam-
bém com tecnologias que vão desde as comumente utilizadas para produções em
Arte, Ciência e Tecnologia, passando por dispositivos inusitados fabricados pelos
próprios artistas, até mais sofisticados, que envolvem pesquisas científicas, médi-
cas, robóticas em diálogo com a Neurociência. Se a Arte compromete a atenção na
busca de padrões, como afirma Delannoy, esta busca implica modificações de redes
cerebrais que participam nas sensações, nas percepções e, como jogo cognitivo, au-
menta as habilidades cognitivas, a sensibilidade e a imaginação (2015, p. 84). Alguns
artistas apresentam no Festival obras que dialogam de modo mais instigante com a
Neurociência e a Arte, mas todos eles se propõem a ativar modos distintos de apro-
ximação com o público, mediada por diferentes estratégias de percepção, de ativi-
dades sensoriais, de sentimentos, de participação, interação e sensação de imersão.
Sem dúvida contribuem para uma experiência sensível na Arte.

Referências
CARROLL, N.; MOORE, M.; SEELEY, W. P. (2011). The Philosophy of Art and Aesthetics,
Psychology, and Neuroscience: Studies in Literature, Music, and Visual Arts. In: SHI-
MAMURA, A. P.; PALMER, S. E. (org). Aesthetic science: connecting minds, brains,
and experience. Nova York: Oxford University Press, p.31-62.

DAMASIO, A. (2018) A estranha ordem das coisas. São Paulo: Cia das Letras.

DELANNOY, L. (2015) Neuroartes, un laboratorio de ideas. Santiago de Chile : Edi-


ciones Metales Pesados.

FRAGA, T. (2017) O fazer em arte computacional: reflexões, In Encontro da Asso-


ciação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 26o, 2017, Campinas. Anais do
26o Encontro da ANPAP. Campinas: PUC Campinas. p.2623-2633.

FUSTER, J. M. (2015) Neurociencia. los cimentos cerebrales de nuestra libertad.


Ciudad de México: Ediciones Culturales Paidós.

KANDEL, E. L. et alii. (2014) Princípios de Neurociência. 5 ed. Artmed, Porto Alegre.

LEOTE, R. (2015) Abordagens da Neurociência sobre a percepção da obra de arte.


In: Arte Ciência Arte [online]. São Paulo: Editora UNESP, p. 71-96.

LOPES, Maria Manuela; Bernardino, Paulo. (2011). Performando o “Self “ no Arqui-


vo. ID+.

MORRIS, R.; FILLENZ, M. (2007). Neurociência: ciência do cérebro - uma introdu-


ção para jovens estudantes. Liverpool: Associação Britânica de Neurociências.

545
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

In: Projeto NeuroArTE: Museu Itinerante de Neurociência, ao Desenvolvimento de


Centros e Museus de Ciência e Tecnologia; Chamada MCTI/CNPq/SECIS n.085/2013 -
Apoio à criação e ao desenvolvimento de centros e museus de ciência e tecnologia.
Maria Rosa Chitolina, Nara Cristina Santos, Jessié Gutierres. UFSM, 2014.

RAMACHANDRAN, V. S.; HIRSTEIN, W. (1999). The Science of Art: a neurological the-


ory of aesthetic experience. In  Journal of Consciousness Studies, 6, No. 6-7, p. 15–51.

YEREGUI, M. (2012). En el fondo de todo hay un jardín/ There is always a garden


on the back of everything. Outubro de 2012. Disponível em https://yereguimariela.
wordpress.com/2012/10/07/en-el-fondo-de-todo-hay-un-jardin/ Acesso em 12 de
julho de 2019.

546
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Rachel Zuanon1
‘Como-Se-Fosse-O-Corpo’: deslocamentos à Empatia na
cooperação Arte-Tecnologia, Neurociência e Computação
Cognitiva
‘As-If-It Was-The Body’: displacements to Empathy in Art-Technology, Neuroscience,
and Cognitive Computing Cooperation

Resumo
A Neurociência explica o sentimento de empatia como uma capacidade intrín-
seca aos mecanismos da consciência e da memória. Nos seres humanos, tais
mecanismos mostram-se altamente sofisticados e, no caso do sentimento de
empatia, ambos articulam-se para a simulação dos estados de outro corpo em
regiões somatossensitivas do cérebro “simulador”, o que Damásio [1-2] denomi-
na “como-se-fosse-o-corpo”. Dessa perspectiva, este artigo aborda a cooperação
entre os campos da Arte-Tecnologia e das Ciências Cognitivas, especialmente
da Neurociência e da Computação Cognitiva (IBM Watson), no processo criati-
vo-poético da obra de arte interativa [POR NÃO SER EXISTINDO]: deslocamentos
à empatia. Esta obra revisita ‘Narciso’ a partir das redes sociais e das plataformas
de banco de dados públicos, em um espaço de co-criação físico-digital (intera-
tor/obra/artista). Mas em contraste ao mito, potencializa o sentimento de em-
patia nos seus interatores por meio da percepção de sua imagem e de si próprio
como algo pleno somente na alteridade.
Palavras-chave: Arte-Ciência-Tecnologia, Computação Cognitiva, Computação
Ubíqua, Co-criação Físico-Digital, Empatia

Abstract/resumen/resumé
Neuroscience explains the feeling of empathy as an ability intrinsic to the mecha-
nisms of consciousness and memory. In humans, such mechanisms are highly so-
phisticated, and in the case of empathic feelings both mechanisms are articulated
to the simulation of the states of another body in somatosensory regions of the

1 Dra. Rachel Zuanon é docente no Curso de Artes Visuais e professora/pesquisadora junto às áreas
de Processo Criativo em Composição Artística e de Arte e Tecnologia, do Instituto de Artes da Uni-
versidade Estadual de Campinas (IA-UNICAMP). Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Gra-
duação em Artes Visuais (IA-UNICAMP) e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura Tecnologia
e Cidade (FEC-UNICAMP). Desde 1998, dedica sua pesquisa à cooperação Neurociência e Processos
Criativos e Projetuais para aplicações em Arte, Arquitetura, Design, Educação e Saúde.

547
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

“simulating” brain, what Damásio [1-2] calls “as if it was the body”. From this per-
spective, this article discusses the cooperation between the fields of Art-Technolo-
gy and Cognitive Sciences, especially Neuroscience and Cognitive Computing (IBM
Watson), in the creative-poetic process of the interactive artwork [POR NÃO SER
EXISTINDO]: displacements towards empathy. This artwork revisits ‘Narciso’ from
social networks and public database platforms, in a space of physical-digital co-cre-
ation (interactor / artwork / artist). However, in contrast to the myth, it empowers
the feeling of empathy in its interactors through their perception of their image and
of theirselves as something fully reached only in otherness.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: Art-Science-Technology, Cognitive Computing,
Ubiquitous Computing, Physic-Digital Co-creation Environment, Empathy

Da simpatia à empatia: contribuições da Neurociência


A disponibilidade de se deslocar e de se colocar na posição do outro, sem abandonar
o próprio corpo, e de simular o sentimento alheio a ponto de sentir como o outro
se sente, configura-se na ação que subsidia a transformação da emoção de simpatia
em sentimento de empatia. Este sentimento (empatia) não se circunscreve apenas na
identificação com o outro, na ação de sentir suas sensações e de se projetar e ‘assumir
o seu lugar’. Mais que isso, é por meio da empatia que somos capazes de ter consciên-
cia sobre a intenção do outro, assim como de prever seu comportamento [3].

A Neurociência explica tal disponibilidade (empatia) como a capacidade mental que


resulta da simpatia emotiva natural para com os outros, e que se torna viável gra-
ças aos mecanismos da consciência e da memória. “A simpatia natural sintoniza-nos
com o (...) outro” [1], mas é a consciência e a memória da dor ou do prazer pessoal-
mente sentido que aprofunda a apreciação pela dor/prazer expresso e sentido pelo
outro. Ou seja, o sentir pessoal (seja ele sofrimento ou satisfação) é o conduto que
nos transporta da simpatia à empatia.

O conjunto de fenômenos denotado como empatia está assim diretamente asso-


ciado à essa capacidade cerebral de representação dos próprios estados corporais
(essencial para a criação do self), e à capacidade de simular no próprio corpo os es-
tados corporais vivenciados por outros indivíduos. Segundo Damásio, “(...) a relação
que estabelecemos entre nossos próprios estados corporais e a significância que
eles adquiriram para nós podem ser transferidas para o estado corporal de terceiros
simulado em nosso cérebro, e nessa etapa podemos atribuir uma significância com-
parável a essa simulação” [2]. Uma simulação mental da subjetividade do outro [4].

Essa percepção de sentimento no outro baseia-se especificamente na observação


altamente treinada de posturas e rostos, conforme estes se alteram e se movem.
Para uma mente empática, a mais sutil expressão emocional indica a presença de
sentimentos no outro, por mais discretos que estes possam ser [2]. E a percepção

548
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

dessa ação executada pelo outro encontra equivalência na simulação incorporada


à mente de quem observa. Ou seja, a mesma área cerebral ativada no corpo do exe-
cutor durante a ação é também ativada no cérebro de quem apenas observa a ação,
sem executa-la. É essa simulação incorporada que “permite ao observador utilizar
seus próprios recursos para penetrar de modo experiencial no mundo dos outros
por meio de um processo de simulação direto e automático” [5].

Damásio [1] descreve o mecanismo neurofisiológico envolvido na produção do sen-


timento de empatia, e o denomina “como-se-fosse-o-corpo”. Tal mecanismo deflagra
uma alteração rápida no mapeamento do corpo, decorrente desse processo de si-
mulação que ocorre no cérebro. Segundo ele, este mecanismo emprega uma varian-
te de neurônios-espelho para sua execução.

Os neurônios-espelho localizam-se no córtex frontal e são capazes de simular no


cérebro os movimentos que outros organismos realizam no seu campo de visão.
Essa simulação ocorre quando os córtices pré-frontais/pré-motores enviam sinais
diretos para as regiões somatossensitivas. O resultado desta simulação dos estados
do corpo nas regiões somatossentivas se assemelha ao resultado da filtragem de
sinais advindos do corpo para o cérebro.

Em ambos os casos, “o cérebro cria momentaneamente uma série de mapas do cor-


po que não corresponde exatamente à realidade corrente desse corpo” [1]. Ou seja,
aquilo que sentimos nesses momentos baseia-se numa construção simulada e que
difere do atual estado neurofisiológico do corpo.

Neste sentido, as áreas somatossensitivas constituem uma espécie de teatro, no qual


é possível representar variações do estado do corpo, sejam elas resultantes dos sinais
neurofisiológicos advindos do próprio corpo ou da simulação dos estados corporais
de terceiros. Segundo Couchot [3], essa capacidade mental (empatia) de perceber e
compreender as emoções do outro rege a maioria das interações do indivíduo com
o ambiente, e desempenha papel decisivo nas relações sociais.

Da empatia orgânica à empatia inorgânica


Na contemporaneidade, as relações sociais humanas se configuram em múltiplas e
co-existentes dimensões e presenças físico-digitais. Estas dimensões são mediadas
por distintas e diversas camadas de comunicação orgânicas e inorgânicas: somatos-
sensorial, sensório-motora, cognitiva, afetiva, empática, entre muitas outras.

Trata-se de um contexto altamente complexo e, portanto, suscetível a ruídos, perda


de conexões e, consequentemente, interpretações parciais, inconsistentes ou equi-
vocadas. Tal suscetabilidade apresenta grande risco à consolidação do sentimen-
to de empatia, pois inclui obstáculos ao processo de simulação cerebral capaz de
aproximar emocionalmente os indivíduos, e leva-los a ver e a sentir determinada

549
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

experiência do ponto de vista do outro. Dessa perspectiva, os recentes avanços na


pesquisa e no desenvolvimento de sistemas computacionais cognitivos representa
expressiva contribuição à redução destes obstáculos.

Para simular processos do pensamento humano, com a elaboração de modelos


computacionais e mecanismos inorgânicos de tomada de decisão, a computação
cognitiva abrange um campo transdisciplinar de pesquisa e encontra seus subsídios
em conceitos advindos das ciências cognitivas (especialmente as áreas da inteligên-
cia artificial, informática cognitiva, e psicologia cognitiva), da neurobiologia, das ci-
ências do comportamento, e das ciências da computação [6].

Ao operar com similitude aos processos cognitivos humanos, os sistemas cognitivos


- considerados o novo paradigma da computação [7] - visam a resolução de proble-
mas do mundo real com precisão, resiliência, e são capazes de processar em grande
escala volumes significativos de informação (big data). Tal similitude pode ser exem-
plificada a partir da memória. A maneira como os sistemas cognitivos coletam, me-
morizam e recuperam as informações equivalem ao modo como o processamento
de memórias ocorre nos seres humanos.

Pela mesma perspectiva, os sistemas cognitivos ainda apresentam capacidades para


se comunicar e agir. Estas capacidades se organizam em determinadas construções
comportamentais. E, assim como para os humanos, elas são fundamentais aos siste-
mas computacionais cognitivos para assegurar a correta correlação entre perguntas
e respostas, a saber: 1) a capacidade de criar e testar hipóteses; 2) a capacidade de
separar e criar inferências sobre a linguagem; 3) capacidade de extrair e avaliar infor-
mações úteis (como datas, locais, valores, entre outras) [8].

Desse conjunto de possibilidades, a habilidade de identificar, analisar e interpretar o


estado emocional do ser humano aproxima os sistemas cognitivos da capacidade de
empatizar, ou seja, de assumir a perspectiva do outro para compreender determinada
situação a partir deste ponto de vista. E, com esta noção, responder de modo afetivo ao
sentimento identificado no outro. Neste contexto, a computação afetiva oferece o ins-
trumental capaz de detectar e extrair informações afetivas de diferentes fontes (imagens,
voz, texto), ou seja, de analisar os sentimentos e reconhecer as emoções ali presentes.

Neste momento, nossa pesquisa concentra-se especialmente na análise de sentimentos


e no reconhecimento de emoções a partir de fontes textuais (como descrito na seção
seguinte), com o emprego de técnicas de processamento de linguagem natural (PNL),
por meio da API 2 ‘Tone Analyzer’ do sistema de computação cognitiva IBM Watson.

2 API (Application Programming Interface / Interface de Programação de Aplicativos, em português)


refere-se a um conjunto de rotinas e padrões de programação para acesso a aplicativos, softwares
ou plataformas baseados na Web. As APIs proporcionam a integração entre sistemas de linguagens
heterogêneas, de modo ágil e seguro.

550
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O IBM Watson é desenvolvido no âmbito do projeto ‘IBM DEEPQA’, e visa o aprimora-


mento da capacidade de inteligências artificiais em compreender questões realizadas
em linguagem natural, com o objetivo de fornecer respostas relevantes a tais questio-
namentos. Dada sua capacidade de receber, analisar e interpretar grandes volumes
de dados, seu espectro de aplicações no mundo real é amplo. Abrange desde suporte
a dignosticos médicos, com otimização do tempo de conclusão do parecer clínico e
formulação de recomendações relevantes; à percepção da personalidade de usuários
para a categorização de perfis, com base nos conteúdos de mensagens, e-mails e twe-
ets; até a previsão de crimes, por meio do reconhecimento de padrões [9].

No que consiste especificamente à API ‘Tone Analyzer, esta direciona-se à detecção


de tons emocionais e de linguagem no texto escrito. Neste sentido, as análises lin-
guísticas ocorrem tanto no nível de cada sentença, quanto no nível do conjunto de
sentenças expresso no corpo do documento. As tabelas 1 e 2 indicam, respectiva-
mente, os tons emocionais e os tons de linguagem analisados:

Tabela 1: Tons emocionais analisados pelo IBM Watson™ Tone Analyzer [10].

Raiva A raiva é evocada em contextos de injustiça, conflito, humilhação,


negligência ou traição. Esta emoção é considerada ativa, quando o
indivíduo ataca o alvo, verbal ou fisicamente. Em contrapartida, a
raiva é considerada passiva, quando identifica-se mau humor e o
sentimento de tensão ou hostilidade.
Medo O medo se caracteriza como uma resposta ao perigo iminente.
Trata-se de um mecanismo de sobrevivência, desencadeado como
uma reação a algum estímulo negativo. O medo pode ser identifi-
cado em circunstâncias marcadas pela cautela ou em contextos de
fobia extrema.
Alegria A alegria (ou felicidade) está associada às sensações de bem-estar,
paz interior, amor, segurança e satisfação. É identificada principa-
mente pela presença dos tons de prazer, satisfação e diversão.
Tristeza A tristeza indica um sentimento de perda e desvantagem. Quando
o indivíduo mostra-se quieto, menos enérgico e retraído, infere-se
o sentimento de tristeza.

551
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Tabela 2: Tons de linguagem analisados pelo IBM Watson™ Tone Analyzer [10].

Analítico Um tom analítico indica o raciocínio e a atitude analítica


de um indivíduo sobre as coisas. Uma pessoa analítica
pode ser percebida como intelectual, racional, sistemáti-
ca, impessoal, que não demonstra emoção.
Confiante Um tom confiante indica o grau de certeza de uma pes-
soa. Um indivíduo confiante pode ser percebido como
seguro de si, esperançoso ou egoísta.
Inseguro Um tom de insegurança indica o grau de inibição de um
indivíduo. Uma pessoa insegura pode ser vista como
questionável ou duvidosa.

A seguir, discorremos sobre a aplicação do ‘IBM Watson™ Tone Analyzer’ no contexto


do processo criativo-poético da obra de arte interativa [POR NÃO SER EXISTINDO]:
deslocamentos à empatia.

De Narciso a [Por Não Ser Existindo]:


deslocamentos físico-digitais à empatia
‘[POR NÃO SER EXISTINDO]: deslocamentos à empatia’ compreende-se como os des-
locamentos físico-digitais necessários ao encontro, à percepção da alteridade e à
ação co-autoral entre sujeito-interator, obra e artista em direção à empatia. Confi-
gurada como instalação interativa, a obra emprega conceitos e técnicas de com-
putação cognitiva [8;10-12] e de computação ubíqua [13-15] para revisitar ‘Narciso’,
a partir de referências da contemporaneidade: as redes sociais e as plataformas de
bancos de dados públicos. Contudo, em contraste à experiência vivenciada pelo
Mito, em ‘[POR NÃO SER EXISTINDO]’ o interator é conduzido à percepção de sua
imagem e de si

próprio como algo pleno somente na contínua apreensão da presença e das emo-
ções do outro. Ou seja, no entendimento daquilo que existe no outro, na alteridade,
e no exercício ininterrupto de se deslocar do seu ‘lugar’, da sua visão particular, e se
colocar na perspectiva da visão e do sentimento do outro.

Para iniciar sua experiência em ‘[POR NÃO SER EXISTINDO]’, o sujeito-interator se co-
necta à obra por meio de seu login na rede social ‘Facebook’. Com essa ação, o sujei-
to-interator permite que a obra acesse, em tempo real, seus posts, suas imagens e a
de seus amigos, presentes nesse espaço digital.

552
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 1: Interface de login para acesso, em tempo real,


aos dados associados ao perfil do sujeito-interator no ‘Facebook’

Simultânea à ação de login, a projeção (a pino) de uma flor de ‘Narciso’ delimita a


área de interação físico-digital da obra. Nesse espaço, a interação físico-digital ocor-
re por meio dos deslocamentos corporais realizados pelo sujeito-interator sobre a
projeção da flor de ‘Narciso’. Cada movimento corporal realizado, e cada nível de na-
vegação alcançado pelo sujeito-interator são compreendidos pelo sistema ubíquo
e cognitivo de ‘[POR NÃO SER EXISTINDO]’ como o desejo e o avanço deste corpo à
percepção da alteridade e à elaboração do sentimento de empatia.

Figura 2: Flor de Narciso: o espaço de interação físico-digital

553
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

São cinco os níveis de navegação disponibilizados pela obra ao sujeito-interator. O


primeiro é ativado pela presença do sujeito-interator no centro da flor de Narciso.
Ao ser identificada, essa presença rompe a flor e liberta suas pétalas, que passam
a circundar o corpo ali presente. Este nível preenche cada pétala com as imagens
associadas ao perfil do usuário ‘logado’ na referida rede social.

Para se deslocar ao próximo nível, o sujeito-interator deve fazer uma escolha dentre
as possibilidades de caminho que cada pétala representa. Ao se posicionar sobre a
pétala escolhida, o segundo nível de opções se abre ao sujeito-interator. Neste nível,
cada pétala é preenchida pelas imagens vinculadas aos perfis dos amigos do usuário
‘logado’. Assim como no ato anterior, seu deslocamento em direção à próxima escolha
leva o sujeito-interator ao terceiro nível. Nele, as pétalas são preenchidas por imagens
coletadas em plataforma de bancos de dados públicos, a partir do estado emocional
identificado nos últimos posts realizados pelo usuário ‘logado’ e interpretado pelo ‘IBM
Watson™ Tone Analyzer’. Ou seja, o estado emocional identificado pelo sistema com-
putacional cognitivo atua como input para a busca de imagens estáticas distribuídas
em bancos de dados públicos, que reforcem a ‘percepção’ do sentimento vivenciado
pelo usuário ‘logado’ e atuem como ‘respostas empáticas’ à emoção identificada. Tais
imagens preenchem as pétalas que compõem o terceiro nível.

Figura 4: Interação físico-digital: a percepção do ‘eu’ na alteridade

Novamente, o sistema computacional úbiquo requer o deslocamento e uma nova


escolha do sujeito-interator para que este acesse o próximo nível, no caso o quarto.
Assim como no nível anterior, o mapeamento e a interpretação do estado emocional
pelo ‘IBM Watson™ Tone Analyzer’, a partir das informações presentes nos últimos

554
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

posts realizados pelo usuário ‘logado,’ são empregados agora para direcionar a busca
de imagens gravadas e transmitidas em streaming por bancos de dados públicos.
Nele, a percepção de alteridade e a elaboração de empatia ganham outra dimensão
espaço-temporal, a da presença do outro ‘ao vivo’. Cabe aqui a última escolha do
sujeito-interator, que o levará ao quinto nível.

Figura 5: Criação físico-digital co-autoral: imersão na percepção de


alteridade e consolidação do sentimento de empatia

No acesso ao último nível, as pétalas de Narciso se reaproximam para ampliar a pro-


jeção da presença do outro ‘ao vivo’, anteriormente selecionada pelo sujeito-intera-
tor. Aqui, a conexão à alteridade se distende à escala global, em reverberações do
próprio self do sujeito-interator.

Para concluir a experiência, é necessário que o sujeito-interator se mova para o espa-


ço externo à área de interação. Dessa posição, é possível observar a reconstrução da
flor de Narciso, agora transformada pelos deslocamentos físico-digitais co-autorais
realizados em direção à empatia.

O mito de Narciso atravessa a dimensão espaço-temporal das culturas ao reunir


padrões arquetípicos da existência humana, como indivíduo e como indivíduo em
sociedade. Das possíveis interpretações que este mito recebe [16-34], prepondera
aquelas ligadas à superficialidade, ao excesso de preocupação com a própria ima-
gem e à negação da alteridade. É certo que tais leituras não esgotam o potencial
simbólico e metafórico do mito. Entretanto, é fato que tais preponderâncias deno-
tam ampla aderência aos padrões de pensamento e de comportamento contem-
porâneos. O fenômeno das redes sociais é aqui tomado como exemplo de espaço
digital no qual as reverberações destes padrões se amplificam exponencialmente.

555
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

No fluxo inverso, a obra interativa [POR NÃO SER EXISTINDO] acessa o mito de Nar-
ciso, as redes sociais e as plataformas de bancos de dados públicos pelo seu vetor
oposto: o de fortalecimento da experiência de alteridade e do ato de empatia. Neste
sentido, a obra busca na ação dos deslocamentos físico-digitais e co-autorais (entre
sujeito-interator/sistema computacional ubíquo e cognitivo / artista), o gesto criati-
vo-poético capaz de sensibilizar a percepção da presença do outro, das suas emo-
ções e, em decorrência disso, consolidar o sentimento de empatia.

Conclusão
São inúmeras as crises contemporâneas que ameaçam o equilíbrio homeostático
e, consequentemente a sobrevivência neste planeta: degradação sistemática do
ar, água e solo; catástrofes ambientais e destruição dos ecossistemas; guerras civis;
fluxos migratórios forçados, dentre tantas outras. Apesar da especificidade de seus
contextos, todas elas parecem convergir para uma mesma condição: emergem de
um estado político-social global marcado pela ausência de empatia. Um estado
que ignora as necessidades, os direitos, os sentimentos, as emoções, e o valor da
existência do outro.

Sobrevivemos em colapso, e nunca se fez tão urgente exercitar e aprofundar a auto-


consciência sobre toda sorte de dificuldades, problemas e limites vivenciados pelo
outro. Aqui residem o objetivo e as contribuições deste artigo e de nossas pesquisas:
proporcionar experiências poéticas que sintonizem o corpo do sujeito-interator aos
estados do corpo alheio, Como-Se-Fosse-O-Corpo.

Assim, encontramos na cooperação transdisciplinar entre os campos da Arte-Tec-


nologia, da Neurociência e da Computação Cognitiva o substrato capaz de nutrir
a percepção da alteridade, o sentimento de empatia e, consequentemente, forta-
lecer a autorreflexão sobre a importância do outro para a nossa própria existência.
‘[POR NÃO SER EXISTINDO]: deslocamentos à empatia’ marca o início de uma série de
obras interativas dedicadas a este fim.

Referências
[1] A Damásio (2004). Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimen-
tos. Companhia das Letras, Sao Paulo, SP, Brazil.

[2] A Damásio (2011). E o cérebro criou o homem. Companhia das Letras, Sao Paulo, SP, Brazil.

[3] E Couchot (2019). A natureza da arte: o que as Ciências Cognitivas revelam sobre
o prazer estético. Editora UNESP, Sao Paulo, SP, Brazil.

[4] J Decety (2004). L’empathie est-elle uma simulation mental de la subjectivité


d’autrui?. L’Empathie. Odile Jacob, Paris, France.

556
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

[5] V Gallese. Intentional Attunement. The Mirror Neuron system and its role in inter-
personal relations. Available at: <www.interdisciplines.org/mirror/papers/I/version/
original>.

[6] A Cuzzocrea et al. (2011). Analytics over large-scale multidimensional data: the
big data revolution!. Proc. of the ACM 14th international workshop on Data Wa-
rehousing and OLAP, 101-104.

[7] D Nahamoo (2014). Cognitive computing journey. Proc. of the 1st workshop on
parallel programming for analytics applications, 63-64.

[8] R High - IBM Corporation (2012). The Era of Cognitive Systems: An Inside Look
at IBM Watson and How it Works. Redbooks, https://www.redbooks.ibm.com/redpa-
pers/pdfs/redp4955.pdf

[9] O. Gervasi et al. (Eds.) (2017). ICCSA, Part III, LNCS 10406, 718–729. Springer Inter-
national Publishing AG. DOI: 10.1007/978-3-319-62398-6 51

[10] IBM Watson Developer Cloud. Tone Analyzer. Available at: https://cloud.ibm.
com/apidocs/tone-analyzer. Accessed September 09, 2019.

[11] Y Chen, E Argentinis, G Weber (2016). IBM Watson: How Cognitive Computing
Can Be Applied to Big Data Challenges in Life Sciences Research. Clinical Therapeu-
tics, 38(4), 688-701.

[12] JE Kelly III and S Hamm (2013). Smart Machines, IBM’s Watson and the Era of
Cognitive Computing. Columbia University Press, New York, NY, USA.

[13] K Kolomvatsos, C Anagnostopoulos, S Hadjiefthymiades (2013). Intelligent Te-


chnologies and Techniques for Pervasive Computing. IGI Global, Hershey, PA, USA.

[14] U Ekman (2012). Throughout: Art and Culture Emerging with Ubiquitous Com-
puting. The MIT Press, Cambridge, MA, USA.

[15] S Poslad (2010). Ubiquitous Computing: Smart Devices, Environments and Inte-
ractions. Wiley, Hoboken, NJ, USA.

[16] Ovídio (1959). As metamorfoses. Organização Simões, Rio de Janeiro, RJ, Brazil.

[17] M Spinelli (2010). De Narciso a Epicuro: do emergir ao resgate da individualida-


de. Revista Hypnos, 25(2), 194-210.

[18] FLD Bittencourt (2009). Ecos de Narciso: leitura do livro Ecos, de Yêda Schmaltz.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Letras, Goiâ-
nia, GO, Brazil.

557
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

[19] FR Marquetti (2007). Um corpo desejoso: a figurativização no mito de Narciso.


OPSIS – Dossiê Corpo e Cultura. Revista do Curso de História da Universidade
Federal de Goiás, 7(8), 288.

[20] C Miorin and C Ramos (2005). Narciso e o espelho que revela o belo. Mitos: pers-
pectivas e representações. Alínea, Campinas, SP, Brazil.

[21] JP Vernant (2000). O universo, os deuses, os homens. Companhia das Letras, Sao
Paulo, SP, Brazil.

[22] JP Vernant (1999). Mito e sociedade na Grécia antiga (2nd. ed.). José Olympio,
Rio de Janeiro, RJ, Brazil.

[23] JS Brandão (1999). O mito de Narciso. Extensão Cadernos da Pró-reitoria de Ex-


tensão da PUC Minas. 9(28-29), 1-100.

[24] T Bulfinch (1999). O livro de ouro da mitologia (a idade da fábula), histórias de


deuses e heróis. Ediouro, Rio de Janeiro, RJ, Brazil.

[25] JS Brandão (1988). Mitologia grega. Volume II. Vozes, Petrópolis, RJ, Brazil.

[26] MGT Amaral (1997). O espectro de Narciso na modernidade: De Freud a Adorno.


Estação da Liberdade, Sao Paulo, SP, Brazil.

[27] KK Ruthven (1997). O mito. Perspectiva, Sao Paulo, SP, Brazil.

[28] D Schüler (1994). Narciso errante. Vozes, Petrópolis, RJ, Brazil.

[29] J Ribeiro Jr (1992). As perspectivas do mito. Pancast Editorial, Sao Paulo, SP, Brazil.

[30] R Cavalcanti (1992). O mito de Narciso: o herói da consciência. Cultrix, Sao Paulo,
SP, Brazil.

[31] M Eliade (1989). Aspectos do mito. Edições 70, Rio de Janeiro, RJ, Brazil.

[32] C Rosset (1988). O real e seu duplo. L&PM, Porto Alegre, RS, Brazil.

[33] R. Caillois (1972). O mito e o homem. Martins Fontes, Sao Paulo, SP, Brazil.

[34] S Freud (1972). Sobre o narcisismo: uma introdução. Obras completas. Volume
XIV – 1914-1916. Imago, Rio de Janeiro, RJ, Brazil.

558
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Rosangella Leote1 and Edgar Franco2


Neurociência e Transcendência: Processos Criativos Artísticos
Enteogênicos.
Neuroscience and Transcendence: Entheogenic Artistic Creative Processes

Resumo
Esse artigo apresenta uma breve discussão sobre as relações entre neurociência
e experiencias de ENOC (Estados não ordinários de consciência) visando denotar
conexões e correlações entre processos mentais perceptivos enteogênicos e seus
desdobramentos em processos criativos artísticos. A abordagem traz a perspecti-
va da neurociência apoiada nos autores António Damásio (1999, 2000, 2004, 2011
e 2018) e Oliver Sacks (2007 e 1998). A conceituação de enteógenos é apoiada
no etnobotânico Terence Mckenna (2003) e no antropólogo Jeremy Narby (2004).
Sobre a “arte visionária” aponta os artistas pesquisadores Laurence Caruana (2013)
e José Eliezer Mikosz (2014). Como forma de exemplificação de processos cria-
tivos inspirados por ENOC os autores apresentam duas obras, “Cura” (2019) de
Rosangella Leote, obra que alude uma experiência com a bebida ritual xamâni-
ca Ayahuasca e a performance Lupus Noctis (2019), do Ciberpajé (Edgar Franco),
inspirada em uma experiência com a ingestão de cogumelos Psylocibe cubensis.
Palavras-chave: Artes, Ayahuasca, Enteógenos, Neurociência, Processos Criati-
vos, Psylocibe Cubensis.

Abstract
This paper carries a brief discussion about the relationship between neuroscience
and NOSC (non-ordinary states of consciousness) experiences in order to denote

1 Rosangella Leote é Artista/pesquisadora com ênfase na produção entre Arte, Ciência, Tecnologia;
Pós-doutora na Universidade Aberta (Lisboa-PT – Bolsa FAPESP); Doutora em Ciências da Comuni-
cação (ECA/USP- CNPq). É integrante do SCIArts-Equipe Interdisciplinar (Prêmio Sérgio Motta 2000 e
2005). Atua com instalações multimídias interativas; tecnoperformances; esculturas sonoras; objetos
interativos; vídeos e outros. Docente do PPG em Artes e Chefe do Departamento de Artes Plásticas
do Instituto de Artes da UNESP. Email: rosangellaleote@gmail.com. ORCID: 0000-0002-0967-4728.
2 Edgar Franco é o Ciberpajé, artista transmídia, um dos pioneiros brasileiros do gênero poético-fi-
losófico de quadrinhos, e mentor da banda performática Posthuman Tantra. Pesquisador de quadri-
nhos expandidos e criador do termo HQtrônicas, autor de 4 livros acadêmicos e inúmeros artigos,
pós-doutor em arte e tecnociência pela UnB, doutor em artes pela USP, mestre em multimeios pela
Unicamp, professor do PPG Arte e Cultura Visual da UFG, em Goiânia. Atualmente realiza pós-douto-
ramento em artes na Unesp. Contato: ciberpaje@gmail.com.

559
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

connections and correlations between entheogenic perceptual and mental process-


es and their unfolding in artistic creative processes. The approach brings the per-
spective of neuroscience supported by António Damásio (1999, 2000, 2004, 2011
and 2018) and Oliver Sacks (2007 e 1998). The conceptualization of entheogens is
supported by ethnobotanical Terence Mckenna (2003) and anthropologist Jeremy
Narby (2004). About the “visionary art” is brought research artists Laurence Carua-
na (2013) and José Eliezer Mikosz (2014). To exemplifying creative processes inspired
by ENOC the authors present two works, “Cura” (2019) by Rosangella Leote, a work
that alludes to an experience with the Ayahuasca shamanic ritual drink and Lupus
Noctis (2019), performed by Ciberpajé (Edgar Franco), inspired by an experiment
with the ingestion of Psylocibe cubensis mushrooms.
Keywords: Art, Ayahuasca, Creative process, Entheogenics, Neuroscience, Psylocibe
Cubensis.

Nada tem início


Abordamos neste artigo uma tentativa de confrontar e examinar possíveis corres-
pondências entre diferentes procedimentos que levam o artista ao desenvolvi-
mento de sua obra, considerando a possibilidade de aceitar condições psíquicas e
estados cerebrais por dois pontos de vista diferentes. Um focado em estados co-
nhecidos como ENOC (estados não ordinários de consciência), provocados pelo que
há de mais antigo e natural na cultura humana, ligados ao místico e ritualístico, de
ordem xamânica e/ou por indução psicoativa sintética; outro no que se refere ao
entendimento sobre a mente, trazido pela neurociência. Tais estados também são
conhecidos por consciência alterada ou expandida. Manteremos ENOC para evitar
ambiguação com o que discutimos sobre consciência.

Os processos de criação são individuais e impossíveis de compartilhar em sua es-


sência. Apesar disso, se reconhece que eles têm a mesma natureza para qualquer
pessoa, independente das raças, nacionalidades, área de conhecimento ou grau de
cultura. Isto porque tais processos são fundamentais para o desenvolvimento hu-
mano, embora não possamos estabelecer um local no tempo referente a origem do
pensamento criativo para a humanidade.

Os estudos sobre o assunto, trazidos por diversos autores (BODEN, 1999; LAURENTIZ,
1991; OSTROWER: 1996; PLAZA & TAVARES, 1998; SALLES, 2006;) nos mostram que os
processos criativos obedecem a etapas, até certo ponto lógicas e, invariavelmente,
imbricadas. Mas, como se poderia elencar as etapas de tais processos quando perpas-
sadas por experiências de estados não ordinários de consciência? E, se há estados ordi-
nários de consciência, o quê eles são nos processos criativos e o quê os diferencia dos
demais estados da mente para o artista? Sem pretender responder a isso, suspeitamos

560
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

que boa parte da desconsideração da “Arte visionária”3 , no sistema da arte ocidental,


se refira aos procedimentos que a geram, pois são rodeados de preconceitos e, muito
mais, de desconhecimento sobre aspectos significativos da mente humana.

As pesquisas sobre a mente dão conta de que fazemos construções fantásticas


propiciadas por simples condições químicas, resultantes de estados mutáveis das
condições do organismo, e que ocorrem sem que possamos controlar totalmente. A
mais banal mudança de alimentação pode se constituir em estopim para deflagrar
processos químicos no cérebro que nos levem a visitar recônditos da mente, cons-
truindo e desmontando visões do próprio mundo, distorcendo nossa percepção de
nós mesmos e de nossa relação com este mesmo mundo. Isto se aplica à nossa vida
cotidiana, tanto quanto às nossas proposições artísticas, já que estas, nada mais são
do que a ação profissional comum que os artistas exercem, como qualquer outra
pessoa, no seu âmbito profissional e vida pessoal – mesmo que, no fundo, isto não
possa ser separado.

Trataremos, mais diretamente, de dois enteógenos4, apesar de abordarmos outros


psicoativos utilizados na arte visionária, pois foram eles que geraram os processos
criativos das obras dos autores, descritas mais adiante, sendo eles o cogumelo Psilo-
cybe cubensis e a bebida ritualística Ayahuasca.

Os estados perceptivos em ENOC serão examinados sob a neurociência, principal-


mente sobre o conceito de consciência desenvolvido nesta área. Então, tentaremos
demonstrar quão próximos estão os processos criativos desempenhados por qual-
quer artista, independentemente do tipo de método produtivo utilizado.

A Arte Visionária e os Enteógenos


A busca transcendente mítica, mística e xamanística, faz parte das tradições imemo-
riais da espécie humana. Muitas dessas tradições lançam mão de formas diversas de
ENOC visando amplificar suas percepções na busca do aprimoramento espiritual e
da cura física e mental. Sob estados não ordinários de consciência é comum o relato
de múltiplas visões pelos que os experienciam. Estas, em geral, são tratadas pela
área da psiquiatria e psicologia como alucinações, o que não concordamos.

3 Estamos usando o conceito de Arte Visionária estabelecido por Laurence Caruana (2001), como se
verá mais adiante neste artigo.
4 Fazemos diferença entre as substâncias enteogênicas e as psicodélicas. Ambas causam alteração
dos estados da consciência. Entretanto, as primeiras se destinam aos usos rituais e são de elementos
naturais, enquanto as segundas são sintéticas, causam alucinações severas, e podem causar depen-
dência e outros desequilíbrios ao uso prolongado. Os elementos naturais podem ser plantas, fungos,
animais e bactérias. Esta diferenciação não +e um consenso na literatura sobre o assunto.

561
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O artista e filósofo canadense Laurence Caruana, que foi durante anos aprendiz e
assistente do notório pintor austríaco Ernst Fuchs - um dos fundadores da Vienna
School of Fantastic Realism – criada em 1946, na tentativa de organizar e estrutu-
rar o campo das artes dedicado às criações derivadas de visões obtidas através de
ENOC, escreveu em 2001 o “Primeiro Manifesto da Arte Visionária”. Em 2013 foi um
dos fundadores da Academia de Arte Visionária de Viena, hoje um centro de referên-
cia sobre essa forma de linguagem artística e suas manifestações. Caruana relata no
prefácio da primeira edição francesa de seu manifesto que ele surgiu das intensas
conversações com o mestre da arte fantástica Ernst Fuchs. Nas primeiras páginas
de seu manifesto o artista-pesquisador (2013: 1-2) conceitua o que chama de Arte
Visionária ao caracterizar os artistas visionários:

Os artistas visionários buscam mostrar o que repousa além das fronteiras de nossa percepção.
Através dos sonhos, transes ou estados alternativos, o artista busca ver o invisível (ou o mun-
do dos espíritos) – atingindo um estado visionário que transcende nosso modo ordinário de
percepção. A tarefa que o espera, consequentemente, é comunicar suas visões de forma re-
conhecível como na “visão do dia-a-dia”. […] Todos os artistas visionários estão unidos por um
espírito de experimentação contínua. […] . O objetivo de tais experimentos é trazer os estados
alternativos de consciência para a realidade, ou melhor, dar testemunho de outras realidades
que ficam claras nesses estados.

O contexto criativo da arte visionária, que nasceu na tradição das “Belas Artes”,
sobretudo na pintura e na escultura, tem desde 2001 encontrado ecos em outras
manifestações artísticas contemporâneas. No caso desse artigo, os dois artistas-pes-
quisadores apresentam criações que têm clara inspiração visionária por terem sido
gestadas a partir de experiências de ENOC, mas que se enquadram em linguagens
artísticas contemporâneas, sendo uma das obras um objeto interativo, e outra uma
performance audiovisual transmídia. Mikosz esclarece (2014: 26):

Podemos ver a Arte Visionária como quaisquer realizações visuais, bi ou tridimensionais, realiza-
das em qualquer técnica e suporte. Desde as técnicas tradicionais até as novas mídias eletrônicas,
cinema e animação, sejam estáticas ou cinéticas, figurativas ou abstratas. Na Arte Visionária, o
principal objetivo do artista é representar as visões obtidas nos ENOC. Não se discute aqui a sub-
jetividade relacionada ao gosto, ao valor estético, boa e má arte, arte maior ou menor, contexto
contemporâneo ou atemporal, nem estilos ou técnicas artísticas marcantes e inovadoras.

Caruana (2013), em uma tentativa de organizar o escopo e abrangência da Arte Vi-


sionária, situa seus primórdios nas primeiras manifestações artísticas de xamãs nas
paredes das cavernas, relatando sua manifestação também entre os antigos egíp-
cios, mesopotâmios, minoicos, gregos, astecas, maias, olmecas e nas artes hinduístas
e budistas. A contemporaneidade teria como marco de manifestação dessa forma de

562
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

arte o surrealismo, que apresentava criações baseadas nas experiência de ENOC com
sonhos dos artistas. Caruana também propõe a existência de 3 categorias, a partir da
representação criadora baseada nas experiências de ENOC e outras. São elas:

1- “visionários verdadeiros” os artistas que objetivamente criam obras inspiradas di-


retamente em suas visões de ENOC, tentando expressar de forma clara essas visões;

2- “quase visionários” os que eventualmente usaram tais experiências, mas não têm
como foco principal a sua revelação através da arte;

3- “falsos visionários”, apesar de não esclarecer objetivamente quais seriam estes, na


leitura de seu manifesto é possível denotar tratarem-se daqueles que lançam mão
de técnicas e de imaginários comuns aos visionários – como a representação de
mundos ou criaturas fantásticas – mas o fazem sem terem base em ENOC, como por
exemplo os chamados pintores realistas fantásticos.

Entre os “visionários verdadeiros” ele enquadra: Hieronimous Bosch, Arcimboldo,


Goya, Blake, Doré, Dali e Druillet; entre os “quase visionários”: Dürer, El Greco, Gau-
guin, Munch e Picasso; e entre os “falsos visionários”: Caravaggio, Rubens, Delacroix,
Georges Seurat e Marc Chagall (CARUANA, 2013: 9).

Apesar de auxiliar na compreensão do conceito de Arte Visionária, consideramos a


classificação de Caruana estanque e reducionista, como qualquer tentativa nesses
moldes e – respeitando profundamente as contribuições inestimáveis desse artis-
ta criador para o estabelecimento dessa forma de arte - preferimos pensar em um
contexto mais amplo e expandido para o que seria Arte Visionária, ampliando o con-
ceito para toda e qualquer criação artística baseada, inspirada ou que represente
experiências de ENOC, ou seja, não necessariamente aquelas obras que apresentem
representações objetivas das visões obtidas em estados não ordinários de consci-
ência, mas também aquelas que apresentam desdobramentos criativos gerados a
partir dessas visões/percepções e de seus significados subjetivos para cada artista,
estabelecendo como critério básico a relação com algum ENOC e não sua represen-
tação direta, algo que consideramos ainda muito atrelado à tradição das belas artes
e descontextualizado na esfera das múltiplas linguagens, meios e suportes artísticos
contemporâneos.

É fundamental elencarmos quais as formas usuais de ENOC, já que elas estruturam


o conceito de Arte Visionária. Na parte dois de seu Primeiro Manifesto da Arte Visio-
nária, Caruana trata das chamadas “fontes da experiência visionária” e execra a con-
cepção geral de que os ENOC são alcançados só com a utilização do que ele chama
de “alucinógenos”, destacando sobretudo categorias diversas de sonhos e transes.

É verdade que, ultimamente, alguns psicodélicos (tais como mescalina, LSD, cogumelos e DMT)
têm desempenhado um grande papel na criação de imagens, principalmente devido ao fato de

563
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

que eles são novos para a nossa cultura, oferecendo único e inexplorado meio à experiência vi-
sionária. Mas, as fontes de experiência visionária são muitas e variadas: sonhos, sonhos lúcidos,
pesadelos, imagens hipnagógicas, sonhos acordados, estados de transe (provocados pela exaustão,
a privação, ou repetição rítmica de orações ou músicas), estados hipnóticos, de doença, expe-
riências de quase morte, buscas xamânicas de visão, meditação [...], loucura […], o devaneio, a
fantasia, a imaginação, inspiração, visitação, revelação, visões espontâneas, psicodélicos, […] e a
experiência metanoica, trazida pela Arte Visionária em si (CARUANA, 2013: 35).

Como se pode ver, a Arte Visionária tem muito mais realção com os processos criati-
vos em geral do que nos aparece superficialmente.

Macaco drogado
O termo “enteógeno”, criado por Jonathan Ott, Gordon Wasson e Carl A. P. Puck
(OTT, 1993: 15), designa “plantas ou químicos sintéticos e semi-sintéticos que fa-
vorecem experiências místicas” (RODRIGUES, 2014: 78). Ele foi adotado por um
dos maiores investigadores dos efeitos dessas substâncias na consciência e pe-
las experiências de ordem transcendente que suscitam, o etnobotânico Terence
McKenna (1993, 2004). Segundo Mikosz (2014: 44-45), enteógeno é “o que gera
experiência interna do divino”, tem sido usado para desviar os preconceitos que
alucinógeno carrega como algo gerador de perturbações mentais ou meramente
psicopatológico. Terence McKenna (2008: 247) destaca que Wasson, preferia o ter-
mo enteógeno ao psicodélico. A palavra refere-se a uma divindade interna sentida
sob a influência da psilocibina. Entretanto, ela passou a ser utilizada para referir-se
a todas as vulgarmente chamadas “plantas de poder”. Para o xamanismo, em suas
várias linhas, há três tipos de plantas importantes relacionadas à cura5. As plantas
medicinais, as de poder e as mestras (ou professoras). A diferença entre as de po-
der e as mestras é que as primeiras são associadas à cura física e energética por
canais de comunição extrassensórios. Já as segundas envolvem a conexão direta
com o Mundo dos Espíritos e com o Universo, desenvolvendo e fazendo acessar
conhecimentos, além de promover o autoconhecimento, a cura física e a espiritual.
A ayahuasca é feita de duas plantas mestres.

Mikosz (2014: 41-50) trata dos métodos de indução aos ENOC, dividindo-os a par-
tir de diversas formas ou circunstâncias de indução em: “enfermidades e patolo-
gias”, “misticismo e religião”, “relacionados aos sentidos e à mente”, “relacionados

5 Para mais detalhes sobre o Xamanismo e suas plantas consultar https://www.serpentesagrada.com/


single-post/Principais-Plantas-de-Poder-, http://www.xamanismoancestral.com.br/artigos/plantas_
mestras.html, https://www.xamanismo.com.br/category/universo-xamanico/ e http://www.xamanis-
mo.com/. Acessado em 01 julho de 2019.

564
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

ao corpo”, “aspectos emocionais”, e finalmente o “uso de psicoativos, a tecnolo-


gia psicodélica”. Essa última categoria engloba o uso de psicoativos sintetizados
como o LSD, ou naturais como a psilocibina, o DMT, a mescalina, a Ayahuasca,
entre outros que integram os psicodélicos da classe phantastica6, chamados vul-
garmente de alucinógenos, ou ainda de drogas psicodélicas. Drogas são con-
sideradas substâncias prejudiciais à saúde, portanto tal terminologia denota
preconceito para com essas substâncias, muitas delas integrantes de tradições
xamânicas ancestrais.

Em seu controverso e impactante livro “O pão dos deuses: em busca da árvore do


conhecimento original”, Terence McKenna (2004) propõe uma nova versão para a
evolução humana diferente da que trouxe Charles Darwin e seus continuadores.
Segundo o pesquisador, o aparente salto quântico em apenas 3 milhões de anos
na evolução, que levou do australopiteco ao homo sapiens, culminou na ampliação
mais impressionante de um órgão: o cérebro humano, que triplicou de tamanho
no período. Esta ampliação teria como motivo o consumo/uso de cogumelos que
continham a psilocibina – como o Psilocybe Cubensis - (Figura 1) e sua utilização
frequente teria gerado a ampliação da consciência, cognição e percepção, permitin-
do o desenvolvimento de linguagens. O autor (2004: 17) assume que “os primeiros
contatos entre os hominídeos e os cogumelos contendo psilocibina podem ter pre-
cedido em um milhão de anos ou mais a domesticação do gado na África (...) e os
cogumelos não foram somente colhidos e comidos, mas provavelmente ganharam
o estatuto de um culto”.

Ao dissertar sobre qual seria, para ele, o verdadeiro “elo perdido”, McKenna (2004:
21) emenda:

Os alcaloides contidos nas plantas e fungos, especificamente os compostos alucinogênicos como


a psilocibina, a dimetriltriptamina (DMT) e a harmalina podem ter sido os fatores químicos da
dieta que catalizaram o surgir da autoconsciência humana (...) os alucinógenos atuaram como
catalizadores no desenvolvimento da imaginação, alimentando a criação de estratagemas e es-
peranças internas que podem muito bem ter sinergizado o surgir da linguagem e da religião.

6 Phantástica se refere à classificação feita em 1924, por Ludwig Lewin, que estabeleceu cinco tipos de
agentes que alteram os estados cerebrais. Conforme Sandro Rodrigues (2014: 65) eles são: Excitantia,
Euphorica, Hypnotica, Inebriantia e Phantastica, que são as alucinógenos. Todavia a classificação não
é estanque, permitindo apenas uma linha de entendimento sobre diferenciações entre os agentes.

565
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 1 – Cogumelo Psilocybe Cubensis. Autor Mädi. Fonte Wikimedia.


Disponível gratuitamente em https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=19688456.
Acessado em 02 de junho de 2019.

A controversa e instigante teoria de McKenna sobre a evolução do cérebro huma-


no e da autoconsciência, também chamada de “Hipótese – ou teoria - do macaco
drogado” (The stoned ape hypothesis)7, tem como um de seus pilares o consumo
contínuo de cogumelos como o Psilocybe cubensis que possuem a substância ente-
ogênica psilocibina em sua composição.

Os cogumelos enteogênicos fazem parte da tradição xamanística ancestral de inú-


meros povos do planeta. Mircea Eliade (1964) define o xamanismo como “as técnicas
arcaicas do êxtase”.

É importante destacar que o chamado “Novo Mundo”, as Américas, sobretudo suas


zonas tropicais e subtropicais, são as áreas com a maior presença de enteógenos do
planeta. E, como destaca McKenna, a psilocibina tem sido uma das substâncias mais
presentes no panorama do xamanismo do “Novo Mundo”, onde ainda há os “únicos
cultos vivos baseados no uso de dimetiltriptamina (DMT)” (MCKENNA, 2004: 194).

Os cogumelos Psilocybes tornaram-se populares para além dos centros cerimoniais


xamânicos a partir da década de 1970, quando Terence e seu irmão Dennis McKenna
publicaram, sob pseudônimos, o livro Psilocybin: The Magic Mushroom Grower’s Guide,

7 A hipótese é bastante controversa, pois não parece haver evidências científicas. Porém, há um
jovem pesquisador, Oscar Olsen, que argumenta tê-las encontrado. (vide item Referências)

566
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

um guia para o cultivo desses cogumelos que se popularizou após a proibição do


LSD nos Estados Unidos. Terence McKenna (2004: 209) ressalta que uma das razões
dessa difusão era o aspecto visionário dos cogumelos já que “a ambiência da psilo-
cibina é diferente da do LSD. As alucinações surgem com mais facilidade” e sente-se
que ela é mais que uma “lente para a psique pessoal”, sendo “um instrumento de
comunicação com o mundo do alto xamanismo da antiguidade arcaica”.

O antropólogo canadense Jeremy Narby, que mergulhou durante dois anos na Ama-
zônia Peruana para estudar o xamanismo de tribos dessa região, chama a Ayahuasca
– bebida ritual enteogênica utilizada pelos xamãs – de “televisão da floresta” (NARBY,
2004: 13) devido aos seus efeitos de “miração”, conforme é chamada a experiência
visionária pelos “psiconautas”. Narby chega a afirmar que o complexo saber botânico
desses xamãs e de suas civilizações foi construído a partir da ingestão desse e de ou-
tros enteógenos. A própria Ayahuasca e a maneira como seu princípio ativo funciona
envolve uma complexa mistura entre duas plantas. Ela é feita a partir da Chacrona,
de nome científico Psychotria viridis, uma planta arbórea de caule escuro, juntamen-
te com o cipó amazônico Mariri, de nome científico Banisteriopsis caapi (Figura 2).
Narby (2004, p.13) pergunta “como povos de sociedades primitivas, sem conheci-
mento quer de química, quer de fisiologia, conseguiram encontrar uma solução para
a ativação de um alcaloide por via de um inibidor da monoamina oxidase8. Através
de pura experimentação?”.

Figura 2 – A Chacrona e o Mariri, plantas com as quais se faz a Ayahuasca.


Fonte Adobe Stock. Imagem com direito adquirido em
https://stock.adobe.com/br/images/ayahuasca-background/188483967?prev_url=detail.

Esta bebida ritual tem sido resgatada por seitas contemporâneas que utilizam a tra-
dição ancestral mixada ao cristianismo e outras religiosidades, criando movimentos
sincréticos no Brasil como o Santo Daime, a União do Vegetal e a Barquinha. Também

8 A Chacrona é um alcaloide e o Mariri um inibidor.

567
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

tem sido adotada por outras congregações que se identificam simplesmente como
praticantes de xamanismo.

Os múltiplos efeitos da ingestão da Ayahusca têm sido investigados em suas conse-


quências fisiológicas e psíquicas por profissionais de áreas diversas como farmaco-
logia, psicologia, química, etnobotânica, antropologia, medicina. A tese de Fernanda
Fontes (2017) “Os efeitos antidepressivos da ayahuasca, suas bases neurais e relação
com a experiência psicodélica” aponta com detalhes tais consequências.

Comumente os usuários da substância relatam uma ampliação da percepção que


pode gerar visões a partir de níveis psíquicos subconscientes, modificando a per-
cepção direta da realidade, mas sem nunca perder a consciência do que acontece à
sua volta. Os “psiconautas”, durante o estado supramental da “miração” experienciam
uma “hiperlucidez”. Mikosz (2014, p.51-52) resume os estágios dos ENOC, incluindo
a “miração”, a partir dos estudos do arqueólogo sul-africano David Lewis-Williams:

Estágio 1 - fenômenos entópticos - fenômenos visuais que ocorrem entre o olho e


o córtex, independentemente do mundo material, mas que podem ser projetados
sobre os objetos do mundo exterior.

Estágio 2 - construal9 - processo de construção interpretativa, que atribui signifi-


cado a algo como, por exemplo, ver em dois pontos, um hífen e um parêntesis a
imagem de um rosto sorrindo [:-)].

Estágio 3 - alucinações, isto é, visões onde cenas mais complexas se formam.

Essa divisão em estágios não significa que as pessoas passem sempre por eles, nem
que a passagem de um estado para outro tenha fronteiras rígidas; eles acontecem
de forma gradual. A cultura pode influenciar as expectativas e interesses do indiví-
duo e destacar um ou outro estágio.

“Cura” e “Lupus Noctis”: Arte Visionária Enteogênica?


Os procedimentos efetuados por nós, que resultaram nas obras “Cura” e “Lupus Noc-
tis”, tiveram diferenças na ordem da escolha da relação entre a experiência enteogê-
nica e a proposição das obras.

Enquanto “Lupus Noctis” surgiu por experiência de ENOC, dirigida de antemão, para
a finalidade criativa, “Cura” foi um resultado não esperado de experiência similar. As
duas obras foram mostradas na exposição Zonas de Compensação 6.0, em maio de
2019 no Instituto de Artes da Unesp, em São Paulo.

9 Termo da psicologia social, mantido em inglês.

568
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

“Cura”
O desenvolvimento do objeto interativo “Cura” (Figura 3) ocorreu de maneira espon-
tânea a partir de reminiscências da experiência individual de Rosangella Leote com
a Ayahuasca.

De acordo com depoimento da artista “a intenção de experimentar a Ayahuasca


nunca foi cogitada por mim. O interesse surgiu após localizar na revista da FAPESP
uma pesquisa10 onde era investigada a cura da depressão com este composto. Foi
uma condição química do meu cérebro que me levou a testar a bebida”.

A atividade artística, portanto, não estava em enfoque naquela situação, porém,


se aceitamos que o período de preparação para o insight é, em grande parte, des-
conhecido para quem cria, consideramos que a vivência ritual já era parte do pro-
cesso criativo.

De fato, a obra alude, muito mais do que representa, a experiência vivida no primeiro
dos dois rituais de que participou. Ela explica:

Muitos foram os tipos de “mirações” que apareceram. Elas são impossíveis de reproduzir em pa-
lavras. Palavras são armadilhas que criamos. Elas jamais poderão traduzir, à altura, qualquer ex-
periência vivida. Servem apenas para aproximação ao fenômeno. Também não se pode fazê-lo
visualmente, pois a situação é multidimensional. Muitas das “mirações” eram bastante similares
àquelas das artes visionárias. Mas, o momento marcante que se relaciona ao processo criativo da
obra “Cura” foi a intuição durante o ENOC de que era possível fazer a cura de um câncer que um
amigo possuía. Àquelas alturas já se sabia que a gravidade da doença o levaria à morte11.

No momento da consciência expandida, pareceu-me que a cura era possível. Então visualizei – de
propósito – a imagem do tumor e quis fazer uma limpeza, através da mente, destruindo-o. Neste
momento, idealizei cristais que surgiam enquanto a doença se dissolvia, desmanchando-se em
líquido viscoso e preto. As imagens eram vívidas e lindas, pois havia o brilho e os cristais. Mesmo
o tumor era vibrante. A decepção surgiu quando, por mais que eu quisesse controlar, a doença
ganhava força, “engolindo” os cristais. Então, compreendi a impotência em que me encontrava na
situação. Este foi o momento preciso que fundamentou a obra, pois ali mesmo percebi que isto
tinha que ser levado “para fora” da minha mente.

Os passos que se seguiram foram armazenar na memória o máximo possível da mul-


tissensorialidade da experiência e projetar a obra.

10 Pesquisa da USP de Ribeirão Preto (Jaime Hallak) e da UFRN (Dráulio Barros de Araújo). O outro
lado da ayahuasca, Revista FAPESP nº 275, pp 64-65, janeiro de 2019. Disponível em https://revista-
pesquisa.fapesp.br/2019/01/10/o-outro-lado-da-ayahuasca/. Acessado em 04 de fevereiro de 2019.
11 Infelizmente ele faleceu cerca de 3 meses depois.

569
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A realização já foi um processo diferente. O limite que os materiais impunham tiravam


toda a magnitude da peça quando comparada à visualização feita. Este não era o mais
importante para a realização da peça. O que a artista queria fazer era algo que fisica-
mente deveria aludir a uma ideia de cura, e não a cura daquele câncer específico.

Figura 3 – “Cura”. Foto Marcio Desideri, 2019.

A obra se compõe de uma parte bruta, com aspecto de pedra e modelada em resina,
representando a doença, outra parte translúcida, feita com hastes de plástico mon-
tadas como um cristal, representando a cura e uma terceira, de vidro e ferro fluído
vermelho que era movido pela ação do interator com o uso de imãs, representando
o fluxo contínuo entre a doença e a cura. O grupo de elementos estão em uma caixa
que é girada pelo interator (Figura 4), antes te começar cada interação, fazendo com
que todas as interações resultem em uma cura, pois o líquido sempre terá que ser
retirado para que o “cristal” (Figura 5) apareça12.

12 Uma parte da obra não foi completada para a exposição, impedindo que o giro da caixa não
pudesse ser utilizado.

570
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 4 – Movimento da obra “Cura”. Fotos Rosangella Leote, 2019.

Figura 5 – Cristais de “Cura”. Foto Marcio Desideri, 2019.

571
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Importa destacar que este trabalho não tem correlação imediata da forma com as
obras anteriores da artista, todavia, seu funcionamento é totalmente coerente com
a poética por ela desenvolvida.

Isto faz ver que o comprometimento com o ritual não afetou a natureza da proposi-
ção artística e apenas serviu de um estopim para o processo de construção da obra,
pois o processo criativo já estava latente na consciência autobiográfica, que é discu-
tida mais adiante neste texto.

“Lupus Noctis”
A semente criativa para a geração da performance “Lupus Noctis” (Figura 6) surgiu
de uma experiência de ENOC com o enteógeno Psilocybe cubensis realizada por Ed-
gar Franco (Ciberpajé) em dezembro de 2017. Conforme suas palavras

“experimentou um profundo estado de conexão com toda a fauna e flora do bioma Cerrado,
sentindo uma espécie de enraizamento essencial” que lhe permitiu, segundo relato feito em
palestra, “um diálogo intenso com plantas e animais, sentindo-me como parte deles e experi-
mentando algumas de suas sensações, como o prazer do voo das aves, o pulsar da seiva de um
Buriti centenário. Nesse diálogo - inexprimível em palavras -, além do êxtase da reconexão atávica
transcendente com o Cerrado, experimentei uma sensação de angústia pela destruição completa
iminente desse bioma fundamental para a biosfera. Essa experiência foi permeada por visões de
grande impacto e outras sensações sinestésicas, com destaque para uma ampliação dos órgãos
dos sentidos que chegava ao paroxismo e à hiperestesia”.

Esta experiência gerou múltiplos desdobramentos artísticos para Edgar, com destaque
para o roteiro do álbum em quadrinhos Ecos Humanos, que gerou depois a performance
“Lupus Noctis” do “Posthuman Tantra”13, grupo performático liderado pelo artista. A per-
formance foi realizada pelo Ciberpajé (Edgar Franco) e pela I Sacerdotisa (Rose Franco).

Ao escrever o roteiro para Ecos Humanos, o artista aliou múltiplos elementos à estru-
tura narrativa baseada na experiência com o enteógeno. A narrativa completamente
muda, criada apenas pela sequência de imagens, para metaforicamente representar
a inutilidade da linguagem escrita na tentativa de explicar a experiência de ENOC.
O álbum de quadrinhos “Ecos Humanos”, de 72 páginas, teve arte de Eder Santos e
roteiro do Ciberpajé, e foi lançado em 2018 pela Editora Reverso.

13 Em seu contexto ritualístico o “Posthuman Tantra” coloca-se não apenas como um grupo perfor-
mático artístico, mas como uma força mágica de transmutação, assumindo-se tecnoxamânico, unin-
do de maneira singular aspectos da cultura ancestral nativa das tribos brasileiras, sobretudo suas
percepções transcendentes através da incorporação de totens míticos animais e vegetais nos rituais
de cura e energização - as chamadas “pajelanças”- às novas perspectivas pós-humanas abertas pela
criação e incorporação de mundos digitais, cosmogonias computacionais possibilitadas pelo amplo
universo das imagens numéricas e da hipermídia.

572
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O ato performático “Lupus Noctis”, do Posthuman Tantra, foi um desdobramento


transmidiático do álbum em quadrinhos Ecos Humanos. A poética da degradação
do bioma Cerrado e da busca de uma reconexão com a natureza através dos ente-
ógenos permaneceu como base, assim como a hibridação lobo-humano. Mas, as-
pectos novos foram imaginados para a performance: a inclusão do som ambiente
como signo de desespero/angústia, buscando recriar certos sons ouvidos durante
a experiência de ENOC, a incorporação da interação do performer com as artes ani-
madas que representam de forma alegórica o Cerrado e a transmutação do totem
lobo-humano, transformando assim o ato em um sigilo mágico ritual que promove a
reconexão essencial do performer aos seus aspectos animais.

Figura 6 – Composição com imagens da performance do Posthuman Tantra, “Lupus Noctis” na


abertura da exposição Zonas de Compensação 6.0, no dia 2 de maio de 2019, às 19:00hs, no Teatro
Reynúncio Lima do Instituto de Artes da Unesp, em São Paulo. Fotos Rosangella Leote, 2019.

“Lupus Noctis” foi nomeada assim devido à presença subliminar do totem Lobo, que
é incorporado nas performances pelo Ciberpajé e nesse caso temos a imagem da ca-
beça do lobo-guará – ícone do Cerrado – sendo uma das imagens animadas (Figura
7) que abrem a performance, passando por transmutações que lembram efeitos óti-
cos da experiência visual de ENOC com o cogumelo.

573
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 7 – Lobo-guará e crânio. Duas das imagens criadas por Edgar Franco para o álbum “Ecos
Humanos” que faziam parte da performance. Fonte: o autor.

A performance abre com a animação da face de múltiplos seres do cerrado e segue


com a face animada do lobo-guará projetada em completa escuridão enquanto um
som ambiente gravado in loco no Cerrado mineiro toca ao fundo. Na sequência o
Ciberpajé transmutado em um totem pós-humano aparece. Sua figura é sinistra, ele
usa um colete que parece animalesco e em sua cabeça está uma máscara do crânio
de um pássaro – representando o totem híbrido fantasmagórico, unindo homem a
animal, mas questionando o papel devastador do nosso lado humano para com o
lado animal selvagem, por isso o animal é representado por um crânio, morto.

Enquanto as primeiras artes animadas representando a natureza do Cerrado vão se


sucedendo, o Ciberpajé usa um feixe luminoso para tocar um teremim, inicialmente
de forma mais sutil, depois avassaladora. As imagens animadas apresentam artes
grotescas, buscam representar a devastação perpetrada pela espécie humana. Se-
guem-se ações que remetem a autoflagelação, como punhaladas, ou espadadas em
coração do Ciberpajé (Figura 8), que rememoram a angústia sentida por ele em um
dos momentos da experiência de ENOC. Ao final, aumenta a agressividade onde o
feixe de luz é usado como um punhal visceral, gerando ruídos agudos que incomo-
dam pela intensidade, até cair “morto” no chão. A morte simboliza o suicídio que nós,
espécie humana, estamos cometendo ao destruirmos a biosfera.

574
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 8 – Momento próximo do final da performance onde o Ciberpajé aparece ao centro, diante
da projeção, acionando o teremim em seu peito com a lanterna. Foto: Rosangella Leote, 2019.

Consciência ampliada
Para os iniciados nas curas pela natureza, a Ayahuasca conduz a um estado de cons-
ciência ampliada, expandida. Neste estado, as percepções são acuradas, pois todos
os sentidos se encontram mais abertos, potencializando a experiência com o mundo
interior e ao redor.

Examinando a situação relacionada ao que estudamos sobre a neurociência, a res-


peito dos modos de processamento perceptivos (humanos ou não), inferimos que
estas vivencias fariam com que, não apenas os sentidos conseguissem interpretar
mais sinais do ambiente, mas que nossa mente passasse a recriar sensações a partir
da aceitação prévia de que a percepção se ampliou. Como testemunharam Rosan-
gella e Edgar, a ingestão da Ayahuasca, quanto do cogumelo, promove percepções
incomuns sobre os estímulos oferecidos, tanto do ambiente, quanto do próprio or-
ganismo e que podem, em grande medida, ser conduzidas de modo consciente,
pelo utilizador do enteógeno.

575
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Aqui, entra como justificativa o conceito de consciência que aplicamos. Nos parece
adequado o modelo que é oferecido por Antônio Damásio (1999, 2000, 2004, 2011 e
2018), desde que se pode concluir, a partir dele, que a consciência não está alocada, de
forma estanque, em uma camada da mente. Pelo contrário, ela é composta de fluxos
que se alternam sem uma lógica apreensível, e isso acontece continuamente. Damásio
fornece a ideia de que há dois tipos de consciência: a “consciência central” e a “consci-
ência autobiográfica” (ele também a chama de ampliada). Resumindo o pensamento
de Damásio, Luiz Augusto Rosa (2018: 97) destaca que “a consciência central não de-
pende de linguagem (...) [e] é bem esperado que não houvesse linguagem sem cons-
ciência central. Já a consciência autobiográfica depende extensamente da linguagem
(...) [e] é provável que (...) seja uma característica exclusivamente humana”.

Para Damásio (2011), a consciência é “o sentimento daquilo que acontece” e é um “es-


tado da mente” onde existe o entendimento sobre si e sobre o seu redor. Esta posição
do autor é o que nos habilita a pensar que, se podemos dirigir e observar sentimentos
durante a experiência com os enteógenos, em alguma medida estamos conscientes
do evento. Aqui o conceito de sentir é amplo, tanto quanto coloca o autor.

Porém, ele alerta que qualquer estado alterado destitui a consciência, como se
vê a seguir.

As imagens da mente – sons imagens visuais, sentimentos etc – são formadas de modo apropria-
do, exibidas com clareza e examináveis. Não o seriam se você estivesse sob a ação de moléculas
“psicoativas”, como álcool e drogas psicodélicas. No teatro da sua mente (...) a cortina está aberta
os atores no palco falando e movendo-se, as luzes acesas, os efeitos sonoros ligados e - eis a parte
crucial da montagem – há uma plateia: você. (...)

Todavia, mais adiante, no mesmo capítulo, é dito em uma abordagem metafórica


sobre o “estado consciente da mente” o que que parece contrapor a fala anterior:

O fato inegável, porém, é que tudo isso acontece como se existisse o um teatro ou uma enorme
tela de cinema, e como se existisse um eu ou com você na plateia. É perfeitamente aceitável cha-
mar isso de ilusão, desde que reconheçamos que existem firmes processos biológicos por trás
disso (...) não podemos meramente desconsiderá-la, como se ilusões não tivessem importância.
(Damásio, 2018: 168-169).

Observamos que nesta fala ele não coloca o limite de distância em que este “eu pla-
teia” se encontra. Acontece que se a experiência enteogênica se dá com a percepção
de que ela [a experiência] está acontecendo. Se há memórias que armazenamos dela,
que podem gerar autoconhecimento e inclusive formas de arte, poderíamos dizer
que a vivência não foi consciente?

576
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Se existe uma consciência ampliada – autobiográfica –, se a consciência é um estado


da mente e também não há como identificar o caminhos dos fluxos que levam às
passagens de um estado para o outro, seria possível pensar que a diferença única
entre o estado “ordinário de consciência” e o “não ordinário” é apenas o tipo de ato-
mizador da “ilusão” de estar ciente14? Nos parece que construímos nossa realidade
nestes fluxos, entre o consciente central e o autobiográfico, então a capacidade ex-
pandida da consciência precisa só de algum tipo de impulso deflagrador.

O que dizer do fato de que as experiências místicas podem trazer à tona memórias
resguardadas na consciência ampliada? Se uma nova memória é produzida - sobre
a experiência vivenciada - poderíamos dizer que o estado “místico” não era conscien-
te? Este ponto é crucial para defendermos a ideia de que há, sim, um nível importan-
te de consciência – que se torna central - nestas situações, embora isto seja tratado
com preconceitos por muitos cientistas. Parece não ser o caso de Damásio, já que
ele aborda com cuidado tais aspectos e, como ele não discute o assunto de estados
não ordinários de consciência, não se pode inferir que ele descarte o valor do tema.

Oliver Sacks (2007: 159) comenta sobre uma experiência que vivenciou em 1965 e
que pode ser comparada as experiências de criação aqui apresentadas. Ele diz:

Na época, assim como certo o número de estudantes de medicina e residentes, eu vinha to-
mando grandes doses de anfetaminas. Por duas semanas, me vi de posse de várias habilidades
extraordinárias, que normalmente eu não possuía (...). Eu não só podia identificar todas as pes-
soas, minhas conhecidas, pelo cheiro, mas também manter imagens visuais muito precisas que
estavam em minha mente e desenhá-las no papel, como se usasse uma câmara clara. Minhas
capacidades de memória e transcrição musical intensificaram-se acentuadamente, e eu conse-
guia reproduzir melodias complexas no piano depois de ouvi-las uma única vez. Mas, meu de-
leite com esses recém encontrados poderes e com o mundo de sensações muito intensificadas,
arrefeceu quando constatei que o pensamento abstrato estava extremamente comprometido.
Décadas depois, ao ler sobre os pacientes de Bruce Miller e os experimentos de Allan Snyder,
desconfiei que as anfetaminas pudessem ter causado uma desinibição transitória do lobo tem-
poral e uma liberação de habilidades de savant.

Em outros momentos do livro ele declara outras experiências, pessoais e de pacien-


tes, onde se percebe que tudo é uma questão de extensão da consciência e dos
propósitos do investidor na situação. Percebe-se ainda que o estado de ciência so-
bre os eventos ocorridos em ENOC têm razões biológicas para serem despertados
conscientemente.

14 Poderia ser argumentado que os psicoativos, na verdade, provocam a ilusão de aguçamento dos
sentidos. Mas, esta é uma discussão que poderá ser tratada em outro momento.

577
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Nada tem fim


Tratamos de um tema por demais controverso neste artigo. As percepções são in-
dividuais e dependentes de um conjunto sensório e da natureza do organismo que
percebe. Nossa área não é a neurociência, então, não podemos afirmar que nosso
posicionamento pode ser corroborado, ao menos até o momento. Precisamos de
maior instrumentação para isso.

Compartilhamos a certeza de que a arte tem inúmeros caminhos para ser realizada e
estabelecer limites entre níveis de consciência para validar as poéticas é uma atitude
limitadora. Recusamos este tipo de atitude.

O processo criativo tem suas próprias etapas. Estas, embora reconhecidas na litera-
tura, não têm uma clareza sobre como uma ideia incubada se torna disponível para a
consciência e faça com que o processo criativo se complete. As artes, de qualquer es-
pecialidade, muito foram provocadas por sentimentos de alegria, dor e êxtase. Qual
diferença faria se o propulsor fosse um conjunto destes sentimentos modificados
pela situação ritualística ou por outros modelos de utilização de psicoativos?

Iván Izquierdo (2015)15 diz que há mais relação entre obsessão e criatividade do que
entre criatividade e Q.I. e que um alto Q.I. indica boa memória, mas o inverso não é
válido. Ora nem a inteligência é relevante para se criar. Entretanto a memória – como
armazenamento de experiências, portanto sentimentos - é fundamental para aten-
der a criação.

Isto nos faz retornar a Damásio: se seguirmos suas explicações sobre consciência
expandida – que é composta também por memórias – nos parece que um estado
alterado de consciência poderia ser a ampliação daquilo que ele chama Self auto-
biográfico que nada mais é do que a estrutura individual da consciência autobio-
gráfica. Ou seja, para nós, uma experiência em estado não ordinário de consciência
é uma possibilidade de acessar facetas deste self que não está sempre disponí-
vel ao domínio da consciência central. Ronaldo Bispo (2007: 298) explica o self de
acordo com Damásio:

(...) o sentido do self surge na exibição consistente e reiterada de algumas de nossas me-
mórias pessoais, os objetos de nosso passado pessoal, aqueles que podem facilmente dar
substância a nossa identidade, momento a momento. A consciência é, assim, tanto em seu
modo central como ampliado, um sentimento de algo a ser conhecido, um fenômeno mental
sustentado por circuitos e sistemas neurofisiológicos que garantem ao indivíduo um sentido
do self complexo e duradouro.

15 Palestra Memória e Criatividade do Prof. Iván Izquierdo em vídeo. Trecho dito aos 49 minutos
da gravação. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=OnJNbN4AvP8. Acessado em
01/07/2019.

578
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Nos parece certo propor que a Arte se faz com todo este repertório de consciência.

Jaak Panksepp (1998) neurocientista e psicobiólogo, que estabeleceu o que chamou


de “neurociência afetiva”, aposta fortemente na ideia de que até a afetividade é ge-
rida por condições orgânicas situacionais (mapas neuroquímicos) para que os senti-
mentos aflorem. Então, se a consciência, como citado acima, é o “sentimento daquilo
que acontece” (DAMÁSIO, 2011), se conclui que a condição orgânica – não só no
sentido químico – é determinante para a aceitação de que o processo criativo pode
incluir ativação de estados diferenciados de consciência como uma metodologia
para o trabalho artístico, seja para que as formas visualizadas se ajustem em mapas
mentais que depois serão traduzidos em obras, seja pelo afloramento inesperado
de insights, duas das formas com as quais os artistas aqui enfocados trabalharam.

Agradecimentos
Agradecemos à FAPESP pelo auxílio à Rosangella Leote para a viagem e participação
no evento bem como pelos apoios que, parcialmente, resultaram nesta pesquisa. Res-
salto que sem o contínuo estímulo e discussão com os integrantes e colaboradores
do GIIP (Grupo Internacional e Interinstitucional de Pesquisa em Convergências entre
Arte Ciência e Tecnologia) e do PPG em Artes do Instituto de Artes da Unesp. Agradeço
também à Cláudio Yutaka, pelos comentários que enriqueceram este texto.

Referências:
Araújo, T. (2018). A revolução que pode dar certo. Revista TRIP, edição 274. São Pau-
lo: Trip Editora e Propaganda. Disponível em https://revistatrip.uol.com.br/trip/lsd-
-mdma-e-ayahuasca-podem-ajudar-a-curar-dependencias-quimicas. Acessado em
02/02/2019.

Bispo, R. O sentimento do sentimento do que nos acontece: a consciência em Damá-


sio. Galáxia. Revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica.
ISSN 1982-2553, [S.l.], n. 5, fev. 2007. ISSN 1982-2553. Disponível em: <https://revis-
tas.pucsp.br/galaxia/article/view/1328>. Acessado em 05/05/2019.

Boden, M. (org) (1999). Dimensões da criatividade. Trad. Pedro Theobald. Porto Ale-
gre: Ed. Artes Médicas.

Calvey, T. (2018). Psychedelic Neuroscience. Revista Progress in Brain Research.Vo-


lume 242. Disponível em https://www.sciencedirect.com/bookseries/progress-in-
-brain-research/vol/242/suppl/C. Acessado e, 06 de junho de 2019.

Caruana, L. (2013). O Primeiro Manifesto da Arte Visionária. Curitiba: Grande Loja da


Jurisdição da Língua Portuguesa.

579
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Damásio, A. (1999). The Feeling of What Happens: Body and Emotion in the Making
of Consciousness. London: Heinemann.

Damásio, A. (2000). O mistério da consciência. São Paulo: Companhia das Letras.

Damásio, A. (2011). E o cérebro criou o homem. São Paulo: Companhia das Letras.

Damásio, A. (2018). A estranha ordem das coisas. São Paulo: Companhia das Letras.

Damásio, A. (2004). Em Busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos.


São Paulo: Companhia da Letras, 2004.

Drouot, P. (1999). O Físico, O Xamã e o Místico, Rio de Janeiro: Nova Era.

Edgar, E. S. (2017). Quadrinhos Expandidos: das HQtrônicas aos Plug-ins de Neocor-


tex, João Pessoa: Marca de Fantasia.

Filoni, M. (2012). A nossa mente é como uma sinfonia’. Entrevista com Antônio Damá-
sio. Tradução Sbardelotto, M. Publicação original: jornal La Repubblica, 18-04-2012.
Versão traduzida disponível em http://www.ihu.unisinos.br/noticias/508701-a-nos-
sa-mente-e-como-uma-sinfonia-entrevista-com-antonio-damasioE. Acessado em
03 de abril de 2019.

Fontes, F. P. X. (2017). Os efeitos antidepressivos da ayahuasca, suas bases neurais


e relação com a experiência psicodélica. 2017. 196f. Tese (Doutorado em Neuroci-
ências). Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Disponível em http://
bdtd.ibict.br/vufind/Record/UFRN_13ca4bf2724bc0a44c34f26f39e2badd. Acessa-
do em 02/02/2019.

Glusberg, J. (2013). A Arte da Performance, São Paulo: Perspectiva.

Kolbert, E. (2015). A Sexta Extinção – Uma História Não Natural, Rio de Janeiro:
Intrínseca.

Laurentiz, P. (1991). A Holarquia do Pensamento Artístico. Campinas: Editora da UNICAMP.

Leote, R. (2015). Arteciênciarte. São Paulo: Ed. UNESP.

Lovelock, J. (2010). Gaia: Alerta Final, Rio de Janeiro: Intrínseca.

Marby, Jeremy. (2004). A Serpente Cósmica, o ADN e a Origem do Saber, Lisboa: Via Optima.

McKena, T. (2008). O Pão dos Deuses: Em Busca da Árvore do Conhecimento Ori-


ginal, Lisboa: Via Óptima.

580
Arte e Biologia: Distopias
e Utopias #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

McKena, T. (1993). Alucinações Reais: Uma viagem cósmica inspirada pelo uso das
plantas de poder, Rio de Janeiro: Nova Era.

Mikosz, J. E. (2014). Arte Visionária – Representações visuais nos Estados Não Ordiná-
rios de Consciência (ENOC), Curitiba: Editora Prismas.

Naranjo, Claudio. (2015). Ayahuasca: a enredeira do rio celestial, Simões Filho BA: Kalango.

Olsen, O. (2014). The Stoned Ape Hypothesis: A Contemporary Reappraisal in the


Light of New Evidence. Skövde (Suécia): University of Skövde. Disponível em https://
www.academia.edu/22060350/The_Stoned_Ape_Hypothesis_A_Contemporary_
Reappraisal. Acessado em 02/02/2019.

Ostrower, F. (1996). Criatividade e Processo de Criação. Rio de Janeiro: Vozes.

Panskepp. J. (1998). Affective neuroscience: the foundations of human and animal


emoticons. New York: Oxford University Press.

Rodrigues, S.E. (2014). Modulações de sentidos na experiência psicotrópica. Tese


PPG de Psicologia, Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminen-
se. Niterói: UFF. Disponível em https://app.uff.br/slab/uploads/2014_t_Sandro.pdf.
Acessado em 02/02/2019.

Rosa, L. A. (2018). A consciência segundo Damásio: um enfoque neurofilosófico.


Dissertação de Mestrado da Faculdade de Filosofia. Marília: UNESP. Disponível em
https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/153096/rosa_la_me_mar.pd-
f?sequence=5&isAllowed=y. Acessado em 2 de julho de 2019.

Sacks, O. (2007) Alucinações Musicais. São Paulo: Companhia das Letras.

Sacks, O. (1998). The Man Who Mistook His Wife for a Hat: and other Clinical Tales.
New York: Touchstone.

Salles, C. A. (2006). Redes da criação. Vinhedo: Editora Horizonte.

Tavares, M. e Plaza, J. (1998). Os processos criativos com os meios eletrônicos: poéti-


cas digitais. São Paulo: Hucitec.

Zaccaro, N. (2018). Cérebro é potência. Revista TRIP, edição 274. São Paulo: Trip Editora
e Propaganda. Disponível em https://revistatrip.uol.com.br/trip/surf-porno-e-religiao-
-sao-capazes-de-provocar-no-cerebro-os-mesmos-efeitos-que-alucinogenos. Acessa-
do em 02/02/2019.

581
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Matéria e Memória
Matter and Memory

582
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Ana Beatriz Rabelo Andrade Fernandes1


and Shirley Gomes Queiroz2
Tradição, memória e hiperconectividade: a preservação do
bordado da Madeira por intermédio de tecnologias digitais
Tradition, memory and hyperconnectivity: the preservation of Madeira’s
embroidery through digital Technologies

Resumo
O bordado da Madeira é um dos principais elementos do patrimônio histórico
e cultural da Ilha da Madeira, em Portugal. Verifica-se, contudo, que o número
de madeirenses que continuam a se empenhar a esta arte tem se tornado cada
vez menor. Além disso, soma-se o fato de que as bordadeiras da Madeira ainda
ativas são, em sua maioria, já idosas. Nesta perspectiva, existe a preocupação de
que esse ofício esteja caminhando para a sua extinção. Partindo da identificação
deste problema, este estudo tem o objetivo de apontar possíveis maneiras de
contribuir para a preservação do bordado da Madeira, considerando, para isso,
algumas peculiaridades do atual contexto social de hiperconectividade. A im-
portância das tecnologias digitais e, em especial, da Internet, para a preservação
de memórias e para a disseminação de conhecimentos, na contemporaneidade,
é tomada como um fator de destaque. Neste sentido, buscou-se explorar a hipó-
tese de que essas tecnologias teriam o potencial de contribuir para a continui-
dade de ofícios tradicionais, como o bordado da Madeira.
Palavras-chave: bordado da Madeira, memória, tecnologias digitais, Internet, hi-
perconectividade.

1 Possui graduação em Comunicação Social, com habilitação em Publicidade e Propaganda, pela


Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ); e mestrado em Design pela Universidade de
Brasília (PPGDesign/UnB). É Professora voluntária no curso de graduação em Design da Universidade
de Brasília (UnB). Atua, sobretudo, em pesquisas que envolvem comunicação e design, relacionando
estas duas áreas a questões sociais, culturais e políticas atreladas à contemporaneidade.
2 Possui graduação em Desenho Industrial pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB, mestrado
em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de Brasília - UnB, e doutorado em Engenharia de
Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. É Professora no curso de Design e no
Programa de Pós-Graduação em Design (linha de pesquisa Design, Cultura e Materialidade), ambos
na Universidade de Brasília - UnB. Tem experiência na área de Design de Produto e Teoria do Design,
atuando principalmente em pesquisas que abordam a relação pessoas x artefatos mediante aspec-
tos sociais, culturais, simbólicos, afetivos e de identidade.

583
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Abstract/resumen/resumé
Madeira embroidery is one of the main elements of the historical and cultural
heritage of Madeira Island, in Portugal. However, the number of Madeirans who
continue to engage in this art has become smaller and smaller. In addition, the
fact that the still active embroiderers of Madeira are mostly elderly. From this per-
spective, there is concern that this craft is heading towards its extinction. From
the identification of this problem, this study aims to point out possible ways to
contribute to the preservation of Madeira embroidery, considering, for this, some
peculiarities of the current social context of hyperconnectivity. The importance of
digital technologies and, in particular, the Internet, for the preservation of mem-
ories and for the dissemination of knowledge in contemporary times, is taken as
a prominent factor. In this sense, we sought to explore the hypothesis that these
technologies would have the potential to contribute to the continuity of tradition-
al crafts such as Madeira embroidery.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: Madeira embroidery, memory, digital technol-
ogies, Internet, hyperconnectivity.

Introdução
O bordado é um dos mais expressivos elementos do patrimônio cultural da Ilha da
Madeira, em Portugal. Além de configurar-se como uma tradição local, trata-se de
uma arte internacionalmente apreciada e reconhecida pela riqueza de detalhes in-
vestida em seus produtos, que lhes confere beleza e qualidade singular.

Trata-se de um ofício cujo domínio demanda tempo e cuja prática, por requerer
muitas horas de trabalho e constante repetição de movimentos, além de exímias
habilidades, pode ser considerada altamente desgastante. Por isso, embora os
produtos finais possam apresentar preços elevados aos olhos de quem compra,
considerando as incontáveis horas dedicadas ao desenvolvimento de cada peça e,
também, que a cadeia produtiva do bordado da Madeira conta com outros agen-
tes, além das bordadeiras, os valores a elas repassados acabam sendo considera-
velmente baixos.

Nesta conjuntura, verifica-se que o número de madeirenses que continuam a se em-


penhar ao bordado tem se tornado cada vez menor. Segundo a Agência Lusa (2017),
no decorrer do século XIX, em seu auge, o bordado da Madeira chegou a contar com
o trabalho de cerca de 70 mil bordadeiras. Na década de 1980, este número já havia
caído para 30 mil. Hoje, contudo, a situação é muito mais grave. Os últimos dados
sobre a quantidade de bordadeiras madeirenses que permanecem ativas, divulga-
dos pelo Instituto do Vinho, do Bordado e do Artesanato da Madeira (IVBAM), são de
2017. À época, havia apenas três mil bordadeiras ativas em toda a Ilha.

584
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Dois anos depois, nada parece indicar que o quantitativo de três mil bordadeiras
apontado pelo IVBAM em 2017 tenha aumentado. Pelo contrário, embora não haja
evidência empírica desta suposição, o número de artesãs do bordado da Madeira
parece ter diminuído ainda mais. Além disso, soma-se o fato de que a maior parte
das bordadeiras que ainda persistem neste ofício já são idosas. Constata-se, portan-
to, que o bordado da Madeira vive, atualmente, o momento mais crítico da sua his-
tória. Neste sentido, existe o medo de que essa arte, tão rica e representativa dos 600
anos da Ilha da Madeira, esteja caminhando, a passos largos, à sua extinção.

Partindo da identificação desse problema, este estudo tem o objetivo de apontar


possíveis maneiras de contribuir para a continuidade do bordado da Madeira, con-
siderando, para isso, algumas peculiaridades do atual contexto social de hiperco-
nectividade. A importância das tecnologias digitais e, em especial, da Internet, para
a preservação de memórias e para a disseminação de conhecimentos, na contem-
poraneidade, é tomada como um fator de destaque. Nesta perspectiva, buscou-se
explorar a hipótese de que essas tecnologias teriam o potencial de contribuir para a
preservação de ofícios tradicionais, como o bordado madeirense.

O desenvolvimento da investigação subdivide-se em três partes. Na primeira de-


las, apresenta-se as principais características do bordado da Madeira, bem como um
breve histórico que abrange desde a sua origem até a atual situação de iminente
descontinuidade. Recorreu-se, para tanto, a autores que realizaram pesquisas histó-
ricas e descritivas desta arte, como Alberto Vieira (2006).

Em seguida, parte-se para uma análise das relações de convergência entre práticas
artesanais e tecnologias digitais no atual contexto de hiperconectividade. Para isto,
são trazidos alguns apontamentos sobre a conjuntura da sociedade em rede, descri-
ta por Manuel Castells (2015; 2016), e apresenta-se algumas das implicações positi-
vas que este paradigma social tem suscitado em termos de valorização do artesanal,
sobretudo em meio às gerações mais jovens.

A partir disso, discute-se a hipótese de que as tecnologias digitais – em especial,


a Internet – seriam capazes de contribuir para a preservação das memórias e dos
saberes associados a determinadas práticas artesanais, bem como para a articulação
de novas redes de artesãos interessados em dar continuidade a estes ofícios. Por fim,
com base nos argumentos empreendidos ao longo da pesquisa, esta discussão é
aplicada ao caso específico do bordado da Madeira.

O bordado da Madeira – da origem à ameaça de descontinuidade


A origem do bordado da Madeira remonta ao século XV, quando ocorreu o povoa-
mento da ilha. À época, as famílias que lá se instalaram provinham, sobretudo, do nor-
te de Portugal, região que já abrigava locais de grande tradição no bordado, como

585
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Viana do Castelo (VIEIRA, 2006). Em um primeiro momento, portanto, o bordado re-


alizado na Ilha da Madeira representava uma continuidade da tradição artistítica que
os povoadores deste território trouxeram de seus locais de origem e transmitiram às
gerações subsequentes.

Com o passar do tempo, contudo, o bordado madeirense passou a adquirir carac-


terísticas próprias, que acompanhavam o desenvolvimento da Ilha, as influências
estrangeiras que por lá eventualmente circulavam, bem como as trajetórias pessoais
das suas artesãs. Neste sentido, além de um importante patrimônio cultural, o bor-
dado da Madeira é um elemento constitutivo da história da Ilha da Madeira e das
famílias que a habitam.

Em sua atual configuração, essa arte caracteriza-se como uma mistura adaptada de
alguns bordados tradicionais, que abrange, além de seus pontos originais, pontos
herdados de bordados portugueses mais antigos, bem como pontos do bordado
inglês e do bordado francês. Dentre os pontos mais amplamente empregados no
bordado da Madeira, destacam-se os granitos, os ilhós, os caseados, os bastidos, os
pontos de crivo, o richelieu, o ponto sombra, o ponto chão e as cavacas3.

Os motivos mais comuns têm inspiração floral, provavelmente devido à exuberan-


te flora madeirense, e são representados em composições fluidas, estampadas em
tecidos leves e naturais, como o linho e a cambraia de algodão. Convencionou-se o
emprego de cores claras tanto nos tecidos, que são utilizados em suas tonalidades
cruas ou em branco, quanto nas linhas dos bordados, geralmente também brancas
ou cruas, em variações de bege ou azul, ou, ainda, em tons pastéis.

As peças desenvolvidas são diversas, compreendem desde artigos para cama, mesa
e banho, até peças de vestuário, sobretudo destinadas a mulheres e crianças. Desta-
cam-se, contudo, as toalhas e os acessórios de mesa, bem como os jogos de cama,
todos amplamente apreciados pelo mercado nacional e internacional.

Em grande parte, este destaque conferido às peças para cama e mesa, comuns em
enxovais de casamento, se deve ao destino social atribuído, por séculos, à classe
feminina: de ser mãe, esposa e encarregada dos serviços do lar. As madeirenses não
eram exceção. Quando meninas, cresciam aprendendo as prendas do lar e ajudando
suas mães e familiares a cuidar das crianças mais novas, até o momento em que
estivessem aptas a constituir seus próprios lares e famílias.

A tradição do enxoval de casamento, neste contexto, era amplamente adotada. O


enxoval simbolizava a mudança que o casamento traria ao casal – sobretudo à mulher,

3 Para informações sobre as características de cada um destes pontos, consultar VIEIRA, 2006 e/ou
o https://www.bordal.pt/pontos.

586
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

que neste momento, após anos de “treinamento” junto às suas mães e familiares,
deixava a casa de seus pais para constituir e cuidar de suas novas famílias e casas.

O bordado da Madeira, por sua vez, era considerado um labor “feminino” e, até mea-
dos do século XIX, eminentemente destinado à produção caseira. Entre as mulheres
mais abastadas, bordava-se por lazer, e a prática do bordado servia para a promoção
de encontros entre as senhoras deste núcleo social. Por outro lado, entre as mulheres
de menor poder aquisitivo, o bordado era um meio de atribuir aos seus vestuários
simples um aspecto diferenciado, de presentear entes queridos e, principalmente,
de conferir toques especiais à decoração do lar (GARRIDO, 2015; VIEIRA, 2006).

Foi somente a partir da segunda metade do século XIX que os produtos do bordado
da Madeira passaram a ser amplamente comercializados, conquistando o mercado
britânico e, em seguida, extendendo-se a outros países europeus, alguns países ára-
bes e aos Estados Unidos (VIEIRA, 2006). Estes produtos tornaram-se, então, artigos
de luxo, e passaram a ser altamente demandados.

Nesta conjuntura, surgiram, na Ilha da Madeira, as casas de bordados, que estabele-


ceram linhas de produção para a feitura dos produtos, acelerando processos a fim de
atender mais rapidamente às demandas recebidas. Assim, o bordado, antes praticado
por lazer, tornou-se trabalho e deixou de ser fruto da livre criação das bordadeiras,
pois estas passaram a receber encomendas com desenhos, tecidos, linhas e pontos já
previamente definidos por outro agente que incorporou-se a este mercado: o dese-
nhador (VIEIRA, 2006)4.

O pagamento das bordadeiras passou, também, a ser estabelecido conforme uma


perspectiva de linha de produção. Em um primeiro momento, essa quantificação
era dada pela medida dos bordados em palmos. A partir dos anos de 1920, contu-
do, adotou-se um instrumento chamado curvímetro, por meio do qual passou-se a
estabelecer, para cada tipo de ponto, uma equivalência em pontos industriais (VIEI-
RA, 2006). Em alguns casos, os pontos industrais são contados por unidades, como
nos granitos, enquanto em outros, como no richelieu, o parâmetro da contagem é
o metro linear (GOMES, 2019). O curvímetro é, até hoje, o instrumento que as casas
de bordado utilizam para a definição dos valores que as bordadeiras madeirenses
recebem por cada peça desenvolvida.

Qualquer que seja o parâmetro adotado, contudo, o problema de se atribuir uma pers-
pectiva industrial a uma produção artesanal que exige, além de exímias habilidades
técnicas, muitas horas de dedicação exclusiva, permanece o mesmo: se contrastado
às horas de trabalho por elas dedicadas à produção de cada peça, o valor pago às

4 Conforme aponta Georgina Garrido (2015), com a demanda comercial do bordado da Madeira,
surgiram novas profissões atreladas à sua atividade, além das bordadeiras. Dentre estas profissões,
destacam-se os desenhadores, os picotadores, os estampadores, dos agentes e os comerciantes.

587
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

bordadeiras é, e sempre foi, baixíssimo, ainda que o preço do produto final pareça alto
aos olhos de quem compra.

Em um primeiro momento, é possível que isto não as tenha incomodado, pois, con-
forme mencionou-se anteriormente, o destino social atribuído às mulheres, à época,
resumia-se a ser mãe, esposa e encarregada dos serviços do lar – isto é, a exercer
trabalhos domésticos não remunerados. É plausível, portanto, que receber alguma
quantia, por menor que fosse, em troca de um serviço que, embora trabalhoso, po-
deria ser conciliado aos afazeres domésticos, fosse considerado vantajoso.

Além disso, durante a primeira metade do século XX, marcada por duas guerras
mundiais, as rotas comerciais da Ilha da Madeira foram imensamente prejudicadas,
fazendo com que a importação de matérias-primas para a confecção dos bordados
se tornasse difícil, assim como a exportação dos produtos prontos aos seus merca-
dos de destino (VIEIRA, 2006). Neste período, a demanda pelos bordados da Madeira
também diminuiu significantemente, em virtude da crise econômica que se instau-
rou em todo o mundo (ibidem).

A esta altura, ao mesmo tempo em que as encomendas dos bordados tornaram-se


escassas como consequência da crise econômica mundial, esta mesma crise tornou
necessária a participação das mulheres na economia familiar. Por este motivo, muitas
madeirenses que antes se dedicavam comercialmente à arte do bordado, passaram,
nesta época, a trabalhar em atividades que lhes rendiam mais retorno financeiro.

Somando-se a isto, sobretudo durante os anos de 1940, muitas famílias madeirenses


deixaram a Ilha para buscar melhores condições de vida em países como Brasil, Ve-
nezuela, África do Sul e Austrália (VIEIRA, 2006). Assim, a quantidade de bordadeiras
que seguiram em atividade, na Ilha da Madeira, tornou-se ainda menor.

Nas décadas subsequentes, a diminuição do quantitativo de artesãs dedicadas ao


bordado da Madeira permaneceu constante. Evidência disto é o fato de que, nos
anos de 1980, o número de bordadeiras madeirenses, que chegou a 70 mil duran-
te o século XIX, já havia se reduzido a menos da metade – 30 mil (AGÊNCIA LUSA,
2017). Conforme pode-se inferir a partir de dados registrados pelo IVBAM em 2017
(ibidem), esta queda tornou-se ainda mais vertiginosa desde então. Em menos de
40 anos, o quantitativo de 30 mil caiu em cerca de 90%, chegando a apenas três mil
bordadeiras ativas em toda a Ilha, aproximadamente.

Ainda que não haja dados mais recentes que comprovem que o número de borda-
deiras em atividade tenha diminuído, ainda mais, de 2017 para o ano atual (2019),
nada parece indicar que a brusca queda apontada pelos últimos dados disponíveis
tenha sido revertida. Outro dado alarmante é o fato de que a maior parte das atuais
bordadeiras madeirenses já são idosas. Neste sentido, constata-se o perigo de que a
continuidade deste ofício esteja limitada ao tempo de vida que resta às suas artesãs.

588
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O diálogo entre o artesanal e o tecnológico no contexto da hiperconectividade


Historicamente, a herança dos conhecimentos e técnicas associados às práticas ar-
tesanais persiste, em geral, em virtude do que, a partir da modernidade, convencio-
nou-se chamar de tradição5. Este termo, conforme aponta Anthony Giddens (2010),
tem origem no latim “[...] tradere, que significa transmitir, ou confiar algo à guarda
de alguém” (ibidem, p. 49). Ao herdeiro confia-se a tradição, e a ele cabe protegê-la
e passá-la adiante.

O caso bordado da Madeira é um clássico exemplo dessa dinâmica. Conforme expos-


to anteriormente, as mulheres madeirenses atuam, há séculos, como guardiãs desta
arte, confiando, via de regra, às suas filhas, a tarefa de levá-la posteridade6. Hoje,
contudo, as poucas bordadeiras madeirenses que restam têm encontrado dificul-
dades em transmitir seus conhecimentos às gerações mais jovens, pois a convicção
de que o bordado da Madeira consiste em uma atividade econômica pouco rentável
e, ao mesmo tempo, altamente trabalhosa, tornou-se consenso entre a população.

É importante, entretanto, ressaltar que, se comparado aos 600 anos de história por
trás desta arte7, o caráter de atividade econômica é algo relativamente novo para
o bordado da Madeira. Vale enfatizar, ainda, que embora a mercantilização desta
atividade tenha sido, precisamente, o que fez com que ela adquirisse notoriedade
mundial e, em um primeiro momento, também tenha sido o principal fator de atra-
ção do alto contingente de bordadeiras registrado na segunda metade do século
XIX, pouco tempo depois, as consequências da incorporação capitalista tornaram-se
os principais motivos do desinteresse pela continuidade dessa prática artesanal.

Durante séculos, o bordado da Madeira foi amplamente praticado em meio à po-


pulação madeirense como uma forma de lazer e, sobretudo quando associado a
contextos de escassez econômica, foi visto como um instrumento de diferenciação
identitária, em virtude de suas possibilidades de personalização de peças simples; e

5 Segundo Anthony Giddens (2010), o conceito de tradição, tal como conhecido atualmente, é uma
criação recente, que data dos últimos 200 anos. Como costumes inventados e transmitidos de geração
em geração, o autor explica que as tradições sempre existiram, porém, até a modernidade, não havia
a necessidade do termo, precisamente porque as tradições e os costumes estavam em toda parte.
6 Embora as mulheres tenham sido, ao longo da história, e sejam, ainda hoje, maioria entre os pra-
ticantes do bordado da Madeira, ressalta-se que esta arte não é uma exclusividade feminina. De
acordo com Vieira (2006), a popularidade conquistada pelo bordado, sobretudo a partir do século
XIX, fez com que a sua prática se tornasse comum também entre os homens madeirenses, extenden-
do-se às famílias como um todo.
7 Conforme apontou-se no tópico anterior, embora tenha surgido concominantemente ao povoa-
mento da Ilha da Madeira, no século XV, o bordado da Madeira tornou-se uma atividade comercial
somente a partir da segunda metade do século XIX.

589
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

como um mecanismo de materialização de afetos, quando empregado na confecção


de presentes destinados a familiares ou amigos próximos. A popularidade da prática
do bordado da Madeira é, portanto, anterior à sua incorporação mercadológica, e
girava em torno de dois principais propósitos: o próprio prazer do ato de bordar e a
satisfação de presentear, a si mesmo ou a outrem, com o resultado final do esforço
dedicado nessa atividade.

Deve-se destacar, contudo, que os tempos eram outros. Do século XV à primeira


metade do século XIX, período anterior à conversão do bordado da Madeira em ati-
vidade econômica, existia, em todo o mundo, uma divisão muito bem demarcada
entre os destinos sociais atribuídos aos homens e às mulheres, que contribuía, ainda
mais que hoje, para a manutenção do modelo patriarcal.

Segundo Silvia Camurça (2007), os mecanismos que sustentam o sistema de domi-


nação masculina são diversos, porém, a prática da manutenção das mulheres em si-
tuação de dependência econômica destaca-se como um dos principais deles. Quan-
to a isto, a autora aponta como os mais decisivos instrumentos dessa dominação o
sexismo no mercado de trabalho e a imposição das tarefas domésticas às mulheres,
como se a elas inerentes fossem.

Essa ordem social do trabalho, que atribui às mulheres a responsabilização exclusi-


va pelo trabalho doméstico, complementa Camurça (ibidem), faz com que algumas
delas sejam submetidas a jornadas duplas de trabalho – dentro e fora de casa –, e
leva outras ao confinamento doméstico. Durante o período compreendido entre o
século XV e a primeira metade do século XIX, contudo, a inserção feminina ao merca-
do de trabalho era ínfima, e o modelo patriarcal ainda era amplamente considerado
natural. Sobretudo por estes motivos, a consequência mais comum da ordem social
do trabalho estabelecida era a reclusão das mulheres no ambiente doméstico.

Não existe, entretanto, jornada determinada para o trabalho do lar. Nele, tampou-
co há diferenciação entre casa e trabalho, ou seja, entre o ambiente no qual o in-
divíduo desempenha a sua atividade laboral e o seu ambiente de descanso. Por
isso, quando integradas às rotinas das donas de casa, as práticas artesanais, como
o bordado, o tricô e o crochê, concedem intervalos aos afazeres domésticos. Ao
desempenhá-las, a praticante, estando com suas duas mãos ocupadas, desliga-se,
necessariamente, de outras atividades manuais – e, muitas vezes, a concentração
dedicada à atividade resulta em uma breve abstração do real. Assim, as artes ma-
nuais podem ter efeito terapêutico, sendo interpretadas como meios de fuga mo-
mentânea das preocupações da vida.

Estes ofícios, contudo, deixam de ser interpretados de forma positiva quando são
incorporados a uma perspectiva eminentemente capitalista. Isto ocorre não só pela
desvalorização que o produto artesanal sofre ao se tornar mercadoria, mas também
porque o processo artístico tem seu aspecto terapêutico, de fuga das obrigações

590
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

cotidianas, esvaziado a partir do momento em que se converte em trabalho – ou


seja, em uma obrigação a mais (BRATICH & BRUSH, 2011).

Além disso, devido às limitações criativas que a produção sob demanda costuma
impor ao artesão, aliada à pressão dos prazos estabelecidos para a entrega dos
produtos encomendados, a apropriação mercadológica do artesanal tende a in-
fluenciar negativamente o que Jack Bratich e Heidi Brush (2011, p. 234) chamam
de communal craft circle, que seria a habilidade de produzir comunidades a partir
da produção e da distribuição de artefatos oriundos de práticas artesanais. Estas
comunidades proporcionam espaços significativos não só para a troca de conhe-
cimentos técnicos, mas também para o desenvolvimento de processos criativos e,
sobretudo, para a interação social.

Nas últimas décadas, entretanto, tem-se verificado a ressurgência do interesse por


determinadas práticas artesanais, como o bordado, o tricô e o crochê, especialmente
entre jovens mulheres (VON BUSCH, 2010). A este recente fenômeno, atribue-se o
termo fabriculture (BRATICH & BRUSH, 2011), que designa um paradigma cultural no
qual ocorre a emergência de movimentos direcionados à construção de comunida-
des sob o mote do “faça você mesmo” (ou DIY – do it yourself).

Neste cenário, as tecnologias digitais, sobretudo a Internet, desempenham um


papel preponderante. Isto se deve, em grande parte, à centralidade que estas tec-
nologias conquistaram quando passaram a subsidiar trocas instantâneas de infor-
mações entre indivíduos conectados, promovendo a emergência de um novo tipo
de estrutura social – a sociedade em rede (CASTELLS, 2015; idem, 2016)8.

Em meio a esta nova conjuntura, a Internet institui um modelo comunicacional cha-


mado por Castells (2015) de “autocomunicação de massas”. De acordo com o autor,
além de se tratar de um tipo de comunicação interativa com alcance potencialmente
global9, mostra-se capaz de veicular conteúdos autogerados, por meio de emissão
autodirecionada e recepção autosselecionada de muitos indivíduos que se comuni-
cam com outros tantos.

8 Segundo Castells (2015, p. 70), a sociedade em rede consiste em uma estrutura social construída
em torno de “redes ativadas por tecnologias de comunicação e de informação processadas digital-
mente e baseadas na microeletrônica”.
9 Ainda que as tecnologias de comunicação e informação que sustentam a atual configuração da
sociedade em rede tenham potencial de alcance global – “pois têm a capacidade de se reconfigurar
de acordo com as instruções de seus programadores, ultrapassando fronteiras territoriais e institu-
cionais por meio de redes telecomunicadas de computadores” (CASTELLS, 2015, p. 70-71) –, isso não
significa dizer que todas as pessoas estejam incluídas nestas redes. Atualmente, inclusive, ainda que
a sociedade em rede seja a estrutura social hegemonicamente vigente, é importante destacar que
os excluídos ainda são maioria.

591
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A partir da autocomunicação de massas, a comunicação para públicos extensos


deixa de ser predominantemente unidirecional, como no modelo de comunicação
de massas, e passa a ser interativa, possibilitando que os usuários se conectem e
se comuniquem por meio de uma rede de amplo alcance. Esta rede, por sua vez,
“não possui centro nem linha diretriz [...] pois cada novo nó da rede de redes em
expansão constante pode tornar-se produtor ou emissor de novas informações,
imprevisíveis, e reorganizar uma parte da conectividade global por sua própria
conta” (LÉVY, 2010, p. 113). Assim, pode-se dizer que a Internet, a partir do seu
modelo comunicacional, possibilitou a democratização do acesso, da enunciação
e da disseminação de informações.

Para alguns indivíduos, essas novas possibilidades vêm sendo interpretadas como
oportunidades de recuperação do communal craft circle (BRATICH & BRUSH, 2011),
ou seja, da habilidade de produzir comunidades a partir da produção e da distribui-
ção de artefatos artesanalmente produzidos.

Assim, artesãos de todas as partes do mundo passaram a recorrer à Internet para


estabelecer conexões entre si, trocando experiências, técnicas, padrões, referências,
criando vínculos de amizade e, até mesmo, articulando projetos ativistas, em prol de
diversas causas (KLUGH, 2014; GARBER, 2013; HACKNEY, 2013)10. Em meio às comuni-
dades construídas a partir destas iniciativas, verifica-se não só um resgate ao caráter
social, lúdico e político outrora associado ao artesanal, mas também um aprofunda-
mento destes aspectos, situando-os na contemporaneidade.

Destaca-se, ainda, que, embora sejam, em geral, constituídas por meio da Internet e
das redes sociais, essas comunidades não se restrigem ao ambiente virtual (BRATICH
& BRUSH, 2011; MINAHAN, 2006). É comum, inclusive, que a Internet seja utilizada
para a organização e promoção de eventos presenciais, que costumam ocorrer em
locais públicos, como bares e cafés.

Além disso, com a ampliação dos espaços de debate e das possibilidades de acesso a
informações, suscitada pelo desenvolvimento da Internet, diversos assuntos de im-
portância social, antes bastante restritos à esfera acadêmica, passaram a ser pauta-
dos com mais frequência nas conversas cotidianas. Com isto, observa-se que muitos
indivíduos têm se posicionado contrariamente a traços que configuram a cultura es-
tabelecida pelo capitalismo industrial – como o fast fashion, o consumo exacerbado
e a naturalização da exploração inescrupulosa do trabalho humano e dos recursos
naturais em prol do abastecimento do mercado.

10 Para designar esta apropriação expressamente política do fazer artesanal, uma ampla variedade
de termos tem sido utilizada. Dentre os mais recorrentes, destacam-se craftivism, indie craft, yarn
bombing e punk DIY (HACKNEY, 2013). Para mais informações sobre estes movimentos, ver HACKNEY,
2013; GARBER, 2013; BRATICH & BRUSH, 2011; VON BUSCH, 2010; entre outros autores.

592
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A partir da emergência desses modos de pensar, tem se verificado a eclosão de uma


handmade hype (VON BUSCH, 2010), baseada em movimentos de valorização do
artesanal, sobretudo do que é produzido a partir de processos sustentáveis. Con-
comitantemente a isso, o “faça você mesmo” tem adquirido novos entusiastas, que,
muitas vezes, passam a se dedicar a práticas artesanais sem a intenção de torná-las,
necessariamente, suas fontes de renda.

Em meio a estes indivíduos, o interessante é perceber a formação de comunidades


e movimentos criativos globais, nos quais as novas tecnologias são interpretadas
como ferramentas passíveis de serem utilizadas em prol do aprendizado, do desen-
volvimento e da disseminação de práticas artesanais, e não como prováveis ameaças
(VON BUSCH, 2010).

O artesanal como resistência e a aprendizagem intermediada


por tecnologias digitais
Para grande parte dos “novos amadores superconectados” (HACKNEY, 2013, p. 183,
tradução livre11), o efeito lúdico – e, até mesmo, terapêutico –, desencadeado pelo
simples prazer do ato de criar, é considerado mais importante do que o resultado
final de cada projeto. Por outro lado, para além da satisfação pessoal envolvida no
processo de criação em si, a produção à mão tem adquirido, também, conotação
política – tornando-se, para muitos, um ato de resistência.

Deve-se pontuar, contudo, que a atribuição de um caráter político às práticas artesa-


nais não é algo novo. O movimento Arts and Crafts, que teve seu apogeu entre 1890 e
1910, é um exemplo deste fato12. Embora algumas das preocupações que motivaram
esse e outros movimentos no passado permaneçam atuais, como a exploração desme-
dida do trabalho humano (KLUGH, 2014), observa-se que os movimentos emergentes
tendem a apresentar algumas peculiaridades, sendo uma delas a ampla utilização da
Internet para finalidades diversas – conexão com outros indivíduos, disseminação de
conhecimentos, divulgação de projetos, organização de encontros, entre outros.

Outro ponto interessante é que, neste contexto, as questões ambientais são temas
bastante recorrentes. Isto se dá não só pelo fato de que os efeitos da intervenção

11 “New super-connected amateur” (HACKNEY, 2013, p. 183).


12 Segundo Alan Crawford (1997), a emergência do movimento Arts and Crafts, durante a década
de 1870, na Inglaterra, foi motivado por três ideias principais: (1) de que as formas de arte não deve-
riam ser hierarquizadas, e sim unificadas; (2) de que o trabalho deveria ser prazeroso, mediado por
interações sociais e não alienante – neste sentido, Morris, um dos líderes desse movimento, defendia
que o resgate à produção artesanal seria capaz de combater a alienação que o capitalismo industrial
impôs aos trabalhadores, pois nela os trabalhadores são concebidos como agentes, e não como
engrenagens; (3) de que o design deveria ser repensado, de modo que os objetos manufaturados se
tornassem melhores para os seus usuários.

593
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

humana nos ecossistemas já estarem sendo bastante sentidos em todo o mundo,


mas, sobretudo, porque a percepção destas consequências tem feito muitas pessoas
se darem conta de que é preciso desacelerar o ritmo de produção possibilitado pelo
modo de produção industrial – e que, para este fim, o resgate às práticas artesanais
mostra-se absolutamente adequado.

Para além das preocupações ambientais, os próprios processos que movem a


produção industrial desenfreada e a cultura do consumo excessivo também vêm
sendo amplamente questionados na atualidade, impulsionando não só a eclo-
são de movimentos “faça você mesmo”, mas também o mercado de produtos
manufaturados. Neste cenário, para muitos, as decisões de compra vêm sendo
baseadas em uma série de variáveis que extrapolam critérios como estética e
funcionalidade13.

Assim, pode-se dizer que, na contemporaneidade, ocorre uma dupla valoriza-


ção do artesanal – pois suas práticas têm adquirido novos entusiastas, e seus
produtos têm conquistado um mercado consumidor cada vez mais expressivo.
Destaca-se, ainda, que estes dois fenômenos são complementares entre si – por
uma questão de coerência, os adeptos do DIY tendem a ser, também, consu-
midores de produtos manufaturados; da mesma forma, quem admira e valoriza
o consumo de produtos artesanais, muitas vezes, desperta em si a vontade de
aprender a fazê-los.

Para esse segundo grupo, a Internet mostra-se particularmente interessante (TOR-


REY et al, 2009). Em virtude do seu caráter hipermidiático, sua capacidade infini-
ta de armazenamento, e do modelo de autocomunicação de massas (CASTELLS,
2015; 2016) – que, ao mesmo tempo, constrói e se alia à atual handmade hype
(VON BUSCH, 2010) –, essa plataforma tem se tornado um ambiente no qual os
usuários têm a possibilidade de encontrar e compartilhar os mais variados tipos de
projetos artesanais, de aprender diversas técnicas por meio de cursos e tutoriais
em vídeo, além de integrar comunidades criativas.

Destaca-se, ainda, que embora o acesso a muitos desses conteúdos seja inteiramen-
te gratuito, a popularização do interesse pelas práticas artesanais tem, também, feito
crescer a oferta de cursos e padrões pagos, criando uma nova possibilidade de ex-
ploração mercadológica deste nicho. As plataformas disponíveis para a comerciali-

13 Como exemplo, pode-se citar as preocupações relacionadas às condições de trabalho que de-
terminada empresa proporciona aos seus trabalhadores e à gestão dos resíduos gerados por seus
processos produtivos.

594
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

zação e a disponibilização deste tipo de produto são diversas14, assim como são as
plataformas empregadas para a comercialização de produtos prontos15.

Considerações finais: caminhos possíveis para a preservação


do bordado da Madeira
Com base no exposto, pode-se constatar que Internet16 fornece um ambiente pro-
pício às práticas artesanais em diversos aspectos. Dentre eles, destaca-se a sua in-
findável capacidade de armazenamento, que, aliando-se ao fato de se tratar de um
suporte hipermidiático, faz com que nela possam ser disponibilizados e dissemina-
dos os mais variados tipos de conteúdo. Estes, por sua vez, passam a ter alcance
potencialmente global a partir do momento que são integrados à rede das redes
(CASTELLS, 2016), além de se tornarem passíveis de serem arquivados por todos os
usuários que a eles tiverem acesso.

A Internet tem impulsionado, também, o ressurgimento do communal craft circle


(BRATICH & BRUSH, 2011), criando comunidades criativas em torno de práticas arte-
sanais como o bordado, o crochê e o tricô. Em meio a estas comunidades, verifica-se,
conforme discutiu-se no decorrer deste texto, o resgate e o aprofundamento do ca-
ráter social, lúdico, político e, até mesmo, terapêutico, associado ao artesanal em ou-
tros momentos da história. Além disso, a Internet tem estimulado significantemente
o comércio artesanal – suscitando, inclusive, a emergência de novas modalidades de
produto, como é o caso dos cursos online.

O bordado da Madeira, por sua vez, é, em todos os sentidos apontados, pouquíssi-


mo explorado em meio ao ambiente online. Embora algumas das casas de bordado
madeirenses, como a Bordal e a Patrício & Gouveia, possuam sites próprios, eles des-
tinam-se, sobretudo, ao recebimento de encomendas – alguns, contudo, sequer têm
uma plataforma de e-commerce integrada.

Nestes sites, os conteúdos informativos disponíveis dizem respeito, principalmen-


te, a aspectos históricos relacionados ao bordado da Madeira – o que configura-se
como um passo importante em termos de arquivamento memorial, mas insuficiente

14 Para padrões, destaca-se o site Ravelry, que além de permitir compra e venda de produtos pa-
gos, possibilita a disponibilização gratuita de determinados produtos, caso esta seja a opção do
seu criador, e permite que os seus usuários se comuniquem entre si. Para cursos online, utiliza-se
plataformas como Hotmart e Eduk.
15 Como o site Etsy, mais especificamente direcionado a produtos artesanais e a materiais para a pro-
dução deste tipo de produto. Destaca-se, contudo, que a comercialização desses artefatos também
ocorre em plataformas de vendas online mais abrangentes, como o Ebay.
16 Associada a outras tecnologias digitais, pois a característica hipermidiática desta plataforma
somente pode ser explorada com o auxílio de outras tecnologias.

595
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

para garantir a sua continuidade. Para que esta arte não seja extinta, é necessário
que os conhecimentos das suas bordadeiras sejam transmitidos e, para que esta
transmissão ocorra, é preciso conquistar o interesse de possíveis herdeiros.

No atual contexto, entretanto, para aprender as técnicas do bordado da Madeira,


deve-se estar, fisicamente, na Ilha da Madeira – o que, para muitos, consiste, por si
só, em um fator impeditivo. Além disso, devido à sua presença online pouco signifi-
cativa, é possível que o interesse em aprender o bordado da Madeira, mesmo entre
os membros das diversas comunidades criativas articuladas por meio da Internet,
sequer seja despertado.

Neste sentido, acredita-se que a Internet, aliada a outras tecnologias digitais, tem o
potencial de contribuir substancialmente não só para a preservação memorial do
bordado da Madeira, como já vem fazendo, mas também para que os seus 600 anos
de história não sejam, em breve, estacionados e, até mesmo, para fortalecer o seu
espaço em meio ao mercado consumidor.

É preciso, contudo, que esta arte se faça mais presente online, direcionando esfor-
ços, em um primeiro momento, à conquista do interesse das gerações mais jovens
e, em seguida, à transmissão de conhecimentos e técnicas, de modo a incentivar a
sua continuidade. Além disso, tornar-se parte da atual handmade hype (VON BUSCH,
2010), pode fazer, inclusive, com que o bordado da Madeira passe a ser visto, pelos
próprios jovens madeirenses, como mais do que uma atividade econômica mal re-
munerada – talvez, até mesmo, como uma oportunidade comercial.

Referências
AGÊNCIA LUSA (2017). Há apenas três mil bordadeiras na Madeira. Disponível
em: https://www.dnoticias.pt/madeira/ha-apenas-tres-mil-bordadeiras-na-madei-
ra-CE2071235#. Acesso em: 04 set. 2019.

BRATICH, J. Z.; BRUSH, H. M. (2011). Fabricating activism: craft work, popular cultu-
re, gender. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/305758566_
Fabricating_Activism_Craft-Work_Popular_Culture_Gender. Acesso em: 04 set.
2019.

CAMURÇA, S. (2007). ‘Nós Mulheres’ e nossa experiência comum. Disponível em:


http://www.articulacaodemulheres.org.br/wp-content/uploads/2015/06/Texto-ba-
se-2-Nós-Mulheres-e-nossa-experiência-comum.pdf. Acesso em: 04 set. 2019.

CASTELLS, M (2015). O poder da comunicação. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

____ (2016). A sociedade em rede. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 17ª edição.

596
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

CRAWFORD, A (1997). Ideas and Objects: The Arts and Crafts Movement in Britain.
Disponível em: https://www.jstor.org/stable/1511584?read-now=1&refreqid=excel-
sior%3Aedd03c77b6cb090bb95ea037f2b28214&seq=2#page_scan_tab_contents.
Acesso em: 04 set. 2019.

GARBER, E. (2013). Craft as activism. Disponível em: https://scholarscompass.vcu.


edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1394&context=jstae. Acesso em: 04 set. 2019.

GARRIDO, G. C. B. (2015). Dos conventos ao economuseu: Patrício & Gouveia


Lda. – Fábrica de Bordados. Disponível em: http://recil.grupolusofona.pt/hand-
le/10437/6880. Acesso em: 04 set. 2019.

GIDDENS, A. (2010). Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo


de nós. Rio de Janeiro, Record, 7ª edição.

GOMES, M. C. S. (2019). O bordado madeira: preservação de uma técnica artesanal.


Disponível em: https://www.repository.utl.pt/handle/10400.5/17775. Acesso em: 04
set. 2019.

HACKNEY, F. (2013). Quiet activism and the new amateur: the power of home and
hobby crafts. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/272145905_
Quiet_Activism_and_the_New_Amateur_The_Power_of_Home_and_Hobby_Crafts.
Acesso em: 04 set. 2019.

KRUGH, M. (2014). Joy in labour: the politicization of craft from the Arts and Crafts
movement to Etsy. Disponível em: https://www.utpjournals.press/doi/full/10.3138/
CRAS.2014.S06. Acesso em: 04 set. 2019.

LÉVY, P. (2010). Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 3ª edição.

MINAHAN, S. (2006). Making up (for) society? Stitch, bitch and organization.


Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/228740340_Making_up_
for_society_Stitch_bitch_and_organisation. Acesso em: 04 set. 2019.

TORREY, C.; CHURCHILL, E. F.; MCDONALD, D. W. (2009). Learning how: the search for
craft knowledge on the Internet. Disponível em: https://www.researchgate.net/pu-
blication/221515952_Learning_how_The_search_for_craft_knowledge_on_the_in-
ternet. Acesso em: 04 set. 2019.

VIEIRA, A. (2006). Bordado da Madeira. Funchal: Bordal.

VON BUSCH, O. (2010). Exploring net political craft: from collective to con-
nective. Disponível em: https://www.ingentaconnect.com/content/intellect/
crre/2010/00000001/00000001/art00007;jsessionid=74g25jhoeu5te.x-ic-live-01.
Acesso em: 04 set. 2019.

597
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Ana Luiza Buzato de Carvalho1 and


Sidney Tamai2
Relações contemporâneas no ambiente urbano:
alterações na percepção de tempo e espaço devido ao uso
de tecnologia no cotidiano
Contemporary relations in the urban environment: alterations on the perception of
time and space due to the use of dayly technology

Resumo
A percepção do espaço e tempo na sociedade contemporânea se transforma à medi-
da que novas tecnologias são inseridas no cotidiano das pessoas, revolucionando as
formas de comunicação e interação. Devido ao uso de smartphones e computadores,
o usuário interage com o espaço estabelecendo uma rede de conexões infinitas, con-
figurando uma arquitetura que promove maior interatividade. Portanto, a concepção
de espaço é relativizada, acarretando numa alteração dos parâmetros de quantifica-
ção do tempo. A percepção temporal, marcada pela efemeridade e velocidade dos
acontecimentos, não se caracteriza apenas pela mensuração quantitativa do tempo
mas adquire um caráter qualitativo. O tempo é percebido com intensidade variada,
tornando a memória o fio condutor dos eventos. Este artigo tem o objetivo de en-
tender os elementos que implicam nessa lógica de organização espacial e temporal
e reconhecer, na contemporaneidade, exemplos na arquitetura e no espaço urbano.
Palavras-chave: espaço urbano, relações contemporâneas, temporalidade,
memória, interatividade

Abstract/resumen/resumé
The perception of space and time in cotemporary society changes with the insertion
of technology on the the dayly activities,, transforming the ways we comunicate and
interact. Due to the increasing use of smartphones and computers, the user engag-
es with space creating an infint network, resulting in a more interactive architecture.
Therefore the concept of space is seen through a different perspective, entailing in a

1 Ana Luiza Buztao de Carvalho, graduanda da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” na Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, do curso de Arquitetura e Urbanismo, em
Bauru-SP, Brasil.
2 Sidney Tamai, Professor Doutor pela Universidade de São Paulo, Coautor, atualmente Professor do
curso de Artes e Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
na Faculdade de Arquititetura, Artes e Comunicação de Bauru-SP, Brasil .

598
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

alteration of the parameters of quantifing time. The temporal perception known by


the efemerity and velocity of the events is not carcterized only by a quantitative mea-
sure, but by a qualitative one. Time is sensed through a variation of intensity, in which
the memory becomes the thread that conducts the events. The porpouse of this paper
is to investigate the elements that compose the new logic of spacial and temporal or-
ganization, to find in the contemporary archtecture and urban spaces it’s exemples.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: urban spaces, contemporary relationships,
time, memory, interation

Tecnologia e a requalificação dos parâmetros


O espaço construído ao nosso redor demonstra as transformações históricas, sociais,
culturais, econômicas entre outras, vividas ao longo do tempo. É possível reconhecer
os acúmulos das camadas da cultura em nossas cidades de forma que a história do
local permanece gravada na arquitetura das cidades. Em conjunto com essa imagem
histórica concreta, passa a existir uma outra forma de vivência no espaço, dada pela
inserção cada vez maior no ambiente urbano cotidiano do uso de ferramentas digi-
tais e softwares. Portanto, o comportamento no espaço se transforma e novas formas
de interação vão surgindo, fazendo com que o ambiente urbano seja um grande
canteiro de experimentações.

Tal comportamento ocorre dentro da era técnico-informacional de alta velocidade,


onde as fronteiras espaciais e temporais foram relativizadas quando o advento da
internet foi difundido em escala global. Em nossa sociedade contemporânea, a in-
formação é disponibilizada em rede (internet), acessada por qualquer indivíduo que
nela se conecte, possibilitando que este também forneça dados para os demais dis-
positivos. Dessa forma, existe uma grande teia infinita, ultra rápida e sem fronteiras,
que permite a comunicação interativa entre os usuários.

Para entender esses processos dos quais resultam os tipo de relações contemporâ-
neas com o ambiente, outro fator deve ser destacado: o tempo. Devido a maneira de
contabilizar a passagem do tempo, segundos, minutos, horas, o entendimento des-
sa grandeza está relacionado à uma contagem quantitativa. Porém, o tempo pode
ser compreendido como experiência descolada de significado quantitativo, pois as
vivências diárias são gravadas com diferentes intensidade de sentimentos, muitas
vezes independente do fato de terem sido duradouras ou momentâneas. Dessa
forma pode ser estabelecida a passagem do tempo, algo vivido com intensidade,
qualificado pelo indivíduo. Outra maneira de percepção temporal presente é o fato
da descartabilidade e obsolescência intrínseca que vivenciamos hoje em dia com os
bens materiais e culturais, decorrentes do sistema capitalista de consumo. Portanto,
nos deparamos com formas variadas de entendimento e categorização do tempo e
como interagir com elas.

599
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Expansão: nova compreensão do real


O acesso à rede realizado através de um smartphone parece hoje ser apenas mais um ato
banal, já que pode ser feito por qualquer pessoa que tenha em mãos um aparelho. Po-
rém, essa “conquista” se dá por conta de um processo que há várias décadas é estudado
por pesquisadores, a relação que estabelecemos a partir das telas. Quando os computa-
dores se tornam miniaturas, a velocidade da informação e seu processamento em tem-
po real foi distribuído por todo espaço urbano e pela vida cotidiana (Beiguelman, 2016).

Desde o final do século XX, as tarefas do cotidiano passaram a ser alteradas pelo uso de
novos tecnologias de informação e comunicação, quando os computadores foram se
desenvolvendo, até chegarem a celula individual personalizada, o celular smartphone
(Nardelli, 2007). A partir disso, a tecnologia se torna cada vez mais digital, possibilitan-
do de forma inédita, que o acesso aos serviços ocorram de forma remota, sincrônica
ou assincrônica, dispensando o contato direto com a fonte (IBIDEM).

As telas dos computadores e smartphones nos permitem adentrar um universo com


uma forma nova de representação em profundidade, onde não ocorre um encontro
pessoalmente com o outro lado (Virilio, 1991). Esse espaço novo vence os limites
temporais e espaciais impostos anteriormente, expande-se para uma dimensão que
se organiza em redes e fluxos, capital, poder, informação, imagem, símbolos, entre
outros, que absorvem os lugares, os quais passam a ser inseridos nessa lógica de
organização (Beiguelman, 2017). Nesse contexto, o espaço arquitetônico também é
inserido na rede, revertendo os parâmetros temporais, fundindo seu limite espacial
para dentro dessa dimensão, sendo impossível separar o “aqui” e o “ali” (Virilio, 1991).

“O real engole tudo e nos põe no centro das redes interconectadas acessíveis, literalmente, na
palma da mão. Vivemos um mundo pós-virtual e isso não significa apostar numa volta ao mundo
analógico. Ao contrário. Significa assumir que as redes se tornaram tão presentes no cotidiano e
que o processo de digitalização da cultura é tão abrangente, que se tornou anacrônico pensar na
dicotomia real/virtual.” (Beiguelman, 2016)

Figura 1 – A cidade real e a rede de conexões sobrepostas – produção da autora.

600
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O cenário urbano contemporâneo se transforma de uma Ágora Digital, ou cyberspa-


ce, um espaço interconectado através das funções globais nele realizadas (Mitchell,
1996). Chamada de Realidade Aumentada, essa dimensão é tão importante que não
se pode dizer que seja virtual, pois se tornou uma extensão da realidade concreta. Se
trata de uma sobreposição sobre a cidade, e é nesse encontro entre as duas dimen-
sões que se estabelecem as relações interpessoais interativas com o espaço. A dife-
rença entre perto e longe, passado, presente e futuro, são dissipadas nesse encontro.

Figura 2 - produção da autora

Figura 3 - produção da autora

601
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Os diagramas acima representam as formas de produção e propagação de informa-


ção através dos aparelho de televisão, jornais e rádios (figura 1), referentes as últimas
décadas e seus meios de comunicação. Cada função estava contida dentro de sua
“caixa”, se ligando em cadeia com a próxima e dentro dessa lógica, os consumidores
têm um caráter estático. Em contrapartida, na segunda figura, os usuários são repre-
sentados pelas linhas, que conectam as funções de forma múltipla; nenhuma função
está fechada em si própria pois demanda em rede das demais, e não em cadeia e o
produto não está terminado. Dentro dessa lógica, ele conta com a interação do usu-
ário para obter um dos seus muitos finais.

Então, devido às novas formas de comunicação e o acesso à ferramentas como smar-


tphones, as distâncias são vencidas em escala global, invertendo a ordem anterior
de produção industrial e conectando as pessoas em uma rede múltipla. Por conta
disso, uma nova dimensão é criada, que coexiste com o espaço urbano concreto.
Essa dimensão coloca em questão o entendimento do espaço enquanto distância
percorrida, pois trabalha em grande velocidade e abrangência. E, ao parametrizar o
espaço, acaba colocando o aspecto do tempo em questão. Este também terá seus
parâmetros questionados, pois caminha em conjunto do espaço no entendimento
tradicional quantitativo.

Tempo e memória
A produção eficiente, estabelecida de redes de circulação e consumo já nos foi dada por
David Harvey (Tamai, 2018), quando ocorre a racionalização do espaço. Assim, memori-
zamos o tempo como vivências isoladas, ocasionando uma volatilidade dos estilos, com
ele moda, ideologias, entre outros, fazendo com que boa parte da vida seja descartável.

Desde a revolução industrial, em que as linhas de produção aceleram os processos e


há uma expansão e transformação exponencial na forma de consumo, o tempo se tor-
na um dos principais fatores dessa cadeia. A produção artesanal está ligada aos ritmos
da natureza, os ciclos das estações, o dia e a noite. O tempo das máquinas é indepen-
dente, possui ritmos específicos e fragmentados. Dessa forma o tempo é estabelecido
como uma categoria mensurável para o rendimento da produção.

De acordo com Bauman (1991), “Quando a distância percorrida numa unidade de


tempo passou a depender da tecnologia, de meios artificiais de transporte, todos os
limites à velocidade do movimento, existentes ou herdados, poderiam, em princípio,
ser transgredidos.” O sistema econômico se transforma ao longo das últimas décadas
e reorganiza toda a rede de relações, entre elas, a forma como as pessoas interagem
com o espaço urbano. A sociedade pós-moderna capitalista e globalizada deman-
da que a informação corra em alta velocidade, vencendo distâncias e os limites do
espaço físico, dialogando em altíssima velocidade com uma nova dimensão de rea-
lidade que existe embrenhada no modo de vida contemporâneo.

602
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A imposição dada pelo sistema de produção industrial de contabilizar e medir o tem-


po, difere da maneira que a sociedade contemporânea demanda. O entendimento
linear e quantitativo de mensurar o tempo se configura com características de espa-
ço, resultando em uma maneira muito impessoal. Como diz autor Bergson, (1950),
“A faculdade da inteligência e o raciocínio procuram, através do método analítico,
quantificam a passagem do tempo e, desta forma, tomam-no como uma grandeza a
ser medida, como uma extensão a ser mensurada.”

Considerando então o tempo como um fluxo contínuo, a experiência humana se


trata de uma duração. A percepção dos acontecimentos é naturalmente variada,
mesmo se tratando da mesma espécie, pois compartilhamos os mesmo receptores
(órgãos sensoriais), e varia tanto individualmente quanto em grupo (Tuan, 1974).
Portanto, colocando a percepção humana no centro dessa continuidade temporal,
a sucessão do tempo se desenrola nas transições das vivências. Logo, é a memória
humana responsável pelo prolongamento desse fluxo, identificando o antes o agora
e o depois, sem entendê-los isoladamente e independentes.

“Na arquitetura, em meio a sua imobilidade surpreendente, encontramos alguns efeitos análogos
ao do ritmo. A simetria da forma, a repetição indefinida de certo estilo arquitetônico, faz com
que a nossa percepção oscile entre o mesmo e o mesmo novamente, nos livrando das mudan-
ças costumeiras incessantes que na vida ordinária, nos traz de volta para a consciência da nossa
personalidade: até a mais simples sugestão de uma ideia será suficiente para essa ideia encher a
nossa mente.” (Henri Bergson, 1995)

Assim sendo, o entendimento do tempo como uma experiência de percepção indi-


vidual conflui com as tendências apresentadas de interação com o espaço. De ca-
ráter efêmero e com altíssima sucessão de informação, as formas de comunicação
contemporâneas expandidas na dimensão digital demandam que haja maior fluidez
na troca entre os integrantes da rede.

Considerando que a lógica da organização do espaço atualmente é dada em forma


de rede, conectando os usuários e relativizando as distâncias, a percepção do tempo
também sofre mudanças. O parâmetro utilizado para a medição do tempo resulta
em uma forma qualitativa, vinculada a vivência do indivíduo. O tempo passa a ser
percebido como um fluxo de acontecimentos. Dessa forma, a memória é o fio con-
dutor desse fluxo, pois através dela se tem a diferenciação de passado, presente e
futuro, de forma integrada às experiências vividas.

Assim, é possível estabelecer relações com o espaço através do tipo de experiência ali
vivida, de afeto ou desafeto, intensa ou pouco percebida, de acordo com a lembrança
que determinado acontecimento ocasiona. Os dois aspectos apresentados até aqui,
interação com o ambiente devido ao acesso a smartphones e a percepção individual
do tempo de forma qualitativa, terão de estabelecer uma relação com as dimensões

603
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

da realidade, concreta e aumentada. Essa relação será justamente a sobreposição dos


aspectos de espaço e tempos relativizados a partir da ótica do usuário.

Imagens e metáforas contemporâneas


O espaço urbano é o palco das relações humanas. A velocidade da mudança de es-
tilos e produtos e valores e lugares ultrapassou a velocidade que a cidade se trans-
forma, estabelecendo um outro tipo de relação com espaço. A noção de realidade é
transformada junto com as ferramentas que a tecnologia digital oferece. E a arquite-
tura é parte responsável desse aspecto, pois ela configura o entorno.

As pessoas estão no limiar desses dois universos: a cidade construída, secular; e a ci-
dade aumentada, momentânea de transformação constante. Uma sofre com as im-
posições, limites e falhas da outra, onde o usuário/morador experiencia essa tensão.

Os estranho se encontram numa maneira adequada a estranhos;[...] parece um desencontro. O


encontro de estranhos é um evento sem passado. Frequentemente é também um evento sem fu-
turo.[...] No momento do encontro não há espaço para tentativa e erro, nem aprendizado a partir
do erros ou expectativa de outra oportunidade. (Bauman,1991)

Nesse ambiente de estranhos somos convidados a atuar. A cidade nos oferece for-
mas de criar relações e não-relações. Em nosso dia a dia vivenciamos os espaços
em diferentes escalas e com eles criamos diferentes relações. Construímos espaços
afetivos com a cidade, os quais atribuímos sentimentos, bons ou ruins. Por outro
lado, também experienciamos espaços anônimos, aqueles que mal construímos me-
mória. Essa relação estabelecida com o espaço é decorrente da velocidade com que
o espaço se transforma. A volatilidade e efemeridade das relações gera em nós uma
contrapartida afetiva que tende a ser momentânea, casual, que logo se dissipa.

Figura 4 – Estação da Luz, São Paulo, maio 2019 – fotos da autora;

604
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O conteúdo emotivo surge no encontro com a obra e a projeção que o observador


faz de aspectos de si mesmo nela (Pallasmaa, 2014). Assim, nos relacionamos com
os espaços na forma de imagens e metáforas. A arquitetura emoldura, estrutura, dá
escala e põe ritmo na nossa experiência com o mundo, sempre sendo mediadora
entre a experiência humana e o espaço. Se trata da construção concreta da ordem
social, ideológica e mental, cultural, chegando até nós através de metáforas.

As emoções que derivam da forma e do espaço surgem a partir de diferentes confrontos entre o
homem e a matéria. Um impacto arquitetônico emocional está ligado a um ato não um objeto
ou um elemento visual figurativo. Consequentemente, a fenomenologia da arquitetura se funda-
menta em verbos não substantivos. (Pallasmaa, 1994)

Sendo assim, relacionamos experiências e criamos imagens metafóricas que nos


fornecem meios de interagir com o ambiente; direcionamos as nossas associações,
emoções, reações e pensamentos, que causam em nós sentimentos variados, à par-
tir de imagens que não respondem de forma lógica, pois tem caráter poético e trans-
cendem o material e racional (Palasmaa, 2014). As metáforas são formas de domes-
ticar o espaço e o tempo, criando imagens que representam a ocupação humana
através do ato de construir (IBIDEM). A ordem social, ideológica, cultural e mental
são concretizadas pela arquitetura, atribuindo características metafóricas as suas
construções (IBIDEM).

As metáforas e os arquétipos da arquitetura são, por exemplo, a janela, que trans-


cende o fato de ser a abertura de um cômodo para o entrada de luz, ela é uma
moldura que mostra o que algo além do plano em que se está; ela faz um convite
para olhar através dela. Segundo Pallasma (2013),: “Uma metáfora de arquitetura
é uma entidade experimental extremamente abstraída e condensada que funde
a multiplicidade de experiências humanas em uma imagem vivenciada singular
ou em uma sequência de tais imagens.” Na arquitetura contemporânea, paredes e
portas de vidro permitem que haja entrada da luz e que se veja o que está em ou-
tro plano; a metáfora da janela não acontece mais da mesma forma. Porém, ainda
deve existir nos ambientes, elementos que causem nos usuários essa intenção que
fora representada pela janela.

Bachelard (1958), diz: “Uma imagem é uma irrealidade que não tem características
além das conferidas por nós.” Ou seja, ainda há, no espaço contemporâneo, a neces-
sidade de haver janelas, mas será o usuário que encontrará uma forma de expressá-la
em outra metáfora, dentro das características que impostas ou demandas. O ambiente
existente serve de base para as novas metáforas, criando uma colagem temporal de
uso múltiplo para a necessidade momentânea, obedecendo a lógica espacial e tem-
poral anteriormente apresentadas. Essa colagem, por ter como princípio o aspecto
descartável, não precisa assumir todas as responsabilidades de uma obra duradoura.

605
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Possibilidades
Projetado na cidade de Nova York pelo artista mexicano Rafael Lozano-Hemmer para
a celebração anual “Summer Streets” em 2013, a intervenção interativa “Voice Tun-
nel” teve a intenção de transformar o túnel da Park Avenue. A instalação é composta
por 300 pontos de luz que tem sua intensidade alterada de acordo com o volume
das vozes dos pedestres que passam pelo túnel. Os sensores gravam as intensidades
partindo do zero (silêncio). A gravação é repetida até que haja uma nova variação,
sendo subistituída e assim sucessivamente, gerando um desenho luminoso único.

O tipo de interação do usuário com o ambiente nessa caso apresentado acontece


através do simples ato de passagem pelo espaço, característica cotidiana e passa-
geira para o usuário, resultando em uma intervenção efêmera no ambiente urbano.

Figura 5 e 6 – Voice Tunnel, variação nas intensidades e frequências luminosas no túnel da Park
Avenue, Nova York, 2013. Disponível em: lozano-hemmer.com/voice_tunnel.php

Em 2016, o Arquiteto brasileiro Guto Requena projetou para o Parque Olímpico o


“Dance Pavillion”, um pavilhão interativo, composto por sensores que captavam a
música e agitação da dança das pessoas, transformando em energia cinética e mo-
vimentando placas em todas as fachadas do pavilhão. Esse exemplo de instalação,
também de caráter efêmero por ser parte de evento finito e periódico, pode ser clas-
sificada dentro dos conceitos relacionados sobre o entendimento de espaço e tem-
po explorados anteriormente, pois para que a obra arquitetônica seja finalizada e
apreciada, conta com a interação do usuário e resultará sempre em um produto final
variado. O processo de interação envolvido tem o mesmo valor que o produto final,
sendo que são determinantes mutuamente para a completude que a obra explora.

606
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 6 e 7 – Fachada do “Dance Pavillion” no Parque Olímpico. Rio de Janeiro, 2016.


Disponível em: gutorequena.com/dancing-pavilion

O aplicativo de serviço de taxi “Uber” também apresenta características de organiza-


ção contemporâneas no espaço urbano. A solicitação do serviço de corridas de carro
é feito através de um smartphone para o outro, podendo ser conectado a demais
usuários que dividirão a viagem; os motoristas também estão conectados com os
passageiros e poderão avaliar a qualidade do serviço prestado, o que irá classificar
ambos lados de acordo com a satisfação de cada parte. Para se vincular ao serviço
o veículo a ser utilizado deve estar de acordo com exigências da empresa, e após a
aprovação, o motorista tem total liberdade de escolher quando prestará o serviço.
Os passageiros solicitam as corridas de acordo com suas demandas pessoais, sem
ter a necessidade de possuir um carro. Logo, essa forma de serviço indica a multipli-
cidade de uso de uma ferramenta, como um carro, dentro de uma demanda que é a
mobilidade urbana.

Considerações finais
As formas de comunicação e relações interpessoais se transformaram ao longo das
últimas décadas dada a inserção dos aparelhos digitais, computadores, e smartpho-
nes no cotidiano. As fronteiras físicas são vencidas e uma nova dimensão de realida-
de é instalada, se tornando tão real que já não pode ser definida como virtual e sim
como realidade aumentada. Dessa forma, a vivência humana passa a ser norteada
por essa lógica de fluxos informacionais, em alta velocidade, numa sucessão contí-
nua e efêmera de acontecimentos, estilos, modas.

A efemeridade dessa organização exige que haja uma compreensão mais qualitativa
do tempo, diferindo das formas anteriores de medição quantitativa desse aspecto.
O tempo pode ser experienciado de acordo com a percepção individual, onde a me-
mória é que estabelece uma linearidade na fluidez dos acontecimentos. sendo o
principal mediador da sucessão contínua das vivências.

607
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Para dialogar com esse formato contemporâneo, a cidade, espaço urbano concreto,
precisa conseguir se adequar às mudanças fragmentadas do modo de vida, pois é o
principal palco onde essas experiências tomam forma. A partir de metáforas criadas
pelos usuários dos espaços, as imagens são relacionadas e requalificadas de modo
que os serviços, eventos e demais demandas se adequem a esse formato. Através
de conexões em rede, multidisciplinares, dentro da realidade aumentada, o espaço
urbano contemporâneo deve dialogar com a cidade concreta, criando um ambiente
híbrido de relações humanas interpessoais, sendo o ponto central onde o convite a
ação e intervenção.

Referências
Bacherlard, G. (1989). A Poética do Espaço (5ª ed.). São Paulo: Martins Fontes.

Bauman, Z. (2001). Modernidade Líquida (1ª ed.). Rio de Janeiro: Zahar.

Bauman, Z. (2007). Tempos Líquidos.(1ª ed.). Rio de Janeiro: Zahar.

Bauman, Z. (2005). Vida Líquida. (1ª ed.). Rio de Janeiro: Zahar.

Beiguelman, G. (2016). Da cidade interativa às memórias corrompidas: Arte, design


e patrimônio histórico na cultura urbana contemporânea. Tese Livre-docência, Uni-
versidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.

Bergson, H. (1950). Time and free will. (1ª ed.) Londres: George Allen & Unwin Ltd.

Lozano-Hemmer, R. (2013). Voice Tunnel [Website] Recuperado a partir de http://


lozano-hemmer.com/voice_tunnel.php/

Mitchell, W. (1996). City of Bits: space, place and the infoban. (1ª ed.). Cambridge: The
Mit Press.

Moherdaiu, L.; Beiguelman, G (2018). Telas Urbanas: Uma contribuição para a arqui-
tetura reconfigurar os espaços de fluxos. Tese Pós-doutorado, Universidade de São
Paulo, São Paulo, SP, Brasil.

Nardelli, E. (2007, Janeiro) Arquitetura e projeto na era digital. Arquiteturarevista, São


Leopoldo, v. 3, n. 1, p.28-36.

Pallasmaa, J. (2013). A Imagem Corporificada: Imaginário e Imaginação na Arquitetu-


ra. (1ª ed.). Porto Alegre: Bookman.

Pallasmaa, J. (2017). Habitar. (1ªed.). São Paulo: Gustavo Gili.

608
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Requena, G. (2016). Dance Pavillion [Website]. Recuperado a partir de http:// guto-


requena.com/dancing-pavilion/

Tamai, S. (2018). Arquitetura, a arte do tempo. #17 Encontro Internacional de Arte e


Tecnologia, 17, 537-553.

Tuan, Y.(2012). Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio am-


biente. Londrina: Eduel, pp11.

Virilio, P. (1991). The lost dimenstion. (1ª ed.). Nova Iorque: Semiotext.

609
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Carlos Henrique Rezende Falci1


Paisagens maquínicas: a materialidade da memória como
função da performance algorítmica
Machinic landscapes: memory materiality as a function of algorithm performance

Resumo
Nesse artigo analiso duas obras que conjugam o uso de algoritmos com materia-
lidades físicas e criam paisagens maquínicas “imaginárias”, cuja base física é resul-
tado do processamento de dados feitos por softwares e modelos para criação de
imagens. A primeira obra analisada é Orogenesis, criação de Joan Fontcuberta,
em que o fotógrafo cria as imagens a partir de um software de representação de
terrenos reais em imagens tridimensionais, dando ao programa pinturas de artis-
tas como Mark Rothko, Paul Cezánne, entre outros. A segunda obra é Postcards
from Google Earth, de Clement Valla, em que o artista discute como o sistema de
mapeamento de imagens utilizado pelo Google Earth produz imagens em 3D de
locais da terra e “deforma” alguns lugares. Proponho pensar tais elementos como
parte de aparatos maquínicos capazes de produzir “memórias” próprias. Recorro à
arquelogia da mídia e ao conceito de microtempore(a)lidades, de Wolfgang Ernst,
e às noções de ruína e rastro, em Walter Benjamim e Jeanne Marie Gagnebin.
Palavras-chave: paisagem maquínica, performance algorítmica, materialidades
da memória

Abstract/resumen/resumé
In this article, I analyze two artworks that mix the use of algorithms and physical
materialities to create imaginary machinic landscapes, whose physical foundation
is a consequence of data processing made by softwares and image creation models.
The first artwork analyzed is Orogenesis, by Joan Fontcuberta. The artist creates im-
ages using a software to represent real terrains as tridimensional images, providing
paintings made by Mark Rothko, Paul Cezánne, amongst others. The second artwork
is Postcards from Google Earth, by Clement Valla. The artist discusses the process of
image mapping used by Google Earth to produce 3D images from specific places on
Earth, and how this process deforms these places. I am interested in investigating how
these machinic apparatuses produce their “own” memories. To do so, I discuss media

1 Carlos Falci, professor associado da UFMG. Pesquisa as relações entre arte, memória e tecnologia.
Membro do Programa de Pós-Graduação em Artes, atua na linha de pesquisa em Poéticas Tecno-
lógicas. Atualmente desenvolve trabalho sobre políticas de memória em ambientes programáveis.

610
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

archaeology and the concepts of microtempore(a)lities, from Wolfgang Ernst, and no-
tions of ruins and traces, from Walter Benjamim and Jeanne Marie Gagnebin.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: machinic landscape, algorithmic performance,
memory materialities
Este artigo propõe uma discussão sobre as materialidades da memória em ambien-
tes programáveis. No caso deste texto específico, me debruço sobre duas obras –
Orogenesis, de Joan Fontcuberta; e Postcards from Google Earth, de Clement Valla
– para discutir como as paisagens maquínicas criadas pelos dois artistas nos permi-
tem ver uma memória em performance. Defendo que tais paisagens são tornadas
possíveis justamente porque são resultado de uma performance algorítmica que
torna visíveis memórias de objetos algorítmicos; memórias que por isso mesmo são
dinâmicas, são temporárias, apresentam-se em estado de vir a ser permanente. Para
realizar a análise recorro aos conceitos de arqueologia da mídia e microtempor(e)
alidades conforme desenvolvido por Wolfgang Ernst; bem como às noções de rastro
e ruína em Walter Benjamim, Jeanne-Marie Gagnebin e Fernanda Bruno; e ao con-
ceito de paisagem, conforme discutido por Jean-Marc Besse. As discussões de Ernst
sobre arqueologia da mídia e microtempor(e)alidades fornecem uma base impor-
tante para pensar de que maneira os aparatos maquínicos são capazes de perceber
traços e rastros cujas qualidades não são, em princípio, simbolicamente importantes
para nossa perceção. Dito de outro modo, os aparatos trabalham com conjuntos de
informações em nível micro, como determinados grupos de metadados, ou mesmo
elementos técnicos cujo mapeamento é fundamental para que os softwares saibam
reconhecer as informações que estão recebendo e devem processar. Essas informa-
ções podem ser vistas como rastros, como traços, considerando as discussões de
Jeanne-Marie Gagnebin, Walter Benjamim e Fernanda Bruno, sobre esses conceitos.
Tomamos aqui tais termos porque dizem respeito a materialidades da memória num
estado ainda incipiente, em que evocam tanto algo que já aconteceu quanto algo
cuja presença é inaugural, uma vez que rastros e traços não são elementos acabados.

Rastros, traços, dados e metadados


Os rastros seriam tanto as marcas de que algo se passou, ou de que algo passou por
um lugar, bem como a ação que produziu aquela marca, aquele vestígio. A passa-
gem que produz a marca confere ao traço uma dinâmica, a possibilidade de resgatar
a narrativa que criou tal marca da passagem; e ao mesmo tempo, essa marca tem
uma permanência no aqui e no agora, fundamentalmente ligada ao documento que
contém o rastro. Este, então, é ao mesmo tempo móvel e estático, porque fala de
um ato que aconteceu e se faz visível naquele momento em que é reconhecido en-
quanto tal, numa inscrição mais duradoura. Nesse sentido, é construído na própria
busca de um lugar passado e não somente como a confirmação de que esse lugar
passado existiu. Por essa razão, entendo que o rastro não pode ser dissociado da

611
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

operação que produz textualidades capazes de autorizar uma determinada memó-


ria e de terem autoridade sobre a mesma. As obras em análise nesse artigo são como
textualidades criando memórias derivadas da forma como os aparatos maquínicos
autorizam determinados conjuntos de dados a performarem as imagens que vemos.

A qualidade paradoxal dos rastros, que me remete à ideia de equivocidade, é indi-


cada por Jeanne Marie Gagnebin (2012) ao tratar do tema, em sua leitura de Wal-
ter Benjamin. Segundo a autora, o rastro é marcado por uma fragilidade, pois está
sempre sob a ameaça de ser apagado, “ou de não ser reconhecido como signo de
algo que assinala”. (GAGNEBIN, 2012, pp. 27). Nesse ponto, me interessa a abertura
do traço como algo aleatório, não intencional, e que pode vir a indicar não o que se
passou, mas sim aquilo que está sendo construído pela própria autorização da sua
presença. Como presença de uma ausência, o rastro nos permitiria, ao olharmos
para os detalhes que indicam os traços de uma ação, entrar em contato com os pro-
cessos de autorização dos quais sobraram tais rastros. Ao mesmo tempo, como são
ausência de uma presença, os rastros podem apontar para a ambiguidade e a fissura
dos processos de autorização, o que acontece no mesmo instante em que buscamos
ver o que os traços indicam. Caberia a cada um (humanos e não-humanos), envol-
vido dentro de um agenciamento que investiga os rastros, construir as relações de
autorização que eles poderiam vir a indicar.

O caráter instável e aberto dos rastros se faz presente na reflexão de Fernanda Bruno
(2012) sobre esses elementos em formato digital. A autora defende que toda e qual-
quer ação nas redes provoca rastros potencialmente recuperáveis e tais traços são em
número e variedade bastante significativos. Numa tentativa de delimitar o que seriam
os rastros digitais, a pesquisadora indica o que denomina de postulados sobre os ras-
tros digitais. Sem elencar tal lista, quero, no entanto, tomar os caracteres gerais enume-
rados por Fernanda Bruno, que nos parecem bastante apropriados para dialogarmos
com a nossa pergunta. Os rastros são aqui também prenhes de ambiguidade, pois são
quase-objetos (Serres, 1991) e estão entre as ideias de presença e ausência; duração
e transitoriedade; identidade e anonimato, entre outras, não podendo ser capturados
em nenhuma das duas pontas de qualquer um dos pares. Não são, igualmente, um
ponto de equilíbrio entre opostos. Pelo contrário, estão numa situação de quase exis-
tência, o que lhes dá um caráter polissêmico, fragmentário e ambíguo. Os rastros são,
em todos os casos, mais ou menos: recuperáveis, voluntários ou conscientes, atrelados
à identidade de quem os produz, duráveis ou persistentes. São elementos cuja potên-
cia de descrição de uma ação não esgota o que a ação pode significar e, por isso, nos
parecem muito apropriados para traçarmos os modos como algoritmos e metadados
se relacionam com processos de autorização executados por algoritmos e softwares,
como é o caso das obras em análise nesse artigo.

Metadados podem ser considerados tanto uma descrição sobre um conjunto de dados
quanto o seu modo de funcionamento num determinado contexto, se analisarmos a

612
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

forma como foram criados. (Manovich, 2002; Matthews, Aston, 2012). Num sentido mais
geral, os metadados são o que permitem que o computador recupere informações,
porque propiciam ao computador manipular os dados, além de realizar diversas outras
tarefas, como mover os dados, comprimi-los, etc (Manovich, 2002). O computador cria
uma relação de reconhecimento, mas também de apropriação dos dados através dos
metadados. A apropriação é como a institucionalização que o estabelecimento de um
arquivo gera em relação a documentos específicos. No entanto, os metadados não são
arquivos em si; podem, no máximo, serem conectados com rastros de uma ação. Quan-
do há uma apropriação de um conjunto de metadados numa organização eventual (a
partir da ação de grupos de algoritmos, por exemplo, para produzir uma visualização de
informações numa interface), inicia-se a criação de uma marca temporal, semelhante a
um rastro, a um vestígio de uma ação no tempo. Aqui entra a questão da memória como
função de uma performance algorítmica. Tanto em Orogênesis quanto em Postcards
from Google Earth, entendo que os artistas colocam em questão justamente os pro-
cedimentos de autorização que fazem surgir as imagens que produzem. Esses proce-
dimentos de autorização são o que eu denomino aqui de performance algorítmica. Os
algoritmos, ao servirem de base para que os programas reconheçam os metadados e os
leiam de maneiras específicas, se relacionam então com um tipo de sensibilidade cuja
qualidade é da ordem do cálculo, de uma outra forma narrativa. Os procedimentos de
autorização que vão fazer surgir as imagens nas obras analisadas seriam de uma ordem
que se aproxima daquilo que Wolfgang Ernst chama de arquivos tecno-culturais, na sua
abordagem sobre uma arqueologia da mídia.

Arqueologia da mídia
Wolfgang Ernst propõe a arqueologia da mídia como “uma abordagem epistemológi-
ca alternativa à supremacia das abordagens narrativas históricas sobre os media”. (Er-
nst, 2013, pp. 55) Os princípios do programa de arqueologia da mídia tem como base
a tentativa de compreender os momentos em que as mídias, e não apenas os huma-
nos, se tornariam os arquivistas do conhecimento. Ou seja, junto com uma memória
semanticamente ancorada no discurso histórico tradicional, começa a funcionar uma
semântica dos objetos técnicos. O teórico alemão defende que a arqueologia da mídia
deve praticar uma forma de engenharia reversa sobre os objetos técnicos, buscando
os verdadeiros arquivos dos media, os códigos-fonte. Estes implicariam muito menos
as origens históricas dos media e muito mais as suas regras de funcionamento. Para
tanto, é necessária uma abordagem mais voltada para os aspectos lógicos e de cálculo
envolvidos nas características técnicas dos aparatos midiáticos.

O foco de estudos da arqueologia da mídia são as práticas discursivas específicas ou


especificadas em elementos dos arquivos tecnoculturais. Ernst afirma que a arque-
ologia da mídia está

613
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

“interessada primariamente na infra-estrutura não discursiva e nos programas (escondidos) dos


media. Assim, ela mudaria seu âmbito de análise de uma perspectiva historiográfica para um
modo tecnoarquivístico (arqueografia), descrevendo as práticas não discursivas especificadas nos
elementos dos arquivos tecno-culturais.”2 (tradução nossa) (ERNST, 2013, pp. 59)

Trata-se de investigar o processo pelo qual os artefatos tecnoculturais tem os seus


sinais mensurados por outras máquinas. Uma vez que são artefatos cujos sinais es-
capariam à percepção humana, no seu aspecto físico, somente outras máquinas se-
riam capazes de criar e reconhecer tais arquivos. Estes atos de reconhecimento de
sinais gerariam memória, uma vez que geram materialidades reconhecíveis pelos
aparatos maquínicos, que deixam rastro de suas ações no tempo. O rastro a nos refe-
rimos vai além daquele rastro histórico temporal.

Ernst aponta para processos matemáticos estocásticos, para um desdobramento de


camadas temporais para além das ordens narrativas históricas. Ou, dito de outra ma-
neira, para um outro olhar “histórico”. Mas, afinal, como se delimita o que é o olhar
histórico? No caso de ambientes programáveis, vemos que tais objetos manifestam
ou podem manifestar sua percepção através do processamento de sinais não per-
ceptíveis do ponto de vista humano. Jussi Parikka, na introdução que faz sobre o li-
vro de Wolfgang Ernst, lembra da descontinuidade entre o tempo cultural (religioso,
político, social, econômico) e o que ele chama de emergência de um tempo genui-
namente baseado no tempo midiático. A despeito de uma dicotomia que pode se
revelar infrutífera, destaco nesse aspecto as várias maneiras de produzir uma tem-
poralidade baseada no tempo midiático e como ela se mistura às temporalidades
culturais, interferindo na sua produção. Obviamente, essa mesma temporalidade diz
respeito a um modo narrativo específico de agrupar dados para ordenar a experi-
ência de mundo. Tal ordenação seria a forma da memória aparecer materialmente
na sua relação com as coisas; dito de outro forma, seria uma narrativa de memória
que opera não necessariamente mais somente no nível simbólico humano, mas atua
sobre uma dimensão não-cultural dos regimes tecnológicos.

Na visão de Ernst, a arqueologia da mídia se apresenta no momento de uma crise


da narrativa cultural da memória. Esta arqueologia estaria baseada numa discre-
tização matemática, numa divisão dos elementos que vão compor alguma coisa
chamada “memória”, que não está mais automaticamente colada à noção de his-
tória. A cultura computacional não estaria mais ligada às narrativas históricas de
memória, mas a calculabilidade da memória. Como falar de uma memória que
calcula, de uma memória que não é narrativa, mas que se organiza através de uni-

2 Media archaeology is primarily interested in the nondiscursive infrastructure and (hidden) programs
of media. Thus it turns from the historiographical to the technoarchival (archaeographical) mode, des-
cribing the nondiscursive practices specified in the elements of the technocultural archive.

614
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

dades discretas? Não me parece pertinente condená-la ao terreno da memória


fragmentada como um local negativo. Antes, é aí que reside sua potência, numa
fragmentação matemática em unidades discretas e calculáveis. Qual seria, então, a
poética do cálculo da memória?

Um dos caminhos apontados por Ernst é o de buscar as formas algorítmicas da escri-


ta, os processos de comunicação invisíveis ou não perceptíveis que orientam a ação
dos aparatos maquínicos. A ideia seria reconstruir as matrizes generativas criadas
através e pelos dispositivos midiáticos, de modo a descrever as formas não-narrati-
vas através das quais tais aparatos operam. Poderíamos pensar em microtemporali-
dades da memória, uma vem que as diversas formas de escrita (as não-narrativas aí
incluídas) são organizações temporais? Ou em uma memória algorítmica? Por que
falar que a media calculacional é temporal?

A primeira visada que surge é a de que um algoritmo é uma execução de cálculos


num determinado tempo, definido pelo próprio modo como o algoritmo roda. Mas
pode-se dizer, sobre essa última observação, que isso acontece da mesma forma
num ambiente não-programável. O que talvez seja diferente é que a própria existên-
cia de um registro, da chance de sua fisicalidade aparecer, é uma medida calculável,
que poderia então ser delimitada temporalmente para além do tempo cultural ou
externo ao programa. Um media fundado numa medida computacional não é, em
princípio, um arquivo que existe sempre num espaço e tempo definidos. Ele pode
ou não vir a se configurar como parte de uma memória, ou mesmo ser materializado
fisicamente em função de cálculos num determinado limite de tempo.

A questão da memória seria então imaginar uma ontologia baseada no cálculo, e


não mais numa lógica de representação. O registro do tempo estaria associado não
a uma lógica exclusivamente narrativa de causa e efeito, mas de olhar para o modo
como as máquinas registram o tempo. Ernst propõe pensarmos em dynarchives3, os
quais funcionariam como objetos algorítmicos. Um objeto algorítmico é uma função
de um código de programação e do modo como ele será posto em funcionamento.
Logo, a memória a ele associada é processual, não existe como um bloco fixo e passa
a existir em um regime próprio do programável. Esse seria o arquivo latente, um ar-
quivo em potência de existir, e cujo poder de memória está menos nele que no códi-
go de programação que poderá fazer com que ele exista como um reagrupamento.
A memória se torna, então, aparição. Assim, a essência da estrutura do arquivo é
menos o material arquivado em si, e mais uma concepção dinâmica de arquivo. Se
o arquivo é uma função do programável, ele é uma probabilidade temporal. Para os
conjuntos de agentes não-humanos, são outras temporalidades que passam a fazer
sentido, compostas de iterações, recursões. E elas podem tornar-se culturalmente

3 Arquivos dinâmicos

615
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

relevantes, considerandos os aparatos digitais de memória. Tais temporalidades são


o que Ernst denomina de microtempore(a)lidades.

Microtempor(e)alidades
De que maneira os tempos rítmicos dos aparatos técnicos afetam não só a nossa
percepção temporal, mas a própria forma de capturar e registrar aquilo que está
diante dos aparatos digitais? No caso destes aparatos, as estruturas algorítmicas são
agentes de captura importantes; e uma vez que são também estruturas temporais
de processamento da informação, o que elas fazem é produzir um registro cujo tem-
po tem uma lógica específica relacionada ao modo como o algoritmo processa a in-
formação. O tempo está sujeito ao modo como esta lógica algorítmica compreende
a forma como o sinal será processado. São dois tipos de micro-temporalidades em
jogo, afetando tecnicamente o que chamamos de arquivo e sua “narrativa” de me-
mória. Ernst faz uma diferença entre a transmissão em tempo real, e a transmissão
do sinal digital, que já carregaria em si uma microtemporalidade relativa à compu-
tação intermediária, necessária para que o sinal seja compreendido e exibido num
formato entendível por uma pessoa. Embora a transmissão do digital aconteça num
“tempo real”, há sempre um pequeno que faz com que estejamos sempre diante
de um passado produzido pela maneira como o algoritmo lê as informações que
chegam até ele. Essa seria a micro-temporalidade do digital. O que vemos na tela,
como resultado da transmissão, são arquivos dinâmicos, que muito se assemelham
à ideia do rastro, como aquilo que está presente, mas também ausente, como aqui-
lo que está destinado a desvanecer com o tempo e, nesse caso, com o tempo do
processamento dos aparatos maquínicos. Estamos diante da geração de um tempo
próprio ao algoritmo como um tempo de memória. Não mais o registro de uma tem-
poralidade do evento, mas a criação de um evento com temporalidade específica, e
que também pode se relacionar com aquilo que foi capturado pelo sinal digital. O
arquivo define o que será arquivado, na lógica derrideana (DERRIDA, 2001); produz,
assim, sua própria memória, uma temporalidade específica do algoritmo.

Os micro-momentos de arquivamento produzidos pela lógica não-alfabética dos


aparatos criariam tempo(re)alidades específicas de cada forma de processamento
dos sinais que chegam até os dispositivos. Não se trata mais de arquivar apenas o
valor simbólico do presente, mas de criar arquivos que apresentam micro-momen-
tos, cuja sensibilidade é capturada diretamente pela máquina e integrada ao arquivo
como nós o chamamos. Assim, modifica-se também aquilo que Derrida chamaria
de , os procedimentos que regulam o que pode ser aquivado, bem como o quê ou
quem pode acessar os arquivos. Ernst defende, e corroboramos tal visada, que as
tecnologias de registro tornam possível armazenar, repetir e manipular a presença.
É como se cada rastro aí guardado carregasse uma qualidade de ruína, no sentido
benjaminiano do termo. A ruína, por dizer de algo que foi impedido de continuar a
existir, marca a si mesma como um ato inaugural no presente, como uma apresen-

616
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

tação de outras possibilidades de existência. A ruína, mais do que falar de um pas-


sado, inaugura sua própria temporalidade. O arquivo algorítmico, por estar sendo
constantemente reconstruído, talvez carregue essa qualidade de ruína, de ter uma
qualidade de ser apenas porque é capaz de se dissolver, de passar, de se mostrar
enquanto uma presença constantemente em aberto.

Os arquivos se tornam memórias apenas temporariamente, quando algum padrão


de programação os faz aparecerem em conexão. Assim, a materialidade da memória
não estaria mais na classificação, no armazenamento fixo, mas no modo como pro-
veniência e pertinência se interpenetram, porque tanto a materialidade do armaze-
namento quanto a forma de circulação podem delimitar a que tipo de memória o
arquivo dá acesso, que tipo de memória ele sugere sobre si mesmo. O nível simbó-
lico maquínico envolvido nessas formas de reconhecimento já é baseado também
num tipo de memória cada vez mais tecnocultural. Os modos de organização da
memória e, logo, os modos de criação de arquivos passam a seguir e propor lógicas
cujo princípio passa pela forma como os softwares reconhecem as informações. E
esse reconhecimento é cada vez mais organizado por metadados. Talvez eles pos-
sam ser pensados como novas formas de arcontes. A decomposição dos arquivos
digitais a partir de lógicas matemáticas permite também combinações de memória
que demandam outras formas de leitura daquilo que aparece nas interfaces. Penso
que a lógica por trás dessa constatação se relaciona com a ideia de uma temporali-
dade mais fluida, que pode ser revisitada, e que pode sofrer novas interferências a
todo momento. O tempo não seria uma cadeia linear fechada de acontecimentos,
mas um encadeamento sempre frágil de microtempor(e)alidades produzidas pela
conjugação de arquivos das mais variadas formas.

O conceito de uma memória sendo performada me parece bastante apropriado para


descrever esse movimento. Tratar-se-ia de uma memória que exige ser performada
matematicamente, inclusive para ser reconhecida como tal. A noção de performan-
ce, e de performar o seu próprio significado, mais do que transmitir um outro signifi-
cado, é cada vez mais forte nos dispositivos midiáticos. As obras que nos propomos
a analisar criam paisagens maquínicas que nos parecem baseadas exatamente na
ideia de uma performance algorítmica.

As obras
Em “Orogenesis”4, Joan Fontcuberta cria suas paisagens digitais fornecendo a um
software, como base de criação, pinturas feitas por artistas como Mark Rothko, Paul
Cézanne, William Turner5; ou imagens de partes do corpo. O programa Terragen foi

4 Disponível em http://www.fontcuberta.com/. Acesso em 09 de setembro de 2019.


5 Disponível em https://labvis.eba.ufrj.br/paisagens-sem-memorias/. Acesso em 09 de setembro de 2019.

617
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

projetado para processar dados e metadados cartográficos e representar terrenos


que corresponderiam a tais dados, criando as imagens com algumas características
manipuláveis como: condições climáticas, quantidade de água no local, caracterís-
ticas topográficas etc. O que o artista faz é substituir os dados cartográficos de ima-
gens de lugares reais, com os quais o software está preparado para trabalhar, por
pinturas dos artistas, por imagens de partes do corpo.

As paisagens que vemos aí são interpretações científicas do que poderia ser reco-
nhecido como uma paisagem por aparatos maquínicos. Como o software é prepara-
do para trabalhar a partir de parâmetros específicos que não dizem respeito à qua-
lidade humanamente simbólica das imagens, o que ele cria, sua orogênese, é uma
memória do seu próprio funcionamento enquanto programa que lê metadados,
organiza-os e produz com eles um arquivo, um registro da sua própria performance
enquanto máquina.

Ao realizar tal procedimento, Fontcuberta aponta para o fato de que qualquer pai-
sagem pictórica está muito além de ser uma mera representação de alguma paisa-
gem já existente, podendo ser vista muito mais como, de fato, a invenção da própria
paisagem, do seu conceito e de formas de apresentação desse conceito. O enqua-
dramento de uma imagem pela pintura nos mostra a presença de uma memória
cuja base está tanto no rastro deixado pelo pigmento de tinta, quanto pela forma
do artista expressar a visualidade que deseja criar. No caso do software em questão,
fundamental lembrar que sua criação se dá para propósitos científicos e militares.
Como o que o programa faz é também imaginar uma paisagem, o que se apresenta
na tela não é um resultado que representa algo já existente, mas sim a memória do
que o software é capaz de simular, a partir de parâmetros que recebe. Assim, é como
se Fontcuberta enfatizasse o fato de que os modelos cartográficos, os softwares de
geoprocessamento são, obviamente, invenções artificiais e, portanto, ações políticas
do que se poderia considerar uma paisagem. Nesse ponto, as paisagens do artista
nos apontam para uma memória em que a poética e a política dos aparatos maquí-
nicos encontram-se profundamente imbricadas no gesto de criação. A performance
do programa, longe de ser um ato, inócuo, se mostra como um instrumento de po-
der sobre o que se denomina paisagem.

A segunda obra é Postcards from Google Earth6, de Clement Valla, em que a discus-
são está centrada na maneira como o sistema de mapeamento de imagens utilizado
pelo Google Earth produz imagens em 3D de locais da terra e “deforma” alguns lu-
gares, criando paisagens “irreais” e “impossíveis”. Segundo o próprio autor da série,
o trabalho teve início quando ele estava navegando por imagens produzidas pelo
Google Earth e reparou que algumas imagens pareciam extremamente estranhas

6 Disponível em http://www.postcards-from-google-earth.com/. Acesso em 09 de setembro de 2019.

618
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

na sua tentativa de representar a superfície terrestre sem falhas, da maneira mais


acurada possível. Olhando para a coleção feita por Vallas, alguns prédios parecem
estar de cabeça para baixo, pontes fazem curvas impossíveis para se ajustar ao terre-
no, ou mesmo se dobram sobre um espaço vazio como se fossem feitas de material
flexível. Valla imaginou, a princípio, que as imagens seriam derivadas de erros no
processamento que o algoritmo fazia sobre as imagens. Ele percebeu que havia ali
duas fontes competindo para a formação das imagens: de um lado, o modelo em
3D que representa a superfície da terra; de outro, as imagens fotográficas aéreas de
cada um dos lugares. As marcas de profundidade nas fotografias aéreas, indicações
de sombra e luz, não se alinhavam às marcas do modelo em 3D. Isso fez com que o
artista iniciasse a sua coleção de cartões postais criados pelo Google Earth, buscan-
do entender aquelas imagens excepcionais, nos dizeres do próprio Valla.7 O que ele
veio a perceber é que não se tratava de erros do sistema, mas sim da própria lógica
de funcionamento do software que a Google utiliza para criar as imagens do Google
Earth. O que aparece nas imagens é “um novo modelo de ver e representar nosso
mundo – à medida que dados dinâmicos e em constante mudança, derivados de
uma miríade de fontes – são infinitamente combinados, constantemente atualiza-
dos, criando a ilusão de uma superfície entrelaçada infinita.”8

As imagens em 3D utilizadas no Google Earth são derivadas de um processo chama-


do mapeamento de textura (texture mapping), cujo modo de funcionamento é basi-
camente aplicar uma imagem plana em uma superfície 3D, “colando-se” essa textura
(a imagem plana) ao formato 3D correspondente, como uma espécie de adesivação
da imagem. As texturas seriam mais parecidas com um escaneamento da superfície
do que com uma foto da mesma. Segundo o próprio Clement Valla, a diferença entre
textura e fotografia poderia ser assim resumida: nós olhamos através das fotogra-
fias; nós olhamos para uma textura. O que acontece no Google Earth é que essas
duas formas de criar imagens são sobrepostas pelo software. Assim, continuamos a
olhar a ver imagens fotográficas aéreas, cuja profundidade é dada pela quantidade
de luz e sombras que elas projetam. No entanto, como essas imagens fotográficas
são “esticadas” para funcionarem também como texturas para a superfície, elas aca-
bam por se tornar distorcidas, sem deixar de exibirem as características de imagens
fotográficas. Ou seja, o que vemos aqui são paisagens produzidas pelo modo como
o programa interpreta os dados que tem à disposição e pela forma como é capaz de
“imaginar sensivelmente” aquela paisagem, que obviamente difere em larga medida
do que poderíamos chamar de paisagem, seja ela urbana, selvagem etc.

7 Disponível em https://rhizome.org/editorial/2012/jul/31/universal-texture/. Acesso em 09 de se-


tembro de 2019.
8 “a new model of seeing and representing our world – as dynamic, ever-changing data from a myriad
of different sources – endlessly combined, constantly updated, creating a seamless illusion.” Disponível
em https://rhizome.org/editorial/2012/jul/31/universal-texture/. Acesso em 09 de setembro de 2019.

619
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Aqui, novamente são os algoritmos e os metadados com os quais o programa da


Google trabalha os responsáveis por produzir materialidades maquínicas da face da
terra. Juntamente com os metadados, há também as várias lógicas de transmissão
desses elementos para que o Google Earth faça as combinações necessárias para
gerar as imagens que depois estarão no seu sistema de visualização. O que são, en-
tão os objetos produzidos pelo mapeamento em 3D da Google? O que caracteriza
tais arquivos e sua visualidade contínua sobre a superfície terrestre? Esse é o ponto
em que apresentamos a noção de paisagens maquínicas e da memória como uma
performance algorítmica para discutir as obras aqui descritas.

Paisagens maquínicas, rastros e a memória como performance algorítmica


De que maneira a obra de Fontcuberta nos apresenta uma forma de memória ba-
seada no modo como algoritmos e códigos matemáticos percebem uma imagem
pictórica, cujos parâmetros são relacionados às condições sensíveis dos aparatos
que processam tais algoritmos? Embora o próprio Fontcuberta tenha escrito um
livro denominado “Paisagens sem memória” para discutir o seu trabalho, sugiro
pensarmos tais imagens como memória da performance dos algoritmos, e não sim-
plesmente como o testemunho de algo que tenha acontecido com uma paisagem
terrestre ao longo do tempo. Seriam paisagens maquínicas, e ainda paisagens, uma
vez que estas são “primeiramente uma realidade objetiva, material, produzida pelos
homens.” (BESSE, 2014, pp.30) Considero aqui as paisagens como uma produção cul-
tural e a cultura como algo que é encarnado em obras, em produções, em materiais
diversos. A escrita algorítmica e seu consequente processamento pelos programas
são uma das formas que os aparatos maquínicos computacionais teriam de imaginar
e conceber as materialidades que podemos acessar como resultado de suas ações.

Entendo que sob essa perspectiva, os algoritmos podem ser entendidos como ele-
mentos-chave para a compreensão de que um computador executa ações como for-
mas de escritura específicas, as quais permitem a uma máquina reconhecer e deco-
dificar um conjunto de elementos simbólicos. Da mesma forma, eles são capazes de
produzir visibilidades não necessariamente perceptíveis pelos sentidos humanos,
mas que se relacionam com essas sensibilidades, indicando que os aparatos maquí-
nicos criam relações, e produzem sentido, cujo valor simbólico não é necessariamen-
te medido por escalas humanas já reconhecidas. Dessa maneira, na relação entre os
algoritmos e os aparatos maquínicos, aparece uma memória cuja materialidade é da
ordem da performance, em função do modo como o registro se constrói. A memória,
nesse texto, é um estado de iminência: do encontro, da ruptura, daquilo que uma
vez que apareça pode fugir em instantes e que precisa, então, de alguma forma de
permanência. E que formas de permanência são, efetivamente, destinadas a per-
manecerem por si só? Será que as microtemporalidades seriam a forma material do
estado de iminência, sua permanência que ainda não lemos?

620
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A memória, nesse caso, não se refere mais a um passado já construído, mas a um


passado por construir. O espaço do passado está em permanente estado de latên-
cia, uma vez que mesmo a percepção dos fatos está acoplada a temporalidades não
mais definidas somente por eles mesmos, mas também por todos os elementos aco-
plados aos fatos e que nos ajudam a definí-los enquanto tais. Como os algoritmos
podem lidar com tais dados, eles podem reagrupá-los temporalmente numa escala
ainda não conhecida e por construir.

Se entendemos as marcas do funcionamento dos algoritmos e dos programas lendo


tais algoritmos como arquivos, como uma espécie de memória do que aconteceu
no processo de leitura, tais arquivos seriam da ordem de rastros, de ruínas, de um
presente que está em estado de processamento contínuo. Assim, a reiteração da lei-
tura produz as paisagens de Fontcuberta, por exemplo. Estas, por seu turno, não são
representações simplesmente das imagens que foram dadas ao programa Terragen.
Antes, elas são apresentações das interações e das iterações produzidas pelo progra-
ma na tentativa de reconhecer rastros com os quais os algoritmos pudessem traba-
lhar e produzir as paisagens maquínicas que vemos na tela. A sua materialidade é da
ordem de um arquivo dinâmico, de uma memória em estado de performance, e não
mais de um registro que guarda um tempo já acabado. Ao contrário, o que vemos
na tela é o tempo em estado de se fazer, em estado de cálculo. Podemos dizer que a
imagem impressa na exposição é um tempo x do processamento, do cálculo que o
programa estava realizado. Naquele momento houve uma captura, houve uma de-
mora, e se produziu uma memória que talvez não seja mais encontrada, assim que
o programa continuar a rodar. Nesse sentido, e apenas nesse sentido, diríamos que
aquelas seriam paisagens sem memória. E ao mesmo, tempo seriam paisagens cuja
memória é da ordem da performance.

No caso de Postcards from Google Earth, o que vemos é um constante questio-


namento dos procedimentos de elaboração das imagens pelo mecanismo de ma-
peamento de texturas utilizado pela Google. As paisagens maquínicas formadas aí
existem como um resultado efêmero do cruzamento de vários rastros (metadados)
deixados por imagens provenientes de instituições governamentais, companhias
privadas, institutos de geoprocessamento, entre outras fontes. As imagens são uma
mistura de dados discretos (imagens fotográficas bi-dimensionais, snapshots) e da-
dos topográficos tri-dimensionais extraídos dessa miríade de fontes. Ao serem cole-
tados, pré-processados e mixados para dar uma sensação de superfície contínua da
Terra no Google Earth, o que aparece são então memórias cuja existência é resultado
da performance desses elementos. Assim, as paisagens maquínicas que vemos são
também efêmeras, embora fisicamente presentes. São traços do funcionamento dos
algoritmos que as geraram, e do modo como os metadados foram interpretados e
reconhecidos pelos programas. A memória que surge aí é muito mais da ordem do
rastro, com sua ambiguidade e incerteza, do que da ordem do arquivo, com sua apa-
rente estrutura imutável. Tomamos contato, então, com aquilo que é mais próprio de

621
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

uma paisagem: o fato de ser ao mesmo tempo a presença da natureza e da cultura


num só espaço. Nesse caso, a técnica se mostra como capaz de processar aspectos
do natural a partir daquilo que os aparatos tecno-culturais são capazes de perceber
dessa realidade. Assim, talvez o que possamos dizer é que tanto Joan Fontcuberta
quanto Clement Valla tenham realizado, cada um à sua maneira, pequenas peças
arqueológicas de mídia, que apontam exatamente para o caráter inaugural das ima-
gens criadas. Paisagens cuja memória é sempre da ordem da performance, do que
inaugura uma vez mais um ato.

Referências
BESSE, J.M. (2014). O gosto do mundo: exercícios de paisagem. Rio de Janeiro: EDUERJ.

BRUNO, F. (2012). Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede. Revista FAMECOS,
v. 19 (3), pp. 681-704.

DERRIDA, J. (2001). Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Re-
lume Dumará, 2001.

ERNST, W.(2013). Digital memory and the archive. Minneapolis: University of Min-
nesota Press.

GAGNEBIN, J.M (2012). Apagar os rastros, recolher os restos. Em: SEDLMAYER, S &
GINZBURG, J.(org.). Rastro, aura e história. (pp. 27-38) Belo Horizonte: Ed. UFMG.

MANOVICH, L. (2002) Metadata, mon amour. Recuperado: 27 jun 2013, de http://


manovich.net.

MATTHEWS, P. & ASTON, J. (2012). Interactive multimedia ethnography: archiving


workflow, interface aesthetics and metadata. ACM Journal on Computing and Cul-
tural Heritage, vol. 5(4), pp. 1-13.

SERRES, M.(1991). O contrato natural. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

622
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Cecilia Mori Cruz1


A bestialidade material para uma afeição com a cidade
Ordinary materials as affection towards the city

Resumo
O presente texto expõe a interrelação entre as produções artísticas (contemporâ-
neas) com os espaços urbanos. Com isso, se baseia nas obras construídas com ma-
teriais comuns e ordinários para ampliar a percepção da precariedade e da bestiali-
dade como potência artística e que pode ainda ressignificar as noções de limite, de
espaço e de memória coletiva na atualidade. Assim, relaciona as práticas artísticas
banais, bestas, com a expressão máxima do humor na ‘Patafísica para evidenciar o
potencial transformador da arte, que se faz presente na ideia de utopia construtiva
de Gropius tanto para a arte quanto para a vida em seus espaços urbanos.
Palavras-chave: Arte Contemporânea, Espaço Urbano, Materiais, Precariedade, Limite.

Abstract
The present article exposes the interrelationship between contemporary art and
urban spaces. Based on works of art done with ordinary and foolish materials to
broaden the perception of precariousness and silliness as an artistic power that can
review notions like limit, space and collective memory. For so, it relates banal and sil-
ly artistic practices with the maximum expression of humor in ‘Pataphysics’ to high-
light the potency that art has to transform itself and common life, which is present in
Gropius’ idea of constructive utopia for both art and life in its urban spaces.
Keywords: Contemporary Art, Urban Space, Materials, Precariousness, Limit.

A arte é uma atividade tipicamente urbana, não apenas inerente, mas constitutiva da ci-
dade. Já dizia o historiador da arte italiano Giulio Carlo Argan (1909-1992) no seu A His-
tória da Arte (1998). Para o autor, as obras de arte determinam um espaço urbano e são
produzidas pela necessidade, para quem vive e opera no espaço, de representar para
si de, uma forma naturalista ou fantasiada, a própria situação espacial em que opera.

1 Cecilia Mori Cruz, Professora Adjunto do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília-
-UnB e artista plástica. É pesquisadora graduada pelo Instituto de Artes da UnB, mestra e doutora em
Arte Contemporânea, pelo PPGAV-UnB, com tese “Cabine da Mentira: bobeiras em trânsito para a arte
contemporânea” vencedora do Prêmio UnB de Teses na área de Artes. Atua na área de práticas artísticas,
história e teoria da arte e coordena pesquisa sobre mentira, ficção e ilusão na Arte Contemporânea.

623
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Assim, os produtos artísticos são os que qualificam uma cidade enquanto tal. O his-
toriador da arte segue relacionando os espaços de convivência coletiva com a noção
de cidade e amplia nossa percepção sobre os espaços urbanos. Para ele, são também
o espaço urbano os ambientes das casas, os retábulos do altar da igreja, a decoração
da sala de jantar, o vestuário. Da mesma forma, são espaço urbano suas influências
para além das muralhas da cidade, como a

zona rural de onde chegam as provisões ao mercado da praça e onde o camponês tem suas vilas
e as suas propriedades, os bosques onde vai caçar. (…) O espaço figurativo, como demonstrou
muito bem Francastel, não é feito apenas daquilo que se vê, mas de infinitas coisas que se sabem
e se lembram, de notícias. Até mesmo quando um pintor pinta uma paisagem natural, pinta na
realidade um espaço complementar do próprio espaço urbano. (Argan, 1998, p. 43-44)

Em seu texto Le paysage du Peintre (1986), a curadora e historiadora da arte francesa


Françoise Cachin (1936-2011) elabora a íntima relação entre a identidade de uma
sociedade e a representação de sua paisagem. A autora busca imagens da memória
coletiva tipicamente francesa nas paisagens nacionais e acaba por identificar que
seus símbolos nacionais foram os criados pelos pintores, em especial os do século
XIX. Apesar de evidenciar a importância do século XVIII na consolidação de um mo-
delo na representação da paisagem, Cachin afirma que foi na virada do século XIX
para o XX que a paisagem francesa (a feita pelos artistas) se torna uma imagem de
representação nacional. Pois é só nesse período que o gênero de paisagem passa a
buscar questões próprias da cultura francesa e não se situa mais no debate entre o
clássico italiano e a escola do Norte.

Assim, Cézanne seria um dos principais pintores que, na visão de Cachin, auxiliou na for-
mação de imagens que povoam a memória coletiva de cada francês. Dentre outras pai-
sagens, a montanha Santa Vitória se tornou um dos símbolos da França, como a Estátua
da Liberdade é um dos mais importantes símbolos dos Estados Unidos, os moinhos, da
Holanda, o Pão de Açúcar do Rio de Janeiro e, com muita frequência, de todo o Brasil. A
reflexão proposta por Cachin contribui para a discussão sobre (des)limite como área de
contato e zona de atravessamento entre arte e sociedade, indivíduo e coletivo.

Complementar aos exemplos que Françoise Cachin nos fornece, Maurice Halbwachs
(1877-1945) defende uma forte relação entre um indivíduo ou um grupo e seu ambiente
externo seja ele físico e concreto ou simbólicos e abstratos. Para o sociólogo francês, os
grupos estão ligados a um lugar e é o fato de estarem próximos no espaço que cria entre
seus membros relações sociais. Assim, se os habitantes de uma cidade ou de um país
formam uma sociedade é porque estão reunidos numa mesma região do espaço.

Halbwachs relaciona o espaço de vivência dos seres humanos com a própria constitui-
ção enquanto indivíduo e/ou grupo declarando que as imagens do mundo exterior são
inseparáveis do sujeito. Com isso entendemos o espaço como mais do que uma porção

624
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

de terra, como uma condição clara da existência dos grupos humanos. Essa relação não
é uma simples harmonia ou uma correspondência física entre as aparências dos lugares
e das pessoas. Ao contrário, em seu texto Memória Coletiva (1950) afirma que:

Nosso entorno material leva ao mesmo tempo nossa marca e a dos outros. Nossa casa, nossos mó-
veis e a maneira segundo a qual estão dispostos, o arranjo dos cômodos onde vivemos, lembram-
-nos nossa família e os amigos que víamos geralmente nesse quadro. (Halbwachs, 2006, p. 137)

E complementa afirmando que “quando um grupo está inserido numa parte do espa-
ço, ele a transforma à sua imagem, ao mesmo tempo em que se sujeita e se adapta às
coisas materiais que a ele resistem.” (Idem, p. 19) Dessa forma entendemos que o lugar
marca o grupo e/ou indivíduo ao mesmo tempo que é marcado por ele. Nesse sentido,
até mesmo o forasteiro, ao permanecer em um lugar, é transformado em seu habitan-
te e passa a pertencer a ele. A possibilidade de se estabelecer, ou seja, de configurar
seu espaço interior transforma o estrangeiro em morador. No entanto, o forasteiro, ao
transitar, permite constantes modificações dos espaços interno e a seu redor.

Então, para Halbwachs, as ações do grupo podem se traduzir em termos imagéticos


e espaciais, evidenciando que cada aspecto desse lugar tem um sentido que é inteli-
gível apenas aos membros do grupo e que uma simples imagem desse lugar ou uma
representação qualquer desse espaço se torna o indicador de toda uma identidade
do indivíduo e do grupo. Esses lugares, uma vez que definem e são definidos pelos
indivíduos e pelos grupos sociais, são tanto físicos quanto simbólicos, tanto públicos
quanto privados. São tanto as cidades quanto as casas.

No texto La Notion de Limite (1983), Françoise Paul-Lévy e Marion Segaud relacionam


o desenvolvimento do neocórtex com o aparecimento do mundo simbólico, dentre
os ancestrais diretos do homo sapiens, em função de uma delimitação do lugar de
convivência de um grupo. Para as cientistas sociais, não se sabe ao certo se foi com o
surgimento da linguagem que os seres humanos sentiram a necessidade de dividir
o mesmo espaço físico ou se na própria co-habitação se formou a linguagem. Com
isso, a relação de interdependência entre o espaço e os grupos sociais forma e cons-
titui a identidade desses grupos. Todas as sociedades, para as autoras, “são situadas
no espaço, em um espaço que elas particularizam e que são particularizadas por ele.”
(Paul-Lévy e Segaud, 1983, p. 28)

Assim, as autoras consideram a elaboração do limite como um elemento fundamen-


tal na constituição e na representação dos sistemas espaciais das sociedades uma
vez que será apenas com a percepção dos contornos, das identidades, que os indi-
víduos e grupos desejam criar laços sociais com outros indivíduos. Vale lembrar que
essas definições de limite dizem respeito à criação do espaço físico de um grupo
tanto nas sociedades modernas ocidentais quanto até em sociedades de economia
não industrializadas como, por exemplo, as indígenas ou ciganas dentre outras.

625
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

No caso das comunidades nômades, por mais que elas troquem freqüentemente
de região, ao se estabelecer em um novo espaço, este passa a ser delimitado e res-
significado pelo grupo enquanto o espaço ressignifica este mesmo grupo. Assim, a
noção de casa (entendida como o espaço delimitado de habitação dos seres huma-
nos, segundo o dicionário Houaiss de Língua Portuguesa) surge aproximadamente
junto com a linguagem, para as autoras. As casas poderiam ser pensadas como uma
célula social, ou seja, uma pequena representação de um grande grupo social. Nelas
teríamos indivíduos que se relacionam. Como resultado desse relacionamento, eles
constroem laços afetivos, mas também têm conflitos éticos, morais e políticos.

Mas a casa, mesmo quando abriga grandes famílias, é a morada do eu. Ao mesmo
tempo em que ela é o espaço da coletividade, é o espaço da individualidade. Ela é
público-privada. Mesmo na casa de pessoas que moram só, ela não é apenas o espa-
ço da intimidade, esse poderia ser o quarto. A casa tem espaços desenhados para o
grupo e para o indivíduo, tem sala de estar e banheiro. Com isso a casa, por ter esses
dois tipos de espaço, promove a experimentação dos limites entre o espaço público
e o privado. É um e outro, é um ou outro. É o trânsito dos forasteiros.

Pensar a casa como espaço entre público e privado não se faz apenas na relação
que seus habitantes têm com o espaço, mas também na relação que o indivíduo
tem com a cidade ou com a sociedade. A casa não é tão pessoal quanto o corpo do
ser, como também não é tão exterior ao ser. E ela é tão pessoal quanto o ser, como é
também exterior ao ser. A exterioridade e interioridade da casa podem ser pensadas
tanto em relação ao corpo do ser que a habita, quanto em relação ao espaço social
em que ela se encontra. Em uma cidade, a casa é o núcleo do particular e para o su-
jeito que vive em grupo, ela é o primeiro ponto de encontro com os outros.

Assim, se a casa possui espaços que são coletivos e outros que são individuais. Possui
também espaços que são, ao mesmo tempo, coletivos e individuais. A partir desse
ponto de vista, a própria casa se configura como uma combinação do coletivo com
o indivíduo. Essa percepção de uma ambigüidade dos espaços constitutivos da casa
faz dela um tema a ser pensado para além de seus aspectos mais subjetivos, como
a interpretação e os sentimentos adquiridos com o tempo de vivência no local. Essa
seria uma investigação do lar. Olhar para a casa implica juntar o espaço físico a seu
lar. O mensurável ao imensurável.

A obra da artista visual britânica Rachel Whiteread Casa, de 1993, problematiza a


relação inseparável entre as pessoas e seus espaços físicos, ou segundo as palavras
de Halbwachs, seus entornos materiais. A obra vencedora do Prêmio Turner, no ano
de 1993, e do Prêmio de Arte K Foundation, em 1994, causou polêmica entre os bri-
tânicos e foi demolida um ano após sua construção por de certa forma imortalizar
um modelo de casa dos subúrbios londrinos em uma área urbana que sofria um pro-
cesso de reforma que não prioriza a permanência das memórias coletivas presentes
nos monumentos e nos demais espaços públicos, a gentrificação.

626
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Casa foi feita a partir de uma de várias casas iguais do mesmo bairro, grove road, e ao
mesmo tempo em que mostrava a unidade da comunidade pelo formato externo da
obra que era igual às demais casas da rua já em demolição, ressaltava os aspectos que
diziam respeito ao pequeno grupo que habitava aquele espaço. A obra expõe o inte-
rior de uma casa sem sua fachada protetora. A artista construiu uma espécie de molde
negativo (como se faz um molde de escultura de gesso) a fim de inverter o interior e o
exterior de uma habitação. Assim, as marcas deixadas nas paredes e nos pisos pelos an-
tigos habitantes no decorrer do tempo de habitação (que antes se limitavam ao espaço
interno, íntimo daquele grupo), agora são expostas e visíveis do lado de fora da casa.

O que antes era o começo do espaço interno da casa por delimitar o espaço físi-
co entre as paredes, agora virou a fachada externa, a parcela pública da intimidade
daquelas pessoas. E isto causou desconforto à comunidade local, que exigia uma
urgente reforma urbanística na área enquanto a Casa permanecia lá, imóvel e imu-
tável, como um tipo de assombração das marcas do passado de uma comunidade
excluída econômica e socialmente do centro da megalópolis Londres. A Casa de
Whiteread nos ensina que a relação ambivalente entre o interior e o exterior, bem
como entre o passado e o presente, enriquece mais a construção poética que qual-
quer permanência em um dos polos. Pois assim, não há tensão, não há potência de
movimento ou de transformação. No lugar de paredes fixas, divisórias japonesas. No
lugar paredes de concreto, os Penetráveis de Hélio Oiticica.

Para o filósofo francês Gaston Bachelard (1884-1962), em A Poética do Espaço (1989),


a intimidade e o universal se encontrariam na imagem dialética da casa e o universo:
“a casa e o universo não são simplesmente dois espaços justapostos. No reino da
imaginação, ambos se atiram reciprocamente em devaneios opostos.” (Bachelard,
1989, p. 59). Além do concreto e do sensível, do público e do privado, do exterior
e do interior, da cidade e do corpo e do coletivo e do individual, a casa apresenta
outras relações paradoxais que fazem dela a própria Imensidão Íntima.

Na Merzbau (1919-1943) do artista alemão Kurt Schwitters (1887-1948), as funções


dos espaços e dos objetos da casa foram repensadas quando não subvertidas. As
paredes não eram mais divisórias, tinham buracos, passagens e volumes. Como as
demais colagens dadaístas, era construída a partir de materiais coletados na rua for-
mando um espaço que conjuga o ambiente casa com o espaço expositivo. Muitos
dos quartos e das salas da casa na qual o próprio artista habitava com sua família
tinham seu aspecto interior mais parecido com uma fachada externa de um prédio
público (pelos aspectos formais dos volumes e pelo acabamento dos materiais) do
que um ambiente interno, promovendo uma inversão entre o interior e o exterior e,
muitas vezes, uma coexistência entre eles.

Dentre outras questões que a Merzbau acrescenta à Arte, a experiência de Schwitters


nos faz questionar a visão reduzida que se tem normalmente dos espaços museais

627
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

como os únicos capazes de publicar e expor uma obra de arte. A partir do momento
em que Schwitters exerce a prática museal no seu espaço privado, em sua casa, ele
acrescenta a ambiguidade ao espaço tornando-o a extensão de uma sala expositiva
além de sua casa. Como um “espaço interior de formas plásticas”, segundo o artista
(Schwitters, 1990, p. 181), ele também o faz ao utilizar materiais do espaço da vida
em comum (usando o termo do filósofo e crítico de arte brasileiro Alberto Tassinari)
na construção. Dessa forma, a casa, mesmo que vire também uma sala expositiva,
não deixa de ser casa, já que seus habitantes não abrem mão (radicalmente) da fun-
cionalidade de seu espaço diante da arte.

A Catedral da Miséria Erótica (KdE), como também é conhecida a obra, se mostra


um espaço orgânico que evidencia o descontrole sobre as barreiras entre público e
privado, entre indivíduo e sociedade que pode servir de exemplo de interação que
se pode obter entre esses mundos conflitantes. O interior que vai para o além (e não
que está no além) do interno e, na visão de Bachelard, se funde com o espaço exter-
no adquirindo a imensidão. Dessa forma, se casa é o espaço onde o dentro encontra
o fora, a Merzbau é a potência dessa relação ambivalente e evoca a figura do foras-
teiro. E na sua máxima ambivalência é onde a mentira é a mais absoluta verdade
poética, é a manifestação artística.

A mudança da valorização de obras com limites físicos bem definidos, como o in-
terior de uma pintura – espaço contido pela moldura – ou de uma escultura, para a
valorização de obras sem limites enunciados pelos artistas e/ou com seus limites ex-
ternos que se inserem no espaço da galeria ou da vida cotidiana é o que nos permite
pensar a mentira na arte como virtude e como, consequentemente, verdade poéti-
ca. Daí a importância em considerarmos as divisórias móveis japonesas, a velocidade
futurista e a fluidez do bobo da corte como táticas de movimento e transformação.

Pois, enquanto um discurso científico se diferencia de outro na linguagem cotidiana e de


senso comum por evitar a ambiguidade, restringir a vagueza e a falsidade das ideias pro-
postas, a prática artística se propõe (ou ao menos em nossos dias deveria se propor) ir-
restrita. Pode ser vaga, obscura, confusa, estranha, feia, nojenta, sem sentido, sem forma,
incompreensível, intragável, imoral. Ela pode ser ambígua sem deixar de ser coerente.

Provavelmente um dos maiores ensinamentos que o Fluxus nos ofertou, principal-


mente nos discursos de Joseph Beuys, foi que tudo pode ser arte, mas arte não é
qualquer coisa. Essa fala defende a autonomia da arte. Mas mesmo essa autonomia
não pode ser entendida como uma definição hermética do quê seria a arte. Se antes
de qualquer coisa, definir é delimitar, a arte (mesmo em suas formas discursivas) não
deveria ter essa preocupação como sua principal. Isso não é defender uma prática
artística apartada de sua reflexão. Pelo contrário é permitir outras formas de reflexão
ganhem espaço como as que incluem o processo de construção da obra de arte ou
ainda a abordagem teórica ou histórica da arte.

628
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A qualidade da produção contemporânea em provocar instabilidade e deslocamen-


to nos antigos preceitos da arte ou das demais áreas do conhecimento humano é
analisada dando continuidade às noções de limite não exatamente delimitantes. As
tentativas em acabar com as fronteiras entre a arte e a vida acabaram por nos mos-
trar que elas devem permanecer existindo (para garantirmos as identidades) mas
também que sua permeabilidade deve ser sua condição de existência (para incenti-
varmos suas transformações). Assim, o contato permitido pela barreira esburacada
não implicaria na sua destruição, pois sem elas além de não termos mais noção algu-
ma do que define essas esferas.

Essa noção de limite e sua importância para se definir o ser, o conceito, o espaço,
o fenômeno, é amplamente pesquisada pela Antropologia e pela Psicanálise. Cada
disciplina com seu viés mas ambas problematizam os trânsitos entre as esferas, as
porosidades dessas fronteiras como questão de suma importância assim como a
permanência das fronteiras ainda que porosas.

Sigmund Freud, em O Eu e o Id, de 1923 [2007], considera fundante na constituição


da personalidade a percepção de um limite, da fronteira entre o eu e o Outro da mes-
ma forma que estabelece distinções entre o Id, o Eu e o Super-Eu ou entre o incons-
ciente, o pré-consciente e o consciente. No entanto, essas fronteiras, esses limites
são, a todo tempo, colocados em xeque pelo próprio sujeito. Freud situa os elemen-
tos constitutivos do psíquico que, mesmo com qualidades específicas, variam nas
suas relações com o Eu se tornando ambíguas. Assim, a consciência é apenas uma
das qualidades do psíquico e outras diversas qualidades podem, ou não, somar-se a
ela. Nas palavras do autor,

a característica do estado de consciência é justamente ser breve e passageiro. Assim, uma ideia
que agora é consciente’ no próximo momento já não o é mais, podendo, em seguida, sob certas
condições – que aliás podem facilmente ser reestabelecidas –, tornar-se novamente consciente.
(Freud, 1923 [2007], p.28)

Com isso, essa ideia, que não permanece o tempo todo consciente pode ser identifi-
cada como uma ideia em estado latente. Ao estar nesse estado, a ideia é capaz de, a
qualquer momento, novamente se tornar consciente.

Assim, vemos que não apenas o objetivo de Freud é mostrar que as categorias da
psicanálise podem ser reposicionadas o tempo todo como reconhecemos que o
próprio percurso usado pelo psicanalista se mostra ambivalente, labiríntico e até
mesmo anacrônico. Questões abordadas são contraditas – às vezes no mesmo texto
às vezes anos mais tarde – e os argumentos se ligam ao se perderem nesse modelo
de construção. Essa instabilidade conceitual nos interessa por aceitar a ideia de con-
taminação, de algo que se modifica após o contato com outra coisa.

629
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Com isso, a noção de cortina da fumaça é pensada como tática de infiltração e trans-
formação dos conceitos para construções teóricas e poéticas. A fumaça, diferente-
mente dos líquidos de Zygmunt Bauman (1925-) é ainda menos palpável, visível
ou mensurável. É menos visível mas perturba a visão. É menos perceptível mas sua
presença indica continuidade, pois ao esfumaçarmos algo, esse algo se enche de
fumaça e entra no estado de desaparecimento.

A ambiguidade presente na ideia da fumaça, como algo que ao preencher um es-


paço faz com o que estava antes ali desapareça, é percebida como uma virtude na
experiência artística diferentemente das experiências da vida cotidiana, o que con-
tribui para a argumentação em defesa da autonomia do campo da arte. A efemeri-
dade do cotidiano é altamente condenável pelo sociólogo polonês por perder sua
propriedade física de solidez e seus contornos. Se a modernidade formava um mun-
do de convicções e certezas, a sociedade líquido-moderna de Bauman não é capaz
de manter a forma ou as convicções em seu curso por muito tempo.

Em Vida líquida, Zygmund Bauman define: “Líquido-moderna é uma sociedade em


que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto
do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de
agir.” (2007, p. 7) E continua caracterizando aspectos da vida líquida, a forma de vida
que tende a ser levada em uma sociedade líquido-moderna. Assim, para ele, uma
sociedade como a moderna é propícia a pensamentos utópicos enquanto a líquido-
-moderna à precariedade.

Em suma: a vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante. As
preocupações mais intensas e obstinadas que assombram esse tipo de vida são os temores de
ser pego tirando uma soneca, não conseguir acompanhar a rapidez dos eventos, ficar pra trás,
deixar passar as datas de vencimento, ficar sobrecarregado de bens agora indesejáveis, perder o
momento que pede mudança e mudar de rumo antes de tomar um caminho sem volta. A vida
líquida é uma sucessão de reinícios, e precisamente por isso é que os finais rápidos e indolores,
sem os quais reiniciar seria inimaginável, tendem a ser os momentos mais desafiadores e as dores
de cabeça mais inquietantes. (Bauman, Id. p.8)

Para o autor, os praticantes da vida líquido-moderna precisam encerrar ou fechar


conceitos, decisões, argumentos e narrativas. Pois, para ele, a constância e a aderên-
cia das coisas animadas e inanimadas são os perigos mais sinistros e terminais, “fon-
tes dos temores mais assustadores e os alvos dos ataques mais violentos.” (Bauman,
Ibidem, p. 9) No entanto, quando transferimos essa ênfase nas definições para a arte
percebemos que tanto a sua prática quanto a sua experiência se tornam limitadas.

Percebemos, também, que a precariedade pode ser um grande instrumento de exer-


cício poético senão uma tática artística, como exploram com virtude o artista estadu-
nidense Richard Tuttle (1941-) e a brasileira Luciana Paiva (1982-). Entre a escultura e o
desenho, Tuttle utiliza o arame como expressividade máxima no mínimo da matéria.

630
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Entre a pintura e a escultura, Paiva junta papéis laminados de chocolate Alpino e luzes
LED para dar volume negativo e positivo à superfície da parede. Ao exporem o irredu-
tível, Tuttle e Paiva dão conta do Universo como ditam os patafísicos. Com a síntese e
a redução ao precário, os artistas atingem o absurdo.

Para o autor, essa visão é problemática porque em um modelo de sociedade na qual


a vida é voltada para o consumo, que protege o mundo dos fragmentos dos objetos,
tem como objetivo a adequação de seus indivíduos às novas efêmeras e momen-
tâneas utilidades dos objetos. Por outro lado, a arte, por ser arte, é incapaz de ter
uma utilidade. Mesmo quando alguns objetos de arte são capazes de desempenhar
um papel importante em alguma sociedade, não podemos atribuir esse único fato a
uma utilidade para toda a arte.

Na arte, a noção de utilidade agrega outros sentidos. Na arte, um pedaço de embala-


gem e um resto de arame pode ser mais útil que os pilares para a arquitetura. No caso
da arte, diferentemente das construções das artes funcionais, a prescrição de um obje-
tivo social e prático a ser atingido com a obra é mero desejo, principalmente nas produ-
ções ditas políticas. Se a experiência estética é pessoal e única a não praticidade da arte
é apenas um fato. Assim, a sempre presente dúvida sobre a finalidade da arte é o que
garante sua distinção e é o que temos de melhor a oferecer às sociedades de consumo.

Assim, para Bauman, a sociedade, líquida, que se presentifica a todo momento significa
a morte das principais utopias e da ideia geral de “boa sociedade” [grifo do autor], o que
exclui os processos artísticos, sempre ilusórios, fantasiosos e até utópicos dessa visão
de sociedade. Na arte, principalmente contemporânea, a construção de utopias come-
ça no ateliê. Os pensamentos utópicos se confrontam com o público na experiência
estética. E os discursos sobre eles são construídos em cima da noção da sublimação
psicanalítica e do pensamento histórico como eternamente presente e anacrônico.

E essa instabilidade é, paradoxalmente, o que dificulta (ou impossibilita) a categori-


zação absoluta e o responsável pela sua existência. Daí os teóricos e historiadores da
arte carregarem seus escritos dos anos 1970 e 80 com crises ou com o próprio fim dos
objetos, da arte ou da cidade. Porém, seria mais fortuito pensarmos a presença do pa-
radoxo e da instabilidade nas produções artísticas contemporâneas como aquilo que
monta uma armadilha volátil mas que se desfaz no instante da apreensão da presa.
Pensarmos nesse limite fugaz que ora separa a arte da vida, ora as junta ou as justapõe.
Um limite fugaz onde poderíamos considerar o fracasso como sua maior força.

O artista britânico Andy Goldsworthy (1956-) usa o espaço urbano, em sua noção
ampliada como nos sugeriu Argan como sua área de atuação. É pensando no espaço
exterior (o espaço museal, a cidade, a natureza) como (parte d)a obra que o artista va-
loriza o constante trânsito do forasteiro e, consequentemente, permite novas relações
da arte com o espaço urbano. Os vários portões abertos entre a obra e o espaço em
que estão inseridas, desde o período de pós-Guerra, são parte estruturante dos traba-

631
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

lhos de intervenção na paisagem. Em especial no caso de Goldsworthy, a instabilidade


da obra e da sua conexão material com seu local de intervenção não só é perceptível
como é sua potência.

Ao intervir diretamente na natureza, o processo do artista, assim como de vários


integrantes da Land Art, é uma constante batalha entre a instabilidade da obra e a
persistência do artista. Uma vez que estão sujeitos às transformações climáticas do
local, a instabilidade antes de ser uma consequência é uma condição. Nas palavras
de Goldsworthy no vídeo Rivers and Tides, “Quando faço um trabalho, normalmente
o levo ao limite de seu colapso. E isso é um belo equilíbrio.” (2000) [tradução nossa].

Assim, quando o artista diz que quer que sua arte seja sensível e alerta às transfor-
mações de materiais como da estação e do clima, ele acaba por evidenciar a insta-
bilidade e a precariedade da sua arte. Dessa forma, o fracasso da obra previamente
anunciado faz do processo a própria obra. Segundo o artista, em correspondência
(datada de 1983) com o autor de Earthworks and Beyond John Beardsley, “às vezes
um trabalho está no seu melhor quando está mais ameaçado pelo tempo/clima.
Uma rocha equilibrada ganha enorme tensão e força do vento que pode causar o
seu colapso.” [tradução nossa] (Beardsley, 2006, p. 223)

Entre fracassos e instabilidade, a prática artística se faz. Entre muitos enganos, novos
caminhos de experimentação são construídos e, às vezes, resultam em obras de arte.
Nas palavras de Goldsworthy, “Eu faço um ou dois trabalhos por dia. Em um mês de
trabalho, dois ou três trabalhos são bem sucedidos. Os ‘erros’ são muito importantes.
Cada trabalho novo é o resultado do conhecimento acumulado de trabalhos pas-
sados.” (Idem) Com sua atitude de se fazer valer do processo ao ponto de torná-lo o
próprio trabalho, Andy Goldsworthy nos remete aos métodos errantes da ‘Patafísica.

As reflexões da ‘Patafísica atuam por seus sofismas que, segundo o patafísico René
Daumal (1908-1944) em Pataphysics and the Revelations of Laughter (1929), colocam
em cena silogismos em modos não conclusivos mas que se tornam conclusivos as-
sim que certos termos são modificados de forma que a mente o apreende como ób-
vio; essa mudança leva imediatamente a uma segunda transformação das mesmas
definições, o que novamente rende modos de silogismo usados não conclusivos e
assim indefinidamente. (Daumal, 2012, p. 8) Da mesma forma, as obras de Goldswor-
thy parecem impedir que o fim chegue. Contemplam o eterno devir.

Os erros e os fracassos, estão presentes em qualquer método de criação, seja ele


para a realização de uma obra de arte ou de um postulado científico. Como diria
Gonçalo M. Tavares na sua nota Erro e Mentira, “Por vezes, então, ao Erro do cientista
deveríamos chamar Mentira da Realidade.” (In: Breves Notas sobre a Ciência, p. 85) E
é na arte que essas mentiras da realidade são considerados táticas, estratégias e, até
em alguns casos, objetivos finais. O artista, como o cientista, ao não se intimidar com
o fracasso inevitável de grande parte de seu esforço permite pensar e experimentar

632
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

seu espaço circundante pelas brechas e precariedades que o constituem. Assim, ao


invés de almejarmos uma cidade ideal, nos fazemos na cidade real, nos espaços ur-
banos das utopias construtivas de Walter Gropius.

Para Gropius, a medida certa de utopia deve ser almejada para que ela nos permita
sonhar e, mais importante, concretizá-lo tornando-o real. Segundo o arquiteto, em
entrevista sobre As Origens da Bauhaus, disponível na UbuWeb:

Eu acho que se você lança uma idéia como essa [de criar uma Bauhaus], ela não pode ser utópica
demais porque a realidade da última geração mostrou-nos que, quando penso no início da minha
vida, houveram idéias utópicas e ninguém pensou que poderiam se tornar realidade, mas elas se
tornaram realidade hoje. Então você não pode se agarrar longe demais de você e de suas ideias. E
isso, eu acho, lhe assegura também um melhor entendimento posteriormente na vida. Mas você
deve estar ciente de que, quando você carrega essa muleta, você tem que sacrificar algo, que
será atraído, que seria melhor ter um bom estômago para superar os pontos negativos e detectar
alguns... se encontram na Bauhaus.

Se uma ideia não pode ser utópica demais ao ponto de, com ela, nos desconectar-
mos completamente do aqui-agora, ela tem que aceitar anacronismos que sejam
pertinentes a sua realização. O pensamento utópico, então, tem que ser aquele que
se distancia da alienação, que prescinde uma total cisão com o tempo e o espaço do
presente. Para crítico de arte brasileiro Mário Pedrosa, as afinidades entre a utopia e o
plano são inegáveis. Ao lembrar a reflexão de Bertrand Russell sobre a modernidade,
época na qual as utopias passam do sonho à realidade, de hipótese a instrumento
de trabalho, Pedrosa aproxima a própria criação (artística) ao pensamento utópico.

Dessa forma, se pensamos a construção da arte como a precariedade que sustenta


a obra, como a instabilidade que equilibra os materiais, podemos pensar a mentira
como verdade poética. Assim, ao invés de concebermos a utopia como uma finali-
dade localizada temporalmente no futuro, porque daí ela seria utópica demais como
diria Gropius, almejamos à utopia como ponto de partida, sempre presente, cam-
biante mas construtora. Nos referimos à utopia como a potência máxima criadora
de essência artística (artificial, precária, real) que, para tal, deve se conectar com as
dimensões do presente e do passado para melhor se lançar no futuro. Nem à utopia
de More nem à distopia dos últimos românticos, à utopia dos sonhos construtores.

Referências bibliográficas
Argan, Giulio Carlo. (1999). História da Arte como História da Cidade. São Paulo:
Martins Fontes.

Bachelard, Gaston. (1989). A Poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes.

Bauman, Zygmund. (2007). Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.

633
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Beardsley, John. (2006). Earthworks and Beyond: contemporary art in the lands-
cape. 4ª edição. Londres/ Nova Iorque: Abbeville Press Publishers.

Cruz, Cecilia Mori. (2015). Cabine da Mentira: bobeiras em trânsito para a arte
contemporânea. Tese (Doutorado em Arte Contemporânea) - PPGAV-Instituto de
Artes, Universidade de Brasília.

Cruz, Cecilia Mori. (2007). Beleza Profana: uma integração da abjeção na arte. 111f.
Dissertação (Mestrado em Arte) - PPGAV-Instituto de Artes, Universidade de Brasília.

Cachin, Françoise. (1986). Le paysage du peintre. In NORA, Pierre (Org.), Les Lieux
de mémoire, tomo II (La Nation), Paris: Gallimard.

Daumal, René. (2012). Pataphysical Essays. Cambridge, Massachusetts: Wakefield Press.

Freud, Sigmund. (2007). O Ego e o Id. In: Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente, vo-
lume 3: 1923-1940. Rio de Janeiro: Imago. [Col.Obras Psicológicas de Sigmund Freud]

Halbwachs, Maurice. (2006). A Memória Coletiva e o Espaço. In: A Memória Coleti-


va. São Paulo: Ed. Centauro.

Houaiss, Antônio. (2001). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Ja-


neiro: Objetiva.

Hugill, Andrew. (2012). ‘Pataphysics: a useless guide. Cambridge, Massachustts:


MIT Press.

Jarry, Alfred. (1965). Selected Works of Alfred Jarry. London: Methuen.

Paul-Lévy, Françoise e Segaud, Marion. (1983). La Notion de Limite. In: L’Anthro-


pologie de l’Espace. Paris: Centre Georges Pompidou, CCI.

Sousa, Edson Luiz André de. (2012). Por Uma Cultura da Utopia. In: E-topia: Revis-
ta Eletrônica de Estudos sobre a Utopia, nº 12. <http://ler.letras.up.pt/site/default.
aspx?qry=id05id164&sum=sim> disponível em 11/10/2014

Tassinari, Alberto. (2001). O Espaço Moderno. São Paulo: Cosac & Naify Edições.

Tavares, Gonçalo M. (2010). Breves Notas. Florianópolis: Editora UFSC, Editora da Casa.

Schwitters, Kurt. (1990). Merz: écrits. Paris: Ivrea.


Referências audiovisuais
Rivers and Tides: vídeo sobre a obra de Andy Goldsworthy. (2000). 91’ Germany
/ UK / Finland, director Thomas Riedelscheimer. Trecho disponível em http://www.
caligraffiti.com.br/esculturas-naturais-de-andy-goldsworthy/ 06/10/2014

634
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Cristina Landerdahl1 and


Nara Cristina Santos2
A preservação das obras computacionais e a construção
da memória social
The preservation of computational artworks and the construction of
social memory

Resumo
A partir da (r)evolução tecnológica e das criações transdisciplinares, os conheci-
mentos de diferentes áreas científicas complementam a prática artística, e suscitam
questionamentos a serem articulados, como a longevidade das obras computacio-
nais. Cada projeto está associado ao artista que o instaura, inserindo suas experiên-
cias no trabalho artístico, através de pesquisas, referências ou técnicas utilizadas no
processo de criação. Estas obras também levam consigo traços da sociedade em
que foram instauradas, seus problemas e questionamentos. Assim, a preservação
destes projetos artísticos é fundamental para manter a memória social de uma épo-
ca e sua organização. Entremeados no processo de preservação surgem indagações
quanto ao compromisso das instituições museais e dos artistas frente à preservação
das obras contemporâneas computacionais, sua longevidade e manutenção para
experienciação no futuro. E, como a documentação expandida pode resguardar o
posicionamento do artista frente à obsolescência de sua obra ou parte dela.
Palavras-chave: Arte contemporânea, arte e tecnologia, memória social, arqui-
vamento, preservação.

1 Mestre em Artes Visuais, área de concentração Arte Contemporânea, na linha de Arte e Tecnologia,
pelo PPGART/UFSM (2017/2018), onde foi bolsista CAPES. Membro do grupo de pesquisa Arte e Tec-
nologia/CNPq e do Laboratório de Pesquisa em Arte Contemporânea, Tecnologia e Mídias Digitais/
LABART/UFSM (Brasil). Desenvolve pesquisa em História, Teoria e Crítica da Arte Contemporânea,
com ênfase na atualização e preservação de obras de arte computacionais. Bacharel em Desenho
Industrial - Prog. Visual - UFSM (2001).
2 Pesquisadora da Universidade Federal de Santa Maria, UFSM, Brasil. Pós-Doutorado/ UFRJ e Dou-
torado/ UFRGS, em Artes Visuais, com estágio na Paris VIII, França. Atua no Programa de Pós-gradu-
ação em Artes Visuais/PPGART, em História, Teoria e Crítica, com ênfase transdisciplinar em arte-ci-
ência-tecnologia. Coordena grupo Arte e Tecnologia/CNPq e LABART. Membro do Comitê Brasileiro
de História da Arte/CBHA, e da Associação Nacional dos Pesquisadores em Artes Plásticas/ANPAP.
www.ufsm.br/Labart

635
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Abstract/resumen/resumé
From technological (r) evolution and transdisciplinary creations, the knowledge
of different scientific areas complement the artistic practice and raise questions to
be articulated, such as the longevity of computational works. Each project is asso-
ciated with the artist who establishes it, inserting their experiences in the artwork
through research, references or techniques used in the creation process. These
works also carry with them traces of the society in which they were established,
their problems and questions. Thus, the preservation of these artistic projects is
fundamental to maintaining the social memory of an era and its organization.
Intermingled in the preservation process, questions arise as to the commitment of
the museum institutions and the artists to the preservation of contemporary com-
putational works, their longevity, and maintenance for future experience. And, as
expanded documentation can safeguard the artist’s position against the obsoles-
cence of his work or part of it.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: Contemporary art, Art and technology, social
memory, archiving, preservation.

Introdução
A atualidade está sendo caracterizada, entre outros aspectos, pela acelerada trans-
formação tecnológica. Dispositivos informáticos como celulares, tablets, computa-
dores e diversos aparatos eletrônicos povoam a sociedade, popularizando sua utili-
zação em todo momento do cotidiano. A interação e a interatividade estabelecidas
entre homem e máquina se tornam intrínsecas ao indivíduo, modificando as expe-
riências do corpo social como um todo, e transformando sua percepção diante das
ações, muitas vezes facilitadas por estes dispositivos.

No campo das artes visuais, igualmente ao que ocorreu em épocas anteriores, o ar-
tista acompanha e instiga o percurso traçado na sociedade, transformando-se a si
mesmo e, consequentemente, sua obra. Na contemporaneidade, as múltiplas lin-
guagens nascem das pesquisas e experimentações feitas nos locais de trabalho dos
artistas, seja em ateliê, estúdio, laboratório, universidade, ou outro espaço por eles
escolhido. Assim, também o computador se associa na criação artística. Esta união
da arte com a tecnologia acontece de maneira não hierárquica, como um rizoma3,
e pode se dar em diferentes pontos da instauração da obra, como na sua criação,
produção, visualização, disponibilização ou manutenção4, variando de acordo com
a intenção do artista.

3 DELEUZE & GATTARI, 1995.


4 SANTOS, 2004, p. 258.

636
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

As linguagens artísticas que utilizam tecnologia informática compõem uma perspecti-


va diferente do que se estava acostumado com obras da arte moderna, como a pintura
e a bidimensionalidade da tela, e a conquista da terceira dimensão com a escultura5.

No final do século 19, o avanço da Revolução Industrial impulsionou o progresso da ciência e da


tecnologia. A criação de novos materiais ofereceu novas possibilidades estéticas. As inovações
tecnológicas repercutiram na criação de novas linguagens e novas possibilidades de expressão.
[...] No início do século 20, o desenvolvimento tecnológico influiu na criação e difusão de im-
portantes movimentos ideológicos que questionaram a função da arte. Incorporaram-se novos
enunciados estéticos e conceituais resultantes de estudos técnicos [...]6.

As obras computacionais são resultado, em conjunto com outros fatores, de trans-


mutações técnicas e tecnológicas através do uso cada vez mais frequente de dis-
positivos e aparatos pelos artistas no seu contexto de trabalho e pesquisa que, por
consequência, acabou demandando reconfigurações do espaço expositivo. Um lo-
cal planejado para expor obras de arte moderna pode não cumprir com as instâncias
demandadas por projetos contemporâneos.

As obras computacionais permitem uma experiencia que facilita a sensibilização dos


cinco sentidos mediante a vivência individual de cada um, instituída a partir do in-
terator e de suas memórias adquiridas anteriormente e estabelecendo significações
por meio da associação estabelecida com a obra. Estes projetos, no contexto da arte
contemporânea, estão em processo, possibilitando que a cada nova experiência com
o público possa se construir uma nova vivência naturalmente de acordo com o en-
torno da sociedade em que o interator estiver inserido. Este indivíduo é sensível às
influências externas e não pode ser considerado um ente individual e sim um “sujeito
pós-moderno”, com suas identidades não unificadas ao redor de um “eu” coerente7.

Com a disseminação dos aparatos e dispositivos tecnológicos, o que Grau et al8. de-
nomina “(r)evolução tecnológica”, observa-se o fazer artístico e o conceito da obra
coexistem em um mesmo processo de instauração. A utilização de diferentes mate-
riais e substratos de mídia variável, propicia que se estabeleçam processos compu-
tacionais através de hardwares e softwares. Mas, como consequência direta, tem-se o

5 ARCHER, 2001, p. 38.


6 VELLOSILLO in BEIGUELMAN, 2014, n. p., Locais do Kindle 2526-2528 e 2531-2533.
7 HALL, 2006, p. 12-13.
8 2017, p. 20.

637
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

aparecimento de alguns entraves para a sua preservação9 e seu arquivamento10, por


apresentarem peculiaridades, como por exemplo, a efemeridade e a interatividade.

A relação entre arte e tecnologia tornou-se cada vez mais estreita, o que estimulou a participação
de outras áreas do conhecimento e da inovação científica como a genética, a robótica, a biologia e
a inteligência artificial como parte de propostas artísticas, entre as quais se destacam a videoarte e a
net art. A influência recíproca entre a arte, a tecnologia, a ciência e a sociedade é exemplo da perme-
abilidade entre as diferentes áreas do conhecimento que caracterizam a cultura contemporânea11.

A longevidade das obras computacionais


Os processos a serem executados para a preservação e o arquivamento de obras
digitais diferem, em alguns aspectos, das ações a serem operadas em obras analó-
gicas. Assim, ascendem questões relativas ao papel das instituições museais com
relação à manutenção destes projetos artísticos, mais especificamente à sua do-
cumentação, preservação e arquivamento, e a possibilidade de manter-se ou não
sua autenticidade12.

9 Miguel Ferreira (2006) define a preservação digital como a competência que garante a acessibi-
lidade da informação digital, ou computacional, garantindo suficiente qualidade e autenticidade
para possível interpretação futura através de plataforma diferente da original.
10 Consta no Dicionário Brasileiro de Terminologias Arquivísticas (2005, p. 117) a definição de mé-
todo de arquivamento: “seqüência de operações que determina a disposição dos documentos de um
arquivo ou coleção, uns em relação aos outros, e a identificação de cada unidade”, onde arquivo é
considerado, na mesma publicação, como: “conjunto de documentos produzidos e acumulados por
uma entidade coletiva, pública ou privada, pessoa ou família, no desempenho de suas atividades,
independentemente da natureza do suporte; instituição ou serviço que tem por finalidade a custó-
dia, o processamento técnico, a conservação e o acesso a documentos; instalações onde funcionam
arquivos […]”. Disponível em: http://www.arquivonacional.gov.br/images/pdf/Dicion_Term_Arquiv.
pdf. Acesso em: 06 mar. 2019.
11 VELLOSILLO in BEIGUELMAN, 2014, n. p., Locais do Kindle 2556-2559.
12 Seguindo o conceito expresso pelo CONARQ, considera-se que a autenticidade é a “qualidade de
um documento ser exatamente aquele que foi produzido, não tendo sofrido alteração, corrompi-
mento e adulteração. A autenticidade é composta de identidade e integridade.
Identidade é o conjunto dos atributos de um documento arquivístico que o caracterizam como úni-
co e o diferenciam de outros documentos arquivísticos (ex.: data, autor, destinatário, assunto, núme-
ro identificador, número de protocolo).
• Integridade é a capacidade de um documento arquivístico transmitir exatamente a mensagem
que levou à sua produção (sem sofrer alterações de forma e conteúdo) de maneira a atingir seus
objetivos.
• Identidade e integridade são constatadas à luz do contexto (jurídico-administrativo, de proveniên-
cia, de procedimentos, documental e tecnológico) no qual o documento arquivístico foi produzido
e usado ao longo do tempo.” (CONARQ, 2012, p. 02). Disponível em: <http://conarq.gov.br/images/
publicacoes_textos/conarq_presuncao_autenticidade_completa.pdf>. Acesso em: 08 mai. 2019.

638
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A obsolescência tecnológica13, a rápida degradação física, a complexidade dos processos e os custos


elevados são abordados a partir de iniciativas em países, como por exemplo EUA, Canadá, Áustria,
Espanha, Portugal, Alemanha, Brasil. Mas, ainda, encontram dificuldades em ter uma visão linear dos
projetos para conseguir propor algum protocolo, pois cada uma das obras pode ser criada a partir
da utilização de diferentes softwares e hardwares, além da intervenção física do autor14.

As obras computacionais poderão ser experenciadas até o momento em que for


possível sua nova exposição. Quando alguma parte constituinte da obra falha, seja
uma peça física que deixa de funcionar ou problemas de obsolescência de hardwa-
re ou software, há um impedimento de nova experienciação do projeto artístico.
Assim, faz-se necessário considerar quais ações serão possíveis, além de determinar
suas consequências. Dentro deste contexto de presumível perda da obra, existe (ou
deveria existir) o posicionamento do artista com relação ao futuro do seu trabalho
que está desatualizado, prestes a não ter funcionalidade.

Os projetos artísticos que utilizam tecnologia computacional que se tornarem


obsoletos podem ser atualizados e/ou recriados por meio de processos especí-
ficos15, escolhidos de acordo com os elementos que os compõem. Pode haver a
exigência do comprometimento de diferentes profissionais no processo de atu-
alização ou reconstrução que, auxiliados pela presença do artista — caso ainda
esteja vivo, ou de algum membro de sua equipe de trabalho —, poderão avaliar
as ações a serem tomadas. Também deve-se considerar um cenário onde o artista
não queira que sua obra seja atualizada, que seja perdida por sua efemeridade,
sujeita às ações do tempo, restando somente as experiências anteriores como
forma de documentação.

Os processos de atualização e, muitas vezes, de reinterpretação ou restauro dos projetos artísticos


computacionais devem, preferencialmente, contar com o acompanhamento do(s) autor(es) da
obra e/ou sua equipe de trabalho. Desta maneira, a sistematização das ações a serem aplicadas
será decidida de acordo com as intenções do artista, suas atitudes e seus conceitos16.

13 Relativo à obsolescência, é necessário ressaltar que a ISO 14.721, no Modelo OAIS (Open Archival
Information System), através do CIA determina o período de 5 anos como temporalidade de acesso
aos arquivos computacionais, a não ser que esteja inserido na preservação sistêmica, contemplando
normas, modelos e padrões através do Modelo OAIS - SAAI (Brasil).
14 LANDERDAHL, 2019, p. 22.
15 LANDERDAHL, 2019, p. 69-92.
16 LANDERDAHL, 2019, p. 27.

639
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Como a história que está sendo construída na atualidade poderá


ser acessada no futuro?
O artista está diretamente ligado à obra que instaura e seu conceito, através de suas
referências, pesquisas, técnicas e vivências, determinando o projeto final. Conside-
rando que estas experiências e vivências do artista são resultado da sua existência
em sociedade, suas regras e questionamentos, é significativo que se mantenham
estas obras, que carregam consigo informações de uma época e da organização do
corpo social. Rinehart & Ippolito classificam essas características como memória so-
cial, que divide-se em formal e informal17.

A memória social formal é aquela que privilegia a forma do objeto, mantendo-o por
meio de processos de armazenamento18 e preservação de tecnologia19, analógico
ou computacional. A memória social informal, ao contrário, preserva as funções do
objeto, optando pela sua atualização ou recriação como alternativa de mantê-lo
acessível, utilizando métodos como a migração20, a emulação21 e a reinterpretação22.

As obras de arte computacionais que estão sendo instauradas na contemporaneida-


de poderão ser acessadas de diferentes maneiras no futuro. Aquelas obras que forem

17 2014, n. p., Local do Kindle 169-171.


18 “O armazenamento é a estratégia de longo prazo para a mídia antiga, e é a solução de curto prazo
para novas mídias”. RINEHART & IPPOLITO, 2014, n. p., Local do Kindle 93.
19 “Deve-se ressaltar que a preservação da tecnologia não segue normas, padrões ou requisitos
internacionais, dificultando também a interoperabilidade com sistemas que seguem o Modelo OAIS,
não possibilitando a aplicação de processos que resultem na preservação sistêmica da obra a ser
conservada, que possibilita garantir sua autenticidade por meio de sua identidade e integridade.”
LANDERDAHL, 2019, p. 51
20 “É a estratégia mais comum, e tem como objetivo manter a informação digital compatível com
as tecnologias atuais. É de fácil acesso para os usuários não-especialistas, por não necessitar outros
softwares para acessar o conteúdo do objeto. Consiste na transferência da informação digital de
uma mídia que está se tornando obsoleta, fisicamente deteriorada ou instável, para um suporte
mais novo ou tecnologicamente atualizado.” LANDERDAHL, 2019, p. 74.
21 “Esta estratégia está baseada na utilização de um software especial que simula, com a capacida-
de de reproduzir o comportamento de uma plataforma de hardware e/ou software em outra. Um
ambiente similar ao original é criado em um diferente meio em que se parece, sente-se e comporta-
-se como o ambiente original.” LANDERDAHL, 2019, p. 76.
22 “É o método mais eficiente, mas também o mais radical. Consiste em refazer um projeto artístico
que empregue algum tipo de tecnologia, feito preferentemente, a partir da consulta ao artista, ve-
rificando qual estratégia é mais adequada para a preservação de sua obra. Consiste na substituição
de itens ou produtos obsoletos por outros equivalentes, ou seguindo uma série de instruções que
variam de acordo com o site, a audiência e a ocasião, para cada projeto. Ou ainda, um trabalho es-
crito em uma linguagem de programação pode ser totalmente refeito numa plataforma diferente.”
LANDERDAHL, 2019, p. 78.

640
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

sendo perdidas pelas ações do tempo, ou seja, que ficarem obsoletas, poderão ser re-
visitadas através de materiais documentais de diferentes tipos, sejam vídeos, fotogra-
fias, ensaios, artigos, esboços, e outras tantas evidências que porventura registraram
um determinado projeto artístico que já não pode mais ser exposto. Há também as
obras que passaram — e/ou estão passando — por processos de manutenção, a fim
de mantê-las operacionais e passíveis de novas experiências.

Analisando obras que dependem da tecnologia informática, e que sofreram ações


de atualização e recriação, tem-se o exemplo de Desertesejo (2000), do artista visual
brasileiro Gilbertto Prado. Observa-se, a partir do estudo de caso desta obra23, a ne-
cessidade do acompanhamento das transformações tecnológicas a fim de atualizar
o projeto artístico sempre que necessário, preferencialmente dentro de normas e
padrões estabelecidos pelo Modelo Open Archival Information System (OAIS)24, tam-
bém conhecido no Brasil como Sistema Aberto para Arquivamento de Informação
(SAAI). Além disso, esta regulamentação deve estar em constante análise, a fim de
verificar as transformações tecnológicas ocorridas e as modificações necessárias. No
caso específico de Desertesejo, a obra foi criada para ser experienciada em um con-
texto de internet que acabava de iniciar no Brasil. “No início dos anos 2000, o acesso
à internet era viável somente em alguns computadores, pois o alcance da rede era
muito limitado e, além disso, a velocidade de transferência de dados era muito me-
nor do que se tem em 2018” 25. Outro fator que difere da atualidade são os compo-
nentes dos computadores, com placa gráfica de definição muito precária.

Os espaços museais que expõem obras de arte contemporânea devem ser conscien-
tes da estética instaurada a partir da experiência destes trabalhos artísticos em cons-
tante processo, e propiciar um ambiente que contemple a interação do público com
a obra. Mas, avançando esta observação para além do ecossistema expositivo, as
instituições museais “devem ser capazes de manter suas atribuições de apropriação,

23 LANDERDAHL, C. Arte Computacional: Preservação e Arquivamento na Contemporaneidade. Dis-


sertação (Mestrado em Artes Visuais), sob orientação da Profa. Dra. Nara Cristina Santos. Universida-
de Federal de Santa Maria, 2019. No Capítulo 4, intitulado Desertesejo no Instituto Itaú Cultural: um
estudo de caso, traz-se a obra Desertesejo (2000) e sua recriação (p. 93-112).
24 A publicação Diretrizes para a iImplementação de Repositórios Arquivísticos Digitais Confiáveis
- RDC-Arq define que “o modelo de referência OAIS (Open Archival Information System) é uma reco-
mendação internacional desde 2003 (ISO 14.721). Trata-se de um modelo conceitual que define um
repositório digital, identificando o ambiente, os componentes funcionais, suas interfaces internas e
externas, os objetos de dados e informações. No Brasil, foi adaptado e publicado como norma ABNT
NBR 15472: 2007, sob o título ‘Sistema Aberto de Arquivamento de Informação – SAAI’”. Disponível em:
<http://conarq.gov.br/images/publicacoes_textos/diretrizes_rdc_arq.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2019.
25 LANDERDAHL, 2019, p. 99.

641
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

exposição e preservação das obras”26 que fazem parte do seu acervo, expandindo
seu campo de atuação sem abandonar prerrogativas já sedimentadas. Para tanto
será necessária a integração de outros campos científicos que possam contribuir
com seus saberes para a manutenção destes dispositivos variáveis e complexos.

O museu de arte não poderá, sob pena de desaparecer ou de se tornar outra coisa, destituir-se de
suas atribuições clássicas de apropriação, exposição e preservação. Sua especificidade funcional
esteve e está em acervos constituídos de materialidade diversas e seu estudo, paralelamente, ao
que fazem a história, a crítica e a teoria em suas áreas. Sua tendência colecionista é para a especia-
lização. Paralelamente deverá crescer como centro e documentação. 27

O International Council of Museums (ICOM) esclarece que “O Conselho Internacional


de Museus é uma organização internacional de museus e profissionais de museus
comprometida com a pesquisa, conservação, continuação e comunicação com a so-
ciedade do patrimônio natural e cultural do mundo, presente e futuro, tangível e in-
tangível.”28 Assim, toda obra que faz parte de um acervo de instituição museal deve
ser mantida pela mesma, com exceção de algum caso em que o artista comunica seu
posicionamento desfavorável à atualização.

A preservação e o arquivamento de obras de arte computacionais podem esbarrar


em adversidades associadas às chamadas novas mídias. Dentre elas emergem ques-
tões relativas à autenticidade e originalidade das obras dependentes da tecnologia
informática. “A obra [computacional] é descrita não apenas como uma lista de ma-
teriais, peças e componentes, mas também por suas características funcionais”29. É
necessário que seja feita uma análise de todas as informações disponíveis da obra
através de documentação existente, além do exame de profissionais que possam
vir a contribuir com outros dados necessários. Como exemplo deste tipo de inves-

26 LANDERDAHL, 2019, p. 26.


27 FREIRE, 2013, p.112.
28 Missions and objectives: The International Council of Museums is an international organisation of
museums and museum professionals which is committed to the research, conservation, continuation
and communication to society of the world’s natural and cultural heritage, present and future, tangible
and intangible. Tradução nossa. Disponível em: <https://icom.museum/en/about-us/missions-and-
-objectives/>. Acesso em: 02 set. 2019.
29 LANDERDAHL, p. 85, 2019.

642
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

tigação tem-se o Variable Media Questionnaire (VMQ)30, que facilita o diálogo com o
artista e é utilizado por diversos museus31.

As análises e estudos de caso devem ser feitos de maneira detalhada, o que demanda
tempo, além de serem dispendiosos por ser necessário, algumas vezes, a contratação
de profissionais externos para poder verificar as obras computacionais examinadas.
Neste processo, o próprio artista tem a possibilidade de estabelecer caminhos que irão
amparar futuras escolhas para a manutenção do seu trabalho, além de, indiretamen-
te, auxiliar na aquisição de obras dependentes da tecnologia informática por parte
de instituições museais e/ou colecionadores. Para tanto, percebe-se a importância da
inclusão de toda e qualquer observação relacionada à obra e sua instauração, como
instruções de montagem, croquis, possibilidades de modificação de peças físicas por
outras mais atuais, e qual rumo tomar no caso de não funcionamento da obra por
obsolescência tecnológica. Para este conjunto referencial adota-se a denominação de
documentação expandida32 e propõe-se que seja incorporada no contrato de aquisição
da obra e utilizada como declaração legal sempre que necessário.

No caso de uma obra computacional necessitar atualização, é desejável que seja feito
em conformidade com os preceitos da Arquivologia a fim de garantir sua longevidade.
Todo documento que não segue o Modelo OAIS - SAAI, perde sua autenticidade por
não estar inserido em uma cadeia de custódia confiável33. Especificamente no campo
das artes visuais, as obras computacionais atualizadas fora deste contexto de normas,

30 Disponível em: <https://www.guggenheim.org/conservation/the-variable-media-initiative>.


Acesso em: 28 nov. 2017.
31 “Foi desenvolvido em 1999 com o objetivo de preservar trabalhos baseados em tecnologia com-
putacional para a coleção permanente do Museu Guggenheim, Nova Iorque/EUA. Inicialmente,
também foi apoiada pela Daniel Langlois Foundation, em Montreal, juntamente com Jon Ippolito,
curador associado do museu. Consiste em um formulário ligado a um banco de dados no qual se
armazenam e são obtidas informações sobre um projeto computacional, sua performance e outras
características da obra, uma vez já cadastrada (Figura 18). O VMQ foi implementado para sustentar
o entendimento de quais atributos do projeto artístico devem ser refeitos, além de indicar o melhor
caminho a ser seguido para futuras recriações necessárias para a manutenção da obra, utilizando
uma metodologia diferenciada e inovadora.” LANDERDAHL, 2019, p. 85.
32 Termo usado por Priscila Arantes em entrevista dada a uma das autoras por ocasião da escrita da
dissertação, em 2018. LANDERDAHL, 2019, p. 156.
33 A Resolução nº 43 do CONARQ, no Brasil, também “estabelece diretrizes para a implementação
de repositórios arquivísticos digitais confiáveis para o arquivamento e manutenção de documentos
arquivísticos digitais”. LANDERDAHL, 2019, p. 41.

643
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

modelos e padrões não são mais autênticas34, e sim autenticadas35, mas nem por isso
perdem a relevância de sua preservação. A utilização destas diretrizes possibilita a “in-
terconexão de arquivos em bancos de dados existentes em todo o mundo, seja em
plataformas online ou em acervos de espaços museais”36. A autenticação da obra, após
sua atualização, é concedida por uma autoridade competente, gerando documenta-
ção que deve ser anexada à documentação expandida e/ou contrato, quando houver.

Considerações Finais
Os diversos agentes do sistema das artes podem estar integrados na preservação e
no arquivamento das obras de arte computacionais. Em específico, de acordo com
o que foi exposto neste artigo, as instituições museais devem acompanhar as trans-
formações do contexto da arte contemporânea através de linguagens constituídas
por “dispositivos complexos, instáveis, maleáveis, sempre em transformação”, como
afirma Anne Cauquelin37.

Os museus e espaços expositivos podem, sempre que adquirirem alguma obra de-
pendente de tecnologia computacional, ampliar o escopo de seus contratos, adicio-
nando a documentação expandida e a declaração do artista com algumas possíveis
diretrizes para o futuro do trabalho. Quais foram as referências visuais, técnicas, ou
outras, utilizadas para a instauração da obra? Existem fotografias e vídeos que regis-
trem o processo? Onde, quando e como a obra já foi exposta? Quais as possíveis va-
riações de montagem? Existe uma listagem completa de materiais físicos, hardwares
e softwares necessários para o funcionamento satisfatório do projeto? Entre outras
tantas indagações que vão surgir de acordo com as características individuais das
obras e artistas.

Os departamentos de conservação de instituições museais estão expandindo suas


fronteiras com o auxílio de profissionais de diferentes áreas. Na prática observa-se a

34 Seguindo o conceito expresso pelo CONARQ, considera-se que a autenticidade é a “qualidade de


um documento ser exatamente aquele que foi produzido, não tendo sofrido alteração, corrompi-
mento e adulteração. A autenticidade é composta de identidade e integridade. Para maiores escla-
recimentos ver nota de rodapé nº 12.
35 De acordo com o CONARQ, a autenticação é a “declaração de autenticidade de um documento
arquivístico, num determinado momento, resultante do acréscimo de um elemento ou da afirma-
ção por parte de uma pessoa investida de autoridade para tal.” Ainda é preciso trazer o conceito de
documento autêntico, para maior esclarecimento, que é todo “documento que teve sua identidade
e integridade mantidas ao longo do tempo.” (CONARQ, 2012, p. 02). Disponível em: <http://docu-
mentosarquivisticosdigitais.blogspot.com/2018/03/bloco-02-autenticidade-e-autenticacao.html>.
Acesso em: 08 mai. 2019.
36 LANDERDAHL, 2019, p. 113.
37 CAUQUELIN, 2005, p. 126.

644
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

organização de informação por meio de portais, sites, associações, conferências, pu-


blicações, exposições e outros eventos. Este movimento possibilita a troca de saberes
em busca de soluções efetivas para a problemática da preservação de obras computa-
cionais38. Acredita-se que é fundamental desenvolver pesquisas e experimentações, a
partir da prática e do conhecimento teórico de acadêmicos e da atuação de profissio-
nais, na tentativa de criar guias e protocolos para auxiliar a salvaguarda destas obras.

As obras originais e as obras atualizadas vivem em contextos históricos diferentes.


As memórias sociais da época da criação de uma obra diferem da memória social de
sua atualização. As sociedades se modificam e por consequência a receptividade, o
caráter inovador, a percepção e o modo de interação com determinado projeto artís-
tico vai se alterar. A experiência se modifica com o passar dos anos e com a vivência
de cada interator, e a obra atualizada pode ser considerada um deslocamento da
experiência passada para um tempo atual.

Assim, reafirma-se a necessidade do estudo de métodos e procedimentos de preser-


vação e arquivamento das obras computacionais, a partir de instituições museais,
espaços expositivos e colecionadores de arte contemporânea, seguindo as normas,
os modelos e os padrões, além de iniciativas externas de profissionais que se asso-
ciam com o objetivo em busca de auxiliar neste processo de busca de informações,
documentações, para contribuir com a construção da memória da sociedade. Afinal,
os projetos dependentes da tecnologia informática atuam diretamente no estabele-
cimento de paradigmas, tecendo as memórias instáveis de todo corpo social. 

Referências
ARCHER, M. Arte contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes,
2001.

BEIGUELMAN, G. & MAGALHÃES, A. G.. Futuros Possíveis: arte, museus e arquivos


digitais. Ed. Peirópolis e Edusp. E-book. ISBN: 978-85-7596-354-8, 2014.

CAUQUELIN, A. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo : Martins, 2005.

CONARQ - Conselho Nacional de Arquivos. Gestão e preservação de documentos


digitais. I Congresso Nacional de Arquivologia Brasília. Novembro de 2004. Dispo-
nível em: <http://www.conarq.gov.br/images/ctde/apresentacoes_gestao/congres-
so_abarq__ctde_final_2004.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2019.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia, 1995.

38 LANDERDAHL, 2019, p. 69-72 e 80-92.

645
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

FERREIRA, M. Introdução à preservação digital: conceitos, estratégias e actuais


consensos. Universidade do Minho, Escola de Engenharia, 2006.

FREIRE, C. (org.). Walter Zanini: escrituras críticas. São Paulo: Annablume: Museu de
Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, 2013.

GRAU, O.; HALLER, S.; RÜHSE, V.; HOTH, J.; SCHILLER, D.; SEISER, M. Documenting
Media Art: Towards a social WEB 2.0-Archive for MediaArtHistories and integrative
Bridging Thesaurus. In: Newest Art History. Wohin geht die jüngste Kunstgechichte?
Verband österreichischer Kunsthistorikerinnem und Kunsthistoriker, 2017. Disponí-
vel em: <https://goo.gl/fCHy3s>. Acesso em: 23 out. 2017.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. TupyKurumin, 2006.

LANDERDAHL, C. Arte Computacional: Preservação e Arquivamento na Contem-


poraneidade. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais), sob orientação da Profa. Dra.
Nara Cristina Santos. Universidade Federal de Santa Maria, 2019.

LANDERDAHL, C. Memórias instáveis, equipamentos tecnológicos e acesso às


obras de arte digitais contemporâneas. In: Anais 26º ANPAP (2017). Disponível
em: <http://anpap.org.br/anais/2017/PDF/PCR/26encontro______LANDERDAHL_
Cristina.pdf>. Acesso em: 17 mar. 2018.

LANDERDAHL, C.; FONTANA, F. F.; SANTOS, N. C. A preservação digital em arte,


ciência e tecnologia: ZKM e MoMA. In: Encontro Internacional de Arte e Tecnolo-
gia, #15ART (2016). Anais… Brasília. Disponível em: <https://art.medialab.ufg.br/
up/779/o/cristina_e_fabiana_e_nara_2.pdf> Acesso em 06 jun. 2017.

LANDERDAHL, C.; SANTOS, N. C. Desertesejo original (2000) e atualizada (2010): ex-


perienciação depois da reconstrução. In: 27º Encontro Nacional da ANPAP, 2018, São
Paulo. Anais do 27º Encontro Nacional da ANPAP, 2018.

LANDERDAHL, C.; SANTOS, N. C. A preservação da arte digital na contemporanei-


dade. In: #16.ART - Encontro Internacional de Arte e Tecnologia, 2017, Porto - Portu-
gal. 16º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia - Artis Intelligentia: imaginar o
real, 2017. p. 553-559.

LUZ, C.; FLORES, D. Cadeia de custódia e de preservação: autenticidade nas plata-


formas de gestão e preservação de documentos arquivísticos. 2017. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/325225229_Cadeia_de_custodia_e_
de_preservacao_ autenticidade_nas_plataformas_de_gestao_e_preservacao_de_
documentos_arquivisticos>. Acesso em: 23 abr. 2019.

PAUL, C. Digital art. London: Thames & Hudson, 2003. Edição do Kindle.

646
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

PRADO, G. Entrevista sobre a obra Desertesejo original e seu restauro. 04 de no-


vembro de 2017, Buenos Aires - Argentina. Entrevista concedida a Cristina Landerdahl.

RINEHART, R. & IPPOLITO, J. Re-collection: Art, New Media, and Social Memory. Leo-
nardo Book Series. Edição do Kindle, 2014.

SANTOS, H. M.; FLORES, D. Estratégias de preservação digital em arquivos: garan-


tia de autenticidade e acesso contínuo em longo prazo. In: VI CONGRESSO NACIO-
NAL DE ARQUIVOLOGIA, AARS. 2014.

SANTOS, N. C. Arte (e) Tecnologia em sensível emergência com o entorno digital.


Tese (Doutorado em Artes Visuais) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2004.

SAYÃO, L. F. Aplicação do Modelo OAIS. Conselho Nacional de Energia Nuclear –


Centro de Informações Nucleares – MCT/CNEN/CIN. 2007. Disponível em: http://
conarq.arquivonacional.gov.br/images/ctde/apresentacoes_preservacao/ctde_me-
tadados_preservacao_digital_sayao.pdf>. Acesso em: 24 abr. 2019.

SAYÃO, L. F. et. al. (org.) Preservação digital no contexto das bibliotecas digitais:
uma breve introdução. Editora EDUFBA, 2005, p. 113-143.

647
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Graça P. Corrêa1
Direção e Encenação de Teatro como laboratório de prática
emocional
Theatre Directing as a laboratory of emotional practice

Resumo
Baseando-se na investigação recente sobre a teoria da emoção e dos afectos—
nomeadamente nos conceitos desenvolvidos por William James, António Da-
másio, Silvan S. Tomkins, e Brian Massumi, entre outros—o artigo investiga a
forma como a direção/encenação de teatro pode operar enquanto laboratório
de prática emocional. Neste sentido, são abordados dois processos distintos de
encenação e os métodos correspondentes de performance emocional, sugerin-
do que o teatro é uma atividade colectiva e forma de arte que contribui para o
florescimento da vida.
Palabras chave: emoção, ‘feeling’, afecto, ética, Antonio Damasio.

Abstract
Drawing on recent research in emotion and affect theory—namely on notions
developed by William James, Antonio Damasio, Silvan S. Tomkins, and Brian
Massumi, among others—this article investigates how theatre directing may
advance a laboratory of emotional practice. It thus examines two distinct the-
atre directorial processes, with corresponding methods of performing emotions
onstage, arguing that theatre is an activity and art form that contributes to-
wards the flourishing of life.
Keywords: emotion, feeling, affect, ethics, Antonio Damasio.

Introduction
Some of the most influential developments of contemporary thought have ensued
from an interdisciplinary collaboration of several fields of knowledge with cognitive

1 Graça P. Corrêa is researcher in Science and Art at FCUL-Faculty of Sciences of the University of
Lisbon, member of CFCUL-Center for Philosophy of Sciences, where she directs interdisciplinary re-
search projects on Emotion Theory, Synesthesia, Ecophilosophy, Neuroaesthetics and Ethics. Along-
side her academic career, she works as theatre director, stage designer, playwright, dramaturg and
translator in professional companies. Centro de Filosofia das Ciências, Faculdade de Ciências, Univer-
sidade de Lisboa, 1749-016 Lisboa, Portugal.

648
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

neuroscience. In the field of theatre and performance studies alone, Elizabeth Hart,
Bruce McConachie, John Lutterbie and Rhonda Blair (among other authors) have pu-
blished several books and articles within this novel approach. Nonetheless, whereas
there is relative agreement about what constitutes cognition, the same cannot be
said about emotion, resulting in differing notions and explanations for the terms
emotion, feeling and affect. As McConachie states, “the term ‘emotion’ has several
definitions, depending on whose science you read” (2008, p.13). Further, although
emotion and cognition have been viewed as largely separate throughout history by
both science and philosophy, in the past two decades a growing body of research
increasingly points towards the interdependence between the two (PESSOA, 2009).2

Among the arts, theatre is a highly collective creative activity and art form that works
with different expressions and texts, namely written, bodily, vocal, musical, aural and
visual. Moreover, theatre issues from and produces emotional thinking, an interfa-
ce between emotion and cognition allowing thoughts to trigger emotions that are
played out in the mind and body; and, in reverse, allowing body sensations to pro-
duce emotions and feelings that influence thoughts. Accordingly, this article asses-
ses different methods of developing emotions onstage by probing two examples
of rehearsal and production processes: Miss Julie, directed by Katie Mitchell in 2013,
and Sangue de Lorca, directed by myself in 2019, with the aim of understanding how
theatre directing may constitute a laboratory of emotional practice.

Emotion, affect and feeling


In The Expression of Emotions in Man and Animals (1872), Charles Darwin proposed the
presence of six basic emotions, not restricted to humans and which all had specific fa-
cial expressions and other observable bodily behaviors: Surprise, Sadness, Happiness,
Fear, Disgust, and Anger. Some twelve years later, in the essay “What is an Emotion?”
(1884), William James observed how in a life-threatening situation human beings first
reacted physically and only afterward became conscious of the meaning of that reac-
tion. James thus suggested that the experience of emotion is due to a person’s proprio-
ceptive perception, discerned from visceral and other bodily changes. His essay was
considered groundbreaking at a time when “the scientific community widely believed
that the reaction to a stimulus was cognitive, and that the bodily changes that resulted
were primarily reactions to a thought” (COLEMAN & SNAREY, 2011, p.845). According
to the James–Lange theory (proposed by James but also independently developed by
Danish psychologist Carl Lange), therefore, emotions are automatic bodily reactions to
stimuli, revealed by posture, gait, gesture, and face expression; their primary cause is
physical and only afterwards do they evoke feelings in the conscious mind.

2 Acknowledged interactions between emotion and cognition include i) perception and attention;
ii) learning and memory; and iii) behavioral inhibition and working memory.

649
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Emotion and feeling have played a central part in the work of neuroscientist Anto-
nio Damasio, starting with Descartes’ Error (1994), in which he addressed the role of
both in decision-making, followed by The Feeling of What Happens (1999), where he
outlined the role of emotion and feeling in the construction of the self, and later on
by Looking for Spinoza (2003), which focused on how feelings are revelations of the
state of life within an entire organism. Generally consonant with the James-Lange
theory, Damasio proposes a distinction between emotion—which he describes as a
“collection of responses” corresponding to external and measurable reactions, many
of which are publicly observable —from feeling, which he reserves for the subjective
mental experience of these emotional responses (DAMASIO, 1999, p.42). Most im-
portant, however, in his most recent book, A Strange Order of Things (2018), Damasio
claims that emotions and feelings not only conduct our decision-making, but also
motivate all creations of human culture, by cooperating with homeostasis3. Conse-
quently, “What we call civilization is the education of our affects, of our emotional
machinery, during our childhood and youth, at home, in school or in our cultural
environments” (2018, p.162). Although this machinery is most certainly individuali-
zed, the greatest part of our emotions is social in nature. Our emotional machinery is
governed and affected by a combination of biology, environment and culture.

Homeostasis typically refers “to any process that living things use to actively maintain
fairly stable conditions necessary for survival” (RODOLFO, 2000). This conventional
notion of homeostasis confines itself to the balanced regulation of life’s operations,
conjuring up ideas of equilibrium and balance or the maintenance of a status-quo.
Hence, Damasio (together with biologist John S. Torday), rejects this quasi-static as-
sessment to propose an evolutionary view of homeostasis that not only guarante-
es survival and life regulation, but also tends towards the flourishing of life. Within
Damasio’s new understanding, feelings are the mental expressions of homeostasis:

The alignment of pleasant and unpleasant feelings with, respectively, positive and negative ran-
ges of homeostasis is a verified fact. (...) Mind and brain influence the body proper just as much
as the body proper can influence the brain and the mind. They are merely two aspects of the very
same being (2018, p.117).

Damasio bemoans the neglect of feelings in the natural history of cultures, because
feelings are the subjective experiences of homeostasis —that is, of the state of life.
A neglect of feelings in our culture thus corresponds to a disregard in relation to life
itself (2018, p.25).

3 Physiologist Walter Cannon coined the term homeostasis in 1926 as a tendency toward stability
among interdependent elements. It derives from the Greek homio “like, similar, equal” and stasis
“standing still”; and refers to any process that living things utilize to actively maintain fairly stable
conditions necessary for survival.

650
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Adding to the above-mentioned emotion theories but often challenging them, af-
fect theory—as found in the works of philosophers Gilles Deleuze, Félix Guattari and
Brian Massumi—offers an environmental dimension to feelings. Within a schizoa-
nalytic understanding of subjectivity as a becoming-in-and-with-the-world, propo-
sed by Deleuze and Guattari, affects are prepersonal intensities within human and
non-human bodies, in-between bodies, between bodies and world, that produce
capacities of bodies within assemblages, in a continuous flux (DELEUZE and GUAT-
TARI, 1987). According to Brian Massumi emotions are social, feelings are personal
and biographical, but affects are prepersonal. Whereas an emotion is the display of a
feeling that can be either genuine or contrived (sometimes an expression of our in-
ternal state, but other times engineered in order to fulfill social expectations), affect
is a nonconscious and nonlinguistic experience of intensity. Affects are moments of
unstructured potential, they correspond to the passage from one experiential state
of the body to another and imply an augmentation or a diminution in that body’s
capacity to act:

When you affect something, you are at the same time opening yourself up to being affected
in turn, and in a slightly different way than you might have been the moment before. You have
made a transition, however slight. You have stepped over a threshold. Affect is this passing of a
threshold, seen from the point of view of the change in capacity (...) every transition is accompa-
nied by a feeling of the change in capacity (MASSUMI, 2003, p.212-213).

Thus the body never coincides with itself, but instead always carries an increasing or
decreasing potential or “virtual” capacity for what will happen.

Affect theory is an approach across the humanities that focuses on the role of pre-
linguistic or nonlinguistic forces, and which can therefore be creatively explored in
theatre and performance research. In effect, one of the background figures of affect
theory, psychologist Silvan S. Tomkins, began his academic training as a playwright,
thus gaining many conceptual insights from his experience working in the theatre.
According to Tomkins, nine primary innate, or biologically based affects, combine to
produce complex emotions: namely six negative affects (anger-rage, fear-terror, dis-
tress-anguish, disgust, “dissmell”4 and shame-humiliation), one neutral affect (surprise-
-startle) and two positive affects (interest-excitement and enjoyment-joy)5 (TOMKINS,
2008). Tomkins also held that we feel and function best when we maximize positive
affect, minimize negative affect, and express all affect—which I suggest may explain
why we feel and function so well in most instances of working creatively in the theatre.

4 A neologism coined by Tomkins.


5 Most affects are defined by pairs of words that represent the least and the most intense expression
of a particular affect.

651
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Emotion in directorial theatre practice


Theatre directing may draw from the above mentioned emotion-affect theories in
many ways. According to the examples I will next draw upon, there are at least four
methods of developing emotions onstage: 1) by identifying their physical shape and
hence recreating visible changes in the actors’ bodies from the outside; 2) by making
actors individually recall, trigger and replicate feelings, from their psycho-emotio-
nal inside; 3) by stimulating emotional thinking, through an association of feelings
to objects, “landscapes” afnd images; and 4) by acknowledging the transmission of
affects to the bodies in the audience not only through actors’ facial expressions, res-
piration, tone of voice, and posture but also through spatial configurations, lighting,
music, sounds, and other nonverbal mediated forms of communication.

Theatre director Katie Mitchell considers that she practices “fourth-wall realism,” and
that she is mainly concerned about producing and conveying human behavior.6
Mitchell bases her directorial work on some research into neuroscience, of the rela-
tionship between the biology of the brain and acting techniques. Her methods for
acting emotions in the theatre mostly ensue from studying Russian theatre director
Konstantin Stanislavski’s later work on physical actions, developed in the 1890s, which
in turn was greatly influenced by the James-Lange theory of emotions, claiming that
humans first react physically and only afterward become conscious of the meaning of
that physical reaction. In Mitchell’s own words,

For theatre practitioners, whose business is the accurate embodiment and transmission of hu-
man emotions, [this] is potentially huge. Here is a way of looking at emotions that separates off
the physical response from consciousness and the mental processes that follow this moment of
consciousness. It points to a way of working on emotions through recreating their physical shape
or circumstances (MITCHELL, 2009, p.231).

Because it is no longer essential for the actors to feel the emotions (as in Stanisla-
vski’s earlier method of “affective memory”), but rather to replicate them precisely
with their bodies so as to make the viewers feel them, Mitchell’s relationship to the
audience radically changed. She realized that spectators can only read what is ha-
ppening inside someone through what they actually see on the outside (MITCHELL,
2009, p.232).

6 Katie Mitchell was associate director of the Royal Shakespeare Company and of London’s National
Theater. Her theatre and opera productions have been presented in Dublin, Copenhagen, Milan,
New York, among other cities; and at major international theatre festivals (Avignon, Salzburg, Aix-
-en-Provence, Almada, etc.).

652
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Inspired by the work of contemporary Russian theatre directors Lev Dodin (Maly
Theatre, St. Petersburg) and Anatoly Vasilyev (director of the Moscow Theatre School
of Dramatic Arts), as well as by private training classes she took in the UK with actor-
-directors Tatiana Olear and Elen Bowman, Mitchell developed a series of emotional
exercises for the actors where they can either replicate particular emotions

from the inside, by recalling the emotion (by remembering a time in their own lives when they
experienced the same thing), or from the outside, by an almost clinical reconstruction of what the
body does when a particular emotion hits it (MITCHELL, 2009, p.232).

Mitchell’s reference point for both talking about and working on acting is not psy-
chology but rather the physiology of emotions. In this, she draws not only on the
James-Lange theory, but also on the writings of Antonio Damasio, who defines emo-
tion as a change in the body (MITCHELL, 2009, p.156).

Whenever she prepares a new production, Mitchell starts off by selecting the script’s
dominant emotion and by asking her actors to re-enact an event in their lives where
they experienced that emotion, for the rest of the group to watch. After studying
how an emotion affects the body, and concentrating their observations on people’s
physicality, actors will then connect this physical information with particular mo-
ments in the play. By drawing attention to one emotion, the director sets the tone for
the precision with which all the remaining emotions expressed in the play are to be
investigated and reenacted in the production (MITCHELL, 2009, p.154-156).

Mitchell’s theatre work distinguishes among three types of emotions: primary emo-
tions such as happiness, sadness, fear, anger, surprise and disgust; social emotions
or secondary emotions that are bodily changes “caused by the imagination,” such
as embarrassment or jealousy; and background emotions, “which are feelings ope-
rating at a low level, like when you say you’re feeling ‘a bit down’ or ‘under the wea-
ther’.”7 In the words of David Lan, Mitchell wants to lead the spectators “to the ghas-
tly depths of human behavior” and force them to understand it:

Her actors convey a sense of minutely observed, psychologically accurate naturalism. (...) If they
are anxious or frightened, they stumble anxiously or fearfully over their words, to the detriment,
sometimes, of audibility. That fear or anxiety, too, is strongly embodied: physical language does
much of the work (HIGGINS, 2016).

Mitchell, however, also seeks to reveal “what it’s like to be inside someone’s consciou-
sness” such as “the challenge of representing someone’s dreams, of one dream that

653
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

one person has, and constructing it in such a way that the audience will really feel
they are watching a dream” (MITCHELL, 2005, p.5).

Within such an understanding, in her production of August Strindberg’s Miss Julie,


presented at Portugal’s 32nd Festival de Teatro de Almada in 2015,8 Mitchell deci-
ded to express the characters-actors’ subjective memories and feelings through live
cinema on stage. As the performance unfolded, five movie cameras accompanied
the actors, either preceding or following them, registering step-by-step images of
their activities that were directly edited by co-director Leo Warner. These images
mainly focused on the actions and reactions of Strindberg’s secondary character by
the name of Kristin, a cook employed by Miss Julie’s father, and fiancée of Jean, her
boss’s footman. We saw close-ups of her hands preparing kidneys for her fiancé Jean,
or pressing flowers between the pages of her Bible; of a brush slowly smoothing
her hair, and of her eyes spying through partitions on Miss Julie and Jean’s sexual
encounter. By placing Kristin’s emotions at the center of the performance, Mitchell
entered Strindberg’s Miss Julie through the backdoor, turned the play’s perspectives
upside-down, and engendered pathos in the maid’s plight.9

We’re doing the play from the point of view of the least important character and, you know, it’s very
moving to watch the main action through the eyes of a person who is actually going to be really,
profoundly affected by the action, but who the two protagonists don’t really care about. It’s like us
in life, really. These grand dramas play out, but there’s a lot of collateral damage (MITCHELL, 2010).

Hence, Mitchell relies upon an emotionally detailed psychological-realistic method


of acting, conveyed through filmed and projected facial expressions that draw the
spectator into the subjective world of each character.

8 Mitchell’s version of the play opened at the Schaubühne Theater in Berlin, in 2013. See trailer at
https://www.youtube.com/watch?v=vVCJ5jt7vM4. Accessed 23 August 2019.
9 For reviews of the opening production, see Kate Kellaway, “Fräulein Julie – review”, The Guardian 5
May 2013. https://www.theguardian.com/stage/2013/may/05/fraulein-miss-julie-strindberg. Acces-
sed 23 August 2019.

654
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Silvia Guerreiro as Yerma in Sangue de Lorca, dir. Graça P. Corrêa, 2019.


Photo by José Teresa Marques.

When, in August 2018, I started composing Sangue de Lorca (Blood of Lorca),10 I wan-
ted to accomplish a work about love and revolution, about affectionate care and the
power of changing the world: that was my main emotional drive from the start. With
a cast of actors comprising seven women and three men, the performance resulted
in a presentation of Lorca’s celebrated trilogy of plays—The House of Bernarda Alba
(1936), Yerma (1934), and Blood Wedding (1933)—, thus demanding deep drama-
turgical choices in order to cut significant parts from the original scripts. Likewise, I
was interested in portraying the personal, social, and political circumstances of the
last days in the life of Federico Garcia Lorca, namely why he decided to stay in Spain
even though he already had a visa to run away from political persecution to Mexico;
his stance regarding the democratically elected Republican government, general
Franco’s right-wing military coup to overthrow it, and the Spanish civil war that en-
sued; his homosexual orientation and intense concern for the sexual and emotional
oppression of women. Consequently, the performance was structured into three
major sections corresponding to the plays, added by an introduction, two interlu-
des, and a conclusion of monologues delivered by the “specter” of Federico Garcia
Lorca on the subject of love, life and death, based on excerpts of his letters, poems
and public speeches.

10 Opened at Espaço Hangar Inimpetus in Lisbon, January 3-17, 2019; and presented at the Theatre
Festival Festival T in Albufeira, 29 March 2019.

655
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

In examining Lorca’s trilogy of plays, I was struck by the fact that their chief emotions
were fear and joy, two bodily-mental responses that fiercely oppose each other. In
Bernarda Alba, a mother confines her five daughters within the walls of the family
house, forbidding them any contacts with the outside world. Instead of being a
site of care or a beneficial environment where relationships among living beings
are reciprocal and affective, home becomes a prison, a hostile place of abuse where
an unnatural mother/authoritarian ruler controls her daughters’ biological instincts
and thus constrains their lives. Likewise in Yerma, home becomes a prison where a
sexually aroused woman is kept to serve her stern, sterile, perhaps even impotent,
husband. In Blood Wedding, a woman is about to marry a man she does not love,
her destiny being to bear his children and dwell inside yet another prisonlike fa-
mily house. Within Damasio’s understanding that feelings and homeostasis relate to
each other closely and consistently, to such an extent that a deficient homeostasis
is expressed largely by negative feelings, while positive feelings open organisms to
advantageous prospects, the female protagonists of the three plays (Adela, Yerma
and The Bride) are unable to thrive emotionally. They constantly live in a fear that
prevents them from feeling joy; they are forced to repress their love drives; they su-
ffer from anxiety due to repressed intimacy and lack of fulfillment: eventually, all of
them culminate in suicide-like deaths.

Lorca’s plays demand a highly physical acting because of their emotional power and
intensity in matters of bodily feeling. Indeed, several critics have noted how Lorca’s
works have an extraordinary directness of emotional address, and how in most of
them “love and passion are given a dramatic intensity that creates the thrilling effect
of an equivalence between feelings and the processes of the external, natural world”
(PERRIAM, 2007, p.150). Exploring this correspondence between feelings and natu-
ral landscapes, in Sangue de Lorca I stimulated the imagination11 of each individual
actor, through exercises and closed readings, so that they would create emotional-
-mental scripts based on their inner and outer sensory landscapes. We would strive
to express, for example, to imagine-feel how it is like to be incarcerated inside an
Andalusian house in the peak of the summer, wearing heavy black clothes during
the day, and being unable to sleep at night because of the heat. How is such a claus-
trophobic feeling of an oppressive atmosphere similar to being unable to live and
express oneself freely in the context of an authoritarian regime? As I have argued
elsewhere (CORRÊA, 2011; 2016), the concept of landscape can be productively de-
ployed in the analysis of playtexts, referring not only to the play’s theoretical pers-
pective and aesthetic experience (landscape as a concept implies a point of view, as
well as a sensory involvement), but also in directorial practice, through the explora-
tion of concrete spatial-bodily and mental-emotional “scapes” with the actors.

11 Aristotle’s Greek word phantasma is commonly translated as “[mental] image”; imagination is


phantasia.

656
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Writing on cognition and emotion, Carl Plantinga argues that much of what lea-
ds a person to have an emotion occurs at the level of the “cognitive unconscious,”
comprising “unconscious perception, unconscious affect, and unconscious conation
(pleasure and desire)” (2009, p.49-50). Plantinga claims that emotions are not always
automatically felt bodily states but rather can be “intentional states expressive of a
relationship between a person and the environment; they therefore have objects,
that is, they are directed at something or someone, whether real or imagined” (2009,
p.79). This conforms to the mental phenomenon that Damasio calls “as-if-body-loop,”
whereby the brain sculpts emotional body maps internally; in short, “the body-sen-
sing areas constitute a sort of theater where not only the ‘actual’ body states can
be ‘performed,’ but varied assortments of ‘false’ body states can be enacted as well”
(DAMASIO, 2003, p.118). In this sense, in my directorial work in the theatre I often
work with actors so as to make inner images, thoughts and landscapes trigger bodily
emotions, as well as transforming what start out to be purely physical bodily postu-
res and movements into feelings.

Differently from Mitchell’s directorial focus in replicating human emotional behavior,


my practice as both dramaturg and director has mostly converged in the ethical-po-
litical-aesthetic affects of theatre performance. Consequently, the performance of
Sangue de Lorca was emotionally prefocused in order to emphasize the patriarchal
dimensions of authoritarianism, whereby sex becomes a tool for oppression and do-
mination. Borrowing the expression from Noël Carroll, when he observes that films
are “criterially prefocused” so as to engender “pro and con attitudes” in viewers about
what is going on (CARROLL, 2006, p.223), I argue that theatre performances are emo-
tionally “prefocused” whenever they have built into them a way of seeing events and
characters, a specific order and duration to those events, and a built-in perspective
that elicits a particular sort of emotional response (usually resulting from the combi-
ned work of playwrights, dramaturgs, directors, designers and actors).

In prefocusing Sangue de Lorca, for instance, I purposely enhanced through my


blocking and choreography the audience’s visibility of actors’ faces throughout the
performance, so that spectators were led to emotionally empathize with particular
scenes and/or characters. According to Tomkins, the face is a “primary organ of af-
fect” (123), a place where “sets of muscle and glandular responses” are located (133).
Therefore, although affect in the theatre can be “activated and maintained endlessly
by the magic of the word” (325), actors’ bodies, and above all their faces, are privi-
leged means of expressing thoughts and feelings (824). In Sangue de Lorca, I also
made use of the affective import of music, namely through two popular Spanish
songs sung by one of the actresses, and a recurring melodic theme taken from Jo-
aquin Rodrigo’s Concierto de Aranjuez (1939). As noted by Eric Shouse, music is a
form of expression that has an enormous potential of transmitting affect, because it
“moves” people, producing actual physical effects without communicating specific
meanings (SHOUSE, 2016).

657
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Conclusion
Etymologically derived from the latin movere, and thus implying an action that tri-
ggers change, emotions are not only about activity and movement, but also about
bonding and attachment. Although the term emotion started being used in France
in the sixteenth century, denoting an instinctive and intuitive feeling distinct from a
rational discursive process of thinking that produces concepts towards knowledge,
recently many neuroscientists have found that emotional engagement is necessary
to sustain the simplest cognitive tasks. Furthermore, emotions play a key role in pro-
viding various types of natural internal values upon which many complex behavioral
choices in humans are based, and therefore are essential towards ethical thinking.
In Damasio’s words, “Ethical behavior is coextensive with emotion; it enables us to
optimize our survival, our well-being. Because emotion is linked to ethical behavior,
failed emotional behavior is the cause of failed ethical decisions and of potentially
disastrous social consequences” (DAMASIO, 2002). In effect, as recent political world
events have shown, “Attempting to understand human behavior as the outcome of
rational cognition alone is not only incorrect—it leads to fundamental misunders-
tandings of the human condition” (MASSEY, 2002, p.2).

In his recent book, Donovan O. Schaefer explains that “As a method, affect theory
asks what bodies do – what they want, where they go, what they think, how they
decide – and especially how bodies are impelled by forces other than language and
reason” (2019, p.1). Formerly, Schaefer had already observed how

effective actors will meticulously use every aspect of their bodies—their voice, hands, face, postu-
re, stride, gaze, gait, and muscles—to build an affective symphony. Directors, too, use a nonverbal
repertoire including timing, staging, and perspective to weave a thick knot of affects around their
script (SCHAEFER, 2016).

Schaefer’s emphasis on a plurality of affective forms (“knots of affects,”“affective sym-


phony”) is especially applicable to the theatre, a multifaceted collaborative activity
and art form. In this sense, an understanding of how emotions, feelings and affects
work in the theatre—not only of how spectators grasp emotions from actors, but
also of how theatre doers produce ethical and political effects through faces, bodies,
objects, sounds, spaces and landscapes— may significantly contribute to the deve-
lopment of the notion of well-being and thus help advance the flourishing of life.

References
COLEMAN, Ashley e SNAREY, J. James-Lange Theory of Emotions. In: GOLDSTEIN S.
and NAGLIEI, J. (Eds.). Encyclopedia of Child Behavior and Development Vol 2.
New York: Springer-Verlag, 2011, p.844-846.

658
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

CARROLL, Noël. Film, Emotion, and Genre. In CARROLL, Noël and CHOI, Jinhee (Eds.).
Philosophy of Film and Motion Pictures: An Anthology. Malden: Blackwell, 2006,
p.217-233.

CORRÊA, Graça P. Sensory Landscapes in Harold Pinter: A Study on Ecocriticism


and Symbolist Aesthetics. Saarbrucken: LAP, 2011.

___. Landscapes of Dictatorship in Film: Three Aesthetic and Emotional Modes. In:
ARAUJO, MORETTIN and BAPTISTA (Eds.). Ditaduras Revisitadas. Faro: CIAC-UAlg,
2016, p.498-521.

DAMASIO, Antonio. The Strange Order of Things: Life, Feelings and the Making
of Cultures. New York: Random House, 2018.

___. Looking for Spinoza: Joy, Sorrow, and the Feeling Brain, London: William
Heinemann, 2003.

___. Conference proceedings: Neuroethics, Mapping the field. New York: Dana,
2002.

___. The Feeling of What Happens: Body and Emotion in the Making of Cons-
ciousness. New York: Harcourt Brace, 1999.

DELEUZE, Gilles and GUATTARI, Félix. A Thousand Plateaus: Capitalism and Schi-
zophrenia. Translated by Brian Massumi. Minneapolis: University of Minnesota
Press, 1987.

HIGGINS, Charlotte. “Katie Mitchell: British theatre’s queen in exile.” The Guardian 14
Jan. 2016. https://www.theguardian.com/stage/2016/jan/14/british-theatre-queen-
-exile-katie-mitchell. Accessed 9 September 2019.

JAMES, William. What is Emotion? Mind 9.34 (Apr. 1884), p.188-205.

MASSUMI, Brian. Navigating movements. In ZOURNAKI, Mary (Ed.). Hope: New phi-
losophies for change. New York: Routledge, 2003, p. 210-242.

McCONACHIE, Bruce. Engaging Audiences: A cognitive approach to spectating


in the theatre. NY: Palgrave Macmillan, 2008.

MITCHELL, Katie. The Director’s Craft: A Handbook for the Theatre. London & NY:
Routledge, 2009.

___. “A Chat with Summer Banks.” Exberliner, 20 Sep. 2010. https://www.exberliner.


com/whats-on/stage/an-interview-with-katie-mitchell/. Accessed 23 August 2019.

___. “Acting Out.” The Guardian, 25 Sep. 2004. https://www.theguardian.com/

659
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

books/2004/sep/25/featuresreviews.guardianreview24. Accessed 23 August 2019.

___. “The Director: Interview with Katie Mitchell.” In THIRLWELL, Emma (Ed.). A Dre-
am Play Background Pack. London: National Theatre, 2005, p.5. https://www.natio-
naltheatre.org.uk/sites/default/files/a_dream_play.pdf. Accessed 9 September 2019.

MASSEY, Doug. A Brief History of Human Society: The Origin and Role of Emotion in
the Social Life. American Sociological Review, 67.1 (2002): p.1–29.

PERRIAM, Chris. Gender and Sexuality. In BONADDIO, Federico (Ed.). A Companion


to Federico García Lorca. NY: Boydell and Brewer, 2007, p.149-169.

PESSOA, Luiz. Cognition and emotion. Scholarpedia, 4.1 (2009). doi:10.4249/scho-


larpedia.4567.

PLANTINGA, Carl. Moving Viewers: American Film and the Spectator’s Experien-
ce. Berkeley: University of California Press, 2009.

RODOLFO, Kevin. What is homeostasis? Scientific American, 3 Jan. 2000. https://www.


scientificamerican.com/article/what-is-homeostasis/ Accessed 9 September 2019.

SCHAEFER, Donovan O. The Evolution of Affect Theory: The Humanities, The


Sciences, and the Study of Power NY: Cambridge UPress, 2019.

___. “It’s not what you think: Affect Theory and Power take to the Stage.” Duke Upress
News, 15 Feb. 2016. https://dukeupress.wordpress.com/2016/02/15/its-not-what-
-you-think-affect-theory-and-power-take-to-the-stage. Accessed August 23, 2019.

SHOUSE, Eric. “Feeling, Emotion, Affect.” M/C Journal June 2016, http://www.jour-
nal.media-culture.org.au/0512/03-shouse.php. Accessed 9 September 2019

TOMKINS, Silvan S. Affect Imagery Consciousness: The Complete Edition Vols


I-IV. NY: Springer, 2008.

Acknowledgements
CFCUL FCT UID/FIL/00678/2019
This research was supported by the Foundation for Science and Technology, Portugal.
Centro de Filosofia das Ciências, Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa,
1749-016 Lisboa, Portugal.

660
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Maria de Fátima Lambert1

As bolseiras de Albert Kahn: utopia e viagem no


mundo das imagens
Albert Kahn’s Fellowships: Utopia and Travel in the World of Images

Resumo
As bolseiras viajantes, recrutadas para o programa idealizado por Albert Kahn
Voyages Autour du Monde ficaram conhecidas por “Albertinas”. No total de 72 bol-
seiros-viajantes-fotógrafos, 27 foram mulheres, cuja formação fora realizada em
escolas públicas, onde algumas retornariam, vindo depois a ocupar cargos des-
tacados. A consideração societária e profissional foi-lhes reconhecida, ainda que
alguns nomes ficassem apagados na voracidade das imagens. O Grand Archive
de la Planète é o inventário de milhares de fotografias autochrome, produzidas
ao longo de quase 30 anos nos vários continentes. Nos relatórios e fotografias dos
bolseiros mostravam-se cerca de 50 países, destacando perspetivas antropológi-
cas, etnográficas, estéticas a convergir para um acesso expandido às imagens das
coisas do mundo. O grande propósito era contribuir para a mudança de paradig-
mas de ensino, alertando para a diversidade de um mundo em aberto que Kahn
acreditava estar a soçobrar e cuja memória real carecia preservar.
Palavras-Chave: Bolseiras-mulheres; viajantes; fotografia autochrome; utopia;
inventário imago mundi.

Abstract
The traveling fellows recruited for the program designed by Albert Kahn Voyages Aut-
our du Monde became known as “Albertinas”. Of the 72 travel-photographers, 27 were
women, whose training had been held in public schools, where some would return,
and later even held senior positions. Their societal and professional consideration was

1 Doutorada em Filosofia Moderna e Contemporânea – Estética (1998), Faculdade de Filosofia de


Braga/ UCP: “Fundamentos Filosóficos da Estética em Almada Negreiros”. Bolseira FCT no projeto
“Writing and Seeing” - 2000 e 2004. Professora Coordenadora em Estética e Educação - Escola Su-
perior de Educação / Politécnico do Porto. Coordenadora do Mestrado Património, Artes e Turismo
Cultural e da licenciatura Gestão do Património. Membro Integrado do InED (Centro de Investigação e
Inovação em Educação, ES/PP) sendo diretora entre 2014 e 2017; Integra várias Comissão Científicas.
Conferencista e autora de vários livros publicados.Membro da AICA (Portugal). Curadora Indepen-
dente desde 1994, destacam-se os projetos expositivos desenvolvidos no eixo Portugal-Brasil-Espa-
nha. Programadora da Quase Galeria/Espaço T (Porto) e do Ciclo Ações estéticas quase instantâneas
– arte contemporânea no Museu – Museu Nacional Soares dos Reis desde 2009.

661
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

acknowledged, even though some names were erased in the voracity of the images.
The Grand Archive de la Planète is an inventory of thousands of autochrome pho-
tographs gathered during almost 30 years all around the world. In their reports and
photographs of these travelers there were information about 50 countries, highlight-
ing anthropological, ethnographic, aesthetic perspectives converging on expand-
ed access to images of things in the world. The grand purpose was to contribute to
changing teaching paradigms by alerting to the diversity of an open world that Kahn
believed he was collapsing and whose real memory needed to be preserved.
Key-words: Women scholarships; travelers; autochrome photography; Utopia; ima-
go mundi inventory.

Figura 12

Eu percorro o meu próprio atalho de modo tão resoluto que sei já ter vivido há muito tempo
nestas paragens, ou mais concretamente, nunca se tratou de uma questão de morada.3

D’une part, il cherche à conserver la mémoire du monde en train de disparaître sous l’impact
de la modernité.(…) D’autre part, à travers la documentation ainsi réunie, Albert Kahn cherche
à composer le «Grand livre de l’Homme», à saisir le caractère unique de l’homme au-delà des
différences culturelles.4

2 In http://www.film-documentaire.fr/4DACTION/w_fiche_film/56244_1 (consulta em Setembro 2019)


3 Wilma Stockenström, Viagem ao Baobá, Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p.8
4 Gilles Baud-Berthier, “Albert Kahn et le Projet des Archives de la Planète 1908-1931”, 2010/3 N°
99 | pages 105 à 107 In https://www.cairn.inforevue-materiaux-pour-l-histoire-de-notretemps-
-2010-3-page-105.htm (consulta em Setembro 2019)

662
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Albert Kahn considerava que viajar era manter os olhos abertos, o que facilitava que
a elevação do espírito. Permitiria às pessoas avançar, não cristalizarem, de modo a
superar as incompatibilidades e os ir-reconhecimentos restritivos entre as nações,
conjeturando a dimensão do universal, suas leis e a sua infinitude. O mundo estaria
[esteve] ao alcance dos seus colaboradores, de todos aqueles que acataram e pros-
seguiram em prol de sua utopia. Hoje, aparentemente, as imagens estão aí, perante
cada um de nós, dentro do perímetro do ecrã de um computador. Não se enceta
uma Volta ao Mundo efetiva, nem se vai no encalço de um inventário do planeta
legitimado na idealização e espírito visionário de um banqueiro altruísta.

Kahn previu as etapas necessárias para efetivar a sua convicção: contrariar a crise em
que a humanidade iria soçobrar. Contrapondo uma ativação que dependia do ensejo
e capacidade de transpor a cativação das imagens, indo mais além, buscando obje-
tivos lúcidos para sua remissão, ou seja, transcender o desconhecimento. A resposta
estava no acesso direto, pela presença viajada até e nos lugares esquecidos ou ignotos.
Atravessar as zonas de seguração da centralidade europeia e, também, mergulhar nos
meandros desconsiderados pela ilusão/utopia do progresso. Tudo estaria contido na
compulsão antiga de associar a viagem à ideia de mudança, de superação que seria
disseminada por aqueles em quem Kahn reconhecia capacidade na busca de uma ou-
tra espécie de graal. Eis a crença perseguida pelo filantropo e seus mediadores, simul-
taneamente operadores científicos, estéticos, humanistas e tecnológicos.

Hoje em dia, qualquer pessoa pode aceder sem grande dificuldade, por uma sim-
ples pesquisa online ao visionamento dos 9 episódios da série BBC (episódios com a
duração de 50 minutos) intitulada O Mundo maravilhoso de Albert Kahn (2008).Bas-
ta seguir os documentários para se perceber a complexidade do ambicioso projeto
Grand Archive de la Planète, contido em apenas cerca de 450 minutos, enquanto
resultado da colaboração de vários realizadores:

Parte 1 – Uma Visão do Mundo


Parte 2 – Homens do Mundo
Parte 3 – A Europa à beira da Guerra
Parte 4 – A História dos Soldados
Parte 5 – A História dos Civis
Parte 6 – Europa depois do Fogo
Parte 7 – Oriente Médio, o Nascimento das Nações
Parte 8 – Extremo Oriento, Expedições aos Impérios
Parte 9 – O Fim de um Mundo5

5 In https://www.artfilms.com.au/item/the-wonderful-world-of-albert-khan?ItemID=5373 : “Episo-
des in the series (50 mins. each, also available individually).” (Consulta em setembro 2019)

663
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A mesma Série, também designada por Edwardians in Colour: the Wonderful World
of Albert Kahn6 foi visionada pela primeira vez na BBC em 2007/2008. Em 2011 foi
lançada a caixa da Coleção em formato DVD. Os episódios resultam de uma escolha
de fragmentos de filmagens e fotografias, de certa finalidade mediática, que sinte-
tiza e possibilita avançar para um mais aprofundado conhecimento deste desígnio
inédito, algo parecido com uma narrativa mitológica.

Algumas das imagens que integram este mega (e percursor) Grand Archive de la
Planète [cerca de 72000 autocromias e 4000 estereoscópicos] e cinematográfico [cerca
de uma centena de horas de filmagens], estão disponíveis no Website: Les collections
du musée départemental Albert-Kahn in http://collections.albert-kahn.hauts-de-seine.
fr/, organizadas a partir de 4 grande temas: paisagens, panoramas de cidades, grupos e
comércios. Na página inicial do Website consta a listagem de fotógrafos, cujas imagens
foram carregadas, divididas pelos subtemas, obtendo-se informação discriminada, in-
cluindo menção à localização/origem dos conteúdos iconográficos retratados. Um
planisfério diagramado sinaliza a densidade, convergência e dispersão dos fotógrafos,
pontuando as missões realizadas ao longo de quase 30 anos. Assinalam-se os pontos
geográficos - mais ou menos privilegiados - como se constata:

Figura 27

6 “In many ways this incredible documentary has a title which doesn’t reflect its subject matter - this
five part series (soon to expand even more, or so I hear) covers world history from the turn of the last
century up through the end of World War One, and the focus is on the first color photographs spon-
sored by the French financier and pacifist Albert Kahn, whose home is now a museum outside of
Paris. (…) This is an outstanding documentary which needs to be seen by people around the globe,
not just in England. I’m glad a friend sent it to me on PAL discs from the UK, but it needs a wider au-
dience. I hope it’s put together, when completed with the new episodes next year, into a large boxed
DVD package, in both PAL and NTSC formats, for people around the world to enjoy and learn from.
This documentary would be a wonderful way to teach early 20th century history to young people.”
In https://www.imdb.com/title/tt0897327/ (consulta em Agosto 2019)
7 In http://collections.albert-kahn.hauts-de-seine.fr/?page=accueil

664
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Albert Kahn concretizou a ambiciosa tarefa (inconsequente) do seu “Grande Inven-


tário do planeta”, colecionando e arquivando as imagens fotográficas e cinemato-
gráficas autochrome dos lugares do mundo real, eleitos como prioritários, para que
a memória de um mundo a soçobrar não se perdesse. A missão “Arquivos do Plane-
ta” contratualizou vinte e sete viajantes-mulheres que, nos périplos realizados entre
1905 e 1930, se integraram no contingente de bolseiros-viajantes-fotógrafos que
produziu cerca de 72.000 autochromes (dimensões de 9 x 12 cm e de 13 x 18 cm),
4.000 fotografias a p/b e, ainda, centenas de filmes, numa extensão física de 180 000
metros de filme mudo de nitrato 35 mm, produzidos entre 1909 e 1931.

Programa de bolsas À Volta do Mundo:

Au fil des ans, des jeunes gens britanniques, américains, russes, japonais et même allemands bé-
néficient de la générosité du mécène. Si les bourses allemandes cessent en 1914 et les russes en
1917, les autres durent assez longtemps pour créer une vraie communauté d’intellectuels ouverts
aux cultures du monde dans un esprit pacifiste.8

Em 1898, o impulso é dado por Albert Kahn quando predefiniu e instituiu o siste-
ma de bolsas de viagens “À Volta do Mundo”, destinado aos jovens diplomados que
cumprissem os requisitos estipulados. Quem foi selecionado, poderia conhecer, na
primeira pessoa e ao longo de 12 a 18 meses, a realidade de países estrangeiros,
alargando de maneira ímpar os seus horizontes e projetando-se para os vindouros.
O processo de recrutamento dos bolseiros incluía significativas exigências e era apli-
cado com um rigor surpreendente. Kahn queria gerar/consolidar um escol (parafra-
seando Fernando Pessoa), consolidar uma elite que agisse a nível do ensino, confi-
gurando-o em moldes mais amplos e reflexivos. Quis instituir um compromisso de
índole educacional, na sequência de circunstâncias e situações detetadas ao longo
de anos e no decurso das suas viagens. Em 1898, o programa concebido e minucio-
samente preparado é “inaugurado”.

As bolsas abrangiam jovens de ambos os sexos que durante cerca de um ano e meio
percorriam diferentes países, descobrindo a realidade múltipla do mundo. Mas o es-
copo de Kahn visava mais além: as bolsas eram o meio através do qual os bolseiros e
as bolseiras desenvolviam um espirito de tolerância universal que iria conduzir a sua
ação futura como professores, promulgando uma nova consciências nas gerações.
Pelo contato direto, os jovens bolseiros aprofundariam e ampliaram saberes, logran-
do competências a reverter em boas práticas profissionais. Uma tal metodologia,
de afiliação “investigação-ação”, converteu Albert Kahn num excelente “gestor” de

8 Gilles Baud-Berthier, “Albert Kahn et le Projet des Archives de la Planète 1908-1931”, 2010/3 N°
99 | pages 105 à 107 In https://www.cairn.inforevue-materiaux-pour-l-histoire-de-notretemps-
-2010-3-page-105.htm (consulta em Agosto 2019)

665
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

projetos de investigação avant la lettre, por via da obsessão, utopia de um Mecenas


sui generis, visionário e resiliente. A sua ação possibilitaria uma atuação mais am-
pla, pois as bolsas também abrangiam jovens diplomados de países europeus como
Alemanha, Reino Unido ou Rússia; dos Estados Unidos e do Japão – país com o qual
mantinha relações privilegiadas. Este programa de bolsas, significativamente avan-
çado para a época, concretizou-se em pleno a partir de 1906.

Os termos de implementação do projeto Kahn eram inusitados para a época. Se por


um lado, o seu ímpeto e estratégia o impeliam a viajar, por outro centralizava na sua
propriedade de Boulogne, a atividade do grupo Sociedade à Volta do Mundo, cons-
tituído em 1906. Entre os fundadores salientam-se: Henri Bergson, Anatole France,
Auguste Rodin, Louis Liard e Ernst Lavisse, prevendo integrar membros do governo e
diplomatas: “Os membros da associação propunham-se trabalhar e difundir em França
o conhecimento exato dos países estrangeiros, no estrangeiro a França, fazer com-
preender e cuidar tudo o que se apelida por civilização internacional.”9 Os bolseiros
mantinham laços profundos após a concretização das suas viagens, associando-se em
atividades de partilha que propagavam as suas experiências. Convergiam num círculo,
grupo de reflexão e discussão que era privilegiado, onde se projetava o impacto de
suas viagens-missões. A Biblioteca da Sociedade à Volta do Mundo era relevante, com
mais de 5000 títulos, disponíveis para consulta dentro do círculo. Tudo estava meticu-
losamente assegurado para que resultasse. As responsabilidades, direitos e competên-
cias dos Bolseiros eram explicitados em termos claros, atendendo à enunciação dos
objetivos de compromisso:

a) Observar com um novo olhar os países visitados;


b) Comparar os costumes e as instituições nacionais/locais;
c) Comparar os regimes e atuações políticos, religiosos, sociais, económicos;
d) Partilhar os seus pontos de vista com os pares:
e) Confrontar experiências para avançar na produção e ação socio-educacional;
f ) Elaborar relatórios parciais e finais relativos às missões/viagens empreendidas.

Mediante a persistência e duração para efetuar contatos diretos, para o bom desen-
volvimento do trabalho no terreno, identificavam-se estudos de caso, usando uma
metodologia de carácter comparatista. Os jovens deviam obter – mediante o con-
fronto presencial - ideias exatas, o mais precisas possível, quanto à conjuntura vivida
em França, situando o país no mundo; ficariam informados da pluralidade de nacio-
nalidades diferenciadas e, nalguns aspetos, a descoberta de afinidades elaborativas.

O processo de candidatura, apresentado pelos proponentes implicava o desenho de um


projeto detalhado que, posteriormente, carecia ser ainda mais completo e sustenta-
do. As candidaturas eram apreciadas por Comissões de Seleção, constituídas por

9 Cf. Yaelle Arasa, Les Voyageuses d’Albert Kahn, Paris, L’Harmattan, 2014, p.71

666
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

intelectuais de diferentes áreas, que se pautavam pelo cumprimento dos requisitos esti-
pulados no “Edital”. Em certos casos, os candidatos não selecionados numa primeira ten-
tativa, voltavam a fazê-lo no ano seguinte, alcançando então a tão desejada aprovação.

Até 1903 as bolsas eram atribuídas apenas a diplomados em áreas literárias ou cien-
tíficas de ensino secundário, com grau obtido há menos de 10 anos. Em 1904, alar-
gam-se a formados em direito; em 1907, a professores de ensino superior e em 1910,
a pessoas com estudos avançados que se destinassem a práticas de ensino.

A partir de 1905, Albert Kahn criou uma linha de bolsas de viagens reservadas ape-
nas a mulheres. A 7 de junho desse ano, Louis Liard, vice-reitor da Academia de Paris,
anunciava a existência de bolsas exclusivas para jovens mulheres agregadas ao ensi-
no. As normas para as bolsas femininas distinguiam-se por fatores como:

Mulheres Homens

Associadas ao ensino; Associados ao ensino; depois, advindos


de outras profissões;
Viagens empreendidas por duas bolsei- Viagem – bolseiro podia ir sozinho;
ras – em pares;
Duração da missão – período mínimo Duração da missão – 15 a 16 meses;
de 1 ano;
Verba atribuída – 16,500 francos= Verba atribuída – 2x 16,500 francos
15,000 para as viagens e 1,500 para
compra de livros. Após a guerra – 40, 000 francos.
Após a guerra – 20, 000 francos.

A partir do momento em que a/0 candidata/o era aceite, desencadeava-se um proto-


colo a atentar, tal como proceder a pesquisa bibliográfica e documental, aferida aos
locais de destino, suas conjunturas e idiossincrasias. Daí a imposição em atribuir 1,500
francos para aquisição de bibliografia. Era fornecida documentação aos bolseiros que
iria viabilizar os seus intentos, prevendo o desconhecimento de hábitos e códigos de
procedimentos no estrangeiro. Posteriormente, as dotações seriam fusionadas. Como
se observa, a diferença de verbas das bolsas auferidas pelas mulheres e homens era
muito significativa, ainda que as exigências de desempenho dos bolseiros fossem em
maior número. Mas, quer para eles, quer para elas, as missões revelavam-se singulares:
“As viagens em causa não deveriam ser viagens de lazer, nem viagens de estudo de
algo específico no estrangeiro, mas viagens de observação.” 10

10 Yaelle Arasa, Les Voyageuses d’Albert Kahn, Paris, L’Harmattan, 2014, p.70

667
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A primeira bolseira, curiosamente, é nomeada no mesmo ano em que a Baronesa Ber-


tha Sophia Felicita von Suttner (Kinsky von Wchinitz und Tettau), de 58 anos, fora pre-
miada pela sua ação pacifista. Dezasseis anos antes, a Baronesa publicara o livro Bas
des Armes. De algum modo, foi uma espécie de patrona para as primeiras bolseiras:
Anna Amieux e Pierrette Sapi. A derradeira bolseira, em 1931, seria Marcelle Pardé. No
ano em que se encerra o programa de bolsas, foi atribuído um Prémio Nobel da Paz,
pela primeira vez, a uma mulher, Jane Addams de 62 anos. O seu mérito creditava-se
pela atuação em prol de maior qualificação na Educação/Ensino, assim como no es-
tabelecimento digno dos contratos de trabalho para as mulheres. Era este o cenário
do mundo europeu onde vivia Albert Kahn e agiam as suas bolseiras, conquistando
a pulso a sua posição e estatuto. Mas, quer para mulheres como para homens, o tem-
po previsto para as viagens era fundamental. Carecia duração média necessária para
obter a noção correta das situações, para absorção de dados presenciados e pesqui-
sados in loco. Nalguns destinos, todavia, verificava-se ser insuficiente, atendendo ao
número de cidades, vilas, instituições e pessoas a observar e contatar; ao tempo que
era preciso despender para cumprir propostas almejadas. Por outro lado, e no caso
das bolseiras mais frequentemente, havia dificuldades em aceder a espaços e serem
recebidas, autorizado o acesso a determinados locais. Caso daquelas que nos Estados
Unidos se viam impossibilitadas de conhecer as zonas mais deprimidas e onde moldes
preconceituosos lhes bloqueavam a comunicação ou acesso.

Os contornos para atribuição e as restrições para fruição das bolsas, refletem os pre-
conceitos, as convicções e os padrões comportamento vigentes nestes círculos de
predomínio masculino, dominante no século XIX e que apenas começava a ser con-
trariado. Contudo, era óbvio e significativo o reconhecimento do papel determinan-
te da mulher na sociedade francesa da época. O intuito de Albert Kahn, subjacente
a este programa de bolsas no feminino, traduzia-se na possibilidade de lhes alterar
o status formativo, educacional; de configurar o que entendia dever ser a mulher
para o futuro, ao proporcionar o acesso e as condições - até aí inexistentes; ciente da
importância do seu papel no lar e, por inerência a ação junto da família, o impacto
da sua atuação extramuros.

Como assinalou Whitney Walton11, as jovens professoras dificilmente teriam acesso a


estas missões formativas, na inexistência do sistema de Kahn. As viagens propiciavam
a aquisição de conhecimentos não logrados senão pela experiência da aventura. A
presença prolongada em meios geográficos de outro modo inatingíveis, promovia
um apreciável aprofundamento dos respetivos domínios de especialização e a aproxi-
mação a novos pontos de vista sobre as relações internacionais…E, significando, em

11 Whitney Walton, “Des enseignantes en voyage: les rapports des boursières Albert Kahn sur la France
et les États-Unis, 1898-1930”, Nicolas Bourguignat, Le Voyage au feminine – perspectives historiques et
littéraires (XVIII- XXeme Siècles), Strasbourg, Presses Universitaires de Strasbourg, 2008, pp.131-149

668
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

síntese, o enriquecimento pessoal alcançado, em termos identitários, pelas bolseiras.


O grande objetivo consistia, nitidamente, em melhorar o sistema de ensino, aperce-
bendo-se Kahn que a mudança deveia ser estruturante e intrínseca. Conciliavam-se as
suas convicções aos pressupostos do feminismo republicano, ao tempo da 3ª Republi-
ca e após os acontecimentos de 1870, ou seja, a certeza da influência que as mulheres
tinham na sociedade, pela sua relevância ativada no seio da família.

No início do programa, as bolsas destinavam-se à Europa e Estados Unidos. Toda-


via, cedo as bolseiras manifestaram interesse em viajar para outros países, caso de
Jeanne Darhum que em 1906 queria chegar ao Egito ou de Marguerite Mespoulet,
que no ano seguinte, pretendia estender a sua missão ao Japão. As bolseiras, como
se afirmou, não viajavam sozinhas, procurando afinidades de personalidades e in-
teresses, para levar até ao fim as missões, o que nem sempre acontecia. Na medida
possível, conciliavam-se os interesses, pois havia maior conveniência e solidez na
consecução do projeto em conjunto. Eram-lhes atribuídas as melhores condições
quer nas viagens, quer nas estadias, com protocolos oficias estabelecidos, quer com
a Universidade de Paris, quer com o Estado e em extensão à diplomacia in loco. A
intenção era cumprir o itinerário traçado na íntegra, o que contudo nem sempre se
verificava. Atendendo às idades médias, assinale-se que no caso dos homens, seria
vinte e sete anos, enquanto as mulheres ascendia a trinta e um anos (média), num
universo de 48 homens e 26 (ou 2812) mulheres – total de 72 bolseiros.

No regresso, quer umas, quer outros, além dos relatos breves enviados durante as
viagens, esperava-se a elaboração de um Relatório com um mínimo de 50 páginas,
bem documentado e fundamentado, demonstrativos dos conteúdos extraídos da
viagem, a ser exposto perante o Reitor da Academia de Paris. Os relatórios, susce-
tíveis de serem publicados, deviam exprimir-se num discurso académico – susten-
tado, argumentativo e especificado. Implicava ainda, por parte da/do bolseira/o a
realização de duas a três conferências em Paris ou em local a designar. Não surpre-
ende portanto que muitas bolseiras tenham, posteriormente, desenvolvido carreira
no ensino secundário, como jornalistas ou formadoras em países estrangeiros, p.ex.
nos Estados Unidos.

Outros destinos, objeto de estudos recentes, centram-se nas viagens das bolseiras
no Oceano Índico, do que é exemplo o ensaio de Yaelle Arasa.13 Afinal, era o mundo
que se queria entrasse mais inteiro, fatual e realístico, nas salas de aula. Donde, a

12 Yaelle Arasa in Les Voyageuses d’Albert Kahn, Paris, L’Harmattan, 2014, menciona 28 bolseiras, nou-
tras fontes há referências a 27 e mesmo a apenas 24 bolseiras. As diferenças advêm da atribuição de
bolsas especiais, diretamente atribuídas por Albert Kahn.
13 Yaelle Arasa, “De Téhèran à Java – Les Voyajeuses d’ Albert Kahn dans l’Océan Indien 1910-1930”,
Évélyne Combeau-Mari, Les Voyajeuses dans l’Océan Indien – XIXe et première moitié du siècle XX, Ren-
nes, Presses Universitaires de Rennes, 2019, pp. 209- 227

669
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

extensão dos locais ter sido estendida ao longo dos quase 30 anos de missões dos
bolseiros. Provavelmente, o fato de mais de ¾ das mulheres-bolseiras ter mais de
30 anos permitia que mais rapidamente seguissem as determinações e normas de
conduta subjacentes ao programa. Por outro lado, tinham consciência clara do que
onde pretendiam e onde se dirigirem. Entre 1910 e 1930, oito das vinte e sete admi-
tidas tomam o caminho do Oceano Índico, mas concretamente sete francesas e uma
inglesa, professora em Oxford. Como cita Yaelle Arasa: “Elas seguem os preceitos
do seu Mecenas: “Esqueçam tudo o que aprenderam, mantende os olhos abertos”,
apoiando-se nos inúmeros encontros oficiais ou fruto de acaso, para preencher a sua
missão de estudo das mulheres e do ensino feminino.”14

Entre estas viajantes a tão longínquas paragens, citem-se: Jeanne François (1866) ti-
nha quarenta e seis anos quando se prepara para partir; Marguerite Glotz, a sua com-
panheira de missão, tinha apenas vinte e quatro anos. A mais nova viajante era Si-
mone Téry (1897). A idade não constituía barreira, convivendo pessoas de diferentes
gerações, havendo que ponderar as implicações de vida familiar: a maioria era sol-
teira, uma delas já era viúva, apenas uma era casa, mas nenhuma tinha filhos. Assina-
le-se que cerca de metade destas mulheres morreram bastante novas.15 Em algumas
ocasiões, os pares de viajantes previamente definidos não se mostram compatíveis
a acabam por se associar a outra pessoa que também esteja nos mesmos trajetos ou
associáveis: Rachel Allard, Eugènie Poulin, que passam a associar-se respetivamente
a Marguerite Glotz e Jeanne François, no ano seguinte, também integraria o grupo.

As deslocações até ao local visado eram demoradas, morosas, mesmo tendo os itine-
rários bem delineados e as logísticas previstas, situações inesperadas ocorrem. As suas
expedições tornavam-se emblemáticas e chegaram a inspirar literatura de ficção escri-
ta na época ou evocada na literatura que as próprias viriam a redigir: Simone Téry que
chegou à Indochina, tinha atravessado o Índico depois de uma estadia em Ceilão e
Singapura, narrou a sua odisseia no romance Passagère, 1930, editado na Plon de Paris.

As jornadas para outros continentes, que não aqueles inicialmente marcados, facil-
mente obtinham boa recetividade por parte de Albert Kahn, quem desde cedo via-
jara pelos 4 cantos do Mundo. Em 1908, este filantropo utopista, iniciou uma nova
viagem, que o levaria ao Japão e à China via Estados Unidos. Acompanhou-se do seu
engenheiro e mecânico, Alfred Dutertre, que efetuou durante o périplo, mais de 4000
registos a preto/branco, entre clichés estereoscópicos e filmagens que testemunha-
riam (para quem duvidasse) a veracidade e aparência da aventura empreendida. Pou-

14 Yaelle Arasa, “De Téhèran à Java – Les Voyajeuses d’ Albert Kahn dans l’Océan Indien 1910-1930”, p.209
15 Cf. Notas de rodapé 11, 12, 13, 14 e 15 Yaelle Arasa, “De Téhèran à Java – Les Voyajeuses d’ Albert
Kahn dans l’Océan Indien 1910-1930”, p.211.

670
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

co depois de regressar a França, em 1909, voltaria a partir, dessa vez acompanhado


pelo fotógrafo Auguste Léon e com destina à América do Sul, onde visitou o Uruguai,
a Argentina e o Brasil. Nesta segunda aventura, Léon começou a utilizar a técnica auto-
chrome, placas preparadas tecnicamente, num formato de 9 x 12cm.

O projeto Archives de la Planète

Para o projeto Archives de la Planète Kahn teve se constituir um contingente de fotó-


grafos (que chegaria a número superior a 70 pessoas), para garantir a missão pers-
petivada. Recrutou profissionais que lhe garantissem a ambicionada qualidade na
coleta das imagens do mundo. Quer os fotógrafos, quer os cineastas se dispersaram
até às mais longínquas geografias, abarcando itinerários nos quatro pontos cardeais,
sem por certo menosprezar o mapeamento fotográfico do território francês.

Entre os principais elementos da equipa dos Archives de la Planète, destacam-se:

Albert Kahn (1860-1940)


Jean Brunhes (1869-1930)
Auguste Léon (1857-1942)
Georges Chevalier (1882-1967)
Stéphane Passet (1875-1942)
André Bernardel (1888-1918)
Paul Castelnau (1880-1944)
Fernand Cuville (1887-1927)
Frédéric Gadmer (1878-1954)
Lucien Le Saint (1881-1931)
Camille Sauvageot (1889-1951)16
Roger Dumas (1891-1972)

Desta lista não consta o nome de nenhuma mulher-bolseira pertencente ao outro


programa Voyage autor du Monde. Todavia algumas desenvolveram trabalhos de fo-
tografia manifestamente superiores e artísticos que lhes endereçaram caminhos. Foi
um número pouco significativo que seguiu a via do projeto Archives de la Planète,
envolvendo-se nesse outro teor de registo, sobrevindo na produção dos autochro-
mes. Foram os casos de Madeleine Mignon e de Marguerite Mespoulet, autoras que
se tornaram emblemáticas.

A partir de 1912, Albert Kahn adicionou ao grupo o geógrafo Jean Brunhes, que
se revelou um protagonista fulcral para a qualificação do projeto, numa fase em

16 In http://albert-kahn.hauts-de-seine.net/comprendre/l-equipe-des-archives-de-la-planete (con-
sulta em Agosto 2019)

671
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

que a geografia humana se consolidava enquanto contributo científico funda-


mental – contribuindo para edificar a consciência do humano no território, num
desígnio planisférico!

Figura 317

Com a passagem dos anos e o conhecimento das jornadas das bolseiras, a opinião
pública interessou-se mais e mais, assim como a comunidade académica e cultural.
Se, inicialmente, as mulheres viajantes eram observadas com renitência, cuidado e
mesmo relutância, senão pelo menos com dúvida e incredulidade pelo menos, tam-
bém as bolseiras ocidentais solitárias eram alvo da maior curiosidade e suspeita. Elas
tinham consciência que deviam apresentar-se no seu melhor, demonstrando as suas
altas qualificações, para que as valorizassem e não lhes fossem colocados demasia-
dos obstáculos nos seus intentos:

No nosso automóvel, durante o trajeto matinal, estudávamos elementos de gramática, enrique-


cíamos o nosso vocabulário e a conversação com os nossos anfitriões era uma forma de exercício
prático. Pouco a pouco, conseguíamos trocar ideias com eles e conhece-los não apenas pelo seu
exterior. (…) E, por momentos, estabelecia-se uma verdadeira intimidade, cordial e simples.18

17 In https://centenaire.org/fr/tresors-darchives/le-travail-des-femmes-dans-les-archives-de-la-pla-
nete-albert-kahn
18 Louise Bourquin citada por Yaelle Arasa, “De Téhèran à Java – Les Voyajeuses d’ Albert Kahn dans
l’Océan Indien 1910-1930”, p.216

672
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Quando se observam as fotografias obtidas durante estas jornadas, questiona-se


até que ponto os conteúdos iconográficos testemunhavam a factualidade destas
vivências, os antecedentes e conjunturas, as dificuldades e interrogações que cada
bolseira, cada grupo experimentava. As imagens produzidas, agora distinguindo da
escrita dos relatórios, introduzem o espetador numa espécie de universo paralelo,
onde a beleza e a sublimidade pairavam, quase obliterando as situações efetivas
quer das bolseiras, quer daqueles que eram retratados.

Em 1912, Albert Kahn pediu ao geógrafo Jean Brunhes para organizar os seus Ar-
chives de la Planète, no enquadramento e perspetiva advindos da, então, nova disci-
plina de Geografia Humana. O projeto, que o banqueiro francês colocou como eixo
de vida, fora iniciada cerca de 4 anos antes, propulsionado para a missão que se
impôs cumprir, mediante estratégias inovadoras, atendendo à época. A fotografia
era a grande aliada da Geografia Humana. Impunha-se como veículo privilegiado
para asseverar a memória e enquanto testemunho histórico. A responsabilidade de
olhar e extrair o mundo na condição de conteúdos, era tarefa paulatina. No arquivo
foram incorporadas as produções de viajantes-bolseiros. Albert Kahn empreendeu
a missão de seu “Grande Inventário do planeta”, compilando imagens fotográficas e
cinematográficas autochrome dos lugares no mundo eleitos como prioritários.

Elas não eram turistas, nem eram viajantes de negócios ou de lazer. Eram mulheres diplomadas e
artistas que viajavam para dar impulso à sua carreira e que simultaneamente faziam a experiência
de maior aquisição de identidades e questionamento de si mesmas, como apenas durante as
viagens se oferece acontecer.19

A incorporação de mulheres decorria de forma rigorosa, recrutando as que pres-


sentiam ser notáveis, que demonstravam as capacidades superiores, em prol de um
perfil ideal. As bolseiras, conhecidas pelo cognome de “Albertinas”, creditavam o seu
valor distintivo por excelência. Contudo, apesar do reconhecimento obtido, os seus
nomes dissolveram-se na voracidade das imagens.

No final desta utopia que convocava tantas disciplinas e perceções educadas, vis-
lumbrava-se a gula das imagens de um mundo que Kahn sabia nunca mais seria
igual. As recolhas de dados, por parte das bolseiras, as recolhas de imagens trans-
postas em fotografias denotavam e destacavam incidências antropológicas, etno-
gráficas, estéticas e históricas.

19 Louise Bourquin citada por Yaelle Arasa, “De Téhèran à Java – Les Voyajeuses d’ Albert Kahn dans
l’Océan Indien 1910-1930”, p.216

673
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fig. 4 M. Mespoulet, Irlanda, 191320

A fotografia impôs-se como veículo privilegiado que asseverava a memória, ascenden-


do a testemunho socio-histórico e cultural. Eram inúmeras as tipologias de património
que passou a ser identificado e valorizado consubstanciado na singularidade e alteri-
dade da pessoa em comunidade e em sociedade. As mulheres-viajantes escolhiam as
perspetivas, as incidências que determinavam os seus registos; aferiam a plataforma
de sentimentos e saberes. Havia que possuir uma consciência versátil, com acuidade
e lucidez para cativar a visão na zona que gere a ilusão e o real. O caso das duas fotó-
grafas, bolseiras nas Voyages autor du monde - Madeleine Mignon e de Marguerite
Mespoulet destacou-as na missão conduzida na Irlanda em 1913, no contexto do In-
ventário do Planeta. Durante a sua incursão, nos meses de maio e junho em territó-
rio tão deprimido, as fotógrafas obtiveram 73 autochromes, as primeiras fotografias a
cores a registaram a paisagem, as pessoas, os ambientes, os objetos e ferramentas, as
atividades tradicionais, as atuações locais, enfim imagens dessa outra Europa insular,
para um mundo que quase totalmente desconhecido tal realidade.

20 In http://journals.openedition.org/lisa/docannexe/image/5943/img-1.png

674
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fig. 5 M. Mespoulet, Irlanda, 191321 Fig. 6 M. Mespoulet, Irlanda, 191322

Em conformidade ao anteriormente enunciado, a missão na Irlanda cumpria inten-


ções bem delimitadas. Não lhes interessava produzir “um simples álbum de férias
ou uma reportagem turística. Não se tratava de uma viagem de prazer, mas de uma
missão, simultaneamente ideológica e científica, patrocinada pelo banqueiro Albert
Kahn… O olhar dirigido sobre a Irlanda não era, portanto, tão cândido, quanto po-
deria parecer.”23 As duas fotógrafas trabalharam em conjunto, sendo por vezes difícil
diferenciar a autoria de algumas das imagens.

O itinerário cumprido, levou-as de oeste a leste, seguindo pela linha ferroviária de


Galway-Dublin. No corpus fotográfico, como sublinha Karine Bigand, focaram-se
preferencialmente no Oeste da Irlanda, localizando-se 33 autochromes em Galway.
Devido ao mau tempo não conseguiram atravessar até às ilhas de Aran. Fizeram
uma excursão até Clonmacnoise (catorze placas), demoraram-se em Athlone – nas

21 In http://journals.openedition.org/lisa/docannexe/image/5943/img-5.png (Consulta em outubro 2018)


22 In http://www.luminous-lint.com/app/vexhibit/_THEME_Autochromes_Women_01/4/0/0/ (Con-
sulta em outubro 2018)
23 Karine Bigand, “Marguerite Mespoulet et Madeleine Mignon en Irlande pour les Archives de la
Planète: influences hors champ”, Revue LISA/LISA e-journal [En ligne], vol. XII-n° 3 | 2014, mis en ligne
le 05 juin 2014, consulté le 17 septembre 2019. URL : http://journals.openedition.org/lisa/5943 ; DOI
: 10.4000/lisa.5943

675
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

margens de Lough Ree, tendo regressado a Dublin, passando por Glendalough/ Wi-
cklow (nove placas) e vale de Boyne, entre Drogheda e Slane (dezassete placas).24
Eternizaram uma Irlanda que estava prestes a desaparecer. Essa consciência predo-
minava na sua perceção e foi transmitida nos cadernos de anotações feitas in loco.

Observando as placas depara-se com um ambiente de cambiantes poéticas, um pi-


toresco idílico. Em algumas das placas, a envolvência, a ambiência donde se desta-
cam as figuras é evanescente, acentuando uma assunção subtil que contrasta com a
firmeza dos rostos, as posturas hirtas e os gestos que se adivinham decididos. Des-
prende-se uma nostalgia que, na realidade, corresponde às dificuldades das vidas
dessas protagonistas, à pobreza de uma aldeia isolada, distanciada da cronologia
da Europa de onde as fotógrafas haviam partido. A imagem que retrata o homem
sozinho a trabalhar o campo (Fig. 1) era assim ponderada por Mespoulet nestes ter-
mos: «Ele trabalha, sozinho, sob o sol, os pés na água; tudo o que lhe faz companhia
é apenas a ave que passa ou a nuvem que flui no vento.»25

A jovem mulher com o grande xaile vermelho é uma presença forte nos retratos de
Galway. Não era o retrato de uma Irlanda que existisse em 1913, antes desvelar o que
fora té recentemente. Até que ponto a encenação é conseguida e oblitera a intenção
primordial ou quanto podem conviver dentro da imagem, sob auspícios estéticos?
A desenvoltura de postura, o cuidado, a compostura do lenço ou a colocação das
mãos, o rosto em posição frontal ou semi-ocultado plasmam idealizações estéticas
que, todavia, envolvem ideias e testemunhos, como se entende a partir interpreta-
ção das anotações que acompanham as placas: “Existe pois uma dificuldade quanto
ao programa da missão, entre uma escolha do quotidiano que, do ponto de vista de
J. Brunhes como de A. Kahn, valia a pena ser fotografado, justamente porque não
era excecional, e a restrição em se apegar ao que iria desaparecer e se tornara raro.” 26

Sob diferentes consignações os termos comparatistas que determinavam o desem-


penho das bolseiras de Voyage autour du monde, tiveram a sua continuidade nesta
parcela de inventário do Mundo, seguindo o ideário partilhado por Albert Kahn e
Jean Brunhes. Alguns anos mais tarde, em 1918, M. Mespoulet e Esther Dumas pu-
blicariam o livro L’effort des femmes britanniques pendant la guerre. Entrara-se num
mundo que engolira o passado, confirmando a suspeita de Albert Kahn e justifican-
do a sua urgência em reter e inventariar esse mundo que iria, efetivamente, acabar.

24 Cf. Karine Bigand, “Marguerite Mespoulet et Madeleine Mignon en Irlande pour les Archives de la
Planète: influences hors champ”, Revue LISA/LISA e-journal , s/pág.
25 M. Mespoulet citada por Karine Bigand, “Marguerite Mespoulet et Madeleine Mignon en Irlande
pour les Archives de la Planète: influences hors champ”, Revue LISA/LISA e-journal , s/pág.
26 M. Mespoulet citada por Karine Bigand, “Marguerite Mespoulet et Madeleine Mignon en Irlande
pour les Archives de la Planète: influences hors champ”, s/pág

676
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Mespoulet continuou ligada às ilhas, tendo-se dedicada depois a uma carreira uni-
versitária nos Estados Unidos.

A formatação do gosto estético, patente nas diversas produções, explicita a intencio-


nalidade específica de cada uma das autoridades pessoais. As missões fotográficas
destas agentes no terreno impulsionaram capacitações educacionais acrescidas, fruti-
ficando na continuidade de carreiras após o retorno a França. Sublinhe-se a condição
educativa, a formação interdisciplinar entendidos como denominadores comuns e
fios condutores na incorporação de imagens que atravessavam a pessoalidade, assim
instaurando a magnitude do inventário/arquivo do mundo. A utopia das viajantes-
-mulheres que nos inícios do século XX impuseram a qualidade e resiliência das suas
funções educacionais, culturais e profissionais.

Bibliografia:
AA. (1995) “Albert Kahn : Réalités d’une utopie, 1860-1940”. Paris: Musée Albert Kahn

AA. “Les Collections du Musée Albert Kahn” in http://collections.albert-kahn.hauts-


-de-seine.fr/ (Consulta em agosto 2018)

ARASA, Y. (2014) Les Voyageuses d’Albert Kahn. Paris: L’Harmattan

BIGAND, K. “Marguerite Mespoulet et Madeleine Mignon en Irlande pour les Archives


de la Planète: influences hors champ”, Revue LISA/LISA e-journal [En ligne], vol. XII-
-n° 3 | 2014, mis en ligne le 05 juin 2014, consulté le 17 septembre 2019. URL : http://
journals.openedition.org/lisa/5943 ; DOI : 10.4000/lisa.5943

BOURGUINAT, N. (2008) “Voyage et genre, une interrogation renouvelée”, Le Voyage


au féminin – perspectives historiques et littéraires (XVIIIe – Xxe siècles). Stras-
bourg : Presses Universitaires de Strasbourg

BRILLI, A. (1995) Quando viaggiare era un’arte. il romanzo del Grand Tour. Bolog-
na : Il Molino

BUTLER, S. (1872) Everwhon or Over the Range. Chapter IVin http://www.books-


shouldbefree.com/download/text/Erewhon-by-Samuel-Butler.txt (Consulta em no-
vembro 2018)

COMBEAU-MARI, E. (2019) Les Voyageuses dans l’Ócean Indique – XIXe – pre-


mière moitié du XXeme siècle. Rennes : Presses Universitaires de Rennes

KUTNIAK, S. (Ed.) (2015) “Albert Kahn singulier et pluriel”. Paris: Lienart

LACARRIERE, J. (1997) « Voyageurs, voyageants et voyagés ». Le Monde de l’Éduca-


tion, de la Culture et de la Formation. nº 248, Mai

677
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

LAPIERRE, A. & MOUCHARD, C. (2015) Elles ont conquis le monde – Les grandes
aventurières 1850-1950. Paris : Artaud

MONICAT, B. (s/d) Itinéraires de l’écriture au féminin: voyageuses du 19e siécle in


https://books.google.pt (Consulta em novembro 2018)

MURRAY II, J. (1778-1843)Archive in https://digital.nls.uk/jma/who/john-murray-ii/


index.html (Consulta em novembro 2018)

NIETZSCHE, Friedrich - Le Voyageur et son ombre - Opinions et sentences mêlées :


(Humain, trop humain, 2e partie) (2e édition), Paris, Ed. du Mercure de France, 1902

ROGERS, Rebecca & THEBAUD, Françoise - Voyageuses in https://journals.openedi-


tion.org/clio/7553 (Consulta em setembro 2019)

ROUSSEAU, J.-J. (1754) Discours sur l’origine de l’innegalité in https://philo-


sophie.cegeptr.qc.ca/wp-content/documents/Discours-sur-lin%C3%A9galit%-
C3%A9-1754.pdf (Consulta em novembro 2018)

STOCKENSTRÖM, W. (2006) Viagem ao Baobá, Lisboa: Assírio & Alvim

VENAYRE, Sylvie (2012) Panorama du Voyage – 1780-1920 - Mots, figures, pratiques.


Paris : Les Belles Lettres

678
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Maria Isabel Azevedo1

Matéria, memória e imagem holográfica


Matter, memory and holographic image

Resumo
Gilles Deleuze2 reflete sobre a memória e conclui que a “matéria” é um agregado
de “imagens”, algo colocado entre a coisa (objeto) e a sua representação. Ele cha-
ma de “imagem cristal”, a imagem que combina a memória de um evento passa-
do com a do tempo presente, e ela (a “imagem cristal”) é às vezes caracterizada
por ligações espaciais e temporais entre as imagens (as imagens da memória e
o tempo presente).
Uma imagem holográfica e especificamente uma imagem holográfica digital
não é uma representação fixa da realidade, mas pode ser definida pela sua total
flexibilidade. Hoje em dia - com a cibernética, a robótica e a neurociência alte-
rando a forma como percebemos e vivenciamos o espaço - o corpo ressurgiu
como um importante meio criativo.
Partindo de uma crença no corpo humano como ferramenta emocional, como
mensageiro de memórias, temos vindo a criar “um novo espaço para a imagem”,
cuja estrutura é influenciada pelas imagens holográficas e pelo público como
performer. Neste artigo irei desenvolver esta ideia analisando uma série de ima-
gens holográficas digitais que produzimos anteriormente.
Palavras Chave: Performatividade holográfica, imagem holográfica digital, ima-
terialidade, memória

Abstract
Gilles Deleuze reflects on memory and concludes that “matter” is an aggregate of
“images”, something placed between the thing (object) and its representation. He

1 ID+, Instituto de Investigação em Design. Media e Cultura, Universidade de Aveiro, Campus Univer-
sitário de Santiago, 3810-193 Aveiro, Portugal. Foi investigadora Pós-doc. da FCT, na DMU, Leicester
(UK) e na UP (PT). Artista multimédia que investiga as relações da Arte, Ciência e Tecnologia. Tendo a
luz como assunto principal, produziu e apresentou ambientes multimédia e instalações holográficas,
e tem vindo a explorar o potencial de performance no espaço criado entre a imagem holográfica e
o observador. Tem publicado e participado em várias Conferências nacionais e internacionais, como
autora e como revisora.
mifcmazevedo@gmail.com
www.isabelazevedo.com
2 Deleuze, G. (2006). A Imagem-Tempo, Cinema 2. Lisboa, Portugal: Assírio & Alvim.

679
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

calls it the “crystal image,” the image that combines the memory of a past event
with that of the present time, and it (the “crystal image”) is sometimes character-
ized by spatial and temporal links between the images (the memory images and
the present time).
A holographic image and specifically a digital holographic image is not a fixed rep-
resentation of reality, but can be defined by its total flexibility. Nowadays - with cy-
bernetics, robotics, and neuroscience changing the way we perceive and experience
space - the body has resurfaced as an important creative medium.
Starting from a belief in the human body as an emotional tool, as a messenger of
memories, we have been creating “a new space for the image”, whose structure is
influenced by holographic images and the audience as performer. In this article I
will develop this idea by analyzing a series of digital holographic images that we
have produced.
Keywords:Holographic performativity, digital holographic image, immateriality, memory

Introdução
A holografia regista e mostra a tridimensionalidade do espaço “real” mas sobre um su-
porte bidimensional, e a imagem holográfica pode flutuar no espaço à frente do plano
do holograma, no espaço atrás desse plano e em ambos simultaneamente. Também
podem co-existir várias imagens observáveis a partir de diferentes pontos de vista.

Para ver imagens holográficas (que são imagens em 3D e em 4D - tridimensionais com


movimento), não é necessária a utilização de nenhum apetrecho visual, tais como ócu-
los estereoscópicos ou polarizadores, porque são imagens auto-estereoscópicas.

Também para ver uma imagem holográfica, não é necessário utilizar nenhum meca-
nismo que imponha uma velocidade na qual as imagens passem diante dos nossos
olhos, o que acontece, por exemplo, com os Pepper’s Ghost3, que são ilusões de palco,
muitas vezes confundidos com “hologramas”.

Na holografia, o tempo da imagem é o tempo do observador, e de maneira a que


não se elimine a sua peculiaridade, este tipo de imagem só pode ser vista e sentida,
na sua singularidade total, através da sua presença direta.

Nos últimos anos tenho vindo a desenvolver uma série de hologramas de arte digi-
tal, explorando o movimento dentro e fora do espaço holográfico, fazendo com que
o espaço físico do observador, faça também parte do espaço holográfico.

3 É uma técnica de ilusão usada no teatro, e ficou com essa designação, porque foi John Henry
Pepper, quem apresentou esse efeito, em 1862. Mas foi Giambattista della Porta no Séc. XVI quem
fez a primeira descrição.

680
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

No espaço holográfico digital, apresentámos várias ações em que as figuras estão


em diálogo. Dentro desses hologramas digitais, é o tempo da imagem ativada sim-
bioticamente com o participante que cria o movimento da performance. É essa ca-
racterística particular que acreditamos que distingue as nossas ideias performativas
propostas sobre holografia digital em relação a outros media.

Algumas especificidades da imagem holográfica


Os hologramas e respectivas imagens holográficas, não podem ser traduzidos atra-
vés de outra linguagem, como por exemplo, fazendo uma fotografia ou um filme,
porque elimina a sua peculiaridade; eles só podem ser vistos e sentidos, na sua sin-
gularidade total, através da sua presença direta.

A holografia faz parte dos meios de produção de imagem que registam a luz, tais como
a fotografia, o vídeo ou a película cinematográfica. No processo fotográfico a fonte de
luz pode ser natural ou artificial, no entanto no processo correspondente, na hologra-
fia analógica, a luz tem de ser coerente e por isso existe a necessidade de se utilizar a
luz laser. Esta condição é fundamental na etapa de criação do holograma analógico.

No caso da holografia digital não é necessário o uso do laser durante a fase de cria-
ção, porque as imagens são primeiramente trabalhadas a partir de uma variedade
de gravação de vídeos, programas CAD 3D, estúdio 3D Max, Cinema 4D, Maya, bem
como imagens de 3D scanners, sendo depois impressas holograficamente, com a
utilização de lasers. Existem também sistemas de captura de imagens para a produ-
ção de hologramas de seres vivos e paisagens, como o HoloCam Portable Light, que
produz uma sequência de fotografias digitais / vídeo no formato designado HPO
(paralaxe horizontal apenas) para as impressoras holográficas Syn4Ds.

Portanto, os hologramas quer sejam analógicos ou digitais, são sempre gravados


numa placa holográfica que é bidimensional.

Uma das questões que é importante referir, é a diferença entre holograma e imagem
holográfica4. O holograma é a placa de vidro ou acetato gravada e posteriormente
revelada (quer dizer, depois de processamento químico tal como na fotografia ana-
lógica). A imagem holográfica, em 3D ou 4D - aparece somente quando o holograma
é iluminado corretamente e o observador está localizado nos parâmetros da zona da
sua visualização.

Um holograma pode ou não reconstituir a imagem que ficou gravada, dependendo


das condições de iluminação e da posição dos observadores.

4 Azevedo, M. I. (2005). A Luz como Material Plástico. Tese de Doutoramento. Universidade de Aveiro, Aveiro

681
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Com os desenvolvimentos em holografia5 6 que levaram à produção de hologramas


digitais, que podem mais facilmente reproduzir cores e movimento, a possibilidade
desse meio para uma exploração corporal foi enfatizada, quer dizer, os movimentos
que o observador desenvolve em frente da placa holográfica quando procura a ima-
gem holográfica.

O observador em frente a uma imagem holográfica digital torna-se um reflexo do seu


envolvimento criando uma identidade temporal entre a visão da imagem e o ato de ver.

Imagens holográficas digitais


A informação visual para produzir estes hologramas digitais foi criada a partir de ce-
nários e performances que decorreram no estúdio (Fig. 1 e 2). As performances foram
desenvolvidas com a colaboração de Elizabeth Sandford-Richardson, nos estúdios em
De Montfort University, em Leicester, UK, utilizando a HoloCam Portable Light, para
produzir vídeos no formato compatível com as impressoras holográficas Syn4Ds.

Figuras 1 e 2 –HoloCam Portable Light

Muitos destes hologramas digitais têm uma série de camadas, cada camada é uma
gravação diferente de uma performance. As gravações das performances, no estúdio,
foram então editadas através dos programas, Motion e do Final Cut Pro X, permitindo
colocar várias cenas dentro de uma imagem. Esses vídeos foram depois enviados para
a Geola7, em Vilnius, na Lituânia, para serem impressos holograficamente. Ao usar as

5 Saxby, G. and Zacharovas, S. (2016). Practical Holography. USA: CRC Press, Fourth Edition.
6 Bjelkhagen, H.I. and Brotherton-Ratcliffe, D. (2013). Ultra-Realistic Imaging, Advanced Techniques in
Analogue and Digital Colour Holography. USA: CRC Press.
7 www.geola.lt

682
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

informações luminosas dos vídeos enviados, o registo retoma a impressão de um pa-


drão de interferência calculado por um computador, realizado por um raio laser focado
no movimento controlado pelo mesmo computador. Após o registo e o processamento
químico da placa emulsionada, é obtido um holograma contendo a amplitude total e
as informações de fase do padrão de interferência. As franjas de interferência que cons-
tituem o holograma, quando adequadamente iluminadas, produzem uma imagem 4D.

As performances finais só existem após a impressão holográfica digital, e depois de


colocadas no espaço expositivo, porque são os hologramas digitais que permitem que
estas performances sejam ativadas pelo movimento do observador/participante.

Portanto, no espaço holográfico digital, apresentámos várias ações em que as figu-


ras estão em diálogo. Dentro desses hologramas digitais, é o tempo da imagem ati-
vada simbioticamente com o participante que cria o movimento da performance. É
essa característica particular que acreditamos que distingue as nossas ideias perfor-
mativas propostas sobre holografia digital em relação a outros media.

“On the surface” (Fig.3) o observador é apresentado a uma série de figuras, cujas
mãos se movem como se estivessem a tentar empurrar o espaço digital em direção
ao observador/participante. O movimento das mãos começa simetricamente, assim
que o/a participante se move em frente da placa holográfica, o movimento das mãos
torna-se assimétrico. Esta peça é baseada no trabalho de Helena Almeida (1934–
2018), relativamente ao questionamento da superfície da tela e à utilização da cor
azul. Desde os primeiros trabalhos de Helena Almeida que transpareceu o desejo de
fuga da tela tentando romper os limites da pintura e sair do suporte, transgredindo
de forma literal os limites do espaço da obra de arte e misturando vários meios de
intervenção artística, tais como fotografia e performance, em que o seu próprio cor-
po era um elemento fundamental8 9.

Figura 3 – “On the surface”, Holograma de Reflexão Digital, 45x60cm

8 Catálogo da Exposição “Helena Almeida”, na Fundação Calouste Gulbenkian, Galeria de Expesições


Temporárias, Lisboa, Abril de 1983.
9 https://gulbenkian.pt › museu › artist › helena-almeida

683
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Em “Mirror” (Fig. 4) o movimento das mãos em frente a um espelho, compõe o movi-


mento das formas ao redor do espaço, agindo como uma melodia no espaço onde
tudo segue o seu ritmo. Esta peça é baseada em “Doll Clothes” (1975)10 de Cindy
Sherman (1954), um pequeno filme mudo em preto e branco que combina ‘live ac-
tion’ com sequências animadas. O trabalho de Cindy Sherman11, levanta questões
sobre o papel e a representação das mulheres na sociedade. Trabalhando quase ex-
clusivamente em fotografia, ela própria se transforma em diversos personagens de
modo a explorar como é que a identidade é construída e, especialmente, como é
que o comportamento e a performance podem moldar as concepções de gênero.

Figura 4 – “Mirror”, Holograma de Reflexão Digital, 45x60cm

“Orchestra” (Fig.5), em que Elizabeth Sandford-Richardson desenvolve o movimento


de tocar violino, e essa ação é ecoada ao longo da imagem holográfica, gerando
muitas figuras de Elizabeth, a fim de moldar uma espécie de orquestra, que se ex-
pande e contrai de acordo com os movimentos do participante. A imagem poderia
estar ligada à ideia de que o observador precisa de ativar as suas memórias para en-
tender o que a figura está a fazer: tocar violino sem um violino; mas o movimento e a
forma poderiam ser interpretados de outra maneira. Esta peça é baseada num clipe
do filme “Pina”12, um documentário em 3D do realizador alemão Win Wenders, acer-
ca da obra de Pina Baush (1940–2009), criadora da ‘dança-teatro’ contemporâneo13.
A repetição de ações era uma característica marcante no processo criativo de Pina
Bausch, ela valorizava as vivências físicas e emocionais dos seus bailarinos/interpre-
tes, de modo a criar no público experiências diversificadas; neste clipe os bailarinos
caminham em fila única, descrevendo com os braços e as mãos, as quatro estações
do ano, e repetindo constantemente a mesma sequência de movimentos.

10 https://vimeo.com/22608426
11 Cruz, A.; Smith, E. A.T.; Jones, A. (2000). Cindy Sherman: Retrospective. UK: Thames & Hudson.
12 www.pina-film.de/en/pina-bausch.html
13 http://www.pinabausch.de

684
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 5 – “Orchestra”, Holograma de Reflexão Digital, 45x60cm

“Five blue and white girls” (Fig.6) apresenta Elizabeth em cinco figuras, com os braços
em movimento, condensados numa só imagem. Ela aparece em diferentes tamanhos,
diferentes focos e em diferentes posições, mas pretendemos que todas as figuras se-
jam compostas dentro do movimento integral registado no holograma, aludindo às
diferentes versões de uma pessoa no atual quotidiano. A mesma pessoa em diferentes
situações ao mesmo tempo em lugares diferentes, por exemplo: na Internet, em pon-
tos de redes sociais, no telemóvel, em conversa com outras pessoas em tempo real.
Cada situação mostra diferentes aspetos da nossa personalidade, somando um todo
de quem somos, dependendo da posição que o participante escolher para observar a
imagem holográfica. O movimento nesta peça foi baseado em movimentos seleciona-
dos a partir de Orfeu e Euridice14, de outra produção de Pina Baush.

Figura 6 – “Five blue and white girls”, Holograma de Reflexão Digital, 45x60cm

Considerações acerca da performatividade holográfica


Perante estes hologramas digitais, a atenção é levada para um conjunto de situ-
ações, que exigem uma atividade global do participante que estiver no espaço
do trabalho/obra. Através do movimento do corpo do participante e do tempo
empreendido, é estabelecido um conjunto de relações entre o espaço real, em
que o participante se move, e o espaço virtual da imagem do holograma digital,
moldando uma série de ações que transformam o que é percebido e se tornam na
performance específica de cada participante.

14 www.youtube.com/watch?v=lDJFMvU2ZqY

685
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O que é considerado culturalmente em arte como experiência ao vivo “Live Art” mu-
dou ao longo do tempo em relação às mudanças tecnológicas15.

A “Performance” é considerada” Live Art”. Pode não ser realizada da mesma forma
novamente e como qualquer obra de arte efémera existe na memória dos seus par-
ticipantes. Outra forma de existir, oferecendo novas possibilidades críticas, é em ob-
jetos materiais, nos media visuais e em textos escritos.

Philip Auslander16, propõe duas categorias na documentação da performance, o


“Documentário” e o “Teatral”. O documental é a maneira tradicional de gravar perfor-
mances, acrescentando a possibilidade de serem re-encenadas com base nessa infor-
mação, como por exemplo, as performances de Marina Abramovic “The Seven Easy
Pieces” re-encenadas no Museu Guggenheim, em Nova Iorque, em 2005, a partir das
performances de outros artistas. Na categoria teatral, a “Fotografia Performativa”, as
performances são fotografadas ou filmadas, e somente depois é que são apresentadas
aos participantes, como por exemplo, no caso de Cindy Sherman. É nesta categoria
e desenvolvimento desta noção, que uma das questões da minha investigação tem
sido desenvolvida17, a qual designei por “Holografia Performativa”, é o movimento do
observador que realiza a performance para a qual está a olhar. Neste sentido temos
considerado a “Holografia Performativa” como um novo tipo de “Live Art”.

Conclusão
Uma imagem holográfica é a memória de um momento que ficou registado a par-
tir da matéria, neste caso performances e cenários. Essa memória está gravada na
placa holográfica, pronta a ser revelada ao observador mediante iluminação apro-
priada. Conforme as memórias de cada observador/participante é moldada uma
série de ações transformando o enunciado inicial e tornando-se na performance
específica de cada participante.

E ao contrario dos diferentes médiuns que foram usados anteriormente para dar
a ilusão das três dimensões, tais como, pintura, fotografia ou cinema, as imagens
holográficas podem ser visualizadas como se estivessem presentes fisicamente,
numa dupla condição de corpo e imagem, material e imaterial, e simultaneamente
presentes e ausentes, dependendo dos movimentos dos participantes.

15 Auslander, P. (2008).Liveness: Performance in a Mediatized Culture. 2nd ed., Abingdon: Routledge.


16 Auslander, P. (2012). The Performativity of Performance documentation. In A. Jones and A. Heathfield
(Eds.) Perform, Record, Repeat, Live Art in History (pp.47-58). Bristol, UK: Intellect Books.
17 Azevedo, M. I.; Richardson, M. J.; Sandford-Richardson, E.; Bernardo, L. M. and Crespo, H. The place
for performance in the digital holographic space, in Practical Holography XXVIII: Materials and Applica-
tions, Hans I. Bjelkhagen; V. Michael Bove, Jr., Editors, Proceedings of SPIE Vol. 9006 (SPIE, Bellingham,
WA 2014), 90060N. doi: 10.1117/12.2036693

686
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Maria Manuela Lopes1


Ensaio Organizado de Experiência Adquirida
Organized Rehearsal of Acquired Experience

Resumo
Este artigo e apresentação reflete sobre a produção de um projeto artístico ex-
perimental num espaço de interface Arte e Ciência. O projeto reflete sobre a
carreira científica de Abel Salazar, que nos legou uma vasta e variada obra onde
se cruzam os campos da ciência (medicina e histologia) das artes plásticas (pin-
tura, escultura, desenho e gravura) da escrita (ensaio critico e filosófico) e da
pedagogia (ensino universitário). Ensaios organizados de Experiência Adquiri-
da cruza as experiências plásticas e tecnológicas da exploração histológica do
médico com a complexidade das tensões da biotecnologia e da ética na con-
temporaneidade, assim como se torna uma narrativa do projeto ético-episte-
mológico da construção de uma objetividade mecânica visualmente ancorada.
Conceitos de célula, devir, fluxo, símbolos, protocolos, metáforas, transparên-
cia entre outros mediam tanto a obra de Abel Salazar, como tem ancorado a
experiência da artista. A obra poderá apresentar-se em vários momentos com

1 Maria Manuela Lopes (PhD) artista plástica cuja prática é transdisciplinar, investigando relações de
memória e identidade informadas pelas ciências biológicas e investigação médica; a sua obra apa-
rece em formato variado dentro das artes plásticas resultando em instalações multimédia, desenho
e performances - ocasionalmente incluindo materiais biológicos. O seu trabalho tem sido mostrado
nacional e internacionalmente. Tem comissariado várias exposições Internacionais de Artes Plásti-
cas, é autora de artigos e capítulos de livros em diversas publicações. Maria Manuela Lopes é tam-
bém cofundadora e Diretora Adjunta dos programas de residência artística portugueses: Ectopia
– Laboratório de experimentação Artística (inicialmente no Instituto Gulbenkian de Ciência, agora
com interações com diversas instituições) e Cultivamos Cultura, programa de residência artísticas e
investigação em artes visuais em São Luís, Odemira. É investigadora no i3S Instituto de Investigação
e Inovação em Saúde onde é responsável pela interface arte/ciência e codirige o projeto HYBRID.

Maria Manuela Lopes (PhD) visual artist whose practice is transdisciplinary, investigating rela-
tionships of memory and identity informed by the biological sciences and medical research; Her
work appears in a varied format within the fine arts resulting in multimedia installations, drawing
and performances - occasionally including biological materials. Her work has been shown natio-
nally and internationally. She has curated several international exhibitions of fine arts, has authored
articles and book chapters in various publications. She is also co-founder and Deputy Director of
Portuguese residency programs: Ectopia - Artistic Experimentation Laboratory (initially at the Gul-
benkian Institute of Science, now with interactions with various institutions) and Cultivamos Cultura,
residency program and research in the visual arts. in São Luís, Odemira. She is a researcher at the i3S
Institute for Health Research and Innovation where she is responsible for the art / science interface
and co-directs the HYBRID project.

687
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

formas e formulações variadas incluindo apresentações audiovisuais ou mais


centradas no processo de desenho ou ainda incluindo matérias biológicos cor-
respondendo a uma noção emprestada do autor do conceito, neste caso a obra
como um ensaio organizado de experiência adquirida. Enquadra-se no pro-
pósito do #18.ART coalescendo os mundos da arte, saúde, ciência e tecnologia
e forçando a produção e o discurso artístico a manter uma mediação entre a
matéria e o assunto – memória, realidade e utopia.
Palavras-chave: Arte, Investigação, Medicina, Matéria, Memória

Abstract/resumen/resumé
This paper/presentation reflects on the production of an experimental artistic proj-
ect in an interface space Art/Science. The project reflects on the scientific career of
Abel Salazar, who left us a vast and varied work that intersects the fields of science
(medicine and histology) of the fine arts (painting, sculpture, drawing and engrav-
ing) of writing (critical and philosophical essay). ) and pedagogy (university edu-
cation). Organized essays on Acquired Experience intersect the plastic and techno-
logical experiences of the doctor’s histological exploration with the complexity of
contemporary biotechnology and ethics tensions, as well as becoming a narrative
of the ethical-epistemological project of building a visually anchored mechanical
objectivity. Concepts of cell, becoming, flow, symbols, protocols, metaphors, trans-
parency, among others mediate both Abel Salazar’s work, and have anchored the
artist’s experience. The work may be presented at various times in various forms and
formulations including audiovisual presentations or more focused on the design
process or even biological material corresponding to a borrowed notion from the
author of the concept, in this case the work as an organized essay of acquired expe-
rience. It fits in with the # 18.ART purpose of co-balancing the worlds of art, health,
science and technology and forcing production and artistic discourse to maintain a
mediation between matter and subject - memory, reality and utopia.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: Art, Research, Medicine, Matter, Memory.

Introdução
Este artigo surge da reflexão do processo resposta a um convite para integrar o pro-
jeto retratos tanoférricos (https://retratostanoferricos.wordpress.com/) com uma
participação artística de homenagem à obra científica de Abel Salazar. O projeto
é uma obra experimental, no âmbito das artes plásticas, num espaço de interface -
Arte e Ciência - como homenagem ao trabalho interdisciplinar e complexo de Abel
Salazar. É também multidisciplinar, que cruza as experiências plásticas e tecnológi-
cas da exploração histológica do médico com a complexidade das tensões da bio-
tecnologia e da ética na contemporaneidade.

688
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A versão que hoje é apresentada é a conclusão da primeira parte da primeira ma-


terialização plástica da experiência (Ensaio Organizado de Experiência Adquirida 1)
produzido em várias instituições da cidade do Porto, apresentado publicamente no
Porto - Casa Museu Abel Salazar durante o ano de 2019. Abel Salazar legou-nos uma
vasta e variada obra onde se cruzam os campos da ciência (medicina e histologia)
das artes plásticas (pintura, escultura, desenho e gravura) da escrita (ensaio critico e
filosófico) e da pedagogia (ensino universitário).

Objetivos e Inovação
Celebrar o trabalho científico e descobertas de Abel Salazar é uma honra que vem
interligada com a responsabilidade de elevar os limites do conhecimento e da ex-
periência, a fim de contribuir para a inovação, pois Abel L. Salazar (1889-1946), mé-
dico, professor, cientista, pensador e artista plástico, foi uma figura multifacetada
do panorama cultural português do seu tempo. Expulso da academia por motivos
políticos, a sua carreira científica foi relativamente curta. Como investigador, o seu
trabalho centrou-se em representações visuais de tecidos biológicos, por via do re-
curso a métodos de coloração das amostras biológicas que estudou, bem como da
prática e da reflexão em torno do processo de desenho microscópico no registo dos
dados observados. A implementação e sucessivos apuramentos de abordagens me-
todológicas para o estudo da estrutura e organização de células e tecidos baseou-se
no designado método tano-férrico. Esse trabalho, permitiu a Abel Salazar perceber
características importantes da chamada zona do Golgi, nas células e condições estu-
dadas. Observando no limite de resolução que a microscopia ótica lhe possibilitava,
notou que nessa região se podia distinguir uma zona fortemente tanofílica e, em-
bora a sua interpretação desses dados não tenha prevalecido, os mesmos eviden-
ciaram parte da sua estrutura-função tal como passou, entretanto, a ser concebida.

Ensaio Organizado de Experiência Adquirida 1 mostra como a arte pode ser um


meio importante na comunicação da terminologia científica, na problematização
das tensões entre bioética e tecnologia e dos processos entre pesquisadores (artís-
ticos e científicos) e audiências, e como ela pode ajudar-nos a inovar, olhando para
além das construções estéticas que são dadas como certas nas imagens. A obra plás-
tica pretende evocar a maravilha da descoberta e oferecer uma visão ‘imaginada’ e
utópica da maquinaria biológica espetacular que compreende o cerne de nossas
memórias e nosso essencial sentido de identidade (self ) (Lopes, 2014).

A tensão entre tecnologia e bioética tem provavelmente sustentado os desenvol-


vimentos culturais mais significativos de nossa era, e as ciências da vida, incluindo
seus protocolos e técnicas (como CrispR) e objetos simbólicos - oferecem uma com-
plexa ferramenta de comunicação para os artistas explorarem na construção das
ideias, em fluxo, de identidade. Consequentemente, inúmeras questões surgem de
projetos (Lopes, 2015) que tiram proveito de nossa nova capacidade de projetar a

689
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

vida na escala molecular usando técnicas dos campos em rápido desenvolvimen-


to da biologia molecular. Este projeto é inovador em suas parcerias e na colabora-
ção unindo processos interdisciplinares que exploram múltiplas dimensões como
conceitual, contextual, relativa e relacional. Seguindo a liberdade da pesquisa de
Abel Salazar, foi pretendido experimentar e inventar novas formas, metodologias,
tecnologias ou ideias não-materiais, cruzar com questões culturais mais amplas e
trazer o tema do estudo histológico de Abel Salazar para bases contemporâneas (os
processos de glicosização de células com principal impacto na pesquisa atual sobre
cancro). Seguindo essa premissa investiguei problemas na prática através da explo-
ração artística com tecnologias histológicas e meios e técnicas artísticas e manten-
do a formulação de questões no centro do processo exploratório. Essa é a principal
razão para os canais de difusão e o acesso público à criação sejam interconectando
os produtos artísticos a serem valorizados juntamente com os produtos que docu-
mentam o processo. Nessa lógica o projeto tem permitido coalescer os mundos da
arte, saúde, ciência e tecnologia criando numa envolvência do espírito da época de
Abel Salazar e das ideias do contemporâneo Aldous Huxley no “Admirável Mundo
Novo” e interpretado à luz da “Estranha Ordem das Coisas: A Vida, os Sentimentos e
as Culturas Humanas” de António Damásio (2017)

Como podemos ler no website do #18ART


“No distópico romance de Huxley, discutem-se avanços tecnológicos em várias face-
tas da sociedade (reprodução, aprendizagem durante o sono ou medicamentos para
a felicidade). Uma construção ideológica sobre a desumanização dos seres huma-
nos, onde se alude a que o preço da liberdade é a vigilância eterna. (...) Vemos como
que um contraponto entre esta hipotética civilização ultra- estruturada (tendo com
objetivo a obtenção da felicidade de todos indivíduos) e as impressões humanas e
sensíveis do “anormal” que, visto como algo aberrante, faz desenvolver um fascínio
estranho entre nós.”

Este fascínio pela construção ideológica de liberdade era bem entendida pelo médi-
co histologista e investigador que homenageamos, uma vez que vivendo na época
da ditadura em Portugal e expulso da academia se viu forçado a improvisar formas
de aceder ao mundos que imaginava, construindo uma espécie de laboratório alter-
nativo em sua casa o que lhe permitiu trabalhar os universos das artes e das ciências
simultaneamente. Nas suas explorações científicas, a par de uma astúcia para con-
seguir os materiais necessários à sua investigação, Salazar utilizava variadas técnicas
de desenho e coloração num processo bastante artesanal que também me é fami-
liar. Desvendar a narrativa intrínseca à sua investigação do descobrir do seu arquivo
e ao re atuar as suas práticas, de coloração e de desenho, fez me questionar sobre a
questão da narrativa no ato de desenhar e no que lhe sobrevive.

690
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Arquivo, desenho e método


As interseções exploratórias, neste projeto criativo, incluem uma metodologia ino-
vadora, com procedimentos científicos para construir os artefactos artísticos e a prá-
tica da ciência como objeto e meio; permitindo através de momentos de residência
no ICBAS (Instituto de Ciências Biológicas Abel Salazar) e com um método hibrido e
quase etnográfico, em que algumas estratégias (como o desenho ou a microscopia e
histologia) são encarados na dupla função de ferramentas metodológicas de explo-
ração e de outputs. Neste processo fui quase uma flaneuse (Elkin, 2016) devotando
imenso tempo ao acesso e permissão às matérias e materiais, às pessoas disponíveis
para auxiliar no processo, mas também à analise e investigação do lugar e da ideia
do/no lugar, recolhendo e ideias e materiais, processos e relações, falando, ouvindo,
perguntando e aprendendo.

Uma narrativa define-se pela relação sequencial entre as partes que levam a uma
compreensão do todo. Neste caso, o todo seria a materialização plástica do proje-
to (na sua primeira versão como desenho instalação). Desta forma uma narrativa
encerra uma história com um princípio e um fim, ou poderá descrever um fragmen-
to indefinido de espaço tempo. De qualquer forma não consigo separar a ideia de
narrativa e experiência, e a sua tentativa também não parece ser operacional para o
raciocínio neste caso. Vejo a narrativa como uma forma de veicular a experiência a
outros exteriores a ela por meios distintos e neste caso visuais e estéticos. Os dese-
nhos de Abel Salazar são de representação ou descrição o que inclui narrativa, mas
os desenhos contam mais do que isso pois encapsulam na sua natureza a relação
entre o processo de serem desenhados num espaço tempo e o seu resultado como
vestígio presente no arquivo (Lopes, 2016)

Tempo, espaço e memória estão interligados no processo de desenhar e no desenho


que resulta que se apresenta como uma incorporação desses elementos. Em termos
objetivos um desenho não escapa a uma evolução no tempo e espaço, sendo o tem-
po a duração do processo de desenhar e o espaço a relação espacial entre formas e
conteúdos visuais no desenho. A memória é intrínseca ao processo sendo respon-
sável pelo impulso criativo por um lado (mais do que uma reação de resposta auto-
mática) e o que resulta por outro. Tempo, espaço, memória e arquivo são conceitos
primários no desenvolvimento deste projeto que se desenrola como uma narrativa
de descoberta de um universo à medida que se constrói uma nova proposta.

A Obra e sua Instalação In Situ


Além dos conceitos acima mencionados de tempo, espaço, memória e arquivo,
outros conceitos, como os de célula, devir, fluxo, símbolos, protocolos, metáforas e
transparência, mediam a obra de Abel Salazar assim como tem ancorado a minha
experiência e investigação (Lopes, 2013). O projeto pretende estender-se a outros

691
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

momentos - com formas e formulações variadas, incluindo: apresentações audio-


visuais; escultóricas; mais centradas no processo de desenho; ou ainda incluindo
matérias biológicos. Deste modo, o projeto corresponde a uma noção emprestada
de Abel Salazar: ensaio organizado de experiência adquirida.

Este primeiro ensaio explora a dimensão metodológica do homenageado re-atu-


ando nas suas práticas de representação visual de tecidos biológicos, por via do re-
curso a métodos de coloração das amostras biológicas que estudou, bem como da
prática e da reflexão em torno do processo de desenho microscópico no registo dos
dados observados. A conclusão do investigador histologista foi um olhar sobre cor.
Um olhar prolongado sobre o conhecido para descobrir o novo. Um olhar atento de
redesenho de possibilidades que operacionalizou numa hipótese nova.

É nesse sentido que a proposta deste primeiro ensaio se detém num exercício explo-
ratório de desenho para conhecer, reconhecer e imaginar. Depois de várias experi-
ências modestas de re-atuação das suas metodologias de investigação e treino do
olhar e da mão - no reconhecimento das estruturas, no desenho ação, no desenho
ao microscópio, nos processos de histologia e de coloração - a instalação aproveita
o espaço de fronteira entre o interior e o exterior da Casa Museu Abel Salazar, para,
num gesto simbólico, convidar a olhar além fronteiras e desafiar o observador a par-
ticipar nas descobertas do novo.

Os vidros irregulares e multidimensionais da varanda transformam-se temporaria-


mente num espaço liminar, não de fronteira interior versus exterior, mas numa quase
recriação de uma lâmina histológica como o suporte para a visualização da experiên-
cia - a transparência do vidro como sinédoque de todo o processo de ensaio.

A experiência, essa, só pode ser construída pelo observador que, a diferentes horas
do dia, percecionará o interior e o exterior da casa sob alterações permanentes de
luz e cor permeadas de registos transferidos, direta ou simpaticamente, por desenho
da obra de Abel Salazar.

As estratégias do arquivo tem feito parte intrínseca das metodologias do trabalho ex-
ploratório da autora que desenvolve, tanto a re-atuação como estratégias de visua-
lização para criticar os processos pelos quais as instituições constroem e ordenam a
memória e o conhecimento (Lopes, 2013). A visita e re-atuação do arquivo do médico
histologista mostrou a necessidade de comparar escalas, separar ou experimentar so-
breposições, temperaturas, espessuras, transparências e reproduções, olhar e re-olhar,
desenhar, esperar e transferir desejos e vontades trocadas por acessos e permissões,
uma negociação permanente e relacional da autora com o arquivo e com o processo
do fazer agora é transferida para a mobilidade e procura pelo observador.

Consciente de que as memórias são moldadas pelo contexto sociopolítico em que são
produzidas e, também, pela cultura tecnológica e material acessível para produzi-las,

692
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

reproduzi-las, arquivá-las e recuperá-las, e de que desenhar e percecionar são formas


de manter a atenção no momento presente - formas de estar e de negociar o irresolú-
vel. O ensaio primeiro da experiência - do conhecer Abel Salazar - sugere essa necessi-
dade de duração, de experimentar estar.

Reflexão
A exploração de vários materiais e conhecimento produzido de Abel Salazar permi-
te-me discernir seu trabalho de forma ampla, estendendo o raio de seu contexto a
um campo cultural mais abrangente. Segundo Damásio (2017) visualizar experiên-
cias e traços arquivados sob uma luz contemporânea amplia seu significado, pois
eu observei-as num contexto alterado, de novas perspetivas e sob uma nova luz
tecnológica, confrontada com questões contemporâneas. Minha posição sobre o
trabalho de Abel Salazar é que sua capacidade de explorar e produzir conhecimento
em vários campos (da medicina à arte cruzando fronteiras da filosofia) carregava
significados ricos em cada domínio, proporcionando grande significado para cada
ação, uma vez que puxava o fio da experiência de outros campos ou áreas toca-
das ou experimentadas. Recentemente, ao programar e comissariar uma exposição
sob o tema de palimpsesto enquanto explorava o arquivo de Salazar, lembrei-me da
expressão ou metáfora do palimpsesto como memória de trabalho e a riqueza do
arquivo com as camadas complexas de um palimpsesto ou memória no trabalho.
A associação da memória ao palimpsesto vem talvez de um dos mais antigos con-
ceitos teóricos de memória, como proposto por autores como Fusi, Nadal ou Savi.
Um palimpsesto convencional é um manuscrito que foi parcialmente raspado ou
limpo antes de ser escrito novamente. Essa prática era comum nos tempos em que o
suporte para a escrita (por exemplo, papel) era um recurso raro e precioso, de modo
que a economia ditava a reutilização (de papiro e couro animal). Como o apagamen-
to nunca é completo (de fato, técnicas modernas, como raios X, permitem recuperar
detalhes invisíveis ao olho normal), permanece uma quantidade de informações so-
bre as inscrições anteriores. Portanto, inscrições anteriores (ou seja, itens armazena-
dos mais antigos) podem ser recuperadas simultaneamente com o conteúdo mais
recente. Um exemplo de um famoso palimpsesto é o Palimpsesto de Arquimedes,
que continha obras desconhecidas de Arquimedes de Siracusa a partir do século X.
Este palimpsesto foi sobrescrito por monges no século XIII que o usavam para tex-
tos religiosos cristãos. Após o processamento digital, o conteúdo original de Arqui-
medes foi recuperado e descobertos trabalhos teóricos desconhecidos, incluindo
“O método dos teoremas mecânicos”, o primeiro uso explícito de infinitesimais na
computação de uma integral. Esses tratados foram substituídos pelo texto religioso
cristão do século XIII. Após o processamento digital de vários tipos de digitalizações
entre 1998 e 2008, o conteúdo original foi recuperado com sucesso.

Como mencionado anteriormente, minha própria prática artística é baseada em exa-


minar e testemunhar temas e práticas científicas complexas, onde a cultura material

693
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

do ambiente de laboratório de alta tecnologia é vista como um sistema multica-


mada de ações, assuntos e significantes compartilhados que por vezes tem de ser
dissecados para poderem ser percecionados nas várias camadas. Todo o arquivo do
Salazar (casa, material de laboratório, textos, desenhos, etc.) tornou-se uma estrutu-
ra entre ressonância e determinação política histórica e também instrumentalização
contemporânea de alta tecnologia quando usei os novos meios do laboratório para
aceder às suas imagens presentes nas lâminas científicas.

Considerações Finais
Ensaio Organizado de Experiência Adquirida 1, instalado na Casa Museu Abel Sala-
zar, passa por uma expansão contextual através do diálogo com as obras do acervo
permanente e da desconstrução do processo científico do método tanoférrico pro-
posto por Maria Strech Almeida na mesma sala.

Um desenho finalizado implica e, ao mesmo tempo, oculta o processo de sua cria-


ção. A evolução do projeto, desde a primeira marca na superfície de desenho até o
resultado final, envolve uma camada contínua de fenômenos visuais criados fisica-
mente (marcas), de acordo com o processo de pensamento subjacente. Cada dese-
nho único, desenvolvido através de várias etapas e camadas de trabalho, esconde
relações significativas dentro de si - relações espaciais através da justaposição de
marcas, relações temporais de acordo com o tempo gasto na criação da obra e rela-
ções de acordo com a envolvimento emocional da autora. As rasuras ou apagamen-
tos por meio do alcool são marcas, de modo que elas estão presentes através de sua
ausência. Eles são a indicação da decisão tomada dentro de um processo sequencial
de pensamento e criatividade.

Neste projeto, que conta com mais de uma centena de desenhos em acetatos, os
mesmos podem potencialmente revelar a evolução da ideia que vincula cada de-
senho individual envolvidos, à medida que a série avança numa espécie de “ima-
gem do pensamento” (Deleuze, 1994). No entanto, um único desenho depende da
interpretação do espectador quanto ao seu desenvolvimento individual. Apropria-
ção e representação, negociação de marca e de presença ausência são uma me-
todologia familiar na minha prática. Comparando as estratégias de Salazar sobre
o uso do meio para tornar as intervenções científicas uma renderização concetual
e visual possível, concluo que adotamos abordagens paralelas, mas algo díspares.
Para os olhos do médico, o médium recebeu pouca reflexão, pois foi explorado
como um meio de atingir um fim sem a necessidade de avaliar as especificidades
do significado material. O problema central da verdade e da objetividade científi-
ca, aos meus olhos artísticos, significa rigor e devoção na busca de todos os meios
para entender o trabalho, os processos e o homem por trás dele, tentando home-
nageá-lo por minha prática.

694
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Bibliografia
Almeida, M. S et al (2019). Retratos Tanoférricos. In https://retratostanoferricos.wor-
dpress.com/

Damásio, A. (2017). A Estranha Ordem das Coisas: a Vida, os Sentimentos e as Cultu-


ras Humanas. Temas & Debates.

Deleuze, G. (1994). Platão e o Simulacro. In Lógica do sentido. São Paulo: Editora


Perspectiva: 259-272.

Elkin, L. (2016). Flaneuse: Women Walk the City in Paris, New York, Tokyo, Venice and
London. Chatto & Windus.

Fusi, S., Drew, P. J., and Abbott, L. F. (2005). Cascade models of synaptically stored
memories. Neuron, 45(4):599–611.

Huxley, A. (2013). Admirável Mundo Novo. Antígona.

Lopes M. M. (2016). Body Storytelling and the Performance of Memory: Arts-Based-


-Research and Human Enhancement. In: Streitz N., Markopoulos P. (eds) Distributed,
Ambient and Pervasive Interactions. DAPI 2016. Lecture Notes in Computer Science,
vol 9749. Springer, Cham. pp. 257–269, 2016 DOI https://doi.org/10.1007/978-3-319-
39862-4_24.

Lopes, M. M. (2013). Representational Strategies On Alzheimer’s Disease: A Practice-


based Arts Research In A Neuroscience Laboratory (Unpublished Doctoral Disser-
tation), University Of Brighton And University For The Creative Arts - Farnham, Uk.

Lopes, M. M. (2014) Art Making with Memory Matter: Mneno-Media, Creativity and
Impairment from Human to Hyper-Human. CAC Computar Art and Design for all,
EBA UFRJ, Rio deJaneiro, pp. 85 – 96. 2005.

Lopes, M. M. (2015). Inside/Out: Looking Back into the Future, In Projective Processes
and Neuroscience in Art and Design. Zuanon, Rachel (ed), Advances in Media, Enter-
tainment, and the Arts (AMEA) Book Series, IGI Global, pp. 15 – 39. 2015.

Nadal, J., Toulouse, G., Changeux, J., and Dehaene, S. (1986). Networks of formal neu-
rons and memory palimpsests. Europhysics Letters, 1(10):535–542.

Savin, C., Dayan, P., and Lengyel, M. (2011). Two is better than one: distinct roles for
familiarity and recollection in retrieving palimpsest memories. In Advances in neural
information processing systems (NIPS), pages 1–9.

Toth, M. B. (2008). The Archimedes Palimpsest. In http://archimedespalimpsest.


org/about/

695
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Meriney dos Santos Horta1


Brilho no Asfalto
Shine on the Asphalt

Resumo
Neste artigo serão desenvolvidas questões acerca do trabalho Brilho no Asfalto
realizado pela autora entre os anos de 2018 e 2019 que consiste na série de fo-
tografias de uma performance realizada na Avenida Presidente Vargas no Centro
do Rio de Janeiro no trecho onde aconteciam os desfiles do carnaval de escola
de samba na década de 1960. Neste trabalho que compôs a exposição Percursos
que ocorreu na Pequena Galeria do Centro Cultural Light no Rio de Janeiro entre
os meses de fevereiro e março (carnaval) de 2019, a performer passa pela ave-
nida deixando um rastro de purpurina, em uma materialidade imaginativa que
evoca o rastro de outros corpos que por ali passaram em diferentes camadas de
tempo. As fotos são como imagens de instantes que dialogam com o instante
da performance. As questões que permeiam Brilho no Asfalto dizem respeito à
potência do brilho enquanto metáfora para uma poética do instante.
Palavras-chave: Corpo, Memória, Performance, Carnaval.

Abstract
In this article we will develop questions about the work Shine on Asphalt per-
formed by the author between 2018 and 2019, which consists of a series of photo-
graphs of a performance performed on Avenida Presidente Vargas in downtown
Rio de Janeiro in the stretch where the carnival parades took place. samba school
in the 1960s. In this work that composed the exhibition Courses that took place at
the Little Gallery of the Light Cultural Center in Rio de Janeiro between February
and March (Carnival) of 2019, the performer passes by the avenue leaving a trail
of glitter, in an imaginative materiality that evokes the trail of other bodies that
passed through in different layers of time. The photos are like images of moments
that dialogue with the moment of performance. The questions that permeate
Brightness on Asphalt concern the power of brightness as a metaphor for a poetic
of the moment.
Keywords: Body, Memory, Performance, Carnival.

1Doutoranda e mestre em Artes Visuais na linha de Poéticas Interdisciplinares pelo Programa de


Pós-Graduação da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Graduada em
Bacharel em Dança pela UFRJ. meryhorta@hotmail.com

696
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Lugar do corpo
O corpo é matéria constituída de memória e movimento, é memória em movimento.
A cada acontecimento que afeta o corpo, suas percepções e sensações são atualizadas
e ativadas criando, reforçando memórias-imagem (BERGSON, 2006) e, por vezes, aces-
sando memórias coletivas (HALBWACHS, 2003) que permaneciam até então dormentes,
sem nos darmos conta de sua existência. Esse corpo habita a cidade, se imbui dela, dos
locais por onde passa, das alterações desse espaço-cidade, assim como ele próprio (o
corpo) se faz agente nessa dinâmica de afetos entre seu espaço e o espaço externo que
poética e imaginativamente pode ser um prolongamento de si. A cidade que o corpo
falado aqui habita é a cidade do Rio de Janeiro que ao longo de sua existência sofreu
inúmeras transformações. Sua topografia irregular é formada de morros, vales, rios, mar.
Sua topologia já foi alterada, não só por transformações naturais, mas pelas mais diver-
sas ações de cunho urbanístico. A remoção de morros, o aterro de grandes áreas, a cons-
trução de estradas, o surgimento de favelas ou comunidades em áreas não planejadas,
o caos e a constante tentativa de planejamento. No mapa comum vemos tudo plano, ao
vivermos e nos deslocarmos pelos diferentes pontos dessa cidade é que percebemos as
dimensões de sua irregularidade. Nesse trânsito caótico de transformações e recriações,
as pessoas, seus corpos e anseios são imbuídos das impressões do que é viver nessa
cidade, se adaptar, mas também transmutar junto ao movimento e ritmo que compõem
os espaços. Os caminhos tortuosos percorridos são, também, caminhos do corpo.

Junto ao ritmo dessa cidade pulsa ano a ano uma festa que mobiliza e agencia os
mais diversos atores que reunidos se colocam em passagem pela avenida no desfile
de escolas de samba do Rio de Janeiro. Nesse grande “ritual urbano contemporâ-
neo”2 uma escola de samba é uma estrutura física (barracão, quadra), imaginada
(com todos os estereótipos e questões que a acompanham), mas principalmente
tem corpo. Uma escola de samba é o encontro de muitos corpos.

Para além dos aspectos do visual, que diz respeito às alegorias e fantasias e do musi-
cal, entre enredo e samba como inerentes ao desfile carnavalesco, considero o samba
como um emaranhado entre os aspectos citados anteriormente, e a dança enquanto
presença encarnada pela passista de escola de samba. Iniciadas as preparações entre
quadra, rua e barracão sempre um ano antes do carnaval acontecer, se tem o ponto de
partida para que ele, samba, se transforme em desfile num movimento que se espraia
pela cidade. A passista que faz o carnaval é corpo que transita pela cidade, é estudante
e artista, é ela (se vendo nas outras passistas da sua ala) e é eu. É ela/eu .

O desfile de escola de samba da cidade do Rio de Janeiro, com o reconhecimento e


grandiosidade apoteótica tal qual conhecemos hoje, além da própria evolução da

2 Ver os livros CAVALCANTI, M. L. V. O rito e o tempo: ensaios sobre o carnaval. Rio de Janeiro: Civiliza-
ção Brasileira, 1999. e CAVALCANTI, M. L. V. Carnaval Carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro:
FUNARTE, UFRJ, 1994.
697
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

festa, também é fruto dessas transformações urbanas que ocorreram ao longo das
décadas desde seu surgimento na primeira metade do século XX. Um exemplo é o
tamanho dos carros alegóricos cada vez maiores que foi possibilitado com a constru-
ção do sambódromo, assim como a intensificação da cobertura midiática que se deu
a seguir. O carnaval, assim como a própria cidade do Rio de Janeiro, abarcou mudan-
ças estruturais e visuais que reorganizaram seu desenvolvimento. No passado, antes
da construção da Avenida Marquês de Sapucaí, os desfiles do hoje conhecido Grupo
Especial ocorreram em avenidas de tráfego regular, como a Presidente Vargas e a Rio
Branco , ambas no Centro do Rio de Janeiro.

Ao olharmos hoje para a Avenida Presidente Vargas na altura da igreja da Candelá-


ria nos deparamos com uma rua movimentada por carros que passam ininterrup-
tamente, param só para que pessoas atravessem, e seguem seu fluxo novamente.
Olhar essa imagem da mesma Avenida seria completamente diferente se estivésse-
mos algumas décadas atrás, mais especificamente no carnaval na década de 1960.
Na mesma vista poderíamos observar, em vez de carros comuns, figuras inimaginá-
veis, como num sonho que se tem acordado. Grandes alegorias, grandes carros ale-
góricos e pessoas, muitas pessoas, corpos transbordando a potência de sua alegria
efêmera, assim como a própria composição e matéria do carnaval.

Não estamos de corpo presente no carnaval na década de 1960, mas o que propo-
nho é que o espaço da Avenida Presidente Vargas ainda abarca em si a energia e o
rastro dos brincantes que por ali passaram. O que esse espaço em diferentes tempos
nos conta é o lastro, o rastro que fica com a passagem dos corpos. É uma camada
invisível, sensível, que compreende escuta entre o que passou e o que está por vir
tendo como liga o que se desenvolve pelo e no corpo entre memória e atualização.
Corpos dos que por ali passaram, dos que por ali passam e dos que ainda estão por
vir, camadas de tempo entre ficção e realidade.

Fotos da abertura da exposição Percursos na Pequena


Galeria do Centro Cultural Light em 2019/ Fonte: arquivo pessoal.

698
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Detalhe da montagem de Brilho no Asfalto na exposição Percursos na


Pequena Galeria do Centro Cultural Light em 2019 / Fonte: arquivo pessoal

Essas diferentes camadas de tempo que convivem nas memórias desta avenida afe-
taram poeticamente minha pesquisa e criação artística resultando na performance
que gerou uma série de fotografias chamada Brilho no Asfalto. Este trabalho compôs
a exposição coletiva Percursos na Pequena Galeria do Centro Cultural Light entre os
meses de fevereiro e março de 2019, a convite do curador Thiago Fernandes. Entre
reinvenções do espaço e tempo sobrepostos em camadas, a exposição que ocorreu
no período do carnaval estava situada na rua ao lado da Avenida Presidente Vargas
principal via de acesso ao bairro, onde o público da exposição provavelmente pas-
sou para chegar até a Pequena Galeria onde esteve presente em meio aos rastros de
um corpo que por ali passou em performance.

Em Brilho no Asfalto carrego junto ao meu corpo uma vestimenta construída com
uma estrutura de rede, inspirada no modo como os vendedores ambulantes da ci-
dade carregam suas mercadorias no interior do trem. A estrutura que desenvolvi era
composta de aproximadamente 80 saquinhos de plástico que abrigavam 2 quilos
de purpurina prata distribuída entre eles, e que quando rasgados, desprendiam a
purpurina. Iniciei o rasgar dos sacos pelas minhas costas onde os olhos não alcan-
çam para, depois, passar aos sacos da frente do corpo. A purpurina que escorre e
desliza pelo meu corpo chega ao chão e ali não faz moradia. Algumas aderem ao
suor e se mostram como pinceladas de uma tinta prata. Milhares de pequenos grãos
brilhantes avançam, bailam ao vento como os milhares de brincantes que brilharam
outrora em passagem naquele asfalto. Pequenas nuvens cintilantes no ar. Derramo a
purpurina ao longo da Avenida em estado de passagem, indicando de forma breve
o caminho onde os outros corpos passaram carnavalizados.

699
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fotos: Brilho no Asfalto Performance, objeto vestimenta, fotografias impressas em papel 100%
algodão tinta pigmentada no tamanho 20x30cm Mery Horta 2018/2019 / Avenida Presidente
Vargas / Colaboradores: Ramon Castellano e Paula Nogueira / Fonte: arquivo pessoal

Invenção e memória
O corpo que tem poros abertos ao que está em torno de si, reverbera por meio da
performance suas memórias e reinvenções. A performance compreende uma atua-
lização do corpo, uma presentificação do tempo, uma relação entre coisas (corpos-
-objetos-espaço), uma retroalimentação dos afetos através da dança, do movimen-
to. Minha proposta e ato de passar pela Avenida Presidente Vargas em performance
é um modo de evocar a energia carnavalesca que por ali passou, alimentando meu
corpo com essa energia e retornando a energia transmutada para a avenida. Tornar
essa memória visível, materializada poeticamente, deixando um rastro de brilho de
purpurina no asfalto. Rastro que não se fixa, assim como o tempo do carnaval, vive
em fluxo constante e é pontuado no desfile que passa pela Avenida como um tempo
vivo. Segundo a antropóloga Maria Laura Viveiros:

Renascendo a cada ano de suas próprias cinzas, o desfile celebra a finitude do corpo,
o aqui e o agora, o tempo que passa em seu inexorável fluxo, junto com o desfile
de uma escola. Ele alimenta, com pura energia carnavalesca, a perspectiva de sua
própria morte reinstaurada a cada ano e projetada no horizonte desconhecido da
história (CAVALCANTI, 1999, p. 86).

700
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

No desfile de carnaval o corpo carrega o brilho, seja no olhar estonteante do brin-


cante, seja na fantasia ou alegoria, no samba da passista ela/eu que risca a Aveni-
da. Esse brilho cujo findar do desfile transformou ativamente em memória será re-
montado no próximo ano como um grande quebra-cabeça, seja no brilho do carro
alegórico que mal saiu da Avenida e já está se desfazendo ou é desfeito para que
um novo surja de sua estrutura, ou reaproveitado em partes por escolas de outros
grupos, ou no brilho que morre para ressurgir como em todo carnaval. Vejo o brilho
em minha pesquisa como uma característica do fugidio, da imagem que comove já
anunciando sua perda, do lampejo. Nesse sentido o brilho atua como uma metáfora
para o instante temporal, considerando a perspectiva fenomenológica de Gaston
Bachelard . Desta forma, essa cintilação que é o instante pontuando o tempo existe
no momento efêmero da performance.

Fotos: Brilho no Asfalto Performance, objeto vestimenta, fotografias impressas em papel 100%
algodão tinta pigmentada nos tamanhos 15x21cm, 60x40cm Mery Horta 2018/2019 / Avenida
Presidente Vargas /Colaboradores: Ramon Castellano e Paula Nogueira / Fonte: arquivo pessoal

A performance ocorreu em uma manhã de domingo no outono de 2018. Na Avenida


Presidente Vargas a alguns metros próximo da igreja da Candelária. Avançando no
sentido Zona Oeste, o corpo da artista/passista é banhado pela memória de outros
corpos e outros sambas de passistas que poeticamente brilharam ali. A purpurina

701
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

que banha meu corpo durante a performance ativa esse emaranhado de memórias.
Grande parte escorre pelo corpo e toca o chão da Avenida que por um instante é
passarela de sonho entre asfalto, carros e ônibus. E após a passagem do corpo em
performance, o rastro da purpurina segue seu fluxo e voa com o passar dos carros
não alegóricos. A purpurina vai infimamente grudada no grande pneu do ônibus
sentido Zona Oeste, e quem sabe chegue ao destino de Padre Miguel, chegue lá
como brilho da performance que vem da memória e do corpo do carnaval. A foto-
grafia da performance materializa essa dimensão de afeto que esteve presente na
breve passagem do corpo pela Avenida e, assim, atualiza outra camada de memória.

Para a realização de Brilho no Asfalto tive como referência criativa a intervenção urbana
Até onde o mar vinha. Até onde o Rio ía realizada pelo artista Guga Ferraz e materializada
também em fotografia. Neste trabalho o artista utiliza sal grosso para demarcar o limite
onde a água do mar ia antes de acontecerem os aterros na cidade do Rio Janeiro, levan-
do a reflexão aos limites e transformações da cidade. O assunto que abordo também
passa pelas transformações da cidade, diz respeito à memória do corpo do carnaval que
ecoa nesse espaço, através da relação de potência e transformação entre eles.

Foto: Até onde o mar vinha, até onde o Rio ia Guga Ferraz 2014 / Fotógrafo: desconhecido /
Fonte: Lab IT Disponível em: <http://intervencoestemporarias.com.br/intervencao/ate-onde-o-
mar-vinha-ate-onde-o-rio-ia/>. Acesso em 11 dez. 2018.

Tempo vivo
Esse corpo d’ela/eu comporta muitos outros corpos em si através de suas memórias
sendo constituído também de memória coletiva, num jogo de compartilhamento,
atualização e reinvenção. Segundo o autor Maurice Halbwachs:

Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda
que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que

702
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

somente nós vimos. Isto acontece porque jamais estamos sós (...) sempre levamos
conosco e em nós certa quantidade de pessoas que não se confundem (HALBWA-
CHS, 2003, p. 30).

Não estamos sós, pois somos parte de uma memória social, temos agregado em
nosso pensamento e ato o que muitas vezes teve origem em outros corpos. Essas
diversas vivências e memórias que estão no corpo se entrecruzam e viram um ema-
ranhado onde muitas vezes não se pode distinguir o início, o meio e o fim, ou o que
é real e imaginado. Assim, segundo o literário Bartolomeu Campos de Queirós, “a
memória protege tanto o vivido como o sonhado” (QUEIROS, 2009, p. 44), e é nessa
qualidade da memória que a criação artística atua, no vão, na brecha entre realidade
e sonho. Riscar o chão da poesia com purpurina, tornar possível ver, mesmo que
por um instante, o rastro dos corpos labirínticos que no mesmo espaço, em épocas
distintas, beberam da fonte do carnaval e de sua energia efêmera.

A relação do desfile de escola de samba com o tempo é íntima e viva. O corpo em


passagem, seja pela Avenida em desfile ou em performance, evoca a dimensão efê-
mera do tempo, o instante. A poética da passagem conjuga tempo, espaço e corpo.
Considero o corpo em passagem pelo espaço como aquele que deixa um rastro,
algo que se desprende e marca uma presença. E é nessa potência da perda, do que
cai no chão e se desprende, que mora a força efêmera tanto do carnaval quanto da
arte da performance. Um pedaço da fantasia, do carro alegórico que cai no desfile ou
do punhado de purpurina que se esvai na performance. Ambos conjugam a dimen-
são do real e da ficção no emaranhado de memória e ato.

Foto: Brilho no Asfalto Performance, objeto vestimenta, fotografia impressa em papel 100%
algodão tinta pigmentada no tamanho 60x40cm Mery Horta 2018/2019 / Avenida Presidente
Vargas / Colaboradores: Ramon Castellano e Paula Nogueira / Fonte: arquivo pessoal

703
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O carnaval, mesmo sendo uma festa cíclica, pontua o início das atividades do ano
corrente, pois há o hábito de pensar que o ano se inicia após o carnaval, uma quebra
da ordem na passagem do tempo que reinicia o ano. Como o autor Danilo Alves
Bezerra nos mostra ao falar sobre o carnaval no século XX: “A história passou a com-
preender as festas, e o carnaval em específico, como práticas capazes de explicar
o mundo na sua exceção, na fissura do cotidiano, na inversão e quebra da ordem,
enfim, como parte da história humana” (BEZERRA, 2017, p. 24). Essa fissura do co-
tidiano que o autor fala é a potência de quebra da realidade, inversão de práticas
que o carnaval instaura na vida das pessoas, onde ficção e realidade assumem po-
sições indistintamente complementares e nos reorganizam brevemente enquanto
brincantes. Por um curto período de tempo se torna comum ver brilho nos olhos,
na purpurina que está decorando o rosto, ou caída no chão, é comum ver o brilho
nas pessoas, no asfalto. Brilho no asfalto, uma brincadeira com o espaço e o tempo.
Riscar o duro chão da poesia...

Referências
BACHELARD, Gaston. A intuição do instante. Campinas, SP: Verus Editora, 2010.

BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espíri-
to São Paulo: Martins Fontes, 2006.

BEZERRA, Danilo Alves. Os carnavais cariocas e sua trajetória de internacionali-


zação (1946-1963). Jundiaí SP: Paco, 2017.

CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. O rito e o tempo: ensaios sobre o car-
naval. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

__________Carnaval Carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: FUNARTE,


UFRJ, 1994.

FERRAZ, Guga. Até o mar vinha, até onde o Rio ia. Disponível em: <http://interven-
coestemporarias.com.br/intervencao/ate-onde-o-mar-vinha-ate-onde-o-rio-ia/>.
Acesso em 11 dez. 2018.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003.

QUEIROS, Bartolomeu Campos. Tempo de voo. São Paulo: Comboio de Corda, 2009.

704
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Paulo Ivan Rodrigues Vega Júnior1 and


Nivalda Assunção de Araújo2

Ars Longa, Vita Brevis: um recorte simbiótico entre arte e vida


Ars Longa, Vita Brevis: a symbiotic snippet between art and life

Resumo
O presente texto é um amálgama de estilhaços da tese de doutorado “ARS LONGA,
VITA BREVIS: uma proposta simbiótica entre arte e vida”, apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Artes (PPG-ARTES) da Universidade de Brasília (2018), com
características de artist statement, escrito de artista e tese. O texto, índice da pes-
quisa/vivência realizada na forma de uma proposta simbiótica entre arte e vida,
compila os principais questionamentos enfrentados no desenvolvimento da tese
supracitada bem como no desenvolvimento de sua proposta poética centrada na
autobiografia, memória e nas práticas artísticas iniciadas na Arte Conceitual dos
anos 1960/1970 e desdobradas nas práticas artísticas da Arte Neo-Conceitual/Pós-
-Conceitual. A arte como vida e a vida como arte, arte e vida em simbiose como
uma possibilidade de interpretação do mundo e do estar vivo.
Palavras-chave: arte e vida, arte conceitual, arte neo-conceitual/pós-conceitual,
autobiografia, memória.

Abstract
This text is an amalgam of splinters from the doctoral dissertation “ARS LONGA, VITA
BREVIS: a symbiotic proposal between art and life”, presented to the Graduate Pro-
gram in Arts (PPG-ARTES) of the University of Brasília (2018), with characteristics of
artist statement, artist writing and thesis. The text, an index of the research/experi-
ence performed in the form of a symbiotic proposal between art and life, compiles

1 Artista visual e professor. Doutor em Artes (2018) pelo Programa de Pós-Graduação em Artes (PP-
G-ARTES) da Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Arte (2013) pela mesma instituição. Licencia-
do Plenamente em Educação Artística – Habilitação em Artes Plásticas (2008) pela Universidade de
Caxias do Sul (UCS) Seus principais temas de interesse ssão: Arte Conceitual - anos 1960/1970; Arte
Contemporânea; Arte Neo-Conceitual/Pós-Conceitual; Autobiografia; Identidade; Memória. Conta-
to: paulovegajr@gmail.com
2 Artista visual e professora. Doutora em Arts et Science de L’art pela Université Paris 1 (Panthéon-
-Sorbonne) (2008). Mestre em Art Plastiques et Appliquées pela mesma instituição (2004) e Mestre
em Arte pela Universidade de Brasília (1999). É Professora Adjunto 3 da Universidade de Brasília
(UnB). Atua na área de Arquitetura e Artes, com ênfase em poéticas contemporâneas. Contato: ni-
valdaassucao@gmail.com

705
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

the main questions faced in the development of the aforementioned doctoral dis-
sertation as well as in the development of its poetic proposal centered on autobiog-
raphy, memory and artistic practices initiated in the Conceptual of the 1960s/1970s
and unfolded in the artistic practices of Neo-Conceptual/Post-Conceptual Art. Art
as life and life as art, art and life in symbiosis as a possibility of interpretation of the
world and of being alive.
Keywords: art and life, conceptual art, neo-conceptual art/post-conceptual art, au-
tobiography, memory.

Pequeno prefácio
Esse texto3 é, como o próprio título diz, um recorte, um recorte focado na simbiose
entre arte e vida a partir de minha tese de doutorado, “ARS LONGA, VITA BREVIS: uma
proposta simbiótica entre arte e vida”, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Artes (PPG-ARTES) da Universidade de Brasília (2018). A tese foi guiada por citações
de Allan Kaprow, E. E. Cummings, Laurie Anderson, Maria Skłodowska-Curie, Naomi
Kawase, Wisława Szymborska e Witold Gombrowicz, sendo, respectivamente, elas:

1. The line between art and life should be kept as fluid, and perhaps indistinct, as possible.

The line between the Happening and daily life should be kept as fluid, and perhaps
indistinct, as possible.

2. [i carry your heart with me(i carry it in]

i carry your heart with me(i carry it in

my heart)i am never without it(anywhere

i go you go,my dear;and whatever is done

by only me is your doing,my darling)

i fear

no fate(for you are my fate,my sweet)i want

no world(for beautiful you are my world,my true)

3 Agradecemos aqui, a Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF) pela viabilização
deste trabalho e da artist talk no Encontro Internacional “#18.ART: DA ADMIRÁVEL ORDEM DAS COISAS:
arte, emoção e tecnologia”, bem como pela possibilidade de participação na exposição EmMeio#11.0.

706
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

and it’s you are whatever a moon has always meant

and whatever a sun will always sing is you

here is the deepest secret nobody knows

(here is the root of the root and the bud of the bud

and the sky of the sky of a tree called life;which grows

higher than soul can hope or mind can hide)

and this is the wonder that’s keeping the stars apart

i carry your heart(i carry it in my heart)

3. This is the time. And this is the record of the time.

4. Niczego w życiu nie należy się bać, należy to tylko zrozumieć.

5. A vida é uma série de aventuras milagrosas desconhecidas. Enquanto viver-


mos, sempre continuaremos encontrando tantos elementos e emoções da
vida; adversidade, dificuldades, alegria, felicidade, etc... Encontramos todos es-
ses elementos simplesmente porque estamos vivendo nossas vidas de milagre.

6. Poniedziałek – ja.

Wtorek – ja.

Środa – ja.

Czwartek – ja.

707
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

7. Trzy słowa najdziwniejsze

Kiedy wymawiam słowo Przyszłość,

pierwsza sylaba odchodzi już do przeszłości.

Kiedy wymawiam słowo Cisza,

niszczę ją.

Kiedy wymawiam słowo Nic,

stwarzam co, co nie mieści się w żadnym niebycie.

O texto que segue é um amálgama de estilhaços, segundo a perspectiva da teoria da


citação e as operações de leitura – recorte, colagem, solicitação, acomodação, grifo
e ablação – de Antoine Compagnon (1996), que compõem o volume da tese fruto
de cinco tentativas frustradas de produção de uma tese de doutorado e, portanto,
composto pelos fantasmas dos fracassos e frustrações que o fizeram ser o que é. A
primeira tentativa de tese era baseada na tessitura de uma trama que intercalava a
história do mundo com a minha história. A segunda e terceira tentativas eram ba-
seadas em gravações de áudio. A quarta tentativa era uma alfabiografia. A quinta e,
então, última tentativa configurou-se como um índice da pesquisa/vivência e pro-
posta simbiótica arte/vida, a tese, em si, propriamente dita. Ou seja, ela é um artist
statement, um escrito de artista, por ser uma apresentação em suporte da minha
atividade, e tese, por ser uma proposta de discussão acerca da especulação de de-
terminado tópico, características também presentes nesse texto.

Amálgama de estilhaços
Cronologicamente, esta pesquisa/vivência começou com uma ideia abandonada, uma
continuação direta do que desenvolvi no mestrado4, uma proposta de ação na epider-
me da cidade, com intervenções urbanas e projeções, a partir do meu, então, nome
fictício “Paulo Ivan Ceglinski Cardoso Rodrigues Vega”. Logo após o abandono, deixei-
-me guiar pelo fluxo dos acontecimentos e realizei alguns trabalhos, tanto duradouros
quanto efêmeros, como desenhos, desenhos/instalações in-situ e performances.

4 Disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/14889

708
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Logo, vieram duas playlists no YouTube5 e um filme feito a partir de uma found foo-
tage familiar6, entre outros. Mas, antes de tudo isso, antes de construir para depois
abandonar minhas fórmulas e estratégias recorrentes, sempre houve o interesse em
uma parte histórica familiar quase que completamente desconhecida e a urgência
em mergulhar nela, os Ceglinski, em conhecer e reconhecer, na história dos outros, a
minha história e fazer de mais de mim por aprender sobre o outro.

Se tudo que é sólido desmancha no ar, foi necessário, em minha produção artísti-
ca, solidificar para, de novo, desmanchar no ar. Ao olhá-la em retrospecto, para as
ideias abandonadas, não desenvolvidas matericamente, mas presentes e, portanto,
existentes mentalmente, essa operação de desmaterialização, de desfazimento no
ar, atingiu seu ponto mais alto com a performance Laquê (2016). Um mergulho em
uma nuvem aromática composta pelo odor memorialístico da única Ceglinski, de
registro, que conheci.

Arte como prática/processo e não como produto/resultado, sempre foi um foco em


minha trajetória. Sempre me ative mais às instâncias anteriores à materialização de
uma ideia do que a materialização em si própria, porém nem sempre de maneira
consciente. A criação de obras/trabalhos de fácil inserção no circuito artístico, co-
mercial ou expositivo, nunca foi uma preocupação como o comprometimento e fi-
delidade às minhas ideias. A preservação do que é matérico/tangível também nunca
foi uma preocupação, perdi trabalhos por má conservação, pela falta de interesse
em reavê-los, pela vontade impulsiva de doá-los a alguém, por outras razões.

Dentro da concepção da minha proposta simbiótica entre arte e vida, as redes sociais
desempenharam um papel de grande importância. Instagram com o recurso Insta-
gram Stories e Facebook com o recurso Facebook Stories. Da rejeição destes recursos
à incorporação deles em meu cotidiano, mais reflexões sobre a simbiose entre arte e
vida, passei a considerar minhas postagens como manifestações da minha proposta.
Disponibilizo fragmentos banais da minha vida e o que a circunda e permeia, álbuns e
músicas que estou ouvindo; deslocamentos e locais frequentados; refeições; questiono,
por exemplo, se devo ou não cortar os cabelos. O ponto crucial para ter passado a con-
siderar minhas postagens via Stories como manifestações da minha proposta foi, exata-
mente, o caráter paradoxal delas. Em um mar de compartilhamentos, por um lado, elas
são insignificantes e beiram o ponto de dissolução da identidade; por outro lado, elas
reivindicam a legitimação da experiência compartilhada e afirmam a identidade. Essas
postagens, em concordância e/ou dissonância no espaço e no tempo habitado pelos
demais usuários, passam a integrar uma trama mundial de experiências humanas enca-

5 France, été 2015 (deuxième moitié de Juin et première moitié de Août): https://www.youtube.
com/playlist?list=PLOTUyyExm0Zj41ryRZgVVkkxTHfC29CF7
6 28, 29 e 30... Ah! E, também, 27 do oito de 1988.: https://youtu.be/aXCAvcxmDiw

709
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

deadas, onde podemos ver variações de determinados tipos de experiências, de acor-


do com os contextos de onde se originam, permitindo a contemplação da intrincada
– quer em sua beleza, riqueza ou vicissitudes – experiência e subjetividade humanas.

É o reflexo de um pensamento pregresso, o mundo como uma grande partitura


sem fim. Tudo que ocorre como uma notação musical inserida nessa grande pauta
e como isso pode ser espelhado e replicado em torno da circunferência terrestre. É
como pensar que quando estou escovando os dentes, quantas outras pessoas tam-
bém estão e o ato da escovação começa e termina em diferentes lugares ao redor do
mundo. Eu termino a minha escovação aqui, no Brasil, e alguém, no exato momento
continua a tocar a música da escovação, por exemplo, em algum lugar da Mongólia
ou onde quer que seja. Quantas pessoas morrem e quantos entes recebem a notícia
ao mesmo tempo e, apesar das diferenças entre nós, experimentamos o choro, a dor,
a raiva e tantas outras emoções, por exemplo, relacionadas à morte.

Se postar em redes sociais, temporária ou fixamente é, além do mencionado, estar


constantemente redigindo o próprio obituário, tecer-se e se desfiar constantemente
é, também, colecionar e arquivar momentos para, talvez, voltar a eles. Diante disso,
volto-me para o ato de colecionar, sempre presente em minha vida. Das sementes
de girassol furtadas, mantidas como tesouros no bolsão frontal do tapa-pó do jardim
de infância; na grande sacola plástica repleta de embalagens de remédios consumi-
dos; no fascínio pela coleção de moedas do meu pai; na coleção de latas de cerveja e
refrigerante; nas coleções de cartões telefônicos, cédulas, selos postais... Nos diários
escritos de maneira descontraída aos escritos obsessivos com registros de horas, mi-
nutos e segundos; na coleção de ingressos de cinema e teatro; na coleção de ves-
tígios de acontecimentos cotidianos em forma de bilhetes, embalagens de balas e
chicletes, flores e folhas secas, fotografias analógicas, panfletos distribuídos nas ruas
e tantos outros objetos banais... Na coleção de CD’s e livros; no acúmulo de cabelos,
pele e unhas cortados; no armazenamento de fotografias digitais; na coleção de car-
tões postais; na mala lotada de souvenirs convencionais e nem tão convencionais de
viagens... Nesse ato, que perpassa a minha existência, diante de tais recursos digitais,
cada vez menos se fez presente a necessidade de fisicalidade e cada vez mais se fez
presente a necessidade da experiência.

A experiência do estágio doutoral7 possibilitou a imersão em uma lacuna da pesquisa


que há muito queria preencher. Pude fazer o movimento contrário de meus trisavôs,
do Brasil para a Polônia, bem como entender o contexto do qual se afastaram, buscar
suas origens e, dadas as devidas diferenças e particularidades, pude colocar em exer-

7 Estágio doutoral realizado, de março a outubro de 2017, na Universidade de Varsóvia (UW), no


Instituto de Estudos Ibéricos e Ibero-americanos (IBERYSTYKA), sob orientação do Prof. Dr. Hab. Jerzy
Mazurek, com financiamento do Programa de Doutorado-Sanduíche no Exterior (PDSE) da Coorde-
nação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

710
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

cício uma outra vida. Não no sentido de ficcionalização, mas no sentido de abertura,
alteridade e experimentação. Ao longo do período de oito meses virei outro, mas sem
deixar de ser o mesmo. O contato com inúmeras pessoas exerceu grande influência
na minha proposição de simbiose entre arte e vida. Passei a vislumbrar, dentro deste
exercício de outra vida, esse fluxo de idas e vindas de interações e relacionamentos
interpessoais como uma espécie de arte do encontro. Essa perspectiva me permitiu
ver mais detalhadamente como essas conexões aconteciam, como diferentes pessoas
se ligavam a diferentes traços da minha personalidade e como afetávamos uns aos ou-
tros. É sobre a importância do sentir o quanto se é importante para as vidas daqueles
que encontramos e conhecemos e daqueles que nunca nem demos devida proporção
e vice-versa. É o ato de deixar algo de nós e receber algo do outro a cada vez que se
encontra uma outra pessoa. É, repito, a contemplação da intrincada – quer em sua
beleza, riqueza ou vicissitudes – experiência e subjetividade humanas.

Assim, interesso-me tanto pelas experiências banais e cotidianas como pelas experi-
ências extraordinárias e fantásticas. Por estar aberto a todo e qualquer cruzamento
que venha a me acometer, minha proposta torna-se um trabalho não só sobre mim,
mas sobre qualquer ser humano que compartilhe do fato de estar e viver/ser e estar
em um determinado espaço e tempo, já que a nossa existência é fruto de experiên-
cias do espaço/tempo, do estar e viver e do ser e estar. Assim, a simbiose arte e vida
não é um privilégio meu, mas uma possibilidade para quem quer que tenha essa in-
terpretação do mundo e de estar vivo. Assim, não mais produzo matericamente para
ser artista, mas penso e vivo. Entretanto, nada me impede que amanhã, eu mude de
ideia e decida pintar.

Então, se a linha entre arte e vida deve ser mantida mais fluida, e talvez indistinta,
quanto possível e se eu carrego o seu coração no meu coração através do tempo,
uma sequência de gravações de passado-presente-futuro, da raiz da raiz ao céu do
céu da árvore chamada vida, nada, em todo o espectro de aventuras milagrosas
dessa árvore, deve ser temido: da adversidade à felicidade, eu ser eu e tu ser tu, da
segunda à quinta-feira, apenas compreendido. E, para compreender é preciso ex-
perimentar, pensar, vivenciar, viver... Para depois, morrer, que nada mais é do que a
última instância da desmaterialização, desmanchar a nossa solidez no ar.

Referências
Anderson, L. (1982). Big Science [CD]. Nova Iorque: Nonesuch Records.

Anderson, L. (1982). From the air [CD]. In Big Science [Faixa 1., 4min., 29 seg.]. Nova
Iorque: Nonesuch Records.

Anderson, L. (1982). From the air. Nova Iorque: 1982.

Compagnon, A. (1996). O trabalho da citação. Belo Horizonte: Editora UFMG.

711
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Cummings, E. E. (2016). E. E. Cummings: complete poems 1904-1962. Nova Iorque:


Liveright Publishing.

Curie, È. (1981). Madame Curie. Paris: Éditions Gallimard.

Gombrowicz, W. (2016). Diary. New Haven: Yale University Press.

Kaprow, A. (2003). Essays on the blurring of art and life expanded edition.
Oakland: University of California Press.

Lippard, L. (1997). Six years: dematerialization of the art object from 1966-72.
Oakland: University of California Press.

Maia, C., & Mourão, P. (2011). O cinema de Naomi Kawase. Rio de Janeiro: CCBB RJ

Szymborska, W. (2011). Poemas. São Paulo: Companhia das Letras.

712
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Regilene A. Sarzi Ribeiro1

Videocorpo, intimidade e vigilância: os interstícios das tecno-


imagens em Mona Hatoum
Video body, intimacy and vigilance: the interstices of techno-images in Mona
Hatoum

Resumo
Trata-se de um estudo sobre as tecno-imagens e as relações entre corpo, vídeo,
a vigilância e a intimidade na arte contemporânea. O objeto é investigar como
se constroem as diferentes corporalidades a partir da apropriação de fotogra-
fias, filmes, vídeos, raios-x, scanners e imagens numéricas. Para fundamentação
teórica optou-se pelo pensamento de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Vilém
Flusser; Hans Belting e Rosalind Krauss. O vídeo em sinergia com o corpo tem
muito a revelar, face à sociedade digital e imagética controlada pelas tecno-ima-
gens. Em 1980, Mona Hatoum realizou uma experiência-video que causou estra-
nhamento e aversão nos participantes. Na obra Don’t Smile You Are On Camera,
diferentes imagens de raios-x e órgãos genitais eram sobrepostos às imagens
dos corpos do público, que provocou uma experiência íntima e pessoal, entre o
ser vigiado e exposto, em público.
Palavras-chave: tecno-imagens, arte do vídeo; videocorpo; Mona Hatoun

Abstract/resumen/resumé
It is a study of techno-images and the relationships between body, video, surveil-
lance and intimacy in contemporary art. The object is to investigate how the dif-
ferent corporealities are built from the appropriation of photographs, films, videos,
x-rays, scanners and numerical images. For theoretical foundation was chosen the
thought of Michel Foucault, Gilles Deleuze and Vilém Flusser; Hans Belting and Ro-
salind Krauss. That video in synergy with the body has much to reveal, given the
digital and imaginary society controlled by techno-images. In 1980, Mona Hatoum
conducted a video experiment that caused awkwardness and dislike in the partici-
pants. In Don’t Smile You Are On Camera, different x-ray images and genitals were

1 Pós-doutora em Artes (IA/UNESP/SP), doutora em Comunicação e Semiótica (PUC/SP). Docente


permanente do Programa de Pós-Graduação em Mídia e Tecnologia e da graduação em Artes Visuais
da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação/UNESP/Bauru/São Paulo, Brasil. Líder do grupo
de pesquisa LabIMAGEM – Laboratório de Estudos de Imagem/CNPq. Pesquisadora em arte contem-
porânea, história da arte do vídeo e da arte audiovisual no Brasil e na América Latina.

713
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

superimposed on the images of the public’s bodies, which provoked an intimate and
personal experience between being watched and exposed in public.
Keywords: techno-images, video art; video body; Mona Hatoun

Videocorpo, intimidade e vigilância


O arquivo fotocinematográfico passará a atuar, após os anos de 1980, nos intervalos
entre a obra e a sua extensão temporal (Costa, 2009). A operação de apropriação
de imagens do corpo já produzidas por dispositivos maquínicos, exames médicos e
processos de registro do corpo no campo da Ciência e da Medicina, resulta de uma
cultura de vigilância, documentação, controle e normalização do corpo.

O vídeo se revela um entre linguagens, um entre meios cujo registro do corpo é a


presença de si mesmo e do outro. Um exercício de ver e ser visto que legitima o
narcisismo tanto do artista quanto do público (Kraus, 1978). Quando o vídeo surgiu
como arte nos anos de 1970, a crítica e historiadora da arte Rosalind Kraus1 relacio-
nou a prática do vídeo ao mito de Narciso e fez uma análise acentuada do compor-
tamento psicológico e cultural da autorreferencialidade nas obras de vídeo cujos
protagonistas são os próprios artistas e depois estendeu as relaçoes de ver e ser
visto para as questoes de audiência. Tal como um exame, o vídeo foi explorado como
meio e veículo das mais variadas formas, de registro das performances a dispositivo
performático.

A hipótese que sustentamos, a partir desta pesquisa, é que o vídeo ultrapassa a


condição de dispositivo de registro da performance para se tornar um dispositivo
performático – um videocorpo. O vídeo na arte rompe, escancara e revela o que
está por trás das imagens produzidas pela Ciência ou Medicina e confronta a cultura
de vigilância, documentação e controle. A natureza desta pesquisa é bibliográfica e
documental, baseada em coleta de dados iconográficos, videográficos e materiais
bibliográficos. A análise e interpretação do corpus – a obra Don’t Smile You Are On Ca-
mera, da artista Mona Hatoum será pautada em referencial histórico-crítico. A meto-
dologia da pesquisa se apoiará nos instrumentos de análises estéticas, comparativas
e leitura iconográfica com vistas ao estudo da mediação, produção e recepção do
objeto artístico. As análises são pautadas por referenciais filosóficos e sociológicos
cujos autores discutem as questões existenciais; experimentais e as transformações
estéticas, sociais, políticas e culturais que envolvem os processos de produção e frui-
ção das tecno-imagens.

Neste campo, interessa-nos a visão do filósofo francês Michel Foucault sobre o poder
implicado na disciplina cujo instrumento do exame provoca domesticação e objeti-
ficação da subjetividade. Os exames médicos surgem como estratégia política para
controle e domínio de indivíduos e instituições. Foucault afirma:

714
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

É o poder de individualização que tem o exame como instrumento fundamental. O exame é vigi-
lância permanente, classificatória, que permite distribuir os indivíduos, julgá-los, medi-los, locali-
zá-los e, por conseguinte, utilizá-los ao máximo. Através do exame, a individualidade torna-se um
elemento pertinente para o exercício do poder (Foucault, 2013, p.182).

Na virada do século XX, as novas imagens do corpo causam estranheza e impacto,


invadem a privacidade dos corpos e expõem o si mesmo. Em 1907, os raios X eram
uma novidade que escancara as relações entre visão e legibilidade do corpo.

Quando surgem imagens de partes anatômicas de órgãos, a medicina se depara


com um olhar decodificador necessário para compreensão das imagens de raio-x,
com a necessidade de “uma linguagem capaz de nomear o que está sendo olhado,
acompanha as tecnologias de imageamento corporal” (Ortega, 2008, p.128). Os pri-
meiros encontros com o interior do corpo são marcados por sensações como estra-
nheza, transgressão e fantasmagoria e a agonia de não conseguir descrever o que
se estava vendo.

De igual forma, a vivência daqueles que conviveram com o surgimento das tecno-
logias de visibilidade do interior do corpo no início do século XX, revelam que o
conhecimento do interior do corpo se traduz numa ferramenta de conhecimento de
si mesmo. Relatos de pacientes dão conta que estes ao verem imagens de raios-x de
seu corpo declararam sentir-se mais instruídos sobre si mesmo. Até hoje, um século
depois, a imagem ou visão do interior do corpo continua ligada ao conhecimento de
si. Mas a possibilidade de ver o interior do seu próprio corpo ou a consciência de si
mesmo é acompanhada da perda da privacidade. As imagens do interior do corpo
são cada vez mais populares, sobretudo com os novos aparelhos de registro e visu-
alização do corpo. E mesmo aqueles que não tenham seus corpos registrados por
exames ou diagnósticos por imagens podem ter acesso via programas de televisão,
filmes e revistas.

Na atualidade, a intimidade é exposta diariamente nos “teatros dos eus” (Ortega,


2008) contemporâneos que ampliam os processos de externalização e espetacu-
larização das imagens do corpo. E embora as imagens de exames sejam íntimas e
pessoais estamos bastante acostumados com a sua presença, difusão e reprodutibi-
lidade. Mas há um século, era bem diferente. As pessoas se sentiam ultrajadas com
a exibição de imagens do seu interior e estas imagens eram resguardadas, não eram
públicas, eram privadas e íntimas, sendo zelosamente protegidas.

Dá para entender por que era assim. Quando o físico alemão Wilhelm Conrad Rönt-
gen descobriu os raios-x, em novembro de 1895, os costumes da era vitoriana repri-
miram a sexualidade e o corpo nu era uma vergonha, as pessoas tomavam banho
de mar e iam à praia vestindo roupas e pacientes femininas ficavam atrás de cortinas
nos consultórios médicos.

715
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Em O corpo incerto (2008), o espanhol Francisco Ortega, doutor em filosofia e profes-


sor de Medicina Social da UERJ, ressalta que os raios-x e a psicanálise são contempo-
râneos, ambos são “fenomenologias do interior” do humano e enquanto a psicanali-
se buscou anatomizar e visualizar o psiquismo, o raio-x visava anatomizar e visualizar
o interior do corpo. “A ligação com a sexualidade é comum nas fenomenologias da
interioridade. Os raios-x ameaçavam expor a parte mais secreta do corpo humano,
os órgãos genitais, especialmente os corpos femininos deviam ser zelosamente pro-
tegidos” (Ortega, 2008, p.130).

Naquele contexto, a sociedade vitoriana protegia a intimidade e defendia as frontei-


ras entre o público e o privado. O sujeito e a sua imagem eram duas instâncias bem
distintas e essa prática demarcavam os espaços internos e externos do corpo. As
imagens de raios X contribuem para extinguir essas fronteiras ou distinções morais e
sociais e a própria ideia de privacidade e intimidade. Mas, os raios X também causam
uma atmosfera de insegurança e desconforto. Ao ver o interior do outro, a sensação
é de posse do corpo do outro que se revela em sua intimidade.

No campo da medicina, a tecnologia foi recebida com entusiasmo. Os primeiros apa-


relhos para visualizar o interior dos órgãos datam de meados do século XVII. Mas é
no século XIX que surgem instrumentos de visualização como oftalmoscópio (1850),
laringoscópio (1857), e junto com eles outras ferramentas para visualizar a vesícula,
o estômago, o reto, a vagina, auxiliados pela invenção da lâmpada (1881) e da foto-
grafia. Todos esses instrumentos tinham como foco a visão do corpo e são herdeiros
da tradição anatômica na medida em que produziam concepções fragmentadas e
anatomizadas do corpo humano (Ortega, 2008).

Neste sentido, interessa ressaltar que os raios X não representam uma ruptura radi-
cal com relação a outros meios de visualização do corpo como as dissecações das
quais eram feitos desenhos anatômicos, pelo contrário a tradição anatômica cuja
ênfase sempre foi à visão e a legibilidade do interior do corpo se apropriaram de
mais um dispositivo eficaz de registro do corpo agora na era moderna.

No campo da ciência, os raios X não se restringiram ao campo biomédico, Francisco


Ortega (2008) relata que se difundiram rapidamente no campo sociocultural e jurí-
dico, passando pela religião e espiritualidade que se apropriam no final do século
XX das imagens do cérebro para mapear as áreas com possíveis relações com a es-
piritualidade fazendo surgir novos campos de investigação como a neuroteologia,
neuroesoterismo, entre outras.

Ortega afirma: “[...] nos mais diversos contextos culturais e científicos, os raios X pro-
movem uma mudança radical na imagem que os indivíduos tinham de si mesmos e
de seus corpos, um novo ideal de transparência que dissolve a opacidade e a densi-
dade do corpo [...]” (Ortega, 2008, p.134).

716
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Neste contexto, Márcio Alves da Fonseca (2011) comenta o funcionamento dos me-
canismos de exames e das relações com o poder e a disciplina no pensamento de
Michel Foucault e revela três procedimentos que permitem ao exame desempenhar
seu papel disciplinar:

Pelo primeiro deles, o exame realiza uma inversão de visibilidade no exercício do poder. [...] as
relações de poder devem permanecer ocultas [...] obrigam a uma visibilidade cada vez maior e
mais detalhada aqueles que submetem à sua atuação. [...] Em segundo, o exame também produz
um arquivo, cuja fonte não é outra que não os indivíduos sobre os quais atua. Com isso, ele faz a
individualidade entrar no campo documentário. Toda extração conseguida pelo exame é registra-
da e documentada. [...] A vigilância detalhada e permanente consegue extrair um grande número
de informações sobre o vigiado: seus hábitos, suas reações. [...] pelo exame, o individuo passa a ser
uma peça de um dispositivo estratégico [...] a individualidade é um objeto de descrição e docu-
mentação [...] pode ser controlada e dominada a partir de um processo constante de objetivação
e sujeição (Fonseca, 2011, p.61-62).

Destes três procedimentos, cabe destacar especialmente dois deles: o método de


dar visibilidade detalhada ao sujeito vigiado, medido e dominado, e a produção do
arquivo, registro, documento que revela sua individualidade e traços de sua identi-
dade. Associamos o primeiro procedimento às novas tecnologias de visibilidade do
corpo e o segundo, aos registros do corpo, matéria prima para os artistas na socie-
dade contemporânea.

Para Foucault (2013) existe um jogo disciplinar de poder que se estende socialmente por
meio dos dispositivos, aqui entendidos como as novas tecnologias de visualização ou
registros do corpo que geram enunciados científicos e discursos biomédicos que con-
trolam e normatizam o corpo dos indivíduos. O filósofo francês define dispositivo como:

[...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações ar-
quitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, propo-
sições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma: o dito e o não dito são elementos do dispositivo. O
dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos (Foucault, 2013, p.364).

Cumpre destacar que o conceito de dispositivo de Foucault e sua associação com


redes e rizomas foi o que permitiu a elaboração de um dos objetivos desta pesquisa:
buscar compreender a origem das imagens biomédicas e o seu papel social e políti-
co para relacioná-las aos registros do corpo e suas diferentes corporalidades na arte
moderna e contemporânea, cuja experiência estética transforma tais imagens em
provocações sinestésicas.

Em 1895, conforme ressalta Ortega, surgem três “fenomenologias do interior” que


paulatinamente desmistificam o corpo interior: os raios-x, o cinema e a psicanálise
e ressalta que o reconhecimento de tais dispositivos por historiadores marca “uma

717
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

profícua linha de investigação na interseção da história da medicina e das artes


visuais” (Ortega, 2008, p.82).

Para Ortega (2008), as tecnologias de visualização médica têm provocado à superes-


timação do interior do corpo humano como nunca antes foi observado em nossas
sociedades. De igual forma, Ortega defende que o processo de tornar visível o in-
visível, o interior do corpo, pode ser entendido como parte de uma transformação
social e cultural mais geral tal como a “virada somática da subjetividade” e destaca:

Essas tecnologias extrapolam o campo estritamente biomédico e se introduzem no campo socio-


cultural e jurídico. [...] mesmo quem nunca tenha se submetido a uma ressonância magnética se
encanta com as imagens médicas na televisão [...] As imagens coloridas de cérebros em funciona-
mento obtidas por PET-scanners tornaram-se tão populares como os retratos de Marylin Monroe
ou Mao Tsé-Tung realizados por Andy Wahrol, com as quais guardam certa semelhança cromática
(Ortega, 2008, p.71).

Gilles Deleuze (Mil Platôs) estendeu a analítica do poder de Foucault à atual socieda-
de informatizada, depois que seus estudos detectaram um colapso generalizado nas
instituições de confinamento e o surgimento de novas estruturas de dominação. Em
suma, pretendemos associar as instâncias do atual e virtual e o “corpo sem órgãos”
de Deleuze com o corpo virtual e os conceitos de arte da imersão de Oliver Grau; o
maquinismo de Deleuze e Guatarri (Mil Platôs) com as maquinas e a estética pura de
Vilém Flusser; e a constituição do sujeito e os “corpos dóceis” de Michael Foucault
à produção das imagens biomédicas visando tecer novas articulações entre Arte,
Ciência e Tecnologia.

No complexo e instigante texto Como criar para si um corpo sem órgãos, em Mil Pla-
tôs – capitalismo e esquizofrenia (1996), volume 3, Gilles Deleuze defende que o cor-
po sem órgãos é desejo, mutação, tessituras, motor de experimentação, continuum
ininterrupto, constante devir. “O CsO (corpo sem órgãos) é o campo da imanência do
desejo, o plano de consistência própria do desejo (ali onde o desejo se defini como
processo de produção sem referência a qualquer instância exterior, falta que viria
torna-lo oco, prazer que viria preenchê-lo)” (Deleuze, 1996, s/p).

O historiador de arte alemão Hans Belting ressalta que:

As novas tecnologias da visão introduziram certa abstração na nossa experiência visual, visto que
não mais somos capazes de controlar a relação existente entre uma imagem e seu modelo. Por
isso depositamos mais confiança nas máquinas visuais do que em nossos próprios olhos, chegan-
do a uma fé literal e cega nas tecnologias (Belting, 2006, p.50).

Deleuze afirma que se trata de construir para si mesmo uma pequena máquina pri-
vada para ramificar-se em outras máquinas coletivas compostas a partir de linhas

718
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

de fuga possíveis para vivenciá-las e ali na conjunção dos fluxos, fugir às programa-
ções (Flusser, 2008), a disciplina, ao poder. O corpo sem órgãos permitiria ao homem
novos movimentos de desterritorialização, novas derivações que romperiam com a
programação dos dispositivos gerando dentro destes próprios mecanismos de con-
trole e poder, a conexão com novos desejos, fluxos e experimentações.

Mona Hatoum
Mona Hatoum nasceu em 1952, no Líbano, mas vive e trabalha em Londres. A artista,
de familia palestina que se refugiou em Beirute em 1948, quando fugiam dos confli-
tos na Palestina, se formou em 1972, na Universidade de Beirute e depois em 1975,
foi viver na Inglaterra por ocasião da guerra civil do Líbano, que a impediu de voltar
para o Líbano.

Nos anos 80, a artista estuda na Slade School of Art, também em Londres, onde co-
nhece e convive com Stuart Brisley, que exerceu forte influencia na obra da artista.
Suas obras ganham caráter conceitual e revelam sua preocupação com o funciona-
mento das estruturas de poder e é nesta época também que surgem as performan-
ces carregadas de conteúdo político. Hatoum ganhou importantes premios como o
Prêmio Joan Miró (2011) Prémio Trobades Albert Camus (2018).

Em 1980, Mona Hatoum realizou uma experiência-video que causou estranhamento


e aversão nos participantes da obra Don’t Smile You Are On Camera (1980), Figura 1.

Figura 1. Mona Hatoum. Don`t Smile You`re on Camera! 1980. Registro de performance. Video (p&b,
som) 11`15. Fonte: https://www.timeout.com/london/art/mona-hatoum-the-more-people-can-
relate-to-the-stuff-the-happier-i-am

719
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Ao descrever esta obra Hatoum afirma:

[...] em minhas primeiras performances, eu invadia o espaço do publico e mostrava uma forma
exagerada de vigilância. Apontava uma câmera de video diretamente para o observador indivi-
dual, que submetia a exame e cujo rosoto ou corpo eu projetava num monitor acima de um palco.
Com isso criava uma sitaçao surreal, na medida em que mesclava essa imagem com raios X e com
imagens de partes do corpo nuas, fingindo que minha câmera podia ver através das camadas de
roupas, chegando até os ossos (Hatoum, 2015, p.16-17).

Em uma sala no Battersea Arts Centre, em Londres, a artista gravou e exibiu ao vivo, o
tórax, os pés e partes do corpo da plateia que, sentada, assistia ao video de frente à
câmera e um monitor de TV.

Figura 2. Mona Hatoum. Don`t Smile You`re on Camera! 1980. Registro de performance. Video (p&b,
som) 11`15. Fonte: https://pulitzerarts.org/program/screening-of-films-by-mona-hatoum/mona-
hatoum-dont-smile-youre-on-camera-1980/

Por meio de edição e montagem, diferentes imagens de raios-x e órgãos genitais


(Figura 2) eram sobrepostos às imagens dos corpos do público, que provocou uma
experiência íntima e pessoal, gerando relações entre a imagem corporal e a tecnolo-
gia, entre se ver, ver o outro e ser visto, ser vigiado e exposto, em público.

Nos frames do vídeo notamos claramente o constrangimento do público. Alguns


rostos sorriem frente ao desvelamento de outros corpos sobre os seus, outros com
semblante bastante sério, não interagem com a câmera que ao mesmo tempo é
quem filma a plateia e o objeto performático em cena. O objeto performático se

720
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

impõe perante o público e depois desvela sua intimidade, seu interior. No começo
do registro da performance, a artista aparece tendo em punho a câmera, sua parcei-
ra em ato, mas a câmera, ela mesmo, se torna um objeto performático, autonomo,
na medida em que é apontada para as pessoas sentadas em frente a um monitor de
TV. Quando o monitor começa a exibir os rostos e os corpos daqueles que foram an-
teriormente filmados e a sobrepor imagens de corpos nus e de raios-x e exames mé-
dicos de outros, o objeto performático, a câmera, passa a ser o objeto de poder que
provoca estranhamento e repulsa e revela a intimidade, por meio da ação de vigiar.

Neste video registro da performance de Mona Hatoum, a imagem atua nos inters-
tícios entre a câmera, a qual deveria mostrar a realidade registrada e o controle da
vigilância que capta o outro e o torna visivel sem que este tenha como interferir
no resultado da imagem. Nos entre meios, entre a performance da artista que atua
como mediadora e as imagens médicas que são sobrepostas aos corpos das pessoas
que assistem a performance, está a câmera que no final atua como videocorpo. O
corpo é vídeo e o vídeo é o corpo.

Parafraseando Arlindo Machado e Christine Mello em O corpo, entre o público e o pri-


vado “[...] em lugar de tentar discernir especificamente em que situação se encontra
o corpo, preferimos priviligiar as experiências ambíguas, os estados intermediários e
as contaminaçoes de um espaço pelo outro” (Machado e Mello, 2004, s/p).

Ver se a si mesmo era o esperado, mas não o interior do seu corpo ou a sua nudez. A
câmera metaforicamente despe as pessoas, tira-lhes as roupas e mostra seu interior,
e isso é muito impactante. Ver se a si mesmo dessa forma é provocador.

Hatoum afirma que quando foi fazer pós graduaçao na Slade School of Fine Art, no
University College de Londres, começou a se interessar por mecanismos de poder e
tomou consciência das questões de gênero e de classe, se envolveu com grupos fe-
ministas. Esta aproximação levou a artista a perceber diferentes situaçoes de poder
e controle. A artista conta que ficou impressionada com o numero de câmeras de
vigilância nas ruas e na vida cotidiana de Londres e que isso a levou a produzir esta
e outras series de performances em vídeo.

Considerações Finais
Em suma, do controle à consciência sensível do corpo. Diante deste cenário, defende-
mos o papel do artista como um agente que questiona, denuncia e está sempre pronto
a interrogar o campo das imagens e a criar novas derivas, rizomas, dentro dos sistemas.

Ademais, a ação de deslocamento das imagens do âmbito médico para o artístico, so-
bretudo a partir da invenção da fotografia até a arte eletrônica do vídeo e das videoins-
talações como analisamos nesta pesquisa, subverte a função das imagens do corpo,
antes produzidas com objetivos e sentidos bastante distintos no campo da ciência.

721
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Uma vez deslocadas da área médica para o campo das Artes Visuais, as imagens do
interior do corpo participam do hibridismo estético decorrente das diferentes opera-
ções poéticas: deslocamento, apropriação, recodificação e ressignificação no imenso e
volumoso cenário de produção de imagens do corpo, ontem e hoje. O corpo vigiado
em constante mutação se reinventa continuamente, rompendo padrões e modelos de
programação das imagens técnicas oriundas dos aparelhos e dispositivos.

Cumpre destacar que foi a partir das relações entre o conceito de dispositivo de
Foucault e sua associação com redes e rizomas de Deleuze que surgiu um dos ob-
jetivos desta pesquisa: buscar compreender a origem das imagens biomédicas e o
seu papel social e político para relacioná-las aos registros do corpo e suas diferentes
corporalidades na arte contemporânea, cuja experiência estética as transforma em
provocações sinestésicas e sensíveis que podem levar o homem a libertar-se ou tor-
nar-se consciente da programação dos aparelhos e suas técno-imagens.

No entanto, a despeito do poder que as novas tecnologias da visão exercem sobre


nossos corpos, a psicologia se desenvolveu e a filosofia avançou em novas reflexões
sobre corpo-sujeito e o corpo-vivido ou mesmo sobre a dimensão psicológica da
interioridade humana, o corpo interno e o corpo externo.

Os artistas ao se apropriarem das imagens produzidas por exames médicos e biomé-


dicos como matéria prima recodificam estas imagens dando a elas um novo signifi-
cado, agora poético. Essa operação de deslocamento, apropriação e ressignificação
gera uma ruptura na economia da disciplina e do poder destas imagens, promoven-
do derivações no sistema controlador. A arte contemporânea se apropria de ima-
gens geradas para um determinado fim: objetificar o sujeito, para tornar sensível a
experiência da invisibilidade ou da visibilidade do corpo.

Referencias
Belting, H. (2006). Imagem, mídia e corpo: uma nova abordagem à iconologia. Tra-
dução Juliano Cappi. In: Revista de Comunicação, Cultura e Teoria da Mídia. São
Paulo. No. 08. Julho .p.32-60.

Costa, L. C. da. (org.) (2009). Dispositivos de registro na arte contemporânea. Rio


de Janeiro: Contra Capa.

Deleuze, G; Guattari, F. (1996). Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Sao Paulo,


Ed. 34, Vol. 3.

Fonseca, M. A. da. (2011). Michel Foucault e a constituição do sujeito. São Paulo: EDUC.

Foucault, M. (2013). Microfísica do Poder. 27ª. ed. São Paulo: Graal.

722
Matéria e Memória #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Flusser, V. (2008). O Universo das Imagens Técnicas. Elogio da superficialidade.


São Paulo: Annablume.

Hatoum, M. (2014). Entrevista para Chiara Bertola (curadoria). In Catálogo Mostra


MONA HATOUM. Estação Pinacoteca do Estado de São Paulo. São Paulo: Pinacoteca
do Estado.

Kraus, R. (1978) Video: the aesthetics of narcissism. In: BATTOCK, Gregory. New Ar-
tists Video. New York: E.P. Dutton. p. 43-64.

Machado, A. e Mello, C. (2004). O corpo, entre o público e o privado. São Paulo,


Paço das Artes. USP.

Ortega, F. (2008). O corpo incerto: corporeidade, tecnologias médicas e cultura


contemporânea. Rio de Janeiro: Garamond.

723
Saúde, Imortalidade e Algoritmos #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Saúde, Imortalidade e Algoritmos


Health, Immortality and Algorithms

724
Saúde, Imortalidade e Algoritmos #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Raphael Dall’Anese Durante1 and


Marcos Rizolli2
Imortalidade e técnica, hipóteses a partir de Vilém Flusser
Immortality and technique, hypotheses from Vilém Flusser

Resumo
Este artigo busca relacionar os estudos preliminares desenvolvidos em pesquisa
de pós-doutoramento ao tema geral do #18.ART, especialmente com a temá-
tica ‘Saúde, Imortalidade e Algoritmos’. A ideia é, através de um ensaio crítico,
apresentar as aproximações entre a ontologia da técnica e a busca pela imorta-
lidade, olhando sob a perspectiva da escalada da abstração elaborada por Vilém
Flusser. A partir de uma articulação entre conclusões particulares de textos que
abordam a questão do universo de imagens como alicerce importante do nosso
projeto de registro e estada permanentes na existência concreta, identifica-se a
capacidade ontológica de jogo entre homem e mundo, intrínseca nas jogadas
em dimensionalidade zero, apontada nos mais tardios textos de Flusser. Com
suas teorias apoiadas no conceito de jogo, Flusser quer nos advertir do profun-
do aspecto de construção artificial de uma realidade pré-programada presente
em todas as estruturas culturais.
Palavras-chave: Imagem técnica, jogos de linguagem, escalada da abstração,
Vilém Flusser

Abstract/resumen/resumé
This article seeks to relate the preliminary studies developed in postdoctoral research
to the general theme of # 18.ART, especially with the theme ‘Health, Immortality and
Algorithms’. The idea is, through a critical essay, to present the approximations be-
tween the ontology of technique and the search for immortality, looking from the

1 Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Atualmente é pesquisador associado na Uni-


versidade Presbiteriana Mackenzie, vinculado em pós-doutoramento ao grupo de pesquisa Arte e
Linguagens Contemporâneas, do PPG em Educação, Artes e História da Cultura, com foco em Teoria
dos Jogos e no desenvolvimento de um mapeamento da dimensão lógica nos jogos de linguagem
no Brasil contemporâneo.
2 Professor Universitário; Pesquisador em Arte; Crítico De Arte e Curador Independente; Artista Vi-
sual. Doutor em Comunicação e Semiótica - Artes; Pós-doutorado em Artes. Professor no Programa
de Pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Líder do Grupo de Pesquisa Arte e Linguagens Contemporâneas – CNPq. Editor da Revista Éter, de
Arte Contemporânea.

725
Saúde, Imortalidade e Algoritmos #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

perspective of the abstraction climbing elaborated by Vilém Flusser. From an articu-


lation between particular conclusions of texts that address the issue of the universe
of images as an important foundation of our project of permanent registration and
stay in concrete existence, we identify the ontological capacity of game between
man and world, intrinsic in the plays in zero dimensionality, pointed out in the later
texts of Flusser. With his theories based on the concept of play, Flusser wants to warn
us of the profound aspect of artificial construction of a preprogrammed reality pres-
ent in all cultural structures.

A escalada da imortalidade
Conta-nos o livro do Gênesis 28, 12-13:

Teve um sonho: eis que uma escada se erguia sobre a terra e o seu topo atingia o céu, e os anjos
de Deus subiam e desciam por ela!
Eis que Iahweh estava de pé diante dele e disse:
– Eu sou Iahweh...

E este foi o sonho de Jacó.

É essa escada o símbolo da busca árdua da verdade pelo homem. Essa é a escada da
abstração. Essa é a escada da filosofia. A escalada rumo à sabedoria. Tal escada, ou
escalada, é jogada primordial de Flusser para a compreensão do nosso campo de
jogo, isto é, dos nossos processos de comunicação.

Em suas especulações, que ora beiravam a antropologia histórica, ora a filosofia, ora
um método próprio de refletir sobre os escombros de um passado nebuloso, Flus-
ser abordou um esquema teórico que possibilitou a visualização e imaginação de
passos que ele mesmo chamou de “passos para trás”; tal imaginação nos permite
hoje descrever de forma cronológica aproximada os saltos dados pelo homem, da
posição que vivíamos em três dimensões à posição em que vivemos hoje: zero di-
mensão; ou nulodimensão.

Ao longo da pesquisa para a redação do presente trabalho, nos deparamos com al-
guns poucos textos que comentam este esquema teórico-imaginativo de Flusser.
Alguns consideram este esquema teórico, produto de ficções filosóficas; outros,
fruto de uma antropologia histórica baseada em sistemas míticos auto-evidentes.
Contudo, nenhum de destaca tanto quanto o apresentado por Norval Baitello junior,
em seu mais recente livro, intitulado O pensamento sentado. Sobre glúteos, cadeiras e
imagens, publicado pela editora Unisinos, no ano de 2012. Curto, porém de densida-
de esmagadora, o texto (ou piruletas e saltos mortais), à página 63, relata a experiên-
cia que o filósofo alemão Dietmar Kamper teve ao assistir, em Berlim, a uma palestra
proferida por Flusser já em seus últimos anos de vida. Vejamos:

726
Saúde, Imortalidade e Algoritmos #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Performático como era, o mestre brasileiro (assim se anunciava Flusser, como brasileiro, mesmo
depois de quase duas décadas novamente na Europa) se posiciona na frente do palco e começa
a lecionar sobre o espaço e a comunicação. Nessa posição, ele fala sobre o homem que usa três
dimensões do espaço para se expressar por meio do gesto, da voz e da presença física. Até o
momento em que inventa a imagem e começa a desenhar sobre superfícies. Flusser dá nesse
momento um passo atrás e explica que uma das três dimensões do espaço é abstraída, quer di-
zer, subtraída. Com a imagem, o homem passa a se expressar no universo bidimensional, das
superfícies. As imagens vão se simplificando e, ao longo do tempo, se transformam em desenhos
estilizados, apenas contornos e traços, linhas, que depois dão origem aos ideogramas ou às le-
tras da escrita alfabética. Perde-se aqui mais uma dimensão do espaço, resta apenas a expressão
unidimensional e linear da escrita (já que o traçado da escrita é uma linha – que pode se mover
em todas as direções, mas continua sendo traçado e linha). Flusser dá mais um passo atrás no seu
palco e esclarece o interessante universo da linha e da linearidade que dá origem ao pensamen-
to lógico. Foi, portanto, a escrita que possibilitou a emergência do pensamento linear, lógico e
histórico. Tal pensamento permitiu o desenvolvimento da ciência que inventou aparelhos que já
nem precisam mais da linha, mas que operam com números, ou seja, com pontos. Ora, o ponto é
a dimensão espacial zero. Portanto, diz Flusser, dando seu ultimo passo para trás e encostando da
lousa ao fundo do palco, “descemos ao fundo da escada da abstração, alcançamos a nulodimen-
são e nela desenvolvemos todos os aparatos que reúnem pontos e simulam letras, imagens ou
volumes”. Esse é o caminho da escalada da abstração que nos leva ao nada. E conclui que, como
não podemos ir além nessa direção, temos de voltar às dimensões do espaço, ir reconstruindo
paulatinamente as dimensões perdidas.

Reconstrução de dimensões: tarefa para uma filosofia da fotografia. Tarefa para uma
filosofia da imagem no poder. “We do not yet have a philosophy of an image in power”3
. Pois, agora, diante do poço do nada sob nossos pés, o que nos resta é reconstruir
paulatinamente uma escada que nos leve para cima, para o outro lado; para o outro
polo. Polo também do nada.

É essa escada (ou escalada) – porém ao contrário, não que desce, mas que sobe: a
filosofia – o símbolo da busca da verdade pelo homem. Os diferentes aspectos do
simbolismo da escada estão todos ligados ao problema das relações entre o céu e
a terra. Uma espécie de objeto simbólico construído por nós, homens logo após a
tomada de consciência sobre a queda; como tentativa de retorno através de uma
escalada ascendente. Escalada ascendente e gradual, já que é constituída, em sua
estrutura, por degraus. Bem como nos mostra Flusser, ainda no início de sua jornada,
no gráfico por nós analisado anteriormente. Nele há o eixo de projeção posicionado
verticalmente e uma série de sete eixos horizontais que cortam o eixo vertical como
se fossem degraus; ou camadas a serem superadas na caminhada ascendente rumo
ao topo do campo de jogo.

Uns estão na terra, preparando-se para subir os seus degraus. Outros, já ascende-
ram alguns, enquanto outros, mais distantes, aproximam-se do topo. Lá, no alto,

3 Flusser, We shall survive in the memorie of other

727
Saúde, Imortalidade e Algoritmos #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

perdendo-se quase entre nuvens, são poucos os olhos que, de baixo, podem vê-la.
Só aqueles que ascenderam alguns degraus são capazes de consegui-lo.

Na base desta nova escalada ascendente proposta por Flusser, começa o caminho
dos que partem da experiência sensível. É dali que partem os empiristas, mas alguns
permanecem, como os materialistas, sensualistas. Nem todos são capazes de ascen-
der os degraus. Querem alcanças o topo. Mais longe, muito mais longe do que eles
está Platão, olhando para a terra.

Empiristas, materialistas, positivistas, iluministas querem explicar o mais alto, partin-


do do mais baixo; Platão explica o mais baixo, descendo do mais alto. Mas o caminho
é o mesmo: a escada. Apenas são outros vetores.

No topo está a Mathesis Megisthe, a suprema Verdade. Aquele caminho é o da filoso-


fia e o afanar-se em subi-la é o esforço do filósofo, esse amante do supremo saber,
que vence as indecisões e os desfalecimentos, e procura erguer-se até o alto. Quanto
mais sobe, mais difícil é a conquista de novos degraus. Mais alto o salto necessário
para ultrapassar a barreira que o separa da próxima camada. Uma vida talvez é pou-
co, pois muito ficam no caminho, como o caso de Vilém Flusser, dada a sua morte
acidental e prematura. Mas para os mais arrojados, a ascensão não desanima, como
também o caso de Flusser; a despeito de suas diversas manifestações de tentativa
de suicídio (intelectual).

A palavra hebraica sullam, que o latim traduz por scala, aparece frequentemente no
Antigo Testamento. Embora a escada de Jacó seja o exemplo mais conhecido, há
outros exemplos igualmente significativos: os três andares da Arca de Noé (Gênesis:
6, 16), os degraus do trono de Salomão (1, Reis: 10, 19), os degraus do templo de
Ezequiel (Ezequiel: 40, 26, 31). O Salmo: 84, 6, menciona as peregrinações no coração,
e os quinze salmos graduais são denominados Cânticos das subidas.

O mesmo sentido semântico têm os mitos platônicos da Caverna e de Er. O primeiro


encontra-se no livro VII de A República, e propõe a subida por uma encosta rude e
escarpada até o topo da Caverna, donde se pode ver o brilho cegante da Luz do Sol,
isto é, a Verdade. O segundo encontra-se no livro X da mesma obra e apresenta, por
sua vez, o relato, transmitido oralmente, de alguém que retornou do Hades. Ou seja,
escalou do mundo inferior para um mundo relativamente superior. A meta do mito
de Er é, de certo modo, pedagógica e propõe a busca pela purificação da alma atra-
vés da escalada em função do retorno da vida e realização de novas tarefas, e assim
por diante, num movimento circular e indefinido; até que a alma alcance a Verdade.

Vale dizer ao leitor que os dois parágrafos anteriores representam a contextualiza-


ção do tema da escada (ou escalada) no presente trabalho, dentro da tradição do
pensamento ocidental, localizando também a importância da “escalada da abstra-
ção” de Vilém Flusser neste panorama. Representam também um resumo possível

728
Saúde, Imortalidade e Algoritmos #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

dos mitos da Caverna e de Er, não dispensando, absolutamente, a leitura integral,


não só dos mitos citados, mas também de A República, em sua totalidade.

Não parece restar dúvidas de que a comunicologia de Flusser situa-se dentro de uma
teoria maior, mais abrangente, que o preocupou desde o início de suas investiga-
ções. Uma teoria do conhecimento, ou uma epistemologia, com fundamentação na
comunicação humana, esteve sempre no cerne das problematizações flusserianas.
Desde a primeira até a última fase de seu pensamento, Flusser se preocupou em per-
guntar e elaborar estratégias, jogadas, afim de desvendar o mistério da Verdade do
conhecimento; ou ao menos se este mistério é desvendável e se há métodos atuais
para tanto. Ou, em algumas oportunidades se este tema é digno de ser considerado
misterioso, ou seja: se esta coisa chamada Verdade, de fato, existe.

Gostaríamos de abrir parênteses.


Confessamos: uma dúvida paira sobre os argumentos utilizados para construir a
imagem da escada ao longo dos últimos parágrafos. A dúvida consiste no seguinte:
seria a escada, literalmente imaginada, a melhor imagem para discutirmos a questão
da escalada? Seria a escada formada por estrutura similar a de uma rede de pesca, a
imagem apropriada para a compreensão do tema das imagens sintéticas?

Bem, tal dúvida coloca em cheque o que escrevemos até então, desde o início des-
te capítulo. Isto, pois, após leitura e releitura, conseguimos imaginar outra possibi-
lidade, também dentro da dinâmica da escalada: a imagem do vórtex, ou vórtice.
Escolhemos assumir o risco da exposição destas breves inferências em detrimento
da insatisfação diante da imagem da rede de pesca, elaborada no inicio do presente
capítulo. Antes de tentarmos formular tal imagem, nos permita, caro leitor, concei-
tuar brevemente o termo em jogo.

Sem a necessidade de um esquadrinhamento na física teórica, vórtex, ou vórtice,


pode ser imaginado através de seu significado etimológico: movimento forte e gi-
ratório; remoinho; turbilhão; dinâmica disposta concêntrica ou excentricamente e
raiada. Forma espiralada, configurada por circunferências de diâmetros diferentes,
crescentes ou decrescentes entre si, de modo a criar a imagem de um vórtice. Pode
ser compreendido por meio da imagem de uma espiral: Espiral de Arquimedes, Es-
piral logarítmica e também através da Espiral de Fibonacci, por exemplo; cada uma
com suas características fundamentais. O importante aqui não é discutir cada tipo
específico de espiral, mas compreender o que há em comum entre todas as dife-
rentes, para, então, chegarmos na imagem que precisamos para pensar uma nova
possibilidade de leitura para a escalada flusseriana. Já que a imagem da escada não
nos satisfaz totalmente.

Propomos, portanto, que o leitor imagine uma espiral, ou um vórtice. – Opte pelo termo
de acordo com sua preferência de gênero. Não questionamos o rigor terminológico

729
Saúde, Imortalidade e Algoritmos #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

para este caso específico. Ambas cumprem a meta da nossa investigação. – Imagem
imaginada, agora podemos nos perguntar: por que o vórtice? Entendemos o vórtice
como a imagem que realiza a síntese entre linha e círculo. Ou seja: o vórtice como a
dinâmica da síntese entre a dinâmica do jogo em campo de jogo linear e a dinâmica
em campo de jogo circular. Temos, a partir destas nossas elucubrações ainda nebulosas,
na imagem do vórtice, a dinâmica do jogo em universo de imagens sintéticas. Já que o
vórtice representa a síntese entre jogadas em linha e jogadas em círculo.

Explicaremos:

Em um dado momento da nossa história – podemos chamá-lo de origens da renas-


cença, proto-renascimento ou Quattrocento –, campo de jogo linear ou universo de jo-
gadas que propunham a visão científica da realidade, se choca contra campo de jogo
circular ou universo de jogadas que sugeriam um posicionamento mítico em meio ao
ambiente de jogo. Tal choque ocorreu na tentativa da primeira ultrapassar, em termos
epistemológicos, a segunda. Acreditamos não ter havido meios de realizar tal ultrapas-
sagem sem choque. Saltar sobre, demandaria gasto inimaginável de energia.

Ultrapassar pelas laterais, levaria tempo, problema grave para a época, já que
alguns pilares estavam a ponto de ruir, outros já haviam desmoronado, como
consequência do aparecimento de jogadas proto-científicas, neoaristotélicas
simplificadoras. Cavar e passar por baixo necessitaria conhecimentos geológicos
e tecnologias ainda desconhecidos. Passagem possível: choque. Linha se cho-
cou, portanto, contra círculo. Produto: vórtice, ou espiral. Imagine, caro leitor, o
brinquedo de criança bambolê. Imagine, em seguida uma espécie de membrana
invisível tangível sobre toda a superfície interna dos limites circulares do bam-
bolê. Agora imagine um segmento de reta, uma linha, ou uma flecha – como nos
referíamos na introdução desta tese – sendo lançada contra e de frente para o
bambolê. Teríamos o choque da flecha contra a superfície (membrana) do bam-
bolê. Tal choque resultaria em dissecção da estrutura circular do bambolê em
camadas. De modo que se dividiria e, posteriormente se desenrolaria como uma
serpentina (serpente) carnavalesca. Teríamos a forma circular descrita, de acordo
com a passagem da flecha do tempo, em estrutura linear.

O vórtice, portanto, pode ser entendido como a forma do campo de jogo no qual
imagens sintética operam síntese formal entre circulo e linha. Todas as jogadas em
campo de jogo espiral operam linha e círculo, ao mesmo tempo. Vórtice também
permite escalada; também pode ser composto por fio ou fios. A questão dos nós se
apresenta como problema insolúvel até o presente momento.

Todas as jogadas em universo de imagens sintéticas, além de buscarem a síntese, são


bambas; bambeiam. Parecem ser frutos de jogadores embriagados, apaixonados por
campo de jogo sintético, dentro do qual localizam-se e aprendem jogadas com certa
rapidez e facilidade. Mesmo que tais jogadas sejam superficiais e insignificantes na

730
Saúde, Imortalidade e Algoritmos #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

tentativa de alcançar as profundezes abismais do campo de jogo espiral. Talvez por-


que, todas as jogadas tenham por meta a transcendência, a ascensão rumo à concre-
ção paradoxal.

Gostaríamos de fechar parênteses para investigar, logo a seguir, a questão da trans-


cendência – e da imortalidade – como meta das imagens sintéticas, em Flusser.

É neste momento, exatamente nesta fase de seu pensamento, que Flusser passa a
abordar o tema das imagens, e mais especificamente, o problema das imagens téc-
nicas ou imagens sintéticas, vinculado aos temas da morte, da memória e da possi-
bilidade do conhecer. Para ele, este tipo específico de imagem pode ser observado
como uma atualização do método através do qual pode-se alcançar a Verdade e a
imortalidade. Método competente o suficiente para saltar sobre o limite circular do
campo de jogo. Para Flusser, a filosofia, como conhecida tradicionalmente, perdera
força perante campo de jogo superficial.

Imagens sintéticas, diferentemente das imagens tradicionais não podem ser obser-
vadas e analisadas biombos. Mas como escadas. São possibilidades para a escalada
rumo à concreção. Escalada de sentido oposto ao da abstração: nova escalada. Esca-
lada rumo à imortalidade: eternidade.

Essa posição fica clara quando, em um diálogo4 com amigos judeus, ocorrido em
Budapeste, à 7 de abril de 1990, Flusser diz:

Quanto mais velho fico, mais judeu me torno. E esse meu judaísmo está de algum modo conectado
com a ideia de morte. Eu não sei se minha leitura do judaísmo é boa, pois sou um judeu comple-
tamente assimilado e não participei de nenhum aprendizado judeu; mas minha ideia é que a dife-
rença básica entre judaísmo e cristianismo não é o fato de que para os cristãos o messias já chegou
e para os judeus ele ainda está por vir. Para mim, essa é uma questão muito pouco interessante.

O ponto fundamental é que para os cristãos existe algo no homem: um espírito, uma alma, como
quer que se chame; que sobreviverá à morte. E para os judeus, a coisa é muito mais imaterial. A
ideia é que sobreviveremos na memória dos outros.5

Bem, se minha leitura é correta, e pode bem não ser, pois o cristianismo naturalmente alimentou-
-se do judaísmo e há muitos judeus que ainda acreditam na alma e na sua imortalidade, mas não
creio que isso seja propriamente judaico.

Chegaremos no ponto que desejamos, caro leitor. O importante, nesse momento,


é notarmos de onde partem as teses flusserianas sobre a imagem, sobre a morte,
sobre o jogo e, fundamentalmente, sobre a nossa comunicação. Deste trecho, por

4 Ver livro/DVD We shall survive in the memory of others.


5 Tradução do inglês: “We shall survive in the memory of others”. Frase que deu o título ao livro/DVD.

731
Saúde, Imortalidade e Algoritmos #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

exemplo, poderemos conferir e aferir a suma importância da existência do oponen-


te, do outro, para que uma jogada possa existir e se realizar plenamente em campo
de jogo limitado. Sumamente importante a existência da alteridade no jogo. O ou-
tro dá sentido às jogadas. Todas as jogadas têm por meta e são submetidas ao outro.
O outro se torna alvo. As jogadas tornam-se flechas. O jogador torna-se o arqueiro.

A alteridade do jogo se torna objeto e se faz significar pela sua principal característica:
a alteridade é o outro; o outro objeta. Aquele que objeta, é objeto. Sua função é ob-
jetar contra um sujeito que projeta lances (jogadas) em direção do outro, do objeto.
Talvez aqui, mais do que em qualquer outro momento do presente trabalho, a frase
“Liberdade é jogar contra o aparelho”6 ganha sentido. Nesse jogo, sujeito se transfigura
(transmuta) em projeto7. Projeta todas as suas possíveis articulações de jogadas no
outro, pois sabe que tais lances só têm sentido para além do tempo – para além do
Diabo, portanto – se forem projetados no outro. Sabe que suas jogadas, se projetadas
no outro, ganham um caráter fundamental para a comunicação humana e para o jogo:
o caráter de responsabilidade. Do latim responsa, as jogadas passam a ter resposta.
Passam a configurar um campo de jogo estruturalmente dialógico. No qual jogadas
batem, rebatem, vão e voltam; tornam e retornam. Nunca iguais. Sempre adicionadas
pelo projeto do outro, que também joga. O movimento8, nesse tipo de jogo é pen-
dular e representa uma mecânica da adição e não mais da subtração. A forma espiral
sobre a qual discutíamos algumas páginas atrás parece constituir o cenário concreto
para que a dinâmica proposta ocorra. Pois a própria dinâmica dos fluxos de uma espi-
ral (ou vórtice) cogita este caráter responsável, já que dentro dela, as coisas todas vão
e voltam, batem e rebatem. Campo de jogo espiral permite jogadas contra os limites.
Jogar contra os limites do campo de jogo é possibilidade pré-inscrita no programa do
aparelho. Aparelho significa, para recordar, estrutura dura, limitadora; situada ao redor
e nos limites mais superficiais do campo de jogo. Dele, imagens são expulsas – como
versos – tendo por meta a síntese. Imagens sintéticas são produtos de jogadas contra
aparelho. Imagens sintéticas simulam um cenário de êxito das jogadas contra. Vão se
projetando sobre os limites, simulando diabolicamente a conquista do aparelho e a
transcendência do campo de jogo. Imagens sintéticas são anti-políticas. Imagens sin-
téticas falsificam a experiência de liberdade.

Longe de querermos fazer deste texto uma tese de Teologia, continuemos com as
palavras de Flusser:

6 Flusser, 2002
7 Ver: Bozzi, Paola. Vilém Flusser. Dall soggeto as progetto: libertà e cultura dei media. Milão: UTET Uni-
versità, 2007.
8 Os primeiros passos de Flusser rumo ao tema abordado neste pondo da nossa tese podem ser
conferidos através da leitura dos originais datilografados, por exemplo em: Conceitos fundamentais
do pensamento ocidental; Texto-imagem; Texto/imagem enquanto dinâmica do Ocidente.

732
Saúde, Imortalidade e Algoritmos #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Acho que a ideia judaica fundamentalmente é que minha imortalidade depende da outra pessoa;
que é ela a responsável por minha imortalidade e eu pela sua. É por isso que os judeus dizem de uma
pessoa morta: ‘que sua memória seja uma benção’, o que pode significar: eu sou responsável por
ele. (...) bem, se isso é um fato, se é a verdade do judaísmo, então, naturalmente, a revolução da in-
formação, com as memórias artificiais e as conexões bi-vocais de terminais, seriam a utopia judaica.

Tal argumentação ocorreu depois de Flusser ter sido provocado por um dos entre-
vistadores, quando suas principais hipóteses, teses e teorias foram expostas como
tendo por ponto de partida a Bíblia; ou narrativas e personagens bíblicos. Contudo,
não só com a Bíblia de um modo geral e abrangente, mas de modo mais específico,
com o tema da proibição das imagens, declarada por Moisés no Genesis; pela maioria
dos profetas judeus, como nos mostram os livros do pentateuco; os livros dos Reis,
os Salmos, o livro das Crônicas; bem como por alguns livros do Novo Testamento, por
exemplo, as Cartas de Paulo de Tarso, o Apóstolo. Tal argumentação sucede também
o questionamento à Flusser a respeito do papel e do lugar das imagens na constru-
ção da imortalidade, ou seja: na construção de um campo de jogo situado fora do
tempo. Sem duvidamente, neste momento, para defender uma tese política sobre
a comunicação humana, Flusser apoia-se em Platão, rediscutindo e atualizando os
texto d’A República, sobretudo àqueles trechos nos quais estão em jogo o tema da
política dos prazeres, o tema das escalas do ser e do conhecer à escala do prazer, o
tema da necessidade e escolha no mito de Er.

Imagens sintéticas9 são produtos de jogadas em campo de jogo que tem, em seu
centro, programa (estruturalmente linear) que para dentro de si suga todo o univer-
so da língua, e que tem, ao seu redor – como cerca limitadora – sistema aparelhístico
(estruturalmente circular) que para fora de si expulsa todo o universo da língua. Ou
seja: imagens técnicas são produtos de campo de jogo espiral. Proponho, ao leitor,
para a imaginação simulada de tal sistema, a observação do funcionamento de um
liquidificador de copo cônico. Imagens sintéticas são produtos de campo de jogo
sintético. Campo de jogo que resultou do choque dialógico entre campo de jogo
linear e campo de jogo circular.

Imagens sintéticas, como produtos de campo de jogo espiral, são superfícies esbura-
cadas. Como redes de pesca, de futebol, ou de tênis. A dúvida sobre a imagem da rede
ainda paira sobre o nosso texto. Redes de pesca, ou espirais, para melhor imaginarmos.
Tais buracos são dimensionalmente ínfimos, porém o bastante para possibilitar a esca-
lada em espiral ascendente. Nossa escalada ascendente busca transcendência. Super-
fícies esburacadas oferecem tais buracos para que possamos enfiar pés e mãos nessa
nova escalada rumo à Verdade do conhecimento e à imortalidade no campo de jogo.

9 Verificar, por exemplo, os originais datilografados: O vivo e o artificial; Nascimento de imagem nova;
Imagem com computador; Sintetizar imagens.

733
Saúde, Imortalidade e Algoritmos #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Com fios confeccionamos redes; cruzando-os e unindo-os através de nós. Lançamos


rede em direção do nada na busca por significado. O emaranhado de fios se adensa;
fios, nós e redes sobrepõem-se e começamos, enfim, a aproximação dos limites do
campo de jogo. Esta é a jogada possível, hoje. Jogada autêntica, como diria Flusser.
Todo o resto é passatempo em jogo absurdo. Todo o resto é diversão.

O interessante nesse ponto é que Flusser atribui às imagens sintéticas uma função
que deveria ser da filosofia. Parece, deste modo, construir uma confusão argumen-
tativa. Uma argumentação filosófica inacabada, de certo modo. Sobretudo se levar-
mos em consideração a extrema atenção de Flusser no sentido de evitar tautologias
e paradoxos em suas teses, específicas e gerais.

Talvez Flusser sempre tenha observado, analisado e investigado as chamadas por ele
mesmo “imagens sintéticas” como um tipo específico de universo existente, capaz de
dar o salto que a filosofia, com toda sua história de elaboração de estratégias e jogadas,
nunca conseguiu. Como um tipo de universo existente tal qual aquele formulado por
Platão quando seus diálogos não conseguiam mais ter o alcance necessário para chegar
até a luz do conhecimento e da imortalidade: os mitos. Talvez, para Flusser, as imagens
sintéticas formam um tipo novo de universo; um universo plano, definido em superfície.
Superficial o bastante para saltar sobre os limites do campo de jogo. Tarefa altamen-
te árdua para jogadas estruturalmente mais profundas. Imagens técnicas são jogadas.
Imagens técnicas são jogadas – lançadas, expulsas – por aparelhos. Se jogadas por apa-
relhos, vivem em camada superficial, portanto. Elas são as jogadas dos aparelhos, pois
aparelhos, assim como nós, também querem jogar. São elas, as imagens sintéticas, pro-
dutos de operações programáticas que ocorrem automaticamente dentro de progra-
mas contidos em aparelhos. Como já dissemos: em campo de jogo diabólico estruturas
existem em camadas, uma dentro da outra, em sentido ascendente e hierárquico: do
núcleo para a superfície. E toda a queda se dá de dentro para fora. No sentido do núcleo
para as extremidades. Imagens técnicas estão para aparelhos, assim como aparelhos
estão para nós, como nós estamos para o Diabo; como o Diabo está para Aquele que o
criou10. Estrutura absurda e novamente surge a imagem mística do Ouroboros.

Imagens sintéticas são jogadas e para dentro delas nos jogamos. São jogadas no va-
zio como redes de pesca são jogadas ao mar. A diferença talvez esteja no objeto – na

10 Temos aqui a própria estrutura do sistema de pensamento de Vilém Flusser, que foi do tema do
Genesis, da queda e do Diabo em A história do Diabo, ainda no início de seus escritos, ao tema das
imagens sintéticas, já como última fase de seu pensamento, no fim de sua vida. Sua filosofia tam-
bém se desenvolveu em camadas de problematização. Como uma espécie de escalada, de fato. Do
núcleo original à respeito da nossa existência, à camada mais superficial e atual. Sempre projetando
ideias para as camadas emergentes. Pois sabia, Flusser, que novas camadas sempre estariam por sur-
gir. Aqui elaboramos uma espécie de justificativa para a nossa afirmação de que, em Flusser, o jogo
não é mero objeto de articulação teórico-conceitual, mas categoria filosófica. O jogo como método
de busca pelo conhecimento. O jogo como filosofia.

734
Saúde, Imortalidade e Algoritmos #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

meta – destas duas diferentes jogadas. Redes de pesca têm por meta peixes. Redes
de imagens técnicas têm por meta, nós mesmos. Pescadores jogam suas redes para
que afundem e enrosquem em peixinhos distraídos. Nós, homens, jogamos nossas
redes para flutuem e depois nos jogamos sobre elas, para que elas nos distraiam,
para que elas nos divirtam; afim de termos algum solo para pisar; algum fundamen-
to para existir. Alguma escada para escalar.

Em sua tese política, Flusser nos diz que diferentes de biombos, imagens técnicas
são projetos. “(...) projetos para Deus”11. Imagens técnicas não se colocam entre ho-
mem e natureza. Mas sobre. Imagens técnicas formam estrutura em rede que não
é jogada para baixo, como são as redes de pesca. Imagens técnicas formam rede e
tal rede é jogada para frente e para cima. Numa extremidade chumbadas (como as
de pesca) são amarradas para que se ancore e simule proximidade. Noutra extremi-
dade, espécies de balões de gás são amarrados para que flutue e alcance os céus.
Oferecendo a possibilidade de escalada. Este tipo diferente e novo de estrutura não
está posicionado entre, como observou Platão. Este tipo novo de estrutura está em
cima da gente. Cercando e cobrindo o campo de jogo. Oferecendo religião.

Ainda acompanhando a entrevista concedida em Budapeste, vejamos o que diz


Flusser sobre o jogo em sua dimensão política:

(...) há uma proibição da imagem pela seguinte razão: a ideia do judaísmo é que Deus é comple-
tamente diferente. Totalmente diferente! Toto coelo abstractie. O que significa que não se pode
concebê-lo ou imaginá-lo. Ele é completamente impensável e inimaginável e, portanto, a teologia
não é possível. Não se pode falar sobre Deus, pode-se apenas falar com ele12. Bem, se isso é um
fato, existe apenas uma imagem: a face da outra pessoa. Pois Deus fez o homem à sua imagem. E o
único modo como posso imaginar Deus é o olhar para outra pessoa. Isso quer dizer que somente
através do amor pelo meu semelhante eu posso amar Deus. Assim, a única imagem permitida é
a imagem do rosto do outro.

Chegamos ao ponto:

Mas a imagem sintética – a imagem computadorizada – é a outra pessoa! Pois através da imagem
computadorizada, eu posso falar com a outra pessoa: ele me envia sua imagem; eu trabalho nela
e devolvo a ele. Portanto, esta é a imagem judaica. Não se trata de um ídolo, isso não é paganismo.
É um modo de amar meu próximo e, pelo amor a meu semelhante, amar a Deus. (...) a imagem
sintética computadorizada é perfeitamente judaica.

11 Cf. livro/DVD We shall survive in the memory of others


12 Importante citarmos o trecho na língua original: “You can not speak about God, you can only speak
to God”. Grifos nossos para indicar a clareza da visão de Flusser no que tange a imagem da nossa
posição em relação à Deus. Indicando que não podemos falar sobre – acima – de Deus.

735
Saúde, Imortalidade e Algoritmos #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Flusser indica que imagens sintéticas configuram uma nova estrutura que permite o
jogo sobre os limites do campo de jogo temporal e limitado, para um novo campo
de jogo, atemporal e ilimitado. Uma jogada que nos lança para o território (se assim
podemos chamar tal lugar) da atemporalidade lúdica, no qual toda jogada tem sen-
tido: o outro. Ou seja: Deus.

Flusser tenta construir elementos teóricos capazes de constituir uma competência


para a investigação das imagens sintéticas como estruturas poderosas o bastante
para significar o argumento sobre a existência dessa entidade chamada Deus.

Como se essa nova estrutura – na forma de escada – fosse capaz de nos ligar nova-
mente ao Toto coelo abstractie, ao totalmente abstrato. Imagens sintéticas como
verdadeiras soluções para o problema da queda. Isto é: a grande e definitiva solução.
A existência de imagens sintéticas significa, sob este panorama teórico, o universo
da linguagem humana encontrando significação para as narrativas lineares encon-
tradas na Bíblia, do Genesis à anastasis de Cristo. Propondo, desta maneira, que a jo-
gada circular – universo das imagens técnicas – se sobrepôs à jogada linear – univer-
so da escrita linear. Ou: a circularidade é o caminho. Ou: do círculo faz-se o caminho
para o conhecimento da Verdade.

No fundo do pensamento de Flusser, sobretudo nos últimos de seus textos e cartas


datilografados, podemos encontrar ideias indicando para essa nossa transformação
de sujeitos, em projetos. Um tipo especial e novo de transfiguração. Um tipo inédito
de jogada. A jogada da rede e, em direção dela, a nossa jogada.

Não pense se tratar de especulação teológica. Aqui, Flusser refere-se diretamente à


novas estratégias de comunicação humana. Às mais novas e astutas jogadas. Refe-
re-se ao método capaz de reconstruir a escada da concreção: Einbildungskraft13. A
escada da retomada da experiência. A escada da solução para a queda. A construção
do campo de jogo que permitirá a decisão. A construção deste campo implica em
produção de alternativas; isto significa: produção de alteres. Produção de outros.

Eis a jogada que implicará em campo de jogo decisivo. Implicará decisão. Fim da
cisão. Implicará em fim da diversão em universo programado. Tal jogada terá por
consequência o fim do tempo. O fim do pensamento. O fim da história do Diabo. O
alcance da imortalidade.

13 “A capacidade que temos de passar do abstrato ao concreto”. Flusser se apropria de um termo


kantiano para construir conceito capaz de representar o movimento de concreção. “Uma força que
permite ler a abstração e partir daí”.

736
Saúde, Imortalidade e Algoritmos #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Referências
BAITELLO JUNIOR, Norval. O pensamento sentado. Sobre glúteos, cadeiras e ima-
gens. Editora Unisinos: Rio Grande do Sul, 2012.

BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Edições Paulinas, 2002.

BOZZI, Paola. Vilém Flusser: dal soggetto al progetto: libertá e cultura dei media.
Torino: D Agostine Scuola SpA, 2007.

FLUSSER, Vilém. Obras completas datilografadas. UDK Flusser Archive, Universität


der Künste Berlin.

PLATÃO. A República. Fundação Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2008.

737
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Histórias e Teorias da Arte


Art Stories and Theories

738
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Albano José Carneiro Leal Ribeiro1 and Graça


Maria Alves dos Santos Magalhães2
Da originalidade ao plágio e vice-versa:
os limites e expressões da criação artística
From originality to plagiarism and vice versa:
the Limits and Expressions of Artistic Creation

Resumo
A apropriação e o plágio têm sido temáticas muito debatidas no último século.
Desde o aparecimento dos ready-mades de Duchamp, na primeira metade do
século XX, que se tornou impossível ignorar a questão da utilização por parte
de determinados artistas, de obras ou conceitos desenvolvidos por outros. O
fenómeno já existia anteriormente, mas com Marcel Duchamp passou a ser
debatido criticamente no seio da arte e genericamente pelo público. O que
faz de um artista o autor da sua obra de arte? Que relação existe entre auto-
ria e significado que faz com que a obra de arte deva ser interpretada à luz
dos significados do artista? Este artigo procura, através da objetividade dos
conceitos, pesquisar, debater e explorar a interligação entre a apropriação, o
plágio e a originalidade artística.
Palavras-chave: arte, autoria, apropriação, originalidade, plágio.

Abstract
Appropriation and plagiarism have been themes much debated in the last centu-
ry. Since the emergence of Duchamp’s ready-mades in the first half of the twentieth
century, it has become impossible to ignore the issue of the use, by certain artists, of
works or concepts developed by others. The phenomenon already existed previous-
ly, but with Marcel Duchamp it began to be debated critically in the bosom of the

1 Desempenhou funções de Técnico Superior de inventário digital do Departamento de Bens Cul-


turais da Igreja da diocese do Porto. Foi investigador no CIICESI da Escola Superior de Tecnologia e
Gestão de Felgueiras, no âmbito do Projeto Rota do Românico. Participou na Capital Europeia da
Cultura 2012, em Guimarães, na Produção e Montagem do evento denominado “Entre Comissários
e Curadores – os Artistas e os Livros”. albanolealribeiro@gmail.com
2 Artista e Prof. Auxiliar da Universidade de Aveiro, é actualmente directora do mestrado em Criação
Artística Contemporânea. Membro integrado da Unidade de Investigação em Design, Media e Cul-
tura (ID+) e membro colaborador do Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade (i2ADS).
Têm participado em congressos e projectos nacionais e internacionais, publicações no âmbito de
desenho e imagem e em comissões e júris de concursos. gracamag@ua.pt

739
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

art and generally by the public. What makes an artist the author of his work of art?
What relation exists between authorship and interpretation of meaning, that makes
the work of art to be interpreted in the light of the artist’s meanings? This article
seeks, through the objectivity of the concepts, to research, debate and explore the
interconnection between appropriation, plagiarism and artistic originality.

Introdução
O que é que faz de um artista autor da sua obra de arte? Que relação especial existe
nessa autoria que faz com que a obra de arte deva ser interpretada em termos dos
significados do artista? Ou em termos dos significados que o artista podia ter tido?
Foi no século XX que a noção de autor começou a ser sistematizada e um dos seus
primeiros pensadores, Roland Barthes, escreve sobre o fim desse mesmo autor, su-
gerindo que “é preciso inverter o mito: o nascimento do leitor deve pagar-se com a
morte do Autor” (Barthes, 1968: 64). Michel Foucault concorda, argumentando que
o conceito de autor é autoritário e pouco mais faz que restringir o livre pensamento
de quem lê e, portanto, sugere que “deixemos o escritor, deixemos o autor e vamos
estudar, em si mesma, a obra. A palavra “obra” e a unidade que ela designa são prova-
velmente tão problemáticas quanto a individualidade do autor.” (Foucault, 1992: 90)

Assim sendo, a questão levantada neste artigo procura responder à pergunta:

Existirá plágio criativo no campo das artes visuais?

Para melhor responder a esta pergunta, o artigo será orientado por quatro abordagens
mais explícitas, questões que servem para operacionalizar a preocupação central:

1. Como e porque é que os artistas se apropriam de matéria artística existente para


criar novas obras?

2. Em que medida a apropriação se constitui como território fértil para a criação artística?

3. Ao pensarmos a apropriação como “arquivo” este é operante apenas a partir do


campo conceptual ou configura outras realidades da obra?

4. De que modo as novas criações oferecem novas perspetivas acerca dos traba-
lhos anteriores?

Metodologicamente e de forma a conseguir responder às questões de investigação,


o artigo procura combinar diferentes campos analíticos: o seu foco principal estará
intimamente ligado com a História da Arte, mas também fará uso de teorias da Estéti-
ca e do Direito, nomeadamente o Direito da Propriedade Intelectual.

As considerações finais ou conclusões a que se chega procuram responder à pergunta


de base da investigação e às suas quatro derivações mais explícitas. Não existe a

740
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

intenção de que o estudo aqui apresentado seja conclusivo, pelo contrário, consi-
dera-se a possibilidade que a pesquisa e argumentação possam esclarecer algumas
das questões problemáticas que este tema envolve.

Plágio
Para Gordon Stein (1993) o conceito de plágio consiste em utilizar trabalho, alcança-
do pelo esforço intelectual de outro, como tendo sido o próprio. Dito por outras pa-
lavras, é o roubo da Propriedade Intelectual de outra pessoa. Assim, pode deduzir-se
que a Propriedade Intelectual, direitos de autor, pirataria na internet e plágio estão
ligados aos direitos de autor como uma área da lei sob a Propriedade Intelectual. A
pirataria na internet é o ato de roubar média protegida por direitos de autor e plágio
é a utilização de material como sendo seu.

No entanto, para definir plágio visual é necessário aprofundar ainda mais estes con-
ceitos. Existem maneiras de plagiar no universo visual que coincidem com o plágio
baseado em texto, mas também existem maneiras mais originais e complexas.

Sven Meyer zu Eissen e Benno Stein (2006) dividem o plágio baseado em texto em
dois grupos: cópia exata e cópia modificada. A cópia exata ocorre quando o texto é
copiado literalmente e representado como o próprio trabalho do plagiador e a cópia
modificada aparece quando o plagiador tenta encobrir o crime reescrevendo o do-
cumento pelas suas próprias palavras. Se for aplicado este modelo ao plágio visual,
ele pode ser redefinido da seguinte forma:

1. Cópia exata - Representa exatamente o trabalho visual, seja ele de dados ou um


objeto físico, com a intenção de ser apresentado como uma criação dos seus pró-
prios esforços intelectuais ou tentar enganar o destinatário da sua origem.

2. Cópia modificada - Representa um trabalho visual no qual o plagiador aplicou


habilidades específicas para modificar o trabalho artístico resultante do original,
com a intenção de o apresentar como uma criação do próprio esforço intelectual
do plagiador.

Tanto a cópia exata como a cópia modificada podem ser divididas em subgrupos:

• Cópia exata

a. Cópia igual - Representa a arte visual igual à de outro artista, seja ela um dado ou
um objeto físico, com a intenção de ser apresentada como uma criação dos seus
próprios esforços intelectuais.

b. Auto-plágio - Representa o próprio trabalho original que inclui adornos com a inten-
ção de enganar e exibir a peça como se fosse a primeira vez, quando na verdade ela

741
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

foi exibida antes ou foi falsificada a data da criação. Qualquer deturpação do próprio
trabalho com a intenção de enganar está incluída nesta declaração.

• Cópia modificada

a. Cópia exata ajustada - Representa a obra visual exata, seja ela de dados ou um
objeto físico, com a adição de ajustes que modificam a obra de arte original, com a
intenção de a mostrar como uma criação do seu próprio esforço intelectual. Como
por exemplo, aplicar a conversão para preto e branco a uma fotografia colorida de
outra pessoa e fingir que a autoria é sua.

b. Cópia conceptual - Utilização extensiva de ideias e conceitos a partir de uma obra


visual criada por outro artista e incorporando essas ideias e conceitos à sua própria
obra de arte com a intenção de a apresentar como uma criação do seu próprio es-
forço intelectual. Essa forma de plágio ocorre quando um artista usa as suas próprias
habilidades para criar a obra de arte, mas usou o conceito, o método, a ideia ou a
abordagem da arte de outro artista sem a devida atribuição.

c. Apropriação - Apropriação é a utilização extensiva de elementos físicos de uma


obra de arte visual criada por outro artista e incorporando esses elementos na sua
própria obra de arte com a intenção de a apresentar como uma criação do próprio
esforço intelectual. Trabalhos de pastiche e composições são exemplos de apropria-
ção. A apropriação é considerada apenas plágio se não houver atribuição às obras
de arte e a artistas originais.

Os termos direitos de autor e plágio são frequentemente confundidos ou usados


de forma errada. John W. Snapper (1999) sugere que isso acontece devido ao facto
de os casos mais mediáticos dessas ações envolverem uma combinação de ambos.
Os direitos de autor de uma obra de arte podem ser violados quando são exata-
mente copiados e vendidos como o trabalho do artista original. Como o artista foi
credenciado para a criação da obra, também não é um ato de plágio. No entanto, se
o trabalho foi copiado e vendido como a criação da pessoa que copiou o original,
seria considerado infração de direitos de autor e plágio. Como a violação de direitos
de autor envolve perda monetária, essa violação rege-se por leis bem definidas e
documentadas. Por outro lado, o plágio não resulta necessariamente em perda de
receita, trata-se mais de uma perda de credibilidade, uma vez que o plagiador visual
tenta fazer o espectador acreditar que ele é mais talentoso como artista.

A origem do plágio
Segundo Eduardo Vieira Manso (1987), por volta do século I A.C. existia uma prática
entre os romanos, que usava como vítimas cidadãos que tinham poucos vínculos
familiares ou que eram de classes sociais mais desfavorecidas, geralmente antigos
escravos que tinham conquistado a liberdade. Esses cidadãos corriam o risco de ficar

742
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

sob a posse de um sequestrador, que na língua latina da época se designava por


plagiarius, e rapidamente passavam de homens livres a escravos. Como não tinham
ninguém para os defender, estas pessoas tornavam-se propriedade dos sequestra-
dores, servindo em trabalhos forçados ou para fins de negociação. Para proteger
este grupo de cidadãos vulneráveis, o Direito Romano instituiu a lei na qual o termo
plagium ganhou a definição de apropriação indevida de algo alheio. Historicamen-
te, aparece assim a definição de plágio, como sendo a prática de propriedade frau-
dulenta e desonesta, vindo a ser controlada por uma lei específica.

As posições de cada sociedade em relação ao plágio refletem em grande parte as


opiniões da época em temas como a originalidade, a individualidade e a Proprieda-
de Intelectual. Segundo William Osler (1913), durante a era dourada da Antiguidade
Grega, a repetição de conteúdos sem qualquer tipo de atribuição ao autor original
era valorizada - e era até uma prática encorajada. As ideias de Hipócrates e Galeno,
pertencentes a esta era, foram parafraseadas e repetidas durante 15 séculos, bem
como os pensamentos de Aristóteles.

Para Stuart Green (2002), a originalidade e a individualidade ganharam força e afir-


maram-se na sociedade do final do século XVIII e início do século XIX com o apa-
recimento do Romantismo, que considerava a originalidade como sendo uma ca-
racterística essencial para um autor ou artista durante o processo de criação. Esse
processo de criação a partir do ‘nada’ é possível através da faculdade da imaginação.
Para Howard Caygill (2000), essa faculdade tanto pode ser empírica como pode ser
poética-produtiva. No que diz respeito à imaginação poética, esta tem a capacidade
de representar o objeto antes da experiência. Ao ser uma representação original que
não deriva da experiência, ela pode propiciar condições de experiência. A faculdade
da imaginação, associada ao conceito de liberdade, permitiu ao génio ser original.
É este processo de criação a partir do ‘nada’ que os românticos passam a aplicar nas
suas obras artísticas. A crítica da prática de plágio prolongou-se até aos séculos XIX
e XX. Durante esse período ocorreram casos em que o plágio se sobrepôs à violação
de direitos de autor, concorrência desleal ou até mesmo alguma forma de fraude,
mas normalmente não eram analisados à luz da justiça.

Os valores da sociedade de cada época influenciaram no papel a desempenhar por


parte do artista e do autor ao longo dos tempos. Desde a época medieval até ao século
XVIII, a monarquia controlava o comércio, o mercado e a propriedade dos trabalhos
criativos, dando especial destaque à produção escrita. Com a invenção da imprensa,
em meados do século XV, o papel do autor começou a transformar-se. Para Martha
Woodmansee e Peter Jaszi, no livro The Construction of Authorship, “a ideia moderna
do autor como artista criativo e ser independente com direitos legais e proprietários
em e para o seu trabalho, é, entre outras coisas, um dos resultados a longo prazo da
introdução da impressão na cultura ocidental.” (Woodmansee & Jaszi, 1994: 175).

743
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 1. Andy
Figura 1. Warhol. Campbell’s Soup Cans, 1962 (imagem: The Museum of Modern Art)
Andy Warhol

Campbell's Soup Cans, 1962


O conceito de plágio
(imagem: Theno campoof
Museum das artes éArt)
Modern um tema complexo e, mesmo que se ten-
te diferenciar o que é adequado do que é inadequado, ainda existem muitas zonas
cinzentas que levantam ainda mais questões. Sem dúvida alguma que a era digital
e da informação, onde as facilidades técnicas da reprodução estão profundamente
enraizadas, juntamente com a abordagem teórica da apropriação pós-modernista,
vieram modificar significativamente as abordagens e interpretações criativas no que
diz respeito ao que se pode considerar como cópia legal ou ilegal de conteúdos,
conceitos e informação.

Não há dúvida também que a inspiração e as referências a outros artistas fazem par-
te do processo criativo. As ideias surgem de várias fontes, assumem novas formas e
transformam-se em coisas novas. As diferenças entre o que constitui plágio e o que
constitui apropriação legítima podem assumir muitas e variadas formas tais como
homenagem, pastiche, paródia, paródia satírica, entre outras. Dentro destas práticas
artísticas, não raras vezes, acontecem casos em que é difícil e complexo determinar
se a intenção do artista foi esconder ou omitir a referência de origem, tornando-se
assim num caso de fraude, ou se a sua intenção está associada a um comportamen-
to ideológico da corrente pós-modernista, que procura sobretudo criar uma nova
abordagem a questões relativas à referência de origem, passando assim a poder ser
considerado pastiche.

744
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 2. Walker
Figura Evans
2. Walker Figura
Evans. [Allie Mae Burroughs, 3. Sherrie
Hale County, Levine
Alabama], 1936
(imagem: The Metropolitan Museum of Art)
[Allie Mae Burroughs,
Figura 3.Hale After Evans:
Sherrie Levine. After Walker Walker Evans: 4, 1981
4, 1981
(imagem: The Metropolitan Museum of Art)
County, Alabama], 1936
(imagem: The Metropolitan
(imagem: The Metropolitan Museum of Art)
Museum of Art)
Embora seja possível identificar e classificar o plágio nas artes visuais através de abor-
dagens teóricas, torna-se muito mais difícil e complexo determinar quais as intenções
de uma obra no seu sentido prático. Em situações concretas, as generalizações teóricas
podem tornar-se problemáticas e a determinação de cada situação só pode ser avalia-
da caso a caso. No entanto, é obviamente importante compreender do ponto de vista
teórico de que forma a cultura e a História da Arte têm influenciado a prática apropria-
cionista e os comportamentos de plágio no campo das artes visuais.

O plágio na contemporaneidade
À medida que a nossa época contemporânea avança, parece evidente que os concei-
tos de individualidade e de Propriedade Intelectual continuam a ser desafiados e a
ser postos à prova. Pode muito bem dizer-se que conceito atual de plágio é baseado
numa visão capitalista de posse e propriedade. Este conceito parte do pressuposto
que tudo o que tem valor económico pode ser adquirido, comprado e vendido. As
ideias, o conhecimento e a arte são coisas criadas por indivíduos e, portanto, assume-

745
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

-se que têm direito de propriedade. Esta é sem dúvida uma visão que está profunda-
mente enraizada na cultura ocidental. Mas existe uma linha muito ténue nessa noção
de que as ideias podem ser balizadas num autor ou num proprietário. Como nos diz
Jonathan Lethem (2008), se a sociedade contemporânea se regesse por essa norma
capitalista, então de cada vez que a música Happy Birthday fosse cantada num espaço
público, quem a cantasse teria de pagar uma taxa à Sociedade Americana de Compo-
sitores, Autores e Editores e, felizmente, isso não acontece.

Com a revolução digital, reforça Henry Jenkins (2006), a definição tradicional de


plágio está a ser novamente desafiada. A forma como o conhecimento é produzi-
do atualmente, e como é distribuído, exige que o conceito de plágio seja repensa-
do e que esteja constantemente a ser considerado aos olhos dos novos desenvol-
vimentos tecnológicos, pois estes cada mais ampliam o número de pessoas que
podem produzir e fazer circular materiais culturais. Hoje em dia é cada vez mais
fácil o acesso a uma grande quantidade de informação, e a tarefa de vigilância
e filtragem do que é apropriação e plágio de ideias torna-se quase impossível. O
crescente desenvolvimento tecnológico, o acesso fácil a todo e qualquer tipo de
informação, está a fazer com que as novas gerações tenham uma visão sobre con-
ceitos como conhecimento, propriedade, aquisição e distribuição muito diferentes
da visão da geração anterior.

A ideia de bens públicos comuns, sugerida por Jonathan Lethem (2008), oferece uma
visão alternativa para o conhecimento, para as ideias e para a arte. Os bens comuns
são tudo aquilo que pode pertencer a todos e a ninguém em simultâneo. Podem ser
tomados como exemplos físicos o ar, a água, as ruas, as avenidas, os parques, entre
outros. Outro bem comum público é a linguagem, usada por todos os membros de
uma comunidade linguística, gerida por regras que derivam de um consentimento
comum, modificada por todos os que a utilizam, não para a tornar incompreensível,
mas pelo contrário, para aproximar à realidade contemporânea. Em suma, a lingua-
gem é propriedade de todos e, ao mesmo tempo, de ninguém.

Como nos diz Alan McCord (2008), é possível perceber que a prática do plágio é um
fenómeno ancestral, que se manifesta nas mais variadas áreas e situações da socie-
dade contemporânea, mas que adquiriu contornos específicos no meio artístico. Na
área artística o fenómeno tem-se intensificado com o aparecimento e crescimento
da sociedade da informação, devido ao constante desenvolvimento das novas tec-
nologias de informação, bem como a evolução dos equipamentos e softwares que
facilitam o acesso de conteúdos.

As fortes influências das tecnologias digitais, sobretudo a internet e as redes so-


ciais como o Facebook, resultaram em mudanças significativas na forma como as
comunidades interagem na contemporaneidade, modificando as estruturas de
poder dentro nas sociedades e na forma como é criado o conhecimento, como

746
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

ele é partilhado, analisado, difundido e avaliado. Não há dúvida que caminhamos


cada vez mais para uma cultura de sociedades mais participativas, que Henry
Jenkins descreve como: “Uma cultura com barreiras relativamente baixas para a
expressão artística e envolvimento cívico, forte apoio à criação e partilha de cria-
ções, e algum tipo de orientação informal por parte de participantes experientes
que transmitem conhecimento aos novatos. (Jenkins, 2006: 3).

Olhando para a sociedade contemporânea, bem como para as novas gerações,


é possível perceber que atualmente a origem da alfabetização e literacia reside
fundamentalmente no envolvimento da comunidade, na partilha, na cooperação
e construção de conhecimento coletivo, contrariando a anterior conceção de cul-
tura que dava especial destaque a atitudes e comportamentos individuais.

Outros conceitos relevantes: Propriedade Intelectual,


Direitos de autor, pirataria na Internet
Apesar do conceito de plágio fazer parte de várias expressões do quotidiano, nas
quais o conceito parece ser de fácil compreensão, nem sempre o é, sendo desafiante
fazer a distinção entre vários conceitos similares. Existem várias semelhanças e dife-
renças entre estes conceitos.

i) Das três classes de direitos subjetivos, reconhecidos pelo Direito Romano, nenhum
engloba a Propriedade Intelectual na sua totalidade, que, segundo a Organização
Mundial da Propriedade Intelectual, se refere a criações da mente: invenções, obras
literárias, obras artísticas, símbolos, nomes, imagens e desenhos usados para fins co-
merciais (OMPI, 2019). Segundo Peter Ramsden (2011), as três classes são distingui-
das como direitos reais, direitos pessoais e direitos de personalidade. O Direito Real
está relacionado com objetos tangíveis ou corpóreos. Por se tratar de uma criação da
mente, a Propriedade Intelectual não pode ser considerada um objeto real. Quanto
aos direitos de personalidade, que são o direito à integridade física e à dignidade,
estes não podem ser tirados de uma pessoa, ao contrário da Propriedade Intelectual,
que pode existir separada do seu criador.

ii) Em termos gerais, define-se Direito de autor como “aquele direito que se aplica a
um autor qualificado de uma obra original reconhecida pela Lei (ou pessoa que ad-
quiriu direitos de ou através dela) e que lhe permite impedir a cópia não autorizada
dessa obra.” (Smith, 1995: 50).

Um pastiche ou uma composição feita de trabalhos existentes torna-se um novo tra-


balho original. Isso é comumente chamado de apropriação e tornou-se atualmente
prática comum e aceite, embora se deva ter em conta que, se o autor do trabalho
em uso não permitir que o autor da nova composição faça uso desse trabalho, a
nova composição infringe direitos de autor e pode resultar numa infração. Permitir

747
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

que outro artista use a obra de arte de uma pessoa é designado de empréstimo
permissível se o mutuário fornecer uma divulgação completa do trabalho que será
usado. O trabalho que daí resultar será considerado um novo trabalho original por
direito próprio e gozará de proteção de direitos de autor, desde que esteja em for-
mato material. Os direitos de autor não se aplicam a ideias e um trabalho deve estar
em formato físico e, mesmo assim, apenas os recursos do trabalho são protegidos,
não o conceito.

Para Michael Edenborough (1995) os direitos de autor podem ser violados direta ou
indiretamente. A infração direta, ou primária, é a cópia não autorizada de uma obra
de arte e a infração indireta, ou secundária, resulta quando determinados atos são
executados em simultâneo com uma infração primária, como por exemplo a distri-
buição de cópias ilegais de obras de arte sem autorização.

iii) Segundo a Universidade de Oxford, a pirataria na Internet é “o roubo e a reutiliza-


ção de entidades encontradas na Internet. Isto inclui videoclipes, imagens gráficas
e texto. Em geral, o uso não autorizado dos media da Internet é um crime tal qual o
uso não autorizado de qualquer outro media.” (Oxford University Press, 2019).

Assim, a pirataria na Internet é o uso ou reprodução não autorizada de obras


protegidas por direitos de autor na Internet. Outras formas de pirataria incluem
pirataria física, falsificações e bootlegs. A pirataria física é a fabricação e/ou dis-
tribuição ilegal de materiais com direitos de autor, como por exemplo a cópia
de filmes em formato DVD e a sua venda no mercado negro. A falsificação é a
distribuição de um produto intencionalmente projetado para permitir que o po-
tencial consumidor acredite ser outro produto protegido por direitos de autor. O
bootlegging é a gravação não autorizada de transmissões ao vivo e a subsequen-
te redistribuição desses arquivos, como gravar um filme num cinema e vender o
arquivo resultante.

Embora os três últimos tipos de pirataria existam desde que Hermadorus vendeu os
discursos de Platão, é evidente que a pirataria na Internet é um fenómeno relativa-
mente recente e as agências de aplicação da lei não acompanharam a evolução da
tecnologia e o número de piratas e hackers tem aumentado cada vez mais.

Segundo Peter Yu (2004), os Estados Unidos da América perderam mais de dez bi-
liões de dólares em 2002 devido à pirataria de direitos de autor. As tentativas do
governo americano de proteger os media com direitos de autor na Internet falha-
ram por questões de privacidade, como ficou comprovado no dia 18 de janeiro de
2012, quando importantes entidades da web, como a Wikipedia e outros, realizaram
um apagão contra o Stop Online Piracy Act (SOPA) e o Protect Intellectual Property
Act (PIPA). SOPA e PIPA foram tentativas do governo dos Estados Unidos da América
de combater a pirataria, permitindo que os operadores dos Domain Name System

748
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

(DNS) bloqueassem o acesso a sites estrangeiros infratores. Isso terá entrado em


conflito com o ato de liberdade de informação e foi abandonado indefinidamente
depois do apagão ter deixado os utilizadores com muito pouco acesso à internet
(Bridy, 2012: 158).

Apropriação
Por se tratar de um tópico bastante debatido da academia e dos direitos de autor,
é importante compreender a análise teórica da apropriação artística. Este assun-
to influenciou as ideias de críticos e profissionais de arte na sua abordagem à
arte e curadoria assim que esta expressão ganhou notoriedade, sobretudo, nos
Estados Unidos da América pós-moderna. A apropriação, ao procurar ser uma
“autoexpressão”, contraria a noção tradicional de arte de que “as Histórias da Arte
e Arquitetura são compostas principalmente de monumentos para autoridade”
(Owens, 1992: 91), afastando-se assim dos antigos propósitos da arte como pro-
paganda ou domínio do poder político através dos museus. A mudança para que
a apropriação seja vista como uma autoexpressão ajuda a um maior e mais aberto
debate académico, pois muda a forma como vemos os momentos na história e
avaliamos a relação entre o tema e o artista.

Os momentos históricos geralmente glorificam individualidades ou eventos consi-


derados superiores, em parte devido ao facto de que as obras de arte eram enco-
mendadas pela realeza e por patronos ricos. Também é crucial entender as regras de
apropriação, pois derivam de uma perspetiva académica e de como a nossa cultura
artística interpreta essa ação. A apropriação é uma componente do mundo da arte
pós-moderna, como refere Craig Owens, “O pós-modernismo é caracterizado pela
sua resolução de usar a representação contra si para destruir o vínculo ou status
absoluto de qualquer representação” (Owens, 1992: 110).

Em relação às Histórias da Arte e Arquitetura, como refere Owens, a apropria-


ção dissipa a noção de que a representação incorpora a autoridade, reorientando
essa representação e, portanto, alterando a natureza da obra de arte aos olhos
do espectador. O pós-modernismo desenvolveu-se como uma crítica contínua da
representação, contrariando o conceito inicial do modernismo. De certo modo, o
pós-modernismo surgiu em resposta à constante representação de poder que a
História da Arte estabelecia. De certa forma, criou uma certa flexibilidade onde os
artistas pudessem levar essa representação de poder e reinventá-la num sistema
de paródia e ridicularização.

749
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 4. Man
Figura RayRay. Marcel Duchamp dressed as Rrose
4. Man Figura 5. Yasumasa
Selavy, Morimura
1924 (imagem: Another Mag)
Figura
Marcel 5. Yasumasa
Duchamp dressedMorimura. Doublonnage
as Rrose Selavy, 1924 (Marcel), 1988 (imagem:
Doublonnage (Marcel),Museo
1988 Reina Sofia)
(imagem: Another Mag) (imagem: Museo Reina Sofia)

O crítico David Grosz (2006) identifica o modernismo como sendo o responsável por
uma mudança no que é considerado História da Arte. Segundo ele, “o modernismo
reescreveu as regras de arte e se não formos cuidadosos, o ilusionismo realista (a téc-
nica de utilização de imagens que muitas vezes enganam o espectador) pode ser visto
como antiquado.” (Grosz, 2006: 1). Dito por outras palavras, o modernismo é o joga-
dor que reestruturou as leis da arte, mas por vezes as obras modernistas aparecem
como tradicionais depois do aparecimento do pós-modernismo e da apropriação. En-
contram-se, frequentemente, trabalhos apropriados que mostram uma imagem, mas
escondem a mão do artista original. Trabalhos apropriados alteram a representação
de uma imagem através da representação dela própria. Craig Owen clarifica a relação
entre apropriação e representação ao dizer que “a apropriação de uma pintura é uma
visão de representação como substituição: a imagem é tratada como uma substituição
para algo que de outra forma não apareceria.” (Owens, 1992: 96). Ou seja, o propósito
da apropriação é o de criar um novo produto, sendo o original uma mera mistura de
outros elementos numa escala maior. O resultado é muito mais emocionante quando
surge uma nova obra completamente independente da inicial.

Segundo Craig Owens (1992), a apropriação pós-moderna, adquiriu inicialmente o


seu estatuto na fotografia, reiterando a teoria da transparência e da representação.

750
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Owens propõe uma definição estruturalista de transparência, sendo esta importante


para a apropriação porque permite ver a representação de uma imagem através da
versão original. Nas próprias palavras do autor,

Afirmar que a representação é transparente para os seus objectos não é defini-la como mimética
ou ilusionista - os mapas, por exemplo, não simulam a experiência visual. Pelo contrário, significa
que cada elemento da obra de arte é significativo, isto é, se refere a algo que existe independen-
temente de sua representação. Assim, a “transparência” designa uma perfeita equivalência entre
a realidade e sua representação; significante e significado espelham-se um ao outro... Estamos
tão acostumados a essa formulação do problema da representação - através de obras de arte que
chamam a atenção para suas próprias propriedades materiais, e através de uma história da arte
que nos ensina a vê-las como combinações mais ou menos harmoniosas ou dissonantes de linha
e cores - que podemos ter dificuldade em apreciar o que Foucault e Marin identificam como a
condição absolutamente fundamental da representação, pelo menos como ela foi concebida no
século XVII, e essa é a transparência (que não é a mesma coisa que ilusionismo). (Owens, 1992: 98).

A recriação permite-nos repensar o original de uma forma que não existia até então.
Segundo Owens, “a transparência designa uma perfeita equivalência entre a realida-
de e a sua representação; significante versus significado espelham-se um ao outro,
um é apenas a reduplicação do outro.” (Owens, 1992: 98).

Com a transparência vem a capacidade de interpretar e articular a representação


que é separada do modernismo para se tornar uma forma de arte mais auto-expres-
siva. O propósito e a transformação da transparência são evidentes numa imagem
e isso faz com que seja diferente da imagem original, superando-a. Craig Owens re-
força que “todos os elementos de um trabalho artístico são significativos, sendo que,
se referem a algo que existe independentemente da sua representação.” (Owens,
1992: 98) O trabalho final é, portanto, uma nova obra de arte que é completamente
independente do trabalho inicial que a inspirou.

Durante o processo criativo é possível utilizar a repetição de obras através do méto-


do de apropriação. Quando se utilizam partes de obras ou cópias inteiras, a apropria-
ção viaja através do espaço e do tempo para redefinir, reencaminhar ou repetir um
tema. Mais do que um mero pastiche ou um tributo, a apropriação tem o seu lugar
na arte que atravessa vários géneros. Como refere Jan Verwoert,

Os artistas apropriam-se quando adotam imagens, conceitos e formas de fazer arte que outros
artistas utilizaram anteriormente, de modo a adaptar esses meios artísticos aos seus próprios
interesses. Eles também se apropriam quando usam objetos, imagens ou práticas culturais po-
pulares (ou estrangeiras) e reeditam-nas dentro do contexto dos seus próprios trabalhos, quer
para enriquecer quer para corroer definições convencionais do que uma obra de arte pode ser.
(Verwoert, 2006: 14).

751
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Embora a apropriação tenha algum protagonismo na prática criativa, foi o discurso for-
mal de apropriação de Marcel Duchamp que estabeleceu um novo compromisso com a
repetição. A apropriação do objeto de arte através de meios simples, como a assinatura
de um objeto do quotidiano, como é exemplo The Fountain com a assinatura R. Mutt
1917, faz mais do que apenas colocar objetos dentro de contextos diferentes, essa apro-
priação multiplica o singular para um plural que produz uma repetição sem fim.

Figura 6. Francis Bacon. Three Studies for Figures at the Base of a Crucifixion, c. 1944
Figura 6. Francis Bacon Figura 7. Connie
(imagem: Imboden
Tate Gallery)
Three Studies for FiguresFigura
at the 7. Connie
Untitled #5978,Untitled
Imboden. 1994 #5978, 1994
Base of a Crucifixion, c. 1944 (imagem: Connie Imboden)
(imagem: Connie Imboden)
(imagem: Tate Gallery)

Ao dissolver a fronteira entre a vida real e a arte, através da apropriação, Marcel


Duchamp conseguiu criar uma forma simples de repetição, que, no entanto, tem
resultados complexos. A sua própria postura crítica, a sua forma de repetição supri-
me tudo o que ele utiliza para expressar as suas ideias, a arte em si. Esta forma de
aniquilação, com uma posição assumidamente marcada através da apropriação, põe
em causa a identidade autoral, apontando para uma visão desconstrutiva que nos
mostra, mais do que um plano repetitivo, um novo caminho que a arte pode seguir.

Considerações finais
A apropriação é uma prática absolutamente legítima, no que diz respeito ao mundo
da arte. No entanto, esta evidência artística tem incomodado juízes, advogados e
juristas, desafiando os critérios principais dos direitos de autor, como são os da ori-
ginalidade e da autoria.

752
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Este artigo teve como questão de investigação a pergunta: existirá plágio criativo no
campo das artes visuais?

Assim julgamos poder sistematizar as seguintes considerações:

A apropriação abriu caminho a que artistas mais irreverentes tivessem uma ainda
maior flexibilidade para a autoexpressão. O porquê de um artista sentir o desejo de
se apropriar de obras de arte já existentes pode ser entendido com um olhar históri-
co sobre os nossos antepassados, desde os romanos aos pintores renascentistas, que
criavam obras replicadas de outras com um desejo íntimo de aprender e responder
às perguntas mais profundas do mundo, através da arte e do pensamento.

A intenção da apropriação é desafiar a ideia romântica de que toda a arte deve ser
criada inteiramente por um artista, sem referência a outros. Esta formulação artística
procura abalar os dogmas da criação artística, abrindo novas possibilidades para o ar-
tista explorar as suas habilidades de alterar, sobrepor ou justapor elementos díspares
de uma outra obra, de forma a que estes elementos passem a ter novos significados.

Ao pensarmos a apropriação como “arquivo” este é operante não apenas a partir


do campo conceptual mas configura outras realidades da obra. A apropriação de
imagens e as técnicas associadas à reordenação e descontextualização tornaram-se
estratégias artísticas comuns na era pós-moderna. Com o aparecimento da internet
e a facilidade de acesso a uma vasta rede de imagens, os objetos de arquivo digital
de obras de arte perderam o seu estatuto especial e assumiram o papel de qualquer
outro objeto digital; esses objetos podem agora ser copiados, alterados ou rearran-
jados por artistas de uma maneira que seria considerada absurda, amoral e antiética
dentro das paredes das instituições artísticas e museológicas. A apropriação artísti-
ca, através do trabalho de adaptação ou subversão das características e práticas do
arquivo, pode configurar novas realidades das obras.

A capacidade que a apropriação tem de fazer com que o observador interprete um


trabalho artístico, como algo que aborda e questiona os padrões tradicionais da so-
ciedade, é o que permite que estas ações criem uma nova camada de leitura sobre a
História da Arte e apresentem uma nova análise da representação artística. As novas
criações oferecem novas perspetivas acerca dos trabalhos anteriores. A utilização de
estilos, histórias, motivos e outros conteúdos artísticos desenvolvidos no contexto
de outro artista ou outra cultura potencia cruzamentos e experiências que podem
resultar em novas obras de alto valor estético.

O contexto e os factos sobre a origem de uma obra criada a partir da apropriação


permitem ao público ver ou interpretar obras referenciadas de novas maneiras. Es-
sas reinterpretações de obras de artistas anteriores criam uma nova camada de in-
terpretação do trabalho em causa, sendo que nenhum dos trabalhos se substitui,
pelo contrário, podem tornar-se complementares.

753
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A verdadeira beleza da apropriação na arte reside, sobretudo, no sentido provoca-


dor. O espectador é convidado a vislumbrar um novo olhar a partir da nova ima-
gem, sobre a imagem original. Este acontecimento, ou seja, o momento em que o
espectador reflete sobre as intenções do artista, a sua interpretação do mundo e as
funções normativas da sociedade, determinadas por uma autoridade subjacente, é
a chave para ver o valor da arte sobre a arte.

É importante examinar o comportamento da apropriação para a compreensão de


trabalhos surgidos anteriormente. Muitas vezes a História do mundo é compreen-
dida através das obras de artistas astutos, capazes de criticar e reconstruir a arte do
passado. Através delas, temos a oportunidade de reexaminar a História e, sobretudo,
a possibilidade de reavaliar os ideais tradicionais ao longo da História do mundo.

Embora as noções de autoria artística tenham sido vistas muitas vezes como desafiado-
ras ou até prejudiciais para o campo das artes, de facto os artistas que trabalham a apro-
priação levantam novas questões, sejam estas intencionais ou não. Com a apropriação,
os artistas são capazes de questionar e reinventar conceitos como a originalidade e a
inovação. A originalidade é uma pressão extrínseca dirigida ao artista pela sociedade, e
não uma restrição que é interna ao próprio conceito de arte. Ao posicionar-se relativa-
mente a esta questão, mais do que negar a autoria, o artista pode realmente afirmar o
seu estatuto enquanto ser criativo.

O objetivo deste artigo foi o de alargar o contexto do fenómeno de apropriação nas


artes visuais, traçando o papel da cópia e do plágio, desde as suas origens na edu-
cação artística académica até ao presente, oferecendo uma estrutura para melhor
compreender como a História da Arte se pode posicionar ao serviço da Arte, para
além do seu tradicional contributo, documental e interpretativo, através do papel da
cópia como evolução de uma técnica destinada a educar artistas academicamente
treinados para o universo artístico. Artistas, curadores, críticos e pensadores em ge-
ral, veem a cópia, ou o plágio, como uma forma de homenagear o passado ou uma
ferramenta crítica de artistas ou épocas anteriores. Pode-se perceber que há uma
riqueza de informações, tanto teóricas quanto práticas, bem como contribuições do-
cumentais e académicas, ainda por explorar, em relação a esta matéria.

Lista de figuras
Figura 1. Andy Warhol, Campbell’s Soup Cans, 1962, acrílico com tinta esmalte metáli-
co sobre tela, (32 painéis, cada tela de 50.8 x 40.6 cm, instalação geral com 7.62 cm en-
tre cada painel) total de 246.38 x 414.02 cm, Manhattan, The Museum of Modern Art.

Figura 2. Walker Evans, [Allie Mae Burroughs, Hale County, Alabama], 1936, fotogra-
fia, 20.32 x 25.40 cm, New York, The Metropolitan Museum of Art.

Figura 3. Sherrie Levine, After Walker Evans: 4, 1981, fotografia, 12.8 x 9.8 cm, New

754
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

York, The Metropolitan Museum of Art.

Figura 4. Man Ray, Marcel Duchamp dressed as Rrose Selavy, I924, impressão de pra-
ta de gelatina, 20.3 x 15.2 cm, ----x----, ----x----.

Figura 5. Yasumasa Morimura, Doublonnage (Marcel), 1988, fotografia, 150 x 120 cm,
Madrid, Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía.

Figura 6. Francis Bacon, Three Studies for Figures at the Base of a Crucifixion, c.1944,
óleo sobre tela, 116.2 x 96 x 8 cm, Londres, Tate Gallery.

Figura 7. Connie Imboden, Untitled #5978, 1994, fotografia, ----x----, ----x----, ----x----.

Referências
Barthes, R. (1968). O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes.

Bridy, A. (2012). Copyright policymaking as procedural democratic process: A dis-


course theoretic perspecyive on ACTA, SOPA and PIPA. Cardoza Arts and Entertain-
ment, 153-164.

Caygill, H. (2000). Dicionário Kant. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda.

Edenborough, M. (1995). Intellectual Property Law. London: Cavendish Publishing


Ltd.

Eissen, S. M., & Stein, B. (2006). Intrinsic plagiarism detection. Berlin: Springer.

Foucault, M. (1992). O que é um autor? Lisboa: Vega.

Green, S. P. (2002). Plagiarism, norms, and the limits of theft law: some observations
on the use of criminal sanctions in enforcing intellectual property rights. Hastings
Law Journal.

Grosz, D. (2006). Getting real, looking back. The New York Sun, 1-2.

Jenkins, H. (2006). Confronting the Challenges of Participatory Culture: Media Educa-


tion for the 21st Century. Chicago: The MacArthur Foundation.

Lethem, J. (2008). Contra la originalidad. Mexico: Tumbona Ediciones.

Manso, E. J. (1987). O que é direito autoral. São Paulo: Brasiliense.

McCord, A. (2008). Improving online assignments to deter plagiarism. Management:


Lawrence Technological University.

755
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

OMPI. (10 de Agosto de 2019). What is Intellectual Property? Obtido de https://www.


wipo.int/about-ip/en/

Osler, W. (1913). Evolution of Modern Medicine. New Haven: Yale University Press.

Owens, C. (1992). Beyond recognition: Representation, power and culture. University


of California, 88-113.

Oxford University Press. (10 de Agosto de 2019). Internet piracy. Obtido de http://
www.oxfordreference.com/view/10.1093/oi/authority.20110803100008149

Ramsden, P. (2011). A guide to intellectual property law. Cape Town: Juta Law.

Smith, A. (1995). Copyright Companion. Durban: Butterworth.

Snapper, J. W. (1999). On the web, plagiarism matters more than copyright piracy.
127-136.

Stein, G. (1993). Encyclopedia of Hoaxes. Detroit: Gale Research.

Verwoert, J. (2006). Apropos appropriation: Why stealing images feels different to-
day. Tate Publishing, 14-21.

Woodmansee, M., & Jaszi, P. (1994). The Construction of Authorship: Textual Appro-
priation in Law and Literature. Durham: Duke University Press.

Yu, P. K. (2004). The escalating copyright wars. Hofstra Law Review, 907-951.

756
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Alessio Chierico1
ARTificial Intelligence from Generative Art to
Post-Media practice

Abstract
Generative Art (GA) is an established artistic approach which has been extensively
debated in the past. However, the emergent development of Artificial Intelligence
(AI) and its use in artistic contexts, demands a novel contextualization of the the-
ories and principles that defined GA. The aim of this research is to rehabilitate the
principles of GA and apply them to the artistic practices that utilize AI for creative
purpose. This investigation has been developed by applying an existing theoretical
framework for understanding GA (Dorin et. al. 2012) to some recent projects that use
of AI. In addition, the practices that follow this artistic approach, offer relevant hints
for the basic definition of Post-Media (Chierico 2016) and the discussion concerning
the role of media in art production, thus, the agency and the authorship of media in
artistic practice. AI in art responds to most of the GA theories and it brings them to
their extreme point. However, some theories need to be restructured and adapted to
the specific functioning and outcomes of AI in art.
Keywords: Generative Art, Artificial Intelligence, Post-Media practice, Media Art

Introduction
Generative Art (GA) is the definition of a specific method applied to artistic practice,
which is not circumscribed in any historical period, but assumes a particular rele-
vance during the 21st century (Galanter 2016 p. 1). This term has been extensively
used in the area that concerned Computer Art and all the artistic approaches that
see a conscious relation between art and technologies, often identified as Media
Art. However, it seems that the definition and principles of GA have been out of the
academic discussion during the last 10-15 years. Arguably, this might be the result
of a preconception that aligns GA to modernist imprinting or simply the lack of par-
ticular artistic and technical innovations that determined a conceptual stagnation
(McCormack et. al. 2013 p.12), thus, preventing the necessity to rediscuss the exist-
ing theories. This latest occurrence is currently undermined by the latest advance-
ments in Artificial Intelligence (AI), especially its use for artistic purpose. In gener-

1 Alessio Chierico is an artist, researcher and lecturer with a background in contemporary art, design
theory and media studies. Chierico is lecturer at the Accademia di Belle Arti di Macerata (IT) and
Accademia Costume e Moda in Rome (IT). He is also PhD candidate at Interface Culture department
of Kunstuniversität Linz (AT).

757
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

al terms, AI identifies the researches that aim to the development of autonomous


forms of non-animal (thus non-human) intelligence. The use of AI for artistic experi-
mentations begins already in 1973 with the project AARON made by Harold Cohen
(McCorduck 1991). However, a novel explosion of the use of AI for artistic practice
spread recently in two different directions: In one hand, the major technological
developments and employment of AI in many sectors, place this technology in the
spotlight; consequently it became a relevant argument for conceptual speculation.
On the other hand, the development of AI technologies for image, text and sound
processing and recognition unfolded a series of new and fascinating opportunities
for artistic creation.

Generative Art: Principles and Definitions


The definition of GA that appears to be more accepted by its community has been
formulated by Galanter, who described it (after a second revision) with the following
statement:

“Generative art refers to any art practice in which the artist cedes control to a system with functio-
nal autonomy that contributes to, or results in, a completed work of art. Systems may include na-
tural language instructions, biological or chemical processes, computer programs, machines, self‐
organizing materials, mathematical operations, and other procedural inventions.” (Galanter 2008)

GA presents a strong bond with Computer Art. This might be easily observed by
the name of the first computer art exhibition: “Generative Computergraphik”. This
exhibition, held in 1965, presented the works of the pioneer Georg Nees, who used
this same title for his PhD thesis (Nees 1969), which became one of the major ref-
erences for the theories in GA (Boden and Edmonds 2009). Despite the undeniable
relation between Computer Art and GA, it is important to clarify that GA does not
depend on the use of computers and it is not in the exclusive domain of the Media
Art or all the subsets in the area in which art and technology are interwoven. Pre-
senting an arguable assumption, Galanter (2016) opposed the dependence of GA to
computers. Accordingly, the procedural automation of their technical precursors, for
instance, the Jacquard’s loom, demonstrates that GA anticipated and paved the way
to computer science.

Bypassing the specific concern that relates GA with computer science, it must be
added that the notion of GA does not imply any privileged mean of production, in
accordance to Post-Media theories in the art (Chierico 2016). Indeed, there is a com-
mon agreement concerning the fact that GA cannot be circumscribed to specific
conceptual intentions, medium or contents of the artistic research, but it is a method
of artistic production (McCormack et. al. 2013 p.2, Galanter 2016, Dorin et. al. 2012,
Boden and Edmonds 2009).

758
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

AI-based Works in a GA Framework


This paper intends to underline that the use of AI for artistic purpose is subject to the
same definitions and principle offered by GA, with few exceptional remarks subse-
quently exposed. In order to demonstrate that AI-based artworks are entitled to stay
in the GA context, it has been applied a comparative method for analysing a small
sample of recent artworks. Specifically, the following analysis is based on a frame-
work defined for the understanding of GA (Dorin et. al. 2012). This model assumes
four components that constitute any Generative Art system: entities, processes, en-
vironmental interaction and sensory outcomes.

Accordingly, Entities “are the subjects upon which a generative artwork’s processes
act. [...] Entities are constituents that are (conceptually) unitary and indivisible, and
whose functional relationships are not typically expressed in terms of internal mech-
anisms” (Dorin et. al. 2012 p. 244). Processes are defined as “mechanisms of change
that occur within a generative system; they necessarily involve entities that perform
operations on, or interact with, each other” (Dorin et. al. 2012 p. 245). With the term
Environmental Interaction this theoretical framework assumes that: “all generative
systems operate within a wider environment from which they may draw informa-
tion or input upon which to act” (Dorin et. al. 2012 p. 246). The definition Sensory
Outcomes describes “artefacts (visual, sonic, musical, literary, sculptural, etc.), includ-
ing static or time-based forms” (Dorin et. al. 2012 p. 247). These outcomes display
the status of the generation process (definitive or in progress) and are the sensible
form through which the artwork can be experienced. The analysis of each of the fol-
lowing works, will be also enriched by “remarks on media agency” and “remarks on
media authorship”: A series of observations, made by the author, which correspond
respectively to: how the media used, to create the specific artwork, present a certain
degree of agency and how the notion of authorship is challenged by the autonomy
of the specific system.

MIT Media Lab. Norman. 2018


Norman (Fig. 1) is a project developed by MIT Media Lab (2018). It consists of an AI-
based on Machine Learning that creates a textual description of images (inkblots)
made for Rorschach test. The peculiarity of this work is that Norman has been trained
by reading a large number of captions that describe photos of violent deaths. As a
result, Norman interprets any inkblot as gruesome occurrence, demonstrating that
it developed a psychopathic personality. Among other aspects, this work highlights
how the biases in AI happen because of biases in initial data.

GA understanding framework (see Table 1)

Remarks on media agency

759
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

In the absence of different formalizations, this work has to be intended as intangible,


conceptual and process-based. The artistic medium of this work consists of the soft-
ware that process and generate information in order to determine the final outcome.
In this case, the medium offers a central function in determining the artwork, it does
not influence its appearance, but it is directly related to the content generation.

Remarks on media authorship

The automation of the process performed by Norman gives the impression that the
authorship of the contents is entirely assigned to the AI. This might be true if the
artwork is considered to be the sentences produced by the system. Differently, it is
here assumed that the artwork is the ideation and creation of the system itself. Thus,
the creation of the logic and the sets of rules that determined the performativity of
the work, in line with the definition offered by Post-Media practice (Chierico 2016).

Fig.1 - MIT Media Lab. Norman. 2018. Screenshoot from the website http://norman-ai.mit.edu/.


Loclair, Christian. Narciss. 2018
Narciss (Fig. 2) is a work created by Christian Loclair (2018) consisting in an instal-
lation composed by an uncovered computer equipped by a moving camera and a
mirror that stands in front of the computer. This system hosts an AI that constantly
performs image recognition: it describes with text, what the camera sees during its
random movements. Because of the mirror, the camera is always pointing to various
parts of the computer, thus, the AI describes the hardware that contains itself, simu-
lating an act of self-reflection.

760
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

GA understanding framework (see Table 1)

Remarks on media agency.

This work consists of a series of physical elements (pedestal, mirror, computer, cam-
era, monitor) mainly controlled by software. Here instances of agency can be found
in the important function of AI in determining the textual outcome, but also in the
physical appearance of the installation, that influences the interpretation of AI. Cer-
tainly, this last aspect has been calibrated by the artists for the purpose of the work.
In other terms, the media used for this work are functional to the conceptual intent
of the artists and their agency enriched the coherence of the project.

Remarks on media authorship

Similarly to the work observed previously, the main outcome of the work, consisting
of text, emerges autonomously from the performance of AI. However, the setting
created by the authors (installation) awards them with the largest part of authorship.
The function covered by AI, in this case is fundamental, but partial. This work can be
interpreted as a sort of collaboration between authors and AI.

F ig. 2 - Christian Loclair. Narciss. 2018. Courtesy of the artist.

Radical Norms. 100% Chair. 2019


The project 100% Chair by Radical Norms (2019) is a design experiment that involves
AI as support to the creative process. A collection of existing chairs models are used
to train an AI to understand the basic shape of a chair. Subsequently, the AI analy-
ses in real-time a video stream of a rotating structure with various pieces of chair
inserted randomly. The movement of this structure determines the emergence of
chair-like shapes which the AI can recognize and propose as a new possible model,
according to an assigned score.

761
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

GA understanding framework (see Table 1)

Remarks on media agency

This work strongly relies on a tangible generative system (moving structure) assisted
by AI. All the components used in this system have a relevant part in the creative
result. However, it must be noted that the creation of the generative system accom-
modates the artistic methodology based on predefined rules. Moreover, it must be
noted that the generative system is reflected in the outcomes of this work, but it is
not present in the formalization of the project.

Remarks on media authorship

The authorship of the project outcomes strongly depends on the generative system,
presenting almost complete independence from human intervention. However, it is
important to clarify that this project can be considered both as generative tool for
artworks or an artwork per se. This aspect is central to numerous generative project.
The position expressed here consider the project as artwork independently from its
outcomes. For this reason, the authorship is here supposed to be clearly assigned to
the developers of the generative system.

Wang, Phillip. This Person Does Not Exist. 2018


“This Person Does Not Exist” (Fig. 3) is a web-based project created by Phillip Wang
(2018). Every time the web page of this work is loaded, an AI generates a high-res-
olution photograph of a plausible human face. This project is based on GANs (Gen-
erative Adversarial networks) a specific application of AI, commonly used in image
recognition and processing (see chapter 4).

GA understanding framework (see Table 1)

Remarks on media agency

This work is essentially presented as a collection of digital images on a website. The


agency of the generative system is highly dominant in the outcomes of the work.
Indeed, the behaviour perpetrated by the agents in GANs-based system is auton-
omous and complex. The rules-based system, proposed in this project, is coherent
to the notion of Post-Media practice, but it must be observed that this statement
applies independently to any use of GANs for image generation.

Remarks on media authorship

The authorship of the outcomes of this work is highly balanced on the performance
of GANs. Nonetheless, the elaborations of GANs for the specific purpose of this proj-
ect, in addition to the chosen name and the presentation of the work, demonstrates

762
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

the clear authorship of the creator. However it is very important to notice that the
main algorithm that regulates this work was not made by the author, but it comes
as a result of researches developed in the NVIDIA laboratories. (Karras et. al. 2018)

Fig. 3 - Faces generated from the website https://www.thispersondoesnotexist.com/

Elwes, Jake. Machine Learning Porn. 2016


The work “ Machine Learning Porn” (Fig. 4) by Jake Elwes (2016) consists in a video
generated from an AI (specifically a Convolutional Neural Network or CNN) which
shows evolving abstract figures that resemble body parts. The video has been cre-
ated by training this AI with a dataset of porn images detected by Yahoo’s explicit
content model. The result was instructing the AI to recreate pornography, by inter-
preting the pictures of the dataset.

GA understanding framework (see Table 1)

Remarks on media agency

Similarly to the previous work, the agency of the generative system of this project
is determinant for the final outcome. The AI system constitutes a framework where
the generative process develops. It is interesting to notice that CNN, differently then

763
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

GANs, relies more strongly on the existing images dataset, in order to form an evolv-
ing image, without photo-realistic discrimination. (see chapter 4)

Remarks on media authorship

While the outcome itself (video) is entirely determined by AI, the authorship of this
work is mainly given by the artist choice of the specific and provocative subject used
for the image processing. The choices and the settings prepared by the artist allows
the project to unfold generatively.

Fig. 4 - Jake Elwes. Machine Learning Porn, 2016. Courtesy of the artist.

764
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Table 1

Projects Entities Processes Environmental Sensory


interaction outcomes
Norman Text Learning process Violent deaths Textual
(input), Inkblots captions, descriptions,
interpretation and text Rorschach Documentation
generation (output) inkblots provided in a
website
Narciss Text, Video Random movements Camera Textual
of the camera, Image movements, descriptions, Code
processing, object Mirror, Computer executed (visible in
recognition, text components the monitor), Video
generation (output) (details described recording from the
by the AI), Lighting camera (visible in
conditions the monitor)
100% Chair Physical Learning process Structure move- 3D model
chair (input), Rotating ment, Lighting
fragments structure, Image conditions
processing, Object
recognition
This Person Pixels Generator, Faces dataset Image file
Does Not Discriminator used for the
Exist (training), discriminator
Discriminator (analysis training
and evaluation)
Machine Pixels CNN (training), CNN Porn images Video file
Learning (generation)
Porn

Generative Art and AI: What is new with AI in Art?


Some of the works previously illustrated, demonstrate sapient reflections that ex-
pose some peculiarities of AI (used here in its generic meaning. To be more precise it
would be necessary to explain and use the terms Machine Learning and related sub-
sets). However, special attention should be given to the concerns raised by techni-
cal advancements of Deep Learning, especially the development of CNN and GANs.
Indeed, these technologies stimulated many artists and programmers to create AI-
based projects that focus on visual media. For instance, the works: “This Person Does
Not Exist” (Wang 2018) and “Machine Learning Porn” (Elwes 2016). In this context,
there is no intention nor competence in treating in detail the technical aspects of
Deep Learning, CNN and GANs. Nonetheless, there are major peculiarities that result
fundamental to this argumentation.

765
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Firstly, Deep Learning techniques assume a certain degree of complexity and au-
tonomy of the system, that cannot be predicted and the entire process cannot be
understood in step-by-step detail. Certainly, this peculiarity accommodates the
principles of GA. CNN consists in a system that analyses and discriminates a large
amount of media (often photographs) e by creating an average model of the type
of contents, contained in its dataset, it attempts to evolve the existing model, cre-
ating abstract shapes that resemble the original subjects. GANs identify a system
composed by at least two neural networks (here called agents) that negotiate the
credibility of the generated content (commonly a picture). One agent (generator)
develops an approximation of the image that is intended to create (a face in the case
of the work “This Person Does Not Exist”). The other agent (discriminator) evaluates
the quality of the represented object, by comparing it to a vast dataset of that same
kind of objects. Subsequently, this agent returns its evaluation to the generating
agent for stimulate it to create a more reliable image, thus, sending it back to the
initial step. This process repeats itself until the discriminating agent is satisfied. This
system of self-improvement determines the photorealistic quality of the final pic-
tures (Horev 2018).

Considering the qualities of these techniques, it must be noted that the major dif-
ference from a generic GA work and a work based on the latest implementations of
AI, is the incomparable independence and agency of AI systems. Interestingly, this
independence and agency, demonstrate a process of decision making of a non-hu-
man agent, certainly driven by human design. In other terms, the decision making
performed by AI has higher and invisible complexity of the information processing,
in comparison to GA projects not based on AI.

Conclusion
To summarize, this text exposed four main aspects that reflect on the specificity of
AI-based works. First of all, it has been seen that, in general terms, the agency of me-
dia in the AI-based artworks presents a determinant and essential influence in both
the formalization and the conceptualization presented by the works. Arguably, this
agency appears to be more consistent then general GA projects. Secondly, the au-
thorship in AI-based works remains obviously a privilege of the artists, who are the
actual designers of their artistic practice. However, the autonomy and complexity of
the operations performed by AI systems used by the artists, give exclusive indepen-
dence to the system in determining the contents. Moreover, it must be noted that,
commonly to any software-based artwork, the creators of the algorithms (or a por-
tion of them) detain a certain degree of authorship. The third aspect seen in this text
concerns the vocation of AI-based works to reflect on GA theoretical implant. Using
the GA understanding framework (Dorin et. al. 2012) the analysis of recent AI-based
works, confirmed the (already accepted) idea that these works respond properly to
the GA theories. In addition, it must be noted that GA principles, related to the fea-

766
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

tures of independence and authorship, are brought to the extreme point in AI-based
works. Indeed, they might require further investigations and they might lead to nov-
el definitions, considering future technical developments in AI. Finally, the other
main aspect discussed in text concern the contextualization of GA principle in the
notion of Post-Media practice (Chierico 2016). It has been found that the GA reflects
accurately the concepts expressed by the theorization of Post-Media practice. GA is
often seen as artistic experience of Media Art, which demonstrates that Post-Media
practice is a coherent expression that relates contemporary art to Media Art.

References
Boden, M. A., & Edmonds, E. A. (2009). What is generative art? Digital Creativity, 20(1–
2), 21–46.

Chierico, A. (2016). Medium specificity in post-media practice. V!RUS, [e-Journal],


(12).

Dorin, A., McCabe, J., McCormack, J., Monro, G., & Whitelaw, M. (2012). A framework
for understanding generative art. Digital Creativity, 23(3–4), 239–259.

Elwes, J. (2016). Machine Learning Porn [Artificial Intelligence, video]. Retrieved from
https://www.jakeelwes.com/project-MLPorn.html

Galanter, P. (2008). What is Complexism? Generative Art and the Cultures of Science
and the Humanities. Proceedings of the International Conference on Generative Art.
Presented at the Generative Art, Milan.

Galanter, P. (2016). Generative art theory. In C. Paul (Ed.), A companion to digital art
(pp. 146–180). Chichester, West Sussex ; Malden, MA: John Wiley & Sons Inc.

Horev, R. (2018, December 26). Style-based GANs – Generating and Tuning Realistic
Artificial Faces. Retrieved June 3, 2019, from Lyrn.AI

Karras, T., Laine, S., & Aila, T. (2018). A Style-Based Generator Architecture for Genera-
tive Adversarial Networks. ArXiv:1812.04948 [Cs, Stat].

Loclair, C. (2018). Narciss [Installation]. Retrieved from https://christianmioloclair.


com/narciss

McCorduck, P. (1990). Aaron’s Code: Meta-Art, Artificial Intelligence and the Work of
Harold Cohen (First Edition edition). New York: W H Freeman & Co.

McCormack, J., Bown, O., Dorin, A., McCabe, J., Monro, G., & Whitelaw, M. (2013). Ten
Questions Concerning Generative Computer Art. Leonardo, 47(2), 135–141.

767
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

MIT Media Lab. (2018). Norman [Artificial Intelligence]. Retrieved from http://nor-
man-ai.mit.edu

Nees, G. (1969). Generative Computergraphik. Siemens AG, Berlin.

Radical Norms. (2019). 100% Chair. Retrieved from http://radicalnorms.com/portfo-


lio/100-chair-designing-for-algorithmic-landscapes/

Wang, P. (2018). This Person Does Not Exist. Retrieved from

768
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Chie Sakakibara1
Ainu Renaissance: Reclaiming History, Heritage, and
Environment in Indigenous Japan

Abstract
This project showcases the community-partnered exploration of indigenous Ainu
heritage in northern Japan, and links with a variety of topics on everyday life, ma-
teriality, and the collection of changes represented by such movements as envi-
ronmental justice, cultural revitalization, and ethically and culturally appropriate
ways of working with heritage resources. Hokkaido (the northernmost main island
of Japan) is Ainu’s primary homeland today after the rigorous and systematic as-
similation policy imposed upon them by the Japanese government throughout the
19th and 20th centuries. My collaborative study juxtaposes the colonial past and
contemporary renaissance of the Ainu expressive culture, which will culminate in a
special exhibition on Ainu to be held at the Allen Memorial Art Museum at Oberlin
College in the United States and Ainu museums in Japan in 2022.
Keywords: historical photos, collaborative exhibition, indigenous people, Ainu, Japan

This paper portrays an emerging project enabled by a vibrant international and in-
tergenerational collaboration that has been taking place between a rural indigenous
community in northern Japan and a small liberal arts college in northeast Ohio in
the United States of America. On a personal note, I was born and raised in Japan,
and I now serve as an Assistant Professor of Environmental Studies and East Asian
Studies at Oberlin College located in Oberlin, Ohio, a midwest town of the United
States. Oberlin College has a renouned on-campus art museum called the Allen Me-
morial Art Museum (AMAM), one of the nation’s best collegiate art museums. The
AMAM is known for the collections of Asian art, the most notable being the 1,500 Ja-
panese woodblock prints (ukiyo-e) from Edo period collected and donated by Mary
A. Ainsworth, an Oberlin alumna, in 1950. The museum also contains many other
collections of Asian art, including ancient Chinese bronzes and medieval Japanese
paintings in addition to its superb Western art collections including a Monet, Renoir,
Picasso, and Klimt just to name but a few.

In October 2019, the AMAM received a gift of historical photographs of Japan taken
by the German-American photographer Arnold Genthe (1869-1942) from Chris-

1 Chie Sakakibara is Assistant Professor of Environmental Studies and East Asian Studies at Oberlin
College, USA.

769
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

topher Thomas, an Oberlin alumnus. Twenty-five photos in the collection were


taken in 1908 in Biratori, an Ainu community of southern Hokkaido, and they were
eventually identified as the third-oldest set of photos that documented the people
and environment of the settlement. However, the fact that the photos were never
shared with the original community members as they remained in the United States
appeared problematic, especially because countless duplicate copies were made for
commercial purposes without any consensus of the local people.

While I work as a faculty member of Environmental Studies, my academic backgrounds


are in Native American and Indigenous Studies, Art History, and Cultural Geography.
Based on my experience in the United States, naturally, I was painfully aware of the
history that up to the end of the 20th century, indigenous peoples, anthropologists,
archaeologists and museums have had a complicated and contested relationship due
to the conflict between two opposing worldviews with respect to the ownership of
land, resources, and cultural and intellectual properties in the United States. To resolve
such conflicts and misunderstandings (that involved human remains, sacred objects,
funeral objects, and objects of cultural patrimony that were displayed at museums or
sold to collectors), the Native American Graves Protection and Repatriation Act (NA-
GPRA), a federal law of the United States, was passed in 1990. The Act requires federal
agencies and institutions to return culturally significant and sensitive items to their
respective tribes and peoples. However, NAGPRA does not refer to “intangible” cultural
products such as music and oral tradition. The issue of “ownership” over native music,
performance and knowledge had become a hot dispute on a global scale. A central
question is whether the ownership of field recordings and their associated intellectual
property rights can be claimed by the non-indigenous recordists, or belong to the in-
digenous artists who created them. There were countless instances in the past in whi-
ch traditional and indigenous music, for example, was exploited by cultural outsiders
for commercial and scholarly purposes, with very little concern for these questions
of ownership rights. Since many indigenous musical traditions are orally transmitted,
they simply fall outside the scope of Western copyright law, which depends on ma-
terial inscription to establish “authorship.” Photographs can be equally (if not more)
complicated as the copyright goes to the person who photographed any objects. The
idea of historical photograph repatriation (in Japan where no NAGPRA was ever es-
tablished) may indicate how understanding has grown to recognize the importance
of ownership rights of indigenous peoples, and the contribution of such photos to
further augment cultural identity.

The Ainu are an indigenous people of northern Japan and formerly Sakhalin and
the Kamchatka Peninsula. Hokkaido—the northernmost main island of Japan—is
their primary homeland today after the rigorous and systematic assimilation policy
imposed upon them by the Japanese government throughout the 19th and 20th
centuries. A central finding of environmental justice research is that communities
of underrepresented heritage are disproportionately burdened by environmental

770
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

pollution and destruction and more vulnerable to disaster impacts. However, myriad
responses and efforts in such communities exemplify how collaboration can incre-
ase resilience to oppression, natural and unnatural disasters, and resource scarcity.

The Biratori Ainu have been known for their environmental activism since the 1970s.
For example, the Biratori residents stood up to protect their homeland and access to
salmon from the Hokkaido Regional Development Bureau’s order to construct the
Nibutani Dam on the Saru River in the 1970s through 1990s. Today, the community
members express the importance of exploring cultural and historical resources to
reclaim their past and reconstruct the environmental and cultural landscape that
had been integral to their social well-being and solidarity.

In November 2018, with a research grant from the Foundation for Research and
Promotion of Ainu Culture (FRPAC) for my project, I visited Hokkaido to bring the
photographs home and introduce the AMAM collection to the community mem-
bers. Despite my fear of potentially being accused for not returning the photos to
the community sooner, many residents were thrilled to see the historical photos of
their own community, and kindly helped me identify landmarks, architecture, cultu-
ral traits, environmental surroundings, and most importantly, the Ainu people who
were photographed. Everyone embraced me warmly, and I felt welcomed and fulfil-
led. By the end of the sohrt trip, I realized the project had grown much bigger than
my original anticipation.

It was a wonderful experience to witness how the people whom I spoke with were
especially eager about future collaboration between Oberlin and the Ainu community
to collectively explore environmental justice and heritage as well as tracing the trans-
formation of the Biratori landscape since the early 20th century. Our collaborators are
in Biratori and beyond, including the Ainu studies community such as the Center for
Ainu and Indigenous Studies at Hokkaido University, Chiri Yukie Memorial Museum,
Nibutani Ainu Culture Museum, and Shiraoi Ainu Museum just to name but a few. The
Biratori community’s response to the historical photographs is extremely enthusiastic.

My colleague at Oberlin, Kevin Greenwood (Joan L. Danforth Curator of Asian Art at


the AMAM) and I have originally had a vision when we first saw Genthe’s Ainu pho-
tos: we planned ahead to propose a special ethnographic exhibition on Ainu culture
at the AMAM a few years down the road. But after my initial trip to Biratori, I knew we
have acquired a new vision and agenda. Along with the steering committee consis-
ted of Ainu experts and scholars, this exhibition will be co-curated with Kevin Gre-
enwood and our student research assistant Liam Hefta in conjunction with my Fall
2022 course Introduction to Indigenous Peoples and the Environment. This exhibition
showcases the community-partnered exploration of Ainu history and heritage, and
links with a variety of topics such as environmental justice, cultural revitalization,
and ethically and culturally appropriate ways of working with heritage resources.

771
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

“Let’s turn the AMAM exhibition into a traveling exhibition. That way, we’ll get to
celebrate the photos in Biratori and all over Hokkaido. It’s the real home-coming for
the photos!” said Maki Sekine, 52, an Ainu artist and strong advocate of Ainu expres-
sive culture. Her remark certainly became our motivation. With this goal in mind, the
community-partnered Ainu photograph project aims to demonstrate an innovati-
ve model for reconceptualizing both archival practice and the place of archives of
cultural resources for social science conducted with indigenous communities. The
ethically and culturally just “giving back” process has to be based on reciprocity and
mutual interest between multiple parties: indigenous groups, tribal or community
members, scholars, and archives and/or museums that house institutional collec-
tions. As a premise, the transaction is expected to be complicated because the con-
cepts such as “intellectual property,” “property rights,” “copyright,” and “ownership”
have colonial origins that have facilitated the exploitation of indigenous cultural
legacy, something that is inseparable from tribal and human well-being. We see a
collaboration as a two-way effort with the community rather than simply handing
over the photographs and re-establishing the “ownership” in a legal and academic
way. Specifically, toward the traveling exhibition and beyond, we are working toge-
ther to: 1) better situate the photos and other materials associated with Genthe in
the community by recovering detailed contextual information about the materials;
2) develop community-wide consensus on the proper disposition and future uses
of photographs and related rights; 3) restore community access to the photos; 4) to
encourage, support, and enable contemporary and innovative uses of the photos by
local Ainu artists, educators, cultural activists, and by the community more generally
to support indigenous socio-cultural-environmental activism. Through collabora-
tion and fusion of diverse perspectives, this project shows indigenous communities
and individuals in discovering or recovering community resources from institutional
collections can work together in a less adversarial and more dialogic and equitable
way. With this approach, this project facilitates the true “giving back” to the commu-
nity about how such collections should be best managed, used, preserved, promo-
ted, and understood in the light of indigenous resilience in collaboration.

Our collaboration has just begun. One step at a time, we are scafolding a solid foun-
dation for the proposed exhibition through the collaboration with the descendants
(of those who were captured in the photos), community leaders, and students and
teachers in Biratori and Sapporo in Hokkaido. Our exhibition will be informed by
the steering commity involving local collaborators, scholars, and artists. In so doing,
our collaborators will help us establish the richness of the photographs, their im-
portance to the community, and the potential value of extending this research into
other Ainu communities to better learn environmental history, cultural heritage,
and environmentalism of the Ainu people and their homeland. The ethnographic
information will be incorporated into the exhibition to highlight the continuity and
resilience of the Ainu culture today.

772
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Our exhibition will juxtapose the colonial past and contemporary renaissance of
the Ainu expressive culture. Ainu heritage has been deeply intertwined with their
respect, appreciation, and embracement of the natural and spiritual environments,
and the vitality of Ainu art today is evidence of an extraordinary story of survival.
A century ago, most non-Ainu had become convinced that Ainu arts and cultures
would soon disappear. Yet today these arts are thriving and receiving renewed at-
tention within international indigenous communities and from non-Ainu students,
art lovers, and domestic and international museums. In this context, the visual arts
have long played a critical role as carriers of culture within Ainu communities and are
today among the most eloquent and forceful articulations of contemporary identi-
ties and struggle for sovereignty. To illustrate such vibrancy of the contemporary
Ainu heritage, we will combine photographs taken in Biratori, an Ainu community
of Hokkaido, by Arnold Genthe in 1908, with several loans of art from Ainu artists.

In 1999, the National Museum of Natural History at the Smithsonian organized the first
exhibition on the Ainu focusing on the ancient origin of the people, their evolving re-
lations with the Japanese, and the 20th-century Ainu cultural rebirth. The AMAM is the
ideal institution for our exhibition as it further explores the resilient future of Ainu. It is
our goal to facilitate our community’s understanding of the history of exclusion, mar-
ginalization, and cultural revival. AMAM’s renowned Asian art collection, long-stan-
ding history of collaboration with the East Asian Studies Program and Oberlin Shansi
(one of the oldest international educational and cultural exchange organizations in
the United States focusing on East Asia), and legacy of Oberlin College activism for
social and environmental justice collectively reinforce our agenda of implementing
collaborative methodology in the making of this exhibition. It is our hope to eventu-
ally develop this project into an intergenerational, intercultural, interdisciplinary, and
international endeavor to focus on the multifaceted link between the Ainu and envi-
ronment by inviting active participation of the local community youth and elders as
well as Oberlin students, museum staff, and faculty. We sincerely look forward to what
we can contribute to the future of indigenous well-being and resilience at the time of
global climatic and envionmental change.

773
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Denise Bandeira1, Ana Flávia Lesnovski2 and


Luiz Antonio Zahdi Salgado3
Estratégias das artes do presente
laboratórios experimentais, criação e colaboração
Contemporary strategies for art
Experimental laboratories, creation and collaboration

Resumo
Este artigo apresenta uma análise sobre a emergência do campo da arte
digital, informado pelos impactos das tecnologias e influenciado pelos mo-
vimentos sociais e econômicos; e as suas práticas de produção, recepção e
divulgação. Tais processos vêm ocorrendo preferencialmente em laboratórios
ou em espaços transdisciplinares com outros modos de compartilhamento,
plataformas digitais e redes. Ao considerar esse contexto e seus atuais desdo-
bramentos, observa-se a emergência de um lócus de criação. A partir das tec-
nologias de rede e do uso de equipamentos móveis, surgem novas compo-
sições, denominações e atuações e que privilegiam a mediação cultural e os
múltiplos modos de recepção. Inicialmente, foram coletados dados sobre vin-
te organizações locais para a realização de uma pesquisa exploratória. Neste
artigo, destacam-se alguns aspectos sobre a constituição dos laboratórios ex-
perimentais. Nos dias de hoje, muitas dessas propostas já não correspondem
ao espaço determinado; elas aproveitam as redes sociais, as tecnologias mó-
veis e os modos de trabalho colaborativo para acontecer entre laboratórios,
comunidades e centros culturais.
Palavras-chave: Arte e tecnologia, , redes de criação, laboratórios experimentais.

1 Denise Bandeira, docente do curso de Artes Visuais e do Mestrado Profissional em Artes - Campus
Curitiba II FAP- Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR; artista e pesquisadora, também integra
o Núcleo de Arte e Tecnologia – NATFAP. A participação da professora no evento #18ART 2019, conta
com apoio da UNESPAR.
2 Ana Flávia Lesnovski, docente do curso de Artes Visuais e do Mestrado em Cinema e Artes do
Vídeo - Campus Curitiba II FAP- Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR; artista e pesquisadora,
também integra o Núcleo de Arte e Tecnologia – NATFAP.
3 Luiz Antonio Zahdi Salgado, docente do curso de Artes Visuais - Campus Curitiba II FAP- Univer-
sidade Estadual do Paraná – UNESPAR; artista e pesquisador, é coordenador do Núcleo de Arte e
Tecnologia – NATFAP.

774
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Abstract
This study intends to analyze the field outgrowth of digital art, depicted by techno-
logical impacts and by the economic trends and social movements; as well as its
forms of production, reception, and diffusion. They, in fact, have taken place mainly
inside laboratories and in transdisciplinary facilities along with other sharing modes,
some digital platforms, and networks. Having considered such context and its de-
ployments, to study the utmost creation of some of those specific places. It’s was
possibly to visualize the emergency of a creative locus that arises from networked
technologies and mobile equipment, new settings, nominations, and actions, along
with this cultural mediation and the various feedback trends. This should increase
different creation processes and researches concerning digital culture and technical
esthetics. Currently, many proposals do not closely match a specific space; yet, they
use social net, mobile technology
Keywords: Art and technology, creative network, experimental labs.

Retomada, estratégias e ação


Recentemente, houve uma retomada dos propósitos dos laboratórios experimentais
quando surgiram muitos questionamentos sobre sua configuração, conceituação e
denominações. Depois da origem4, proliferação5 e consolidação entre as décadas
de 1980 - 90 e, justificam-se, nos dias atuais, os vários modelos e suas proposições
como uma resposta aos impactos das tecnologias digitais em todos os setores da
sociedade e da economia, além da cultura e da arte, que não permaneceram imunes
diante de tais demandas. No início desses movimentos, diferentes organizações se
estabeleceram, a partir de um contexto e cenário global, para apoiar e divulgar a
produção da new media art, tais como a fundação ZKM (1989) criada em Karlsruhe
(Alemanha) e o New Media Institute (1990) em Frankfurt (Alemanha) e Inter-Society
for Electronic Arts - ISEA (1990), em Amsterdam (Holanda) (Shanken, 2009a). Entre
esses modelos, as necessidades de criação e estéticas, a infraestrutura tecnológica e
o apoio financeiro serviram para impulsionar parcerias e fundar organizações afins,
além de catalisar contribuições entre artistas, engenheiros e cientistas .

4 Uma das organizações precursores dessas modalidades foi o Media Lab criado em 1989, pelo pro-
fessor Nicholas Negroponte, junto ao Institut Massachusetts of Technology - MIT.
5 Laboratórios que se diversificaram quanto às estruturas, mas, com foco na área de arte, ciência e
tecnologias: em Roterdã (Holanda), destaca-se a criação do V2_lab, em 1981, para atuar em pesqui-
sa, preservação e divulgação, como uma interface entre arte, tecnologia e sociedade, oferece sua
plataforma para artistas, cientistas, teóricos e desenvolvedores (disponível em: https://v2.nl> Acesso
em maio de 2019) e ARS Electronic FutureLab criado em 1996, como um tink thank artístico e cien-
tífico, funciona como um estúdio laboratório (disponível em:< https://ars.electronica.art/futurelab/
en/ > Acesso em maio de 2019).

775
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Ainda nos anos 2000, o pesquisador norte-americano Naimark (2004) apresentou um


levantamento6 sobre centros de arte e laboratórios de tecnologia. Ele comentou en-
tão sobre as dinâmicas de sustentabilidade, sob dois pontos de vista, de um lado, a
produção no campo da arte; do outro lado, a produção no campo da tecnologia. Am-
bas as tipologias correspondem a locais com diferentes culturas e histórias; por isso,
a principal discussão concentrou-se na proposição de um espaço híbrido, entre um
centro de arte e um laboratório de pesquisa, cuja concepção baseou-se numa matriz7
de articulação ou de conexão entre arte, ciência, design e engenharia (Naimark, 2004).
E, por vários motivos, ncontraram-se condições favoráveis durante a emergência do
campo da arte da new media ou arte digital, principalmente, nos Estados Unidos.

Ao longo de tal período, o circuito internacional de arte integrado pelas instituições


de ensino, organizações e pelos artistas ganhou uma nova dimensão por combinar
laboratórios institucionais e centros culturais, tais como o MIT Media Lab, ARS Elec-
tronica Future Lab e do ZKM. Essas parcerias de sucesso lançaram as bases para a
ampliação do investimento cultural em mais laboratórios cuja criação ocorreu nas
últimas décadas (Shanken, 2009b). Entre outras funções e arranjos produtivos, um
conceito proposto em 2003 pelo professor norte-americano Neil Gershenfeld serviu
para designar um tipo de laboratório8 de fabricação digital (fabrication laboratory
- Fab Lab) que conta com máquinas e equipamentos, trabalha com tecnologia digi-
tal e robótica. Ainda, esse núcleo funcionava no apoio à produção, customização e
construção de objetos ou peças para diversos fins (Eychenne e Neves, 2013). Importa
esclarecer que esses laboratórios preocupam-se com modelos econômicos emer-
gentes, de produção e de compartilhamento das tecnologias digitais e com diferen-
tes combinações e ocorrem distribuídos em todo o mundo.

No Brasil, o estudo de Fonseca (2014a, 2014b, 2014c) realizado para o Ministério da


Cultura, copilado em vários volumes e publicado em 2014, desenvolvido na primei-
ra década do século XXI e no contexto das tecnologias de informação e comunica-
ção, apontou diferentes configurações e avaliou aspectos gerais desses laboratórios
experimentais. Em grande parte, estes foram marcados pelas práticas de inclusão

6 A investigação sobre os novos modelos de instituições de arte e tecnologia nos Estados Unidos,
Canadá e em alguns países europeus, foi solicitada pela Rockefeller Foundation e sua primeira versão
foi publicada para discussão e debate pelo Leonard Journal em 2003.
7 A matriz foi uma proposição de Rich Gold para promover a combinação entre as áreas: arte, ciên-
cia, design e engenharia. O material fundamentou em 1994, o programa de residência artística no
laboratório Xerox-Paolo Alto Research Center (EUA).
8 Esse modelo reúne equipamentos para prototipagem, robótica e eletrônica, oferece serviços para
designers, artistas e estudantes. Distribuídos por diversos países, essas organizações formam uma
rede de apoio ao empreendedorismo e inovação, colaboração, cooperação e compartilhamento de
serviços e de trocas.

776
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

digital, pela participação em festivais9, projetos de software livre, código aberto e


pelo acesso a outros tipos de tecnologia livre (Fonseca, 2008). Muitas vezes, eles es-
tavam em sintonia com movimentos de ativismo digital e de novas pedagogias, das
demandas de organizações sociais e dos centros de cultura digital. Nesse período,
os inúmeros coletivos que atuavam no cenário nacional, com múltiplas finalidades,
desde os pontos de cultura até os grupos da MetaReciclagem e Mídia Tática, ope-
ravam com lógicas próprias e, em geral, recebiam subsídios por editais públicos.
Dentre tantos modos de organizações, denominações e propósitos para a atuação
desses espaços, surgiu a ideia de laboratório temporário, concebida pelo Medialab
Madri (Espanha). Fonseca avalia que, no Brasil, adotar esse conceito para programas
sem definições rigorosas, ciclos abertos e de curta duração, foi um jeito de adap-
tar-se às instabilidades institucionais: “Hoje, dezenas de iniciativas no país usam o
termo laboratório para referir-se à ocupação de espaços para reunir pessoas com
competências diversas e com uma agenda em comum, tenham esses espaços infra-
estrutura específica ou não, tenha ou não essa ocupação a intenção de permanên-
cia.” (Fonseca, 2014d)

Ao mesmo tempo, no cenário internacional, tem início uma reconfiguração desses


espaços colaborativos em função de um crescimento exponencial em números, diver-
sificação de modelos10 e, por vários motivos, das transformações tecnológicas e eco-
nômicas, ao balanço instável entre o conceito de inovação para arte e para indústrias
criativas. Efetivamente, relatórios sobre a pesquisa em artes e a cultura digital, apre-
sentados por entidades, como Arts Council England (NESTA, 2018) e outros conselhos
internacionais (Fleming, 2017; Laaksonen, 2014), confirmam que nesse campo, com as
recentes tecnologias móveis, plataformas e redes sociais, surgiu uma nova maneira de
trabalhar criativamente, ubíqua e quase sem limites de autoria entre artistas e audiên-
cias. Em muitos países, essas produções têm sido apoiadas por relevantes e oportunas
políticas, legislações e programas dedicados a tais propósitos.

Laboratórios críticos, redes e colaborações


Ora, muitos agentes do sistema da arte questionavam esses modelos de produção
compartilhada e apontavam falhas nas estruturas híbridas. Em 2009, durante um
simpósio sobre o futuro dos laboratórios de arte, ciência e tecnologia, o historia-
dor norte-americano Shanken (2010) considerou muitos dos critérios inadequados

9 Festival Mídia Tática Brasil (MTB) aconteceu em 2003 e foi considerado um evento precursor na
discussão dos usos críticos das tecnologias, muitos dos seus idealizadores circularam em fóruns in-
ternacionais, com diferentes desdobramentos e repercussões, no terceiro setor e para as políticas
públicas de cultura (FONSECA, 2008).
10 Os laboratórios hackers compunham um contingente de mais de 500 unidades em todo o mun-
do em 2014. Disponível em: < http://hackerspaces.org>. Acesso em maio de 2019.

777
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

para qualificar tanto resultados de inovação quanto a longevidade, já que uma cha-
ve para o funcionamento dessas organizações seriam os projetos transdisciplinares.
Além do compromisso em divulgar e cultivar o reconhecimento público para o valor
cultural da pesquisa na intersecção entre arte, ciência e tecnologia, o mesmo pesqui-
sador defendeu também a adoção de métricas rigorosas, seguida pela avaliação da
documentação dos processos e dos produtos, cujos resultados poderiam garantir a
continuidade dos laboratórios (Shanken, 2010).

Ao mesmo tempo, a proposta apresentada por Broeckmann (2010) questionou a via-


bilidade dos espaços de produção, pois a prática de arte se transformou relativamente
às mídias: como os laboratórios de arte, workspaces e instituições de arte, poderiam
contribuir para com a produção do artista? Uma das condições para apoiar essas pro-
postas, defendeu o pesquisador seria a existência de três modelos: a centralidade e a
combinação de competências; uma rede social entre as instituições financiadores e
interessados no trabalho colaborativo em laboratórios e, por fim, seria o estabeleci-
mento de uma agência que conectasse todos os envolvidos, além de recursos para as
produções. Nos anos de 2010, observa-se que muitos dos laboratórios reconhecidos
resultavam em arranjos institucionais, organizacionais, métodos colaborativos e em
processos coletivos. Esses núcleos também passaram a atuar em seus contextos e nas
fronteiras entre educação, design, cultura, arte, tecnologia e comunicação.

Contudo, já vigorava uma ideia de laboratório, com o uso das redes sociais e das tec-
nologias móveis, muito menos como um espaço físico e mais a partir desse acúmu-
lo de experiências, das trocas, do trabalho colaborativo ou de um modo relacional.
Durante 2018 e 2019, numa pesquisa exploratória11, foram realizados vinte encon-
tros e entrevistas com profissionais responsáveis por diferentes tipos de laboratórios
localizados na cidade de Curitiba (PR). O estudo exploratório tratou de identificar a
existência de laboratórios experimentais em instituições de ensino públicas e priva-
das, instituições de arte e em organizações culturais, nas áreas de conhecimento em
arte, design, jogos digitais, audiovisual e animação digital. Além deste recorte, foram
considerados os FabLab implantados para atender as redes de ensino municipal e
estadual e, também, a unidade criada pelo Sistema Fiep (Federação das Indústrias
do Paraná), cuja proposta pretende reunir pesquisadores, estudantes e empreende-
dores em projetos que implicam na fabricação digital.

Essas organizações que desenvolveram modelos próprios de laboratórios, de atuação


e de financiamento, quanto à tipologia, podem ser classificadas da seguinte forma:
acadêmicos, instalados junto às instituições de ensino de arte e design e, também, em
entidades públicas nas áreas das ciências biológicas; laboratórios digitais dedicados

11 A pesquisa exploratória conta com o bolsista Guilerme Ritter, pelo Programa de Iniciação Cientí-
fica 2018-2019 oferecida pela CAPES/UNESPAR.

778
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

à produção de jogos, animações e audiovisuais de baixo orçamento; galerias alterna-


tivas e workspaces ocupados por artistas; laboratórios abertos ou residências em
organizações de arte; laboratórios multimídia, dedicados a produção em audiovisu-
al; FabLab que oferece equipamentos de prototipagem, atividades pedagógicas e de
pesquisa, corte e modelagem; espaços lúdicos e pedagógicos, com prototipagem,
robótica, cursos de arduino e de programação.

Uma primeira reflexão, ainda que não tenham sido compilados todos os dados sobre
esses núcleos, identificou o uso ou não de fontes de financiamento, apoio por editais
públicos, recursos próprios ou subsídios para instalações, infraestrutura tecnológica,
manutenção, agenda de cursos entre outras ações para subsistência. Os laborató-
rios vinculados às instituições de ensino de arte, universidades públicas e privadas,
reúnem docentes, discentes e comunidade, com interesses que variam de experi-
ências com multimídias, inteligência artificial, música eletroacústica, estudos sobre
o fenômeno da cor, performances ao vivo ou mediadas por equipamentos e com as
mais variadas interfaces. Como parte da cena local, o Núcleo de Arte e Tecnologia
da Faculdade de Artes do Paraná (NATFAP) foi criado em 2010, com o propósito de
contribuir com processos de criação, desenvolver pesquisas em arte e tecnologia,
em interseção com a cultura digital e fomentar uma reflexão sobre as tecnoestéticas.

Nesse contexto, muitos desses projetos aconteceram, tanto em parceria e nos espaços
das organizações e instituições de arte, quanto nos próprios espaços dos laboratórios
experimentais de Iluminação cênica, sonoro e de música eletroacústica (LiSonME), de
estudo e criação em arte eletrônica (Ste(A)MLab), laboratório experiemntal de arte di-
gital (LEAD), de VideoDança e de estudos de cor (Salgado et al, 2018).

Desde 2011, pesquisas e uma seleção de trabalhos de arte digital do NATFAP têm
sido apresentadas em edições anuais do Evento Conexão. Esses fóruns já aconte-
cem regularmente em instituições da cidade de Curitiba (PR), tais como Sesc-Paço
da Liberdade, Museu Oscar Niemeyer - MON e Centro Cultural do Portão do Museu
Metropolitano de Arte - MUMA. Observa-se que o uso das tecnologias móveis e
das redes sociais facilitou ações desterritorializadas na produção dos laboratórios
experimentais, com o deslocamento, ocupação e mediação dos processos cola-
borativoscom organizações de arte. Sobre recursos, por exemplo, os laboratórios
LiSonME e LEAD, receberam para a sua fundação, além de apoio por edital, bol-
sas de pesquisa disponibilizadas pela Fundação Araucária12 (Salgado et al, 2018).
e, muitos trabalhos, discussões, projetos e orientações acontecem por interações
online, com compartilhamento em plataformas, repositórios, e-mails e trocas por
redes sociais ou acadêmicas.

12 Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Estado do Paraná


é uma organização privada de interesse público criada em 1998.

779
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Contudo, os encontros presenciais permitiam efetivar as questões discutidas em rede.


Na maioria desses laboratórios experimentais, outras ferramentas e aplicativos, sites, tu-
toriais, blogs, chats, fóruns e diferentes tipos de material disponível online contribuem
para a realização das práticas e pesquisas em arte, ciência e tecnologia. Por fim, tais
metodologias vêm integrando os processos de aprendizagem coletiva e de criação.

Experiências, práticas e processos


Importa destacar que os laboratórios instalados temporariamente nas instituições de
cultura têm contribuído para a socialização dos conhecimentos em arte e tecnologia, e
integram professores, educadores e artistas em processos e práticas contemporâneas
de ensino-aprendizagem e na discussão dos modos complexos de criação da arte.

Neste estudo, avaliou-se que a permanência e as atividades do Ste(A)MLab realiza-


das no MON durante quatro meses, possibilitaram a convivência entre artistas, es-
tudantes e visitantes, além de ampliar a experiência do púbico com as tecnologias
acessíveis e de baixo custo.

Do espaço físico do laboratório ao laboratório como uma rede entre humanos e não-
-humanos (artistas e aparatos técnicos) há a oportunidade de um tipo de atuação
que se aproxima dos públicos de formas diversas. No caso do Ste(A)mLab, desde
sua origem em 2014, o percurso entre a formação de um espaço, metafórico ou físi-
co, organizado de forma a não ocupar um único lugar e sua atuação como coletivo
serviram para evidenciar seus propósitos. Nesse período, o laboratório não contava
com sala própria e tinha dificuldade em arregimentar participantes em torno de um
conceito de trabalho ainda difuso. A partir de 2016, com o uso de sala compartilhada
com outros laboratórios, na mesma instituição, foi possível criar uma rede social e
profissional, ainda que sem a utilização de equipamentos permanentes. Paradoxal-
mente, a formação do coletivo superou a ausência de um espaço físico. Na sequên-
cia, o laboratório iniciou diversas ações com comunidades externas, como oficinas
de arte e eletrônica, em escolas de ensino fundamental e em espaços culturais. Em
2019, a parceria firmada entre o setor educativo do Museu Oscar Niemeyer e o labo-
ratório, permitiu que essas atividades acontecessem nas dependências do museu,
em um espaço situado fisicamente entre as oficinas e a exposição13 “O mundo não
para enquanto você não se move” composta por obras do acervo do museu.

Por fim, este laboratório passou a ocupar uma posição estratégica. Todas as sema-
nas, dali desenvolviam-se atividades e experimentos em arte e eletrônica, o que re-
fletiu no seu posicionamento sobre arte e educação, a partir de um contato direto
entre artistas, público e aparatos técnicos (fig. 1).

13 A exposição foi uma iniciativa da equipe do educativo do Museu Oscar Niemeyer com curadoria
de obras do acervo, convite aos artistas para a realização de oficinas e, também, para a parceria com
o Ste(A)mLab, com duração entre fevereiro e junho de 2019.
780
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Sem a compartimentalização de saberes que um laboratório acadêmico tradicional


costuma adotar - artistas e técnicos trabalham de acordo com delimitações de ação
por área do conhecimento - um laboratório desterritorializado composto primaria-
mente por artistas, propõe-se exercitar a experimentação no seu sentido mais radical
- ir ao encontro do perigo, lançar-se em um movimento de risco (Latour, 2012). Sem
acesso a equipamentos e espaço próprio, o caráter de rede do laboratório Ste(A)mLab
é reforçado, evidenciando o diálogo entre humanos e máquinas: os objetos e as téc-
nicas não são usados para fins artísticos, mas são em si instigadores, provocadores,
facilitadores, ou em outras palavras, agentes dentro de uma rede (Coessens, 2014).

Figura 1: mesa de trabalho e detalhe instalação realizada em coautoria com participantes do


laboratório Ste(A)mLab e os educadores do MON em maio de 2019.
Fonte: fotografias de Rafael Benaion, 2019.

781
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A partir destes comentários brevemente apresentados, observa-se que modelos de-


senvolvidos para as práticas de pesquisa em arte, conforme Laddaga (2013), seguem
etapas que se diferenciam daquelas adotadas pelas ciências tradicionais, já que in-
centivam intensas trocas e um processo de comunicação entre os participantes com
suas perspectivas. Ora, esses projetos têm sido propostos em diálogo com comuni-
dades e contexto “ por isso, são possíveis graças ao desenho de estruturas organiza-
cionais nas quais há focos e hierarquias, mas sempre revisáveis, estruturas abertas e
fluídas em termos de intensidade e individualidade das implicações que permitem.”

Esse estudo identificou três laboratórios que trabalham no modelo FabLab instala-
dos respectivamente: em uma unidade de serviços comunitários da cidade de Curi-
tiba (PR); em um dos setores da Secretaria de Educação do Estado do Paraná que
se dedica ao atendimento de professores da rede pública e, por fim, o último que
funciona em uma unidade do Sistema Fiep e, também, oferece apoio aos pesquisa-
dores, estudantes, empresas e comunidade, no desenvolvimento de projetos com
fabricação digital e convencional, possibilitando o uso de equipamentos de prototi-
pagem para projetos de inovação na indústria.

Há pouca ou nenhuma discussão na cena local sobre esses espaços e, também,


a conexão entre os grupos e suas práticas acontece de modo esporádico, o que
reflete a ausência de políticas públicas para atender essas demandas ou de inicia-
tivas institucionais que privilegiem esses modos de trabalho, de pesquisa ou de
produção. Além disto, o compartilhamento desses espaços entre artistas, pesqui-
sadores e comunidade poderá contribuir com novas metodologias de ensino, de
criação e de produção. Os cursos de licenciatura e bacharelado em artes ganham
acesso às novas tecnologias e aos modos de produção da manufatura digital e,
consequentemente, poderão se beneficiar com novas práticas de ensino-aprendi-
zagem e de empreendedorismo.

Enfim, a realização desses encontros, mostras e atividades quando os laborató-


rios ocuparam espaços institucionais engendrou o desenvolvimento de práticas
de mediação com discentes e docentes, com propostas de ação cultural e trocas
ampliadas com a audiência e, ao mesmo tempo, permitiu o debate e estudos dos
resultados dessas ações e das pesquisas em curso. Além disso, são outros modos
de organização, de atuação e de autoria complexa, que demandam a integração
em rede entre pessoas e máquinas, dispositivos tecnológicos ou não. Portanto,
esses processos podem ser compreendidos como componentes de um lócus de
criação, de trabalho coletivo e colaborativo, junto ou com diferentes disciplinas e
com a tarefa de mediação e de comunicação, já que esses laboratórios e seus par-
ticipantes desejam atuar como uma interface entre as áreas artística e tecnológica
e as comunidades.

782
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Referências
Coessens, K. (2014, ago). A arte da pesquisa em artes - traçando práxis e reflexão.
ARJ - Art Research Journal, [S.l.], v. 1, n. 2, p. 1-20. ISSN 2357-9978. Disponível em:
<https://periodicos.ufrn.br/artresearchjournal/article/view/5423>. Acesso em: 27
set. 2016.

Eychenne, F., & Neves, H. (2013). Fab Lab: A Vanguarda da Nova Revolução Industrial.
São Paulo: Editorial Fab Lab Brasil.

Fleming, T. Tom Fleming Creative Consulting (TFCC) (2017). The digital art and cul-
ture accelerator: an evaluation. London: Arts Council England (ACE) / Nesta.

Fonseca, F. S. (2014 a) Mapeamento: Arranjos Experimentais Criativos em Cultura Di-


gital. Relatório de consultoria. Coordenação Geral de Cultura Digital. Ministério da
Cultura.

_____. (2014b) Arranjos Experimentais Criativos em Cultura Digital. Produto 2. Re-


latório de consultoria. Coordenação Geral de Cultura Digital. Ministério da Cultura.

_____. (2014c) Arranjos Experimentais Criativos em Cultura Digital. Produto 3. Re-


latório de consultoria. Coordenação Geral de Cultura Digital. Ministério da Cultura.

_____. (2018) Em busca do Brasil profundo. In: BRUNET, Karla (org.). Apropriações
tecnológicas: emergência de textos, ideias e imagens do submidialogia #3 (pp. 92-
110) Salvador : EDUFBA.

Laaksonen, A. (2014) ifacca d’art report no 47. Arts Panorama: International Over-
view of Issues for Public Arts Administration. D’Art Topics in Arts Policy, No. 47, Inter-
national Federation of Arts Councils and Culture Agencies. Sydney: IFFACCA.

Latour, B. (2012) Reagregando o Social. Bauru, SP: EDUSC/ Salvador, BA: EDUFBA.

Naimark, M. (2004) Truth, beauty, freedom and money: technology-based art and
the dynamics of sustainability. Disponível em: < http://www.artslab.net/ > Acesso
em: dez. 2010.

Nesta. (2018) Experimental Culture: a horizon scan commissioned by Arts Council


England. London: Arts Council England (ACE) / Nesta.

Salgado, L. A. Z., Borges, A. H., Lesnovski, F. M., Bandeira, D. A.,Lima, G. H. T., Onuki, G.
M., & Luciani, N. M. (2018, jul./dez). NATAFAP. In: FAP Revista científica V. 19, n.2. (pp.
12-39).

Shanken, E. (2009a). Art and electronic media. London: Phaidon Press, 2009.

783
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

_____. (2009b) Historicizar Arte e Tecnologia: fabricar um método e estabelecer um


cânone. In: Domingues, D. (org.). Arte, Ciência e Tecnologia – passado, presente e
desafios. (pp. 139 – 163). São Paulo: UNESP.

_____. (2010) The history and future of the lab: collaborative research at the intersec-
tions of art, science and technology. In: PLOHMAN, Angela; BUTCHER, Clare (Orgs.). A
Blueprint for a Lab of the Future. (pp. 18-29). Eindhoven: Baltan Laboratories.

784
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Giovanna Graziosi1 Casimiro and


Raphael Bausch2
Perspectivas do restauro digital: Rothko’s Harvard Murals e
Aura Basilica Montreal

Resumo
A partir da exposição Mark Rothko’s Harvard Murals, propõe-se repensar os mo-
dos de restaurar e a construção das narrativas no contexto expositivo por meio
da apropriação de dispositivos digitais. Refletindo sobre as questões de curado-
ria, narrativas históricas e restauro, neste artigo aponta-se para novos modos de
expor e pensar o restauro em tempo real analisado os projetos de restauração
de obras do Rothko (Harvard Museum) por meio da projeção mapeada, permi-
tindo o ajuste de cores sem a intervenção química/física, bem como Aura, um
projeto imersivo realizado em Montreal com o intuito de reviver o interior da
igreja utilizando projeção mapeada. Tais ações ajudam a pensar a multiplicação
de ações de restauro que se consolidam na imagem digital, priorizando a sobre-
posição das camadas digitais e física, ao invés da intervenção permanente sobre
a matéria. Nesse sentido, esta possibilidade impactam sobre o modo como o
restauro se estrutura no futuro do patrimônio, assim como, amplia as possibili-
dade expositivos e curatoriais no contexto museológico.
Key Words: Museologia, Patrimônio, Restauração digital, Vídeo Projeção

Abstract
From the exhibition of Harvard Murals by Mark Rothko, it is proposed to rethink the
forms of restoration and construction of narratives in the context of the exhibition
through the appropriation of digital devices. Reflecting on curation, historical nar-
ratives, and restoration issues, this article points to new ways of exposing and think-
ing about real-time restoration by analyzing Rothko (Harvard Museum) restoration
projects through mapped projection, allowing color adjustment without chemical /
physical intervention, just like Aura, an immersive project undertaken in Montreal to
revive the interior of the church using mapped projection. Such actions help to think
about the multiplication of restoration actions consolidated in the digital image,
prioritizing the overlap of the digital and physical layers, and not the permanent

1 Doutoranda pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.


2 Arquiteto pela Universidade Federal de Minas Gerais.

785
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

intervention on the subject. In this sense, this possibility affects the way restoration
is structured in the future of heritage, as well as expanding the exhibition and cura-
torial possibilities in the museological context.
Keyword: Museology, Heritage, Digital Restoration, Video Projection

Novas Perspectivas museológicas e expositivas


Os dispositivos computacionais acoplados à percepção humana geram uma condi-
ção contemporânea unificadora entre o sensível, o tecnológico, o artístico e o com-
putacional. Esta proximidade é percebida ao longo da história, à medida que o ser
humano sensibiliza a máquina, e vice-versa. Ao longo do avanço tecnológico e cien-
tífico, os artistas foram atraídos pelas possibilidades de expressão através de ma-
teriais e técnicas inéditas, incorporando-os com certa liberdade em sua produção.

A noção de onipresença modela as relações humanas através de dispositivos e co-


mandos interativos, cujas interfaces assumem papel fundamental no modo como
o homem percebe o mundo e se comunica. Lev Manovich (2002) reflete como as
interfaces computacionais atuam sobre a arte e a comunicação, em um processo de
digitalização cultural que evidencia a emergência de estruturas culturais inéditas,
como reflexo da revolução binária sobre a cultura visual. Giselle Beiguelman (2013)
aponta o processo de digitalização cultural para pensar a dicotomia do real/virtual.
Segundo ela, não se trata da era do virtual, e sim do pós-virtual, na qual, segundo
André Lemos (2008), a sociedade transpassa a fase do upload e entra no download
constante de informações e dados. Surge o espaço e tempo unidos entre o campo
da percepção humana e o da tecnologia binária.

A relação entre arte e tecnologia tornou-se cada vez mais estreita, o que estimulou a participação
de outras áreas do conhecimento e da inovação científica como a genética, a robótica, a biologia e
a inteligência artificial como parte de propostas artísticas, entre as quais se destacam a videoarte
e net art. A influência recíproca entre a arte, a tecnologia, a ciência e a sociedade é exemplo da
permeabilidade entre as diferentes reas do conhecimento que caracterizam a cultura contempo-
rânea. (VELLOSILLO, 2014:137).

Tal permeabilidade da cultura contemporânea fortalece a transdisciplinaridade e


a emergência da tecnologia no campo da arte. Steven Johnson (2001) pontua que
tecnologia e cultura caminham juntas desde sempre, pois constroem a experiência
humana. Artistas, filósofos, escritores, todos tão cientistas quanto os cientistas, e estes
tão criativos quanto os primeiros. A história da computação se confunde com a histó-
ria da humanidade e da arte, no século XX/XXI. Percebe-se a Cultura da Interface e do
Software em que humano e dispositivo parecem simbióticos, bases sobre as quais sur-
gem reflexões quanto ao Espaço Expositivo, à Tecnologia Binária e à Realidade Mista,

786
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

pilares do Meio Expositivo3. Assim, as conexões entre computação, espaço expositivo,


tecnologia e arte, são compreendidas, transdisciplinarmente, expandindo as muitas
realidades e multitemporalidades. É neste sentido que se observa os novos contextos
museológicos, os quais emergem das soluções inovadoras e disruptivas do século XXI.

O evidente reposicionamento institucional é resultado de uma possível crise do mu-


seu apontada por Belting (2006) como parte da crise da arte, que inicia nos anos
1970. No entanto, segundo ele, esta crise é abafada por uma identidade do museu
reconstruída a partir das necessidades de entretenimento do público. Percebe-se
que os espaços expositivos se transformam em instrumentos de consagração da
nova museologia, iniciando um reposicionamento, em direção ao Meio Expositivo,
devido a “heterogeneidade do grande público que se quer atrair. Busca-se novos
métodos e tecnologias de comunicação e procura-se marcar com dinamismo sua
ação cultural. Universalizam-se os princípios de uma museologia contemporânea”.4
Desde o início dos anos 1980, constrói-se a transição um ambiente de grandes ex-
posições de massa, com programações populares, em um jogo de consumo e apro-
ximação com o público que ganha popularidade e evidencia que o “campo museal
ainda está em vias de se transformar”5, caso do marketing e o turismo institucional.
Belting (2006) aponta que a arte, por si só, não é consensual e por esta razão há uma
dificuldade dos espaços expositivos em absorver a demanda artística contemporâ-
nea. Fato este que gera uma série de controvérsias no conteúdo das salas de exposi-
ção e no papel da instituição. Ele questiona se a nova arte é quem busca o contexto
museológico, ou se é o museu que busca a nova arte.

À medida que o espaço expositivo populariza sua programação, permite diálogos so-
bre o local da produção: artista, público, obra e instituição têm seus limites reestrutura-
dos, e os interesses que prevalecem vão além da gestão do museu. Esta ideia se confir-
ma segundo Rudolf Frieling (2014), que reflete sobre a mudança do local da produção,
pois as obras são feitas em parceria e para os espaços expositivos, que atuam como
(co)produtores nas condições e contextos dos trabalhos expostos. Ou seja, o museu
assume o papel de produtor ao redistribuir funções e poderes. Assim como Belting,
sustenta-se a ideia de um espaço modificado pelas relações homem-máquina atuais,
pertencentes a uma nova ordem do sensível determinada pela interatividade. Tal dinâ-
mica em rede tensiona a percepção do espaço, pois viabiliza ações em espaço-tempos
individuais/coletivos (cada usuário com seu dispositivo, ou vários usuários com um
dispositivo em comum, cujas reações são diferentes). Deste modo, observa-se que o
debate sobre a neutralidade é pertinente, pois um espaço interativo supõe maior neu-

3 CASIMIRO, C.G.Realidade Mista e Meio Expositivo na Arte Contemporânea, dissertação de Mestra-


do em Artes Visuais, UFSM.
4 GONÇALVES, 2004:78.
5 MAIRESSE e DESVALLÉES, 2013:24.

787
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

tralidade, afinal, está aberto à ações variadas do visitante. Porém o termo neutralidade
pode ser aplicado inversamente, no papel de neutralizar o livre arbítrio do visitante
sobre o espaço, dimensionando e controlando suas ações. A contrariedade do “neutro”
garante a este novo espaço expositivo um ponto convergente-divergente, cuja exis-
tência determina um lapso na noção de espaço e de museu.

O cubo branco como a resposta à pretendida neutralidade do espaço para a completa fruição da
arte, mostra-se, exatamente como o seu oposto, um espaço fundado na determinação óptico-
-geométrica, que pressupõe e normatiza a atitude contemplativa do público. Como nó físico do
sistema de circulação e exposição de arte, suga especificidades, lima suas arestas e as “adapta” ao
seu espaço, inclusive as obras que tomam como temática o questionamento institucional, político
e espacial do museu. Como máquina de sucção, o museu absorve as obras para si, mas não em
si. As transformações por que passa a ação artística desde os anos 1960 têm, como consequência
nos espaços de museus, apenas as “adequações” necessárias para a constante inclusão, mas não a
contaminação conceitual para a reproposição de sua arquitetura.(SPERLING, 2012).

Logo, a era moderna transforma as formas do museu, e segundo Gonçalves (2004),


no último quarto do século XX surge um esforço em teorizar sobre as exposições e
seu papel frente ao público. As exposições de arte são pensadas como meio de co-
municação entre o espectador e o espaço. Ela ressalta que a imaginação social am-
plia os limites espaciais e constitui um espaço comunicante. Desse ponto em diante,
o espaço expositivo se depara com uma infinidade de ações. A partir dos museus de
arte moderna “consagra-se um padrão de como deve ser o espaço apropriado à arte
moderna [...] o melhor padrão museal é aquele onde aparentemente não há interfe-
rências”6, evidenciando que o espaço expositivo também está, diretamente, ligado à
identidade institucional. Bruce Ferguson (1996) observa que a mostra de arte pode
ser entendida como parte vital da indústria cultural, caso dos novos museus. Ele sa-
lienta que o espaço expositivo é parte da identidade institucional, interferindo sobre
a identidade artística e cultural de cada época.

Assim, Sperling (2012) argumenta sobre a matriz da concepção espacial dos museus,
cuja essência deve caminhar para um aporte não geométrico, mas topológico, a res-
peito das características espaciais que independem da variação formal. Ele pontua
que o museu se torna local das relações espaciais estruturais, de fronteiras e limites,
conexões, proximidades, (des) continuidades, que levam à questão da percepção do
espaço e não, somente, da visualidade.

Velhos lugares, novos olhares


A presença dos dispositivos computacionais, no campo da arte, remodela a presen-
ça no espaço de exposição, seu tempo, realidade, e a condição da autoria (questão

6 GONÇALVES, 2004:53.

788
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

pertinente a outros períodos da história da arte, mas que, nessa pesquisa, é pensada
a partir da produção em arte e tecnologia). O espaço se torna um condutor de fluxos
através da interatividade e da mobilidade, pois, devido ao nível de envolvimento
oferecido pela interface computacional, surgem relações específicas entre espaço,
interator e dispositivo. Cada usuário tem uma determinada vivência, em potencial, a
qual desencadeia espaços, tempos e realidades diferentes.

Este é o caso do projeto AURA, realizado em Montreal, e que representa uma reati-
vação de espaços memoriais utilizando projeção mapeada e softwares 3D. A insta-
lação imersiva utiliza luzes para explorar a arquitetura da Basílica de Notre-Dame
em uma celebração à sua beleza arquitetônica e história. A experiência começa com
um “caminho de luzes”, revelando os detalhes da estrutura da basílica, e progressi-
vamente leva o visitante a uma viagem sonora e visual, em um espetáculo multimí-
dia inovador composto por três atos: “First, we invite you to explore the Basilica while
discovering a series of multimedia installations that highlight the artwork beneath the
building’s rood screens. Take this time to slow down and connect with the space. (Run
time: approximately 20 minutes)”7

7 Disponível em: https://www.aurabasiliquemontreal.com/en/.

789
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fig 1 - Basílica de Notre Dame durante AURA

O projeto debate outras experiências a partir do espaço histórico como suporte de


entretenimento e imersão. É aqui que se observa esta condição de revisão do objeto
histórico, assim como do espaço museológico e seus derivados frente a era digital.
A transformação do espaço memorial em um espaço de narrativas ficcionais e imer-
sivas leva a uma abstração do objeto histórico, porém, ao mesmo tempo permite a
reinvenção de sua própria história através da apropriação da arquitetura para fins
revalidação coletiva. Deste modo, AURA aponta para a apropriação da arquitetura e
do espaço de memória com superfície digital, como tela, e reativa o status do lugar
em um nova atribuição de valor.

Em outra direção, apresentamos a iniciativa do Museu de Arte de Harvard em utili-


zar projeção mapeada como ferramenta de restauro em tempo real, onde o objeto
de arte se torna parte essencial do conceito curatorial, e o processo de restauração
emerge da pré-produção para a exposição em si. Durante a exposição de Mark Ro-
thko, realizada durante Novembro de 2014 a Julho de 2015, sob a curadoria de Mary
Schneider8, é apresentada uma projeção digital inovadora e não invasiva como uma
abordagem de conservação: “a exposição devolve esta série de murais à opinião pú-
blica e bolsas de estudo, além de incentivar o estudo e o debate da tecnologia”.9

8 Em colaboração com Narayan Khandekar, cientista sênior de conservação, Straus Center for Con-
servation and Technical Studies, Harvard Art Museums; Carol Mancusi-Ungaro, diretora do Centro de
Estudos Técnicos de Arte Moderna da Harvard Art Museums e diretora associada de conservação e
pesquisa do Whitney Museum of American Art; Christina Rosenberger, coordenadora de pesquisa,
Centro de Estudos Técnicos de Arte Moderna, Harvard Art Museums; e Jens Stenger, cientista da con-
servação, Instituto para a Preservação do Patrimônio Cultural, Universidade de Yale (anteriormente
do Centro Straus de Estudos Técnicos e de Conservação, Museus de Arte de Harvard).
9 Disponível em: https://www.harvardartmuseums.org/visit/exhibitions/4768/mark-rothkos-harvard-murals

790
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fig 2 - imagens de Rothko com e sem a conservação em luz projetada

A técnica emprega um sistema de projetor de câmera que inclui software persona-


lizado desenvolvido e aplicado por uma equipe de historiadores de arte, cientistas
da conservação, conservadores e cientistas dos Museus de Arte de Harvard e do MIT
Media Lab. O sistema e o software do projetor de câmera foram desenvolvidos com
Ramesh Raskar, professor associado de artes e ciências da mídia, Instituto de Tecno-
logia de Massachusetts (MIT) e chefe do Camera Culture Group do MIT Media Lab.
A restauração digital das transparências Ektachrome foi concluída em conjunto com
Rudolf Gschwind, professor e diretor do Laboratório de Humanidades Digitais da Uni-
versidade de Basileia, Suíça. A tecnologia de projeção digital restaura a aparência das
ricas cores originais dos murais, que desapareceram durante a exibição nas décadas de
1960 e 1970 em uma sala de jantar da cobertura do Holyoke Center da Universidade
de Harvard (agora o Richard A. e Susan F. Smith Campus Center ), o espaço para o qual

791
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

eles foram contratados. Considerados inadequados para exibição, os murais entraram


em armazenamento em 1979 e, desde então, raramente foram vistos pelo público.

Apresentando 38 obras de 1961 a 62, incluindo os murais e muitos dos estudos re-
lacionados ao artista sobre papel e tela, a exposição também explora o processo
criativo de Rothko. Um sexto mural pintado para a comissão - trazido a Cambrid-
ge por Rothko, mas não instalado - será apresentado publicamente pela primeira
vez. Muitos dos trabalhos em papel contêm esboços relevantes no verso, que serão
exibidos durante a segunda metade da exposição, que começa em março de 2015.
Os estudos sobre tela fornecem uma perspectiva do processo de Rothko, enquanto
ele trabalhava de pequena a grande escala. A maioria das obras exibidas são dos
Museus de Arte de Harvard, com empréstimos de Kate Rothko Prizel, Christopher
Rothko, Dr. Corinne Flick, Galeria Nacional de Arte e Menil Collection.

Considerações
As novas vertentes da museologia emergem, pois a linearidade temporal e memorial
se dissolvem frente a experiência anacrônica das interfaces digitais. Assim o entendi-
mento de memória, o papel da arquitetura e expografia se transformam, assumindo
outras funções, outros olhares e questionando seus próprios limites. Enquanto este
contexto reelabora os modos de ver patrimônio, arte e acervo, ele trás a reflexão
quanto ao desafio de lidar com o objeto de valor histórico versus sua apropriação
digital, caso do AURA. Já a exposição de Rothko trás uma reflexão profunda sobre
as sutilezas da tecnologia digital quando implementada em contextos específicos
e com minuciosas determinações técnicas, trazendo um grande valor em sua apli-
cação. Graças ao estudo proposto por Harvard, foi possível levar a experiência do
restauro a um outro nível, inédito, onde a intangibilidade (a luz) é capaz de recons-
truir uma peça de arte sem o processo químico/físico. O objeto permanece intacto
como é, a visão computacional permite a simulação do que ali existia. Mais além:
neste caso a projeção é um ajuste em tempo real, onde a peça e sua originalidade
existem somente no presente momento de observação da obra e sua restauração
simultânea, transformando a exposição em um espaço de inovação museológica e
de uma viagem temporal. Deste modo, as tecnologias digitais transformam os mo-
dos de ver e perceber o tempo e a tangibilidade do espaço. Por fim, quais os limites
desta gamificação histórica? E qual o papel do museu, hoje, cujos objetos e lugares
que permanecem existem, porém, sob novos olhares?

Referências
BELTING, Hans. O Fim da História da Arte. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

BIANCHINI, Calebe; SILVA, Luciano. Sistemas de Realidade Aumentada Móvel Supor-


tados por Computação em Nuvem. XVI Simpósio de Realidade Virtual e Aumentada,

792
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

realizado, Sociedade Brasileira de Computação e Centro Integrado de Manufatura e


Tecnologia, SENAI Unidade CIMATEC. Salvador, Maio de 2014.

BUYYA, R., Vecchiola, C., Selvi, S. T. Mastering Cloud Computing: Foundations and
Applications Programming. New York: Morgan Kaufmann, 2013.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

CASTIÑEIRAS, Jorge, Luís C. B. CRISPINO e George E. A. MATSAS. Horizonte de Even-


tos. Scientific American Brasil, outubro de 2004.

CASTILLO, Sonia Salcedo Del. Cenário da Arquitetura da Arte. São Paulo: Martins Fon-
tes, 2008.

CURY, Marília Xavier. Exposição, concepção, montagem e avaliação. São Paulo: An-
nablume, 2005.

FALKHEIMER, J, JANSSON, A. Geographics of Communication: The Special Turn in


Media Studies. Göterborg: Nordicom, 2006.

FERGUSON, B. The Exhibition Rhetorics, Material Speech and Utter Sense. In: GRE-
ENBERG, R. et al (org) Thinking about Exhibition. London/New York, Routledge, 1996.

GONÇALVES, Lisbeth Rebollo. Entre Cenografias - O museu e a exposição de arte no


século XX. São Paulo: USP, 2004.

MAIRESSE; DESVALLÉES. Conceitos-chave de Museologia. ICOM, Rio de Janeiro, 2013.

MANOVICH, Lev. The language of new media. Cambridge Mass, 1998.

MEYROWITZ, Joshua. No Sense of Place: The Impact of Electronic Media on Social


Behavior. Oxford University Press, 1985.

SPERLING, David. As arquiteturas de museus contemporâneos como agentes no


sistema da arte, 2012. Disponível em <http://www.forumpermanente.org/revista/
edicao-0/textos/as-arquiteturas-de-museus-contemporaneos-como-agentes-no-
-sistema-da-arte>.

793
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Giovanna Silva Pereira1 and


Laíse Frasão Barros2
IN Galeria de arte: por um espaço expográfico IN VERSO
IN Art Gallery: for an expographic space IN OPPOSITE

Resumo
Em meio a crescente integração das plataformas virtuais e a produção artística,
em escala global, não poderia o Instagram se consolidar também um espaço ex-
pográfico latente, ainda que, simultaneamente, suspenso? Dessa confabulação
inversa do fazer curatorial e da suspensão do lugar das possibilidades de alcance
e acessibilidade do espaço expográfico, nasceu a IN Galeria de Arte. Uma dinâmi-
ca expográfica vertical, autônoma, expansiva e em rede que se apresenta como
lugar de pensamento estético, incitando atravessamentos entre lugar e não-lugar
da arte, dialogando e deslocando aspectos comumente vinculados ao espaço fí-
sico palpável. Desterritorializando “certezas” e utilizando a plataforma Instagram
para além da sua concepção usual no campo da arte, a IN propõe uma nova ma-
neira de circulação e experiência: o feed não permanece intacto, assim como o
cubo branco da galeria se modifica para se adaptar a novas exposições.
Palavras-chave: Percepção, Experiência visual, Espaço, Instagram, Não-lugar.

Abstract
Amid the increasing integration of virtual platforms and artistic production on a
global scale, could not Instagram also consolidate a latent, though simultaneous-
ly suspended, expographic space? From this inverse confabulation of curatorial
practice and the suspension of the place, and accessibility possibilities of the expo-
graphic space, the IN Galeria de Arte was born. A vertical, autonomous, expansive
and networked expographic dynamics that presents it3self as a place of aesthetic
thought, inciting intersections between place and non-place of art, dialoguing and
displacing aspects commonly linked to palpable physical space. By de-territorializ-
ing “certainties” and using the Instagram platform beyond its usual conception in
the art field, IN proposes a new way of circulation and experience: the feed does not

1 Giovanna Silva Pereira, jornalista pelo Centro Universitário de Brasília - UniCEUB e graduanda no
curso de Teoria, Crítica e História da Arte na Universidade de Brasília (UnB).
2 Laíse Frasão Barros, arquiteta e urbanista pela Universidade de Brasília (UnB), graduanda no curso
de Teoria, Crítica e História da Arte na mesma instituição. Mestranda no Programa de Pós-Graduação
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (PPG-FAU) da Universidade de Brasília (UnB).

794
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

remain intact, just as the gallery’s white cube changes to adapt to new exhibitions.
Keywords: Perception, Visual Experience, Space, Instagram, Non-Place.

Desterritorialização da arte: percursos entre lugar e não-lugar.

Temos de 1800 até o início do século XX “um período que, em franco contras-
te com aqueles que o precede, será de intenso, vertiginoso aceleramento do
tempo subjetivo, exigindo muito dos contemporaneous e sacrificando de modo
irremessível todos aqueles que a isso não puderem se adaptar” (EULÁLIO, 1984;
p.15). A vigência de novas estruturas para a resignificação de construções “clás-
sicas” (enquanto algo já estabelecido, lugar posto), representaria, portanto, o
processo de estabelecimento de uma nova forma de pensar que, indo além do
que seria um “anticlassico”, se aproxima de uma sobreposição de maneiras cujo
o núcleo perpassa pela ideia de centralidades múltiplas, uma pluralidade nada
canônica: o não-lugar.

Maliévitch, por exemplo, em “Dos novos sistemas na arte”, ao sistematizar sua


abordagem a partir de cinco macro estruturas (ainda que relacionadas aos ditos
“ismos”) demonstra preocupação com uma estruturação/construtividade que
possibilite produções desvinculadas da finalidade com objeto artístico em si
e/ou suas categorizações. Preocupação esta já delineada no século XIX a partir
do afastamento de padrões clássicos e da existência de pluralidade estilística.
Ademais, ao defender a ideia de uma crescente simplicação consciente no âm-
bito compositivo, nada mais temos do que a concepção de uma “tomada de
consciência do espaço como ativo” – mencionada por Oiticica em seu texto “A
transição da cor do quadro para o espaço e sentido de construtividade”.

Assim, nesse período mencionado por Alexandre Eulálio a questão estrutural


do lugar da arte encontra-se vinculada ao reposicionamento do próprio obje-
to artístico, enquanto algo cada vez mais penetrável, como afirma Oiticica, já
que a ideia de integridade, enquanto “essência”, em uma obra de arte estaria
fracassada, segundo Maliévitch. Assim, a ideia de uma nova objetividade/cons-
trutividade material não deixa de estar vinculada ao imaterial, na medida em
que enquanto Maliévitch fala em intuição, Oiticica discorre acerca do lúdico na
relação do objeto com o suporte. Assim o não-lugar representaria essa inclina-
ção pacificadora com o intangível.

“Para alguns, esse intinerário seguido pela arte evidenciaria sua sentença de morte. De fato, o
tema da morte da arte surge na filosofia, mais precisamente na estética hegeliana, migrando,
posteriormente, para a própria arte quando as vanguardas artísticas do início do século XX

795
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

começam a romper com os valores estéticos herdados da tradição. Essa ruptura se produziu
por meio de vários fatores que deram origem a uma série de movimentos artísticos no início do
século XX e que formaram a base da arte contemporânea, na qual se insere a produção artístca
que lida com mídias digitais” (ARANTES, 2005, p. 32).

Ainda segundo Priscila Arantes, Gianni Vattimo declara, em o “O fim da moder-


nidade”, “que a morte da arte não se processara como premeditara Hegel – por
uma superação de formas superiores de conhecimento-, mas numa espécie de
atitude do ‘estranhamente pervertido’ [explosão da estética para fora dos limi-
tes tradicionais institucionais], em que tudo é aparência e simulacro” (ARANTES,
2005, pp.163-164).

Dessa maneira, a arte deixa de ser um território consolidado e estável para ocu-
par um não-lugar cada vez mais sensorial e movediço. A própria palavra estética,
disciplina filosófica que engloba o estudo do belo, da arte e a experiência, o
sensível, deriva do grego aisthesis que, segundo Priscila Arantes, significa “aquilo
que é sensível e deriva dos sentidos”. Afinal, percebemos mais do que o se impri-
me diante dos nossos olhos e suas terminações periféricas; captamos sensações,
direcionamentos e tensionamentos. Nesse sentido, a grande contribuição da Te-
oria da Gestalt no início do século XX, por exemplo, foi estruturar o mecanismo
da percepção considerando a dimensão cognitiva/ sensorial.

Já no campo historiográfico, sobretudo no século XX, após a experiência dos An-


nales d’histoire économique et sociale e da busca de Lucien Febvre e Marc Bloch
por um campo menos positivista e mais interdisciplinar, o debate acerca das men-
talidades e/ou mentalidade coletiva, por exemplo, nos permite indícios teóricos
sobre a própria ideia de percepção (de si e do outro – que pode ser o “objeto artís-
tico”) e, consequentemente, do papel da experiência no âmbito da construção de
imagens - princípios norteadores do campo artístico tecnológico. “O estrangeiro,
está sempre já delineado – latente e invisível – nas brechas da nossa identidade,
na trilha aberta por nossa própria indeterminação. Não podemos apanhá-lo fora,
só o tocamos dentro de nós mesmos” (CARDOSO, 1993, p.360).

Nesse contexto, passado o período de institucionalização patrimonial e museó-


grafa, alcançamos um período de experimentação que vai da escultura sem pe-
destal as mídias virtuais. “Já na década de 1960 podemos identificar as primerias
tentativas de uma estética relacionada ao digital” (ARANTES, 2005, p. 165). Prova
disso, foi a exposição The Machine as Seen at the Mechanical ocorrida no MoMa,
em 1969 – que engloba em sua curadoria uma reflexão acerca da concepção de
máquina e a relação entre arte e tecnologia.

796
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

No entanto, “o desenvolvimento de uma estética tecnológica, ou, mais precisamente, de uma crítica
voltada para as manifestações artísticas que lidam com os dispositivos tecnológicos midiáticos, não
é recente. Sabe-se que já no início do século XIX o nascimento da fotografia foi acompanhado por
um grande número de discursos. Embora comportasse declarações muitas vezes contraditórias, o
conjunto de todas essas discussões compartilhava de uma ideia comum: quer se fosse contra, quer
a favor, a fotografia era considerada a imitação mais perfeita da realidade” (ARANTES, 2005, p. 157).

E pensando em percepção, emerge uma outra reflexão acerca do lugar e não-


-lugar da arte: o abandono da obrigatoriedade desse lugar da mimesi e a sus-
pensão da própria ideia de lugar. Afinal, Philippe Dubois cita Picasso, ilustrando
essa mudança: Por que o artista continuaria a tratar de sujeitos que podem ser
obtidos com tanta precisão pela objetiva de um aparelho de fotografar? Seria
absurdo, não é? A fotografia chegou no momento certo para libertar a pintura
de qualquer anedota, e qualquer literatura e até do sujeito. Em todo caso, certo
aspecto do sujeito hoje depende do campo da fotografia.” (PICASSO, 1939 apud
DUBOIS, 1998, p.31).

Percepção visual, no sentido da psicologia e das ciências cognitivas é uma de


várias formas de percepção associadas aos sentidos. É o produto final da visão
consistindo na habilidade de detectar a luz e interpretar (ver) as consequências
do estímulo luminoso, do ponto de vista estético e lógico.

Na estética, entende-se por percepção visual um conhecimento teórico, descri-


tivo, relacionado à forma e suas expressões sensoriais.

“All perceiving is also thinking, all reasoning is also intuition, all observation is also
invention.”

“Perceber também é estar pensando, todo raciocínio também intuição, toda


observação também é invenção.”(ARNHEIM, 1954). Perceber e reparar em tudo.
Absorver estímulos e transformá-los em significado. A informação visual é car-
regada de sentidos que atingem os olhos. Rudolf Arnheim, estuda a percepção
visual no campo das artes, voltado para o olhar criativo, identificando no ver
a ideia de cognição e percepção. “A visão define o ato de ver em todas as suas
ramificações. Vemos com precisão de detalhes, e aprendemos e identificamos
todo material visual elementar de nossas vidas para mantermos uma relação
mais competente com o mundo.”

A percepção relaciona-se, essencialmente, com a ideia de presença no mun-


do. Dentro do sistema de percepção humana, a visão é, para Arnheim, o “único
elemento necessário à compreensão visual”. Acredito que o teórico se limita ao
campo do real quando trata desta forma, uma vez que, a imaginação é tão pic-

797
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

tórica quanto a imagem. E aqueles que nunca tiveram a experiência visual, aqui
posta como real, ainda conseguem ter uma experiência visual, proporcionada
por estímulos outros e complementares da percepção humana.

A percepção de um mundo visual e a percepção visual do mundo. A visualidade


é ponto de partida para a participação do homem e é, também, a maneira como
o experimenta. Expressividade ininterrupta. Nesse sentido, Michel Foucault,
por exemplo, ao analisar parte da produção de Rene Magritte, teoriza acerca
do rompimento com o “lugar comum” da representação, da relação entre ima-
gem e a linguagem/ entre significado e significante. “Os títulos são escolhidos
de tal maneira que impedem de situar meus quadros numa região familiar que
o automatismo do pensamento não deixaria de suscitar a fim de se subtrair à
inquietação” (FOUCAULT, 1988, p. 47).

A força da influência imagética no inconsciente humano é sem dúvidas ilimita-


do, mas é moldado de acordo com as barreiras de cada indivíduo. A eficácia de
uma mensagem que é passada visualmente difere daquela que tem apoio tex-
tual de significados já apresentados de forma clara. A imagem expande o pen-
samento para além dos aspectos formais, mesmo que em uma primeira leitura
possamos inferir algumas informações. Na narrativa visual, as ideias de leitura e
interpretação ficam em evidência, uma vez que nas camadas do estudo semióti-
co, cada conceito possui significância distinta e com pesos e responsabilidades
diferentes dentro da absorção do conteúdo. A expressividade imagética é cons-
tante fruição de pensamento.

Posteriormente, em meados do século XIX, o simbolismo estabeleceu, no cam-


po literário e artístico, a retomada de uma visão não naturalista, colocando em
cheque a própria ideia de real. Posteriormente, o surrealismo extrapola tais limi-
tes e traz a tona o inconsciente na construção de imagens e composições. Como
consequência, “na contemporaneidade, a imagem transforma-se em imaterial
(dados binários), revelando ser este uma das maiores rupturas do nosso tempo.
O real e o irreal criam o paradoxo da verdade. As imagens geradas por progra-
mas de computadores são, na atualidade, a própria inversão da realidade. As
imagens não imitam o real. Ao contrário, é o produto real que a imitará para
torna-se real, segundo Debray” (HIGAWA, 2014, p. 94).

“Observamos que considerações teóricas, precedentes, tendiam a afirmações que separavam real
e virtual, como se o virtual não fizesse parte do real, como se pudéssemos separar o real como a
dimensão física e o virtual como a dimensão digital. Entretanto tais colocações cada vez mais não
encontram amparo, uma vez que, por um lado, as hibridizações do físico e do digital são constantes
e crescentes no cotidiano de todos, tanto em nível espaço-temporal como do próprio corpo que
torna-se mais tecnológico e conectado à redes distribuídas. Por outro lado, o real, em uma perspec-

798
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

tiva deleuziana, se constitui do atual e do virtual, independente se tratamos do espaço físico ou do


ciberespaço, sempre há potencialidades virtuais a serem atualizadas pela experiência, bem como
atualizações de experiências a serem virtualizadas (OLIVEIRA e PALAZUELOS, 2018, p.32).

Partindo dessas reflexões, conseguimos captar melhor um movimento da con-


temporaneidade: novas maneiras de produção/ expressão artística, circulação
das obras e do olhar do fruidor. A visualidade como protagonista no processo de
comunicação e essa interrelação com o universo artístico.

“As obras de arte em mídias digitais permitem, neste mundo da velocidade e do tempo real, da
instantaneidade e da “falta de tempo”, parar o tempo para um segundo de reflexão, realizando
uma espécie de metacomunicação, de reflexão e olhar sobre o mundo que nos rodeia [...] as fun-
ções da arte na era digital parecem ser refletir sobre os processos comunicativos e informacionais
que permeiam a sociecidade contemporânea, resistir ao apagamento da memória; resistir à falta
de sensibilidade e a à perda de privacidade; transformar em poética as questões que afligem o
homem e a sociedade contemporânea” (ARANTES, 2005, p. 177).

IN Galeria: comunicação visual; confabulação inversa do fazer curatorial; e


suspensão do lugar expográfico

A imagem que se configura em uma avalanche comunicativa que invade e cons-


trói os ambientes se manifesta propriamente como uma visualidade híbrida e si-
nestésica que não se opõe à percepção e à atenção. Nesse sentido, o uso da sim-
bologia, códigos imagéticos como ferramenta informacional contribuem para
uma elaboração discursiva significante que usa a linguagem visual de forma di-
nâmica e versátil, com inúmeras possibilidades e camadas de experimentações.

A opacidade dos sentidos se dá pela ideia de que a imagem está a serviço da


comunicação, mas o que se propõe é a visualidade como meio. Comunicação
visual polissensível e guiada pela construção imagética de sentidos e significa-
dos, embora não possamos considerar a imagem como produto comunicativo.

A IN Galeria surge com uma proposta expografica que passeia pelo apara-
to comunicativo, afim de proporcionar uma experiencia estética virtual, en-
tendendo que o dialogo aqui se faz com uma produção artística midiática
contemporânea, na qual a conexão entre o físico e o virtual é aparente. Uma
reunião de produções que se aproveitem desse não-lugar para que seja pos-
sível evidenciar o desejo de conectar indivíduos através de distâncias e de
misturar o virtual ao físico criando, então, esse ambiente expografico da ga-
leria. Um debate já não tão novo, mas que se mostra cada vez mais potente
com o decorrer das atualizações desse universo da qual a IN se manifesta e
se permite acontecer.

799
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A imagem é flexível e móvel, atinge o inconsciente interpretativo e criativo de


cada um, Vilém Flusser diferencia as imagens de acordo com seu efeito produ-
zido: “Com toda imagem nova o universo imaginário da sociedade é transfor-
mado, e o poder da imaginação faz com que a rigidez da circunstância, anterior
à produção de imagens, seja substituída pela fluidez e maleabilidade” Gaston
Bachelard, filósofo e poeta francês, fala sobre a polifonia dos sentidos. “Todos os
sentidos despertam e caem em harmonia no devaneio poético. O devaneio po-
ético ouve essa polifonia dos sentidos e a consciência poética deve registrá-lo.”
Articulado pela interação entre os sentidos, nossa ideia de realidade se faz por
meio desse registro.

Nossa compreensão de visualidade mostra-se precária dentro daquilo que li-


mitamos como imagem. A imagem em si tem autonomia, é capaz de expandir-
-se, mas, também, de limitar os olhares aos seus elementos formais.Trabalhar as
possibilidades do estudo sobre visualidade escapa para diferentes campos da
sensibilidade do olhar. “Quando a imagem é nova, o mundo é novo”/ “When the
image is new, the world is new.” (BACHELARD, 2010).

Elabotação própria. Simulação galeria.

800
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A visualidade para Flusser é uma dimensão cognitiva e sensível, que se distancia da


ideia de contemplação ou consumo. De certo consumimos imagens por meio da
comunicação por permitir a rápida difusão, mas a noção de comunicação visual é
transformadora, é experiência e interação psíquica entre visível e sensível. E fenome-
nolofia, ou seja, experiencia física dos sentido, no campo virtual.

E é em meio ao contexto dessas novas concepções, que vão desde o acesso virtual
a acervos museográficos (WikiGLAM e Google Arts & Culture) a uma bienal comple-
tamente virtual e interativa (Outra Bienal 33 – que ocorreu virtualmente em paralelo
a Bienal de São Paulo 33, em 2018) e outra em que a curadoria foi exclusivamente
pautada no digital (Bienal Arte Digital, em Belo Horizonte, em 2018); que localiza-
mos o Instagram.

O Instagram se configura cada vez mais como um “lugar fora das ideias” que dester-
ritorializa “certezas” rumo ao desconhecido. Desde seu lançamento, em 2010, o Ins-
tagram tornou-se um dos aplicativos mais utilizados em escala mundial, sobretudo,
por integrantes do sistema da arte. Prova disso, é que constantemente a hastag #art
é uma das mais populares. Ademais, o reconhecimento da utilidade dessa platafor-
ma para o campo da arte é notável a partir dos mais diversos exemplos, seguem
dois: em 2015, a exposição Latin America in Construction: Architecture 1955-1980
realizada pelo Museu de Arte de Nova Iorque – MoMa que contou com parceria ofi-
cial do Instagram. Imagens dos edifícios que participam da mostra postadas com a
hastag #ArquiMoMa apareceram em um painel eletrônico na galeria; Já na edição
de 2016 do Festival Internacional de Cinema de Toronto-Tiff possibilitou a criação de
curtas no Instagram.

Formando aproximações entre o latente e o visível, bem como atravessamentos


espaciais/ conceituais opositivos (dentro/ fora, verso/ inverso), propomos uma ex-
posição realizada simultaneamente, no meio circundante latente e no meio virtual
(Instagram).

Uma expografia que se apoia tanto na ideia de uma temporalidade deslocável, de


uma curadoria virtual sem limites geográficos, quanto nas dobras e fissuras no âm-
bito da percepção como parte para a manifestação do olhar.

A partir dessa proposta pretendemos ampliar as possibilidades de alcance e acessi-


bilidade do espaço expográfico. A fim de, em certa medida, proporcionar a reunião
de obras e artistas que permitam a experiência estética de forma permissiva ou vis-
ceral nesse espaço suspenso.

Uma dinâmica expográfica movediça, autônoma, expansiva e em rede. Que se apresen-


ta como lugar de pensamento estético, que incita a participação e conexões, que se ma-
nifesta enquanto lugar e não-lugar de exposição - enquanto suspensão e atravessamen-
to, dialogando e deslocando aspectos comumente vinculados ao espaço físico palpável.

801
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A partir dessa confabulação inversa do fazer curatorial, trazemos em forma de


pensamento o Instagram (não lugar). Em forma de presença e potência de extra-
polação virtual-real. Logo, o pensamento expográfico é elaborado, uma vez que o
espaço não habitado e ocupado por obras devem ser morada de conteúdo. E este
o espaço da IN Galeria, em constante mudança e reconfiguração, um espaço ex-
pográfico de proposição curatorial que se apresenta de maneira não coordenada
mas sim em suspensão.

Uma mecânica em exploração e um território em construção. A IN Galeria de arte e


ferramenta de comunicação, e rede social, e espaço real e produção virtual. Guiada
por um ícone ilustrado circular, localizado na coordenada de abertura do feed/expo,
sinaliza o destaque correspondente com as respectivas informações curatoriais. As
obras, são alocadas para uma área específica, pensadas uma a uma e em conjunto.
Seja guiada pela linha conceitual e narrativa da exposição ou por sua proposição
única. Neste caso, blocos monocromáticos entre as obras remetem as paredes bran-
cas das tradicionais galerias.

Alem do fazer curatorial virtual, possível, o pensamento expográfico da IN Galeria


também é pensado, uma vez que o espaço não habitado e ocupado por obras de-
vem ser morada de conteúdo, sendo este o espaço e potencia da IN Galeria, uma ma-
neira outra de discurso curatorial, um discurso visual de experimentações múltiplas.

Conclusões
Incertezas de caminhos que seguem rumo as novas experiencias visuais são as conclusões.

Entre todos os aspectos mencionados de desconstrução entre objeto-fruidor-sistema


existe a figura do curador. Logo, todos esses atravessamentos nos conduzem a seguinte
inferência: o papel do curador vai além do ato de criar um “enredo” entre composições
artísticas, enxergar potenciais talentos, ou estabelecer tímidos limites de alcance ex-
pográficos. O papel do curador pode transgredir e desconstruir limites, pensando em
cada ato curatorial também como um ato político, de alcance por meio da diversidade e
acessibilidade – não apenas contemplando, ou não, anseios do mercado, mas também
refazendo tais anseios. O curador acaba sendo também um teórico da arte que a partir
da sua prática pode delinear novas leituras do seu próprio papel e do ambiente que
ocupa no sistema, bem como dos espaços e relações que estabelece a partir deles.

Por seu discurso, por sua forma, por sua potencia em discussão, por toda uma com-
fabulacao do fazer curatorial inverso e virtual. O curador que age politicamente jun-
to aos artistas, na investida de uma exposição que proponha sempre algo a mais,
que não se limite aos modos antes canônicos do fazer expografico, e que se oponha
a mesmice do mercado. Desse anseio, nasce a IN Galeria de Arte.

802
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Referências
Arantes, P. (2005). @rte e mídia: perspectivas da estética digital. São Paulo: Editora
Senac São Paulo.

Arnheim, R. (1954). Art and Visual Perception: A psychology of the Creative Eye.
Berkeley University Of California.

Bachelard, G. (2010). A Poética do Devaneio. La Poetique De La Reverie. 3. ed. São


Paulo: Martins Fontes.

Cardoso, S. (2002). O Olhar Viajante. In: Novaes, Adauto (Org.) O Olhar. São Paulo:
Companhia das Letras.

Dubois, P. (1998). O ato fotográfico e outros ensaios. 2. ed. Campinas, SP: Papirus.

Eulálio, A. (1984). O século XIX. In: MARINO, João (org.). Tradição e ruptura: síntese
de arte e cultura brasileiras. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo. p.117-121.

Foucault, M. (1988). Isto não é um cachimbo. Tradução: Jorge Coli. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Flusser, V. (2017). O Mundo Codificado: por uma filosofia do design e da comuni-


cação. 224 pp. São Paulo: Ubu Editora.

Higawa, C. K. M. (2014). Tipo 1. Entre o visível e o invisível: uma abordagem ima-


gética das representações textuais, dos processos de visualização e assimila-
ção de informações. (Tese de doutorado). Departamento de Artes, IdA, 2014. Uni-
versidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil.

Jeudy, H.-P. (2002). O Corpo como objeto de arte. Le Corps Comme Objet d’art. São
Paulo: Estação Liberdade.

Kandinsky, W. (1996). Do espiritual na arte e na pintura em particular. 2. ed. São


Paulo: Martins Fontes.

Maliévitch, K. (2007). Dos novos sistemas na arte. São Paulo: Hedra.

Moura, C. A. R. (Tradutor) (1999) Fenomenologia da percepção. In: Merleau-Ponty, M.


Phénoménologie de Ia perceptión. 2. ed., São Paulo: Martins Fontes.

Oiticica, H. (1960). A transição da cor do quadro para o espaço e sentido de construti-


vidade. In Cotrim, C.; Ferreira, G. (2006). Escrito dos artistas: anos 60/70. pp. 82-95.
Rio de Janeiro: Zahar.

Oliveira, A. M.; Palazuelos, F. R. (2018). Imagem como objeto tecno-estético em


arte e tecnologia. v. 21, n.1, jan./abr. Porto Alegre.

803
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Maria Soledad Ruiz Corcuera1


Antecedentes del arte feminista español: Prácticas artísticas
españolas de los años sesenta y setenta
Background of spanish feminist art: Spanish artistic practices of the years sixty
and seventy

Resumen
Al recorrer los distintos periodos históricos por los que ha transcurrido la His-
toria del Arte, se observa claramente la perspectiva no neutral desde la cual ha
sido construida esta historia. En su relato historiográfico se ha evidenciado la au-
sencia de la visión de la mujer, ya que su discurso ha sido predominantemente
masculino. El objetivo de esta comunicación será el de presentar y poner el valor
el trabajo de investigación que desde finales de la década de los 60 y durante los
años 70 del siglo XX se ha realizado con el fin de reconstruir tanto la genealogía
de las primeras mujeres artistas olvidadas, que serán la base sobre la que se
fundamentará en las décadas posteriores el arte feminista español, como el de
proponer nuevos paradigmas de interpretación.
Palabras clave: historiografía feminista, prácticas artísticas feministas, estereoti-
pos de género.

Abstract
When touring the different historical periods through which Art History has passed,
the non-neutral perspective from which this history has been constructed is clearly
observed. In his historiographic account the absence of the woman’s vision has been
evidenced, since his speech has been predominantly masculine. The objective of this
communication will be to present and put the value of the research work that has
been carried out since the end of the 60s and during the 70s of the 20th century in
order to reconstruct the genealogy of the first women artists forgotten, which will
be the basis on which spanish feminist art will be based in later decades, such as
proposing new interpretation paradigms.
Keywords: feminist historiography, feminist artistic practices, gender stereotypes.

1 Licenciada en Bellas Artes por la Universidad de Castilla-La Mancha (2008). Alcanzó la suficiencia
investigadora con la obtención del Diploma de Estudios Avanzados (D.E.A.) (2012) en la especialidad
de Estética y Teoría de las Artes y Máster de investigación en nuevas prácticas artísticas y visuales
(2013), ambos en la UCLM. Es Profesora Asociada del Departamento de Didáctica de la Expresión
Musical, Plástica y Corporal de la Universidad de Castilla-La Mancha desde el año 2013.

804
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Propuestas artísticas españolas de los años sesenta y setenta: las futuras


artistas feministas.

La historia del feminismo en España tiene un carácter complejo tanto si parti-


mos de los referentes teóricos como de los prácticos en el mundo artístico. Esta
dificultad es debida a que, a diferencia de otros países como Estados Unidos, la
producción artística de los inicios del arte feminista español estuvo condicionada,
en gran medida, por la situación personal, social y local de las artistas españolas,
siendo estas manifestaciones artísticas bastante fragmentarias debido a que cada
artista buscó su propio camino de forma individual, y este rasgo de individualidad
es lo que ha hecho que resulte complejo, aún a día de hoy, historiar y clasificar sus
trabajos para darle un sentido global al Arte Feminista español, ya que no hay un
denominador común del que partir para comenzar el estudio.

Esta tardanza en los inicios del Movimiento Feminista español es debida a que la
propia estructura política y social española dio la espalda durante muchos años a
las interesantes propuestas que desde los países anglosajones se lanzaban en el
campo de la Teoría Feminista. Estas propuestas eran transformadas plásticamente
por artistas que dieron forma a unas ideas que en España cuajaron demasiado
tarde a causa de que, según indican las artistas Helena Cabello y Ana Carceller, “al
contexto español la información llegaba bastante desvirtuada y se estaba produ-
ciendo una confusión tendenciosa entre arte realizado por mujeres y feminismo”
(Ruido, 1969, 4).

Por lo tanto, el principal problema con que nos encontramos a la hora de estu-
diar las Teorías Feministas en el Estado español con respecto a su práctica artís-
tica, es la ausencia de una historiografía y la reducida bibliografía que aborde
la relación entre Arte y Feminismo, dado que es actualmente cuando se están
empezando a rescatar y a organizar una bibliografía dispersa y que parte de
tendencias muy diversas, ya que las autoras interesadas en el Feminismo, llegan
a las fuentes dependiendo de sus propias incursiones discursivas y no de un
corpus ya elaborado dado la ausencia de estos estudios en España (Martínez-
-Collado, 2012, 72-89).

Esta ausencia historiográfica es debida a que, como dictan algunos autores y au-
toras, no fue hasta los años ochenta o noventa cuando estas teorías harían mella
en las creaciones artísticas de nuestro país debido a la propia estructura política
y social de España, contribuyendo a que estas corrientes artísticas feministas
venidas de Europa, Estados Unidos o Inglaterra no tuvieran arraigo y desarrollo
en España hasta tiempo después.

805
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Pero antes de esas mujeres artistas feministas de los años ochenta y noventa,
ya hubo otras que denunciaron, a través de sus trabajos su desacuerdo con el
patriarcado y también es necesario su estudio, ya que también tuvieron que lu-
char contra las dificultades que suponía para una mujer ocupar un puesto que
durante toda la historia del arte había estado ocupado por hombres.

El hecho de que en estas décadas no se haya documentado al cien por cien


una presencia feminista a nivel social y artístico no quiere decir que no se haya
producido un movimiento como tal. Lo que es evidente, es un débil vacío que
dificulta la historiografía sobre la trayectoria del arte feminista en nuestro país ya
que, como afirma Mª Teresa Alario (2008, 96):

si ser mujer y ser artista siempre había sido una especie de antinomia, en esos momentos en Es-
paña se hacía especialmente difícil, aun cuando la producción de las artistas se mantenía dentro
de lo que se consideraba apropiado en el discurso oficial, evitando cualquier veleidad vanguardis-
ta y, desde luego, cualquier reivindicación feminista.

Con estas premisas podríamos intentar trazar una somera topografía en la que
encontraríamos a las artistas de los setenta que trabajaban en el feminismo no
tanto como una reivindicación teórica o artística consciente, sino por la necesi-
dad personal de conseguir el reconocimiento de una serie de derechos funda-
mentales entre los que se incluiría la libertad sexual y corporal, la independen-
cia, etc., es decir, autoras que a través de su arte se sumaban al activismo que en
los sesenta tuvo lugar en nuestro país o, simplemente como en el caso de Esther
Ferrer, autoras que libremente quisieron expresarse de un modo que, a ojos de
hoy, podríamos denominar (y de hecho lo hacemos) feminista.

Las prioridades impuestas por la difícil situación política vivida en el contexto


español durante las décadas de los sesenta y los setenta hicieron que a nuestro
país no llegaran a la vez que a otros países europeos los debates feministas, lle-
gando con posterioridad, por lo que no se pudo generar una línea de trabajo en
las prácticas culturales y artísticas en lo referente al género. Pero esto no signifi-
ca que no hubiera en el arte de nuestro país manifestaciones feministas, que sí
las hubo, pero de forma aislada.

Ejemplo de ello sería el de la artista catalana Esther Boix, que mostrando ese
malestar descontento político del momento desde otra vertiente y a través de
un tipo de arte distinto al mostrado hasta ahora, la gráfica. Así, en su obra Dona
que frega (1965), mostró, en la parte superior, a una mujer fregando el suelo con
sus manos y, en la parte inferior, a un grupo de mujeres encarceladas llorando,
comparando ambas escenas y haciéndonos cuestionar, al igual que lo hizo Betty

806
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Friedan años atrás, si las mujeres estábamos presas de las labores domésticas y
del hogar. Recordemos que, la dictadura franquista, no permitió a las mujeres
poder avanzar y ya en 1960, Dolores Ibárruri, más conocida como La Pasionaria,
reclamó que la libertad no podía dejar fuera a las mujeres.

Boix, Esther (1965). Dona que frega [linograbado sobre papel].


Madrid: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía.

Pero este descontento viene producido historiográficamente durante décadas,


porque las mujeres, por lo general, han tenido, desde muy jóvenes, que unirse en
matrimonios de conveniencia –obligadas por sus familias–, para posteriormente
dedicarse a tener hijos (maternidad) –hecho aparentemente feliz– y encargarse del
cuidado de los mismos y del hogar, sometiéndolas a una reclusión en su ámbito pri-
vado (hogar) –encierro en muchas ocasiones no voluntario–, y teniendo que realizar
en solitario todas las tareas domésticas no remuneradas (limpiar, fregar, planchar,
cocinar, lavar, etc.), mientras que su esposo trabajaba fuera y llevaba el dinero a casa
–situándole a él en un estatus social y público de superioridad frente a su mujer–. La
esposa –que a pesar de estar todo el día en casa trabajando no ganaba dinero -por lo
que no tenía ninguna independencia económica–, tenía que ser y que estar siempre
perfecta para cuando su marido llegase a casa, teniendo que asumir los distintos
estereotipos de mujer ideal que ya empezaron a circular a través de los medios de
comunicación y la publicidad de entonces. Asimismo, también tenía que estar pre-
parada para satisfacer las necesidades sexuales del esposo –siendo la sexualidad,
junto con la menstruación, un tema tabú-, y estando normalizada la violencia y la
violación cuando la mujer no estaba dispuesta a satisfacer esos deseos considerados
exclusivamente masculinos. Así, como afirman las escritoras Asunción Bernárdez,
Irene García y Soraya González (2008, 112):

el significado de la palabra «estereotipo» se refiere a una plancha metálica de caracteres fijos que
sirve para imprimir documentos en serie. Es, por lo tanto, un término que procede de la tipografía
y que es utilizado después, con connotaciones psicosociales, para explicar una serie de opiniones,
actitudes, sentimientos o reacciones de los miembros de una determinada comunidad o grupo
respecto a otros, y que, por ende, tienen un carácter homogéneo y rígido.

807
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

La historia anteriormente descrita podría ser una historia ficticia, pero realmente es
la historia personal de muchas mujeres con nombres y apellidos, o incluso de cual-
quiera de nuestras madres o abuelas, ya que este ha sido durante décadas el modo
de vida de muchas mujeres.

Ante estas situaciones sociales de desesperanza e impotencia, se puede asistir a un


desarrollo de iniciativas feministas dentro de las artes, la historia y la teoría feminista.

Las artistas de los años sesenta y setenta comenzaron a darse cuenta de esta realidad
social, reclamando, ante situaciones como la anteriormente descrita, la igualdad de
derechos y una equiparación de su presencia en los espacios de la vida pública, po-
niendo en evidencia, a través de sus obras, esas situaciones de desesperación por las
que estaban pasando las mujeres, y apareciendo desde entonces en el panorama ar-
tístico nuevas temáticas críticas, extraídas de historias como la anterior, como el amor
romántico, el matrimonio, la reclusión al ámbito doméstico, la maternidad, los estere-
otipos, la representación de la sexualidad y la menstruación, y la violencia de género.

Por lo tanto, el arte, especialmente a partir de los años sesenta, se convirtió en la


plataforma idónea desde la cual comenzaron a articularse toda una serie de críticas
dirigidas contra las jerarquías sexuales heteronormales establecidas en las socieda-
des occidentales, machistas y patriarcales.

La artista Ana Peters, tras la II Guerra Mundial, decidió vivir en Valencia donde se for-
mó como artista para realizar obras como Victoria o Trébol, ambas creadas en 1966,
en las que, influenciada por el estilo del Pop Art, presente en aquellos momentos
en Gran Bretaña, Inglaterra y Francia, pero no en nuestro país debido a la censura,
realizó una crítica a los estereotipos del momento en los que la mujer, asimilada en
un único prototipo de belleza (rubia, moderna, a la moda, con gafas, etc.) tenía que
estar a la moda por y para gustar al varón.

Peters, Ana (1966). Victoria [acrílico sobre papel encolado en táblex].


Colección Herederos de Ana Peters.

808
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Peters, Ana (1966). Trébol [acrílico sobre papel encolado en táblex].


Colección Herederos de Ana Peters.

Ana, casada con el crítico antifranquista Tomás Llorens, considerado como una de las
personas más importantes del arte contemporáneo, no tendrá la misma suerte que
su esposo ya que, tras exponer en la Galería Edurne de Madrid en 1966 sufrirá una
crítica demoledora que hará que se retire de la pintura para dedicarse a ser madre.

En relación al tema de la sexualidad, podríamos citar a Mari Chordà, que en el año


1966 nos muestra varias pinturas consistentes en abstracciones con contornos re-
dondos a través de las cuales nos habla de vaginas y menstruaciones, un tema consi-
derado hasta entonces tabú para el arte al calificarlo como perteneciente al ámbito
privado de las mujeres, al igual que la enfermedad, el hogar, la virginidad, la belleza,
la sexualidad, etc.

Chordà, Mari (1966). La Gran Vagina [cera sobre papel].


Madrid: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía.

809
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Chordà, Mari (1966). Vaginals [cera sobre papel].


Madrid: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía

Recordemos que, tan solo ocho años después, será cuando la artista estadounidense
Judy Chicago saque a la luz su famosa obra The Dinner Party, en la que se podrán
observar formas que simulan vaginas en los platos de su colosal mesa, algo inusual
para la época.

Totalmente distinta a la técnica mostrada hasta ahora es la performance realizada por


los artistas Esther Ferrer y Juan Hidalgo, ambos pertenecientes al Grupo Zag junto con
el artista Walter Marchetti. Denominada El Caballero con la mano en el pecho y realizada
en 1967, la acción consistía en un hombre que empuja o paraliza a una mujer –la pro-
pia artista– con el propósito de no permitirla avanzar, siendo esta acción una metáfora
de la situación de parálisis en la que se encontraban las mujeres en esa época.

Ferrer, Esther (1967). El caballero con la mano en el pecho [gelatinobromuro


de plata sobre papel]. Madrid: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía.

810
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Recordemos que el movimiento feminista español gestado durante los años del tar-
dofranquismo, adquirió su mayor desarrollo durante los años setenta, al inicio de la
Transición, debido a que el contexto político y social en el que nos encontrábamos,
era una gran oportunidad para reivindicar los derechos de las mujeres que durante
cuarenta años impuso el franquismo al colectivo femenino.

Desde 1970 comenzaron desarrollarse estudios que perseguían crear espacios para
el debate del feminismo en España (Grau, 2000, 739), pero el movimiento como tal
era aún muy débil. El movimiento de mujeres progresistas se encontraba en auge
cuando en el año 1975 fue declarado Año Internacional de la Mujer por la ONU, pero
hay constancia, como se puede leer en el siguiente párrafo, de que hasta 1976 no
apareció este Movimiento de mujeres en España:

En la tarde del día 12 se presentó a los medios informativos de Madrid el Movimiento Democrá-
tico de Mujeres-Movimiento de Liberación de la Mujer, en el curso de una rueda de prensa. Pro-
pugnan, en conjunto, una serie de reivindicaciones encaminadas a lograr para la mujer el estab-
lecimiento de una situación social que permita el desarrollo integral de ésta (El País, 1976, párr. 1).

(…) Las premisas fundamentales del movimiento se cifran en la incorporación de la mujer al tra-
bajo productivo, como paso previo a su liberación; eliminación, en el contexto de la enseñanza
obligatoria y gratuita, de todo aquello que limite las posibilidades de acceso a la cultura y que
suponga una educación diferencial, y abolición de todas las leyes que suponen una vejación para
la mujer y la relegan a un puesto secundario en la sociedad (El País, 1976, párr. 7).

Para transformar la actual situación de la familia, propone el matrimonio civil, dejando libremente
a la pareja la posibilidad del eclesiástico; una ley sobre el divorcio, que haría necesaria la elimi-
nación de la dependencia económica de la mujer; anticonceptivos gratuitos y asumidos por la
Seguridad Social y despenalización del aborto (El País, 1976, párr. 8).

Es importante destacar también a Isabel Villar, considerada como una pintora naif
por la crítica del momento y estando prácticamente invisibilizada por la Historia del
Arte como todas las demás. Su obra tiene ciertas similitudes con las del pintor de
vanguardia parisina Henry Rousseau. Pues bien, mientras uno es considerado como
uno de los padres del arte contemporáneo, la pintura de Isabel, en un estilo muy
similar, se le ha considerado como naif e ingenua.

811
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Villar, Isabel (1970). Embarazada en un campo verde [óleo sobre tabla].


Vilafamés: Museu d´Art Contemporani Vicente Aguilera Cerni.

Rousseau, Henry (1891). Tiger in a Tropical Storm (Surprised) [óleo sobre lienzo].
Londres: National Gallery de Londres.

En 1973 se produce una especie de liberación de la mujer. Con una obra totalmente
distinta a la de Isabel Villar, podemos nombrar a la artista catalana Eulalia Grau (1946-
-) con su obra Novia y lavavajillas (1973) o Aspiradora (1973), donde un maniquí con
cuerpo de mujer, vestida de novia, es absorbido por una aspiradora, realizando una
crítica a los estereotipos del momento al considerarse que las mujeres, a pesar de su
reclusión a las tareas del hogar, tenían que lucir siempre bellas para la mirada mas-
culina, con el único fin de agradar al hombre.

812
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Grau, Eulalia (1973). Novia y lavavajillas (Etnografía) [Emulsión fotográfica


y anilinas sobre tela]. Colección Pazos.

Grau, Eulalia (1973). Aspiradora (Etnografía) [Emulsión fotográfica


y anilinas sobre tela]. Barcelona: Colección MACBA.

Pero las obras de Eulalia Grau, en cuanto a temática, no son casos aislados de
aquellos años setenta, ni tampoco lejanos. En 2013, hace tan solo seis años, la escri-
tora italiana Constanza Miriano sacaba a la luz su libro Cásate y sé sumisa: experiencia
radical para mujeres sin miedo, no curiosamente publicado por el Arzobispado de
Granada y siendo un éxito de ventas. Así, después de que Eulalia Grau criticara cier-
tas situaciones por las que tenían que pasar las mujeres de la época, cuarenta años
después de sus obras, con la publicación de este libro, se puede observar cómo se

813
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

sigue intentando que la mujer no se empodere frente al hombre a través de frases


como “Muchas mujeres luchan con los maridos y llegan a ser insoportables. Sólo
porque no han comprendido el secreto de la acogida, ni tampoco el de la sumisión,
ni el de la obediencia como acto de generosidad” (Miriano, 2013, 53); “La mujer está
perdida cuando se olvida de quién es. La mujer es, principalmente, esposa y madre”
(Miriano, 2013, 56); “Casaos y tened hijos, porque, si no, no tiene sentido estar juntos
toda la vida” (Miriano, 2013, 69); “La mujer lleva inscrita la obediencia en su interior.
El hombre, en cambio, lleva la vocación de la libertad y de la guía” (Miriano, 2013,
90) o “Cuando tu marido te dice algo, lo debes escuchar como si fuera Dios el que te
habla” (Miriano, 2013, 100).

Ante situaciones como estas, la artista Paz Muro, se da cuenta de que, si es difícil la
supervivencia social en un mundo dominado por hombres, más difícil es aun ex-
poner o dedicarse al arte cuando no hay una genealogía explícita que facilita a las
mujeres su incorporación a este difícil mundo del arte. Con esta premisa, Paz crea
la obra William Shakespeare, Corín Tellado (1974) en la que, a través de un aparato
de medición se cuestiona el porqué de si Shakespeare es considerado el padre de
la literatura inglesa, la obra de Corín Tellado, una de las mujeres más importantes
en cuanto a escritos amorosos, es considerada de menor valor que la escrita por
Shakespeare, por ser un hombre frente a una mujer.

Muro, Paz (1974). William Shakespeare, Corín Tellado.

Un año después de William Shakespeare, Corín Tellado (1974), en 1975, año de la


muerte de Franco, tienen lugar las Primeras Jornadas por la Liberación de la Mujer en
Madrid y la primera conferencia internacional sobre las mujeres, en México DF. La
artista Paz Muro es invitada en Madrid a una exposición para conmemorar el año

814
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

internacional de la mujer, comisariada por Isabel Cajide. La Sección Femenina2, vien-


do cómo tenía los días contados y tenía que modernizarse de inmediato si quería
continuar en la España postfranquista, organizó esta exposición “franquista”. Así Paz
Muro acude con su obra Influencia cultural y nada más que cultural, de la mujer en
las artes arquitectónicas, visuales y otras, introduciendo a través de esta obra una
perspectiva feminista. En ella, la artista realiza un recorrido por las principales fuen-
tes de Madrid y analiza cómo en todas ellas las mujeres son mostradas como diosas,
realizando una crítica a que en la cultura en general, la presencia de las mujeres ha
de ser el estar siempre bellas para la mirada de los otros, del varón.

Muro, Paz (1975). Influencia cultural y nada más que cultural, de la mujer en
las artes arquitectónicas, visuales y otras [Madera lacada y fotografías en blanco y negro].
Madrid: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía.

Ese mismo año, 1975, la artista vasca Marisa González viaja a Estados Unidos y ob-
serva cómo a diferencia de nuestro país, las mujeres estadounidenses dejan de ser
“ángeles del hogar” y salen a la calle para manifestarse libremente. Esta situación le
marca tanto que crea la serie La Descarga, en la que por primera vez se muestra la
violencia contra la mujer en la Transición.

2 La Sección Femenina era una organización de divulgación ideológica (era una parte de la derecha
que acogió la ideología fascista) y de control de las mujeres, con el fin de garantizar el cumplimiento
de la misión que el régimen les tenía reservado. Defendían un feminismo basado en la abnegación
y obediencia de la mujer al hombre. La Guerra Civil y la posterior dictadura franquista terminaron
con los movimientos feministas, que entran en una etapa de opacidad comenzando a despertarse
en torno a los años sesenta y setenta.

815
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

González, Marisa (1975). La Descarga [5 paneles con fotocopias thermofax].

Esta serie presenta, a través de la fotografía, cinco secuencias de cinematográficas


en las que muestran rostros de mujeres con los ojos violentados, llorando, con la
boca tapada, entre barrotes, etc., hablándonos de las torturas franquistas y haciendo
especial hincapié en las mujeres rapadas. Tras la Guerra Civil, las mujeres del bando
republicano, fueron torturadas, humilladas y mofadas públicamente en las plazas de
los pueblos, desnudándolas, haciendo que bebieran aceite de ricino y rapándolas el
cabello, es decir, quitándolas el primer signo de feminidad visible, la melena.

Un año después, en 1976, la artista Fina Miralles da a conocer su obra Standard. Ella, sen-
tada en una silla de ruedas, con sus brazos y piernas sujetos a la silla, observa una serie de
imágenes estereotipadas proyectadas en una pared, como son por ejemplo el matrimonio.

Miralles, Fina (1976). Standard.

Así la artista, se revela contra situaciones que son consideradas como imposiciones pa-
triarcales pero que, sin embargo, como su título indica, son tomadas como cotidianas

816
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

y normales, aludiendo al concepto de estándar como algo corriente, común, que no


se sale de la norma.

Balcells, Eugenia (1976). Supermarket). Barcelona: Colección MACBA.

Ese mismo año, 1976, tan solo un año después de la muerte de Franco, se celebra-
rían, del 27 al 30 de mayo, las Primeres Jornades Catalanes de la Dona en la Univer-
sidad de Barcelona y la escritora y política española Lidia Falcón crearía el colectivo
feminista de Barcelona y fundó, junto a la periodista y escritora feminista Carmen
Alcalde, la Revista Vindicaciones feministas, en la que se difundía la defensa de las
mujeres con respecto a temas políticos, de cultura o legales. También es por enton-
ces cuando Nuria Pompeya realizará gráficas y cartelas a favor del día internacional
de las mujeres.

Asimismo, en 1976, la fotógrafa catalana Pilar Aymerich va a plasmar todas las ma-
nifestaciones catalanas a favor de las mujeres y la igualdad, contra la violación, de
los derechos reproductivos, del derecho al uso de anticonceptivos, al divorcio, etc.
Es famosa su fotografía en la que se observa a una mujer sujetando una cartela en la
que dice “Yo también soy adúltera” ya que, recordemos que el matrimonio civil que
podía llevarse a cabo durante la República fue suprimido durante la dictadura fran-
quista y se instauró el matrimonio católico como único en todo el territorio español.

Recuperado de http://www.pilaraymerich.com/galeria.html

817
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Esta liberación de la mujer es tan significativa que, la artista Fina Miralles empieza a
caminar “por primera vez” en solitario, intentando, metafóricamente, dejar atrás los
lastres del patriarcado en su obra Huellas.

Miralles, Fina (1976). Huellas

Pero lejos de caminar en solitario como había deseado un año antes Fina Miralles,
la artista Eulàlia Grau, nos muestra, en 1977, Discriminació de la dona, una obra en la
que realiza una crítica a la situación que en la actualidad se sigue manteniendo y es,
que un porcentaje muy alto de hombres, en comparación con mujeres, son los direc-
tivos de grandes empresas. Además, incluso en la actualidad, realizando un mismo
trabajo, el salario de las mujeres es más bajo que el de los hombres.

Grau, Eulàlia (1977). Discriminació de la dona [serigrafía sobre acetato y plástico].


Madrid: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía.

818
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Miralles, Fina (1977). Matances.

Ribé, Angels (1977). Can´t Go Home.


Barcelona: Colección MACBA.

Pero ya desde Estados Unidos e Inglaterra se veían performances similares a la rea-


lizada en 1977 por la artista, Esther Ferrer. La artista, cansada del despertar viril que
produjo el destape español, realizó en su obra Íntimo y personal (1977), una crítica a
los estereotipos femeninos como es la idea del cuerpo perfecto y sus medidas, y, por
primera vez, un cuerpo desnudo y simulando estas medidas son mostrados en público
de una forma tan directa. Así, la propia artista va midiendo minuciosamente cada par-
te posible de su cuerpo y lo va anotando, de tal forma que la denominación de cada
parte de su cuerpo pasa a ser una simple medida en centímetros, haciendo patente
que incluso la denominación de cada parte de nuestro propio cuerpo genera una serie
de condicionantes que ya de alguna forma han adquirido significado propio.

819
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Ferrer, Esther (1977). Íntimo y personal [tipografía y gelatinobromuro de plata sobre papel].
Madrid: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía.

De esta forma, realiza una crítica a que realmente no somos nosotras mismas las que
nombramos ni medimos nuestros propios cuerpos, sino la sociedad patriarcal es la
que ha impuesto, de forma dictatorial, las odiosas medidas globalizadas de “90-60-
90” y su denominación también ha sido una convención cultural que, como muestra
la artista en su performance, puede subvertirse.

Performances como las de las artistas Shigeko Kubota, Faith Wilding o Gina Pane serán los
antecedentes y referentes internacionales de las futuras performances de Esther Ferrer.

Kubota, Shigeko (1965). Vagina Painting.

820
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Wilding, Faith (1971). Sacrifice

Pane, Gina (1973). Acción sentimental

La artista Eugènia Balcells, en 1978, realiza, a través de su obra FIN, una crítica al amor
romántico, con la premisa de que “otra persona”, un hombre, nos tiene que cuidar
y proteger para que nuestra historia termine como las de los cuentos de hadas, las
telenovelas y las películas románticas, con final feliz.

821
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Balcells, Eugènia (1978). FIN [impresión de tinta sobre papel].


Madrid: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía.

Esta idea, proveniente de las cortes de amor medievales en las que se concebía la
idea de una vinculación amorosa única, tenía como fin la creación de la familia tradi-
cional, patriarcal, y la no extinción de esta y de la estirpe, ya que, según la escritora
feminista Coral Herrera (2016, 111):

el amor romántico se ha vendido a la población moderna durante dos siglos como


estado civil ideal cuyo lógico fin ha sido la formación de una familia nuclear tradicional.
En el siglo XIX el amor se asoció a la tarea reproductiva femenina, se enmarcó en un
espacio concreto (el dulce hogar), se instituyó como rito social (la boda), se perpetu-
aron las normas de la moral cristianas (fidelidad, convivencia, exclusividad, responsa-
bilidad), y se consolidaron unas costumbres sociales que reificaban el matrimonio y la
familia patriarcal como instituciones naturales, lógicas, dadas por supuesto.

Así, la escritora afirmaba en su libro La construcción sociocultural del amor romántico


que este puede definirse como:

un producto mítico que posee, por un lado, una base sociobiológica que se sustenta en las rela-
ciones afectivas y eróticas entre humanos, y por otro lado, una dimensión cultural que tiene unas
implicaciones políticas y económicas, dado que o que se supone un sentimiento individual, en reali-
dad influye, conforma y modela las estructuras organizativas colectivas humanas (Herrera, 2016, 76).

Esta idea sigue estando vigente hoy en día y sigue teniendo consecuencias fatales
para la sociedad, ya que es, ha sido y será una estrategia de dominación masculina.
Y sigue estando vigente en un medio de comunicación social como es la literatura
y el cine infantil y juvenil –como muy bien critica la escritora Teresa Colomer en sus
libros–, haciendo estos de agentes socializadores para la sociedad actual.

De este modo, si desde que somos niños nos muestran en nuestras películas o series
favoritas que las mujeres tenemos que ser princesas con cuerpos de Barbies “el pelo,
la cintura y los muslos reproducen un ideal imposible difícil de alcanzar, y desprenden

822
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

dos mensajes concretos: la supremacía de la raza blanca y la condición femenina


como objeto sexual” (Acaso, 2007, 31), además de tener que estar enamoradas y ser
rescatadas y mantenidas por un príncipe azul de cabello rubio, ojos azules, alto y
fornido, elegante y rico, etc., se nos estarán mostrando a través de mensajes sublimi-
nales, una serie de expectativas futuras que en la realidad serán casi imposibles de
alcanzar, dando lugar al conocido “mito del amor romántico”.

Y lo mismo ocurre con el cine adolescente o juvenil. Pondremos de ejemplo la famo-


sa trilogía Cincuentas Sombras de Grey, basada en la novela de E. L. James, por una
de las más actuales.

Se podría decir que esta historia para adultos es similar a un cuento de hadas para
chicas en el que Anastasia, una chica joven, inocente, virgen y dependienta en una
ferretería es galanteada por Cristian Grey, “el hombre perfecto”, un joven guapo, in-
teligente, triunfador en su trabajo y rico. La chica, con una vida tranquila y él con una
vida exitosa y con gustos sexuales un tanto peculiares, le promete una nueva vida
repleta de nuevos sucesos que ella nunca se hubiera imaginado. Así, como afirma
Edna Juliana Rojas (2014) esta historia “es la fábula perfecta de la chica con una vida
aburrida en la que, cual milagro, logra que el hombre de todos nuestros sueños—
una estrella del jet set al que ella domaría— se fije en ella”.

Pero, ¿cómo es posible que esta saga haya tenido tanto éxito, donde se trata a una
mujer como sumisa y es maltratada por el hombre del que está enamorada? Afir-
maba Coral Herrera (2016, 231) que:

el hecho de que los hombres necesiten criadas que cumplan también sus deberes afectivos y se-
xuales, y el hecho de que hayan logrado la subordinación y la dependencia económica femenina,
hace necesario analizar la dependencia emocional de las mujeres y el plus de cariño y cuidados
que reciben los hombres simplemente por ser hombres. En todas las culturas patriarcales, los
varones son más valorados, a los niños se les quiere más que a las niñas, reciben los mejores ali-
mentos, y no son asesinados o abandonados por el género al que se les adscribe al nacer, como
ocurre con las niñas de la India, China y multitud de sociedades patriarcales. Los varones son, en
este sentido, dignos de respeto y admiración solo por el género al que pertenecen, como si cons-
tituyesen una clase social privilegiada.

Así, como afirmaba la escritora Pilar Pardo (2010, 387):

(…) la mujer representada por los medios viene a ser aquello que significa para el hombre, el
mito femenino en universal abstracto; se les ha asignado a todas las mujeres un determinado
significante (aspecto exterior) y un significado (valores) ajenos a su condición de individuo único,
heterogéneo autónomo y con intereses no vinculados a su sexo.

823
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Todas estas ideas llegadas a nuestra mente a través de mensajes subliminales nos
llevan a una idea equivocada de lo que debe de ser y no es una relación de pareja
afectiva, estableciéndose entre los adolescentes una serie de estereotipos de género
y principios erróneos que incluso pueden llevar a la temida violencia de género sin
que el propio agresor ni la víctima sean conscientes de ello.

Por lo tanto, en esa década de los setenta se fraguaron nuevos grupos feministas
(de diversas ideologías) que bajo reformas democratizadoras consiguieron grandes
avances legislativos para la mujer. Así, se promulgaron una serie de leyes favorables
a la mujer, y que el principio de la no discriminación legal por razón de sexo se reco-
giera en la Constitución de 1978. Durante esta misma década también se lograrán
algunos avances de orden jurídico y se consiguió derogar, en 1978, el artículo 416
del Código Civil que condenaba el adulterio femenino; asimismo se dieron los pri-
meros pasos para la regulación del uso de los anticonceptivos y se aprobó la ley del
divorcio en 1981. Sin embargo, no será hasta finales de la década del 80 cuando los
movimientos feministas cobrarán mayor protagonismo, también a nivel reflexivo, y
se empezará a gestar un tipo de arte de corte reivindicativo también.

Con todo lo anteriormente expuesto, como indica la artista María Ruido, podríamos
considerar a las artistas Esther Ferrer y Eugenia Balcells como los dos eslabones per-
didos de la genealogía de las artistas españolas que han trabajado sobre y con el
cuerpo, siendo éstas los referentes fundamentales de ámbito nacional de las artistas
feministas de años posteriores. Pero también, al igual que las performances de Es-
ther Ferrer y las películas y los vídeos experimentales de Eugenia Balcells, tenemos
presentes las performances e instalaciones de Paz Muro, los fotomontajes de Eulália
Grau, los trabajos corporales de Olga Pijoan, las instalaciones y trabajos de Fina Mi-
ralles y Angels Ribé, y las performances e instalaciones de Dorethee Selez.

Bibliografía

Acaso, M. (2007). Esto no son las Torres Gemelas. Cómo aprender a leer la televi-
sión y otras imágenes. Madrid: Catarata.

Alario Triguero, M. T. (2008). Arte y feminismo. San Sebastián: Editorial Nerea, 2008.

Bernárdez, A., García, I. & González, S. Violencia de género en el cine español. Ma-
drid: Editorial Complutense, 2008.

Grau Biosca, E. (2000). De la emancipación a la liberación y la valoración de la diferen-


cia. El movimiento de mujeres en el Estado español, 1965-1900. En Duby, G. & Perrot,
M. Historia de las mujeres 5: El siglo XX. Taurus: Madrid, 2000.

Herrera, C. (2016) La construcción sociocultural del amor romántico. Madrid: Edi-


torial Fundamentos.

824
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Martínez-Collado, A. (2012). Apuntes sobre una teoría del feminismo y de género en


España. Un marco de referencia limitado a las circunstancias de nuestra historia e in-
merso en los debates globales. En VV. AA. Mujeres en el sistema del arte en España
(pp. 72 – 89). Madrid: MAV (Mujeres en las Artes Visuales) y EXIT.

Miriano, C. (2013). Cásate y sé sumisa: experiencia radical para mujeres sin miedo.
[Traducido al español de Sposati e sii sottomessa]. Granada: Nuevo Inicio.

Pardo, P. (2010). Políticas audiovisuales y género: todo por hacer”. En Arranz, F. (co-
ord.). Cine y género en España. Una investigación empírica (pp. 383-448). Madrid:
Cátedra y Universitat de Valencia.

Presentación del Movimiento Democrático de Mujeres-Movimiento de Liberación


de la Mujer (14 de mayo de 1976). El País. Recuperado de https://elpais.com/dia-
rio/1976/05/14/madrid/200921063_850215.html

Rojas, E. J. (2012). ¿A qué se debe el éxito de 50 sombras de Grey? Un análisis, Revista


Diners, nº 510. Recuperado de https://revistadiners.com.co/cultura/4805_la-exito-
sa-paradoja-de-50-sombras-de-grey/

Ruido, M. (s/f). ARCHIVO 1969/la irrupción de los 90: el(los) feminismo(s) como factor
en la crítica de la representación y en las prácticas políticas contemporáneas del esta-
do español. Entrevista a Helena Cabello y Ana Carceller en marceloexposito.net, 1-8.
Recuperado de https://marceloexposito.net/pdf/1969_cabellocarceller.pdf

825
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Mar Garrido Román1


Luz y sombra, escuchar y mirar. Imagen en movimiento y
realidad en la creación contemporánea
Light and shadow, listen and look. Moving image and reality in contemporary
creation

Resumen
Este texto parte de la observación de cómo frecuentemente la imagen en mo-
vimiento en el arte contemporáneo, muestra una ineludible convivencia entre
innovación y tradición. Conceptos que aunque puedan resultar contradictorios,
están presentes en las obras contemporáneas, especialmente desde la última
década del siglo XX y las primeras décadas del siglo XXI. Se plantea una reflexión
acerca de las similitudes conceptuales existentes entre ideas expresadas en la
historia del arte mediante el uso de los dispositivos de la mirada, con propuestas
artísticas que hoy utilizan como recurso expresivo el cuestionamiento sobre la
imagen y la realidad.
Ilustraremos estas ideas analizando obras que manejando medios técnicos ac-
tuales, como realidad aumentada, sensores de movimiento o cámaras robotiza-
das, ofrecen otra mirada sobre el origen de la producción tecnológica de imáge-
nes, la interacción entre ficción y realidad, visión e ilusión.
Palavras-chave: imagen, representación, teamLab, Rafael Lozano-Hemmer, Ola-
fur Eliasson

Abstract/resumen/resumé
This text starts from the observation of how frequently the image in movement in
contemporary art shows an inescapable coexistence between innovation and tradi-
tion. Concepts that although they may be contradictory, are present in contemporary
works, especially since the last decade of the twentieth century and the first decades of
the twenty-first century. A reflection is raised about the conceptual similarities between
ideas expressed in the history of art through the use of gaze devices, with artistic propos-
als that today use as an expressive resource the questioning about image and reality.

1 Licenciada en Bellas Artes por la Universidad Complutense de Madrid y Doctora en Bellas Artes por
la Universidad de Granada. Cursó estudios en School of Visual Art y en Parsons School of Design en
la ciudadde New York. Trabajó como creativa en TVE realizando cabeceras y promociones especiales
de cadena en programas vinculados con el cine. En la actualidad es Profesora Titular de la Univer-
sidad de Granada en cuya Facultad de Bellas Artes imparte la asignatura Proyectos Audiovisuales.

826
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

We will illustrate these ideas by analyzing works that handling current technical
means, such as augmented reality, motion sensors or robotic cameras, offer anoth-
er look at the origin of the technological production of images, the interaction be-
tween fiction and reality, vision and illusion.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: image, representation, teamLab, Rafael Loza-
no-Hemmer, Olafur Eliasson

Introducción
La necesidad del ser humano de evadirse de la no siempre agradable realidad, mo-
tivó la creación de infinidad de “artefactos para mirar” que abrirían la percepción al
ámbito insospechado de las imágenes en movimiento. Aunque las primeras referen-
cias conocidas de la cámara oscura -herramienta guía de la ciencia óptica y origen
de los instrumentos que revolucionarían la percepción humana-, correspondan a los
científicos árabes Al Kindi (S. IX) y Al-Hazen (S.XI)2, desde el siglo XVII –con los avan-
ces de la óptica y la definitiva aceptación de la perspectiva como forma de represen-
tación-, hasta el siglo XXI, tecnologías basadas en el uso sincrónico de sonidos con
la proyección de imágenes mediadas –entre éstas y su proyección se interpone un
mecanismo-, herederas de la cámara oscura, las máquinas catóptricas (que juegan
con la reflexión de los espejos) y especialmente las linternas mágicas, han explorado,
representado y construido nuevos mundos –físicos y metafísicos, reales e imagina-
dos–, de una significativa trascendencia cultural.

Las linternas mágicas, predecesoras del cinematógrafo, eran dispositivos ópticos


que permitían la proyección de imágenes -fijas o animadas- pintadas en placas de
vidrio rectangulares sobre una pantalla blanca en una sala oscura. Dada su impor-
tancia, tanto en el ámbito social como en el educativo y artístico, haremos un breve
recorrido por sus antecedentes, desarollo y evolución, centrándonos en aquellos
momentos que actúen como hilo conductor en el planteamiento de este texto.

2 Al Kindi en su tratado de geometria y óptica De visu seu de aspectibus describió el funcionamento


de la cámara oscura. La traducción de al-Manazir como de Perspectiva, será el orígen de este término
en la teoria de la percepción visual. Por su parte el Tratado de Óptica Kitab al Manazir del matemáti-
co Al-Hazen fue traducido al latín en el año 1270 con el título Opticae thesaurus Alhazeni Arabis libri
septem. Y se editó en imprenta por primera vez en Europa en 1572 en la ciu¬dad de Basilea (Suiza).
Alhazén. (1572) Opticae Thesaurus: Alhazeni Ara¬bis Libri Septem nunc primum editi, Eiusdem Liber de
Crepusculis et Nubium Asensionibus. Item Vite¬llonis Thuringopoloni Libri X. Eusebius Episcopius ed eredi
di Nicolus Episcopius. Basilea: Risner,

827
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

En 1420, el ingeniero veneciano Giovanni Fontana publicó un libro de dibujos de


máquinas Bellicorum Instrumentun Liber3, en el que describía el castellum umbrarum
(castillo de sombras), tal vez el que puede considerarse como el espacio de “realidad
virtual” más antiguo conocido. Se trataba de una habitación formada por paneles
semitransparentes que al ser iluminadas desde el exterior, creaban un juego de som-
bras con personajes en movimiento. En 1646 el jesuita alemán Athanasius Kircher
publica Ars Magna Lucis et Umbrae, Kircher (1646), donde detalla experimentos de
proyección realizados mediante espejos y lentes. La primera descripción escrita y
dibujada de una linterna mágica, aparecerá en 1659 en las notas del científico y as-
trónomo holandés Christiaan Huygens. A partir de 1664 las representaciones de las
linternas se difundieron no solo con fines lúdicos, sino también como instrumento
educativo. Marcel Proust la recuerda en su novela En busca del tiempo perdido:

En Combray, todos los días, desde que empezaba a caer la tarde y mucho antes de que llegara el
momento de meterme en la cama y estarme allí sin dormir, separado de mi madre y de mi abuela, mi
alcoba se convertía en el punto céntrico, fijo y doloroso de mis preocupaciones. A mi familia se le ha-
bía ocurrido, para distraerme aquellas noches que me veían con aspecto más tristón, regalarme una
linterna mágica; y mientras llegaba la hora de cenar, la instalábamos en la lámpara de mi cuarto; y la
linterna, al modo de los primitivos arquitectos y maestros vidrieros de la época gótica, substituida
la opacidad de las paredes por irisaciones impalpables, por sobrenaturales apariciones multicolores,
donde se dibujaban las leyendas como en un vitral fugaz y tembloroso. Proust, (1981, p. 19)

Desde la primera mitad del siglo XIX se desarrollaron numerosos juguetes ópticos4
que supusieron un avance hacia la aparición del cine, pues se regían por el mis-
mo principio, una sucesión de imágenes consecutivas narrando una historia. Con
el nombre de philosophical toys (juguetes filosóficos) - inteligente designación que
une juego y pensamiento-, infinidad de artefactos ópticos propiciaron el desarrollo
de los estudios sobre el movimiento, fluctuando entre la curiosidad, el entreteni-
miento y la especulación fisiológica sobre el funcionamiento de la vista. Entre estas
maquinarias, estaba el cromatropo, imágenes abstractas cuya característica consis-
tía en la sucesión vertiginosas de formas y colores, que tanto influyó en el cine de las
vanguardias históricas de principios del siglo XX. Anemic Cinema (1926), el ensayo
dadaísta de Marcel Duchamp o la película enmarcada en el cine abstracto Sympho-
nie Diagonale (1921) de Viking Eggeling, son ejemplos de ello.

3 La única copia de este documento se conserva en la Biblioteca de Munich. Johannes de Fontana, Belli-
corum instrumentorum liber cum figuris - BSB Cod.icon. 242, de la Bayerische Staatsbibliothek de Múnich
4 kinesígrafo, zootropo, praxinoscopio, fenaquistiscopio, electrotaquiscopio o traumatropo entre
otros. Para más información ver Proyecto IDIS (Investigación en Diseño de Imagen y Sonido). https://
proyectoidis.org/

828
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 1. Viking Eggeling Symphonie Diagonale (Sinfonía diagonal) 1921.


Fuente: Colección Museo Ncional Centro de Arte Reina Sofía.

Estos juguetes filosóficos, paradójicamente y en el sentido inverso, hicieron posib-


le las investigaciones cronofotográficas de Eadweard Muybridge o de Étienne-Jules
Marey, donde el movimiento aparece analíticamente segmentado como una sucesi-
ón de imágenes estáticas. Esta oscilación desde el movimiento a la imagen fija, será
también un recurso utilizado por numerosos artistas, desde René Clair a Andy Wa-
rhol, Douglas Gordon, Pipilotti Rist, Ori Gerst, Martin Scorsese o Quentin Tarantino.

Es esta paradoja la que ha sido rescatada por diversos artistas contemporáneos: de Saer a Sebald,
de Godard a Duchamp, de Bill Viola a Cindy Sherman, resulta interesante constatar que buena par-
te del arte moderno, tan marcado por el signo del cine, no se interesa por la ilusión de movimiento
sino por su manipulación y su deconstrucción. (Oubiña, 2015, p.5)

Aunque las linternas mágicas todavía eran una herramienta de entretenimento sin
intencionalidad artística, es evidente que aquellas imágenes pioneras han influído
en la actividad de muchos creadores. Desde los primeros cineastas -los hermanos
Lumière, Ferdinand Zecca, Georges Melies o Segundo de Chomón-, hasta grandes
realizadores contemporáneos como Fellini, Truffaut, Demy o Bergman (2001) -cuyas
memorias se titulan precisamente Linterna Mágica-. Las proyecciones de las linternas
jugaban con la percepción, generando -igual que sucede hoy-, una atmósfera que
envolvía a los espectadores y humanizaba mediante la ilusión su experiencia, sobre-
pasando la separación sujeto-objeto, la distancia entre el yo y el mundo.

829
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Así, estas imágenes mediadas por la técnica, que en ocasiones se proyectaban sobre
agua o cortinas de humo, supusieron también un cuestionando a la objetividad del
espacio de representación. La luz, la perspectiva y el sonido eran los artífices de este
mágico ensueño.

Para poder asimilar los avances y digerir lo nuevo sin perder lo antiguo, cada época de-
bería construir la realidad en un movimiento de ida y vuelta entre el presente y el pasado:

La fantasmagoría surge cuando, bajo las restricciones de sus propias limitaciones, los más nove-
dosos productos de la modernidad se acercan a lo arcaico. Cada paso hacia delante es, al mismo
tiempo, un paso hacia el pasado remoto. A medida que la sociedad burguesa avanza, descubre
que necesita su propio camuflaje de ilusión simplemente para poder subsistir. (Adorno, citado por
Andreas Huyssen, 1996, p.40)

Como consecuencia de este movimiento oscilatorio, la aparición generalizada de


los medios de reproducción en el arte contemporáneo tendrá también un recorrido
complejo. Sus antecedentes son las proyecciones de estas imágenes mediadas por
la técnica, remontándose posteriormente a las décadas de los sesenta y setenta del
siglo XX, cuando la fotografía y la imagen en movimiento dejaron de ser instrumen-
tos de recreo o documentación para transformarse en herramientas de valor artísti-
co abiertamente críticos.

Actualmente, artistas como el colectivo teamLab, Rafael Lozano-Hemmer y Olafur


Eliasson, entre otros, manipulan sus representaciones del mundo o inventan nuevas
cosmologías empleando técnicas digitales para alterar sus imágenes. En su obra uti-
lizan medios técnicamente muy desarrollados, pero apuestan también por el encan-
to de las fórmulas que ya planteaban los dispositivos visuales del XVII, confirmando
la significativa vinculación existente –en lo relativo a la reflexión sobre el origen y
producción de las imágenes-, entre el pasado y la actualidad.

Dudar de la realidad y despertar de los sentidos.


El enfrentamiento entre la capacidad cognitiva y la sensorial nace casi con la hu-
manidad, siendo los pitagóricos quienes produjeron la primera grave escisión entre
estas dos formas de conocimiento. Desde Platón, la luz ha sido la metáfora de la
verdad, y el ojo, el elemento que ha dado acceso a dicha luz. Este deseo de mirar tan
característico de la especie humana, que ha relacionado a la vista con la objetividad
-esa capacidad que permite al observador no implicarse en el acto de aprehender
la realidad-, vinculando a su vez objetividad y conocimiento, traerá consigo contra-
dictoria y paralelamente, el cuestionamiento sobre imagen y realidad5. Aunque en

5 En el siglo XX se empezó a discutir sobre esta prevalencia de la visión sobre otros sentidos y

830
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

1637 René Descartes (1981, p. 59) argumentara en la Dióptrica que “toda la conducta
de nuestra vida depende de nuestros sentidos” o desde la antropología cultural haya
estudios donde son precisamente los sentidos la base de la experiencia del mundo
(Le Breton, 2007, p. 13), paradójicamente dudamos de ellos. Buscamos prótesis que
interponiéndose entre el proceso de creación y el de representación, dirijan, cana-
licen y ordenen nuestra mirada. Para reflejar esta ambivalencia, en El Malestar de la
Cultura, Sigmund Freud (1930, p. 32) se refiere al hombre como a un Prothesengott,
un “dios con prótesis”. Confiamos en los sentidos y al mismo tiempo recelamos de
ellos, uniendo en un solo movimiento entusiasmo y descrédito.

Este triángulo formado por imagen, medio, y percepción, planteado en 1625 por
Pietro Accolti en Lo inganno degli occhi, prospettiva pratica (El engaño de los ojos, una
perspectiva práctica) Accolti (1625), e inteligentemente plasmado por René Magritte
con su obra Ceci n’est pas une pipe6, 1928, Esto no es una Pipa, perteneciente a la serie
La Traición de las Imágenes, provoca en la actualidad la misma inquietud y genera
análogas preguntas sobre imagen, forma y realidad, pues evidencia el malestar que
provoca el artista al cuestionar la semejanza entre el objeto y su representación. En
este sentido, una de las estrategias utilizadas en la creación artística contemporánea
es, justamente, la relación y convivencia que se establece entre percepción y repre-
sentación, entre el espectador, el medio y la obra. La percepción directa de las cosas
y la percepción directa de la imagen de las cosas.

La complicidad del público. El Arte como catalizador de conciencias.


Hace casi dos décadas que museos e instituciones proponen un arte capaz de es-
timular simultáneamente varios sentidos, rindiendo homenaje a figuras pioneras
como Julio Le Parc, Carlos Cruz-Díez o James Turrell, vinculado al movimiento Light
and Space7. Durante este acercamiento, se ha entendido que estos precursores, al

actualmente parece haber consenso sobre el hecho de que la vista es tan subjetiva como cualquier
otro sentido. Esta es la tesis de Martin Jay en su ensayo Ojos abatidos (Jay 2007), donde evalúa el
lugar ocupado por la visión en la cultura occidental. Según Jay, a lo largo del siglo XX, especialmente
en Francia, tiene lugar un profundo cuestionamiento de la vista como sentido privilegiado del co-
nocimiento. Siguiendo la argumentación de Jay, esta tradición ocular céntrica, es progresivamente
puesta en duda desde finales del siglo XVIII con el pensamiento romántico. Pero es en el siglo XX y
especialmente en Francia donde esta primacía de lo visual es cuestionada con más fuerza. La crítica
a la vigilancia del panóptico de Foucault, la defensa realizada por Nancy o Derrida de sentidos como
el tacto o el oído o el ataque de Debord a la sociedad del espectáculo, constatan que los ojos ya no
nos sirven para entender la complejidad de lo que nos rodea.
6 A partir de las dos versiones de esta obra de Magritte, Michel Foucault analiza en Esto no es una
pipa: ensayo sobre Magritte, las contradicciones entre las imágenes y las palabras. Foucault, M. (2004).
Esto no es una pipa: ensayo sobre Magritte [7a ed.]. Barcelona: Anagrama.
7 Light and Space es el nombre del movimiento de arte surgido en la costa oeste de Estados Unidos

831
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

hacernos desconfiar del entorno y de nuestros procesos cognitívos, albergaban una


intención social. En los autores que trataremos a continuación, también se encuen-
tra el germen de una toma de conciencia, que permite poner en duda la realidad cir-
cundante y agudizar el espíritu crítico. Muchos han sido desde entonces los artistas
interesados en el tema –Dan Flavin, Bruce Nauman, Mauricio Nannucci, Eulalia Vall-
dosera, François Morellet, Otto Piene, Ysuaki Onishi, etc.– No obstante y por razones
de espacio, solo trataré aquí al colectivo teamLab, Rafael Lozano-Hemmer y Olafur
Eliasson, claros exponentes de esta turbadora relación entre imagen, percepción y
realidad -uno mismo, el espacio y el universo-, la búsqueda de lo imperceptible de
nuestra relación con el espacio. Seguidamente veremos algunos de sus proyectos.

Comencemos con las instalaciones envolventes del colectivo japonés teamLab que
desde el 18 de marzo hasta el 1 de septiembre de 2019, acogió el Espacio Fundación
Telefónica de Madrid. La interpretación de la naturaleza, la filosofía zen o la pintura
tradicional japonesa, son algunos de los referentes de este colectivo de creación fun-
dado en 2001 por profesionales de distintas disciplinas. En esta ocasión, tres piezas
inmersivas unidas por el ritmo común de una hipnótica composición sonora de Hi-
deaki Takahashi, forman la muestra.

Tocamos una pared negra y de nuestra mano, nacen mariposas de colores. Es la


poesía que acontece al interactuar con la instalación Flutter of Butterflies, Born from
Hands, 2018 (Aleteo de Mariposas Nacido de las Manos). La pieza evoluciona en
tiempo real, y su transformación continua depende de las condiciones del espacio
que la alberga, consiguiendo que el movimiento de las mariposas no se repita nun-
ca. Será nuestra presencia individual, nuestra energía y voluntad, el motor que active
el movimiento o la quietud de esta obra. Es sin duda una bella metáfora visual sobre
el efecto mariposa8 -las pequeñas acciones pueden generar grandes cambios-, el frá-
gil equilibrio entre el ser humano y la naturaleza, nuestra responsabilidad y el lugar
que ocupamos en el universo.

Nos sumergirnos en un mar enfurecido. Somos parte de una ola gigante. Somos la
inmensidad del océano. Recorremos Black Waves. Lost, Immersed and Reborn, 2019
(Olas Negras. Perdido, Inmerso, Renacido), la poderosa instalación que nos remite a
la tradición pictórica japonesa, a La gran ola de Kanagawa, pintada por Hokusai en
1830. La instalación está formada por proyecciones que se reflejan en paredes, espe-
jos y suelos, donde el agua –y su representación visual– son protagonistas. En ambos
casos (tanto en Flutter of Butterflies como en Black Waves), estaremos formando par-

en las décadas de 1960 y 1970. Su pensamento se vertebra en torno a como las formas geométricas
y el uso de la luz podrían afectar el entorno y la percepción del espectador.
8 Siguiendo la teoría determinista del caos, el efecto mariposa plantea que un pequeño cambio en
una variable puede producir efectos imprevisibles en otras variables.

832
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

te de una obra que se completa con la acción del espectador. Al transitar el espacio
interactuamos con las piezas y provocamos cambios en ellas, de la misma forma que
nuestra presencia produce cambios en la naturaleza.

Figura 2. teamLab, Black Waves. Lost, Immersed and Reborn, 2019 (Olas Negras: Perdido, Inmerso y
Renacido, 2019). Instalación digital, bucle contínuo. © teamLab, cortesía Pace Gallery

La última sala nos aproxima al pensamiento zen y las raíces de la cultura japonesa.
Enso – Cold Light, 2018 (Círculo – Luz Fría), reinterpreta la práctica zen de dibujar un
círculo con un solo trazo de pincel. En este caso, temLab presenta un Enso dibujado
como caligrafía espacial, donde se perciben diferenciadas las fases del proceso orien-
tal de inspiración, ideación y realización. Una primera fase de concentración vincula-
da a las ideas; otra relacionada con la emoción y la intensidad de los sentimientos; y
por último, la materialización de la energía que tiene que ver con la técnica y la acci-
ón. El colectvo teamLab ofrece una nueva interpretación de la caligrafía tradicional,
al reconstruirla en el espacio tridimensional, expresando la profundidad, la velocidad
y la potencia del trazo del pincel. Ese tiempo eterno de giro, el tiempo circular que
determina nuestra posición, unas veces en la cumbre y otras en punto más bajo, nos
interroga sobre el instante haciéndonos sentir el presente como el lugar de lo real.

833
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 3. teamLab, Enso – Cold Light, 2018 (Enso - Luz Fría, 2018).
Instalación digital, bucle contínuo. © teamLab, cortesía Pace Gallery

Esta intensa alegoría de unión con el todo en una sola imagen y en un solo trazo, es
también la que utiliza el cineasta Jean Luc Godard en Deux ou trois choses que je sais
d’elle, 1966 (Dos o tres cosas que yo se de ella). Un hombre pone azúcar a su café expre-
so, lo remueve con una cucharilla y, en un primerísimo plano de la taza, el líquido ne-
gro que gira en espirales adquiere una dimensión cósmica. Godard es capaz de reflejar
el universo en movimiento y sus convulsiones en una taza de café. En esta secuencia,
a través del discurso audiovisual, cruzamos las fronteras de lo visible en la pantalla
para reflexionar sobre nosotros mismos y cómo nos relacionamos con el mundo. La
inteligencia del montaje cinematográfico de Godard, construye las sensaciones que
componen nuestra percepción: planos de un mundo abstracto y concreto, innovador
e imperecedero, narrativo, fantástico, esencial y cotidiano al mismo tiempo.

834
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 4. Jean Luc Godard. Deux ou trois choses que je sais d’elle, 1966 (Dos o tres cosas que yo se de
ella). Fotogramas extraídos de la película. Fuente: propia

Para Georges Bataille (2009, pp.163-164) la memoria era la unión del pasado y del
presente, aquel espacio donde se inscribe nuestro verdadero yo, momento del tiem-
po fuera del tiempo. La captura de un fragmento en estado puro, un instante; la
esencia de un momento que adopta la forma de un recuerdo. O como argumenta
Salvador Pániker (1992, p. 91) la meditación entendida como una abolición del tiem-
po. La escena de la taza de café en Deux ou trois choses que je sais d’elle y las piezas
de teamLab son, precisamente, una larga meditación sobre el instante, una refle-
xión sobre la memoria, una disolución del tiempo donde se mezclan las imágenes
proyectadas y las vivencias.

835
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Continuando con la línea de trabajo que utiliza la tecnología para potenciar la


interacción entre obra y espectador, nos acercamos a las propuestas del artista
mexicano Rafael Lozano-Hemmer. Como en el caso de teamLab, Lozano-Hemmer
para llevar a cabo sus proyectos, forma equipos de trabajo multidisciplinares con
diseñadores, arquitectos, programadores, lingüistas ó ingenieros en robótica. Sus
piezas son entornos inmersivos que adquieren contenido con la participación del
público. En una entrevista en el diario El País el autor comenta:

El arte electrónico es un arte escénico. No me baso en los objetos o en algo permanente. Me


interesa lo efímero y lo que ocurre con la participación del público. Puede surgir algo lúdico o te-
meroso. No se sabe y eso me gusta: que yo no controle el desenlace de la obra. La gente participa
en la experiencia estética. (Porras, 2018)

Ejemplo de esta implicación de cada uno de los espectadores con las piezas de Rafael
Lozano-Hemmer, fue la exposición Abstracción biométrica, donde el cuerpo humano,
esa compleja carcasa que nos alberga, era el protagonista. La muestra, presentada
en el Borusan Contemporary de Estambul en 2013 y en el Espacio Fundación Tele-
fónica de Madrid en 2014, conjugaba las tecnologías electrónicas con la sofisticada
tecnología orgánica que es el cuerpo. La biometría, la medición de las variables vita-
les, fue el hilo conductor de esta exposición. Se trataba de nueve instalaciones que
abarcaban un periodo de tiempo desde 1992 hasta 2014 y cuya temática era la idea
de que la captura, el archivo y la transformación de los signos vitales del público, son
parte integral de la obra de arte. En efecto, las nueve piezas que se exhibieron, se
basaban en la recogida de datos del cuerpo de los asistentes y su transformación en
representaciones artísticas. La instalación Almacén de corazonadas, estaba compues-
ta por cien focos incandescentes y una interfaz que detectaba los pulsos cardiacos
de los participantes, haciendo que las luces centellearan con la vibración exacta del
corazón de cada asistente. Utilizando un sensor, el visitante podía imprimir su ritmo
personal a uno de los focos. Esta vibración se unía al resto de las huellas vitales eli-
minando uno de los latidos de los anteriores participantes. Almacén de corazonadas
recogía así la individualidad biológica y emotiva que cada persona va dejando en su
interacción con la pieza.

Del lenguaje del corazón al lenguaje de la palabra: en Matriz de voz, 800 canales de
sonido asociados a luces led, suenan y parpadean al mismo tiempo, conformando
un estimulante murmullo de palabras. Cada visitante puede grabar su mensaje y es-
cuchar cómo éste se funde en una amalgama de voces. En las exposiciones de Rafael
Lozano-Hemmer, no hay un contenido cerrado y predeterminado, serán los visitan-
tes al dejar sus huellas, su voz y su respiración en cada instalación, los generadores
de contenido. Lozano-Hemmer dibuja, capa sobre capa, veladura sobre veladura,
una memoria colectiva que se disuelve y recicla así misma, pero que también deja
un rastro en la memoria individual de cada participante.

836
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 4. Rafael Lozano-Hemmer. Instalación Almacén de corazonadas. Fuente: propia

Las formas de control, la memoria o la presencia, los temas que intresan a Lozano-
-Hemmer, aparecen en sus piezas gracias a la participación del público y la utiliza-
ción de recursos tecnológicos9. Pero aunque el arte utilice los medios del presente,
la tecnología sea el lenguaje de nuestro tiempo y esta tecnología en ocasiones se
utilice para generar arte, obviamente no toda la tecnología es arte. Lozano-Hemmer,
desde su innegable condición de artista, propone una utilización de la tecnología
que permita desrrollar un pensamiento crítico y un diálogo poético, dejando que el
arte trascienda del hecho tecnológico y sea juzgado por sus propios méritos.

Otro creador que propugna una dimensión sensorial en su trabajo es Olafur Eliasson
(Copenhague, 1967), cuya obra abre puertas a la incertidumbre y nunca nos deja
indiferentes. Como en el caso del colectivo teamLab o de Rafael Lozano-Hemmer,
se trata de un artista vinculado a la espectacularidad de los grandes espacios y la
búsqueda cómplice del público.

9 En este sentido una instalación emblemática a la que no puedo dejar de hacer referencia es Frequency
and Volume, expuesta en Ciudad de Mexico (2003), Taichung (2004), Montréal (2005), Tokyo (2005), Ve-
necia (2007), Londres (2008), Tokyo (2009), Copenhagen (2009), Singapore (2011), Paris (2011), Barcelona
(2011), San Francisco (2012), Umeå (2014). Frecuency and Volumen permite a los participantes sintonizar
y escuchar diferentes frecuencias de radio utilizando sus propios cuerpos. Un sistema de seguimiento
computarizado detecta las sombras de los participantes, que se proyectan en una pared del espacio ex-
positivo. Las sombras escanean las ondas de radio con su presencia y posición, mientras que su tamaño
controla el volumen de la señal. La pieza puede sintonizarse en cualquier frecuencia entre 150 kHz y 1.5
GHz, incluyendo control de tráfico aéreo, FM, AM, onda corta, celular, CB, satélite, sistemas de telecomuni-
caciones inalámbricas y radio navegación. Se pueden sintonizar hasta 48 frecuencias simultáneamente y
el entorno de sonido resultante forma una composición controlada por los movimientos de las personas.
Esta pieza visualiza el espectro radioeléctrico y convierte el cuerpo humano en una antena. El proyec-
to, inspirado en los experimentos de radio poesía de los artistas estridentistas mexicanos en la década
de 1920, plantea la pregunta ¿Quién tiene acceso al espacio público que es el espectro radioeléctrico?
Lozano-Hemmer cuestiona la asignación de frecuencias a intereses corporativos en detrimento de los
usos comunitariaos, experimentales o artísticos del espectro. Lozano-Hemmer, R. Frequency and Volume.
Relational Architecture 9. http://www.lozano-hemmer.com/frequency_and_volume.php’

837
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Eliasson invita al espectador a interactuar con la obra, a ser productor más que
consumidor de una realidad. Aborda cuestiones como la relación de la obra con el
espacio y a su vez de éste con el espectador, en un juego de luz, movimiento, pro-
fundidad y perspectiva. En su impulso por hacer al visitante partícipe de sus piezas,
provoca un involuntario compromiso que relaciona público y obra intensamente,
pues es precisamente el espectador el que dotará a los proyectos de su pluralidad
de significados. Eliasson lleva años trabajando en torno a la percepción física de la
realidad, planteando instalaciones que cambian con el lugar en el que se exponen,
la mirada del espectador o las condiciones climatológicas y exploran las vías de la
percepción humana. Sus obras –que incluyen dispositivos ópticos, instalaciones de
luz ó brújulas– impulsan a comprometerse de forma crítica con la subjetividad del
reflejo y sus posibles distorsiones. Sus proyectos son un estímulo para el cerebro y
un reto para los sentidos.

Explorando las relaciones entre arte, vida cotidiana, problemas sociopolíticos y


transculturales, Eliasson ha construido su obra, desde mediados de los años no-
venta, utilizando una amplia variedad de medios, incluyendo intervenciones en el
espacio público, instalaciones multimedia, sonido, video documental, escultura y fo-
tografía. Aunque muchas de sus propuestas están realizadas para verse en espacios
de grandes dimensiones - Green River (1998), The Weather Project (2003), New York
City Waterfalls (2008) o The Ice Watch (2014), entre otros-, a Eliasson también le gusta
cuestionarse y cuestionar al espectador cuando muestra su obra a menor escala,
entre las paredes de una sala de exposiciones. Es lo que consiguió con Una mirada a
lo que vendrá, las obras creadas para la galería Elvira González de Madrid y expuestas
desde el 13 de febrero al 28 de abril de 2018.

Figura 5. Olafur Eliasson. Una mirada a lo que vendrá. Fuente:propia

838
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Eliasson instaló en el espacio expositivo espejos y anillos de colores que se refle-


jaban en una secuencia de fragmentos y geometrías desconcertantes haciéndonos
dudar de nuestra presencia en la sala. Una extraña y sorprendente galería de túneles,
inspirada en Las Meninas (Velázquez, 1956)10, te aproxima hacia un laberinto de de-
sencuentros que rompen nuestra imagen. Al recorrer la galería, era difícil saber don-
de estabas exactamente y ese desconcierto, esa sensación de perderse en el interior
de los reflejos de la propia imagen era el objetivo que perseguía Eliasson. Según
declaraciones al diario El País el autor afirma: “Ahí sí busco un elemento desestabili-
zador. El encuentro con el extraño, con el otro” (Ruiz, 2018)

Olafur Eliasson con sus mágicas puestas en escena, hace visible lo que habitualmen-
te pasa desapercibido dentro del orden social, haciendo partícipe al espectador en
la creación de los significados de la obra, al mismo tiempo que pone de relieve el
carácter amplio del contenido de la misma.

En una sociedad como la nuestra, donde como decía Guy Debord, la vida “se presen-
ta como una inmensa acumulación de espectáculos” (Debord, 1992: 3), las obras de
Eliasson reclaman un ojo atento, una reflexión que plantea todas las preguntas, pero
deja abierto el camino de las respuestas.

Conclusiones
Ultimamos el acercamiento a la obra de teamLab, Rafael Lozano-Hemmer y Olafur
Eliasson, creadores que con sus poéticas apuestas son capaces de establecer un vín-
culo sensorial entre espectador, obra, imagen, espacio y representación, confirmando
que no estamos ante un anhelo nostálgico del pasado, sino ante una reflexión profun-
da sobre el origen y la producción de las imágenes. Estos autores, capaces de aunar
arte, tecnología, misterio, emoción y belleza, proponen -y consiguen-, una transfor-
mación en nuestra manera de percibir la realidad. Cuando el observador interactúa
con la obra participando de ella, se establece un vínculo entre artista, espectador y
pieza. Experimentar el instante es entonces, para el espectador, el resultado de reme-
morar el pasado -la concepción del artista y de sus propias experiencias- y de anticipar

10 En Las Meninas (1956) Velázquez se representa pintando a los reyes, cuya imagen se refleja en un
espejo en el fondo de la escena. Como espectadores, tenemos la sensación que Velázquez nos está
mirando. Nos sentimos observados porque nuestra visión de la escena es la misma que la que tienen
los reyes que están siendo retratados. Con este gesto Velázquez integra el espacio del espectador,
nuestra mirada, con el espacio representado, la mirada de los reyes.
Ángel del Campo Francés publicó en el año 1978 un tratado sobre este cuadro. Bajo el título de La
Magia de las Meninas (Madrid 1978). Según este académico de la Real Academia de Bellas Artes de
San Fernando, la solución al problema planteado por el cuadro obedece al empleo de seis espejos,
lo que explica la extraña posición en el espacio interior de la pintura, tanto de Velázquez como de la
Infanta, las meninas y los Reyes reflejados en el espejo, que, al contrario de lo que siempre se había
dicho, no eran los personajes dibujados sobre el lienzo que tiene ante sí Velázquez.

839
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

el futuro -los significados y proyecciones que le sugieren-, convirtiendo el aquí y ahora,


en el cruce de ambas dimensiones temporales. La tecnología recupera y unifica así
tradiciones anteriores, retomando el significado que desde los orígenes de la institu-
cionalidad del arte ha tenido el ilusionismo: el estar presente. Esta experiencia que el
artista proporciona al público, es lo objetivamente importante y es independiente de
las técnicas y herramientas que elija para llevar a cabo la pieza.

El famoso aforismo de Marcel Duchamp: “El espectador hace el cuadro”11, implica


que no es posible la obra de arte sin hacer referencia un sistema complejo de cono-
cimiento, conformado tanto por la implicación polisensorial, como por las referen-
cias culturales o las circustancias educativas y sociopolíticas. Reflexión que tampoco
hubiera sido posible sin las aportaciones de Henri Bergson, Merleau Ponty ó Jean
Paul Sartre. Todos ellos distinguen lo perceptible de lo imaginario en el contexto
donde, una mancha, un punctum, que llama la atención, nos observa. El arte, hace
sentir convirtiendo en visible lo que no lo era. Nos cuestiona y abre la ventana del
fantasma, no solo el del artista, también el nuestro.

Referencias
Accolti, P. (1625). Lo inganno degl’occhi, prospettiva pratica. Firenze: Pietro Cec-
concelli.

Alhazén. (1572) Opticae Thesaurus: Alhazeni Ara¬bis Libri Septem nunc primum
editi, Eiusdem Liber de Crepusculis et Nubium Asensionibus. Item Vite¬llonis
Thuringopoloni Libri X. Eusebius Episcopius ed eredi di Nicolus Episcopius. Ba-
silea: Risner, F.

Bataille, G. (2009). L’Expérience Intérieure. Paris: Gallimard.

Bergman, I. (2001). Linterna mágica. Barcelona: Tusquet

Cauquelin, A. (2002) El arte contemporáneo. México: Publicaciones Cruz O, S.A

Debord, G. (1992): La société du spectacle. París: Gallimard.

Del Campo Francés, A. (1985) La magia de Las Meninas. Madrid: Turner

Descartes, R., & Quintás Alonso, G. (1981). Discurso del método, Dióptrica, Meteoros
y Geometría. Madrid: Ediciones Alfaguara.

Freud, S., Rodríguez González, M., & López Ballesteros y de Torres, L. (1999). El malestar
en la cultura. Madrid: Biblioteca Nueva. p. 32.

11 citado por Cauquelin, (2002, p. 72)

840
Histórias e Teorias da Arte #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Foucault, M. (2004). Esto no es una pipa: ensayo sobre Magritte [7a ed.]. Barcelo-
na: Anagrama.

Frutos Esteban, F. J (2008). Las proyecciones audiovisuales mediante linterna mágica


como objeto de estudio. Trípodos, 23, 161-176.

Jay, M., & López Martín, F. (2007). Ojos abatidos: la denigración de la visión en el
pensamiento francés del siglo XX . Tres Cantos (Madrid): Akal.

Godard, J.L. (1966) Deux ou trois choses que je sais d’elle [película]. Francia: Les Films
du Carrosse / Argos Films / Anouchka Films / Parc Film.

Huyssen, A. (1996) After the Great Divide. Modernism, Mass Culture, Postmoder-
nism. Indianápolis: Indiana University Press.

Jay, M. (2007). Ojos abatidos. La denigración de la visión en el pensamiento fran-


cés del siglo XX. Madrid: Ediciones Akal.

Kircher, A. (1646). Ars Magna Lucis Et Umbrae. Roma: Sumptibus Hermani Scheus.

Le Breton, D. (2007). El sabor del mundo. Una antropología de los sentidos. Bue-
nos Aires: Nueva Visión.

Lozano-Hemmer, R. (2019, 20 de julio). Frequency and Volume. Relational Archi-


tecture 9. Recuperado de http://www.lozano-hemmer.com/frequency_and_volu-
me.php

Pániker, S. (1992). Filosofía y mística. Una lectura de los griegos. Barcelona: Anagrama.

Porras Ferreyra, J. (2018, 25 de mayo). Rafael Lozano-Hemmer, un humanista tecno-


lógico en Montreal. El País. Recuperado de https://elpais.com/cultura/2018/05/26/
actualidad/1527300800_320201.html

Proust, M. (1981). En busca del tiempo perdido. Por el camino de Swann. Madrid:
Alianza Editorial.

Proyecto IDIS (2019, 5 de junio). Investigación en Diseño de Imagen y Sonido. Facul-


tad de arquitectura, diseño y urbanismo de de la Universidad de Buenos Aires.
Recuperado de https://proyectoidis.org/propuesta/

Ruiz Mantilla, J. (2018, 3 de marzo). En el laberinto de Olafur Eliasson, artista sen-


sorial. El País. Recuperado de https://elpais.com/cultura/2018/03/08/actuali-
dad/1520529186_475805.html

841
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Mariana Santos1 and Pedro Bessa2

Dança e Performance: o transbordar do efêmero


Dance and Performance: the overflow of the ephemeral

Resumo
O presente artigo tem como objetivo refletir sobre as fronteiras estabelecidas entre
a dança contemporânea e a arte-performance, tentando desconstruir essa barreira
e demonstrar quanto suas categorizações se assemelham umas às outras. Para tal,
foi selecionado um leque de obras que versam sobre a hibridização de linguagens
artísticas, nomeadamente: Signals (1970) do bailarino e coreógrafo Merce Cunnin-
gham, Floor of the Forest (1970) da coreógrafa Trisha Brown, Einstein on the Beach
(1976) do diretor e artista visual Robert Wilson, e Café Müller (1978) da coreógrafa
Pina Bausch. Tanto a dança quanto a arte-performance são artes efêmeras, de acor-
do com o sistema clássico, e são chamadas de artes do tempo comparadas as artes
do espaço: pintura, escultura e arquitetura. No mesmo sentido, este trabalho debru-
ça-se sobre o elemento efêmero presente em ambas as linguagens, e questiona a
desvalorização que estas possuem frente às artes do espaço, visto que a característi-
ca efêmera traz consigo uma carga de fragilidade enquanto obra de arte.
Palavras-chave: Artes do Espaço, Artes do tempo, Dança Contemporânea, Arte-
-Performance, Efêmero.

Abstract
This article aims to reflect on the boundaries established between contemporary
dance and performance art, trying to deconstruct this limit and demonstrate how
much its categorizations resemble one another. For that, a range of works on the
hybridization of artistic languages were selected: Signals (1970) by the dancer and
choreographer Merce Cunningham, Floor of the Forest (1970) by the choreogra-
pher Trisha Brown, Einstein on the Beach (1976) by the director and visual artist
Robert Wilson, and Café Müller (1978) by choreographer Pina Bausch. Both dance

1 Mariana Assunção Quintes dos Santos, mestranda do curso Criação Artística Contemporânea da
Universidade de Aveiro, bacharel em Dança pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (BR) e ba-
charel em Produção Cultural pela Universidade Federal Fluminense (BR). Possui artigo publicado
através do III Encontro Brasileiro de Pesquisa em Cultura (2015) e do ENECULT (2016). Entre 2014
e 2016 foi avaliadora de projetos do Prêmio de Ações Locais da Secretaria Estadual de Cultura da
cidade do Rio de Janeiro.
2 José Pedro Barbosa Gonçalves de Bessa, M.A., Ph.D., Departamento de Comunicação e Arte, Uni-
versidade de Aveiro (PT), ID+ Research Institute for Design, Media and Culture.

842
5
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

and performance art are ephemeral arts, according to the classical system, and
are called the arts of time compared to the arts of space: painting, sculpture and
architecture. In the same direction, this work focuses on the ephemeral element
present in both languages, and questions the devaluation, the arts of time have
been suffering towards the space arts, since the ephemeral feature carries with it a
load of fragility as a work of art.
Keywords: Space Arts, Time Arts, Contemporary Dance, Performance Art, Ephemeral.

Introdução
A minha formação-base é em Dança. No entanto, optei por um mestrado de Criação
Artística Contemporânea que, caracterizando-se embora pela transdisciplinaridade,
tem como objetivos “desenvolver, aplicar e aumentar o conhecimento e reflexão para
as artes visuais”. A escolha por esse curso se deu pela sua forte componente prática
e, ao mesmo tempo, não focado em dança com o intuito de abrir meus horizontes
e desenvolver meu conhecimento acerca da arte contemporânea em geral. Nesse
percurso deparei-me, porém, com inúmeras dificuldades. Procurei desenvolver um
trabalho que conjugasse dança com outras vertentes artísticas, tais como instalação
e arte-performance3, mas este nem sempre foi bem-sucedido, nomeadamente de-
vido a problemas técnicos. Senti então necessidade de efetuar uma reflexão sobre
meu entorno, sobre meus projetos correntes e futuros, bem como sobre a fronteira
entre duas áreas ou linguagens artísticas: dança e arte-performance. Conhecer me-
lhor aquilo que as separa e aquilo que têm em comum. Afinal, da mesma forma que
só conhecendo a nós mesmos conseguiremos superar-nos, também só conhecendo
os limites e diferenças entre disciplinas poderemos transcendê-los, alcançando uma
verdadeira transdisciplinaridade.

Dessa forma, a partir de um estudo das definições de dança contemporânea e ar-


te-performance, este trabalho começa por diferenciar a linha tênue presente entre
ambas as linguagens, com o objetivo de melhor as conhecer, assimilar e eventual-
mente transcender.

Dança e artes performativas são artes do efêmero. Artes do tempo, como eram cha-
madas por oposição às artes do espaço - pintura, escultura e arquitetura - nos sistemas
clássicos (Huisman,1984, p. 113). Por serem linguagens efêmeras, acabam por nem
sempre ter a mesma valorização que as tradicionais artes do espaço, como a pintura e
as artes plásticas, possuem. Acresce o fato de a dança possuir também menor espaço
de reflexão crítica ou, pelo menos, este se encontrar menos mediatizado.

3 tradução do inglês performance art, em uso desde 1971 segundo o Online Etymology Dictionary
https://www.etymonline.com/word/performance#etymonline_v_30332

843
6
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Sou bailarina há mais de vinte anos e percebo, às vezes, que a dança é desvalorizada
enquanto prática artística. Talvez pelo fato de que a ação de dançar seja comum e
uma forma de manifestação cultural popular em qualquer sociedade, mas acredito
que isso aconteça mais pelo nosso processo de criação ser tão diferenciado do de
outras artes. Na dança recorremos principalmente ao corpo e ao movimento para
investigar e criar, e não possuímos um guião claro e escrito do que acontecerá em
cena - ao contrário do que sucede no teatro (onde a peça ou texto dramático de um
Shakespeare possui um valor literário intrínseco, suficiente para que este seja reco-
nhecido como o maior autor da língua inglesa de todos os tempos), ou no cinema
ou na música (partitura). Tão pouco, nossa performance em palco resulta numa obra
concreta, num objeto físico de que o público possa disfrutar, mas também levar para
casa ou revisitar quantas vezes queira no espaço de um museu.

Contudo, a efemeridade é de fato uma característica somente das artes do tempo?


Só as artes do espaço são duráveis? Um espectador de uma apresentação de dança
/ arte-performance volta para casa somente com a lembrança do que aconteceu no
espetáculo. Mas isso também não sucede com o mesmo espectador que vê uma ex-
posição numa galeria de arte e volta para casa somente com a memória do que viu
exposto? Os estudiosos reconhecem hoje que a dimensão temporal não é estranha
à percepção da pintura e escultura (Carchia e D’Angelo, 2003, p.40), já para não falar
da vídeo-instalação.

Proponho assim uma nova reflexão acerca do efêmero em arte, a fim de contribuir
para o reconhecimento da dança enquanto prática artística. Como metodologia, re-
correu-se à revisão bibliográfica para contextualização e definição de termos a se-
rem utilizados e discutidos. Foi ainda realizado um estudo de artistas reconhecidos
no meio, para melhor exemplificação e análise.

Dança x arte-performance: em busca de uma definição


De acordo com o dicionário Priberam de Língua Portuguesa, dança corresponde a
“passos cadenciados, geralmente ao som e compasso de música”; do mesmo modo,
para o dicionário Houaiss dança é um “conjunto organizado de movimentos ritma-
dos do corpo, acompanhados por música”. Já a arte-performance, segundo o Hou-
aiss, é uma “atividade artística inspirada em formas de arte diversas, esp. o teatro”,
enquanto o dicionário Priberam, sublinhando o seu carácter híbrido, a define como
“manifestação artística que pode combinar várias formas de expressão.”

Porém, e ainda que a arte-performance se assemelhe ao teatro, já que “a performan-


ce é antes de tudo uma expressão cênica” (Cohen, 2002, p.28), há uma diferença
crucial que separa essas duas linguagens. Como aborda Goldberg (2012, p. 9), “ao
contrário do que se verifica na tradição teatral, o performer é o artista, quase nunca
uma personagem, como acontece com os atores, e o conteúdo raramente segue um

844
7
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

enredo ou uma narrativa nos moldes tradicionais.”. Diferentemente do teatro, onde


texto e diálogo desempenham papel fundamental, são a base para tudo o resto, a
dança e arte-performance afirmam-se pela presença do artista-performer enquanto
obra em si. O corpo e seus movimentos, seu fazer-dizer (Setenta, 2011) constituem o
próprio medium da obra. Como diz Schechner (2013, p.1), “performances são ações”.

A performance pode, portanto, “ser definida como uma arte na qual o artista é o pro-
tagonista de sua obra, a obra em si” (Ciotti, 2011, p. 29). Entretanto, segundo Goldberg,

devido à sua natureza, a performance dificulta uma definição fácil ou exacta que transcenda a
simples afirmação de que se trata de uma arte feita ao vivo pelos artistas. Qualquer definição
mais rígida negaria de imediato a própria possibilidade da performance. (Goldberg, 2012, p. 10)

Na mesma linha de pensamento, também Fabião (2011, p.191) alega que qualquer
tentativa de definir arte-performance, é um “falso problema”, pois acredita que seja
indefinível. E aponta como características gerais:

A ênfase no corpo como tema, matéria e meio…; a desconstrução da representação e a valoriza-


ção do corpo-em-experiência; a hibridação de gêneros (fusão ampla, geral e irrestrita de materiais
e procedimentos que caracteriza não apenas a [arte-]performance, mas muita arte contemporâ-
nea); o investimento na irrepetibilidade e na irreprodutibilidade…; o elogio ao precário, ao passa-
geiro, ao imprevisível… (ibid.).

Porém, quantas destas características não poderiam aplicar-se igualmente à dança


contemporânea? Assim, para Siqueira (2006) a grande marca desta última é a diver-
sidade, seja de estilos, géneros, ações. Já para Lepecki (2011), é a experimentação o
que define a dança contemporânea, sendo esta sua principal característica. Para ou-
tros autores, as características da dança contemporânea estão na relação intrínseca
entre movimento e liberdade:

Autonomous movement of the body opened new potentials of human experience and rela-
tionships (...) They provided the possibility of a new aesthetic experience, because of their intrinsic
relationship between movement and freedom, which was presupposed in almost every attempt
at movement reform. (Kunst, 2011, p.49)

Rudolf von Laban (1879 –1958), considerado o pai do expressionismo e uma das
principais figuras da dança moderna, nem mesmo parte já do estudo da dança, mas
daquilo a que chamava “arte do movimento”. Ele começa por estudar os movimen-
tos das pessoas e acaba por estabelecer oito ações básicas do movimento4 e assim

4 Laban (1978) definiu oito ações básicas do movimento: socar, chicotear, pontuar, sacudir, pressio-

845
8
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

reformula a base do entendimento do que era conhecido como dança, com passos e
técnicas pré-estabelecidas, principalmente no ballet clássico. Uma de suas maiores
contribuições foi ter criado a Kinetographie Laban, ou notação Laban, uma espécie
de partitura para a dança que hoje continua sendo um dos principais sistemas de
notação de movimento utilizados. Talvez tenha sido a primeira vez que a dança ga-
nhou um objeto físico para chamar de seu.

Como referido acima, uma das principais características da arte-performance é o uso


do corpo como suporte artístico. Como diz Ciotti (2011, p. 29), “na performance, o cor-
po humano é sujeito e força motriz da linguagem cênica”. No mesmo sentido, Cohen
(2002, p. 30) aproxima-a da body art, tanto a nível do conceito quanto da prática.

Mas também na área da dança, Jussara Setenta (2011, p.192) acredita que esta fun-
ciona como “uma espécie de fala do corpo”. E assim como acontece com o ato de
falar propriamente dito, também o corpo busca formas diferentes de falar. Setenta
define essa modalidade de fala como um “fazer-dizer”, construído no e pelo corpo.
Desse modo, podemos, prolongando a analogia, considerar a coreografia como sen-
do a “fala” da dança, enquanto as diferentes maneiras de se falar seriam os passos.

Pensar ambas, dança e performance, como um fazer que é dizer e, onde, dança, performance e
política coexistam aciona outros modos de agir artisticamente, capazes de discutir, com o seu
fazer, qual o ‘lugar’ destas ações artísticas na sociedade atual. (...) No campo da dança, um enco-
lhimento crítico reflexivo o destaca do campo da performance. Por conta disso, existem ênfases
em discussão para o fazer-dizer da dança. Entretanto, as questões e considerações em movimento
transbordam o campo da dança e borram-se nas observações em performance.” (ibid., p. 191-192).

Podemos então concluir, provisoriamente, por uma proximidade entre as práticas da


dança e da arte-performance, ambas centradas no corpo, sendo ainda de destacar
a existência de uma menor reflexão crítica na área da dança, talvez porque ainda
incipiente enquanto área acadêmica.

Hibridização na arte contemporânea: o diluir de fronteiras


Como se referiu acima, práticas artísticas contemporâneas implicam quase sempre
algum grau de hibridização e interdisciplinaridade. Todavia, apesar de agregar ou-
tras linguagens artísticas e ser reconhecida pelo seu hibridismo, a arte-performance,

nar, torcer, deslizar e flutuar. Denominou-as como qualidades do movimento e estipulou para cada
uma delas um conjunto de modalidades do movimento (peso, tempo e espaço). Assim, a ação socar
se caracteriza por ser com peso forte, tempo rápido e espaço direto, já a ação flutuar é com peso
leve, tempo lento e espaço indireto, essas duas ações compõem ações com características opostas e
as outras seis ações são diferentes combinações das modalidades a partir de socar e flutuar: pontuar
(leve, rápido e direto), torcer (forte, lento e indireto), pressionar (forte, lento e direto), sacudir (leve,
rápido e indireto), chicotear (forte, rápido e indireto) e deslizar (leve, lento e direto).

846
9
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

a partir da década de 1970, é considerada um “meio de expressão artística indepen-


dente”, como define Goldberg (2012, p. 7). Ou seja, desde essa época que o termo
performance é reconhecido como um tipo de linguagem artística, assim como a
dança, o teatro, a pintura, mesmo sendo interdisciplinar. De qualquer forma, como
hoje a dança contemporânea apresenta diversas vertentes e estilos, já que com ela,
a dança se “libertou” do palco italiano e das técnicas rígidas, facilmente poderia ser
confundida com a arte-performance.

Ora, se a arte-performance se utiliza do corpo para se expressar e a dança se ca-


racteriza pelo movimento do corpo, poderíamos quase considerar que a arte-
-performance também seria dança. Na verdade, muitos bailarinos – de que Merce
Cunningham é apenas o exemplo mais conhecido – participaram em eventos de
âmbito performativo, ou criaram suas próprias performances. Como seguem os
quatro exemplos a seguir:

Pina Bausch, coreógrafa alemã pertencente ao expressionismo alemão e fundado-


ra do conceito de Dança-Teatro, tem como sua obra mais emblemática Café Müller
(1978). Esta obra é um bom exemplo de uma dança que fugiu dos padrões clás-
sicos do ballet. Tinha uma quantidade enorme de cadeiras em cena atrapalhando
a locomoção dos bailarinos, propositadamente -- um dos integrantes da cena era
responsável por tirar as cadeiras da frente dos bailarinos que se deslocavam de olhos
fechados para não baterem - figurinos simples como de um dia normal, além de os
movimentos não serem virtuosos e propensos à beleza.

Robert Wilson, encenador norte-americano, trouxe para a cena artística a obra Eins-
tein on the Beach (1976), considerada uma das mais importantes produções do sécu-
lo XX na área da música e artes do palco. Com texto e música de Phillip Glass, essa
peça é composta por dança, teatro e música, podendo ser considerada uma ópera,
mas que foge dos padrões tradicionais, como por exemplo, não possuir uma narrati-
va. De acordo com Robert Wilson, o espectador não precisa entender nada, pode se
perder. Com duração aproximada de cinco horas sem intervalos, o público poderia
se sentir livre para sair e voltar quando quisesse. “Einstein on the Beach was revo-
lutionary when first performed and is now considered one of the most remarkable
performance works of our time.” (Wilson, para. 3)

Trisha Brown, coreógrafa e bailarina norte-americana, foi inovadora no campo de


investigação da dança, trazendo para a cena o cotidiano, a improvisação e o movi-
mento natural. A obra Floor of the Forest (1970) tinha como descrição “Duas pessoas
se vestiram e se despiram” e refletia de fato o ato de se vestir e despir. Foi construída
uma rede de cordas com roupas penduradas e os bailarinos dançavam entre elas.
Com uma ação do dia-a-dia, Trisha Brown estabeleceu uma outra relação à ação,
pois a cena acontecia na horizontal e não na vertical como normalmente. Outra ca-
racterística da coreógrafa é que ela primava por apresentações em museus, galerias
e espaços abertos, fugindo dos tradicionais palcos.

847
10
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Merce Cunningham, coreógrafo norte-americano com diversas facetas artísticas,


procurava acrescentar às suas coreografias outras linguagens, e até em algumas de-
las, tecnologia. Junto com seu parceiro John Cage, musicólogo, eles moldaram sua
maneira de fazer arte, uma arte que valorizava o processo em vez do produto final e
explorava os elementos fornecidos pelo acaso. Signals (1970) foi uma de suas obras
diferentes, cada apresentação tinha uma ordem coreográfica e mudava de acordo
com o desempenho dos intérpretes. Assim como a música, cada espetáculo era uma
composição diferente. Suas obras só se juntariam em dias de apresentação, ou seja,
as criações coreográficas e musicais eram feitas independentes e os bailarinos só
conheceriam a música na hora de entrar em cena. Essa característica muda de uma
certa forma o entendimento de um espetáculo de dança tradicional, onde os passos
executados correspondem aos compassos musicais.

Por assim dizer, depois de algumas definições, tanto de arte-performance quanto de


dança e dança contemporânea, e exemplos de obras e coreógrafos, percebemos que o
entrelaçar entre a dança contemporânea e a arte-performance é real e vai muito mais
além do uso do corpo em cena, perpassa pelas diversas possibilidades de fazer arte,
pela sua interdisciplinaridade mútua, o caráter experimental e livre de regras.

O caracter efémero das artes do corpo

La musica non è da essere chiamata altro, che sorella della pittura…ma la pittura eceelle e sig-
noreggia la musica, perch’ essa non more imediate dopo la sua creatione, come fa la sventurata
musica, anzi resta in essere e ti si dimostra in vita quel, che in fatto è una sola superfitie... 5
Leonardo da Vinci, Trattato della pittura, 29.

Porém, como dito anteriormente, não é somente através do corpo que a arte-per-
formance e a dança se assemelham. Ambas são artes [manifestações] efêmeras, pois
não apresentam um objeto físico, concreto como produto final da prática artística,
como acontece nas artes plásticas, por exemplo. A frase de Leonardo da Vinci, citada
em epígrafe, é ilustrativa de uma tendência que vem pelo menos desde o Renasci-
mento em valorizar as “artes do desenho”, i.e. pintura, escultura e arquitetura6, ou
artes do espaço, em relação às artes do tempo: teatro, música e dança.

5 Tradução livre: “A Música não pode ser melhor definida do que como irmã da Pintura (…) mas a
Pintura supera e ultrapassa a Música, uma vez que não morre imediatamente após a sua criação,
como acontece com a sua desafortunada irmã; pelo contrário, ela permanece em existência e assim
se nos mostra como algo vivo , embora de facto esteja confinada a uma superfície.”
6 A expressão é de Giorgio Vasari, autor das Vidas dos mais Excelentes Pintores, Escultores e Arquite-
tos (Florença, 1550; 2.ª ed. alargada 1568), unanimemente consideradas como o modelo fundador
da história de arte.

848
11
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

A oposição entre artes do tempo e espaço desenvolveu-se historicamente no Oci-


dente entre os sécs. XVII e XVIII, e teve como principais expoentes a pintura e a po-
esia. De acordo com o Laocoonte (1767) de G.E. Lessing, estas duas artes utilizam
meios completamente diferentes, senão mesmo opostos.

Como referem Carchia e D’Angelo (2003, p.40),

A primeira serve-se de ‘figuras e cores no espaço’, a segunda, de ‘sons articulados no tempo’. O âmbito
próprio do poeta é a ‘sucessão temporal’, enquanto o do pintor é o espaço… A pintura pode apenas
sugerir as acções através da atitude dois corpos, devendo por isso tratar de escolher o momento mais
significativo, enquanto a poesia pode representar os corpos, mas só através das acções: as descrições
resultam débeis e pouco eficazes em poesia, porque o poeta ‘pode mostrar os elementos da beleza
apenas um após outro’.

Segundo Huisman (1984, p. 113), os sistemas clássicos organizavam-se em torno de


uma dicotomia entre artes do espaço e artes do tempo: três artes plásticas (pintura,
escultura, arquitetura) opõem-se a três artes rítmicas (dança, música e poesia), num
sistema coroado pela chamada “sétima arte”, o cinema. Apesar de incompleta (sem
lugar para o teatro ou a literatura em prosa, já para não falar de artes ditas “menores”
como o vitral ou a cerâmica) e pouco satisfatória, esta classificação, este sistema di-
cotómico mantém-se mais ou menos inalterado até às vanguardas artísticas do séc.
XX, embora com ocasionais melhoramentos ou adaptações7.

Apenas os desenvolvimentos ocorridos na contemporaneidade, em especial na área


das artes figurativas superando os limites dos media tradicionais e consignando
novas formas artísticas como a instalação e a performance, vieram pôr em causa
quaisquer tentativas de divisão rígida. Por outro lado, também a psicologia e teoria
da recepção demonstraram que “a dimensão temporal não é de facto estranha à
percepção das imagens” (Carchia e D’Angelo, 2003, p.40). Nas palavras de Huisman
etc. (1984, pp. 112-113) “o tempo é essencial na arquitectura, na pintura, e seria vão
negar o carácter temporal que se prende à majestade dos templos gregos, à rapidez
grácil da escultura gótica flamejante”.

Um dos autores que primeiro assinalou as dificuldades e o erro de uma distinção a


priori entre espaço e tempo foi E. Gombrich:

While the problem of space and its representation in [fine] art has occupied the attention of
art historians to an almost exaggerated degree, the corresponding problem of time and the
representation of movement has been strangely neglected. (Gombrich, 1964, p. 293).

7 Hegel, por exemplo, tendia a excluir a poesia das artes temporais, criando-lhe um espaço próprio,
distinto quer das artes do espaço quer da música; outros autores propunham introduzir no sistema
uma categoria de artes espácio-temporais que incluísse teatro, dança e eventualmente arquitetura
(Carchia e D’Angelo, 2003, p.40).

849
12
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

O autor aponta várias razões: a força da tradição, a complexidade do assunto que só


recentemente a psicologia se atreveu a tratar em profundidade - a que poderíamos
eventualmente acrescentar o preconceito do arts longa, vita brevis8, a obsessão das
artes visuais, em especial da pintura, com a negação do tempo.

De acordo com a teoria clássica, um pintor antes de pintar, observa o espaço e esco-
lhe um determinado momento para passar o que acabou de presenciar para a tela.
Mas não pode ser qualquer momento, a escolha certa é crucial para o trabalho. O
pintor deve pintar um momento em que quem olhe para a tela consiga imaginar o
que se passou antes e o que se passou depois, e, assim, perpetuar a ação pela sua
pintura e “claramente não deve ser um momento feio” (ibid., p. 295). Para representar
o movimento, ou a sucessão no tempo, a única solução será combinar dois momen-
tos como “acontecendo num mesmo e único instante” (ibid., p. 294), i.e. representá-
-los numa única imagem.

Na teoria estética do século XVIII, autores com Lessing ou o conde de Shaftesbury


relevam a importância de uma correta escolha desse momento “pregnante”, embora
Shaftesbury (cit. por Gombrich, 1964, p.294) admita que esse modelo da ação ins-
tantânea frequentemente fracassa. E menciona algumas representações do mito
clássico Diana e Actaeon, em que a deusa é vista jogando água em Actaeon, cujas
hastes já estão crescendo, embora ele ainda não esteja molhado.

Thus the artist was driven in the interest of truth to concentrate more and more on the task of
giving, in Constable’s words, ‘One brief moment caught from fleeting time a lasting and sober
existence’. These words were written in 1832. A few years later photography was invented. (Gom-
brich, 1964, p.295).

De Leonardo à invenção da Fotografia, passando pelos paisagistas do século XIX,


o mesmo desejo de capturar o momento efémero, de conseguir parar o tempo de
modo a criar uma imagem para a eternidade. Porém,

…we never see what the instantaneous photograph reveals, for we gather up sucessions of
movements, and never see static configurations as such. And as with reality, so with its repre-
sentation. The reading of a pictures again happens in time, in fact it needs a very long time.
(Gombrich, 1964, p.301)

Por que razão algumas imagens ou composições são entendidas como ‘estáticas’
e outras como instáveis ou ‘dinâmicas’? Por que razão, pergunta Gombrich (1964,
p.305), entre duas reproduções fotográficas do Discóbolo, de Miron (cópia romana

8 “A vida é breve, mas a arte é perene”; atribuído ao médico grego Hipócrates (Séneca, De
Brevitate Vitae, I).

850
13
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

de bronze, séc. II d.C.), sentimos uma maior impressão de movimento e velocidade


na vista lateral. A resposta está na forma como percepcionamos. Ver é buscar um
sentido: à medida que olhamos esse esforço precede-nos, procurando completar as
formas do que vemos, exatamente do mesmo modo que, quando escutamos uma
frase musical tendemos já, por antecipação, a completá-la no ouvido.

O tempo está, pois, presente até mesmo na forma como vemos uma escultura ou
um quadro. Contudo, devido à sugestão de permanência, de eternidade que as artes
do espaço oferecem elas sempre encontraram acolhimento junto dos mecenas da
corte, da nobreza e da rica burguesia.

O tema da perenidade da arte, do ars longa, vita brevis, desenvolveu-se maiorita-


riamente entre os escritores e poetas do século XIX como Théophile Gautier, cujo
poema L’Art (1852) pode considerar-se emblemático: Tout passe, l’art robuste / Seul à
l’éternité / Le buste / Survit à la cité.

No entanto, este sentimento tem as suas raízes no Renascimento italiano, senão


mesmo em tempos mais recuados. A arte, porque sobrevive ao tempo pode trazer-
-nos a imortalidade. De início, este recurso estava reservado aos poetas, cujas versos
e canções imortalizavam os heróis e guerreiros caídos9. Mas a partir da Renascen-
ça caberá especialmente às artes plásticas, à pintura e à escultura funerária e mo-
numental essa tarefa de preservar a fama dos homens ilustres para a posteridade.
Como escreve o pintor e humanista português Francisco de Holanda (1983, p. 246),
a pintura “deixa dos presentes para os que hão de vir depois d’elles”. Já Castiglione
(1987, p.98) prefere a escultura. Esta arte tem “maior dignidade” do que a pintura,
porque as estátuas “duram mais tempo”.

“Oh, maravilhosa ciência que consegue preservar a beleza transitória dos mortais
e dotá-la de uma permanência maior do que a das obras da Natureza – pois estas
últimas estão sujeitas à mudança contínua do tempo”, escreveu Leonardo da Vin-
ci referindo-se à pintura (Richter, 1980, p.197). Poderá parecer contraditório que o
mesmo Leonardo que, em Milão, organizou bailes de máscaras e efémeros festivais
de corte10 argumente depois acerca da superioridade da pintura. Mas a consciência
dessa fraqueza congénita a todas as artes efémeras, desse “morrer imediatamente
após ter nascido” (Richter, 1980, p.197) é algo que se desenvolve muito lentamente
durante a Renascença.

Dado que a dança não produz artefatos que sobrevivam aos séculos (pinturas, de-
senhos, monumentos arquitetônicos), nem deixa para trás documentos escritos

9 Por exemplo na Ilíada (VI, 359) de Homero; cf. também Dante (Inferno, XV, 85).
10 Segundo Giorgio Vasari, Vidas dos mais Excelentes Pintores, Escultores e Arquitetos (Florença, 1568).

851
14
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

(partituras, textos dramáticos) temos até dificuldade em conhecer a sua história


de modo adequado. Sabemos, por exemplo, que o teatro grego teve origem no
ditirambo, uma espécie de dança com cânticos em honra do deus Dioniso, mas
isto apenas porque Aristóteles o refere de passagem na sua Poética (1992, p.108).

Tal como a tradicional pintura a óleo, também as origens do balé /dança clássica re-
montam às cortes do Renascimento italiano dos sécs. XV e XVI. Mestres de dança ensi-
navam os passos a uma clientela de sofisticados aristocratas e burgueses endinheira-
dos que a praticavam como forma de entretimento social e símbolo de estatuto. Estes
mestres ou professores de dança não eram considerados artistas no mesmo sentido
que os pintores e arquitetos que as cortes italianas já então disputavam entre si. O
seu estatuto social seria mais parecido com o dos mestres de esgrima ou dos músicos
profissionais (instrumentistas). Levada para França por Catarina de Médicis, essa dança
aristocrática, extremamente formalizada atingirá aí o seu desenvolvimento máximo.
Na segunda metade do séc.XVII, com a fundação da Académie Royale de Danse por
Luís XIV, surge então a primeira companhia de balé, na Ópera de Paris (Bourcier, 2006),
iniciando-se um lento processo de reconhecimento artístico.

Hoje somos capazes de compreender que “as artes plásticas comportam um tempo
igualmente tão essencial como as artes ditas do tempo… e as artes rítmicas são tão
espaciais como as artes ditas do espaço.” (Huisman, 1984, p. 113). No entanto, ainda
sentimos, por assim dizer, toda essa herança histórica de valorização das artes do es-
paço. Por ser bailarina, uma artista do corpo, percebo, muitas vezes, um descrédito
para com a dança por parte de outros artistas, e acredito ser pela efemeridade que ela
apresenta. Uma dança não tem como ser comprada e ser levada para casa, ela é feita
para ser apreciada, tem um início, um meio e um fim, assim como a arte-performance.

Foi somente a partir da documentação das artes do tempo, com a evolução dos
equipamentos audiovisuais, que as obras puderam fazer registos de suas apresen-
tações, demonstrando uma certa tangibilidade ao ideal do ars longa, vita brevis, da
arte perene. Entretanto, o registo de uma obra efêmera não subtrai toda a efemeri-
dade que ela apresenta, pois a filmagem por mais que mostre a obra do início ao fim
não capta a experiência sensorial de ver ao vivo (Rein, 2011; Miller, 1986).

Nas gravações de uma peça de teatro (Miller, 1986), bem como de uma ópera ou de
um bailado, o vídeo é feito e montado pelos olhos do cinegrafista e é o posiciona-
mento da câmera que definirá o que o espectador irá ver. Dessa forma, só será viável
assistir de um determinado ângulo (que, mesmo quando se altera, sempre perma-
nece fixo), sem possibilidade de perceber o ambiente amplamente e captar a reação
do público durante a performance dos artistas. Por mais que o registo de uma arte
do tempo seja feito, não há como alegar que esta deixa de ser efêmera, pois toda a
complexidade e experiência sensitiva que envolve a obra não estará na filmagem.

852
15
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Conclusão
Como já apontado anteriormente, o enaltecimento das artes do desenho/artes visu-
ais vem desde o Renascimento com grandes gênios artísticos conhecidos mundial-
mente. Entretanto, se pararmos para pensar, a dança enquanto arte só foi reconheci-
da na segunda metade do século XVII com o desenvolvimento do que conhecemos
hoje como balé clássico, numa altura em que as tradicionais pintura, escultura e ar-
quitetura já eram consagradas.

A segunda metade do século XX na arte é marcada por diversas experimentações, no-


vas formas de se fazer arte, novas linguagens que surgem, novas abordagens. Tudo
passa a ser possível na arte. E é nesse contexto que a dança contemporânea se insere
junto com a arte-performance, nessas manifestações artísticas que afrontam a socie-
dade, abusam do fazer artístico, extrapolam os limites, que tangenciam a margem do
que é arte e questionam essa tradicional aura que recai sob a obra de arte.

Nesse sentido, foi visto que tanto a dança contemporânea como a arte-performance
são categorizadas como linguagens artísticas sem técnicas definidas, que trabalham
com a transdisciplinaridade, que são obras livres e que abordam frequentemente o
conceito de corpo enquanto protagonista da obra. A partir dos exemplos de Merce
Cunningham, Pina Bausch, Robert Wilson, Trisha Brown, percebe-se que a fronteira
do que é dança contemporânea, arte-performance ou outra linguagem é obscura e
impossível de definir.

Apesar de todo o experimentalismo e liberdade presentes na contemporaneidade,


superando os limites dos media tradicionais e criando novas formas artísticas, a dan-
ça contemporânea e a arte-performance se mantêm até hoje como exemplos de
uma arte que “morre no momento”. Uma arte que não é eterna, que tem um fim, e
onde mesmo o registro através de meios eletrônicos das apresentações é deficitário
e impotente para eternizá-las enquanto produto artístico durável. A efemeridade
que ambas possuem traz consigo uma carga de desvalorização perante as outras
linguagens artísticas, permanecendo ainda na iminência de sua existência.

Sendo assim, percebe-se que mesmo com toda a trajetória de progresso e busca
pela valorização das artes do corpo, muito ainda precisa ser feito e estudado para
que todas as manifestações artísticas se igualem umas às outras. E, talvez, um dos
primeiros passos para isso acontecer seja o estudo acerca dessas questões e a inicia-
tiva de trazer a arte, a arte-performance e a dança contemporânea para dentro da
Academia, fornecendo-lhes um estatuto que ainda estão longe de possuir.

Referências
Aristóteles. (1992), Poética (trad. Eudoro de Sousa) Lisboa: Imprensa Nacional - Casa
da Moeda, 3.ª ed.

853
16
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Bourcier, P. (2006), História da Dança no Ocidente, São Paulo: Martins Fontes.

Carchia, G. e D’Angelo, P. (eds.) (2009), Dicionário de Estética, Lisboa: Edições 70.

Castiglione, B. (1987 [1528]), The Book of the Courtier (trad. Georges Bull), Har-
mondsworth: Penguin Books.

Ciotti, N. (2011), “Aprendendo e ensinando através da performance”, in Oliveira, A.W.


(org.), A Performance Ensaiada, Fortaleza: LICCA /Expressão Gráfica e Editora, pp. 29-41.

Cohen, R. (2002), Performance como linguagem, São Paulo: Editora Perspectiva.

Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2001 (ver-
são Intranet), disponível em: http://houaiss.web.ua.pt/cgi-bin/houaissnetb.dll/frame

Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (on line), disponível em: https://dicio-


nario.priberam.org/

Fetterman, W. (1999), “Merce Cunningham and John Cage: Choreographic Cross-cur-


rents”, Contemporary Music Review, vol.18, Part 1, pp. 121-142.

Fabião, E. (2011), “Performance e precariedade”, in Oliveira, A.W. (org.), A Performan-


ce Ensaiada, Fortaleza: LICCA /Expressão Gráfica e Editora, pp. 63-85.

Goldberg, R., (2012), A arte da performance do futuro ao presente, Lisboa: Orfeu


Negro.

Gombrich, E. H. (1964), “Moment and Movement in Art”, Journal of the Warburg


and Courtauld Institutes, vol. 27, pp. 293-306.

Holanda, F. (1983 [1548]), Da Pintura Antiga, Lisboa: Imprensa Nacional -Casa da Moeda.

Huisman, D. (1983), A Estética, Lisboa: Edições 70.

Laban, R. (1978). Domínio do movimento. São Paulo, BR: Summus Editorial.

Lepecki, A. (2011), “O corpo como arquivo vontade de reencenar e pós-vida de obras


de dança”, in Oliveira, A.W. (org.), A Performance Ensaiada, Fortaleza: LICCA /Ex-
pressão Gráfica e Editora, pp. 103-139.

Kunst, B. (2011), “Dance and Work: The Aesthetic and Political Potential of Dance”, in
Klein, G., Noeth, S., The Performance of Worldmaking in Dance and Choreogra-
phy, Bielefeld: Transcript Verlag, pp. 47-59.

Merce Cunningham Trust. Disponível em: https://www.mercecunningham.org/

854
17
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Miller, J. (1986), Subsequent Performances, Londres: Faber and Faber

Rein, A. (2011), “Flee(t)ing Dances! Initiatives for the Preservation and Communica-
tion of Intangible World Heritage in Museums” in Klein, G., Noeth, S., The Perfor-
mance of Worldmaking in Dance and Choreography, Bielefeld: Transcript Verlag.

Richter, I. A. (ed.) (1980), The Notebooks of Leonardo da Vinci, Oxford: Oxford Uni-
versity Press

Robert Wilson. Disponível em: http://www.robertwilson.com/

Robert Wilson & Philip Glass’s Einstein on the Beach. Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=DOnNJgTZlYo

Schechner, R. (2013), “What is Performance Studies?”, Rupkatha Journal On Inter-


disciplinary Studies in Humanities, vol. 5, n. 2, pp. 2-11.

Setenta, J. S. (2011), “Dança e/em Performance o fazer-dizer de corpos na contem-


poraneidade”, in Oliveira, A.W. (org.), A Performance Ensaiada, Fortaleza: LICCA /
Expressão Gráfica e Editora, pp. 191-200.

Siqueira, D. C. O. (2006) Corpo, comunicação e cultura: a dança contemporânea


em cena. Campinas: Autores Associados.

Trisha Brown Dance Company. Disponível em: http://www.trishabrowncompany.org/

Wenders, W. (Diretor). (2011). Pina [Filme]. São Francisco: Mongrel Media.

855
18
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Monique Aguiar1

Da arte com as mídias à arte nas mídias


Aproximações entre indústria cultural e criação artística nas
séries televisivas
From the art with the media to the art within the media
Approaches between culture industry and artistic creation in the television series

Resumo
Partindo das considerações de Paglia (2014) e Santaella (2005) a respeito o pro-
gressivo esfumaçamento das fronteiras entre arte e indústria cultural ao longo
das últimas décadas, e das provocações de Machado (2002) sobre os limites do
que podemos ou não considerar media arts, o presente artigo se propõe a dis-
cutir o fenômeno da “televisão de arte” e as possibilidades de criação artística no
interior dos grandes conglomerados de mídia. Para isso, retomaremos ainda as
teorias frankfurtianas, observando seu papel da conformação desta dicotomia,
e refletiremos sobre a necessidade de repensar os limites da arte diante do pos-
sível início de uma nova era (DANTO, 2006; BELTING, 2006).
Palavras-chave: media arts, indústria cultural, séries televisivas

Abstract
Based on the considerations of Paglia (2014) and Santaella (2005) about the pro-
gressive blurring of the boundaries between art and culture industry over the last
decades, and Machado’s (2002) provocations about the limits of what we can and
cannot consider media arts, this article aims to discuss the phenomenon of “art tele-
vision” and the possibilities of artistic creation within major media conglomerates.
To this end, we will also resume the Frankfurtian theories, observing its role in shap-
ing this dichotomy, and reflect on the need to rethink the limits of art in the face of
the possible beginning of a new era (DANTO, 2006; BELTING, 2006).
Keywords: media arts, culture industry, television series

1 Doutoranda em regime de cotutela em Artes Visuais - História e Teoria da Arte pelo PPGAV/UFBA
e em Arts & Médias pela Université Sorbonne Nouvelle - Paris 3. Pesquisa as relações entre arte e
mídia, pós-arte, teoria da arte, narrativas seriadas televisivas, recepção e crítica de arte. O presente
trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Supe-
rior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Contato: monique.jrn@gmail.com / monique.
carneiro-aguiar@sorbonne-nouvelle.fr

856
19
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Das pirâmides às salas de cinema


Na ocasião do lançamento do seu penúltimo livro a pesquisadora americana Camille
Paglia gerou polêmica ao eleger o cineasta George Lucas “o maior artista vivo”2. O
livro em questão, Imagens Cintilantes - Uma Viagem Através da Arte desde o Egito a
Star Wars (2014), propõe uma breve historiografia da arte através de uma seleção de
imagens que a autora acredita representarem de maneira significativa a produção
artística de distintos períodos. A interessante provocação encontra-se justamente
na imagem escolhida para representar “as décadas que servem de ponte entre os
séculos XX e XXI” (2014, p.183): uma cena de Star Wars. Ao inserir em sua história da
arte um filme, e não apenas qualquer filme, um dos principais ícones da cultura pop
das últimas décadas, uma produção emblemática do que costumamos chamar de
Indústria Cultural, Paglia, em um só gesto, rompe com quaisquer fronteiras entre
arte e cultura massiva e põe em xeque a própria concepção de arte. Acerca desta
escolha audaciosa, a autora explica que, para ela, a energia criativa de nossa época
teria se espalhado, e não apenas pelos novos formatos da arte contemporânea - mas
para além do circuito tradicional do mundo da arte. Com isto, a filósofa nos deixa
com a difícil missão de repensar uma das mais importantes dicotomias modernas.

O surgimento das mídias massivas entre o final do século XIX e início do século XX foi
um fator decisivo na conformação da produção cultural das sociedades modernas.
Os novos aparelhos semióticos, como as câmeras fotográficas e de vídeo e posterior-
mente as tecnologias digitais, ampliaram as linguagens artísticas disponíveis, altera-
ram o alcance e a relação entre obra e público e fizeram emergir novos modelos eco-
nômicos e relações produtivas, provocando uma transformação sem precedentes
no modo como produzimos imagens e narrativas. Assim, o uso de novas mídias na
produção artística é um tema que têm obtido um crescente destaque nas discussões
recentes das histórias e teorias da arte.

Ao conjunto de produções artísticas que se utiliza destas (já não tão) novas mídias
demos o nome de media art. Entre suas vertentes mais conhecidas estão a videoarte
e a arte digital, mas em geral usa-se este como um termo guarda-chuva para tratar
de toda produção artística que utiliza as tecnologias surgidas a partir da moderni-
dade, ou de ao menos quase toda ela. A uma parte das novas obras, as produções
criativas massivas, como o cinema ou as ficções televisivas, geralmente desenvolvi-
das no seio de grandes corporações e conglomerados de mídia, foi dado um outro
nome: Indústria Cultural. Tomadas como mercadorias culturais, subvertidas por seu
propósito comercial, estas obras foram segregadas do mundo da arte, encontrando
abrigo nos estudos da comunicação.

2 Em entrevista ao Estadão. Recuperado em 28 de agosto, 2019, de https://cultura.estadao.com.br/


noticias/artes,imagens-cintilantes-choca-ao-eleger-george-lucas-o-maior-artista-vivo,1579812

857
20
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Pensadores contemporâneos, no entanto, tem começado a repensar esta divisão,


nos convidando não apenas a observar as fragilidades destas fronteiras, mas a pen-
sar estas produções de maneira mais integrada. Deste modo, a media art parece ter
diante de si um duplo desafio: garantir seu espaço em um cenário teórico e crítico
ainda bastante aferrado às artes plásticas tradicionais - mas também resolver seus
conflitos internos, refletindo sobre as suas próprias fronteiras e os limites do que esta
nova produção pode ou não englobar.

Uma televisão de arte?


Um ponto interessante para investigarmos esta tensão entre arte e mídia, ou ainda,
entre media arts e indústria cultural, são as narrativas ficcionais seriadas televisivas.
Se por um lado não há grande novidade em dizer que o cinema vêm, já há algumas
décadas, defendendo sua proximidade em relação ao universo da criação artística,
em um expediente que já garantiu importantes avanços em seu processo de legi-
timação para, ao menos, uma parcela de sua produção. Por outro, este questiona-
mento parece muito mais distante, e o estigma ainda maior, quando tratamos de
produções feitas para a TV.

Observemos o caso das séries televisivas. As primeiras discussões trazendo novas


perspectivas a respeito da potencialidade estética das narrativas seriadas iniciam-se
por volta da década de 1980, com o lançamento da série Hill Street Blues (1981),
produzida pela MTM Enterprises. Esta produção, tida por teóricos e críticos como
inovadora para os padrões da época, faria parte do que Robert J. Thompson (1997)
chama de segunda era de ouro da televisão, um período marcado pela emergência
novos modelos produtivos na televisão cujo arrojo abriria espaço também para no-
vas discussões a respeito da produção televisiva.

Uma das primeiras interpretações levantadas a respeito destas novas produções fic-
cionais propunha que, devido ao seu caráter inovador, elas teriam um nível de qua-
lidade superior ao das demais produções. Pouco após o lançamento de Hill Street
Blues (1981), ainda em 1984, o British Film Institute já publicava o livro MTM: Quality
television, dando a estas produções o controverso rótulo de “televisão de qualidade”.
No entanto, como destaca o próprio R.J. Thompson (1977), não demorou até que
surgissem críticas a respeito desta proposta interpretativa, que passou a ser aponta-
da como demasiadamente subjetiva e imprecisa: “Apesar de ter sido utilizado origi-
nalmente apenas para descrever shows extraordinariamente bons, a “qualidade” em
“televisão de qualidade” passou a se referir mais a um estilo genérico do que a um
julgamento estético”3 (1997, p13):

3 Tradução nossa, no original: “Though it may have originally been used just to describe unusually
good shows, the “quality” in “quality TV” has come to refer more to a generic style than to an aesthetic
judgment”.

858
21
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Televisão de Qualidade é melhor definida por aquilo que não é. Ela não é a televisão regular. O pior
insulto que você poderia dar a Barney Rosenzweig, o produtor executivo de Cagney & Lacey, era dizer
a ele que seu trabalho era “muito televisão”. Twin Peaks foi elogiada universalmente por críticos por ser
“diferente de tudo que nós já vimos na televisão”. Em um meio por muito tempo considerado sem arte,
a única televisão artística é aquela que é diferente de todo resto. Televisão de qualidade rompe com as
regras. Ela pode fazer isso transformando um gênero tradicional, como Hill Street Blues, St. Elsewhere e
Moonlighting fizeram com o show policial, o show médico e o show detetivesco, respectivamente. Ou
ela pode desafiar parâmetros genéricos padronizados e definir um novo território narrativo até então
inexplorado pela televisão, como fizeram Thirty-something e Twin Peaks4 (R.J. THOMPSON, 1997, p.13)

Mais recentemente, uma outra discussão, tomando a análise dos arcos narrativos
como principal (mas não único) critério de análise, têm se apresentado. O pesqui-
sador americano Jason Mittel propôs agrupar algumas séries ficcionais sob o termo
complex television (MITTEL, 2015). Para ele, estas produções se distinguiriam prin-
cipalmente por suas narrativas altamente elaboradas - não apenas em termos de
mistério, mas também de mecanismos narrativos - assim como por um investimento
formal e estilístico. Twin Peaks (1991) e The Sopranos (1999) seriam exemplos destas
narrativas complexas. (MITTEL, 2015; MCCABE, 2007).

Neste ponto é interessante notar que, em ambas as propostas interpretativas, a jus-


taposição de termos como “qualidade” e “complexidade” à obras televisivas, já parece
questionar a concepção deste como um universo produtivo meramente simplório e
formulaico. Outros teóricos, entretanto, têm se aventurado mais em suas considera-
ções. Para autores como François Jost (2002, 2016) e Kristin Thompson (2002) o empe-
nho estilístico e a inventividade formal e narrativa destas séries pode também ser per-
cebida como um caráter artístico. Partindo de comparações com a trajetória do cinema,
estes pesquisadores têm proposto que algumas séries ficcionais poderiam ser tomadas
como uma espécie de televisão de arte, um equivalente televisivo do cinema de arte5.

O mito da Indústria Cultural


Voltando-se ao imediatismo que costuma rondar nosso julgamentos em relação a
determinadas produções televisivas, em um artigo publicado em 2016, Jost propõe

4 Tradução nossa, no original: “Quality TV is best defined by what it is not. It is not “regular”TV. The worst
insult you could give to Barney Rosenzweig, the executive producer of Cagney & Lacey, was to tell him
that this work was “too TV”. Twin Peaks was universally praised by critics for being “unlike anything we’d
ever seen on television”. In a medium long considered artless, the only artful TV is that which isn’t like
all the rest of it. Quality TV breaks rules. It may do this by taking a traditional genre and transforming
it, as Hill Street Blues, St. Elsewhere, and Moonlighting did to the cop show, the doctor show, and the
detective show, respectively. Or it may defy standard generic parameters and define new narrative
territory heretofore unexplored by television, as did thirty-something and Twin Peaks.
5 Seguindo a descrição proposta por Kristin Thompson (2002), entendemos aqui cinema de arte como
obras cinematográficas que estariam entre o cinema mainstream e o totalmente experimental.

859
22
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

um interessante exercício de observação de semelhanças formais e temáticas entre


a arte moderna e contemporânea e um dos mais polêmicos produtos televisivos, os
reality-show - mais especificamente o Big Brother francês, The Loft. O autor lembra
que, em 1924, antes que a tecnologia necessária para isso tivesse sido totalmente
desenvolvida, o cubista Fernand Léger já sonhava em gravar, de maneira crua, sem
edições ou roteiros, 24 horas da vida de um casal comum. Em 1963 Andy Warhol
produz Sleep, um filme no qual podemos acompanhar ao longo de seis horas um
homem em seu sono. “Não se trata, na obra de Warhol, de criar uma poesia moderna,
uma arte nova, metamorfoseando magicamente o banal, mas de o tomar pelo que
ele é.” (p.65). Considerando as semelhanças do show televisivo não apenas com esta
obra, mas com muitas outras produções do artista também ligadas ao banal, ao rit-
mo circadiano, a vigilância e as atividades ordinárias - o autor nos propõe a seguinte
questão: “E se Loft Story fosse a última obra de Warhol?”.

Com sua controversa provocação o teórico pretende, não que tomemos estas obras
por semelhantes nem que necessariamente vejamos The Loft como arte, mas sim
abrir caminho para uma discussão bastante interessante: se a diferença entre a arte
contemporânea e a produção midiática já não pode ser encontrada nos aspectos
formais, na dignidade do tema ou do objeto representado ou mesmo mérito do ar-
tista, quais critérios estamos utilizando para dizer que cada uma destas obras é ou
não arte? Para o francês, se por um lado os diversos rompimentos ocorridos na pro-
dução artística ao longo do século XX podem ter levado a uma aproximação formal
entre os dois universos produtivos, o meio em que estas obras são produzidas pode
ter se tornado um fator preponderante para a sua separação. Deste modo, algumas
obras da indústria cultural, como as produções televisivas, independentemente de
seus aspectos formais, teriam, por vezes, algum possível aspecto artístico de ante-
mão descartado justamente por estarem imersas em um meio massivo comercial.

Refletir sobre a superação destas fronteiras, contudo, significa também refletir sobre
a superação de determinados mitos em relação à produção cultural massiva. Isto
posto, uma chave importante para compreendermos melhor o nosso problema está
justamente no conceito de Indústria Cultural.

Utilizado pela primeira vez no ensaio Dialética do Esclarecimento, publicado por


Adorno e Horkheimer em 1947, o termo Indústria Cultural, assim como as ideias
associadas a ele, se tornaram praticamente sinônimo de um novo tipo de produ-
ção cultural que emergiu entre os séculos XIX e XX e, em boa medida, fagocitou o
pensamento a respeito destas novas imagens e narrativas. Para os autores, a expres-
são “cultura de massas” não seria adequada para tratar destas obras, uma vez que
passaria a falsa impressão de que as produções teriam surgido das massas ou se
assemelhariam à cultura popular. Assim, a justaposição entre “indústria” e “cultura”,
termos que consideravam antagônicos, lhes pareceu descrever melhor o que toma-
vam como um paradoxo moderno.

860
23
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Para os autores a nova produção era o oposto do espontâneo. Produzidas como


objetos de venda, a partir de uma lógica de mercado, os novos produtos culturais
teriam perdido sua autonomia e, por consequência, seu poder crítico em relação à
sociedade. Assim, essas obras midiáticas seriam não apenas produtos estandardi-
zados, apostando sobretudo no que o público já conhece e deseja, como também
atuariam na manutenção do status quo, ao espalhar e reforçar a ideologia dominan-
te. Esses pensadores acreditavam ainda que a produção da indústria cultural seria
narcotizante, oferecendo um divertimento fugaz e alienante, que desviaria nossa
atenção da realidade, levando ao conformismo.

Embora as críticas apontadas por estes e pelos demais teóricos da Escola de Frank-
furt, constituam ainda boa parte da base do pensamento sobre a produção das
mídias massivas - e que consideremos parte delas válidas e importantes para com-
preender determinados aspectos deste fenômeno - há ao menos duas ou três con-
siderações que podem ser feitas sobre estas proposições.

A primeira, e talvez mais evidente, diz respeito às possibilidades de criação. Apesar


de haver uma porção relevante da produção que se convencionou chamar de indús-
tria cultural que de fato aposte em modelos estéticos e narrativos já bem estabele-
cidos, a estandardização, contrário do que estes discursos por vezes fazem parecer,
não representa a totalidade das obras. O reconhecimento, por teóricos, de traços de
criação artística em filmes e também em séries televisivas, como discutimos há pou-
co, apontam para a manifestação de possibilidades de produções estes pensadores
alemães pareciam julgar não serem viáveis neste meio.

A segunda é que os fatores utilizados por eles para contrapor arte e indústria - ino-
vação x estandardização, crítica x conformismo, autonomia x comerciabilidade - fun-
cionam com relativo êxito se observamos os valores românticos abraçados pela arte
moderna, mas apresentariam problemas se a comparação passasse a ser com a pro-
dução artística de séculos anteriores. Como bem lembra Antonio Candido (1988), o
romantismo vai surgir junto com as grandes revoluções sociais e políticas do século
XVIII, como um desdobramento nas artes das grandes rupturas ocorridas no terreno
histórico. É neste momento que a produção artística se descola da obediência a
regras unificadoras, passando a tornar a si própria como finalidade e a buscar em
si mesma os seus princípios norteadores. Para o pensador brasileiro, o romantismo
não apenas serviu de base para o modernismo, como se perpetua até a contempo-
raneidade através da permanência de seus valores. Guardando aqui, obviamente, as
devidas proporções, um olhar voltado à produção artística anterior ao século XIX,
nos revela uma arte aderente a escolas e movimentos - tendências de estilo da épo-
ca -, submissa ao desejos e a aprovação da igreja e dos patronos e com um papel im-
portante na manutenção do status quo. Isso, sem nos alongarmos para as inúmeras
discussões a respeito das relações entre a arte contemporânea e o mercado de arte.

861
24
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Em um determinado ponto do texto os próprios autores mostram-se relativamente


conscientes desta questão, mas reforçam sua posição afirmando que há no advento
da Indústria Cultural um agravamento da situação uma vez que estas novas produ-
ções assumiram-se deliberadamente como mercadorias:

O novo não é o caráter mercantil da obra de arte, mas o fato de que, hoje, ele se declara deliberada-
mente como tal, e é o fato de que a arte renega a sua própria autonomia, incluindo-se orgulhosa-
mente entre os bens de consumo, que lhe confere o encanto da novidade. A arte como um domínio
separado só foi possível, em todos os tempos, como arte burguesa. Até mesmo sua liberdade, enten-
dida como negação da finalidade social, tal como esta se impõe , permanece essencialmente ligada
ao pressuposto da economia de mercado. As puras obras de arte, que negam o caráter mercantil da
sociedade pelo simples fato de seguirem a sua própria lei, sempre foram ao mesmo tempo mercado-
rias: até o século dezoito, a proteção dos patronos preservava os artistas do mercado, mas, em com-
pensação, eles ficavam nesta mesma medida submetidos a seus patronos e aos objetivos destes. A
falta de finalidade da grande obra de arte moderna vive no anonimato do mercado. As demandas do
mercado passam por tantas mediações que o artista escapa a exigências determinadas, mas em certa
medida apenas, é verdade, pois ao longo de toda a história burguesa esteve sempre associado à sua
autonomia, enquanto autonomia meramente tolerada, um aspecto de inverdade que acabou por se
desenvolver no sentido de uma liquidação social da arte. (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 147)

A este respeito é possível relembrar ainda a disputa de intencionalidades presente


nesse tipo produção. Mesmo inseridas em um sistema produtivo que as trata primei-
ramente como mercadorias, há artistas envolvidos em sua produção, e estes irão,
por vezes, buscar brechas e criar desvios em direção a uma intencionalidade artísti-
ca. De modo que, o sistema e sua intenção não são, conforme sugerem os autores,
os únicos a determinar a obra.

É importante também não ignorar um possível elitismo intelectual. As novas ima-


gens voltavam-se principalmente para as classes populares - uma parcela da popu-
lação quase sempre deixada de lado no jogo da produção artística aristocrática e da
burguesa produção moderna e contemporânea de arte. As interpretações propostas
por Adorno e Horkheimer (1985) parecem partir do horizonte de expectativas do
leitor ideal (JAUSS, 1979), aquele familiarizado com as diferentes correntes e ino-
vações. Mas esquecemos, por exemplo, de que aquilo que possa parecer familiar e
repetitivo para um leitor com maior domínio dos códigos e da história da arte, como
os intelectuais da Escola de Frankfurt - possa oferecer um interessante rompimento,
e consequente expansão do horizonte de expectativas (JAUSS, 1979), de um leitor
menos familiarizado com as inovações do mundo das artes e com menor acesso
à instrução formal. De modo que estas produções - vistas como demasiadamente
simplistas - exercem também um papel no espalhamento dos códigos e na oferta de
uma maior diversidade cultural, não podendo ser de antemão descartadas.

Por fim, ver estes produtos apenas como uma espécie de armadilha sensível, capaz
de sequestrar o esquematismo de sua audiência, seria considerar o espectador uma

862
25
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

mera vítima passiva e indefesa de agulhas hipodérmicas midiáticas, visão que os


estudos em comunicação já superaram desde meados da década de 1940, quando
novas investigações e teorias passaram a apontar os processos de negociação em-
butidos na recepção.

Apesar de todas as ressalvas possíveis de se fazer, esta concepção sobre a produção


midiática massiva proposta pela Escola de Frankfurt tornou-se uma das linhas in-
terpretativas dominantes a respeito destas novas produções, tendo um papel proe-
minente nesta separação entre a produção midiática e a artística - assim, enquanto
a primeira foi classificada como baixa cultura, a segunda segue sendo escrita com
letra capitular.

Uma questão de mídia


Isto posto, seria possível então pensar fenômenos produtivos como a “televisão de
arte” como um outro segmento da produção artística post-media? Em um expedien-
te não muito distinto daquele de Jost e Paglia, Arlindo Machado (2002) chama nossa
atenção justamente para a possibilidade de não estarmos enxergando o fenômeno
da media art em sua totalidade. O pesquisador brasileiro aponta que a vasta maioria
das investigações voltam-se ainda para o que ele chama de arte com as mídias, pro-
duções que desviam os aparelhos semióticos de seu princípio e contexto originais,
fazendo um uso distinto e particularizado destes meios ou, como diz o pesquisador,
“desviando a tecnologia do seu projeto industrial” (2002, p.21). Como é o caso dos
vídeos de Nam June Paik ou das fotografias de Andrew Davidhazy que, alterando o
iconoscópico da televisão ou o obturador da câmera, obtém imagens muito distin-
tas daquelas que normalmente são produzidas por estes aparelhos:

Eles estão, na verdade, ultrapassando os limites das máquinas semióticas e reinventando radical-
mente os seus programas e as suas finalidades. O que faz, portanto, um verdadeiro criador, em
vez de simplesmente submeter-se às determinações da máquina ou do programa que ele utiliza,
é manejá-los no sentido contrário ao de sua produtividade programada (MACHADO, 2002, p.23)

Apesar de suas críticas ao entretenimento de massa, que chama de “produção in-


dustrial de estímulos agradáveis para as mídias de massa” e de sua defesa de uma
MídiaArte que busque se “reapropriar das tecnologias mecânicas, audiovisuais, ele-
trônicas e digitais numa perspectiva inovadora” (MACHADO, 2002, p.24), na parte fi-
nal de seu artigo, o autor volta a sua reflexão para as produções típicas destes meios
massivos, como o cinema:

Entretanto, sabemos que arte é um processo em permanente mutação. Arte era uma coisa para os
arquitetos egípcios, outra para os calígrafos chineses, outra para os pintores bizantinos, outra para
os músicos barrocos e outra para os cineastas russos do período revolucionário. Nesse sentido,
não é preciso muito esforço para perceber que o mundo das mídias, com sua ruidosa irrupção no

863
26
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

século XX, tem afetado substancialmente o conceito e a prática da arte, transformando a criação
artística no interior da sociedade midiática numa discussão bastante complexa. Basta considerar
o fato de que, em meios despontados no século XX, como o cinema por exemplo, os produtos da
criação artística e da produção midiática não são mais tão fáceis de serem distinguidos com cla-
reza. Ainda hoje, em certos meios intelectuais, há uma controvérsia sobre se o cinema seria uma
arte ou um meio de comunicação de massa. Ora, ele é as duas coisas ao mesmo tempo, se não for
ainda outras mais (MACHADO, 2002, pp. 27-28)

Machado aponta então para a possibilidade de haver também um outro tipo de arte
post-media, essa ainda pouco discutida, uma arte nas mídias, produzida no interior
dos grandes conglomerados de mídia. Para Arlindo, apesar das restrições impostas
por este sistema produtivo os artistas nele inseridos conseguem encontrar brechas,
por onde propõem e criam alternativas. Assim, apesar de utilizarem a linguagem e
os instrumentos desenvolvidos por e para a indústria de entretenimento de massas,
e de serem financiados por ela, esses criadores conseguiriam produzir obras que
tensionam suas imposições:

De uma forma geral, os intelectuais de formação tradicional resistem à tentação de vislumbrar


um alcance estético em produtos de massa, fabricados em escala industrial. No seu modo de
entender, a boa, profunda e densa tradição cultural, lentamente filtrada ao longo dos séculos por
uma avaliação crítica competente, não pode ter nada em comum com a epidérmica, superficial e
descartável produção em série de objetos comerciais de nossa época, daí porque falar em criativi-
dade ou qualidade estética a propósito da produção midiática só pode ser uma perda de tempo.
Os defensores da artemídia, entretanto, costumam ser menos arrogantes e mais espertos. Eles de-
fendem a idéia de que a demanda comercial e o contexto industrial não inviabilizam necessaria-
mente a criação artística, a menos que identifiquemos a arte com o artesanato ou com a aura do
objeto único. No entender destes últimos, a arte de cada época é feita não apenas com os meios,
os recursos e as demandas dessa época, mas também no interior dos modelos econômicos e ins-
titucionais nela vigentes, mesmo quando essa arte é francamente contestatória em relação a eles.
Por mais severa que possa ser a nossa crítica à indústria do entretenimento de massa, não se pode
esquecer que essa indústria não é um monolito (...) Assim, não há nenhuma razão porque, no
interior da indústria do entretenimento, não possam despontar produtos — como programas de
televisão, videoclipes, música pop, etc — que em termos de qualidade, originalidade e densidade
significante rivalizem com a melhor arte “séria”de nosso tempo”. (MACHADO, 2002, pp. 28-29)

Assim, em um momento em que as aproximações entre a indústria cultural e o mun-


do da arte parecem ultrapassar suas distinções, nos vemos diante do esfumaçamen-
to de campos antes tidos como inconciliáveis. Para Lúcia Santaella (2005), há um
processo de convergência entre arte e mídia em curso, de modo que já não seria
possível pensar em comunicação e artes de forma dissociada. A brasileira destaca
que boa parte do estranhamento em torno destas aproximações advém, justamen-
te, da persistência de noções ultrapassadas tanto das “artes” quanto das “mídias de
massa”, visões estas que precisariam ser rediscutidas.

864
27
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Para muitos a comunicação identifica-se exclusivamente como comunicação de massas enquan-


to as artes se restringem ao universo das belas. Se nos limitarmos a essas visões parciais tanto
da comunicação quanto da arte, a pergunta sobre as possíveis convergências de ambas não faz
sentido. Entretanto, além de parciais, essas visões são, sobretudo, anacrônicas. Alimentar o sepa-
ratismo conduz a severas perdas tanto para o lado da arte quanto para o da comunicação. Por que
perde a arte? Porque fica limitada pelo olhar conservador que leva em consideração exclusiva-
mente a tradição de sua face artesanal. Por que perde a comunicação? Porque fica confinada aos
estereótipos da comunicação de massa. (SANTAELLA, 2005, pp. 21-22)

O devir da arte
Antes de encerrar sua reflexão sobre as aproximações e distinções entre arte e mídia
Machado (2002), retomando Benjamin, nos lembra que, a tomada destas obras en-
quanto artísticas traz consigo uma questão ainda mais complexa, que é o tensiona-
mento da própria noção de arte:

Talvez possamos com proveito aplicar à arte produzida na era das mídias o mesmo raciocínio que
Walter Benjamin (1969: 72) aplicou à fotografia e ao cinema: o problema não é saber se ainda po-
demos considerar “artísticos” objetos e eventos tais como um programa de televisão, uma história
em quadrinhos, ou um show de uma banda de rock. O que importa é perceber que a existência
mesma desses produtos, a sua proliferação e a sua implantação na vida social colocam em crise
os conceitos tradicionais e anteriores sobre o fenômeno artístico, exigindo formulações mais ade-
quadas à nova sensibilidade que agora emerge (…) Com as formas tradicionais de arte entrando
em fase de esgotamento, a confluência da arte com a mídia representa um campo de possibilida-
des e de energia criativa que poderá resultar proximamente num salto no conceito e na prática
tanto da arte quanto da mídia, se houver, é claro, inteligências e sensibilidades suficientes para
extrair frutos dessa nova situação. (MACHADO, 2002, pp. 29-30)

Em sua Teoria Estética (2013) o próprio Adorno faz uma ressalva a respeito da im-
possibilidade de pensarmos em uma identidade perene para a arte. Para o autor
uma determinada ideia sobre o que é arte é formulada a cada época, de modo que,
um objeto que não foi tido como arte em um determinado período pode vir a sê-lo
no seguinte. Dialogando com Nietzsche, Adorno propõe uma estética materialista
dialética, na qual pode verdadeiramente ser arte mesmo o que foi sujeito de devir:

A tentativa de subsumir ontologicamente a gênese histórica da arte num motivo supremo ex-
traviar-se-ia necessariamente em algo tão discordante que à teoria apenas restaria o ponto de
vista, sem dúvida importante, segundo o qual as artes não podem classificar-se em nenhuma
identidade ininterrupta da arte. (…) A definição do que é a arte é sempre dada precisamente
pelo que ela foi outrora, mas apenas é legitimada por aquilo em que se tornou, aberta ao que
pretende ser e àquilo em que poderá talvez tornar-se. Enquanto é preciso manter a sua diferença
em relação à simples empiria, ela modifica-se em si qualitativamente. Muitas obras, por exemplo,
representações culturais, metamorfoseiam-se em arte ao longo da história, quando o não tinham
sido; e muitas obras de arte deixaram de o ser. (ADORNO, 2013, p.374)

865
28
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Apoiados na estética de Hegel, autores contemporâneos como Danto (2006) e Bel-


ting (2006), por sua vez, discutiram em seus escritos um movimento similar, e pen-
sam as mutações na concepção de arte como uma sucessão de eras. A partir de um
estudo das imagens religiosas no Ocidente na era Cristã, Hans Belting explica em
A History of the Image before the Era of Art (1997) que as pessoas da época man-
tinham uma relação bastante diferente com aquelas pinturas e que a ideia de arte,
com a qual estamos familiarizados, vai passar a fazer parte do entendimento das
pessoas apenas a partir de meados do Renascimento:

Não que aquelas imagens deixassem de ser arte em um sentido amplo, mas serem arte não fazia
parte de sua produção, uma vez que o conceito de arte ainda não havia surgido de fato na consci-
ência geral, e essas imagens - ícones, realmente - desempenhavam na vida das pessoas um papel
bem diferente daquele que as obras de arte vieram a ter quando o conceito finalmente emergiu
e alguma coisa como considerações estéticas começaram a governar nossas relações com elas.
(DANTO, 2006, p.4)

Para Danto (2006), esta era da arte que se inicia no renascimento - caracterizada
pela elaboração e partilha de um determinado entendimento e uso do termo arte
- perduraria até meados de 1964. Após esta época, a arte contemporânea teria rom-
pido com uma série de paradigmas em relação a produção e ao entendimento da
arte, dando origem a uma etapa nova, multifacetada e ainda pouco compreendida.
Assim, estaríamos, possivelmente, diante do fim de uma determinada era da arte.

Danto, no entanto, traça suas reflexões majoritariamente a partir do mundo da arte,


observando as mudanças ocorridas nas produções presentes nos museus e galerias.
E, como bem nos lembraram Jost (2016) e Machado (2002), por vezes, o modo como
enxergamos um fenômeno, pode ser uma questão de ponto de vista.

O sentido das artes eletrônicas adquire rumos completamente diferentes se contarmos a sua his-
tória a partir de Paik e Vostell, que vêm do circuito sofisticado e erudito dos museus e galerias de
arte, ou a partir de Kovacs e Averty, que despon-tam da experiência da cultura popular “eletrifi-
cada” e ampliada pelas tecnologias eletrônicas. É a mesma tensão que existe entre Eisenstein e
Chaplin no cinema, ou entre Stockhausen e Theremin na música eletrônica. Tradicionalmente,
a história da arte contemporânea é contada a partir apenas da primeira perspectiva, ignorando
quase completamente a segunda, mas uma artemídia conseqüente tem de ser capaz de encon-
trar o ponto de fusão das duas principais perspectivas. (MACHADO, 2002, pp. 30-31)

Como o fim de uma era não é, de modo algum, o fim da arte, apenas sua transmu-
tação e, o consequente início de outra era, atualizar os critérios e os métodos com
os quais temos elaborado nossos julgamentos a respeito das produções contem-
porâneas se mostra uma necessidade premente. Se ampliamos nosso olhar para
além dos espaços expositivos tradicionais e incluirmos nos termos de nossa ava-
liação não apenas uma arte com as mídias, mas também uma arte nas mídias, mais

866
29
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

do que possivelmente enxergarmos um fim da arte um pouco diferente, talvez


possamos começar a compreender de maneira mais efetiva e abrangente a nova
era de arte que se inicia e na qual estamos inevitavelmente imersos.

Referências
ADORNO, Theodor W. Teoria Estética (2013). In: O belo autônomo: textos clássicos
de estética (pp. 371-390). Belo Horizonte: Autêntica.

ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max (1985). A indústria cultural: o esclareci-


mento como mistificação de massas. Tradução, Guido Antonio de Almeida. In: Dialé-
tica do esclarecimento: fragmentos filosóficos (pp. 113- 156). Rio de Janeiro:
Zahar.

CANDIDO, Antonio (1988). Panorama da Literatura Brasileira no Século XX. In: Sim-
pósio Brasil Século XXI – Cultura, Produção, Representação simbólica da So-
ciedade. São Paulo, Unicamp. Recuperado em 28 de agosto, 2019, de https://www.
rtv.unicamp.br/?video_listing=brasil-seculo-xxi-cultura-producao-representacao-
-simbolica-da-sociedade-palestra-de-antonio-candido-07-11-1988-arquivo-rtv-uni-
camp

BELTING, Hans (2006). O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São
Paulo: Cosac Naify.

BELTING, Hans (1994). Likeness and Presence: A History of the Image before the
Era of Art. Chicago: University of Chicago Press.

DANTO, Arthur C. (2006). Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites


da história. São Paulo: Edusp.

DANTO, Arthur C. (2017). O mundo da arte. Artefilosofia, n. 1, 13-25.

DUARTE, Rodrigo (2013). O belo autônomo: textos clássicos de estética. Belo Ho-
rizonte: Autêntica.

JAUSS, Hans Robert (1979). Estética da recepção: colocações gerais. In: LIMA, Luiz Cos-
ta. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

JOST, François (2016). Mídia ou Arte? Uma questão de ponto de vista. Parágrafo:
Revista Científica de Comunicação Social da FIAM-FAAM, v. 4 (1), 62-70.

JOST, François (2002). La télévision entre «grand art» et «pop art». In: DELAVAUD
G.(éd.), Télévision: la part de l’art, Paris, L’Harmattan.

MACHADO, Arlindo (2002). Arte e mídia: aproximações e distinções. Galáxia, v. 2 (4), 19-32.

867
30
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

MCCABE, Janet & AKASS, Kim (2007). Quality TV: Contemporary American televi-
sion and beyond. New York, NY: IB Tauris.

MITTELL, Jason (2015). Complex TV: The poetics of contemporary television


storytelling. New York, NY: NYU Press..

PAGLIA. Camille (2014). Imagens Cintilantes. São Paulo: Apicuri.

SANTAELLA, Lucia (2005). Por que as comunicações e as artes estão convergindo?.


São Paulo: Paulus.

THOMPSON, Kristin (2003). Storytelling in film and television. Harvard University Press.

THOMPSON, Robert J (1997). Television’s second golden age: from Hill Street
Blues to ER. Syracuse: Syracuse University Press.

868
31
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Ramon Castellano Ferreira1

Imagens psíquicas em O Guesa


Psychic images in O Guesa

Resumo
Este artigo propõe uma análise dos dois primeiros cantos do épico O Guesa,
com foco nos seus protocolos linguísticos e na relação que os mesmos assu-
mem na articulação das tessituras temporais do poema. O Guesa, épico compos-
to por doze cantos, foi escrito entre os anos 50 e 80 do século XIX por Joaquim
de Sousa Andrade, o Sousândrade. Work in progress, nele assistimos ao périplo
transamericano do personagem Guesa, entremeado por suas rememorações e
relembranças. Para efetuar a leitura dos dois primeiros cantos da epopeia, nos
aproximamos das imagens psíquicas de Achille Mbembe. Segundo o filósofo ca-
maronês, os entrelaçamentos destas imagens psíquicas que compõem as cons-
truções narrativas nos fazem adentrar no campo do simbólico, no jogo de seus
símbolos e de sua circulação. Para Mbembe, esta construção não envolve ape-
nas um trabalho psíquico, mas opera uma crítica do tempo e dos artefatos que
pretendem ser os substitutos últimos da própria substância do tempo. Sendo
assim, mais do que analisar o poema pela contemporaneidade que o mesmo
mantém com o seu tempo, o nosso foco recairá na multiplicidade de linhas de
temporalidade presente na epopeia. A questão a ser testada aqui é ver se o poe-
ma O Guesa opera, por meio de seus versos, uma crítica do tempo.
Palavras-chave: História, O Guesa, Crítica do tempo.

Abstract
This article proposes an analysis of the first two corners of the epic O Guesa, focus-
ing on its linguistic protocols and the relation they assume in the articulation of
the temporal textures of the poem. O Guesa, epic composed of twelve songs, was
written between the 50s and 80s of the nineteenth century by Joaquim de Sousa
Andrade, the Sousândrade. Work in progress, in him we see the trans-American jour-
ney of the character Guesa, interspersed by his remembrances. To read the first two
corners of the epic, we approach the psychic images of Achille Mbembe. According
to the Cameroonian philosopher, the entanglements of these psychic images that
make up the narrative constructions take us into the field of the symbolic, the play of

1 Doutorando em História do Programa de Pós-Graduação em História da UFRRJ. ramon_castelano@


hotmail.com

869
32
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

its symbols and its circulation. For Mbembe, this construction does not involve only
a psychic work, but operates a critique of time and artifacts which claim to be the
ultimate substitutes for the very substance of time. Thus, rather than analyzing the
poem for the contemporaneity that it maintains with its time, our focus will fall on
the multiplicity of lines of temporality present in the epic. The question to be tested
here is to see if the poem O Guesa de Sousândrade operates, through its verses, a
critique of time.
Key words: History, O Guesa, Criticism of time.

O Guesa, épico composto por doze cantos, foi escrito entre os anos 50 e 80 do século
XIX por Joaquim de Sousa Andrade, o Sousândrade. Work in progress, nele assistimos
ao périplo transamericano do personagem Guesa, entremeado por suas rememo-
rações e relembranças. Epopeia construída em torno da memória vivencial, de tom
confessional, nessa viagem do retorno, da redenção da América e do Brasil, somos
alimentados com referências históricas e geográficas as quais, mescladas às refle-
xões e reminiscências do personagem/poeta, assumem uma função de vidência, de
cintilações do real. A América/Brasil é revestida assim por um mistério fundamental,
consequência da associação de coisas veladas e manifestas, num estado que tem de
modo simultâneo algo de recapitulação e emergência (MBEMBE, 2018).

O Guesa, figura mítica dos antigos muíscas da Colômbia, era um menino destinado à
peregrinação e ao sacrifício em honra ao deus sol, Bochica. Para isso, deveria atraves-
sar um caminho planejado pelo deus, o “suna”, até os quinze anos de idade, quando,
preso a uma coluna, em praça circular, deveria ser imolado pelos sacerdotes, “xe-
ques”, para ter o sangue armazenado em vasos sagrados e o coração oferecido ao
deus Bochica.2 Mesclado à persona do poeta maranhense e ao seu próprio itinerário
de viagem e de vida, o índio peregrino encarna no poema a figura do exilado, aquele
que, introduzido numa temporalidade do entre-lugar, abre a possibilidade do exer-
cício de um descentramento crítico e de um redimensionamento da história.

Neste trabalho, proponho uma análise dos dois primeiros Cantos do épico, com foco
nos seus protocolos linguísticos e na relação que os mesmos assumem na articu-
lação das tessituras temporais do poema. Para efetuar tal leitura, me aproximo das
imagens psíquicas de Achille Mbembe. Segundo o filósofo camaronês, os entrelaça-
mentos destas imagens psíquicas que compõem as construções narrativas nos fa-
zem adentrar no campo do simbólico, no jogo de seus símbolos e de sua circulação.

2 2 As principais fontes utilizadas por Sousândrade a respeito do mito do Guesa foram os estudos de
Alexander von Humboldt reunidos em seu livro Vues de Cordillères (1810-13) e a seção “Colombie” da
enciclopédia L’Univers (1837), escrita por César Famin, ambos utilizados como epígrafe pelo poeta
maranhense antes do início da narrativa do poema.

870
33
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Para Mbembe, esta construção não envolve apenas um trabalho psíquico, mas opera
uma crítica do tempo e dos artefatos que pretendem ser os substitutos últimos da
própria substância do tempo.

Sendo assim, mais do que analisar o poema pela contemporaneidade que o mesmo
mantém com o seu tempo, o meu foco recairá na multiplicidade de linhas de tempo-
ralidade presente na epopeia “cuja capacidade de definir direcionamentos inéditos”
(RANCIÈRE, 2011, p. 49) constitui-se na condição principal do devir humano. A ques-
tão a ser testada aqui é ver se o poema O Guesa de Sousândrade opera, por meio de
seus versos, uma crítica do tempo.

“Do passado ao porvir, n’este presente!”

1858
Visão celeste! angelica incarnada
Co’a nitente humidez d’hombros de leite, Onde encontra amor brando,
almo deleite, E da infância do tempo a hora foi náda!

Aclaram-se as encostas viridantes,


A espreguiçar-se a palma soberana; Remonta a Deus a vida, à origem d’antes.
Amiga e matinal, d’onde dimana.

Cala-se, evoca d’outro tempo um sonho,


E curva a fronte… Deus, como é tristonho
Seu vulto sem porvir, em pé na margem!
Talvez a amante, a filha haja descido,
Qual esse tronco, para sempre o rio -
Elle abana a cabeça co’o sombrio
Riso do iris da noite entristecido.

“Vagas eternas, se escondeis no seio


Alguma coisa que, de mim, procuro
N’este afan mudo, solitario, obscuro,
Embalançai, adormecei, - já creio…
“Cante o nauta a partida na alvorada,
Retina à amarra o cabrestante oppresso,
Rujam chammas fornalhas abrazadas,
Erga-se e trema o carro do progresso!”

“Desço a corrente mais profunda e larga

871
34
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Que se ha visto rasgar de pranto a face


Da terra de miserias! outra nasce
Na dor dos homens, porém negra, amarga:
“Quando, voltando dos festins culpados
A alma vã, prostituta arrependida,
Só traços da fortuna que é partida
São, dos olhos que choram, encontrados:
“Ou quando a que nasceu para ser nossa
Vemos em braços d’outrem delirando:
Ou meiga patria, esperançosa e môça,
Do seu tumulo às bordas soluçando.”

Destino das nações!


um povo erguido
Dos virgens seios d’esta natureza,
Antes de haver coberto da nudeza
O cincto e o coração, foi destruído:
E nem pelos combates tão feridos,
Tão sanguinarias, barbaras usanças;
Por esta religião falsa d’esperanças
Nos apostolos seus, falsos, mentidos
Ai! vinde ver a transição dolente
Do passado ao porvir, n’este presente!
Vinde ver do Amazonas o thesoiro,
A onda vasta, os grandes valles de oiro!

“Saltemos nas areias. -


Porém, que é isto?” peste! que descoras,
Depravas d’alma o instincto, que os perfumes
Alegram, divinizam, sobre os cumes
Das trescalantes flores d’estas horas!
“E eu vi, longe d’aqui, a morte ao seio
Da família feliz despedaçando,
Rotos os laços do mais puro enleio,
A virtude, a belleza soluçando!
“O silencio caiu, fez-se a tapera
Na Concordia dos cantos e os amores…
Magalhães, Magalhães, na primavera

872
35
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Partiste - e em teus jardins já murcham flores!


Ora, O Guesa que sempre se sentia


Revestido do signo, e sem do insano
Zeno ser filho, então lhe acontecia
Deixar o manto ethereo e ser humano.

Seguem acima alguns trechos selecionados do início do Canto II da epopeia. Nos en-
contramos no rio Amazonas, em Tabatinga, no limiar da primeira descida ao inferno
do épico. A consciência temporal e histórica permanece, haja vista a evocação, logo
nas primeiras estrofes, dos termos “infância”, “origem” e “outro tempo”, seguidos pe-
los vocábulos “túmulos”, “tapera”, para citar alguns exemplos, e por versos que deno-
tam a passagem do tempo passado para o tempo presente. Cabe à voz subjetiva do
personagem fazer tal transição. Por meio deste movimento, somos situados diante
do caráter genocida do contexto de emergência de conquista da América.

A construção narrativa destes trechos não destoa muito dos versos do Canto I cita-
dos no início de nosso texto, fazendo-se presente o intercalar constante entre os re-
latos em primeira e terceira pessoa. Bem assim, a transição do plano do maravilhoso/
nostálgico para o histórico também se faz pela identificação do poeta/narrador com
o personagem Guesa, e, nesse ponto, gostaria de destacar o aparecimento, na voz
de ambos, do apelo à visão humana, introduzindo no poema um efeito de presença.
Num deles, inclusive, somos instados a ver, “vinde ver”, a transformação operada pela
ação dos colonizadores à beira do Amazonas.

A utilização do recurso da autópsia3 no poema não nos parece fortuita. Ao olho


confere-se um privilégio epistemológico, tornando-o fonte de autoridade do rela-
to. Estamos em plena concorrência pelo monopólio de fala em relação ao passado,
e também ao presente e futuro (GUIMARÃES, 2002). Nessa querela, encontram-se
em jogo questões políticas, historiográficas, poéticas, éticas e epistemológicas.
Num plano mais abrangente, nos situamos no meio da disputa na reconfiguração
do conhecimento moderno, onde assistimos ao processo problemático do triunfo
da história em sua versão metodológica/investigativa. Não à toa vários romancis-

3 3 O termo autópsia significa ver com os próprios olhos. Foi um recurso muito valorizado pelos
gregos, os quais concediam primazia ao sentido da visão como instrumento de conhecimento. Em
que pese sua utilização e valorização ser referida à Heródoto, para François Hartog, na Odisseia já é
possível notar o seu uso como, por exemplo, no episódio em que Ulisses está entre o feácios e escuta
do aedo Demódoco a narrativa de suas próprias ações. Para Hartog, ao verter lágrimas depois de ou-
vir a história de seus atos, Ulisses liga o aedo às musas e lhes concede autoridade, pois, se Demódoco
não era testemunha dos fatos narrados, Ulisses o era (2003).

873
36
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

tas e poetas entraram nessa disputa, apostando nessas fronteiras movediças entre
a história e a literatura e rivalizando com a circunscrição que os historiadores iam
estabelecendo para a prática historiográfica.

É o caso do romancista José de Alencar cujas obras O Guarani e Iracema, para citar al-
guns exemplos, recorriam a diversos recursos argumentativos, nomeadamente, no-
tas de rodapé, pressupostos históricos e pós-escritos, para dar às suas fábulas uma
base factual. Mas o romancista não parava por aí. Para Alencar, se não era possível
compor a intriga sem o socorro das fontes, a trama não consistia em simples dispo-
sição dos fatos, cabendo ao escritor de ficção, através do uso da imaginação, formar
imagens capazes de atrair a alma do leitor4. Para Francisco Régis Lopes Ramos:

Ao lado de outros romancistas, mas também ao seu modo, José de Alencar põe o romance para
funcionar na medida em que participa de acordos e conflitos na delimitação de fronteiras do co-
nhecimento, fazendo parte da convocação de características que seriam próprias da ficção. Uma
dessas características é exatamente fazer da sua criação literária um conhecimento legítimo sobre
o passado, seguindo recursos que foram se constituindo como uma espécie de tradição ou de
um incômodo recorrente do romance moderno na sua recusa da retórica antiga e na sua posição
crítica em busca de autoridade para narrar a existência de coletividades ou individualidades, ora
colocando-se ao lado da escrita da história, ora dizendo-se mais e melhor do que ela (2014, p. 17).

Para Luiz Costa Lima, sob essa controvérsia, subjaz uma luta interna entre razão e
imaginação. Por osmose recíproca, pretensão poetológica e aspiração histórica, al-
mejavam, através deste combate, a criação de verdadeiras unidades fundadoras de
sentido (1989). Sendo assim, de modo geral, enquanto o romance submetia-se à
realidade histórica, a história rendia-se à prescrição poética de criar ordenações in-
trínsecas e inteligíveis de todos os acontecimentos.

Temístocles Cezar vai afirmar que em meio à fundação e sedimentação da ideia mo-
derna de história no Brasil do século XIX havia uma rede de noções difusas que pre-
cisavam ser regradas ou negadas, tais como: presentismo, memória, biografia e poe-
sia. Ao analisar o debate gerado dentro do IHGB acerca da pertinência da publicação
do texto de Gonçalves Magalhães, Memória histórica e documentada da Revolução
da província do Maranhão, o autor vai afirmar que ocorreram, dentro da comissão

4 Importante frisar que, em que pese a entrada do romancista cearense nessa que-
rela, para José de Alencar o texto literário era pensado preponderantemente como
espaço de coerência interna. Em que pese a recorrência ao primado da imaginação
e também ao paradigma historicista, o autor orienta-se também por uma vertente
de orientação clássica, a tradição retórica (Martins, 2005). Sobre uma discussão a
respeito desta questão, sobretudo a partir dos modos de ver e fazer ver nas obras de
José de Alencar, cf. Cardoso (2016).

874
37
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

formada para análise do texto, flutuações entre visões mais objetivas a respeito da
produção historiográfica, as quais mostravam maior preocupação com caráter re-
cente dos fatos ali narrados bem como com sua forma de exposição, e visões mais
abertas em relação à proximidade dos eventos e à utilização de figuras poéticas para
exposição dos fatos históricos, desde que voltadas à esfera da produção de sentido
e domesticação do passado em prol da manutenção do domínio imperial.

Para Cezar, ao analisar as atas da comissão que aprovou a publicação da obra, é pos-
sível notar que

as justificativas da comissão autorizam a presença de figuras poéticas no discurso histórico. E


parece que o lugar autoriza aquilo que ele não interdita explicitamente. Poeta, Gonçalves de Ma-
galhães escreveu a história, e neste caso, história do tempo presente. Historiador, ele escreve a
história sem deixar de ser poeta (2004, p. 79).

Segundo Cezar, a situação se apresenta deste modo, pois não havia uniformidade
discursiva dentro do instituto histórico a respeito da prática historiográfica moder-
na. Em que pese a tendência do período de valorizar uma história só passado, a uti-
lização dos expedientes poéticos, memoriais, biográficos e presentistas foram uma
constante, sendo, inclusive, solicitada pelo imperador D. Pedro II em cerimônia co-
memorativa do instituto em 1849.

Sem duvida, Srs., que a vossa publicação trimensal tem prestado valiosos serviços, mostrando
ao velho mundo o apreço, que também no novo merecem as applicações da intelligencia; mas
para que esse alvo se attinja perfeitamente, é de mister que não só reunas os trabalhos das gera-
ções passadas, ao que vos tendes dedicado quasi que unicamente, como tambem, pelos vossos
proprios, troneis aquella a que pertenço digna realmente dos elogios da posteridade: não dividi
pois as forças, o amor da sciencia é exclusivo, e, concorrendo todos unidos para tão nobre, util, e
já difficil empreza, erijamos assim um padrão de gloria à civilisação da nossa patria (Apud CEZAR,
2004, pp. 46-47).

Tucidideanamente, o imperador, atento à utilidade que a história poderia ter para a


política imperial, solicita uma história do tempo presente, de seus feitos e gestos.
Desta maneira, aberto este potencial poético, os estudos históricos serviriam como
meio indispensável para forjar a nacionalidade, instando os homens à ação, assu-
mindo um caráter nitidamente pedagógico e cívico.

Levando-se em consideração esta situação, é possível observar que a recorrência a tais


expedientes não se choca frontalmente com o intuito central da operação historiográ-
fica oitocentista que é o de se constituir uma ordem do tempo contínua e homogênea
cujo princípio narrativo reside em orientar a apreensão de uma unidade racional nos
processos e eventos históricos. A opção pela construção memorialística/presentista/
biográfica não implica o abandono da história em sua vertente factual/metodológica.

875
38
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

A produção biográfica no âmbito do instituto histórico, por exemplo, não passou in-
cólume a esses dilemas epistemológicos enfrentados pela prática historiográfica do
século XIX, tais como, os riscos de parcialidade, a menor acuidade na inquirição de
acontecimentos imediatos e sua possível conversão em memória. Conforme notou
Maria Glória de Oliveira:

Os letrados brasileiros oitocentistas não dispensaram a articulação dessas duas modalidades de


escrita na tessitura dos elos possíveis de ligação entre o presente, o passado e o futuro, indicando
que, a despeito das novas exigências disciplinares, a história não precisaria renunciar terminan-
temente à antiga função de magistra vitae em nome dos axiomas modernos de cientificidade
(2009, p. 188).

Esta relação das práticas tradicionais, algumas herdadas do mundo antigo, como é
o caso do recurso da historia magistra vitae, com a moderna crítica histórica, é fruto
do estatuto incipiente das fronteiras disciplinares no século XIX, como já frisado. Em
última instância, a imbricação de ambas acabava por servir a um intuito maior que
era a tessitura das identidades coletivas, vetorizadas todas em direção a uma nova
figura central no palco da modernidade: o estado nacional moderno.

Desse modo, cabia aos estudos históricos legitimar as novas nações, incertas que
eram em sua composição étnica, dissipando “os medos que gerava a incerteza das
origens e as ansiedades que inspiravam o espectro do hibridismo mestiço” (WHITE,
2010, p. 167). Os historiadores/genealogistas da nação confirmavam assim os an-
seios do grupo étnico dominante. Acionado através da utilização de princípios or-
ganizadores, tal como a historia magistra vitae, a escola da vida, fatos memoráveis,
coletivos ou individuais, deveriam servir de farol às ações voltadas para o presente e
para o futuro. Sem vacilação, é claro, afinal, “a astúcia da razão significa que o sujeito,
desde a origem e até o fim, sabe o que quer” (LACAN, 1998, p. 817).

Tentava-se criar assim uma lógica inquestionável. Da empresa ibérica colonizadora


ao Império do Brasil, as marcas da continuidade, da centralização e da legitimidade.
Para Lúcia Maria Paschoal Guimarães, nada que pudesse “evidenciar quaisquer indí-
cios de contestação ao sistema colonial” (2011, p. 81) poderia ser impresso na revis-
ta trimestral do instituto histórico. Tratando da construção da memória do Império,
para a autora:

A continuidade constitui o traço mais significativo na organização dessa memória, construída


com a exclusão deliberada de insurreições, traumas e conflitos. Estes, quando registrados, eram
singelamente atribuídos à mocidade do país, ou aos arroubos da juventude (p. 156).

Mas e a publicação em 1858 da memória da Balaiada por Gonçalves de Magalhães?


Além de fato recente, a revolta, por conta de suas dimensões, assustava a elite ilustrada

876
39
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

da época. Interessante notar os argumentos do autor para dissipar qualquer temor re-
lativo aos fatos narrados. Nas observações preliminares, segundo Magalhães, em que
pese as parcialidades, as paixões e os interesses envolvidos no evento, aos olhos do fi-
lósofo, isso não deveria causar medo. Conhecendo-lhe as causas, livre de preconceito,
caberia ao historiador-filósofo tirar “d’esta mesma fermentação das cousas, o espirito
da ordem, que esclarecerá o futuro” (p. 12). Vemos assim Gonçalves de Magalhães rei-
vindicar para seu relato a afirmação de possibilidade de identificação de princípios de
causalidade que regem e tornam inteligíveis as ações humanas, tornando sua empre-
sa algo útil e proveitoso. “É a busca humana pelo conhecimento verdadeiro, que se ob-
tém mediante a análise e o exame acurado que fornece a possibilidade de perenidade
de sua composição” (MAGALHÃES, 2007, p. 16). Perenidade em contraposição a toda
espécie de coações conjunturais, tais como as práticas políticas e jornalísticas, ambas
citadas por Magalhães em suas observações, com suas instabilidades e desequilíbrios
capazes de colocar em risco a homogeneidade então desejada. É justamente a esse
foco de impermanência e de incompletudes que assistiremos ao descermos no pri-
meiro círculo infernal de nosso épico.

(MUXURANA historica:)
- Os primeiros fizeram
As escravas de nós;
Nossas filhas roubavam,
Logravam
E vendiam após.

(TEGUNA a s’embalar na rede e querendo


sua independencia:)
- Cabimbavam as faces
Bocetadas em flor;
Altos seios carnudos,
Ponctudos,
Onde ha sestas de amor.

(MURA comprada escrava a onze tostões:)


- Por gentil mocetona,
Bôa prata de lei.
Ou a saya de chita
Bonita,
Dava pro-rata el-rei.

(TUPINAMBÀ anciando por um lustro nos


maus PORTUGUEZES:)

877
40
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

- Currupiras os cansem
No caminho ao calor,
Parinthins orelhudos,
Trombudos,
Dos desertos horror!

(Côro dos Indios:)


- Mas os tempos mudaram,
Já não se anda mais nú:
Hoje o padre que folga,
Que empolga,
Vem comnosco ao tatú.

(Escravos açoitando às milagrosas imagens:)


- Só já são senhôzinhos
Netos d’imperadô:
Tudo preto ta fôrro;
Cachorro
Tudo branco ficou!

(GEORGE e PEDRO, liberdade-libertinagem:)


-Tendo nós cofres públicos,
Livre-se a escravidão!
Comam ratos aos gatos!
Pilatus
Disse, lavando a mão.

(Ministro portuguez vendendo títulos de


honra a brazileiros que não teem:)
- Quem de coito damnado
Não dirá que vens tu?
Moeda falsa és, esturro
Caturro,
D’excellencia tatú!

(KONIAN-BEBE rugindo:)
Missionario barbado,
Que vens lá da missão,
Tu não vais à taberna,
Que interna
Tens-n’a em teu coração!

878
41
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

(Alviçareiras no areial:)
- Aos céus sobem estrellas, Tupan-Caramurú!
É lindóia, Moema,
Coema,
É a Paraguassú;
-Sobem céus as estrellas,
Do festim rosicler!
Idalinas, Verbenas
De Athenas
Corações de mulher;

- Moreninhas, Consuelos,
Olho-azul Marabás,
Pallidez, Juvenilias,
Marilias
Sem Gonzaga Thomaz!

(Arraia-miuda, nas malhas; Agassiz-Uyara:)


- Que violentam-se ellipses,
Ora, na ode infernal!
= Venais… dias d’entrudo…
Mais crudo
Foi do Templo o mangoal.
- Nús, desformes, quebrados,
Neos, rijos, sem dó!
= Venias… gyra, Baniúna,
A Caríua
Doce mócórócó.

(Politicos fóra e dentro:)


- Viva, povo, a república,
O’Cabralia feliz!
= Cadellinha querida,
Rendida,
Sou monarcho-jui...i … iz. (Risadas)

(BRUTUS do último círculo do Inferno de DANTE:)


- Oh, será o mais sabio
Caesar, que inda hade vir,
Quem, descendo do throno,
A seu dono
Diga, ao povo, subir!

879
42
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Composto por várias camadas, neste “canicular delírio” a apreensão só se torna pos-
sível por meio de fragmentos, a partir de múltiplos planos.

Mas acima de tudo se evoca e se convoca o real, aferrando-o ao longo de uma linha fugidia e elíp-
tica, ziguezagueante, interpretante, ora curva, ora aguda - a adivinhação. O encontro com o real
só pode ser fragmentário, dilacerado, efêmero, feito de discordâncias, sempre provisório e sempre
a ser retomado (MBEMBE, 2018, p. 231).

Aliás, este real está em trânsito com o imaginário, ele é espetáculo, dramaturgia e
teatro. Um serve para elaborar o outro, um pode ser revertido no outro e vice-versa.
A sua imagem é um fato cujo conteúdo excede a forma. O seu verdadeiro núcleo do
real é um excedente instalado num outro lugar, num devir. Essas sobrecargas, estas
possibilidades de elipses e disjunções são os fatores

que possibilitam os estados órficos, que tanto podem ser atingidos seja pela via da dança e da
música, da possessão ou do êxtase. A verdade se encontra nessa reserva e nesse excedente; nessa
saturação e nessa elipse - coisas às quais só se acede com o emprego de uma função de vidência
que não coincide com a função visual enquanto tal (MBEMBE, 2018, p. 231).

Tentativa de conceber uma lógica imanente à história, desprovida de qualquer ele-


mento superior, na Dança do Tatuturema o tempo é múltiplo e anacrônico, inapreen-
sível. Distante da totalidade que a tudo deveria abarcar, aqui tudo revela-se parcial e
limitado. Por meio de notações nervosas, quase telegráficas e/ou tipográficas, nesse
momento do épico, ficam às claras as imprecisões da pretensa delimitação da nacio-
nalidade. Essa transformação violenta no próprio plano da linguagem, nos posiciona
diante de uma experiência de choque destituída de qualquer valor transcendental
(LOBO, 2005), toda feita de impactos olho-coisa, luz-movimento e imediaticidade
(CAMPOS, 2002). Aristocracia monárquica, missionários modernos a serviço do Im-
pério, o imperador D. Pedro II, através do estilo conversacional-irônico, todos são
grotescamente satirizados nesse contexto infernal, onde “reinam a depravação e a
lascívia, tudo realizado sincreticamente com os elementos ocidentais da coloniza-
ção o que só acentua a sua conotação negativa e aviltante” (CUCCAGNA, p. 129).

O gume crítico-satírico do poeta maranhense é capaz de praticar um “indianismo às avessas”, sur-


preendendo o índio decadente da região amazônica numa dança-pandemônio reminiscente da
Walpurgisnacht romântica do primeiro Fausto, em promiscuidade orgiástica com corruptos explo-
radores brancos e missionários pervertidos (LIMA, p. 556).

A crítica contra o indianismo arcádico e romântico brasileiro, com seus heróis e he-
roínas a pairar nas alturas, rebaixa os cânones estéticos imperantes no indianismo
literário do reinado de D. Pedro II. Contrapondo-se a esse modelo, tem-se o Guesa/

880
43
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Sousândrade que se despe do “manto etéreo” e canta para os leitores este “triste
recitado do que às bordas se vê do Solimões”. Por meio de seu périplo moral, o nosso
personagem assimila ao seu destino o índio amazônico sacrificado pelo conquista-
dor branco, introduzindo em sua narrativa um presente nada auspicioso. Seu olhar
etnográfico desestabiliza o telos entre o projeto civilizacional colonial português e
o Segundo Reinado, fazendo com que a nação deixe de ser algo dado para ser um
problema a ser resolvido. Um interdito é posto frente ao epos mestiço recomenda-
do por Von Martius em sua dissertação Como se deve escrever a História do Brasil. À
grande fusão da história filosófica proposta pelo naturalista bávaro, contrapõe-se O
Guesa, com suas antíteses vertiginosas jamais resolvidas em síntese.

Referências
CAMPOS, Augusto e Haroldo. de.. re visão de sousândrade. São Paulo, Perspec-
tiva, 2002.

CEZAR, Temístocles. Presentismo, memória e poesia: noções da escrita da História no


Brasil oitocentista. In: S.J. PESAVENTO (org.), Escrita, linguagem, objetos: leituras
de história cultural. São Paulo, EDUSC, 2004.

CUCCAGNA, Cláudio. A visão do ameríndio na obra de Sousândrade. São Paulo,


Hucitec, 2004.

GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. Debaixo da imediata proteção imperial: Insti-


tuto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). São Paulo, Annablume, 2002.

GUIMARÃES, Manoel Salgado. Entre amadorismo e profissionalismo: as tensões da


prática histórica no século XIX. Topoi, 3(5):184-200. http://www.revistatopoi.org/
numeros_anteriores/topoi05/topoi5a7.pdf, 2002.

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro, Zahar, 1998.

LIMA, Luiz Costa. O campo visual de uma experiência antecipadora. In: A. e H. de


CAMPOS (orgs.), re visão de sousândrade. São Paulo, Perspectiva, 2002.

LIMA, Luiz Costa. O controle do imaginário: razão e imaginação nos tempos mo-
dernos. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1989.

LOBO, Luiza. Épica e modernidade em Sousândrade. Rio de Janeiro, 7Letras, 2005.

MAGALHÃES, L.O. de. Tucídides: a inquirição da verdade e a latência do heróico. In:


F.D. JOLY (org.), História e retórica: ensaios sobre historiografia antiga. São Paulo,
Alameda, 2017.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo, n-1 edições, 2018.

881
44
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

OLIVEIRA, Maria. da. Escrever vidas, narrar a história. A biografia como problema
historiográfico no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro, Tese de Doutoramento, Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro, 2009.

RAMOS, FRANCISCO RÉGIS LOPES. José de Alencar e a operação historiográfica: fron-


teiras e disputas entre história e literatura. História da Historiografia, 18:160-177.
https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/viewFile/815/572, 2015.

RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: M.


SALOMON (org.), História, verdade e tempo. Chapecó, SC, Argos, 2011.

SOUSÂNDRADE, Joaquim de. O Guesa. São Paulo, Annablume, 2009.

WHITE, Hayden. Ficción histórica, historia ficcional y realidad histórica. In: V. TOZZI
(org.), Ficción histórica, historia ficcional y realidad histórica. Buenos Aires, Pro-
meteo Libros, 2010.

882
45
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Renato Medeiros1 and Daniela Garrossini2


Impermanência e pervasividade: entendimentos possíveis
a respeito da obra de arte contemporânea a partir da arte
digital3
Impermanence and pervasiveness: possible understandings about the
contemporary artwork from digital art

Resumo
Este ensaio abre um debate sobre como o aspecto pervasivo da arte digital
pode ampliar o entendimento contemporâneo a respeito da obra de arte, con-
siderando a transitoriedade e adaptabilidade da criação ou discurso artístico a
diferentes meios, suportes e formatos. Dirigimo-nos sobretudo às poéticas tec-
nológicas, especificamente às expressões artísticas produzidas, armazenadas,
apresentadas e difundidas em formato digital, por meio de sua circulação em
rede via internet. Em seguida, apresentamos alguns antecedentes da arte con-
temporânea que dialogam ou coincidem com o desenvolvimento da arte digital
a partir da década de 1960 e discutimos como a efemeridade e a impermanência
ou constante transformação desse tipo de obra se apresentam como fortes tra-
ços da arte produzida na contemporaneidade. Concluímos argumentando que,
ao atravessar diferentes meios, suportes e formatos, é possível que a criação ou
discurso artístico continue operando suas possibilidades poéticas, somando no-
vos ângulos e perspectivas ao seu espectro de experiências, inclusive a partir do
material documental produzido ao longo do processo artístico.
Palavras-chave: Arte digital, impermanência, pervasividade, memória, poéticas
tecnológicas.

Abstract/resumen/resumé
This essay opens a debate on how the pervasive aspect of digital art can broaden
the contemporary understanding of the artwork, considering the transience and

1 Renato Medeiros Cordeiro, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Uni-


versidade de Brasília (PPGAV/UnB/Brasil), mestre em Estudos da Mídia (PPgEM/UFRN/Brasil) e pes-
quisador em Arte e Tecnologia.
2 Daniela Fávaro Garrossini, doutora em Comunicação pela Universidade de Brasília (PPGCOM/UnB/
Brasil), com pós-doutorado no Centro de Estuidos Superiores de Comunicación para América Latina
(CIESPAL/Equador). Docente do Departamento de Design da Universidade de Brasília.
3 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

883
46
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

adaptability of artistic creation or discourse to different media and formats. We talk


about all the technological poetics, specifically the artistic expressions produced,
stored, presented and disseminated in digital format, through their circulation in
the Internet. Next, we present some history of contemporary art that dialogue or
coincide with the development of digital art from the 1960s and discuss how the
ephemerality and impermanence or constant transformation of this type of work
present themselves as strong traces of contemporary art. We conclude by arguing
that by crossing different media and formats, it is possible that artistic creation or
discourse continues to operate its poetic possibilities, adding new angles and per-
spectives to its spectrum of experiences, including from the documentary material
produced throughout the artistic process.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: Digital art, impermanence, pervasiveness,
memory, new media art

Introdução: a aurora das poéticas tecnológicas


As tecnologias digitais, associadas ao processo de Globalização, atravessaram a vida
cotidiana, permitiram a criação de novos espaços e práticas de socialização e amplia-
ram nosso entendimento sobre a realidade, o tempo e o espaço, encurtando distân-
cias com ainda mais intensidade do que os meios de transporte a vapor, as redes de
telecomunicações ou os meios de comunicação de massa já faziam desde o século
XIX (Venturelli. A digitalização de quase tudo e a nossa conexão em rede via internet
propiciaram novos sentidos e outras maneiras de enxergar o mundo.

A arte participa ativamente desse processo desde os primeiros contornos do que


viria a ser a computação para fins industriais e comerciais, ainda na década de 1960.
De lá para cá, as relações experimentais entre arte, ciência e novas tecnologias apre-
sentam resultados poéticos diversos e mesmo que alguns desses processos artís-
ticos não estejam diretamente associados à computação, dificilmente a dimensão
computacional não participará de seus modos de documentação ou de preservação
(Gobira, 2018). Como foi dito, o digital permeia nosso cotidiano e deixa uma marca
inegável nestas primeiras décadas do século XXI. Hoje, é possível encontrar produ-
ções artísticas que dialogam com a inteligência artificial, a realidade aumentada, a
internet das coisas, a robótica, a realidade virtual, os jogos digitais, a biologia mole-
cular, big data, entre tantas outras tecnologias em ascensão (Gobira, 2018).

Foi ainda na década de 1960 que o campo da arte passou por transformações signi-
ficativas que pavimentaram muitos dos caminhos que as poéticas contemporâneas
percorrem ainda hoje. É possível considerar as poéticas tecnológicas também como
expressão desse contexto, que passou a admitir materiais não convencionais ao fa-
zer artístico, ressignificando inclusive objetos do cotidiano e favorecendo o entendi-
mento da prática artística como fruto de um pensamento conceitual. Autores como

884
47
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Cauquelin (2005), Archer (2001), Rush (2013), Belting (2016), Gombrich (2013) e Ma-
chado (2007) apontam Marcel Duchamp como precursor desse entendimento ainda
nas primeiras décadas do século XX. Cauquelin (2005) afirma que já naquele tempo
Duchamp adotava perspectivas próximas ao modelo de comportamento que pas-
sou a corresponder a expectativa contemporânea. Entre elas está a concepção de
arte como esfera do cotidiano, diluída entre outras atividades de nosso dia a dia;
o abandono dos movimentos de vanguarda e do romantismo acerca da figura do
artista; e o questionamento a respeito da autoria, a partir da participação do público
no fazer artístico.

Fatores como esses contribuíram para que as práticas artísticas se tornassem mais
abertas ao intercâmbio entre linguagens e resultassem em obras menos associadas a
peças materiais e mais relacionadas a processos comunicacionais dinâmicos, operan-
do em diferentes suportes e tornando-se cada vez mais voláteis, ou seja, passíveis à va-
riação (Hölling, 2018). Foi essa conjuntura que viu florescer fenômenos como a perfor-
mance, o happening, a body art e a instalação, expandindo o campo da arte para além
do artefato comercial e assumindo o efêmero e o híbrido como parte do processo.

As poéticas artísticas digitais compartilham dessas vertentes e reforçam os sinais de


que parte significativa da arte produzida na contemporaneidade permeia o transi-
tório, constantemente passando de um estado para outro, revelando sua condição
pervasiva. Essa volatilidade apresenta desafios à conservação, ao acervamento ou
ao colecionismo dessas obras, comprometendo até certo ponto sua persistência em
nossa cultura. Se antes a conservação do caráter material determinava fortemente a
perenidade de uma obra de arte, hoje talvez seja possível considerar que essa persis-
tência se dá justamente por sua constante atualização, adaptação a novos suportes
e também por seus desdobramentos documentais.

Este ensaio tem o intuito de apresentar a arte digital como fenômeno catalizador
dessas transformações e refletir sobre as possibilidades de memória de uma arte
nômade, entendendo que, na era da conexão em rede e do streaming, o fluxo, a ins-
tantaneidade e a impermanência tornam-se ainda mais relevantes para entender a
natureza de algumas manifestações artísticas contemporâneas sob outras perspec-
tivas. Mas é importante acrescentar que essas condições não afetam e não se sobre-
põem a todas as vertentes da arte contemporânea, assim como os modelos vigentes
de conservação da materialidade continuam válidos para muitas obras contemporâ-
neas, mas não para todas. É nessa direção que seguiremos. Nos interessa aqui pensar
em outros sentidos e maneiras de enxergar a arte.

Apontamentos sobre algumas configurações da arte digital


Antes, porém, são necessárias algumas considerações a respeito da arte digital na
ótica deste trabalho. Entendemos arte digital como uma vertente do campo da Arte

885
48
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

e Tecnologia, associada à linguagem computacional, cujas práticas resultam em pro-


duções artísticas codificadas, descritas ou representadas como uma série de dados
numéricos eletrônicos e binários, seguindo a definição de Wolf Lieser (2010).

Por sua vez, o campo da Arte e Tecnologia opera de modo interdisciplinar, atraves-
sando práticas recorrentes da arte contemporânea e valendo-se do desenvolvi-
mento científico e tecnológico. Entretanto, esse entendimento pode ser ainda mais
abrangente, alcançando outros períodos históricos, se considerarmos que, no passa-
do, a arte também foi beneficiada por avanços científicos e tecnológicos. O aperfei-
çoamento químico de tintas para pintura e o uso direto da matemática em estudos
de perspectiva podem indicar que essa relação entre arte, ciência e tecnologia é de
longa data.

Dessa maneira, é importante frisar que nosso recorte de Arte e Tecnologia aqui se dá
a partir de tecnologias emergentes no contexto já apresentado da arte contemporâ-
nea, em ascensão principalmente desde a década de 1960. Também é nessa época
que, segundo Castells (2002), o mundo se transformava e logo faria a passagem da
era industrial à era da informação. O desenvolvimento acelerado da computação e
de novas mídias é parte crucial desse processo. A difusão da computação pessoal,
o desenvolvimento de interfaces gráficas, o mercado de equipamentos portáteis de
captação e reprodução audiovisual e a popularização da internet comercial são al-
guns dos fatores que impulsionaram a produção artística nas últimas décadas do
século XX. Portanto, não seria equivocado pensar a informática e as novas mídias
como símbolos desse novo cenário de produção de sentidos.

Se o aspecto computacional, em alguma medida, permeia hoje muitos processos


artísticos, é admissível pensar sobre diferentes dimensões ou camadas de experi-
mentação e utilização poética de ferramentas e recursos digitais. Christiane Paul
(2008) sugere uma distinção básica entre trabalhos que utilizam as tecnologias di-
gitais como ferramenta de criação para a produção do que ela chamada de “obje-
tos de arte tradicional” e trabalhos que utilizam essas tecnologias como seu próprio
meio de produção, armazenamento, apresentação e difusão, inclusive empregando
possíveis recursos de interatividade. Mesmo discordando de alguns termos que a
autora enuncia e acreditando que essa distinção não se dá em apenas duas esferas,
o esforço aqui é vislumbrar a heterogeneidade das expressões artísticas que podem
se associar à alcunha “digital” e perceber a existência de diferentes níveis de com-
plexidade nessas expressões. Afinal, parece plausível admitir que há diferenças sig-
nificativas entre, por exemplo, um desenho vetorial ou uma fotografia digital e um
trabalho que demanda a participação do público conectado em rede para acontecer
como processo, como pode ser o caso de um trabalho de game art ou em realidade
aumentada. Mas não cabe aqui tecer avaliações qualitativas sobre essas expressões
e sim admitir que elas podem se dar em planos distintos, envolvendo inclusive pro-
cedimentos que vão do low-tech ao high-tech.

886
49
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Neste trabalho, adotamos como recorte de pesquisa, sobretudo, as expressões artís-


ticas nativas do digital, ou seja, produzidas, armazenadas, apresentadas e difundidas
em formato digital, por meio de sua circulação em rede via internet e que exploram
as tecnologias digitais para obter resultados que não seriam alcançados ou repro-
duzidos em outros meios, como aponta Lieser (2010). Ainda ressaltamos que, o uso
do termo arte digital pode ser restritivo, assim como tantos outros que se referem
às poéticas tecnológicas – como arte computacional, arte eletrônica, ciberarte ou
new media art –, mas salientamos que essa escolha é deliberada e consonante com
algumas perspectivas que entendem o digital como uma marcação amplamente
reconhecida e difundida nas práticas sociais e culturais de nosso tempo e, no caso
brasileiro, foi o termo adotado pelo até então Ministério de Cultura (MinC) na criação
do colegiado setorial específico sobre o tema, integrando o Conselho de Nacional
de Política Cultural (CNPC). Segundo Gasparetto (2014), a adoção do termo nessas
condições legitima e posiciona politicamente o campo da arte digital no Brasil, am-
pliando possibilidades de incentivos e editais.

Debruçamo-nos agora sobre esse recorte, que oferece um campo extremamente


potencial à experimentação, tanto do ponto de vista formal quanto do ponto de
vista discursivo e também econômico. Trata-se de um espaço aberto à exploração
de linguagens em ascensão e de novos modelos de viabilidade ou sustentabilidade
econômica nesse cenário de plataformização, dataficação, vigilância e performativi-
dade algorítmica de nossas práticas sócio-culturais. Tudo isso mediado por grandes
conglomerados digitais, como Google, Facebook, Apple, Microsoft e Amazon. Entre
tantos modos qualitativos, destacamos a vocação desse tipo de produção artística
às constantes transformações e adaptabilidade na rede mundial de computadores,
também está em mutação contínua.

Impermanência e pervasividade: arte que se move no tempo e se propaga


em múltiplos espaços
É legítimo pensar a permanência como ato, estado, condição ou qualidade daquilo
que fica, perpetua-se e conserva-se em determinado espaço e ao longo do tempo,
entre outros sentidos cabíveis sobre o que significa permanecer. Como consequência
da Revolução Industrial e da concepção de que a máquina industrial deve produzir
mais em menos tempo, a modernidade floresceu sob o signo da aceleração artificial.
Meios de transporte como as locomotivas, os carros e os aviões se tornaram símbolos
desse processo e proporcionaram outras experiências de deslocamento espacial que
divergem do movimento natural do ser humano. Desde então, a duração no tempo é
uma qualidade que pode ser acelerada e desacelerada (Venturelli, 2004).

Esse contexto favoreceu a criação de obras de arte dinâmicas, ou seja, que se des-
dobram em determinado tempo e estabelecem estados voláteis ou oscilantes, pro-
pensas à mudança e à variação. Exemplo disso está na arte cinética do brasileiro

887
50
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Abraham Palatnik, cujas esculturas de arame, formas coloridas e fios se movem regu-
larmente, acionadas por motores e eletroímãs. Na série “Bichos”, da também brasilei-
ra Lygia Clark, placas metálicas unidas por dobradiças formam esculturas articuláveis
que podem ser manipuladas pelo público. A partir da interação, os bichos da artista
podem gerar configurações diversas e já não haveria, em tese, uma posição inicial
original. Ambos os casos são frutos da década de 1960, assim como os happenings
do movimento internacional Fluxus, baseados na efemeridade de ações eventuais e
de duração muitas vezes imprecisa.

Entretanto, a duração sempre esteve presente em linguagens artísticas como a


música, a dança, o teatro e o cinema, mas os arranjos híbridos que se fortaleceram
na arte contemporânea também permitiram que a duração se tornasse elemento
constitutivo em linguagens tradicionalmente sem essa característica, como as ar-
tes visuais. Além disso, a principal diferença ainda estava na possibilidade de ace-
leração e desaceleração artificial e sem correspondência com o movimento natural
humano, algo que não ocorria em espetáculos cênicos ou orquestrais. Entre outros
motivos, foi também o acesso a equipamentos portáteis de captação e reprodução
audiovisual e, posteriormente, a softwares de edição de imagens, além do potencial
interativo de recursos digitais, que contribuíram para que o artista e o público, de
certa maneira, manipulassem o tempo, adiantando, retrocedendo ou operando a
transitoriedade das obras em temporalidades únicas ou específicas, de acordo com
suas próprias experiências. A arte digital, além de herdeira desse estado de coisas,
contribui ativamente em sua amplificação.

Segundo Hanna B. Hölling (2018), a duração temporal e a mudança compõem o


perfil de algumas expressões da arte contemporânea que a autora vincula a mídias
que ela chama de “transicionais” e argumenta que a constante instabilidade ou im-
permanência desses trabalhos revela e necessidade de alternativas distintas para
se repensar os métodos usuais de conservação. Ela sugere que “devemos aprender
como incorporar a aceitação da mudança no paradigma da conservação e enten-
der nossa disciplina como uma prática necessariamente discursiva e contextual”
(Hölling, 2018, p. 47). Ainda de acordo com a autora, seria possível compreender
essas expressões artísticas como a soma de suas transformações. “Para essas obras
de arte, a mudança e a transição são condições de possibilidade de sobrevivência”
(Hölling, 2018, p. 39).

Ao considerar essa fala, é inevitável explorar a condição pervasiva de expressões


artísticas que operam no trânsito e em trânsito e que só são validadas quando em
fluxo (Beiguelman, 2010). Aproximamo-nos agora de uma dimensão espacial, já que
a pervasividade está relacionada ao que se espalha ou se propaga, como líquidos
que se adaptam aos espaços aonde se derramam. Uma obra de arte pervasiva seria,
portanto, dotada da capacidade de se adaptar a outros meios veiculares que trans-
portam o discurso artístico e, mais do que isso, dilatam constantemente a obra ou

888
51
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

projeto. Hölling (2018) diria que a continuidade do trabalho, em vez da conservação


material, seria garantida principalmente por sua renovação constante, inclusive ade-
rindo a novos suportes.

Como exemplo, podemos mencionar a obsolescência de equipamentos ou plata-


formas de hardware e de software, que frequentemente são descontinuados pela
indústria de tecnologia, podendo afetar produções artísticas digitais que foram con-
cebidas ou são disponibilizadas por meio dessas plataformas. É a condição pervasi-
va dessas obras que permite que métodos como a reprogramação ou a emulação
sejam possíveis e que os trabalhos sejam continuados em novos suportes ou novas
atualizações. Além disso, a variação é quase sempre inevitável. Provavelmente novos
elementos serão incorporados, tanto do ponto de vista formal como discursivo. E
ainda é preciso mencionar o compartilhamento em rede, campo fértil à remixagem
de conteúdos digitais. Nessas circunstâncias, a obra se move no tempo e no espaço,
podendo distribuir-se simultaneamente por diversos contextos de deslocamento.

Histórico de transformações como possibilidade de memória


A pervasividade também pode ser entendida como efeito do que Beiguelman
(2010) chama de cultura da mobilidade, que ela classifica como um “conjunto de
práticas sociais e simbólicas que respondem às demandas de sujeitos multitarefas e
com atividades simultâneas e não correlatas (Beiguelman, 2010, p. 87). Essas ativida-
des atravessam plataformas que se mostram disponíveis e flexíveis, sem se importar
com hora ou local. Elas frequentemente tornam ainda mais elásticas nossa percep-
ção de tempo e espaço, colocando-nos em “movimento” por diferentes ambientes,
mesmo quando parados em frente a uma tela; e criando acelerações distintas em
temporalidades paralelas. Para a autora, elas pulverizam a atenção dos sujeitos em
múltiplas direções.

Submersos em um mar de dados informacionais e estímulos por todos os lados, ex-


perimentamos uma espécie de cegueira ou paralisia que nos afasta de uma posição
contemplativa. Já não há tantas oportunidades para a fruição de obras de arte. Já
não há muito espaço nem mesmo para o tédio. Em alguma medida, nossa experiên-
cia estética será trespassada por alguma mediação tecnológica, mesmo que oriunda
de algum sujeito logo ao lado. Ao que parece, essa cultura da mobilidade não nos
permite parar e seus sintomas podem ser percebidos, por exemplo, em expressões
artísticas digitais compartilhadas via internet e também em intervenções urbanas
ou trabalhos que envolvem mídias locativas (Bambozzi, 2010). Nesse contexto, essas
obras já não ocupam o espaço asséptico do cubo branco e se diluem no cotidiano ou
entre as diferentes abas e aplicações que executamos ao mesmo tempo.

Para Bambozzi (2010), “o locativo é localizável, rastreável, tende a ser intrusivo, serve
a operações vigilantes e tem vocações disciplinadoras. Mas os desvios são possíveis

889
52
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

(...)” (Bambozzi, 2010, p. 69) e sua exploração poética tem testado aproximações inte-
ressantes entre as tecnologias e o espaço urbano. O autor cita como exemplo o pro-
jeto “Invisíveis”, de Bruno Viana, que partiu dos conceitos de portabilidade e realidade
aumentada para propor aos visitantes do Parque Municipal de Belo Horizonte uma
expedição em busca de personagens ligados a determinadas áreas do parque. Esse
projeto revela o quanto o entendimento do material artístico como objeto-obra perde
expressividade diante da relevância de trabalhos concebidos para ambientes de redes,
integrados a contextos cotidianos e que são validados quando em processo. Rede que
se estrutura também pela interação das mídias locativas com outros aparelhos de te-
lecomunicação, como a rede elétrica, a internet ou painéis eletrônicos.

Beiguelman (2010) vai dizer ainda que a arte que é produzida com dispositivos mó-
veis tende a ter caráter coletivo e anônimo, diferente da arte produzida para os mes-
mos dispositivos, que seria uma arte vivenciada individualmente. No primeiro caso,
a autoria do projeto também é pulverizada na rede, seja por causa da participação
do público ou pela profusão de informações que concorrem pela atenção desse pú-
blico. A autora ainda acrescenta que trabalhos artísticos nessas configurações neces-
sitam de outro modelo de valoração e que essa valoração passa principalmente pela
relação processual, eventual, contextual ou discursiva da obra e que, nesse contexto,
a criação artística implica repensar convenções, formatos de comunicação e trans-
missão e condições de acesso ou legibilidade às obras.

Sendo assim, como pensar a memória dessas expressões artísticas tão fortemente
associadas à mudança contínua e à capacidade de atravessar diferentes meios? Ao
operar em rede, a obra não está necessariamente ligada ao seu caráter material e,
portanto, a busca pela sua conservação como objetos se mostra insuficiente. Obras
dessa natureza estão mais relacionadas a sua rede de conexões, que formam um uni-
verso discursivo singular e complementar, mas que pode se apresentar de maneira
fragmentada, devido à sua pervasividade, ou seja, sua tendência ao espalhamento.

Sobre isso, Annet Dekker (2018) cita o projeto Mouchette.org, criado em 1996 como um
site interativo que pertence à personagem ficcional com o pseudônimo de mouchette.
O trabalho continua vivo ainda hoje a partir da ação participativa do público, que cria no-
vas histórias alimentando uma rede que só cresce desde então. Essas relações criam sig-
nificados que tendem apenas à ampliação e à constância dos projetos em nossa memó-
ria coletiva. “Essa rede de assistência é uma construção social e a vida social do projeto é
importante para os pesquisadores, arquivistas ou conservadores” (Dekker, 2018, p. 98).

A autora menciona a importância que justamente o histórico de transformações da


obra é capaz de revelar seus desdobramentos ao longo do tempo e seu envolvimen-
to e relevância com a cultura. Ela também argumenta que o storytelling pode ser um
método para construir esse histórico que nos conta sobre os desdobramentos das
obras ao longo do tempo e em seus diferentes espaços possíveis. Nessa perspectiva,

890
53
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

o storytelling poderia explicar as variáveis, a maleabilidade e as oscilações formais


e conceituais dos projetos, qualidades inerentes a muitas obras de arte contempo-
râneas, não apenas àquelas associadas às poéticas digitais. Esse método revela as
mutações da obra ao longo do tempo.

Considerações em trânsito
Talvez o termo storytelling não seja definitivo ou o mais adequado, mas no momento
expressa ou exemplifica o ponto de vista defendido por esse brevíssimo ensaio, ao
considerar a produção de narrativas como alternativa memorial de expressões artís-
ticas muito próprias de nosso tempo. Mas a produção de narrativas não significa ne-
cessariamente permanecer na linearidade. Entendemos que o histórico de transfor-
mações podem nos fazer enxergar quais são os elementos constitutivos de algumas
obras de arte contemporânea. Diferentes camadas sobrepostas de transformações,
variações, suportes materiais que poderiam se tornar mais visíveis a partir de um his-
tórico de suas mutações. Sobretudo esse entendimento solicita de nós uma maneira
diferente de enxergar aquilo que ainda chamados de obra de arte.

O uso, o acesso, a transformação, a remixagem e a conexão em rede ou comparti-


lhamento permitem que o “universo” simbólico e material configurado por trabalhos
artísticos mutantes continue vivo e relevante culturalmente, mas para isso é preciso
permitir que as transformações ocorram e aceitar as eventuais perdas como parte
desse processo. Não há como conservar essas obras ou reproduzi-las em suas mes-
mas condições iniciais. Talvez uma saída para assegurar a memória desses tipos de
obras seja justamente a conservação do direito à impermanência delas. Se a mutação
é condição primordial à sobrevivência dessas expressões, que elas possam se trans-
formar sempre que necessário e que possam acontecer em diferentes contextos. Tal-
vez a memória se dê justamente pela curadoria ou preservação de um histórico de
transformações, que aponte para suas diferentes temporalidades e conformações
materiais ao longo do tempo. Esse entendimento da obra de arte contemporânea
como acúmulo de suas transformações amplia possibilidades e considera os rastros
deixados pelos trabalhos como elementos constituintes fundamentais de suas po-
éticas. Se a arte é esse universo simbólico que se desdobra no tempo e no espaço,
é possível fazê-lo persistir ao permitir que esse universo de transforme e circule por
outros espaços, possibilitando que suas potencialidades pervasivas e seu direito à
impermanência se sobressaiam.

Referências
Abraham Palatnik. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.
São Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/
pessoa9891/abraham-palatnik>. Acesso em: 08 de Set. 2019. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7

891
54
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Archer, M. Arte contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes,
2001. 263 p. (Coleção a)

Bambozzi, L. Aproximações arriscadas entre site-specific e artes locativas. In: Bam-


bozzi, L., Bastos, M. & Minelli, R. (Org.). Mediações, tecnologia e espaço público:
panorama crítico da arte em mídias móveis. São Paulo: Conrad Editora da Brasil,
2010. 224 p.

Beiguelman, G. Notas sobre a cultura e a arte da mobilidade (pensamentos nômades


para hipóteses em fluxo). In: Bambozzi, L., Bastos, M. & Minelli, R. (Org.). Mediações,
tecnologia e espaço público: panorama crítico da arte em mídias móveis. São
Paulo: Conrad Editora da Brasil, 2010. 224 p.

Belting, H. O fim da história da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2016. 9 v. 448 p.

Castells, M. A sociedade em rede: volume 1 de era da informação: economia,


sociedade e cultura. 5 Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 617 p.

Cauquelin, A. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins, 2005. 169
p. (Coleção Todas as artes).

Dekker, A. Armazenamento de culturas online e o storytelling como método. In: Go-


bira, P. (Org.). A memória do digital: e outras questões das artes e museologia.
Belo Horizonte: EdUEMG, 2019. 256 p.

Gasparetto, D. A. Arte digital no Brasil e as (re)configurações no sistema da arte.


Data da defesa: 23 set. 2016. 289 f. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Instituto de Artes, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Por-
to Alegre, 2016.

Gobira, P. A arte volátil. In: Gobira, P. (Org.). A memória do digital: e outras ques-
tões das artes e museologia. Belo Horizonte: EdUEMG, 2019. 256 p.

Gombrich, E. H. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC, 2013. 1046 p.

Hölling, H. B. Mídia transicional: permanência, recursividade e o paradigma da con-


servação. In: Gobira, P. (Org.). A memória do digital: e outras questões das artes e
museologia. Belo Horizonte: EdUEMG, 2019. 256 p.

Lieser, W. Arte digital: novos caminhos da arte. Ed. H. F. Ullmann, 2010, 276 p.

Lygia Clark. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Pau-
lo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pes-
soa1694/lygia-clark>. Acesso em: 08 de Set. 2019. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7

892
55
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Machado, A. Arte e mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. 84 p.

Paul, C. Digital Art. New York: Thames & Hudson, 2008. 256 p.

Rush, M. Novas mídias na arte contemporânea. 2 Ed. São Paulo: Martins Fontes
WMF, 2013. 232 p. (Mundo da Arte).

Santaella, L. Por que as comunicações e as artes estão convergindo?. 3 Ed. São


Paulo: Paulus, 2008. 72 p. (Coleção Questões Fundamentais da Comunicação, v. 5).

Venturelli, S. Arte: espaço-tempo-imagem. Brasília: Editora UnB, 2004. 186 p.

893
56
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Renata Perim1

Modos de ver em exposições de arte: processos de mediação


da curadoria e do design de exposição
Ways to see in art exhibitions: curation and exhibition design mediation processes

Resumo
A atividade curatorial e o design de exposição buscam mediar o contato do es-
pectador com a obra de arte e com isso possibilitam uma percepção ampliada do
tema da exposição. Um caminho para analisar esse processo de mediação – ten-
do como base autores como Rosalind Krauss (1990) e Hal Foster (2015) – foca no
modo como a curadoria e o design podem afastar o espectador do conhecimento
da trajetória do artista e sua obra, pois, de acordo com os autores, seriam formas
que priorizam a experiência em detrimento de um didatismo ligado à História
da Arte. Propomos analisar mostras de arte nas quais os projetos de curadoria e
design de exposição se entrelaçam e mediam o encontro do expectador com a
arte propondo o conhecimento do significado da obra e da poética do artista, em
outras palavras, ampliam os modos de ver do espectador no espaço expositivo.
Palavras-chave: Exposição, Curadoria, Design de Exposição, Espectador.

Abstract
The curatorial activity and exhibition design seek to mediate the spectator’s experi-
ence with works of artists and thus enable a broader perception of the theme of the
exhibition. One way to analyze this mediation process - based on authors such as Ro-
salind Krauss (1990) and Hal Foster (2015) – focuses on how the curatorship and the
design can move the viewer away from knowledge of the artist’s trajectory and his
work, therefore, according to the authors, would be ways that prioritize experience
over a didacticism linked to Art History. We propose to analyze art shows in which
curatorship and exhibition design projects intertwine and mediate the spectator’s
encounter with art by proposing knowledge of the meaning of the artist’s work and
poetics, in other words, broadening the viewer’s view in the exhibition space.
Mots clefs: Exhibition, Curatorship, Exhibition Design, Spectator.

1 Doutora em Design pela Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (ESDI/UERJ). Mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Professora nos cursos de Design Gráfico e Publicidade e Propaganda no Instituto de Tecnologia In-
fnet-RJ.

894
57
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Introdução
Os modos de apresentação de obras de arte sempre foram mediados por elementos
que buscavam, de diferentes maneiras, explorar a atenção do espectador. Em me-
ados do século XIX e no início do século XX, artistas já começavam a entender que
esses modos de apresentação poderiam influenciar a compreensão de seus traba-
lhos. O artista francês Gustave Courbet, por exemplo, foi o primeiro a organizar uma
exposição sozinho, em 1855. Embora não tenha se diferenciado dos salões oficiais
na maneira de expor os quadros Coubert considerou fundamental criar um novo
espaço para apresentar seu trabalho. O impulso do artista em se recusar a participar
da Exposição Universal de Paris se deu pelo fato de não concordar em ter suas obras
localizadas em meio a objetos de origens variadas, o que poderia prejudicar a frui-
ção do público (ALTSHULER, 1994).

Ao longo do século XX muitos processos de mediação no espaço expositivo fo-


ram pensados por arquitetos, curadores e designers que tinham como foco a ex-
periência do espectador no espaço expositivo. Neste artigo destacaremos duas
exposições, ocorridas em centros culturais brasileiros, as quais podem ser anali-
sadas a partir de dois parâmetros: o design de exposição que serve ao trabalho
de arte explorando o seu significado; e o artefato de exposição criado com base
no trabalho do artista mas que contém, ele mesmo, elementos que se conectam
diretamente com o espectador. Abordaremos esses trabalhos para refletir, sob
a luz de alguns autores e críticos de arte, se a experiência criada por esses for-
matos expositivos estariam distanciando o espectador da história da arte, ou do
artista, ou se estariam, por outro lado, contribuindo para a compreensão da obra
em um diálogo próximo ao que é imperativo no momento atual – a interativida-
de do espectador.

Um processo de mediação no espaço expositivo


Em meados do século XX a atividade curatorial ganha expressividade nas monta-
gens de exposições de museus e galerias de arte. Isso ocorre, em parte, para apre-
sentação de trabalhos de arte que tomavam posições contrárias ao formalismo
modernista, voltados para o mundo em que se vive e não mais sendo produzidas
para os efeitos de contemplação tradicional. Esses trabalhos ao confrontarem as
categorias estabelecidas da arte demandavam espaços não convencionais aos
museus e galerias que pretendiam expô-las. Arte conceitual, processual, perfor-
mance, happening, environment, body art, arte povera foram os nomes usados
para referenciar a tendência da arte que buscava também o engajamento do es-
pectador no espaço expositivo para se realizar. Nesse período emerge um mode-
lo de curadoria que entende a atividade do “curador como criador” (ALTSHULER,
1994, p. 236). O que começa a se delinear, a partir das exposições cada vez mais

895
58
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

estruturadas para trabalhos que pediam outros formatos, é a ênfase da curadoria


na experiência do espectador.

Nas décadas de 1960 e 1970 cresce a relação da curadoria com a arte e serão
criadas as bases teóricas para se pensar exposições e as coleções museológi-
cas, nesse contexto, a curadoria começa responder a transformações não só da
arte, mas da economia e das sociedades contemporâneas fazendo valer o ter-
mo indicado pelo crítico Luiz Camillo Osorio (2015), como “virada curatorial”.
Esse termo relaciona-se ao fato de que o papel do curador, ao se concentrar na
atividade de apresentação de obras ao público, requer novas funções como se-
lecionar colaboradores especializados, determinar um quadro de trabalho con-
ceitual, consultar arquitetos, organizar a publicação de catálogos, entre outras.
É possível pensar na atividade do curador, pelos menos nas grandes exposições,
entrelaçadas a outras tais como a publicidade, design e marketing. Como forma
de pensar a interlocução entre a curadoria e o design de exposições apresenta-
mos a primeira mostra que nos servirá como exercício de reflexão em torno da
experiência do espectador.

Mediação com dispositivos tecnológicos


No Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro (CCBB-RJ), local que nos
últimos anos exibiu artistas de renome internacional em exposições de gran-
de porte, destaca-se o nome do curador Pieter Tjabbes, responsável pelas mos-
tras mais visitadas do local como O mundo mágico de Escher (2011) e Mondrian
e o Movimento de Stjil (2016). Tjabbes afirma que dentre as várias funções que
curador tem a mais demorada e custosa é a de convencer os grandes museus
e colecionadores a emprestarem as obras muitas vezes de alto valor histórico e
econômico (TJABBES, 2016). Tjabbes destaca a importância de ser também um
negociador na atividade curatorial, uma vez que vários museus e centros cultu-
rais no Brasil apostam em nomes de grandes artistas para a conquista do público
de massa. Cabe notar que o curador indica recursos interativos dentro de um
recorte educativo para atrair novos públicos. Tjabbes coloca essa dinâmica de
montagem como parte fundamental para provocar o interesse e a participação
dos visitantes em exposições de arte. Como parte dessas propostas foi criado
para a exposição Mondrian e o Movimento de Stjil (2016) um mobiliário para que
o espectador pudesse encaixar o celular e fazer uma foto como se estivesse den-
tro de um quadro do artista (Figura 1). Esse artefato estava posicionado em uma
área apartada das salas de exposições, na parte central do CCBB-RJ e foi bastante
requisitado pelo público presente.

896
59
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Figura 1 – artefato expositivo para fixar o celular e cenário para fotografia na


mostra Mondrian e o Movimento de Stjil (2016).

No processo de produção de mostras que pedem recursos interativos e dinâmicas que


buscam trabalhar a participação do espectador, Pieter Tjabbes sentiu a necessidade
de criar uma empresa de produção cultural que reúne uma equipe responsável por
todos os aspectos da curadoria e realização de uma exposição. Assim, o curador passa
a ter um contato mais próximo com profissionais que também vão dar forma a uma
exposição no sentido de colocá-la em contato com o público – profissionais de marke-
ting, tecnologia, cenógrafos, designers e equipe do educativo. O modelo de curadoria
empregado por Tjabbes responde às demandas do espectador de hoje mediado por
dispositivos tecnológicos que alteram sensivelmente suas formas de percepção e que
respondem ao universo urbano no qual estão inseridos. Sabemos que a tecnologia di-
gital impulsionou novas formas de ser e estar no mundo. Os novos meios de produção
de imagens indicam um fenômeno da cultura visual que se baseia em ações tais como
o compartilhamento de imagens em redes sociais. O museu, inserido nesse contexto,
quer acolher, contribuir e criar condições para algumas dessas ações.

Podemos pensar, a partir do display produzido para a exposição de Mondrian, que o


CCBB-RJ se apresenta como uma instituição preparada para propor experiências para
o espectador, como toda empresa inserida no contexto atual de uma sociedade mi-
diatizada, por outro lado, esses displays fazem com que o museu, abandonando a di-
nâmica do cubo branco, opere na transformação do espaço expositivo e também nas
formas de perceber, pensar e ser do espectador. O museu que segue essa trajetória, de
acordo com Hal Foster (2015), atua, por meio desses displays, como uma “máquina do
espaço-tempo” que permite ao espectador ver diferentes períodos e culturas para tes-
tá-los no seu próprio tempo e cultura. Observamos que o display criado carrega traços
do trabalho do artista mas contém, ele mesmo, formas que dialogam com o público.

Mediação a partir do significado da obra


A segunda exposição para a qual chamamos atenção é a instalação A Máscara, o Gesto,
o Papel (2017 – Figura 47), da artista Sofia Borges, que foi montada no Instituto Moreira

897
60
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Salles (IMS) do Rio de Janeiro como parte da exposição Corpo a Corpo: a disputa das
imagens, da fotografia à transmissão ao vivo (2017). A exposição busca refletir sobre os
cruzamentos entre realidade e simulacro, rigor e improviso a partir de sete trabalhos
de artistas e coletivos. Segundo destaca Thyago Nogueira, curador da mostra,

[...] os trabalhos mostram como o corpo pode ser usado como elemento de representação social
e atuação política, seja através de sua presença física e simbólica nos espaços públicos, seja como
lugar de expressão da identidade que aproxima ou separa indivíduos, seja como veículo condutor
de uma câmera, com a qual ele às vezes se confunde (NOGUEIRA, 2017a, p. 3).

A instalação de Sofia Borges foi um trabalho feito em parceria com o curador. As fo-
tografias da artista são resultado de uma viagem a Brasília, realizada em 2017, para
registrar a atividade do Congresso Nacional. No espaço da mostra veem-se painéis
de duas faces: de um lado, a reprodução fotográfica de pinturas a óleo com recorte
nas bocas daqueles que foram presidentes da casa; e do outro, gestos retirados de
fotos que registram cenas de sessões legislativas.

Destaca-se, na instalação, o modo como o trabalho da artista está exposto – os qua-


dros são sustentados por uma única corda que percorre e suspende todos juntos
num sistema de pesos e contrapesos. Essa ordem formal remete também ao jogo
político no qual os interesses estão todos ligados e dependentes, em que “realidade
e política se fundem no teatro de imagens e símbolos – palco da tragédia e da pan-
tomima” (NOGUEIRA, 2017a, p. 34). Pode-se também inferir que a linha que sustenta
os quadros forma uma espécie de grid suspensa com a dupla função de sustenta-
ção e de apelo formal no espaço da instalação. Esse suporte expositivo configura-se
como uma ferramenta discursiva do contexto histórico atual (Figura 2).

Figura 2 – Vista da instalação A máscara, o Gesto, o Papel (2017) de Sofia Borges no IMS-RJ

898
61
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

O projeto de design de exposição da instalação amplia o discurso da artista. Tal-


vez fosse possível afirmar, pelo modo como a linha ocupa o espaço, que o design
aqui faz parte da expressão da artista – basta pensar nos quadros dispostos lado a
lado e contra a parede. A forma tradicional de pendurá-los talvez pudesse dar a ver
imagens bem produzidas com um recorte específico, deixando ao espectador sua
possibilidade de leitura crítica. No entanto, encontra-se aqui a prática de um design
de exposição contemporâneo que faz o papel de mediação entre arte e público a
partir do significado semântico da obra. Indo além da função de expor, o design
aqui está tão intrínseco na obra que pode gerar a pergunta: de quem foi a ideia
de suspendê-los, do artista, do curador ou do designer? Essa pergunta foi feita ao
departamento educativo do Instituto Moreira Sales, na ocasião de uma vista guiada,
que respondeu como sendo uma proposta da qual toda a equipe de curadoria e
expografia participou.

Pensando criticamente os formatos de exposição


Consideramos a crítica de Rosalind Krauss (1990) para analisar os projetos de cura-
doria e design de exposição acima citados e para refletir sobre a criação de experi-
ências para o espectador no ambiente expositivo. O trabalho de curadoria feito por
Tjabes, no CCBB-RJ, e Nogueira, no IMS-RJ, podem ser vistos como um modo criativo
de ampliar o tema da mostra para alcançar mais pessoas e para ampliar o significa-
do da obra em exposição. Krauss entende esse modelo curatorial como um modo
de dar à exposição um formato de evento voltado para os interesses do mercado.
Segundo Krauss a experiência oferecida ao público de museu que responde a uma
lógica de mercado, esvazia o trabalho do artista e a abordagem conceitual da mos-
tra. Poderíamos indagar, sob um outro ponto de vista, se as propostas de mediação,
principalmente aquelas que usam tecnologia digital – com o uso de celulares, câme-
ras fotográficas e da internet – estariam colocando a obra de arte em diálogo mais
próximo com o espectador de hoje.

Seguindo com Krauss (1990), esse tipo de experiência, principalmente em fins dos
anos 19802, leva a uma atividade museológica ampliada e aderida ao status quo do
capitalismo pós-industrial. Segundo a autora, o museu que apresenta esse tipo de
mostra: “abandonaria a história em nome de um tipo de intensidade de experiência,
uma carga estética que não é tanto temporal (histórica) como é agora radicalmente
espacial”3 (KRAUSS, 1990, p. 7). Ou seja, pelo uso intensificado de recursos e efeitos

2 A crítica de Rosalind Krauss que aqui nos baseamos se dirige principalmente, mas não exclusiva-
mente, às instalações de artistas do minimalismo, a autora em seu texto original cita o artista Dan
Flavin, entre outros, para falar de sua experiência no espaço expositivo.
3 No original: “[…] would forego history in the name of a kind of intensity of experience, an aesthetic
charge that is not so much temporal (historical) as it is now radically spatial […].”

899
62
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

cenográficos, acolhidos por alguns museus e galerias de arte, o modelo expositivo


ligado a um didatismo e baseado na História da Arte perderia seu valor. Entendendo
essa dinâmica de outra maneira Dorothea Von Hantelmann, refletindo sobre uma
“virada experiencial”, busca pensar “como uma experiência poderia ser atravessada
por significado, sentido, conteúdo [...] e como ela pode manter o vínculo com suas
origens históricas, contextuais e epistemológicas” (VON HANTELMANN, 2014 apud
OSORIO, 2015, p. 75). De acordo com Von Hantelmann pensamos que mediação da
curadoria e do design de exposições, consideradas num processo interdisciplinar,
podem criar modos de ver relacionados ao trabalho do artista e, ao mesmo tempo,
em diálogo com os recursos ubíquos das tecnologias digitais.

Importa notar que, em geral, exposições de arte são criadas por profissionais de vá-
rias áreas, as quais, muitas vezes, não estão voltadas para o público específico de
museus, como é o caso das equipes de comunicação ou de desenvolvimento de
tecnologias. Cabe à instituição, ou curador, a estratégia de interligar determinadas
áreas na concepção de uma exposição. Giselle Beiguelman, curadora e pesquisadora
de arte digital, destaca que há uma grande diferença no direcionamento de ações
que buscam estimular a percepção da obra de arte por meio de tecnologias digitais
– uso de celular no museu para fazer selfies, por exemplo – que são conduzidas pela
curadoria ou pela equipe de marketing. De acordo com a curadora, dependendo de
quem o faz, há sempre o risco de esvaziar completamente a experiência, “suprimin-
do o contato com a obra pelo mero registro de um autorretrato e o uso da hashtag
de divulgação” (BEIGUELMAN, 2018, s.p),4 transformando a visita à exposição em
imagens, difundidas e compartilhadas, que podem substituir a vivência direta com
as obras e os espaços expositivos.

Aproximamos aqui dois trabalhos de curadoria que, interligados com o design de


exposições, colocam o espectador em contato com a obra do artista. No primeiro,
no CCBB-RJ, destacamos o uso da tecnologia digital como processo de mediação, o
segundo, no IMS-RJ, apresentamos um formato expositivo que tem como base o tra-
balho da artista. São dois modos de curadoria que ampliam, por meio do design de
exposições, o tema da mostra e o trabalho do artista. Não podemos, e não é intenção
deste artigo, afirmar qual deles aproxima ou afasta o espectador do entendimento
conceitual da mostra. Propomos iluminar a relação entre curadoria, arte e design
entendendo que nenhuma dessas atividades pode ser considerada isoladamente
no espaço expositivo tornando fundamental sua interdisciplinaridade. Entendemos
que encontro com o trabalho do artista precisa ser construído e mediado pois o
contexto do espectador, e também da obra de arte, se apresenta atualmente em
um cenário de maior complexidade o qual agrega uma variedade de interesses que

4 Podcast divulgado na Radio da Universidade São Paulo. Disponível em: <https://jornal.usp.br/atu-


alidades/cada-vez-mais-exposicoes-viram-meros-cenarios-para-selfies/>. Acesso em: 14 mai. 2019.

900
63
Histórias e Teorias da Arte #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

podem se complementar ou se distanciar. A curadoria e o design de exposições


quando interligados têm condições de criar sentidos para a obra de arte e para o
espectador no espaço expositivo de museus e galerias de arte.

Referências
ALTUSHULER, Bruce. The avant-garde in exhibition: new art in the 20th century.
New York: Abrams, 1994.

BEIGUELMAN, Giselle. Exposições viram cenários para “selfies”. Jornal da USP. Leila
Kiyomura. Rádio USP, 2018. Disponível em: <https://jornal.usp.br/atualidades/cada-
-vez-mais-exposicoes-viram-meros-cenarios-para-selfies/>. Acesso em: 14 mai. 2019.

FOSTER, Hal. After the White Cube. London Review of Books [online], v. 37, n. 6, p.
25-26, 2015b. Disponível em: <https://www.lrb.co.uk/v37/n06/hal-foster/after-the-
-white-cube>. Acesso em: 23 mar. 2019.

KRAUSS, Rosalind. The Cultural Logic of the Late Capitalist Museum. October, v. 54,
p. 3-17, Autumn, 1990.

OSORIO, Camillo. Virada Curatorial: o pôr-em-obra da exposição como poética rela-


cional. Poiésis 26. Revista Poiésis, Niterói, ano 16, p. 65-80, dez. 2015.

NOGUEIRA, Thyago. Estamos rodeados de moscas. In: Corpo a Corpo: a disputa das
imagens, da fotografia à transmissão ao vivo. São Paulo: IMS, 2017a.

______. A máscara, o gesto, o papel: Sofia Borges. Vídeo produzido por Laura Liu-
zzi, Núcleo de Vídeo do IMS. Canal do imoreirasalles, 2017b. Disponível em: <https://
www.youtube.com/watch?v=7Bw8-g-OrkY&t=143s>. Acesso em: 20 abr. 2019.

VON HANTELMANN, Dorothea. The Experiential Turn. In: On Performativity. Ed. Eli-
zabeth Carpenter. Vol. 1. Minneapolis: Walker Art Center, 2014. (Living Collections
Catalogue)

901
64
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Imagem, Desenho e Conhecimento


Image, Design and Knowledge

902
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Anailde Almeida1 and Suzi Mariño2


Corpo Marcado - um fenômeno social recorrente,
ressignificado no trajeto à pós-modernidade
Body Marked - a recurring social phenomenon, re-signified on the path to
postmodernity

Resumo
O corpo marcado, narrativas, motivações e significados emocionais, enquanto
fenômeno social recorrente, ressignificado na pós-modernidade. É propósito da
pesquisa identificar o trajeto do corpo marcado, através das tatuagens tribais;
compreender e interpretar a função do imaginário na mediação temporal do in-
consciente coletivo; estabelecer conexões entre narrativas, motivações e significa-
dos emocionais. A pesquisa é descritiva, compreensiva, na consideração das nar-
rativas, memórias e significados emocionais do corpo marcado. Uma retrospectiva
das práticas de marcar o corpo, enquanto fenômeno social recorrente, através da
memória iconográfica. Resultados esperados da pesquisa em andamento, trazer à
tona subjetividades e qualidades simbólicas das narrativas, motivações, significa-
dos emocionais do corpo marcado na dimensão da vida social e percepção do de-
sign emocional na elucidação dos impactos na autoimagem reflexiva, processos
de aceitação, rejeição e equilíbrio psicossocial na vida Pós-Moderna.
Palavras-chave: Corpo Marcado, Imaginário, Memória, Emoção, Tatuagem Tribal

Abstract/resumen/resumé
The marked body, narratives, motivations and emotional meanings, as a recurrent
social phenomenon, resignified in Postmodernity. It is the purpose of the research to
identify the marked body path through tribal tattoos; understand and interpret the
function of the imaginary in the temporal mediation of the collective unconscious;
establish connections between narratives, motivations and emotional meanings.
The research is descriptive, comprehensive, considering the narratives, memories and
emotional meanings of the marked body. A retrospective of body marking practices

1 Mestrado em Ciências Sociais - UFBA. Oficial de Projetos UNESCO. Profa. Universidade, do Estado
da Bahia-UNEB. Doutoranda Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais – PPGAVUFBA. anahilde-
mariaalmeida@gmail.com
2 Doutorado em Arquitetura e Urbanismo Universidade de São Paulo – USP. Pós-doutorado em De-
sign PUC-Rio. Profa. UNEB. Profa. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais UFBA PPGAV. suzi-
marino@gmail.com

903
66
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

as a recurrent social phenomenon through iconographic memory. Expected results of


ongoing research, bring to light subjectivities and symbolic qualities of narratives, mo-
tivations, emotional meanings of the body marked in the dimension of social life and
perception of emotional design in elucidating the impacts on reflective self-image, ac-
ceptance processes, rejection and psychosocial balance in postmodern life.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: Body Marked, Imaginary, Memory, Emotion,
Tribal Tattoo

Corpo Marcado um fenômeno social recorrente


O corpo marcado é um fenômeno social recorrente no trajeto da humanidade. As
motivações e emoções foram ressignificadas desde o século XVI na retrospectiva
das inquisições, torturas, escravagismo, castigos, dominação, até a pós-moder-
nidade na estética, autoimagem, modismo, sensualismo, revolta. As motivações,
significados e emoções se transformaram, o imaginário coletivo estabelece co-
nexões, mediações temporais, memória e ancestralidade. Este artigo, apresenta
uma etapa da pesquisa em andamento, desenvolvida para tese de doutorado em
Artes Visuais - UFBA. Tem como objetivos principais, identificar o corpo marcado
no trajeto humano, as tatuagens tribais em diferentes culturas; compreender e in-
terpretar a função do imaginário na mediação temporal do inconsciente coletivo;
ressaltar fragmentações e ressignificações do processo de civilização; estabelecer
conexões entre narrativas, motivações, significados emocionais no trajeto huma-
no à pós-modernidade.

A pesquisa de campo investiga nesta retrospectiva para elucidar o jogo da vida, an-
corada na pesquisa arqueológica das marcas e similitudes foucaultiana, no entendi-
mento do cotidiano que abre espaço para o deixar ser e fazer nas múltiplas identifi-
cações, o viver na contemporaneidade da ótica maffesoliana e no design emocional
que explica o impacto destas emoções na autoimagem reflexiva, entender enfim a
perspectiva desta dimensão social vivenciada na pós-modernidade.

Busca, ainda, compreender a dimensão emocional da tatuagem tribal, a partir das


experiências comportamentais, numa percepção tríade: os que usam - amam; os
que recusam - odeiam e os que aplicam - tatuadores, como os três manifestam emo-
ções através das narrativas, motivações e significados.

A palavra tatuagem, de origem indígena, vem do som de bater a agulha na pele, som
das marteladas que perfuram a pele, numa cacofonia. Sendo animistas atribuem
alma a tudo, animais, árvores, rochas, rios. Acreditam que suas próprias almas são
independentes, partem quando querem. Assim, a função da tatuagem é manter a
alma em seu corpo e atrair bons espíritos para trazer sorte (vídeo Mentawai 2012).

904
67
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Tatuagem tribal no imaginário coletivo: similitudes, autoimagem reflexiva


e equilíbrio psicossocial
A pesquisa apoia-se na sociologia compreensiva de Maffesoli (2007), novo paradig-
ma nas pesquisas sociais, inclui tanto elementos da razão quanto das subjetividades
como emoção e imaginário. Na reflexão das variações sobre o imaginário pós-mo-
derno questiona incisivamente: o advento da internet, a volta das tribos, dos corpos
tatuados, perfurados, é uma nova barbárie? Não. Responde ele mesmo, “é um pro-
fundo ritmo da vida, é preciso celebrar o mundo tal como é, pelo que é. Deixar de
julgar. Um fato é um fato. Não há o que negar ou renegar.” (MAFFESOLI p. 9-21) Assim
discute pós-modernidade, do eu ao self, osmose com o outro e imaginário coletivo
nas múltiplas identificações. Toma como base de reflexão a força poética do símbo-
lo, não tem que haver lógica ou fatos, mas a memória dos arquétipos, as estruturas
antropológicas, inspirado em Durand, moldes não estáticos, subjetividades e intima-
ções objetivas, trajeto antropológico, força da imagem e símbolo:

“O símbolo é a recondução do sensível, do figurado ao significado, é inacessível, é


epifania, ou seja aparição do indizível [...] A imagem simbólica é a transfiguração de
uma representação concreta através de um sentido para sempre abstrato. O símbolo
é, portanto, uma representação que faz aparecer um sentido secreto, ele é a epifania
de um mistério” (DURAND, 1988, p.14-15).

Maffesoli discute inconsciente coletivo como “arquétipos de comunhão”, teoria da


forma, ilustrações de pregnância, força e vigor, aquilo que nos remete a fascinação
dos arquétipos:

“Na pós-modernidade vivemos em osmose com a alteridade, a disponibilidade para


o outro, a partilha das emoções, o deixar ser”[...]Vivemos a experiência de múltiplas
identificações o ser é plural, não ser mais um eu, de identidade tipificada e limitada,
mas perder-se num conjunto mais amplo, para viver o prazer da fusão e da confusão,
a exemplo das histerias desportivas, a expressão antiga de anima mundi, uma alma
comum” (MAFFESOLI, 2007, p.110).

Na compreensão que o indivíduo é relação na pós-modernidade, não se vive mais a


consciência individual, mas a consciência da relação, mais que um. É a relação que
dá consistência ao individual. Afirma, somos produto de herança sociocultural, cos-
tumes, tradições, efervescência das figuras arquetípicas na vida social, somos repre-
sentações históricas. Essa popularização das pinturas e tatuagens no corpo eviden-
ciam herança tribal, intermediação do imaginário social. A volta ao ponto original,
concepção holística da vida social, adesão aos totens coletivos, um perpétuo devir, o
nomadismo existencial como expressões inconscientes, mas não menos reais, uma
nostalgia da totalidade. Somos resultado do conhecimento comum, só somos al-
guém ou alguma coisa porque o outro nos reconhece como tal. A consistência da

905
68
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

pessoa é determinada pela comunidade em que se situa, figuras emblemáticas e


diferentes totens ao redor dos quais nos agregamos. Considera tribalismo uma ca-
racterística cultural que traz em si identidade, concretizando-se em totem, ou em-
blema, a exemplo da tatuagem, no imaginário coletivo, cujo resultado mais caro ele
denomina “cimento social” um fazer parte, partilhar, que protege do sentimento de
solidão, imaginário instaurativo, passagem da identidade individual para as identi-
ficações múltiplas:

“A aquisição de identidade era até agora o ápice da educação, o apogeu da socia-


lização. Mas nós assistimos agora à passagem da identidade para as identificações
múltiplas. É essa passagem que me parece fundar o nascimento; talvez seja melhor
dizer o renascimento de formas tribais de existência” (MAFFESOLI, 2001, p. 28).

Então, somos um mundo imaginal na apresentação das coisas, experiência pessoal e


coletiva, há uma poética transcendental no inconsciente individual e coletivo. Neste
sentido, Maffesoli dialoga diretamente com os estudos da arqueologia humana de
Foucault (1966) onde “a ordem das coisas” é baseada no princípio da semelhança e
na indistinção entre as palavras e as coisas. A representação é usada como repetição:
teatro da vida ou espelho do mundo, a maneira de anunciar-se e de formular o di-
reito de falar. “Análises daquilo que se assemelha: [...] na vasta sintaxe do mundo, os
diferentes seres se ajustam uns aos outros; a planta comunica com o animal, a terra
com o mar, o homem com tudo que o cerca. A semelhança impõe vizinhanças que,
por sua vez, asseguram semelhanças” (FOUCAULT, 2000, p. 24).

É o jogo do mundo. As semelhanças como linha de análise e compreensão do mun-


do, onde se desenvolve a descoberta das semelhanças as assinalações: conveniên-
cia/emulação/simpatia/duplicar-se/refletir-se/ encadear-se para assemelhar-se, mas
é a marca que liga o visível para chegar ao invisível:

“Ora, que outra marca existe de que duas coisas estão encadeadas uma à outra se-
não que elas se atraem reciprocamente, como o sol e a flor do girassol? senão que
entre elas há atração e simpatia? As semelhanças exigem uma assinalação [...] ne-
nhuma dentre elas poderia ser notada se não fosse legivelmente marcada o conjun-
to de marcas que fecha o circulo das similitudes” (FOUCAULT 2000, p. 38-39).

Foucault (1996) estuda a ordem das coisas na natureza, o jogo do mundo é um jogo
dos signos, das semelhanças, fecha-se sobre si mesma, segundo a figura redobrada
do cosmos. Por toda a parte há somente um mesmo jogo, o do signo e do similar, é
por isso que a natureza e o verbo podem se entrecruzar ao infinito, formando, para
quem sabe ler, como que um grande texto único.

A tatuagem é uma linguagem emocional. Uma prática de marcar no corpo as experi-


ências emocionais da vida, verificável em todo trajeto humano. Seguimos a percep-
ção do design, a partir da década de 1990, como novo campo de pesquisa. Analisa

906
69
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

a dificuldade conceitual de emoção que traz em si a imanência da subjetividade,


diversidade multicultural, quando não é bem aplicado incorre nas inconsistências
da pesquisa. Em busca dessa mensuração adotamos aqui a percepção do design
emocional em Norman (2004), cuja análise parte da pergunta simples “por que dese-
jamos um produto e odiamos outro?” Nesta equivalência, por que escolher marcar
o corpo com tatuagem, enquanto outros odeiam esta prática?

Segundo Norman (2004), design emocional desenvolve abordagens em três níveis


do processamento das emoções. Primeiro nível visceral, resultado da percepção di-
reta, a própria natureza de ser, diretamente ligado à percepção dos sentidos, odor,
sabor, frio, quente, claro, escuro, sons e ritmos, sensibilidades a toques, carícias sen-
suais, entre outros, resultando situações de conforto/desconforto, sensações positi-
vas/negativas, considerando diferenças culturais, mas sempre respostas emocionais
espontâneas e automáticas. Segundo nível, comportamental, mental, vinculado ao
uso em si, usabilidade, isto é, facilidade, praticidade em relação a forma, espaço e
fisicalidade que aciona percepções cognitivas/cerebrais e controlam comportamen-
tos cotidianos. Terceiro nível, reflexivo/contemplativo do cérebro, resultado pensa-
mento consciente, em maior amplitude porque abrange significados, cultura e men-
sagem, trabalhando essencialmente autoimagem e memória.

Corpo Marcado: tatuagem tribal, multiculturas, emoções e significados


Consideramos o estudo da tatuagem indígena tribal importante forma de entender
a formação da cultura brasileira. Porque somos índios, prioritariamente, é nossa ori-
gem étnica. Indígena é a primeira população do Brasil, sobre este fato histórico não
paira discussão. O processo de colonização, navegações marítimas, invasões e guer-
ras trouxeram a mestiçagem em outras etnias, mistura racial indígena com povos
de outras nações, negros da África, portugueses, entre outros europeus, isto é ser
brasileiro (RIBEIRO.1998).

Figura 1 – Índios Amazônia: Asurini e Matis. Fonte: FUNARTE (1985).

907
70
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

É consenso entre pesquisadores historiadores, antropólogos e sociólogos, que tatu-


ar o corpo tem origem nos povos indígenas. A divulgação da tatuagem é creditada
aos marinheiros, em contato com diversas tribos, sempre retornavam tatuados das
viagens. O cinema também contribuiu nesta popularização, exemplo do filme “Ve-
lho Oeste” (1960) conflitos entre Apaches, intenso bangue-bangue, em típico faro-
este, western.

Os Índios usam tatuagem com motivações diversas, código social, forma de comu-
nicação internamente na aldeia, entre aldeias, para estabelecer relação com a na-
tureza, espíritos e antepassados. Ou, ainda, memória e celebração de eventos im-
portantes funerais, guerras, rituais religiosos, casamentos, nascimentos, caça, pesca,
proteção contra maus espíritos, agradecimento das graças divinas recebidas. A tatu-
agem indígena configura linguagem emocional com sofisticado código social.

A humanidade é herdeira do saber indígena. A tradição alimentar, conexão com a


natureza, descobertas do princípio ativo vegetal, crenças, rituais, pintura e corpo
marcado com tatuagens. Este patrimônio não é suficiente para a preservação indí-
gena, ameaças, extermínio,

vulnerabilidade. A FUNAI divulga vídeo (2018.10.25) com sobreviventes de tribo,


isolados, com a “Survival International” (ONG) registrando cerca de 100 aldeias no
mundo, maior parte vive América do Sul e outros países amazônicos. No Brasil en-
contra-se maior número dessas tribos, em Mato Grosso, Rondônia e Acre. Antes das
primeiras caravelas portuguesas eram milhões de habitantes. O extermínio é fato
frequente, sempre lutas por domínio/defesa de terras. Outros sobreviventes em ris-
co na Ásia, Indonésia, Índia, Península da Malásia.

Stuckert e José Carlos Meirelles, fotógrafo e funcionário da Fundação Nacional do


Índio (Funai) durante 40 anos, relataram à BBC Brasil sobre os indígenas isolados que
vivem na região das selvas, próximo à fronteira do Peru:

“Eles estão usando ferramentas de metal por um longo tempo. Elas já são prati-
camente parte de sua cultura. Elas permitiram que eles limpassem grandes ex-
tensões de floresta para expandir a produção de alimentos [...] Uma vez que seu
território é invadido por madeireiros, garimpeiros, os grupos isolados estão aca-
bados [...] Eles poderiam desaparecer da face da Terra, e nem sequer saberíamos”
(MEIRELLES, 2016).

Não há registro de grupo indígena fora dessa mesma tradição, defesa da terra, co-
nexão com natureza, pintura e tatuagem no corpo, aplicadas com tintas extraídas
da natureza, exemplo da tinta cor azul do jenipapo, preta, cinza do pó do carvão,
cor branca do calcário e cor vermelha do urucum, de maior destaque simbólico em
conflitos e rituais, comum nos grupos indígenas.

908
71
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Figura 2 – Urucum, vegetal que os índios extraem tinta vermelha para marcar/tatuar o corpo.
Fonte: Foto autor (2019).

A pena vermelha, pintada ou tatuada, indica vitória plena sobre o inimigo, são amu-
letos de proteção na transição dual entre mundos espiritual e terreno, para a tribo
Apache, índios norte-americanos. Usam penas como principal símbolo de honra, co-
ragem, orgulho e hierarquia social. O tamanho e cor da pena indicam status no grupo.

Figura 3 – Apache, índios norte-americanos. Fonte: Wikipédia (2019).

909
72
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

A cor vermelha marca a expressão da mulher indígena de papua Nova Guiné, destacada
na projeto fotográfico de Alexander Khimushin, The World In Faces, que viaja o mundo
em busca formas ancestrais de vida, com memória e tradição ameaçadas. Nas previsões
oficiais, 50% a 95% dessas línguas do mundo desaparecerão até o final deste século.

Figura 4 - Mulher indígena Papua Nova Guiné. Fonte: Hypeness

Para a tribo Maori, Nova Zelândia, tatuagem não é uma questão estética, significa
mérito, cujo valor é indicado pela parte do corpo tatuada, rosto e mãos são os luga-
res de maior nobreza e respeito dentro da tribo.

Figura 5 – Tatuagem Maori Nova Zelândia. Fonte: Wikipédia (2019).

910
73
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

O Xamã Mentawai nas selvas indonésia, usa tatuagem para manter contato com os
espíritos de seus ancestrais. Os homens Mentawai são cada vez mais tatuados em
todo corpo, são linhas no corpo, braços, nádegas, pernas como teias de aranha (ver
figura 6 e 7). A tatuagem está intrinsecamente entrelaçada em suas crenças espiritu-
ais. As linhas representam folhas, videiras, flores.

Figura 6 – Tatuagem, Índios Mentawai. Fonte: Wikipédia (2019).

Figura 7 – Técnica de tatuagem Mentawai, marteladas no prego preso à barra de ferro.


Fonte: Wikipédia (2019).

911
74
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Essa luta de sobrevivência indígena, quase solitária, o corpo marcado em tatuagem,


preservado no processo de civilização até a sociedade contemporânea, funciona
como fantasma do imaginário coletivo que justifica estudos e pesquisas, enquanto
tradição das motivações, memória, emoções, significados dessa herança da huma-
nidade.

Essa situação do massacre e extermínio indígena para domínio das terras é tão anti-
ga quanto a humanidade, em quase todos países, sem conseguir ser assumida como
prioridade seja por governos ou por movimentos sociais, a não ser muito recente-
mente por pesquisadores ou movimentos de pouca notoriedade e mesmo assim nas
últimas décadas, depois de longo e devastador extermínio da população dos índios.
Uma reação internacional e recente a esta situação, envolvendo diferentes países foi
movida pelas Nações Unidas através da UNESCO – ONU (2019) com a disponibiliza-
ção de 92 produções audiovisuais do Festival de Cinema Indígena Online, com abor-
dagem da diversidade linguística e cultural indígena da América Latina e Caribe, o
objetivo é contribuir para a preservação da diversidade indígena, no enfrentamento
das ações contínuas de ameaças de sua sobrevivência.

Os filmes foram feitos por diretores de diversos países, entre eles Argentina, Bolívia,
Brasil, Colômbia, Chile, El Salvador, México e Peru. Os principais assuntos abordados
foram meio ambiente, educação, consumo sustentável, preservação do patrimônio
cultural e natural, e o empoderamento das mulheres indígenas. Somente no Brasil,
atualmente existem mais de 150 línguas e dialetos indígenas. A triste notícia é que
as línguas nativas de tribos indígenas estão entre as mais ameaçadas de extinção
no mundo, dado que nos relembra a importância de manter este legado. Diversas
destas línguas estão presentes no acervo, disponível no youtube com legendas em
inglês e espanhol. Preservar este patrimônio é preciso e mais do que isso, é urgente
(Hypeness, por Gabriela Glette, 2019).

Figura 8 – Criança indígena, ameaçada de extermínio, herança da . Fonte: Hypeness (2019).

912
75
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

A tatuagem tribal na ressignificação da pós-modernidade


Os dados da memória iconográfica na retrospectiva do corpo marcado, seguido do
trabalho de campo, coleta e seleção da tatuagem tribal na contemporaneidade,
compõem o corpo de dados da pesquisa, para análise e interpretação das principais
variáveis: narrativas, significado e motivações emocionais. Quem escolhe tatuar o
corpo, quem rejeita e quem faz tatuagem, na expectativa que tragam à tona ele-
mentos da subjetividade humana, nessa nova dimensão da vida social contemporâ-
nea. Isto é, o processo de ressignificação do corpo marcado.

O esperado é que o entendimento do imaginário coletivo e do design emocional tra-


gam elucidação e consciência dos impactos na autoimagem reflexiva, nos processos
de aceitação, rejeição para um equilíbrio psicossocial na vida pós-moderna. O pro-
pósito não é o design controlar emoções da pessoa, mas estudar a projeção expres-
sa nas narrativas e significados que identificam a imagem, que diferentes emoções
motivam decisões e organizam símbolos, na consideração que tatuagem é emoção:

As marcas na pele é um processo muito doloroso. Os Mentawai acreditam que se


um Xamã se protege, todos devem ter este proveito e se tatuar também. Mas as ta-
tuagens se distinguem. Quais tatuagens pertencem ao Xamãs e quais pertencem as
pessoas comuns, assim os símbolos e tradição social entre eles permanecem intacta
(MENTAWAI, 2012).

Na reflexão da teoria do imaginário, que estabelece a mediação temporal, o proces-


so de civilização é contínuo, sem fragmentações, ou, ainda, como propõe Damásio
(2017) que toda força criativa e inovadora humana, é disparada dos sentimentos - de
dor, sofrimento ou prazer, em que se resumiria o background humano de criações,
crenças e práticas, a que chamamos cultura.

Para assegurar consistência da análise, a pesquisa está ancorada em diferentes


acepções teóricas, mensuração e abordagem das subjetividades emocionais como
blindagem aos riscos de inconsistência, expectativa enfim, que a interpretação dos
dados possa contribuir na compreensão dos processos de convivência na espaciali-
dade social da vida pós-moderna.

Considerações finais
O pressuposto básico da pesquisa é tatuagem como expressão emocional. Aquilo
que toca na pele aciona contextos emocionais, seja na relação do prazer, dor, identi-
ficação, status ou ainda aceitação, rejeição. Este universo se acondiciona em narrati-
vas, significados e emoções.

A tatuagem é equilíbrio psicossocial. Segundo depoimentos já coletados no pro-


cesso da pesquisa, pessoas identificam mudanças nas relações sociais, menos fuga,

913
76
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

mais coragem e determinação, autoconfiança. Libertaram-se de práticas inibidoras


do desenvolvimento pessoal como álcool, drogas, depressão e isolamento, resul-
tando em fortalecimento de novos propósitos e conquistas, autoestima, espaço e
pertencimento social.

O corpo tatuado é um totem tribal. Um emblema que reúne marcas e similitudes,


um laço funcionando como ‘cimento social’. Reúne pessoas que se reconhecem em
identidades múltiplas, processo, conexão do imaginário coletivo, busca de si e do
outro, osmose e autoimagem reflexiva. Um novo jogo de viver, deixar ser e deixar
fazer, interação e agregação, isto é, inclusão social.

Tatuagem tribal é voz indígena, memória, imaginário, emoção. Consciência e reco-


nhecimento, preservação do significado cultural de origem e, no Brasil, resgate do
principal elemento étnico, herança indígena.

Referências
DURAND, Gilbert. A Imaginação Simbólica. São Paulo: Cultrix, EDUSP, 1988.

FOUCAULT. Michel. As Palavras e as Coisas, uma arqueologia das ciências humanas.


São Paulo: Martins Fontes, 2000.

MAFFESOLI Michel - O ritmo da vida: variações sobre o imaginário pós-moderno. Rio


de janeiro: Record, 2007.

_______. O imaginário é uma realidade. Revista FAMECOS mídia, cultura e tecnolo-


gia, no 15, agosto 2001.

MEIRELLES, José Carlos. Entrevista a BBC – Brasil. 22.12.2016.

NORMAN, Donald. Design Emocional. Rio de Janeiro: Rocco. 2004.

RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório, etapas da evolução sociocultural. São Paulo:


Companhia das Letras, 1998.

https://vivimetaliun.wordpress.com/2015/09/22/os-10-maiores-povos-indigenas-
-do-brasil/acesso 26.06.19.

https://vivimetaliun.wordpress.com/2018/10/25/ultimo-sobrevivente-de-sua-tribo-
-indio-aparece-isolado-em-video-feito-pelafunai/acesso26.06.19.

https://www.tattooja.com.br/tatuagens-de-indiosacesso 26.06.19.

https://www.google.com/search?q=indios+brasileiros+tatuados&tbm=isch&-
source=iu&ictx=1&fir=xknHoll_K3Fy5M%253A%252ChujZ2jH4QuItKM%252C_&-

914
77
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

vet=1&usg=AI4 acesso26.06.19. kQoPCtN6ooj2TVEoJEpLicZDl34PA&sa=X&ve-


d=2ahUKEwj2m9HEuorjAhXQGLkGHdfZBBsQ9QEwAHoECAQQBA#imgrc=xknHoll_
K3Fy5M: acesso em 27.06.19.

https://www.google.com/search?q=indio+apache&tbm=isch&tbs=rimg:Ce9XN-OH-
ZhgtIjhN2isIkPuywH6vUAUIl_1mct3xsYI-vrJKyESFueziYMqsK8Za6KXn7H4ygUSwU-
V1voeBH6-pm-9ioSCU3aKwiQ-7LAESxBrQ-r4cfNKhIJfq9QBQiX-ZwRi0pffFVsM4M-
qEgm3fGxgj6-skhFJnsxRlOUw8CoSCbIRIW57OJgyESdS03PVUzvxKhIJqwrxlropefs-
RiEwXHRURZ2EqEgkfjKBRLBRXWxFAmdgLpTsJlioSCeh4Efr6mb72EXm6bbek_1Wj-
g&tbo=u&sa=X&ved=2ahUKEwiO3om4w4rjAhVCHrkGHbRvCUYQ9C96BAgBEBs&-
biw=1440&bih=762&dpr=1#imgrc=ed084eRhFSe1eM: acesso 28.06.19.

https://www.google.com/search?q=mentawai+indio+tatuado&tbm=isch&sour-
ce=iu&ictx=1&fir=UXinZ7cWTXMNeM%253A%252C92k_MIq04emiBM%252C_&ve-
t=1&usg=AI4_-kQfeumIzDajvbEE8ZnRGjSNLABsLQ&sa=X&ved=2ahUKEwihrLTLyor-
jAhXfGbkGHepaCS4Q9QEwA3oECAYQCg#imgrc=2vF2TCM_K66lLM:&vet=1 acesso
28.06.19.

https://www.tattooja.com.br/tatuagem-maori-guia-definitivo acesso 08.08.19.

https://vivimetaliun.wordpress.com/2018/03/30/mais-de-100-tribos-isoladas-ain-
da-existem-no-mundo-todo/ acesso em 11.08.19.

https://www.hypeness.com.br/2019/07/unesco-disponibiliza-gratuitamente-92-fil-
mes-sobre-a-cultura-indigena/?utm_source=facebook&utm_medium=hypeness_
fb&fbclid=IwAR1prs-ZAMqlgAiVqeaMTLqfLl1cba9Kv70sMAMUC5EWwWPOAaB_
nbHJSp4 acesso em 15.08.19.

https://www.hypeness.com.br/2019/06/ele-viajou-o-mundo-nos-ultimos-10-anos-
-fotografando-povos-nativos-de-diversas-localidades/ acesso em 20.08.19.

915
78
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Ana Mansur de Oliveira1 and Celso Pereira


Guimarães2
Espaços pictóricos da palavra: uma proposta de investigação
filosófica
Pictorial spaces of the words: a proposal of a philosophical investigation

Resumo
Essa pesquisa busca investigar as possibilidades pictóricas da palavra, por meio
da análise de obras da artista plástica brasileira Marilá Dardot, seguida da ela-
boração autoral de imagens que também trabalham com o potencial da visu-
alidade de construções gramaticais. Por meio principalmente do referencial bi-
bliográfico de Walter Benjamin, foi aplicada uma metodologia de análise que
também apresenta elementos para estratégias processuais, integrando caracte-
rísticas como a justaposição e a descontinuidade. Com essa pesquisa, busca-se
abrir caminhos para investigar se os preceitos estudados pelo filósofo podem
articular contribuições ao projeto pictórico da palavra, fertilizando a compreen-
são dos processos criativos da contemporaneidade.
Palavras-chave: filosofia da arte, processo criativo, experimentações

Abstract
This research seeks to investigate pictorial possibilities of words through the analysis
of works by brazilian plastic artist Marilá Dardot, followed by the authorial elabo-
ration of images that also work with the potential of the visuality of grammatical
constructions. Mainly through Walter Benjamin’s bibliographic reference, an anal-
ysis methodology was applied that also presents elements for procedural strate-
gies, integrating characteristics such as juxtaposition and discontinuity. With this
research, we seek to open ways to investigate if the precepts studied by the philoso-
pher can articulate contributions to the pictorial project of the word, fertilizing the
understanding of contemporary creative processes.
Keywords: philosophy of art, creative process, experimentation

1 Professora Adjunta da Universidade de Brasília. Docente colaboradora do Programa de Pós-Gra-


duação em Design da UnB, é doutora em Teoria e Experimentações da Arte pela UFRJ. Desenvolve
pesquisas sobre práticas criadoras contemporâneas, filosofia e poética da imagem, relações entre
texto e visualidade e interlocuções entre arte, design e tecnologia. Contato: anamansur@gmail.com.
2 Professor Titular da UFRJ. Docente do curso Comunicação Visual Design e do Programa de Pós-Gra-
duação da Escola de Belas Artes da UFRJ, é Doutor pela COPPE/UFRJ. Contato: celsopg@acd.ufrj.br

916
79
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Apresentação
Projetar os atributos visuais do texto considerando o espaço como agente estrutural
é um gesto criativo prolífico, que encontra eco tanto no campo das artes quanto do
design. Essa pesquisa tem como objetivo compreender o desafio de não abdicar das
virtualidades da palavra ao mesmo tempo em que se utiliza os recursos da comuni-
cação não-verbal para buscar uma estrutura que possa vir a traduzir uma linguística
particular. Os projetos que estabelecem um diálogo do material gramatical com re-
cursos de visualidade resultam em composições que tanto podem complementar
como serem complementadas pela lógica semântica.

Para o filósofo e ensaísta alemão Walter Benjamin (1892-1940), existe um risco de


excesso de contaminação ao se procurar circunscrever a descrição dos processos e
objetos por meio de análises que busquem excessivamente a precisão.

A investigação conduzida por essa pesquisa busca restaurar parte dos preceitos
estudados pelo autor, para em seguida estabelecer um diálogo com determina-
das obras da artista plástica brasileira Marilá Dardot, que se desenvolvem a partir
da utilização de fragmentos de composições gramaticais. A parte final da pesquisa
apresenta o desenvolvimento de imagens que também trabalham com a palavra
como elemento pictórico. A reflexão empreendida por esse artigo trabalha no sen-
tido de compreender que as ferramentas de análise propostas pelo filósofo contém
diretrizes que podem impulsionar o processo criativo. Para Benjamin, é necessário
que o gesto intelectual de descrever as idéias não esteja atrelado a um desejo de
apropriar-se delas em excesso. Assim, incorpora a justaposição e a descontinuidade
como fundamentais à análise de obras de arte, por exemplo. A linguagem que se
desprende do referente, nesse caso, está relacionada à comunicação de conceitos,
de certa forma, espirituais. Assim, ao ampliarmos a compreensão do termo lingua-
gem, é imperativo estabelecer uma postura que busca investigar de que essência
espiritual ela seria a manifestação imediata. O paradoxo e ao mesmo tempo a com-
plementaridade entre essas duas essências é o ponto de partida para essa pesquisa.

A relação entre as essências espiritual e linguística traz a ideia de que toda linguagem,
em última instância, tem por fim comunicar-se a si mesma. O gesto humano de dar
nome às coisas, por exemplo, nos informa profundamente sobre o que seria a essência
espiritual do homem. Benjamin acredita que toda configuração linguística traz em seu
âmago o conflito do inespresso. É nesse reino do inexprimível que é possível se vislum-
brar a essência espiritual. A arte, dessa forma, se desenvolve por sobre o que seria esse
espírito das coisas, e não sobre a suposta supremacia da linguagem. Considerando que
o significado é impenetrável, resta à atividade artística propor então modos de significar.

Partindo dessa análise inicial, foi possível perceber que os ensinamentos de Benjamin
sugerem procedimentos para a análise que conduzem a uma atitude de imersão, por

917
80
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

meio da contemplação artística. Por outro lado, esse método pode ser utilizado tam-
bém como parte da compreensão e possível formulação de estratégias de produção
da imagem, que impulsiona a relação, por exemplo, do artista com o seu projeto da
palavra. Para tanto, foi compartilhado na fase final da pesquisa tanto o resultado da
confecção de imagens - que mesclam além do texto, fotografia e manipulação digital
- como seu respectivo processo de criação. Assim, é possível perceber algo que Benja-
min também atesta: uma zona de contágio entre as atividades do artista e do filósofo.
Se o artista parte do trabalho com a matéria do sensível para produzir imagens que
refletem o mundo das idéias, o filósofo apresenta o mundo, nas ideias, como imagens
(2009:158). Na elaboração das peças do ensaio imagético Lucidez, o objetivo foi se apro-
ximar do processo de produção sem buscar uma unidade objetiva, estabelecendo uma
relação autoral que descreve o mundo das ideias, sem no entanto apropriar-se delas.

Análise de constelações de sensação por meio da condução


da palavra no espaço
Grande parte das obras de Marilá Dardot trabalha com a palavra como elemento
pictórico. Os compostos sensíveis investigados pela artista mesclam fragmentos
de consciência com certa melancolia, ao se utilizar de um pictórico muitas vezes
delicado. Em “No silêncio nunca há silêncio”, ela constrói letras intercambiáveis por
quem vive a experiência. Nesta convocação que instiga a um movimento sem fim de
constante ocupação e desocupação do espaço, Dardot elabora um delicado sentido
poético, que em uma de suas camadas, pode comunicar: no enfrentamento da falta
reside o verdadeiro movimento.

Figura 01 – No silêncio nunca há silêncio (2003), de Marilá Dardot3

3 Reprodução da imagem autorizada pela artista

918
81
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Nessa pesquisa, o método de Benjamin mostra-se particularmente atual. O procedi-


mento do autor perfaz um mergulho no objeto até que, enfim, em sua estrutura, seja
revelada sua própria origem. Para Rouanet “a análise estrutural, através dos extre-
mos, desemboca na origem”4. Assim, através do exame dos particulares, aparecem
então as leis do todo, e este processo é deflagrado pelo próprio objeto, como no
caso dos vasos de Dardot: as próprias palavras, mas cheias de vida.

Na confecção das imagens apresentada ao fim desse ensaio, seguindo o raciocínio


metodológico de Benjamin, é possível perceber uma construção de sensações que
desdobram-se dentro da poética visível no que seria a primeira camada semântica
da palavra. Para o filósofo, o artista é aquele que

(...) não cria nada de novo, belo ou sublime; apenas recolhe os dejetos da civilização. Com eles,
porém, faz algo extraordinário: em sua arte, em sua poesia, forja uma verdadeira potência crí-
tica da cultura.5

Em diálogo com Benjamin, Rivera (2013:187), diz que não é possível comunicar a
essência do sujeito, mas transmiti-la, como em uma missão. Esse seria um papel tor-
nado possível pela arte. A partir da premissa que considera o lugar da falta como
inerente ao sujeito, o trabalho do artista pode ser visto como aquele que recolhe os
restos desse desejo, revestindo-o com uma espécie de manto sensível que transfor-
ma sensação em arte. Marilá Dardot mais uma vez desconstrói com delicadeza este
espaço fantasioso, em que se foge das suscetibilidades da vida como se elas repre-
sentassem a própria morte. Em “Pensamento do Fora”, placas singelamente dispos-
tas em um ambiente externo, que por sua cor e tipografia, indicariam que é proibido
pisar na grama ou a qual espécie determinada planta pertence, tratam de outros
assuntos. Dardot constrói aqui uma impossibilidade de silenciar o diálogo com o
Imperfeito, mesmo enquanto se desfruta de uma bucólica caminhada ao ar livre. A
todo momento, a vida parece sussurrar que “apesar de toda liberdade, continuamos
perdidos”, mas surpreendentemente, outras placas parecem mais otimistas: “seja rá-
pido, mesmo parado”. Em uma sucessão de textos-enigma, a artista nos direciona
para um caminho inesperado em um antes previsível enlace lúdico com a natureza.
Conduzidos pelo propósito-poético, o passeio adquire então nova magia, por meio
da experiência da linguagem.

Uma questão importante nessa análise é avaliar a potência da obra em carregar sua
própria crítica, ao invés de demandar o olhar de quem a experimenta. Rivera aponta
para o pensamento crítico que, ao invés de diagnosticar, passa adiante “a crise que é o

4 Benjamin, 1984:20
5 Rivera, 2013:181

919
82
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

próprio trabalho artístico”6, visão que se alia ao monumento não-nostálgico de Deleu-


ze. Para ele, a força da obra está em projetar-se no tempo, permanecendo. Ainda que
construa monumentos indeterminados, o artista traz o desejo de liberar a essência
vital escondida, e consegue então fazer esse ser de sensação existir por si. Marilá Dar-
dot e o chiffonnier de Benjamin fazem o mesmo: projetam o dilema da obra adiante.

Figura 02 – Pensamento do Fora (2002), de Marilá Dardot7

Em “Straight Line”, Dardot utiliza uma citação de Friedrich Nietzsche (1844-1900), all
that is straight lies, para compor uma obra com linhas de pesca presas por pregos
em uma parede. Essa frase traz em sua configuração semântica um propósito poé-
tico análogo àquele do ensaio Lucidez, na medida em que atesta a completa fraude
de tudo aquilo que se afirma sólido. As obras que estão dispostas na parte final da
pesquisa também se relacionam com a afirmação do próprio caráter transitório das
coisas como uma constante. Jogando com o que seria um suposto desejo das linhas
fluidas – que tem como território de ação o ar e a água – em permanecerem retas,
Dardot zomba delicadamente deste esforço, apresentando-nos como quase cômi-
co. Bachelard entende que “a imagem é sempre mais singular que a causa que lhe
consignamos”. Na parte prática dessa pesquisa, também foi mantido um estado de
alerta com o risco de se procurar uma causa para as imagens. Esse é o movimento
capaz de nos proteger da imitação e trazer a possibilidade da novidade, pois a arte
trava sua eterna luta com o caos, sem no entanto nos jogar por completo nele.

6 Rivera, 2013:197
7 Reprodução da imagem autorizada pela artista

920
83
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Figura 03 – Straight Line (2014), de Marilá Dardot8

A definição de Walter Benjamin também trabalha com a ideia de que do referente


se desprende sua própria linguagem, processo anterior à nomenclatura normativa
que o ser-humano insiste em operar. Para o filósofo, o fundamental é compreender
a essência linguística através do exame do que seria a essência espiritual do obje-
to. Porém, para que isso aconteça, é importante que ela esteja comunicável9. Uma
questão essencial da Linguagem é aceitar sua parcela de magia, já que é preciso
compreendê-la como imensurável. Uma vez que sempre pode ser renovada, precisa
se desprender do risco de se tornar superficial através do excesso de utilitarização,
ou seja, é necessário se afastar desse lugar meramente nominativo.

No processo criativo das imagens pertencentes ao ensaio Lucidez, foi importante


considerar que a própria busca do homem por normatizar em excesso as coisas da
vida transmite uma necessidade de estar sempre no controle. Em seus estudos so-
bre a Linguagem, Benjamin mostra que este desejo de circunscrever excessivamen-
te aquilo que o cerca é também uma expressão de seu próprio espírito. Ou seja,
a busca incessante por compreender o objeto como se fosse possível se apoderar
dele, é uma característica marcante nesse homem, e faz parte da própria essência
linguística que o caracteriza. Em uma tradução entre duas línguas, por exemplo, não
seria possível se fixar no desejo de encaixar artificialmente uma palavra em outra. O
trabalho prático que se segue considera também a incorporação da magia quando
do projeto da palavra. Para Benjamin, o modo de significar é o que importa, e não a
busca por uma espécie de significado puro. O original a ser representado seria um
organismo vivo, que por conta disso pode sempre renovar-se.

8 Reprodução da imagem autorizada pela artista


9 Muricy, 2009:105

921
84
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Compartilhando o processo: mapeando articulações sensíveis


O ensaio apresentado nesse tópico é intitulado Lucidez. São composições que mes-
clam texto, fotografia e manipulação digital. As frases que aparecem nas imagens
têm origem em um texto escrito pela artista. Após sua impressão digital, algumas
frases foram recortadas – com tesoura – de seu contexto original, para consituirem-
-se tiras de sensação. A partir daí, foi realizada uma montagem cenográfica do texto
no espaço, seguida da ação fotográfica – procurando dar conta de um espectro de
sensações variadas. Nesse tópico, são compartilhados aspectos do processo e da
materialidade das imagens, no sentido de mapear essa articulação sensível por meio
dos extremos do trabalho: início da reflexão e ação possível no mundo.

Parte dessa cartografia repercute junto a algumas das ideias de Walter Benjamin, para
quem existe uma diferença importante entre as dimensões simbólicas e utilitárias da
linguagem. As frases em questão no ensaio trazem em sua configuração semântica
uma rede de afetos que tende a ser extrapolada quando da articulação com outros
aspectos, não verbais. Para o filósofo, há que se ter cuidado com a dimensão utilitária
da linguagem, na medida em que ela apresenta potencial para criar conexões super-
ficiais com o referente. No entanto, o contrário acontece quando é possível resgatar à
vida o elemento simbólico da palavra, ao se empreender um gesto criativo que desliga
a primeira camada de significações semânticas. Para ele, “trata-se de despertar a for-
ça criadora que reside na dimensão nomeativa da linguagem – este despertar sendo
uma origem que instaura uma nova temporalidade”10. Partindo dessa concepção, o
modo de existir das ideias seria então análogo ao modo de ser das obras de arte – sua
existência é justificada por meio do potencial de serem contempladas.

A tarefa filosófica de restauração da “percepção original das palavras” não é retorno à origem, mas
evocação, na temporalidade própria das idéias, do paraíso perdido, como possibilidade de recu-
peração, pela nomeação, da primitiva força, capaz de criar imagens, da linguagem.11

Parte da essência do trabalho de Marilá Dardot e do ensaio Lucidez podem ser perce-
bidas através dessa premissa de Benjamin. Essa temporalidade específica das ideias
está além daquilo que o instrumental linguístico tem capacidade para circunscrever.
O artista da palavra, de certa forma, empreende uma ação tanto em processo quanto
em projeto que salva o conteúdo gramatical de abstrações puramente conceituais. O
mergulho artístico que resulta nessa materialidade particular da palavra busca trans-
cender o risco da empiria, concretizando uma materialização da forma que tem poten-
cial para resgatar as origens desses afetos, anterior a qualquer nomeação linguística.

10 Muricy, 2009:161
11 Muricy, 2009:163

922
85
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Assim, é possível compreender tanto o processo quanto o projeto de articulações


verbo-visuais da palavra por meio dessa citação de Benjamim, na medida em que
as obras podem ser compreendidas como substratos dispensados de algo que
já existe, mas foi resignificado. Na década de 1960, o psicanalista Jacques Lacan
apontou para a falta que acompanha o sujeito, e sua busca incessante por preen-
chê-la ao longo da vida. A partir de um objeto primordial perdido, o eu atualiza
repetidamente seu impulso de recuperá-lo, sem nunca conseguir de fato. Dessa
forma, estabelece-se o desejo que se relaciona com o propósito poético de Luci-
dez, aquele que permanece contínuo nas movimentações ao longo da vida, ainda
que substituindo esses objetos em constantes permutas. Esse objeto primordial
trata-se de

(...) um objeto qualquer, um objeto decaído. Indigno. Objeto desdenhado, caído, perdido, que
o artista não cria, propriamente, mas recolhe, como o chiffonier12 de Benjamin. Objeto capaz de
lembrar ao sujeito sua finitude e de retirá-lo da pretensão de se afirmar como dono dos objetos,
senhor do espaço e da representação, legítimo criador – ou supremo crítico.13

De maneira semelhante, a possibilidade de comunicar a essência das obras é pe-


quena, porém é viável transmiti-las, como em uma missão14. Esse seria um papel
materializado pelas obras compartilhadas nesse ensaio, que também podem con-
siderar a falta como inerente ao sujeito, e busca recolher os restos desse desejo,
revestindo-de uma tonalidade sensível, que celebra o imperfeito. É a torção da
linguagem que Deleuze identifica quando um objeto passa a se constituir arte.
A vibração e a ruptura que o artista realiza na linguagem arranca o percepto que
torna a obra viva e pulsante, conservando sua aura sensível para o futuro.15 Para
o autor, essa extração corresponde a tornar visíveis sensações ocultas que já po-
voam o mundo.

12 a tradução do francês para o português desse termo seria algo como “fofoqueiro”
13 Rivera, 2013:184
14 Rivera, 2013:187
15 Deleuze & Guattari, 1997:228

923
86
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Figura 04 – Imagens do ensaio Lucidez (2015), de Ana Mansur

O processo criativo das imagens do ensaio Lucidez procurou dar conta, entre outros
afetos, da concepção contemporânea de tempo, que desvaloriza tudo que é imóvel
para aderir-se a um eterno compromisso com o novo. Procurando estabelecer um di-
álogo com essa premissa – que atribui valor superior àquilo que ainda está por vir – as
tiras do papel estão pouco acrobáticas, mas cheias de luz. Pequenas diante do espaço
verde, nem por isso esmorecem. Como um enigma irônico, ainda são capazes de se
iluminar de vida. O trabalho com as tiras de palavras imersas em uma luminosidade
verde busca compreender como viva também a própria memória. A partir do entendi-
mento que a memória pode se constituir também como um ser de sensação, confor-
me estudado por Deleuze, não é necessário que o sujeito a acesse para que ela exista.
Rivera16 lança luz sobre a questão da memória como um gesto, por meio do qual o
sujeito comparece a esse lugar em que o tempo se embaralha. Para além da concep-
ção de mero arquivo, a memória é percebida como viva, um relâmpago de força sobre
o qual o sujeito não exerce controle. Ao se considerar a memória como mera recorda-
ção, seria mais fácil supor o domínio exercido pelo sujeito sobre as lembranças. Mas é
necessário aceitar esse limite humano que apequena a linguagem quando reluta em
incorporar sua dimensão mágica. Também para Freud, a memória não se resume a
imagem, percepção e palavra. Ao contrário, é composta por traços, que muitas vezes
não estão inscritos pelo sujeito. Essa visão, somada a de Benjamin, aproxima-se mais

16 Rivera, 2013:59

924
87
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

da reflexão, gesto que vai muito além da recuperação do conteúdo dos acontecimen-
tos propriamente ditos. Tem-se então a experiência vivida, lugar muito mais amplo e
fértil, especialmente ao utilizarmos estas idéias para dialogar com o campo da arte.
Esta concepção de Rivera – da memória como gesto – vem ao encontro da construção
desse ensaio, em que se busca não o resgate de uma memória rígida, mas sim o nave-
gar nesse devir de uma constante metamorfose.

Figura 05 – Imagens do ensaio Lucidez (2015), de Ana Mansur

Nas imagens acima, as tiras de papel aparecem libertadas de um suposto esforço


anterior, em que de alguma forma procuravam erguer-se do solo. Atestando a po-
tência de um rio que, apesar de caudaloso é singelo, a imagem apenas ilumina a
leveza do papel, sintonizando-se sobretudo com a transitoriedade da vida. Não é
um tom fatalista que está em jogo, muito menos missionário. Mas é necessário com-
por o papel esquecido ao vento esverdeado com a estrada reta de papel. Apesar
de tudo, é necessário que seja percebida a dimensão do movimento, pois é possí-
vel “descarregar pelo menos alguns benefícios no chão batido da vida”. Aquilo que
fica como substrato quando do encontro com a obra de arte, não depende mais de
quem a criou, nem tão pouco daquele que a experimenta. Pela auto-posição do cria-
do, esse ser de sensação fica em pé por si mesmo, enquanto durarem os materiais
que o constituem. Nunca comemorando um passado nostálgico que já não existe,

925
88
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

mas ao contrário, desejando projetar para o futuro todo o composto de sensações


que habita o acontecimento poético. É a coragem de torcer a linguagem fazendo-a
vibrar, que em nada se relaciona à percepção vivida ou ao afeto experimentado. A
experiência da arte desprende-se de qualquer traço de humanidade para trazer à
vida o propósito poético.

Elaborando este imaginal poético, acede um delírio que impossibilita o sujeito de


se reconhecer como incompleto e com limites. Quando Bachelard escreve sobre o
“Instante Poético e o Instante Metafísico”, realiza uma análise sobre o tempo daquele
que aprecia a imagem poética. Desta forma, o conceito de tempo relaciona-se com a
riqueza do instante, uma ideia que tanto pode ser linear quanto não cronológica. Há
um tempo que regula e organiza, porém, há um outro tempo, o do ser que se deixa
contaminar pela imagem que experimenta. Esse último não é mais o tempo suces-
sório, e sim aquele que obriga o espectador a fazer escolhas, no sentido de valorizar
ou desvalorizar aspectos daquilo que observa. Esta visão de um tempo não cronoló-
gico soma-se a ideia de que a verdadeira plenitude da existência está relacionada ao
prazer de experimentar o pensamento e de habitar a própria vida em sua dimensão
particular. Esse seria o lugar das realizações consistentes, e não aquele que é medido
através de eventos em linha sucessória, em um tempo cronológico.

A ideia do valor da ressonância de uma imagem com seu observador relaciona-se


apenas em parte com aspectos da memória pessoal de cada um, encontrando eco
no repertório vivido, o que caracterizaria então o vínculo com o tempo horizontal
e cronológico. No entanto, o conceito de repercussão é diferente, pois conecta-se
com um tempo não-linear. Como resultado, é estabelecida uma conexão sem que
o ser se dê conta de onde vem o magnetismo desta captura. Através dessa imagem
que repercute internamente junto àquele que a experimenta, ocorre o instante po-
ético que é objeto de análise e proposta de resgate dessa pesquisa, em que não há
mais o ser destacado do mundo. Independentemente do artista e do espectador, o
composto de sensações se conserva, mas não como um produto, pois esse ser de
sensação existe na ausência do homem.

Conclusão
Após a elaboração dessa pesquisa, foi possível perceber que traduzir o que seria
uma suposta linguagem das coisas para a linguagem humana não se trata apenas
da intenção de aplicar som ao que é mudo. Na verdade, o desafio é mais amplo,
pois se trata de uma tradução particular. O artista traduz, na verdade, aquilo que
não tem nome em nome, processo que inevitavelmente utiliza o conhecimento
humano sobre as coisas do mundo. Com relação à linguagem existente, para Benja-
min (2011:68), a palavra fornece apenas o solo no qual seus elementos concretos se
enraízam. Na arte, há uma tradução da linguagem das coisas para uma linguagem
infinitamente superior. É a ideia que importa, cuja essência é radicalmente diferente

926
89
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

da do conceito. Enquanto o último sacrifica a particularidade dos fenômenos, a ideia


se oferece à contemplação, ainda que apresente-se descontínua - ao contrário do
conceito, que se constitui a partir da utilização do conhecimento. Assim, com essa
pesquisa, espera-se contribuir para a ampliação dos limites entre arte, emoção e tec-
nologia, descortinando novos paradigmas criativos e impulsionando a percepção de
uma nova ordem das coisas, alinhada com as perspectivas da contemporaneidade.

Referências
BACHELARD, Gaston (2009). A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes

___________________, (1990). Fragmentos de uma poética do fogo. Rio de Janei-


ro: Brasiliense

BENJAMIN, Walter (2011). Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: 34

DELEUZE, Gilles (2007). Lógica da Sensação. Rio de Janeiro: Zahar

DELEUZE e GUATTARI (1997) O que é Filosofia? São Paulo: 34

FLUSSER, Vilém (2008). O Universo das Imagens Técnicas: elogio da superficiali-


dade. São Paulo: Annablume

____________________, (2007). O mundo codificado: por uma filosofia do design


e da comunicação. São Paulo: Cosac & Naif

HARVEY, David (2003). Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola

MURICY, Kátia (2009). Alegorias da Dialética. Rio de Janeiro: NAU

RIVERA, Tania (2013). O avesso do Imaginário: arte contemporânea e psicanálise.


São Paulo: Cosac & Naif

927
90
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Angela Raffin Pohlmann1, Reginaldo da


Nóbrega Tavares2, Diego Henrique Barboza3
and Geison de Lima Martin4
Aproximações entre artes visuais e engenharia eletrônica:
o desenho de placas de circuito impresso e o imaginário
na criação
Approaches between visual arts and electronic engineering: the design of printed
circuit boards and the imaginary in creation

Resumo
O objetivo do trabalho é aproximar as Artes Visuais e a Engenharia Eletrônica
através do olhar sobre a construção dos desenhos e trilhas das Placas de Circuito
Impresso (PCI), e sua relação com a Gravura em Metal. Os desenhos das trilhas
impulsionam a imaginação e o pensamento, tanto nos desenhos do circuito
como na elaboração de formas que podem ser associadas aos caminhos dese-
nhados. Apesar de sua natureza diversa, encontramos pontos de conexão entre
a imaginação presente nestas duas áreas de conhecimento.
Palavras-chave: Imaginário, desenho, gravação, circuito impresso, multidisciplinar.

1 Angela Raffin Pohlmann é artista plástica e professora Associada da UFPel; ministra disciplinas na
graduação e no Programa de Pós-graduação no Centro de Artes desta instituição. Pesquisadora PQ
do CNPq. Bacharel em Artes Plásticas; Mestre em Artes Visuais; Doutora em Educação pela UFRGS,
com Bolsa Sanduiche na Universidade de Barcelona, Espanha; Pós-doutora no PPG em Ciências Far-
macêuticas da UFRGS, com pesquisa em nanotecnologia para fabricação de materiais alternativos
não-tóxicos para a gravura.
2 Reginaldo da Nóbrega Tavares é professor da Universidade Federal de Pelotas. É formado em Enge-
nharia Elétrica pela PUC-RS, mestre em Ciência da Computação pela UFRGS e Doutor em Educação
pela UFPel.
3 Diego Henrique Barboza é graduando do curso de Licenciatura em Artes Visuais da Universidade
Federal de Pelotas.
4 Geison de Lima Martins é graduando do curso de Ciência da Computação - Universidade Fe-
deral de Pelotas e cursando Técnico em Desenvolvimento de Sistemas no Instituto Federal Sul-rio-
-grandense Câmpus Pelotas-Visconde da Graça. Desenvolve atividades de pesquisa e extensão em
projetos multidisciplinares. Trabalha com a criação de dispositivos artísticos interativos em projetos
multidisciplinares com artistas e engenheiros.

928
91
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Abstract
The objective of this work is to bring Visual Arts and Electronic Engineering closer
together by looking at the construction of printed circuit board (PCI) drawings and
tracks, and their relationship with Metal Engraving. Track designs boost imagina-
tion and thought, both in circuit designs and in shaping shapes that can be asso-
ciated with the drawn paths. Despite its diverse nature, we find connecting points
between the imagination present in these two areas of knowledge.
Keywords: Imaginary, drawing, recording, printed circuit, multidisciplinary.

Introdução
Este trabalho tem como objetivo abordar algumas aproximações possíveis entre as
áreas das Artes Visuais e da Engenharia Eletrônica, a partir do ponto de vista de nos-
sos projetos multidisciplinares, que envolvem um grupo composto por estudantes e
professores da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

Nosso trabalho se desenvolve através dos projetos e das pesquisa multidisciplinares,


desde 2012, com diferentes grupos que vão se modificando ao longo dos anos de
formação universitária. Contamos com estudantes da graduação e da pós-gradu-
ação, em trabalhos que iniciaram com a confecção de Placas de Circuito Impresso
gravadas no Ateliê de Gravura da UFPel, desenhadas para os mais variados projetos.
Entre eles, destaca-se o projeto de confecção de amplificadores que foram instala-
dos em uma Escola da rede pública de Pelotas, como parte dos projetos de extensão
das atividades do nosso grupo. Os projetos estão vinculados ao Grupo de Pesquisa
“Percursos poéticos: procedimentos e grafias na contemporaneidade” (CNPq/UFPel),
cujos líderes são os professores Angela R. Pohlmann e Reginaldo N. Tavares.

Os mesmos processos utilizados na gravação de matrizes de cobre para obtenção


das imagens na Gravura em Metal (processos esses que nos acompanham há mais
de 500 anos) são correlatos aos processos utilizados para a gravação das Placas de
circuitos eletrônicos. Além da similaridade nos processos de gravação, vemos tam-
bém o desenho como ponto de conexão entre os dois campos.

As trilhas desenhadas nas placas de circuito impresso podem servir de motivações


para o imaginário. As linhas nos fazem transitar por percursos que envolvem tempo,
espacialidade, forças, estruturas, ligações e podem originar novas passagens a con-
ceitos que permeiam nossos processos coletivos e nossas ideias no campo da criação.

929
92
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Imagem 1: Exemplos de quatro Placas de Circuito Impresso usadas


para chaveamento de LED. Fonte: o grupo

A ideia de estudar estes diferentes desenhos e, com eles, as diferentes soluções que
poderiam ser encontradas para o mesmo problema surgiu com as variações que
apareceram nos desenhos de circuito impresso para chaveamento de LED (Imagem
1). Estes desenhos fizeram parte de um processo didático de aprendizagem de dife-
rentes métodos de gravação de PCIs, e foram desenhados por quatro pessoas dife-
rentes, pertencentes ao grupo.

Estes quatro desenhos solucionam o mesmo problema: como interligar os compo-


nentes que fazem parte do chaveamento de LED. Cada participante do grupo ado-
tou um princípio construtivo diferente e chegou a soluções inusitadas, se formos
comparar as variações nas trajetórias das linhas obtidas em cada placa. Aqui, o foco
não está unicamente na funcionalidade da PCI, pois isto é imprescindível para o bom
funcionamento do aparelho a que se destina; ao contrário, nossa atenção se volta
para os desenhos, os caminhos percorridos, a geometria, a assimetria (ou não) de
linhas e formas, e as diferentes complexidades (ou simplicidade) encontradas.

Como poderíamos relacionar estas imagens de PCI com as questões que surgem e
com o que nos questionamos quando estamos no campo da Arte? Por exemplo, so-
bre a íntima ligação que existe entre quem desenha e o traçado que surge no papel?
Estas questões já faziam parte de nossas indagacões, ao pensarmos sobre o modo
como a ação de “fazer ‘aparecer’ imagens, na especificidade da experiência plástica
de operar traços, manchas, superfícies e volumes, reverberam no corpo e nos pro-
cessos de aprender a instaurar sentidos que significam a convivência?” (Pohlmann;
Richter, 2016, p.27). Aqui, na intersecção das artes visuais com a engenharia eletrô-
nica, seguimos com as mesmas perguntas, pois o que vemos surgir nas bancadas do
Ateliê 103 se parece com o trabalho que desenvolvemos no campo da arte, mesmo
quando estamos construindo Placas de Circuito Impresso.

Ao retomarmos as questões que procuram investigar “o poder ficional das imagens


plásticas”, junto com este movimento de aproximação das artes plásticas com a en-

930
93
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

genharia, reiteramos essa capacidade humana de se desenvolver nos processos de


“figurar imagens”, através dos procedimentos para torna-las visíveis. Mesmo que
estes componentes estejam encapsulados dentro de um aparelho que os cobrirá
completamenrte, ainda assim, eles fazem parte do processo de construção e de ela-
boração mental e concreta de trilhas, linhas, projetos, ligações e constelações.

Trabalhamos com a ideia de “constelar”, pois é disso que se trata. Como diriam, cons-
telar é desenhar com pontos no infinito. É olhar as estrelas, ligar os pontinhos e for-
mar uma figura. Conectar os componentes da placa, interligando os pontos, e desco-
brindo o melhor caminho para traçar as trilhas entre eles é um modo de “constelar”.
Cada um estuda o problema a seu modo, e, a cada vez, encontra uma resposta que
pode até mesmo ser diferente das soluções encontradas anteriormente, mas, sem
dúvida, serão diferentes das soluções desenhadas pelos colegas no grupo. A cada
novo desenho, uma nova ideia, e uma nova maneira de interligar os pontinhos.

Nos ensaios, nas tentativas e erros, nos esboços, nos projetos e rascunhos vemos as
tensões que reverberam o ato de criar e figurar imagens. O processo de criação é
similar num campo e noutro. E, mesmo sem a intencionalidade estética (que é mais
plausível ao campo da arte), encontramos nestes desenhos de circuitos uma série de
expressões individuais e modos de fazer muito íntimo a cada um. Se assim não fosse,
provavelmente teríamos uma única solução, e um único traçado para resolver aque-
le problema específico. Isso talvez seja da ordem de um programa de computador;
no entanto, aqui, o que encontramos são os desvios, as variações, as diferenças, as
oscilações que acompanham o ato de criar, de se indagar, e de figurar.

Desenhar Constelações
Ao desenhar as trilhas das placas de circuito impresso, o principal objetivo é “ligar os
pontinhos”. No sentido de estabelecer as ligações entre as diferentes partes que com-
põem o circuito. Conforme o número de componentes eletrônicos e a posição que cada
um ocupa no plano da placa (PCI), teremos uma infinidade de soluções possíveis. Trata-
-se de encontrar o melhor caminho, a melhor trilha, a melhor ligação entre eles. Neste
ato de “ligar os pontinhos”, damos início às projeções que acompanham o pensamento.

Para Flávio Gonçalves (2013, p. 102), “no plano conceitual, as constelações são um
exemplo de aliança entre o pensamento e a projeção”. Para Gonçalves, elas existem
em função desta possibilidade de designar uma forma que, ao apontar com o dedo,
transforma a imaginação em ato de significar. E ele segue: “as constelações são pro-
jeções mentais que permanecem tão imateriais na sua constituição quanto o nosso
pensamento” (Gonçalves, 2013, p.102).

Aqui, reinvindicamos a importância do gesto que é aquele que aponta as estrelas


para designar constelações e que é o mesmo gesto que aproxima o real, a coisa a

931
94
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

ser feita, e a paixão de descobrir um modo de fazê-la. Dar sentido ao que está sendo
produzido é parte intrínseca ao processo de criação, seja de uma gravura ou de uma
PCI. Não há como prescindir da mão e do corpo, do gesto, do olho, da imaginação e
das projeções possíveis de serem realizadas à medida em que o lápis percorre o pa-
pel. Os projetos darão origem às trilhas que, em momento posterior, serão gravadas
em percloreto de ferro. Tal como as linhas da “água-forte”, utilizaremos o poder do
líquido a corroer o metal (Imagem 2).

Imagem 2: “Água-forte” realizada sobre placa de fenolite. Fonte: o grupo.

Considerando esta inseparabilidade entre o gesto e a materialidade, ou entre o


corpo e a mundanidade, percebemos as interações na temporalidade simultânea
de convívio nos encontros das terças-feiras de tarde. Os percursos singulares são
exacerbados pelos atravessamentos de uns com os outros. As diferentes formações
pelos cursos de graduação a que cada um está ligado fazem com que sejam neces-
sários inúmeros deslocamentos de uns em direção aos outros. As linguagens devem

932
95
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

ser ajustadas, de modo a que todos possamos nos compreender. Tal como uma Torre
de Babel, as diferentes línguas percorrem as diferentes conexões também entre os
participantes do grupo. Nem sempre a comunicação se estabelece de modo unívo-
co; ao contrário, na maioria das vezes, é necessário parar, explicar, retornar ao ponto
anterior, dizer de modo diferente o que se estava tentando dizer para que as infor-
mações possam ser assimiladas e compreendidas.

Nas experiências de co-existência neste coletivo misto, nos implicamos em apren-


der a estar no mundo em uma nova linguagem, diferente daquela que havia sido
escolhida como prioridade em cada uma das formações acadêmicas escolhidas. Os
estudantes de Artes Visuais ou Design Gráfico reaprendem modos de operar e tra-
balhar diferentes daqueles que advêm de sua formação no curso de graduação, as-
sim como acontece com os estudantes de Engenharia Eletrônica ou de Engenharia
de Controle e Automação que participam dos projetos coletivos do grupo. Produzir
imagens, produzir artefatos, entender o funcionamento das linguagens grafico-plás-
ticas ou o funcionamento das linguagens de programação fazem parte das interlo-
cuções e das intersecções durante a criação dos projetos do grupo.

Intersecções entre arte e engenharia


Do ponto de vista das aprendizagens envolvidas, esta interação entre as artes visu-
ais e a engenharia eletrônica permite unir diferentes capacidades intelectuais, com
o objetivo de enriquecer o processo de entendimento de ambas as áreas, dando
espaço para uma relação integrada de compreensão das percepções envolvidas. Os
desenhos das trilhas das placas de circuito impresso (PCI) constituem-se como pon-
tos de partida para novas semioses ou interpretações nos projetos elaborados pelo
grupo multidisciplinar.

Nestes estudos, a geometria dos desenhos das trilhas é um meio de expandir o pen-
samento, tanto para o desenho do próprio circuito como para elaborar as formas
que podem ser associadas aos caminhos desenhados. Pontos, linhas, tensões, curvas
e formas geram hipóteses de ressonâncias recíprocas, que fazem parte tanto da ele-
trônica como da arte.

Ao desenhar, os dedos e a mão seguram um objeto capaz de riscar uma linha sobre
determinada superfície. Estávamos acostumados a empunhar um lápis ou uma ca-
neta, e rabiscar ou escrever sobre o papel ou o caderno. Atualmente, é cada vez mais
difícil nos acostumarmos com a escrita à mão ou nos readaptarmos ao uso do lápis
ou da caneta para riscar ou desenhar. O despreparo da mão é sentido pela falta de
prática que faz doer a musculatura desacostumada à tensão e à pressão necessárias
por longas horas para concluir a tarefa de desenho ou escrita. O computador, os apa-
relhos eletrônicos e utlimamente os celulares substituíram nossos modos ancestrais
de registro de palavras e imagens.

933
96
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Valores rítmicos, repetição de linhas paralelas, curvas sinuosas que nos fazem ter a
sensação de estarmos numa montanha-russa (Imagem 3), ou, por outro lado, uma
economia de traços ou, de outro, um labirinto. Em cada imagem, um mundo. Em cada
experiência, uma novidade. Em cada superfîcie, uma longa planície a ser percorrida.

Imagem 3: Placa de PCI realizada com linhas sinuosas. (Fotografia contra-luz,


pelo avesso da placa) Fonte: o grupo.

“Que grande território de sonho é uma planície de cobre”, como diria Bachelard
(1991, p. 74) sobre o “Tratado do buril” de Albert Flocon. Tal como uma cartógrafo,
vamos andando sem trazer na bagagem “mapas ou valores pré-estabelecidos”, mas
percorremos essa planície de cobre como “alguém aberto a percorrer e descrever
novos trajetos e caminhos que se apresentam como possíveis, munido de um olhar
de estrangeiro” (Prado Filho; Teti, 2013, p. 56).

Passo a passo
A metodologia do trabalho consistiu em projetarmos uma imagem sobre as placas
de cobre e fenolite e, a partir das linhas que constituem as trilhas, estruturarmos as
ligações dos componentes de acordo com as necessidades do circuito eletrônico.

934
97
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

As técnicas de transferência do desenho das trilhas pode variar e, inclusive, foram as-
sociados aos métodos tradicionais de gravura em metal e com métodos alternativos
de gravura não-tóxica. Uma parte das pesquisas do grupo está dedicada às conside-
rações sobre sustentabilidade energética e sustentabilidade na gravura, pensando
em métodos e materiais alternativos não-tóxicos para realização das gravuras em
metal. Então, faz parte dos nossos procedimentos implementarmos métodos alter-
nativos tanto para a gravação de placas que servirão como matrizes de metal, como
também para as placas que servirão como suporte de circuitos impressos (PCI).

Considerações finais
As linhas gravadas no metal são sulcos em baixo-relevo que refletem ou dissipam a
luz. Possuem ainda a capacidade de refletir o que está a seu redor, deixando aparen-
te por reflexo o que há de luz ou de sombra no ambiente em que estão sendo vistas.
Como uma matriz de uma gravura em metal, estas placas de PCI possuem imagens
latentes, que poderão ou não servir como ponte de ligação entre o que foi pensado,
o que foi executado e o que poderá ser produzido a partir de suas conexões. Elas nos
enchem de emoção, e suscitam viariações em sua apreensão pelo que são capazes
de presentificar. Estes impulsos nos gestos percebidos também podem direcionar o
próximo passo a seguir.

Os desenhos nos fazem redescobrir o mundo sensível. E, nos desenhos destas pla-
cas de circuito impresso (PCI), isso não acontece diferente. Elas também podem nos
mostrar a abertura, o encantamento, o inusitado e a variabilidade das informações
de cada uma delas. Simples, diretas, rebuscadas ou sinuosas, estas linhas gravadas
nos dizem um pouco sobre quem as criou. Sobre o pensamento de quem as criou.
Ou sobre sua imaginação em suas projeções.

Agradecemos ao CNPq pelo apoio às pesquisa que deram origem a este texto.

Referências
Bachelard, G. (1991). O Direito de Sonhar. Rio de Janeiro: Bertrand.

Gonçalves, F. (2013). Através. Revista-Valise, Porto Alegre, v.3, n.5, ano 3, junho de
2013, pp. 97-108. [Dossiê: O Desenho e seus percursos: desenho e transformação].

Pohlmann, A.; Richter, S. (2016). O poder ficcional das linguagens plásticas: afinidades
entre os processos de criação na arte e na pedagogia. In: Senna, N.; Silva, Ursula. (Orgs.)
Visualidade e cotidiano no ensino da arte. Goiânia: Gráfica da UFG, pp. 27-37.

Prado Filho, K.; Teti, M. M. (2013). A Cartografia Como Método para as Ciências Huma-
nas e Sociais. In: Barbarói, Santa Cruz do Sul, n.38, p.<45-59>, jan./jun.

935
98
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Irene de Mendonça Peixoto1


Sentido Poético e Forma Estética
Articulações contemporâneas entre arte e design
Poetic Sense and Aesthetic Form
Contemporary articulations between art and design

Resumo
Desde o início do século XX a primazia do vocabulário estético para analisar os
processos artísticos vem sendo deslocada para o discurso poético. Segundo Bo-
ris Groys, esse deslocamento ocorre porque cada vez mais nossas questões em
relação às imagens concernem à sua produção em vez de sua contemplação.
Situado nas fronteiras do design e das artes visuais, este artigo investiga as con-
sequências da consolidação dessa mudança de perspectiva quando ela coincide
com a emergência e o rápido desenvolvimento das mídias visuais combinadas
às plataformas de distribuição global pela internet, alterando, assim, a relação
estatística tradicional entre produtores e consumidores de imagens.
Palavras-chave: poética, estética, design, arte

Abstract
Since the early twentieth century, the primacy of aesthetic vocabulary for analyz-
ing artistic processes has been shifted to poetic discourse. According to Boris Groys,
this shift occurs because more and more our questions about images concern their
production rather than their contemplation. Situated at the frontiers of design and
the visual arts, this paper investigates the consequences of consolidating this shift in
perspective when it coincides with the emergence and rapid development of visual
media combined with global distribution platforms over the Internet, thus altering
the statistical relationship between producers and consumers of images.
Keywords: poetics, aesthetics, design, art

O pensamento criador contemporâneo encontrou no sentido da palavra poética


uma síntese expressiva de sua atividade. Hoje, toda a dinâmica artística tem a cons-
trução poética como uma aspiração. A fecundidade do método poético como um

1 Formada em Design pela Escola de Belas Artes da UFRJ, pós-graduada pela École Supérieure des
Arts Modernes - Paris, mestre pela Escola de Comunicação da UFRJ e doutora em Artes Visuais pelo
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRJ.

936
99
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

ponto de vista singular sobre o real se transforma em uma metodologia artística


global a ser seguida, integrando e sistematizando os diversos métodos exercidos
pelos artistas ao longo da modernidade.

Essa metodologia do pensar artístico contemporâneo, que costuma privilegiar o


pensamento processual em detrimento do resultado final, seria fruto de uma pau-
latina cristalização das práticas de arte das vanguardas históricas acontecidas pos-
teriormente, durante as décadas de 1950 e 1960, e que, segundo Boris Groys (2011),
vêm se estabelecendo, cada vez mais, por meio da educação artística globalizada e
homogênea que mantêm como base o cânone das vanguardas modernas, incluindo
também a arte feita mais tarde na mesma tradição vanguardista. Anteriormente o
ensino da arte nas academias tinham a função bem definida de seguir os critérios
estabelecidos da competência técnica nas diversas atividades artísticas. Hoje esse
entendimento sobre a educação artística só encontra algum sentido no campo das
mídias digitais e, fora isso, se torna inevitável o uso do discurso sobre a arte como
uma forma de conhecimento.

Dito isso, voltaremos nossa atenção para os sentidos da palavra poética, tal como
concebido na tradição vanguardista, e também para as suas derivações na con-
temporaneidade.

Valéry (1991), em sua aula inaugural do curso de poética no Collège de France em


1937, inicia sua fala com um questionamento sobre o ensino de matérias de natu-
reza subjetiva, se elas poderiam ser, ao menos, comunicadas como decorrência de
uma experiência individual. Ele alerta que o termo “Poética” seria adotado por ele em
um sentido “totalmente primitivo” (p.180), bem diferente de seu uso na época, rela-
cionado às regras muito rígidas que cerceavam o ímpeto da criação artística, simpli-
ficando o arbítrio e a categorização das obras pelos críticos. O artista, submetido a
essas fórmulas precisas, era desobrigado de suas responsabilidades e decisões mais
arriscadas nas questões entre matéria e forma.

O sentido primitivo na fala de Valéry - a noção clássica de poética - é o estudo de


uma obra a ser feita, tanto que o verbo grego poiein, do qual a palavra deriva, signi-
fica fazer ou fabricar. Esse fazer que se encerra em toda obra vai se referir, segundo
o autor, àquelas que “o espírito quer fazer para o seu próprio uso, empregando para
esse fim todos os meios físicos que lhe possam servir” (p. 180).

O deslocamento inovador proposto por Valéry está em pensar a obra de arte do


ponto de vista de quem faz, “a considerar com mais complacência, e até com maior
paixão a ação que faz do que a coisa feita” (p. 181). O autor vai mais além em seu
desvio, pega emprestado termos da economia para criar analogias, para falar de
forma mais geral sobre o seu objeto estudo, a sua exploração no campo dos pro-
cessos criadores. O artista é o produtor e a sua obra, a produção. Do outro lado, os

937
100
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

“cúmplices das obras de todos os gêneros” (p.182) são os consumidores. A noção de


valor implicada na produção artística, embora mais abstrata nas suas inúmeras von-
tades, encontra afinidade com as necessidades do mundo econômico. Se a narrativa
épica da Ilíada e ouro permanecem valorizados, diz o autor, “é porque a raridade, a
inimitabilidade e algumas outras propriedades os distinguem, tornando-os objetos
privilegiados, padrões de valor” (p. 183).

Se atualmente aceitamos com tanta facilidade que noções como criação, trabalho,
acúmulo de riqueza e oferta e demanda apresentem-se muito naturalmente no
campo da arte é devido ao pensamento visionário de Valéry. Para quem essas no-
ções de nomes coincidentes, oriundas de contextos aparentemente tão distintos,
problematizam de forma similar as questões do homem com seu entorno, portanto
assim como existe uma analogia econômica, por motivos semelhantes estabelece-
mos também uma analogia política. Por mais interna e solitária que seja a criação
de uma obra, sentimos a presença das reações externas que vão provocar e serem
provocadas ao longo de sua elaboração. A criação de um projeto de arte pode levar
meses, até anos de reflexão. Um trabalho interno que compreende uma complexi-
dade enorme de escolhas e articulações delicadas, povoados de acasos e cálculos.
Valéry diz: “um olhar bastará para apreciar um monumento considerável, para sentir
o choque” (p. 186). Sobre esse mesmo monumento capaz de provocar ações desme-
didas, Deleuze (1993) dirá que ele é o composto de perceptos e afectos, o bloco de
sensações das linguagens artísticas que “transmite para o futuro as sensações persis-
tentes que encarnam o acontecimento: o sofrimento sempre renovado dos homens,
seu protesto recriado, sua luta retomada” (p. 229).

A solidão criativa torna-se uma solidão compartilhada porque frequentemente as


escolhas e os esforços do criador se encontram fora da esfera da própria criação e
levam em conta o efeito sobre a obra do julgamento de terceiros. Porém, como afir-
mam ambos os autores, não podemos esquecer que a obra para o produtor é o ter-
mo (um fim) para o consumidor é a origem. A ação de um e a reação do outro não se
recobrem, são mesmo inconciliáveis.

Chegamos à fronteira onde o discurso poético tangencia mas não se confunde com
o discurso estético. A atitude estética é aquela do espectador, se referindo à arte
sob o ponto do consumidor e exigindo deste sua participação por meio da expe-
riência estética. A partir de Kant, essa experiência, oriunda do sentimento do belo
ou do sublime, compreende a experiência estética advinda de um profundo acordo
das faculdades ou, ao contrário, na dor do desacordo dessas faculdades. Ambos os
sentimentos são capazes de provocar um prazer estético equivalente. Porém, essa
experiência é fruto de um espectador educado para tal, se comportando como uma
autoridade externa ao conteúdo da obra. Assim, sob o ponto de vista estético, a úni-
ca preocupação do artista seria a de como oferecer conteúdos de forma atraente e
sedutora para o refinamento e o olhar educado de seus consumidores.

938
101
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Boris Groys (2015), em seu texto Poétique contre Esthétique, (p. 09) observa que a
predominância do discurso estético se deve principalmente a uma questão quan-
titativa. Desde os séculos XVIII e XIX, quando a reflexão estética surgiu e se desen-
volveu, o número de espectadores era expressivamente maior que o de artistas. A
arte adquiriu a função formadora do gosto e da sensibilidade estética atendendo à
demanda dos consumidores.

Porém, o autor alerta, que desde o início do século XX essa divisão simplista entre os
sujeitos da atitude estética e artistas produtores de objetos de contemplação vem
se desmoronando. Muitas são as especulações para esse acontecimento, entre elas a
emergência de uma sociedade atravessada pela expansão tecnológica que no con-
temporâneo é rastreada em tempo real e sobre a qual a vigilância e o controle das
redes atingiu índices inimagináveis dentro da escala humana. Atualmente a questão
das imagens se refere muito mais à sua produção do que à sua contemplação. O
acesso fácil aos aparelhos de foto e vídeo proporcionado pelas técnicas digitais se
combinou às redes sociais e a plataformas globais de distribuição, alterando visivel-
mente a relação estatística tradicional entre produtores e consumidores de imagens.
Os artistas em potencial e os produtores tornaram-se muito mais numerosos que os
espectadores. Hoje qualquer pessoa, por meio de um celular, lida com questões da
imagem de forma muito semelhante a um profissional ou a um artista.

Não é por acaso que os processos de criação, as conversas íntimas, as dúvidas dos
artistas expressas em suas obras tornaram-se tão ou mais importantes que o resul-
tado final destas. Uma vez que o número de produtores de arte supera o número de
consumidores, a questão da distinção entre um objeto banal e uma obra de arte foi
superada pela questão de saber distinguir um artista de um não-artista. Por isso, o
discurso do artista e o discurso poético vêm ganhando cada vez mais importância.
Hoje é comum que o ato de contemplar seja precedido pela leitura de textos sobre
as obras elaborados pelos próprios artistas ou em nome deles.

Dar ao discurso poético a função de crivo informativo e decisório frente a profusão


caótica de imagens e de seus produtores, mais que apequenar a amplitude do ter-
mo, explicita a névoa de confusão que envolve o entendimento dessa questão nas
artes visuais contemporâneas.

Vale aqui realçar o pensamento de outros autores sobre a noção de poética para afir-
mar (e relembrar) que o fazer implicado no sentido da palavra poética estabelecia
uma relação misteriosa entre desejo (processo de criação) e acontecimento (obra re-
alizada). Na produção do objeto artístico, a ação, mesmo sob a influência do inefável,
encontra no resultado a determinação final de algo indizível. A ideia encontra a sua
forma, o seu equilíbrio precário, de vir ao mundo.

O sentido da palavra poética para Umberto Eco (1991), emana do discurso criador, de
como o artista compreende o fazer de sua própria obra de um modo tal que o objeto

939
102
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

artístico contenha os indícios de sua intenção. Assim, a obra pronta se apresenta como
uma chamada livre para adentrarmos em um universo desconhecido mas que, de uma
forma ou de outra, pertence ao artista que o criou.

O artista Tunga (2001), ao falar da apresentação de sua obra, “Assalto”, nos presenteia
com uma forte definição de poética em sintonia com o que foi dito antes: a obra no
mundo “carrega em si a indicação de que a partir da radicalidade de uma experiência
é que se constrói uma poética. Mas existe um certo rigor neste fazer, esse fazer é uma
construção, não é uma coisa espontânea” (p. 120).

Deleuze (1993) diz que o artista cria blocos de afectos e perceptos “mas que a única
lei da criação é que o composto deva ficar em pé sozinho” e que este seria o ato
fundamental do artista, criar um composto de sensações que se sustente, que se
conserve. “A obra de arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si” ( p. 213),
mas a sensação não se efetua no material sem que a técnica seja atravessada pelo
pensamento. A relação entre o plano de composição técnica e o plano de composi-
ção estética não cessa de variar, configurando a construção poética, esse fazer que é
fruto de uma ação do pensamento e que torna toda a matéria expressiva.

De acordo com os autores citados, a poética na prática artística se refere ao entrela-


çamento vertiginoso entre forma e sentido, entre matéria e espírito, por meio do ato
criativo. A obra de arte só acontece nas circunstâncias desse ato, provocando uma
ligação contínua entre o que existe e o que está por vir. Fora desse ato, o que resta
é apenas um objeto, uma forma esvaziada, incapaz de engendrar novos significados
ou uma intenção, um esboço de criação que se dissipa por não encontrar sua forma
de atualização no mundo. A execução de um ato como resultado, nas palavras de
Valéry (1991), “é uma escapada miraculosa para fora do mundo fechado do possível
e uma introdução no universo do fato” (p. 191).

Se tratamos aqui sobre os sentidos de poética em diferentes autores que se inclina-


ram sobre esse tema, de forma tão vertical e apaixonada, é por considerarmos que
na contemporaneidade a noção de poética vem perdendo a sua potência quando é
compreendida como uma metodologia estratégica da atividade artística que desar-
ticula os processos de criação da sua realização no mundo.

É importante esclarecer que não se trata aqui de priorizar resultados ou exigir um


produto bem acabado para pronto uso. Os monumentos da criação poética se re-
ferem às intensidades das sensações capazes de serem expressas condensadas em
gestos mínimos ou de se alargarem irradiadas por grandes superfícies. Nas matérias
da arte, a ambiguidade oferta mais valor que a nitidez. O que não convém, alerta De-
leuze (1993), é que o plano de composição da arte venha a se fazer “informativo” (p.
254), impossibilitando o espectador de discernir entre uma obra de arte e um objeto
comum. Para tal ele precisará recorrer ao plano informativo para conhecer a obra e

940
103
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

as suas circunstâncias dentro da prática do artista que a criou, para depois emitir o
seu julgamento sobre o estatuto artístico, ou não, daquele objeto.

As poéticas contemporâneas, segundo Groys (2011), engendram uma “visibilidade fra-


ca, virtual” (p. 100) que pode ou não ser percebida como arte, que pode ser considera-
da num outro momento, que não exige, nem mesmo, ser vista. Para o autor isso acon-
tece como uma reação às imagens fortes que passaram a dominar as redes digitais. Por
isso o gesto mínimo ou fraco, dos artistas é compartilhado entre grupos de participan-
tes e espectadores que coincidem entre si. Cada vez mais a arte é feita por artistas para
outros artistas que já conhecem os procedimentos e o contexto das obras, o que faci-
lita a aceitação destas dentro dos circuitos artísticos. O plano de composição estética
que acolhia e provocava os espectadores se desmaterializou. Esse público não-artista
não tem acesso, nem mesmo, ao plano de composição desmaterializado porque a sua
tendência informativa foi neutralizada por se tornar, além de excessiva, hermética.

É importante realçar que, para Groys, esse é um aspecto estratégico da arte desde a
tradição vanguardista que foi radicalizado em nosso tempo. Esse caráter impopular,
minimalista e enfraquecido do gesto artístico é um forma de sobreviver à temporali-
dade contraída das imagens fortes “escapando do status quo que funciona como um
meio permanente de troca dessas imagens fortes” (p. 101).

A compreensão do termo poética na contemporaneidade distanciou-se da noção de


poética apresentada por Valéry, plena de monumentos, e também da potência dos
blocos de sensações das linguagens artísticas em Deleuze para quem a arte, a filo-
sofia e a ciência só encontram sentido em contato com a não-arte, a não-filosofia e
não-ciência. O caráter cada vez mais endógeno das práticas artísticas na atualidade
colocam em risco o rico tecido de correspondências da arte com o mundo exterior
que lhe serve de alimento. Portanto, os discursos de potência ou fraqueza aqui colo-
cados em diálogo, tanto no que dizem respeito às vanguardas modernas em relação
à suas imagens, quanto às artes de nosso tempo, merecem uma reflexão.

As imagens da arte no início do século XX expressam os processos que consolidam


a passagem do registro do Belo para o Sublime. Sobre isso, Lyotard (1987) diz que
há dois modos para tratar desta mesma questão: uma que vai priorizar a impotência
da faculdade de presentificar, a nostalgia que sente o sujeito humano pela presença
das coisas; outra que, ao contrário, vai afirmar a potência da faculdade de conceber
aquilo que quiser, mesmo que isto implique numa inumanidade. Podemos dizer que
essa é a diferença: a produção imagética moderna segue uma estética do sublime,
mas nostálgica. O impresentificável é alegado como um conteúdo ausente, mas a
sua forma é ainda é reconhecível e serve de matéria para consolação e prazer.

A produção imagética pós-moderna alega o impresentificável na própria novidade


da presentificação, recusando a consolação da boa forma.. Ela não tem nostalgia

941
104
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

com a impossibilidade da representação. Ao contrário, existe um prazer na dor de


trabalhar sem regras e, portanto, na necessidade ética de estabelecer as novas re-
gras no decorrer do processo do próprio trabalho. As imagens pós-modernas se
identificam com o próprio acontecimento que as produz e não podem ser julgadas
mediante regras e categorias já conhecidas. Estas regras e categorias são aquilo que
a obra produzida procura. Hoje podemos supor que essas regras e categorias conce-
bidas ao longo de uma modernidade conflitada pelo “enfraquecimento das crenças
e a descoberta do pouco de realidade da realidade” (Lyotard, 1987, p. 21) tenham
colaborado para a construção de uma poética do apagamento, composta de ima-
gens de baixa visibilidade que podem, segundo Groys, ser comparadas com a baixa
visibilidade da vida cotidiana.

Ao mesmo tempo, vemos surgir cada vez mais obras de artistas, sobretudo aqueles
que atuam no campo das tecnologias digitais, apresentando imagens impressio-
nantes que, além da perfeição técnica e estética impecáveis, são dotadas de uma
carga poética à altura da fala maravilhada de Valéry e dos blocos de sensação em
Deleuze. Imagens que, ao valorizarem uma correspondência fértil entre matéria
e pensamento entre forma e sentido, nos possibilitam expandir essa discussão
rumo às confluências entre arte e design. Assim, podemos imaginar que nas fron-
teiras dessas duas disciplinas surge uma perspectiva de ação alternativa frente aos
processo de enfraquecimento das imagens da arte, propiciando o acontecimento
de ações poéticas mais vigorosas.

Diferentemente das abordagens artísticas contemporâneas, os designers não me-


nosprezam o resultado final ou as formas em prol de uma conceituação, sabem da
importância dessas duas instâncias e, por princípio constitutivo, sua dinâmica inclui
uma relação estreita entre prática e pensamento que os aproxima da noção clássi-
ca de poética. A aparência das coisas é, no sentido mais amplo, uma consequência
dos processos de sua realização. Hoje, aliviados do legado modernista em relação à
ênfase funcional de seus projetos, os designers podem expressar, em vez de apenas
funcionalizar, os vislumbres dessa ação do pensamento.

Os designers frequentemente são acusados de estar estetizando o mundo, como se


o valor dado à forma fosse prejudicial, desviando a nossa atenção do que realmente
importa. Vale aqui um olhar mais atento ao termo estetização no âmbito do design e da
arte. Boris Groys (2017) diz que no domínio do design, a estetização se refere ao esforço
de melhorar o desempenho de um determinado artefato técnico tornando o mais atra-
ente para o usuário. Diferentemente, a estetização artística significa a disfuncionaliza-
ção do artefato, “a anulação violenta de sua aplicabilidade prática e de sua eficiência” (p.
209). A estetização promovida pela arte é uma afirmação de que podemos estetizar o
mundo e, ao mesmo tempo, agir revolucionariamente dentro dele. Assim, a estetização,
não apenas não impede uma ação revolucionária, “ela cria um horizonte definitivo para
uma ação bem-sucedida se esta ação tiver uma perspectiva revolucionária”(p. 218).

942
105
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Independente da separação estabelecida pelo autor entre os campos da arte e do


design em relação aos processos de estetização, o importante é o potencial desesta-
bilizador e revolucionário conferido à estetização e que pode também ser aplicado
ao design, desde que este assuma a mediação crítica que suas formas promovem,
questionando os valores e significados dos discursos dominantes e sugerindo novos
rumos, constituindo novas concepções culturais.

Os objetos mais triviais poderão surpreender ao serem radicalmente estetizados sob


o ponto de vista da disfuncionalização, ultrapassando sua usabilidade e desdobran-
do seus significados. A obra de arte resiste através do tempo devido a sua capacida-
de de atualização dos sentidos nela implicados e multiplicados. Será também nesse
sentido que o objeto do design poderá transcender as suas finalidades primeiras.
Uma imagem ou objeto do design para sobreviver ao seu desgaste, à univocida-
de do discurso, precisa ser capaz de produzir significados, simbolizar outros valores
para além daqueles que já possui. De acordo com Rafael Cardoso (2012), a sujeição
limitada da forma à função aparta do usuário a experiência estética do objeto ou
imagem, a possibilidade de afinidade e sintonia e, por isso mesmo, inibe a sua capa-
cidade de produção de sentido. Portanto, para que um produto do design resista ao
tempo ele precisa ser passível de poetização. Para tal, será preciso expandir a com-
preensão das relações entre forma, usos e funções e acolher as suas incertezas para
“projetar de modo mais aberto, ou seja, de modo a gerar projetos resistentes ao seu
engessamento formal e eventual obsolescência” (p.49).

Conferir à disfuncionalidade uma noção de valor permite que o design aspire mais
do que apenas intervir na realidade para afirmá-la, torná-la mais atraente e mais fácil
de usar. Somente questionando e expondo as ineficiências e os fracassos da reali-
dade que nos cerca e, fazendo isso esteticamente como afirma Groys (2017) , não
diferenciando entre sucesso e fracasso, o design poderá escapar das acusações de
ser uma ferramenta onipresente de enfraquecimento e manipulação da sociedade
em prol da manutenção do status quo, promovendo “o estado de exaustão total que
tornaria qualquer ação histórica revolucionária impossível” (p. 218).

Ofertar aos objetos e imagens do design a perspectiva de exercer ou não a sua função
de uso, desestabiliza as noções pré-estabelecidas, cristalizadas, de comunicação, infor-
mação e usabilidade, possibilitando um novo exercício imprevisto, impensável. Agam-
ben (2018) nos diz que esse é o procedimento da poesia com a linguagem, “é o pon-
to em que a língua tendo desativado suas funções utilitárias, repousa em si mesmo,
contempla a sua potência de dizer” (p. 80). Por isso, esse é também o ponto em que o
design pode constituir uma poética. O que a poesia realiza pela potência de dizer, o
design deve realizar pela potência de projetar e significar com suas imagens e objetos.

O design contemporâneo, entendido como um design que atua nas fronteiras, aco-
lhendo e expandindo saberes de outras disciplinas, se aproxima das indagações da

943
106
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

arte de nossa época sem o apagamento e a desatenção à forma que fazem com que
o criador corra o risco de perder de vista o concreto das experiências. As imagens da
arte resistem e sobrevivem às imagens fortes da ideologia do progresso tirando par-
tido de sua fraqueza, misturando-se à baixa visibilidade da vida cotidiana. O design
apresenta a alternativa do embate de forças, da restituição dos monumentos e da
imagem como potência de acontecimento que ao não se confundir com o cotidiano,
afirma a vocação do pensamento criador para o extra-ordinário. A ação do designer-
-artista reconstitui o plano de composição estética como força de sensação para que
o infinito do olhar possa transcender o finito do visto.

Referências Bibliográficas
Agamben, G. (2018) O fogo e o relato: ensaios sobre criação, escrita, arte e livros. São
Paulo: Ed. Boitempo.

Cardoso, R. (2012). Design para um mundo complexo. São Paulo: Ed. Cosac Naify.

Deleuze, G. (1993). O que é Filosofia. Rio de Janeiro: ED.34.

Groys, B. (2017). Artigo O Ativismo Artístco na Revista Poiésis, v. 18, n. 29. Niterói: UFF,
pp. 205-219.

___________. (2011, novembro)Artigo O universalismo fraco na Revista Serrote 09,


Instituto Moreira Salles. Rio de Janeiro, pp.87-101.

___________.. (2015). En Public – Presses Universitaires de France. Paris..

Lyotard, J-F. (1987). O Pós-Moderno explicado às crianças. Lisboa: Publicações Dom


Quixote.

Valéry, P. (1991). Variedades. Rio de Janeiro: Ed. Iluminuras.

944
107
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

John Alexander Rojas-Montero1

El dibujo del cuerpo humano, un punto de partida para la


intervención educativa
O desenho do corpo humano, ponto de partida para a intervenção educacional

Resumo
Este artigo apresenta aspectos relacionados ao desenho do corpo humano como
referência para uma intervenção educativa, que faz parte do processo de pesqui-
sa denominado “Alfabetização visual no modelo educacional flexível ‘Aceleração
da Aprendizagem’”, cujo objetivo era a compreensão das dimensões acadêmicos
e emocionais de em estudantes de modelo em um ambiente de alfabetização,
o quadrinhos. Em um estudo com abordagem qualitativa, o desenho foi utiliza-
do com o objetivo de estabelecer as condições emocionais iniciais de um grupo
de estudantes entre 11 e 16 anos de idade para elaborar uma proposta de inter-
venção com a mediação de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), como
parte de um estudo de caso instrumental em suas fases pré-ativa (planejamento e
design), interativa (implementação) e pós-ativa (avaliação), cujo interesse foi foca-
do em contribuir para a melhoria das condições de vida dos alunos e ao enriqueci-
mento das alternativas educacionais orientadas pelos professores.
Palavras-chave: Desenho do corpo humano, emoções, Aceleração da Aprendizagem,
Tecnologias da Informação e Comunicação.

Abstract/resumen/resumé
Este artículo presenta aspectos relacionados con el dibujo del cuerpo humano como
referente para realizar una intervención educativa, el cual forma parte del proceso
de investigación denominado “Alfabetización visual en el modelo educativo flexible
‘Aceleración del Aprendizaje’” cuyo propósito fue la comprensión de las dimensiones
académica y emocional en estudiantes del modelo en un escenario de alfabetización,
la historieta. En un estudio con enfoque cualitativo, el dibujo se empleó con el objetivo
de establecer las condiciones emocionales iniciales de un grupo de estudiantes entre

1 Profesor, Facultad de Ciencia y Tecnología (Universidad Pedagógica Nacional, Colombia). Estudian-


te del Doctorado Interinstitucional en Educación (Universidad Pedagógica Nacional, Colombia). Ma-
gíster en Tecnologías de la Información Aplicadas a la Educación (Universidad Pedagógica Nacional,
Colombia). Magíster en Gestión de Organizaciones. Especialista en Entornos Virtuales de Aprendiza-
je. Ingeniero de Sistemas. Director del Grupo de Investigación KENTA. (jarojas@pedagogica.edu.co;
john.rojas@grupokenta.co).

945
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

los 11 y 16 años para el diseño diseñó de una propuesta de intervención con la media-
ción de las Tecnologías de la Información y la Comunicación (TIC), como parte de un
estudio instrumental de casos en sus fases preactiva (planeación y diseño), interactiva
(implementación) y postactiva (evaluación), cuyo interés se centró en aportar al me-
joramiento de las condiciones de vida de los estudiantes y al enriquecimiento de las
alternativas formativas orientadas por los profesores.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: Dibujo del cuerpo humano, emociones, Acele-
ración del Aprendizaje, Tecnologías de la Información y la Comunicación.

Introducción
En este artículo se muestran aspectos relacionados con el dibujo del cuerpo huma-
no como parte de la investigación “Alfabetización visual en el modelo educativo
flexible ‘Aceleración del Aprendizaje’”, el cual se tomó como punto de partida para
el diseño de una propuesta de intervención mediada por las TIC. Con el dibujo cada
estudiante materializó representaciones que favorecieron no sólo su comunicación
interpersonal y su creatividad, sino que también le ayudaron a exteriorizar sus emo-
ciones según su edad y género, su desarrollo físico, cognitivo, cultural, social, afec-
tivo y emocional, así como por la personalidad, el entorno y las circunstancias indi-
viduales. Dentro del aula, el dibujo hizo posible la libre expresión de sentimientos,
y en muchos casos de manera inconsciente permitió la exteriorización de lo más
personal, afectivo y emocional como evidencia del mundo interior de cada indivi-
duo, contribuyendo así a la identificación de rasgos emocionales y cognitivos reflejo
de problemáticas o necesidades que requieren ser atendidas desde los procesos de
formación, y así fortalecer emocionalmente a los estudiantes para disminuir el riesgo
de deserción y aumentar su motivación y desempeño educativo (Díaz, 2014).

En Colombia, las instituciones educativas públicas además de la población regular,


atienden a estudiantes en condición de extra-edad, quienes no cuentan con las
capacidades académicas para ingresar al grado en que deberían estar, lo que se
complejiza si se tiene en cuenta que muchos de ellos han pasado por experiencias
de desplazamiento, de fracaso escolar y de exclusión del sistema educativo, lo que
exige la generación de estrategias que permitan un acompañamiento personaliza-
do de su proceso de aprendizaje y su estado emocional, que los lleve a recuperar la
confianza para continuar sus estudios (MEN, 2010).

Frente a estas circunstancias, las instituciones deben generar mecanismos de diagnós-


tico que posibiliten determinar el estado actual de los estudiantes, y así involucrarlos
en el proceso educativo que más les conviene, siendo uno de ellos el modelo educa-
tivo flexible de “Aceleración del aprendizaje” que busca potenciarlos para que se vin-
culen al sistema educativo en básica secundaria o a otros modelos flexibles (Sánchez,
2010; Alvarado, 2014). Dentro de las múltiples posibilidades de diagnóstico, surge el

946
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

dibujo de la figura humana como reflejo del mundo interior de los estudiantes, cuyo
análisis lleva al planteamiento de propuestas relacionadas con los hallazgos emocio-
nales obtenidos.

Con las propuestas se da apertura a alternativas para la superación de dificultades


tanto académicas relacionadas con el conocer, como emocionales relacionadas con
el interactuar y el expresar. En ellas han de tenerse en cuenta a estudiantes, profe-
sores, familias, tecnologías y estándares curriculares. Los estudiantes y profesores
como actores principales del proceso formativo. Las familias por su incidencia en el
proceso al interior y al exterior de la escuela (Sánchez, 2010). Las Tecnologías de la
Información y la Comunicación (TIC) en la conformación de territorios de “agencia-
miento colectivo, espacio-tiempo educativo, dispositivo de subjetividad, prácticas
de construcción de sí” (Orozco, 2006). Los “Estándares básicos de competencias en
Lenguaje, Matemáticas, Ciencia y Ciudadanas” como orientadores sobre lo que un
estudiante debe saber y saber hacer en áreas como la comprensión lectora y la pro-
ducción escritural (Schmidt, 2006).

En esta tarea de comprensión y producción, muchos textos que circulan por la escuela
plantean la convergencia entre la palabra y la imagen, situación que enfrenta a la es-
cuela al plantemiento de procesos de alfabetización diferentes como la visual y, a los
estudiantes al desarrollo de habilidades para hallar, interpretar, evaluar, usar y crear
lo verbal y lo visual (ALA, 2011), desde sus contextos emocionales, culturales, éticos,
estéticos, intelectuales y técnicos. Así, una vez caracterizado el estado emocional y el
contexto de los estudiantes, es posible pasar a una fase de invervención que genere
experiencias escolares tendientes a mejorar su estado emocional, sus condiciones de
vida y su desempeño académico. A continuación, se describe cada fase investigativa:
(1) preactiva (el dibujo de la figura humana; la alfabetización visual); (2) interactiva (los
hallazgos y su interpretación); (3) postactiva (la propuesta; algunas conclusiones).

El dibujo de la figura humana


Los dibujos de la figura humana permiten la valoración de aspectos emocionales
de los estudiantes, ya que con ellos se expresa lo que hacen y lo que sienten. Cada
dibujo tiene una estructura que depende de la edad y el nivel de maduración del
estudiante; y tiene un estilo que refleja el concepto que se tiene de sí mismo, así
como actitudes y preocupaciones en un momento determinado. El análisis de los
dibujos brinda indicadores sobre problemáticas emocionales, las cuales inciden en
el proceso de aprendizaje, la integración social o el desarrollo de una sesión de clase,
con lo que se potencia el fracaso académico y la deserción escolar (Barros e Ison,
2002). Algunos indicadores incluidos en este tipo de análisis son la baja autoestima,
el pobre autoconcepto, la impulsividad, la inseguridad, la depresión, la ansiedad, la
timidez y la agresividad, ante los cuales se pueden plantear procesos formativos que
lleven a su superación (Fernández y Ramírez, 2002).

947
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

La alfabetización visual
En los textos empleados en el modelo de ‘Aceleración del Aprendizaje’ converge la
palabra y la imagen, lo que requiere de una pedagogía enfocada hacia sistemas sim-
bólicos que permita la comprensión de lo verbal y lo no verbal (Schmidt, 2006), lo
que toma relevancia a la hora de conocer, interactuar con otros y de expresar ideas,
deseos y sentimientos. Ante esta convergencia, los estudiantes han de alfabetizarse
visualmente para ser capaces de crear, usar, apreciar e interpretar imágenes en el
desarrollo de actividades vinculadas con el aprendizaje, la comunicación y la toma
de decisiones (NCREL - METIRI Group, 2003).

En una alfabetización de este tipo para lo académico y lo emocional, los profesores


han de contar con ambientes que mezclen lo verbal (la palabra) con la riqueza que
brinda lo no verbal (la imagen). Para ello, se han de plantear actividades donde las
imágenes sean vistas (descritas), miradas (interpretadas) y observadas (evaluadas y
producidas) en sus contextos particulares (Dondis, 2003; Villafañe, 2006; Villa, 2008);
donde se extraiga información, se dé significado, se comunique y se expresen ideas
en forma visual (Zunzunegui, 2010).

Este acercamiento a lo visual, requiere de estudiantes y profesores alfabetizados que


sean capaces de “descifrar los códigos visuales, la información visual y poder adoptar
una posición analítica, racional, crítica ante la misma” (Cerrejón y Montero, 2000, p.
135), y con ello se apropien de los contenidos visuales presentes en los libros de tex-
to a los que se accede dentro y fuera de la escuela (Nixon, Tompkins y Lackie, 2008).

Es así que la presencia de la imagen en la escuela, hace que educadores e investi-


gadores deban trabajar en conjunto la exploración de su potencial en los proce-
sos formativos y en la apropiación de sus diversos formatos y modalidades. En esta
apropiación, los profesores han de ser capaces de interpretar, construir y evaluar las
imágenes desde lo didáctico; seleccionarlas e incluirlas apropiadamente en proce-
sos formativos; producirlas a partir de lo escrito o producir lo escrito desde ellas; mo-
delizar y representar la realidad; aportar a la comprensión de contenidos; impactar el
aprendizaje de cada estudiante según sus características (Perales, 2006).

Los hallazgos y su interpretación


Para la interpretación de los dibujos Lowenfeld (1961, citado en Puleo, 2012) propo-
ne unas etapas en el desarrollo del dibujo según la edad, que para el grupo de estu-
diantes con que se trabajó corresponde a la etapa de pseudonaturalismo y etapa de
la decisión, en las cuales, el cuerpo y el espacio adquieren cada vez más importancia
y significado en el producto final. En él aumentan las características sexuales, las pro-
porciones correctas, la sensibilidad a las acciones del cuerpo, las variaciones en las
expresiones faciales, la aparición de relaciones subjetivas entre el niño y su medio, el
control de la expresión con un propósito determinado, la representación del estado

948
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

de ánimo, la conciencia de las proporciones, la exageración de detalles y el uso crea-


tivo de la figura para la sátira. Para su análisis, Koppitz (1968, citado en Carreras, Uriel
y Liporace, 2013) plantea como indicadores de interpretación de los dibujos de la fi-
gura humana: (1) generales: integración, sombreado, simetría en las extremidades y
tamaño de la figura; (2) específicos: brazos, las manos, la cabeza, los ojos, los dientes,
las piernas; (3) por omisión de elementos corporales; (4) y emocionales. En la inter-
pretación también se observa si existen otros elementos en el espacio, el tamaño, la
calidad del trazo, la presión utilizada, los colores que predominan.

En la presente investigación se aprovecha la experiencia brindada por investigacio-


nes previas que han utilizado el dibujo como herramienta para identificar rasgos de
la personalidad en los niños (Andrade, Bustos y Guzmán, 2015); la agresividad se
puede observar en la proporción de los brazos largos (Gutiérrez, Fontanela, Cons,
Rodríguez y Pazos, 2017); la ansiedad y los rasgos emocionales se evidencian en el
sombreado (Lezcano, Melgarejo, Ureta, Arrom y Romero, 2015); la inseguridad y los
sentimientos de inferioridad se evidencian en una cabeza pequeña, por la ausencia
de manos (Brito, 2019); la sensibilidad a la opinión o crítica social se refleja al dibujar
orejas u ojos muy grandes (Sanz, 2019); la dependencia y necesidad de autonomía
se identifica si las piernas son muy largas o asimétricas, los pies son pequeños o
la boca es cóncava (Cartuche, 2016). A continuación, se realiza la interpretación de
algunos dibujos elaborados por los estudiantes de ‘Aceleración del Aprendizaje’ que
permiten la detección de algunas problemáticas, las cuales se tomaron en cuenta
para el diseño de una propuesta basada en la imagen.

Estudiante 3 Interpretación
Estudiante de 13 años. La representación
que hace de la figura humana indica que
es independiente emocionalmente y ego-
céntrico; la simetría del dibujo indica que
tiende a ser rígido con su entorno, poco
flexible, actúa a la defensiva; la posición de
la figura expresa que tiende a ser perfec-
cionista, extrema atención a la opinión ex-
terna y a la sensibilidad; la expresión facial
expresa que tiende al negativismo, resis-
tencia al cambio, con tendencia a retraer-
se y actuación de la fantasía, poco interés
por la actividad física; el tamaño y direc-
ción de la boca manifiesta ser agresivo ver-
balmente, tendencia a irritarse fácilmente y
Figura 1. Dibujo estudiante 3
a ser dominante con sus amigos.

949
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Estudiante 4 Interpretación
Estudiante de 13 años. El trazo de la cara in-
dica que la niña tiende a ser perfeccionista;
la dirección de la pupila expresa que se pre-
ocupa por su apariencia es vanidosa; la po-
sición del dibujo se a interpreta que tiende
a la extroversión; el tamaño de los ojos y la
dirección representa hipersensibilidad a la
opinión social del grupo de amigos o com-
pañeros de colegio; la posición, tamaño y
dirección de los brazos expresa que tiene
temores internos, sobredimensiona las si-
tuaciones actuando con inmadurez en al-
gunas oportunidades; el tamaño y posición
de las piernas y pies indica que actúa a la
defensiva y no confía fácilmente en la gen-
Figura 2. Dibujo estudiante 4
te, según la situación se siente inferior ante
otros, dificultad para tomar decisiones.

Estudiante 5 Interpretación

La representación de la figura humana


indica una necesidad de independencia;
es retraído, tímido, introvertido, con ne-
cesidad de apoyo, de emotividad y de ser
escuchado; de pocos amigos, habilidades
comunicativas bajas tiende a ser poco fle-
xible, inmaduro para su edad impulsivo,
con dificultad para adaptarse a nuevas si-
tuaciones; inseguro con baja autoestima,
duda para tomar decisiones, siente insatis-
facción.

Figura 3. Dibujo estudiante 5

950
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Estudiante 6 Interpretación

Estudiante de 13 años. La representación


indica infravaloración del medio, propensi-
ón a la fantasía, poca habilidad para mane-
jar sus impulsos, le gusta agradar a otros,
es tierna, obstinada y anárquica prepoten-
te especialmente cuando esta con pares
en contextos que le dan seguridad, en
ocasiones es hostil y expresa sentimientos
de rechazo con los que no simpatiza; baja
confianza en sí misma y en realizar algu-
nas tareas o trabajos, tiende a ser rígida
en su entorno social.

Figura 4. Dibujo estudiante 6

Estudiante 9 Interpretación
Estudiante de 12 años. Hizo tres intentos
de dibujo, todos de diferente tamaño lo
que demuestra que es solitario, triste, in-
trovertido, tímido, inseguro; al dibujar los
ojos vacíos indica sentimiento de culpa
e inmadurez, lo que no corresponde con
la edad; tiende a ser egocéntrico, depen-
diente, con vaga percepción del mundo
y curiosidad por explorar; la posición de
los brazos se interpreta la necesidad de
ser reconocido y valorado; la boca expresa
alegría y deseos de compartir, sin embar-
go, la inseguridad le impide participar e
interactuar con otros; la posición de las
Figura 5. Dibujo estudiante 9 piernas indica que ha tenido que afrontar
diferentes situaciones difíciles.

951
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Estudiante 10 Interpretación
Estudiante de 12 años. El tamaño de la re-
presentación indica que es insegura, retra-
ída y con tendencia a la tristeza, inhibida por
preocupaciones en el ambiente que le im-
piden funcionar adecuadamente en casa
o en la escuela, un posible ocultamiento; le
gusta pasar desapercibida, es sumisa, los de-
talles y el color que le adiciona a su trabajo
indican el cuidado personal, la creatividad,
el compromiso, perseverancia, ternura; la
posición de los brazos indica la confrontaci-
ón entre los momentos de tristeza y soledad
en casa y los que comparte con las amigas;
también se observa dificultad para interac-
tuar en contextos o personas nuevas; el tra-
zo de la boca es ambiguo lo que indica que
no es tomada en cuenta, participa poco en
Figura 6. Dibujo estudiante 10 los eventos escolares y en casa se aísla; el ta-
maño de las piernas indica baja autoestima.

La propuesta
A partir de los hallazgos, se propone un ambiente para la alfabetización visual en
los que se abordan aspectos relacionados con la autoestima, y en particular con el
autoconcepto, con el propósito de que estudiantes y profesores de ‘Aceleración del
Aprendizaje’ entren en contacto con la problemática detectada a través de la lectura
de imágenes y palabras, desde la perspectiva de una pedagogía de la imagen que
lleve a ver, mirar y observar, a diversificar contenidos educativos y a entrar en la co-
tidianidad escolar, en la que se conjuga lo académico y lo emocional. La imagen y la
palabra enriquecidas por los entornos en los que se relacionan, por las perspectivas
de quienes las crean, perciben, producen o consumen, por la puesta en escena de
saberes y posturas que van más allá de lo visual (Dussel, 2006).

La alfabetización visual, hace volver la mirada hacia el cómo atender a estudiantes


vulnerables con múltiples necesidades, culturas y características y, cómo desde las
mediaciones tecnológicas se crean territorios que potencien el aprendizaje en diver-
sas áreas del currículo escolar (en particular la lectura y la escritura), así como la re-
lación consigo mismo y la interacción con otros. En estos territorios, las prácticas de
los profesores se permean de las imágenes para la formación propia y la de sus estu-
diantes, como parte de la existencia, del saber, de la representación de experiencias,
del conocimiento, así como del pensarse a sí mismos y a los demás (Dussel, 2006).

952
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Las prácticas mediadas enfocadas en la imagen, permiten el abordaje de aspectos


que afectan el rendimiento académico de los estudiantes, como suele ser el emo-
cional. De esta forma, el trabajo realizado con materiales de estudio como libros de
texto, fotocopias o cuadernos, se puede acompañar con el uso de las tabletas pro-
vistas a las instituciones educativas públicas en Colombia (MEN, 2016; MINTIC, 2016),
acercándose a las realidades de los estudiantes y a la construcción de sentido desde
la promoción de la lectura de la palabra vinculada a la imagen y, desde la apreciación
en la producción de textos.

Ante este panorama, se diseñan historietas como escenario de alfabetización visual,


que brinda a la escuela alternativas para el aprendizaje, para la comunicación de
ideas y conceptos, para la comprensión lectora (Stokes, 2002), para la narración de
historias ficticias o personales y para la comprensión emocional (Segovia y Racione-
ro, 2015; Sánchez, 2010). En las historietas los estudiantes dibujan y narran historias
relacionadas con las problemáticas de autoconcepto detectadas, lo que permite la
representación de su mundo interior y la expresión de sentimientos; la narración le
da sentido a sus experiencias y a los significados que encuentran en diversos con-
textos (Segovia, 2010). En esta mezcla de lo visual y lo verbal en una secuencia tem-
poral, intervienen personajes dentro de situaciones con conflictos y obstáculos, en
las que el narrador identifica las emociones de los personajes o realiza comentarios
sobre sucesos y personajes (Romero y Gómez, 2013).

El dibujo y la narración como elementos constitutivos de la historieta, permiten que


los estudiantes accedan al mundo de la lectura durante el desarrollo de una historia
y, al mundo de la escritura al narrar con palabras e imágenes que se yuxtaponen y
comparten protagonismo (Rodríguez, 2014), constituyéndose así en “un medio para
desarrollar la imaginación y memoria autobiográfica” (Carpe y García, 2015, p. 248),
que brindan modos de ser que se van transformando al interactuar con situaciones
en donde lo verbal y lo no verbal aportan al desarrollo de experiencias educativas
diferentes (Chacón, 2016) desde elementos, temáticas y contenidos que permiten el
conocimiento, la apropiación y la interpretación de realidades, ideas y emociones.

Con la alfabetización visual en historietas se plantea un escenario didáctico que


enriquece las prácticas llevadas a cabo en el aula (Fernández, 2015), a lo que se
suma el aporte de las TIC como espacio-tiempo educativo, a la comprensión y pro-
ducción de textos (Francica, 2015). En este ejercicio formativo, los profesores van
creciendo profesionalmente durante el proceso de formulación, diseño, produc-
ción, implementación y evaluación de actividades que integran aspectos discipli-
nares, didácticos y contextuales (Beltrán, 2017), que lleva a prácticas educativas
que reconocen la existencia de diversas posturas o perspectivas (Díaz, 2016), en
las que se promueve la comprensión y producción de textos que entremezclan pa-
labra e imagen (Domínguez-Fernández, 2015), en los que se planteen situaciones
para la reflexión académica y emocional.

953
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

La historieta como escenario para la presentación de contenidos y la expresión de


emociones, puede utilizarse con fines didácticos al permitir atraer el interés y la cu-
riosidad de los estudiantes como lectores de personajes y situaciones particulares o
como escritores que expresan sus posturas sobre el mundo que los rodea. Cuando
un estudiante se involucra en la producción de historietas, construye saberes, inte-
ractúa con otros, integra nuevos conceptos a sus conocimientos previos, incrementa
sus experiencias al relacionarse con su entorno, desarrolla habilidades sociales, for-
talece su estado emocional a partir de la toma de conciencia sobre lo que le ocurre,
sobre lo que observa y sobre lo que hace (Onieva, 2015; Calvas y Espinoza, 2017).

Como parte de las estrategias metodológicas empleadas en el aula, las historietas


no sólo son un factor que permite mantener el interés de los estudiantes, sino que
aportan a los objetivos formativos promovidos. Es así que los profesores con ellas se
responsabilizan de atender las necesidades educativas de sus estudiantes; de for-
talecer las competencias que desean desarrollar; de establecer los objetivos y los
contenidos para alcanzarlos; de reflexionar sobre qué metodologías emplear; de
evaluar la evolución de sus estudiantes a partir del seguimiento de sus procesos y la
valoración de lo que producen (Domínguez-Fernández, 2015). Los profesores han de
estar atentos a lo que ocurre en las historietas, a los valores que reflejan y a los pun-
tos de vista que plantean (Barraza, 2006). A continuación, se presentan las historietas
elaboradas sobre autoconcepto físico (apariencia) y autoconcepto ansiedad (temo-
res), las cuales forman parte de los contenidos del ambiente que fue creado para el
desarrollo del proceso formativo de los estudiantes de ‘Aceleración del Aprendizaje’.

Figura 7. Historieta autoconcepto físico (Fuente: propia)

954
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 8. Historieta autoconcepto ansiedad (Fuente: propia)

Algunas conclusiones
La alfabetización visual como una pedagogía de la imagen, permite que el estudian-
te tome distancia frente a lo que ve, mira y observa, llevándolo no solo a percibir
formas, sino también a pensar sobre lo que ocurre en su cotidianidad y en la escuela.
Como caso particular, la historieta como escenario para la lectura de la palabra y la
imagen, propone situaciones presentes en los hallazgos obtenidos que, junto con
las dinámicas en la escuela y en la familia pueden incidir en el rendimiento escolar.
La alfabetización visual en historietas, plantea la necesidad de formar a los docentes
en la planeación de actividades alfabetizadoras en las que se representen situacio-
nes reales que lleven a los estudiantes al análisis de las imágenes y a la identificación
de aspectos emocionales. En este proceso formativo que involucra imágenes, los

955
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

profesores y los estudiantes han de ser sensibles a lo que se les presenta; han de ser
creadores y receptores, productores y consumidores; han de comprender las emo-
ciones representadas; han de apropiarse de los saberes y lenguajes verbales y no
verbales convocados al momento de ver, mirar y observar.

Con las emociones representadas o generadas, los estudiantes tienen la posibilidad de


reflexionar sobre lo que los afecta cuando conocen, interactúan o se expresan, permi-
tiéndoles conmoverse ante las historias de otros, escuchar otras historias y contar sus
propias historias; historias que entrelazan saberes, particularidades, generalidades y la
vida misma. De esta manera, en la escuela se configuran otras relaciones con el saber,
con los estudiantes, con los profesores, con las familias, lo que permite llegar a ser
conscientes y sensibles, a estar atentos, a reflexionar y a actuar frente a lo que ocurre
en la cotidianidad propia y ajena (Dussel, 2006; Masschelein, 2006).

Referências
ALA (2011). ACRL Visual Literacy Competency Standards for Higher Education.
American Library Association. Recuperado de http://www.ala.org/acrl/standards/
visualliteracy

Alvarado, J. E. (2014). Estrategias de mejoramiento del modelo educativo Aceleración


Secundaria implementado en el Colegio Guillermo León Valencia (tesis de posgrado).
Universidad Libre de Colombia. Recuperado de http://repository.unilibre.edu.co/bits-
tream/handle/10901/7593/AlvaradoMeloJaimeEduardo2014.pdf?sequence=1

Andrade S., J. A., Bustos R., J. S.., & Guzmán J., P. del P. (2015). Análisis de la figura
humana en niños y niñas desplazados en Colombia. El Ágora USB, 15(1), 255-268.
Recuperado de http://revistas.usbbog.edu.co/index.php/Agora/article/view/13

Barraza M., E. (2006). La historieta y su uso como material didáctico para la enseñanza
de la historia en el aula. Perspectiva Educacional, (47), 73-97. Recuperado de http://
www.redalyc.org/html/3333/333328828005/

Barros, M. C., & Ison, M. S. (2002). Conductas problemas infantiles: Indicadores


evolutivos y emocionales en el dibujo de la figura humana. Interamerican Jour-
nal of Psychology, 36(1-2), 279-298. Recuperado de https://www.redalyc.org/
pdf/284/28436216.pdf

Beltrán M., J., & Marín Q., M. (2017). La historieta como material didáctico en la for-
mación de actitudes relacionadas con la Ciencia desde el abordaje de asuntos socio-
científicos. Enseñanza de las ciencias, (Extra), 4715-4720. Recuperado de https://ddd.
uab.cat/record/183632

956
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Brito S., A. I. (2019). Comparación de factores emocionales predominantes en esco-


lares de familias extensas, monoparentales, reconstituidas y nucleares. Enseñanza
e Investigación en Psicología, 1(1), 40-52. Recuperado de https://www.revistacneip.
org/index.php/cneip/article/view/18

Calvas-Ojeda, M. G., & Espinoza-Freire, E. (2017). La enseñanza de la historia a través


de historietas. Maestro y Sociedad, 14(4), 544-555. Recuperado de https://revistas.
uo.edu.cu/index.php/MyS/article/viewFile/3129/2745

Carpe, I., & Garcia Rams, M. S. (2015). Animando la ilustración e ilustrando el mundo
en movimiento a través de visual literacy. ILUSTRAFIC 2015. 2º Congreso Internacio-
nal de Arte, Ilustración y Cultura, 240-249. Editorial Universitat Politècnica de Valèn-
cia. Recuperado de https://riunet.upv.es/bitstream/handle/10251/97987/462-5006-
1-PB.pdf?sequence=1

Carreras, M. A., Uriel, F., & Liporace, M. F. (2013). Actualizaciones en el análisis de íte-
mes madurativos del dibujo de la figura humana en niños escolarizados de Buenos
Aires. Interdisciplinaria, 30(1), 101-118. Recuperado de https://www.redalyc.org/
pdf/180/18027808006.pdf

Cartuche J., J. D. (2016). El dibujo infantil para identificar la personalidad de las niñas
y niños de 4 a 5 años de edad de la escuela de educación general básica Dra. Matilde
Hidalgo de Procel N° 1 de la ciudad de Loja. Periodo 2014-2015 (tesis de pregrado).
Universidad Nacional de Loja, Loja, Ecuador. Recuperado de https://dspace.unl.edu.
ec/handle/123456789/11357

Cerrejón A., F. & Montero F., M. (2000). Alfabetización visual, cómics e incorporación
social. En: Camacho Herrera, A. J., Castillo Manzano, A. J., & Monge Moreno, I. Pers-
pectiva y realidad de la incorporación social sobre drogodependencias en Andalu-
cía. Sevilla: Consejería de Asuntos Sociales, pp.135-141.

Chacón M., A. M. (2016). Lectores De Cómics: Constructores De Sentido (tesis de ma-


estría). Universidad Distrital Francisco José de Caldas, Bogotá, Colombia. Recupera-
do de http://repository.udistrital.edu.co/bitstream/11349/2677/1/ChaconMendezA-
drianaMatilde2016.pdf

Díaz D., M. I. (2014). Plan de estudios modelos flexibles: procesos básicos. Medellín:
Institución Educativa Francisco Miranda. Recuperado de https://master2000.net/
recursos/menu/92/2386/mper_arch_16781_plan%20de%20estudios%20FM%20
27%20febrero.pdf

Díaz G., M. M. (2016). La investigación y la didáctica de la historieta, como herramien-


ta de aprendizaje en la enseñanza de adultos. Opción, 32(7). Recuperado de http://
www.redalyc.org/html/310/31048480033/

957
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Domínguez-Fernández, E. (2015). El aprendizaje del lenguaje visual en 6º de Primaria


a través del cómic (tesis de pregrado). Universidad Internacional de la Rioja, Málaga,
España. Recuperado de http://reunir.unir.net/handle/123456789/2561

Dondis, D. A. (2003). La sintaxis de la imagen: introducción al alfabeto visual. Barce-


lona: Editorial Gustavo Gili.

Dussel, I. (2006). Educar la mirada: reflexiones sobre una experiencia de producci-


ón audiovisual y de formación docente. En Dussel, I., & Gutiérrez, D. (Comp.) (2006),
Educar la mirada: políticas y pedagogías de la imagen (pp. 277-293). Buenos Aires:
Manantial. Recuperado de http://nuestraescuela.educacion.gov.ar/bancoderecur-
sos/media/docs/apoyo/apoyo04.pdf

Fernández G., J. de D., & Ramírez C., M. A. (2002). Programa de habilidades sociales
para mejorar la convivencia. Revista Electrónica Interuniversitaria de Formación del
Profesorado, 5(5). Recuperado de http://ww.w.aufop.com/aufop/uploaded_files/ar-
ticulos/1242552046.pdf

Fernández H., C., & López J., A. R. (2015). El cómic como medio, el superhéroe
como alegoría: las narrativas del superhéroe como recurso didáctico. Revista RIE-
-UANL, 2(2), 2448-6825. Recuperado de https://www.researchgate.net/profile/
Christian_Fernandez3/publication/314237024_EL_COMIC_COMO_MEDIO_EL_SU-
PERHEROE_COMO_ALEGORIA_LAS_NARRATIVAS_DEL_SUPERHEROE_COMO_RE-
CURSO_DIDACTICO/links/58bc8b61aca27261e528d801/EL-COMIC-COMO-MEDIO-
-EL-SUPERHEROE-COMO-ALEGORIA-LAS-NARRATIVAS-DEL-SUPERHEROE-COMO-
-RECURSO-DIDACTICO.pdf

Francica, C. (2015). Historias dibujadas/Lenguajes híbridos: la nueva narrativa gráfi-


ca. Lenguas Vivas, 11, 75-82. Recuperado de https://dadospdf.com/download/his-
torias-dibujadas-lenguajes-hibridos-la-nueva-narrativa-grafica-_5a4c894ab7d7bca-
b6716ec73_pdf

Gutiérrez S., L., Fontenla F., E., Cons F., M., Rodríguez F., J. E., & Pazos C., J. M. (2017).
Mejora de la autoestima e inteligencia emocional a través de la psicomotricidad y de
talleres de habilidades sociales. Sportis, 3(1), 187-205. Recuperado de http://ruc.udc.
es/dspace/handle/2183/22759

Lezcano M., D. A., Melgarejo, O. J., Ureta Q., V. S., Arrom C., C. H., & Romero N., M. M.
(2015). Test del dibujo de la figura humana en pacientes en edad pediátrica víctimas
de violencia psicológica. Estudio de casos. Memorias del Instituto de Investigaciones
en Ciencias de la Salud, 13(3). Recuperado de http://revistascientificas.una.py/index.
php/RIIC/article/view/638

958
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Masschelein, J. (2006). E-ducar la mirada: la necesidad de una pedagogía pobre. En


Dussel, I., & Gutiérrez, D. (Comp.) (2006), Educar la mirada. Políticas y pedagogías de
la imagen (pp. 277-293). Buenos Aires: Manantial. Recuperado de http://nuestraes-
cuela.educacion.gov.ar/bancoderecursos/media/docs/apoyo/apoyo04.pdf

MEN (2010). Revolución Educativa: Plan Sectorial 2010 - 2014. Colombia: Ministerio
de Educación Nacional. Recuperado de https://www.mineducacion.gov.co/1621/ar-
ticles-293647_archivo_pdf_plansectorial.pdf

MEN (2016). Lineamientos estándar para proyectos de dotación educativa. Ministe-


rio de Educación Nacional. Recuperado de https://www.mineducacion.gov.co/1759/
articles-357562_recurso_2.pdf

MINTIC (2016). Diseño y medición: Indicador Terminales por cada 100 habitantes En
el marco del Plan Nacional de desarrollo 2014 - 2018. Ministerio de Tecnologías de
la Información y las Comunicaciones. Recuperado de https://colombiatic.mintic.gov.
co/679/articles-74011_recurso_1.pdf

NCREL - METIRI Group. (2003). enGauge®21st Century Skills: Literacy in the Digital
Age. Recuperado de http://pict.sdsu.edu/engauge21st.pdf

Nixon, A. L., Tompkins, H., & Lackie, P. (2008). Curricular Uses of Visual Materials: A
Mixed-Method Institutional Study. Carleton College, Dean of the College Office.

Onieva L., J. L. (2015). El cómic online como recurso didáctico en el aula. Webs y apli-
caciones para móviles. Filología y Didáctica de la Lengua, (15), 105-127. Recuperado
de http://academica-e.unavarra.es/handle/2454/20374

Orozco C., J. C. (2006). Las distancias en educación en la sociedad del conocimiento.


Documentos Pedagógicos: Educación-Comunicación-Tecnologías. (12), 3-10.

Perales P., F. J. (2006). Uso (y abuso) de la imagen en la enseñanza de las ciencias.


Enseñanza de las ciencias: revista de investigación y experiencias didácticas, 24(1),
13-30. Recuperado de http://www.raco.cat/index.php/Ensenanza/article/viewFi-
le/73529/84737

Puleo R., E. M. (2012). La evolución del dibujo infantil. Una mirada desde el contexto
sociocultural merideño. Educere, 16(53), 157-170. Recuperado de https://www.re-
dalyc.org/pdf/356/35623538016.pdf

Rodríguez V., F. I. (2014). Profesores y la novela gráfica: una herramienta pedagógica


para el desarrollo del inglés como lengua extranjera (tesis de maestría). Pontificia
Universidad Católica de Chile, Santiago de Chile, Chile. Recuperado de https://repo-
sitorio.uc.cl/handle/11534/4941

959
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Romero C., S., & Gómez M., G. E. (2013). El desarrollo del lenguaje evaluativo en nar-
raciones de niños mexicanos de 3 a 12 años. Actualidades en Psicología, 27(115),
15-30. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0258-64442013000200004

Sánchez B., J. A. (2010). Modelo Educativo Aceleración del aprendizaje: Guía docente.
Colombia: Ministerio de Educación Nacional. Recuperado de http://redes.colombia-
aprende.edu.co/ntg/men/archivos/Referentes_Calidad/Modelos_Flexibles/Acelera-
cion_del_Aprendizaje/Guia_del_docente/Guia%20Docente.pdf

Sanz M., Z. (2019). El dibujo como herramienta de trabajo para reducir el acoso esco-
lar (tesis de pregrado). Universidad de Valladolid, Valladolid, España. Recuperado de
http://uvadoc.uva.es/handle/10324/36997

Schmidt Q., M. (2006). Estándares Básicos de Competencias en Lenguaje, Matemáti-


cas, Ciencias y Ciudadanas. Colombia: Ministerio de Educación Nacional. Recupera-
do de https://www.mineducacion.gov.co/1621/articles-340021_recurso_1.pdf

Segovia A., B. (2010). Desarrollo de la narrativa visual de los escolares con el cómic.
Revista Iberoamericana de Educación, (51). Recuperado de http://helvia.uco.es/han-
dle/10396/3979

Segovia A., B., & Racionero S., F. (2015). Educar para la cultura visual ¿un reto o una
necesidad? Una propuesta metodológica. Revista de Investigación en la Escuela,
(85), 87-100. Recuperado de https://idus.us.es/xmlui/handle/11441/59753

Stokes, S. (2002). Visual Literacy in teaching and learning: a literature perspective.


Electronic Journal for the Integration of Technology in Education, 1 (1). Recuperado
de http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/summary?doi=10.1.1.136.7248

Villa, N. (2008). Propuesta de alfabetización visual para estudiantes de educación


básica apoyada en recursos hipermediales. Un aporte a la comprensión lectora. Re-
vista Interamericana de Bibliotecología, 1(1), 207-225. Recuperado de http://www.
redalyc.org/pdf/1790/179014347009.pdf

Villafañe, J. (2006). Introducción a la teoría de la imagen. Madrid: Ediciones Pirámide.

Zunzunegui, S. (2010). Pensar la imagen. 7 ed. Madrid: Cátedra.

960
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Madalena Ribeiro Grimaldi1 and


Cristiano Nogueira Da Silva2

A magia da ilusão
The magic of illusion

Resumo
As intervenções ilusórias visuais são um meio expressivo que vem sendo uti-
lizado em diferentes situações ao longo da história da arte. Entre os diversos
procedimentos de intervenções ilusórias visuais, como formas de expressão ar-
tística, encontram-se aqueles que criam ilusões chamadas de Anamorfoses. Essa
forma de arte sugere ao espectador uma imagem flexível que, dependendo do
ponto de vista, sofre uma metamorfose que pode gerar um novo significado.
Esse artigo visa estimular as associações entre as imagens mentais, a memória
e as construções com efeitos ilusórios de modo a instigar a capacidade de abs-
tração e a concepção de ideias criativas para intervenções em áreas ligadas ao
design, à arte e à arquitetura. Como pesquisa de campo foram elaborados três
experimentos anamórficos: uma escultura, uma projeção e uma plotagem. Essas
criações são uma possibilidade para brincar com paradoxos e o ilógico, além de
incitar ideias e sensações, representando a mágica da ilusão.
Palavras-chave: Percepção Visual; ilusão; anamorfose e criatividade.

Abstract
Visual illusory interventions are means of expressions that has been used in differ-
ent situations throughout the history of art. Among the various procedures of visual
illusory interventions, as forms of artistic expression, are those that create illusions
called Anamorphoses. This form of art suggests to the viewer a flexible image that,

1 Madalelna Ribeiro Grimaldi, Arquiteta, com Pós-doutorado no Transtechnology Research Group,


Plymouth University, Inglaterra, Doutorado em Planejamento Urbano e Regional, Mestrado em Ar-
quitetura. Professora Associada DE do Departamento de Técnicas de Representação na EBA, Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro. Lidera o grupo de pesquisa: Percepção Visual e Representação
Projetiva. É Diretora da Escola de Belas Artes / UFRJ. http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visu-
alizacv.do?id=K4763295H6
2 Cristiano Nogueira da Silva, Graduado em Desenho Industrial – Programação Visual na Escola de
Belas Artes da UFRJ em 2007. Cursando o mestrado em Design na mesma instituição. Possui 01
artigo publicado em revista (RBEG). Artista e pesquisador, tem experiência profissional nas áreas de
Design, Pintura e Fotografia; com exposições coletivas. Investiga os Processos Alternativos de Foto-
grafia e as construções Anamórficas na produção visual contemporânea.

961
124
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

depending on the point of view, undergoes through a metamorphosis that can


generate a new meaning. This article aims to stimulate the associations between
mental images, memory and constructions with illusory effects in order to instigate
the capacity for abstraction and the conception of creative ideas for interventions in
areas related to the design, art and architecture. As field research three anamorphic
experiments were elaborated: a sculpture, a projection and a plot. These creations
are a possibility to play with paradoxes and the illogical, besides inciting ideas and
sensations, representing the magic of illusion.
Keywords: Visual Perception; illusion; anamorphosis and creativity.

Reflexões iniciais
As questões que envolvem as ilusões perceptivas despertam interesse em diversas
áreas do conhecimento humano. Em decorrência disso, diferentes pesquisas asso-
ciadas aos sentidos, com ênfase na construção visual, foram desenvolvidas. Ao longo
das últimas décadas, esse interesse tem se intensificado, principalmente por causa
das descobertas sobre suas características cognitivas. Mas, o que é a ilusão percep-
tual? Como construímos um percepto ilusório? Quais mecanismos fisiológicos e psi-
cológicos produzem a nossa percepção ilusória?

Longe de ser um simples registro mecânico dos elementos sensórios captados, a


percepção demonstra ser uma apreensão imaginativa e inventiva da realidade.
Apoiados nessa concepção, alguns artistas criam obras que encantam e provocam
questionamentos e entendimentos contraditórios. Essa combinação de elementos
sensoriais acrescidas de subsídios da memória representam um processo essencial
para estimular a capacidade de abstração e imaginação.

A percepção encontra-se, portanto como o evento final de uma série de efeitos co-
nectados ao meio ambiente, cuja construção imagética não é a representação fiel do
mundo, mas um correlato do que a mente cria. Uma linguagem biológica de trans-
dução daquilo que chamamos de “realidade”. E quando essas sensações estão num
contexto, que provocam suposições, podem-se criar condições perceptivas de ilusão.

Percepção Visual, Memória e Imagem Mental


A palavra percepção tem origem etimológica no latim perceptìo, ónis, que significa
compreensão, faculdade de perceber (HOUAISS, 2002). O médico e físico alemão Her-
mann von Helmholtz (1910) caracterizou a percepção visual como uma dedução do
inconsciente formulada a partir dos dados sensoriais e do conhecimento preexistente.
Segundo ele, o cérebro extrai as informações captadas pelos sentidos e as interpreta
em função de experiências anteriores com as quais seja possível fazer associações. Es-
sas relações ou construções mentais são formuladas utilizando-se da memória.

962
125
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Para o historiador da arte Ernst Gombrich (2007) perceber é a capacidade de in-


terpretar a informação que os sentidos recebem e está relacionada aos processos
cognitivos individuais. É sinônimo de observar diferenças, relações, organizações e
sentidos. O papel de tais estruturas de conexão dos sentidos indica que as imagens
mentais são compostas de dados sensoriais derivados da visão e, sobretudo, de me-
mórias do tato e do movimento.

As inferências individuais são definidas pelos neurocientistas Baldo e Haddad (2003)


como informações que o organismo “colhe” do ambiente o tempo todo. Represen-
tam uma relação de interdependência de onde extraímos informações corretas, in-
corretas, corretas dentro de certo grau de precisão ou corretas em certas situações.
São conclusões inferidas a partir de observações múltiplas e podem ser testadas e al-
teradas, num constante processo intrinsicamente ambíguo. Os pesquisadores com-
provam ainda que as discrepâncias perceptivas podem surgir a partir de condições
idênticas de estimulação.

Essas discrepâncias são moldadas pela prática individual, referem-se a um proces-


so evolutivo, relacionado também, às alterações biológicas sofridas pelo indivíduo,
desde o seu nascimento, até seu desenvolvimento final. Isto é possível a partir da
grande plasticidade do sistema nervoso, que permite que perceptos novos sejam
aprendidos e perceptos já formados sejam alterados. Como afirmam Baldo e Had-
dad (2003, p.7) “Toda observação é contaminada de conhecimento, de aprendizado
e de hipóteses”.

Neste momento é interessante fazer uma distinção entre ver e perceber. Ver é um
processo passivo de obter informação sensorial visual, enquanto que perceber pos-
sui um componente de reconhecimento e compreensão. Segundo Alva Noë (2004),
a percepção não pode ser algo meramente passivo, que simplesmente acontece em
nós (em nosso corpo), ela é determinada pelo o que fazemos (ou pelo que sabemos
como fazer); isto é, determinada pelo o que estamos prontos para fazer. Muitas vezes
podemos ver e não perceber.

O outro fenômeno importante sobre a percepção é fundamentado nas relações en-


tre aquilo que é percebido e a mente de quem percebe. Um dos autores que trata da
importância da imagem mental é Gibson (1974, p.24, apud SANTAELLA, 2003, p.6):

“Se tudo que percebemos nos chega mediante a estimulação de nossos órgãos sensoriais, e se,
apesar disso, certas coisas não têm contrapartida na estimulação, é necessário assumir que estas
últimas são, de algum modo, sintetizadas. Como essa síntese ocorre, é o problema da percepção.”

O olho e o cérebro formam uma rede complexa, tornando-se parte integrante um


do outro, onde estímulos elétricos e memória nos possibilitam enxergar e assimilar
o mundo à volta. O cérebro extrai as informações captadas pelos sentidos e as inter-

963
126
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

preta em função de experiências anteriores com as quais seja possível fazer associa-
ções. Para fazer essas correlações ou construções mentais precisamos da memória.

Segundo Santaella (2003)

A correspondência entre o resultado perceptivo e aquilo que o provoca não é, portanto, ponto a
ponto. Há uma diferença, há um descompasso, ou melhor, algo se perde e algo se acrescenta. Isso
que se acrescenta, especialmente, e que ocorre na passagem dos órgãos sensoriais para o cérebro
por enquanto ainda não é observável ou mensurável. Ai se localiza, exatamente, a questão da
percepção. (p. 6 e7)

O cérebro tem a propensão de fazer suposições, representações mentais as quais funcio-


nam como estruturas cognitivas que se formam na memória. O que revela um fenômeno
importante sobre a percepção visual que é a “facilidade de ser enganada”. Assim, alguns
artistas, ao longo dos séculos, têm usado essa qualidade para causar nos espectadores a
ideia de ver além do que realmente está lá. Essas discrepâncias são denominadas ilusões.

Ilusões Visuais - Anamorfose


Diferentemente de algumas definições que propõem ser uma ilusão a discrepância
entre o “percebido” e o “real”, os neurocientistas Baldo e Haddad, concebem as ilu-
sões como surgindo da discrepância entre o “percebido em uma dada situação” e o
“percebido em outra situação”. Atualmente podemos encontrar obras de arte que
exploram os limites da percepção visual, sobretudo, do espaço que nos rodeia e,
consequentemente, da arte contemporânea (inserida nesse espaço). Assim, alguns
artistas aproveitam-se dessas apropriações, concebidas, muitas vezes, a partir de in-
terpretações equivocadas, para provocar (induzir) ilusões. Um desses artifícios ilusó-
rios é o processo artístico denominado Anamorfose.

Trata-se de um processo de transformação da imagem, baseado em estudos de ge-


ometria e perspectiva, de modo a colocar o observador sob um determinado ponto
de vista, o único, a partir do qual a instalação se apresenta em uma forma legível (ou
compreensível – prevista pelo autor), porém ilusória.

As construções anamórficas procuram negar as convenções usuais de “olhar”, e se


baseiam na localização específica do observador. A representação da imagem pare-
ce distorcida ou mesmo irreconhecível sob um ponto de vista qualquer, tornando-se
legível quando vista de um determinado ângulo, a certa distância, ou ainda com o
uso de lentes especiais.

A construção anamórfica pictórica representada conserva certas premissas do artifício


da perspectiva e, ainda que, para visualizar a ilusão, seja necessário que o observa-
dor se posicione em um ponto de vista estratégico (“ponto de vista anamófico”), cabe

964
127
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

destacar que, a intervenção, mesmo fora do ponto específico de visibilidade do plano


projetado da imagem, já é por si só uma obra de arte. É uma visão ativa e forjada, com-
pletada por indução do observador, em um processo de encontro ao ilusório.

Ainda que a Anamorfose tenha acontecido em diversos outros momentos da histó-


ria da arte, passado por diferentes movimentos artísticos, esta técnica foi ressusci-
tada por muitos artistas e designers nos últimos anos, com trabalhos anamórficos
que despertam a curiosidade. Ao investigar como o ser humano interage com uma
Anamorfose, esse trabalho pretende contribuir para fomentar uma reflexão sobre
interface com a arte, estimulando a concepção de ideias novas para intervenções
artísticas de qualidade nesse campo.

Os experimentos
Para embasar a discussão esta pesquisa construiu três experimentos anamórficos:
uma escultura, uma projeção e uma plotagem, com a intenção de levar o observador
a um mergulho nas zonas mais sensíveis ao experimentar o as discrepâncias percep-
tivas e, ao mesmo tempo, estimular diferentes aplicabilidades nas criações ligadas à
arte e ao design.

Escultura Anamórfica
Essa obra faz parte da exposição Galeria Curto Circuito, uma iniciativa do Parque Tec-
nológico da UFRJ e da Escola de Belas Artes (EBA/UFRJ). Em seu 2º ciclo, inaugurado
em junho de 2018, a mostra permanente e gratuita, contempla obras espalhadas
numa área de 350 mil m². A escultura executada trata-se de um processo de trans-
formação da imagem, baseado em estudos de geometria e perspectiva, de modo a
colocar o observador sob um determinado ponto de vista, o único, a partir do qual a
instalação se apresenta em uma forma legível, porém ilusória.

A ideia foi construir um trabalho prático que criasse inferências, definida pelas ex-
pectativas e suposições das percepções dos observadores. Mais que uma simples
brincadeira ilusória, pensou-se em despertar um pensamento crítico reflexivo. Assim
foi pensado num conjunto, aparentemente caótico de peças flutuando como pás-
saros livres voando, que subitamente se alinham para formar uma imagem gráfica
organizada de uma gaiola, no entanto, ilusória – da privação da liberdade.

Os “pássaros livres voando” foram produzidos, ironicamente, de ferro em uma serra-


lheria. Um metal que nos passa a sensação de pesado, duro e que nos remete ao uso
proeminente de ferramentas e armas. No entanto, percorrendo a instalação, a ima-
ginação do observador encontra a ocasião para receber, no pensamento, a leveza
dos pássaros flutuando - representando a liberdade. Subitamente, a gaiola aparece
e com ela o peso da prisão – da opressão.

965
128
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Os “pássaros” (de ferro) voltam a ter a força do material, rígido, aparentemente in-
quebrável. Para sustentar a escultura exposta em área externa foi pensada em um
suporte resistente, principalmente, a ação do vento, com dimensões: Largura 0,90 m
x Comprimento 2,0 m X Altura 2,5 m (Figura 1A). Foram cortados manualmente 100
pássaros de ferro, pesando 48 gramas e medindo 18 x 18 cm (Figura 1B). Eles foram
pendurados na estrutura com fio de nylon de 70 mm.

Vista Lateral Vista Frontal

(A) (B)

Figura 1A: Desenho digital para escultura anamórfica;


1B: Desenho digital do “pássaro” . Fonte: dos autores

A montagem da obra foi realizada em um galpão durante 2 dias, com o auxílio de de


um celular para se ter a posição anamórfica de percepção da gaiola (Figura 2). O local
para a implantação da obra foi um cruzamento que possibilitaria a visão de diversos
ângulos, sobretudo, com um fundo azul fortalecendo a poética da profundidade, ex-
plorando a noção de liberdade pela imagem do horizonte (Figura 3A e 3B). A escultura
observada no ponto anamórfico tem por trás um fundo branco (paredes de uma em-
presa), cujo contraste com os “pássaros” pretos fortalecem a ilusão (Figura 3C).

Figura 2: O processo construtivo. Fonte: dos autores

966
129
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

(A) (B) (C)

Figura 3 (A): Escultura anamórfica em um ângulo qualquer; 3(B) Detalhe da escultura em um


ângulo qualquer; 3(C) Escultura vista de um ângulo específico
Fonte: dos autores

A obra com suas formas, a princípio arbitrárias, revela segundas intenções, as quais se
manifestam por meio do movimento dos transeuntes no espaço dado na diversidade
de pontos de vista, fazendo da Anamorfose mais que uma simples imagem projetada.

Projeção Anamórfica
Como proposta artística para uma intervenção na circulação interna (corredores de
embarque/desembarque) do Aeroporto Internacional Tom Jobim (Figura 4A), na ci-
dade do Rio de Janeiro foi proposto uma instalação anamórfica feita por projeção.

A intenção era proporcionar ao passageiro que circula nessas áreas de grandes dis-
tâncias uma experiência lúdica que humanizasse o percurso e fizesse referência ao
estilo de vida carioca. Para tanto, foi escolhido o traçado das ondas, as sinuosas e
sensuais curvas, do calçadão de Copacabana. Elas são o logotipo do bairro, da cida-
de do Rio de Janeiro e, em muitos casos, do próprio Brasil (Figura 4B).

O processo de construção foi feito por meio de um retroprojetor, onde foram dese-
nhadas as curvas do calçadão de Copacabana, as quais foram pintadas, posterior-
mente, de tinta acrílica preta nas paredes e no teto. Para capturar as curvas, as quais
simbolizam o calçadão de Copacabana, flutuando livremente na área de circulação
do aeroporto, o observador deve encontrar o ponto de vista correto, em meio ao
corredor de embarque/desembarque do aeroporto (Figura 4C). Sendo este, o ponto
a partir do qual foi projetado o desenho. No entanto, com um simples deslocamen-
to, a imagem do “calçadão” parece dividida em diferentes planos, formas alongadas,
e se dissiparem no espaço em mudança com o movimento dos transeuntes.

967
130
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

(A) (B) (C)

Figura 4A: corredor de desembarque; 4B: Fotografia aérea da praia de Copacabana; 4C: Projeção
anamórfica. Fonte 4A e 4C: dos autores; 4B: https://www.fotografiasaereas.com.br/imagem-aerea/
coqueiros-no-calcadao-de-copacabana/

Para fortalecer e estimular o tema da alma carioca, do Rio de Janeiro, da cidade


quente, o pôr do sol dourado, o “Rio 40 graus” (Figura 5A), se propôs, também, a
instalação de películas adesiva filme para vidros (em cores quentes), dentro dos li-
mites da marcação pictórica das curvas (Figura 5B). A intervenção nos vidros visou
diminuir a percepção costumeira do espaço “frio” dos corredores e trazer a atmosfera
do calor do Rio de Janeiro, já dentro dos corredores do aeroporto.

(A) (B)

Figura 5A: calçadão com reflexo de sol ; 5B:


Projeção anamórfica com filtro. Fonte: dos autores

A experiência de visualizar sinuosas e sensuais curvas nas superfícies das paredes e


teto, pintados nas circulações do aeroporto, sem motivo aparente, dissonantes entre
si, mas que de repente convergem em um plano ilusório, composto pela imagem ge-
ométrica do “calçadão de Copacabana”, representa uma possibilidade de estimular a
curiosidade dos passageiros.

968
131
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Plotagem Anamórfica
Para a construção desse experimento foi escolhido a pintura surrealista do artista
Salvador Dalí intitulada “Sonho Causado Pelo Voo de uma Abelha ao Redor de Uma
Romã um Segundo Antes de Acordar” (Figura 6A). Inicialmente foram escolhidos
quais elementos seriam construídos por meio da anamorfose, sendo eles: os tigres,
as romãs e o peixe. Também optou-se pela retirada de alguns elementos, tais como
a mulher e a espingarda (Figura 6B). O preenchimento dos
vazios foi feito com uma
pintura a óleo, posteriormente digitalizada para ser usada no programa de compu-
tação gráfica Photoshop (Figura 6C).

(A) (B) (C)

Figura 6A: Sonho Causado pelo Voo de uma Abelha ao Redor de Uma Romã um Segundo Antes de
Acordar (Dali, 1944); 6B: retirada dos elementos; 6C: preenchimento dos vazios. Fonte 6A: http://
imgkid.com/salvador-dali-dream-caused-by-the-flight-of-a-bee.shtml 6B e 6C: dos autores

Mantendo as proporções originais da tela: 53 x 41 cm foi estabelecido que a imagem


seria construída no tamanho de 2.00 x 2.60 m. Os elemento anamórficos (os tigres,
as romãs e o peixe) foram construídos utilizando-se do inverso do método de Al-
berti. Para o processo de visualização do efeito tridimensional foi definido a altura
do ponto de vista do observador em 1,45 metros e a sua localização deveria ser a
uma distância de 2,20 metros do início da imagem (Figura 7A). Fixando a imagem
ao tamanho real de 2,60 metros de comprimento; a representação dos elementos
para simular a perspectiva anamórfica deveriam ter o valor de 4,86 metros de com-
primento total (Figura 7B).

969
132
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

(A) (B)

Figura 7A: Processo de construção da anamorfose; 7B:


Elementos anamórficos.Fonte: dos autores

Essa figura foi plotada em adesivo resistente e fixada no saguão térreo do edifício da
Reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Ilha do Fundão, no Rio de Janeiro.
Quando vista de um ângulo qualquer, a figura assim desenhada proporciona uma visão
duvidosa e enigmática (Figura 8A). Por outro lado, ao mirar-se a cena a partir da posição
de uma máquina fotográfica com uma lente grande angular de 24 mm instalada no lo-
cal específico, a composição aparentemente disforme passa a ter forma tridimensional
aos olhos do observador; é justamente este o efeito de uma ilusão (Figura 8B).

Figura 8A: Composição da figura anamórfica; 8B: Projeção da anamorfose, vista por um ângulo
específico. Fonte: dos autores

970
133
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Durante o experimento, chamaram a atenção do pesquisador duas principais ocor-


rências quanto à atividade do público: (1) a relação meramente da observação da
imagem, ao contemplar seus efeitos em terceira dimensão; (2) a interatividade com a
instalação, conduzindo a um entusiasmo maior do participante, quando este atuava
como um agente transformador da arte. A Figura 9 mostra uma diversidade de proce-
dimentos de ação e de interação em situações e experiências dos espectadores.

Figura 9: Pessoas interagindo com a imagem anamórfica. Fonte: dos autores

Considerações Finais
Esse artigo visou contribuir para estimular a concepção de ideias novas para inter-
venções artísticas em áreas do design e da arte. Servindo como fonte de transmu-
tação perceptiva, base para uma transformação criativa que possa aumentar a po-
tência de agir dos artistas/designs e dos afetos dos observadores. Tornando, desse
modo, imprescindível o enriquecimento das experiências sensoriais (visuais), pois o
domínio do conhecimento, sobretudo perceptivo, que é abstrato, ocorre proporcio-
nalmente ao enriquecimento do concreto-sensorial do ser humano.

As intervenções anamórficas permitiram analisar que as mudanças na apreensão visu-


al/mental do público ao adquirir novas informações, a partir da construção perceptiva
de outro elemento (novo significado), dentro da mesma obra. Os participantes que
logo presenciavam tais discrepâncias surpreendiam-se como se seus sistemas senso-
riais estivessem sendo ”enganados”. Por outro lado, ainda que o sujeito passante não
tivesse a experiência de visualizar a obra do ponto de vista anamórfico, tinha a possi-
bilidade de percepções variadas e assim, sob diversos ângulos de visualização, faziam
das obras anamórficas uma leitura a ser apreciada entre o movimento e a estaticidade.

971
134
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART
Fluxo de Dados: • 2019 • ISSN:
Visualização 2238-0272
e Sonificação

Obviamente, a possibilidade de ser vista de diversas perspectivas pertence a toda


obra de arte, mas o que é próprio na Anamorfose é que a forma completa ilusória
reconstrói-se pouco a pouco, com o movimento, na imaginação do fruidor. Não como
escultura ou uma pintura isolada, mas uma projeção conexa (com seus diversos outros
pontos de vista) passível, assim, de reconstruir nossas percepções da obra em questão.

Na comunicação visual, imagens ilusionistas e ambíguas utilizam-se de processos


correlatos, identificando abordagens distintas para despertar à atenção visual e al-
cançar qualquer tipo de público. Fazer design é pensar em soluções agradáveis e
coerentes com o meio onde são utilizadas ou aplicadas. Essa é uma atividade es-
tratégica, técnica e criativa, normalmente orientada por uma intenção ou objetivo,
realizado através de projetos que levam em conta vários aspectos que vão desde o
público-alvo até questões sociais e culturais.

Assim, entre os diversos procedimentos de interferência artísticas existentes, parece


apropriado destacar a demanda por intervenções que construam situações sob uma
perspectiva diferente de encontro entre a arte e as pessoas. As criações anamórficas
são para os interessados uma possibilidade em brincar com paradoxos e o ilógico,
além de incitar ideias e sensações e produzir conteúdo crítico. Essa é a mágica dessa
transformação.

Referências
BALDO, Marcus Vinícius; HADDAD, Hamilton. Ilusões: o olho mágico da percepção.
Revista Brasileira de Psiquiatria. São Paulo, v.25, p.6-11, dez. 2003.

GIBSON, James J. The Perception of the Visual World. Boston: Houghton Mifflin, 1950.

GOMBRICHI, Ernst Hans. Arte e Ilusão: Um estudo da psicologia da representação


pictórica. São Paulo: Martins fontes, 2007.

HELMHOLTZ, Hermann von. Treatise on Physiological Optics. New York: Dover, 1910.

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Ed.


Objetiva, 2009.

NOË, Alva. Action in Perception. Cambridge: The Mit Press, 2004.

SANTAELLA, Lúcia. Percepção: Fenomenologia, Ecologia, Semiótica. São Paulo:


Cengage Learning, 2010.

972
135
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Marcelo de Mattos Salgado1

A semiótica dos astros: uma análise dos códigos de símbolos


planetários e signos astrológicos
The semiotics of the stars: an analysis of the codes of planetary symbols and
astrological signs

Resumo
Este trabalho parte de Peirce, Nöth, Santaella e Guiraud para analisar, do ponto de
vista da semiótica peirceana, os símbolos planetários como um código. Também
considera semioticamente sua parcial derivação mântica (do grego mantikos: pro-
fético, oracular) conhecida como astrologia, elemento rico da cultura que alimen-
ta as obras de artistas variados ao longo da história. Para tornar a investigação
mais específica, são analisados alguns dos chamados — de forma não semiótica
— signos astrológicos ocidentais. A partir de definições essenciais, como semióti-
ca, signo e código, fica mais claro avaliar como os glifos planetários e astrológicos
configuram um código. Depois de uma avaliação das semioses de símbolos pla-
netários e signos astrológicos em função das dez classes principais de signos, de
acordo com Peirce (Nöth & Santaella, 2017), segue uma análise mais detalhada de
elementos icônicos, simbólicos e indexicais que compõem dois glifos que exem-
plificam os referidos códigos: Marte e Áries. Também veremos como esses elemen-
tos se combinam e de que forma seu interpretante é formado.
Palavras-chave: Semiótica, Código, Astronomia, Astrologia, Signo.

Abstract
This work starts from Peirce, Nöth, Santaella and Guiraud to analyze, from the point of
view of Peircean semiotics, planetary symbols as a code. It also semiotically considers
its partial mantic derivation (from the Greek mantikos: prophetic, oracular) known as
astrology, a rich element of culture that feeds the works of various artists throughout
history. To make the investigation more specific, some of the so-called — non-semiot-
ically — Western astrological signs are analyzed. From essential definitions such as se-
miotics, sign, and code, it becomes clearer to evaluate how planetary and astrological
glyphs shape a code. Following an assessment of the semioses of planetary symbols
and astrological signs against the ten major classes of signs, according to Peirce (Nöth
& Santaella, 2017), a more detailed analysis of iconic, symbolic and indexical elements

1 Doutorando no TIDD (Tecnologias da Inteligência e Design Digital) na PUC-SP, Brasil. Mestre em


Comunicação Social, jornalista, professor e escritor de poemas.

973
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

that make up two glyphs will follow to exemplify these codes: Mars and Aries. We will
also see how these elements combine and how their interpretant is formed.
Keywords: Semiotics, Code, Astronomy, Astrology, Sign.
Introdução
Este trabalho parte em especial de Peirce, Nöth, Santaella e Guiraud para analisar,
desde a semiótica, os símbolos planetários como um código. Também considera se-
mioticamente sua parcial derivação mântica (do grego mantikos: profético, oracular)
conhecida como astrologia. Para tornar a investigação mais específica, ainda serão
analisados alguns dos chamados — de forma não semiótica — signos astrológicos
ocidentais.

A partir das definições de semiótica, signo e código (assim como de semiose e in-
terpretante, posteriormente), ficará mais claro avaliar se e de que modo os glifos
planetários e astrológicos configuram um código. Depois de uma primeira avaliação
mais superficial das semioses de alguns símbolos planetários e signos astrológicos
em função das dez classes principais de signos, de acordo com Peirce (Nöth & San-
taella, 2017, pp. 60–63), teremos uma análise mais detalhada de elementos icônicos,
simbólicos e indexicais que compõem dois glifos que exemplificam os referidos có-
digos: Marte e Áries. Também veremos como esses elementos se combinam e de que
forma seu interpretante é formado.

Definições principais: semiótica, signo e código


Nöth e Santaella (2017, p. 7) trabalham as primeiras definições sobre semiótica da
seguinte maneira: “A semiótica estuda os signos. […] É a ciência dos sistemas e dos
processos sígnicos na cultura e na natureza. [...] A palavra semiótica (originalmente
semeiótica) vem do grego antigo onde seméion significa ‘signo’”.

Em seu “Panorama da semiótica”, a partir de uma definição semelhante, Nöth destaca


as divergências conceituais históricas: “Várias escolas da semiótica preferem defini-
ções mais específicas e restritivas; muitas exigem que a semiótica se ocupe apenas
da comunicação humana” (1995, p. 17). Ainda há a semiologia, que Guiraud rapida-
mente conecta a Saussure e chama de “a ciência que estuda os sistemas de signos:
linguagens, códigos, sinalizações etc. Esta definição inclui a língua” (1973, p. 7). De
volta a Nöth e Santaella, para esclarecer as terminologias, temos que:

Desde o século XVIII, semiótica e semiologia (ou semeiologia) eram termos alternativos para a
mesma ciência dos signos em varias línguas europeias. Dos dois termos, o termo semiologia pre-
dominava na semiótica dos países de língua romana, especialmente na França. Hoje, a palavra
semiótica entrou em uso mais comum. Mas já em 1972 a Associação Internacional de Estudos
Semióticos havia adotado o termo semiótica, ao invés das suas alternativas terminológicas, para
designar a ciência dos signos. (2017, pp. 7–8)

974
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Os mesmos autores, a partir de Peirce, consideram a primeira definição provisória e


parcial de signo como algo que está no lugar de outra coisa, ou seja, a representa.
Esta outra coisa é, também desde Peirce, o objeto. O texto presente trabalhará com
estas definições.

Um signo é algo que se refere a algo diferente de si mesmo. Essa outra coisa é chamada de refe-
rente do signo ou, na terminologia da semiótica de Charles S. Peirce, o objeto do signo. O signo
refere-se a, representa ou indica o seu objeto. Objetos de signos não são necessariamente “coisas”,
quer dizer, objetos materiais. (Nöth & Santaella, 2017, p. 11)

Com base nas definições anteriores e de acordo com a classificação de Nöth e Santa-
ella (ibid.) dos signos conforme o canal perceptivo, os símbolos planetários, bem como
os chamados signos astrológicos — tipicamente observados em papel ou em uma
tela de computador ou telefone celular, como neste artigo — configuram signos visu-
ais ou óticos humanos. Visuais ou óticos pois são experimentados, primariamente, por
meio de nossos olhos, quando os vemos inscritos em documentos (sejam papéis ou
a tela de um telefone celular). E são signos porque se referem a objetos — que, neste
caso, existem fisicamente: os símbolos planetários se referem a objetos que são os pla-
netas do sistema solar; e os signos astrológicos se referem às constelações de estrelas
que também existem fisicamente no sistema solar (Figura 1).

975
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 1 — Montagem com fotografias de constelações no sistema solar às quais se referem os


signos astrológicos ocidentais. Crédito: Till Credner. Licença Creative Commons.

A observação quanto à natureza visual ou ótica dos signos vale, a partir de Nöth e
Santaella, tanto para os glifos de Mercúrio (☿) e Touro (♉) quanto para as palavras,
caso desta mesma frase. Afinal: “A palavra é um signo verbal, enquanto imagens são
signos visuais, mas o termo signo visual não descreve de uma maneira suficiente-
mente clara o universo das imagens, porque as palavras em forma escrita também
são representadas visualmente” (2017, p. 11).

O aspecto visual ou ótico também vale para observarmos suas representações, por
exemplo, em UTF-8 (Unicode Transformation Format) hexadecimal, uma codificação
binária de comprimento variado (ver Tabela 1). A menção ao código UTF-8 aqui tem
por objetivo tão somente ilustrar o potencial de complexidade representativa, in-
clusive metassígnica, de símbolos planetários e signos astrológicos, já que “signos
sem conteúdo próprio não significam nada, senão elementos do plano da expressão
de outro signo”, caso dos códigos secundários de Nöth e Santaella (2017, p. 163), do
qual UTF-8 é exemplo. No entanto, a avaliação específica do código UTF-8 não será
o foco deste trabalho.

A seguir, buscaremos a definição de código e a diferenciação entre códigos primá-


rios e secundários. Depois, faremos uma análise dos interpretantes criados por al-
guns glifos planetários e astrológicos.

Signos visuais ou óticos


Não verbal Verbal UTF-8 (hexadecimal

Mercúrio 0xe2 0x98 0xbf

Touro 0xE2 0x99 0x89

Tabela 1 — Signos visuais ou óticos Mercúrio e Touro em representações diferentes.

Para a definição mais importante que nos falta, a de código, recorremos novamente a
Nöth e Santaella. Os autores nos avisam que “o conceito de código, já na sua história,
tem sido usado em dois sentidos diferentes, o que tem resultado numa ambiguidade

976
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

fundamental no discurso semiótico” (2017, p. 151). Então, esclarecem com a distinção


entre código primário e código secundário: “(...) código primário para os códigos que são
sistemas de normas ou linguagens e código secundário para os que servem para trans-
formar mensagens de uma para outra forma (2017, p. 152).

Entre os códigos primários estão a Língua Portuguesa, o código de trânsito e o códi-


go da etiqueta; exemplos de códigos secundários incluem o código Morse, códigos
secretos ou cifras e o código binário. O UTF-8, como mencionado anteriormente,
configura um código secundário: tem caráter criptográfico (do grego kryptos, secreto;
e também do grego grafía, escrita). Neste caso, secundário e metassígnico, pois “o
código é a chave que torna primeiro a leitura da mensagem ilegível e depois legível
outra vez”, como em 0xE2 0x99 0x89, que codifica a palavra Touro (além de sua repre-
sentação pelo glifo ♉︎); ou seja, código (secundário) de um código (primário). Para ser
capaz de extrair o significado específico, um receptor e intérprete precisa conhecer
e ter condições de usar a chave particular. Caso não seja possível, esta pessoa não
decodificará a mensagem — que, no entanto, mantém seu “potencial semiótico” in-
tacto, seja ele atualizado ou não (Nöth & Santaella, 2017, p. 39).

Mas o foco de análise deste trabalho são os símbolos planetários e signos astroló-
gicos ocidentais como códigos. A partir da conceituação de Nöth e Santaella, tais
glifos são códigos primários não verbais, pois configuram um sistema de linguagens
e um “sistema semiótico autônomo que não precisa de tradução” (2017, p. 151).

Os autores admitem, entretanto, que a “ambiguidade da palavra código resulta numa


dificuldade de interpretação dos códigos dos quais os semioticistas falam” (Nöth &
Santaella, 2017, p. 162). A título de curiosidade, veremos brevemente como Hjelms-
lev e Meyer-Eppler consideram o conceito de código, ainda que não sejam utilizados
para o objeto deste artigo. Nöth e Santaella comentam que, para Hjelmslev,

(...) textos dos códigos primários são sem dúvida sistemas semióticos ou simbólicos (...) O plano de
expressão dos textos gerados por códigos primários consiste de um texto verbal ou não verbal e
um plano de conteúdo, que abrange os conceitos e normas nele formuladas. (2017, p. 162)

O próprio Hjelmslev, que tem uma perspectiva bem diferenciada em relação a outros
teóricos da semiótica quanto à natureza do signo, elabora uma compreensão mais ge-
nerosa e aberta a respeito do que pode ser considerado sistema de símbolo e código:

Cabe aos especialistas dos diversos domínios decidir se os sistemas de símbolos matemáticos ou
lógicos, ou certas artes como a música, podem ou não ser definidos desse ponto de vista como
semióticas. [...] Propomos chamar de sistemas de símbolos essas estruturas que são interpretáveis,
uma vez que é possível atribuir-lhes um sentido de conteúdo, mas que não são biplanares uma vez
que, segundo o princípio de simplicidade, uma forma de conteúdo não pode nelas ser introduzida
por catálise. (Hjelmslev, 1975, p. 118)

977
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Já a partir de Meyer-Eppler (como derivação de Jakobson, Shannon e Weaver), conforme


trazem Nöth e Santaella, temos que o código seria uma negociação entre duas partes.

Neste modelo, o código não é mais um recurso técnico para transformar ondas acústicas em im-
pulsos eletrônicos, mas uma designação metafórica para a competência linguística e cultural dos
emissores e receptores da mensagem, que se comunicam não mais na base de um código unívo-
co, mas em dois códigos, o do emissor e o do receptor da mensagem. O código, neste sentido, é o
repertório dos signos de dois participantes numa situação comunicativa. (2017, p. 156)

Embora Meyer-Eppler traga indagações interessantes acerca das trocas e do processo


social que ocorre tipicamente entre duas partes e os conflitos entre seus repertórios de
signos, o foco aqui diz respeito às tensões semióticas internas ao signo (e a seu objeto
e interpretante), o que nos leva a Peirce. Ainda sobre Meyer-Eppler, há o problema
de que “o modelo tenta ser politicamente correto: nenhum dos dois comunicadores é
caracterizado por um repertório sígnico maior” (Nöth & Santaella, 2017, p. 156).

As mânticas e a semiótica
Ao analisarmos o que Guiraud e Nöth têm a falar especificamente sobre as discipli-
nas de adivinhação e sua relação com a semiótica, sistemas de signos e o conceito de
código, encontramos registros que contribuem para este trabalho.

Sobre as mânticas, Guiraud afirmou que são “artes de adivinhação e meios de comu-
nicar com os deuses, o além e o destino. São sistemas de signos. Entre nós, as mais
conhecidas são a adivinhação pelos astros (astrologia), pelas cartas (cartomancia)”
(1973, p. 82). Pouco nos importa aqui a dimensão real ou imaginária do suposto as-
pecto divinatório da astrologia; apenas sua relação com o código de símbolos plane-
tários e a dimensão semiótica dos seus chamados signos — como Leão e Capricórnio.

Guiraud associa as mânticas ao pensamento selvagem de Lévi-Strauss, caracteriza-


do, entre outras coisas, por sistemas de significações pré-lógicas de caráter homo-a-
nalógico. Isto significa que:

O código é uma assimilação do desconhecido no conhecido, que empresta ao desconhecido a


estrutura — e, portanto, o sentido — do conhecido. Assim se passa com a astrologia, que postula
que as relações entre os homens são homólogas das que se observa entre os astros, relações ao
mesmo tempo no espaço (configurações celestes) e no mesmo tempo (movimento dos astros).
(Guiraud, 1973, p. 85)

O autor continua com mais exemplos e aproxima mais um pouco as mânticas do con-
ceito de código: “O signo pode estar isolado: um gato negro, a aranha da manhã ou da
noite etc., mas a mensagem pode ser também formulada a partir de uma combinação
de signos complexos organizados segundo um código” (Guiraud, 1973, p. 83).

978
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Isto indica que também a astrologia pode se estabelecer em sistemas de signos


(ou códigos, desde Guiraud), mas de tipo motivado, na medida em que utiliza es-
truturas reais como base: os astros e as constelações. Desta forma, o código dos
signos astrológicos não é inteiramente arbitrário, pois se refere a objetos — inclu-
sive sob uma ótica peirceana — como já vimos: sol, lua, planetas e constelações
(Guiraud, 1973, pp. 86–87). Ainda, o código de signos astrológicos tem relações
estreitas com o código de símbolos planetários, como ficará ainda mais claro ao
analisarmos alguns interpretantes.

Nöth auxilia a discussão ao trazer um panorama histórico e semiótico quanto a modelos,


que ele classifica de panssemióticos (do grego pan: tudo, que tudo inclui), inventados
por seres humanos para funcionar como chave semiótica de leitura do mundo natural:

Na cultura da Idade Média até a Renascença, havia modelos semióticos não só para a interpreta-
ção daqueles signos humanos, animais ou naturais, que a semiótica moderna ainda estuda, mas
também modelos ainda mais ambiciosos, criados para servir de chave semiótica para a interpre-
tação de todo o mundo natural. Os mais importantes desses modelos panssemióticos do mundo
são o modelo dos quatro sentidos exegéticos na Idade Média e o modelo das assinaturas das
coisas, na Renascença (Nöth, 1995, p. 37).

O autor também aborda as mânticas, embora não use esta expressão, inclusive a
astrologia. Nöth as associa à doutrina das assinaturas e as denomina “um sistema
elaborado de códigos para a interpretação de signos naturais”:

A visão panssemiótica do mundo chegou ao apogeu na doutrina das assinaturas da Renascença,


quando foi estudada na obra do médico Paracelsus (1493–1541). Aí encontramos um sistema ela-
borado de códigos para a interpretação de signos naturais, onde não só deus aparece como autor
das mensagens do mundo, mas é acompanhado de três outros emitentes (assinantes) de signos
naturais (De Nat. Rer., 1591): primeiro, o homem, em segundo, um princípio interior do desenvol-
vimento chamado archaeus e, em terceiro lugar, as estrelas ou planetas (astra). (Nöth, 1995, p. 38)

Nöth completa afirmando que “os segredos semióticos das assinaturas da terra, do
fogo, da água e dos astros foram descobertos pelos códigos da geomancia, da piro-
mancia, hidromancia e da astrologia” (2017, p. 39). Também destaca a relação de ico-
nicidade, conforme a doutrina das assinaturas, que os signos do mundo natural man-
têm entre si, “porque existem semelhanças, analogias, afinidades ou correspondências
escondidas que os ligam numa relação panssemiótica” (2017, p. 39). Algumas dessas
relações de iconicidade se estendem aos símbolos planetários e aos signos astrológi-
cos, como poderemos observar mesmo em algumas de suas semioses mais simples,
nas Tabelas 2 e 3, adiante.

979
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Análise de símbolos planetários e signos astrológicos


desde a tipologia de Peirce
O que vem à mente de uma pessoa que lê a palavra Áries ou enxerga o glifo respecti-
vo (♈)? Este é o tipo de pergunta que precisamos fazer para começarmos a penetrar
os processos semióticos de interpretação considerados aqui. Neste sentido, é funda-
mental recuperar mais dois conceitos: semiose e interpretante. Para Nöth e Santaella,
a partir de Peirce, semiose é o “processo pelo qual o signo tem um efeito cognitivo
sobre o intérprete” (2017, p. 39). Sob a ótica peirceana, o signo funciona como “um
mediador entre objeto e o interpretante, que resulta como seu efeito significativo no
processo de semiose” (2017, p. 39). Ou, ainda, desde a perspectiva triádica de Peirce:
“o signo ou representamen é o primeiro que se relaciona a um segundo, denominado
objeto, capaz de determinar um terceiro, chamado interpretante” (2017, pp. 38–39).

O interpretante é avaliado, desde a perspectiva peirceana e com Nöth e Santaella,


de acordo com o efeito do signo na mente do intérprete (2017, p. 47). Isto ocorre
em três graus, definidos por Peirce da seguinte maneira: 1) interpretante imediato,
ou seja, sem mediação. Identifica-se com a Primeiridade, a “potencialidade do signo
para ser interpretado” (2017, p. 47); 2) interpretante dinâmico, associado à Secundi-
dade. Diz respeito ao efeito direto de fato produzido pelo signo sobre um intérprete
— pode variar com cada nova interpretação; e 3) interpretante final, que opera na
Terceiridade e se relaciona a hábito e lei. Este consiste na hipotética interpretação
final, definitiva, se houver suficiente esforço do intérprete e suficientes semioses. A
rigor, só existe como possibilidade teórica: o interpretante final seria, assim, uma
construção contínua, um gerúndio sem fim claro.

Neste trabalho e, especialmente, neste item, a intenção é contribuir para chegarmos a um


interpretante final (sobre glifos planetários e astrológicos e sua análise como códigos e
sistemas de signos). É o máximo da possibilidade, pois como destacam Nöth e Santaella:

(...) o interpretante final é coletivo, ou seja, ele representa o desenrolar de interpretações no lon-
go caminho de produção de interpretantes de signo. Embora se chame final, ou normal, nunca
estamos em condições de dizer que algum interpretante tenha esgotado todo o potencial inter-
pretativo de um signo (2017, p. 48).

O glifo do planeta Marte (♂), por exemplo, está dentro da definição peirceana de
símbolo: é um signo usado e compreendido “por hábito natural ou convencional”
(Peirce, 2015, p. 76) e, por extensão, aos demais glifos planetários, do sol e da lua
— embora, idealmente, todos seriam analisados, caso a caso. O mesmo pode ser
dito do glifo astrológico de cada um dos doze signos do zodíaco, como Escorpião
(♏): todos são símbolos, sob o ponto de vista peirceano. No entanto, apenas colocar
a etiqueta de “símbolo” sobre os glifos planetários e astrológicos configuraria uma
análise semiótica e peirceana muito limitada.

980
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Categorias Tricotomias
Primeiridade Do Signo em si Do Signo em relação Do Interpretante
(representamen) ao seu Objeto do Signo
Secundidade Qualissigno Ícone Rema
Terceiridade Sinsigno Índice Dicente
Tabela 2 — As nove subclasses sígnicas derivadas das categorias e tricotomias de Peirce.
Editado a partir de Nöth & Santaella, 2017, p. 61.

A tipologia peirceana se estende em três tríades, as quais resultam em outras classes


de signos — que cobrem análises semióticas bem mais precisas. Afinal, “signos não
acontecem em estado puro. Eles sempre se misturam, especialmente porque eles
derivam das categorias que são onipresentes e nunca excludentes” (Nöth & Santa-
ella, 2017, p. 61). Por isso, em cada grau semiótico ou categoria (Primeiridade, Se-
cundidade e Terceiridade) e a partir de cada tricotomia sígnica — relação do signo
consigo mesmo, do signo com o objeto e do signo com seu interpretante — haverá
a formação de 27 classes de signos. Mas como 17 seriam contraditórias, ficam dez
classes de signos.

Conforme a Tabela 2, de forma sucinta, temos, na primeira tricotomia (Nöth & Santaella,
2017, p. 51), o qualissigno, que é mera qualidade sem corpo; sinsigno, de existência con-
creta; e o legissigno, que é a relação do signo consigo na terceiridade e nos interessa
mais aqui, por seu conceito explicar boa parte dos glifos planetários e astrológicos:

Um Legissigno é uma lei que é um Signo. Normalmente, esta lei é estabelecida pelos homens.
Todo signo convencional é um legissigno (porém, a recíproca não é verdadeira). Não é um objeto
singular, porém um tipo geral que, tem-se concordado, será significante (Peirce, 2015, p. 52).

De volta à Tabela 2, temos, na dimensão da segunda tricotomia — do signo em re-


lação a seu objeto — o ícone. Mas como um qualissigno icônico (ou ícone puro) é
“mera possibilidade, um mero quase-signo” (Nöth & Santaella, 2017, p. 51), vamos nos
ater aqui ao conceito de hipoícone, que funciona mais adequadamente na realidade
cotidiana, caso investigado aqui dos glifos planetários e astrológicos: um hipoícone é
um sinssigno icônico ou legissigno icônico (2017, p. 52). O critério principal, portanto,
é a similaridade entre signo (ou representamen) e objeto, que pode ser observada em
alguns dos glifos aqui considerados, como nas Tabelas 3 e 4, mais à frente.

Para continuar a segunda tricotomia, temos o índice, signo que “tem uma conexão
física ou existencial com seu objeto no espaço e no tempo” (Nöth & Santaella, 2017,
p. 54). Esta subclasse poderia confundir um avaliador a considerar indiciais os casos
específicos de alguns glifos planetários, como o sol (☉) e a lua (☽). Mas não há uma

981
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

relação existencial direta entre escrever o glifo do sol ou da lua com os astros físicos,
diferentemente de uma fotografia (2017, p. 55), que resulta de um clique que capta,
naquele momento a presença necessariamente concreta de uma pessoa. Por fim,
ainda na segunda tricotomia, existe o símbolo, que está associado à terceiridade: “a
relação entre representamen e objeto é arbitrária e depende de convenções sociais”
(2017, p. 55). Tem a ver com hábito, regras e leis. Esta arbitrariedade e convenciona-
lismo também podem ser observados nos glifos planetários e astrológicos, o que
ficará mais evidente no próximo item.

Concluímos a análise da Tabela 2 com a terceira tricotomia, que se baseia na tríada


aristotélica composta por termo, proposição e argumento (Nöth & Santaella, 2017,
p. 58) ao considerar o signo em relação a seu representante: na primeiridade, o rema
(do grego rhéma, “palavra”). Rema é qualquer signo que não é verdadeiro nem falso,
signo de possibilidade qualitativa (2017, pp. 58–59). Na secundidade, a relação entre
signo e representante corresponde à proposição na lógica aristotélica, o chamado
dicente (ou dicissigno). O dicissigno é, assim, uma proposição: “a unidade mínima
para exprimir ideias que podem ser verdadeiras ou falsas” (2017, p. 60). Para finalizar,
a terceiridade da relação entre signo e representante consiste no argumento, um
discurso racional mais estendido que “conecta a informação de signos dicentes por
uma necessidade lógica” (2017, p. 60).

Após eliminarmos as combinações que seriam contraditórias e as informações re-


dundantes, temos as dez classes principais de signos por Peirce. De forma resumida,
a partir de tabela feita por Nöth e Santaella (2017, pp. 64–66) temos as dez classes. 1)
Qualissigno: mera qualidade, como uma dor não localizada ou cheiro; 2) Sinsigno icô-
nico: signo concreto que representa o objeto por similaridade, caso de uma fotografia
de uma pessoa; 3) Sinsigno indicial remático: dirige sua atenção a um objeto ou evento
particular, caso de um grito espontâneo ou foto sem legenda; 4) Sinsigno dicente: afe-
tado diretamente por seu objeto, informa sobre ele e pode ser verdadeiro ou falso,
como um cata-vento informa sobre a direção do vento; 5) Legissigno icônico: ícone ou
diagrama estabelecido por convenção ou regra, caso de sinal de trânsito; 6) Legissigno
indicial remático: é afetado pelo objeto ou atrai atenção para ele, como os pronomes
eu e tu e uma flecha na parede; 7) Legissigno indicial dicente: lei geral que explica por
que um objeto concreto revela (nova) informação sobre ele próprio. Exemplo é um
quadro de sintomas clínicos indicar uma doença específica; 8) Símbolo remático: as-
sociado com uma ideia geral, como qualquer substantivo, bandeira de país, brasão ou
insígnia; 9) Símbolo dicente: combina símbolos remáticos em uma proposição, como
uma declaração completa ou equação matemática; 10) Argumento, signo do discurso
racional que envolve conclusões e verdades, caso dos silogismos.

Como visto, tanto os glifos planetários quanto os astrológicos podem ser conside-
rados, como visto anteriormente e a partir de Peirce, símbolos e também legissig-
nos, que juntos formam sistemas de signos e códigos criados por seres humanos.

982
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Nas Tabelas 3 e 4, podemos observar que alguns glifos são legissignos icônicos que,
conforme visto na definição de Nöth e Santaella configuram “ícone (ou diagrama)
estabelecido por uma lei ou uma regra ou convenção” que tem por exemplo dos
autores um sinal de trânsito (2017, p. 65). De fato, tanto os códigos de glifos plane-
tários quanto astrológicos não são leis, mas consistem em regras e convenções. E o
princípio interpretativo é semelhante ao código de placas de trânsito. A classificação
de legissigno icônico é adequada, portanto, para os glifos planetários e astrológicos
analisados isoladamente. Para Peirce:

Um Legissigno Icônico (e.g., um diagrama, à parte sua individualidade fática) é todo tipo ou lei
geral, na medida em que exige que cada um de seus casos corporifique uma qualidade definida
que o torna adequado para trazer à mente a ideia de um objeto semelhante (2015, p. 55).

No entanto, se considerarmos glifos planetários e astrológicos acompanhados por


sua representação em linguagem verbal (por exemplo, em português), a categoriza-
ção de legissigno icônico já não é correta, pois, neste caso, o novo elemento verbal
modifica a natureza do signo — agora, composto por glifo e palavra — e, assim, suas
semioses e classificação. Exemplo: o signo entre aspas “Mercúrio ☿”. Neste caso, a
partir das dez classes já avaliadas, a definição de símbolo dicente é mais adequada.
Afinal, agora o signo não se caracteriza apenas ou especialmente por uma seme-
lhança com o objeto representado, mas por uma proposição, fruto da combinação
de símbolos remáticos (ver Tabela 3). Peirce define o símbolo dicente como:

(...) um signo ligado a seu objeto através de uma associação de ideias gerais e que atua como um
Símbolo Remático, exceto pelo fato de que seu pretendido interpretante representa o Símbolo Di-
cente como sendo, com respeito ao que significa, realmente afetado por seu Objeto, de tal modo
que a existência ou lei que ele traz à mente deve ser realmente ligada com o Objeto indicado. (...)
Tal como o Símbolo Remático, é necessariamente um Legissigno. Tal como o Sinsigno Dicente, é
composto, dado que necessariamente se envolve com um Símbolo Remático (e com isso é, para
seu Interpretante, um Legissigno Icônico) para exprimir sua informação e um Legissigno Indicial
Remático para indicar a matéria dessas informação (2015, p. 57).

O aspecto dicente também é considerado por Nöth da seguinte maneira:

A segunda categoria de signo — considerada do ponto de vista do interpretante e correspon-


dente à categoria lógica da proposição — é o dicente (ou dicissigno). Na lógica, a proposição é a
unidade mínima para exprimir ideias que podem ser ou verdadeiras ou falsas. Consiste de uma
combinação de ao menos um argumento (sujeito) e um predicado, por exemplo, do tipo “A é B”.
Seguindo esse modelo lógico, Peirce definiu o signo dicente como “um signo de existência real”
ou um “signo que veicula informação” (Nöth, 1995, p. 88).

983
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Algumas semioses Análise inicial do signo


Signo sob análise
para o glifo completo a partir de Peirce

Legissigno icônico. Há
O círculo com um ponto
semelhança com o objeto
no centro sugere um
representado e referência à
aspecto de centralidade.
sua posição em um sistema
Neste caso, do sol no sis-
arbitrário humano (o sistema
tema solar e seu formato
solar). O glifo se assemelha,
aproximado, como visível
em particular, ao sol como
da Terra.
observado do planeta Terra.

Legissigno icônico. Trata-se


de um ícone (tem semelhan-
Formato que se asseme-
ça com o que representa)
lha ao corpo celeste a
estabelecido por uma
que chamamos de lua,
convenção. O glifo caracte-
conforme visto da Terra
riza, particularmente, a fase
em certos dias do mês.
da lua minguante, conforme
observada do planeta Terra.

Mercúrio. O corpo do Símbolo dicente. Há um


símbolo representa o caráter arbitrário a partir da
caduceus (cajado) de proposição articulada entre
Hermes (ou Mercúrio). glifo e palavra, baseada na
O elemento côncavo no realidade mítica humana
topo do glifo sugere o — o cajado e elmo alado
elmo alado de Mercúrio, de Hermes. “A é B”, ou seja,
veloz deus dos viajantes e a imagem estaria articula-
mercadores (entre outras da à palavra “Mercúrio” e
coisas). Vale observar que às características do deus,
o elemento que repre- considerado bom comunica-
MERCÚRIO senta o elmo basta para dor e muito veloz. O planeta
diferenciar os glifos de Mercúrio, aliás, tem a rotação
Mercúrio e Vênus, abaixo. mais rápida do sistema solar.

984
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Símbolo dicente. É um signo


que veicula informação entre
imagem e verbo, desde uma
Vênus. Representa o espe-
proposição que reúne glifo
lho de Afrodite ou seu
e a palavra “Vênus”, e que
colar. Passou a ser usado
se estende até a mitologia
como base de outros sím-
greco-romana e seus simbo-
bolos, como do feminino
lismos. Por exemplo: o glifo
em geral e do movimento
é tipicamente associado ao
feminista (com um punho
espelho de Afrodite, deusa
dentro do círculo) em
do amor e da beleza, com
VÊNUS particular.
seu elemento de vaidade e
apurado senso estético que
passa pela autoapreciação.

Símbolo dicente. A reunião


Marte. Representa, desde
entre glifo e a palavra “Marte”
o nome, o deus da guerra
traz uma proposição mais
romano, Marte (Ares, para
complexa que inclui o uso
os gregos). Virou símbolo
da Língua Portuguesa e a
do masculino em geral.
mitologia greco-romana. É
Mais especificamente, um
um “signo que veicula infor-
escudo com uma lança,
mação” e que, a depender da
que pode ser interpretada
análise, pode ser fragmenta-
MARTE como o falo do homem.
do em remas.

Tabela 3 — Símbolos planetários, do sol e da lua e suas análises semióticas


básicas a partir das dez classes principais de signos de Peirce. Perceba que os três últimos
signos são acompanhados por representação verbal.

Algumas semioses Análise inicial do signo


Signo sob análise
para o glifo completo a partir de Peirce

Legissigno icônico. Te-


mos uma semelhança do
Os chifres de um carneiro
desenho com aquilo que
que representam Áries no
representa (os chifres de
código astrológico. Este
um carneiro), mas também
é o primeiro signo do
há referência a um código
zodíaco ocidental.
humano — dos signos astro-
lógicos.

985
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Legissigno icônico. Existe


Representa uma flecha.
uma relação de semelhança
Especificamente, a seta
da imagem com a flecha do
atirada por um centauro,
centauro que ela representa,
criatura que também
mas também a referência à
representa o signo de
“Lei” da astrologia — código
Sagitário.
estabelecido por humanos.

Símbolo dicente, pois traz


uma proposição que articula
glifo e verbo. Esta proposi-
ção pode remeter à cauda
Leão. A imagem mostra do leão associada à palavra;
uma versão da letra grega ou ao formato do glifo, que
lambda, primeira letra indica sua origem ligada à
da palavra “leon” (leão); letra lambda. Ainda, o signo
também informalmente astrológico de Leão é um dos
associada à cauda tremu- três associados ao elemento
lante de um leão. fogo — e o glifo também
LEÃO sugere uma flama ondulante
ao vento. É, assim, um “signo
que veicula informação” em
abundância.

Símbolo dicente. Há um
caráter notavelmente discri-
cionário nesta imagem, que
se torna uma proposição
complexa quando analisada
Virgem. A imagem faz em conjunto com a palavra
referência à deusa grega “Virgem”. O elemento mais à
da pureza, inocência e direita do glifo, por exemplo,
justiça, Astraea. parece uma perna cruzada
que, tipicamente, indicaria
VIRGEM pureza e castidade; a asso-
ciação é adequada, pois este
signo astrológico remete à
deusa grega da pureza.

986
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Símbolo dicente. A reunião


Marte. Representa, desde
entre glifo e a palavra “Marte”
o nome, o deus da guerra
traz uma proposição mais
romano, Marte (Ares, para
complexa que inclui o uso
os gregos). Virou símbolo
da Língua Portuguesa e a
do masculino em geral.
mitologia greco-romana. É
Mais especificamente, um
um “signo que veicula infor-
escudo com uma lança,
mação” e que, a depender da
que pode ser interpretada
análise, pode ser fragmenta-
MARTE como o falo do homem.
do em remas.

Tabela 4 — Alguns signos astrológicos ocidentais e suas análises semióticas básicas


a partir das dez classes principais de signos de Peirce. Perceba que os dois últimos signos são
acompanhados por representação verbal.

Ainda que difíceis na vida cotidiana, as semioses ilimitadas são sempre possíveis
(Nöth & Santaella, p. 47), particularmente em um contexto como este, que se pro-
põe a estudar interpretantes sucessivos — ou, ainda, analisar com mais afinco os
primeiros interpretantes. Por isso, vamos avaliar no próximo item um par de glifos
— planetário e astrológico — em maior profundidade e mergulhar, assim, em seus
interpretantes; a partir daí, compreenderemos melhor a natureza desses sistemas de
signos e códigos.

Análise detalhada de interpretante: Marte e Áries


O simples ato de analisar com mais atenção as semioses relativas a determinados
objetos — e seus signos — já nos coloca em outro patamar interpretativo. Entramos
em uma relação de generalidade e continuidade (das semioses), e focamos a media-
ção de um terceiro entre um primeiro e um segundo — ou seja, o signo como media-
dor entre objeto e interpretante. Estamos, assim, na Terceiridade (Nöth & Santaella,
2017, p. 38). Com esta observação, o esforço aqui se identifica mais com a semiótica
de Peirce, pois, como dizem Nöth e Santaella, “a semiótica peirceana não se define
exatamente como um estudo de signos, mas sim, como o estudo de processos de
semiose” (2017, p. 39).

987
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 2 - Estátua do deus Marte com lança e escudo. Imagem do site do British Museum (https://
www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details/collection_image_
gallery.aspx?partid=1&assetid=1613072062&objectid=3032533).

Esta investigação será feita em dupla por uma razão intrínseca à mântica astrológica
que torna o planeta Marte, no contexto dado, inseparável de Áries. Marte, comumen-
te chamado de planeta vermelho, evoca uma série de associações e interpretações
que buscam referências da mitologia greco-romana, em que Ares (ou Marte, para os
romanos) era o deus da guerra e simbolizada bravura, impetuosidade e habilidade
em batalha; frequentemente, o deus Marte empunhava espadas ou lanças (que tam-
bém são seus símbolos), o que reforça seu aspecto masculino e, especificamente,
viril e fálico. Exatamente por ser vermelho, o planeta foi nomeado Marte pelos roma-
nos (e antes disso, Ares pelos gregos). Por que a cor importa?

Sua cor vermelha (como observável da Terra) tem relação com a presença de óxido
de ferro em sua superfície. O vermelho é também a cor do sangue, frequentemente
associado a guerra, violência, paixão e sexo (por exemplo, porque nosso rosto fica
ruborizado quando sentimos desejo por alguém e/ou estamos excitados; e como re-
ferência ao ciclo menstrual feminino, que evidencia a fertilidade e potencial de pro-
les via sexo). A cor rubra chama a atenção rapidamente — não por acaso, o vermelho
é usado em códigos primários como o de trânsito com o sentido de “pare”; também
como “perigo” em códigos de segurança do trabalho. A astrologia apresenta o plane-
ta, dentro da mântica, da seguinte forma: “Marte é considerado o planeta da energia

988
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

ou do sexo. Rege a criatividade, a construção, a invenção, a atividade incessante, a


força, o poder, o trabalho, a luta, a guerra e a morte” (Gammon, 1997, p. 54).

Como já vimos, glifos planetários como o de Marte (♂︎) são símbolos, a partir de Peir-
ce. Mas dentro de sua tipologia das dez classes principais de signos, a análise fica
mais complexa — e completa. Marte pode ser primariamente entendido como um
símbolo dicente precisamente pelo fato de não ter a intenção de conter uma relação
de semelhança com o objeto que representa — o planeta Marte. A opinião mais co-
mum sobre o glifo do planeta, trazida por Lindemann, é que “Marte é representado
pelo escudo com a lança, o símbolo do guerreiro, visto que a lança é o símbolo do
masculino” (2006, p. 187). A essa altura, os paralelos entre o deus Marte e a cor ver-
melha já estão claros. Mas, e sua relação com Áries e seu glifo?

Figura 3 - Símbolo do planeta Marte é composto


por escudo e lança do deus guerreiro.

Áries é o primeiro signo do zodíaco ocidental. Isto significa, segundo a mântica as-
trológica, que aqueles nascidos sob os efeitos da constelação teriam muita iniciativa,
entre outras características arquetipicamente masculinas como a impulsividade e a
agressividade. Mas há uma ligação mais estreita entre Marte e Áries que se estende
aos interpretantes de seus glifos:

Áries vai representar justamente esse princípio da autoafirmação. Áries é regido por Marte, o deus
da guerra [...] Áries entende que é melhor um pequeno conflito agora do que um grande conflito
depois, então quer resolver logo [...] representa todo esse elemento de iniciativa (Lindemann,
2006, pp. 29–30).

A relação formal — outra regra ou convenção —, segundo a astrologia, fica estabele-


cida: o signo de Áries é regido pelo planeta Marte. Isto é suficiente para começarmos
a ver as relações e semelhanças muito marcantes entre ambos. Como acrescenta
Ribeiro sobre Áries:

989
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 4 - Símbolo de Áries: signo regindo pelo planeta


Marte herda alguns de seus atributos.

O impulso direto é o combate, se preciso usando a força, a audácia ou o entusiasmo para ir em


frente. A iniciativa, a compulsão para agir, ainda que seja para provar-se. [...] É o impaciente e
agressivo, não aceita conselhos e obstáculos. (1996, p. 23)

Fica evidente que aquele nascido sob Áries, de acordo com a astrologia, teria uma
personalidade comparável aos atributos do deus Marte, o qual deu nome ao planeta
vermelho, regente do signo: afirmativo, agressivo; mas, por vezes, irresponsável e
violento — perfil análogo a um guerreiro.

Sobre o glifo de Áries: em uma análise mais simples, é um símbolo. Mas também
pode ser classificado como um legissigno icônico, dentre as dez classes principais de
Peirce. O motivo é simples, a partir das definições já conhecidas. O signo (agora, em
sentido também semiótico) de Áries traz à mente um objeto semelhante: os poten-
cialmente letais chifres do carneiro que representa. No entanto, além desta relação
de similaridade entre signo e objeto, o glifo também faz referência a um código hu-
mano: o dos signos astrológicos.

Não por acaso, a cabeça é a parte principal do corpo regida por Áries (Ribeiro, 1996,
p. 23) e aqueles nascidos sob o signo, segundo a mântica, precisam ter cuidado es-
pecial com dores de cabeça e machucados em geral que envolvam a cabeça e o cé-
rebro. Ou seja, há semioses ainda mais elaboradas a respeito do glifo ariano remeter
a chifres e, assim, à cabeça. Em um sentido mais informal: pessoas de Áries, confor-
me as características consideradas, “dariam muitas cabeçadas” pela vida. Tentariam
pela força e errariam além da média por sua “cabeça dura” — de novo, atributos de
pessoas tipicamente cheias de iniciativa, ou, no limite, agressivas e violentas. Como
o deus-guerreiro Marte.

Considerações finais
O objetivo aqui foi reavivar a conexão entre estudos semióticos e as mânticas, as-
sunto que tem sua relevância histórica, cultural e científica. Isto foi feito por meio
de uma breve análise de glifos planetários e astrológicos ocidentais como signos e

990
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

códigos, especialmente sob uma ótica peirceana. O estudo semiótico das mânticas
vai muito além do suposto aspecto divinatório daquelas — inclui, além de mito-
logias diversas, alquimia, astronomia e teologia. Todas essas são possibilidades de
investigações futuras.

Conforme visto, as definições a respeito de códigos podem variar bastante, bem


como as percepções acerca do que configura sistemas de signos e símbolos. Ainda
assim, dentro do que foi explorado aqui, parece razoável compreender os chamados
símbolos planetários e signos astrológicos como sistemas de signos — e também de
símbolos, conforme a definição peirceana já vista.

Há nesses códigos planetários e astrológicos, que com frequência se entrelaçam em


múltiplas semioses, uma notável dimensão sociocultural, o que pede mais investiga-
ções neste sentido, possivelmente com um aprofundamento permitido pela leitura
de Umberto Eco (como em A estrutura ausente). Explorar em detalhes os interpretan-
tes de outros símbolos planetários e signos astrológicos seria interessante, também,
pois o presente trabalho fez um esforço limitado neste particular.

Referências
Astrological Symbols. s. d. Em Wikipedia. Acessado em Agosto 7, 2019, a partir de
https://en.wikipedia.org/wiki/Astrological_symbols.

Eco, U. (1997). A estrutura ausente. São Paulo: Perspectiva.

Gammon, M. (1997). A astrologia e as leituras de Edgar Cayce. São Paulo: Pensamento.

Guiraud, P. (1973). A semiologia. Lisboa: Editorial Presença.

Hjelmslev, L. (1975). Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo: Perspectiva.

Lindemann, R. (2006). A ciência da astrologia e as escolas de mistérios. Brasília:


Teosófica.

Nöth, W. (1995). Panorama da semiótica: de Platão a Peirce. São Paulo: Annablume.

Nöth, W., & Santaella, L. (2017). Introdução à semiótica. São Paulo: Paulus.

Peirce, C. S. (2015). Semiótica. São Paulo: Perspectiva.

Ribeiro, A. (1996). Conhecimento da astrologia: manual completo. São Paulo:


Novo Milênio.

991
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Nelson Caramico1 and Suzete Venturelli2


O realismo na animação clássica, de Fantasmagorie
à Branca de Neve e os Sete Anões
Realism in classic animation, from Fantasmagorie to Snow White an
d the Seven Dwarfs

Resumo
Este artigo apresenta reflexões, através de alguns exemplos, sobre a evolução
das formas de representação de profundidade nos quadros bidimensionais e o
desenvolvimento de técnicas de animação na busca pelo realismo no cinema de
animação clássica. A animação clássica passou por transformações no que se re-
fere ao realismo, desde “Fantasmagorie”, considerado o marco inicial da animação
de cartoon, até “Branca de Neve e os Sete Anões”, obra dos estúdios Disney, na era
de ouro da animação. Nesse sentido, considerando as técnicas de animação, são
apresentados dois importantes momentos dessa história, primeiramente relacio-
nado a representação bidimensional e narrativa nonsense, e, em segundo lugar,
quando os desenhos animados recorrem à perspectiva linear, profundidade de
campo, luz e sombra, som diegético e personagens verossímeis.
Palavras-chave: Animação clássica, realismo, profundidade, design, cartoon.

Abstract
This paper presents reflections, through some examples, on the evolution of the forms
of depth representation in two-dimensional frames and the development of anima-
tion techniques in the quest for realism in classical animation cinema. Classic anima-
tion underwent realism transformations, from “Fantasmagorie”, considered the start-
ing point of cartoon animation, to Disney’s “Snow White and the Seven Dwarfs”, in the
golden age of animation. In this sense, considering the techniques of animation, two

1 Mestrando em Design pela Anhembi-Morumbi. Atualmente é Coordenador do Curso de Produção


de Áudio e Vídeo na ETEC Jornalista Roberto Marinho. Designer gráfico e ilustrador desde 1981.
Professor de desenho na ABRA (1998-2014). Licenciado em Artes Cênicas pela Faculdade de Belas
Artes (1984). Licenciado em Artes Visuais pela FMU (2013). Pós-Graduado em Cinema e Linguagem
Audiovisual pela Universidade Estácio de Sá (2017).
2 Professora Titular da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade Anhembi Morumbi. (UAM).
Pós-doutorado na Universidade de São Paulo, ECA (2014); doutorado em Artes e Ciências da Arte,
na Universidade Sorbonne Paris I (1988); Mestrado em Esthétique et Science de l’Art ­DEA. Université
Paris, França (1982) e mestrado (DEA) em Histoire et Civilisations - Université Montpellier III - Paul
Valery, França. Licenciada em desenho e plástica, Universidade Mackenzie em São Paulo (1978).

992
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

important moments of this story are presented, first related to nonsense narrative and
two-dimensional representation, and secondly, when cartoons use linear perspective,
depth of field, light and shadow, diegetic sound and plausible characters.
Keywords: Classical animation, realism, depth, design, cartoon.

Introdução
Segundo Cavalier (2011), no final do século 19, Emile Cohl pertenceu aos “Os Inco-
erentes”, pequeno grupo de artistas, precursores dos surrealistas, adeptos à brinca-
deiras conceituais e ao nonsense. Em 1908, Cohl começou a trabalhar com filmes
de animação e criou “Fantasmagorie” (1908)3, em que ele introduziu suas ideias
anárquicas e indicou as diversas possibilidades dessa forma de arte. “O filme dura
aproximadamente 2 minutos e contém aproximadamente 700 desenhos, cada um
fotografado duas vezes (doubles)” (p. 50). Os desenhos foram feitos com linhas pre-
tas sobre papel branco e fotografados em filme negativo. Para Barrier (1999), nesta
animação de metamorfoses “uma baleia se tornava um moedor de carne, no qual
um gato desaparecia; o gato emergia como bolas brancas, que se transformavam
em uma cabra e assim por diante. Quando os personagens se moviam a animação
era feita através de cutouts4” (p. 11).

Nesse momento, os desenhos animados não são realistas como os filmes live-ac-
tion5. Ao assistir um desenho animado, o espectador sabe que está vendo imagens
de desenhos ao invés de fotografias de figuras reais. Em compensação o desenho
animado oferece possibilidades muito mais amplas de criação de fantasias. A ani-
mação realista, cujos personagens sugerem uma realidade tridimensional, difere de
“Fantasmagorie” porque precisa de algum fundamento de verdade, tudo pode ser
feito, desde que se respeite a necessidade de consistência dentro do filme. Um de-
senho animado pode ser realista quando procura a simulação do real ou até mesmo
quando se utiliza de breves piadas ou histórias engraçadas (gags), desde que tenha
algum vestígio de realidade.

O que se verifica é que os desenhos animados realistas e os nonsenses coexistiam


e se reforçavam mutuamente. Barrier (1999) explica que “nos desenhos animados
dos estúdios Disney dos anos 1930, nos cartoons de curta duração dos anos 1940 e

3 O título “Fantasmagorie” provém de Fantasmograph, uma variante da Lanterna Mágica, artefato


de visualização de animação.
4 A técnica de recortar desenhos em cartão, geralmente em várias seções que são colocadas em
segundo plano e depois movidas e fotografadas quadro a quadro. O mesmo efeito também pode
ser alcançado dentro de um ambiente de computador (CAVALLIER, 2011, p. 396).
5 Filmes que não são animados, incluindo qualquer coisa feita em câmeras de filme ou vídeo usando assun-
tos filmados, diferentemente dos quadros de animação criados individualmente (CAVALLIER, 2011, p. 398).

993
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

início dos anos 1950” (p. 4), os produtores mais criativos demonstraram que mesmo
personagens de cartoon, com características mais estilizadas, podiam parecer reais.

Os animadores descobriram que o realismo do personagem não era determinado


por uma representação gráfica próxima do real, com pouca estilização. O que deter-
minava o realismo do personagem era o modo como ele era animado, mesmo que
ele fosse um cartoon estilizado. O cartoon animado, pelo fato de parecer se movi-
mentar, era diferente de um cartoon estático de uma tira de jornal. A necessidade de
ilusão de movimento dos desenhos animados favoreceu a busca do desenvolvimen-
to de uma linguagem exclusiva, voltada para a animação.

Dos quadrinhos à animação


Para Barrier os animadores pioneiros eram cartunistas experientes quando fizeram
seus primeiros desenhos animados. Emile Cohl tinha mais de cinquenta anos, Win-
sor McCay e Raoul Barré estavam na casa dos quarenta anos e John Randolph Bray
tinha trinta e cinco anos. “Todos acostumados a desenhar para publicações, trabalho
que exigia velocidade e proficiência” (p. 16).

Winsor McCay, talentoso cartunista de jornais de Nova York, foi o primeiro animador
americano de sucesso. Para Solomon a animação do seu personagem de quadrinhos
de jornal “Little Nemo” não possuía cenário de fundo, a perspectiva é sugerida com
o aumento e diminuição da escala do personagem. Conforme Barrier, seu terceiro
filme, “Gertie, o dinossauro” (1914), exigiu mais desenhos para o cenário de fundo,
com um método extremamente trabalhoso, difícil de ser executado mesmo para o
cartunista mais talentoso. Enquanto McCay trabalhava nos desenhos detalhados da
figura do dinossauro, John Fitzsimmons, seu assistente, copiava os desenhos de fun-
do a partir de um original.

Barrier explica que John Randolph Bray resolveu o maior problema dos primeiros
animadores: combinar personagens que se moviam com o fundo normalmente
imóvel. A solução de Bray foi imprimir várias cópias do plano de fundo de cada cena,
com a técnica de gravura em metal6, desenhar os personagens nas folhas impressas
e apagar as partes do fundo por baixo dos personagens. Esse método era diferente
do de McCay pela mecanização da reprodução dos planos de fundo.

6 Nas gravuras em metal (abertas a buril), as linhas ou os tons são gravados na superfície de uma chapa de
metal. A chapa é entintada e o excesso de tinta é removido, deixando os sulcos cheios de tinta. Um papel
macio umedecido é estendido sobre a chapa e passa-se papel e chapa pelos rolos de uma prensa. A pressão
dos rolos força o papel nos sulcos e deles recebe a tinta, deixando no papel uma impressão de entalhe de
toda a chapa. Os dois tipos principais deste processo são a gravura e a água-forte. (SMITH, 2008, p. 238)

994
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Barrier acrescenta que Raoul Barré foi o primeiro cartunista a perceber que não im-
portava se o desenho diante da câmera era um único desenho. O que importava era
que a câmera poderia “ver” como uma única imagem o que na verdade era compos-
to de vários pedaços de papel, pressionados juntos sob um pedaço de vidro.

Para Barrier, Raoul Barré é reconhecido como o inventor do que se tornou o méto-
do universalmente adotado para manter os desenhos de animação com registro, a
posição precisa de um desenho em relação ao desenho anterior. Envolvia instalar
dois ou mais pinos na parte superior ou inferior da prancheta do animador e usar
papel de desenho com furos para serem encaixados nestes pinos. Logo os animado-
res começaram a desenhar em pranchas equipadas não apenas com pinos, mas com
painéis de vidro iluminados por baixo, para que o animador pudesse ver através dos
desenhos anteriores enquanto criava um novo.

Outra inovação apontada por Barrier foi a de William C. Nolan, animador do es-
túdio de Barré, que teve a ideia de fazer desenhos de fundo mais amplos e de-
pois movê-los um pouco, em uma direção ou outra, por debaixo da câmera, cada
vez que um quadro de filme fosse exposto. “Esse movimento propiciou a ilusão
de que a câmera estava se movendo em uma trilha paralela aos personagens em
movimento” (p. 15). Os animadores perceberam que podiam combinar camadas
de celuloide dos elementos de primeiro plano com a inovação de Nolan, desse
modo arbustos em primeiro plano passavam pela tela mais rapidamente do que
os elementos do fundo, como se estivessem mais perto da câmera, aumentando a
ilusão de profundidade.

Barrier explica o processo de sobreposição de transparências: os animadores po-


deriam separar desenhos individuais em várias camadas de celulóide, mas a sobre-
posição das folhas de celulóide fazia com que um tom visto através de três folhas
de celulóide ficasse mais escuro do que se estivesse no topo da pilha, mas mesmo
com esse inconveniente, o processo era vantajoso devido à economia de tempo
em relação aos desenhos em papel. Os desenhos animados em papel continua-
vam sendo usados pelo fato de serem mais baratos e proporcionarem desenhos
de linhas mais bonitas. O celuloide usado nesse processo ere apenas para sobre-
posições de fundo.

As primeiras animações herdaram as formas rígidas dos personagens dos quadrinhos


de revistas e jornais. As formas retas causam maior estranhamento quando se movem
pela tela, enquanto as formas curvas fluem melhor. O uso de curvas nos desenhos de
uma animação de personagens torna o processo mais fácil e rápido de desenhar.

Barrier descreve o método que Max Fleischer criara para produzir animações mais re-
alistas: “através do traçado em desenho quadro a quadro, a partir de um filme live-ac-
tion, projetado de baixo para cima em uma superfície de vidro” (p. 22). Fleischer testou

995
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

esse método, denominado rotoscopia7, filmando Dave, seu irmão mais novo, em um
traje de palhaço em padrões distintos de preto e branco para facilitar o rastreamento
do desenho. Esse palhaço, chamado Koko, tornou-se um personagem frequente nos
desenhos animados dos Fleischers. Uma crítica sobre rotoscopia, na provável primeira
exibição da animação de Koko, o descreveu como “uma pequena figura maravilhosa
que se move com a graça sinuosa de uma dançarina oriental” (p. 23).

Para Barrier, O Gato Félix fez com que Otto Messmer modificasse os elementos dos
seus desenhos animados do início dos anos vinte. O uso de animação em papel tor-
nava a cena monótona com pouca variação de enquadramentos com apenas planos
abertos e poucos close-ups. O Gato Félix era quadrado e anguloso com um corpo
negro, diferentemente dos outros personagens de desenhos animados daquele
tempo. O preto e branco chapado, com ausência de meios-tons, por causa da ani-
mação em papel, fazia os desenhos do Gato Félix parecerem pesados. Foi Bill Nolan
quem modificou a aparência de Félix, animando-o com formas mais arrendodadas
e harmônicas. A construção circular e simplicidade no design do Gato Félix revisado
facilitava sua animação.

Segundo Barrier, Messmer era cartunista, enquanto McCay era um ilustrador, mas
ambos animavam de maneira parecida, delegando o mínimo possível. Em alguns
casos McCay animava com ciclos e repetições, para ganhar tempo, mas em geral
utilizava processos mais meticulosos para obter resultados mais realistas. “Seu di-
nossauro, Gertie, era uma combinação de grande escala com surpreendente de-
licadeza, parecia ser um animal treinado, malicioso e imprevisível” (p. 17). Devido
aos prazos, Messmer delegava com mais frequência, dando a Al Eugster a tarefa de
finalizar os desenhos em tinta. Os desenhos das animações eram repetidos em dois
ou três quadros sucessivos. Messmer usava ciclos e repetições com mais frequência
do que McCay, estes recursos economizam tempo em animação, mas prejudicam o
realismo dos personagens. As animações menos realistas de Messmer funcionam
melhor com narrativas nonsenses. As animações do Gato Félix enfatizavam a falta
de realismo e “Otto Messmer nunca deixou que seu público esquecesse de que Félix
era tão artificial quanto seu ambiente” (p. 45).

A introdução do som e a busca pelo realismo


Segundo Furniss, a Disney já produzia animação bastante elaborada desde os primei-
ros filmes do Coelho Oswaldo, que em “Trolley Troubles” (1920) dirige um carrinho que

7 Os procedimentos de filmar um assunto e, em seguida, desenhar as imagens estáticas seqüenciais


dos quadros para um movimento realista. Normalmente, e com mais sucesso, a interpretação e a
estilização das imagens originais são empregadas durante sua transformação em desenhos. Resulta-
dos interessantes podem ser alcançados digitalmente usando uma combinação de processamento
por computador e manipulação humana para transformar os quadros (CAVALLIER, 2011, p. 400).

996
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

parece se movimentar pelo eixo-z8, Figura 1, em direção ao espectador. Antes da era


do som nem os filmes live-action pareciam reais. Para Barrier, Walt Disney viu, nessa
tecnologia emergente, uma maneira de criar desenhos animados mais realistas. A che-
gada da tecnologia do som implicou em maior atenção para o roteiro e encenação no
desenho animado. Em “Steamboat Willie” (1928), com Mickey Mouse protagonizando,
houve a necessidade de sincronização da música com a animação. Wilfred Jackson,
com a ajuda de um metrônomo, utilizou um gráfico que sincronizava a música com
uma descrição da ação do quadro correspondente (bar sheet). Outro gráfico indica-
va exatamente com quais quadros as batidas musicais deveriam concordar (exposure
sheet). “A combinação das bar sheets com as exposure sheet proporcionaram um con-
trole sem precedentes sobre o timing da animação” (p. 51).

Figura 1 – Frames de Oswald the Lucky Rabbit - Trolley Troubles. Fonte: <https://www.youtube.com/
watch?v=3LCFvz6-LCU>. Acesso em: 31 ago. 2019.

Mesmo com perfeita sincronização, Walt Disney queria que o som parecesse ser
emitido pelo próprio personagem. A insistência de Disney em sincronizar o som e
imagem, com a maior precisão possível, resultou em uma animação real, ao invés de
parecer um desenho animado silencioso com uma trilha sonora acrescentada.

Barrier continua explicando que “Steamboat Willie” ainda possui efeitos sonoros ru-
dimentares, “do assobio do Mickey no início (fornecido por um piccolo) aos gritos do
papagaio” (p. 57). A abundância dos efeitos causou problemas, mas foi através deles,
não pela música, que a Disney conseguiu resultados mais realistas do que em dese-
nhos animados silenciosos. Disney percebeu o potencial do som para envolver seu
público com a narrativa. O som fazia a animação parecer mais real (som diegético9).

8 Eixo Z refere-se ao eixo que vai da frente do quadro ao fundo ou do fundo à frente. O Eixo Z é que
transmite ao público a sensação de espaço em 3D ou de profundidade de campo.(SJILL, 2017, p.20)
9 O som que é inerente a uma cena geralmente é chamado de som diegético. Esses efeitos sonoros
podem ser realistas ou manipulados para impressionar. Os efeitos sonoros extrernos, aqueles que
não seriam ouvidos logicamente na cena, também podem ser acrescentados por conta de seu valor
dramático. Esses efeitos sonoros que não fazem parte do universo da história são chamados não
diegéticos. (SJILL, 2017, p. 120)

997
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Esse senso de realidade favoreceu aos produtores de desenhos animados criarem


histórias mais verossímeis sem a necessidade do uso de cenas engraçadas e piadas
(gags). Era possível contar histórias que cativassem o público. Essa nova perspectiva
exigia dos personagem uma atuação mais refinada, o que impulsionou uma evolu-
ção na linguagem de animação.

Sobre a busca do realismo, Barrier explica que no início dos anos 30, muitos anima-
dores faziam animação de “mangueira de borracha” (rubber hose), que gerava um
movimento fluído e suave mas sacrificava o senso de estrutura do corpo do perso-
nagem, Figura 2. Essa distorção arbitrária, não combinava com a necessidade emer-
gente de Disney em contar histórias que envolvessem a audiência e acabou sendo
descartada. Os animadores da Disney logo perceberam que pequenos detalhes
faziam diferença para melhorar a qualidade da animação, por exemplo: esticar ou
comprimir um desenho, tornando-o diferente do seu anterior, mas com regularida-
de de escala, poderia enfatizar a ilusão de movimento.

Figura 2 - Rubber hose. Fonte: The Illusion of Life, página 45.

No caso da animação clássica, em que se desenha no papel cada quadro da sequ-


ência, é difícil de visualizar uma cena por completo. Barrier explica que a introdução
do teste de lápis (pencil test) possibilitou a visualização da sequência da cena em sua
totalidade. No início de 1931, os animadores da Disney começaram a utilizar os pen-
cil test de maneira rotineira: os esboços eram feitos a lápis pelo animador e depois
fotografados em um filme de trinta e cinco milímetros. Disney e os animadores anali-
savam o filme negativo para não ter que gastar dinheiro com uma cópia em positivo.
O filme era exibido através de uma máquina chamada Moviola que projetava as ima-
gens por trás de uma pequena tela. A Moviola tinha limitações: a imagem projetada
era muito pequena e como a Moviola fora projetada para uso em montagem de

998
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

filmes mudos (o primeiro modelo de sonoro só apareceu após 1930), os testes a lápis
não tinham velocidade de som constante, porque a Moviola era controlada por um
pedal. “Disney checava o resultado final da animação: Seria exagerado o suficiente?
Seria simples, claro e divertido? A cena foi apresentada de maneira eficiente?” (p. 71).

Para Barrier, “Just Dogs” (1932), da série “Silly Symphony”, foi o primeiro desenho ani-
mado da Disney a se beneficiar dos avanços em animação gerada pelo uso de testes
de lápis a partir de desenhos esboçados de maneira gestual. Em “Just Dogs”, cachor-
ros de várias raças são desenhados mais precisamente do que seus antecessores e se
movem de forma mais verdadeira.

As cores, assim como a música, conferem realidade à cena e reforçam a representa-


ção das ideias guiando os sentimentos dos espectadores. Barrier explica o caso de
“Flowers and Trees” (1932), outro filme da “Silly Symphony”, lançado no mesmo dia que
“Just Dogs”. “Flowers and Trees” foi o primeiro desenho animado feito em Technicolor
de três cores. “Esse filme começou a ser feito em preto e branco, mas foi modificado
para colorido depois que já havia sido filmado. William Cottrell, cinegrafista da Disney
na época, lembrou que todas as transparências, em preto-e-branco, foram cuidadosa-
mente lavadas no verso para se remover os tons de cinza, deixando-se apenas a tinta
preta da frente, em seguida os versos foram repintados em cores. Usando uma câmera
nas instalações da Technicolor, Cottrell refez o filme em cores.” (p. 80).

Barrier escreve que Fred Moore, animador de “Os Três Porquinhos” (Three Little Pigs,
1932), também da “Silly Symphony”, baseava seu estilo de desenho em formas suaves
e arredondadas de maneira harmoniosa que faziam os personagens parecerem ser
de carne e osso. Essas formas combinavam com os porquinhos, que ele desenhava
num estilo mais realista e animava fazendo-os parecer sólidos, com uma plasticidade
que era novidade na animação da Disney. Para Cavalier os “Três Porquinhos” repre-
sentam uma evolução na animação de personagens porque mesmo apresentando
design quase idênticos eles possuem personalidades distintas. Barrier comenta que
os porquinhos não se limitavam a acompanhar a música, como faziam os persona-
gens de desenhos animados anteriores, em vez disso, eles pareciam comprimir e
estender seus corpos ritmicamente. Moore observou uma regra simples: embora a
forma do corpo de cada porco mudasse à medida que se esticasse e se encolhesse
no tempo da música, o volume de cada corpo permanecia o mesmo.

Barrier explica que em 2 de novembro de 1933, Max Fleischer solicitou a patente de


cenários em miniatura denominados “stereoptical camera” ou “setbacks”. O sistema
consistia em montar as transparências de cada cena entre duas lâminas de vidro
verticais posicionadas entre a câmera e um cenário em miniatura, com a intenção de
mostrar que os personagens animados nas transparências pareciam estar se apre-
sentando em um palco tridimensional. Os “setbacks” foram usados pela primeira vez
em “Poor Cinderella”, primeiro Color Classic (no processo Cinecolor de duas cores),

999
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

lançado em agosto de 1934. Esse desenho foi mais elaborado do que outros do pa-
drão dos Fleischer, em todos os aspectos: desenho, animação, planos de fundo e or-
namentos na tela. Mas “Poor Cinderella”, uma releitura da história da Cinderela, com
Betty Boop no papel principal, não buscava realismo dos personagens.

Branca de Neve e os Sete Anões


Para Barrier, no início do projeto para o filme “Branca de Neve e os Sete Anões” (1937),
Walt Disney teria pensado em usar live action (rotoscopia) apenas como referência
para a animação de danças, mas decidiu utilizar esse recurso em outras sequências
da história. A dançarina Marjorie Belcher (mais tarde conhecida como Marge Cham-
pion) foi filmada para servir de modelo para a animação e dar consistência à atuação
da personagem Branca de Neve.

Disney incentivava seus animadores a usarem rotoscopia, mas não queria que os
traçados fossem usados diretamente na animação. Ao invés disso, os animadores
usariam os traçados como guias para seus próprios desenhos de Branca de Neve,
alterando proporções e revisando não apenas a aparência da menina, mas também
suas ações. “A elaboração do design da personagem Branca de Neve foi difícil ao
ponto de Marc Davis ter que fazer um modelo de plasticina da cabeça de Branca
de Neve para poder entendê-la em três dimensões.” (p. 200) A simples utilização da
rotoscopia não poderia fazer o que a boa animação sempre fazia: distinguir o que é
importante para a ação. Os desenhos de um animador poderiam evocar o centro de
gravidade no movimento de uma figura, dando a ela peso e massa, diferentemente
do rastreamento da rotoscopia que não fazia mais do que representar imagens do
corpo. Mas a rotoscopia era uma maneira de ampliar o interesse analítico pelos mo-
vimentos com sutilezas que um animador nunca poderia ter percebido.

Segundo Barrier, Walt Disney achava necessária a dedicação de tempo na construção


de cada anão, para que o público se interessasse por eles. Para que essa estratégia fun-
cionasse, os anões teriam que emergir claramente como indivíduos através da anima-
ção de Fred Moore. Quando Fred Moore iniciou a criação do design dos anões, tinha
material suficiente para poder trabalhar nas vozes e maneirismos físicos dos atores.
Quando a rotoscopia dos anões foi feita, o resultado não foi satisfatório porque eles
pareciam muito mais personagens de desenho animado, contrastando com Branca
de Neve, mais realista, e agiam de maneira diferente de atores reais. É porque os anões
são personagens vívidos e seus sentimentos sobre a Branca de Neve claramente visí-
veis, que o filme enriquece a história original dos irmãos Grimm. As virtudes de Branca
de Neve emergem principalmente através de seu relacionamento com os anões que
são velhos companheiros, cujo trabalho monótono, em uma mina, consome suas vi-
das. Se fossem deixados sozinhos por muito tempo no centro do palco, eles logo se re-
velariam tediosos e chatos. Para eles a figura de Branca de Neve é uma surpreendente
aparição, que contracena com cada um deles de maneira diferente.

1000
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Para Cavalier, nessa animação, a câmera multiplano foi introduzida para dar ilusão de
profundidade à animação. Para que isso fosse possível, possuía superfícies de vidro nas
quais diferentes áreas de fundo poderiam ser colocadas na frente e atrás dos quadros de
animação, de modo que quando a câmera fosse deslocada lateralmente, aproximada ou
afastada, as camadas se moveriam em perspectiva dando uma ilusão de profundidade.

Frank Thomas e Ollie Johnston no livro “The Illusion of Life” (1995) definem o termo
Staging, um dos doze princípios de animação definidos pelos estúdios Disney que
abrange muitas áreas e remonta ao teatro. Seu significado, no entanto, é muito pre-
ciso: é a clareza na apresentação da idéia de uma cena, na definição de uma perso-
nalidade, no reconhecimento de uma expressão, no envolvimento do público com
uma situação emocional.

Na construção da cena da fuga de Branca de Neve pela floresta vemos troncos de


árvores se transformar em jacarés, árvores que parecem encará-la e agarrá-la com
seus galhos e olhos no fundo obscuro da floresta observando-a antes de ela cair em
um lugar obscuro e estranho.

Segundo Kaufman (2012), o que vemos nesta cena: os perigos que cercam Branca de
Neve, estão em sua imaginação e não no mundo “real”, assim como acontece com o
personagem Francis no filme do expressionismo alemão “O Gabinete do Dr. Caligari”
(Das Cabinet des Dr. Caligari, 1920) que influenciou os artistas da Disney.

Considerações finais
Os cartunistas Emile Cohl e Winsor McCay foram pioneiros na criação de desenhos
animados. Enquanto Emile Cohl criou uma forma de animação com tônica surrealis-
ta, voltada para o nonsense, Winsor McCay estabeleceu uma vertente de animação
mais realista. A animação, assim como o cinema live-action sempre dependeram de
inovações tecnológicas e as novas tecnologias, além de agilizarem os processos de
produção de filmes de animação, favoreceram a produção de efeitos mais realistas de
imagens e sons. A preocupação com a construção de uma linguagem da animação,
principalmente pelos estúdios Disney, favoreceu a criação de personagens que pare-
cem ter vida. As experiências do aprimoramento desta linguagem se incrementaram
com os desenhos animados da série “Silly Symphonies” e culminaram com o longa me-
tragem “Branca de Neve e os Sete Anões”, obra essencial da Era de Ouro da Animação”.

Referências
Barrier, B. (1999). Hollywood Cartoons - American Animation in its Golden Age. Nova
Iorque, NY: Oxford University.

Cavalier, S. (2011). The World History of Animation. Oakland, CA: University of Cali-
fornia Press.

1001
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Kaufman, J. B. (2012). The Fairest One of All. São Francisco, CA: The Walt Disney Family
Foundation Press.

Furniss, M. (2016). A New History of Animation. Nova Iorque, NY: Thames & Hudson.

Smith, R. (2008). Manual Prático do Artista. São Paulo: Ambientes & Costumes Editora.

Solomon, C. (1994). The History of Animation - Enchanted Drawings. Nova Iorque,


NY: Wings Books.

Sijll, J. V. (2017). Narrativa Cinematográfica. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes.

Thomas, F.; Johnston, O. (1995). The Illusion of Life: Disney Animation. Nova Iorque,
NY: Hyperion.

1002
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Olivia Matni1, Paulo Bernardino Bastos2


and Leonardo Ventapane3
[Entre] Espaços: Uma abordagem sobre identidade e fronteira
a partir de Ana Mendieta e Francis Alÿs

Resumo
A temática escolhida para o presente artigo tem como intuito perceber o que
pode o devaneio de coabitar as margens dos territórios em um sentido de en-
contro e retorno - pontos desdobrados em ambas as obras aqui apresentadas -,
tão fundamental, para quem vive e trabalha fora de deu país de origem, e como
pode, desta forma, interceptar a criação dos espaços de fronteira entre obras e
lugares. Deste modo, o artigo propõe um diálogo entre os trabalhos Silueta Series
(1973 – 1980) de Ana Mendieta e Don’t Cross The Bridge Before You Get to The River
(2008) de Francis Alÿs, afim de elaborar uma reflexão a cerca da ideia de Entre-
-Espaço, um lugar limite conformado pelas incursões do corpo nos territórios de
fronteira, sejam eles geograficamente cartografados ou traçados pelo sensível. O
paralelo estabelecido entre os artistas deve-se à sua premissa de indivíduos es-
trangeiros, exilados ou afastados de seus lócus de origem, onde esta condição
de deslocamento atua na experiência também inestática das identidades que são
forjadas pelas vivências no território, nas quais a geografia não delimita, mas deixa
vestígios; da ênfase na prática como trabalho e sua contínua transgressão entre
fronteiras, que aqui se pretende demonstrar, fatores estes que atuam diretamen-
te na minha própria experiência como indivíduo/artista, promovendo trabalhos
que tem seguido esta relação. A partir das ações performadas pelo corpo motriz
na paisagem, permeadas por essa condição inicial de deslocamento, no exercício
contínuo proposto por Mendieta e Alÿs de friccionar dois espaços-tempos reais,
porém distantes, ambos artistas elaboram meios de acesso a Entre-Espaços in-
compossíveis a uma só vez, espaços de ausência e ubiquidade, abordando con-
comitantemente o caráter movediço das noções de identidade e pertencimento.
Palavras-chave: Entre-Espaços, Fronteira, Território, Identidade

1 Olivia Matni (Universidade de Aveiro) Master´s Degree student at Universidade de Aveiro - Postgra-
duate Program in “Contemporary Artistic Creation.
2 Paulo Bernardino Bastos (Universidade de Aveir ID+ Instituto de Investigação Design, Media e Cul-
tura) Director of the research group “Praxis &amp; Poiesis: from practice to artistic theory” at ID+,
promotes research in areas related to arts, science, media and culture. Professor at the Postgraduate
Program in “Contemporary Artistic Creation”, develops his research looking at the images produced
by technological mediations.
3 Leonardo Ventapane (PPGAV Universidade Federal do Rio de Janeiro) Professor and researcher -
Visual Communicatio and Design (Bacharel) and Postgraduate Program in Visual Arts at UFRJ
1003
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Abstract
The thematic chosen for this article aims to understand the desire of cohabitating the
borders of the territories in a sense of encounter and return - points deployed in both
works presented here - so fundamental for those who live and work outside of their coun-
try of origin, and how in this way can intercept the devlopment of border spaces between
works of art and places. Thus, this article presents a dialogue between the works of Ana
Mendieta’s Silueta Series (1973 - 1980) and Francis Alÿs’s Don’t Cross The Bridge Before
You Get to the River (2008) in order to elaborate a reflection about the idea of in-between
spaces, a border place conformed by the incursions of the body into frontier territories,
whether they are geographically mapped or traced by the sensible. The parallel estab-
lished among these artists is due to their premise of being foreign individuals, exiled or
removed from their locus of origin, where this condition of displacement acts as well as
in the unstable experience of identities that are forged by experiences in the territory, in
which geography does not delimit, but leaves traces; the emphasis on practice as work
and their ongoing transgression between frontiers, in which are intended to be demon-
strated in this article, are factors that act directly on my own experience as an individual
/ artist by promoting works that have followed this line of approach. From the actions
performed by the driving body into the landscape permeated by this initial condition of
displacement, in the continuous exercise proposed by Mendieta and Alÿs of rubbing two
real but distant spacetimes, both artists elaborate means of access to Incompatible In-
terspaces, once, spaces of absence and ubiquity, concomitantly addressing the shifting
character of perspectives of identity and belonging.
Keywords: In-between-Spaces, Border, Territory, Identity.

INTRODUÇÃO
‘’Tornamo-nos conscientes de que o ‘’pertencimento’’ e a ‘’identidade’’ não tem a so-
lidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis
e revogáveis, e de que as decisões que o próprio individuo toma, os caminhos que
percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são
fatores cruciais tanto para o ‘’pertencimento’’ quanto para a ‘’identidade’’. Em outras pa-
lavras, a ideia de ‘’ter uma identidade’’ não vai ocorrer às pessoas enquanto o ‘’perten-
cimento’’ continuar sendo o seu destino, uma condição sem alternativa. Só começarão
a ter essa ideia na forma de uma tarefa a ser realizada, e realizada vezes e vezes sem
conta, e não de uma só tacada.’’ (Bauman, 2005, pp.17). A partir desta abordagem de
Zygmunt Bauman, relativamente a identidade e pertencimento, adotei dois trabalhos
específicos para o desenvolvimento deste ensaio, as obras da artista Ana Mendieta e
do artista Francis Alÿs aqui dialogadas apresentam questões análogas, embora reali-
zadas em contextos geo e políticos distintos. Os artistas partem das vivências do ser
na paisagem como trabalho, experiências em territórios movediços. Suas incursões
fronteiriças questionam os limites do território político e a solidez das identidades em
que nele habitam, falam de pertencimento, encontro, retorno nas diferentes formas
de habitar o espaço.
1004
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O CASO MENDIETA
Ana María Mendieta (1948-1985) foi uma artista de origem Cubana que produziu du-
rante sua breve não obstante prolífica carreira diversos trabalhos através de diferen-
tes manifestações contemporâneas como performance, Body Art, Earth Works, vídeo,
além de esculturas e fotografia4. Mendieta empregava seu próprio corpo como objeto
artístico e circulavam entre os principais temas abordados pela artista questões a cerca
da condição de gênero, do exilio e um dialogo do feminino com a natureza. Em mea-
dos de 1961, aos 12 anos de idade, Mendieta foi enviada aos Estados Unidos por inter-
médio da Operação Pedro Pan5 onde permaneceu exilada como parte do programa,
devido a este desligamento prematuro com sua terra de origem a artista defrontou
durante a vida as consequências deste desenraizamento e o sentimento de não per-
tencimento, temáticas que atuaram diretamente em sua prática artística.

No conjunto hibrido Silueta Series (1973 – 1980), que conta com cerca de 200 fotografias
realizadas no México e nos Estados Unidos a artista explora as relações entre natureza
e seu próprio corpo. As fotografias documentam esculturas efêmeras na forma da sua
silhueta diretamente inscrita na paisagem, afluindo a um ventre metafórico, um retorno
a sua pátria cubana. Ao performar o espaço do exílio, Mendieita traz a luz um território
limiar entre o locus embrionário e o locus presente, questionando os limites e fixidez
de sua própria identidade (Ortega, 2004). Nesse insistente exercício para friccionar esses
dois espaços-tempos reais, porém distantes, Mandieta cativa (ou se aprofunda, cada vez
mais em) entre-espaços incompossíveis, loci, a uma só vez, de ausência e ubiquidade.

Untitled from the Silueta series, 1973–77 Silver dye-bleach print Sheet for parts 1, 6, 9, 10: 15 7/8 × 19
7/8 in. (40.3 × 50.5 cm); sheet for parts 2, 3, 4, 5, 7, 8, 11, 12: 19 7/8 × 15 7/8 in. (50.5 × 40.3 cm)
Collection Museum of Contemporary Art Chicago, Gift from The Howard and Donna Stone
Collection, 2002.46.2Photo: Nathan Keay, © MCAChicago

4 Facial Cosmetic Variations (1972), Glass on Body (1972), Rape Scene (1973)
5 A Operação Pedro Pan foi um programa secreto dirigido pela Igreja Católica em colaboração com o
Central de Inteligência Americana que decorreu ente anos 1960 a 1962 que levou clandestinamente
e com consentimento dos familiares cerca de 14 mil menores cubanos para os Estados Unidos da
América no início do regime Castrista.
1005
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

“Eu tenho criado um diálogo entre a paisagem e o corpo feminino (baseado em minha
própria silhueta). Acredito que tenha sido resultado direto de ter sido arruinada da
minha pátria (Cuba) durante minha adolescência. Sou sobrecarregada do sentimento
de ser expulsa desde o ventre (da natureza) para a luta. Minha arte é a maneira que eu
reestabeleço os laços que me unem ao universo. É o retorno à fonte materna. Através
das esculturas do corpo, eu me torno um com a Terra. Eu me torno extensão da nature-
za e a natureza se torna uma extensão do meu corpo.” (MENDIETA, 1981, p.10)

A partir desse dialogo corpo e paisagem-natureza, permeados por essa vivência do


exílio, Mendieta elabora os efeitos do deslocamento em sua prática e sua descone-
xão com os conceitos de identidade, mãe e pertencimento, suas intervenções na
paisagem foram em sua grande maioria criadas a partir de materiais orgânicos e são
extremamente fugazes. Em uma de suas Siluetas mais conhecidas Untitled de Silueta
series (1973–77) a forma projetada na areia, limítrofe ao mar, realça a ideia de uma
presença transitória, que conforme a ação do próprio território – o movimento da
água e dos ventos – desfaz gradualmente a forma deixada pelo corpo da artista. A
condição inestática desta experiência manifesta uma condição identitária efêmera,
cambiante, uma experiência que está menos ligada ao deslocamento histórico da
artista e mais a distância que a liga própria vida, existir em meio a paisagem é uma
possibilidade de conectar-se corporalmente de maneira genuína com a natureza,
habitando momentaneamente um território que flutua entre um passado rompido
e um presente esperançoso que anseia retornar a margem, lugar que coexista em
diferentes temporalidades, um entre-espaço.

Através do corpo Mendieta instaura seu acesso a esse espaço existencial, o corpo é
mediador de toda experiência (Merleau-Ponty, 2011), é a possibilidade de revelar a si
própria a partir do que é familiar no mundo. A especificidade do espaço e do sujeito
são as diretrizes das trajetórias escolhidas, Ana Mendieta autonomiza o discurso ao
trabalhar com seu próprio corpo, entretanto a experiência individual da artista ad-
quire outra dimensão quando transpassa o limite do ser para se tornar um discurso
de muitos, dos corpos exilados, estrangeiros e marginalizados de sua origem.

O CASO ALŸS
O corpo motriz e a não neutralidade do espaço são temáticas também versadas
pelo artista de origem belga Francis Alÿs (1959). Alÿs é um inventor de situações,
investiga interações entre corpo e paisagem ao penetrar contextos sociais, políticos
e geográficos para realizar ações. O corpo funciona como potencialidade original do
movimento que em suas dinâmicas experimenta o mundo e revela a vivência como
situação significativa da existência, uma existência motriz. Em ambas práticas artís-
ticas o sujeito da ação na paisagem possibilita o estágio de identidade do qual nos
tornamos espectadores (Ortega, 2004) e não somente, mas a procura por uma forma
de coabitar os limites dos territórios sonhados, em uma experiência simultaneamen-
te ‘’includente’’ e ‘’excludente’’ (Bauman, 2005).
1006
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Francis Alÿs parte do social para tocar o político em um movimento constante de envol-
vimento e distanciamento, em ‘Dont Cross the Bridge Before You Get to the River’ (2008)
o artista intenciona criar uma ponte imaginária entre dois continentes alinhando duas
fileiras de crianças que se encontrarão no horizonte marítimo do Estreito de Gibraltar. A
indissociabilidade entre as esferas artísticas, políticas e das interações humanas em sua
produção como a inserção de seus trabalhos no espaço público são visíveis nesta obra,
aqui as fronteiras se aproximam, implicam a exigência de um lugar comum e partilhado
onde é possível perceber a visibilidade das questões levantadas pelo artista que são tra-
zidas pela ação proposta através da sincronia de um movimento de encontro.

Still do vídeo ‘’Dont Cross the Bridge Before You Get to the River’,
sequencialmente, frame 00:10 frame 00:50 e frame 01:40 ALŸS, F., 2008

As crianças atuam na obra como próprio campo de acontecimento artístico, nesta


contingência temporal as culturas coexistem suspendendo tensões políticas e terri-
toriais, experimentam o imprevisto e abrem mão de serem documentadores da ver-
dade para serem criadores de uma estética da existência em movimento, desenhando
um novo horizonte imaginário, um espaço entre corpos. A vivência alavancada pela
ação de Francis Alÿs pode simbolizar uma aproximação amistosa entre semelhantes
tão distintos, alienados de um possível convívio devido a um passado exploratório e
um presente tão excludente, a empreitada emancipa socialmente o grupo de crianças,
prosperando um futuro que reconheça as diversidades, mas que seja integrado como
uma ponte, disponível a mudanças. Ao participar desta peça de Allÿs as crianças

1007
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

adquirem visibilidade política enquanto sujeitos que vivenciam tal realidade, prove-
nientes de contextos tão diferente ocupam naquele momento o mesmo espaço com
uma mesma atitude, um mesmo jogo.

Assim como Mendieta, Alÿs reinterpreta as distâncias físicas e desenha um espaço


lúdico conformado pelas interações entre homem e território, aqui, em sua ponte
imaginária edificada por crianças munidas de velas de chinelo. A prática não aliena
o território de origem nem o espaço almejado, mas na dimensão da fantasia trans-
forma as estruturas para possibilitar novos meios de habitar, de se estar, e assim,
transforma a as noções de pertencimento no decorrer das ações. Em Francis Alÿs e
Ana Mendieta os espaços de exclusão se tornam espaços familiares pela inserção
do homem no site, essa indissociabilidade entre espaço e o sujeito como núcleo
gerador de ação criativa é imprescindível a prática de ambos artistas, seja ela de
natureza individual ou comum, falam a partir de si para o coletivo, abordando sua
complexidade sensível, política, social e geográfica. ’As ‘’identidades flutuam no ar
‘’(...) e é preciso estar em alerta constante as primeiras em relação as últimas. Há
ampla possibilidade de desentendimento e o resultado da negociação permanece
eternamente pendente’’ (Bauman, 2005). Mendieta e Alÿs transbordam as fronteiras
geográficas, políticas e ontológicas, habitam o território movediço que existe pela
maneira em que eles próprios existem no mundo, identidades cambiantes. Langer
define a Arte como sendo a criação de formas simbólicas do sentimento humano,
a autora distingue entre os símbolos discursivos da linguagem e os símbolos aber-
tos apresentados ou “presentacionais” da obra de arte. Segundo Susanne Langer,
as obras artísticas não expressam diretamente a experiência emocional do artista,
mas uma “ideia” de emoção. A materialização plástica dos trabalhos abordados aqui
são objetos potentes que resguardam as ações realizadas, entretanto não são o mo-
mento final das obras, as práticas são capazes de gerar novas reverberações em suas
“semelhanças poéticas’’.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao performar espaços de fronteiras, sensíveis, físicos ou políticos, Mendieta e Alÿs ob-
jetam a solidez de identidades deslocadas, exiladas ou cercadas a partir das incursões
realizadas em diferentes territórios, o homem em movimento agora também deixa
pelo espaço vestígios que o afastamento geográfico por sua vez já deixou em si, o
movimento do corpo é também um movimento interno, o entre-espaço que mar-
geia ambos os territórios deixados e os territórios das ações anuncia um possível
pertencimento de si, mesmo que fugazes. Ambos artistas apresentaram narrativas
próprias sem abstraírem o caráter político de suas ações, o discurso singular de cada
um permeia diversos complexos sociais atuais e falam a um grande coletivo, a uma
sociedade globalmente-economicamente interligada, mas territorialmente desmem-
brada, falam desta fluidez das identidades que são forjadas pelas vivências nos terri-
tórios estrangeiros ou exilados que almejam habitar espaços incompossíveis. Através

1008
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

da condição de estrangeiros em que se encontravam, em territórios que por definição


a eles era estranho, provocaram não só o questionamento como também o desejo de
caminhar os limites impostos no espaço e nos indivíduos, uma busca pelo desvelar das
margens das próprias identidades desenraizadas, friccionar a terra, até que a mistura
atinja o sensível, até que a beira seja meio.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
Bachelard, G. (1993) A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes

Bauman, Z. (2005) Identidade. Entrevista com Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor

Langer, S. (1957) Problems of Art: Ten Philosophical Lectures. New York: Charles Scrib-
ner’s Sons, Holiday House

Merleau-Ponty, M. (2011) A Fenomenologia da Percepção. São Paulo: wmf Martins


Fontes, 4ª Edição, 622 p

Ortega, M. (2004). Exiled space, in‐between space: existential spatiality in Ana


Mendieta’s Siluetas Series. Philosophy & Geography, 7(1), 25–41. https://doi.
org/10.1080/1090377042000196001

‘Untitled (Silueta Series, Mexico)’, Ana Mendieta, 1974 | Tate. (n.d.). Retrieved Decem-
ber 28, 2018, from https://www.tate.org.uk/art/artworks/mendieta-untitled-silueta-
-series-mexico-t13357

REFERÊNCIAS WEB
‘Untitled (Silueta Series, Mexico)’, Ana Mendieta, 1974 | Tate,”( n.d.) Acessado em 21
de Novembro de 2018, em https://www.tate.org.uk/whats-on/tate-modern/film/
ana-mendieta-pain-cuba-body-i-am

Ana Mendieta, una artista cubana que sobrepasó los límites – Español. (n.d.). Aces-
sado em 04 de Dezembro de 2018, de https://www.nytimes.com/es/2018/09/21/
ana-mendieta-artista-obituario/

Francis Alÿs portfolio Acessado em 09 de Dezembro de 2018, de http://francisalys.com/

ACKNOWLEDGEMENT:
This work is financed by natonal funds through the FCT – Fundação para a Ciência e a
Tecnologia, I.P., in the ambit of the project UID/DES/04057/2019.

1009
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Philip Cabau1
O dispositivo escondido detrás dos desenhos
A noção de Dispositivo na prática e exercício do desenho
Drawings’ hidden device
The notion of Device within the practice of drawing

Resumo
O desenho integra a história das práticas da representação nas artes, na ciência
e na tecnologia — continuando, sob as suas novas formas, a fazer hoje parte
dessas práticas. Essa presença transversal do desenho está associada não ape-
nas às representações associadas à investigação, mas sobretudo à capacidade
que este tem para potenciar uma atenção singular perante o objeto de estudo.
Neste sentido compreender a natureza do desenho e os seus modos de funcio-
nar, enquanto processo de pensamento visual, revela-se um empreendimento
pertinente, cuja utilidade ultrapassa as fronteiras do território artístico. A análi-
se do dispositivo capaz mobilizar o pensamento que integra as práticas — e a
aprendizagem — do desenho é parte integrante desse empreendimento.
Palavras-chave: Desenho, Dispositivo, Aprendizagem

Abstract
Drawing is part of the history of representations within the arts, science and tech-
nology – and it remains being so today, in its new usages. This cross-sectional pres-
ence of drawing is associated not only with the representations closely related with
research, but most of all with its ability to enhance a distinct form of attention to-
wards the object matter. The understanding of drawing, and its ways as a process for
visual thinking, proves to be a pertinent undertaking whose utility goes far beyond
art. The analysis of the devices capable of engaging the thinking processes within
the practices of drawing – and their means of acquisition – is part of this endeavour.
Key-words: Drawing, Device, Learning

Desenhar configura um processo cuja natureza é, em grande medida, prática. É essa


prática que define o espectro daquilo que deverá ser trabalhado e que, até certo

1 Philip Cabau é professor na ESAD.CR / IpLeiria e investigador integrado do LIDA, Laboratório de


Investigação em Design e Artes, naquele instituto. Na área editorial possui vários livros textos e en-
saios publicados sobre desenho. Enquanto arquiteto, foi autor de diversos projectos na área da ar-
quitetura, cenografia, desenho de exposições e mobiliário.

1010
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

ponto, permitirá obter uma visão global e controlada sobre o que ali decorre – bem
como o seu cumprimento, fidelização ou desvio perante as estratégias e conteúdos
previamente fixados. Praticar é, contudo, é um verbo com contornos excessivamen-
te difusos, pois a natureza e a qualidade de uma prática resultam, em grande medi-
da, da consistência dos procedimentos que a sustenta, do modo como os dispõe.
É assim que a concebemos, como lembra Yves Michaud, quando “(...) falamos da
prática de um desporto ou de um passatempo, fazer certas coisas, praticar certas ativi-
dades, seguindo mais ou menos corretamente certas regras características da atividade
em questão. A prática pode ter diferentes finalidades: fins de aprendizagem (...), fins de
cultura, de lazer, de prazer ou de subsistência.” É neste sentido que “O melhor ou pior
cumprimento das regras faz a qualidade da prática: esta será denominada, conforme os
casos, amadora, esclarecida, certificada.” 2 (Michaud 1999, 20).

Num contexto mais alargado, toda a aprendizagem passa, de diferentes modos, pelo
exercício. No caso do exercício do desenho, essa prática incide sempre sobre uma
determinada problemática; ele organiza-se, como veremos adiante, como um dis-
positivo cuja configuração só é percetível quando ativada nas mãos do praticante
(precisamente porque ele envolve a sua perceção experimental) — sendo isto sobre-
tudo evidente para os estratos mais avançados de uma aprendizagem do desenho.
Mas do que consta exatamente uma prática desenhada? Ela convoca territórios já
existentes, distintos e heterogéneos, estabelece ligações, evoca táticas e processos,
inventa critérios, cria novos sentidos capazes de produzir efetivamente um terreno
de experimentação do desenho. Ele organiza-se, enfim, como um dispositivo. Para
tratar aqui esta questão vou cingir-me ao espaço preenchido pelos processos de
experimentação que caracterizam a aprendizagem do desenho e onde, dada a in-
tencionalidade didática inerente ao contexto pedagógico, se torna particularmente
visível a questão e a importância do dispositivo.

Qualquer exercício do desenho — com ou sem enunciados explícitos — é sempre


uma enunciação sobre o próprio desenho e sobre o desenhar, uma proposta, um
simulacro concebido para apresentar as problemáticas pretendidas — àquele que
as irá explorar. Este procedimento pressupõe, por um lado, uma hierarquia precisa e
que envolve questões de autoridade, critério e legitimidade. Por outro, implica um
determinado conhecimento sobre o desenho e sobre o modo de o abordar — bem
como alguma noção da sua ‘utilidade para os propósitos do próprio desenhador.
Todo o exercício pressupõe, pedagogicamente, uma problematização à volta desta
dimensão bicéfala constituída por poder e saber. Esta conceção do dispositivo como
uma estratégia de relação de forças (que ao mesmo tempo que suporta diversos
tipos de saber, é suportada por eles) tem, com a obra de Foucault, uma primeira

2 A versão portuguesa das citações retiradas das obras originais referidas abaixo, na bibliografia, são
da responsabilidade do autor do texto.

1011
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

enunciação exaustiva. É partindo desta formulação de dispositivo no pensamento


de Michel Foucault que Giorgio Agamben, num texto mais recente, de 2007, tenta
estabelecer uma genealogia para a noção de dispositivo. Agamben começa por de-
finir o que se entende, habitualmente, por dispositivo. A palavra pode, segundo este
autor, ser utilizada com três significados distintos: o primeiro é jurídico (a disposição
de um julgamento, de uma lei); o segundo é tecnológico (a disposição das peças de
um mecanismo) e o terceiro é militar (as logísticas dispostas conforme os ditames
de um plano estratégico.3 Segundo o autor, estas três definições correntes do termo
encontram-se, todas elas, presentes no significado que Foucault lhe atribuiu, ou seja:
“1) trata-se de um conjunto heterogéneo que inclui virtualmente cada coisa, seja
ela discursiva ou não: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas policiais, pro-
posições filosóficas. O dispositivo tomado em si mesmo é a rede que se estabelece
entre estes elementos. 2) o dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta
e inscreve-se sempre numa relação de poder. 3) como tal, resulta do cruzamento das
relações de poder e de saber.” (Agamben 2007, 10)

Para entender a natureza do exercício e da prática do desenho interessa-nos, mui-


to especialmente, a articulação entre o primeiro e o segundo pontos: a sua função
estratégica concreta e a sua natureza heterogénea. O exercício na área do desenho
artístico contemporâneo possui a capacidade de convocar e incorporar ações, con-
teúdos e procedimentos muitos distintos e, frequentemente, oriundos de terrenos
díspares e improváveis – que, como referiu Foucault, são da ordem “(…) du dit aussi
bien que du non dit.” Contudo, a disposição destes elementos cumpre sempre um
propósito e uma função estratégica na experimentação do desenho. A sua razão é,
simultaneamente, uma relação de poder e uma relação de potência. É uma relação de
poder porque existe, efetivamente, uma estrutura predefinida entre, no contexto
escolar, o professor e o aluno (conforme as instâncias definidas pela escola e seu pro-
jeto pedagógico, mas também por causa da articulação poder-saber que caracteriza
a natureza do ensino). No entanto (e este é o ponto que aqui queremos frisar), trata-
-se também de uma relação de potência uma vez que o exercício do desenho pode
devir, nas mãos daquele que o pratica, um veículo de exploração das capacidades
que o desenho possui para experimentar (e reinventar) o seu próprio território. As
abordagens tradicionais do ensino do desenho, construídas exclusivamente a partir
de conteúdos previsíveis e predefinidos, objetivos genéricos e abstratos, sequências
temáticas rígidas, pressupondo uma conceção da competência como uma entida-
de sujeita a bitolas universais, produzem desfechos ortopédicos e prescritivos que

3 Ou seja, um plano constituído por : “1) un sens juridique au sens strict « le dispositif c’est la partie d’un
jugement qui contient la décision par opposition aux motifs », c’est à-dire la partie de la sentence (ou de
la loi) qui décide et dispose. 2) une signification technologique la manière dont sont disposées les pièces
d’une machine ou d’un mécanisme, et, par extension, le mécanisme lui même ». 3) une signification mili-
taire : « l’ensemble des moyens disposés conformément à un plan.” (Agamben 2007, 19-20)

1012
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

caracterizam o ensino na academia (Goldstein 1998, 235-236). E, contudo, o objeti-


vo do bom ensino artístico foi sempre promover a invenção de novos dispositivos4.
Mesmo no âmbito da academia mais ortodoxa, o intuito era, para aqueles professo-
res mais atentos e disponíveis, a criação de obras que se relevassem “clássicos mo-
dernos”. Como ressalva Carl Goldstein, isto acontecia intencionalmente: “De forma
a assegurar a originalidade, aos pintores, como aos escultores, sobre os quais incidia a
expectativa da produção de ‘clássicos modernos’ eram-lhe encomendados temas pouco
habituais — no sentido de não terem sido tratados pelos mestres do passado.” (Golds-
tein 1998, 241)

A primeira — hoje seminal —anatomia do dispositivo no pensamento de Foucault,


referida atrás, data de 1988. A primeira análise do conceito em Foucault surge, anos
mais tarde, num texto de Gilles Deleuze, onde este analisa a importância do con-
ceito na obra do filósofo. Um dispositivo, refere Deleuze, é antes de mais, “(…) um
enleio, um conjunto multilinear. Ele é composto por linhas de natureza diferente. E essas
linhas no dispositivo não delimitam ou circunscrevem sistemas em que cada um seria,
em si próprio, homogéneo, o objeto, o sujeito, a linguagem, etc., mas seguem direções,
traçam processos sempre em desequilíbrio, e ora se aproximam ora se afastam umas
das outras.” Cada uma destas linhas é, por sua vez, “(…) quebrada, submetida a va-
riações de direção, bifurcada e fendida, submetida a derivações.” Deleuze caracteriza o
conceito de dispositivo como contendo sempre três tipos de dimensões. Segundo
ele, as duas primeiras são “(…) as curvas de visibilidade e as curvas de enunciação.”
A primeira, a visibilidade “(…) não remete para uma luz geral que viria iluminar objetos
pré-existentes, ela é feita de linhas de luz que dão forma a figuras variáveis, inseparáveis
de um ou outro dispositivo. Cada dispositivo tem o seu regime de luz, uma maneira de
cair, de enfraquecer, de se espalhar, distribuindo o visível e o invisível, fazendo surgir ou
desaparecer o objeto que não existe sem ele.” Quanto à segunda, diz Deleuze: “(…)
os enunciados, por sua vez, reenviam para linhas de enunciação sobre as quais se dis-
tribuem as posições diferenciais dos seus elementos; e, se as curvas são, elas próprias,
enunciados, é porque as enunciações são curvas que distribuem variáveis (...). Não são
nem sujeitos nem objetos, mas regimes que é preciso definir para o visível e para o enun-
ciável, com as suas derivações, as suas transformações, as suas mutações. E, em cada
dispositivo, as linhas atravessam limiares, em função dos quais são estéticas, científicas,
políticas, etc.” Um dispositivo comporta ainda uma terceira dimensão: as linhas de
força: “(...) Dir-se-ia que elas vão de um ponto singular a um outro nas linhas prece-
dentes; de certa forma elas ‘corrigem’ as curvas precedentes, tiram tangentes, envolvem
os trajetos de uma linha à outra, operam vai-e-vens do olhar ao dizer e inversamente,

4 “For, as I have observed, an academy was a center of humanist learning, ‘disegno’ a shorthand alluding
to intellectual, not manual, activity. And one of the first concerns of the academy, shortly after it was
created, was the matching of its name with a seal or device proclaiming its high intellectual purpose.”
(Goldstein 1998, 17)

1013
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

agem como flechas que não param de entrecruzar as coisas e as palavras, sem aban-
donar a batalha. A linha de forças produz-se ‘em toda a relação entre um ponto e um
outro’, e passa por todos os lugares de um dispositivo” (Deleuze 2003, 316-325). Dar a
ver o que (quase sempre) já lá está, iluminar o momento da experimentação que é,
ali, atravessado – é o que fazem as curvas de visibilidade do exercício de desenho. As
linhas de enunciação manifestam-se, no dispositivo de experimentação do desenho,
naquele espaço frequentemente estreito que, pela prática, ocorre entre o enuncia-
do disciplinar — à volta dos conteúdos e dos saberes do desenho — e o sentido
adivinhado pelo próprio processo da enunciação (os desvios e as transformações
mencionadas por Deleuze). Por seu lado, as linhas de força de um dispositivo de ex-
perimentação do desenho estão, de algum modo, associadas às duas anteriores: elas
atravessam todos os pontos e momentos da experimentação, efetuando correções.
Se as primeiras dão a ver os objetos do desenho e as segundas dão a ver a nossa
relação com eles, as terceiras são as inscrições que proporcionam a perceção desse
trajeto, fazendo dele uma consciência autoral.

No mesmo texto, Deleuze define ainda as duas grandes consequências (os grandes
fundamentos operativos) deste conceito filosófico de Foucault: “A primeira é o repú-
dio dos universais. O universal com efeito não explica nada, é ele que deve ser explica-
do. (...) A segunda consequência de uma filosofia dos dispositivos é uma mudança de
orientação, que se desvia do Eterno para apreender o novo” (Deleuze 2003, 316-325).
No espaço da prática do desenho, desconfiar dos Universais é o que nos permite
olhar de frente as categorias e os protocolos como um exterior absoluto, infértil e
inútil – e passar de um registo abstrato para uma prática concreta, a captura do novo.
Importa, todavia, precisar aqui o que se entende por novo, pois para a pedagogia do
desenho, esta é uma questão central – e que consiste na capacidade para identificar
(reconhecer) uma configuração capaz de capturar o presente. Segundo Deleuze, “A
novidade de um dispositivo relativamente aos precedentes, chamamo-la a sua atuali-
dade, a nossa atualidade. O novo, é o atual. O atual não é aquilo que nós somos, mas
antes aquilo em que nos tornamos, aquilo em que estamos em via de nos tornar, ou seja
o Outro, o nosso devir-outro. Em qualquer dispositivo, é preciso distinguir aquilo que nós
somos (aquilo que já não somos mais), e aquilo em que nos estamos a tornar: a parte
da história e a parte do atual. A história é o arquivo, o desenho daquilo que nós somos
e deixamos de ser, enquanto que o atual é o início daquilo em que nos tornamos. De tal
forma que história ou o arquivo é o que nos separa ainda de nós-mesmos, enquanto que
o atual é esse Outro com o qual nós já coincidimos” (Deleuze 2003, 316-325).

Existe ainda uma dimensão suplementar mencionada por Deleuze na anatomia do


dispositivo: são as linhas de subjectivização. Segundo o autor, elas surgem quando
Foucault “(…) pressente que os dispositivos que analisa não podem ser circunscritos por
uma linha circundante sem que outros vetores ainda passem por baixo ou por cima:
‘franquear a linha’, diz ele, como ‘passar para o outro lado’ (...) Esta dimensão do si-mes-
mo não é de modo algum uma determinação preexistente que encontraríamos já feita.

1014
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Ainda aqui, uma linha de subjectivização é um processo, uma produção de subjetivida-


de num dispositivo: ela deve fazer-se, desde que o dispositivo o deixe ou o torne possível.
É uma linha de fuga. Ela escapa às linhas precedentes, ela escapa-se-lhes. O si-mesmo
não é um saber nem um poder. É um processo de individuação que age sobre grupos ou
pessoas e se subtrai às relações de força estabelecidas como saberes constituídos: uma
espécie de valor acrescentado” (Deleuze 2003, 316-325).

Um bom dispositivo implica, portanto, a invenção de um sujeito — através da eficá-


cia da “aderência” do aluno à proposta (e que produz, assim, uma inflexão ou des-
vio do mecanismo pedagógico que, num primeiro momento, consistia numa mera
ação coerciva) até culminar (numa trajetória ideal), num processo de subjetivação
através da qual o aluno reinventa o dispositivo (e se reinventa a si mesmo). Voltan-
do ao texto de Agamben, escrito quase 20 anos depois da abordagem de Deleuze,
este observa que: “(…) todo o dispositivo implica um processo de subjectivização sem
o qual o dispositivo não saberia funcionar como dispositivo de governação, mas redu-
zia-se a um puro exercício de violência. (...) O dispositivo é, portanto, antes de mais, uma
máquina que produz subjectivizações e é por isso que ele é também uma máquina de
governação” (Agamben 2007, 41-42). Um dispositivo não é um mero esquema, uma
sequência simples de procedimentos, ou um mecanismo integralmente aparente.
Os dispositivos são, por natureza, complexos, uma vez que há por todo o lado, como
refere Gilles Deleuze, “(…) misturas a destrinçar/deslindar/desembaraçar: produções
de subjetividade escapam-se dos poderes e dos saberes de um dispositivo para se rein-
vestirem nos de um outro, sob outras formas que estão a nascer / irão nascer / em devir /
nascerão” (Deleuze 2003, 316-325).

Tentemos enfim explicitar o que se entende aqui por dispositivo. Numa entrevista de
1977, Foucault definia-o assim: “(…) por dispositivo, entendo uma espécie – digamos –
de formação que, num determinado momento, teve como função maior dar resposta a
uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante... Eu disse
que o dispositivo tinha uma natureza essencialmente estratégica, o que supõe que nele
acontece uma certa manipulação de relações de força, uma intervenção racional e con-
certada nessas relações de força, seja para as desenvolver numa certa direção, seja para as
bloquear, ou para as estabilizar, as utilizar. O dispositivo está assim sempre inscrito num
jogo de poder, mas também sempre ligado a um ou a vários limites do saber, que nele
nascem, mas, ao mesmo modo, o condicionam. É isto o dispositivo: estratégias de relações
de força que suportam tipos de saber e que são suportadas por eles.” (Foucault 1994, 299)

É evidente que também o dispositivo inerente ao fazer do desenho não pode, evi-
dentemente, ser entendido fora do paradigma que configura as condições des-
sa mesma prática — e das condições da contemporaneidade onde está inserido.
O problema é que não é possível descobrir a tal novidade (o atual de que fala
Deleuze) a partir de bitolas e parâmetros já definidos. Descobrir como abrir os
olhos e como inventar modos de os manter abertos é o movimento que produz

1015
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

o dispositivo. Este foi sempre o papel dos professores (dos melhores professores),
mesmo nos casos mais emblemáticos do modernismo, como foi o caso de Itten,
Klee ou Albers.5 Este último confirmou, na sua longa docência, a dificuldade deste
empreendimento: a colisão que se verificava entre a tendência dos alunos para
reproduzirem as imagens e os procedimentos do professor e o esforço associa-
do ao trabalho da autoria — e a singularidade que este pode revelar. As práticas
artísticas contemporâneas sabem bem o quanto o terreno é hoje móvel e difuso.
A prática do desenho e, consequentemente, o seu ensino só pode sobreviver se
souber reinventar-se e incorporar, nos seus dispositivos, novas linhas de fuga. Es-
tas podem, como sabemos, incorporar desvios que as conduzam, eventualmente,
para o exterior do próprio desenho pois no contexto contemporâneo das práticas
e do próprio ensino artístico, como diz Thierry de Duve: “Efetivamente, ‘vale tudo’.
A única atitude que não toleraríamos seria aquela de Bartleby.6“ Este pressuposto
não é, todavia, fácil de aceitar. O que é perfeitamente compreensível, como refere
Duve: “Eu entendo-os; ela retirava-lhes tudo o que resta de critérios a priori para guiar
e julgar o trabalho dos estudantes. Estes não saberiam mais a que se agarrar e os seus
professores ficariam tão desmunidos quanto eles.” Contudo, sabemos hoje que “(…)
mesmo quando prescrevemos um médium, um problema plástico, um tema ou um
assunto a tratar, os estudantes chegam à apresentação dos trabalhos com qualquer
coisa que tenta escapar por todos os meios a esses constrangimentos” (de Duve 2008,
108-110). N mesmo texto Thierry de Duve avança ainda com uma noção para a sus-
tentação da prática pedagógica nas artes: aquela de Simulação. Sobre esta noção,
num debate que ocorreu na École des Beaux-Arts de Grenoble, o autor esclarece:
“Eu não exorto a simulação como ideia ou ideal da arte, exorto, como ideia reguladora
da ‘aprendizagem’ da arte, uma certa simulação, um certo ‘analogismo’, precisamente
aquele que a fórmula de Jean-Pierre (ou de Kant, ou de Duchamp): A/B=A’/B’. Uma tal
ideia não é nem uma teoria, nem uma doutrina, nem um projeto, quase não chega a
ser um programa.” A simulação, configura aqui um procedimento operativo apoia-
do sobre a própria experiência do exemplo. Trata-se aqui, de novo, da noção de pa-
radigma — integrando obliquamente o conceito de dispositivo. Como referimos,
o exercício de desenho - e o seu enunciado, em contexto pedagógico, funciona
precisamente por analogia: do particular para o particular, movendo-se de sin-
gularidade em singularidade. E constitui-se como tal suspendendo e, ao mesmo
tempo, expondo a sua pertença ao conjunto (do qual é indissociável), de tal modo
que não é já possível separar nessa operação a exemplaridade da singularidade. A

5 “That Albers did not provide his pupils with recipes (...) is not, then, in dispute. His teaching was unques-
tionably conceived, as he often said, “to open eyes”; it ran counter to the whole philosophy and weight of
the monolithic academic system.” (Goldstein 1996, 282)
6 A expressão recorrente que caracteriza esta famosa personagem literária, um escriturário de nome
Bartleby do conto homónimo de Herman Melville, é: “I’d rather not!” – e que pode ser traduzida
como: “Preferiria não o fazer!”.

1016
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

historicidade do paradigma não está na diacronia nem na sincronia, mas na inter-


ceção das duas. Na nossa condição contemporânea já não nos é possível defender
os Universais de que falava Deleuze. A única hipótese de funcionamento operativo
é o paradigma, porque é preciso transformar o exemplo em algo de maior e mais
operativo do que ele. Neste processo, só operações como aquelas que caracterizá-
mos atrás, desenvolvidas a partir do conceito de dispositivo, o poderão viabilizar.
Para um professor de desenho, uma das perguntas fundamentais que se encon-
tram sempre presentes na sua prática pedagógica, é: que dispositivo pode poten-
ciar a aprendizagem do desenho? Ou, noutros termos, que modo de “disposição
das experiências” pode aumentar a potência de agir pelo desenho, de sentir pelo
desenho, de pensar pelo desenho, de se refazer pelo desenho’ Esta experimentação
sustentada no dispositivo é um dos fundamentos da contemporaneidade, um mo-
vimento de criação que retira o seu sentido do próprio movimento interno, sem
obedecer ou ser limitado por regras exteriores a esse movimento. Produzir esse
movimento, que só obedece à sua necessidade interna, conduz a uma enorme
pluralidade de práticas e de meios na arte e, obviamente, a uma ampla diversidade
de éticas e políticas da criação.

Perante a espessura revelada pelo dispositivo é incontornável perguntarmos: Como


é que se pensa essa potência quando as manifestações não recorrem ao mundo da
aplicação, do modelo, ao mundo das profissões? Será possível isolar estas forças sem
recorrer à matéria na qual (e com a qual) ela se manifesta? Como se captura? Como se
enuncia? E, ainda: Como se consegue manter essa experiência dentro do perímetro do
desenho? Uma vez que o dispositivo tem essa capacidade para ganhar graus de li-
berdade no percurso experimental que inventa – e contendo o exercício de desenho
esta natureza exploratória – como podemos salvaguardar a permanência do exercí-
cio no interior do território do desenho – e da sua esfera de problematizações? Em
suma: Como podemos assegurar que um exercício de desenho permaneça um exercício
de desenho?... assegurando que os conteúdos ali experimentados se mantenham os
mesmo que, pedagogicamente, conduzirão aos objetivos propostos inicialmente?
Esta é, com efeito, uma dificuldade que atravessa a condição contemporânea da
produção artística – e não apenas a do desenho. O dispositivo articulará sempre,
como Foucault já o identificava, poder e saber – aqui equacionados sobre o chão
do desenho. Contudo, a tendência, ou melhor, a possibilidade do dispositivo criado
pelo exercício de desenho se manter no interior da área disciplinar dependerá sem-
pre (como ocorre, refere Agamben, na invenção de um Paradigma), da acuidade, da
atenção e da capacidade do professor de desenho para diagnosticar a configuração
do presente, do atual. Tal como lembra Vítor da Silva: “Os desenhos são o resultado es-
sencial, os objetos do “complemento” da ideia-desenho, na medida em que todo e qual-
quer desenho implica a consistência da sua ideia, do seu princípio, dos seus meios e dos
seus fins. No entanto, aquilo que realiza a ideia são as ações, os traçados e as imagens
claras ou obscuras da sua construção. Assim, os desenhos são a presença de uma ideia,

1017
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

incompleta, de uma ação posta à prova na sua realização.” (Silva 2004, 401) Este en-
contro entre essa “ideia-desenho” e “as ações, os traçados” – que comporta sempre
o movimento da sua construção como o da sua desconstrução (e da sua própria
destruição) – é a natureza mesma do dispositivo.

Frequentemente, numa prática, aquilo que é relevante — e que, no espaço do de-


senho permite que o seu exercício se metamorfoseie efetivamente em dispositivo
— não depende tanto dos conteúdos propriamente ditos, mas do modo como essa
prática promove linhas de experimentação que consigam conectar a esfera da for-
mulação/apresentação de conteúdos (substâncias) àquela da construção e invenção
de conjuntos de saberes. Estas linhas de experimentação constituem, a nosso ver,
a face mais visível do funcionamento dos dispositivos de exploração do desenho
(que constituem o exercício do desenho), um questionamento central para o en-
tendimento do modo como funciona o desenho no interior de uma experimenta-
ção pedagógica, de uma aprendizagem. Esta permanece uma questão crucial para
o entendimento da complexidade dos dispositivos que configuram as práticas e o
exercício do desenho.

Bibliografía:
Agamben, Giorgio. 2007. Qu’est-ce qu’un dispositif ? Paris : Payot et Rivages.

Deleuze, Gilles. 2003. Deux régimes de fous. Paris : Minuit.

Duve, Thierry de. 2008. Faire école (où la refaire). Dijon : Les Presses du Réel.

Foucault, Michel. 1994. Dits et écrits, volume III 1976-1979. Paris : Gallimard.

Goldstein, Carl. 1998. Teaching Art: Academies and Schools from Vasari to Al-
bers. Cambridge, Mass.: Cambridge University Press.

Michaud, Yves. 1999. Enseigner l’art ? Analyses et réflexions sur les écoles d’art.
Nîmes : Jacqueline Chambon.

Silva, Vítor da. 2004. Ética e Política do Desenho, Teoria e prática do desenho na
arte do século XVII. Porto: FAUP, Universidade do Porto.

1018
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Ricardo Sá1, Ermanno Aparo2 and


Liliana Soares3

Para uma relação tripartida entre o design, o artesanato


e o teatro.
For a tripartite relationship between design, crafts and theater.

Resumo
Este artigo tem como desígnio demonstrar que a aliança entre o design e o ar-
tesanato, orientada para o projeto de cenários para teatro na região do Norte
de Portugal, pode ser a chave de leitura para a criação de uma rede territorial
portadora de identidade e sustentabilidade. Pretende-se demonstrar que é pos-
sível ultrapassar as barreiras impostas pelo tempo e pela sociedade, utilizando
a disciplina do Design como base estrutural na obtenção de soluções às mais
distintas realidades. É importante criar relações e conexões entre parceiros, dire-
tos ou indiretos, de maneira a potenciar economias locais e impulsiona-las para
o mercado competitivo que o mundo exige, sem que lhes seja retirada a sua
identidade cultural ou o seu processo produtivo único.
Palavras-chave: design, artesanato, rede territorial, teatro.

Abstract/resumen/resumé
This article is designated to demonstrate that the relationship between design
and crafts, orientated for the design of scenario for theater in the north region of

1 Ricardo Nuno Lima e Sá, natural de Viana do Castelo, licenciado em Design do Produto pelo Institu-
to Politécnico de Viana do Castelo, pós-graduado em Mestrado em Design Integrado pelo Instituto
Politécnico de Viana do Castelo.
2 Professor adjunto do Instituto Politécnico de Viana do Castelo. Investigador do CIAUD. Doutor em
design (U. Aveiro). Pós-doutoramento em design (FA-UL). Master in design (Domus Academy, Mila-
no). Arquiteto (U. Palermo). Interesse científico em sistemas de redes territoriais e design estratégico.
Colabora em revistas e eventos científicos. É membro de comissões científicas de conferências e em
revistas da especialidade. Orienta teses de mestrado e doutoramento É co-autor do livro ‘Sei progetti
in cerca d’autore’ Alinea E (2012).
3 Professora adjunta e coordenadora da licenciatura em Design do Produto do Politécnico de Viana
do Castelo. É doutora em design (U. Aveiro), licenciada em design (FA-UL) e investigadora do CIAUD
e do ID+. O seu interesse incide na teoria e crítica do design, semiótica e espaço. Colabora em re-
vistas e eventos científicos. É membro de comissões científicas de conferências e em revistas da
especialidade. Orientou mais de 25 teses de mestrado e orienta teses de doutoramento. É co-autora
do livro ‘Sei progetti in cerca d’autore’ Alinea E (2012).

1019
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Portugal, can be the key to create a territorial network carrier of identity and sus-
tentability. It is intented to demonstrate that can be possible to cross the boundries
of time and society, using the discipline of Design as a structural base to reach solu-
tions for all reality. It is important to create relations and conection between part-
nerhips, direct or indirect, in ways to potentiate local economies and raise them to
a competitive market demanded by the world, without taking their cultural identity
or their unique making process.
Keywords: design, crafts, territorial network, theater.

Introdução
A investigação propõe aliar o design e o artesanato, orientada para o projeto de ce-
nários e adereços para teatro, com vista na criação de uma rede territorial portadora
de identidade e sustentabilidade, na região do Norte de Portugal. Pretende-se que
a disciplina do Design do Produto, aliada à prática artesanal, contribua no processo
criativo no desenvolvimento de cenários e adereços para a o Teatro Noroeste – CDV,
localizado a Norte de Portugal. A prática artesanal transformar-se-á numa rede terri-
torial que pretende abranger um leque vasto de intervenientes que produzam com-
ponentes para um produto. Dessa forma, a rede territorial será promotora de inova-
ção, sustentabilidade, competição e parcerias entre os envolvidos na investigação.
Numa época em que os avanços tecnológicos são imprevisíveis e rápidos e num país
onde o setor artesanal está 25% situado no norte de Portugal, a intervenção em prá-
ticas que já poderão estar ultrapassadas pelas produções barata e em série torna-se
necessária. O artesanato tem uma componente cultural e empírica que dificilmente
se obtém com produtos industrializados. Qualidade de acabamentos, identidade
cultural, singularidade e personalização do produto são alguns exemplos da riqueza
dos produtos artesanais que não têm como competir com produtos em série de
baixo custo. É pertinente que a disciplina do Design atue nesta problemática como
mediador de todas as valências do artesanato, de forma a procurar soluções favorá-
veis que potenciem estas práticas. A aplicação no âmbito do teatro provem de ser
um local onde a aprovação por parte do espectador validará o resultado final e por
ser um espaço de observação sensorial.

Metodologia de investigação
A investigação terá como método de trabalho o método empírico e misto. Experiên-
cia é a palavra base do empirismo que é um “sistema filosófico que atribui a origem
das ideias ou conhecimento à experiência” (MACHADO J. P., 1981). Definindo a pa-
lavra experiência, segundo José Machado, como “ação ou efeito de experimentar;
observação, verificação, comprovação, confirmação de um facto” (MACHADO J. P.,
1981), conclui-se, previamente, que se obterá conhecimento tanto pela observação
de factos, como pela partilha de conhecimento e experimentação laboral com as

1020
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

partes intervenientes da investigação. Quanto ao método misto, este divide-se em


duas componentes: qualitativa e quantitativa. Este método visa obter dados e ana-
lisá-los mediante a pertinência das questões a responder, ao número de inquiridos
e ao conhecimento dos inquiridos. Como exemplo prático deste método, no tra-
balho de campo efetuado na peça de teatro “Colônia”4, foram feitas questões aos
envolvidos, no final da representação (qualitativo). Cabe ao designer sintetizar toda
a informação, pois “a característica central do Design é a sua confiança em gerar ra-
pidamente uma solução satisfatória, do que uma análise prolongada ao problema”5
(NIGEL, 2006, p. 7). A investigação divide-se em cinco momentos.

A componente teórica, como primeiro momento, compila a análise de conceitos e


revisão bibliográfica de autores como Ugo La Pietra6 na Cultura do Fazer, Tim Brown7
no Design de Experiências, Nigel Cross8 na metodologia em design, Teresa Vasques
no conhecimento aprofundado no teatro, Ermanno Aparo, Liliana Soares e Fernando
Moreira da Silva9 nas redes territoriais, entre outros autores pertinentes à base estru-
tural do pensamento em design.

O trabalho de campo, como segundo momento, será efetuado junto das empresas
e entidades intervenientes na investigação (artesanato e companhia de teatro) de
modo a obter conhecimento pormenorizado das culturas empresariais e alguns as-
petos mais específicos de funcionamento e interação.

A fase experimental, como terceiro momento, será repartida em duas. Uma primeira
parte onde será feito um estudo prático de hipóteses válidas à solução da investiga-
ção, por meio de técnicas como sketch, modelação de pormenores, modelação 3D
e modelos à escala real. E uma segunda parte onde se irá presentar e validar, previa-
mente, as primeiras conclusões com as empresas e entidades.

A fase projetual, como quarto momento, será para materializar a fase anterior com
o recurso a materiais próximos do real. Testes relevantes como a resistência, ergono-
mia, transporte, dimensões, peso, entro outros serão executados nesta fase. Preten-
de-se que no final resulte um protótipo.

4 Inserida no FITEI, a peça “Colônia” foi assistida no Teatro Sá de Miranda, Viana do Castelo. Peça de
Renato Livera, Vinicius Arneiro e Gustavo Colombini.
5 Tradução livre do autor: “A central feature of design activity, then, is its reliance on generating fairly
quickly a satisfactory solution, rather than on any prolonged analysis of the problem.” (NIGEL, 2006, p. 7)
6 (LA PIETRA, 1997)
7 (BROWN, 2009)
8 (NIGEL, 2006)
9 (APARO, SOARES, & MOREIRA DA SILVA, 2018)

1021
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Por último, existe a possibilidade de um quinto momento. Momento em que se


poderá completar a metodologia com a aplicação do método workshop, a fim de
validar a investigação e protótipo final, completando um ciclo de interação entre
empresas, educação e investigação.

Figura 1 Gráfico de proposta de metodologia pelos autores.

1022
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Análise do problema e definição de casos de estudo


No corrente ano de 2019, celebra-se em Portugal o centenário do nascimento de
Sophia de Mello Breyner Andresen. “Sophia, um nome que se transformou em sinó-
nimo de poesia e de musa da própria poesia” (MARQUES, 2008), marcou o país pela
sua personalidade, senso de justiça e liberdade, criou obras como poemas, livros
infantis e dramaturgias.

A companhia Teatro Noroeste – CDV (Centro Dramático de Viana), assim como vá-
rias companhias de teatro, artes e música10, irá representar uma peça de dramatur-
gia chamada de “O Bojador”, “Escrito em 1961, para as filhas, que frequentavam o
3ºano do liceu” (Andresen, 2000) com o intuito de instruir os mais novos a aprender
a marcos da história de Portugal. A obra pretende representar a passagem dos por-
tugueses pelo Cabo Bojador, intencionada pelo Infante D. Henrique e liderada por
Gil Eanes. Tem um total de nove personagens, por vezes quatro em simultâneo em
cena e nunca foi representada por teatros profissionais. Numa primeira versão da
peça, foi feita uma adaptação por Ana Perfeito – cenógrafa da companhia – de modo
a reduzir o número de atores em cena por questões de logística, dado que a peça,
para além de vir a ser representada no palco do Teatro Municipal Sá de Miranda,
também será representada em escolas do distrito de Viana do Castelo. Ou seja, con-
firmamos a pertinência da elaboração da peça e os primeiros constrangimentos de
ser uma peça ambulante. Deste modo, a adaptação, em vez de se situar temporal-
mente em 1434, remeterá para o ano de 1961 e será reduzida a dois atores. Os dois
personagens a interpretar serão Sophia e Miguel Sousa Tavares, filho de Sophia que
na altura tinha 11 anos, e a representação focará numa interação entre mãe e filho.
Para a criação de um cenário plausível à data e à adaptação, recorremos a uma foto
de Eduardo Gageiro11 de 1964 (figura 2), onde Sophia escreve, numa mesa junto à
janela, em sua casa na Travessa das Mónicas. Tal foto encontra-se no final do livro na
edição de 2000.

10 “Centenário de Sophia vai ser celebrado entre Portugal, Roma e o Rio de Janeiro” - https://www.
publico.pt/2018/11/06/culturaipsilon/noticia/centenario-sophia-vai-celebrado-portugal-roma-rio-
-janeiro-1850096 acedido a 15/06/2019
11 Foto de Eduardo Gageiro a Sophia de Mello Breyner Andresen em 1964 - http://www.eduardoga-
geiro.com/albums/retratos-com-historias/content/sophia/lightbox/ acedido a 15/06/2019

1023
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 2 Sophia em sua casa na Travessa das Mónicas. Foto do espólio de Eduardo Gageiro.

Na foto são identificadas três peças de mobiliário (duas cadeiras e uma mesa) e
imensos adereços. Com foco na cadeira onde Sophia se senta, serão analisados dois
casos de estudo. Os casos serão duas cadeiras cuja estética, características e fun-
cionalidade pretendem harmonizar-se numa só como resposta à sua interpretação
e síntese histórica e produtiva. A cadeira Coração, mais conhecida como rabo-de-
-bacalhau e a cadeira Thonet nº233 são os objetos em estudo que serão analisados
conforme o contexto histórico em que se inserem, partindo da base que influenciou
a sua construção e forma.

Cadeira rabo-de-bacalhau
Tendo a data de 1755 como referência contextual, Portugal sofre uma tragédia – um
terramoto – que destabilizou social e economicamente o país, causando a escassez de
produção de produtos. Note-se que Portugal, antes da tragédia, atravessava momentos

1024
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

prósperos onde o mobiliário era ricamente ornamentado e a matéria-prima utilizada


provinha, maioritariamente, do Brasil como o pau-santo, jacarandá e o ébano. Identifica-
do no período de D. João V e da primeira metade do período de D. José I, “As pernas do
mobiliário eram galbadas (em curva e contracurva) e com os pelos dilatados decorados
com palmetas concheadas e folhagens estilizadas, os pés podiam ser em formato de
bola envolvidos por patas de leão.” (DGAE, 2017, p. 6) e o dourado revestia os móveis com
destino a palácios e templo, segundo a Direção Geral de Atividades Económicas da Re-
pública Portuguesa. Após esse evento, o primeiro-ministro, Marquês de Pombal, aplicou
as chamadas medidas pombalinas reerguendo as indústrias de bens de primeira instân-
cia, com uma postura de estrangeirado e “deu preferência a mestres estrangeiros fran-
ceses, italianos e ingleses” (DGAE, 2017, p. 6) na remodelação da indústria do mobiliário.

É neste século XVIII que aparece pela primeira vez a cadeira Coração, mais conhe-
cida como cadeira rabo-de-bacalhau, inspirada na cadeira Windsor de origem in-
glesa (figura 2).

Figura 3 Ash and Elm Hoopstick Back Windsor Chair with Crinoline Stretcher, circa 1830.12

A cadeira Windsor surge na Inglaterra no início do século, no reinado de Queen


Anne (1702-14) como um mobiliário “pequeno, leve e confortável do que os seus

12 Fonte: https://www.1stdibs.com/furniture/seating/windsor-chairs/ash-elm-hoopstick-back-wind-
sor-chair-crinoline-stretcher-circa-1830/id-f_14484072/ acedido a 09/09/2019

1025
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

antecedentes.”13 (PILE, 2005, p. 201). Esta cadeira acaba por ser levada para o Novo
Mundo durante a época colonial e integra o mobiliário dos colonos que, em 1776,
após a Declaração da Independência, acaba por ser adaptada e a ter uma versão
americana “que ganhou fama durante a década de 1790, pelo seu custo barato,
aspeto formal, pintada e vernacular que conquistou o topo do mercado, tendo as
suas vendas ultrapassado todas as outras cadeiras combinadas”14 (EVANS, 2006,
p. 9). Acentuando a importância deste mobiliário, após atingir o seu apogeu, é
classificada como uma cadeira versátil e adequada para variadas situações e espa-
ços, sem distinguir classes sociais que “do operário ao político, a Windsor sentava
todos”15 (EVANS, 2006, p. 13). Será pertinente referir que, para além da Windsor
americana e da rabo-de-bacalhau, em 1949, o finlandês Ilmari Tapiovaara, numa
tentativa de reerguer a economia finlandesa e limitado pelos materiais (madeira
em abundância, metal escasso pela utilização na guerra), cria uma cadeira inspira-
da na clássica Windsor com o nome de Fanette que “acabaria por incorporar a tra-
dição vernácula da Finlândia e Tapiovaara a reinterpretou para que se adequasse à
cultura do lugar de uma sociedade reerguida de um pós-guerra.” 16 (KORVENMAA,
1997, p. 98). Surgem, entre a década de 50 e 60, variações da cadeira “adaptadas às
necessidades da casa moderna: os modelos Pelimanni, Mademoiselle e Crinolette
fabricados pela Asko, onde as peças eram presas por geometria sem necessidade
de parafusos” 17 (KORVENMAA, 1997, p. 42) (figura 4).

13 Tradução livre do autor: “Queen Anne furniture is generally somewhat smaller, lighter, and more
comfortable than its predecessors” (PILE, 2005, p. 201)
14 Tradução livre do autor: “The American Windsor came into its own during the 1790’s as this inex-
pensive, painted chair archived a board market and sales surpass those of all other chairs combined,
vernacular and formal.” (EVANS, 2006, p. 9)
15 Tradução livre do autor: “From the day laborer to the statesman, the Windsor seated all.” (EVANS,
2006, p. 13)
16 Tradução livre do autor: “Este tipo de silla se había incorporado a la tradición vernácula de Finlan-
dia, y Tapiovaara la reinterpreto para que se adecuase a la cultura del hogar de la sociedad surgida
de la posguerra” (KORVENMAA, 1997, p. 98)
17 Tradução livre do autor: “Por un lado Tapiovaara realizó una serie de variaciones de la clássica silla
Windsor adaptadas a la necessidades de la vivenda moderna: los modelos Pelimanni, Mademiselle y
Crinolette fabricado por Asko, donde las piezas se trababan por geometría in necesidad de tornillos
passantes” (KORVENMAA, 1997, p. 42)

1026
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 4 Mademoiselle Lounge Chair18

De volta a Portugal, a cadeira Coração não só tem inspiração estética no espaldar e


encosto da cadeira Windsor, como também foi um fenómeno nacional que a apelidou
de primeira cadeira com design português19 (PINTO, 1952) e que faz parte, segundo
Ernesto Oliveira e Fernando Galhano20 da tipologia de móveis cuja produção é feita
por mestres marceneiros21. A identidade cultural da cadeira foi reinterpretada pela em-
presa Pura Cal que, em 2005, criou uma edição especial de quatro cores 22da cadeira
rabo-de-bacalhau (figura 5), dando uma nova aparência a um mobiliário centenário e
que, habitualmente, não tem nenhum tipo de decoração ou tratamento de superfície.
No corrente ano, no dia 27 de março, a Carpintaria Rocha desenvolve uma linha única
de mobiliário para o Café Concerto, no Teatro Municipal Sá de Miranda em Viana do
Castelo, com uma reinterpretação da cadeira rabo-de-bacalhau (figura 6).

18 Fonte: https://www.artek.fi/en/products/mademoiselle-lounge-chair acedido a 09/09/2019


19 Referência tirada de http://concept-board.blogspot.com/2013/10/mobiliario-portugues.html
acedido a 18/06/2019
20 Referência tirada do documento da Direção Geral das Atividades Económicas da República Por-
tuguesa (DGAE, 2017)
21 “Móveis cuja produção é feita por mestres marceneiros, habilidosos e versáteis que se destacam pela
criação de modelos únicos, mas utilizando materiais locais e criando mobiliário de raiz.” (DGAE, 2017)
22 Referência tirada de http://puracal.blogspot.com/2015/04/2015-color-my-heart-by-pura-cal-no-
vas.html acedido a 18/06/2019

1027
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 5 Color my Heart, by Pura Cal 2015.23

Figura 6 Cadeira Rabo-de-bacalhau no Café Concerto em Viana


do Castelo pela Carpintaria Rocha24

23 Fonte: http://puracal.blogspot.com/2015/04/2015-color-my-heart-by-pura-cal-novas.html acedi-


do a 09/09/2019
24 Foto do autor.

1028
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Cadeira Thonet nº233


No início do século XIX a sociedade é surpreendida com a Revolução Industrial. Um
salto tecnológico criou novas técnicas de produção garantindo a produção stan-
dard, rápida e em série. Em 1830, Michel Thonet desenvolveu a técnica inovadora
de dobrar madeira a vapor a baixo custo e, como repercussão, a cadeira Thonet nº14
nasce como um produto fácil de desmontar, empacotar e transportar. No entanto,
o foco deste artigo vai para a cadeira Thonet nº233, produzida em 1895 e utilizada,
preferencialmente, em cafés e restaurantes e em Viana do Castelo identificamos três
estabelecimentos que a usam. As características predominantes deste mobiliário
são a sua estética, a sua aparência confortável e robusta e a sua preocupação com
a ergonomia. Espaços convidativos ao consumo incentivam os consumidores a per-
manecer por um longo período de tempo e “Ficar sentado numa cadeira por horas
dá um certo nível de fadiga ao consumidor”25 (ALTHINÖZ, ÖZDEMIR, & USTA, 2017,
p. 529). A cadeira Thonet nº233, fabricada em madeira, com algumas variações em
metal (nas pernas), com espaldar curvilíneo e com braços, destaca-se também o seu
baixo peso, em comparação à sua robustez, o que a tornou “o símbolo dos cafés que
nasceram e se espalharam em França no século XX”26 (ALTHINÖZ, ÖZDEMIR, & USTA,
2017, p. 536). No café Gourmet (figura 7), no café Guerreiro (figura 8) e no restauran-
te Foz-Viana é utilizada a cadeira nº233 nos espaços destinados a cafetaria. Os três
estabelecimentos fazem uso da cadeira no espaço interior e o restaurante Foz-Viana
faz, inclusive, uso no exterior. Embora o local de maior aplicação desta cadeira seja
em estabelecimentos de refeição e bebidas, é notório reconhecer que as cadeiras
Thonet são intemporáis e icons de qualidade no mundo do mobiliário e que essa
qualidade é garantida, independentemente do segmento ou local de aplicação. A
este modelo estão salvaguardadas caracteristicas como o conforto e ergonomia que
pervalecem ao longo do uso intensivo postos à prova nos estabelecimento referidos
cuja notoriedade local é de sudar. Ou seja, em termos de comprovação quanto à
qualidade versus uso intensivo versus conforto apelativo há garantias.

25 Tradução livre do autor: “Sitting in a chair for hours gives certain level of fatigue in people.” (AL-
THINÖZ, ÖZDEMIR, & USTA, 2017, p. 529)
26 Tradução livre do autor: “The Thonet chairs have become the symbol of the coffee houses wich
were raied and spread in France in the 20th century” (ALTHINÖZ, ÖZDEMIR, & USTA, 2017, p. 536)

1029
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 7 Cadeira Thonet nº233 no Café Gourmet em Viana do Castelo27

Figura 8 Cadeira Thonet nº233 no Café Guerreiro em Viana do Castelo28

27 Foto do autor.
28 Foto do autor.

1030
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Conclusões
Neste artigo, o estudo acerca de duas cadeiras históricas do contexto ocidental é
o ponto de partida para a criação de soluções satisfatórias, uma das problemáticas
identificadas na presente investigação. Por um lado, reflecte-se acerca de uma ca-
deira com clara ascendência no mobiliário inglês e que se destacou no mobiliário
português – a cadeira rabo de bacalhau. Por outro lado, analisa-se uma cadeira pre-
curssora de um icon da produção industrial e portadora de características determi-
nantes para este projeto – a cadeira Thonet nº233.

Sendo que tudo tem um começo, um meio e um fim, para objetivar, potenciar e
o impulsionar as economias locais é necessário verificar a realidade produtiva que
existe no lugar, nomeademnte, no Norte de Portugal. Simultanemanete, urge deli-
near uma linha condutora que designe se a realidade escolhida é a mais apropriada.
Dependendo dos constrangimentos e das dificuldades que poderão aparecer no
percurso projetual, será necessário ter uma abertura flexível à alteração das hipóte-
ses primárias ao problema, mantendo o foco na preservação da identidade cultural
e nos processos produtivos iniciais.

A complexidade desta investigação - que lhe garante um brio desafiador - revela a


competência do designer para aproximar várias realidades, identidades e proces-
sos, transformando-os em produtos de alta qualidade e possíveis de competir num
mercado vasto como, no caso, o do mobiliário. A adoção de métodos específicos
- como o método empírico - garante que o acompanhamento realizado pelo desig-
ner nos vários momentos projetuais seja alcançado. Para isso, a sintetização prévia
de informação referente ao problema e a componente cognitiva obtida a partir da
experiência poderão ser o caminho a percorrer para obtenção de hipóteses satisfa-
tórias de projeto. Caso tal se verifique, no final da concepção e da materialização, o
produto final será portador de valências que lhe garantirão uma posição firme no
mercado. Competências adquiridas pelo pormenor e pelo rigor da produção artesa-
nal, de expressões únicas e singulares, portadoras de cultura do lugar e criadoras de
identidade ao produto.

Com este estudo pretende-se demontrar que o mobiliário continua a ser uma esco-
lha para potenciar a identidade cultural de um lugar, de um país, refletindo o tempo,
o espaço e as conjunturas. Trata-se de um produto vernacular com influência na es-
colha de materiais, técnicas e tecnologias a utilizar, pelo que o design responsabili-
za-se a garantir a sobrevivência destas culturas do fazer. O facto de todas as cadeiras
referenciadas no estudo utilizarem materiais autóctones, como a madeira, justifica,
perfeitamente, a utilização de práticas artesanais para a produção, principalmente
pela experiência de trabalho. A concepção de produtos/sistemas de produto com
a intervenção de duas ou mais empresas, criando uma rede empresarial, concede
aos produtos, não só um misto cultural, mas uma singularidade produtiva e uma

1031
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

identidade sem igual, propulsora de sustentabilidade, inovação e competividade.


Por outro lado, o trabalho piloto e experimental no teatro revela-se uma ocasião
para pôr à prova as capacidades de adaptação do designer a qualquer situação/
problemática, assim como para harmonizar realidades distintas na corrida por um
objetivo comum. Realidades distintas, com culturas empresariais diferentes, tendem
a chocar pelas mais diversas razões. Equilibrando a balança empresarial em prol de
um fim comum, o resultado obtido ascenderá a barreira no comum e entrará no
excepcional. Com o acompanhamento bilateral, o produto final irá garantir ao teatro
novas possibilidades de trabalho e ao artesão uma produção em todo seu potencial,
respeitando as exigências de ambas as partes. A vertente experimental do teatro
permite que se experimente, se arrisque, algo que no mundo empresarial se torna
muitas vezes impossível de fazer. O teatro é assim um laboratório de projeto para
testar prototipos, prevendo falhas e definindo caminhos para o sector empresarial.

O teatro e este projeto em concreto permitirá a entrada de novos parceiros, mas


também de novas soluções de produtos para as empresas. Em suma, o artigo tem
como objetivo revelar que esta investigação é um importante condutor de susten-
tabilidade - para o teatro, porque lhe são trazidos novos parceiros e nova cultura do
projeto. Para as empresas porque o teatro, pela sua natureza, permite que se teste,
experimente ou seja, inove.

Referências
ALTHINÖZ, M., ÖZDEMIR, N., & USTA, I. (15 de 12 de 2017). Jornal of Advanced Te-
chnology Sciences. Ergonomic Analysis of Seating Furniture Used in Food and
Beverage Facilities: THonet Nº233 Chair, pp. 528-540.

Andresen, S. M. (2000). O Bojador. Lisboa: Caminho SA.

APARO, E., SOARES, L., & MOREIRA DA SILVA, F. (3 a 6 de outubro de 2018). Modernity,
Frontiers and Revolutions. Developing a trumpet configuration applying a me-
thodology from design-by-drawing and craft evolution, pp. 227-232.

BAUMAN, Z. (2000). Liquid Modernity. USA: Polity Press.

BROWN, T. (2009). Changed by Design. New York: HarperColins Publishers.

CRUZ, D. I. (1969). Como montar uma peça de teatro - coleção educativa série C
nº16. Lisboa: Ministério da Educação Nacional.

DGAE, R. (17 de 11 de 2017). Indústria do Mobiliário. Sinopse de 2017, pp. 1-17.

EVANS, N. G. (2006). Windsor-Chair Making in America. Hanover e Londres: Unive-


rity Pres of New England.

1032
Imagem, Desenho e Conhecimento #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

KORVENMAA, P. (1997). Tapiovaara. Salamanca: Tesitex, S.L.

LA PIETRA, U. (1997). Didattica, progettualità e cultura artigianale. Em A.A.V.V., Disig-


nare L’artigianato. Cantiere (p. 23 a 29). Torino: Lindau s.r.l.

MACHADO, J. (1995). Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa 2º vol. Lisboa:


Livros Horizonte.

MACHADO, J. P. (1981). Grande Dicionário da Língua Portuguesa. Lisboa: Amigos


do Livro Editores.

MARQUES, P. (2008). Sophia de Mello Breyner Andresen. Lisboa: Parceria A. M. Pe-


reira Livraria Editora, Lda.

NIGEL, C. (2006). Designerly ways of knowing. Londres: Springer.

PILE, J. (2005). A History of Interior Design. Reino Unido: Laurence King Publishing,
Ltd.

PINTO, A. C. (1952). Cadeiras Portuguesas. Lisboa: Edição dos autores.

VASQUES, E. (2003). Teatro. Coimbra: Quimera Editores, Lda.

1033
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria
Praxis and Poiesis: from Practice to Theory

1034
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Alessandro Malpasso1
Ação artística-criativa: olhando as práxis holísticas
Artistic-creative action: looking at holistic praxis

Resumo
Considerando os distintos elementos visuais que podem contribuir a escolha do
método operacional e da ação performativa em relação as práxis holísticas ob-
servadas, o objetivo deste artigo é estimular a reflexionar sobre a peculiaridade
criativa do humano. O presente trabalho desenvolve-se utilizando a metodolo-
gia qualitativa, considerandoa a mais adequada ao objeto de estudo. Pelo ana-
lise se incluem alguns exemplos de experiencias vivenciadas em passado pelo
pesquisador, como, tambem outras ainda não exploradas, mais abordadas por
outros autores. Se enfatizam elementos primordiais, ou seja, a estética, a criati-
vidade, a ancestralidade, a memoria e os arquetipos das práxis holísticas, incor-
porados na gestualidade do humano que se olham como performance. Como
resultado, se interpretam as experiencias praticas (práxis) mediante a ação artís-
tica-criativa, utilizando a fotografia como medio expressivo e a tecnologia pela
elaboração poética da imagem.
Palavras-chave: Arte, Criatividade, Holismo, Performance, Práxis.

Abstract
Considering the different visual elements that may contribute to the choice of the
operational method and the performative action in relation to the holistic praxis
observed, the aim of this article is to stimulate reflection on the creative peculiarity
of the human. The present work is developed using the qualitative methodology,
considering the most appropriate to the object of study. The analysis includes some
examples of experiences lived in the past by the researcher, as well as others not yet
explored, more addressed by other authors. Primordial elements are emphasized,
that is, the aesthetics, creativity, ancestry, memory and archetypes of holistic praxis,
embodied in the gestuality of the human being that they see as performance. As a

1 Analista cognitivo com experiência de pesquisa em antropologia, psicologia, sociologia, religião,


arte e cultura, entre outros. Trabalha principalmente com criatividade, fotografia, espiritualidade,
performance e multirreferencialidade. Pósdoutorando no grupo “Práxis e Poiesis: da prática à teoria
artística” da Unidade de Investigação “ID+, Instituto de Investigação em Design, Media e Cultura”.
Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro (UA) - Portugal.

1035
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

result, practical experiences (praxis) are interpreted through artistic-creative action,


using photography as an expressive medium and technology through the poetic
elaboration of the image.
Keywords: Art, Creativity, Holism, Performance, Praxis.

Introdução
Os conhecimentos holísticos deste planeta, se consideram relevantes tendo em
conta que incorporam o envolvimento de uma complexidade vinculada com ele-
mentos estéticos, matrizes primordiais, memória e identidade, entre outras. Estes,
contribuem sinergicamente no desenvolvimento da cultura impulsando o humano
a ser criativo, ou seja, a escolher expressões artisticas como motivo principal de viver.
Assim que, o homem pode construir uma forma de olhar, a interpretação poética de
uma práxis2 como ação artística-criativa que define a complexidade e a unicidade
dos sentimentos do homem.

De tal forma, se possibilita o leitor á compreensão da diversidade que existe em dife-


rentes práxis holísticas deste planeta, já que a depender da área geográfica, povo ou
comunidade resgata saberes do passado trazidos do reino animal, vegetal e mineral. Di-
tos compontes, contribuem ao desenvolvimento de rituais as vezes terapêuticos na con-
temporaneidade, que incluem tambem uma importante riqueza estética e cosmovisão
ancestral. Em algumas práxis holísticas existe uma complexa dinâmica criativa, vinculada
com a gestualidade que em alguns casos pode se traduzir em um performance3.

Enfatiza-se que estas manifestações expressadas pelo humano, estão vinculadas


com vários campos, como, por exemplo, os das artes, dos esportes, da saúde, das
ciências sociais e das religiões, entre outras. Estas, de alguma forma incorporam me-
morias e ancestralidade. Se utiliza a metodologia qualitativa com observação parti-
cipante, que Corbetta (2007) descreve a continuação: “O pesquisador observa […]
adentra-se no contexto social [...] vive como e com as pessoas objeto de estudo [...]
com a finalidade de desenvolver essa “visão a partir de dentro” tão importante para
a compreensão” (Corbetta, 2007, p. 304-305, tradução do autor).

O investigador interage com os sujeitos estudados durante as experiencias holísticas


vivenciadas em diferentes países. Nos próximos items se descreberão algums exem-
plos que possibilitarom ao pesquisador ter uma conexão com alguns actores vincu-

2 Deriva do grego πράξις, e é a atividade humana em sociedade e na natureza. Entendida como uma
experiência prática.
3 Ação artística que manifesta a través da teatralidade do corpo um fenômeno cultural. É baseada
as vezes em improvisação, tendo geralmente como objetivo, provocar uma reação do publico e um
espontâneo contato com o espetador.

1036
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

lados com culturas do Brasil, do Perú, de Cuba e do Mexico, entre outras. Eles incor-
poram uma heréncia cultural, é dizer, conhecimentos relacionados aos antepassados.

Também, em relação a investigação bibliográfica, se incluim experiencias/pesqui-


sas/conceitos de outros autores, para que o leitor possa ter uma visão ampla, ou seja,
dar a compreender a vinculação que existe entre varias áreas do conhecimento, ho-
lismo4 e performance. As vivencias, foram a principal fonte de informação no curso
do desenvolvimento da pesquisa. A interação com os sujeitos foi importante já que
contribuirom a uma ressignificação criativa das manifestações culturais.

Estas, incluim uma visão holística vinculada a uma cosmogonia expressada tambem
pelo humano abrangendo uma rica criatividade transmitida com a oralidade, a ico-
nografia e a gestualidade, entre outras. A união desses componentes evidencia o
holismo incorporado em varias culturas deste planeta, trazendo tambem elementos
vinculados com o universo (agua, terra, ar, fogo), como tambem, a expressão de al-
guns animais e as formas de certas plantas e flores, que são observados e imitados
pelos humanos segundo a peculiar criatividade.

Assim que, o objetivo é abordar o holismo como ação performativa em diferentes


campos, reflexionando sobre a singularidade criativa do humano em distintas cultu-
ras, a partir de práxis vinculadas com nossos ancestros. A continuação se desenvol-
verão os seguinte items, neste ordem: O humano e o holismo incorporado nas cultu-
ras; A práxis criativa nos fenómenos culturais; Performance incorporada na tradução
criativa; Conclusões e Referências.

O humano e o holismo incorporado nas culturas


O holismo, se manifesta em diferentes áreas. Assim que, o corpo expressa uma gestu-
alidade inspirada ao primordial, abarcando antiguas raíces, ricas de uma esencia que
o humano interpreta criativamente, através de ações performativas que simbolizam
acontescimentos ancestrais incorporados nas culturas. Geertz (2003) em referência
ao símbolo, a cultura e a arbitrariedade da conduta humana, considera o seguinte:
“Compreender a cultura de um povo supõe captar seu caráter normal sem reduzir
sua peculiaridade […] Nossas formulações sobre sistemas simbólicos de outros po-
vos devem orientarse em função do ator” (Geertz, 2003, p. 27-28, tradução do autor).

Geertz (2003) expressando a teoría sobre a cultura, afirma que a principal preocupação,
teria que estar focada na forma de viver do ator, e assim compreender e traducir um
fenômeno cultural com maior coerência e objetividade. Desta maneira, é possivel res-
peitar a essência ancestral da cultura, e assim difundir um conhecimento não alterado.

4 Provem do grego holos, totalidade. Ou seja, é uma corrente que analisa os acontecimentos, a par-
tir de diferentes interações que os determinan. O holismo, se entende como um todo e cada parte
dessa totalidade tem continuas interações.

1037
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A cultura entendida como sistema simbólico, é constituída de símbolos principales


que possibilitam a organização da mesma, incluindo estruturas ocultas (expressões)
ou ideologias fundamentadas. De acordo com Geertz (2003) se considera coerente
analisar a cultura segundo uma: “Logica informal de uma vida real” (Geertz, 2003, p.
30, tradução do autor). De tal maneira, se reduzem o risgos de analizar um fenômeno
cultural de forma preconceituosa e não objetiva, deixando que a conduta do ator
tenha total naturalidade no contexto sociocultural, observando e compreendendo
o significado dos eixos.

Assim mesmo, nas culturas existe geralmente a incorporação de conhecimentos


holísticos que desenvolmen-se na contemporaneidade, e que são o fruto de uma
conexão entre o homem e o universo do passado, trasladado no presente e proie-
tado no futuro. Smuts (1927) em relação ao holismo e a evolução, considera que: “O
caracter de “totalidade” emcontra-se em todas partes, sendo algo fundamental no
universo. Holismo [...] (todo) é o termo aquim acunhado para este fator fundamental
operativo direcionado com a criação de totalidades no universo” (Smuts, 1927, p. 88,
tradução do autor).

Em relação ao que Smuts (1927) afirmou, o todo, ou seja o significado de totalidade


no holismo, não são falsas elaborações do pensamento, sendo realidades dinâmicas
que estão incorporadas no universo. A evolução não se desenvolve de forma casu-
al, já que é um processo criativo tendencialmente definido, incluindo tambem uma
complexidade na sua natural evolução cósmica. Assim que, a totalidade não se refe-
re só a certos componentes biológicos do corpo humano. Deve-se tambem ter em
conta de elementos vinculados com substancias inhorganicas e o sistema mental,
igual que as expressões do espiritu humano.

Ainda Smuts (1927) considerando um animal ou uma pranta como exemplo de um


todo, o holismo se define como partes distintas que estão incluídas, e no mesmo
tempo na fusão desses componentes que estão incorporadas nestes seres viventes.
Assim que Smuts (1927) sintetiza o conceito de holismo afirmando que: “O todo esta
nas partes e as partes estão no todo” (Smuts, p. 88, tradução do autor) e define que
na natureza existe uma sintesis holística progressiva, començando pela: “simple es-
trutura física, [...] compostos químicos, [...] organismos, [...] mentes u organos psiquicos,
[...] personalidade” (Smuts, p. 88, tradução do autor).

Segundo a teoria de Smuts (1927) o holismo na natureza não é só criativo, tambem é


autocriativo. Os enteros na natureza estão sempre compostos de partes. O holismo
é um processo de “sintesis criativa”, ou seja, o todo resultante é dinâmico, evolutivo
e criativo. Assim que a evolução tem um componente espiritual progressivamente
mais íntimo, podendo ser entendida com profundidade, tendo em conta que se ca-
racteriza fundamentalmente de totalidade.

1038
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Von Bertalanffy (1968) informa que existem vários termos em todos os campos do
conhecimento, que servem para explicar o conceito de todalidade, e são os seguin-
tes: “holismo, organismico, gestalt, etc.” (Von Bertalanffy, 1968, p. 45, tradução do
autor). Assim que, estas ideias servem para explicar a importância de pensar em um
sistema constituído por componentes interatuando.

O autor afirma que na física não existe nada extraordinário ou que tem uma ligação
com o sagrado. Mais, outros sistemas simbólicos vinculados com as áreas das “ciên-
cias humanas” são igualmente coerentes, como por exemplo: “Os da taxonomia, da
genética ou da história da arte embora eles estejam longe de ter o mesmo grau de
precisão” (Von Bertalanffy, 1968, p. 247, tradução do autor).

Ainda Von Bertalanffy (1968) manifesta que em outras culturas existem diferentes
tipos de conhecimentos, que podem representar varias perspectivas da realidade,
incluindo aspetos que vão além da visão científica do universo. Wilber (1998) afirma
que o humano, ocupa um lugar importante no universo, na vida e no espiritu. “Espi-
ritu ou a vacuidade é inqualificable, mais não é inherte nem inmutavel porque a sua
criatividade, em última estancia, é a que da origem a emergências de novas formas.
Vacuidade, criatividade, holone” (Wilber, 1998, p. 50-51, tradução do autor).

Holone pode-se considerar como um sinônimo de holismo, ou seja, significa um


todo e tambem uma parte. O humano durante a ação criativa, está inspirado tam-
bem por estas forzas do universo, durante um processo que estimula o homem na
imitação da natureza e na criação de símbolos que servem como médio de comu-
nicação com o universo. Assim que, acontece um intercambio dinâmico e inclusivo
de distintas áreas, sendo necessário para ampliar o conhecimento, cooperando ao
desenvolvimendo evolutivo do humano.

Geralmente, no conhecimento ancestral està incluído o holismo, como, tambem no


desenvolvimento de uma representação da realidade cultural que eles vivenciam. A
continuação, se encontra uma figura (fig. 1) que representa um processo cognitivo,
para que o fruidor possa melhor compreender como pode acontecer a conexão en-
tre distintos campos do conhecimento. Existe uma totalidade e singularidade típica
do holismo, que simbolicamente vem expressado através de distintas áreas, como,
por exemplo, a filosofia, a saúde, a arte, a química, entre outras, mais no mesmo
tempo essas sabidurías, em varias ocasões, operam sinergicamente.

1039
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fig. 1: Representacão das práxis holísticas, desenvolvidas em varias


culturas e com distintas áreas (Realização do autor, 2019).

Damásio (2018) estabelece que existe uma conexão entre a vida humana faz 3,8
bilhões de anos atrás, com a que se desenvolve na contemporaneidade, depen-
dendo de uma serie de fenômenos e mecanismos culturais, que associados aos
sentimentos e fenômenos, fortalece os vínculos com a natureza. Ainda Damásio
(2018) considera que: “Sentimentos e mentes culturais criativas são frutos de um
longo processo no qual a seleção genética guiada pela homeostase teve papel de
destaque” (Damásio, 2018, p. 15).

O autor, enfatiza a criatividade do humano afirmando que desenvolve-se através de


um processo cultural, sendo orientado pela homeostase, ou seja um agrupamento
de fenômenos tendencialmente relacionados com os sentimentos, que conectam
as primeiras formas de vida com corpos e sistemas nervosos. Assim que a mente
saca o poder dos fenômenos. Conectar culturas a sentimentos e fenômenos, au-
menta a união com a natureza do universo, em algum caso estimulando tambem a
criatividade do humano.

1040
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Ele manifesta a sua práxis de expressar acontecimentos primordiais, e o impulso de


interpreta-los mediante ações artísticas-criativas desenvolvidas na contemporanei-
dade e estimuladas pela fantasia. Ainda Damásio (2018) remarca a importante cone-
xão que existe entre humano e natureza. Pode-se encontrar na produção artística,
nas praticas culturais e nos componentes biológicos.

A práxis criativa nos fenómenos culturais


A práxis criativa considera-se como uma/as ação/ões vinculada/as com um processo
definido por um método. Assim que, a observação acontece como se fosse um “jogo
ipnotico” que é necessário para interpretar as formas, as cores e as texturas do con-
junto visual do performance. O observador/investigador inspira-se a depender do
que admira e da interação que contribui a interpretação criativa, definendo imagens
que resgatam e traduzem a ancestralidade a partir de uma práxis. A continuação (fig.
2) se encontra a metodologia proposta pelo autor deste trabalho, vinculada com o
processo criativo.

Fig. 2: Metodologia do processo criativo (Realização do autor, 2019).

O processo criativo, representado na figura anterior, comença por um ponto de par-


tida, através de um olhar segundo uma práxis de observação, passando por um es-
tado “limiar”, que Turner (1974) define a continuação: “As características do sujeito
ritual (o “transitante”) são ambiguas; passa através de um dominio cultural [...] dos
atributos do passado ou do estado futuro” (Turner, 1974, p. 116-117). O estado limiar,
pode-se tambem traduzir como estado intermediário de intensidade elevada em
que o ritual ou performance se desenvolve.

1041
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Maslow (2008) considera que o conceito de criatividade fica bastante próximo ao do


humano sano e autorrealizador, afirmando que: “A educação artística criativa, me-
lhor dito, a educação através da arte, pode ser especialmente importante não tanto
para produzir artistas ou objetos de arte, sino para obter pessoas melhores” (Mas-
low, 2008, p. 83, tradução do autor). Ainda Maslow (2008) afirma que a criatividade
poderia ser convertida em modelo para ser aplicado em outro tipo de educação,
ensignando outras matérias com o auxilio da mesma estrutura educativa.

Respeito a certos acontecimentos históricos, a sensação atual é que a vida passa de


forma mais rápida. A causa é a importante aceleração do ritmo do desenvolvimento
das técnicas, conhecimentos e avances tecnológicos, entre outros. Assim que, é ne-
cessaria uma mudança de aptidão do humano.

Maslow (2008) faz uma distinção entre criatividade primaria, que é a fase de inspi-
ração e a critividade secundaria, que é: “[...] o processo de elaboração e desenvolvi-
mento da inspiração” (Maslow, 2008, p. 85, tradução do autor). Aplicamos o conceito
do autor sobre criatividade á metodologia proposta, que desenvolve-se em dois fa-
ses: a primeira (práxis de observação) e a segunda (práxis de interpretação).

Galeffi (2008) destaca o percurso do desenvolvimento humano, relativo a forma de pen-


sar, inventar e aprender, distinguindo-se de outras espécies animais: “Pela capacidade
criadora de formas e combinações vitais de existência comum [...] Seria preciso que se
pudesse garantir o acesso ao desenvolvimento do pensamento autônomo e inventivo de
todo ser humano apto para aprender a aprender” (Galeffi, 2008, p. 107). O autor, reflexiona
sobre o comportamento do humano, fazendo referência á criatividade, que faz parte do
impulso da natureza do homem. Pode-se traduzir em uma necessidade de reflexão autô-
noma do aprender, que incorpore uma visão ampla, objetiva e analítica de compreender.

Segundo o pensamento de Malpasso (2017) e de outros teóricos, se considera que a


criatividade è um processo complexo, vinculado com o humano e a espiritualidade.
Desenvolve-se a partir de duas perpectivas: do pesquisador e dos sujeitos estudados
durante a observação das práxis holísticas. O processo criativo, implica no primer
momento, a observação de algumas caraterísticas vinculadas com a gestualidade e
o simbolismo relacionado com as praticas culturais, e a interpretação que da como
resultado a imagem criativa, construída com o auxilio da fotografia. Assim mesmo,
o autor, considera que a criatividade está impulsada pela multirreferencialidade, o
misticismo e os estímulos sensoriais.

Bachelard (2007) afirma que no tempo podem ocorrer inúmeros episódios que se
definem como instantes. Uma das potencialidades que tem a fotografia, é poder
fixar instantes mais significativos vinculados com acontecimentos holísticos em um
contexto cultural. Sucessivamente, se concretam imagens, que podem ser elabo-
radas ou não, a depender do processo criativo escolhido pelo pesquisador. Galeffi,
Sindei e Gonçalves (2014) afirmam que a criatividade é indispensável pelo humano.

1042
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Assim que, através do processo criativo, se remarcam a gestualidade que é presente


em algumas manifestações culturais, onde o corpo humano é protagonista e inter-
prete de tradições holísticas. Estas trazem conhecimentos e elementos simbólicos
ligados com os antepassados, transmitidos e preservados na contemporaneidade.
Successivamente, se procede com a ação criativa do investigador, olhando as práxis
holísticas durante o caminho de pesquisa, observando diferentes culturas, como o
candomblé no Brasil; a santería em Cuba; uma poblação indígena denominada shi-
pibos no Perú; a luta livre e outras creencias incorporando raízes trazidas da civiliza-
ção Maia no México, entre outras.

De tal forma, o autor tem a possibilidade de abrir a sua olhada interatuando tambem
com os sujeitos que desenvolvem as praticas holísticas, y se sinte inspirado criando
imagens que incorporam uma potencia e que traduzem sucessos e memorias do pas-
sado, na contemporaneidade. O processo criativo pode-se sintetizar em cuatro fases.

Na primeira, geralmente se comença a perceber um estímulo/desejo de querer fazer


algo. Sucessivamente, observa-se algum acontecimento tendo uma inspiração/ideia.
A continuação, reflexiona/analisa o que observou-se, e, conclui definindo o que vai a
fazer obtendo-se o resultado final. É importante dizer que as fases, de alguma forma
precisam interagir para o desenvolvimento do processo criativo.

De Bono (1994) na introdução de uma das suas obras do 1969 intitulada The Mecha-
nism of Mind, afirma que: “As redes nervosas do cérebro humano, podiam funcionar
como um sistema de informação autoorganizado” (De Bono, 1994, p. 9, tradução
do autor). Ideias que nesse ano eram bastante extranhas, mais na atualidade são
funtamentales, tendo em conta que tambem existe uma disciplina académica que
estuda o comportamento dos sistemas autoorganizados. Ainda o autor, afirma que:
“Atualmente, poucos sabem que a criatividade é necessária do ponto de vista ma-
temático tendo em conta que a pecepção do homem funciona como um sistema
autoorganizado” (De Bono, 1994, p. 9, tradução do autor).

O mesmo De Bono (1994) relata que no universo da educação, ainda tem muito
pouco desenvolvimento no ensino do pensamento criativo, dando por obvio que a
criatividade se relacione com o mundo da arte e que depende do talento. Ideia que
o autor define como medieval. Por outro lado existem pessoas que são concientes
da necessidade de um pensamento criativo.

Por causa de uma escassa qualidade de ensino impartido por algumas pessoas, ain-
da existe uma confusão sobre o significado de criatividade e não ocupa o destacado
lugar que merece. Tambem tem quem pensa que a criatividade é questão de talen-
to, e outros desistem pelos recursos confusos propostos. De Bono (1994) propõe
técnicas sistematicas, que podem ser usadas por indivíduos ou grupos, baseadas
no “comportamento da percepção humana como um sistema autoorganizado e ge-

1043
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

rador de pautas [...] inventando a expressão “pensamento lateral” que se ocupa de


conceitos e percepções” (De Bono, 1994, p. 13, tradução do autor).

De Bono (1994) considera o pensamento criativo ou -pensamento lateral-, “um tipo


especial de control da informação, acreditando que deveria ocupar um lugar junto
a outros métodos: as matemáticas, o analisis logico, a simulação pelo computador,
etc.” (De Bono, 1994, p. 13, tradução do autor). Ele expressa o pensamento lateral
em tres grandes emfoques: questionamento, alternativas e provocação, que incluem
métodos e técnicas aprendiveis, praticaveis e aplicaveis.

Um dos principais objetivos do pensamento criativo é descobrir melhores formas


de fazer as coisas. Criatividade significa tambem intuição e novas percepções, ge-
nerando motivação e aptidões elogiando os ótimos resultados criativos. Ainda De
Bono (1994) afirma que a criatividade precisa de motivação, esforço, sistema, pausas
e pensamento proactivo, entre outros.

Segundo Esquivias (2004) a criatividade existiu de sempre e faz parte das habilida-
des do humano, e é relacionada com a natureza. O processo criativo, “é uma das po-
tencialidades mais elevadas e complexas dos humanos, éste implica habilidades do
pensamento que permitem integrar os processos cognitivos menos complicados,
até os conhecidos como superiores para o logro de uma ideia e de um pensamento
novo” (Esquivias, 2004, p. 3, tradução do autor).

A criatividade evidencia-se na produção vinculada com as artes plásticas, na música,


na dança e na pintura, entre outros. Divesifica-se pelas influencias culturais, que ham
contribuído em diferentes formas no processo criativo do homem, gerando tambem
diferentes sistemas simbólicos e práxis holísticas. Tudo se traspõe a partir de uma
cosmovisão típica da propia cultura ancestral até a contemporaneidade.

A continuação, na fig. 3 pode-se visualizar a trilogia do processo criativo através do


desenvolvimento das siguentes fases: 1.Observação das práxis holísticas; 2.Processa-
mento do objeto de estudo observado; 3.Ação artística-criativa.

Fig. 3: Trilogía do processo criativo (Realização do autor, 2019).

1044
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Segundo o processo criativo definido pelo autor, durante a primeira fase se descu-
brem e observam os acontecimentos culturais vinculados com os conhecimentos
holísticos. A segunda, comença com a reflexão, interação, inspiração, terminando
com a ideia. Assim que o procedimento finaliza com a ação artística-criativa, utilizan-
do a fotografia como registro do performance holística observada, que vem depois
traduzida em imagem digital.

Performance incorporada na tradução criativa


Durante o desenvolvimento deste apartado se enfatiza a tradução criativa do per-
formance uns dos mas importantes são: Richard Schechner, professor da New York
University e Peter Brook (1925) um dos grandes renovadores do teatro contemporâ-
neo e fundador do International Center for Theater Research. Buscam-se “pontos de
conexão” entre os estudos de performance e outras áreas do conhecimento, assim
estimulando á produção de pesquisas multi-interdisciplinares.

Por exemplo, entre performance e psicologia, historia, estudos sociais, ciências com-
putacionais, artes dramáticas, estudos das religiões, entre outras. De tal forma, po-
de-se efetivar uma coesão entre distintas áreas do conhecimento, pesquisadores e
cultores populares, que se interpreta mediante a criatividade do autor e a evolução
da mirada fotográfica que acontece durante o processo de observação.

Assim que se considera-se especialmente importante a observação das práxis holís-


ticas, que o autor/artista traduz mediante a técnica que considere mas coerente. No
presente trabalho, é a fotografia que se elabora através um software computacional
que como resultado revela uma imagem que incorpora memorias do passado inter-
pretadas na contemporaneidade. Richard Schechner (2013) define o performance a
depender do contexto e das áreas de aplicação: “Nos negócios, esportes e sexo “to
perform” (realizar) é fazer algo até um padrão – para ter successo, para se destacar.
Nas artes, “to perform” (para executar) é fazer um show, uma peça, uma dança, um
concerto” . Na cotidianidad: “to perform” (realizar) é se exibir, ir a extremos para subli-
nhar uma ação para aqueles que estão assistindo” (Schechner, 2013, p. 28, tradução
do autor).

Schechner (2013) ainda expressa que: ““to perform” executar também pode ser en-
tendido em relação a: Ser, Fazendo, Mostrando fazendo, Explicando “mostrando fa-
zer”” (Schechner, 2013, p. 28, tradução do autor). O autor manifesta a importancia
de distinguir essas categorias, outorgando uma explicação a continuação: ““Ser” é
a própria existência. “Fazer” é a atividade de todo o que existe, de quarks a seres
sencientes a cordas supergalácticas. “Mostrando fazendo” está realizando: apontan-
do para, sublinhando, e exibindo fazendo. “Explicar “mostrando fazer”” é estudos de
desempenho” (Schechner, 2013, p. 28, tradução do autor).

1045
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Mostrar e fazer estão constantemente mudando realidades efemeras, como acon-


tece por expemplo: no teatro, na dança, na música, nos rituais e nos jogos, entre
outros. O descrito anteriormente, ajuda a compreender que a gestualidade humana
é costantemente variavel e peculiar, incorporando elementos arquetípicos perten-
centes a um universo holistico. Ou seja, as expressões que o humano aprende em
culturas ancestrais mediante a observação e a imitação da natureza, são trasladas e
interpretadas na contemporaneidade. Com a fotografia se fixam istantes, traduzidos
em imagens que reunem a memoria e a sabiduría de heranças culturais.

O sujeito pesquisado manifesta a criatividade com ações performativas, que podem


ser vinculadas com a dança, a música e o teatro, entre outros, ou seja, o humano de-
senvolve gestualidades dando a conhecer compoentes simbolicos que são os signos
que contradistiguem as culturas do planeta. Brook (2012) afirma que: “necessitamos
escenificar auténticos rituais [...] O ator busca emvano captar o eco de uma tradição
desvanecida [...] Hemos perdido tudo o sentido do ritual e do ceremonial” (Brook,
2012, p. 65, tradução do autor).

De acordo com Brook (2012) as tradições estão “esquecidas” mais a memoria ances-
tral permanece na profundidade do humano. Por este motivo, é importante resgatar,
proteger e difundir a cultura holística, procurando trazer alguns elementos simbóli-
cos que a caracteriza. A continuação, na fig. 4 representa-se a ação artística-criativa,
começando pela primeira fase, destinada a observação do performance; a continua-
ção, o pesquisador se dedica a fotografar instantes do performance; na ultima fase o
investigador interpreta criativamente a fotografia, tendo como resultado a imagem.

Fig. 4: Representação da ação artística-critiva (Realização do autor, 2019).

1046
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Schechner (2013) em relação aos performances, considera que: “marcam identidades,


dobram o tempo, reformulam e adornam o corpo e contam histórias. Performances -
de arte, rituais, ou a vida comum - são “comportamentos restaurados” [...] realizaram
ações que as pessoas treinam e ensaiam” (Schechner, 2013, p. 28, tradução do autor).
Os que trabalham com arte, se sabe que precisam de treinamento, igual que na vida
cotidiana, já que é necessario compreender/aprender componentes culturais rela-
cionados com o comportamento do humano.

Assim que, o performance desenvolve-se como ação relacionada com a vida social e
as circunstancias. Tambem, “As atividades da vida pública - às vezes calmas, às vezes
cheio de tumulto; às vezes visível, às vezes mascarado - são performances coletivas.
[...] Todas as atividades da vida humana podem ser estudadas como performance”
(Schechner, 2013, p. 29, tradução do autor). O performance aparentemente espontâ-
neo, as vezes resulta inconscientemente limitado por compromissos e/ou routinas
relacionadas a componentes vinculados com as heranças culturais.

Segundo Malpasso (2017) a criatividade humana ao longo do processo evolutivo


tive distintas influencias por parte da natureza. A partir de alí, o homem desenvolveu
caminhos diferentes e peculiares, definendo uma rica diversidade cultural. Assim
que, construiram-se pessoalidades progressivamente mas complexas, que podem-
-se reconhecer através das carateristicas arquetípicas.

Galeffi et al. (2014) respeito a criatividade e ao humano, considera que: “a criação, a


conservação e a transformação são a marca de tudo o que vive. E já a vida parece ser
a afirmação de uma inteligência criadora seguramente impersonal, aunque tambem
se pessoaliza na pessoa humana” (Galeffi et al. 2014, p. 36). Tambem as caraterísticas
do humano, se definem a partir de influencias as vezes impalpáveis, procedentes
da sobrenaturalidade do universo, e que influem nos conhecimentos de algumas
culturas holísticas do planeta.

A reflexão a partir da observação dos atos ritualistas e performance expressando


uma herença cultural, estimulam tambem a compreender os conhecimentos dos
saberes holísticos derivados das experiencias práticas (práxis) e que se traduzem de-
finendo as imagens poéticas. Assim que, a experiencia no campo impulsa a criativi-
dade, para a elaboração de novos métodos que surgem durante o aprendizagem e
que inspiram para o desenvolvimento do processo criativo, escolhendo a fotografia
como principal instrumento expressivo.

Flusser (1990) considera que a função da fotografia é: “Produzir, processar e abastecer


simbolos” (Flusser, 1990, p. 26, tradução do autor). O fotografo, embora tem criterios
esteticos, epitemológicos e socio-politicos, tecnicamente depende das carateristicas
especificas da camara que utiliza sabiamente para obter os melhores resultados vi-
suais. As vezes ele decide alterar criativamente usando um software computacional,

1047
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

que define a imagem e traduz uma práxis de uma cultura holística, neste processo
de investigação/conhecimento/entendimento abordado pelo autor.

Conclusões
A partir das experiencias holísticas, elaborou-se uma reflexão vinculada com o ob-
jeto de estudo, construiu-se uma discussão entre temáticas que possam despertar
interés pela comunidade científica e tambem pelos cultores populares. Assim que,
o conceito de holismo e práxis revelarom-se estimulantes pelo autor, tendo uma
preocupação e uma urgencia sensível de sensivilizar a humanidade a compreender
a importância dos acontecimentos holísticos que desenvolvem-se neste planeta, as
veces infelizmente ignorados pela sociedade.

Olhando para o desempenho criativo respeito as práxis holisticas, é o meios pelos quais
o autor aproxima-se respeito a seus fins mais autenticos que é o respeito e o resgate
das sabidurias ancestrais, imaginando e percebendo um mundo mas equo, conciente
e solidal. Por causa de necessidades relacionadas com as caraterísticas peculiares do
pesquisador, mais realmente do humano em geral, se escolheu um caminho tenden-
cialmente novo e singular, para poder estudar, difundir e resgatar as praticas holísticas.

Observou-se as ações (performances) que foram aprendidas e ensaiadas, assim com-


preendeu-se elementos da dinâmica e os valores de um individuo ou de uma coletivi-
dade de pessoas. Ou seja, essos performances se observarom mediante uma olhada e
uma ação criadora, utilizando a fotografia como médio expressivo, fixando momentos
efêmeros. Assim mesmo o performance, considerou-se especialmente interessante, a
causa das experiencias e por outro lado por ser inter-multidisciplinar, podendo estu-
dar literatura, tecnologia, dança, vida cotidiana, religião e esportes, entre outros. Todos
são exemplos de comportamento performativo estudados em comjunto.

Durante o desenvolvimento da pesquisa, construiu-se um método operacional que


se amoldou a cada fenômeno cultural observado pelo pesquisador. Successivamente,
a partir do registro fotográfico, realizou-se uma tradução da imagem, mediante um
processo criativo de alteração que definiu uma imagem nova, mais que incorporou
fundamentais elementos arquetípicos que caracteriza o objeto de estudo em questão.

Referências
Bachelard, G. (2007). A intuição do instante. Campinas: Verus Editora.

Brook, P. (2012). El espacio vacío: arte y técnica del teatro. Barcelona: Ediciones
Peninsula.

Corbetta, P. (2007). Metodología y técnicas de investigación social. Madrid:


McGraw-Hill/Interamericana.

1048
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Damásio, A. (2018). A estranha ordem das coisas: As origens biológicas dos sen-
timentos e da cultura. São Paulo: Editora Schwarcz S.A.

De Bono, E. (1994). El pensamiento creativo. El poder del pensamiento lateral


para la creación de nuevas ideas. Barcelona, Editorial Paidós.

Esquivias, Serrano, M. T. (2004). Creatividad: definiciones, antecedentes y aportaciones.


Revista Digital Universitaria DGSCA-UNAM, Ciudad de México, v. 5 “n. 1” pp. 1-17.

Flusser, V. (1990). Hacía una filosofía de la fotografía. México: Trillas.

Galeffi, D. A.; Sidnei, Macedo, R.; Gonçalves, Barbosa, J. (2014). Criação e devir em
formação: Mais-vida na educação. Salvador: EDUFBA.

Galeffi, D. A. (2008). O diálogo na formação transdisciplinar do educador-filósofo.


Childhood & philosophy, Rio de janeiro, v. 4 “n. 7” jan./jun. pp. 103-114.

Geertz, C. (2003). La interpretación de las culturas. Barcelona: Editorial Gedisa, S.A.

Maslow, A. H. (2008). La personalidad creadora. Barcelona: Editorial Kairós.

Malpasso, A. (2017). El trance en el xirê: expresividades del cuerpo mediante un


proceso creativo. Tese doutoral em co-tutela acadêmica. Universidade Federal da
Bahia (UFBA et al.), Salvador, Brasil; Universidad Politécnica de Valencia (UPV), Valen-
cia, Espanha.

Schechner, R. (2013). Performance studies: an introduction. New York: Routledge.

Smuts, J. C. (1927). Holism and Evolution. London: Macmillan and Co., Limited.

Turner, V. (1974). O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes.

Von Bertalanffy, L. (1968). General System Theory. New York: George Braziller, lnc.

Wilber, K. (1998). Breve historia de todas las cosas. Barcelona: Editorial Kairós.

1049
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Alice Stefânia Curi1

A poética do filme “Eu não Gosto” e seus efeitos incidentais no


espetáculo “Contra o Amor”
The poetics of the movie “I don’t like” and its incidental effects in the play
“Against Love”

Resumo
O curta “Eu não gosto” foi criado a partir de uma das sete cenas da obra “Contra o
Amor”, escrita pelo dramaturgo catalão Esteve Soler, e montada pelo Teatro do Ins-
tante em 2018, em Brasília. Transitando entre um mundo distópico e um cotidiano
familiar e estranho ao mesmo tempo, as cenas de Soler lançam um olhar implacável
sobre o humano e seus fracassos sociais e existenciais. A concepção que moveu a
montagem dialoga com a do autor em sua poética fragmentária. Durante o espetá-
culo o filme é projetado de modo fragmentado tanto pelo fato de incidir por trechos
ao longo da peça, como também porque é projetado em superfícies segmentadas
e/ou com diferentes profundidades, o que distorce as imagens. A visualidade e a
sonoridade da cena ao vivo por vezes parecem contaminar e ressignificar o filme,
e vice-versa. Os atores em cena são os mesmos da tela, e vestem o mesmo figurino
que usam no vídeo, o que gera impressão de multiplicação e de desdobramento
dos corpos no ambiente, criando camadas de sentidos e efeitos de presença.
Palavras-chave: poética, concepção, presença, sentidos.

Abstract
The short film “I don’t like” was created from one of the seven scenes of the work
“Against Love”, written by the Catalan Esteve Soler, and directed by the Teatro do
Instante in 2018, in Brasilia. Moving between a dystopian world and a familiar and
strange everyday life, Soler’s scenes cast a relentless look upon the human and his
social and existential failures. The conception that moved the montage dialogues
with the Soler’s fragmentary poetics. During the play, the film is projected in a frag-
mented way, as there are inputs at different times of the play, and projection on

1 Atriz, diretora e pesquisadora. Mestre em Artes pela Universidade de Brasília, Doutora em Artes
Cênicas pela Universidade Federal da Bahia e Pós-Doutora em Artes da Cena pela Universidade de
Campinas. Professora Associada do Departamento de Artes Cênicas e do Programa de Pós-Gradu-
ação em Artes Cênicas da Universidade de Brasília. Coordenadora, juntamente à Professora Rita de
Almeida Castro, do Grupo de Pesquisa Poéticas do Corpo e de sua linha de investigação laboratorial,
o Coletivo Teatro do Instante. Coordena ainda as linhas de pesquisa Dramaturgias de Ator e Matilha
– Matrizes Interdisciplinares em Teatro, Literatura, História e Arte.

1050
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

segmented screens and at different depths, causing distortion of images. The live
scene sometimes seems to contaminate and resignify the film, and vice versa. The
actors on the scene are the same as the screen, and they wear the same costumes
they use in the video, which creates an impression of multiplication and unfolding of
bodies in the environment, creating layers of senses and presence effects.
Keywords: poetics, conception, presence, senses.

O Teatro do Instante e a obra de Esteve Soler


O coletivo de criação Teatro do Instante é uma linha de investigação laboratorial do
Grupo de Pesquisa Poéticas do Corpo, ligado à Universidade de Brasília e ao CNPq,
coordenado pela autora deste texto em parceria com a Professora Rita de Almeida
Castro. Criado em 2009, o grupo se caracteriza por proporcionar a seus integrantes
oportunidades de formação continuada; por seus processos colaborativos e parce-
rias com diferentes artistas; pela investigação de poéticas imersivas e em espaços
não convencionais; por buscar temas e abordagens relevantes ao sujeito histórico
e sensível; pela investigação de “práticas de si”2 tanto como meios de autocuidado,
quanto para acessar estados e afetos potencializadores do trabalho performativo em
seus âmbitos de criação e de recepção; e pelo aprofundamento da pesquisa teórica
e crítica acerca dos processos e experiências poéticas, o qual repercute em espaços
de discussão, e escrita de artigos e livros. Com 10 anos de existência, completados
em 2019, os pesquisadores do coletivo criaram, nesse período, vídeos, performances
e sete espetáculos, além de publicarem diversos artigos e organizarem, produzirem
e lançarem o livro “Poéticas do Corpo: instantes em cena”, pela Editora da UnB (2017).

Em 2013, durante um congresso em Madri, as coordenadoras do grupo tiveram con-


tato com a trilogia “En Contra” do dramaturgo catalão Esteve Soler e se interessaram
por investigar sua poética junto ao grupo de pesquisa. A trilogia apresentava dis-
cussões relevantes a respeito de dimensões públicas e privadas do mundo contem-
porâneo, transitando com crítica corrosiva e humor sagaz por um largo espectro de
questões da contemporaneidade em seus âmbitos político, social, existencial, eco-
lógico, ético, estético.

Composta pelas obras “Contra o Progresso”, “Contra o Amor” e “Contra a Democracia”


escritas respectivamente em 2008, 2009 e 2010, a trilogia já foi traduzida para mais de
dezessete idiomas, além de premiada na Espanha (Prêmio Serra DOr em 2012 para
“Contra a Democracia”) e na França (Prêmio Godot em 2013 para “Contra o Progresso”).

2 Abraçamos aqui a terminologia adotada por Cassiano Quilici em diálogo com noções como ‘téc-
nicas de si’, em Foucault, como o ‘trabalho do ator sobre si mesmo’, de Stanislavski e retomado por
Grotowski, e dos conceitos de ‘cuidado’ oriundo da Antiguidade Ocidental e de ‘cultivo’, ligado ao
Budismo. (2015: pp 17 – 24)

1051
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

As três peças apresentam aspectos em comum como o tom sarcástico, a poética de


absurdidade e a estrutura fragmentária. Cada texto é composto por sete cenas curtas,
independentes entre si, sete “obras burlescas”, conforme definição do autor, em que
nossa realidade cotidiana é submetida a uma lente de aumento e a toques de absurdi-
dade que, pela distorção do que consideramos comum, favorecem o estranhamento
do leitor e do público em relação a inúmeros despropósitos do cotidiano que muitas
vezes naturalizamos sem perceber. O autor retrata situações que muitas vezes se as-
semelham, ao menos inicialmente, a eventos corriqueiros, provocando rápida identi-
ficação da plateia, mas que à medida que que vão sendo esgarçadas e distorcidas no
desenrolar da trama, findam por soarem espantosas e inaceitáveis. Esse dispositivo
dramatúrgico provoca na recepção um olhar estranhado para alguns hábitos comuns
que passamos a perceber como potencialmente próximos a atitudes abjetas, levando
a processos de (auto)crítica pessoal, social e histórica.

Os estudos do Instante em torno da obra do dramaturgo catalão Esteve Soler inicia-


ram em setembro de 2014, com a primeira peça da trilogia, “Contra o Progresso”. Um
ano depois, em agosto de 2015, o grupo estreou a montagem desse texto, a qual
chamou “En Contra: experimento#1”, dentro da mostra Canteiro de Obras, do Festi-
val Internacional de Teatro Cena Contemporânea, de Brasília. Este processo teve di-
reção geral de Diego Borges3 e contou com a consultoria artística de três integrantes
do Teatro O Bando4, de Palmela (PT), que vieram ao Brasil passar quinze dias nessa
colaboração. O Teatro do Instante manteve importante parceria de criação com o
Bando nos últimos cinco anos, resultando em três montagens conjuntas5 além de
inúmeras trocas em nível de formação. Em seguida vieram novas versões desse tra-
balho, que recebeu diferentes numerações a cada novo espaço (não convencional)
habitado: “En Contra: experimento#2”, na sede do Teatro O Bando, em Palmela (PT),

3 Ator, diretor, iluminador e produtor. Mestre em Artes Cênicas pela UnB, sob orientação desta au-
tora, e idealizador do curso First Body, que vem sendo ofertado em diversas cidades na América,
Europa e África.
4 Sara de Castro, Guilherme Noronha e Rui M. Silva foram os parceiros internacionais desta cocriação.
Na ocasião os três eram ligados ao coletivo lusitano Teatro O Bando.
5 As obras “En Contra: experimento#1”, “Do Contra” e “Netos de Gungunhana”, foram resultados des-
sa colaboração. Este último está ligado a um projeto de colaboração lusófona que além do Teatro do
Instante e do Teatro O Bando, contou ainda com a parceria de artistas ligados à Fundação Fernando
Leite Couto, em Moçambique. O projeto gerou três espetáculos, três versões sobre uma mesma obra
de referência: “As Areias do Imperador”, de Mia Couto, criadas em três residências de cocriação, uma
em cada pais envolvido no projeto. Cada montagem foi dirigida por artistas do grupo anfitrião, sen-
do a primeira em Lisboa (2018), a segunda em Brasília (2019) e a terceira em Maputo (2019). Em Bra-
sília dirigi a versão “Netos de Gungunhana: um desvio”, ao lado de Diego Borges e com colaboração
de Giselle Rodriges, doutoranda em Artes pela UnB e também integrante do Teatro do Instante. Esse
projeto constitui-se como o principal campo de minha pesquisa de Pós-Doutorado.

1052
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

“En Contra: experimento#3” nas dependências do Teatro da Caixa (estacionamento,


palco, camarins e copa) e “En Contra: experimento#4” que ocupou os ambientes da
casa Niemeyer, da UnB.6

Em novembro de 2016, o Teatro do Instante fez mais uma residência artística com o
grupo português Teatro O Bando, dessa vez em torno das potencialidades de cinco
cenas de “Contra o Amor” e duas de “Contra a Democracia”. Assim, foi criada em co-
laboração entre os dois grupos a obra “Do Contra”, com direção geral do encenador
João Brites, apresentada apenas em Portugal. Nessa montagem, foi proposta uma
“costura” dramatúrgica que interligava as cenas independentes nos textos de Soler:
a sugestão de um ambiente pós-guerra ou pós-hecatombe a que um edifício e seus
habitantes resistiram. Em cada andar, caracterizado por um pequeno espaço cênico
realisticamente representado, uma das cenas se passava. Seis cenas eram interca-
ladas com trechos da sétima cena, que foi fragmentada ao longo da peça, e que se
passava no térreo do edifício, em interação com um personagem que, na encenação,
assumiu características de um suposto zelador. Uma das cenas que fazia parte desta
montagem era a cena “Eu não Gosto”, que no Brasil ganhou a versão cinematográfica
que integra a montagem do Teatro do Instante. Em Portugal, a cena foi ambientanda
em um banheiro, o que dialoga em parte com a ambientação da versão fílmica da
cena, como poderá ser observado em outras imagens ao longo do texto.

Imagens 1 e 2: Frames de filmagem da apresentação da cena em Portugal

Importa fazer essa digressão, reconstituindo um pouco da trajetória do Teatro do


Instante neste projeto de pesquisa sobre a obra de Soler, na medida em que proces-
sos longos de pesquisa em arte vão deixando rastros no caminho. Cada encontro do

6 Sobre esta experiência conferir o artigo “En Contra - Experimentos: fricções entre dramaturgias e
espacialidades” de autoria minha, da Professora Rita de Almeida Castro e de Diego Borges, publica-
do na revista Conceição. Disponível em https://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/ppgac/
article/view/437

1053
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Teatro do Instante com este autor, alguns em colaboração com o Teatro O Bando,
foram constituindo camadas, ecos que se notam ou operam como latência em cada
novo debruçar-se nosso sobre a obra de Soler. Lembro Virgínia Kastrup, que ao re-
tomar a etimologia da palavra latina inveniere, ligada a “encontrar relíquias ou restos
arqueológicos” complementa que:

A invenção implica uma duração, um trabalho com restos [...] Ela é uma prática de tateio, de ex-
perimentação, e é nessa experimentação que se dá o choque, mais ou menos inesperado, com
a matéria. Nos bastidores das formas visíveis ocorrem conexões com e entre os fragmentos, sem
que este trabalho vise recompor uma unidade original [...]. O resultado é necessariamente impre-
visível. A invenção implica o tempo. Ela não se faz contra a memória, mas com a memória, como
indica a raiz comum a “invenção” e “inventário”. Ela não é corte, mas composição e recomposição
incessante. (2007, p. 27)

Assim, partindo de outras perspectivas concepcionais e com diferente proposta de


composição, a montagem brasileira de “Contra o Amor” também guarda camadas
do processo lusitano, sendo um aprofundamento e um desdobramento da pesquisa
do coletivo Teatro do Instante sobre o segundo volume da trilogia de Soler.

A peça “Contra o Amor”


A poética sarcástica e niilista de Soler é pouco complacente com a humanidade. Se-
gundo o autor, vivemos uma era de “desumanização progressiva” e seu teatro res-
ponde a isso através de um humor corrosivo. Assim como as outras peças da trilogia,
“Contra o Amor” é composta de sete textos curtos, nos quais o autor investiga di-
ferentes matizes do que se costuma chamar, muitas vezes de modo banalizado, de
“amor”: romântico, descartável, patrimonial, passional, familiar, escatológico, neuró-
tico, sexista, pornográfico, de procriação etc. Transitando entre um mundo distópico
e um cotidiano que nos parece familiar e estranho ao mesmo tempo, as cenas lan-
çam um olhar implacável sobre o humano e seus fracassos sociais e existenciais, em
especial neste volume, no que concerne à experiência pessoal e institucional ligada
ao amor idealizado. Casamento, família e relações românticas são satirizados, colo-
cados em questão e perspectivados a partir de uma lógica capitalística e perversa,
em cenas que transitam entre o escárnio e o nonsense.

Dirigida pela autora deste artigo em parceria com Diego Borges, a encenação brasilei-
ra do Teatro do Instante foi a primeira montagem da obra no país. Estreada em 2018, a
peça foi ambientada em uma espécie de casa noturna decadente onde personagens
de distintos universos, trajando roupas de gala envelhecidas, se encontram e vivem
situações que flertam com o fantástico, trazidas pelas cenas de Soler. Entremeando as
cenas são revistitados alguns clássicos do cancioneiro brega brasileiro que abordam o
ideário amoroso, em versão karaokê. Em nossa versão, optamos ainda por fragmentar
duas cenas em diferentes entradas ao longo do espetáculo. Em uma delas, um diretor

1054
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

de casting pornô, solitário, e oscilante entre cínico e arrependido, relata sua vida ao
público, desde a glória como “caçador de talentos” à paixão inesperada por alguém
de fora universo da pornografia, e, por fim, até a derrocada por desilusão amorosa e
uma doença inesperada e irônica - referida pelo próprio personagem como “justiça
poética”: câncer nos testículos. O texto desta cena foi distribuído em cinco entradas,
de modo que este personagem volta à cena muitas vezes, em diferentes estados emo-
cionais, costurando outras cenas ao longo da peça. A outra cena que foi trabalhada de
modo fragmentado é justamente a cena “Eu não Gosto”, que gerou o filme incidental
sobre o qual falaremos mais detalhadamente a seguir.

O argentino Jorge Dubatti abraça três ângulos de análise da poética teatral: traba-
lho, estrutura e concepção (2016, 61). A noção de trabalho é relativa à atuação pro-
priamente dos artistas durante, antes e entre os acontecimentos teatrais. Quanto à
estrutura, segundo ângulo de análise, o autor a articula à noção de organicidade:

A ideia de organicidade implica ao mesmo tempo a de uma nova unidade material-formal ontolo-
gicamente específica e a de uma organização interna singular dos componentes, hierárquica, por
seleção e combinação, por meio de procedimentos relevantes, mas em grau diverso. A estrutura é
o resultado da nova forma que opera sobre as matérias informadas. (2016, 61)

No caso de nossa encenação podemos dizer que partimos de uma forma drama-
túrgica textual prévia, mas que de algum modo a reinventamos por meio de uma
nova estrutura. A segmentação de cenas do texto original, a recombinação de seus
trechos e a nova ordem de cenas (que difere da ordem proposta por Soler), gerou
uma unidade material-formal distinta tanto do texto quanto de nossa montagem
anterior, em Portugal. A organização interna que propomos foi ao mesmo tempo
decorrente e fomentadora de uma organicidade própria de nossa versão da obra,
uma lógica interna que dialoga com nosso olhar concepcional sobre ela. Em relação
à dimensão concepcional, terceiro eixo de análise da poética teatral sugerido por
ele, Dubatti diz:

Chamo de concepção de teatro a forma como, prática (implícita) ou teoricamente (explícita), o


teatro concebe a si mesmo e concebe suas relações com o conjunto do que há no mundo: o ser
humano, a sociedade, o sagrado, a linguagem, a política, a ciência, a educação, o sexo, a economia
etc.” (2016, 62)

Nossa concepção foi orientada pela ironia já presente no texto, mas contaminada por
referências culturais próprias e camadas poéticas, críticas e de sentido que nos propu-
semos a agregar. A adoção do cancioneiro brega brasileiro, em clássicos que cantam
o amor romântico, contrastam com a eleição do personagem ligado ao cinema pornô
como uma espécie de mestre de cerimônias do espetáculo, já que ele volta a cena tra-
zendo trechos do seu relato ao longo de toda a peça. Há uma tensão evidente entre as

1055
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

relações afetivas idealizadas - construídas muitas vezes sobre uma promessa retórica
de desejo exclusivista - e o sempre promissor mercado pornográfico.

Outro aspecto concepcional que trabalhamos diz respeito às orientações afetivas


dos casais representados na obra de Soler. Originalmente eram todos heterosexuais,
o que em certo aspecto pode indicar que o autor quis enquadrar mais incisivamente
a normatividade afetiva em sua crítica. Entretanto, consideramos que ao subverter
essa proposta, inserindo ao longo das cenas um casal de lésbicas e outro de gays
incidimos nossa crítica ao amor cooptado pelas instituições para além da orienta-
ção sexual das pessoas – que ao nosso ver não gera imunidade a essas cooptações.
Por outro lado, oportunizamos dar visibilidade e imprimir “normalidade” a qualquer
natureza de união amorosa. Além disso, como tentativa de enfatizar a crítica ao
mainstream pornô, notoriamente dominado por uma representação erótica machis-
ta, alteramos o gênero da pessoa responsável pela desilusão amorosa do agente
de casting: no original era uma mulher, em nossa versão é outro homem. Assim,
embora fizesse os testes com mulheres para a indústria cinematográfica pornô, o
personagem acaba se apaixonando por um homem.

Por fim, também do ponto de vista da concepção cênica trabalhamos com inserção
de diferentes linguagens: além da fílmica e da musical, ainda nos inspiramos - em
uma das cenas - no trabalho de animação de títeres – sugerido pelo próprio autor
para esta cena, mas em nosso caso realizado com os próprios atores, sendo “mani-
pulados” por outros atores, mas se rebelando e ganhando vida em um determinado
momento da encenação.

A poética do filme “Eu não Gosto”


Filmado em 2017, especialmente para integrar a montagem de “Contra o Amor”, o
curta “Eu não gosto” foi dirigido por Alice Stefânia e pelo cineasta Mauro Giuntini,
também professor da Universidade de Brasília e pesquisador ligado ao Grupo Poéti-
cas do Corpo. Como já dito, o roteiro foi criado a partir de uma das sete cenas da obra
“Contra o Amor”. A cena traz um casal implicante e idiossincrásico que inicia todas
as falas e réplicas com a expressão “eu não gosto” se referindo a algo que o outro é,
ou faz. As rubricas da cena indicam que o casal está elegantemente vestido, mas
afundado em uma substância viscosa e escura.

A concepção que moveu a poética de nosso filme se inspirou nas referências do


texto, mas multiplicou o casal em três, e ambientou cada dupla em uma diferente
situação de gradual submersão em água: uma banheira de ofurô, um laguinho orna-
mental de jardim, uma piscina e o vasto Lago Paranoá, em Brasília. A ideia de trazer
a água como elemento estruturante da poética fílmica dialoga, em parte, com o fato
deste ser um elemento mutas vezes associado às emoções, desde sentimentos pro-
fundos, remetidos pela dimensão abissal e turva que águas podem trazer, quanto

1056
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

afetos mais sutis e voláteis, simbolizados por águas calmas e translúcidas. Podemos
associar tais aspectos ao universo das relações entre casais. Além disso, a imersão
gradual por parte dos personagens visa afetar o espectador em uma dimensão sen-
sorial. Como diz Hans Ulrich Gumbrecht:

Se compreendermos o nosso desejo de presença como uma reação a um ambiente cotidiano que
se tornou tão predominantemente cartesiano ao longo dos últimos séculos, faz sentido esperar
que a experiência estética possa nos ajudar a recuperar a dimensão espacial e a dimensão corpó-
rea da nossa existência; faz sentido esperar que a experiência estética nos devolva pelo menos a
sensação de estarmos-no-mundo, no sentido de fazermos parte de um mundo físico de coisas.
(GUMBRECHT, 2010, p. 146)

A escolha das locações também dialoga um pouco com a ambientação da monta-


gem portuguesa, que era um banheiro cenográfico sujo onde os personagens discu-
tiam aninhados em uma banheira, porém sem água. O filme, no entanto, apostou no
contraste entre a beleza e glamour dos ambientes e figurinos, e a degenerescência
subjetiva dos personagens, expressa em suas falas e idiossincrasias. No filme sub-
vertemos a substituição do marido por outro homem, indicada no texto de Soler
como fechamento do texto. Em nossa versão a substituição do homem é feita por
uma mulher, o que encerra o filme com um casal feminino que, ainda assim, reinicia
o ciclo de reclamações e implicâncias.

Imagens 3 a 8: Frames de filmagem do filme “Eu Não Gosto”. Acima, os casais em seus próprios
ambientes, abaixo, os três casais na piscina, com a troca efetuada entre dois deles

Segundo Dubatti, a noção de poética (poiesis) se diferencia da Poética com ‘P’ maiús-
culo - que seria o estudo do acontecimento teatral (2016, 34). A poética com ‘p’ minús-
culo se liga ao “conjunto de componentes constitutivos do ente poético (...) integrados
no acontecimento em uma unidade material-formal ontologicamente específica, or-

1057
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

ganizados hierarquicamente, por seleção e combinação, por meio de procedimentos.”


(2016, 35). Ainda segundo Dubatti, na perspectiva de sua filosofia do teatro:

a poiesis determina sua diferença ontológica em relação aos outros entes da vida cotidiana a partir
de características específicas, como: realidade metafórica e oximórica, autonomia, negação radi-
cal do ente “real”, violência contra a natureza e artificiosidade, desterritorialização, des-subjetiva-
ção e ressubjetivação, suspensão do critério de verdade, semiose ilimitada, despragmatização e
repragmatização, instalação de seu campo axiológico e soberania. (2016, p. 35)

Dubatti se debruça sobre as artes cênicas, assentadas no compartilhamento ao vivo.


Podemos dizer que o cinema se apoia muitas vezes em perspectivas diferentes. En-
tretanto, pelo fato do filme ter sido feito para integrar uma peça, e ainda por ter sido
criado por um coletivo de pesquisa em artes performativas, consideramos que vários
aspectos indicados por Dubatti repercutem em nossa abordagem concepcional e
composicional do mesmo. A poética que imprimimos abraça algumas das perspecti-
vas identificadas pelo autor, como a ruptura de um senso de real e verossimilhança –
tão caro às poéticas que possivelmente ainda predominam do cinema mais hegemô-
nico; instauração de imagens metafóricas e oximóricas; efeitos de desterritorialização
- tanto na própria tela, como na fricção do filmado com as imagens ao vivo durante a
peça; e produção de polissemia e/ou provocação de processos de semiose ilimitada.

Durante o espetáculo o filme é compartilhado de modo fragmentado tanto pelo


fato de incidir por trechos ao longo da peça, como também porque é projetado
em superfícies segmentadas e com diferentes profundidades, o que distorce as
imagens. A visualidade e a sonoridade da cena ao vivo por vezes contaminam o
filme, e vice-versa. Os atores em cena são os mesmos e vestem o mesmo figurino
do vídeo, o que os multiplica e os desdobra no ambiente, criando camadas de
sentidos e efeitos de presença.

Dubatti, apresenta uma definição pragmática de teatro que “consiste na fundação


de uma zona de experiência e subjetividade a partir da inter-relação dos suba-
contecimentos convívio-poiesis-expectação” (2016, p .82). Para ele, a discussão
acerca da presença integra as perspectivas de acontecimento (fenomenológica)
e de provocação e desdobramento de sentidos (como semiose ilimitada) para
além de uma relação unívoca entre signo e significado, assumindo ainda uma
dimensão micropolítica:

A presença é manifestação fenomenológica e constitui, ao mesmo tempo, signos de presença.


Voltar a pensar a presença e conceder-lhe centralidade no acontecimento teatral significa resti-
tuir ao teatro seu poder humano e político, sua periculosidade de incidência social e mudança,
o convívio, a reunião da cultura vivente como acontecimento político em si mesmo. (DUBATTI,
2016, pp. 158-159)

1058
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Imagens 9 a 11: Apresentação do espetáculo “Contra o Amor”,


com imagens do filme “Eu Não Gosto” . Fotos de Diego Bresani (2018)

A ideia de uma elite decadente, seus casamentos muitas vezes de fachada e em cons-
tante e rápido desmoronamento foi buscada em elementos como: uso de figurinos
que destoam do ambiente em que os personagens estão e que transitam entre as-
pectos glamorosos, cafonas e anacrônicos, e ainda na gradual desmontagem dos per-
sonagens em seus penteados e maquiagens em decomposição e roupas a cada cena
mais desajustadas, já que cada casal, a cada aparição na tela, submerge um pouco
mais na água. Como diz Dubatti, “necessitamos da metáfora poética, ficcional ou não,
para, por contraste e diferença, enxergar a realidade de outra maneira e intuir ou re-
cordar o real” (2016, p. 40). Também trabalhamos no contraste entre locações belas e
poéticas e algumas imagens grotescas como os closes de uma minhoca sendo enfiada
em um anzol ou de um pêlo de nariz sendo arrancado com uma pinça.

Imagens 12 e 13: Frames de filmagem do filme “Eu Não Gosto”

A obsolescência das relações e a descartabilidade dos parceiros, já trazidas no texto


de Soler em que, ao final, o marido é substituído por outro homem, foram acentu-
adas no filme com a inserção de uma cena coletiva, na piscina, em que dois casais
trocam de parceiros, o que também dialoga com certo clima erótico-brega impresso
pelo personagem caçador de talentos pornô que costura a encenação.

Efeitos incidentais do filme no espetáculo


Durante a peça, e dialogando com o filme, há inserção de imagens com os mes-
mos personagens em situações mais oníricas e performativas, que foram captadas

1059
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

ao longo das filmagens. Ao fim de cada dia de filmagem, foram feitas provocações
aos atores que estavam caracterizados para o set do dia para que performassem
livremente nos ambientes das locações.

Imagens 14 a 16: Frames de vídeo-performances.

Com isso, recolhemos um vasto material de vídeo-performances que foram usadas


como imagens de fundo dos vídeos de karaoquê produzidos para a peça. Assim, ao
longo do espetáculo, aqueles personagens aparecem na tela tanto atuando a cena
trabalhada a partir do texto de Soler, em um registro que transita entre o realista
e o melodramático – dialogando com um tom de atuação televisivo - quanto em
improvisos performáticos que remetem a um plano do inconsciente, e que fricciona
aspectos daquelas figuras e dos atores que as atuam, enquanto as músicas de kara-
oquê incidem na peça.

Imagens 17 a 19: Apresentação do espetáculo “Contra o Amor”,


com imagens de vídeos de karaokê. Fotos de Diego Bresani (2018)

O espetáculo inicia com um vídeo de karaoquê, seguido da primeira entrada do agen-


te de casting pornô. Após apresentar-se e dizer qual sua atividade, sem demonstrar
qualquer tipo de constrangimento ele finaliza essa entrada dizendo: “Eu é que não
vejo nada de mau, sinceramente. Ainda mais que todo mundo é livre para viver como
quiser e para ver o filme que quiser, claro. Fazer a cena que quiser. (Canta)... Eu faço a

1060
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

cena que eu quiser... eu tiro a roupa pra você...”7. Neste ele olha para a tela de projeção,
momento entra o primeiro trecho do filme, que traz a primeira cena de cada casal.

A aposta da montagem é de que a entrada de uma cena filmada após essa fala do
personagem ligado à indústria de cinema pornô gera no espectador a expectativa
de que o que se verá é um filme nessa linha. Entretanto o que se assiste são três
casais, cada qual a seu modo degenerado e entediado, em diálogos que sempre
iniciam com a expressão “eu não gosto”:

PARTE 1 (casal 1, na beira do lago)


Ambos: um pouco embriagados e blasês
Margot – Eu não gosto que você se suje dessa maneira...
Chico – Eu não gosto que você me diga o que eu devo fazer.
Margot – Eu não gosto que você me diga o que eu devo dizer.

PARTE 2 (casal 2, ofurô)


Virgínia: frustrada, implicante, insatisfeita
Rodolfo: sistemático, implicante, reclamão
Rodolfo – Eu não gosto que você deixe suas coisas jogadas pelo chão.
Virgínia – Eu não gosto que você se confunda e pense que as suas coisas são as
minhas.
Rodolfo – Eu não gosto de não saber nunca o que tem aqui debaixo, no que estou
pisando.
(Virgínia estranha colocação do marido)

PARTE 3 (casal 3, laguinho)


Lawrence: incisivo, sufocado, enfadado
Maga: possessiva, chantagista, dramática, magoada
Lawrence - Eu não gosto que você me pergunte a que horas vou chegar em casa
depois do trabalho porque é sempre a mesma.
Maga – Eu não gosto que você saia de casa sem me dizer aonde vai. Eu não gosto
que você saia para festas sem me dizer quem vai te acompanhar. Eu não gosto que
você vá ao teatro sem pensar que talvez eu também queira ir.
Lawrence – Eu não gosto que você não confie nunca em mim. 8

O descompasso entre o que se vê – casais insatisfeitos, magoados e incomodados - em


relação ao que se esperava – cenas eróticas, dialoga com os procedimentos dramatúr-
gicos do autor trabalhado, na medida em que dribla a previsibilidade, promovendo
uma espécie de “frustração produtiva” nos espectadores.

7 Trecho do roteiro da peça encenada pelo Teatro do Instante, adaptado a partir da obra de Soler (2013).
8 Trecho do roteiro do filme, a partir do texto de Soler (2013).

1061
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Durante a exibição destas três primeiras cenas filmados, cada ator, a medida em que
aparece na tela, se dirige ao palco se colocando à frente da projeção. O primeiro
casal dança, ao vivo, a música de fundo do filme. Os outros dois casais vão subindo
no palco a medida em que aparecem na tela. Os figurinos dos atores ao vivo são
praticamente os mesmos usados no vídeo, o que gera uma sensação de multiplica-
ção. O clima festivo dos personagens ao vivo, entretanto, colide com a temperatura
enfastiada das cenas do filme.

Passam-se, ao vivo na peça, duas cenas inteiras e a segunda inserção do filme também
ocorre após uma segunda fala do personagem ligado ao mundo pornô. Enquanto as
primeiras projeções são feitas no fundo do palco, em uma espécie de cortina drapeada
que enfatiza os efeitos aquáticos do vídeo, logo no início desta segunda inserção uma
tela de projeção localizada na frente do palco é baixada em 1/3 gerando uma superfí-
cie segmentada e com duas profundidades e superfícies para projeção.

Imagens 20 e 21: Apresentação do espetáculo “Contra o Amor”, com imagem do filme “Eu Não
Gosto”. Fotos de Diego Bresani (2018)

Seguem-se diálogos na mesma linha dos primeiros, embora em crescente tensão, e


com os personagens cada vez mais enfiados nas águas de seus respectivos ambien-
tes. Há aqui um duplo efeito de segmentação: da tela bipartida e dos corpos dos
atores parte submersos e parte fora d’água.

Outro efeito trabalhado nesta segunda inserção do filme é que em uma das cenas
um casal tem sua voz replicada ao vivo pelos mesmos atores do vídeo, em um mi-
crofone. Aqui trabalhamos deslocamentos temporais como delay ou antecipação de
falas. O casal no microfone inicia sua produção vocal ao fundo da plateia, cada um
de um lado do teatro, mas sempre se olhando, tendo a plateia entre eles. Ambos
vão se aproximando do palco, a medida em que falam em quase simultaneidade
com o filme, ficando cada vez mais visíveis ao público. Quando chegam a frente do
palco o trecho do filme acaba e o casal que ainda está ao microfone canta em dueto
a canção “Espumas ao Vento”, de Fagner, em uma performance melodramática. Esta
música é fundo para o início da próxima cena do espetáculo.

1062
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Imagens 22 e 23: Apresentação do espetáculo “Contra o Amor”. Fotos de Diego Bresani (2018)

Na sequência desta inserção ocorrem mais três cenas completas, dois vídeos de ka-
raoquê e duas entradas do personagem ligado ao pornô. Uma das cenas é atuada
pelo mesmo ator que faz o agente de casting pornô em conjunto com um outro ator,
em uma relação homoafetiva. Esta foi uma adaptação do grupo visando por um lado
contemplar outras relações além das heteronormativas na peça, e, por outro lado,
indicando que mesmo nestas relações aparentemente heterodoxas, muitas vezes
reproduz-se o padrão hegemônico das relações amorosas idealizadas.

Imagens 24 a 26: Performance e apresentação do espetáculo “Contra o Amor”.


Fotos de Diego Bresani (2018)

Na sequência desta cena entra mais uma das inserções do caçador de talentos pornô,
em que ele conta que se apaixou por “Tony”, que não pertencia ao universo da porno-
grafia. Aqui também adaptamos o texto original, tanto pelo fato da paixão do perso-
nagem ser um homem e não uma mulher, o que para nós amenizou um pouco o tom
algo machista que sentíamos na cena, quanto pela conexão entre essas duas cenas,
originalmente independentes entre si. Nossa costura dramatúrgica vetoriza um en-
tendimento de que o personagem que aparece com seu namorado na cena anterior é
o mesmo que narra suas desventuras no meio pornô. Este sofre ao ser desmascarado
para seu amante:

Isso era o que eu pensava. Algumas semanas antes, Mario decidiu comercializar sem me dizer um
vídeo recompilado com a parte final dos meus castings e numa parte dava para me ver, pouco,
mas dava para ver. Imagino que alguém me viu e disse a ele ou ele mesmo me reconheceu e

1063
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

decidiu me deixar. Ele me deixou por isso? Eu não sei. Eu tenho medo de perguntar. Não era tão
monstruoso o que eu fazia, né? Ele mesmo reconheceu ter visto uma vez um filme pornô, não é?9

Neste momento a tela abaixa novamente, desta vez um pouco mais, a 2/3. Esta ter-
ceira inserção do filme traz uma cena coletiva na piscina, em que dois dos três casais
fazem uma ação que remete a um swing, seguida de outra cena em que apenas o
casal que não participou da troca na piscina aparece em seu ambiente inicial. Neste
momento final do filme, o marido demonstra ciúmes por alguém que se aproxima.
Na sequência, a esposa o troca por outra mulher após afoga-lo. Ao longo dessas
cenas finais do filme, vemos ao vivo - por trás da parte da tela abaixada, mas à frente
da parte de baixo da imagem projetada ao fundo - dois atores de um dos casais do
filme na ação de encher balões para a cena seguinte, ao vivo, em que o filho deles
comemora 18 anos.

Em relação a essas sobreposições de cenas e multiplicação de personagens, atuados


pelos mesmos atores, por vezes em simultaneidade, a proposta aqui é a de, delibera-
damente, provocar aberturas na atribuição de sentidos da obra por parte do espec-
tador. Concordamos com Jorge Dubatti que defende que “o teatro não comunica no
sentido estrito se considerarmos que a comunicação é ‘transferência de informação’
ou ‘construção de significados/sentidos compartilhados’; mais do que isso, o teatro
estimula, incita, provoca” (2016, p. 28). O autor questiona a adesão à semiótica como
principal aporte teórico para discutir a processualidade e multiplicidade do fenôme-
no de significância no teatro, agregando a esta reflexão noções como acontecimen-
to e presença, perspectivas mais ligadas à epistemologia fenomenológica.

Por mais que os estudos teatrais, pela via semiótica, tenham valorizado acima de
tudo o ausente gerado por meio de signos, a filosofia do teatro sustenta que tão
mais potente que a ausência é a presença humana no convívio. (...) A ausência é
infinita, mas no teatro a presença não é menos ilimitada: denominamos “presen-
ça” tudo aquilo que comparece à zona de acontecimentos como materialidade e
como fundamento dessa materialidade. Na presença teatral, graças aos corpos, ao
espaço e ao tempo, ingressam o ente metafísico por excelência, a vida, a existên-
cia e o real, como presença, que é condição de possibilidade de materialidade do
convívio. (DUBATTI, 2016, p. 157)

Gumbrecht também identifica potencialidades poéticas latentes nas fricções entre


efeitos de presença e efeitos de sentido no processo de recepção. Para ele:

(...) o “sistema arte” é o único sistema social no qual a percepção (no sentido fenomenológico de
uma relação humana com o mundo, mediada pelos sentidos) é não só uma condição prévia da

9 Trecho do roteiro da peça encenada pelo Teatro do Instante, adaptado a partir da obra de Soler (2013).

1064
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

comunicação sistêmico-intrínseca, mas também, juntamente com o sentido, é parte do que essa
comunicação implica. (...) A relação entre efeitos de presença e efeitos de sentido também não
é uma relação de complementaridade, na qual uma função atribuída a cada uma das partes em
relação à outra daria à copresença das duas a estabilidade de um padrão estrutural. Ao contrá-
rio, podemos dizer que a tensão/oscilação entre efeitos de presença e efeitos de sentido dota o
objeto de experiência estética de um componente provocador de instabilidade e desassossego.
(2010, pp. 136, 137)

A aposta em uma composição cênica que joga com efeitos de presença, recusa a
univocidade dos sentidos e evita o mimetismo e a redundância ao texto, busca res-
ponder a uma (po)ética de abertura e diferença, a uma provocação de polissemia e
a uma perspectiva concepcional que favoreça uma fruição (cri)ativa e crítica. A pro-
posta de ‘trair’ uma significação presumida ou unívoca visa ‘extrair’ outros sentidos
latentes da obra. Permitir essa recepção mais ativa também pode operar no fruidor
como um fator de percepção em si, de identificação de como os afetos de presença
e sentido se movem e se (des)organizam em cada corpo.

REFERÊNCIAS
DUBATTI, Jorge. (2016). O Teatro dos Mortos. Introdução a uma filosofia do teatro.
São Paulo: edições SESC.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. (2010). Produção de Presença. O que o sentido não con-
segue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto e PUC-Rio.

KASTRUP, Virgínia. (2007). A invenção de si e do mundo. Uma introdução do tempo


e do coletivo no estudo da cognição. Belo Horizonte: Autêntica.

QUILICI, Cassiano. (2015). O ator-performer e as poéticas de transformação de si.


São Paulo: Annablume.

SOLER, Esteve. (2013). Contra el progreso, contra el amor, contra la democracia.


Bilbao: Artezblai.

1065
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Antonio Wellington De Oliveira Junior1,


Eliezer Nogueira do Nascimento Junior2 and
João Vilnei De Oliveira Filho3
#Sala109,: depois da aula...
#Sala109,: after class

Resumo
O projeto #Sala109 investiga interdeterminações e interinfluências performa-
tivas entre arte, comunicação e educação no mundo contemporâneo a partir
da assunção irônica daquilo que historicamente a cultura nomeou aula – e por
contiguidade, seu índice, a sala de aula – como lugar de confluência, dos vários
fluxos próprios dos processos de conhecimento, portanto, assumindo-a como
locus ideal de observação, aplicação e crítica, mas também de reperformatiza-
ção do seu próprio objeto, a aula. O presente artigo analisa os resultados a meio
caminho da pesquisa que, desde 2017, busca, pela integração de vários níveis
da pesquisa acadêmica e da criação artística, averiguar a pertinência ou não da
sala de aula que, apesar das críticas recorrentes, permanece como dispositivo
pressuposto do processo civilizatório ocidental. Esta pesquisa é desenvolvida
junto ao Laboratório de Investigação em Corpo, Comunicação e Arte-LICCA e ao
Instituto de Investigação em Design, Media e Cultura-ID+ (Portugal).
Palavras-chave: #Sala109, performance, aula

1 Antonio Wellington de Oliveira Junior é doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Uni-
versidade Católica de São Paulo-PUC-SP; professor Associado III do Instituto de Cultura e Arte-ICA
da Universidade Federal do Ceará-UFC; professor do Programa de Pós-Graduação em Artes-PPGAR-
TES-UFC; pesquisador ligado ao Instituto de Investigação em Design, Media e Cultura-ID+ (Portu-
gal); Líder do Laboratório de Investigação em Corpo, Comunicação e Arte-LICCA/UFC; artista visual
e performer.
2 Eliezer Nogueira do Nascimento Junior é Doutorando do Programa de Pós-graduação em Design
da Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ESDI/UERJ,
com bolsa DSC-Doutorado-FAPERJ; Integra o Laboratório de Investigação em Corpo, Comunicação
e Arte-LICCA/UFC.
3 João Vilnei de Oliveira Filho é doutor em Arte e Design pela Faculdade de Belas Artes da Univer-
sidade do Porto-FBAUP, com financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia FCT/POPH/
FSE; professor assistente do Curso de Design Digital no Campus Quixadá da Universidade Federal do
Ceará-UFC e professor do PPGARTES-UFC. Integra o Laboratório de Investigação em Corpo, Comu-
nicação e Arte-LICCA/UFC e o Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade-i2ADS/FBAUP.
Artista visual e performer.

1066
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Abstract
#Sala109 project investigates performative interdeterminations and inter-influenc-
es between art, communication and education in contemporary world from an iron-
ic assumption of what culture has historically named class - and consequently, its
index, the classroom - as a confluence place of various knowledge processes flows,
therefore, assuming it as an ideal observation, application and criticism locus, but
also the reenactment of its own object place: the class. Thist article analyzes research
results of that, since 2017, seeks, through integration of several academic research
and artistic creation levels, to verify the pertinence or not of that, despite recurring
criticism, remains as a device of western civilizing process: the classrroom. This re-
search is developed with the LICCA/UFC Body, Communication and Art Research
Laboratory and the Design, Media and Culture-ID + Research Institute (Portugal).
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: #Sala109, performance, class
Como exercício radical e constante da relação hermeneuticamente circular entre
práxis e poiesis, o projeto #Sala109 investiga interdeterminações e interinfluências
performativas entre arte, comunicação e educação no mundo contemporâneo a
partir da assunção irônica daquilo que historicamente a cultura nomeou aula – e
por contiguidade, seu índice, a sala de aula – como lugar de confluência, e em de-
terminada medida, de coagulação, dos vários fluxos próprios do conhecimento em
seus processos (afetos, afecções, memória, transmissão, crítica, experimentação,
invenção, aprendizagem, técnica...), portanto, assumindo-a como locus ideal de
observação, aplicação e crítica, mas também de reperformatização do seu próprio
objeto, a aula. O acúmulo, a obliteração, o palimpsesto, os constrangimentos criati-
vos (recursos materiais e humanos, institucionalização do processo, tempo regido
pelo calendário acadêmico, o próprio constrangimento espacial: a sala) e, por fim,
uma certa “mordência” (= que engasta-se, gruda, adere, morde, posto que cáustico
e dilacerante) (Houaiss, A. & Villar, M. de S., 2001) resultante da performatividade
do espaço promovida pelo work-in-process (Cohen, 2004) foram as condições de-
terminantes na criação e desenvolvimento do environment antropocenicamennte
utópico-distópico no qual se tornou a #Sala109. O jogo, o viver junto, o diálogo, a
performance são, por assim dizer, os dispositivos inegligenciáveis para o sujeito que
por ela precisa transitar ou nela habitar.

Desde 2017, a pesquisa, iniciada em 2012, mas com antecedentes em 2006, busca,
pela integração de vários níveis da atividade acadêmica e da criação artística (ensino,
pesquisa, extensão; graduação, pós-graduação; metodologia científica, processos de
criação em arte; tradicional popular, contemporâneo; local, global; arte e vida) ave-
riguar a pertinência pedagógica (ou não!) da sala de aula hoje que, apesar das críti-
cas recorrentes [Foucault (1979, 1997), Althusser (1998), Deligny (2015), Paulo Freire
(1996)], permanece como dispositivo pressuposto do processo civilizatório ocidental.

1067
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

***

Final de 2012, Aveiro, Portugal. Mal começava a ser desenvolvida e “Da aula... ou
sobre desterritorializações estético-científicas nos híbridos contemporâneos de
comunicação, educação e arte” já apontava para a necessidade de ajustes radicais,
não tanto no cabedal teórico-metodológico de partida, mas, como consequência do
desenvolvimento coerente dele, nos produtos e resultados pretendidos para o pós-
-doutorado e nos modos de aplicação dos resultados da pesquisa posteriormente.

Desenvolvida no Departamento de Comunicação e Arte-DeCA da Universidade de


Aveiro-UA, sob supervisão do Prof. Dr. Paulo Bernardino das Neves Bastos, entre de-
zembro de 2012 e novembro de 2013, a pesquisa, que teve bolsa de Pós-Doutorado
no Exterior do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-
-PDE-CNPq, pretendia, entre outras coisas:

Desenvolver programa de disciplina, roteiros literário e técnico, como também dispositivo téc-
nico com finalidades didático-artístico-comunicacionais, para um curso performático no qual se
investiguem crítica, metalinguística e ensaisticamente, a partir da perspectiva transmetodológica
implicada na pesquisa de natureza fenomenológica como se dão, no espaço historicamente de-
finido como aula, as interfaces entre comunicação, educação e arte favorecendo a defesa da pro-
dução de conhecimento derivada da experiência prática (práxis) articulada com a percepção do
fazer (projetar/produzir) e da elaboração de metodologias (estratégias processuais) que emerjam
dessa experiência (Oliveira Junior, 2012).

E mais:

1. textos científicos (fichas, diários de campo, mapas, cartas, relatórios, artigos e ensaios acadêmi-
cos) 2. acervo audiovisual (roteiros, trilhas sonoras, fotos, vídeos, site, blogs); 3. dispositivo tecno-
lógico informático-comunicativo com fins didático-pedagógicos (hardware e software) 4. lingua-
gens/retóricas experimentais; 5. novas metodologias e recursos didático pedagógicos; 6. obra de
arte (performática) a ser exibida no Museu de Aveiro. (Idem)

Havia mais coisa, etc. etc. etc. Muito foi realizado; grande parte ainda está em de-
senvolvimento e/ou sistematização; “outras se perderam no caminho” (Bastos, R.;
Guedes, B., 1979), por conta de tempo e recursos materiais e humanos exíguos, em
muitos casos; por pura obsolescência, noutros (“dispositivo tecnológico informáti-
co-comunicativo”... o nome disso é smartphone!); porém, majoritariamente, por co-
erência ao método que, numa visada mais cartográfica (Passos, E.; Kastrup, V.; Es-
cóssia, L., 2009), entendia que o “processo é o norte. É a vontade de responder às
demandas que surgirão no desenvolvimento da pesquisa-criação que vai orientar
as escolhas de ferramentas metodológicas mais específicas” (Oliveira Junior, op. cit.).
Um jeito de fazer pesquisa que recusa de imediato a adoção de viés metodológico

1068
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

único, monolítico, seja ele de abrangência geral ou mais específica, mas lança mão
de procedimentos e instrumentos de investigação científica advindos de um quadro
de referência mais amplo e múltiplo, distanciado da ideia de método como “receita”
ou “algoritmo”, mas, entendendo-o como um “esquema global”, “um espírito dentro
do qual a decisão deve ser tomada”, “estratégia” (Granger, G. G., 1992).

p-A p-au-p-la p-cons-p-tran-p-gi-p-da: xs alunxs, um professor, uma sala,


um curso, uma universidade, a lei: o pensamento criativo em processos
constrangidos
Volto, em 2014, às aulas, depois de mais de um ano afastado para estágio pós-dou-
toral, e aí o maior ajuste, mais que isso, um ponto de mutação, na pesquisa: a sala
de aula, nunca considerada no projeto, nem no desenvolvimento da pesquisa até
então, agora, simultaneamente, sumidouro da utopia da aula-total autônoma e er-
rante, não obstante plugada, hiperconectada, ingenuamente imaginada no projeto,
e ladrão para onde confluem ao transborde constrangimentos criativos desconside-
rados nele... das leis ao transporte dos alunos; dos projetos político-pedagógicos e
regimentos dos cursos, do Instituto de Cultura e Arte-ICA, da Universidade Federal
do Ceará-UFC, do Ministério da Educação-MEC às questões éticas, morais e, ainda e
sempre, religiosas; das limitações técnicas ao programa de disciplina; do compro-
misso de embrear o complexo diálogo entre arte e vida, método científico e criação
artística, ensino, pesquisa e extensão, ensino de graduação e pós-graduação, tradi-
cional popular e contemporâneo aos prazos institucionais; do desejo/necessidade/
vontade de performar do professor à demanda de informação técnica do profissio-
nal da área de artes, comunicação e design hoje.

Não. Tais constrangimentos não coagiram a pesquisa. Como o esquema do soneto


para Shakespeare, o ritornelo para Ravel, o apocalipse para Bispo do Rosário, a fun-
ção para o design, o esquema tático para o futebol, o rapa para o camelô, foram as-
sumidos no desenvolvimento da pesquisa como princípios criativos, elementos de
composição, dispositivos performáveis, por pura obediência, vassalagem dogmática
às instituições, não, todavia por uma postura crítica, sempre; muitas vezes, irônica,
sarcástica; e, aqui e ali, iconoclasta, nem leviana, nem supérflua, apenas o necessário
às renovações de toda ordem; pra não deixar muitos cacos...

Ali, naquela sala, coisa de vinte metros quadrados, pouco mais talvez, aqueles e
outros “constrangimentos” – dispositivos de biopoder (Foucault, 2008), antes de
mais nada! – são cotidianamente postos em xeque, tensionados ao limite de sua
lógica interna, implodidos, reperformados; driblados, quando não tem outro jeito
[o drible é um modo legítimo de resistência]. A #Sala109 é um tipo de mini-micro-
-pocket-resistência.

Há uma política forte já aí.

1069
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

MMPMA: Isso não é uma black box, isso não é um white cube, isso não é uma
tela, isso não é uma pregação: isso é #Sala109: uma sala exposta
Por hora – há dois anos e meio, precisando o tempo –, é numa sala de aula, numa
classe, mas já foi num “brechó literário” [sebo, tipo!] minúsculo, o Rimbaud; na torri-
nha da Área 2 do Centro de Humanidades-CH2 da UFC – possível observatório as-
tronômico de Fonseca Lobo, o “Einstein cearense”, no final do século XIX, e, hoje,
habitada pelos Centro Acadêmico de Psicologia Fátima Sena e Diretório Acadêmico
Tristão de Athaíde, de Comunicação Social; ou simplesmente “invadindo” o Flusser
em fluxo e o II Encontro Internacional de Imagem Contemporânea, eventos internacio-
nais realizados pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação-PPGCOM-UFC
na Casa Amarela, equipamento de Fotografia e Cinema da UFC. E é por aí que outra
parte dessa história começa.

A Mini-Micro-Pocket-Mostra-de-Arte, MMPMA, é pensada, de início e de maneira


despretensiosa. pelos pesquisadores e artistas do Laboratório de Investigação em
Corpo, Comunicação e Arte-LICCA/UFC, como um evento expositivo invasor de
outros eventos em humanidades, particularmente nos que as questões artísticas,
ignoradas ou negligenciadas, restavam nas discussões teóricas, nos títulos de pa-
lestras e mesas-redondas, etc. e tal e ponto! Ironicamente, fingindo-se de parasita,
todavia sem ônus financeiro, otimizava os recursos públicos investidos na produção
de eventos; colaborava com a tessitura de redes locais, regionais, nacionais e inter-
nacionais entre artistas e pesquisadores em artes e humanidades; dava visibilidade
à produção artística local; questionava modelos/processos curatoriais e expositivos
tradicionais – o museu, a galeria, o cubo branco, a caixa preta – ao confiar curadorias
a jovens pesquisadores e estudantes, nem sempre das artes, e situar obras e ações,
nem sempre de artistas, em espaços, modos e tempos inusitados (Bibelô de quarto
de bruxa4 sobre a mesa do simpósio, e.g.); indisciplinada, encetava as tão propaladas
inter, multi e transdisciplinaridade... tudo isso, sim! Mas – espia! – no mocó que é esse
angu, vem encoberto – essa, a ironia górdia – o objetivo geral do projeto realizado
antes de/sem nunca ser escrito: aproximar arte e vida.

As relações entre arte e vida, espécie de aporia fundamental [uma obsessão, talvez?]
das estéticas contemporâneas, de Dewey (2010) a Bishop (2012), adensam-se a par-
tir da terceira edição, em 2014, quando todas as etapas do evento passaram a ser
desenvolvidas pelos alunos da disciplina de Teorias da Comunicação II do Curso de
Publicidade e Propaganda da UFC e ministrada por mim àquela época: criação das
obras e ações a serem mostradas, planejamento, curadoria, produção, montagem,
comunicação, registro. Tomando partido por uma pedagogia que procura valori-
zar o aluno e seus conhecimentos prévios, suas aptidões, suas necessidades e seus

4 Vídeo-instalação de Edmilson Forte Miranda Junior e João Vilnei de Oliveira Filho, 2012.

1070
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

desejos, mais construtivista (Freire, op. cit.) por assim dizer, e que, portanto, busca
empreender uma práxis mais dialógica, muito da experiência vivencial de cada um
dos participantes pode aparecer, melhor, ser performado e reperformado, tanto nos
trabalhos apresentados como nos processos que os geraram.

Desde o início do segundo semestre letivo de 2017, a MMPMA invadiu a #Sala109, cor-
roborando para os objetivos de integração já apontados ao longo deste texto. A bem
da verdade, os procedimentos, métodos e ferramentas experimentados nas sucessivas
montagens da mostra retornaram para o projeto “Da Aula...” e tornaram-se imprescindí-
veis para a necessária interdependência entre a produção do conhecimento, sua disse-
minação e sua aplicação na sociedade cujo um dos sintomas na cultura é a sala de aula.

#Sala109: uma sala superlativa


Localizada no térreo do prédio do ICA-UFC e projetada, a partir duma diluição con-
temporânea do paradigma estético modernista em arquitetura, para ser uma sala de
aula “genérica”, uma sala-padrão, apesar de ser gerida pelo Programa de Pós-Gradu-
ação em Artes-PPGARTES-UFC), a Sala CS 109, “nome oficial”, Sala109, como a cha-
mamos, ou, nas redes, #Sala109, desde então, tornou-se um espaço de sucessivas
intervenções de artistas, pesquisadores, alunos, professores, técnicos e profissionais,
de várias procedências e áreas, múltiplas linguagens e mídias e o que resulta vai
além de uma exposição, uma “mostra”, uma galeria, um museu, arquivo/acervo, um
ateliê, uma oficina, um lounge, uma sala de aula; a #Sala109 é, se liberado o termo
de todo resquício de estatismo inerente a certa arte instalativa do século XX, um
environment, um organismo vivo, um mini-micro-pocket-bioma; os time-lapses que
faço dela desde o início não me deixam mentir.

***

Lousa, carteiras e cadeiras, um birô e quatro mesas sustentadas por cavaletes retrá-
teis, uma estante, um computador de mesa e dois ou três notebooks, três datashow,
aparelhagem de som... seis monitores de segurança (só dois funcionam, mais ou
menos), seis CD players, um punhado de mini-câmeras de vídeo e microfones, al-
guns refletores, uma Nikon D5100, uma Rollei, material eletro-eletrônico (fios e ca-
bos e adaptadores e plugs e...), A4, ao maço, seda, bíblico, carbono, carvão, grafite,
de cor, aquarelado, giz de cera, marcador permanente, pastel, Posca, pincel, brocha,
Acrilex para tecido, tecidos, molde-vazado, botões, colchetes, zippers, almofada de
alfinetes, linhas e agulhas, de tricô, de crochê, de costura, de coser sacas, prego,
martelo, rosca e parafuso, duas furadeiras, alicates, de bico e de corte, chaves de
fenda, Phillips, de rosca, de boca, batom, blush, prime e base, cílios postiços, pe-
rucas, bijus, gravata, chapéus, um par de asas de fada, um tapete persa falso, uma
árvore morta, o lixo, a Vista Alegre, uma pintora trans, o rosto de Cristo em acrílico
lenticular 3D, o kitsch, o Anjo Graciano, o popular, o penitente e os dois milheiros

1071
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

de páginas escritas por ele, nove mini-micro-pocket-câmaras-escuras, TRACEaFACE,


um chaveiro fanzine, um óculos fanzine, uma mala fanzine, muitos fanzines, a linha
do tempo, tic-pop-tac, uma porta que dança, um desenho que (quase) ninguém
dança, a Dilma patafísica, que só dorme, uma rede de dormir, um pufe feito de uma
rede de dormir, uma cabra performando, uma vez, e um gato, “deboas”, de vez em
quando, a peluquera-performer, o professor-performer, alunos-performers, estagi-
ários-performers, curadores, artistas, conferencistas, o eletricista, o público [todo
mundo é uma performance! poderia piscar isso o letreiro de LED à porta no lado
de fora da #Sala109]... O que cabe numa sala de aula, como disse, “genérica”: teto e
paredes brancas; iluminação também branca, geral, “pasteurizada”; janelas de vidro
com esquadrias de alumínio sem pintura, piso de concreto polido? Cabe o mundo
na sala de aula e o mundo inteiro pode ser uma aula.

***

O desenvolvimento da pesquisa “Da aula...” levou à sala como lugar de experimenta-


ção artístico-científica-crítica de alguns aspectos relativos à aula no mundo contem-
porâneo. Não de modo natural, como consequência, mas por necessidade de ajuste
no método mesmo [...na verdade, no projeto, nem havia uma sala de aula, “escola de
aplicação”, coisa que o valha; a recusa disso, talvez].

Ao entrar na #Sala109, assim como ao ler este texto, o visitante-leitor se defronta, antes
de tudo, com o acúmulo, o excesso de materiais, instrumentos [e travessões, pontos-e-
-virgulas; reticências, exclamações], dispositivos tecnológicos, adereços cênicos [e alite-
rações, elipses, redundâncias], textos e obras resultantes ou referentes ao trabalho de
pesquisadores, técnicos, professores e alunos de disciplinas diferentes, em nível de gra-
duação e pós-graduação durante dois anos e meio [hipérboles e mais de um gênero].
Ele não encontra um ambiente pronto, “montado”, o resultado já acabado do processo,
o texto com ponto final, mas integra as ações continuamente desenvolvidas ali, escre-
ve, reescreve, torna-se coautor. Esse é o sentido maior do environment: criar uma obra
viva que domina o espaço, como um ecossistema, com a qual o indivíduo possa inte-
ragir, imergir corporal e sensorialmente e, mais importante, interferir nela, modificá-la.

Experimentando configurações estranhas à sala de aula convencional resultantes da


tentativa visivelmente patética e estéril, obviamente irônica, de montar uma sala de
aula total, ideal, um espaço que, numa utopia pedagógico-performática, o professor-
-performer (Ciotti, 2014) pudesse fazer confluir processos de subjetivação e produção
de conhecimento, a #Sala109 constituiu-se um laboratório de investigação e experi-
mentação sobre a natureza, as características, as funções e significados, as potencia-
lidades e as limitações performativas daquilo que a cultura definiu como aula e das
exigências do tempo presente – o contemporâneo – relativas a ela como atividade
(preleção, ensinamento, atividade didática...), mas também, considerando a base eti-
mológica ainda persistente da palavra (pátio, palácio, moradia...) (Veiga, 2011) que

1072
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

remente à dimensão física do termo, à própria sala de aula, relativas a ela, portanto,
como espaço físico. Apesar da crítica contundente e da aplicação em larga escala das
tecnologias digitais de comunicação e informação nos processos educacionais con-
temporâneos, a sala de aula – essa invenção medieval de nome grego que teve sua
formatação atual na modernidade – permanece dispositivo pedagógico pressuposto.

[BLOCO DE REFERÊNCIAS: Acumulação, Agamben, Aristóteles, Artur Bispo do Rosá-


rio, assemblage, Austin, Bakhtin, Barthes, Basquiat, Bauman, Blanchot, Butler, Callois,
Camelôs, Carlson, Carnavalização, Cohen, Colagem, Comunicação, comunidade,
contemporâneo, Creed, design, environment, Espósito, Farnese de Andrade, Fitche-
-Litche, gabinetes de curiosidades, gambiarra, Gaudi, Gilmar de Carvalho, Goffman,
grafites, Hélio Oiticica, High Tech High, Huizinga, intimidade, Jean-Luc Nancy, jogo,
Keith Haring, montagem, obliteração, palimpsesto, paredes votivas, performance,
peripatetismo, Phelan, pixação, polifonia, pop art, Projeto Balbucio, Rauschenberg,
salas de ex-votos, Schechner, Siegbert Franklin, Taylor, tradicional popular, tropicália,
Turner, viver junto, Warhol, Wittgenstein, Yayoi Kusama, Zé Pinto, Zumthor, entre tan-
tas que o leitor, a partir de seu próprio repertório poderá localizar na sala.]

***

A partir do diálogo circular entre os campos da arte, da educação, da comunicação,


do design, e tendo a performance como operador conceitual e dispositivo de cria-
ção artística centrais, João Vilnei, Eliezer do Nascimento Jr., eu, imaginamos e bus-
camos engendrar, com outros artistas, pesquisadores, técnicos e, majoritariamente,
com os alunos, um processo, ao mesmo tempo, artístico e pedagógico para o qual
concorram, conceitos e técnicas em work in progress (Cohen, op. cit.), para aquele
objetivo de confluência e integração.

Contudo, a proliferação de processos iconoclastas, acumulativos, obliterativos, pa-


limpsésticos, polifônicos, torna o environment um cenário ironicamente utópico-dis-
tópico em que a própria validade da aula é posta em crise e, aí, num pseudo-parado-
xo, ela pode perfazer-se lugar de crítica e diálogo, reperformar-se, ser em si e só aula.

***

A V.3 Mini-Micro-Pocket-Mostra-de-Arte: #Sala109 é uma realização do Laboratório de


Investigação em Corpo, Comunicação e Arte-LICCA/UFC (grupo de pesquisa vincula-
do ao PPGARTES da UFC e registrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa do Conse-
lho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-CNPq), em parceria com o
Instituto de Investigação em Design, Media e Cultura-ID+ (Portugal). Projeto de exten-
são registrado na Pró-Reitoria de Extensão-PREX da UFC, o evento é coordenado pelos
professores doutores Antonio Wellington de Oliveira Junior (ICA-UFC) e João Vilnei
de Oliveira Filho (Curso de Design Digital – UFC – Campus Quixadá) que juntos com
Eliezer Nogueira do Nascimento Junior (Doutorando da Escola Superior de Desenho

1073
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Industrial-ESDI da Universidade Estadual do Rio de Janeiro-UERJ) são também curado-


res da exposição. A V.3 MMPMA faz parte da pesquisa de “Da Aula: sobre desterritoria-
lizações estético-científicas nos híbridos contemporâneos de educação, comunicação
e arte”, supervisionado pelo prof. Dr. Paulo Bernardino das Neves Bastos (Universidade
de Aveiro-UA) e desenvolvido junto ao LICCA/UFC com bolsa CNPq-PDE.

Referências
Althusser, L. P. (1998). Aparelhos Ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal.

Bastos, R.; Guedes, B. Sol de primavera. In: Guedes, B. (1979). Sol de primavera. Rio de
Janeiro: EMI-Odeon.

Bishop, C. (2012). Artificial hells. London; New York: Verso.

Ciotti, N. (2014). O professor-performer. Natal: EDUFRN.

Cohen, R. (2004). Work in progress na cena contemporânea. São Paulo: Perspectiva.

Deligny, F. (2015). O aracniano e outros textos. São Paulo: N-1.

Dewey, J. (2010). Arte como Experiência. São Paulo: Martins Fontes.

Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal.

Foucault, M. (1997). Vigiar e Punir. Rio de Janeiro: Vozes.

Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes.

Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz & Terra.

Granger, G. G. (1992). Método. In Enciclopédia Einaudi, Vol. 21. Lisboa: Imprensa Na-
cional-Casa da Moeda.

Houaiss, A.; Villar, M. de S. (2001). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de


Janeiro: Objetiva.

Oliveira Junior, A. W. (2012). Da Aula... ou sobre desterritorializações estético-cien-


tíficas nos híbridos contemporâneos de comunicação, educação e arte: Projeto de
pesquisa e plano de trabalho de estágio de pós-doutorado. Brasil: CNPq. Recupera-
do em 08 de setembro, 2019, de: https://drive.google.com/open?id=0BwXe-QsEO-
Xpsci1OZUdvRUxfZ1U.

Passos, E.; Kastrup, V.; Escóssia, L. (2009). Pistas do método da cartografia. Porto
Alegre: Sulina.

Veiga, I. P. A. (2011). Aula. Campinas: Papirus.

1074
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Bertha Díaz Martínez1


El cuerpo: dispositivo de registro, activador de escrituras
críticas
The body: recording device, activator of critical writing

Resumen
Esta reflexión es parte de una investigación generada desde mis tránsitos como
espectadora y crítica de artes escénicas. En este ensayo intento exponer algunas
tácticas para re-imaginar la escritura crítica reconociéndola como una práctica
corporal, en su génesis, más que un ejercicio que implica calificar, clasificar y de-
terminar el sentido de la obra. La intención es repensar al trabajo crítico desde el
deseo de sacar a la luz un carácter (el de la obra, el de la escritura y el de quien
ejerce la crítica), para así ir a la indagación de lo sentido y el (los) sentido(s) que
se despiertan en dichos movimientos.
Palabras clave: Crítica, afectos, cuerpos, escritura.

Abstract
This reflection is part of a research generated from my career as a spectator and as
critical for the performing arts. In this essay I try to expose some tactics to re-imag-
ine the excercise of critical writing, as a body practice - in its genesis - more than
an exercise that involves qualify, classify and determine the meaning of the work
of performing arts. The intention is to rethink the critical work recognizing it, in its
genesis, like a corporal practice; and not like an exercise that tries to qualify, classify
and determine the sense of the work of art. The intention is to rethink to the critical
work from the desire to extract to the light a character (that of the piece of art, that
of the writing and of the one who exercises the critical practice). In such a way, to go
to the inquiry of the sense and the sense (s) – as meanning- that emerges in that
movements.
Keywords: Critic, affections, body, writing.

1 Investigadora, crítica, curadora y profesora en artes escénica ecuatoriana. Doctora en Investigación


en Artes, Humanidades y Educación por la Universidad de Castilla La-Mancha y Máster en Artes del
Espectáculo Vivo, por las Universidades Libre de Bruselas, Sevilla y París VIII. Trabaja las relaciones
entre escrituras-cuerpo-pensamiento. Co-editora de Revista Sycorax, miembro del grupo de inves-
tigación ARTEA y del Archivo Artea de Artes Vivas. Es docente de la carrera de Artes Escénicas de la
Universidad de Cuenca, Ecuador.

1075
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Apuntes preliminares. La crítica de artes escénicas:


imposibilidades, intentos y políticas
Este ensayo intenta abrir unas vías para repensar el modo en que se ejerce la crítica de
las artes escénicas. Es decir, las formas en que ambos oficios (la práctica crítica y la de
las artes vivas) ejercen presencia y resonancia uno sobre/ frente al otro, para que desde
ahí pueda ser agitado lo que puede cada uno de ellos en el entramado de pensamiento
que se despierta en su relación. La crítica, diría el filósofo Jean-Luc Nancy, implica pro-
piciar el ejercicio de sacar a la luz un carácter. Tomando como pretexto su enunciado,
estas reflexiones se alejan de la idea de crítica en tanto ejercicio de evaluación, califi-
cación, clasificación y determinación del sentido, que ha estado presente en un sector
dominante de la institución crítica. Por el contrario, abogan por aproximarse a dicho
oficio como el lugar para hacer visibles y tangibles el conjunto de cualidades o rasgos
que indican la naturaleza propia de una cosa, su modo de pensar, de actuar, de ser.

Cabe recordar que el sentido en la escena se encarna gracias al agenciamiento de mate-


rialidades diversas que escriben con movimento en el espacio, pero que al tiempo que
se constituyen, se evanescen. La efemeridad hacia la que se aboca todo el trabajo de
los cuerpos y la potencia de lo vivo, constituyen una agitación en y para el presente,
así como – paralelamente- una puesta en tensión en el momento de imaginar cómo
registrarlo, archivarlo, como articular un decir sobre aquello. No hay posibilidad alguna
de que se pueda capturar la totalidad de la experiencia, ya que el agenciamiento poético
provoca que una condición inefable que se desprende de las materialidades dispuestas
se haga presente en los sentidos de quien se enfrenta a ella, por tal razón, cualquier in-
tento es desbordado en la traslación hacia otro lenguaje que quiere dar cuenta de ella.

Si el vídeo o la fotografia son lenguajes que se utilizan para registrar las prácticas
vivas, para que ellas se guarden como archivos y –por ende- como materiales sobre
los cuales volver para poder constituir un decir sobre las mismas, en el momento
en que esto se provoca entonces la obra viva pierde su principal característica: la
fuerza que se teje en el presente irrepetible en que se produce. Por ende, el modo en
que la escena se expresa como organismo vivo; es decir, la forma en que ella piensa
empieza a diluirse y, a su vez, es polinizada por el modo en que piensa el lenguaje
que intenta contenerla. La escritura sobre la escena, entonces, en principio, abre un
campo e batalla contra esa mposibilidad. Se sitúa en un casi, en un bordeo, en un
roce de una dimensión, pero nunca en su completud. Sin embargo, lo que reclama
a ser dicho funciona como impulso para configurar tácticas para recuperar el modo
en que se expresa ese ente vivo que es la escena.

El cuerpo: sentir lo(s) sentido(s), articular sentido.


En el intento de horadar en mi oficio como crítica de artes escénicas he intentado volver
consciente que el trabajo de articular un decir que intente expresar el sentido al que se

1076
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

intenta volcar es solo un ejercicio de aproximación. Asimismo, en el reconocimiento de


la resistencia de la escena a los modos convencionales en que se archiva, he depositado
mi interés en reconocer al cuerpo como principal dispositivo de registro del aconteci-
miento vivo y, de la mano con ello, también, reconocerlo como archivo vivo desde el
cual se despliega de otro modo el sentido, este se expande o se abre uno nuevo.

La idea de ‘recuperar el cuerpo del crítico’ (frase que uso como provocación para ha-
blar de esta suerte de anestesiamiento sensible que predomina en la crítica conven-
cional), está emparentada también con una insistencia en tomar distancia de unos
principios de escritura crítica que ponderan la dimensión logocéntrica de quien
escribe, así como la primacía de la objetividad en tal práctica. Insistir en esos dos
principios mencionados no es otra cosa que alejarse de los afectos que quedan en
el cuerpo, de la potencia subjetiva que se abre en el estado de encuentro con otro
cuerpo vivo. Distanciarse de dichos principios, por ende, es dar valor al saber del
cuerpo, a lo que despierta en el proceso de choque-resonancia y entender ello como
un espacio donde el pensamiento se produce y se ejerce.

Desmenuzar mi propio trabajo como crítica me lleva a situarme más allá del acto como
tal de la escritura. Voy a la antesala del ejercicio de escribir, a aquel instante donde se
produce el estado de co-presencia entre la obra -reconocida como organismo vivo- y
mi cuerpo. Quiero decir, entre la obra y el cuerpo de quien especta y que más adelante
será el que intente articular un discurso sobre lo visto, que es ‘crítico’ en tanto está abo-
cado a la emergencia del carácter. Toda escritura si bien tiene una potencia autónoma,
su surgimiento da cuenta de una red: nace comprometida con algo que le empuja su
emergencia y se dispara para llamar a una comunidad de lectores por venir. Activar
esta trama vuelve tangible el carácter de la obra vista, al tiempo que el carácter de
quien observa y también el carácter de la propia escritura, entendida como extensión
de quien ve, así como en tanto lenguaje-modo de expresión que se juega posibilida-
des nuevas de sí misma gracias a la puesta en movimiento de estas relaciones.

Repensar la escritura crítica, entonces, desde esta lógica, sostiene un reconocimien-


to de los implicados en un circuito de relaciones y un llamado a pensar cómo avi-
varlo, o –más bien- hacer visibile su vitalidad. Se trata de activar unas políticas rela-
cionales, de detenerse a reflexionar con qué está comprometido el acto de escritura
crítica… Ensayo respuestas aleatorias: con los afectos que quedan en el cuerpo de
quien escribe, con la comunidad a la que llama toda escritura (sus futuros lectores),
con la escritura per se –como lenguaje- y, por supuesto, con aquello a lo que se refie-
re, la obra que la ha propiciado.

Genealogía de las corpoescrituras críticas


Con el propósito de hacer un ejercicio de mapeo que permita reconocer una genealo-
gía de corpoescrituras, el rastreo me lleva a un antiguo antecedente: la figura de la éc-

1077
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

frasis. Las primeras referencias sobre tal concepto datan del siglo II. Dicha palabra se de-
riva de los vocablos griegos ek (afuera) y phrasein (decir). Generar una écfrasis consiste,
entonces, trasladar a palabras aquello que ha sido registrado visualmente. Según varios
estudiosos este es, quizás, una de las formas primarias en donde se muestra el movi-
miento de la experiencia sensible, lo captado por el cuerpo, hacia el discurso verbal.

Musterberg (2009), por ejemplo, explica que el objetivo de esta forma literaria es
“hacer que el lector vea la cosa descrita como si estuviera físicamente presente” (pos.
163). Inmediatamente, al leer este modo de definir la écfrasis por tal autora, se puede
suscitar una pregunta concreta de carácter metodológico (con sus respectivas ten-
tativas de respuesta), que ya me posé previamente en una investigación de la que se
deriva este artículo: “¿Cómo provocar que el lector sienta que está ‘presente’ ante la
cosa descrita? Como contestación podría articularse lo siguiente:

-provocándole una reacción que apele a sus sensaciones físicas, que toque su cuer-
po” (Díaz, 2018; p. 6). Esto permite reconocer, asimismo, que quien tiene la posi-
bilidad de generar el ejercicio ecfrástico no solo debe desarrollar una descripción
sobre el objeto, sino que la descripción debe ser lo más próxima a los afectos que se
producen en su cuerpo a partir de esa relación. O sea, “ante la imposibilidad (que el
lector-espectador tiene) de poner el cuerpo en presencia (de la obra / frente a ella)
quien habla/escribe debe prestarle su cuerpo (sus sentidos, lo que este ha sentido)
para convocar a la expansión de esos afectos que han provocado en él el estar frente
a lo visto” (Ibid). De ese modo, intentar el replique de la experiencia de aquel pre-
sente, de aquella presencia que se posa ante quien ve. Y que se instituye, al mismo
tiempo, como una experiencia “otra”.

Una pista importante que me condujo a generar estas elucubraciones que ensayo en
el párrafo precedente están en las reflexiones que la artista Claudia Castelluci, del gru-
po teatral Società Rafaelo Sanzio (citadas en un libro que se publicó a propósito de
un proyecto curatorial sobre archivos afectivos en el que participo con una propuesta
de esta línea), recoge de Luciano de Samósota (siglo II). Él refirió sobre la écfrasis lo si-
guiente: “un hombre educado no puede tolerar ser un espectador mudo de la belleza y
buscará en cambio prolongar el placer durante el tiempo que sea posible respondien-
do con palabras a lo que él ve” (Palladini et al, 2013; p. 30). La frase de dicho pensador
de origen sirio constituye una especie de pronunciamiento tácito sobre la dimensión
afectiva abierta ante el acontecimiento y así a la necesidad de articulación textual a
tono también con esa afectividad. Eso me permito leer como clave para instalar al
cuerpo en el centro de las operaciones. Ello porque lejos de manifestar que lo que
hay que expandir es lo visto, insiste en el placer que esto le ha generado a alguien. Si
bien habla de términos como belleza y placer, a la luz del paso del tiempo me atrevo a
decir que es posible traducir lo bello como algo que escapa a lo ordinario y me arrojo
también a no circunscribirme al significado estricto de la idea de placer, sino a pensar
a toda sensación que provoque una honda impronta en quien la vive.

1078
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Otra de las frases que recoge Castelluci de dicho pensador antiguo, es que la écfrasis
permite transmitir “el carácter ‘delicioso’ de esta carencia (la ausencia del objeto visto
o referido)” (Ibid). Curiosamente, Samósata habla de carácter (me atrevo a pensar
que no es azaroso que contemporáneamente Nancy use el mismo término para refe-
rirse a la crítica) y el adjetivo que usa está asociado al gusto. Parecería implícito que
esas palabras que expanden lo visto se posan en la huella que deja lo visto sobre el
cuerpo (el cuerpo de quien ve y dice) y no solamente en la materialidad a la que se
hace referencia. Un ejercicio que opera en varias capas, que atraviesa a varias pre-
sencias, es el que está contenido en esos tránsito de la mirada a la escritura, plante-
ada por Samósata al referirse de la écfrais. Habría que pensar también que cuando
se habla de poner en palabras lo visto, pareciese estar implícita la idea de escritura
en tanto inscripción en un soporte, pero también es posible que la écfrasis implique
una dimensión oral de la escritura, con lo cual me atrevo a poner en discusión una
provocación más: la dimensión sonora de la palabra y cómo esto es escuchado por
alguien más. Más allá de esa precisión circunscrita a Samósata vale referir que toda
escritura al ser leída, produce que empiece a latir su potencial aural y es desde lo que
activa en el sentido del oído, también, que otros sentidos sobre ella se propician.

Un laboratorio que se sitúa en la antesala de la escritura, en ella y en otros


pliegues de la expresión del sentido.
Para indagar en estas interrogantes sobre la práctica de corpoescritura crítica diseñé
un laboratorio del que toma su nombre el título de este texto: El cuerpo: dispositivo
de registro, activador de escrituras (la palabra crítica, que sí se pone en el nombre
de este texto, se ha borrado porque ahora pongo este laboratorio al servicio de la
escritura en sus diversas posibilidades).

Si la interrogación sobre el acto de escribir me lleva a lo que sucede en la antesala del


mismo y a indagar en una red de relaciones en las que está inscrita la escritura, pensé
que el formato de laboratorio, es decir, de lugar para experimentar desde la prueba y
el error sería el sitio idóneo para explorar tácticas para pensar cómo disponer/abrir/
entrenar el cuerpo para estar contundentemente en esa antesala. Además imaginé
que el laboratorio sería el espacio ideal para propiciar el encuentro de un conjunto
de personas que pudiesen juntas explorar ciertos principios que he preconfigurado,
pero solo había ensayado –hasta entonces- conmigo misma.

La idea de pensar con otras personas nace también del deseo de generar una suerte
de réplica de la red que se revela en la escritura –como dije en líneas previas- pero
también tiene la intención de salir de una lógica dominante en la labor de la escritura
crítica, que siempre ha sido entendida como una actividad en solitario, individual, y
generada por algunos iniciados en dicho oficio. En la insistencia de que en la antesala
de la escritura crítica está el cuerpo tocado por la experiencia del acontecimiento vivo,
entonces cualquiera que tiene un cuerpo abierto a ser tocado por la experiencia, está

1079
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

habilitado para conectarse y dar cuenta del carácter de lo visto. Al mismo tiempo esto
responde a un posicionamiento con respecto a salir de la idea de que la escritura críti-
ca es patrimonio de unos pocos intelectuales racionalistas y objetivistas.

Se trata, así, de un laboratorio cuyo interés es propiciar un encuentro aguzado de


los participantes (personas de diversas edades, con distintas trayectorias) con sus
propios sentidos. El acto de escribir tiene que ver con el acto de mirar, con el acto de
percibir en la más amplia dimensión del término. Por ende, el laboratorio, recurre a
ofrecer una serie de juegos que intentan desmontar la relación cotidiana que tene-
mos con el mundo a través de los sentidos, propiciando, a su vez, una desautoma-
tización de la relación con los propios sentidos. Así, ejercicios tan sencillos como el
enfrentarse a una imagen para volver a preguntarnos ¿qué vemos cuando vemos?
resultan reveladores para pensar en nuestra relación con los sentidos. A partir del
ejercicio de escribir para intentar responder dicha pregunta es posible generar una
disección sobre los archivos que traemos en el acto mismo de la observación; es
decir, los otros materiales que trae nuestro cerebro en dicho acto, aquello que ha
sido mirado previamente y que se pone al servicio de este material nuevo al que nos
enfrentamos, y –luego- en su búsqueda del sentido. Asimismo, es posible hacer un
análisis sobre los archivos que la propia escritura permite despertar en este intento
de decir. El desmontar la relación con una imagen vuelve manifiesta –a su vez- una
cadena de imágenes que actúan como soportes de esa imagen inicial; inmediata-
mente, el árbol genealógico de la mirada (singular, del sujeto que mira, pero tambi-
én de la mirada como construcción cultural) y de la escritura (singular y como len-
guaje) captan lo mirado y le dan cobijo para disponerse a la articulación del sentido.

Ahí, en ese instante presente de la mirada y en ese presente de la escritura, un oleaje


de superposiciones de archivos de diversas temporalidades toman lugar. Una dis-
rupción del sentido de del orden del tiempo se habilita y se vuelven vivos y latentes
ciertos materiales que parecían dormidos y que muestran de repente que requerían
del ingreso de este nuevo material para volver a ponerse en locomoción, para que
demuestren su pertinencia para el acto de sentir-pensar-hablar-escribir.

Damásio (2019) justo al respecto refiere que “todas las palabras que usamos (...) es-
tán hechas de imágenes mentales” (p. 130). Y añade:

Pero la mente está hecha de algo más que de imágnes mentales directas de objetos y acontecimen-
tos y de su traducción al lenguaje. Tamnbién están presentes en la mente innumerables imágenes
referidas a cualquier objeto o acontecimento que ayuden a describir sus propriedades constitutivas
y sus relaciones. El conjunto de imágenes relacionadas con un objeto o acontecimento equivale a la
“idea” de aquel objeto o acontecimento, su “concepto”, su significado, su semántica (Ibid).

Luego de diseccionar las imágenes-archivos que se levantan con el ejercicio del mirar-es-
cribir-mirar la escritura-mirar lo mirado desde la escritura-mirarse desde la escritura, se

1080
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

propician también una serie de tácticas que van a apuntar a mecanismos de escrituras
que a su vez permiten seguir revelando lo que generan estas relaciones. Dichos meca-
nismos van desde el uso de restricciones como el límite de palabras o eliminación de
algunas (verbos, adjetivos, etc) para empujar al pensamiento a buscar como cuidar la
potencia de lo que quiere transmitir pese a la constricción de las condiciones, hasta el
uso del tiempo; es decir, usar tiempos acotados para escribir o dejar reposar una escritu-
ra y retorla al día siguiente con otra premisa, para ver qué imágenes se levantan de ella
al tomar distancia y retornar.

La pregunta que antes refería ¿qué vemos cuando vemos? se desplaza también al
acto de la escucha, con mecanismos similares y al del tacto. Se moviliza, asimismo,
hacia el cruce de esos sentidos y a partir de ello, a cavilar en lo que cada uno de esos
sentidos despierta como revelador de sí mismo y como elementos para des-cubrir
el sentido del todo.

A modo de conclusiones
Si bien esta investigación nació como un ejercicio de descolocar la crítica como una
práctica autoritaria que busca la consecución y determinación del sentido de la obra
de artístico-escénica, hacia una práctica que recupera la potencia de los sentidos
en la antesala de dicha escritura crítica, el mismo trabajo ha empujado a esta inves-
tigación un lugar más allá de sí misma. Actualmente, todas estas especulaciones y
ejercicios prácticos alrededor de la escritura crítica permiten repensarla en más allá
de su relación directa con las artes escénicas, que detonaron su reflexión, para pen-
sar en cómo poner en crisis el propio lugar de la escritura, considerando la serie de
operaciones sensibles y sobre lo sensible que ella instaura. La misma exploración ha
empujado a pensar la escritura como lugar de investigación y como como pretexto
para re-escribir nuestros vínculos no solo con el arte, sino con nuestros cuerpos y,
desde ahí, con las potencias de la vida que siempre nos abocan a un más allá de lo
dicho, de lo ordinario.

Lista de referencias
Damasio, A (2019). El extraño orden de las cosas. Primera edición en México. Ciudad
de México: Planeta de Libros.

Díaz, B (2018). La crítica de artes vivas como acontecimento. Tesis Doctoral. Universi-
dad Castilla-La Mancha, Cuenca-España. http://hdl.handle.net/10578/18332

Musterberg, M (2009). Writing about art. Revised edition. Edición Kindle.

Palladini, G.; Pustianaz, M. y Sacchi, A. (2013). Archivi affettivi / Affecttive Archive. Un


catalogo / A catalogue. Vercelli: Edizioni Mercurio - Fischio d’Inizio Produzione S.A.S.

1081
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Cláudia Mariza Mattos Brandão1 and Paulo


Bernardino Bastos2

Ver, registrar, refletir, criar: sobre tecnologias do imaginário,


celulares e sketchphotos
Seeing, registing, reflecting, creating: on technologies of the imaginary, mobile
phone and sketchphotos

Resumo
No artigo propomos uma reflexão acerca de mudanças operadas no âmbito da arte
e em práticas rotineiras dos artistas, sob a influência do desenvolvimento tecnoló-
gico e suas reverberações sobre a produção contemporânea (Couchot, 2003). Na
busca por desvelar algumas dessas complexas relações, que ganham visibilidade
através do pensamento artístico, analisamos a utilização das câmeras fotográficas
de celulares como dispositivos contemporâneos que permitem a elaboração de
sketchphotos. Semelhantes aos sketchbooks, nos quais artistas rabiscam suas ideias
ou impressões acerca de algo que desperte a sua atenção, para posterior análise e
interpretação, eles se adequam ao tempo vertiginoso do nosso cotidiano. Sendo
assim, o texto problematiza o impacto das tecnologias sobre a vida em sociedade,
destacando o papel de “tecnologias do imaginário” (Silva, 2006) na transformação
das atividades artísticas/expressivas e na produção de subjetividades.
Palavras-chave: Tecnologias do Imaginário, Celular, Sketchphoto, Arte Contem-
porânea, Produção de Subjetividade.

Abstract
In this paper, we have proposed a reflection on changes that occur in the field of Arts
and artists’ everyday practices, under the influence of technological development

1 Professora e artista visual, curso de Artes Visuais Licenciatura e PPG Mestrado em Artes Visuais,
Centro de Artes/UFPel. Pós-Doutorado em Criação Artística Contemporânea (UA, PT, 2019), Doutora
em Educação, Mestre em Educação Ambiental e graduada em Artes Visuais. É líder do PHOTOGRA-
PHEIN - Núcleo de Pesquisa em Fotografia e Educação (UFPel/CNPq), pesquisadora da área da Foto-
grafia e das teorias do Imaginário, com ênfase nas narrativas (auto)biográficas poéticas/simbólicas.
Contato: attos@vetorial.net
2 Estudos de Arte, PH.D. (ua.pt); Escultura, M.A. (rca.uk). Investigador em artes visuais/plásticas (da
prática para a teoria). O seu trabalho interliga vários materiais/disciplinas. Através de metáforas co-
necta fronteiras físicas e emocionais, construindo espaços com significados múltiplos em diversas
comensurações (duas e três dimensões). Participa em vários eventos internacionais como conferen-
cista e como artista. Contato: pbernard@ua.pt

1082
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

and its consequences on contemporary production (Couchot, 2003). In the search


for unveiling some these complex relations which gain visibility through artistic
thoughts, we have analyzed the use of camera phones as contemporaneous devices
that enable creation of sketchphotos. They have adapted to our vertiginous routine,
just like sketchbooks, where artists scratch their ideas and impressions of something
that calls their attention in order to be analyzed and interpreted later. Therefore, our
text has problematized the impact of technologies on life in society and highlighted
the role of “technologies of imaginary” (Silva, 2006) in artistic/expressive activities
and in production of subjectivity.
Keywords: Technologies of Imaginary, Mobile Phone, Sketchphotos, Contemporary
Art, Production of Subjectivity.

Sobre as questões instigadoras da escrita


As discussões sobre as relações entre Arte, Ciência e Tecnologia, e suas reverbera-
ções na produção artística contemporânea, consideram a posição de destaque da
fotografia no processo. Essa invenção, de meados do século XIX, ao longo do tem-
po foi também utilizada por artistas com fins poéticos, libertando a pintura de suas
heranças ilusionista, com base na representação fiel da realidade. Ela transformou
radicalmente o mundo da arte através do rompimento com “os cânones de uma tra-
dição determinada por uma classe social burguesa, elitista” (Venturelli, 2004, p. 17).
Entretanto, mais do que provocar esse rompimento, a fotografia instigou “os mais
ousados para a possibilidade de criação de imagens, por meio do processo mecâ-
nico e químico” (Id., p. 16), e como destaca Couchot (2003, p. 36) “Com a fotografia,
a presença do objeto se torna incontornável. O objeto preexiste necessariamente à
imagem. O real faz pressão sobre a imagem e sua exaltação realista ou seu distancia-
mento com o simbolismo se torna apenas preocupação do fotógrafo”.

Na discussão aqui entabulada, nós consideramos as possibilidades destacadas por


Couchot, ou seja, a exaltação realista ou o distanciamento simbólico da fotografia
como escolhas subjetivas e caminhos que não são excludentes. Ao contrário, pon-
deramos sobre tais características como alternativas que surgem não obrigatoria-
mente num primeiro momento (o do click mecânico), mas que podem se evidenciar
a partir das escolhas metodológicas no decorrer da pesquisa, em acordo com seus
diferentes momentos e necessidades. Propomos, portanto, refletir sobre a prática
fotográfica não somente do ponto de vista da produção de uma imagerie (Fabris,
2009), mas também do ponto de vista do exercício da linguagem fotográfica como
produção de narrativas autobiográficas. Annateresa Fabris (2009, p. 201) destaca
que atualmente “a imagem deixa de ser o antigo objeto óptico do olhar para conver-
ter-se em imagerie (produção de imagens)”, referindo–se às transformações provo-
cadas pelas novas tecnologias.

1083
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Considerando a influência das novas tecnologias na produção artística contempo-


rânea, o artigo problematiza mudanças operadas no âmbito da arte e nas práticas
rotineiras dos artistas, destacando o papel de “tecnologias do imaginário” na trans-
formação das atividades artísticas/expressivas e na produção de subjetividades. Fo-
calizando especialmente a fotografia, seus processos e equipamentos, analisamos a
utilização das câmeras fotográficas de celulares como dispositivos contemporâneos
que permitem a elaboração de sketchphotos.

Semelhantes aos sketchbooks, nos quais artistas rabiscam suas ideias ou impres-
sões acerca de algo que desperte a sua atenção, para posterior análise e interpre-
tação, os sketchphotos se adequam ao tempo vertiginoso do nosso cotidiano e da
vida em sociedade.

O texto resulta das práticas que viabilizaram estudos de pós-doutoramento desen-


volvidos sob a supervisão do Prof. Dr. Paulo Bernardino Bastos, no Mestrado Criação
Artística Contemporânea, do Departamento de Comunicação e Arte (DECA), da Uni-
versidade de Aveiro (UA), Portugal. Esses estudos consideram que a experiência do
fotográfico na arte reside nas contribuições que esta apresenta para se discutir as-
pectos propriamente comunicativos da fotografia, particularmente a representação
e as operações que nela ordenam o visível e mediam nossas relações com o mundo
através da imagem. Nesse âmbito se considera a intermediação da tecnologia, e a
substituição das câmeras tradicionais pelos aparelhos celulares, seus recursos e re-
verberações nas práticas artísticas.

Preâmbulos da experiência, meandros da pesquisa


Durante a elaboração do projeto que posteriormente foi desenvolvido em Aveiro,
intitulado “CARTO/FOTO/GRAPHIAS DE UMA PRESENÇA: Tessituras Artísticas entre
Fotografia, Memória e Imaginário”, recorri aos ensinamentos de George Perec, em
especial na obra “Tentativa de esgotamento de um local parisiense” (2016). Isso, pois
assim como Perec, a referida pesquisa previu a descoberta do espaço urbano avei-
rense através do caminhar e da observação do cotidiano, ou seja, ela “traz à tona
uma possibilidade de fazer a cidade enquanto não se faz nada” (Perec, 2016, p. 7).

Refiro-me a uma investigação pautada na carto/foto/graphia (Brandão, 2012), uma


metodologia que propõe reescrever em imagens a experiência da deriva (Debord,
2005), traduzindo uma busca por fixar/transmitir em imagens simbólicas o vivido.
Ao produzir imagens como sínteses da experiência, não meros registros/recortes da
vida cotidiana, posiciono-me como um “voyer urbano: contemplador e narrador da
cidade” (Id., p. 8), realizando uma particularização do cotidiano em imagens, como
um inventário da experiência.

1084
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Tais imagens permitem ler nas entrelinhas das (re)apresentações do mundo, deta-
lhes que muitas vezes passam despercebidos, infraordinários3, como diria Perec. O
autor buscava reencontrar o bairro e a rua de sua infância, refletindo sobre as trans-
formações operadas ao longo do processo de reurbanização parisiense. Diferente
da sua proposta, a jornada em Aveiro foi de reconhecimento, introspecção e esta-
belecimento de relações acerca de um espaço urbano desconhecido, caracterizado
como lugar da experiência e da emoção, que pode ser reconstituído simbolicamen-
te através de imagens.

Posicionado como um etnógrafo, Perec produziu “fotografias escritas, um catálogo


de ações, momentos de mais ou meno luz, pessoas caminhando e carregando coi-
sas, carros estacionando ou partindo, turistas, ônibus da turistas, voos de pombas,
objetos e jeitos” (Id., p. 8). Seu trabalho de apontamentos acerca das aparências,
sons, cheiros e peculiaridades de um local específico, a Place Saint-Sulpice (Paris,
França), baseou-se na elaboração de registros escritos e algumas fotografias, ações
essas pautadas na pausa, na contemplação quieta.

Entretanto, diferente da proposta de Perec, a pesquisa em questão exigiu uma imer-


são ritmada pela dinâmica cotidiana da cidade de Aveiro, com um tempo restrito
para a descoberta do lugar. O tempo disponível foi dedicado a longas caminhadas
com vistas à descoberta de uma geografia sentimental e encarnada, para possibilitar
que “o aprendizado do mundo se desse ao mesmo tempo em que o aprendizado
de nós mesmos” (Onfray, 2015, p. 10). E foi nesse contexto, que o celular se revelou
como uma tecnologia, que mais do que possibilitar o registro de lugares e situações,
constituiu-se como viabilizador da elaboração de um sketchphoto, um caderno de
rascunhos visuais da experiência.

Os fios tecnológicos da trama investigativa


As mudanças operadas na ordem visual, processadas nos jogos técnicos que origi-
nam as imagens e suas reverberações nas subjetividades, colocam em jogo os me-
canismos perceptivos, visto que “o uso das técnicas conforma cada um segundo um
modelo perceptivo partilhado por todos – um habitus comum sobre qual se elabora
uma cultura e da qual a arte se alimenta” (Couchot, 2003, p. 16).

O celular surgiu no bojo das transformações operadas pelas novas tecnologias e suas
reverberações. A princípio ele era somente um aparelho portátil, facilitador da comu-
nicação via telefone. Entretanto, num curto espaço de tempo ele se transformou num

3 Infraordinário é um adjetivo que assume diferentes significados, dependendo do contexto. Majo-


ritariamente, ele se refere aos pequenos detalhes do que é habitual, comum, corriqueiro, refere-se à
indícios banais. Na sua tarefa de resgatar memórias e criar narrativas autobiográficas, Perec assumiu
como método o “infraordinário” de observação do cotidiano.

1085
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

dispositivo multifacetado, que viabilizou sobremaneira o acesso à comunicação e à in-


formação. Dotado de câmera fotográfica, com qualidade cada vez melhor, atualmente,
ele muitas vezes substitui os equipamentos fotográficos tradicionais, cuja portabilida-
de, inclusive, deixa seus usuários mais expostos à violência urbana. Logo, podemos
sintetizar essa ideia considerando que num tempo caracterizado principalmente pelo
fluxo contínuo de informações, a impulsionar uma interação mais efetiva e rápida en-
tre as pessoas, o uso dos celulares é um facilitador do processo.

Admitindo o acima exposto, e reconhecendo que a arte está sempre inserida no espí-
rito de seu tempo histórico, é inevitável distinguir a utilização/interferência/mediação
desse equipamento no âmbito da arte contemporânea. As suas limitações e possi-
bilidades para a criação poética engendram o seu campo de utilização, que é deter-
minado pelas intenções dos artistas. São diferentes intencionalidades determinando
múltiplas utilizações para o celular, uma ferramenta tecnológica que democratizou
sobremaneira a fotografia, suas práticas e produtos, na contemporaneidade.

A proposta de discutir sobre a intermediação do celular em práticas artísticas, é bali-


zada por questões particulares, articuladas à referida pesquisa. Dentre elas uma em
especial se destaca, ou seja, a consideração de que o celular é uma “tecnologia do
imaginário” (Silva, 2006).

Para Juremir Machado da Silva as “tecnologias do imaginário” são dispositivos de


produção de visões de mundo, mecanismos imaginativos usados como estratégias
de cristalização do simbólico, das imagens e do afetivo, estimuladores de ações e
dos sentidos. A partir dessa perspectiva é possível considerar que “Mesmo estimu-
lado por tecnologias, o imáginário guarda uma margem de independência total, de
mistério, de irredutibilidade, de fictício, de inútil, e nunca se reduz ao controle abso-
luto do agente tecnológico emissor” (Silva, 2006, p. 57).

Nesse sentido, é importante destacar que “o imaginário implica uma emancipação


com referência a uma determinação literal, a invenção de um conteúdo novo, defa-
sagem que introduz a dimensão simbólica” (Wunenburger, 2007, p. 11). E no con-
texto da referida pesquisa o celular representa mais do que um mero equipamento
eletrônico “copiador” da realidade. Na nova condição assumida, de surbordinado à
subjetividade que o opera, identificamos a técnica migrando de uma “vontade de
poder” para uma “vontade de potência”; potência essa, que pode ser transmutada
em expressão criativa/artística.

Com isso é possível o estabelecimento de novas relações entre a subjetividade e os


automatismos maquínicos, assumindo hábitos culturais diferenciados, que rom-
pem a lógica pseudorealista de percepção do mundo (Couchot, 2003). Ou seja,
podemos assim admitir o celular como um facilitador na elaboração de rascunhos
imagéticos foto-gráphicos, escritas fotográficas, cujo conjunto pode resultar na
elaboração de sketchphotos.

1086
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Sketchphoto: anotações poéticas de uma experiência.


Sketchbooks são cadernos de esboços ou rascunhos, um recurso muito utilizado por
artistas, nos quais desenham, pintam, escrevem impressões sobre o mundo, assim
como Perec fazia. Geralmente eles são fonte de inspiração e suportes para pensa-
mentos visuais: rabiscos do que o artista vê, projeta e experimenta. E essa foi (e ainda
é) uma prática comum no mundo das artes, desde o Renascimento.

Atualmente são os cadernos do artista italiano Leonardo da Vinci (1452-1519) (Figura 1),
por exemplo, que nos permitem estudar e acompanhar o seu processo criativo, analisar
a sua escrita espelhada e seus exaustivos estudos sobre a anatomia humana, que resul-
taram em seu livro “Tratado de Anatomia”. Esses sketchbooks até hoje encantam e muitas
vezes são expostos junto com a obra finalizada. Há cinco séculos atrás, sem fotografia,
cinema, televisão ou internet, Da Vinci recorreu ao desenho para registrar incansavel-
mente suas pesquisas, com base na observação do real ou na imaginação criativa.

Figura 1: Leonardo da Vinci. Caderno de esboços, início do século XVI.


Disponível em: https://www.historiadasartes.com/sala-dos-professores/skechtbooks/

Outro exemplo emblemático é o do escritos francês Victor Hugo (1802-1885), cujos


rascunhos para elaboração da obra literária “Trabalhadores do Mar” (1866) englobam

1087
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

com igual importância imagem e palavra, ou seja, a união complementar da escrita


verbal e da não-verbal no processo de elaboração da escrita, o que determina o sketch
como síntese do processo artístico. Poderíamos ainda citar outros artistas consagrados
que utilizaram essa prática, assim como o espanhol Pablo Picasso (1881-1973) ou o
brasileiro Candido Portinari (1903-1962), cujos cadernos nos colocam em contato com
os seus processos criativos.

Cabe ainda destacar o trabalho do grupo português Urban Scketchers Portugal, que
transitam pelo país, promovendo desenhos in situ, instigando a contemplação, re-
flexão e processamento da complexidade do mundo através do desenho. Eles estão
conectados a uma ampla rede internacional de desenhadores, cujos participantes
publicam seus Diários Gráficos em um blog .

Constata-se, portanto, a importância dessas práticas e de seus registros ao longo da


história, como suporte para pensamentos visuais, que instauram um tempo com-
templativo e reflexivo traduzido geralmente através do desenho. A ideia de sket-
chbook constitui também a ideia de viagem e de pesquisa. Ele é um registro auto-
biográfico que documenta a interlocução com o tempo e o espaço, visto que:

No estrangeiro, nunca se é um estranho para si, mas sempre o mais íntimo, o mais insistente, o
mais colado em sua sombra. Diante de nós mesmos, mais do que nunca obrigados a nos olhar,
mergulhados mais profundamente em nosso centro de gravidade, na medida em que nos falta o
outro para nos distrair de nossa presença forçada (Onfray, 2015, p. 79).

Dos objetivos da pesquisa supracitada consta a elaboração de sketchbook, entre-


tanto, logo descobri que isso seria inviável, e frente à necessidade de adequação, o
celular passou a ser o item fundamental para os registros digitais como rascunhos
da experiência, tendo sido também utilizado para a gravação de áudios e de vídeos.
Cabe salientar que, embora as milhares de fotos produzidas, não se trata aqui de
analisar o acervo digital como fruto de uma espécie de compulsão pelo ato de foto-
grafar, algo que ganhou fôlego no fértil terreno da tecnologia digital. Ao contrário,
destacamos o papel fundamental do celular como uma “tecnologia do imaginário”,
que possibilita a produção de narrativas poéticas simbólicas, item fundamental para
a elaboração do que estamos denominando Sketchphoto.

A importância disso reside no fato de que é a constituição do acervo imagético que via-
biliza as análises posteriores, ainda em processo, possibilitando a escrita de textos sobre
os rumos da investigação, como esse artigo, por exemplo, além de servirem de base para
a elaboração de colagens, pinturas e desenhos que compõem livros de artistas.

Além disso, algumas imagens per si já foram apresentadas como obras de arte, como
aconteceu em SÍ.NO.DO, uma montagem fotográfica de 35 imagens dispostas na ho-
rizontal, com 18 x 566 cm, apresentada na na exposição coletiva “espaçotraçotempo”

1088
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

(jun/2019), no Museu de Aveiro/Santa Joana (Aveiro, Portugal); ou as duas imagens


que compõem a coletiva “Ninhos, Conchas e outras redondices” (set/2019) (Figura 2),
apresentada na cidade de Bagé (RS, Brasil), com base nas discussões propostas por
Gaston Bachelard, em “A Poética do Espaço” (1993).

Figura 2: Cláudia Brandão. Sem título, fotografia, 2019


Acervo da pesquisadora.

Considerações Finais
O inventário imagético do espaço urbano da cidade de Aveiro, dentre outras cidades
portuguesas, hoje permitem análises das aventuras urbanas, registradas no com-
passo da dinâmica contemporânea, na qual o tempo contemplativo muitas vezes
se esvai, exigindo um tempo posterior de mergulho nas imagens e memórias para
processamento e organização das ideias e dos materiais. Trata-se, portanto, de neste
texto destacar a adequação das práticas artísticas ao tempo presente, no qual a tec-
nologia se afirma dia a dia como um componente fundamental, uma parceira vital
para o imaginário e suas especulações criativas.

Ao longo do texto buscamos demonstrar como o dispositivo celular permite a co-


leta de dados e, principalmente, a elaboração de sketchphotos, viabilizando assim,

1089
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

o estabelecimento de laços sociais através da produção de subjetividade e do sim-


bólico da sociedade. Destacamos que na sua constituição, a imagem fotográfica
representa tanto um dado de pesquisa, como um campo epistemológico, atual-
mente mediado pela tecnologia digital. Assim como os tradicionais sketchbooks,
esses “cadernos” digitais nos ajudam também a perceber o espaço como lugar da
experiência e da emoção, que pode ser reconstituído simbolicamente através da
arte, adequados que estão à aceleração das relações cotidianas contemporâneas.

A pertinência de se pensar a experiência do fotográfico no âmbito da arte, vincula-


da à tecnologia digital e aos celulares, reside também no reconhecimento dos di-
ferentes tempos instaurados pelos próprios equipamentos e suas limitações frente
às dinâmicas sociais. Hoje em dia a fotografia analógica muitas vezes é inviável em
função dos custos, e as câmeras fotográficas podem expor os fotógrafos à violência
urbana, portanto, paulatinamente os celulares intermediam mais e mais as nossas
relações com o mundo, conquistando o status de uma “tecnologia do imaginário” e
produzindo mais do que meras “fotos de celular”.

O sketchphoto apresenta uma outra possibilidade para refletirmos sobre as relações


entre arte, ciência e tecnologia. Diferente dos sketchbooks tradicionais, que guardam
riscos, traços e as formas manuais, eles produzem imagens, que nutrem, incitam e
intensificam a prática artística. Imagens essas, que são contextos de significação, nos
quais se plasmam sínteses simbólicas frutificadas dos afetos que antecedem à for-
ma, ressignificando práticas que também se apresentam racionalmente. As ideias
neles manifestadas configuram uma nova linguagem (in)classificável, através dos
quais imagens fotográficas nos permitem refletir sobre o primado da imagem na
contemporaneidade.

Referências:
BACHELARD, Gaston (1993) A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes. ISBN:
85-336-0234-0

BRANDÃO, Cláudia Mariza Mattos (2012) Entre Photos, Graphias, Imaginários e


Memórias: a (re)invenção do ser profess@r. Tese (Doutorado) - Programa de
Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal de Pelotas, Pelotas. Disponível
em: http://repositorio.ufpel.edu.br:8080/bitstream/123456789/1678/1/Claudia%20
Mariza%20Mattos%20Brandao_Tese.pdf

COUCHOT, Edmont (2003) A tecnologia na arte: da fotografia à realidade virtual.


Porto Alegre: Editora da UFRGS. ISBN: 85-7025-649-3

DERBORD, Guy (2005) A Sociedade do Espetáculo. Lisboa: Edições Antipáticas.


ISBN: 978-85-85910-17-4

1090
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

FABRIS, Annateresa (2009) A IMAGEM HOJE: ENTRE PASSADO E PRESENTE


IN: DOMINGUES, Diana (org). ARTE, CIÊNCIA E TECNOLOGIA – Passado, presente e
futuro. São Paulo: UNESP. ISBN: 978-85-7139-895-5

ONFRAY, Michel (2015) Teoria da viagem: poética da geografia. Porto Alegre, RS:
L&PM. ISBN: 978-85-254-1918-7

PEREC, George (2016) Tentativa de esgotamento de um local parisiense. São


Paulo: Gustavo Gili. ISBN: 978-85-8452-053-4

SILVA, Juremir Machado da (2006) As Tecnologias do Imaginário. Porto Alegre:


Editora Sulina. ISBN: 85-205-0332-2

VENTURELLI, Suzete (2004) Arte: espaço_tempo_imagem. Brasília: Ed. UNB. ISBN:


85-230- 0780-6

WUNENBURGER, Jean-Jacques (2007) O Imaginário. São Paulo, SP: Edições Loyola.


ISBN: 978-85-15-03290-7

Acknowledgement:

This work is financed by national funds through the FCT, Fundação para a Ciência e a
Tecnologia, I.P., in the ambit of the project ID/DES/04057/2019.

1091
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Conceição Abreu1
Weaving in the Expanded Field — O Processo de Entretecimento
na Prática Artística
A Ação de Tecer como construção de Subjetividades e de
Espaços Relacionais.
Weaving in the Expanded Field - Process of Interweaving in Artistic Practice
The Action of Weaving as construction of Subjectivities and Relational Spaces

Resumo
Análise do processo da prática artística de Conceição Abreu, em aferição com
outras práticas artísticas contemporâneas, observadas sob o propósito da ação
de tecer. Processo que, como em Penélope, emerge da prática da repetição de
gestos, engendrando ritmos com valor de ritornelo gerador de (des)territoriali-
zações. Prática que se desenvolve a partir de estímulos táteis e cinestésicos, as-
sociados ao domínio háptico, e que, independentemente do campo disciplinar
(Fotografia, Pintura, Desenho, Escultura ou Vídeo), produz uma experiência de
tempo e entretecimentos do sujeito consigo mesmo e com o mundo. Inscreve-
-se esse processo na enação (en acción), conceito que, nas ciências cognitivas,
explica a organização do vivo a partir das ações do sujeito com o mundo, cons-
truindo-se mutuamente. Classificam-se assim as obras que decorrem deste pro-
cesso como tecituras, constituindo subjetividades e espaços relacionais: resídu-
os materiais/visuais de uma experiência vivida e de conhecimento incorporado.
Palavras-chave: Entretecimento, Ritornelo, Enação, Subjetividades, Espaços Relacionais.

Abstract
Analysis of the process of the artistic practice of Conceição Abreu with others con-
temporary artistic practices, observed under the purpose of weaving action. Process
that, as in Penelope, emerges from the practice of gesture repetition, which acquires
a rhythm with ritornelo value, generator of (des)territorializations. Practice that de-
velops through tactile and kinesthetic stimuli, in a haptic domain, and, regardless

1 Conceição Abreu, (Sintra, 1961). Artista plástica e investigadora. Vive e trabalha em Lisboa. Dou-
torada em Artes Plásticas pela FBAUP (2018). Mestre em Arte Multimédia – Fotografia, pela FBAUL
(2012). Licenciada em 2010 (após Bacharelato terminado em 1989) em Dança pela Escola Superior
de Dança de Lisboa. Projeto Individual em Pintura (2000) da Escola Ar.Co. Estudos Completos de
Pintura (1998) da Escola Ar.Co. Expõe regularmente desde 1999, estando representada em diversas
coleções em Portugal e no estrangeiro.

1092
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

of the disciplinary domain (Photography, Painting, Drawing, Sculpture or Video),


produces an experience of time and interweaving of the subject with himself and
the world. A process related to the notion of enaction (en acción), concept that ex-
plains, in the cognitive sciences, the organization of the living from the actions of the
subject with the world, building on each other mutually. The works from this process
are classified as tecituras. Constituting subjectivities and relational spaces, they are
material / visual residues of a lived experience and embodied knowledge.
Keywords: Interweaving, Ritornelo, Enaction, Subjectivities, Relational Spaces.

Weaving in the Expanded Field


Este artigo realiza-se na análise do processo criativo em que se articula a minha ativi-
dade artística, assim como outras práticas artísticas contemporâneas. Análise que se
baseia no estudo desenvolvido no decorrer do doutoramento realizado na Faculda-
de de Belas Artes do Porto, sob orientação do Doutor Professor Paulo Luís Almeida, e
que teve por título ENTRETECIMENTOS E (DES)TERRITORIALIZAÇÕES, e subtítulo Experi-
mentação e Análise da Ação de Entretecer como construção de subjetividades e de Espa-
ços Relacionais. Inscreve-se esta análise no campo das Artes e também no campo das
Ciências, sendo que, no primeiro domínio, se investigam aquelas práticas artísticas
na relação às questões referentes à construção da existência ligada ao espaço e ao
tempo criados na duração da prática. E, no segundo domínio, analisam-se os seus
procedimentos na sua relação com noção de enação (en acción), conceito que, nas
ciências cognitivas, explica a organização do vivo a partir das ações do sujeito no/
com o mundo e nas quais se constroem mutuamente. Objetivos e metodologias que
foram estudados sob o nome de entretecimento.

Entretecimentos
Por entretecer percebe-se “a ação de entrelaçar(-se) ao tecer” que é uma maneira de
fazer, que se organiza em três movimentos distintos. Sendo um, o movimento de
entrelaçar — que é ação que cruza e interliga. Outro, o movimento de tecer — que
se liga a um tempo qualitativo, engendrado na ação de entrelaçar. E ainda, o movi-
mento de entrelaçar-se —que, sendo pronominal é reflexivo, dobrando-se sobre si
mesmo, mas também noutras direções. Na conjugação destes três movimentos a
ação de entretecer resulta meta-movimento que, transladado para as práticas artís-
ticas, as contextualiza em três campos ou domínios. O campo da ação — relativo aos
gestos operativos e à forma como é feita a sua organização, o que se percebe como
atividade. O campo da duração — que se liga ao tempo gerado na atividade em que
no ritmo criado organiza processos de territorialização. Percebido como processo. E,
o campo da relação — construída pelos movimentos emergentes daquele processo
e que é percebido como produção.

1093
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Entretecer como Ação de Entrelaçar


Entendida a ação de entretecer como ação relacional abrem-se vários campos concep-
tuais, sendo talvez o primeiro o de entrelaçar. Espaço que nos permite passar da biologia
à mitologia e daqui à arte. Entrelaçar tem a sua origem nos comportamentos biológi-
cos. Como são exemplo as aranhas que entretecem os fios da teia com o fim de captar
alimentos, dos pássaros que entrelaçam raminhos e folhas para realizar abrigos para a
reprodução ou dos bichos-da-seda que enovelam o fio que produzem para construírem
um casulo que serve para a sua proteção e transformação. Comportamentos biológicos
que resultam de um sentido de preservação e fortalecimento das espécies e que foram
sendo adaptados e transformados pelo Homem, resultando numa atividade antropo-
gênica cujos inícios têm uma abordagem ou pensamento biomimético, na procura de
soluções frente às adversidades do meio. A mimeses imita o processo e não a aparência.
Mais do que a procura de analogias e similitudes formais com a natureza, a atividade
de tecelagem como técnica de produção de artefactos, surge por um contágio motor
— pela adopção dos padrões e critérios de sobrevivência.

A par das funcionalidades e técnicas construtivas, que se foram desenvolvendo com o


tempo, o sentido da prática de tecer tornada quotidiana, extrapolou as condições ma-
teriais e contextuais que lhe são próprias. Sobre imagens provenientes da circunstân-
cia daquelas atividades serem maioritariamente femininas, as práticas de fiar, tecer ou
bordar, adquiriram, por analogias, outros sentidos contribuindo para um alargamento
do seu campo semântico. Através das atividades de tecelagem evocaram-se divindades,
reiterou-se a cosmogonia, ciclos de vida e repetiram-se os ritos de passagem. Tecer, fiar
ou bordar tomam diversos significados. No campo da dramaturgia e poesia grega, por
exemplo, existem diversas narrativas onde se encontra a inclusão das atividades de tece-
lagem num campo alargado de significações. No mito das Moiras, por exemplo, a ativi-
dade representada pelo fio que se fia, enovela e corta, simboliza a construção do tempo
e da vida. No mito de Ariadne, o fio une a vida e organiza-a. Nos mitos de Hefesto e de
Clitemnestra a atividade de tecer é exercida de modo a engendrar uma solução criativa
para uma situação adversa. Nos mitos de Aracne e de Filomena ela surge como meio de
informação. E ainda, no mito de Penélope, ela surge, simultaneamente, como forma de
organização, de construção inventiva e de mediação.

A Atividade de Tecelagem de Penélope


A ação de tecer no mito de Penélope, surge como forma de organização uma vez
que é através da atividade de tecelagem que Penélope consegue estruturar ou esta-
belecer um plano que atenua as circunstâncias ou os constrangimentos derivados à
ausência de Ulisses. Na espera, que determina um dos mitemas2, Penélope engendra

2 Mitema, termo cunhado por Claude Lévi-Strauss, entende-se a unidade constitutiva do mito, que
o faz distinguir de outras formas de discurso (Lévi-Strauss, 1974: 233).

1094
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

uma construção inventiva de ganhar tempo para um possível regresso. Penélope re-
aliza a atividade de tecelagem segundo as regras estabelecidas, mas a partir de uma
“maneira de fazer” (de Certeau, 1990: 44), que extrapola o que está convencionado,
abrindo um caminho entre a passividade e a disciplina. Ação que, como diz Certeau
é reconhecida como “indicador da criatividade que pulula justamente onde desa-
parece o poder de se dar uma linguagem própria” (de Certeau, 1990: 44). Ação ou
esquema de ações que designa como tática (de Certeau, 1990: 37 - 48), definindo-a
em distintos tipos de comportamento com os quais os “usuários” mantêm o esta-
belecido, mas no qual constroem trajetórias que funcionam como trilhas imprevisí-
veis que se constroem a partir dos interesses e desejos (de Certeau, 1990: 45). Uma
“maneira de fazer” que no mito de Penélope dá origem a outro seu mitema, a métis3
(Dumith, 2012), que se cumpre quando a sua atividade, circunscrita às regras do seu
espaço/tempo cultural, se torna possibilidade de construção de uma subjetividade,
a partir da forma particular de como é realizada. Ainda neste mito, a atividade de te-
celagem é uma forma de mediação, uma vez que é através da sua prática organizada
no gesto de tecer-e-destecer, que Penélope cria um espaço/tempo de relações entre
a própria, o outro e o mundo, que dão espessura à sua existência. Mediação que dá
origem à tecitura, outro dos seus mitemas.

O Entretecimento na Prática Artística


A prática de tecer fundadora da figura de Penélope é paradigma das práticas artís-
ticas que aqui se analisam. Na articulação dos seus mitemas encontram-se as inten-
ções e procedimentos/metodologias daquelas práticas. Sendo que o mitema da es-
pera encontra correspondência nas contingências e contexto em que essas práticas
se inserem e são desenvolvidas. A métis é percebida na forma como são organizados
os gestos operativos que, à semelhança do movimento sistematizado no gesto de
tecer-e-destecer, se articulam em frases simples de movimento, que se repetem,
criando ritmos e dinâmicas generativas. Tática que também é utilizada com o ob-
jetivo de gerar um tempo de construção de relações entre o autor consigo mesmo
e com o mundo, sendo nesse espaço relacional em que se criam as obras. Tecituras
formadas por entrelaces entre o sensível e o pensamento que resultam ser resíduos
ou vestígios materiais e imateriais, consequentes das relações construídas no tempo
da prática artística, que tanto são autorreferenciais como heterorreferenciais.

O Ato de Entretecer — As ações performativas no processo de entretecimento


No processo criativo em que se articulam aquelas práticas, os gestos operativos são
realizados na qualidade de gestos fingidos (Almeida, 2008) ou comportamentos

3 Métis é inscrita na mitologia grega como procedimentos expeditos, ou tramas, que se utilizam
para ultrapassar alguma dificuldade. Sendo que tramar associa-se nessas narrativas a um gesto de
inteligência astuciosa (Detienne; Vernant, 1974).

1095
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

restaurados4, que, segundo Richard Schechner5, são “comportamentos restaurados”


— que abarcam hábitos, rituais ou rotinas da vida quotidiana, são comportamentos
vivos que podem ser comparados à forma como, na realização do cinema, o diretor
manipula uma película de filme, como a rearranja ou a reconstrói a partir das pe-
quenas tiras que se vão desligando do original e se reordenam de modo a albergar
novos sentidos. Nas práticas artísticas que aqui se analisam, ações como riscar, an-
dar, escavar, amassar, desenhar, fotografar (entre outras) são gestos fingidos ou com-
portamentos restaurados percebidos no modo como estas ações são integradas na
prática artística na condição de coisas ou itens. Isto é, são materiais que o autor usa
para construir uma prática de entretecimento consigo mesmo, com o outro e com
o mundo. Nesse sentido os seus gestos operativos cumprem um ato de entretecer.
Numa tática próxima à forma como Penélope faz tecelagem, a ação realizada não
tem como primeiro objetivo a criação de um objeto pré-concebido, mas a constru-
ção de um espaço/tempo onde se geram outro tipo de tecituras. Prática com dimen-
são performativa que se constrói por entre aquilo que é dado e uma forma singular
de organizar a experiência.

A Função Diagramática do Processo de Entretecimento


Naquelas práticas artísticas, os movimentos corporais e gestuais que se inscrevem
no processo criativo, são transferidos do campo da experiência concreta para o cam-
po estético. Procedimento que está presente, por exemplo, na prática de Richard
Long, nomeadamente, no trabalho intitulado A Line Made by Walking, 1967, uma
prática artística estruturada na ação de andar — que é, per si, uma ação quotidiana e
repetida. Ação que se inscreve como ato performativo ou comportamento restaura-
do que se organiza no gesto de ir-e-vir, com o objetivo de criar de um espaço/tempo
de entretecimento, de relação.

4 No original restored behavior. In, SCHECHNER, Richard (1985), Between Theater and Anthropology.
“Restoration of Behavior”. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.
5 Richard Schechner (Nova Jersey, 1934) é diretor teatral, ensaísta e professor universitário do Depar-
tamento de Estudos da Performance (Performance Studies) na Tisch School of the Arts da Universidade
de Nova Iorque. Manteve um trabalho experimental nos anos 60 nos Estados Unidos da América e
um intercâmbio cultural com o antropólogo Victor Turner. Publicou, em 1985, um dos seus princi-
pais textos - Entre o Teatro e a Antropologia (Between Theatre and Anthropology) (FUENTES, Marcela,
2011: 33). In, TAYLOR, Diana; FUENTES, Marcela (edits.), Estudios Avanzados de Performance. México:
FCE, Instituto Hemisferio de Performance y Política, Tisch School of the Arts, New York University, 2011.

1096
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Richard Long, A Line Made by Walking, 1967. Photograph and graphite on board,
image: 375 x 324 mm Tate Britain - Purchased 1976 © Richard Long

Em A Line Made by Walking, a ação de andar constitui-se como material que é utili-
zado no processo criativo. Organizado na repetição, o processo adquire um valor
“diagramático” (Deleuze, 2011) que faz surgir uma relação caos6-germe. A função
diagramática do processo remete para uma ideia de criação contínua e renovada,
através da qual se produz a obra como coisa que emerge de um conjunto de traços
manuais, linhas, manchas, movimentos repetidos que, por entre o caos e organi-
zados num ritmo, substituem a organização óptica abrindo “domínios sensíveis”
(Deleuze, Guattari, 1997). Na organização repetida do movimento de ir e vir, Long
organiza o seu diagrama e rompe com a figuração. Como explica Deleuze, a função
diagramática é não formal, uma vez que não se objetiva na produção de um objeto
pré-definido ou na forma de semelhança ou cliché (Deleuze, 2011: 79). Long intro-
duz a partir do diagrama, uma “possibilidade de facto” e uma “forma sensível” (De-
leuze, 2011: 172). Facto que mais que visual, é sobretudo do domínio da sensação
háptica de onde emerge a forma sensível. Da prática artística de Long, organizada
na ação repetida de andar, resulta a experiência vivida e a imagem fotográfica da
linha criada no processo. Linha que é resíduo ou vestígio material visual do movi-
mento de cruzar repetidas vezes o espaço em duas direções7.

6 Caos em relação ao que precede, mas “potencialidade de uma ordem em relação ao que virá de-
pois” (Deleuze, 2011[1981]: 21)
7 Movimento que faz lembrar, no processo de formação dos tecidos, o ir e vir da naveta ou lançadei-
ra que com ela leva o fio que se entretece por entre os fios da urdidura.

1097
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O Entretecimento e o Sentido Háptico


Outro exemplo de um processo diagramático, é aquele que articula o trabalho
intitulado Desenhando nas entrelinhas (2017) de Conceição Abreu. Trabalho que,
como em A Line Made by Walking, se inscreve no domínio háptico de forma a
criar uma aproximação e relação entre o autor, consigo mesmo e com o mundo.
Desenhando nas entrelinhas realiza-se como performance. Estrutura–se na ação
repetida de traçar linhas na parede, ao mesmo tempo que aí se projetam outras
linhas — imagem de cabos elétricos que se estendem ao longo da via férrea e
que foram fotografados a partir da janela do comboio. Na duração da prática ar-
tística, cria-se uma tecitura que resulta das ligações entre os traços que se fazem
na parede e as imagens projetadas do vídeo. No retângulo de luz da projeção
das imagens, entrecruzam-se dois movimentos — aquele que acontece na ação
de traçar as linhas e que se realiza ao vivo, num espaço partilhado com o espec-
tador, e aquele que é constituído pela ação de olhar e fotografar, que agora se
percebe em diferido. Dois movimentos que se realizam com dimensão perfor-
mativa, e que compartem o mesmo objetivo de criação de um espaço/tempo
de entretecimento entre o autor consigo mesmo e a paisagem. Tanto a ação de
olhar/fotografar como a ação de traçar as linhas desenvolvem-se com sentido
háptico que “resulta da cooperação de duas modalidades sensoriais: a cinestesia
e o tato” (Almeida, 2008: 137).

Conceição Abreu . Desenhando nas entrelinhas (2017).


Museu da Faculdade de belas Artes da Universidade do Porto.

1098
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O háptico – do verbo grego aptô (tocar) – não designa uma relação extrínseca do
olho ao toque, mas uma “possibilidade do olhar”. Um tipo de visão distinta da óptica,
como explica Deleuze, dando como exemplo a arte egípcia que é concebida para ser
vista de perto, tateada pelo olhar (Deleuze, 2011: 204). Segundo Pallasmaa, enquanto
que o tato8, passivo ou exploratório, é a sensação que mais nos aproxima ao mundo,
a visão que é óptica, fixa e organiza o mundo em função de um ponto de vista9.
Pallasmaa adverte, contudo, que “todos os sentidos, incluindo a vista, são prolon-
gações do sentido do tato”, uma vez que, “os sentidos são especializações do tecido
cutâneo e todas as experiências sensoriais são modos tocar” (Pallasmaa, 2012: 11).
Se a visão “revela o que o tato já conhece” (Pallasmaa, 2012: 44), olhar implica tatear.

Na performance Desenhando nas entrelinhas, as ações que a estruturam, mais do


que pertencerem ao regime óptico, inscrevem-se no regime háptico. Tanto a ação
de traçar como a ação de fotografar realizam-se com consciência cinestesia e tá-
til, movimentos corporais e gestuais que, organizadas num processo diagramático,
aproximam e entrelaçam o sujeito/o outro/o mundo. Entretecimento que gera as
tecituras materiais e imateriais

O Entretecimento — Quiasma
Na obra Cedro de Versailles (2000-2003), Giuseppe Penone realiza, no interior de um ce-
dro, a ação repetida de escavar. Repetição que não é uma mecânica, que toma conta
de todo o trabalho, mas organizada num processo diagramático gerando um ritmo. A
função diagramática não atua de modo significante – não há significante ou significado
–, mas age na estratificação, no dado, no estabelecido (Deleuze, Guattari, 2000). Prática
que se desenvolve no domínio háptico, na libertação da mão em relação ao olho que faz
aproximar o autor á árvore e a árvore ao autor. A ação de escavar de Penone, é, portanto,
um ato performativo, um comportamento consciente, não vazio de sentido, que medeia
uma relação bilateral de trocas. Atual e atuante Penone exerce um comportamento sim-
bólico e reflexivo que organiza um espaço/tempo potenciador de conexões. Espaço que
integra a complexidade, a instabilidade, e a intersubjetividade, e que proporciona uma
experiência fora dos dualismos da ontologia do sujeito e objeto.

8 “O tato é a modalidade sensorial que integra a nossa experiência do mundo com a experiência
de nós mesmos. Inclusive as perceções visuais se fundem e integram no continuum háptico do eu;
o meu corpo recorda-me quem sou e em que posição estou no mundo. O meu corpo é realmente
o umbigo do meu mundo, não no sentido do ponto de vista da perspetiva central, se não como o
verdadeiro lugar de referência, memória, imaginação e integração” (Pallasmaa, 2012[2005]: 10-11).
9 Sendo a visão óptica que legitima o modelo cartesiano de Dualismo Psicofísico, que se caracteri-
za pela separação entre res cogitans (coisa pensante, sujeito pensante) e res extensa (coisa extensa,
corpo), e que se identifica como uma divisão entre o observador e o mundo (Pallasmaa, 2012: 11).

1099
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Giuseppe Penone. Cedro di Versailles [Cedro de Versailles] (2000-2003).


Estúdio em Turim © Arquivo Penone

Nessa relação, a que Merleau-Ponty denomina quiasma ou entrelaçamento (2003), re-


aliza-se a experiência fenomenológica que se efetua entre o vidente e o visível, entre o
que toca e o tangível, entre a mente e a matéria, que tanto pode ser de longa duração
ou curta duração. Para Maurice Merleau-Ponty, a dimensão humana assenta na ativi-
dade da consciência, na sua relação de intencionalidade com o mundo. Pensamento
que imprime “uma inflexão decisiva no solipsismo10 e em qualquer forma de dualismo”
(Barraquini; Laffitte, 2007:272). Para Merleau-Ponty, a perceção é a operação pela qual
se estabelece a relação do Homem com o mundo, numa compreensão de que, o mun-
do não é nem objeto de conhecimento para o corpo, nem um outro absoluto, mas que
o conhecimento é fundado na nossa experiência percetiva por meio do próprio corpo,
não se reduzindo, portanto, a uma recetividade passiva, mas a uma relação que revela
uma maneira ativa de ser-e-estar-no-mundo. Assim, a origem do conhecimento, do
nosso modo de existir, situa-se no estado perceptivo, que é a forma primordial de rela-
ção com o mundo, com as coisas, com o outro, e consigo mesmo.

Diz Merleau-Ponty que, “só se vê aquilo que se olha” (2013). Afirmação que expressa
a convicção que, existe um conhecimento sensível das coisas, que é originado no
movimento, ou seja, que é resultado emergente (no sentido de emergir) da ação. No
entrelaçamento dos dois sistemas, da sensação e da perceção, o movimento é cria-
dor de sentido, de um sentido de si, do sujeito sensorial que é atual (atenção/cons-
ciente) e atuante (estar-aí) no mundo. A noção de quiasma leva a um entendimento
do próprio corpo como o espaço de expressão e realização da perceção do ser hu-
mano, que se abre à construção da experiência vivida. O corpo que é visível e móvel,
encontra-se entre as coisas. Nas práticas artísticas que se analisam, o movimento
corporal ou gestual é usado como atividade consciente de construção dessa relação.

10 O solipsismo designa uma doutrina filosófica que reduz toda a realidade ao sujeito pensante, ou
seja, para além de nós só existem as nossas experiências.

1100
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Gosia Wlodarczak, Within (2008). Desenho performativo sobre vidro com marcador branco.
Dimensões variáveis. © Longin Sarneck

Within (2008), de Gosia Wlodarczak (1959) é disso exemplo. Trata-se de uma perfor-
mance que se estrutura na ação de desenhar. É realizada sobre um vidro de uma
janela, espaço que liga o espaço exterior (rua) e a galeria de arte onde, desde o
seu interior, a artista desenvolve a sua prática. O trabalho estrutura-se na ação
sucessiva de desenhar o contorno de objetos e pessoas que no seu movimento
quotidiano, passam junto à janela onde a artista exerce a sua prática. Prática que
se estrutura tanto em movimentos mentais/reflexivos, que ocorrem da atenção ou
focalização feita por Wlodarczak, como em movimentos físicos gestuais criados na
repetição da ação de desenhar.

Numa declaração sobre as propostas do seu trabalho, Wlodarczak sustenta a sua


prática artística na consciência do momento e da construção de um relacionamento
entre a artista e o mundo exterior. Diz: “sou fascinada pela perceção do momento e
pela relação da mente com o mundo exterior, conduzida pelos sentidos. Investigo
a minha experiência em várias manifestações de estar presente na situação atual e
convertê-las na materialidade da linha traçada no ato de desenhar”11. Desta prática
resulta um conjunto de linhas brancas que se adensam na superfície transparen-
te do vidro, criando tecituras emergentes dos movimentos que acontecem entre a
mente e a matéria.

11 Tradução livre de “I am fascinated by one’s awareness of the moment and the mind’s relationship
with the outside world conducted through the senses. I have been investigating my experience of
various manifestations of being present within the actual situation and converting them into the
materiality of the drawn line through the act of drawing” in, http://gosiawlodarczak.com/Pages/Sta-
tement.html

1101
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Ritornelos e o Tempo de entretecer


A organização dos gestos na repetição, e que fundamenta o processo criativo que
aqui se analisa, cria um ritmo que funciona como um estribilho12 que é centro estabi-
lizador e calmante no meio do caos em que se processa a prática. Cadência que tem
valor de ritornelo13, que é movimento expressivo com o qual se organizam os pro-
cessos de territorialização. Territorializar é aquilo que sucede com o canto dos pás-
saros — “o pássaro que canta, marca o seu território...” (Deleuze e Guattari, 1997a).
Dizem Deleuze e Guattari que, o processo de territorialização é “a base ou o solo da
arte” (Deleuze e Guattari, 1997a). Sendo que há “ritornelo motores, gestuais, óticos,
etc.” (Deleuze e Guattari, 1997a) que criam em velocidades e intensidades distintas,
movimentos territorializantes que (re)ordenam as relações com o espaço — no sen-
tido de o apropriar ou de o desapropriar ou ainda de o reapropriar atribuindo novos
significados. Movimentos que acontecem na duração da prática, que estabelecem
inter-relações entre a mente e a matéria, sendo que unas são visíveis, outras não.

Como nos trabalhos anteriormente analisados, o trabalho and around....and around....


and around, 2015 (Conceição Abreu) organiza-se em movimentos corporais que, como
o título do trabalho indica, se repetem, criando no processo uma cadência ou ritmo
que faz emergir movimentos físicos e imateriais que, tanto têm uma componente
direcional, que consolidam uma determinada organização no espaço, num tempo
quantitativo, como têm uma componente dimensional, que viabiliza relações caos-
-germe — organização que se abre ao devir e que se liga a um tempo qualitativo.

Conceição Abreu. Momentos do processo de tecer o fio de lã com tricotine

12 “Prelúdio musical que se repete no decurso da composição”, in Dicionário Priberam da Língua


Portuguesa [em linha], 2008-2013. https://dicionario.priberam.org/ritornelo, consultado em 05-09-
2019.
13 Do original ritournelle, em F. Guattari, Revolução Molecular - Pulsões Políticas do Desejo, org. S.
Rolnik, Brasiliense, São Paulo 1981. In, GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely (1996[1986]). Micropolítica –
Cartografia do Desejo. Petrópolis: Editora Vozes Ltda. (p. 44).

1102
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Conceição Abreu, Entre Nós (2015). Performance coletiva. Participantes: Priscilla Davanzo Carlos
Costa, Conceição Abreu, Mariana Caello Campuzano, e Orlando Vieira Francisco. 5:1 (2015) –
Exposição coletiva no âmbito do Doutoramento em Artes e Design. Museu da Faculdade de Belas
Artes da Universidade do Porto.

Conceição Abreu. and around....and around....and around (2015).


Museu das Belas Artes da Universidade do Porto.

O ritornelo que se origina no processo, é “um prisma, um cristal de espaço-tempo”


que age sobre aquilo que o rodeia, tanto em relação ao tempo como à matéria. Di-
zem Deleuze e Guattari, que “não há o Tempo como forma a priori, mas o ritornelo
é a forma a priori do tempo que fabrica tempos diferentes a cada vez” (1997a). Em
oposição ao tempo medido pelo relógio, na conceção espacial do tempo utilizado
pela ciência (universal) (Bergson, 2016: 10), o tempo fabricado pelo ritornelo, tem
carácter subjetivo, sendo que nessa qualidade, se relaciona à noção bergsoniana de

1103
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

duração, um tempo percebido sem “a capa mais superficial de factos físicos que se
empregam como reguladores” (Bergson, 2016: 18), que se apresenta à consciência
imediata no momento da ação, onde se constrói a experiência. O ritornelo, mais do
que criar uma organização óptica, abre domínios sensíveis (Deleuze, 2011:174). No
processo, materializam ou dão-se a ver, as tecituras que se formam simultaneamen-
te no espaço autorreferencial que é introspectivo/reflexivo, e heterorreferrencial que
se projeta em direção ao outro, ao mundo.

O Processo de Entretecimento e a Enação


Naquele processo criativo, a que dei o nome de entretecimento, gera-se uma expe-
riência vivida. Experiência que não se restringe apenas à visão, mas a todo o corpo,
nas suas modalidades sensoriais, como é o caso do sentido háptico, sentido que
reforça a perceção de fusão com o mundo e acrescenta à visão (óptica) um sentido
incorporado. Naquele processo, o corpo/mente organiza-se em si mesmo e no seu
prolongamento no outro/mundo, e, simultaneamente, o outro/mundo se incrusta
nele, fazendo parte dele.

É pela noção de corpo vivido que as Ciências Cognitivas se aproximam à fenomeno-


logia de Merleau-Ponty, ao estabelecerem uma forma de conhecimento com base na
experiência, através da perceção e motricidade. Para as ciências cognitivas, o siste-
ma sensório-motor e a perceção incorporada desempenham um papel fundamental
na estruturação da existência e compreensão humana. A sensação, a perceção e o
movimento são processos essenciais na construção das inter-relações sujeito/mun-
do o que fundamentam uma forma de conhecimento com base na experiência. O
que determina que a cognição não está separada do corpo, mas que se revela nas
relações sujeito/mundo, no seu encontro, noção que traduz uma visão da vida e do
conhecimento, em que o conhecer, viver e fazer não são coisas separadas, mas que
se constituem na sua reciprocidade, como um conhecimento incorporado14.

Diz Francisco Varela, que “refletimos sobre o mundo que não é feito, mas encontra-
do e, no entanto, é também a nossa estrutura que nos permite refletir sobre esse
mundo” (Varela, Thompson, Rosch; 2001: 25). O que significa que as inter-relações
se constituem entre uma organização autorreferencial e na organização organismo/
ambiente onde a estrutura do organismo (corpo-mente) faz adaptações sem perder
a sua organização autopoiética15.

14 Embodied mind, na língua original.


15 A autopoiesis designa, nas ciências cognitivas, a capacidade dos seres vivos de se produzirem
a si próprios. A organização molecular, constitutiva dos seres vivos, efetiva-se num processo recur-
sivo, caracterizado pela clausura operacional, que se define como uma rede de processos em que
as moléculas produzidas geram (com as interações) a mesma rede de moléculas que as produziu,
mantendo a organização molecular, e pelo acoplamento estrutural ou interceções com o meio. Por

1104
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Circularidade que desmistifica a cognição como processamento de informações —


pensamento organizado na “noção de input-output” (informação-comportamento),
que faz do organismo um sistema de processamento de informação (Maturana, Vare-
la,2004: 56), e determina uma compreensão da cognição dependente da experiência
que acontece na ação corporal. Como confirma António Damásio, quando diz que o
corpo e o cérebro “encontram-se indissociavelmente integrados por circuitos bioquí-
micos e neurais reciprocamente dirigidos de um para o outro” (Damásio, 1995: 103).

A cognição que é guiada pela sensação, perceção e movimento, é percebida numa


perspetiva enativa ou actuacionista16, que tem um sentido abrangente de “cons-
trução de uma história de acoplamento estrutural que produz um mundo” (Varela,
Thompson, Rosch; 2001:269). Constitui-se como organização do conhecimento que
não se faz no solispsimo (em gestos entretidos ou de alienação), nem na representa-
ção, mas por aquilo a que Varela denomina de enação17 que é uma organização do
conhecimento feita através da ação corporalizada do organismo (corpo-mente) no
mundo, onde corpo e cérebro interagem.

A noção de enação ou atuação defende que ação é guiada perceptualmente, sendo


que as estruturas cognitivas emergem de padrões sensoriomotores recorrentes. O
que determina que a ação — guiada pelas capacidades sensoriomotoras individuais
e inserida no contexto biológico, psicológico e cultural, produz um conhecimento
incorporado e que a atuação é uma forma de cognição. Conhecimento que é produ-
zido não a partir do dado, mas no próprio dado em que o organismo (cérebro-corpo)
e o ambiente estão implicados, codeterminados ou mutuamente especificados, na
variação contínua e aberta do acoplamento estrutural entre as duas variáveis.

Considerações finais
É nos limite destas questões que se formula o processo em que se estruturam as prá-
ticas analisadas. Associado a uma ideia de entretecimento, defende-se este processo
criativo como organizador de uma prática que se desenvolve a partir de estímulos tá-
teis e cinestésicos, associados ao domínio háptico, e que produz um espaço/tempo de
relações entre o sujeito consigo mesmo e com o mundo. Relações que se desdobram
entre o atual e o histórico e que se co-determinam. Entendimento que aproxima aque-
le processo criativo ao processo de enação (en acción) que explica a organização do
vivo a partir da condição atual e atuante do organismo com o mundo, construindo-se
mutuamente — não se distinguindo o sujeito-objeto, o mundo das coisas e o mundo

ser um processo recursivo, não significa que na autopoiesis exista uma total ausência de interação
como o ambiente (envolvência), mas que ela é medida pela autonomia do sistema, ou seja, pela
auto-referência, ou organização autopoiética.
16 Enactive View (Varela, Thompson, Rosch, 2001[1991]).
17 Em inglês, enaction ou a partir da expressão espanhola en acción.

1105
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

da mente. Independentemente do campo disciplinar (Fotografia, Desenho, Escultura


ou Vídeo, entre outros), o processo em que se articulam aquelas práticas, produz, nes-
sa condição, uma experiência vivida e um conhecimento incorporado. Sendo que as
obras, que decorrem deste processo, são os seus resíduos materiais/visuais. Pensar o
entretecimento como método e manifestarão artística, é percebe-lo como forma de
construção de conhecimento de si e do mundo. Weaving in the Expanded Field, título
deste artigo, e que traduz as múltiplas formas mediais em que se desenvolvem as prá-
ticas artísticas aqui analisadas, reivindica o entretecimento como base para construir
um instrumento de conhecimento artístico como fator de desenvolvimento social ba-
seado no reconhecimento mútuo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABREU, Conceição (2012). Viagens. Da Fotografia como possibilidade de Lugar.
Mestrado em Arte Multimédia, Especialização em Fotografia. Dissertação
orientada pela Professora Doutora Fernanda Maio. Universidade de Lisboa:
Faculdade de Belas-artes.

ALMEIDA, Paulo Luís Ferreira de (2008). La Dimensión Performativa de la Práctica Pic-


tórica. Análisis de los mecanismos de transferencia-de-uso entre distintos campos
performativos. Tesis Doctoral. Director da Tese: Doctor D. Julián Irujo. País Basco: Uni-
versidad del País Vasco, Facultad de Bellas Artes.

BERGSON, Henri (2016[1977]. Bergson: Memoria y Vida. Textos escolhidos por Gilles
Deleuze. Tradução de Mauro Armiño. Madrid: Alianza Editorial, S.A.

CERTEAU, Michel de (1990 [1980]). A Invenção do Cotidiano-Artes de Fazer.


Tradução de Ferreira Alves. Petrópolis: Editora Vozes.
https://gambiarre.files.wordpress.com/2010/09/michel-de-certeau-ainvenc3a-
7c3a2o-do-cotidiano.pdf
Consultado em 9 de Maio de 2018

DAMÁSIO, António (1995[1994]). O Erro de Descartes. Emoção, razão e cérebro hu-


mano. Tradução de Dora Vicente e Georgina Segurado. Mem Martins:
Publicações Europa-América, LDA.

DAMÁSIO, António (2018[2017]). A Estranha Ordem das Coisas. A Vida, os Sentimen-


tos e as Culturas Humanas. Lisboa: Temas e Debates – Círculo de Leitores.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (2000[1980]). Mil Platôs, Capitalismo e


Esquizofrenia, Vol.1. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa.
Coordenação da tradução Ana Lúcia de Oliveira. S. Paulo: Editora 34. (pp. 10-36).

1106
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

DELEUZE, GUATTARI (1997 a [1980]). Mil Platôs, Capitalismo e Esquizofrenia, Vol.4.


Coordenação da tradução Ana Lúcia de Oliveira. S. Paulo: Editora 34. (pp.100-149).

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (1997[1980]). Mil Platôs, Capitalismo e Esquizofrenia,


Vol.5. Tradução Eeter Pál Pelbart e Janice Caiafa. S. Paulo: Editora 34. (pp. 157-189).

DELEUZE, Gilles (2011[1981]). Francis Bacon – Lógica da Sensação. Tradução de José


Miranda Justo. Lisboa: Orfeu Negro.

DELEUZE, Gilles (1997[1993]). Crítica e Clínica. Tradução Peter Pál Pelbart.


São Paulo: Editora 34. Ponto 9. O que as crianças dizem (Pp. 73 – 79).

DETIENNE, Marcel; VERNANT, Jean-Pierre (1974). Les ruses de l´intelligence.


La métis des Grecs. Paris : Flammarion. (P. 317 in-8º, index (Nouvelle
Bibliothèque Scientifique).

DUMITH, Denise de Carvalho (2012). O mito de Penélope e sua retomada na


literatura brasileira: Clarice Lispector e Nélida Piñon. Capítulo I, ponto 2. Penélope:
Desdobramento Mimético da Personagem Épica. Universidade Federal do Rio Gran-
de do Sul Instituto de Letras - Programa de Pós-Graduação em Letras - Área: Estudos
de Literatura. Especialidade: Literaturas Brasileira, Portuguesa e Luso-Africana – Li-
nha de Pesquisa: Literatura, Imaginário e História. (Pp.27-57).
http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/2/browse?value=Dumith%2C+Denise+d
e+Carvalho&type=author
Consultado em 8 de Maio de 2018

Grande Dicionário da Língua Portuguesa. Coordenação de José Pedro Machado


(1981). Lisboa: Amigos do livro, EDITORES, LDA.

GRENIER, Catherine; PENONE, Giuseppe; RIMMAUDO, Annalisa (2004), CATÁLOGO,


Giuseppe Penone. Barcelona: Fundación “la Caixa”.

MATURANA, Humberto (1991). “The origin of the theory of autopoietic systems”,


in Fischer, H. R. (ed.), Autopoiesis. Eine Theorie im Brennpunkt der Kritik. Frankfurt:
Suhrkamp Verlag.

MATURANA, Humberto; MPODOZIS MARÍN, Jorge (1992). Origen de Las Especies


por medio de la Deriva Natural o La diversificación de los linajes através de la con-
servación y cambio de los fenotipos ontogénicos. Departamento de Biología, Fa-
cultad de Ciencias. Universidad de Chile. Publicação ocasional nº46/1992. Museu
Nacional de História Natural. http://www.mnhn.cl/613/articles-5281_archivo_01.pdf
Consultado em 4 de Setembro de 2018

1107
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco (2004[1994]. De Máquinas y Seres


Vivos. Autopoiesis: La organización de lo vivo. Buenos Aires: Editorial
Universitaria com a Editorial Lumen.

MERLEAU-PONTY, Maurice (1994[1945]). Fenomenología de la Percepción. Tradução


de Jem Cabanes, tradução cedida por Ediciones Península. Barcelona: Editorial Pla-
neta – De Agostini, S.A.MERLEAU-PONTY, Maurice (1999[1945]). Fenomenologia da
Percepção. Tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes

MERLEAU-PONTY, Maurice (2003[1964]). O Visível e o Invisível. Tradução de José Ar-


tur Gianotti e Armando Mora d´Oliveira, Revisão: Pérola de Carvalho, Luiz Henrique
Lopes dos Santos e Ricardo Terra. São Paulo: EDITORA PERSPECTIVA S.A..

MERLEAU-PONTY, Maurice (2013[1964]). El Ojo y el Espíritu. Prefácio de Claude Le-


fort. Tradução de Alejandro del Río Hermann. Madrid: Editorial Trotta, S.A..

PALLASMAA, Juhani (2012[2009]. La Mano que Piensa. Sabiduría Existencial y Corporal


en la Arquitectura. Tradução de Moisés Puentes. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, SL.

PALLASMAA, Juhani (2012[2005]. Los ojos de la piel: la arquitectura y los sentidos. Pró-
logo de Steven Holl. Tradução de Moisés Puentes. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, SL.

PROVIDÊNCIA, Francisco (2012). Genitálias: desenhos de Conceição Abreu. Conferên-


cia: Desenho na Universidade Hoje. Encontro Internacional sobre Desenho, imagem e
investigação. Porto: Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto.

SCHECHNER, Richard (1985). Between Theater and Anthropology. “Restorationof


Behavior”. Philadelphia: University of Pennsylvania Press. Capítulo 2.

SCHECHNER, Richard (2003[1985]). “O que é Performance?” In, O Percevejo, revista


de teatro, crítica e estética. Ano II. Nº 12. Tradução de Dandara. Rio de Janeiro: Depar-
tamento de Teoria do Teatro. Programa de Pós-Graduação em Teatro Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro. UNIRIO.

SCHMIDT, Joel (2012 [1985]). Dicionário da mitologia grega e romana. Tradução de


João Domingos, revisão de Marcelino Amaral. Lisboa: EDIÇÕES 70, Lda., p.194.

1108
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Daniel de Oliveira Guttmann Bicho1 and Julie


de Araújo Pires2
Jornadas não mapeadas: errância e experiência em
um design de fronteira
Unmapped journeys: errancy and experience in a border design

Resumo
Análise do processo da prática artística de Conceição Abreu, em aferição com
outras práticas artísticas contemporâneas, observadas sob o propósito da ação
de tecer. Processo que, como em Penélope, emerge da prática da repetição de
gestos, engendrando ritmos com valor de ritornelo gerador de (des)territoriali-
zações. Prática que se desenvolve a partir de estímulos táteis e cinestésicos, as-
sociados ao domínio háptico, e que, independentemente do campo disciplinar
(Fotografia, Pintura, Desenho, Escultura ou Vídeo), produz uma experiência de
tempo e entretecimentos do sujeito consigo mesmo e com o mundo. Inscreve-
-se esse processo na enação (en acción), conceito que, nas ciências cognitivas,
explica a organização do vivo a partir das ações do sujeito com o mundo, cons-
truindo-se mutuamente. Classificam-se assim as obras que decorrem deste pro-
cesso como tecituras, constituindo subjetividades e espaços relacionais: resídu-
os materiais/visuais de uma experiência vivida e de conhecimento incorporado.
Palavras-chave: Entretecimento, Ritornelo, Enação, Subjetividades, Espaços
Relacionais.

Abstract
Analysis of the process of the artistic practice of Conceição Abreu with others con-
temporary artistic practices, observed under the purpose of weaving action. Process
that, as in Penelope, emerges from the practice of gesture repetition, which acquires
a rhythm with ritornelo value, generator of (des)territorializations. Practice that de-
velops through tactile and kinesthetic stimuli, in a haptic domain, and, regardless
of the disciplinary domain (Photography, Painting, Drawing, Sculpture or Video),

1 Mestre em Design pela Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro e fundador do estudio Risotrip
printshop co.
2 Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde leciona na Pós-Graduação em Design
Visual e na graduação em Comunicação Visual Design. Tem Doutorado na área de Artes Visuais, atu-
ando principalmente nos seguintes temas: design editorial, arte contemporânea. É lider do grupo
Imagem(i)materia.

1109
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

produces an experience of time and interweaving of the subject with himself and
the world. A process related to the notion of enaction (en acción), concept that ex-
plains, in the cognitive sciences, the organization of the living from the actions of the
subject with the world, building on each other mutually. The works from this process
are classified as tecituras. Constituting subjectivities and relational spaces, they are
material / visual residues of a lived experience and embodied knowledge.
Keywords: Interweaving, Ritornelo, Enaction, Subjectivities, Relational Spaces.

O percorrer como processo criativo e de experienciação


A viagem, antes de ser formatada em apenas mais um bem de consumo, era uma
das formas fundamentais como nos relacionávamos com o mundo. Narradores, bar-
dos, andarilhos e peregrinos retiravam da errância e do ato de percorrer o coração
pulsante das suas criações, mais do que isso, se tornavam quem eram a partir desse
esforço de se distanciar das suas familiaridades e adentrar o indefinido. O percurso,
como forma de apreender a si mesmo e ao espaço, é um movimento constante de
soltar amarras para criar novos laços, é portar um conhecimento e uma percepção
sempre abertos a um não saber, ao desenvolvimento de certa inocência que nos
permite um olhar atento, a uma vastidão de possibilidades.

Para o ser humano, enquanto nômade, a errância é parte não opcional da existência.
Estar em constante movimento não é, a principio, uma escolha ou um estado tem-
porário, como seria para o migrante que vai de um ponto a outro. Para o nômade,
que entendo aqui englobar tanto caçadores e coletores do paleolítico quanto tribos
pastoras não assentadas, o movimento não segue um percurso retilíneo, com inicio e
fim definidos com maior importância, para o nômade tudo é meio. “A vida do nômade
é intermezzo. Até os elementos de seu hábitat estão concebidos em função do trajeto
que não para de mobilizá-los” (DELEUZE, 1997: 42) O nômade habita nesse movimento
do entre, ele se relaciona com o mundo através desse movimento, faz possível sua
existência através desse eterno percorrer, descobrir, interferir nos espaços.

Tal forma de se relacionar com o mundo carrega em si certas propriedades que lhe
são inerentes. Não faz sentido para o nômade, por exemplo, construir seu saber a
partir de um quadro formal, um acúmulo ordenado de saberes sobre as coisas. Como
afirma Francesco Careri “Na ausência de pontos de referência estáveis, o nômade
desenvolveu a capacidade de construir o seu próprio mapa em cada instante, a sua
geografia está em contínua mutação, deforma-se no tempo com base no deslocar-
-se do observador e no perpétuo transformar-se do território.” (CARERI, 2013: 42)

O nômade é o homem da experiência por excelência, não apoia seu saber apenas
em impressões do passado. Toda a sua vida interior, pensamentos, imaginações é
entremeada pela exterior, pelo momento; o saber do nômade é flexível e imperma-

1110
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

nente, se dá a partir do movimento, de aceitar o percorrer e as mudanças como uma


constante e habitá-las tanto quanto habitamos o espaço. Por isso, a relação do nô-
made com o espaço não é atrelada aos conceitos do real, ou às verdades dogmáticas
de intenção universalizante, o saber do nômade não se enrijece nem se torna pedra
fundamental, é o saber fluido dos sonhos, do devaneio e do possível, pois o nômade
não parte do pressuposto de que entende por um conjunto de relações imutáveis
como funciona o caos em que se encontra inserido, apenas lida com ele, participa
dele ativamente.

Diferente do homem sedentário, que pressupõe um domínio sobre o espaço, o nô-


made aceita a possibilidade do espaço ser maior que ele, essa mutação e possibili-
dade constante na qual o nômade existe, demanda também dele criação contínua.
Mas o ato de criação nômade é baseado no que este experiencía; cria e recria baseado
em relações alheias às metodologias, “Um ‘método’ (...) traça um caminho que deve ser
seguido de um ponto a outro. Mas a forma de exterioridade situa o pensamento num es-
paço liso que ele deve ocupar sem poder medi-lo, e para o qual não há método possível,
reprodução concebível”. (DELEUZE, 1997: 38)

Alheia aos ordenamentos e reduções, conduzida sempre pela criação e pelo possível,
é essa forma nômade de conhecer e perceber, que parece estar atrofiando em nosso
meio, nos Estados modernos, há muito tempo sedentários, onde o encontro com o
imprevisto parece cada vez mais raro e cujas relações com o espaço, diferentes das nô-
mades, se dão a partir de um conjunto de códigos, regras e pressupostos deliberados.

No capítulo do Livro Mil Platôs intitulado “Tratado de Nomadologia: a máquina de


guerra” Deleuze nos apresenta dois paradigmas, o da dinâmica nômade, criadora da
“máquina de guerra” e da ação centralizada e centralizadora de uma forma Estado.
Tais conceitos não são de modo algum uma representação histórica de determina-
dos povos: o nômade de Deleuze não se refere diretamente as tribos caçadoras e
coletoras, também o Estado é um paradigma que pode existir em qualquer tempo e
lugar, não está necessariamente preso a uma ideia de nação. Deleuze usa o nômade
para nomear um paradigma do que está sempre se transformando, e o Estado para
definir o que segue uma hierarquia e tende a se definir e enrijecer.

O que mais nos interessa em tais paradigmas é quando Deleuze (1980) destaca a
relação destes na própria função do pensar e nos mostra como existe em cada um
de nós a concorrente tendência de se encerrar no que já se sabe, no que é sólido,
e a imensa vontade de partir para o desconhecido, de perder o chão. A consciência
afiliada do “Estado” parte de um regulamento bem definido e anseia por uma função
bem definida, funcionando em proveito do estado, de quem obtém suporte. Tem
a tendência de categorizar a experiência para que esta possa se encaixar em certos
moldes; formata, replica e distribui o que se vivencia, ganhando ares de verdade, são
porém verdades estáticas e não extáticas.

1111
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A ciência nômade em contraponto, não pressupõe função ou conhecimento pré-


vios, é a ciência do devir, da criação que lida com o caos e se expõe a ele, é perpétua
somente em seu estado de impermanência. A “máquina de guerra” nômade, na ati-
vidade do pensar está sempre reformulando o saber que o estado entende como
dominado; a ‘ciência nômade’ de Deleuze encontra aí paralelos com a idéia de uma
imagnação primeira de Gaton Bachelard, uma imaginação que não se apoia nos sa-
beres construídos pela cultura, por um passado enrijecido no nosso pensamento.
“enquanto o aparelho de Estado limita o elemento-problema para subordiná-lo a
um teorema com suas proposições demonstráveis, a máquina de guerra é o para-
digma da experimentação. “ (ONETO, 2008: 154) A “máquina de guerra nômade” é
apenas a exterioridade que nos permite experimentar o que nos cerca com o olhar
da criança que não se apoia apenas no que sabe, que ainda se permite descobertas,
que se coloca aberta ao desconhecido.

Tanto o paradigma nômade quanto o sedentário, a “máquina de guerra” e o “aparelho


de Estado”, o movimento e a cristalização, estão em constante concorrência nas nossas
relações com o mundo. Pensando a partir do que escreve Deleuze podemos entender
melhor como o que chamamos aqui de consciência nômade concorre com o que no-
mearemos uma consciência sedentária, uma forma de perceber e tomar conhecimento
atrelada a modelos homogêneos, às ordenações e hierarquias, à repetição de fórmulas
e à imobilidade. É preciso que na nossa forma de interagir com o mundo, e principal-
mente de criar a partir dele, não nos encerremos em apenas um destes paradigmas, mas
deixemos o movimento seguir sempre entre a posse da descoberta e o ato de se perder.

Ao longo do tempo, o deslocamento continuou se fazendo presente nas socieda-


des, mesmo sedentárias. Como razões arcaicas para a viagem, o pesquisador Hakim
Bey (2014) identifica três fundamentais: a “guerra”, o “comércio” e a “peregrinação”.
Enquanto nas duas primeiras se mostra claro um interesse utilitário, alinhado a um
“aparelho de Estado”, na última é posto que o “peregrino” busca vivenciar na viagem
uma mudança de consciência, alheia a qualquer interesse que lhe seja ditado. De
certa forma, esse tipo muito específico de deslocamento é uma busca do homem
sedentário pela experiência de uma mudança de percepção, por se reconectar a sua
consciência nômade, menos presa, mais aberta ao que vai além do previsto.

Ao contrário do que poderíamos pensar, a peregrinação transcende uma função


religiosa mesmo quando ainda associada a religião, a peregrinação sempre foi um
movimento às margens do Estado e da própria crença que orbita. É no perambular
sem rumo, no vivenciar o mundo, que o peregrino busca iluminação invés de em
textos ou escrituras. É no ato de percorrer que o peregrino entra em contato com
uma existência de maravilhas. Podemos observar tais princípios nos sufis, ordem
mística do islã, formada por andarilhos, poetas e criadores, que perambulavam de
forma nômade pelo mundo islâmico, antes de terem seu número muito reduzido
pelo próprio Islamismo, que condenou suas práticas.

1112
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Sobre os sufis, Bey relata que: “o Islã eleva a viagem sobre todo o utilitarismo ‘mun-
dano’ e dá a ela uma dimensão epistemológica ou até mesmo gnóstica. ‘A jóia que
nunca deixa a mina nunca é polida’, diz o sufi Saadi” (BEY, 2014). A essência das pere-
grinações sufis, reside não somente no ato físico de percorrer o espaço, mas no prin-
cipio do percorrer como forma de desencadear um movimento que é tanto interno
quanto externo. O percorrer das ordens sufis é atrelado a experiência de um certo
estado de consciência aberto as possibilidades, as maravilhas e aos sinais.

“Uma percepção da vida que rejeita o ”meramente”aleatório em favor de uma realidade


(...) de coincidências cheias de significado e ‘descobertas’ (...) o sufi cultiva o que pode ser
chamado de olhar teofânico: a abertura do ‘Olho do Coração’ às experiências de certos
lugares, objetos, pessoas, eventos, como locações da ‘passagem do brilho’ da Luz divina.
O dervixe viaja, por assim dizer, tanto no mundo material como no ‘Mundo da Imagina-
ção’, simultaneamente. Mas para o olho do coração esses mundos se interpenetram em
alguns pontos. Pode-se dizer que eles se revelam ou ‘desvelam’ mutuamente. No fim, eles
são ‘um’ “ (BEY, 2014)

Poderíamos assumir então que o sufi usa a viagem como meio para acessar essas
formas de consciência e percepção mais atentas ao que lhe cerca, alheias a cata-
logações de interno, externo, possível, sagrado, mundano, objetivo ou subjetivo. A
viagem como Zen para se conectar com a nossa compreensão nômade.

O estado de consciência atrelado ao ato de conhecer do nômade nos desenraiza dos


hábitos e das verdades meramente factuais, nos permite uma superação do estado
de desatenção em que nos encontramos ao nos relacionarmos com o que nos cerca
envoltos em uma redoma opaca de informações e opiniões. O viajante enxerga o seu
entorno como o espaço liso do nômade, aonde tudo é passível de infinitas possibili-
dades. Para este, um cinábrio vermelho (DELEUZE, 1992: 259), antes de ser cinábrio
vermelho, é quimera, templo, refúgio, confidente, sem mesmo assim deixar de ser
cinábrio vermelho. Para o viajante, as utilidades e funcionalidades muito bem estru-
turadas no âmbito social, sedentário, se tornam menos definidas. Um caderno de es-
boços pode tomar o lugar de casa; montanhas, ruínas, estradas, se personificam em
seres sencientes, companhias que dividem silenciosas os mistérios que permeiam
os caminhos. “As condições reais já não são determinantes. A função do irreal vem
arrebatar ou inquietar”. (BACHELARD,1988:18)

É também essa forma de perepção que reside na fenomenologia e no estudo da po-


ética de Gaston Bachelard (1988). Para este, a alma da criação, o cerne da “imagem
poética”, não é resultado dos saberes ou da cultura adquirida pelo individuo que
imagina, ela existe no próprio momento da criação, possui um ser e um dinamismo
próprios. Para essa criação “é preciso que o saber seja acompanhado por um igual
esquecimento do saber. O não saber não é uma ignorância, mas um ato difícil de
superação do conhecimento” ( LAPICQUE apud BACHELARD, 1989: 78)

1113
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

É esse ato difícil de superação, que parece encontrar espaço na viagem, ao passo
que esta nos convida a superar valores consolidados e permite a experiência de uma
espécie de atenção desatenta, que não é focada, preocupada ou reguladora, mas
atenta para o que existe além da nossa coleção de saberes, para a experiência e o
devir. Os encontros do andarilho, por mais efêmeros que sejam ganham em profun-
didade, transcendem o factual e o mensurável. O nômade (o peregrino, o andarilho)
cria, apartado de erudições ou objetivos. Cria, por que essa é a sua forma de se re-
lacionar com o que o cerca e com o que entende por seu, e faz surgir dessa relação
algo maior que ambos.

“Atualmente a utilidade está compreendida num sistema (...)muito material, muito niti-
damente fechado. O homem, ai de nós!, não é lá tão racional! Ele tem tanta dificuldade
em descobrir o útil como o verdadeiro. (...) Nenhuma utilidade pode legitimar o risco
imenso de partir sobre as ondas. Para enfrentar a navegação, é preciso que haja inte-
resses poderosos. Ora os verdadeiros interesses poderosos são os interesses quiméricos.
São os interesses que sonhamos, e não os que calculamos. São os interesses fabulosos.”
(BACHELARD, 1989: 76)

Ao longo da história da arte, principalmente após as vanguardas europeias, a errân-


cia também se faz uma forma poderosa de repensar as relações com o mundo, des-
de questionar os rumos do fazer artístico, até mudar fundamentalmente a relação
entre homem, sociedade e espaço.

É no surrealismo que a errância encontra seu potencial mais agudo como forma
de transformar a percepção. Em um contexto de degradação do pós-guerra, os
surrealistas põem em cheque as separações entre racionalidade e subjetividade,
interno e externo, imaginação e realidade e buscam devolver à vida o fascínio do
maravilhoso, tirando o homem de um estado de alienação racionalista e permitin-
do que este se relacione com o entorno através da percepção do acaso e do en-
cantamento. As primeiras deambulações surrealistas se dão as margens da cidade,
entre bosques e campos, pareceria que “junto com a intenção de superar o real no
onírico há a vontade de um retorno a espaços vastos e desabitados, aos confins do
espaço real.” (CARERI, 2013: 80) Através desses espaços considerados vazios pela
lógica vigente, os surrealistas buscavam “fugir da prisão da identidade da razão,
do cotidiano.”(GAGNEBIN, 1997: 155) Eles logo perceberam que era preciso uma
mudança no estado de consciência e na percepção, para que fosse possível supe-
rar as convenções limitadoras de uma sociedade dominante, e viram no espaço
um aliado importante.

Era preciso que o espaço permitisse ao caminhante se perder, para que esse pu-
desse entrar em um certo estado de apreensão, como diz Careri “estado de apre-
ensão, nos dois significados, de sentir medo e de apreender(...)A deambulação é

1114
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

um chegar caminhando a um estado de hipnose, a uma desorientadora perda do


controle. “(2013). Foi a busca por esse estado que guiou boa parte da primeira fase
do Surrealismo, estado que Benjamin chamaria de “iluminação profana” (BENJAMIN,
1987:32), a capacidade de transcender uma percepção do mundo passiva, pautada
apenas por um olhar histórico. Para Benjamin essa capacidade de perceber e criar de
forma desenraizada aos costumes e convenções impostas pela sociedade, tem em
sua poética um potencial revolucionário inédito nas vanguardas Europeias.

Na obra de Louis Aragon, “O camponês de Paris” o surrealismo retorna a errância


para a cidade, uma cidade porém vista por um olhar estrangeiro capaz ainda de se
maravilhar no cotidiano. Aragon, através do seu protagonista nos revela uma per-
cepção nômade mesmo naquilo que é banal da cidade, mas que se encontra sempre
em risco de ser engessada.

“Terei ainda por muito tempo o sentimento do maravilhoso cotidiano? Eu o vejo a se per-
der em cada homem que avança em sua própria vida, como por um caminho mais e me-
lhor pavimentado, que avança nos hábitos do mundo com uma comodidade crescente,
que se desfaz progressivamente do gosto e da percepção do insólito.” (ARAGON, 1996: 41)

O camponês de Aragon vislumbra que atrelado aos hábitos e as comodidades reside


o fim da capacidade de se maravilhar; é preciso se perder, errar, estar em movimento
para que ainda seja possível experienciar o mundo através de uma ótica surrealista,
recuperar o maravilhamento.

Atualmente o ato de caminhar, em si, é a obra de muitos artistas. É esse o caso dos
trabalhos de Hamish Fulton e Richard Long, embora a materialidade que surge da
experiência de ambos seja distinta, assim como especificidades de seus fazeres, tan-
to Long quanto Fulton definem a experiência de caminhar propriamente dita como
o cerne de suas obras.

“Uma caminhada é como um objeto invisível em um mundo complexo (...) A vida é uma
cadeia de lutas contínuas desde a juventude até à velhice. Neste cenário de preocupação
e medo podemos construir uma experiência – realizar uma caminhada – que ocupa um
espaço das nossas vidas e, como um objeto, tem princípio e fim, mas que, ao contrário
de um objeto, não se pode ver.” (FULTON, 2008)

Para que possamos criar para além da razão, do óbvio, da ordem vigente, para além
da passividade, enfim, é preciso um certo estado de consciência, de percepção e
de apreensão. Tal estado não se dá de forma involuntária, é preciso vontade e mo-
vimento para que possamos superar o automatismo. Dentre as muitas formas pas-
siveis de fomentar tal revolução, errar, percorrer e se perder mostram um potencial
distante ainda de ter sido completamente explorado.

1115
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Espelhamentos nômades no design


O design de forma geral permeia hoje quase todos os aspectos da nossa vida em
sociedade, com limites cada vez menos discerníveis, ele existe entre a liberdade
de sua interdisciplinaridade, da sua aceitação como uma forma poderosa de lidar
com o mundo e o risco ainda presente de ser completamente engolido por uma
indústria de consumo.

A cena do design gráfico, segundo Annette Gilbert (2016) fez recentemente um


clamor assertivo pela ambição artística da sua prática e do que produz, abrindo no-
vas dimensões para o que se entende como a área de atuação do designer gráfico.
Quando deixa de ser um suporte considerado secundário para um discurso e se tor-
na o discurso em si, o design aponta uma série de novos questionamentos e novas
possibilidades para o seu fazer.

A busca por neutralidade e objetividade que definiram o design como profissão no


inicio do século 20 (ARMSTRONG,2015) competem hoje com a aceitação da comple-
xidade de existirem infinitas variáveis na comunicação humana. Mesmo que ainda
seja uma das preocupações do design a busca por uma forma funcional, concisa,
ordenada e racional, esta coexiste com a aceitação de que subjetividade e emoção
também fazem parte de uma profissão cada vez mais voltada e atenta para o lado
humano da nossa interação.

Esse novo e amplo espectro do design gráfico nos possibilita pensar também numa
nova prática capaz de se conciliar com o errar, de considerar a experiência e o ato
de se perder mais como um valor que como parte a ser eliminada do processo. En-
quanto um design mais normativo pode se apoiar em funções de padrões testado e
estabelecidos para nortear a criação, em busca de controlar e prever as suas relações
com seus interlocutores, ele tende a desconsiderar ou eliminar boa parte do que
cria caso não seja concordante com tais chancelas, nominando estas discordâncias
como erros. Nesse aspecto, o designer gráfico se relaciona com sua práxis da mesma
forma que o homem se relaciona com o espaço dominado, subordinando a potência
do que cria a arbítrios e teoremas padronizantes , negando dessa forma boa parte
do que é oriundo da experiência e da experimentação em detrimento de uma con-
formidade com modelos já preestabelecidos, sejam pelo próprio circulo profissional,
sejam por demandas mercadológicas.

Mas, do mesmo modo que o nômade e o peregrino encontram outra forma de re-
lação e apreensão do espaço, podemos buscar também, enquanto criadores, uma
postura diferente em relação aos nossos processos, um design mais afinado com
a imaginação de uma fenomenologia poética como a de Gaston Bachelard (1988) .
Quando este diz que a imaginação é um “fator de imprudência que nos destaca de
pesadas estabilidades”, que os interesses que nos movem são “os que sonhamos e
não os que calculamos” (BACHELARD,1988:76), que a criação requer uma superação

1116
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

de um saber prévio; ele desloca a criação em seu cerne de uma mera representação,
ou do serviço racionalista à informação, e propõe que a criação possua força em si
mesma, em seu potencial de ser algo novo, único.

Pensar um design de fronteira é pensar em um modo de comunicação e troca atra-


vés da criação de imagens que pode e deve permear a literatura, a arte, a poesia e
toda a forma de expressão que nós criamos para nos relacionarmos com o mundo,
para intercambiarmos o nosso mundo com o mundo do outro. Um design de fron-
teira lida não apenas com o desejo de possuir, mas também com o de entender e
interpretar o seu entorno, o seu universo; aceita que antes de dar respostas, a comu-
nicação visual é espaço para criar perguntas, imaginar e sonhar.

É também pensar um processo que não apoia todo o seu fazer apenas no que já foi tes-
tado e convencionado, mas que vê na experiência e sensibilidade de um não saber ca-
minhos igualmente válidos para tratar a criação e a imaginação, como aponta Bache-
lard “O espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente entregue
à mensuração e à reflexão do geômetra. É um espaço vivido” (BACHELARD, 1989: 19).
Apesar dos percalços, é possível hoje encontrar terreno profícuo para a criação desse
design gráfico aflorante, que busca ser ponte entre espaços, emoções e pessoas, que
aceita a experiência e a intuição como fundamentais para seu desenvolvimento.

A própria ideia de intuição no design que se relaciona, para muitos, ao designer nor-
te americano David Carson, expoente do pós modernismo no design gráfico ame-
ricano, já existia como preceito fundamental na formação dos alunos nos primeiros
anos da Bauhaus.

Johanes Itten, que ministrou o Vorkurs de 1919 a 1923, propunha em suas classes
uma série de experimentações com diferentes texturas e materiais, a fim de propor-
cionar aos alunos experiências sensoriais capazes de desenvolver um entendimento
tanto do seu universo interior como das práticas gerais da criação. Ao lidar com a
própria intuição e subjetividade de novas maneiras , os estudantes eram levados a
interpretar a realidade mais do que apenas representá-la e, ainda, usarem sua per-
cepção como forma de se relacionar com o que os cercava. Segundo Gropius, funda-
dor da Bauhaus, o objetivo do curso era

“Amadurecer a inteligência, o sentimento e a fantasia, e visava desenvolver o ‘homem


inteiro’ que, a partir de seu centro biológico, pudesse encarar todas as coisas da vida com
segurança instintiva e que estivesse à altura do ímpeto e do caos de nossa ‘Era Técnica’”
(GROPIUS, 1975: 38)

Para Itten o saber formal da teoria e o saber intuitivo da experiência poderiam ser
ambos partes da relação do homem com o mundo. A experimentação e o ‘não-saber’
eram tão importantes quanto as doutrinas. Ele revela esse pensamento, por exemplo,
ao falar aos alunos sobre o uso das cores.

1117
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

“Se você, sem saber, é capaz de criar obras de arte em cores, então o não-conhecimento
é o seu caminho. (...) Doutrinas e teorias são melhores para os momentos mais fracos.
Em momentos de força, os problemas são resolvidos de forma intuitiva, por si mesmos.”
(ITTEN, 1970:11)

O saber intuitivo e o saber da experiência podem ser estimulados, mas são parte de
uma jornada pessoal e individual de cada um, seus resultados não podem ser ante-
vistos e não podem ser generalizados. Além disso, esses saberes fazem parte de um
processo que aceita o ato de errar, de se perder e por consequência o ato da desco-
berta, atrelados a uma vivência do sujeito e não a conceitos gerais. É o que Lorraine
Wild (1998) resgata da prática do artesão em seu texto ‘o macramê da resistência’. O
artesão, além do conhecimento teórico sobre o que faz, tem um conhecimento táci-
to advindo da experiência do seu fazer, conhecimento que adquire das descobertas
que surgem da sua prática, ou como diría Larosa “é sobretudo dar sentido ao que
somos e ao que nos acontece.”(2001) O artesão não tem a preocupação de esconder
suas marcas, não busca desassociar do seu trabalho aquilo que é de uma jornada
individual daquilo que é um saber coletivo, pelo contrário, entende que reside aí a
força do seu trabalho, da continua superação de um saber geral e desenvolvimento
de novas descobertas feitas através dos percalços da sua experiência individual.

Não desejamos com essa reflexão, defender um retorno saudosista a práticas do


passado, mas tentar entender o que da percepção de mundo e da práxis do artesão
pode refletir em um design contemporâneo. Pensar o designer também como arte-
são, é aceitar que a experiência que surge da vivência, do ato de se pôr a prova, de
se perder, engrandece o projeto mais que o invalida. É pensar que, se o designer cria
sobre vários assuntos e aspectos do mundo, é importante que aceite se perder e ex-
perienciar o máximo possível cada um deles, para que, como o artesão de Benjamin
(1994), mergulhe essas coisas em sua vida para em seguida retirá-las dela.

Talvez, a ideia de design intuitivo, proposta por Carson, tenha encontrado dificulda-
de para prosperar, e seu trabalho tenha acabado por servir mais como uma referên-
cia de estilo a ser copiada, por não levar em conta que a intuição é mais sobre ex-
perienciar que somente experimentar. A intuição que guia a experimentação surge
da experiência e da vivência desatreladas da informação e da opinião, ela encontra
“oportunidades nas brechas do que se conhece, mais do que com tentar organizar
tudo em função de uma teoria unificadora”(Wild, 1998:106)

O designer hoje tem um longo caminho para além das metodologias, um caminho
de experiências tanto no seu fazer e na sua prática, quanto na relação com o mundo
que o circunda, com o espaço e os outros. Para este designer, que se redescobre em
sua criação, é preciso repensar o seu fazer para além dos pontos de referências ma-
peados e se permitir ficar a deriva.

1118
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A experiência, de prefixo comum com exílio, exterior, estranho e estrangeiro, é aqui-


lo que, alheio a expectativas e cálculos, nos acontece e nos toca; a experiência nos
transforma, e transforma para nós o mundo. O saber da experiência é o de conhecer
as coisas, não o de acumular conhecimentos em torno das coisas. É o saber relacio-
nado a vivência, a descoberta, ele surge de um percurso, de um caminho que con-
verte o sujeito inocente em sujeito sábio. Para que exista a experiência é preciso, de
certo modo, que exista também uma certa inocência.

Na nossa sociedade moderna, ocidental e urbana, porém, a informação tem tomado


cada vez mais o território da experiência como base do nosso conhecimento. Quan-
do definimos o saber como um mecanismo de adquirir e processar informações, re-
legamos a experiência como parte fundamental de como criamos.

O discurso de que vivemos hoje em uma sociedade da informação, afirma o prota-


gonismo dessa forma de comunicação a nossa volta; ao mesmo tempo que deixa
claro a informação como o padrão de comunicação imperativo mediador das nossas
relações em sociedade, também parece carregar a ideia de que sociedade da infor-
mação é sinônimo de uma sociedade do conhecimento, informação passa a assumir
então o mesmo sentido de conhecimento. O homem informado porém carece de
experiências, pois conhece sobre todas as coisas sem que precise conhecer coisa
alguma. como define Jorge Larrosa (2001), enquanto “sujeitos da informação” somos
capazes de tomar conhecimento de uma vasta quantidade de coisas que acontecem
sem que ,no entanto, nada de fato nos aconteça.

Benjamin conta que o narrador porém “retira da experiência o que ele conta: sua
própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à expe-
riência dos seus ouvintes.”(BENJAMIN, 1994:201). Diferente da informação que tenta
se mostrar impessoal, a narrativa aceita que o que é contado parte de um narrador,-
das suas experiências e da sua relação com o mundo que o cerca. Hoje nos questio-
namos o quanto uma notícia pode realmente ser impessoal ou imparcial, a mesma
reflexão pode ser feita acerca da comunicação visual; no lugar de suprimir seu “nar-
rador” pode se mostrar mais enriquecedor assumi-lo como parte ativa do processo.

A narrativa mergulha a história contada na vida do narrador, só para retirá-la e imer-


gi-la na vida do ouvinte, a narrativa não existe sem levar em conta quem a escuta,
o ouvinte e suas experiências são parte elementar do processo tanto quanto é o
narrador, é por eles que a narrativa cresce, atinge sua amplitude e suas possibilida-
des, é a partir do ouvinte ,que acaba por se tornar também narrador, que a narrativa
continua se reinventando e ganhando força.

A figura do narrador, é desde muito tempo associada a do viajante, a do sujeito que


percorre as distâncias. Narrar é então, um dos primeiros movimentos do nômade para
dar forma as suas experiências, para transformar vivências em relatos que possam ser

1119
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

compartilhados. Mas enquanto a forma da informação se preocupa em limitar e por


consequência é limitante, a forma narrativa convida às descobertas. O design como
narrativa, surge então do encontro das experiências do narrador, do ouvinte e de suas
relações com o mundo. Não pode ser impessoal pois é a mistura de suas marcas, uma
experiência coletiva. Resgatar essa troca para a comunicação visual é valorizar a troca
de experiências e sensações mais que só a transferência de informações, a narrativa se
apoia em saberes vivenciados, experienciados e acaba mais por compartilhar e expan-
dir essas vivências do que por tentar suprimí-las.

É tempo de pensar o fazer do designer como o caminhar de um viajante, aberto para


o desconhecido, que não se pode antecipar nem prever, que abre espaço para novos
encontros e para novas percepções de experiências antigas, que cria relações mais
profundas e questionadoras, mesmo que efêmeras. É esse movimento, que é ao
mesmo tempo de aprofundamento e dispersão, que me parece mais valioso no nos-
so oficio de criadores. Aprofundamento, pois mergulha no ato de experienciar e de
vivenciar; dispersão, pois para possibilitar esse mergulho, se afasta das certezas está-
ticas atreladas à informação e à opinião. No nosso fazer, como designers gráficos, em
que cada vez abarcamos mais temas, mais questões, mais universos, é preciso que
esse duplo movimento se dê a todo momento ou correremos o risco de basear toda
a nossa criação apenas na superfície de um mar latente; presos , ademais, aos limites
de nossos velhos barcos.

Referências Bibliográficas:
ARAGON, L. O camponês de Paris. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

ARMSTRONG, H. Teoria do design Gráfico. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

BACHELARD,G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

BACHELARD,G. La poetique de la reverie. Paris: Presses universitaires de France, 1960.

BACHELARD,G. A água e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

BEY, H. Superando o turismo. 2014 < http://revistacarbono.com/artigos/08-hakim-


bey michael hughes / > 10/12/2017

BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.

CARERI, F. Walkscapes, o caminhar como prática estética. São Paulo: G. Gili, 2013.

DELEUZE, G. Proust e os signos, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs. São Paulo: Editora 34, 1997.

1120
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é filosofia. Rio de Janeiro: Ed 34, 1992.

FULTON, H. Caminatas/Walks. LAPIZ Revista internacional de Arte n213, Madrid:


Moloc Ediciones, 2005.

FULTON, H. Catalogo Río Luna Río, Badajoz: Fundación Ortega Muñoz, 2008.

GAGNEBIN, J-M. “O Camponês de Paris: Uma topografia espiritual”, Sete Aulas sobre
Linguagem, Memória e História. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

GILBERT, A. Publishing as artistic practice. Berlim: Sternberg Press, 2016.

GROPIUS, W. Bauhaus: nova arquitetura. São Paulo: Perspectiva S. A, 1972.

LARROSA, J. Notas sobre a experiência e o saber de experiência, Campinas:Leitu-


ras SME, 2001.

ONETO, P.D. A nomadologia de Deleuze-Guattari. Lugar comum N23, Rio de Janei-


ro: Rede Universidade Nomade, 2008

WILD, L. O macramê da resistência. São Paulo: Cosac Naify, 1998.

1121
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Denise Conceição Ferraz de Camargo1 and


Fernando Luiz Fogliano2
Dois e três pinos
Two and three prongs

Resumo
“Dois e três pinos” é um objeto-instalação construído com tomadas obsoletas no
Brasil desde 2009. Entretanto, o plano anunciado pelo governo antidemocrático
eleito em 2018 de retomar a produção desses dispositivos pode ser lida como uma
das metáforas do retrocesso político, social e cultural que soterra o País. Esta obra
procura dialogar com este contexto ao oferecer para o observador possibilidades
de interação que revertam as narrativas de ódio, violência e fake news que ferem a
concepção de Estado Democrático de Direito. Este processo fomenta novas cone-
xões, transformando os jogos de linguagem instaurados nesses discursos.
Palavras-chave: Processos artísticos, narrativa, dispositivo, arte e tecnologia, Brasil.

Abstract/resumen/resumé
“Two and three prongs” is an installation object built with sockets that are obso-
lete in Brazil since 2009. However the undemocratic government elected in 2018
declared that it plans to restart production of this device. This can be understood as
one of the metaphores of political, social and cultural regression that are rampant
in the Country. This work opens a dialogue with this context, by creating interactive
possibilities for the observer to reverse the narratives of hate, violence and fake news
that threaten the concept of a Democratic State. This process promotes new connec-
tions and word games, transforming the previous discourses.
Keywords: Artistic processes, narrative, device, art and technology, Brazil.

1 Denise Camargo, doutora em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP).É docente do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília (IdA-UnB) e do
Programa de Pós-graduação em Artes Visuais, na linha de pesquisa Poéticas Transversais. Seus temas
de pesquisa envolvem dispositivo fotográfico; poéticas e processos de criação; arte e tecnologia;
imagem e matrizes culturais afro-brasileiras; experiência e interação; narrativas.
2 Fernando Fogliano, pós-doutor em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista
(UNESP), é doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Fotógrafo, artista visual, pesquisador em Arte & Tecnologia, pelo grupo Ciência Arte Tecnologia (cAt),
membro do SCI-Arts. Seus trabalhos de pesquisa envolvem a exploração das implicações estéticas,
cognitivas e tecnológicas da imagem, tendo em vista a reflexão nos campos da fotografia e do de-
sign da interação.

1122
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Após a troca da instalação elétrica de uma casa tomadas já obsoletas, cujo destino
seria o descarte para reciclagem, foram resgatadas pelos artistas e transformadas
em matéria para o objeto-instalação “Dois e três pinos”, como ficou nomeado, em
alusão à obra conceitual “Uma e três cadeiras” (1963), de Joseph Kosuth.

A construção abstrata e escultural do objeto instalacional tem como suporte uma cai-
xa que permite ao observador visualizar a estrutura interna da obra e interagir com ela.
Às tomadas de dois pinos, que tiveram sua produção descontinuada no País e estão
em desuso, desde 2009, dispostas no interior da caixa, está conectada uma placa ar-
duino que favorece os processos e as ações de interação nos fragmentos de discursos
retrógrados, de ódio, violência e fake news, em curso no Brasil de 2019.

O “neutro” existente nas tomadas de três pinos atualmente utilizadas no país, as tor-
na mais seguras. Por isso mesmo, as tomadas antigas de dois pinos, desprovidas des-
se espaço, são inadequadas aos atuais padrões de segurança. Ao declarar o retorno
à sua produção, o senhor que ocupa a presidência da República do Brasil, cria uma
metáfora para o conjunto de reterocessos que assola o País.

Na gramática, o termo “neutro” define nomes ou palavras às quais não se pode atri-
buir características de gênero. Configura uma espécie de limite (Blanchot, 1970),
mas que não se define (Barthes, 2003). Pode-se tratar, assim, de um entre-lugar, de
uma fronteira borrada, também equiparável ao vazio, ao silêncio, e, paradoxalmente,
a um lugar em que se dão os jogos de linguagem.

É com este contexto simbólico que este trabalho opera ao fazer uso de discursos,
dos jogos de linguagem (Wittgeinstein, 2009), do uso político da linguagem e das
metáforas (Lakoff, 2002) e das narrativas dela decorrentes, baseadas em notícias fal-
sas, recusa a dados oficiais, inclusive a fatos históricos, que têm gerado um retorno a
padrões antiquados, já superados, inclusive os discursos de ódio e violência, mas em
curso na sociedade brasileira desde as eleições de outubro de 2018, e que se con-
frontam com o que podemos, ou não, considerar como verdade (Changeux, 2013).

O trabalho tem como objetivo permitir ao observador-interator estabelecer recone-


xões nas tomadas de três pinos, em sua segurança e adequação aos padrões. Isso faz
que os discursos alimentados no objeto-instalação possam ser revertidos e transfor-
mados, criando uma nova ordem para as emoções que compartilhamos e que nos
tocam neste contexto político, social e cultural do País. Propõe, assim, uma experi-
ência interativa que consiste em transformar os discursos antidemocráticos, abrindo
diálogos possíveis e para além dos binarismos das estratégias de manutenção do
poder. Assim, etapas desse processo criativo e tecnológico serão exibidas em um
vídeo de cerca de 3 min, contendo imagens, paisagens sonoras, mapas e diagramas
que constituem a memória do trabalho em processo.

1123
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Ao fornecer possibilidades de interação para criar novas conexões a partir de um


dispositivo obsoleto, e, portanto, desconstruir e recriar esses discursos, desencadeia-
-se o desejo de compor novos modelos de realidade assentados na necessidade de
compartilhamento de emoções sociais (Damasio, 1996), neste caso, geradas pelo
ideal de pertencimento aos valores democráticos.

Tomadas obsoletas: peças e acessórios na construção do objeto-instalação interativo.

Referências
Barthes, R. (2003). O neutro: anotações de aulas e de seminários ministrados no
Collège de France,1976-1977. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Mar-
tins Fontes.

Blanchot, M. (1970). A conversa ininita 3: a ausência do livro, o neutro o fragmentário.


Tradução de João Moura Jr. São Paulo: Escuta.

Changeaux, J. (2013). O verdadeiro, o belo e o bem: uma nova abordagem neuronal.


Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Damasio, A. (1996). O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São


Paulo: Companhia das Letras.

Lakoff, G. e Johnson, M. (2002). Metáforas da vida cotidiana. São Paulo: Educ.

Wittgenstein, L. (2009). Investigações filosóficas. Petrópolis: Vozes.

1124
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Diego Cordeiro1, Dr. Mirella Misi2 and


Ludmila Pimentel3
O hipertexto como estratégia de composição dramatúrgica
na obra interativa PLAY – Deseja Jogar?
The hypertext as a compositional dramaturgic strategy in the interactive piece
PLAY – Deseja Jogar?

Resumo
Esse artigo é uma análise descritiva do experimento realizado na interseção en-
tre dança, realidade aumentada e traduções de obras teatrais para dança digital
como parte da pesquisa intitulada Realidade Aumentada Espacial – Ateliê de
criação, a qual foi aprovada pela Pró-reitoria de Extensão na Universidade Fede-
ral da Bahia para ser realizada entre os anos 2018 – 2019 sob supervisão da Pro-
fa. Dra. Mirella Misi (UFBA, Brasil). Tem como objetivo apresentar os elementos
constituintes do experimento – construção de mapeamento, interfaces interati-
vas, programação de software, produção de imagens e/ou de áudio, captura de
espaço e corpos físicos, traduções de obras teatrais para linguagens cênicas em
dança, hipertexto como ferramenta de construção dramatúrgica – para propôr,
em ultima instância, novas abordagens para composição em dança que aqui
denominamos dança digital.
Palavras-chave: Dança Digital, Realidade Aumentada, Dramaturgia.

Abstract
This article is a descriptive analysis of the experiment conducted at the intersection
between dance, augmented reality and translations of theatrical works for digital

1 Ator formado pela SP-Escola de Teatro, com ênfase na linguagem de máscaras, em Clown e na
comicidade do ator. Lightdesigner, cenótecnico. Graduando de Licenciatura em Dança pela Univer-
sidade Federal da Bahia (Brasil).
2 Professora da Escola de Dança, Coordenadora de Ações Artístico Pedagógicas, Co-Lider do Elétrico
– Grupo de Pesquisa em Ciberdança – Universidade Federal da Bahia. Pós-doutorado PPGDAN, Dou-
torado PPGAC-UFBA (Brasil) / De Hague University of Applied Sciences (Países Baixos), Fundadora do
Slash Art Tech Lab, Amsterdam.
3 3 Profesora Permanente do Programa de Pós-Graduação am Dança, líder do Elétrico - Grupo de
Pesquisa em Ciberdança, Profesora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais,
Universidade Federal de Bahia (UFBA), Pós doutora en Artes Visuais, HBK Saar (Alemanha). Membro
efetivo do Slash Art Tech Lab, Amsterdam.

1125
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

dance as part of the research entitled Spatial Augmented Reality – Creation Studio,
which was approved by the pro-rectory of extension at the Federal University of Ba-
hia to be held between the years 2018 – 2019 under supervision of Prof. Dr. Mirella
Misi (UFBA, Brazil). It aims to present the constituent elements of the experiment –
mapping construction, interactive interfaces, software programming, image and/
or audio production, space capture and physical bodies, translations of theatrical
works to scenic languages in dance, hypertext as a tool of dramaturgical construc-
tion – to propose, in the last instance, new approaches to composition in dance
which we denominate digital dance.
Keywords: Digital Dance, Augmented Reality, Dramaturgy.

Nós, do Elétrico Grupo de Pesquisa em Cyberdança, adotamos o termo Dança Digital


(2015)4, a partir dos nossos estudos sobre Mediadance, termo cunhado por Gretchen
Schiller (2003) para referir-se a essa categoria artística. De acordo com Schiller me-
diadance refere-se a práticas artísticas interativas que integram tecnologia digital ao
trabalho coreográfico. Nós atualizamos o termo Mediadance para Dança Digital, o
qual classificamos como uma vertente contemporânea de dança que incorpora tec-
nologia computacional na sua configuração. Os trabalhos que se enquadram hoje
nessa categoria são categorizados pelo hibridismo na interseção entre dança, vídeo,
tecnologias digitais e tecnologias da informação. Inclui produções contemporâneas
que usam computação gráfica, design de software, edição de vídeo, animação 3d,
dentre outras tecnologias digitais para imagem em movimento e/ou interatividade.

Este artigo relata a nossa experiência nos estudos de Iniciação Artística, realizados
através do Programa PIBIARTES, na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia,
Brasil, entre 2018 e 2019, no Projeto Ateliê de Criação, sob orientação de Mirella Misi.
Trata-se de uma pesquisa de criação coreográfica em ambientes de Realidade Aumen-
tada Espacial (RAE), tendo o uso de hipertexto como estratégia de composição dra-
matúrgica. O resultado desse trabalho, que iremos expor neste artigo, é o espetáculo
interativo em ambiente de RAE, PLAY – Deseja Jogar?, o qual é livremente inspirado em
Act without words – a mime for one player5 de Samuel Beckett.

O texto teatral de Beckett consubstancia-se como uma das camadas dramatúrgicas


de criação e de desenvolvimento da recodificação da pesquisa sobre Realidade Au-

4 Pimentel, Ludmilla e Misi, Mirella. ARTECH 2015 Creating Digital E-motions: Proceedings of the 7th
International Conference on Digital Arts. Artech International: 2015, Óbidos – Portugal, pp.239-244.
Prize Best Short Paper.
5 O texto foi publicado pela primeira vez em Paris, 1957. Foi traduzido pelo autor para o inglês, tra-
dução esta publicada pela Groove Pass, Nova York, 1958.

1126
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

mentada Espacial como ambiente para a dança. A construção dramatúrgica da peça


de dança digital Play – Deseja Jogar? não poderia ser feita apenas como texto, pois as
necessidades de formas de espetáculo de dança digital abrangem outras formas de
técnicas discursivas: a relação do dançarino com os dançarinos avatares, com o sis-
tema do jogo interativo, com a constituição de realidade aumentada do ambiente, a
técnica de contracenar com corpos virtuais, dentre outras relações. Por esse motivo,
encontramos no hipertexto o melhor modo de avançar na pesquisa.

Como tratado no artigo Bodymedium como interface conceitual entre as catego-


rias de Embodiment (Merleau-Ponty) e de Embodiment Relations (Don Idhe) aplica-
do à Dança Digital6, publicado nos anais da Conferência Artefacto 2018, na prática
de criação de ambientes de dança digital interativos, o processo envolve sempre a
comunicação entre o artista, o programador e o sistema tecnológico, sendo que o
artista tem conhecimento de programação. A obra não é um objeto acabado a ser
apreciado, mas sim um convite a experiência. Juntos, o trio programador-artista-tec-
nologia criam a obra, em um processo de parceria, no qual o diálogo humano-má-
quina-humano conformam uma prática, que de acordo com Ihde7, se dá através de
relações de embodiment, relações hermenêuticas e relações de alteridade. Há uma
relação de alteridade, desde que a forma de ser do sistema não é humano; uma re-
lação de embodiment, desde que incorporamos o sistema na imersão e; uma relação
hermenêutica, pois há uma interpretação em via de mão dupla entre a pessoa e o
sistema no processo interativo.

O objetivo do trabalho de composição de obras interativas é criar um ambiente no


qual o público encontre possibilidades de através de seu movimento estabelecer
um diálogo com o sistema. O sistema deve ser programado de modo a despertar
a curiosidade do público para adentrar ao espaço da instalação, de modo que ele
procure situar-se no ambiente e queira descobrir “como funciona”, estabelecendo
assim uma relação de alteridade. Daí em diante, as “regras do jogo” devem começar
a ser descobertas paulatinamente, a interação entre público e sistema se desenca-
deia como em uma improvisação, na qual ação e reação se tornam congruentes. Na
fruição de trabalhos de dança digital, o público improvisa com o sistema.

A peça interativa Play – Deseja Jogar? é uma adaptação de uma peça que se enqua-
dra no estilo do teatro do absurdo, Ato sem Palavras I, escrita em 1956, em Paris, para
o contexto da cultura digital no Brasil de 2018. Se situa no início do teatro moderno,

6 Misi, Mirella, Pimentel, Ludmila (2015). Bodymedium como interface conceitual entre as categorias
de Embodiment (Merleau-Ponty) e de Embodiment Relations (Don Idhe) aplicado à Dança Digital. Revis-
ta do V Encontro Internacional de Grupos de Pesquisa: Realidades Mistas e Convergências entre Arte,
Ciência e Tecnologia. Escola de Artes e Comunicações, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo.
7 Idhe, Don. Embodied technics. UK: Automatic Press / VIP, 2010.

1127
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

nas últimas décadas do século XX, o qual foi um marco de ruptura com o teatro clás-
sico. A partir dele, tornou-se impossível pensar em diálogos coloquiais entre atores
representando uma cena. O teatro moderno traz como característica principal a ne-
gação da comunicação e da troca dialógica, uma crise em relação ao drama.

Passadas várias décadas, hoje, na cultura digital, a dramaturgia não é mais exclusi-
vidade da milenar arte teatral, pelo contrário. O Teatro emancipou-se da Literatura e
exerce sua total autonomia. As criações dramatúrgicas ocupam o nosso cotidiano: as
novelas, os filmes, os seriados, os quadrinhos, os jogos digitais, vídeos do Youtube,
VTs publicitários, até mesmo os programas jornalísticos, de comportamento ou de
auditório, no rádio, na televisão e na internet, utilizam-se da escrita dramática.

Essa pesquisa partiu do desejo de fazer uma tradução/adaptação de um texto teatral


para um trabalho de dança digital interativo. Para tanto, construimos um ambiente
de realidade aumentada espacial e usamos o hipertexto como modo discursivo para
a construção de um espaço híbrido de dança digital interativa.

Primeiras traduções Tec/analógicas do experimento


Em sua obra Beckett coloca um personagem nomeado apenas como “The Man” que
não tem uma história ou um passado evidente sendo lançado no deserto sem a
possibilidade de escapar daquele espaço. O ambiente em que o personagem está
inserido é um controlador sagaz e sarcástico, que transforma o homem em um mera
cobaia de experimentos, privando-o de seu livre arbítrio. Suas necessidades básicas
como proteger-se do sol na sombra de uma árvore, ou alcançar um jarro d’água e
beber, tornam-se atos impossíveis dentro do deserto. A árvore que fecha-se como
um guarda-chuva, o jarro que fica pendurado a muitos metros de altura balançan-
do e qualquer outra ação possível desse homem, somente acontece após um apito
sinalizador, transformando o homem em uma máquina fadada a falha, mesmo o ato
de suicidar-se lhe é privado evidenciando a sua impotência enquanto ser-humano.

A obra originalmente escrita em Paris em 1956 para ser interpretada pelo ator e dan-
çarino Deryk Mende buscava revelar os desejos frustrados de alcançar o mínimo de
conforto e alimento, representado por um homem que persegue incessantemente e
em vão a sombra de uma árvore e água.

A peça Play – Deseja Jogar? é uma adaptação desta peça do teatro moderno oci-
dental para uma peça interativa de dança digital contemporânea. Pode ser vista, de
acordo com a categorização de Pavis8, como uma variante de teatro intercultural.
Por tratar de questões referentes a violência de gênero nas redes sociais é, a um só

8 PAVIS, Patrice. Intercultural Theatre today (2010). Forum Modernes Theater (FmTh), ISSN: 0930-
5874 (Print), ISSN: (e-journal), Publisher: Gunter Narr Verlag. P. 8-10.

1128
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

tempo, cosmopolita e minoritário, pois trata de questões referentes à realidade da


minoria LGBTQI+ em um ‘não lugar’, a internet. Mantém também algo de um teatro
regional, local, por que o discurso prescinde de uma certa familiaridade com pala-
vras e girias da comunidade virtual brasileira LGBTQI+.

Outro ponto crucial desse processo de adaptação é a sua abordagem de dança


como ambiente. Existe um vazio no espaço dramatúrgico de Ato sem Palavras I que
é transposto para o vazio do espaço virtual de Play – Deseja Jogar?. A peça usa re-
alidade aumentada para criar um espaço simbólico para a realidade virtual. A glo-
balização não é o mote, mas perpassa a estética da peça dando forma a um tipo de
Interculturalismo globalizado.

No período das eleições presidenciais de 2018, no Brasil, foi possível perceber que
com o auxílio da internet, a credibilidade das informações propagadas deslocou-se
dos veículos tradicionais como rádio, televisão e jornais impressos para as platafor-
mas digitais nas redes sociais, formatando as antigas relações de comunicação para
esses novos ambientes. O compartilhamento de materiais era composto por poucas
palavras, o que aumentou o alcance de sua propagação e que muitas vezes eram
hostis a determinados grupos minoritários.

Ao analisar a obra teatral, com os conceitos de realidade aumentada espacial elen-


camos um primeiro paralelo entre a obra de Beckett e o estudo para a construção
de dramaturgias coreográficas em dança digital. A recodificação do deserto da obra
viria a ser um deserto virtual, trazendo à tona as relações humanas com as platafor-
mas digitais, sua solidão e suas consequências.

A primeira referência estudada foi um curta metragem gravado em Medellín (Co-


lômbia) e dirigido por Keiichi Matsuda9, que retrata uma mulher em seu dia-a-dia,
rodeada de telas virtuais e meios tecnólogicos no meio de uma sociedade sci-fi, in-
serida em uma realidade aumentada espacial.

Nos ambientes de RA, o programador precisa fazer diversas programações de tex-


turas, espaços, linhas, cores, códigos, entre muitas outras ações para a construção
de elementos e espaços virtuais, dos quais somente ele tem o poder de inserir ou
excluir algo no ambiente criado. Em Beckett a cena acontece dentro de um palco
italiano de teatro, sendo essa, umas das primeiras informações do texto, o respon-
sável por inserir e remover coisas do palco é um maquinário de cordas, operado por
alguém que nunca é revelado, ou mesmo citado. Este é outro paralelo que estabele-
cemos antes de aprofundarmo-nos nas escolhas dramatúrgicas, tanto o programa-
dor de RAE, como o operador do maquinário do teatro, na obra de Beckett, não são

9 HYPER-REALITY. Direção: Keiichi Matsuda. Produção: Fractal. Medellín. 2016. (6m15s). Disponível
em: < https://www.youtube.com/watch?v=YJg02ivYzSs >. Acesso em: 10 set. 2019.

1129
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

revelados no espaço tempo em que os elementos e espaços virtuais estão sendo


construídos ou manipulados.

Dramaturgia hipertextual
A dança digital demanda um pensar coreográfico diferente do modo tradicional de
composição em dança e seus modos de fruição, ela é interativa em relação a suas práti-
cas, técnicas e poéticas, durante o processo de criação ou no seu produto final, seguin-
do os traços da performance. É uma modalidade contemporânea de arte eletrônica
interativa e como tal, incorpora ideias composicionais e instrumentos, tais como câ-
meras, vídeo-projetores, microfones, sensores, sintetizadores e/ou software, buscando
explorar novas formas de experimentação artística entre o real e o virtual.10

Em Play – Deseja Jogar?, buscamos encontrar formas de estudos coreográficos e cé-


lulas dramatúrgicas que funcionassem como possibilidades de continuidade e não
como fins. A construção dramatúrgica resultou em um roteiro que foi intitulado es-
queleto, podendo ser desmembrado, realocado, fazendo alusão a um esqueleto sem
vida. Um corpo sem preenchimento, mas que pode ser apresentado materialmente
e configura-se em diversas formas. O desafio para a construção de uma dramaturgia
hipertextual é torná-la sempre acessível, interativa, renovável e que com o decorrer
dos ensaios, ou apresentações consequentes aos processos criativos, ela não se en-
gesse, impossibilitando uma experiência singular aos participantes.

Tomamos como mote uma hierarquia simples de construção para traduzir artistica-
mente e livremente a obra de Beckett. Escolhemos trabalhar com três personas reais,
O Controlador, O Operador e O Realizador. O realizador – (intérprete da obra) aquele
que tudo executa sem questionar absolutamente nada; O controlador – (alguém se-
lecionado aleatoriamente na platéia) seria aquele que escolhe todas as opções ofer-
tadas durante o espetáculo, levando a responsabilidade pelo caminho dramatúrgico
percorrido, O operador – seria a pessoa a operar as partes técnicas do espetáculo,
sem interferir nas escolhas do controlador.

Trazendo para os estudos práticos os conceitos criados por Merce Cunningham de


Events, onde a aleatoriedade era palavra de ordem, optamos por criar materiais vir-
tuais suficientes para que cada pessoa que controlasse o espetáculo tivesse uma ex-
periência única, e as que assistissem a obra sem controlar nada, saíssem da posição
de espectador e se tornassem testemunhas, já que na interatividade, os aprendiza-
dos são incorporados e a construção da consciência reflexiva sobre a possibilidade
que a tecnologia oferece se dá no momento de troca.

10 M MISI, Mirella; SISTEMAS DE REALIDADE AUMENTADA COMO AMBIENTES PARA A DANÇA CON-
TEMPORÂNEA; Dança, Salvador, v. 1, n. 4 p. 11-24, jan./jun. 2015.

1130
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Cunningham acreditava que os jogos de aleatoriedade possibilitavam com que o


sistema nervoso recorresse a uma infinidade de combinações nas unidades particu-
lares de movimento que geralmente não são escolhidas em atos previamente habi-
tuais dos bailarinos. A dramaturgia hipertextual nesse caso foi fundamental, não só
para criar bases sólidas para o interpréte durante as apresentações e para os ensaios
do espetáculo, mas além de poder ser vista por qualquer perspectiva, ela ganhou
outras funções durante o processo de construção. O mesmo esqueleto era um mapa
para as programações e mapeamentos quando começaram a ser desenvolvidos,
possibilitando um trabalho mais acertivo, já que não havia tempo hábil para equívo-
cos no meio do caminho.

Toda a dramaturgia foi arquitetada para iniciar no ponto A e se chegar ao ponto B.


O segredo desse roteiro é o uso de variáveis de tempo, escolhas, espaços, estéticas e
histórias que preenchem todo esse caminho, criando incontáveis possibilidades de
trajetórias de A para B. Essa estratégia utilizada estabelece diferentes dramaturgias
de acordo com as escolhas feitas pelo Controlador. O roteiro é constituído de oito
cenas coreográficas principais e cada uma delas possui de duas a quatro opções de
escolhas que leva a resultantes diferentes.

A narrativa inicia-se como em um jogo de arcade, fazendo uma alusão aos jogos de
video game dos anos 80. A primeira cena apresenta um homem preso dentro de
uma tela, da qual ele não consegue sair. O homem fica imóvel por um breve momen-
to, enquanto as regras do jogo proposto projetam-se sobre ele. Uma pessoa é sele-
cionada aleatoriamente na platéia e o sistema lhe pergunta se há da parte da mesma
o desejo de jogar. Respondendo não, a pessoa escolhe outra pessoa da platéia. Res-
pondendo sim, a pessoa passa a escolher tudo no espetáculo: o figurino, as imagens
projetadas, os tutoriais virtuais, as coreografias que irão compôr a performance. Isto
revela nossa falta de privacidade e arbítrio quanto ao uso dos nossos dados pessoais
nas redes sociais da web. Gerenciados por software de controle existentes em to-
dos os aparelhos eletrônicos e plataformas da cultural digital, hoje nos encontramos
muitas vezes atravessados por sua teia invisível de entretenimento.

Construindo um ambiente de RAE


Durante os ensaios, após toda a construção do esqueleto, chegamos à etapa de cap-
turar imagens e áudios, programar espaços virtuais, aplicar efeitos em vídeos, criar
efeitos para vídeos e mapear diversos locais onde ocorreriam as apresentações. Todo
o processo criativo e de extensão foi pensado, desde o início, de ser realizado com
um mínimo custo financeiro e de forma interdisciplinar, agregando discentes de ou-
tros cursos como parceiros de criação. Por se tratar de uma extensão acadêmica, e
não contar com recursos financeiros para o investimento em equipamentos, fica-
mos limitados ao uso de equipamentos disponíveis nos departamentos da Escola
de Dança da UFBA. As capturas de vídeo foram realizadas em uma câmera de celular.

1131
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Na sala de ensaio do projeto foi fixado um tecido de cor verde vibrante, criando
um Chroma Key improvisado, o que tornou possível, na fase de edição, retirar e
acrescentar diferentes fundos e efeitos. Para criar o sistema de controle e operação
do espetáculo foram criados em torno de 8.000 arquivos midiáticos, entre imagens
estáticas, vídeos e composições sonoras.

A Realidade Aumentada (RA) permite a integração do mundo material com conteú-


do virtual, criando ambientes híbridos e interativos em tempo real em performances
virtuais e ambientes sensoriais. É possivel ser encontrada em diversos jogos atuais
como Pokémon Go, Harry Potter Wizards Unite, The Walking Dead: Our World ou
Augment, todos sendo acessados por um telefone móvel. No caso do nosso trabalho
de pesquisa, esses ambientes virtuais não poderiam ser aplicados, pois para a sua
realização precisavamos criar algo que abarcasse uma platéia, sem a necessidade
de um aparelho eletrônico por pessoa. Produzimos uma tela de tecido voil (tecido
de poliéster com aspecto transparente) tendo como suporte uma estrutura de ca-
nos de policloreto de vinil (PVC) fixado por encaixes, criando uma réplica gigante
de uma tela de computador. Com isso, foi possível projetar as imagens e ao mesmo
tempo visualizar o corpo do intérprete _ um espaço híbrido, mesclando virtual e
real, homem e máquina. Foi gerado nesse processo de criação uma ferramenta de
aleatoriedade virtual, controlada por um software de operação de audiovisual (Re-
solume Arena). Nele foi colocado diversas opções dramatúrgicas construídas com
outros programas de criação e edição de vídeo e som.

Revelando o mundo das ideias e inspirações


Diversas realidades serviram como inspiração para a obra, arquitetada a partir do
curta metragem de Keiichi Matsuda, no qual uma mulher vive em um mundo domi-
nado e dependente de tecnologias. Um lugar apoteótico no qual as relações que a
personagem estabelece com seu entorno se dão mediadas por um sistema de RAE.
Nesse ambiente híbrido entre o real e o virtual, suas ações cotidianas são realizadas
com o suporte de software de Realidade Aumentada, como se ela habitasse neste
lugar. Os lugares atuais por onde ela passa são povoados de imagens sintéticas. Em
uma realidade similar acontecem as dramaturgias do seriado Black Mirror, no qual
diversos episódios narram a realidade humano-máquina.

Outra referência significativa para o processo de criação é o trabalho do Rapper Edgar


Pereira da Silva, nascido em Guarulhos, município de São Paulo, que aborda questões
políticas e socias por meio dos eixos tecnológicos, trazendo não só a crítica para as
construções de suas músicas, mas usando projeções e colagens de elementos tecno-
lógicos junto as realidades das redes sociais para os seus shows e vídeo-clipes.

Fonte de inspiração foi também o trabalho do diretor teatral Felipe Hirsch em seu
espetáculo Avenida Dropsie. Esta obra, inspirada nas Histórias em quadrinhos (HQ)

1132
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

de Will Eisner, utilizava projeções em tela transparente, criando uma película sobre
o cenário e os atores. Eram projetados os pensamentos dos personagens em deter-
minadas cenas, aludindo a um HQ, e criando uma tela com uma textura de cartoon
em diversos momentos.

Just Dance, mesclando dança e captura de realidade para jogos virtuais, nos provo-
cou questionamentos quanto a modos de criação de cenas com projeções de dança
digital junto ao intérprete presente na realidade atual.

Resultantes Programadas
A criação de Play – Deseja Jogar? se solidificou sobre um determinado contexto polí-
tico histórico que atravessa diretamente os sujeitos que estão envolvidos no projeto,
desde sua composição até sua finalização. Sendo o resultado cênico e acadêmico fru-
tos e resposta desse contexto político, o espetáculo vem como uma forma reativa que
foi vivido durante seu período de criação. O objetivo central era fazer uma tradução da
obra, mesclados com os sistemas de realidade aumentada. A princípio a dramaturgia
seria trazer uma realidade nordestina brasileira com suas histórias sobre a seca, a fome,
o sol escaldante e trabalho quase escravo que eram feitas em lavouras alguns anos
atrás no sertão nordestino. Essa realidade seria construída com luzes ofuscantes in-
terativas, vídeo dança sobre esses espaços mapeados criando um ambientes híbrido.

Em outubro de 2018, as eleições presidenciais no Brasil nos fez repensar os motivos


e escolhas do texto a partir do nosso contexto politico social. Uma ameaça de morte,
vinda de um desconhecido na rua, seguida por gritos em apoio ao atual presidente
da república do Brasil, fizeram os caminhos diários para a aula ou para os ensaios
sererm consumidos por medo, fazendo com que a tradução do texto escolhida ini-
cialmente já não fizessem sentido.

As redes sociais e plataformas digitais de interação eram tomadas de mensagens de


ódio por todos os lados _ a verdade nunca foi importante no jogo político, as influ-
ências sim. As pessoas, ou melhor, os perfis digitais de pessoas reais dentro daquela
rede não pareciam ter medo, acreditavam e acreditam ainda hoje, que possuem um
total controle no meio virtual, e que a liberdade não será ali cerceada. Encontramos,
no meio do caos social, uma crítica potente que conversava diretamente com o tex-
to Ato Sem Palavras I, nos fazendo abrir mão de narrar uma das histórias mais tristes
do Nordeste Brasileiro.

Sendo assim, optamos por tratar da questão da violência de gênero nas redes so-
ciais. Vivemos hoje, na cultura digital, em um mundo no qual o ser humano vive
dependente das relações virtuais. Controlado, de modo quase imperceptível, por
sistemas de controle de dados, por sistemas de likes, por perfis e Fake News(notícias
falsas), a maioria dos usuários acredita estar protegida e livre, não sendo afetada.

1133
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O personagem de Beckett, mesmo sem saber quem controla o ambiente, perma-


nece sem fugir do deserto, sendo controlado indiretamente. Construímos, então,
uma obra artística na qual alguém do público controla o performer, tornando-se o
controlador direto do personagem e transformando todos os demais presentes no
público em testemunhas dessa experiência. Isso nos faz refletir como as redes so-
ciais, em geral, funcionam da mesma maneira. Em qualquer acontecimento virtual,
alguém é o sujeito e alguém é o controlador, sendo todos os outros presentes teste-
munhas indiretas. Utilizamos, de forma cênica, universos similares ao do facebook,
do instagram, dos youtubers, dos jogos virtuais, das conferências de vídeo, para es-
tabelecer um ambiente em que o público pudesse se identificar no primeiro contato.

Essa forma com a qual o espetáculo foi construído, possibilita que a ressignificação
fique a cargo também do espectador, mantendo os caminhos abertos de acordo com
o entendimento de Amorim em seu artigo sobre a análise e traduções em obras
literárias para o audiovisual.11 O autor cita que os processos de tradução, adaptações
e apropriações ficam a cargo do artista ou grupo criador, porém utilizamos da tradu-
ção de seu conceito para afirmar que os caminhos também ficam abertos para que o
público possa realizar interferências na obra, no caso de performances e espetáculos
cênicos, que mantenham suas portas abertas.

Menezes ao escrever sobre tradução e/ou adaptação intersemiótica diz que “a tra-
dução é inerente à humanidade, a começar pela percepção circundante, através do que
dados da realidade são traduzidos em signos no intelecto”12 (sic), nesse sentido as tra-
duções em forma verbal que se deram durante as conversas pós-espetáculo, foram
temas que saltaram de acordo com o sujeito que estava sendo interlocutor.

Os temas levantados nas rodas de conversas pós-espetáculo foram lgbtfobia, racismo,


violência policial, cyberbulling e opressões de diversas naturezas, como presente na
fala de Dona Lourdes, uma das espectadoras no Espaço Cultural Alagados (Salvador
- Bahia), que trouxe reflexões importantes sobre o distanciamento da academia em
relação as comunidades periféricas. Manifestando sua insatisfação com o meio aca-
dêmico, que majoritariamente costuma olhar para esses territórios e sujeitos apenas
como possíveis objetos de estudo, desconsiderando as formas de saber ali presentes.

No entendimento de D. Lourdes seria mais coerente que a relação academia ver-


sus periferia se desse de forma mais horizontal de forma a possibilitar trocas entre
as partes envolvidas, pois acredita que nem todo conhecimento da academia terá

11 AMORIM, Marcel Alvaro de; DA TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA À TEORIA DA ADAPTAÇÃO INTER-


CULTURAL: ESTADO DA ARTE E PERSPECTIVAS FUTURAS; Itinerários, Araraquara, n. 36, p.15-33, jan./
jun. 2013
12 MENEZES, Hugo Lenes; TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA OU ADAPTAÇÃO: ALGUNS APONTAMEN-
TOS; Revista da Anpoll v. 1, nº 44, p. 260-271, Florianópolis, Jan./Abr. 2018

1134
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

serventia para a periferia e que os conhecimentos presentes nesses territórios não


deveriam ser submetidos a um processo de cientificização e virtualização para que
tenha valor epistemológico reconhecido.

A colocação de D. Lourdes nos provocou duas reflexões, sendo a primeira referen-


te a como a forma que o resultado artístico será recebido pelo espectador, está
diretamente ligada e condicionada à sua própria subjetividade. A segunda, por
sua vez, diz respeito a como a academia lida com essas subjetividades, adotando
em muitos momentos uma postura hegemônica de forma a suprimi-las, caso estas
não estejam alinhadas a suas metodologias e seus paradigmas.

Essas reflexões nos direcionam diretamente ao texto Epistemologias do Sul13, onde


Boaventura de Sousa Santos relata como o epistemicídio maciço tem acontecido ao
decorrer dos últimos cinco séculos, resultando no desperdício de uma riqueza imen-
sa de experiências cognitivas. Afirmando que para recuperar algumas dessas experi-
ências a ecologia de saberes recorre a seu atributo pós abissal mais característico, a
tradução intercultural. Inseridas em diferentes culturas ocidentais e não ocidentais,
estas experiências não só usam linguagens diferentes, mas também distintas cate-
gorias, diferentes universos simbólicos e aspirações a uma vida melhor.

Referências
SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. (Orgs.) Epistemologias do Sul.
Coimbra. Edições Almedina SA. 2009

MENEZES, Hugo Lenes; TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA OU ADAPTAÇÃO: ALGUNS


APONTAMENTOS; Revista da Anpoll v. 1, nº 44, p. 260-271, Florianópolis, Jan./Abr.
2018

MISI, Mirella; SISTEMAS DE REALIDADE AUMENTADA COMO AMBIENTES PARA A


DANÇA CONTEMPORÂNEA; Dança, Salvador, v. 1, n. 4 p. 11-24, jan./jun. 2015

AMORIM, Marcel Alvaro de; DA TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA À TEORIA DA ADAPTA-


ÇÃO INTERCULTURAL: ESTADO DA ARTE E PERSPECTIVAS FUTURAS; Itinerários, Ara-
raquara, n. 36, p.15-33, jan./jun. 2013

BECKETT, Samuel; Act without Words. Grove Press, New York, 1958.

PAVIS, Patrice. Intercultural Theatre today (2010). Forum Modernes Theater (FmTh),
ISSN: 0930-5874 (Print), ISSN: (e-journal), Publisher: Gunter Narr Verlag. P. 8-10.

13 SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. (Orgs.) Epistemologias do Sul. Coimbra.
Edições Almedina SA. 2009

1135
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

MISI, Mirella e PIMENTEL, Ludmila (2015). Bodymedium como interface conceitual


entre as categorias de Embodiment (Merleau-Ponty) e de Embodiment Rela-
tions (Don Idhe) aplicado à Dança Digital. Revista do V Encontro Internacional de
Grupos de Pesquisa: Realidades Mistas e Convergências entre Arte, Ciência e Tecno-
logia. Escola de Artes e Comunicações, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo.

IDHE, Don. Embodied technics. UK: Automatic Press / VIP, 2010.

MISI, Mirella e PIMENTEL, Ludmila. Sobre as ideologias da arte interativa. #16. ART: En-
contro Internacional de Arte e Tecnologia: Artis intelligentia:Imaginar o Real. Editora
i2ADS: Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade. 2017. pg 194 – 200.

PIMENTEL, Ludmilla e MISI, Mirella. ARTECH 2015 Creating Digital E-motions: Procee-
dings of the 7th International Conference on Digital Arts. Artech International: 2015,
Óbidos – Portugal, pp.239-244. Prize Best Short Paper.

HYPER-REALITY. Direção: Keiichi Matsuda. Produção: Fractal. Medellín. 2016. (6m15s).


Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=YJg02ivYzSs >. Acesso em:
10 set. 2019.

1136
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Douglas de Paula1
Investigando o Alcance do Sublime nas Artes Digitais
Investigating the Reachment of Sublime in Digital Arts

Resumo
Admitindo esteticamente o belo como lugar em que a forma conseguiria en-
cerrar o conceito e o sublime como a categoria em que o conceito escaparia à
forma, conduzindo-a, muitas vezes, à abstração, não seria difícil imaginar o desa-
fio das artes digitais no sentido de “revelar” o sublime ao espectador. Esse subli-
me parece depender de explicitar o meio que veicularia essas artes. Estaria esse
meio claro para o espectador ou este tenderia a fazer a leitura dessas obras pelo
viés do belo? Quais os desafios de se tentar fazer o sublime alcançar o especta-
dor? São questões que o presente trabalho pretende abordar à luz do confronto
entre a categoria de sublime tecnológico e uma amálgama de impressões colhi-
das de expectadores acerca do contato com meu trabalho artístico digital em
algumas exposições e de experimentos mentais de fruição imaginada, fenome-
nologicamente orientados e de autoria própria, em torno de obras de referência
no campo da arte “informática”.
Palavras-chave: sublime, comunicação, arte digital.

Abstract
Aesthetically thinking the beautiful as the way the form would catch the concept
and the sublime as a category in which the concept would escape from form, of-
ten leading it to abstraction, it wouldn’t be hard to imagine the challenge of digital
arts trying to “reveal” the sublime to the spectator. This sublime seems to depend
on explaining the media in which these arts go. Would be this media clear to the
spectator, or he would tend to see these arts by the lens of beautiful? What would be
the challenges of trying to make the spectator perceive the sublime behind? That are
some questions which the present work intend to approach by confronting the cat-
egory of technological sublime and a set of impressions taken from spectators that
already have been in contact with my artistic work in some exhibitions and from
mental experiments of imagined fruition, phenomenologically oriented and of my

1 Douglas de Paula é Doutor em Arte pela Universidade de Brasília/UnB, professor do Curso de Artes
Visuais da Universidade Federal de Uberlândia/UFU e, atualmente, coordenador do Museu Univer-
sitário de Arte/MUnA, também da UFU. Sua pesquisa faz-se entre campos do conhecimento como
Arte, Estética, Comunicação, Design e Computação. Maiormente, compõem a linguagem de sua pro-
dução artística luz e imagens em movimento.

1137
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

own authorship, about reference informatics art works.


Keywords: sublime, communication, digital art.
Para Annateresa Fabris (1995, p. 10), as tecnologias de comunicação teriam provo-
cado um translado do valor estético, levando o foco de exploração, dos artistas, da
mensagem para o fenômeno da comunicação em si e suas condições. Nesse sentido,
Mário Costa (1995, p. 23) expõe que, apenas com essas tecnologias, a categoria es-
tética do sublime teria podido incorporar-se, de fato, como nunca anteriormente, às
artes. Assim, o autor cunhou o termo “sublime tecnológico”.

Na esteira de Costa, em sua categorização das artes eletrônicas, Frank Popper (1993,
pp. 124-137) localiza no sublime tecnológico do autor diversos trabalhos de arte. No
entanto o discurso dos autores para a defesa dessa localização parece demasiada-
mente racionalizada e pautada num conhecimento prévio próprio acerca dos traba-
lhos, senão, quando muito, na poiesis2 do artista e não na percepção ou aithesis do
público. Nesse sentido, como chamar de reflexões estéticas considerações alheias à
percepção? Para melhor entender o ponto, parece recomendável retomar categorias
presentes nas definições de belo e sublime.

Friedrich Schiller (1990, p. 81) fala do belo como apuração de “forma viva”, uma ope-
ração que extrapolaria o impulso sensível se apercebendo da vitalidade na mes-
ma medida em que o impulso formal abarcasse a forma e seria, na verdade, uma
amálgama na qual a apuração da forma, própria ao entendimento, seria conduzida
à sensibilidade no mesmo passo em que a apuração da vitalidade, própria à sensi-
bilidade, fosse levada ao entendimento3. No sublime kantiano, não haveria apura-
ção de forma sequer (Kant, 1993, pp. 90-91 como citado em Santaella, 1994, p. 55)
e, em Schiller (2011, pp. 21-22), o sublime corresponderia justamente à apuração
de uma ruptura irreconciliável entre a sensibilidade e o entendimento, embora, em
Immanuel Kant (como citado em Santaella, 1994, p. 55), ele seja derivativo dessa

2 Hans Robert Jauss (1979, p. 101) fala de poiesis, aisthesis e katharsis. A poiesis seria o trabalho pelo
qual o artista se familiarizaria com o mundo, o seu prazer de fazer. A aisthesis estaria no próprio ato
perceptivo que faz os reconhecimentos, operando tanto do lado do artista, o que ele observa ao
fazer a obra, quanto do lado do receptor de frente dela. A katharsis seria a transformação provocada
pela obra, também podendo operar tanto do lado do artista quanto do receptor.
3 Schiller explica que a beleza não se estende nem se encerra ao âmbito do que é vivo. Não seria da
vida biológica que estaria a falar, mas, provavelmente, de uma vida na percepção. Para o autor, um
bloco de mármore poderia ser forma viva, e um homem, não, embora este viva e tenha forma. Nesse
sentido, o conceito de forma viva, trazendo intencionalidade mesmo à matéria inerte, parece re-
montar ao conceito de significante fraturado, de Wolfgang Iser (1979, pp. 110-112), ou de estranho,
em Sigmund Freud (1976, pp. 275-276, 308-313); casos em que uma presença alhures pareceria fun-
dida à matéria na qual não se pudesse constatar senão a ausência mesma do que se presentificasse
na percepção. Assim, o estranho poderia ser entendido como viés do belo.

1138
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

ruptura. Em outras palavras, enquanto, no belo, haveria uma inextricabilidade entre


apuração formal e apuração vital, no sublime, a apuração vital seria de tal monta que
levaria a um embaraçoso lapso formal, do qual derivariam racionalizações chamadas
justamente a lidar com ele.

Entendidos os conceitos de belo e sublime, consideremos alguns dos trabalhos tra-


zidos à categoria do sublime tecnológico por Costa (2005) e Popper (1993), contu-
do à luz do que já chamei de exercícios de fruição imaginada (Paula, 2014) e que,
na verdade, não seriam mais que uma transposição, para o campo da experiência
potencialmente estética, de prática fundada na filosofia clássica, de Sócrates a Gali-
leu, chamada experimento mental e, posteriormente, radicalizada na física de Albert
Einstein (KiouraniS, Santin Filho, Souza, 2010), por exemplo.

Comecemos, então, com Image of the Valley, do artista Jean-Claude Anglade, men-
cionado por Costa (1995, p. 38) e Popper (1993, p. 129). Em 1987, Anglade propôs
projetar um desenho na fonte de Quattre-Pavés, estrutura monumental com cerca
de 35 metros de altura, situada no meio de uma rotatória com quatro vias morrentes,
no município de Noisiel, França. O referido desenho formava-se pela participação
dos habitantes da vila de Marne-la-Vallée, a cerca de dois quilômetros e meio da
Quatre-Pavés; ambas a aproximadamente 30 km de Paris. A participação consistia
em enviar sinais gráficos por meio de terminais públicos de computador; na época,
os miniteis - normalmente usados para fins comerciais na França, para operações tais
como consultas bancárias. Os sinais gráficos enviados iam então se justapondo de
modo a perfazer o desenho que era projetado.

Para iniciar as reflexões sobre esse trabalho de Anglade, imaginemo-nos, primeira-


mente, na pele de Costa e Popper, que possuíam informações sobre seus bastidores
e sabiam como o desenho correspondente se formava em Quattre-Pavés. Condu-
zir alguma experiência com essa obra ao campo do sublime pediria lembrar que
- segundo o conceito de sublime –, seria preciso apurar nela um tal atingimento da
sensibilidade do indivíduo que deixasse órfão de formato qualquer ensaio imagi-
nativo seu, conduzindo-o a racionalizações de remediação. Quem quer que falasse
do trabalho de Anglade sem ter visto a projeção em Quattre-Pavés - em fotografia
ao menos - não teria como pensar nele em que categoria estética fosse. Supondo
alguma forma de acesso a qualquer referência sensorial do trabalho, o lapso formal
e as racionalizações que integram o conceito de sublime deveriam se derivar de um
impacto ou rasgo sensório. Numa eventual fruição desse trabalho de Anglade, como
poderia se ter dado um tal rasgo? Qual poderia ter sido a natureza do lapso perti-
nente? Tais são questões que Costa e Popper não respondem. Nesse sentido, pare-
cem ter falado de sublime sem especificar as categorias que dele tomariam parte na
experiência proposta por Anglade. E as racionalizações derivativas? Quanto a isso, a
única coisa que elencaram como possibilidade de associação ao sublime foi a forma
construtiva do desenho; um desenho que deveria expor ou revelar a natureza cole-

1139
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

tiva e telemática de sua operatória formativa. O problema é que é justamente por


essa especificação que os autores começam seu discurso e não a partir de uma expe-
rimentação sensorial da obra. Parecem chegar a uma racionalização que teria resul-
tado da própria explicativa antecipada acerca do trabalho de Anglade. Teriam tido
como dizer tudo o que disseram da obra sem nada ler sobre ela, fosse simplesmente
interferindo pelos terminais, fosse apenas olhando, em algum momento, para Quat-
tre-Pavés enquanto o desenho atinente se formasse? Os autores parecem ter reali-
zado a operação inversa do que poderia atestar uma experiência sublime: teriam
tomado a racionalização primeiramente, para, em seguida, dela derivar ou, antes,
supor, intelectualmente e com base no conceito conhecido de sublime, o lapso for-
mal e o choque sensório típicos; isso sem mencionar seus olvidos da possiblidade do
belo e mesmo do inócuo estético nas experiências potenciais com a obra do artista.

Para a sequência, assumamos, para o instante, o lugar de alguém que tivesse par-
ticipado da formação do referido desenho em algum momento. Pela distância de
Marne-la-Vallée a Quatre-Pavés, uma visão da fonte a olho nú não seria possível. Sem
alguma visão da fonte, como se poderia entender a própria participação, ver-se, de
algum modo, no processo ou tentar “comunicar-se” ou realizar alguma modificação
que partisse do já estabelecido por outros até então? É preciso admitir que, sem al-
guma visão do desenho em formação, a experiência do participante não teria como
ser esteticamente produtiva sob que categoria fosse. Assim, alguém que houvesse
experimentado esteticamente a operação de uso do terminal teria de ter tido acesso
a alguma forma de “televisualização” da Quatre-Pavés no momento de sua interfe-
rência via terminal, pois, para uma tal experimentação, somente desse modo, pode-
ria provar o necessário engajamento no ato proposto. Nesse caso, sua interferência
não poderia ser qualquer, mas, sim, pensada de alguma sorte, fosse para modificar
o que já estivesse estabelecido, fosse para deixar o gancho para uma próxima in-
tervenção, pois, apenas num desses casos, poderia ver-se como parte do processo,
já que, se nele desaparecesse de algum modo, também o sentido da participação
em si mesma estaria para ele perdido. Contudo como tal percepção da própria par-
ticipação poderia se dar sem que o interventor encontrasse uma forma? Mas, ora,
encontrar uma forma não o lançaria ao campo de potencialidades do belo e não do
sublime? Claro é que ele poderia tentar a comunicação por algum símbolo4, caso em
que, a menos que conseguisse alguma forma de deslocamento deste no conjunto,
estaria lançado para fora do campo de uma comunicação aberta ou expandida e,
logo, mesmo da possibilidade do belo. Desse modo, por uma evitação do completo
alijamento do belo ao menos, é preciso considerar que ele estivesse buscando alte-

4 A partir de Charles Sanders Peirce, Santaella (1994, p. 162) lembra que o símbolo depende de uma
convenção ou lei de que ele é portador.

1140
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

rar o conjunto de modo a expressar algo que não pudesse ser claramente dito5, algo
que se incrustasse na forma e pudesse ser por outrem sentido à sua própria maneira.

Assim, nas possibilidades até o momento consideradas, a potência do sublime não


pareceu ainda plausível. Sob que hipótese ela poderia se potencializar para esse in-
terventor que se encontrasse no terminal, com alguma forma de televisualização da
Quatre-Pavés? Como a experiência de intervir num desenho por meio de um termi-
nal de computador poderia esgarçar a sensibilidade do participante e o levar a um
lapso formal como prerrogativa do sublime? É preciso admitir que, para o interven-
tor, enquanto emissário, o sublime não seria possível simplesmente porque, por de-
finição, este deve corresponder a um ultrajamento da natureza humana e, portanto,
jamais estar numa ação volitiva própria e, logo, prevista, embora ele possa ser possí-
vel a partir de uma resposta a uma tal ação. Desse modo, seria preciso que o usuário
do terminal fosse surpreendido e não o autor de uma forma que, tendo sido por ele
pensada, não poderia lhe conter o quer que fosse de sublime. Para uma emergência
do sublime, esse usuário deveria ser o receptor de algo que o aterrasse; algo como
o desenho em formação lhe dizendo de alguma coisa da qual somente ele tivesse
como ter conhecimento ou algo como o desenho assumindo um sentido súbito e
de precisão tal que impossível a uma formação coletiva, como se essa formação lhe
parecesse, de alguma sorte, alienadamente autônoma, por exemplo. Nesta última
consideração, finalmente, demos com alguma possibilidade de sublime numa frui-
ção do trabalho de Anglade, mas que, é preciso admitir, demandaria do participante
muito interesse, envolvimento, atenção ativa, engajamento.

Sigamos, tomando, para o momento, um outro caso de partipante ou espectador


hipotético, alguém que, sem estar a par dos terminais sequer, estivesse em alguma
forma de avistamento de passagem pela Quatre-Pavés. Suponhamos a melhor das
condições para que a experiência tivesse alguma forma de alcance estético junto
a ele. Imaginemos esse espectador sem companhia, desempedido de processos
conversacionais que pudessem lhe consumir a mente, de modo que sua atenção
estivesse mais provavelmente livre para ser capturada pelos sentidos; e sua mente,
solta de alguma operação mental anteriormente iniciada, alguma preocupação,
por exemplo6. Ele poderia estar próximo ou distante da fonte; a pé ou em veículo
– particular ou coletivo – etc. Tais ainda poderiam ser as variáveis potencialmente
influenciadoras da experiência de avistamento do monumento num tal caso.

5 Kant (como citado em Santaella, 1994, pp. 52-56) concluiu que, no belo, seria indefinido o virtual
entrelaçado ao sensório.
6 Não que esse espectador estivesse impedido de ter a atenção capturada por algum estímulo sen-
sório mesmo em condições desfavoráveis, pois é preciso admitir que esse processo de captura pode
variar muito de indivíduo para indivíduo.

1141
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Em favor da chance de uma atenção mais dedicada e, portanto, de uma maior po-
tencialidade estética da experiência, fechemos um tanto as possibilidades. Vejamos
nosso espectador hipotético caminhando à noite - que é quando as projeções de
Anglade poderiam ser bem vistas -, a cerca de 200 metros da Quatre-Pavés, indo na
direção da fonte, por alguma de suas vias morrentes. Imaginemos que ele tenha visto
a projeção no monumento e que ela lhe tenha chegado à consciência. Melhorando
as chances estéticas da hipótese, consideremos que esse espectador tivesse fixado
sua atenção a ponto de perceber os padrões geométricos componentes do desenho
em formação na fonte e não simplesmente descartado da consciência, quase ime-
diatamente, o que tivesse visto no monumento ou este em si mesmo, desviando,
rapidamente, sua atenção para outro evento ou movimentação própria às ruas, caso
em que lhe seria difícil alguma espécie de aprofundamento ou construção de senti-
do7. Ainda assim, poderia apenas se ter reconfortado com o pensamento de que se
trataria de mais um distrativo ou campanha de iniciativa da prefeitura local, talvez
em associação com alguma empresa. Essa certeza sobre o emissário da mensagem
e sua intenção concorreria para a circunscrição do significante num significado8 uní-
voco, transformando, na verdade, o signo pertinente em símbolo. Isso lançaria por
terra mesmo a possibilidade do belo, pois lembremos que, nele, com Kant (como
citado em Santaella, 1994, pp. 52-56), o virtual correspondente ao estímulo sensório
seria indefinido e inextricavelmente ligado a esse sensório.

Então, para incrementar ainda mais as oportunidades estéticas da hipótese, é preciso su-
por que o caminhante que se aproximasse da Quatre-Pavés assim o fizesse não apenas
para cumprir seu caminho, mas também porque a fonte teria capturado seu interesse
sem que ele soubesse especificar por quê. Num tal caso, seria provável que o significa-
do ainda não se tivesse fechado para ele, embora encontrado de alguma forma. Assim,
algum acesso ao belo seria possível até então. Nesse sentido, o interesse poderia estar
focado tanto no corpo iluminado da Quatre-Pavés quanto ter resultado de um “mergu-
lho” no desenho, em que se recortasse9 dele para si alguma parte e/ou elemento. Há re-
gistros imagéticos desse desenho em formação, por exemplo, em Popper ( 1993, p. 129).
A partir desses registros, sabe-se que houve momento em que o desenho se formava
segundo uma padronagem geométrica e de cores bastante saturadas, aparentemente
sem referenciação figurativa. Como sabido a partir das experiências do Abstracionismo

7 Sem interesse, sem experiência estética (Paula, 2017, pp. 29-34).


8 Umberto Eco (1994, pp. 24-25) deixa entender o signo como modo pelo qual um ente existente
(referente), no mundo ou na imaginação, é mentalizado, “presentificado” na mente (constituído em
significado), pela apresentação de outro ente existente, manifesto (significante), capaz de sensibilizar
algum dos sentidos.
9 Esse “recortar” pode ser entendido tal qual o que Karina Dias (2010, p. 156) explica como sendo
uma extração de um trecho daquilo que se experimentasse, transformando-o num novo todo, um
fragmento, um mediado, que caracterizaria um novo espaço desprendido de seu contexto.

1142
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

e do Minimalismo, comentadas, respectivamente, por Giulio Carlo Argan (1992, pp. 316-
330) e Georges Didi-Huberman (1998), o geometrismo está longe de ser delimitador dos
significados, portanto sem poder, necessariamente, funcionar como atenuante de uma
potência de belo na experiência. Desse modo, as potencialidades do belo permanece-
riam na experiência hipotética na medida em que se mantivesse a possibilidade de se
dar com um significado expandido, indefinido, “nubloso”, podendo sua “forma-signifi-
cante” correspondente variar muito de indivíduo para indivíduo, de experiência para
experiência. Um poderia ficar com um trecho geométrico do desenho projetado; outro,
com o contraste da luminosidade de todo o quadro com a noite; um terceiro, com uma
fusão dessa luz ao “corpo-ser” da Quatre-Pavés; um quarto, com o emergência de outro
contexto geral com relação ao contexto habitual do lugar não interferido etc. Mas como
o sublime poderia emergir numa hipótese semelhante a esta última em exame?

Numa hipótese de emergência do sublime, não poderia haver, sequer, recorte de


alguma forma. No sublime, ao contrário do belo, o significante seria informe, “in-
delimitável”. Não haveria, portanto, conjunto geométrico, quadro ou corpo da Qua-
tre-Pavés. Tais não poderiam ser os significantes, por exemplo. Encontrar o sublime
seria questão de buscar no conjunto do quadro situacional algo terrorífico, uma
autoconstatação de pequenez em frente de alguma modalidade de imensidão. Ao
contrário de um de nossos espectadores hipotéticos anteriores, o usuário do ter-
minal, que, conhecendo a operatória formativa do desenho e nela tomando parte,
poderia aterrar-se com alguma sorte de desvio ou autonomia inesperada e inumana
nessa formação se tal fosse o caso, o espectador passante, ora, em exame, poderia
não saber, sequer, como o desenho projetado na fonte estaria a se fazer; e o visível
seria, então, sua única referência. Seria preciso que alguma forma de paradoxo visual
se lhe apresentasse e questionasse o próprio funcionamento da visão, do corpo, a
localização da mente etc., por exemplo. Tal possibilidade parece ainda mais remota
que a do sublime para o usuário do terminal.

Costa (1995, pp. 37-38) justifica o sublime tecnológico no trabalho de Anglade por
vê-lo num grupo de obras que proporiam a dissolução do sujeito numa espécie de
éter coletivo. Nesse sentido, emergem as seguintes questões: por que ponta sensó-
ria do trabalho estaria o espectador sofrendo a operação de redução do humano
própria ao sublime? Quando enviasse seus sinais por um dos terminais? Quando
visualizasse a Quatre-Pavés? O que poderia haver de aterrador nessas operações?
Quais seriam as chances de ele perceber no desenho projetado alguma espécie de
autonomia formativa alienada de si ou do humano? Se essa autonomia lhe fosse
apenas informada, racionalizada, sabida e não sentida, não seria correto entender
sua experiência pelo campo do sublime.

Passemos, para o momento, à consideração de outro trabalho: Celestial Wheel (Roda


Celeste), 1970, de Jean-marc Philippe, também catalogado por Popper (1993, pp. 130-
133). Para construir sua “roda”, o artista usou 40 satélites - dos 200 então já colocados

1143
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

em torno da Terra - em órbitas eqüidistantes do planeta, utilizados para prever tempo


ou mesmo propiciar telecomunicações. Os satélites possuíam uma espécie de olho
emissor de laser, que podia ser ativado por controle remoto a partir da Terra. Esses
“olhos”, quando ativados, podiam emitir uma luz mais brilhante que a de Vênus - numa
visão comparada a partir da Terra provavelmente. Uma espécie de coroa podia ser vis-
ta, então, no céu – presuntivamente, se ativados todos os “olhos” dos satélites usados
pelo artista. A “coroa” em torno do planeta devia, assim, poder ser vista em posições
diferentes, dependendo da localização do espectador: mais proximamente ao equa-
dor, ele vê-la-ia no meio do céu; mais proximamente aos pólos do planeta, mais perto
do horizonte. Segundo Popper (1993, p. 132), havia a possibilidade – provavelmente,
acendendo sequencialmente as luzes dos satélites usados - de simular o deslocamen-
to da luz entre eles e vê-la dar a volta a cada 0,9 segundos. Para o autor, Celestial Wheel
traria para uma escala perceptível aos sentidos a velocidade da luz, “domesticando”
para o humano dimensões monumentais (Popper, 1993, p. 130); argumento pelo qual,
presuntivamente, julgaria o autor poder localizar na categoria do sublime o trabalho
de Philippe; o que, muito provavelmente, Costa (1995, p. 40) também faria, mais espe-
cificamente, em sua subcategoria do “sublime domesticado”.

Assim, parece preciso questionar o ponto de vista de Popper também sobre o trabalho
de Philippe. Recorramos, uma vez mais, à fruição imaginada: pensemos num espec-
tador que tivesse uma vista do trabalho do artista muito próxima do registro no livro
de Popper (1993, p. 130). Com base na descrição de Popper, esse espectador, ou veria
uma coroa de “estrelas” próxima do horizonte, ou algo como um cometa saindo de
um lado dele e reentrando de outro, numa trajetória em arco. Nesse sentido, parece
necessário perguntar o que, exatamente, permitiria apurar nesses quadros distâncias
descomunais ou a velocidade da luz. Mais: num tal caso, o que estaria a obra revelan-
do que as estrelas não pudessem? É certo que uma consideração sobre a velocidade
da luz poderia ganhar mais interesse pelo conhecimento de que uma determinada
estrela estivesse a anos-luz de distância de nosso planeta, por exemplo, contudo es-
tar-se-ia partindo de um conhecimento e não de uma experimentação dos sentidos,
numa direção contrária à recomendada por Didi-Hubberman, para quem, olhar a obra
pediria voltar, justamente, “ao mais simples [...] às evidências obscuras do começo” [...]
ao que nosso saber não pode esclarecer” (DIDI-HUBERMAN, 1990, p. 26, tradução nos-
sa)10. Imaginemos, então, como poderia se dar a experiência com a obra de Philippe
sem o conhecimento acerca de sua estruturação por satélites.

Numa primeira possibilidade, vejamos um espectador hipotético do passado, no


registro imagético do trabalho de Philippe, trazido por Popper (1993, p. 130), fren-
te a um enorme arco de luzes no horizonte, durante o dia. Tomemos que ele não

10 Il faut pour cela revenir au plus simple, c’est-à-dire aux obscures évidences de départ. Il faut laisser
um moment tout ce que nous avons cru voir parce que nous savions le dénominer, et revenir désor-
mais à ce que notre savoir n’avait pas clarifier.

1144
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

soubesse da disposição dos satélites. Certamente, haveria não apenas de estranhar


tamanha regularidade no céu como também, caso fosse frequentador da região, a
novidade da vista. Consideremos que ele estivesse só, como se houvesse parado
numa estrada, para dar pausa numa eventual viagem. Isso quer dizer que ninguém
poderia o esclarecer sobre a visão; mas, ainda assim, a depender de sua bagagem
cultural, claro, os satélites poderiam ser cogitados. Porém, tão somente pela consi-
deração deles, a questão estaria já resolvida; e a forma, a denominação, encontra-
da, de modo fechar o campo ao sublime. Suponhamos, agora, que esse espectador
não soubesse, sequer, o que seria um satélite. Ele estaria diante de um arco regular.
A própria identificação geométrica denunciaria o atingimento perceptivo de uma
forma11 e, novamente, estaria vedado o acesso ao sublime. Mas não ao belo. Claro é
que, mesmo antes deste, a simples possibilidade de nulidade estética rondaria a ex-
periência. Alguém poderia dizer que, para si, o tal arco seria apenas a coroa de Cristo.
Outro, talvez, falasse de uma uma espécie de portal. O fato é que as associações indi-
ciais e icônicas12 poderiam se multiplicar ad infinitum. Embora a simples emergência
delas não desqualificasse a experiência esteticamente, mas, sim, a emergência tão
somente delas, uma vez que poderiam se estabelecer lateralmente ao virtual com-
plexo que devesse tomar parte numa experimentação do belo, por exemplo (PAULA,
2017, pp. 62-66). Contudo, se estabelecem-se, centralmente, na experiência, muito
provavelmente, mesmo a possibilidade do belo estaria perdida.

Para entender melhor, retomemos nosso espectador hipotético. Imaginemos que


ele tivesse associado o arco do trabalho de Philiphe às estrelas dispostas em círculo
na bandeira da União Européia, por exemplo. Seria uma associação de natureza sim-
bólica; e o afeto não estaria dela excluído necessariamente, uma vez que esse espec-
tador pudesse experimentar, por exemplo, algum tipo de sentimento de patriotismo,
fosse includente, fosse excludente, algum modo de orgulho ou decepção política
apenas etc. Porém, numa tal hipótese, haveria mais que uma delimitação de forma,
haveria também uma delimitação do virtual por ela trazido, varrendo da experiência
mesmo a possibilidade do belo tal como entendido neste artigo. Então tomemos,
para o momento, uma outra possibilidade: nosso espectador hipotético teria visto o

11 Ainda que esse espectador tivesse escolaridade reduzida e não conhecesse mesmo as formas ge-
ométricas, o arqueamento não lhe seria, necessariamente, alheio, uma vez que poderia o reconhecer
no contorno da tampa de uma panela ou como posição potencial no próprio corpo.
12 Para falar de formas de associação, Charles Sanders Peirce (2005, p. 46) utiliza o conceito de signo.
Um signo seria a relação entre uma ideia ou interpretante e algum aspecto de um objeto; aspecto
escolhido segundo um fundamento. O interpretante podendo ser também outro signo. Para falar da
relação entre o signo e seu respectivo objeto, Peirce (2005, p. 52) cunhou as categorias: ícone, índice
e símbolo. Um signo seria um ícone quando se associasse ao objeto em virtude da igualdade - ou
analogia - de caracteres entre eles. Um signo seria um índice quando se ligasse ao objeto em razão
da possibilidade de sofrer deste alguma forma de interferência - ou vizinhança. Um signo seria um
símbolo quando se associasse ao objeto por meio de uma lei ou determinação – prévia.

1145
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

arco no céu como portal. Mais que isso: por alguma razão, ele o teria sentido como
tal, como se, passando por ele, pudesse encontrar, do outro lado, um mundo onde
tudo lhe seria diferente. Imaginemos que tal sentimento fosse tal que ele desejasse
caminhar na direção desse arco para com ele continuar sonhando acordado ainda
que sua razão lhe dissesse que jamais o alcançaria. Esse desejo poderia indicar, por
exemplo, que não teria querido abrir mão do prazer, fosse do transbordamento de
uma imaginação que não cessasse de considerar tudo quanto pudesse ser do outro
lado do “portal”, fosse da sustentação do balanço entre uma razão que lhe dissesse
que coisas do gênero não seriam possíveis e uma sensibilidade que com ela insistis-
se em teimar. Em todo caso, tratar-se-ia de uma forma de indelimitação do virtual/
significado conexo à experiência, o que nela deixaria aberta a via de acesso ao belo;
aliás, num de seus mais interessantes veios: o fantástico13.

Até então, neste artigo, foram examinados exemplos que poderiam ser encaixados
em duas das subcategorias reclamadas por Costa (1995, pp. 38-42) para seu sublime
tecnológico: 1) o sublime na dissolução do sujeito e 2) o sublime na domesticação
do imenso na natureza. No sentido de contemplar mais subcategorias do autor, po-
deríamos ainda considerar o que seria passível de se chamar o “sublime da virtuali-
dade”. Nessa subclasse, Costa (1995, pp. 48-51) teria destacado a imagem de síntese,
apontando a incomensurabilidade do virtual que nela se encerraria e seu completo
descolamento do “matérico-vital” próprio ao ser humano.

Para instanciar tal subclasse em nossa consideração, tomemos um trabalho próprio,


intitulado “Trajetos do Desejo”, uma realidade virtual interativa de 2002, apresenta-
da nas coletivas artísticas: “Ciberplanos” (2002, Galeria da 406 norte da UnB, Brasília,
Brasil); “Brasil, Brasília e os Brasileiros” (2002, Palácio do Itamarati, Brasília, DF, Brasil;
Palácio das Artes, Belo Horizonte, MG, Brasil); “Cinético Digital” (2005, Itaú Cultural,
São Paulo, SP, Brasil); e Mostra do 8º Simpósio de Gráfica Digital/Sigradi (2004, São
Leopoldo, RS, Brasil), onde, juntamente com outras realidades virtuais, de mesma au-
toria, conquistou o prêmio de melhor trabalho da mostra. “Trajetos” foi criada a partir
da construção de algoritmo codificado em linguagem de programação específica
para controle de linguagem de formatação de realidade virtual. Esse algoritmo ali-
nhava partículas em quatro eixos retos e espacialmente coincidentes, contudo con-
feria-lhes a pontecialidade de um comportamento de arqueação ou encurvamento
segundo a equação de uma espiral, de modo que, abrindo o arquivo corresponden-
te ao trabalho em questão, podia-se ver os eixos curvando-se progressivamente e,
assim, também se separando, diferenciando-se, abrindo-se em sincronia, de modo

13 Maria João Simões (2007, p. 66) lembra que o fantástico pode ser pensado como modificação do
belo. A autora fala do fantástico na literatura, mas lembra que ele extrapola esse domínio e emerge
diversas vezes em outras artes. Fala primeiramente do fantástico como experimentação de dúvi-
da inquietante no sentido de conciliar dois entendimentos contraditórios sobre um mesmo evento
(2007, pp. 68-69).

1146
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

simétrico, como grupamentos gêmeos. O algoritmo garantia que essa abertura em


curva fosse indefinidamente ampliada, o que, visualmente, na prática, na atualiza-
ção contínua do trabalho posto em execução, também correspondia a um entredis-
tanciamento igualmente indefinido das próprias partículas formadoras dos eixos e,
outrossim, a uma potencial dissolução deles. Muito provavelmente, Costa e Popper
quereriam ver o sublime numa tal potencialidade de infinitude. Todavia, uma vez
mais, convém a uma consideração realmente estética propor uma simulação na pele
de um espectador sem qualquer conhecimento acerca dos bastidores desse traba-
lho, ou seja, alguém que não soubesse da técnica por trás dele e tivesse acesso tão
somente à sua visualidade e capacidade de receber interferências e as responder.
Como poderia ser uma experiência desse expectador?

Ora, hipóteses dela parecem já bem esboçadas em Paula (2004, pp. 90-92), em fa-
las sobre aproximações possíveis com as deformações imaginárias apontadas por
Gaston Bachelard (2001, p.5). Nesse sentido, poderia esse espectador se teleprojetar
numa tal realidade virtual e se sentir, de certo modo, abraçado pelos laços espirais
a dilatarem-se progressivamente? Sentir-se-ia, nas palavras de Bachelard (2001, p.
107), como uma alma terrestre, que gostaria de se defender dos vórtices, ou como
uma alma aérea, que desejaria se precipitar, sem temor, para o alto? Ou alterar-se-ia
no “ser-síntese”, também trazido por Bachelard, da ascensão e do aprofundamento,
da terra e do ar num só ato (Paula, 2004, p. 90)? Quem sabe, ao embalo do som e do
movimento vigoroso das espirais, alterar-se-ia ele no ser que Bachelard (2001, pp.
160-161) advinha na imaginação nietzschiana: o desafiante do ar, aquele cujo arrojo
seria, antes, muito mais uma ofensiva contra o céu que uma paúra da terra? Acederia
ele à sensação desmaterializante, também citada por Bachelard (2001, p. 65) como
excelência do elemento ar, ao esperar até o instante em que as partículas estivessem
tão distantes que o “céu”, o vazio, suplantasse-as (Paula, 2004, p. 91)? E se, porventu-
ra, o atrevimento previsto por Bachelard para um eventual desafiante do ar emergis-
se em nosso espectador hipotético como introjeção de uma forma de vigor por ele
percebida na cinética e fotônica da imagem? Uma eventual identificação ou fusão
psicológica com a imagem sem prejuízo da apuração perceptiva dos pólos “aqui-
-dentro” e “lá-fora” envolvidos traria grande potencialidade estética à experiência,
numa provável apuração do belo pelo viés do estranho, com as devidas mesclas pró-
prias a essa forma de potencialidade: “aqui e lá”, “dentro e fora”, “aqui-fora”, “lá-dentro”,
“aqui, um outro”, “lá, fora, eu” (Paula, 2017, pp. 263-268). Nesse sentido, não estivesse
ainda a experiência bastante sujeita mesmo à total queda estética, não pareceriam
as potencialidades do belo nela mais plausíveis ao espectador que as do sublime?

Assim, é preciso admitir que, antes de adentrar qualquer região do sublime em


trabalhos artísticos dos tipos examinados, o espectador ver-se-ia numa região an-
terior, em prováveis operações de drible em outras alternativas bem mais plausí-
veis, fosse do belo, fosse, ainda mais, da completa nulidade estética, da total falta
de sentido da experiência para si mesmo, caso que poderia ser associado aos pro-

1147
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

blemas sinalados, na relação da obra com público, por Bernard Stiegler (2007, p.
55) e Avelina Lésper (2011, 2012).

De fato, nas exposições de que já tomei parte, nunca dei com algum espectador que
não houvesse sido capturado senão pela visualidade de meus trabalhos artísticos.
Não raro, as expressões “que bonito” e “que lindo” emergiam espontaneamente e,
frequentemente, estavam associadas a participações bastante engajadas, sobretu-
do no caso de trabalhos interativos. É certo que não necessariamente o uso dessas
expressões valida o êxito estético de contatos com trabalhos artísticos (Paula, 2017,
p. 216), mas, certamente, não corresponderiam ao embaraço próprio à égide do su-
blime. Aliás, pude ainda advinhar um fenômeno interessante em alguns casos de
fruição com trabalhos meus nessas exposições: a expressão de desinteresse e/ou de-
cepção quando começava a desfilar para algum espectador os bastidores dos traba-
lhos; muito provavelmente, porque, simplesmente, ele não conseguia uma conexão
consistente entre o visível e os conceitos por mim colocados, esse virtual narrado, a
ciência de algoritmos que incrementavam infinitamente parâmetros de uma espiral
ou criavam formas indefinidamente segundo as interações dele mesmo, por exem-
plo. Contudo não parece razoável descartar a hipótese de que certos espectadores
se teriam comprazido, de fato, justamente, numa apuração recíproca da forma e seu
virtual indelimitado, mais própria ao belo.

Por fim, não haveria uma cisão incurável no termo “domesticação do sublime”, usado
por Costa (1995, p. 40) e Popper (1993, p. 130)? Ora, se extrapolar o humano é a mar-
ca mesma do sublime, domesticá-lo não corresponderia, precisamente, à supressão
de sua condição própria, formativa? Ainda mesmo a asseidade que Costa (1995, p.
46-51) assinala para a imagem de síntese com relação ao mundo e à vida pode ser
questionada, na medida em que, frequentemente, o artista não pode produzir com
tal imagem sem recorrer a seu virtual próprio, sua memória, sua imaginação. Talvez,
nisso, houvesse algum tipo de ironia, pois o mundo e a vida perpetrariam, de alguma
sorte, a imagem de síntese, sem a “tocar”, por meio da poiésis humana.

Referências
ARGAN, G. C. (1992). Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras.

AVELINA Lésper Conferência Magistral (2012). Recuperado em 14 junho, 2014, de


http://www.youtube.com/watch?v=ZtBmTTCdL8o.

BACHELARD, G. (2001). O Ar e os Sonhos (2. ed.). São Paulo: Martins Fontes.

COSTA, M. (1995). O Sublime Tecnológico. São Paulo: Experimento.

1148
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

DIAS, K. (2010). Entre Visão e Invisão: Paisagem [por uma experiência da paisa-
gem no cotidiano] (1. ed). Brasília: Programa de Pós-graduação em Artes / VIS da
Universidade de Brasília – UnB.

DIDI-HUBERMAN, Georges (1990). Devant L’Image. Paris: Minuit, 1990.

DIDI-HUBERMAN, G. (1998). O que Vemos o que nos Olha (1. ed.). São Paulo: Editora 34.

FABRIS, A. (1995). A Estética da Comunicação e o Sublime Tecnológico. In COSTA, M..


O Sublime Tecnológico. São Paulo: Experimento.

FREUD, S. (1976). O Estranho. In S. Freud, Edição Standart Brasileira das Obras


Completas de Sigmund Freud (v. 18, pp. 275- 314). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho
original publicado em 1919).

ECO, Umberto (1994). Signo. Tradução Francisco Serra Cantarell (2. ed). Colombia: Letra e.

ISER, W. (1979). O Jogo do Texto. In JAUSS, H. R. et al. A Literatura e o Leitor (2. ed).
Rio de Janeiro: Paz e Terra.

JAUSS, H. R. (1979). A Estética da Recepção: colocações gerais. In JAUSS, H. R. et al. A


Literatura e o Leitor (L. C. Lima, Trad.) (2. ed). Rio de Janeiro: Paz e Terra.

KIOURANIS, N. M. M. ; SANTIN FILHO, O.; SOUZA, A. R. de (2010). Experimentos men-


tais e suas potencialidades didáticas. In Revista Brasileira de Ensino de Física, v.
32, n. 1. Recuperado em 20 julho, 2019, de http://www.scielo.br/scielo.php?script=s-
ci_arttext&pid=S180611172010000100019.

LÉSPER, A. (2012). El Relativismo de la Crueldad. El Semanário Sin Limites. Recupera-


do em 14 junho, 2014, de http://elsemanario.com/30371/el-relativismo-de-lacrueldad.

PAULA, D. de (2004). Interações na Imagem. In PAULA, D. de. Poéticas de Realidade


Virtual: contextos imaginários de interação (pp. 67-98). Dissertação de Mestrado,
Instituto de Artes, Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil. Recuperado em 29
julho, 2019, de http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/25304/3/2004_Douglas-
DePaula.pdf.

PAULA, D. de (2017). A Memória da Luz: customizações e encontros com o es-


pectador. Tese de doutorado, Instituto de Artes, Universidade de Brasília, Brasília,
DF, Brasil. Recuperado em 23 julho, 2019, de http://repositorio.unb.br/bitstre-
am/10482/24418/1/2017_DouglasdePaula.pdf.

PAULA, D. de (2014). Olhar a Fenestra: do julgado ao vivido. Anais do Seminário


Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual, Goiânia, GO, Brasil, 7.

1149
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

PEIRCE, C. S. (2005). Semiótica (J. T. C. Neto, Trad.). São Paulo, Perspectiva.

POPPER, F. (1993). Art of the Eletronic Age. London: Thames and Hudson.

SANTAELLA, L. (1994). Estética de Platão a Peirce. São Paulo: Experimento.

SCHILLER, F. (1990). A Educação Estética do Homem (1. ed.). São Paulo: Iluminuras.

SCHILLER, F. (2011). Do Sublime ao Trágico (1. ed.). São Paulo: Autêntica.

SIMÕES, M. J. (2007). Fantástico como categoria estética: Diferenças entre os mons-


tros de Ana Teresa Pereira e Lídia Jorge”. In SIMÕES, M. J. (Coord.). O Fantástico.
Coimbra: Centro de Literatura Portuguesa.

STIEGLER, B. (2007). Reflexões (não) contemporâneas (M. B. de Medeiros, Trad.).


Chapecó: Argos.

1150
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Edgard Mesquita de Oliva Jr.1


Composto poético: uma prática da poesia à fotografia.
Poetic compound: a practice of poetry to photography

Resumo
O artigo trata de metodologia aplicada em aulas de fotografia de estúdio nas
quais o emprego da leitura de poemas induz ao processo criativo. Às leituras, em
verso, ou em prosa, objetiva-se associar o exercício fotográfico com interpretação
de texto para formação da imagem poética/discursiva, obtendo-se, assim, o pro-
duto imagem como resultado da reflexão textual. Denominada “Composto poéti-
co”, a metodologia cumpre o objetivo de desenvolver a elaboração e a construção
da cena fotográfica, a qual se processa sob sínteses imagéticas, da poesia à foto-
grafia, estrutura fundamentada no princípio da interdisciplinaridade de conceitos
artísticos para os quais se pretende atingir reminiscências do imaginário que pro-
porciona ao estudante resgatar elementos da paisagem lembrança pertencente
ao contexto simbólico do seu universo pessoal. Os exercícios seguintes dão-se
pela interpretação de uma música, para novos personagens e cenários. O terceiro
exercício é de caráter livre, uma etapa na qual o processo criativo já está instalado.
Palavras-chave: composto poético, fotografia de estúdio, poesia, processos
fotográficos.

Abstract
The article deals with the methodology applied in Studio Photography classes
in which the use of poetry reading induces the creative process. The readings,
in verse, or in prose, aim to associate the photographic exercise with interpreta-
tion of text for the formation of the poetic/discursive image, thus obtaining the
product image as a result of the textual reflection. Called “Poetic compound”, the
methodology fulfills the objective of developing the elaboration and construc-
tion of the photographic scene, which is processed under imagetic syntheses,
from poetry to photography, structure grounded on the principle of interdisci-
plinarity of artistic concepts for which it is intended to achieve reminiscences
of the imaginary which provides the student to redeem elements from the sou-
venir landscape belonging to the symbolic context of his personal universe. The

1 Doutor em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes/UFRJ (2016); Professor Adjunto I, Escola de Belas
Artes da Universidade Federal da Bahia; edgardjunior@ufba.br / edmolivagmail.com; +5571/99974-
6080. Com prática na Fotografia Artística, tem realizado diversas exposições no Brasil e exterior. Tem
atuado como curador de exposições de fotografia em espaços públicos e privados.

1151
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

following exercises are given by the interpretation of a song, for new characters
and scenarios. The third exercise is a free character tipe, a step to which the cre-
ative process is already installed.
Keywords: poetic compound, studio photography, poetry, photographic processes.

Eu estava entre meus 9 e 10 anos de idade


ela trazia à mão, apoiados nos braços,
cadernos, pastas, papéis diversos;
muitos.
Terá sido minha primeira paixão?
Pensei: eu não quero ser professor.

Inevitavelmente a poesia nos remete ao passado. O que está no texto pertence ao


passado, como são as paisagens-lembranças.

Introdução.
O Composto poético traz a possibilidade da mediação do tempo vivido, da tem-
poralidade, do existir, da ação física do corpo, das experiências impostas pela ma-
nipulação da matéria associada à memória, ao metafísico, aos percursos de cada
cidadão. A proposta traz em seu conteúdo metodológico o estímulo ao processo
criativo e discursivo em sala de aula a partir da leitura poética e expansiva – da
poesia à imagem -, para uma revisão do nosso comportamento na sociedade con-
temporânea. Em um primeiro momento, apoia-se na escrita literária, tomando,
como ponto de partida e estímulo para a construção do pensamento reflexivo
a palavra, a poiesis da escrita, como gérmen para a imagem fotográfica, ou um
conjunto de imagens, que possuem em seu “histórico” signos culturais perten-
centes à sociedade contemporânea, sujeitos que nos interessam como processos
de absorção – autofagia –, que se externalizam por desabrochar em rachaduras,
interseções e enfrentamentos entre passado e presente diante da ação coletiva,
individual, social e política.

Desenvolvimento.
Na nossa percepção e a partir das experiências teórico-práticas desenvolvidas em
sala de aula, e em processo de (re)construção do método desde o ano de 2016, ten-
do como foco o caráter construtivo e poético da imagem fotográfica, procuramos
direcionar a disciplina Fotografia II-A, definida na ementa como “estudos da luz em

1152
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

estúdio fotográfico, tipos e qualidades dos filmes2, contrastes e cor na imagem para
produto de publicidade”. Como possibilidade de avançar para uma proposta de
conduto interativo e estritamente contrário à limitação do estudo teórico da técnica
para o processo fotográfico em estúdio, priorizamos estímulos criativos com expec-
tativa para a elaboração de uma imagem potencialmente discursiva. Numa percep-
ção geral, a imagem fotográfica, ou qualquer imagem a qual tenha sua origem a
partir de ações manuais/mecânicos através da mão do homem, como os processos
de gravação ou registros sobre suportes tecnicamente possíveis, a imagem resultan-
te deverá pertencer a uma atitude singular do pensamento, a qual o sujeito gerado
tenha potência de reverberar diante do contexto social e emergente da população.
O poeta e o fotógrafo se aproximam a partir do “corpo poético” invisível – metafísico
–, para o “corpo matéria” – sujeito –, possível de visibilidades. Segundo Navas (2017),
“A fotografia e a poesia são mais abissais do que sequenciais” (NAVAS, 2017, p. 21).
Define assim o autor citado em suas idiossincrasias a respeito das ocorrências das
imagens visíveis ou pertencentes ao imaginário. Entre o fundo abissal e a realidade,
instala-se eidos, instante de criação, ou seja, a indução, o preparar para a percepção
e construção da emergência da imagem, desejo de si – interior -, e desejo pela ima-
gem, ver em si, em exterior.

Foi pensando em uma metodologia da diversidade, ou seja, no exercício para a


construção de uma lógica reflexiva a partir do texto, que iniciamos o método de-
nominado Composto Poético, que, na práxis, procura ir além da poesia e da simples
interpretação do texto. Entretanto, avançando através dos processos de construção
de uma imagem que reverbera, aberta e de caráter discursiva. Assim, deseja-se a
não repetição dos métodos fechados no processo de elaboração e tecnologia para
a construção da imagem tradicional em ambiente educativo que, na maioria das
turmas de alunos para as disciplinas designadas Fotografia, Estética da imagem,
etc., sejam elas ministradas em salas de aulas, ambientes abertos ou grupos inde-
pendentes de cursos particulares de fotografia onde se dá maior valor à técnica e
ao manuseio do equipamento. A partir dessa premissa, colocamos a seguinte per-
gunta: para que serve uma imagem? Na atualidade, para falarmos e enfrentarmos
o contexto social e político do mundo contemporâneo, é necessário observarmos
atentamente as questões imagéticas, o que elas nos propõem ao olhar. A partir da
nossa reflexão propomos às escolas, às turmas de alunos que pretendem entrar no
campo da produção imagética, sejam nas técnicas da gravura, pintura, desenho,
ou qualquer outra forma de expressão gráfica, que se apropriem da imagem como
veículo difusor do pensamento elaborado a partir de um acontecimento imediato.

2 À época da criação da disciplina ainda não havia o emprego massivo das câmeras fotográficas di-
gitais, portanto, as aplicações teórico-práticas foram projetadas para filmes, tecnologia tratada até o
presente, embora atualmente trabalhemos com uma câmera digital, sem, contudo, abandonarmos
os conceitos analógicos.

1153
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Sobre o acontecimento, Silvio Gallo o define como uma “forma de resistência” [...], e
completa: “Para resistir, é importante abrir-se ao acontecimento”; (GALLO, 2007, p.
39). Seguindo na premissa da resistência, buscamos na metodologia do Composto
poético a nossa propriedade para criar, para pensar, refletir e executar a produção
da imagem fotográfica com a equação: poema + leitura x música + leitura = execu-
ção do pensamento livre e construção da imagem que reverbera no outro corpo,
olhar atento. Procura-se, assim, sair do repetitivo, da linearidade do constructo, da
hegemonia do método simples, da fórmula pronta, do resultado fácil. Dirigimos a
proposta para um modelo de criação a ser exercido com os alunos que acorrem ao
aprendizado da fotografia e oriundos de diversos cursos da universidade, buscando
o grande incentivo à reflexão que, a partir do primeiro contato, é feita a seguinte
proposição: professor apresenta o método e aponta os ingredientes. Eles, estudan-
tes, constroem o bolo, sem receita pré-fabricada, mas com a massa consistente e o
desejo de dar certo. Os questionamentos, as dúvidas e os desafios vão surgindo no
processo do trabalho, com resistências pertinentes ao exercício, contudo, criativa-
mente reelaborados. Para tanto, nos alinhamos a uma afirmativa de Gallo: “Resistir
e criar. Essas são as possibilidades que nos abrem o cotidiano na escola, quando
escolhemos agir no fluxo dos acontecimentos.” (GALLO, 2007, p. 39)

Durante o processo de reflexão para a construção do artigo, defronto-me com a lei-


tura de “a imagem no ensino da arte”, de Ana Mae Barbosa, 2009, pesquisadora e
educadora brasileira conhecida internacionalmente pela difusão do método educa-
cional que direciona a ação para o aprendizado e o pensamento reflexivo. Percebo
que nosso “encontro” se dá na formatação da triangulação de fazeres a partir de nos-
sas metodologias e resultados esperados a partir do que Ana Mae Barbosa descreve
como método e tecnologia do ensino que denomina de “Abordagem Triangular”.
Diante dos questionamentos para um diferencial no ensino da fotografia de estúdio,
passei a denominar o método aplicado em sala de aula de “Composto poético”, tecno-
logia que reúne um conjunto de fatos que passam a (des)construir a imagem primá-
ria, contudo, levando-a a uma imagem singular e reflexiva, reverberante na proprie-
dade da proposta e suas contextualizações, similar no conceito da pesquisadora Ana
Mae, ao passo que diferente na origem para com o exercício proposto e, sobretudo,
análogo ao processo do ensino-aprendizagem. Na tecnologia do “Composto poético”
temos o poema, a letra/texto da música e os processos de leituras e interpretações
que conduzem para a elaboração e a construção do conteúdo liberto da estética
formal para o produto consumível, no entanto, elaborado para o grau da contextua-
lização social, política e pessoal. O método é constituído de três etapas importantes:
leitura e interpretação do poema/texto em prosa; elaboração de projeto visual e exe-
cução da proposta de iluminação; composição para a imagem fotográfica.

O gatilho que fez dar início à aplicação do método foi a leitura de dois poemas im-
pressos em folha de jornal, guardados cuidadosamente por muitos anos sob forma
de recortes, em um velho envelope, arquivados em virtude da boa intenção dos

1154
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

versos. Após uma segunda leitura, refleti sobre os poemas. No primeiro me cha-
ma a atenção a presença do elemento “noite”, cuja obscuridade dos fatos também
é tratado como objeto da minha investigação de tese como espaço de ausências,
escuridão e medos, tensões e reflexões, na diversidade de ambientes com baixa lu-
minosidade ou da luz suave refletida em noite de lua cheia, uma luz que tem no seu
brilho ressonâncias poéticas. No segundo poema, a autora cita a “rocha”, elemento
de resistência, quase imutável, de difícil lapidação e que se desgasta no tempo na
longevidade da sua dureza. O vento, a água, o atrito, os atritos a decompõem.

Observando uma das estrofes do poema, a Autora 1 (Nádia Lopes)3 faz imersão na
significância dos fatos, cuja palavra tem léxico para sensações de paisagem memória,
coisas guardadas por nós. Vejamos:

“antigamente
as noites tinham
cadeiras nas calçadas
estrelas e grilos”
[...]

A autora 2 (Célia Maciel)4 nos dá a dimensão poética do concreto, da rigidez da ma-


téria, do rasgar o vazio e silencioso, do secreto desejo do rebento, da liberdade, olhar
dentro de si, outro olhar, não à margem.

“Homem que amo pinta os murais


dos meus quintais, guarda a
idade das minhas dores e pinta
ideias de liberdade. Planta
árvores de louvação
aos que rebentaram o silêncio
quando o silêncio era rocha.”
[...]

Do composto da “noite” e da “rocha”, nasce a imagem a partir do espelhamento do


verso, a poesia como substância para percebermos como as paisagens-lembranças
e os objetos nos tocam, uma troca entre nós – o olhar –, o mundo exterior da rocha
– a coisa –, e a noite – obscuridade e reflexão –, do exterior para o interior. O interior
como substância, unguento, para a ligação entre “coisa e olhar”. Heidegger (2006)
trata a “coisa”, exemplificada por uma jarra e diz: “... um receptáculo, algo que recebe

3 O recorte de poema da autora Nádia Lopes inserido neste artigo é de longa data guardado em
minha gaveta de recortes. Não possuo nenhuma outra referência sobre a continuidade do trabalho
da autora e, por essa razão, não a consegui identificar pelo sistema de busca na internet.
4 Idem para Célia Maciel.

1155
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

outro dentro de si, um recipiente” (HEIDEGGER, 2006, p. 144). Seguindo a premissa


heideggeriana, podemos estabelecer a relação poesia e fotografia/imagem, como
“jarra” fundamentada na constituição do produto visual a partir da liga a qual com-
preendemos como ‘interior da coisa’, princípio e significado do objeto resultante da
escrita, produto da formação embrionária do poema, da palavra, do espirar. Heide-
gger (2006) ainda afirma que: “Só podemos pensar se temos gosto pelo que em si
é o que cabe pensar cuidadosamente”; (ibidem). Temos, então, a poesia como texto
de “si”, e a imagem como produto irrefutável da essência poética, em si como “coisa”.
Nunes (1999) pensa os objetos como “úteis”, elementos palpáveis, porém cercado de
significado e referências, “... referências que são auto-remissivas, ou que têm entre si
um regime de remissão recíproca, isso já pressupõe mais do que um comércio com
os entes” (NUNES, 1999, p. 61). E é essa ligação com o mundo interior – a poesia –,
e o mundo exterior – a imagem –, que traz à visibilidade a coisa em si, cercada de
referências passadas, sejam elas familiares, históricas, políticas e sociais, enfim, o que
nós, como seres pensantes e produtores, trazemos à reflexão para as coisas, ou fatos,
que estão ao nosso redor. Complementa nossa reflexão, ainda conforme Nunes: “O
mundo ‘circundante’ é como um complexo utensiliar. Ao lidarmos com os ‘úteis’ não
lidamos com eles, um a um; há remissão constante de um a outro, como entre as
coisas que – uma mesa, por exemplo – possuem para nós uma significação” (NUNES,
1999, p. 61). Embasado nos conceitos acima, em nossos exercícios teórico-práticos,
pensamos a poesia como ratio para os primeiros experimentos poético-visuais, ou
seja, embrião para a formação de um pensamento estético-visual direcionado à ação
que permitirá, nas demais práticas, ser empuxo remissivo de outras imagens, ima-
gens da memória latente, imagens constituídas de eidos que se tornarão imagens
do presente. Essas imagens também evocarão o futuro, previsão de ser, acontecer.

Dos exercícios
Após a leitura dos poemas mencionados acima, ambos funcionaram como gênese
para a metodologia a ser empregada nas aulas teórico-práticas. Partimos, assim,
para o primeiro exercício tendo como ponto de partida a reflexão sobre o significa-
do da palavra, do verso e do todo que contém a poesia. Aos alunos é solicitado que
façam uma leitura e reflexão a partir do conteúdo poético, da interpretação do ver-
so, do significado de cada palavra. Sim, a dimensão e o que reverbera da palavra
instaurada na poesia se torna imagem no corpo redutor do espaço e significado
imagético, produto visual e, quiçá, palpável, construído / manuseável. O processo
se expande através da lembrança, do afeto e do que toca no leitor observador os
significados da escrita, a poiesis e a temporalidade que emerge em cenas, coisas
do presente, objeto de análise para o produto imagético. Através da nossa pro-
posição a poesia resgata, imageticamente, algo/alguém, coisa(s), cujo significado
poderá estar associado a determinado fato simbólico, metafisicamente associado
à matéria, fazendo emergir da memória latente o propósito final da associação

1156
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

imagem-ser-vida. Elementos diversos e de origem análoga compõem a paisagem


final, redutora da imagem texto, conduzida à significância do ser útil. O projeto de
luz, a utilização da câmera e montagem da cena, faz compor esse conjunto de sig-
nificantes. Vejamos, nas imagens a seguir, as primeiras experiências do composto
poético, cuja pequena variação de luz tem seu uso intencional.

Figuras 1 e 2: Os objetos constituintes do composto primário se tornam redutores da poiesis

Figuras 3 e 4: Composições dedicadas ao primeiro ensaio para o Composto poético. Fotografias


realizadas pelo professor Edgard Oliva, 2016, como estudos para a relação cena e luz, com
contrastes e saturação variáveis.

A etapa seguinte do exercício aplicado para um segundo momento de aprendi-


zado do método, dá-se através da leitura e interpretação da poesia/letra de uma
música selecionada, geralmente de autor brasileiro. Para nossa compreensão, o
‘estudo’ da letra de uma determinada música, ou as notas de uma música de câ-
mera, intui a imaginação para o processo redutivo às lembranças. Assim como a

1157
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

poesia escrita/falada, a música traz à nossa imaginação imagens. Imagens recen-


tes, imagens do passado, imagens que desejamos como materialidades no futuro.
Imagens que criamos nos momentos melódicos.

A escolha inicial foi para a música “Terra”, de Caetano Veloso, canção elaborada a
partir da imagem da Terra fotografada pelo astronauta Willian Anders (1968), quan-
do “navegava” sob a órbita da lua. Composição que nos levou a refletir sobre a ro-
cha, a escuta, o isolamento, transformações no conhecimento, situações e valores
que desencadearam processos imersivos. Para o exercício, um dos grupos trouxe
a imagem de capa de revista que mostrava a Terra fotografada do espaço quando
os astronautas estavam na órbita do astro observado. Segundo o sítio TechBreak
(https://techbreak.ig.com.br), “A missão Apollo 8 foi a primeira a ter uma nave tripu-
lada a orbitar a Lua e retornar à Terra. [...]. Conhecida como “Earthrise”, ou “nascer da
Terra”, esta foto foi capturada em 24 de dezembro de 1968 durante essa missão”. A
imagem foi capturada pelo astronauta Willian Anders cujo registro pela NASA tem
a identidade AS08-14-2384. A Terra vista da Lua e a composição “Terra” de Caetano
Veloso trazem uma similaridade: explorar o desconhecido, imaginar o imaginário,
desbravar novos territórios, resignificar conceitos, sensações da terra natal no exílio,
emoções e mudanças de paradigmas sobre a Terra global. À época, a ditadura mili-
tar, no Brasil, limitava horizontes. Vejamos:

Figura 5 (esquerda): Imagem de autoria do astronauta Willians Anders, 1968. Crédito: Laboratório
de Análise e Ciência da Imagem, NASA – Centro Espacial Lyndon B. Johnson.

Figura 6 (direita): maquete para “Terra” produzida com globo de isopor e papietagem. Autorias:
Bianca Gonzalez, Lívia Domingues, Marcela Miranda e Naiara de Carvalho.

1158
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

No artigo publicado em 21 de dezembro de 2018, o pesquisador e professor Lean-


dro Siqueira diz:

No Brasil, a edição de 18 de janeiro de1969 da revista Manchete também dedicou páginas duplas
à Earthrise. Encarcerado pela ditadura militar, logo após a edição do Ato Institucional n° 5 em
dezembro de 1968, o cantor Caetano Veloso, inspirado pela imagem publicada na revista, anos
depois compôs a canção “Terra”, lançada no álbum Muito (Dentro da Estrela Azulada). O composi-
tor exprimiu assim o acontecimento: ‘Quando eu me encontrava preso na cela de uma cadeia /
Foi que vi pela primeira vez as tais fotografias / Em que apareces inteira, porém lá não estava nua
/ E sim coberta de nuvens / Terra, Terra, / Por mais distante o errante navegante / Quem jamais te
esqueceria?’. (Fonte: Zum: revista de fotografia. Recuperado em Google, 28/08/2019).

Assim estava descrita imageticamente nossa mensagem: Terra, para que te quero!?

No período seguinte escolhemos a música/letra do tema “Cálice” / “Cale-se” de auto-


ria de Chico Buarque de Holanda e Gilberto Gil, que nos revela o histórico e processo
de criação poética. É-nos revelado, no contexto de documento histórico e impetra-
do pelo órgão de censura à época, o grau da censura, proporcionando ao grupo
aprofundamento conceitual além dos valores estéticos prepostos. Um dos grupos
de estudantes realizou leitura e interpretação da imagem-texto como base para o
embasamento da proposta teórico prática, e descreve:

A música brinca com o trocadilho entre as palavras “cálice” e “cale-se”, muito pertinente para o
período de repressão dos anos da ditadura. Enquanto “cálice” remete à religião católica, ao reci-
piente sagrado que guarda o sangue de Cristo, “cale-se” indica um instrumento de opressão que
causa sofrimento. O primeiro contém o sangue que salva, o segundo, o sangue derramado. (Léo
KIKUCHI, Matheus CABRAL, Paula HOLLANDA e Rudá PERAZZO, período 2017.1)

Vejamos, então, duas estrofes da composição:

Pai, afasta de mim esse cálice/Pai, afasta de mim esse cálice/Pai, afasta de mim esse
cálice/De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga / Tragar a dor, engolir a labuta / Mesmo calada a
boca, resta o peito / Silêncio na cidade não se escuta / De que me vale ser filho da
santa / Melhor seria ser filho da outra / Outra realidade menos morta / Tanta mentira,
tanta força bruta. (Chico Buarque/Gilberto Gil, 1973).

1159
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 7 e 8: Cenas para Cálice: fotografias do grupo constituído por: Léo Kikuchi, Matheus
Cabral, Paula Hollanda e Rudá Perazzo. (2017.1)

Para o grupo constituído pelos alunos AMANDA NARICI, ANDRÉ ANDRADE e JAMILE
MOURA, do período 2017.1, a inversão da imagem de uma mulher no líquido vinho
traz a mensagem da tortura, do clamor pela liberdade de expressão, pelo fim do
sofrimento impetrado aos cidadãos da época e de muitas limitações às expressões
individuais no Brasil. Vejamos o que narram da experiência:

Numa das fotos, obtivemos um resultado interessante a partir da refração dos braços da modelo
no vidro da taça, resultando num efeito fragmentado, que remete à ideia de descontinuidade,
quebra, ruptura, ausência de integralidade ou de autonomia, já que numa ditadura a pessoa tem
a liberdade tolhida ou, em outras palavras, tem os braços quebrados, metaforicamente ou não.
(Amanda NARICI, André ANDRADE e Jamile MOURA, período 2017.1).

Figuras 9 e 10, créditos: Amanda Narici, André Andrade e Jamile Moura.

1160
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Para próximo período, 2018.2, ficou definido o título “Brasil”, música do compositor
Cazuza, estrutura poética que, apesar de quase trinta anos de “nascida”, ainda é de se
perceber verossimilhanças com a atual situação do país, estabelecendo, dessa ma-
neira, uma temporalidade histórica a partir das ações do passado e do presente, nas
quais percebemos perspectivas negativas no contexto social e político do país. Nes-
se estabelecer ligações, os estudantes identificaram na mensagem um amálgama
para reflexão dos acontecimentos atuais. Vejamos:

A composição tenta representar a essência da situação nacional abordada na música ‘Brasil’, de


Cazuza, que faz crítica à desigualdade social. Interpretamos o eu lírico como um pobre margina-
lizado, predestinado a aceitar e se adequar à realidade. O grande ‘negócio’ do ‘Brasil’ [...] é manter
ou aumentar a desigualdade social, e o teu ‘sócio’, em sua maioria, pessoas de classes sociais com
maior poder aquisitivo. Restando sempre as sobras para os mais necessitados. (Amanda LOPES,
Ana Paula BRAZ, Igor Carvalho Barreto PEREIRA e Joseane SANTOS; período 2018.2).

Figura 11 (esquerda), créditos: Amanda Lopez, Ana Paula Braz, Igor Carvalho B. Pereira e Joseane
Santos. Figura 12 (direita), créditos: Rodrigo Sá Barreto e Caroline Nascimento, 2018.2

Para o prosseguimento das nossas ações não nos interessa investigar, como produto
de nossas aulas, apenas a abordagem político-social. Afinal, vivemos, na Polis, imer-
sos numa sociedade de fazeres e afazeres, um drama humano. Sociedades soam de-
sigualdades, mesmo àquelas às quais catalogamos como importantes no ambiente
da natureza selvagem como as abelhas que visitam as flores em busca do néctar, dos
formigueiros que ocam terrenos para construírem seus ninhos, muitos deles com
escravização de outros insetos e até mesmo outras espécies de formigas, das tér-
mitas que perfuram a madeira mais dura para obterem o alimento e fugirem da luz
intensa, grupos de animais que vivem em sociedade e que são importantes para nós
e para todo o ecossistema planetário, ainda que se beneficiem de seus semelhantes.

1161
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Entretanto, não conhecemos um processo de desigualdade de maneira tão brutal


como a humana. Seguimos, assim, para o segundo exercício – período 2018.2 –, em
caráter avaliativo e com livre processo de imersão e construção. O grupo, consti-
tuído por Caroline NASCIMENTO e Rodrigo Sá BARRETO, desenvolve o tema com
abordagem na agressão à mulher, o feminicídio, em condição de acentuado número
de casos no Brasil, quase uma epidemia. Para justificar o exercício, os estudantes
descrevem no título BELA, ESPANCADA E DO LAR. Que

A violência doméstica, pode manifestar-se nas suas formas física, sexual e psicológica, é um pro-
blema de saúde pública, relevante pela magnitude do número de vítimas, bem como pela enor-
me quantidade de recursos despendidos. A violência doméstica ainda pode assumir outras ver-
tentes, como abusos físicos, verbais, emocionais, econômicos, religiosos, reprodutivos e sexuais.
(Caroline NASCIMENTO & Rodrigo Sá BARRETO, período 2018.2).

Como podemos perceber à luz da consciência da proposta, o Composto poético dá


liberdade de produção, etapa na qual os/as estudantes já estão fora dos limites da
cegueira que a delimitam para a crítica construtiva diante dos fatos da atualidade.
Permite-se, assim, a emergência textual e imagética dentro do contexto social e po-
lítico, e até pessoal, um método contrário à práxis contumaz da sala de aula diante
daqueles professores que aplicam ‘fórmulas prontas’, no caso específico da maté-
ria Fotografia. Para a autora Ana Mae Barbosa o fazer arte implica em “... a contex-
tualização para ultrapassar a mera apreensão do objeto.” (BARBOSA, 2009, XXXII).
Para Adolfo Montejo Navas (2017), “O dizer da fotografia nos parece paralelo porque
transborda de sua função visual, à semelhança da imagem na poesia, que transbor-
da da sua reduzida função verbal e comunicativa.” (NAVAS, 2017, p. 26). Ambos os
autores supracitados tratam a arte e a imagem como questões significativas para a
imersão e observação da coisa, ou das coisas, dos fatos e das ações que se constroem
ao redor do nosso ambiente da sociedade humana. Complemento nosso raciocínio
com a contribuição de Maria Inês Petrucci Rosa, em seu comentário sobre o filme
Nenhum a menos (Direção Zhang Ymou. China, 1999): “É necessário produzir trans-
formação no modo de agir dos indivíduos, por meio da interação entre eles e deles
com a sociedade”. (apud PETRUCCI ROSA, 2007, p. 44). E assim desejamos que a foto-
grafia artística, publicitária, poética, documental, ficcionista, de natureza e todas as
maneiras de se produzir a imagem fotográfica, que ela exerça sua função pública: de
renovar, de rever conceitos, de trazer a poiesis no conteúdo de sua mensagem, que
veicule novos meios de interação e de reflexão, sobretudo sobre a sociedade urbana,
comprimida em seus muros de poderes.

1162
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figuras 13 e 14: Créditos: Rodrigo Sá Barreto e Caroline Nascimento, 2018.2

Conclusão
Nesses sete períodos de aplicação do método Composto poético pude verificar o
crescimento e o interesse dos grupos de estudantes pelo desenvolvimento da pro-
posta em sala de aula. Inicialmente percebo que há um certo estranhamento na ex-
pressão deles como se / me perguntassem: poesia em aula de fotografia? Sim, poe-
sia em aula de fotografia, a poesia como meio catalizador de emoções, de sensações,
de produções. O início, ou o composto poético em si, reúne elementos trazidos pelos
estudantes à memória a partir da leitura em sala de aula. Em alguns casos não reme-
tem à memória pessoal, de cunho familiar, mas aos contextos emergentes da socie-
dade contemporânea como o feminicídio, as segregações raciais, a liberdade de ex-
pressão na fala e, sobretudo, das identidades LGBTQi+, dúvidas e posicionamentos
da sociedade contemporânea que procura se libertar de pré-conceitos cultivados
no passado. Dessa maneira, a aplicação do Composto poético traz à luz do processo
criativo a práxis da reflexão, a reflexão para o nosso dia a dia, a reflexão para o nosso
fazer, uma reflexão para o que desejamos fazer com o produto final, como ele tocará
nossos canais de sensibilidade, o olhar do outro, as mudanças que poderão advir.

Foram sete práticas / períodos, ricamente produtivos, contando com o início que
denomino de primeira experimentação, ou o Composto poético propriamente, com
abordagem e orientação sobre o uso correto de equipamentos do estúdio fotográ-
fico. Em seguida procedemos a orientação para se trabalhar com determinada me-
lodia e sua respectiva letra, “matriz” ou “gérmen”, que faz desencadear o processo
criativo e intenso nos estudantes. No terceiro momento, sem indicação alguma do

1163
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

professor / orientador, cuja função é apenas orientar a construção do projeto final,


percebe-se o quanto houve de crescimento nas etapas de idealização, construção
e execução das propostas. Assim, chegamos à conclusão de que o estímulo dado
na partida do período letivo, poeticamente trabalhado, e os resultados alcançados
trazem grandes pontos positivos para o método desenvolvido, proporcionando su-
porte estético e reflexivo para a construção da imagem fotográfica, poeticamente
pensada e estruturada.

Sobre o “eu não quero ser professor”, mencionado na epígrafe inicial deste artigo,
concluo que não basta ser apenas professor, mas, sim, ser idealizador de novos mé-
todos, de explorar o diferencial, incentivar o aprendiz, estimulá-lo ao novo, para que
este aplique sempre um diferencial perante o outro, às futuras gerações de aprendi-
zes, antes que a robótica nos exclua.

Referências
BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos. A imagem no ensino da arte: anos 1980 e no-
vos tempos/ Ana Mae Barbosa. – 7. Ed. rev. – São Paulo: Perspectiva, 2009.

CAMARGO, Ana Maria Facciolli de. Cotidiano escolar: emergência e invenção. Ana
Maria Facciolli Camargo e Márcio Mariguela (orgs.) / Piracicaba: Jacinta Editores,
2007.

HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão,


Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback. – 7ª. ed. – Petrópolis : Vozes ; Bragança
Paulista : Editora Universitária São Francisco, 2006, 269 p.

NAVAS, Adolfo Montejo [1954-]. Fotografia & Poesia (afinidades eletivas). São Pau-
lo: Ubu Editora, 2017; 224 pp.

NUNES, Benedito. Hermenêutica e poesia: o pensamento poético/ Benedito Nu-


nes; Maria José Campos (organizadora). Belo Horizonte; Ed. UFMG, 1999.

1164
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Guilherme Paranhos Paes1, Mirtes Cristina


Marins de Oliveira2 and Agda Carvalho3
As coexistências políticas e tecnológicas em Brasil Zero-Zero

Resumo
O presente artigo tem como objetivo analisar o projeto gráfico denomina-
do Brasil Zero-Zero (2019) que foi realizado pelo designer gráfico brasileiro
Gustavo Piqueira. Este projeto é um regaste da memória gráfica e visual da
política brasileira, na qual o designer realizou um levantamento visual sobre
diversas manifestações perceptíveis que variam entre os anos de 1982 e 85
em São Paulo, e 2018 no âmbito nacional. A abordagem deste projeto expla-
na sobre a tratativa da memória gráfica para com os objetos visuais, tanto
em sua materialidade quanto suas composições visuais e funções. Sendo as-
sim, sobre estas produções a partir da própria experiência do autor, expos
novas perspectivas e potências para as relações narrativas e imagéticas de
objetos efêmeros.
Palavras-chave: Design gráfico, Tecnologias gráficas, Memória gráfica, Gustavo
Piqueira, Limites do livro.

Abstract
This article aims to analyze the graphic project called Brasil Zero-Zero (2019) that
was made by the Brazilian graphic designer Gustavo Piqueira. This project is a re-
minder of the graphic and visual memory of Brazilian politics, in which the designer
made a visual survey of several noticeable manifestations that range from 1982 to
85 in São Paulo, and 2018 nationwide. The approach of this project explains about
the treatment of graphic memory with visual objects, both in their materiality and
their visual compositions and functions. Thus, on these productions from the au-
thor’s own experience, he exposed new perspectives and powers for the narrative
and imagetic relations of ephemeral objects.

1 Graduado em Design Gráfico pela Universidade Anhembi Morumbi (2017). Mestrando no curso de
Design, Arte e Tecnologia da Anhembi Morumbi. Possui experiência na orientação de projetos de
design gráfico acadêmicos nos campos editorial, sinalização, identidade visual e embalagem. Tem
experiência na área de Design Gráfico, com ênfase na prática de projeto e linguagem visual.
2 Docente e pesquisadora do PPGDesign da Universidade Anhembi Morumbi.
3 Docente e pesquisadora do PPGDesign da Universidade Anhembi Morumbi.

1165
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Key-words: Graphic Design, Graphic Technologies, Graphic Memory, Brazil Zero-Ze-


ro. Gustavo Piqueira, Limits of the book

INTRODUÇÃO

As formas dos artefatos não possuem um significado fixo, mas antes são expressivas de um pro-
cesso de significação – ou seja, a troca entre aquilo que está embutido em sua materialidade e
aquilo que pode ser depreendido delas por nossa experiência. (CARDOSO, 2016. pp.35-36)

As composições visuais e as narrativas podem se configurar de diversas formas, ta-


manhos, elaborações e funções. Dentro da enorme variedade de possibilidades de
se compor uma visualidade o aspecto físico e de linguagem destas composições
é papel fundamental para os significados que elas podem gerar. A materialidade
do objeto que transporta os valores visuais carrega a importância de caracterizá-
-lo como um objeto palpável, manipulável e real, atributos que o constituem são
parte substancial da estrutura de um projeto como um todo. Estas tangibilidades,
transformações e coexistências serão discutidas quanto aos seus limites, funções
e possíveis elaborações.

Brasil Zero-Zero (2019) do designer gráfico brasileiro Gustavo Piqueira é uma in-
vestida de um regaste da memória gráfica e visual da política brasileira, tanto de
um passado recente quanto de um contemporâneo próximo. O projeto proposto
pelo designer do resgaste de materiais gráficos surge a partir de uma coleção
particular do próprio autor de panfletos, santinhos e broches que foram recolhi-
dos ao longo das eleições de 1982 para prefeito e de 1985 para governador de
São Paulo (capital). Sua narrativa explora em destaque o uso da imagem desvin-
culada de texto ou legendas e apresenta uma organização temporal a partir de
1982 nas eleições regionais até 2018 nas eleições nacionais. Na narrativa geral do
livro se misturam, materiais gráficos, ensaios fotográficos, grupos de Whatsapp
e eventos de Facebook.

O livro (fig.1 e 2) possui 120 páginas em uma dimensão de 30x20 cm é composto por
um exemplar impresso em três tipos de papeis com diferentes gramaturas que va-
riam entre 56 impressas em couché fosco 180 g/m2, 40 em offset 120 g/m2e 24 em
offset 56 g/m2 que se modificam ao longo do livro, um cartaz de 60x90 cm de uma
bandeira do Brasil inacabada a partir de um registro fotográfico feito pelo autor, um
envelope plástico que embala os dois objetos e uma etiqueta acoplada ao envelope
que carrega informações gerais do livro.

1166
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fig. 1 – Exemplo de páginas do livro.

Fig. 2 – Exemplo de páginas do livro.

O trabalho de Gustavo Piqueira à frente do escritório Rex Design (1997) e a partir de


2010 como Casa Rex, que se situa em São Paulo e na qual ele é fundador. Apresenta
uma linguagem visual variada presente em mais de seus 460 projetos premiados
internacionalmente. Mostrando o quão diversificado pode ser o raio de atuação do
designer e o quanto a produção pode se tornar múltipla.

Em mais de vinte livros publicados pode-se observar uma mistura de design, his-
tória, arte, literatura, uma discussão sobre os limites do livro impresso e um olhar
para o cotidiano a fim de encontrar possibilidades narrativas tanto textuais quanto
visuais, que testam as fronteiras da linguagem. A exploração da materialidade marca
presença em seus projetos levantando novas possibilidades para o livro impresso,
utilizando-se da combinação de materiais diversos, composições visuais múltiplas e
textos que são uma extensão da visualidade de seus livros.

1167
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Como suporte teórico para abordar um projeto complexo que agrupa diferentes
campos de conhecimento do design gráfico foram alinhadas perspectivas que
apontam para compreensão do objeto de design quanto cultura, produção e lin-
guagem. Sendo CARDOSO (1998/2016), ONO (2004), FARIAS & BRAGA et al. (2018) e
QUELUZ et al. (2012) utilizados para o debate acerca da cultura material e memória
gráfica e para a linguagem e linguagem visual HALL (2016), LUPTON (2008) e RAN-
CIERE (2012).

AS COEXISTÊNCIAS

BURDEK (2006, p.230) já nos ensinou que o design é uma disciplina que produz realidades mate-
riais e comunicativas: os objetos nos contam sua história, contam como foram feitos, que tecnolo-
gia foi utilizada, de que contexto cultural foram constituídos. Poderíamos ir mais além, afirmando
que os objetos nos contam histórias das pessoas que projetaram, fabricaram, consumiram, usa-
ram, colecionaram, representaram, descartaram estas coisas. (QUELUZ et al., 2012. p.8).

Brasil Zero-Zero (2019) atua de forma a compor suas narrativas a partir de inúmeros
materiais, sejam eles gráficos ou digitais, de uma temporalidade atual ou de um pas-
sado recente de sua contemporaneidade. Diversos objetos visuais foram recolhidos
para compor a narrativa do livro que se apoia em quase sua totalidade a partir de
imagens, no qual o uso da linguagem verbal é de forma sucinta e direta tanto em
aberturas de capítulos quanto em um pequeno capitulo explicativo do livro e um
posfácio de rápidas argumentações sobre suas escolhas e referencias.

A escolha de se compor um livro em que sua linguagem principal não é a escrita,


mas sim a visual reforça a importância que os artefatos visuais têm para construir
a imagem de seu tempo. A partir da prática dos estudos em memória gráfica que
visam o recolhimento, organização e analise de objetos bi ou tridimensionais que
possuam algum valor histórico, social e narrativo é possível construir relações, in-
vestigações e percepções de um determinado tempo. Como reforça Priscila Farias e
Marcos Costa Braga em definição sobre a memória gráfica: (...) busca compreender
a importância e o valor de artefatos visuais, em particular impressos efêmeros, na
criação de um sentido de identidade local. (FARIAS & BRAGA et al., 2018. p,10).

O agrupamento de materiais visuais que compõem uma cultura material4 é usado


como elemento narrativo que possibilita criar uma cena a partir de inúmeras ima-
gens, os valores estéticos e de linguagem nos quais os materiais visuais efêmeros
(panfletos, santinhos, cartazes...) possibilitam uma perspectiva das percepções visu-

4 (...) “cultura” ou “cultura material” como o conjunto de artefatos produzidos e utilizados pelas cultu-
ras humanas ao longo do tempo, sendo que, para cada sociedade, os objetos assumem significados
particulares, refletindo seus valores e referências culturais. (ONO. 2004. p.54).

1168
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

ais de uma época. Estudar este material torna capaz um resgaste particular e distinto
de um momento histórico de uma população.

Ao deixar marcas e rastros – reais ou metafóricos – a cultura material significa, testemunha e ma-
terializa a construção de histórias, identidades, lugares, épocas e formas de viver. As marcas, ilus-
tres ou anônimos, deixam sinais na de culturas, revelam modos de relacionamento entre sujeitos,
destes com as coisas e com a vida em sociedade. (QUELUZ et al., 2012. p,16)

O potencial imagético dessas produções resgatadas por Piqueira que através da


linguagem visual e de sua materialidade formam um conteúdo para analise, na
qual através da identificação de suas características tanto morfológicas quanto de
contexto e significado proporcionam uma aproximação com a visualidade de uma
sociedade, essas produções, mesmo as mais efêmeras, são construções e reflexos
das visões de mundo de uma sociedade daquele período especifico. “Os objetos são
mediadores de nossas relações com o mundo e com os outros. São portadores e
veículos de significados culturais, contribuindo na contribuindo na construção de
nosso imaginário individual e social. ” (QUELUZ et al., 2012. p,37).

Enquanto memória estes objetos mesmo que de períodos, ideias e aplicações di-
ferentes, coexistem na formação histórica de uma população, como proposto pelo
autor através de sua narrativa e recorte singulares, posicionar estes elementos que
variam de propagandas politicas como panfletos e cartazes até mensagens de
Whatsapp e eventos de Facebook, quando colocados lado a lado geram uma visão
ampliada das diferentes maneiras de se expressar, produzir e compreender os fato-
res sócias e políticos.

O livro expõe a partir das imagens uma experiência vivida pelo próprio autor em um
olhar singular para os diversos momentos em que a narrativa é construída. Esta obra
não é em termos diretos uma resposta a uma série de eventos políticos e sociais que
o Brasil vem atravessando ultimamente, mas sim um retrato da visualidade e das
produções do contemporâneo e passado recente no Brasil.

O retrato das multiplicidades e transformações da visualidade no campo da propa-


ganda política no Brasil, é exposto por Piqueira apresentando princípios que fogem
de um panorama convencional da história do país, de uma abordagem sobre as di-
ferentes evoluções tecnológicas das propagandas políticas e diverge quanto a um
tratamento padronizado de pesquisa da memória gráfica de artefatos visuais, por
não apresentar analises sobre a morfologia, dados históricos e contextos de forma
abrangente em seu livro, que explora como direção principal o uso da imagem e da
visualidade das produções.

A própria escolha temporal de expor momentos com quase 30 anos de diferença e


cruza-los de forma a causar um entrelaçamento próprio expõem uma abordagem

1169
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

quanto a inquietação da própria temporalidade de seus materiais, (...) “uma cultura


material que seria parte de seu passado e de suas raízes culturais, ou parte de uma
identidade, que, por sua vez, está em constante processo de configuração”. (FARIAS
& BRAGA et al., 2018. p,18). Possibilitando uma abertura a se dialogar, combinar e
recombinar de forma mais abrangente os mais diferentes meios, alinhando tanto
materiais diversos quanto temporalidades distintas entre si.

BRASIL ZERO-ZERO

Não haveria, sob o mesmo nome da imagem, diversas funções cujo ajuste problemático constitui
precisamente o trabalho da arte? A partir daí, talvez seja possível, em base mais sólida, refletir so-
bre o que são as imagens da arte e as transformações contemporâneas do lugar que elas ocupam.
(RANCIERE, 2012. p.9).

Brasil Zero-Zero (2019) de Gustavo Piqueira se apresenta como um compilado de


materiais que partem de um retrato singular da ótica e vivencia do autor, na qual
inúmeros materiais gráficos das eleições de 1982 e 1985 para os governos de São
Paulo (capital), que vão desde santinhos, botons, cartazes, panfletos, jornais e en-
tre outros... se agrupam no códice do livro mesmo que de forma temporalmente
distinta a uma série de manifestações visuais, textuais e politicas das redes sociais
no período eleitoral brasileiro de 2018 para presidência. O percurso proposto por
Piqueira entrelaça também três ensaios fotográficos que se cruzam para discutir as
percepções no cotidiano no período eleitoral do país.

O próprio nome do projeto é um cruzamento entre duas produções de meios di-


ferentes, o filme Alemanha Ano Zero (1948) de Roberto Rossellini (1906-1977), um
filme do cinema neorrealista italiano que retrata a cidade de Berlim em seu primeiro
ano pós Segunda Guerra, que se encontra devastada. O segundo elemento é a pro-
dução gráfica do artista e designer brasileiro chamado Wladimir Dias-Pino (1927-
2018) que projetou um livro experimental, realizado em 1966 chamado Brasil Meia-
-Meia, que apresentava colagens que retratavam o Brasil em seu período ditatorial.

A estrutura gráfica (fig.3) proposta pelo designer possui algumas particularidades e


escolhas visuais distintas. O livro é embalado por um envelope plástico ao qual está
anexado uma etiqueta que carrega as informações como; o nome do livro, nome
do autor e um rápido panorama sobre seus conteúdos. Sua capa não possui infor-
mações a não ser uma fotografia feita pelo próprio autor em um de seus percursos
na Cidade Estrutural em Brasília-DF. De forma secundaria a armação do códice se
desdobra a partir da capa para se forma o título do livro (Brasil Zero-Zero), todo o
códice que envolve o livro se estende em um cartaz horizontal. Em anexo ao livro há
um cartaz uma bandeira do Brasil inacabada, o registro feito pelo autor se converteu
em um anexo que é a própria extensão de sua obra por ser abordada como uma das
peças no livro, mas também por ser um cartaz que extrapola os limites do códice.

1170
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fig.3 – Visão geral da capa, anexo e códice do livro.

A narrativa gráfica tem início em 1982, e corresponde ao procedimento do mesmo


período realizado pelo designer. Em 1982, recolhia diversos materiais gráficos que
eram distribuídos como forma de propaganda política. Esse habito fez com que cer-
ta memória gráfica relativa aos processos eleitorais fosse preservada e a narrativa
ofertada no livro só seria possível por meio deste cuidado. Com isso o trabalho tem
a marca da própria memória vivida por Piqueira.

Os objetos escolhidos (fig.4 e 5) são apresentados como composições visuais que


retratam elementos históricos daquela época. A visualidade que observa é da va-
riedade de imagens e soluções em termos de linguagem visual para os mais diver-
sos meios e aplicações da propaganda política. Desde o uso da própria fotografia
do candidato e seu nome, até a presença de slogans e uso de signos visuais, como
exemplo o trevo da sorte e corações, para potencializar aquele objeto recolhido
como um atrativo para o eleitor.

Fig.4 – Exemplos de materiais gráficos diversos de 1982 e 1985 (pág. 8 e 9)

1171
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fig.5 – Exemplos de cartazes de 1982 e 1985 (pág. 18 e 19)

A diversidade das produções coletadas por Piqueira é característica do trabalho, por


ser um conjunto de produções gráficas que disputam território em a outras elabo-
rações. Assim, os atrativos visuais para que o eleitor seja convencido de que aquele
candidato é o mais adequado para o cargo são inúmeras. Elas se apresentam desde
folders ilustrados (fig.6), panfletos com objetos em anexo que fazem alusão aos slo-
gans de seus candidatos, como o caso da peteca anexada em um panfleto com o
slogan: “não deixe a peteca cair” (fig.6). Mini jornais (fig.7) com uma história em qua-
drinhos sobre o candidato que através da linguagem dos quadrinhos ele enfrenta os
problemas da gestão pública.

Fig.6 – Exemplos de panfletos de 1982 e 1985 (pág. 36 e 37)

1172
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fig.7 – Exemplos de mini jornal de quadrinhos 1982 e 1985 (pág. 38 e 39)

Partindo do princípio de uma coexistência dos meios e produções a partir de uma


preservação de uma memória gráfica da política brasileira, o designer realizou uma
intervenção gráfica/visual (fig. 8 e 9) na cidade de São Paulo próximo a pontos com
grande movimento de pessoas como metros em plena campanha eleitoral do pri-
meiro turno de 2018. Com o intuito de gerar uma confusão visual aos espectadores
que transitavam por aqueles lugares visando demonstrar que em aproximadamente
30 anos de cenários políticos os mesmos integrantes e muitos dos slogans e pensa-
mentos ainda se mantiveram. Este cruzamento temporal e imagético se deu a partir
de uma série de cartazes que foram colados em diversos pontos, onde os materiais
usados em 1982 e 1985 foram reutilizados agora sem seus números ou datas especi-
ficas, Piqueira fez ressurgir essas personalidades em um entrelace temporal caótico.

Fig.8 – Ensaio fotográfico da intervenção urbana no resgate e cruzamento dos


materiais de 1982 e 1985 (pág. 58 e 59).

1173
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fig.9 – Ensaio fotográfico da intervenção urbana no resgate e cruzamento dos


materiais de 1982 e 1985 (pág. 62 e 63).

Para retratar um pequeno panorama de uma movimentação visual e política, o au-


tor, por meio das redes sociais e a internet, agrupou uma serie expressões dos brasi-
leiros em meio as eleições de 2018. Um momento que se tornou característico neste
período foi o uso da ferramenta de eventos rápida movimentação dos usuários trou-
xe uma variedade de eventos contra o candidato Jair Bolsonaro (PSL – Partido Social
Liberal) se multiplicou como forma de protesto e humor para com o candidato líder
das pesquisas de intenção de voto. Eventos esses como: “Gatos contra Bolsonaro”,
“Bonecos de posto contra Bolsonaro”, “Darth Vader contra Bolsonaro” e entre outros,
se proliferam nas redes mesmo de forma fictícia um movimento rápido da popula-
ção que possui acesso a rede social que a partindo de um meio visual e neste caso
virtual proferiram suas opiniões, chacotas e protestos contra o candidato.

Os atos de protesto ao candidato também tiveram contraponto por parte daqueles


que o apoiavam; em uma busca em meio aqueles que o apoiavam, Piqueira recolheu
dois tipos de manifestações de apoio ao candidato Bolsonaro, em um momento por
meio de um jogo online (fig. 10) onde o candidato derrota adversários de cunho
ideológico de esquerda contrário ao viés ideológico do candidato, que se apresen-
tavam no jogo como manifestantes, outros candidatos e pessoas públicas que o cri-
ticam. Outra manifestação foi por meio de grupos de Whatsapp (fig. 11) no qual foi
feito o recolhimento de diversas conversas (todas foram apresentadas no livro de
forma anônimas) de antigos amigos de escola que atualmente apoiavam o candida-
to, dentre essas inúmeras conversas de texto e imagens, muitas delas se caracteriza-
ram pela emissão de fake news dos adversários de Jair Bolsonaro.

1174
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fig.10 – Exemplos de eventos do Facebook (pág. 80 e 81)

Fig.11 – Recortes de tela do jogo online e das conversas de Whastapp (pág. 84 e 85)

Em um outro momento na narrativa de Brasil Zero-Zero é se apresentado mesmo


que de forma breve um ensaio fotográfico (fig. 12 e 13) feito pelo próprio Gustavo
Piqueira na parte externa do congresso nacional em Brasília-DF, um cenário apático
e abatido daquele que seria o centro do poder do próximo governo. Com o uso de
fotografias de tom frio, supressão do fator humano e em enormes molduras que os
cercam, esse ensaio exibe todo o esvair do poder político brasileiro.

Fig.12 – Ensaio fotográfico do congresso nacional (pág. 98 e 99)

1175
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fig.13 – Ensaio fotográfico do congresso nacional (pág. 100 e 101)

No encerramento da narrativa, um último ensaio fotográfico foi realizado por Piquei-


ra, só que agora na Cidade Estrutural, um dos bairros pobres de Brasília-DF, como
forma contraponto estético do Congresso Nacional, a periferia é apresentada com
outros tipos de composições visuais. Em meio a vista da destruição e da precarieda-
de destes lugares ainda é possível se perceber manifestações de seus moradores, o
registro feito mostra composições que indicam a periferia, em muros deteriorados
(fig.14), um boneco de loja de roupas em cima de um ponto de ônibus (fig.15) e até
uma bandeira do Brasil inacabada (fig.16).

Fig.14 – Ensaio fotográfico na periferia de Brasília-DF (pág. 106 e 107)

Fig.15 – Ensaio fotográfico na periferia de Brasília-DF (pág. 114 e 115)

1176
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fig.16 – Bandeira do Brasil inacabada na periferia de Brasília-DF (pág. 116)

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A investigação feita no artigo constituiu-se na exploração dos objetos gráficos le-
vantados em Brasil Zero-Zero (2019) através da identificação de seus componen-
tes, materiais, linguagem visual e meios de atuação. O levantamento desses dados
permitiu a melhor compreensão dos fatos e das abordagens feitas pelo designer,
alinhado ao levantamento desses objetos no livro, em uma abordagem que exibe
as mudanças no cenário da propaganda política no Brasil, as múltiplas funções e
significados que os objetos possuem em suas relações temporais apresenta o olhar
do autor sobre as manifestações visuais contemporâneas.

Este projeto é um prisma para as novas abordagens que o design gráfico contem-
porâneo pode apresentar, expondo a versatilidade que os códigos visuais, materiais
e conceituais possuem. Contemplando uma cultura em que estes não estão des-
conectados, mas que podem ser integrantes de um mesmo universo. As combina-
ções propostas por Piqueira demonstram toda a potencialidade narrativa que o livro
impresso ainda pode ter, explorando as diversas camadas de significados, desdo-
brando sua materialidade e reestruturando toda uma percepção sobre os objetos do
dia-dia, onde está perspectiva de atuação nos revela todo o alcance do desenvolvi-
mento conceitual que o design pode apresentar em um projeto.

1177
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

REFERÊNCIAS
CARDOSO. Rafael. Design para um mundo complexo. Ubu. São Paulo. 2016.

CARDOSO. Rafael. Design, cultura material e o fetichismo dos objetos. Revista


Arcos. Volume 1 Rio de Janeiro. 1998.

FARIAS. P. II., & BRAGA. M. C. (Org.). n/a et/al. 2018. Dez ensaios sobre memória
gráfica. Editora Blucher. São Paulo.

HALL, Stuart. Cultura e Representação. Editora PUC-RIO. Rio de Janeiro. 2016.

LUPTON, Ellen e PHILLIPS, Jennifer Cole. Novos fundamentos do design. São Paulo:
Cosac Naify, 2008.

ONO MISUKO, Maristela. Design, Cultura e Identidade, no contexto da globaliza-


ção. Revista Design em Foco, vol. I, núm. 1, Julho-Dezembro, 2004, pp.53-66.

PIQUEIRA, Gustavo. Brasil Zero-Zero. Lote 42. São Paulo, 2019.

QUELUZ, M. L. P. (Org.). n/a et al. (2012). Design e cultura material. Ed. UTFPR. Curitiba.

RANCIERE, Jacques. O destino das imagens. Contraponto. Rio de Janeiro, 2012.

1178
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Karina Dias1, Júlia Milward2, Ludmilla Alves3,


Levi Orthof4, Iris Helena5 and Luiz Olivieri6,
Tatiana Terra7, César Becker8, Luciana Paiva9

1 Professora do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília, atuando na graduação


e pós-graduação. Doutora em Artes pela Université Paris I – Panthéon Sorbonne. Pós-doutora em
Poéticas Contemporâneas (UnB). Trabalha com vídeo e intervenção urbana. É autora do livro: Entre
visão e invisão: paisagem (por uma experiência da paisagem no cotidiano). Coordena o grupo de
pesquisa vaga-mundo: poéticas nômades (CNPq).
2 Mestre em Artes Visuais, na linha de pesquisa Poéticas Contemporâneas, pela Universidade de Bra-
sília [2014]. Possui Mestrado Prático em Fotografia Contemporânea - École Nationale Supérieure de la
Photographie em Arles. Graduação em Artes Plásticas opção Fotografia - Université Paris VIII [2008].
Graduação em Comunicação Social - Universidade Federal de Juiz de Fora [2007]. Doutoranda em Ar-
tes Visuais, na linha de pesquisa “Deslocamentos e Espacialidades” pela Universidade de Brasília.
3 Artista visual e escreve. Mestre em Poéticas Contemporâneas e bacharel em Comunicação Social, ambos pela
Universidade de Brasília. Atualmente cursa o doutorado em Deslocamentos e Espacialidades (PPG-Arte/UnB),
investigando a noção de selvagem e temas como cosmogonia ameríndia, práticas arcaicas, ficções futuras.
Utiliza pintura, instalação, fotografia e escrita com interesse no tempo, nos gestos e na palavra como matéria.
4 Doutorando em Artes (2017), no departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília (UnB).
Desenvolve seu trabalho principalmente em vídeo, onde levanta questões sobre: imensidade, nave-
gação, distâncias imaginárias e medidas impossíveis. Teve seus trabalhos selecionados em Salões de
Arte como: 20º Salão Anapolino de Arte (2014), Transborda Brasília (2015) e o 1º Prêmio Vera Brant
de Arte Contemporânea (2016).
5 Artista multidisciplinar graduada em Artes Visuais pela Universidade Federal da Paraíba, Mestre em Ar-
tes – Poéticas Contemporâneas e doutoranda Deslocamentos e Espacialidades pela Universidade de Bra-
sília. Sua pesquisa caracteriza-se pela investigação crítica e poética da paisagem urbana a partir de uma
abordagem dialógica entre a imagem da cidade e as superfícies/suportes escolhidos para materializá-la.
6 Doutorando em Arte Contemporânea, linha de pesquisa Deslocamentos e Espacialidades, do Pro-
grama de Pós-graduação em Arte do Instituto de Artes da Universidade de Brasília (UnB). Interessa-
-se pelo hibridismo de linguagens e atua como artista sonoro-visual, realizando instalações sonoras,
obras interativas e videoarte. Atualmente é professor efetivo do Ensino Médio na SEEDF.
7 Artista visual e doutora em Arte (2019) pela Universidade de Brasília. Trabalha com vídeo, fotogra-
fia, pintura, intervenção urbana e colagens digitais. Suas produções artísticas permeiam o campo
entre temas que contemplam arquitetura, cidades e horizonte.
8 Professor do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília, formado em Artes Visuais
pela Universidade de Brasília e mestre em Poéticas Contemporâneas pelo programa de Pós- Gradua-
ção em Arte da UnB. Atualmente é doutorando na linha Deslocamentos e Espacialidades pelo mesmo
programa, tem desenvolvido sua pesquisa a partir do elemento terra em relação com a geografia, a
geologia e com sua pertinência no campo das artes visuais, principalmente na área de escultura.
9 Artista visual, investiga as relações entre escrita e espaço a partir de mídias e materiais diversos,
com principal interesse pelo uso dos elementos da escrita (livros, páginas e letras) como matéria. Ao
lidar com estes elementos, propõe uma linguagem que se reconfigura a partir da falha, do embara-
lhamento e do desvio. Possui doutorado em Artes na linha de Espacialidades e Deslocamentos pela
Universidade de Brasília com a tese: “Frente-verso-vasto: por uma topografia da página”
1179
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Por uma geografia dos passos: a caminhada como princípio poético


[outras notas de viagem do Grupo Vaga-Mundo: Poéticas
Nômades]10
For a geography of steps: walking as a poetic principle
[other travel notes of the Vaga-Mundo: Poéticas Nômades]

Resumo
Ao longo de 1080 dias, o Grupo Vaga-mundo: poéticas nômades (CNPq) teve como
objetivo realizar uma volta ao mundo, a pé, sem sair de Brasília, o que compreendeu
expedições aos Setores de Embaixadas Sul e Norte da cidade. Munidos da noção de
que a viagem expande a compreensão que temos dos lugares porque desperta o
desejo por percepções inusitadas, a proposta do grupo é manter o espírito viajante
no cotidiano mais absoluto. À medida que cruzamos os limites imaginados nessa
geografia vivida, criamos o nosso ritmo, inventamos o nosso passo, uma marcha-va-
ga. Questões como essas tecem o nosso projeto prático-teórico que aparecem figu-
radas tanto no texto quanto no objeto plástico (vídeo-projeção Marcha-vaga, 2019).
Palavras-chave: Caminhar, corpo-coletivo, lugar e modos de imaginação

Abstract
Over the course of 1080 days, the Vaga-Mundo: Poéticas Nômades (CNPq) aimed to
accomplish a world tour, on foot, without leaving Brasilia. This included expeditions to
the South and North Embassy Sectors of the city. Provided with the notion that travel
expands our understanding of places because it awakens the desire for unusual percep-
tions, the group’s proposal is to keep the traveling spirit in the most absolute daily life. As
we cross the boundaries imagined in this lived geography, we create our rhythm, invent

10 O Grupo criado em 2014 e coordenado pela Profa. Dra. Karina Dias, reúne 10 artistas-pesquisado-
res, mestrandos e doutorandos ligados ao Instituto de Artes da Universidade de Brasília. Realizando
pesquisas poéticas em diversas linguagens artísticas (instalação, vídeo, livro de artista, desenho, pin-
tura, escultura, fotografia e instalação sonora), o que interliga os membros do grupo é o desejo de
investigar as relações entre o homem e a paisagem, entre a imensidão dos espaços e a singularidade
daquele que os percorre. Noções fundamentais que norteiam toda a pesquisa são: horizonte, pai-
sagem, olhar, viagem, geopoética, escrita, entre outras. Aliando a prática artística, a reflexão teórica
e a experiência em espaços-extremos, na intenção de construir uma poética nômade surgida do
movimento, de nossos deslocamentos a partir de expedições artísticas em vários lugares do mundo.
Desse movimento surgem as nossas coordenadas vaga-mundo: expedição, exposição e escrita. Este
é o segundo texto que contempla as notas de viagem da expedição realizada as embaixadas da
cidade de Brasília. O primeiro foi apresentado em julho de 2019 no encontro internacional de artes
WAC (walking practices/walking art/walking bodies), organizado pelo departamento de Fine Arts e
Applied Arts da Universidade da Western Macedônia, Grécia.

1180
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

our step, a “marcha-vaga“. Questions like these weave our practical-theoretical project
that figure in both the text and the plastic object (video projectionMarcha-Vaga,2019).
Keyword: Walking, collective body, place and modes of imagination

“soube bem essa arte que nenhum outro abarcou, nem Simbad nem Ulisses, que é
passar de um a outros países e estar internamente em cada um deles”(Borges)

Do tratado filosófico sobre a caminhada escrito por Thoreau na metade do século XIX,
passando pelas vanguardas artísticas do começo do século XX, pelos Situacionistas no
final dos anos 50 até as práticas de grupos e artistas contemporâneos que incorporam
às suas ações o caminhar, como Robert Smithson, Richard Serra e o núcleo de pesquisa
do laboratório Stalker pelos territórios de Roma, entre outros, o ato de se movimentar
dispondo um pé à frente do outro, engendra formulações e práticas poéticas decor-
rentes da experiência de se estar nos espaços ao ar livre, do lado de fora.

Para Fréderic Gros (2010) quando se anda a pé, só há um desempenho que de fato
conta: a intensidade do céu, o viço das paisagens. E nesse vasto espaço, estar do lado
de fora é, para o autor, ter a exata sensação de viver naquilo que perdura e insiste,
o relevo ao redor. Ao ar livre somos lançados em meio a uma paisagem que não
abandona os nossos olhos, que sinaliza a distância que nos separa do céu que nos
acompanha, do cume que nunca chega, da cidade que se faz sentir. Caminhando
os pensamentos são compostos de céu, escreve Virgínia Woolf. Ação elementar que
nos faz lembrar que não somos sedentários, que somos movimento. Desalojados
então, buscamos um destino.

Se caminhar é uma revolução, como afirma Labbucci (2013) é porque segundo ele
não existe nada mais subversivo, mais alternativo em relação ao modo de pensar
e de agir, hoje dominante, que o caminhar. Caminhar é uma modalidade do pen-
samento, um pensamento prático. Ainda para o autor, caminhar é hoje uma forma
elevada de (r)e(s)xistência. Em pé resistimos, um pé após o outro, fazemos face ao
caminho, em busca de uma geograficidade - aquela proposta por Eric Dardel (2011),
para quem a geografia está fundada na experiência humana de ser-com, em uma
espécie de inquietude geográfica, uma vontade intrépida de correr o mundo, de
franquear os mares, de explorar os continentes. Para o autor, uma relação concreta
liga o homem à terra e essa geograficidade (géographicité) é o modo de sua existên-
cia e de seu destino.

Caminhando resistimos ao tempo da rotina e da repetição, às leis da cidade que


impõem os modos de viver. Se nas cidades a figura do flâneur aponta outras pos-
sibilidades de se estar em sociedade, combinando o olhar atento do detetive à dis-
ponibilidade incansável de se estar sempre a caminho, distraidamente a caminho,
seríamos, então, como um viajante/flâneur, aquele que passeia pelas ruas, munido

1181
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

de um olhar alerta e atento aos detalhes, cuja vocação estaria em olhar a sua cidade,
concebendo, assim, um mundo a partir do que vê. Uma cidade-mundo que estaria
lá, disponível a esse viajante e que tomaria forma a partir do banal que se olha. Nesse
sentido, seria possível reconfigurar o espaço de sempre, atiçar o nosso desejo de ver,
fazer do deslocamento no cotidiano, a ocasião para experimentar a sua paisagem,
como se a descobríssemos pela primeira vez? Desejosos de novas perspectivas, nós,
os artistas-viajantes deste cotidiano, teríamos a disponibilidade de nos deixarmos
levar pelo próprio destino infra-ordinário (PEREC, 1989: p.06)? Na vontade de anco-
rar o corpo a um percurso, de entrelaçá-lo ao itinerário escolhido, o grupo de pes-
quisa Vaga-Mundo: Poéticas Nômades (CNPq) realiza seus projetos. Assim, ao longo
de 1080 dias caminhamos juntos com o objetivo de realizar uma volta ao mundo, a
pé, sem sair de Brasília, o que compreendeu expedições aos Setores de Embaixadas
Sul e Norte da cidade.

Deambulações: quando a cidade planejada se torna mapa-mundi


Marcamos de sair da França
Começamos a andar

Brasília é uma cidade-sede. Surgiu a partir de um pensamento utópico cuja expres-


são arquitetônica e urbanística reflete os princípios adotados pelas vanguardas
modernistas desenvolvidas mundialmente. Mesmo que a função administrativa da
cidade fosse o foco principal para a sua construção, a futura capital do Brasil surge
como proposta de inovação do espaço habitado, equalizada em igual importância
àqueles que ali trabalhassem ou morassem. O idealizador da cidade de Brasília, Lucio
Costa, incluiu em seus traços, forma e cotidiano, refletindo o ideal humanista em um
sistema orgânico de planejamento poético.

Foi na década de 80, a partir do documento Brasília Revisitada que a cidade foi inter-
pretada por quatro escalas urbanas, denominadas Monumental, Gregária, Residencial
e Bucólica, divididas nas seguintes ordens: a da função cívica (Monumental), a dos es-
paços de morada (Residencial), a do comércio e lazer (Gregária) e as de extensões livres
com gramados, calçadas, bosques e jardins, bem como a presença do céu (Bucólica).
No mapa da cidade, a Escala Residencial está presente no eixo arqueado denomina-
do Eixo Rodoviário-Residencial, e se divide em norte e sul. O outro eixo (Leste-Oeste)
dá corpo à cidade administrativa e é denominado de Eixo Monumental, pertencente
à Escala Monumental, onde se tem as principais edificações arquitetônicas que são
exploradas como iconografias da cidade. A quarta escala, a Escala Gregária, se localiza
no centro da cidade, em área que circunda o cruzamento dos eixos e é a escala que
concentra os edifícios altos e os setores de Diversões, Comerciais, Autarquias, Bancá-
rios, Hoteleiros, Rádio e Televisão Sul e Norte. A Escala bucólica permeia toda a cidade
e alcança assim, o Setor de Embaixadas Norte e Sul, onde se encontram a maioria das
construções diplomáticas oficiais de 124 nações ao redor do mundo.

1182
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A fatia territorial destinada às embaixadas na capital começou a ser loteada já na dé-


cada de 50. Demarcações com placas rudimentares foram firmadas, iniciando ali, sob
a terra vermelha, um país. Quase 10 anos após da divisão dos lotes, na década de 70,
os prédios das embaixadas começam a ficar prontos, e a transferência do Ministério
das Relações Exteriores do Rio de Janeiro (antiga Capital do Brasil) é concluída para
Brasília. E hoje, a capital do Brasil, além de ser a confluência de vários brasis, compor-
ta vários países dentro de seu pequeno território.

Arquivo Público do DF (1959) Demarcação dos lotes da embaixada de Cuba [imagem online].
Disponível em: https://abrilveja.files.wordpress.com/2016/06/brasilia-construcao-05-gde-original1.
jpeg?quality=70&strip=info&w=760 [Acessado em: 17/05, às 16h32].

Uma embaixada atua como a representação oficial de uma nação, dentro de um terri-
tório alheio a ela, é a nação dentro de outra nação e o órgão que concentra em si uma
síntese da cultura e costumes de um país. A maior parte dos edifícios oficiais das em-
baixadas em Brasília intencionou a linha modernista em suas construções, enquanto
algumas reforçaram os estilos arquitetônicos que melhor representassem o seu lugar
de origem, outras mesclaram tradição e inovação. Transitar pelo mundo, nos espaços
de territórios estrangeiros, de forma meio exploratória, meio flâneur, subverte a lógica
do lugar e transpõe a imposição dos espaços de fronteira ao lugar de experiência da
viagem. Seria dizer que ao cruzarmos o território iraquiano, durante o período de seca
em Brasília, observando os tons pastéis das paredes e das colunas dos prédios, tocan-
do a vegetação árida que resiste em volta, e às vistas para o Lago Paranoá, estaríamos

1183
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

direcionados à uma planície síria, adornada de espécies desérticas ante ao Rio Murat?
Poderíamos também estar diante de um lugar onde nunca pisamos? Esse flâneur que
segue caminhando para as outras vizinhanças, [...] atravessa vários bairros que consti-
tuem mundos diferentes, à parte, separados. Tudo pode mudar de um distrito ao outro: a
dimensão das casas, a arquitetura geral, o ambiente, o ar que se respira, o modo de vida, a
luz, as categorias sociais (GROS, 2010: p.178). Este caminhante, entende o exato instan-
te em que a cidade torna-se paisagem.

Visitar esses lugares, desta forma, compreende também visitar outra nação. Em nossa
expedição às embaixadas encaramos as bordas e fronteiras dos “países visitados”. Fo-
mos recebidos por muros, cercas, estacionamentos, câmeras de vigilância, guaritas,
seguranças, terrenos baldios entre-nações, torres de controle, pesados portões de
entrada/saída com seus brasões cheios de simbologias de gloriosas narrativas, monu-
mentos sobre pedestais cujos heróis das pátrias de outrora desconhecemos. As esco-
lhas do paisagismo de cada país, a terra do chão que sujou nossos sapatos e dedos nos
contaram destes lugares. A invisibilidade dos prédios cercados de muros, onde gran-
des mastros com bandeiras flamulando lentamente no alto, foram, muitas vezes, tudo
o que pudemos ver do lugar. Tudo o que escolheram mostrar a nós, os estrangeiros.
Escolhemos caminhar nesta volta do lado de fora do mundo, entre o cá e o lá (GROS,
2010: p.37) de quem transita pelo lugar e decide o que é o aqui e o que é o acolá, o que
é local/global. Estar do lado de fora assim, é estar entre dois interiores: uma pousada entre
etapas, uma transição. Um espaço que tira um tempo para si.(GROS, 2010: p.38) Cami-
nhar ao redor das embaixadas durante 1080 dias compreendeu em um Grand-tour ín-
timo e distinto para cada um dos artistas-viajantes participantes da expedição. Todos
munidos da noção de que a viagem expande a compreensão que temos dos lugares,
mantivemos desperto o desejo por percepções inusitadas; o desejo de ver sempre um
pouco mais que ontem, de compreender que no mundo se aprende porque estamos
próximos de uma realidade que se faz sentir. Nossa proposta é manter o espírito via-
jante no cotidiano mais absoluto, aquele que entorpece porque se repete dia após dia,
que anestesia porque não vemos mais os espaços que nos envolvem.

A volta ao mundo em 1080 dias: das vistas e outras elaborações dos viajantes
[...] a surpresa e decepção das viagens. Ilusão de haver vencido
a distância, de haver apagado o tempo.

Espèces d’espaces - George Perec

A viagem é um desejo de encontrar o mundo, alia os lugares à subjetividade daqueles


que os percorrem, conjuga o singular, íntimo e individual ao abertamente coletivo.
Nesse movimento, em que circulam sem cessar interioridade e exterioridade, visibili-
dade do mundo exterior e a invisibilidade de nossas percepções, uma geografia vivida
se desenha. Viajamos, escreve Stenvenson, não para ir a algum lugar, mas para ir.

1184
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Um dos pontos de partida para que a expedição ganhasse contorno foi a obra Volta
ao Mundo em 80 dias, de Jules Verne. Observamos o mapeamento das embaixadas
no plano de Brasília. A maioria situa-se no setor de embaixadas, outras, porém, sur-
giram e foram se acomodando em outras partes da cidade, como o Lago Sul. Chegar
ao Setor de Embaixadas exigia certa programação. Nos organizamos em caronas,
carros particulares e/ou táxis e aplicativos de transporte. Tínhamos cadernos e má-
quinas fotográficas em mãos. Sapatos confortáveis, chapéus, lanches, óculos escu-
ros. Olhos secos. Não há abrigo para a chuva nesses percursos, nem para o sol. Nos
movíamos em distâncias que se dilatavam ou contraíam de acordo com o calor e a
umidade relativa do ar. Curtas distâncias podiam se agigantar, como há de ser com
quem caminha pelo deserto…

Dispostos a viver nossa própria volta ao mundo, nosso caminhar se fez pelas mar-
gens. Poucas eram as embaixadas que se apresentavam convidativas. Todavia, quan-
do um território de outra nação nos convidava para momentos de abrigo e conversa,
era como quando estamos há muito tempo viajando e alguém oferece um pouso,
uma água fresca. Um descanso do senso de alerta que vivemos quando não sabe-
mos quando será a próxima parada ou o próximo bebedouro. Cada vez mais, era
perceptível quanto dessa travessia se assemelhava a uma “travessia real”.

Vaga-Mundo: Poéticas Nômades. Registro da caminhada no setor de embaixadas, 2018.


Foto por Tatiana Terra.

1185
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Karina Dias & Albert Ambelakiotis - Projeto Globo terrestre vaga-mundo, 2018/2019.

Durante o percurso, miramos sobreposições cartográficas inimagináveis de um


mapa mundial fantasioso e ao mesmo tempo, oficial e registrado como o endereço
das embaixadas. Esse era um Mapa Mundi dobrado e amassado, randomicamente.
Uma bola de papel e percorríamos outra (e absurda) topologia mundial. Um mundo
onde os países vizinhos foram realocados dentro de uma cidade utópica onde tudo
foi inventado: ruas, lago, prédios, coordenadas. Cidade fruto do pensamento, do de-
sejo de um projeto urbano e modernista em pleno cerrado.

Cartografar: acreditar na possibilidade de uma medida, desejar um contorno. Cartogra-


fia: uma nota, uma mirada, um esboço, uma página para um atlas. Possuir as direções,
guardar as distâncias, abandonar o mapa. Percorrer os lugares. Descobrir um mundo.

Enquanto algumas embaixadas acolhiam, outras, nos faziam sentir observados


como infratores por vagar. Algo que remonta aos ares do Código Criminal do Im-
pério de 1830, onde a “vadiagem” era punível em até três meses (aproximadamente
uma volta ao mundo a la Jules Verne). Mesmo caminhando em nosso país, onde to-
dos os integrantes do grupo nasceram e têm plenos direitos enquanto cidadãos, era
notável como essa cartografia imaginária criava tensões entre nós e os vigias. Esse
espaço de silêncio e conflito por conta de leis não ditas sobre fronteiras invisíveis.
Tão invisíveis quanto as linhas longitudinais que cruzam o globo.

1186
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Um dia, sob o sol a pino, avistamos a Praça Portugal. Ali, como na maioria dos des-
vios a que estávamos sujeitos andando ao largo ou à beira de muros, era o lado de
fora, o negativo do mundo que arrodeávamos, ou o mundo mesmo? Diferente das
embaixadas, salvo uma ou duas exceções de convite para o interior, podíamos estar
dentro da praça. Circular nela. Inventar o que fazer ali: jogos, pulos na fonte de água
seca e outras imaginações compartilhadas.

Ao realizar uma viagem ao redor do mundo, pé ante pé, os espaços fronteiriços ga-
nham uma dimensão e importância maior. São trajetos muitas vezes adormecidos
na vista do turista que passa, quase desliza por portões e chancelas. Um mapa den-
tro do Mapa. Fronteiras são os não-lugares. Ali, onde habitam dragões e sol escal-
dante, essa é nossa rota primordial. Aqui, ventos, leis, modos de navegação e acor-
dos sociais se transmutam como em um mar escurecido.

Desde tempos remotos a figura do vigilante esteve presente: nas torres, muralhas,
camuflado em florestas e bosques. Hoje, temos horas de filmagem ininterrupta do
nosso amontoado vagante (ao longe, na paisagem, muitas vezes parecíamos um
amontoado de gente caminhando a esmo), saindo de uma lente para a outra, de
um quadro para o outro. O percurso completo poderia ser visto por uma sequência
de imagens gravadas pelas câmeras de segurança das embaixadas. Nossa imagem
saltava de uma tela de monitor à outra. Um tele transporte entre países. Nossa fan-
tasmagoria registrada em evidências videocapturadas.

Vaga-Mundo: Poéticas Nômades. Registro de ação. 2019. Foto por Ádon Bicalho.

1187
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Em determinados momentos da nossa ação caminhante experimentamos aciden-


talmente a meação da unidade. Sem que nos déssemos conta, cada uma das extre-
midades dos membros assentados ao solo se encontravam em um país diferente. O
que na visão era uno, politicamente era margem. Assim, involuntariamente, o corpo
era dividido entre nações, como provoca Chaplin em “Pastor de almas” (1923), com
um pé nos Estados Unidos e o outro no México, colocando em questão a divisão
humana de um território, a invenção da fronteira, assim como o local onde estamos
em segurança (seja na pátria-mãe ou no estrangeiro).

A embaixada do México não tem muros, a dos Estados Unidos é completamente


cercada por espessas paredes de cor branca. O prédio mexicano envidraçado nos
permite atravessar o território com o olhar distante. Do prédio americano nada sabe-
mos, apenas que disfarçam o excesso de segurança com um painel em homenagem
ao Brasil, mais precisamente, o que seria o país acolhedor no ponto de vista norte-
-americano. A segurança local nos convida a posar diante da obra. Temos uma foto.

Nesta volta ao mundo, seguimos por trajetos, trilhas e pistas de uma embaixada a
outra. Um trajeto está sempre entre dois pontos, mas o entre-dois tomou toda a con-
sistência e autonomia bem como propósito e direção própria desta viagem. Nos dis-
tribuímos pelos largos descampados, ocupamos, habitamos, e seguimos e aí residiu
nosso princípio territorial; descompassado e nômade. Espaço de pequenas ações de
contato, táctil mais do que visual. Fomos, ao longo do percurso, aqueles que nunca
partiam e nunca chegavam porque estávamos o tempo todo em modo de desloca-
mento. Nos agarramos nesse espaço entre fronteiras, onde os muros recuavam, e
abriam-se os espaços vacantes.

A ideia de volta evoca um movimento redondo, um retorno, muito embora o de-


senho de nossos passos, se traçado, fosse mais próximo das imagens do irregular,
descontínuo, segmentado. Eram espécies de rounds entre vistas, gramados, placas,
muros, manchas, estilos variados e dissonantes de cercas e, volta-e-meia, a sensação
de andar por indícios de uma cidade extinta ou de seu eterno retorno como protó-
tipo da cidade construída, erguida sobre lugar nenhum, no baldio, no deserto. Um
mundo não menos inventado que o outro.

1188
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Criamos um cerrado próprio, acrescentando a ele: o deserto, a estepe, o mar, a monta-


nha, o frio, o calor cuja orientação e direção não paravam de variar na medida em que
também íamos sendo criados por ele. Habitado pelo lugar que habita, numa relação
imediata de envolvimento, que constrói o mundo e lhe dá sentido. O habitar entende o
mundo sem a distância objetivante, ele está ligado à imprecisão e ao vago. A empreitada
assumida nos levou a questionar o impacto de se colocar em viagem sobre a paisagem e
sobre o espaço cotidiano, assim como sobre a forma de percebê-los, vivê-los e pensá-los.

Não se trata de uma percepção do espaço em que a visão desliza pela superfície
da paisagem. É importante lembrar de Dardel (2015) quando afirma que o espaço
geográfico não é somente superfície, ele é sobretudo: matéria. O que implica pensar
em termos como profundidade, espessura, solidez, plasticidade que não são carac-
terísticas compreendidas apenas pelo intelecto e pela percepção meramente visual,
mas encontradas em uma experiência que pode vir a ser determinada como uma
experiência de contato.

Desta maneira, o contato abriu-se como uma possibilidade de entrar em consonân-


cia com o mundo cotidiano à nossa volta e como seres que o constroem, que se
habitam, que se medem, que se ancoram nos limites e margens dos espaços con-
tingentes. Não seria o princípio do contato com a terra algo indispensável do ser
humano? Invariavelmente de sua localização no globo, não é o peso de um corpo e
a resistência da gravidade, exigindo esse contato, o fundamento primordial do ha-
bitar? Pisamos em cada embaixada como quem toca o Mundo, pois pisar, como um
corpo erguido que se apoia sobre o chão, é a máxima expressão de “estar no mun-
do”: este invisível limite entre os corpos atados na Terra.

Instauramos de forma transitória um novo cotidiano em uma região destinada ape-


nas à circulação de carros e papéis. Habitamos essas áreas utilitárias e as desfuncio-
nalizamos. Assim, desorganizamos as escalas geográficas daqueles espaços, viven-
ciando nossas próprias temporalidades. Para o geógrafo Milton Santos, a ideia de
escala se relaciona com as proximidades que podemos estabelecer com o espaço,
escala é tempo (SANTOS, 1994).

Aos poucos fomos compreendendo que esse espaço se desenhava em função de nossos
deslocamentos e de nossa presença. Uma embaixada é um enclave cujas fronteiras se
revelam rapidamente uma vez que como caminhantes passávamos pelos países sem

1189
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

necessariamente nada solicitar. Permanecíamos o tempo que desejávamos, circundá-


vamos seus muros. Muros-fronteiras, muros-vigilantes, presença permanente em nos-
so périplo. Michel Butor em Méditations sur la frontière, elenca doze meditações sobre
a fronteira, talvez a que mais se aproxime do que vivemos seja a fronteira-limite, aquela
que, para o autor, nos obriga, de certa forma, a nos definir em relação a ela, com ela,
a partir dela. Durante três anos experimentamos a estranha proximidade com o muro.
Muro-barreira, muro-continente, muro-limite que avizinha geografias distantes, que al-
tera os eixos norte/sul, que subverte geopolíticas conhecidas porque as vizinhanças são
outras. E nessa vizinhança vivida, a Áustria faz fronteira com a Austrália que faz fronteira
com o Reino Unido que faz fronteira com o Panamá... “avizinhar-se pelo abismo”... nessa
geopoética um outro mapa se desenha.

Inventar uma língua nômade

Uma moeda nômade

Uma embaixada nômade

Uma bandeira vaga

Montinho: ação conjunta de construir um muro entre muros.

Corpo-muro, embaixada vagamunda.

Onde somos nesse monte que se desloca? Estar junto é pertencer ou resistir à exte-
rioridade? Nesse caminhar encontramos um destino ou o projetamos ao longe para
seguir a caminhada?

Dessa forma, será que nosso pequeno grupo de caminhantes amontoados, não
pode ser pensado como um continente se deslocando de forma errante?

O solo da cidade é o espaço negativo das embaixadas, espaço onde nossos passos e
nossos corpos se encontram e se localizam, se movimentam em conjunto, em com-
panhia, e aos poucos formam uma outra barreira, móvel, porosa, movediça, penetrá-
vel pelo espaço que nos atravessa.

1190
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Nossa caminhada-contorno recorta o espaço sem deixar marcas rígidas: algumas


pegadas, olhares lançados e desviados. Medimos a extensão do caminho em can-
saço e algumas horas, horas que viraram dias que, por sua vez, viraram alguns anos
de conversas e observações, de algumas coletas e registros, mas, principalmente, de
inúmeros encontros. Aos poucos surge a dimensão do espaço recortado por esse
corpo coletivo e ela cabe em uma maquete que pode ser segurada entre as mãos.

Compartilhar espaços, redesenhar fronteiras


Vivemos um momento histórico em que novamente muros estão sendo construídos,
fluxos migratórios reprimidos, em que a não aceitação do outro em sua condição de
estrangeiro, bem como as novas estratégias de transformá-lo em uma ameaça cons-
tante e sempre hostil ao lugar que chega e ao que lá está, parecem justificar uma
vigilância extrema que mira para qualquer um que deseja se aproximar de uma fron-
teira. Se até pouco tempo, em muitos países, a vontade era de abertura e diálogo,
tornando possível vislumbrar uma cartografia do mundo mais fluida, o que vivemos
hoje traz de volta um mapa engessado, cindido na hierárquica divisão norte/sul, oci-
dente/oriente. Situações não tão distantes das experienciadas pelo grupo em suas
expedições pelos enclaves do mundo em Brasília, como sermos expulsos da frente
de uma das embaixadas por estarmos ali fotografando, o que poderia revelar algo
sigiloso do próprio país - esse é apenas um dos vários exemplos do que vivemos. O
que significaria então ser, repentinamente, estrangeiro em sua própria cidade? Seria
possível, por meio da prática artística, redesenhar fronteiras, retraçar limites, convo-
car a hospitalidade e diluir hostilidades?

Criar coletivamente uma poética da viagem solicita muitos pontos cardeais, uma
rosa dos ventos que dê conta, a um só tempo, de muitos vocábulos, de muitos luga-
res e de nenhum lugar. Nesse movimento, toda imagem fabrica distâncias, sinaliza
os confins de um mundo que só conhecemos de passagem. Emerge dessa relação
uma paisagem no/do cotidiano que se forja na junção de certa maneira de olhar
e dos caminhos percorridos. Uma paisagem que é mais do que um simples ponto
de vista óptico. Ela é ponto de vista e ponto de contato, pois, nos aproxima distin-
tamente do espaço, porque cria um elo singular, nos entrelaçando aos lugares que
nos interpelam. Nessa experiência sensível do espaço, criamos lugares, ganhamos
terreno (HOCQUARD, 1997: p.11).

Como grupo dividimos funções, decidimos, apagamos, cedemos, insistimos em nos-


sas ideias, recriamos, inventamos coordenadas, criamos relevos, laboriosas altitudes,
(im)possíveis latitudes, intensas longitudes, vivemos o tempo do processo, do labo-
rioso processo poético que vai ditando o que é sobra e o que inevitavelmente não
pode faltar... e que se sustente, uma coisinha de nada, mas com estilo (PONGE, 1997:

1191
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

p.27). Pensar coletivamente demanda escuta, saber que não se está só porque a todo
tempo somos muitos a querer dizer o mundo vivido. Mas antes de dizer é preciso ver e
aqui a visão se fez interrogação individual e coletiva porque era preciso encontrar uma
destinação que aliasse esse pensamento-viandante, seu movimento, e a poética que
dele emanava. Todo pensamento-viajante solicita compor uma paisagem, um pensa-
mento-paisagem (COLLOT, 2011), uma poética dos lugares, uma poética da viagem.

Em vez de designar o sentido da viagem apenas como uma mudança de localização


e de espaço, ela é aqui pensada como uma situ-ação que engaja outro tempo, esse
não tributário da rotina. Uma abertura na qual se alojaria a nossa experiência sensí-
vel do espaço e comporia uma situação-em-paisagem (DIAS, 2010).

A experiência dessa paisagem seria então um (re)ordenamento espacial que des-


pertaria nossos sentidos, a abertura onde se instalaria o tempo da contemplação, do
deslocamento, o tempo de um certo ponto de vista. Uma espécie de espairecimento
temporal que nos (re)situaria distintamente em nosso espaço. Essa “mudança de ares”
adviria da tomada de distância necessária para que o espaço da rotina se torne um es-
paço-em-paisagem.(DIAS, 2010). Dar espaço ao espaço, dar tempo para que o espaço
apareça e revele outros elos, novas alianças que nos trariam de volta a este lugar por-
que dele nos afastamos. Nessa geopoética, o espaço acolhe um pensamento viandan-
te, atento aos detalhes que compõem o espaço percorrido, às fenomenologias que
tomam o partido das coisas que nos incitam a tecer novas coordenadas, inusitadas
correlações, improváveis geografias. Encontrar na rotina outro ritmo do/no mundo,
uma cadência que nos embala em seu movimento, porque intensifica a nossa capaci-
dade acolher os pormenores que compõem os espaços que nos circundam.

A um só tempo, habitar esse singular longínquo, ter a capacidade de se sentir em


casa algures e, quando em casa, e de sentir alhures. Essa postura do viajante enga-
ja nossa atenção nos itinerários, enraizando-nos a eles. Ter um olhar-viajante (DIAS,
2010) é tomar posse dos contornos sem, portanto, se deixar domesticar por eles,
constatar que a extensão que nos circunda pode ser fabulosa. Nesse movimento,
somos então um corpo-coletivo que, para se deslocar, necessita manter a cadência
dos passos, o equilíbrio dos corpos e o desejo de permanecer juntos.

Referências Bibliográficas
BUTOR, M. (1996). A la frontière. Paris: Éditions de la différence.

COLLOT, M. (2011). La pensée-paysage. Actes Sud/ENSP.

DARDEL, E. (2011). O homem e a terra. São Paulo : Perspectiva.

DIAS, K. (2010). Entre visão e invisão: paisagem (por uma experiência da paisagem
no cotidiano). Brasília: Programa de Pós-graduação em Arte, Universidade de Brasília.

1192
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

DEGUY, M. (2007). Reabertura após obras. . Campinas: Ed. UNICAMP.

GROS, F. (2010). Caminhar, uma filosofia. São Paulo: é realizações.

HEIDEGGER, M. (2004). A caminho da linguagem. Petrópolis: Editora Vozes.

HOCQUARD, E. (1997). Taches Blanches in Le Gam, p.11.

LABBUCCI, A. (2011). Caminhar, uma revolução. São Paulo: Martins Fontes.

ONFRAY, M.(2009). Teoria da viagem – poética da geografia. Porto Alegre: L&PM


editores.

PEREC, G.(2000). Espèces d’espaces. Paris: Éditions Galilée. (1989). L’infra-ordinaire.


Paris: Éditions du Seuil,.

PONGE, F. (1997). My creative Method in Métodos. Rio de Janeiro: Imago.

SANTOS, M. (1994). Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científi-


co informacional. São Paulo: HUCITEC.

SERRA, R. Richard Serra: escritos e entrevistas, 1967-2013. In: ESPADA,H. (Org.).


(2014) Richard Serra: escritos e entrevistas, 1967-2013. Tradução Paloma Vidal, edi-
ção, São Paulo: IMS.

VERNE, J. (2017). A volta ao mundo em 80 dias. Rio de Janeiro: Editora Zahar.

1193
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Leandro Muñoz1 and Suzete Venturelli2


Analysis and openings of literary sounding-visual performances
Merleau-Ponty in a Computational-Art praxis process
Análisis y aperturas de performances sonoro-visuales literarios
Merleau-Ponty en un proceso de praxis de Arte Computacional

Resumen
Sobre el trabajo con palabras en performaces sonoro-visuales, de Muñoz, se
pone perspectiva con la reflexión de Maurice Merleau-Ponty. Con los libros “Lo
visible y lo Invisible”, y “Ojo y Espíritu”, hay algunos caminos relativamente nue-
vos que se analizan, descubren o proponen para explorar interactividad y cola-
boración humano-máquina.
Procesos de lectura y canto aleatorios, en vivo y en voz alta, y lectura y canto
aleatorios en colaboración y mediados por computadora, se revisan a través de
los conceptos de “sobrereflexión”, “hiper-dialéctica” y “esencia” desde el punto de
vista de M-P. Esto, en las capacidades de presencia sensible y expresividad de: la
tipografía como carne de la palabra que se mueve; la voz en la lectura en vivo;
y el sonido, mediado o generado por computador, que responde y articula la
retroalimentación entre todos.
Finalmente, se piensan propuestas para operar con: “la teoría mágica de la vi-
sión” derivada de Klee y otros, el concepto de “profundidad”, y el poder de la
línea. Todas estas trabajadas sobre las materialidades sonoras y visuales de las
palabra, incluso trayendo imágenes externas; esto a través de interfaces de
entrada sonora o corporal.
Palabras clave: Arte Computacional Performatico, Literatura Electrónica, Performan-
ce Colaborativo Sonoro-Visual, Colaboración humano-máquina, Merleau-Ponty.

1 Industrial Designer, and Especialist in Artistic Education from UNAL Bta Colombia. Professor (2012-?)
at Artes Plasticas y Visuales, U. del Tolima, Colombia. Actual Mestrante em Artes, Arte e Tecnologia UnB,
Brazil, PAEC CAPES Fellow 2019-2021. Integrant of Medialab UnB. Student of phenomena, experi-
mental-musician-sound-artist and agent of the word. Performatic work on sound and word since
2010 in small difussion circles. Nômade Lab 2019-today, sounding-visual collective with Medialab
UnB and Brasilian and foreigner artists.
2 Professora titular da Universidade Anhembi-Morumbi e Universidade de Brasília. Doutorado em
Artes e Ciências da Arte pela Universidade Pantheon Sorbonne - Paris I. Pós-doutorado na Escola de
Comunicação e Artes da USP. Publicou vários livros no Campo da Arte Computacional. Participa de
congressos e periódicos da área como ISEA, #ART, ARTECH, HCII, entre outros.

1194
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Abstract
Perspective is put with the insight of Maurice Merleau-Ponty over Muñoz’s work with
words in sounding-visual performances. With books “The Visible and The Invisible”,
and “Eye and Mind”, there are some relatively-new roads being analyzed, and dis-
covered or proposed, to explore human-computer, interactivity and collaboration.
Processes of aleatory live-aloud-reading and singing, and aleatory-computer-medi-
ated collaborative live-aloud-reading and singing, are revised through the concepts
of “hyper-reflection”, “hyper-dialectics” and “essence” from M-P point of view. This,
in the capacities of sensitive presence and expressivity of: typography as flesh of the
word that moves; the voice in live reading; and computer, mediated or generated,
sound, that answers and articulates feedback between them all.
Finally, proposals are thought for operating with: “the magical theory of vision” de-
rived from Klee and others, the concept of “depth”, and line’s power. All these, worked
over word’s sound and visual materialities, even bringing external images; this
through sound or corporal input interfaces.
Keywords: Performatic Computational Art, Electronic Literature, Collaborative
sounding-visual performance, Human-machine collaboration, Merleau-Ponty.

What to expect
What you delve on, here on after, will try to put into words, the matters of experien-
ces that I have been trying to accomplish with my work, as a matter of stories to be
told in the way of –hey, what did you find at that exhibition?. –man it was like an image
of … and I think I understood, but later didn´t… what a work of art becomes between
people: memories of experiences. In such a way, I will try to go thinking about my ex-
pectations, but it would rely on others experiences for it to be a little less blindsided.
Anyway, only a sight at a time of “the vertiginous polyhedral”3 is always given to us
to be seen… may I wish for dialogues to sprout from this, to see more…

I will be taking the thoughts of Merleau-Ponty to explain myself, and think my praxis,
while explaining the things I want, or wanted to achieve.

“Hyper-reflection” on first panorama


The first panorama of praxis, a tale of what I imagined people felt those times:

A large projection on a wall shows words that are happening, like someone who is
typing, but has a particular rhythm, and does not go letter by letter but word by word.

3 The world, in sight of Argentinian Julio Cortázar´s “Lucas sus experiencias Cabalísticas”.

1195
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

There is a character who is reading some of those words, sometimes he stops and the
appearing of words as well. This character has a guitar in his hands and it seems that
the rhythm of words has to do with something he does, it seems that it is the guitar that
gives the rhythm. But he isn’t only reading, sometimes he sings, sometimes both... there
are more sounds that appear and disappear, it has nothing to do with the guitar, but she
(the guitar) also makes sounds from thing, although there are times that do not seem
guitar sounds, and articulates to the words, I don’t know how. The fact is that I see how a
new text appears and I do not know where it goes or where it comes from, and I see that
it can be read in disorder, I had never done it, and that there are many rhythms to read
something, I have always been reading so much the same! I can sing weird texts, they
seem of philosophy, sometimes of poetry, historical, and that novel sounds to me known,
how strange that all this is mixed thanks to a rhythm, what emerges there?
Vague description of two presentations, Wandering Through The Wanderer’s Wanderings (Walter
Benjamin), 2016, and Pre-nocturnal: night, please come out and play4, 2017

Figure 1 Wandering through the Wanderer’s wanderings, private presentation, 2017. Leandro M.

The first insight I would like to take Merleau-Ponty to, is this one: it seems here that
“hyper-reflection” and “hiper-dialectic” 5 on firsts chapters of “The Visible and the Invi-
sible”, are given as conditions, requirements, and expectancies in this praxis, although I
hadn’t met Merleau-Ponty until recently: this will be to prove later reflection about the
conscience of the present, that it isn’t something to be argumenting about.

4 Original title: Pre-Nocturno: que la noche salga a jugar.


5 “Sobre-reflexão” and “hiper-dialetica” in Portuguese.

1196
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

I see “hyper-reflection” as a distillate that Merleau-Ponty has managed to de-sprout,


giving flesh to the empty vacuum in which one falls if one’s desire is for reflection
(that world of only thought), to give us the only available sight of the world. This is
done by him, firstly taking away the error of the nihilistic Pyrrhonian sceptics:

(…) they (…) count the perceived and the imaginary indiscriminately among our
“states of consciousness.” (Merleau-Ponty, 1992, p. 6)

That is to say that everything happens in our head. The distillate is then continued,
by taking us to think about those moments of the children –ourselves–when they
had not yet formed a very organized thought, to refute that the reflection is what
saves us in the world:

That a child perceives before he thinks, that he begins by putting his dreams in the things, his
thoughts in the others, forming with them, as it were, one block of common life wherein the
perspectives of each are not yet distinguished— these genetic facts cannot be simply ignored
by philosophy in the name of the exigencies of the intrinsic analysis. (Merleau-Ponty, 1992, p. 12)

Then the “hyper-reflection” appears as a movement in which I trust that the other is
also subject, because what he tells me about the world also resonates with me, and
complements what I see of the world, leading me to want to relate to the world, and
making me pass to also reflect on it, but accompanied, waiting for what comes in, to
come out again.

When he says that,

My access to a universal mind via reflection, far from finally discovering what I always was, is moti-
vated by the intertwining of my life with the other lives, of my body with the visible things, by the
intersection of my perceptual field with that of the others, by the blending in of my duration with
the other durations. (Merleau-Ponty, 1992, p. 49),

he is talking about “hyper-reflection”, and tells us that nothing is over, that all the
time we restart again because even with all the laws of the universe discovered, the
truth is provisional (that was the teaching of many noble scientists who have admit-
ted that it is always done “forever bailing”, and that what is known is always shaped
by what you want to see, like Heisenberg), the vertigo of the experience is stalking
me in the next corner. So, is really “hyper-reflection” happening as an imperative to
stay in experience-mode? In that type of reading we came to analyze, full of holes,
full of sounds, silences, words that stop, readings that do not go straight, texts that
are built in the instant?

The problem is that the author goes with that intention, but the question for someone
who arrives is debated in a matter of comings and goings, questions and beliefs. But

1197
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

above all, the work fails to have “hyper-dialectics” because there is no way of being able
to counteract, be able to respond or say what you also think, it stayed at spectator level.

“Hyper-dialectics” on second Panorama


Because of that fail, this to be added to the panorama from before, tale of what so-
meone would feel:

But now it’s not just the character, and the computer which apparently cheats him, the
ones who read; There are some mysterious microphones to my side, as if waiting for me
to use them. Would those microphones be a farce, or would those really work and what
I say will be amplified? I don’t know what bothers me more... sometimes I don’t want pe-
ople to look at me, but well, for something I came, I can join this crazy reading... it seems
that what you say can make words change color, their form, it seems I make them throb,
vibrate... I can also make the flowing of text, to change into others texts, I can even stop
the reading, but how? And I can also read, yes, sing, at the same time with the character
... if I detune my singing, what will happen? Does he also detunes? Is it so bad to detune?

General description of what was to be presented at the “1st Electro-plastic” named


“Thinking student 2017”6, but couldn’t be presented because of logistical problems.
It is going to be finally shown by September 14, on the VIII Coma at UnB Brasília7.

Figure 2 Frame from private proofs of Thinking Student. 2018 Leandro M

6 Pensar Estudiante 2017, 1er Electro-Plástico, 9no Aniversario Facultad de Ciencias Humanas y Ar-
tes, Universidad del Tolima, Ibagué, Colombia.
7 VIII Coma at UnB Brasília. Atlas para o futuro: a pesquisa em artes na universidade. 25 anos do Pro-
grama de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade de Brasília at UnB, Brasilia, Brazil

1198
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Are we here on a hyper-dialectic? It seems so, but also what someone enters to do
at the reading, or add, even if it is subtle has consequences for the other. It may
be that the text goes somewhere else, that it passes from an interesting education
theory, to a manual of some machine, to a poem, and always being intersected
with “student”. Here, something that is done together occurs in those words made
of atoms, because it seems that speaking, any sounds, even breathing, gives them
life; They seem to throb with that flesh of lines. It does not end there because now
the character can also change the texture to what that companion says, with , and
it will stay in a meeting of looks, of wanting or not wanting the other to intrude,
but it will be known in some way.

But, what is “hyper-dialectic”? Merleau-Ponty says it is good dialectics, but above all,

Could we not express this simply by saying that for the intuition of being and the ne-
gintuition of nothingness must be substituted a dialectic? (Merleau-Ponty, 1992, p. 89)

With this, if we have not been reading with MP the stony path of not seeing nothing-
ness as something without existence, but nothingness as an intuition of the being
that however is not present, and vice versa, which is to see nothingness by its con-
trary (negintuition) –from my point of view– we will enter a colorful tongue twister
... any way, lets focus on the “AND” part, where he is telling to put both things at the
same time. But I think there are more telling parts, for example:

Being neither an outside witness nor a pure agent, it is implicated in the movement and does not
view it from above. (Merleau-Ponty, 1992, p. 90)

or
covers a swarm of relations with double meaning, incompatible and yet necessary to one another
(complementary, as the physicists say today) (Merleau-Ponty, 1992, p. 91)

What Mr. Maurice is very prepared for (to avoid “trusting” with him, although the
dialectic has already put him very close to me), is to warn us, with paradoxes such as
ending up becoming a slave to freedom:

(...) as soon as one takes it as a motto, speaks of it instead of practicing it, it becomes a power of
being, an explicative principle. What was Being’s manner of being becomes an evil genius. (Mer-
leau-Ponty, 1992, p. 93)

With this, well, there would be a severe criticism, not only to that expanded reading
that is analyzed, but to the practice of any art because, are we playing drills or does it
really happen? Is giving ways to vibrate, for words, something that makes them alive?
if their “flesh” is made of lines, and these polyhedra at intersections, is it something

1199
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

that constitutes them? it is a matter of appearing at that time, but can the sound of the
ones involved reach their “flesh” to make it something meaningful?

Figure 3 Renderings from Processing software, proofs of throbing words. 2019 Leandro M.

Do we take to heart what we think? The heaviest part of this criticism is that even
this, writing about a work, can be a non-conducive wandering, a loss: The academy,
perverse simulation?

Also,

(…) it is not only a risk of non-sense, therefore, but much worse: the assurance that the things
have another sense than that which we are in a position to recognize in them. Already we are on
the way of the bad dialectic, that which, against its own principles, imposes an external law and
framework upon the content (Merleau-Ponty, 1992, p. 94)

But how do I know what I really recognize in something? We would have to change
it and then go and look at it… it implies me living, walking, not biasing by prejudice;
It gives us a cruel mirror of constant introspection, of never believing that something
is finished ... but to enter that balance we will have to fall once into bad dialectics, do
academia, to see if it is so perverse, to see everything with one’s own eyes.

Essence with Contingency


Later M-P, with the emergence of experience and testimony, in the Interrogation and
Intuition chapter, the word will once again be empowered (even if its decline is only
momentary, because my rhetoric specified it! But all this is happening with words,
HA!), Because the word is that ambiguous, made in the racking of the centuries of
innumerable human beings, polishing it in innumerable ways,

(...)it brings to the surface all the deep-rooted relations of the lived experience wherein it takes
form, and which is the language of life and of action but also that of literature and of poetry(...)
that language that can be known only from within, through its exercise, is open upon the things,
called forth by the voices of silence, and continues an effort of articulation which is the Being of
every being. (Merleau-Ponty, 1992, p. 126-127)

1200
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

All this because the “essence”, in the analysis and cleaning of that chapter, bears to
tell us, that essence cannot be devoid of this here and now, because the essence in
Maurice’s deep analysis, can not fail to point out something specific, essence cannot
be what is always static... so for me, it can no longer be M-P or Mr. Maurice, because
it is this here and now, that has been woven with me...

One forgets that our openness, our fundamental relationship with Being, that which makes it im-
possible for us to feign to not be, could not be formed in the order of the being-posited, since it is
this openness precisely that teaches us that the beings-posited, whether true or false, are not no-
thing, that, whatever be the experience, an experience is always contiguous upon an experience,
that our perceptions, our judgments, our whole knowledge of the world can be changed, crossed
out, Husserl says, but not nullified, that, under the doubt that strikes them appear other percep-
tions, other judgments more true, because we are within Being and because there is something.
(Merleau-Ponty, 1992, p. 127-128)

There may be a lot of respect granted by admiration, by him managing to express


the depth of the experience, its obvious behavior, its continuity and presence, but
that does not take out that something can happen (even without reading him, for
the sake of the analysis), that one might enter into a dialogue that comes from alwa-
ys, from some deepness, by “just” experiencing life.

But, coming back to this narrated performance, what does the experience hold, the
testimony to these literary sounding-visual performances? It seems to wait to make
friends, practice a lot, go read together as much as possible, so that different, more
true, or more false things appear, but that will always help to think.

This itself is already “reversibility”, that other term coined by M-P that deals with all
these characteristics of experience, about consciousness of consciousness; but the
mystery of this, is that it cannot be expected or propitiated. To some teacher I once
shared that the sea looked at me, I even made a poem, but how do I expect it to ha-
ppen? ... Yesterday the “g” in the word “Design” looked at me, it seems it wanted me to
turn it into “Desing”, maybe to go dancing, but what do I know? Who gives certainty
with those things? Whose certainties are? Who wants certainties?

There are some moments when the texts that appear, entangle something unprobab-
le, but that begins to happen, as the sound helps, and rhythm sticks without helping
with the sense of words. I get the feeling that something is guiding all this… (tale of me
working privately with these apparatus)

There, Estanislao Zuleta appears to me, who often returns and repeats me from forever:

“There is no illusion more naive than to believe that one can live without illusions, nor
faith more naive than to believe that one can think without faith” (Zuleta, 2005. p. 58)

1201
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Towards new panoramas I


Another road, that Mr. Maurice has given me, through hearting of Paul Klee, who I
once also studied, has to do with the practice of a “Magical Theory of vision”: (…) “ob-
jects before him pass into him” (…) “the mind goes out through the eyes to wander
among objects” (Merleau-Ponty & Johnson, 1993. P. 127-128).

This has a profound meaning on the act of producing images, let´s say, to not close
it only on unto painting: You take things into yourself, so you can then put them out.
This process will be capitalized when he adds: “What exactly does he ask of it? [the
mountain] To unveil the means, visible and not otherwise, by which it makes itself
mountain before our eyes.” (Merleau-Ponty & Johnson, 1993. P. 128).

An he will continue to develop even forgetting the paradox of not working with soil
and grass, or materials of the mountain, with pigments, making it a work of the sight,
a experience of sight , that just leaves us speachless, “But the interrogation of pain-
ting in any case looks toward this secret and feverish genesis of things in our body.”:
this is an incredible happening, that we all participate in, by “just” having senses (let
us not forget how many years in evolutionary terms to achieve eyes, hands…), and
then adds: “The question comes from one who does not know, and it is addressed to
a vision, a seeing, which knows everything and which we do not make, for it makes
itself in us.” (Merleau-Ponty & Johnson, 1993. P. 128).

With that he especifies the destroying fact that we can’t hope to control it, nor mas-
ter it, and that it won’t stop to develop. He will go to mature these things on the Fifth
chapter of “Eye and Mind”.

But, what is of interest for us, is that he is opening this operations of sight, or let’s say
sensing for techniques other than painting.

In this, I can’t leave the idea of asking things “To unveil the means by which [they
make]” themselves through a play of words, even by formal, limiting ways. So, I get
to wonder about defining words by more words, but in a visual realm, in ways such
as of Calligrams, but that would react to presences of sound, of body. (this section of
text is after all, roads I imagine, maybe for people to join me, and help to cristallize)

After that, as he delves to explicit an ode to “the line”, reading Klee, and Malraux, I will
also think about drawing, filling spaces of words, with lines made of words, drawn by
my guitar with the data it produces… but also draw words that become shapes of
things, of the same objects they represent.

Towards new panoramas II


By other complementary visions, the reflections about the things that painting
can achieve, as with Cezanne; or let’s say, somebody permeated by “depth”, which

1202
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

is one of the main issues on “Eye and Mind”, gives rise as Mr. Maurice points out to
a Metaphysics that would not delude even with arguments, because it is presence.

He says,

(Depth), “cannot be merely a question of an unmysterious interval, as seen from an airplane, be-
tween these trees nearby and those farther away. Nor is it a matter of the way things are conjured
away, one by another, as we see so vividly portrayed in a perspective drawing. (…) The enigma
consists in the fact that I see things, each one in its place, precisely because they eclipse one ano-
ther” (Merleau-Ponty & Johnson, 1993. P. 140)

The part that gives rise to something that would be as “extracting or arriving at thin-
gs” is this weaving of comprehensions:

“Once depth is understood in this way, we can no longer call it a third dimension. In the first place,
if it were a dimension, it would be the first one (…) Depth thus understood is, rather, the experien-
ce of the reversibility of dimensions, of a global “locality” in which everything is in the same place
at the same time, a locality from which height, width, and depth are abstracted, a voluminosity
we express in a word when we say that a thing is there.” (Merleau-Ponty & Johnson, 1993. P. 140)

But what do we do with this reflection and panoramas for expanding reading? One
of the things that Mr. Maurice softly spoke to me, was the remembering of times
when a screen, a projection, also gave me that feeling. Altough on the realm of Com-
putational-Art we are working with all these mediations, these scientific simulations
that are based on Cartesian understanding, those issues of counting on dimensions,
contrary to the “depth” that we are putting on the table, the result even with a timid
visual effect, is that the plane grows depth, as in the firsts cinema projections, where
people flew away thinking the train was upon them.

But what do we do with this reflection and panoramas for expanding reading? One
of the things that Mr. Maurice softly spoke to me, was the remembering of times
when a screen, a projection, also gave me that feeling. Altough on the realm of Com-
putational-Art we are working with all these mediations, these scientific simulations
that are based on Cartesian understanding, those issues of counting on dimensions,
contrary to the “depth” that we are putting on the table, the result even with a timid
visual effect, is that the plane grows depth, as in the firsts cinema projections, where
people flew away thinking the train was upon them.

Even if it is true that projection presence has this pixelated texture, at certain distance
(as with the Impressionists paintings), you arrive at a feeling of “depth”. If it is worked
with subtlety going backwards or forwards on the virtual space, we can achieve things.
I haven’t tried out much placing of words in layers of depth inside of the virtual space,
only a cadence as if the word were on a children’s swing. But I believe that for example,

1203
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

levels of amplitude captured by the mics, translated into depth placing, can give rise
to ways of pursing Maurice’s and Cezanne’s “depth”.

But also, when he talks, a little before on the book, also about depth

“We are [as Cartesians] always on the hither side of depth, or beyond it. It is never the case that
things really are one behind the other. The encroachment and latency do not enter into their
definition. They express only my incomprehensible solidarity with one of them –my body” (Mer-
leau-Ponty & Johnson, 1993. P. 134),

he gives me the intention of also working with the solidarity of the body of one im-
plicated in this sighting: the projector. If sound from someone, or the entering of
somebody into a zone begins to make “mirroring” of the place by moving the projec-
tor itself, maybe we can arrive at interesting presences… But then, when the “encro-
achment and latency” stay on my mouth, I cannot help but feel that I need ways to
work with the people’s bodies solidarity, and the work of David Rokeby pops into my
mind, so I can achieve a “Very Nervous System”8 of my own.

References
Merleau-Ponty, M. (1986). El Ojo y el Espíritu. Buenos Aires: Paidos.

Merleau-Ponty, M. (1992). THE VISIBLE AND THE INVISIBLE. United States of America:
Northwestern University Press.

Merleau-Ponty, M. (2010). Lo visible y lo invisible. Buenos Aires: Nueva Visión.

Merleau-Ponty, M., & Johnson, G. A. (1993). The Merleau-Ponty aesthetics reader /


philosophy and painting / edited with an introduction by Galen A. Johnson. (G.
A. Johnson, Ed., & M. B. Smith, Trans.) Evanston, Illinois: Northwestern University Press.

Ricardo, F. J. (2009). Literary Art in Digital Performance, Case Studies in New Me-
dia Art and Criticism. New York: The Continuum International Publishing Group Inc.

Zuleta, E. (2005.). Elogio de la dificultad. Medellín: Hombre Nuevo Editores (No-


vena edición).

8 See Rokeby, David. http://www.davidrokeby.com/vns.html, revised September 2019.

1204
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Luciano Soares Mariz1 and Marília Bergamo2


Relações Intercorporais: Um tratado de horizontalidade no
jogo entre o corpo-performer e o corpo-câmera
Relações Intercorporais: A treatise of horizontality on the play between de
performer-body and the camera-body

Resumo
O artigo apresenta um videoperformance intitulado Relações Intercorporais,
uma reflexão sobre como são observados os agenciamentos mediante uma re-
lação de jogo entre o performer e a câmera. Desta relação, propõe-se um trata-
do de horizontalidade que projeta um rompimento na estrutura dos corpos e
os condiciona à exploração de novas potencialidades de cada agente. A obra foi
realizada no contexto político-social de 2018 mediante o assassinato da verea-
dora e ativista Marielle Franco da Silva. Sendo assim este artigo, apresenta argu-
mentos teóricos e práticos observando os graus de indeterminação dos corpos
autônomos em espaço performativo, colocados em confronto mediante a ação
de jogo. Pelo confronto do jogo, evidenciam-se processos de diferenciação que
apresenta novas possibilidades de autorregulação dos sistemas.

Abstract
The article presents a videoperformance entitled Relações Intercorporais, a reflexion
about the agencies are observed through a relationship on the play between the per-
former and the camera. From this relationship, it’s proposed a treatise of horizontality
that projects a break in the structure of the bodies and conditions them to the explo-
ration of new potentialities on each agent. The videoperformance was realized in the
political and social context of 2018, through the murder of the councilwoman and ac-
tivist Marielle Franco da Silva. Thus, this article presents theoretical and practical argu-
ments observing the degrees of indeterminacy of autonomous bodies in performative
space, confronted by the action. By the confrontation on the play, differentiation pro-
cesses are evidenced and presents new possibilities of self-regulation of the systems.

1 Mestrando no Programa de Artes da Escola de Belas Artes - UFMG na linha de Poéticas Tecnoló-
gicas. Artista multimídia com ênfase em audiovisual, professor da UFCG em Arte e Mídia, leciona
no curso de Bacharelado em Arte e Mídia nas áreas de cinema e poéticas do vídeo. Seus trabalhos
recentes possuem abordagem voltada para área de poéticas do vídeo, mais especificamente em
videoperformance.
2 Professora, artista e pesquisadora da Escola de Belas Artes da UFMG.

1205
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A ação performática e o corpo câmera


Para Phelan (apud. MELIN, 2008) a performance caracteriza-se pelo grau de atuali-
zação do corpo no espaço, restringindo-se ao patamar das artes visuais e do corpo,
Phelan apresenta a possibilidade de pensar na performance enquanto aconteci-
mento de ações mediante presença física do corpo do performer. Sob este ponto
de vista, a câmera que nas décadas de 1960 à 1980 apresenta suas potencialidades
a priori enquanto registro de memória da ação de performance, produz algo que se
afasta da performance, pois, alguns artistas optam pela não apresentação da ação
presente do corpo humano e sua relação com o público mas sim, um processo de
elaboração marcado pela imagem virtualizada do vídeo e a ação de performance
instituída durante o processo de registro da câmera. Na medida em que o ponto
de vista afasta-se das artes estritamente visuais e o discurso aproxima-se das artes
audiovisuais e da imagem em movimento, novas associações e novas situações de
simbiose resultante da ação performática podem ser apresentadas. No audiovisual,
a videoperformance é mediada por um conjunto técnico que participa ativamente
dos processos de significação e reconstrução da forma e conteúdo, assim como do
objeto resultante das ações de um corpo técnico que possui um posicionamento de
agente ativo na ação performática. Para Bruce Nauman (apud Melin 2008) o vídeo na
ação de performance, é a participação de um corpo tecnológico que se torna parte
do processo de produção de significação, “as ações para vídeo passam a ser consi-
deradas como extensões de sua escultura.”(p.51). A câmera se torna um corpo inte-
grante da ação performática, com suas potencialidades de objeto técnico e promo-
ve relações profundas nos processos de significação do corpo, este objeto técnico,
encontra-se mediado por um espaço que Melin define como espaço de performação,
que seriam os espaços de encontro do espectador com a obra-proposição, abrindo
o espaço para uma relação comunicacional.

Os agenciamentos dos objetos técnicos em videoperformance


Existe uma natureza política nas relações entre performer e câmera, o pensamen-
to do indivíduo e sua inserção no coletivo faz-se premissa para a efetivação dos
agenciamentos. Deleuze (2008) apresenta uma condição prévia para os processos
de individuação em “Gilbert Simondon, o indivíduo e sua gênese físico-biológica”,
esta condição seria a presença de um sistema metaestável que se caracteriza pela
“(...) existência de uma “disparação”, ao menos de duas ordens de grandeza, de duas
escalas de realidade díspares, entre as quais não existe comunicação interativa. Ele
implica, portanto, uma diferença fundamental, como um estado de dissimetria” (p.2).
Assim, as ações performativas são sustentáculo para os processos de individuação
onde a ação e o contato dos corpos apresentam um ambiente de metaestabilidade
e as partes heterogêneas se relacionam, apreendendo aspectos antes não consti-
tuintes dos indivíduos. A diferença como aspecto intrínseco das relações das partes
heterogêneas, abre uma janela para a compreensão dos processos de individuação

1206
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

enquanto resolução de um sistema que se estabelece no processo criativo – e per-


formativo – entre o performer com a câmera. Deleuze afirma que estas resoluções
são efetivadas por meio de ressonância interna e informação.

A concepção do corpo do artista passa por processos de regulação, observando a


sua capacidade de representatividade na ação e nos desdobramentos que o mesmo
pode apresentar, quando em contato com a câmera, gerando uma representação de
um corpo virtualizado, desconstruído e metamorfoseado. A câmera que é um siste-
ma técnico e organizado também passa por processos de regulação que se manifes-
ta por meio de fenômenos de hipertelia onde seu sistema adapta-se às condições
materiais e humanas de produção, descortinando novas aplicações e formas de atu-
ação do objeto técnico no mundo. Os agenciamentos permitem então processos de
individuação que transpassam as qualidades cognitivas e de apresentação de signos
e conteúdo, compreendendo transformações através dos processos de autorregu-
lação interna, mas apresentam também transformações nos corpos em proporções
físico-biológicas, estas, definidas como processos de transdução.

Modelo Rizoma e a Relação de Jogo


Deleuze (1995) nos apresenta os agenciamentos da pós-modernidade ambientados
em uma atmosfera de multiplicidades, onde as conexões se estabelecem de uma for-
ma desordenada e descontínua, onde os afetamentos acontecem não somente por
meio de signos mas também através das linhas de força que se colidem e estruturam
novas linhas, estas compõem uma estrutura desenvolvida por Deleuze e Guattari
através do modelo Rizoma. Encontramos neste ambiente rizomático um modelo/
meio propício para as múltiplas conexões que a câmera e o performer podem se
situar. Mediante estes agenciamentos relacionais, as posições hierárquicas são des-
construídas e os vetores de força deixam de existir enquanto relação unilateral. A
câmera sai do seu estado de autômato para seu estado autônomo e provoca fissuras
que também afetam e modificam a estrutura do agente-performer, aproximando-se
de uma situação de horizontalidade nos processos de produção e afetamento .

Por outro lado, as ações do jogo (Huizinga, 2000) se assemelham às ações de perfor-
mance, os corpos se comportam voluntariamente balizados por fatores espaço-tem-
porais como por exemplo as limitações de corpo e de extensão do mesmo no espa-
ço-tempo, as condições de enquadramento da câmera e de inserção do corpo do
performer. É preciso ressaltar também, que existe um caráter de efemeridade no ato
do jogo, que se configura como uma ação performativa levando em consideração as
relações de singularidade entre as partes, resultando em uma ação única que nunca
se repetirá da mesma forma, assim como a ação de performance que nunca poderá
ser reproduzida. As ações entre o performer e a câmera sempre serão de natureza
performativa em videoperformance e o grau de efemeridade das ações fazem parte
de sua própria constituinte.

1207
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Sobre o Videoperformance Relações Intercorporais3


Relações Intercorporais trata-se de um videoperformance produzido em maio de
2018 na cidade de Belo Horizonte – MG, pelo artista Luciano Mariz. A montagem
desta obra acontece mediante um contexto político-social que impactou direta-
mente os processos de criação e desenvolvimento poético: o assassinato da vere-
adora e defensora dos direitos humanos, Marielle Franco, no dia 14 de março de
2018, quando se encontrava em trânsito após um evento de seu partido político, na
Lapa – RJ e seu carro foi surpreendido com 13 tiros, onde 4 atingem Marielle e 3 atin-
gem seu motorista, Anderson Gomes, levando-os à óbito. Após realizadas as prisões
dos criminosos, em maio de 2018, outros mandados de prisão foram emitidos para
pessoas com envolvimento nos homicídios e várias questões são levantadas desde
então no tocante às relações dos sistemas de milícias com possíveis mandatos de
execução do assassinato alegando que a atuação da vereadora estava dificultando
as ações dos mesmos na região e incomodando rivais políticos, uma vez que a vere-
adora acusava o envolvimento destes com milícias no Rio de Janeiro.

Em diálogo com o contexto exposto, Relações Intercorporais foi realizado mediante


uma ação performática que induz os corpos para um estabelecimento de relações
onde são colocadas em espaço de performance, estruturas de poder que são im-
postas e sujeitadas por corpos humanos e não-humanos, vistas como metáfora das
relações de poder e atos de violência e imposição de forças mediante a intimidação
das estruturas dominantes em detrimento das forças encontradas nos movimentos
sociais e sua ameaça à desestabilização deste sistema.

No videoperformance a tônica se dá partindo da premissa das individualidades e


autonomia dos corpos performáticos em choque com a forma como estes obser-
vam o espaço performático e se projetam nele. Existem camadas de subjetividade
em Relações Intercorporais que são reveladas pela ótica da multiplicidade, abrindo
horizontes para debates no campo das relações destes corpos pelo ponto de vista
das conexões e dos agenciamentos Deleuzianos.

O jogo

O vídeo encontra-se dividido em duas partes, a primeira compreende um preâm-


bulo do videoperformance e apresenta um registro quase documental do processo,
apresentando os momentos que precedem a ação de jogo entre os corpos. No chão,
encontram-se alguns montes de pó branco e o performer está distribuindo os mon-
tes pelo espaço ao mesmo tempo que registra o sistema montado para realização da
ação / gravação da situação performática (Imagem 1). Compõe o conjunto técnico
do trabalho, um Ipad que apresenta a imagem de retorno via bluetooth de a uma

3 Disponível em: https://vimeo.com/262323605

1208
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

câmera GoPro Hero 4 que está filmando em função automática para compensação
de luz e contraste da imagem, esta possui acoplada em seu corpo uma case de pro-
teção e um monopé de 12 cm instalado na case. Esta estrutura possui uma base em
formato de um copo com 20cm de altura, revestido internamente com tecido para
amortecimento do impacto, assim, o som captado pela câmera é potencialmente
capaz de captar mais camadas de elementos sonoros e o contato da estrutura da
câmera com o copo não provocaria um ruído na captação ao ponto de dificultar
a apreensão de outros sinais sonoros que pudessem existir na ação (imagem 2). O
som foi capturado por um Iphone 8s e optou-se pela utilização desta gravação para
o vídeo documental. Isto porque, o som nesta ação deveria ser destacado, por uma
escolha de produção de significado sugerindo ao espectador múltiplas leituras da
ação de performance.

Imagem 1: Capturas de telas do vídeo - Composição do espaço performático4

Imagem 2: Conjunto técnico elaborado para gravação de videoperformance5

4 Fonte: Acervo pessoal do artista


5 Fonte: Acervo pessoal do artista

1209
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Alguma ações são norteadoras para a performance no momento da gravação, aten-


tando para as abordagens da performance art quando se trata da vivacidade e da ação
do presente. Sendo assim, as estruturas que foram apresentadas como direcionamen-
to para o jogo, levam em consideração uma estratégia metodológica na intenção de
provocar relações entre os agentes e fornecer material que permita abertura à uma sé-
rie de multiplicidades na ação de performance, onde os corpos podem abandonar às
mesmas ou ressignificá-las se o fluxo das ações os direcionarem à isto. As regras seriam
então assim estabelecidas: a) O performer observa o ambiente externo pelas janelas
e estabelece conexão do o espaço interno; b) O performer escolhe um dos montes de
pó branco que se encontram espalhados pelo espaço; c) O performer divide o conte-
údo entre as mãos, equilibra-o e concentra a energia do corpo nestes até que a ação
dos fluxos direcione o performer à canalizar essa energia para espalmar o pó entre as
mãos; d) O performer dirige-se à câmera e direciona as ações e ângulo da câmera. e) O
performer devolve a câmera aleatoriamente à sua estrutura base; f) A câmera por sua
instabilidade no copo, elege um enquadramento que é exibido ao performer pela tela
de retorno; g) O Performer compõe novamente sua ação de a) à d) e tem liberdade de
variar estas ações, mediante o posicionamento da câmera e como ela observa a ação.
É importante observar que este balizamento existem enquanto norteadores da ação,
mas sempre prevalece espaço para o processo criativo e a singularidade da instabilida-
de potencial de atuação dos jogadores que determina a autenticidade das ações, que
ressalta as ações de performance onde o corpo experimenta o espaço performático
de maneira singular e única, dada as condições de imposição e recebimento dos afeta-
mentos que as ações apresentam nos corpos e os modificam.

Análise do videoperformance

O videoperformance acontece em um ambiente luminoso, com duas cortinas bran-


cas em um espaço arquitetônico de pé direito duplo. Observa-se um corpo se mo-
vimentando por trás da cortina, o mesmo abre janelas. Estabelece-se uma relação
do espaço externo com o espaço interno no videoperformance, o som preenche o
espaço com uma ambiência de trânsito, de espaço urbano. A cortina é empurrada e
recebe a corrente de ar vinda de fora, ela pulsa. O Performer abre as cortinas e obser-
va a câmera, a coloca presente no espaço na medida que a encara, inicia-se a relação
de jogo entre os corpos. Nem a câmera nem o espectador são capazes de manter
contato claro com o exterior, porém, observa-se sua presença na ação pelos elemen-
tos sonoros (trânsito, pessoas falando, buzinas, etc) que se instauram no espaço.

Relações Intercorporais revela um movimento circular das ações elaboradas, con-


forme pontuadas no tópico 4.1, as ações acontecem repetidas vezes e o grau de ins-
tabilidade dos corpos em ação promovem modificações destas ações, algumas são
abandonadas ao longo dos 35 minutos do videoperformance, outras são alteradas,
seja nos gestos do performer, seja nas respostas técnicas da presença da câmara.
Cada vez que o performer elege um monte de pó branco dentre os que estão distri-

1210
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

buídos pela sala e o espalma, observa-se na imagem o pó se integrando às correntes


de ar presentes na sala e quebrando as linhas de contraste da imagem. A sala fica
acinzentada, a câmera compensa sua apreensão de luz e torna o ambiente mais cla-
ro que antes, em virtude da compensação automática da programação da câmera.

Observa-se um primeiro estado de transformação dos corpos, a câmera altera suas


configurações internas de compensação e o performer encontra-se repleto de pó
branco, a pele do performer transmuta e ganha uma textura diferente do estado
inicial da performance, um corpo que se torna cada vez mais branco e texturizado,
lembrando as condições estéticas das esculturas de mármore renascentistas, esta
mudança estética do corpo do performer vai se acentuando na medida que as ações
se repetem no jogo. Também é observada uma mudança na atuação do performer
no espaço e no seu estado físico, na medida que a ação se desenvolve, observa-se
o corpo pulsando, os braços tremulando. O figurino muda com intervenções do pó
branco. Em sua superfície negra, observamos tonalidades e texturas das mais varia-
das, tem-se a sensação que performer foi envolvido por uma nova camada em seu
corpo. Em determinados momentos o performer estabelece uma tomada de poder
em uma relação rude com o monopé da câmera, é o único momento que o enqua-
dramento da câmera é manipulado por ele, neste momento existe uma tomada de
poder quando o performer posiciona a câmera abaixo da sua altura (imagem 4) co-
locando-a em um lugar de inferioridade, observa-se também respostas por parte do
objeto técnico, na maioria das vezes, por meio de compensação de luz e foco.

Imagem 4: Captura de tela – Análise comparativa das transformações do corpo


do performer em gesto que se repete no percurso da performance 6

Também é importante observar como esta relação de eixo que o performer coloca
a câmera vai mudando ao longo da narrativa do videoperformance, aos poucos as
relações vão se horizontalizando e no final do vídeo, onde podemos observar uma
quase horizontalidade na altura da câmera para com a do performer. Chegando
quase no final do vídeo, observa-se uma relação de desafio entre os corpos, o per-
former se põe de frente para a câmera, a encara, aponta seu dedo novamente para
a lente e a aproxima do seu rosto (imagem 5). Existe um estado de tensão entre

6 Fonte: Acervo pessoal do artista

1211
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

corpo câmera e corpo performer neste momento, existe um olho biológico e um


olho máquina se comunicando e construindo um aporte de significados nessa rela-
ção inter-corpos. Existe um tratado de horizontalidade neste close provocado pelo
performer, foi em seu sentido mais literal uma proposta de aproximação do objeto
técnico à realidade humana e vice-versa.

Imagem 5: Captura de tela – Relações: Olho biológico e o olho câmera7

Por outro lado, observa-se também a câmera estabelecendo seu lugar na ação cê-
nica, a presença da câmera enquanto elemento mais atuante para estruturação da
ação performática. O desdobramento da ação do performer em largar aleatoriamen-
te a câmera à base algumas vezes, alimenta um grau de instabilidade quanto ao
direcionamento da mesma para o espaço performático e desta forma, apresentam-
-se enquadramentos que desafiam e promovem situações inusitadas ao performer,
de tal forma que o mesmo precisa se adaptar para dialogar com a proposição do
objeto técnico. Percebem-se momentos onde o performer foi oprimido pelo en-
quadramento da cena que apesar de direcionar a atenção do espectador pelo seu
movimento, este se encontra em um quadrante mínimo da imagem (imagem 6). O
performer está enclausurado em um quadrante da imagem, com os braços arque-
ados novamente, onde só se observa o antebraço e mão direita, a câmera ditou o
enquadramento e mutilou o corpo do performer, a ação é deduzida unicamente
pelo som, observando que a câmera só nos revela o devir da ação, ou seja, o pó
branco espalmado em ação de gravidade e espalhando-se no ambiente, as mãos
do performer tremulando refletem um estado de tensão e exaustão provocada pela
imposição das estruturas emergentes na ação.

7 Fonte: Acervo pessoal do artista

1212
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Imagem 6: Captura de tela8

Uma situação presente no videoperformance e decorrente da instabilidade dos cor-


pos na ação performática, pode ser observada quando a câmera escapa da estrutura
base e da mão do performer ao mesmo tempo, cai no chão e verticaliza o horizon-
te do espaço. O eixo é quebrado pela verticalidade. A câmera quebra o sentido da
gravidade quando escapa da mão do performer e verticaliza o horizonte do espaço
(imagem 7), o performer agora caminha sob um eixo vertical, promovendo novas
estruturas de composição e proposições inusitadas.

Imagem 7: Captura de tela – Verticalização do olho-câmera 9

Observamos assim um corpo técnico que passa por profundas transformações em


sua forma de atuação no espaço performático, sejam elas de reconfigurações de es-
truturas, sejam por transformações físicas como a própria captura da imagem que
aos poucos vai se modificando pela luz, pelo contraste, pelo movimento, pelas partí-
culas suspensas no ar e grudadas em sua lente. Também observamos um corpo ten-
so de um performer que inicia com uma energia que se transforma ao longo da ação
cênica, migra de um determinado grau de vitalidade para um corpo cansado, trêmu-
lo, crucificado, rendido ao esgotamento das tensões do corpo. Os agenciamentos e
as transduções dos corpos – das elétricas e artificiais às elétricas e neurais – ambas
provocam mudanças e abre uma multiplicidade para o campo do videoperformance
que resultará desta ação performática.

8 Fonte: Acervo pessoal do artista


9 Fonte: Acervo pessoal do artista

1213
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O videperformance termina com o perfomer fechando as cortinas na medida que


se desintegra por trás dela, se torna invisível. Escuta-se pelo som, uma sugestão que
o mesmo está fechando as janelas, observando também que aos poucos a ambiên-
cia vai se modificando e os referenciais de som do ambiente externo vão se extin-
guindo. A silhueta do performer caminha por trás das cortinas, se dissipa e a figura
do mesmo desaparece da imagem. As cortinas não pulsam mais. A câmera pulsa. A
câmera continua registrando os espaço e a imagem retorna à um enquadramento
semelhante ao primeiro plano apresentado no videoperformance, o espaço encon-
tra-se modificado pela ação da performance, do chão à textura da atmosfera do es-
paço que se encontra repleta de partículas suspensas no ar, a ação de performance
provocou um aspecto de suspensão do espaço performático na imagem, observa-se
uma textura diferente do primeiro quadro visto no início da performance, menos
contraste, tons de cinza.

Conclusão
Observando os processos presentes em Relações Intercorporais e analisando os re-
sultados destes no videoperformance, foi possível detectar fenômenos emergentes
da relação do performer com a câmera na situação de performance proposta. Os
agentes podem ser vistos enquanto partes que produzem acontecimentos, são por-
tadores de potenciais e de agência. Os agentes são mediadores de fluxos que afetam
e modificam as partes das mais variadas naturezas. Observam-se graus de autono-
mia nos corpos presentes, os jogadores estabelecem uma relação onde as questões
sociais são levadas em consideração e apresentam a formação de um agente que
permitem este tipo de cruzamento em suas interações. A autonomia dos corpos
em ação permite perceber processos que passam pelas tentativas de imposição de
ações particulares da natureza dos corpos e cada um deles possuem um grau de
indeterminação que alimenta o intercâmbio de informações e possibilita ações de
complementaridade das partes, os processos de diferenciação abrem novas possi-
bilidades de autorregulação própria dos sistemas quando colocados em situação de
metaestabilidade.

A câmera é vista enquanto agente autônomo que estabelece relações particulares


com o meio e estas relações provocam afetamentos na ação. Mediante estes agen-
ciamentos relacionais, as posições hierárquicas são desconstruídas e os vetores
de força das partes desconstroem uma ação unilateral estabelecida pelas relações
utilitaristas. A câmera sai do seu estado de autômato para seu estado autônomo e
provoca fissuras que também afetam e modificam a estrutura do agente-performer.

Observa-se por exemplo, uma imposição do enquadramento, da compensação e luz e


foco e a presença de uma instabilidade no objeto técnico que provoca uma abertura
de possibilidades para atuação do performer na ação, esta situação empurra o jogo
para uma relação quase que social entre o performer e a câmera de certa forma que o

1214
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

corpo do performer responde aos estímulos da câmera por ações como a observação
da presença da câmera no espaço, quando o performer a encara e muitas vezes tenta
intimidá-la com seu olhar. A câmera toma um lugar de opressor quando delimita e
define por si e pelo seu sistema construído quando apresenta enquadramentos que
colocam o performer em uma situação de encontrar soluções de como se colocar no
espaço performativo, tomando como base sua visão e a visão da câmera na ação.

A comunicação que o performer começa a instituir com a câmera vai se transfor-


mando no percurso da ação, o mesmo passa a interagir com a câmera por meio de
gestos e ações de representação como o gesto de abrir os braços com um elemento
volátil e instável nas mãos, a cada momento que esta ação é imputada pelo perfor-
mer, um estado de crucificação é apresentado quando o próprio performer afasta
seus braços e seu corpo para trás até a exaustão.

Sendo assim observa-se uma dupla articulação dos agenciamentos definido por
Deleuze, onde “as expressões originam signos e os conteúdos a bases das ações”
(p.111). As capacidades de produção sígnica percebidas nas potencialidades da câ-
mera como compensações de luz e foco (elaboradas pelo sistema técnico e suas
programações auto), bem como a forma como o corpo do performer se projeta e se
retroalimenta pelo retorno da visão da câmera (proporcionando um maior controle
da projeção de ações do corpo e sua repercussão sígnica em seu duplo captado pela
lente da câmera), servem de base para as ações dos corpos. O sentido de dupla ar-
ticulação nos agenciamentos promoveram processos de individuação e transdução
profundos na estrutura dos corpos, observando as possibilidades de uma transfor-
mação físico-biológica durante a ação de performance. As noções de performativi-
dade e de metaestabilidade são observadas uma vez que existe uma realidade de
dissimetria das naturezas dos corpos e das suas formas de atuação no espaço-tem-
po, esta dissimetria possibilitou processos de ressonância interna e de internalização
em uma articulação quase que política entre os agentes, possibilitando processos de
autorregulação como por exemplo, os processos de escolha do performer ao eleger
um dos montes de pó branco para projetar a ação, esta está intrinsecamente ligada
às condições de atuação da câmera que regula suas condições de captura da ima-
gem e do som como desdobramento das escolhas de atuação do performer.

Por fim, é importante abordar neste estudo, como as relações de jogo e a auto-
nomia relacional dos corpos em ação performática propiciou uma ruptura nas
dinâmicas de atuação dos corpos. Constata-se que na medida que se assume a
câmera enquanto indivíduo portador de um determinado grau de autonomia e de
instabilidade, características estas também encontradas no corpo do performer,
instaura-se um espaço aberto às multiplicidades e as relações se estabelecem não
mais em um sentido unilateral, mas em um sentido a-lateral onde as relações de
poder variam de acordo com as ações dos corpos e suas projeções na ação. A zona
de afetamentos se descentraliza, as ações das partes se encontram em um lugar

1215
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

no meio das ações, no intermezzo, como aborda Deleuze para delinear um modelo
rizoma de canalização dos fluxos.

As multiplicidades desdobram-se nas possibilidades de atuação dos corpos em ação


performativa, a distribuição dos montes de pó branco no espaço performativo pode
servir como uma metáfora das multiplicidades de atuação das forças encontradas nas
potencialidades dos corpos, o performer observa as possibilidades múltiplas de atua-
ção no espaço partindo de uma relação de jogo com a câmera, como se o performer
observasse na ação da câmera uma base para sua próxima ação: “A câmera enquadra
e eu me projeto no espaço com base no comportamento do objeto técnico e como
ele apresenta o espaço de performance através do seu olho-câmera”. Nesta linha de
pensamento, podemos constatar que encontra-se na ação de performance de Re-
lações Intercorporais um afetamento que se dá no entre, onde os fluxos se colidem,
interdependem e agem no espaço performativo, desarticulam suas partes e promo-
vem novos processos de organização da ação que repercutem em novos processos
de associação das partes, sejam eles físicos, biológicos, dos impulsos elétricos ou das
organizações das mesmas enquanto constituintes de um sistema já estabelecido.

Referências
Deleuze, G (1992). Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34.

________. (2008) Simondon, o indivíduo e sua gênese físico-biológica. A Ilha De-


serta. São Paulo: luminuras.

Deleuze, G e Guatarri, F. (1995) Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de


Janeiro: Editora 34. Vol.1, 3 e 4.

Gluberg, J. (1987) A Arte da Performance. São Paulo: Editora Perspectiva.

Golberg,R (2006). A Arte da Performance. Do Futurismo ao Presente. Trad. Perci-


val Panzoldo de Carvalho. São Paulo: Martins Fontes.

Huizinga, J (2000). Homo Ludens. São Paulo: Editora Perspectiva.

Mackenzie, C; Steljar, N (2000). Introduction: Autonomy Refigured. In Relational


Autonomy: Feminist Perspectives on Autonomy, Agency, and the Social Self.
Edited by Mackenzie, C; Steljar, N. Oxford: Oxford University Press Páginas 3-31.

Melim, R.(2008) Performance nas artes visuais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Neves, J, P. (2006) O Apelo do Objecto Técnico. A perspectiva sociológica de De-


leuze e Simondon, Porto: Campo das Letras.

Simondon, G (1958). El modo de existência de los objetos técnicos. Buenos Aires:


Prometeos Libros.
1216
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Marcillene Ladeira1
PRÁTICA ARTÍSTICA E PENSAMENTO TEÓRICO:
a Pós-Graduação como campo de ação – um estudo reflexivo
e alargador do conceito de “Rede”
ARTISTIC PRACTICE AND THEORETICAL THOUGHT: Postgraduate as a field of action
– a reflective and enlarge study of the concept “Network”

Resumo
O artigo reflete sobre o fato artístico e sua condição de atuação na Pós-Gradua-
ção Stricto Senso no Brasil. Para tal, identifica lacunas e circunstância uma contri-
buição – fruto da produção autoral da autora – de modo a evidenciar a amplia-
ção do conceito de “Rede” (estrutura paradigmática, que vem sendo absorvida
de forma e velocidade diferentes entre diversos campos do conhecimento). Por
via, o ensaio absorve a teoria proposta por Cecília Salles (1998; 2006), no que
vem desenvolvendo no campo artístico e de Fritjof Capra (2002; 2006) no que
diz sobre a “visão ecológica”; como resultado, apresenta um modo de pensar e
agir em arte perante seis princípios de organização, podendo ser chamados de
princípios básicos da ecologia. São eles: Redes, Ciclos, Parceria ou Aliança, Diver-
sidade, Equilíbrio Dinâmico e Energia Solar.
Palavras-chave: Pós-Graduação, Pesquisa em Arte, Organização em Rede, Visão
Ecológica/Teia da Vida.

Abstract
The academic article reflects on the artistic fact and its condition of acting in the
Stricto Senso postgraduate in Brazil. For such purpose, it identifies gaps and circum-
stance a contribution – the result of the author’s authorial production – in order to
highlight the broadening of the concept of “Network” (structure that has been ab-
sorbed dissimilar and speed among different fields of knowledge). By way, the essay
absorbs the theory proposed by Cecília Salles (2006), what has been developing in
the artistic area and Fritjof Capra (2002; 2006) about “ecological vision”; as a result,

1 Mestra em Processos Criativos pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas
Artes da UFBA; especialista em Docência do Ensino Superior pelo Instituto Pedagógico de Minas
Gerais; Graduada (Licenciatura e Bacharelado) na área de Artes pelo Instituto de Artes e Design da
UFJF, com passagem inicial pela Escola de Belas da UFRJ. Líder do grupo de pesquisa “VEIA” – Verten-
tes Ensinagem Integração e Arte. Professora Universitária – UNIPAC, campus Barbacena e Educação
Básica (ensino civil e militar).

1217
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

it presents a way of thinking and acting in art before “six principles of organization”,
which can be called the basic principles of ecology. They are: Networks, Cycles, Part-
nership or Alliance, Diversity, Dynamic Equilibrium and Solar Energy.
Keywords: Postgraduate, Art Research, Network Organization, Ecological Vision/
Web of Life.

Caminhos desenhantes na estrutura institucional


Ao especificar sobre o fato artístico e seu processo na condição de atuação da Pós-
-Graduação Stricto Senso no Brasil (Pesquisa em Arte), evidencia-se que a inclusão
da área como linha legítima de pesquisa no Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) foi dada em 1984; após, surgem os grupos nacionais
de pesquisa como a ANPAP (Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásti-
cas) e a FAEB (Federação de Arte/Educadores do Brasil), ambos em 1987. A partir de
então, o meio artístico revestiu-se de avanços, consubstanciados pelo aumento dos
programas de pós-graduação, das pesquisa, das publicações e de eventos da área,
como congressos, simpósios, etc. Embora seja possível identificar, em uma análise
um pouco mais aprofundada, o caráter contraditório do mesmo, visto o atraso da
Arte na pesquisa brasileira em relação às outras linhas de pesquisa. Maria Amélia
Bulhões (1993, p.94), em uma verificação datada de 1991/1992 relata: “enquanto a
área de saúde, a mais consolidada, possuía 213 cursos estabelecidos2, a de produção
plástica havia apenas sete”. Nessa linha de raciocínio, pergunta-se: “O que os artistas
devem fazer para participarem efetivamente do mundo da pesquisa?” É o que evi-
dencia o norte-americano Stephen Wilson, estudioso que vem trabalhando, ao lon-
go de anos, na abordagem do artista como pesquisador. Sua resposta gira em torno
da necessidade de expansão do campo artístico. Acredita, fielmente, que isso seja
possível sem pôr fim ou mesmo se opor às tradições artísticas. Na verdade, como
afirma, trata-se de uma premência e está ligada diretamente ao próprio futuro da
investigação artista/pesquisa. (Cf. Wilson, 2003, p. 240). É nesse sentido que o artigo
em questão circunstancia uma das contribuições escritas por mim, no projeto de
Mestrado – Turma 2014/2015 – realizado no Programa de Pós-Graduação em Artes
Visuais da Universidade Federal da Bahia [PPGAV-EBA-UFBA], conforme se segue.

A ciência da obra se fazendo através de um pensamento interconectado


Quando se instaura uma obra, ela unifica várias camadas de soluções de problemas,
incluindo, a exemplo, questões de determinação de linguagem (e/ou linguagens),
materialidade, poética, lugar, passagens, auxílios tecnológicos, entre outros; todos

2 “10 cursos em farmácia, 52 em odontologia, 151 em medicina”.

1218
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

esses elementos, quando coordenados, proporcionam momentos diferentes ao pro-


cesso de criação; sendo necessário ao artista estar comprometido com este fazer:
“tornar consciente aquilo que é possível conscientizar”. Nesse compasso de enga-
jamento, entendo o processo criativo como uma “presença viva”. O pintor Pablo Pi-
casso já dizia: “um quadro é um ser vivo, respira: se se puser um espelho junto a ele,
o espelho fica embaciado...” Ferreira Gullar complementa: “e mesmo que um quadro
não respire como um animal, isso não significa que ele esteja mais longe dos orga-
nismos vivos do que do mundo mineral. E, no entanto, o quadro é feito de matéria
inorgânica ...”. (Cf. Gullar, 2005, p. 131).

Ao aproximarmos dos conceitos trazidos à luz pela “Nova Ciência” (limiar do século
XXI), vemos que há um processo de pensar e perceber o mundo em que vivemos em
sintonia com essa “presença viva”; na qual estamos imersos, não em partes dissocia-
das, mas em um todo integrado, estando ligados por redes, de modo a estabelecer
inter-relacionamentos e interdependências entre fenômenos psicológicos, biológi-
cos, físicos, sociais, culturais, não sendo, pois, diferente na construção dos processos
criativos. Logo, as redes se tornaram, ao mesmo tempo, uma espécie de paradigma
e de personagem principal das mudanças em curso; uma reestruturação de pensa-
mento que vem sendo amplamente discutida por físicos, filósofos e intelectuais de
vários campos do saber, sendo absorvida de forma e velocidade diferentes entre
os diversos campos científicos. Seria a mudança de mundo mecanicista de Descar-
tes e de Newton para uma “Visão Ecológica”, assim tratada pelo teórico Fritjof Capra
(2006), o qual a identifica como a “Teia da Vida”. Etimologicamente, a palavra rede
vem do latim (redis), significando “teia”. Loiola e Moura (1996, p. 54) a definem: “en-
trelaçamento de fios... com aberturas regulares fixadas por malhas, formando uma
espécie de tecido”. Cecília Salles em seu livro “Redes da criação: construção da obra
de arte” (2006) traz um estudo bastante fundamentado em que podemos localizar
as interconexões existentes no percurso criativo – uma duologia iniciada em uma
publicação anterior: “Gesto Inacabado” (1998). Segundo relata, chegou-se a esse
conceito interconectado, ou melhor, de “rede”, após verificar a necessidade de um
termo que desse conta das novas exigências vindas a partir das múltiplas conexões,
em constante mobilidade, que invadiram o campo artístico (Cf. 2006, p. 10).

No arcabouço conceitual exposto por Capra (2006) no livro “A Teia da Vida: uma nova
compreensão científica dos sistemas vivos”, cuja primeira edição foi publicada em
1997 com o título original “The web of life”, o referido autor, “um dos mais eloquentes
porta-vozes da atualidade” (nascido em Viena/Austrália, 1939), expõe sobre a “Visão
Ecológica”. Pormenoriza, entre outras questões, sobre os sistemas vivos e seus prin-
cípios de organização que a natureza fez evoluir para sustentar a teia da vida. Assim,
elucida: o princípio de rede está no padrão de organização de todo ser vivo: “em
meio aos ecossistemas naturais, em todas as escalas da natureza, encontramos sis-
temas vivos alojados dentro de outros sistemas vivos – redes dentro de redes”. Isso

1219
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

ocorre desde os processos celulares mais ínfimos, até os níveis mais complexos de
existência; trata-se um modo coerente e sistêmico, nascido da teoria da complexida-
de. (Cf. 2006, p.25). “De Pitágoras até Aristóteles, Goethe e os biólogos organísmicos,
há uma contínua tradição intelectual que luta para entender o padrão, percebendo
que ele é fundamental para a compreensão da forma viva”. “Sempre que olhamos
para a vida, olhamos para redes” – é o que, assim, afirma Fritjof Capra. (p.78).

O referido estudo foi expandido para o livro “As conexões ocultas” (2002). Neste, o
teórico acaba por identificar seis princípios de organização comuns que sustentam
a grande “Teia da Vida”, que podem ser chamados de princípios básicos da ecolo-
gia. São estes: Redes, Ciclos, Parceria ou Aliança, Diversidade, Equilíbrio Dinâmico e
Energia Solar. (Cf. 2002, p. 238). Ao compreender que o percurso de criação artística
possui uma “presença viva” e de igual modo se manifesta em “rede”, os absorvo como
diretrizes a serem aplicados, diretamente, ao fato artístico e seu processo (modos de
pensar e agir); aprimorando, pois, a arte junto a essa nova concepção científica do
mundo. Refere-se a uma concatenação e alargamento do que Salles vem desenvol-
vendo. Cheguei a essa questão, tendo em vista que “teia” relaciona-se com o con-
ceito de “ecologia”, próprio do assunto poético que articulo em minha produção em
artes visuais (sobre como isso ocorreu, discorrerei mais adiante).

Para a estruturação desses seis elementos no percurso criativo, desenvolvo-os:

1. Redes: Em todas as escalas do fazer artístico, desde as proposições às obras aca-


badas, é permeável o encontro de camadas de soluções de problemas alojados um
dentro do outro – “redes dentro de redes” (as redes são fechadas dentro de certos
limites, no que diz respeito à sua organização, mas abertas a um fluxo contínuo de
energia e matéria). A fronteira entre estas camadas não são demarcações de sepa-
ração, mas de identidades que, por um lado tornam cada “obra” una, e por outro,
compartilham determinadas características: conceitos, materiais, linguagens, etc.
Elas criam e recriam a si mesmas, sofrendo mudanças estruturais contínuas, seja por
novas inclusões ou refluxos a processos anteriores, ao mesmo tempo em que não
deixam de preservar o padrão de organização, sendo este, múltiplo. À medida que
os elos vão se formando, percebe-se a presença do “encontro”3 podendo haver tur-
bulência – “são os picos ou nós da rede” – é preciso estar atento. A plasticidade visual
desse princípio pode ser hipoteticamente construída conforme a figura abaixo:

3 Usado no sentido de: achar; encontrar o que procurava; passar a conhecer; topar; deparar com algo
inesperado, mas favorável.

1220
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 1 – Representação hipotética da Plasticidade do Pensamento em Criação: Rede. Fonte:


Desenho elaborado pela autora, 2014.

2. Ciclos: Todos os processos poéticos alimentam-se de fluxos contínuos e energias


vindas de seu próprio meio, ou de outros meios (adoção de abordagens teóricas in-
ter e trans disciplinar, conceituais, procedimentais, etc.) de modo a criar ciclos, sendo
definidos por momentos expositivos ou fases pertencentes à vida de um artista, por
exemplo (facilmente assinalado na Fig. 2, que hipoteticamente identifica três ciclos).
São fenômenos que deixam seus rastros para novas produções; em uma visão sobre
o todo, não tende a haver sobra na “teia”, pois tudo acaba se ligando e se multiplican-
do incessantemente, à medida que o tempo passa.

Figura 2 – Representação hipotética da Plasticidade do Pensamento em Criação: Ciclos.


Fonte: Desenho elaborado pela autora, 2016.

1221
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

3. Parcerias ou Alianças: As relações de trocas (teóricas, materiais, conceituais,


procedimentais,...) do sistema são sustentadas por cooperação, e não competi-
ção, sendo construídas pelo contato (ligação; aliança): só catalisamos aquilo que
conhecemos – é preciso investigar; desvelar. Isto que garante a existência de um
sistema “vivo” e fértil.

4. Equilíbrio Dinâmico: Para realizar o “contato” é preciso um “estado dinâmico”


em busca de desenvolvimento e aprendizado, isto é, para pensar a criação artística
é vital romper com o isolamento, com a ideia de um lugar físico, único de trabalho
(atelier/estúdio), passando ao equilíbrio de movimento (“apropriações, transforma-
ções e ajustes”), de modo a ativar as relações e garantir um sistema complexo, no
qual as trocas são estabelecidas, pouco a pouco, pelas interações que vão sendo
tecidas e mobilizadas em prol dessa realidade. Elas ocorrem entre: pessoas (pro-
fessores, amigos, orientador, etc.); informações (livros, artigos, historiografia, docu-
mentos oficiais, banco de dados, etc.); áreas do conhecimento (arte – centro da pes-
quisa, filosofia, religião, ciências); pares (artistas vivos ou mortos, obras, processos,
etc.); materialidades (tela, barro, espaço, lugar, tecnologias disponíveis, avanços
científicos, etc.); atores (crítico, curador, marchand, musicólogo, etc.) e tudo o que
possa garantir a “auto geração” e a “autoperpetuação” da atividade organizadora
deste sistema, que se consolida por um processo mental (cognitivo). Ou, em ou-
tros termos, a partir do momento em que o artista-pesquisador inicia seu projeto,
ele imerge em um processo de criação (“Estado de Pesquisa”), na qual sua ação
extrapola um único local físico. Surge, assim, um “novo espaço-tempo de criação”,
que inevitavelmente o afeta em todos os seus deslocamentos: na rua, na sala de
aula, em conversa pelos corredores, em casa, na leitura de livros, no noticiário da
TV, ou em qualquer outra situação que lhe possa trazer algo inspirador. É o intelec-
to em busca de respostas para as tantas questões que passam a povoar a mente.
São os diversos “fragmentos” sendo coletados à medida que a pesquisa progride.
Observa-se que estúdio (do francês atelier), por um lado, tem como designação
“oficina de artista”, e por outro, (do latim studere), “ânsia de conseguir algo” – eis
uma característica própria do ser pesquisador. Fritjof Capra traz à luz dos biólogos
e filósofos chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana o termo “autopoiese”
(do grego auto “próprio”, poiesis “criação”), pensado com a finalidade de designar a
capacidade dos seres vivos de produzirem a si próprios.

5. Diversidade: Refere-se à desenvoltura poética do sistema quando alcança estabi-


lidade e capacidade de permanecer “vivo”, tendo em vista a riqueza e a complexidade
de suas teias (ligações). Toda produção saudável é garantida por uma base de susten-
tação consistente e profícua, que permite um campo delimitado, porém diversificado
de ações expansivas (surgimento do “novo” para continuidade do sistema).

6. Energia Solar: Como as plantas que absorvem a luz produzindo os alimentos


que necessitam para a sobrevivência, de modo a preencher a si mesmas com cores

1222
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

e aromas que qualificam a variedade das espécies; igualmente deve ser o artista,
ímpar na luz que absorve do universo (interior e exterior) e retorna ao mundo. Esse
lugar equivale, então, ao “código pessoal” de trabalho de cada artista (síntese de in-
dividualidades), que ecoarão nas “marcas pessoais” da(s) obra(s) ou do(s) processo(s)
artísticos que compõem o sistema (“Teia da Vida”) como um todo.

Pensando na sincronização desta reflexão teórica com a prática artística, estabe-


leço flashs do processo poético que a originou; reconhecesse que embora tenha
culminado na produção realizada durante o projeto de Mestrado, defendido no
final de 2015, trata-se de inquietações vindas em longo prazo. Capra (2006, p.14),
em uma de suas colocações, assinala, chamando a atenção para como nossas
percepções são invadidas pelo “reconhecimento”. Quando buscamos perceber
algo, muitas das vezes, esse processo desponta por um “enquadramento” daqui-
lo em relação a alguma coisa que já está armazenado dentro de nós. É assim que
nosso processo “neutro” de percepção é interrompido e “rotulamos” o que vemos
como algo já conhecido; faz-se um “encaixe” com o que buscamos. Duchamp
(1957) já dizia: a “arte se dá no encontro de uma intenção com uma atenção”;
uma espécie de jogo interpretativo em que passamos as conexões de “informa-
ções fragmentadas”.

Cecília Salles explica (2006, p. 18): “ao adotarmos o paradigma da rede estamos
pensando o ambiente das interações, dos laços, da conectividade, dos nexos e das
relações”. Em vista desta consciência, a primeira obra produzida na fase do Mes-
trado, sendo denominada “Vek” (do russo, século/época), formulou-se como um
“nó” ou “pico” na rede, de modo a ligá-la à última obra produzida anteriormente.
Foi isso que fiz, e deste contato veio o elo entre dois ciclos; dois momentos de
produção (graduação e pós-graduação). Edgar Morin entende esta combinação
como fenômeno (de organização), que, por sua vez, é capaz de modificar compor-
tamentos ou a natureza das partes envolvidas (Morin 2002b, p. 72 apud Salles, loc.
cit). Niels Bohr (1885-1962), físico ganhador de nobres prêmios, afirma: “nenhum
fenômeno é fenômeno até ser observado”. Com a obra em mãos, constituiu-se
como a base de decisão estratégica e dos conceitos operacionais veiculados, de
modo a direcionar as demais produções, estruturando um modelo teórico de rede
na arquitetura “Raio de Sol” (Fig. 3). Esse, caracteriza-se por apresentar um núcleo
criativo central (círculo em amarelo) que orienta os demais elos da rede (obras
que surgem em direções distintas, partindo do meio para as bordas), conforme se
visualiza na figura abaixo:

1223
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 3 – Estrutura em rede no modelo “Raio de Sol” referente a um ciclo de produção.


Fonte: Desenho elaborado pela autora (2015).

Este modelo foi proposto por Quinn et. al. (2001) e origina-se da teoria e prática ad-
ministrativa (funcionamento de empresas); área que também vem adotando o prin-
cípio inter organizacional em rede nos negócios que tratam – o que vem ocorrendo
há cerca de 30 anos.

Dando continuidade, o que se caracteriza como “Energia Solar” (código pessoal de


produção), circunscreve-se: desafios ambientais enfrentados pelas sociedades con-
temporâneas, como excessiva produção de resíduos sólidos, mudanças climáticas,
poluição do ar e da água, riscos químicos e toxicológicos, etc; estando a produção
autoral assentada em três conceitos-operacionais-chave: respeito à natureza, a transi-
toriedade da existência e a liquidez (dos tempos, das linguagens, dos procedimentos,
...). Em vista disso, vem a palavra “ecologia”, que indica a capacidade de preservação
dos sistemas vivos ao longo dos anos; chegando, então, “a Teia da Vida” e as teorias
traçadas por Capra, as quais embasaram minhas produções poéticas; mais também
revertem em fundamentações para a teoria proposta.

1224
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Voltando ao início da produção, no primeiro ciclo (graduação4) trabalhei com uma


estratégia que pode ser denominada de “acaso objetivo” – questão muito utilizada
por certos artistas surrealistas, como o suíço Alberto Giacometti. Consiste na pre-
disposição de eleger certos lugares onde seria potencialmente mais fácil deparar
com situações de interesse plástico pretendidos (imagens, objetos, resíduos, etc.).
Assim, o acaso foi circunstanciado através do flanar5 pela urbe (substantivo francês
que significa “andarilho”). Apesar de ter se tornado emblemática na Paris do século
XIX, utilizar a cidade como repertório de formas permanece como estratégia opera-
cional na produção artística contemporânea, sendo evidenciado por autores como
o crítico francês Nicolas Bourriaud (2009).

No segundo ciclo (Pós-Graduação/Mestrado6), o local elegido para o “acaso objeti-


vo” foi deslocado; ou, passou-se também a absorção de uma estratégia que envol-
ve “matéria, memória, conceito e as histórias do lugar”. Tem-se, então, uma “visita”
ao lixão da minha Cidade Natal (Barroso/MG – cidade localizada na mesorregião do
Campo das Vertentes7). De outra forma, a união entre dois conceitos articulados e um
assunto poético estruturado, resultou ao “contato” (Parceria/Aliança) com o material
poético necessário para a plasticidade pretendida. Portanto, foi nesse lugar especí-
fico, que me deparei com um fenômeno estético perfazendo um elo entre os dois
ciclos (conforme já relatado). Esse foi registrado pelo uso da máquina fotográfica e
posterior transfiguração para uma linguagem pictórica (técnica do óleo sobre tela),
cuja obra apresenta-se na imagem seguinte (Fig. 4/a). Na “Diversidade” das expres-
sões empregadas a esta rede, afora o uso da pintura e da fotografia, também foram
exploradas à manipulação digital e a sublimação (modalidade de gravura); já a pale-
ta de cores foi particularizada pelo uso de dez matizes provenientes do “Código de
Cores da Reciclagem”8 (vermelho, azul, verde, amarelo, cinza, preto, branco, laranja,
roxo e marrom).

4 Monografia intitulada Depois da Chuva: uma narrativa por fragmentos, realizada sob orientação do
professor Dr. Ricardo de Cristófaro, IAD/UFJF.
5 O conceito foi trazido por Walter Benjamin de Charles Baudelaire e está contido no sentido de que,
após 1850 (início do período moderno), as cidades se tornaram um ambiente muito mais abarrota-
do, caótico e estimulante do que jamais havia sido no passado (CHARNEY; SCHWARTZ, 2001, p. 21).
6 Dissertação Campos das Vertentes: uma coleta pictórica; orientação: Professora Dr.ª Maria Virginia
Gordilho Martins (Viga Gordilho), PPGAV-EBA-UFBA.
7 De modo similar a ideia de rede, na expansão deste estudo, o referido termo chegou, também, a
uma teoria; devido as suas extensões não serão tratados neste momento.
8 Código estabelecida pela Resolução n.º 275, de 25 de abril de 2001, CONAMA.

1225
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 4 (a e b) – Ligação entre duas obras de uma mesma rede: “Vek” e “Marca/Marco I”.
Fonte: Produção autoral da artista-pesquisadora, 2014/2015

Assim sendo, Vek corresponde a primeira obra produzida no Mestrado, a qual foi ado-
tada como núcleo do centro criativo, conforme Fig. 3. Dela, “colheu-se” um resíduo só-
lido – lata de alumínio – passando como materialidade norteadora das ações poéticas
que se seguiram; sendo essas instauradas pelo conceito de “reciclar” (visto ser um arte-
fato exemplar do pós-consumo) e efetuando-se por uma rememoração ao período da
Pop Art (década de 1960), com a consequente reprodutividade da imagem.

Após escolha e apropriação da materialidade do alumínio, estabeleceu-se uma inves-


tigação desmembrada em várias linhas de ações, de modo a evidenciar especificida-
des sobre o mesmo (nível histórico, político, econômico e cultural). Identificou-se, a
exemplo, que entre os metais não ferrosos, é o produto mais consumido no mundo,
sendo marco para a indústria moderna; se destaca por sua beleza e por ser 100% re-
ciclável – o Brasil é líder mundial de reciclagem dessas embalagens, perfazendo um
total de 95% de aproveitamento. Capra, ao citar um exemplo sobre como trabalhar
com a “visão ecológica”, descreve sobre uma “bicicleta” dizendo que neste tipo de
percepção é preciso compreendê-la como um todo funcional, estando em confor-
midade com as interdependências de suas partes. Inclui nisto, identificar como a
bicicleta está encaixada no seu ambiente natural e social: “de onde vêm as matérias-
-primas que entram nela, como foi fabricada, como seu uso afeta o meio ambiente
natural e a comunidade pela qual ela é usada, e assim em diante”. (p.25).

Toda essa ideia estruturada quanto ao percurso criativo verteu-se também no momen-
to expositivo (Projeto Expográfico). A Figura 6 apresenta parcialmente esse momento;

1226
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

identifica-se na imagem compassos demarcados pelo tempo, isto é, a disposição(/ro-


tação) das latas foram ordenadas em um ciclo (horário) de quatro períodos; indicando
a placa de alumínio uma quebra do mesmo.

Figura 5 – Obras em disposição cíclica. Fonte: Produção da autora, acervo da galeria representante

De igual modo, nessa imagem, observa-se outra variação da lata de alumínio (marca
“Coca-Cola” – Fig. 4/b). Nela, para além do amassada, há um estágio inicial de derre-
timento, indicando uma continuidade do pensamento ou da rede.

A exposição final de curso foi realizada entre os dias 19 a 31 de março de 2015, na


Galeria Cañizares, localizada na sede da Escola de Belas Artes da UFBA, no bairro
Canela em Salvador, BA. Todas as proposições artísticas (um total de 216 unidades)
foram transladadas do lugar expositivo para uma galeria representante9 – e mais
uma vez, identifica-se o ciclo “biológico” da arte se fazendo e refazendo.

Por fim, este trabalho considerou não apenas a premência da vida sobre o planeta –
nossa casa – mas também ao absorver os princípios organizacionais que rege a visão
ecológica, segundo teoria apresentada por Capra e numa ampliação quanto aos es-
tudos de Salles, à “arte como pesquisa” ganha novo fôlego. Ora, Erns Gombrich (1999,
p.44) disserta: a história da arte “não é uma história de progresso na proficiência técni-
ca, mas uma história de ideias, concepções e necessidades em permanente evolução”.

Referências Bibliográficas
Barros, José D’Assunção. (2008). A arte é coisa mental. In: Revista Poiésis, n. 11, pp.
71-82. Recuperado em 10 de setembro de 2012, em <http://www.poiesis.uff.br/PDF/
poiesis11/Poiesis_11_ artecoisamental.pdf>. Acesso em: 10 set. 2012.

9 Galeria Luiz Fernando Landeiro, Arte Contemporânea – situada a Rua da Paciência, Salvador, BA.

1227
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Bulhões, Maria Amélia. (1993). A pós-graduação e a pesquisa em artes plásticas no


Brasil.In: Pillar, Analice Dutra ... et al. (Org.). Pesquisa em Artes Plásticas. Porto Alegre:
UFRGS/ANPAP.

Canclini, N.G. (2006). Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da moderni-
dade. SP: Edusp.

Capra, Fritjof. (2006). A teia da Vida: uma nova compreensão científica dos sistemas
vivos. São Paulo: Cultrix. (10ª reimpressão, 1ª ed. de 1997).

Capra, Fritjof. (2002). As conexões ocultas. Ciências para uma vida sustentável. São
Paulo: Cultrix.

Deleuze, Gilles. (1992). Conversações. São Paulo: Editora 34.

Duchamp, M. (1957).O Ato Criador. Convenção Fed.Americana de Artes. Houston,


Texas, 1957.

Giosa, José Roberto. (2010). A moeda de Lata. São Paulo: Técnica de Comunicação
Industrial.

Ladeira, Marcillene. (2014). Reflexões metodológicas sobre processos de criação


artística: relatos de experiência. In: XI Colóquio Franco brasileiro de Estética – Pa-
ris, Retina 8 e PPGAV/EBA/UFBA, out. 2014. Salvador, Bahia.

Loiola, E. & Moura, S. (1996). Análise de redes: uma contribuição aos estudos orga-
nizacionais. In: FISCHER, Tânia. (ORG.) Gestão Contemporânea: cidades estratégicas
e organizações locais. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas.

Parente, André. (2013). Tramas da rede: novas dimensões filosóficas.

Quinn, J. B.; Anderson, P. E; Finkelstein, S. (2001). Novas formas de Organização. In:


O Processo da Estratégia. 3. ed. Porto Alegre: Bookman.

Salles. Cecília Almeida. (1998). Gesto Inacabado: processo de criação artística. SP:
Annablume.

Salles. Cecília Almeida. (2006). Redes de Criação: construção da obra de arte. SP:
Horizonte.

Santos, Maria Ivone. (2015). “Conferência de Abertura”, 24º Encontro ANPAP/2015 -


Compartilhamentos na Arte: Redes e Conexões, Santa Maria/RS.

Wilson, S. (2005). Arte como Pesquisa. In: LEAO (Org.). O Chip e o caleidoscópio. SP: Senac.

Zamboni, S. (2006). A pesquisa em arte: um paralelo entre arte e ciência. C/SP: Auto-
res Associados.

1228
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Milton Sogabe1
O artesanal no contexto do pós-digital.
The artisanal in the digital context

Resumo
A tecnologia digital se estabeleceu em nossas vidas, assim como aconteceu com
todas as tecnologias anteriores, tornando-se despercebida no nosso cotidiano,
tal como a água e a energia, que só sentimos que existem, quando há falta delas.
O uso do computador para escrever um texto, é algo normal, tal como era escre-
ver em uma máquina de datilografar. Crianças antes de falar ou andar já brincam
com um celular. Vários adultos têm um videogame como lembrança da infân-
cia. A etapa da implantação do digital no cotidiano, causando uma revolução, já
passou, e agora estamos numa etapa denominada pós-digital, que não significa
depois do digital, mas sim um contexto onde essa tecnologia é parte natural de
nossas vidas e começa a provocar outro nível de transformações de forma sis-
têmica, afetando simultaneamente o mundo dos átomos, dos bits e das células.
Passada a fase inicial, quando os processos criativos buscaram entender e ex-
plorar as possibilidades do digital, constatamos agora uma presença marcante
do artesanal na produção. Ele está presente, tanto como seria o usual, no surgi-
mento de novos processos, onde estes incorporam aspectos do anterior, como
também no antigo que é influenciado pelo novo.
Assim, o processo digital incorpora alguns aspectos do artesanal, e outros que
ele não incorpora são resgatados através dos processos artesanais, para serem
utilizados, num processo híbrido de produção. Esses fatos acontecem dentro do
contexto atual do antropoceno e da sustentabilidade, que estão cada vez mais
presentes na consciência dos criadores, reforçando a retomada do artesanal,
como uma atitude.
Neste artigo, apontamos para esse processo e apresentamos algumas produções
em design e arte, onde o digital e o artesanal estão presentes de forma híbrida.
Palavras-chave: artesanal, digital, pós-digital, processo criativo.

1 Milton Sogabe, docente da Universidade Anhembi Morumbi desde 2017. Aposentado pela Univer-
sidade Estadual Paulista. Mestrado e doutorado pela PUC-SP, e pós-doutorado pelo Departamento
de Design e Arte, da Universidade de Aveiro. Membro do SCIArts, coordenador do grupo de pesqui-
sa cAt, e bolsista PQ desde 2008.

1229
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Abstract
Digital technology has established itself in our lives, as it has with all previous tech-
nologies, becoming unnoticed in our daily lives, such as water and energy, which we
only feel exist when they are lacking. Using a computer to write an article is normal,
as was writing on a typewriter. Before children start talking or walking, they already
play with a mobile phone. Several adults have a video game as a childhood memo-
ry. The stage of the implementation of digital in everyday life, causing a revolution,
is over, and now we are in a stage called post-digital, which does not mean after dig-
ital, but a context where this technology is a natural part of our lives and it begins to
provoke another level of transformation in a systemic way, simultaneously affecting
the world of atoms, bits and cells.
Past the initial phase, when the creative processes sought to understand and explore
the possibilities of digital, we now find a striking presence of the craft in production.
It is present, as usual, in the emergence of new processes, where they incorporate
aspects of the former, as well as in the old that is influenced by the new.
The digital process incorporates some aspects of craftsmanship, and others that it
does not incorporate, are rescued through craftsmanship processes to be used in a
hybrid production process.
These facts happen within the current context of anthropocene and sustainability,
which are increasingly present in the consciousness of the creators, reinforcing the
resumption of the craftsmanship as an attitude.
In this article, we point to this process and present some productions in design and
art, which are presented in hybrid form, with digital and handcrafted.
Keywords: artisanal, digital, post digital, creative process.

Introdução
Pensar a situação do artesanal no contexto da tecnologia digital parece-nos num
primeiro momento, um ato nostálgico e ao mesmo tempo, sem referência, por causa
do grande contraste existente. Tentarmos comparar processos manuais, pré-indus-
triais a processos altamente automatizados e inteligentes da era digital, não parece
fazer sentido. Porém, este artigo nasce justamente de uma percepção, de que aspec-
tos do artesanal continuam presentes no contexto denominado pós-digital, onde o
digital já está implantado no cotidiano, provocando grandes transformações sistê-
micas. Verificamos que mesmo a atividade artesanal tradicional cresceu muito no
século XXI, contradizendo nossas primeiras percepções de que o trabalho manual
desapareceria com a automatização das máquinas, num mundo tão tecnologizado.
Nesse sentido, nosso objetivo é a reflexão sobre o artesanal no contexto pós-digital.
Para isso, buscamos o conceito de artesanal neste novo contexto, e quais aspectos

1230
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

artesanais estão presentes na produção criativa com os recursos digitais.

Historicamente, no campo criativo, arte e artesanato nem sempre foram separados,


e no cotidiano do século XXI, nos parece que o trabalho artesanal está cada vez mais
presente. No campo da imagem técnica já havíamos percebido este fato, que com o
digital a imagem técnica tinha ganhado uma maior possibilidade de manipulação,
podendo ser modificada pixel a pixel, atividade impossível na fotografia e no vídeo
pré-digital, resgatando assim de certa maneira, processos artesanais de produção
na imagem técnica.

As impressoras 3D possibilitam esse aspecto artesanal na produção de objetos, dife-


rente da produção seriada da revolução industrial. O contexto do antropoceno, com
preocupações socioambientais, traz novas propostas de produção e comércio, pro-
vocando uma busca por processos mais artesanais e ecológicos, contrapondo com
processos mais tecnológicos e poluentes. Encontramos também várias publicações
atuais, principalmente nas áreas criativas, tal como no Design e na Arte, que falam
sobre o resgate do artesanal.

Em pleno processo da quarta revolução industrial, apontando para um futuro nebu-


loso, com automatização de todas as atividades técnicas, como também as intelec-
tuais através da inteligência artificial, nós começaremos a ver um desemprego de
milhões de pessoas. A produção artesanal pode ser uma possibilidade de sobrevi-
vência, para muitas pessoas produzindo em casa e com a família, usando impresso-
ras 3D, semelhante ao período antes da primeira revolução industrial.

Artesanal
O entendimento do que seja o artesanal ou o artesão não parece ter uma definição con-
gelada, mas sim em constante transformação de acordo com o desenvolvimento tec-
nológico de cada época, que vai desde a revolução industrial, no século XVIII, à quarta
revolução industrial, no século XXI. Nesse período, a produção de mercadorias passou
do processo manual individualizado, em espaços caseiros, com a família produzindo em
pequenas quantidades, para uma produção seriada em grandes quantidades através
das máquinas, em linha de montagem, com vários operários trabalhando nas indústrias.

O artesanato envolve vários fatores relacionando ser humano, meio ambiente, so-
ciedade e economia, além do processo criativo. Porém, vamos delimitar este tema
aos aspectos do processo criativo que envolve uma produção artesanal no contexto
pós-digital, com o artesanal se fazendo presente de uma maneira própria.

Artesanato e Arte

A relação entre artesanato e arte acontece durante toda a história da arte, apresen-
tando várias diferenciações, tal como no Renascimento, quando o artista ganha um

1231
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

papel mais intelectual, diferenciando-se da atividade mais manual do artesão, ou no


século XIX, no movimento Arts and Crafts, que defende o artesanato criativo, como
alternativa à mecanização e à produção de produtos em massa, sem diferenciação
do artista e do artesão. (Argan, 1992)

Embora a produção artística encontre os mais variados processos, seja do ready


made ao totalmente produzido pela mão do artista, a relação entre as atividades
do artista e do artesão também se confundem, dependendo do conceito de arte de
cada época. De acordo com Mário de Andrade (1938, 11), em 1938 no contexto da
Modernidade, ele menciona que a arte não se aprende, mas que em relação à mani-
pulação dos materiais, o artista tem muito a ver com o artesão, no conhecimento e
comportamento dos materiais utilizados.

A definição de artesanato, segundo Lima está mais relacionada ao modo e processo


de produção:

Segundo o conhecimento popular e conforme descrito em grande parte das enciclopédias, a ex-
pressão “artesanato”, que surgiu em fins do século XIX, refere-se ao trabalho manual feito pelo
artesão onde o mesmo possui seus próprios meios de produção e realiza todas as etapas desta
produção, desde a extração da matéria-prima até a comercialização, de maneira individual ou
colaborativa, podendo também ser de base comunitária ou familiar. (Lima, 2014, 7)

Na contemporaneidade, os produtos artesanais segundo a definição da Unesco


(1997, 6), são:

Produtos que são produzidos por artesãos, completamente à mão, ou com a ajuda de ferramentas
manuais ou mesmo mecânicas, desde que a contribuição manual direta do artesão permaneça
como o componente mais substancial do produto final… A natureza especial dos produtos arte-
sanais deriva de suas características distintivas, que podem ser utilitárias, estéticas, artísticas, cria-
tivas, culturalmente relacionadas, decorativas, funcionais, tradicionais, religiosas e socialmente
simbólicas e significativas. (Unesco, 1997, 6, tradução nossa)

Nesta definição o uso de ferramentas mecânicas contemporâneas é incluído, não se


restringindo ao puramente manual, e adaptando-se ao contexto. Mas mesmo num
contexto tecnológico como o que vivemos, essa distinção entre artista e artesão é
nublada em muitos casos. Mestre Vitalino, famoso artista popular brasileiro, só para
citar um deles, apresenta uma produção que representa a cena social do nordeste,
tornando-se um representativo artista da vida da região e não apenas um artesão
(Cordula, 2013, 11).

Segundo Adélia Borges há uma retomada do artesanal na América Latina, nos


anos 80, principalmente por causa da relação dos designers com os artesãos. Os
designers começaram um movimento, em direção ao rural, buscando uma revita-

1232
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

lização ao artesanato. (Borges, 2011, 45) Nesse processo, as preocupações sobre


a questão da sustentabilidade e dos problemas socioambientais afetam tanto os
artistas como os artesões.

Na maioria das definições do artesanato, a menção da possibilidade da existência de


ferramentas, equipamentos e máquinas no processo de produção é presente, não
restringindo o artesanal unicamente às mãos do produtor. O artesão tem domínio
do processo, e necessariamente também não precisa trabalhar sozinho, mas com
colaboração de outros. Com o surgimento da tecnologia digital, os processos de
produção, armazenamento e divulgação de informações e produtos passaram por
grandes transformações, produzindo várias ferramentas de produção e formas de
relacionamento com as pessoas, o que afetou também a produção dos artesãos e
dos artistas.

Contexto pós-digital
Com a revolução digital, vivenciamos a presença do computador em vários espaços
de trabalho, que foram modificando nossas vidas. A Internet e o celular se tornaram
parte do nosso cotidiano, de uma forma tão rápida, tornando-se algo normal e des-
percebido, como se sempre tivesse existido. Como um efeito dominó aconteceram
transformações, atingindo de forma sistêmica, toda a sociedade e todas as áreas do
conhecimento, construindo uma nova realidade. Principalmente no contexto da
arte o termo pós-digital começa a ser usado, logo depois que Nicolas Negroponte
(1988), em 1998 declara: “Encare: a revolução digital acabou”. Kim Cascone, da área
de música, foi um dos primeiros a usar o termo pós-digital, seguido por Lev Manovi-
ch, e em vários eventos artísticos que trataram do assunto. (Sogabe, 2016, 205-206)

Essas transformações profundas configuram a denominada quarta Revolução Indus-


trial. A primeira revolução industrial foi provocada pela máquina a vapor, a segunda
revolução pela eletricidade, a terceira revolução pelo digital. A quarta revolução in-
dustrial surge como conseqüência da anterior, de forma muito rápida e quase se-
qüencial, onde a Internet, o automatismo, a inteligência artificial, a nanotecnologia
e a bioengenharia se apresentam como principais elementos transformadores. As
formas de produção, armazenamento e distribuição de informações se altera por
completo, assim como todos outros produtos da sociedade, principalmente na in-
dústria, no comércio e no consumo. Esta revolução está afetando simultaneamente
o mundo dos átomos, dos bits e das células.

Nessa complexa realidade, a sensação de paradoxos está presente ao vermos uma


automatização veloz, substituindo todas as atividades humanas, e ao mesmo tem-
po percebermos um aumento da possibilidade de produção individual, devido às
próprias tecnologias surgidas nesse contexto. Com as impressoras jato de tinta,
passamos a ter uma gráfica em casa, com os celulares todos passaram a produzir

1233
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

fotos, vídeos e informações, e com as impressoras 3D se popularizando, tornando-se


quase um eletrodoméstico, veremos uma produção caseira de artefatos. Peças de
cerâmica, joalheria, marcenaria podem ser produzidas por encomenda e em peque-
nas quantidades. Ao mesmo tempo, vemos a proliferação dos Fab Labs, com vários
equipamentos digitais e ferramentas tradicionais, permitindo ao público em geral, a
aprendizagem e produção artesanal de seus projetos. Nessa fabricação digital está
presente o código aberto, onde arquivos de modelos de design podem ser acessa-
dos, modificados e compartilhados online.

Na Internet, principalmente nas redes sociais, se proliferarem os tutoriais em vídeos


ensinando como construir coisas e consertar aparelhos, indo de receitas de bolos à
construção de casas. Estes vídeos vão se sofisticando através do Design da Informa-
ção, e sendo cada vez mais didáticos e sintéticos. O incentivo e o comércio de uma
produção artesanal, também se fazem crescente, com a presença de sites como Etsy
(https://www.etsy.com/market/folksy) possibilitando que vários artesãos produzam
e comercializem suas produções online.

Essa cultura da produção individual, do faça você mesmo, denominada Cultura


Maker, surge dentro desse contexto digital, caracterizando o século XXI. Temos visto
um crescente número de pessoas produzindo cervejas artesanais, competindo com
as grandes produtoras, que já dividem espaço nas gôndolas do supermercado com
este tipo de cerveja, que ganha cada vez mais espaço. Na Internet temos vídeos ex-
plicando como consertar máquina de lavar roupa, microondas, e outras necessida-
des caseiras, onde nos tornamos técnicos informais.

Venkatraman (2012) menciona um empreendedor em Mumbai, Índia, chamado Sa-


thi Shri que tem uma loja de 10m², onde faz serviços de Internet, com pagamentos,
compras de ingressos, para pessoas que não tem acesso. Shri também tem no fundo
da lojinha, ajudantes que conseguem consertar qualquer celular ou aparelho que
trouxerem. Trabalham com engenharia reversa. Venkatraman considera que isso é
um fenômeno global e não local, provocado por pequenas peças de baixo custo
produzido pelo mundo e distribuídos para todos os cantos do mundo. Ele conside-
ra este fato como sendo um artesanato tecnológico, aprendido informalmente, no
boca a boca e denomina este fenômeno de “Indústria da barraca de silício” (Silicon
Cottage Industry). Compara este processo a era pré-revolução industrial, através de
várias lojinhas digitais. Se formos à Rua Santa Ifigênia (zona de eletrônicos em São
Paulo), ou numa assistência técnica, compramos os dispositivos e consertamos nos-
sos eletrodomésticos, seguindo as instruções através de uma rede de amadores e
especialistas, que divulgam instruções por meio de tutoriais em vídeos.

Essas transformações nos fazem perceber que a humanidade tem passado por revo-
luções constantes, que alteram a forma de funcionamento da sociedade e de nosso
viver, através de mudanças tecnológicas e de maneiras de perceber e pensar o mundo.

1234
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Há dez mil anos atrás passamos da caça e coleta de alimentos para a agricultura,
plantando nossa alimentação e domesticando animais, fato que melhorou muito as
condições de alimentação do ser humano, transformando-o. Outra significativa re-
volução foi promovida pela máquina a vapor, sendo a primeira revolução industrial,
no século XVIII, dando início à produção mecânica em série. Assim sucessivamente,
com a eletricidade, no final do século XIX, tivemos a segunda revolução industrial,
produzindo artefatos em massa através da linha de montagem. Depois com a tec-
nologia digital e os avanços científicos, nos anos 60, chegou a terceira revolução
industrial, mudando novamente a nossa realidade. A partir do início do século XXI,
como conseqüência da revolução digital, estamos ingressando na quarta revolução
industrial. (Schwab, 2016, 13)

A quarta revolução industrial, no entanto, não diz respeito apenas a sistemas e máquinas inte-
ligentes e conectadas. Seu escopo é muito mais amplo. Ondas de novas descobertas ocorrem
simultaneamente em áreas que vão desde o seqüenciamento genético até a nanotecnologia, das
energias renováveis à computação quântica. O que torna a quarta revolução industrial fundamen-
talmente diferente das anteriores é a fusão dessas tecnologias e a interação entre os domínios
físicos, digitais e biológicos. (Schwab, 2016, 16)

Nesse contexto estamos discutindo as grandes transformações que estão ocorren-


do na relação do ser humano com o planeta, dos seres humanos com as máquinas
e no próprio corpo do ser humano através da engenharia genética. Porém, nosso
objetivo aqui é focar mais nas formas de produção emergentes, embora isto não es-
teja desvinculado de todas essas outras questões. Apesar desta revolução, caminhar
para a automação das atividades técnicas e mesmo intelectuais, percebemos que a
produção artesanal não desapareceu e está em desenvolvimento.

O artesanal e o digital na produção artística


Apresentamos algumas produções que envolvem procedimentos artesanais e tec-
nológicos, para apontar como o artesanal está presente no processo dessa revolu-
ção tecnológica que vivemos. Aqui o artesanal não representa o tudo feito à mão,
mas o processo todo de produção é feito por uma pessoa ou equipe, desde o projeto
até a sua realização, utilizando suas próprias ferramentas. Geralmente o processo é
hibrido, envolvendo processos manuais e processos tecnológicos disponíveis, mas
não se encaixa numa linha de montagem automatizada e massificada.

Jeff Link (2016) menciona que os artesões digitais estão modernizando o artesanato
e identifica cinco atitudes presentes: “1- Eles cuidadosamente avaliam e manipulam
materiais. 2- Eles preservam a intenção e o artesanato tradicional. 3- Eles usam mode-
lagem paramétrica para alterar a escala. 4- Eles fazem do projeto e da fabricação um ci-
clo de feedbacks recíprocos. 5- Eles falam a linguagem da produção sob encomenda.”

1235
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Estes procedimentos estão presentes na produção de designers, arquitetos e artistas


que misturam trabalho manual com uso de equipamentos tecnológicos digitais.

A mão do artista continua em processo nessas obras, porém auxiliado por dispositi-
vos tecnológicos, como ferramentas inteligentes. A seguir apresentamos três casos,
onde designer e artistas apresentam propostas de produção que combinam o pro-
cesso artesanal com utilização de ferramentas ou dispositivos digitais.

L´artisan electronique

Figura 1 - L’Artisan Électronique by Unfold and Tim Knapen. 2010.


Photos by Liesje Reyskens & Kristof Vrancken for Z3. Fonte: UNFOLD. (2010) L´artisan electronique.
http://unfold.be/pages/l-artisan-electronique. Fig. 15

L’Artisan Electronique é um trabalho de parceria da Unfold (formado pelos designers


Claire Warnier e Dries Verbruggen) com Tim Knapen. A instalação é constituída por
um estúdio digital de cerâmica, com um torno real, um monitor com a imagem de
um vaso e uma impressora 3D de cerâmica. A proposta é pensar a relação entre o ar-
tesanato, a indústria e a produção digital. Esta última permite que o público comum,
sem conhecimento ou habilidades de um ceramista, tenha acesso à produção real
de um vaso de cerâmica, semelhante ao processo artesanal tradicional. O público
tem a disposição 18 modelos digitais de potes em wireframe para escolher e a partir
de um deles, pode modificá-lo de acordo com seu desejo, através de uma conexão
da imagem na tela do monitor, e os movimentos que faz com a mão, sobre o torno,
onde esse vaso virtual se encontra. (Unfold, 2010)

1236
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figuras 2 e 3- L’artisan electronique’ by unfold and tim knapen, 2010


(photo: kristof vrancken/Z33) Fonte: UNFOLD. (2010) L´artisan electronique.
http://unfold.be/pages/l-artisan-electronique. Fig. 6 e 8;

O torno encontra-se moldurado por um sistema de manipulação 3D, utilizando la-


sers, sistema ótico e softwares personalizados. A habilidade e o conhecimento do
artesão estão materializados no digital, através do programa e do equipamento. O
público passa a ser um artesão sem a necessidade de muitas habilidades. A partir
do resultado obtido o arquivo é salvo e enviado para uma impressora de cerâmica
3D. O processo possui semelhança com a etapa de criação tradicional de cerâmica
utilizando um torno, mas aqui a mão não está mais em contato direto com a maté-
ria, mas sim com uma matéria virtual. A forma é construída, sendo visualizada sua
modelação, através de uma imagem numa tela. A imagem final é o projeto definido
pelo público, que percebe a conexão entre a imagem e o real, após a impressão
3D, materializando-se. A produção pode ser feita peça por peça, com características
específicas, sem a necessidade de produção seriada, não descartando essa também.
A produção do vaso real, impresso em 3D, acontece através de método da sobrepo-
sição de fios de argila, tal como acontece no processo tradicional, com rolinhos de
argila que vão configurando o volume. Virtual e real são vias de mão dupla nesse
processo, operando através da co-autoria do público com a máquina, que tem incor-
porado o conhecimento e habilidades do artesão. (Warnier, 2010)

Guy Martin

Guy Martin é escultor, designer e arquiteto, o qual trabalha combinando o uso da


tecnologia digital com os processos analógicos e artesanais. Como um artista que
projeta sua obra e a executa por inteira, Martin se apropria dos recursos robóticos,
como uma fresadora de cinco eixos, utilizando-a como uma extensão de seus bra-
ços, porém ampliando suas possibilidades de trabalho em escala e velocidade. Os
artesãos sempre tiveram auxiliares na produção, e neste caso podemos ver a tecno-
logia substituindo ajudantes para operações mais braçais, e trabalhando incessante-
mente e com enorme precisão, segundo a programação do mestre.

1237
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Nesta produção de esculturas que revestem colunas de mais de 8m de altura, foi utili-
zado um braço robótico para modelar a peça de fibra de vidro, que foram divididas em
duas partes para envolverem uma coluna, passando também por processos de meta-
lização e acabamentos. Todo o processo de retirada do material, como numa escultura
tradicional, a peça é produzida a partir de um bloco, que vai sendo desgastada pelo
equipamento, de acordo com a estrutura programada no computador. (Martin, 2019)

Figuras 4 e 5- Guy Martin Design. Fabricação e revestimento de coluna. Fonte http://www.


guymartindesign.com/?utm_medium=website&utm_source=archdaily.com.br

Na área tridimensional, não só os processos de adição de material, como as impres-


soras 3D estão presentes atualmente, como também os processos de subtração de
material através das fresadoras e routers. A presença da tecnologia explora a atividade
mais braçal, através de robôs que desgastam qualquer material, de acordo com o pro-
gramado digitalmente. Desde 1990 a escultura digital tem se desenvolvido através de
organizações como a Computers and Sculpture Forum (CSF), e mostras como a Bienal
Intersculpt, originária da Exposição Mundial de Escultura em Computador em 1993.
(Paul, 2019) O Digital Stone Project também existe desde 2005, trabalhando com par-
ceria da Garfagnana Innovazione, que é um centro de tecnologia de ponta, utilizando
equipamentos robóticos de corte de mármore e pedras, proporcionando residências
para artistas explorarem essas tecnologias. (Digital Stone Project, 2019)

Vinay Venkatraman

Vinay Venkatraman é um designer de origem indiana, que trabalha para a inclusão


digital e é Co-fundador da Copenhagen Institute of Interactin Design (CIID), na
Dinamarca. O Frugal Digital é um grupo dentro do CIID, do qual Venkatraman é
coordenador, e que tem como projeto principal a inclusão digital, atuando na área
da educação e saúde, para comunidades sem acesso a Internet e aos dispositivos

1238
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

digitais, na Índia. O grupo tem preocupações com sustentabilidade e tem o hábito


de trabalhar com objetos encontrados, se apropriando deles e produzindo outras
funções, sempre de forma artesanal.

Uma de suas produções foi desenvolvida a partir da observação, na Índia, onde exis-
tem várias ativistas sociais voluntárias, que visitam as pessoas e as encaminham para
os centros de saúde pública, de acordo com a necessidade. As filas nos centros de saú-
de são enormes, com pessoas que vêm de muito longe. Para tentar ajudar nessa situ-
ação, desenvolveram um dispositivo chamado Medi Meter, que é um relógio desper-
tador adaptado, para funcionar como um dispositivo médico simples, para medição
das condições físicas da pessoa, fazendo uma triagem e indicando situações com as
áreas dos números do relógio, divididos em três áreas: a primeira, zona vermelha que
indica a necessidade de hospital, a segunda, laranja que indica um acompanhamento
da agente, e por último a azul, que indica que está tudo bem. (Venktraman, 2012)

Figura 6- Medi Meter. Venkatraman. Fonte: Nara Shin, 14/04/2014 Interview Vina Venkatraman. In
Cool Hunting. https://coolhunting.com/design/interview-vinay-venkatraman/

Figura 7- Controle remoto, mouse e microcontrolador. Componentes do Medi Meter.


Fonte: Venkatraman 2012.

A construção desse dispositivo foi feita de forma artesanal, com um simples con-
trole remoto de televisão, partes de um mouse, um microcontrolador com alguns

1239
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

componentes extras, e com uma saída USB, que pode ser conectada a qualquer
sensor de pressão, temperatura, pulso etc. Venkatraman não se preocupa muito
com a densidade tecnológica existente no Medi Meter, pois prefere subestimá-la,
para que o usuário tenha uma experiência maior com o dispositivo, que continua
tendo a aparência de um despertador. Com esse dispositivo eles conseguem fazer
uma triagem mais eficaz, diminuindo as filas nos centros de saúde pública.

Considerações Finais
A tecnologia digital trouxe a automatização na produção e ao mesmo tempo a pos-
sibilidade de uma produção mais caseira, através de dispositivos cada vez mais ba-
ratos e acessíveis. Nosso pensamento cartesiano nos leva a pensar que o futuro será
totalmente automatizado, nas atividades técnicas e mesmo nas intelectuais, criando
uma crise do trabalho como nunca visto, no contexto da chamada Quarta Revolução
Industrial. Esse pensamento não permite visualizarmos outros aspectos que também
estão emergindo, nesse complexo sistema de transformações, tal como a questão do
artesanal. Como vimos, parece que há um caminho que aponta, para a possibilidade
da existência de um artesão digital, justamente por causa dessa mesma tecnologia,
possibilitando que muitos desenvolvam uma produção, como antes da Primeira Re-
volução Industrial, simultaneamente a uma produção seriada, que também está se
modificando. Os designers da Unfold, o artista Guy Martin e o designer Venkatraman,
nas suas falas e produções, já se consideram artesões digitais.

Referências
Andrade, Mário de. (1938) O artista e o artesão. Aula inaugural dos cursos de Filo-
sofia e História da Arte, do Instituto de Artes, da Universidade do Distrito Federal em
1938. 16p. (Mimeogr.). Recuperado de http://www.usp.br/cje/depaula/wp-content/
uploads/2017/03/Sem-3_O-Artista-e-o-Artes%C3%A3o_M%C3%A1rio-de-Andra-
de.compressed.pdf

Argan, Giulio Carlo. (1992) Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contempo-
râneos. Tradução Denise Bottmann, Frederico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras.

Borges, Adélia. (2011) Design + Craft. The Brazilian Pat. São Paulo, Editora Ter-
ceiro Nome.

Córdola, Raul. (2013) Afinal, o que é artesanato? Segunda Pessoa Revista de Artes
Visuais – Ano 3, Número 1, jun-jul-ago 2013. Pág 9-13 Editora. Recuperado de http://
www.segundapessoa.com.br/edicoes/1/

Digital Stone Project. Recuperado de https://www.digitalstoneproject.com/

Herrera, Pablo C. (2016) Digital fabrication and revival craft in Latin America: Alliance

1240
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

between designers and artisans. In: Wong, Wendy Siuyi; Kikuchi, Yuko & Lin, Tingyi
(Eds.). Making Trans/National Contemporary Design History. ICDHS 2016 – 10th
Conference of the International Committee for Design History & Design Studies. São
Paulo: Blucher, 2016, 291-295.

Lima, Selma Maria Santiago. (2014) Consultoria da UNESCO para o Ministério


da Cultura. Recuperado de http://www.consultaesic.cgu.gov.br/busca/dados/
Lists/Pedido/Attachments/430884/RESPOSTA_PEDIDO_Consultoria%20UNES-
CO%20-%20PRODUTO%201%20-%20DIAGNOSTICO%20ARTESANATO%20-%20
SELMA%20SANTIAGO.pdf

Link, Jeff. (2016) 5 Ways Architects and Postdigital Artisans Are Modernizing Crafts-
manship. In Archicteture, jan, 18, 2016. Recuperado de https://www.autodesk.com/
redshift/postdigital-artisans/?utm_medium=website&utm_source=archdaily.com.br

Negroponte, Nicholas. (1998) Beyond Digital. In WIRED Ventures Ltd. Issue 6.12, De-
cember 1998. Recuperado de https://web.media.mit.edu/~nicholas/Wired/

Martin, Guy. (2019) Guy Martin Design. Recuperado de http://www.guymartinde-


sign.com/

Paul, Christiane. Fluid Borders: The Aesthetic Evolution of Digital Sculpture. In Inter-
national Sculpture Center. Sculpture Magazine. Recuperado de https://www.sculp-
ture.org/documents/webspec/digscul/digscul.shtml

Scott, Stacy Jo. (2011) Unfold interview–the virtual potter’s wheel. January 10,
2011 Recuperado de http://journalofmoderncraft.com/tag/ceramics/page/

Shin, Nara. (2014) Interview Vina Venkatraman. In Cool Hunting 14/04/2014. Recu-
perado de https://coolhunting.com/design/interview-vinay-venkatraman/

Sogabe, Milton. (2016) Arte pós-digital. In VENTURELLI, S e ROCHA, C (orgs). Anais


do 15º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia. Brasília, Brasil, UnB, 2016.
Recuperado de https://art.medialab.ufg.br/up/779/o/milton_sogabe.pdf

Unfold. (2010) L´artisan electronique. Recuperado de http://unfold.be/pages/l-ar-


tisan-electronique

Venkatraman, Vinay. (2012) Artesanato tecnológico para os carentes digitais. In TED


talks. Recuperado de https://www.ted.com/talks/vinay_venkatraman_technology_
crafts_for_the_digitally_underserved?language=pt-br

Warnier, Claire. (2010) L’Artisan Electronique. Unfold. 10/05/2010 Recuperado


de https://www.dropbox.com/s/t2jdmljc00ues64/ArtisanElectronique_CWarnier_
May2010.doc?dl=0

1241
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Leonardo Tavares1 and


Nivalda Assunção de Araujo2
Imagens Fantasmas: o papel da imaginação como
criação estética
Ghost Images: the role of imagination as aesthetic creation

Resumo
O presente artigo3 enfoca a problemática da imaginação, aqui investigada como
caminho de aprofundamento na compreensão de questões cruciais à arte con-
temporânea e sua relação com a linguagem, a partir da interação entre teorias
que formulam o papel da imaginação nos atos de ler e ver, como a fenome-
nologia da imaginação, de Gaston Bachelard, e a teoria do efeito estético, de
Wolfgang Iser. A noção de imagem mental como componente definidor da par-
ticipação do leitor / espectador no processo de fruição de trabalhos artísticos
é fundamental para o desenvolvimento do tema, bem como o uso ampliado
dos conceitos aristotélicos de phantasía (capacidade de criar imagens interio-
res a partir do mundo físico) e phantasma (produtos imagéticos evanescentes
que habitam a imaginação), que contribuem, aliados à expansão do conceito
derridiano de hauntologia, à compreensão da dualidade presença/ausência nas
explorações interartes ligadas ao tempo e ao espaço.
Palavras-chave: palavra-imagem, interartes, percepção, recepção, efeito estético

Abstract
This paper focuses on the problematic of the imagination, as a way of deepening the
understanding of issues crucial to contemporary art and its relation with language,
from the interaction between theories that formulate the role of the imagination

1 Doutorando em Arte pelo Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília – PP-


GAV/UNB. Mestre em Arte pela mesma instituição (2015). Tem experiência nas áreas de Artes e Lite-
ratura, realiza exposições como artista visual e publicações literárias. Pesquisa as relações entre texto
e imagem, arte e literatura. Contato: leosaidhi@gmail.com.
2 Doutora em Arts et Science de L’art pela Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne) (2008). Mestre
em Art Plastiques et Appliquées pela mesma instituição (2004) e Mestre em Arte pela Universidade
de Brasília (1999). É professora Adjunto 3 da Universidade de Brasília. Atua na área de Arquitetura e
Artes, com ênfase em poéticas contemporâneas. Contato: nivaldaassucao@gmail.com.
3 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

1242
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

in reading and seeing, such as Gaston Bachelard’s phenomenology of imagination,


and Wolfgang Iser’s theory of aesthetic effect. The notion of mental image as a de-
fining component of the reader / spectator’s role in the process of artistic works frui-
tion is fundamental for the theme’s development, as well as the extended use of the
Aristotelian concepts of phantasía (ability to create inner images from the physical
world) and phantasma (evanescent imagery that inhabit the imagination), which
contribute – allied with the expansion of the derridian concept of hauntology – to
the understanding of the presence / absence duality in the interarts researches that
approach time and space connections.
Keywords: word-image, interarts, perception, reception, aesthetic effect
O papel da imaginação, ato de criar imagens internas a partir de informações e expe-
riências do real sensível, amplamente analisado e aprofundado nas teorias literárias,
suscita, no estudo das artes visuais, problemáticas também ligadas à recepção, ou
seja, aos efeitos da fruição estética possibilitada pelo contato do espectador com as
composições da visualidade.

Tendo como ponto de partida a experiência do sensível, a imaginação é, na litera-


tura, produto de um procedimento desencadeado pelo sentido da visão: o ato de
ler – cuja origem etimológica latina significa “reunir para os olhos” – sucessivamente
os códigos verbais proporciona a justaposição de informações que geram imagens
internas. Deste modo, a imaginação propiciada pela leitura é a formação de imagens
a partir de comandos, de sugestões, de ordenações de eventos, de descrições de
características físicas e estados de espírito, de indicações temporais e geográficas.
A leitura tem o papel de mediar, na recepção literária, a criação do leitor a partir de
procedimentos verbais que o orientam – a criação do autor.

Nas artes visuais, no entanto, o descrever responsável por iniciar o processo imagina-
tivo é substituído pelo mostrar. Mais evidenciado, por condicionamento histórico, às
convenções do figurativismo, na pintura e na escultura representacionais, isto é, nos
dispositivos que trabalham mais aproximadamente com as questões da mimese, o
mostrar, não ausente da abstração e até mesmo da arte desmaterializada, a princípio
parece excluir o trabalho criativo do espectador no que tange à criação de imagens
internas. O espectador, porém, como o leitor de literatura, também está diante de
comandos, de sugestões, de ordenações e indicações que formam a linguagem visu-
al, e se esta é mais enfática e direta que a literária, pois reúne para os olhos imagens
formadas pela materialidade, não é menos aberta à interpretação; as imagens óp-
ticas também são passíveis de leitura, e deste modo são apenas ativadores não de-
terminantes, cujos efeitos provocam na apreensão sensível uma gama de iniciações
imagéticas que não se demoram na materialidade porque assumem na consciência
a intangibilidade e a fluidez das imagens mentais.

1243
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A distinção entre descrever e mostrar, antes de tudo, não parece caber às produções
de arte contemporânea, em que, há muito ultrapassadas as restrições atribuídas à
especificidade de linguagens e métiers, interpenetram-se os diversos campos de
criação estética, tanto nos processos construtivos de trabalhos de arte quanto nos
processos de fruição, já estabelecidos em consonância com o estatuto de compreen-
são e interpretação interposto entre os atores de um sistema de arte vigente. A arte
contemporânea, em sua abertura a incontáveis modos de operação e recepção, ca-
racteriza-se pela inserção não só de práticas como de conceitos oriundos de outras
artes e de outros campos do conhecimento. Desta forma, é impraticável pensá-la a
partir de distinções conceituais aplicáveis à outros momentos históricos e funda-
mentadas em teorias compromissadas com formas específicas de expressão.

No entanto, nos estudos literários, muitos dos códigos propostos por Gotthold
Ephraim Lessing (1969) em sua súmula da homologia estrutural e da hierarquia de
valor no que diz respeito à arte e à literatura, permanecem como preceitos irreto-
cáveis pelo seu apelo lógico e imediato, apesar de tais formulações pertencerem
inequivocamente a convenções teóricas do século dezoito. Para Lessing, as artes do
tempo seriam superiores às artes do espaço por uma série de razões, incluída en-
tre elas a potencialidade imaginativa, isto é, a capacidade de oferecer à imaginação
maior autonomia na criação de imagens. Enquanto as artes figurativas, espaciais,
como a pintura e a escultura, teriam, no compromisso com o mostrar, certa deficiên-
cia intelectual, posto que se engajam com a aparência externa das coisas, só as artes
temporais (notadamente a poesia) estariam aptas a tocar, por meio da estética, “a
pura consciência temporal”4 (Lessing apud Mitchell, 1986, p. 108).

O problema das distinções categóricas entre as artes se concentra no próprio concei-


to de homologia estrutural. Para a arte contemporânea, como a ideia comparativista
de procedimentos associados exclusivamente ao fazer literário e ao fazer plástico se
assenta, em meio à profusão de artistas que, desde Marcel Duchamp, pelo menos,
consideram as instâncias do verbal e do imagético inseparáveis para a composição
prática e para a estrutura conceitual de um trabalho artístico? Tomando Duchamp
como predecessor da arte contemporânea, percebemos que a confluência de lin-
guagens que a caracteriza tem como pedra fundamental a inserção da linguagem
verbal no fazer e no pensar artístico; os artistas da virada conceitual dos anos 1960 e
1970, conhecida também como “virada da linguagem” não só atribuem a Duchamp
e seus deslocamentos de códigos verbais para a visualidade a ruptura absoluta com
o formalismo como também abriram o caminho para o ponto de não retorno à tradi-
ção que qualifica a arte contemporânea como espaço de hibridismo, e desde então
distinções como tempo e espaço pouco resistem além da territorialidade teórica.

4 Tradução nossa.

1244
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

De acordo com W. J. T. Mitchell, as próprias noções gerais de artes visuais e literatura


ficaram atreladas às noções distintivas entre espaço e tempo. Para o autor, no entan-
to, se propriamente observadas, seriam finalmente compreendidas como diferenças
de grau, e não de tipo. A questão da representação de objetos como algo mais con-
veniente, porque mais imediato, às linguagens plásticas, e da construção de discurso
como procedimento mais fácil à literatura, não encontra propriedade no argumento
de que o visual e o verbal são categorias encerradas, de abertura interditada a um e
ao outro. Sabemos que a linguagem visual, mesmo na pintura e na escultura, é capaz
de construção discursiva e, do mesmo modo, que a literatura pode trabalhar com o
espaço de modo direto (todos os momentos da poesia visual, dos poemas figurados
da Antiguidade grega à poesia concreta são exemplo disso), portanto, a impossibili-
dade de diferenciações definitivas de tipo e a evidência de que em relação a ambas
as instâncias as diferenças, ancoradas em questão de grau de dificuldade, já não se
constituem como oposições. Para Mitchell, “trabalhos de arte, como todos os outros
objetos que fazem parte da experiência humana, são estruturas espaço-temporais, e
o que interessa é compreender uma estrutura espaço-temporal particular, não clas-
sificá-la como espacial ou temporal”5 (Mitchell, 1986, p. 103).

Mas interessa mais buscar o ponto de intersecção entre os mecanismos do verbal e


do visual, e perceber que, por meio da recepção tanto de imagens quanto de textos,
é no território da imaginação que imagem verbal e imagem óptica produzem, inde-
pendente de seus sistemas, imagens mentais. Tanto o descrever quanto o mostrar,
compreendidos como formas de manifestar na materialidade conteúdos mentais ou
espirituais, sendo veículos de linguagem, tomam para si um papel impossível: o de
reunir para o sensível humano tudo aquilo que lhe transborda.

Para Walter Benjamin, crer que os veículos artificiais que formam a linguagem po-
dem conter a essência espiritual de algo é “o grande abismo no qual ameaça precipi-
tar-se toda a teoria da linguagem” (Benjamin, 2011, pp. 51-52). O autor aponta para a
necessidade de não se confundir a essência espiritual de uma coisa de sua essência
linguística, mas isto não implica em uma dissociação absolta do mundo espiritual
das construções da linguagem. Para Benjamin, a essência espiritual é aquilo que a
linguagem só pode apreender “na medida em que é comunicável” (Benjamin, idem,
p. 52). Aqui, no lugar de variação de grau, temos uma diferença de tipo, posta pelos
limites do comunicável e sua relação com o inominável que o transborda.

No que tange ao incomunicável, a linguagem se presta a criar versões que nos sirvam
como traduções aproximadas. Desta maneira, a passagem do incomunicável para a
comunicação implica em deturpação de essência, pois o incomunicável, ao ser no-
meado, já não diz mais respeito a ele mesmo, e sim à linguagem, criação humana.

5 Tradução nossa.

1245
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Entretanto, é a tentativa de transposição do inexprimível para o artifício da linguagem


que permite a vida em sociedade, a expressão de pensamentos, a arte e a existência
de uma civilização, como um todo. Segundo Benjamin, esta é a origem da comunhão
mágica entre o homem e as coisas do mundo: ele tenta conjura-las, nomeando-as, a
fim de resgatar os laços que intui ter com elas, paradoxalmente uma utopia e uma
comunhão que confere existência a tudo que não é ele mesmo, homem. Sem a lin-
guagem, nós mesmos mudos, como o resto das coisas, teríamos ainda a imaginação?.

Se ao criar imagens não estamos agindo sobre a nomeação das coisas, ainda esta-
mos, em procedimento similar, pondo a funcionar as possibilidades da linguagem,
atuando nos processos de tradução do inexprimível para o possível da matéria. Em
uma instância maior, dizer e mostrar são formas de tocar o inexprimível, com a fun-
ção de tornar entrevisível a existência espiritual e não nomeável das coisas, nunca
de modo a capturar a essência, mas promovendo movimentos de aproximação em
direção a ela. É no não-lugar da imaginação que espaço e tempo se esfacelam, mis-
cíveis, e que o inominável pode acontecer em liberdade. É necessário dizer e mostrar
para que se adentre este não-lugar de possibilidades infinitas, mas uma vez lá den-
tro, percebe-se que o que ali habita não tem partido com a restrição dos nomes e
com o definitivo das fisionomias.

A imaginação é a manifestação mais profunda da experiência estética, porque a


partir do contato com o físico, ativa a subjetividade, este composto de múltiplos
fatores e imprecisões atrelado a vivências, a concepções de mundo e a toda sorte de
aspectos identitários. Irreproduzível devido à sua intangibilidade e à sua natureza
de indistinção, a imaginação é o espaço, se é que podemos falar em lugar em vez
de estado, da criação solitária, aquela que só se pode rondar, que toma de partida
o trabalho artístico mas não se submete de todo a ele, posto que é completa extra-
polação da linguagem. É onde todo o espectador e todo o leitor são criadores, ideia
cara à Duchamp na sua reflexão sobre o papel do receptor no ato criador.

Como pensada por Aristóteles em seu De Anima (2000), capacidade de criação ima-
gética interior, particularizada a partir da percepção, a phantasía é o ato de apreen-
são do mundo em percurso de transição entre o sensório e o intelecto. Seu produto
seria o fenômeno conhecido como phantasma, aparições não comprometidas de
todo com a aparência das coisas. Como produto mental, phantasma não é um con-
ceito aprisionado ao sentido mimético da representação, sendo mais reminiscência
da experiência sensível que se reveste de autonomia tão logo se manifesta, do que
cópia do mundo material. Krisanna M. Scheiter (2012) aponta para a concepção ex-
trapictórica da criação de imagens em Aristóteles (Scheiter, idem, p. 252), isto é, para
a sua ligação a diversas categorias, como a dos sonhos, da memória, da narrativa, e
também do pensamento, assim como à própria noção de percepção. Deste modo,
para Aristóteles, a criação de imagens materiais, representacionais, é somente uma
das várias possibilidades de criação imagética, ainda que o produto da phantasía, o

1246
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

phantasma, esteja vinculado ao fenômeno da percepção, estimulado por objetos ou


impressões físicas, ou seja, dependente de experiências mediadas pelos sentidos.
Para Aristóteles, desta maneira, é impossível que a imaginação se dê sem a media-
ção da percepção. Porém, do ponto de vista aristotélico, a imaginação (phantasía)
promove um esticamento do fenômeno da percepção porque, enquanto esta de-
pende sempre do contato e da presença, a imaginação ocorre mesmo quando o
objeto já está ausente (phantasma), mas presentificado na memória.

Wolfgang Iser, em sua teoria do efeito estético, trabalhou a questão da imaginação a


partir da análise de estruturas localizáveis no texto literário que chamou de “vazios”,
associando-os aos pontos de indeterminação da narrativa verbal, ou seja, referindo-
-se às descrições que deixam abertos caminhos de interpretação, espaços a serem
completados pela imaginação do leitor. Para Iser os pontos de indeterminação do
texto literário asseguram o “estímulo de sugestão” (Iser, 1979, p. 101), fundamental
para a função comunicativa dos textos ficcionais.

No que concerne aos trabalhos estéticos da visualidade, poderíamos localizar “va-


zios” análogos aos que formam os pontos de indeterminação na literatura? Segundo
Iser, “apenas quando os esquemas do texto estão interrelacionados é que o objeto
imaginário começa a se formar. Esta operação, exigida do leitor, encontra nos vazios
o instrumento decisivo. Eles indicam os segmentos do texto a serem conectados”.
(Iser, idem, p. 106). O deslocamento gerado pela leitura, que põe blocos fraciona-
dos de texto em uma linha de continuidade, provoca o que Iser chama de “rede de
perspectivas, dentro da qual cada perspectiva abre a visão não só das outras, como
também do objeto imaginário intencionado” (Iser, idem, p. 123).

Do mesmo modo, na experiência de fruição de trabalhos visuais, os fragmentos que


formam uma construção imagética, seja ela uma pintura de paisagem, uma abstra-
ção, uma instalação ou um objeto, são compreendidos dentro desta lógica de rede
de perspectivas, em que o todo depende da apreensão de uma estrutura de seg-
mentos. Dentro desta estrutura, os vazios, ou pontos de indeterminação, abrem-se à
autonomia interpretativa para a criação imaginária. Iser diz que os vazios, estruturas
inescapáveis em toda forma de linguagem, garantem a participação do leitor “na
realização do texto. Do ponto de vista desta estrutura, participação não significa que
o leitor seja levado a internalizar as posições manifestadas pelo texto, mas sim que
ele é induzido a fazê-las agir.” (Iser, idem, p. 131). Ao falar dos pontos de indeter-
minação literários que induzem o leitor a participar ativamente da criação, Iser fala
em imagens. A participação do leitor de literatura na formação do trabalho estético
verbal acontece pela mesma via que ocorre a participação do espectador no ato
criador visual: por meio de imagens mentais. É a imagem mental, neste sentido, que
confere significado ao texto, tornando-o “vivo na consciência imaginante do leitor.”
(Iser, idem, p. 132).

1247
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Isto não significa dizer que a imagem mental está conectada à imagem verbal e à
imagem óptica em uma relação de subordinação. Antes, a relação que se estabelece
entre elas é de referencialidade: a imagem mental, mesmo que tenha como ponto
de partida as imagens físicas e verbais, possui vida própria, não consistindo em res-
tos de percepção, conforme aponta Gaston Bachelard, ao dizer que o olho que vê,
no que tange às imagens da imaginação, “vê numa outra visão” (Bachelard, 1988, p.
167). A visão imaginária é mais inclinada ao sonho e ao devaneio do que à razão; de-
vido ao seu caráter fugidio e livre, as imagens mentais estão em constante expansão,
e se desgarram das estruturas ordenadas de suas antecessoras (imagens verbais e
ópticas) quase de imediato, tão logo se manifestam na passagem aberta pela per-
cepção, por serem de ordem “essencialmente variacional” (Bachelard, 1978, p. 185).
Deste modo diferem-se profundamente da natureza do pensamento conceitual, de
ordem constitutiva, encerrada. Ao contrário do refrear e circunscrever que carac-
teriza a constituição de um conceito, “a imaginação imagina incessantemente e se
enriquece de novas imagens” (Bachelard, idem, p. 196). As imagens da imaginação
não estão dissociadas de todo do pensamento lógico, no entanto, pois mantêm uma
relação intrínseca com os objetos do mundo. Ainda assim, não podem lhes servir em
substituição, conforme aponta Bachelard (idem, p. 185), porque sua existência se dá
em uma realidade específica, em que são alterados os valores da realidade material.

Ao observar um objeto artístico, o espectador o apreende por meio da percepção,


e os sentidos se encarregam de enviar efeitos imediatamente ao processo de inter-
pretação, do qual a imaginação é sempre partícipe. A realidade material do trabalho
artístico experimentado em percepção pelo espectador é subitamente suspensa,
transfigurada na imaginação, e deste modo o conteúdo imaginado passa a existir
em um processo criativo íntimo. O espectador que imagina é sempre autor, mas sua
autoria funciona em uma relação distinta daquela que se dá entre o artista e a ma-
terialidade: o espectador cria com a impossibilidade de estancamento das imagens,
sem ser capaz de exercer o mesmo controle sobre o imaginado que tem o artista
sobre a linguagem plástica. A criação imaginária é, ao mesmo tempo, impossível
pela inexistência de um produto, e mais livre porque não age sobre uma finalidade.

Dissemos que as imagens cuja presença não pode ser verificada em registros mate-
riais, estas que chamamos de imagens internas, mas que também fazemos confluir
com a acepção de imagens mentais e que relacionamos com a concepção aristoté-
lica de phantasma, têm nos veículos que ativam a percepção um ponto de partida.
É preciso rondar, no entanto, o sentido de “ponto de partida” para fazê-lo extravasar
do entendimento de algo cuja origem pode ser localizada. A geração de eventos
imaginários é um processo que não ocorre em dependência estrita aos estímulos da
percepção, estando ligada ao compilado de informações, experiências e toda a sorte
de particularidades que formam o que Christoph Wulf denomina “mundo imagético
interior” (Wulf, 2000). Tal mundo é formado, por um lado, pelo “imaginário coletivo
de sua cultura, e por outro, pela singularidade e inconfundibilidade das imagens

1248
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

originárias de sua história pessoal, e finalmente pela recíproca superposição e pene-


tração de ambos os mundos imagéticos” (Wulf, idem, p. 12). Deste modo, o caráter
singular e inconfundível da imaginação torna as imagens internas irreproduzíveis e
as coloca em uma ordem fantasmática, onde as coisas se distanciam da linguagem,
o que as torna sem solução. O estado paradoxal da imaginação é que ela dá conta
de suprir o que a concepção artistotélica vê como “insuficiência presente na própria
sensação” (Moraes, 2007, p. 22) ao passo que cancela a existência de suas imagens
para a linguagem.

Localizar o destino de tais imagens é o mesmo que localizar sua origem: tarefa que
pertence, ou ao menos intenta ser rondeada pela proposta de hantologie, ou “espec-
trologia”, de Jacques Derrida. O termo, que é discutido em seu Espectros de Marx
(1994), abarca as disjunções temporais que formam a identidade das coisas e a exis-
tência da própria linguagem, no sentido de que é impossível nos acercarmos de um
tempo de origem para a mesma, posto que toda a origem implica em um algo que a
antecede; este algo, que só pode ser tratado pela linguagem, é uma ausência que se
imprime na própria tentativa de falar sobre sua existência, ou seja, é uma presença
fantasmagórica, ou não-presença, manifesta espectralmente em tudo aquilo sobre
o que se pode dizer.

Todo o nomeável, portanto, reveste-se dessa presença-ausência, desse espectro que


pode ser compreendido como o que não se nomeia, o que não pertence ao real mas
que também não se inscreve como irreal por fazer parte da própria constituição do
ser. O espectro derridiano está ligado à sua concepção de “rastro”, “a origem absoluta
do sentido em geral” (Derrida, 2006, p. 79.) que é sempre o algo a ser decifrado em
uma presença. Este a ser decifrado implica em uma contínua expectativa de solução,
que nunca se dá porque para Derrida o que está no mundo – e na linguagem – não
se dobra à cronologia linear passado-presente-futuro senão de forma artificial; há
um coexistir que perpassa os seres em temporalidades simultâneas, deste modo, o
porvir é um aqui-agora como o é o que ficou para trás.

A disjunção temporal que Derrida localiza na sua figura do espectro, que é ao mesmo
tempo o retorno de um passado e uma indicação de presença do futuro no presente,
também diz respeito às presentificações imaginárias, onde a cronologia se desmantela
sem dar sinais físicos de disrupção, pois os rastros que formam as imagens da imagina-
ção são forças que perturbam sem perturbar, ou eventos dissonantes do real matérico,
que lhe são paralelos sem com ele compartilhar os sentidos já formados das coisas: na
imaginação, o sentido está em constante formação, e talvez este não-lugar do mundo
imagético interior seja mais propício ao defrontamento com a origem do significa-
do do que a própria linguagem, e deste modo o rastro seria a única coisa passível de
linguagem que vaza do inominável, mesmo assim manifestando-se nas coisas como
espectro e jamais como fenômeno plenamente presentificado, pois não é exatamente
vestígio, e sim uma espécie de contaminação, invisível e latente.

1249
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

As coisas da visualidade, portanto, carregam rastros que impossibilitam sua deno-


minação concreta, sua função determinante, suas características dadas, suas orde-
nações projetadas. O que é possível diante do trabalho de arte é apenas intuir um
caminho de aproximação que sempre se afasta do autor do trabalho e ruma em dire-
ção ao mundo imagético interior do espectador; este caminho não é, também, line-
ar, produz oscilações de idas e retornos entre o visto e o interiormente vislumbrado,
provocando iluminações e apagamentos dos rastros que o constituem. O espectral,
portanto, é uma figura intrínseca da arte porque a arte não existe sem a imaginação
e a imaginação, por sua vez, não se dá na materialidade. Toda a arte é desmateriali-
zada no processo de fruição, e a relação estabelecida entre nós e os objetos estéticos
que percebemos está mais ligada às questões constitutivas do ser do que da forma;
arte é uma ideia de arte, em que o rastro de uma ideia de arte se presentifica em
ocultamento. Imprimimos luz nas coisas, ao vê-las, e de olhos fechados elas se rea-
cendem em uma existência que as libera do concreto dos nomes e das aparências.

Referências
Aristóteles. (2000). On the Soul. London: Harvard University Press.

Bachelard, Gaston. (1978). A poética do espaço. In Pessanha, José Américo Motta


(Org.). Os Pensadores. Gaston Bachelard. São Paulo: Abril Cultural.

______________ . (1988). A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes.

Benjamin, Walter. (2011). Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do ho-


mem. In Gagnebin, Jeanne Marie (Org.). Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921).
São Paulo: Duas Cidades; Editora 34.

Derrida, Jacques. (1994). Espectros de Marx: o Estado da dívida, o trabalho de luto e


a nova Internacional. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.

________________ (2006). Gramatologia. São Paulo: Perspectiva.

Iser, Wolfgang. (1979). A Interação do Texto com o Leitor. In Jauss, Hans Robert (et
all). A Literatura e o Leitor: Textos de Estética da Recepção (pp. 83-132). Rio de Janeiro:
Paz e Terra.

Lessing, Gotthold Ephraim. (1969). Laocoon: An Essay upon the Limits of Poetry and
Painting. New York: Farrar, Straus and Giroux.

Mitchell, W. J. T. (1986). Iconology: Image, Text, Ideology. Chicago: The University of


Chicago Press.

1250
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Moraes, Francisco. (2007). Teoria e estética em Aristóteles. Viso: Cadernos de estética


aplicada, v. I, n. 2 (pp. 14-27). Rio de Janeiro. Consultado em: http://revistaviso.com.
br/pdf/Viso_2_FranciscoMoraes.pdf

Scheiter, Krisanna M. (2012). Images, Appearances, and Phantasia in Aristotle. Phro-


nesis, A Journal for Ancient Philosophy 57(3): 251-278. Consultado em: https://cpb-us-
-w2.wpmucdn.com/muse.union.edu/dist/9/93/files/2012/10/Images-Appearances-
-and-Phantasia-in-Aristotle.pdf

Wulf, Christian. (2000). Imagem e Fantasia. Anais do Seminário Internacional “Imagem


e Violência”. Cisc – Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia. São
Paulo, março-abril de 2000. Consultado em: http://www.cisc.org.br/portal/bibliote-
ca/iv6_fantasia.pdf

1251
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Paulo Bernardino Bastos1


Da Prática Artística para a Teoria da Arte
From Artistic Practice to Art Theory

Resumo
Nos dias que correm, assistimos cada vez mais a uma expansão da prática artísti-
ca que, consequentemente, vai interferir na própria construção da teoria da arte.
Esta expansão, que na minha opinião, é altamente positiva, arrasta consigo outras
consequências, menos positivas, que podem, de alguma forma, “atrapalhar” o pró-
prio sistema. Ou seja, a prática está cada vez mais “doutorada” - devido à profusão
capitalista dos cursos de arte - e menos “pensada” - devido ao aparecimento de
titulações (e propinas) - que, devido ao excesso de cursos e programas, criou uma
necessidade de formar rápida e com excelentes notas, toda uma sociedade, que,
em grande parte, já não olha ao produto/objeto, nem tão pouco quer pensar/te-
orizar aquilo que produz. Por conseguinte, esta expensão, obrigou à criação de
Unidades de Investigação que se organizam para sobreviver neste mundo “douto-
rando”. Nesta perspetiva vou expor aqui o que acontece no grupo que coordeno
“Práxis e Poiesis: da prática artística à teoria artística” numa tentativa de demons-
trar o “estado da arte” de uma parte da prática artística contemporânea.

Abstract
Nowadays, we are increasingly seeing an expansion of artistic practice that, conse-
quently, will interfere with the very construction of art theory. This expansion, which
in my opinion is highly positive, carries with it other, less positive, consequences that
may somehow “disrupt” the system itself. That is, the practice is increasingly “doc-
toral” - due to the capitalist profusion of art courses - and less “thought” - due to
the emergence of titles (and tuition fees) - which, due to the excess of courses and
programs, created a need to form quickly and with excellent grades, a whole so-
ciety that, for the most part, no longer looks at the product / object, nor wants to
think / theorize what it produces. Therefore, this expense has forced the creation of
Research Units that organize themselves to survive in this “doctoral” world. In this

1 Paulo Bernardino Bastos é Ph.D. em ESTUDOS DE ARTE, estudou Escultura na ESBAP (Porto), em
Portugal, e fez um MA-Escultura na Royal College of Art, em Londres. Procurando articular o seu
campo de investigação entre a prática e a teoria, desenvolve o seu universo de investigação olhan-
do para as obras produzidas através das várias mediações tecnológicas (da pintura tradicional ao
digital contemporâneo). Tem participado em vários eventos internacionais como conferencista e
como artista.

1252
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

perspective I will present here what happens in the group that coordinates “Praxis
and Poiesis: from artistic practice to artistic theory” in an attempt to demonstrate
the “state of the art” has a part of part of contemporary artistic practice

Introdução
Este artigo visa promover, estimular, e promover uma discussão em torno das pes-
quisas em áreas relacionadas às artes - na proximidade de ciências, média e cultura -
tendo como preocupação central a integração das dimensões artísticas e tecnológi-
cas, e suas consequências no sistema - do ponto de vista da produção, da circulação
e afirmação das obras e das suas teorias que (cada vez menos) servem, ou deveriam
servir, para apoiar e expandir o sistema.

Pretende-se consolidar um pensamento (baseado em várias leituras), e partindo da


minha experiência enquanto coordenador de um grupo de professores / pesquisa-
dores de diferentes instituições, visando utilizar seu potencial humano, científico e
tecnológico, como entidades anfitriãs no desenvolvimento do conhecimento e na
implementação de projetos de pesquisa. Refletindo sobre produtos artísticos e sua
prática atual, de que modo, podem contribuir para o crescimento das teorias au-
mentando a produção e transmissão das artes – que no âmbito sociocultural das
regiões onde as atividades são implementadas, quer no âmbito pessoal.

Toda esta parafernália de titulações a que assistimos, deveria, e com certeza também
traz, uma prática mais especializada, contudo, creio eu, também menos pensada en-
quanto discurso – visto estar muito dependente de uma financiarização do sistema
-, e, como tal, acelerada e em grande parte preocupada em competir por “notas/
médias” – por todos acordado que altamente inflacionadas – que, na realidade, tem
contribuído para um certo descrédito dos diplomas, mas que é ótimo para a forma-
ção de ditas Unidades de Investigação, que no meu entender, não mais são do que
agrupamentos de pessoas em torno de problemas levantados pelas universidades
para se financiarem e com isso acabarem com as escolas de artes. Onde a tónica de
então era colocada na “essência”, passou a ser hoje no “texto”, e com esta transforma-
ção iludiu-se o conhecimento artístico/pratico e sustentam-se teorias – textos que
tanto se produzem, mas que ninguém lê – e deixam-se os “professores” sem “obras”.

“Práxis e Poiesis: da prática artística à teoria artística” como processo e for-


ma para o desenvolvimento da criação: um caso paradigmático
Começarei por introduzir o grupo de investigação, que coordeno, como um exem-
plo que domino pela prática e que, de algum modo, reflete e serve, como ancora,
para este texto que procura problematizar uma parte dos produtores da arte con-
temporânea: os doutorados.

1253
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Com o desenvolvimento/ampliação das universidades (e sua conexão com o sistema


capitalista de financiamento de estado2) e consequente integração dos cursos de
arte – que saíram, em Portugal e de uma forma geral na Europa/Mundo Ocidental,
das Escolas Superiores3 - vemos todo o panorama de ensino e consequente forma-
ção da sociedade a ser transformado.

Temos, por toda a nossa sociedade, cada vez mais programas de doutoramentos –
no caso, falo objetivamente nas artes lato senso–, e parto para a discussão, mais es-
pecificamente, a partir da minha experiência como coordenador do grupo “Praxis e
Poiesis da prática à teoria artística” (P&P) com o objetivo de promover uma pesquisa
inter/trans-disciplinar. Pretende este grupo ser um centro na criação experimental
e original de projetos artísticos, individuais, coletivos e socialmente inclusivos, as-
sim como, desenvolver, explorar e estimular atividades e resultados de pesquisa em
áreas artísticas e tecnológicas subjacentes às práticas visuais e de artes cênicas dos
membros - do amplo grupo de pesquisadores e colaboradores.

Nos últimos anos, o grupo procurou fomentar uma discussão crítica e disseminar
conhecimentos no contexto dos Estudos Artísticos e Práxis. Entre 2013-2018, o gru-
po concluiu vários projetos de pesquisa de doutorado financiados, vários mestres e
alguns projetos de pós-doutorado - que iniciaram pesquisas nas áreas de crítica de
arte, fotografia, ciência e tecnologia, estudos de memória e neurociência, sociologia
da arte, ensino de artes, interação, realidade aumentada, cultura digital ou cultura
e tradição, representação em coleções culturais e científicas - apresentando-as em
conferências, publicando em revistas científicas nacionais e internacionais, produ-
zindo curadoria e participações em exposições e festivais de reconhecido impacto.

Procurei, enquanto coordenador, combinar redes através do Encontro Internacional


de Arte e Tecnologia - #ART4. No somatório de todas as edições5 trouxeram-se para

2 Que temos vindo a assistir ao desmantelamento das instituições, que no caso das Universidades Portu-
guesas se tornam em sistemas fundacionais (apesar de não caber aqui esta discussão pode-se encontrar
toda informação do processo nos sistemas de informação dos nossos dias – a começar pela www).
3 Parto do meu exemplo que me formei em Licenciatura em Artes Plásticas: Escultura, Escola Su-
perior de Belas-Artes do Porto (E.S.B.A.P.), Porto, 28 de junho, 1991. Esta mesma instituição agora é
designada como Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (F.B.A.U.P.).
4 Nestes últimos seis anos produzi/organizei em Portugal, conjuntamente com a Prof. Doutora Maria
Manuela Lopes (membro, até então, integrado do grupo P&P), três encontros - #14; #16; #18ART.
O Encontro Internacional #ART busca entrar em um ambiente ecossocial, politizado e culturalmente
desafiador em terreno instável, como a arte globalizada de hoje que vive com migração híbrida
miséria e excesso, trazendo para dentro do discurso do território da arte uma consciência social.
5 #18 O ART está a ser realizado na Universidade do Lisboa, 2019, sob o tema “DA ADMIRÁVEL OR-
DEM DAS COISAS: arte, emoção e tecnologia”; # 16 O ART foi realizado na Universidade do Porto, em
2017, sob o tema “ARTIS INTELLIGENTIA: Imaginando o Real”; # 14.ART foi realizado na Universidade
de Aveiro, em 2015, sob o tema “ARTE E DESENVOLVIMENTO HUMANO”.

1254
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Portugal excelentes exemplos de pesquisa nas artes, incluindo a participação de cer-


ca de 700 autores de mais de 30 países6.

Posso afirmar que as relações entre arte, ciência e tecnologia estão contaminando,
reconfigurando e transformando as várias camadas do sistema de arte, provocan-
do no sistema uma grande porosidade dos meios às formas. Vejo a condição do
fazer e do agir artístico, não como uma maneira de “resolver”, mas de complexificar
e, assim, tornar a sociedade consciente da sua missão ativa enquanto participativa
na discussão, em vez de estar apenas consciente e agir, ainda assim, apenas por
parte do indivíduo.

Através de organizações/comissariado de exposições7 em locais diversos (ora con-


vencionais ora menos convencionais) o P&P tem vindo a convocar vários pesqui-
sadores do grupo a intercetar obras práticas com outros artistas pesquisadores de
outros grupos, com o objetivo de ampliar a discussão e, consequentemente, a trans-
missão para a sociedade alargada do discurso - transmissão de conhecimento – da
arte contemporânea. Onde se procura explorar as artes visuais em vários domínios,
desde sua relação de comunicação com o espectador ou como um suporte esque-
mático para o design e arquitetura, e até seu poder ativista ou tendência social e
domínio arquivista em direção à vigilância tecnológica, gerenciamento e transfor-
mação física do ambiente - corpo individual e corpo social8.

6 O Encontro Internacional “#ART: busca analisar conceitos como: território e cultura; Materialida-
de e imaterialidade; Pensamento e ação; Memória e identidade, para confrontá-las com as novas
noções derivadas do pensamento contemporâneo - de meios computacionais, de colaboração,
compartilhamento | coautoria, do interator | usuário, sistema, virtualidade, artificialidade, simulação,
interface, hipertextualidade, onipresença e interatividade - articular e atualizar os discursos na área
de pesquisa e produção artística.
7 “Olhar e Experiência: Interferências no Arquivo”, no Museu de Penafiel, Penafiel (Portugal), 20 de Maio
a 11 de Julho 2017; “Enhancement: MAKING SENSE”, i3S Porto 2016; “Matéria e Media do Invisível: Ar-
queologia da Memória”, no Museu de Penafiel, Penafiel (Portugal), 12 de Março a 09 de Abril 2016. Etc.
8 Dessa forma, o grupo estruturou e desenvolveu o projeto de pesquisa e desenvolvimento
RAMPAP - Realidade Aumentada versus Realidade Aumentada e / exploratória), Projeto Art Ba-
sed em um laboratório de Anatomopatologia, que utiliza o olhar artístico aliado à tecnologia da
Realidade Aumentada para informar pesquisas médicas em anatomopatologia e questionar a
compreensão das relações corpo / saúde / identidade / memória (Apesar de não ter conseguido
o financiamento desejado, a pesquisa de suporte permitiu os resultados de uma participação
na conferência VAMR de Realidade Aumentada e Mista Virtual em Toronto 2016 e um capítulo
do livro Humanities as Science Matters).

1255
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Formas de contribuição para a Unidade de Investigação e consequente


transmissão de conhecimento
O ID+, Instituto de Investigação em Design, Media e Cultura9, é uma estrutura de
investigação ancorada em três instituições: a Universidade de Aveiro (Departamento
de Comunicação e Arte) [UA/DeCA], a Universidade do Porto (Faculdade de Belas
Artes) [FBAUP] e o Instituto Politécnico do Cávado e do Ave (Escola Superior de De-
sign) [IPCA/ESD]. As principais atividades do ID+ desenvolvem-se nos domínios do
Design, dos Media, da Arte e de outras áreas culturais, sendo composto por 68 mem-
bros integrado, 55 membros não-doutorados integrados, 31 colaboradores doutora-
dos e 18 colaboradores (dados de Dezembro de 2017).

Os elementos do P&P contribuíram ativamente para o desenvolvimento, a nível nacio-


nal e internacional, de novas metodologias de pesquisa, artefactos artísticos - como
resultados de pesquisa -, novas interfaces e novas aplicações tecnológicas incorpora-
das em performances de interação usando Human Computer Interface ou Biofeedback
e Realidade Aumentada. Com as explorações e reflexões do grupo, produziram novos
olhares em outras áreas científicas e tecnológicas que se traduzem em artefactos,
apresentações artísticas e propostas estéticas demonstradas em inúmeras curadorias,
participações em exposições, festivais e conferências de reconhecido impacto.

A participação em projetos de pesquisa internacionais, como Neuro Enhancement Res-


ponsible Research and Innovation (NERRI) e Art Making with Memory Matters, possibili-
tou uma colaboração ainda mais interdisciplinar e a criação de uma série de oficinas
e projetos de instalação ou performance artística, como Enhancement, Enhancing the
Mind’s I , Natureza ou Espaço Encantado, Platônia, Cortina de Fronteira, Sombras e Defini-
ções Emergentes ou de Caixa, exibidas em várias exposições internacionais10.

Os Doutoramentos...
Estes últimos anos permitiram a conclusão de várias teses de doutorado em diversas áre-
as, como imagem na arte e no cinema, estratégias narrativas em realidade aumentada,

9 Surge em 2007 e começou o seu funcionamento financiado em Janeiro de 2009, depois de uma
avaliação externa (a visita do painel internacional aconteceu em Fevereiro de 2008) que lhe atribuiu
a classificação de “Muito Bom”. Atualmente foi alvo de nova avaliação em Junho de 2019 reiterando
a sua classificação de “Muito Bom”.
10 Transdisciplinar FACTT, Festival Transnacional de Arte e Ciência, Lisboa Central Tejo, Escola de Artes
Visuais de Lisboa, Nova York e Cidade UNAM do México, 2017, “Arte em Neurociências”, Fábrica de Braço
de Prata, Lisboa, 2017, FACTORS 3.0 - Festival de Arte, Ciência e Tecnologia do RS, Santa Maria, Brasil 2016;
Exposição Internacional EmMeio 8.0, Museu Nacional da República, Brasília 2016; SULSAL, Fundação Ver-
beke, Bélgica 2016; Bienal de Arte, Ciência e Tecnologia de Zagreb, Kontejner, Zagreb, Croácia 2014; Ad-
mirável Mundo Novo, Casa da Música, 2015 ou Computer Art for All, Rio de Janeiro, Brasil, 2014.

1256
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

relações arte e ciência, imagem e importância das tecnologias na criação artística; estra-
tégias de arquivamento, práticas de memória e identidade; estudos culturais (estudos
de gênero e design); desempenho; arte e educação ou comunicação em plataformas
digitais. O que resultou em inúmeras publicações, apresentações em conferências e ex-
posições, tais como: Uma coisa entre muitas, Sala do Veado, Museu de História Natural
ou Rastreio, estúdio KN Sing, Farnham, Reino Unido, 2013. O investimento no tipo de
pesquisa interdisciplinar, fez com que o grupo conseguisse desenvolver um protótipo e
um contrato de pesquisa em 2015, com uma interface de sistema de entrada para cirur-
gia guiada por imagem com base em realidade aumentada (o acordo de 12 de março de
2015 é feito entre a EC Medical Limited & UA).

Devido às estreitas conexões do grupo com o Brasil, o grupo produziu um livro sobre
Raymundo Colares - Fundação de Arte de Niterói / Museu de Arte Contemporânea
de Niterói, 2013, e uma exposição sobre arte brasileira Exposição Do Outro Lado
(2015). Espaço Mira, Porto.

Os membros do grupo são reconhecidos como parte de membros científicos e edito-


riais de várias revistas nacionais e internacionais de arte / pesquisa, como: “F.A.Q. 5.0
- Revista Internacional de Interfaces Arte / Ciência / Comunicação ”; Estúdio (FBAUL
/ CIEBA); Gama (FBAUL / CIEBA); Croma - (FBAUL / CIEBA); #ART, Comissão Nacional
e Internacional; Vazantes do Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de
Cultura e Artes (ICA); DATJournal - Revista de Design, Arte e Tecnologia, São Paulo;
(Pensamiento), (palabra) e obra, UPN-BOGOTÁ; HAMUT’AY, Peru.

Outros membros do grupo são especialistas reconhecidos e fazem parte de várias con-
ferências internacionais de artes / pesquisa, como: Congresso Internacional CSO 2018,
(FBAUL); # .ART, Encontro Internacional de Arte e Tecnologia (2012 ...); ARTECH (Con-
ferência Internacional de Arte Digital e Eletrônica) (2006 ...); AVANCA | Conferência In-
ternacional CINEMA Cinema, Arte, Tecnologia, Comunicação (2011…); CONFIA (2013
...) Conferência Internacional de Ilustração e Animação (IPCA); Conferência CUMULUS
Aveiro 2014; CIMODE (2014 ...) Congresso Internacional de Moda e Design | Politecni-
co di Milano, Itália; CROSS MEDIA ARTS 2016, 1ª Conferência Internacional de Artes
Sociais e Transdisciplinaridade, Évora, 2016; 8º Congresso Internacional de Design da
Informação, CIDI 2017, Universidade Federal do Rio Grande do Norte; EAW17 (2017 ...)
Ventos Eletroacústicos da Conferência Internacional: SYNCHRESIS - Audio Vision Ta-
les, UA, 2017; UD15, UD16, UD17 Phd In Design Forum, Porto (2015…); VI SEMINÁRIO
NACIONAL DE PESQUISA EM ARTE E CULTURA VISUAL (Goiânia, Brasil) 2013.2014; PER-
FORMA’11 Encontros de Investigação em Performance, UA, 2011.2012.

A produção diversificada nos sistemas de pesquisa


O grupo investiga sobre Praxis e Poiesis Artística através de diversos meios, sendo
os investigadores provenientes de várias disciplinas e possuindo uma ampla gama

1257
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

de conhecimentos nos campos da arte. A pesquisa surge da investigação crítica, dos


corpos de conhecimento (através das metodologias híbridas) e dos meios emprega-
dos pelos criadores.

A exploração é feita em torno da produção, reflexão e disseminação de artes em


diversas formas materiais o que motiva e unifica esta comunidade. No entanto, as
perguntas feitas, os métodos e os resultados dessas diversas práticas diferem de
múltiplas formas: através da reflexão sobre pontos de vista críticos e filosóficos so-
bre práticas artísticas; através de pesquisas de estúdio / laboratório, oficinas; publi-
cações e apresentações, o grupo reconsidera os media, imagem, fotografia, filme,
desenho, escultura, pintura, vídeo e expressões híbridas dessas em instalações, apli-
cações interativas, performances, explorações de som e tempo, holografia, realidade
aumentada, modelação e impressão 3D.

Em última análise, todas as descobertas que derivam das diferentes formas de pes-
quisa e nos diferentes níveis de participação11 são relevantes para a prática artística
e contribuem para o fortalecimento da qualidade da educação nas universidades
implicadas no grupo de investigação - os membros do P&P participam numa ampla
gama de projetos exploratórios e/ou escolásticos, práticas e colaborações.

Todas as conclusões e todo os artefactos que derivam das diferentes formas de


pesquisa e nos diferentes níveis são de importância crucial para a prática artística
e contribuirão para o fortalecimento da qualidade da educação nas universidades
implicadas na Unidade ID+.

O cluster P&P é composto por vinte pesquisadores de diferentes departamentos, pa-


íses e especialização profissional, com resultados que incluem exposições de traba-
lhos (abrangendo uma ampla variedade de práticas de belas-artes lato-senso artes
visuais - instalação, desenho, média digital, sonic noise, performance, design gráfico,
pintura, escultura, modelagem e impressão 3d, projetos de arquitetura, arte pública,
publicações (catálogos de exposições, livros, artigos, revistas), residências e projetos
de curadoria, oficinas, presidência de conferências e organização de festivais.

Os membros do PP se envolvem em uma ampla gama de bolsas, práticas e projetos


de colaboração nas seguintes áreas de ação:

- PRAXIS / POIESIS - promove a prática como pesquisa e a pesquisa como prática,


reconhecendo um conjunto intrincado de forças, levando-nos simultaneamente em
direção a formas disciplinadas de entender e moldar o mundo em que habitamos.

11 O grupo encontra-se regularmente para colaborar e discutir os projetos em curso, desenvolven-


do um vocabulário e uma estrutura conceptual comum, nutrindo as explorações com contributos
artísticos e científicos.

1258
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Criamos, olhamos, refletimos, escrevemos e exploramos sempre solicitando formas


práticas, compromissos e processos. Indo além de qualquer divisão da prática / te-
oria, o grupo considera uma noção fluida de prática e teoria (teoria da prática), na
qual os dois estão inextricavelmente entrelaçados, um alimentando o outro, sempre
intrinsecamente colocado em uma prática do pensamento e em um pensamento
da prática;

- DIVULGAÇÃO - organiza e participa amplamente de exposições e eventos relacio-


nados, desde exposições individuais e coletivas, publicação de uma variedade de
pesquisas e inclusive envolvimento contínuo com o Museu Santa Joana Princesa,
Museu de Penafiel, Binaural, Cultivamos Cultura, Ectopia, etc. O grupo também con-
tribui para o programa de exposições e eventos de pesquisa na UA Gallery, que está
diretamente envolvida com o Mestrado em Criação Artística Contemporânea dos
EUA e apoia a graduação mais ampla (no ISCE e IPP) e o ensino de pós-graduação
(UA, FBAUP) em todo o mundo;

- FORUM - tem uma visão abrangente da prática e reflete nela reunindo praticantes
de arte e design, teóricos, escritores e curadores da Universidade de Aveiro, Faculda-
de de Belas Artes da Universidade do Porto e ISCE Douro, envolvendo também cola-
borações com vários parceiros de toda a e fora da academia. O Fórum P&P (Reunindo
Profissionais, Teóricos e Curadores, Indústrias Culturais e Multimídia e Stakeholders)
é constituído pelo “Programa de Oradores Convidados” (pelo MCAC-UA) e pelo “DAM
Talks– Conversas D´ouro” (pelo ISCE-Douro);

- APRENDIZAGEM - apoia um ambiente interdisciplinar, liderado por pesquisa, para


pesquisas de mestrado e doutorado baseadas na prática e teóricas na área expandi-
da das artes - incluindo pesquisas sobre entrelaçamento arte / ciência, artes visuais,
design multimídia, curadoria de arte, estudos de cinema e cultura estudos). Projetos
de pesquisa de doutorado recentes incluem compromissos com Estratégias de Ar-
quivo e Estudos de Demência, Realidade Virtual / Aumentada, Imagem e Paisagem
em Arte Visual, Fotografia e Cinema, A ação performativa e o idiorrítmico na cons-
trução de relações com a cidade e a exploração da arte internacional e prática de
design;

- ENGAJAMENTO - nosso Grupo de Pesquisa está comprometido em promover um


papel na esfera pública, buscando compromissos por meio de eventos públicos, ex-
posições, projetos colaborativos e sustentando uma série de parcerias mutuamente
benéficas com organizações públicas. Isso inclui galerias, museus, conselhos muni-
cipais, organizações artísticas, associações culturais, programas de residência, em-
presas de multimídia e design, festivais, periódicos e instituições de caridade, cujas
atividades podem beneficiar diversos grupos sociais localmente, nacionalmente e
em todo o mundo.

1259
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Considerações finais: a contribuição da prática para a teoria da arte


contemporânea
A pesquisa artística é distinguível de outras formas de pesquisa acadêmica pelo pa-
pel central da prática artística. A questão da pesquisa deriva da prática artística do
artista-pesquisador, os métodos de pesquisa são caracterizados pelo uso da prática
e materiais artísticos, e os resultados do projeto de pesquisa contribuem tanto para
a prática artística (quer em termos gerais quer em termos individuais) como para o
discurso acadêmico/artístico. Isto porque a pesquisa artística é realizada por artistas-
-pesquisadores, e isso produz conhecimentos, experiências e entendimento que di-
ficilmente são obtidos por qualquer outro meio. Esses conhecimentos manifestam-
-se nas obras de arte e nas próprias práticas artísticas. Sob essas diretrizes esse fluxo
de pesquisa contribui para alimentar a maioria das atividades de praxis e poieses.

Os sistemas atuais em que as Universidades estão inseridos, estão por demais depen-
dentes de um auto-financiamento, que tem consequências nefastas para as áreas que
não se pautam por bens ou serviços que se possam traduzir, de forma imediata, em
ganhos financeiros ou sistemas correlacionáveis com a industria (apesar de ser ter “in-
ventado” a ideia de “indústria cultural” – que em si é um oxímoron). Pela forma, como
espero ter demonstrado, os ditos investigadores/pesquisadores/professores estão
ocupados em fazer as unidades de investigação “funcionar” para poderem ter algum
acesso a financiamento publico – um pouco à laia de “subsidio” – quando o serviço
prestado é efetivamente de serviço publico ao mais alto nível. No caso das artes, este
sentido de serviço púbico é ainda mais agravado porque na realidade não se ensina a
ser artista e se não for o espírito livre da investigação criativa – na forma e nos métodos
– caímos no risco de ver a praxis e a poieses a entrarem nas doutorizações e a perde-
rem a frescura e a diferença pela qual se pauta a própria noção de cultura.

Bibliografia:
Arnheim, R. (1974), Visual Thinking, California: University of California Press.

Baudrillard, J. (1997), Art and Artefact, Zurbrugg, Nicholas (ed.), Londres: SAGE.

Earnshaw, R. (2016). Research and development in Art, Design and Criativity,


Switzerland: Spinger.

Enciclopédia Einaudi (1992), Criatividade – Visão, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa


da Moeda, vol. 25.

1260
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Foster, H. (1996), The Return of the Real: the Avant-Garde at the End of the Century,
Cambridge: MIT Press.

Foulcault, M. (1979), «What Is an Author?», in Harari, Josue V., Textual Strategies:


Perspectives In Post-Structuralist Criticism, Londres: Methuen, , pp.141-160.

Getlein, M. (2010). Living with art, New York: McGraw-Hill.

1261
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Rodolfo Ward1
Transmutações sociais: novas tecnologias, concepções de
mundo, novos regimes de verdade e a necessidade de um
reencontro com a Natureza
Social Transmutations: New Technologies, Worldviews, New Regimes of Truth, and
the Need for a Reunion with Nature

Resumo
O presente artigo tem por objeto relatar teoricamente o processo de criação
artística da animação gráfica e sonorização de 12 fotografias produzidas nas
cidades brasileiras de Brasília-Distrito Federal, Olhos D´Água-Goiás, Jaguarão-
-Rio Grande do Sul e a cidade Uruguaia de Rio Claro, durante o ano de 2018,
e apresentadas como resultado imagético do projeto de pesquisa em nível de
mestrado, no Instituto de Artes – IDA-UnB, no ano de 2019. O resultado desse
experimento foi transformado em vídeo arte e submetido como obra para com-
por a exposição do #18.ART. Nesta nova proposta, que é a continuidade de pen-
samento do trabalho fotográfico estático propomos o uso da tecnologia para
animar as fotografias, criando fluxos gráficos visíveis e fluxos sonoros invisíveis
com intuito de compor outro evento estético e outra forma de interação afetiva
e sensitiva entre a obra artística e o observador.
Palavras-chave: Fotografia Contemporânea, Teoria dos Afetos, Arte e Tecnologia,
Vídeo Arte, Observador.

Abstract/resumen/resumé
This article aims to report the process of artistic creation of graphic animation and
sound of 12 photographs produced in the Brazilian cities of Brasilia-Federal District,
Olhos D’Agua-Goiás, Jaguarão-Rio Grande do Sul and the Uruguayan city of Rio Cla-
ro. , during the year 2018, and presented as an imaginary result of the master’s level
research project at the Art Institute - IDA-UnB, in 2019. The result of this experiment
was transformed into video art and submitted as a work to compose. the exposure
of the # 18.ART. In this new proposal, which is the continuity of thought of static
photographic work, we propose the use of technology to animate photographs,

1 Programador Visual da Universidade de Brasília-UnB. Doutorando em Artes Visuais na linha de pes-


quisa: Arte e Tecnologia e Mestre em Arte Contemporânea pelo Instituto de Artes - IDA/UnB (2019).
Pós-Graduado em Análise Política e Políticas Públicas pelo Instituto de Ciência Política - IPOL/UnB
(2018) e Pós-graduando em Relações Internacional IREL/UnB (2019).

1262
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

creating visible graphic streams and invisible sound streams in order to compose
another aesthetic event and another form of affective and sensitive interaction be-
tween the work. artist and the observer.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: Contemporary Photography, Theory of Affections,
Art and Technology, Video Art, Observer.

Introdução
O presente artigo2 tem por objeto relatar teoricamente o processo de criação artís-
tica da animação gráfica e sonorização de 12 fotografias produzidas nas cidades de
Brasília-DF, Olhos D´Água-GO, Jaguarão-RS e Rio Claro-Uruguai, no ano de 2018, e
apresentadas como resultado imagético do projeto de pesquisa em nível de mestra-
do, no Instituto de Artes – IDA-UnB. O resultado desse experimento foi transformado
em vídeo arte e submetido como obra para compor a exposição do #18.ART. Nesta
nova proposta, que é a continuidade de pensamento do trabalho fotográfico estáti-
co propomos o uso da tecnologia para animar as fotografias, criando fluxos gráficos
visíveis e fluxos sonoros invisíveis com intuito de compor outro evento estético e
outra forma de interação afetiva e sensitiva entre a obra artística e o observador.
Nesse sentindo as animações são apresentadas em um suporte tecnológico afim de
articular o simbólico em um novo microssistema sinérgico onde a função poética
revela visualmente as irradiações de energias e forças vitais que, análogas ao som,
operam em nós para além do visível e do plano físico, propondo um novo olhar para
o plano quântico e novas perspectivas para as relações humanas, sociais e questões
ambientais, sendo o contato com a natureza e culturas tradicionais uma possibili-
dade para novas formas de viver o Eu, ou, um reencontro com a natureza. A Vídeo
Arte foi transformada em uma narrativa visual com adição de diversos componentes
sonoros produzidos a partir de músicas e sons colhidos da internet e captados por
meio do microfone do dispositivo celular. Posteriormente foram mixados e transfor-
mados em uma única faixa sonora que compões a narrativa da vídeo arte.

Para uma melhor compreensão do leitor sobre a temática abordada por esse artigo
iremos iniciar o texto trazendo conceitos filosóficos, científicos e artístiscos de Deleuze
e Guatarri (1992) que irão contribuir para melhor compreensão sobre a teoria dos afe-
tos. Essa teoria é fundamental para compreendermos como se dá a criação artística na
contemporaneidade, principalmente, dentro da linha de pesquisa, arte e tecnologia.

Após apresentar a teoria dos afetos iremos trabalhar conceitos sobre a imagem na
contemporaneidade e como elas se relacionam com os objetos técnicos e conse-

2 O presente artigo recebeu financimanto por meio do edital 01/2019 do Fundo de Amparo a Pes-
quisa do Distrito Federal – FAPDF e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais PPGAV/UnB.
Agradecemos a essas duas Entidades que apoiam a pesquisa no Distrito Federal.

1263
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

quentemente com o observador na atualidade. Esse conhecimento se faz necessário


para que haja entendimento sobre o porque das escolhas tecnológicas deste tra-
balho. Por fim iremos apresentar o resultado imagético das fotografias estáticas, o
processo de criação artística e a vídeo arte.

Filosofia, Ciência e Arte: introdução a teoria dos afetos


Para Deleuze3 e Guattari4 (1992) a filosofia inventa conceitos para resolver proble-
mas relativos a acontecimentos da vida. Por esse viés entendemos que os conceitos
são imanentes e devem ser criados para cada acontecimento específico. Os auto-
res explicam que “a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos”,
sendo necessário determinar “uma hora, uma ocasião, circunstâncias, paisagens e
personagens, condições e incógnitas da questão” (1992, p. 10) do acontecimento
que pretendemos solucionar.

Para que os conceitos sejam formulados com potência e possam ser assimilados pe-
los “outros” é necessário compor um cenário de formulação filosófica. Dentro deste
cenário deve-se criar diálogos com personagens conceituais que irão proporcionar a
evolução e a consistência do conceito. A composição do cenário e os componentes
do cenário são importantes uma vez que cada corpo possui capacidade singular de
afetar outro corpo em um determinado momento.

É necessário criar uma espécie de teatralização sobre o acontecimento para a criação


do conceito e não apenas aceitar passivamente conceitos milagrosos.

“os filósofos não devem mais contentar-se em aceitar os conceitos que lhes são dados, para somente
limpá-los e fazê-los reluzir, mas é necessário que eles comecem por fabricá-los, criá-los, afirmá-los,
persuadindo Sobre a relação da amizade com a possibilidade de pensar, no mundo moderno, os
homens a utilizá-los. Até o presente momento, tudo somado, cada um tinha confiança em seus

3 Devido à época em que o autor escreveu o livro O Que é Filosofia, 1991, com 70 anos de idade,
Deleuze enfatiza que a filosofia só é compreendida com sobriedade em determinado momento da
vida, um momento tardio, da velhice. O autor faleceu em 1995. Desde 1992, seus pulmões, afetados
por um câncer, funcionavam com um terço da capacidade. Em 1995, só respirava com a ajuda de
aparelhos. Sem poder realizar seu trabalho, Deleuze atirou-se pela janela do seu apartamento em
Paris, em 4 de novembro de 1995. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Gilles_Deleuze>.
Acesso: 18/07/2019.
4 Foi um filósofo, psicanalista e militante revolucionário francês praticamente autodidata que não
chegou a cumprir a burocracia de nenhum título universitário. Produziu uma grande quantidade de
textos, relacionou-se de forma produtiva com muitas das figuras mais importantes das ultimas três
duas ou quatro décadas, militou política e ativamente tanto nas organizações tradicionais, como na
maioria das alternativas importantes do seu tempo cronológico, foi criador de uma série de movi-
mentos e fundador de uma série de dispositivos políticos que tiveram um papel importantíssimo
nas tentativas de transformação do que é o mundo moderno e pós-moderno. Disponível em: < ht-
tps://pt.wikipedia.org/wiki/F%C3%A9lix_Guattari>. Acesso: 18/07/2019.

1264
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

conceitos, como num dote miraculoso vindo de algum mundo igualmente miraculoso” (NIETZCHE
APUD DELEUZE, GUATTARI, 2010, p.11-12).

Os personagens conceituais dos quais os autores se referem seriam criações imagé-


ticas de “amigos”, no plano imaginário, aos quais confidenciaríamos e confiaríamos
nossas ideias e pensamentos, contudo, sempre desconfiando desse suposto amigo
para mantermos nossa liberdade criativa, de pensamento e de análise. Outra pos-
sibilidade de formulação filosófica seria a confrontação de determinado problema
com um suposto inimigo, como um desafio, que instigue a evolução ou mutação e
potencialize a formulação filosófica de conceitos. Sob esse prisma Deleuze e Guatar-
ri (1992, p 13) afirmam que o filósofo “é conceito em potência”.

Se o filósofo é conceito em potência e o conceito é imanente ao ser podemos chegar


a conclusão que cada indivíduo é capaz de criar seu próprio conceito. Por essa lógica
entendemos que não existe um conceito único, universal. Também podemos afirmar
que os conceitos são formados por múltiplos componentes, sendo o momento um
deles. Os múltiplos componentes se unem em um determinado momento para criar
uma experiência que irá afetar cada corpo de uma forma diferente. Como resultado
de cada uma dessas novas experiências, novas sensações, novos mundos são criados.

Por meio da análise do pensamento dos autores chegamos à conclusão que a reali-
dade é múltipla e complexa que por sua vez cria um mundo múltiplo e complexo. E,
a “ideia de que o conceito é questão de articulação, corte e superposição” (1992, p.
27) do emaranhado de conhecimentos e ideias que formam a realidade. Com esse
pensamento complexo que se forma e movimenta rizomáticamente Deleuze e Gua-
tari (1992) rompem com a analogia da árvore do conhecimento do século XVII, de
Decartes. A famosa imagem da árvore do conhecimento é composta por raízes que
representam o pensamento metafísico, o tronco a filosofia e a partir dele as ramifica-
ções dos saberes em suas várias ciências.

Deleuze e Guattari (1992) distinguem de forma clara ao mesmo tempo em que colo-
cam no mesmo nível os três tipos de pensamentos. O artístico, o filosófico e o cientifi-
co. Para os autores o pensamento filosófico é diferente do pensamento artístico, que
por sua vez é diferente do pensamento cientifico. Essa última forma de pensamento
cria funções cientificas. O pensamento filosófico cria conceitos existenciais para eman-
cipar o indivíduo sobre os diversos problemas relacionados à vida e o pensamento
artístico cria pensamento por meio de um bloco de sensações, um composto de “per-
ceptos e afectos” que após criados passam a existir em si mesmo. Os afectos são preci-
samente devires não humanos do homem e os perceptos são paisagens não humanas
da natureza. Torna o observador parte do composto de sensações.

Os perceptos e afectos após criados deixam de ser percepções ou sentimentos, pois


evoluem e se tornam independentes dos componentes (artista, modelo, personagem,

1265
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

criador, espectador, auditor) e do momento em que foram criados. Para sua criação é
necessário o artista, entretanto, sua sobrevivência não está mais ligada a este e sim a
duração do seu suporte e materiais constitutivos. A única lei da criação é que o com-
posto de afectos e perceptos deve ficar em pé sozinho para que se eternize.

“É de toda a arte que seria preciso dizer: o artista é mos-trador de afectos, inventor de afectos, cria-
dorde afectos, em relação com os perceptos ou as visões que nos dá. Não é somente em sua obra
que ele os cria, ele os dá para nós e nos faz transformamos com eles, ele nos apanha no composto”.
(DELEUZE E GUATARRI, 1992, p. 227)

O nosso corpo sofre modificações a partir de encontros com outros corpos que se tor-
nam impressões ou imagens chamadas de afectos. Para os autores a mente está unida ao
corpo. É necessário e extremamente saber distinguir o afeto do corpo que o afetou e não
ligar determinado afeto a determinado corpo pois cada corpo afeta de forma diferente
outro corpo. Um grande erro que cometemos é associar a imagem da minha alegria a
imagem do corpo que me afetou. Pois com vimos cada momento e cada experiências
são diferentes. Afeto é a variação da nossa potência de agir e pode ser mais potente, que
seria a felicidade e menos potente, que seria a tristeza. Um corpo pode afetar de forma
mais potente em um determinado momento e menos potente em outro momento.

Afeto é o que me afeta. É o que me move. O desejo, a alegria, a tristeza e suas várias
ramificações como a inveja, a soberba, o amor, a paixão. Através da experimentação
de corpos podemos conhecer diferentes tipos de afetos. O pensamento artístico con-
segue transforma as percepções em perceptos que criam afectos e se eternizam. A arte
libera a vida aprisionada, quebra o hábito, propõe novas composições de afetos para
o corpo e para a mente que passam a se sentir de outro jeito, liberta uma vida en-
tristecida, ou, pode entristecer uma vida alegre. O artista na contemporaneidade tem
buscado novas formas, formas tecnológicas, para produzir diferentes afetos.

A criação artística possui a capacidade de criar um bloco de sensações e afetar o


outro criando um momento que se conserva e passa a existir em si, de forma in-
dependente. É esse pensamento que nos interessa nessa pesquisa. A arte é o que
resiste a morte. Ao unir elementos artísticos com elementos filosóficos Deleuze e
Guattari (1992) propõem um novo olhar e novas possibilidades para criação de con-
ceitos que fogem da passividade e mera repetição de teorias e conceitos já criados e
estabelecidos como verdade. A liberdade humana vem da através do conhecimento
dos afetos. Para isso é importante saber como produzir afetos. É necessário entender
como as imagens produzem afetos.

As imagens na contemporaneidade
Ao abordar a evolução imagética dentro das teorias da imagem, podemos relacio-
nar a imagem do registro fotográfico moderno com a primeira dimensão do estudo

1266
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

de Brea (2010), que está ligada à imagem-matéria. Essa imagem encarnada recria
o mundo estático e durável e está ligada à verdade que recria o mundo estático e
durável, sendo ligada à verdade. Representada pelas artes tradicionais, nos artefatos,
na imagem-objeto, na imagem da pintura e da escultura. São imagens únicas, singu-
lares, que nos prometem a individualização e incorporam, encarnam a promessa de
permanência, da memória, impedindo a passagem do tempo e que sempre poderá
ser resgatada. O regime técnico de produção da imagem-matéria aprisiona-a, inscre-
ve-a em seu próprio suporte; essa imagem é soldada ao suporte. Indissoluvelmente
apegada a sua forma materializada. A imagem-matéria é uma imagem “encarnada”.
Na segunda dimensão de sua investigação, Brea (2010) fala sobre a era da imagem-
-filme, que seria a era da imagem reprodutiva, dinâmica, imagem-movimento, que
não se recupera sendo impermanente e passageira, sendo ligada a um modelo eco-
nômico de distribuição e a um tipo de memória retiniana (REM).

Rouillé (2013) também aborda a questão. Se tradicionalmente a história memorizava


documentos do passado e os transformava em monumentos, hoje seria o inverso,
os monumentos são transformados em documentos. Esse é o eixo central da crise
fotografia-documento, que oscila entre a lógica documental única e verticalizada e
a lógica documental múltipla, móvel e fluida à qual a sociedade e a arte do século
XXI5 estão incorporadas.

A terceira dimensão do estudo de Brea (2010) refere-se às e-imagens, que são ima-
gens que representam uma nova concepção metafísica em um espaço-tempo que
já não é o nosso. Essas e-imagens – ou imagens fantasma, ou imagens-tempo – são
imagens instantâneas que não têm nenhum original, sendo produzidas ilimitada-
mente dentro de um sistema de memória RAM, sendo criadas com o objetivo es-
pecífico de serem compartilhadas pelas comunidades de usuários das redes infor-
macionais distantes dos regimes de propriedade e distribuição e muitas vezes da
própria arte e dos modelos econômicos.

Fernandes (2006) traz um pensamento interessante para o entendimento dos vetores


e das variáveis que cercam a produção fotográfica contemporânea. O autor apresenta
o conceito denominado “fotografia expandida” para explicar as novas potencialidades
da fotografia contemporânea, como a quebra das barreiras na produção, o hibridismo

5 Venturelli (2004) entende que os avanços tecnológicos proporcionaram novas formas de se fa-
zer arte e que as vanguardas dos movimentos artísticos buscaram incorporar novas técnicas e fer-
ramentas em suas criações. Explicita que os movimentos artísticos do século XX, de modo geral,
introduziram na arte o desejo pelo novo e rejeitaram cânones de uma tradição determinada pela
classe burguesa. Por novas tecnologias entende-se a fotografia, o cinema e o vídeo, e por tecnolo-
gias contemporâneas, as computacionais. Venturelli (2016) complementa que uma das principais
características da arte do século XXI é a liberdade em relação a todo controle autoritário em prescre-
ver normas racionais pela estética e tem como objetivo desenvolver na estética a força da reflexão e,
assim, romper com a alienação das massas.

1267
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

das manifestações imagéticas, novos suportes para a imagem, a ênfase na importân-


cia do processo de criação e nos procedimentos utilizados pelo artista que, nesta linha,
busca a ampliação da sua área de atuação na linguagem e na representação fotográ-
fica, o que exige também um espectador com capacidade de leitura diferenciada das
imagens, uma vez que o produto fotográfico carrega metadados do seu processo de
criação e precisa ser interpretado. O autor explica que o conceito é uma adaptação do
termo original, “cinema expandido”6, cunhado para o cinema com o objetivo de expli-
car as novas possibilidades dessa linguagem.

A produção contemporânea tem seu diferencial porque, quero entender, vivemos uma saudável
crise: de um lado, vemos um esgotamento das artes plásticas tradicionais, e, do outro, temos um
novo momento tecnológico em termos de produção imagética, no qual predomina a imagem di-
gital. Essa crise é, em parte, responsável pelo interesse despertado pela fotografia – seja pelos mu-
seus e galerias, seja pelos colecionadores, pelos artistas visuais, que estão aprendendo (de novo) a
incorporá-la em seu trabalho, seja pelos próprios fotógrafos, que estão trilhando outros caminhos
para concretizar sua produção e circulação de imagens fotográficas (FERNANDES, 2006, p. 11).

O dispositivo fotográfico contemporâneo – seja a máquina fotográfica seja o dispo-


sitivo acoplado a aparelhos de telefone móveis – já vem com algumas programa-
ções predefinidas de fabricação, como a programação para se criar “pintura de luz”
(Huawei Mate 9, dispositivo celular utilizado nesta pesquisa com duas lentes Leica
nele acoplados). Essa técnica fotográfica consiste em se deixar o obturador aberto
captando luz, ou seja, em um processo de captura da luz para construção de uma
determinada imagem. Ao pensarmos nesse mecanismo de captura da luz, podemos
relacionar a uma extensão do nosso próprio olho.

De acordo com Grigoletti (2006), o olho humano é capaz de se adaptar a baixas


luminâncias: “Para o olho acomodar-se à escuridão são necessários cerca de 30 mi-
nutos”. Poderíamos dizer que o ser humano também tem programações já prede-
finidas de fábrica? E também podemos pensar no conceito de coautoria homem-
máquina? Entendemos que o dispositivo fotográfico acoplado ao aparelho celular
móvel é uma tecnologia de expansão de qualidades e estruturas de funcionamen-
to tanto do olho humano quanto do cérebro que guarda a memória. Essa tentati-
va de ler a máquina por meio do organismo conversa com o estudo iniciado por
Georges Canguilhem (1952, p. 124), que pretendia criar uma “filosofia biológica da
técnica” para “compreender a própria construção da máquina a partir da estrutura
e funcionamento do organismo”.

6 Esse termo busca “explorar as novas mensagens que existem no cinema e examinar algumas das
novas tecnologias de produzir imagens que prometem estender as capacidades perceptivas do ho-
mem além de suas já extravagantes experiências visuais” (YOUNGBLOOD, 1970, p. 41).

1268
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Os objetos técnicos
Para entendermos as atuais discussões sobre fotografia contemporânea dentro da
linha de pesquisa arte e tecnologia, temos de adentrar no pensamento de Simon-
don. Não pretendemos exaurir a complexidade do pensamento a respeito da evo-
lução dos objetos técnicos, queremos elucidar questões relativas à interação entre
homem e aparelho. Não pretendemos nos aprofundar no pensamento de Simondon
(1989), entretanto se faz necessário resgatar o pensamento deste autor, em específi-
co o conceito sobre a interação humana com a tecnologia.

Simondon (1989) dá continuidade ao pensamento de seu professor, Canguilhem,


e baseia sua reflexão em três problemas fundamentais que, de acordo com Lopes
(2015, p. 308-309), são “(1) o sentido do objeto técnico enquanto ser técnico, pen-
sado geneticamente, (2) o que implica pensar também sua evolução e (3) a questão
de sua origem absoluta no interior da invenção vital” dos objetos técnicos, instru-
mentos, máquinas, aparelhos. Ao analisar o “objeto técnico” enquanto “ser” técnico, o
autor apropria-se e baseia-se inicialmente no “método genético”, que implica pensar
a evolução dos objetos técnicos e sua origem.

Para Simondon (1989), o objeto técnico foi inventado naturalmente sem ter correla-
ção com fatores econômicos, sociais e culturais. Ele associa a evolução dos objetos
técnicos à evolução humana, como uma evolução conjunta e natural. Ele atribui aos
objetos uma gênese própria, separada da gênese do ser humano. Nesse processo de
atribuir uma gênese própria ao objeto técnico, o autor lhe atribui autonomia para
que se tornem um “ser” técnico, que evolui e se desenvolve por meio de convergên-
cia e adaptação. Como diz Simondon (1989, p. 20), “o ser técnico evolui por conver-
gência e por adaptação a si; ele se unifica interiormente segundo um princípio de
ressonância interna”.

A partir da fusão entre os pensamentos Canguilhem e Simondon, entendemos que a


máquina fotográfica pode ter evoluído ao adaptar as necessidades tanto visuais quan-
to tecnológicas da sociedade contemporânea, convergindo com outros dispositivos
tecnológicos mais atuais e poderosos, como o smartphone. Em Flusser as máquinas
eram poderosas em razão do tamanho; na contemporaneidade, percebemos uma cer-
ta inversão em que os dispositivos móveis têm se tornado menores e mais poderosos.
As grandes máquinas ainda têm seu espaço, entretanto são caras e possuem pouca
mobilidade, o que as coloca em segundo plano na atual sociedade, podendo ser clas-
sificadas, em alguns casos na fotografia, como equipamentos artesanais.

Um dos principais pensamentos na teoria de Simondon (1989) é quando ele diz que
a ideia de oposição entre cultura e técnica é falsa, da mesma forma que a oposição
entre homem e máquina também é falsa. Essa “ignorância” em relação à natureza
das máquinas e ao conhecimento técnico seria uma das causa do mal-estar recor-

1269
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

rente na sociedade contemporânea e que de certa forma resultaria na tecnofilia e na


tecnofobia: enquanto uns querem acompanhar o fluxo tecnológico e impedir sua
obsolescência, outros, conservadores, não assimilariam as inovações tecnológicas.

Animação das Fotografias: um novo evento estético


Após toda a conceituação teórica iremos adentrar na criação artística. A criação
artística deste trabalho foi realizada em coautoria homem-aparelho. Nos meus ex-
perimentos fotográficos noturnos, utilizei a predefinição de pintura com a luz, a
programação inata do meu dispositivo celular. O fator imprevisibilidade tem me pro-
porcionado resultados imagéticos acima das minhas expectativas. É na interação, na
relação ser humano com a tecnologia que se define a fusão entre corpo biológico e
objeto técnico. A tecnologia amplia significantemente o processo criativo em arte, e
a partir daí temos trabalhado em uma nova linguagem originada na interação e na
criação em coautoria com a câmera do dispositivo celular e outras funcionalidades
do próprio celular, como o contador de passos, o GPS, a programação de edição de
imagens e sua conectividade com as redes sociais.

Por esse prisma, foi construída esta pesquisa, que é uma espécie de experimentação
com o dispositivo fotográfico utilizando as potencialidades tecnológicas que ele me
permite, sendo a mobilidade um deles, ao mesmo tempo que derivo por lugares
desconhecidos e trabalho em coautoria homem-máquina.

Na atual pesquisa com fotografia, busco criar à borda do real e do ficcional, emba-
sado de forte contexto social, ao mesmo tempo em que utilizo a programação de
pintura com a luz ou com baixa velocidade do meu dispositivo móvel, criando um
trabalho em coautoria homem-aparelho, em que nós freamos o tempo aprisionando
não apenas uma fração de segundos como a concepção tradicional de fotografia,
mas subvertemos minutos em uma imagem.

Dessa forma, criei uma narrativa artística por meio de uma análise crítica e de resis-
tência como um possível processo contra-hegemônico tanto da imagem quanto das
formações sociais, da estética renascentista e kantiana, do pensamento mercado-
lógico para me aproximar do processo de criação consciente de fotografia artística,
que me coloca dentro do campo da arte.

Nessa fase da pesquisa, interessei-me em registrar o fluxo de pessoas por meios dos
rastros luminosos deixados pelo deslocamento delas tendo como pano de fundo lo-
calidades conhecidas e características de Brasília_DF. Essas imagens tinham a inten-
ção de trazer reflexão para a questão da temporalidade na fotografia e demonstram
como o registro fotodocumental contemporâneo utiliza a tecnologia para constru-
ção de narrativas ficcionais sobre a realidade.

1270
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Imagem 1. Fluxus (2018). Fotografia de Rodolfo Ward

Realizei um registro do Eixo Monumental, em Brasília-DF, com meu dispositivo ce-


lular Huawei Mate 9, no qual podemos ver um intenso fluxo de pessoas por meio
dos rastros luminosos deixados pelos faróis dos automóveis. É interessante pensar
que estou registrando pessoas, histórias, momentos, sentimentos de um recorte do
espaço e um fragmento expandido do tempo. Além de registrar pessoas por rastros
luminosos deixados na imagem.

Imagem 2. R.I.P. Democracia (2018)

1271
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Durante uma residência artística eu pude aperfeiçoar minha técnica. Após a fotografia
do cemitério em Olhos D´água-GO, mudei minha visão sobre esse projeto. A potência
da imagem, a quantidade de informações e a beleza estética da imagem me moti-
varam a testar mais e mais. Ter produzido essa fotografia com um celular, utilizando
pedras e tijolos como tripé, de forma totalmente precária, sozinho, à noite, em um ce-
mitério, me fizeram recuperar o gosto pela fotografia. Foi importante derivar por cida-
des desconhecidas, ou por locais desconhecidos de Brasília, ou conhecidos apenas de
dia. Um lugar à luz do dia é completamente diferente à noite. Por inúmeras questões,
dentre elas o perigo. São fotografias mais sensuais, que convidam para um passeio
noturno, por lugares desertos, nunca dizem tudo que querem e sempre querem mais.

O experimento tornou-se interessante, o improviso, a gambiarra do tripé, a falta de


controle sobre a imagem que estava se formando, o clima chuvoso, me levaram a
fazer outros testes. Aumentei o tempo de exposição para 5 minutos. A exposição
prolongada revelou uma imagem com luminâncias que meu olho não conseguia
ver, tanto no céu quanto nos reflexos de luz na grama. Essa inversão do total con-
trole sobre a criação da imagem – que no fotodocumetarismo, no fotojornalismo ou
na fotografia publicitária são primordiais – me mostrou novas potencialidades para
minha criação artística. O controle sobre a imagem deixou de ser meu objetivo e foi
substituído pelo mistério de qual imagem será revelada.

O mistério proporcionou-me uma nova relação com a minha criação artística, instigan-
do-me na criação dessas imagens. A expectativa, a dúvida, a falta de controle sobre a
imagem tornaram-se um motivador nessa produção autoral. Os resultados, que inicial-
mente pareciam sem nenhum sentido ou não tinham muita pretensão, ultrapassaram
minhas expectativas ao criar imagens interessantes e que dizem exatamente o que
penso. A estética sombria, a perspectiva torta, a luz florescente que aparentemente
surge de fora da imagem refletindo no verde das plantas e iluminando a casa como
algo sobrenatural ou espiritual tornam a imagem mais potente e sedutora do que uma
fotografia dessa mesma casa feita de dia com toda a técnica e equipamentos de última
geração. Criamos uma imagem potente, misteriosa e sedutora.

Após esperar alguns minutos captando a imagem, cheguei ao resultado mostrado a


seguir na Imagem 22. A natureza brilhando com esse verde fosforescente que pare-
ce vivo, parece manipulado por Photoshop. Eu sabia que a natureza queria me dizer
alguma coisa, mostrar algo. Ela queria que eu visse esse verde que eu nunca poderia
ver a olho nu, apenas possível por meio da extensão do meu olho, pelo aparelho
fotográfico. Os sons continuaram a me chamar. A rua ainda precisava ser percorrida,
e eu ainda tinha de desvelar mais imagens misteriosas, mais vida na natureza.

Essa experiência me motivou a continuar meus testes. Eu tinha de adentrar esse cami-
nho sombrio, escuro, desconhecido; tinha de continuar escutando o que os objetos
e a natureza estavam querendo me dizer. A tecnologia me auxiliou nessa jornada. O

1272
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

dispositivo óptico do celular captava o que meus olhos não viam. Nesse processo de
criação em coautoria, reencontrei o prazer de brincar de fotografar. Fazer fotografia
como experimento pessoal, como arte, me libertou.

Imagem 3. Desvelando (2018)

Imagem 4. Jesus, Eles Sabem O Que Fazem!. (2018). Fotografia de Rodolfo Ward

1273
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Essas são algumas das fotografias produzidas durante minha pesquisa de mestrado
que tinha como objeto compreender, por meio de estudo teórico/prático, as fric-
ções entre a fotografia documental e a fotografia artística e como essas questões se
imbricam com a noção de real e ficcional, documental e artístico, traçando uma li-
nha temporal entre passado e presente, desconstruindo historicamente a relação do
dispositivo fotográfico na modernidade e sua transmutação na pós-modernidade.
Superada essa fase da pesquisa adentrei no campo da vídeo arte.

A Vídeo Arte foi criada a partir de fotografias noturnas produzidas por celular e ani-
madas por meio de aplicativos, também para dispositivos móveis, e posteriormente
transformadas em uma narrativa visual com adição de diversos componentes so-
noros produzidos a partir de músicas e sons colhidos da internet e captados por
meio do microfone do dispositivo celular. Posteriormente foram mixados e trans-
formados em uma única faixa sonora que compões a narrativa desta obra que une
o tecnológico e o tradicional, representado por fotografias impressas em suporte
de papel. Disponível no endereço do youtube : https://www.youtube.com/watch?-
v=pNXpmaq0uIw&t=170s.

A vontade de criar afetos por meios tecnológicos foram as minhas principais moti-
vações para migrar da fotografia estática para a fotografia animada, uma fotografia
pós-moderna que converge com as novas mídias e principalmente com o vídeo e
com o som para criar um outro evento estético. Utilizei dispositivos tecnológicos
para criar a vídeo arte. Desde a captação de som e imagem passando pela edição e
finalizando na apresentação da obra que utiliza um suporte tecnológico, um tablet,
que nos proporciona um olhar com viés mais tecnológico e conversa com o público
tanto visualmente quanto por meio de sons.

Referências Bibliográficas

BREA, José Luis. Las tres eras de la imagen: imagen-materia, film, e-image. Madrid:
Akal, 2010. 142 p.

CANGUILHEM, Georges. La Connaissence de la vie. 2. ed. Paris: Vrin, 1965.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

FERNANDES JR., Rubens. Revista da Faap-Facom, n. 16, 2o semestre de 2006.

FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunica-


ção. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

______. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo:


Annablume, 2008.

1274
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

GRIGOLETTI, Giane de Campos; PIPPI, Luis Guilherme. Relato de uma experiência:


integração de arquitetura, urbanismo e paisagismo em disciplina de projeto de se-
gundo semestre curricular. Paisagem e Ambiente, v. 23, p. 83-89, 2006.

ROUILLÉ, André. A fotografia na tormenta das imagens. In: DOBAL, Susana; GONÇAL-
VES, Osmar (Org.). Fotografia Contemporânea: fronteiras e transgressões. Brasília:
Casa das Musas, 2013.

SIMONDON, Gilbert. Du mode d’existence des objets techniques. Paris: Aubier,


1989 [1958].

VENTURELLI, Suzete. Arte: espaço_tempo_imagem. Brasília: Editora Universidade


de Brasília, 2004.

______. Arte computacional. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2017.

1275
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Sara Fuentes Cid1 and João Luis Cordovil2

“Ciência e Arte” de um ponto de vista inusual, o do cientista


“Science and Art” from an unusual point of view, that of the scientist.

Resumo
As questões que orientam este artigo são coincidentes com a inquietude acerca
da especificidade da Arte e dos modos em que se pode articular-se com outras
disciplinas. Especificamente: Até que ponto e como as actividade de investigação
artísticas podem influenciar outros tipos de investigação académica ou científica?
Questões que serão abordadas desde um ponto de vista inusual, o do cientista.
Como ponto de partida tomaremos dois textos antagónicos de cientistas que
reflectem sobre a influência que pode ter a Arte sobre a produção do conhecimen-
to científico e sobre o interesse de estabelecer este paralelismo, como são o artigo
“Brief Enconteurs: A Physicist Meets Contemporary Art” de Jean-Marc Lévy-Leblond
(1994) e o texto “Which side are you on?” de Lewis Wolpert (2002)
Palavras-chave: Ciência e Arte, Investigação em Ciência e em Arte, Epistemolo-
gia, Arte Contemporânea

Abstract
The issues that guide this article are coincident with the concern about the specific-
ity of Art and the ways in which it can be articulated with other disciplines. Specifi-
cally: To what extent and how can artistic research activities influence other types of
academic or scientific research? Questions that will be addressed from an unusual
point of view, that of the scientist. As a starting point we will take two antagonistic
texts of scientists who reflected on the influence that Art can have in the produc-
tion of scientific knowledge and on the interest of establishing this parallelism, such
as the article “Brief Enconteurs: A Physicist Meets Contemporary Art” by Jean-Marc
Lévy-Leblond (1994) and the text “Which side are you on?” By Lewis Wolpert (2002)
Keywords: Science and Art, Research in Science and Art, Epistemology, Contemporary Art

1 Sara Fuentes Cid é Doutora em Belas Artes pela Universidade de Vigo (2008). Actualmente Investi-
gadora no Centro de Filosofia das Ciências, Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa, 1749-016
Lisboa, Portugal.
2 João Luís de Lemos e Silva Cordovil é doutorado em História e Filosofia das Ciências pela Faculda-
de de Ciências da Universidade de Lisboa, sendo, desde Julho de 2019, investigador e coordenador
científico do Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, Faculdade de Ciências, Uni-
versidade de Lisboa, 1749-016 Lisboa, Portugal.

1276
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Introdução
As últimas décadas têm sido testemunha do surgimento de um conjunto imenso e
consideravelmente disperso de investigações e iniciativas que se têm interrogado
sobre a possibilidade e natureza da relação entre a Arte e a Ciência. Na amplitude
de posições, encontramos desde aqueles que as colocam em conveniente oposição,
como Levy-Leblond que argumenta a favor dos benefícios mútuos de manter as di-
ferenças essenciais entre a Arte e a Ciências (Levy-Leblond, 1994); até aqueles que
defendem o desenvolvimento de uma “terceira cultura” (Brockman, 1995) capaz de
integrar o campo tecnocientífico com o campo das Humanidades e das Artes. Outros
têm rejeitado que a Arte se possa distinguir facilmente da Ciência por aplicação das
dicotomias clássicas entre “o mundo dos valores e o mundo dos factos, o subjectivo
e o objectivo, o intuitivo e o inductivo” (Kuhn, 1977); também se tem questionado
a suposta superioridade do saber científico sobre outras formas de conhecimento,
abrindo a possibilidade desta aproximação entre a Ciência e a Arte (Feyeranbend,
1975); inclusivamente estão aqueles que se manifestaram desconcertados por esta
“obsessão” por mostrar que a Arte é similar é à Ciência no que respeita aos seus con-
teúdos e processos (Wolpert, 2002).

Pese esta miríade de posições e da existência de uma já prolifera – e tantas vezes,


dispersa – literatura sobre o assunto, pouca atenção tem sido dada ao eventual influ-
xo da Arte sobre as outras áreas com as quais se relaciona. Especificamente, até que
ponto e como as actividades de investigação artísticas podem influenciar os outros
tipos de investigação académica ou científica?

Embora se tenham dado as condições de possibilidade para esta interacção entre


a Arte e a Ciência, na prática a maioria das abordagens realizadas sobre o assun-
to revelam um sistema disperso e invertebrado onde convergem projectos da mais
variada natureza. As abordagens mais tradicionais passam geralmente por susten-
tar a relação entre Arte e Ciência: (1) no encontro disperso e ocasional de temas
ou conceitos da Ciência na Arte; (2) no uso e manipulação artística de tecnologia
e instrumentação da Ciência ou (3) no uso utilitarista da Arte pela Ciência para fins
ilustrativos e divulgativos.

Haverá outras formas sob as quais a relação entre a Arte e a Ciência se efectua ou
se pode efectuar? Será que a relação entre Arte e Ciência é algo mais profundo, de
relevância epistémica, não se reduzindo apenas a apropriações diversas? Que con-
dições definem este encontro e quais são os limites que o demarcam? Como pode
este cruzamento perturbar a própria definição dos campos disciplinares implicados?

No domínio artístico existem hoje inúmeros trabalhos que aprofundam na rela-


ção entre a Arte e a investigação tecnocientífica, apresentando o uso de novas

1277
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

tecnologias ligadas aos mais variados domínios científicos (como a Biologia, a


Microbiologia, a Ecologia, a Medicina, a Geologia, a Astronomia, a Matemática,
a Genética, as Telecomunicações, a Robótica, a Computação, etc). Encontramos
também casos como peças de teatro, filmes ou romances onde surgem perso-
nagens, temas ou acontecimentos captados ou transferidos da história da ciên-
cia. Casos como a representação de conceitos ou apenas de ambiente científico.
Casos em que o Artista apreende ou aprende da Ciência. Produção artística. Ou
seja, a relação tem sido pensada no espectro que vai da contaminação da Arte
pela Ciência, passando por eventuais cruzamentos e paralelismos, mais ou me-
nos fugazes e felizes, indo até mesmo à sua total ausência de comunicação. Mas,
por outro lado, será a relação entre a Arte e a Ciência assim tão evidente, fácil e
generalizada que se podem encontrar um sem-número de casos? E, por outro
lado, será a relação entre a Ciência e Arte necessariamente, assimétrica? Será
um amor pouco correspondido? Será o encontro entre a Ciência e a Arte apenas
uma via de um só sentido – o da Arte? O que dizem os cientistas sobre o assunto?

Como ponto de partida tomaremos dois textos antagónicos de cientistas que reflec-
tem sobre a influência que pode ter a Arte sobre a produção do conhecimento cien-
tífico e sobre o interesse de estabelecer este paralelismo, como são o artigo “Brief
Enconteurs: A Physicist Meets Contemporary Art” do conhecido físico teórico Jean-
-Marc Lévy-Leblond3 publicado na revista Leonardo em 1994 e gérmen de numero-
sas publicações e comunicações posteriores; e o texto “Which side are you on?” de
Lewis Wolpert4 (2002) publicado na imprensa inglesa como artigo de opinião onde
ficava patente a voz discordante do cientista perante a estratégia de se reunir de
novo artistas e neurocientistas para mais uma exposição5 organizada pelo Wellcome
Trust no Science Museum londinense.

Elogio das diferenças, ou o valor das divergências


Em essência, ambos concordam não só que a Ciência e Arte são actividades bem
distintas, como enaltecem que assim o seja. Lévy-Leblond (1994) começa por ques-
tionar a possibilidade de promover a convergência real entre estes dois campos e

3 Professor Emérito da Université Nice Sophia Antipolis. Físico, epistemólogo e ensaísta. Autor de
vários livros de reflexão crítica sobre a ciência contemporânea, dirige a coleção “Science ouverte” da
editora Seuil e a revista Alliage (cultura-ciência-técnica).
4 Professor Emérito de Biologia Aplicada à Medicina, Faculty of Life Sciences, University College Lon-
don. Também é um eminente defensor do entendimento público da ciência.
5 A exposição intitulava-se Head On: Art with the Brain in Mind, realizada em Março de 2002 na “Well-
come Gallery of Medicine in Context, Science Museum” de Londres.

1278
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

põe em dúvida que a separação entre ambos seja necessariamente algo que há que
combater. Se ambos autores se interrogam sobre o sentido que tem reconciliar es-
tes domínios, no caso de Lévy-Leblond fica patente que o que pretende como as
suas perguntas é preservar a riqueza que reside precisamente na diversidade e nas
divergências entre Ciência e Arte. Como cientista, faz explícita a sua posição: “It may
be a question of individual preference, but I feel quite at ease with the essential dif-
ference between Art and Science-as well as with their specific differences (between
particular arts and sciences)” e acrescenta: “Art, contemporary art in particular, at-
tracts me precisely because of its differences from science, not because of its simila-
rities with science” (Lévy-Leblond, 1994, p. 211)

Seguramente seja nesta abordagem do tema onde reside o interesse e originalidade


deste texto. Produz-se uma variação simples mas contundente do modo em que
comummente tratamos a questão das relações entre Ciência e Arte: é nas diferen-
ças entre domínios onde se manifesta a sua complementaridade; é nas divergências
onde reside o valor de estabelecer cruzamentos entre ambos.

Se o tom de Lévy-Leblond é mais pessoal e cuidadoso, Wolpert é mais geral e tal-


vez mais crítico. Para o biólogo, toda reivindicação de semelhança entre os aspectos
científicos e artísticos deve tratar-se com profunda suspeita (Wolpert, 1994, p.67).
Além disso, apelida de “obsessão desconcertante” a tentativa de se mostrar que a
Arte é similar à Ciência nos seus conteúdos e processos. Diz: “We should stop preten-
ding that the two disciplines are similar, and instead rejoice in the very different ways
that they enrich our culture” (Wolpert, 2002)

Assim, pese embora esta concordância relativamente à preservação da identidade


específica de cada um dos campos e ao reconhecimento da sua diferença - a qual só
pode ser positiva - existem nestes dois cientistas claros desacordos sobre a possibili-
dade do encontro da Ciência com a Arte.

Em causa está, em primeiro lugar a rejeição da excessiva e apressada vontade com


que se tem querido encontrar semelhanças, paralelismos, comunhões, entre a Ci-
ência e Arte, convertendo a relação entre elas numa trivialidade ou numa espécie
de estéril “mesmismo”, num desaparecimento de categorias onde tudo é mais ou
menos o mesmo: são comparáveis ambas actividades?. Em segundo lugar, está a
riqueza da diferença e do encontro, mesmo que raro e fugaz: (o que) pode a Arte
influir na Ciência?

1279
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Tabela sobre as “Diferenças entre Ciência e Arte” elaborada a partir dos textos comentados neste artigo.6

Ciência Arte
Primeira pessoa do plural
Primeira pessoa de singular.
Integração em equipas, trabalho
Trabalho solitário
colectivo
Protecção do grupo Risco
Lévy-Leblond Reivindicação do conhecimento
Nunca busca a exaustividade
(utópico) do mundo inteiro
Desejo de contribuir apenas com Não deseja contribuir para um esfor-
um pequeno grão de areia à Ciência ço colectivo da arte.
Não integra a dimensão histórica Enquadramento numa trajectória.
Crítica interna (revisão por pares). Crítica externa, crítica no sentido nobre.
Esforço colectivo. O indivíduo é
irrelevante (os génios apenas acele- Individualismo. Génio
ram a descoberta)
A descoberta simultânea é comum.
Contribuições para o conhecimen- Criação original
to público
Reflecte sentimentos e ideias do
Sentimentos fora do processo
artista
Generalidade Singularidade
Uma explicação correcta singular
Múltiplas interpretações
para cada fenómeno
Não tem conteúdo moral ou ético Tem conteúdo moral
L. Wolpert
Correspondência com a realidade Ilimitada
Há mudanças (mas não há progres-
Progressos
sos)
Requer muito conhecimento básico Resposta emocional. Não é preciso
para ser compreendida uma formação anterior
Não há uma maneira realmente
Revisão por pares. Critérios objecti-
objectiva de julgar ou validar a Arte.
vos e partilhados
Não há crítica, só escrita
Nada equivalente Entretenimento
Tem tido uma forte influência em Não contribui em nada para a
certos artistas Ciência
Criatividade limitada pela auto-
Criatividade intensamente pessoal
-consistência

6 Muitas destas diferenças são questionáveis. Ver comparativamente a tabela publicada por Ste-
phen Wilson em (2002) Information Arts. Intersections of art, science and technology, London: The
MIT Press, p. 18
1280
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Não admira pois que a posição de muitos cientistas seja crítica. E nem talvez tanto
quanto os artistas, que com facilidade desconfiam da reclusão da Arte ao belo e da
possibilidade de um entendimento universal desse conceito.

A tecnologia como único nexo?


Outra ressalva emerge quando enfrentamos o fascínio que a tecnologia, as suas apli-
cações e experimentações exercem sobre nós. O uso de novos dispositivos tecno-
lógicos no mundo da Arte é frequentemente um meio muito cativante de explorar
o suposto encontro intimo entre a Arte e a Ciência. Lévy-Leblond defende que de-
vemos ser mais cautos e moderados quanto às nossas avaliações sobre as relações
entre “novas tecnologias” e criação artística. Tal como argumenta o crítico francês
Nicolas Bourriaud (2010): a tecnologia forma parte do sistema de produção de arte
contemporânea, mas é só uma parte dele.

Se é um facto que os artistas prestam uma atenção extrema ao inexplorado e aos


campos emergentes; e sendo verdade que inúmeros projectos de criação artística
fazem seus os instrumentos de alta tecnologia ou os conceitos da Ciência contem-
porânea –explorando-os muito para além dos contextos em que foram concebidos
– isto não significa por si só que se estabeleça realmente um relacionamento profun-
do e rico entre a Arte, a Ciência e a Tecnologia. Lévy-Leblond aponta várias razões
para se ter cuidado: (1) as novas tecnologias, precisamente porque são novas, não
permitem a necessária distância crítica para um juízo razoável relativamente ao que
elas possibilitaram; (2) devemos investigar em profundidade a chamada “novidade”
dessas tecnologias, pois no fundo muitas escondem nelas problemas muito antigos
(como a representação do espaço, por exemplo); (3) não será que existe uma ten-
dência dos cientistas em buscar uma espécie de legitimação pública - frente os pro-
blemas que provoca a tecnologia - promovendo a sua utilização por esta ou aquela
forma de arte?; (4) não será que a relação dos artistas com as técnicas contemporâ-
neas ocorre simplesmente como garantia de modernidade?

Inspirar-se na Ciência?
A prudência sobre uma convergência muito superficial entre a Arte e a Ciência tam-
bém deve estender-se à inspiração conceitual. A evidência de que muitos artistas
refiram teorias científicas contemporâneas, traduzam as suas leituras e façam inter-
pretações, mostrem as suas dificuldades internas e especulações, como um objecto,
como uma metáfora... como uma ilustração; não significa que o seu trabalho lance
uma nova luz sobre as referidas teorias, nem sobre o conhecimento científico. Se
existir na Arte um desejo para responder as necessidades e carências de um mun-
do dominado pela tecnociência, fraco favor faz a si mesma se o plagiar, replicar ou
tão-somente prestar-lhe fidelidade, mostrando a sua submissão por desejar apenas
seguir de próximo os desenvolvimentos da tecnociência (Lévy-Leblond, p. 212).

1281
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Confluências, Coincidências
A segunda parte do texto de Lévy-Leblond é tecida com prudência e subtileza pelo
autor, que vai trazendo ao discurso o exemplo de diferentes obras de arte nas que
ecoam certos assuntos convergentes com a sua actividade de cientista. Não é um
confronto entre Arte e Ciência, mas uma procura da “relação transmitida por um se-
gundo plano filosófico compartido que lhes dá sentido a ambos e faz com que se
comuniquem entre si”. (Lévy-Leblond, 2007)

Lévy-Leblond declara que o que pretende é simplesmente esboçar a singular re-


lação de um cientista – ele próprio - com alguns aspectos da Arte contemporânea,
insistindo no facto de que o seu interesse pela Arte é em grande medida indepen-
dente das suas competências científicas e vice versa.

“There is space between the two, and it is in that space that my imagination can take
flight. In that space also there appear, fleetingly, some interesting points of conver-
gence in which works of art are in keeping with a particular scientific attitude; I only
intend to analyze some of these brief encounters.” (Lévy-Leblond, 1994)

Lévy-Leblond tenta encontrar um simples reflexo, no espelho da ciência, do significa-


do que ele adscreve a algumas obras de Arte escolhidas. Em cada obra das selecciona-
das consegue reconhecer e fazer explícitos uma série de pontos de convergência e de
analogias com o seu trabalho como físico. Assim, de um modo que até parece simples,
conquista algumas definições para o que algumas obras de arte também são:

(1) Traduções da realidade confusa e complexa para abstracções simples e generais;


(2) uma experiência intelectual remanescente do método usado pelo físico: aplica-
ção de regras impostas que tratam de eliminar qualquer traço de subjectividade ou
intencionalidade para conseguir um fim; (3) modelos simplificados para estudar o
funcionamento e a interacção das ideias complexas; (4) variações experimentais de
um tema fornecido pela teoria, mas nem sempre frutíferas.

O que o contacto com a arte pode trazer


Podemos suspender o atrevimento que seria afirmar que a Arte pode ter o impacto
na Ciência, como a Ciência terá na Arte. Contudo, não significa tal que a Arte não
possa influenciar a Ciência. Essa parece ser, aliás, a grande questão da relação entre
a Ciência e Arte: o que pode a Arte na Ciência?

Segundo Wolpert, a Arte não pode trazer nada à Ciência. Muitos cientistas estarão cer-
tamente com ele. Mas segundo Lévy-Leblond, se olharmos criticamente verificaremos
que os encontros virtuosos entre a Ciência e a Arte, para um cientista, são raros e oca-
sionais; mas a verdade é que a raridade não os faz menos reais ou significativos. Pelo
contrário. Torna-os preciosos. Mas, quais são? Lévy-Leblond dá-nos três pistas.

1282
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Rumo a uma “epistemologia sensível”


Alguns artistas oferecem uma boa fonte de perspectivismo e alteridade – através
destes é possível ver e entender o mundo e os seus fenómenos, de outra maneira
que não através da Ciência, que não é redutível à Ciência, que não concorre com a
Ciência. Existem na Arte Contemporânea outras formas de conceptualizar o mundo
que fogem ao tradicional conhecimento analítico, mecanicista e discursivo.

Segundo Lévy-Leblond, encontramos em alguns artistas uma espécie de epistemo-


logia sensível (ou concreta). Isto é, produção artística que sem querer “representar” ou
ser “inspirada por” nos deixa perante a Ciência teórica e os seus princípios fundamen-
tais, em que os conhecemos através da matéria, da sua apresentação aos sentidos e
não através da sua apresentação formal, abstracta ou discursiva. Nestes percebemos
que o pensamento científico não se limita à teoria e é uma descoberta preciosa.

Por outro lado – e surpreendentemente – por via dessa produção artística somos
levados a compreender a Ciência teórica na sua metodologia. A abstracção, a simpli-
ficação, a experimentação, a procura pela estrutura, todos cientistas concordariam
que estes aspectos são matriciais na sua actividade e no entanto resultam mais com-
preensíveis quando os vemos na Arte, ainda que ao serviço de diferentes propósi-
tos. Afirma Lévy-Leblond:

“In order to find interest in my daily activity, namely theoretical physics, I need to know
in what way that activity differs from others. And it is precisely because of this funda-
mental difference that some fortuitous homologies become meaningful.” (p. 213)

É pelo reconhecimento da diferença e não pela procura de semelhanças que po-


demos encontrar esses elementos precisos que conectam Arte e Ciência e que nos
permitem compreender melhor e mais amplamente cada uma destas.

Recuperação da opacidade do mundo
Outro aspecto que Lévy-Leblond assinala é o que denomina de “opacidade do mun-
do”. Segundo este físico teórico:

“Art thus leads me to rediscover the world’s rich denseness, which is too often flatte-
ned by science” (p. 214)

A Ciência é tradicionalmente atomística. Crê que o mundo, ou simplesmente o fe-


nómeno que estuda, pode ser decomponível até aos seus elementos simples e es-
senciais. Esses são os elementos primordiais da realidade e a partir dos quais, por
combinação, tudo (ou o todo estudado) se pode obter. O complexo é redutível até
ao mais simples. Não se pode criticar directamente a Ciência por ter em si mesma,
embrenhada, esta metafísica. Faz parte da sua matriz histórica e tem sido graças a

1283
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

esse admirável esforço em direcção à redução, simplificação e empobrecimento da


realidade que a Ciência tem sido tão bem sucedida enquanto dispositivo de com-
preensão do mundo.

O erro – absolutamente trágico - será considerar esse método como único, universal
e superior, tentando modelar através dele quaisquer outras abordagens da realida-
de ou maneiras de entender o mundo.

A Arte permite ao cientista atento recuperar a percepção da densidade do mundo.


Isto é, restabelecer o vínculo entre os conceitos, noções e formalismos complexos
que a Ciência elaborou e a realidade da qual os isolou e à qual no final, necessa-
riamente, tem de voltar, sob a pena de estar a criar apenas maravilhosos objectos
fictícios e incompreensíveis. Afirma Lévy-Leblond:

“We [scientists] have to recover the long, thin thread that links theoretical knowled-
ge to sensitive curiosity” (p.215)

A linguagem da Ciência é o produto, na sua génese, de uma sofisticação da lingua-


gem comum. Da linguagem que se refere a sensações do mundo físico. Palavras
como peso, tensão e força têm o seu lastro na experiência sensorial. Experiência esta
que a Arte permite recuperar e fazer o cientista conhecer - quase com o próprio
corpo e suas entranhas – o que conhece teoricamente. Poder-se-ia dizer de conhe-
cimento científico de segunda ordem, esse que é adquirido através da Arte.

Lévy-Leblond dá como exemplo alguns os trabalhos da Arte Povera (Giovanni Ansel-


mo, Giuseppe Pennone, Kounellis, Mario Merz), mas mais especificamente o exem-
plo da obra “Ceci se déplace” do artista Piotr Kowalski7:

“I know the Earth revolves around the Sun at the speed of 29.9 km per at least I think
I know it. But Piotr Kowalski’s stamp affixed on the page compels me to realize that
this is not an idea in the air (if I may say so) and that this book is actually moving
at close to 30 km per sec around the Sun without my being aware of it. This stamp
marks a master stroke; through it, I am personally living the great epistemological
shock first experienced by Copernicus and Galileo. This piece of knowledge is today
regarded as trivial and obvious; Kowalski enables me to understand that it is still
revolutionary (indeed, it is a revolution in every sense of the word) and to recapture
the charge of violence it should produce on us, to grasp it anew.”

7 Em 1985, tornou-se presidente da Ars Technica Association conectada à Cité des Sciences et de
l’Industrie, unindo filósofos, artistas, cientistas como Jean-Marc Levy-Leblond, Claude Faure, Je-
an-Max Albert, Sara Holt, Piero Gilardi , Jean-Claude Mocik, refletindo sobre a relação entre arte e
novas tecnologias.

1284
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Piotr Kowalski, Ceci se diplace, selo, 1969.

Ao se ler o texto deste selo, texto que em si mesmo nada acrescenta ao que se co-
nhece, muitos sentiram subitamente o que ele se refere – a velocidade estontean-
te a que nos deslocamos pelo Cosmos. E ao reconhecê-lo somos logo lançados ao
sem-fim de questões que animaram todos os cientistas desde que tal hipótese se
colocou e se trabalhou.

Distanciamento crítico
Por fim, Lévy-Leblond refere ainda um outro aspecto, que é duplo: a inquietude e o
recuo. A Ciência dá aos seus praticantes uma sensação de certeza tranquilizadora,
de domínio e controle sobre o Mundo. Sabe-se como as coisas são. Estado muitas
vezes confundíveis com – e nada mais há. O contacto com a arte pode justamente
trazer uma desestabilização e a perda de pontos de referência. Condições que são
necessárias, no entanto, à verdadeira criação. A turbulência a que o cientista pode
ser sujeito pela Arte levam-no a ter que reinventar as suas categorias e a inverter a
ordem das coisas: ver na arte um meio de entender e transformar o mundo e, na
ciência, uma maneira de contemplar e imaginar.

1285
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Conclusões
Se bem que o artigo de Lewis Wolpert pode resumir-se como um conjunto desmedi-
do de certezas em oposição a todos e qualquer uma das intenções de aproximação
da Arte à Ciência, o texto de Leblond proporciona esse ponto de luz na obscuridade
para todos aqueles –artistas ou não – que se interessam pelo desenvolvimento de
práticas interdisciplinares e ainda acreditam nas suas repercussões positivas para
todos os campos envolvidos.

De facto, a contribuição da Arte ao cruzamento Arte-Ciência não pode limitar-se


ao “enfeite” dos resultados ou à disposição mais ou menos engenhosa dos elemen-
tos “sensíveis” da operação cognitiva subjacente, senão que oferece um modelo de
conhecimento mais integrador 8 ao não renunciar à complexidade, à subjectivida-
de ou à opacidade do mundo e dos processos de investigação. Assim o expressava
Edward Wilson: “Neither science nor the arts can be complete without combining
their separate strengths. Science needs the intuition and metaphorical power of the
arts, and the arts need the flesh blood of science.” (p.230)9

Referências
BOURRIAUD, N. (2010). Art Basel Conversations, Contemporary Art and New Media:
Towards a Hybrid Discourse. Recuperado de: <http://www.artbasel.com/go/id/mhv/>

BROCKMAN, J. (Ed.) (1996) La tercera cultura, Barcelona: Tusquets.

KUHN, T. (1977). “Comment on the Relations of Science and Art,” in The Essential
Tension: Selected Studies in Scientific Tradition and Change, Chicago: University
of Chicago Press, pp. 340-351.

LÉVY-LEBLOND, J-M. (2014). Science and Art: A cautionary view. In Overgaden LEC-
TURES. Art + Science – Towards a Third Culture? Conference 24-25 October, Over-
gaden Institute of Contemporary Art. Recuperado de: https://overgaden.org/en/
begivenhed/overgaden-lectures-art-science-towards-a-third-culture/

8 Ver mais desenvolvimentos sobre estas ideias em Moraza, J.L & Cuesta, S. (2010) El Arte como crite-
rio de excelencia, Madrid: Ministerio de Educación e Instituto de Arte Contemporáneo, Recuperado
de: http://www.iac.org.es/
9 Consilience: The Unity of Knowledge, é um livro de 1998 do biólogo E. O. Wilson, no qual o autor dis-
cute métodos que foram usados para unir as ciências e, no futuro, poderá uni-los às humanidades. A
citação em concreto, forma parte da lista de citações de cientistas compilada por Amy Ione, Roger
Malina e Robert Root-Bernstein para Leonardo/ International Society for the Arts, Sciences and Techno-
logy, intitulada: “Art Science quotes from scientists and research engineers making the Science case
for Art Science Collaboration”. Recuperado de: http://malina.diatrope.com/2010/08/26/art-science-
-quotes-compiled-by-amy-ione-and-roger-malina-as-of-aug-26-2010/

1286
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

LÉVY-LEBLOND, J-M. (2007) La ciencia y el mundo, el arte y yo. Una entrevista a Lév-
v-Leblond. In IBÁÑEZ, J. J. (2007) El Discurso Científico, los Conceptos Contrarios
y la Perspectiva de Jean-Marc Lévy-Leblond. Recuperado de: https://www.madri-
masd.org/blogs/universo/2007/12/01/80077

LÉVY-LEBLOND, J-M. (1994). Brief Enconteurs: A Physicist Meets Contemporary Art.


Leonardo, Vol.27, nº 3, Art and Science Similarities, Differences and Interactions:
Special Issue, pp. 211-217. DOI: 10.2307/1576054.

MALINA, R. (24 de Julho de 2013) Does Art Science Collaboration contribute in


any way to successful Scientific Practice? Recuperado de: http://malina.diatrope.
com/2013/07/24/does-art-science-collaboration-contribute-in-any-way-to-success-
ful-scientific-practice/

MORAZA, J.L & CUESTA, S. (2010) El Arte como criterio de excelencia, Madrid: Mi-
nisterio de Educación e Instituto de Arte Contemporáneo. Disponível em: https://
sede.educacion.gob.es/publiventa/campus-de-excelencia-internacional-el-arte-co-
mo-criterio-de-excelencia/universidad-espana/14479

WILSON, E. O. (1998) Consilience: The Unity of Knowledge, New York: Random


House.

WILSON, S. (2002) Information Arts. Intersections of art, science and technology,


London: The MIT Press.

WOLPERT, L. (1994) The Unnatural Nature of Science, Cambridge: Harvard Uni-


versity Press.

WOLPERT, L. (10 de Março de 2002). Which side are you on? The Guardian. Recupe-
rado de: <http://www.guardian.co.uk/education/2002/mar/10/arts.highereducation>

Agradecimentos
Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para
a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito da Norma Transitória -
DL57/2016/CP1479/CT0067 e da Norma Transitória - DL57/2016/CP1479/CT0065.

1287
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Simone Wicca1 and Camila Mangueira


Soares2

Reflexões sobre uma arqueologia dos processos fotográficos:


o caso da fotopintura de Júlio Santos
Reflections on an archaeology of photographic processes: the case of Júlio Santos’
photo painting

Resumo
Diante do crescente curso de experimentações contemporâneas com os pro-
cessos históricos e práticas alternativas da fotografia, destacamos o emprego
de tecnologias digitais e analógicas como linguagens extensivas de criação.
Com base nos estudos sobre processos de criação e da arqueologia das mídias,
o artigo discute a continuidade entre esses processos a partir do contexto de
produção das fotopinturas de Júlio Santos, cuja genealogia de imagens se dá
nas interpretações das técnicas e das ferramentas. São debatidas a dimensão in-
terpretativa tanto dos gestos do artista na transição de ferramentas analógicas
para digitais quanto o aspecto de circulação dos arquivos fotográficos no âmbi-
to dessas tecnologias. O artigo apresenta perspectivas para pensar os processos
de reinvenção e transformação na linguagem fotográfica.
Palavras-chave: processo de criação, fotografia, fotopintura, arqueologia das mídias.

Abstract
In light of the growing course of experimentation practices in contemporary pho-
tography – especially those related to alternative and historical processes –, we
highlight the use of both digital and analogue technologies as extensive languages
of creation. Based on the studies of Process of Creation and Archaeology of Media,

1 Possui Bacharelado em Fotografia pelo Centro de Comunicação e Artes - SENAC (2002). Mestra
(2019) e Doutoranda em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Simone
Rocha de Campos (Simone Wicca) pesquisa e ensina fotografia e os processos históricos desde 2002.
Reside e trabalha em São Paulo - SP, Brasil.
2 É pesquisadora, artista e designer. Investigadora pós-doc na Faculdade de Belas Artes da Universi-
dade do Porto (FBAUP). Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) com a tese O Pensamento
Fotográfico, uma proposta de entendimento mais integrado do complexo fotográfico. Possui expe-
riência em docência multidisciplinar nas áreas de Comunicação e Imagem e direção de projetos de
comunicação e multimídia.

1288
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

we discuss the continuity between those processes in the photo painting3 work of
Júlio Santos, in which the genealogy of images occurs through the artist’s interpre-
tations of tools and techniques. Moreover, we debate the interpretative dimension
of Julio Santos’ gestures in respect of the transition of tools from analogue to digital;
as well as of the circulation aspect of the photographic archives in the context of this
technological transition. Thus, this research presents perspectives to thinking about
the processes of reinvention and transformation of the photographic language.
Keywords: process of creation, photography, photo painting, archaeology of media.

Introdução
É em um cenário cada vez mais centrado na tecnocultura (COUCHOT, 1993; MACHA-
DO, 1997) que vivemos uma conjuntura, no mínimo, curiosa da prática fotográfica.
Dentro do que parece ser um cenário de crise, de instabilidades e de indefinições
da fotografia com a predominância do digital – como, por exemplo, a respeito do
objeto fotográfico, das convenções estéticas e do documental –, paira também um
movimento de ressignificações de práticas analógicas e de experimentações com
diferentes materialidades, dispositivos, como também, mídias digitais.

Talvez um dos maiores desafios no sentido de entender essa convivência de dife-


rentes momentos, processos e obras seja o de como lidar com as transições e os
avanços tecnológicos sem cair em discursos de analógico versus digital, humano ver-
sus máquina, homem versus técnica, etc. A partir disso, o artigo propõe de maneira
inicial uma reflexão sobre os efeitos das transformações tecnológicas no âmbito das
práticas fotográficas. Estabelecemos como recorte analítico alguns dos percursos de
mudanças observados na fotopintura do mestre Júlio Santos, artista cujo ofício de
produção e edição de retratos fotográficos inicia por volta dos anos 1950. Dentre
as justificativas dessa escolha estão, além da riqueza e do potencial reflexivo que o
seu trabalho provoca para o campo da fotografia contemporânea, o fato de tratar-se
de um ofício que presenciou de maneira direta muitas das mudanças de materiais
e tecnologias. Além disso, são ainda poucos os trabalhos que trazem uma reflexão
sobre sua prática artística após a transição para o digital, como também, a respeito
do que seria a fotopintura contemporânea tratada por ele.

O artigo parte de questões iniciadas no texto A Passagem do Analógico ao Digital e a


Transformação nas Fotopinturas de Mestre Júlio Santos4. Essas reflexões são desenvolvidas

3 Photo painting is the result of painting techniques applied to low contrast black and white photo-
graphic prints. The final image is obtained when the artist applies inks and pigments, not only colo-
rizing the image, but creating a completely different image by adding or deleting details, modifying
people’s features, hence, creating a new visual context.
4 Artigo de Simone Wicca apresentado na disciplina “Imagem, Meios e Conhecimento” do Prof. Dr.

1289
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

aqui a partir de uma aproximação com estudos das arqueologias das mídias (PARIKKA,
2017; ZIELINSKI, 2006) e dos processos de criação (SALLES, 2006, 2011). Esta proposta
segue a necessidade de estabelecimento de outras perspectivas para os processos fo-
tográficos do passado que também nos possam ajudar a pensar a produção fotográ-
fica contemporânea. É nesse sentido que o viés das arqueologia das mídias mostra-se
como uma lente interessante. Cabe ressaltar que, neste trabalho, não nos referimos a
arqueologia como uma busca de origens ou um olhar analítico detido no passado da
história conhecida, mas como uma via para tencionar o pensamento sobre as heranças
e o passado das técnicas e dos processos no presente, mas também os seus impactos e
suas projeções futuras. Os estudos sobre os processos de criação, por sua vez, oferecem
uma visão crítica para a produção fotográfica não detida somente nas obras conhecidas
ou publicadas. Dessa maneira, nos permitem também discutir a produção fotográfica
a partir das relações compostas entre sujeitos, ambientes de trabalho, materialidades e
mediações tecnológicas. A combinação dessas duas perspectivas teóricas nos conduz
aqui, de certa maneira, para uma espécie de arqueologia dos processos fotográficos.

Por detrás das transformações tecnológicas


A fotografia diz respeito a uma das linguagens mais reinventadas dos últimos tem-
pos (FERNANDES, 2006). Seu código “tem sobrevivido a todas as ondas de mudanças
tecnológicas, o que inclui a ‘computadorização’ de todos os estágios da produção e
distribuição culturais” (MANOVICH, 2006, p. 4). Essa notação já nos permite prospec-
tar a quantidade de diferentes processos de criação existentes e possíveis, além da
variedade de objetos fotográficos armazenados e circulantes.

É frente aos frequentes embates culturais e sociais com as novas tecnologias que
aos poucos se percebe que a ideia de avanço do tecnológico não implica necessa-
riamente no desaparecimento do sujeito criador. De acordo com Lévy (1993), “não
existe uma ‘Técnica’ por trás da técnica, nem ‘Sistema técnico’ sob o movimento da
indústria, mas apenas indivíduos concretos situáveis e datáveis”. Além disso, assim
como nos lembram os estudos de processos de criação (SALLES, 2011, 2006; COLA-
PIETRO, 2016), tanto os sujeitos responsáveis pela produção fotográfica quanto às
tecnologias e as técnicas envolvidas admitem historicidade. Isto significa que ambos
sujeitos, tecnologias, modos e locais do fazer e os próprios objetos fotográficos ad-
mitem um percurso temporal, social e cultural que deve ser observado.

Um primeiro passo nesse sentido está relacionado à consciência de que cada fotogra-
fia está ligada a um cenário diverso de gestos, escolhas e buscas que nada mais são
do que modos de fazer em um ambiente composto por materialidades, protocolos

Edson do Prado Pfutzenreuter. Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Campinas, 2016. Dis-
ponível em: <https://wiccaverna.wordpress.com/2019/04/14/2207/>.

1290
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

e procedimentos técnicos. E que, além da técnica, ela envolve também tecnologias,


como dispositivos, aparelhos ou máquinas. Aqui é importante entender que enquanto
a técnica é um saber fazer cuja “natureza intelectual se caracteriza por habilidades que
são introjetadas por um indivíduo” (SANTAELLA, 2003, p. 152), a tecnologia correspon-
de à tudo aquilo que possui a capacidade de “encarnar, fora do corpo humano, um
saber técnico, um conhecimento científico acerca de habilidades técnicas específicas”.

No contemporâneo, a transformação tecnológica na fotografia é marcada principal-


mente por sua condição enquanto mídia dentro de uma cultura de convergências
entre os meios (BELLOUR, 1997; BOLTER & GRUSIN, 2000). Situação desencadeada
com as revoluções digitais e computacionais que, a partir dos anos 90, passam a ab-
sorver e a dominar os circuitos de produção e distribuição das imagens (COUCHOT,
1993). O interessante aqui é notar que tal situação não significa necessariamente o
desaparecimento das mídias consideradas tradicionais, mas vem caracterizar o fe-
nômeno que Bolter e Grusin (2000) chamam de remediações. De acordo com essa
noção o surgimento de uma nova tecnologia, mídia e/ou linguagem, apesar de re-
alizar mudanças profundas5 nos ambientes e modos de trabalho e, portanto, nas
ecologias cognitivas e práticas, não extingue totalmente suas precedentes.

É principalmente no campo das práticas artísticas que esse movimento de idas e


vindas tecnológicas demonstram, por exemplo, que as “artemídias que empregam
as mais novas tecnologias não se equiparam, necessariamente, com as maneiras ino-
vadoras com que as demais escavam velhas ideias, soluções de mídias imaginárias e
tecnologias analógicas obsoletas” (PARIKKA, 2017, p. 202). Fato que demonstra que
nossa cultura, de maneira geral, “não é – sequer deveria ser – baseada em uma única
linha de progresso linear”.

Trazendo essa percepção para o campo fotográfico, verificamos que a própria histó-
ria técnica da fotografia é comumente vista como uma linha reta de progressos6. No

5 No caso das mudanças implícitas ao desenvolvimento do campo fotográfico, essa situação é mais
visível, sobretudo, na esfera utilitária, na qual uma nova tecnologia tornava a anterior obsoleta. As-
sim, cada nova invenção implicava na mudança dos equipamentos para captura, dimensões, mate-
riais, químicos, etc. Caso, por exemplo, da descoberta da gelatina (dry plate) que deixou pra trás o
equipamento utilizado no colódio úmido. Como também, depois, a mudança do suporte da gelatina
(do vidro para a película flexível), dentre outros.
6 A ideia de progresso vem a caracterizar a evolução técnica da fotografia, principalmente no sé-
culo XIX, consonante ao âmbito industrial. Essa noção está ligada ao fato de que grande parte das
experimentações buscavam processos que pudessem oferecer mais informação no mesmo espaço
visual, além de diminuir custos e acelerar os processos de captura. Situação, por exemplo, de que
“durante as duas primeiras décadas de fotografia, que a maior parte do trabalho experimental con-
centrou-se em encontrar uma maneira conveniente e prática de transmitir informações. Para isso, o
que era necessário era um processo que pudesse combinar a precisão óptica do daguerreótipo com
a reprodutibilidade do calótipo” (CRAWFORD, 1979, p. 41).

1291
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

entanto, ao lançarmos o olhar para o campo dos processos de criação não apenas
no cenário da fotografia utilitária, encontramos inúmeras situações de adaptações e
reinterpretações de técnicas e tecnologias anteriores e/ou não dominantes em de-
terminado período. O que mostra para nós a possível limitação e incompatibilidade
de um entendimento geral sobre a evolução da fotografia por uma visão crítica ape-
nas progressista e linear.

Passagens do analógico ao digital em um contexto de experimentações


Apesar da atual predominância do uso da fotografia digital no âmbito da comuni-
cação social e dos circuitos artísticos, aumentam as práticas artesanais e analógicas
que revisitam processos históricos do período inicial da fotografia, no século XIX.
Isso, de tal maneira, dá luz a novas técnicas artesanais e químicas em conjuntura
com circuitos digitais. É o caso, por exemplo, dos trabalhos e modos de fazer que
incluem a criação de negativos digitais e o uso de scanners.

É no final da década de 1990 que, no cenário nacional e internacional7, começam


a popularizar práticas que fazem uso de processos históricos como, por exemplo,
ambrótipos, cianótipos e marrom Van Dyke. Tendência que, já no início dos anos
2000, passa a envolver o ensino8 sobre fotografia e a produção de conhecimento na
área. Não por acaso que surgem as tentativas de entendimento e classificação desse
sintoma contemporâneo, sendo algumas delas: Fotografia Expandida (FERNANDES,
2002, 2006), Neopictorialismo (BAQUÉ, 2003; ROUILLÉ, 2009) e Antiquarian Avant-
-Garde (REXER, 2002).

Não é de hoje que existem trabalhos fotográficos que tencionam os protocolos


tradicionalmente ligados aos processos dominantes impostos pela indústria e o
mercado, como também, ditados pelo modernismo e suas práticas ligadas ao con-
ceito da fotografia pura9 e ao viés documental. A exemplo disso está claramente o
papel inicial desempenhado pelas vanguardas artísticas (FERNANDES, 2002; FA-
TORELLI, 2017) no “percurso de superação dos paradigmas fortemente impostos

7 Nos referimos ao momento em que se constata uma maior popularização dos processos históricos
através de atividades não só artísticas, mas também educativas e acadêmicas.
8 Internacionalmente podemos citar os cursos e as publicações, por exemplo, de Christopher Ja-
mes (2001). Como também, o caso dos pensadores que referenciam o período como Antiquarian
Avant-Garde de Rexer (2002). No Brasil, por exemplo, marcam os cursos promovidos no Sesc - SP
e pesquisas como a dissertação de Kenji Ota na ECA-USP (2001) e a tese de Rubens Fernandes na
PUC-SP (2002).
9 Também conhecida como fotografia direta (straight photography), linha que surgiu nos Estados
Unidos na década de 1910, na qual pregava-se que a produção de imagens deveria ser tal e qual
como eram vistas através do visor da câmera, isto é, com o mínimo de intervenções possíveis tanto
na cópia quanto no seu processamento no laboratório.

1292
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

pelos fabricantes de equipamentos e materiais, para, aos poucos, fazer surgir exu-
berante uma outra fotografia, que não só questionava os padrões impostos pelos
sistemas de produção fotográficos, como também transgredia a gramática desse
fazer fotográfico” (FERNANDES, 2006, p. 11).

Se seguirmos a linha do uso do termo “alternativo”10 para os processos fotográficos


chegamos nos trabalhos internacionais que surgiram em meados dos anos 1960,
como os de Christopher James (2001, 2015). Inicialmente, esses processos históricos,
artesanais, eram vistos como alternativas ao uso dominante no período, por exem-
plo, do papel de gelatina e prata. Nos últimos anos, no entanto, a popularização do
termo, geralmente utilizado de maneira próxima ou sinônima de “históricos”, surge
como reação direta a predominância da fotografia digital (YOUNG, 2006). Com isso
queremos destacar que a prática dos processos históricos não se trata de uma novi-
dade no contemporâneo, mas que, no entanto, vem passando por uma intensifica-
ção principalmente após o surgimento do digital.

No cenário brasileiro, o uso desses processos históricos era escasso. A recorrência


desse tipo de produção começa a ser percebida sobretudo nos anos 1990, com artis-
tas como Rosângela Rennó, Cris Bierrenbach e Kenji Ota. No entanto, curiosamente,
predominavam junto aos protocolos tradicionais da fotografia documental, os ser-
viços populares que combinavam processos fotográficos com os das artes plásticas
– especialmente, o desenho e a pintura. Caso do destaque da fotopintura no Brasil
nas décadas de 1960 e 1970.

A Fotopintura, uma breve contextualização


Desde as primeiras décadas da invenção da fotografia, as imagens já passavam por
retoques11 e colorizações. É possível encontrar as primeiras e segundas gerações fo-
tográficas (daguerreótipos e ambrótipos) retocados e colorizados. A denominação
fotopintura12 é obtida a partir de uma fotografia sobre base de papel com baixo
contraste sobre a qual o fotopintor aplica tintas e pigmentos. Tratam-se de retratos
em preto e branco, que passam por algumas etapas e se transformam num misto de

10 Importante frisar que essa nomenclatura não é uma questão resolvida. De maneira que ainda
é fonte de debates entre os especialistas. Apesar disso, em aproximação ao que propõe Ricardo
Mendes (2017), podemos entender como relacionado aos processos de produção, captação e difu-
são não-dominantes, isto é, que se contrapõem às práticas reguladas num determinado período de
produção de imagens.
11 A técnica de retoque foi apresentada pelo alemão Franz Seraph Hanfstaengl na Exposição Uni-
versal de Paris, em 1855. Na época, Hanfstaengl “descortinou a possibilidade desse espelho mágico
simular uma situação, ou seja, criar uma nova realidade” (CHIODETTO, 2016, p. 88).
12 Pesquisadores como Chiodetto (2011, 2016) e Boris Kossoy (2001) apontam sua origem ao fotó-
grafo de retratos Eugène Disdéri , que, por volta de 1863, já utilizava tintas para colorizar os retratos.

1293
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

restauro, retoque e pintura, onde é possível além de ‘embelezar’ o retratado, modi-


ficar cenários, vestimentas, adereços e assim, segundo mestre Júlio Santos, “tirar a
‘crueza’ do retrato fotográfico”13.

A respeito desse discurso sobre a “crueza” da realidade da imagem fotográfica, é per-


tinente notar que ele surge, ainda no século XIX, em pleno processo de transições
e mesclas entre a produção da pintura e da fotografia. Assim está, por exemplo, o
fato de que, ao mesmo tempo em que as gerações estavam acostumadas com os
retratos da pintura, nos quais “os artistas eram obrigados a embelezar seus clientes
com pinceladas generosas, a fotografia se mostrava cruel, já que revelava todas as
imperfeições do retratado. Esse foi um dos motivos que tornou urgente a criação
de uma artimanha para maquiar o realismo bruto da fotografia” (CHIODETTO, 2016,
p. 88). No nordeste brasileiro, essa forma de produção de retratos foi notadamente
incorporada a uma tradição familiar (RIEDL, 2002). Comumente ainda existem em
posição de destaque nas paredes dos lares nordestinos os retratos da matriarca e
patriarca da família.

Muito se estuda as questões antropológicas suscitadas por essas modificações da


imagem na fotopintura no sentido de criar novas ‘realidades’ que só se mostram pos-
síveis dessa forma, como por exemplo colocar no mesmo retrato um casal em frente
a uma igreja, com trajes de um casamento que nunca se concretizou, mas que foi um
sonho do casal. Ou mesmo o retrato post mortem14 de um ente querido que nunca
tinha sido retratado vivo, dando ao fotopintor o desafio e a responsabilidade de no
momento da pintura simbolicamente ‘abrir’ os olhos daquele retratado redesenhan-
do seus olhos com pincel e tinta.

Esse tipo de registro fotográfico mesclado com pintura tinha, ainda, um caráter uti-
litário e social, tal qual os retratos pintados da corte real em ritos de passagem nos
séculos passados. A proliferação desse tipo de representação emblemática, se trans-
formou em referência do passado, de valores, gostos, gestos, comportamentos. Por
conta do seu caráter simbólico, faz parte da construção de uma iconografia brasi-
leira. Relacionado ao reconhecimento instucional, vale mencionar que a partir de
2005 elas passaram a integrar o acervo do Centro Cultural Dragão do Mar no Ceará
e recentemente tem tido espaço em exposições no circuito da arte contemporânea
no Brasil e no exterior.

13 Trecho extraído da entrevista concedida por Júlio Santos, em 2013, ao programa Identidade
Cultural da TV Assembleia.
14 Também chamada Memento mori, são fotografia de pessoas mortas (RIELD, 2002). Surge logo
após o aparecimento da fotografia e se populariza de 1920 a 1950. A América Latina tem extensa
produção dessa modalidade de retratos ainda nos tempos atuais.

1294
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A transformação na Fotopintura de Mestre Júlio Santos: da fotopintura tra-


dicional à fotopintura contemporânea
Mestre Júlio Santos iniciou sua carreira como fotopintor na década de 1940, ainda
criança, no estúdio do pai. Aos 12 anos ele vivia num mosteiro beneditino com a mis-
são de tornar-se monge e foi passar as férias na casa do pai, que acabara de montar
um estúdio fotográfico. Munido pelo interesse de fugir daquele destino religioso e
pela profunda simpatia que tinha pelas artes, aprendeu nas férias todas as etapas do
ofício, abandonou o mosteiro e nunca mais parou. Por volta dos 16 anos, no auge da
técnica no Brasil, já coordenava, no Áureo Studio, uma equipe de 47 homens, que
trabalhavam em linha de produção de fotopinturas, onde cada um ficava respon-
sável por uma das etapas do processo (SANTOS, 2010, pp. 72-73): loteamento, re-
produção, contorno, ampliação, lavagem e colagem, base, retoque, roupa, afinação,
esbatimento, repasse15.

Em uma entrevista dada sobre sua transição para a fotopintura digital, Júlio Santos
(2016) revela as muitas mudanças tecnológicas que enfrentou mesmo no período
de predominância da fotografia analógica: “comecei reproduzindo em chapa de vi-
dro, depois mudou pro filme 6 X 6, que mudou pro 35mm, que mudou pro colorido,
depois pro digital. E aí? Se tivesse desistido no início tudo tinha se acabado”.

No início dos anos 2000, diante de um mercado predominantemente voltado para o


digital, a escassez de papéis fotográficos a base de gelatina e prata sobre papel fibra
obrigou Júlio a tentar diversas alternativas sem sucesso. Entre elas, o uso de papel
fotográfico preto e branco - atualmente chamado de papel de gelatina e prata - resi-
nado16, que apresentou grande dificuldade na aderência de pigmentos e tintas em

15 Correspondem, respectivamente: ao recebimento do pedido do vendedor ou organizador e di-


recionamento em lotes para a pintura; realização da cópia das fotos originais; destaque do rosto
no negativo reproduzido com tinta opaca, na mesa de luz, geralmente retirando partes do cabelo,
ombros, roupas e fundo; realização da cópia em positivo do negativo reproduzido em papel foto-
gráfico; após a revelação do papel fotográfico, a realização da lavagem para retirada de resíduos da
química, secagem e, depois, colagem num cartão; pintura da primeira camada no rosto e pescoço,
trabalhando o formato dos olhos e da boca e retoque de imperfeições como rugas, sombras, pele,
cabelo e luzes; colorização da maçã do rosto, olhos e sobrancelhas; desenho da roupa e adereços de
acordo com o que foi solicitado pelo cliente - itens como lenços e gravatas geralmente eram feitos
com um stencil criado por eles; trabalho em pontos mais claros e/ou irregulares como, por exemplo,
de retirada de manchas e/ou falhas com uso de lápis afiado ou estilete; remoção do excesso de tinta
(geralmente com borracha) e trabalho de criação de luzes nos cabelos, nos olhos e no fundo; revisão
do serviço para a entrega. (SANTOS, 2010)
16 “Na década de 1960, para melhorar a rigidez e a resistência do papel colorido em processado-
ras, diminuir tempos de processamento e evitar que absorvesse os líquidos do processamento, o
papel foi revestido com uma resina. Essa aplicação passou a ser utilizada também nos papéis bran-
co-e-preto, que ganharam o nome de papéis resinados (...) Essa impermeabilidade faz com que os

1295
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

sua superfície lisa e ‘plastificada’. Foram experimentados diversos tipos de tintas que
invariavelmente ‘craquelavam’ e soltavam do papel com o passar dos dias.

Na ocasião em que a falha no abastecimento de materiais nas lojas de fotografia já


dava sinais claros, Júlio chegou a relatar em entrevistas que se um dia precisasse ir
para trás de um computador, iria, sem problemas. O que ele escondia de todos e que
ele relatou em entrevista em 2016 é que naquela época ele só entendia “daquilo que
sabia fazer: esfuminho, tinta, pincel e pigmento. Só conhecia de textura, essa que
você pode pegar, dessa outra, a virtual não conhecia nada”17 .

Quando tinha por volta de 56 anos de idade e nenhuma familiaridade com compu-
tadores, um sobrinho de sua esposa se ofereceu para ensiná-lo a usar o computador
e o software Adobe Photoshop. Júlio explica como aconteceu o aprendizado: “quan-
do comecei a aprender a segurar aquilo e a manusear com aquilo (mouse), peguei
um caderno e comecei a tomar nota das minhas ferramentas aqui (aponta para ca-
valete), eu não me interessava nas (ferramentas) de lá (computador), mas o que ali
era o esfuminho, o que era o pincel, o que era a tinta, e o resto eu esqueço” 18. Em
20 dias ele já sabia lidar com o computador e, poucos dias depois, fez sua primeira
fotopintura digital. “Eu estava renascendo! E daí eu tive coragem de dizer para as
pessoas: - ‘Eu também faço isso’ (fotopintura digital)” (SANTOS, 2012, p. 9).

A interface e o software: a metáfora do cavalete e do laboratório


Acostumado com sua longa prática e formação analógica, Júlio procura negociar
uma tradução dos processos da fotopintura para o novo ambiente de trabalho.
Assim, esforça-se para entender o manejo do computador e da ferramenta digital
(Photoshop) a partir de um pensamento analógico tradicional. Essa relação com a
interface é, segundo Johnson (2001, p.17) “uma relação semântica, caracterixda por
significado”: “um computador pensa – se pensar é a palavra correta no caso – através
de minúsculos pulsos de eletricidade”, enquanto que “seres humanos pensam atra-
vés de palavras, conceitos, imagens, sons e associações”.

O percurso de traduções de Júlio parte, portanto, do reconhecimento do ambiente


computacional ao estabelecimento de analogias da interface com o programa de
edição das imagens – no caso dele, especificamente, o Adobe Photoshop. Em reflexão

tempos de processamento e a secagem sejam extremamente rápidos se comparados com o papel


convencional, que, por ser composto somente de fibras de celulose, é conhecido como papel fibra”
(SCHISLER, 1995, p. 91).
17 Entrevista concedida ao Sesc Belenzinho, em 2016, na ocasião da mostra Retrato Popular – do
vernáculo ao espetáculo.
18 Ibidem.

1296
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

sobre isso, e ainda de acordo com o pensamento de Johnson (2001, p.17), temos o fato
de que a revolução digital depende que o computador seja capaz de “representar-se
a si mesmo ao usuário, numa linguagem que este compreenda”. Nesse processo, “as
metáforas são o idioma essencial da interface gráfica contemporânea” e foram funda-
mentais, por exemplo, para a associação que Júlio fez entre o cavalete e as ferramentas
tradicionais com as digitais encontradas no Photoshop. A literacia que se estabelece
com essas metáforas justifica a ideia de Júlio quando este afirma com recorrência que
segue ‘a mesma lógica do analógico’19.

Em referência ao Photoshop, Júlio diz que nele ‘existem’ todos os reagentes químicos
que ele usava, todas as tintas possíveis, e todas as ferramentas. Ele conta que no
programa digital ele utiliza os mesmos ‘materiais’ e meios que usava no seu estúdio:
inicia com uma imagem em preto e branco, transforma em sépia, faz o colorido, o
retrato é retocado, afinado, ou seja, segue-se a mesma linha de produção da fotopin-
tura analógica (ver exemplo dos ambientes em fig. 1).

Fig. 1 - Os dois ambientes de trabalho: à esquerda, Júlio no seu cavalete; à direita, no computador,
fazendo uso do Photoshop. Fonte: <www.somosvos.com.br/a-intimidade-inacabada-do-outro-nas-
maos-de-mestre-julio>.

No livro Júlio Santos: mestre da fotopintura (2010) nos deparamos com sua linha de
produção de uma fotopintura digital: retrato inicial (fotografia digital ou digitalizada
com uso de scanners); o recorte - retirada do fundo para destacar o rosto; o rosto -
retoque dos detalhes afinando pontos do rosto: cabelo, olhos e boca; a roupa - acrés-

19 Menção presente em grande parte das entrevistas concedidas sobre fotopintura contemporânea,
como também, livros e catálogos. A exemplo desses, a entrevista no Identidade Cultural da TV Assem-
bleia (2013) e a publicação Júlio Santos: mestre da fotopintura (2010) .

1297
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

cimo de roupa, como a camisa e a gravata; afinando - finalização do detalhamento


aplicando-se sombras e luzes na roupa, que se refletem na elaboração da luz do fun-
do; e o fundo - criação e pintura do fundo. Em uma rápida comparação com a linha
de produção tradicional (apenas analógica) nota-se que os termos partem do plano
da linguagem técnica (ampliação, esbater, lavagem, etc) para o plano do conteúdo,
isto é, do elemento de atenção no retrato (rosto, roupa, fundo). Além disso, é possível
perceber uma possível redução de etapas em relação à fotopintura tradicional. Isto,
no entanto, não quer dizer que não haja mais variações na linha de produção de sua
fotopintura digital. Percebe-se ainda que a execução das tarefas, que na fotopintura
tradicional era dividida de acordo com a especialidade de uma equipe de trabalha-
dores; no digital passam a ser desempenhadas praticamente por uma só pessoa.

Sobre a reinterpretação das ferramentas, temos em Júlio uma ideia recorrente: não
se deve levar os instrumentos do Photoshop ‘ao pé da letra’. Segundo ele20 é preci-
so achar a ferramenta que faça a mesma função, mesmo que ela não tenha o mes-
mo nome. O artista aponta que o trabalho de retoque, por exemplo, feito no modo
de ampliação tradicional, não é conduzido da mesma forma na fotopintura digital.
Acontece que o programa digital simula várias operações de edição fotográfica quí-
micas e laboratoriais, dentre elas, as técnicas manuais de ‘dodging (subexposição)
e burning in (superexposição)’21, que passam para as ferramentas digitais de dodge
(clarear áreas da imagem) e burn (escurecer áreas da imagem) (ver figs. 2 e 3).

De acordo com Júlio, “o que acontece hoje é que o pessoal que trabalha com Pho-
toshop usa pincel para retocar. Sabe quando que isso vai funcionar? Nunca. O que
vai funcionar é a superexposição e a borracha. Dessa forma você poderá acentuar
as feições de cada retrato e depois fazer os acertos nos olhos, no nariz, na boca”22.
Diante disso, percebemos que a lógica dele de “pintar” a fotografia no computador
não segue o sentido do traço da pintura e do desenho (real, digamos assim) propos-
to pelo “pincel” e “lápis” no Photoshop, mas a lógica da fotografia, especificamente
relacionada ao momento da ampliação da fotografia analógica.

20 Entrevista concedida por Júlio Santos, em 2013, ao programa Identidade Cultural da TV Assembleia.
21 Processo realizado durante a ampliação de cópias fotográficas analógicas em que ”após deter-
minar os tempos (de exposição à luz) para toda a cópia, amplia-se a partir do menor tempo, e vai
se somando (queimando ou burning in) os tempos subsequentes. Por outro lado, pode se dar o
tempo total (de exposição à luz), e antes de completar essa exposição ir segurando (dodging) a luz
em diversos lugares pelo tempo predeterminado” (SCHISLER, 1995, p.161). Esse procedimento pode
ser feito utilizando cartões, instrumentos ou as mãos para criar as sombras na projeção de luz sobre
o papel fotossensível.
22 Ibidem.

1298
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fig. 2 - À esquerda, menu do Photoshop CS6 com destaque para o ícone da ferramenta Dodge;
à direita, essas ferramentas anteriormente como técnicas no laboratório fotográfico, feitas de
maneira manual. Fonte: <www.iso.500px.com/before-photoshop-darkroom-post-processing-
techniques-demonstrated>.

Fig. 3 - À esquerda, menu do Photoshop CS6 com destaque para o ícone da ferramenta Burn;
à direita, essas ferramentas anteriormente como técnicas no laboratório fotográfico, feitas de
maneira manual. Fonte: <www.iso.500px.com/before-photoshop-darkroom-post-processing-
techniques-demonstrated>.

1299
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A constante busca pelo aperfeiçoamento na utilização das ferramentas tem um pa-


pel fundamental na passagem dos processos analógicos para digitais. Segundo Sen-
nett (2009, p. 217), isso

ocorre, em parte, quando elas nos desafiam, e esse desafio muitas vezes acontece precisamen-
te porque as ferramentas não são adequadas à sua utilização. Podem não ser muito boas, ou
então é difícil entender como usá-las. O desafio aumenta ainda mais quando somos forçados
a utilizar ferramentas para consertar alguma coisa ou corrigir erros. Seja na criação ou no con-
serto, o desafio pode ser enfrentado mediante a adaptação da forma da ferramenta, ou então
improvisando com ela tal como se apresenta, utilizando-se de maneiras para as quais não foi
concebida. Seja qual for a utilização que lhe demos, aprendemos alguma coisa com a precarie-
dade da ferramenta.

A questão do arquivo: imagens de imagens e montagens


Vimos anteriormente que Júlio precisou reinventar seu procedimento e descobrir
formas de trabalhar em novos meios. Parte crucial de seu desafio foi encontrar a
ferramenta análoga para simular a melhor metáfora visual. A mudança na ferramen-
ta permitiu algumas novidades na visualidade das imagens construídas por mestre
Júlio. Analisando algumas de suas fotopinturas atuais nota-se que apesar dela trazer
parte do conteúdo icônico e simbólico característico nesse tipo de representação,
como a uniformidade no tom de pele, cores de fundos que utilizam a mesma paleta
de antigamente, o contorno dos cabelos esfumaçados, a ficção de contextos sociais
e econômicos, algumas imagens passam a carregar similaridades com a técnica da
colagem. Atentando-se ao vestuário e joalheria de algumas fotos atuais, percebe-se
que diferente das fotopinturas tradicionais, em que o artista precisava recriar com-
pletamente a roupa com tintas e pigmentos, nas atuais, por vezes utiliza-se o recurso
de colar ao corpo do modelo uma roupa fotografada anteriormente. Mantém-se o
cuidado com a perspectiva e a proporção, mas a nitidez de algumas peças ofusca
(ver figs. 4 e 5). As texturas de vestidos e paletós são marcadamente recortadas de
outras fotografias para compor algumas fotopinturas contemporâneas. O observa-
dor acostumado com a visualidade da fotopintura analógica depara-se com um pa-
radoxo temporal: vê-se uma imagem onde alguns elementos estéticos nos remetem
à uma forma de representação do passado, mas a nitidez da vestimenta e dos aces-
sórios nos arremessa novamente ao presente.

1300
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Fig. 4 e 5 - À esquerda fotopintura analógica a ser restaurada; à direita fotopintura restaurada


digitalmente. Fonte: Catálogo da exposição Interior Profundo, pp. 58-59.

Em acréscimo a essa percepção está o que parece seguir uma produção de monta-
gens na fotopintura digital de Júlio. Em sua análise sobre a exposição Retrato Popular
(2016), Wagner Lungov (2016) chega a comentar sobre a incorporação do tratamen-
to digital dado pelo artista: “a possibilidade de rapidamente localizar seu retratado
em interiores de revistas de decoração ou outros cenários mais inusitados, parece
estar valendo o esforço de uma adaptação visual a este novo tipo de acabamento”
(ver, por exemplo, figs. 6 e 7). O que para Lungov tem o custo de gerar certo estra-
nhamento para quem está acostumado com a fotopintura tradicional.

Fig. 6 e 7 - Dois trabalhos de fotopintura contemporânea do mestre Júlio em que há montagens


que incorporam cenários de outras imagens. Fontes (respectivamente): <www.g1.globo.com/sao-
paulo/noticia/2016/05/exposicao-retrato-popular-em-sp-resgata-fotos-e-tradicoes-do-nordeste.
html> e <www.apenasimagens.com/pt/retrato-popular-beleza-real>.

1301
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Em outros casos, as imagens partem da colagem de um rosto fotografado digital-


mente ou escaneado de uma foto analógica, e a roupa é uma pintura digitalizada.
Ver uma imagem como essa reproduzida num livro torna a identificação do procedi-
mento bastante difícil de analisar. A imagem impressa nos livros não oferece muitas
pistas materiais. A melhor forma de identificar o método utilizado seria observar o
relevo do objeto fotográfico, do artefato, da superfície em que a imagem está repre-
sentada: enquanto na fotopintura tradicional o papel recebe camadas de tinta e pig-
mentos em sua superfície, a digital tem as camadas (layers) achatadas pelo software
e a superfície uniformizada pela posterior impressão (ver figs. 8 e 9).

A materialização do arquivo final das fotopinturas digitais de Júlio Santos atualmente


é realizada em alguma das duas versões: a de baixo custo, feita pela revelação em pa-
pel fotográfico resinado colorido processadas em minilabs23; e a versão mais dispen-
diosa, através de impressão de jato de tinta com pigmentos minerais sobre papel de
algodão. O que invariavelmente se perde nessas saídas dos arquivos digitais é o gesto
do artista, que não fica mais visível em camadas sobrepostas de tintas e pigmentos na
superfície do papel. Da mesma forma que o autor trabalha com arquivos numéricos
facilitados pela interface gráfica que simula o gestual do fotopintor, a impressora tam-
bém realiza uma tradução da imagem numérica em pontos justapostos de tinta sobre
o papel, que recebe uma camada uniforme de pigmento no momento da impressão.

Fig. 8 e 9 - Fotopintura contemporânea (esquerda) realizada a partir de fotografia PB digitalizada


(direita). Fonte: SANTOS, 2010, pp. 56-57.

23 Máquinas que projetam negativos ou arquivos digitais sobre papel fotográfico resinado colorido,
que depois da exposição à luz passa, ainda no interior da máquina, por diversos banhos químicos
para ser revelado fixado e lavado.

1302
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Considerações
Uma fotopintura traz nas suas camadas “uma visualidade que tende a ser mais cria-
tiva e idealizada” (CHIODETTO, 2016, p. 89) ligada à pintura, e outra, de base foto-
gráfica que serve como espécie de parâmetro limitador da criatividade excessiva do
fotopintor. Ao mesmo tempo em que lida com as diretrizes visuais fornecidas pela
matriz ou cópia fotográfica, as práticas da fotopintura também envolvem etapas de
edições da própria fotografia inicial no sentido de alinhamento com o retrato ide-
alizado. Essa qualidade de criar versões é observada tanto no processo analógico,
como no digital. Sendo que este último vem a corroborar mais ainda com o aspecto
de inacabamento da imagem uma vez que sua própria essência tende para a fluidez
(SOULAGES, 2017) e a manipulabilidade pura.

Ao conseguir migrar para a produção da fotopintura digital Mestre Júlio não apenas
levou adiante seu trabalho e com isso resgatou sua autoestima, mas também a fo-
topintura e a dignidade de uma profissão que acabou em todos os outros lugares
do mundo, e se mantém viva com ele. Com isso, estipula uma nova configuração de
sua prática entre as lógicas do código analógico e digital a qual chega a chamar de
fotopintura contemporânea.

Talvez, o que faça essas imagens continuarem a ser identificadas como fotopinturas
ultrapasse a questão material do objeto fotográfico, e diga mais respeito ao conte-
údo simbólico das ficções construídas a partir do desejo do retratado. Nesse sen-
tido, Mestre Júlio permanecerá construindo e dando forma às ficções que nascem
do desejo íntimo do retratado, independente das ferramentas, dos materiais e dos
suportes que ele venha a utilizar.

Referências
Baqué, D. (2003). La fotografia plástica. Barcelona: Gustavo Gili SA.

Bellour, R. (1997). Entre imagens. São Paulo: Papirus.

Bolter, J. D. & Grusin, R. (2000). Remediation: understanding new media. Cambridge:


MIT Press.

Chiodetto, E. (2011). Coleção de Fotopinturas de Titus Riedl. In: Arte brasileira além
do sistema. São Paulo: Galeria Estação. Disponível em: <http://www.galeriaestacao.
com.br/exposinternas/21#prettyPhoto>, último acesso em: 02 de Setembro de 2019.

Colapietro, V. (2016). Os locais da criatividade: sujeitos fissurados, práticas entrelaça-


das. In Jornalismo expandido: práticas, sujeitos e relatos entrelaçados. Pinheiro &
Salles (org.) São Paulo: Intermeios.

1303
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Couchot, E. (1993). Da representação à simulação. In Imagem-máquina: a era das tec-


nologias do virtual. André Parente (org.). Rio de Janeiro: Ed. 34.

Crawford, W. (1979). The keepers of light: a history and working guide to early photogra-
phic processes. New York: Morgan & Morgan.

Fatorelli, A. (2017). Notas sobre a fotografia analógica e digital. In Discursos fotográfi-


cos, Londrina, v. 13, n. 22, pp. 52-68.

Fernandes, R. J. (2002). A fotografia expandida. Tese (Doutorado em Comunicação e


Semiótica) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Fernandes, R. J. (2006). Processos de criação na fotografia. FACOM 16.

James, C. (2001, 2015). The book of alternative photo processes. 1a ed. & 3a ed. Cen-
gage Learning.

Johnson, S. (2001). Cultura da interface: como o computador transforma nossa manei-


ra de criar e comunicar. Maria Luisa X. (trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

Kossoy, B. (2001). Fotografia & história. São Paulo: Ateliê Editorial.

Lévy, P. (1993). As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da infor-


mática. Rio de Janeiro: Ed. 34.

Linsker, R. (2016). Estes outros: fotopinturas da coleção de Titus Riedl. Texto: Eder Chio-
detto. 1.ed. - São Paulo: Terra Virgem.

Lungov, W. (2016). Retrato popular, em paz com a fantasia. Disponível em: <https://
apenasimagens.com/pt/retrato-popular-beleza-real>, último acesso em: 07/2019.

Machado, A. (2000). Repensando Flusser e as imagens técnicas. 1997. In Boletim Flus-


ser, n° 2. In: Vilém Flusser no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará.

Manovich, L. (2006). Image future. Disponível em: <www.manovich.net>, último


acesso em: 05 de Março de 2019.

Mendes, R. (2017). Brasil e a prática de processos históricos da fotografia, uma perspec-


tiva. In palestra proferida para o Imagineiro, Casa Ranzini, São Paulo. Conteúdo dis-
ponível em: <https://m.youtube.com/playlist?list=PLL-1Nkmsk05zRetwnzz_F9Rh-
-0f8nhiN9>.

Parikka, J. (2017). Arqueologia da mídia: interrogando o novo na artemídia. In Intexto


(UFRGS), n. 39, pp. 201-214.

1304
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Rexer, L. (2002). Photography’s antiquarian avant-garde: the new wave in old processes.
Nova Iorque: Harry N. Abrams.

Riedl, T. (2002). Últimas lembranças: retratos da morte no Cariri, região do Nordeste Bra-
sileiro. São Paulo: Annablume.

Rolim, V. (org.). (2011). Retrato Popular. Beatriz Figueiredo (trad.); autores Titus Riedl .
[et AL.]. – Fortaleza: IACC.

Rouillé, A. (2009). A fotografia: entre documento e arte contemporânea. São Paulo: Edi-
tora Senac.

Salles, C. (2006). Redes da criação: construção da obra de arte. Vinhedo: Ed. Horizonte.

Salles, C. (2011). Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Annablume.

Santaella, Lucia (2003). Cultura e artes do pós-humano: da cultura das mídias à ciber-
cultura. São Paulo: Paulus.

Santos, J. (2010). Júlio Santos: mestre da fotopintura / Júlio Santos. Fortaleza: Tempo
D’Imagem.

Santos, J. (2012). Interior Profundo: Mestre Júlio Santos, Fotopintura. Catálogo de Ex-
posição; autores Diógenes Moura, Rosely Nakagawa ... [etc]. São Paulo: Pinacoteca
do Estado de São Paulo.

Schisler, M. W. L. (1995). Revelação em preto-e-branco: a imagem com qualidade. São


Paulo: Martins Fontes.

Sennett, R. (2009). O artífice, Richard Sennett. Clóvis Marques (trad.). 2a Ed. Rio de
Janeiro: Record.

Soulages, F. (2017). A fotograficidade: como reflexão sobre as imagens (de imagens). In


Revista Farol, n. 18, pp. 142-151.

Young, M. (2006). The past is the new future. In Afterimage, New York, v. 33, n. 6.

Zielinski, S. (2006). Arqueologia da Mídia: em busca do tempo remoto das técnicas do


ver e do ouvir. Carlos D. Szlak (trad.). São Paulo: Annablume.

Outras referências

Santos, J. (2016). A intimidade inacabada do outro nas foto-pinturas de Mestre Júlio. En-
trevista concedida à plataforma Vós. Disponível em: <www.somosvos.com.br/a-inti-
midade-inacabada-do-outro-nas-maos-de-mestre-julio/>, último acesso: 06/2019.

1305
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Júlio Santos: o mestre da fotopintura. Sesc Belenzinho. (2016). Disponível em: <www.
youtube.com/watch?v=DLA1CzUB3Fc>.

Identidade Cultural - Especial Mestre Júlio Fotopintura. TV Assembléia Ceará. (2013).


Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=u1L31OgD83s>.

1306
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Teresa Luzio1

Estudo sobre o auto-apagamento (auto-registos)


Study about self-erasing (self-recording)

Resumo
A partir da leitura do conto “Um artista da fome” de Franz Kafka, reflito sobre o
desejo de auto-apagamento, e de que modo a performance pode ser uma prá-
tica para o seu exercício. A leitura do conto e de textos de apoio (Carlos, Men-
donça, Groys, Cohen), sugestionaram um conjunto de imagens mentais úteis
quer para a escrita deste texto, quer para a criação de auto-registos em vídeo.
Os auto-registos enquanto parte de um processo performativo assistem na
compreensão do auto-apagamento como um conceito prático dentro do pro-
cesso criativo, e enquanto uma possibilidade para afetação através do corpo.
Auto-apagamento, performance art, auto-registos

Abstract
From the reading of Franz Kafka’s short story A hunger artist, I reflect on the desire
for self-erasing, and how performance art can be a practice for its exercise. The
reading of the story and supporting texts (Carlos, Groys, Cohen) suggested a set of
mental images useful both for the writing of this text and for the creation of video
self-recordings. The self-recordings as part of a performative process assist in un-
derstanding self-erasing as a practical concept within the creative process, and as a
possibillity for affectation through the body.
Self-erasing, performance art, self-registration

1 Teresa Luzio (1976) é artista, professora e investigadora na área da performance art, com formação entre
Portugal e Alemanha. É doutorada em Performance pela FBA.UP e professora adjunta na ESAD.CR.
Os vídeos analógicos e fotografias são vestígios das suas performances, caracterizadas pela ausência
de audiência, ou a sua presença é ocasional. Recentemente tem vindo a explorar o corpo como lugar
de imanência através de pesquisa em Matridança (Vera Eva Ham), Composição em Tempo Real (João
Fiadeiro) e Butoh (Yumiko Yoshioka).

1307
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Franz Kafka escreve um conto2 intitulado Um artista da fome onde nos relata a his-
tória de um artista cuja arte é jejuar3. É possível visitar a sua jaula que de tempos a
tempos viaja por vários países Europeus podendo assim chegar a um maior número
de pessoas e com isso tornar-se o “maior artista da fome de todos os tempos (Kafka,
2015, pp. 27).” Em cada tournée o artista jejua quarenta dias, período em que termi-
nando o jejum, o seu empresário oferece uma festa assinalada pelo momento solene
da abertura da jaula e onde se espera que o artista saia e coma uma refeição para
celebrar o fim do seu jejum. No entanto o artista da fome recusa-se a comer e a festa
torna-se um evento angustiante para o artista, com o empresário a tentar a todo o
custo prosseguir com a encenação sem que o público se aperceba do tormento. O
artista prossegue a sua vida e a sua arte de jejuar, devastado por uma tristeza cada
vez mais visível no seu comportamento, acompanhado de alguns episódios de ira
quando por vezes alguém lhe tenta explicar que o seu jejum é, provavelmente, a
origem da sua tristeza. No entanto além da sua tristeza existe uma certa esperança4
de encontrar um alimento que o satisfaça, muito porém isso não chega a aconte-
cer. Somos então convidados a refletir sobre as suas motivações quando os guardas
que vigiam a sua jaula, e algum público que regressa ao espetáculo, desconfiam da
autenticidade do seu jejum. Estas suspeitas geram desconfiança no artista da fome
em relação ao mundo: “era ele portanto o único espetador capaz de se satisfazer
plenamente com o seu jejum (Kafka, 2015, p. 26).”

Ser-se espetador de si próprio surge de uma incompreensão, no entanto convoca a so-


lidão do processo criativo e um propósito de auto-satisfação nesse processo. Presen-
ciar o seu jeum está próximo das performances da body art, na década de 60 e 70, em
que os artistas sujeitaram o corpo a uma série de limites de ordem física, psicológica e

2 O conto Um artista da fome foi reunido depois da morte do autor e publicado em 1924. A sua
publicação para a língua portuguesa data de 2015, com tradução de José Maria Vieira Mendes e
editado pela editora Bertrand.
3 O jejum é uma privação de alimento que pode ter períodos de duração variáveis e que em deter-
minados contextos possui dimensões distintas. No contexto religioso o jejum leva a um caminho
de meditação profundo e implica alguma espécie de renovação de fé e naturalmente de sentido
para a vida. Em termos políticos o jejum é um ato de alguma radicalidade em que o jejuador torna
publico o seu jejum como forma de reivindicar, chamar a atenção para alguma questão de ordem
social, ética, moral, etc. A fome é ainda uma realidade para cerca de 820 milhões de pessoas em todo
o Mundo, dados pesquisados em https://news.un.org/pt/story/2019/07/1680101 [acedido a 02-09-
2019]. Kafka terá escrito este conto na fase final da sua vida, momentos em que sofria de desnutrição
provocada pela doença, o que terá sido também a causa da sua morte.
4 O artista vivia com a esperança de encontrar o alimento que o satisfizesse manifesto em passagens
do texto como: “(...) e apesar de tudo o artista da fome continuava a jejuar como em tempos sonhara
(...) (Kafka, 2015, p. 34)”. E ainda “(...) mas nos seus olhos desfeitos permanecia a convicção, já não
orgulhosa mas ainda firme, de que continuava a jejuar (Kafka, 2015, p. 36)”.

1308
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

emocional afastando a performance de qualquer ideia de representação. Do mesmo


modo o artista da fome não procura representar nenhum papel além dele mesmo,
porque o seu corpo é ele próprio o autor, a obra e o conteúdo, estamos perante uma
ideia de não-representatividade e do corpo como veículo de significação (Cohen). A
performance separa-se da ideia de manufatura de um produto, para uma ideia da arte
como um processo que se identifica com a vida (Carlos). A referência a uma auto-satis-
fação e observação de si convoca a um processo de desdobramento também possível
na prática da performance, porque enquanto “atuamos existe um lado nosso que “fala”
e outro que observa. (...) nessa situação paradoxal os dois extremos se tocam: eu não
sou mais “eu” e ao mesmo tempo eu não represento (Cohen, 2011, p. 96).” Esta consi-
deração de Cohen dá-se como um encontro para prosseguir com o meu desejo pelo
auto-apagamento: dentro do movimento de um processo criativo em performance
existem procedimentos subtis de dessubjetivação.

Esboço 1 – esboço para filme S8

Com o passar do tempo, as marcas do jejum tornam-se cada vez mais evidentes no
corpo do artista da fome. Porque o jejum acontece no corpo. A sua tristeza e magre-
za seriam também consequência da incompreensão do público e do próprio empre-
sário, por estes não abarcarem a complexidade da sua arte. No conto Kafka contorna
aspetos sobre as relações complexas entre artista, obra e público, mas sobressai uma
reflexão humana quando no fim do conto conhecemos a razão profunda do jejum
do artista. O artista da fome não procurava admiração, nem aplausos, prosseguia
com o seu jejum por não ter encontrado um alimento que o motivasse a querer vi-
ver: “porque eu não encontrei o alimento de que gostasse. Se o tivesse encontrado,
acredita que não teria chamado tanto a atenção e que me teria empanturrado como
tu e todos (Kafka, 2015, p. 36)”. Dessa forma fez do seu jejum físico o seu modo de
vida e a sua arte, culminando na sua morte. O conto leva-nos a meditar sobre a nossa

1309
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

própria satisfação com o que nos “alimenta”, porque não se morre apenas do jejum,
mas de viver uma vida triste ou sem motivações para a vida.

Num outro livro Elogio da sede5 José Tolentino de Mendonça percorre alguns mo-
mentos da vida de Cristo para nos convidar a meditar sobre o que significa nos dias
de hoje ter sede, e o que é que ela nos pode ensinar. Ter sede e jejuar são privações
que levantam muitas perguntas que não consigo iniciar a formular, no entanto há
uma dimensão espiritual que o artista da fome apela, e está presente no convite das
palavras de Tolentino: “Se a sede nos incomoda ou nos devora, façamos da sede um
caminho (Tolentino, 2018, p. 107)”. Mesmo vivendo uma vida triste, resultado da
incompreensão da sua expressão no mundo, o artista da fome acreditava que era
capaz de jejuar muito mais, e isso diz-nos que mesmo na privação há um sentido de
esperança. Para Tolentino a privação leva-nos a escavar no vazio da nossa alma. Mas
o artista da fome não viveu uma vida vazia, mesmo sem o seu alimento encontrou
um sentido para a vida. A metáfora da performance do jejum, ou a provação de algo
no nosso próprio corpo como a sede, serve-nos como um exercício para escavar no
vazio interno, uma forma de praticar a arte, a vida e a morte, aproximando-nos da
ideia de Montaigne, de que praticar a morte é um caminho para viver uma vida livre.

Esboço 2 – esboço para filme S8

Desde as primeiras vanguardas artísticas que os artistas usam o corpo como meio para
criar ruturas com os meios artísticos mais tradicionais, e interrogar e substituir o estatu-
to de obra de arte pela fixação de um discurso de reação ao mundo. Estas performances

5 Elogio da sede é uma obra publicada em Abril de 2018 que reúne os textos e reflexões que o poeta,
teólogo e sacerdote José Tolentino Mendonça proferiu durante a Cúria Romana, pela altura da Quaresma.
Os textos foram assistindo o Papa Francisco e os cardeias como reflexões espirituais durante esse período.

1310
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

foram marcadas por movimentos de expressão interdisciplinar, em que as artes visuais,


a dança, a música, o teatro se misturavam e transgrediam as suas próprias convenções.
Segundo Boris Groys, no texto The weak universlim, este período está referenciado com
o progresso tecnológico, a máquina a intensificar a destruição do velho mundo, e a
arte era uma forma de resistência ao estado das coisas.6 Os artistas configuraram a arte
idealizando “imagens pobres, fracas e vazias que perpetuassem (Groys, 2010, p.6)” 7 no
tempo, através da “redução” das formas, cores, e representação. A arte representava o
mundo em que viviam: um mundo transitório sujeito à permanente mudança. Groys
convida-nos a pensar a repetição de “gestos fracos e transcendentes” das vanguardas
como uma forma de “produzir simultaneamente clarividência e confusão para resistir à
permanente mudança da história e à falta de tempo crónica (Groys, 2010, p.10)” 8. Mas
se na prática repetir esses gestos podem levar-nos a algum tipo de esvaziamento da
alma, também nos tornarm mais permeáveis, para que sejamos atravessados por eles. E
talvez possa fazer-se um caminho para viver de outras formas que não imaginávamos.

Dentro das práticas do corpo contemporâneas tenho afinidade com as práticas de


experiência somática com origem no período das vanguardas, nomeadamente o
butoh9. O butoh atua no campo inverso à representação, diferente de um corpo em
narrativa ou de exibição de perícia técnica, a sua “capacidade e sensibilidade corpo-
ral, é amplamente utilizada para incorporar objetos materiais, imagens e colagens
poéticas (Fraleigh, 2010, p. 48)”10. A incorporação tem algo de visceral e de sombrio
(como tantas vezes vemos o butoh associado) porque o corpo é uma passagem para
que ele se torne outras coisas, e transite entre estados físico, espacial, e estado de
espírito. O corpo em butoh move-se no “espaço entre” (ma em japonês), o corpo cria

6 Tradução livre: “The avant-garde perceived the forces of progress as predominantly destructive
ones” (Groys, 2010, p.05).
7 Tradução livre: (...) to create images that seemed to them to be so poor, so weak, so empty, that
they would survive every possible historical catastrophe.
8 Tradução Livre: (...) because every such repetition of the weak, transcendental gesture simulta-
neously produces clarification and confusion. (...) that is why the avant-garde cannot take place once
and for all times, but must be permanently repeated to resist permanent historical change and chro-
nic lack of time (Groys, 2010, p.10).
9 Tem sido pelo butoh que tenho desenvlvido um método para a criação de performances, possível
através de formações com a coreógrafa e bailarina Yumiko Yoshioka. O Butoh é uma forma de dança
com origens no Japão na década de 50, que tem como característica principal ser metamórfica, ou
seja o corpo do artista, bailarino ou performer, move-se no espaço entre. Uma forma de aceder a
espaços subtis para incorporar imagens e expandir o corpo para outros lugares internos desconhe-
cidos. O butoh terá sido inspirado também pelos movimentos vanguardistas como a dança expres-
sionista alemã, surrealismo, etc, (Fraleigh).
10 Tradução Livre: Its experiential somaticity, defined in bodily sensibility and capacity, is widely cast
to incorporate material objects, images, and poetic collages.

1311
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

espaço, esvazia-se das experiências pessoais, algo o move. Um corpo que se exercita
em apagamento incorpora e renuncia ao ego, tornando-se o objeto de afetação e o
meio previligiado para a constituição de subjetividade (Phelan).

Esboço 3 – esboço para filme S8

Os exercícios são apresentados sob a forma de vídeos super 8 para dar visibilidade e
materialidade às imagens que me iam sendo sugestionadas pelas leituras e escrita
deste texto. A designação de exercício aproxima-se da ideia de gerar movimentos
para uma performance, diferente da ideia de guião ou ensaio para a performance.
Estes exercícios registados em super 8 são autónomos da performance que preten-
do realizar ao vivo11, porque naturalmente há outras questões a considerar referente
a decisões de corporalidade, espacialidade, temporalidade, etc. No entanto gerar
exercícios diz respeito também a uma necessidade de gerar vídeos, imagens, regis-
tadas por mim própria, para que estes me possam servir para o processo da per-
formance. Os vídeos “auto-registos” são parte de um processo de subjetivação que
pretendo levar a cabo na própria performance, através da exposição dos auto-regis-
tos ao meu corpo. Contudo, não é apenas a ação performativa que expõe o corpo.
O meu corpo que observa os “auto-registos” também é um corpo exposto porque se
deixa afetar pelos restos do corpo na imagem. Este ponto é o caminho estrutural da
minha performance: compor uma relação de auto-apagamento entre o meu corpo e
a imagem do meu corpo nos auto-registos.

11 A performance ao vivo acontecerá em local e periodo a determinar.

1312
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A natureza da relação entre a performance (efémera) e a imagem (representação)


é uma relação evidente, por exemplo quando por via da imagem-documentação
reconhecemos a existência de performances que não presenciamos, e com rigor
qualquer corpo em ação num determinado lugar será sempre parte de um conjunto
de convenções de representação, desse mesmo tempo e lugar. A dimensão estética
que abarca decisões de ordem técnica, formal, processual e conceptual, não está
separada desta relação efémero-representação, como é o caso das performances do
artista Vito Acconci que na década de 70 desenvolveu um trabalho pioneiro na per-
formance art. Acconci registava ações que desenvolvia para a câmara e a documen-
tação era um elemento constitutivo da performance, estava vinculado com a forma
como pensou a sua prática de performance:

“O meio apropriado é o filme/fotografia (quer o filme/fotografia seja ou não utilizado): Eu estou


em pé de frente para uma câmara - a câmara está a apontar para mim, a câmara dispara (lite-
ralmente) dispara para mim - o tempo todo, eu posso estar a fazer o que a câmara está a fazer,
eu posso estar a apontar para mim mesmo. Acima de tudo, a moldura do filme que se está a
formar separa a minha atividade do mundo exterior, coloca-me num quarto isolado (num quarto
de meditação onde eu posso estar - tenho de estar - sozinho comigo mesmo). (...) Isto pode ser
entendido como “performance” no sentido de “algo que se está a cumprir” (realização de um eu,
uma imagem, um objeto) (Aconci, como referido em, Stiles & Selz, 1996, p.762)”. 12

Os seus auto-registos são fotografias ou filmes que realiza enquanto performance,


escapando ao que Susan Sontag referia sobre a fotografia ser um signo de não inter-
venção: ao fotografar, o fotógrafo não pode intervir, ao intervir, não pode fotografar.
Parece-nos que a noção de “auto-registo” proposta por Acconci contorna a fatalida-
de desta condição: ser espetador de si próprio é uma forma de intervir sobre si, (a
lembrar o artista da fome).

Três auto-registos a preto e branco. Luminosidade contrastante, ainda que difusa.


O meu corpo surje na moldura quadrada da imagem e estou a movimentar-me em
frente à câmara. Os movimentos geram tensão no corpo, contraindo, constrangendo
o ar a entrar. E retenho. Deixo de seguida o ar entrar devagar para que este ocupe o
corpo. E recebo com satisfação o prazer do ar que respiro. E volto a repetir.

12 Tradução Livre: “The appropriate medium is film/photo (whether or not actual film/photo is utili-
zed): I’m standing in front of a camera - the camera is aiming at me, the camera is (literally) shooting
me - all the while, I can be doing what the camera is doing, I can be aiming in on myself. Over all,
the film frame being formed separates my activity from the outside world, places me in isolation
chamber (a meditation chamber where I can be - have to be - alone with myself ). (...) This can be
defined as “performance” in the sense of “something accomplished” (the accomplishing of a self, an
image, an object).”

1313
Praxis e Poiesis:
da Prática para a Teoria #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Esboço 4 – esboço para filme S8


*Todas os esboços presentes no texto são da minha autoria, referentes a
momentos de tensão e libertação. Testes para o filme super 8. Em breve em
http://cargocollective.com/teresaluzio/Study-about-self-erasing-2019

Referências
Carlos, I. (1991). “The Radicalisation of Modernity” in RisK: Experiments. Art Centre
Vooruit, Ghent

Carlos, I. (1992). Performance ou a Arte num Lugar Incómodo. Faculdade de Ciên-


cias Sociais e Humanas - Universidade Nova de Lisboa. Lisboa: Universidade Nova
de Lisboa.

Cohen, R. (2011) Performance como Linguagem. São Paulo: Editora Perspectiva.

Groys, B. (2010). The Weak Universalism. Journal #15, in https://www.e-flux.com/


journal/15/61294/the-weak-universalism/ [acedido a 07-01-2019]

Kafka, F. (2015) O Artista da Fome e Outros Textos. 11x17, Lisboa

Mendonça, J. T. (2018). Elogio da Sede. Quetzal Editores, Lisboa

Montaigne, M. (1998). Ensaios. Relógio D’Água, Lisboa

Phelan, P. (1993). Unmarked: The Ontology of Performance. Routledge, London

Stiles, K., & Selz, P. (1996) Theories and Documents of Contemporary Art. A Sour-
cebook of Artist’s Writings. California: University of California Press.

Fraleigh, S. (2010). Butoh. Metamorphic Dance and Global Alchemy. Board of


Trustees, University of Illinois, US

1314
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

artigos / papers
EDIÇÃO BRASÍLIA

ANAIS

1315
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

José Antônio Loures1

Aperte “círculo” para sexo: uma análise sobre a sexualidade


interativa em God of War
Press “circle” for sex: an analysis of interactive sexuality in God of War

Resumo
O artigo apresenta e problematiza as cenas sexuais presentes na série God of
War (2005 – 2018). Discute a funcionalidade da sexualidade em seu gameplay,
e também em aspectos visuais, sonoros e interativos dos jogos do esparta-
no Kratos. Também aborda a representação de Kratos através da comunidade
LGBT em sites dedicados a artes feitas por fãs, e suas contradições e relações
com a proposta de um protagonista criado para reafirmar a heteronormativi-
dade. Por fim, apresenta polêmicas envolvendo God of War com temas LGBT e
o posicionamento dos seus criadores.
Palavras-chave: God of War; sexualidade; fanarts; representatividade; heteronor-
matividade.

Abstract
From the reading of Franz Kafka’s short story A hunger artist, I reflect on the desire
for self-erasing, and how performance art can be a practice for its exercise. The
reading of the story and supporting texts (Carlos, Groys, Cohen) suggested a set of
mental images useful both for the writing of this text and for the creation of video
self-recordings. The self-recordings as part of a performative process assist in un-
derstanding self-erasing as a practical concept within the creative process, and as a
possibillity for affectation through the body.
Keywords: God of War; sexuality; fanarts; representativeness; heteronormativity.

Quem é o Bom de Guerra?


A série de ação e aventura God of War (2005 – 2018) se popularizou no Brasil devido
alguns motivos: pirataria, violência e gameplay. O Playstation 2 recebeu os primeiros

1 José Antônio Loures é doutorando no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais pela Universidade
de Brasília, Mestre em Arte e Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás e Graduado em Artes
Visuais pela Universidade Federal de Goiás. Também é artista multimídia com produção em temáticas
contemporâneas, como: redes sociais, cibercultura e videogames. Email: jloures-arte@hotmail.com

1316
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

jogos da série GoW, e no Brasil o console foi um fenômeno cultural, e isso foi devido a
facilidade de desbloquear o console, e assim receber jogos piratas. Para se ter noção,
um jogo original de Ps2 poderia custar até mais de 100 reais, enquanto o salário mí-
nimo brasileiro era de R$ 300,00 em 2005. A versão pirata de um jogo de Ps2 custava
apenas 10 reais e até menos. Isso proporcionou que as aventuras sexuais e violentas
de Kratos alcançasse um público muito maior em território brasileiro. Ainda hoje o
console é um sucesso de vendas no Brasil:

Em uma pesquisa por lojas online e na região central de São Paulo, UOL Jogos encontrou à
venda PS2s novos, destravados, custando entre R$ 300 e 500. Alguns deles acompanham con-
troles ou cartões de memória adicionais, e outros vêm com jogos piratas gravados em DVDs.
“Pra muita gente, o PS2 basta. É um videogame barato que roda tudo o que eles querem:
“GTA”, “God of War”, e o futebol,” explica o vendedor de uma loja de games na Santa Ifigênia,
em São Paulo. “E se eles quiserem mais jogos, dá pra baixar na internet e gravar em um disco.”
Nenhuma das lojas procuradas vende jogos de PlayStation 2 separados, sejam eles originais
ou pirateados. (Lippe, 2017)

A série God of War sempre recebeu a classificação “MATURE 17+”, sendo assim, reco-
mendado para maiores de 17 anos na América do Norte, e por aqui recomendado
para maiores de 18 anos. Apesar disso, era comum jogadores mais novos que a reco-
mendação no Brasil, o acesso acontecia na privacidade do lar e nas (já finadas) loca-
doras de videogames. Em essência, God of War acompanha a jornada do espartano
Kratos por vingança, em dezenas de horas são derramadas incontáveis quantidades
de sangue em cenas viscerais e violentas. Os jogos já venderam mais de 21 milhões
de cópias em todo o globo (Yin-Poole, 2012), e o mais recente título da série acres-
centou a essa soma mais de 9 milhões de cópias vendidas apenas no primeiro mês
de lançamento (Arif, 2018). God of War sempre foi conhecido pela violência, brutali-
dade no combate, e pelo seu protagonista, Kratos, contudo, os jogos também têm a
tradição de exibir momentos picantes.

De acordo com Evan Lauteria e Matthew Wysocki (2015, p. 14) o sexo e a sexualidade
são elementos centrais na potência lúdica de God of War. As cenas sexuais presentes
na série são apresentadas ao jogador através do gameplay, aspectos visuais, sonoros
e interativos. Por se tratar de sexualidade, as imagens ao decorrer do artigo são ex-
plícitas, sendo esse um fator importante para desenvolver as ideias do texto.

1317
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 1 – Mini game sexual no primeiro God of War.


Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=gk-DkyQf_l8

No primeiro God of War (2005), lançado para Playstation 2, e logo nos primeiros
minutos de jogo entendemos como a sexualidade é explorada no jogo. Kratos se
encontra em um quarto, em um navio em plena navegação, e na cama estão duas
mulheres com os seios à mostra, uma delas diz ao personagem: “fique Kratos, ape-
nas um pouco...”. Caso o jogador pule na cama, um mini game se inicia, a câmera se
desloca para a direita, ocultando o ato sexual explícito, e gemidos começam a ecoar
por todo o quarto. Enquanto isso, o jogador deve pressionar determinados botões,
e a cada acerto, um vaso se desloca com o movimento da cama, que é o elemento
central na cena. O ritmo fica cada vez mais acelerado, assim como os gemidos e sons
de batidas na cama.

No momento do orgasmo do protagonista, o vaso se quebra, e o jogador recebe


alguns orbes vermelhos – itens importantes para a evolução das armas e habilidades
de Kratos (fig.1). Órgãos genitais não foram mostrados ao jogador, e nem o ato sexu-
al em si, apenas elementos sonoros, e o vaso representando a penetração até o gozo.

Em God of War II (2007), lançado para Playstation 2, Kratos encontra-se em uma casa
de banho na cidade de Rhodes. Na cena temos as personagens Persephone e Leda,
ambas com os seios à mostra. Um mini game se inicia, assim como o primeiro jogo,
mas ao invés de um vaso, temos uma estátua de um garoto urinando (fig.2). No mo-
mento do clímax a estátua espirra água para todos os lados, uma analogia com a
ejaculação masculina, e o jogador também recebe orbes para evoluir Kratos.

1318
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 2 – Mini game sexual em God of War II.


Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=xxPuEzl1GwU

Em God of War: Chains of Olympus (2008), lançado para o portátil Playstation Portable,
Kratos se encontra na Fortaleza de Attica, após derrotar o rei persa. Nesse momento, o
protagonista encontra duas gêmeas, e tudo acontece da mesma forma, um mini game
em que o jogador precisar pressionar os botões na sequência apresentada na tela. O
objeto que representa o ato sexual dessa vez é um candelabro (fig.3).

Figura 3 – Mini game sexual em God of War: Chains of Olympus.


Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=xxPuEzl1GwU

1319
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

God of War: Ghost of Sparta (2010) também lançado para Playstation Portable, apre-
senta ao jogador a cena sexual com mais participantes da história da série. Após
vários confrontos, Kratos retorna para Esparta, e decide adentrar em um bordel. Já
no início o protagonista agarra e carrega duas prostitutas, e as lança na cama. Nesse
momento, inicia-se o mini game, e as outras prostitutas observam a performance
do espartano. Durante o mini game outras seis prostitutas se jogam na cama, e o
objeto da vez, é a própria cama. Parte dela é visível ao jogador, se tornando assim a
representação do ato sexual (fig.4).

Figura 4 – Mini game sexual God of War: Ghost of Sparta.


Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=xxPuEzl1GwU

Em God of War 3 (2010), lançado para Playstation 3, Kratos se encontra com a deusa
grega Afrodite, e a interrompe em momentos de carícias com outras duas mulhe-
res. O jogador possui a opção de não cair nos encantos da deusa, mas se aceitar, o
jogador é recompensado com orbes vermelhos e outra cena sexual. A câmera nova-
mente se desloca para a direita, onde as mulheres observam a relação sexual entre
o protagonista e a deusa. A função que antes era responsabilidade de um vaso, um
candelabro, uma estátua, e uma cama, agora pertencem as duas mulheres (fig.5).
Quanto mais o jogador acerta nos comandos na tela, mais Afrodite geme, e mais ex-
citadas ficam as mulheres que os observam. Não vemos o ato sexual, mas vemos as
reações dessas mulheres, que trocam carícias com seus olhos brilhantes. O orgasmo
dessa vez é representado pelas duas mulheres se jogando no chão e trocando beijos

1320
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

e carícias. A malícia e desejo são representados através do voyeurismo das persona-


gens. No fim da cena, a deusa diz: “os deuses realmente abençoaram você, Kratos”.
Agora, caso o jogador erre os comandos durante o sexo, a situação se inverte. Os
comentários das mulheres depreciam a performance de Kratos, e ao fim a deusa do
amor diz “Sou muita mulher para você, Kratos?”.

Figura 5 – Mini game sexual em God of War III.


Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=xxPuEzl1GwU

Para Víctor Navarro-Remesal e Shaila García-Catalán (2015, p. 125), o personagem


sempre foi retratado como imparável, viril e violento durante toda a franquia. O pro-
tagonista na cama sempre esteve jogando de dominador, mas ao encontrar Afrodite,
o espartano encontra o papel de submisso. Pois nessa cena, o prazer de Kratos não
é o objetivo, e sim o orgasmo de Afrodite. Para os autores, a dinâmica dessa cena se
assemelha levemente as dinâmicas encontradas no BDSM (Bondage, Disciplina, Do-
minação, Submissão, Sadismo e Masoquismo), pois os personagens se encontram
em um jogo sexual onde um é o dominante, e o outro é o submisso em uma relação
de poder em uma espécie de paródia dos universos de fantasia (Navarro-Remersal
e Gárcia-Catalán, 2015, p.126). Kratos pela primeira vez foi retirado de seu trono de
dominador, e confrontado. Contudo, vale ressaltar que é fácil acertar os comandos
na tela, logo, Kratos falhar se torna mais uma curiosidade do que algo recorrente.

Apenas em GoW 3 temos expressões faciais durante o sexo, talvez, por causa da ca-
pacidade do Playstation 3. Os títulos anteriores foram publicados no Playstation 2 e
Playstation Portable, ambos ofereciam uma capacidade de processamento e rende-

1321
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

rização bastante inferiores ao PS3. Antes objetos inanimados, e agora o corpo digital
se tornou o foco em GoW, outro exemplo de como a evolução tecnológica foi impor-
tante para a sexualidade nos videogames. O que antes era implícito, aos poucos foi
sendo revelado. É importante salientar que, as cenas de sexo em na série GoW tem
como protagonismo o prazer de Kratos, ou seja, o objetivo é a ejaculação masculina,
a exceção é GoW3. Cada cena dura poucos minutos, a proposta dos desenvolvedores
foi recompensar o jogador de várias formas diferentes, mesmo que as cenas sejam
opcionais. Assim o sexo foi integrado ao gameplay de GoW, recompensando o joga-
dor com orbes vermelhos, e assim o possibilita evoluir Kratos, mas também premia
o jogador que deseja ver esse tipo de cena em um videogame. Nesse sentido, não se
pode dizer que o sexo surge em GoW de forma gratuita, obrigatória e sem propósito,
pois recompensa o jogador in game. Também é possível que um adolescente veja
em Kratos uma forma de realização de suas fantasias, mesmo que as cenas sejam
pré-definidas, estimulando assim a imaginação do jogador.

Kratos: Representação, ousadia e afirmação heteronormativa


Para o filósofo Johan Huizinga (2012, p.4) todo jogo significa alguma coisa. Para os
desenvolvedores God of War é um resultado de anos de trabalho, para os jogado-
res uma fonte de entretenimento, e para o estúdio, lucros milionários. Os jogadores
de GoW se espelham na imagem de Kratos, invencível, forte e protagonista da sua
própria história. Mas para outros jogadores, Kratos significa uma fonte de desejo e
malícia. Afinal, quais são as habilidades de Kratos na cama? Essa resposta está sendo
respondida há bastante tempo, através de artistas dedicados na produção de anima-
ções, histórias em quadrinhos e fanarts adultas. Por exemplo, em sites pornográficos
é possível encontrar uma animação em que Kratos se relaciona com a personagem
Sophitia da série de luta Soul Calibur (1995) (fig.6):

Figura 6 – Kratos e Sophitia.


Fonte: https://pt.pornhub.com/view_video.php?viewkey=ph592625019c5ba

1322
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 7 – Kratos e um Troll.


Fonte: https://rule34.xxx/index.php?page=post&s=view&id=2758564

Na internet foram criados determinados protocolos sociais sobre o comportamento


na rede, e através de discussões em fóruns foram criadas as regras da internet. Den-
tre esses protocolos destaco a regra de número 34, que basicamente diz: se alguma
coisa existe, também existe uma versão pornográfica. E os videogames e seus per-
sonagens não estão alheios a regra 34, e existe um site dedicado a catalogar artes
adultas sobre o universo dos games. No site Rule 34 Data base encontramos outra
vertente de Kratos, o personagem aparece em várias cenas homossexuais, inclusive
a sua representação se assemelha muito a cultura dos ursos2 (fig.7).

2 “Ursos são homens que se relacionam com homens afetivamente/sexualmente - geralmente iden-
tificados como homossexuais ou simplesmente gays -, apresentam certas corporalidades específicas
e participam de um modo de vida dentro do universo das homossexualidades que geralmente
é denominado por esses próprios sujeitos (e não raramente reconhecido pelos “outros” homosse-
xuais) como cultura ursina ou cultura bear. [...] Essas corporalidades ursinas podem ser bastante
diversas: desde os ursos corpulentos: gordos, magros ou musculosos; peludos ou não; negros ou
não; de diferentes idades e com diferentes estilos de masculinidades. Entre eles, há uma taxonomia
composta de diferentes arranjos de itens corporais (gordura, músculos, pelos, barba, tamanho, etc)
que formam um conjunto de bens ou capitais simbólicos/culturais que medeiam tantas relações
quanto subjetividades”. (Diniz, 2013, p. 1)

1323
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

É curioso como nas camadas mais acessíveis da internet, Kratos mantém a imagem
de macho alfa heterossexual, de exemplo a ser seguido. Entretanto, Kratos em deter-
minados sites mais afastados do cenário mainstream é normalmente representado
como gay e apreciado por um público que normalmente não é o foco dos desen-
volvedores. Para os pesquisadores Lucas Gourlart, Inês Hennigen e Henrique Nardi
(2015, p. 404) é nos ambientes dos jogos digitais que encontramos: “Uma manuten-
ção da heteronormatividade – ou seja, a reiteração das sexualidades heterossexuais
como as únicas maneiras legítimas de exercer a sexualidade”.

São comuns os casos de homofobia no universo dos videogames, e quanto mais ten-
tativas de inserção de uma diversidade, mais o consumidor-rei3 se revolta e ataca. Em
2018 foi anunciado Last of Us 2, jogo desenvolvido pelo estúdio Naughty Dog e no trai-
ler de anúncio a protagonista Ellie aparece beijando uma garota, isso foi o suficiente
para ataques homofóbicos. Alguns comentários acusaram o estúdio de “enfiar goela
abaixo esses temas polêmicos”, outros acusaram de “viadagem”, e até mesmo de “aca-
bar com o jogo” (França, 2018). Também em 2018 foi anunciado Battlefield V, desenvol-
vido pela Dice, no anúncio do jogo foi exibida a imagem de uma mulher, e revelado
que o jogo de tiro contaria com a participação de mulheres. Essa notícia causou uma
reação desproporcional vinda de determinados usuários. Alguns jogadores acusaram
os desenvolvedores de criar uma “merda de um jogo incorreto historicamente”, e até
mesmo foi criada a corrente #NotMyBattlefield (Farokhmanesh, 2018).

Kratos dentro do jogo, e Kratos em sites que permitem uma pluralidade de repre-
sentações, são antagônicos. Nas artes de divulgação dos jogos, e in game, Kratos é
representado como onipotente, invencível, geralmente em contra-plongeé – câme-
ra abaixo do nível dos olhos dos personagens, de baixo para cima e ressaltando a
imponência do personagem, também conhecida como câmera baixa. Esse ângulo é
essencial para demonstrar a superioridade de personagens como Kratos, e torna-lo
magnífico (Martin, 2013, p. 43).

Nos jogos da série GoW, as mulheres são troféus, e seus corpos são o foco nos mo-
mentos sexuais da série. Mas no ambiente das fanarts, temos um Kratos completa-
mente diferente, inclusive em posições e situações pouco comuns em personagens
masculinos para os videogames (fig.8).

3 “Para Mathew Seiji Burns (2014) os desenvolvedores estão em conflito com o que é nomeado por
“consumidor-rei”. Geralmente são jogadores que se consideram tradicionais e se intitulam os verda-
deiros gamers, o agente central que define como será a experiência em um determinado jogo e até
mesmo na indústria de videogames [...] O “consumidor-rei” vai defender o seu espaço sagrado, e ata-
car todos que estão contra a sua opinião, esses que são acusados por modificar uma experiência já
consolidada. Alto poder aquisitivo também está ligado ao “consumidor-rei”, pois como tem dinheiro
para adquirir os jogos mais caros (AAA), se considerando além dos outros jogadores, assim negando a
existência de infinitas possibilidades oferecidas pela cultura dos videogames”. (Loures, 2018, p.1005)

1324
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 8 –Kratos em um momento de sexo oral. Fonte: https://rule34.xxx/index.


php?page=post&s=view&id=1303847

Também temos Kratos participando de uma orgia com outros personagens masculi-
nos do universo dos videogames (fig.9):

Figura 9 – Kratos em uma orgia com diversos personagens masculinos de videogames. Fonte:
https://rule34.paheal.net/post/view/1172940

1325
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Percebo que nos desenhos, o corpo de Kratos é o destaque principal, mas nos jogos,
apesar de o corpo do protagonista ser exposto, não existe uma sexualização, esse é
o papel das mulheres in game. Nas artes feitas por fãs temos exatamente o inverso,
os músculos, as nádegas e o pênis do espartano são o foco principal. Possivelmen-
te um reflexo de uma geração de jogadores que cresceram com os videogames, e
encontraram em Kratos uma possibilidade de realização de suas fantasias. Também
temos comentários nas imagens, alguns anônimos e outros por meio de apelidos. Os
fãs analisam as imagens, elogiam a arte, dizem o que mudaria e também descrevem
o que sentiram ao ver essas imagens.

Por exemplo, na imagem acima, um usuário anônimo comenta: “Por que o pinto do
Kratos só está cutucando as bolas do Drake por trás ao invés de estar penetrando a
bunda dele?” Em seguida um usuário identificado por bohohoho responde: “Lá que
está o lendário segundo cu de Shamballa”. Essas situações de interação entre os usu-
ários acontecem nas artes postadas, como por exemplo na seguinte imagem (fig.10):

Figura 10 – Kratos preso e submisso.


Fonte: https://rule34.paheal.net/post/view/804477#search=Kratos

1326
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Temos Kratos acorrentando, submisso, nu, e com o pênis ereto, abaixo da imagem
temos essa sequência de comentários:

Anonymous1: Quente
Anonymous2: porra Grega quente
Anonymous3: Não acho que Ares virá salvar a sua bunda.
Anonymous4: ^não. Acho que eu vou.
cracker: ohhh
Anonymous5: agh estou gozando
Anonymous6: por favor, deus me deixa perfurar essa bunda. Seu cu é tão tentador,
meu saco está latejanto…
Anonymous7: Anon6: Eu acho que você teria que esperar porque eu acho que até
Deus quer fazer isso primeiro.
Anonymous8: Já sei o que quero de natal.
Anonymous9: Eu quero foder com ele
Anonymous10: Mmmm, deus, eu só quero chupar ele com tanta força, então deixar
ele foder minha bunda...
Anonymous11: Sim....
Anonymous12: Alguém quer me enviar e-mail eu envio fotos do meu buraco sendo
fodido;) velvetroxas@gmail.com 4

Os comentários junto as artes colaboram com minha tese, Kratos é utilizado como
fonte de excitação. Contudo, não é a representação oficial do personagem, que é
criação do estúdio Santa Monica. Resta aos artistas realizarem os desejos de fãs anô-
nimos pela internet. Assim temos uma reinterpretação de um personagem, esse que
não é um ator, modelo, atleta ou cantor, e sim um homem criado digitalmente. A sé-
rie se aproveitou de ângulos e planos cinematográficos para ressaltar a imponência
de Kratos, e os corpos femininos, mas na internet, é possível encontrar uma inversão
desses elementos. O corpo de Kratos é o destaque, em ângulos que ressaltam suas
nádegas, pênis e músculos, assim como as personagens femininas foram retratadas.
A sexualidade do protagonista é explorada em diversas faces, até mesmo como um
ser submisso. Isso demonstra que o público da série vai além do convencional públi-
co alvo: o adolescente heterossexual.

Em 20 de abril de 2018 um novo jogo da série foi lançado para Playstation 4. E a


tendência é uma nova onda de fanarts sexuais se prolifere na internet, apresentando
assim o protagonista e outros personagens em situações completamente diferentes
das oferecidas originalmente pelos desenvolvedores. Cory Barlog, diretor do novo
jogo da série God of War (2018) percebeu que uma mudança era necessária e impor-
tante, sendo o primeiro jogo da série sem nenhum conteúdo sexual. Para Barlog, era

4 Tradução feita por Walace Andrade Matos Graduando em Engenharia de Computação pelo CEFET-MG.

1327
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

importante não propagar a visão de uma masculinidade tóxica (Plante, 2018). Kratos
agora tem um filho, e para o diretor era importante o jogo passar valores para os
jogadores, assim como Kratos passa para o seu filho. De acordo com o diretor:

Isso não quer dizer que eu odeie o trabalho que fiz antes, porque amo tudo isso. É como eu, à medi-
da que envelheço, estou olhando as coisas de maneira um pouco diferente. Esta lição que eu espe-
rava passar para [meu filho]: que os conceitos de força e vulnerabilidade emocional e a capacidade
de se sentir livre para sentir a gama de emoções, que estes não são dois conceitos conflitantes ou
diametralmente opostos. Isso é o que nos torna humanos completos, certo? (Plante, 2018)

David Jaffe – o criador de da série God of War, também recentemente causou uma
polêmica no meio gamer, ao dizer que o espartano é bissexual:

“Oh, mais uma coisa: não para dar uma de JK Rowling, mas quando estava traba-
lhando nas origens de Kratos para os primeiros jogos, sabia que ele era um furioso
bisexual, até se estabelecer com a sua esposa”(Romer, 2019).

Essa mensagem foi publicada após os jogadores tradicionais se irritarem ao ver Kra-
tos defendendo a causa LGBT (fig.11).

Figura 11 – Kratos, no mês do orgulho LGBT.


Fonte: https://twitter.com/bt_blackthunder/status/1135575188853198850

Posteriormente, Jaffe assumiu ser apenas uma brincadeira: “Infelizmente, aquele úl-
timo tuíte era uma mentira para irritar os que estão espalhando ódio por conta da

1328
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

imagem #PRIDE de Kratos”. Essa polêmica ocorreu no mês do orgulho LGBT (junho),
e ao dizer que se tratava apenas uma provocação, o criador do esparto conseguiu
irritar os apoiadores da causa LGBT e ao mesmo tempo o consumidor-rei.

Os desenvolvedores enxergaram um desgaste da marca, e de seu protagonista, isso


justificaria as mudanças na personalidade de Kratos. Antes um personagem que se
assemelhava as heróis dos filmes de ação dos anos 80 como por exemplo Arnold
Schwarzenegger, Bruce Willis e Sylvester Stallone. Em sua versão atualizada, Kratos
possui a responsabilidade de criar e proteger o seu filho, assim como demonstrar
sentimentos que vão além da excitação e a raiva. Contudo, acredito que os desenvol-
vedores no cenário mainstream ainda se encontram tão perdidos, e possivelmente
tão apegados em valores ultrapassados quanto o consumidor-rei.

Considerações Finais
GoW foi responsável por apresentar cenas de sexo para milhões de jogadores, que
assim conheceram as possibilidades de representações sexuais através do jogo no
Playstation 2. A inserção de elementos cinematográficos nos games foi responsá-
vel por uma revolução nos videogames, e isso alterou a percepção dos videogames
como uma mídia para crianças. Parte da indústria percebeu que o público está ama-
durecendo, com isso, procurando novas experiências e possibilidades nos videoga-
mes. Kratos é um personagem desenvolvido para agradar uma base já estabelecida
de jogadores: adolescentes heterossexuais. Mas para outra parcela de jogadores, as
mulheres com seios desnudos não são a fonte de atração, e sim o próprio Kratos.
As artes encontradas no site Rule 34 data base demonstram que a imaginação dos
jogadores vai além dos elementos pré-estabelecidos pelos criadores de God of War.
Desde os primeiros minutos a série inseriu a sexualidade como um dos seus temas,
e também como propaganda de um jogo para adultos. Contudo, na superfície da
sociedade e da internet Kratos é usado para reforçar a heteronormatividade, e até
mesmo uma masculinidade tóxica, como por exemplo as polêmicas envolvendo
Cory Barlog e David Jaffe. De acordo com Huizinga, um jogo sempre significa algu-
ma coisa, mas nesse contexto, o jogo significa um jogo sobre representatividade de
uma orientação sexual que é oprimida, e renegada na indústria dos videogames.

Referências
ARIF, S. (2018). God of War vendeu mais de 5 milhões de cópias em um mês. Dis-
ponível em: https://br.ign.com/god-of-war-2016/62328/news/god-of-war-vendeu-
-mais-de-5-milhoes-de-copias-em-um-mes. Acesso em: 12 jan. 2019.

DINIZ, A. H. T. (2013). Os corpos dos Ursos: Uma etnografia das corporalidades, mas-
culinidades e sexualidades em uma cultura gay urbana de São Paulo. In: Seminá-

1329
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

rio Internacional Fazendo Gênero 10. Florianópolis: UFSC. Disponível em: http://
www.fg2013.wwc2017.eventos.dype.com.br/site/anaiscomplementares. Acesso em
7 de maio de 2018.

FAROKHMANESH, M. (2018). Battlefield V fans who failed history are mad


that the game has women in it. Disponível em: <https://www.theverge.
com/2018/5/24/17388414/battlefield-v-fans-game-women-world-war-2-history>.
Acesso em: 15 jan. 2019.

FRANÇA, C. (2018). O beijo da Ellie em The Last of Us 2. Disponível em: http://www.


nebulla.co/o-beijo-da-ellie-em-the-last-of-us-2/. Acesso em: 15 jan. 2019.

HUIZINGA, J. (2012). Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo:
Perspectiva.

LIPPE, P. (2017). No Brasil, o PlayStation 2 se recusa a morrer. Disponível em: ht-


tps://jogos.uol.com.br/ultimas-noticias/2017/12/06/no-brasil-o-playstation-2-se-re-
cusa-a-morrer.htm. Acesso em: 12 jan. 2019.

LOURES, J. (2018). The Witcher: as polêmicas aventuras de um lobo branco. Anais SBC
– Proceedings of SBGames e XVII Simpósio Brasileiro de Jogos e Entretenimento
Digital, Foz do Iguaçu (PR), p. 1003 – 1006. Disponível em: http://www.sbgames.org/
sbgames2018/files/papers/CulturaShort/185617.pdf. Acesso em: 15 jan. 2019.

MARTIN, M. (2013). A Linguagem Cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2013.

NARDI, H.; HENNIGEN, I.; GOULART, L. (2015). “We’re gay, we play, we’re here to stay”:
notas sobre uma parada de orgulho LGBTQ no jogo World of Warcraft. Em: Contem-
poranea - Revista de Comunicação e Cultura, v. 13, n. 2, p. 401–416.

NAVARRO-REMESAL, V. e GARCÍA-CATALÁN, S. (2018). Let’s play master and servant:


BDSM and directed freedom in game design. Em: Rated M for Mature: Sex and Se-
xuality in Video Games, p.119-132.

ROMER, R. (2019). Criador de God of War diz que Kratos é bissexual e gera po-
lêmica entre fãs. Disponível em: <https://www.theenemy.com.br/playstation/cria-
dor-de-god-of-war-diz-que-kratos-e-bissexual-e-gera-polemica-entre-fas>. Acesso
em: 7 set. 2019.

WYSOCKI, M. e LAUTERIA, E. (2015). Rated M for Mature: Sex and Sexuality in Vi-
deo Games. New York: Bloomsbury.

YIN-POOLE, W. (2012). God of War series has sold over 21 million copies. Disponí-
vel em: https://www.eurogamer.net/articles/2012-06-05-god-of-war-series-has-sol-
d-over-21-million-copies. Acesso em: 12 jan. 2019

1330
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Marcus Mota1

Kandinsky em Performance: Análise de cena do documentário


Schaffende Hände (1926), de Hans Cürlis
Kandinsky in Performance: Analysis of a Scene from Hans Cürlis’ Schaffende Hände
(1926)

Resumo
Nesta comunicação discuto cena do documentário Schaffende Hände (1926), de
Hans Cürlis. Na cena, temos Wassily Kandinsky pintando uma tela. Neste docu-
mento audiovisual, que foi pouco estudado pela recepção crítica, pode-se obser-
var como Kandinsky performa decisões criativas a partir de conceitos operatórios
expostos em Ponto e Linha sobre o Plano, publicado no mesmo ano 1926. Em espe-
cial, temos a exploração do conceito de Grundfläche ou ‘Plano Básico’(PB), que vê
no espaço da tela um conjunto de referências pré-composicionais.
Palavras-chave: Kandinsky, Audiovisualidade, Grundfläche.

Abstract
In this paper I discuss a scene from Hans Cürlis’ documentary Schaffende Hände
(1926). In the scene we have Wassily Kandinsky painting a canvas. In this audiovi-
sual document, which was little studied by the critical reception, we can see how
Kandinsky performs creative decisions based on operative concepts exposed in
Point and Line to Plan, published in the same year of 1926. In particular, we have
explored the concept of Grundfläche or ‘Basic Plan’ (PB), which sees in canvas a set
of pre-compositional references.
Keywords: Kandinsky, Audiovisuality, Grundfläche.

Contextos
Durante de sua estadia como professor da Bauhaus entre 1922 e 1933, Kandinsky
busca explicitar e fundamentar sua concepção plural e multissensória da arte. O am-
biente progressista, experimental, pluridisciplinar da Bauhaus, aliado às atividades
de preparar cursos de fundamentos alunos com vários backgrounds e objetivos,

1 Marcus Mota, Professor de Teoria e História do Teatro na Universidade de Brasília, onde coordena desde
1998 o Laboratório de Dramaturgia (LADI).

1331
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

contribui para que Kandinsky encontrasse uma expressão sistematizada tanto de


suas preocupações estéticas, quanto de sua produção artística mesma2.

Nesse contexto, temos o conceito de “Grundfläche” ou “Plano Básico” (PB), desenvol-


vido no livro Ponto, Linha sobre o Plano, de 1926. Segundo o conceito, a tela é um
espaço de relações anteriores ao ato criador. E cabe ao artista compreender estas
relações espacializadas como forma de contracenar com as forças em tensão que
ali existem. Do mesmo modo a partitura: a distribuição das figuras e notas entra
em contato com relações espaciais prévias, dispostas na relação de eixos horizon-
tais e verticais. A consciência dessas referências, forças e tensões prévias por parte
do pintor e do compositor proporciona uma ampliação do imaginário e da atuação
do artista, pois os atos criativos dialogam não apenas com universos imediatos da
realidade humana e sim com dimensões cósmicas, não vísiveis, mas perceptíveis em
seus efeitos e fisicidade.

Ainda, tal redefinição do trabalho do artista visual aproximando-o do músico en-


caminha a compreensão holística da atividade criadora em termos de uma escrita
multissensorial, de uma interação em padrões de organização da matéria e padrões
de sua organização e manipulação em obras.

Uma integração entre tais aspectos pode ser compreendida na análise de um pre-
cioso documento audiovisual: em 1926, o cineasta Hans Kürlis registra 4 minutos de
Kandinsky em ação, como parte da série “Schaffende Hände {Mãos Criativas}3 .”

Kandinsky em Performance
Na filmagem, o foco é a tela do quadro, sua superfície material, que recebe as rápidas
pinceladas de Kandinsky. Inicialmente, temos uma figura que será o eixo da pintura
em preto e branco, ocupando a diagonal esquerda alta-direita baixa. Essa, figura,
um alongado retângulo, é formado por principalmente duas retas paralelas que se
fecham em baixo por um semi-círculo. Esse método de ir adicionando elementos
em correlação, como em uma improvisação que retoma materiais prévios, é o que
domina as etapas posteriores.

2 Este texto integra pesquisa “Dramaturgia e Multissensorialidade: Metodologia de elaboração de


audiocenas para ambientes online a partir da série Composições, de Kandinsky”, financiada pelo
edital Universal CNPq, 2016.
3 Link para o vídeo analisado neste texto: https://www.youtube.com/watch?v=pujVYyCRBDU . Aces-
so em 20 08 2019.

1332
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 1. Figura base

Uma forma círcular é adicionada à ponta superior do alongado retângulo, respon-


dendo ao semi-círculo, formando uma oposição complexa entre alto e baixo, forma
completa/forma interrompida.

A partir do centro da forma circular irrompe o serpentear de um linha ondular des-


centente, retomando a orientação de movimento alto-baixo da ‘forma retangular
alongada’. Então Kandinsky retorna à forma circular adicionada e a preenche com
pontos, como que multiplicando os círculos dentro do círculo.

Figura 2. Figura Serpenteada.

1333
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Em seguida a essa fase de expansão da figura central, desse corpo-foco agora cra-
vejado de diversas formas geométricas, Kandinsky passa a um procedimento muito
utilizado desde seu caminho para abstração: o uso de grupos de traços ou linhas
repetidas, seja em ocorrências em sucessão e em paralelo, seja na forma de justapo-
sição, como grids ou gradientes. É de se notar que no grid inferior central, Kandinsky
insere 7 traços em sequência, como sete notas musicais.

Nesse sentido, o cravejamento de notas no plano superior médio do quadro é re-


pondido pela sucessão rítmica de linhas no plano inferior médio. Ainda, Kandinsky
insere na superfície na mesma sessão inferior média mais retas paralelas em repe-
tição, retomando três retas que havia pintado na esquerda alta do quadro. Assim,
em ordem temporal, teríamos um esquema composição em anel, ABBA, para essa
sequência de atos: Kandinsky abre e fecha a sequência com um grupo de três retas
paralelas (A), enquanto que nos extremos iniciais e finais registra intensos pontos e
linhas em áreas fechadas ( círculo e retângulo).

Figura 6. Gradientes

O próximo movimento da pintura-em-performance de Kandinsky pode ser definido


em termos de acabamento do trabalho: aqui o pincel intensifica formas já previa-
mente realizadas, espessando-as, ou preenchendo espaços dentro de figuras.

Mas, mais que inserir novos elementos, trata-se de retomar o já pintado e modificar
seu status inicial. Após essa etapa, temos o produto final:

1334
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 3. Resultado da Pintura-em-Performance de Kandinsky.

Concluindo
Como se pode observar, o trabalho de Kandinsky é o de uma escrita que se aproxima
do ato de registro de imaginações orientadas por diversos tipos de materialidade,
como a literária, a pictórica e a musical. A divisão da totalidade da performance em
momentos ou decisões criativas demonstra o encadeamento de atos bem caracte-
rizáveis: 1- a relação do ato expressivo com a superfície da tela, com suas relações
prévias; 2- a inserção de elementos ou formas em negociação com essas relações
prévias; 3- a inserção de elementos ou formas por meio da relação entre si.

Para que esse processo criativo encontrasse sua coesão, Kandinsky procedeu a: 1- pro-
dução de um foco de orientação recepcional a partir da ditribuição de uma forma ou
um grupo de figuras; 2- variação na inserção dos elementos e formas na tela; 3- retro-
alimentação, ou aproveitamento e redefinição dos elementos e formas já inseridos.

No resultado, não vemos uma paisagem natural, uma criatura humana, ou um even-
to hsitórico: temos o conjunto de decisões criativas em sequência, no eixo do tempo,
tornando visíveis operações composicionais.

1335
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Referências
KANDINSKY, Wassily. Punkt und Linie zu Fläche. Beitrag zur Analuse der Mae-
rischen Elemmente. Munique: Verlag Albert Langen,1926. Disponível em http://
bibliothequekandinsky.centrepompidou.fr/imagesbk/RLPF728/M5050_X0031_
LIV_RLPF0728.pdf . Acessado em 6 jun 2019.

Dramaturgia e Multissensorialidade a partir de Kandinsky: Reflexões a partir de uma


Pesquisa em Andamento. Anais Online 16. ART Brasil, p.142-162, 2017d. Link: ht-
tps://art.medialab.ufg.br/up/779/o/18_- _Dramaturgia_e_Multissensorialidade_a_
partir_de_Kandinsky_-_XXXX.pdf . Acessado em 6 jun 2019.

MOTA, Marcus. O quadro e a partitura: A Poética Multissensorial segundo Kandinsky.


Anais Online XVII SEMPEM - Seminário Nacional de Pesquisa em Música da UFG.
Goiânia: Programa de Pós-Graduação em Música UFG, p. 48-53, 2017b. Disponível
em https://mestrado.emac. ufg.br/n/31464-sempem-anais-on-line . Acesso em : 31
ago. 2018.

MOTA, Marcus. “Dramaturgie & multisensorialité a partir de Kandinsky”. In: B. D’Ange-


lo; F. Soulages; S. Venturelli. (Orgs.). Esthétique & Connectivité. Paris: L’Hamarttan,
2018,pp. 119-130.

1336
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Thèrèse Hofmann Gatti Rodrigues da Costa1,


Ana Maria Silva Sena Pereira2, Eugênia
Versiani Souza Carvalho3, Gabriel Victor
Alves Meireles4 and João Victor Silva Araújo5

A experiência dos alunos de bacharelado em artes visuais e


o desafio da atuação no projeto Escola do Trabalhador como
formação prática.
The experience of bachelor students in visual arts and the challenge of acting in the
Escola do Trabalhador project as practical training

Resumo
O Projeto Escola do Trabalhador se constitui em uma ação de pesquisa e extensão
em parceria com o Ministério da Economia com vistas auxiliar no enfrentamento
dos altos índices de desemprego no país oferecendo cursos MOOC - Massive Open
Online Course em uma plataforma pensada para ser acessível e intuitiva. Neste tra-
balho iniciado em agosto de 2017 contamos com a atuação de diversos alunos
no desafio de apresentar cursos que agregassem imagens, avatares, objetos de
aprendizagem, história em quadrinhos, gameficação dentre as estratégias peda-
gógicas. Os índices alcançados foram de 1.285.425 matrículas até o dia 15 de agos-
to de 2019 quando as inscrições foram encerradas. Apresentamos aqui o relato da
atuação de quatro estudantes de graduação em Artes Visuais, bacharelado, e seus
próprios depoimentos deste desafio.
Palavras-chave: Artes Visuais, EAD, capacitação, educação em artes visuais

1 Profa. Thérèse Hofmann Gatti Rodrigues da Costa, Doutora em Desenvolvimento Sustentável, Mes-
tre em Arte e Tecnologia. Professora do Departamento de Artes Visuais/IdA/UnB.
2 Ana Maria Silva Sena Pereira. Graduanda em Bacharelado em Artes Visuais, VIS/IdA/UnB.
3 Eugênia Versiani Souza Carvalho. Graduanda em Bacharelado em Artes Visuais, VIS/IdA/UnB.
4 Gabriel Victor Alves Meireles. Graduando em Bacharelado em Artes Visuais, VIS/IdA/UnB.
5 João Victor Silva Araújo. Graduando em Bacharelado em Artes Visuais, VIS/IdA/UnB.

1337
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Abstract
The Escola do Trabalhador project is a research and extension action in partnership
with the Ministry of Economy to help cope with the high unemployment rates in the
country by offering MOOC - Massive Open Online Course courses in a platform de-
signed to be accessible and intuitive. In this challenge started in August 2017, we
had the performance of several students presenting images, avatars, learning ob-
jects, comics, gamefication among the pedagogical strategies of the courses. We
reached 1,285,425 enrollment until August 15, 2019. We present here the report of
the performance of four undergraduate students in Visual Arts, bachelor’s degree,
and their own testimonials of this challenge.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: Visual Arts, MOOC, training, visual arts education

Escola do Trabalhador – histórico do projeto


Em 2017 coordenamos um grupo de pesquisadores na construção e apresentação
de proposta ao então Ministério do Trabalho de um projeto de pesquisa e extensão
como nome “PESQUISA DE DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO E CAPACITA-
ÇÃO PARA GOVERNANÇA E GESTÃO PÚBLICA DA EMPREGABILIDADE NO BRA-
SIL - Programa de Empregabilidade: Qualifica Brasil”6. Neste projeto trouxemos
os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, de março de 2017,
que mostravam que a taxa de desemprego no Brasil havia atingido 13,2% no trimes-
tre encerrado em fevereiro de 20177. Mostramos que de acordo com os dados da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad):

“foi apurada uma alta de 1,3 ponto percentual na comparação com o trimestre anterior, sendo a maior
taxa de desocupação no país da série histórica do indicador iniciada em 2012. Com o resultado, o
Brasil tem 13,5 milhões de pessoas desocupadas e teve alta de 11,7%, ou seja, mais de 1,4 milhão de
pessoas quando comparada ao trimestre encerrado em novembro de 2016. Na comparação com igual
trimestre de 2016, a alta foi de 3,2 milhões no número de desempregados no país, informou o IBGE.”8

Também, segundo o estudo da Organização Internacional do Trabalho: “Perspec-


tivas sociais e do emprego no mundo - Tendências de 2017”9, de cada três novos
desempregados no mundo em 2017, um seria brasileiro.

6 Projeto protocolado no então MTb em 02 de junho de 2017, que veio a ser formalizado no TED
01/2017 FUB - MTb, coordenado pela Profa. Thérèse Hofmann Gatti Rodrigues da Costa
7 http://economia.ig.com.br/2017-03-31/desemprego-dados-ibge.html (acesso em 07/05/2017)
8 Fonte: Economia - iG @ http://economia.ig.com.br/2017-03-31/desemprego-dados-ibge.html
9 http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/---publ/documents/publica-
tion/wcms_541211.pdf

1338
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

“A OIT estima que o Brasil terá 1,2 milhão de desempregados a mais na comparação com 2016, pas-
sando de um total de 12,4 milhões para 13,6 milhões, e chegará a 13,8 milhões em 2018. Em termos
absolutos, o Brasil terá a terceira maior população de desempregados entre as maiores economias
do mundo, superado apenas pela China e Índia. Na China, a OIT prevê que o número subirá de 37,3
milhões para 37,6 milhões em 2016. Já na Índia, de 17,7 milhões para 17,8 milhões.”10

Ainda, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2017),


“mais de 40 milhões de brasileiros tinham, em 2014, interesse em fazer cursos de
qualificação profissional. No entanto, apenas 3,4 milhões de pessoas estavam fre-
quentando este tipo de curso naquele período.”11

Para o IBGE, a qualificação profissional é a modalidade mais acessível à população, uma vez que
muitos desses cursos não dependem de uma escolaridade prévia para sua realização. A demanda
por cursos de qualificação profissional concentrava-se em um perfil jovem (45,4 % das pessoas
tinham entre 15 e 19 anos) e de alta escolaridade (48,1 % tinham 11 anos ou mais de estudo),
sendo 54,7% de mulheres e 68,7% de pessoas ocupadas.12

Diante desse quadro, apresentamos a proposta na perspectiva de parceria com o


então Ministério do Trabalho13, para desenvolver um projeto de pesquisa e extensão
de um programa agregador nacional de suporte às políticas públicas de qualificação
profissional. Acreditávamos que entre as soluções para reverter este quadro de de-
semprego estava a oferta de cursos de qualificação direcionados para as demandas
geradas pelos dados da pesquisa que nos dispúnhamos a realizar.

Com a proposta de ação modular englobando o estudo do estado da arte do mer-


cado de trabalho no Brasil, nos dispusemos a prospectar as cadeias produtivas de
futuro que demandam qualificação, propiciando ações de intervenção estratégica e
qualificação direcionada.

Desta forma em 21 de novembro de 2017 lançamos o portal “Escola do Trabalhador”


- plataforma integrada para atendimento das demandas do público alvo: trabalha-
dores e desempregados. No lançamento foi disponibilizado ao público um conjun-
to de 15 cursos usando a plataforma moodle apresentados como MOOC - Massive

10 Reportagem G1, OIT prevê que número de desempregados no Brasil chegará a 136 milhões em
2017.
11 http://www.valor.com.br/brasil/4911128/ibge-mais-de-40-milhoes-no-brasil-desejam-cursos-
-de-qualificacao, acesso em 07/05/2017
12 http://www.valor.com.br/brasil/4911128/ibge-mais-de-40-milhoes-no-brasil-desejam-cursos-
-de-qualificacao, acesso em 07/05/2017
13 O Ministério do Trabalho foi extinto em 2019 e suas atribuições ficaram a cargo do Ministério
da Economia

1339
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Open Online Course, alinhados a 12 eixos temáticos alusivos à terminologia mais


usada pelo seguro desemprego e pelo MEC nos cursos FIC.

Ícones criados por Ana Maria Sena em 201714 (www.escoladotrabalhador.gov.br) .

Com a possibilidade de ingresso diário, ou seja não sendo necessário formar turma
para iniciar o curso, qualquer cidadão ou cidadã, com qualquer escolaridade, com di-
ferentes níveis de letramento digital, com diferentes níveis de condição de acesso à
internet e de idades diversas, podiam escolher qual curso fazer e já iniciar os estudos.

Nos propusemos a uma ação com o Ministério na parceria de pesquisa e extensão


estimando o atendimento, dentro do arcabouço tecnológico, da disponibilidade de
acesso de até 6 milhões de vagas. O projeto demandou o uso de um novo modelo
de interação de mídias e tecnologias, caracterizado pelo uso de múltiplos meios de
aprendizagem, comunicação e pesquisa, de forma integrada e coordenada, e pela
existência de pontes possibilitando a navegação do usuário para os meios mais ade-
quados para atingir seu propósito.

14 Cada eixo temático recebeu uma cor e foi pensado um ícone que mais representasse o conteúdo
do eixo.

1340
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Escola do Trabalhador – Projeto pedagógico


O projeto pedagógico foi coordenado pela Profa. Dra. Wilsa Ramos15 e como apre-
sentado ao Ministério foi estruturado na perspectiva de transversalidade de pro-
dução e disseminação de conhecimento, contando com a participação de equipes
multiprofissionais, interdisciplinares e intersetoriais da UnB e de outras instituições.
Por meio desta parceria disponibilizamos vagas para a qualificação profissional de
milhares de trabalhadores em âmbito nacional, com a oferta de diferentes cursos vir-
tuais, cujas temáticas favorecessem as chances de empregabilidade e manutenção
do trabalhador no mercado de trabalho.

A elaboração do Projeto Pedagógico foi pautada na noção atualizada de quali-


ficação do trabalhador. Para muitos autores, a noção de competência traz uma
ruptura do taylorismo. No nosso projeto explicamos que no taylorismo há uma
forte ligação do trabalhador ao posto de trabalho, a qualificação é atribuída às
características do posto e do trabalho. Por outro lado, no novo modelo deseja-se
a competência de um indivíduo, a capacidade do trabalhador em tomar decisões
e assumir responsabilidades diante das novas situações que surgem no cotidia-
no do trabalho que é o ponto focal. A proposta pedagógica do programa levou
em consideração que a qualificação deveria ser além da dimensão profissional,
mas, também abordar a dimensão social da formação humana, abrangendo temas
transversais, que foram introduzidos aos trabalhadores, junto com o conhecimen-
to profissional propriamente dito.

As produções dos conteúdos dos cursos foram realizadas a partir da Matriz Refe-
rencial do Perfil de Competências do Trabalhador do Século XXI e dos resultados
obtidos nas pesquisas realizadas. Os professores Mauro Rabelo16 e Claisy Marinho17
pesquisaram e analisaram as avaliações de competências para a formação profis-
sional dos participantes da Escola do Trabalhador, e pesquisaram o modelo teóri-
co-metodológico que subsidiou o processo de desenvolvimento e aprendizagem
na formação dos cursistas da plataforma de Ensino a Distância - EAD. As pesquisas
resultaram nas matrizes de habilidades e competências de cada um dos 12 eixos
temáticos e serviram de orientação aos conteudistas na elaboração dos cursos.

15 Professora Dra. Wilsa Maria Ramos do Instituto de Psicologia da UnB (http://buscatextual.cnpq.br/


buscatextual/visualizacv.do?id=K4798660P4)
16 Professor Dr. Mauro Luiz Rabelo do Instituto de Exatas (http://buscatextual.cnpq.br/buscatextu-
al/visualizacv.do?id=K4787959D8)
17 Professora Dra.Claisy Maria Marinho-Araujo do Instituto de Psicologia da UnB (http://buscatextu-
al.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4708441U2)

1341
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Dentro do design instrucional elaborado com a coordenação da Profa. Rute Bicalho18


todos os materiais e a plataforma foram autoinstrucionais, isto é, o ensino é focado
no cursista que aprende sem tutoria. Desta forma, deixamos explícitos os indica-
dores de navegação, que promovem confiança, autonomia e flexibilidade, além de
motivar os cursistas no sentido de fazer avançar os estudos. Em conjunto com outros
recursos, as imagens e a iconografia do projeto, foram totalmente personalizadas,
pois tinham a função de formar sentido, emitir estímulos para que o cursista pudesse
interagir com o mundo exterior nas seguintes dimensões: corporal, mental, social e
tecnológica (VILALBA, 2006).

Com a seleção de alunos para atuarem no projeto como estagiários e pesquisadores


no desenvolvimento de atividades próprias da formação de cada um, apresentamos
aqui o depoimento de quatro desses alunos: Ana Maria Silva Sena Pereira, Eugênia
Versiani Souza Carvalho, Gabriel Victor Alves Meireles e João Victor Silva Araújo.

A atuação de alunos de graduação em atividades de pesquisa e extensão dentro


de projetos de abrangência nacional oportunizam a complementação da formação
profissional e agregam experiências importantes ao profissional em formação.

Escola do Trabalhador – Relato de Experiências:

Ana Maria Silva Sena Pereira:


Sou estudante de bacharelado em artes visuais cursando o 10° semestre. No segun-
do semestre de 2017 iniciei minha participação no projeto “Escola do trabalhador”.
Já trabalhava informalmente como ilustradora há algum tempo e neste sentido o
fato de ter sido selecionada para atuar no projeto foi uma ótima oportunidade de
conhecer melhor o mercado de trabalho e como ele funciona. Nesta atividade tive
toda experiência de uma publicação, desde o briefing, raffes, ajustes até o processo
final, que era a aprovação e a postagem no site.

Minha primeira atuação foi com minha própria imagem em foto para o portal do
site. Depois meus desenhos foram selecionados para representar os ícones para os
doze eixos temáticos. Com a orientação da equipe pedagógica, capitaneada pela
Profa. Wilsa Ramos, foram definidas as cores e discutidos os estilos para cada um dos
ícones dos 12 eixos temáticos: 1) Informação e Comunicação, 2) Ambiente e Saúde,
3) Turismo, Hospitalidade e Lazer, 4) Recursos Naturais, 5) Desenvolvimento Educa-
cional e Social, 6) Produção Alimentícia, 7) Segurança, 8) Produção Cultural e Design,
9) Produção Industrial, 10) Gestão e Negócios, 11) Infraestrutura e 12) Controle e
Processos Industriais. (https://www.escoladotrabalhador.gov.br/sobre/)

18 Mestre Rute Nogueira de Morais Bicalho do Instituto Federal de Brasília (http://buscatextual.


cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4731884Z1)

1342
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Portal escola do trabalhador: Jeffesson Silva, Amanda Morais e Ana Maria Sena.
Foto de Fernando Nísio.

A grande diferença de uma publicação editorial, é que no caso do portal da Esco-


la do Trabalhador após o envio do briefing, tínhamos o processo de construção do
avatar que era bem variado, dependendo do eixo do curso, isso me possibilitou criar
algo do zero e pensar a personalidade de cada um e logo após a aprovação, o avatar
já era lançado no site.

Devido a isso, os prazos eram variados e em sua maioria um pouco curtos, já que
assim que finalizado, ele já era postado junto com o curso. Foi uma espécie de labo-
ratório, nunca participei de algo parecido, já que o site estava em construção e de
certa forma descobriamos na hora o que daria certo ou não.

1343
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Avatares criados por Ana Maria Sena, sketches e finalizados. arquivo pessoal.

Dentro desse processo, um detalhe que me agradou foi a preocupação que o projeto
teve de que os avatares estimulassem a inclusão, buscando sempre a diversificação
dos mesmos para representar a diversidade da população brasileira, e desta forma
o cidadão ao acessar o curso se sentiria representado. Trabalhei com photoshop e
mesa digital.

Exemplo da inserção do avatar na tela do curso. (www.escoladotrabalhador.gov.br)

Eugênia Versiani Souza Carvalho:


Sou graduanda do curso de Artes Visuais, bacharelado e estou cursando o nono se-
mestre. No terceiro semestre da faculdade comecei a estagiar no Laboratório Expe-
rimental de Materiais Expressivos (LEME) com a professora Thérèse Hofmann, onde
auxiliava a mesma em monitorias e algumas pesquisas. Em 2018, surgiu a oportu-
nidade para participar do projeto “Escola do trabalhador”, onde teria como função
ilustrar cursos da plataforma com outros estagiários. Nunca havia trabalhado com
ilustração digital, e não fazia ideia dos programas e ferramentas necessários para
realizar a tarefa, logo, o projeto se tornou um desafio para mim.

De cara já participei do portal ilustrando a atividade de uma cozinheira que iria fazer
um dos cursos da Escola.

1344
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Eugênia Versiani. Foto Fernando Nísio

Depois recebi minha primeira demanda e logo pedi ajuda para alguns amigos do es-
tágio. Os mesmos me auxiliaram a fazer as modificações necessárias no computador
para que este pudesse rodar os programas indicados. Me ajudaram a baixá-los e me
ensinaram a desenhar usando uma mesa digitalizadora. Depois de mais ou menos
um mês já sabia o básico sobre o funcionamento dos programas. Foi um grande
desafio e aprendizado. Confesso que tive dificuldades para atender alguns prazos,
mas os professores responsáveis por me enviarem as demandas sempre foram mui-
to compreensivas e pacientes, o que tornou meu aprendizado mais tranquilo.

Comecei ilustrando avatares, depois cenários e por último, histórias em quadrinhos.


Meu processo se dava por etapas, sendo a primeira delas desenhar em camadas no
photoshop, posteriormente esboço, pintura flat, e finalização do desenho. Depois
que o desenho fosse aprovado, o mesmo voltava com feedback sobre possíveis mu-
danças que eu deveria fazer, e em que cenário o mesmo deveria ser aplicado, quais
características precisaria ter e para que tipo de público seria direcionado.

Avatares criados por Eugênia Versiane, arquivo pessoal.

1345
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Ter que ilustrar em uma nova plataforma com prazos definidos foi uma ótima expe-
riência tanto profissional quanto pessoal. Profissionalmente, pude me capacitar para
trabalhar com ilustração e pintura digital, aprendi a lidar com prazos e reuniões, apren-
di a trabalhar melhor em grupo e principalmente, o importante papel que a ilustração
pode ter no aprendizado das pessoas, independente da faixa etária das mesmas.

No lado pessoal, passei a ter mais disciplina nos meus estudos, principalmente nos
estudos relacionados ao desenho. Minha produção artística teve uma melhora sig-
nificativa, e a ilustração digital acabou se tornando uma importante ferramenta de
trabalho e estudo.

Ilustrações Eugênia Versiane, arquivo pessoal.

Gabriel Victor Alves Meireles


Sou bacharelando em Artes Visuais na UnB, estou no 10º semestre e trabalho como
ilustrador e artista conceitual na área de entretenimento e jogos de fantasia. Já havia
trabalhado com ilustração institucional anteriormente na produção de uma cartilha
educativa sobre prevenção de incêndios em áreas rurais, mas a minha experiência
se concentrava principalmente nos temas de fantasia e criação de mundos e perso-
nagens ficcionais.

Ao trabalhar no projeto da Escola do Trabalhador, da metade de 2017 até agosto de


2019, pude ter contato mais a fundo com outras áreas e estilos da ilustração, sendo
uma das melhores e mais produtivas experiências que tive durante a universidade.

O projeto me permitiu trabalhar em horário flexível, conciliando a carga de trabalho


com as minhas aulas, ao mesmo tempo que aplicava os conhecimentos adquiridos
de uma forma prática e voltada diretamente para o mercado, além de ter aumen-
tado minha experiência em lidar com reuniões, demandas urgentes, adaptação do
meu estilo artístico para me adequar melhor ao requerido pelo cliente e a solução
de problemas visuais em geral.

1346
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Comecei atuando como personagem e também criando personagens que iriam ser
usados para ilustrar os cursos. As demandas chegavam a nós por meio de e-mails
dos organizadores onde nos explicavam o que tinha que ser feito e quais as especi-
ficações do personagem. Achei muito interessante que sempre se mostraram muito
preocupados em manter uma diversidade de personagens para que todos os alunos
pudessem se identificar com os mesmos quando fizessem as matérias online.

Gabriel Meireles. Foto: Fernando Nísio

Os prazos geralmente eram de 1 semana ou uma semana e meia, mas sempre me


perguntavam se eu estava de acordo com o prazo e nunca tive problemas ao pedir
a extensão de um ou dois dias para a entrega das demandas, que eram sempre res-
pondidas com compreensão. Os temas variavam muito, geralmente cada ilustrador
ficava com um curso, e depois de finalizado passávamos para o próximo.

Eu produzi ilustrações para cursos com temas como o microcrédito, letramento de da-
dos, capacitação de agentes do SUS entre outros. De tempos em tempos tínhamos que
participar de reuniões de alinhamento com os professores e organizadores do projeto,
onde pude ter uma visão interna de como se gerencia um projeto dessa magnitude.

1347
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Avatares criados por Gabriel Meireles - Arquivo pessoal.

No início estávamos com dificuldades para manter o estilo das artes consistentes,
depois de algumas reuniões e conversas entre os ilustradores, concordamos em
utilizar um estilo mais cartunizado de desenho, com cores e formas chapadas, sem
linhas, já que esse estilo possibilitava a produção mais rápida de ilustração para os
cursos e era de fácil aprendizado e adaptação para todos os artistas.

O programa que utilizei para produzir as imagens durante todo o projeto foi o
Adobe Photoshop Cs6, um programa gráfico que possibilita a pintura digital de for-
ma prática facilitando alterações. Ao longo do tempo senti que a minha prática e a
velocidade do meu trabalho nesse software aumentou muito devido o constante
uso das ferramentas e procura de um método de produção rápido e eficiente que
eu pudesse aplicar em todas as demandas do projeto.

Ilustração de Gabriel Meireles - Arquivo pessoal.

1348
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Com a aprovação dos meus trabalhos de histórias em quadrinhos, acabei sendo esco-
lhido para continuar a desenvolver tirinhas que ajudassem a explicar o curso para o
aluno, o que foi de grande proveito para mim, por que foi um dos meus primeiros con-
tatos com a produção de histórias em quadrinhos. Através dessas demandas de hq’s ,
pude aprender como trabalhar com um roteiro pré-estabelecido, e como adequar as
composições ao que seria contado na história, ao tamanho dos diálogos, ao tamanho
das páginas, além de ter que pensar em uma narrativa de fácil compreensão a todos.

Ilustração de Gabriel Meireles - Arquivo pessoal.

Por fim, me sinto muito orgulhoso de ter participado de um projeto que atingiu mi-
lhões de pessoas e milhares de municípios do Brasil, e de saber que meu trabalho
ajudou a contribuir com essa imensa empreitada pela capacitação de pessoas pelo
país. Foi de grande valia como aprendizado prático durante meus estudos e me aju-
dou a produzir um portfólio consistente de trabalhos que certamente me impulsio-
narão a conseguir outros empregos ao finalizar minha graduação.

João Victor Silva Araújo


Estou no décimo semestre do curso de Artes Visuais, bacharelado, e participei do
projeto Escola do Trabalhador durante os anos de 2018 e 2019. Antes disso tive al-
gumas experiências com produções artísticas em projetos pessoais e de amigos na

1349
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

área audiovisual e na elaboração de jogos, mas de maneira informal e sem remune-


ração. Dessa forma, quando entrei no projeto organizado pela professora Thérèse
Hofmann tive contato com a área profissional de ilustração de maneira mais signifi-
cativa e com um grupo muito maior de profissionais envolvidos.

Este contato me ajudou a entender melhor a dinâmica de produção em larga escala


e a me situar com as responsabilidades de um profissional da área. Foi o meu primei-
ro contato com o mercado e por isso tem uma importância singular para mim pois
foi onde pude colocar em prática o que aprendi durante minha estadia na universi-
dade. Claro que participar de um projeto com o alcance que a Escola do Trabalhador
teve, e ver meu trabalho exposto em um nível nacional de abrangência, também
tem um significado gigante para mim, tanto por poder ver o meu trabalho em uma
plataforma relevante que posso usar como portfólio profissional quanto por sentir
que minha contribuição foi pertinente para uma iniciativa de educação.

A minha experiência no projeto da Escola do Trabalhador estava ligada à produção


ilustrada de personagens e ícones para acompanhar os textos das explicações dos
conteúdos nos cursos ofertados. Cada etapa era seguida por um prazo que levava
em conta a capacidade de produção do ilustrador, usualmente estes prazos eram de
uma semana porém, nos casos onde não pude entregar a tempo, a equipe sempre
foi receptiva com novos prazos e acréscimos. Em primeiro lugar eu recebia uma pro-
posta de personagem contendo uma descrição. A partir desta descrição eu criava
concepts e variações deste personagem que voltavam para avaliação.

Avatares criados por João Victor - arquivo pessoal

1350
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Com as considerações e o feedback que eu recebia por parte de quem estava elabo-
rando o conteúdo do curso eu ajustava o desenho do personagem para melhor se
adaptar ao que esperavam. Com o personagem pronto eu recebia briefings contendo
uma lista de poses e expressões para o personagem e roteiros de pequenas tirinhas. As
variações das imagens mantinham a posição semi-lateral para facilitar modificações.

Avatares criados por João Victor - arquivo pessoal

As tirinhas eram produzidas primeiramente em uma etapa de planejamento visual


dos elementos, um sketch das poses e dos balões, e depois eu utilizava uma biblio-
teca de poses e planos visuais que criava para agilizar o processo repetindo-os. Du-
rante todo este processo utilizei o programa de edição de imagens e pintura digital
Photoshop CC 2018 e portanto tinha uma certa autonomia em questão aos horários,
pois poderia fazer as demandas de casa, salvando tempo. Durante este tempo ilus-
trei para cursos como animação, marcenaria e saúde. Foi uma experiência constru-
tiva e interessante.

1351
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Ilustrações feitas por João Victor - arquivo pessoal

Conclusão
A experiência neste desafio da Escola do Trabalhador foi extremamente enriquece-
dora para todos os envolvidos. No período de pouco menos de dois anos alcança-
mos com a disponibilização de 36 cursos na plataforma da Escola do Trabalhador o
número de 1.285.425 matrículas abrangendo cursistas residentes em 5.451 municí-
pios brasileiros o que certamente se apresenta como a maior política de capacitação
on line de cursos livres do país. Os relatos dos estudantes de artes visuais da UnB
mostram que as ações de pesquisa e extensão que envolvem os alunos de gradu-
ação são de grande significado na complementação da formação profissional dos
nossos graduandos. O desafio das ações interdisciplinares oportuniza à formação
profissional do aluno de graduação o contato com múltiplas realidades propiciando
uma rica troca de experiências. A integração da atuação acadêmica em atividades de
aplicação prática permitem ao graduando atuar com maior profissionalismo e já se
preparar para a realidade do mercado de trabalho.

1352
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Referências
Costa,T.H.G.R., Steinke, V.A., Ramos,W.M., Júnior,R.T.S., Júnior, H.A., Molinaro, L.F.
(2017) Projeto “PESQUISA DE DESENVOLVIMENTO METODOLÓGICO E CAPACITAÇÃO
PARA GOVERNANÇA E GESTÃO PÚBLICA DA EMPREGABILIDADE NO BRASIL - Progra-
ma de Empregabilidade: Qualifica Brasil” (3-5)

Flôres, M. L. P; Tarouco, L. M. R. (2008) Diferentes tipos de objetos para dar suporte a


aprendizagem. Novas Tecnologias na Educação. CINTED-UFRGS.

HILDEBRANDO, E. N. (2017)Tecnologia: Objetos de Aprendizagem. UFMT/ CEFETMT.


Disponívelem:<EMhttp://www.pucrs.br/famat/viali/tic_literatura/artigos/objetos/
artigo_Objetos_de_Aprendizagem.pdf>

Rabelo, M, e Marinho,C.(2018). Matrizes de competência dos doze eixos temáticos da


Escola do Trabalhador. Relatório Técnico.

Ramos,W.M., Bicalho, R., Nogueira,D., Melo,L.V.S., Costa, THGR. (2017) Design Instru-
cional da Escola do Trabalhador. Relatório Técnico,

Vilalba, R. (2006) Teoria da Comunicação. São Paulo: Ática.

1353
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Joenio Marques da Costa1

Demo Art e Visual Music em perspectiva


Demo Art and Visual Music in perspective

Resumo
Este artigo coloca em perspectiva a demo art e a visual music. Demo art são
obras de audiovisual renderizados em tempo real, enquanto visual music são
obras de audiovisual previamente renderizado em formato de vídeo. O contex-
to em que surgem são diversos, a visual music surge entre artistas e técnicos
ligados a indústria cinematográfica, enquando os demos surgem entre pro-
gramadores com estreita relação com os jogos de computador. A divulgação
e exibição entre as comunidades variam e são muito distintas, e há um claro
distanciamento entre os praticantes destas duas formas de arte, levando a crer
que um possível entrelaçamento entre os artistas dos dois contextos pode levar
a resultados e frutos interessantes.
Palavras-chave: Demo art, demoscene, visual music, arte e tecnologia.

Abstract
This paper shed light into demo art and visual music. Demo art are works of audio-
visual rendered in real time, while visual music are works of audiovisual previous-
ly rendered in video format. The context and origins are diverse, visual music born
among artists and technicians from cinema industry, while demos emerge among
programmers related to computer games. The dissemination and exhibition among
communities vary and are very distinct, there is a clear gap between practitioners of
these two art forms, leading to the belief that a possible intertwining between artists
from both contexts can lead to interesting results.
Keywords: Demo art, demoscene, visual music, art and technology.

Introdução
A demoscene é uma comunidade de programadores trabalhando para produzir de-
mos, ou demo art, obras de animações audiovisuais em tempo real executadas em

1 Joenio Marques da Costa é Engenheiro de Software, ativista e desenvolvedor de Software Livre, mestre
em Ciência da Computação. Realiza experimentação e pesquisa com música computacional, algoritmica
e live coding, utilizando software livre e plataformas abertas como SuperCollider e TidalCycles – http://
joenio.me.

1354
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

plataformas computacionais, estas demos possuem algumas similaridades com a vi-


sual music, uma forma de expressão artística preocupada em representação visual da
música, ambos os movimentos, demoscene e visual music, amadurecem com o surgi-
mento dos computadores e sua popularização no final da década de 70, e apesar de
terem motivações distintas e surgirem em contextos muito variados, algumas obras
possuem bastante similaridade, de forma que um olhar inicial faz os dois movimentos
muito semelhantes, essa semelhança motivou a realização deste estudo, resultando
numa investigação com o objetivo de comparar suas obras, passando por um resumo
histórico e análise evolutiva tanto da demoscene quanto da visual music.

Definição
Demos (abreviação de demonstration) são programas de computador não interati-
vos que produzem resultados audiovisuais em tempo real, surgido durante a dis-
seminação dos primeiros microcomputadores na década de 80 possui ênfase na
realização técnica em pressionar os limites do hardware de sistemas computacio-
nais produzindo animações e sons gerados por algoritmos (Ferreira & Duarte, 2014;
Marecki, 2015).

Visual Music é uma forma de expressão artística desenvolvida especialmente na


década de 80 a partir dos avanços da computação e informática, numa proposta
estética para representar a música visualmente, tendo a imagem como elemento
estético principal, unindo música e imagem com especial atenção a sincronia entre
estes dois elementos (Corrêa, 2018).

Ambos, demo e visual music, são representações visuais e sonoras, em alguns casos
podendo ser apenas visual, com sincronia e forte relação entre estes dois elementos,
possuem o ponto alto de desenvolvimento na década de 80 e surgem em contextos
bastante distintos.

Origens
Demo art tem suas raízes na revolução dos computadores domésticos no final dos anos
70, surge com a pirataria de software e com os usuários de computador (geralmente
de plataformas computacionais da geração 80 e 90, como o Commodore 64 e o Com-
modore Amiga) aplicando novas e criativas formas de uso para tais computadores,
herança direta de sua cultura hacker, para produzir demos, ou, obras audiovisuais em
tempo real, a comunidade ao redor dos demos se intensificam ao longo dos anos 80,
especialmente na Europa onde permanecem fortes até hoje (Ferreira & Duarte, 2014).

Visual Music surge conceitualmente com os Color-Organs no século XVIII, mas somen-
te no século XX surge de fato a primeira geração da visual music com o movimento
Absoluter Film na Alemanha, grande parte dos pioneiros desta arte trabalhavam como

1355
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

animadores em companhias cinematográficas, há uma forte relação entre visual music


e os desenvolvimentos tecnológicos do século XX para combinar música e imagem, e
especialmente após a década de 70 a ideia de uma “música visual” associou-se defini-
tivamente aos computadores (Corrêa, 2018).

Tanto demo quanto visual music possuem forte relação com a tecnologia do século
XX e com os computadores de modo geral, no entando é importante perceber que
as duas comunidades possuem motivações muito variadas.

Motivações
Demos são desenvolvidos por programadores, músicos e artistas gráficos (gfx-artist)
em grupos chamados Demogroups normalmente para participar de festivais – deno-
minados Demoparties – onde competem entre si com seus demos em competições
chamadas compos.

Todo este ecossistema ao redor dos demos, incluindo conceitos, pessoas e artefatos
produzidos estão inseridos numa grande comunidade denominada Demoscene. De-
moscene é o termo guarda-chuva em que está inserida todas as atividades relacio-
nadas aos demos e caracteriza toda esta comunidade.

A origem da demoscene está no ato de crackear software proprietário (em sua maio-
ria jogos) visando à remoção de sua proteção contra cópia. Neste processo, de re-
mover a proteção contra cópias, os crackers inserem, no software já desbloqueado,
alguma forma de assinatura (visual e/ou sonora) indicando o autor do crack, estas
assinaturas são chamadas de cracktros (Ferreira & Duarte, 2014). Com o passar do
tempo os cracktros se tornam cada vez mais elaborados até sairem do âmbito estri-
to das telas de carregamento de software para ganhar vida própria, passando a ser
chamados de demos (Ferreira & Duarte, 2014).

Todo este processo de criação é marcado por um forte espírito de desafio técnico en-
tre os demosceners, que levam em conta as limitações técnicas dos computadores
forçando o hardware de forma nova e criativa, assim elevam a aplicação de técnicas
gráficas e sonoras a novos patamares. Além do desafio técnico, há também entre os
demosceners um grande senso de nostalgia como ponto motivador, especialmente
por utilizarem, em grande parte, plataformas computacionais antigas, consideradas
obsoletas nos dias atuais (Ferreira & Duarte, 2014).

Diferentemente da demoscene, motivada inicialmente pelo desafio técnico, a mo-


tivação da visual music concentra-se em responder a seguinte questão: “Como re-
presentar a música visualmente?”. Os artistas que criaram a visual music desejavam
imitar as qualidades não-representacionais da música absoluta, ou seja, uma música
composta por uma estrutura de materiais e padrões sonoros distribuídos no tempo,
como diz Stravinsky “uma arte pela arte” (Evans, 2005).

1356
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Além da forte relação com a música absoluta, a visual music possui também grande
conexão com o filme absoluto, sendo caracterizada durante seu desenvolvimento pela
aplicação de concepções abstradas em filmes, possuindo, inclusive, entre os pioneiros
da visual music obras de animação classificadas como filme experimental (Corrêa, 2018).

Grande parte dos pioneiros desta arte possuíam relação com o cinema e com a pro-
dução cinematográfica, muitos deles produzindo novas tecnologias e equipamentos
para dar suporte aos desafios enfrentados nesta nova estética artística. A evolução
da visual music está intimamente ligada aos desenvolvimentos tecnológicos do sé-
luco XX, e possui intrínseca relação e praticamente dependência dos computadores.

Uma das notáveis tecnologias desenvolvidas pelos artistas e pesquisadores da visual


music acontece ainda em 69 com a invenção de um equipamento capaz de sinteti-
zar vídeos, tornando possível produzir imagens sem depender de câmeras e filmes,
este novo dispositivo era capaz de construir imagens usando formas visuais básicas,
manipular formatos, cores, texturas e movimentos (Harmon, 2016).

Não é difícil perceber a distância conceitual, teórica e prática entre demo e visual
music, enquanto os demos surgem como desafios técnicos ao ato de quebrar a se-
gurança de jogos de computadores, a visual music surge com uma forte motivação
artística relacionando estudos sobre luz, filme, música e sons, numa tentativa de rea-
lizar uma nova forma de representação musical através de imagens. No entando, ao
observar algumas obras de perto, e sem compromisso com as motivações históricas,
torna-se difícil distinguir, em alguns casos, o que é demo e o que é visual music.

Obras
Não é possível, no entanto, comparar demo art e visual music sem avaliar algumas
de suas obras, para então colocá-las lado a lado em comparação, assim, a partir da
uma revisão de documentários e artigos (Polgar, 2005; Polgár, 2016; Harmon, 2016)
sobre a história da demoscene e da visual music, caracterizo algumas das primeiras
obras dos dois movimentos, partindo dos registros iniciais e tendo como ponto de
corte obras produzidas até o final dos anos 90. O ponto de corte adotado foi motiva-
do pela mudança ocorrida na demoscene após este período, os demos produzidos
nos anos 2000 representam uma virada estética crucial.

É importante destacar que a caracterização é realizada a partir de vídeos disponibi-


lizados livremente na internet, as obras reais, programas executáveis, no caso dos
demos, gerando audiovisual em tempo real, não foram avaliados. Entre as obras de
visual music detaca-se que grande parte não estão disponíveis livremente, por conta
disso muitas obras foram avaliadas a partir de trechos e fragmentos disponibilizados
em sites especializados2.

2 http://www.centerforvisualmusic.org

1357
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Primeiras obras da demoscene


Visto que a demoscene surge com os computadores pessoais no final da década de
70 e sua popularização durante a década de 80 é natural que os primeiros demos
surgam a partir daí, então as primeiras obras que se tem conhecimento datam dos
primeiros anos da década de 80.

À seguir, é apresentado em ordem cronológica a caracterização de obras seleciona-


das, incluindo: nome do autor ou grupo, título do demo, ano de publicação, captura
de tela, URL para acesso, anotações e impressões sobre a obra.

Scoop Design - Aliens - 1986

Demo com imagens estáticas, animações no topo e rodapé da tela contendo men-
sagens texto em slide, representa uma demo típica da primeira fase. Disponível em:
https://archive.org/details/Aliens 1986 Scoop Design e http://www.pouet.net/prod.
php?which= 5745.

Ash & Dave - Smooth Criminal - 1988

Demo art inspirada em música de Michael Jackson, animações com plano ”3D”, pa-
lavra ”Moonwalker” girando, em momentos o nome dos autores e do grupo são im-
pressos na tela. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4FNeHqrDaSM
e https://csdb.dk/release/?id=6556.

1358
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Scoopex - Mental Hangover - 1990

Demonstra os efeitos com transformações 3D, efeitos de rastro na tela, textos na


parte superior descrevem e apresentam cada efeito, há uma clara preocupação de
sincronia entre os visuais e o som.
Disponível em: https://archive.org/details/youtube-zR9a4vTuuoo
http://www.pouet.net/prod.php?which=1472.

UltraForce - VectorDemo - 1991


Um dos primeiros demos de PC, qualidade sonora e visual com muito mais recursos,
segue o padrão da primeira geração efeitos 3D inovadores, objetos combinando
suas faces. Disponível em: https://archive.org/details/demoscene VectorDemo-Ul-
traForce e http://www.pouet.net/prod.php?which=4088.

1359
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Taboo - Altered States - 1994

Demo com figuras geométricas, física de movimento e colissão esferas colidindo


com objeto triangular em movimento, textos em movimento, física simulando efei-
to ”freio”, bastante uso de cores e luzes. Disponível em: https://archive.org/details/
youtube-UscVdaIxkZg e https://csdb.dk/release/?id=11610.

CNCD - Closer - 1995

Demo com qualidade impressionante, visuais abstratos e ótimos visuais, asseme-


lha-se a obras de visual music em alguma me-dida. Disponível em: https://archive.
org/details/youtube-Yoj9h2iZrlo, http://www.pouet.net/prod.php?which=1136 e
https://www.youtube.com/watch?v=04HEmy2Umuk.

1360
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

CNCD - Inside - 1996

Demo art com sons mais elaborados e visuais mais integrados ao som, efeitos visuais
mais interessantes do que apenas animações na tela, som e imagem mais conecta-
dos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZVBS3ouIkE http://www.
pouet.net/prod.php?which=74.

Scoopex & Haujobb - My kingdom - 1997

Neste demo percebe-se uma fase distinta na demoscene, com mais quali-dade, sons,
imagens e muitas cores, figuras e outros elementos, é um demo muito bom, o som
bastante cativante. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mN2KBJa-
vpzI e http://www.pouet.net/prod.php?which=1027.

Primeiras obras da visual music


Quando a demoscene nasceu a visual music já tinha trilhado uma longa estrada,
portanto temos obras de visual music muito mais antigas que as primeiras demos.
Apresento a seguir a caracterização de obras de visual music selecionadas a partir
de leituras de artigos e sites de internet sobre o tema, as obras são apresentadas
em ordem cronológica, incluindo: autor da obra, título, ano de publicação, URL com
obra completa ou trecho e, por fim impressões e anotações.

1361
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Mary Ellen Bute - Dada - 1936

Visual music com figuras geométricas em fundo preto, animando na tela, efeitos de
borrão, sobreposição cubos, música executada por instrumentos e orquestra. Dispo-
nível em: https://www.dailymotion.com/video/x58zpn.

Norman McLaren - Blinkity Blank - 1955

Um exercício de animação, movimentos dos traços, aparentemente feitos a mão pa-


lavras, cores, forte relação entre visual e sons. Disponível em: https://www.nfb.ca/
film/blinkity-blank/.

1362
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Jordan Belson - Allures - 1961

Espirais, círculos e formas abstratas movendo-se, cores ao fundo alterando, círculos


crescendo, reduzindo, formas diversas de figuras circulares e espirais, sons abstratos,
pouca percusssão objetos 2D girando, sensação de 3D. Disponível em: https://archi-
ve.org/details/allures JordanBelson1961.

Norman McLaren - Lines Horizontal - 1962

Experimento com design, linhas movendo-se com precisão em relação ao fundo que
altera-se de cor, música começa com flauta, entra cordas, animação começa, sons e
animação sincronizados. Disponível em: https://www.nfb.ca/film/lines horizontal/.

1363
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Barry Spinello - Sonata for Pen, Brush and Ruler - 1968

Visual music com desenhos feitos a mão diretamente no filme, figuras geométri-
cas, cores, bordas, som experimental, eletrônico, fundos coloridos, quadrados,
círculos, outros formatos geométricos. Disponível em: https://vimeo.com/onde-
mand/34628/123374027.

Charles Dockum - Mobilcolor Performance film - 1969

Efeitos visuais com cores, sombras, usando o projeto Mobilcolor. A qualidade visual
e efeitos impressionam em comparação com outras obras da mesma época. Dispo-
nível em: https://www.facebook.com/watch/?v=10155251165662220.

1364
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Baerbel Neubauer - ALGORITHMEN - 1993

Visual music com muitas cores, figuras abstradas, lembram folhas, cores, vídeo curto.
Disponível em: http://www.spiralsmorphs.de/algorithmen.html.

Bret Battey - On the Presence of Water - 1997

Visual music representando água, escuro, sobreposições de imagens e efeitos, som


de materiais lembrando madeira ou plástico batendo juntos e ran-gendo, textu-
ras, rochas, poeira, aguá corrente, visual music muito inte-ressante. Disponível em:
http://bbattey.dmu.ac.uk/Gallery/otpw.html.

Exposições, eventos e competições


Apesar de ser possível colocar demos e visual music lado a lado, o ambiente em que
são exibidos ao público são muito distintos, os demos são basicamente apresenta-
dos em competições específicas sobre o tema, enquanto obras de visual music são
usualmente expostas em museus, galerias ou publicadas em eventos especializados.

1365
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Demoparty

Demos são tradicionalmente exibidos em competições chamadas compos, realiza-


das em festas denominadas demoparties, os primeiros eventos possuem registro
em 1987 com a demoparty Finnish Gold realizada em Vaajoski e em 1988 com o
evento Byterapers Copy Party, considerada a primeira competição de demo party no
mundo. Outros eventos desta mesma geração são as demoparties Razor 1911, The
Cartel e Abnormal Party, ambos iniciadas em 1988 (Polgár, 2016).

Grandes demoparties começam a ocorrer na segunda metade dos anos 90 em forma


de eventos internacionais, como por exemplo os eventos The Party na Dinamarca,
Assembly na Finlândia, e Mekka Symposium e Breakpoint realizados na Alemanha.
Um dos mais tradicionais e maior evento ainda em realização até os dias de hoje é a
demoparty X, um evento específico para a plataforma Commodore 64 com a primei-
ra edição realizada em 1995 na Holanda (Polgár, 2016).

Entre as atuais demoparties destacam-se a Revision, a Datastorm e a BFP (Baroque


Floppy People), a primeira realizada anualmente na Alemanha e as duas últimas na
Suécia, no ano de 2011, por exemplo, mais de cem demos foram desenvolvidas para
a plataforma Commodore 64 (Ferreira & Duarte, 2014). A demoparty Revision 20173,
por exemplo, contou com 26 demos apresentados ao público na categoria PC Demo,
este evento destaca a importância das competições e da socialização internacional
como seus principais objetivos.

Durante os eventos artistas programadores submetem seus demos em competição


com outros grupos e artistas, todos os demos são exibidos em grandes telões ao pú-
blico, uma comissão organizadora acompanha, narra e apresenta cada demo, lendo
informações, título do demo, nome do demogrupo, e comentários dos autores.

Alguns demos são criados no próprio evento, outros são finalizados há poucas horas
antes do início, em alguns casos grupos trabalham durante a viagem ao evento, mas
uma grande parte é resultado de meses de trabalhoque antecedem a realização do
evento e da competição.

Grande parte dos demos submetidos nestes eventos são disponibilizados em sites e
comunidades online voltadas a preservação e divulgação das obras, entre os mais tra-
dicionais destacam-se Pouet.net, Scene.org, Demoparty.net, Demozoo.org e CSDb.dk.

Exibições e galerias

A visual music, pela proximidade com a comunidade artística do cinema, artes visuais
e música, apresenta-se em espaços de arte um pouco mais tradicionais, como confe-

3 https://2017.revision-party.net

1366
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

rências, congressos, centros de pesquisa sobre arte, galerias e museus, além de sites
especializados no tema, em Los Angeles, Califórnia, por exemplo, existe um centro de
pesquisa especializado na divulgação dessa arte, o Center for Visual Music (Corrêa, 2018).

Exibições em museus como por exemplo “Soundings” realizado no Neuberger Mu-


seum, Purchase, NY em 1981, ou a exposição “-auf ein Wort! Aspekte visueller Poesie
und Musik” de 1987 realizada no Gutenberg Museum em Mainz, Alemanha. Ou ain-
da o “Vom Klang der Bilder” em Staatsgalerie Stuttgart no ano de 1985, uma exibição
explorando a relação entre arte, som e música (em materiais não-filmes). Em 2001
houve a exposição “Between Sound and Vision” na Gallery 400 na University of Illi-
nois em Chicago. Muito recentemente aconteceu o “Visual Music” na MOCA em Los
Angeles e o Hirshhorn Museum em Washington D.C (Ox & Keefer, 2006).

Alguns destes espaços retomam uma definição mais ampla do conceito visual mu-
sic, estendido a diversas formas de arte visual abstrata que de algum modo se re-
lacionam à música, bem como a um recorte abrangente do cinema experimental
(Basbaum, 2018). Há ainda congressos como o “Color Music Congresses” (Kongresse
für Farbe-Ton-Forschung) na Alemanha realizado nos anos 20 e 30, mais tarde nos
anos 60 temos as conhecidas exibições do Fluxus e Intermedia na Europa e Estados
Unidos, revelando artistas como John Cage (Ox & Keefer, 2006).

Algumas conferências como é o caso da Understanding Visual Music (UVM) traz em


seu conceito discutir esta forma de arte e também abre no evento espaço para exi-
bição de obras desta natureza, em 2015 o evento foi realizado no Brasil, na Universi-
dade de Brasília (UnB).

Similaridades
Ao desconsiderar o origem histórica da demoscene e da visual music, e também a
formação individual dos artistas pioneiros destes dois movimentos, é possível iden-
tificar algumas similaridades entres as suas obras, as duas formas de expressão ar-
tística são parecidas em sua representação final, ambas compostas por animações
acompanhadas por música e sons, numa relação de sincronia entre os dois elemen-
tos, ambos possuem grande relação e dependência das tecnologias do século XX,
especialmente dos computadores.

Algumas obras de demo art e visual music possuem bastante similaridade tanto no
visual quanto no som, especialmente entre obras a partir dos anos 2000, como é o
caso da visual music Parks on Fire (2008) de Scott Pagano e o demo Glitch (2003) do
grupo Kewlers (Curly Brace, Mel Funktion, Little Bitchard, Actor Dolban e 110), pri-
meiro lugar na competição Stream 2003, ambos representados por formas abstradas
geométricas acompanhadas por sons ao ritmo das variações visuais, ver Figura 1.

1367
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 1: Captura de tela (1) visual music Parks on Fire de Scott Pagano publicado em 2008 e (2)
demo Glitch do grupo Kewlers publicado em 2003.

Outras animações possuem referentes e são menos abstratos como no caso da visu-
al music LT24 (2010) por Lucio Arese e o demo Debris (2007) por Farbrausch, ambos
fazem referência a ambientes urbanos e cidades, ver Figura 2.

As obras de visual music Petals (2016) e Tesseract (2017) de João Pedro Oliveira e os
demos Artifacts (2013) por illogictree (Eddie, SONARISE e Jina), e ambience (2010)
por Quite (preston, mam, ized e unc) são baseados em figuras abstratas e sons am-
bientes com forte relação entre os dois, ver Figura 3.

Figura 2: Captura de tela (1) visual music LT24 por Lucio Arese publicado em 2010 e (2) demo
Debris por Farbrausch publicado em 2007.

Figura 3: Captura de tela (1) visual music Petals de João Pedro Oliveira publicado em 2016 e (2)
demo ambience por Quite publicado em 2010.

1368
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Além das similaridades encontradas em algumas obras específicas pode-se resumir


algumas semelhanças gerais entre os dois movimentos:

• Ambos surgem na Europa

• Ambos tem seu crescimento a partir do final da década de 70 e desenvolvem-se


durante a década de 80

• Ambos exigem um trabalho multi-disciplinar

• Ambos foram estimulados pela evolução da computação

• Há demo art e visual music sem som, mas não o contrário

Os demos em geral são obras realizadas como um desafio técnico na relação com a
máquina, algoritmos e processamento, já a visual music é uma iniciativa totalmente
artística, isto evidentemente conduz a algumas diferenças.

Diferenças
Uma diferença marcante está no formato final de cada obra, enquanto na visual mu-
sic o produto final é um vídeo pré-renderizado, nos demos o produto final é um
software, um arquivo executável, que será renderizado em tempo real, essa caracte-
rística dos demos faz, por exemplo, uma animação de 3 minutos ocupar apenas 40
Kilobytes de espaço enquanto a mesma animação pré-renderizada em formato de
vídeo ocupa algo em torno de 100 Megabytes.

Outra grande diferença encontra-se no contexto onde se encontram os artistas, en-


quanto na visual music os artistas são em sua maioria relacionados as artes visuais,
cinema, e outras escolas de artes, muitos com formação acadêmica na área, nos de-
mos e na comunidade demoscene a maioria são programadores autodidatas vindos
das comunidades de hackers, crackers e gamers.

Uma sutil diferença mas com enorme impacto é a relação dos dois movimentos
com a tecnologia, enquanto a comunidade demoscene surge como resultado da
tecnologia, a visual music utiliza a tecnologia como meio. A demoscene é uma clara
consequência dos impactos sociais que a tecnologia causa no meio ambiente, a en-
trada e a popularização dos computadores pessoais nas casas das pessoas tornou a
demoscene possível.

Os artistas da visual music estavam em busca de responder uma questão à priori, a


origem da visual music é a busca por uma representação visual da música, os com-
putadores foram ferramentas e continuam sendo a principal ferramenta tecnológica
associada a produção de visual music, mas não se limita a eles.

1369
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Outra diferença marcante é a associação da demo art com o graffiti, a motivação


dos crackers em publicizar seus nomes em craktos (e posteriormente nos demos)
em busca de reconhecimento ao seu trabalho é bastante similar ao graffiti (Carlsson,
2009), característica bastante similar ao graffiti taggin onde utiliza-se uma assinatura
personalisada do nome artístico nas obras de arte (Gonring, 2009), a comparação
dos demos com o graffiti foi bastante popular nos anos 90 ao introduzir o tema de-
moscene em públicos não iniciados (Heikkila, 2009b).

Conclusões
Demo art e visual music apesar de possuírem similaridades estão longe de ser a mes-
ma coisa, como visto, origens, motivações e mesmo grande parte das obras pos-
suem diferenças marcantes, entretanto a proximidade estética de algumas obras
nos faz questionar qual a relação entre demo e visual music.

Algumas similaridades encontradas neste estudo, como surgimento na Europa, cres-


cimento a partir do final da década de 70, amadurecimento durante a década de 80,
exigência de um trabalho multi-disciplinar, forte elo com a evolução da computação,
o fato de ser possível existir demo e visual music sem som, mas não o contrário mos-
tram que há algo em comum entre demo art e visual music.

Visual music ainda é pouco conhecido no mundo e também no Brasil, demo art e
demoscene são ainda menosconhecidos, especialmente entre as comunidades ar-
tísticas e acadêmicas, durante a escrita deste trabalho uma busca por artigos rela-
cionando demoscene e visual music não encontrou nenhum resultado, uma outra
busca em língua portuguesa sobre demoscene mostrou apenas um único resultado
(Ferreira & Duarte, 2014).

Assim percebe-se que demoscene é um tema ainda pouco estudado pela comu-
nidade acadêmica e artística de um modo geral, ao menos em comparação com
a visual music, essa ausência representa uma boa oportunidade de investigação,
com possibilidade de contribuição na criação de um interrelacionamento entre as
duas comunidades.

Não apenas entre as comunidades mas também entre os artefatos produzidos por
ambos os lados, incluindo obras, textos, estudos, publicações, documentários, e ou-
tros produtos, é possível eventualmente combinar o aprendizado e desenvolvimen-
tos de ambos, demoscene e visual music, num novo formato artístico e/ou técnico.

Apesar de ainda pouco usual, há algumas iniciativas na comunidade demoscene de


interconexão com outras iniciativas de criação cultural, a demoparty Filandesa Al-
ternative Party, por exemplo, tem se aventurado nesta área, exibições de rua e em
museus também tem trazido demo art para pessoas “comuns” (Heikkila, 2009a).

1370
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

No entanto, nota-se ainda uma enorme distância entre visual music e demo art, es-
pecialmente no Brasil onde ambas as formas são ainda pouco conhecidas, reduzir
esta distância pode levar a oxigenação em ambos os lados, trazendo elementos,
pessoas e técnicas da visual music para o demoscene, e vice-versa, possibilitando a
criação de uma nova estética ainda não explorada combinando ambos.

Referências
Basbaum, S. (2018). EM BUSCA DE UMA MÚSICA VISUAL: duas abordagens pioneiras., 17.

Carlsson, A. (2009). The Forgotten Pioneers of Creative Hacking and Social Ne-
tworking – Introducing the Demoscene. Re:live, 5.

Corrêa, A. F. (2018). Apontamentos históricos e desdobramentos perceptuais sobre


o gênero visual music., 14.

Evans, B. (2005, December). Foundations of a Visual Music. Computer Music Jour-


nal, 29(4), 11–24. Retrieved 2019-07-04, from http://www.mitpressjournals.org/
doi/10.1162/014892605775179955 doi: 10.1162/014892605775179955

Ferreira, E., & Duarte, A. (2014). Por dentro da demoscene: uma investigação dos atu-
ais usos e apropriações de plataformas de computadores dos anos 1980 (anotações
preliminares). , 15.

Gonring, G. M. (2009). Executable Cinema: demos, screensavers and videogames as


audiovisual formats. Re:live, 5.

Harmon, P. (2016, February). Brief History of Visual Music. Retrieved 2019-07-04, from
https:// overprocessedthinking.com/brief-history-of-visual-music/

Heikkila, V.-M. (2009a). The Future of Demo Art: The Demoscene in the 2010s. Re:live, 12.

Heikkila, V.-M. (2009b). Putting the demoscene in a context. , 11.

Marecki, P. (2015, February). Textual Demoscene. Retrieved 2019-07-03, from https://


dspace.mit.edu/handle/1721.1/95704

Ox, J., & Keefer, C. (2006). On Curating Recent Digital Abstract Visual Music. Abstract
Visual Music, 2008.

Polgar, T. P. (2005). Freax - history of the demoscene / Assembly 2005 / Seminars.


Retrieved 2019-07-13, from https://archive.assembly.org/2005/seminars/freax-his-
tory-of-the-demoscene

Polgár, T. (2016). Freax: The Brief History of the Computer Demoscene (2edition ed.).

1371
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Carlos Alberto Zardo Júnior1, Agda Regina de


Carvalho2 and Suzete Venturelli3

Diálogos narrativos e a jornada do visitante


Narrative dialogues and the visitor’s journey

Resumo
Este artigo busca compreender a relação entre o design da experiência e os diálo-
gos entre os pontos de contato dos eventos expositivos e o sujeito de experiência,
o visitante. Seriam estes pontos de contato responsáveis por desencadear emo-
ções positivas ou negativas? Rupturas no contexto narrativo no evento expositivo
podem ocasionar perda do interesse dos visitantes? Uma melhor compreensão da
mensagem pelo sujeito pode ser um fator para criação de uma experiência posi-
tiva? Para compreender estas e outras questões, foram utilizados como ferramen-
tas de mapeamento do contexto narrativo e experiências: a observação passiva,
entrevistas informais com visitantes e vivência ativa no contexto expositivo. Foi
utilizado como método de compreensão a ferramenta Jornada do Usuário, apli-
cando-a à exposição 47 Artesãos, realizada na Japan House São Paulo em 2019.
Palavras-chave: design, experiência, jornada, narrativa, evento expositivo

1 Carlos Alberto Zardo Junior, Mestrando (Bolsa CAPES) em Design pela Anhembi-Morumbi. Pós-
-graduado em Gestão Estratégica de Embalagem pela Escola Superior de Propaganda e Marketing
em 2007; pós-graduado em Administração da Comunicação Social e Marketing e Propaganda pela
Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado em 1998; bacharel em Administração com Habi-
litação em Comércio Exterior pela Universidade São Judas Tadeu em 1995. Membro do Grupo de
Pesquisa Design e Corpo: Abordagens Projetuais na Arte e Moda.
2 Agda Regina de Carvalho, Artista Visual. Pós-Doutora em Artes - Instituto de Artes da UNESP ( 2015-
2017). Doutora em Comunicação - Escola de Comunicações e Artes da USP (2002). Mestre em Artes
Visuais - Instituto de Artes da UNESP (1995). Docente e pesquisadora do PPG Mestrado e Doutorado
em Design da Universidade Anhembi-Morumbi. Líder do Grupo de Pesquisa Design e Corpo: Abor-
dagens Projetuais na Arte e Moda. Coordena o grupo de estudos Design, Moda e Corpo: Narrativas
e Contaminações.
3 Suzete Venturelli, Pesquisadora artista e professora. Pós-doutorado na Universidade de São Paulo,
Escola de Comunicação e Artes (2014); doutorado em Artes e Ciências da Arte, na Universidade Sor-
bonne Paris I (1988), estrado em Esthétique et Science de l’Art ¬ DEA. Université Paris 1 Pantheon¬
Sorbonne, PARIS 1, França (1982) e mestrado (DEA) em Histoire et Civilisations - Université Mon-
tpellier III - Paul Valery, França, intitulada Candido Portinari: 1903-1962 (1981). Atua no programa de
pós graduação em design da Universidade Anhembi Morumbi e em Arte e Tecnologia da Universi-
dade de Brasília. Atua como Professora pesquisadora do CNPq.

1372
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Abstract
This article aims to understand the relation between the design of the experience
and the dialogues between the points of contact of the expository events and the
subject of experience, the visitor. Are these points of contact responsible for trig-
gering positive or negative emotions? Can ruptures in the narrative context in the
exhibition event lead to loss of visitor interest? Can a better understanding of the
message by the subject be a factor in creating a positive experience? To understand
these and other questions, they were used as tools for mapping the narrative con-
text and experiences: passive observation, informal interviews with visitors and ac-
tive experience in the exhibition context. It was used as a method of understanding
the tool User’s Day, applying it to the 47 Artisans exhibition, held at Japan House
São Paulo in 2019.
Keywords: design, experience, journey, narrative, exhibition.

Introdução
Etimologicamente, a palavra evento vem do latim evēntūs, significando aconteci-
mento, sucesso, resultado, saída, desenlace, resolução, fim. A complexidade neces-
sária para a definição é complementada pelo entendimento que “o evento é uma
atividade econômica e social que, nascida com a civilização, acompanha a evolu-
ção dos povos, adquirindo características representativas de cada período histórico”
(Fortes & Silva, 2015). Vale ressaltar ainda que “o objetivo que faz o evento e não
o contrário; o motivo é que deve determinar o tipo de evento a ser empreendido”
(idem). Dentre os vários objetivos e tipos de evento, um dos formatos possíveis é o
de eventos expositivos.

Eventos expositivos podem ser compreendidos por uma ampla gama de possibili-
dades. Feiras comerciais, experiências de marca, museus, instalações artísticas, entre
outros, podem ser consideradas neste contexto (Locker, 2011), sendo que cada um
possui características e objetivos próprios.

“Exposições, shows, mostras, feiras são todas as palavras usadas para significar o
mesmo tipo de coisa quando os profissionais da exposição se comunicam. As pri-
meiras exposições foram provavelmente exposições de mercadorias à venda nas
bancas do mercado. Mesmo nessas circunstâncias simples, os esforços foram e ainda
são feitos para mostrar as coisas de tal maneira que as pessoas são encorajadas a se
aproximar e admirá-las” (Velarde, 2001).

Há uma complexidade em definir-se um momento específico de início histórico


para o conceito, mas as exposições francesas entre os anos 1848 e 1937, a Grande
Exposição de 1851 em Londres e o aumento do consumo decorrente da Revolução
Industrial são normalmente relacionados como marcos para o pensamento moderno

1373
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

de exposições (Locker, 2011; Schartz, 2017), ainda que considere-se que a neces-
sidade de expor do indivíduo seja muito anterior, em um contexto em que o ser
humano desde cedo utilizava os espaços e os objetos como “ferramentas para sa-
tisfazer seu impulso instintivo para expor, esclarecer, celebrar, reverenciar, vender
e interpretar aspectos da sua experiência” (Skolnick, Lorenc, & Berger, 2007).

Há uma importante aproximação entre o contexto das exposições e o design, seja


nos espaços ou nos eventos expositivos. Dentre as muitas definições do design, po-
demos considerá-lo como sendo um elo entre o material e o imaterial (Dunne, 2005),
carregando uma fundamentação criativa em sua essência e com o potencial de ge-
rar resultados diferenciados frente às necessidades que ele busca resolver (Brown,
2010). Mais do que apenas a relação com o desenho, “a capacidade dos designers
de mergulhar profundamente em problemas complexos, leva-os de decoradores a
solucionadores de problemas” (Holston, 2011). Na relação com os eventos expositi-
vos, o design é visto como “resultante da produção ou construção de um arbitrário
cultural, de uma noção ou convenção política entre as noções ideológicas contidas
no briefing ou na ‘vontade’ do curador, a recepção e os agentes de legitimação”
(Schartz, 2017). É função do design neste contexto criar “ambientes que transmitam
mensagens que podem ser claramente entendidas por um público” (Skolnick et al.,
2007), cumprindo a promessa “encontrar ou dar forma adequada às oportunidades,
seja para produto, serviço, espaço, estratégia, mídia ou organização” (Suri, 2011).

Com isso, podemos compreender que o design tem a capacidade de transformação


de “situações existentes em situações preferidas” (Simon apud Neumeier, 2010) e a
aplicação de diferentes disciplinas do design são importantes para alcançar estes
objetivos (Locker, 2011). O design permite o entendimento mais aprofundado de
necessidades e oportunidades, visto que “usa propostas de projeto especulativo
para desafiar suposições restritas, preconceitos e dados sobre o papel que os pro-
dutos desempenham na vida cotidiana” (Dunne & Raby, 2013). Um exemplo disso
é a exposição “Exhibitionism – The Rolling Stones” concebida pelo grupo de design
norte-americano Pentagram. Nesta exposição, o design foi a ferramenta primordial
para o desenvolvimento de uma envolvente jornada narrativa através da carreira de
50 anos da banda, contada por meio de uma série de instalações temáticas (Miller &
Russell, 2016). Este evento expositivo utiliza-se de diversas disciplinas de design em
sua formatação, com elementos interativos e um contexto narrativo que recebeu
avaliações muito positivas de seus visitantes (Gusman, 2016). Vale ressaltar que a
materialização do evento expositivo ocorre não apenas nos objetos da exposição
em si ou de sua cenografia, mas em outros materiais, como por exemplo em um livro
homônimo que cataloga e aprofunda os elementos narrativos da exposição.

Na busca de uma melhor compreensão desta relação, este artigo realiza um estudo da
exposição 47 Artesãos, em cartaz na Japan House, um reconhecido espaço na região
da Avenida Paulista, um dos endereços cartão-postal da cidade de São Paulo. Como

1374
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

evento expositivo, apresenta peças desenvolvidas por designers das 47 províncias ja-
ponesas. Realizada entre 23 de Abril e 17 de Julho de 2019 no segundo andar da Japan
House em São Paulo, o objetivo era apresentar, por meio de peças com carga históri-
co-cultural e características individuais, um panorama da arte artesanal japonesa. Com
curadoria do designer japonês Kenmei Nagaoka, a seleção das peças foi realizada de
modo a valorizar o contexto narrativo por meio da valorização da qualidade das peças,
ressaltando o distanciamento do design do consumo desenfreado. A exposição teve
ainda a divisão das peças em cinco agrupamentos que formam as áreas geográficas
do país nipônico: Hokkaido, Honshu, Shikoku, Kyushu e Okinawa (“‘Japão 47 Artesãos’
apresenta peças que contam um pouco da história das 47 províncias japonesas,” 2019).

O objetivo do texto é compreender a percepção construída por meio do uso dos


seus elementos narrativos discutindo se os diálogos entre tais elementos e o sujei-
to da experiência alcançaram “um significante suscetível de desencadear profundas
emoções em quem lhe confere um lugar de privilégio em seu pensamento” (Larrosa,
2014). Considerando a construção narrativa como um elemento de comunicação
fundamental, temos que ter em mente qual a mensagem proposta para o contexto e
partindo desta elencar os elementos que serão utilizados para atingir o sujeito espe-
cífico e gerar a experiência pretendida (Lasswell, 1977) e, uma vez implementados,
os mesmos podem ser compreendidos quanto à sua eficácia. Para o entendimento
dos elementos de experiência relacionados ao evento expositivo em questão, um
conjunto de ferramentas criativas e metodológicas de design foi aplicado.

Uma das visões do design, a compreensão da relação entre o ser humano e o objeto
projetual, realizada por meio do mapeamento de experiências, baseia-se nas premis-
sas de “criar empatia, fornecer uma imagem geral comum, dividir em silos, reduzir a
complexidade e encontrar oportunidades” (Kalbach, 2017). Ao mapear as etapas de
interação com o cliente, o designer possui um instrumento para análise de suas expec-
tativas a cada momento, tendo assim como melhor atendê-lo (Vianna, 2014).

Com estes princípios como norteadores, foi realizado um mapeamento do contexto


narrativo e experiências com o objetivo de compreender os diálogos entre os pontos
de contato da exposição e o sujeito de experiência, o visitante. Utilizando como fer-
ramentas a observação passiva, entrevistas informais com visitantes e vivência ativa
no contexto expositivo, foi possível o mapeamento por meio da Jornada do Usuário
(Kalbach, 2017), sem a interferência ou participação de responsáveis pelo espaço ou
evento expositivo. Sendo uma importante ferramenta de mapeamento, a Jornada do
Usuário pode ser definida como o mapa o mapa de compreensão que demonstra as
interações e experiências de um determinado usuário ou grupo de usuários com uma
organização, processo ou serviço, sendo ainda um diagrama que funciona tanto para
compreensão como para geração de ideias. Compreender a relação do sujeito com o
objeto da experiência permite uma compreensão abstrativa que, ao mapear “o territó-
rio completo, qualquer coisa como o princípio da realidade desaparece” (Baudrillard,

1375
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

1991), direcionando o entendimento das relações em um contexto em que emoções


são movimentadas e memórias são geradas (Lupton, 2017).

O mapeamento de experiências e a jornada do visitante


Para iniciar o processo de mapeamento do contexto narrativo e experiências do
evento expositivo, foi compreendida qual seria a jornada simplificada do visitante
(figura 1). Ao se referirem à expectativa das pessoas em eventos no artigo Beyond
experience: Culture, Consumer & brand, os autores direcionam que “bens e servi-
ços não são mais suficientes; o que os consumidores querem hoje são experiências
- eventos memoráveis que os envolvem de forma inerentemente pessoal” (Pine &
Gilmore, 2009). Se considerarmos que “as exposições precisam ser intrinsecamente
altamente motivadoras em cada etapa de interação, a fim de sustentar o envolvi-
mento de um público que vê sua visita principalmente como uma atividade de lazer”
(Allen, 2004), essa compreensão auxilia no entendimento dos elementos específi-
cos do espaço expositivo e do próprio evento que podem ser considerados como
oportunidades de diálogos e narrativas. Se as narrativas direcionam um olhar sobre
a construção de forma plural, operando por diversos meios (Squire, 2014), o enten-
dimento holístico do processo de interação por meio do entendimento da jornada é
um processo de organização de pensamento que facilita a compreensão.

Figura 1 – Jornada simplificada do contexto expositivo. Fonte: Autor

Para permitir a organização da jornada e seu consequente entendimento, este ma-


peamento foi organizado em cinco macromomentos de experiência, separados e
compostos a partir de uma análise linear temporal de possibilidades (antes do evento,
chegando ao evento, estar no evento, deixar o evento e o pós-evento) e o conjunto
de pontos de contato com potencial diálogo narrativo no evento expositivo proposto.

1376
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Consideramos o primeiro macromomento como aquele em que o indivíduo toma


contato com a existência do evento expositivo, percebendo seu lugar no universo
de informações existentes e recebendo estímulos necessárias para despertar a von-
tade de visitá-lo. Os elementos a serem observados são as ferramentas de comunica-
ção e ações de divulgação, como por exemplo: site, redes sociais, e-mail marketing,
anúncios impressos ou por outros meios, folhetos, outdoor, fachada, publicidade,
parcerias, intervenções, entre outros.

O segundo macromomento de compreensão é aquele em que o sujeito da experiên-


cia interage com os elementos de recepção do espaço expositivo e inicia um proces-
so de construção narrativa pela vivência. Estacionamento, funcionários de recepção,
entrada, lobby, escadas ou elevadores, materiais gráficos e de sinalização são alguns
dos elementos de observação possíveis neste contexto.

Para o terceiro macromomento, o acolhimento do visitante no contexto é o principal


direcionamento, relaciona-se o prestar cerimônia, recepcionar, dar ou receber hos-
pitalidade. Com isso, este importante ponto de contato do processo narrativo, deve
relacionar-se com seu significado, gerando o melhor ambiente de interação possível.
A observação compreende o ambiente da exposição, fluxo de navegação, interações
com equipe da exposição, convite para fotos e divulgação em redes sociais, mate-
riais gráficos e outros elementos de comunicação direcionados à compreensão e
relação com os elementos expostos.

Após toda a interação com o ambiente expositivo e o contato com os elementos


expostos, chega o macromomento de desfecho com o sujeito da experiência, o mo-
mento da finalização da vivencia no espaço expositivo. Sendo este um momento de
despedida, pode ser compreendido como a última chance de marcar o visitante,
reforçar uma experiência relevante e deixar uma lembrança marcante de toda a nar-
rativa vivenciada até ali. Trajeto de saída, sinalização do ambiente, interações com
equipe do espaço expositivo, espaços e convite para fotos e divulgação em redes
sociais, materiais gráficos e loja de souvenirs são exemplos de elementos cuja obser-
vação auxilia no entendimento da construção da experiência.

Há uma adicional oportunidade de relacionar o sujeito à experiência, o macromo-


mento relacionado à pós-visita. Este é um momento para que o visitante possa
reviver suas percepções e, sendo esta oportunidade constituída por diálogos de
inter-relação, visto que a lembrança é um resultado da soma dos esforços ante-
riores. Para reforçá-la, diversas ferramentas podem ser utilizadas e consideradas
para compreensão. Materiais gráficos, mensagens de agradecimento, convites a
novas visitas, repostagem de fotos de redes sociais de visitantes em rede da pró-
pria exposição, benefícios de parceiros são alguns dos elementos possíveis de
alavancagem desta fase.

1377
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Mapeamento da experiência 47 Artesãos


Seguindo o direcionamento de análise proposto pelo mapeamento de experiências,
foram relacionados quais os pontos de contato do evento expositivo e como cada
um deles se encaixa em cada momento. Partindo desta compreensão, cada ele-
mento foi aprofundado e contextualizado, de modo a construir o mapeamento do
contexto narrativo e experiências, com base nos entendimentos direcionados pelas
pesquisas e entrevistas realizadas (figura 2).

Figura 2 – Mapeamento dos elementos nos macromomentos 47 Artesãos. Fonte: Autor

O primeiro momento relacionado ao evento expositivo teve uma considerável expo-


sição com diversas ferramentas de comunicação possíveis (figura 2). O site possuía
uma comunicação de destaque da exposição 47 Artesãos, assim como uma landing
page com detalhes do evento, sua conceituação, realização e outras informações per-
tinentes. Outra ferramenta de comunicação que teve bastante destaque no site foi a
palestra realizada no dia 23 de Abril de 2019 com o tema “Artesanato Contemporâneo
do Japão”, realizada pelo curador, contando detalhes da exposição com foco em pro-
cessos produtivos das peças apresentadas, assim como apresentando o conceito de
desenvolvimento de projetos Life Long Design. Esse é o conceito utilizado pelo seu
escritório, a D&DEPARTMENT PROJECT, “que não se trata apenas de design, mas da
influência que o ambiente, processos produtivos e as formas de venda exercem sobre
objetos que são continuamente produzidos” (“Sobre a palestra ‘Artesanato Contempo-
râneo do Japão,’” 2019). Em redes sociais foram identificados posts temáticos no Insta-
gram e um evento de Facebook aberto para o público poder convidar outras pessoas
para a participação. Em termos de publicidade, vários sites, blogs e páginas de redes
sociais compartilharam as informações do evento de forma concisa e com um discurso
aproximado, indicando um possível trabalho de assessoria de imprensa.

1378
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 3 – Exemplos de canais de comunicação utilizados pela exposição. Fonte: Autor

O segundo momento, onde inicia-se a interação no espaço (figura 4), inicia-se no


corredor de entrada onde vemos uma indicação da exposição por meio de um adesi-
vo na entrada com a identidade visual do evento expositivo. Não houve contato com
a equipe do espaço na entrada ou direcionamento para a exposição. Na chegada ao
espaço no térreo, este foi percebido com um grande hall de entrada onde não havia
comunicação específica da exposição 47 Artesãos ou que direcionasse o visitante ao
segundo andar, local da exposição. Com isso, alguns visitantes que estavam lá pela
primeira vez, vivenciaram uma certa confusão em entender exatamente onde esta
ocorreria, confundindo a loja do térreo como sendo a exposição em si. Mesmo ao
dirigir-se às escadas para ir ao segundo andar, não havia comunicação específica do
evento. Um entrevistado declarou que por pouco não foi embora, entendendo que
a exposição eram os itens da loja e que “nem todos eram artesanais” e que só chegou
à exposição em si porque foi ao segundo andar “por curiosidade de conhecer o es-
paço”, mas que parte do grupo de amigos com a qual ela estava já tinham desistido
e que haviam combinado de se encontrar na sequencia, em uma exposição no Itaú
Cultura, local próximo à Japan House e que também realiza diversos eventos exposi-
tivos. Uma breve observação da relação de alguns visitantes neste espaço adiciona-
da a outras entrevistas, reforçaram que este não foi um caso isolado.

Figura 4 – Contexto de recepção do espaço expositivo da exposição. Fonte: Autor

1379
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Consideramos que o terceiro momento inicia-se na chegada a um amplo espaço no


segundo andar, que atende a área de exposição e o restaurante que fica no mesmo
andar. Neste espaço havia a comunicação do evento: marca, texto de conceito, ficha
técnica da exposição, todos aplicados de forma clara e legível. Ao entrar na área de
exposição, o primeiro contato identificado foi de um membro da equipe do espaço
informando a cada um dos visitantes, de modo educado porém um pouco severo,
que bolsas e mochilas deveriam ficar na área frontal do corpo. O contato não foi ini-
ciado com um “seja bem-vindo”, apenas com um “por favor”, que foi identificado no
processo de entrevistas como gerando um certo desconforto para o visitante. As pe-
ças expostas estavam colocadas sobre mesas distribuídas pela sala e sem elementos
físicos de contenção, o que gerou em alguns entrevistados uma percepção positiva
em visualizar as peças sem “um vidro atrapalhando” ou algo do tipo. Junto às peças,
sobre a mesa, havia ainda a ficha técnica de cada uma, um pictograma informando
que as peças não deveriam ser tocadas e um retângulo de cor que foi percebido
apenas como um adorno em um primeiro momento. Nas paredes foram colocados
adesivos que explicavam a exposição e a geografia do Japão, demonstrando suas
regiões e ilhas, assim como um material específico sobre a D&DEPARTMENT. O fluxo
de visitação era livre e com supervisão constante dos monitores. Foi percebido pos-
teriormente que poderia haver uma relação entre os retângulos coloridos nas mesas
e um dos mapas nas paredes, que demonstrava uma separação de regiões do Japão
(figura 6), mas caso realmente tenha sido o caso, não foi identificada a comunicação
desta informação para os visitantes relacionarem estes elementos. Nenhum dos en-
trevistados havia compreendido qualquer relação neste sentido.

Figura 5 – Chegada e elementos do contexto expositivo. Fonte: Autor

No quarto macromomento, o primeiro item identificado foi um jornal impresso que


era oferecido com informações das peças expostas e o texto de conceito da exposi-
ção, porém o mesmo encontrava-se em um totem baixo, da mesma cor das paredes e
que pessoas entrevistadas não haviam percebido e saíram sem pegá-lo. Este material

1380
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

trazia em seu projeto gráfico a percepção de referência de cores e regiões possivel-


mente aplicadas nas mesas e o mapa de regiões na parede, mas com dissonâncias de
compreensão devido à impressão e o substrato. Não foi identificada nenhuma comu-
nicação relacionada nas escadas, outros espaços ou mesmo na loja. Na loja no térreo
não foi visualizado material específico relacionado à exposição para venda, ainda que
algumas peças possuíssem a indicação de produção artesanal.

Figura 6 – Saída do contexto expositivo e visão de chegada da loja e exemplo de


comunicação de itens a venda. Fonte: Autor

Para o quinto macromomento, o das possíveis interações pós-visita, a ferramenta


identificada em entrevista posterior à visita e indicada por um dos entrevistados
“tendo ouvido falar, foi o envio do catálogo em formato digital caso o visitante ca-
dastrasse seu e-mail para envio posterior. Porém, não foi encontrada comunicação
indicando esta possibilidade no espaço, assim como não houve aviso nesse sentido
por parte equipe da exposição que se encontrava na saída do espaço expositivo.

Considerações finais
Por fim, compreendemos que a construção narrativa em eventos expositivos pode
gerar um experiência diferenciada para os visitantes, principalmente se considerar-
mos que a forma como dizemos algo é tão importante quanto o que estamos dizen-
do e o design pode auxiliar muito neste contexto.

O aprofundamento no contexto narrativo da exposição demonstrou que os rompimen-


tos geram potenciais comprometimentos no diálogo com os visitantes não apenas com
as peças e seu contexto, mas com o evento expositivo como um todo. Um pensamento
mais focado no design da experiência no evento expositivo ampliando o diálogo com as
peças expostas pode ser uma forma de reduzir significativamente tais ruídos.

Bayer (1940), ao defender o uso de ferramentas de design para eventos expositivos,


direciona também a importância da experiência no contexto, como segue:

1381
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

“[...] o tema não deveria manter distância do espectador, deveria ser trazido para
perto deste, penetrar e deixar uma impressão, deveria explicar, demonstrar e até
persuadir e guiá-lo para uma reação direta e planejada.” (BAYER, 1940)

Assim como rompimentos da narrativa podem gerar ruídos na compreensão da


mensagem e impactar negativamente a compreensão, uma narrativa bem construí-
da pode gerar uma relação diferenciada, transformando a informação em aconteci-
mento e, por conseguinte, em experiência. Se podemos definir experiências como
sendo situacionais, visto que diferem de situação para situação, considerando que a
circunstância conduz experiência mais do que a disposição (Kalbach, 2017), forma-
tar tais circunstâncias de modo buscar a maior consonância com os objetivos pro-
postos para o evento expositivo é de fundamental importância.

A experiência em eventos expositivos pode ser potencializada com a interferência


do pensamento de design. Ao utilizar o mapeamento de experiências e o conceito
de design centrado no ser humano (Brown, 2010), a narrativa que convida a ações e
comportamentos (Lupton, 2017) irá gerar uma interação maior com o público, po-
tencializando a vivência no processo, reduzindo ou eliminando as eventuais ruptu-
ras na experiência que possam gerar sentimentos de frustração (Mèlich, 2011).

Larrosa (2014) define experiência como algo que nos acontece e que às vezes treme,
mas quando cai em mãos de alguém capaz de dar forma a esse tremor, somente
então, se converte em canto. Como designers, devemos buscar transformar o tre-
mor em canto, projetando as relações, diálogos e narrativas para que o sujeito da
experiência, o visitante, aquele que carrega sonhos e expectativas, dificuldades e
complexidades, tenha uma vivência relevante que o toque.

Bibliografia
Allen, S. (2004). Designs for learning: Studying science museum exhibits that do more
than entertain. Science Education, 88(SUPPL. 1). https://doi.org/10.1002/sce.20016

Baudrillard, J. (1991). Simulacro e Simulação. Lisboa: Relógio d’Agua.

Bayer, H. (1940). Fundamentals of Exhibition Design. PM: An Intimate Journal for


Advertising Production Managers, Art Directors and Their Associates, (Decem-
ber 1939–January 1940). Retrieved from http://digitalcollections.nypl.org/items/90f-
27111-9714-4fc1-e040-e00a18064ba4

Brown, T. (2010). Design thinking: uma metodologia poderosa para decretar o


fim das velhas ideias. São Paulo: Elsevier.

Dunne, A. (2005). Hertzian Tales. Boston: MIT Press.

1382
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Dunne, A., & Raby, F. (2013). Speculative Everything. Boston: MIT Press.

Fortes, W. G., & Silva, M. B. R. (2015). Eventos - Estratégias de Planejamento e Exe-


cução. São Paulo: Summus Editorial.

Gusman, G. (2016). Exhibitionism: a exposição que te transforma num Rolling Stone.


Retrieved June 15, 2019, from https://popcultura.com.br/2016/05/27/exhibitionism-
-exposicao-que-te-transforma-num-rolling-stone/

Holston, D. (2011). The Strategic Designer: Tools & Techniques for Managing the
Design Process. New York: F+W Media, Inc.

‘Japão 47 Artesãos’ apresenta peças que contam um pouco da história das 47 pro-
víncias japonesas. (2019). Retrieved June 4, 2019, from https://www.japanhouse.jp/
saopaulo/event/artesaos.html

Kalbach, J. (2017). Mapeamento de Experiências: um guia para criar valor por


meio de jornadas, blueprints e diagramas. Rio de Janeiro: Alta Books.

Larrosa, J. (2014). Tremores: Escritos sobre a Experiência (J. Larrosa & W. Kohan,
Eds.). Belo Horizonte: Autêntica Editora.

Lasswell, H. D. (1977). A estrutura e a função da comunicação na sociedade. In G.


Cohn (Ed.), Comunicação e Indústria Cultural. São Paulo: Companhia Editora Na-
cional Editora da Universidade de São Paulo.

Locker, P. (2011). Exhibition Design. Lausanne: AVA.

Lupton, E. (2017). Design is Storytelling. New York: Cooper Hewitt.

Mèlich, J.-C. (2011). Filosofia de la finitud. Barcelona: Herder Editorial.

Miller, A., & Russell, W. (2016). Exhibitionism – The Rolling Stones. Retrieved May 15,
2019, from https://www.pentagram.com/work/exhibitionism-the-rolling-stones/story

Pine, B. ., & Gilmore, J. . (2009). Beyond experience: culture, consumer and brand.
Using art to render authenticity in business. London: Arts & Business, 11–58.

Schartz, K. G. (2017). O lugar do Design nas exposições de arte : algumas contri-


buições para a definição de suas funções. PUC - RJ.

Skolnick, L., Lorenc, J., & Berger, C. (2007). What Is Exhibition Design? Londres: Rotovision.

Sobre a palestra “Artesanato Contemporâneo do Japão.” (2019). Retrieved June 4,


2019, from https://www.japanhouse.jp/saopaulo/event/artesaos.html

1383
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Squire, C. (2014). O que é narrativa? Civitas, 14(2), 272–284.

Suri, J. F. (2011). Poetic Observation: What Designers Make of What They See. In
Design Anthropology (pp. 16–32). https://doi.org/https://doi.org/10.1007/978-3-
7091-0234-3_2

Velarde, G. (2001). Designing Exhibitions. New York: Ashgate.

Vianna, M. (2014). Design Thinking: inovação em negócios. São Paulo: MJV Press.

1384
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Rodolfo Ward1

Fotografia Contemporânea: a transmutação da relação


homem-máquina (aparelho) na contemporaneidade
Contemporary Photography: the transmutation of the man-machine (gadgets)
relationship in contemporary times

Resumo
O presente artigo tem por objeto relatar a partir da fusão entre os pensamen-
tos filosóficos de Flusser, Canguilhem e Simondon a evolução dos objetos téc-
nicos em consonância com a evolução humana, tendo como objeto de análise
a transmutação do dispositivo fotográfico e suas relações com o ciberespaço
e a cibercultura. Explicamos e diferenciamos os conceitos de instrumento, má-
quina e aparelho. Ao final apresentamos uma linha do tempo com as princi-
pais fases da evolução histórica das técnicas, bem como das características
que exemplificam as transformações culturais, políticas e socioeconômicas
vividas pela sociedade desde a pré-história.
Palavras-chave: Fotografia Contemporânea, Prosumer, Arte e Tecnologia, Ci-
bercultura, Técnica.

Abstract
This article aims to report from the fusion between the philosophical thoughts of
Flusser, Canguilhem and Simondon the evolution of technical objects in line with
human evolution, having as its object of analysis the transmutation of the photo-
graphic device and its relations with cyberspace and the cyberculture. We explain
and differentiate the concepts of instrument, machine and apparatus. At the end we
present a timeline with the main phases of the historical evolution of techniques, as
well as the characteristics that exemplify the cultural, political and socioeconomic
transformations experienced by society since prehistory.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: Contemporary Photography, Prosumer, Art
and Technology, Cyberculture, Technique.

1 Programador Visual da Universidade de Brasília-UnB. Doutorando em Artes Visuais na linha de pesquisa:


Arte e Tecnologia e Mestre em Arte Contemporânea pelo Instituto de Artes - IDA/UnB (2019). Pós-Gradu-
ado em Análise Política e Políticas Públicas pelo Instituto de Ciência Política - IPOL/UnB (2018) e Pós-gra-
duando em Relações Internacional IREL/UnB (2019).

1385
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Introdução: instrumento, máquina e aparelho


Este artigo pretende adentrar nas principais discussões, no campo das artes, sobre a
evolução dos objetos técnicos no âmbito da fotografia. Iremos partir para o estudo
filosófico sobre a máquina fotográfica, ou seria aparelho fotográfico, ou seria um
instrumento fotográfico? No decorrer deste artigo pretendemos elucidar estes con-
ceitos. A seguir, iremos adentrar nas definições de instrumento, aparelho e máquina
e uma breve historização sobre a evolução e a convergência desses objetos tendo
como base inicial o pensamento flusseriano. Conceituar esses termos tem o intuito
de facilitar a compreensão a respeito das atuais discussões sobre a interação entre
homem e máquina, além da atual concepção sobre coautoria homem e máquina
que cercam o debate sobre fotografia na pós-modernidade.

Flusser (2002) afirma que instrumentos são utensílios aos quais os homens recorrem
para modificar o mundo ou tornar a vida humana mais fácil. Para ele, esses utensílios
seriam prolongamentos empíricos de órgãos do corpo que, geralmente, simulariam
o funcionamento do órgão que prolongam, com o diferencial de serem mais po-
derosos e eficientes por alcançarem mais longe e fundo na natureza e assim cum-
prir seu papel de instrumento. Esse instrumento, após ser descoberto e dominado,
é incorporado à vivência e à cultura humana. Em cada sociedade, os instrumentos
foram retirados da natureza para cumprir determinada necessidade específica do
ser humano naquela localidade. O ser humano, então, repassou seus conhecimentos
sobre a utilização dos instrumentos para seus sucessores, aprendeu a utilidade de
instrumentos utilizados por outros povos, criou, adaptou e convergiu seus instru-
mentos em novos instrumentos que tornassem sua vida mais fácil. Os instrumentos
contribuíram para a evolução do ser humano e evoluíram junto.

Demos um salto temporal para o período da modernidade. Após a revolução indus-


trial, os instrumentos passaram pelo crivo da ciência, foram considerados instrumentos
técnicos, receberam investimentos tecnológicos e científicos, tornando-se mais pode-
rosos em suas funções e programações, e passaram a ser chamados de máquinas. A
partir dessa transformação, sua relação com o homem inverteu-se. O homem deixou
de ser a constante e passou a ser a variável na relação. Os instrumentos que antes fun-
cionavam em função dos homens agora presenciam parte da humanidade funcionar
em função das poderosas máquinas que passam também a dominar as linhas de pro-
dução e se tornam primordiais para o desenvolvimento econômico.

Essa mudança causada pela ascensão das máquinas no período pós-revolução in-
dustrial promove e acelera inúmeras mudanças de cunho social, político e econômi-
co, sendo umas das principais causas o que Flusser (2002) denominou de “trabalho
alienado”, que foi responsável por dividir a sociedade em “capitalistas” e “proletaria-
dos”, respectivamente os donos das máquinas e os que trabalham para os donos das
máquinas, empregados assalariados.

1386
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O trabalho alienado o qual Flusser (1983) problematiza está ligado ao deslocamento


de informações de confecção e produção que antes eram dos artesões para as máqui-
nas. Ele enfatiza a importância histórica e social dessa enorme transformação ocorri-
da na época porque, em um curto período de tempo, costumes, tradições, relações
sociais, economia se transformaram rapidamente. Para Flusser, a retirada do conheci-
mento do fazer tradicional da mão do artesão também retirou seu poder sobre o valor
de seu produto, uma vez que o valor do produto ou bem de consumo estava ligada ao
fazer artesanal, ao saber fazer. O artesão materializava as informações durante o fazer
e lhe atribuía valor. Flusser chamou essas informações de informações sobre “pedaços
do mundo”. Após a revolução industrial, a ferramenta passa a conservar a informação
de produção dos produtos, transferindo o valor dos bens e dos produtos para a fer-
ramenta e consequentemente para os proprietários das ferramentas, os capitalistas.

Após essa breve contextualização histórica e a definição sobre instrumento e má-


quina, fica mais fácil adentrar nas definições sobre a máquina fotográfica, ou seria
aparelho fotográfico? Flusser (2002) classifica a máquina fotográfica como um ins-
trumento pós-industrial, ou como um aparelho, sendo a principal característica do
aparelho a relação de reciprocidade entre o operador e o aparelho. Um funciona em
função do outro. O aparelho fotográfico também pode, corretamente, ser chamado
de dispositivo fotográfico, pois o dispositivo é um aparelho construído para determi-
nado fim. No caso do aparelho fotográfico, captar imagens na forma de fotografias.

Existe certa correlação de forças entre o aparelho e quem utiliza, uma espécie de
jogo entre os dois, em que o operador se esforça para dominar a programação do
aparelho e o aparelho, por sua vez, apresenta novas possibilidades de programa-
ção, sempre impedindo o esgotamento de suas funções, de maneira que o operador
passa a agir em função da programação, pois “não apenas o gesto mas a própria
intenção do fotógrafo são programados” (FLUSSER, 2008, p. 28).

O fotógrafo penetra o aparelho a fim de descobrir as manhas e as potencialidades


contidas em sua programação com o propósito de esgotá-las. Entretanto, a riqueza
da programação excede a capacidade do funcionário de exauri-la, criando uma di-
nâmica de sedução e interdependência entre eles. A “caixa preta” nunca é dominada
e penetrada completamente e sempre oferece um novo desafio para quebrar a mo-
notonia no jogo de sedução entre eles.

[...] o fotógrafo se engaja precisamente em tal amarrado de funcionamento. Quer descobrir, ex-
perimentalmente (e também teoricamente), quais as possibilidades oferecidas por tal co-impli-
cação homem-aparelho. Para ele, o problema industrial da divisão do trabalho (quem possui os
instrumentos, e quem deve possuí-los?), não mais se coloca. O problema a ser resolvido é o do
funcionamento. Quem dominará: será o aparelho quem dominará o homem, ou será o homem
quem dominará o aparelho? Tornar-se fotógrafo profissional é procurar resolver este problema
(FLUSSER, 1982, on-line).

1387
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

O fotógrafo não está interessado no trabalho, não quer mudar o mundo. Como faz
o trabalho tradicional por meio de bens e produtos, ele quer mudar as pessoas, os
outros, dando-lhes informações sobre o mundo, e por isso o valor da fotografia está
no ato fotográfico, no funcionamento, na reciprocidade homem-aparelho, não po-
dendo ser medido em dinheiro. Flusser (1982) não fala sobre o mercado fotográfico,
ele trata da subjetividade fotográfica.

O fotógrafo profissional busca responder questões relativas à postura e à atitude do


homem bem informado sobre o mundo. Como esse homem deve agir? Guardar as
informações só para ele? Fechar-se em círculos elitistas do conhecimento ou trabalhar
para a democratização do conhecimento? Flusser responde dizendo que “o fotógrafo
executa dança em torno do mundo para, munido de máquina, produzir um máximo
de informações sempre novas a respeito do mundo” (FLUSSER, 1982, on-line).

Neste trabalho, desvelamos como a dinâmica de sedução e interdependência en-


tre homem e aparelho contribuíram para uma maior liberdade artística dos autores,
permitindo-lhes criar projetos que, na atualidade, podem transitar entre o real e o
ficcional por meio de narrativas, informações visuais autorais que se desprendem da
cultura da modernidade, sedimentadas nos antigos regimes de verdade, e se entre-
laçam e se relacionam com a cibercultura, criando novas estruturas de poder menos
padronizadas e mais democráticas.

Cibercultura: a fotografia na era do prosumer


É importante neste trabalho apresentarmos a conceituação da cibercultura e cibe-
respaço pois esses conceitos estão intimamente interligados às evoluções tanto hu-
manas como dos objetos técnicos. Entendemos a cibercultura neste artigo como
uma reorganização de fenômenos sociais no espaço eletrônico virtual a partir do
uso de suportes tecnológicos para a comunicação em redes localizadas no ciberes-
paço. Este pode ser definido como “uma dimensão virtual da realidade onde seres
humanos, máquinas e programas computacionais interagem mediados por fluxos
digitais de informação e imagem” (MARTINS, 2013, p. 45).

Lévy (1999) caracteriza o ciberespaço como um espaço gerado pela Internet que in-
terliga pessoas de forma democrática, de todos para todos e todos para cada um, pre-
servando a individualidade pessoal do indivíduo e construindo uma rede cooperativa
de intersubjetividade mundial. Entendemos a forma de pensar de Lévy, concordamos
que deveria ser assim, entretanto vemos como utopia, pois, fazendo uma alusão a Karl
Marx (2013), vivemos em um “mundo invertido”, caracterizado por relações sociais de
produção e disputas por poder que agora têm como palco o ciberespaço.

A análise de Lévy sobre as potencialidades do ciberespaço é correta, mas sua falha con-
siste em não fazer uma análise de conjuntura aliada a uma análise histórica sobre a hu-
manidade, como é feita neste trabalho. Lévy aparentemente descreve o ciberespaço de

1388
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

uma forma otimista, por um olhar iluminista, deixando de lado dados de extrema rele-
vância para essa análise, como algumas características da natureza humana, a vontade
de poder e outras especificidades que levaram à assinatura do contrato social,2 em que
trocamos nossa liberdade por proteção. Esse tipo de análise, recorte academicista, de
laboratório, está à margem da realidade da maioria da população mundial e podemos
comprovar por meio da necessidade de regulação do ciberespaço por meio de leis para
punir crimes eletrônicos, ou cibercrimes.

Contudo, Lévy não é ingênuo, é apenas otimista, como podemos constatar em sua fala:

Uma coisa é certa: vivemos hoje em uma dessas épocas limítrofes na qual toda a Antiga ordem
das representações e dos saberes oscila para dar lugar a imaginários, Modos de conhecimento e
estilos de regulação social ainda pouco estabilizados. Vivemos um destes raros momentos, em
que, a partir de uma nova configuração Técnica, quer dizer, de uma nova relação com o cosmos,
um novo estilo de humanidade é inventado (LÉVY, 1993, p. 17).

Considerando o contexto da sociedade em redes, a fotografia contemporânea tem


sido utilizada em larga escala de modo fictício, ou seja, como forma de burlar a rea-
lidade e/ou, apresentar uma nova realidade por meio da ficção. Uma realidade que
nasce em uma sociedade informacional e em redes consumidoras ao mesmo tempo
em que são criadoras de dados conceituados para serem compartilhados imediata-
mente nas plataformas de redes sociais.

Uma realidade criada e editada pelo prosumer3 por meio do selfie e editada por sof-
twares de imagens como photoshop ou filtros automatizados das mídias sociais como

2 Para Hobbes (1988), o firmamento do contrato social e o surgimento do Estado absolutista são de ex-
trema importância, pois encerram a “guerra de todos contra todos” proporcionando, assim, segurança
para a população que agora tinha um reino, uma estrutura física, um local protegido para defendê-la
de ataques de outros, tanto externos ao reino quanto internos ao reino, como explicita Arendt (1998, p.
46): “O provimento da vida só pode realizar-se através de um Estado, que possui o monopólio do poder
e impede a guerra de todos contra todos, entretanto, ao assinar este contrato, renunciam sua liberdade
e concedem ao Estado poder sobre suas vidas”. Weber (1947, p. 78) prevê que neste contrato cabe ao
Estado “[...] o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um dado território”.
3 Em 1979, Alvin Toffler cunhou o termo prosumer, que deriva da união de duas palavras que em
um primeiro momento são antagônicas, produtor e consumidor (produtor – producer; consumidor
– consumer). Esses consumidores, além de interferirem na forma de produção, também poderiam
customizar seus produtos. Kirsner Scott (2005) vê o termo prosumer como a união de “professio-
nal-consumer” que não estão em busca de obtenção de capital, mas sim melhorar seus canais de
distribuição de trabalhos criativos. No campo mercadológico, Mcfedries (2002) identifica como
“proactive-consumer”, ou consumidor proativo, que seria aquele que toma providencias para tentar
solucionar problemas junto de companhias e empresas. Esses estudos colaboraram para que as em-
presas criassem departamentos especializados no contato com os prosumers e que a publicidade
criasse o conceito de branding, que “é o sistema de gerenciamento das marcas orientado pela signi-
ficância e influência que as marcas podem ter na vida das pessoas, objetivando a geração de valor
para os seus públicos de interesse” (CAMEIRA, 2012, p. 44).
1389
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

os oferecidos pelo Instagram, que permitem edições elaboradas com poucos toques
na tela do celular e seu posterior compartilhamento nas plataformas de redes sociais.

Ao analisarmos a criação fotográfica atual, devemos revisitar os ensinamentos deixados


por Vilém Flusser, que desenvolveu denso estudo sobre a fotografia, possibilitando-nos
melhor compreensão a respeito desse aparelho que (re)produz imagens. Flusser (2007
a) vai além de uma simples análise sobre a reprodutibilidade técnica da “caixa preta”, ele
busca uma filosofia da fotografia, busca a relação entre realidade e representação e ex-
plora todas as variáveis que cercam esse problema. O autor nos induz ao pensamento de
como a fotografia pode ser o ponto de encontro entre arte, ciência e tecnologia.

Ao pensarmos arte e tecnologia, especulativo e científico, não podemos deixar de


lado uma das invenções técnicas de grande importância para esta temática, a fo-
tografia, que pode ser considerada um produto do design. Apesar disso, ela supera
essa definição unindo a ciência, a arte e a tecnologia, e tanto o dispositivo fotográfi-
co quanto o produto fotográfico em si são amplamente consumidos pela sociedade
contemporânea, principalmente nas redes sociais.

Ao mesmo tempo em que o dispositivo fotográfico pode ser uma ferramenta de


criação artística, documental, científica, pode também, seguindo o pensamento de
Flusser (2007 b?), ser uma prótese ocular e mecanizada do olho e do cérebro huma-
no que registra e armazena na memória fragmentos de emoções e temporalidade,
além de, por estar ligada ao pensamento e ao intelecto, criar memórias ou fatos fictí-
cios, de um autor ou artista, materializados fisicamente como produtos fotográficos,
que, nos dias atuais, são amplamente divulgados, compartilhados e editados nas
plataformas de redes sociais de modo desierarquizado e rizomático4 ao ponto de se
perder a noção de autoria e veracidade.

A transmutação do dispositivo fotográfico


Propomos explicar as questões levantadas por meio da análise das modificações so-
fridas pelo dispositivo fotográfico a partir da sociedade industrial até os dias atuais e
como a fotografia se relaciona com o contexto social e econômico, sendo um trans-
formador e criador de realidades por meio de imagens. Também iremos abordar as
metamorfoses fluidas que o conceito de imagem vem sofrendo com a aceleração
dos fluxos comunicacionais e o surgimento da sociedade em rede.

A profusão e aceleração das imagens não cessam de crescer e os novos dispositivos, de se multi-
plicarem, enquanto outros, como a televisão, veem o seu poder ser corroído. Essas mudanças afe-

4 Deleuze e Guattari (1995) fazem uma releitura do termo rizoma originalmente cunhado na botâ-
nica para especificar um broto que cresce horizontalmente e pode ramificar-se em qualquer ponto.
Nesta pesquisa, é associado a informação e comunicação.

1390
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

tam ao mesmo tempo ferramentas, materiais, modos de produção, usos, economias, mas também
olhares, estéticas e regimes de verdade. Como resultado, há uma impressão confusa de imensa de-
sordem e de “criação contínua de novidades imprevisíveis” (BERGSON apud ROUILLÉ, 2013, p. 18).

Rouillé (2013) explica que o dispositivo fotográfico analógico foi privilegiado duran-
te o século XIX e prosperou, juntamente com a sociedade industrial, sendo um dos
principais dispositivos de expressão e representação dessa sociedade, entretanto
sofreu um abalo dentro do seu próprio campo e foi substituído pelo dispositivo digi-
tal. Isso se deu devido às transmutações socioeconômicas, espaço-temporais, estéti-
co-visuais sofridas na transição da sociedade industrial para a sociedade globalizada
da informação em redes que tornaram o dispositivo analógico ineficiente para res-
ponder convenientemente às necessidades e às exigências dessa nova sociedade,
sendo assim substituído pelo digital.

Para o autor, André Rouillé (2013) essa transformação na fotografia se dá em na-


tureza e não apenas em grau. O digital apresenta o novo. A fotografia dentro da
fotografia. Enquanto o dispositivo mecânico que registrava baseado na combinação
química da luz com sais de prata está ligado, de acordo com Barthes (1984), “a imobi-
lidade dos arquivos, a verdade, a memória, a prova”, a fotografia digital, por sua vez,
registra digitalmente marcas luminosas, ao contrário do analógico, é associada a um
regime diferente dominado pela “noção de velocidade, de simultaneidade, de flexi-
bilidade, de mobilidade, de perda da origem, de mixagem, falsidade etc.” De acordo
com Rouillé (2013, p. 20), essas duas versões da fotografia distinguem-se no fato de
que uma é moderna, presa à crença na essência documental, enquanto a outra é
pós-moderna, assumindo seu caráter inevitavelmente fictício, um reencontro com o
Mythos, com a narrativa de caráter simbólico-imagético.

A fotografia – em meio à tormenta das imagens a que Rouillé (2013, p. 20) se refe-
re – está ligada à ruptura das metanarrativas modernas que estão transmutando o
conceito de verdade na contemporaneidade. A imagem documental, que constata
e transmite sem distorção os fatos históricos, perde espaço para a imagem ficcional,
que cria um saber especulativo e variável, rizomaticamente, disseminado por fluxos
de dados em redes.

A fotografia analógica foi durante muito tempo considerada documento, testemu-


nho, “retrato do real”. Rouillé (2013, p. 23) faz-nos refletir sobre como as mudanças
no regime de verdade e de estética causaram profundas alterações no fotodocu-
mentarismo, e a reportagem fotográfica detinha o poder da veracidade inquestioná-
vel. Ambas deveriam ser cuidadosamente construídas, claras e precisas, entretanto,
como a ética moderna imperava, não era permitidos a ação direta do fotógrafo sobre
o real, as encenações ou os retoques na imagem. Agora, vemos o colapso desses
estilos fotográficos modernos devido à fratura do regime de verdade moderno e a
ascensão do regime ficcional, no qual o fotógrafo tem a liberdade de criar a verdade

1391
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

por meios tecnológicos ou, até mesmo, pela encenação. Vivemos, assim, uma nova
concepção de ética e estética.

No final do século XIX e início do século XX, a fotografia tinha o caráter documental,
registrava o real e em muitos casos substituía o documento escrito. Le Goff (1996), ao
analisar a historicidade da memória coletiva humana, afirma que ela é construída no
decorrer do tempo pelos documentos e pelos monumentos. Inicialmente, ele diferen-
ciou monumento de documento ao dizer que o monumento era a herança cultural
do passado e o documento era o testemunho escrito presencialmente do historiador,
de forma neutra, apenas como registro, e por isso teria caráter de verdade. Aprofun-
dando mais seu pensamento, ele traz à luz o questionamento sobre a veracidade dos
documentos, uma vez que são elaborados de forma intencional pela sociedade que o
fabricou, obedecendo a um discurso, e por essa razão não seriam puros.

[...] o documento não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade
que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. Só a análise do documento
enquanto monumento permite à memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientifica-
mente, isto é, com pleno conhecimento de causa” (LE GOFF, 1996, p. 545).

Avançando em seu pensamento, Le Goff (1996) entende que não há distinção entre
documentos e monumentos, sendo o documento um monumento, pois o autor do
documento o cria a partir de uma estrutura de poder, política, econômica, artística
ou qualquer outra manifestação escolhida por quem o produz. Não existe abstração
na hora de compor o documento, mas sim total controle e prudência naquele mo-
mento para se dizer o que se quer dizer.

[...] montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram,


mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante
as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. O documento é uma coisa que fica,
que dura, e o testemunho, o ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz devem ser em
primeiro lugar analisados desmistificando-lhe o seu significado aparente. O documento é monu-
mento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involunta-
riamente – determinada imagem de si próprias. No limite, não existe um documento-verdade. Todo
documento é mentira. Cabe ao historiador não fazer o papel de ingênuo (LE GOFF, 1996, p.547-548).

Essa análise a respeito de documentos e monumentos feita por Le Goff remete-nos


à caracterização imagética – ou pelo menos à associação – do que era considerada a
fotografia analógica à época moderna. Técnica, controle, prudência no momento do
click em busca do “instante decisivo” para um registro do fragmento da realidade na-
quele espaço-tempo, sem adulterações tecnológicas posteriores ou do próprio fotó-
grafo no momento do registro. Imageticamente nos remete aos trabalhos de Henri
Cartier-Bresson, que buscava a externalidade ao fato, situação, momento, quando

1392
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

clicava com sua “inseparável” câmera Leica, objetivando apresentar ao público um


fragmento, de acordo com sua concepção, do real de determinado espaço-tempo.
Sob o prisma de Le Goff, entendemos que o que sobrevive do passado não é o que o
fotógrafo registrou ou o que o historiador escreveu e sim o que resolveram fotogra-
far ou registrar diante de múltiplas possibilidades de fotografar e registrar.

Ao abordar a documentação fotográfica na modernidade dentro das teorias da ima-


gem, podemos relacionar a imagem do registro fotográfico moderno com a primeira
dimensão do estudo de Brea (2010), que está ligada à imagem-matéria. Essa imagem
encarnada recria o mundo estático e durável e está ligada à verdade que recria o mun-
do estático e durável, sendo ligada à verdade. Representada pelas artes tradicionais,
nos artefatos, na imagem-objeto, na imagem da pintura e da escultura. São imagens
únicas, singulares, que nos prometem a individualização e incorporam, encarnam
a promessa de permanência, da memória, impedindo a passagem do tempo e que
sempre poderá ser resgatada. O regime técnico de produção da imagem-matéria apri-
siona-a, inscreve-a em seu próprio suporte; essa imagem é soldada ao suporte. Indis-
soluvelmente apegada a sua forma materializada. A imagem-matéria é uma imagem
“encarnada”. Na segunda dimensão de sua investigação, Brea (2010) fala sobre a era da
imagem-filme, que seria a era da imagem reprodutiva, dinâmica, imagem-movimento,
que não se recupera sendo impermanente e passageira, sendo ligada a um modelo
econômico de distribuição e a um tipo de memória retiniana (REM).

Rouillé (2013) também aborda a questão relacionada à deriva dos documentos que
são cada vez mais digitais e convertidos em imagens. O autor cita Michel Foucault para
explicar que atualmente as imagens seguem um fluxo inverso àquele que a história
havia presenciado até então. Se tradicionalmente a história memorizava documentos
do passado e os transformava em monumentos, hoje seria o inverso, os monumentos
são transformados em documentos. Esse é o eixo central da crise fotografia-documen-
to, que oscila entre a lógica documental única e verticalizada e a lógica documental
múltipla, móvel e fluida à qual a sociedade e a arte do século XXI5 estão incorporadas.

A terceira dimensão do estudo de Brea (2010) refere-se às e-imagens, que são ima-
gens que representam uma nova concepção metafísica em um espaço-tempo que
já não é o nosso. Essas e-imagens – ou imagens fantasma, ou imagens-tempo – são

5 Venturelli (2004) entende que os avanços tecnológicos proporcionaram novas formas de se fa-
zer arte e que as vanguardas dos movimentos artísticos buscaram incorporar novas técnicas e fer-
ramentas em suas criações. Explicita que os movimentos artísticos do século XX, de modo geral,
introduziram na arte o desejo pelo novo e rejeitaram cânones de uma tradição determinada pela
classe burguesa. Por novas tecnologias entende-se a fotografia, o cinema e o vídeo, e por tecnolo-
gias contemporâneas, as computacionais. Venturelli (2016) complementa que uma das principais
características da arte do século XXI é a liberdade em relação a todo controle autoritário em prescre-
ver normas racionais pela estética e tem como objetivo desenvolver na estética a força da reflexão e,
assim, romper com a alienação das massas.

1393
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

imagens instantâneas que não têm nenhum original, sendo produzidas ilimitada-
mente dentro de um sistema de memória RAM, sendo criadas com o objetivo es-
pecífico de serem compartilhadas pelas comunidades de usuários das redes infor-
macionais distantes dos regimes de propriedade e distribuição e muitas vezes da
própria arte e dos modelos econômicos.

Fernandes (2006) traz um pensamento interessante para o entendimento dos ve-


tores e das variáveis que cercam a produção fotográfica contemporânea. O autor
apresenta o conceito denominado “fotografia expandida” para explicar as novas po-
tencialidades da fotografia contemporânea, como a quebra das barreiras na produ-
ção, o hibridismo das manifestações imagéticas, novos suportes para a imagem, a
ênfase na importância do processo de criação e nos procedimentos utilizados pelo
artista que, nesta linha, busca a ampliação da sua área de atuação na linguagem e
na representação fotográfica, o que exige também um espectador com capacidade
de leitura diferenciada das imagens, uma vez que o produto fotográfico carrega me-
tadados do seu processo de criação e precisa ser interpretado. O autor explica que o
conceito é uma adaptação do termo original, “cinema expandido”6, cunhado para o
cinema com o objetivo de explicar as novas possibilidades dessa linguagem.

A produção contemporânea tem seu diferencial porque, quero entender, vivemos uma saudável
crise: de um lado, vemos um esgotamento das artes plásticas tradicionais, e, do outro, temos um
novo momento tecnológico em termos de produção imagética, no qual predomina a imagem di-
gital. Essa crise é, em parte, responsável pelo interesse despertado pela fotografia – seja pelos mu-
seus e galerias, seja pelos colecionadores, pelos artistas visuais, que estão aprendendo (de novo) a
incorporá-la em seu trabalho, seja pelos próprios fotógrafos, que estão trilhando outros caminhos
para concretizar sua produção e circulação de imagens fotográficas (FERNANDES, 2006, p. 11).

O dispositivo fotográfico contemporâneo – seja a máquina fotográfica seja o dispo-


sitivo acoplado a aparelhos de telefone móveis – já vem com algumas programa-
ções predefinidas de fabricação, como a programação para se criar “pintura de luz”
(Huawei Mate 9, dispositivo celular utilizado nesta pesquisa com duas lentes Leica
nele acoplados). Essa técnica fotográfica consiste em se deixar o obturador aberto
captando luz, ou seja, em um processo de captura da luz para construção de uma
determinada imagem. Ao pensarmos nesse mecanismo de captura da luz, podemos
relacionar a uma extensão do nosso próprio olho.

De acordo com Grigoletti (2006), o olho humano é capaz de se adaptar a baixas lumi-
nâncias: “Para o olho acomodar-se à escuridão são necessários cerca de 30 minutos”.

6 Esse termo busca “explorar as novas mensagens que existem no cinema e examinar algumas das
novas tecnologias de produzir imagens que prometem estender as capacidades perceptivas do ho-
mem além de suas já extravagantes experiências visuais” (YOUNGBLOOD, 1970, p. 41).

1394
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Poderíamos dizer que o ser humano também tem programações já predefinidas de


fábrica? E também podemos pensar no conceito de coautoria homem- máquina?
Entendemos que o dispositivo fotográfico acoplado ao aparelho celular móvel é
uma tecnologia de expansão de qualidades e estruturas de funcionamento tanto
do olho humano quanto do cérebro que guarda a memória. Essa tentativa de ler a
máquina por meio do organismo conversa com o estudo iniciado por Georges Can-
guilhem (1952, p. 124), que pretendia criar uma “filosofia biológica da técnica” para
“compreender a própria construção da máquina a partir da estrutura e funciona-
mento do organismo”.

Os objetos técnicos
Para entendermos as atuais discussões sobre fotografia contemporânea dentro da
linha de pesquisa arte e tecnologia, temos de adentrar no pensamento de Simon-
don. Não pretendemos exaurir a complexidade do pensamento a respeito da evo-
lução dos objetos técnicos, queremos elucidar questões relativas à interação entre
homem e aparelho, as quais o pensamento flusseriano não tiveram a oportunidade
de resolver. Não pretendemos nos aprofundar no pensamento de Simondon (1989),
entretanto se faz necessário resgatar o pensamento deste autor, em específico o
conceito sobre a interação humana com a tecnologia.

Simondon (1989) dá continuidade ao pensamento de seu professor, Canguilhem,


e baseia sua reflexão em três problemas fundamentais que, de acordo com Lopes
(2015, p. 308-309), são “(1) o sentido do objeto técnico enquanto ser técnico, pen-
sado geneticamente, (2) o que implica pensar também sua evolução e (3) a questão
de sua origem absoluta no interior da invenção vital” dos objetos técnicos, instru-
mentos, máquinas, aparelhos. Ao analisar o “objeto técnico” enquanto “ser” técnico, o
autor apropria-se e baseia-se inicialmente no “método genético”, que implica pensar
a evolução dos objetos técnicos e sua origem.

Para Simondon (1989), o objeto técnico foi inventado naturalmente sem ter correlação
com fatores econômicos, sociais e culturais. Ele associa a evolução dos objetos técnicos
à evolução humana, como uma evolução conjunta e natural. Ele atribui aos objetos uma
gênese própria, separada da gênese do ser humano. Nesse processo de atribuir uma
gênese própria ao objeto técnico, o autor lhe atribui autonomia para que se tornem um
“ser” técnico, que evolui e se desenvolve por meio de convergência e adaptação. Como
diz Simondon (1989, p. 20), “o ser técnico evolui por convergência e por adaptação a si;
ele se unifica interiormente segundo um princípio de ressonância interna”.

A partir da fusão entre os pensamentos de Flusser, Canguilhem e Simondon, en-


tendemos que a máquina fotográfica pode ter evoluído ao adaptar as necessidades
tanto visuais quanto tecnológicas da sociedade contemporânea, convergindo com
outros dispositivos tecnológicos mais atuais e poderosos, como o smartphone. Em

1395
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Flusser as máquinas eram poderosas em razão do tamanho; na contemporaneida-


de, percebemos uma certa inversão em que os dispositivos móveis têm se tornado
menores e mais poderosos. As grandes máquinas ainda têm seu espaço, entretanto
são caras e possuem pouca mobilidade, o que as coloca em segundo plano na atual
sociedade, podendo ser classificadas, em alguns casos na fotografia, como equipa-
mentos artesanais.

Um dos principais pensamentos na teoria de Simondon (1989) é quando ele diz que
a ideia de oposição entre cultura e técnica é falsa, da mesma forma que a oposição
entre homem e máquina também é falsa. Essa “ignorância” em relação à natureza
das máquinas e ao conhecimento técnico seria uma das causas do mal-estar recor-
rente na sociedade contemporânea e que de certa forma resultaria na tecnofilia e na
tecnofobia: enquanto uns querem acompanhar o fluxo tecnológico e impedir sua
obsolescência, outros, conservadores, não assimilariam as inovações tecnológicas.

Tecnofílicos geralmente são pessoas que interligaram as diversas esferas da sua vida
às novas tecnologias, criando certa dependência dessas tecnologias, pois, como
bem diz Flusser (1985), o homem transferiu seus interesses do mundo objetivo para
o mundo simbólico das informações. É muito comum esse tipo de fobia na socie-
dade da conectividade nos dias atuais. Tecnofilia, então, seria o medo do fracasso
devido a alguma pane ou falha tecnológica.

Por sua vez, a tecnofobia é o inverso. É o medo da tecnologia. Essa também é uma
fobia muito comum nos dias atuais. Muitas pessoas têm perdido o emprego e sendo
substituídas por máquinas. Temos um exemplo interessante, dentro do mundo da
fotografia, sobre tecnofobia: a transição do dispositivo fotográfico analógico para o
dispositivo digital.

O que nos interessa no pensamento de Simondon é sua filosofia não autocrática


das máquinas. Ao estudar os modos de existência das máquinas, dos humanos e da
relação entre homem e objeto técnico, ele levanta uma hipótese sobre a ontogênese
dos objetos técnicos e define o processo pelo qual eles adquirem autonomia e uma
forma própria de individualidade.

De acordo com Simondon, a cultura e a técnica são inerentes à existência humana e


ocupam, em conjunto com a herança genética, o mesmo lugar na evolução, ou seja,
evoluem em conjunto. A ampliação no uso da tecnologia pode também atuar como
fator de imprevisibilidade e inovação na cultura, podendo também ser deslocada
para o âmbito do conhecimento, das artes e das tecnologias, resultando significati-
vamente em produção de novas formas de saber e conhecimento. Para Simondon
(1989), os objetos técnicos são agentes mediadores entre a natureza e o homem.

Para uma melhor compreensão sobre as questões levantadas até aqui, criamos uma
linha do tempo com as principais fases da evolução histórica das técnicas, bem

1396
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

como das características que exemplificam as transformações culturais, políticas e


socioeconômicas vividas pela sociedade desde a pré-história. Entendemos que os
objetos técnicos têm acompanhado a evolução humana e são corresponsáveis pelas
transformações e pelas transmutações que a sociedade humana tem vivido. Os ob-
jetos técnicos, hoje, integram o sistema econômico e sociopolítico e exercem função
central na sociedade contemporânea.

Imagem 13. Linha do tempo da evolução histórica das técnicas. Linha do tempo criada com base no
trabalho Os conceitos, de Gilbert Simondon, como fundamento para o design de Jorge Lucio de
Campos e Filipe Chagas

Referências
BREA, José Luis. Las tres eras de la imagen: imagen-materia, film, e-image. Madrid:
Akal, 2010. 142 p.

CANGUILHEM, Georges. La Connaissence de la vie. 2. ed. Paris: Vrin, 1965.

1397
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Ja-
neiro: Editora 34, 1995. 715 p.

FERNANDES JR., Rubens. Revista da Faap-Facom, n. 16, 2o semestre de 2006.

FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunica-


ção. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

______. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo:


Annablume, 2008.

______. Pós-história: vinte instantâneos e um modo de usar. São Paulo: Duas Cida-
des, 1983.

______. Von der Freiheit des Migranten: Einsprüche gegen den Nationalismus.
Bensheim: Bollmann, 1994.

______. Ficções filosóficas. São Paulo: Edusp, 1998.

______. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. São Paulo: Annablume, 2007a.

______. O mundo codificado. Org. Rafael Cardoso. São Paulo: Cosac Naif, 2007b

______. Língua e realidade. São Paulo: Annablume, 2004.

______. Ser judeu. São Paulo: Annablume, 2014.

______. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio
de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

______. O instrumento do fotógrafo ou o fotógrafo do instrumento. Íris, agosto


de 1982.

HOBBES, T. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil.


Coleção Os Pensadores. (1º volume). 4ª Edição, Nova Cultural, 1988.

LE GOFF, Jacques. Em busca da Idade Média: conversas com Jean-Maurice de Mon-


tremy. Tradução Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. 222 p.

______. História e memória. 4. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.

______. História. História e memória. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.


p. 476.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 2009.

1398
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fon-
tes, 2003.

______. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.

ROUILLÉ, André. A fotografia na tormenta das imagens. In: DOBAL, Susana; GONÇAL-
VES, Osmar (Org.). Fotografia Contemporânea: fronteiras e transgressões. Brasília:
Casa das Musas, 2013.

SIMONDON, Gilbert. Du mode d’existence des objets techniques. Paris: Aubier,


1989 [1958].

VENTURELLI, Suzete. Arte: espaço_tempo_imagem. Brasília: Editora Universidade


de Brasília, 2004.

______. Arte computacional. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2017.

WEBER, Max, 1864-1920. Theory of social and economic organization. New York,
xford University Press, 1947.

1399
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Lorena Ferreira Alves1

Personal Auricularveillance
Personal Auricularveillance

Resumo
Atualmente observamos indícios de vigilância sonora provocada por compu-
tadores pessoais. Usuários de Smartphones e iPhones vem testemunhando
casos de recebimento de anúncios após terem expressado alguma necessida-
de em voz alta próximo aos seus aparelhos celulares. A vigilância de conver-
sas operada através dos microfones de computadores pessoais, é apresentada
com frequência como teoria da conspiração, embora haja notícias de denúncia
desta vigilância praticada por empresas de comunicação e tecnologia. Como
forma de discutir a vigilância sonora em nossos aparelhos celulares, a obra Per-
sonal Auricularveillance, surge como uma ferramenta em que o usuário possa
burlar essa vigilância, através de uma prótese de orelha humana acoplada ao
microfone do aparelho celular. As cartilagens instaladas em Smartphones e
Iphones, proporcionam assim, a comunicação entre vigiado e vigilante, onde
o conteúdo sonoro monitorado pode ser selecionado, bloqueado ou mesmo
intensificado de acordo com a pretensão do usuário.
Palavras-chave: vigilância sonora, arte e vigilância.

Abstract
Currently we observe sound surveillance evidence caused by personal computers.
Smartphones and iPhones users have been witnessing cases of receiving ads after
expressing some need out loud near their mobile devices. Conversation surveillance
operated through personal computer microphones is often presented as a conspir-
acy theory, although there is news of denunciation of this surveillance by communi-
cation and technology companies. In order to discuss the sound surveillance in our
cell phones, the work Personal Auricularveillance, emerges as a tool that enables
the user bypass this surveillance through a human ear prosthesis coupled to the mi-
crophone mobile device. The cartilages installed in Smartphones and Iphones thus
provide communication between guarded and vigilant, where monitored sound
content can be selected, blocked or even intensified according to the user’s intention.

1 Lorena Ferreira Alves, doutoranda em Artes Visuais pelo PPG-AV da Universidade de Brasília na linha de
pesquisa Arte e Tecnologia.

1400
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Os aparelhos celulares vigiam nossas conversas?


Teoria da conspiração x veracidade

“O Facebook escuta nossas conversas para segmentar anúncios?

Muitas teorias da conspiração que podem ser encontradas na internet dizem respeito ao Face-
book. As mais famosas falam sobre a rede social escutar constantemente o que falamos para que
anúncios sejam segmentados.”2

A citação acima se trata da primeira passagem da matéria divulgada no mês de maio


de 2019 pelo site Olhar Digital, em que expressa a atual preocupação sobre uma
vigilância sonora por parte de usuários de redes sociais. A preocupação sobre este
tipo de vigilância, que se estende para além das câmeras, dados de navegação e lo-
calização do usuário, se refere a casos de pessoas que relatam ter recebido anúncios
de conteúdos específicos após terem falado sobre estes próximo ao aparelho celular.

Em abril de 2019, rumores sobre uma potencial vigilância sonora operada pela tec-
nologia de assistente virtual Alexa,3 desenvolvida pela Amazon, foi exposta pela
empresa de tecnologia e análise de dados Bloomberg, afirmando que funcionários
da Amazon teriam acesso a gravações confidenciais e feitas por engano, transcre-
vendo-as em texto. A Amazon diz que a necessidade da atuação humana para trans-
crição de vozes dos usuários da Alexa, está em aprimorar a interação entre vozes
humanas e assistente virtual, e que funcionários teriam acesso a uma amostra extre-
mamente pequena de gravações.4

Após o intervalo de um mês, uma nova notícia sobre o armazenamento de dados


dos usuários da Alexa foi divulgada. As conversas gravadas pelo usuários são arma-
zenadas nos servidores da Amazon, mesmo que o usuário opte por excluí-las no
sistema operacional da Alexa, opção esta que provoca uma falsa sensação de pri-
vacidade.5 Embora a Amazon divulgue como resposta que estaria trabalhando para

2 O Facebook escuta nossas conversas para segmentar anúncios? Disponível em: <https://olhar-
digital.com.br/fique_seguro/noticia/o-facebook-escuta-nossas-conversas-para-segmentar-anun-
cios/85907>. Acesso em: 19/09/2019.
3 Alexa é o nome dado à assistente de voz da Amazon. Seu software responde a informações de-
mandadas pelo usuário através de comando de voz.
4 Matéria completa em: Um funcionário da Amazon pode estar escutando suas conversas com a Ale-
xa. Olhar Digital. 11/04/2019. Disponível em: <https://olhardigital.com.br/noticia/um-funcionario-
-da-amazon-pode-estar-escutando-suas-conversas-com-a-alexa/84627> Acesso em: 21/09/2019.
5 Matéria completa em: Amazon mantém transcrições de conversas do usuário com a Alexa. Olhar
Digital. 09/05/2019. Disponível em: <https://olhardigital.com.br/noticia/amazon-mantem-transcri-
coes-de-conversas-do-usuario-com-a-alexa/85637> Acesso em: 21/09/2019.

1401
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

excluir as gravações em outras áreas além do sistema operacional onde os dados


estão armazenados, no mês de julho de 2019, a empresa afirmou que mantém as
gravações de voz em seus servidores, salvo o pedido dos usuários para excluí-las, e
que gravações que envolvam transações e compras em serviços terceirizados, são
armazenados e acessados pelos serviços envolvidos como forma de comprovação.6

A prática de armazenamento de conversas oficializada pela Amazon, pode ser ob-


servada como um indício sobre a capacidade de vigilância sonora em computadores
pessoais, bem como a prática de vigilância sonora por parte de empresas de comu-
nicação e tecnologia. Dessa forma, o fato de estarmos sendo ouvidos pelos nossos
aparelhos celulares não estaria apenas no campo da teoria da conspiração.

Mesmo que a vigilância sonora, operada através de captura e transcrição de vozes


que ocorrem por meio de microfones incorporados aos nossos aparelhos celulares,
seja uma prática negada por empresas como a Facebook7, a crença de que estamos
sendo ouvidos pelos nossos smartphones e iPhones vem se tornando cada vez mais
comum entre os usuários de redes sociais e serviços de compras. Uma abordagem
bem humorada sobre o paradoxo de ficção x veracidade da vigilância sonora prati-
cada por empresas, é apresentada no episódio Ouvem Tudo, produzido pelo grupo
Porta dos Fundos (Imagem 1).

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=O9WC8AjOz7k. Imagem 1: Ouvem Tudo

6 Matéria completa em: Amazon confirma que mantém gravações do Alexa para sempre. Olhar Di-
gital. 03/07/2017. Disponível em: <https://olhardigital.com.br/noticia/amazon-confirma-que-man-
tem-gravacoes-do-alexa-para-sempre/87597> Acesso em: 21/09/2019.
7 O Facebook não deixa claro aos usuários como transcreve as vozes gravadas em conversas do Mes-
senger. A matéria online divulgada pela The Verge anuncia que o Google, Apple, Microsoft e Amazon
usavam contratados humanos para ouvir o áudio obtido por meio de seus produtos de assistente
de voz sem serem explicitamente transparentes com seus usuários. Matéria completa em: Facebook
also hired human contractors to listen to audio from its Messenger. The Verge. 13/08/3019. Dispo-
nível em: <https://www.theverge.com/2019/8/13/20804315/facebook-messenger-audio-conversa-
tions-listening-human-contractors> Acesso em: 21/09/2019.

1402
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Como forma de suprir possíveis demandas aos usuários através de oferta de produ-
tos, empresas capturam as conversas dos personagens e identificam suas necessi-
dades. No episódio Ouvem Tudo, a resposta às necessidades dos usuários é suprida
de forma instantânea, onde basta o usuário expressar em voz alta e próxima ao
aparelho celular o que deseja, para que o produto se materialize em sua frente. Este
episódio expressa uma percepção coletiva sobre a vigilância em que estamos imer-
sos, onde a captura da voz é articulada a dados pessoais de texto, comportamentos
de navegação na web, e localidade, em uma tecnologia avançada de processamento
instantâneo de dados.

Pensando sobre a crença compartilhada entre os usuários de que “eles ouvem tudo”,
segundo a fala da personagem no vídeo acima citado, a obra Personal Auricular-
veillance, foi desenvolvida como produto, que oferece aos usuários vigiados opções
de burlar, impedir ou aprimorar a vigilância sonora praticada pelas empresas. A obra
Personal Auricularveillance, surge como maneira de provocar relações outras entre
o sujeito vigiado e o sistema que o vigia, desconstruindo a posição de impotência
que os usuários se encontram diante a vigilância incisiva e ininterrupta que ocorre
nas tecnologias dos meios de comunicação vigentes.

Personal Auricularveillance
Como proposta de boicotar e confundir o que nossos vigilantes interpretam sobre
quem somos, Personal Auricularveillance se trata de uma prótese de orelha humana
a ser acoplada no microfones de aparelhos Smartphones e iPhones, onde através da
prótese, o usuário poderá escolher, bloquear ou ampliar a captura de sons vigiados
através do microfone do aparelho.

A obra explora a anatomia do ouvido humano ao simular uma orelha, de modo a


aproveitar as características acústicas deste órgão externo. Também chamada de pa-
vilhão auditivo, a orelha, segundo João Candido Fernandes (2002), cumpre a função
de uma corneta acústica, onde as ondas sonoras que chegam ao pavilhão auditivo
são conduzidas ao canal auditivo, ou meato acústico externo (Imagem 2), além de
ajudar na localização da fonte sonora8 (Imagem 3).

8 O ouvido humano é capaz de identificar a localização de fonte sonora em seu plano horizontal e
de elevação. Segundo MONFORT (2018) quando as ondas sonoras chegam no pavilhão auricular,
produzem rebotes nas dobras da orelha (cavidades formadas pela cartilagem da orelha) que dire-
cionam o som para o ouvido interno.

1403
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Imagem 2: Ouvido Externo. A= Pavilhão Auditivo. B = meato acústico externo.


Fonte: http://www.atlasdocorpohumano.com/p/imagem/orgaos-dos-sentidos/orelha/orelha-
externa/meato acustico-externo/

Imagem 3: Perceção de Elevação. Fonte: https://courses.edx.org/courses/


course-v1:UPValenciaX+S3D201x+2T2017/courseware/Unidad1/
Unidad1Subsection3Sequential/?child=first

O encaixe da prótese de uma orelha humana onde está localizada a saída de micro-
fone do aparelho celular, oferece a possibilidade de tapar os ouvidos do vigilante
através de um protetor auricular, direcionar fontes sonoras capazes de bloquear ou
impedir a escuta de conversas do usuário por meio de reprodução sonora em fones
de ouvido, como também amplificar o alcance da vigilância sonora por meio das
propriedades acústicas da orelha humana acima mencionadas.

1404
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Para a fabricação de uma prótese de orelhas humanas que preservem suas caracte-
rísticas acústicas e forma capaz de encaixar fones de ouvido e protetores auditivos,
a artista cria um molde de suas orelhas utilizando alginato em pó, material empre-
gado para a retirada de moldes do corpo. Após a criação dos moldes, as orelhas são
confeccionadas com gesso, lixadas e banhadas com uma camada fina de borracha
de silicone. Cada orelha possui em sua região do conduto auditivo externo (abertura
por onde o som é conduzido ao ouvido interno) um furo de dois milímetros, capaz
de direcionar o som ao interior do microfone dos aparelhos Smartphones e iPhones.
Uma base de borracha de silicone é fixada na parte posterior da orelha, para que a
prótese possa ser encaixada na parte lateral no aparelho celular.

Imagem 4: Prótese de orelha humana.


Processo de criação prótese de uma orelha humana

Imagem 5: Personal Auricularveillance.


Prótese encaixada ao microfone do aparelho celular

1405
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A obra permite a alteração sobre a vigilância de dados sonoros enquanto navega-


mos na web, utilizamos redes sociais e aplicativos. Mesmo que ainda não existam
comprovações que provém uma vigilância incisiva de captura de voz operada pelos
computadores pessoais semelhante à vigilância de dados de navegação praticadas
na internet, a presença do microfone em nossos aparelhos celulares, é capaz de ge-
rar uma sensação de constante vigilância de nossas conversas.

A sensação de constante vigilância provocada pela presença de dispositivos tecno-


lógicos, é discutida por Paul Virílio em seu livro A máquina de visão. Virílio (1998)
diz sobre a crescente implementação de câmeras de vigilância em locais públicos e
privados, e a capacidade das câmeras em provocar um delírio de perseguição, mes-
mo que o dispositivo não esteja funcionando. É possível pensar segundo as pre-
ocupações acerca da vigilância sonora discutida neste artigo, como os microfones
dos aparelhos celulares podem ser compreendidos como dispositivos de vigilância
aptos a nos vigiar constantemente, ainda que não estejam cumprindo esta função.

Mediante a possibilidade do usuário em intervir sobre a vigilância sonora por meio


de alteração de sons a serem monitorados, a obra Personal Auricularveillance se
apresenta como resposta à falta de transparência de como nossos dados são ma-
nipulados por parte das empresas responsáveis pela vigilância de dados na web, a
impotência por parte do usuário de agir sobre a vigilância de seus dados pessoais,
bem como as consequências provocadas por esta vigilância.

As consequências da vigilância de dados, podem ser percebidas através das formas


de gerenciamento dos dados dos usuários operadas pelos algoritmos. A impotência
de desviarmos da onipresença do regime de vigilância na web, cuja complexidade
de cálculo dos algoritmos se encontra intangível ao usuário, faz deste um sujeito
que utiliza os dispositivos de comunicação sem opção de garantir a privacidade de
seus dados de navegação, aceitando assim a vigilância e de seus comportamentos e
o uso destas informações por parte dos proprietários de aplicativos, redes sociais e
sites de busca, para fins que não é possível ter conhecimento.

Outra consequência acerca do gerenciamento de dados vigiados através de algo-


ritmos, está na formação de conhecimento que a difusão de informações persona-
lizadas a cada perfil pode causar. Cada usuário recebe, portanto, conteúdos previa-
mente antecipados pelos algoritmos. Antoinette Rouvroy e Thomas Berns (2015)
discutem que as consequências da vigilância de dados estão na perda da oportu-
nidade de escolha do sujeito diante os efeitos auto performativos dos algoritmos,
cujos saberes relacionados se encontram contrários à subjetividade, impedindo es-
colhas baseadas em hipóteses e questionamentos. Segundo Rouvroy e Berns (2015)
esta característica de construção de conteúdos não se refere ao que o sujeito é ou
necessita para desenvolver-se enquanto humano, mas ao que os dados correlacio-
nados alegam acerca do perfil pertencente a cada usuário.

1406
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Dessa forma, ao compreendermos que as informações reproduzidas nas telas de


nossos computadores são um resultado da interpretação algorítmica sobre nossos
perfis, burlar uma potencial vigilância sonora, também se apresenta como forma de
intervir sobre como algoritmos pensam sobre nós, modificando assim as previsões
automatizadas por cálculos sobre quem somos.

Referências
FERNADES, João Candido. (2002). Acústica e Ruídos. UNESP - Câmpus de Bauru -
Faculdade de Engenharia. Departamento de Engenharia Mecânica - Laboratório
de Acústica e Vibrações. Recuperado em 21 de setembro, 2019, de http://temsegu-
ranca.com/wp-content/uploads/2015/06/AC%DASTICA-E-RU%CDDOS-APOSTILA-
-1%BA-PARTE-Jo%E3o-Candido-Fernandes.pdf.

MONFORT, José Javier López. (2018). Sonido Espacial y 3D. Universitat Politècnica de
Valencia: EdX courses. Recuperado em 21 de setembro, 2019 de, https://www.edx.
org/course/sonido-espacial-y-3d-2

ROUVROY, Antoinette; BERNS, Thomas. (2015). Governamentalidade algorítmica e


perspectivas de emancipação: o díspar como condição de individuação pela rela-
ção? Revista Eco Pós, Tecnopolíticas e Vigilância, 18(2), 36-56.

VIRÍLIO, Paul. (1998). La máquina de visión. (Tradução: Mariano Antolín Rato, 2a ed).
Madrid: Editions Galilée.

1407
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Carlos Henrique Rezende Falci1

Paisagens maquínicas: a materialidade da memória como


função da performance algorítmica
Machinic landscapes: memory materiality as a function of algorithm performance

Resumo
Atualmente observamos indícios de vigilância sonora provocada por compu-
tadores pessoais. Usuários de Smartphones e iPhones vem testemunhando
casos de recebimento de anúncios após terem expressado alguma necessida-
de em voz alta próximo aos seus aparelhos celulares. A vigilância de conver-
sas operada através dos microfones de computadores pessoais, é apresentada
com frequência como teoria da conspiração, embora haja notícias de denúncia
desta vigilância praticada por empresas de comunicação e tecnologia. Como
forma de discutir a vigilância sonora em nossos aparelhos celulares, a obra Per-
sonal Auricularveillance, surge como uma ferramenta em que o usuário possa
burlar essa vigilância, através de uma prótese de orelha humana acoplada ao
microfone do aparelho celular. As cartilagens instaladas em Smartphones e
Iphones, proporcionam assim, a comunicação entre vigiado e vigilante, onde
o conteúdo sonoro monitorado pode ser selecionado, bloqueado ou mesmo
intensificado de acordo com a pretensão do usuário.
Palavras-chave: vigilância sonora, arte e vigilância.

Abstract
Currently we observe sound surveillance evidence caused by personal computers.
Smartphones and iPhones users have been witnessing cases of receiving ads after
expressing some need out loud near their mobile devices. Conversation surveillance
operated through personal computer microphones is often presented as a conspir-
acy theory, although there is news of denunciation of this surveillance by communi-
cation and technology companies. In order to discuss the sound surveillance in our
cell phones, the work Personal Auricularveillance, emerges as a tool that enables
the user bypass this surveillance through a human ear prosthesis coupled to the mi-
crophone mobile device. The cartilages installed in Smartphones and Iphones thus

1 Carlos Falci, professor associado da UFMG. Pesquisa as relações entre arte, memória e tecnologia. Mem-
bro do Programa de Pós-Graduação em Artes, atua na linha de pesquisa em Poéticas Tecnológicas. Atual-
mente desenvolve trabalho sobre políticas de memória em ambientes programáveis.

1408
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

provide communication between guarded and vigilant, where monitored sound


content can be selected, blocked or even intensified according to the user’s intention.

Este artigo propõe uma discussão sobre as materialidades da memória em ambien-


tes programáveis.

No caso deste texto específico, me debruço sobre duas obras – Orogenesis, de Joan
Fontcuberta; e Postcards from Google Earth, de Clement Valla – para discutir como
as paisagens maquínicas criadas pelos dois artistas nos permitem ver uma memó-
ria em performance. Defendo que tais paisagens são tornadas possíveis justamente
porque são resultado de uma performance algorítmica que torna visíveis memórias
de objetos algorítmicos; memórias que por isso mesmo são dinâmicas, são tempo-
rárias, apresentam-se em estado de vir a ser permanente. Para realizar a análise re-
corro aos conceitos de arqueologia da mídia e microtempor(e)alidades conforme
desenvolvido por Wolfgang Ernst; bem como às noções de rastro e ruína em Walter
Benjamim, Jeanne-Marie Gagnebin e Fernanda Bruno; e ao conceito de paisagem,
conforme discutido por Jean-Marc Besse. As discussões de Ernst sobre arqueologia
da mídia e microtempor(e)alidades fornecem uma base importante para pensar de
que maneira os aparatos maquínicos são capazes de perceber traços e rastros cujas
qualidades não são, em princípio, simbolicamente importantes para nossa perce-
ção. Dito de outro modo, os aparatos trabalham com conjuntos de informações em
nível micro, como determinados grupos de metadados, ou mesmo elementos téc-
nicos cujo mapeamento é fundamental para que os softwares saibam reconhecer
as informações que estão recebendo e devem processar. Essas informações podem
ser vistas como rastros, como traços, considerando as discussões de JeanneMarie
Gagnebin, Walter Benjamim e Fernanda Bruno, sobre esses conceitos. Tomamos aqui
tais termos porque dizem respeito a materialidades da memória num estado ainda
incipiente, em que evocam tanto algo que já aconteceu quanto algo cuja presença é
inaugural, uma vez que rastros e traços não são elementos acabados.

Rastros, traços, dados e metadados


Os rastros seriam tanto as marcas de que algo se passou, ou de que algo passou por
um lugar, bem como a ação que produziu aquela marca, aquele vestígio. A passa-
gem que produz a marca confere ao traço uma dinâmica, a possibilidade de resgatar
a narrativa que criou tal marca da passagem; e ao mesmo tempo, essa marca tem
uma permanência no aqui e no agora, fundamentalmente ligada ao documento que
contém o rastro. Este, então, é ao mesmo tempo móvel e estático, porque fala de
um ato que aconteceu e se faz visível naquele momento em que é reconhecido en-
quanto tal, numa inscrição mais duradoura. Nesse sentido, é construído na própria
busca de um lugar passado e não somente como a confirmação de que esse lugar
passado existiu. Por essa razão, entendo que o rastro não pode ser dissociado da

1409
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

operação que produz textualidades capazes de autorizar uma determinada memó-


ria e de terem autoridade sobre a mesma. As obras em análise nesse artigo são como
textualidades criando memórias derivadas da forma como os aparatos maquínicos
autorizam determinados conjuntos de dados a performarem as imagens que vemos.

A qualidade paradoxal dos rastros, que me remete à ideia de equivocidade, é indi-


cada por Jeanne Marie Gagnebin (2012) ao tratar do tema, em sua leitura de Wal-
ter Benjamin. Segundo a autora, o rastro é marcado por uma fragilidade, pois está
sempre sob a ameaça de ser apagado, “ou de não ser reconhecido como signo de
algo que assinala”. (GAGNEBIN, 2012, pp. 27). Nesse ponto, me interessa a abertura
do traço como algo aleatório, não intencional, e que pode vir a indicar não o que
se passou, mas sim aquilo que está sendo construído pela própria autorização da
sua presença. Como presença de uma ausência, o rastro nos permitiria, ao olharmos
para os detalhes que indicam os traços de uma ação, entrar em contato com os pro-
cessos de autorização dos quais sobraram tais rastros. Ao mesmo tempo, como são
ausência de uma presença, os rastros podem apontar para a ambiguidade e a fissura
dos processos de autorização, o que acontece no mesmo instante em que buscamos
ver o que os traços indicam. Caberia a cada um (humanos e não-humanos), envol-
vido dentro de um agenciamento que investiga os rastros, construir as relações de
autorização que eles poderiam vir a indicar.

O caráter instável e aberto dos rastros se faz presente na reflexão de Fernanda Bruno
(2012) sobre esses elementos em formato digital. A autora defende que toda e qual-
quer ação nas redes provoca rastros potencialmente recuperáveis e tais traços são em
número e variedade bastante significativos. Numa tentativa de delimitar o que seriam
os rastros digitais, a pesquisadora indica o que denomina de postulados sobre os ras-
tros digitais. Sem elencar tal lista, quero, no entanto, tomar os caracteres gerais enume-
rados por Fernanda Bruno, que nos parecem bastante apropriados para dialogarmos
com a nossa pergunta. Os rastros são aqui também prenhes de ambiguidade, pois são
quase-objetos (Serres, 1991) e estão entre as ideias de presença e ausência; duração
e transitoriedade; identidade e anonimato, entre outras, não podendo ser capturados
em nenhuma das duas pontas de qualquer um dos pares. Não são, igualmente, um
ponto de equilíbrio entre opostos. Pelo contrário, estão numa situação de quase exis-
tência, o que lhes dá um caráter polissêmico, fragmentário e ambíguo. Os rastros são,
em todos os casos, mais ou menos: recuperáveis, voluntários ou conscientes, atrelados
à identidade de quem os produz, duráveis ou persistentes. São elementos cuja potên-
cia de descrição de uma ação não esgota o que a ação pode significar e, por isso, nos
parecem muito apropriados para traçarmos os modos como algoritmos e metadados
se relacionam com processos de autorização executados por algoritmos e softwares,
como é o caso das obras em análise nesse artigo.

Metadados podem ser considerados tanto uma descrição sobre um conjunto de dados
quanto o seu modo de funcionamento num determinado contexto, se analisarmos a

1410
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

forma como foram criados. (Manovich, 2002; Matthews, Aston, 2012). Num sentido mais
geral, os metadados são o que permitem que o computador recupere informações,
porque propiciam ao computador manipular os dados, além de realizar diversas outras
tarefas, como mover os dados, comprimi-los, etc (Manovich, 2002). O computador cria
uma relação de reconhecimento, mas também de apropriação dos dados através dos
metadados. A apropriação é como a institucionalização que o estabelecimento de um
arquivo gera em relação a documentos específicos. No entanto, os metadados não são
arquivos em si; podem, no máximo, serem conectados com rastros de uma ação. Quan-
do há uma apropriação de um conjunto de metadados numa organização eventual (a
partir da ação de grupos de algoritmos, por exemplo, para produzir uma visualização de
informações numa interface), inicia-se a criação de uma marca temporal, semelhante a
um rastro, a um vestígio de uma ação no tempo. Aqui entra a questão da memória como
função de uma performance algorítmica. Tanto em Orogênesis quanto em Postcards
from Google Earth, entendo que os artistas colocam em questão justamente os pro-
cedimentos de autorização que fazem surgir as imagens que produzem. Esses proce-
dimentos de autorização são o que eu denomino aqui de performance algorítmica. Os
algoritmos, ao servirem de base para que os programas reconheçam os metadados e os
leiam de maneiras específicas, se relacionam então com um tipo de sensibilidade cuja
qualidade é da ordem do cálculo, de uma outra forma narrativa. Os procedimentos de
autorização que vão fazer surgir as imagens nas obras analisadas seriam de uma ordem
que se aproxima daquilo que Wolfgang Ernst chama de arquivos tecno-culturais, na sua
abordagem sobre uma arqueologia da mídia.

Arqueologia da mídia
Wolfgang Ernst propõe a arqueologia da mídia como “uma abordagem epistemológi-
ca alternativa à supremacia das abordagens narrativas históricas sobre os media”. (Er-
nst, 2013, pp. 55) Os princípios do programa de arqueologia da mídia tem como base
a tentativa de compreender os momentos em que as mídias, e não apenas os huma-
nos, se tornariam os arquivistas do conhecimento. Ou seja, junto com uma memória
semanticamente ancorada no discurso histórico tradicional, começa a funcionar uma
semântica dos objetos técnicos. O teórico alemão defende que a arqueologia da mídia
deve praticar uma forma de engenharia reversa sobre os objetos técnicos, buscando
os verdadeiros arquivos dos media, os códigos-fonte. Estes implicariam muito menos
as origens históricas dos media e muito mais as suas regras de funcionamento. Para
tanto, é necessária uma abordagem mais voltada para os aspectos lógicos e de cálculo
envolvidos nas características técnicas dos aparatos midiáticos.

O foco de estudos da arqueologia da mídia são as práticas discursivas específicas ou


especificadas em elementos dos arquivos tecnoculturais. Ernst afirma que a arque-
ologia da mídia está

1411
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

“interessada primariamente na infra-estrutura não discursiva e nos programas (escondidos) dos


media. Assim, ela mudaria seu âmbito de análise de uma perspectiva historiográfica para um
modo tecnoarquivístico (arqueografia), descrevendo as práticas não discursivas especificadas nos
elementos dos arquivos tecno-culturais.” (tradução nossa) (ERNST, 2013, pp. 59)2

Trata-se de investigar o processo pelo qual os artefatos tecnoculturais tem os seus


sinais mensurados por outras máquinas. Uma vez que são artefatos cujos sinais es-
capariam à percepção humana, no seu aspecto físico, somente outras máquinas se-
riam capazes de criar e reconhecer tais arquivos. Estes atos de reconhecimento de
sinais gerariam memória, uma vez que geram materialidades reconhecíveis pelos
aparatos maquínicos, que deixam rastro de suas ações no tempo. O rastro a nos refe-
rimos vai além daquele rastro histórico temporal.

Ernst aponta para processos matemáticos estocásticos, para um desdobramento de


camadas temporais para além das ordens narrativas históricas. Ou, dito de outra ma-
neira, para um outro olhar “histórico”. Mas, afinal, como se delimita o que é o olhar
histórico? No caso de ambientes programáveis, vemos que tais objetos manifestam
ou podem manifestar sua percepção através do processamento de sinais não per-
ceptíveis do ponto de vista humano. Jussi Parikka, na introdução que faz sobre o li-
vro de Wolfgang Ernst, lembra da descontinuidade entre o tempo cultural (religioso,
político, social, econômico) e o que ele chama de emergência de um tempo genui-
namente baseado no tempo midiático. A despeito de uma dicotomia que pode se
revelar infrutífera, destaco nesse aspecto as várias maneiras de produzir uma tem-
poralidade baseada no tempo midiático e como ela se mistura às temporalidades
culturais, interferindo na sua produção. Obviamente, essa mesma temporalidade diz
respeito a um modo narrativo específico de agrupar dados para ordenar a experi-
ência de mundo. Tal ordenação seria a forma da memória aparecer materialmente
na sua relação com as coisas; dito de outro forma, seria uma narrativa de memória
que opera não necessariamente mais somente no nível simbólico humano, mas atua
sobre uma dimensão nãocultural dos regimes tecnológicos.

Na visão de Ernst, a arqueologia da mídia se apresenta no momento de uma crise da


narrativa cultural da memória. Esta arqueologia estaria baseada numa discretização
matemática, numa divisão dos elementos que vão compor alguma coisa chamada
“memória”, que não está mais automaticamente colada à noção de história. A cultura
computacional não estaria mais ligada às narrativas históricas de memória, mas a cal-
culabilidade da memória. Como falar de uma memória que calcula, de uma memória
que não é narrativa, mas que se organiza através de unidades discretas? Não me parece

2 Media archaeology is primarily interested in the nondiscursive infrastructure and (hidden) programs
of media. Thus it turns from the historiographical to the technoarchival (archaeographical) mode, des-
cribing the nondiscursive practices specified in the elements of the technocultural archive.

1412
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

pertinente condená-la ao terreno da memória fragmentada como um local negativo.


Antes, é aí que reside sua potência, numa fragmentação matemática em unidades dis-
cretas e calculáveis. Qual seria, então, a poética do cálculo da memória?

Um dos caminhos apontados por Ernst é o de buscar as formas algorítmicas da escri-


ta, os processos de comunicação invisíveis ou não perceptíveis que orientam a ação
dos aparatos maquínicos. A ideia seria reconstruir as matrizes generativas criadas
através e pelos dispositivos midiáticos, de modo a descrever as formas não-narrati-
vas através das quais tais aparatos operam. Poderíamos pensar em microtemporali-
dades da memória, uma vem que as diversas formas de escrita (as não-narrativas aí
incluídas) são organizações temporais? Ou em uma memória algorítmica? Por que
falar que a media calculacional é temporal?

A primeira visada que surge é a de que um algoritmo é uma execução de cálculos


num determinado tempo, definido pelo próprio modo como o algoritmo roda. Mas
pode-se dizer, sobre essa última observação, que isso acontece da mesma forma
num ambiente não-programável. O que talvez seja diferente é que a própria existên-
cia de um registro, da chance de sua fisicalidade aparecer, é uma medida calculável,
que poderia então ser delimitada temporalmente para além do tempo cultural ou
externo ao programa. Um media fundado numa medida computacional não é, em
princípio, um arquivo que existe sempre num espaço e tempo definidos. Ele pode
ou não vir a se configurar como parte de uma memória, ou mesmo ser materializado
fisicamente em função de cálculos num determinado limite de tempo.

A questão da memória seria então imaginar uma ontologia baseada no cálculo, e


não mais numa lógica de representação. O registro do tempo estaria associado não
a uma lógica exclusivamente narrativa de causa e efeito, mas de olhar para o modo
como as máquinas registram o tempo. Ernst propõe pensarmos em dynarchives3, os
quais funcionariam como objetos algorítmicos. Um objeto algorítmico é uma função
de um código de programação e do modo como ele será posto em funcionamento.
Logo, a memória a ele associada é processual, não existe como um bloco fixo e passa
a existir em um regime próprio do programável. Esse seria o arquivo latente, um ar-
quivo em potência de existir, e cujo poder de memória está menos nele que no códi-
go de programação que poderá fazer com que ele exista como um reagrupamento.
A memória se torna, então, aparição. Assim, a essência da estrutura do arquivo é
menos o material arquivado em si, e mais uma concepção dinâmica de arquivo. Se
o arquivo é uma função do programável, ele é uma probabilidade temporal. Para os
conjuntos de agentes não-humanos, são outras temporalidades que passam a fazer
sentido, compostas de iterações, recursões. E elas podem tornar-se culturalmente

3 Arquivos dinâmicos

1413
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

relevantes, considerandos os aparatos digitais de memória. Tais temporalidades são


o que Ernst denomina de microtempore(a)lidades.

Microtempor(e)alidades
De que maneira os tempos rítmicos dos aparatos técnicos afetam não só a nossa
percepção temporal, mas a própria forma de capturar e registrar aquilo que está
diante dos aparatos digitais? No caso destes aparatos, as estruturas algorítmicas são
agentes de captura importantes; e uma vez que são também estruturas temporais
de processamento da informação, o que elas fazem é produzir um registro cujo tem-
po tem uma lógica específica relacionada ao modo como o algoritmo processa a in-
formação. O tempo está sujeito ao modo como esta lógica algorítmica compreende
a forma como o sinal será processado. São dois tipos de micro-temporalidades em
jogo, afetando tecnicamente o que chamamos de arquivo e sua “narrativa” de me-
mória. Ernst faz uma diferença entre a transmissão em tempo real, e a transmissão
do sinal digital, que já carregaria em si uma microtemporalidade relativa à compu-
tação intermediária, necessária para que o sinal seja compreendido e exibido num
formato entendível por uma pessoa. Embora a transmissão do digital aconteça num
“tempo real”, há sempre um pequeno delay que faz com que estejamos sempre dian-
te de um passado produzido pela maneira como o algoritmo lê as informações que
chegam até ele. Essa seria a micro-temporalidade do digital. O que vemos na tela,
como resultado da transmissão, são arquivos dinâmicos, que muito se assemelham
à ideia do rastro, como aquilo que está presente, mas também ausente, como aqui-
lo que está destinado a desvanecer com o tempo e, nesse caso, com o tempo do
processamento dos aparatos maquínicos. Estamos diante da geração de um tempo
próprio ao algoritmo como um tempo de memória. Não mais o registro de uma tem-
poralidade do evento, mas a criação de um evento com temporalidade específica, e
que também pode se relacionar com aquilo que foi capturado pelo sinal digital. O
arquivo define o que será arquivado, na lógica derrideana (DERRIDA, 2001); produz,
assim, sua própria memória, uma temporalidade específica do algoritmo.

Os micro-momentos de arquivamento produzidos pela lógica não-alfabética dos


aparatos criariam tempo(re)alidades específicas de cada forma de processamento
dos sinais que chegam até os dispositivos. Não se trata mais de arquivar apenas
o valor simbólico do presente, mas de criar arquivos que apresentam micro-mo-
mentos, cuja sensibilidade é capturada diretamente pela máquina e integrada ao
arquivo como nós o chamamos. Assim, modifica-se também aquilo que Derrida
chamaria de arché, os procedimentos que regulam o que pode ser aquivado, bem
como o quê ou quem pode acessar os arquivos. Ernst defende, e corroboramos tal
visada, que as tecnologias de registro tornam possível armazenar, repetir e mani-
pular a presença. É como se cada rastro aí guardado carregasse uma qualidade de
ruína, no sentido benjaminiano do termo. A ruína, por dizer de algo que foi impe-
dido de continuar a existir, marca a si mesma como um ato inaugural no presente,

1414
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

como uma apresentação de outras possibilidades de existência. A ruína, mais do


que falar de um passado, inaugura sua própria temporalidade. O arquivo algorít-
mico, por estar sendo constantemente reconstruído, talvez carregue essa qualida-
de de ruína, de ter uma qualidade de ser apenas porque é capaz de se dissolver, de
passar, de se mostrar enquanto uma presença constantemente em aberto.

Os arquivos se tornam memórias apenas temporariamente, quando algum padrão


de programação os faz aparecerem em conexão. Assim, a materialidade da memória
não estaria mais na classificação, no armazenamento fixo, mas no modo como pro-
veniência e pertinência se interpenetram, porque tanto a materialidade do armaze-
namento quanto a forma de circulação podem delimitar a que tipo de memória o
arquivo dá acesso, que tipo de memória ele sugere sobre si mesmo. O nível simbó-
lico maquínico envolvido nessas formas de reconhecimento já é baseado também
num tipo de memória cada vez mais tecnocultural. Os modos de organização da
memória e, logo, os modos de criação de arquivos passam a seguir e propor lógicas
cujo princípio passa pela forma como os softwares reconhecem as informações. E
esse reconhecimento é cada vez mais organizado por metadados.

Talvez eles possam ser pensados como novas formas de arcontes. A decomposição
dos arquivos digitais a partir de lógicas matemáticas permite também combinações
de memória que demandam outras formas de leitura daquilo que aparece nas in-
terfaces. Penso que a lógica por trás dessa constatação se relaciona com a ideia de
uma temporalidade mais fluida, que pode ser revisitada, e que pode sofrer novas
interferências a todo momento. O tempo não seria uma cadeia linear fechada de
acontecimentos, mas um encadeamento sempre frágil de microtempor(e)alidades
produzidas pela conjugação de arquivos das mais variadas formas.

O conceito de uma memória sendo performada me parece bastante apropriado para


descrever esse movimento. Tratar-se-ia de uma memória que exige ser performada
matematicamente, inclusive para ser reconhecida como tal. A noção de performan-
ce, e de performar o seu próprio significado, mais do que transmitir um outro signifi-
cado, é cada vez mais forte nos dispositivos midiáticos. As obras que nos propomos
a analisar criam paisagens maquínicas que nos parecem baseadas exatamente na
ideia de uma performance algorítmica.

As obras
Em “Orogenesis”4, Joan Fontcuberta cria suas paisagens digitais fornecendo a um
software, como base de criação, pinturas feitas por artistas como Mark Rothko, Paul

4 Disponível em http://www.fontcuberta.com/. Acesso em 09 de setembro de 2019.

1415
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Cézanne, William Turner5; ou imagens de partes do corpo. O programa Terragen foi


projetado para processar dados e metadados cartográficos e representar terrenos
que corresponderiam a tais dados, criando as imagens com algumas características
manipuláveis como: condições climáticas, quantidade de água no local, caracterís-
ticas topográficas etc. O que o artista faz é substituir os dados cartográficos de ima-
gens de lugares reais, com os quais o software está preparado para trabalhar, por
pinturas dos artistas, por imagens de partes do corpo.

As paisagens que vemos aí são interpretações científicas do que poderia ser reco-
nhecido como uma paisagem por aparatos maquínicos. Como o software é prepara-
do para trabalhar a partir de parâmetros específicos que não dizem respeito à qua-
lidade humanamente simbólica das imagens, o que ele cria, sua orogênese, é uma
memória do seu próprio funcionamento enquanto programa que lê metadados,
organiza-os e produz com eles um arquivo, um registro da sua própria performance
enquanto máquina.

Ao realizar tal procedimento, Fontcuberta aponta para o fato de que qualquer pai-
sagem pictórica está muito além de ser uma mera representação de alguma paisa-
gem já existente, podendo ser vista muito mais como, de fato, a invenção da própria
paisagem, do seu conceito e de formas de apresentação desse conceito. O enqua-
dramento de uma imagem pela pintura nos mostra a presença de uma memória
cuja base está tanto no rastro deixado pelo pigmento de tinta, quanto pela forma
do artista expressar a visualidade que deseja criar. No caso do software em questão,
fundamental lembrar que sua criação se dá para propósitos científicos e militares.
Como o que o programa faz é também imaginar uma paisagem, o que se apresenta
na tela não é um resultado que representa algo já existente, mas sim a memória do
que o software é capaz de simular, a partir de parâmetros que recebe. Assim, é como
se Fontcuberta enfatizasse o fato de que os modelos cartográficos, os softwares de
geoprocessamento são, obviamente, invenções artificiais e, portanto, ações políticas
do que se poderia considerar uma paisagem. Nesse ponto, as paisagens do artista
nos apontam para uma memória em que a poética e a política dos aparatos maquí-
nicos encontram-se profundamente imbricadas no gesto de criação. A performance
do programa, longe de ser um ato, inócuo, se mostra como um instrumento de po-
der sobre o que se denomina paisagem.

A segunda obra é Postcards from Google Earth6, de Clement Valla, em que a discussão
está centrada na maneira como o sistema de mapeamento de imagens utilizado pelo
Google Earth produz imagens em 3D de locais da terra e “deforma” alguns lugares,
criando paisagens “irreais” e “impossíveis”. Segundo o próprio autor da série, o trabalho

5 Disponível em https://labvis.eba.ufrj.br/paisagens-sem-memorias/. Acesso em 09 de setembro de 2019.


6 Disponível em http://www.postcards-from-google-earth.com/. Acesso em 09 de setembro de 2019.

1416
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

teve início quando ele estava navegando por imagens produzidas pelo Google Earth e
reparou que algumas imagens pareciam extremamente estranhas na sua tentativa de
representar a superfície terrestre sem falhas, da maneira mais acurada possível. Olhan-
do para a coleção feita por Vallas, alguns prédios parecem estar de cabeça para bai-
xo, pontes fazem curvas impossíveis para se ajustar ao terreno, ou mesmo se dobram
sobre um espaço vazio como se fossem feitas de material flexível. Valla imaginou, a
princípio, que as imagens seriam derivadas de erros no processamento que o algorit-
mo fazia sobre as imagens. Ele percebeu que havia ali duas fontes competindo para a
formação das imagens: de um lado, o modelo em 3D que representa a superfície da
terra; de outro, as imagens fotográficas aéreas de cada um dos lugares. As marcas de
profundidade nas fotografias aéreas, indicações de sombra e luz, não se alinhavam às
marcas do modelo em 3D. Isso fez com que o artista iniciasse a sua coleção de cartões
postais criados pelo Google Earth, buscando entender aquelas imagens excepcionais,
nos dizeres do próprio Valla.7 O que ele veio a perceber é que não se tratava de erros do
sistema, mas sim da própria lógica de funcionamento do software que a Google utiliza
para criar as imagens do Google Earth. O que aparece nas imagens é “um novo modelo
de ver e representar nosso mundo – à medida que dados dinâmicos e em constante
mudança, derivados de uma miríade de fontes – são infinitamente combinados, cons-
tantemente atualizados, criando a ilusão de uma superfície entrelaçada infinita.”8 As
imagens em 3D utilizadas no Google Earth são derivadas de um processo chamado
mapeamento de textura (texture mapping), cujo modo de funcionamento é basica-
mente aplicar uma imagem plana em uma superfície 3D, “colando-se” essa textura (a
imagem plana) ao formato 3D correspondente, como uma espécie de adesivação da
imagem. As texturas seriam mais parecidas com um escaneamento da superfície do
que com uma foto da mesma. Segundo o próprio Clement Valla, a diferença entre tex-
tura e fotografia poderia ser assim resumida: nós olhamos através das fotografias; nós
olhamos para uma textura. O que acontece no Google Earth é que essas duas formas
de criar imagens são sobrepostas pelo software. Assim, continuamos a olhar a ver ima-
gens fotográficas aéreas, cuja profundidade é dada pela quantidade de luz e sombras
que elas projetam. No entanto, como essas imagens fotográficas são “esticadas” para
funcionarem também como texturas para a superfície, elas acabam por se tornar dis-
torcidas, sem deixar de exibirem as características de imagens fotográficas. Ou seja, o
que vemos aqui são paisagens produzidas pelo modo como o programa interpreta os
dados que tem à disposição e pela forma como é capaz de “imaginar sensivelmente”
aquela paisagem, que obviamente difere em larga medida do que poderíamos cha-
mar de paisagem, seja ela urbana, selvagem etc.

Aqui, novamente são os algoritmos e os metadados com os quais o programa da


Google trabalha os responsáveis por produzir materialidades maquínicas da face da

7 Disponível em https://rhizome.org/editorial/2012/jul/31/universal-texture/. Acesso em 09 de se-


tembro de 2019.

1417
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

terra. Juntamente com os metadados, há também as várias lógicas de transmissão


desses elementos para que o Google Earth faça as combinações necessárias para
gerar as imagens que depois estarão no seu sistema de visualização. O que são, en-
tão os objetos produzidos pelo mapeamento em 3D da Google? O que caracteriza
tais arquivos e sua visualidade contínua sobre a superfície terrestre? Esse é o ponto
em que apresentamos a noção de paisagens maquínicas e da memória como uma
performance algorítmica para discutir as obras aqui descritas.

Paisagens maquínicas, rastros e a memória como performance algorítmica


De que maneira a obra de Fontcuberta nos apresenta uma forma de memória ba-
seada no modo como algoritmos e códigos matemáticos percebem uma imagem
pictórica, cujos parâmetros são relacionados às condições sensíveis dos aparatos
que processam tais algoritmos? Embora o próprio Fontcuberta tenha escrito um
livro denominado “Paisagens sem memória” para discutir o seu trabalho, sugiro
pensarmos tais imagens como memória da performance dos algoritmos, e não sim-
plesmente como o testemunho de algo que tenha acontecido com uma paisagem
terrestre ao longo do tempo. Seriam paisagens maquínicas, e ainda paisagens, uma
vez que estas são8“a new model of seeing and representing our world – as dynamic,
ever-changing data from a myriad of different sources – endlessly combined, cons-
tantly updated, creating a seamless illusion.” Disponível em https://rhizome.org/edi-
torial/2012/jul/31/universal-texture/. Acesso em 09 de setembro de 2019.

“primeiramente uma realidade objetiva, material, produzida pelos homens.” (BESSE,


2014, pp.30) Considero aqui as paisagens como uma produção cultural e a cultura
como algo que é encarnado em obras, em produções, em materiais diversos. A es-
crita algorítmica e seu consequente processamento pelos programas são uma das
formas que os aparatos maquínicos computacionais teriam de imaginar e conceber
as materialidades que podemos acessar como resultado de suas ações.

Entendo que sob essa perspectiva, os algoritmos podem ser entendidos como
elementos-chave para a compreensão de que um computador executa ações
como formas de escritura específicas, as quais permitem a uma máquina reco-
nhecer e decodificar um conjunto de elementos simbólicos. Da mesma forma,
eles são capazes de produzir visibilidades não necessariamente perceptíveis pe-
los sentidos humanos, mas que se relacionam com essas sensibilidades, indican-
do que os aparatos maquínicos criam relações, e produzem sentido, cujo valor
simbólico não é necessariamente medido por escalas humanas já reconhecidas.

8 “a new model of seeing and representing our world – as dynamic, ever-changing data from a
myriad of different sources – endlessly combined, constantly updated, creating a seamless illusion.”
Disponível em https://rhizome.org/editorial/2012/jul/31/universal-texture/. Acesso em 09 de se-
tembro de 2019.

1418
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Dessa maneira, na relação entre os algoritmos e os aparatos maquínicos, apare-


ce uma memória cuja materialidade é da ordem da performance, em função do
modo como o registro se constrói. A memória, nesse texto, é um estado de imi-
nência: do encontro, da ruptura, daquilo que uma vez que apareça pode fugir em
instantes e que precisa, então, de alguma forma de permanência. E que formas
de permanência são, efetivamente, destinadas a permanecerem por si só? Será
que as microtemporalidades seriam a forma material do estado de iminência,
sua permanência que ainda não lemos?

A memória, nesse caso, não se refere mais a um passado já construído, mas a um


passado por construir. O espaço do passado está em permanente estado de latên-
cia, uma vez que mesmo a percepção dos fatos está acoplada a temporalidades não
mais definidas somente por eles mesmos, mas também por todos os elementos aco-
plados aos fatos e que nos ajudam a definí-los enquanto tais. Como os algoritmos
podem lidar com tais dados, eles podem reagrupá-los temporalmente numa escala
ainda não conhecida e por construir.

Se entendemos as marcas do funcionamento dos algoritmos e dos programas lendo


tais algoritmos como arquivos, como uma espécie de memória do que aconteceu
no processo de leitura, tais arquivos seriam da ordem de rastros, de ruínas, de um
presente que está em estado de processamento contínuo. Assim, a reiteração da
leitura produz as paisagens de Fontcuberta, por exemplo. Estas, por seu turno, não
são representações simplesmente das imagens que foram dadas ao programa Ter-
ragen. Antes, elas são apresentações das interações e das iterações produzidas pelo
programa na tentativa de reconhecer rastros com os quais os algoritmos pudessem
trabalhar e produzir as paisagens maquínicas que vemos na tela. A sua materialida-
de é da ordem de um arquivo dinâmico, de uma memória em estado de performan-
ce, e não mais de um registro que guarda um tempo já acabado. Ao contrário, o que
vemos na tela é o tempo em estado de se fazer, em estado de cálculo.

Podemos dizer que a imagem impressa na exposição é um tempo x do processa-


mento, do cálculo que o programa estava realizado. Naquele momento houve uma
captura, houve uma demora, e se produziu uma memória que talvez não seja mais
encontrada, assim que o programa continuar a rodar. Nesse sentido, e apenas nesse
sentido, diríamos que aquelas seriam paisagens sem memória. E ao mesmo, tempo
seriam paisagens cuja memória é da ordem da performance.

No caso de Postcards from Google Earth, o que vemos é um constante questiona-


mento dos procedimentos de elaboração das imagens pelo mecanismo de mape-
amento de texturas utilizado pela Google. As paisagens maquínicas formadas aí
existem como um resultado efêmero do cruzamento de vários rastros (metadados)
deixados por imagens provenientes de instituições governamentais, companhias
privadas, institutos de geoprocessamento, entre outras fontes. As imagens são uma

1419
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

mistura de dados discretos (imagens fotográficas bi-dimensionais, snapshots) e da-


dos topográficos tri-dimensionais extraídos dessa miríade de fontes. Ao serem cole-
tados, pré-processados e mixados para dar uma sensação de superfície contínua da
Terra no Google Earth, o que aparece são então memórias cuja existência é resultado
da performance desses elementos. Assim, as paisagens maquínicas que vemos são
também efêmeras, embora fisicamente presentes. São traços do funcionamento dos
algoritmos que as geraram, e do modo como os metadados foram interpretados e
reconhecidos pelos programas. A memória que surge aí é muito mais da ordem do
rastro, com sua ambiguidade e incerteza, do que da ordem do arquivo, com sua apa-
rente estrutura imutável. Tomamos contato, então, com aquilo que é mais próprio de
uma paisagem: o fato de ser ao mesmo tempo a presença da natureza e da cultura
num só espaço. Nesse caso, a técnica se mostra como capaz de processar aspectos
do natural a partir daquilo que os aparatos tecno-culturais são capazes de perceber
dessa realidade. Assim, talvez o que possamos dizer é que tanto Joan Fontcuberta
quanto Clement Valla tenham realizado, cada um à sua maneira, pequenas peças
arqueológicas de mídia, que apontam exatamente para o caráter inaugural das ima-
gens criadas. Paisagens cuja memória é sempre da ordem da performance, do que
inaugura uma vez mais um ato.

Referências
BESSE, J.M. (2014). O gosto do mundo: exercícios de paisagem. Rio de Janeiro:
EDUERJ.

BRUNO, F. (2012). Rastros digitais sob a perspectiva da teoria ator-rede. Revista FA-
MECOS, v. 19 (3), pp. 681-704.

DERRIDA, J. (2001). Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Re-
lume Dumará, 2001.

ERNST, W.(2013). Digital memory and the archive. Minneapolis: University of Min-
nesota Press.

GAGNEBIN, J.M (2012). Apagar os rastros, recolher os restos. Em: SEDLMAYER, S &
GINZBURG, J.(org.). Rastro, aura e história. (pp. 27-38) Belo Horizonte: Ed. UFMG.

MANOVICH, L. (2002) Metadata, mon amour. Recuperado: 27 jun 2013, de http://


manovich.net.

MATTHEWS, P. & ASTON, J. (2012). Interactive multimedia ethnography: archiving


workflow, interface aesthetics and metadata. ACM Journal on Computing and Cul-
tural Heritage, vol. 5(4), pp. 1-13.

SERRES, M.(1991). O contrato natural. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

1420
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Marcilon A. Melo (Marck Al)1

Sm(Art)City ou o espaço urbano como tecno-utopia


Sm(Art)City or the Urban Space as a techno-utopian

Resumo
As cidades e seus espaços urbanos sempre foram o lócus fundamental do
desenvolvimento e implementação de novas tecnologias. Tecnologias emer-
gentes tem o potencial de provocar um processo de reconfiguração na forma
como conceituamos, percebemos, imaginamos e problematizamos os espa-
ços urbanos. Partindo dessa afirmação, esse artigo reflete sobre as utopias e
distopias tecnosociais decorrentes das transformações urbanas provocadas
pelas tecnologias utilizadas nas cidades inteligentes. Utilizamos a arte como
vetor das transformações provocadas pela mediação algorítmica da vida nas
cidades. Mostramos como trabalhos artísticos ocupados em imaginar, discu-
tir e problematizar aspectos da complexa relação entre os espaços urbanos e
seus habitantes e as transformações sociais e culturais resultantes da media-
ção por tecnologias digitais.
Palavras-chave: espaço urbano, arte, tecnologia.

Abstract
Cities and their urban spaces have always been the fundamental locus of the de-
velopment and implementation of new technologies. Emerging technologies have
the potential to trigger a process of reconfiguration in the way we conceptualize,
perceive, imagine and problematize urban spaces. Based on this statement, this ar-
ticle reflects on the techno-social utopias and dystopias resulting from urban trans-
formations caused by the technologies used in smart cities. We use art as a vector
of the transformations caused by the algorithmic mediation of city life. We show
how artistic works engaged in imagining, discussing and problematizing aspects of
the complex relationship between urban spaces and their inhabitants and the social
and cultural transformations resulting from the mediation by digital technologies.
Keywords: urban space, art, technology

1 Marcilon Almeida de Melo (Marck Al) é designer, educador (FIC/UFG) e doutorando em arte e tecnolo-
gia no UnB. marckntz@gmail.com.

1421
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Introdução
De acordo com o departamento de Assuntos Sociais e Econômicos das Nações Uni-
das (2019), cerca de 55% da população mundial vive em ambientes urbanos e esse
número deve chegar a 68% por volta de 2050. Somos seres majoritariamente urba-
nos. Isso significa dizer que quase tudo que fazemos acontece nas cidades contem-
porâneas depende de alguma forma de sua infraestrutura visível e invisível para ser
realizado. Assim como a implementação de um sistema público de esgoto, grandes
avenidas e parques abertos na Paris de Haussmann do século XVIII teve profundo
impacto nas políticas públicas de saúde e na maneira com projetamos e pensamos
as cidades atuais, as tecnologias digitais e sua integração na malha urbana estão
redefinindo as cidades e a forma como as imaginamos. Ainda que a implementação,
tanto no tempo quanto no espaço, dessas tecnologias ocorra de maneira heterogê-
nea e desigual, elas estão alterando profundamente as complexas redes sociotécni-
cas formadas entre os habitantes e os espaços onde estão inseridos.

As cidades inteligentes (Smart Cities) talvez sejam o que há de mais evidente da


utilização de hardware e sistemas digitais para gestão dos mais diversos aspectos
constitutivos das cidades. Uma definição, ainda que genérica e deveras otimista, as
definem como sendo áreas urbanas que utilizam as informações coletadas por di-
versos tipos de sensores e equipamentos para monitorar e gerenciar de maneira
eficiente seus recursos e sua infraestrutura (Du, Santi, Xiao, Vasilakos, & Fischione,
2019). Sensores, equipamentos dedicados, Smartphones e conectividade sem fio for-
mam a infraestrutura que sustentam os desenvolvimentos e prospectos das cidades
inteligentes. Dentre os desenvolvimentos mais relevantes e com maior potencial
disruptivo, dos usos que fazemos do espaço urbanos estão as redes de telecomuni-
cação 5G e a miríade de aparelhos “inteligentes” conectados em rede no que ficou
conhecido como Internet das Coisas — IoT (Internet of Things).

Os avanços técnicos ligados ao desenvolvimento das Tecnologias de Informação e


Comunicação levou a um crescimento exponencial no volume de dados digitais. Os
efeitos desse fenômeno, conhecido pelo termo Big Data, são percebidos em pratica-
mente todas as áreas do conhecimento humano, tanto que as ciências sociais vivem
uma espécie de virada quantitativa, algumas vezes entendida como computational
social science, por utilizar um série de novos métodos computacionais de análise
quantitativa que anteriormente estavam limitadas às análises qualitativas (Offenhu-
ber & Ratti, 2014).

A vida quantificada está transformando a forma como pensamos e lidamos com


as cidades, a mediação técnica baseada em dados muitas vezes implica uma certa
desconexão entre nossos sentidos em prol da informação, produto da simbiose en-
tre algoritmos e dados, apresentadas pelas interfaces e telas digitais. Mark Shepard
(2016), refletindo sobre as novas geografias resultante da relação entre Big Data e

1422
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

algoritmos preditivos de análise, diz que conforme os algoritmos substituem as pes-


soas na função de extrair informações dos dados, a produção de conhecimento cada
vez mais se torna um processo compartilhado por atores humanos e não-humanos.

Nossos mapas mentais estão sendo substituídos por mapas digitais que represen-
tam visualmente informações em tempo real sobre a dinâmica do trânsito e o trajeto
mais eficiente entre dois pontos. Para Benjamin Bratton (2017), estamos criando no-
vos mundos em uma velocidade que não conseguimos acompanhar. E segue dizen-
do que a aceleração tecnológica cria um vazio entre nossa capacidade de conceituar
suas implicações o que pode ser algo perigoso.

Bratton, longe de ser um fatalista ou ludista sobre o progresso tecnológico, proble-


matiza principalmente o descompasso entre nossa capacidade de pensar conceitu-
almente os efeitos das transformações impostas pela tecnologia. A cidade sempre
foi e continua sendo um campo de embate dessas questões.

De que maneira os métodos digitais de sensoriamento urbano e modelos preditivos


de análise de dados modificam nossa relação com as cidades? Quais seus efeitos
na forma como pensamos e imaginamos nossas cidades? Quais os problemas de-
correntes da abstração da realidade em dados e algoritmos? O que transforma as
utopias técnicas em distopias sombrias? Essas não são perguntas muito fáceis de se-
rem respondidas, pelo simples fato de suas causas e efeitos serem sistêmicos e per-
meados de questões éticas, filosóficas, científicas e políticas incapazes de oferecer
uma resposta definitiva. A arte, no entanto, entendida como o processo da cultura,
faz uso das tecnologias disponíveis de modo a possibilitar uma reflexão conceitual,
poética e estética sobre a vida que, talvez, outras áreas do conhecimento não sejam
capazes de fornecer. Nesse sentido, a arte ocupada de refletir sobre as questões ur-
banas, pode investigar de maneira criativa e crítica as ecologias entre pessoas, da-
dos, código e espaços que constituem a vida urbana.

Tecnocracia e utopia
Conforme novas tecnologias vão surgindo é relativamente comum que elas venham
acompanhadas narrativas otimistas sobre os efeitos positivos de sua adoção. Tam-
bém não é raro que essas previsões não se concretizem, ou, ao contrário do propa-
gado, seus efeitos sejam exatamente o oposto do planejado.

Ao final da segunda guerra mundial, disseminou-se uma ideia muito poderosa: solu-
ções técnicas bem executadas seria suficiente para a solução de problemas comple-
xos independente de sua natureza. O projeto Manhattan, iniciativa do governo nor-
te-americano com apoio do Reino Unido e do Canadá, visando o desenvolvimento
de ogivas nucleares, resultou na explosão de duas delas sobre as cidades japonesas
de Hiroshima e Nagasaki em 1946, precipitou o final da segunda guerra e inaugurou

1423
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

a era da tecnocracia na resolução de problemas complexos. O ímpeto tecnocrata


pode ser observado em teorias e projetos que, com o distanciamento histórico, atu-
almente soam utópicos e ingênuos.

Concebida na metade dos anos 60 pelo tecnologista Athelstan Spilhaus, com apoio
de Buckminster Fuller, a Cidade Experimental de Minnesota foi uma cidade modular
para mais 250.000 pessoas, alimentada por energia limpa e um sistema de trans-
porte público sustentável. A cidade foi planejada tendo em vista a popularização
dos computadores pessoais, videoconferências e um sistema similar a Internet que
permitiria que seus habitantes realizassem compras e tarefas bancárias. Na visão
de Spilhaus, a cidade conectada possibilitaria com que as pessoas trabalhassem de
casa, eliminando grande parte dos problemas de tráfego urbano e alterando radical-
mente o desenvolvimento urbano (Mortice, 2017).

Figura 1. Visão esquemática dos múltiplos sistemas constitutivos da Cidade Experimental de


Minnesota. Reprodução do documentário “The Experimental City”, de C. Freidrichs. 2017, Columbia:
Unicorn Stencil Documentary Films.

Apesar da sedução visionária e do apoio dos governantes de Minnesota, a cidade


atraiu a ira dos moradores da cidade vizinha de Swatara, que, num misto de con-
servadorismo e populismo ligado ao movimento NIMBY2, não foi capaz de conven-
cer seus moradores das vantagens que a nova cidade traria. Em meio a uma crise

2 NIMBY é um acrônimo da língua Inglesa para a expressão Not In My Backyard (Não em meu quintal).

1424
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

de imagem e problemas de financiamento o projeto foi encerrado definitivamen-


te em 1973 com a retirada do apoio governamental. A Cidade Experimental de
Minnesota, apesar da abordagem revolucionária, dependia de um planejamento
centralizado na gestão de todos os seus sistemas, que em última instância não se
mostraram tão eficientes.

Com o avanço das tecnologias digitais voltadas a gestão dos recursos urba-
nos, a utopia desses visionários encontrou novo lar nas diversas iniciativas de cida-
des inteligentes ao redor do planeta. Promovida como sendo a primeira Smart City
Inclusiva do mundo. A Smart City Laguna3, localizada a 55 km de Fortaleza, é cons-
tituída de 330 hectares e faz uso de soluções típicas das cidades inteligentes, tais
como sensores de monitoramento e planejamento urbano com discurso voltado
para a sustentabilidade ambiental e participação coletiva dos moradores na gestão
dos recursos. Tanto o uso de tecnologias emergentes e inclusividade são tratadas
como diferencial competitivo que os prospectos de venda do empreendimento fa-
zem questão de destacar:

Cidade Inteligente Inclusiva é uma evolução do conceito de cidade inteligente. Ela oferece aos
cidadãos um alto padrão de infraestrutura, inovação e tecnologia. É rica em convívio humano
e cultura. É um projeto resiliente, inclusivo e acessível, com soluções que visam garantir melhor
qualidade de vida aos seus moradores (“Smart City Laguna”, 2019).

Talvez a ênfase na inclusividade como diferencial competitivo, seja a resposta pro-


motores das soluções voltadas para cidades inteligentes para os típicos problemas
de representatividade e justiça social recorrente nas gestões automatizadas e totali-
zantes dos espaços urbanos. Algumas dessas questões foram apontadas por Adam
Greenfield (2013), ao dizer que esse tipo de visão – objetiva e totalizante – incute
uma ultrapassada lógica positivista, que entre outras coisas, considera a possibilida-
de de compreendermos totalmente o mundo, sem viéses ou distorções, a partir da
sistematização técnica do seu conteúdo.

Economicamente, projetos de cidade inteligentes movimentam bilhões de dólares


por ano.4 Empresas como IBM, Cisco, Microsoft, Huawei, Alphabet (Google), entre
outras, mantém laboratórios de pesquisa e desenvolvimento, além de parcerias com
empresas de arquitetura, urbanismo e governos ao redor do mundo como pros-
pecto de possíveis clientes para suas tecnologias e soluções. Cientes do poder do
marketing e da imagem na promoção de seus interesses econômicos, não é inco-
mum a produção de conteúdo visual com qualidade de Hollywood para ilustrar um

3 https://smartcitylaguna.com.br/viver-smart/
4 Largamente reportado pela literatura especializada que a cidade Coreana de Songdo já consumiu
mais de 40 bilhões de dólares (Greenfield, 2013).

1425
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

mundo utópico e perfeito no qual as tecnologias oferecidas por essas empresas são
o alicerce da perfeita simbiose entre tecnologia e seres humanos.

Shannon Mattern (2017), nos lembra que desde que a Internet não passava de al-
guns poucos computadores conectando universidades, urbanistas, tecnologistas e
escritores de ficção científica já imaginaram e conceberam utopias digitais. Vivemos
em um paradigma que vê a cidade como um computador, algo que os designers
modernistas e futuristas concebiam como paralelo morfológico com as placas de
circuito dos computadores. Assim como novos modos de telecomunicação redefi-
nem a geografia dos espaços, tanto na economia quanto política, novos métodos
computacionais reconfiguram o planejamento urbano (Mattern, 2017).

É possível identificar um componente revolucionário nessas cidades inteligentes.


Grande parte dessas iniciativas são concebidas do zero pelo fato de parecer mais “fá-
cil” construir uma nova cidade do que ter que lidar com as confusas e mal projetadas
cidades existentes. Cidades são constituídas por pessoas e infraestrutura em uma
relação dinâmica e muitas vezes conflituosa. Assim como a Internacional Situacio-
nistas nos anos 60 apresentavam um crítica ao capitalismo ao trazer manifestações
artísticas para situações do dia a dia, indicando aqui sua predileção para o espaço
urbano, a arte realizada atualmente também reflete criticamente sobre o atual es-
tado de desenvolvimento urbano e sua relação com efeitos colaterais da utilização
em larga escala de tecnologias digitais emergentes, tais como sensores e Big Data.

A arte permite que escapemos de nós ao criar novas linguagens e interferir na rea-
lidade de infinitas maneiras. A arte lida com o contexto técnico dominante em uma
sociedade encontrando suas rachaduras, falhas e desvios para então agir crítica e
criativamente sobre ela. Nesse sentido, de que maneira a arte revela questões até
então ignoradas pelas perspectivas puramente técnicas? Se a vida contemporânea
é marcada pelo constante fluxo de dados digitais para alimentar algoritmos que
exercem algum tipo de controle de nossas vidas, como a arte pode interferir nesse
processo? A seguir apresentaremos alguns trabalhos artísticos que refletem sobre o
atual cenário técnico dos espaços urbanos e seus impactos sociais e culturais.

A arte como vetor crítico das utopias urbanas


Comentando sobre a relação da cidade com os dados gerados pelos seus habi-
tantes, Lev Manovich (2015), afirma que atualmente a cidade fala conosco através
da dados. A “conversa” por via dos dados evoca reflexões sobre o tipo de diálogo
que podemos manter com a cidade. De que maneira podemos perceber a relações
espaciais e temporais da cidade a partir dos registros visuais feitos pelos usuários
de redes sociais em uma determinada localidade? Como podemos perceber a arte
nos espaços urbanos pelo filtro de dados associado a elas? Como perceber a ci-
dade não apenas por sua evidencia concreta, mas também pelos dados que elas

1426
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

podem oferecer? Que relações espaciais e temporais podem ser verificadas e com-
paradas em um grande conjunto de dados? Que experiência estética pode emer-
gir dessas visualizações? A seguir apresentamos alguns projetos e obras artísticas
que lidam que algumas de dessas questões.

Figura 2. O projeto Data Walking utiliza hardware customizado para capturar, processar e visualizar
dados de um determinado local através de múltiplas caminhadas. Fonte: http://datawalking.com

Idealizado por David Hunter, o projeto Data Walking5 explora o potencial do cami-
nhar pelos espaços urbanos para capturar dados ambientais e através de múltiplas
caminhadas, capturar e acumular dados para serem visualizados, compondo uma
visão mais rica e detalhada de um determinado local. O projeto explora o uso de tec-
nologias como método criativo para capturar dados e experimentar com métodos
de visualização, criar ferramentas customizadas que nos possibilitem insights e co-
nhecimento sobre uma área, um tipo de dataspace em camadas multidimensionais
(Hunter, 2018).

As motivações para a iniciativa partem da constatação que o ambiente urbano é um


complexo e sempre mutante amálgama de fluxos e elementos em fricção em cama-
das e interconectados no espaço. Os espaços são cada vez mais mediados por pro-
cessos digitais e nesse sentido, o input dos dados capturados através de processos
de deriva, permite a elaboração de outputs que nos ajude a tomar melhores decisões
no futuro, compreender o presente e apreciar o passado.

5 http://datawalking.com

1427
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A primeira fase do projeto aconteceu em Londres, Stratford – Barbican, como uma


caminhada artística conduzida pelo coletivo Mnemonic City6 com o objetivo de dis-
cutir e descobrir as memórias da cidade. A segunda fase aconteceu em Amsterdam
e a terceira em North Greenwich.

Todas as fases ocorreram utilizando o método EEEE, ou Exploring, Experimenting, En-


gaging e Empowering. Explorar o ambiente ao nosso redor, experimentar tecnologias
e métodos de sensoriamento; engajar em questões relevantes tanto em nível pessoal
ou coletivo; empoderar pessoas e comunidades no alfabetismo digital, compartilhar
o conhecimento e ferramentas para criar novos conhecimentos e novas ferramentas.

O projeto lida com questões centrais sobre as cidades e utilização de tecnologias para
gerenciamento e controle dos espaços. Ao utilizar a deriva em conjunto com tecnolo-
gias de baixo custo para monitor e fazer sentido dos espaços, conseguimos acessar e
visualizar a camada invisível de dados, que mesmo não sendo perceptíveis aos nossos
sentidos biológicos, desempenham papel fundamental na vida contemporânea.

FALSE POSITIVE

Figura 3. FALSE POSITIVE7 (2015), uma ficção corporativa que reflete sobre nossos dados pessoas e
a utilização dos mesmos por corporações para criar perfis psicológicos de seus usuários.

6 https://magmacollective.wordpress.com/mnemonic-city-barbican/
7 http://false-positive.net/

1428
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Não é apenas a confiança que depositamos na infraestrutura urbana. É nossa dispo-


sição em trocar nossas informações pessoais para acessar serviços online que nos
deixa vulnerável. Os usuários, pegos entre o uso e a exploração dessas informações,
estão sujeitos cada vez mais a complexos métodos de profiling tanto online quanto
offline. FALSE POSITIVE (2015), idealizado e concebido por Mark Shepard e Moritz
Stefaner, utiliza mensagens de texto, infraestrutura oculta, intervenções urbanas e
data visualização para encenar uma conspiração de vigilância visando o engajamen-
to e a discussão sobre privacidade no atual contexto tecnopolítico das tecnologias
móveis que somos cada vez mais dependentes.

A performance inicia quando os celulares dos participantes conectam a rede Candy-


gram, uma corporação fictícia especializada na análise de dados pessoais, e recebem
uma uma mensagem SMS dando boas vindas, solicitando que a mesma seja respon-
dida com o e-mail pessoal. Na sequência o participante recebe outra mensagem
convidando-o a participar de uma consulta pessoal no quiosque da Candygram ins-
talado numa rua próxima.

De posse do e-mail pessoal e utilizando um sistema online de gerenciamento de con-


tatos, a Candygram coleta uma série de informações pessoais tais como: nome, web-
sites, redes sociais, cidade de origem, idade, interesses, imagens de perfil, etc. Esses
dados são descarregados, minerados e processado por algoritmos para criar um perfil
dos participantes. Logo em seguida é solicitado ao participante algumas confirmações
das informações durante a sessão de consulta com um funcionário da Candygram. A
consulta é iniciada com questões demográficas básicas, para então iniciar uma série
de especulações psicológicas inferidas da meta análise. Ao final da sessão é entregue
um folder com informações sobre boas práticas para segurança digital.

O projeto aconteceu em 2015 em cinco cidades europeia (Madri, Hagen, Imal, Linz e
Liverpool) dentro do programa artístico Connected Cities. Ao final, o projeto termi-
nou com uma exposição do aparato corporativo e da parafernália técnica utilizadas
durante as performances na galeria Fact em Liverpool. Em conjunto com esses itens,
a exposição contou com um computador exibindo um email da Candygram para to-
dos os seus usuários informando que a empresa havia sido adquirida pelo serviço de
inteligência britânico (GCHQ). Um toque sutil e irônico sobre as relações promíscuas
entre corporações e governantes.

1429
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

blindage.

Figura 4. blindage (2015) utiliza máscaras como proposta poética entre a superabundância de
dados e a liberdade humana.

blindage8 (2015), é uma defesa poética da liberdade humana em um mundo cada vez
mais monitorado e superabundante de dados. Feito pela designer Anita Brunnauer
(Nita9), a performance/projeção/instalação, reflete poeticamente sobre a formas que
podemos perder nossa face no atual contexto técnico que vivemos. As máscaras di-
gitais da performance são uma referência a tradição e significados das máscaras et-
nológicas além de as inserir em um contexto contemporâneo do ser humano digital.

A obra está divida em três capítulos – fleurêve. synanthrope. abîme. – que podem ser
compreendidos como uma evolução do projeto. Além disso utiliza metáforas visu-
ais, assim como arquétipos surrealistas, em imagens contendo dança, taxidermia e
máscaras orgânicas. Para a artista a as máscaras são como fachadas. Ao ser projetada
em fachadas públicas a obra convida o público para uma reflexão entre fachadas
(máscara e arquitetura).

Conclusão
Entre utopias e visões extremamente otimistas sobre o papel das tecnologias digi-
tais na forma como pensamos e projetamos nossas cidades, uma visão de progresso

8 http://blindage.at
9 http://www.studionita.at/

1430
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

baseada na mediação da vida a partir dos dados digitais vem se consolidado. Inicia-
tivas de cidades inteligentes ao redor do planeta professam uma fé na tecnologia
que ainda se mostra obscura e cheia de falhas. A arte, com sua capacidade única de
reflexão sobre a vida, é crucial para propor novos métodos de engajamento com o
espaço urbano e práticas poéticas para lidar com complexidade tecnológica, social
e política. Os trabalhos apresentados aqui mostram como esse processo se dá e que
rumos tomar frente novos horizontes abertos pelas tecnologias emergentes. Fazer
arte que reflita sobre nossa condição na relação entre agentes humanos e não-hu-
manos no contexto técnico das cidades é um ato necessário.

Referências
Bratton, B. (2017). The New Normal. Strelka Press.

Brunnauer, A. (2015). blindage. - This is. Recuperado 22 de setembro de 2019, de


http://blindage.at/

Du, R., Santi, P., Xiao, M., Vasilakos, A. V., & Fischione, C. (2019). The Sensable City:
A Survey on the Deployment and Management for Smart City Monitoring. IEEE
Communications Surveys Tutorials, 21(2), 1533–1560. https://doi.org/10.1109/
COMST.2018.2881008

FALSE POSITIVE by Mark Shepard, Moritz Stefaner. (2015). Recuperado 22 de setem-


bro de 2019, de http://false-positive.net/

Greenfield, A. (2013). Against the Smart City: A Pamphlet. This is Part I of” The
City is Here to Use”. New York: Do projects.

Hunter, D. (2018). Data Walking. Londres: Ravensbourne University London.

Manovich, L. (2015). Exploring urban social media: Selfiecity and On Broadway. Recu-
perado 26 de julho de 2018, de http://www.manovich.net

Mark, S. (2016). Predictive Geographies. In S. Pop, T. Toft, & N. Calvillo, What Urban
Media Art Can Do: Why When Where and How? (p. 266–273). Stuttgart: Continen-
tal Sales, Incorporated.

Mattern, S. (2017). A City Is Not a Computer. Places Journal. https://doi.


org/10.22269/170207

Mortice, Z. (2017). Remembering the Sci-Fi Dream of the Minnesota Experimental


City. Recuperado 19 de setembro de 2019, de CityLab website: https://www.citylab.
com/design/2017/10/experimental-city-the-sci-fi-utopia-that-never-was/543003/

1431
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Offenhuber, D., & Ratti, C. (2014). Decoding the City: Urbanism in the Age of Big
Data. Basel: Birkhäuser.

ONU. (2019). World Urbanization Prospects 2018. Recuperado de https://popula-


tion.un.org/wup/Publications/Files/WUP2018-Highlights.pdf

Smart City Laguna. (2019). Recuperado 19 de setembro de 2019, de Smart City Lagu-
na website: https://smartcitylaguna.com.br/viver-smart/

1432
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Ms. Patrícia Teles Sobreira de Souza1

Passeio nas Elétrikas: imersão e performatividade2


Paseo en las Elétrikas: inmersión y performatividad

Resumo
O artigo versa sobre as noções de imersão e performatividade aplicadas ao
trabalho artístico MaLOWvich y Neoneoconcreta, passeio nas Elétrikas (2019).
Para este fim, discorre sobre o processo de produção do trabalho, de modo a
descrever e analisar procedimentos técnicos e poéticos: o suporte tecnológico
como mediador da comunicação humano-máquina, a dinâmica espacial imer-
siva e a performatividade dos corpos que integram esse ambiente.
Palavras-chave: arte e tecnologia, espectador, participação.

Abstract
El artículo aborda las nociones de inmersión y performatividad aplicadas a la obra
artística MaLOWvich e Neoneoconcreta, passeio nas Elétrikas (2019). Con este fin,
discute el proceso de producción del trabajo para describir y analizar procedimien-
tos técnicos y poéticos: el soporte tecnológico como mediador de la comunicación
hombre-máquina, la dinámica espacial inmersiva y la performatividad de los cuer-
pos que integran este entorno.
Palabras: arte y tecnología, espectador, participación.

Memorial Descritivo
MaLOWvich y Neoneoconcreta, passeio nas Elétrikas (2019) é um trabalho artístico
idealizado durante a residência artística do II Prêmio Vera Brant (2019), na Casa Nie-
meyer em Brasília e, posteriormente, exposto no Centro Cultural Renato Russo, tam-
bém na capital federal. O projeto investiga a imersão e a performatividade por meio
da participação das/os espectadores.

1 Doutoranda em Arte e Tecnologia pela Universidade de Brasília (2017-), mestre em Lenguajes Artís-
ticos Combinados pela Universidad Nacional de las Artes (Buenos Aires, 2016), especialista em Arte,
Cultura e Sociedade no Brasil pela Universidade Veiga de Almeida (Rio de Janeiro, 2013) e bacharel
em Artes Cênicas – Direção Teatral pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2008). E-mail: patri-
ciateles86@gmail.com
2 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

1433
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

A primeira demanda do projeto foi a construção de um ambiente imersivo, que con-


siste em um circuito elétrico suspenso, composto por um emaranhado de fios brancos
que sustentam painéis de LED quadrados, com fundos vazados, distribuídos no salão
expositivo (fig.01). Trata-se de uma estrutura aberta, sem entradas ou saídas definidas,
um perímetro demarcado por uma organização caótica de fios, o qual se pode emergir
por pontos distintos. Nessa estrutura rizomática, o ´dentro´ e ´fora´ são subjetivos e
variam segundo a perspectiva de quem observa a si mesmo e aos demais.

Desta maneira, a incorporação das/os espectadores se articula por duas frentes:

• 1. o penetrar do público nesse ´rizoma´, onde as/os visitantes são convidadas/os a


´passear nas elétrikas´, consequentemente, os corpos que transitam tornam-se par-
te da composição, e, portanto, significantes da obra. Esse ´passeio´ leva em conside-
ração a percepção do entorno e das formas geométricas ´flutuantes´, cujo enqua-
dramentos se transformam de acordo com o deslocamento dos corpos no espaço;

• 2. o diálogo humano-máquina, no qual a interface tecnológica media a relação com


o público. Logo, para além de suporte da obra (fios e LEDs), a tecnologia transcende
a sua matéria tangível e é responsável por agenciar transformações sensíveis no am-
biente a partir da participação do público-performador.

Figura 01 – MaLOWvich y Neoneoconcreta, passeio nas Elétrikas (2019), Patrícia Teles


Fonte: Arquivo Pessoal

Durante as experimentações na residência, diversos sensores foram acoplados à inter-


face: sensor de toque, de som, de presença e de pulso cardíaco. Assim, cada sensor foi
programado para alterar a qualidade da luz em resposta à ações específicas, como a

1434
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

intensidade da voz, do toque ou dos batimentos cardíacos. Desta maneira, a interface


tecnológica foi propulsora de transformações comportamentais nos residentes – que
passaram a brincar com a estrutura – o que reforça a ideia de que a obra não é a
instalação em si, mas a experiência que ela promove. É a performatividade dos
corpos que ativa a máquina e a faz performar junto. Logo, corpo e suporte tecnológico
tornam-se um organismo só, agenciado pelo sistema de retroalimentação.

Outro ponto de investigação da tecnológica é a estética da gambiarra. Ou seja, de


assumir o emprego da baixa tecnologia com um discurso periférico sobre o tecno-
lógico, pautado na ressignificação de objetos do cotidiano e no seu caráter político,
desfetichizante, hackeante e de subversão da ordem tecnológica hegemônica. O ma-
quinário mágico e ilusório se dilui em uma estrutura aberta, com suas entranhas à
mostra, passíveis de panes e curtos. Por conseguinte, adiciona-se o ´erro´ como par-
te da experiência. Por fim, os quatro eixos que modulam o projeto estão imbricados
e formam uma cadeira indissolúvel, enraizada na vivência de cada um.

Notas sobre a Imersão


Como construir um ambiente imersivo, um espaço que pode ser penetrado pela/o
visitante? Em um primeiro momento do processo criativo, buscou-se meios de iso-
lar um perímetro, utilizando canos e lonas de plásticos, entre outros objetos encon-
trados na Casa Niemeyer. Deste modo existiria uma barreira tangível de divisão do
espaço, um dentro e fora demarcado pela estrutura de lonas plásticas, uma bolha-
-estufa. Conclui que existem três tipos básicos de modos de exibição dos trabalhos
artísticos imersivos:

1. Ocupação do Todo, que utiliza todo espaço/sala de exibição. Exemplos:


Desvio para o Vermelho: Impregnação, Entorno, Desvio (1967) de Cildo Meireles,
as Cosmococas de Hélio Oiticica, El Encierro (1968) de Graciela Carnevale e Un-
der de Sí de Diego Bianchi e Luis Garay.

Figura 02 – Cosmococas, Hélio Oiticica


Fonte: Inhotim

1435
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

2. Estruturas Fechadas, que possuem um perímetro definido e não se relacio-


nam com o espaço ao redor. Exemplos: El ascensor de Leandro Erlich, Corridor
(1970) de Bruce Nauman, A Casa é o Corpo (1968) de Lygia Clark, Túnel (2018)
de Rejane Cantoni & Leonardo Crescenti e Wave UFO (2003) de Mariko Mori.

Figura 03 – Wave UFO (2003), Mariko Mori


Fonte: Centro Cultural Banco do Brasil

3. Estruturas Vazadas, sem perímetro definido. Neste caso, os/as visitantes in-
gressam todo corpo no ´espaço´ da obra, porém, não existe uma demarcação
clara, um ´invólucro´. Exemplos: Chove Chuva (2002) de Rivane Neuenschwa-
nder, as instalações de Ernesto Neto, Bodyspacemotionthings (1971-2009) de
Robert Morris e Em nenhum lugar e em todos os lugares ao mesmo tempo, São
Paulo (2019) de William Forsythe.

Figura 04 – Em nenhum lugar e em todos os lugares ao mesmo tempo, São Paulo (2019),
William Forsythe. Fonte: Sesc Pompéia

1436
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

De acordo com os parâmetros apresentados, compreende-se MaLOWvich y Neone-


oconcreta, passeio nas Elétrikas como uma estrutura vazada e rizomática, possível
de ser expandida por todo espaço por meio da repetição da estrutura, ou seja, a
multiplicação do circuito.

Desta forma, o público que ingressa na estrutura para experienciá-la é considerada/o


participante. Entretanto, essa dinâmica não é tão simples assim. Na montagem do
trabalho, para exposição no Centro Cultural Renato Russo, o espaço designado pela
curadoria foi a entrada da Galeria Rubem Valentim. Essa escolha diluiu o conceito do
trabalho, isto porque é um ponto de passagem, com o perímetro demarcado com
um corrimão, uma escada e uma rampa de acesso para cadeirantes. Deste modo,
retira-se o poder de decisão da/o visitante de ingressar ou não no ´ambiente´ do
trabalho, visto que, obrigatoriamente, para entrar na Galeria era preciso atravessar o
emaranhado de fios.

O trabalho, no que diz respeito ao ´ambiente imersivo´, tornou-se uma imposição e


não uma possibilidade para o público. Além disso, a escada, o corrimão e a rampa de
acesso impossibilitam qualquer movimento dos corpos por entre os painéis e fios
suspensos. A escolha do espaço para instalação da estrutura é importante pois, além
do motivos já relatados, interfere também na dinâmica com o sistema de retroali-
mentação, na comunicação humano-máquina.

Notas sobre a Performatividade


O conceito de performatividade aplicado à investigação baseia-se na noção desen-
volvida pela teórica alemã Erika Fischer-Lichte. No texto Estética do Performativo
(2011), a autora resgata a origem do termo, oriunda do verbo em inglês to perform,
ou seja, o ato de realizar uma ação. Logo, o performativo remete às ações corporais,
desde as ações cotidianas, à identidade de gênero e os rituais religiosos. Portanto, é
um conceito guarda-chuva que possui distintas vertentes de estudo: teatrais, sociais,
antropológicas, filosóficas, culturais, etnológicas, entre outros.

Sendo assim, interessa pensar o performativo no campo dos estudos teatrais, segun-
do Fischer o “teatral é sempre performativo, mas nem todo performativo é teatral”
(BONFITO, 2013, p.132). O performativo é teatral quando a ação executada é obser-
vada por outrem, quando possui um caráter espetacular. Portanto, uma performan-
ce é sempre teatral, assim como uma peça de teatro é sempre performativa.

Como visto, em Malowvich e Neoneoconcreta, passeio nas Elétrikas o que importa é


a experiência, o acontecimento efêmero que o trabalho provoca. Interessa pensar o
espetacular dessa relação, entendendo o espetacular como o extra-cotidiano, algo
feito para ser visto no âmbito da arte. A instalação em si, assemelha-se às lojas de
iluminação, à Rua das Elétricas localizada na Asa Sul de Brasília. Ambientes caóticos

1437
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

abarrotados de lâmpadas, luminárias, painéis de LED, entre outros, entretanto, o que


distingue uma loja da Rua das Elétricas da estrutura instalada no Centro Cultural Re-
nato Russo, é, entre outros fatores, a experiência extra-cotidiana que ela promove, a
performatividade dos corpos.

O espetacular não somente no que diz respeito à uma loja comercial, mas, igualmen-
te, as convenções do espaço de exibição. Ao solicitar que as/os visitantes gritem,
rompe-se com a postura silenciosa e contemplativa tradicional do espaço museísti-
co de modo a transformar a relação com o entorno. Ademais, o corpo da/o visitante
entra em um contexto de teatralização, ou seja, sua performance está exposta à mi-
rada das/os demais visitantes.

Desta maneira, ao gritarem, as/os atuantes mais do que ´acionar´ o sinal de output
da interface performavam na galeria, modificando o ambiente por meio do grito
do corpo, rompendo com o silêncio e a inércia do ambiente expositivo. A estrutura
rizomática torna-se cenário e/ou coadjuvante da ação. “Dar ao participante o obje-
to que em si mesmo não tem importância, e que só virá a ter na medida em que o
participante agir. É como um ovo que só revela a sua substância quando o abrimos”.
(CLARK, 1980, p.27).

Interfaces Programáveis
A emergência e o desenvolvimento das tecnologias numéricas geram novas pos-
sibilidades poéticas na atualidade, a utilização de hardware e software de código
aberto tornou-se recorrente nas produções de artes com tecnologia. Neste contexto,
destaco a utilização da plataforma Arduino.

O Arduino foi desenvolvido em 2005 por Massimo Banzi e David Cuartielles como
um projeto para estudantes do Interaction Design Institute Ivrea (Itália). O objetivo de
Banzi e Cuartielles era criar uma plataforma de desenvolvimento barata, simples de
usar e acessível a todos os estudantes. Contudo, para além de um material didático,
artistas multimídia incorporaram o Arduino para produzir interfaces programáveis.
Sensores de distância, presença, som, toque, entre outros, podem ser acoplados à
placa, viabilizando a transformação da obra por meio da interação com humanos.

Em MaLOWvich y Neoneoconcreta, passeio nas Elétrikas, a iluminação dos painéis de


LED é controlada pelo som. Para tanto, é necessário a mediação de uma interface,
um sistema de retroalimentação em tempo real entre emissor e receptor. É a inter-
face que possibilita “a interação entre o universo da informação digital e o mundo
ordinário” (LÉVY, 1999, p.37). Deste modo, os sons emitidos pela atuante são os sinais
de input da interface, no qual o áudio é transcodificado, ou seja, transformado em in-
formação numérica para ser lido pelo sistema. Como resposta ao estímulo recebido,
a interface está programada para responder piscando as luzes dos painéis (output).

1438
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Contudo, a programação foi pensada de modo a exigir uma determinada intensida-


de sonora, sons cuja intensidade estejam abaixo do valor fixado nos códigos não são
suficientes para ativar o sistema.

A interface foi construída com uma placa eletrônica Arduino modelo UNO, uma pro-
toboard, um sensor de som e um módulo relé. A programação é escrita por meio
do software Arduino IDE (Integrated Development Environment ou Ambiente de De-
senvolvimento Integrado) em linguagem de programação C++. O sensor de som
deve ser conectado ao Arduino e aos painéis de LED integram o sistema por meio
do módulo relé.

A programação escrita no software deve ser transferida para o Arduino. Essa transfe-
rência dos códigos se dá por meio de um cabo USB/ AB que conecta o computador
à placa. O Arduino é uma plataforma de código aberto, o que possibilita a constante
modificação dos códigos que são gravados na placa. Após a transferência do código
e a conexão do sensor e do modulo relé na placa, o sistema estará pronto para operar.

Claudia Giannetti (2006) identifica três graus de interatividade humano-máquina:

1) sistema mediador: reação pontual, simples, normalmente binária a um programa dado; 2) siste-
ma reativo: ingerência de um programa por meio da estruturação de seu desenvolvimento no âm-
bito de possibilidades dadas. Trata-se de uma interatividade de seleção, que aplica a possibilidade
de acesso multidirecional a informações audiovisuais para a execução de operações predetermi-
nadas pelo sistema, e, portanto, limitadas a elas; 3) sistema interativo: estruturação independente
de um programa que se dá quando um receptor pode atuar também como um emissor. Trata-se
de uma interatividade de conteúdo, na qual o interator dispõe de um grau maior de intervir e
manipular as informações audiovisuais ou de outra natureza (como as robóticas) ou, em sistemas
mais complexos, gerar novas informações. (GIANNETTI, 2006, p.125-126).

Com base nos três tipos de interatividades considerados pela autora, os procedi-
mentos de MaLOWvich y Neoneoconcreta... enquadram-se no grau 2, no qual existem
possibilidades pré-definidas de ‘interação’ sem abertura para que receptores agen-
ciem novas informações. Deste modo, o sistema reativo está limitado à respostas
previamente estipuladas na programação, portanto, no que diz respeito ao sistema
de feedback, não abrange possibilidades de composições ou transformações espon-
tâneas e imprevistas.

Por outro lado, o jogo não se limita as possibilidades do aparato, o modo de existên-
cia da tecnologia transcende sua funcionalidade de apagar e acender luzes por meio
do grito. Desde modo, a imprevisibilidade da ação reside, de um lado, do erro maquí-
nico – que por vezes não opera de acordo com o programado – e por outro lado, por
meio do comportamento dos atuantes. Essas fissuras transformam a poética do tra-
balho artístico. Para exemplificar essa afirmação cito um comportamento observado

1439
Edição Brasília - BR #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

durante o período da residência artística: quando a interface travava, causando um


delay na resposta (output), isto fazia com que os atuantes se movessem no espaço,
como quem busca por sinal, e que gritassem ainda mais alto.

Os procedimento apresentados podem ser adotados, apropriados e transformados


de acordo com a finalidade e o desenvolvimento conceitual que se deseja atingir.
Levando em consideração o que cada interface simboliza no objeto artístico, quais
são os discursos atribuídos aos aparatos e como eles dialogam com o espaço, perfor-
mers, espectadores, entre outros elementos que constituem uma obra. Reforça-se
assim a característica dinâmica das plataformas de código aberto, e sua capacidade
de suscitar outras experiências estéticas na produção artística.

Referências
BONFITTO, Matteo. Entrevista com Erika Fischer Lichte. Conceição | Concept., Cam-
pinas, SP, v. 2, n. 1, p. 131-141, jan./jun. 2013

CLARK, Lygia. Lygia Clark. Textos de Lygia Clark, Ferreira Gullar e Mario Pedrosa. Rio
de Janeiro: FUNARTE, 1980.

FISCHER-LICHTE, Erika. La Estetica de lo Performativo. Madrid: Abada Editores, 2011.

GIANNETTI, Claudia. A Estética Digital: sintopia da arte, ciência e tecnologia. Belo


Horizonte: Editora C/Arte, 2006

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.

1440
Artist Talk #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

artist talk

ANAIS

1441
Artist Talk #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Ana Teresa Vicente

Gaze and tactility: surface, materiality, and codification


Olhar e tactilidade: superfície, materialidade e codificação

Resumo
Esta artist talk aborda as várias estratégias utilizadas na investigação plástica em
torno do olhar, da tactilidade e da materialidade. Tendo como base de trabalho
um conjunto de negativos e de provas fotográficas impressas, questões de super-
fície e de codificação são convocadas na pesquisa desenvolvida nas várias séries.
Palavras-chave: olhar, tactilidade, superfície, codificação, eye-tracking

Abstract
The artist talk discusses the various strategies used in my research regarding gaze,
tactility and materiality. Having as a starting point a set of negatives and photo-
graphic prints, surface and coding issues are convened in the inquiry developed in
the various series.
Keywords: gaze, tactility, surface, codification, eye-tracking

Avendaño Peña Beatriz Tatiana

Futurotopías desde los Andes

Charla de artista
La devastación del mundo en nombre del “progreso” y la implementación de po-
líticas mundiales que favorecen los intereses empresariales por encima del bie-
nestar de la población han expandido la precariedad en todos los niveles de la
vida y contra todos los organismos vivos. Resulta difícil imaginar futuros que no
sean catastróficos. La Amazonía se incendia y sabemos que faltan pocos años para
que la vida como la conocemos cambie radicalmente. Las futurotopías son una
invitación al intercambio de ideas, sueños y prácticas de otros posibles, en donde
los imaginarios especulativos, las políticas decrecientes y feministas, nos permi-
tan proyectar otros futuros. Especulación tecnológica para desarrollar y recuperar
técnicas y tecnologías para imaginar y hacer reales transformaciones sistematicas,
alternativas al extractivismo (de los cuerpos, la tierra, la naturaleza, las especies y
los datos) que pone en riesgo la vida y limitan nuestra capacidad creadora.
1442
Artist Talk #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

¿Por qué no todos los seres humanos podemos conectarnos de la misma manera
con todo el sistema de lo vivo del que hacemos parte?”. Es una pregunta que tiene
que ver con mi vida en Ecuador -en los Andes- pero también tiene que ver con mi
preocupación por seguridad y la privacidad en internet. No soporto pensar que la
posibilidad de comunicarme con las personas que más quiero (todas viven muy
lejos de Cuenca, Ecuador) dependa de las infraestructuras de multinacionales, que
no solo nos vigilan sino que especulan con nuestros datos, con nuestras vidas.

Futurotopías Trans-Andinas para pensar tecnologías y protocolos que activen


la memoria del cuerpo, tejiendo de nuevo las redes que nos conectan con todo
el sistema de lo vivo y volver a conectar con otras sensibilidades y formas de
relacionarnos. Todos los cuerpos tienen una carga electromagnética -mayor o
menor- y por tanto todos los cuerpos emitimos y recibimos señales. Este es el
lugar del que parte el proyecto “Cuerpo antena”, una futurotopía en construcci-
ón que se basa en el desarrollo de protocolos de alimentación y meditación que
me permita aumentar los niveles de minerales en el cuerpo para potenciar mi
campo electromagnético, hackear mi cuerpo para potenciar mi sensibilidad y
con esto ampliar la capacidad de mi cuerpo para emitir y recibir señales. Trabajar
con plantas y con cristales, en un proceso de transformación sutil de la sensibi-
lidad, como una estrategia para la construcción de nuevos cuerpos, los cuerpos
del mundo que esta por venir.

Hugo Paquete, Adérito Fernandes-Marcos,


Paulo Bernardino Bastos, Christopher Zlaket
and David Stingley

Dromologia dos corpos orbitais: Projeto de desenvolvimento


de hardware e estratégias de composição sonora, com recurso
ao movimento de satélites e a outros objetos humanos
exteriores à terra
Dromology of the orbital bodyes: Hardware development and sound composition
strategies using satellite motion and other human objects outside the earth

Resumo
Este artigo propõe construir uma reflexão crítica e técnica centrada na tec-
nocultura e nos modos de produção artística pós-digitais. Efetuando-se uma

1443
Artist Talk #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

extrapolação dos processos de sonificação na arte digital partindo de um pro-


jecto pratico onde esta envolvida a produção de hardware e software que cap-
tura o movimento de satélites públicos e militares para utilizar os seus valores
de deslocação, velocidade, entre outros, em elementos sonoros e musicais.
Este projeto é desenvolvido em parceria com os meus colaboradores Chris-
topher Zlaket (1992) da Arizona State University especializado em design de
interfaces e David Stingley (1993) do MIT, especializado em ciências da com-
putação. O objetivo é transformar, por processos de sonificação elementos de
valor estético centrados numa investigação que lida com a articulação entre
saber técnico, construção de interfaces, programação e sua aplicabilidade nos
domínios das artes sonoras, performance musical e instalação multimédia.
Palavras-chave: Satelite, Sonificação, Pos-digital, Hacking, Artes sonoras.

Abstract/resumen/resumé
This article proposes to build a critical and technical reflection focused on tech-
noculture and post-digital artistic production modes. Making an extrapolation of
sonification processes in digital art starting from a practical project involving the
production of hardware and software that captures the movement of public and
military satellites to use their values of displacement, velocity, among others, in el-
ements. sound and musical. This project is developed in partnership with my col-
laborators Christopher Zlaket (1992) of Arizona State University who specializes
in interface design and David Stingley (1993) of MIT who specializes in computer
science. The objective is to transform, through sonification processes, aesthetic val-
ue elements centered on an investigation that deals with the articulation between
technical knowledge, interface construction, programming and its applicability in
the fields of sound arts, musical performance and multimedia installation.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: Satellite, Sonification, Post-digital, Sound art.

Joao Batista

Da ordem para o caos


From order to chaos

Resumo
Ordem e caos. A ordem exclui o caos. As sociedades e os cidadãos organizam-se
estabelecendo ordem, criando sistemas de coordenação, sujeitando-se a regras

1444
Artist Talk #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

e a procedimentos, garantindo que atuam de forma sincronizada, forçando a


adoção de padrões de comportamento, e punindo a desordem. Provavelmente
precisamos de reconhecer e de aceitar algum tipo de ordem para sobreviver-
mos, mas também podemos procurar a liberdade através do caos. Os momen-
tos de disrupção, de serendipidade, de desregulação, ou até de desobediência,
são momentos de liberdade, que se tornam nos momentos em que verdadeira-
mente nos podemos encontrar connosco mesmos. Nesses momentos, podemos
aceitar a ordem, mas apenas como um meio que nos permite lidar com o chaos
para atingir estados de liberdade.
Na apresentação abordam-se estas ideias, que estão subjacentes a um conjunto
de trabalhos no âmbito da pintura e de combinações pontuais com outras téc-
nicas, nomeadamente a fotografia e os livros de artista
Palavras-chave: Ordem, caos, pintura, abstrato.

Abstract/resumen/resumé
Order and chaos. The order excludes chaos. Societies and citizens organize them-
selves by establishing order, creating coordination systems, subjecting themselves
to rules and procedures, ensuring that they act in a synchronized manner, forcing
the adoption of behavioral patterns, and punishing disorder. We probably need to
acknowledge and accept some sort of order to survive, but we can also seek freedom
through the chaos. The moments of disruption, serendipity, deregulation, or even
disobedience are moments of freedom, which become the moments when we can
truly meet with ourselves. At such times, we can accept order, but only as a means
that allows us to deal with chaos to achieve states of freedom.
The presentation addresses these ideas, which underlie a set of works in the field of
painting and occasional combinations with other techniques, namely photography
and artists’ books.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: Order, chaos, painting, abstract.

Kathleen Rogers

Writing in the Body - the Dark Matter of the Genome


Escrever no Corpo - a Matéria Escura do Genoma

The study of epigenetics is an emerging field in biosocial and biocultural studies


as biologists dismantle foundational human genomic studies in heredity to re-

1445
Artist Talk #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

-imagine the genome as a dynamic and responsive entity that senses, apprehends
and responds to environmental, biological and cultural contexts. The presentation
will introduce practice based creative research that applies autoethnographic me-
thods to examine biosocial and scientific theories exploring the cultural implica-
tions of intergenerational trauma studies. The trauma theorist, Caruth suggests
that trauma is “is not locatable in the simple violent or original event in the in-
dividual’s past but identified in “the way it is precisely not known in the first ins-
tance – returns to haunt the survivor later on (Caruth 1996:17.4). I will introduce
my research methodologies and theoretical frameworks for producing the film
installation work, Remembering the Unknown, that revisits a largely unpublished
series works that intersects with recent research into social, political and cultural
relationships and the science of epigenetic inheritance. The research project is ba-
sed on a series of conceptually driven and closely related photo installation works
produced from 2016 to 2019 and incorporates elements of the site specific work
- I Poor Orphan, Here There and Everywhere produced at CERN in Geneva (Swit-
zerland), Home, produced at the former Children’s Orphanage, Manchester (UK),
and Matrem, photo-microscopy of a human Fetal cord produced in a bioscience/
stem cell context.

Leena Raappana-Luiro

Style as meaning – case postage stamp design process

Abstract
Style can be regarded as an important semiotic resource. In this design case, the
style was developed by technical experiments, my personal affinity for historicism
and melancholy as well as the stylistic inspiration from earlier works like Dutch vani-
tases of 1600’s and the natural history illustrations made by Ernst Haeckel at the turn
of the 20th century. In the context of Valentine’s Day postage stamp design, I had
to adapt my style – al- ready developed in the fine art context – to the commercial
interests of the client.
Keywords: Illustration, style, semiotics.

By my works, I want to show the process that led me to create the style of Val-
entine’s Day postage stamps of Finland 2018. The process started in 2016 as a
fine art practice – an exhibition – containing prints and works combining glass,

1446
Artist Talk #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

nature objects and drawings /digital collages. After the exhibition, I took part in
a postage stamp contest arranged by Posti Group, Grafia – The Associ- ation of
Visual Communication Designers in Finland – and Kuvittajat – The Finnish Illus-
tration Association. As a consequence, I was commissioned to design the set of
five Valentine’s Day postage stamps to Posti Group.
As Steven Skaggs (2017, xiv) notes `the graphic design studio provides an ideal
laboratory for semiotic concepts´. My exhibition presents part of my doctoral
research which is – for its part – a combination of artistic - /design parts and
research articles. The focus of the research is to study, how a fictive illustration
makes meanings and moods through a multimodal interaction with the typog-
raphy, colour, style and the used media along with materiality (See Van Leeuwen
2007; Kress 2010).
Style can be regarded as an important semiotic resource (Nodelman 1990, 60;
Siefkes & Arielli 2018, 169). In this case the style was developed by technical
experiments, my personal affinity for historicism and melancholy as well as the
stylistic inspiration from earlier works like Dutch vanitases of 1600’s and the nat-
ural history illustrations made by Ernst Haeckel at the turn of the 20th century.
In the context of Valentine’s Day postage stamp design, I had to adapt my style
– already developed in the fine art context – to the commercial interests of the
client. By changes in modes like colour and composition the overall mood of
design changed from an ambiguous melancholy to a fairy tale fantasy.

Luciana Maia Coutinho

Des-invenções

Fruto de um trabalho maior, dentro de uma pesquisa prático-teórica acerca do pro-


cesso criador artístico, apresento aqui, em formato de vídeo, o que chamo de um
‘ensaio tecno-poético’. Assim como outros tantos resultados obtidos ao longo da
pesquisa de doutorado, o vídeo acontece por simples captura de tela durante um
momento, que se poderia dizer, de procrastinação produtiva. Muitas vezes é em
meio a desvios e digressões que aos poucos algo toma forma e acaba assumindo
um primeiro plano em minha prática artística. Cada novo trabalho ou projeto que
se inicia pode estar lançando sementes, ideias germinais, descategorizadas, para
alem de mim, alem de meus saberes. Mas como preparar uma festa surpresa para
si próprio... o pensamento soa-me como uma espécie de cohan contemporâneo
que, talvez, esteja alinhado com o movimento de permanente busca do criador.

1447
Artist Talk #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Utilizando-me do fator do acaso, material que me é muito caro justo por estar
sempre além de minha invenção, desta vez é um site de tradução automática
que funciona como parceria na geração de uma escrita dupla em conversação
bilíngue. Os ensaios em vídeo apresentados (Des-fazer e A Mulher) são o regis-
tro sob a forma de captura de tela dessa interação, no ato da ‘performance’, em
uma espécie de jogo de ecos distorcidos entre a artista e o programa. Uma ‘qua-
se-poesia-maquínica’, em algum momento.

O gesto que observa e captura ‘des-roteiriza’ ou ‘des-rotiniza’ a rotina, desvelam-


-se camadas do não-extraordinário. Nessa apropriação encontro um modo de
incitar o ‘anexato’ através da precisão, o surpreendente através do programado.
Busco aquilo que escapa, o que foge pelo canto dos olhos, pelos quatro ven-
tos, quatro cantos ou quatro bordas da tela, do papel... O artista inventa, assim,
lugares onde possa contar com a interferência de um ‘outro’ incognoscível que
provoque e desinstale os saberes. Seria possível tomar de empréstimo a inven-
tividade didática de Manoel de Barros como um ‘quase-lema’ contemporâneo,
quando o poeta nos dá a deixa em tom de sutil manifesto convocando-nos a
“desinventar objetos”.

Marcelle Sant’Anna, Luciana Maia Coutinho,


Cássia C. Turci and Mônica Oliveira

A Flora Desvelada
The Unveiled Flora

Resumo
Como parte das comemorações dos 100 anos da UFRJ, a celebrar em 2020, foi
desenvolvido um trabalho multidisciplinar de identificação botânica da flo-
ra comum encontrada nos jardins e pátios internos da Decania do Centro de
Ciências Matemáticas e da Natureza (CCMN) e do Instituto de Psiquiatria da
UFRJ (IPUB). O trabalho de pesquisa, realizado a partir da ideia central de gerar
um panorama iconográfico, representativo desta flora, serviu de mote para o
evento “A Flora Desvelada na UFRJ”, que contou com o lançamento de um ca-
lendário comemorativo de 2020, além de exposição itinerante no IPUB-UFRJ,
palestras acerca dos temas ilustração, cor e botânica e oficinas temáticas. O
projeto tornou possível aproximar, por um ponto de vista comum, visitantes,
servidores, estudantes e funcionários terceirizados, reativando o local como

1448
Artist Talk #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

espaço de cultura, arte, educação ambiental, promoção da saúde, fruição e


como um respiro, estimulando uma integração mais abrangente entre o ensi-
no, a pesquisa e os projetos de extensão.
Palavras-chave: Desenho, Botânica, Geografia Cultural, Representação Gráfica,
Multidisciplinaridade.

Abstract
As part of the celebration of the centenary of UFRJ, to be celebrated in 2020, a multi-
disciplinary botanical identification work of the common flora, found in the gardens
and internal courtyards of the Decania of the Center for Mathematical and Natural
Sciences (CCMN) and the Institute of Psychiatry of the UFRJ (IPUB) was developed.
The research work, carried out from the central idea of generating an iconographic
panorama, representative of this flora, served as a motto for the event “The Unveiled
Flora at UFRJ”, which featured the launch of a commemorative calendar, as well as
an itinerant exhibition at IPUB-UFRJ, thematic workshops and lectures on the fol-
lowing topics: illustration, color and botany. The project made it possible to bring
together visitors, servers, students and outsourcers from a common point of view,
reactivating the place as a space for culture, art, environmental education, health
promotion, entertainment and rest, stimulating a broader integration between
teaching, research projects, and extension.
Keywords: Drawing, Botany, Cultural Geography, Graphic Representation, Multidis-
ciplinarity.

Maria Ilda Trigo

Arquivo, afecto e busca pela forma


Archive, affect and search for form

Resumo
Este texto trata do percurso de pesquisa formal e conceitual que sustenta minha
produção artística e que gerou, dentre outros, o trabalho apresentado na expo-
sição paralela a este encontro (Parede que respira – protótipo 2). Esse percurso,
apoiado na apropriação de fotografias do arquivo de minha família, pode ser
entendido como a busca pela compreensão da potência dos arquivos, princi-
palmente quando tratado como matéria artística, e pela forma que possibilitaria
dar a ver, ao espectador, essa força.
Palavras-chave: fotografia de família, afecto, percurso artístico, multimeios.
1449
Artist Talk #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Abstract/resumen/resumé
This text deals with the formal and conceptual research trajectory that sustains my
artistic production and that generated, among others, the work presented in the exhi-
bition parallel to this meeting (Breathing Wall - prototype 2). This artistic course, sup-
ported by the appropriation of photographs from my family archive, can be under-
stood as the search for understanding the power of archives, specially when treated as
artistic matter, and for the way that would allow the viewer to see this strength.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: family photography, affect, artistic journey,
multimedia.

Paulo Ivan Rodrigues Vega Júnior

Arte contemporânea, autobiografia e found footage

Resumo
Durante a fala, um fragmento do filme “28, 29 e 30... Ah! E, também, 27 do oito
de 2018” (56min., 2016) é exibido enquanto falo sobre o processo de realiza-
ção do mesmo a partir da apropriação de uma found footage. Seu conteúdo
mostra fragmentos do cotidiano de uma família registrados durante os dias
27, 28, 29 e 30 de agosto de 1988. Esses fragmentos, para além da revelação
de estilhaços da intimidade familiar, evocam memórias relacionadas à década
de 1980 e a transição para a década de 1990, o debate memória individual x
memória coletiva, a obsolescência das tecnologias, a preservação e o paradei-
ro das imagens.
Palavras-chave: Arte contemporânea; Autobiografia; Filme; Found footage; Memória.

Abstract
During the speech, a fragment of the movie “28, 29 and 30 ... Oh! And, also, 27 of
the eight of 2018” (56min., 2016) is displayed while I talk about the process of reali-
zation of it from the appropriation of a found footage. Its content show fragments
of the daily life of a family recorded during the days 27, 28, 29 and 30 of August
of 1988. These fragments, in addition to revealing fragments of familiar intimacy,
evoke memories related to the 1980s and the transition to 1990s, the debate about
individual memory x collective memory, the obsolescence of technologies, the pres-
ervation and the whereabouts of the images.
Keywords: Contemporary art; Autobiography; Film; Found footage; Memory.

1450
Artist Talk #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Silja Nikula

Researcher carving wood.


Practice based approach to visual storytelling

Abstract
Researcher carving wood.
Practice based approach to visual storytelling
In the field of visual communication design, practice based research is still quite new,
at least in Nordic countries. However, it includes enormous potential in highlighting
the knowledge of professional designers. In this presentation, I use my own artistic pro-
cess as a case of practice based research. In my process, I first travelled to Prague and
Lofoten Islands. My aim was to tell about the spirit of the place by visual means, using
the method of woodblock printing. The theoretical discussion was directed to the field
of visual communication design, sheding light on the potential and restrictions of still
images in storytelling. In my presentation, I concern the following questions:
What are the typical features of practice based research?
What are the requirements for artistic work, to be defined as research?
During my working process, the question was gradually focused, meanwhile read-
ing the literature in the fields of semiotics and narrative theory. This is one of the
typical features.
The starting point for practice based research is that the artist is professional in his/her
working field, as here communication design. Then the research question is relevant
and the results can contribute to the same field. However, there are certain challeng-
es, as the following: There are not necessarily ready concepts or terms to describe the
salient findings. Added to that, the research might not be easy to be reported through
the established model and structure. Also, in the cases where a designer’s own data is
analysed, it has to be considered how the designer is intertwined in producing it.
Keywords: practice based research, visual storytelling, still image, communication design

1451
Artist Talk #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Taís Aragão de Almeida

Arte Urbana: A cidade, o espaço e suas transformações

Resumo
Os artistas urbanos utilizam plataformas virtuais como uma possibilidade de
circulação e ressignificação, e também como uma nova dinâmica poética em
suas obras. Esse movimento retrata os sintomas das transformações sociais vin-
culadas ao uso e participação no ambiente digital, dialogando em dinâmicas
materiais e imateriais com a cidade para o entendimento do espaço. O presente
artigo propõe uma discussão crítica acerca de alguns conceitos teóricos sobre a
compreensão da cidade e do espaço com intuito de observar a interrelação da
Arte Urbana com as Mídias Sociais.
Palavras-chave: Arte Urbana, Cidade, Espaço, Mídias Sociais.

Abstract
Urban artists use virtual platforms as a possibility of circulation and resignification,
as well as a new poetic dynamic in their works. This movement portrays the symp-
toms of social transformations linked to the use and participation in the digital en-
vironment, dialoguing in material and immaterial dynamics with the city for the
understanding of space. This article proposes a critical discussion of some theoreti-
cal concepts about the understanding of the city and space in order to observe the
interrelation of Urban Art with Social Media.
Keywords: Urban Art, City, Space, Social Media.

Thaís Perim Khouri

Habitar o Cerrado e Suas Possibilidades Criativas

Apresentamos a residência artística Cerrado Ecoarte, de caráter formativo e de in-


tercâmbio cultural, realizada em ambiente próximo às matas e vida não-domesti-
cada - o Cerrado, bioma predominante na região central do Brasil, ancestral, riquís-
simo em diversidade, berço das águas que alimentam os principais rios do país, tal
como o Amazonas. Este bioma está ameaçado pela especulação imobiliária, pela
indústria agroquímica, pelos incêndios criminosos e pela agropecuária. O locus da

1452
Artist Talk #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

residência foi o Jardim Botânico de Brasília, que além da conservação de espécies e


desenvolvimento de pesquisas na reserva ecológica, engloba um centro turístico,
com área para pique-nique, parques infantis, restaurantes e jardins temáticos. A
proposta não convencional e utópica em um espaço institucional rendeu fricções
e questionamentos profundos, direcionados aos processos históricos de ocupação
do território, e da necessidade de legitimação dos povos originários do Brasil atra-
vés do resgate de narrativas. Foi pensado um percurso formativo para aproximar as
pessoas residentes da questão ecológica e a história invisibilizada do Cerrado e suas
culturas. Foram convidadas artistas e especialistas nativas, dentre as quais destaca-
mos Luciana Meirelles, que através da pedagogia Griô criou a personagem Maria
das Alembranças, mensageira das florestas do Cerrado. Ela foi nossa guia durante o
percurso da Trilha Krahô (batizada em homenagem ao povo indígena proveniente
da região que hoje é o estado do Tocantins), trazendo cantos e encantos dos povos
originários para ampliar nossa percepção de ancestralidade e pertencimento. As
ações formativas tiveram duração de cinco dias, e os quatro dias seguintes seriam
para a criação das obras finais. Foram criadas nove obras de performance e insta-
lação, levadas à público no último dia de residência, em uma visita guiada com
percurso nos jardins e trilhas do local. Após a exibição, as obras de instalação foram
desmanchadas, à pedido da diretoria da instituição. Esta exigência gerou incômo-
dos e desafetos por parte de alguns artistas, que sentiram-se desrespeitados. Ou-
tros, pelo caráter efêmero das obras, não sentiram o impacto. É o caso de Aparição
da Santa Caliandra (2019), de Maurício Chades, instalação que também ocupou a
trilha Krahô. Esta santa é uma personagem-mito que toma emprestado elementos
do catolicismo, religião que teve papel fundamental na ocupação colonial do Brasil,
fundindo-os com elementos orgânicos, vivos, desvelando uma “cosmogonia cer-
ratense ancestral”. Através da experiência de habitar o Cerrado, o artista pôde ver
a força da “insurgência de um imaginário ecológico, que sustenta a terra, as raízes,
mas que atua principalmente nos sonhos e outros planos invisíveis”.

Victor Hugo Soares Valentim

Processo Criativo de “ACIABÁSS”: instalação híbrida de instru-


mento musical computacional interativo em residência artística
Creative process of “ACIABÁSS”: hybrid interactive computational musical
instrument installation in artistic residence

As possíveis mesclas entre artes visuais e a música nos meios digitais me inspi-
raram a desenvolver o experimento que posterior a sua criação foi intitulado

1453
Artist Talk #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

“Aciabáss”, um anagrama das sílabas das palavras: Ba – Cia (de Bacia) – Bass
(Som Grave). Esta obra foi o resultado do meu processo criativo dentro do ateliê
aberto realizado no contexto da residência artística do projeto “InstruMentes”,
idealizado por Alana Silveira e Lívia Cunha com patrocínio do Rumos Itaú Cultu-
ral e Fundação Gregório de Matos/BA, com a finalidade de realizar um diálogo
entre a luthieria e a cimática (Jenny, 2001), juntamente com as experimentações
poéticas da música, arte e novas tecnologias.

Para a criação da parte visual, desenvolvi uma sketch de Processing baseada em


uma trama de linhas e pontos que se comportam guiados por uma equação de
combinações entre senos e cossenos que definem a posição dos pontos e das ex-
tremidades das linhas em 3 eixos (X, Y e Z) em um laço de repetição. Estas tramas
criam sensação visual virtual mais próxima da imagem cimática da água. Ao imple-
mentar o código Incorporei no projeto a biblioteca Keystone para a realização do
mapeamento visual básico na bacia de metal. Estas linhas se comportam obede-
cendo a função matemática e são totalmente controladas, em diversos paramen-
tos (luminosidade, dimensão, quantidade, eixo de rotação) através do som que foi
programado em PurrData(PD) na lógica do sintetizador sonoro (com osciladores
e filtros) além da síntese granular inspirda no livro Microsounds de Curtis Roads
(Roads, 2004) randômica que ocorre quando disparadas as notas, que fazem com
que cada botão de arcade que está fixado no tablado de madeira tenha uma nota
diferente, baseadas nas frequências que formam as melhores formas cimáticas na
água da bacia, exaustivamente testadas durante a residência.

A escolha da sonoridade da obra obedeceu a lógica de que o interator está “to-


cando” a água da bacia com os botões do tablado. A água vibra com o tom grave
sistetizado e responde aos estímulos com a sequência randômica da síntese gra-
nular de acordo com a interação do público. Outro detalhe é que a obra foi pro-
gramada para funcionar somente com a interação, quando não tem ninguém
interagindo temos a impressão de que está tudo desligado, propositalmente
para o público poder interagir com os passos como se estivesse tocando um
instrumento e vendo sua ação sendo repercutida na bacia projetada.

Vítor de Souza Pereira Martins

A Imagem da Utopia
The Utopia Image

1454
Artist Talk #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Na visão de um fazedor de imagens tentando criar e moldar pensamento, apre-


sento o trabalho plástico Ptose. Cientificamente, Blefaroptose, ou ptose palpebral,
é uma condição (muitas vezes congênita) em que a margem palpebral cobre
mais do que 2,0 milímetros do limbo superior. Ou seja, é uma pálpebra menor
que a outra, sendo uma condição tanto estética quanto funcional, já que restrin-
ge o campo visual e leva a uma posição viciosa da cabeça, provocando um des-
conforto, um desvio. Emocionalmente, tenho os olhos de meu pai, que eram os
olhos de meu avó, que eram os olhos de não sei quem. Desde que nasci enxergo
amorfo sob ptose. Plasticamente, Ptose é hoje um ensaio fotográfico compos-
to de 12 (doze) imagens. Todas reversas, ampliações do negativo. As imagens
“prontas” dentro do sistema fotográfico aqui apresentado vivem na dimensão
oposta. É quase um retorno a caixa preta. O desvio e o impulso de ser artista
irrompe o sistema e não se satisfaz com seus resultados. São fotografias de bar-
reiras, de paredes, de muros, que ao deixa-las negativadas pretende-se agir na
ambiguidade do meio fotográfico. Criando paisagens, novas visões do objeto
fotografado. Evidenciando que a imagem não é o registro da coisa em si.
Há um método que foi seguido. Técnico-plástico e também utópico. As fotogra-
fias de barreiras são pré-visualizadas, antecipadas, clicadas em condições de alto
contraste, reveladas (positivadas) e posteriormente negativadas novamente, in-
vertidas. Todos esses passos são sim técnicos, buscando imagens abstratas em
preto & branco, mas se tornam utópicos por tentarem agir na mente, por ten-
tarem proporcionar sublimidades, escapes, desvirtuações. Há uma tentativa de
preencher, de ocupar o sistema. Uma imagem é uma relação entre revelação e
segredo. Há algo que fica de fora do enquadramento, que se tornar secreto, e há
algo que fica dentro, mesmo que não se revele por completo. Se a imagem é um
testemunho, um “estive aqui”, ou “vi (transformei) isso”, a intervenção posteriores
e anteriores ao click se postam com uma maneira de acesso ao lugar do tremor,
de mexer com sua ordem.

Ligar imagem com utopia é ascender a fabulação de acreditar, se banhando na


estratégia do invisível, do ocultamento, da desaparição, de manusear uma ima-
gem. É olhar no horizonte embaçado. Encontrando o que elas trazem além da sua
captura. Não é fincar no agora e nem no depois, mas não se prender. É trazer o
fracasso para a poética, mas não se contentar com ele. É perder o chão sob os pés.

1455
Artist Talk #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

posters

ANAIS

1456
Artist Talk #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Mirja Lönegren

Information Design – Future possibilities from the


perspective of visual communication design

Abstract
In this poster, I frame my presentation to concern these research questions: How can
information designer make use of storytelling and gamification in the virtual space?
What kind of new ways of presenting information graphics can be found, that are
suitable for interactive media and different sizes of the devices.
Keywords: Information design, Augmented reality, Virtual reality, Gamification, Sto-
rytelling.

Gabriela A. R. de Sá and Marisa C. Maass

Translúcido: mulheres brasileiras na história do design


Translucent: brazilian women in the history of design

Resumo
A expografia “Translúcido” foi uma tradução de pesquisa sobre perfis de mu-
lheres projetistas durante o século XX, questionando sua lacuna no registro da
história do design, considerando principalmente a baixa representatividade de
mulheres na literatura básica da historiografia. Partindo de Problemas e Hipóte-
ses sobre o papel do design e distintos recortes aplicáveis ao contexto industrial,
a pesquisa propôs uma interrelação entre os trabalhos de mulheres durante o
período determinado. Dessa forma, a disposição coloca tais trabalhos em um
paralelo com a linha temporal canônica da história do design para questionar
onde estão os trabalhos dessas mulheres – e onde encontra-los.
Palavras-chave: Historiografia, feminismo, design.

Abstract/resumen/resumé
“Translucent” was a translation of research on profiles of women designers during
the twentieth century and their impact on the register of design history, especial-
ly considering the low representation of women in the canon literature of design.

1457
Artist Talk #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Starting from scientific and sociological research about the role of design and differ-
ent cutouts applicable to the industrial context, the results induced an interrelation
between the work of women during the scope. In this way, the disposition places
such works in parallel with the canonical timeline of design history to question
where these fantastic women’s works are – and where to find them.
Keywords/Palabras clave/Mots clefs: Historiography, feminism, design.

1458
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

obras
EmMeio#11

2
1459
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

ervas aromáticas e medicinais, benditos,


Tutunho, o taumaturgo
rezas, profecias, línguas estranhas, zaum,
EmMeio#11

ervas aromáticas e medicinais, benditos,


Tutunho,
Tutunho, o taumaturgo
the thaumaturge Tutunho, irônica línguas
e profeticamente, anun-
rezas, profecias, estranhas, zaum,
EmMeio#11

Tutunho, the thaumaturge cia o colapso


Tutunho, dos eparadigmas
irônica médicos
profeticamente, ab-
anun-
Antonio Wellington de Oliveira solutos ocidentais, sua validademédicos
e seu com-
cia o colapso dos paradigmas ab-
Junior
Antonio(Tutunho); João
Wellington de Vilnei de
Oliveira promisso ético comsua a cura planetária, com
solutos ocidentais, validade e seu com-
Oliveira Filho
Junior (Tutunho); João Vilnei de o respeitoético
à diversidade
promisso com a cura de paradigmas
planetária, com
Oliveira Filho curativos
o respeitocontrários aos usos
à diversidade comerciais
de paradigmas
O centro da mão de Tutunho queima e ele escusos dacontrários
natureza aos
biopolítica da medi-
curativos usos comerciais
cura. Ele éda
O centro um
mãosanto taumaturgo,
de Tutunho milagrei-
queima e ele cina no mundo ocidental contemporâneo.
escusos da natureza biopolítica da medi-
ro, por dom e por nascimento –
cura. Ele é um santo taumaturgo, milagrei-filho de Não no à margem, mas contrabandeado e
cina mundo ocidental contemporâneo.
uma louca
ro, por dom e de um nascimento
e por médico, neto–de cabo-
filho de contrabandeando, Tutunho segue carre-
Não à margem, mas contrabandeado e
cla mezeira e doutra parteira médium
uma louca e de um médico, neto de cabo- –, gando o conhecimento tradicional-popu-
contrabandeando, Tutunho segue carre-
ele tem o corpo xamânico ativado,
cla mezeira e doutra parteira médium –, recita lar, a ancestralidade dostradicional-popu-
pajés, curandei-
gando o conhecimento
rezas
ele tem fortes e bodeja
o corpo glossolalias,
xamânico ativado,ouve o
recita ros, asantos, loucos, por enquanto, porque
lar, ancestralidade dos pajés, curandei-
silvo dos espíritos, domina processos
rezas fortes e bodeja glossolalias, ouve o de somos “contemporâneos”, absoleto. Por
ros, santos, loucos, por enquanto, porque
transmigrações
silvo dos espíritos, anímicas,
domina biorressonância
processos de enquanto. Principalmente para nós, “con-
somos “contemporâneos”, absoleto. Por
e cromoterapia intuitivas, cenas catárticas
transmigrações anímicas, biorressonância temporâneos”, por enquanto... Esta “con-
pes-
enquanto. Principalmente para nós,
e performancesintuitivas,
e cromoterapia que curam. Não catárticas
cenas é o santo quisa é desenvolvida junto ao Laboratório
temporâneos”, por enquanto... Esta pes-
quem diz, mas os que foram tocados
e performances que curam. Não é o santo por de Investigação em Corpo,
quisa é desenvolvida juntoComunicação
ao Laboratórioe
ele. Com pequenas lanternas de
quem diz, mas os que foram tocados por LED, celo- Arte-LICCA e aoemInstituto
de Investigação Corpo,de Investigaçãoe
Comunicação
fanes
ele. Comcoloridos,
pequenas incensos, óleos
lanternas de essências,
LED, celo- em Design, Media e Cultura-ID+.
Arte-LICCA e ao Instituto de Investigação
fanes coloridos, incensos, óleos essências, em Design, Media e Cultura-ID+.

“Tutunho, o taumaturgo”. Performance de Antonio Wellington de Oliveir Jr. e João Vilnei de Oliveira Filho, 2018.
Foto/Print Screen: Antonio Wellington de Oliveira Jr. (Tutunho).
“Tutunho, o taumaturgo”. Performance de Antonio Wellington de Oliveir Jr. e João Vilnei de Oliveira Filho, 2018.
Foto/Print Screen: Antonio Wellington de Oliveira Jr. (Tutunho).

3
3
1460
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

dialogue is more detailed and private


I Am Here
if the other person is closer; loud and
EmMeio#11

crowded environments are a constraint


Bruna Sousa; Bruno Coelho,
for comfortable communication. Ha-
Penausa Machado
ving this established, we defined that
the communication will be clear with
Our relationship with digital devices has
only one person; the more people look
changed as they act as mediators in our
at the object, the more obstructed the
daily interactions. Those became more
typography will be; the closer the per-
custom with the growing advances in
son is, the more detailed the sentences
Artificial Intelligence. When a commu-
shown will be; the surrounding noise
nication system adapts to its context, it
will always cause constraints in the
delivers a customized communication,
communication by affecting the weight
enhancing the impact of the visual mes-
of the typography.
sage. Our communication and interac-
This project was developed in
tion with other humans is increasingly
OpenFrameworks, for face detection, and
digital, so we explore the possibility of a
Processing, for data analyzes, develop-
digital object that communicates throu-
ment of the interaction and visuals.
gh human characteristics.
Humanizing a usually static
I Am Here explores the behavior of
communication object would make it
a poster with shy characteristics by simu-
more relatable? How will that affect the
lating the struggle of a visual communi-
communication of the message? This shy
cation object to express a message under
poster is the first step of a project that
the changing circumstances of the public
will develop posters with several perso-
space. Instead of communicating in the
nalities to understand the impact of this
same way — regardless of the characte-
approach in visual communication.
ristics of its surroundings and audience
— it adapts to different contexts.
Figure: Poster reacting to four different
To represent a shy personality we circumstances — no people observing, one
defined four rules, considering that: a person observing from a distance in a noisy
shy person prefers to express thoughts environment, one person observing close and
to fewer people; the content of the a lot of people observing.

4
1461
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Visualização interna
Visualização interna da
a partir
caixado orifício
a partir dolocalizado na parte na
orifício localizado frontal
partedafrontal
caixa.da caixa.

Geomidias O projeto Geomidias desenvolve-se na


EmMeio#11

cidade do Porto, quando os artistas per-


Camila Mangueira; cebem a presença de pequenas conchas
Fabrício Fava na composição dos pavimentos urbanos.
Durante seis meses de exploração guia-
Geomidias questiona processos senso- da pelas conchas, os locais descobertos
riais e experiências afetivas na constru- tiveram sua localização registrada. As
ção de relações com o espaço urbano experiências afetivas geradas por esses
em um contexto cultural mediado por percursos conduziram à reflexão sobre a
tecnologias e mídias digitais. À medida jornada das conchas para esses lugares.
que sistemas digitais de geolocalização Como pequenos fósseis, são arquivos de
(como o Google Maps) promovem esta- construção da cidade, como também,
dos simultâneos de presença e ausência, são dotados de informação sobre seu
precisamos enxergar para além da tela próprio período de formação e, logo,
se pretendermos perceber aquilo que se das transformações da Terra. Assim, são
faz extensivo a nós, às tecnologias e ao também mídias, e remetem a uma ten-
ambiente. Isto inclui pensar as mídias di- dência da natureza de marcar e reter;
gitais como elementos do espaço, como um movimento característico do gesto
também, refletir sobre outras materiali- fotográfico. A consideração desses mate-
dades que assumem o papel de mídias. riais como mídias contemporâneas e da

5
1462
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

fotografia como possível ato de fossiliza- faz alusão aos monóculos utilizados para
ção do tempo provocam uma inversão a apreciação de matrizes fotográficas.
do olhar. O projeto é composto por cinco Cada caixa dispõe também de um QrCo-
caixas escuras que convidam o expecta- de que apresenta a localização das con-
dor a observar o ambiente referenciado chas na cidade: um convite lúdico para a
pelas conchas na cidade do Porto. As continuidade das buscas e da percepção
caixas remetem a câmeras fotográficas das Geomidias.
pinhole, cujo orifício de entrada de luz é Palavras-chave: arte-mídia, foto-
acionado simbolicamente por cada con- grafia, geolocalização, geomidias, arque-
cha. O mecanismo de visão através delas ologia das mídias.

6
1463
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

atemporal da Pintura. A verticalidade pro-


Aterramento em
posta pela montagem da obra sugere ain-
EmMeio#11

alto-mar da a visão hierática dessa matéria-cor, da


terra enclausurada, que cotidianamente
Cecilia Mori é experimentada na sua horizontalidade,
como o piso por onde andamos.
Aterramento em alto-mar faz parte da Com a peneiração do solo cole-
série Aterramentos, composta de para- tado, as matérias (pedregulhos, gra-
lelepípedos de acrílico transparente de mas, minhocas e afins) encontradas são
100cm x 3cm x 3cm com terra de dife- descartadas e aquilo que poderia iden-
rentes cidades como Brasília e Lisboa tificar essa porção de terra como um
associados a imagens fotográficas ou a determinado território é retirado, per-
desenhos de nós e laços de tricô. Nesses manecendo apenas o pigmento, a pin-
trabalhos, as cidades que têm sua terra tura pulverizada. Essa poeira, que antes
coletada remetem ao percurso traçado fora terra, se torna uma pequena vitrine
pelas famílias portuguesas que migraram de pintura com a desmaterialização físi-
para o Brasil. Assim, a série busca resgatar ca do território. Enquanto vitrine, atiça
os laços familiares sem perder de vista o o olhar mas impede o tato. Enquanto
desequilíbrio afetivo instaurado nos en- vitrine-objeto, isola mas guarda a po-
contros culturais. eira-pintura. Ao ser deslocado de seu
Pensando o solo como local de me- espaço originário, essa terra agora en-
mória, a obra apresentada na exposição capsulada evidencia a reverberação da
EmMeio contém terra e fotografias de Bra- memória que, apesar de minha, a exis-
sília, última cidade vivida por meus avós e tência me precede.
minha cidade natal. A porção de terra ar- Por fim, o esvaziamento potente
mazenada se forma, com isso, como uma do corpo pictórico se associa ao esvazia-
cápsula da cidade e, enquanto essa amos- mento de referência com as imagens fo-
tragem, essa terra evoca toda a ancestra- tográficas, fixadas ao lado, que mostram
lidade. Ao mesmo tempo em que a his- uma paisagem desconhecida e descon-
tória familiar se confunde com a história textualizada de Brasília sob neve no início
da cidade, a terra guardada se apresenta, dos anos 1960. Ainda uma cidade por vir,
em Aterramento em alto-mar, com a força já habitada, mas ainda desértica.

7
1464
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

“Aterramento em alto-mar” é uma pequena instalação de parede, de aproximadamente


100 x 40cm, composta de um paralelepípedo de acrílico de 100 x 3 x 3 cm transparente
preenchido com a terra de Brasília. O objeto de acrílico é posicionado sobre uma peque-
na prateleira (3,5 x 3,5cm) de ferro em oxidação fixado ao lado de duas fotografias de 10
x 18cm de família de paisagens da capital brasileira.

8
1465
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

pode atribuir características de gênero.


Dois e três pinos
Configura uma espécie de limite (Blan-
EmMeio#11

Two and three prongs chot, 1970), mas que não se define (Bar-
thes, 2003). Pode-se tratar, assim, de um
Denise Conceição Ferraz entre-lugar, de uma fronteira borrada,
de Camargo; também equiparável ao vazio, ao silên-
Fernando Luiz Fogliano
cio, e, paradoxalmente, a um lugar em
que se dão os jogos de linguagem.
Após a troca da instalação elétrica de uma
É com este contexto simbólico
casa tomadas já obsoletas, cujo destino
que este trabalho opera ao fazer uso de
seria o descarte para reciclagem, foram
discursos, dos jogos de linguagem (Wit-
resgatadas pelos artistas e transformadas
tgeinstein, 2009), do uso político da lin-
em matéria para o objeto-instalação “Dois
guagem e das metáforas (Lakoff, 2002) e
e três pinos”, como ficou nomeado, em
das narrativas dela decorrentes, baseadas
alusão à obra conceitual “Uma e três ca-
em notícias falsas, recusa a dados oficiais,
deiras” (1963), de Joseph Kosuth.
inclusive a fatos históricos, que têm gera-
A construção abstrata e escultural
do um retorno a padrões antiquados, já
do objeto instalacional tem como supor-
superados, inclusive os discursos de ódio
te uma caixa que permite ao observador
e violência, mas em curso na sociedade
visualizar a estrutura interna da obra e
brasileira desde as eleições de outubro
interagir com ela. Às tomadas de dois
de 2018, e que se confrontam com o que
pinos, que tiveram sua produção descon-
podemos, ou não, considerar como ver-
tinuada no País e estão em desuso, desde
dade (Changeux, 2013).
2009, dispostas no interior da caixa, está
O trabalho tem como objetivo
conectada uma placa arduino que favo-
permitir ao observador-interator esta-
rece os processos e as ações de interação
belecer reconexões nas tomadas de três
nos fragmentos de discursos retrógrados,
pinos, em sua segurança e adequação
de ódio, violência e fake news, em curso
aos padrões. Isso faz que os discursos ali-
no Brasil de 2019.
mentados no objeto-instalação possam
O “neutro” existente nas tomadas de
ser revertidos e transformados, criando
três pinos atualmente utilizadas no país,
uma nova ordem para as emoções que
as torna mais seguras. Por isso mesmo, as
compartilhamos e que nos tocam neste
tomadas antigas de dois pinos, desprovi-
contexto político, social e cultural do País.
das desse espaço, são inadequadas aos
Propõe, assim, uma experiência interati-
atuais padrões de segurança. Ao declarar
va que consiste em transformar os dis-
o retorno à sua produção, o senhor que
cursos antidemocráticos, abrindo diálo-
ocupa a presidência da República do Bra-
gos possíveis e para além dos binarismos
sil, cria uma metáfora para o conjunto de
das estratégias de manutenção do poder.
reterocessos que assola o País.
Assim, etapas desse processo criativo e
Na gramática, o termo “neutro” de-
tecnológico serão exibidas em um vídeo
fine nomes ou palavras às quais não se

9
1466
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

de cerca de 3 min, contendo imagens,


paisagens sonoras, mapas e diagramas
que constituem a memória do trabalho
em processo.
Ao fornecer possibilidades de inte-
ração para criar novas conexões a partir
de um dispositivo obsoleto, e, portanto,
desconstruir e recriar esses discursos, de-
sencadeia-se o desejo de compor novos
modelos de realidade assentados na ne-
cessidade de compartilhamento de emo-
ções sociais (Damasio, 1996), neste caso,
geradas pelo ideal de pertencimento aos
valores democráticos.

Tomadas obsoletas: peças e acessórios na constru-


ção do objeto-instalação interativo.

10
1467
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Nosso processo de criar moscas


Moscas Transgênicas
transgênicas parte dessas questões so-
EmMeio#11

bre a forma como a ciência e a arte veem


Fabíola Fonseca; João Agreli;
produzindo mundos. Para tanto, essa
Carlos Ueira; Cesar Baio;
Francisco Moura; Levy Mota criação aconteceu no laboratório de ge-
nética, vinculado ao Departamento de
Biotecnologia da Universidade Federal de
O que nos atrai tanto para as moscas Uberlândia (UFU), Brasil. Acompanhamos,
transgênicas? Como produzi-las? Como durante esse processo, a produção do
elas trazem outras possibilidades de conhecimento científico no laboratório
composição com o mundo? Como produ- até propormos esse projeto que resultou
zimos um mundo com elas? Esses ques- na produção do livro de artista intitulado
tionamentos permearam todo o nosso “Manual de como fazer sua mosca trans-
processo criativo. Produzimos moscas gênica” (Fabíola Fonseca/ João Agreli/ Ro-
transgênicas para fazer essa composição semário Sousa/ Alexandre Carvalho) e da
entre ciência e arte e perceber como am- vídeo performance “Moscas transgênicas”.
bas vem lançando fagulhas para produzir A vídeo performance “Moscas transgêni-
nossos mundos. Do laboratório à galeria cas” apresenta imagens das moscas den-
de arte. Pensar nessas moscas é atritar as tro de um frasco contendo meio de cultu-
fronteiras entre ciência e arte. É compor, ra a base de fubá que serve de alimento
é produzir outras possibilidades para ci- para elas. Levantamos a questão: como
ência e para arte. convivemos com esses voos?

11
1468
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

no formato da vídeo performance, na


Ponto Cego
qual performaram alunos dos cursos de
EmMeio#11

biologia, artes e teatro. Na ocasião, os


Fabíola Fonseca; Reno Almeida;
performances se organizaram no formato
Cesar Baio
de um quadrado e vestiram seus os jale-
cos brancos, luvas e máscaras. Nos bolsos
A performance Ponto Cego faz parte do
de cada jaleco havia uma placa de Petri
projeto de pesquisa intitulado Protocolo
contendo meio de cultura (ágar batata),
Fungo, desenvolvido como pesquisa de
que serve de alimentos para microorga-
pós-doutorado na Universidade Federal
nismos que irão aderir. Após se vestirem,
do Ceará. Queremos, com essa perfor-
eles ficavam andando e transitando por
mance, levantar questões sobre a forma
entre as pessoas para coletar os esporos
como a ciência e a tecnologia impactam
de fungos e bactérias que estavam no
nossas vidas e tem mudado nossas rela-
ar. As pessoas que passavam pela praça
ções entre nós e com nós mesmos. Nes-
interagiam com eles, mas nessa situação
sa performance tomamos as câmeras de
eles entregavam um cartão de visita com
segurança 360˚ como ponto de partida,
o perfil do projeto nas redes sociais. Gra-
uma vez que elas estão o tempo todo
vamos o som das conversas das pessoas
nos capturando, embora isso não cause
na praça, dos carros passando, dos ven-
mais tanto estranhamento. Essas câme-
dedores ambulantes gritando.
ras 360˚ têm a peculiaridade de não ter
Ali naquele momento ciência e
ponto cego.
arte modificaram a dinâmica da praça,
A performance aconteceu na praça
criaram outra paisagem, outros afectos,
do Ferreira, em Fortaleza-CE, Brasil no pri-
outras possibilidades. Era isso que alme-
meiro semestre de 2019 e foi feito um re-
jávamos produzir.
gistro em vídeo, posteriormente editado

Ficha técnica
Direção: Fabíola Fonseca
Autores e roteiristas: Fabíola Fonseca, Reno Almeida,
Cesar Baio
Diretor de fotografia: Guilherme Silva
Diretor de áudio: Francisco Feitosa Moura Filho
Editor de vídeo: Levy Mota
Performances: Levy Mota, Juliana Tavares, Ada Kroef,
Denilson Lima, Tieta Macau, Renan Sidney, Icaro Limas,
Luan Castelo, Nathália Coehl, Aracy Frutuoso, Jô.

12
1469
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Encontros (que vão do mais uniforme – sem mistu-


EmMeio#11

ra) ao mais mesclado, sendo que o 100 de


Gilbertto Prado cada lado é idêntico. Ou seja, os últimos de
Grupo Poéticas Digitais cada lado são os da própria “linha” da mis-
tura das águas. Cabe lembrar que quando
Encontros é uma instalação interativa de os celulares se movimentam no trilho, é
2012, de Gilbertto Prado com o Grupo esse deslocamento que vai acionando a
Poéticas Digitais. A obra é composta por mudança nos distintos níveis de coloração.
uma base de madeira, celulares, mola, Dos mais uniformes que estão nas pontas
motores, placas Arduíno, interfaces e dis- do dispositivo ao centro da obra, onde as
positivos eletrônicos e Wi-fi. águas se mesclam nas telas dos celulares.
Os dois aparelhos celulares exibem O dispositivo, ao mesmo tempo que
vídeos realizados em viagem pelo Rio Ama- vai passando os vídeos, busca informações
zonas de fluxos de águas de duas tonalida- em tempo real, de modo a refletir as mu-
des distintas: de um lado, a predominância danças das marés e das fases da lua, de um
da cor preta e, do outro da cor marrom. O lado, em contraponto ao fluxo de acesso à
Encontro das Águas é um fenômeno que palavra “encontro” em diversos idiomas, do
acontece no Amazonas após a confluência outro. A mola, ao mesmo tempo em que
do Rio Solimões, de água cor ocre, barrenta, distende, tensiona, demarcando o espaço
com o Rio Negro, de água escura. Durante e o curso do fluxo/movimento.
um trecho de seis quilômetros os dois rios Nos breves momentos de quase en-
ficam lado a lado sem misturar suas águas. contro, no limite da aproximação e da com-
O mesmo acontece nos arredores de San- pressão da mola, é possível notar uma leve
tarém (Pará) com os rios Amazonas e Tapa- mistura do marrom e negro das águas que
jós, onde o projeto foi desenvolvido. Nesse se mesclam e simultaneamente a impossi-
trecho de confluência dos rios, o artista se bilidade do encontro.
lança nas águas (na altura de Santarém - Encontros foi apresentado em várias
Pará), amarrado com uma corda presa no exposições como: EmMeio#4, Museu Na-
barco e uma boia na cintura, para desespe- cional da República, Brasília; Continuum -IV
ro do capitão da embarcação e tripulantes. Recife Art and Technology Festival, 2013;
A ideia foi a de ficar com o corpo submerso Singularidades/Anotações - Rumos Artes
e dividido entre as águas pretas e marrom Visuais 1998-2013, Itaú Cultural, 2014; 16Th
para realizar os vídeos da instalação. Biennale Media Art WRO, Wroclaw, Polonia,
Em cada um dos dois celulares da 2015; ISEA 2017/16 Image Festival, Mani-
obra temos 10 distintos vídeos da parte de zales, Colombia, 2017; Circuito Alameda,
água marrom e 10 vídeos do lado negro. Laboratorio Arte Alameda, México, 2018.

13
1470
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figura 1. Encontros: Diagrama da obra aponta a direção das forças resultantes do movimento,
bem como suas modulações, ondas e intensidades; Museu Nacional de Brasília, 2012; Encontro
das Águas, confluência dos rios Negro e Solimões.

14
1471
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

No tempo do desenho: informação para a avaliação das ima-


EmMeio#11

acção e padecimento gens e dos territórios representados.


The act of sustaining and feel in Referimo-nos à representação advém
drawing do tempo como substância do espaço,
consequentemente o espaço subme-
tido à experiência do tempo, tomando
Graça Maria Alves dos Santos
Magalhães como premissa o comprometimento do
desenho com um tempo ancestral, que
A presente proposta resulta de um traba- caracteriza a natureza e a representação,
lho individual de desenho feito no âmbi- concretizado através da manualidade,
to do projecto Desenhar a Essência dos Lu- também ela, profundamente associada à
gares que procura contribuir, no âmbito construção dos territórios e da paisagem.
das politicas de território, para a valoriza- Na experiência de desenho que
ção de um espaço sócio e culturalmente nos propomos aqui comentar a percep-
diminuído, inscrevendo o desenho como ção é mediadora entre a estranheza do
instrumento artístico, assumido como testemunho e a familiar proximidade do
referente iconográfico, politicamente sentir, aproximando a narração da his-
participativo, conjugando percepção in- tória, a dos fantasmas do passado e dos
dividual e modelos da história. O que se sonhos do futuro. Reaparições estranhas,
pretende demonstrar é como as imagens formas universais do sentir, sobrevivên-
que resultam da percepção e da prática cias vulneráveis, são formulações em que
do desenho in situ se comportam como o que aparece não é o simulacro perdido
referentes para a representação da paisa- do lugar, mas sim, a sua sobrevivência
gem e territórios específicos. endémica. A representação no limite do
Genericamente, quais os factores paradoxal, pelo desejo de representar o
de associação e/ou disjunção entre as ausente, consumada em imagens, acções
imagens e o que lhes dá origem? Parti- significantes, expressas na descontinui-
cularmente, com se inscreve o tempo na dade do tempo. Neste caso, a realidade
percepção e representação da paisagem? da imagem não será nunca redutível à
Metodologicamente procurou-se história; pelo contrário, a imagem mostra
o encontro com a experiência, livre de ao desenhador o que está em perda no
constrangimentos, capaz de fornecer objecto representado.

15
1472
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Graça Magalhães, Lugar ausente, 2019, 1000x700mm, grafite e tinta sobre papel

16
1473
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

nós não conseguimos tornou presente no cotidiano da popu-


EmMeio#11

ver o que aconteceu lação em meio aos desdobramentos do


we could not see what happened processo das eleições para presidência
em 2018. Como arcabouço estético for-
Performance Sonora - 15’ mal, o sensacionalismo e a carga emo-
cional de tensão e intriga são utilizados
como elementos experimentais de uma
Ianni Luna
espécie de não-narrativa. A temporalida-
de como dimensão causal é atravessada
A performance sonora “Nós não conse-
por deslocamentos que sugerem ruptu-
guimos ver o que aconteceu/ we could
ras contextuais gerando estranhamentos
not see what happened” de 2019, é um
e surpresas, na tentativa de abrir as possi-
trabalho que resulta de material de di-
bilidades de fruição e crítica.
versas fontes, como samplers, field recor-
A qualidade envolvente do fenô-
dings feitos em primeira mão e sintetiza-
meno sonoro, capaz de convidar às rea-
dores digitais. O material é apresentado
lidades paralelas, imaginativas; carrega
como performance sonora a partir de
uma potencialidade afetiva que tange as
material em áudio pré-produzido e ma-
subjetividades compartilhadas. Por meio
nipulado ao vivo através do software
do pensamento e imaginação sonoros
Ableton Live. Uma paisagem sonora fic-
a experiência adquire um caráter de ex-
tícia é construída por meio de elemen-
pansão. Expandimos o espaço imediato
tos sônicos que se sobrepõem como
em função de dimensões intangíveis. As
camadas de sentido que aos poucos se
artes do som condicionam um espaço
delineiam sem que uma linha narrativa
real e conceitual para imaginar outras
seja proposta em definitivo. Sonoridades
maneiras pelas quais as coisas são ou po-
sintéticas são mescladas a gravações de
deriam ser. Nesse sentido, propõe-se que
ambientes naturais em estúdio, a partir
as vivências auditivas em situação estéti-
de técnicas de pós-produção que se uti-
ca possam ser entendidas em termos de
lizam de efeitos digitais.
uma função produtiva de realidades po-
Um possível subtexto desse traba-
éticas, no que expandem os significados
lho se relaciona ao gênero reportagem
de como vivenciamos e compartilhamos
jornalística, que, frente aos acontecimen-
a realidade e a imaginação.
tos políticos do Brasil contemporâneo, se

17
1474
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

intenção de esconder os fios ou qualquer


Sensível Tecnológico
demonstração maquínica da escultura.
EmMeio#11

No ato de elucidar sua composição in-


Joana Burd
terna, existe a afirmação da manufatura,
em expor suas suas recomposições e co-
O impulso de ˜Sensível Tecnológico˜ é
lagens íntimas.
gerar estranhamento por ser uma mão
O interator é convidado a pres-
familiarmente “orgânica” transformada
sionar sua mão contra o objeto mão. Tal
em máquina, translúcida e vibratória.
ação comprime uma mola de metal e faz
No contrafluxo da obsolescência progra-
o objeto vibrar ao conectar seu circuito
mada esta obra reutiliza componentes
interno. A percepção da tatilidade vibra-
de dois telemóveis e de uma máquina
tória do sistema criado varia de acordo
de espremer laranjas. O material trans-
com a pressão e com o tamanho da área
lúcido (resina cristal) admite que não há
de contato.

Resina cristal, verniz vitral, mola de espremedor de


laranja, parafusos e dois motores vibracall.
35 x 35 x 40 cm

18
1475
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Accept / Messenger in a Mouth


Cuntemporary Artists Presents (Marne Lucas/Joanne Leah)
2018, 13 x 40” (33.02 x 101.6cm), archival pigment print on Hahnemuhle paper, mounted on Gatorboard (unfra-
med) $2500, edition 1/5

‘Wet
Wet Passenger:
Passenger visual qualities that water possesses for its
Duncan, about twin girls and astral pro-
An Amniotic Utopia’
EmMeio#11

transparency, depth, reflections, and are


jection. I started to ‘practice’ leaving my
2CUNTEMPORARY
channel video, photography. simultaneously attracted to the visceral
ARTISTS PRESENTS body as I fell asleep at night.”
wetness, and life-giving or destructive
Joanne Leah and Marne Lucas She is expanding on a body of work
properties of H2O in connection to the hu-
(USA)
CUNTEMPORARY ARTISTS PRESENTS titled, Acid Mass. The series is inspired by
man body. We aesthetically married two
Joanne Leah and Marne Lucas her own personal experiences with the
images, one from each of our solo work,
Joanne Leah’s work is about sensation, unreal, by acts of rebellion and psychede-
(USA) as a dialog between the images that have
wanting the viewer to feel what her lic voyeurism that she repeated frequently
elicited negative responses and emotion-
subject feels using their own sensual in- as a teen. “The acid mass of my adoles-
‘wet passenger: an amniotic utopia’ cele- al reactions from the public. The merged
terpretations. Leah grew up with an es- cence would begin on a Saturday night,
brates the aesthetic of the human body images express birth, duality, intimacy,
tranged/strange relationship to her own taking LSD and going to a rave that would
within watery landscapes in response to experimentation and wonder. The images
body: “I have always felt awkward and last until early Sunday morning, when my
society’s emotional reactions to bodily themselves become proof of a vulnerable
clumsy in my body. In third grade I had mother would force me to go to Catholic
functions, feminine sexuality, and cul- act, between skin and viscera, exhibition-
an intense growth spurt and was sud- church, not realizing I was hallucinating.
tural re-interpretations of the body. Our ist and voyeur, public and private; subtly
denly the tallest in my class. Throughout My work is based on my perception of
individual photography and video work referencing our collective fear of the un-
the rest of my childhood and adolescen- that experience: ritualistic, cultish, surreal
often receives critique as being too eerie, known lurking below the surface.
ce, I struggled with some level of body and somewhat violent. By freeing oursel-
sexual, or grotesque. We find the body Keywords: contemporary photography,
dysmorphia and often fantasized about ves from these constraints of physicality,
to be arresting, including its biology and emotional response, feminist art, the
being someone else. I would repeate- we vividly bend and lurch into new struc-
histories, and share a fascination with the body, water
dly check out the book from the school tures. I continually experiment with enga-
library, Stranger with My Face, by Lois ging in methods of bodily detachment.”

19
1476
Accept / Messenger in a Mouth
Cuntemporary Artists Presents (Marne Lucas/Joanne Leah)
2018, 13 x 40” (33.02 x 101.6cm), archival pigment print on Hahnemuhle paper, mounted on Gatorboard (unfra-
med) $2500, edition 1/5
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

‘DeepPassenger
Wet See’ Duncan, about twin from
girls and astral pro-
visual worlds hidden our perception
EmMeio#11

Thermography as an Art Form jection. I started to ‘practice’ leaving


in eerie black and white infrared video and my
CUNTEMPORARY ARTISTS PRESENTS body as I fell asleep at night.
photography that transports the viewer”
Joanne Leah and
Marne Lucas Marne Lucas
(USA) into an She is expandingspace.
otherworldly on a body of work
Thermogra-
(USA) titled, Acid Mass. The series is
phy visualizes the surreal beauty of our inspired by
‘Deep See’ explores thermography as a her own personal experiences
temporal coalescence of ancient stellar with the
Joanne
way to Leah’s workinvasive
reference is aboutsurveillance
sensation, unreal, by
energy, acts of on
drawing rebellion and psychede-
analogies about the
wanting the viewer to feel
culture and the fragility of humanity. what herI lic voyeurism that she repeated
universe- that we are truly beings frequently
of light.
subject feels using their own
use military-grade infrared imaging tech-sensual in- as a teen.
Actual “The temperature
surface acid mass of changes
my adoles- in
terpretations. Leah grew up with
nology for the surreal beauty it reveals an es- cence would
corporeal andbegin on aobjects
inanimate Saturday arenight,
seen
tranged/strange
and address issues relationship to her own
of public surveillance taking
in LSD and
real time, heatgoing to a white,
appears rave that andwould
cold
body: “I have always felt awkward
practices that are changing human inter- and last until early Sunday morning,
or wet areas are black, there are no spe- when my
clumsy in my body. In third grade
action in creative and philosophical ways; I had mother would force me to go to
cial effects. Infrared surveillance cameras, Catholic
an intense
a subtext growth
is our spurt
(c)overt and wasofsud-
acceptance the church, notand
binoculars realizing I was hallucinating.
rifle scopes are both the
denly the tallest in my class.
electronic villain into our lives. Throughout
Contem- means of digital imagemy
My work is based on perception
capture and theof
the restart
porary of constructs
my childhood and adolescen-
are important ways that experience:
aesthetic itself. ritualistic, cultish, surreal
ce, I struggled with some level of body
to depict aesthetic beauty, social/political and somewhat
Keywords: violent. By freeing
contemporary art, oursel-
birth,
dysmorphia
ideas and provideand often
a new way fantasized about
of perceiving ves from these constraints
menopause, surveillance culture, of physicality,
thermal
being someone else. I would
the Self. ‘Deep See’ offers a glimpse into repeate- we vividly bend and lurch into new struc-
imaging.
dly check out the book from the school tures. I continually experiment with enga-
library, Stranger with My Face, by Lois ging in methods of bodily detachment.”

19

‘M(other) Universe'. Marne Lucas, 2018.


(40.64 x 50.8) 16 x 20”, black and white infrared video stills, as archival
pigment print on Hahnemuhle paper.

1477
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

distribui a dor por toda a perna, sendo o


Péformance – performan-
pé o lugar que mais me faz reclamar.
EmMeio#11

ces feitas com os pés Perdi força e músculos na perna,


Péformance – feet performances que afinou depois da crise de 2018 e não
deve voltar ao que era antes disso. Não
João Vilnei de Oliveira Filho consigo correr (ainda) e tenho, com algu-
ma frequência, espasmos que não con-
Em março de 2018, fui diagnosticado trolo, em diferentes partes da perna.
com uma hérnia volumosa na lombar, A série que compõe a “Péformance
entre as vértebras L5 e S1. Os três orto- – performances feitas com os pés” apre-
pedistas que viram a minha ressonância senta, no meu canal do Youtube, vídeos
magnética foram unânimes: em casos dos meus pés fazendo o melhor que po-
como o meu, a recomendação seria ope- dem para serem meus pés,. No #18ART,
rar. Imediatamente. minha expectativa é fazer, durante os dias
Não operei. Desde 2018, trato com de evento, transmissões ao vivo dos meus
fisioterapia, pilates, analgésicos, acupun- pés em ação, caminhando pelo espaço
tura e alongamentos uma condição física do congresso, enquanto um ecrã, ligado
que me limita os movimentos e faz-me à internet, reproduz a imagem da trans-
sentir dores constantes no pé esquerdo. missão. No final, os vídeos realizados no
O nervo pressionado, na altura da lombar, #18ART farão parte da série, no canal..

21
1478
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

acomodando em outras partes da cida-


Marcha-vaga
de, como o Lago Sul. Chegar ao Setor
EmMeio#11

[Grupo Vaga-Mundo: Poéticas Nômades]


de Embaixadas já exige uma certa pro-
gramação. Não há acesso simples, nem
Karina Dias; Júlia Milward;
transporte público. Nos organizamos em
Ludmilla Alves; Levi Orthof;
Iris Helena; Luiz Olivieri; caronas, carros particulares e/ou táxis e
Tatiana Terra; César Becker; aplicativos de transporte. Temos cader-
Luciana Paiva nos e máquinas fotográficas em mãos.
Sapatos confortáveis para caminhar,
Ao longo de 1080 dias, o grupo Grupo chapéus, lanches, óculos escuros. Olhos
Vaga-mundo: poéticas nômades (CNPq) secos. Escolhemos os meses mais secos
teve como objetivo realizar uma volta ao pois não há abrigo para a chuva nesses
mundo, sem sair de Brasília, o que com- percursos, nem para o sol… Nos movía-
preendeu expedições a pé aos Setores mos em distâncias que se dilatavam ou
de Embaixadas Sul e Norte da cidade. contraíam de acordo com o calor e a bai-
Durante três anos caminhamos juntos, xa umidade relativa do ar.
estrangeiros no próprio território percor- Caminhamos, portanto, à margem
remos distâncias variadas pela cidade- desta representação de mundo oficial
-mundo. Um dos pontos de partida para que é o setor de embaixadas. Nossa volta
que a expedição do grupo ao redor do ao mundo foi uma volta ao redor, na bor-
setor de embaixadas ganhasse contorno, da, no limite de encontro entre territórios
foi a obra Volta ao Mundo em 80 dias, de determinados pelas ásperas fronteiras
Jules Verne. Observamos o mapeamen- físicas que demarcam cada um dos espa-
to das embaixadas no plano de Brasília. ços simbólicos que percorremos.
A maioria situa-se no setor de embaixa- Nossa caminhada-contorno recor-
das, outras, porém, surgiram e foram se ta o espaço sem deixar marcas rígidas:

22
1479
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

algumas pegadas, olhares lançados e pela cidade-mundo, compreendemos


desviados. Medimos a extensão do cami- que o espaço se desenhava em função de
nho em cansaço e algumas horas, horas nossos deslocamentos e de nossos afe-
que viraram dias que, por sua vez, vira- tos. Enquanto cruzamos fronteiras ima-
ram alguns anos de conversas e observa- ginadas nessa geografia vivida, inventa-
ções, de algumas coletas e registros, mas, mos o nosso passo, uma marcha-vaga. A
principalmente de inúmeros encontros. vídeo-projeção Marcha-vaga apresenta
Aos poucos surge a dimensão do espaço então um corpo-coletivo em movimento
recortado por esse corpo coletivo e ela que, para se deslocar, necessita manter
cabe em uma maquete que pode ser se- a cadência dos passos, o equilíbrio dos
gurada entre as mãos. corpos e o desejo de permanecer junto.
Durante esses três anos caminha- Nessa experiência sensível do espaço,
mos juntos, estrangeiros no próprio ter- criamos lugares, ganhamos terreno (HO-
ritório percorremos distâncias variadas CQUARD, 1997: p.11).

23
1480
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Film still, Remembering the Unknown/ Lembrando o Desconhecido (2019)

trauma. Text animations and manipula-


Lembrando o
ted still images resonate and brings to-
EmMeio#11

Desconhecido (2019) gether poetic and philosophical accou-


Remembering the Unknown (2019) nts and themes expanded in the paper
– Writing in Body – The Dark Matter of
Kathleen Rogers the Genome. Working from site specific
expanded black and white photography
Video installation composed as 4 x 10 the work offers a subjective account of
minute photo/poetic/essays with dyna- how photography and traumatic events
mic typographic elements representing might share a common structure.
an experiment in life writing based on Producer/Director – Kathleen Ro-
post-genomic epigenetic research into gers with sound design based on compo-
the trans-generational transmission of sitions by Z’ev.

24
1481
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

• Pedra de diamante
Medicamento
• Água mineral
EmMeio#11

Antroposófico: • Cristais de granada (grãos de areia da


MARavilha Curativa, Praia Vermelha-RJ)
2017/2019 • Água com sal marinho

Krishna Passos

Fig. 2: Água sendo irradiada. Fig. 3: Água com sal,


cristais de granada e água com o diamante e os
cristais em seu interior, para ser ingerida antes do
processo.


Fig. 1: A pedra de diamante usada e os grãos de
Segue abaixo a transcrição das
cristal de granada orientações para a participação. Os pro-
cedimentos e explicação sobre o trabalho:
As potencialidades que temos abordado A sessão de imersão extrassenso-
no decorrer dessas reflexões nos levaram rial foi preparada convergindo diversos
ao projeto de experiência extrassensorial: tipos de frequências, ondas, vibrações e
Medicamento Antroposófico – MARavi- radiações, perceptíveis e imperceptíveis,
lha Curativa. Partindo de uma formulação manifestas nos elementos e forças da na-
intuitiva, nela se cruzam processos misci- tureza selecionados – no caso, forças do
genados que abrangem correntes filosó- mar e de minerais - conhecidas e usadas
ficas, religiosas, artísticas, sensoriais e de há milênios em diferentes culturas, por
autoconhecimento. Para isso o processo suas potencialidades terapêuticas, míti-
envolve princípios da meditação, da alqui- cas, e sagradas.
mia, das notas de Solfeggio, da arte sonora,
da radiestesia, dentre outros, considerados Indicações
aqui, como razões universais, independen-
Leia atentamente as orientações; as-
temente de suas origens ou de racionaliza-
simile somente aquilo que fizer sentido para
ções que os expliquem.
você, participando desse momento apenas
Como elemento fundamentais para
se você se sentir confortável para isso.
o processo foram usados:
Partindo do principio de que os
• Gravações sonoras de ondas do mar ba-
pensamentos e as intenções tem força
tendo contra a Pedra do Arpoador
e poder e de que “uma parte contém
(RJ) em dia de mar revolto (2017).
a essência do todo assim como o todo

25
1482
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

contém a parte”, você poderá usufruir 7 – A força e o caráter das suas intenções
dessa sessão para obter diversos benefí- serão determinantes para o processo. In-
cios: desde a fruição artística e contem- tencionalmente, mentalize os benefícios
plativa, e o fortalecimento de propósitos não materialistas que você almeja para
pessoais de elevação da consciência, até si, entes queridos e demais seres. Repita
a limpeza de corpos sutis, promovendo o para si internamente
realinhamento psíquico e emocional. 8 – Tire os calçados
9 – Em silêncio, deite-se ou sente-se
Instruções de uso confortavelmente no interior do espaço
e acomode-se tranquilizando os pensa-
Preparação
mento.
1 – Desligue o celular e esqueça-o duran-
Durante a sessão:
te o processo
- Mantenha os olhos fechados
2 – Coloque o aparelho junto aos seus
- Respire pausadamente
pertences, e estes, em local seguro pre-
- Conecte-se apenas com os sons do mar
viamente indicado
- Aproveite o momento para estar ali, pre-
3 – Molhe o dedo na água com sal ma-
sente e plenamente consciente
rinho
- Entregue-se `a experiência e procure
4 – Toque com o dedo molhado os grãos
não se fixar em nenhum pensamento.
de areia, composta de cristais de granada
Quando eles vierem, deixe que passem
5 – Coloque o dedo com os cristais no
- Caso você se distraia, tudo bem: sorria,
topo da cabeça, bem no centro, deposi-
respire fundo e reinicie `as instruções acima
tando alguns grão ali
- Quando o som silenciar totalmente, vol-
6 – Tome um pouco da água fluidifica-
te sem pressa, abra os olhos lentamente,
da com cristal de granada e diamante;
retornando os movimento aos poucos
adormecidos ao relento, em noite de lua
percebendo os benefícios recebidos
nova, e irradiados com a frequência de
528Hertz durante 5 horas

26
1483
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Sim, não, talvez máscaras moldadas a partir de seu rosto.


EmMeio#11

O vídeo foi produzido por meio de várias


Leandra Carvalho fotografias sequenciais - técnica chama-
da stop-motion-, criando a sensação de
Ano: 2018
um movimento mais mecânico em re-
Vídeo-performance (stopmotion)
Tempo: 2 minutos em loop
lação aos gestos normais realizados por
um corpo humano, remetendo, assim, a
“Sim, não, talvez”, projeto enviado para imagens de manequins ou robôs.
participação na exposição do #18.ART , Na medida em que se veste com
trata-se de um vídeo realizado em 2018. máscaras feitas a partir do próprio ros-
Sua imagem, de certa neutralidade for- to, a artista se mostra e se esconde ao
mal, mostra a parte superior de um cor- mesmo tempo. No trabalho, o distancia-
po centralizado em um cenário vazio de mento da identidade desse corpo vai se
fundo infinito branco. A parte inferior do dando em camadas. Um primeiro distan-
corpo não é mostrada, assim como an- ciamento seria marcado pela pose formal
tebraços e mãos. O corpo veste blusa de que o corpo assume diante da câmera
botão branca e máscaras. - esse representante do outro. Um segun-
Durante o vídeo, esse corpo se mo- do, dar-se-ia a partir da máscara – objeto
vimenta de um lado para o outro man- ambíguo que mostra e esconde. Um ter-
tendo seu eixo centralizado, numa ação ceiro, a partir da fotografia que transfor-
repetitiva de gesto bastante mecânico. ma o conjunto em imagem. Um quarto,
A cada mudança de lado, vemos sobre seriam as imagens que, em sequência,
o rosto uma máscara diferente que vai criam a sensação do movimento.
se modificando constantemente a cada Em linhas gerais, o trabalho vai tan-
virada. Cada máscara traz uma expressão genciar questões de auto representação,
facial distinta e de fácil identificação. de identidade, para abordar também
Para este trabalho, a artista parte pontos como a padronização e mecani-
do próprio corpo como matriz, sendo as zação dos corpos e das emoções.

27
1484
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

case the style was developed by techni-


Style as meaning –
cal experiments, my personal affinity for
EmMeio#11

case postage stamp historicism and melancholy as well as the


design process stylistic inspiration from earlier works like
Dutch vanitases of 1600’s and the natural
Leena Raappana-Luiro history illustrations made by Ernst Hae-
ckel at the turn of the 20th century. In the
By my works, I want to show the process context of Valentine’s Day postage stamp
that led me to create the style of Valenti- design I had to adapt my style – already
ne’s Day postage stamps of Finland 2018. developed in the fine art context – to
The process started in 2016 as a fine art the commercial interests of the client.
practice – an exhibition – containing By changes in modes like colour and
prints and works combining glass, natu- composition the overall mood of design
re objects and drawings /digital collages. changed from an ambiguous melancholy
After the exhibition, I took part in a pos- to a fairy tale fantasy.
tage stamp contest arranged by Posti
Group, Grafia – The Associ- ation of Visu-
al Communication Designers in Finland
– and Kuvittajat – The Finnish Illustration
Association. As a consequence, I was com-
missioned to design the set of five Valen-
tine’s Day postage stamps to Posti Group.
As Steven Skaggs (2017, xiv) notes
`The graphic design studio provides an
ideal laboratory for semiotic concepts´.
My exhibition presents part of my docto-
ral research which is – for its part – a com-
bination of artistic - /design parts and
research articles. The focus of the rese-
arch is to study, how a fictive illustration
makes meanings and moods through a
multimodal interaction with the typo-
graphy, colour, style and the used media
along with materiality (See Van Leeuwen
2007; Kress 2010).
Style can be regarded as an impor-
The last day of September (2016).
tant semiotic resource (Nodelman 1990,
Art poster (detail).
60; Siefkes & Arielli 2018, 169). In this

28
1485
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Des-invenções
EmMeio#11

Dis-inventions

Luciana Maia Coutinho

Os vídeos apresentados (“Des-fazer” e “A The featured videos (“Des-fazer” e “A Mu-


Mulher”) fazem parte de uma série de lher”) are part of a series of ‘techno-poetic
‘ensaios tecno-poéticos’ ou ‘quase-poesia essays’ or ‘machinic quasi-poetry’. As a re-
maquínica’. Fruto de um trabalho mais sult of a broader work, they are the recor-
amplo, são o registro, sob a forma de ding, in the form of a screen capture, of an
captura de tela, de uma interação no ato interaction in the act of performing a kind
da ‘performance’ de uma espécie de jogo of distorted echo game between the artist
de ecos distorcidos entre a artista e o site and the machine translation site. Chance,
de tradução automática. O acaso, aqui, here, is dear material precisely because it
é tratado como material caro justo por is always beyond me and my invention.
estar sempre além de mim e de minha The gesture that observes and captures
invenção. O gesto que observa e captura the moment ‘de-scripts’ or ‘de-routines’
o instante ‘des-roteiriza’ ou ‘des-rotiniza’ the routine, revealing hidden layers of the
a rotina, revelando camadas ocultas do non-extraordinary. The ‘anexact’ through
não-extraordinário. O ‘anexato’ através precision, the surprising through the pro-
da precisão, o surpreendente através grammed. It would be possible to borrow
do programado. Seria possível tomar de Manoel de Barros’s (https://www.revista-
empréstimo a inventividade didática de prosaversoearte.com/manoel-de-barros-
Manoel de Barros (https://www.revista- -poemas/, recuperado em 07, outubro,
prosaversoearte.com/manoel-de-barros- 2019) didactic inventiveness as a contem-
-poemas/, recuperado em 07, outubro, porary quasi-motto when the poet gives us
2019) como um ‘quase-lema’ contempo- the cue in a subtle manifesto calling us to
râneo, quando o poeta nos dá a deixa em “desinvent objects”.
tom de sutil manifesto convocando-nos a Keywords: Art, Process, Video, Poeti-
“desinventar objetos”. cs, Technology.
Palavras-chave: Arte, Processo, Ví-
deo, Poética, Tecnologia.

29
1486
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

o céu na terra
EmMeio#11

heaven underneath

Luciana Ohira; Sergio Bonilha

Agostinho da Silva (Oporto, 1906 Agostinho da Silva (Oporto, 1906 - Lisbon,


– Lisboa 1994), problematizando o pre- 1994) describes in several philosophical
sente, abordou diversas vezes a singula- essays the “Festa do Divino” as some-
ridade da “Festa do Divino”, celebração thing very unique because it doesn’t refer
de um mundo futuro e não do passado, to an event in the past but for a world to
visando a preparar-nos para uma utopia come, an utopic future where no one will
(Céu-na-Terra) onde não haja desigual- be oppressed or live under unequal con-
dade nem opressão. Numa das “Con- ditions. Invited to take part in a special tv
versas Vadias” (RTP, 1990) Agostinho series titled “Conversas Vadias” (RTP, 1990),
dissera: “me parece é que vamos entrar Agostinho argued about this celebration
numa coisa parecida à que os portu- as the following: “What seems to me is
gueses e alguns italianos intitulavam that we are going into something like the
de Idade do Espírito Santo. Em primeiro utopia that the Portuguese and some Ita-
lugar, a Idade em que as crianças cres- lians called the Age of the Holy Spirit. First,
ceram tanto que a sua espontaneidade this is an era in which children grew to the
e capacidade de sonhar nunca se extin- point that their spontaneity and ability to
guisse e um dia fossem capazes de di- dream became in#nite in a way that those
rigir o mundo. Em segundo que a vida capabilities will be able to guide the world.
fosse gratuita”. Todavia, passados trinta Second, from now on life will be more and
anos, não parece que estejamos tão more free of charge.”. 30 years past, it looks
perto desse futuro entrevisto por Agos- like we are not even close to this utopia…
tinho... A instalação “o céu na terra”, So, “heaven underneath” is an invitation
pautando-se na experiência imanente for questioning through an immanent way
da simples observação dos pássaros sil- of being at the world what means paying
vestres, propõe uma reflexão acerca da more attention over commons and liberty
pertinência dessa antiga utopia. than over property and robbers.
Palavras-chave: Agostinho da Silva, Keywords: Agostinho da Silva, Com-
Comum, Festa do Divino, Neoliberalismo, mons, Festa do Divino, Neoliberalism, Orni-
Ornitologia. thology.

30
1487
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Estratégia imanente Mas por que observar pássaros?


Dardot e Laval, em “A Nova Razão Aves silvestres, além de serem em-
do Mundo”, argumentam que o neolibe- pregadas como alegorias da liberdade e
ralismo exerce tamanho controle sobre do Divino Espírito Santo, exemplificam
anseios individuais que apresenta-se bem o conceito de não-propriedade
como um modo natural das coisas; ve- debatido por Michael Hardt em “O Co-
mo-nos como empresas, de modo que, mum no Comunismo”. Então, diante das
nem o ócio está imune a tal pensamento câmeras de segurança, ao substituirmos
econômico e será também guiado por suspeitos por aves livres e vigilância da
noções de desempenho/sucesso. propriedade pela contemplação de com-
A presente proposta pretende tor- mons, esperamos produzir uma metáfora
nar visível tal contexto e questioná-lo imanente do livre viver.
com uma abordagem tão prática quanto Voltando à “Festa do Divino”, se um
a filosofia de Agostinho da Silva. Utilizan- evento nos dá oportunidade de experi-
do-se de dispositivos cotidianos (mobili- mentar uma utopia, o quê ou quem nos
ário urbano, redes telemáticas e sistemas impede de prolongar essa experiência
de vigilância) construirá áreas de ócio de- para o futuro?
dicadas à ornitologia.

Croquis da vista geral.


31
1488
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

partido, no Rio de Janeiro e seu carro foi


Relações Intercorporais
surpreendido com 13 tiros, onde 4 atin-
EmMeio#11

gem Marielle e 3 atingem seu motorista,


Luciano Mariz
Anderson Gomes, levando-os à óbito.
Neste contexto político-social, observa-
O videoperformance Relações Intercor-
-se um tom de lutas de poder e de rela-
porais é um trabalho experimental do
ções brutais que as tensões políticas e
artista Luciano Mariz mediante pesquisa
sociais podem provocar, apresentando
que está realizando e que busca compre-
uma guerra de classes e uma luta de es-
ender os fenômenos existentes entre o
truturas de poder.
corpo do performer e o corpo da câmera
Relações Intercorporais foi realiza-
em ação performática durante as gra-
do mediante uma ação performática que
vações dos videoperformances. A obra
induz os corpos para um estabelecimen-
foi realizada no contexto político-social
to de relações onde são colocadas em
de 2018 onde as relações de choque de
espaço de performance, estruturas de
visões políticas sociais e econômicas re-
poder que são impostas e sujeitadas por
sultaram no assassinato da vereadora
corpos humanos e não-humanos. Estas
Marielle Franco da Silva. O videoperfor-
relações de poder entre os corpos na ação
mance apresenta uma metáfora destes
são vistas como metáfora das relações de
choques de relações entre corpos e obje-
poder que acarretam em atos de violência
tiva experimentar as potencialidades do
e imposição de poder mediante ação de
corpo-câmera e como este pode afetar o
intimidação das estruturas dominantes de
corpo e as ações do performer.
poder em detrimento das forças encontra-
Relações Intercorporais é um tra-
das nos movimentos sociais e sua ameaça
balho experimental em videoperfor-
à desestabilização deste sistema.
mance que propõe observar as relações
Com estes corpos em ação, ob-
corporais e intelectuais do homem com
servam-se as possibilidades, tensões, in-
os objetos técnicos e toda tecnologia
tenções e disparidades próprias de suas
vigente no fluxo contemporâneo da so-
naturezas, observamos um espaço de
ciedade. Neste trabalho, observa-se um
performance onde corpos que se digla-
performer que se coloca enquanto corpo
diam e violam as bordas espaço-tempo-
biológico na ação e divide esta com um
rais em atos e gestos. Estes atos perfor-
corpo tecnológico presente e atuante no
máticos são provocadas pelas tensões
processo criativo para elaboração do vi-
dos corpos em ação de performance, mo-
deoperformance: a câmera.
tivadas pela relação de jogo implementa-
A realização desta obra acontece
da como dinâmica da ação e observando
mediante o contexto político-social do
a abertura entre os corpos-jogadores
assassinato da vereadora, defensora dos
performáticos em ação.
direitos humanos Marielle Franco no dia
O vídeo encontra-se dividido em
14 de março de 2018, quando se encon-
duas partes, a primeira parte compreende
trava em trânsito após um evento de seu

32
1489
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

um preâmbulo do videoperformance e no registro audiovisual realizado pela câ-


apresenta um registro quase documental mera e todo o conjunto técnico que foi
do processo, apresentando os momentos constituído. Esta parte trata de um plano
que precedem a ação, é um registro do sequência do jogo instituído entre os
espaço físico e do processo de instituição corpos e apresenta uma congruência de
do espaço performático. ações e impressões dos corpos que es-
A segunda parte do vídeo, compre- truturam toda a obra audiovisual em um
ende no videoperformance que consiste processo de auto-organização.

33
1490
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

reflexão sobre a vivência da Imagem e a


Terra Sem Sombra | sua possível interpretação como constru-
EmMeio#11

Ceridween ção “objeto do real” em lugar de projeção


subjetiva do mesmo, num mundo ligado
Ludmila Constantino da inevitavelmente à imagem.
Silva Queirós A partir da ideia da filmagem ob-
sessiva (288 vídeos) do meu quotidiano
Perscrutar na vida alheia retalhos da pró- e da sua intenção de partilha, abordando
pria memória, uma memória efémera, a ideia de transgressão, entre a linha que
curta, sem lastro. Uma vida/memória feita separa o privado do público.
de imagens que se confundem entre o es- Está presente a ideia da vida líqui-
paço privado e o público, entre o pessoal da, fragmentada, um quotidiano perscru-
(próprio) e o alheio num mundo virtuali- tado constantemente (“à lupa”) por tudo
zado (ligado por uma rede sem pele). e por todos. As redes sociais e do mundo
Há cada vez mais “janelas” onde que sistematizam a rotina do quotidiano
podemos/procuramos olhar e neste “lu- como uma agenda global de todos e para
gar” a vivência das relações assemelha-se todos desempenham um papel ativo
cada vez mais a estática, ruído visual. nesta procura constante.
Esta instalação audiovisual tem O Tempo e a Memória diluem-se,
como base de construção conceptual a perdendo lastro.

34
1491
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Entre-inscrições:
EmMeio#11

reflexões sobre gesto


e silêncio
Ambivalent inscriptions: reflecting on
gesture and silence

Marcelo Gonçalves Ribeiro;


Julie de Araujo Pires

A mesma base de validação da Língua The same validation basis of Portuguese


Oral Portuguesa e da tipografia euro- Oral Language and the European typog-
péia podem formar pontos que apoiam raphy could form points that support some
alguns aspectos institucionais tradicio- traditional institutional aspects. In spite of
nais. Apesar disso, a possível variação that, the possible phonetic variation and
fonética e a realidade aumentada nos the augmented reality helps us to imag-
ajudam a imaginar constelações/mape- ine alternatives constellations/mappings:
amentos alternativos: alguns aspectos some almost imperceptible aspects in the
quase imperceptíveis nas anotações de fragment annotations corresponds to the
fragmentos correspondem à voz e às lin- voice and the sign languages (LGP and
guagens de sinais (LGP e Libras), indica- Libras), indicated by sound and gesture.
das por som e gesto. Desenhos, palavras, Drawings, words, sound and gestures are
sons e gestos são iguais aos pontos em the same as the points on a map and those
um mapa e essas combinações podem combinations can affect or be affected by
afetar ou serem afetadas por processos processes occurring in virtual spaces and in
que ocorrem em espaços virtuais e em our ordinary lives.
nossas vidas cotidianas. Keywords: deafness, gesture, lan-
Palavras-chave: surdez, gesto, lin- guage, affection.
guagem, afeto.

35
1492
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Tap Drawing
EmMeio#11

Margarida Bezerra Bastos

Pensar um exercício de desenho é ex- To think of a drawing exercise is to experi-


perimentar uma forma de fixar, mesmo ment with a way of fixing, even temporari-
que temporariamente, um gesto, repe- ly, a gesture, repeated or not in time with a
tido ou não no tempo com um certo certain rhythm, weight, cadence, and se-
ritmo, peso, cadência e sequência, uti- quence, using ways to share these temporal
lizando formas de partilhar essas ações actions. In dance I do the same, but I draw in
temporais. Na dança faço o mesmo, mas the air or on the floor, often leaving only the
desenho no ar ou no chão deixando na reverberation of the sound I make.
memória muitas vezes apenas a rever- Tap Drawing consists of 8/9 draw-
beração do som que produzo. ings made by tap dance technique com-
Tap Drawing consiste em 8/9 dese- plemented by the sound that the shoes re-
nhos realizados pela técnica de sapateado produced when drawing. The process used
complementados pelo som que os sapa- to obtain the drawings was the repetition
tos reproduziam ao desenhar. O processo of dance sequences upon agglomerations
utilizado para obter os desenhos foi a re- of dry powdered materials, which by the
petição de sequências de dança em cima repeated strokes produced the progressive
de aglomerações de materiais secos em removal of the pigments / graphite leaving
pó, que pelas ações percutidas em repeti- a clear trace of the insistent gestures.
ção produziam o afastamento progressivo The media has different sizes and
dos pigmentos/grafite deixando um rasto consistency (different weight paper, can-
evidente dos gestos insistentes. vas fabric, cardboard ...., k-line and back-
Os suportes tem diferentes tama- drop paper) where different branded ma-
nhos e consistência (papel com grama- terials were used (blue pigment, charcoal
gens distintas, tecido de tela, cartão ...., powder, graphite powder and even the
k-line e papel de cenário) onde foram metal of the sole and heel of the tap shoes
utilizados diferentes materiais que pro- that left a small texture on the bracket,
duziam marca (pigmento azul, pó de making it look like a scarring where the
carvão, pó de grafite e inclusive o metal pigments were inscribed.
da sola e tacão dos sapatos de sapateado Keywords/Palabras clave/Mots clefs:.
que deixavam uma pequena textura no Tap-dance, Drawing, Tap, Sound, Music
suporte fazendo como que uma cicratiz
onde os pigmentos se inscrustavam).
Palavras-chave: Sapateado, Dese-
nho, Batimentos, Som, Música

36
1493
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

37
1494
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Espacios de tránsito
EmMeio#11

MarGarrido

La videocreación Espacios de Tránsito FICHA TÉCNICA


(00:02:48, H264, 1920 X 1080) es una re CATEGORÍA: VIDEOCREACIÓN-
exión personal sobre el antes y el des- VIDEOINSTALACIÓN
PAIS: ESPAÑA
pués, la percepción, la naturaleza, el
AÑO DE REALIZACIÓN: 2018
empo y la complejidad que encierran los SONIDO: COMPOSICIÓN SONORA REALIZADA
términos observar y representar. U lizo A PARTIR DE SONIDO DIRECTO EDITADO
la escalera como símbolo del límite, ale- Espacios de tránsito puede proyectarse como
goría de la memoria y elemento dinami- videoinstalación ó como videocreación
monocanal.
zador de contenidos y energías, no sólo
en el plano de lo concreto, sino también Imagen 1. MarGarrido_Espacios deTránsito.
como catalizador de la mirada interior. Imagen 2. MarGarrido_Espacios deTránsito.
Escaleras de tramo recto donde todo está
a la vista, pasado y futuro, con nuidad y
pausa. Escaleras de trazo curvo, repre-
sentación del n de lo visible. Escaleras
que en de ni va tratan de unir –como la
memoria- las partes de un todo irreme-
diablemente separado.
Lo transitorio y la fugacidad del
empo. Ese empo ausente que se nos
escapa entre dos imágenes, dos instan-
tes congelados entre los que se elimina
conscientemente otro momento.
Propongo la interrupción como
un espacio de silencio, escuchar para ex-
plorar el sonido, interrogar a la realidad
y ampliar nuestra percepción. Romper la
linealidad del relato.
Organizar las imágenes como si
fuera posible manipular el empo y hallar
las verdaderas ar culaciones de lo real.
Capturar, detener, recon gurar,
modi car los intervalos. Ralen zar, avan-
zar, retroceder.

38
1495
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Espacios de
EmMeio#11

tránsito-túneles

MarGarrido

La videocreación Espacios de Tránsito


(00:02:48, H264, 1920 X 1080) es una re
exión personal sobre el antes y el des-
pués, la percepción, la naturaleza, el
empo y la complejidad que encierran los
términos observar y representar. U lizo
la escalera como símbolo del límite, ale-
goría de la memoria y elemento dinami-
zador de contenidos y energías, no sólo
en el plano de lo concreto, sino también
como catalizador de la mirada interior.
Escaleras de tramo recto donde todo está
a la vista, pasado y futuro, con nuidad y
pausa. Escaleras de trazo curvo, repre-
sentación del n de lo visible. Escaleras
que en de ni va tratan de unir –como la
memoria- las partes de un todo irreme-
diablemente separado.
Lo transitorio y la fugacidad del
empo. Ese empo ausente que se nos
escapa entre dos imágenes, dos instan-
tes congelados entre los que se elimina
conscientemente otro momento.
Propongo la interrupción como
FICHA TÉCNICA:
un espacio de silencio, escuchar para ex-
TÍTULO: ESPACIOS DE TRÁNSITO
plorar el sonido, interrogar a la realidad CATEGORÍA: VIDEOCREACIÓN-VIDEOINSTALACIÓN
y ampliar nuestra percepción. Romper la PAIS: ESPAÑA
linealidad del relato. AÑO DE REALIZACIÓN: 2018
Organizar las imágenes como si SONIDO: COMPOSICIÓN SONORA REALIZADA A
fuera posible manipular el empo y hallar PARTIR DE SONIDO DIRECTO EDITADO
Espacios de tránsito puede proyectarse como
las verdaderas ar culaciones de lo real.
videoinstalación ó como videocreación monocanal.
Capturar, detener, recon gurar,
Imagen 1. MarGarrido_Espacios deTránsito
modi car los intervalos. Ralen zar, avan-
Imagen 2. MarGarrido_Espacios deTránsito: los puentes
zar, retroceder. Imagen 3. MarGarrido_Espacios deTránsito: los túneles

39
1496
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

de figuras ou textos. A ação performática


CamisetaPerformance:
se desenvolve em ambas as conexões
EmMeio#11

Vamos conversar sobre (presencial e em live) com o performer


feminicídio. deslocando-se em ambientes públicos
(ruas, sala de exposição, praça) vestindo a
Mari Moura camiseta com os dispositivos eletrônicos
ligados e chamando os espectadores para
A obra é uma camiseta/performance, ou conversar, com a frase: Vamos conversar
seja, uma vestimenta para ser usada numa sobre feminicídio! Essa performance toma
performance na qual, o corpo do artista e como inspiração a noção de intercorporei-
a vestimenta se entrelaçam para construir dade do filosofo Merleau-Ponty e a com-
a obra junto do espectador. A vestimenta putação vestível de Steve Mann, usando a
consiste numa camiseta preta com três internet das coisa para instaurar a brecha
bolsos transparentes em plástico vinil, do sensível e da onipresença do corpo
onde são colocados dispositivos eletrôni- como outro modo de ser no mundo. Du-
cos para interagir simultaneamente por rante o acontecimento da performance
meio de uma conversa com espectadores o dispositivo é prolongamento do meu
presenciais e espectadores “ao vivo”, live, corpo, somos, portanto, corpo-coisa, uma
em redes sociais, mas especificamente no certa penetração a distância de sensíveis
instagram: os espectadores presenciais na carne do mundo, nossa relação é inter-
são convidando-os para conversar sobre corpórea. Desse modo, o toque sensível
feminicídio explorando o toque sensível, na tela de um dispositivo pode ser uma
o arrastar e espectar a tela, já os especta- brecha do sentir com o outro, de como
dores on line são convidados a espectar a meu corpo pode despertar o próximo
conversa podendo interagir com comen- e o distante mediados por dispositivos
tários que podem ser textos escritos ou tecnológicos. Corpos que, aproximam-se
figuras. No bolso frontal da vestimenta pela criação de imagens e sons, alargando
é colocado um tablet para interagir com os sentidos de tempo, lugar e espaço. Eu,
espectadores presenciais por meio do uma mulher, permito que o outro toque
acessar a tela para ler notícias de mulheres meu corpo por intermédio da mediação
vítimas de feminicídio, já nos dois bolsos do toque sensível do espectador no dis-
laterais, localizados nas mangas da vesti- positivo, visto que, o toque no dispositivo
menta, são colocados smartphones co- passa a ser um toque no meu corpo, e ao
nectados “ao vivo” em redes sociais para in- mesmo tempo eu o toco por meio de uma
teragir com espectadores transeuntes que conversa sensível sobre um ato violento.
acessam a live e podem participar da con- Esse ato de afetar e ser afetado é suficien-
versa realizando comentários em formato te para constituir o sensível como um ato
artístico, estético e político.

40
1497
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

CamisetaPerformance: Vamos conver-


sar sobre feminicídio (2019). Registro
da performance sendo realizada no
SESC/GAMA – DF em Março de 2019.

CamisetaPerformance: Vamos conversar sobre feminicídio (2019). Registro da performance sendo realizada no
evento Elas por Elas/ Natal – RN em Agosto de 2019

41
1498
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Parede que respira


EmMeio#11

– protótipo 2 (2019)
Breathing wall – prototype 2 (2019)
Maria Ilda Trigo

Maria Ilda Trigo

Como sugere o título, corresponde à se-


gunda versão de um proptótipo que sur-
giu, inicialmente, como estudo para uma
futura instalação, mas acabou por trans-
formar-se ele mesmo em proposição ar-
tística. Trata-se de um objeto que simula
um ambiente composto por uma “parede
que respira”, ou seja, movimenta-se como
se inspirasse e expirasse.
É composto por uma base sobre a
qual estão instalados um suporte vertical
(“parede”) revestido com pelúcia, uma
miniluminária LED e, atrás do suporte ver-
tical, motor DC, responsável pelos movi-
mentos que simulam a respiração. Ao lado
do motor, estará instalada uma pequena
caixa de som que reproduz sons de ins-
piração e expiração, apropriados de sites
livres de compartilhamento de áudio.
A elaboração deste trabalho, no
contexto de minha pesquisa de mestrado,
resulta da percepção de que nenhuma
proposição artística oriunda da experiên-
cia com o arquivo fotográfico poderia al-
mejar uma pureza perdida. No lugar disso, Parede que respira – protótipo 2, 2019. MDF, pelúcia,
ela leva à composição de objetos híbridos, motor DC, miniluminária LED, acetato, caixa de som
usb (mini). 25 cm (altura) X 26 cm (largura) X 41 cm
impuros, por excelência multimidiáticos
(profundidade)
e altamente sensoriais, que solicitam do
espectador ser também afectados, como
antes dele eu fora, pelo arquivo.

42
1499
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Devir Self Celular


EmMeio#11

Becoming Celular Self

Maria Manuela Lopes

Devir Self Celular explora o potencial da Devir Celular Self explores the potential
arte como catalizador da ‘comunicação’ of art as a catalyst for ‘communicating’
da terminologia científica, problematiza- scientific terminology, problematizing the
dor das tensões entre bioética e tecno- tensions between bioethics and technolo-
logia e dos processos entre pesquisado- gy, and the processes between researchers
res (artísticos e científicos) e audiências, (artistic and scientific) and audiences, and
e como ela pode ajudar-nos a inovar, how it can help us innovate by looking
olhando para além das construções es- beyond aesthetic constructions that are
téticas que são dadas como certas nas taken for granted in the images. Evoking
imagens. Evocando a maravilha da des- the wonder of discovery offered by the te-
coberta oferecida pela tecnologia e pleas chnology and pleasures of the “new worl-
utopias dos novos mundos e oferecen- ds” and offering an ‘imagined’ view of the
do uma visão ‘imaginada’ da maquinaria spectacular biological machinery that
biológica espetacular que compreende comprises the core of our memories and
o cerne de nossas memórias e nosso es- our essential sense of self. This version is a
sencial sentido de identidade (self ). Esta fixation of the cellular being at a homeos-
versão é uma fixação do ser celular num tatic moment (in the words of Damásio) in
momento homeostático (nas palavras de which each presentation is sustained as a
Damásio) em que cada apresentação é result of a process of regulation by which
sustentada como resultado de um pro- an organism achieves or seeks the constan-
cesso de regulação pelo qual um orga- cy of its balance.
nismo consegue ou procura a constância Keywords:. Drawing, Biology, Ins-
do seu equilíbrio. tallation, Image, Experiment
Palavras-chave: Desenho, Biologia,
Instalação, Imagem, Experiência

43
1500
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Black Gold
EmMeio#11

Marta de Menezes; Hege Tapio;


Mark Lipton

Projeto colaborativo de Mark Lipton, A collaborative project by Mark Lipton, Hege


Hege Tapio e Marta de Menezes. Com o Tapio and Marta de Menezes.
objetivo de descobrir cristais amorfos e Inspired by experimental alchemists
inspirados por alquimistas experimen- like Henning Brand, a tedious and fowls-
tais como Henning Brand, 700ml de uri- melling process has taken place to create
na foram destilados de forma a criar esta this condensed liquid of black gold. Though
matéria escura. Já não sendo dourado, no longer golden, approximately 700ml of
um longo e minuncioso processo ocor- urine has been distilled down to dark mat-
reu de forma a criar o líquido condensa- ter. The project was initiated to see if we
do, ouro nego. could discover amorphous crystals.

44
1501
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

análises. Concluímos que nossos estudos


Percepções Efêmeras
estavam relacionados a uma outra gran-
EmMeio#11

Ephemeral Perceptions deza, a do espaço-tempo.


Assumimos a condição que a per-
Matheus Silva Lins; André cepção do tempo se dá através do pro-
Meireles Barbosa; Edson cesso de mudanças, o tempo é o que se
Magalhães Dantas
muda. Captar essas alterações é tentar
trazer fragmentos da temporalidade da-
O tempo é o que se muda
quele espaço, assim como, a efemeridade
O projeto Percepções Efêmeras nasce em
e singularidade de cada instante, o tem-
2012 desenvolvido por André Meireles
po não volta, e não podemos controlá-
e Matheus Lins. Inicialmente, seu objeto
-lo. A sensação de um pseudo domínio
de estudo estava relacionado a luz e sua
sobre esse tempo na interação com a
influência na percepção dos espaços e
obra é uma tentativa de fazer o público
objetos. Porém, percebemos que apenas
confrontar-se sobre seu próprio tempo e
a luz como elemento modificador não
sua insuficiência existencial perante ele.
comportava mais nossas inquietações e

45
1502
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Coexiste também a experiência sobre o conheça, uma conexão de imaginários e


recorte do lugar, em uma imersão, não tempos distintos.
para o tempo em que aquela cena foi Podemos dizer que a mudança é o
capturada, mas na criação de um novo que há de mais constante no projeto, em
tempo existente tão somente no contato 2018, junto com Edson Dantas, começa-
com a obra, na interação dos recortes e mos uma nova etapa, sentíamos que o
projeções do lugar pelo público. som era algo que faltava para uma imer-
Com isso, temos duas relações são maior do público. Então, inserimos a
em que exploramos conjuntamente, o criação de uma trilha sonora ao vivo atra-
tempo, no seu processo de mudança- vés de presets modificadores e paisagens
-transito-singular, e o lugar, como espa- sonoras previamente capturados e acio-
ço-vínculo das pessoas que ali o viven- nados por um joystick, com isso, o público
ciaram, mas também, para aqueles que passa também a co-criar o tempo do som,
o desconhecem, pois em ambos novos que em confluência com o tempo da ima-
imaginários são criados a partir dessa ex- gem, se desdobra em uma experiência de
periência, ou seja, há uma conexão com o unicidade temporal existente apenas na-
lugar pelo usuário, mesmo que ele não a quele momento, o tempo não se muda.

46
1503
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Insepulto Inhumatus
EmMeio#11

Unburied

Morika Reker; Gilberto Reis;


Sérgio Eliseu

Instalação em Realidade Virtual designa-


da por Insepulto Inhumatus. Uma segun-
da versão de um trabalho apresentado
por Moirika Reker, Gilberto Reis e Sérgio
Eliseu, exposto na sala da Porta 14, a San-
to a António, à Sé [Lisboa, Setembro de
2018]. Uma obra que conjugava a presen-
ça de ferro fundido e de video projecções
interactivas de imagens tridimensionais
geradas em tempo real. A nova versão
mantém uma iconografia funerária eté-
rea e situa-se o mesmo plano lumínico.
Todavia, apresenta-se agora numa ver-
são mais imersiva e apenas possível de
experienciar de forma individual através
de óculos de realidade virtual.
Palavras-chave: Instalação, Intera-
ção, Media Arte, Realidade Virtual.

“Insepulto Inhumatus Unburied”(Moirika


Reker, Gilberto Reis e Sérgio Eliseu, 2019),
versão RV Work in progress.

47
1504
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Horizonte Reverso
EmMeio#11

Reversed Horizon

Nivalda Araújo

Horizonte Reverso é um vídeo desenvol- Reversed Horizon is a video artwork


vido nas margens do Lago Paranoá em developed on the banks of Lake Pa-
Brasília. O trabalho investiga transições ranoá in Brasilia. It consists of atmos-
atmosféricas em uma paisagem domi- pheric transitions in a landscape do-
nada por água e nuvens; estas são de- minated by water and clouds – these
limitadas pela linha do horizonte e em are delimited by the line of the horizon
várias passagens se confudem, em um and in several passages are confused,
transbordamento que marca o horizon- in an overflow that marks the lands-
te da paisagem e o horizonte do espaço cape’s horizon and the horizon of the
geográfico. O movimento das ondas e o geographical space. The waves and
deslocamento das nuvens são pontuados its movements are punctuated by the
pelo barulho do vento, dos barcos e do noise of the wind, the boats and the
canto dos pássaros. A inversão de planos song of the birds. The inversion of ho-
horizontais provoca vertigem no olhar rizontal planes causes vertigo in the
contemplativo da sequência de devaneios contemplative look of the sequence.
múltiplos. A fluidez do tempo é observada The fluidity of time is observed by the
pela intensidade do lago iluminado com o intensity of the lake illuminated with
brilho e as cores da luz do sol nascente, the rising sunlight brightness and co-
proporcionando a experiência onírica de lors, becoming a dreamlike experien-
um movimento desmaterializante e de ce of dematerializing movement and
verticalização do tempo em que diversos verticalization of time in which several
elementos contrários formam uma unida- opposing elements form a unity. Year:
de. Ano: 2019. Duração: 4m1s. 2019: Lenght: 4m1s.
Palavras-Chave: videoarte; paisa-
gem; horizonte; percepção; espaço

Horizonte Reverso. Still do vídeo.

48
1505
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Em água salgada
EmMeio#11

afunda-se mais
devagarinho
In salt water it sinks slower

Olivia Matni

O tempo do olhar não é o mesmo que o The time of the gaze is not the same as the
tempo do desenho. time of the drawing.
Este trabalho resulta de uma inves- This work results from a practical
tigação prática que consiste em incursões investigation that consists of raids in the
no território que margeia as Salinas de territory that borders the Salinas de Aveiro
Aveiro onde emprego o desenho como where I use drawing as a vehicle for conse-
veículo para consecutivos atravessamen- cutive landscape crossing, motivated by my
tos na/da paisagem, motivada pelo meu interest in border territories (or interspaces)
interesse em territórios de fronteira (ou and ephemeral spellings. . In this process
entre-espaços) e grafias efêmeras. Neste it is necessary to walk and stop, to remove
processo é preciso caminhar e parar, tirar one’s head from the usual place, to traverse
a cabeça do sítio costumeiro, percorrer the space with one’s hands, ears and eyes,
o espaço com as mãos, os ouvidos e os and thus to see the multiple ramifications
olhos e assim avistar as múltiplas ramifi- of the unpredictable trails that arise in
cações das trilhas imprevisíveis que sur- the insistent and repetitive construction
gem na construção insistente e repetitiva of the horizontal cutout on the paper. To
do recorte horizontal no papel. Apre(e) apprehend the landscape by echoing, by
nder a paisagem por eco, por renúncia do renouncing the interior design, by the sou-
desenho interior, pelo som do site real e o nd of the real site and the sound of the gra-
som da paisagem gráfica que constroem phic landscape that build in communion
em comunhão uma espacialidade que a spatiality that the visible experience of
a experiência visível do desenho geral- drawing cannot usually embrace. Drawing
mente não consegue abraçar. O desenho is access and experience, it is a space that
é acesso e experiência, é espaço que an- longs to be tactile and is a gesture, almost
seia ser tátil e é de gesto, quase um dese- a drawing not to be seen, it is time for those
nho para não se ver, é tempo pra quem who allow themselves to be lost in it.
permite perder-se nele. Audio and visual installation. 6h32min
Instalação áudio e visual. Faixa de audio track; graphite in varying dimensions
áudio 6h32min; grafite em dimensões va- on white roll paper
riadas sobre papel branco em rolo. Keywords/Palabras clave/Mots clefs: Drawing,
Palavras-chave: Desenho, Som, Tempo. Sound, Time.

49
1506
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

50
1507
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Solidão V
EmMeio#11

Solitude V

Paulo Bernardino Bastos

Solidão V (ou Solitude Homem de Vitru- belief in the divine creation. Biology does
vio) faz parte de uma série. Entre todas not attempt to optimize design but relies
as espécies e nós, existe uma lacuna on permutations of extant technology to
aparentemente intransponível que reco- create new products (species), which then
nhecemos ao definir categorias. Somos exploit environmental niches. This work
semelhantes aos chimpanzés e isso foi explores traces of our rise from animal
reconhecido mesmo em uma época de status celebrating interspecies communi-
crença na criação divina. A biologia não cation and collaboration, discovery and
tenta otimizar o design, mas depende consciousness of our fragility and possible
de permutações da tecnologia existente fall. By conceptualizing collaborations with
para criar novos produtos (espécies), que other species, we are forced to question our
depois exploram nichos ambientais. Este self-proclaimed centered position in the
trabalho explora traços de nossa ascen- world, a position that has led to immense
são ao status animal, celebrando a co- destruction of the planet, as manifested by
municação e colaboração entre espécies, pollution, climate change and mass extinc-
a descoberta e a consciência de nossa tion of species.
fragilidade e possível queda. Ao concei-
tuar colaborações com outras espécies,
somos forçados a questionar nossa auto-
-proclamada posição central no mundo,
uma posição que levou à imensa destrui-
ção do planeta, manifestada pela polui-
ção, mudanças climáticas e extinção em
massa de espécies.
Palavras-chave: Escultura, Comuni-
cação entre-especie, Consciência.

Solitude V (or Solitude Vitruvian Man) is


part of an ongoing series. Between all spe-
cies and us lies a seemingly unbridgeable
gap that we acknowledge by defining cate- Técnica Mista (madeira folheada a ouro, vidro, latão
gories. We are similar to chimpanzees and e oil clay com pigmento) | técnica, 130x30x30 (inseri-
that has been recognized even in an age of do num circulo de 1m2) | dimensões, 2019.

51
1508
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

28, 29 e 30…
EmMeio#11

Ah! E, também,
27 do oito de 1988

Paulo Ivan Rodrigues Vega Júnior

“28, 29 e 30… Ah! E, também, 27 do oito “28, 29 and 30 ... Oh! And also, 27 of the
de 1988.” é um filme média-metragem eight of 1988. “It’s a half-length film (56
(56 min.), realizado a partir da apropria- min.), made from the appropriation of a
ção de uma found footage. Seu conteú- found footage. Its contentshow fragments
do mostra fragmentos do cotidiano de of the daily life of a family recorded during
uma família registrados durante os dias the days 27, 28, 29 and 30 of August of
27, 28, 29 e 30 de agosto de 1988. Esses 1988. These fragments, in addition to reve-
fragmentos, para além da revelação de aling fragments of familiar intimacy, evoke
estilhaços da intimidade familiar, evocam memories related to the 1980s and the
memórias relacionadas à década de 1980 transition to 1990s, the debate individual
e a transição para a década de 1990, o memory debate x collective memory, the
debate memória individual x memória obsolescence of technologies, the preser-
coletiva, a obsolescência das tecnologias, vation and the whereabouts of the images.
a preservação e o paradeiro das imagens. Keywords: Contemporary art; Autobiogra-
Palavras-chave: Arte contemporânea; Auto- phy; Film; Found footage; Memory.
biografia; Filme; Found footage; Memória.

52
1509
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Biocanon
EmMeio#11

Leon Battista Alberti, a great Renais-


Paz Tornero sance architect, affirmed that art is the cre-
ative act and the form of this creative act is
Keywords: Biocanon, microbiome, bacteria, divinity, so art is a divine process.
human behavior, female body, bioidentity It seems then that evolution of the
human canon has been based on the
An imaginative and comparative study of studies of the Renaissance, modifying
human canon, starting from the current certain measures according to the aes-
changes and paradigms of this century thetic tendencies. A fact, that we current-
of biotechnology, in which we already ly see when bionics, cyborgs or posthu-
know how human microbiome affects man bodies are represented.
us mentally and corporally. The meta-hu- But, if the human microbiome is
man or post-human is constructed and our fingerprint, if it represents our iden-
invaded by technologies and it seems to tities and behaviors: how we design new
give shape to a body separated from its human forms based on the microbial
microbiological and biological composi- construction as an artistic point of view?
tion, meaning and design. Thanks to:
In the era of Antiquity artists and 1. Departamento de Microbiología de
scientists have represented the nature la Facultad de Ciencias, Universidad de
and the human as a numerical canon in Granada (UGR), España.
search of Truth and Beauty, in this way 2. Instituto de Nutrición y Tecnología de
the artist invents the composition with los Alimentos “José Mataix”
linear perspective, which all the art of the 3. Departamento de Bioquímica y Bi-
Renaissance is based on. ología Molecular 2
The emergence of a new relation- 4. Instituto Biosanitario ibs.Granada
ship with Nature was linked to an ideal Special thanks to the scientists:
and realistic concept of science and aes- María Teresa González Muñoz. Pro-
thetic aspects. Renaissance makes man fesora Emérita, Departamento de Micro-
measure all things. biología (UGR)
Regarding this dream, historically Inés Martín Sánchez. Profesora Titu-
to achieve perfection of the human body, lar, Departamento de Microbiología (UGR)
it is said, for instance, that the sculptor Luis Fontana Gallego. Catedrático
Michelangelo, 1475-1576, finished the de Universidad. Departamento de Bio-
statue of Moses, one of his most import- química y Biología Molecular II (UGR)
ant works, by which he himself was so Ana Isabel Álvarez Mercado. Con-
amazed and shocked because of its per- trato Investigador con cargo a proyecto.
fection that he screamed at the statue, Departamento de Bioquímica y Biología
why don’t you talk to me? Molecular II (UGR)

53
1510
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

54
1511
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Bicho BR060 do percurso me propus a coletar ossos de


EmMeio#11

animais vítimas das rodovias e tratá-los


Raísa Curty durante a residência que aconteceria no
(UNB) Núcleo de Arte do Centro Oeste – NACO
(GO). Encontrei ossos de cachorros, sapos,
BICHO BR060 (2017), são compostos por lagartos, tatus, cobras e galinhas.
ossos de cachorros atropelados e siste- Durante o período de residência
mas eletrônicos de brinquedos. Eles cami- convivi com os ossos em uma cozinha
nham de forma desgovernada dentro de onde realizava os procedimentos de lim-
um cercado de 90x90cm. Um deles raste- peza e organização do material. Os ossos
ja, o outro se move de forma nervosa. se juntaram ao esqueleto de um boneco
Esse trabalho é realizado no contex- do capitão américa que rastejava pelo
to do Salão/Residência Artística Eixo do chão e disparava tiros com sua meltra-
Fora (DF), para onde enviei a proposta de lhadora e ao esqueleto de um pequeno
um experimento de trajeto: caminhar os cão raivoso para compor os BICHOS. Os
90 quilõmetros do trecho que liga Brasília BICHOS parecem querer figurar o imagi-
(DF) a Olhos D’agua (GO), local onde a re- nário de uma estranha aliança entre os
sidência artística seria realizada. Ao longo mortos e as máquinas.

55
1512
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

com a câmera do dispositivo celular, uti-


O psicocapitalismo
lizando a técnica de pintura com a luz
EmMeio#11

e as transmutações disponível como programação inata do


sociais: a necessidade dispositivo móvel.
de um reencontro A pesquisa de mestrado teve como
com a Natureza objeto compreender, por meio de estudo
teórico/prático, as fricções entre a foto-
Rodolfo Ward grafia documental e a fotografia artística
e como essas questões se imbricam com
A criação artística apresentada é a ani- a noção de real e ficcional, documental
mação gráfica e sonorização de 12 foto- e artístico, traçando uma linha temporal
grafias produzidas nas cidades de Bra- entre passado e presente, desconstruin-
sília-DF, Olhos D’Água-GO, Jaguarão-RS do historicamente a relação do disposi-
e Rio Claro-Uruguai, no ano de 2018, e tivo fotográfico na modernidade e sua
apresentadas como resultado imagético transmutação na pós- modernidade. O
do projeto de pesquisa em nível de mes- trabalho criou um paralelo entre esses
trado, no Instituto de Artes - IDA, na linha dois tipos de fotografia, documental e
de pesquisa Arte e Tecnologia, da Univer- artística, demonstrando que sua trans-
sidade de Brasília – UnB, em 2019. As fo- mutação está intrinsecamente ligada
tografias foram produzidas em coautoria aos avanços tecnológicos, políticos, eco-
nômicos, artísticos e culturais ao criar e

56
1513
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

validar, por meio de imagens, novas reali- de energias e forças vitais que, análogas
dades, novas formas de controle e domi- ao som, operam em nós para além do
nação que hoje, na sociedade em redes, visível e do plano físico, propondo um
do hiperconsumismo, têm sido utilizadas novo olhar para o plano quântico e novas
em larga escala pelo sistema neoliberalis- perspectivas para as relações humanas,
ta, inaugurando a nova fase do capitalis- sociais e questões ambientais, sendo o
mo, o psicocapitalismo. contato com a natureza e culturas tra-
Em contraponto a isso, nesta nova dicionais uma possibilidade para novas
proposta, que é a continuidade de pen- formas de viver o Eu, ou, um reencontro
samento do trabalho fotográfico estático com a natureza.
propomos o uso da tecnologia para ani-
mar as fotografias, criando fluxos gráficos
visíveis e fluxos sonoros invisíveis com in- Dados técnicos
Título: O psicocapitalismo e as transmutações
tuito de compor outro evento estético e
sociais: a necessidade de um reencontro com a
outra forma de interação afetiva e sensi- Natureza
tiva entre a obra artística e o observador. Técnica: Mista. Fotografia digital com dispositivo
Nesse sentindo as animações serão apre- móvel, animação e sonorização em loop
sentadas em um suporte tecnológico Material Utilizado: Tablet 12,9’ polegadas e fone de
ouvido Ano de Execução: 2018/2019
afim de articular o simbólico em um novo
Número de Fotografias: 12 unidades
microssistema sinérgico onde a função Tempo de cada Imagem: 18”
poética revela visualmente as irradiações

57
1514
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

“Viridis – Lux castellum”


EmMeio#11

Objeto interativo
foco está no reino Plantae (também co-
Rosangella Leote nhecido como Metaphyta). Viridis – “Lux
(UNESP São Paulo/BR) castellum” é uma peça da instalação inte-
rativa “Viridis” que é composta de robôs,
Abstract semiautônomos e de baixa tecnologia,
“Viridis - Lux Castellum”, is one of the five que simulam vidas vegetais translúcidas,
pieces of the art installation “Viridis”, whi- capazes de se movimentar, emitir luzes e
ch composes the main project “Viridium”. sons e que se oferecem ao conjunto sen-
It is an interactive object with sound, light sório do experienciador, mantendo, po-
and movement. The installation was first rém, a tecnologia computacional e mecâ-
assembled at the FACTORS 6.0 Exhibition. nica subjacente, encoberta para o olhar.
It was part of the Biennial SUR (Santa Ma-
ria/RS / Brazil), at UFSM, curated by Nara
Cristina Santos and Mariela Yeregui.

CONCEITO do PROJETO “VIRIDIUM”


A base poética do projeto “Viridium” é a
possibilidade que a natureza tem em se
hibridizar e evoluir, espontaneamente,
assim como ser hibridizada por mani-
pulação genética. Venho propondo o
desenvolvimento de objetos/seres não
existentes na natureza, mas que reme-
tem a formas e simulam comportamen-
tos daqueles que habitam o mundo nos
diferentes reinos naturais. A palavra lati-
na viridium se refere ao que é do verde,
da vida, da energia vital. A primeira par-
te do projeto “Viridium” é a Instalação
“Viridis” (verde, vivo, energético), cujo Dimensões 30X30X45cm (sem o display)

58
1515
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Momento 01- Abertura/Recepção


Quintal dos Sons:
O(s) indivíduo(s) fica(m) sozinho(s)
EmMeio#11

Uma instalação Sonora em uma sala. Ao adentrar(em) à sala um


Imersiva vídeo começa a ser exibido. Esse vídeo
Backyard Sounds:Na Immersive Sound traz a seguinte narrativa:
Installation O som do universo; o vento; o pri-
meiro som que o ser humano ouve (ba-
Rosimária Sapucaia Rocha tidas do coração). Em seguida temos um
mote: “Quero falar de uma coisa, advinha
Abstract onde ela anda, pode estar dentro do pei-
This research consists of a reflection on the to ou caminha pelo ar.”(Trecho da música:
immersive sound installation “Backyard Coração de Estudante- dos compositores
sounds”. In order to achieve that objecti- Wagner Tiso e Milton Nascimento); Co-
ve, we consider both the artistic process ração (som das batidas do coração será
involved in its creation, as well as the con- constante em todo o vídeo); Coração que
cepts and notions related to the compu- caminha (som da caminhada), que passa
tational systems used in it; this combining por (rios e mares), e atravessa o oceano.
artistic practice and theoretical research. Vive o caos do presente (vida em trânsito:
The installation aims to reflect on sounds instabilidade, angústia, autocarro, metro,
in the contemporary epoque, with the in- viagem, irritação...). Mas quer repousar,
tention of leading the audience to expe- refletir, ser o que é: “essência”, e desligar-
rience being alone in a dark room whilst -se do mundo (tela preta, sem imagens),
viewing a video and interacting with the sair do caos e ser apenas coração (man-
sounds, which are only performed with tra/som relaxante).
the viewer’s participation. The present Momento 2- Interação
sounds are reflections of soundscapes Assim que o vídeo começa a ser
from nature and sounds produced by the reproduzido, conforme as instruções na
humans; they seek to bring calm and cha- tela, o fruidor interage através dos sons.
os to the audience; the extreme parado- Todos os sons da narrativa são inspirados
xes of contemporary life. em soundscapes relacionadas com a vi-
Keywords: Installation; computa- vência musical e trajetória acadêmica da
tional artifact; sounds; soundscapes autora. Após a primeira imagem da tela,
o fruidor pisa na primeira faixa e o sensor
“Quintal dos sons” é uma instalação de aproximação 1- emite os sons do pri-
sonora imersiva, que tem como tema os meiro ficheiro (o som do universo); esse
sons na contemporaneidade. O artefac- áudio finaliza com os sons da caminha-
to é produzido a partir de um arduíno, da (nesse momento aparece na tela um
protoboard; quatro sensores de aproxi- convite para que o fruidor avance para a
mação infravermelhos; um projetor, um segunda faixa). Ao estar na segunda fai-
notebook; uma coluna de som e progra- xa, após a tela ficar completamente escu-
mação em Processing. ra, o fruidor avança para a terceira faixa,

59
1516
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

senta-se e coloca nos olhos uma venda a utilização do sensor infravermelho,


(máscara escura nos olhos). foi criado um algoritmo capaz de re-
produzir o vídeo conforme à presença
dos espetadores/fruidores detecta-
das. Cada presença foi programada
para ser novamente detectada a cada
7 minutos. De modo que, assim que
as pessoas entram na sala e se aproxi-
mam da primeira faixa o vídeo come-
ça a ser reproduzido até o final. Tam-
bém em processing e arduíno foram
programados os sensores de aproxi-
mação infravermelhos; estes detec-
tam a presença através do calor, mas
também são utilizados para detectar
obstáculos e acionar alarmes e sons
Figura 1- Vídeos da Instalação “Quintal dos Sons” Em
exibição realizada numa Exposição na Casa de Arte
diversos. Esse sensor foi escolhido
José Saramago, Julho, 2019, Óbidos, Portugal. pela sua precisão, permitindo-nos a
possibilidade de programá-lo confor-
Toda a programação do artefac- me a distância e tempo de produção
to foi criada em Processing aliado ao de cada áudio selecionado na cons-
Arduíno. No primeiro momento, com trução da instalação.

60
1517
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

primeiro de uma série intitulada “Quando


R Scuti: da série “Quan-
as Estrelas Tocam”, realizado pelo Grupo
EmMeio#11

do as Estrelas Tocam” de Pesquisa Realidades. Este grupo é certi-


R Scuti: from When The Stars ficado pela instituição onde está alocado,
Play series ECA-USP, e credenciado pelo Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e
Silvia Laurentiz, Tecnológico (CNPq), agência do Ministério
Grupo Realidades ECA/USP da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comu-
nicações (MCTIC), Brasil. O grupo Realida-
Abstract des iniciou suas atividades em 2010, e os
R Scuti is an artistic installation that pro- membros-autores do trabalho R Scuti são:
poses the transposition of astronomical Beatriz Murakami, Bruna Mayer, Cássia
data using star observation records (R Aranha, Clayton Policarpo, Dario Vargas,
Scuti star), available at the AAVSO data- Loren Bergantini, Marcus Bastos, Sergio
base. The collected information corres- Venancio e Silvia Laurentiz. Rodrigo G.
pond to over a century of observations Vieira foi o astrônomo colaborador desta
and, using the Processing software, were obra. Este grupo de pesquisa acredita na
converted into sound patterns that ma- relação entre teoria e prática como forma
terialize on a water surface (cymatics) in de exercício estético e crítico, e, portanto,
contact with a speaker, which emits the está entre seus esforços a produção de
generated sound frequencies. This surfa- trabalhos poéticos experimentais. Entre
ce receives a spotlight, which reflects the suas metas está a produção de sistemas
generated water waves. This movement interativos que questionem diferentes
of water creates bright patterns which padrões de representação, promovendo
are projected onto the ceiling of the exhi- um cruzamento entre produção científica
bition room. e artística, possibilitando que novos traba-
Keywords: art and technology, art lhos sejam desenvolvidos na interseção
and science, data visualization, R Scuti star. entre as áreas de artes, comunicação e
computação.
Agradecimentos A proposta da instalação R Scuti
Este trabalho contou com apoio utiliza-se da curva de luz (variação do
parcial da Fundação de Amparo à Pes- brilho ao longo do tempo) da estrela R
quisa do Estado de São Paulo – FAPESP Scuti, localizada na constelação Scutum.
(processo n° 2019/00099-3). O processamento das informações dis-
ponibilizadas na base de dados da As-
A Instalação R Scuti (2019) sociação Americana de Observadores de
R Scuti (2019) é uma instalação que Estrelas Variáveis (AAVSO - https://www.
se utiliza de padrões físicos para visualiza- aavso.org), através de um algoritmo de-
ção de dados astronômicos convertidos senvolvido no software Processing, gera
em frequências sonoras. O trabalho é o padrões sonoros. A partir da conversão

61
1518
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

do histórico da curva de luz da estrela,


os sons gerados são emitidos por um
alto falante posicionado em contato com
um recipiente com água, ambos acomo-
dados em um objeto confeccionado por
técnicas de prototipagem e uma máqui-
na CNC de corte à laser. A peça construí-
da foi inspirada em antigos instrumentos
de navegação.
O trabalho estabelece um meca-
nismo de visualização de dados de uma
estrela. As pulsações estelares e a varia-
bilidade de seu brilho constituem uma
memória que antecede a nossa própria
existência. Tal memória estelar, quando
transposta em uma frequência sonora,
cria um sistema cíclico de funcionamen-
to entre luz, dados discretos, sons, e luz
novamente, promovendo uma ordem de
organização não convencional. Da poéti-
ca da instalação emerge um ecossistema
no qual observador e estrela coexistem
em diferentes temporalidades.


Figura 1 (à esq.): Detalhe da instalação R Scuti – ob-
jeto e adesivos em parede, com gráficos da variação
de magnitude da estrela R Scuti ao longo de um
século. ©Grupo Realidades, 2019
Figura 2 (à dir.): Instalação R Scuti, com projeção dos
padrões cimáticos sobre o teto do local expositivo.
©Grupo Realidades, 2019

62
1519
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

participativa, de plástico e luminosa. No


Flores de Plástico
encontro das tecnologias de objetos co-
EmMeio#11

não Morrem nectados e da Internet das Coisas, cria-


mos uma selva de plástico, com plantas
Suzete Venturelli e flores interconectadas que formam um
biótopo computacional com característi-
A Internet das Coisas permite que cas do cerrado, com o qual suas relações
objetos e materiais ao nosso redor tor- são mediadas através de microcontrola-
nem-se inteligentes, com capacidade de dores. Nesse bioma, pétalas generativas,
se comunicar uns com os outros e/ou por sementes de plástico e disseminação de
meio da internet. Este projeto apresenta luz formam uma atmosfera especial des-
os recursos essenciais dessa tecnologia, se ecossistema.
no contexto dos objetos e materiais com- Este trabalho poético possui como
putacionais, num processo de criação livre intenção questionar como a biotecno-
e experimental, lúdica e interativa. A ar- logia está impactando nos seres vivos,
quitetura geral das aplicações inteligentes propondo revelar as mudanças de civili-
e seus vários materiais são detalhados: zação que estamos experimentando, bem
Sensores/ atuadores/ visores, dispositi- como sua mudança climática, em função
vos de processamento de informações, do meio ambiente degradado. Buscando
diferentes tipos de rede, nuvem, com as trazer respostas, pela reciclagem, Faça
especificidades desses componentes. Você Mesmo, desenvolvimento susten-
Apresenta, ainda, uma grande variedade tável, autonomia e iniciativas individu-
de aplicações, desde a mais simples para a ais, convivência e trabalho colaborativo.
mais complexa no campo do design_arte A mensagem principal apresenta que a
computacional. As características das pla- apropriação de tecnologias por cada um
taformas são também analisadas. é uma ação, que nos permite agir sobre
A proposta intitulada Flores de questões urgentes e não somente perma-
Plástico não Morrem é uma instalação necer como um simples consumidor.

Detalhes das
flores de plásticos
com módulo
luminoso

63
1520
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

“γραμμικού κώδικα”, αναφέρεται στη


Dismembered
συνεχή εμπορευματοποίηση της φύσης
EmMeio#11

Landspaces και λειτουργεί τόσο ως όριο όσο και ως


Διαμελισμένα Τοπία εμπόδιο σε μια πιθανή δυστοπία.
Λέξεις κλειδιά: Σώμα. Χώρος, Ροή,
Vasileios Bouzas Χαρτογράφηση, Διάδραση.

Abstract The concept and the content of the


The project is an installation concerning installation
the imprint of non-linear audio-visual One of the main reasons, if not the main
narratives in an invented space. The “dis- one, leading to the “Anthropocene” era is
memberment” arises not only from the the extensive commercialization of the na-
architectural structure of the installation tural resources, as it is happening through
that is similar to the known “bar code”, the absolutely unbalanced exploitation of
but also from the fragmentation in time nature, especially regarding the exploita-
and space of the audiovisual material du- tion of the natural energy resources and
ring the process of its synthesis and pro- the way they are subsequently consumed
jection. The installation which is a simu- and recycled. Audiovisual material is pro-
lation of a spatial “bar code” refers to the jected on hanged thermal papers creating
continuous commercialization of nature, series of parallel vertical images that re-
acting both as boundary and as barrier to semble a spatial bar-code and imply the
a possible dystopia. conversion of the projected landscapes
Keywords: Body, Space, Flow, Ma- in consumption products. (http://vasi-
pping, Interaction. leiosbouzas.artroom7.com/dismembere-
dlands/). The audiovisual material consists
Σύνοψη of non-linear narratives recorded during
Το έργο είναι μια εγκατάσταση που wanderings in various landscapes, where
αφορά το αποτύπωμα μη γραμμικών the signs of industrialization and commer-
οπτικοακουστικών αφηγήσεων σε έναν cialization are quite visible, animated texts
επινοημένο χώρο. Ο «διαμελισμός» which consist of parts of statements on
προκύπτει όχι μόνο από την cases of destruction of natural resources
αρχιτεκτονική δομή της εγκατάστασης and recorded communications concer-
που είναι παρόμοια με αυτή του ning a possible disaster, and finally map
«γραμμικού κώδικα» αλλά και από τον collages of various industrialized areas.
κατακερματισμό του χρόνου και του The audio of the installation consists of a
χώρου του οπτικοακουστικού υλικού synthesis of natural sounds (air and wa-
κατά τη διαδικασία της σύνθεσης και ter), sounds of industrial sites and typing
προβολής του. Η εγκατάσταση αποτελεί processes, creating allegorical readings of
μια προσομοίωση ενός χωρικού the visual material.

64
1521
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Figure 1: Dismembered Landscapes, View of


the installation.
Figure 2: Dismembered Landscapes, View of
the installation.
Figure 3: Dismberment, Photograph on Paper

65
1522
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

Marés
Marés
EmMeio#11

Videoinstalação
Videoinstalação
ainda, o deslocamento de corpos que nos
Walmeri Ribeiro
Discutindo as et all
relações entre as ainda, o deslocamento de corpos que nos
conduzem à finitude e (in)finitude do Mar.
temporalidades da natureza e da arte, conduzem à finitude e (in)finitude do Mar.
A opção estética, por uma instalação
Discutindo as relações
a videoinstalação Marés entre as tempora-
é resultante de A opção estética, por uma instalação
com quatro horas de duração, se dá com o
lidades da natureza e da
uma ação performativa realizadaarte, a videoins-
na praia com quatro horas de duração, se dá com o
objetivo de confrontar, a partir da imagem
talação Marés é resultante de uma ação
da Requenguela|Ceará|Brasil. objetivo de confrontar, a partir da imagem
digital, a temporalidade natural das marés
performativa realizada
Com 4 (quatro) na de
horas praia da Re-a
duração, digital, a temporalidade natural das marés
à temporalidade da arte e do corpo do
quenguela|Ceará|Brasil.
obra é composta por dois vídeos grava- à temporalidade da arte e do corpo do
espectador neste espaço de fruição, pro-
dos em Com 4 (quatro)
tempo horas
real, das deAM
9:30 duração, a
às 4:30 espectador neste espaço de fruição, pro-
pondo assim um olhar para si mesmo, uma
obra é composta por dois vídeos
PM. Cada vídeo apresenta um ciclo de gravados pondo assim um olhar para si mesmo, uma
reconexão, neste caso, a partir do tempo,
em tempo
maré, real, àdas
da cheia 9:30 AM
rasante e daàs rasante
4:30 PM.à reconexão, neste caso, a partir do tempo,
entre Homem e Meio Ambiente.
Cada
cheia, num movimento contínuo domaré,
vídeo apresenta um ciclo de mar, entre Homem e Meio Ambiente.
da
comcheia
seusàritmos,
rasante e dae rasante
fluxos à cheia,
deslocamentos. Ficha Técnica
num movimento contínuo do da
Frente a temporalidade mar, com
nature- Idealização e montagem: Walmeri Ribeiro
Ficha Técnica
seus ritmos, fluxos e deslocamentos.
za impressa à imagem, acompanhamos, Imagens: Fábio José, Clara Bastos e Walmeri Ribeiro
Idealização e montagem: Walmeri Ribeiro
Frente a temporalidade da nature- Desenho e instalação sonora: Daniel Puig
Imagens: Fábio José, Clara Bastos e Walmeri Ribeiro
za impressa à imagem, acompanhamos, Desenho e instalação sonora: Daniel Puig

66
1523
Obras #18.ART • 2019 • ISSN: 2238-0272

1524

Vous aimerez peut-être aussi