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AS DESVENTURAS DA CIVILIZAÇÃO: O

PROBLEMA DO ESQUECIMENTO DA
NATUREZA EM VICO E HORKHEIMER *
Sertório de Amorim e Silva Neto **

Resumo: Seja antecipadamente ou mesmo tardiamente, tanto Vico quanto a Te-


oria Crítica se ocuparam com o projeto das Luzes. Para Horkheimer, o resultado
disso foi o desencantamento do mundo, a dissolução das imagens mítico-religio-
sas de mundo e o desenvolvimento de um comportamento humano egoísta: a
ditadura da autoconservação. Já para o pensador italiano, a absolutização do
solipsismo cartesiano produzia uma solidão de ânimos e vontades, fonte inesgo-
tável de desacordo e de separação dos indivíduos.
Palavras-chave: Vico. Horkheimer. Natureza. Modernidade. Barbárie.

Abstract: Either anticipated or exactly delayed, as much Vico how much the
Critical Theory if had occupied with the project of the Enlightment. For
Horkheimer, the result of this was the disenchantment of the world, the dissolution
of the mythical-religious images of world and the development of an egoistic
human behavior: the dictatorship of the self-conservation. Already for the Italian
thinker, the absolutize of the Cartesian solipsism produced a solitude of spirits
and wills, inexhaustible source of disagreement and separation of the individuals.
Keywords: Vico. Horkheimer. Nature. Modernity. Barbarity.

* Versão modificada da comunicação apresentada no GT-ANPOF “Filosofia da História


e Modernidade” durante o XI Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF, realizado em
Salvador-BA, em 2004.

** Professor de filosofia da União Educacional de Minas Gerais (UNIMINAS) e do


Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

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philosophica . R. Fil. Hist. Modern., São Cristóvão, n. 7, p. 11-xx, Março 2006
SILVA NETO, Sertório de Amorim e. As desventuras da civilização: o
problema do esquecimento da natureza em Vico e Horkheimer

PARA INTRODUZIR o presente trabalho faremos algumas bre-


ves considerações ao título. Como claramente se percebe, nele
está expresso a existência de um instante de esquecimento da
natureza, e a civilização tem sido geralmente concebida como
sendo esse instante de divórcio. Entendemos a civilização como
sendo um estado de aprimoramento humano, marcado por um
certo grau de progresso tecnológico, econômico e intelectual, e
desde esse ponto de vista específico, o do progresso intelectual, a
civilização se confunde também com os momentos de Ilustração
e Esclarecimento. Trata-se então, em suas linhas gerais, de um
estado que se pretende oposto ao de barbárie. Há, porém, uma
interessante dialética regendo esses acontecimentos. Ao lado dos
avanços e da suma delicadeza atingidos, o processo civilizatório
consuma-se também como queda ou regressão da humanidade à
situação de barbárie, tornando os homens, feras novamente. Eis
a relevância do tema, pois essa tensão entre progresso e decadên-
cia, como nos fazem crer alguns filósofos, dá-se, sobretudo, em
função do esquecimento da natureza. A civilização se efetiva en-
quanto desnaturação do humano e o preço que pagamos por isso,
nós civilizados, é a regressão.
Como antecipa o título, trata-se nesse trabalho de perseguir
o sentido do esquecimento da natureza no processo histórico. Duas
distantes tradições do pensamento orientarão aqui nossas refle-
xões. Nos referimos ao pensador italiano da primeira metade do
século XVIII Giambattista Vico (1668-1744) e a Teoria Crítica
de Max Horkheimer (1895-1973), mais especialmente aquela fi-
losofia desenvolvida por ele nos anos 40 do século XX, e que tem
como marco maior o célebre livro Dialética do Esclarecimento (1944),
escrito em parceria com Theodor Adorno (1903-1969). O nosso
texto está dividido em três partes. Nas duas primeiras serão ex-
postas as análises desses autores sobre o sentido do processo
civilizatório. Por fim, como conclusão, oferecemos o esboço de
um possível enfrentamento dos resultados indesejáveis desse pro-
cesso: o resgate do passado mítico e animista.

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São Cristóvão, n.7, p. 11-ss, Março 2006
philosophica. R. Fil. Hist. Modern.,
I.

É muito interessante a maneira como Vico descreve a ca-


minhada dos homens rumo à civilização. O napolitano recorre,
no plano expositivo, às histórias da mística cristã. A origem da
história deve ser procurada na queda ou na humanidade decaída
da justiça pelo pecado original (VICO, 1992, SN44, § 2). Como
nos diz ele, as tribos dos filhos de Noé, porque se renegaram a
aceitar a religião de seu pai, para a sua própria utilidade, isto é,
para se protegerem dos perigos, encontrar água, comida e as mu-
lheres esquivas, espalharam-se pela selva num errar ferino (VICO,
1992, SN44, § 369). A construção gradual da civilização, por outro
lado, seria algo assim como o esforço humano para o
restabelecimento daquela situação anterior à queda, a de um es-
tado de convivência bem organizado e justo. Para tanto, vale di-
zer, os seres humanos contaram com uma inestimável ajuda dos
céus: a providência de Deus. Deus se intromete nos assuntos hu-
manos, dando aos homens a sua natureza: a sociabilidade, que
conduz um ser torpe e baixo a celebrar a liberdade e a justiça no
Estado. É preciso ressaltar a diferença quanto à visão cristã da
história. Na verdade, Deus efetua sua interferência nos assuntos
humanos e rapidamente volta ao seu plano superior. De acordo
com Vico: “este mundo civil foi feito pelos homens, cujos princí-
pios podem e devem ser encontrados dentro das modificações da
nossa própria mente humana” (VICO, 1992, SN44, § 331). Por-
tanto, a intromissão de Deus se dá na forma da atribuição de uma
natureza humana e esta conduzirá, com sua sabedoria, a história
dos homens, e não os desejos eternos da divindade.1

1
Quanto à afirmação de Vico como um pensador retrógrado, um católico convicto,
é preciso antes tomar alguns cuidados. Nos últimos anos, os estudos viquianos
têm discutido muito acerca do verdadeiro valor da retórica na filosofia de Vico.
Não nos esqueçamos que ele foi durante quarenta anos professor dessa disciplina
na Universidade de Nápoles. Dentre outros usos, a retórica vale, para Vico, como

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problema do esquecimento da natureza em Vico e Horkheimer

A primeira manifestação da natureza sociável é a religião


ou, como prefere Vico, o temor à divindade. Na origem das religi-
ões primitivas está uma espécie de mistura de medo e ignorância.
Novamente movidos pelas suas utilidades, agora a de escapar às
constrições do medo, certamente aumentado depois do dilúvio
universal, quando os trovões e tempestades povoaram os céus, os
primitivos, débeis de raciocínio, recorreram à explicação. O me-
canismo pressuposto é simples. Parte-se do fato de que o conhe-
cimento de um fenômeno extrai dele a sua surpresa e o seu cará-
ter inesperado, tornando-o previsível e até mesmo controlável.
Mas os primitivos ignoram a verdade daquilo que desejam expli-
car, não restando a eles senão sua rica imaginação e uma razão
concreta, que se manifesta naquela inclinação co-natural ao vul-
go de estimar as coisas distantes e desconhecidas por aquelas coi-
sas próximas e já conhecidas; tal como quando o vulgo diz estar o
imã “enamorado” pelo ferro, ou usa a palavra “cabeça” para indicar a
ponto de algo e “costas” para aquilo que está atrás (VICO, 1992,
SN44, § 405). Apesar de não possuírem razão abstrata e nem ciên-
cia, os primeiros homens possuíam fantasia e sentidos vigorosíssimos.
Partindo dessas faculdades, eles inventam as religiões:

Assustados e atônitos do grande efeito que não


sabiam a causa, alçaram os olhos e advertiram o céu.
E porque neste caso a natureza da mente humana é
aquela de atribuir ao efeito sua própria natureza [da
mente humana] [...] e, porque a sua natureza era,
em tal estado, de homens de robusta força física que

um recurso expositivo. Ele escreve sua Ciência nova (1744) para os doutos do
mundo e não para aqueles da academia. Assume um perfil muito semelhante ao
Discurso do método (1637) de Descartes. Para expressar as verdades relativas
aos primitivos, que são acessíveis igualmente ao vulgo, Vico se apropria também
de uma linguagem primitiva e vulgar, rica em imagens. Isso refuta a afirmação
do Vico católico, no sentido de que ele recorre à mística cristã em função de suas
imagens e possíveis vínculos metafóricos.

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philosophica. R. Fil. Hist. Modern.,
urrando e resmungando explicavam as suas paixões,
transformaram o céu em um imenso corpo
animado, que por tal aspecto chamaram de Júpiter
(VICO, 1992, SN44, § 377).

A mentalidade original é retórica e poética, não lógica. Não


se trata de compreender a retórica como sendo somente aquilo
que torna o discurso persuasivo, mas enquanto produtora de pen-
samento. A retórica fornece tropoi ou figuras a partir dos quais o
engenho primitivo cria as conexões de sentido entre os eventos
percepcionados. A matriz do pensamento primitivo é a metáfora,
que traduz as idéias ou as categorias por coisas singulares que a
elas se assemelham. Através das semelhanças entre as coisas, os
primeiros homens conheceram a realidade e deram aos sujeitos os
seus predicados. De acordo com Vico, Júpiter é como uma voz
onomatopaica, ou melhor, uma derivação da palavra “Ious” que
em latim imita o estrondo do trovão. O mesmo ocorre com o
nome Hércules, que predicava todos aqueles indivíduos dotados
de virtude civil. Através da figura retórica da antonomásia, as
características da pessoa singular Hércules tornam-se predicados
de um grupo específico de homens, os heróis. Dessa mentalidade
metafórica surge aquilo que Vico chamou de sabedoria poética.
Mas o que de fato importa nessa invenção da mente primi-
tiva é o resultado que a sucedeu: o processo civilizatório como
um todo. As construções da fantasia se dirigem às paixões e falam
sobretudo à vontade e não ao intelecto. Somente as imagens vi-
vas e sublimes de um Júpiter e de um Hércules, que personificam
as paixões fortes e desmedidas dos primitivos, refreariam os cos-
tumes e as paixões selvagens, civilizando-os. Essa sabedoria po-
ética remete a uma espécie de juízo que Vico chamou de senso
comum ou de “consciência”, diferente da “ciência”. Enquanto é
comum a essa a verdade, a consciência caracteriza-se pelo certo,
por aquilo que é meramente provável e verossímil. Ela é uma
cognição vulgar que se encontra em qualquer iletrado e sobre a
qual se ergue o mundo dos valores (VICO, 1993, p. 79-80). Como

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problema do esquecimento da natureza em Vico e Horkheimer

disse Vico: “Os homens que não sabem a verdade das coisas,
procuram ater-se ao certo, porque, não podendo satisfazer o inte-
lecto com a ciência, que ao menos a vontade repouse sobre a
consciência” (VICO, 1992, SN44, § 137). É o senso comum a
sabedoria que perpassa e reproduz a sociabilidade humana. O
princípio desse juízo iletrado não é o de satisfazer o intelecto com
a verdade, mas sim o de orientar e educar a vontade, que é o
objeto de estudo da moral: “O arbítrio humano, de natureza
incertíssima, certifica-se e determina-se com o senso comum dos
homens” (VICO, 1992, SN44, § 141).
O poder das divindades na mente dos primeiros homens
desencadeou um processo que levou um ser torpe e bárbaro a
viver com justiça e a celebrar a igualdade no Estado. Desperta-
dos, alguns homens fixaram-se, reduzindo a selva a campos culti-
vados. Com certas mulheres, eles estabeleceram matrimônios so-
lenes e engendraram filhos legítimos, fundando assim as famílias.
De uma estrutura simples, as famílias foram assumindo formas
mais complexas, assimilando em seu seio os fâmulos, que eram
aqueles homens que ainda viviam como feras e que, pelas como-
didades oferecidas, tornaram-se clientes do pater familias. Essa nova
organização das famílias foi também o que permitiu o surgimento
da primeira entre as formas de governo: a aristocracia. Com o
passar do tempo e com as conveniências da convivência com os
Hércules, os fâmulos se humanizaram, se sublevando contra os
seus senhores. Daí que, para resistirem a essas sublevações, os
pais de família se reuniram formando as cidades heróicas, basea-
das na divisão entre nobres e plebeus, e das quais posteriormente
surgiram as repúblicas e a igualdade civil. Para Vico, a república é
o ápice do processo civilizatório, nela se atinge aquele estágio
superior de suma delicadeza que ele chamará de “idade dos ho-
mens”.
Na república livre estão dadas as condições para que os
cidadãos possuam direitos iguais, participem dos assuntos públi-
cos e gozem de leis justas. Em certo sentido, ela reaproxima a
humanidade das circunstâncias que reinavam no Paraíso

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philosophica. R. Fil. Hist. Modern.,
(BERGEL, 1977, p. 183-5). Entretanto, essa é sempre uma con-
quista efêmera; é o que nos confirma a brevidade dos ápices das
civilizações. Apesar dos homens desejarem se elevar da terra aos
céus, eles serão sempre incapazes de recriar o Paraíso, e a razão
de uma tal incapacidade é óbvia. Não é possível ao homem supe-
rar a queda da justiça, a decadência original. Por isso, tão logo
atinge as comodidades da civilização, logo inicia também o pro-
cesso de queda. É o que Vico constata na história mesma das
repúblicas. A liberdade obtida no Estado liberava os instintos
egoístas e anárquicos, gerando guerras não só entre nobres e ple-
beus, mas entre os vários grupos, pondo fim às repúblicas popu-
lares. Mas a providência atua mais uma vez. A fim de prolongar o
progresso humano, os direitos políticos dos indivíduos são trans-
feridos ao imperador, fazendo surgir as monarquias. Mas mesmo
assim o destino é irrefreável. As monarquias também não conse-
guem se sustentar, tornam-se tiranias, as cidades viram selvas e
os homens retornam ao isolamento ferino.
Vico apontou alguns fatores dessa necessidade. Junto com
o progresso humano está o progresso do seu pensamento. Assim
como foi próprio aos primitivos a fantasia e a retórica, ao civiliza-
do é comum a razão e a lógica. Enquanto os primitivos entendem
o mundo através do senso comum, os civilizados o fazem através
da ciência e da verdade. Vico não foi contra essas conquistas,
mas apontou para os perigos daqueles momentos em que elas flo-
rescem. A verdade seduz o espírito, desviando seus esforços de
todas aquelas questões que não dizem respeito à ciência. O itali-
ano dirige essa argumentação principalmente à figura de Descar-
tes. Vico se situa no contexto otimista do início do século XVIII,
entretanto, alerta para os perigos de um modernismo que se apega
absolutamente à razão, esquecendo-se da fantasia e do engenho,
do senso comum. Na mesma medida em que abandona o senso
comum, acusando-o de mera superstição, perde-se de vista a ver-
dadeira natureza humana: a sociabilidade. Para Vico, esse tipo de
juízo não é algo dispensável do ponto de vista da convivência em
comunidade. As religiões não são somente falsas, mas são tam-

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bém os liames que tornam coesos os homens. Mesmo quando as


leis dos Estados já não conseguem garantir uma convivência pa-
cífica entre os indivíduos, o temor à divindade, que é o princípio
das religiões, re-instaura o direito, impedindo, com isso, que a
humanidade se destrua a si mesma.
De uma questão teorética, Descartes cai em dilemas
de cunho sociológico e ético. Ele encarna a crise que conduzirá o
progresso ao seu contrário. Grosso modo, a ciência de Descartes se
vê reduzida ao mero silogizar e, assim como no silogismo a con-
clusão é simplesmente uma decorrência das premissas, o conhe-
cer torna-se tão-somente a explicitação de verdades segundas,
enquanto estas são decorrentes de verdades primeiras. Aos olhos
de Vico, o maior defeito desse pensamento é que o estudioso,
pela força do hábito, tende a se desviar da realidade, isto é, da
preocupação de reunir o conceito ao seu objeto e o signo à ima-
gem, acaba redundando no formalismo de um sistema de signos
neutros e auto-referentes. Não obstante a perfeição lógica dos raci-
ocínios, o que decerto acostuma o pensamento à verdade, esse per-
curso metódico não garante, contudo, a aquisição do signo, cujo
sentido depende do seu correspondente: a imagem ou a coisa mes-
ma. Esse distanciamento entre as palavras e as coisas foi referido
por Vico sob a forma da figura retórica da ironia que, segundo ele,
“não poderia começar senão nos tempos da reflexão” (VICO, 1992,
SN44, § 408). Muito diferente do que se via entre os primitivos, em
que as idéias tinham relação natural com as coisas significadas, a
maturidade humana inaugura a possibilidade de dizer o falso com a
máscara da verdade (de mentir), abrindo as portas à hipocrisia. Os
indivíduos, neste contexto, “com uma arrogância vil, em meio às
lisonjas e aos abraços, arma ciladas à vida e à fortuna dos seus
confidentes e amigos” (VICO, 1992, SN44, § 1106). Os homens
são inclinados ao seu fechamento, ao seu isolamento nas medita-
ções da razão. Enquanto a retórica reúne o diverso, a lógica o sepa-
ra em suas várias partes. Enquanto os poetas produziram a coesão
social, os cientistas, na perfeita solidão do seu gabinete, separam e
isolam os indivíduos, estimulando a crise.

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Para Vico, a história se desenrola segundo um modelo ba-
seado na sucessão de ciclos qualitativamente diferentes. Neste
modelo, a barbárie ocupa uma posição de destaque. Ela é a situa-
ção primeira da humanidade, o início da caminhada que a condu-
zirá à civilização, mas é ainda um fator recorrente no processo
histórico. Em todo curso histórico persiste necessariamente um
momento de decadência dos valores conquistados a duras penas
e, por conseguinte, de recurso à condição primeira da humanidade,
a de barbárie. Segundo Vico, “a natureza dos povos é primeiro
cru, depois severa, a seguir benigna, depois delicada, finalmente
dissoluta” (VICO, 1992, SN44, § 242). Assim como todas as coi-
sas criadas, faz parte da história o nascer, o se desenvolver ao
máximo e perecer. Não há aqui nenhum pessimismo da parte de
Vico, pois retornar aos inícios é reiniciar o processo de civiliza-
ção, de soerguimento do homem caído. Se a decadência indicava
o fim de um curso histórico, por outro lado, indicava o começo de
um novo ciclo, de um novo curso qualitativamente diferente.

II.

Na década de 40 foi inaugurada uma nova fase da Teoria


Crítica de Horkheimer. Nascida em meio à atmosfera confiante e
de otimismo do início da década de 30 — propiciada certamente
pela criação da União Soviética em 1922 e pela conseqüente efer-
vescência das discussões marxistas sobretudo na Alemanha —, a
Teoria Crítica não conseguiu se manter inflexível à atmosfera de
resignação, germinado nos anos posteriores a 1933, após a ascen-
são de Hitler como chanceler alemão. Aquele espírito original sofria
um golpe, pois a sociedade não se dirigia às formas de existência
racionais, como esperava Horkheimer e toda a sua geração, mas
eram os regimes totalitários que se espalhavam pela Europa. Deste
modo, era necessário adotar um empreendimento analítico inédi-
to, capaz de penetrar nos extratos profundos da civilização, a fim
de descobrir as motivações mais essenciais que fizeram a vontade
de dominação imperar no ocidente moderno.

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O episódio da civilização é exibido como o “despertar do


sujeito”. Partindo de um trabalho analítico e comparativo, Ador-
no e Horkheimer esquadrinharam o “despertar do sujeito” tanto
na epopéia homérica quanto nas origens da ciência moderna, cons-
tatando nelas, apesar do enorme espaço de tempo que as separa,
a existência de um núcleo em comum: “o objetivo de livrar os
homens do medo e de investi-los na posição de senhores” (ADOR-
NO/HORKHEIMER, 1985, p. 19). A humanidade era assim ar-
rancada da sua união arcaica com a natureza e com os mitos, e
afirmava sua soberania frente ao mundo. Mas, apesar de tudo, “a
terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma cala-
midade triunfal” (ADORNO/HORKHEIMER, 1985, p. 19). Por
causa dessa face regressiva, a civilização corre o risco constante
de ser acossada pelas crises e de tornar o despertar da subjetivida-
de a liquidação mesma do sujeito.
Essa é a dialética que os dois filósofos alemães buscam
entender. Para explicá-la, remetem a Max Weber (1864-1920), mais
especificamente ao processo chamado por ele de “desencanta-
mento do mundo”. Esse processo tinha como escopo arrancar os
homens da ligação arcaica com a natureza e o seu resultado, pro-
blemático sobre vários aspectos, foi a emergência de uma forma
de comportamento egoísta que encontra nas relações de poder o
núcleo das interações com a natureza e com os outros homens.
Apropriando-se da noção weberiana, os pensadores da teo-
ria crítica explicaram que “Desencantar o mundo é destruir o
animismo” (ADORNO/HORKHEIMER, 1985, p. 20). Ingredi-
ente do universo mítico, o animismo se caracteriza por conceber
a totalidade da realidade como um cosmo organizado, como um
imenso organismo que integra, numa complexa teia de correspon-
dências e relações, todos os fenômenos percepcionados: “O
animismo havia dotado a coisa de uma alma” (ADORNO/
HORKHEIMER, 1985, p. 40). Nessa teia de correspondências
estavam integradas a existência dos seres humanos e a da nature-
za, concebidos como momentos particulares de uma mesma com-
plexidade: “O pensamento mítico não permite diferenciação de

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conceitos fundamentais entre coisas e pessoas, inanimado e ani-
mado, entre objetos que podem ser manipulados e agentes a que
atribuímos ações e manifestações lingüísticas” (HABERMAS,
1990, p. 116). É contra essa concepção da unidade entre o huma-
no e natureza que se insurge, com toda sua radicalidade, o desen-
cantamento: “O processo do Iluminismo conduz à dessocialização
da natureza e à desnaturalização do mundo humano”
(HABERMAS, 1990, p. 116).
Desencantar o mundo é romper com o animismo e separar
o Eu do seu outro, a natureza. No tocante ao homem, essa sepa-
ração teve o sentido do despertar da subjetividade: o Eu afirma
sua identidade a partir do momento em que rompe com a nature-
za e passa a ver nela algo de distinto; já no tocante à natureza,
esse processo ocasionou a eliminação dos seus conteúdos simbó-
licos: “A natureza desqualificada torna-se a matéria caótica para
uma classificação” (ADORNO/HORKHEIMER, 1985, p. 24).
É bem verdade que a natureza encontra-se em uma posição des-
favorável, mas não em uma posição mais problemática que a dos
sujeitos. No mundo encantado pelo animismo, a produção da exis-
tência estava presa a forças que ultrapassavam os sujeitos e que
eram imanentes à realidade, tornando irresistível o destino. Mas
isso muda radicalmente. Em substituição ao papel ordenador da
mitologia, será agora o Eu isolado que deverá deliberar e garantir
a sobrevivência do indivíduo. O homem encerra-se assim numa
subjetividade atomizada e que só pode contar com a sua astúcia
para garantir a autoconservação. Tal como disse Horkheimer: “O
ego dentro de cada sujeito tornou-se a personificação do líder. [...]
Assim como o líder [...] planeja e demarca o futuro, o ego classifi-
ca as experiências em categorias e espécies, e planeja a vida do
indivíduo” (HORKHEIMER, 2000, p. 110).
Abandonados à sua própria sorte, os seres humanos trans-
formaram-se em escravos do cálculo, isto é, são cegamente con-
duzidos a sacrificar todos os seus valores em favor do cálculo frio
dos meios. Os padrões normativos cedem espaço à única autori-
dade: o desejo ávido em garantir a qualquer preço a sobrevivên-

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SILVA NETO, Sertório de Amorim e. As desventuras da civilização: o
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cia. Deste modo, nas fronteiras da civilização, os homens se va-


lem justamente daquela sorte de comportamento que mais os apro-
ximam da animalidade. Tal como as feras selvagens, para as quais
o mundo exterior só existe e é experimentado tendo por medida a
sua sobrevivência, ou as coisas são vistas como presas, ou como
potenciais ameaças à sua vida, também o homem civilizado ado-
tou como padrão de sua ação concreta, seja em relação ao mundo
seja em relação aos outros homens, o instinto de conservação.
Todavia, o homem civilizado e a fera acham-se separados. Bem
diferente das feras, uma das características principais do humano
é o de estar assistido pela razão. Mas a razão não aparece aqui em
seu sentido amplo, como o conjunto das possibilidades cognitivas
do homem, mas mutilada, como racionalidade instrumental. Essa
razão, notou Horkheimer:

Relaciona-se essencialmente com meios e fins, com


a adequação de procedimentos a propósitos mais
ou menos tidos como certos e que se presumem
auto-explicativos. Concede pouca importância à
indagação de se os propósitos como tais são
racionais (HORKHEIMER, 2000, p. 13).

No seio dessa razão, os conceitos se constituem em meros


“invólucros formais”, nada mais são do que estruturas abstratas
abertas a envolverem as coisas que o sujeito desejar. A racionali-
dade caracteriza-se aqui pelo seu aspecto funcional, circunscre-
vendo todo o seu trabalho ao modus operandi, ao “funcionamento
abstrato do mecanismo do pensamento”, isto é, à “faculdade de
classificação, inferência e dedução, não importando qual o con-
teúdo específico dessas ações” (HORKHEIMER, 2000, p. 13).
O atributo “racional” deixava de ser assim, como foi para a filo-
sofia clássica, uma qualidade que podia ser atribuída à realidade
per se e que dissesse respeito ao significado das coisas.
Ao liberar-se da união arcaica com a natureza e, para isso,
destruir o animismo, o homem “pré-civilizado”, num golpe de

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philosophica. R. Fil. Hist. Modern.,
azar, extirpou também definitivamente do espírito humano o po-
tencial semântico: “Só o pensamento que faz violência a si mes-
mo é suficientemente duro para destruir os mitos” (ADORNO/
HORKHEIMER, 1985, p. 20). Estaria na mitologia o princípio
intelectual que possibilita os conceitos e a significação mesma da
realidade. É o que nos evidencia, no seu plano etimológico, o
termo alemão para a palavra conceito. A palavra Begriff retém o
mesmo sentido do verbo greifen, que é o de pegar ou agarrar e,
graças à conservação desse sentido, confere ao trabalho do con-
ceito a função específica de apanhar as coisas com o intelecto, a
tarefa de captá-las em sua objetividade (JAY, 1977, p. 295). A
idéia de que o conceito não é senão uma cópia da realidade en-
contra suas raízes profundas no tipo de exposição peculiar à mi-
tologia: “A doutrina dos sacerdotes era simbólica no sentido de
que nela coincidiam o signo e a imagem. Como atestam os hieró-
glifos, a palavra exerceu originalmente também a função da ima-
gem” (ADORNO/HORKHEIMER, 1985, p. 30).
O que se vê no processo de desencantamento do mundo é
a acusação daquele aspecto semântico, comum tanto ao mito e as
religiões quanto à filosofia, como um vestígio indesejável de su-
perstição e, conseqüentemente, a sua eliminação. A razão agride
a si mesma, torna-se impotente diante do sentido e, com isso,
impotente diante dos valores morais e da distinção entre o certo e
o errado. Ela não consegue conceber nenhuma escala objetiva de
valores éticos e morais a partir da qual pudesse avaliar e julgar a
atividade humana, assim como orientar sua ação futura:

O pensamento em nada pode contribuir para


determinar se qualquer objetivo em si mesmo é ou
não desejável. A plausibilidade dos ideais, os
critérios que norteiam nossas ações e crenças, os
princípios orientadores da ética e da política, todas
as nossas decisões supremas, tudo isso deve
depender de fatores outros que não a razão
(HORKHEIMER, 2000, p. 17).

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SILVA NETO, Sertório de Amorim e. As desventuras da civilização: o
problema do esquecimento da natureza em Vico e Horkheimer

Justiça, igualdade e felicidade gozam ainda de certo prestí-


gio, são endossados por veneráveis documentos e estão presentes
nas leis supremas dos maiores países, contudo, eles perderam suas
raízes intelectuais.
Não encontrando referências a uma escala objetiva de va-
lores, os homens se sentem inclinados a orientarem-se no seu agir
cotidiano segundo a pura exigência da situação. Weber, antes
mesmo dos pensadores da Teoria Crítica, havia apontado esse
voluntarismo como um dos resultados do processo de racionali-
zação do ocidente. Na análise de Weber, por trás do desencanta-
mento do mundo persiste uma grande “desilusão” do indivíduo
perante a realidade, desilusão constituída pela impossibilidade de
qualquer espécie de transcendência metafísica e religiosa, e que
não deixava senão, como única opção, a aceitação sensata do
dia-a-dia e do destino do tempo, a marcha resignada dentro dos
trilhos prescritos pelo destino: “O triunfo da razão formalizada
e subjetiva é também o triunfo de uma realidade que se con-
fronta com o sujeito como algo absoluto e esmagador”
(HORKHEIMER, 2000, p. 101). Se em outras épocas a realida-
de foi medida pelos ideais e utopias, na civilização as ideologias
foram desacreditadas e a realidade imediata foi elevada ao nível
de ideal supremo: “As forças econômicas e sociais adquiriram o
caráter de poderes naturais cegos que o homem, a fim de poder
preservar a si mesmo, deve dominar, ajustando-se a eles”
(HORKHEIMER, 2000, p. 101-2).

III.

O entendimento da civilização como sendo sinônima de


decadência é algo que reúne intimamente essas duas distantes
filosofias. Tanto Vico quanto Horkheimer reconhecem os custos
do progresso. Para eles, a conquista da subjetividade e da liberda-
de no Estado só se deu às custas do dilaceramento e da agressão
declarada a certos aspectos essenciais ao humano:

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São Cristóvão, n.7, p. 11-ss, Março 2006
philosophica. R. Fil. Hist. Modern.,
Para a civilização, a vida no estado natural puro, a
vida animal e vegetativa, constituía o perigo absoluto.
Um após o outro, os comportamentos mimético,
mítico e metafísico foram considerados como eras
superadas, de tal sorte que a idéia de recair neles
estava associada ao pavor de que o eu revertesse à
mera natureza, da qual havia se alienado com esforço
indizível e que por isso mesmo infundia nele
indizível terror (ADORNO/HORKHEIMER,
1985, p. 42).

O preço que pagamos por esse dilaceramento é a decadên-


cia: a eterna dominação do homem pelo homem. Mas não há aqui
nas entrelinhas nenhuma aversão ao progresso. Os dois pensado-
res revelam-se defensores mesmo do progresso, mas reconhecem
que os avanços não serão conquistas exclusivas do pensamento
lógico e calculista, ao contrário, para isso era indispensável as
formas mitológicas e concretas do pensamento.
Em meio à Querela dos antigos e dos modernos, Vico foi um
defensor do humanismo. O humanismo italiano se constituiu numa
espécie de defesa da vida ativa contra a vida contemplativa que
imperava entre os doutos medievais: os problemas práticos das
cidades dependiam do envolvimento dos cidadãos nesses assun-
tos. Objetivo esse que eles perseguiam pedagogicamente. Com o
estudo das línguas e da retórica objetivava-se a eloqüência, isto é,
a capacidade de construir argumentos verossímeis, geradores de
adesão e consenso. Ser um bom orador tornava-se condição para
a participação efetiva na vida pública. Eis o ideal que recorta
inteiramente a filosofia de Vico: ao desvendar os primórdios, os
inícios retóricos e poéticos da humanidade, desvenda-se sobretu-
do, o funcionamento do senso comum, daquele juízo iletrado res-
ponsável pela vida em sociedade. Manter viva no contexto da
modernidade essa sabedoria parecia ser a condição para a susten-
tação da sociabilidade humana, para evitar a dialética do esclare-
cimento e permitir assim o permanente progresso.

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SILVA NETO, Sertório de Amorim e. As desventuras da civilização: o
problema do esquecimento da natureza em Vico e Horkheimer

Horkheimer assumiu também uma nostalgia pelas formas


de pensamento anteriores ao cientificismo. Contra o império da
racionalidade instrumental, o pensador alemão clamou por uma
espécie de “re-encantamento” do mundo, por uma volta ao
animismo. Não se trata, porém, de recriar o animismo. Pois ele
ainda existe na civilização, foi preservado nas variadas formas de
idolatria e nos sistemas metafísicos. Por isso, o empenho de
Horkheimer, primeiro com relação à verdade filosófica e, depois,
com relação aos próprios sistemas religiosos, o que lhe rendeu ao
final da vida a pecha de filósofo espiritualista. Tal rótulo
descaracteriza o projeto realmente intentado por Horkheimer, que
foi o da crítica ao existente. No mundo desencantado, a filosofia
e as religiões permitem a construção de valores objetivos que
ajudam a medir a realidade e a descobrir a longa distância que
separa o real do ideal, o ser do dever-ser. Como ele disse: “ao
fazer justiça àquelas imagens e idéias que em determinada época
dominaram a realidade exercendo o papel de absolutos [...], a filo-
sofia pode funcionar como um corretivo da história”
(HORKHEIMER, 2000, p. 185-6).

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São Cristóvão, n.7, p. 11-ss, Março 2006
philosophica. R. Fil. Hist. Modern.,
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclare-


cimento. Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1985. (1. ed. 1944)
BERGEL, Lienhard. La Scienza nuova de Vico et le problème de la
décadence. Archives de Philosophie, Paris, n. 40, p. 177-201, 1977.
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Trad. Ana
Maria Bernardo et al. Lisboa: Dom Quixote, 1990. (1. ed. 1985)
HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. Trad. Sebastião Uchoa
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JAY, Martin. L’Imagination dialectique: l’ecole de Francfort, 1923-
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VICO, Giambattista. Del’antique sagesse de l’Italie. Trad. Jules
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______. Principi di scienza nuova. Milão: Ricardo Ricciardi, 1992.
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