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CACILDA BECKER

^ teatro e suas chamas


Renata Pallottini

CACILDA BECKER
^ teatro e suas chamas
1997, by Editora Arte & Ciência
Editor
Henrique Villibor Flory
Diretor Administrativo,
Editoração Eletrônica e Projeto Gráfico
Aroldo José Abreu Pinto
Coordenador Editorial e Arte de Capa
João Luiz Cardoso Tápias Ceccantini
Capa
Rejane Rosa
Fotos da Capa e Miolo
Arquivo pessoal da Família Becker
Revisão
Letizia Zini Antunes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Biblioteca de F.C.L. - Assis - UNESP)

Pallottini, Renata
Série Cacilda Becker: o teatro e suas chamas / Renata Pallottini. - São
Paulo: Arte & Ciência, 1997.

p. 144
ISBN:

1. Leitura. 1. Título.
CDD-

Índice para catálogo sistemático:



1. Teatro Brasileiro 028

Editora Arte & Ciência


Rua dos Franceses, 91 – Bela Vista
São Paulo – SP - CEP 01329-010
Tel/fax: (011) 253-0746 (011) 3171-0477
http://www.arteciencia.com.br
A publicação deste livro só
foí possível graças ao apoio
cultural da Leí de Incentívo
à Cultura (LINC) do governo
do Estado de São Paulo.
A Sérgio Bruck de Moraes e outros
jovens estudantes que, sem terem
visto Cacilda em cena,
lhe dedicaram paixão e talento

A Maria Thereza Vargas


por me ter ensinado como se é amiga
sem pedir nada em troca

A Maria Clara, afilha que Cacilda


escolheu
SUMÁRIO

1 a Parte

Os anos de aprendizado p. 11

2a Parte

O tempo do TBC p. 31

3ª Parte
Em casa própria p. 91
(Os anos do aprendizado)
Renata Pallottini

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CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

"Faço as inquirições de ser e morte e não


respondo: sou pouco, para o largo desse
ampo."

Nl ão se pode contar a história de Cacilda Becker -


a incontestada primeira dama do teatro brasileiro - sem contar
• história do próprio teatro brasileiro, de seu nascimento, de
sua evolução e, principalmente, daquilo que foi um teatro
brasileiro antes e outro depois dela.
O teatro no Brasil nasce quase ao mesmo tempo que
o próprio Brasil, em sua versão européia. Expliquemos: o

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Renata Pa11ottini

Brasil, terra, mar, vegetação, alma, animais e seres humanos,


naturalmente existia antes de que navegantes europeus,
espanhóis, italianos, portugueses, talvez escandinavos,
tivessem aportado por aqui. É claro que ele não se chamava
assim e, com certeza, seus primitivos habitantes conheciam
a terra com outros limites, menores e mais próximos de
suas próprias habitações. Em suma, o Brasil era uma grande
extensão territorial, habitada por tribos de várias origens e
características, que se misturavam às vezes com o que hoje
é Peru, Bolívia, Paraguai, Uruguai, Venezuela, etc. A
configuração que hoje conhecemos, os limites políticos hoje
definidos, a língua portuguesa e a religião cristã
dominantes, isso sim nos veio dos navegantes portugueses
no ano de 1500. A isso se chamou, impropriamente,
descobrimento do Brasil.
Logo após o descobrimento, no mesmo século XVI,
portanto, surgiram as primeiras manifestações teatrais; isso
ocorreu porque religiosos da Companhia de Jesus, uma
ordem de padres católicos que veio ao Brasil em seguida
ao descobrimento, com o objetivo de converter índios e
melhorar a moralidade de colonos europeus, decidiu ^
utilizar peças de teatro para alcançar seus intentos. Essa
decisão era muito sábia, uma vez que o teatro, como se
sabe, tem a capacidade de apresentar, de forma agradável
e às vezes divertida, lições, ensinamentos, exemplos,
caminhos de aperfeiçoamento, chamadas para a ação
transformadora. A isto se chama teatro didático. E foi esta
forma de teatro que os jesuítas decidiram utilizar, como
auxilio no seu trabalho, chamado de catequese. O teatro
de catequese dos jesuítas tinha, ainda, outras vantagens:
podia ser apresentado em português, em espanhol, ou em
dialetos indígenas. Com isso, auxiliava o entendimento, uma
vez que os espectadores passavam a conhecer, uns, o idioma
dos outros, e podiam, assim, dialogar mais facilmente, coisa
que ajuda, como se sabe, a compreensão mutua. Também
se encorajavam os habitantes da terra, fossem brancos ou^
não, a participar dos espetáculos como atores - o que
divertia, ensinava e socializava os primitivos habitantes.
Esse teatro, especialmente feito por um jesuíta
espanhol de origem canária, José de Anchieta, vindo muito

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CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

jovem para o Brasil e dotado, com certeza, de talento como


poeta, não é muito brilhante em termos de textos. As peças
se chamavam, em geral, autos e tinham objetivos vários, o
que, de certa forma, até as prejudicava enquanto teatro.
Mas foram escritas, representadas e guardadas, uma vez
que os jesuítas tinham uma organização excepcionalmente
eficiente no que tange à documentação. Por isso, hoje em
dia, podemos ter acesso aos autos de Anchieta, primeiros
documentos da formação do nosso teatro brasileiro.

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Renata Pa11ottini

II

"No entanto sou eu, é meu povo, é meu


sonho. Deixem-nos sós, para arrumar a
casa. "
Nosdiéculegnt,oarbsil

não avançou muito; existiram, claro, escritores e peças,


espetáculos e público, mas nada do que ficou é muito
impressionante. A colõnia (ainda não éramos uma nação)
estava muito ocupada em defender-se de ataques, tanto
externos, de estrangeiros cobiçosos, como internos, dos
primitivos habitantes que queriam conservar suas posses.
O trabalho de defesa, de organização, de fixação de limites
e, talvez mais ainda, os primeiros surtos de independência,
em que os novos brasileiros pretendiam afirmar nossa
nacionalidade, ocupavam as energias de europeus, de um
lado, e de americanos, indígenas, mestiços ou brancos, de
outro. A par disso, havia ainda o problema emergente da
escravidão africana a complicar a situação. O tempo e as
energias dedicadas à arte e ao divertimento eram poucos.
Somente no século XIX, no contexto do
Romantismo na literatura, dos movimentos da
independência e do abolicionismo na política e das
conquistas napoleõnicas empurrando para o Brasil a corte
portuguesa, explode na colõnia a produção teatral mais
respeitável até então existente. Surgem poetas fazendo
teatro: Gonçalves de Magalhães, Casimiro de Abreu, Castro

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CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

Alves, Paulo Eiró, Alvares de Azevedo e Gonçalves Dias,


principalmente com a sua obra-prima Leonor de Mendonça.
Surge o nosso primeiro grande comediógrafo: Martins
Penna. Surge o nosso primeiro grande ator: João Caetano.
Em seguida, já no realismo, aparece um expressivo
talento de autor, com entusiasmo bastante para ser
empresário, crítico, homem de teatro, enfim. Trata-se de
Artur Azevedo, que, com seu interessantíssimo O
Mambembe, entre outras comédias e peças de teatro de
revista, tinha, corajosamente, optado por um teatro de
recorte popular, musical. Entre os escritores de comédias,
destacam-se Joaquim Manuel de Macedo, França Junior e,
mais tarde, outros romancistas de grande talento e prestigio,
que também se lançam no teatro: José de Alencar e Machado
de Assis.
O teatro brasileiro de verdade estava nascendo;
Gonçalves Dias lhe dera a nobreza necessária à palavra e à
ação. Martins Penna tinha feito comédias realmente
engraçadas e interessantes, ao mesmo tempo em que nos
deixava testemunho dos costumes do Brasil de sua época.
Artur Azevedo tinha lutado pelo teatro em todas as frentes,
até mesmo pela construção de casas de espetáculo, e França
Júnior seguira o rastro de Martins Penna. Com mais algum
trabalho, o teatro brasileiro estava começando a ter o
prestígio necessário para substituir, junto ao público, os
espetáculos europeus importados, que até então tínhamos
tido.

19
Renata Pa11ottini

III

"Há um caminho que leva do escuro à

' claridade..."

É no século XX, no entanto, que esse teatro se


firmou definitivamente, como produção literária e como
espetáculo. Nos primeiros vinte anos do século,
naturalmente, dramaturgos continuaram a escrever e atores
continuaram a representar. Continuou-se a receber
espetáculos de companhias européias que para aqui vinham
fazer a América. Em geral, essas companhias, portuguesas,
espanholas e italianas, na sua maioria, passavam por outros
centros teatrais, antes e depois do Brasil. E o Brasil era, no
princípio, apenas Rio de Janeiro. Só depois, especialmente
com a imigração italiana, São Paulo tornou-se um lugar
atraente para as companhias européias.
Essas companhias traziam para o nosso público
dramas, comedias, óperas e operetas de sucesso. Quando o
idioma o permitia, visitavam o Brasil a caminho de Buenos
Aires. Algumas vezes, tinham tocado antes outros centros,
Havana, em Cuba, por exemplo. Grandes atores e atrizes
estiveram no Brasil e bastaria lembrar os nomes de Sarah
Bernhardt e Eleonora Duse, entre outros, para confirmar
essa verdade.
Por aqui, os escritores continuavam produzindo e
alguns nomes na arte da representação se sobressaíam. Da
Semana de Arte Moderna, em 1922, em São Paulo, resultou^

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CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

o trabalho dramático de Oswald de Andrade, cuja obra mais


conhecida é O Rei da Vela, escrita posteriormente à Semana.
Entretanto, foi só mais próximo da metade do século
XX, aí pela década de quarenta, que surgiu um movimento
que viria a redundar no aparecimento do moderno teatro
brasileiro, capaz, hoje em dia, de ombrear-se com os
melhores do mundo. Surgia um conjunto que se chamou ^
Os Comediantes. Surgia um diretor polonês, radicado no
Brasil, para onde tinha vindo tocado pela Guerra: Z.
Ziembinski. Surgiam um grande cenógrafo, Santa Rosa, um
grande animador, Paschoal Carlos Magno, um grande
dramaturgo, Nelson Rodrigues, um grande ator, Sérgio
Cardoso. Estes, entre outros nomes expressivos de artistas
que trabalhavam para o enobrecimento da nossa arte teatral.
E surgia uma grande atriz: Cacilda Becker.
Renata Pa11ottini

"Onde está quem não está? Onde, no ar,


está quem já se foi?"

Cacilda Becker Yáconis nasceu em Piraçununga,


Estado de São Paulo, no dia 6 de abril de 1921, sob o signo
de Aries, filha de Alzira Becker e Edmundo Yáconis.
Descendia de alemães, italianos e gregos. Sua mãe era
professora na cidadezinha e seu pai um comerciante da
capital, que apareceu pelo interior e se enamorou. Os pais
não viveram muito tempo juntos e as filhas, sustentadas
pela mãe, saíram de Piraçununga para outras vidas e outros
aprendizados.
Cacilda viveu em São Paulo, novamente em
Piraçununga e finalmente em Santos, onde ensaiou os
primeiros passos na arte que tinha então escolhido: a dança.
Sua vida de menina e de adolescente foi profundamente
marcada pela pobreza, pela carência afetiva, pela necessidade
de trabalhar e de suprir a ausência de um pai. Nos seus
depoimentos, quando fala dessa época, ela relembra
constantemente a injustiça, o desprezo que à família
votavam os burgueses, as dificuldades que ela própria, a
mãe e as duas irmãs meninas tiveram para sobreviver com
dignidade. Em suas palavras, vê-se a necessidade que a
jovem inteligente, ativa, com vocação de líder teve para, de
certa forma, ajudar a conduzir aquela comunidade
estranha, toda composta de mulheres; repetidas vezes ela
diz que precisava ser o homem daquela família. Essa

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CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

vocação para a energia, no entanto, não obsta a que ela,


com saudade, relembre o primeiro beijo de amor, no portão
do chalé de madeira de Santos, o primeiro namorado, o
primeiro pedido de casamento.
Renata Pa11ottini

i rr^^

r'
"Na casa, a arquite ra se assemelha
ao vulto dos avós, dos bisavós..."

Em Santos, Cacilda conheceu Miroel Silveira,


escritor, dramaturgo, professor, sobretudo um animador
cultural, amigo de gentes, das artes, amigo de ter amigos,
aos quais protegia, incentivava e seguia ao longo da vida.
Foi Miroel quem convidou Cacilda a, pela primeira
vez, interessar-se por teatro. Ela mesma dizia que nunca
tinha pensado nisso, uma vez que o teatro seria para ela,
então, apenas o espaço onde sua arte, a dança, podia ser
apresentada. O teatro dramático, o teatro-lugar da
representação, o reino do ator, não era conhecido por ela.
Por intermédio de Miroel, Cacilda já tinha tido
oportunidade de conhecer artistas e intelectuais que
freqüentavam a casa de Waldomiro da Silveira, ele próprio
escritor, pai de Miroel. A família, aliás, era toda de gente
ligada às artes e à literatura, um refugio, sem dúvida, para
a mocinha inteligente, sensível, mas sem ambiente propício,
que seria Cacilda naquele tempo.
O convite de Miroel era radical: ir para o Rio de
Janeiro, para o Teatro do Estudante, começar uma carreira
como atriz. Dinheiro nenhum, uma vez que o Teatro do
Estudante era amador, o braço artístico da Casa do
Estudante do Brasil, criação de Paschoal Carlos Magno,
diplomata, escritor, ele próprio um artista enamorado pelo

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CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

teatro. Ir trabalhar no Teatro do Estudante era dar um pulo


no escuro da Arte, na verdade o começo do caminho de
tantos grandes, antes e depois dela.
Miroel contaria mais tarde, em entrevistas e
depoimentos, como ficara encantado com aquela
adolescente que dançava, no palco do Teatro Coliseu de
Santos, o pequeno balé de sua criação A lenda de um beijo;
como entrevira naquela menina as chamas de uma artista
e como, mais experiente do que ela, intuíra que, na dança,
Cacilda não teria grandes oportunidades. O Brasil não
oferecia, naquele tempo, perspectivas para os bailarinos e,
além disso, Cacilda não tinha tido preparação técnica
especial. Dançava intuitivamente, porque essa era a sua
forma, natural e descomprometida, de expressar suas
emoções.
Miroel tinha, no Rio, uma amiga a quem confiar a
jovem candidata a atriz: Maria Jacinta Campos, jornalista,
dramaturga e diretora. Foi o que fez e, por esse caminho,
com a proteção de Maria Jacinta, Cacilda daria o primeiro
passo na sua carreira.
A peça era Altitude 3.200 metros (algumas vezes
aparece como 3.200 metros de altitude) uma comédia
provavelmente sem grandes méritos, de um autor francês,
Julien Luchaire, com tradução do próprio Miroel e direção
de Esther Leão, artista portuguesa radicada no Brasil. A peça,
embora sem méritos artísticos especiais, tinha a virtude de
ser um veículo para a vivência de atores jovens com
problemas de personagens jovens. Maria Jacinta não o
ignorava e, aliás, era essa a razão pela qual escolhera o
texto.
Cacilda estreou, saiu-se
razoavelmente bem para quem
nunca tinha tido a veleidade
de ser atriz e retornou a
Santos.
Mas no seu sangue
já entrara a graça do
teatro.

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Renata Pa11ottini

-almE Lo único deus profeta, poeta e demente


que se despedaça e nasce novamente."

(Teatro do Estudante do Brasil fora fundado,


como se disse, em 1938, por Paschoal Carlos Magno,
diplomata, escritor e, principalmente, homem de teatro. Seu^
amor entusiasmado pela arte dramática o levou, pela vida
afora, a promover, principalmente, espetáculos teatrais,
encontros e oficinas onde os mais jovens, os estudantes e
os amadores em geral pudessem aprender um pouco da
grande arte. São muitos os nomes que Paschoal lançou^
para a vida teatral e, sem dúvida, ao lado de Miroel e de
Maria Jacinta, ele foi um dos responsáveis pelo lançamento
de Cacilda.
O espetáculo de estreia de 3.200 metros de altitude
ocorreu no dia 12 de abril de 1941, no Teatro Ginástico do
Rio de Janeiro, com Cacilda no papel de Zizi, o qual, pelo
que se vê da colocação no programa, devia ser pequeno.
Alguns dias antes, a moça Cacilda tinha feito vinte anos.
Estava sozinha no Rio e, ao seu medo e à timidez próprios
de quem nunca saíra do seu Estado natal, juntava-se um
entusiasmo que era a própria encarnação do fazer
dramático.
Em carta escrita na ocasião, dirigida à mãe e às irmãs,
diz ela, com acuidade incomum para a sua inexperiência:

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CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

"... Mãezinha, saí daí com a voz embargada e fazendo


uma força incrível para não chorar. Fui de uma coragem
tão grande que só mesmo por um grande ideal eu teria.
Mas sinto que nada, nada vale tanto, nem meu maior ideal,
ao meu lar, ao amor que vocês me têm. Tenho a impressão
que sou uma planta. Separei -me de minhas raízes. Logo
estarei junto da serva que me é necessária, mas como me
alimentarei dela sem raízes? Não fenecerei?"
(Carta datada de São Paulo, 16.3.1941)
A ida para o Rio, para os ensaios e a preparação da
sua peça de estreia, se justifica por "um grande ideal',
mas a separação das raízes já faz atentar para a intensa
necessidade de amor que estaria presente em toda sua vida.
Novamente o teatro reponta, chamado de "seiva que me é
necessária". No entanto, aparece também o medo: "Não
fenecerei?".
A carta é escrita ainda na capital de São Paulo, a
caminho, entre Santos e o Rio de Janeiro. A seguinte, já de
23 de março, e enviada do Rio, demonstra os resultados
dos primeiros ensaios e do contato real com o palco:

"Ontem foi meu segundo ensaio.... Recebi hoje uma


cartinha do Miroel. Está todo satisfeito comigo... Esta carta
vai pequenina porque tenho que me arrumar agora para
o ensaio..."

Novamente, quem firma é Cidinha, com certeza uma


forma coloquial de a família referir-se à mocinha artista,
que, na carta seguinte, já dá notícias do teor da peça sobre
a qual fará o espetáculo de estreia:

"O nome da peça é Altitude 3.200 e eu faço o papel da


Zizi, a garota coquete do grupo de moças que se perde nas
geleiras e vai ter a um hotel onde estão outros rapazes,
também perdidos. Lá ficam durante seis meses e durante
esse tempo acontecem verdadeiros dramas da vida... Há
comédia, coqueteria, ciúmes, paixão, discussão sobre
problemas sociais, etc. É muito interessante, apesar de um
POUCO fútil."
(Carta do Rio, de 25.3.1941)
Surpreende a ausência de pretensão da estreante;

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Renata Pa11ottini

em nenhum momento ela fica deslumbrada com a sua


participação e, no julgamento que faz da peça, demonstra
acuidade e espírito crítico. Diz à família que a estreia
acontecerá no dia 12 de abril e pede à mãe "um vestido
bonito para eu põr no dia 6..."
Uma carta do dia 28 de março fala novamente na
peça e dá detalhes:
"Vocês estão pedindo que faça o papel de Zizi o melhor
possível, não é? Pois fiquem sabendo que eu, que nunca
fui coquete, estou sendo a mais dinâmica coquete, basta
dizer que meus dois galãs já andam levando o 'flirt' da
peça para fora dela. Mais coquete do que tenho sido é
impossível. Vocês verão na Zizi a maior ladrona de homens
de outras mulheres. D. Ester vive querendo mais coqueteria,
mas é impossível."

Esther Leão, a diretora do espetáculo, seguramente


estaria buscando, na menina estreante, o talento que já via
potencial, pedindo trabalho e cultivo. E, naturalmente,
prepara-lhe a voz, uma dificuldade que Cacilda teve ao longo
da vida; sua voz era extremamente expressiva, e muito
peculiar, mas não era poderosa. Ela própria o diz, na mesma
carta:

"A minha única dificuldade é falar um pouco mais alto.


Minha voz é muito branda, perto da dos colegas."

Mas se aproximava o dia do aniversário e, mais


angustiante, o da estreia; no dia 6 de abril, de madrugada,
Cacilda escreve à família:

"Hoje faço anos. Não sei se choro ou se rio! Mais um ano!


Como temo a vida! Mamãezinha, Dirce, Cleyde, agora mais
que nunca eu lhes peço, amem -me muito, muito. Eu preciso
de vocês, pois eu sou covarde. Tenho medo de viver... De
repente deixei de ser criança. Que pena, meu Deus!"

Cacilda deixara de ser criança, fizera sua estreia no


teatro, aos vinte anos, no papel de uma mocinha coquete.
Mas a criança que sempre existiria nela ansiava por seguir
vivendo.

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CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

VII

"A alegria de ser.


A alegria de não ser
sozinha.
A alegria
sozinha
de ser
alegria."
r ^
^tre 1941e o próximo grande passo a ser dado
por Cacilda, a descoberta do amor, muitas coisas ocorreram
no teatro brasileiro. Firmou-se o prestígio artístico de Os
Comediantes, grupo experimental que produzia no Rio. Em

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Renata Pa11ottini

pleno período da guerra, atores e diretores europeus vieram


para o Brasil, fugindo e buscando ambiente para alguma
realização. Destes, o mencionado Ziembinski escolheria,
inicialmente, o Rio como lugar de sua produção. Seu^
possante talento, apoiado numa formação basicamente
expressionista, aliado ao talento surpreendente do até então
jornalista Nelson Rodrigues, iria resultar o grande marco
do moderno teatro brasileiro, Vestido de noiva. O
espetáculo estreou em dezembro de 1943 e despertou^
entusiasmo, ira, espanto, surpresa geral. Mas tinha mudado
o panorama do teatro no Brasil.
Cacilda trabalhou, nesse período, realizando muitas
tarefas; primeiro, supondo que não voltaria, talvez, a
fazer teatro, buscou sustentar-se de outras formas, como
professora, como locutora, como atriz de rádio-teatro.
Depois, novamente chamada, ligou-se por pouco tempo à
Companhia Dulcina/Odilon e, mais tarde, de forma mais
intensiva, à Companhia de Raul Roulien. Continuava, sem
dúvida, aprendendo e melhorando seus conhecimentos, não
só da arte teatral como da vida, ampliando suas relações.
As cartas de então demonstram que a jovem já se interessa
por seus figurinos, pela maquiagem, pelo conjunto de
elementos, enfim, que fazem um espetáculo teatral em sua
complexidade. Já discute seus papéis, já se pode, até, dar
ao luxo de recusar algum.
Durante os anos de 1941/42, faz mais um
espetáculo com o Teatro do Estudante e, depois, várias peças
de pouco brilho na Companhia de Raul Roulien, um galã do
teatro brasileiro que tivera, anteriormente, uma passagem
pelo cinema norte-americano.
Mas é em 1943 que Cacilda dá um passo decisivo
em sua carreira, do ponto de vista artístico, ao fazer, com
o Grupo Universitário de São Paulo, um espetáculo em
que se juntavam três peças: Auto da barca do inferno, de
Gil Vicente, Os irmãos das almas, de Martins Penna e
Pequenos serviços em casa de casal, de Mário Neme.
Cacilda estava nas três peças e, ao menos nas duas
consagradas, pode-se verificar que estava em papéis
importantes.

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CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

O Grupo Universitário de Teatro (GUT) fora criado,


e era dirigido, por Décio de Almeida Prado, recém-
saído da Faculdade de Filosofia da Universidade de
São Paulo, e acompanhado, no seu fervor pelo teatro, por
contemporãneos que desejavam, como ele, dotar São Paulo
de uma equipe teatral à altura da sua cultura.
O espetáculo estreou em São Carlos, no dia 24 de
julho de 1943, dirigido pelo próprio Décio de Almeida Prado,
com cenários de Clóvis Graciano, artista plástico depois
consagrado.
Desse espetáculo, agora realizado no Teatro
Municipal de São Paulo, pode-se ter uma idéia através das
palavras do grande incentivador da arte dramática no Brasil,
Alfredo Mesquita, ele próprio dramaturgo, professor,diretor.
Sem meias palavras, Alfredo diz que a interpretação de
Cacilda lhe parecera "uma criação genial, impressionante%
conforme se vê no utilíssimo trabalho Uma atriz: Cacilda
Becker, estudo de Nanci Fernandes e Maria Thereza Vargas.
É na ficha técnica desse espetáculo que se encontra,
pela primeira vez, o nome de Tito Fleury, aquele que viria a
ser o primeiro marido de Cacilda.

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Renata Pallottini

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CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

,L
L ^^^^^
(O tempo do TBC)
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Renata Pallottini

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CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

VIII

"Maduro o mundo, madura a truta a ser


r r1
comida, vida."

ito Fleury talvez não fosse, afinal, uma vocação


de ator. Mas já nas cartas seguintes, feitas à família, sentem-
se os ecos da sua presença na vida da atriz. O tempo faria o
resto.
Se o ano de 1943 marca, no Rio, o espetáculo basilar
dos Comediantes, de Nelson Rodrigues e de Ziembinski e

35
Renata Pa11ottini

a aparição de Cacilda em textos cuja importãncia hoje,


cinqüenta anos depois, podemos aquilatar; o ano de 1948
é uma data angular para o teatro em São Paulo. Neste ano
fundou-se, aqui, o Teatro Brasileiro de Comédia.
O período que vai de 1943 a 1948 é pontilhado, na
carreira da atriz, de realizações, de lutas, de dificuldades,
triunfos, tentativas. Uma carta datada de 7 de janeiro de
1942 dá-nos um pouco do espírito de Cacilda nessa época:

"... Sinto dentro de mim três personalidades muito fortes.


Uma, que é a pura essência da arte, fluída, bela e tem
uma leve coloração azul; outra é a minha consciência -
é parda, pesada, sombria e severa. Outra, muito
material, tem cor de creme, com riscos avermelhados e
roxos, com um pouco de dourado! (..) Se a primeira
personalidade vencesse, eu seria quase uma deusa, pura,
quase inerte -passaria por tudo vibrando, refletindo
como um cristal, e produziria sons - uns sons um
pouquinho dissonantes, sabe como? (..) Quanto à
segunda personalidade, meu caro, eu quase não a distingo.
É muito esquisita. A pobre coitada sofre tanto a força
da primeira e da terceira que ainda não está bem
formada. (É por isso que nem sempre raciocino com
muita clareza). Concorda com a audácia da terceira
personalidade, mas discorda de seus desejos; condena a
superficialidade da primeira e adora a forma, a cor e a
verdadeira beleza que ela tem. É por isso que ela é parda,
cinzenta quase. Vive numa profunda melancolia e de
cenho carregado, procurando resolver um problema
serio .... E agora vamos à minha maravilhosa terceira
personalidade. É cheia de dinamismo, brilhante, um pouco
má, calejada, sabe? Ambiciosa, tremendamente forte. É
assim como os pedais de uma harpa que avolumam o som.
É forte, intensa, humana. Ama, chora e morde.... Gosta de
beijos, de fumo, de álcool..."

É impressionante que Cacilda, aos vinte e poucos


anos, com uma experiência ainda curta de vida e sem
veleidades de escritora, conseguisse fazer, sozinha, tão
aguda análise dos conflitos internos que tumultuam a
alma de um artista. Nessa auto-análise aparecem o
superego vigilante, castrador, a artista etérea, idealizada, e
a mulher real, despontando para o amor, os embates do

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CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

ciúme, da inveja, da vaidade, da ambição. Aparece um ser


humano real.

O Teatro Brasileiro de Comédia foi uma


invenção do industrial italiano Franco Zampari, homem
conhecedor do mundo e desejoso de dar à cidade que
escolhera um teatro pelo menos tão importante quanto
as companhias estáveis que a Itália sempre tivera. Aos meios
materiais de realizar o seu intento, Zampari acrescentou o
apoio de paulistas que acompanhavam sua ambição e seus
sonhos mas, também, a intuição de que a Europa, recém-
saída da guerra e mal podendo cuidar de sua reconstrução
fisica e moral, não tinha tempo e energias para as atividades
artísticas. Nesse sentido, era natural que os artistas
europeus continuassem, como haviam começado a fazer
durante a mesma guerra, saindo de seus países para buscar
melhor sorte na América.
O TBC, como ficou conhecido o novo teatro,
amparado no nome de uma verdadeira companhia estável,
Sociedade Brasileira de Comédia, tinha, portanto, planos
sólidos, apoio de intelectuais e artistas, meios materiais e
até mesmo uma sede, com sala de espetáculos adequada
aos seus propósitos.
E foi no TBC, a partir de 1948, que Cacilda encontrou^
a sua casa. Como diria depois Décio de Ahneida Prado,
"com o TBC começa de fato a ascensão de Cacilda."
O próprio Décio conta que numa certa noite de 1948,
quando o GUT ensaiava O baile dos ladrões, de Jean
Anouilh, em que Cacilda fazia um papel cõmico de
responsabilidade, Abílio Pereira de Ahneida, autor que foi,
na primeira fase do TBC, o representante da dramaturgia
brasileira junto ao grupo, surgiu para fazer-lhe um pedido.
Queria que Cacilda Becker deixasse os ensaios de Anouilh
para assumir o papel da protagonista em sua peça A mulher
do próximo, que iria estrear a nova sala de espetáculos
concebida por Zampari. Décio cedeu, sentindo muito a perda
de sua estrela, mas sabedor de que aquilo significava mais

37
Renata Pa11ottini

um passo adiante na carreira de Cacilda. O TBC nascia


afortunado, com todos os recursos, e bem aquinhoado,
inclusive, do ponto de vista artístico. Claro está que o
primeiro espetáculo era, ainda, uma montagem de
amadores, dirigida pelo próprio Abílio. Mas já se viam, aí,
despontar os primeiros nomes que fariam carreira e dariam
méritos à iniciativa: Abílio Pereira de Almeida, ele próprio,
autor, diretor, ator; Carlos Vergueiro, de curta atividade no
teatro profissional, por opção sua; Marina Freire, excelente
atriz de apoio, Delmiro Gonçalves, Aldo Calvo, Bassano
Vaccarini.
E, curiosamente, nossa atriz com seu nome completo
de então: Cacilda Becker F. Martins.
Cacilda e Tito se haviam casado.
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

"O
_X

estréia deve ter tido um êxito bastante


significativo, em parte pelo talento incipiente do autor da
peça, responsável, mais tarde, por alguns indiscutíveis
sucessos, em parte pelo brilho da atriz principal e em boa
parte porque o TBC nascia sob os bons augúrios de uma
parcela da população paulistana que, tendo evoluído
socialmente, culturalmente, materialmente até, queria ter
acesso aos bons textos e a espetáculos compatíveis com os
que havia visto ou conhecia de fama, na Europa. O TBC tem
sido acusado, ao longo dos tempos, de haver sido uma
companhia de snobs, de pedantes que desprezariam a
produção nacional, de ricaços que não tolerariam, por
exemplo, uma peça popular ou reivindicatória. Isso não é
verdade, ou não é, pelo menos, totalmente verdade... O
Teatro Brasileiro de Comédia criou uma geração de grandes
atores, deu guarida a excelentes diretores estrangeiros,
propiciou o crescimento de alguns ótimos diretores
nacionais e, até, abriu espaço para muitos dramaturgos
brasileiros, que ali se lançaram ou se aperfeiçoaram. Do
TBC saíram para carreiras individuais Cacilda Becker,
Madalena Nicol, Célia Biar, Marina Freire, Ruy Affonso,
Sérgio Cardoso, Nydia Licia, Cleyde Yaconis, Paulo Autran,
Eugênio Kusnet, Leonardo Vilar, José Renato, Walmor
Chagas. Por ali passaram grandes diretores: Adolfo Celi,
Luciano Salce, Ruggero Jacobbi, Ziembinski, Gianni Ratto,

39
Renata Pa11ottini

Maurice Vaneau, Alberto D'Aversa, Antunes Filho, Flavio


Rangel. Ali foram acolhidos, também, Abílio Pereira de
Almeida, Jorge Andrade, Gianfrancesco Guarnieri,
dramaturgos brasileiros. Não se tratava de uma companhia
que tivesse preconceitos. Seu compromisso era com o bom
teatro; se as opiniões dos grandes artistas que ali se
sucederam podiam variar, isso é outra coisa. Não se poderia
esperar de um grupo fundado em 1948 a tomada de posição
que o fim da década de cinqüenta e, principalmente, a
década de sessenta impuseram aos artistas brasileiros.
A estréia de Cacilda no palco do TBC, portanto,
ocorre em 1948. Cacilda tinha vinte e sete anos, uma carreira
de sete, carreira ascendente, que tinha merecido elogios
de críticos díspares, desde os jornalistas respeitáveis da
terra, até o monstro de teatro Silvio D'Amico, teatrólogo
italiano de passagem pelo Brasil, que a elogiou com
entusiasmo.
Ela estava, agora, mais segura de seu valor, sob o
ponto de vista artístico e sabedora de que, entre as coisas
que mais queria, estava um filho.
E assim, no dia 30 de outubro de 1949, quando a
atriz saíra das montagens de Ingenuidade, de J. Van Druten,
com direção de Madalena Nicol, de Nick-Bar, de William
Saroyan, com direção de Adolfo Celi, e de Arsénico e
alfazema, de Joseph Kesselring, direção de Celi - lembro-
me de tê-la visto neste último espetáculo, grávida - nascia
Luiz Carlos Becker Fleury, o Cuca.

40
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

"Não tenha medo


do primeiro dia.."

a
` mor e a ansiedade com que Cacilda esperava
esse filho, entre os trabalhos de todo dia (e de toda
noite) que lhe pedia o teatro, os embates com uma nova
situação doméstica, os acertos que a vida pessoal e a
vida profissional requeriam, estão patentes nesta carta que,
antes do nascimento, ela escreve ao seu filho e à qual
chamou Primeira carta para o meu bebé:
Renata Pa11ottini

"2 de setembro de 1949

Já quero muito bem a você! Não por romantismos,


sentimentalismos comuns às mãezinhas de dezenove
anos, apaixonadas pelo marido, etc., etc. (Você mais tarde
verificará se existe de fato distinção no amor de mãe,
distinção que no dia de hoje estou estabelecendo). Hoje,
às duas horas da madrugada, quando faltam, no
máximo, dois meses para você vir, amo -o friamente. Vejo
em você, é verdade, o bebezinho rosado lindo que será
como o mais lindo brinquedo do mundo,para minhas
mãos sedentas de fazer carinhos e,quem sabe,
recebê-los; mas acima de tudo o ser que me ajudará
a amar a vida independentemente da minha vida
pessoal e da vida das pessoas que amo, cuja existência
tem tido importância fundamental em toda a minha
existência. Meu filho, você está sendo, no momento, a minha
libertação. A sua vinda não representa um furto, ou, por
outra, a exclusividade da minha capacidade de amar
concentrada em você, isso não, mas sim o meio de continuar
amando os que hoje amo, de um modo mais sereno e
tranqüilo desde que, em você, existirá a minha continuação
e a dos que amo mais.

Mas lembre-se: ame tudo serenamente; e acima de tudo,


não se ame senão nas coisas que não lhe pertencem. Que o
seu amor próprio se resuma na sua dignidade e respeito
próprio. Um homem vencido pelo seu egoísmo normal é
um ser abjeto. O mundo não é feito de bons, não se iluda,
mas em todos há uma possibilidade latente para a virtude.
A sua virtude será a chave da virtude alheia.
Não seja e não queira e não se deixe passar por tolo! A
inteligência é dom divino. O homem deve cultivá -la e fazer
por torná-la evidente, discreta mas indubitavelmente.

Bem, há meia hora estou escrevendo, seu papai deve estar


para chegar e preciso dormir. Você, amor, tem sido muito
bonzinho para mim, mas a gravidez é tão inconfortavel,
querido, tão inconfortável, sobretudo para uma atriz!"

A ternura-mas também o bom senso - ressumam


desta carta; aí se vê a confissão do desconforto que
representa, para toda mulher, e especialmente para uma
atriz, a gravidez. A autora fala do amor materno, mas

42
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

também cuida de desmistificá-lo, chamando-o um amor


frio, provavelmente mais equilibrado e racional do que
propriamente frio.
Faltam dois meses para o nascimento; são duas
horas da manhã, o pai está para chegar. O cansaço também
se vê em suas palavras. Mas existe a promessa: até a próxima
carta.

43
Renata Pa11ottini

"Ser criança é se alimentar de todos os


acontecimentos_"

J Livro do Bebé Luiz Carlos se abre com uma


foto do casamento de seus pais: Tito sério e compenetrado,
Cacilda de branco, véu e grinalda, ramo de rosas nas mãos,
a mão esquerda destacando-se, fina, longa, a aliança muito
aparente e um sorriso algo contrafeito. Por quê?
O nascimento do filho esperado ocorreu às onze e
meia da noite, na Maternidade Filomena Matarazzo. O
cuidado no apontar os primeiros detalhes, peso, cor dos
cabelos, dos olhos, rol das pessoas presentes, dá bem a
medida da importãncia que o evento tivera para a mãe. Não
era um filho qualquer: era o "meu amor", como deixa
marcado, no álbum, Cacilda.
O Teatro não podia esperar: o nené crescia e cada
detalhe desse crescimento era apontado no seu álbum, mas
havia as solicitações da companhia. No dia 24 de janeiro,
Cacilda voltava ao palco e em nada menos que duas obras-
primas: Entre quatro paredes de Jean Paul Sartre e Um
pedido de casamento de Anton Tchecov, com direção de
Adolfo Celi.
Em ambas as peças, seu papel era marcante;
especialmente a Inês de Huis clos (nome original do texto
de Sartre) devia originar um desgaste notável. Mas Cacilda
sempre foi feita de pura energia e a felicidade pelo

44
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

nascimento do filho devia, sem dúvida, acrescentar algo a


esse temperamento inato.
No 4 0 dia do nascimento, a mãe anota que vovó Ary
apareceu para conhecer o neto, mas que papai "não aparece
e nem telefona".
E, mais tarde, no dia 13 de janeiro de 1950,
escreve, no álbum de Luiz Carlos, a carta que talvez,
entre todos os seus escritos, tenha sido o que melhor
retratou os problemas da gente de teatro, em seus esforços
por viver uma vida comum, em comum, por fazer coexistir
a carreira e a vida pessoal, o amor ao teatro e o amor a uma
pessoa:
"Filhinho querido: o que mamãe vai escrever aqui lhe diz
respeito, muito, muito de perto. Por motivos que só quando
você for grande poderá saber e compreender, mamãe e
papai, hoje, diante de um Juiz muito serio, e com um certo
espanto diante das surpresas da vida, assinaram um
desquite amigável. Papai e mamãe vão se separar;
não viverão mais como marido e mulher, porém como
amigos, se isso for possível, invocando o bem que ainda
nos queremos e o respeito mutuo que ainda nos
resta. Pensamos muito em você, creia. Papai muito
preocupado com a sua educação, mamãe ainda mais,
porém confiante no amor que lhe tem. Seu pai deu-me
garantias morais de que você ficará sempre aos meus
cuidados, desde que atenda em amor, carinho e
cuidados às tuas necessidades materiais e morais.
Prometemo-nos viver o melhor possível em função de você^
e da sua felicidade. No modo de ver de mamãe essa
separação era inevitável e se não se tornasse oficial
ela existiria de qualquer modo,como coisa tácita, pois,
infelizmente, os interesses de mamãe e papai são
radicalmente diversos. Eu sei,meu filho, que para
você todos os motivos são insignificantes para essa
separação, diante do que você tem como direito.
Perdoe -me. Na realidade - quando você for grande
verá - um lar só existe de fato quando é feito de amor,
e o nosso lar comum seria um lar inquieto, cheio de arestas
irremovíveis que, conseqüentemente, fariam de você^
um menino triste e assustado. Assim como ficamos,
mamãe morando com você na casa de vovó Zizi e tia
Cleyde, papai com vovó Cecilia, vendo você todos os dias e

45
Renata Pa11ottini

debaixo do seu pátrio-poder, você só nos conhecerá em


nossos melhores aspectos, serenos e amigos. Seremos país
mais perfeitos desse modo. Oh, meu amor, mamãe sofrerá
muito se você julgá -la egoísta, se não compreendê-la!
Lembre-se disso sempre, porém. Os casamentos no Brasil
estão hoje quase falidos, ou resultam num amontoado de
sujeiras ocultas, debaixo de uma covarde hipocrisia, em
virtude da educação masculina ser a mesma do século
passado, quando as mulheres nesta terra eram analfabetas,
incultas, sem ideais e sem idéias. Os homens são bons, as
mulheres também, mas tão diferentes na sensibilidade e
tão iguais nos sonhos e nos direitos humanos. Não há "ser
superior ". Tanto a borboleta como a rã, o homem ou a
mulher têm o mesmo direito de viver, com a mesma luz, o
mesmo ar, a mesma água e a mesma intensidade. A vida é
uma só para um mundo inteiro!
Mamãe e papai hoje assinaram um desquite amigável...
Só Deus sabe o que está escrito no livro dos destinos...
Deus o abençoe, meu filho."

46
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

Esta segunda carta, transbordante de sinceridade,


penetrada de dor e de medo, mas também de esperança,
dá-nos uma clara medida da sensibilidade de Cacilda
Becker. Em suas linhas se vêem, em seqüência, sinais
do seu desejo de liberdade e de realização, mas
também de sua preocupação com o destino do filho.
Transparece aí o cuidado com que o casal procurou cercar
a traumática separação, mas igualmente se aponta a
inferioridade a que, socialmente, a mulher comum casada
estava sujeita. Cacilda se rebela contra os preconceitos
então - e ainda agora - vigentes, aponta as injustiças
e a discriminação. Denuncia corajosamente aquilo que
considera a hipocrisia das uniões legais e se dá conta de
que um lar apenas formalmente constituído não preenche
as necessidades de um filho, apenas as disfarça. Fala dos
seus "interesses" que são, evidentemente, aqueles da sua
carreira e da sua vida pessoal, diversos dos do cõnjuge, e
pelos quais ela, corajosamente, pretende lutar. Está, como
sempre, cheia de energia, e deseja, sinceramente, sanar os
problemas e resolver a situação. Mas no fim emerge uma
daquelas outras personalidades de que falara
anteriormente... e ela diz, incerta, insegura, a harpa sem
pedal...: "só Deus sabe o que está escrito no livro dos
destinos..."
E pede a Deus que abençoe o seu filho.

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Renata Pa11ottini

XII

"Alguma coisa frutifica e fica em nós."

! \J os tempos seguintes ao nascimento de Luiz


Carlos, Cacilda seguiu trabalhando, em meio às dificuldades
com a mudança de vida, de casa, de hábitos; o casal, agora
separado definitivamente, procurava organizar uma rotina
que atendesse aos interesses divergentes e à vida de cada
um e, ao mesmo tempo, às necessidades do filho. Cacilda
participava das montagens de Os filhos de Eduardo,
agradável comédia de Marc-Gilbert Sauvajon, a qual co-
dirigiu com Ruggero Jacobbi; A ronda dos malandros,
importante texto de John Gay e, finalmente, A importãncia
de ser prudente, de Oscar Wilde, coincidentemente três
textos ou cõmicos ou leves, talvez a melhor coisa para ajudá-
la a não se sentir deprimida. O TBC seguia também sua
trajetória ascendente, firmando-se como teatro preferido
por aqueles que podiam comprar seus ingressos, aqueles
que, mais tarde, seus detratores chamavam a burguesia.
Na verdade, com sua exigência de qualidade e, até, com
suas criações inteligentes, como a vesperal, dedicada ao
público feminino, o TBC era freqüentado por grã-finos,
mas também por estudantes, funcionários públicos,
profissionais liberais, pela classe média, enfim.
No primeiro aniversário de seu filho, Cacilda nos
dá, novamente, um retrato do seu estado de espírito:

" você está dormindo.... Sua mamãe, durante este ano,

48
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

trabalhou desesperadamente , e hoje é oficialmente


reconhecida uma grande atriz..."

Cacilda sabia, finalmente, do seu real valor;


trabalhara para conquistar a posição que ocupava. Para isso
tinha, num dia distante, renunciado ao amparo e ao calor
da família, na casinha coberta de maracujás de Santos. Tinha
lutado, no Rio de Janeiro, contra uma cidade que não a
conhecia e que tinha outros mitos para defender; enfrentara
concorrência, vaidades, sensibilidades, ressentimentos, para
não falar das meras dificuldades materiais. Insistira e voltara
a São Paulo para apostar suas fichas num teatro novo, que
era um risco, como toda nova iniciativa. Casara-se e se
separara, tinha agora um filho por quem lutar.
Mas tinha conquistado o seu espaço, reconhecido
oficialmente por todo um mundo artístico e pelo seu próprio
público, que agora a escolhia e buscava como referência
nos espetáculos teatrais.
Vinha, agora, a época de O Anjo de pedra e,
principalmente, de Pega-Fogo.

49
Renata Pa11ottini

XIII

"Que tristeza essa nossa que tão pouco


arrefece tão raramente passa..."

^ a
~ cilda tinha, agora, vinte e nove anos, um
casamento malsucedido e um filho. A vida, a sensibilidade
e a capacidade de amar não estavam esgotadas nessas
experiências; nem poderiam estar, tratando-se de uma
artista que vivia todos os segundos de sua vida - quiçá
adivinhando que ela seria curta? Os depoimentos dos
companheiros de trabalho - que, afinal, eram seus
companheiros na maior parte de sua vida - dão conta de
quantas horas de conversação passavam discutindo teatro,
arte em geral, a vida profissional, as idiossincrasias dos
diretores, as fatalidades da realidade brasileira...
Adolfo Celi, o excelente diretor que viera da Itália,
via Argentina, para realizar boa parte de sua carreira aqui,
havia chegado pouco antes, em 1949. A influência que seu ^
trabalho de guia profissional e sua afeição exerceram na
carreira e na vida de Cacilda é notória. Ele a dirigiu, pela
primeira vez, em Nick-Bar. Era o começo de uma
colaboração que se estendeu até que Celi fundasse, com
Tonia Carrero e Paulo Autran, sua própria companhia. Diz
Celi textualmente: "não era uma mulher feliz, tenho a
impressão de que nunca foi feliz. " Esse não ser feliz, essa
consciência da angústia humana como uma fatalidade, que
permeava todos os seus trabalhos, Cacilda a levou ao ápice
mais tarde, no seu último espetáculo, quando fez Esperando

50
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

Godot.
Mas aqui ela ainda estava realizando a Alma
Winemiller, personagem de Tennesse Williams, em O anjo
de pedra. Nesta peça, como em geral nos textos do autor, o
que se via era, exatamente, o retrato da angústia humana,
da frustração humana elevada à sua mais alta condição
poética. E foi uma das mais belas criações de Cacilda.
Talvez seja deste tempo um poema sem data,
manuscrito, com todas as características de um rascunho,
encontrado mais tarde entre seus papéis:

"Nunca ouses falar do teu amor


(que o amor não cabe nas palavras).
Ao vento que passava devagar
indiferente e manso
falei do meu amor. Do meu amor.
Dele falei, o coração aberto
e trêmulo, num arrepio de pavor.
Meu amor me deixou.

Tão cedo falei do meu amor.


Um estranho, passando devagar
indiferente e manso
carregou -o consigo, num lamento."

Sem data, este rascunho foi feito no verso de uma


página do texto de trabalho de O anjo de pedra, texto ainda
anotado, corrigido. Fala de um amor querido que se perde,
da impotência do amante que vê voarem com o vento suas
esperanças. Se, de fato, o poema coincide com a preparação
da peça, Cacilda o escreve em pleno período da separação.
A quem ou a que se refere, dentro da ambiguidade que,
sabemos, marca toda e qualquer produção poética, só ela
própria, e o vento, o saberão.

51
Renata Pa11ottini

XIV

"Fizemos juntos nosso campo


nosso palco
fizemos juntos nossas aventuras...

0 8 dez anos que separam a fundação de Os


Comediantes do lançamento do Teatro Brasileiro de
Comédia são fundamentais para o crescimento do nosso
teatro. Deixava-se definitivamente a concepção de um teatro
de ator, embasado unicamente na primeira figura, em uma
estrela que podia ser Dulcina de Moraes, Procópio Ferreira,
Jaime Costa, Raul Roulien; e se passava a privilegiar o teatro
de conjunto, de equipe, onde cada detalhe da montagem
era confiado ao melhor profissional disponível.
Passava-se também do puro e simples amadorismo,
que tinha, afinal, tornado possível a existência de Os
Comediantes, do Teatro do Estudante do Brasil, e de tantos
grupos que enobreceram a arte dramática brasileira, para
o profissionalismo assumido, que dava aos atores e
diretores uma estabilidade capaz de garantir melhor
resultado estético. Não que, antes do TBC, não existisse
profissionalismo e não existissem companhias de teatro;
mas essas companhias eram transitórias, unidas ao redor
de um líder ou de um casal de atores, escolhidas e
contratadas para um espetáculo ou para uma viagem. O
TBC era a primeira companhia que oferecia um local fixo
de ensaios e espetáculos, um elenco estável, diretores
escolhidos e de primeira linha, que se revezavam na criação

52
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

de grandes espetáculos, técnicos capazes e, enfim, um


espírito que, talvez, fosse o mais importante: o de querer
produzir, sempre, o melhor espetáculo possível, alternando,
para isso, clássicos e textos ligeiros, peças para público e
textos consagrados do grande teatro universal.
Também nesse sentido, Cacilda Becker participa da
construção do nosso novo teatro brasileiro; com muita
consciência, ela soube reconhecer que, como atriz (e
primeira atriz) queria trabalhar, queria fazer os melhores
papéis, queria ter sobre sua figura, sempre, a luz dos
refletores. Isso, aliás, é fundamental nos atores. Nenhum
ator pode ser grande se não tiver um grão de egocentrismo,
de vaidade, de exibicionismo. Um ator não pode querer
esconder-se. É próprio do trabalho do ator o desejo de ser
visto. Nisso está a base de sua vocação, é isso que o ajuda
a enfrentar milhares de horas de ensaios em porões escuros,
longe da luz do sol, do convívio dos seres humanos comuns,
dos amigos, da família. Isso e o desconforto, as esperanças
frustradas, a insegurança, o arder contínuo fazem a
profissão do ator, a vida do ator.
O TBC, ao reunir em seu elenco tantos nomes
brilhantes - já brilhantes ou que viriam a brilhar sob suas
luzes - assumia um risco muito grave: o de se tornar campo
da explosão de rivalidades, invejas, ciúmes. Isso aconteceu,
sem dúvida. Mas enquanto não acontecia, o TBC dava aos
seus espectadores exemplos insubstituíveis da arte do
teatro. Já se haviam montado, ali, Tchecov, Sartre, Oscar
Wilde, John Gay, Tennesse Williams, William Saroyan.
Havia chegado a vez de uma peça de Jules Renard, Poil de
Carotte, dirigida por Ziembinski. Cacilda ia criar o seu ^
imortal menino de cabelos vermelhos: Pega-Fogo.

53
Renata Pa11ottini

"O importante não é o bife, tia...


• importante não é o pão.
• importante é que um dia
uma tia
me deu um banho e um beijo
e me botou no chão.
E eu fui andando
com esse beijo na cara.
Minha cara molhada
de um clarão."

^ ^
referiram por escrito à interpretação de Cacilda em Pega-
Fogo são unãnimes em dizer que esse foi um dos seus
melhores trabalhos, quando não, definitivamente, o melhor.
Em todas as críticas, a distinção lhe é concedida, ressaltam-
se vários aspectos, todos eles positivos, da sua
interpretação.
Diz Adolfo Celi, por exemplo, na obra já referida,
de Nanci Fernandes e Maria Thereza Vargas:

"A coisa mais bonita que eu ví dela foi Pega Fogo, que não
foi dirigido por mim, foi dirigido pelo grande Zimba. (..)
Foi uma coisa extraordinária, ela aí conseguiu mostrar toda
a sua infância, que não deve ter sido fácil não. Ela
conseguiu transmitir toda essa dor, a dor de uma criança
que não foi feliz, que nunca foi feliz..."

54
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

A constante das manifestações que enfocam esse


trabalho é a observação de que, nele, Cacilda se coloca,
coloca sua vida, sua sensibilidade, sua infãncia
desprotegida, lutadora, sofrida. Com grande acuidade,
vários críticos notam que, tanto aqui como em Esperando
Godot, pouco importam o sexo e a idade do personagem:
Pega-Fogo e Estragon não são um homem e um menino,
mas seres humanos sensíveis, sofridos, vítimas privilegiadas
das agressões da angústia.
Diz Sábato Magaldi, ainda na obra citada:

"Dos vinte e seis desempenhos a que assisti de Cacilda,


dois particularmente se gravaram em mim: o de Pega Fogo
e o de Estragon. Vi a peça de Jules Renard numa
remontagem, em que não me convencia o cenário. Aos
poucos, desliguei-me dos acessórios, para me concentrar
no sofrimento daquele menino maltratado. Verifico,
assustado, que os dois papéis de minha preferência, na
carreira da atriz, são masculinos. Que significaria essa
coincidência?"

O próprio Sábato, com sua conhecida acuidade, logo


conclui: realmente, nem Pega-Fogo nem Estragon são
homens. Trata-se, isso sim, de pessoas humanas. Cacilda,
de Godot, diria mesmo que Estragon e Wladimir são
composições do ser humano, cada um deles com uma
porção feminina. Antecipa a atriz, assim, alguma coisa de
modernas teorias psicológicas, que falam da coexistência,
em cada ser humano, de porções de ambos os sexos.
Ziembinski, seu diretor em Pega-Fogo, conta dos
trabalhos de preparação do personagem e do que custavam
à atriz:

"Ela era impressionante. Para fazer o garoto de Pega -


Fogo, enfaixava a região dos seios com tiras largas de
esparadrapos. Depois de uma semana de representações,
a pele saiu e ficou carne viva. Ela teve de enfaixar -se com
tiras de pano. Cacilda sempre fez esses sacrifícios."

As crõnicas dos esforços e cuidados de Cacilda para,


inclusive do ponto de vista fisico, convencer como o menino

55
Renata Pa11ottini

de Pega-Fogo, percorrem as várias narrativas que se têm


feito a respeito desse espetáculo. Naturalmente, os elogios
se sucedem:

"Como Cacilda torce o pescoço à grandiloqüência teatral!


Enfim, ela é Poil de Carotte. Poil de Carotte não pode ter
mais, para mim e muitos outros, de ora em diante, um
outro rosto senão o seu."

Assim se manifestava Michel Simon, crítico,


jornalista, estudioso de teatro. E, juntando-se à consagração
unãnime, assim se manifestava Décio de Almeida Prado
em sua crítica no jornal O Estado de S. Paulo:

"A grande triunfadora da segunda peça - e da noite - foi


Cacilda Becker. A todos tinha parecido que a Alma
Winemiller de Anjo de Pedra havia marcado o ponto mais
alto de sua carreira e que, pelo menos tão cedo, não seria
possível ir mais longe. Wil de Carotte , `Pega-Fogo ' na
tradução de Nonnemberg, veio mostrar como estávamos
equivocados ao admitir limites para Cacilda. As suas
imensas possibilidades são ainda mais vastas e profundas
do que pensávamos e a atriz, entrando agora num período
de plena maturidade, começa a elevar nosso teatro a
alturas raramente alcançadas, mesmo pelo melhor teatro
de outros países."

Quem era, na verdade, esse menino que,


naturalmente, representava seu próprio autor - como tantas
vezes pode acontecer - e, ao mesmo, os sofrimentos da
infãncia de toda a gente, até mesmo daqueles que se
convencionou supor que tiveram uma infãncia feliz? Por
que se diz que Cacilda, no decorrer de sua vida, dizia
encontrar em seu próprio filho traços de Pega-Fogo ? O que
é a infãncia? O que é o amor?

56
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

"Uma criança, com seu corpo e alma


se faz de amor, amor, amor, amor..."

primeira coisa que nos impressiona, à leitura


de Poil de Carotte, de Jules Renard, é que a peça, numa
primeira leitura, não impressiona nada.
Trata-se de um texto que, na tradução de Gustavo
Nonnemberg, tem vinte e poucas páginas; uma legítima
tradução para trabalho, feita sem cuidados maiores. Difícil
avaliá-la, se não temos acesso ao original. Mas, de qualquer
modo, já impressiona mal a escolha do titulo: Poil de Carotte
quer dizer, literalmente, Cabelo de Cenoura, no sentido
de cabelos humanos avermelhados. O protagonista, o
adolescente François Lepic, diz logo que tem os cabelos da
cor da palha seca. Não haveria melhor maneira de
caracterizá-lo? Pega-Fogo dá, de inicio, uma idéia contrária
ao seu temperamento. Francisco, o rapazinho, não é
explosivo, não é impulsivo. Ao contrário, é um menino
amedrontado, que apanha sem se revoltar, que odeia às
escondidas, que sofre às escondidas, que já tentou por duas
vezes o suicídio. Um personagem deprimido, intimidado e
auto-destrutivo. A imagem do fogo é totalmente contrária
ao seu ser.
À parte essa impressão negativa inicial, a verdade é
que a peça oferece oportunidades para um desempenho
de ator (ou de atriz). É de se perguntar, aliás, e novamente:

57
Renata Pa11ottini

quem teve a idéia de fazer esse texto?


Diz Alfredo Mesquita, em artigo dedicado a
Ziembinski por ocasião de sua morte:

"Não penso que a interpretação dada pelo ator Ziembinski


ao seu papel fosse das mais ortodoxas. Como disse,
desconfio que não tinha lá maior conhecimento de Jules
Renard e sua obra. Assim, transformou a figura do Sr.
Lepic egoísta e acovardado ante a megera, sua esposa -
diria melhor, patroa - em pai humano e compadecido. (..)
Ninguém lera o livro de onde a peça fora adaptada, era
evidente. Nem sequer o cenário, inexpressivo e descuidado,
se adaptava ao estilo naturalista da peça. Quanto engano,
santo Deus, para redundar em tamanho triunfo!"

Naturalmente, o triunfo tinha um nome: Cacilda


Becker. Fazendo aproximar-se o garoto sofrido e injustiçado
de suas lembranças infantis, diferentes, na realidade, mas
essencialmente comparáveis, Cacilda dava a François traços
dela própria e, finalmente, marcas de sofrimento que são
comuns a todos os adolescentes, criaturas que estão, em
geral, buscando ainda seu lugar no mundo e sua identidade.
Não era gratuitamente que Cacilda encontrava, às vezes,
em seu próprio filho, traços de Pega-Fogo.
O conflito entre Pega-Fogo e a Sra. Lepic, sua mãe, é
humanizado com boa dose de talento dramatúrgico, pouco
antes do final, quando o próprio pai, com mais acuidade
do que energia, dá ao filho chaves para o entendimento da
problemática da mulher. A Sra. Lepic, afinal, não era a vilã
pura e simples que os compêndios de dramaturgia nos
ensinam a evitar. Sua razão de ser, seu conflito interno é
patenteado e, pai e filho, chegam a tentar compreendê-la e
perdoá-la.
Para compreender a peça, afinal, é preciso ir ao
original e, se possível, saber algo mais sobre Jules Renard.
É o que vamos tentar.

58
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

XVII

"Principalmente as pessoas
que, mesmo ruins, eram boas-f

J les Renard foi um escritor francês, romancista,


contista, dramaturgo, que viveu entre 1864 e 1910. Nascido
na província, foi para Paris em 1881 e aí iniciou sua vida
literária.
De inicio, fez apenas prosa; Poil de Carotte, por
exemplo, nasceu, em 1894, como romance ou, pelo menos,
como uma sucessão de cenas em prosa feitas sobre a família
Lepic, a qual, ao que parece, também invadiu outras obras
suas. Depois, como tantos outros escritores, ele sentiu falta
da resposta direta do público e foi atraído pelo teatro. Suas
peças tiveram êxito, Poil de Carotte, inclusive ou ^
principalmente, e ele prosseguiu.
Jules Renard dizia que gostava do teatro feito pelos
dramaturgos "amadores": Musset, Banville, Gautier e não
do teatro dos "profissionais% Sardou, Augier, Dumas Filho.
Provavelmente, com isso estaria repudiando, ao
mesmo tempo, um certo teatro ligeiro parisiense e, por outro
lado, louvando os grandes mestres escritores, Musset, por
exemplo.
O autor de Pega-Fogo, vivendo em uma Paris de
fim de século, esfuziante de vida artística e teatral, foi
contemporãneo, entre outras figuras impressionantes, de

59
Renata Pa11ottini

A ntoine,o grande homem de teatro, diretor, ator e teórico


que criou, em 1887, o Teatro Livre. Que resultaria desse
encontro e qual o significado de tudo isso?
André Antoine (1859-1943), que começara por ser
apenas um entusiasmado amador, resolvera fundar, em
1887, uma companhia que mostrasse ao público francês
autores como Tbsen, Strindberg, Hauptmann entre outros,
todos eles dramaturgos comprometidos com o novo
Naturalismo teatral, momento estético que aproveitava as
lições do realismo e as intensificava com um maior
aproveitamento da imagem cada vez mais aproximada da
realidade e com aportes das ciências, então em evidência.
Foi Antoine, exatamente, quem pediu a Renard seus
originais de Poil de Carotte. Mais que isso, Antoine decidiu^
fazer o papel de M. Lepic.
A peça estreou no dia 2 de março de 1900, no Teatro
que Antoine fundara e que levava o seu nome, e teve,
imediatamente, grande sucesso.
Falando sobre sua obra, mais tarde, diz Jules Renard,
respondendo a uma dúvida que havíamos levantado em
momento anterior, que verdadeiramente o papel de Poil de
Carotte havia sido pensado para uma atriz. Diz ele
textualmente que o papel do menino François não podia
ser feito por um homem. As razões que dá para isso passam
pelas características físicas de um homem adulto; mas elas
não convencem de todo. Parece mais que a intuição do
autor já lhe dizia que, para o garoto sofrido que era
o protagonista, uma atriz, uma mulher teria mais
sensibilidade, mais emoção a dar.
Assim, a primeira temporada da peça foi feita com,
no papel-titulo, Suzanne Desprès a qual teve, ao que parece,
um êxito marcante.
O autor, nesta oportunidade de volta ao trabalho
realizado, analisa com bastante acuidade certas
características do texto: o fato de ter sido, necessariamente,
solucionado como um texto curto, com menos de uma hora
de duração. O fato de haver-se cortado da versão final (a
peça teve duas versões) os dois irmãos de François. E,

60
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

finalmente, a grande importãncia que tem o personagem


Anette, que funciona como um rebatedor para François,
como alguém através de cujas perguntas se conhece a
situação do menino na família e de toda a família.
E nos dá, finalmente, aquela que poderia ser
chamada a idéia central da peça: "será que nós amamos
nossos filhos como devem ser amados?"
Para quem foi acusado (e quem não foi?) de
destruidor dos valores da família tradicional, Renard era
bastante lúcido e via claramente o problema da colocação
do ponto crucial de sua criação. Para quem estava inserindo-
se na escola naturalista, ao lado de Tbsen, por exemplo, a
clara colocação do tema (a peça não se pode dizer, de modo
algum, uma peça de tese) era uma preocupação importante.
Assim, dando-nos, sem mais delongas, medida de sua
mensagem principal, Renard mostra consciência e clareza.
Para quem tinha, de seu, como Cacilda, um filho
pequeno, essa pergunta contida no texto devia soar aguda
e provocativa.

Ainda que se vá ao texto original, a peça continua


a não entusiasmar, a não ser como um grande papel para
uma grande atriz. Longe está ela de Tbsen e Strindberg.
Renard fala do tipo de montagem que lhe deu Antoine,
naturalmente bastante diversa das que, depois, foram
feitas em várias ocasiões. Menciona, até, o detalhe da
composição do cenário, que comportava uma certa
quantidade de terra, terra de verdade, de jardim, exigência
de Antoine, bastante característica de sua visão estética.
Mas as coisas ficam por aí.
Sem dúvida, o papel que Cacilda teve na montagem
do TBC foi decisivo. Desde a composição física, descrita
por Ziembinski e que tanto sacrifício pessoal lhe custou,
até os adventos da memória, tudo contribuiu para que a
mulher frágil, temperamental, sensível reunisse em si as
qualidades ideais para a criação do personagem.

61
Renata Pallottini

62
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

XVIII

r' "Mais uma vez a exibo te condenam.."

quem era Ziembinski, o diretor polonês que


trouxe Pega-Fogo para o TBC?
Zbigniew M. Ziembinski nasceu no dia 7 de março
de 1908, em Wieliczka, Polõnia; esta cidade ficava perto de
Cracóvia, grande centro cultural polonês, e era caracterizada
por uma mina de sal subterrãnea, que ocupa boa parte do
mundo de memórias do artista. Para quem conheceu, como
eu, outra mina desse tipo, localizada na Colõmbia, a
lembrança das grandes grutas brancas e brilhantes, das
escavações que se podem fazer nesse tipo de solo,
ensejando a construção de salões, capelas ou, como no caso
da colombiana, até uma catedral do sal, é imorredoura.
A cidade natal de Ziembinski, como se vê do
excelente trabalho do crítico Yan Michalski e de Fernando
Peixoto sobre o diretor, Ziembinski e o teatro brasileiro,
era, naquele tempo, domínio austríaco. O pai de Zimba
(como foi chamado carinhosamente Ziembinski no Brasil)
era um médico de grande prestigio e, até, um diretor amador
de teatro. Zimba foi o maior de dois filhos, mas muito cedo
• casal perdeu o caçula, passando ele a ser, praticamente,
• filho único.
Tendo perdido o pai bastante precocemente, o
menino passa a freqüentar a escola pública, como os demais

63
Renata Pa11ottini

garotos. Dessa época, guarda a lembrança de uma pequena


participação em espetáculo de fim de ano, quando tem de
fazer o papel de um menino que fala a respeito de coisas
amargas da vida na terra. Sua emoção natural, espontãnea,
ao representar, pela primeira vez na vida, ou seja, ao
assumir um personagem, leva-o a tomar a decisão de ser
ator. E essa decisão, note-se, é tomada quando Zimba-criança
faz o papel de um menino infeliz. De um Pega-Fogo,
talvez...
Mas agora, já adulto, uma carreira teatral feita e
consolidada, é a guerra que vai acossá-lo; de 1939 até 1941,
Ziembinski procura escapar à destruição causada pela
guerra, passando pela Roménia, pela França e, finalmente,
em janeiro de 1941, conseguindo uma passagem para o
Brasil, mero acaso, uma vez que as autoridades brasileiras
estavam concedendo vistos a refugiados de guerra.
A viagem tardou mais do que o esperado; os
viajantes foram, literalmente, empurrados através dos
continentes, África, novamente, Europa, Casablanca,
novamente Espanha. Mas, em um dia de julho de 1941,
Ziembinski, finalmente, conseguiu desembarcar no Rio de
Janeiro.
De suas primeiras impressões, dá conta este
depoimento feito ao Serviço Nacional de Teatro:

"Eu fiquei, em primeiro lugar, espantado, não somente com


a beleza da cidade, mas com a liberdade de que eu
dispunha. Com o ar macio, encantado, com a riqueza - eu
não devia usar esta palavra, riqueza - com a opulência
daquilo que estava na minha frente..."

Desde a sua chegada até a data de que nos


ocupamos, ou seja, a da apresentação de Pega-Fogo no TBC,
decorreram nove anos. Nesse tempo, o moço polonês fugido
da guerra sofreu e lutou muito. Em primeiro lugar,
ignorante da língua, tão estranha para ele, teve de
exercer funções as mais modestas, ou simplesmente
viver da solidariedade dos compatriotas. Mas, muito cedo,
estabeleceu contato com os amadores brasileiros de Os
Comediantes e passou a colaborar com eles. Era o primeiro

64
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

passo para uma longa história de trabalho, que brilhou pela


primeira vez em Vestido de noiva e nunca mais parou de
brilhar.

65
Renata Pa11ottini

XIX

"Faz parte da cultura


de um povo a sua altura
de um povo o seu poder..."

.momo estaria, porém, o teatro brasileiro como


um todo, à época em que Cacilda Becker estréia, numa
segunda-feira de dezembro de 1950, Pega-Fogo? Seria
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

interessante e até instrutivo saber o que estariam fazendo


os nossos artistas da cena enquanto o TBC brilhava.
Um boa maneira de ter uma visão alternativa do
teatro brasileiro é consultar A outra crítica, compilação
das análises de espetáculos feitas por Miroel Silveira, de
1947 a 1957, e publicadas em vários jornais do Rio e de
São Paulo.
Inicialmente, é curioso consultar a lista de melhores
do ano de 1950, elaborada pelo tablóide Radar, onde
escrevia Miroel. Pode-se, aliás, dizer que essa lista
representava, de certa forma, a opinião do titular da coluna.
Para começar, a coluna elege Luciano Salce (diretor
italiano em atividade no TBC) como o melhor do ano,
embora faça uma ressalva que diz respeito a Ziembinski a
nossa mais completa figura de teatro no Brasil. A peça
que justifica a escolha de Salce é O anjo de pedra, o já
mencionado texto de T. Williams. Fala-se também em
Ruggero Jacobbi, outro diretor em atividade no TBC.
Em seguida, como melhor ator, aparece Sérgio
Cardoso (que, sem dúvida, foi não só o melhor de 1950
como um dos melhores atores brasileiros de todos os
tempos). Os trabalhos pelos quais foi distinguido são O
mentiroso, Entre quatro paredes e O homem da flor na
boca. Realmente, o ano havia sido do extraordinário
intérprete e todos os trabalhos tinham sido apresentados
no palco do TBC, na rua Major Diogo.
A melhor atriz, embora outras menções tenham sido
feitas, só poderia ser ela: Cacilda Becker, por O anjo de
pedra e Pega-Fogo.
No género musicado, o jornal destaca Mara Rúbia,
vedete em atividade no Rio de Janeiro, centro prioritário
desse agradável tipo de teatro, e o comediante Silva Filho.
Como cenógrafo, distingue-se Aldo Calvo, também
ele atuando no Teatro Brasileiro de Comédia, e novamente
pelo trabalho de O mentiroso.
Destacam-se, ainda, os escritores Helena Silveira e
Jamil Almansur Haddad, por No fundo do poço, drama lírico

67
Renata Pa11ottini

baseado em acontecimentos verídicos - um crime da época


- embora se faça menção a Guilherme Figueiredo e Silveira
Sampaio, o primeiro um autor que alcançou êxito,
principalmente com A raposa e as uvas, peça de sucesso
internacional, e o segundo um esplêndido ator e
considerável dramaturgo que brilhou na cena do Rio de
Janeiro e hoje está, injustamente, esquecido.

Por esta enumeração pode-se ter alguma idéia do


que se passava no Rio e em outros palcos que não o do
teatrinho da Major Diogo. Mas talvez seja melhor ceder a
palavra ao próprio Miroel Silveira, que faz um balanço do
teatro brasileiro em 1949:

"Talvez o fato mais característico de 1949, em matéria de


teatro, tenha sido, no Rio, a emigração do bom teatro, que
se refugiou nas províncias e a volta do gênero ligeiro,
definidor da capital federal como reduto de divertimento
e não de arte. Exemplifiquemos: enquanto o Teatro do
Estudante, Os Comediantes, O Grupo dos 12 e vários outros
elencos de amadores ou de semi-amadores entraram em
colapso provisório ou definitivo, não resistindo às
dificuldades materiais, o gênero ligeiro abria novas frentes
nos teatrinhos de bairro e na descida de nível imposta a
quase todos os elencos, mesmo os melhores. Após `Sorriso
de Gioconda , belo drama de Aldous Huxley, Dulcina só
conseguiu obter êxito em `As Solteironas dos Chapéus
Verdes, uma comédia água-com -açúcar. Silveira Sampaio
especializou-se nas sátiras brejeiras de sua autoria, super
valorizadas pela graça de sua arte de dirigir e representar.
As revistinhas de bolso imperaram em Copacabana, no
Folies e no fardel, e as francesas de WalterPinto abafaram.
Aimée, Eva e Procópio se situaram num nível de comédias
apenas agradáveis, ao passo que Jaime Costa, depois de
`Filomena, qual é o meu? ' não resistiu ao seu incrível amor
à chanchada e retomou um original de Paulo Magalhães.
Na província, porém, enquanto isso, muito se trabalhava
pelo bom teatro. Henriette Morineau excursionava,
mostrando ao norte e ao sul do país um repertório de
primeira linha, interpretado por um elenco homogêneo.
Sandro e Maria Della Costa exibiam em Porto Alegre e em
todo o sul peças de alto valor dramático, tais como `A

68
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

Respeitosa ' de Sartre, `Teresa Raquin ; de Zola, e `Morro


dos Ventos Uivantes ; de Brontê. Ziembinski aderiu ao norte
e ficou em Pernambuco ensaiando dois belos conjuntos
amadorísticos do Recife, no famoso teatro Santa Isabel. E
em São Paulo, o Teatro Brasileiro de Comédia iniciava e
desenvolvia seu belo esforço para a organização de um
conjunto complexo, incluindo diretores de cena,
encenadores e artistas de valor ou possibilidades
autênticas."

Tentemos, agora, decodificar toda a informação


contida no texto acima.

69
Renata Pa11ottini

1111

"Para quem morreu de pé


minha ternura, minha flor..."

U m eram os artistas deste mundo já morto,


deste munc16que é hoje o passado da nossa arte teatral?
Em primeiro lugar, Miroel Silveira nos dá noticia do
desaparecimento de alguns dos mais generosos grupos de
amadores que tinham enriquecido a nossa cena; fala de
Dulcina de Moraes, a inesquecível atriz que, apenas com
seu talento e a força de uma irresistível vocação, tanto fez
pelo nosso teatro, ilustrando o seu repertório com textos
de alta qualidade, às vezes até em detrimento do seu próprio
sucesso pessoal. E fala do teatro ligeiro que era, então, o
grande encanto do Rio de Janeiro, a capital federal do
passado brasileiro.
Walter Pinto era um ativo empresário do teatro
musical; Aimée era uma figura de prestígio, Eva é a
conhecida atriz que hoje brilha na televisão, Procópio
Ferreira foi o primeiro ator brasileiro por décadas - e honrou^
a cena com espetáculos de valor - Jaime Costa e Paulo de
Magalhães eram, respectivamente, ator e dramaturgo de
sucesso.
Silveira Sampaio, como se disse, foi ator e autor
teatral; sua obra gozou de favor do público e, hoje, tem
sido posta à margem. No entanto, talvez valesse a pena,
hoje em dia - digamos de passagem - voltar a revisitar o

70
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

seu teatro e ver quanto de transitório ou de permanente


terá tido.
Mas, quando ressalta valores que estão percorrendo
as províncias, Miroel fala de Henriette Morineau, a grande
atriz francesa que, mais ou menos ao mesmo tempo e pelas
mesmas razões que afastaram da Europa outros artistas,
veio para o Brasil, tendo aqui criado alguns papéis
memoráveis. Fala de Maria Della Costa e Sandro Polloni,
muito jovens então, fazendo uma carreira séria, amparada
em textos de alta qualidade. Sandro e Maria foram os
responsáveis pela criação, em São Paulo, do teatro Maria
Della Costa, companhia e edifício teatral, este último ainda
de pé, vigente.
Menciona, por último, Ziembinski, que havia ido
para o norte, afim de dirigir elencos de amadores
pernambucanos; e, como não podia deixar de ser, fala do
excelente trabalho do TBC.

71
Renata Pa11ottini

O ano de 1950, no entanto, começa por ser marcado


como o ano da demissão de Ruggero Jacobbi do Teatro
Brasileiro de Comédia. O encenador italiano acabara de fazer
A ronda dos malandros, de John Gay, peça que, mais
conhecida com o título de A ópera dos mendigos, (The
Beggar's Opera) inglesa, do século XVIII, fora adaptada
por B. Brecht, o dramaturgo alemão, com um nome que
acabou sendo, em português, A ópera dos três vinténs.
A peça (traduzida e adaptada, nesta ocasião, e
especialmente, pelo diretor, por Carla Civelli e Maurício
Barroso) estreou no TBC no dia 17 de maio de 1950, com
um grande elenco, tendo Cacilda no principal papel
feminino, o de Polly, a namorada de Macheath, protagonista,
papel que era feito por Sérgio Cardoso. Acompanhava-os
um grande elenco, com o que de melhor tinha o TBC no
momento.
A ópera dos mendigos é um texto cõmico de
grande virulência, por seu conteúdo de denúncia social,
facilmente atualizável e adaptável às condições de uma
sociedade injusta e cheia de privilegiados, como era (e é) a
sociedade brasileira. A adaptação não a amenizou em nada,
uma vez que Ruggero Jacobbi, tendo feito uma espécie de
acordo com a direção da casa, queria ter a liberdade de
realizar textos que atendessem ao seu desejo de denúncia
e reivindicação.
O resultado, no entanto, foi problemático; a crítica
não se apaixonou pelo espetáculo, embora o público
comparecesse, em grande número, nas duas semanas em
que a peça ficou em cartaz.
A direção do TBC sentiu-se diretamente tocada pelo
teor do espetáculo; ademais, não quis ofender a parte do
seu público que se identificava com os segmentos mais
poderosos e conservadores da sociedade brasileira.
Por isso, e sem maiores cautelas, decidiu tirar de
cartaz a peça, duas semanas depois da estreia, alegando
que o espetáculo não fora bem sucedido. A crítica, aliás,
chega mesmo a dizer que a adaptação roubara ao original
de Gay a sua autenticidade, sem chegar a alcançar a maestria

72
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

de Brecht.
O espetáculo, por todas essas razões, foi sacrificado.
Seu diretor, Ruggero Jacobbi, resolveu, em conseqüência,
demitir-se e abandonar o seu trabalho no Teatro Brasileiro
de Comédia, encerrando assim, uma colaboração que se
afigurava brilhante. Perdia o TBC um dos seus maiores
diretores e perdia o Brasil um estudioso e ensaísta que,
entre outras coisas, foi o responsável pelo re-descobrimento
da já citada obra-prima de Gonçalves Dias: Leonor de
Mendonça.
Do incidente se extrai uma conclusão: o TBC,
brilhante quanto às suas opções artísticas, capaz de arcar
com a responsabilidade de selecionar, contratar e manter
junto a si a nata dos artistas do gênero teatral, preparado
para trazer e exibir ao público brasileiro os melhores textos
da literatura dramática universal, não estava disposto a
arriscar a preferência de que gozava junto à burguesia
nacional, em nome de uma denúncia social.

73
Renata Pa11ottini

XXI

"Quem pode haver do coração a magoa


surda, como os ruídos dentro d'água?"

Depois do enorme êxito pessoal da realização


de Pega-Fogo, o ano de 1951 é marcado, na carreira de
Cacilda Becker, pelas montagens, sempre no TBC, de Paiol
velho, um apreciável drama rural de Abílio Pereira de
Almeida, com direção de Ziembinski; Seis personagens à
procura de um autor, de Pirandello, direção de Adolfo Celi
e o controvertido espetáculo de A dama das camélias,
texto de Alexandre Dumas Filho e direção de Luciano Salce.
É curioso notar, de início, o interesse que Ziembinsk
tinha pelo teatro dos autores brasileiros. Inicialmente, havia
feito Vestido de noiva. Dizem os testemunhos da época
que vivia sonhando fazer Senhora dos afogados, também
de Nelson Rodrigues. E aqui, quer tenha sido sua a escolha
ou não, encena um texto de Abílio.
Paiol velho não é, segundo me parece, nenhuma
obra prima, mas sem dúvida, é um texto digno e, sem dúvida
também, está na origem daquilo que viria a ser o maior
sucesso de Jorge Andrade, este sim um autor brasileiro de
primeira: A Moratória. Cacilda participou da montagem,
mas esta não teve nenhum brilho especial.
Brilho haveria de sobra, ao contrário, em Seis
personagens... Para começar, o papel de Enteada, feito por
Cacilda, é dos melhores e mais complexos da moderna

74
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

dramaturgia universal. Complexo ele é de fato, até porque


Pirandello, mesmo nas suas mais despretensiosas comédias
curtas, nunca é simples. Seis personagens, retomando a
problemática reiteradamente pirandeliana de eterna busca
da verdade, ainda se complica pela estrutura de teatro
dentro do teatro, de um ensaio dentro do espetáculo,
imensamente revolucionária para a sua época, imensamente
eficiente para qualquer época.
Cacilda fazia o papel de uma filha jovem,
prostituída, ferida, vítima dos conflitos entre os pais e dos
desencontros dos filhos, da pobreza e do preconceito, da
sua própria juventude e da luxuria dos velhos. A respeito
de sua interpretação, diz Décio de Almeida Prado:

"Cacilda Becker traz para 'A Enteada ' aquelas mesmas


qualidades que a acompanham sempre, definindo-a como
grande atriz: a sua inacreditável força de presença,
o magnetismo oriundo de uma personalidade
extraordinariamente vigorosa e autêntica, a generosidade
com que se entrega de corpo e alma a cada novo papel,
num dom total de si mesma."

E era assim; Cacilda tinha aquela qualidade, inata,


sem a qual nenhum ator é grande ator: a capacidade de
atrair para si olhar e atenção, no momento em que pisava
no palco. Dizemos que essa qualidade é de nascimento,
que algumas pessoas têm esse poder, outras não, e sabemos
que, sem essa possibilidade, ninguém poderá ser o dono
de uma platéia. Mas será que isso é, realmente, fruto de um
dom divino? Não será, também, fruto de um trabalho
incansável, de uma extraordinária capacidade de
concentração, de um grande amor ao que está fazendo, ao
teatro, enfim, por parte do ator?

Em seguida, o TBC montou A dama das camélias.


Crentes de que o espetáculo pedia maiores espaços e que
não se daria bem no pequeno palco da rua Major Diogo,
fizeram-no estrear no Teatro Municipal de São Paulo. Cacilda
era Margarida Gautier, Maurício Barroso era Armando, Paulo

75
Renata Pa11ottini

Autran (novo grande ator que se integrara à companhia)


era Jorge Duval, o pai. Um elenco enorme e de certo peso
amparava a montagem, que dispunha de recursos para
cenários, figurinos, adereços, visual, em suma.
Porém alguma coisa não funcionou; o enorme palco
do Municipal, ao mesmo tempo em que dava espaço ao
espetáculo, ameaçava engoli-lo. Transparecia ainda mais a
fragilidade de Cacilda, seu corpo pequeno, sua voz delicada.
É verdade que Margarida era uma mulher doente, devia
parecer uma pessoa minada, em perigo constante. Mas...
Miroel Silveira é implacável:

"O TBC, insuflado pela ambição de sua primeira atriz,


desejosa de comparar-se apenas a outras modestas
intérpretes de Margarida Gautier, como Sarah Bernhardt
e Eleonora Duse, abandonou sua acolhedora sala de
espetáculos da Rua Major Diogo e lançou -se às dimensões
pedra -de -toque do teatro Municipal. O resultado foi
constrangedor. Apesar dos vestidos imensos, anunciados
na publicidade hollywoodesca pelo número de metros de
fazenda e pelo preço que estes metros custaram, apesar
dos cenários operísticos, apesar do corpo de baile pára-
quedista, apesar do luxo, do dinheiro jogado fora, o
espetáculo está infinitamente abaixo de outros
apresentados pela Sociedade Brasileira de Comédia
anteriormente..."

E, seguindo, pergunta-se o crítico por que terá


acontecido tudo isso. E ele mesmo responde:

"A resposta é fácil. Porque, antes, realizava o TBC,


apesar das dificuldades e naturais imperfeições, mas
afastado de um objetivo imediatamente comercial, um
teatro de equipe, cujo ponto de partida era da direção
de cena. Agora, porém, inverteram -se as posições. O
teatro não apenas profissionalizou -se, mas, também,
comercializou -se e, o que foi pior de tudo, foi atrelado
ao carro de sua `estrela '. Desmanchou -se a igualdade
que tornava equilibrada a situação de seus
companheiros e, tal como nos tão combatidos `teatros
comerciais `, a estrela escolhe a peça, o diretor, os
companheiros de interpretação, e tem seu nome acima, e
maior do que os outros, nos cartazes (por força de cláusula

76
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

contratual) - mesmo acima e maior do que os nomes


daqueles que a ensinaram e ensinam: Salce, Ziembinski..."

Será? Antes de mais nada: não viria de uma velha


mágoa a virulência do sempre amoroso Miroel? Não seria,
ainda, este tom, resquício do abandono a que Cacilda votara
sua escolha da Companhia Dulcina/Odilon para sua
carreira? Enfim, será que Miroel, amigo como às vezes
existem, que desejam escolher o melhor para seus amigos
e não se conformam quando essa escolha não é aceita,
estaria ainda ressentido?
Vejamos por partes: em primeiro lugar, não nos
parece mau, de maneira alguma, que uma atriz de trinta
anos, no auge de sua carreira, queira fazer personagens
antes feitos pelos monstros sagrados de sua profissão. Isso,
ao contrário, revela desejo de melhorar, de aperfeiçoar-se,
e uma saudável ambição.
Em segundo lugar, parece que, obedecendo-se às
características do espetáculo escolhido - e não creio licito
supor que um diretor como Luciano Salce fizesse alguma
escolha oposta ao seu desejo - era normal escolher um palco
maior, mais amplo, para realizá-lo. A dama das camélias
tem, de fato, feições de grande espetáculo, seja pelo
ambiente em que se desenrola a peça, aposentos de uma
demi-mondaine parisiense, próspera - pelo menos a
princípio - e brilhante, seja pelo tema, pela quantidade e
qualidade social dos personagens.
Ataca-se, por fim, o egocentrismo de Cacilda, seu^
desejo, segundo a crítica, de brilhar, de sobrepujar seus
companheiros de elenco, seus diretores, desejo de ser,
enfim, a única estrela.
Corresponderiam, essas palavras, à verdade? Que
nos diz a história dessas relações humanas, sempre tão
delicada até mesmo tratando-se de criaturas comuns, mais
ainda no caso de artistas e, sobretudo, de atores?

77
Renata Pa11ottini

XXII

`
-anárquicos, báquicos, tensos,
mas cheios de mel e esperança.."

_^ ^\ primeira pessoa a nos falar dos problemas no


elenco do TBC é Ruggero Jacobbi, o diretor italiano, ele
próprio tendo tido que administrar problemas na
companhia. Em depoimento colhido no livro várias vezes
citado Uma atriz: Cacilda Becker, de Nanci Fernandes e
Maria Thereza Vargas, entrevista concedida em Roma, em
1981, diz Jacobbi:

78
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

"Quando fui para o Teatro Brasileiro de Comédia, aí sim


havia uma situação muito especial: a companhia tinha duas
primeiras atrizes, uma era Cacilda Becker, que vinha já
de uma experiência não só de Os Comediantes, como
também de companhias profissionais (..). Porém, como
disse, o momento era delicadíssimo no TBC, já que havia
duas primeiras atrizes: Cacilda Becker e Madalena Nicol."

Em primeiro lugar, e contrariamente ao pensamento


expresso de Miroel Silveira, Jacobbi fala em duas "primeiras
atrizes". Se havia "primeira atriz", e não só uma, mas duas,
onde estava o pretenso teatro de equipe, mencionado por
Miroel, teatro onde todos seriam iguais em direitos e
deveres, incluindo-se entre os direitos o de ter seu nome
em igualdade de condições nos cartazes e publicidade?
De fato, se em Arsénico e alfazema partilharam
(com grande brilho) o mesmo espaço, redundando o
espetáculo num delicioso exemplo de grande comedia,
Madalena Nicol e Cacilda não iriam dividir por muito tempo
o mesmo palco. Madalena retirou-se do TBC e reiniciou sua
vida profissional longe do Brasil.
Pouquíssimas vezes em sua carreira, no TBC e
posteriormente a ele, Cacilda fez papéis menores nos
espetáculos de que participou. Sua personalidade e seu ^
enorme talento configuravam sempre uma situação de
desperdício, caso isso acontecesse. O TBC era, de fato, uma
companhia de teatro que buscava a qualidade em todos os
detalhes, e isso incluía os papéis menores, freqüentemente
confiados a atores do porte de Sérgio Cardoso, Paulo Autran,
Cleyde Yáconis, Walmor Chagas, Ziembinski, Leonardo
Villar, Nydia Licia, Célia Biar, Maria Della Costa e, mais
tarde, Nathalia Timberg, Fernanda Montenegro , Jardel Filho,
Sadi Cabral. Mas os grandes atores acabavam por se impor
automaticamente, por força de sua qualidade e, assim, era
fatal que Sérgio Cardoso, Paulo Autran, Cleyde Yáconis,
Walmor Chagas, Leonardo Villar, Nathalia Timberg,
Fernanda Montenegro aparecessem mais.
E não se pode esquecer, é claro, a atriz Tonia Carrero,
que veio para o TBC abrilhantar o seu elenco, constituiu,
depois, companhia própria, com Paulo Autran e Adolfo Celi,

79
Renata Pa11ottini

e foi, ela própria, também parte de uma cisão dentro do


teatro.

É a mesma Cacilda quem diz, em declarações


emitidas em momentos vários de sua vida, que era
combativa, às vezes agressiva mesmo, quando se tratava
de defender a qualidade do seu grupo no teatro. Cacilda
tinha consciência de sua importãncia e da influência que
exercia. Como todas as pessoas que têm confiança na
própria honestidade de princípios e discernimento, tomava
posições e as defendia, embora isso lhe custasse, às vezes,
inimizades pessoais. Essas características de líder, aliás,
ela iria exercitar mais tarde, quando se tornasse, também,
guia e condutora dos seus companheiros de classe teatral.
As palavras de Jacobbi são claras, no sentido de
desvendar certos mistérios da personalidade humana e da
carreira dos artistas cénicos. É verdade que eles desejam
atuar em grupos, que pretendem o melhor para o conjunto
onde trabalham, que formam equipes e se ajudam
mutuamente. Mas, a não ser nos coletivos de trabalho onde
a consciência política se sobreponha a quaisquer outros
objetivos, nunca o ator deixou de ser alguém que quer estar
sob as luzes, aparecendo preferencialmente e mostrando
sem nenhum obstáculo aquilo que considera a melhor de
todas as artes - porque é a sua arte.

80
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

XIII

`:_ ninguém sabe, só eu,


o medo que se passa....
... e ninguém percebeu:
não tem gume a espada"

! \J o mesmo ano em que fazia A Enteada e


Margarida Gautier, essa que, na crítica, era considerada
uma estrela egocêntrica e autoritária, escrevia, depois de
um incidente familiar onde sua reputação fora tocada, em
palavras dirigidas ao filho, então com menos de dois anos:

"Sofro muito, meu filhinho, acima de tudo porque vão tomá -


lo de mim, eu tenho certeza! Sou muito só e indefesa. Não
sei o que fazer. Eu o amo acima de tudo e sem você não sei
o que será de mim."

A ameaça não se concretizou, seu medo não era


justificado. Vê-se por aí, no entanto, a distãncia que vai
entre a pessoa pública, vista à luz artificial de uma situação
de trabalho, e o ser humano solitário, a mulher vulnerável
que ela mesma tinha retratado em sua memorável carta, na
época da separação. Não se cogitaria de saber o que faziam
de suas vidas homens que estivessem emsituação
semelhante. Mas a mulher tinha de ser, e parecer impoluta,
por critérios subjetivos, parciais e interessados.
Não cabem aqui inquirições sobre a vida pessoal
de Cacilda Becker; é importante, no entanto, avaliar quão

81
Renata Pa11ottini

frágil é o ser humano, especialmente aquele de quem se


pede mais sensibilidade, mais capacidade de criação, mais
emocionalidade. Pede-se do artista tudo isso mas, ao mesmo
tempo, que ele seja modelo de equilíbrio, sensato, racional,
generoso e isento. Os abismos da carência afetiva, dos
medos infantis, da luta para escapar à pobreza e sobreviver
dignamente são, via de regra, esquecidos.

O TBC enfrentava alguns problemas, desorientado


pelo insucesso de crítica com A dama das camélias, em
São Paulo como no Rio, onde, curiosamente, o grupo era
acusado de ser "italianado", num tipo de crítica onde não
se sabe o que mais ressalta, se a ignorãncia ou o preconceito.
Cacilda afastava-se temporariamente, quer tentando a
direção, quer por razões de saúde. Luciano Salce era atacado
violentamente, no Rio, por Paschoal Carlos Magno e essa
agressão acabaria motivando, no fim de contas, sua saída
do Brasil. A peça de Dumas Filho voltaria a ser encenada,
com bons resultados, no teatrinho da Major Diogo, mas
seria interrompida por doença de Cacilda. E o ano seguinte
seria o de mais um desafio para ela: interpretar a Antigona
clássica, de Sófocles, ao lado de uma versão moderna, de
Jean Anouilh, com direção de Adolfo Celi. Aquela que era
considerada já a maior atriz brasileira, não se furtou ao
desafio .

82
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

XXIV

"Nada é meu, nunca foi


O que sempre doeu

r' ainda dói."

r azer uma tragédia grega é sempre objetivo de


um ator talentoso e consciente; pode surgir num momento
tardio de sua carreira, ou pode ser prematuro. A motivação
pode ser cultural, ou fruto de um desejo de superação
profissional. Pode ser conseqüência de uma leitura ou da
visão de um espetáculo feliz. Porém, mais cedo ou mais
tarde, acontece.
Não se pode saber se essa tentação já havia surgido
no horizonte de Cacilda Becker - como se sabe que
aconteceu depois. A verdade é que, naquele momento, o
projeto era mais de Celi que da própria Cacilda. Mas era
um projeto nobre e foi realizado com nobreza.
Antígona é uma das sete tragédias que nos restaram
de Sófocles, autor grego que viveu entre 496 e 406 A.C.
Supõe-se que tenha sido estreada em 430 A.C.,
aproximadamente; seu autor foi modelo usado por
Aristóteles para exemplificar os procedimentos de
construção do melhor teatro, e Antígona aparece entre esses
exemplos.
A tragédia se passa em Tebas, e é toda conseqüência
da maldição que determinou a vida e a morte de Édipo;

83
Renata Pa11ottini

morto o rei, Antígona e Ismene, sua irmã, vivem sob a


autoridade de Creonte, seu tio.
Em conseqüência de um desentendimento entre
seus dois irmãos varões, Etéocles e Polinices, que se julgam,
ambos, com direito ao trono de Tebas, irrompe uma guerra,
ao fim da qual os dois irmãos se dão morte.
Como Etéocles morreu defendendo a cidade,
enquanto Polinices tentava invadi-Ia com o auxílio de
soldados estrangeiros, Creonte determina que o primeiro
será dignamente enterrado, com todas as homenagens e
cerimõnias devidas; Polinices, porém, ficará insepulto e
quem tentar dar-lhe sepultura, como mandam a tradição e
os deveres religiosos, será punido.
Antigona não se conforma com esse edito e resolve
sepultar também a Polinices; pede auxilio a sua irmã que,
demasiadamente medrosa e tímida, não a ajuda e tenta
dissuadi-Ia.
Antígona faz a primeira tentativa, a despeito da
ameaça de Creonte; quando é novamente advertida e agora
ameaçada de morte, se reincidir, Antígona, desprezando o
perigo e, mesmo, obrigada a desistir do amor de Hemon,
seu noivo, filho de Creonte, volta a prestar as homenagens
fúnebres ao irmão desprezado. Antigona, presa, é encerrada
viva numa gruta, para que aí morra; Hemon, que a ama,
entra na caverna para morrer com ela. Os dois se sacrificam
e Eurídice, esposa de Creonte e mãe de Hemon, mata-se
também, ao ter notícia da morte de seu filho, lançando
imprecações contra a tirania de Creonte. A maldição antiga
contra Laio, pai de Édipo, se manifesta em toda a sua fúria.

O espetáculo grego, como se sabe, era realizado de


dia, à luz natural, em teatros ao ar livre; esses teatros eram
de grandes dimensões e os atores representavam usando
máscaras, com roupas majestosas, mas de uma simplicidade
digna. Alguns autores afirmam que os atores usavam
coturnos, sapatos de solado aumentado, para que pudessem
ampliar sua massa corporal. Também poderia ser que as

84
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

máscaras tivessem a possibilidade de aumentar o volume


de voz. Outrossim, as mulheres não entravam em cena, de
modo que havia atores do sexo masculino especialistas em
representar papéis femininos, o que, de resto, com grandes
túnicas, máscaras e à distãncia, não fazia muita diferença.
Também, devido às características já descritas, o
estilo de interpretação tinha pouco a ver com o que hoje
conhecemos; de nada serviam ao ator a ênfase na expressão
facial, os gestos sutis. Não eram possíveis grandes
movimentações em cena, uma vez que o espaço de que
dispunham os atores era estreito. Na verdade, o que
importava na tragédia grega era a palavra, o texto, a poesia
contida nos versos - muito específicos - de cada tragédia.
Era a partir da palavra e do conhecimento que tinham dos
mitos nos quais se baseavam as tragédias, que os
espectadores gregos tiravam o prazer de que desfrutariam
e as conseqüências emocionais que a peça devia
proporcionar, entre os quais a catarse.
Ora, como se pode imaginar, representar uma
tragédia grega nos dias que correm importa em inventar
toda uma nova maneira de ver a peça, de compor o
espetáculo. Não ocorre fazer um espetáculo histórico,
tentando imaginar como seriam as condições do tempo em
que a peça estreou. A partir das características do nosso
teatro, do espaço cénico, essas reconstituições são difíceis,
quase impossíveis.

Naturalmente, a atriz que, no nosso tempo, se


dispuser a fazer um personagem de tragédia grega da
dimensão de Antígona, deve preparar-se para enfrentar
problemas de emissão de voz, de postura, de atitude cénica;
é claro que tudo dependerá do tipo de espetáculo a ser
feito e, por conseguinte, das opções do diretor. Mas será
muito difícil fugir a estas constantes.
Cacilda Becker não tinha o porte físico, nem a voz,
nem a experiência, digamos, clássica, que seria desejável
para a realização. Não fora preparada numa escola de

85
Renata Pa11ottini

interpretação e não pertencia a um grupo estável


tradicional, como seriam a Comédia Francesa, em Paris, ou^
grupos clássicos de outros centros europeus.
No entanto, fez Antígona. A de Sófocles e a de
Anouilh, enfrentando os problemas inerentes com a
coragem de quem nasceu para isso. A crítica, naturalmente,
teve de fazer a comparação inevitável, deixando claro que,
se na Antígona moderna a atriz fora magistral, o mesmo
não acontecia na tragédia ática.
Cacilda recebeu o primeiro prémio Saci, instituído
pelo jornal O Estado de S. Paulo, por sua interpretação no
espetáculo, assim como Paulo Autran, já então um dos
atores mais sólidos do Teatro Brasileiro de Comédia e
Adolfo Celi, como o melhor diretor do ano.
O ano de 1952 se encerrava com brilho. Mas
1953 marcaria algumas reviravoltas: a Companhia
Cinematográfica Vera Cruz, oriunda do TBC, e que havia
realizado alguns filmes de valor, entraria em crise; Sérgio
Cardoso e Nydia Licia, casados, se afastariam para, mais
tarde, constituir companhia própria, levando consigo
Leonardo Vilar. Ruggero Jacobbi e Salce ainda dirigiriam,
por motivos de contingência e, sob direção do primeiro,
estreava na companhia o ator Walmor Chagas.
E, também, a atriz Tonia Carrero.

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CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

XXV

"Fora, fora da passagem


a vida é um barco a vela..."

U surgimento de Walmor Chagas no elenco do


TBC e, ainda, a passagem que Tonia Carrero faria da Vera
Cruz para o elenco de teatro, viriam a modificar o panorama
do grupo, de suas vidas particulares e do teatro brasileiro.
Entre 1953 e 1957, ano que marca o afastamento
de Cacilda do elenco da rua Major Diogo, ela participou,
nesse teatro, de apenas cinco montagens, praticamente uma
por ano: Divorcio para três, de Victorien Sardou, direção
de Ziembinski, em 1953; Leito nupcial, de Jan Hartog,
direção de Luciano Salce, em 1954; Maria Stuart, de Schiller,
direção de Ziembinski, em 1955; Gata em teto de zinco
quente, de Tennessee Williams, direção de Maurice Vaneau,
em 1956 e Adorável Júlia, de Marc-Gilbert Sauvajon, direção
de Ziembinski, em 1957. Em nenhum desses espetáculos
ela voltou a ser dirigida por Adolfo Celi (cuja última direção
com Cacilda fora a das duas Antígonas, em 1952). Em
nenhum dos casos, tampouco, ela dividiu a cena com Tonia
Carrero.
Por declarações suas posteriores, localizáveis em
várias fontes, verifica-se que, dos cinco espetáculos desses
cinco anos, os únicos que realmente a interessavam foram
os de Maria Stuart e de Gata em teto de zinco. Os demais,
com muita argúcia, ela identificava com os desejos,

87
Renata Pa11ottini

compreensíveis, aliás, de recuperação econõmica da


companhia, a essa altura caminhando para uma crise
insuperável.
Mesmo com relação aos dois únicos
verdadeiramente importantes, ela ressalva que, em Maria
Stuart, talvez fosse mais interessante fazer o personagem
de Elisabeth (que foi feito por Cleyde). Na verdade, aquele
em que brilhou o seu insuperável talento foi o de T. Willíams,
texto moderno, sem dúvida mais propício ao seu ^
temperamento e ao seu tipo físico.
Creio ter ficado provado e ser indiscutível hoje em
dia que, não obstante os seus dotes naturais e o
amadurecimento que sofreu, Cacilda via-se melhor e mais
à vontade nos personagens modernos e contemporãneos
do que naqueles que requeressem um "estilo", por assim
dizer. Tremendamente arguta e consciente, ela soube muito
bem disso a partir de um certo momento, e tirou partido
das suas características pessoais e de artista.

Se considerarmos o mesmo período de cinco anos,


veremos que, pelo menos até 1955, Tonia Carrero havia
trabalhado em quatro produções do TBC, todas elas
constituídas por peças importantes pórem ligeiras (se é que
se pode fazer essa classificação), bem de acordo com seu ^
tipo físico e psicológico: tratava-se de uma mulher
excepcionalmente bonita, que gostava de dar aos seus
papéis o tom leve e encantador de sua própria
personalidade.
Igualmente, e mais ou menos no mesmo período,
Cleyde Yáconis apareceu em dez montagens, pelo menos
em quatro delas em papéis muito importantes: Assim é
(se lhe parece), Leonor de Mendonça, Sta. Marta Fabril e
Maria Stuart. Curiosamente, pareceria que o relativo
afastamento de Cacilda abriria espaço à ascensão de Cleyde.
Era como se, privado da presença de Cacilda, o TBC
tivesse descoberto o talento de Cleyde Yáconis, talento
que, depois, nunca mais foi posto em dúvida.

88
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

Mas o TBC estava produzindo frutos, como um


arbusto forte, dando tantos rebentos que já era impossível
mantê-los unidos à planta principal. E, aliás, a parte e fora
do teatrinho da Major Diogo, outros grupos e propostas
estavam surgindo, num processo de amadurecimento e
transformação de que nunca se pode escapar.
Assim, desde fevereiro de 1955, o novo grupo do
Teatro de Arena estava estabelecido em sua casa da rua
Teodoro Bayma, onde iria produzir um movimento
dramático fundamental para os destinos do teatro brasileiro.
Sérgio Cardoso e Nydia Licia já tinham constituído sua
companhia e estavam em vias de estabelecer-se no teatro
Bela Vista; Maria Della Costa e Sandro Polloni já tinham
estreado seu teatro, sede de sua companhia e estavam
preparando-se para lançar Jorge Andrade, com A Moratória,
augurando assim uma belíssima trajetória de autor teatral.
Alfredo Mesquita e sua admirável Escola de Arte Dramática
estavam mostrando pela primeira vez no Brasil Esperando
Godot, de Samuel Beckett. Celi, Tonia e Paulo Autran
constituíram sua própria companhia, levando consigo
Margarida Rey, uma importante atriz dramática, e Felipe
Wagner.
E, finalmente, em março de 1958, estrearia, no Rio
de Janeiro, a companhia de Cacilda, Walmor e Ziembinski.

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Renata Pallottini

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CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

4^ -e-UCI-
(Em casa própria)
91
Renata Pallottini

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CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

XXVI

"Tua arte está impregnada do teu ser.


Ela é o teu ser."

i' _Muitos anos mais tarde, em entrevista a um


jornal, Cacilda passaria em revista esse tempo, que deve
sem dúvida ter sido duro, mas que era também o tempo de
um nascimento:

"Fui acusada mais tarde de perseguir colegas, de impedir


a carreira de muitos, de ser estrela e hoje tenho certeza de
que, conscientemente, não pratiquei nenhum ato
condenável. "( ... ) "Quanto às colegas, prejudico-as,
realmente, mas no palco, quando o pano sobe. "(...) "Todas
as sugestões que partiam de mim, opiniões ou mesmo
qualquer ação, se destinavam a defender o grupo,
fechando-o sobre si mesmo para que pudesse produzir
mais. " (...) "Sempre impedi a infiltração de elementos
secundários, mas não daqueles que podiam colaborar para
a melhora do teatro - Sérgio Cardoso, Nydia Licia, Maria
Della Costa e outros. Com a entrada de Tonia Carreiro,
Flaminio Bollini-Cem e outros, formaram -se dois grupos.
Gianni Ratto também trouxe os elementos que haviam
deixado o teatro Maria Della Costa. Eu sabia que tantos
atores novos e os trazidos por Maurice Uaneau criariam
no teatro atmosfera de antagonismo e ele não estava
maduro economicamente e equilibrado artisticamente para
suportar conflitos."

93
Renata Pa11ottini

Falando da fundação de seu grupo, diz:

"Levei comigo a nata do teatro brasileiro. Ziembinski era


completo. Walmor Chagas já havia provado sua
capacidade. Cleyde Yáconís iria revezar comigo nos papéis
principais. "

Assim seria, portanto. Acolhendo para sua estreia,


para o lançamento de sua nova companhia, o Teatro Cacilda
Becker, um texto brasileiro especialmente preparado por
Ariano Suassuna - autor nordestino que tivera, no ano
anterior, um grande sucesso com A Compadecida - a atriz
e seus companheiros de caminhada haviam, de um só golpe,
conseguido atingir vários objetivos: ir ao encontro das
preferências de Ziembinski, desde sempre um amante
da dramaturgia brasileira; tirar argumentos dos que
diziam que Cacilda não dava importãncia à nossa
dramaturgia; dar continuidade à carreira de um autor
que prometia ser um grande êxito artístico e de público;
propiciar um trabalho mais brilhante para Cleyde
Yáconis, obviando assim a acusação de estrelismo que se
fazia a Cacilda. E, finalmente, conseguir obter as graças de
quem pudesse auxiliar a montagem, quer no referente a
subvenções, quer no que dizia respeito a um teatro-sede
do grupo - dificuldade que todas as novas companhias
deviam solucionar.
Desta forma, com O santo e a porca, de Ariano
Suassuna, direção de Ziembinski, ela própria no elenco, e
mais Cleyde, Walmor, o próprio Ziembinski, Freddi
Kleemann, Kleber Macedo e Jorge Chaia, o novo grupo
estreava no Rio de Janeiro, no Teatro Dulcina, em 5 de março
de 1958, tendo ainda a colaboração sempre preciosa de
Gianni Ratto. Iniciava-se uma caminhada que só a morte
iria cortar.

Sobre a sua companhia, em palavras excepcional-


mente otimistas e entusiastas, diria Cacilda na época, como
se vê, novamente, no livro de Nanci Fernandes e Maria
Thereza Vargas:

94
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

"Meus caros amigos: há longos anos nos conhecemos;


nos conhecemos muito como homens e mulheres de teatro,
como pessoas humanas. Conhecemo-nos desde a primeira
mocidade, quando todos nós, de um modo geral, dávamos
os nossos primeiros passos no teatro. ( ..) Hoje, entretanto,
pretendemos propor a vocês um novo conhecimento -
queremos apresentar-lhes uma pessoa nova, como se
fosse a apresentação do nosso filho... Um filho que,
graças à nova situação do teatro nacional não nasce
tão criança e tão balbuciante, como teria sido há anos.
(...) Eliminamos o medo, esse mal secreto, e no seu
lugar instauramos a confiança. A confiança mutua.(..)
Conhecemo-nos e conhecemos o nosso teatro. Sabemos que
todos os males de que padecemos, pessoalmente, nossos
defeitos tantas vezes apontados pela imprensa,
pelos homens de teatro, tantas e tão insistentemente
proclamados, calaram no fundo dos nossos corações e
geraram a humildade de que necessitávamos para abdicar
de nós mesmos, dos prêmios que sonhávamos e para nos
abrir o caminho real do teatro: servi -lo sem querer nada
em troca. (..) É essa a nossa feição: nosso teatro tem
certamente um rosto carrancudo e circunspecto, nosso
coração, porém, é leve e alegre."

Essas palavras não são gratuitas; têm sempre muito


significado. Cacilda aponta nesse texto (propositadamente
compactado) para alguns pontos sensíveis de sua carreira
até então. Fala da união do grupo e de sua experiência; da
renúncia ao lucro, no qual não crêem. Fala da consciência
das falhas, inclusive pessoais e, de passagem e muito de
leve, queixa-se um pouco (como não poderia deixar de ser)
de alguma parte, hoje inidentificável, da imprensa.
Demonstra conhecimento das carências do teatro brasileiro
como um todo e nos cientifica de que, embora sejam sérios,
os componentes do Teatro Cacilda Becker estão felizes e
enfrentam com alegria todas as dificuldades.

Estávamos, portanto, entre 1958/59. O Teatro de


Arena lançava Gianfrancesco Guarnieri, com Eles não usam
black-tie. Sérgio e Nydia montavam, no seu teatro, nova
versão do Vestido de noiva. O TBC dava uma excelente
oportunidade a Leonardo Vilar, protagonista de Panorama

95
Renata Pa11ottini

visto da ponte, de Arthur Miller, espetáculo que trazia


também Nathalia Thimberg e Fernanda Montenegro. A
direção era de Alberto D'Aversa, diretor italiano radicado
no Brasil, e fruto da segunda safra de encenadores
estrangeiros absorvidos pelo nosso teatro. D'Aversa, aliás
viria a ser uma aquisição brilhante, misto de crítico,
professor e diretor de teatro, eficiente em todas as suas
atividades.
A Companhia de Sandro e Maria Della Costa
encenava Brecht, A boa alma de Se-Tsuan, numa belíssima
direção de Flaminio Bollini-Cerri. Novamente o TBC, agora
um pouco mais afeito aos autores brasileiros, apresentava
Pedreira das almas, de Jorge Andrade, vitorioso depois de
sua estreia com Maria Della Costa.
É dentro desse contexto que a nova companhia irá
estrear em São Paulo, a cidade que a vira nascer e que iria
seguir de perto a sua vitoriosa trajetória, dez anos de lutas
e de realização.

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CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

XXVII

"E todo o mundo achou, por um momento,


• tempo da alegria
• contratempo
• corpo leve e louco, o tudo permitido
• viagem, o espasmo, a sensação
Deus vivo':

_í^ realização seguinte do Teatro Cacilda Becker


era uma peça ambiciosa, grave e importante produção do
extraordinário dramaturgo norte-americano Eugene O'Ne1ll,
Prémio Nobel de Literatura.
O'Neill, talvez o maior dramaturgo norte-americano
do século, nasceu em Nova York, no dia 16 de outubro de
1888, e morreu em Boston, em 1953, depois de ter sofrido
de Mal de Parkinson por muitos anos, o que, naturalmente,
afetou a sua produção e, inclusive, a divulgação de suas
últimas peças, algumas delas autobiográficas, como é Longa
jornada noite adentro, exatamente a escolhida pela
companhia de Cacilda.
Apesar de ter sido escrita em 1940, Long day's
journey into night só foi publicada pela Yale University
Press, em 1956, estreando em seguida, primeiro na Suécia
e depois na própria terra do autor.
É assim bastante recente a liberação do texto
quando, talvez por indicação do próprio Ziembinski e tendo
em vista o excelente papel que a peça reservaria a Cacilda,
a companhia decide montar O'Ne1ll.

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Renata Pa11ottini

Longa Jornada é uma peça de sofrimento, de busca


dolorosa do passado, de revisão e análise dos embates da
família e, principalmente, um atormentado mergulho no
essencial mundo materno.
O que Edmund Tyrone, recriação do universo do
próprio Eugene, faz durante toda a peça é reencontrar-se
com o pai, ator de segunda, alcoólatra e desligado da
realidade e, principalmente, com a mãe, viciada em drogas,
frustrada em sua necessidade de amor, de estabilidade
emocional e, talvez, totalmente perdida naquele mundo
masculino de talentos destrutivos.
O espetáculo, dirigido por Ziembinski (que também
faz o Pai), estreou em maio de 1958, no Rio, fazendo Cacilda
o papel de Mary Tyrone, a infeliz mãe do protagonista/
autor, e Walmor Chagas o de Edmund. Os resultados de
crítica e de público foram apreciáveis e, se posso dar o
meu testemunho - que, daqui por diante, posso dar cada
vez com mais freqüência - o espetáculo tinha uma tensão
permanente e uma dramaticidade contida que não se
encontravam, normalmente, na época; boa parte disso, como
se poderia imaginar, provinha de Cacilda.
Sofrendo um problema comum às companhias
recém-formadas - o da falta de um teatro próprio - o TCB
parte, em junho do mesmo ano, em excursão pelo sul,
levando a Porto Alegre e depois ao Uruguai Pega Fogo, O
protocolo, pequena peça de Machado de Assis (completando
ambas um espetáculo) e Longa jornada, numa excursão
que se revelou proveitosa e bem sucedida.
O ano de 1959 foi marcado pela luta - sempre
Cacilda à frente - por conseguir apresentar-se com
continuidade e, depois, arrendar o Teatro Leopoldo Fróes,
que pertencia à Prefeitura de São Paulo, e estava situado na
praça General Jardim, um bom local, de fácil acesso e
bastante central. Por razões várias, o grupo não conseguiu^
o que pretendia. Remontava-se, entrementes, Maria Stuart
e Santa Marta Fabril. Esta última peça, a companhia levaria
para Salvador; seguindo para o norte, montaria O Auto da
Compadecida (com uma certa dose de audácia) no Teatro

98
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

Santa Isabel, na praça onde a peça tinha nascido.


Mas, na verdade, o que a companhia estava fazendo
era ir ao encontro de um velho navio português, o Vera
Cruz, que os levaria a todos - e a mim! - em direção ao
Velho Mundo.

99
Renata Pa11ottini

XXVIII

"Neste trânsito há um pouco de madeira


e crescimento, qual de filho a paL.."

..hamar o Vera Cruz de "velho navio português"


talvez seja ofensivo; na verdade, tratava-se de um bonito
transai ntico, branco e bastante grande. Não sei dizer nada
de suas características, tais como dimensões, velocidade,
tonelagem, etc.; no entanto, visitei-o todo, encantada como
sempre fico com as coisas do mar, e aprendi que era um
barco de grandes dimensões, muito bem equipado e que
dispunha até de uma imprensa que preparava e publicava
um jornal diário, bastante bom para as condições em que
era feito. Nesse jornal publiquei uma história policial com
direito a prêmio para quem solvesse o mistério, adivinhando
quem era o assassino. Lembro-me ainda da minha emoção
quando vi, no chão do meu camarote, as cartas recebidas,
de passageiros e tripulação, propondo a solução e, também,
da alegria da festa em que se deu o prêmio a um garoto da
Terceira Classe, emigrantezinho português que estava
voltando a sua terra.
O Vera Cruz zarpou de Santos no dia 3 de outubro
de 1959, às 17:30 hs, com toda a festa a que se tinha direito,
naqueles tempos, nas partidas. Eu estava a bordo, a caminho
da Espanha, onde iria valer-me de uma Bolsa de Estudos,
de um ano de duração, na Universidade de Madri, Faculdade
de Letras. Paramos, naturalmente, no Rio, depois na Bahia.

100
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

Chegamos ao Recife no dia 7, às oito horas da


manhã. E, às onze, embarcava a companhia de Cacilda, o
TCB, para grande emoção minha, jovem admiradora da atriz
e do Teatro; eu havia estreado sem grande pompa na poesia,
mas ainda sonhava escrever muitas coisas, entre as quais
peças de teatro - o que realmente fiz.
Meu primeiro contato com o grupo me foi propiciado
por Raul Cortez, que já me conhecia de algum lugar e estava
na viagem. Raul, muito generoso como sempre, (e com
cabelo), me apresentou a Cleyde, que pareceu não me dar
muita importãncia (aprendi, depois, a reconhecer sua
proverbial timidez). Faziam parte do grupo, além de
Cacilda e Walmor, Cleyde, Stenio Garcia (começando,
provavelmente, sua carreira teatral), Luiz Tito (encerrando,
talvez, a dele), Raul, Freddi Kleemann, Kleber Macedo,
Benedito Corsi, Paulo Rangel... que me lembre. Estaria
também Rubens Teixeira? Talvez.
Durante a viagem, fiz algumas anotações sobre o
grupo para publicação no jornalzinho de bordo, buscando
informar aos passageiros - que em grande parte eram
portugueses e muito modestos (havia ainda terceira classe,
naquele tempo) - alguma coisa sobre a qualidade e a
importãncia daqueles atores que eram, sem dúvida, parte
da brilhante realidade teatral brasileira de então, e que
estavam partindo em aventura para levar notícia dessa
realidade à Europa.
No dia 11 de outubro, à noitinha, chegamos à Ilha
de São Vicente, possessão portuguesa dos Açores, muito
perto da África, portanto. Ilha pedregosa, muito clara, sem
água própria, que recebia da ilha vizinha de Sto. Antão.
Cara de cenário de filme de África colonial. Fomos
convidados, todos os passageiros brasileiros, ao Clube da
Ilha, lugar, provavelmente, onde se reuniam as autoridades
locais e os oficiais da Marinha portuguesa em trãnsito. Passei
pelo Clube, onde Cacilda e Walmor, naturalmente querendo
dar a tudo um certo ar de seriedade, permaneceram. Mas
nós, os outros, fomos a um tal "baile das pretas", que era
uma espécie de espetáculo de dança, efetivado numa casa
de prostituição, muito humilde e pobre. Nunca me esqueci

101
Renata Pa11ottini

do talento daquelas mulheres - nem todas negras, aliás -


para dançar aquele baile ritmado, violento, harmonioso.
As mulheres estavam muito constrangidas com a nossa
presença, de outras mulheres, quero dizer. Lembro-me de
que Cleyde se sentiu mal, intimidada com aquele encontro.
Eu passei por cima de todo excesso de sensibilidade e
aproveitei ao máximo aquela primeira oportunidade - e
última, com certeza - de entrar num prostibulo. E me
lembro, também, de que a dona da casa se chamava Serena.
Um nome lindo.
Mais tarde, já aí com Cacilda e Walmor, fomos ouvir
as mornas, canções da terra, semelhantes ao fado, mas
ditas em dialeto crioulo. Uma enorme lua cheia espiava tudo,
e nos serviram suco de pêra, enlatado e importado.
Passando ainda pelo Funchal, Ilha da Madeira, onde
colhemos gaivotas, que nos acompanharam em todo o resto
da viagem, chegamos a Lisboa no dia 15 de outubro, às
15:30 hs. O TCB começava a sua conquista do Velho Mundo.

102
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

XXIX

"O porto encosta em nós


o porto atraca em nós o porto
oferece a sua escada como uma língua pela
madeira deslizamos multiformes é a terra,

-.:r■
senhores, é a terra!"

- n Portugal, segundo se sabe, o Teatro Cacilda


Becker apresentou O Auto da Compadecida, de Ariano
Suassuna, e Pega Fogo, em Lisboa. Reportam-se, depois,
espetáculos em Coimbra, no Porto, em Aveiro e Vizeu. Mas
não há grandes notícias da repercussão obtida, a não ser
menção a elogios da crítica com o personagem de Jules
Renard.
Ziembinski havia deixado a companhia quando de
sua viagem à Europa, mas não se desligara totalmente dela,
voltando a dirigir o grupo mais adiante; sua impressionante
criação de encenador, no entanto, seguia triunfante.
Na verdade, o grande acontecimento daquela
temporada foi a apresentação em Paris, no Festival das
Nações, de Pega Fogo, em 19 de abril de 1960, no Teatro
Sarah Bernhardt. É de se supor a resistência que encontraria,
no tradicionalista público francês, a apresentação de um
texto da terra, já feito por grandes atrizes, quando mostrado
em outro idioma e por uma atriz estrangeira, ainda mais
vinda de "lá bas". Que audácia!
Mas o resultado, como já se disse, foi o melhor

103
Renata Pa11ottini

possível; realmente, a crítica e o público parisiense tiveram


de Cacilda e de sua grande criação uma impressão muito
favorável, que se pode verificar consultando os textos
publicados em jornais e as declarações tomadas no lugar.
Foi um êxito, sem dúvida e sem patriotadas. Cacilda foi
reconhecida como a grande atriz que era, e isso, se não
tem repercussões concretas na sua carreira posterior, lhe
terá dado, seguramente, uma grande alegria.
O elenco (o que ficara na Europa) volta ao Brasil em
maio de 1960 e volta a se enfrentar com o problema da
falta de uma sala sua, digna, onde pudesse apresentar-se
com tranqüilidade e, mais que isso, fazer um público que
fosse fiel à casa como estava sendo fiel à sua atriz. A
dificuldade é contornada enquanto Cacilda faz alguns
programas na televisão e uma excursão pelo interior do
Estado. A companhia utiliza o teatro Natal, sala mal situada
e inconveniente; fazem-se alguns espetáculos, o grupo
realiza algumas atividades importantes. Mas é somente em
dezembro de 1960, com ...Em moeda corrente do país, de
Abílio Pereira de Almeida, que o TCB encontra, no Teatro
da Federação Paulista de Futebol, situado na avenida
Brigadeiro Luiz Antõnio, de acesso um pouco difícil, mas
adaptável, um teatro possível e um palco onde permanecerá
até o fim.

104
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

luul

"Ficara para trás a juventude


o farto gosto a anis.
Ficara para trás o Mercado da Paz,

1
ficara para trás
o ser feliz."

.som esse espetáculo, a companhia Teatro Cacilda


Becker inauguraria o Teatro Nacional de Brasília, no dia 21
de abril de 1961. Nem o Teatro nem Brasília estavam
prontos, mas a ocasião era importante: 21 de abril havia
sido a data do nascimento público e reconhecido da própria
Renata Pa11ottini

cidade, um ano antes. Todas as precariedades tinham de


ser perdoadas, em nome do pioneirismo e da importãncia
de uma nova marcha para o oeste e da fundação de uma
nova capital, modelo de arquitetura, urbanismo e
paisagismo, conhecido e estudado, de aí em adiante, pelos
interessados no assunto em nível internacional.
E também aí estavam Cacilda e os seus atores.
É a partir deste momento que se começa a
diagnosticar em Cacilda o interesse pelas coisas públicas,
pela organização e liderança de sua classe, a classe teatral
de que tão pouco se trata nos dias que correm, como se
atores, dramaturgos, técnicos, não necessitassem de mais
nada, senão fazer bilheteria e trabalhar eventualmente na
televisão; como se todos os seus problemas estivessem
resolvidos.
Em fevereiro desse ano, Cacilda fora eleita, por
aclamação, presidente da União Paulista da Classe Teatral.
Quase a seguir apresentou sua demissão; não queria ser
simplesmente uma voz levada de roldão na opinião da
maioria. Queria compreender a razão das decisões que
levassem seu nome.
Logo em seguida, em maio, passou a fazer parte de
uma Comissão Nacional de Teatro, juntamente com Alfredo
Mesquita, Décio de Almeida Prado, Ziembinski, Nelson
Rodrigues e Clóvis Garcia, comissão formada por
convocação do então Presidente da República, Jãnio
Quadros. Era a única atriz do grupo, o que já atestava a
importãncia da sua palavra de líder da categoria.
Ainda em maio, estreou Raízes, de Arnold Wesker,
depois Oscar, de Claude Magnier, depois, já em 1962,
quando o Teatro Federação passaria a chamar-se Teatro
Cacilda Becker, fazia A terceira pessoa do singular, de
Andrew Rosenthal. Já o seu público se perguntava onde
estavam a grande atriz e seu grande teatro quando, em
junho de 1962, faria com brilho a protagonista de um texto
verdadeiramente importante: A visita da velha senhora,
de Friedrich Durrenmatt, no Teatro Record, em São Paulo,
com direção de Walmor Chagas.

106
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

F. Dürrenmmatt, dramaturgo e prosador suíço,


nasceu em Berna, em 1921, e estava destinado à carreira
eclesiástica, filho que era de um pastor protestante. Para
tanto, estudou teologia, filosofia, tudo o que era necessário
para a carreira que lhe destinavam; mas logo viu que sua
vida estava na literatura e no teatro e para lá enveredou.
Escreveu algumas peças de maior ou menor envergadura,
antes de A visita..., que é de 1955.
A peça estreou em Zurique, na Suíça, em 1956 e foi
publicada no mesmo ano. De todas as obras do autor, diz
seu tradutor para o português, Mário da Silva, é a que teve
sucesso maior e mais imediato, além de mais duradouro.
A história da peça é das mais interessantes e
provocativas: numa pequena cidade da Europa Central (leia-
se Suíça) uma velha senhora riquíssima, Clara Zahanassian,
que havia nascido naquela cidadezinha e, depois, se casara
com um multimílionário arménio, aparece para vingar-se
dos seus moradores, antigos amigos, conterrãneos e,
principalmente, do seu primeiro amor, que a desvirginara e
depois repudiara. Para isso, oferece uma grande quantia em
dinheiro à cidade - em decadência, quase em ruínas - para
que se mate o homem que a infelicitou e que ela amava. O
conflito maior da peça, o que lhe dá o suspense adequado e,
ainda, um retrato psicológico de todos os personagens, é
uma decorrência da oferta: aceitará a cidade o dinheiro que
a tira - e aos seus habitantes - da ruína?
Quando a peça começa, está se preparando o
ambiente para a grande recepção; a estação de estrada de
ferro é enfeitada e ornamentada. Os cidadãos, hipócritas,
procuram lembrar-se de detalhes favoráveis da vida de
Clarinha - que, quando seduzida e abandonada, repudiaram,
desprezaram e expulsaram - para fazê-los aparecer em suas
falas de boas-vindas. Entre estes aparece Schill, exatamente
o rapaz que ela havia amado, agora um velho insignificante,
o mesmo que fingira amá-la e que, depois, a tinha
abandonado. Clara, muito adequadamente, aparece antes
da hora em que era esperada, faz parar um grande expresso
internacional e surpreende a todos os moradores, colhidos

107
Renata Pa11ottini

como ela queria: desarmados.


O texto explora as possibilidades do conflito
principal: de um lado, a honestidade, a fraternidade, a
lealdade; de outro, o puro poder do dinheiro. Escrita na
Suíça e sobre a Suíça, evidentemente a obra faz a crítica da
historicamente conhecida postura de neutralidade desse
país, sede de alguns dos maiores bancos internacionais do
mundo. Mas, também, enfoca a fragilidade do Homem
diante da sedução do Poder e do dinheiro, para além de
qualquer ubiquação histórica, nacional ou geográfica.
Para realizar a montagem, sob a direção de Walmor
Chagas, Cacilda fez uma impressionante criação fisica, além
de uma composição dramática que ficou inesquecível para
quem a viu. Mas, ainda que destacando a importãncia do
texto, seu principal crítico, Décio de Almeida Prado, não
foi benévolo para com o espetáculo, principalmente fazendo
reservas à direção:

"Walmor Chagas valeu -se, em sua direção, das mesmas


armas que lhe serviram tão bem de vezes anteriores:
modéstia de intenções, bom senso, pouca interferência no
trabalho criador dos atores. Mas a peça de Durrenmmatt
pede outras qualidades, imaginação, audácia, requer
alguém capaz de unir, como desejava Victor Hugo, o
sublime ao grotesco.

Cacilda Becker, que é a nossa primeira atriz, parece


singularmente pouco à vontade dentro da rigidez que se
impôs a si mesma, sem campo para expandir -se, ao
contrário do que sucedeu com esses pequenos papéis, bem
realistas, bem vibrantes, com os quais realiza maravilhas.
Sérgio Cardoso peca apenas por não se renovar
suficientemente: por baixo da máscara de Schill reponta
com muita freqüência a eloqüência, os gestos e as inflexões
do Esopo de "A Raposa e as Uvas"."

Sim, Sérgio Cardoso fora chamado para fazer o papel


masculino principal de A visita da velha senhora. E, claro,
longe de mim a intenção de me contrapor ao meu mestre,
Décio. Mas, por que será que Cacilda-Clara Zahanassian
nunca mais me saiu da memória?

108
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

Creio que o trabalho de composição da atriz, de fato,


conferiu-lhe uma rigidez difícil de vencer na duração
do espetáculo. Mas, por outro lado, a entonação,
propositadamente dura e áspera, os gestos esquemáticos,
geométricos, a postura do corpo e da cabeça, elevada,
sobranceira, desafiante, eram bem a da pessoa/atriz que
se defronta com quem a humilhou - aquelas famílias
burguesas a que ela se referia na juventude - e, novamente
no mistério da metamorfose, tira a sua desforra. Mesmo
para quem ignorasse as circunstancias reais de sua vida (e
fazendo-se a ressalva, que sempre se faz, do que é a vida e
do que é a arte), a intuição do espectador, a que sempre
nos vem durante a metamorfose ator/personagem,
enriquecia a criação, de forma a dar-lhe valores inusitados
e que, só indiretamente, estavam no texto.
Renata Pa11ottini

"Não posso sair de casa


há policias na rua
não posso ir para o trabalho
meu trabalho está cercado

r'
não posso falar em liberdade
é proibido."

1 -ffn 1963, trabalhando de novo sob a direção de


Ziembinski (talvez a observação de Mestre Décio tivesse
marcado o casal de artistas), o TCB fez, de Bernard Shaw,
César e Cleópatra. Como quase sempre que dirigia, Zimba
também atuou como César, num grande elenco onde, como
curiosidade, aparece o nome de Plínio Marcos em dois
pequenos papéis. Plínio ainda não havia estreado como
autor ( Dois perdidos... é de 1966) e começava seus embates
no teatro.
E chega o ano, de má memória, de 1964.
No dia 5 de março estreia A noite do iguana, de
Tennessee Williams, novamente com direção de Walmor. E,
no dia 8 de maio, Cacilda é chamada a depor (ou vai, por
sua iniciativa) ao DOPS, Departamento de Ordem Política e
Social, reforçado e referendado pelo golpe militar.
Era muito difícil enfrentar com dignidade um
momento desses, especialmente se levarmos em conta que
Cacilda não estava filiada a nenhum partido e, a rigor, não
tinha posição política explícita, afora as que emanavam de

110
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

suas convicções religiosas (que existiam), de seu bom senso


e de seu acendrado amor aos colegas de luta e de caminhada.
O fato de terem-na chamado indicava que lhe reconheciam
a liderança, mas, também, que seria bem recebida uma
delação.
Das publicações da época se vê que, delação, ela
não fez nenhuma. Explicou-se, segundo o Jornal do
Comercio do Rio de Janeiro, edição de 10 de maio:

"Jamais militei em qualquer partido ou corrente política.


(..) Em 1947, convidada por Jorge Amado, declamei no
Teatro Municipal e depois no Vale do Anhangabau o poema
de Pablo Neruda, "Mães de Stalingrado ", em honra às mães
soviéticas que haviam perdido seus filhos na luta em defesa
da liberdade. (..)Antes de qualquer medida punitiva contra
os artistas é preciso que as autoridades procurem
compreender o verdadeiro espírito e a função do teatro,
para que se capacitem a enquadrar, sem perigo de grandes
injustiças, os artistas eventualmente comprometidos com
ideologias antidemocráticas."

Teria sido difícil, naquele momento e naquelas


circunstancias, ser mais coerente e equilibrada; sem deixar
passar a oportunidade de defender os seus colegas, Cacilda
se coloca, clara e ponderadamente, a favor deles. Atores,
diretores, escritores, músicos, professores e políticos
estavam sendo, indiscriminadamente, presos, torturados,
exilados ou estavam, simplesmente, escondendo-se da
policia, numa atitude muito justa de quem não tem por
que procurar a morte.
Cacilda ateve-se ao seu próprio pensamento, à sua
posição conhecida; não era seu o trabalho propriamente
político-partidário, e não havia por que atirá-la às feras
naquela oportunidade. Muitas ocasiões ainda existiriam para
que ela lançasse mão de seu prestígio para ajudar aos
companheiros.

111
Renata Pa11ottini

XXXII

"Conta ao teu filho, meu filho,


daquilo que nós passamos.
que havia fitas gravadas,
retratos de corpo inteiro."

^ ^
os textos de teatro - todos - tinham de passar por uma
Censura Federal agora realmente imperante, e não mais,
como o fora outrora, simpática e bonachona, para poderem,
depois, entrar em estudos, leitura e ensaios para espetáculo,
ocorrendo casos em que, após o ensaio-geral, e com
espetáculo anunciado ao público, a Censura simplesmente
proibia a estréia. Com um recrudescimento em 1968, esse
instrumento policial estava, agora, instruído a pinçar nos
textos desde supostas incitações à desobediência e à
"contra-revolução" (como se de uma revolução se tratasse),
até supostos atentados à moral, quando não a vetar todo o
texto pura e simplesmente. Isso complicava e entravava o
já difícil trabalho da gente de teatro que, em geral, acabava
por necessitar de um representante em Brasília - a Brasília
cujo teatro Cacilda inaugurara - para liberar textos, na
maioria das vezes, aliás, absolutamente inofensivos.
Nesse período, Cacilda apresentou a peça O preço
de um homem, de Steve Passeur, direção de Maurice Vaneau^
e, aí sim com mais ambição, seu grande sucesso da época:
Quem tem medo de Virgínia Woolf, de Edward Albee,
direção de Vaneau, num elenco em que apareciam, a seu ^

112
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

lado e de Walmor Chagas, Fulvio Stefanini e a esplêndida


Lilian Lemmertz .
O escritor norte-americano Edward Albee, nascido
em 1928, já havia flertado brevemente com o Teatro do
Absurdo em seu The Zoo Story, que fez grande sucesso no
Brasil e está, sem dúvida alguma, na raiz do nascimento de
Dois perdidos... de Plínio Marcos. A história do zoológico,
de 1958, fora representada pela EAD, a Escola de Arte
Dramática de Alfredo Mesquita, sempre na vanguarda das
apresentações de textos experimentais, no começo da
década de sessenta, em um bom espetáculo feito por alunos.
Agora, já em 1962, um Albee mais maduro criava um texto
contundente, agressivo e doloroso, que tomava o público
desde a criação da atmosfera inicial, e desde, até, o
trocadilho inicial. De fato, a partir de um "quem tem medo
do lobo mau?" se estabelece, de maneira quase real, uma
história de medos, ao redor do delírio, da alucinação, da
embriaguês e da quase-loucura de pessoas aparentemente
normais.
Pelo trecho de uma crõnica/crítica, extraída do livro
de Maria Thereza Vargas e Nanci Fernandes, reproduzida
do jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, e de autoria
do poeta Carlos Drummond de Andrade, pode-se fazer idéia
do mundo criado pelo espetáculo:

"É um espetáculo fascinante. Qualquer coisa como um vôo


num céu tenebroso, que se ilumina vagamente para nos
deixar perceber o vago contorno de um objeto perdido no
tempo e no espaço - objeto irreconhecível, miserável, que
entretanto emite uma pulsação de vida e esperança. (..)
união infernal entre seres que se repelem para
absurdamente melhor se colarem um ao outro e, devorando -
se, atingirem à comunhão do nada. (..) Cacilda e Walmor
travam essa luta sem quartel, com a ferocidade de lobos
que se divertissem em ser ferozes, utilizando o refinamento
que a civilização deu à mente humana para o exercício da
crueldade e também da autopunição. Fazem isso com
aquela perfeição que só o grande artista, no cume de uma
grande carreira, consegue de si mesmo. (...) É fantástico -
e esta pobre palavra não diz nada, pelo desgaste. "

113
Renata Pa11ottini

Deste belo texto - e não poderia deixar de ser belo,


vindo de quem veio - emergem duas palavras muito
especiais: lobos e desgaste.
A palavra desgaste nos remete, imediatamente, à
estética do Teatro do Absurdo, o teatro por excelência da
incomunicabilidade e da inoperãncia da palavra entre os
homens. E, claro, esta palavra, como bem mostra Eugene
Ionesco, muitas vezes se torna inoperante por desgaste.
Mas o desgaste também existe nas relações, fruto
do atrito. É como se, agarrados uns aos outros para fugir
da solidão, para fugir do medo, os seres humanos, atritando-
se, acabassem por desgastar aquela face de cada um que
havia sido imaginada para o contato, para o aconchego, para
o amor.
A palavra lobos remete a wolf, ao lobo-mau da
história infantil e da canção, base do título; perguntando-
se, primitivamente, quem tem medo do lobo-mau, o autor
já estaria mencionando um problema que envolve uma
criança, motivo inicial de uma certa forma de loucura do
casal. Mas, parodiando a canção infantil, a pergunta e o
medo, o autor (e o personagem) já ingressa num clima
sofisticado de professores universitários, de especialistas,
e acaba até por, além de zombar de todo esse mundo, adotar
uma postura de certa forma agressiva à escritora inglesa
Virgínia Woolf (que, diga-se de passagem, se suicidou, numa
atitude, até certo ponto, "louca"). Cabem aí portanto, ao
mesmo tempo, a paródia, a meta-linguagem, a auto-
comiseração, a auto-agressividade, a ironia feita à erudição
e, por fim, o desafio puro e simples. Ninguém, na peça,
tinha medo, nem do lobo mau, nem de Virgínia Woolf. E, na
verdade, todos tinham medo de todos, e cada um de si
mesmo.
Isso era, talvez, para os participantes do espetáculo,
prenúncio de tempos ainda mais difíceis, porque aí se
complicariam os problemas de ordem pública, social, com
as dificuldades pessoais de cada um. Começaria, de fato,
por essa época, uma fase de conflitos em que se iriam
desgastar os protagonistas, transformados em lobos
solitários.

114
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

XXXIII

"Um soldado voltando da batalha

r'
se eu corresse prá casa
para quem correria?"

r oi em 1965 que Cacilda e Walmor, movidos com


certeza pela noção de que o aparecimento de novos autores
brasileiros estaria dificultado pela ação da Censura e, ainda

115
Renata Pa11ottini

mais, tomando em conta uma Lei que obrigava a exibição


de um texto nacional a cada dois estrangeiros, inauguraram,
em sua própria casa, num salão superior de sua cobertura,
um local de leitura dramática de textos inéditos. Foram lidas,
ali, três peças novas e, também, a excelente Navalha na
carne de Plínio Marcos, que estava formalmente proibida
pela Censura. Dessa oportunidade surgiu um documento a
ser enviado ao então Ministro da Justiça, Gama e Silva, pelo
Centro de Estudos Teatrais, que assim se chamava o grupo
formado pelos dois atores e alguns colaboradores. Eram
novas tentativas de reforçar os alicerces do teatro,
infelizmente mal compreendidas e, até, combatidas por
alguns intelectuais que viam na iniciativa um matiz de
paternalismo, a substituir providencias que, para eles, eram
encargo do Estado.
Nos anos seguintes, cada vez mais difíceis, Cacilda
e Walmor fariam O homem e a mulher, coletãnea de trechos
de poesia e de peças de teatro e, com maior contundência,
Isso devia ser proibido, de Braulio Pedroso, levando até às
últimas conseqüências o seu comportamento prenunciado
no Centro. Tratava-se de um texto brasileiro, de autor novo
(o qual, depois, viria a se consagrar na televisão, fazendo a
telenovela Beto Rockefeller, considerada um marco no
género); e era um texto especial, cáustico e irõnico, como
em geral eram as produções de Braulio Pedroso.
Desse espetáculo falou o inesquecível ensaísta,
professor, mestre Anatol Rosenfeld, em texto que,
novamente, citamos do livro único de M.T. Vargas e N.
Fernandes:

"Por mais que a peça se afigure como divertissement ela


adquire, talvez a despeito de si mesma, um peso bem maior
do que de início se suporia. O serio nesta peça é,
precisamente, que ela não parece levar nada a sério. (..) O
texto, por si só, revela todas as nuanças engraçadas de
uma fala como esta: `Eu sou um homem que tem
inquietações políticas, a sorte do povo me preocupa e minha
mulher reduz tudo a probleminha cotidiano. Desisto... eu
vou sair. ' E muito menos exprime o cinismo quase tocante
que só a inflexão inimitável da voz de Cacilda traduz.
`Espere. Volte. Eu compreendo o que você quer... meu bem,

116
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

meu bem... eu também estou com o povo. ' Coitado do povo.


(..)A esquerda festiva é saborosamente ridicularizada. Mas
os que ridicularizam são sutilmente desmascarados na
sua completa falta de `fé, amor e objetivos. ' Se o casal de
artistas reais, que desempenha os papéis do casal de artistas
fictícios se identificasse totalmente com estes - o que
evidentemente não é o caso - poder-se-ia falar de uma das
mais arrasadoras autocríticas já vistas num palco."

Capazes de autocrítica os dois atores eram, sem


dúvida. Num tempo em que estávamos, todos, analisando-
nos a fundo, os ausentes perdidos para sempre ou, por
outro lado, salvos pela coragem da ação concreta e física,
os presentes "exilados para dentro", torturados pela que
depois ficou conhecida como patrulha ideológica, quase
que obrigados a manifestar-se - ou manifestando-se
simplesmente por coerência - nesse tempo o mais comum
eram as acusações mútuas em nome da pureza de idéias.
Isso tudo acontecia em 1967; salvo erro, Braulio
Pedroso ganhou, com esta peça, um de seus prêmios
Molière, galardão que a companhia aérea Air France tinha
instituído em 1966 (e ao qual, diga-se de passagem, ele não
deu grande importãncia); eu mesma tinha ganho o primeiro
prêmio dado a autor, referente a 1965 e recebido em
1966. O prêmio era um troféu - estatueta de mármore
representando o busto de Molière e que sempre me
encantou mais até do que a viagem - e uma passagem aérea
São Paulo-Paris-São Paulo. No palco do Teatro Municipal,
em 1966, eu me tinha encontrado com Cacilda e Walmor,
também eles, e com maiores méritos, vencedores, ao lado
do diretor Antunes Filho, da cenógrafa Maria Bonomi e do
ator Silvio Zilber. Foi um momento de alegria e emoção.
Uma pausa, na serie de tensões que todos tínhamos sofrido
até então; e que continuaríamos a sofrer.

117
Renata Pa11ottini

XXXIV

"Também eu, posta na mesa,


parece que estou na festa.
É falso. Alhures, num sopro,
tento salvar, boca-a-boca
o coração afogado
escondido no meu corpo."

()a no de 1968, que se aproximava, seria agudo


para todos nós; ou, no dizer do crítico Yan Míchalski, em O
teatro sob pressão, "talvez o ano mais trágico de toda a
história do teatro brasileiro." Ao tirar de cartaz, em Brasília,
a peça Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams
e, ainda, ao impor à atriz Maria Fernanda uma suspensão
absurda de suas atividades profissionais, a ditadura
provocou uma reação da classe teatral, em todo o país,
liderada por, entre outros artistas, Cacilda Becker. O
prestígio dos manifestantes levou o governo a recuar, pelo
menos aparentemente. As coisas ainda prosseguiriam.
No dia 7 de junho desse ano, apresentando o grupo
de peças de protesto que, reunidas sob o nome de 1 1 . Feira
Paulista de Opinião, sob a direção de Augusto Boal,
tentavam dar uma resposta enérgica ao arbítrio, Cacilda, já
Presidente da Comissão Estadual de Teatro, leria no palco
do Teatro Ruth Escobar o seguinte texto:

"A representação na íntegra da 1 1. Feira Paulista de


Opinião é um ato de rebeldia e de desobediência civil.

118
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

Trata-se de um protesto definitivo dos homens de teatro


contra a censura de Brasilia, que fez 71 cortes nas seis
peças. Não aceitamos mais a Censura centralizada, que
tolhe nossas ações e impede nosso trabalho. Conclamamos
o povo a defender a liberdade de expressão artística e
queremos que sejam de imediato postas em prática as
novas determinações do Grupo de Trabalho nomeado pelo
Ministro Gama e Silva para rever a legislação da Censura.
Não aceitando mais o adiamento governamental,
arcaremos com a responsabilidade deste ato, que é legítimo
e honroso. O espetáculo vai começar."

Em julho de 1968, um grupo autodenominado


Comando de Caça aos Comunistas invadiu o Teatro Ruth
Escobar, onde estava sendo levada a peça Roda viva,
constrangendo e espancando os atores e atrizes que nela
se apresentavam. Há outros atentados e, sem dúvida, a
demissão de Cacilda da TV Bandeirantes, da qual era
contratada na época, adveio dessa situação. Os atores e
diretores reagiam, cada qual à sua maneira, à brutalidade e
arbítrio da Censura e dos grupos para-militares. Vem daí a
virulência das montagens de O Rei da vela (anterior) e Roda
viva, feitas por José Celso Martinez Corrêa. E, com certeza,
toda a sua virulência posterior, vítima que foi, ele também,
do arbítrio.
Também a vida particular de Cacilda Becker estava
sendo minada: uma desinteligência do casal complicava
suas vidas e, igualmente, a sorte do TCB, que era como que
um filho dos dois atores. Ambos deram uma pausa em seus
trabalhos e em sua convivência, buscando encontrar uma
solução que salvasse algumas coisas preciosas que tinham
sido criadas.
Nessa ocasião, o crítico Décio de Almeida Prado
estava deixando a Presidência da Comissão Estadual de
Teatro, vinculada à Secretaria de Estado de Cultura;
a Comissão era um órgão dotado de grande prestígio,
que conseguia amparar e defender iniciativas valiosas
da classe, e, ao mesmo tempo, selecionar as montagens
que devessem ser materialmente apoiadas. Graças ao valor
pessoal de seus componentes e, principalmente, de seu^
Presidente, a Comissão, naqueles tempos, funcionava como

119
Renata Pa11ottini

um verdadeiro baluarte do Teatro.


Vendo que Cacilda estava, momentaneamente, sem
planos, Décio, sempre seu grande amigo, pensou em ajudá-
la e ajudar, ao mesmo tempo, o Teatro:

" ... Por outro lado, Cacilda, desentendendo-se


temporariamente com Walmor Chagas, encontrava-se
numa situação delicada, sem companhia, sem elenco, sem
saber o que seria de sua vida. A presidência da CET,
pensávamos, a ocuparia até que se recuperasse profissional
e sentimentalmente. Que fosse um posto de sacrifício, tanto
melhor. Não pedia outra coisa o seu temperamento, afeito
tanto ao mando quanto a roer os ossos do oficio."

De fato, Cacilda aceitou o posto, como um sacrifício.


E ali ficou por alguns meses, fazendo um trabalho para o
qual não tinha nenhuma vocação (como em geral acontece
com os artistas) e, principalmente, dividida entre a
responsabilidade de sua posição, de aparar os choques
porventura surgidos entre artistas e governo, e as suas
próprias convicções. Conseguiu-o em parte, porque sua
natureza apaixonada não lhe permitia, muitas vezes,
assumir uma atitude falsamente equilibrada. Saía, se
estivesse motivada para isso, em passeatas que protestavam
energicamente contra o governo, esse mesmo governo que
ela, de certa forma, representava; e fazia protestos públicos,
como o já citado, quando se sentia motivada a fazê-lo.
No dia 30 de setembro de 1968, organizado pelo
Centro Democrático Espanhol e pelo Centro Cultural
Garcia Lorca, apresentou-se, no Teatro Municipal de São
Paulo, um espetáculo comemorativo do trigésimo segundo
aniversário da morte do poeta andaluz. O espetáculo era a
mistura, possível naquele momento e algo arbitrária, de
cantos, poemas, trechos de peças a serem lidos por atores
brasileiros; era, enfim, a homenagem que se podia fazer,
em meio à repressão, à confusão e às restrições vigentes.
Essas homenagens compreendiam também, e quiçá
principalmente, a inauguração de um monumento ao poeta,
o primeiro que em sua memória se erguia no mundo. Nem
mesmo na Espanha, então ainda franquista, se havia feito
qualquer homenagem a Lorca.

120
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

O diretor Alberto D'Aversa se havia proposto dirigir


o espetáculo, mas sua saúde debilitada - ele morreria no
ano seguinte - já quase o impedia de assumir essa
responsabilidade.
Muitos artistas notáveis, e jovens generosos,
apresentaram-se para, sem nenhuma remuneração, reunir-
se no palco, espaço de sonho de Federico, lembrando o poeta
rebelde. Destes, sem esquecer os demais, destaco dois, que
disseram, para grande orgulho meu, traduções minhas de
Lorca e um texto original onde eu tentara fazer, de maneira
apressada e precária, as ligações necessárias. Esses foram
Sérgio Cardoso e Cacilda Becker, Cacilda em meio a todos
os seus problemas, agruras, angústias.

Depois de choques externos e internos - sempre


desentendida pelos radicais e pelos mal intencionados -
Cacilda acabou por pedir demissão de seu cargo. Tinha,
nesse meio tempo, se transformado na grande mãe dos
companheiros de luta pelo Teatro, acolhendo em sua casa
jovens perdidos e fugidos, saindo à noite para defender
colegas marcados, arriscando sua reputação e sua liberdade
- quiçá sua integridade física - na defesa da sua amada
classe teatral.
Viajou para os Estados Unidos, nesse ano, e ali
travou conhecimento com a mais recente vanguarda. Voltou ^
modificada pelas experiências, pela viagem e pelo
sofrimento. No episódio da devolução do prémio Saci ao
jornal O Estado de S. Paulo, episódio que primou pela
incoerência, ela foi coerente e, certamente com dor íntima,
devolveu, também, os seus prémios.
Recebi de suas mãos a incumbência de presidir a
Comissão Estadual de Teatro, em março de 1969. Nunca
uma sucessão me dera tanta pena e tanto orgulho.

121
Renata Pa11ottini

Xxw

"Senhor faz de nós qualquer coisa


alguma coisa que seja tua para sempre
que te pertença
qualquer coisa menos isto

^ que agora calados somos


gente com medo."

hegava o tempo em que os dois amigos - Cacilda


Becker e Walmor Chagas - iriam representar a peça em que
dois amigos - Wladimir e Estragón - esperam um ser ignoto
e misterioso: Godot.
São preciosas, para o esclarecimento deste passo
da vida do casal, as palavras do depoimento do diretor Flávio
Rangel - também ele já falecido - sobre as circunstancias
que cercaram a escolha da peça de Samuel Beckett. Ele conta
- sempre no livro já várias vezes mencionado, de Vargas &
Fernandes - como foi procurado, em fins do ano de 1968
pelo casal, quando ambos estavam de volta dos Estados
Unidos e ele, Flávio, se estava recuperando de uma violência
sofrida por parte da polícia. Como procuraram passar em
revista os últimos anos, desde a implantação da ditadura,
e sua influência naquilo que era a vida dos três: o Teatro.
Como analisaram as várias reações, por parte dos vários
segmentos de produtores da classe teatral.
E falaram, principalmente, do momento de
interrogação que estavam vivendo; de como todos os
caminhos pareciam cortados, de como parecia que a

122
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

impotência se instalava entre nós; e se perguntavam qual


seria o melhor roteiro para a saída desse labirinto. Quem
seria capaz de dizer algo que fosse, ao mesmo tempo, belo
e forte, sugestivo e claro, mas misterioso e impressionante?
Qual o autor que conseguiria transmitir ao público essa
angústia, essa impossibilidade, esse nada-poder, mas, ao
mesmo tempo, esse não querer desistir ?
Foi aí que Flávio lhes disse que estava terminando a
tradução do Esperando Godot, de Beckett. E disse mais,
que achava perfeitamente adequado que Cacilda fizesse o
personagem Estragon. Ela pediu-lhe uma copia do texto e,
três dias depois, chamava de volta a Flávio: estava disposta
a montar a peça, com Walmor a seu lado e com ele na direção
do espetáculo.
No dia 13 de dezembro de 1968 tinha sido
publicado o Ato Institucional. No dizer de Flávio Rangel
passaríamos a viver, agora, numa "ditadura total'. Flávio
foi novamente preso, e aproveitou a nova prisão para dar
os retoques finais na sua tradução. Brava gente, os
intelectuais, que usam as prisões como escritórios!
Os ensaios começaram em março de 1969, com
Carlos Kroeber no papel de Pozzo, Carlinhos Silveira como
Lucky e o Cuca, o filho de Cacilda, agora um belo
adolescente, como o Menino; Walmor faria Wladimir e
Cacilda Estragon.
É interessante notar como, logo, Flávio deu ao
Wladimir de Walmor as conotações de " inteligência, razão,
percepção". Estragon era, muito apropriadamente, "a
sensibilidade, a emoção, o instinto." Isso era Cacilda. E era
também a atriz que numa noite, em sua casa, às três horas
da madrugada, em período de ensaios, os dois foram
encontrar sentada à beira de sua cama, vestindo o smoking
esfarrapado que era o figurino de Estragon, às voltas com
as cenouras e os nabos que a peça pede para o personagem.
Às três da madrugada, sem poder dormir, vivendo, já,
integralmente, o personagem que lhe cabia.
E, é também Flávio Rangel que conta como, no dia
da estréia, ela estava aterrorizada, emocionada até às

123
Renata Pa11ottini

lágrimas, temendo não ser capaz de fazer o papel; e como,


à noite, na hora da estreia, ela se levantou e foi e fez
belamente aquele que seria seu último trabalho. E o fez,
como diz o próprio Flávio "até que os deuses do teatro
viessem, em pleno palco, reclamar-lhe a companhia."

124
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

XIOM

Ç-]
"Dois vagabundos esperam Godot
dentro de um campo."

Samuel Beckett, escritor irlandês, nasceu em


Dublin, em 1906. Pertenceu ao círculo de relações de James
Joyce, de quem foi uma espécie de secretário. Estabeleceu-
se definitivamente em Paris em 1937, e ali desenvolveu ^
toda a sua carreira literária, escrevendo a sua obra em
francês, numa primeira versão para, só depois, produzi-Ia
em inglês. Alegava razões de estilo para defender essa
postura.
Esperando Godot (En attendant Godot) foi assim
produzida, provavelmente no fim da década de 40, mas só
encenada pela primeira vez, em Paris, em 1953. A essa
montagem sucederam-se rapidamente outras em vários
centros europeus e, depois, a famosa montagem norte-
americana, aos prisioneiros de San Quentin, com direção
de Herbert Blau. Contrariamente a tudo o que se poderia
esperar, os presos de San Quentin acompanharam
atentamente o espetáculo e entenderam perfeitamente o
seu espírito. Claro está que cada um dos sentenciados leu
a peça a seu gosto. Para uns, Godot era a sociedade, para
outros "o lado de fora", ou a liberdade. Como disse um
professor da prisão, na época, eles sabiam melhor do que
ninguém o que significava esperar.
No Brasil, mercê do espírito de pioneirismo do

125
Renata Pa11ottini

diretor da Escola de Arte Dramática de São Paulo, Alfredo


Mesquita, Godot estreou em 1955, com tradução de Esther
Mesquita, direção do próprio Alfredo e participação de Luiz
Eugênio Barcellos, Emanuelle Corinaldi, Geraldo Mateos,
Eduardo Waddington e Alceu Nunes. A reação foi, como
quase sempre acontecia diante desse texto, mais que
absurdo, metafisico, de perplexidade, dúvida, espanto. Mas
havia, pairando acima de tudo isso, uma adesão à esplêndida
poesia da obra.
Esperando Godot não tem ação no sentido usual
do termo. Trata-se de uma peça em dois atos em que duas
pessoas, acidentalmente dois homens, vestidos de
mendigos, mas meio clowns (o tradicional palhaço de
cabaré), estão numa estrada deserta e árida, onde só se vê
uma árvore seca.
Quando a peça começa os dois companheiros estão
já em cena, um deles tentando arrancar do pé uma botina,
o outro andando para desentorpecer as pernas. Há surpresa
em Wladimir, ao constatar que Estragon está ali. E começa
o grande jogo.
Durante todo o tempo que antecede a entrada de
Lucky e Pozzo os dois falam, procuram entender-se,
desentendem-se, voltam a conciliar-se e, quando pensam
em separar-se ou em sair dali, concordam em que não
podem: estão esperando Godot.
A entrada de Pozzo, o senhor, e Lucky, o escravo,
quebra essa relação monocórdica; Pozzo é o cruel e
arbitrário dono de Lucky, o infeliz e impotente escravo.
Quando eles se vão, as coisas voltam mais ou menos ao
que eram antes; mas aí chega o Menino, que se supõe um
mensageiro de Godot. Ele diz que Godot não virá naquele
dia, mas sim no dia seguinte. E se vai. O final do primeiro
ato é exemplar:

"ESTRAGON - Então vamos?


WLADIMIR - Vamos.
(Não se movem)."

126
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

O segundo ato começa em situação semelhante, mas


a rubrica diz que é "no dia seguinte". A árvore, que estava
seca na primeira cena, está agora "coberta de folhas".
Chegou, portanto, a primavera. Passou-se apenas um dia,
de fato, ou semanas? Que tempo é esse, que se estende e é
difuso?
Lucky e Pozzo tornarão a voltar, mas agora Pozzo
está cego e, portanto, depende totalmente daquele que era
seu escravo. O menino também voltará a aparecer, mas
apenas para dizer que nem naquele dia Godot virá. Promete,
no entanto, a sua vinda para o dia seguinte. E a peça termina
exatamente como terminou o 1 .Q. Ato, só que ao contrário,
como que num avesso do primeiro final. Agora, é Wladimir
quem propõe que partam e Estragon quem concorda. No
entanto, novamente, eles ficam imóveis; o resultado real é
o mesmo, isto é, nenhum.

Quem são Godot, Estragon, Wladimir, Pozzo, Lucky


e o Menino? Diz-se que, perguntado sobre quem seria Godot,
Beckett respondeu que, se soubesse, tê-lo-ia dito no texto.
Naturalmente, há um grande abismo de intenção e sentido
entre o que um escritor escreve e aquilo que ele diz sobre
a sua obra. Por outro lado, é muito complicado perguntar a
um poeta o que quer ele dizer com a sua poesia, e Beckett
é, também, um poeta. Mas existem pistas.
O crítico e ensaísta Sábato Magaldi, em publicação
de abril de 1969, por ocasião da montagem, no seu artigo
Esperando Godot (S.L./0 Estado de S. Paulo) diz
textualmente:

"... o cenário é uma estrada deserta, em que há apenas


uma árvore. Ali, longe do burburinho da cidade, que distraí
com as suas mil e uma luzes enganosas, os protagonistas -
Wadimir e Estragon - podem esperar Godot sem perigo de
erro. Assim como os religiosos buscam o contato com Deus
na solidão dos claustros, os dois acham que Godot (é
inevitável a lembrança do componente divino - God - nessa

127
Renata Pa11ottini

palavra, cujo sufixo tem a simpatia do diminutivo Charlot,


por exemplo) se revelará a eles, com certeza, longe das
transigências mundanas."

Portanto, não seria descabido supor que Godot é


um Deus tomado com carinho, mas acrescentado de um
componente que nos remete a Charlot, ao Carlitos de Charlie
Chaplin. E que bela síntese! Também Chaplin nos aparece,
em Charlot, como um clown e, até, com roupas semelhantes
às indicadas para os dois vagabundos - vagabundo que
Carlitos também é. Sem dúvida!
É curioso notar que cada um dos nomes dos
principais personagens tem uma origem diversa: Estragon
vem do francês, Wladimir do russo, Pozzo do italiano (mas,
grafado de outra forma, também do espanhol), Lucky do
inglês. O menino é um menino, sem nome, mas é também
um anjo, o enviado de Godot. Mas não um Anjo salvador,
um Anjo que solucione; apenas alguém que, com boas
palavras e nenhuma solução empurra a espera para o outro
dia: alguém que adia a vida, a solução - e a Morte.
Wladimir e Estragon são dois companheiros, talvez
amigos, que procuram uma solução para as suas vidas, tal
como seus suportes/atores... Que procurarão? Deus, o
Amor? Seria cruel demais dizer que esperam a Morte, mas,
enfim, é ela quem vem colher a um deles, em plena espera,
como bem notou Flávio Rangel, ele próprio colhido, depois.
A crítica foi quase unãnime ao saudar a criação de
Cacilda no travesti de Estragon; mas a verdade é que Cacilda
já estava colocada numa espécie de patamar superior da
arte de representar, onde apenas se poderiam detectar
certos pequenos momentos menos felizes num grande mar
de talento, competência e puro exercício de Arte. Assim
falava Alberto D'Aversa, crítico do jornal O Diário de São
Paulo.

"Cacilda consegue (..) criar um novo ser, hibrido e único,


tornando mais patética a irrisão do personagem. A figura
frágil, desajeitada, chapliniana, com a máscara clownesca
a iluminar-se de uma vida interior e uma sabedoria..."

128
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

Ademais, o espetáculo esteve em cartaz por menos


de um mês; estreado no dia 8 de abril de 1969, interrompeu-
se na vesperal do dia 6 de maio, no intervalo do primeiro
para o segundo ato, quando a atriz sofreu um derrame do
qual não se recuperaria.

129
Renata Pa11ottini

7{XXVII

"Toda a tumba floresce.


Da pedra rosa um nome surge.
E basta.
Na tarde inscrito, assoma
e calmo permanece.
Fímbria que nos ficou de sua graça."

_^ ^ morte de Cacilda Becker moveu e reuniu, como


nenhuma outra antes e depois, nas hostes do teatro, todos
os seus companheiros. Esses companheiros, algumas vezes
anteriores adversários, outras antagonistas políticos,
estavam ali, durante os 38 dias que durou sua doença, até
o dia final de sua morte, na manhã de 14 de junho de 1969.
Muitos escritores e artistas de outras artes se
manifestaram; como Carlos Drummond de Andrade:

^
Era principalmente a voz de martelo sensível
martelando e doendo e descascando
a casca podre da vida
para mostrar o miolo de sombra
a verdade de cada um nos mitos cênicos."

Como Flávio Império:

Mas seu eterno personagem,


o seu mais profundo eu,

130
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

habitava seu mundo por inteiro.


Fosse na mesa do café
fosse na rua
fosse no palácio de Creon

ou no quintal do menino.

Não acordava nunca do seu sonho."

Como eu mesma:

É bom o entardecer cheio de pássaros


com suas vozes puras.
É bom lembrar aquela voz que havia
tocante
áspera
crua. "

Como Jõ Soares:

"Morreu como viveu: no palco. Só um detalhe curioso.


Estava vestida de palhaço. Antes de sair carregada para o
hospital, tirou o nariz vermelho e entregou para o ator
Libero Rípoli dizendo: `guarda isso pra mim '. Como se fosse
voltar logo. E para mim ela volta. Toda vez que eu piso
num palco e sinto as tábuas rangendo num choro de
saudade."

Em uma velha entrevista, ela dissera: espero


terminar liberta de preconceitos e medos. De preconceitos
ela fora se despindo ao longo da vida; não cabem
preconceitos entre os que vivem ombro a ombro com essa
gente tão sensível e sofrida, tão em-carne-viva como a gente
de teatro. Que perdera seus medos, era patente, desde o
terrível medo à pobreza e ao desamor, até o medo da morte.
Não teria medo da morte quem disse, simplesmente: "estou ^
tendo um derrame". E quem tinha, simplesmente, fé que
lhe bastasse, feliz dela.
Mas o mais importante foi a sua verdadeira
sobrevivência; a atriz que dissera, no seu último espetáculo,
frente para o público, máscara irrepetivel: eu não sou feliz!,
sobrevive em teatros, escolas, festivais, filmes de cinema,

131
Renata Pa11ottini

vídeos, fitas de som, livros, teses académicas, pesquisas


colegiais e, da maneira que só a tradição poderá conservar
- mas a tradição oral também conserva -, na lembrança de
quem teve a felicidade de vê-Ia.

132
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

XL{XVIII

r'
"Quem já não está
jaz numa tábula de prata-f

-I--ím 1974, pedi a Maria Thereza Vargas uma


entrevista sobre o Godot de Cacilda, sua origem, sua
preparação e seu final. Não sei se o resultado que transcrevo
é ipsis litteris, mas deve ser bastante fiel, porque me lembro
de ter tomado muito cuidado, respeitosa que eu sou do
carinho de Maria Thereza:

"Os ensaios começaram um pouco antes do carnaval de


1969; a estreia seria no dia 8 de abril. Por que teriam eles
escolhido o Godot? Tinham voltado de uma viagem à
Europa e Estados Unidos, onde viram muito teatro e muito
teatro bom. Estavam num impasse, profissional e de vida.
Separando -se, quase vivendo juntos ainda, dilacerados.
Divididos, queriam continuar a trabalhar juntos, porque
se conheciam, cada um conhecia o "tempo " do outro;
sabiam-se, em termos humanos e artísticos. Queriam ser
dois. Mas não queriam, necessariamente, ser um homem e
uma mulher. Queriam ser dois seres humanos, juntos
apesar de separados. E isso não serão Wladimir e Estragon?
Por que Cacilda não poderia ser um homem, por que
Walmor não poderia ser uma mulher?Em termos humanos,
isso teria sido uma solução, em termos artísticos também.
Era preciso sofrer até aprender e reencontrar o caminho
pacífico de uma superação. Cacilda estava, sem nenhuma
dúvida, à procura disso. Em GODOT, um era o outro,
proposição à qual Cacilda aderia plenamente. Os ensaios

133
Renata Pa11ottini

eram terríveis e desagradáveis, muitas vezes agressivos. A


palavra, o texto- chave para Cacilda era, exatamente o EU
NÃO SOU FELIZ! que dizia no meio do palco, de frente
para o publico, mostrando -se, abrindo -se definitivamente
e pela última vez. Tratava -se de uma proposta final de
vida, de um `passar a limpo ' muito doloroso, momento de
dificuldade e caos mútuos e comuns. Cacilda tinha um
medo enorme de fazer a coisa, e se tolhia com esse medo.
Muitas vezes perguntava: 'não parece teatro infantil? Não
parece João Minhoca? - e, quando desafiada a fazer `um
milímetro menos ' do que estava fazendo, retrucou: `ah,
um milímetro? Então é um milímetro só? `- e com isso tinha
encontrado a medida certa. O que ela queria, na verdade,
era morrer em cena. E o que ela queria, conseguiu."
(Entrevista à autora - 26.6.1974)

Uma das provas da permanência da Cacilda Becker,


mais para lá de sua morte física, está no interesse vital que
desperta nos jovens que não chegaram a vê-Ia viva.
Num trabalho de pesquisa, ainda em nível de
graduação, diz por exemplo Sérgio Bruck de Moraes, que
estuda o mito-Cacilda e a peça de Beckett, falando a respeito
das diferenças entre o star, a estrela do cinema e o mito no
Teatro:

"Diferentemente, o teatro enfatiza a transfiguração do ator.


ele precisa disfarçar sua particularidade para assumir a
personagem. Sua interpretação está determinada por
certas necessidades práticas e convenções teatrais. Cacilda,
por exemplo, tinha invulgar capacidade de transfiguração,
comprovada pela diversidade de personagens que
interpretou: menino e velha, rainha e mendigo, cândida e
devassa. (...) Mas o disfarce é, ao mesmo tempo, revelação,
pois é, num certo sentido, imagem simbólica da realidade
íntima do ator."

Sobre a peça de Beckett diz o mesmo autor no


mesmo trabalho (original manuscrito, relatório para
confirmação de Bolsa de Estudos):

134
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

"Esperando Godot, nesse sentido, é um marco na


vanguarda teatral contemporânea. Arístóteles escreveu na
sua Poética que 'o mito (entendido no segundo sentido,
como `fábula) é o princípio e como que a alma da tragédia'
(..) A célebre peça de Beckett rompe com a estrutura
dramatúrgica clássica ao substituir os tradicionais enredo
(mito) e progressão dramática pela exploração, por meio
de imagens concretas, de uma situação estática básica:
dois vagabundos, Vladimir e Estragon, esperam, numa
beira de estrada, a vinda de uma tal senhor Godot, com
quem teriam marcado um encontro. Através do ato da
espera, o homem se confronta com a ação do tempo, e
conseqüentemente com sua própria existência. Mas, ao
repetir a mesma estrutura nos dois atos, Beckett dá ao
tempo a noção de repetição e a espera existência, então,
perde o sentido."

Falando sobre o modo de interpretação de Cacilda,


diz o autor:

"Cacilda, que se formara e aprimorara no estilo tebeceano


(adotando-o, inclusive, na sua companhia até A Noite do
Iguana, de 64) respondeu ao novo teatro, dentro das suas
afinidades e tendências, com dois desafios : Marta, de
Quem tem medo de Virgínia Woolf? e Estragon, de
Esperando Godot. Tal como no `Teatro Sagrado ' o ator é
o invisível corporificado, essas personagens exigiam da
atriz, ao mesmo tempo que sua figura concreta, a
`personificação de suas almas' (..) Diríamos, na verdade,
que são espetáculos de transição de um estilo tradicional
para uma nova forma emergente."

E ainda:

"Ela não foi star. Também não se enquadra na categoria


de monstro sagrado, ator que centralizava as companhias
de teatro no final do século XIX e que surgia em cena como
um ser completamente excepcional. (...) Difere ainda do
ator de televisão, pois a imagem televisiva banaliza o
fenômeno - como acontece com os galãs das nossas
telenovelas, que são modelos de conduta na mesma medida
em que alvos de fofoca. A fama do ator de teatro se forma
essencialmente do valor humano -artístico de seu trabalho
interpretativo - não engloba elementos para -estéticos. Se
Marylin Monroe é sujeito de culto , Cacílda é objeto de

135
Renata Pa11ottini

admiração e respeito, numa relação prevista numa estética


da recepção."

Objeto de admiração e respeito. Talvez, mais que


nada, seja esta a dimensão final de nosso estudo sobre
Cacilda Becker. Embora não fosse proposital, o tom de
entusiasmo, de evocação e, finalmente, de saudade, foi
inevitável. Quisemos recuperar imagem, testemunhos e
documentos. Quisemos resgatar confissões que nos deram
o retrato humano de um personagem criado pelo
Dramaturgo/Deus.
Como sempre, o que mais desejei foi contribuir para
o conhecimento de um ser excepcional, que soube escolher
um caminho, reconhecê-lo, perseverar nele e combinar
talento, caráter e espírito de luta. Não é fácil ser um
intérprete de Teatro e, ao mesmo tempo, ser uma
personalidade genuína e fiel a si mesma.
Dar a conhecer um pouco mais de Cacilda a um
público novo. Foi o que desejei. Espero tê-lo conseguido.

RENATA PALLOTTINI
JULHO DE 1997

136
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

A LGUMAS FANTASIAS SOBRE A MORTE

(À memória de
Cacilda Becker
Alberto D`Aversa
Te" Perez)

Dois vagabundos esperam Godot dentro de um campo.


No fundo a árvore nua marca uma forma negra.
O largo branco do cenário engloba a perplexidade,
ao longe a morte é uma presença que se esgueira.

Dois seres desconjuntados esperam juntos ombro a ombro


por vezes um a outro esperam e procuram.
Olham o céu e esperam, dormem um pouco e esperam
até que se separam como se fossem reencontrar-se.

Mas tudo falha e eis que um vagabundo


espera a morte no campo branco do seu leito.
Ao redor a vastíssima cidade sufocada,
acuada, agachada ante a morte vacila.

No leito o vagabundo espera a morte estático.


No campo da cidade espreitamos a morte,
espreitamos o Deus, o fim, o significado,
a árvore negra, a forma, o marco, esperamos o dia
na longa noite em que esperamos a morte.

Dentre os dois vagabundos, luta um, desesperado,


por encontrar Godot em nosso nome.
Nós lhe damos poderes, procuramos com ele,

137
Renata Pa11ottini

tememos e ansiamos que ele encontre o que busca.

Mas eis que de repente há a morte coletiva.


Mil seres desconjuntados caminham ombro a ombro.
Olham o céu e esperam, dormem um pouco e esperam,
na longa noite a vida em que esperam a morte.

Olham a terra e esperam, cavam a terra e indagam.


^
E olham o céu
onde talvez se haja plantado uma mensagem.

Toda a tumba floresce.


Na pedra rosa uma palavra.
E basta.
É imperioso deter-se.
Mesmo quem não provou de sua graça

pára e interroga as coisas do destino;


e espera sem resposta.
E mira as flores mansas derramadas
pela suave encosta.

É bom o entardecer cheio de pássaros


com suas vozes puras.
É bom lembrar aquela voz que havia
tocante
áspera
crua.

Toda a tumba floresce.


Da pedra rosa um nome surge
e basta.
Na tarde inscrito, assoma
e calmo permanece.

Fímbria que nos ficou de sua graça.

138
CACILDA BECKER: O TEATRO E SUAS CHAMAS

MENSAGEM

(no dia de sua morte, para ser lida em


todos os teatros do Brasil)

" Morreu Cacilda Becker. A primeira figura do nosso


teatro, a grande mulher que enriqueceu a nossa cena com
tantos momentos inesquecíveis já não existe. Nosso coração
enlutado, a nossa voz turbada são obrigados a vos
transmitir a notícia, para nós, mais do que nenhuma,
dolorosa e trágica.
Cacilda Becker não foi apenas uma atriz. Era muito
mais do que isso, a nossa líder, a nossa condutora nos
momentos difíceis, a linha-mestra dos nossos movimentos
coletivos e dos nossos dramas particulares. Mulher
autenticamente de teatro, ela deu toda a sua vida ao teatro,
e do teatro saiu para a morte.
Não a lamentamos porque ela morreu,
certamente, como teria desejado: em plena luta, em plena
cena, em pleno teatro. Lamentamos a nós mesmos,
lamentamos o público que a perdeu e não mais terá aquelas
horas memoráveis em que Cacilda, só e imensa no palco,
dentro de sua fragilidade física, dava-nos com a voz, o
temperamento e o génio, uma interpretação que nunca mais
será repetida.
Aqui estamos para chorar junto com o nosso
público, com o seu público. Aqui estamos para dizer que
continuamos, como Cacilda Becker também teria desejado.
Estamos em cena, e é em cena aberta que a choramos,

139
Renata Pa11ottini

lutando, trabalhando, interpretando, fazendo o seu teatro,


que foi a sua vida.
Prosseguimos no espetáculo, que é a melhor maneira
de homenagear aquela que foi a maior atriz brasileira, a
melhor amiga de seus amigos, a mais combativa das líderes,
a mais sensível das mulheres - Cacilda Becker."
(N o DIA 14 DE ~0 DE 1969 - H osprrAL S ão Luiz,
São PAULO - RENATA PALLOTTW) .

140

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