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14014
eISSN: 1983-9278
R esumo: Este artigo tem como objetivo refletir sobre os estudos contemporâneos no
campo da infância, tendo como recorte central a pesquisa com bebês. Conceitualmente,
assumimos por bebês o desenho estabelecido nas legislações e na área acadêmica que
envolve a primeira infância, ou seja, do nascimento até 36 meses. O trabalho situou-se na
interface das vivências dos bebês e suas enunciações, possibilitadas pelas atividades cênicas D
que assumimos e denominamos como teatro com bebês, que consistiu na oferta de um o
ambiente pensado para recebê-los, criando uma situação social em que se potencializaram s
suas atividades criadoras. Metodologicamente, a pesquisa com os bebês foi feita no espaço s
i
da educação infantil da Escola Nossa, em Niterói, Rio de Janeiro. Como principais ê
conclusões mencionamos a potência que o teatro com bebês promove quando em interação
com os adereços cênicos; suas enunciações enquanto, ao mesmo tempo, atores e plateia a T
partir da oferta cênica vinculada diretamente ao ato de brincar apresentam acontecimentos e
m
irrepetíveis e portadores de vivências que possibilitam seus protagonismos. á
Palavras-chave: Estudos da Infância; Pesquisa com Bebês; Teatro com Bebês; Teoria t
Histórico-Cultural. i
c
o
A bstract: This paper refers to the contemporary studies of childhood, having as central
field the research with infants. Conceptually, we assume for babies the design established in
legislation and in the academic area on early childhood, from birth up to 36 months. The
paper was situated in the interface of the experiences of the babies and their enunciations
made possible by the scenic activities that we assumed and denominated as theater with
babies. The theater with babies consisted of offering an environment thought to receive
them, creating a social situation in which their creative activities were potentialized. The
methodological approach used was the research with babies, in the kindergarten space in
a school in the city of Niterói and the research conclusions are linked to the potency that
the theater with babies promotes in the interaction with and among the scenic props. The
utterances of babies from the scenic offer directly linked to the act of playing promote
unrepeatable events and therefore bearers of experiences that enable their protagonism.
K eywords: Childhood Studies; Research with Babies; Theater with Babies; Historical-
Cultural Theory.
Introdução
Somos provocados por essa fala e, a partir dela, propomos, com este
trabalho, uma resistência a essa estagnação, tendo os bebês como agentes
provocadores desse movimento, dessa reinvenção de um teatro que lhes
é negado historicamente. Ao observamos a teatralidade dos bebês, pode-
mos fazer aproximações com os ditirambos, “‘dança de saltos’ ou dança
de abandono, acompanhados por movimentos dramáticos e dotados de
hinos.” (GASSNER, 1991, p. 13) O princípio da teatralidade ressalta que a
palavra não pode dizer tudo e qualquer lugar pode ser um palco. O teatro
com bebês se identifica com essa ideia. Falamos com os bebês como um
ato de escolha. Portanto, bebês e nomes são fios que tecem nossas palavras
e, como num enredo mitológico, toda vida entrelaçada com outras é tam-
bém uma mitologia, conduzindo-nos para os tortuosos labirintos que uma
pesquisa, arquitetonicamente, edifica em torno de todos nós.
Algumas inquietações nos motivaram a fazer esta pesquisa, uma
vez que se torna fecundo perguntar se os bebês fazem teatro. Se tivermos a
presunção de entendermos teatro, no sentido clássico (PAVIS, 2005), não,
os bebês não fazem teatro. Se levarmos também em consideração a arte
em seu aspecto racional e de intencionalidade estética, não, os bebês não
fazem arte. Assumimos, então, uma posição política segundo a qual os
bebês são seres da linguagem, que se forjam a partir dela e produzem cul-
D
tura. Os bebês carregam uma aparente precariedade que é sua vantagem o
filogenética, humanizar-se pelo outro e humanizar o outro. s
s
i
ê
A sobrevivência do bebê humano depende totalmente da so-
lidariedade dos seus semelhantes.[…] Pode-se afirmar, então, T
e
que a aparente condição de inferioridade e de prematuridade do m
á
bebê humano, em vez de constituir uma perda e um obstáculo t
ao seu desenvolvimento, representa, pelo contrário, um enorme i
c
ganho e um grande meio de desenvolvimento, uma vez que o
possibilita que possa ser educado, ou seja que pode ser benefi-
ciar-se da experiência cultural da espécie humana para devir um
ser humano. (PINO, 2007, p. 43 e 46)
bebês é uma possibilidade. Mas, até que idade podemos considerar uma
criança bebê? Consideramos bebês as crianças do nascimento até 36 meses
completos. Essa idade é adotada pelos pesquisadores do campo de estudos
e montagens de teatro para bebês. (PEREIRA, 2014)
Estudar os bebês, seus territórios, suas vivências, suas constantes
tentativas de romper com as tipologias impostas em seu tempo e espaço,
sobretudo na instituição escolar, é necessário e urgente. Nascemos incon-
clusos e absolutamente necessitados da presença dos cuidados do outro
para que nos tornemos humanos. A oferta de meio e situação social de
desenvolvimento em que os bebês estão inseridos produzem vivências que
geram desenvolvimento cultural (VIGOTSKI, 2006). Consideramos si-
tuação social do desenvolvimento um dos conceitos-chave para vincular à
atividade teatro com bebês.
Toda pesquisa se situa num espaço e num tempo. Esta não é diferen-
D
te. Foi realizada no espaço escolar da Educação Infantil da Escola Nossa o
(EN), lugar onde realizamos diversos encontros com os bebês. s
s
O contato com as crianças do Infantil 1 e 2 da EN – universo desta i
ê
pesquisa – começou no início do ano letivo de 2017, local onde, na ocasião,
ocupávamos a posição de coordenador pedagógico. Três vezes por semana T
e
visitamos regularmente o espaço onde estão localizadas as áreas destinadas m
á
à turma. Em todos os momentos em que fomos ao espaço da Educação t
Infantil, mesmo que não estivéssemos em contato direto com as crianças, i
c
dialogávamos com elas. O afeto, o zelo e a colaboração são alguns dos o
ingredientes dessa relação.
Assim, passados dois meses de acolhimento e integração na Educação
Infantil, período recheado de insegurança, choro e desconfiança por parte
de algumas crianças, fomos chegando devagar, sendo acolhidos também por
eles. Eles estavam, nesse momento, inaugurando o encontro com a cultura
escolar. Essa estratégia possibilitou o planejamento do processo criativo e re-
lacional em cada uma das seis produções de teatro com bebês que realizamos.
— A malha.
— Assim!
— Haamm!
E
c
c Deixamos perto de Helena, falando:
o
S
– — Olha só!
R
e Como Pedro insistia em saber o que havia dentro da mala, dissemos:
v
i
s — Está duro de abrir aqui, né? Tá é ruim de tirar. Haaammmm.
t
a
— Iiiiiiiii iiiiiiiiiiiiiiiii.
— RHRHRHHHHHH!!!
— OAAAAAAAA.
— Oaaaaa iiiiiiiiiiiii.
D
Retirou a caixinha de música, falando: o
s
s
— Iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii, a não! A não ummbigho — vai falando, i
ê
falando.
T
e
Ficamos imaginando o que acontecera. No encontro anterior, a cai- m
á
xinha de música tinha os cavalinhos do carrossel. Ele percebeu que faltava t
algo, uma vez que só havia a caixa, e gostava muito de ficar com o carros- i
c
sel, ou seja, sua memória de uma semana encontrava-se ativa. Beatriz, que o
até então estava do lado da Prof.ª Luana, também se interessou pela movi-
mentação de Pedro e sorriu. Miguel Jorge riu com ternura, percebendo a
fala de Pedro sobre o carrossel.
Enquanto isso, a música do carrossel que Pedro segurava em sua
mão continuava ocupando todo o espaço sonoro da sala. Num lapso de
segundo, Miguel Jorge tocou com o dedo indicador na caixinha de música
rindo. Francisco voltou para a varanda com a Prof.ª Ana Elisa. Beatriz e
C
i — Não é?
e
n
t Nesse momento, Pedro, enxergando a bola azul que Helena tinha
í
f deixado cair no início, disse bem alto:
i
c
a
— Aquiii boooooo!
Pedro sorriu e jogou de novo a bola para o alto. Nesse momento, pe-
dimos para a professora Luana mudar o local da filmagem para ter outras
possibilidades de olhar para aquele momento e também para observar o
que aconteceria com Beatriz.
A Prof.ª Ana Elisa optou por não fechar a porta da sala e ficou
acompanhando Francisco na porta. Continuamos a narrativa:
— A gooool.
— A gool saiu — dissemos.
— AHHHHH!
— Hauhanauhna.
— Herhananummm.
— HEHEHEHEH.
Uma pequena disputa pela bola entre Pedro e Miguel Jorge come-
çou e falamos: D
o
s
— Outra bola! — Esticando-nos, conseguimos pegar a terceira s
i
bola embaixo do cenário e falamos: ê
— Outra bola. T
e
m
Pegamos a caixinha de música, demos corda e o som ecoou pelo á
t
espaço da sala. Pedro ficou com uma bola, Miguel Jorge com duas, i
c
Francisco com o cavaquinho e Beatriz e Helena sentadas com os objetos o
que estavam ao seu redor, o candeeiro, uma boneca e as caixas. Miguel
Jorge se apoderou de três bolas. Com o silêncio da utilização dos objetos,
sons que pareciam desejar ser palavras saíam das bocas das crianças.
Pedro jogou sua bola para o alto. Aproximamos os objetos das meni-
nas. Com esse movimento, Miguel Jorge se dirigiu até elas e começou a
acompanhá-las até que Helena jogou uma das bolas para longe, levando-
a a ir atrás dessa bola.
— Mamamamh hamham.
E
c
c Enquanto isso, pegávamos mais um objeto na mala, um livro.
o
S
— E ahiiiiiiiii?
— Aqui é onde a gente guarda nossos desejos e nossas vontades –
respondemos.
— Oiiiiiiiii! D
o
— Oiiiiiiiii — respondemos s
s
i
Francisco, gostando, continuou falando: ê
T
— Oiiiiiiii. e
m
á
t
Miguel Jorge, rindo, saiu do grupo. Enquanto isso, Pedro aderiu i
c
facilmente à cena atrás do tecido transparente. Rindo muito, Beatriz final- o
mente se levantou e foi para onde estava Helena rindo. Enquanto Helena
entrava, Francisco saía e ia se sentindo à vontade.
Pronto, agora eram os quatro, Helena, Beatriz, Francisco, que vol-
tara, e Pedro atrás do tecido. Todos rindo muito e conversando entre si.
— Esse, esse.
Ele insistia que alguém pegasse para ele, não tomando a iniciativa
de fazê-lo. Miguel Jorge pegou o pneu, Francisco, a alfaia e Pedro gritou:
— Nãooo!
— Mãeeeeeeee.
E
c O teatro para crianças ou teatro das crianças – numa palavra
c – para o adulto existe um monte de questões pedagógicas, ar-
o
S tísticas, um monte de dificuldades e dúvidas insolúveis naquilo
– que é denominado teatro infantil.
Porém, para a criança, está tudo decidido e tudo claro: o teatro
R
e para ela é uma brincadeira elevada (ou seja, duas vezes mais in-
v
i teressante), e não uma nova narrativa do conto que ela compre-
s ende sem a representação. E como é bom que as crianças não
t
a se interessam por questões pedagógicas. […] Há tantos círculos
C de dramatização nas escolas, quantos espetáculos. Não precisa
i procurar as crianças prodígio, mas inventar e organizar uma vez
e
n num certo tempo uma grande brincadeira para as crianças. É
t
í preciso semear não apenas “o racional, a bondade, o eterno”, mas
f cuidem de alguma forma também do divertido, do ócio, do inte-
i
c ressante. Ponham sal do pedacinho de pão para a criança, senão
a
fica insosso e seco – sal de riso e lágrimas, sal do teatro.
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n Recebido em 30 jun. 2019 / Aprovado em 4 set. 2019
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í Para referenciar este texto:
f LOPES, J. J. M.; PEREIRA, L. M. Teatro com bebês: narrando vivências na
i
c Educação Infantil. EccoS – Revista Científica, São Paulo, n. 50, e14014, jul./set. 2019.
a Disponível em: https://doi.org/10.5585/EccoS.n50.14014.