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PALACIO DE CRISTAL
Para Uma Teoria Filosófica da Globalização

peler slolerdijk
reter 2)lüLeru1JK

Palácio de Cristal
Para Uma Teoria Filosófica da Globalização

Tradução de
Manuel Resende

Relóg io D ' Ág ua Ed itores


Rua Sylvio Rebe lo , n.º 15
1000-282 Li sboa
tel. 2 1 8474450
fax: 2 1 8470775
www.re log iodagua.pt
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© Suhrkamp Verlag , Frankfurt a m Main , 2005

Título: Palác io de Cristal - Para Um a Teoria Filosófica da Globali zação


Título orig in al: /m Weltinnenraum des Kapitals - Für eine philosophische Th eorie
der G/obalisierung (2006)
Autor: Pe te r S loterdijk
Tradução: Ma nue l Resende
Rev isão de tex to: Raquel Dang
Capa: Carlos César

© Re lóg io D ' Água Edito res , Fevereiro de 2008

Se não encontrar nas livrarias o li vro que procura da R. A., pode recorrer ao síti o
www.relogiodagua.pt

Compos ição e paginação: Re lóg io D' Água Edi tores


Impressão : Rainha & Neves, Lda. / Sta. Maria da Fe ira
~
Depós ito Legal n .º 27 1826/08
Antropos
ln memoriam
Siegfried Un.seld
Índice

Primeira Parte
Sobre o Nascimento do Sistema-Mundo

1 Das Grandes Narrativas 13


2 O Astro Errante 25
3 Regresso à TetTa 30
4 Tempo do Globo, Tempo da imagem do Mundo 35
5 Adeus ao Oriente , Entrada No Espaço Homogéneo 41
6 Júlio Verne e Hegel 44
7 O Mundo da Água
Sobre a Mudança do Elemento Dominante na Época Moderna 48
8 Fortuna Ou a Metafísica da Sorte 56
9 A Acção de Risco 59
10 Loucura e Tempo
Do Capitalismo e da Telepatia 61
11 A Invenção da Subjectividade
65
- A D~sin ibição Primária e os Seus Conselheiros
12 Energias Não Reflexivas: a Ontologia do Salto em Frente
13 Ekstaseis Náuticas
14 Corpora te identity No Alto Mar, Divisão dos Espíritos
75
86
90
15 O Movimento de Fundo: o Dinheiro Volta Ao Ponto de Partida 93

- 16 Entre Justificações e Seguros


Sobre o Pensamento Terrestre e Marítimo 96
104
17 Expedição e Verdade
r, 18 Os Signos dos Descobridores
Da Cartografia e do Encantamento Imperial dos Nomes 108
19 O Puro Exterior 120
20 Teoria cio Pirata: o Terror Branco 123
21 A Época Moderna e a Síndrome da Terra Virgem
Americanologia I 127
r22 Os Cinco Baldaquinos da Globalização
Aspectos da Exportação Europeia do Espaço 131
23 Poéti ca do Porão 133
24 Capelães de Bordo
A Rede Religiosa 135
25 O Livro dos Vice-Reis 139
26 A Bibl ioteca da Globa li zação 142
27 Os Tradutores 145

Segunda Parte
Primeira Parte
O Grande Interi or

~ 28 Mundo Sincrónico
-+;·29 Segundo Ecúmeno
151 Sobre O Nascimento do Sistema-Mundo
155
- , 30 A Transformação Imunológica
umo às «Soc iedades» das Paredes F inas 162
7 3 1 Crer e Saber: ln hoc signo (se. Globi) vinces 169
32 Pós-históri a 179
33 O Palácio de Cri stal 184
34 O Mundo Denso e a Des inibição Sec undária: do Terrorismo
Considerado Como Um Romanti smo da Agressão Pura 192
35 Crepúsc ulo dos Actores e Ética da Responsabilidade
As Eríni as Cibernéticas 202
36 O Espaço Interi or do Mundo Capitali sta
Rainer Mari a Rilke Qu ase Encontra Adam Smith 208
37 Mutações no Espaço dos Mimos 226
38 A Reavali ação de Todos os Valores: o Princípio da Superabundância 238
39 A Excepção: Anatomi a de Uma Sedução
Americanolog ia II 248
- y 40 O Inco mpressível O u a Redescoberta do Extenso 265
41 Elogio da Ass imetria 274
42 A Esquerda Ce leste e a Terrestre 279
« ... e voga o Globo pirata no céu tempestuoso.»
1 Das Grandes Narrativas
Henri Michaux La Vii·e d l - . .
' ans es P1ts - lteux mexprimables, 1949
O ensaio que se segue é consagrado a uma empresa que não sabemos se
d ·vemos considerar intempestiva ou impossível. Na medida em que recapitu-
lu a globalização terrestre da história, propõe-se dar os traços gerais de uma
1 ·oria do presente pelos meios de uma grande narrativa inspirada na filosofia.
uem achar esta pretensão estranha poderá considerar que, embora, é certo,
s ·ja provocatório reivindicá-la, também seria derrotismo intelectual ignorá-
la . Desde sempre, o pensamento filosófico pretende dizer o que somos e o
que temos a fazer; e, desde há uns bons duzentos anos, incluem-se nisso as in-
formações sobre a forma como havemos de nos situar na «história». Até ago-
ra , a intrusão do tempo no pensamento filosófico da antiga Europa impôs ape-
na uma revisão parcial dos patrimónios tradicionais . Mas agora que parece
ultrapassada a era do endeusamento unilateral do tempo , o espaço vivido re-
·lama também os seus direitos . No fim de contas, já Kant, no seu tempo, es-
lava ciente de que a própria razão tinha como modelo a orientação no espa-
ço 1• Quem seguir esta indicação suficientemente longe deverá logicamente
chegar a uma concepção alterada da tarefa da actividade filosófica: a filoso-
ria é o seu lugar apreendido em pensamentos. Nos momentos em que sabe o
que faz, ostenta os traços de uma análise da situação, em que muitas discipli-
nas têm a sua palavra a dizer. Para esclarecer uma situação, são necessárias
grandes narrati~as. •
Tal tentativa surge como intempestiva, em face do consenso intelectual he-
gemónico desde há uma geração, segundo o qual esse tipo de narrativas, as
chamadas grandes narrativas, estaria definitivamente ultrapassado. Esta opi-
nião não brota de maneira nenhuma do nada. Apoia-se na plausível convicção
ele que as narrativas deste tipo conhecidas, embora quisessem construir o cur-
so da «história» em traços gerais, continham inevitavelmente traços provin-
cianos; de que , inçadas de preconcei_!<?S deterministas , introduziam de contra-
bando na marcha dos acontecimentos projecções de objectivos de escandalosa
linearidad_e; de que, dado o seur euroceni:rism~ incorrigíve), estavam manco-

1 lmmanuel Kant , Was heisst: sich im Denken orientieren ? (1786). /n: Werkausgabe in 12 Biin-
den , editado por Wilhelm Weischedel, Tomo 5 , Frankfurt, 1995 , pp. 269 sq.
~ ). ,( ,.,
' 1

munaclas com a exploração colonial do mundo; ele que, professando aberta ou ·om a natureza tranquilizadora do comedido? A miséria das grandes narrati-
ocultamente uma füs tóriã sãlvíficã, contr1bÜíram para a perpetração de exten- vus de feitura tradicional não reside de maneira nenhuma em serem demasia-
sos males profanos, e de que, por fim, se toma agora necessário pôr em prá- do grandes , mas, sim, em não serem suficientem~n~e grandes., O sig~if_icado
tica um pensamento com uma configuração totalmente diferente - um dis- d , «grande» está sujeito , certamente , a controve~sia. Para nos «s~f1c1ente-
) curso sobre. as . ~~is.?s hi? óricas clis_cr~to, polivalente, não ~ talizador, mas, 1ncnte grande» quer dizer perto do pólo do desmedido:« ... e que sena pensar,
J r··J·,. antes cio mais, Qente da c1rcunstanciahdade das suas per~ec_tiva .
Nesta concepção, t~~o e c.9~ec_t9, até à co~cfüsão final ,_qué quase sempre
s • não se medisse incessantemente ao caos?»
2

Os esboços aqui apresentados constituem uma ver~ente ~ateral do _«Pro-


aponta para a direcção falsa, de resignação,. E verdade que o historiador das .i ·elo-das-Esferas» , que representa uma tentativa abrangente de :º~figurar
ideias, quando olha com a sensibilidade contemporânea para os textos funda- ·onjÜntamente o narrativo e o filosófico de forma ~m parte neo':.ept1ca, em
~ r ,· mentais das narrativas filosóficas e pai·a as exegeses clássicas do mundo his- parte neomorfológica3 . Durante a elaboração do proJec~o - os tres vo_lumes
foram completados em 2004 - , expôs::_S_e o desen_yolv1mento d__Q..JI1ot1v~ da
1 • toricamente em movimento , tem forçosamente a impressão de se haver com
f'
'uma massa de exageros rapsódicos . Aquilo que até hoje se chamou filosofia ·sfera nas cosmologias filosóficas, bem como nas teologias da Europa af)ttga;
·· ':da história eram sem excepção sistemas ilusórios da precipitação . Conduziam una isaram-se com certo pormenor as suas implicaç§.es psicodinâJIUcas e
sempre a montagens apressadas dos materiais sobre linhas rectas traçadas à 0
seu poder formal antropológico. Com issÕevidenciou-se, nomeadamente, o
força, como se os pensadores estivessem atingidos por uma síndrome de hi- dcvado valor-de-uso psicossemântico ou religioso das especulações clássicas
~. ' peractividade, que os levava para falsas metas. Felizmente, estão ultrapassa- sobre a esfera. Nas esferas abrangentes descobriram os antigos um! geome-
dos os tempos em que podiam surgir como atraentes as doutrinas cujos adep- tria da segurança; nesta desabrochava, como indicado, o forte movens d~s
tos , por meio de meia dúzia de conceitos simplificados, prometiam dar acesso produções metafísicas ou totalistas das imagens do mundo . A extensa narrati-
à casa das máquinas da história mundial - ou até ao andar administrativo va das esferas divinas ou bolas-universo contida em Sphiiren li, Globen, pu-
1
da Torre de Babel. A vanitas de todos os precedentes constructos da filosofia nh a a nu as razões pelas quais essas sublimes imagens 'imaginárias 1º todo ~s-
da história salta hoje à vista dos leigos; hoje em dia, qualquer caloiro, qual- lavam condenadas a desapar,ecer com o advento da Idade Moderna , ao passo '
quer galerista tem uma compreensão suficiente desses artefactos para soltar que O habitat humano, o planeta Terr , passavl:l ~~~ vez mais e~_plicitamente
uma gargalhada ante expressões como espírito do mundo , objectivo da histó- para primeiro p1an_c>. Numamadrugada que durou séc~los , a Terra na~c:u coe
ria , progresso geral. mo único e real globo, que constituía a base da globaltdade das cond1çoes ?e
A satisfação suscitada por estas clarificações não dura muito tempo - pois vicia , enquanto quase tudo o resto que até aí passava por c~u em parce:1~,
o discurso corrente sobre o fim das grandes narrativas exorbita dos seus ob- cheio de sentido , se esvaziava. Este devir fatal da Terra suscitado pela prati-
0

jectivos , visto não se contentar com rechaçar as simplificações inaceitáveis. ca humana com a concomitante desrealização das anteriormente vitais esfe-
Não desembocou ele, por sua vez, numa meta-grande-narrativa? Este novo ras numino,sas , não nos propicia o mero pano de fundo dos aconteciment~s a
mito intelectual não estará inegavelmente associado a uma acrimoniosa inér- que hoje em dia chamamos globalização; el~ _é o i;>ró~ri~ dram~ da ~lobah~a-
cia que na grande escala vê apenas o importuno e na grandeza apenas a sus- ção. Tem O seu ce e na observação de que as cond1çoes da unumd~ae hu- 1
peita da mania? No decurso dos ú\tirvos decénios, aos cépticos pós- mana se transformam radicalmente a partir da terra descoberta, ret1e !ada,
-di_al§cticos e pós-estruturalistas não sucedeu uma paralisia parcial do singularizada :
pensamento, da qua! a especialização na história de pormenores retir,ados de · Se a precedente representação , contrariamente a muitas outras abordagens
arquivos obscuros, hostil às ideias, tão em voga nas ciências humanas, mais cio tema, sublinha o seu aspecto filosófico, fá-lo por referência a um facto a
não representa do que a forma mais suave? que até agora pouco se atendeu: o objecto histórico em questão, o globo ter-
As grandes narrativas que até hoje conhecemos - a cristã, a liberal-pro- restre é uma coisa cheia de bizarrias metafísicas que facilmente se escondem
gressiva, a hegeliana, a marxista , a fascista - podem muito bem revelar-se sob a 'capa do banal. Representa um bastardo ge,ofilosófico, a partir do qual
como tentativas inadequadas para nos apropriarmos da complexidade do não é tarefa nada simples construir um conceito. E certo que a esfera azul com
mundo, mas tal conhecimento crítico não deslegitima nem a narração das coi- as manchas amarelas das suas savanas parece à primeira vista uma coisa yn- .,
sas que se passaram n,em dispensa o pensamento de buscan um~~perspectiya
: . .. .., . • ~· 1 1,, ..kr Jpr ·rt' ·
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luminosa a@_ esclarecer as singularidades apreensíveis de um todo fugidio. .,. .
2 Gilles Deleuze/Féli x Guattari ,(Was ist Philosophie?, Frankfurt, 1996, p. 247 .
O pensamento , não significará ele , desde sempre, aceitar os reptas que odes- 3 Cf. Sphi:iren /, Blasen, Mikrosphi:irologie, Frankfurt, 1998; Sphi:iren II, Globen, Makrosphi:iro-
medido objectivamente nos põe diante dos olhos? E este desmedido que nos logie, Frankfurt, 1999; Sphâren Ili , Schiiume, Plurale Sphi:irol_ogie, Frankfurt , 2004 .
insta a um relacionamento conceptual , não é ele por si próprio incompatível 4 Cf. Jean-Pierre Lerner, Le Monde eles Spheres , 2 tomos, Pans, 1996 e 1997 .
• ... • ... . ..., . .... ..... ... 'J .
~ ~ ~

1r • 11s coisas , um pequeno corpo entre os corpos, que os homens de Estado e 111 , os membros da Faculdade da Sabedoria do Mundo tenham mai s nada adi-
11 s crianças da escola podem fazer girar com um movimento da mão; mas, ao 1, •r sobre o assunto do que o leitor de jornais de um país com imprensa meio
mes mo tempo, deve figurar a totalidade singular ou a mónada geológica que li vre . Quarido manifestam a sua opinião sobre o assunto segundo as re~ras_da
serve de_ fundamento a toda a vida, a todo o pensamento e a todas as desco- sua arte , os filósofos contemporâneos fazem-no sobretudo em pubhcaçoes
bertas. E esta questão do habitat terrestre que se desenvolve cada vez mais marginais, sem qualquer efeito notável sobre as torrentes de discurso públicas
imperativa~ente no decurso da modernização: enquanto na imagem do cos- com a possível excepção da obra de Negri e Hardt, Empire, que teve re-
mos dos antigos a Terra, paradoxalmente, era imaginada como o centro mar- p ·rcussão mundial. _ . __ .
ginal de um universo que só podíamos observar do interior, os modernos Para acentuar a ironia da situação, há quem seJa de opm1ao de que este ni-
apercebem-na co_mo uma bola excêntrica de cuja rotundidade nos poderemos v ·lamento do voto filosófico na confrontação generalizada das opiniões tes-
convencer a partir de uma visão externa, o que, para as gerações posteriores 1·munha uma situação louvável. Houve quem argumentasse convincente-
a Mercator, trouxe consequências imprevistas para a «imagem do mundo». mente que à filosofia, que ainda há pouco costumava sonha~ com o to~ar-se
O mo'!_q_geísrri,o i a convicção da singularidade do planeta, manifesta-se ante prática, nada de melhor poderia ter acontecido do que_a sua mcorpora~ao n~-
nós como uma realidade que se renova todos os dias, ao passo que, para todo ma comunicação quotidiana não hierarquizada. Podena avançar-se ~ Justo t1-
º,futuro, o monoteís~o mais não pode ser do que uma decrépita posição de 1Ulo o argumento de que um explícito não-querer-ser-nada-em-particular do
fe, qu~ nem com a aJuda das piedosas bombas do Médio Oriente consegue idioma filosófico é a prova de que estamos perante um pensar no cume
actu~hzar-se, deveras. As provas da existência de Deus trazem forçosamente do tempo - e os cumes de hoje em dia têm o mau hábito de abjurar toda a
consigo a macula do fracasso, ao passo que as provas da esfericidade da Ter- proeminência. Consequentemente, o domínio dos não-filósof_os ~m matéria
ra têm do seu lado uma torrente inesgotável de evidências. No que se seoue, de globalização seria um sinal de que a «sociedade» - ou seJa la qu~ _nome
ocupar-nos-emos com as circunstâncias que tomaram possível a acumul:ção queiramos dar às multitudes que viv~m em ~onju~to e prod~zem _pohttca -
de ta~tos documentos que provam a unidade do objecto maciço e sublime em se tornou imune aos perigosos entusiasmos mduz1dos pela f!losof1a, bem co-
que vivemos . mo à hegemonia dos discursos generalizados sobre a situação do Mundo . Por-
Com estas_indicações , entrámos no cerne da filosofia, salvo que acolhemos quê então lamentar a marginalização da filosofia? . A

o ~onto de vista de que a filosofia, contrariamente ao que se ouve com fre- Longe de mim negar os aspectos razoáveis deste ponto de vista. Num com-
~uen:ia nos tempos mais recentes, não é apenas uma actividade sem objecto, puto geral, a monopolização do discurso da globalização pel?s pol_itólogos e
1s~o e, u;11 '.nodus vivendi, mas que possui também uma objectividade por di- pelos sociólogos, aos quais devemos o prolongamento do Jornahsmo com
reito propno, par~ não falarmos já de um objecto próprio. A filosofia pode e modos carrancudos, seria bastante tragável , não fosse dar-se o caso de os con-
quer_ser prosseguida segundo as regras do ofício, como uma quase-ciência do ceitos de base destes debates serem quase sem excepção termos filosóficos
totahzar e das suas metáforas , como teoria narrativa da génese do geral e, fi- não reconhecidos, cuja utilização amadora induz sugestões e desvios de sen-
nalmente, como meditação do ser-em-situação - aliás, do estar-no-mundo· tido. Quem filosofa sem atender ao estado da arte dedica-se no fi1:1 de contas
chamo a isso «teoria da imersão» ou teoria geral do estar-com, fundando ~ ao negócio de um mito, oculto ou aberto, e não raramente com pengosas co~-
partir daí a afinidade entre a filosofia recente e a arte da instalação5. sequências. Um dos efeitos secundários mais notáveis da -~ct~al onda faraf1-
A Para falar franca~ente, os pontos de vista correntes sobre a globalização losófica é a proliferação de afirmações não provadas que Jª nao se detem n~s
tem uma característica muito própria, o cómico discreto . Trata-se de um filo- fronteiras dos Estados-nação. Circulam gratuitamente por todo o mundo co-
sofar selvagem que manifestamente se sente mais à vontade quando os artis- pias piratas da ignorância, que propiciam um exemplo flagran~e para a tese de
t~s d? _ofício não se encontram presentes . Daí que hoje em dia os topai mais que, hoje em dia, tudo o que é facultado à clientela ou é v~~dtdo em t~dos ?s
f1losoficos tanto da política como da teoria da cultura corram mundo pratica- mercados ou em nenhum. Curiosamente , em geral, os espmtos mais hbera1s ,
~ente se~ _qualquer notável participação desse ofício. A totalização mais efec- esses inimioos esclarecidos das grandes narrativas teológicas e filosóficas,
t1va, a unificação da Terra através do dinheiro em todos os seus avatares co- não rarame~te são os que , com os conceitos não derivados de globalidade e
mo mercad_oria, como_ texto, como conta, como número, como image~ e totalidade, espaço, tempo e situação, unidade, multiplicidade, interacção, in-
como notoriedade, realiza-se por si espontaneamente, sem que, à primeira vis- clusão e exclusão e outras palavras que, associadas em cadeia, produzem ar-
tigos ligeiros , se enfronham em virulentas hipóteses. __ _ ,
5 Contra os efeitos secundários não desejados de tal prec1p1taçao , sera con-
_Cf. Sphiiren III, Schiiume , Capítulo 2, «lndoors» , Secção A, «Worin wir Ieben , weben und
sind », PP- 501-534; bem como Capítulo 3, Secção 9 , «Das Empire - oder das Konforttreibhaus: veniente começar por uma recapitulação da origem filosófica do mo~ivo-
d1e nach oben offene Skala der Yerwéihnung», pp. 801 sq . -globo. Esta poderia principiar pela indicação frugal de que «globo» e um
. . . . ..... . <J . .... .. .... . '-' 'J "·

substa ntiv? _q ue representa uma ideia simples, a tese do cosmos, e um objec- ·iavam as imperiosas ciências da experiência , a morte de Deus , os cálculos do
to cartograf1co ~uplo, o céu dos antigos e a Terra dos modernos ; desse nome ·uos e o fim da Europa antiga.
resultam os denvados adjectivais dos factos «globais», que recentemente, Recordar esta circunstância significa evidenciar por que motivo a «globali-
passando pelo desvio do verbo anglo-saxão to globalize, foram de novo real- mção» é, no seu todo, um processo lógica e historicamente muito mais pode-
çados ~o estatuto de substantivo - o que se deu , antes do mais, com a figu- roso do que o que se apercebe no jornalismo actual e junto dos seus informa-
ra híbn~a da «globalizaç~o». Seja como for, esta expressão tem a vantagem dores económicos, sociológicos e policiais . Os correspondentes discursos
de sublinhar .º t~aço, act1vo dos acontecimentos mundiais actuais: quando políticos, proferidos nos dias úteis ou aos domingos, pouco importa, abordam
ocorre globa!Jzaçao, e sempre através de operações com efeitos à distância. ·xclusivamente os episódios mais recentes , caracterizados por um intercâmbio
Seguidamente, haveria que fazer valer a constatação de que a representação fortemente acelerado de mercadorias, signos e micróbios - e pelos mercados
de uma bola que serve de continente ou esteio à vida biolóoica
t:,
e reflexiva , era , financeiros e os seus fantasmas, de que mais tarde se falará. Quem quiser re-
para os Gregos , constitutiva de uma interpretação filosófica do Universo. ·ordar a seriedade ontológica do acontecer que discutimos como globalização
A cosmologia da Antiguidade ocidental, nomeadamente a platónica e a dos le- - o encontro entre o ser e a forma num corpo soberano - deverá realçar no
trados helenistas mais tardios, aderiu à ideia de representar a totalidade dos próprio conceito as diferenças epocais que até aqui pouco têm sido tomadas
entes pela imagem estimulante de uma esfera omniabrangente. O nome desta ·m consideração. Por isso aqui se acompanha a expressão «globalização»
representação ainda hoje está presente na memória europeia, embora como ·om o adjectivo «terrestre», com o que se pretende assinalar que se trata de
se~pre nostalgicamente refractada, visto que desde os remotos tempos acadé- um capítulo de uma história mais longa , de cujas estimulantes dimensões os
m1c_os a grande e~~era se chama cosmos - um nome que traz à lembrança participantes no actual debate, habitualmente, não têm uma representação
0
caracter de cosmet1ca e de beleza do Universo. O mesmo objecto foi referido adeq uada.
ao mesm~ tempo pelo nome de céu, Urano . Este nome titânico exprime are- A globalização terrestre (realizada praticamente pelas descobertas maríti -
presentaçao de que o mundo tem as suas fronteiras finais numa última abóba- mas cristo-capitalistas e implantada politicamente pelo colonialismo dos Es-
da etérea - uma visão a que se poderia também chamar esperança. Queria tados-nação da velha Europa) constrói , como se mostrará , a paite central per-
pensar-se no céu como num grande vaso, que mantém seguras as estrelas fi- feitamente transparente de um processo em três fases, cujos começos já noutro
xas, sossegando o medo humano de que possam cair. Para Aristóteles, 0 céu local foram exaustivamente tratados 8 . Esta peça central da sequência , que du-
representava o envelope redondo que tudo contém e por nada é contido6. Me- ro u quinhentos anos, entrou nos livros de história como «a época da expansão
dir :sse c_éu pelo pensamento correspondeu à realização da primeira globali- europeia». À maior parte dos hi storiadores é fácil encarar o período entre
zaçao, dai nascendo a boa notícia da filosofia : a de que o ser humano , por mais 1492 e 1945 como um complexo de acontecimentos encerrado - trata-se da
que a desordem vivida o deprima, não pode cair fora do mundo .
poca em que o actual sistema mundial ganhou os seus contornos . Como se
~ons~que_ntemente, os verdadeiros começos da globali zação residem na observou , esse período foi precedido pela globalização cosmico-urânica, esse
ra~10n_ahzaçao da est:utura do mundo pelos antigos cosmólogos, que, pela poderoso primeiro estádio do pensamento das esferas, a que poderia chamar-
pnmeira vez, com senedade conceptual, melhor dizendo , com seriedade mor- -se a globalização morfológica , ou melhor, ontomorfológica, em honra da pre-
fológ_ica, construíram a totalidade do ente sob forma esférica, tendo oferecido di lecção qa teoria clássica do ser pelas figuras esféricas. A ele se segue a glo-
essa imagem ordenada à consideração do intelecto. A ontologia clássica era balização electrónica, com a qual têm a ver os contemporâneos e os seus
uma esferologia, quer enquanto teoria-saber do mundo, quer enquanto teoria- herdeiros. Assim sendo, os três grandes estádios da globalização distinguem-
-saber de Deus - proporcionava uma teoria do globo absoluto em ambas as -se em primeiro lugar pelos meios simbólicos e técnicos que mobilizam: há
7
formas . Conquistava a reputação de geometria sublime , que colocava no uma diferença epocal entre medir uma esfera idealizada com linhas e inter-
ponto cen_tral o bem formado, o circular, o que regressa-a-si-próprio: ganha- secções e percorrer uma esfera real com barcos ou pôr a circular aviões e
va simpatias ~<:_mo lógic~, ética e estética das coisas redondas. Para os pensa- sinais-rádio na envolvente atmosférica de um planeta. Há uma diferença on-
do~es da trad1çao europeia era assente que o bom e o redondo giram sobre si. tológica entre pensar num cosmos que alberga a totalidade do mundo das es-
Dai _que a forma redonda fosse eficaz como sistema imunitário cósmico. As sê ncias ou numa Terra que funciona como suporte das diversas culturas do
teonas do não-redondo surgiram como conquistas muito posteriores - anun- mundo.
O auge da metafísica das esferas - de que Dante e Nicolau de Cusa são
6 Física ,2 12b .
7 testemunhas eminentes - é simultaneamente o ponto de viragem para a sua
Cf. os_ estudo~ c lássicos de Dietrich Mahnke , Unendlich Sphàre und Allmilfelpunkt, Halle,
1937; re1mpressao Estugarda/Bad Cannstadt, 1966.
8 Cf. Sphàren li , Globen, Frankfurt, 1999.
dcsintegra~ã_o: A fase da decadência das interpretações esfero-cosmológicas viagens marítimas (e isto não se altera em nada pelo facto de o desencantado
dos ente · 1rnc1a-se com a ruptura a que, na sequência de Jacob Burckhardts, ·omércio marítimo ser hoje em dia muito mais abundante do que nesses tem-
chamamos Renascimento . O grande historiador e morfólogo propôs para es- pos de outrora: 95 por cento das mercadorias mundiais são hoje transportadas
sa entrada nos novos tempos a fórmula de «descoberta do mundo e dos hu- por mar) . Uma pessoa quase pode regressar a casa no mesmo dia de uma vol-
manos» - que, como veremos , é idêntica à fase de lançamento do realismo ta ao mundo em avião e, em regra , sabe dos grandes acontecimentos políticos,
terrestre . Começa quando lançamos o olhar para o oceano com as grandes via- los grandes crimes e das inundações que ocorrem do outro lado do globo ~ra-
gens dos Portugueses, e quando fitamos o céu com as revoluções de Copér- ti camente passados poucos minutos ou horas . Está ainda saturada no sentido
nico e com a rejeição por Kepler do dogma das órbitas circulares dos plane- sistémico, desde que os portadores da incursão no espaço aberto são forçados
tas. Essa rejeição faria forçosamente cair em ruínas as confortáveis abóbadas a entender que todas as iniciativas estão sujeitas ao princípio da interacção e
celestes etéreas, uma vez que retirava os seus fundamentos ao idealismo das que, na sua maioria, após um certo tempo de elaboração, as ofensivas regres-
esferas . Numa sequência necessária de capítulos lógicos e empíricos, consu- sam às fontes por um acoplamento retroactivo. Estas retroacções consumam-
mou-se a partir desse dia a totalmente nova orientação para o planeta Terra - -se agora dentro de períodos que pouco mais duram do que a vida de um ho-
talvez a certa altura se venha a compreender que do descobrimento e mapea- mem e inclusive são muitas vezes mais curtos do que o mandato dos actores,
mento das luas terrestres neurológicas, o cérebro humano, são ainda de espe- ele fo~ma que os fautores cada vez mais são confrontados em pessoa com as
rar mudanças idênticas. Nas suas consequências, é corroborada a fé mono- consequências dos seus actos - há que apreciar como novidades mor~is a ní-
geís~.ª qos ~empos modernos. Introduz a época da captação da Terra , em c uja vel mundial os processos contra chefes de Estado criminosos como Pmochet,
faseâe sac1amento entrámos há meio século. Milosevic, Saddam Hussei n e outros infelizes unilateralistas . Na medida em
A expressão saciamento possui , no contexto dado, um sentido no âmbito da que a justiça imanente ganha no terreno , poderão perder significado para nós
teoria da acção: após a satisfação da agressiva fome de mundo, que se mani- as ideias forçadas de uma vingança no Além - que, antigamente, era um in-
festou pelas viagens e ocupações praticadas pelos agentes europeus, iniciou- grediente inescapável da moral da alta cultura. A tese idealista segundo a qual
-se, a partir de 1945 , o mais tardar, uma era que se distingue claramente das a hi stória mundial contém um tribunal mundial adquire , com a lei da crescente
anteriores pelo seu modo de produção de mundo . Tem como densidade, um novo sentido: no mundo densificado , todos os actores que se
característica específica a crescente prioridade das inibições em relação às ini- arriscam a avançar ficam expostos ao julgamento dos seus observadores e ad-
ciativas . Ao fim de vários séculos, uma vez consumada a globalização terres- versários ; a expectativa de resistências e contramedidas confere ao conceito
tre como unilateralidade em acção, olhamos, desde há décadas, para os feitos de realidade a sua cor actual. Na intensa interacção dos acontecimentos vi-
e mentalidades dessa era com uma contrição de rigor - eles levam a desig- gente , as iniciativas singulares estão sujeitas à lei dos impe_dimentos recíp~~-
n~ção premonitória de eurocentrismo, como que para anunciar que nos disso- cos crescentes - até a soma de todas as empresas concom1tantes se estabili-
ciamos das obras desse centro outrora tão arrogante. Designaremos essa épo- zar numa geleia vibrante: é o que significa a expressão «civilização
ca como era do unilateralismo em acção - como apropriação assimétrica do pós-histórica», correctamente entendida. Tornou-se corrente dizer que as ex-
mundo , que teve o seu ponto de partida nos portos, nas cortes e nas ambições pressões «cooperação» e «inibição recíproca» significam o mesmo .
da Europa. Resta mostrar que e como o complexo desses feitos impetuosos, Com o estabelecimento do sistema monetário internacional de Bretton
heróicos e lamentáveis ingressou nos livros como «história mundial» - e por Woods, em 1944, a globalização terrestre pode considerar-se completa9 ; mas,
que motivo a «história mundial » nesse sentido preciso está ultrapassada. Se a seja como for, ficou terminada o mais tardar nos anos 60 e 70 com a instala-
palavra «história» designa a sucessão de fases do unilateralismo - e mais à ção de uma atmosfera electrónica e uma envolvência de s~télites na ?rbita t':-
frente vamos defender esta definição - , então os cidadãos da Terra vivem ho- restre . No mesmo movimento se insere a como sempre titubeante mstalaçao
je em dia num regime pós-hi stórico . E, mais à frente, vamos analisar como es- de tribunais internacionais, esses abrigos da justiça, nos quais os fautores de
te resultado pode conciliar-se com a reivindicação dos EUA de, na qualidade crimes praticados no mundo são por eles responsabilizados.
de nação indispensável, serem os herdeiros do conceito de mundo do unilate-
ralismo.
A globalização está saturada no sentido moral do termo , desde que as víti- 9 Cf. Martin Albrow, Abschied vom. Nationalstaat . Staat und Gesellschaft in Globalen Zeitalter,
Frankfurt , 1998. Com o conceito meio descritivo, meio programático The Global Age que cunhou ,
mas dos fautores divulgaram a todo o mundo as consequências desses feitos
/\ lbrow dá expressão ao pensamento de que depois do meio milénio entre a viagem de Colombo
- tal assinala o cerne da situação pós-unilateral , pós-imperial , pós-colonial. e a Segunda Guerra Mundial , que estava colocado sob o signo da síntese do mundo pelos Euro-
Também está saturada no sentido técnico , desde que os transportes rápidos e peus, se ati ngi u uma nova qualidade ou patamar de globalização, a que há que reagir com um con-
os media ultra-rápidos superaram o lento intercâmbio mundial da época das ceito epocal, ou um correspondente nome , para a Idade Contemporânea; vide também pp. 153.
l '11 111 ·10 oe l"I SUII

A este nível surgem as manifestações da actual terceira globalização. De-


las se falará na segunda parte do presente ensaio, que trata da implantação e 1111 1 ·riormente estava reservada aos vizinhos imediatos . Quando se nega~ dig-
da configuração do «espaço-interno-do-mundo» do capital. Para descrever o nidu lc elas distâncias , a terra retrai-se subitamente até um quase nada ~u?ta-
ela su~ real e_xtens)v1, ~~
mundo globalizado, a que também podemos chamar um «Mundo sincrónico»,
reportamo-nos à imagem do Palácio de Cristal contida no romance de Fiódor
111 .,,1c com as suas ekstaseis* loca, ~ ~! pon~ que _

11 . nncla mai s resra- do qüeum ogot1p9 gªE? ·. , . '"'. -~· y, ,;. r-vt:t ,, 1
/.
1 I
Dostoiévski Cadernos do Subterrâneo - uma metáfora que remete para o /\ pós estas observações prévias, e a propos1to do titulo do h~ro , havera am- ~{~l x··
grande edifício londrino da Exposição Mundial de I 851. Nele queria o gran- dll que responder a uma pergunta, a saber: a que ponto era senamen_t~ enten: l 1,.\ 1 lr ·
de escritor russo ver a essência da civilização ocidental, como um último con- di lo O subtítulo do trecho final de Sphii.ren Ifl-O que, sob forma mod1_f1cada, e
centrado ante o olhar. Ele reconheceu na monstruosa construção uma estrutu- 111 ·orporado na investigação presente. Bem,~ autor pe?e _que acreditem q~e

ra devoradora de homens, e inclusive um moderno Baal - um contentor de pnrn ele o ui ti mismo e o ultimatismo do folhetim apocahpt1~0 _lhe P~~cem t~o
culto, em que os seres humanos veneram os demónios do Ocidente: o poder 1id f<.: ulos como ao mais farto dos leitores. Ao falar-se de «_ult1m~ esfer . » nao

do dinheiro, do puro movimento e dos prazeres excitantes-anestesiantes. As ~ . pretendia apresentar um western tomado estranho pela f1Iosof1~. A:nte o pa-
características do culto de Baal , para o qual alguns economistas contemporâ- 11 0 de fundo das grandes narrativas do encontro entre o ser e ~ cir~ulo, deve-
neos propõem o nome de «sociedade de consumo» , são evidenciadas ainda de r . porém , tomar-se compreensível por que motivo a glob,al_~z~çao te~restre
modo mais convincente a partir da metáfora do palácio de Dostoiévski, mes- cHio re xesenta uma história entre muitas: é, c2 mo eu gostana d~ str~ ~
mo que queiramos distanciar-nos das sugestões religiosas do autor - tal co- 1í 11 ica fatia de t~!!!QO da___yi.9_a-fl_Qs- po~ qu,e entre si se e~c~~ram (por ?u~r~s
mo das obscuras e brilhantes indicações de Walter Benjamin sobre o «capita- pnlavras~ a-;<Humanidade») q1:1e merece se~ chamada «h1ston_a » ou «h1stona
lismo como religião». O «Palácio de Cristal» alberga o «espaço- mundial» num sentido filosoficamente perttnel}te ~ . Sv --~
-interno-do-mundo» do capital, em que se dá o encontro virtual entre Rainer A historia mundial foi a elaboração da Terra como portadora das cultur~ e 1) fr. ,:,
Maria Rilke e Adam Smith - a seu tempo daremos a palavra a ambos os au- das ekstaseis. O seu canal político fQJ_ a triunfante unilateralidade da! naçõe.5 J.
tores. Se retomámos a expressão «Palácio de Cristal », foi sobretudo para ex- ·uro,Jeias expansionistas; -o seu estilo Iõgiê o é a indiferente percepçao de to- : ~/" ,.... , \
primir a impressão de que a fórmula corrente «mercado mundial» é pouco das as t
coisas sob o esquisso do espaço homogén~o, do tempo h omogeneo , e do I'- · ., ,
adequada para caracterizar a modelação da vida sob o fascínio de relações va lor homogéneo; o seu modo C?perativo é a ~~nsificação; o seu produto J~o-
monetárias que tudo penetram. Q. ~spaço-jntemo-do-mundo do capitaLnão é nómico é O estabelecimento do sistema mundial; o seu fundamento energet1co_
r um~ ,
1
g~ nem um.a feiraª? ar li ~re, mas (µma estufa que arrastou tudo o . uê
<.391es era d terior para o seu -j9teriõr. Com a representação do palácio do con-
são os combustíveis fósseis ~ainda abundantemente disponíveis; os seus ges-
los estéticos primígenos são a expressão histérica dos sentimentg~ ~ Q, culto d_a
o t\ L · • f sumo a nível planetário, o clima estimulante de um mundo interior de merca- l:xplosão; o seu resultado psico~soc!al é a c?~?.ulsão de ser ~~nf~dente da mi-
1,
,; s.1 dorias acede à_ linguagem . Nesta Babilónia h?rizont~I, s~r-se hum~no passa a
J.. 1- ser uma questao de poder de compra e o sentido da liberdade manifesta-se na
séria longínqua; a sua chance vital e a poss1b1hpade d~ conc1har mt~rcultural-
mente as fontes da sorte e as estratégias da_gestão do nsco; o seu acu1:1en mo-
(
' '.fA'· capacidade de esco her entre produtos d_estinados ao mercado - ou produzir ral é a,supe.~·ação _do ethos da conquista pelo ethos_do deixar-se domesticar g_elo
autonomamente esses produtos. conqui,stado· ~ tendência civilizatória traduz-se por um co!!}l?~ex~ 4_e_de-
, ,1 . No que diz respeito ao sentimento de espaço em geral, é ilustrativo da ter- soEera_ções , seguros e garantia~_de_conforto; o seu r~E.!9:o~n~rop?I_qg1~0 e a_çr1a-
• ceira vaga de globalização que esta desespacialize o globo real e em lugar da ção em massa de «últi~ homens»; a sua consequencia füosof1ca e ~ ~rtu-
·esfera terrestre instale um ponto praticamep te inextenso, ou µm a.i:ede' de in- nidad~ e v ê r ' ~char umaJ.Ó Terra e~ meros cérebros. ~
tersecções e linhas que m·ais não significam do que ligações entre calculado-
,. ) res electró_nis os ~!Q __númer<2_ arbitrário, arbitraria~ente afastados uns dos ou-
1' tros~ Se ã segunda vaga, a velocidades reduzidas e medianas , ergueu a imensa * A palavra alemã Ekstase tradu z-se normalmente por êxtase. Simplesmente, aq ui , parece-n~s
·extensão do planeta à contemplação dos humanos, a terce~ aga, a veloci- utilizada no sentido heideggeri ano, tal como vem indicado no tratado «O_ Ser e o Tempo ·
dades superiores, fez desaparecer de novo a sensação da distância. Por con- «A temporalidade é O " fora-de-si" original em si-mesmo e por si-mesmo. E por isso que_ no-
seguinte, hoje, à hipercomunicativa constituição do -sistema-mundo corres- meamos os fenómeno s assi m caracterizados do porvir, do ter-sido e do presente ª: ekstaseis da
lemporalidade.» [Martin Heidegge r, Sein und Zeit , 1927 , p. 329 .) _M H r:corre aq ui a ongem gr_:·
ponde uma incomodidade difusa - uma sensação justificada, ao que nos
ga da palavra ekstasis - «deslocação», «saída parn fora», scgncfccaçao presente n~ exp~essa_o
parece, pois aquilo que hoje se festeja como os benefícios das telecomunica- portuguesa «estar fora de si», que também pode significar «estar arrebatado»_ - pai a caracteri-
ções , é vivido por muitos como uma conquista suspeita graças à qual hoje , zar a temporalidade do Dasein , isto é, o ser humano enqua;1to ente q_ue quesllona o ser. (N. T.)
mesmo à distância, podemos dar cabo da felicidade uns aos outros, coisa que 10 Sphüren lf, Globen , Capítulo 8, Die /etzte Kugel (A Ult111w ~~), Frankfurt , Suhrkamp
Verlag, 1999 , pp . 801-1004. -- Crr/ 1.(
1 l tltl 1\1 U

trajar tanto, os seus contemplantes como o Todo-Esfera, que, sob o duplo no- 111
undo imperam os movimentos lineares, finitos, cansativos, nos quais_ a An-
me de Cosmos e de Urano, depois de enterrado nos arquivos, brilha ao longe 1it• uidacle não vê nada que os pudesse tornar correctos. Em contrapartida, as
com as ideias que se tornaram inúteis. n,pc rturbáveis formas e as rotações do éter eterno sentem-se em casa no
Porém, quando se tratou de apreender a globalização do corpo-Terra pelo 11111 ncto supralunar. A excentricidade da situação humana deco_rre ~o facto de
conceito, ou melhor, pela imagem, foi a estética do feio que teve de afirmar a os mortais, embora condenados à gravidade, existirem como _c1dadaos de am-
sua adequação. Neste processo , o que é decisivo não é que os contemplantes bos os espaços . Por cada consciência individual corriam as h~has de fractura
se tivessem definitivamente apercebido da forma esférica da Terra e pudes- d . um antigo frémito de cisão, em consequência do qual as mtactas _esferas
sem então falar em público da sua rotundidade, sobretudo na presença de re- supralunares se separavam das zonas sublunares _corruptas. A separaçao rel~-
ligiosos , mas , sim, o facto de as particularidades da forma da Terra, os seus 1ivamente à completude deixara em todos os obJectos sublunares rasgos, c1-
cantos e recantos, terem passado ao primeiro plano . Só elas constituem infor- ·u1rizes, irregularidades. Os humanos sentem os rasg?s na alma como sa,uda-
mação para a ciência, pois só o não per-feito - que não pode ser construído d ·s cio melhor. Lembram-lhes um dia mais claro, mais redondo, 1:1"1ª1~ etereo.
geometricamente - permite ou exige uma investigação empírica. O puro be- Aquilo que , apesar da desclassificação cósmica da Terr~ , contnbu~u para a
lo pode ser descansadamente deixado aos idealistas , visto que o meio-belo e 11
1ractividade do regime metafísico era o facto de nele o ~1ma e~ baixo esta-
o feio são matéria para os empíricos. Enquanto a perfeição pode ser desenha- r ·m claramente separados . Ele propiciava a vantagem mcalculavel d~ ui:na
da sem recorrer à experiência, os factos e as imperfeições só se descobrem pe- ·lareza que só a hierarquia concede. Enquanto o inferior, pelas _suas propn~s
la mesma experiência. Por isso é que a globalização urânica ou cósmica e rorças, não consegue alçar-se naturalmente ao superior, o s~penor tem o pn-
morfológica era um caso filosófico e geométrico, ao passo que, em contra- vi lég io de penetrar no inferior conforme lhe aprou:ver. D~1 que, nos tempos
partida, a globalização terrestre foi um problema a ser resolvido pelos cartó- 11 nti gos , pensar consistisse sempre em pensar a parttr do ceu, como se, c?rn a
grafos e uma aventura a ser vivida pelos marinheiros , e, mais tarde, um as- 1
,jucla da lógica nos fosse possível liber~ar-nos da Ter_ra. Nos t~rnpos antigos;
sunto a ser tratado pelos economistas políticos, pelos climatólogos , pelos 11111
pensador era alguém que transcendia e via as c01sas ,de _cima - como _e
ecólogos, pelos especialistas em terrorismo e por outros peritos do irregular e ilu strado por Dante com a sua viagem ao Paraíso. Os propnos ve:~os de E1-
do retorcido. ·he ndorff do poema Mondnacht: «Era como se o céu / A Terra be1Jasse tran-
É fácil explicar porque não poderia ser de outro modo: na era metafísica , quilo» _ se deixam ler corno o adeus a um esquema qu~, durante toda urna
o corpo-Terra não podia nem devia aceder a uma posição de destaque, como •ra , formara o habitus do estar-no-mundo dos Eu~·opeus; tmha a segura~ç_a ~~
o permitia a sua situação no cosmos. É que a Terra , no plano das esferas que a estranheza do mundo se podia ~?rend~r. ~ certo que o poeta vlVla Jª
aristotélico-católicas tinha o estatuto mais humilde , mais afastado do firma- num tempo em que O céu já só tinha betJOS a fmgtr para a Terra e e,m que a al-
mento que tudo abrangia. Assim, por mais paradoxal que pareça, o lugar que ma voava através ele terras tranquilas, como se, no carro da m~tafora, fosse
ocupava no centro de tudo implicava o seu rebaixamento para o extremo in- possível encontrar o caminho de casa num sítio estrange_iro che1? _de bel~~ª- ,-
ferior da hierarquia cósmica 13 . É certo que o seu invólucro, através de uma Na verdade, na época de Eichendorff, o mundo supenor, :r~g1ltzado, Jª ha
série de camadas de éter, lhe garantia a segurança de um denso todo , mas , ao muito não fazia uso do seu direito de pernada com a Terra. Ja tmham passado
mesmo tempo , a separava das regiões mais elevadas , onde residia a comple- séculos desde que a nova física descobrira o es aço vazi~ e fizera ~esaparecer
tude . Daí o discurso metafísico sobre «as coisas terrenas» e a sua visão arro- 0
envelope fabuloso do firmamento . Nem a todos foi fácil renunciar ao con:i-
gante sobre a imperfeição disto aqui em baixo, à margem do céu, longe da luz. plemento lá de cima. O !.µto por uma Terra em céu - uma Terra de que se d1_z
Há que reconhecer aos metafísicos que sabiam do que estavam a falar: o que que seria «do ponto de vista da história do ser o astro-errante»_- faz-se ~enttr
se pode pensar de um sítio em que é noite durante metade do tempo e em até ao tempo de lj~idegger.~Urna pessoa recorda-se que este dito , que ho~e em
que tudo o que vive tem a morte e a decomposição à espera? Em contraparti- dia nos soa curioso e sombrio, não se refere a um planeta qualquer, mas aque-
da, os antigos sentiam-se tão impressionados pela contradição entre a forma le em que eclodiu a questão da verdade e do sentido do ser. A errância em ~ue \
e a mortalidade que tiveram de reservar um mundo superior sem morte , apar- os habitantes da Terra se movem com a sua estrela é o último rasto da perdida
tado do mundo inferior afectado pela morte . Assim , foram sendo cada vez chance de serem envolvidos por um céu.
mais impregnados por uma representação dualista do todo: o que acontece no Mas mesmo quando a Terra ainda descansava nas camadas do éter, muito
mundo sublunar é sempre marcado por fracassos e pela desagregação ; nesse antes de ser descoberta pelas circurn-navegações e de perder o seu cobertor
cósmico, já se apresentava, numa visão tanatológica, corno a e_str~la o~d,e
13 Cf. Ré mi Brag ue , «Geozentri smus a is Demütigung des Meschen», in lnternationale Zeits- cienternente se morria . A sua vaga rotundidade não era uma barreira 1rnu111ta-
chrift fiir Philosophie, 1994 , 1, pp. 2-25. ria que rechaçasse a morte. Ela constituía a cena em que se dava a queda no
. ,,. . irre ular torna-se por novas formas atraente para a obser-
tempo, pela qual tudo o que nascia devia uma morte às suas origens. Por is- v,n_,,. ,0·1 ~::~~r:as es~éticas do interessante e do feio não se associam apenas
so, sobre a Terra, tudo o que se empreendia tinha um fim, sem excepção; ne- v11ç<1 . ,. · tem a ver com a con-
1 ·tivamente com a investigação empmca, que , por s1, . ' t ·e,,)' possi-
la corriam as horas, irreversíveis, nela ardiam as mechas rumo ao ponto de ig- •rc a ão ocasional, ou, literalmente , o concreto.:. e com o !lss,1me n . /
nição (o que tem importância para a «consciência histórica», desde que se '1 ·1·g tamç também-a frmção da desilusão e libe~~am fo~ç_a~ para o c..9ntra-adt~que. d} r,t,.•/t,,,,
perceba que a figura de pensamento do bang se adapta melhor ao fim do que i , , ' • - •. - . - ·- ,.. '"-·· 'b' - - e nos seus bons ias se ., •
'l'nbalham pois em assoc1açao com(<l esm_i 15ª9' qu . . 1
ao princípio). Quem compreende o seu lugar na Terra, dá-se conta de que nin- ·h·· ,mC nráxis o conceito ê desinibiçãô; sém o qual _não pode ex1~tlf nelnhu- ,1H~ ¼>.[
guém sai vivo deste lugar. Nesta bola turva há que pôr em prática o que a fi- ' - - - e a os motivos que nos impe em a I
Ilia teoria pertinente dos modernos, _ congr g . , 65-74)
losofia recente chama a «antecipação da própria morte» [Vorlaufen in den ei-
genenen Toei] - pelo que será melhor chamar aos humanos , já não «seres
mortais», como faziam os antigos, mas , sim, «seres provisórios» [Vorliiufi-
1
P · ~ ~ : :n~pir:::~~:i~o~;ºs~;tc~:~:~ª::~r\~~a~: :t1
:::~:~t~~~~s do lo~us / ª
. ~ . a Terra liberta-se das peias que até aqui contmham a ira os
gen]. Se um historiador de um fim imaginado da evolução humana tivesse de 11ossa ex1stencia ~ ~ . ' . . . d' gnação adquire entre os mo-
lllortais com a ex1stenc1a no feio. Por isso, a m 1 . de se re'volter· Pro-
dizer o que os colectivos humanos como um todo fizeram dos seus tempos, .
d ·rnos uma licença como atºt d de base - on__..
I u e
a raison
,,.._...,...__,_:-·· ,
·, 4 s Agora -
teria de responder que organizaram cortejos para a morte: enquanto procis- T - da e Filoctetes o seu secretano . ,
sões suplicantes, enquanto caçadas dionisíacas, enquanto projectos de pro- ,11cteu passou a ~er º~ ita a ~;e ~etafísico era,uma renúncia aconselhável
gresso, enquanto lutas de exclusão cínico-naturalistas, enquanto exercícios de um:c::~ ci:~::a~~q~eó~~::go corrigir o perturbante p~lo pens~me~to, r~pi-
reconciliação ecológica. A superfície exterior de um todo onde os humanos
passam os seus dias prevendo medidas vãs contra o inevitável não pode pois ~;:mente 'perdé o seu ponto de apoi o nna:!oº~~~;ª~ºr;1p~::~ s~;e~~~:~~~~o
::~
... de também a permanecer n0 , .
ser regular. A lisura perfeita só é possível nas idealizações, o grosseiro e o real , spon é baixo e adverso . Cuja representação vira o repre-
convergem. ~:~~:~: ; 0 :~:asri ;~ó~~~o . A nova estética aceita os rasgos, as turbulên~ias , as
Não foi de maneira nenhuma por acaso que na primeira exposição siste- 'rracturas, as irreguiaridades na imagem, e, de facto, compete em efeitos re-
mática da Estética do Feio - no livro do discípulo de Hegel Karl Rosen-
kranz , publicado em 1853 - , logo no princípio da argumentação , se viesse a pulsivos com o real. . d · t stético a vi-
.zação terrestre acª-rr..~ta cons1g_(h do po:1to .f v.1s. a e . . ,
falar da Terra real como uma superfície externa irregular. Nesta nova teoria A globall - --- ------ 1 d T que se tornou co-
16ri a do interessante sobre...Q_ideal. O seu resu ta o, ; ~rE.a ~ orno corpo inte-
da percepção não idealista, a terra-mãe dos humanos gozava do privilégio de
servir de exemplo introdutório a uma teoria do feio-natural.
nhecida, é a esf era, qu:, como forma, nbos desapo~:,t:~ss
d a atençao Para dele - em como
~s
demais corpos
~ -
i:cssante 1:r~n - e - tudo . eéfir?° é isso que deve constituir à sao_~do'.ia da_ n~s-
«A massa grosseira e simples, na medida em que apenas está sujeita à lei sol?_re e_§§e - orpsi__ . ~ :.- to'-1··1a da estética a moderna expenenc1a art1st1ca
.. , oca No que toe a 111s , ' · d
da gravidade, proporciona-nos do ponto de vista estético uma circunstância s·:tfvinc.ulada ao intento de abrir os olhos , durante ~uito ~~mpo fascma os
por assim dizer neutra. Não é necessariamente bela, mas também não é ne- p.e las simplificações geométricas, à excitante apreensao do nregular.
cessariamente feia; é aleatória. Tomemos, por exemplo, a nossa Terra, que ,
para ser bela como massa, deveria ser uma esfera perfeita. Mas não é. Para
além de ser achatada nos pólos , e bojuda no equador, é marcada na sua su-
perfície pelas grandes irregularidades do relevo. Um perfil da crosta terres-
tre mostra-nos um entrelaçar de altos e baixos com as si lhuetas mais capri-
chosas.» 14

Se extrairmos as consequências desta reflexão, poderemos formular o prin-


cípio de uma estética da Terra pós-idealista: como corpo real, o globo geogra-
ficamente criado não é belo, mas interessante. Interessante é aquilo que per-
correu meio camjnho para o feio. Tendo em conta as suas forn1as irregulares,
manifesta-se por um momento o mal-estar do seu rebaixamento sublunar, pa-
ra o qual ainda hoje utilizamos a palavra-chave conditio humana. Mas logo se d' · · s bordinado da Antiguidade:
15 Ao heró i negativo Filoctetes atribuiu o poeta o ,to mai s tn u
«Acho os deuses maus» - cf. Sófocles , Filoctetes , verso 452.
14 Karl Rosenkranz, Asthetik des Hasslichen, Leipzig, 1990 , p. 20.
pi i ·ra aos e urope us da é poca moderna. Humboldt fizera a aposta de apr:-
1•111 1r a pe rda metafísica como proveito cultural - e pelo menos entre o pu-
l111 ·o lo seu tempo parece ter tido êxito. Em pinturas panorâmicas da nature-
111, :i v isão estética do todo vinha substituir o refúgio salvação do
Il ido- ·nve lope que se perdera. A bela física permitia prescindir do quadro dos
1 l i v11los sagrados. Caracteristicamente, no seu fresco do mundo, Humboldt,

111 · 1a lvez justificadamente foi chamado o último cosmógrafo , não tomo~ já


11 T ·rra como ponto de partida, para a partir dela observar o espaço extenor.
ili ·s, ele acordo com o espírito do seu e do nosso tempo, escolheu um pon-
3 Regresso à Terra to 1rbitrário no espaço exterior, para a partir dele se aproximar da Terra, co-
1,1 0 um visitante de uma estrela estranha.

Consequente~ente, na época moderna, não é aos metafísicos, mas aos geó- «Começamos pelas profundidades do espaço sideral e pela região das
grafos e descobndores que cabe a tarefa de desenhar a nova imagem do mun- lllai s longínquas nebulosas , descendo gradualmente os estratos dos astros a
do; a sua missão consiste em apresentar em imagem a última bola. Futura- qu e o nosso sistema solar pertence, até ao esferóide terrestre envolto em ar
mente, para a humanidade descascada das suas protecções, de entre todos os · mar, até à sua configuração , temperatura e correntes magnéticas , até à pro-
grandes _corpos redondos só o seu próprio planeta ainda significa alguma coi- ru são de vida que , estimulada pela luz , floresce à sua superfície ...
~a . Os circum-navegadores, os cartógrafos , os conquistadores , os mercadores Não partimos aqui do ponto de vista subjectivo , dos interesses humanos.
internacionais, e inclusive os missionários cristãos e os seus seguidores, coo- /\s coisas terrenas poderão então surgir como uma parte do todo , a ele su-
perantes para o _des~nvolvimento , que exportam a boa vontade , e turistas, que bordinadas . A visão da natureza deve ser geral , deve ser grandiosa e livre, e
desembolsam dmhe1ro em troca de experiências em teatros longínquos _ to- 11 ão estar restringida pelos motivos da proximidade , dos elementos confor-
dos eles se ~omportavam como se tivessem percebido que a Terra era preci- 1áveis ... Uma descrição física do mundo, um retrato do mundo não começa
s_amente, aquilo que , após a destruição do céu, assumira a sua função como úl- pois pelo telúrico , começa pelo que preenche o espaço celeste. Mas , à me-
tima abobada . Era esta Terra física e real, como corpo de estratificação irre- tlicla que as esferas da visão se vão restringindo espacialmente, multiplica-
gular, com _dobras e pregas caóticas, erodido pelas tempestades, que havia -se a riqueza individual das coisas discerníveis, a profusão de fenómenos fí-
agora que c,ircund~r e captar. Assim, a nova figura da Terra, o globo terrestre, sicos ... Assim , partimos pois das regiões nas quais só reconhecemos o
alçou-se a 1cone director da visão do mundo da época moderna. A começar domínio das leis da gravidade e descemos .. . para o nosso Planeta .» 16
pelo gl~bo ?e Beh~1m de 1492 - o mais antigo exemplar do género conser-
vado ~te hoJe - ate aos fotogramas da Terra da NASA e às fotografias tiradas O que aqui conta é o movimento descendente, poi s este não se pauta por
a partir da estação espacial Mir, o processo cosmológico dos modernos é im- 11111 regime metafísico que tivesse aprendido a lançar um olhar metódico para
pregnado pelas metamorfoses formai s e precisão da imagem nos seus diver- ,s coisas terrestres, antes encena já uma visão astronáutica . A forma do seu
s?s meios téc~i~os. No entanto , em tempo nenhum - incluindo na época das r ·g resso à Terra evidencia que o mundólogo Alexander von Humboldt, ape-
~1agens es~acia1s, ~ a empresa de ~isualizar a Terra pôde renegar a sua qua- sar do seu habitus global-integrante-consolador, adere ao partido da idade
lidade sem1metaf1s1ca . Quem, depois da destituição do céu, quisesse tentar 0 moderna num ponto decisivo e se pronuncia contra a fascinação dos habitan-
retrato da :erra ~o seu todo , situava-se, cientemente ou não , na tra_dição da 1'S ela Terra pelo envoltório ilusório cio sentido da proximidade. Tal como to-
c_o smograf1a sublime. Mas, para pôr em prática o novo processo que nos da- dos os construtores de globos e cosmógrafos, desde Behaim, Schõner, Wald-
na ~ nov_o re~·ato do mundo , teria de vencer a gravidade, e agora não apenas s1.:e müller, Apian e Mercator pai e filho, exige que encarem o seu planeta de
em 1magmaçao, mas também pela técnica.
l'o ra e recusa-se a admitir que os espaços externos sejam um simples prolon-
Sintomáti~o a este respeito é que ainda Alexander von Humboldt pudesse •amento de uma imaginação socio-uterina, provinciana, doméstica e gregária.
o~sar dar o titulo abertamente anacrónico de Cosmos ao seu magnus opus, pu- Esta abertura ao sem-limite acentua o risco das modernas localizações no
blicado entre 1845 e 1862 em cinco volumes, os últimos dos quais póstumos. ·s paço. Os humanos sabem, mesmo que de início de forma confusa e indi-
Como a posteriori se percebe, era a oportunidade hi stórica de essa monu-
mental «descrição física do mundo» compensar através dos meios da educa-
l 6 Alexander von Humboldt , Kosmos. Adaptado ao tempo presente por Hanno Beck , Estugar-
ção humanística aquilo que a perda do firmamento e da clôture cósmica im- da . 1978 , pp . 48 e 52 .
rccta , que estão situados - ou perdidos, o que hoje em dia significa pratica-
mente o mesmo - num espaço sem fronteiras. Percebem que não podem con- , . . . !ativo às constelações que os antigos haviam li-
, '" r ,piela clecl11110 o sabei ie . t1·nuar a praticar astronomia, tinha
tar com mais nada senão com a indiferenciação do espaço infinito e homogé- . 1 te Quem quisesse con . .-~ .
1111 11 1 paisagem ce es ··A .
111• , > l'uzcr com a consc1enc1a de itar um . -
f espaço antropófugo em CUJO vazio
neo. G) lá-fo~ expande-se por direito próprio como uma grandeza estranha,
pãssanao ao lactô do postulado de proximidade das esferas humanas; o seu
, li ,vu m sem eco as nossas es_
Peranças e .d· proJecçoes.
. -se' como o astro a que se re-
primeiro e único princípio parece não ter nada a ver com o humano. Os de"="" rr ontmuava a ev1 enc1ar
Mus, Lal comQ a. ~erra - - - i!}-- prec1samente de acordo com as suas. lu-
c .
vaneíos dos mortais de que devem procurar qualquer coisa lá-fora "' - estamos 1 ir:..sa, «Humamdade» ,e~ropern . 1' . as - continuava a disti_!! mr-~
a pensar nas ideologias russas e americanas das viagens espaciais - não po- 1, · tn0Jog1cas e ps1co og1c _ ·- . - A •

/l ' ·os mo og1cas , e . teligente do Umverso; . a que há que fazer referencia


dem deixar de ser projectos muito lábeis, desconsolantes, auto-hipnóticos, 1
,•op io él célu1a.ne VOfil! 1} • - .t -es Coube a Alexander von
projectados no pano de fundo do sem sentido. Seja como for, verifica-se que • A • em todas as s1 uaço . _
•111 Iodas as Circunstancias e I ente o regresso a Qartir da ex.te-
o espaço externalizado, neutralizado, homogeneizado é a condição de base . - d f mular exemp arm ' -
l l11111bolclt a m1ssao e or .a humana au to-reflex1·va · Na geração anterior, Im-
originária das ciências da natureza modernas . O princípio da primazia do lá- • , A

-fora propicia o seu axioma às ciências humanas. ' t1l'i dade cósmica, a essenc1 .d do' sublime a capacidade da alma
t · ara como o senti o
111 111uel Kant .c.arac enz "d d ·s exterior do mais estranho , re-
A partir daí desenvolveu-se um sentido radicalmente alterado para a loca- d rf do desmedi o, o mai ' , ·
lização dos humanos no espaço . A Terra passou a ser o 2._l~neta a que se re- huma na e, a
. , · pa i 0 sublime para e e e a consciência humana da propna
. 1 ,
gressa - independentemente da distância a que se está. o lá-fora é o don~e 11··ssar a s1 propn_a -::-- ~ d tentativas de se render ao avassala-
di gnidade em res1stencia contra to ads asd undo consumou com edificante
geral de todos os regressos possíveis. O pensar do lá-fora foi inicialmente eri- 7 d"d que o seu qua ro o m .
gido em norma no domínio da cosmografia . No entanto, o espaço a partir do ilo r' . Na me I a1-em letrados o regresso d os extremos da natureza, das di- A

qual se dá o encontro do lá-fora com o habitat Terra já não é o ingénuo po rmenor, nos_sa oes A • mboldt ropiciou aos seus contemporaneos
,

111 ·nsões astrais e oceamcas,_ Hu lóp . A visão do mundo em grande


envoltório-céu da era antes de Thomas Bigges e Giordano Bruno . É o céu , . . . · - 0 sub!Jme cosmo g1co.
1111m ultima m1ciaçao a . .d t ' t·ca1 8 Tal significava a prossecu-
eternamente calado do infinito dos físicos sobre o qual Pascal, alertando para . rgência da v1 a es e 1 · , .
!ornou-se. aqui uma leme ( a por meios urgu eses , e , por conseguinte, em ultima
. b
a nova física ateia, afirmou que lhe aterrorizava o espírito. Quando Dante, na
,· .o da vlta contemp a LV h quer sentir que «apreende»
sua viagem pelas esferas do Paraíso, olhava para a Terra a partir do céu de es- . , · Quando o ser uman O . ·
11 11 ií l1 se, consumpt1ve1s. 1 d correr agora no seu intenor. Foi
trelas fixo , instintivamente sorria ao ver aquele vil semblante , exprime uma
,,profundamente o temeroso», ta /em e ºntido das solidões burguesas:
emoção de tipo muito diferente do espanto que acompanha a descida de Hum- Walter Benjamin quem conceptua izou o se
boldt dos glabros espaços exteriores para a Terra vibrante de vida. A Idad~
Moderna ganha a vertical de maneira totalmente diferente da Antiguidade. As
~epi-esentações do_J'oo_vêm s_ubstituir as da «ascensão~ características da An-
tiguidade e da Idade Média; .2...Terra-aeroporto , da qual se levanta voo ~ na 17 Cf. 1. K., Kritik der Urteilskrajt. [Cnt,
N
,.
da
ca
' ·a à Ideia do Subltme», e
idade de Julgar], §26, «Da Estimação das
Facu §28 Da Natureza como Poder». Segun-
«
'oisas da Natureza, ecessan ' t' cos o subl',me res,·de, na-o tanto na presença nua. de ,uma .
qual se aterra, veio ocupar o lugar da Terra-viagem-espacial da qual uma pes- ·
do Kanl , diferentemente dos roman t ' 1 d a mas no regresso do sujeito as, propno
. S@ parte para um dia , após um último ~oo, nunca mais voltar. O olhar de ci- . , 1 de uma força avassa a or , ~ . d ,
wa ndeza rncomensurave , em faceou do desmesurado af'mna a sua- dignidade, · assim
- conf1rman o que e
ma não resulta de um transcender a alma noética num além-da-terra e num ·orno u~_s::.,que ate , u e- não sêdissõfve na iiâtúreza). .
11
supraterrestre , mas sim do desabrochar da faculdade de imaginar físico- 111 ser de razao (isto e, !:!,.l!L~q -: ,- 1 d que O êõlega-rival Charles Darwm, que,
-técnica, aeronáutica e astronáutica , cujas manifestações literárias e cartográ- 1K Neste particular, Humboldt vai muito mais º,8n3g6e ~ rdo do Beagle [Edição portuguesa: Ex-
. , 1 d undo entre 1831 e a O t.
ficas, aliás,já haviam precedido as técnicas . d11 sua viagem a vo ta o m , . s manifestamente sublimes, nomeadamente es a.
IJO ' 98, Lisboa, 1997]. trouxe poucas tmdagen t arcadas na minha memória, nenhuma supe-
. f aram profun amen e m
«De todas as imagens , que ,c d· s florestas pnmevas
bl. . . da não tocadas pela mão do homem , se-
arn d
Naturalmente, quando o Kosmos de Humboldt surgiu , já há séculos não se rn pelo seu caracter -1 su ,meª ª .
- predominantes as orças da vida, ou as da Terra do_Fogo, D
f on e
l··,m elas as do Bras, , onde sao _ tempos
falava das esferas celestes e do céu de estrelas fixas. Nos últimos anos de ·' d' 1 - 0 Ambas sao 1 che,·os das variadas produçoes
. do eus h
Humboldt, também o velho medium da astronomia edificante , o globo urâni- prevalecem a morte . e, a
m isso
ode uça .
deter-se nestas so 1·d-
I oes s
em se comover e sem senttr que no o-
da Natureza - nmgue P . · - do seu corpo.»
co - que , de Alcuin até Hegel, foi um instrumento escolar corrente da cos- . · d ue a s1mp1es resp,raça0 ,· d b
,nem existe algo mais o q . . , _ de sobreviver apenas com uma estet,ca o e-
mologia tradicional - já estava fora de uso há uma geração, e o olhar lança- Também Darwin sabe que um naturaltsta Jª nao po d o sublime (do ponto de vista quan-
do às estrelas já há muito se diferenciara como uma disciplina autónoma no . d ser complementa a com
l< r , no espínto, do· tempo p , esta
f eve
dos cena.nos, . naturais, . as v·1sões das grandiosas montanhas,
, em-
espectro das triunfantes ciências da natureza . Com a consolidação da astrofí- 1itativo e dinam,co): « or tm , t'do não be1as, sao _ mui·to memoráveis. Quando olhamos para
sica, da ciência dos espaços mais exteriores e dos corpos nele situados, entrou bora certamente, . em
· 1certod sen t '.
da Cord1llera o espm, 'to, não perturbado por pequenos pormenores,
baixo da cnsta
sentia-se eva ª pelas estupen
mais epenetrado
totalmente ' das d'tmensões das massas circundantes.»
, . ""'' 1 '-' ' V l-VIUljl\.

O interior «representa o universo para o homem privado. Naquele , reúne


es ·e o longe e o passado . O seu salão é um camarote no teatro do Mundo .» 19

Quando a segurança cósmica se tornou inacessível , resta aos seres huma-


nos a consciência da sua posição num espaço no qual , a partir de qualquer
~onto , estejam a que distância estiverem, têm de regressar a si próprios - e
isto de preferência não abandonando as suas «quatro paredes» . Por isso , o hu-
mano exemplar dos modernos é o hQmo habitans, juntamente com as suas
próteses somáticas e as suas extensões turísticas. Podem as transcendências
essenciais e os sonhos de uma verdadeira terra-mãe no lá-em-cima estar irre- 4 Tempo do Globo, Tempo da Imagem do Mundo
mediavelmente perdidos para os humanos da idade moderna: o que é certo é
que o transcendental , a relação consigo próprio do sujeito pensante e habi- tt:::. <"!15. MM ~;,
tante , como condição da possibilidade de um regresso do lá-fora ao próprio Consequentemente , tam_!)~m para as d~mensõ~s extraterrestres se fixo~ o que
penetra com tanto mais pregnância no pensamento do século x1x. A viragem d ·sde a viagem de Colombo era verdade pata a Terra: n~§p~o .E_trcu_m-
tran_s~e.ndenta_l _- o :ecolhi_mento do sujeito cognoscente ao seu próprio di s--::- 11avegado da Terra todos os pontos valem p _ igual. Através desta neutraliza-
pos1t1vo cogmtivo e a sua situação cognitiva - constitui o cerne da descrição \'ÍÍO, o_pe_n samento do espaço da Idade Moderna experimenta uma mudança de
do mundo de Humboldt tal como dos esboços de sistema dos pensadores idea- sentido radical. O tradicional «Viver, Mover-se e Existir» dos humanos nos pon-
listas e pós-idealistas . Ela é a figura que impregna todo o pensamento antro- 1os regionais de orientação, de referência e de atracção passa a ser sobrepujado
pológico posterior, na medida em que aderia aos requisitos decorrentes do pe- por um sjstema de localização constituído por pontos indiferentes num espaço
ríodo de fundação das ciências humanas, em finais do século xv111. de representação arbitrariamenteJ etalhávei 22 . Sempre que o pensamento mo-
Também ao naturalista se impõe um conceito da Terra que tem um discreto tom derno do espaç-o de coordenadas homogéneo passa a predominar, os seres hu-
fi!osófico: ela passou a ser um ast;o transcendente~que serve de condição de ha- manos deixam de poder sentir-se em casa nos seus espaços-interiores-~e-mundo
bttgt,a todas as auto-retlexões 20 . E o hfürido exemplar no qual o transcendente e Jradicionais e s uas extensões e expansões 23 . Deixam de viver exclusivamente
o empírico se congregam - por um lado , objecto comum da investigação comum, sob céus ce ntrados na terra-mãe. Na medida em que participam na grande auro-
por outro, portador singular de uma inteligência singular. Na sua qualidade de as- ra empreendedora como parceiros de pensamento, de descobertas e de lucros,
tro em que surgiu a teoria dos astros, o corpo terrestre irradia a sua luz fosfores- abandonaram as suas províncias; saíram das suas casas de língua e das suas ten-
cente. Quando os raros sabedores olhavam para lá dele para o vazio homogéneo, das celestes presas ao chão, partindo para todo o sempre para um lá-fora inul-
e1_-~ para regressarem ao seu sítio. A habitação modernizada é a condição da possi- trapassável e provisório - mesmo que um lá-fora cada vez mais construído, um
bilidade do conhecimento moderno. Daí que , quando Humboldt usa a expressão lá-fora onde convergiam a política social e a arquitectura de interiores.
«esferas», não se trate natw-almente das esferas celestes imaoinárias dos milénios Estes novos e mpresários das nações-piloto da expansão europeia já não es-
aristotélicos, mas sim das esferas da visão transcendentai;, que não designam tão radicados numa terra-mãe ; já não se embalam nas suas vozes e aromas; já
qualquer realidade cósmica, antes compreendem os esquemas, os conceitos auxi- não obedecem aos seus pontos de referência históricos e aos seus pólos de
liares e os raios de que se serve a razão que representa o espaço para si própria. atracção. Esqueceram-se do que eram as suas fontes encantadas, do que sig-
Aqui_lo que no século de Humboldt era uma figura do pensamento nificavam as igrejas de peregrinação e os lugares do poder e das maldições
concretizou-se no século xx por um movimento no espaço físico real : 0 as-
tronauta Edwin Aldrin, que , a 21 de Julho de 1969 , pouco depoi s de Neil
22 Cf., a este respeito , os esc lareci mentos fenomenológicos de Herm ann Schmitz no seu siste-
Armstrong , foi o segundo homem a pisar a Lua , resumiu a sua vida como via- ma da filosofia : System der Philosophie, Tomo III , Der Raum, Erster Teil, Der leibliche Rau111,
jante espacial num livro que tinha o título: Return to Earth .2 1 2." edição , Bona , 1988, § 11 9 Der Richtungsraum (bem como§§ 219-23 1), e § 120 Der Orts-
1wm1 (bem co mo §§ 132- 135).
19
Walter Benjamin , «Paris , die Hauptstadt des XIX. Jahrhunderts», in fllum.inationen , Ausge- 23 Rilke, a quem devemos a expressão espaço-interior-de-mundo [W![tinne11rauml, procuroll_ su-_
wahlte
20 · · Schri•ten
J'
, Frankfurt ' 1961 ' p • 193 • peram xperiênci a de base dos moderno~. segundo a qual num a apreensão do espaço baseada
Foi o que observaram expressamente algumas gerações após Humboldt , autores como Nietzsche, pu ramente nas coordenadas os seres humanos mure am,,buscando fazer reviver o m~ndo pd ~~
Hu sserl e fv!erleau-Ponty; cf. Stephan Gü nze l, «Nji!tzsches Geophilosophie und clie »gemassig- suas próprias forç as através de uma espéc ie de<ÍÍnimi smo poético· -~ ~do ~ dia Jª
te Khmazone« 1m Denken des Abendlandes» , in Dialektik , 2000/1 , pp. 17 sq . ser uma alma-mundo de ti o Iatónic9, antes seria7imi'ã in eilsidade individua -cosmológ1ca, qµe
21 E. A. , Novalorque , 1973.
correspondia ao contemporâneo «habi tar poéticCl~ . Cf. também o Capítulo 36 desta obra.
• - · - · >J • '-' <-'-''"-''J''-
1 , ,111 1 \.1 1

1 1 J ( ' '1,,.,..it-l
.' , alhas dar tle .'prisioneiras desta úl-
porto de San Lucar de Barrameda, foi o primeiro do velho mundo a receber as ,s ·ndosferas autá c1cas e aP,anh_a-<1s n_as m ·dem o seu antigo privilégio:
tima , as implantações de mortais autoctones per .
testemunhas regressadas de um périplo à volta do mundo. Os toei são antigas
terras-mães que se oferecem ao olhar desencantado e sentimental dos regres- s ·r, cada uma por si: o centhr?t~º- m~;~op~ca moderna como acabámos de di-
sados. Nesse tipo de lugares prevalece a lei do espaço da época moderna: já Ocste ponto de vista a is ona , d
. . , senão a históri a de uma «revolução» o espa-
não se pode interpretar o lugar de origem específico como o umbigo do ente , ·r, não é n_um pnme1:o tempo -e em rática a explicitação da Terra na me-
e o mundo como a sua envolvência concentricamente ordenada. Quem vive na <;<_i no ex tenor homog:n~~~!~ªs ~~o sen~o gradualmente ensinados d~ q~e ~s
actualidade, após Magalhães , após Armstrong , vê-se obrigado a projectar tam- d1da em que os_ s~us a d' t - bastam já para interpretar a coex1stenc1a
bém a sua cidade natal como um ponto apercebido do exterior. A transforma- ·atcgorias da ~1zmhança lfeC a nao a o alargado. Ela realiza a cat_~ -
ção do velho mundo num agregado de toei reflecte a nova realidade do globo ·om outras c01sas e outra~ pesso~s num esp ç . oesia d;-~stac em casa.
tal como se apresenta após a circum-navegação. Qtoeus é o_p~nto do mundo irofe das ontologias locais_ ao d1ssoltr a a;t~~: ;s países da velha Europa
conceptualizado onde os aí nados se apercebem como apercebidos do exterior; medida que vão progredindo estas f' u_ze!:n ~o~ma de globo· numerosas ai-
é para ele que os circum-navegantes regressam a si próprios. s . tornam , de jure, toeus numa super ic1e .< ~ s de uma cir-
O que este processo tem de curioso é a que ponto inúmeros europeus de d ·ias, ci~ades e paisagens sef tran s_formam dqeu~a~toc:;t:t:re~:e e moderno
origem conseguiram ignorá-lo durante quase toda uma era, falseá-lo e poster- ·ulação desembaraçada de rontelfas, em . . . º e no-
. vatares· mercadoria dmhe1ro , texto , imaºem
gar a sua plena realização até ao momento, em finais do século xx, em que , 11 vança sob os seus cmco ª ' . · rf'' - da Terra passa a ser poten-
de repente , passaram a comportar-se como se tivessem novos motivos para toriedade27 . Todo o local empí:1ci° n:es~~~si~c:;a todos os pontos do espaço
enfrentar o fenómeno inaudito da globalização. Que alegariam eles se por pre- ·ialmente um endereço do capita' q . t' ·d de às medidas
, ·ob o aspecto da sua iecep 1v1 a
caução lhes disséssemos que , por volta de 1900 - antes das regressões na- de coordenadas homogeneo s d a esfera cósmica especulativa
. , micas Enquanto no passa o,
cionalistas do século xx - , a situação do mundo era, de muitos pontos de vis- 16cn1cas e econo · . , ' _ ma elevada forma de segurança
1
ta, mais aberta e mai s global do que a verificada cerca do ano 2000? Sem dos filósofos havia ergu_1do_a contemp açao u ue Behaim deu ao seu globo -
dúvida: quanto mai s rotineiras e rápidas são as viagens à volta do mundo, no global a nova «maça te1 restre» nome q . , d - aos Euro-
, . d N remberga e por seu mterme 10 ,
mai s a transformação dos «mundos de vida» toma o freio nos dentes - razão an unci;vªmªaº:e~: b~ti::~.:~a :ru:l e intere~sa~te, a mensagem topológidca da
pela qual houve que esperar o período dos transportes rápidos e das tr1iii,sfu- peus, e , - criaturas vivas que ex.istem namargem e um (
rêrÍcias híper.::-rápidàs d e , nf~rmações para q ue Q desencantamento das e_stru- , ~ 6poca moderna: as P-essoas sao t todo não é um útero , nem
uras imun1tádás'1õcaiss~ torn~sse epid§micamerite sei:isível.. / --u coq~o redondo irregular - um corpo q~e , e~~~ª;s~e·amds em segurança.
· J'Í.Í'a sua progressão i..a gl5_)baliza&ão.faz explodir, camada após camada, os in- 1 um vaso, e não t~m a oferecder um ab~;: ºpreciosa ~om pés de pau-rosa talha-
O globo pode estar monta o numa b d
vólucros oníricos da vida colectiva arraigada , fechada e centrada em si _e , em . de meridiano metálico; pode produzir no o serva oro
si ê por si, salvífica - essa vidã que, até então, nunca tinha estado e111 mais do , enca1xado num _anel d . 'bTd de e da possibilidade de estabelecer cor-
sítio nenhum senão .,junto a si~--- e@~ suas paisagens natais (o termo Gegnet de efeito de um pai:ad_1g~ a a v1s:s~/mª restituirá sempre a imagem de um corpo
~gger dá um nome tardio e_~ a esses espaços arredondados). Essa vida rectamente um hm1te. mesmo ' b~da esférica exterior. O que repousa na sua
mais antiga não conhecia outra constitu'ção _p..;;u.u do senão uma concepção a que falta o bordo protector, a abo . A ·10 que na filosofia dos séculos XIX
rf' . aparece já como um extenor. qu1
auto-suficiente, vernacular animadaªº nível rnicroesférico fechada de muros supe ic1~amava ,2_!!Xis.,tir é assim explicitado por todo e qualquer globo te~res-
ao nível ~acroesférico - pãra-gJ'ã, o mundo-p· pe a extensão sociocos- c xx se c . vidados a concebermo-nos como cnatu-
tre: quando o observamos, somos con
mológica e dotada de sólidas paredes de uma ima~ nação localmente enr~
da , autocentrada, monolingue , uterina-de-grupo . O es aço pré-moderno foi
. . . ., s estados do capital é uma banalidade; que os tex-
·sen:ipre: à s~a ~ aneira , um ~o l~~~ te~~d_s 4.!:1ali~des_a1!im~asJ,Mas, ago- 27 Dizer que a mercadoria e o dinheirO s<1o O b, , O e pouco a pouco vão percebendo os
ra, a_globahza-ça-o ; que leva a :õclo o ado o extenor cumãsui1râ'ma, arrasta - . - ·,tidades o sepm tam em, e qu -
tos , as imagens e as pe1 son. 't s trad·1cionais do conservadorismo do es-
. 1 demo contra preconce1 o
as cidades abertas ao comércio e até, no fim de contas, as aldeias introverti- agentes do sector cu 1tui a mo ' f1 _ d Georoe Franck 6konomie der Aufmerk-
damente nas re exoes e o , .
pírito. Pode ver-se , nomea : t tal é válido para os textos e as ,ma-
f M ·que e Viena 1998, a que pon °
. dade· Thomas Macho, «Von der Elite .zur
.
das, ·para o espaço dã c irculação que reduz todas as particularidades locai s a . .
.rn111ke1t . E111 Enrww , um _ ', . .
doi~ denominadores comuns - o dinheiro e a geometria 26 . Ela faz explodir
_. .. - - - <~ gcns. Esclarecedor sobre a economia ptn1c~ da ~ot~:~~1aft». Merkur, n.º 534-535, 1993, PP·
Prominenz. Zum Strukturwandel po 1t1sc erp e1. t Ge,sicht Notizen sur Politisierung der
26 Sobre as premissas desta viragem , que remontam ao fim da Idade Média, cf. Alfred W. d ·mo autor «Das rominen -
762-769 ' bem como'. o mes 1 '. . F h meister e Dietmar Schiller (ed.) , Politische /ns-
Crosby, The Measure of Realiry: Quantijication and Western Society, 1250- 1600, Cambridge, Sichtbarkeit», in Sabme R. Arnold , C_ms/u:nk u; . Macht Viena 1998, PP - 171-1 84.
:eniernng im 20. Jahrhundert. Zur SI/ln 1c e// e, ' '
1997.
/,_ f( I 1~. , • '; ,---·t ~-~-- ~'J jJ)
3s situadas ~ntre a Terra e o Nada. Nenhuma circunstância designa tão pro-
fundamente a aÍte cartográfica da época moderna - e eo ipso o seu modo de
pensar - como o facto de a camada atmosférica não estar representad_a em ne-
r- - --~ --~ .
nhum dos globos que conhecemos . Os mapas planos restituem também visões
de territórios sem ar. Na totalidade dos antigos modelos da Terra, o elemento
atmosférico é ignorado com a maior naturalidade, como se se tivesse acordado
de uma vez por todas que só o corpo sólido merece ilustração. Só o século xx
acrescentará a atmosfe._ra e designará pelo seu nome as condições pré-objectivas
da relação hti°'mana ~om o meio . Só então se poderá en u~ciar explicitame~
que a existência e a, imersão são noções dotadas de poderes idênticos. 5 Adeus ao Oriente, Entrada No Espaço Homogéneo
Em todos os globos terrestres que adornavam as bibliotecas , salas de fumo
e salões da Europa culta se encarna a nova doutrina da primazia do exterior.
Os Europeus avançam. nesse globo desempenhando os papéis de de$ obrido- 1 ara firmar a primazia do exterior não bastava o simples facto de terem
res , de mercadores e de turistas ; mas ·salvam a alma retirando-se simultanea- 1, istido as primeiras circum-navegações: a de Magalhães e Del Canno (entre
me~ para os seus espaços interior~s.âcolcJ)_q~os. O que é ü m salão ~~;inão o 1. 19 e 1522) e, mais tarde, a de Francis Drake (de 1577 a 1580) . Esses dois
lugar·em que se tagarela sobre as monstruosidades do longínquo? Ainda res- 1·1os de heroísmo náutico precoce merecem , porém, um lugar na história da
tam os globos celestes expostos paralelamente ao globo terrestre 28; continuam globalização terrestre , já que os seus actores, ao decidirem-se por uma viagem
a fazer crer que os mortais beneficiam de uma protecção cósmica sob o firma- p ·lo Oeste, operaram uma mudança com um alcance histórico mundial e um
mento, mas a sua função toma-se cada vez mais decorativa, e nisto aparenta- N ·ntido espiritual inesgotável. Magalhães, tal como Drake, seguiu neste pon-

\,
tino , se convertem em
--
-se com a ãrtedos à"strólog s que , de especialistas dos corpos celestes e do des-
psicólogos da edificação e profetas de feira. Nada pode
Io as intuições de Cristóvão Colombo, para quem a ideia de uma via ociden-
in l para a Índia se tomara uma obsessão profética. E embora Colombo, mes-
evitar que o céu físico se desencante como forma da aparência. O que se asse- 1110 após a sua quarta viagem, entre 1502 e 1504, não tivesse conJeguido
melha a uma abóbada elevada é um abismo apercebido através de um envelo- 1bandonar o erro de que havia descoberto o caminho marítimo para a India -
pe de ar. O resto é religiosidade retardada e má poesia29. p ·nsava na altura com toda a seriedade que as ilhas da América Central não
·stavam a mais de dez dias de viagem do Ganges e que os habitantes das Ca-
1'11 íbas eram súbditos do «Grande Kahn» indiano - , a tendênc ia da época es-
28 Cf. Elly Decker, «Der Himelsglobus - eine Welt für sich», in Focus Behind Globus, l ." Par-
111 va do seu lado . Optando pelo itinerário ocidental , pusera em marcha a eman-
te , Nuremberga, 1992, pp . 89- 100.
29 Notável excepção constitui o poema de Barthold He inri ch Brockes, Das Firmament (in lr- ·ipação do «Ocidente» da sua orientação imemorial ligada à mitologia solar,
disches Vergnügen i11 Goll , bestheend in Physicalisch- und moralischen Gedichten, l ." Parte, 11 orientação para Leste; mais: descobrindo um contin~nte ocidental, conse-
Hamburgo , 1723), que pode ser lido como uma réplica dramatizada às palavras de Pascal sobre •uira desmentir a primazia mítica_e _mÊ.ªfüi_ca do Ortente . Desde essa altura ,
o si lêncio eterno dos espaços infi nitos . Contudo, o poema de Brockes desmente o título, visto deixámos de regressar à «origem» ou ao ponto do nascer d_o_.§91, e progredi-
que , precisamente , para o poeta, já não ex iste firm amento que possa garantir a estab ilidade cós-
mos em frente , sem saudades de casâ , segwndo o Sol. Rosenstock-Huessy no-
mica , mas apenas uma consolidação não espacial da alma em Deus: « ... O espaço abissal, como
a espessa maré / Do mar sem fundo sobre o ferro que se afunda / Fecha-se num instante sobre o Lou isso a justo título: «O oceano i!fave,ssado por Cristóvão Col9mbo tn~ns-
meu espírito./ A temerosa cripta cheia de luz invisível ,/ De esc uridão luminosa, sem princípio, l'ormou o Ocidente em 'E:'uTopa.» 30 Tudo o que a seguir se produziu em nome
sem limites / Assim devorou o mundo, enterrou até os pensamentos: / Todo o meu ser se faz da globali zação ou da universal captação da Teffa estava inteiramente coloca-
poeira, um ponto, um nada,/ E a mim próprio me perd i. Isto abateu-me de repente./ O deses-
do sob o si~no_da te_nd~~ _atlâptica_: . ,
pero ameaçava o meu coração confuso./ Só tu , sa lutar Nada! Perda bem-aventurada! / Deus om-
nipresente , em ti me reencontrei.» .,.... ·• ~~
Após os mann e1ros portugueses, a pmtir de meados do seculo xv, terem
Estes versos mostram claramente três co isas. Em primeiro lugar, o poeta não compreende o sen- destruído as inibições mágicas que detinham nas colunas de Hércules os olha-
tido cosmográfico origi nal cio termo «firmamento». Em segundo lugar, por analog ia com o ocea- res voltados para oeste, a viagem de Colombo deu definitivamente o sinal da
no, pensa no céu como em qualquer coisa na qua l se pode naufragar. Em terce iro lugar: só um «desorientação» dos interesses europeus . Só esta des-orientalização «revolu-
Deus que tenha uma «tendência essencial para a proximidade» nos pode sa lvar cio naufrág io ela cionária» permitiu faze r emergir o continente da Nova Índia , que havia de to-
imaginação no abissal. A ideia do firmamento não produz apenas uma vicia posteri or na poesia,
mas também no delírio. No sexto capítu'Io elas suas Memórias de Um Neuropa ta, Daniel Pau l
Schreber assinala que, entre as almas cios defunto s que o obcecam, algumas indicam o «firm a- 30 Eugen Rosenstock-Huessy, Die europafa·chen Revolu.tionen und der Charakter der Nationen ,
mento» quando as interrogam sobre a sua morada ele ori gem. Moers. 1987, p. 264.
• .., ~ ..., , u 1 v u •.; 1 \.IIJI'

mar o nome de América . É a ela e a ela a ,


desde há meio milên'iõ a oJ,o b· 1·· - -- PJ enas q~e ha que atribuir o facto de 1obrc1udo , a região do declínio do Sol , o poente (entre os Egípcios, era tam-
. • · º a 1zaçao pe o seu s o T a-
g~co, representar sempre também « ·ct ~ - iºn~ ica _!?_ cu~tural e top~ ll{- 111 ,portanto , a zona ela morte) - uma dimensão inteiramente definida pelo
!ises à filosofia do e .. oc1 entaçao» e oc1dentalização3 I . as aná- 1•s p11ço direccional - vê agora ser-lhe atribuído um papel considerável para
spaço que apresenta no s· ·
ciador da nova fenomenolog·a H seu z~tema da Filosofia , o inj - 11 hi stó ria da civilização, que consiste em contribuir para a irrupção da repre-
·A • '', ermann Schmrtz "D J .
percuc1encia por que motivo esse movi e . ' . ~rmu ou com feliz r 111ação geométrica da Terra e do espaço em geral por um espaço de coorde-
propósito de Cristóvão Colombo: m nto era mev1tavel. Escreve ele, a ll ll(las. Com as partidas para o Oeste, iniciam-se movimentos que desembo-
1·1,r:'ío um dia no trafico indiferente em_ to_d~-ª-sdTr~cç ões. ·Quer se lrãte da
«No Oeste, descobriu para a humanidade a A , . via •c m de Colombo em 1492 quer da penetração do continente norte-
ço como espaço-de-coordenadas Est e 1 ~enca, e, portanto , o espa- 11ncricano no século x,x, as duas grandes encenações do imperativo «Para
. . . . a ,ormu açao volunt .
rada significa que Colombo . anamente exage- O 'ste !» dão o impulso de uma abertura do espaço de onde haveria de resul-
...,, - e mais tarde Magalh- .
-navegador e executor da . . . . . .' _ aes, c.9mo C!ícum- 111 1' o tráfico pendular regular entre quaisquer pontos arbitrários das zonas ex-
A • - m1c1at1va do pnmeiro _ · .. '
ex1!0 no itinerário ocidental uma_b_ t 1 -f< - - rm u~ am com o seu pl o radas. O que o século xx , designará por um dos seus conceitos mais obtu-
na do espaço - que- do -meu-·po-
- t dru a . re ormul.~ç__ao da concepção huma- ~os sob o termo de «çirculação» (no sentido de trânsito ou tráfico) só se
' n o e vrsta marca · f · -
que qualquer outra tran si ão a ent . d , .:: . ma,_s ro undamente do !ornou possível graças ao triunfo do pensamento do ~ spaço de coordenadas.
da idade rn.oderna.»32. J_ ' ia a º ~~modo _de consciênciãêspecífico

.
·
t'\
YH • ,.1 ' ·, ,..li'· ~ -·1
.
A viragem para Ocidente inclui a geometd za ão do co
"S O ~ / (/,~
f~V
Co m efeito , o domínio rotineiro da simetria entre viagens de ida e viagens de
1' ·gresso , constitutivo da noção moderna de tráfico só pode- estabelece~~se
11un1 espaço de cóordenadas generalizado, que agrupe , sob a forma de ima-
peu num espaço de coordenadas I bs;;:li d -"~ .. - -'Il o.rt.a~nto euro- g<.:ns de trajectos e de planos de viagem, po_Qtos de igual valor geométrico
g o a .za o Por e · -· -
presentação mais· sumária das zonas da ~ .. onsegumte, mesmo a re- 11um campo . Não foi por acaso que um dos principais sistemãs de- energia do
responde desde o início a um no .d Telrra amda amplamente mexploradas s<.:c ulo XIX , a máquina de tracção dos caminhos-de-ferro , recebeu o nome de
vo i ea metodológ· . d
mento uniforme de todos os po!Iltos rf' . ico. o e um recensea- /oco-motiva - in~trumento de mover de lugar: a sua mobilização constitui
- - - na supe icie d I b d- - - · - ·--...
da possibilidade de serem atJ·no1'dos 1· , . d o g o o o PQ..QJQ..Q~vista ·fectivamente uma etapa notável na indiferenciação (Jo espaço de coordena-
resse europeus (e nu,n pri·me· tº pe os meto
· ·- . . . , os acçõe .
se centros de mte-
.. · ' iro empo tal s1g f ·b, · da .. Os técnicos do século XX sabiam qÚe -~ ultrapassagem do espaço pela lo-
empresas reais só séculos mais tard ' h ni ica I encos) - ainda que as l:O lllOÇãO a vapor estava estreitamente associada à «vaporização do espaço»
mosas «manchas brancas» no e se ten am realizado, ou nunca. As fa- pe la telegrafia eléctrica, cujos cabos , regra geral, seguiam as linhas do
cognitae' funcionavam como psomtapas,dconhecidas pelo nome de terrae in- ·a,runho-de-ferro33 .
n os a esvendar no f t E
res do sadismo cognitivo que s u uro. ram os atracto- Aquilo a que chamamos o tráfico mundial pressupõe que o descobrimento
~esquisa . A todas elas se poderia ae li~~~e;entava ~ob a ~orma tranquila da tias extensões marinhas e terrestres possa ser considerado como essencial-
tipografia sobre o continente aust ~- expressao escnta em caracteres de mente acabado, do ponto de vista geográfico e hidrográfico. O tráfico autên-
gigantescas em algumas cartas dra ,a~o,lque era apresentado com dimensões tico só pode aparecer se existir um sistema de trajectos que abra às travessias
A • o secu o xv, que f
quencias: Terra australis nuper . iveram grandes conse- rotineiras uma dada zona, terra cognita ou mare cognitum . Como encarnação
znventa nondum cog ·i
coberta, ainda não explorada ., . m a - recentemente des- das práticas da travessia , o tráfico constitui a segunda rotineira fase do pro-
explorações físicas e económic::~~::r:ed~tma~~ a ser o campo_de acção das cesso quê principiara coiiio história aventurosa dos descobrimentos globais
-se antes dp mais como questão d , s. f, espi~1to do «amda nao» exprime- pelos Europeus.
nondum - o tempo ·ae um d . ~ geo~ra os. A epoca moderna é o tempo do
. evir promissor que s ·
t1ca da eternidade como do te . 1 . e emancipa tanto da estatís-
. , . mpo Circu ar do mito
A ponta histonca da viagem de Colomb .d . .
que teve nas deslocações mode o res1 e nos efeitos revolucionários
na sua acepção antiga , era um~~n~~ ::~~~Ide coordde?ada~. O Ocidente , que ,
e uma Irecçao do vento , mas,
3 1 Est· 1 - ·
<l_ a usao a tendência para a «passa<>em ara oest . .
P2assag10 a Occide111e. Filo w'ia e glob 1"' _P _e» encontra-se em Giacomo Marram ao
3 H . · ~· a 1sazz1one , Tunm 2003 '
ermann Schmuz, System der Philosophie Yol 111· ' . .
, · , op. cit ., p. 441. 33 Cf. Armand Mattelart, L'lnvention de la communication , Paris, La Découverte, 1994, pp. 68-69.
t ' "" ,,J ........ ... .... .

. f .· .. , · pe lo Leste , que assim


tractivos ao 1tmerano
Ir ,ri ·o internacional e con eura a d da viagem de Fogg disso dá
.d velmente Como o ecorrer
Pllº ·11curtara cons1 era . , ~ Oriente totalmente ocidentalizado que , com
1·si ·munho , trat:iva-se Jª de u não constituía mais do que um arco de cír-
1 idos os seus bramanes e elefantes, t d sob a forma de um espaço de
·111 0 indiferenciado no planeta reprelse~ a .º do tra'fico
. ' l pe a tecmca ·
,·onrdenadas e tomado d ispomve

« .. . e
. o cálculo feito pelo Morning Chronicle:
eis
l .ondres-Suez pelo Mont-Cenis e Brindisi, caminho-de-ferro e paquetes, 7
6 Júlio Veme e Hegel
di as; .
Suez-Bombaim, paquete, 13 dias; .
Bombaim-Calcutá, caminho-de-ferro, 3 dia~;
Ninguém soube ilustrar de maneira mais justa e mais divertida o que signi-
alcutá-Hong Kong (China), paquete, 13 ~ias;
fica e consuma o tráfico globalizado do que Júlio Verne no seu popular ro-
l long Kong-Iocoama (Japão), paqúete '. 6 _dias;
mance de tom satírico A Volta ao Mundo em Oitenta Dias, publicado em 1874.
locoama-São Francisco, paquete , 22 dias, d' .
Na sua superficialidade galopante , o livro proporciona um retrato instantâneo
São Francisco-Nova Iorque, caminho-de-ferro , 7 ias, . .
do processo da modernidade como projecto de tráfico. Ilustra a tese, quase do Nova Iorque-Londres , paquete e caminho-de-ferro , 9 dias ,
domínio da filosofia da história, segundo a qual o sentido das relações moder-
nas é de vulgarizar o tráfico à escala mundial. Só um espaço de coordenadas Total: 80 dias . A d Stuart ( 1 mas sem contar com
. ·t t dias' exclamou n rew ... '
permite organizar as novas necessidades de mobilidade que pretendem assen- - S im , o1 en a .- , . aufrágios os descarrilamentos , etc .
o mau tempo, os ventos contranos '. os n ,
tar em rotinas tranquilas tanto o transporte de pessoas como o tráfico de mer-
cadorias . O tráfico é a encarnação dos movimentos reversíveis . Logo que es- - Tudo incluído - respondeu Ph1leas Fog~ ,( .. .} exclamou Andrew Stuart.
hindus arranquem os carns . -
tes se encontram implantados, incluindo a longa distância, tornando-se uma - Mesmo que os b . ºlhem os furgões , escalpem os pas-
- Mesmo que detenham os com mos, p1
instituição fiável , deixa de interessar, no fim de contas , em que sentido se faz
a volta ao mundo. São circunstâncias fortuitas e exteriores que incitam o he- sageiros ! . 34
- Tudo incluído - respondeu Ph1leas Fogg.»
rói do romance de Júlio Verne, o inglês Phileas Fogg, Esquire , e o seu lasti-
mável criado francês, Passepartout, a lançar-se numa volta aó mundo em oi- d J T Veme: numa c1v1 · ·i· -
izaçao s.aturada pela técnica
. ·- -, já..
tenta dias pela via do Oriente. Num primeiro tempo, a sua motivação é um É a mensagem , e u 10 . e che ar atrasado. Por isso é que o autor va-
simples artigo de jornal afirmando que, com a abertura do último troço do 1n o há aventura, soresta o nsco \ , . g - fi z experiências . Nenhuma turbu-
Great lndian Peninsular Railway entre Rothal e Allahabad, se pode atravessar loriza a observação de que o se_u er~1 lndaoM Fogg pois na sua qualidade de
bar a fleuma 1mpena e · ' ' 1 1
em apenas três dias o subcontinente indiano. Com base nessa informação , o 1 ncia po de per tur , ºd d de testemunhar respeito pelo oca .
. . 1 b l ele escapa a necess1 a e t
jornalista de um diário londrino construiu o artigo provocador que se toma o v1a1ante g o a , . 'bT d d de dar a volta à Terra, esta, para o u-
pretexto de uma aposta entre Phileas Fogg e os seus companheiros de whist do Uma vez estabelecida a po_ss1 1 ' a e , . ples encarnação de situações de
locais mais remotos, e a sim
Reform-Club. Aquilo que Fogg aposta com os seus parceiros, é, no fundo, sa- ,·ista, mesmo nos . . . nciclopédias há muito forneceram
ber se a prática turística está em condições de honrar as promessas da sua teo- lue os. jornais, os ·escritores viapntes e asde
l ta Compreen e-se
ass·,m por ue motivo aquilo
_ - - . .
ria . O artigo, que fora publicado no Morning Chronicle e teve importantes uma imagem mais comp e . --:- - 1 do- que um olhar para o viaJante
no-eiro pouco mais va e
consequências , continha um inventário dos tempos de percurso com que um que se chama o es tr a º . ºd t ue ocorram ' consistam eles na cre-
· cípio os mc1 en es q
viajante devia contar para ir de Londres a Londres fazendo a volta ao mundo ·m trânsito . E m pnn ,' . de índios no Oeste americano,
·, a India ou num ataque
- inútil insistir que , na época, Londres era o locus dos loci; era de lá que uma mação de uma v1Uva n . , tec·1mentos e circunstâncias sobre os
_ d ser mais do que acon _ ·
grande parte dos navios e dos capitais partiam para as suas viagens à volta do nao po em nunca CI b d Londres dispõe de informaçoes mais
mundo . Se esse cálculo assentava na hipótese de uma viagem para Oriente, tal quai s um membro do Reforro- u e
correspondia , para lá da afinidade britânica habitual com a parte indiana da . · . . J Hetzel et Cie, 1884 , PP · 27- 28 -
Commonwealth, a um lugar comum da época: a inauguração do canal do Suez 3
14 Júlio Verne, Le Tour du monde en quatre~vrngts 1~u1s , html
l111p://www.fourmilab .ch/etexts/www/tdm80J/tdm80J_Chap .
em 1869 produzira na Europa uma sensibilização para o tema da aceleração do
·. d que J.á viu nos
n deles ver nada mai s o '
• li 1•111 lodos os l..d dos , sem
,
em nenh ui redecessores tipolog1cos , · , os navega-
completas do que o turista no local. Quem viaja nessas condições não o faz
111 11 pr ·1os. Fogg é o ant1p~da dos::1usX~ll e xvm , para os quais cada pe:cur-
por prazer nem por motivos comerciais, mas pelo amor do movimento en-
1\111 1•11 l " os geógrafos dos secu~os d :abrimentos , de conquistas e de ennque-
qüanto tal; ars grafia arfis; mofio grafia mofionis 35 .
Desde a época de Giovanni Francesco Geme Ili Careri ( 1651-1725), esse
calabrês que , cansado das querelas familiares , empreendeu entre 1693 e 1697
, llll' lll OS. A partir d?~ sé~ulo
1111 \llri stns da expenen~ia , q p
;1x~~::
11 , it ivn li gado a esperanças e es . . tes empíricos cederam o lugar
;~ªt:;ge para se deixarem revalorizar
uma volta ao mundo em veleiro, o tipo do viajante mundial sem objectivo co-
p111, impressões rece~1das. . . t s do século passado , o conde Hermann
mercial, o tgrista, é uma ggmdeza-integrada no programa da modernjgade.. O 11111 r· os viajantes impress10111s ª . certo renome - no período que
seu Giro dei Mondo , publicado em 1699, está entre os documentos fundado- · l granjeou um ·t ,
1 ,, r rlin g, filósofo da cu tura, . D'ário de Viagem de Um Fi oso-
res de uma literatura da globalização por puro capricho. Também Gemelli Ca- . · · G erra Mundial, seu i 0 . , · Ale-
..~ , r •111u à Prnne1ra . . u , 1 em to d as as b'bl· 1 1otecas pnvadas senas na
reri adoptou o habitus do descobridor que se achava mandatado pelo espírito
/ri loi um título md1spensave . d das culturas do mundo em treze m~-
do tempo e pensava poder narrar no seu país as experiências que fizera no ex-
terior. Várias gerações mais tarde, as suas observações mexicanas e a sua des-
1111111l1t1 . O autor fez a sua gra~~e
t ' ~nb a forma de uma espec1_
~C: e
e:periência hegeliana - uma educ_açao
, rovíncia alemã36_ Phileas Fogg tmha,
, ili 11 forma de um regresso adiado ~ p orque não era obrigado a fazer co-
crição das passagens do Pacífico eram ainda consideradas prestações respei-
táveis do ponto de vista etnogeográfico . Mesmo se os viajantes do mundo
prn ~.,, , uma vantagem sobre Keystr :;}oisa a aprender com uma viagem à
posteriores se entregaram a um estilo de narrativa marcado pela subjectivida-
um s, , para ele, ainda houvesse ~;ir hegeliano , pois compreendera que, n~i:n
de, a ligação entre viagens e escrita continuou intangível até ao século XIX.
11 11 11 da Terra . Júlio Verne era me _ t' he1·0'·1s substanciais, mas apenas her01s
Ainda em 1855, no Conversafionslexicon de Brockhaus, se constatava que se - odem ex1s lf · a do
11 1111,do ordenado, nao p 'd . ue lhe veio quando da travess1
chamava turista a «um viajante que não associa qualquer objectivo determi-
d11, ·uisas secundárias. Só a sua 11 e;:;e;ra de queimar, em lugar de car~ão,
nado, por exemplo , científico , à sua viagem , mas que viaja apenas para fazer
a viagem e depois a descrever». l i nti co entre Nova .Iorque d
e a ~g .
u propno na ,
v' 1· 0 a·1nda aproximava por um ms-
. , ·
llll ·struturas de madelfa o s~ . l dava à noção do sacrifício de s1 propno
Em Júlio Verne, o viajante do mundo renunciou ao seu ofício de documen-
111 111 . o inglês do heroísmo ?ngma ~rito da era industrial. Quanto ao ~esto, o
talista; tornou-se puro passageiro. Apresenta-se como um cliente dos serviços
\11\ IH feição que correspondia ao ~~~mo horizonte dos esforços masculinos ~o
de transporte , que paga para que a sua viagem não se torne uma experiência
1·sporto e o spleen descrevem ? u em contrapartida, roça o gro~e_sco quan o
de que haja que dar conta posteriormente . Dar a volta ao mundq, para ele,-é.
111 u11do bem ordenado. Keyserhng , encarnação retardada do espmto do 11_1un-
uma _prestação desportiva, nã~ uma liçl!o filosófica e nem sequer_Q ele.m.e,nto
qu ·r fazer da volta ao mun?o uma ue a sua divisa soa cómica: «O cam1~ho
"ãé um programa de eoucação. É por esse motivo que Phileas Fogg pode ficar . f'm de reoressar «a s1», pelo q d Mas como o seu hvro
l 1l l , d i º . ela volta ao mun o .» , ..
tão calado como um desportista.
,n nis curto para si pr_ó ?no pa~sa pode fazer experiências, apenas pode cohglf
No que diz respeito ao aspecto técnico da volta ao mundo em oitenta dias, nmstra , o viajante filosofo nao p
Júlio Verne , no horizonte do ano de 1874, não era nenhum visionário: tendo
11n pressões .
em conta os meios de transporte escolhidos, o comboio e o paquete, principais
motores da «revolução» dos transportes em meados e finais do século xrx , a
viagem do seu herói correspondia exactamente ao nível atingido na época na
arte de transportar ingleses apáticos do ponto A para o ponto B e vice-versa.
Mas nem por isso o personagem Phileas Fogg deixa de apresentar traços pro-
féticos , na medida em que se apresenta como o protótipo dos passageiros
clandestinos universais cujo único laço com as paisagens que desfilam dian-
te deles reside no seu interesse pela travessia. O turista estóico prefere viajar
de janelas fechadas; na sua qualidade de gentleriiâii:reí vindica o direito de
não considerar nada digno de ser visto; na qualidade de apático, recusa fazer
descobertas . Essas atitudes anunciam um fenómeno de massas do século xx
- o hermético turista das viagens «tudo incluído» que apanha correspondên-
_ . Jhen ( 19 / 8), Frankfurt , 1980.
35 Sobre o elogio do movimento puro , c f. Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido '6 G f Keyserlin o Reisew gebu ch e111es Ph1loso1
-' Hermano ra º'
Comunista , 1848. Cf. também Thomas de Quincey, The Glory of Motion , 1849.
111 is», o pequeno globo Lenox metálico criado por alturas de J 510 , mostra ain-
d11 - como muitas cartas e globos depois dele - a ilha lendária de Cipango,
111 ·ncionada pela primeira vez por Marco Polo , a saber, o Japão, mesmo jun-
lo à costa ocidental da América do Norte. Tal reflecte a extrema e persistente
·11bavaliação das extensões aquáticas a oeste do Novo Mundo, como se o erro-
·have de Colombo - a esperança de uma curta via ocidental para uma Ásia
que se pensava próxima - tivesse agora de se repetir a partir da base ameri-
l'!1na. Passado pouco mais de uma década, no globo terrestre de Brixen, em
7 O Mundo da Água 1523 ou 1524, uma caravela desenhada no oceano Pacífico, o mar del sur, alu-
Sobre a Mudança do Elemento Dominante Na Época Moderna di a à circum-navegação de Magalhães; o regresso da nau Victoria era anun-
·iado por folhas volantes que se propagavam até à Europa de Leste ainda em
1522; contudo, o criador desse primeiro globo pós-Magalhães não conseguiu
Num ponto decisivo, o plano de viaoem im . . , . ·xprimir toda a amplitude da «revolução» oceânica. Tal não se devia a uma
com perfeita adequação a aventura . º. agmad? por Julio Verne espelha ·ui posa tacanhez de espírito: na época, nenhum europeu estava em condições
salta indiscutivelmente a grande ong1dnal ~a ?lobal1zação terrestre: dele res- de pesar o que tinham a comunicar o capitão basco Juan Sebastian dei Cano e
. prepon erancia das v · .
so bre as viagens por via terrestre N iagens por via aquática o autor italiano do diário de bordo de Magalhães, Antonio Pigafetta, quando
· um tempo em que 1
nou um desporto de e11·te ( l b . a vo ta ao mundo se tor- narraram que, após terem levantado âncora no como sudoeste da América do
g o e trottzng ma· s
vemos nela ainda o rasto da muta ão , IA ~u menos: trotar sobre tudo), Sul e terem navegado «três meses e vinte dias» - desde 28 de Novembro de
na sequência da qual a ideia de um~ 'D magal~an!ca _da concepção do mundo, 1520 até 16 de Março de 1521 , com ventos sempre favoráveis -, haviam
tituída pela de planeta oc A erra ma10ntariamente terrânea foi subs- atravessado na direcção noroeste um mar incomensurável e desconhecido a
, · de Espanha Colomb
A •

catol1cos eanico. o promover o se · ·


0
. d . . u proJecto Junto dos Reis que tinham dado o nome de mare pacifico «pois, durante todo esse tempo, não
~erra era «pequena» e' mar· .t am
...,..
. a tmha podido pro tiessar a 1de1a · .
de que a tivemos nenhuma tempestade»37 . Nesta breve nota, espelha-se a revolução
_ . on ar1amente seca e de
nao constituía mais de um se' t· d - que o elemento aquático
da Id ade Media , . . imo a sua extensao o d . . oceanográfica que iria pôr sensacionalmente cobro à Antiguidade geográfica,
afirmavam tamb, 1 . s navega ores de fma1s a fé ptolomaica na preponderância das massas terrestres .
derant~ e isto - ' em e es que o espa t
por uma razão com reen , , . ç~ errestre era prepon- Em que medida a imagem pré-magalhânica e ptolomaica do mundo estava
de ordinário, não 0oosta quem p h s1vel, pois o mar e um elemento de que centrada na terra firme, percebemo-lo na mais artística das descrições do
o con ece de perto (0 . '
como o das montanhas , · _ romantismo do mar tal mundo , criada em finais da Idade Média, um pouco mais do que uma vida hu-
, e uma mvençao d Hr '
Não foi por falta de motivos , . a sens1 J idade urbana moderna). mana antes de Colombo: o monumental mapa-múndi do monge camáldulo
d as zonas costeiras relativamente empmcos profundos ' d.
ao lt que_o o io dos habitantes veneziano Fra Mauro, de 1459. Na época, passava por ser não só a mais vas-
lipse de João (2 I I ): a id . d a º, mar ~e traduzira na visão do Apoca- ta, mas também a mais pormenorizada das representações da Terra. Reflecte
. ·· ' eia e que , apos a vmda d M · · .
ex1stma, uma frase que oca elão de b . . . o ess1as, o mar Já não ainda , pela força das coisas , a terra medieval, a da antiga Europa, contida no
James Cameron no momentop ordo cita JUd1c1osamente no Titanic de círculo imunizante e, nela, o elemento aquático desempenha literalmente um
, em que a popa d0 ·
tes de naufragar·. navio se ergue na vertical an- papel marginal. Aqui, para além das manchas do Mediterrâneo e dos rios, só
Aos europeus do início do século XVI . se concedem à água as margens mais extremas . No quadro dado por Fra Mau-
dessem que , no fim de contas 1 , pedia-se de repente que compreen- ro , o empírico e o fantástico apresentam-se num estranho compromisso e,
rância das superfícies aquática~º/ :neta Terra, tendo em conta a preponde- apesar da restituição densa e fundada em abundantes conhecimentos, a ima-
mava Terra revelava-se como u' i~, a um nome errado. Aquilo a que se cha- gem verga-se docilmente ao comando onírico da velha Europa: representar
m vvaterworld· três q t d
pertencem ao elemento líqu .d 1 , . ·, uar os a sua superfície um mundo com tão poucas superfícies marítimas quanto possível.
d J o - ta e a mformaçã I b 'f·
mo erna , da qual nunca se soube verdad . . o g o ogra ica da época Sem a transposição da nova verdade de Magalhães para as cartas das duas
gelho ou de um dis-angelho. euamente se se tratava de um evan- gerações de globos que se seguiram , nenhum europeu conseguiria ter uma
Não era fácil dizer adeus aos reconc . . imagem adaptada da inflação «revolucionária» das superfícies líquidas. Nela
antigo globo pós-colomb1·a110 p . d e1tos teJTestres imemoriais. O mais
que am a possuí .
nos aos continentes americano . mos e que atende mais ou me-
s e ao universo das ilhas das «Índias Ociden- 37 Antonio Pigafetta, Die erste Reise um die Ercle . Ein Augenzeugenbericht von der Weltumselung
Magellans / 519- 1522, editado e traduzido por Robert Grün , Tübingen und Base!, 1978 , p. 93 .
em 1529, vend~u à Coroa portuguesa, por 350 000 ducados, as pretensões es- li t·qu ·nle mente, sem dúvida - como indicia o exemplo r~f~ri~o -_, mais uma
panholas antenores sobre essas ilhas - o que havia de vir a revelar-se um 11 •tirnulação de títulos de propriedade , de opções e de re1vmd1caç?es us~- ?e
bom neg_ócio, logo que, passados alguns anos, o melhoramento das medições 11111 0 cio que a gestão de instalações de produção com base no capital mvesti-
das long1tudes d? outro lado do globo terrestre veio a mostrar que, segundo 0 do . ) descobrimento de territórios longínquos e a tomada de posse formal so-
tratado de repartição do mundo assinado em 1494, em Tordesilhas, entre Es- l , . ·l cs , para aqueles a quem os príncipes e burgueses hav~am delegado o
p~n?a e Portugal, as cobiçadas Molucas (também chamadas «ilhas das espe- 1, 11 ·argo da viagem ultramarina, fundavam a esperança de re~d~mentos futuros,
ciarias») ~e encontravam de qualquer forma no hemisfério português. oh rorma de saque ou tributo, ou ainda de relações comerciais regulares gra-
Nest~ mt~r~âmbio interdinástico entre proprietários de regiões longínquas ,· ,s às quais nada impedia que se sonhasse com mar~en~ de lucr? fa~ulosas.
das quais, v1s1velmente, nem o comprador nem o vendedor sabiam exacta- Manifestamente, a globalização da Terra pelos pnme1ros mannhe1ros mer-
mente onde se encont_ravam, reflecte-se mais claramente do que em qualquer 1, ,dores e pelos primeiros cosmógrafos estava muito longe de se encontrar su-
outro documento da epoca a natureza especulativa da globalizaçã_Q,Qrjginal. j ·ila a interesses teóricos; desde o seu lançamento pelo_s Portugues~s, obede-
Torna-se um pouco grotesco ver, hoje em dia, os ensaístas situar nos movi- i·lu a um programa de descobrimento resolutamente ant1contempl~t1vo . Quem
m~ntos mais recentes do capital especulativo o motivo real do choque consti- procurava assumir o controlo dos novos mundos descobertos ten~ de r~n~~-
tu1do ~ela_ forma do mundo a que se chama globalização. O sistema mundial t·iu r às idealizações e às deduções. O experimentum maris fornecia o cnten_o
do ca~1taltsmo e~tab_eleceu-se logo no primeiro instante sob os auspícios en- d ii novo conceito de experiência do mundo. Foi nesses mares que pela pn-
tr~tec1dos d~ cap1taltsmo e da especulação42. A ideia segundo a qual os capi- 111 ·ira vez se tornou claro como a época moderna queria entender a interacção
ta'.s merc_an!1s tendem a emancipar-se dos seus laços para com um país deter- 1, 11 1re teoria e prática . Cem anos antes de Francis Bacon, os mandantes e ac-
mmado e tao v~lha como a gestão moderna . Em 1776 , Adam Smith podia lmcs das voltas ao mundo sabiam que o saber sobre as superfícies terrestres
escrever a seguinte passagem como se se tratasse de uma evidência: «Um . um poder e um poder sob a forma mais concreta e mais lucr_ativa: A imagem
mercador [ ... ] não é necessariamente cidadão de um país em especial. Para dn Terra , que se vai tornando cada vez mais precisa , assume 1med1ata~ente a
ele, é ~m ~rande m~d_ida indiferente o lugar onde pratica o seu negócio; e bas- q 11 atidade de um saber sobre a captação e a captura; os novos conhecimentos
ta um mcomodo tnvial para retirar o seu capital, e, com ele, toda a indústria oceanográficos fornecem armas para o com~ate em es~aço aberto ~~m os
que nele se apoia, de um país para outro.»43 O império ultramarino de Carlos ·oncorrentes. Por esse motivo é que se protegiam as novidades geograficas e
V fora edificado com créditos flamengos e augsburgueses e, mais tarde, com hidrográficas como segredos de Estado ou patentes de empresa; a Coroa por-
os dos banc_o s ~enoveses , cujos proprietários faziam girar os globos para fa- 111 guesa proibia, sob pena de morte, a proliferação das ca~as marítimas em
zerem uma 1de1a concreta das idas percorridas pelos seus dinheiros e das vol- que figuravam as descobertas e as descrições de costas reahzadas pelos seus
tas efectuadas pelos seus juros . marinheiros - razão pela qual não se conservou quase nenhum dos seus fa-
Desde o início , a aventura oceânica mergulhou os seus actores numa com- mosos portulanos, utilizáveis como itinerários pelas _empre~as marítimas ao
petiçã~ pelas oportunidades ocultas em mercados longínquos e opacos . Já se lono-o das costas navegáveis45. O cálculo com algansmos arabes encontrou
lhe aplicava o ~amoso dito ~e Ceei! Rhodes: «A expansão é tudo.»44 Aquilo a s°
11 0 mapas europeus uma espécie de equivalente. Tal como o zero indo-árabe
que os economistas, na estetra de Marx, chamaram acumulação primitiva era, introduzido no século xv11 permitiu uma aritmética elegante, o globo terrestre
dos Europeus fundou uma visão redonda e utilizável do que dizia respeito à
42
Cf. a este res_peito , lmmanuel Wallerstein , Das moderne Welrsystem. Kapitalistische Land- geopolítica e aos assuntos mundiais. .
w1rtschaft und d1e Entstehung der europaischen Weltwirtschaft im 16. Jahrhundert , Frankfurt, Mas tal como ninguém sai de casa para comprar zero peixes , segundo uma
1986; do mesmo autor, Das moderne Weltsystem li, Europa zwischen 1600 und 1750 Viena observação do filósofo Alfred N. Whitehead, também ninguém parte de Por-
_1998; a ~xpressão de «s istema-mundo» não significa , de modo nenhum, segundo Walle;stein , ~ tugal numa caravela com destino a Calecute ou Malaca para r~gressar com ~e-
mtegra~ao de ~odos os países e de todas as culturas nas novas relações; indica antes que O espa-
ro cravinhos nos porões. Deste ponto de vista, um grupo de ilhas de especia-
ço de t;ansacçao _económica que se forma na altura extravasa das fronteiras dos mercados locais,
dos paises e dos 1mpénos. rias situado nos mares do Sul, alvo do desejo europeu e logo por ele ocupado
43
Adam Smith, Der Reichtum der Nation en. Eine Untersuchung seiner Natur und seiner Ur- não constitui apenas um ponto branco num vago mapa-múndi : é também um
~4chen, editado por Horst Claus Recktenwald , Munique , 1990, p. 345.
Oswald Spengler fez desta frase o axioma das épocas da c ivili zação que precedem a morte
das culturas altamente ci.vilizadas. Cf., deste autor, O Declínio do Ocidente , Der Untergang des 45 Até aos finais do século xv111, os diários de bordo das expedições dos descobridores conti-
Abendland:· · ~mnsse emer Morphologie der Weltgeschichte , Munique , 1923, 1979, p. 51: nu aram a ser documentos secretos, propriedade dos Estados marítimos; cf. as observações de
«A expansao e uma fatalidade , al go de demoníaco e temeroso , que se apodera do homem tardio George Foster quando da segunda expedição do capitão Cook: ~ntdeckungsreise_nach Tahtll und
da era mundial... e o esgota ... » ill die Siidsee 1772 -1775, nova edição de Hermann Homann , Tubmgen e Bas1le1a, 1979, p. 395 .
- - -- · .... . ... .. ..... .... .J '' ,.....- - ,-""" ... , . . .

. .. . . tar arran. ar seguros , repartir os riscos, cons-


símbo lo de ga nhos a granjear. O globo encontra-se nas mãos dos que sabem tl ,. ,lir, pla111hcar, inventai , apos , hJ a que querem criar a sua
. homens de nova temper ,
utilizá-lo, verdadeiro ícone do cÕrpo terrestre ques e tornou nave gável; re re- 1 111 1 r ·s ' rvas - , smgem . d com as oportunidades e que de-
. óprio futuro Jogan o
senta além disso uma imagem das fontes d~9.i_nheiro que corre_!!} do futuro pa- 111 , p1·111 sorte e o seu pr d _ d Deus É um tipo de homens que ,
, - . ber J.á apenas a mao e · .
ra o presente. Poderia até ser concebido como um relógio oculto que , sob o 1 11 1111 1111 nao as 1ece . t ' ·a adquiriu a experiência de que
· d ropnedade e mone ar1 ,
signo das ilhas longínquas e dos continentes desconhecidos, indicaria as ho- 1111 1111va economia ~ P . d' "das ainda mais. o personagem-
ntelioentes mas as 1v1 ..-
ras do lucro. O globo da época moderna teve êxito como relógio das oportu- 111 d 1110s nos f azem 1 0
' d t . ma·is conhecido pelo con-
, deYedor-pro u 01 » - -
nidades para uma sociedade composta por empresários das longas distância i li iv, da era mo derna e o «fl. -, ·b·1· - s seus·· procedimentos comerciais, as ½•,,., A.
. , · _ que ext 1 1za o · . . f
e tomadores de risco que entreviam assim a sua riqueza de amanhã nas cos- i I IP de emp1 esano , . t·i·zando todos os meios autonza-
. .- a propna pessoa para, u • •
tas dos outros mundos . De tal relógio, que mostrava as horas no que-ainda- 1111, op1n1oes e a su d _ omprov· ados alcançar os lucros
· d mprova os e nao c , ·
-não-existe, esses agentes da época moderna cheios de presença de espírito .1 111, • não autonza os, co ' d"tos que contraiu. Esses
..- bolsar a tempo os cre I
que foram os conquistadores, os mercadores de especiarias, os pesquisadores q11,· lhe perm1tLrao reem , "d . d dívida contraída o seu significado
de ouro e os futuros partidários do reali smo político , ouviam a hora a soar pa- ili•v ·dores-produtores conferem a • eia a -1 fazem um-a relação estimu-
, oderna· de uma tara mora _
ra as suas empresas e os seus países. d
11ovador a ~poca m . .f. Não há capitalismo sem positivaçao das
Compreende-se bem por que motivo os mesmos globógrafos estavam si- 11111 . ccononucamente s1gm icante . . . eçam a fazer girar a roda da
multaneamente ao serviço dos príncipes e dos grandes empresários burgue- il vhh s São os devedores-produtores que com . 46
• . - dO d.111h . na «época da burguesia» .
ses. Diante da novidade, imperadores e mercadores são iguais, e a Fortuna p ·rmanente circulaçao elfo _ , a Terra gira em volta do Sol ,
não faz praticamente distinção entre favoritos nobres e não nobres. Quando o ) facto central da época moderna nao e que
seu chanceler Maximiliano Transylvanus lhe chamou a atenção para esses 111 is 4ue o_dinheiro gira à volta da Terra.
eruditos extraordinariamente úteis, Carlos V entreteceu relações amistosas
com Gerhard Mercator e Philipp Apian , os globógrafos dominantes da época,
que trabalhavam simultaneamente para toda a elite do mundo económico e
científico . Raymond Fugger, que não era propriamente um mercador de es-
quina, pediu a Furtenbach em 1535 que realizasse um globo terrestre pessoal
que foi instalado no Castelo Fugger de Kirbach; tal como o globo Welser de
Christoff Schiepp, um pouco mais antigo, o globo Fugger era uma peça úni-
ca realizada com arte. O futuro pertencia contudo aos globos impressos que
se espalharam em grande número no mercado . Foram eles que deram à glo-
balização o seu primeiro fundamento a nível dos mass media. Mas , fossem
eles peças únicas ou produtos feitos em série, todos os globos falavam a quem
os observava do prazer e da necessidade feitos obter vantagens num espaço
terrestre que já não tinha fronteiras.
Em 22 de Março de 1518 , tendo voltado as costas ao Portugal ingrato, Ma-
galhães, o herói dos mares,j untamente com um representante da Coroa espa-
nhola, lançou um olhar para um globo prometedor do mesmo género , que si-
tuava as Molucas algures perto dos antípodas: os doi s celebraram um contrato
que incidia sobre o descobrimento dessas ilhas (Capitulación sobre el descu~
brimiento de las lslas de la Especeria), no qual se estabeleciam regras minu-
ciosas para a repartição das riquezas virtuais que haveriam de jorrar dessas
fo ntes. Vê-se aqui de maneira excepcionalmente explícita que nem o concei-
to de «descobrimento» - que , do ponto de vista epistemológico e político ,
. devedor-produtor» a Gunnar Heinsohn e Otto
fo i o termo dominante da época moderna - designava uma entidade autóno- 46 Devemos a definição_ do e~1presáno como « Geld. Un elüste Riitsel de r Wirtschaftstheorie,
ma, mas um caso particular do fenómeno do investimento . O investimento, S1ciger, que, com o seu li vro Eigentum. Zms und odeio s}gestivo de explicação da dinâmica da
por seu turno , é um caso específico do comércio de risco. Quando os esque- .H b 1996 apresentaram um m
Rcinbeck be1 am mg , , ' d . como economia da propriedade.
mas do comércio de risco se propagam universalmente - contrair créditos, inovação na economia da epoca mo erna,
/\ Idade Média apaixonada pela estabilidade lê este trecho como um aviso
1·111itru a vanitas, pelo que vê na deusa caprichosa um demónio da funestava-
i 11 hilielade das coisas, ao passo que o início da época moderna fareja na ima-
1 ·111 da roda girante do destino uma metafísica da sorte que corre ao encon-
110 dos seus próprios móbeis. Nas quatro posições fundamentais da roda da
llll'tuna , subir, imperar, descer, estar em terra, a época moderna não reconhe-
1 · upenas os riscos fundamentais da vita activa, mas também os estádios tí-
p1rns ela sorte do empresário .
8 Fortuna Ou a Metafísica da Sorte 'ontudo, não se representa a Fortuna apenas com a sua roda, mas igual-
11 1·11te com emblemas marítimos como a vela enfunada e, sobretudo, o timão,
q11 ·, tal como o globo, foi o seu atributo mais antigo; ele mostra que a sorte
Nesta constelação económica e sico , . 11 o se limita a aparecer a alguém: este deve-a também à sua própria habili-
receu de novo no horizonte dos . pt poht1ca, a deusa romana da sorte apa-
d ide. Já a Antiguidade associara a sorte à viagem marítima; a época moderna
q uer outra t igura
·
do panteão a t·
m eresses europeus p · .
, o1s , mais do que qual-
e . . . n igo, estava em cond· - d 11 o tem outra hipótese senão confirmar essa relação . Quando muito, vemos
meigente rel1g10sidade mercant1·1 ,. içoes e pactuar com a omar-se aos sinais marítimos o do dado cuja queda - cadentia - gera o
Pon d ia
. , . ..
a sensibilidade da ontolo ia d
e mant1ma O reg
..
d F
resso a ortuna corres- ó<4'1-"';.... .,,,.;,.

·011ce ito da acção de risco~e portanto uma das noções~chave do mJ:!.ndo mo-
tunismo de Maquiavel no ensalmo ~s :ortu~1dades que encarnara no opor-
d ·rno: a sorte . Sempre que contamos éôm probabilidades de êxito ou de fra-
Bacon . Também o neofatalismo do Sh ek ontaigne e_ no experimentalismo de
1· isso, Õ lancê de dados entra em jogo . Podemos ir a ponto de discernir nos
característicos que a época pro-" . a bespe_are tardio faz parte dos discursos
iena so re SI própr· d p ·nsamentos renovados do Renascimento sobre a Fortuna, entre uma grande
mentos sombrios apercebia o s h ia , quan o, nos seus mo-
d ' er umano como . quantidade de significados e contextos 49 , a nascente filosofia do~exito do pro-
ça o pela concorrência, cego pela inve ·a . u~ tomador de nsco amea- l lliberalismo, para a qual as pQsições da rõdã a i"°"FbrtÚ~a corresponderão
os actores aparecem na cena m d. 1 J , estigmatizado pelo fracasso· aqui
d ·1 - un ia como bola . , , l' Xactamente aos julgamentÕs divinos do mercado. No êxito, antes de toda a
a I usao, os génios maus , os espectros do dº h ~-com que Jº?ªm as potências s11bjectividade do controlo e dos métodos , é o eleitor acaso que acede ao po-
Por todo o lado a Fortuna m euo e os demonios da cupidez
e IA . - , aparece como a deusa d I b 1· . d ·r. O que é o liberalismo, de um ponto de vista filosófico, senão a emanci-
e enc1a: nao só se apresenta como Tb . a g o a ização por ex-
lança na sua bola, mas ensina també;~ui I r~sta etern~mente irónica que ba-
p,1ção do acidêntal? .= Ê que é o novo espírito de empresa senão uma práti-
·11 que _visa corrigir a sorte?
mo um jogo de azar em que os ganhad cons1~erar a vida no seu conjunto co-
Um dos pensamentos profundos do século xv1 exprime-se no facto de que,
perdedores de que se queixar J, B , . ores nao têm de que se gabar nem os
· a oec10 que no 1· paralelamente à nobreza de sangue, no cume desde os tempos míticos , e à no-
contra a Felicidade e a lnfelicidad 47 d ,, seu ivro sobre os Remédios
breza de toga, que começou a tomar-se indispensável ao serviço dos Estados
peculações medievais sobre a F rt e o sec_ulo VI, lançara as bases das es-
. . 0 una e continuou -" . lo início ela época moderna, a boa fortuna promove a nobreza anárquica do
para as f ilosofias da felicidade d a ser ionte de inspiração
d urante o Renasciment futuro - essa nobreza da sorte que, verdadeira filha da época moderna , nas-
eusa as premissas de uma existeA . b o, pusera na boca da sua
ncia so re a roda: ·e cio seio da Fortuna e dela apenas. É a partir dessa nobreza de acaso que se
recrutarão as notabilidades da era da globalização - uma sociedade compos-
«Isto é a minha capacidade este ·o o .
da, e o meu júbilo consiste e~ A_J g _,Jogo-o sem parar: faço girar aro- ta ele novos-ricos noctâmbulos, célebres e favorecidos, que nunca compreen-
Quando quiseres salta P"'"ª a . dpo, o cimo em baixo e o baixo em cima dem muito bem o que os levou ao cimo . Os ligeiros filhos de Wotan , de For-
' ,u I o a mas na c d · - · lllnatus a Felix Krull , são, paralelamente aos empresários e aos artistas, as
res , conformemente às regras do ' . o~ ,çao de que, quando desce-
. · · meu Jogo nao cons·d · ·riaturas mais legítimas da época moderna prenhe de sorte. A época moderna
InJustrça que te tivessem feito. »48 ' I eres isso como uma
não é apenas a era durante a qual os miseráveis tentam com sorte variável sair
da miséria, é também a grande época das naturezas felizes que, de mão e ca-
l eça ligeira , têm assento entre as sibilas, as rainhas e que se entregam ao con-
47
48 Derem
. ed"· .· ·
us ut11usquejorrunae. sumo integral, incluindo o de voos de pássaros e países das estrelas . Que de-
Cuado de acordo com· Alf d D
Vi .. · re oren «Forru · M.
ortrage der Bibliorhek Warbu,;g, Yol. 2.'Parte l nt9;;/ l 911telalter und_in der Renaissa nce», in 49 O livro de Klaus Richert Fortuna oder die Bestiindigkeit des Wechsels , Frankfurt, 1985, cha-
. ' 23 , p. 82 , la111n , p. 79.
1na a atenção para alguns deles.
1

-
\ AV I V I V l\...1 Uljl\

veriam fazer além disso esses vencedores se


morsos na «tâble d'hôte do acaso»50?
-
m esforço , senao comer sem re- il.,,.,.,,,,,.,..
f ..';· -

Yiria a ser Nietzsche quem for"aria t' .


«Dom Acaso - eis a mais velha ~~bre:a ~rmula da libertação do acidental.
breza e pôr o dado no brasão· d . o mundo .» Fazer parte dessa no-
da que Nietzsche no seu tex.toesssba atitude ~a~ce uma nova justificação da vi-
N , , o re a traoedia chamou t d' . ,
a epoca moden:ia , a sorte emanei ada er: , a eo iceia estetica.
necessidade antioa não sabia nad p S b ºue os olhos para um céu do qual a
· º ' a .« oretodasasco· , ,
tuahdade»51 - um público instruído , , . isas , esta o ceu even-
i
se como a (Boa Nova melhorada F ~os-;etaf1s1c,o, deve entender esta fra-
nência libertada, longe da vinga~ç/d: ~lé: u~ c?u que, recobre uma i.!J)a- 9 A Acção de Risco
campo em que caem os lances de d d d . ce~ da epoca moderna é o
recor assem? Nâ RÓma Im . 1· Fa os o acaso. Nietzsche gostaria que lho
' pena , ortuna era sobretud 0 d d
e da plebe sem trabalho que de ""d· . a . eusa os escravo) Num horizonte de incerteza, assumir riscos calculadàs num campo de ac-
~h ~ ' pen 1am totalmente das dád · .
d os , amores magnânimos dos ricos . ' ivas ocas10nais e / ' o g lobal: com este conceito exprime-se-o fundª mento pragmático dâ cultu-
' t tltr o fuhsÍva e da expansão'Ila época moderna. A agressividade das práticas
•11ropeias de expansão não tem raízes numa disposição psicodinâmica regio-

::· \..., '·,. '' t : ' ' i,__,: .;1 ,.t,- ~::&l;l,t-;:.) 11 11 1; não se trata de um sadismo específico que faria progredir a sua extrover-
o no espaç2. global da Terra. É antes a transposição das práticas e mentali-
~ ; d11dcs ew:o.pe1ªi_'sobre a acção de riscq generaltzada "g~ oduz a energia
tii' ·n.- iva eficaz e_sw:p.r..s;endentey quase misteriosa da~ [>rj~ir.as gerações de
d · ·cobridores. O g0sto elo risco de que dão mostras os novos_actores glo-
h11 is é animado~~ tima râtione , pela necessidãde-de realizar lucros ara apa-
1 ,r as dí.vid~ .oc.i; dã"s aos créditos de investimento. Os europeus de 1500
11tio são mais ávidos , nem mais cruéis, nem mais capazes do que qualquer li-
ttlrngem antes deles . Mas têm mais osto elo risco - quer dizer, têm mais
d ·sejo de conceder crédito, do lado dos credo~-;;stão mais dependentes do
Tédito, do lado dos devedores , o que corresponde à mudança de paradigma
·o nómico, que passa da exploração antiga e medieval dos recursos a econo- /
tlt\as fundadas no investimento. Com este tipo de acção económica, a ideia
dos juros a pagar dentro do prazo é convertida em assunções de risco práticas
· (; nl invenções técnicas. A empresa é a poesia do dinheiro 52 . Tal como a ne- !
("' · ·ss idade aguça o engenho, o crédito estimula a empresa . ,
I ,. ·~ Ô··1
1.1 ~- li

r
• • (:!. L• .{ Ora , como ÔêxJ_erior é também o f~ ro_e o futuro pode ser apresentadJ -

J l ''. ) <-; . f,
I
;fa' > I 'f
.J..' .;
}
1u1s/ mundum inventum corro o! SPªr.,º ·ae onde provêm o ~aqu a ._ggy_eza e
1 bem-aventuran5 a , os primeiros navegadores e os empresários comerciaís
~-
·xcêntricos desencadearam essa temP.estade de investim.entos ,em dir.e.cção ao
·xterior ue no espaço de meio milénio , havia de dar or i~fl! acu!_esenvolvi-
o O Inversamente, o fim do século XVJU descobre també
rn ~ to do@.mêrío ai?,-ita1ístiêp-informático â ctuaJ.. Desde a época de Co-
1
lombo , a globalização designa a futurização geral do comércio estatal, em-
soluto - ou então, co mo dirá Maltht15. . b. '"-: m o home m que tem azar no sentido ab_-
( - - • 0 po re que «nasce num
nao estao em condições de alimenta. S 0 . d- M .
d ·/.
mun o Jd ocupado» e cuJ·os pais
presarial e epistémico. Ela é a submissão do globo à forma do rendimentçi.
- ' d · e un o althu s t t l · ~ 1· · - O ~ ci:_o significa dora~ante o_j i1l1ei~ que_~_gué m ~ scou e ~ gr.essa à
terra . No grande banquete da na ture '. '.: h·' ' im a in e iz está «realmente a mai s na
51 Friedrich Nietzsche A t d N z,1 nao "talher posto pa ra ele» . sua conta original após ter dado a volta aos-oceanos. Deste ponto de vista , a
, « n es o ascer do Sol · A ·
1998 , pp. 189 sq . », in ssim Falava Z.Ora1us1ra , Relógio D' Ág ua ,
\ 1 . ' ('. •t .......

· 2 Cf. Joche n Hori sch, Kopf ~ -z:ihÍ. Die Poesie eles Geleis, Frankfurt, 1996.
globalização terrestre manifesta-se como o cunho do espírito de empresa, no
sentido estrito que a ép6ca môdema- éõ'nfere a ~sse terrr{°o. Que este, no eu
período original, não se distinga claramente do aventureirismo, da fabricaçã
séria de projectos mistificados - Daniel Defo ;-que era ele próprio azarado
especulador e representante de vinhos, tabacos e peúgas, descreveu isso em
termos críticos 53 - , do charlatanllimo teragêutj_ço~golítico, da criminalida-
de ocasional e organizádã, tudoisso dá às práticas da expansão gfoba ããm-
biguidade:que ainda hoj~ a elas se prende. -
O coração programático da época moderna palpita na nova ciência da_as- 1o Loucura e Tempo
sunção de riscos. O_globo é o monitor onde se pode ter uma visão de conjun- Do Capitalismo e da Telepatia
to sobre o campo ·· o comércio generalizado dos investimentos . É também e
já a mesa de jogo em que os investidores-aventureiros põem as suas aposta .
o surgiinentõ dÕ globo, a rapidez ~com qÜe se impôs e a sua regular actuali- . foi inúmeras vezes escrita sob a forma de
zação simbolizam o início da era dos global players em cujo mundo se vêem /\ história dos Descobnmentos - d . ce policial e de sucesso das
t as de navegaçao, e rnman . . h.
sem dúvida naufragar muitos barcos, mas onde o Sol não se põe. São jogado- i·rnnance d e aven ur . . t andes potências impena1s e de is-
. d h' tória das mveps en re gr . .
res que pegam num globo para baterem os seus concorrentes na tele-visão, na ·onqu1 stas, e is . foi a hi stória das mveps en-
tele-especulação e no tele-lucro. O lema imperial Plus oultre, ao abrigo do 11 ria religiosa neo-apostóhca (que,f?º: su)a vAeze, xpansão europeia» foi objec-
. · , ias e as con 1ssoes . « d
qual a frota de Carlos V cruzava os oceanos, inspirou um pensamento que não tr , as ordens m1ss10nar .f. - de condenações· no velho mun o,
, · d glon 1caçoes e '
quer apenas ver e ir ao longe, mas que, por princípio , quer ir sempre mais lon- to ele toda a espec1e e ue a dúvida de si próprio constitui uma co-
ge. Schl!,mpeter, tinha razão ao querer reconhecer no plus ultra o santo-e- trn nsformou-se num campo em q
·d', · 55
·--senha.do ~spíri.to de em res é.p.oc.a..mgc;lema. \hcita subs1 iana . . . do nosso conhecimento, nunca se encarou
O princípio televisão não esperou, pois, a época das imagens animadas pa- Se, em contrapartida, que seJa b - uma história integralmen-
ra emergir; era um dado adquirido desde que a previsão e a visão à distância - e a fortiori nunca se tentou ou levou a ca o 'ti mos tal deve-se essencial-
do empresário se serviam desse medium que era o globo - um medium '. filosófica dos desc~bri~ento~ te'.1"estre~ es :::ctrize~ ue se inseriam num
que por si próprio exigia actualizações constantes. As imagens animadas do sé- mente ao facto de a~ 111d1spensav~1~ 1ºtºeizaçãoocuparem "üin lugar suba\-
. , · dos processos e g o a - ·
culo xx são precedidas pelas imagens renováveis da grande época dos globos rcs4mo o o ic 0- -· . , - " ' - - -t '- del-e-àusentés "ná ·sua maior
J' . d s f1losofos estan o a e . !/
e dos mapas. O vendedor das Molucas, Carlos V, e o comprador das Molucas, terno n - v.ocab.\!._~:~ ·ra- ··-' b ' baros , canital caotação, cartografJa, ( i l,~ {
, ·magem 5a aqumos, ar ::r-· ? .1: d' .d v») r,"'. •·
João III, são actores exemplares nessa cultura do risco fundada na visão à dis-
tância. A sua transacção em 1529 mostra que ; a partir de então, os príncipes -
parte: aceJ, ª...!... .__ , __ d .d d - escÕnhecido , desinibição , ~ 1 as,
. . .
-·rime, .C..!,!llSm~,
' ,
delegaçao ens1 a e,
.......,...-
t são , extenon
_,... . ~ "
-·-,.. éla"de , fantasmas , inibirão ;'5' .
. ~ .
, IQVestm;i.en-

.,
r
1/
,. ,!./;I· e

eram menos os primeiros servidores regionais de Deus na Terra do que os pri- distância, ecu eno, ex_en ' ·-- ·· . c; sistema demencial , sistema 1 1·
- ;...,--. d. . -o reticülação retroacçao, ns , « ~ ..= . ~ ~ .
meiros chefes de empresa de um Estado dependente do dinheiro . Sob a sua égi- lO, f'J!,~J.a, ~-ssa , . -~·~ f'ctade emsequeTii'm a expressão tão emmen~e C0-
de , os povos europeus desenvolvem-se para se tomarem colectivos de investi- ,01Ulldia), t~ ~1c5>, u~~~~-- da no Historisches Worterbuch der Phtloso-
mento modernos que, o mai s tardar a partir do século xvrn, se perfilam sob o mo des ·abnmento ..e. men:1o~a J him Ritter e Karlfried Gründer, a ~elhor
nome de nações como chargés d'ajfaires autónomos 54 . E se as nações inte- phie, editado sob a d1recçao e oac, .· de terminologia do ofício56. Mais à
obra canónica intercultural em matei ia .
gradas na economia moderna após a Revolução Americana se reestruturaram
cada vez mais no sentido da democracia , tal deu-se depois de terem descober- • . e undamental do ambiente comparando as tonal~dades
to que os reis, nos conselhos de administração desses colectivos de investi- 55 Podemos fazer uma ideia da mutaçao f . art ntenário da viagem de Cristóvao Co-
d te as cenmónrns do qu O ce 1992
mento político, passaram a ser factores improdutivos. A históri a recente lriunfais que dominavam uran 1 - caracterizou as do quinto centenário em .
lombo em 1892 ,eaatmosferadeautotl ageaçaoque t amento atendendo a que outra palavra-
caracteriza-se por um desemprego estrutural e de longa duração dos monarcas. ' - d sentido deste escamo e fi
56 Podemos ter uma noçao O d dicionário hi stórico da filoso 1a: a pa-
, l está também ausente esse z .
d
-chave do mais eleva o mve_ . Fleck der Philosophie: Medien», DeutscIie ez 1s-
lavra ~ - Cf. Joc_hen Hü n sch, «Der bl;8d9\90. A moral da história é clara: uma filosofia que .,llr /
53 Daniel Defoe, Essay on Projects, 1697.
54 Sobre a tipologia do príncipe-empresário , cf. Werner Sombart, Der Bourgeois. Zur Geistes- chrift fiir Philosophie , Mato de 200~, PP· l . te aos Descobrimentos e aos media prova- !
d"d dependencia re auvamen .,
geschichte des modernen Wirtschafchtsmenschen , Munique e Leipzig , 1923 , reimpressão Ber- tivesse compreen t o a sua fl fia no sentido tradicional do termo .
lim , 1987 , pp. 102 sq.
---
ve1mente já não odena ser uma t oso i, -
• -·-· ....... ..... . ... .J· · 1: ,{ )
J., •
_ . - rma mistificadora de <~2,!~~ETinação de .fil» ~, gene-
fre nte indicaremos o que se deve pensar dessas carências do vocabulário du los ale maes dai -lhe-ao a'.º , Q d há que trocar por mllldos o
1 tli:t.á- la-ão até a tornar irreco~hec1vel. uanfo ma do a focÕhselho,e d~ áu-
filosofia universitária e de que disposições são sintomáticas. Mas , num pri-
\' lltu siasmo gera d o por s1
. própno este toma a or
, , .
-..,.,,,=.,.
d expressão a nova d1 iou -
.f. 1
meiro tempo, vamos descrever em traços largos a maneira como uma teoria - ~ duas formas pragmat1cas e d
~/ , da ,g lobalização fundada na filosofia do descobrimento deveria abordar o se u 1op rsuasão - e~ ~ M na sua maior parte, os actores a ff
d11dc que há em ser-se suJe~to., as como , em a automotivação, ficaJll de- C/F s, ., ,
1• t: ~ª e com que problemas se confronta_uma teoria da comunidade ant~ o-
1 ....... ~ - - ·-- -~.....,..--
!og1ca globalizada por força dos descobnmentos, aliás a umam a e . ao se
1• ' adie importuno que comecemos por tratar dós delírios dos descobridores .
- ~,1oca moderna so im
11 ·ncle ntes de conse e1ros q
,
lh ·
perfeitamente consegu
.
ue os apoiam nas
'f ultramarino e a circulação cio cap1-
~11 a mi ssão e na sua sorte. Com o tra i~o s de projectos e dos astrólogos -
d.
suas tentativas de acre itar na
.

" /,1 ··' Parece ser trivial dizer que a prática dos descobrimentos geog_mficos esta- 111 I começa a Idade de Ouro dos soprl~ ~re_do século XXI. A época moderna,
. cl - se encerrou no im1at ..
va ligada a uma partida muito arriscada para uma exterioridade desenraizada . r çssa era am a nao . d. ( eia tornou-se o paraíso dos vts10-
Mas se olharmos mais atentamente, veremos a que ponto se imiscuír"ãm na ·om a sua obsessão de a~lf a \ouga, ~s an ~s capitais que têm de ser valo-
·es A preocupaçao com . S .
empresa móbei"s-rrão trivi'ais. Sem a elabor~ção de_ sistemas de demência que 11 (i rios e dos consu lt 01 . d f poderes sobrenaturais. ena
- d voltas ao mun o con ere
justifica_ssem como actos racionais tais saltos no indistinto e no dêsconhecido , i·izaclos no decurso as . f1 xos de dinheiro e de mer-
essoas para as quais os u . f1 A
1 / ~ ~- às viagens dos Portugueses e dos Espanhóis nunca se teriam realizado . Esse é t11 mbém espantoso que p . - h t mbém igualmente em m uen- ; ,
. realidade nao ten am a ( , t'"-"
um dos traços essenciais da loucura bem sistematizada: sabe transmitir-se a ·adona representam a . bt"l O pensamento do fluxo te 1e- v
outros sob as vestes do projecto plausível; uma loucura que não contamina ·ias e emanaçoes eu
- d ma natureza mais su i.
, . ) bra a heoemoni-a da esco ast1ca
l' . \
,;,i
não se compreende suficientemente a si própria57 . O certo é que Colombo,
pi"Ítico, astrofísico , magnético e mon_e tano q_ue quatr; séculos para o quoti- Jwb .,i,.,,.
. A . bora tenham sido precisos
nos seus últimos anos, não se contentava com ver-se marinheiro , cÕnquista- da substancia -. em sa conversão ao seu termo.
dor de um mundo novo e cartógrafo. Pelo contrário , havia adquirido a certe- di ano euro-americano levares . e tornou um senhor secreto
za de ser um apóstolo chamado por vontade de Deus a levar a salvação por Nos últimos anos de vida_, Anto~ F~gge11:i::ção empreendida na Améri-
cima das águas . Encorajado pelo seu incomparável êxito, fez do seu nome, do mundo na qualid,ade de fmante~r\:u~~ enredar por uma sedutora curan-
Christóphgros, o portador de Deus, a sua religião, e transformou o seu patro- "' t cio Sul pelo impeno espanho , e1 , . d adre Em 1564 esta teve de
' 1 . ubina notona e um P · '
nímico hispanizado , ~ - o colono - , em divisa existencial - um fe- leira , Anna Merge e1 , cone . . . d. nte dos juízes do Conselho ele Augs-
nómeno de estilização que tinha a ver com a psicologia do êxito e que se tor- ,.. sponder pela acusação de fe1t1çana iad d homem mesmo após o seu
. 1 .d que o nome o gran e ,
nou característico do universo dos empresários na época moderna e das suas huroo, mas foi abso v1 a por A talismã J·urídico . Segundo o
º
l"alecimento, continua
. va a protege-la como um
t· ha ambições parapsico og1cas ,
l' .
religiões autógenas no seu conjunto. No seu livro das Profecias, de 1502, . ho Anton Fugoer, que 111 . 1
0
apresentava-se a si próprio como Messias náutico , cuja chegada havia sido seu própno testemun , . . , c1·stância numa bola de cnsta ,
. M ler o dom de v1g1ar a J , 1 d
predita desde a noite dos tempos58 . Sem a l5)Ucur_~ êxito , não há projecto; li lqujrira de Anna erge d , . . ara seu grande desprazer, a boa e
sem projecto, não há nenhuma oportunidade de contammar outra pé ssoas os factos e gestos cios seus man ª~ª~º\dores mais bem vestidos do que ele
com a sua própria febre. Nisso, Colombo foi o agente de uma pcopensão pa- td e-visão mostrou-lhe os seus coa or ·t ais bem vestidos do que eu»),
. idores andam mui O m .
ra a loucura que era comurn.,.ao conjunto eia Europa, mas que os Americanos própno ( «os meus ser~ os re ulamentos vestimentais marcavam
v·ieram a ape1feiçoar no século xx por meios psicotécnicos, sendo depois lcscoberta que, numa ep?c_a ~m ~\ame!e sanções59 _
reimportada pela Europa por intermédio da j ndústria da consultoria . Esta pro- o estatuto e o sangue , exigia ime ia , . por terroristas da Fracção do
d am O seu assass11110 h
pensão para a loucura tornou-se instrumentalizável no mundo inteiro por Nos anos que prece er . d te da direcção da Deutsc e
, . lh Alfred Herrhausen, pres1 en tt O·· h\ .
meio do conceito: ~ uscar a própria salvação levando-a aos outros.» Exercito Verme o, · . lh · ele empresa Gertrud ei ,
· f1 A · d germamsta e conse ena . _
Esta síntese ideal de abnegação de si e de serviço presta o a si próprio re- Hank por 111 uenc1a a d" Amica de grupo em mtençao
in stit~íra exercícios de descoberta cio eu por ma
sume a figura psicotécnica que permite a época moderna, a do «entusiasmo
por.si grópr~» ou da «mania autógena» - no momento oportuno , o~ o.=...,
. . a italismus und Magie in der frühen Neuzeit», in
• l)c r. Lydal Roper, «Bedrohte Mannhchk/ e1L K/ ~fi1·1·1·hen Neuzeit Frankfurt, 1995 , PP· 127-1 33 .
.r l K··. · nd Psyc 1e 111 te, ' · ções
57 Cf. Bent Flyvberg, Niels Bruzelius e Werner Rothengatter, Megaproj ec1s and Risk: An Ana- (}di1rn s und der Teu; e . o,pe1 u d , . a da transferência nessas telecomu111ca
.
O mesmo ensaio ilustra tam em
b' o problema a 1tecnic
. b la de Anton Fuoger estavam encerradas
of Ambition , Cambridge, Cambridge University Press, 2003.
10 111.y h d Anna Meroe e1 , na o " d ·s
58 Cf. Bibliotheca Missionum , Tomo 1, 1916. Colombo, referindo-se a si próprio: «O Senhor fez precoces: a crer no testemun o e " é d s ares· poderiam existir informa ores ma,
"~almas de criminosos conde~~do_s ~ errar atrav s o .
de mim o embaixador de um novo Céu e de uma nova Terra. [...] O que Isaías predisse [... ]
tornou-se realidade.» r6 pidos, mas também menos trnve1s.
'"'
dos colaboradores do seu estabelecimento, a fim de os incitar a melhorar o cl •
sempenho . A sua brilhante consultora discernira antes de muitos outros os
sinais da época, que exige funcionários flexibilizados, funcionando pela int •
ligência emocional, capazes de trabalhar em equipa e estimulando-se a si pró-
prios (poderia dizer-se: funcionários mais protestantes 60 ).
Entre as duas datas, estende-se um contínuo que impregna toda a épocu
moderna: o da busca de caminhos que permitam_transmitir às práticas profa- ' 1

nas saberes relativos à salvação. O que caracteriza uma boa parte da indústria ' \ . 'd d
actual de c ~ a é o facto de retomar tradições espirituais para as inte- 11 Ã In~n_ç_ão da Stlbjeç!!Y)._ a e . i
~ j r,1.-i ) t:·.,· .<-~· ":!
grar pouco a pouco na actividade comercial realista - o melhor exemplo é a A Desinibição Primária e os Seus Conselheiros
adaptação do budismo zen a uma clientela resolutamente não meditativa. f lr. !~·
Assim, e nunca será de mais dizê-lo, aquilo a que se chamou expansão u- ... t ,/ ,;,
~ ~ e1 ·I .- !:~-, de
\ r~eia não tem.as suas raízes causais na- Ídeia_crfatã d~ ;rssã~ antescs deu, . . . . " , f· ' uma fosi ~ a partir da qual umi.~ct~~ po
que a e~pansão e a acção de risco colonial e mercantil sistematizada acguin- Scr-«suJe1to» s1gmfica't.01!1a.f..-:- -; f ç_ t ansição produz-se quando um
J d~,.élist~TJcia libertaram a actividade de missionar, de transmitir e de trn~e c -
- -- . , ' t' a De ordmarm-r essa r
p11 :-sar da ~~-<?E~ a P_ i_c . ue o liberta da hesitação e ~nib.e, ~e mo o a_
d
IH'lor encontrou o jlliltLV.o q rção imperativa surgiu como o
1mo que um tipo de actividade autónoma. Esta categoria agrupa a transferên- . ..
p 1ss1büitar:.lbe a ,acça~.
- Desde sempre, a coe
. .. -
.. .
uer tal coerção seja de natureza m-
.
éia generalizada da salvação, a exportação da civilização altamente ~ nçada ,
a consulta e todos os proc~dimentos de transferênciã ~ êxitÕ e da-~;{~gem. llP, ·11te mais poderoso da_ desm1~1çao - ~ 1 Mas comQ..a_c.ultura....dª-. actjvida-
. er seJa exterior e socia . ::.--- .
Néste se~tido, poderia dizer-se que a época moderna constitui no seu c_onTun- 111rior e af ectiva, qu · ;, . tit . contra a heter.onom1a, procura-
to o objecto de uma ciência secular da miss,ão. Os missionários cristãos mais d . que caracterizª a modernidade se .cons _utL colocar o q_ue dá a ordem no
-;· - cedimento que permi e · ·
, não fizeram do que reconhecer prematura,pente a oportunidade históric~ que 1 encontrnJ.ª -º pro d forma que este quando cede, parece
1 sél_h es"ôferecia, saltan~o para o navio ao zarp~r6 .
1
l
)r iprio interj.o~ daquele q_ue a_~~c~ta,_.,_ _e D
à sua voz mtenor. esse
é
modo convocado, criado e
......,.....- . ! 1
Na ê pocã moderna, pertencem ao grupo dos portadores de vantagens os I' wr apenas a o b e d ecer d d facto a que se ch~Il!a..JS?J-tDJe<_:~1- t .,
conquistadores, os descobridores, os investigadores, os padres, os empresá- " )nsumado simultaneamente esse esta ? d~ ,,1,., t"'rum.po,1e de co-gec,isão j-.i l' , .
, . f c..t de o..w J.YJ.u_µ_O- ..,......
rios, os políticos, os artistas, os professores, os designers, os jornalistas - _!.Q:. vldade». D :ügna;:se~ass1_m o
. A
·ª·
o.. ·d-.- -- and
ue o P.9 e com
/J1 , __ - -
. ar Regra geral, essa organiza-
. -
1dos eles apoiados pelos seus próprios conselheiros e fornecedores de equipa- 111 cdifis_açã9 ~ n§!fiPCHi q: · .-~, Í- - · t t al na medida em que, no mo-
\ rríento. Cada uma destas fracções, sem excepção, adorna as suas práticas com ' o da desinibição torna-se mv1sive ~.. 'em fac~ da obediência, não
acto confere"'ª9..S.J!ft,PL,eS' . · d·
t'árefâs maníacas a cumprir, isto é, missões profanas . Todas buscam constan- l\l ·nto da passagem ao : - •. 1, . mas boas razões e mtere~se~ JU 1-
temente colmatar as suas falhas depressivas e eliminar as suas dúvidas con- pt1ixões irresistíveis e coerç?e~ me utave1s, -
9e
tratando os serviço~ motivadores pag9~: Estes devem m?s!rar-lhes o c_am ·- closos concebidos pelos proprlQS.
. 'd d ectamente enten i a im
d'd . plica pois sempre a ca acida-

í
'7"'" .
. nho que permite <e'r-se um·sujeito modernQ ,:isto é, um4 gente com motivaçõé A subject1v1 a e corr . ·onal ou de uma extenon-
- tido de um raptus mac1 d
"fãciõriã(s? . -- . - ti. de agi~, pas 5 ~o se_n - !vidas - o que a psicanálise francesa e-
1,ução de tensões puls1onais nao reso Q em quer que se encontre sob a
i nou pelo termo de passagem ao _actol . Deuus ou a pátria não é também um
d o tro» seJae e ' _ _..,....,- - -
Influência de umA «gran__e_ u_ ~ e os criptocatólieos: para o ser, há qu~ p~-
Nujeito , como cre~~ ~s \acaman~ernidade visando uma formatagem ps1gu1:a •·.
lt ·ipar nas expenencias da mo / d ·ntegrar es a tarefa na reflexao
60 Sobre o estado actual da sua abordagem de consultora, cf. o livro de GH: Herzschlag der Sie- . ..,,.. · ais\ Temos sempr e 1 , .
ger. Die EQ-Revolution, Düsseldorf e Munique , 1997. Note-se o duplo sentido fasc inante de
«Herzschlag der Sieger» [a palavra alemã Herzschlag pode significar «ataque de coração» e
«pulsação cardíaca», de modo que o título pode significar «o ataque cardíaco do vencedor» ou
«a pulsação cardíaca do vencedor»]. Sobre o Herzschlag do perdedor, reflecte, mai s no tom de
uma contraconsulta depressiva , Richard Sennett no se u livro Der flexible Mensch . Die Kultur
IH. energ1~., e_p_2resar_1 .' .
1uandÜ falamos do s~
m um pensament2._autonom~. Um

. , t bém feita d interesses


rP-
d uma ac~o por conta propna» ou co-
Je1to como ~!:... <resário vive sempre nª transição p~~
- te para a acção que constro1 _,,, i'' l
i·n o agir «a partir de si própno» : pel ~ue ~.J~on - entre os quais é perfeita- - i• .... ' ·1·
d /
ou manda constrmr e__ am_ . . A crer na regra da linguagem a ' ·' , 11
des neuen Kapitalismus , Berlim , 1998. , . nteresses racionais. -
61 Cf. Felix Alfred Plattner, Jesuiten zur See. Der Weg nach Asien. Ein Beitrag zur Geschichte mente poss1vel encontrai i . 1 . ctamente os seus interesses nao l, '"' ,.,_.
der Entdeckungen, Zurique, 1946. t'i losofia moderna, quem sabe mterpr\ tai/ col rre J /lt, .· - , .).,, . , ,' ( ;
\ 11 / .( 1' ' /

!
- -·-· . . ...., ~ '""'..------
_, I J ,
. .d d indeterminada;. so se
l; e ode prestar justiça man-
p l ente suspeito )
obedece a mais ninguém senão à «voz da razão». Por conseguinte, basta pro plicaumaofens1v1 _a e fl tuar63_Nocaráct~ f~ndam~n_ta_m 'bTdadede ,.,.,/~'-'-,
I •ndo uma desconfiança a U su ·eito encontramos a OSSl 11 . . e ' e.
clamar a razão, no seu todo, como coisa própria, para libertar a acção da su:; 1
peita de determinação exterior. No entanto, saber se a voz da razão podem d _·s_sa _entid~d:u~~=i:~v;r~ti::rr:~::éu\lvedrio» ~: s~~s u:t::t~~:~0c s:;ei- :. ,,J~ .\
010 tornar-se integralmente propriedade íntima de quem a escuta deve l 1
parecido pr9blemático às Luzes avançadas, pois as exigências dessa voz 1'
~l~~:;;1 ~: então se é, conso~nte º1~:s:~~:rc~:s~u demoníacas. o su)eitod:
0
]•'' .
ln a potências anóni~~s,dseJamb:ção e.de reflexão, ou ainda d~ energia e
vamt"re.guentemente a c~nflitos com o outro intimissimum do sujeito, 0§...S u omplexo não tnv1al e am A . '
próprios -~ ntimentos. Para sair desse dilema, o ro111antismo escolherá a solu um ,C . . f . ~ . . , oca moderna fo- . . i"': ,
ção que consiste em deixar a primazia 110 sentimento, atribuindo-lhe a men- 11stuc1as .f'- . d termo os primelíOS _s,uJettos da ep . lantaram no J C: S(; 1 •1
No sentido preciso o , osi'.Tesuítas; que se imp 1
ção «mais racional do que a simples razão». , i· · _ . ,. , i 1). - . c1· emos no que se segue , \i Reforma - com o
Pôr à nu a figura da Q.jJediª 1_1cia a si próprio no cerne da subjectividade cln rn m, como mm1coa;orça especial de intervenção da Contoraa-traso do partido ca-
,,,.culo XVI co · t· em recuperar .
época moderna é mostrar como os ..,«su ·eitos.»_se armam para se tornarem ~e . . .dade que cons1s ia . to tentativa ex-
i ( 1'
l agentes c<:q~azes de agir aconselhando-se a s i próprios , persuadindo-se a si ~1~:::~~-:i:t~::~:;~~s pr~tesr_ant~s~ :ª~e:i~~i~~~:\;~j~~~~idade je~uítica
próprios, <lindo a sipróprios·o sinal da d.t;.sin.ib.ição dos.actos - ou então ar- , . d rearmamento ps1cotec01c . ~ . rotestantes melhor o que
>, /·;' '(, .,
r ,.,"
_J, • 1
ranjando
pa_citação
quem o faç_a por eles. Assim, a subjectivação é iosep;iráyel da ca-
e do: trêind que a acompanha. Ao subl inhar este ponto, rejeitamos
o mal-entendidô propagado pela teoria crítica que consiste em interpretar a
·_1~:::n~:~~~;p:~:~~::
p\ic1ta e -- . d compreender os ex1tos p d ultrapassa-
a esi própri?s . ~u:d~e d;r:s:c1:ª;:!r: c~nfiss~o reli-
,'cm identificou-se o valor ~x~epc1ona ; resenta a sua profi~são de fe sob a
1

. subjectividade moderna como uma agência do contro lo de si próprio - em


_, \i termos psicanalíticos: como uma agência da neurose obsessiva . O sentido
~. , em matéria de desini~1çao: quem p f vor a força de penetração. A pa~- \
fc'>~:a de ,áctos tem indiscuttvel~ent~: :;~ d:s guerras de religião , uma _corn~
,, l, · real do ~ vir-como-~ j~ito só pode ser compreendido a partir do armameQt0
e d~ a_µtodesinibição do actor - isto é, de uma certa maneira, pela sua histe 1ir dessa observação _se ~:::â:~i~~: na sequência da qual se faz ;~~~ºa~t~º:s
d·1 ao armamento ps1co ' b'l mas também como arma. . - J·e
t fização} Um actor moderno não atinge a sua forma se não se apoiar num ' mo mo 1 , · , · s a pos1çao -
ex~rcícL~.!:S.P~EJficq__g_e a,Mtoconsulta e de autopersuasão . Quando recorre a 1"1csão
·'
não apenas co
t am como un
f damentalistas pnmano , .
, · O teatro Je-
este tipo de prestações , não se trata , regra geral, de conhecimento teórico en- protestantes se apresen ;~dia do fundamentalismo do adve:san~i- ão jesuítica
su ítica baseava-se na p t ' .o remonta no fundo, a po ç f
quanto tal, mas da utjlização de conhecimentos em prol de objectivos práti- . orande repor on , l rt doxia se trans or-
cos . - ~oc9nselh e da autopersuasão há-de acabar por resultar a au(ode- ~\~í~:~~t~ot:i ~s:~ribui aos actores u: P;~~:~ii~;i/ ; 0 rºessa via, s~ ~odia
. .b 1çao.:..
. - { ) r,.,. ,c,1
/ • .'(1,'
J \ / "
s1ru ~,~ 4(.o-,,!._ .< , 1 r,,•., --,r ,i..- (
1
• / . v_1 ma em q:ierformanc~ Do me~~~ mo ~~ redo da o-relem religiosa res1d1U ~o
~ 1 (._[:.,: S.§.(!LQ.~_Jeorifl à pi:_áti_cu;_ons!itui pois a essê.ncia_d s.ubj<:;.c f v·g · Co- (, ' 1 m exercício autontano. O ~ . , .codinâmica protestante. o
r mo é evidente, nunca se consegue prever com toda a certeza o ponto a que \ornar-se u . m ·equivalente catohco a psi . . a de motivação
( . . de saber cnar u . . - 0 de um s1stem -
r chegarão os actores neste processo. Mas um agente que, levado por motivos ~:~~:~he importava er~ utilizadr ~-novl::~:~~~a ascético e de a pôr ao serviço
jnter os , mais ou menos opacos aos observadores, possa passar a um a,ç:to, , . m sistema e imp · ,
·ntus1asta com u · ·l dial da fe . . . _
' qualquer que seja, ~presenta a mais forte característica do sujeito: a_i mpre,v·- 't1'! 1
sibir dade6 2 . A filosofia moral trata este estado de facto fazendo dele a libe - P' ~
. católico na guerra c1v1 mun . - odiam pois c111g1r-se ao vo
do ~::~~ctivistas radicalmente disponí~:~::~gldo a vida das ordens cristãs
d; de o~ a indeterminação da acção . Quem, porém , pretender a capacitação (' 1 i 10 de humilitas-castitas-paupert:s {i;es das Regras . Por meio do seu famo~~
do sujeito com base na sua liberdade terá de observar como ele sub1J1e~ª-..\!..JP. \csde os tempos dos grandes re ac totalmente moderna, coloc~am-se ' .
.controlo ~f!.ctivo ~ se ponto de controlo activado no mundo. E pois precisa- ~rto voto e de maneira que parec~_ De certo modo , con_seb1~m-se a s1
ment~ o q~~e~~ ' do interior, assegurar o controlo do poder. Mas, co- : '} i~~tamente sob o c!lto comJlnddo doc~:~'dotados de uma rara ausência de von-
(' mo fazer se não se estabelecer em que medida a razão detém efectivamente .· instrumentos e pre
o leme no interior dos pontos de poder libertados ou dos sujeitos? Quando próp11os como . 2001 Na ter-
.. . der Medien , Munique, ..
1
• • ti estamos perante 1iujeitos, é pois conveniente considerar estes como suspeitgs (13 Cf Boris Groys, Unt er Verdacht ._Ein e P'1:1~;g1~; : l~!'~einz von Foerster, falar- se-ia d_!.JJ.!:Q·
\ ,..,t-},l'· por princípio. Mais ainda: só uem é suspeito de ter segunçlos pensamentos . . . do onto de vista meto o . ', . •
nlinologia mais doce , p d r elo Outro (e por s1 propno). . ·to na perspectiva da ana-
1 y_9_d_e ~fectiv~m; vte ser conside.rad o ~Üjeito. Com efeito, a subjectividade im- i;;
1.:nsão a d.=ixar-se _surpr~~l_l,_
\,4 Para um resumo das quere
~ ropeias e francesas e':11 _torno do s_ut~nq:ête sur /.e f ait d 'agir
bes Le Complement du sil)e .
L,;, ; v-'t"_1. ~ / <:.r '\ r , • ·• a, • \ , . .
lisc da linguagem, .
vide V111cent Descom
. d 2004
,
62 Esta tem fo ~~osamente a primazia sobre o motivo 1tantas vezes ci tado da fàmiliarid ade consi-
i/1• soi-même , Paris , Galhmar , .
~ ~~o. i t
•' (.J: .1,
i
- - -., - 1 . .... v ,~ -- - - · · -· r 1
/( 1
, t ( 1• I
, i .. ' moder-
.. - b 'ectivista da conditw humana na epoca . -
Laclc e entregavam-se inteiramente nas mãos elo seu utilizador. Assim, para o i l I pensável a est1hzaçao su J ~ . d contrariedades como uma paixao
d ·ver uma sequencia e f - o
lançamento desse instrumento, invocou-se nem mais nem menos a mais ele- li , . Quem po e v1 ~ . S , na sequência dessa trans ormaçao
vada instância de motivação que existia do lado católico. Com uma ironia fa. r°
111111sl'onna o sofrimento em potenc1~. da; as «representações». Vamos en-
nática , os Jesuítas ofereceram-se como marionetas articuladas construídas se- 1' j , ito pode aparecer como vect~r e do odificações da sensorial idade ,.,....
. presentaçoes to as as m .
gundQ_ os princípios mais modernos, cujos fios queriam ser puxados por um 1 o encontrar nessas re . - . ·t a tomar-se act1vo. Por con- > . '
. que d1spoem o suJel o /
único bonecreiro, o general romano da contramodemidade. (Note-se: '@em p11ss1va e t~d~s o~ ~ativos ode formar-se 2ar.a se J.o,.rna,f d_qn~ e s~nhor_ ~os 1
qu~r .9 p_oder, tem de servir o~ poderosos até se tornar indispensável.) f.ara se l'l' uintd soe .s,uJeltO quem p - ." . . ·ct d formaria assim um d1spos1t1vo \
1· 1~s própr.ios sofrimentos.\ A subJect'.v1 a.~ há motivos da ordem da pai-
tornarem marionetas deste género, desenvolveram uma combinação pesada . ' vel Nesse d1spos1t1vo, - ~ .
de consequências de exercitium e de studium - o primeiro para crucificarem \ nmparável a um autom~ . ·d d s interesses) que acoplam um s1~tei:n,a •
(

a sua própria vontade e se tornarem utilizáveis como puro instrumento, o ou- 'º (e, mais tarde , tambem da o1 em o .t or o~·ientações de tipo racional.
tro para se apresentarem no terreno do combate armados das mais recentes ar- 11101o r a um sistema de pilotagem campos fo p uentemente como uma subje~-
, . . subject1v1 . 'd ade mo de ma se apresenta req. - modernas querem - ser a
mas . A metáfora jesuítica da «obediência de cadáver» designa a clássica adap- , .'1 . .- t
d l deve-se a que as «pa1xoes» . d
tação da subjectividade como acoplamento entre a mais elevada motivação e 11 v1dade a2a1~0_!0 _a, a . . b ter às potências prov111das o seu
- --=-- ·dade de O suJetto se su me -
,i.. '
1 a pura disponibilidade 65 . O exagero da obediência na via jesuítica para a sub- l\lrnrn de ca~ac1 r < . , : l,\·)( «f ,w' I,< ,,. v .. •'-·' ,,~~"'
,)s '
jectividade mostra que(o motor da acção continua a ser coisa tirada de µma l>r<iprio intenor. , ..
rações postenores e
'. d lsuJ·eitos organizaram a sua des1111-
~ .
instância externa, isto é, de uma, autoriçiade - o que, até ao século xx, desa- 1 or natureza, as ge J suítas Em consonancia com o,
. . modernos do que os e . ·d~ . ~,, ,,
~ 1 creditará este modelo aos olhos elos não-càtólicos e dos antiautoritários. Des- hi ·ão com meios mais . tA . s inte nas como a ev1 encia, ~
, '
de o início, nenhuma dúvida era possível sobre a eficácia da construção. O de- 11ovo espmto , . d o te mpo,...., re '), .orreram
. v ,--.-.,d a .111s f1c ' r ',. ~ ' . 'd n
-6 . ~ás âfutién\ às influencias e e - /
sempenho do instrumento inteligente ia tão longe que teria forçosamente de o nnndamento moral, 0 g~ri1o' ou a fS!hsa ' útil papel de advogados, de - r , _,,~
. 1· d que desempen avam um \'
se tomar suspeito ao dono - suspeita que, após longas disputas entre católi- 1\dacles externas a ta as N que diz respeito aos factores '·1' •
lheiros e de terapeutas. o w·11·
cos, haveria de levar à dissolução da ordem em 1773. •1 ·1.:retários , d e canse 'd b o termo de «fé», i iam
. t de vieram a ser reum os so . 896 b
Para o sujeito católico da era pós-trentina, a viragem inaciana une no seu Internos que mais ~r ·11 B 1· e (A Vontade de Crer), de 1 ,o -
nsaio The Wi t0 e iev , ,. om
desígnio qµ a,tr_o m~0"'..o.~!I_adic ·onais das .ráticas~f2.r.11Jaç~~ -de si : o ~ t ,- l11111cs, no se~ e . . até essoas de espírito empmco se C -
mo, o _cg n'(ento, o miljtarismo, a e~udição6 6. Todos esses motivos, no seu con- ·rvou com iroma construtiva qu~_
.
,? .,
«papas mfa ivern» qua
ndo formulam hipóteses que
. . -
1ortam muitas vezes como . 'd , ·t podemos tirar uma 111d1caçao - ,,
junto, constituem figuras culturais da capacidade de sofrimento e do cultivo
do panos (pena, esforço), a respeito do qual os gregos da idade clássica já en- v1 o orientar a sua v1 a .
·d 67 Oeste dito e espin °
. '- . 'd , o moderno consegue muito em L 1 1
b· 'r ~i t'
si navam que era imprescindível à epaideia,'<. a toda e qualquer prática de mo- quanto ao facto de que , em g~ra~,, Q mq_t~l é vinculativa. O psicólogo ... ,..1.,, ,
·stabelecer uma «u, tt·im a instanc1a» que ~-ara,.e d ' ·- 0 é uma espec1ah · · d ad e ro- , )- ·'
"" ,,.,.
delação do 1 er hu_qia~o, isto é, à educação .''Ü medium em que foi possível re- ' · · dera que <papa O> ª · ,, ,-t1,
prodÜzir o agrupamento das antigas técnicas do esforço foi, num primeiro liberal americano compreen, .
- pstqU1ca de va 1 aae
··ct :; ubíqua que temos de .activar . , . , ,., , , ,
tempo, fornecido pela piedade da Paixão em finais da Idade Média , fenóme- 11 nna mas uma unçao
f . f a domin o papa 111tenor
' ' d ·d ·ndividuahstas cofl"!,eçam .......~--==- · /' ..
no cuja importância para a formação da cultura da subjectividade nunca será i1u ·1ndo as forro s e v1 ai
' . - d
-
egressao m m1ta tn z1
- a, - a ela dúvid a fim de fazer
) .
, li
·m por m1ssao _
eter ar ~ . .: .. _ ~nti· ca do .õooma, que perrrute
de mais realçar. Além disso, a viragem controlada para o interior havia sido 1
v11 lcr numa base 111 iv1 ua1-
. d. ·a . a funçao ps1cossema ~ -.:,...... ,
.r d , ----;,~ pa ir·para a acção.,E à acçao
_
preparada pela obrigação de confissão anual, que se aplicava a todos os cris-
, f dações segura para d ~ai...p u·eitos» embora abun d antemente 1- , ,
tãos após 1215. Graças a uma vasta moda religiosa favorecendo o despertar 1,u nhar pe ~em· u.n. deve o facto e os «s J ' ,
do prazer da p~_ixão na burguesia urbana do início da época moderna - fe- ti ' ssa instanc1a que se dagógicos correntes na epoca >- ~
. . .b. - elos amestramentos pe )
nómeno cuja palavra-chave era i1n itatio .ChrisJi e cuja característica litúrgica prov idos de 1111 içoes p . T fere classificar como neuroses , con-
111 clerna (inibições que a ps1cana i_ se pre . - s da «sociedade das oportu-
foi a criação dJ festa do Corpo de Deus no século xm - , instaurou-se essa . · nho nas 111determ111açoe
1
tendência para a apropriação activa da própria passividade sem a qual não se- , , •uirem abnr o seu cam1 m da hesitação ao acto sem-
't lhes consumar a passage S,
,,idades». Isso perm1 e-_ . . nstâncias internas e externas. o uma
prc que a isso são convidados por cucu . . t com Hamlet que está excluí-
65 Sobre a subjectividade como figura de máquina motriz, cf. Anson Rabinbach, The Human . .· aferrada à reflexão permanente 111s1s e, , .
rn111011a
Moror. Energy, Fatigue, and rhe Origins of Modernity , Berkeley e Los Angeles , 1992.
66 No tempo do idealismo alemão, acrescentar-se-ão a estes quatro pólos o funcionarismo e o .
,} ..
· Th e Writings of W11lwm Ja mes.
1
(
,
'
ft.tC
. . 1 1
atize \ike infalhble Popes», líl 724
génio. Cf. Friedrich Kittler, «Das Subjekt ais Beamter», in Manfred Frank , Gérard Raulet e Wil- (, / Willi amJ ames, «They dogm M D tt Chicago e Londres , '1977 , p. · 1
.. d by John J c ermo ,
lem van Reijen (ed.), Die Frage nach dem Subjekr, Frankfurt , 1988, pp . 401-420 . /\ c11111 prehensive Ed 111 on , e · ·
1 V IV I V I V lVI\.IIJI\ 1 11111 l \l \,.I
I
. . . elhe iros e motivadores que não têm outra:mi~-
da a ·hipótese de se ser verdadeiramente persuadido por quem quer que seju ~1· ·0 111 01á md1cámos, de cons . - A forma autopersuas1-
' · · t · a dar o salto para..a.acçao ·
- o que implica inevitavelmente a inibição crónica da acção 68 , e a sua com- ti s ·não aJud~_r OJ ac mes - f . lhar-me comigo próprio») apela
. . .d de em alemao ( « u1 aconse . -
pensação eventual por processos de desinibição, nomeadamente a concentra- 11 (1 11 sub.1ect1v1 a ' d _ da desinibição _ uma s1tuaçao
ção do sujeito com vista a um <~~alto», D pómeno que Kierkegaard foi o pri- 1111 li uma d\visão do trab~lho n~ ~fr? udçaomente ao nível de uma viragem
qt w O 1(1ea 1-ismo
. · re cente eleva m1st1 1ca
meiro a analisar. \... r, , , r .. · , . ora as que não sabem O que f azer
. b. f1 ·1dade (como se vanas pesso ,
Por conseguinte, ao contrário do que sugeriram alguns autores , ~ figura do- 1 11 1 , 11 1ntersu JeC v . dade assim se consuma e a
minante dos modernos não é de maneira nenhuma a superabundância de intc-
1 li ~ ·m mais fortes em conJunto~ o que , ver ,n{
- ""' ~ -*" •
rioridade reflexiva, nem tão-pouco o estado de inibição persistente que ela in- 1110 d ·rni zação da consulta. . ra'vel vantaoem de se conceber , ·',
m proJ·ecto a mcomensu º . e,
duz; pelo contrário, manifesta-se por uma hesitação pragmática a que , na l'11 ra quem tem u . ' f tO de põcter afastar pelo pensa- /
· · · de mamfestamente no ac . . .d
maior parte dos casos, a pessoa consegue pôr cobro em prazos comportáveis 1 111 11 0 sujeito resi d.d ncarnação da potência m1b1 ora
;1) j 1.' . - s~ytnh_ ou com .ª ajud½1:~~ "C~ rQ.§__. I ~rna-se,aqui manifest~ que a missão
S, , 1u·111 0 o se or m
nh · terior
-
enten I o como e
1 mento a resistência do senhor 1o-
\ ( da e1ft-exa é--preparar--a· esm1füçab deseJada. Soem casos muito raros e ex - , . há e~e~tiv~mente que a~~:t: ii~;r:~:ªde empresa da expressão. Se , no
. 'cepciona s o pensamento · os_moêlemos assume uma função que visa em prin- 111 1uc re1vmd1camos para . . . h aberto a primeira empresa
- dispuser a deixar o camm o ,
\ cípio adiar o acto - o que, de resto, permite concluir que, na época da mo- 11 11 1, o sen hor nao se . ' . ·dos seria destroná-lo por uma «re-
l' . . ressivos-expans1vos um ~ .
dernidade, 12ada há de mais i'!_verosJmil do que a atitude da filosofia tltts «suJe1tos» exp _ _ , apenas um tipo de acontec1-
, · que a «revoluçao» nao e
contemplativa. Tal não é contradito também pelo facto de, no início do sécu- volução». E por isso d. . f·losófica Simboliza o fantasma
\' . mais ainda uma iv1sa I . .
lo xx, os fenomenologistas posteriores a Husserl terem podido mostrar, com Ili •1110 po_1t1co, mas, u~lidades do real que oprimem , compnmem e
r a sua teoria da {P,_ochê, como se adopta essa atitude segundo as regras da ar- ti • dcsact1var geralmente as q l - l1'ticas que se seouiram a 1789 ,
Ji .,l \,{ ' te. O «passo atrás>~ que possibilita a filosofia é tornado explícito no momen-
. É
ti ·primem. por iss 0 . .'
· que nas convu soes po
ale ião de filósofos da liberdade.
,. ví; quase sempre mob1hzar-s~ umd g que se afastou do caminho o pri-
0

. to em que tudo _o resto se concentra no passo em frente . De resto , até ao sé-


- das grandes Jorna as em . , . d
culo xx, inclusive, os holistas políticos e os actores militares continuam a /\s record açoes . entos felizes da h1stona o
. b d Estado constituem os mom A •

dispor da ideia de serviço ed e dever, na qual a moral e a má desculpa se mis- 111 ·iro pertur a or no f em nova mitologia autentica.
uram de uma forma pré-moderna ou supratemporal. 11j ·ito; os partidos da verdade trans ~rdmam-ndae,ice days - tornam presentes
· . · - · s sempre m epen
A_p.2.§J).esçartes , Kant, Fichte e Marx, o sujeito in spe não passa já da mor- . restas nacionais sao po1 . f senhor exterior e se elevou a
. d d ante as quais se a astou o ,
t icação à prática, mas da teoria à prática - e , como é evidente, aqui a «teo- ' ·cnas agita as ur - d d s médias ofensivas ao mve 1
de expressao as cama a .
r·a» já não designa a atitude tranquila e observante dos pensadores diante dos 1 11 ·rdade de empresa e l . 1 - A felicidade ingénua desse tipo
í ones do Ser: fala-se agora da activa construção de razões suficientes ara d . ponto de partida de uma nov~ :g1~ aç~~ -toda a resistência do real se con-
u , a acçliç b_efl)-sucedida - , um negóc iÕ que,judiciosamente, se pratica a e- 1. dias de festa decorre da_supos1çao e 9 a eliminação. Os tempos pós-
h deve dissolver-se apos a su ·d· d
nP,s at~-.!!22._lll~nto em que Sl'.:__atingiu o p01:itQ_de_-ª.~sini~iç~o ou de acção. ,. ·nlra no sen ore . i·tos» saem dessa ingenm a e.
. , . - aqueles em que os «suJe -
f.9ant propõe que se radig_1:!_~ a suprema instância da deliberação consigo pró- ,. ·voluc1onar1os sa? A . • u ·eito a arece no facto de a funçao
rio, o imperativo categórico, no sujeito do juízo, a fim de pôr na mochila •rande inconveniente da e)!:1_s,t~nc1J qdQ.li J.~b lt~rnos - implicada pelo di- ,, . (
1.b t -o da desm1b1çao os su a
esse m; smo sujei~ bitola de toda -a prática justificada - o que , de resto, 11 senhor, a I er aça t ada sem falhas pelo próprio eu
. . - só poder ser re om . ,
conduziria inevitavelmente à paralisia, se alguma vez um indivíduo tivesse a r ·11 0 de dar mstruçoes - , b . de ser uma missão atnbu1da
. - · róprio A so erama po
ideia de medir por essa bitola todo e qualquer pormenor da sua própria acti- por uma aphcaçao a s1 p . b u guião histórico . Pode ler-se
odernos com ase no se A

vidade (de onde decorre que o valor de uso do imperativo categórico reside 1
n ·lutave mente aos m . t no seu cumprimento e porque . /
no seu carácter sublime, o que garante a sua iné!Qligi.bilidade) . Q_red_!!~ ~x- no mesmo gu1ao q
·- ue fracassam cromcamen e
.
st
l
su ·eito cria mercados para inte ec- r ,,. f
cesso de pensamento teórico que não desemboca na desir}ibição assume um /\ perplex ~dade _que consi e e:;:~~; a ~iam a subjectividade indigente , :/;.
v'iiJor próprioCÕmo-filosõfi ã -Eientifiéizida_- não se transforma numa práti- 1uais que , na qualidade ?e comFp . f ,lh~s deixadas pelo senhor afastado ~
. f d submot1vada OI nas a .
ca exte~na, antes se organizá· como a sua própria consumação. Como , porém, •11bm orma a e . 1793-- 1968 até que os seus sucessores mais
a voz discreta da razão raramente dá instruções tão claras como o Papa ro- 1uc os ideólogos operaram ~ _!re e a~a assentarem arraiais nos espa-
.. . . nsultores, se apresentaram p f -
mano , e como os que são chamados a agir ignoram muitas vezes até ao mo- t 11sc1etos , os c_9 _ _ .d , 1 os (cujos predecessores na unçao
0
ços ocos da ausência de senhor. . _s _1 e1·º og e os confessores dos príncipes)
mento da acção se têm ou ouviram uma ordem clara no seu íntimo , cercam-
, m os secretani 1ta 1anos h.
"º secu1o xv1 era . , . s seus clientes em nome da « is-
68 Cf. Wolf Lepeni es, Melancholie und Gesellschaft , Frankfurt, 1969, pp. I 88-1 89. d ·sinibiam-se geralmente a s1 propnos e ao
I .
t ,. ',i'
, •
tona» e das suas leis de bronze - daí a . - . . ,
\ ..., -.- -·r "J,''
1
,.

lheiros de apresentarem as -m1ssao mev1tavel para esses cons • llllld ·rados entre os que acon selham retiram-se para o terreno do cepticismo
suas sugestoes freq t .
emanações de uma «ciênc1·a da h' t , . C uen emente v10lentas como 1 lw,óf'ico e cultivam a indecisão como forma de vida da pequena liberdade.
1s ona» orno a h' , ·
«natureza», passou por uns tem . « istona», logo a seguir i ( 11 111do o cepticismo se reforça, especializa-se numa ausência de conselho
o apelo às suas missões corres Poº:lor ser a ?1ais elevada mandante da acção , 11•11 ·ra li zada.
~' ,, ,1 rá inútil sublinhar que este tipr d hl~ ato ?1~IS forte valor da desinibição. S • Os consultores, em contrapartida, cuja conjuntura favorável começou
vesti·do de lei. . Com a obed. A . e - 1-...,-
1s onc1smo
- • era a fo rma do oportunismo . q11 111do a das ideologias terminou , desinibem a sua clientela e desinibem-se a
. iencia reativamente , 1 . d h' , .
aph,cação aos negócios) enco t , a « e1 a istona» (e a sua pr >prios num contexto menos marcial porque, na sua imagem do mundo,
· , n rara-se o me todo · d· 1·
em actos violentos pretensamente i'nd· - , ·. mais iscreto para participar ist ·m col)correntes , é certo , mas não inimigos. Fazem-no em nome da li- l ,i ,
· t l . 1spensave1s _ embo . lwrdade do mercado e do direito humano ao êxito - mas podémos ter a cer- I !: ' I
rn e ectuais se tenha abstido d . . ra a ma10r parte dos
selhavam ou para os quais t1·nehpart1c1par pessoalmente nos crimes que acon~ 1•111 de que, também neste caso, não se trata de nenhum piquenique. A sua
e am compreensão e
wrnecerem aos actores os slogans u d . om a sua propensão parn prn l'i ssão assenta na decisão de apresentar o êxito económico e os seus facto-
tas de direita e de esquerda revelarq e esencadeavam a agressão, extremis- 11·~ (energia dirigente, intuição, carisma, etc .) como qualquer coisa que se po-
penosa que tal proximidade possa sª':1·se como parentes próximos, por mais lir 11prender segundo métodos mais ou menos seguros. Devem produzir a fic-
A - . ei para as duas partes \'I o segundo a qual se pode estabelecer um nexo controlável entre o projecto
constelaçao mais penosa foi também a . .
kács sobre o dever meta-huma ·t , . d mais clara: as notas do jovem Lu- 1 11 l'c licidade71 .
m ano e exercer um · JA · · ·
ca be ao revolucionário (1922) fl . - a v10 encia cnmmosa que /\ rendição dos içeólogos pelos consultores deu-se essencialmente após
.
H Immler em Posen, em Outubro de 1 re ectir-se-ao no d' .
, . iscurso proferido por 1% 8, depois de o neomarxismo ainda ter assumido mais uma vez a grande
tropas SS manterem a correcça- d 943, a propos1to da necessidade de as 1 tis ·, aparentemente rejuvenescido pelo freudismo e pouco afectado pela sus-
· 0 urante o massacre q
importante que possa parecer a d ' tA . ue perpetram. Por mais p ·it a segundo a qual sempre poderia ter mais algo em comum do que a sim-
. .
hege1iamzante IS ancia entre os esbo d ..
do exterminismo b0 I h . ços e um leg1t1mador pi ·s postura radical com aquilo que Thomas Mann havia chamado o «fascis-
. . c ev1que e as orde d , . 1110 intelectual» numa famosa expressão dos anos 4072 . Posteriormente, as
agente kantiamzante da política . . . ns e assassm10 de um •I
1
nação, os dois autores proporcio~::o;a -socialista ?e conquista e de elimi- v limas da suposição tornaram-se sujeitos - isto é, autores dotados de de- 5
I
1

mesmo zelo em prol da grande h. t , . mostras estreitamente aparentadas do 11111siado pouca evidência e subequipados em slogans qe desinibição numa ce-
boca de amoralistas clarivide t 1sNona que transmite as suas «ordens» pela 111 inevitavelmente demasiado grande - submetidos a uma vaga deliberação
n es. um caso como A
mente como a passagem ao acto 1 no outro, ve-se distinta- pro fi ss ional que , na maioria dos casos , não quer e não pode dizer nada mais
conhecimento de causa só é ~es;oa , enq_uanto querer-dever em perfeito do que isto: a acção real contém sempre um rest9 de experimentação na obs-
plícitas69_ Uma vez que' os acii~::::sei!º; me1~ de figuras de desinibição ex- 'l1ridade, visto ser utópica a ideia de um controlo completo sobre as condi-
teatro de uma guerra entre partes 1·-nc ~l~:tu~1s descrevem o mundo como o ,; ·s gerais da experimentação . A mais recente vaga de consultadoria parte da
- onc1 iave1s - ent - upos ição , em si correcta, de que os agentes que não são capazes de fazer coi-
çao, o trabalho e o capital o sede t, . , re o progresso e a reac-
. ' n ar10 e o nomada d' 11s de mais encontram O melhor apoio em consultores que sabem que não sa-
me mais ou menos os traços de d - , o seu iscurso assu-
. uma or em de m · -
neralizada; o tom corrente dos d' . issao na guerra mundial ge- l) ·m de mais. Assim , Sócrates está outra vez entre nós . Entretanto , há proe-
ra ica1s no combate é pois ~~erminista 70. Os 111i11entes portadores de incompetência que por informações desta qualidade
p11 gam tudo o que for preciso: não são só os cabecilhas da indústria quem des-
69 Lukács resumiu indirectamente o princípio da d . . . , p ·nde algum dinheiro para obter a absolvição pela consulta. Nos anos mais
quando falou de uma segunda ét·1ca.. enquanto a prime
_es1mb1ção'bnas suas notas sobre Dostoiévsk·1,. 1· •ccntes, houve numerosos ministérios federais alemães que compraram bluff
1e um mandamento. Cf. Norbert Bolz A ira pro, e o assas~ínio, a segunda·faz de-
terminismus zwischen den Welrkr1·eg , Muszug aus der enrzauberten Welr . Philosophi 1eher E•·
·onsultivo em grande escala, sob a rubrica de «comissão de inquérito» - gas-
p . . , . en , un ,que 1989 p 13 20 H' · ,..
osen. «O nosso umco comissário deve se,. a nossa
dena ' consc ' p.·' ·· · immler, no seu discurso de
o ataque deve ser a nossa pro'pr,· a b iencia ...» «O comissário que nos or- / I Das antigas indicações de trajecto rumo à desinibição e à direcção da acção, diremos apenas
' ravura
mora 1segundo o qual os homens das SS . 1 . . ' » A ·ilusão · - faz surgir o cenário
aos comissários 11qu i que o renascimento das artes e dos autores antigos não podia implicar práticas banidas co-
;gviéticos da eliminação. JU gam agir: o concurso de brutalidade com os actores 11 11, a leitura cios augúrios (cf. atrás , pp. 63-64) - com consequências que se prolongam até às

. Thomas Mann em 1918: «O intelectual ue ad uir . - Indústrias contemporâneas do oráculo. Encontramos informações sobre a utilização da astrolo-
d1atamente perante o assassínio político _q ou s; is e a :onv1cçao de que há que agir vê-se ime- 1 in no início do protestantismo em Claudia Brosseder, lm Bann der Sterne : Caspar Peuce,Phi-
seus actos é sempre tal que o assassínio r/ so nao se der, pelo menos a moralidade dos lil'/J Melanchton und andere Wittenberger Astrologen , Berlim, 2004.
rrachrungen eines Unpo/irischen , Frankfu~o ~~~~ pode5r8ia resultar do seu modo de acção.» Be- 1 Thomas Mann: «Há que arrancar o mito ao fascismo intelectual e reorientá-lo para o huma-
' , PP - 1 sq. 11 0 . Há muito que não faço mais nada.» Carta a Karl Kerényi, 7 de Setembro de 1941 .
- - - ·- · " 'J '

tando biliões, verbas que, no início de 20 l' I

~ontas, apesar da sua notória to! A •04, chegaram a incitar o Tribunal cl. e'
inquérito · erancia para com o desperdício , a ped·1r um
'I.
. O -úniço slogan forte de desinibi ão ,
gias, abre em todo o mundo a ç que, apos o empalidecer das ideol
. passagem par , · •
me_de movaçc7o. Raros são os que têm con ª-~ pr~t1ca , leva, em resumo, o no-
assim se apresenta é um vestíoio das t' sc1enc1_a do facto de que aquilo qu. t• . 1
Homem Novo foi retirado domº d an igas «leis da história». Desde que o
d fi . erca o numa o - d 1.
e e1tuosos, as novidades técnicas 'd peraçao e recolha de produtos
dades de design constituem as m;. as n~v1 ades de procedimento e as novi -
..
c,I

estão condenados a perguntar· qu~1~ po erosas atracções para todos os que 12 Energias Não Reflexivas:
inova pode estar certo: a quaique azer para chegar ao cume? Aquele que
tom · , . r momento o le d a Ontologia do Salto em Frente
ar-se o pnnc1p10 de uma legisla - . , ma a sua acção poderá
Desde que o divertimento como ~a~ utversal.
terreno, a partir dos anos 80 do séc l g n e de desinibição, começou a ganhar
om a viragem para os oceanos, a actividade náutica de risco e as novas J
texto?ª inovação. Os actores da cu~t~:aa~sa~?, po_demos até renunciar ao pre-
·nicas da felicidade, os agentes da época moderna levam ao baptismo um ~"' )
beranistas do vulgar, espojam-se nas su e~' i~ert1mento, que se tornaram so-
11tc resse pela subjectividade que se distingue radicalmente de todas as estili-
ram ~ue o deixar-se ir de livre voniad 1c1es d? s_eu be~-estar e conside-
/, 1ções ant~riores do estar-no-mundo e do deixar-se-conduzir humanos. O hu-
Po?enam renunciar aos consultores porque c~~s_t1tu1 ~ot1vação suficiente.
11,ano, que, no hJ!_manisn:o, se descreve como criad__gr e inveºtor_ge_sj prgprio ~
s~~utores; quando muito conf1'am e se mgem d1rectamente aos seus
lh ' no seu ente t · - t·. no idealismQ, se define como sujeito de todas as suas re resenta Qes, é, nu- . , [
. es escreve os ditos de espírito É b r amer, no seu treinador, no que
ddha quer cair. . so - eran<?_ aquele que decide em que arma- ma medida que as épocas anteriores não conheceram, um actor de nov_o · ac- · /•· ,:r, ...
los , a causa cl(? novos efeitos, um pqrtadof de novas repr~ en~ ç~es . O sólido ;ih~· /
11 ·xo entre a u bjectividade e a ofensivid<!de permite discernir que o que aqui .,...:>~ , r
vs tá em jogo é â ~stabilização i~tema cte um·a cultura de acto_res . Contudo, os ,í.;s
l'uluros actores são cronicamente sobresolicitados pela_sua própria ofensivi- l~ ~·
dade e pela sua própria originalidade, pois nunca conseguem dizer convin-
·c ntement; o que se passa cÕm a sua actividade de actores e o seu salto em
!'rente no desconhecido. O notório balbucio sobre o génio e o espfrito criador
que desde finais do século xv paira so re as empresas artísticas da Europa é
uma prova da incapacidade dos modernos para sensatamente tomarem posi- , ' '' 1,;<
1 1
ção sobre a sua _própria força de-iniciativa. Se nos reportamos a um genius pa- • 1 '
rn dele derivarmos as obras e os actos, proclam~mos implicitamenÍeqÜe Õ ac- 1~. &·
lor é um possessq, ainda que num sentido que impõe o respeito. Por ·1
·onseguinte"7"o acto é deslocado do actor para uma instância suprapessoal que J
de le se apodera e o mergulha num estado de irresponsabilidade sublime .
mesmo fenómeno se produz quando se reconhece aos actores, em lugar de ;,. e
uma inspiração por génios pagãos da arte e da guerra , a colaboração em pro-
jcctos divinos de salvação: é também dessa maneira que se afasta o actor do
«cerne do acto» e se faz dele uma entidade mediúnica, sublimemente _irres-
ponsável. Se falamos directamente de espírito de criação , retiramo-nos para a
lautologia , na medida em que atribuímos o efeito a um espírito de criador que
le ria querido provocá-lo porque podia provocá-lo.
Em ambos os casos , a observação edificante impõe-se contra a percepção
precisa das forças mobiTizadas e desencadeadas e frustra o desenvolvimento
de uma linguagem à altura da cultura da acção que foi alcançada . Este efeito
caracteriza a situação global da filosofia europeia da época moderna , que qua-
I
se sempre silenciou obstinadamente o evento central do seu tempo , a capturn . m ex ressões como «alma do mundo» ou
'ontudo, não ganhamos muito co - p tão-pouco com o conceito mar-
do mundo pelas forças ~ercantis e imperiais e a desinibição que pem itiu aos ' Ili ·se do espírito e da :orça de_acç~~>:;:~:ermédio, não aprendemos nada
actores entregarem-se à pura actividade de agressão. É possível que o res- Nl11 de máscara do capital), p01s: pb . - ntre o elemento energético e o
ponsável por essa carência tenha sido o preconceito segundo o qual podem . bre o modo de im ncaçao e f
d ' 11111is preciso
. 1- ,so 1 na nova cultura dos ac tores · Tendo em conta esta con u-
certamente existir biografias, mas nunca teoria , dos capitães e dos conquista-
i l · 111 ·nto mte ig1ve . d"1caçoes
- na literatura , nos casos em que es-
dores. A verdade é que sem dificuldade encontraremos a teoria dos capitães f , n ·r procurar m ,
o , lalvez osse u i 1 , .
111, ·om os seus meios espec1f1cos' a or b dou o enigma constituído pela energe-
se pesquisarmos a linguagem das literaturas não académicas. Desde o diári o
de bordo de Cristóvão Colombo até às observações de Melville sobre o capi-
1 I' 1 inteligente. neste ponto com um um , ·co exemplo·. na recolha de en-
tão Ahab, os arquivos euro-americanos encerram uma enciclopédia do saber
'ontentar-nos-emos
·· hM Geist und Tat (« O spi' rito e O Acto») ' encontramos
E
ofe~vo que aguarda ainda uma edição adequada. Inútil dizer qüe: do ponto !tios ele Hemnc ann _ -- - vê r prova como, por vezes, a
de vista actual, se trata de arquivos reprovados que , concluído o ciclo da his- - bre Napoleao que, a nosso ' d
1111111 observaçao so - quer a coisa consegue chegar on e
tória do mundo marcado pela Europa, foram voltados ao contrário para pas- 1' pressão poética, quase como quem nbao -o fala-s~ do proscrito de Santa
sar da agressão à cooperação - e, consequentemente, as filosofias morais re- . - alcança Nessa o servaça d
1tl11tla o conceito nao . , . o se o actor da hi stória do mun o
centes não se interessam já pelos descobrimentos e pelos actos que ostentam · as suas memonas com
11 ·I ·na que escrevia . h d elo escritor dos seus actos:
o sombrio fulgor da unilateralidade, mas pela reciprocidade, pela responsabi- d ·sde início tivesse sido acompand a o p ·tor atravessou o mundo como a
lidade, pela lealdade, pela supressão dos efeitos secundários e pela com ati- h conhecido esse escn 1
bilidade com as sensibilidades locais. «O grande om~m . lu ão o projectou. Enquanto viveu , e e e
h tia na batalha . F01 assim que a revo çorpo o mesmo caminho ... »73 ,
Para melhor compreendermos a dinâmica da época moderna, há que acei- . . só um com o mesmo c , . . /
1111rn ideia eram ' bala na batalha: Heinrich Mann redigiu estaca- r {.,
/\travessar o mundo com? ~ . b lutamente ofensivo no contexto de um
tar a ideia desconfortável de que o «espírito» e o «acto» não devem ser regis-
tados em duas contabilidades diferéntes. Os autõres da Úadição filosófica só 1·11 ·1erização do modo de e~1stenc1a \ sod 1925 - isto é, precisamente na al-
em casos extremamente raros o admitiram - embora, em todo o caso, tal se 1'1tllo neoliberal de Nap?leao, ~or vota a ~om-;s suas análises de Ser e Tempo, o_.,,;_
veja em Hegel, em cujas observações sobre Napoleão se podem ler as conse- 111m em que Heidegger momp1a em cen , Com elas o ser-lânçado-no-..-'_ ', "i
quências de uma observação sintética do intelecto e da energia. Para Hegel , o 11 . 1927 que marcou a epoca. , ' .. ~ '
hra publicada em , e . ela rimeira vez à pa1avra de uma { ~-'
vencedor de lena constituía uma aparição da «alma do mundo» e, por isso mundo [Jn-die- Welt-geworfen-sem] aced~u p . _P an'·o de toda a filosofia ante- f..,_ 1<t:,,,,
___,_.,ri_ ---,.. ,
i11aneira que perrrut1a ev:cu ·,r t , ·co O «estar-lançado>>. Geworfenhett] ~ ,.,,. )
mesmo , a mais alta encarnação da cultura da acção velho-europeia . Aqui, o ·· ar O preconceito ongm
espírito de ofensiva é expresso por meio de um personalismo grave: quando
rior: a submissao o sa ~r ao _1 ea e~rtd .apr~ o pré-teórica do mundo na \ 1-·•' ,.,, '
houve que concentrar num personagem de chefe as ideias dinâmicas de 1789 d. Heidegger conceptualizava um mo o e. apável do Estar [Dasei1J]* ani-
e as necessidades de ordem do Estado de direito burguês, Napoleão tinha for- d Presenta um traço mesc .
q11al o «compre~n er_.» re olho implantado» de F1chte se
çosamente de aparecer. Não existe mai s profundo elogio da ofensividade ple- - rrática «força que traz um ·
lll aclo - como dse a e a se tornar um ser-Ia~ado , habitado por um -onentar-se. .
na de espírito do que a justificação aforística dada por Hegel ao fenómeno
1i vesse decanta o par . . b . - s grandes homens de acção e a v10-
Bonaparte - podemos talvez até distinguir nela uma teoria camuflada do ca- /\ nota ocasional de Hemr_ic~ M_ann so~e.; ger coincidem para exprimir um
pitão, na medida em que a política de Napoleão, de inspiração militar, que 1·nta hermenêutica da e_~1s~enc1a em I e~~~ assume os traços de uma muni-
continuava a partir da ideia de que é necessário conceder prioridade ao movi- <ex istencialismo do proJect1l» no qua o - - -
mento , abandonava por princípio sem tréguas o porto do statu quo para se
lançar em empresas alargadas. Vamos encontrar a variante iróni ca do mesmo
. E· Munique, 1963,pp . 125- IZ6 .
~ ·"" - . ·
modelo na teoria marxista das máscaras: também o capital sabe sempre 7] 1-leinrich Mann , Ge,st und Tat. ssays, . D . por Estar (éom maiúscula). Nao 1e1-
produzir a tempo os caracteres pelos quais se sente representado de modo ~ Traduzi mos neste texto of ·1termo' f he ideggenadno._.
= asetnmas passemos a explicar. Sabe-se que
esta tra uçao - ·
congenital e se necessário concriminoso. Enquanto opinião do irrespeito in- vindicamos qualquer rigor I oso ico n . 1·1· ado na tradição ale mã para traduzir a exts-
·ou do termo Dasetn , u I IZ ala
Mat in Heidegger se apropn - e timológica· de facto, decomposta, a P -
condicional para com tudo o que estorva os lucros (a tal obriga o desen- ~ a do O por uma operaçao · . · om
t1•111ia latina , mas trans orm n - MH onsiderava que só o humano ex iste , qui s c
cantamento do mundo) , encarna-se na classe dos detentores de capitais e ou- vra Dasein designa o ser-aí (Da-sein) ~ d ' que c te que vai ao ser ou está a ser (o aí). Assim
e
tros empresários que, com uma energia desastrosamente progressista, faze m h des ignar o ente que coloca a queslao o ser, o en .· ·f·cado d; estar e ntendendo este Es-
' , , demos «torcer» o s1gni 1 ' ' á d·
explodir todas as situações estacionárias e desfazer-se em fumo todos os es- se ndo pensamos que lambem nos po Estar a-ser Só nesse sentido se poder I -
tados sólidos. • ' ·, I ) d
lar (com mawscu a e um
a forma activa como um
_ ' d
- · t que o
om esta so lução pode sempre re er
· Quem nao
,.c r que Estar traduz Dasetn. concor ar c
11osso Estar é o Dasein de MH . (N . T.)
\ \
•i I de actor mais longe do que podia sonhar a sabedoria de escola, incluindo
ç~~ inteligente. A imbricação constitutiva d . . - 1 , ·adcmismo audacioso de Heidegger. As grandes sondagens praticadas no
b1hdade luminosa que puxa const t a energia e da v1sao produz uma mo- 11• pnço da subjectividade dos actores, de Shakespeare a Joseph Co~rad, de
an emente para a f t -
uma ordem de ataque heterónom d . ren e, nao por responder u ' 11nõcs a Gabriel García Márquez, de Maquiavel a Dostoiévski, evoluem a
. a, mas eduzmdo da -
xa de ser, ~s informações necessárias sobre a su ; . a~ess:o que nunca dei- 11111 nível tal que, comparadas com ele, as teorias filosófiéas da vida activa, fa-
ras que seJarn. A existência projectada - a propna s1r_uaçao, por pouco cla- 11-111 elas do trabalho, da política ou do agir comunicacional, parecem de se-
~m projéctil mecânico; equivale a um ;::~i°rresponde p01s de modo nenhum u 11111da categoria, não apenas do ponto de vista da representação, mas também
indefinido e que, de caminho escolhe ~ .º v~ador em march~, projectado n do do conceito - Fichte e Nietzsche, e eventualmente Bergson, são as úni-
Quem atravessa o mundo' como ~o; s1 a direcção que há-de seguir.
1·11s cxcepções. Podêmos supor que um dos motivos habituais da impotência
arti lharia de onde seJ·a disparado Hª. ª. a na batalha precisa de uma peça d dns fi1osófos perante a acção eminente é o facto de, dado o seu preconceito
1
. . einnch Mann nã t d'f'
s1gnar a bateria · responsável pela emissao
-se e a lap1darmente «Revol -
. - de Napole-
.
o em · I iculdade em de-
ao. no caso dele chama-
1 ,vorável à atitude reflexiva, terem quase sempre conferido prioridade à ini- f
i,;, r.o relativamente à ofensiva. Assim, nunca estiveram em condições de ver / ,,
" i·
o1ens1vas através das quais desd 1789
uçao», o que designa
~ encarnaçao -
de missões 11, energia activa mais do que o cavalo selvagem dos afectos que aguarda ser ~
colocados no seu «avante'»' cat e, . 'o~ extremismos radicais se acham
- · egonco. Heidegger d .
n,,, ao ao fazer dele o Ser que 1 . . expan e o calibre do ca- 111ontado pela razão
Poderemos fazer .uma ideia dos motivos profundos para a hesitação da cul-
h
mundo e para a morte Mas en ançat «ex1sl~ncias» nas suas trajectórias pelo
. · ' quan o o pro•éctil N 1- t11ra da reflexão ante o estudo do mundo da acção se tivermos em conta a que
o seu cammho dado pela <<1·de·ia» de revoluçã
( apo eao· do .romancista via
J
ponto em toda a pesquisa sobre a acção se expande a sombra moral projecta-
os Estados Unidos da Europa) . , . o e o seu obJect1vo pretendido d11 pela energia quando faz as suas sortidas no real. Se tomarmos como di-
. , os proJecte1s lançados · A · ' 1•
por e1degger têm de começa
H r por se proJectar (fa
. na ex1stencia descritos
· n1cnsão fundamental a força de acção informada na sua insuperável ambigui- 1
mar urante o voo - não d' - d . zer-se proJecto) e progra- lude, estamos perante uma instância na qual a diferenciação entre ~ erg\31 J
- d 1spoem e uma 1mag d .
sao, ·em certa medida ' bombas o nto l'og1cas .
nao
- e emI d'd pre eterminada
· .do alvo ' I · •ítima e energia criminosa não está ainda consumada. Quem , como o Faus- . ·
continuam o seu traJ·ecto de . d . xp o I as, tiros perdidos que 10 de Goethe , quer colocar seriamente a «acção» no início, não possui efecti- 1
~
N . p01s e perdida a guerra 1
. este proJectar-se no tra-jecto o ue , d . . ; , .. , , ,,. ;, v11mente à partida nenhum critério que permita dissociar com suficiente ela-
Itiva ao projectar não pode compet· q e ec1s1vo e que a,,.competência rela- , ,
·.- · lf a uma co · A · auto-reflexi__v_a na rrie- r ·za as empresas económicas, as expedições políticas , as missões religiosas,
d1da em que por «reflexa-o d nsc1encia
- » se enten a O reg. d ' ,s criações artísticas daquilo q,u!t.9 mais das vezes se aparenta estreitamente
cedente da consciência No d fl . resso o pensar a um facto pre- ·om este tipo de operações: o i:;rime . A triagem dos actos cabe em geral à his-
1reporta
•= . ·
a s1 próprio antes 1· . t
mo o re ex1vo O · , -1
- ' proJect1 ex1stenc1al não se
. .
.. ' nJec a o seu ela , l' · toriografia , ainda que certos act ores se esforcem por colocar sob o seu próprio
cognitivas - e isso é prec1·s- . pre- og1co nas suas orientações ·ontrolo a avaliação da sua acção. Nenhum ser de acção real, chame-se ele
. amente o que os o t 1 .
' s1gnam ao pronunciarem as s f n o og1stas fundamentais de- 'o\ombo, Pizarro, Napoleão ou Lenine, pode saber antes do seu acto se, após
. uas ortes palav b
proJectado-projectante do ex. t' S , ras so re a qualidade de ·\c será considerado um bufão ou um criminoso. A bem conhecida observa- )
'd d is II. e porem se des 1 .
v1 a e primeira do pensar, surge a' 1'uz um modo ' . deve a o proJecto
, · · como . acti- <;ã~ de Goethe, para quem o homem que f g é sempre desprovido de cons-.....
1 que o pensar não sucede ao ser t energet1ca mteltgente em ·iência resume laconicamente este estado dê coisas. Os espíritos sérios entre
. , an es segue a par com I A . A .
um movimento obscuro que tenh d e e. ex1stenc1a não é os homens de acção quiseram ver nisso a natureza trágica de toda a acção real · ·
«Luzes» pelo caminho' é u " a . e e_sper~r que a claridade traga as suas
. , ma 01ens1va 1lummada . , . . - não sem reivindicarem para si próprios a absolv ição com base em cir-
mais das vezes se trate de uma ·1 . - p~r s1 propna, ainda que o cunstâncias supralegais . Desde cedo vimos aparecer a seu lado uma categoria
médio. Se as filosofias da e . t~ un:iinaça_o ,d~ fraca intensidade e de alcance
. , x1s enc1a no inici d , 1 . - de actores que deram a conhecer francamente que as incertezas desse género
cance h1s~ r_ico, foi porque realizaram ex l' . o o secu o xx tiveram um al- r-.. não os preocupavam - são chamados ímpios na linguagem do século xvm,
para a-pfoJecção. Limparam o camp d p_1~1tamente a ~assagem da reflexão ou, utilizando uma expressão um pouco mais intemporal , aventureiros ._Com-
de originalmente luminosa , antes daº 1e . eflv1 s~o sobre
exao e da · a ·b· dinâmica
- A ' da mobil1da-
. preensive\mente, a sua «práxis» foi vítima da desatenção da filosofia prática,
pape -chave na viragem entre o rimad m1 içao. i reside o seu ·mbora seja notório que neste grupo se encontram muitos dos agentes que fa-
l
c~sso no qual vários autores coniem or;n do passado e o do futuro , um pro-
sistemas e os futurólogos q p eos, nomeadamente os analistas de zem girar com a maior en.ergia a roda da modernização .
. ' uerem, com boas razõ h . A razão dessa desatenção merece ser nomeada: apesar do decreto domini-
acontecimento mental da . T - . es, recon ecer o pnncipal cal de Hegel, a filosofia da época moderna nunca se deixou convencer a
As fi losofias da existeAc1~1 izaçao ocidental no sécu lo xx.
ncia, quanto a elas nã - apreender o seu tempo sob forma de pensamento - pelo contrário, podería-
retaguarda de uma literatura n 1 . , o sao contudo mais do que a
a qua se havia levado a exploração da existên-
. . . , uais todos estavam prestes a regressar, cl~ro ,
mos designar este como a sua prova falhada dominante . Se tivesse fornecid( t 11 das normas 1111b1doras , as q as não cristãs Esta comb111a-
l t das e consumadas as empres .
o que Hegel lhe exigira, ter-se-ia constituído, entre 1500 e 1600, como um11 1111rn vez comp e a . d. f !mente a sua eficácia, nomeadamente
Faculdade da Aventura, ou, pelo menos, como moderadora do colonialismo ,· ,i d motivos demonstrou 111 is~u ~e , . Central e do Sul e durante as
consultora das revoluções vindouras - sob as suas formas mais arriscadas, q11 1111clo da conquista espanhola Aa , ~endca Norte A consciência dos acto- .,
h no Oeste da_ menca o . "
ter-se-ia inclusive consagrado à consultadoria aos ímpios (o que, ao que sa- 1rn ndes campan as a pressupoe a
. t~ ·a de uma agência de autopersua-
ex1s enc1
bemos, só se deu uma vez - estou a falar da obra subterrânea do marquês d • 1 ·s. na época mo dem , d mecanismo de segurança ,'
.d constantemente estrava o
.~ade),.. Teria conceptualizado as três manifestações primárias do elã moderni- o I em-suce d l a, que b. - de autorizações especiais, de pro-1
arando uma com 111açao · ·
z_ado e modernizante: a expansão europeia, a construção de máquinas e a d 1>S que agem, prep . d • bsolvição concedida a posteriori.
e de perspect1vas e uma a .
guerra de movimento, em lugar de, ante elas, se abrigar na emigração interior. 111 ·ssas de 1ucro . , k.· ~ nu O modo como func10na a au-,
O facto de a filosofia não se ter disposto nunca a prestar tais serviços só a hon- Nin guém melhor do que Dos~o~evs 1posa . pe no seu romance de 1868,
_ . ·b· d dos suJe1tos actores m s ,
ra do ponto de vista cívico - mas o preço que pagou foi uma espécie de cas- iopcrsuasao _desm1 1 ora
. . , .
um estudo ps1co1og1co e mo
ral que nomeadamente na sua
'
1
tração voluntária, cujas consequências se fazem sentir ao nível atmosférico: 'r ime e easttgo - . ual de filosofia prática, tendo es- ~
. . d ode ser lido como um man . p 1
sentimo-lo sob forma de mal-estar provocado pela inofensividade culposa do p1'1meira meta e, P . _ ·onal de praticar um cnme. e a -~ ~
p . ·ialmente em co nta a autonzaçao
_____ _ excepci , consagrado a provar o fracasso ,\..• ·
texto filosófico. Os filósofos titularizados salvam as almas em troca da proi- ~ . al é certo que o romance e . T :'
bição de compreenderem o que a sua função exigiria que compreendessem . Hill lend enc1a g~r , . - alma russa - e «ocidentalização» s1gm ica , . l ~
A sua situação de consciência é comparável à das filhas de mafiosos célegres, n ·vitável da oc1dentahzaçao ~a 1 1 , ·co por um jovem utilitarista
. ·t ento do idea napo eom . d
cultas e refinadas , cuja felicidade existencial depende do facto de permane- ,qu1 o reaprovei am t agmático trata antes do mais a
- p b Mas no seu aspec o pr , . . d
cerem envolvidas numa nuvem de ignorância quanto às origens da fortuna pa- d . ao eters urgo. . , . - . t I ctual pode entrar nas fllelfaS os
terna74. Os raros ensador~s q~~ se desviaram desta regra, trate-se de Bacon, q11cstão de saber em que cond1çoes um 111 e e põe em dúvida a total ausên-
de Hobbes , de Sade, de Nietzsche, de Spengler ou de Bergson , pagaram a sua homens de acção. É precisamenkt~lp~krque nusnec:ssim não fosse, será que , uma
· · ·nosa de Ras o m ov -
proximidade relativamente ao espírito de acção com a marginalização ou o ·iu ele energia cnm1 d . delírio de três dias provocado por
banimento do cânone - não é sem motivo qut lhes deram o título de «som- v ·z praticado o crime , el~ ~e afu~ ana num bra se presta perfeitamente ao es-
brios autores da burguesia» . No que toca a,Hegel, estamos em qualquer caso 11m sentimento de culpab1hdade. -d qdue_a .ºb. ·inclusive alguém que possui o
. - e se po e esm1 lf
no direito de perguntar se não deveria ser considerado como um lobo com pe- ludo das cond1çoes em qu ~ c1·as ma·1s sangrentas . Para encon-
. ·b· - m as consequen .
le de cordeiro, pois o seu «espírito do mundo» pragmá_tico só ex rime uma maior grau de m1 içao , co strução sofistica o direito a abnr
t há que passar por uma con , R k'I
criminalidade superior que sabe sempre l:).brigar-se a tempo ~!Ló:Iecto_da ~~ irar a respos a, . d . . d ·nstrução Porfíri Petróvitch, as o -
,cessidade juridicamente protegida . ·xcepções à lei moral. D1an~e º. JU_1z e 1 O . e no qual segundo afir- ,, . . .
,,ikov cita o seu próprio ~rti~o, \~tit~lad~ e fi~:Va~ã~ e a cri~inalidade:
O facto de o dom perigoso da Europa para produzir as equipas necessárias
'"ª' evidenciou um nexo 111d1sso uve en r ,
aos seus projectos colonizadores ou «civilizadores» não ter desaparecido sob d s os hom;~s e não só os grandes, que
o efeito inibidor das amestrações cristo-burguesas repousava num estado .de «Numa palavra, deduzo qu~ t~ o . . t~ é capazes de dizer algo
·a dos limites normais, 1s , .
consciência que perdurou durante toda a época de expansão e no qual os cris- saem um pou;~ u~ _seJ A er ela sua natureza, obrigatoriamente E_f1- .J
tãos e os burgueses podiam também eles abrir uma excepção às suas próprias um po_Uf O m~1~ novo, tem d~. s. , pos evidentemente. De outro modo, ser-
.
mmosos - mais ou -- menos
. - - c11mmosd , _ dem aceitar ficar dentro de1es ,
normas enquanto o permitiam ou exigiam as éircu"ristâncias . Era o que acon- .. ' , 'f ' ·1 / . dO s limites quan o nao po .
tecia guando os actores se encontravam perante povos afastados cuja estra- -lhes-a d1 ,ci ,- sair ' . · ·- têm mesmo a obn-
or força também da sua natureza , e, na mmha opmiao ,
nheza pudesse ser interpretada como inferioridade . O ponto de partida mais p --- aceitar tais limites.»
· · 75
gação de µão
favorável à desinibição dos actores num contexto cristão apresentava-se sem
dúvida quando o movimento expansivo podia figurar-se como obra de ~ssaõ) . , . k ' lnikov basta pertencer ao grupo das pesso~s
Segundo o rac1ocm10 de Ras o , .d. ·1 e o dever de praticar um cn-
- mesmo que , regra geral , o mi ssionário cedesse o passo aos soldados e aos . . d . vadores para ter o rre1 o
mercadores; o segundo ponto mais favorável era quando , segundo os usos ca- · xcepc1onais ou os m~ - d t der senão a eliminação das re-
ine - no caso, por «cnme» nao se eve en en
valheirescos ou militares, parecia possível defender uma suspensão provisó-
. or Filipe e Nina Guerra, Editorial
75 Fiódor Dostoiévski , Crime e Ca stigo , traduzido do ru sso p
74 Sobre a origem desta comparação, cf. Heiner Mühlmann , Die Natur der Kulturen . Entwwf
einer kulturgenetischen Th eorie , Viena e Nova Iorque, 1996, p. 129. l'rcsença, 200 l , p. 245 .
........ ....... - -·--· 1\

. ca azes de «dizer algo um pouco mais novo»


sistências que as pessoas vulgares sentem perante a novidade. A expressão cl • ll' 110 fosso que separa os seres P_ h' 't ses fundamentais do progressismo
c rime designa pois «a d~struição do presente em nome da ideia do melhor»7ú, otineiro adere as 1po e
,h,s que repetem o r . , 1 m dever de recuperarem o atraso
A auto ersuasão do intelectual leva ao êxito no momento em que ele consegu , . lt ara as pessoas vu gares , u d
ti 1s quai s resu a, P . d lado A sua imagem do mun o
com um suficiente grau de evidência, considerar-se a si próprio como membro sendo a alternativa aceitarem ser poslto~d ed . e a sua cisão entre ultra-
·dade a duas ve oc1 a es -
da categoria excepcional - inútil sublinhar que Dostoiévski partirá deste pon- 111oslra-lhe uma h umaru - após Raskólnikov Joseph Schum-
to para caracterizar o seu herói como vítima de um paralogismo demoníaco 111 ~suntes e ultrapassados. Duas ge_raçdoes olução económic~ que, no fim de
(dir-se-á mais tarde: narcísico). Das hipóteses experimentais do romance pocl ' . , também na sua teona a ev . d '
pl· lcr ensmara . . 1 a vida económica só existem mova o-
deduzir-se_queJíês.tíutura da desinibição moderna .d~ ·ac ão se encontra geral - 1•0111as, e do ponto de vista funciona , n "e, , /,.
1
mente na ~íntese do excepcionalismd,, ªº inovacionismo e d~ volucionism - 1 ·s , imitadores. . . , a do avanço segundo a qual
· . , a uma ontologia mgenu ' .
sendo que um suplemento de motivós democrático-messiânicos em nada pre- Tais h1poteses 1evam d s tropas seria perfeitamente mter- ) ,, ) ..
judicará o caso. Esta estrutura constitui a matriz de inúmeros crimes ligados i'l 11 lislância entre a vanguarda e o grosso a , frente· mostra à maioria iner- l '
f - o piloto dos que seguem a . d.
modernização sobre um pano de fundo cristão e humanista 77 . p1·t{1vel como a unça - . b Raskólnikov não negue os 1-
lr ., Poderemos apreciar o alcance destas reflexões se examinarmos a distinção
I :· ,, ., , . aparentemente ingénua que Raskólnikov estabelece entre as pessoas vulgares
11' 11onde leva globalmente a v_
' ·i1os conservadore
1agem - dem _ocrl:sive acreditar numa perpétua
s da média· preten e m
. - N te esquema o avanço dos seres
· nto e conservaçao _ . es d · ·b"ção' que abre camm - h o '•' t •
.t e as pessoas excepcionais à luz do seu conteúdo em termos de teoria dos pro- q 11 ·rela entre movime
. d uma vocaçao para a es1m 1 ,
<,
~
/

cessos (pomos aqui entre parênteses o facto de , no seguimento do romance, , ·cpciona1s eve-se a A • de barragem constituída pela ' ·'· ·-' ·
do activamente a potencia d , "'
Dostoiévski, afectado pelo ressentimento antimoderno, desejar neutralizares- 111.inha , d esprezan d . 'tável criminalidade dos inova ores . i I )
ta diferença «perante Deus» ou «perante o 4mor»). o conceito de «pessoas 111oral e pela origem - daí a tese _a,mei 1 dem·1sta RaskóÍnikov palavras '
·, k' t ·bu1 aqui ao mo
. , · excepcionais» c(issimula-se a alusão a uma cisão ã ãnumanidade segundo di- 11, ·v idente que Dosto1evs ia n l'd d f ndamental continuam marcadas pe- l
0 :· · ferentes velocidades, diferentes intensidadef ou diferentes trajêctórias biÓgrá-
f' ·
,ª.
1111 .. incluindo na sua concept~a i e u - . de fac,to no quadro de uma me-
láss1ca a movaçao. '

'.~
, .,•, j!gs. Esta cisão faz com que indivíduos que vivem em pe} quisas l}Celei,;adas,
'em saídas mais ousadas e em produções mais excêntricas têm acesso mais
c~o do.que.os-outms a.cex:tas verdade?, realidades ou técnicaS:-Comesse pri-
111 opos ição da meta _1~1ca c
111 i'fsica do mundo fm1to (e nem_ p
, .
o latonismo cristão do Oriente, nem a lgre-
. t T a do Ocidente apos o
\11 catoltco-ansto e ic . -
, Concílio de Trento podem
. ob a suspeita de uma ongma1i-
. . .
vilégio temporal no acesso às novas verdades , realidades e técnicas , instalam •onceber outro mundo) , toda a movaç_ao ca~~r recisa até ao fim da graça do
no mundo uma tensão de recuperação do atraso a que os demais devem res- d11d, diabólica; por conseguinte ,_ca~a movaonte~imento do amor de Deus pe- f
so Para os cnstaos, o ac , . - ,
ponder nolens valens, ou decidindo segui-los, ou recusando-os - argumen- 1 •grc so ao consen . . 1 , brada Génese) e movaçao
tando, por exemplo, que não há nenhuma potência normativa associada aos los homens (esse único acrescento substancia a o
avanços dos que foram mais longe. Se destruirmos a aura pseudoantropológi- q11 · chega. . . . . a do mundo e para a compreensão do
ca que envolve a expressão de Raskólnikov sobre os «seres excepcionais», Para a teona da pnme1ra con~ui~t . mesmo após o contributo de
1 d elo actor mais mtens1vo , ,. , I
\ resta um núcleo duro da ordem da teoria dos processos: aquj_lo que aqui se 11v11 nço a cança o p . . - está ainda garantido: até aqui , e 1mposs1ve
, í chama o extraordinário mais não é do que a integração de indivíduos e de gru- 1)ost.oiévski, o ponto dec1s1vo nao . - do primado da inibição concedida
"" •• posem trajectórias do devir que poderíamos qualificar de «evoluções» avan- l)rimir com suficiente clareza a isençao " . 'dade Mesmo as «pessoas
J'b tação da pura 01ens1v1 · .
çadas, na medida em que nos seja possível utilizar essa expressão sem nos 111 1 homem que age e a , 1 ~r ntinuam sujeitas ao preconceito metafísico
pronunciarmos assim sobre o dever que teriam os demais de, mais cedo ou • . ·pcionais» de Raskolmkov co admiração dos seus contem-
. - . não merecem apenas a .
mais tarde, se juntarem às «evoluções» . Quando o herói de Dostoiévski insis- dl pecado da movaçao, d ovação dos bem-pensantes, pois,
, re e igualmente a esapr . - d
p iraneos , mas semp .d d de amor ou de comumcaçao as
d . tegrarem na comum a e
76 lbid. , p. 245. Manifestamente , na sua fase fascista de esquerda , Georg Luk_ács adere às teses
de Raskólnikov.
77 Há um passo preparatório da análi se de Dostoiévski nos fragmentos sobre o crime da «filo-
i ,11 lu gar e se m
1•1·iuturas finitas, fragmen~adm a um
11 11111 conjunto de competi ores, en r
te
'd d d género humano e transformam-no
eos ºquais por força dos avanços e dos .. /
. , ·' , .
sofia real » de Hegel em lena . Neles, o crime é interpretado como a proclamação , marcada pelo . h, edores e perdedores reais. 1,
11 trnsos reai s, a venc . h obra central, Assim Falava Zara- I
selo do segredo , de um dire ito de excepção contra o universa l formalmente reconhecido (como ! louve que aguardar N1etzsc e e a sua_ de uma teoria da ofensividade
o gesto de «uma vontade individual de poder», p. 215) , ao passo que a le i que exi ge um a vali- desenhassem os contornos 'f'
dade real se põe em marcha como impulso antitético do universal , isto é , como uma fe rida in- /11.,·tra, para que se . 1 sua tendência de base, poderia class1 1car-
fli gida a quem feriu. Cf. G . W. F. Hegel , Jenaer Systementwürfe Ili . Naturp/zilosophie und Phi- l 1111dame~t~lm~~~~=~~rtada: ~e a . d. onisíaco. A absolvição dos que sen-
/osophie des Geistes , Hamburgo , 1987 , pp . 212-213. \' o li vro na categona do piagmat1smo i
'.
1 1, , .. , , ..,, ... - -··- 11
• -• - • OJ • .._, , .._. , Y \ J'-.,
1

ue odem vir a ser as unilateralidades residua!s


tem em si a faúlha do acto pretende ser mais do que um teorema: a transfor t '11\0nta bem longe: sobre o q p mant1·veram encontramos hoJe
d ão sem entraves, se '
mação do texto filosófico em hino oferece-se ela própria em exemplo parn 11 q11 .' desde o tempo a acç d . de o' pera ou nos filmes sobre o len-
. _ nações au ac1osas d'
- ~ -m -
apresenta - -----
emancipação da o~nsiva. Sob a sua forma falada, esta filosofia poeti zadn
actu aquilo de que é capaz uma energia puramente tética. Com 11
nt orrnaçoes nas ence
· 1
d no assa to ao com .
. d I 1 t rra Globalmente podemos izer
boio-corre10 a ng a e ·
d d .
' ·
h'sto' r1·a» de cuJ·as regras ainda nao
, l ' dio à ver a eira « 1 , -
-
força de penetração de uma mensagem evangélica autógena que se dirige a to q11. começo~ um ~os- u 1, d f cto de que , desde a aparição das reacçoes
_dos e a ninguém, o acto de fala híbrido de Zaratustra repete. a travessia do ,hemos muita c01sa - para ª 0 ª .
' pidas , um outro estilo de «destino» domma a cena.
~ ! fO ~ só a pàitir de então se pode dizer que o acto de Colombo chegou
ao pensamento. As passagens-chave filosóficas de Za.ratustra são aquelas eni
que o cantor invoca o elã do seu próprio canto - dá-lhe o nome de acident , .J,,
cuja trivialidade não entra em contradição com a sua divindade. O canto sab
que é uma força luminosa fortuita que se despende e aprova o dispêndio -
, ' . (

' r
seja qual for a dor que esse dom heroicamente solar inspira ao dador, ao qual
ninguém restitui nada. «Sobre todas as coisas, encontra-se o céu eventualida-
\ J; ,.
r(t-
l -~ ~
.1 1} .. L1-_,,,
,,~ ! 'i , /· 1 .,'"L·". .-t' ,'
de , o céu inocência, o céu acaso, o céu arrogância.» «Dom acaso - eis a mais J..
velha nobreza do mundo, que eu restituí a todas as coisas ... »78 Neste registo
( i,.I
j'
; ,.. 'i>.
/
-y·'t' Jvl

encontramos as queixas pelas quais o profeta exprime a sua solidão: como en-
carna a transição entre o arreigamento à origem e o arreigamento ao futuro ,
tem de assumir-lhe a consequência: tomar-se solidário entre os outros, entre
as suas vidas não aceleradas. Um homem do seu tipo não existe pela prove-
niência , mas pelo avanço. O séu discurso sobre o elã marca a transição entre
o avanço que alguém tem e o avanço que alguém é. Quando se vive nesse
avanço, chega-se sempre cedo de mais.
O homem radicalmente avançado resume na sua trajectória existencial o es-
pírito do movimento da velha Europa , do qual , aliás, são testemunho apenas
algumas palavras esparsas dos séculos passados. Uma delas é de Oliver Crom-
well, a quem se atribui esta sentença: «Nunca um homem sobe mais alto do
que quando não sabe aonde vai.» Outro dito foi pronunciado , segundo o tes-
temunho de Calincourt, por Napoleão , quando da sua fuga da Rúss ia, no mo-
mento em que , perdido o seu exército, repetia monotonamente: «Do sublime
ao ridículo vai um só passo .» 79 O dito mais profundo da sabedoria europeia
do movimento foi, porém, escrito por Holderlin no seu poema «Coragem do
Poeta» (que, numa versão posterior, ostenta o título «Blodigkeit», «Asneira»):
«Vai então! Avança sem armas/ Ao longo da vida, não temas nada.»
Inútil sublinhar que , .a_pós a derrocada da velha Europa, as intuições de
Nietzsche têm um mero valor de antigui<:Iade; mais·inútil ainda é acrescentar
que, no fundo, com a transferência do domínio da acção para os Estados Uni-
dos, o jogo da «história do mundo» está, para nós, ultrapassado - mais à
frente explicaremos por que motivo até o gesto americano para tomar conta
da «história»-a-fazer cai no vazio. A idade de omo da unilateralidade europeia

78 Friedric h Nietzsche, «Antes do Nascer do Sol», in Assim Falava 'Zaratustra, III , Relógio
D' Água, pp . 189- 192.
79 Schopenhauer atribui a paternidade desta frase a Thomas Paine, cf. O Mundo como Vontade
e Representação , l ." Parte, § 34.
, .. ..,,.,. ...
1

\
lt1r to de que entre o regime religioso e o regime terapêutico se abrira um mun-

.; 1111 int e rmédio que participava nas duas ordens e estava portanto fundado em
p1•11 ticas autónomas. Até ao século XIX, a navegação marítima constitui um ter-
1 l' iro auj:__óJlQ!ll.o...fil!.!re a religião e a teráQêÜt{ca. úmêras pessoas1Jrocuraram
11t1s rnares JJma cu.r_a 12...ara_as_frusti-a ~ rme. Talvez o Nautilus do
111 pi tão Nemo tivesse sido a última nau dos loucos em que um grande misan-
v' 11o po solitário poderia exercer com total soberania a sua recusa de uma hu-
111 111iclade terrestre decepcionante. Para Herman Melville, parecia ainda mui-
13 Ekstaseis Náuticas 1! 1 simplesmente evidente que O alto-mar proporcio na O mais seguro remédio
1•011tra os humores melancólicos ou maníacos. O narrador de Moby Dick - o
1 vro saiu a lume em 185 , mal faltavam vinte e cinco anos para os ensaios

· Pela. sua face subjectiva , pode des crever-se a - A •


11111Tativos de Júlio Verne obre a globalização terrestre e subterrânea, maríti-
pnme1ros tempos como uma te' c . . n~~e aç.fil? .transatlaQ!lca dos 11 111e submarina - começ va a ua narrax.ão nos seguintes termos:
' · · · · ::-.., me o ai da - 1 7'? .i , ~ '
-=-- - =~. . . .
( cobridores, semelhantes aos ...--
fo11!;'-çÕÇ:! S _grovementes e um A-le'm
, 1,t - -
a -
~--mas e uma li ·-
s1 rn tcati J, -
-
lS•, graças a qual os de''
.
,, -:--:-f~ _gi.aoJ1ao..es__cnta, OQJiveram Ili •
, ~ t .• ,, •. 1 ~
«Chamem-me Ismael. Há alguns anos - não importa há quantos preci-
·esst! \:\lé como um «J;T;m e . 1 a nao se podia representa,· samente - , tendo eu pouco dinheiro na bolsa, ou nenhum, e nada de espe-
~ ima» ce este mas co
.!e~}'J· Cómo todas as transcendências ou , . - mo !_!,m : do_ outro lado» ter- ·ial que me interessasse em te1Ta, pensei em fazer-me ao mar para ver a par-
Alem de risco moderno não se bt· h qu~se transcendencias de outrora o
d~ 0 m a gratuitamente o · · viajantes' te aquática do mundo. É cá uma forma que tenho de afastar o spleen e
o u,tramar uveram frequenteme t êl . s pnme1ros regular a circulação. Sempre que sinto um amargor pairar-me na boca; sem-
, n e e pagar com a
as costas longínquas. Citem-se, entre elas , mar a_s ~sceses o acesso pre que há um Novembro húmido e chuvoso na minha alma; sempre que
quando de travessias prolongadas 1 , os penodos de 1e1um involuntário do u comigo a deter-me involuntariamente diante dos cangalheiros, ou a se-
durante as bonanças e as lenta . pe o mau t~mpo, ou entao a tortura do tédio
' s viagens marítimas A · - guir logo atrás de todos os funerais que encontro; e especialmente sempre
cada frequentemente pelo calor, elo fri . pnv.ª7ªº do SO!lO provo- que a morbidez me assoberba de tal maneira que só um forte princípio mo-
de , pelo ruído e o medo no alto p o, pelos maus cheiros , pela exiguida-
- . . -mar atazanava tamb , ral me impede de deliberadamente sair para as ruas e me pôr metodicamen-
pu laçoes irntáveis e dadas a' lo 'T' em permanentemente tri - te a deitar abaixo os chapéus das pessoas - então , considero que é mais que
. · ucura , oda a nau l
via1antes numa relação constante co . ·1 no a to-mar colocava o. tempo de me fazer ao mar com a maior prontidão. É o meu substituto para
. m aqui o que aqu · · d
quer outra situação podemos eh . , '. I, mais o que em qual -
a pi stola e a bala. Com um floreado filosófico Catão atira-se 12or obre a sua
amar as COJsas ultim A 1 .
ou a morte» era a fórmula que .. . as. a ternat1va «o porto espada; eu, pela calada, entro a bordo.» 80 • it · ,.t,., "' •.. ,.,
- perm1t1a meditar no m , .
acçao humana ao seu obiectivo E
· • . J • nquanto observação d t ·
ar o precarw apego da . ~' - i--, ~;,t.t ,.
espmtuais de Inácio de Loyola nã d. . o im, os exercícios É fácil decifrar a mensagem: com o mosteiro e o suicídio , a marinha a pre- · '/,' 1
vessia do Atlântico. Nenhum o pod iam ser mais explícitos do que uma tra-
. grupo e ascetas sobre A
·nta-se como a terceira opção possível que permite a uma ·pessoa desem-
sentir com mais acuidade a 1 . d os mares pode, porém lluraçar-se d-e uma vida que se tomou invivível em. terra. Durante toda uma
e1 o mar «o porto ,
procuravam os pontos de travessia ma1·s' d .f, . dou a morte», do que os que ·rn , haveria de convergir na globalização náutica tudo o que os Europeus in-
1 1ce1s a Terra ·
o mar d o N orte europeu e a s1·b , . O . 'a via nordeste entre qui etos empreendiam para se desê mbaraçarem dos seus anti os enraizamen-
Iandia e o Alasca Nestes 1·t1·
A • ena nental e a ·
, . . via noroeste entre a Grone-
. · nerar1os quase imp , . f los esféricos e das suas inibiçõés locais . Aquilo que aqui significa a inquieta-
miar do século XIX os sistemas d . . oss1ve1s, racassaram até ao li -
. emencia1s e os fant d . ~·t o (rest lessness, pal ~ra-chave di antiga investigação sobre a e;;-lgraçã~)
d e bastantes investigadores em d asmas e transfiguração
erca ores aventu · N . 1 'l"LI a inclistintamente e.spirit de em resa , a frustra ão , a vaga ~ pera e o
savam pelo Norte , a campanha desen 1 .d re1ro,s. as duas vias que pas - d ·senraizamento criminoso . A agitação do dinheiro mistura-se com a das
conceito de im ossível procu vo vi_ .ª pela Epoca Moderna contra o
-~ rava as suas v1t1mas exem 1 < ·x istências esenraizadãs» 8 t. Tal outro purgatório, o mar passava a oferecer
Q uando se caracteriza o mund b pares.
A
11111a oportun idade de escapar às terras firmes e às terras natais decepcionan- I'-'
mental e às suas constituiço-es . o ~r~~es actual, no que toca à sua situação
· imunitanas desde , 1
«sociedade» da terapia e do . o secu o XVIII, como uma
seguia - uma formaç - · · HO Herman Metville , op. cit ., p. 25.
mente da «sociedade» da relioião ao que se distingue nítida-
º que a precedeu - , despreza-se sobretudo o KI CL Dirk Baecker, «Die Unruhe des Ge ldes, der Einbruch der Frist», in. , do mesmo , Wozu So-
//olof(ie?, Berlim , 2004, pp . 109-124.
r11 111 ·1u u..:; .,.,u11 1

~ . - uma proximidade palpá- \


, . vê os seus ex1tos se nao a ~
tes. Nele se reuniam as pessoas que envelhecem depressa sob o vento e o dr ill·ias pós-metaf1s1cas que . , l de ser atingida . Com ele se pos
d'stânc1a suscept1ve d
sespero. A todas se aplicava um dito que Victor Hugo escreveu , a propósito r i. pelo menos a um,a . • - l ºllin wishful thinking que apren eu a
de Gilliatt, o herói do seu terceiro grande romance, Les Travailleurs ele lo 1 111 marcha uma e~pec'.e de s;!f~~te f;ntástica e realista, para mundo_ s re-
mer, em 1866: «Tinha a máscara do vento e do mar.»8 2 d l'i •ir- ·e, de manelía s1multaneam t emergência ao longe contives-
. orno se a sua supos a
O novo Além náutico , o da empresa, era concebido como um Além empí i 11 ,dos e suas nquezas, c .d t e havia de tomar posse delas.
rico que passara a estar aberto aos que mobilizavam todas as suas forças p11 ,. j , a promessa de que rap1 amen e s
rase arriscarem no exterior. Ninguém pode ir para o mar a metade, como ni11
guém pode a metade consagrar-se a Deus . Quem pisa a ponte do navio , t 111
de ter rompido com a dependência para com os conceitos terrestres da mort1•
e da vida. Ignora-se contudo quantos desses homens mortos prematuramenll'
estariam em condições de fazer sua esta declaração pela qual o general P s
cara, vencedor de Pavia, explicava o segredo do seu sangue-frio na batalha:
«A minha divindade ... acalmou a tempestade em torno dos meus remos.»8
Pouco importa, porém, se os novos inquietos sobem a bordo dos navios ou
se, nas sedes das suas empresas, se imaginam em mundos remotos ao aban-
donarem com o olhar a narrativa de viagem que estão a ler: uma maravilhosn
transcendência transatlântica anima o desejo dos europeus que aprendem 11
apurar o ouvido. O sonho europeu da vida boa e melhor é aspirado por um al-
go totalmente diferente situado além do mar. Essas representações não têni
nada a ver com as lendas temerosas que habitam as superstições dos mari-
nheiros e dos pescadores . Q_Alé~ é j.á Q...bordo 92._UQ!_ª t~ça cósrniç_aJ11aS
ºl!.tra c?sta i.2i_a!_farafi?~ que mais tarde se_há-de çhaJ:lljff_fQStª_<tmericanu .
1 A travessia começa a substituir a ascen§ão. ·~
) ó esêã de~locação da transcendência para~ horizontal possibilitou _a uto·
pia como escola de pensamento, como modo de escrita e como mold51,do1s 4,',
p1asmas ·de desejo e das relÍgiões imanentizadas . O género literário da utopia, {rf.en·
bruscamente aparecido no século xv1, organiza uma cultura ideal que visa u
explicação progressiva e, mãis tarí:le, uma política adequada, 1:1ª qual s e po-
dem ·construir mundos alternativos fora de todo o contexto - segundo o gos-
to daqueles que a Terra não satisfaz, mas continuando a apoiar-se no 'facto
ori_ginal da época moderna, o descobrimento real do Novo Mundo na diversi -
dade inesgotável das suas formas de emergência insulares e continentais (no-
meadamente nas inumeráveis ilhas do Pacífico onde , pensa-se, se poderia re-
começar mais uma vez o experimentum mundi a partir do zero) . Como most:ru
não importa qualquer olhadela sobre os documentos nos primeiros tempos do~
Descobrimentos ~ m íriço y o fant~stic_o andavam indisso_ci~~e).mente..Jiga-
dos,,.. Com os seus novos media , que se impuseram rapidamente - trate-se da
recolha de lendas populares, do relato de viagem, do romance ou da utopia ou
da impressão in-plano do globo ou do mapa-múndi - , a meditação sobre o
verdadeiro Novo Mundo e as suas variantes imaginárias produz um regime de

82 Victor Hugo , Die Arbeirer des Meeres , Hamburgo , 2005 , p. 36 .


83 Conrad Ferdinand Meyer, «Die Yersuchung des Pescara», in , do mesmo , Ausgewiihlte Wer•
ke, Willy Brandi (ed.), 2 vol. , Hamburgo , Bielefeld e Estugarda , 1953, p. 544.
1 l llfl l \ l \..I V , n .,u ..

lt 11do perd ido a ligação à realidade na sua terra, parecem predestinados a explo-
1111 o lá íora. Muitas vezes já têm realmente um pé assente nos factos inexplora-
do · não há dúvida nenhuma de que, não raro, no alto mar, precisamente, pos-
1t1 l11 r o milagre iminente é adequar-se à realidade . Os capitães mais poderosos
~ 11 os que conjuram com a maior eficácia as suas tripulações na pura progres-
~ 11 pa ra a frente, nomeadamente quando não dar meia-volta aparece como uma
lt11 1·ura . Sem um forte e constante fascínio do optimismo a bordo, a maioria das
111 i111 ·iras expedições teria fracassado pelo desânimo . Foi com visões de rique-
14 Corporate identity No Alto Mar / 11 l' •l óri a reservadas aos descobridores que os chefes de expedição consegui-
Divisão dos Espíritos ' 111111 manter as suas tripulações psiquicamente e m acção . Mas as penas draco-
11 1111us faziam também parte do reportório das suas técnicas de sucesso. Se, após
n 11101im dos seus capitães diante de San Julian , na costa patagónica da Améri-
Contudo , lá fora, no team conjurado só u . . 111 do Sul , a I de Abril ele 1520, o português Magalhães não tivesse, apesar de
nhava a felicidade Nas na d d , . q em sabia desejar e navegar g·1 1i1d11s as objecções dos seus subalternos, desembarcado e executado também os
· · us os escobndore · - '
me1ros objectos desses processos d d 1· !·
e mo e 1zaçao de or
as tnpulaçoes eram os pri-
· , 11s11bordinados nobres espanhóis, não teria feito compreender aos seus homens,
zes que foram descritos no nosso t º upo mgenuos e efica 1•11111 a maior determinação, o que significa uma viagem de ida incondicional; e
Nos ~avios, os pioneiros que avan : : : com o nome de corporate identity , 11'. ·orno relata Pigafetta, não tivesse ameaçado de mmte quem quer que falas-
rer o imposs ível no seio de um ç . a~tes dos outros aprenderam a que- l le regresso ou mencionasse a falta de víveres, a viagem por oeste para as Mo-
No essencial, as ideias directr1·zªesequ1pa CUjas_regras iam na mesma direcção. 111 ·11s teria sem dúvida acabado logo no primeiro quinto do trajecto 85 . Quando
.
d o ennquecimento neo-europeias as d 0 ·
geral que s t .. ' prog resso constante tl11 sua primeira travessia , Cristóvão Colombo , como assinala no diário de bor-
- ' e ornaram politizá · -:-- ,
sao, do ponto de vista psico-hiºst , · . veis ª Partir do seculo x1x do do Santa Maria, falsificou os dados relativos ao percurso «para que a dura-
. onco, retropro,ecçõ h . - ·
e social de imagens sonhadas d .. J es num onzon!e nacional \' 10 ela travessa não suscitasse o descontentamento da trip~lação». Após um iní-
glob_a lização náutica. Constitue~: ~~~~='· que datam dos primeiros temQÕs da l'lo ele motim durante uma tempestade , diante da costa da Africa Oriental, Vasco
da vida sedentária o movimento cate , . tivas de transpor para as condições d11 ama mandou de itar ao mar as bússolas , os mapas e os instrumentos de me-
- p d gonco em frente que .
çao. o emos ler os textos de Ernst Bl h - . caractenza a navega- dida dos seus capitães e oficiais para eliminar nos membros das suas tripulações
de progressismo generalizado - co oc . para citar um exemplo eminente q1111i ~quer veleidades futuras de regresso . Foi a partir de experiências deste tipo
partir do lado marítimo e o t1·ves mo se tivesse reformulado o socialismo a
- . se recomendado co , q11 ·, a bordo desses navios , onde reinava uma temeridade demente, se desen-
razao de emigração para Novos Mundos O r m~ um s?nho filtrado pela vo lveu uma psicologia formal da expedição, animada pela obrigação aguda de
como se fosse sabedoria fazer crer ue .c_ p og_r~~so -~ a e!]11graçã~ no tempo: 111/.er a destrinça entre os espíritos optimistas e os espíritos hesitantes.
bertadas pela avidez dos propriet , . q , om ª. a_iu~a das forças produ.tivas li- Só quando esses saberes marítimos regressaram aos seres humanos em ter-
tuações dignas dos mares do Sul arE,ios, se poden~m instaurar por todo o lado si-
. · · por esse motivo q ·d 111 se tornou possível o que os tempos posteriores vieram a chamar a ~pinião • •
ject1vamente susceptíveis de se . -" . ue o parti o dos votos ob- progressista - a conluração em tomo a um imperturbável «avante». No qua-
. rem sat1s1e1tos tem d
Seja como for, o sonho da sorte rande s~mpre e ter razão84. <ll'O de Géricault «A Jangada da Medusa» - a tela-catástrofe marinha cl áss i-
vos globonautas a olhar cara g que nos sai no exterior ajudará os no-
a cara o terror da t · ·d , l 'II do Império - , pintado em 1818-1819 , evidencia-se a origem marítima da
navegadores e as suas tripulações - - ex enon ade. E por isso que os dif ·re nça entre a psicolog ia do progresso e a da regressão . Logo à primeira
nao sao apenas puros e simples psicóticos que ,
vista podem di stinguir-se o grupo da depressão, na parte esquerda do quadro,
84 O t: .
amoso dt!o de Bloch sobre as uto ias e , • o g rupo da esperança, na parte direita; o primeiro continua de olhos crava-
as formas de expressão de uma «co;id/ t g ograficas da época moderna consideradas como dos na sua mi séria , enquanto o segundo fita o navio salvador no horizonte .
furt , 1959, Vol. H., pp. 883-884) não es'c aod esouro hori zontal» (Das Prinzip Hojfnung Frank-
t: . . on e um certo 17ar( . · . e ' 1111ce ao extremo, estes náufragos exprimem a di sputa entre esperanças e de-
acio, o spcialismo dos pesquisadore d , p u s a ,avor do modelo citado De
·- s e tesouro parte d · , ·
,gr~Globalmente, aparece em Bloch um tra . . º.pnnc1p10 de que a...na,!:ureza é.s~.mru:,e
· nimos constitutiva da tota lidade da época modema86 . Desde o motim dos
': convicção de que «a exploração do homem ~o sa111t-s1monia~o maciço, que se exprime pe-
çao do globo pelo homem. Sobre a ex tens· p B~ homem» devia ser substituída pela explora-
H T Pigafetta. Die erste Reise um die Ercle , op. cit., pp. 84-86.
ça ao tesouro, cf. Sphiire Ili, Schiiume , pp.ao77p4orsq. och da h1stóna mundial da produção pela ca, -
H/, T Klaus Heinrich , Fioj3 der Medusa . Drei Studien zur Fascinationsgeschichte mil mehreren
11,·iluf!. en und ei11e111 Anhang, Basileia e Frankfurt , 1996, pp. 9-45.
capitães de Vasco da Gama e a sua repressão, a campanha da globalização
uma guerra permanente dos humores e um combate pelos meios de orienl11
ção que é da ordem da hipnose de grupo - e desde recentemente: pelo pocl 1
de programação nos mass media e pelo poder de consulta nas empresas . o
ladq progressista, foi muitas vezes a coragem do desespero - aliada a um op
timismo psicológico inabalável - que permitiu à «revolução» mundial do,
que não dão meia-volta continuar a sua progressão . Mais tarde, os pessimis-
tas a bordo serão os amotinados potenciais e reais contra o projecto da mo
Jlemidade, e entre eles os redescobridores da consciência trágica . Estes têni 15 0 Movimento de Fundo: .
D h . Volta Ao Ponto de Partida
tendência para, sob pretextos muito racionais , abandonar as empresas em qu · . /
não se vêem a ganhar nada , nem eles, nem os seus . A história destes abando•
0 m e1ro 1 ,, ,,.,fr.-;, .. f - ,

.... 1 (. ,. :· / .1 ,: !; ,<"' ,' . .......... ' ")


nistas ainda está por escrever. Manifesto ou latente, o seu slogan passou a r
esse Parai a história!, slogan que transforma em aliados os apocal_ípticos, OH . I. , s ca itais encetam o movimento caracte-
'om cada navjó lançado a agua, ~ p dema· a volta ao mundo feita pe-
trágicos, os derrotistas e os rentistas 87 . Mas_a gravidade reunida dos guar•
diões da calma, dos perdedores, dos que só fazem sinais negativos e das suas
1 ti co da «revolução» do espaço da epoca mo d'd a
. egresso bem-suce I o
: conta de origem. _Q. return
.::..---
1
tribunas literárias não podia já fazer grande coisa contra a en_ergia visionáriu hl dinheiro ::whcado e o se~ r . ) , o movimento dos movimentos, a~~-
,111 i11 v · t (retOrno do mvest11nento ,--, e ~~~~:_;:;_.::;;;~i,;;:;--;;;;:;-tt=;íêc
• e nsco onfere um traço n áu -
à rédea solta dos fazedores de projectos e dos charlatães da empresa. Hoje co- dos os actos do comercio " . lt
t
h- 11 que obedece!Il~-- _ _ -·· .--·· luindo os que não atravessam o a 0 -
mo ontem, estes vivem dos seus erros produtivos e dos que neles se fiam . - ações dos capitais, me d A a •

Graças aos seus talentos auto-hipnóticos, as naturezas práticas conseguem 1 ·o a todas as oper . t'da se multiplica na sequencia e um
.d que cada soma mves i . t
111ar, na me d t a em d . f rma monetária e rec1procamen e -
voltar sempre a erguer em torno de si mesmas impérios compostos de auto-
111 ·tamorfose da forma de merca ona na o b'l' dade na forma de viagem e re-
-ilusões que a médio prazo conhecem o êxito . d . d. . da forma da conta 1 1
Como as práticas dos capitães não repousam apenas na demência e no fas- l 1111bém se po ena tzer. d . d·nheiro atira-se ao mar alto dos mer-
1' procamente . Enquanto mer~a ona, ~ t erar regressar a salvo ao porto de
cínio da motivação, mas também em competências geográficas incontestáveis
e em rotinas náuticas elaboradas no real, os projectos fantasmáticos e loucos ,, , los e , comparável aos nav~os; ~emA e ~:~ ao mundo está latentemente inte-
.
111'1 •cm, a conta o
d seu propnetano . dvo cadorias. E passa a ser essa vol -
dos neo-europeus têm uma hipótese de, por si, vencerem uma vez por outra. t da metamorfose as roer d f ta
É a única maneira de, nos oceanos, converterem o medo em ekstasis . É a úni- iin,da no pensamen o . d h ' que ir buscar a merca os a as -
r . 1 te explícita quan o a . .
ca maneira de os autos da ekstasis se tornarem diários de bordo; e só assim 111 lc maneira tota men t a os quais se troca o dmhetro .
. d Oriente os bens con r d
também os porões se enchem de tesouros. Cada navio no mar alto encarna dDs, nas drogaria~ o , ressa da sua longa viagem, a loucura a ex-
Quando o capital navegante reg A f t de Colombo e dos seus suces-
uma psicose que içou a vela; cada um deles é também um capital real flu - azão do lucro roa ·
tuando nas águas. Nessa qualidade, participa na grande obra da modernidade, 1
11111são transforma-se em r . - armadas para fazer delas navios
naus de loucos que sao re d'
que consiste em desenvolver a substância como um fluxo . or ·s é composta por . . fi b'l' dade estiver em melhores con t-
- . . ai é o navio cuJa ia 1 1 - .
1l I razao. O _ 1:1a1~.1:~10n uardado em reserva por uma nova Fortuna re-
,., ·s para assumtr o regresso - ~ b d1·dos E é precisamente porque
' .. os felizes e em-suce . . .
r/11 l"!\8 para efectuar regress , . . cados que regresse ao investi-
. . stido nos negocios arns
11· ·spera do dinheiro mve ue o verdadeiro nome desse tipo de recur-
dor consideravelmente aumentado q . sso dos dinheiros ambulantes
- f 's o de Revenit - iegre . d d
os , em alemao e rance , ,_, . :;; "l o sacio sobre a propneda e os
. . - esenta o pre1mo uesem 89
,•11 '(1 mult1phcaçao repr . . d . tamorfose da viagem pç,r ma; .
11 vt:sti oresã ós ter-corndo o nsc_o ~ me f - .• , ' ' ,• .,;.··.).,/~-_. ·- •
_. _,,, -.~ ., '
. A sto ter reoressado d a sua ex Pedição ao Orien-
!Ili () seu culto fora instituído em Roma apos ugu º , .
87 Quanto ao tema stop history! cf. Eric Voege lin , Order a,u/ History , Vol. 4 , Th e Ecumenic Age ,
19 C · · · era a caractensttca
Bâton-Rouge e Londres, 1974, pp . 329-333 . No capítulo consagrado à pós-história (cf. mais à \1', 11 0 ano a. · do onto de partida em s, propno»
li' ) '1'·11nbém Marx notou que «o regress~ p . . ta a circulação aparece como um proces-
frente, pp. 159 sq.) veremos por que motivo este imperativo se tornou supérfluo após a consu- . d apitais· «A pnme1ra vis .
1l11 iníc io dos movimentos e c .
mação da globali zação te~~estre . - - · ·---
' '
. . ine uivocamente a razão e a loucura tiram
No que toca aos mercadores racionais e loucos que comerciavam com o ui 1111 , consistia em d1 ssoc1ar ~.--9... d s seguros e a filosofia da época
~ -··- · d d o sistema o
tramar a partir das cidades portuárias - todos esses novos racionali stas lo l' ua lmente a sua leg1timi a e , ·s profundo do que a história
. d eu parentesco e mai
ri sco, os portugueses, os italianos, os espanhóis, os ingleses , os holandes s, moderna. Assim sen o, o s~ ......,,.......=,....,..~- utra ;e-dedicam
- às técnicas da
. , h · " l'anfo um como a o
os franceses , os alemães que içavam os seus pavilhões nos oceanos - , li d11s ideias mostrou ate oJe . . pelo controlo dos processos flu-
t za· ambos se mteressam . .
nham aprendido, o mais tardar por volta do ano de 1600, a tornar os seus ri s• N ·gurança e d a cer_e , - .- --- d d. h . estados de consciência, ClfCU 1a-
cos calculáveis por meio da diversificação . Os novos seguros propuseram ON 111antes (~uxo êle mercador~as e e a~:n;~:~~ semântico com o sistema disci-
seus serviços para, pela astúcia, levarem a melhor sobre os mares e os eus ~·iio dos signos), pelo que tem ~m p b sa que Michel Foucault estudou
escolhos . As pessoas e os bens podem evoluir em suspensão no que se cham11 pi inar da «sociedade» absolutista e ~rgue d
11 0s seus ensaios sobre a história dos sistemas de or em .
um perigo . «Uma mercadoria no mar» (Condorcet), em contrapartida, está ex -
posta a um risco , isto é , a uma probabilidade de fracasso descritível sob for-
ma matemática; e, contra essa probabilidade, podem constituir-se comunida-
des de solidariedade baseadas no cálculo . Aqui, a sociedade aparece como a
aliança dos pesquisadores de lucro bem segurados·. Une os loucos que reflec-
tiram bem em tudo antes de agir.
Ao contrário do ue se passa com a filosofia eterna, quem põe todos os
ovôs n'ilrilsóê estô é ;;;;louco em negócios. O hom~ avisado pensa anteci-
pando amplamente e aposta na · _ersifica ão , como qualquer burguês que
saiba contar. Comp~eende-se perfeitamente orno Antonio, o mercador de Ve-
neza descrito por Shakespeare, podia declarar convincentemente porque é que
a sua tristeza não provinha dos seus negócios:

«Meus negócios não 'stão num só porão ,


Nem num só sítio; nem 'stão meus haveres
Sujeitos à fortuna do presente ano;
Se estou triste , não é pois p' los meus bens.»90

A prudência de mercador de Antonio reflecte a sageza média de uma épo-


ca em que o capital flutuante havia já reflectido por um certo tempo na arte
de reduzir os riscos até um grau racionalmente suportável. Não é por acaso
que os inícios dos seguros europeus e o seu fundamento matemático remon-
tam ao início do século XVII 91 . A expansão da ideia de seguro durante o pri-
meiro período da navegação globalizada, a dos aventureiros , testemunha que
os grandes tomadores de risco aceitavam pagar pela sua imagem de sujeitos
râcionais e sérios . Para tais'pessoas, o essencial era abrir um fosso suficiente-
mente profundo entre eles e os loucos ordinários . Da obrigação imperativa

· so marcado pelo mau infinito. A mercadoria é trocada por dinheiro; o dinheiro é trocado por
mercadori as e isso repete-se infinitamente.» (Grundrisse der Krilik der politisch.en Ôkonomie,
Roh.entww f /857- 1858, Frankfurt e Viena , s.d., p. 111 .) No entanto , o que importa para Marx é
mostrar duas coisas: por um lado , que na metam rfose dinheiro-mercadoria-dinheiro pode ocor-
rer o fenómeno de início mi sterioso cla~s-va lia que anima.o processo de acumulação. Por ou-
tro lado , que na concorrência dos capit;;Ts~ forçosame nte crises de valorização e, na sua
esteira, crises soc iais que entravam o regresso fe li z do dinheiro a si próprio como capital.
90 Shakespeare, O Mercador de Veneza , Acto l , Cena l.
91 Cf. Peter L. Bernstein, Against the Gods, The Remarkable Story of Risk, Nova Iorq ue, 1996.
.J
I'
0111a-se- lhe enfim aquilo a que, tendo em conta a literatura erudita, podemos /
1'1 111 mar o público científico. Possivelmente, a corrente raciona.fuJ~ da filoso- ;· . ,;,,
l 111 co ntinental que se filia no emigrante Descartes constituiu precisamente es- 1 , , ~ )
1 tentativa: a de c~loc~ U_l!l f ~!~Qrm_e lqgiço <;: im1_b-ªláyel sob .os pés dos

\ ll urgueses de risco que contraem empréstimos , especulam com capitais flu-


' ..
11111 nles e têm sempre presentes as datas de vencimento do crédLto - uma
ol' ·rta a que os britânicos , ligados ao mar, se mostraram durante muito tempo
' / ,,r,,
l
1
111 ·nos sensíveis do que os outros europeus, os quais raramente escondiam a

16 Entre Justificações e Seguros ~ua hidrofobia e , além disso , tinham sempre de contar com um crescimento
du quota devictã ao Estado ao conceberem os seus negócios 92 .
Sobre o Pensamento Terrestre e Marítimo
É um facto importante e típico da época: a gravura de cobre que ornamen-
1:i a página de título do Novum Organum d e ~- em 1620, mostra navios
O sistema nascente dos seguros é um dos . de regresso ao porto acompanhados da seguinte legenda: «Muitos passarão e
témica na medida em que se d f' d ~erc~rsores da modernidade sis- 1 ciência se acrescentará .» 93 Aqui o novo pensamento experimental casa-se
. . e ma a mo ern1zaçao como d I
religiosas últimas dos riscos da vida :s
titu1ção de vagas estruturas imunitár' .... b T . uma _gra ua subs-
sim o icas, do ti~o das mterpretaçõe
ciais e técnicas exactas. Em certos u~ana, por_p'.estaçoes de segurança so-
·om a frota atlântica sob os auspícios de um presságio pragmático , tal como
o Doge de Veneza , na sua qualidade de senhor do Mediterrâneo , se desposa-
va todos os anos com o mar Adriático sob auspícios místicos. O mesmo Ba-
comerciais toma o lugar do que at' p~n os e_ssenc1a1s , o seguro das profissões ·on, qual Plínio do capitalismo ascendente, escreveu uma «História dos Yen-
respeito sobretudo à prevenção co~t;: ~~;eia est~ n~s mãos de De~s . Tal diz los», a qual começa pela afirmação de que , para os homens, os vento~_são
veis . Rezar é bom, o seguro é melhor é d~~sequenc1as d?s azares imprevisí- ·01110 asas que lhes ermite.m..nã..Q.já voar mas navegar pelos maiês94 . A tota-
meira tecnologia imunitária da mod~ 'd de ponto de _vista que nasce a pri-
No século XIX, juntar-se-lhe-ão a rn1 a e, p'.agmat1~am~nte implantada.
----
lida e desses ventos constitui aquilo a que se chamará mais tarde a atmosfe-
- . ' .... -· -
ra terrestre - literalmente: a esfera de bruma ou nevoeiro. Os marinheiros da
-higienistas do Estado-prov1'de' . seNgurança social e as mst1tu1ções médico- viagem de Magalhães tinbam sido os primeiros a persuadirem-se da unidade
ncia. o entanto o preç · · 1
demos pagaram pela sua aptidão a serem se u, . ~ imatena q~e <2~ mo- das superfícies terrestres e marítimas no envelope formado por um ar respirá-
metafisicamente ruinoso re . g rados fo1 elevado e, inclusive, ve l pelo ser humano. A respiração do marinheiro é a primeira a adquirir um
, . . - nunciam pouco a pouco a te d . .
e, uma relação directa com o absoluto com . . : um estmo, isto acesso à globalidade atmosférica terrestre real - leva os Europeus à verda-
eles próprios como casos de um d' . o pe~1g? medut1vel. Declaram-se deira época moderna , em que o nexo entre a condiria humana e a atmosfera
. . . a me iama estat1st1ca que se se afirma como pensamento-chave de uma cesura histórica que ainda não fo-
nos md1v1dualistas . O sentido do Ser r d . . envergam ador-
de dano normali~ado e uz-se ao dire1to de reclamar em caso ra pensada até ao seu termo .
' ~e início , em cont~apartida, a filosofia da época moderna - . Embora os novos centros científicos não pudessem localizar-se directa-
mais do que uma reorganização da imunid d . , . nao proporciona mente nos navios, deviam no entanto passar a apresentar as qualidades de
está colocada sob o signo da «certeza» a e_s1mbohc~. Est~, como se sabe, uma cidade _portu~ria. A experiência só vem com a importação. O prossegui-
da modernidade _ 0 e , , - · Se extS te uma filosofia característica mento d;7 ua elaboraçãÕ nÕ êónceit~ f "~at éria da filosofia: as Luzes co-
1enomeno 0 .escartes e as sua , · .
favor dessa suposição - tal d - - s consequencias militam a meçam nas docas . O verdadeiro chão da experiência da época moderna é o
. , eve-se nomeadamente f d
gu1do a modernização da evidên . C 1 . ao acto e ter conse-
~ ? .ª qu_e, como se costumac~~~er~;~eª~e:~i~~~~<-s~num fundo _i n t ~ 92 Do ponlo de vi sta político-sociológico, a filosofia britânica do co111111011 sense refl ecte o fac-
esse fundo discerne-se pela ob - . . p__tQ.. Q!!_ par.tJ.da» - 10 de na Inglaterra o compromisso hi stórico entre o com-êrcío (burguês) e a propriedade fundiá-
por ela própria. o ciclo das fil~:~;~;3º . t~edi~ta, clara e d!stinta da dúvida ria (ari stocnítica) ter sido celebrado mais cedo e em formas mais estávei s do que nos Estados
derna funda-se verosimilmente na s c1v1s , nao conventuais, da época mo- 1crritoriais do continente. Tal favoreceu um clima em que puderam florescer filosofi as da socie-
- , cre_scente procura civil das d dade não trági cas e conviviais , ao passo que no continente, e nomeadamente nos principados ale-
__na_o_se e louco. Os seus clientes ºá nã o são .. . - .--:--P.roVfü,_Lque
mães, foram os filó sofos de Estado , trág icos e autoritários, que levaram a melhor.
dos, os mosteiros e as faculdade~ de teol _os claustros rehg1osos, os bispa- 93 Multi pertransibunt & augetibur scientia . Algumas histórias adormecidas da filo sofi a indi-
projectos nas antecâmaras dos prínci es d:!;:, mas aqueles q~~ preparam os ca m que os navios na capa do livro de Bacon estão de partida.
dedores entre o público cada ve _P mundo e os espmtos empreen- 94 Historia ventorwn , 1622; primeira secção da Historia natura/is et experimenta/is and co11-
z mais numeroso das pessoas privadas cultas·, de11da111 phi/osophiam, que foi publicada como terceira parle da sua lnstauratio.
• ..,.,.., , ...,, v '"""'''-' \ J'"

chão dos navios - ·,


- e nao Ja essa «terra» de que . d , /
mund Husserl envelhecido qu· am a no seculo xx um d- Poderia ler-se isto como se o espírito ale1m o l 11111 111
d amente conservadora como isera assegurar-se por u f,' 1
. , . . . , ma ormu a desespen1- 111orte lhe trazia a possibilidade; c!e globa!ização .
1
mos falar aqui de uma ;ecaída ~~r~:~ ~t ~ng~n~I» ~~ «pátria original» (pod • Mas a maioria das capitais e das cidades-resltl 11 11 111111111 ,
os valores e todas as autoridades Apç~o f1SI~crat1ca, segundo a qual todos ·hamassem-se elas Viena , Berlim, Dresden ou Weimar, sub · l 111 11111 111,1, ,1
A tentativa operada por Husserl provem f~ agncultura e da ligação ao solo). 111cnte a dimensão marítima do formato do mundo na época motl 111 1 11 11 11
· ·- - ara no 1m de contas 1·
nh ec1mento num solo universal d0 - ~ d - , a ~çar todo o co- 111aioria, as filosofias cQntinentais apressaram-se a pôr-se ao servi ço d 1 11111
- -- - - - - mun o o «terreno da ·
versai no Ser», continua ligada a u t 1 '. . crença passiva e uni - Ira-revolução terrestre que se recusava instintivamente à nova situaç o d 11
, m e unsmo de tipo p , d
e capaz de questionar com suficiente rofund 'd ~e-mo emo que.J1ão mundo. De maneira geral, continua-se a querer apreender o conjunto a parl l1·
fundemos num solo95. Isso passa p _1 ade a razao que quer que nos do seguro território nacional e a preferir a terra firme às exigências excessi-
- . va-se numa epoca em que 1 .
senao simplesmente as melhores res t o pe ag1smo dera , vas da mobilidade náutica. Isto vale tanto para os príncipes regionais como
ticamente mais inteligentes· a razão pos -~s, pelo menos as que eram pragma- para os pensadores regionais . Mesmo Immanuel fa,nt, que pretendia repetir a
do; só quem navega à supe;f'c· mant1ma sabe que há que evitar ir ao fun- revolução copernicana no domínio do pensamento elevando o sujeito ao ní-
. I ie opera com êxito O es , ºt , .
necessidade de fundações d · pm o naut1co não tem vel de sede de todas as representações, nunca compreendeu verdadeiramente
. , mas e pontos de transbo d d .
trange1ro, de relações portuár· . . r o, e parceiros no es- que o impç,rtante era menos a r~volução de Copérl}ico dQ que a de Magalhães .
ias mspiradoras de ob · t' f
uma dose de energia criminosa tornada civil. , ~ec ivos a astados e de orno qualquer outro espírito terrestre do passado, Kant, embora tivesse es-
Do ponto de vista formal uma filos f . ·olhido domicílio numa cidade portuária , continuava arreigado à mentalida-
seu apelo para formular o c~nceito muº 1~ que tivesse ~uerido responder ao de da sua cidade de origem . Assim sendo, para quê fazer girar as coisas em
como faculdade flutuante ou pelo nd1al estava de~tmada a constituir-se lorno do intelecto , se este, por seu turno, não queria dar a volta do mundo? Ao
1G ,,i lha Europa. O drama da filos~fia c ~-enos, tomo au~ondade pmtuária da ve- insistir no dever de residência do detentor do cogito, Kant estava condenado

mã, foi o de, na maior p arte dos c~n IEenta e ~S_Qec~ lf12_ente ~~ fil~~ofia ale- a passar ao lado dos traços fundamentais de um mundo feito de flutuações.
atmosferas e às- mora1·s de pe sos, ~ed,r: icado ate ao século XX ligfilia às A bem conhecida passagem quase lírica da Crítica da Razão Pura consagra-
- ~·"' quenas c1 ades 'dA · ·
quais os estudos filosóficos P- aticam t - -resi encia de província, nas da à ilha do entendimento puro, o «país da verdade» «cercado por um vasto e
longrunento da forma ª-º do- b .- _len _e_nao P.,Q.Q@_!!I ~ mais do que o pro- tempestuoso oceano», «a pátria da aparência» «onde muitos nevoeiros ... apre-
-- - ---'-'-=-~ m1xo c ero por tr · - - ·- ---=-
Egeu feitos em Tübingen e qu ~ ou os me1os . Até os sonhos-de sentam a imagem enganadora de países novos» diz provavelmente mais sobre
, e ioram certamente o melh d
vez tocou as inteligências alemãs - . or o que alguma os motivos defensivos do comércio do pensamento à alemã na época moder-
, nao conseguiram conqu · t
mar por conta do pensamento idealista. is ar o acesso ao na do que o autor tinha intenção de revelar: ela falava perante os membros
No seu diário de viagem, tão recoce . reunidos da Faculdade do Anti-Mar pela qual a ratio se liga aos pontos de vis-
Herder exprimiu com grande preJsã d tomo audacioso, Johann Gottfried ta de uma afirmação de si co!P um enraizamento terrestre e n;gion.al. Só uma
do recente, o pensamento alemão terºfic:dmgu_a~em .º facto de , até ao perío- vez, com profundo asco, ou , como também se diz, com intenção crítica, atra-
da pequena cidade: «Em terra fica o pns1one1ro do encanto feiticeiro vessa esse mar pérfido para se assegurar de que o interesse racional não tem
c' 1 . -. ----- mos resos a um ponto mort ~ h d estritamente nada a encontrar nele 97 . Foi por essa razão que o mesmo autor
1rcu o estreito de uma situação>. t t . - - o_e e_c a o no
zia passar por uma filosofi ; o >lt' en ou opor a essa claustrofobia que se fa- pôde publicar em 1788 uma Crítica da Razão Prática , na qual nada se apren-
sa O para outro elemento:
dia de útil para a coisa mais prática da sua época, a navegação marítima -
«Ó alma, como te sentirás quando , d como poderia tal ser possível, já que as máximas da acção dos capitães no al-
fixo, delimitado desapareceu bat sa1res este mundo? O centro estreito, to mar de nenhum modo poderiam servir de fio director a uma legislação uni-
' , es as asas no ar ou nadas
mundo desaparece diante de t' . num mar - 0 versal?
1 ... que nova maneira de pensar.»96
Afortiori, a defesa da província or Heidegger não p_odia melhorar a coi-
sa, pois significava 'q ue Beriim não vale nada para alguém através do qual a
95 Ed mun d Hu sserl , E1fahru11g und Urteil Unte . . verdade do Ser fala como através de um oráculo de gruta preso ao local - e
~o, 1972 , p. 24. Num texto póstumo de H~ss~ri'~:~hung zur Genealogie der Logik , Hambur- isto quatrocentos anos após Colombo e cento e cinquenta anos após Kant.
chungen zum phdnomelogischen Ursprung der/.. :.d~
ta6frase sintomática: «O princípio ori<>inal l,
/e 1934 - Grundelegende U111ersu-
c~1111 .1c i e1t der Natur - vamos encontrares-
Também ele compreendia a v~ade co_mo l!.ma função crónica - produto re-
9 Johann G f · d . 0
erra nao se move.»
ott ne He1der, Journal meiner Reise im Jahre .
ne Auswah/ aus dem Gesamtwerk , Munique , 1960 , pp. 27-28'.769, in , do mesmo , Schriften. Ei- 97 I. K. , Von dem Grunde der Unterscheidung a/ler Gegenstiinde überhaupt in Phaenomena und
No umena , início.
1
101
100 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal
. r jl).J7)t
, d b rta ue se associam Nietzsche e os v1ta istas ,. J. ) /.
vogável da terra, da_m911tanha e da ':.averf!a - e só concedia 4.m.s.entido-tem~ tragem no ego. E ª/:::fl:~~~i:a_çã: dos s_µjei!O$ so_fuljficªdos..é .a verdadeira .'.· .
p cyal e_não_espacialap que vem.deJ.onge. O pensamento do todo era o últi- que proclamam qu •. _ .- . - N us textos anuncia-se uma refor-
mo a embarcar. missão de uma «filosofia do futuro». os se
d J. eito adequada ao alto .mar.
Neste aspecto, Qs>e~he_podia observar, a 3 de Abril de 1787, perto de Pa- mulação do pensam~!º o su . formular o verdadeiro concei-
lermo, no seu diário da Viagem a Itália :

«Quem nunca se viu cercado de mar por todos os lados não faz ideia ne-
to das ambições do suJetto ~a eia d: s;:
Não foi contudo um .fi_lósofo ~uedconse;-~~~ação· foi um romancista,Jú\io
cla~itão Nemo, MOfliLl S !f'I MOBLLI , a
Yerne, que encontrou na ;.a~1ma óvel no elemento móvel», comenta com
nhuma do mundo e da relação que temos com ele.»9 8 fór mula da época. A ~ua 1v_1sa, «: su eráveis o que que.r e_o que deve ser a
uma clareza e uma universalidade .d pd º de flexibilização é o poder de II.
- os letrados da Europa Central, quase todos rebaixados e mantidos por Es- · ·d d der_oiz_ada O senti o a ºran / 1
subject1v1 .Jl e_IDº-= ·. d d os lugares e objectos que > ·. ,
~ -:;-- globalidade e to os · r ) \
tados territoriais e senhores locais, preferiram na sua grande maioria estar cer- alguem navegar na . . 1 d s meios de captação dos outros. r t ,. ,.,
cados por muros de escolas, paredes de bibliotecas ou, quando muito, por 1 ados sem ficar ao a cance o l , -
pode~ ser a canç . . nto , ui.do:libe.tdade Qe_e_mp.re.sa.abso uta ,
grandes avenidas urbanas. Até a homenagem aparentemente magnânima de Realizar-se COTT}O suJe1to_no el~~"D~---· . q,.S hopenhauer aproximara-se desse
Hegel ao mar, considerado como o elemento natural da indústria que liga os an~arquia consumada 101 . Quando muito, ~ Aquele que conhece tudo ores-
--; -. - · -.
povos, no famoso §247 dos seus Princípios da Filosofia do Direito - os ma- principio ao declarai, na suamagnum , opus.
. . « 102
·d O de ninguém e o su1eito.»
res que «ligam os homens», «o maior meio de ligação» - mai s não é na rea- to sem ser con heci A de Schopenhauer quem , com
lidade do que uma nota administrativa e não tem nenhum significado para a . R l h W Ido Emerson contemporaneo , .
Foi a p , . a . ,. 841 introduziu «a evasão amencana»
cultura conceptual do filósofo entronizado de modo habitual, do filósofo que a primeira sene dos seus Ens~ws, em I ra;ão ela ual Nietzsche , já na épo-
não vagueia 99 . Dizer a verdade, continuou a ser até nova ordem uma activi- c a reformulação náutica da filosofia -b . IP a alqma ge'mea 103 Nele , as to-
d desco nr ne e < •
dade sentada e assente em terra firme. Romanus sedendo vincit. 100
• • • A

ca das suas leituras Juvem_s, P? e .' d . eu de eliminação das fronteiras


Só o solitário, Schopenha~, à margem das universidades e das igrejas na- nalidades ofensivas do pnme1ro pe11~ o_eu1op
1 cionais, fez a necessária irrupção num pensamento que colocava no começo . a tradução transatlant1ca. .
reapareciam na su t pensador em movimento 1so 1a-
~\ 1 um fundo fluidificado : a sua vontade é a rimeira manifestação de um ocea- ·
Sécu ios mais ce ,
do Giordano Bruno
'D
ou ro
,r ·w do Universo e dos Mun-
, lebrara no seu texto o 1nJ t.m ,
nq__dos filó sofos - .9 l!,j~to nav_ega.nele-na..càsca..de....no~pium indi- do na sua_epoca, ce 583 a emancipação do espírito humano re 1a-
't;_iduatior.ús, protegido pelas ~ salvadoras do espaço, do tempo e da cen- r/os, publicado em Veneza em 1 . , t C mesquinha e miserável» e de um
1ivamente a «uma natureza partunen e ao , . .
Deus avarento, limitado a um pequeno mundo umco. f
98 J. W. G ., /talienische Reise , Frankfurt, 1976, p. 302.
99 Este parágrafo tornou-se célebre em grande medida porque Carl Schmitt a ele se referiu para . . lhas que nos frustrem da
fundar as suas doutrinas geopolíticas: <la mesma maneira que, segundo a interpretação de Schmitt, «Não há fins e frsmteiras, nem hmttes e mura - assim a ten-a e o
o marxismo não foi mais do que um desenvolvimento na história do mundo dos parágrafos pre- abundância infinita das coisas. Eternamente fecundas sao
cedentes da filosofia do direito hegeliana (§§ 243-246), o schmittismo devia concretizar o corres-
Oceano ... » 104
pondente desenvolvimento do §247. Tal havia de permanecer uma ambição oca, e isso deveu-se
não só à insuficiência dos contributos de Hegel para a oceanologia política, mas também ao facto . . ·ó .· a el como o de um Cristóvão Colom-
de o teorema geopolítico de Schmitt, o dogma do papel constitutivo de poder resultante da domi- 0 Nolano descrev_1a o seu p1 -~11~ ~/aos terrenos a visão da irrupção atra-
nação sobre a terra , o mar, o ar e o fogo , ter passado, em virtude da sua limitação à teoria dos ele- ho dos espaços ex tenores que te11a a
mentos , ao lado da dimensão decisiva de uma teoria moderna do poder, a da teoria dos media.
IOO «O romano vence sentando-se.» Princípio da era agrometafísica e imperial: é a época em
. t dos concorrentes e estar totalmente inacessível a uma
que o comando, a adm inistração, a exploração dos recursos afirmam a sua primazia sobre o· 101 «Ser livre é calcular cada mçivimen ° TI 11 lo")' 0 rthe Aesthetic, Londres, 1990.
rios. as ci rculações, os investimentos. Há que admitir que, nos séculos xv11 e xv111 , os Estados . . . . d d . . t. 0 Terry Eao\eton, 1e e eo o ~
Ili' ·v1s1b1hda e esse 1P .»
.
" - Pr"imeira Parte §2.
1crri1oriais. enquanto se esforçavam por atingir a sua modernização, ainda se dedicavam sobr ·- 10 Schopenhauer, O Mu.nco 1 como v.on tade .
e Representaçao , ' ' .
.,- PI ·1 . hy A Genealogy af Prag111at1S1n, Wis-
.
1udo a lrabalhos ele ordenamento interno; a criação de «infra-estruturas» e de mercados internos 10 1 CL Cornell West, Th e_ American Evaswn º1 u osop .
d..: comunicação ele bens e ele informações (canais, estradas, pontes, cadastros, edição. pos1os d · rnn, in . 1989. . Ali und clen Welten tradução e notas de Ludwig
1..:k:comunicações. padrões ele pesos e medidas, ortografia , gramática, ensino. banca, justiçn, \()1\ ·r G. 13 . Zwiegspriiche von undenhchen . d" B 10 q~is estabelecer uma analogia
· ' 3 23 e 22 Alem isso, rui . .
1m, ·d11. i111poslus, cs1a1ís1icas, ele.) absorvia a maior parle da energia cios Estados e f..:z. pass11r \' llliknhcck. Darmsladt , 1·98 , PP· ·
t·,1\ do todo do mun I oCe Ia sLiabo·irrupção
cl
'
no espaço infimto pe• 1a
p11rn ,cgnndo pl 11 110 as qucslõ..:s relati vas ~s conexões mundiais ex leriores. Ta l refie ·t..:-s..: pru1i- 11 ·111 a sua travessia men . ao descrevê-las como um euO
,o-
r11111 ·111 · ·111111dos os dis ·ursos filosófi cos que con1inua111 prisioneiros de um hori1.01111.: 1'IT ·s1r·,
.. 11~111rn llnw , nrlr11111t1n p11r11 os i111ohili6rios ·. 110 f'i111 d · ·ontas. a •rossól'i ·o,
1 , ·11trc
..
"lill h11d11 mais ..:levada do hnm1111en; » o:,~
1 111111 . d ·i-ruh' d..: Ironl ·1rns. r. · .. · ·
1 e -1 vngem ee o 0111 , '
A\c/1em1itt1voclr.rnwhl. Frankfurt, 198 1, pp. 89-9 .
103
102 Peter Sloterdijk l'al ácio de Cristal

vés dos invólucros da ilusão . Da mesma maneira que Colombo regressara da No mercado das técnicas de imunidade da época moderna , o sistema dos /,
sua viagem pelo Atlântico trazendo a notícia da existência de outra margem , seguros impôs-se totalmente, com os seus conceitos e os seus procedimentos , /. , ,1
Bruno queria regressar da sua viagem pelo infinito com a mensagem da au- race às técnicas filosóficas da certeza. A lógica do risco controlado reve 1ou-se 1
sência de um bordo superior. Exteriormente, o mundo está privado de fron- muito menos onerosa e muito mais praticável do que a justificação última da
te.i_ras e de solidez de todos os lados: tal a informaçãÕ principal, em mãtérfa metafísica. Ante tal alternativa, as grandes maiorias das sociedades modernas
de teoria do espaço, emitida pela época moderna de Bruno e essa notícia não souberam escolher de forma bastante clara. Os seguros vencem a evidência -
queria ter uma sonoridade menos evangélica do que a de Colombol05 _ ··ste princípio encerra <;?, de§_~i.no de toda a filosofia no mundo técnic~.
Um quarto de milénio mais tarde, foi Emerson, o sábio americano, quem lhe res- Os Estados Unidos da América foram o único país moderno a nao ter en-
pondeu nestes termos, no seu ensaio impiedosamente optimista sobre os Círculos: veredado pelo caminho que leva ao Estado de prevenç~o e d~ segur~s, co_m_ a
consequência de que, nele , a religião ou, em termos mais gerais, a «d~spos1çao
«A nossa vida é uma aprendizagem da verdade de que em tomo de cada i'undamentalista» conservará uma significação atípica da modernidade -
círculo se pode traçar outro; de que não há fim na natureza, de que cada fim opuseram-se às Luzes , que desagregaram a religião, como a tod~s as ~entati-
é um começo; de que há sempre uma nova aurora a nascer do meio-dia e de vas de retirar aos cidadãos as suas armas de fogo; p~ os EUA. , I]PUntdade e
que sob cada fundo se abre um fundo mais fundo [... ] Não há fora , não há scguran_ç_a __pe~_anecer~m primordialmente construções a desenvolve.r n? ima-
parede a encerrar-nos , não há circunferência. O homem termina a sua his- •inário dos indivíduos . (Por um motivo semelhante, Hollywood mantem em
tória ... que bom! Que definitivo! Como põe uma nova face em todas as coi- vida a figura do herói, apesar do seu carácter incontestavelmente pré-moderno;
sas! Preenche o céu . Mas, atenção! Do outro lado, levanta-se também um 0
herói continua a ser utilizado nos casos em que o Estado não domina a sel-
homem que t!]!_ç_a um. CÍ!".Çl,!_lo em volta do círculo q_u~-aÍnda agora conside- vajaria moral persistente 108 _) Na generalidade dos casos , porém'. em que se

1'
rávãmos ser
o limite da esfera.» 10 -· - -~ - - -- .. impôs o pensamento do seguro, consuma-se a mudança de mentalidade_carac-
1crística das «sociedades» pós-modernas do tédio: as situações desprovidas de
• segurança toma~-se raras nelas - a perturbação pode pois ser apreciada co-
~·' ~-.... Só em finais do_gculo XIX, a filosofia continental - apesar de todas as res-
' ~aurações feoomZnol~ neo_:-idealistas , neõ-aristotélicas - havia de se ati- mo uma excepção, dá-se um aspecto positivo ao _« ac~!ltec_iment~», ~ procura
11 de experiência· da diferença submerge os mercados . Só as «sociedades» em
~rar ao colapso da fortaleza absolutista-territorial da evidência que se poderia
do<.., .ad.1ar, mas nunca 1mpe
· d.1r. c-· om mais · de um século de atraso , certos
' professo- que a segurança se impôs inteiramente conseguiram pôr em mo_v i~ento_~s~a
res alemães foram , inclusive , ao ponto de dar a entender que estavam prontos ·stetização das incertezas e das experiências ~bissais qu~ con~~1_o cnteno
a estudar a questão de saber se os meios de pensamento do idealismo ainda las fÔrmas de vida pós-modernas e das suas filosofias 1°9.
eram adequados à análise intelectual das situações reais da globalização . Tam- Mas o espírito dos seguros· retirÕu às chamadas «sociedades» _do risco a 1,D.
bém eles , nos tempos mais recentes e para seu proveito , se inspiraram prefe- propensão a terem o comportamento que lhes valeu o nome: «sociedade» do ,l, r
rentemente na teoria britânica do common sense ç1 partir da qual é mais fácil de ri sco é aquela em que tudo o que é verdadeiramente arriscado está de facto I L
operar a transição entre a antiga norma do inconcussum e uma_çµlwra genera- ·xc luído de compensação em caso de dano. Uma das ironias das situaçõ_es ,,,.
1izada da probabilidade, tanto mais que, a partir desse ponto , a aproximação modernas é que seria necessário proibir retroactivamente tudo o que se arns- ' "
pela teoria a um universo composto de flutuações parece menos dolorosa. Tal ·ou para as rea!izar. ~aí re~ulta q~e ,ª _pós-história só a~arente1;1ente repr~- ·· /.
implica, porém, a conver~ão da senda «católica», que associava a pobreza a senta um conceito da ftlosofia da h1stona, quando, na realidade, e um conce1- (. ,. ~-- -· ,
prémios de segurança, ao estilo de vida «protestante» de tipo calvinista que as- 10 ela técnica dos seguros . Dá-se o nome de pós-históricas às situações em que ~ '~?.
socia dinamicamente a riqueza e o risco 1°7 . Foi Friedrich Nietzsche quem pri- netos históricos (criação de religiões, cruzadas , revoluções , guerras de liber-
meiro, no seu papel de c,rítico do ressentimento metafísico, ext~aiu um concei- tação , lutas de classe e promessas atinentes) não são admitidos em virtude do
Lo cl facto de o pensamento após Zaratustra ter de ser uma coisa radicalmente ri sco não segurável que fazem correr.
1 dife rente de um fi car a olhar em torno, em devoção da razão , 11a esfera trans-
/ fi gurada do ser. ,
' < l
' ' 1OX C f. Bori s Groys , «Warlen auf die grossen Amei sen» , conversa com Barbara Kuon, in Der
IOS !', ,iorcla no Bruno, Da.1· A.rcli em1it1woclw11ah/ , 1 Di álogo. ( ici.,·r is ein Knoc/1en . Zu111 Akrualittit von Hegels A.sthetik , Kulturamt-Stadtarchiv Stuttgarl (cd.),
I ()(, Rulph W11 ldo Em 'f'SO II , ird es , in TIJe Porrable E111erso11 . Nova ccli ção, organi zacl a por arl 1977, pp. 8-39. . . .
llod ' 111 ·oh1hor11,·1 o ·0111 Mnl ·olm ow lcy, Nov11 Iorque, 198 1, pp . 228 e 230. 109 f. crhard Gamm , Die f'/n cht a11s der Karew>rie. Die Posirivier1111g des U11/Je.1·111111111e11 1111
IOI ( ' I', l'r 111 •I l111 k 11 11 111 11 , «Th • llnd or l li slory» , 71, , Nmiona/ h11er<
,.1·1. Vcn o d 1989, p. 7. 11.rw11111 dl'f Modem e, l 'rnn k furt , 1994.
105
l'alácio de Cristal

ia . Quanto mais nos aproximamos do núcleo ardente dos movim_e~tos típicos


da época moderna, mais se torna manifesto o carácter_de exped1çao das par-
i idas para O exterior. E, ainda que numerosos descobnment~s t~nham de ser \
/
ulribuídos ao capitão Ninguém e ao almirante Acaso, a ~ssenc1a da era dos
Descobrimentos ficou marcada pela forma ~mpr! sari~I da expedição - en- , ,
·ontra quem procura~ e procura porque sabe em que região se pode encontrar
algo. Até ao século x1x, foi praticamente impossível aos Europeus andar pelo • 1 •
.f ' ', ... ,
f'*~,,. I
«exterior» sem estar em expedição, pelo menos neste ou naquele aspecto.
i
A~ _~ edi ã~ -~ ~ f.9.nna ~otit:~ir.~j.o,1>r9c_urar e dQ encoQtLar o~g"ªni_?,_a~2s se-
17 Expedição e Verdade •undo os princípios da empresa. E graças a ela que o movimento dec1s1vo da
f 'd
globaliza~ão real não é simplesme~te um..callq de expansão no espaço, ant~s
se-ins ere -no processo central da _história da verdad~ na ép?ca moderna. A ex-
Inicialmente , os séculos que se seguiram à primeira investida dos mari- pansão não-poderia ter-se consumado se não fosse pr,:d_<:s1gnada2 . no_g_la~o da l ,

nheiros aventureiros obedeciam logicamente ao impulso de garantir a segu- g iade_e , portanto, da técnica tout court, como u~a revelaçao do
1 cnicq_JilU.ée_
rança do tráfico . '
europeu no exterior - quer por meio dos sistemas de seou- b
que a~.&J..Ê~JICOf!trava dissimulado . ~ra o _que 1-leid~~~er tmha em mente
:ºs _e~presana1s, quer pelas ciências filosóficas que lhe propiciavam uma quando, no seu poderoso e violento ensaio A E~.5'..<:.E dq~ ,· g,M.,undo'. acha-
Justificação última. As ciências empíricas europeias deram também o seu con- va poder discernir o processo fundamental da epoca oderna na conqu)sta do
t:ibuto . ~om o çle~envolvimento _d é:__rotina e da optimi ~ ão a_técnica._m ·- mundo enquanto imagem: ,·,, , 1 . \
t1m.a, ~ 1agem gelq mª.E real perdeu nomeadamente uma boa parte dos' seus
efeitos que_provocavam ekstasis e, à medida que o elemento aventuroso se ia «Ao tornar-se O mundo imagem [Bild], a totalidade do ente é apreendi- /
reduzi_ndo ~os ri~cos residuais , a navegação apro~imav-ª:§..~_do_ti:áfic.cu:.Qt.iu.ci- da corno aquilo para que o nurnano se prepara, corno aquilo que ele quer 'i (
ro - isto e , do Jogo das idas e vindas banalizadas, embora com uma taxa de consequentemente trazer a si e ter ante si , querendo assim de-tê~lo como re-
avarias 9ue seria de,certo totalmente inaceitável para os utentes dos transpor- presentação num sentido decisivo . "O mundo-imagem" , essencialmente en-
~es do ~eculo XX . H~ que notar, a título de restrição, que a simetria perfeita da tendido , significa pois não uma imagem do mundo, mas antes prnndo ~n-~
tda e vinda que define o conceito exacto de transporte só ocorre em te1Ta . Só tendido corno imagem. O ente na sua totalidade é ~ois<-~º-~ -~qo ,de rnanena
com a circulação sobre carris , a utopia do controlo perfeito sobre os movi- qu e só é verdad~ira!J1ente ente na medida e1:!1 . ue _e c~rn- 2~to pelo huma-
mentos reversíveis se tornou em boa parte realidade; é também e~se ideal que no que pro.:9,!!~ e 1~:pn:.s.e.nta. Ao haver imagem do mundo , consuma-se urna
\ ·1.f:1
tentam alcançar os transportes aéreos modernos , quando para os seus voos fi- decisão essencial sobre o ente no seu todo. O_Ser do ~Ente é procurado e en-
x~m it(nerário~ de tráfego aéreo definidos com exactidão . O ~ contrado na representabilidade do ente ...
/, . •'
f
n~_o deixa por isso _de ser a característica da viagem marítima nos tempos he- Não é que O mundo-imagem se torne de medieval moderno: antes e so- t
roicos dos descobndores e dos mercadores. bretudo O advir do mundo corno imagem é que caracteriza e distingue a es-
É a característicá da expansão europeia: os seus avanços decisivos têm sência daépoca moderna .'.. - _
sempre algo de êx_odo , mesmo quando nenhum pai peregrino volta a repre- Não é de espantar, pois, que 1só su_1t~_<: h~rnanisrno quando o mundo vem
sentar no Atlântico o episódio da saída do Egipto' 10. Na época moderna não --. ---- ~...., 1 i r
' a ser unagem ... i ~ ·: , r,:.J. ~ ,. "-1,-'l.t-f ~-t. ~;~t r.,.i ,.t.t: -t~·s:, l.. .
faltam voluntários para assumir o papel de povo eleito e em êxodo. Não é di - LOhurna~Ísrno] designa a interpreta ão filosófica dq hurnan.9 que expli-
fícil projectar terras prometidas em todas as regiões do mundo. ca e avalia o todo do Ente a partir do humano e em direcção ao _!:iurnano ...
• .. · 111
. A viagem de descobrimento, que deu o nome a este período, constitui as- Ser novo faz parte do mundo tornado imagem.»
sim a forma epistemológica do aventureirisn:io , que se comporta como um
servi ço prestado à verdade . Uma vez pronunciado o primado da ida sob a for- A palavra-chave da época, «Descobrim~,!l.tos». - um plural que des!g~a _de
ma ele programa , as viagens ao longe apresentam-se como expedições Yara raclo um processo singular, o ~ peracontecirnento autent1~ament~ h1stonco J'
·las, a penetração no desconhecido não é apenas o produto sec undário de uma ·on stituíclo pela circum-navegação e captação da TerJa, designa pois a encar-
11 '<;, < 111i ssion{i ria ou militar: pelo contrário , é prati cad a numa intenção clir c-

1iO C'I Mi ·1!11\•I W11 1,, ·1', l~w r/11,1· 11111/ Ncvo/11ti1111 , Bcrli111 , 1\188 . lll 1n//o/z,v<'/il' , 1>P , i1 .. pp . 87-88 , 9 1,90. 1Trad . pon .,op. ·il.pp . 11 2- 11 , 11 6, 11 ., I
t, ~ ,-; ·,
106 .
u.1 f
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Peter Sloterdijk Pal ácio de Cristal 107
1
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nação de práticas pelas qu_ais o desconp~cido se transforma em conhecig_o o •etal (kingdom of animais, kingdom of plants) nas ex os1 oes modernas .
1-- não-representaçlo e{Il,representado. No que diz respeito ao que da Terra ~inda Qua~do os navegadores sábios, como o padre de lncarville, trazem plantas de
1r em grande parte não fora ___erf_orrido, representado, descrito e explorado, tal fl ores da Ásia e do Pacífico para os jardins dos europeus, o elemento técnico ,
/. 1 \ . -
significava que havia que encontrar os media cap~zes de o captar em imagem, o gesto da cultura e da transplantação, desemp~ a um a elrriã"Wést~-
globalmente e erri pormenor. Por conseguinte, a «época dos Descobrimentos» to raramente se atendeu ao quanto as migrações pilotadas de plantas marca-
V
inciui a campanha empreendida pelos pioneiros da globalização terrestre no ram as formas de vida da época moderna e contribuíram para as possibili-
sentido de instalar i~~gens no lugar das não-imagens anteriores, ou «capta- tar' t2_ Até o que a história do seu desenvolvimento apresenta muitas vezes
ção de imagens» no lugar das quimeras. Tal o motivo por que todas as capta- como uma turbulência aventurosa e uma improvisação caótica - a travessia
ções de terras, de mares, de mundos começam por captações de imagens . prec ipitada do alto-mar, o levantamento apressado de novas costas e países , a
Com cada uma dessas imagens que os descobridores trazem para casa, neg~J identificação de povos desconhecidos - constitui já por sua própria essência
-se a exterioridade do exterior, reduzindo-o a uma 111eqida satisfatória ou su~ / \i' um processo técnico. A todos esses gestos, aplica-se sem limitação o dito de
portá_yel para os europ1 us médi~ Ao mesmo tempo, o sujeito que procura Heidegger: «A técnica [ ... ] ( um modo de desocultação .»
coloca-s~ em face das imagens fornecidas e retira-se para a fronteira do mun-
do das imagens - vendo tudo sem ser visto e inventariando tudo sem ser ele
-·-.....'·
, . , ... l,. · '
L\
p; óprio designado senão pelo ~ devista>;'ãiiõnimo. k,r M1V\
Assim , a época moder_!la, interprêra:da-segundo a linha de Heidegger, é pois
uma época da «verdade» - uma era da história da verdade que se distingue
por um i ~til,Q_bem ~rticular nã produção do manifesto. Deixa definitivamen-
te de se conceber a verdade como aquilo que a si próprio se mostra , um pou-
co no sentido da physis grega (como «despontar da semente da epifania») ou
no sentido da revelação cristã, na qual o Deus infinitamente transcendente""re-
L vela por intermédio da Graça o que os meios de conhecimento humanos, por
si só, nunca poderiam descobrir. Essas acepções antigas e medievais da ver-
j dade n~.º funcionam para a época da exploração, porque tanto uma como a
· outra cons.ideram a verdade como algo que tem por hábito surgir de si e por
l .si própria, antes de qualquer intervençã? hurrpn<,1 , para entrar na não-dissí-
1 mulação , no espírito dessa alêtheia grega que significav_a ~ais ou menos «de-
!' ~?_cultação» - u_m_conceit~ ~ue Heidegger espiou dur~nte toda a vida numa
,: {J , atitude de recept1v1dade reltg1osa. Com a chegada da epoca moderna , a pró-
! ,pria_yerçla_qe parece ter entrado na era da possibilidade de ser dada_à luz arti-
Q_cialmente. Doravante , pode e deve existir uma procura concebida como o
assalto .9rganiz~'!o ao djssimul ~do. Era forçosamente nisso que se devia pen-
sar quando se apresentava o Renascimento como a era do «descobrimento do
· mundo_e do homem».
Os «Desc? bri~eqtos» começam por ser um nome sumário que permite de-
sig~ru,-(b12ceôi!12_e3tos ele captação :da ordem da geotécnica, da hidrotécnica,
da e~notécnica -e da biotêcnica"- ' ainda que estes, de início, se apresentem
· também de maneira totalmente rudimentar e associada ao acaso. Quando , nu-
1 ma carta manuscrita, a rainha d_ e Espanha pede ao seu emissário Colombo que
11 2 Cf . Henry Hobhouse, Fünf Pflantzen verdndem die Welt. Chinarinde, Zucker, Tee, Bau111 -
/lhe traga o maior número possível de espécimes de espécies de pássaros des-
wolle, Kartojfel, Est ugarda, 1987. Sidney W. Mintz , Die siifie Ma cht. Ei11e Ku/t11rgeschichte d es
/ço~he~~das p.rovenie~tes do ~o~o Mundo-;õ iãipul so técnico e o gesto da _cap- Z11rkers , Frankfurt/ Nova Iorque , 1992; Alfred W. Crosby, Die Früchte des weiflen Ma1111 es. Ôko-
taçao Ja estao_a..f.u.nc.1onar, d1ss1mulados sob a máscara de um prazer pnnci- loM ischer /111perialis11111s 900-1900, Frankfurt/ Nova Iorque, 199 1. Sobre o papel das estufas 1111
pcsco . No termo dessa hi stória de captura , _os jardins zoológicos e botâni cos 1rn nsplnn1ação das plantas, cf. també m Sphi:iren Ili. Schti11111e, Secção «Atmos ph iirischc lns ln » .
:1l rirão as suas portas e integrarão tanto o «reino» animal com o ffcino v - PI . . 8 sq .
t.• ~ l.
1 .
,.f.. 1 J.,, ) 1 0.,' t
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111
1'11 \ác io de Cristal
110 Peter Sloterdijk

problema da perspectiva na pintura do Renascimento aflora apenas a superfí-


do f~z-se ~o ~aber um saber portátil. A ascensão do mapa em prejuízo do glo- ·ie da guerra mundial pelo domínio da terceira dimensão. Quando se canse-
bo _e ~m 1~d1ce ?e
que o recenseamento rapidamente chegou ao pormenor i ue capturar as esferas no papel e simular profundidades espaciais nas telas,
mais fmo, mclus1ve para os pontos mai s afastados . 11 hrem-se possibilidades novas e infinitas à conquista do mundo como ima-
Enquanto _os ~lo~os - m~dia principais da época de Colombo _ passa- 1,em. O imperialismo é uma planimetria_aplicada. A arte de restituir as esfe-
ram a assumlí m1s~oes de onentação sumária, de representatividade e, final - rn s sob forma de superfícies e os mundos sob forma de quadros. O mestre de-
rr_1en~e.' de decora~ao , os mapas cada vez mais precisos iam ganhando um fine a escala. É soberano quem decide acerca dp achatamento. Só pode ser
Sl~n~ficado ºr~rac1onal crescente. Só eles respondiam às necessidades da des- conquistado aquilo que se consegue com êxito reduzir de uma dimensão .
c,'?çao geograf1ca pormenorizada, fazendo por vezes o papel de cadastro po- A captura da Terra autorizada pela navegação marítima e pela cartografia 1·
ht1co. Com os novos atlas aparecem recolhas de mapas que, a uma escala in- precede pois o nascimento do sistema mundial. Carl .Schmitt., que gostava de _,,_ ·1
te~essante , desc_re~e~ todos os continentes e países. (Desde que a «geografia» se apresentar como o último legitimista da soberania mundial da Europa , não
foi declara~a d1 sc1plma escolar, a partir de fins do século x1x, os estudantes hes itava em afirmar, no seu estudo QJ:!<2!!lªs,.çl,a .Terra (Der Nomos der Erde),
europ~us sao educa?os a lançar olhares sobre mapas que, durante cem anos, que a expansão dos Europeus só podia reivindicar-se dos títulos jurídicos pos-
os,ge?grafos conq_u1_stadores regressados de missão desenrolavam diante dos sibilitados pelo descobrimento . Era neste que podia filiar-se a ficção do «di-
pnnc1pes e do,s_ mm1s~ros como outros tantos segredos diplomáticos e evan- reito do inventor», bem como do «direito de comunicação» que ia além do
gelhos ~eo~oht1cos.) E sobretudo a criação do planisfério que é característica simples direito de visita (esse ius communicationis que Francisco de Vitória
da tendencia ge~a_l - essa representação da Terra que restitui a esfera sob a defendera na sua famosa Lição sobre os Índio s). Só enquanto descobridores e , , ,
f~rma de superf1c1~, ou então sob a forma dos primeiros mapas a cores, ou en- inventores das artes e das culturas estrangeiras, afirma Schmitt, os Europeus , ~
tao na represe~taçao global , desenrolada , dos continentes e dos oceanos (a

!
se tornaram capazes de , como senhores legítimos, dispor d~ maior parte do ·,-;_:
que ~e~os mUI_tas vezes hoje em pano de fundo dos estúdios de notícias da inundo ; só a sua a tidão ara sere~ senhores lhes deu a capacidade de se mos- /
tel~v1sao),_ou_ai~da no duplo hemisfério clássico , com o velho mundo ptolo- 1rarem à altura da responsabilidade que lhes conferia a maneira superior como ··
ma1co , ,rr_1aiontan~mente terrestre , no disco direito , e o novo mundo america- se tinham virado para o mundo inexplorado. A responsabilida~e dos_descobri-
no-pac1f1co , dommado pelas águas , do lado esquerdo. <.lores manifesta-se antes do mai s, segundo Schmitt , na _o brigação de, por ges-
~ m~cha irresistível para o mapa repete a nível dos media visuais da glo- tos formais, reclamarem os novos solos em nof_!le dqs senhores europeus -
bal~zaçao o processo de conquista d? _mund~ como imagem sublinhado_por regra geral, os seus mandantes reais. Entre as cerimónias jurídicas que acom-
Heidegger. Quando os mapas mundiais plamsféricos fazem recuar o globo panhavam essas pretensões, encontravam-se, pai·a além da erecção de cruzes,
mesmo quando o Atlas já não aparece como um portador de globo mas sob ~ brasões esculpidos, padrões, bandeiras e emblemas dinásticos , a feitura de
forma de uma colecção de mapas encardenada - mutação desenc~deada pe- mapas e as denominações dos países 11 6 . Na concepção europeia, estes não po- e .
la recolha_ de mapa~ que conheceu o maior êxito da época moderna: Gerardi diam ' de 1·ure ' cair sob a tutela dos seus novos senhores sem se tornarem enti-,,,;. "' r
..,,,,,,() r} ~~ "
M~rca_tons Atlas s1ve cosmographicae mediationes de fabrica mundi et Ja- dades localizadas inventariadas, delimitadas e munidas de um nome. · ' l'

bncat1 figur~,_Ames_terdão , 1608-1609 114 - , o medium bidimensional triun- A unidade fac;ual da ,visão, do desembarque , da tomádà de posse, da cfe- , •
fa so~re o tnd1mens10n~~ e ipso facto a ima e triunfa_sobrtê__QS orpo. É essa nominação, ~Jé( tur_a~do -~~p_a e dG> est~el.~cimento dos documento~s o~ic1~is · .,
a razao por que os se~1o~og~s do, sé~ulo xx terão boas razões para recordar 1 · n·stítui acto completo de um descobnment@, prenhe de consequencias JU-
que O mapa de um pai s nao e o propno país - este aviso antecipa o «regres-
.o do espaço» de _qu:
_começou a falar no decurso do século xx o pensamen-
- - -- - -
rfdicas l 17 . É nela que , segundo Schmitt, assenta a verdadeira submissão de
- -- - - -·-- ___ _,;
j'
to cansado pela h1stona. Por motivos análogos, é possível, no início do sécu- 11 6 Carl Schmitt , Der Nomos der Erde im Volkerrecht des Ju s Publicwn Europaeum (1950),
lo XX I, ,r~co ~ endar a redescoberta da arte da leitura dos mapas e do cálculo J." ed ição, Berlim , 1988, pp. 96- 109.
geopoltt1co 1 5 . Tanto pelo nome como pelo fundo , os planisférios - literal- 11 7 Sobre o formalismo jurídico e o carácter duvidoso , no plano da teoria do discurso, dos speech
11, ·1.~ (actosde linguagem) de Cristóvão Colombo no seu papel de conquistador, cf. o estudo de Ste-
1:ent:, a es'.eras planas - querem eliminar a recordação da terceira dimen-
phcn Greenblatt, Wunderbare Besitztiimmer. Die E,findung des Fremden - Reisende und, Ent-
sao
f nao · dom111ada
-- pela
---representação:
- a profundidade · Quando· se red uz a pro- tlt'l'ker, Berl im , 1998, pp. 87-132. No período de poucos anos , o jornalista e explorador de Afnca
und 1dade, poe-se a mao no real. O que a história da arte tem a di zer sobre 0 11 ·nry Morton Stanley celebrou, por conta do rei Leopoldo 1l da Bélgica, pelo menos quatrocen-
1os «trai · dos» com chefes africanos que estes interpretaram na maior parte dos casos como acor-
I
dos de 11uizaa , ao pa. soque os "Europeus viam neles tratados de submi ssão e contratos de ex pio-
i 14 .r: nrnno ,,utour. «No dol e. but pl cn ly of blogs», D011111s, Abril de 2004. , ç o . arl ctcrs ( I 856- 19 18) foi outro colecc ionador de «tratados» d<? mesmo tipo; com mais de
11 • 1, Kur l S ' hl{ ·I, /111 No11111e le.1·<
'11 ,vir die Zeit . Ober Zivili.rntio11.1·geschir///', ,,,,e/ 11 1
• ·111 0, vi nt «trutados» , foi cl • quem cstabel ceu os fundam entos da Afnca One,n tal Alemã.
1/k , M1111 lq11 , l VI ,11 11, 00. . • eopoli- J
J
'
113
112 Peter Sloterdijk l'al ác io de Cristal

vos da Índia - sobre o que o rei épico decidiu armar uma frota para a via-
um_pa~ ª-u.torida_Q_e o í ica do cu ante-descobridor. Este oferece aos des-
gem à Índia, comandada por Vasco da Gama. A poesia da época moderna é
c ?6~ os os frutos d_; sua ca_pa~i9a~~~ E~~ e-;m d~s~obertos, isto é, o privilé-
urna poesia do êxitol 19. Não foi por acaso que D. Manuel !_,_qj'~~turoso, ml!-E-
g1o·de serem protegidos por aquele senhm: e não outro - privilégio que com-
lou pôr o gl0.60 no seu brasão - uma ideia de ír~a?em que inúmer~s empre-
pensa, além ~isso, os riscos de serem explorados pelo soberano estrangeiro .
sas hoje retomam no seu logótipo e nas suas publtc1dades. No seu secul?, era
. O descobn'.11ento, enquanto «achamento» ou «achado» abrangido pelo di-
um privilégio que, após D. Manuel 1, só foi concedido a um homem pnva~o
re1t? de pro~nedade, de coisas aparente ou efectivamente sem dono, não po-
(esse Sebastián dei Cano que, após a morte de Magalhães , trouxera a n~u Vic-
dena consoltdar-se como modo singular de tomada de posse se a esse acto não
toria de volta a Espanha em 1522, a fim de levar a seu ter'.110 a etr~u'.11-
se mi~turasseJ!l..E.!2!i Q.§ da ordem do direito marítimo. A velha equivalência
-navegação do globo e que, como recompensa dessa acç~o,_obt1v~ra o dire1_to
ent~~ ca~tura e achamen_to. :=:graças a/ ransferência de um anfigo habitu?
tle pôr o globo terrestre no seu brasão, acompanh~d? da d1v'.sa Pnmus ";e ctr-
f:zia dos d~scobridores de novos países uma espécie de pescadores aos quais
cwndedistil 20) e a um território da Coroa, a coloma do r~1~0 portugues que
na~ se podia contestar sem mais a pretensão a deterem legalmente a sua pes-
cana. No seu grande romance sobre os baleeiros , Melville recordava a dife- era o ~:asil..' que ainda hoje ~st~n~a ~a ~~a ,.~an9ei~~ ~ ~*raeleº ·-t'1ªº~.h
Um- pouco mais tarde , a ass~oc1açao ~~ ontemgl~ç~~o .gLqbç, ~...2. con-
rença entre «peixe-apanhado» e «peixe-à-solta», considerada uma lei de bron-
L uista1á se tornara entre os·"f,oetas europeus uma ideia fixa produtora de me-
ze para os caçadores do mar na época moderna; segundo ele, o peixe-apanhado
táfo ras. Tal é ilustrado por algumas linhas do poema dramático P:ecoce de
ifast-fish) pertencia a quem dele «tomara posse», enquanto o «peixe-à-solta»
Shakespeare O Rapto de Lucrécia, de 1594, provavelmente,,º_as quais o v1?la~
(loose-fi~h) _era considerado como «caça livre» (fair game), à disposição de
dor, Sextus Tarquinius, observa o corpo desnudado da sua v1t1ma adormecida.
quem pnme1ro o apanhasse . A exploração no solo respeitava também essa dis-
tinção, como salientava Melville.
«Seus seios , como globos de marfim de azul orlados ,
«O ]Jl:_era..P.ois a Améric em 1492 senã r-ejxe-à-solta sobre o qual Dois rn Ün_dos virgens e não conqui~ta~os
Cristóvão Colombo plantou o pendão espanhol, a fim de o m~rcar para suas [ .. .)
maJestades, o seu senhor e a sua senhora? Que era a Polónia para o czar? Despertando em Tarquínio uma nova a~ biç~o; .. »
E a ?r~cia para os Turcos? E as Índias para a Inglaterra? E, por fim , que foi
Na organização imaginária da época moderna, basta man_ifestamente que
o Mex1co para os Estados Unidos da América? Tudo peixes-à-solta .
um objecto seja redondo , desejável e dê a impressão ~e dornur para poder ser
_Que ~ão os direitos do homem e a l_iberdade do mundo_~ o_p.e~~à-
descrito como um «mundo» susceptível de ser conquistado.
~ olta? [ ...] A totalidade do nosso globo , não é ela um peixe-à-solta?» 118
Mas da mesma maneira que a epopeia nacional portuguesa propicia a le-
giti ma;ão heróica da conquista real, proclamando o povo ibérico em expan-
121
O que é indiscutível é que Schmitt, cuja rudeza moral nada fica a dever à
são povo eleito entre outros povos cristãos meno~ dignos do que e!e , os
sua sensibilidade jurídica, copiou o seu teorema sobre a leoitimidade da do-
. - . b mapas terrestres e marítimos então realizados funcionam , na ocupaçao, como
mmaçao europeia fundada no título de direito decorrente do achamento pelo
prosaicos meios de direito e actos notariai s que atestam com um certo grau de
modelo da missão atrás descrito a propósito de Cristóvão Colombo, modelo
pelo qual o tomador se apresenta como aquele que traz consigo um bem de
valor superior. Se Colombo tivesse reconhecido em si próprio o homem que
11 9 C f. Peter Sloterdijk , Tau von den Bermudas. Über ein.ige Regime der Einbildungskraft ,
levava a salvação de Cristo ao Novo Mundo , os conquistadores defendidos
l 'rankfurt , 2001 , pp . 27-40. . . . _
por Schmitt podiam considerar-se como legítimos: exportavam as conquistas 120 «Em primeiro me circ undaste»; aqui é notável o facto de o verbo dec1s1vo da globahzaçao,
europei as em mst.t~rj ~ d~ ~ it~ de civilização. cirnondare, significar num primeiro te mpo mais e?ar em volta do qu.e dar a volta; tal le mbra-
. Mas essas ! antasias J.egitim~ ràsinão são apenas um produto da apologé- nos que na época ainda a Terra era apresentada como algo que se podia «abarcar» - que podia
t1 c: tardia ~ das aplicações p_osteriores...da_a1,ts§1~~}a 9!_esc~~úpulos jurídicos: sG-lu por invó lucros celestes aos quais , poré m , era impensável dar a volta . Uma vez co~sumado
\) se u aclo , o que deu a volta aparece como aquele que abarcou: se pensarmos esw tendenc ia até
c~ L~o _1meclt a~an~en~e entret@c_idos no.s pmpru a_c01=t@ç.i[nen.t:_o ) No Canto IV fim . a volta ao mundo apresenta- se como a nova maneira de abarcar. O tráfico em to rno da
dc1 su<1 epopeia sob1e a conquista do mundo , Os l_y,siada , o poeta Luís de Ca- 110
T ·rra vai substituir o invó lucro que envolve, e o sujeito activo torna- se aquele que abarca , que
mÕ's traí'. cm sonhos diante do rei português D . anuel os rios Indo e Gan- ·o mprcendc propriame nte. · . . . • ..
, ·s. sob os 1r:1ços ele dois homens sábios que o convidavam a jugular os po- 1 1 Falta-nos uma re presentação sinóp1i ca das ideias étnicas , culturais nac10 ali stas c_rell g1osas-
• ·omunit iírias sobre a noção de e leit o na 6poca mode rna e ur~peia. Para u1~a pri11~e1n_, 11 l~~rd 11
·m , ·o nsulwr: (lri · Yocg ' lin . Sek1e11/1e111eg1111ge11 1111d der Gew der N ell"lf' II , Mun1q11 . 1 ) )4 ,
11 11 11 1\ ., M11/,1• / i<'k,np. ·11., p. 485. 1
114
\ Peter Sloterdijk
1'111:'ício de Cristal 115,
.I
formalidade a nova relação de propriedade e de dominação. Cuius carta, eiu.1· I
'" ,
·
1(ri co é um verdadeiro título de propriedade ~obre uma terra i~cogmta.» · 123
regio. Aquele que desenha o màpa, ã presenta-se como se o direito cultural,
histórico, jurídico e político estivesse do seu lado. Somos forçados a notar que- é Õ sõ6éranQ_ dos IDª12filL ue!!! d_ec1~ do estado
J/J,I ,
1 / ' Uma d~s características que de~de o início marcaram a expansão europeia d . excepção num mundo descÕberto - e encontramo-n~s perant~ um est~do ,h.~• · "" ··
foi a assimetriae ntre os dfscobridores e os (abitantes das terras descobertas . tlt::sse tipo quan~o ~ in~entor de um_~ ter.:a descoberta e _mventanada lhe 1m- , _,_vJ.
Os Í:êrr1tórfo;-ultramarinos eram considerados coisas desprovidas de donos prime um novo nome.:e, simultaneamente, um novo_s..fnhor:,
enquanto os ocupantes descobridores pensaram não ter de enfrentar nenhum Uma nisfória pormenorizada das ·políticas geograf1cas dos no~es _durante
obstáculo ao levantarem os mapas das novas regiões, habitadas ou não. Na os últimos quinhentos anos proporcionaria informações extraordmariamente
maioria das vezes ~s habitan~ das terras. longínquas n.ão eram considerados , preciosas à teoria da globalização te_rrestre . Não vería~os nesta apenas o re-
seus proprietários , ma el_~~entos slo } Chamento coloniaí / L de certa manei- º:
i'l cxo das cenas originais do descobnmento e da conqu1st~, ~ombat~s entre
,is facções rivais de descobridores e conquistadores. Tal h1stona p~dena tam- ~
ra eram C,2!!lq_que a sua fauna a~trópica, que ~ d o odia ca ar eco-
lh~ ~ (õ- rrresmo valia, regra geral, para a grande maioria da popu- h m mostrar como, através da história dos ~ mes do globo, se pode_ d~s~n-
lação dos territórios europeus na época feudal). A princípio, aqueles a quem vo lver a face semân.tica e um desa astame~to do mundo_que os E~:opeus
chamavam rimitivos não faziam a mínima ideia do que signfftêavâ o facto / praticaram .em cÕnjuntÕ~coino pÕrins1iniõ. Só afgum~s regiões culturais con-
de os Euro eus quererem conhecê-1~~ ; ossêüsterritórios. Q~ando os d~s- segui-;;-~ impor os seus nomes próprios aos descobndo!es . Os _casos em _que
cobridoiêstomavâmcõnsciên-ciâ da sua-própnã fuperioridade técnic ,e men- 0 conseguiram indicam a resistência oposta à penetraçao extenor por remos

tal durante o encontro com os indígenas - coisaâ quê ôs impérios asiáticos suficientemente poderosos . No geral, ?S E_urop_eu~~ouberam capturar·p~s suas~
e islâmicos propiciavam menos pretextos - , concluíam, em geral imediata- redes nominais.a maior parte da superficie da Tt;rr~, como se se tratasse de um
mente, que tinham o direito de se apoderar das terras e de as submeter aos so- hanc0 ae ob;~'tõsi ach~dqs ª-nÓJ:!~mos,_e projectar _os seus lé~ic~s no mundo
beranos europeus. Sobre esses episódios tão fatídicos como violentos, Carl abertO~'The óreat t:,,ta12. of Mankinâ ,- esta expressao proverb1~I e de Edmund
Schmitt mantém sem a menor reserva uma atitude afirmativa. - \ 'i Burke _ é desdobrado pelos descobridores europeus que nele inscreveram os
. , d_vi ',r. J·
li.• 1 1
1,• • ., ( .., - \ J nomes que lhes inspiraram os seus humores. O baptismo de m~e~ , de cor-
rentes , de rios, de cabos, de baías e de abismos, de ilhas e de arqu1pelagos, de
«E pois totalmente falso dizer que, da 'mesma maneira que os Espanhóis '
descobriram os Aztecas e os Incas , estes teriam podido, inversamente, des- costas , de montanhas, de planícies e de países desenvolve~se para se tornar
cobrir a Europa. Falta aos Índios a força associada ao saber da racionalida- uma paixão secular dos cartógrafos europeus e dos seus aliados , os navega-
l de cristo-europ_eifi· eriéL, rotesca u~ {maginar 'll!!', teriam podido fazer dores os mercadores e os missionários. Quando estes aparecem, ~ novos no-
leyantamentos cartognt9-co~ da Europa tão bons _como os que os Europeus mes c'hovem sobre o mundo , que a_té aí parecia mudo. . ,
fizeram da -~~ ér~ A( ~uperioridade intele~ estava totalmente do Íado Mas O que é baptizado pode ser crismado. A pequena ilha de Guanaham ,
europeu, a tal ponto que foi_{ID.§Sjytl:'.!2,_mar" simplesmente o Novo Mundo. nas Baamas , em cuja costa Cristóvão Colombo desembarcou a 12 de Outubro
[ ...] de 1492 e que se tornou a primeira costa do Novo Mundo , recebeu dele -
Os descobrimentos fazem-se sem o acordo prévio do descoberto , pelo sob sua proposta, como é evidente - o nome de San Salvador, u_m termo que ,
que o seu título de propriedade decorre de uma legitimidade superior. Só no espírito da ideologia da doação , representava o que de m_a1s elev~do os
pode descobrir quem dispõe de uma superioridade intelectual e histórica su- conquistadores podi am trazer consigo. Os primeiros descobndo_res nao de-
ficiente para compreender o que descobriu com o seu saber e a sua cons- sembarcavam praticamente em sítio nenhum sem acreditarem, amda que ?e
ciência. Para usar uma variante de uma eJmre.ssão _hegeliana de Bruno íorma difusa , que através da sua presenç~ o Deus da E~ropa ~e revel_ava as
Bauer: só pode descobrir quem conhece melhor a sua presa do que ela se novas terras. Se se êing.issem ao mesmo habitus, eventuais budistas tenam de
Conhece a SI própriã, e é capaz de a sujeitar com base nessa !,Uperioridade dar a Guanahaní O nome de Gautama ou de Bodhisattva , ao passo que se os
da ed ucação e do saber.» 122 invasores fossem muçulmanos, estariam tentados a dar~lhe o nome do Profe-
ta. Após O pirata inglês Watlin ter ocupado em 1680 a ilha, ~u_e entretanto se
Assim sendo , os mar,as são - nomeadamente nos primeiros tempos da esvaziara de toda a vida humana, e de ter feito dela o seu refugio, o no_me Wa-
hi stória dos Descobrimentos - os testemunhos imediatos das pretensões tlin. ~- fsland colou-se-lhe até ao início do século xx, como se a vocaçao ~at~-
da c ivili zação à soberania. «Com efeito, um levantamento cartognffico cien- ra l do pirata fosse retomar a herança do descobridor. Só em I 926_se r~stitu,u
à ilha O nome que lhe hav ia dado Colombo , num processo que nao Fo, total -
C11rl S ·hmi 11 , o,,,. No111os der Erde, op . ci1. , pp. 103 e 102.
I 3 lbid.
116 Peter Sloterdijk l'alácio de Cristal 117

mente isento de conflitos, na medida em que cinco outras ilhas das Bahamas do bastante longo, um número não desprezável de nomes concorrentes circula-
pretendiam ser a Guanahaní histórica. A ilha que hoje se chama Cuba recebe- ram para essa paite do mon.dus n.ovus; assim, ainda em 1595, num mapa de Mi-
ra de Colombo o nome de Santa María de la Concepción - o que instalava fo1el Mercator ela aparece designada sob o nome de América sive Nova Índia ;
a Sagrada Família nas Caraíbas. A ilha que veio a chamar-se Haiti beneficiou u111 mapa veneziano de 1511 , em contrapartida, chama ainda ao continente de
do privilégio de ser denominada Hispaniola, a Pequena Espanha. Analoga- 'olombo Terra sanctae crucis; num mapa-múndi genovês de 1543, o conti-
mente, graças a Colombo, dezenas de ilhas e de sítios oficiais foram orna- nente norte-americano ainda se apresenta globalmente anónimo, ao passo que
mentados com nomes provindos da nomenclatura cristã e dinástica da Euro- o cio sul é mencionado de maneira não específica pelo nome de Mun.dus Novus.
pa, a maior parte dos quais não tinham existência histórica. Durante séculos, o Nordeste da América do Norte figurou sob o nome de Nova
O continente descoberto por Colombo, a América Central e do Sul , não os- Francia ou Terra Francisca, ao passo que o Oeste e o Centro-Oeste, com o no-
tenta, porém, o seu nome pessoal , como deveria ter acontecido segundo as re- rne de Nova Albion, caíam sob a alçada das designações britânicas. A futura
gras do jogo da globalização, mas o de um dos seus rivais na competição pela Nova Inglaterra, isto é, a costa oriental da América do Norte, ostentou, por seu
exploração do Novo Mundo. Na sequência de uma hipótese de baptismo pro- lado, durante algum tempo o nome de Nova Belgia, o que significava Nova Ho-
blemática emitida pelo cartógrafo alemão Martin Waldseemüller em 1507, o landa , ao passo que a Austrália se chamava, no século xvn, Hollandia Nova .
nome próprio feminizado (pois os continentes - receptáculos da vida - são Neste rendilhado de traços do nacionalismo primitivo dos nomes próprios
necessariamente femininos) do mercador-descobridor Américo Vespúcio ficou 11nuncia-se a era dos imperialismos burgueses com base nos Estados-nação
associado a este continente que, segundo fontes incertas, o florentino teria ex- capitalizados . Durante toda uma época, o elemento «novo» veio a provar ser
plorado ao longo da sua costa oriental até à foz do Amazonas . Este êxito de de- o mais poderoso módulo de denominação, a que só o elemento «sul » estava
nominação reflecte a força com a qual se impôs um mapa do mundo planisfé- ·m condições de fazer conc01Tência durante a competição pela terra austra-
rico, praticamente em forma de coração , publicada por Waldseemüller, que /is , o hipotético continente gigante do hemisfério sul. Com o baptismo das
(simultaneamente com o mapa de Contarini de 1506, aparecida sob a forma de Novas-Cidades (Nova Amesterdão), dos Novos-Países (Nova Helvécia), de
calcogravura) 124 constitui o mais antigo mapa impresso segundo o processo da Países-do-Sul (Geórgia do Sul, Nova Gales do Sul), de ilhas santas (São Sal-
xilografia. Para se impor - teria tido uma tiragem de mil exemplares de que vador), de arquipélagos de monarcas (Filipinas) e de países de conquistado-
só se conservou um espécime - ostentava um texto de acompanhamento res (Bolívia, Rodésia) , os Europeus gozavam do privilégio de clonar seman-
que teve de ser reimpresso por três vezes no ano de edição. É da mesma época ti camente o seu próprio~mundo e de se apropriarem dos pontos afastados e
o globo de Waldseemüller que apresenta a mesma hipótese de denominação pa- ·strangeiros pelo regresso lexical do mesmo.
ra a paite sul do Novo Mundo - América. Cabe ainda perguntar se a forma de
coração do mapa - mesmo não sendo tão perfeita como nos futuros mapas- Atendendo à soma dos seus efeitos, a cartografia teve um papel sobrema-
-múndi em coração de Oronce Fine e Giovanni Cimerlino125 - não terá con- ne ira importante na marcha real da globalização. Não só os mapas e as visões
tribuído decisivamente para o êxito do tour de force cosmográfico de Wald- sob a forma de globos cumprem a função de grandes iscos dos primeiros tem-
seemüller. Com efeito, que poderia ser mais satisfatório para a imaginação que pos dos Descobrimentos, mas, de certa maneira, servem também de cadastros
representava o mundo do que a ideia de reproduzir toda a superfície do globo ' testemunhos para os actos de captura e de arquivos ela ciência da detecção
sobre um grande coração? O facto de Waldseemüller se ter vindo a distanciar que se foi acumulando com os séculos, bem como para as linhas de navega-
da sua hipótese Vespúcio não pôde deter o triunfo do nome que ele próprio (e ção. Para lá disso , representam os media da memória dos tempos dos desco-
Matthias Ringmann) haviam lançado 126 . Foi sobre esse alicerce que as terras bridores, os media onde estão inscritos os nomes de inúmeros heróis do mar
do Novo Mundo vieram a ser os Estados Unidos dos Mal-Nomeados. ' ele descobridores de pátrias desconhecidas do mundo, desde a rota de Ma-
Ao que parece, o Globe Vert parisiense foi o primeiro no qual o nome Amé- •,tlh ães , no Sul da Patagónia, até à baía de Hudson no Norte do Canadá, des-
rica surgia também na parte norte do duplo continente. Mas, durante um perío- de a Tasmânia, no Pacífico, até ao cabo Tcheliuskine na Sibéria, desde as que-
das-cl ' água de Stanley, no Congo, até à grande barreira de Ross na Antárctida.
:;1 C~. John Goss, Kartenkunst. Die Geschichte der Kartographie, Braunschweig, 1994, p . 73.
Cf. John Goss , Kartenkunst, op. c1t. , pp. 123, 124 e 125 . O mapa de Waldseemüll er está a
Paral e lamente à história dos artistas, cujos contornos se desenharam na mes-
111a poca , a história dos descobridores criou nos mapas a sua própria galeria
rnei_o caminho entre os novos mapas em forma de coração e os antigos mapas em manto , que honorífica . Em grande parte , as operações posteriores eram já torneios entre
prn_1ectavam os contornos ci os países e cios mares sobre um manto litúrgico , nomeadament e o
111 :1 111 0 do imperador.
·andiclatos para a entrada gloriosa na história cartografada . Muito antes ele a
1 ,rt e a hi stória da arte terem tornado fecunda e m seu proveito o conceito d
.' r, l{ od11 · ll roo 111 ·. 7i-rm i111·011~11ita . 7'/ie 7h,e Sf(lry of l·low /\111 éri a 01 /1.1· Na111e , Sealtl c.
v1 111 •ua rda , os bnncl irantes do recenseamento ela Terra já estavam a caminho .
1
110 1
l'alácio de Cristal 119
Peter Sloterdijk

em todas as frentes da futura glória cartográfica. Quando deixavam os portos f!.Hdo com o descobrimento e a nomeação da Terra de Francisco-José e da Ilha
europeus, faziam-no muitas vezes assumindo o papel dos que, em caso de êxi- do Príncipe Rudolfo, mas, globalmente, os seus resultados tiveram um alcan-
to , iriam ser os primeiros neste ou naquele ponto . ·c provinciano e gelado. O cientismo de Freud , seguro da sua vitória, mani-
Muito em especial , certos projectos teatrais, como a «conquista» do Pólo ft.:stou-se pelo facto de não ter reclamado para si uma ilha de margens frias,
Norte e do Pólo Sul , estavam inteiramente colocados sob o signo dessa lou mas um metacontiQente ardente e em posição central. O seu engenho pôs-se
~ º.!}i_ç_l~ para a imof!!!li§ de, na qual a entrada na lista dos recordes era consi- t.: m cen; d~~aneira impressionante quando, graças aos seus mapas topológi-
derada como a mais elevada das distinções. O alpinismo era também uma va- ·os, conseguiu adquirir de facto o inconsciente como o país de Sigmund-
riante dessa histeria do batedor que não queria deixar por conquistar nenhum -Freud . Se desenhou os seus contornos a régua e esquadro, tal correspondia
ponto eminente da superfície terrestre. A caça à glória prometida pelos pri- ao ideal da· época, o da planificação territorial racional. Carregou estoica-
meiros passos no pólo havia de ficar por muito tempo como expressão mais mente às costas o fardo do homem branco, quando fez o seguinte resumo da
pura do delírio científico. Para os contemporâneos da viagem aérea e espacial , sua obra: «A psicanálise é uma ferramenta que há-de tornar possível ao ego a
já não é possível compreender que fascinações populares e que prestígio cien- con9uista gradual do id .» 12 8 Ainda que os t~~7s tróR·cos do id sejam cada

------
tífico estavam associados , por volta de 1900, aos dois projectos polares. O pó- vez mais geridos por novos ocupantes, ainda que haja Caliban totalmente ina-
lo terrestre encarnava não só a quinta-essência do longínquo virgem de pre- nalisáveis que anunciam a sua descoloniza_çii.o - os velhos marcos freudia-
sença humana , difícil de atingir, mas também o sonho de um centro absoluto
.
nos continuam a ser em numerosos lugares ainda muito visíveis . Ignoramos
ou de um ponto axial zero que praticamente não era mais do que o prosse- se, com o tempo, poderãb reivindicar mais do que um simples interesse turís-
guimento da busca de Deus no elemento geográfico. tico . ' lt i
Neste contexto, convém recordar qu~ a ~p..Qç~ f m que Sigmundfreud havia
de se tornar conhecido como «descobridor do inconsciente» viveu também o
'/Jcfo ., { u. -vi,!1; ¼-!·~·'

apogeu das competições para des:o_grir os__p§lq_s_!~rr~stre~ a grande coligação ..


<.:.,..-,q
dos Europeus para eliminar asó ltimas manchas brancas no mapa da África. Pe- '
lo seu habitus de exploração e de fundação , a empresa psicanalítica pertence à )
grande época dos e_mpire builders do tipo de Henry Morton Stanley e Ceei!
Rhodes ( «Anexaria os planetas, se pudesse»). A estes juntou-se, pouco depois ,
um homem nascido no mesmo ano que Freud, o jovem Privatdozent de Hanô-
ver, Carl Peters, futuro fundador da África Oriental Alemã, que, com o seu tex-
to filosófico Mundo da Vontade e Vontade do Mundo (1883), consumara por
antecipação, do ponto de vista conceptual, a imperialização do motivo irracio-
nal da vida. ~ ambição de Freud só se pode explicar pela an1!logia com os pro-
j~cJos desses homens. Não estava o i c.on§..ciente inscrito, desde época do jo- a
vem Sc!ielling, nos mapas do espírito que reflecte? Não havia a tentação de
afirmar que o seu obscuro interior estava também maduro para <1-oice da ci- ª
vilização»? Quando Freud, que, no seu caminho para a glória , estudara as obras
dos conquist~dores de África, Stanley e Baker, se decidiu pela existência da
«verdadeira Africa interior» 127 no psiquismo de cada ser humano , deu mostras
de um admirável ipstinto imperial a~ escolher essa direcção de _\!!vestigação.
A expedição austro-húngara ao Arctico levada a cabo entre 1872 e 1874,
sob a direcção de Karl Weyprecht e Julius von Payer, obteve um êxito miti-

127 cr. 7··te:1·e11p'11.,osop'11e. . T,exte zur Entdeckung des Unbewussten vor Freud , organi zado eco- 128 S. F., Das /eh 1111d das Es (1923), in , do mesmo, Gesammelte Werke, Yol. XIII , 6 .' ed ., Fran k-
111e111ado por Ludgcr Lütkehaus, Hamburgo , 1995 (reedição da recolha publicada cm 1989 sob furl , 1969. p. 286. O facto de esse país j á ter uma forte densidade de população perturbou tão
11 1f1 11lu / )i1,.1·1's Woltre i1111ere /\.frika) . Quanto à relação entre Freud e o «dark co11ti11e111». cf'. ibid . pouco o conqui stador Freud como outros conquistadores da era imperial; ~s- magneti zadores do
l'I' 2 7. /1 forn1ul11ç:t o «ve rdadeira Áfri ca interi or» (~Valtre i1111ere Aji'ika) encontru-~ • no r - s cul o x1x torn aram-se para ele os índios do inconscie11te, e ~ hipnotizadores, os seus palesti -
11 111111 ·c pm 11111111 d · J ·1111 P11 11I . Seli110 . 827. nos.
/
1' r,(
12 1
.,,, 1'11 l{icio de Cristal
it· !' -~
f ,. ,\!. r~ I rn já não falar dos desperados e degradados de todas as sarjetas do velho 1
í • ,, ,-~·d
('/
h. 111undo, são antes dispersados como corpos loucos num espaço desabitado. Só y
rn rarnente transferem o espíritÕ cioméstÍco para aquÍlo que se costuma chamar

' •t
-- 11 segunda pátria . Não vivem do calor do seu próprio lar, mas do produzido

_;_/{ pd a fricção resultante da sua marcha precipitada em frente no espaço de ac-


i;ão marítima. Os seu.s corpos endurecidos são, para falar (quase) como De-
'. ,. !1. ~ 1 ,
kuze, os «termómetros de um devir» que se dirigem para situações in': ~ditas
ii
J de desterritorialização moral 136 . No espaço exterior, recompensa-se um tipo
humano que, dada a debilidade das suas ligações aos objectos , pode pare r
7
sempre guiado do interior, especulativo , infiel , disponível l 3 .
19 O Puro Exterior
Tal explica talvez a misteriosa facilidade com que os homens que se en- •
contram no exterior., como estrangeiros, se exterminam uns aos outros sob
pretextos fugazes. (Q...o utrQ}.Ç9_12§_i~~!.ª,do c_o,1:10 corpo no espaço exterior, fíião r ,
A T~l como a alusão de Freud ao dark continent do inconscientel29 a refe-
é o coabitante de unià esfera comun:i\da ordem do mundo da vid~, nã~ é oco-
r~ncia aos «terrores do gelo e das trevas»l30 a que estão sujeitos os , d.
-portador de um corpo de ressonância sensorial e moral, de uma «cultura» ou . <,,
, , ngem ª? pólo, poderá lançar uma luz adequada sobre o sentido esf~~il~e ic1~
\ dos proJectos de descobrimento na era da globalização Q~ ·- d d·- g
de uma vida partilhada, m as um elemento indiferenciado de circunstâncias ,.t
'( heróis e · · uan o merca ores e exteriores mal _ou bem-vindas Se o problema psicodinâmico suscitado pela
. . urop~us partiam para «tomar» pontos longínquos do glob , d'
dec1dir-Se a ISSO na medida em -ue· 0
h d -- . -- -- 9.
. O, SO po 1am
e§J)a.Çi> glot:?ahz;ido já se encontrava de-
e
ex istência sedentá; ia s"Zibreprotegida era o masoquismo do contentor, o da
vida desmesuradamente privad~ de segurança consiste no exterminismo -
s~n a o co1:10 um ex tenor homogéneo aberto e praticável. Todas as· ex- e .
çoes europeias terrestres ou marítimasl31 visam es aço f' . P di- um fenómeno parassádico que já se tinha dado a reconhecer nas desinibições
ponto d . t d s exos encos que do cios cruzados cristãos a partir do século XII. A propensão a adoptar esta atitu-
, . e vis a as _tropas d_e e~pe?ição, nã~ ertencem seja como for ao 'seu
de está associada à aliena ão §,S_p.acial: nos desertos aquáticos e nas novas ter-
propnQ_flli)_çl_p_de..v1.da.fÃqu1, a md1cação existencial-t l' -.- -d d .
degger «No D . · 'd opo ogica a a por Hei- ras da superfície terrestre, os agentes da globalização nunca agem como ha-
~ ase1n,re_s1 e ~m~ tendenc1a essencial à proximidade» 132, .á não
A •

.,
se a~~1c~: A caractenst1ca pnnc1pal da exterioridade é o facto de não ser:< ~ bitantes na sua propriedade. Agem como pessoas desenfreadas que não
encontram já em sítio nenhum motivos para respêítar uma ordem doméstica , ,
~:~t;ae::iorada_ n~ modo do habitar int~rio~ - pelo contrário: -â· po;~~~~:
seja ela qual for. Na medida em que abandonam a sua casa, os conquistado-
d'f ploraçao e s~posta numa antec1paçao projectiva donde resulta que
res atravessam o espaço indiferente sem terem penetrado no «caminho», no
~ri~;;:nça entre ~ ~~b1t_ar e ª. exploração nunca mais é clara. Com os desco-
sentido budista do termo . Q~~~~<:en:1_2~, cas! co_mum,'l!l_e c_?n_stitui o espa-•. 'f'<)).tr
ço interior do mundo na velha Europa , dão a impressão de serem projécteis 1 ,, ~
. _se os c~nqu1stadores , impõe-se um acampamento olobal como mo
v1vendi. O subtil teorema de Merleau:Ponty - . - - --· n9,,_.•. ::_ , dus
::t:: 133
no espaço» _ -.:ra~alha a~ui 110 vazio .; i~:~v:;~oe~~\~~s~~ªz:~
•. gun?o ª qualt''._!~ ~~ 1~.~arnp~l ':_ªs C(?iSf1S e renuncia a habitá-las»l34
que se desfazem de todas as suas ligações para se lançarem numa não-esfera , . . ., , ,t f
e não-proximidade gerais , num mundo externo liso e indiferente , constituído
põfrec ursÕs L conduzidos apenas pelos seus mandatos e apetites e mantidos t.. •
ap 1ica~se igualmente a p1ratana e ão comércio mundial.ITal como a
~
·A • ,

naturais nem A s c1encias


· - - . ; ; ·· e m fàtmai{elo fitness da crueldade. Os êxitos dos desembarques - no senti-
d lh ,d -~ma nem o ?utro_tem uma relação ao mundo como habitat. Já
do estrito e no sentido lato - desses desenfreados da Terra determinarão um
«º ~ o os pnatas e dl~~ hbera1s não se pode dizer que «habita» o Ser como dia se sucumbirão às suas energias internas de fuga e desaparecerão no nada , /
o 10mem a sua casa» . Na verdad~ s ma~inheiros e os colonizadores, pa-
i\ r:
como psicóticos da expedição regressados ao estado selvagem , ou se, estabe-
12<J ,;- ••. 1i/e,_ç,i....•(:C" f lecendo de certa maneira «novas relações com o objecto» , conseguirão res-
S. F,Ce.rn111me/1e Werke, Vol. XIV, Frankfurt, !969, p. 241 _ taurar condições continentais e criar uma nova morada num mundo longín-
130
l 'J'J7Chn
. stroph Ransmayr
·• ' Die Sch reck en lIes E'tses une/ der Fins1ern.is . Romance, Frankfurt,
\
quo , ou no velho mundo reencontrado.
1\1
1 1.' ~ '.;~; ·,~,',~/~;~;to , foram levadas à su~ forma mais geral pela conquista do meio ambiente.
. · • P· 105 . CL também Splwren. l, Blasen. , Frankfurt 1998 336 . 136 Gilles Deleuze e Féli x Guattari , Was ist Philosophie?, op. cit., p. 212 («A carne já não é mais
1 11 IVl:111rn:t.: Mt.:rlt; ·,u Po 11 ' pp.
I' 'H'I ' -PI é
, é I
y. l ' II Om 'no og ie de la Perceplion , Paris, Gallimard ,sq.
' 1992. *20.
do que um termómelro de um devir»).
l37 r. Geri Raeithel, «Co Wesl»: Ein psychohiswrischer Versuch iiber die Amerikaner , Frank-
., ~ l.1111 , , ..
1 1 1 M ·1·I ·111 1• pnnt y, L ,Oe,I· et I ,Esprir.
' Paris, Gallimarcl 1992 [J 9
11 11,,,/ ' 1' · 1 ' • • ' • 1\,rt . 198 1.
122

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quando d~ sur prime~a v1ag_em à Índia, em 1497 , Vasco da Gama , sem


~otivo espec1~t,1mandou mcend1ar e afundar, depois de o ter pilhado , um na-
l
,,,, .. ,(t,Jc,l''
P ter Sloterdijk
vil'-"~
1\ ~~•"' \( b
j

vio mercante arabe a bordo do qual se encontravam duzentos peregrinos que


se dirigiam par f Meca, incluindo mulheres e crianças - prelúdio a uma «his-
tória do mundo > dos crimes externos. O facto de estes nunca terem sido ver-
dadeiramente i tegrados pela consciência histórica europeia na imagem da
época modem , se excluirmos as publicações isoladas de livros negros do co-
lonialismo, em; nada lhes retira a sua violência excessiva l 38. O comércio glo-
balizado da elÍmjnação desfaz-se dos seus pretextos e, sob a forma da pura
1
eliminação, cri um estado que se situa para lá da guerra e da conquista. Oca- 20 Teoria do Pirata:
rácte.q jlimitad das superfícies aquáticas desperta o deserto moral na ·álma o Terror Branco
dos marinheiro - <~Destr_uo , logo existo», eis o que se exprime em cada ac- ·li'
to gratuito do h mor dos piratas. Nas colónias e nos mares, para lá da linha,
1 , ? ' '
experimenta-s~ ~ exterminismo que, no século xx, regressa aos Europeus sob Neste contexto, a pirataria, que constitui, com o tráfico negreiro (a que po- {t
a forma do estilo - guerra total. Quando ~ .rn,,s~ desenvolve no exterior, a lu- deríamos também chamar a indústria da deportação), o fenómeno de ponta de /
ta contra um mimig já não pode serclãrimente distinguida da elimi~açãÕ dê uma ingénua criminalidade da globalização, assume um significado marcan-
uma ~ó- sa. Car cfimitt chamou justamen te a atenção para o papel das «li- lc do ponto de vista da filosofia da história. É a grimeira f<2.1:_m-ª_e.rn_presarial
nhas de mizade» sobre as quais se tinham entendido as potências marítimas do ateÍSfT!O: quando DSY.A.está morto - ou quand9 n_ãq está a olhar, n_o terri-
europeia e cujo sentido era o de balizar um espaço civilizado, para lá do qual lório sem Estado, no nav io sem capelão, nos mares sem lei , fora das zonas qe
podia literalmente começar sob a forma de espaço sem direit 0 139_ respeito convencionado, no espaço sem- testemunhas, no vazio moral beyond
th e fine - , também o inconcebível é efectivamente possível. Em pleno mar,
at ingia-se por vezes o ponto (quase) extremo de atrocidade q12_e se possa pra-
' ,. ' I / ticar entre seres humanos .
( Simultaneamente, a pirataria instalou-se como um ramo económico (com-
/
parável à indústri a do rapto no século xx), obstinadamente anichada nas fa-
L r. (f'.. 1· 1
( .• lhas dos mercados securizados entre os séculos xv1e XIX . Não sem conhecer
-· ,. um epílogo na viragem do século xx para o século xx1: hoje em dia acontece
ra lar-se do «regresso dos piratas», nomeadamente nas águas ricas de presas
_, ,/ .\ cios Mallaca Straits e outras zonas em que um vazio da polícia marítima dei-
xa as mãos livres a um novo povo variegado de agressores; em 2002, recen-
L
searam-se em todo o mundo trezentos e quarenta assaltos marítimos, e a ten-
138
Cf. Rosa Amélia Plumelle-Uribe , Weisse Barbarei. Vom Koloniatra'ssismus zur Rassenpoli- dência é para o rápido aumento 140 . Além di sso, o caos do direito marítimo
tik der Nazis , Zurique , 2004. propicia condições ideais aos grupos terroristas - não é por acaso que se diz
139
Carl Schmitt, Der Nomos der Erde, op. c it. , pp. 54-69; cf. também Jacques Derrida, Poli ti- que Ossama bin Laden e consortes se teriam passado para o shipping busi-
ques de l 'Amitié, Paris, Galilée, 1994. Foi, ali ás, Nietz§.cbe quem desenvolveu as primeiras abor-
n.ess, onde, a coberto de pav ilhões exóticos, manteriam uma frota considerá-
dagens de uma teoria da descompensação moral na exterioridade: «perguntemos antes quem é 0
verdadeiro " mau" [ ... ] Em todo o rigor, há que responder: é precisamente o bom da outra moral, vel de velhos paquetes. O sistema dos corsários estava tão estreitamente liga-
precisamente o ho mem aristocrático, o poderoso, o senhor,ã presentado com o utras cores: rein- do ao regular andamento dos negócios que Goethe pôs na boca do seu
terpretado e deformado pelo olhar ve nenoso do ressentimento [ ... ) esses mes mos homens que , Mefistófeles uma teoria.da.globalização económica que não testemunha ape-
inter pares, são retidos tão severamen te pelos costumes, pelo respeito, pelos usos, pela gratid ão nasofacto de o orador ser uma língua de prata:
e mais ai nda pela vigi lânc ia e inveja mútuas , esses homens tão inventivas em matéria de obsé-
quios, de control o de si próprio, de delicadeza, de fidelidade , de org ulho e de am izade nas suas
relações entre si - no ex terior. aí onde começa o mundo estrangeiro, não va lem mai s do que fe-
ras desenfreadas . Aí, gozam da libert ação das restri ções soc iais, libertam-se como numa se lva da 140 cr. Charles Glass, «The New Piracy», London Review of Bovks , n.º .24, 2003. Do mesmo
lrn s;io que result a do seu longo aprisio namento, da sua sequestração na paz da comunidade 1...1» 1110 lo: William La ngew icsche , Th e 0 111/aw Sea: A Wor/d of Freedom , Chaos and Crime, Nova
11:, 1c·dricli Ni ·1zs ·hc . Z111· Ce11et1/ogie der Mural , Pri,rn.: iro Tratado , li, KSA 5, p. 274) . l úl'(J llC, 2004 .
r
125
Pal ác io de Cristal
124 Peter Sloterdijk
\
que se eleva num céu mais alto e mais sombrio do que qualquer Estátua da
«O "quê" , não o "como", é a via. Liberdade. Ahab encarna a ~ cifedana ~ perdida da navegação euro- -
Pra quem sabe de marear, americana - e, mais geralmente, aj'ª·º~9..bsç:ura do projecto da modernida- J{. f.
GJ!._pa cgmércio_e pirataria de colonial. Do ponto de vista psicológico ou microesferológico, é absoluta- (
Ninguém os pode separar.» 141 mente evidente que o duplo interno e externo do marinheiro possesso não ,t.i. , ~t
11ssume uma figura pers onificàda·: Esse génio da existência de Ahab não é um , ' . '
A lição do capitalismo pirata ressoa longamente: é a partir do ateí~ 0 i- 1
·spírito situado num campo de proximidade, nem é sobretudo um senhor em- · v'
rata ~ue os modei;_n_oS..P$J1S~m a dfgnibjção liQertári.~ e ª}!arquista, é.. aqui que poleirado nas alturas, mas um deus do inferior e do lá-fora, um soberano ani-
a fobia conservad?ra dos partisans tem a sua fo9te. A angústia dos guardiães malesco que emerge de uma profundidade que despreza toda a apropriação -
da orde~ ante os movadores, que é notória desde a Antiguidade, transforma- ·ssa mesma baleia branca relativamente à qual o autor observava, nas suas ci-
-se ~ª-epoca moderna em angústia do homem da terra firme diante do em-
1ações etimológicas:
presar10 que se faz ao mar e no qual , mesmo quando traz chapéu alto e sabe
~orno usar uma faca de peixe, transparece ainda assim o pirata. É por tal mo- «WHALE. * * * Suec . e dinam . hval. A designação deste animal deriva
tivo que nenhum _mo1:ador em t_erra pode imaginar sem terror uma situação do da ideia de rotundidade ou de rolar; pois em dinam. hvalt significa arquea-
mu~do em que na~ vigore o pnmado do político - e isso significa aqui a ter-
do ou abobadado.» DICIONÁRIO WEBSTER .
ra_ f1rme. Com efeito , quando o pirata desembarca em terra, que projectos de
cnmes traz ele nos bolsos? Onde escondeu as armas? Com que argumentos «WHALE. * * * Mais imediatamente derivado do hol. ou do Além . Wal-
sedutores promove as suas especulações? Sob que máscaras humanitárias es- len; a.s. Walwian, rolar, espojar-se, rebolar-se .» DICIONÁRIO RICHARD- í ~t
'1 '
conde as más intenções? Quando os assaltantes se apresentam na boa socie- SON _142 ,.. ,:1 1 -, !
d~de, os seus sofistas, os seus conselheiros, não se encontram longe . Desde '.,, t ~ 1
l
Cf ; ~ --
r ~
ha du~entos anos , os burgueses seleccionam as suas angústias: uma vez em Com a sua silhueta em «arco» , a baleia age sobre os que a admiram e os \,,1 J,
terra f1rme, o l!narco-marítimo torna-se, no melhor dos casos , um Raskólni- que a odeiam como a encarnação de uma potência que se revolve. exclusiva- . )
kov (q~e faz o que quer, mas que o lamenta), num caso menos favorável, um mente sobre si própria nas profunpidades inquietantes do mar. A majestade de
marques_de Sade (que faz o que quer e nega o remorso) , no pior dos caso.s, Moby Dick defende a eterna resistência de uma vida insondável contra os cál- '
:1.!!1 11\'.!0hberal (que faz o que quer, mas , citando Ayn Rand , se autoprociama \: ulos dos caçadores. O seu branc representa simultaneamente o .e~p<!ÇO nã~
homem do futuro) . , , ,
esférico, homogéneo, sem li~ .s , no qual o~ viajantes ses~ ~ priv~ os de
A pirataria infil~ra-se , porém, de outra maneira no pensamento burguês: os todo o sentimento- de intimidade , de toda a sensação• de chegada-~ e óe pátria. { ' 1
. -
f~ntasmas _dos ~~b1tantes da terra firme fazem dele muito rapidamente um an- Não é por acaso que se trata da cor que os cartógrafos reservavam à .!!,!;rª irr- j
t1mun?o _hbe1tan~ no qual tudo seria possível, menos o tédio. Séculos antes cógnita._Melville dizia do branco que é «o ateísmo incolor, multicoloi-' diante P '·
da boemia dos artistas, a boémia marítima fornece estímulos inesgotáveis aos do qual nos encolhemos» 143 , visto que nos recorda, tal como a profundidade '
burgueses que querem ser algo mais que burgueses. Nas gravuras do século branca da Via Láctea, o «grande vazio sem coração e as imensidões do uni-
xvm aparecem corsários do sexo feminino - de espada desembainhada blu- verso»; ela impregna o observador com a ideia da sua d~ truição num lá-fora
sa aberta e peitos salientes - como que para provar que , no mar, a nov~ mu- indiferente. A baleia de Ahab tem de ter essa cor, porque simboliza uma ex-
lhe: ag~ c~m toda a autonomia no seu papel de saqueadora. Até à Ópera dos terioridade que, além disso, não necessita de aparência e não é capaz de a ter.
Tres Vmtens de Brec~t (1928), aos Escritos Corsários de Pasolini (1973-
Mas quando o exterior se deixa ver:
-1975), p~demos segu1r o desejo criminoso e romântico que vê vir do mar a « ... ó lívido u"niv erso jaz diânte de nós como um leproso; e tal 'como o via-
0

Gra~~e L1berdad_e ._Tam~ém Friedrich Schiller, nos seus esboços de «peças jante casmurro que, na Lapónia, se obstina a não proteger os olhos com vi-
1 \ m_ant1m_as» , acanc1ou a ideia de fazer o retrato da «República flutuante dos dros coloridos e colorantes, também o infeliz infiel se cega a si próprio, ao
fübuste1ros» . O autor dos Salteadores foi obrigado a admitir que os salteado- ver o branco , o colossal sudário que envolve toda a paisagem em seu tor-
res do mar constituíam uma contracultura mais impressionante.
no.» 144
Através do personagem do capitão Ahab, Herman Melville edificou um
monume nto aos ho~ens caídos no exterior, aos navegadores sem regresso
qu \: passam no cx te nor os se us «impiedosos anos de velhice», monume nto 142 Mclvillc. Moby Dick oder Der Wal , op. cit., p . 8.
143 lbicl .. p. 252 («a colorless all-color of atheism from which we shrink») .
144 lbid ,
l •I I / t111 ,1/o , l'11rl . li , V ·rs1 s 111 85-88 ,
1
126 Peter Sloterdijk
1
Quase um sécu / s d --s art:e ter p~sto um ,personagem de drama a di -
zer: «O Inferno sãX :n~~tros», Melville atingira profundidades maiores: o in-
ferno é 'o exterior. Ne sse inferno metódico, nessa indiferença de um espaço
onde ~ão s~ nhum habitar, g.s indivíduos-pontos modernos estão disper-
sçis sem o menor laço entre si , Ao contrário do que dizem os existencialistas,
não se trata pois apenas de encontrar uma situação no absurdo por meio de
um compromisso livremente escolhido; trata-se antes, uma vez que o homem
foi universalmente posto a nu nas superfícies da Terra e dos sistemas, de ha-
bitar o exterior indiferente como se as bolhas animadas pudessem estabilizar-
-se nele a mais longo prazo , As pessoas têm de enfrentar o desafio de que .p__e- 21 A Época Moderna e a Síndrome da Terra Virgem
,rante o sudário que se estende'°sobre tudo o que é exterior, conseguirão ter em Americanologia I
conta as suas relações mútuas num espaço interior a criar artificialmei;ite, co-
mo se não existisse nenhum facto exterior, Os casais, as comunas, os coros,
as equipas, os povos e as igrejas, todos sem excepção se abalançam à criação Na sala de leitura do anexo moderno da Library of Congress, está gravada
_de frágeis criações de espaços perante o primado do inferno branco. Só n~s- uma citação de Thomas Jefferson que exprime com insuperável clareza o es-
ses recipientes, que se produzem a si próprios, se realiza o que a palavra _!llur- pírito da tomada da TetTa:
cha de solidariedade designa no estrato semântico mais radical: as artes de vi-
ver da modernidade visam erigir o não-indiferente no indiferente, Ante um «Afirmamos que a Terra e a sua abundância foram transmitidas à gera-
mundo cujos limites geográficos atingimos , tal coloca a projecção e a inven- ção actual para que esta dela tenha o usufruto.»
ção em horizontes inesgotáveisl45 ,
Talvez QS ~<povos livres» de que falava o século XIX, sem compreender que Embora date de finais do século XVIII, a tese afixada em Washington re-
contribuía assim para a criação de colectivos de obsessões modernizados, as sume um impulso que, a partir da época de Colombo , agiu sobre o compor-
pátrias que exigem o sacrifício, nunca existam senão como associações c!_e se- lamento dos Europeus relativamente à expansão: a concepção da Terra como
res humanos que, perante uma indiferença realmente universalizada, se vol- objecto encontrado e recurso. Na frase de Jefferson, os ec~ C-ºi ~colo-
tam a aliar de maneira ainda inédita, que só as academias e as igrejas vaga- ni zadores são tão evidentes como a postura empolada do advogado do tem-
mente anteciparam . ro presente: a geração a que se concedia o usufruto ~ra, claro, 31 dos-amer· -
canos da Nova Inglaterra, que se haviãm separado do reino inglês e julgavam
ter encontrado a Terra Prometida nas costas do Atlântico Norte. Para os Yan-
kees>(termo que seria, diz-se , a pro~ cia índia. e!~~e~ig!:}ação fr~nc~sa les
Anglais) do século XVIII, os jogos de linguagem Judaizantes dos Pilgnm Fa-
thers , que julgavam estar a repetir a fuga de Israel do Egipto ao atravessa-
rem o oceano , há muito que se haviam tornado moeda retórica corrente. Nã_o
precisavam de murmurar quando professavam a ideia de que um povo elei-
to tinha de dispor de um país adaptado à sua vocação. E como o tinham ago-
ra à disposição, não tomar resolutamente posse dele seria trair a sua própria
missão .
Quando se ouve falar da transmissão da Terra à geração actual de usu-
l'rutuários, expressão cintilante provinda da gíria do direito natural, aper-
·cbe-se manifestamente o eco desse choque da forma do mundo que fora
provocado pelos descobrimentos transatlânticos, em finais d? s_é culo xv, e
pe la viagem de Magalhães . Enquanto, para a esmagadora maio:ia dos e~r~-
pcus , a «revolução» pacífica, o facto de se compreender o caracter ocean1-
145 cr. Vil érn Flusser, «Vorn Subjekt z~m Projekt», in , do mesmo, Schrijie11 , Vol. 3, Bcnshcirn ·o das superfícies aquáticas que comunicam entre si na Terra, não de ixou cl
l' Dti~~cldorf', 1994. s r durante séculos uma «informação» abstracta e indesejáve l, que in itavu
1

128 Peter S loterdijk [lidí,c io de Cristal ., ('


·,
/,
- •' .. ,
129
\
, 1} ,

· 146 M · . ue os teólogos e os juristas chai:navam )~~


quando muito às utopias , o descobrimento do quarto continente, das duas li 1r sua propnedad~ . ais_. ~~q ic ãçãõ fõrmi í da nova subjeé:tl-
Américas , foi mais do que um acontecimento geográfico sensacional. 1 ilo natural' não é talvez mais o que ~,~x~ . - de tomar o que lhe é
1
Reflectiu-se em inúmeros ditos inspirados por um novo apetite teológico e ltlade õs"capfores , qu~ ª si própn~at~?u.'.~ : {:: ::os..,são a alma_jurídica
mercantil. Os americanistas parafrasearam de múltiplas maneiras as inter- li ·v ido sobre a terra e sobre o mar. s _..l!~.0 . p.ode Paii citar mais uma
pretações da históri a santa que os contemporâneos, e os seus descendentes, d i vida que se apodera do que lhe cabe sempre que .
{
deram ao descobrimento do duplo continente . Para os partidários da Bíblia Vl"/. Melville: e é metade {lo di:~ ,lv
«Não é um dito que anda em todas as bocas, que ~ poss_ ? M
entre os ocupantes , a América era indubitavelmente o grande trunfo que
1 ·ito , isto é , independentemente da_forma como a c01sa cam na posse . as,
Deus conservara escondido na manga durante um milénio e meio para o pôr
. ' t d o direito .» 147
na mesa no momento de mais elevado apuro, quando a política religiosa do n1u 11as vezes, a posse e, ? o I iais não dei xavam por isso de
Os caQ_to.res-empresanos nas frentes co on . , .ma
Ocidente estivesse em agonia. Permitindo ao seu servidor católico, Cristó-
vão Colombo , encontrar a América just in time , punha em jogo a astúcia da
- " - utilizar uma expressão kantiana , s~bJ!}llª fill!.'º .
vnloca.r ~ ç~o, par:ais para definir a criminalidade do que a n? bre par-
Providência para indicar a direcção do segundo êxodo aos seus fiéis protes- que, vulgagJ1~i:iJ;.e, ser~e d. . efeito na medida em qu~. queriam,
tantes.
1 • - a prospecçao do mun o. com , -·- -
t1c1paçao ;n . -... . detentores e os proprietários de bens, escapa-
Queremos aqui abstrair dos delírios da teologia da história que os emi- por ~ra c~p~tur~, tornai-se os uitativa A sua consciência não ficava por isso
grantes e a sua poderosa fé transformaram em factores reai s da história. vam as ex1gencias _da tro~a ?q . . rtavam ao direito do instante in-
Quem se interessar pelo anexo norte-americano da Divina Comédia com cer- 11balada, com?~ n-~1_na a :1_:.s~on; , pois s_e retna prõpri a tómáda de posse'é não
teza se sati sfará com a leitura dos Magna/ia Christi Americana (Os grandes ~i_gt ~es~: ~ i -~ !~~i~e~i:; ~~ç~:;:~:iimento mótuo. Os actores da ex-
actos de Cristo no Novo Mundo) , saídos em 1698 da pluma do pastor de Bos- 1
11,1 e! a Oeste americano como no resto do globo, salvam-se , no seu
ton Cotton Mather. Posteriormente , cada séc ulo produ ziu outros escritos fla- pansao, tanto no ;ia im lícita da falha.moral~parece haver tempos
mejantes da teo logi a política americana - até às miragens da fraude deseja- 11clo de captu'.:_a, por um . teo _ ., i~a do que a legislação e é num desses mo-
da por Deus no ano de graça da 2000, com a eleição de George W. Bush. r m que a acçao deve ser mai s iap neste ar umento reclamam por sua
Aquilo que fez do efeito-América, para lá do carácter de sensação geográfi- i11entos que nos encontramos. Baseados ~ . g d.' , . s Os que em
. - f a de circunstancias extraor mana . ,
ca e dos seus extravasamentos teológicos, uma realidade psicopolítica central ·onta a absolv1çao por orç - ioneiros na falha hi stórica.
da época moderna foi a sua irradiação na consciência do espaço, do solo e das icmpos regulares, teriam s_idd~ ~aq~e~~or~:ib~~~ ppós-histórica, teria sido de-
hipóteses cios europeus pós-co lombianos , em cujas file iras se recrutavam os /\ le que numa época JU icianza , ,
que , . turbulências da hi stória em curso , por um
Americanos. mandado por cnme;_ passa, ~as_ , .· da civilização. Será que não se vê que
A ~{oca emerge do Atlântico como um u_,n_iverso_9e re; erva n.<2__,~ nventureiro , um hero1 e um m1ss1onar10 ~ . har com essa fa-
QOde recomeçar a experiência «Deus com a Humanidade» - uma terra onde a indústria do cinema policial_contemporaneo i~~~~~: :i~: está em vigor o
e
ã chegàda7'a \ iisão a c~pturap arecêm tornar-se sinónimos. Enquanto nave- lh a? Podemos definir esta última como uma z .
e
lha .uropa feÜcrâlizada territorializada a mínima parcela ele terra cultivável direito de o homem a tomar sem dar. t . s tempos heróicos das capturas,
tem dono desde há mil anos e cada caminho florestal, cada calçada e cada É também indiscutível que os agen es , no tura de si próprios·
d a )tura do mundo como na cap .
ponte estão onerados de direitos de passagem e de privilégios que entravam a estão tão interessa os na c I d ··a sem senhor que está
, . xistência como a merca 011
progressão e beneficiam um explorador nobre, a América oferece a inúmeros consideram a sua propna ,e t't a uma oportunidade. O autor
recém-chegados a experiência excitante e contrástada de u~ pa(s praticamen- . , - o· basta apanha-la para que cons I u
m~1s. a ma , f1 - , Daniel Defoe que não se contenta com apresentar o
, te sem dono que , pela sua imensidão, só precisa de ser ocupado e construído class1co desta re exao e aptor de terra inteoral e um ho-
1 para perten'êer ao ocupante e ao construtor. Um mundo no qual os colonos
seu náufrago , Robinson Crusoe , como um c º
chegam antes dos registos cadastrais - um paraíso para seres que querem re-
começar do zero e exercer a sua força na captura. J::>or isso os sentimentos da . .· v·i ue nas colóni as norte-americanas da Inglaterra , até
amplidão do mundo da época moderna estão associados à experiência funa â- 146 Na sua /nquiry, Adam Smith assmala ' q ' . t de'ncia para utili zá- lo na aqui sição
h I dinheiro de parte, ten a en ' '
Toental da A:mérica-=-ã acilidade com a-qüãl se toma posse da terra e dos re- 11 111 artesão , lo.go que pun aª gum ..,., ·ensação de que um artesão é servidor dos
.. 1 0 ou pl antador: « ,em as [ ]
de \erras e a tom,11-se co on ntadoi· que explora a sua terra .. .
~ ursos - , o que - juntamente com muitos outros caracteres soc iai s - dá · b · 1· eia mas que um PIa ' ,
seus clientes , de quem ura a sua su s1s,en ' d nte do resto do mundo.» Adam Smith , Der
ori ·,c m a um tipo de ca mponês sem precede.(ltes na hi stória do mundo , que já verdadeiramente um sen hor e que e mdepen e
11 íl o o s ·rvo do se nh or, mas u~ _p ropri etário funcli{u·io armado e autónomo, /fri c/,111111 der Nat ionen, op. cit. , p. 3 13 · . · ·s the whole of the law.»)
111 11 l11vr11 lor qu ·,soba autorid ade ele Deus, g re o so lo qu e acabou d s · lor-
147 11. M .. MolJ.)' Oick. op . c il .. p. 484 . («Bul often po sess1on i - . .,
A • l
132
Peter Sloterdl,lk

a nível esferológíco, a rela ão dos a . .


número de cinco: ç g1esso1es com o espaço branco, eram Ili

- a mitologia naval;
- a religião cristã·
• t: - a lealda~e para ~om os príncipes da sua pátria·
- a captaçao (recenseamento) científica does ,
- a transposição linguística. -.. paço externo; ~

Cada uma destas práticas produziu a sua , .· , .


cada vez, contribuiu para uma missão h. t , prnp11a poet1ca do espaço, que, d 23 Poética do Porão
terior ,vivível para os invaso. 'd is onca que consistia em tornar o ex.
d os e d o dominarr m. f
ies , ou ar-lhes a ilusão d 1
e ne e estarem integra-
. f $ ,• • '\
As pessoas da nossa época ainda percebem com a maior das faci lidades os
1 ~ ... \_i:• • ~ -~ t ..
aspectos psicodinâmicos da experiência do porão, visto que dispõem dos pon-
tos de referência ligados aos interiores das rulotes e aos habitáculos dos auto-
móveis. O facto de se dispor de tais meios de «circu lação» não se teria torna-
do para uma grande maioria de indivíduos modernos uma prática de
movimento indispensável e , a maioria das vezes , agradável, se os veículos,
co m as suas formas interiores, não retomassem as estruturas elementares da
formação de esferas em pequenas dimensõeâ es~aciajs. O navLo , tal cô;;;'~ m
., . ""
proporções mais moderadas , o automóvel e a rulote , é o ninho mobilizaç!g ou
--
<1 casa absoluta 149. Na perspectiva existencial, a míssão enuncia-se nos se-
guintes termos: moq.ilização d.Qj nt~ior - o que equivale a uma . uad@tur.a
do círcu lo da vida. Como o navio encarna simu ltaneamente a realização das
ex igências de(es tar-em-casa e da evasão, é , sobretudo na forma que tomou no
início da época moderna e que lhe permitiu enfrentar o alto-mar, o arquétipo
da contradição resolvida. Põe em equilíbrio os esforços diametralmente opos-
tos do /1.;djúat e da ã;entu;a! Com ele , as relações simbióticas são possíveis
- e, no entanto , podemos vivê-lo como um projéctil que abre cam inho no
que nunca existiu . O veícu lo é sentido como um ventre que encerra uma ni-
nhada de recém-nascidos ; desembarcarão onde puderem e farão o que querem
bastante longe da casa, e livres de todo o contexto .
Ao mesmo tempo , o nav io é a auto-extensão mágica e tecnosférica das tri-
pu lações - é, como todos os veículos-contentores modernos, uma máquina
de sonho homeostática que se deixa dirigir através do elemento histórico co-
mo uma Grande Mãe manip'!!_~v~l. (Ainda está por escrever um relato psico-
-hi stórico convincente da superstição ligada aos veícu los.) Assim sendo , para
as suas tripulações , os navios podem tornar-se pátrias móveis. Quando o di-
re ito marítimo reconhece os navios como extensões do país sob cujo pavilhão
navegam , segue uma intuição esferológica original: aqui , do ponto de vista da
lóg ica do espaço e do direito internacional, Q_~star-em-tei:ra tra~sforma-se em

149 cr. Spheren li, Globe11 , op. cit. , Capítu lo 3 , «K apitel , Archen , Stacltmauern, Weltgrenzen,

-
l1 nmun systcm. Z ur Onl olog ic eles ummauerten Raum s» .
,
134
Peter SloterdU~
( .,
estar-a-b?(~~, e_ há traços essenci3/ s do no mos da terra, da «paz» do es
que nos e _propn_o _que são t;_ans_postos _para a-endosfei-a flutuante~- ' aço
_A funçao dec1s1va do casco é, porém, o ~epelir, tanto físico como simbó.li•
co, como se move no elemento aquoso que , graças à sua faculdade de ser
netrado , acede à exigência de espaço que é a d , p •
- - . ~ . o navio , o corpo flutuanl ,
impoe-se contra a res1stencia do seu portador A este feno'
uma · . , meno correspond ,
,:egra soei: 1: _os conJuntos humanos que se'lançam para o exterior só
man~em ª. coe~encia se conseguirem calafetar as suas fugas e ~firmàr a ri-
mazia do mtenor no elemento invivível rTal como t · t p
· - ·- . .: an enormente as naves das
'IgreJas assumiam essa prestação de repelir na terra firme , para serem navio~
~~pazes de _transportar ~s ~Imas cristãs no mar da vida terrestre , assim tam~ 24 Capelões de Bordo
em os ~avws de exped1çao deverão no espaço exterior confiar-se ao espaço A Rede Religiosa
que r_epe,en: como forma de abrigo que se leva em viagem e que se orden a
por SI propna . e

Visto de agora , torna-se evidente: o facto de, nos tempos heróicos da na-
vegação, as grandes expedições nunca se fazerem sem um capelão a bordo
não era apenas uma convenção religiosa nem uma concessão às pretensões da
Igreja a não deixar paitir os grupos de navegadores sem controlo espiritual.
A omnipresença do factor religioso nas navegações dos primeiros tempos (a
primeira travess ia de Colombo é a única em que não se encontra um religio-
so na lista da tripulação - mas, em contrapartida, alguns controladores en-
viados pela Coroa espanhola) designa antes um segundo mecanismo, esfera-
-poético e todo-poderoso. Para que as expedições dos primeiros navegadores
sobre o oceano pudessem ter êxito, as tripulações não precisavam apenas de
uma segurança quanto ao seu ofício, mas teria_ tam_bém de en.cp nJrar um
ar1oj o nas r~as metafísicas das suas terr~ hatai§_. Como àn'ãvegação pÕr
mar era uma prática que suscitava situações-limite, era necessário , na medi-
da do possível , ter sempre a bordo peritos do extremo. O barco implica o pe-
ri go do naufrágio e das tormentas, e c;-~t'i-a estas últimas, pelo menos, os san-
tos que prestavam assistência e aqueles que os conheciam, os padres, podiam
oferecer garantias simbólicas . O facto de a navegação europeia ter podido to-
mar o nome de «cristã» - e isto , bem antes do advento da era oceânica -
revela como se encontrava centrada nesse indispensável sistema de seguros
metafís ico. Se o branco exterior parecia aterrador, era também porque , para
inúmeras pessoas, encerrava a data da morte , e com ela a perspectiva de re-
pousar para sempre num elemento a que faltavam todas as qualidades de con-
ciliação150. Quando não podia ser associada às ideias de inumação e de Além
que eram as da velha Europa , a imagem de uma morte no exterior era dupla-
mente insuportável.

ISO Me lville também noto u isso no Moby Dick . Na capela dos baleeiros de Nova Bedford , an-
tes ela partida para Nantucket. o narrador observ a uma série de placas de mármore enquadradas
a negro que recordam os marinheiros mortos no exterior: «Que vazios mortais e que inficlelicla-
dcs não pre tendid as nestas linhas que parecem corroer toda a fé e recusar a ressurre ição aos se-
r ·s C(lll,: perece ram c m lugar n nhum sem um túmul o.»
136
Peter Sloterdl/~ l'11 lácio de Cristal 137

Mas os religiosos navegadores não teriam .


não tivessem de imediato olhado e d d .. co~pre~nd1do a sua função , ' 111velmente à Santa Sé que coube o encargo de sancionar o Tratado de Tor-
nheiros a bordo, que havia que esta~ili~=1~ i;ec~oes diferentes: para os ma,· d ·silhas , em 1494.
ção, e para os novos homens do t . pe o ntual e controlar pela motiv11 As pretensões à supremacia do catolicismo pós-colombiano apareceram
ex enor que se torna d . .
teressantes no seu papel de futuros d·t, d vam ca a vez mais ,n ·um a maior clareza quando o Papa, referindo-se às origens da sua função, se
au I ores a mensagem e · t-
Para os embarcados · ro ·- .· - . . ns ª· proc lamou verdadeiro senhor supremo do mundo que havia sido circum-
este último sobretudo ~~ 1eu:ct'1~0 c11sta prop~ciava um motor e um refúgio navegado 152. Nas circunstâncias da época, as monarquias nacionais da Eu-
gura omnipresente da prot~ctor: ~i:· naveiaç~o das naçõ_es catól_icas sob a /'I ropa, incluindo as monarquias católicas, tinham forçosamente de se revoltar
vitória de Lepanto, também era apr:s::tad:na, essa regma mw:1s que, após li ·ontra as exigências de prioridade pontificais . Podemos entrever algo da to-
ria - a Grande M-ae d . h . como a Santa Mana della Vitto nal idade dessas rebeliões nacional-dinásticas quando Francisco Ide França,
' os mann erros a qu · t d
perigo de morte e de tormenta / ,_. _e 111 er_ce e e que salva em caso clt.• ·m 1540, convida o enviado do imperador a mostrar-lhe o testamento de
seu 'U.fill to J.Q~tor, prínci es. c~~encults mans est n_o~is protectio. Sob o /\dão, bem como a cláusula papal que deveria conter e segundo a qual o rei
genas baptizados~contrav~m' refú ~~ :__erca~~res , cap,taes, marujos e indf- de França estaria excluído da repartição do mundo .
vegam sob o manto de Ma . -·-- ~-~ as iotas consagradas, quando na- No que diz respeito às missões protestantes, foram logo de início , e mais
na , parecem só estar e t .
Como para a últ· b . xpos as a ventos amJStosos , ·!aramente ainda do que as missões católicas, envolvidas em funções nacio-
,ma vez, so re as imagens d lt d
ros, a nobre dama abriga os seus no . ' l e deu o ~s capelas ~e marinhei - 11al-coloniais; os missionários destinados a intervir no império colonial holan-
. h mvo ucro e um utero mundial t cl dês eram formados em Leyde, num seminário da Companhia Unificada da
mann a sob uma saia (um aroumento lau , .- -· - -. - o a li
ra as mulheres e uma das úl;imas e p s~vel a f~vor das vestes· largas pa- Índia Oriental , como se a Igreja não detivesse a sua missão de evangelização
morfológico do abrigo do v1·ve t on_cessoes da epoca moderna ao sonho por força de Mateus, 28, 19, mas em função de um mandato das sociedades de
, . . n e no vivente) Mais u
fenco situado no céu é realçado em sí b l . ' ma vez,_um man~o es- comércio livre do Atlântico-Norte. A missão cristã - ou, mais geralmente, a
lucro , ainda que na mesma e'poca
, '
m o?,
dens~ e personalizado do mvó-
'os cosmo ooos trvess d
ex portação das confissões - é certamente o principal agente de um princípio
do ceu uma coisa metafisicament d
e esesperante.
º em começa o a fazer de continuidade socio esferológico na passagem do Antigo ao Novo Testa-
Do lado das terras viroens a reli ião e . - mento, pois, no encontro com os estrangeiros , podia colocar no primeiro pla-
representava aproximada~ent'e·a.:. -~ - . nsta , na era dos Descobrimentos , no os motivos de uma possível comunidade de espécie e de culto entre os des-
-· --. . m1ssao--na sua seound , .
tomando totalmente a sua dupla f .. -· d - - º .. a epoca - e isto, re- cobridores e os descobertos .
_.l·as e de protecção de flanco d' unçl ªº. ~ extensao neo-apostólica das igre- O êxito que tiveram , em especial, as missões católicas nas suas tarefas de
·-- o co onialismo A t · dA · -.. - · -~ -
Igreja colõ riíal e êla «Iaie··-:-· d.. f ·-~ ~-· · ) ...,.~. · _s en encias militantes da globalização em quatro séculos e meio de actividade manifestou-se sob aus-
. º Ja a rente» na prática d . - .
pícios espectaculares na inauguração do Concílio Vaticano II, a 11 de Outu-
deviam-se essencialmente à bA - T ' . a mrssao ultramanna
da aos avanços portugueses e ::pçaaohp?nt1 ical quase rncondicional concedi- bro de 1962, quando bispos provenientes de não menos que cento e três paí-
. , . . n 01s nos novos mundos p · , .
rn1c10 , «via nos Estados ibéricos obra . . . . ' o1s a cuna, de ses entraram em São Pedro, em Roma - uma reunião que seríamos forçados
bo uma missão universa J»l51 C ,çop1ov1dencialdestmadoalevaraca- a qualificar de única se não fosse regularmente superada pelas cerimónias de
. ' · om o se u apetite · r
f_1ou aos conquistadores tão vastos riviléo. uni versa ista, Ror:na con- inauguração dos Jogos Olímpicos da Era Moderna. Concílios e Olimpíadas
hca se encontrou, ante os Estadot coloni~o~ qu~, em breve , a _IgreJa Cató- - duas manifestações exemplares dos projectos europeus de congregação -
autónomos de facto) numa s·t - d z~ ores (que se haviam tornado ilu stram o que os abrigos universalistas estão em condições de consumar. Mas
. '
deixou por isso de aceder à cena d ,
1 uaçao e assistente sem d
po er.
o p apa nao - são eles, precisamente, por mais imponente que seja a amplidão das suas ati-
meiro período da expans-ao - a epoca moderna , nomeadamente no pri- tudes abrangentes, que põem a nu a exclusividade inultrapassável deste tipo
' , nao apenas no papel de
também como notário da globali - . . sup_remo _mandante, mas de assembleias. Para constituir in actu um espaço interior religioso ou atléti-
~ape) eminente que assume ao CO~;rr:;/i;:·10 lll~~rVJr muito cedo C0m O co da hum'!nigade, só podem r91 nir-~ _fralmente representantes, «vigilantes»
Africa (com as bulas Romanus Pontifex de 1:;~ob1;men~s portugueses em ou «eleitos» - e à totalidade virtual só podeâepõísi·esu tar -da atenção sin-
posteriormente, nas suas funções de d. - e nter etera de 1456) e, cronizada da humanidade-observadora através dos meios de transmissão.
Portugueses e Espanhóis me_ IaJªº quando da querela que opôs
na sua pretensao a dommação inund1·a1 , . F01. 1nev. 1.- 152 Um símbolo litúrgico dessa auto-elevação planetári a é a tiara, que, é certo . já no século x1v
l 'i l
l lors1Ci rí111clcr, Wel!erobemn ç 1111d Chriwe11111111 . havia assu mido a sua forma de hiper coroa de três nívei s, mas que foi adaptada à situação glo-
( :11 11l'r, /11 li . 1')I) ~ , p, 87 . , . . E111 Ha11db11cl1 :ur Ce.l'c/1ic/11e der Ne11zei1, bali zada , no século xv1, com o acrescento de uma sphaira no seu cume. Cf. Sphiiren li, Cloben,
o p. ·ii. , Exc urs 1, «Dic Entkréi nung Europas. Anekdote über die Ti,u·a», pp. 788 sq.
li 1
138 Peter Sloterd 11~

A qualidade totalizante deste tipo de manifestações exprime-se pois, não tau


to por efeito dos seres presentes, mas antes pela simbólica universalista do
contentores arquitecturais no interior dos quais tem lugar a assembleia - íio
as formas supremas típicas da arquitectura que se implica na macrosferologi11:
a catedral católica e a arena desportiva profana. Na catedral, a nave e a cúpu-
la representam a potência de agregação humana associada à profissão de f
católica romana, ao passo que no estádio o motivo neofatali sta da arena é pos-
to em cena como símbolo da esfera mundial fechada 153 .
Mas , como as igrejas, no seu modo de ser quotidiano , existem apenas sob
a forma de communio sanctorum não reunida e têm de provar o que valem nas 25 O Livro dos Vice-Reis t
reuniões locais , vêem-se constantemente confrontadas com o dever de orga-
nizarem o seu funcionamento em media menos espectaculares, acessíveis em
permanência a nível operacional e capazes de construírem tradição. Além dis- Os chefes das expedições da globalização , os vice-reis , os almirantes e os
so, nas igrejas protestantes , com as suas unidades autónomas , as forças cen- seus oficiais, levam consigo ao longe , para lá das suas concepções religiosas,
trífugas exprimem-se muito mais fortemente. As comunidades puritanas iso- os seus modelos dinásticos. As imagens interiorizadas dos reais mandantes, tal
ladas da Nova Inglaterra, nomeadamente, dependiam da sua capacidade para ·omo os seus veros retratos , fazem com que a expansão no espaço exterior,
criarem uma estabilidade pela força da sua própria prática ritual. Para com- 1anto nos instantes críticos como nas horas do.trfonfo, possa ser vivida como
preender em que condições se operou esta ancoragem a formas que os pere- uma emanação efectiva proveniente do centro pessoal do poder. Quando os
grinos tinham trazido consigo, é útil imaginar a reconstituição da primitiva portadores das empresas dê descobri'rhen to regressam física ou imaginaria-
capela de madeira em que os Pilgrim Fathers e os que lhes eram próximos se mente , pelos sentimentos ,'a casa, põem em prática a~~tud~.s externas e internas
encontraram para os seus ofícios religiosos durante o Inverno, após terem de- que atestam a sua p§ rtença à origem europeia do poder. A sua acção é compa-
sembarcado perto de New Plymouth , em Cape Cod, na baía do Massachu- rável ao comportamento do raio de luz platónico saído do centro para, uma vez
setts, a 19 de Novembro de 1620. Nada poderá dar uma prova mais clara do chegado ao ponto de reflexfu>: se voltar e regressar à fonte de emissão. Neste
primado da arquitectura ritual sobre o edifício físico do que essa granja gros- sentido , todos os conquistadores e descobridores europeus leais evoluem co-
seira e exposta às correntes de ar, no meio de uma aldeia construída à pressa mo os raios executivos de longínquos Reis Sol. Até os mais grosseiros emis-
por trás de umas paliçadas e que transpirava medo . A província de Heidegger sários do imperialismo do século XIX, os men on the spot, se considerarão co-
não é o único lugar em que os humanos são os que habitam a linguagem, co- mo portadores de luz ao_ser v\.ço _das s.u,as_naççes. Se os agentes europeus se
mo morada do Ser. Até nos pontos dispersos do espaço global recentemente apresentam como os grandes propiciadores, é também porque levam ~o exte-
explorado , instalam sob telhados improvisados as suas tradições e as suas se- rior a i,rradiação dinástica enquanto se apropriam dos tesouros do novo mun-
guranças rituais. do , adoptando a atitude daqueles que colhem para os outros . Evoluem na cor-
te resplandente formada pelos raios dos sistemas de majestade indígenas, e
todos os seus achamentos permanecem o mais das vezes vinculados às salas
ele trono e aos panteões da terra-mãe.Aquilo a que se chamou a exploração das
colónias apenas testemunha a forma mais maciça do laço dos colonizadores
com a sua terra-mãe - o que é especialmente válido para os Espanhóis, que
desenvolveram uma minuciosa burocracia da pilhagem . Ainda hoje podemos
vi sitar as suas relíquias no Archivo de las Índias de Sevilha. O fenómeno da
«arte pilhada» é tão antigo como a globalização terrestre: no início do século
xv1, em Antuérpia, expôs-se o ouro cios Aztecas sem que ninguém perguntas-
se a si próprio se esse ouro tinha um proprietário legítimo . Albrecht Dürer viu
153 Sobre a fun ção de agregação desempenhada pelas arenas desportivas e outros «colectores» co m os próprios olhos essas obras de uma arte vinda de um completo alhures.
na cultura de massas, cf. Sphdren III, Schdume, Capítulo II : «lndoors. Architekturen des Sem os ícones internos do rei, a maioria dos chefes de expedição da pri -
Schaum s» , p. 626 sq. Sublinha-se aí que os efeitos de captação global só pode m ocorrer pelo rc- me ira globali zação não teriam sabido a quem - à parte eles próprios - s
li1l' ÍOll il lllCnt o de co lectores (grandes interi ores) e conectores (111a.1·.1· media ). d sLin avam os seus êxitos; mas, sobretudo , não teriam vindo a sab · r por qu '
111
141
140 Peter Sloterclijh l'11 l(tc io ele Cristal

i·isco Xavier, que havia explorado a Índia e o Japão e'.11 ?enefício da/~reja
reconhecimento tinham o direito de se sentir completados, justificados • l{;imana teve o seu último repouso em Goa . O braço direito d? santo 01 tra-
transfigurados. Até as atrocidades praticadas pelos conquistadores espanhóis i ido par~ a Europa «exausto de ter baptizado dezenas de m1lhare~ ele 1;s-
n,a América Centf~Ts,ão ,~e!ásta_ses da ,fiQyÍidad; às mqj~ tad~.e_ã~ que s · ;oas» , e ainda hoje ~stá conservado na igreja_-mã~ da ordem, /l Gesu, em o-
fazem representar por meios extraordinários. Nessa medida , o título de vic
111a , como a relíquia mais preciosa da globahzaçao .
-r~i não tem um alcance unicâménte jurídico e protocolar: é t~bém um~ ca
tegoria que, do ponto de vista psicopolítico , tem a ver com a própria essência
da conquista. Os livros dos vice-reis estão por escrever. É por eles que osr eis
europeus estão sempre e em todo o lado presentes nas extensões externas do
velho mundo , embora não visitem pessoalmente as suas colónias 154 . É sob n
protecção d.!'. baldaquinos imaginários de majestade que os conquistadores e
os piratas dos príncipes colhem os seus saques - e o que deles remetem pa-
ra a terra-mãe é recuperado pelos tesoureiros reais como uma espécie de im-
posto selvagem. Nesses dias felizes da globalização, as riquezas p[ove_nie te,
do ultramar provam que o vasto mundo não tem outro destino senão pagar o
"'seu tributo às casas europeias . .
Isto é também verdade, de uma certa maneira, para o rei dos reis espiri-
tuais, o Papa , que, portador da coroa de três pisos, queria fazer do seu trono
uma hipermajestade para o conjunto do globo. Com efeito, são as suas tropas
de elite, os'"Jes~s, que lhe estão directamente devotados pelo quarto voto,
na sua qualidade de rei e senhor do catolicismo combatente, que , a partir de
meados do século XVI , cobrem o globo com uma rede de orações pelo Papa e
de atenções para com Roma - uma Internet da mais fervorosa obediência,
nascida de terras longínquas e fiéis ao centro. Foi a ela que as sociedades de
telec;~Ürucáç"õê's modernas a operar no mundo inteiro foram buscar o seu
modelo . A telecomunicação é prefigurada na tele-oração pelo Papa. Os Jesuí-
tas eram ·o news group protótipo que se estendia pela sµa rede específica de
organização. As outras ordens missionárias, os Franciscanos, os Dominica-
nos , os Caetanos, os Agostinianos, os Concepcionistas, as Clarissas da pri-
meira e da quinta regras, os Hieronimitas , os Canossianos , as Carmelitas de
pés descalços e muitas outras, estavam implicadas , pela sua relação com Ro-
ma, no projecto que consistia em trabalhar pelo triunfo da conquista espiri-
tual. A sua ambição consistia em propagar por todos os continentes uma com-
monwealth colocada sob a tutela do Papa. Só em finais do século xx veio ao
Papa a ideia mass-mediaticamente correcta de viajar como embaixador do seu
próprio Estado pelas províncias do seu reino moral - o que significa a tran-
sição do catolicismo para a carismocracia elementar sem véus: o caminho ro-
mano para a modernidade .
O facto, porém, de , mesmo antes da era da presença real do Papa, a tele-
comunicação católica não ter podido passar sem os mecanismos da magia e
el a telepatia corresponde às leis da comunicação metafísica nos grandes cor-
pos soc iais. O cadáver do primeiro grande missionário jesuíta na Á ia, Fran-

1~ ,i /\ 1/!un s príncipes de Ga les visitara m no entanto a Índi a - rn as era sempre. no que sabemos .
111 11, ·., dl' 11 ·cd ·r · 111 110 trono brit fl ni co .
1'11 1,íc io de Cristal 143

11ltas externas , contra o perigo de mergulharem no branco desprovido de sen-


1ido e de desaparecerem nas depressões susceptíveis de serem desencadeadas
pdo choque com a novidade, a alteridade, a estraneidade, a desolação inassi-
111il,1veis .
As ciências empíricas com os seus _géneros filiais, o relato de viagem, a
11topia ~ o..romance ex.ótico, tendem a à nsf2rrnar todos os objectos externos
··/ J ·m observaçõe e todas as observações em comunicações que entram no
grande livro da teoria neo-europeia - os «observadores» só existem como
sujeitos que hão-de escrever o que viram o~-·encontraram. A hipótese cons-
26 A Biblioteca da Globalização Jru bvista segundo a qual a ob§_er_~a ão é uma descr~ção de estados de facto ba-
seada numa distinção directriz aplica-se já aos primeiros viajantes a longa dis-
1ância, na medida em que pu2eram em prática no mundo inteiro a distinção
~as que a_con~ecia quando ~s participantes nas operações-comando da pri- ' ntre levar e não levar consigo. Pensamos sobretudo na idade de ouro dos
m,e'.ra ~Jobahzaçao terrestre nao eram nem capitães fiéis ao rei , nem missio- escritores-exploradores , de onde nomes como Louis Antoine de Bougainvil-
nan~s .ª~ ordens do Papa ou de Cristo? Não tinham de se sentir excluídos das lc, Jacques-Étienne-Victor Arago, Reinhold e Georg Forster, Johann Gottfried
poss1b1_1Idades sup~rior~s de salvação, nem das transfigurações da expansão eume , Charles Darwin, Alexander von Humboldt, Henry Morton Stanley
eur~peia._Para ~s pioneiros da exploração da Terra, virados para esse mundo, acederam por vezes ao nível da literatura mundial, pelo menos pela amplidão
havia meios e via~ que lhes permitiam abrigar-se sob um dos baldaquinos se- da sua .audiência. É típico do habitus da época moderna, composto pela c,ap:. ,
cu_Jares d~ ?lobal_1zação, e até um espírito livre de todo e qualquer compro- tação/recenseamentõ', pelo coptributo , pela colaboração, pela marcha em fren-
misso religioso ~rnha ~oas perspectivas de se sair bem no projecto «último te e pela sistema~izaÇ.ão: as i~vestigações essenciais desenrolam-se sob a for-
globo»_. Quem nao t~azta novas terras a um rei europeu ou novos fiéis à Igre- ma de comp,etição. Às corridas aos objectivos que há que atingir corresponde
Ja, podia ?1esmo assim entrar nos portos europeus como conquistador e por- na ocorrência uma competição l}O_CampsLCfa hQ!U2_~~en_tífjca - O que vale em
tado: ?e nquezas'. desde que soubesse tornar-se útil como agente das ciências especial para a investigação polar fundamentalmente histerizada, cujos prota-
empmcas europ~tas . Essas disciplinas abertas ao mundo, que se agrupam em gonistas, na sua maioria , se apresentavam também como os rapsodos da sua
torno da geografia e da antropologia, constituem-se, pateticamente como no- própria causa e como publicistas do seu sofrimento de investigadores . Com
vas ciênci~s com o início 'éla era da expansão; servem para uma a~umulação este nexo estabelecido entre a investigação e a comédia, a nível popular co-
d~ .oMe~os que trazem inscritos na fronte a sua modernid~i- meçou a achar-se que todo o tipo de expedição científica passaria a ser as-
ca, a sua ~~rtença à era da,. .c onquista europeia do mundo. sunto dos media - pode ilustrar-se isso na nossa época tomando o exemplo
_O qué caracteriza esses conhecimentos é o facto de se coleccionarem à ma- facilmente histerizável da investigação genética, da investigação sobre o cé-
~eira de um segundo capital - mas um capital que deveria pertencer ao con- rebro e da investigação sobre o cancro. Deveria poder dizer-se dos tempos he-
Junto de ~~a humanidade instruída e que não deveria ser subtraído ao uso pú- róicos da globalização que sem o seu reflexo num medium transfigurante, os
blic~ e c1v1l por teóricos dos arcanos, açambarcadores do saber, mágicos seus heróis nunca poderiam ter tido ideias suficientemente claras ou suficien-
locais , nem sobretudo pelos príncipes e seus portadores de segredos . Sobre 0 temente turvas sobre os seus objectivos.
pano de fundo das novas ciências humanas da humanidade exterior da natu- Contudo, num primeiro tempo, não é tanto sob o olhar dos mass media que
rez~ utilizável ~ da terra habitada, um europeu alfabetizado, mesm~ perdido partem as expedições. Todos os participantes nessas saídas para o desconhe-
em ilhas e contrnentes longínquos , nunca tinha de dar a impressão de estar to- cido , desde que dominem a escrita, fitam antes um hipermedium imaginário 1
talmente cortado do fluxo dos sistemas de significação do seu local de ori- no qual só se poderia consignar e relatar a história dos êxitos solitários obti-
gem. ~od~ a vida na frente externa trazia potencialmente consigo uma aura de dos no exterior: o baldaquino sob o qual se congi:egam todas as solidões dos
expen enc1,a acumulada que se podia projectar em documentações de escrito- investigadores não poderia ser senão um livro fantásticô integral - um livro r •
res. Já _atras s~ falou do modo como numerosos marinheiros e pesquisadores dos recordes cognitivos no qual não se esqueceria ninguém que se tivesse des-
f~ram 1mrntalizados nos mapas terrestres e marítimos. A glória cartográfica tacado como relator de experiência e contribuinte para o grande texto da ex -
1~ao é ~ ais do _que um c_aso <:spe_~ífi~o do qu,e_se poderia chamar a função ge- pl oração cio mundo. Era indi spensável que esse hiperlivro imaginário do saber
1ui cl b,tlcl aqu in ~ associada as c1encias emp1ncas europeias durante O proces- empíri co europeu assumisse mais cedo ou mais tarde a forma de uma publi -
so d · rlobul1 zaçao. Ela protege , efectiva e potencialment~, os act res nas li - ação r ·ai. A característi ca do génio prático dos representantes franceses dus
144
Peter Sloterdijk

Luzes foi a de, já a partir de meados do século xvm , praticamente no final da


primeira parte da globalização terrestre, terem reunido as energias necessárias
para pôr em prática o projecto de uma enciclopédia do saber precioso. Esta
conferiu àquilo que até então mais não era do que um baldaquino teórico e in-
formal a silhueta edificante do círculo que dispõe de todo o saber e o abrang
- um círculo que além disso se podia fazer frutificar, transformando-o numa
fileira na biblioteca que agrupava dezassete volumes de textos e onze volume
de ilustrações. Para ele se carreavam as menções do saber provenientes das
fontes mais afastadas , a fim de as fazer aceder à sua forma de valor cognitivo .
No hiperlivro das ciências, o negro das letras de tipografia celebra também a 27 Os Tradutores
vitória sobre o branco.
Frederico II da Prússia, nas suas relações pessoais com o circum-navega-
dor do globo e naturalista Reinhold Forster, foi, apesar de tudo, obrigado a Enquanto a participação nas ciências empmcas europeias podia desen-
compreender que o facto de se coleccionar e relatar experiências pode tam- volver-se sob a protecção do superbaldaquino de um fantasma de livro enci-
bém ter uma face subversiva ou pelo menos, eventualmente, uma face des- clopédico, a missão dos linguistas e dos etnólogos era a de estudar a fundo o
provida de tacto . Quando da sua audiência inaugural, após ter sido nomeado tecido linguístico através de urna profusão de encontros individuais com as
para uma cadeira de Ciências da Natureza em Halle, Forster teria dito a Fre- línouas estranoeiras isoladas . As línguas europeias dos descobridores viram-
b b
derico, em termos mais livres do que o costume na corte , que, no decorrer da -se ante um multiverso semiótico de uma diversidade monstruosa, composto
sua vida, vira cinco reis diferentes, três selvagens, dois domésticos, «mas ne- por, pelo menos, cinco mil línguas autênticas (segundo o recenseamento da
nhum ainda semelhante a Vossa Majestade». O grande Frederico achou que UNESCO: seis mil é setecentas) e por um número praticamente incalculável de
se tratava das palavras de um «sujeito profundamente grosseiro». Mas como dialectos e subdialectos , sempre associados a mitologias , «religiões», ritualis-
se haveria de dizer isso de outra maneira ao príncipe? Se é possível por uma mos, artes e gestos específicos . Perante tal pluralidade, que desafia toda e
V.§...Z lª nçar sobre os reis do _velho mundo um olhar empírico , tal como sobre
qualquer visão global , o sonho de uma hiperlíngua que integrasse tudo terá
os chefes exóticos (e uma vez que se pode encarar as residências europeias forçosamente de se desln'tegrar por si próprio. Para os descobridores, tal como
como simples sedes de majestade) , já não se pode dissimular mais ao_s gran- para os que foram descobertos, só havia duas estratégias que lhes permitiam
des senhores e aos seus séquitos que têm os dias contados 155. •
orientar-se nessa situação neobabilónica: por um lado, a imposição pela força
das línguas dos senhores coloniais como línguas de uso universal - o q_ue
conseguiram mais ou menos fazer , com mais ou menos êxito, no caso do In-
glês, do espanhofcd' d~' l~ancês em diferentes regiões do mundo ; por outro la-
do, a penetração das diferentes línguas por meio dos discursos traduzidos dos
novos senhores. Havia que seguir os dois caminhos simultaneamente e , tanto
num como no outro , a"aprendizagerrr das línguas - e, simultaneamente com
ela , t( tradução · - veio a revelar-se como a clíave dos processos esfero-
Jpoéticos °'i-eg1onais: Quer nos inclinemos para as teorias pessimistas ou as teo-
rias optimfatas da tradução , o bilinguismo ou o multilinguismo exerceram uma
das principais funções de baldaquino durante a globalização terrestre . No en-
canto, um facto é certo: a língua europeia dos senhores é que recobriu as lín-
guas locais, não foram as linguas locais que absorveram as dos colonizado-
res 156 . O historiador e homem político Winston Churchill deu mostras de uma

156 Sobre o mundo das línguas crioulas, Abenteuer Sprache. Cf. Joche n Stõ rig, Ei11 S1rei)z11/i
durei, die Sprache der Erde, Munique, 1992 , pp . 345 sq .; sobre o número de línguas. c f. Dav id
155 rystal. T11e Cambridge E11cyclopedia of rhe English Language , (2 ." edi ção). Carnbrid '· ·
cr. Rcinho lcl Forstc r, E111deckw1gsreise 11ach Tahiti. op . c it. , p. 4 19. Nova Iorque, 2003.
11
147
14(> Peter Sloterd , 1- 1'11 1:íc io de Cristal

· - d Roma e de Je-
intui ção avisada escrevendo a história do poder mundial britânico não apenu t ·nas pode ainda penetrar nos locais em que as em1ssoes e
como a história de um império, mas também como a de um espaço linguíst 111salém não são legíveis . , T ca das imagens arrebatou há
·e·a como for, Hollywood , a metropo1e pac1 i
co: History of the English-Speaking Peoples. Previa manifestamente que o qu1•
havia de sobreviver à Commonwealth seria sobretudo o commonspeak. Estt•
arranjo não só satisfazia a necessidade que tinham os Ingleses de apresentar 11
. -
111 .' ioJséculo a palma às centrais mediterrânicas de em1ssao de_
. , . R Jerusalém Desde logo , as suas mensagens nao
m~:~~ri~e;
, . d

1111slenos, orna e · _ d · do tacanhos para os produ-


ruptura entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos da América como uma sim• \s pequenas cul~uras , ~ujo~ mer~al~os :ªºQuea:~:1:e conseguem distribuir em
pies questão de pronúncia, mas mantinha também em aberto a possibilidade ll >s do novo e d1stract1vo impena ism . . .
de entrada de novos grupos políticos e círculos culturais no clube dos pov s li;as dezenas de versões dobradas, garantem já lucros substanciais .
anglófonos. Pela bitola do critério linguístico, todos os cientistas , pilotos, di •
plomatas e homens de negócios estão efectivamente integrados como neopo·
vos artificiais na inelutável rede da linguagem anglófona; é a ela que se en -
contra associado o belo e novo mundo da música pop. Na anglofonia, tal como
na religião e no divertimento sem pretensão , o medium é verdadeiramente a
mensagem.
No que toca à mensagem cristã, esta não pôde esperar, no seu segundo ci-
clo de missão, que a procura dos Outros provenientes das cinco mil línguas
estrangeiras chegasse até ela. Teve de se traduzir a si própria nas línguas do
outros a fim de lhes explicar o seu alcance sagrado. O trabalho desenvolvido
pelos tradutores cristãos durante os últimos quinhentos anos para proclama-
rem a sua fé utilizando outras línguas é provavelmente, senão do ponto de vis-
ta qualitativo pelo menos do ponto de vista quantitativo , a prestação cultural
mais extraordinária da história da humanidade - pelo menos , a autotradu ão
do cristianismo moderno nas inúmeras culturas individuais constitui até hoje
o mais_poderoso testemunho das possi6i1idades e dificuldades de um ecúrrre-
rio transcultural e dotado ·de uma operacionalidade concreta. (Poderíamos,
quando muito , compará-la ao número de traduções de Romero na profusão de
idiomas europeus e extra-europeus.) No final do século xx, o Novo Testa-
mento existia em mais de mil e oitocentas traduções em línguas verdadeiras
- os conhecedores do atlas das línguas podem daí tirar a conclusão de que a
mensagem cristã conseguiu abrir acesso a, pelo menos, um terço das comuni-
dades linguísticas do planeta, sendo que para um número não desprezável de-
las constituiu o primeiro livro.
Este estado de coisas que, na imanência da história religiosa, poderíamos
descrever como o prolongamento do milagre do Pentecostes com os meios de
Gutenberg, revela também a particularidade inultrapassável que anda asso-
ciada até à mensagem mais inclusiva: a inacessibilidade daquilo a que se cha-
mam as pequenas línguas fixa uma fronteira à propagação universal efectiva
do Evangelho. Consequentemente, por mais invasivas que tenham sido, as
práticas de difusão apostólicas não conseguiram fazer aparecer no mundo in-
teiro o sonho da edificação de um império das mensagens que penetrasse até
ao nível capilar com base nos emissores e content-providers mediterrânicos.
ó poderíamos refutar esta constatação com uma condição: haveria que con-
sidera r a marcha triunfal das ciências da natureza através da nações moder-
nus ·om um Axito milenar do helenismo na sua fase moderna - o emi ssor
1 1

Segunda Parte
O Grande Interior
1(
-, 1 /' -+-----------
1
t
1
V'

«Mas, ~ai como no globo terrestre todos os pontos estão 28 Mundo Sincrónico
ao de cima, também a forma de toda a vida é
O PRESENTE.»
Modern Times: passado meio milénio sobre as quatro viagens de Colom-
Arthur Schopenhauer bo, a Terra circum-navegada, descoberta, representada, ocupada e utilizada
apresenta-se como um corpo anichado num denso tecido de movimentos de
tráfico e de rotinas telecomunicativas. Os invólucros virtuais substituíram o
etéreo céu imaginário; os sistemas radioelectrónicos permitem alijar efectiva-
mente as distâncias do pensamento , nos centros de poder e de consumo. Os
global players vivem num mundo sem distâncias . Do ponto de vista aeronáu-
tico, a Terra reduz-se quando muito a cinquenta horas de voo num só jacto.
Nos voos orbitais dos satélites e da estação Mire, mais recentemente, nas ro-
tações em torno do globo da ISS , a estação espacial internacional, tornaram-
-se habituais unidades de tempo de cerca de noventa minutos. Para as mensa-
gens rádio e luminosas , a Terra reduziu-se praticamente a um ponto imóvel -
está em rotação, como globo temporalmente compacto, num feltro electróni-
co que a envolve como uma segunda atmosfera.
A globalização terrestre progrediu assim a tal ponto que pareceria esquisi-
to tornar a exigir que se justificasse. Do mesmo modo que, até ao século XIX,
a ocupação factual de um país se tornara o último argumento dos Estados-
-nação europeus na concretização das pretensões coloniais, a consumação
efectiva da globalização terrestre tornou-se o argumento autojustificante para
o processo enquanto tal. Após uma fase inicial de vários séculos, o sistema
mu_lldiaLes.tabili:@::.~ _s;aday~z mais em si próprio como um complexo de mo-
vim~ntos de rotaçãq_ e º-e o~ijaçfo ql!._e se mantêm pela sya própriª dinâmica.
No reino dos capitais em circulação, o momentum ultrapassou os motivos .
A consumação substituiu a legitimação , os factos tornaram-se forças funda-
mentais. Quem diz «globalização», poderia também dizer «destino».
Aquilo que o século xv1 pôs em marcha , o século xx aperfeiçoou-o: logo
que o dinheiro parava numa estação da superfície terrestre , esta não podia es-
capar ao destino de se tornar um foco - e um foco não é um ponto cego num
campo, pelo contrário, é um lugar de onde se vê que se é visto. A «revolução»
da fluidificação continua a progredir, as vagas sobem. Boje.,_como mostrá-
mos , todas as cidades se tornaram cidades portuárias , p~ uando elas não
J. -- --- -.
rora m ao mar, o mar fo i a elas. Com efeito, a informação , essa super-merca-
1 1
[53
152 P e ter Slotenl 1~ l'11 l1k io d e Cristá1 1

doria , não percorre high- ways para chegar aos cais - como sugeria uma m , lll' ·nlo moral que agora exige ~-sforços cada vez mais intensos apesar ~o esg~- J /,
táfora errada dos primeiros tempos do discurso sobre a Internet - , antes foi ln mcnto nervoso . Não será de espa~tar que _com os _progres~ a.ret1culaçao ~ -~"--~-
rpa correntes no gue Se _J2_QQ~Ja @Signar, com mais fundamento, como O do mundo se desenvolvam os sintomas da ~~antro ta. Se ~ , ~do do,,2utr.o o- ,;,
oceanos de d_ados. Por intermédio dos antigos e novos media, a «globalizu d . constituir uma~ ~ n~!~r.?.l~ _uma : ~~~nJlallÇ-ª...!!1-~~-ni:Ta) podemos pre- ·'"
ção» informa permanentemente que acontece e prossegue , desprezando todo ver que as vizinhanças à distância da maior parte dos seres umanos com a /
o tipo de alternativas. Daí a sua singular dependência relativamente à filoso aior parte dos seres humanos, instauradas pela força, provoca~ão uma e i?e-
111
fia e a outras expressões da teoria reflexiv a. Já só conversa consigo própriu , 11,ia de misantrop~a se::m precedentes. Tal só ~e_,~pJanta:á qu~~··!.1:er esquecido
em conversas em que se celebra a si própria como tema dominante . A análi st• que, originalmente,fÕs termos alemães para <,t izinho>> e <~1mrrugo» ~ram_ pra-
da situação_estratégica - t ~Õu o lugar-da ·crítÍcâ. o curso do mundo pocl ·, 1li ·a mente sinónimos '. Neste conte_x~o, conceitos ~orno ~ ~ltora»_e ~ ~1dadao do C<'
mu ndo» assumem um novo sigmf1cado: passarao a desionar_Q honzonte das
quando muito , apresentar-se como a norma mais global de um act of God que
é consumado por intermédio de actos humanos. Nenhuma vontade de absten ,ncdidas destinadas a atenuar a misantropia . _
ção , por mais universal que seja, poderá deter a sua progressão. Nenhuma ma• O que, até recente datã, caracterizava «todos -~s humanos» sem excepça~ e
n~i_ra te_ó_!:!c_a_e I?!~tica de enfrent~r o te111po presente pode já remontar para lá «por natureza», era a sua tendência comum para 1,gn?rarem a espa~t~sa m~_10-
-~~ta realidade: demos a volta à Terra e os povos ou as civilizações que nelíl ri a dos seres humanos situados fora do seu propno contentor _etlllco ._~
vivem encontram-se numa obrigação de comunicação . Só pelo facto de exis- ·onstitl!i_ªo int~rigf!_orante da «humanidade» tem de ser en:e~d1da d~ m1~1 ..,-·
tir, o movimento mundial daqueles a quem se chama «adversários da globali- como uma sitlll)~ão..ino.c,.eµte. Enquanto memb ros de uma espec1e que ~1ve dis-
zação» dá-nos a pr~va de que é impossív_el contornar o _!]_OVO stat1:1:.guo. Ao persa _ e O seu~st11d9_factual d_e.. _!:l iá~J?,Ora iJ!i§uperável, mes~o apos a «re-
chamarem a atençao para o seuct1sfunc1onamento, os críticos do sistema volução» do tráfico mundial - , os seres humanos, nos seus elas, na~ suas et- .
mundial estão a atestar o seu funcionamento . Os adversários da rotação ter- nias , nas suas cidades e bairros, nos seus clubes e nos seus grupos de '.nteresse, '"'
restre também não podem escapar ao destino que consiste em participar na ro- desviam-se com tranquila evidência dos que pertencem a outras u_llldade_s de
taç~o quotidiana do solo sob os seus pés . identidade ou a outros meios mi stos - nem sequer o clube dos umversaltstas ,
E por esse motivo que a globalização terrestre, comparável a um axioma, constitui excepção a esta regra. Para falar e]E t~rmos antropológicos,_ podemos
R'
dizer que O Homo sapiens tem as costas mais largas de todas as cnaturas -
\ ·· é O primeiro e único J2!eSs~uposto sobre que se-deve· fundar uma teoria da--;ra
éoniempÕrânea. Amda qÜe~ até um período recente , tenham existido nas suas precisa delas para as voltar aos seus contemporâneos.? estar-no-m~ndo s~m-
en1osf~ como em astros separados, abrigados do exterior nas suas células pr~ assumiu traços de um desmedidamente gr~nde _ab~ 9~!.~_ar:!nc.9ns1d~-
li nguísticas, imunizados pelo desconhecimento dos outros e encantados pela radamente-tudo-o-q_ue-não-pode- ser-integrad? -no-1medtato .1~e-todos ~s ~fe1- / ,~
si.ta própria miséria e pela sua própria glória - q_s p_2v~ _gispersos serão fü - tos m"entãis da «globalização», o facto dominante é q~e ~ ~-11?,.~~ 1 :! l do tr' V'
ados , pela «revolução» da modernidade que abolê a distância e dada a fa- ponto de vista a ntropÓló gico , isto- e, co~ ptfü~ _ente;nente com-o outro ,
culdade de serem afectados pelos Outros móveis , ~Q~1m:em ~ viver num-ÚI}!;... afastado com O concorrente invisível, o estranho ao co1_1tentor, foi elevado ao
_;_ _é-...,
ÇQ_e !!!_(!SIJJ,O pl~eta , «o astro dos que não estão dissimulados». · estatu o de morma; ., . .
Como a ~lobalização terrestre é um simples facto ocoITido tardi amente e - ~undo\'olóbalizado é o mundo si'ncrónico: a sua forma é a S_!EC~oma PE_O- 1
0 0 - ' · 157 E
' d d
em circunstâncias singulares, n_ão podemos interpretá-la corno manifestação duzida· a sua convergência encontra:.s~_nas a.s_tlli!l!&l.ade.s_ - ver a e que ,
::_:::.::::.:=- / ,,
d~~a ~ erdade eterna ou de uma necessi~ade i~elutável. Seria exagero ver
·-;---
i. -~---
nela a ex~ ssªo -~.?__ptjncí i.o bjol1gico segundo o qual tod2s os hÜmaoosfor- 157 Cf. Peter Sloterdijk, «Tatzeit des Ungehe uren . Zur onto logischen MiBdeutung des KUnstli-
ma~ urna espécie única nesta Terra . Ela não testemunha ta~bé;:;-·a favo r da · do mesmo Nicht gerecht. Versuche 11ach Heidegger, Frankfurt , 200 1. Neste contex-
c h en», 111 , , . , d 1492
ideia metafísica segundo a qual o género humano comunga de um só e único to , a proposta atrás referida de Martin Albrow é interessante: designar o peno o entre e
tesouro de _v~rda~es que não podem ser revistas - mesmo que alguns o jul- 1945 (ou até à conferência c limática do Rio de Jane iro) como s1nón11110 de «modernidade » ou
guem ou fmJam Julgar. E, sobretudo, não reflecte uma lei moral segundo a de «era da globali zação» , distinguindo-a da Global Age, forma transn~c 1o nal e me rgente do mun-_
1
cio, para a qual a fase beróica da globali zação teria criado _as C_?nd1çoes . Assim , quem enten~e
qual todos os humanos deveriam , na me did~ s síve ( ter um pensamento
globali zado como resultado e facto consumado da globaltzaçao apercebe-se.da _e strutura «pos·
solícito_e compassivo para com todos os seus congéneres. A realidade da glo-

-
0
-hi s«>rica» dessa «era o lobal» em que entrámos - tal 1mpltca uma transfe renc1a do c~ntro_de
balizaçao leva aq_~bsurdo o ressu osto i']_gén..!!Q..i~_!:!!!do_o q:ual ex iste urna g ~~ -pa;sag;1; da hi stóri a às infotJW!_Ções. e da orientação sobr~ passados regio nai s à
abertura potencialk tod_o_s.__a todos . Pelo contrário, a inev itável finitude do in - orientação rumo a futuros supra-regionais. Só nesta acepção a coquete d1v1sa de Albro_w, «Es:
!cresse que o ser humano tem pelo- ser humano surge . cada vez mais mani fes- qucçnm a moclc rnicladc !» se torna , já não digo ace itáve l, mas, pelo menos, compree ns1ve l. C f.
1; 111 l'll ll' ~ ITI d icl a c m que o mundo- se vai reticulando - só se lransform a O Mnrtin /\ lbrow. /\/)schied 110111 Natio11alswar , op . c,t.
154
Peter Slot ,·d 1 'I'
1
• 1
também o futuro , os países onde é noite bem c / ,.- 1
estarão na parte não iluminada da Ti . ,
ter oitl _pas,Spu a estar SUJ.eito paraerrtad, mas ~
orno as pessoas que lá viv11111 ,
o enquanto tal deixou d11
.- '
· --- · . o o o sempre a um · ' .•
v~ qia. No espaço global e?!õrado e r---~- - - _pe_ne_trante impel'IIII
mortos. Paralelamente os mo!o d epresentado, nao existem já tempo
r
início da política interi~r impelems , ed p~ens~mento do mercado mundial e do
, a e1ens1va a hab 't 1 · ~ · \
longmquos e os estranoeiros q
· . b
.
ue nunca mais encontrar
i ua ignorancia contrn "
·
\\
o~ p~rt1c1pantes numa arena de hipóteses . d emos, e c..o.mpDm "'
c~ónicas de contacto. O resultado da oJo;e~1s ~ enco~tros e de ne~ sidadt•
' ~ida9e num poderoso conceito da es écie: izaç_ao , a si!ltese 11gica da hun111
tráfico compacto é um produto d pb ~ sua ~ongre?ação num mun o d1 Segundo Ecúmeno
cri,adoras de contrários
.
e a stracç.oes ymcul,at1vas e de ex ediç ,
r
/Í ,,, /

O que atrás se disse sobre O ri d d . ' . , • ' · · t :4 ln I


co mundial é aqui essenc1·a1· o ph ma ~ a viagem de _ida na história do tráf' A «~manj.çlade» f2ãQ se forma de modo nenhum por uma acção da libido
- « umano» e a «huma d d , . visando-constituir uma associação total e obter os media necessários para tal
<? illO_mento em gue nor mei,o das via . en --.- ~ ª--~. so. existem apó,

·, i ,

- -
c~ado
-.......:~..- - - - -• t<

e comnlicado desd
..,
ropeus às~@§. doLOutros durante sé;ulo: ele ida_ unilaterais fe1ta!_pelos ~11
piorado como plen1·tude- -d-os p
h
- -d- 'o honzonte antro_Qológico foi ex -
ovos e as cult --=-- --
lim. Num primeiro tempo , a congregação antropológica só apareceu por for-
~·a dos laços constringentes do polonialismo e , após a sua dissolução, pelas
n.:ticulaçõe~ or.çadas que se in:ipyseram ~tr_ê.vés do tráfico físic;o das m_erca-
a QQuco or-
,· uras
t 'f- um movimento balan
•,

. _,,.._ _ dorias, dos sistemas de crédito, dos investimentos, do turisi;no, da exportaç.ã o


~ o. Esse tráfico mistura-se co~ e .J!..m ra ico cresce.!!_te no_ sentido
/ pró rios - e o resultado dessa m. t g shtos do regres~2 dos ê uro eus a si ·ultural , da pe1 muta científica, do int~;·vencionismo nÕ domínio da polícia
is ura c ama sei- mu t lt 1··· , mundial e da normativa expansão ecológica. As eE g~ncia~ o@]~nêl9.-ec~-
modus operandi é a hibridaça-o d d . , -. ' _,_ icu ura ismo, o seu

II descobrindo a si própria e se ~ ~ ;a '(;en --

. ---
nçao, ou mesmo cuJ·à cara'cte
--
os mo os s1mboltcosn11 A•
como para~~ujeito vago e .fragmentado de : do :~n~a_ment? contemporaneq
to 159, a «humanidade» aparece C .
t· t:
d'.....,,__

mª ~!Stoua_uruversaLdoíortui-
orno uma nersonagem t d , .
d
;, · rt me I a que s: al

.
r~ ar . ataria_cuJa apa-
meno actual não se revelam tanto no facto de os seres humanos terem sem-
pre-·-e admitir que os de fora também são seus semelhantes (embora continue
a ser considerável o número dos que o negam abertamente ou às ocultas) ,
mas no facto dedi.refl}_de resis~~ à pressão crescente da cooperação, pressão
-- - r, con mua totalment · · ,· --- · -:::--:. llue , ante- os riscos corridos em comum e as ameaças vindas do exterior da
fortuitas da sua descol:lerta i · 1 , e SUJelta as Circunstâncias
- - - ---- - . • év\,11,,,, / , .• ;\!· :, nação , ~s agrupa numa comuna autoconfinada. Os resultados da análise dos
Estados-nação - que conclui que só uma comunicação auto-stressante per-
1 t/ 'º 11,,Ji manente lhes conserva uma forma - confirmam-se cada vez mais no que diz
J1
ti- ('
1 Lv l respeito à «comunidade dos Estados» planetários ainda insuficientemente
\, agregada: o stress autógeno é a base de todos os mecanismos de consenso e
' de cooperaçãb a grande e; cala 160 . A política internacional transforma-se sig-
I
.....,,., L nificativamente ante a pressão créscente para provocar o encontro entre os
/ 1
·'
actores do mundo: parece sair, diante dos nossos olhos , da era das grandes ac-
' ' ' ções para entrar na época dos grandes temas - isto é, dos .:iscos generaliza- (, l,1,
dos que reclamam instituições semânticas e , consequentemente, universais , r

de tiponõvõ. Estes têm de ser elaborados em pormenor através de COJ]Versa- .. , •


ções permanentes . A política temática e o circo das conferências que lhe cor-
responde só progridem na medida em que são produto do stress global autó- ' /

1'iX 1-' . . . . . • (~ l
---
geno. Os seus portadores agem em prol de uma_h.umanidade que cada vez
..--
...

160 Cf. Peter Sloterdijk , Der starke Grund, zusammen zu sein. Erinnerungen an die Erfindung
1, •1 .' .' "'~01s Laplan11nc e Al ex is Nouss, Métissa •e 1· D ' . .· , .
<,,llc, ( clcuzc e Féli x Gu·H1 · .·1 7·
' ,u
B . . A1u111boldo a Zomb, , Paris . 2001
, a11se11d Plateaus Be1·I · ·
ÔV de.,· Volkes , Frankfurt, 1998. A tentativa que consideramos mais estimulante de definir uma teo-
111 11
" ' " " ' , 11 111s 1111 111 liis16ri 11 da cn nlingê ncia ...» · ' im , 1992 , p. 11 : «Há uma hi slória ri a geral da cultura a partir da análi se dos mecanismos de stress e de pós-stress foi apresentada
por Hcincr Mlihlmann , Die Natur der Kulturen, op. cit.
/
156
( l1111ill' io de Cristal

l
n'\
."
:",,i

.. ~ •

~ .ais se constitui como_,2-l !:ite.gral de comunas de stress que se dirigem un111 .. . Sem universalidade, não hlf.Y~ria b.l!m.ao.i.dade, salvo como agregado
para as outras.
dos rnemb~ s de uma espécie biológica; não haveria história da humanida-
Este ij>leno vj rtual da humanidadeJl!lrdado no tráfico em rede real e a11l d ·. tal como não existe uma história da gatidade ou da cavalidade. ~ara que
ma_~o por t~rp~s , tal como se desen o veu a partir da globalização terrest11• 1 humanidade tenha história, os seus membros têm de ~~Lc~.eazes de res-
da ep_oca moderna por meio de impérios coloniais e da sua abolição pel 1 ponder nas suas almas ao estímulo da presença divina. Se tal é a condição,
~elaçoes ~o mercado mundial (e pelas alianças neocoloniais latentes), o ti ·11tão, a humanidade é constit1,1.(da.pelo Deus a que o homem responde . As-
(': a pnme1ra fo1;ma da comuna antropológica a ter sido concebida na hist sim sedescobre que u~a acumulação fortu·ta de sociedades do mesm9 tipo
ria humana das autodescobertas e das auto-organizações. Já os euro ·eu hiolóoico constitui uma humanidade "'ânica e isso pela sua participação
PJ,"t colombianos tinha uma 1deia d.~ ú;;dade da 'espécie ;''l!)Ue se expúmlu na m:sma corrente de presença divina.» I62 J. ,, 1_. ~u- • r. ,: , t .. )
no conceit~ grego d ~ ikouménê~@u do ~rrn'U1fc1ct fiãbitâJ)ô»~ Que essas col6 ,' ,
r ~. 1 1

nias da «cnatura humaná>>" ténfiam, no essencial , ficado limitadas à culturu Deste ponto de vista , ..TIª.º devem9s procurar o fundo homogéneo de uma
mediterrânica romana e helenística e na periferia só tenham iluminado ,d1umanidade» assim projectada nem na circulação mediterrânica dJlS merca-
~ t~inda~e terrânea e ~tolomaica dos continentes , (o resto da) Europa _ 11 dorias nem na síntese imperialista dos povos consumada sob o domínio de
Asia (ocidental) - a Africa (do Norte), em nada afecta a generosidade des- Roma'. A crer nas reconstituições mais exigentes da forma como se viam a si
te primeiro pensamento da espécie. O .cerne__do ..--- .......
conceito
-
antioo
~ , ,b
d ecúmc-
.._ próprias, as gentes da A...~.ü g11i<;l.ade constituem antes uma <~9!11unid_a~e pro-
no não é_a .i.~ de _qye_Qi,..h.omens_devem forçosamente estar em casa em bl emática»; estão ilum"'inadas pela partici_p_ação ~m evidências da mesma na-
qualq_u er lado. Não lembrava também aos antigos ensinar que os mortais , t11reza e solidarizam-se pela estrutura enigmática da existência, igual para to-
n~ seio de todos os povos, são animais económicos (de oi eill,.bab~ ou di).5. O que fazia a dignidade do género humano era o facto de el,e _englobar r
cnaturas lacunares dependentes de uma casa que não podem renunciar a um 1
11 s criaturas que foram subjugadas pelo mesmo «fundo» imenso. E certo que
tecto por cima da sua cabeça ou ao necessário para assegurar O seu abaste- os Romanos podiam vangloriar-se de, sozinhos, terem inventado as máqui-
cimento de b~se. P~ra o ecumenismo ..a~tigo, ~s ho.men~ ,;ião aparecem co- nas de guerra e os meios de transporte que puseram a seus pés o mundo ha-
mo os seres vivos. que têm direitos por todos tere.m..a. necessidade física de bitado em torno do Mediterrâneo . Mas, uma vez escalonados por todo o la-
ais ou menos a rnesmª-
cóisãê- njs-so se reconhecerem uns aos outros. O tlo , os conquistadores foram, por seu turno, obrigados a deixar-se conquistar
, omens, ~o pensamento dos primeiros filósofos, estão antes ontologica- pelo espírito de dois povos conquistados. Se, antes do mais, é certo que, pa-
1me~te umdos enq_uanto membros de uma espécie que, para Já do.s simbo- ra citar Horácio, «a Grécia conquistada co11quistou o feroz vencedor», tal
ismos locais,iparticipa no mesmo mistério do mundo. Fitam todos ; ·mes- deveu-se ao facto de a teologiã filosófica grega ter descoberto as estruturas
1:1ª __ l~z e_ a to~os subjuga a mesma pergunta. Esta conc~pção de uma (} de uma voz da Razão universalmente perceptível - mais valeria falar de
part1c!paçao universal num sobremotivo manifesto e velado da realidade uma técnica de evidência madura para a exportação, estrutura que , em po-
. . - --- ·- . • - - 1
const1tu1 o que, na esteira de Eric Voegelin, podemos chamar 0 prim'eiro tência, poderia virtualmente mostrar-se no pensamento puro a todos os ho-
ecúmeno do Ocidente (existia paralelamente, como se sabe, uma versão mens sem ter em conta as suas limitações étnicas. Voegelin celebrou essa ,/,[ .
'

«e_Rif~nia J:!.O~ti~_a» como ~ <:_ontributo da Grécia pa~a uma ?hifiJ°phia p~-


chinesa da ideia de uma totalidade civilizada que foi expressa pelo concei-
to de t'ien-hsia, «tudo sob o céu » - expressão que, o mais das vezes é tra- rennis dotada de _µma pertmenc1a no plano da cultura mundial . Se, mais
duzida pela simples palavra de «reino») 16 1• Eric Voegelin formulou ~onci- ,.
tarde ~Jer~; além, por seu turno, se impôs contra Roma sob o signo do cris-
samente a estrutura metafísica do primeiro pensamento da unidade na
Antiguidade ocidental:
tianismo, foi graças à sua m~nsagein 1ª
comunida~~ (l)tima e pública fo~ma-
da or Deus com as almas dos crentes na ekklesia: graças a essa teona, o
motivo de uma «teofania pneumátic , » floresceu de maneira geral, não se
«A humanidade ocidental não é uma sociedade que existe no mundo !imitando ao nível étnico.
mas um símbolo que remete para a consciência que ó ser humano tem de'. '--(
na sua existência terrestre , participar no mistério de uma realidade que
l 62 lbid, , p, 305, , A

ruma à sua transfiguração. A ~-umanidade universal é um índice escatoló- 163 Cf. Eric Voegelin , Order and History, Vol. 4, Plato wul Anstotle , Baton Rouge e Londres ,
g ico .
1957, reed. 1990. Se nos reportamos à obra monumental de Voegelin , tal deve-se ao facto de,
e mbo ra não te ndo produzido qualquer efeito, poder ser apercebido como um caso exemplar em
l tol ( ·1 1.. V 1· O I 11 que O catolicismo filo sófico se compreende a si próprio; ao lê-la, podemos també m d1 scerrnr
·.r,c o ·gL: 111 . rcer r111c ·li.1·rory , Vol. 4 , The Ecumenic Age, Columbia . 2000 , apftu -
1.. 1, l'I' ·' /! ) t/1) , exe mplarme nte que as cici'esas da philosophia perennis no século xx se t~ nsformam s1~ ma11 -
·onie n1 e · 111 necro log ias invó untárias cio que queriam defe nder.
158 Peter Sloterdll 159
l'11 1iíc io de Cristal

on_p acedeu pois ao estatuto de Cidade Eterna, não tanto em nome do 1 v11 de implantar na prática uma linguagem da unidade ou um último voc~-
seus deuses locais bem-sucedidos - Júpiter, Maite, Vénus, Virtus, Victo1•l11 IHil ário para a comuna antropológica 164 . Nessa situação, parece p~a~~ível bar-
- , mas porque foi capaz de se transformar numa segunda Jerusalém e, Ili 1,r O nív,el das exigências dirigidas ao conceito de um fundo umtar10 da es-
menor medida, numa segunda Atenas. A sua capacidade de- assimiÍação e dl'
1,u;ie. /f.- ,; '· , .-L 1 ,, . .
) <.e.., ~
O segundo ecúmeno pode no entanto apren d er com o pnme1ro que,, JlO des - _
1
tradução conferiu à cidade dos Césares e dos Papas a_po~ ibiligade d~ el •
v_ar ao estatu.to de c_apit.al do rimeiro ecúmeno. Muito antes das universiclu v ·nclar de um fundo de unidade do género humano, não cabe reportarmo-nos
des e das academias da época moderna, a Roma aeterna, esse centro de gru 1
«fundamêntos» biológicos - mesmo após ter aparecido recentemente uma
vidade metafísico da velha Europa, apresentava-se como filial terrestre d11 g ·nética politicamente correcta que atesta a perten_ç a dos sere_s h~mano~ a um
evidência: após Atenas e Jerusalém, queria ser a cidade em que o que é s 1 1'11ndo genético amplamente homogéneo. Esse racismo adam~t~ e um s'.st~m_a
mostra . Dos seus visitantes, exigia que a viagem a Roma se tornasse uma p · d ·meneia! dotado de uma estrutura análoga a todos os colect1v1smos b1olog1-
regrinação para a evidência, bem como para o mistério . ·os que O precederam, ainda que ·os argumentos genéticos sejam utilizados
11 iio já para a discriminação, mas para a unificação das raças . f' .
Posteriormente, a globalização terrestre também descentrou a cidade das Consequentemente, o segundo ecúmeno não poderá proclamali1 a «umdade
cidades e fez da centra e emissão metãfísfcã do globo terrestre da vêlha LI • do oénero humano5> - • para utilizar por um instante a 1·mguage do secu , Io /
ropa um foco entre vários focos. Não poderemos menosprezar o facto de os xv1~ - em nome de uma physis comum , mas apenas com base um ·si _ ~
cinquenta e seis signatários da Declara ão d11,Jndependência Americana d <;ão comu.m. A situação só pode_~~ d~ in!da pont~--.~~ vi~~~ e:9~gic0 e
~º-
4 de Julho de 1776, quase todos sem excepção franco-mações e físicos ama- { imunológico. Ela aponta sempre para o im erat1vo de c1v_11t~ar as culturas . Tal (,
dores, começarem por se referir à evidência, proclamando seguidamente os sionifica que nenhuma das formas de vjda transmitidas localmente pode fazer
dir~itQS.. . humanos - como se, intuitivamente, tivessem compreendido que ra~e à nova situação com a prata da casa. << unidade dos seres humanos»_,_na
não se poderiam desvincular: da Europa sem antes obterem uma transferência sua espécie dispersa , passa a assentar no facto de que todos, ~as sua~ re~1~es
da verdade para a outra margem do Atlântico: e histórias respectivas, se tornaram seres sincronizados, t , licados a d1s.tan-
i' ' \· ,, 1, l, ,/ t ./ .,-u cia humilhados dilacerados, vinculados e sobresolicitados - f<;).G.Q.§ j ~ ~ ".
1
«Co.nsjderamos estas verdades como evidentes por si mesmas: que todo ilu~ão vital, end~reços do capital, pontos no espaço homogéneo, aos q~ais se ·'' '
os ,tíômens 'foram criados iguais ...» (We hold these truths to be self-evident: reoressa e que a si próprios regressam - mais vist9s do_que vendo, _mais cap- - ,r ' ,
that ali men are created equal. ..) Lados do que captantes, mais atingidos do que atingintes. Nu.m ?1ov1mento de
regresso a si própria, cad~__pessoa tem ago~~ ~~~.!? u~a 1de1a c?erente da ~,
Para a comuna antropo ógica da e1;a global, não se p_r~~ , porém, um fundo vantagem ou do inconv~ nieE_te d~ ~9ue e.: A «hu~amdade» apo_s a glob~- ,
de uaj9~~~ !JleJaf ísica do tipo da «presença divina» atribuída por Voegelin a lizãçâo é cÜnstituída na s~a maioria p~r aqueles ~ue f1cara~,para tras, na pro- ' ,,
cada alma . Vai ser pois p eciso procurar outro medium de coexistência uni - pria pele, as vítimas do eu como desvantagem hgada ao local ' _ .
versal . \ - - - - - - .... - - - .. t-1, o proprit> curso do mundo, dispensando totalmente a _filosof1a, obn~ou ~s
"-... 1
1l
_ ( 1 t l' j
homens a sair repentinamente do seu ambiente. Na marcha da globahzaçao
O segundo ecúmeno dispersou pelos quatro pontos cardeais os elementos não têm apenas a sensação de estar fora do prazo, como assinalar~m'. deplo-
universais do primeiro. Qualificou de provinciais os conceitos ~~istãos e gre- rando-o, alguns teóricos da alienação , antes se tomaram a sua propna exte-
gos do mundo e as suas pretensas evidências lógicas - ainda que estas con- rioridade - criaturas que se olham a partir do exterior e não podem estar cer-
tinuem a asseverar a sua universalidade. Também o cristianismo foi obrigado tas de que haja alguém em casa quando querem regressar a ela. .
a tolerar que se demonstre o seu particularismo e só um longínquo futuro di- Se , no primeirn ecúmeno, o homem exemplar era o sage que meditava s~- /
rá se estará em condições de criar uma autoridade alargada que transcresça bre a sua relação precária com o absoluto, e o santo que, pela graça, podia 1,'
numa «ética mundial » - um projecto em que trabalham Hans Küng e outros sentir-se mais próximo de Deus do que o pecador vulgar, ~ ~~1;1 exemplar
com o dinamismo de Padres da Igreja retardatários . do segundo ecúmeno é a vedeta mundial que nunca compreendera po~que te-
O que , em contrapartida, é certo é que nenhuma das pretensas religiões ve mais êxito do que os o tros , e o pensador anónimo que se abre as du~s
mundiais pode qualificar-se para assumir o papel de Grande Veículo de todas e"x periências-chave da ép0ca: por um lado l1} «revoluções» sempre a eclocltr
as fra cções da humanidade. A prazo , cada uma delas terá dificuldade em con- ./ ( / f .. f 11 I i.

s ·rvar a sua quota no mercado mundial das necessidades metafísicas. E, so- 164 r. .lohann Fi gl, ie Mitt e der Religio11e11 . /dee und Praxis u11iversalreligioser Beweg1111/!, e11 .
hr ·1udo, para as re li giões sintéticas universai s, não exi ·te n nhuma pcrsp - 1 unm ladt . 1993.
16 1
160 Peter Sloterd llh 1' ,i (ic io de Cristal

como «presentificações do infindo no aqui e agora» 165 , por outro lado , à v ,, los. Favorece as assembleias dos grupos de interesses em to~no a mesas com
os mais diversos formatos, em salas de reunião de dimensoes escalonadas.
gonha que afecta hoje toda a criatura desperta mai s ainda do que o pecãdo orl
h tturamente , não apoiará já a ideia de uma supermonoesfera ou de um cen-
ginal; o facto de a pessoa não se insurgir suficientemente contra o omnipr ·
sente envilecimento do vivo. lrn de todos os centros.
,. ' No último globo, o local de implantação do segundo ecúmeno, não exi ti
1 rá esf~ra que englobe todas as esf~as - nem uma esfera produzida pela in
- formática, nem uma esfera do Estado mundial , nem , ainda menos , uma es~ •
ra religiosa (pois os que , como Habermas e Ratzinger, continuam a apostar no
poder unificador da religião precisariam de um ânimo mais resistente à clc-
cepção cio que o das pessoas de hoje em dia) . Na sua qualidade de su ersis-
tema de inclusão, a Internet , independentemente da "inültfpiicidade dos seus
) pôtênêTãis, produz tâmbérn-ela inév itãvelrriente uma süperexclus.ivi d; de com-
' _y1eme;ta1, 9 globo çi~e é coEg_ituído apenas por u_ma superfície não é uma ca- ,,.
sa para todos, masm ma enéarnação dos mercados nos quais ninguém po.de e. ·
tar «junto a si»; ningué1nêfeve ·tentar estar-em casa a( onde O dinheirn, as
~ercâdorias e as 1'cçõ~s rmudam de proprietário J O mêrcado mÍmdial é um
conceito que corresponde à constatação (e à exigência) de que todos os en-
,dedores e todos os clientes se encontram numa exterioridade geral. Enquanto
\, • existirem o mercado mundial ou os mercados mundiais, estão condena _ao
1
, y· frac~~ ~ ~s especul~ções sobr_e a ~econq_uista de uma circunspec9ão cen-
~ , , ,., trada na casa_<?~ ª ~qpital , n ~ espaço interior integral da huma9idª-,de .
'1 , \ l ' Se já a Idade Média não conseguiu integrar um no outro, concentricamen-
• l ., ;') te, o globo de Deus e o globo do mundo 166, a modernidade só produziria lou-
cura se se lançasse no projecto híbrido que consistiria em integrar a quanti-
'd ade dos sítios de cultura e de empresa como sub-esferas numa mono-esfera
de estrutura concêntrica. É o que Marshall M~ u-Ii~n. parece ter subestimado
quando , por um momento , se abandonou à sua visão da a~ia.plane.tári,il no
tempo em que a decepção ainda não o tinha alcançado: «As extensões mediais
do ser humano conduzem à humanização do planeta .» 167 Este tipo de coisas
não poderia ser repetido hoje nem sequer em seitas missionárias. Por mais ge-
nerosas que tenham sido as expectativas do teórico dos media , o desapareci-
mento das constituições do mundo imperi alo-centristas retirou também a ba-
se ao catolicismo electrónico (a posição central do emissor).
O ~]timo globo só permite vastas co s.!I.U ~s na horjz.Qillal - o que não
exclw algumas construções elevadas . Estimula neighbourhoods,joint ventu-
res, transacções interculturais debaixo de céus artificiais não demasiado es-
carpados: ex ige fóruns, pódios, baldaquinos , patrocínios , alianças, mecena-

16 5 C f. Gilles Deleuze e Félix Guattari , Was ist Philosophie ?, op . cit. , p. 11 6 .


1(,(i Do pont o de vista da estrutura profunda, era a missão intelectual a que se propusera a p!,i-
/111'1111liia perennis: fracassou, porque não podia levá- la a cabo . Cf. a este respe ito Spliiire11 , li ,
I ;/nlw11 . Capít ul o 5 . Deus si ve splwera, oder: Das explodierende A/1-Eine, op . cit. , pp. 465 -58 1.
I< , 1 <·1 M\frsh:ill McLu han e Bruce R. Powers , Tl, e Global Vil/age . Der WeR der M ,dienge-
,, 1/,, /,,1/f in i/11 ,1· I . .I 1lirl11111dert. Pa krbúrn, 1995, p. 127.
l';dácio de Cristal

des mundos movidos pela história, se poderia instituir algo como as formas
vivíveis ~o «habitar» ou do estar-junto-a~si-e-aos-seusi.A a,Ç!J!aj_p~~de
da globalização espelha o facto de que , Juntamente com o Estado-naçao s~
rac ulta o que constitui a mais ampla situação possível de habitat político -
lc certa maneira , o salão e a sala de visitas dos povos democráticos (ou das
"!' ·ntidades que formavam um povo imaginário) - e que nessa morada nacio-
nal se sente já, aqui e ali , uma muito desagradável corrente de ar - nomea-
damente uando o elevado número de desempregados coincide com a rotina
da queixa a alto níve!.Õ ex~ C >_desem:!~_ ê _!1_h~ o _Est~d~-nação, e tal
30 ~~nsformação Imunológica vê-se mais claramente com o recuo , foi o de pôr à disposição da maioria dos
Rumo às «Sociedades» das Paredes Finas
--· ~ -- seus habitantes uma espécie de conforto doméstico, essa estrutura imunitária
simultaneamente real e imaginária que podia ser vivida como uma conver-
gência do ~lugar e do eu, ou como identidade regional, no sentido mais favo-
Dar.!:!..½:!~~ rgo~?.:º ~ia que caracteriza a literatura sociológica e política ac- rável do termo. Essa prestação foi propiciada da forma mais impressionante -,. •
tu~ b~e_.a glob~hzaçao, podemos extrair alguns modelos que oferecem boas 1
nos casos em que se cons~guiu a domesticação do Estado-poder e!X} Estado-
p~r~pect1vas de Vlfem a ser uma espécie de universais jornalísticos para os de- -providência. ( .f , , l' • , 1 ç _.• •
1
c,:nios e , quem sabe, para os séculos que aí vêm. Esses temas quase eternos A eonstru ·ão imunológica da identidade.polí_tico-étnica entrou em agita ão
sao,IJ?or um la_do, que, ~i:itre o local e o global, há sempre um novo modus vi- o
c vê-se que o~ex.o. enti:_e_9 · I~gi 'r e ,eú 1Jãb é s_empre_tão est~vel comó_o ha-
ven~t a negociar; por outro lado , crne as comunidades políticas, «após a mo- viam exigido_~. feito crer 9s f.olc]9res políticos do territori~_lismo (~esde as .
dem~da~~;· entraram_ nu~a nova configuração situada «para Já do Estado- culturas agrárias antigas até ao Estado-providência moderno). Se se distende-
-na_çao» _; em terceiro lugar, ue o mundo globalizado se encontra num re m ou desfizerem os entrelaçamentos entre lugares e eus, podem surgir duas
st
e_ aq_o 9 U ~ ~ã?- olít~ e moral resul~ brutal alargàmento do fosso posições extremas, nas quais é possível ler a estrutura do campo sociã l atra-
~ r~ 1:_qbre~ e nco~; em quarto lugar, que a crescente erosão da biosfera e a vés deu ma espécie de <!~composição experimental ; a d~ um eu sem lugar e a 1 ..J--
polu~çao do a_r e dos solos, nolens valens, fazem da «humanidade» uma co- de um lugar sem eu . É evidente que , até aqui, todas as «sociedades» n,allJlente t
~~nidade de interesses ecológicos cujas opiniões e cujo-diálogo deverão dar exT~entes tiveram sempr~ _cje pr~C!Jíª-1" o .~eu modus vivendi âlgui:es en..tre os J
onge~ a _urr_ia, ~ova .cultura racional que atend_a às consequências a longo prã - d0.§.._ gcilos - sem dúvida, 12_0 caso ideal, à distância mais favorável entre
zo. Nao e d1!1cil per_c~ber _u.!E.a te_ndência em todos estes temas: a dissipaçãõ os dois extremos; e facilmente se compreende que, também no fut~Iº.: toda a
d~~ con:epçoes t_rad1c1c:ina1s relativas aos sujeitos políticos e às unidades so- comunidade política real deverá dar uma resposta ao duplo Ímperativo da de-
' CI ~ !~ - Ha que ass1~alar_ que , ~m todos os casos, as tendências principais esca- terminaçâo dó eu e do lugar. ..,-
~-ar~~ a qu~m ate entao detinha as competências , que os problemas de hoje 0 que mais se aproxima do primeiro extremo da dissolução - o_eu sem lu-.J..-· ,...
Jª ~ao c rrespond:m ~os responsáveis de ontem (e que os problemas de ama- gar - é sem dúvida o J~aísmo da_dj áspora dos últimos dois mil anos, do ~
nha corresponderao _ainda menos aos responsáveis de hoje). qual se pôde dizer, não sem razão , que foi um povo s~m p~ís - um estado de
Queremos t~ ~lf p~r~_C> nosso pró_prio contexto estas percepções decor- facto que Heinrich Heine resumiu dizendo que _Õs]udeus não est~ e_m _ca- ,
rentes dos debates sociológicos : ~c;ontexto de uma poética política do espa- sa num país , mas num livro , que lhes estava adstrito como «pátria portá- . ~ ~
ço ou_ d~ um_a «~acr()sferolo~ia» 169 . Após esta mudança de óptica, todas as til» 170 . Esta observação profunda e elegante ilustra um estado de facto que J. '*
qu~s:?es da .1dent1d:~e soc_ial e_ressoal se apresentam sob perspectivas mor- muitas vezes escapa às pessoas: os grupos «nomadizantes» OL) «desterritoria- C+ •.i
folo01cas e 1munolog1cas, isto e, do ponto de vista segundo O qual , em gra!.!:. li zados» só marginalmente constroem a sua imuni_dad~ e a sua _~.9esão étnka ,
a partir de um solo que os sustenta; a sua comunicação mútua funciona antes 'l,t•,
168 imediatãmente como um «contentor» ou um «vaso autógeno» 171 no qual os '
Cf. Martin Albrow, Abschied von Nationalstaat , op . cit.; Jüro-en Haberrnas Die p . ·
1/fd<' Kn11stellatio11 Frankfurt 1998 ° ' os flwt, o- participantes se contêm a si próprios e onde se mantêm enformados _ei:iquan-
1<i') . ' , .
;\ gr upillnos sob es te termo todas as reflexões pelas quais a teoria das esferas íntim as (rni-
, '"' lc"ilogrn) se «c lcvo.L'.» ao níve l de uma teori a das grapdes es tru turas irnunitári as (Estados, l 70 Sobre o complexo conceptual de «Deus portátil », cf. Régis Debray, Dieu. Un itinéraire. Ma -
'"' I''" "' " · " 1111111 dos»). f. Splitiren / , Bla.l'en, Frank furt , 1998 , bern como St>htir 'n li G/r / , 1101,r /Histoire de l 'Étem el en Occident, Paris , 2004, pp.123-124.
tériaux
l 11 11, ~ 11111 , J!/t/</ , , ,nu,,
17 1 obre cslll exp ressão, cf. Sphi:iren /, 8/asen , pp. 60 s.9.
\ r .,
. '-''.
164 Peter Sloterdijk l'alácio de Cristal

to o grupo se desloca através d.as paisagens externas. Um povo sem terra ra- de um eu colectivo que neles est\vesse e!n casa. O facto de I]_ão reterem quem
dicado numa tradição do escrito não pode pois deixar-se enredar na ilusã que neles passa é o que os define. São os n_q_man's land alternadamente inunda-
l praticamente se impôs a todos os grupos sedentários na história da numani- dos e secos, os desertos de trânsito que se desenvolvem nos centros sem nú-
dade: conceber a própria terra COl]l_~ o contentor do povo e o próprio solo co- ·leo e ao longo das periferias híbridas das «sociedades» contemporâneas.
mo o a pl'"iori do sentido da vida. EsTã territorialfallacy faz parte das heran- Quando observamos esse tipo de «sociedades» , distinguimos , sem esforço
ças mais influentes e, até hoje , mais problemáticas da era sedentária, pois o analítico suplementar, que a sua anterior normalidade , a vida em situações de
rt:flexo fundamental de toda a utilização política aparentemente legítima da 1.: ontentores maciços, étnicos ou nacionais (com os seus fantasmas específicos
violência, a chamada «defesa do país», a ela se refere. Ela reporta-se à assi - sobre a origem e a missão) , e a indisputável licença de confundir a terra e o
milação obsessiva do lugar ao eu - o erro axiomático da razão territorializa- cu sofrem um golpe decisivo por força das tendências para a globalização .
,da (que a grande I!laioria dos cidadãos de Israel parece desejosªJ:!e co_IEete · om efeito, por um lado. tais <<Socie.dad~~úlexibilizam as suas relações com ,
d~ d.e 1948). Este erro vai aparecendo pouco a pouco à luz do dia desde que n local na medida em que a~ numerosas populações se apropriam de uma mo-
úma vaga· transnacional faz com que os povos e os territórios relativizem a hi lidade sem precedentes; por outro lado , multiplica-se o número dos lugares r
sua ligação a todos os lugares . A tendência para o eu multilocal é caracterís- de trânsito em que nenhuma relação de habitat é possível para os humanos
tica da modernidade avançada - tal como o lugar poliétnico e desnacionali- que os frequentam or conseguinte, as «sociedades» globalizantes e mobili-
t
zado. 1.antes aproximam-se tanto do pólo «nómada», um eu sem _!J._I_gfil_, como. do pó-
Arjun Appadurai, antropólogo indo-americano da civilização, chamou a lo do deser to, um lÜgar sem eu - co~n um fundo central que se atrofia, com-
atenção para este estado de coisas criando o conceito de ethnoscape_, o qual posto de culturas regionais e de satisf~ções sedentárias. /
1
permite apreender realidades como a <~desterritorializaç_~<2?i gra,<iual das re,la- A crise formal conhecida pelas «sociedades de massa», crise que , no mo- · '1

ções étnicas, a formação de «comunidades imaginárias?> fora dos Estados- mento actual, é, o mais- das vezes, evocada como a perda de significação da
__~naçã~ e a p~rtiCTpação irriâgl~ ia-de inúm~r~s ·indivíduos.nos -q~ad1:;s, cons- qualidade deJ <'.stado-nação, decorre pois da erosão gradual das funções étni-
e
tituídos pelas foi·ma~ de viçlq de outras culturas 172 . No que respeita ao cas do contentor. Aquilo que até aqui entendíamos e que implicávamos pelo
juctãís mo durante o seu período de exílio, o elemento provocador era o facto tcí-mode «~dade,» mais não era efectivamente, regra geral, do que o con-
de brandir constantemente diante dos olhos dos povos do hemisfério ociden- teúdo de um continentê.de fortes paredes , fundado no território , esteado por
tal o paradoxo aparente e o escândalo real de um eu que existe efectivamen- símbolos e o mais das vezes monolingue, isto é , um colectivo que encontra-
te sem lugar. va a certeza de si num éiii·to hermetismo nacional e que evoluía nas suas pró-
-<!.-
.,,;, o outro pólo , o fenómeno lugar sem eu aparece cada vez mais clª(.aID.en- prias redundâncias (que os estrangeiros nunca conseguiam compreender to-
'- I te. As regiões inabitáveis da Terra - os desertos brancos (mundo polar), os talmente)l 73 _ Tais comunidades hi stóricas que se situavam na ~~tersecção 1. •
\. cinzentos (altas montanhas) , os verdes (florestas virgens) , os amarelos (de- entre o eu e o lugar, aquilo a que se chamava 12,ovos, na maioria das vezes, em
sertos de areia) , os azuis (oceanos) - são paradigmáticos desse extremo na virtÚde das suas qualidades de autocontentores, estavam instaladas num acen-
1'
«ausência de eu»; podemos somar-lhes os de_sertQS sec;undári.o nasc idos da tuado gradiente entre o exterior e o interiqr - um estado de facto que , nas
mão do homem . No contexto do nosso estudo sobre as situações esféri~as, tais culturas pré-políticas , se reflectia geralmente sob a forma de um ~tnocentris-
desertos são interessantes como fenómenos de contraste, pois constituem lu- 1mo i11génuo ~, no nível político , na diferença substancial entre o que dizia res-
J. gares com os quais os homens , regra geral , não desenvolvem relações cultas pe ito à política interna e o que era do foro da política externa. Tal diferença e
., , e com os quais aiEda menos tentam praticar uma identificação . Tal vale r_ara tal gradiente são pouco a pouco nivelados pelos efeitos da globalizaç~o / os
,·, todos os .espaços de frânsito, no sentido estrito e lato do termo, trate-se de to- utilizadores da imunização propiciada pelos contentores nacionais cónside-
cais feitos para a circulação, como as estações de comboio, os portos e aero- ra!11 que elas~ encontra cada vez mais ameaçada. É certo ~ n1su~m que tenha
t portos , as ruas, as praças e os centros comerciais, ou de instalações destina- conhecido as vantagens da liberdade de movimento transnacional guer seria-
,, das a estadas limitadas , como os aldeamentos de férias e as cidades turísticas, mente regressar aos fechamentos militantes do antigo espjrito .s.!_01 _Estados-
os terrenos de fábricas ou os asilos dos se m-abrigo . Tais locais podem muito -na ão e ainda menos às auto-hipnoses totalitárias muitas vezes característi-
bem ter a sua atmosfera, mas ~ã~ dependem de uma classe de habitantes ou 'c:1s d;.; ÍOIIllaS de vida tribais ; mas, para inúmeros contemporâneos, Osentido

11-~ < T 1\rju11 /\ppaclura i , «G lo bal e ethni sc he Riiume. Bermerkun gen uncl Fragc11 wr Ent w ic- 173 Sobre a ju sti ri cação antropol ógi ca elas camadas profundas do sentimento ele pertença atra -
I 111 111· ,· 11I,· r 1r:111s11aIio11alc11 Ant hro po log ie» , in Perspek1ive11 der Wel1g ,selc/1aji , lri ch Bcck v s do concc.it o de «utcrótopo» (ou de esfera ele eleição) e ele «termóto po» (ou esfera ele mimo) ,
''"1'" " "·" 1111). 1:n111 kr11r1 . 1998. pp . 11 -40. s
·I'. 1,1111re11 Ili , ScMi111111•, op. ci1. . pp . 386-405 .
166 Peter Sloterdijk Pa lácio de Cristal 167

e o risco da tendência para um mundo de «sociedades» de paredes finas e he• mesmo tempo que se abstêm crescentemente . da participação política. Em
teróclitas não são nem cóínpreensíveis nem bem-vindos. A globalização, dii , 1996 os Estados Unidos conheceram pela primeira vez numa eleição presi-
a justo título, Roland Robertson , é um processo que se acompanha pela con- dencial (reeleição de Clinton) uma participação no escrutínio inferior a 50%;
testação (a basically contested process) 174 . A contestação da globalização nas eleições para a Câmara dos Representantes e_para o Senado , en:i Novem-
,· também a própria globalização - ela faz parte da eàcção 1munítária e indis- bro de J998 dois eleitores em cada três, aproximadamente , mantiveram-se
pensável dos órgãos locà is às infecções provocadas pela _ampliação do for- afastados da~ urnas (e os peritos consideravam que taxas de participação d_e
, mato do mü n'ãó°'."' ~, ,1" , - 18% não eram um resultado especialmente mau 175 ) . Só uma campanha el~1-
O desafio psicopolítico da era global , que , com Martin Albrow, concebe- 1oral extraordinariamente acrimoniosa permitiu obter uma taxa de abstençao
mos como o obstinado patamar de resultados da época moderna, decor~ d de cerca de 60% dos eleitores inscritos aquando da reeleição de George
i facto de o enfraquecimento das imunidades dos contentores não poder ~ tra- W. Bush, em Novembro de 2004 . Tal milita a favor de uma situação na qu~l
tado simplesmente como uma perda .de fo,rma e uma decadência , isto é, co- a maioria tem consciência de poder dessolidarizar-se amplamente dos desti-
mo um contributo ambivalente q,u cínico para a autodestcuição. O que está nos da sua comuna política - e isto sob influência da ideia muito plausível
em jogo7 para os póS:modemos,Ié a efic ácia dÕs novos designs de situações segundo a qual o indivíduo (salvo em casos excepcionais) já n~o encont_ra o
{de imunidade viáve1'S; e estas podem-é vão precisã mente constituir-se de di- seu óptimo imunológico no colectivo nacional , mas , qu_ando mUito , nos siste-
ferentes maneiras nas «sociedades» de paredes permeáveis - ainda que, co- mas de solidariedade da sua própria community, ou, mais exactamente: no ~o- ,
mo acontece desde sempre, tal não se produza em todos os casos nem para Jectivo vitimológico, mas o mais explicitamente possível nas disposições in- , .
todos. ctividuais tomadas no domínio dos seguros.
: Neste contexto ,f a tendência epocal para as formas de vida individu.~list Q~axi_om~. c!_a ordem imtJl)itária in,dividual!sta alastra nas pop~l~çõ~s c?m~
põe a nu a sua ,si gnificação ímunológica: hoje, nas «sociedades» avançadas postas por:indivíduos autocentrados , à maneira de uma nova evidencia vital.
0 facto de no fÍm de co'iúã s, ninguém fazer por eles o que eles não fazem por
, e talvez pela primeira vez na história da coexistência dos hominídeos - ,
são os .indivíduos, quem , na sua qualidade de portadores de competências si próprio~. As novas~ cni~~~ de im,unídade (no s~u ~e~trn i~stitucion_al: ,~s
imunitárias, se desligam dos seus corpos de grupo (que , até aqui , eram so- seguros privados e os fundos de pensão; na sua penfena ind1v1du~l : a d1etet1-
bretudo prote~-t~ s) e guerem-mã ciçãme11te desacoplar a sua felicidade e a ca e a biotécnica) , as estratégias existenciais recomendadas a «sociedades» d_e
sua infelicidade da forma da comuna política. Vivemos hoje a transmuta ão indivíduos para as quais a longa marcha para a flexibilizaç~o , o enfra~ue~1-
ve,!]ilii~.irnm ente in-eversível de colecti vos de segurança política em grqpos mento das «relações com o objecto» e a licença geral concedida a relaçoes in-
dotados de designsifüunitártõs in dividualistas (e· esta tendência continuaria fiéis ou reversíveis entre os seres humanos conduziram à «meta» - ao está-
ein vigor mesmo que , em virtude de um pretenso ou real «regresso da guer- dio final de toda a cultura, justamente profetizado por Spengler: esse estádio
ra», voltássemos a um renovado primado do político - a guerra regressada em se tornou possível decidir se o indivíduo é hábil ou decaden,te (mas hábil
teria sempre um carácter terapêutico , defensivo e imunitário, e o grupo indi- ele que ponto de vista e decadente relativamente a q~e altur~?). E o estado em
vidualista remilitarizado só episodicamente poderia recair em ambientes co- que-'ós indivíduos perderatp a capacidade de construir uma figura exe~plar do
lectivistas). mundõ-:-õs indivíduos individualizados comportam-se como se tivessem ª,
Esta tendência exprime-se com a maior clareza na nação-piloto do mundo , compreendido que não se acede ao óptimo imunitário quando _se abs?rve o
1
os Estados Unidos da América , onde o conceito de pursuit of happiness fun- «mundo» de diversas maneiras em si, mas antes quando se define muito es-
da ~ominalmente o «contrato social » desde a Declaração da Independência . tritamente O contacto que se tem com ele. Por conseguinte, a última_diferen- ;
Os efeitos centrífugos da orientação para a felicidade do indivíduo foram até ça metafísica, a distinção entre eminente e vulgar defe~dida por N1e!~sc~e,
aqui eficazmente compensados por energias cô munitaristas provindas da so- perde O seu significado . Com a era heróica do descobnm_ent?: da cnaçao,
ciedade civil, de forma que a prioridade imunológica tradicional do grupo re- também se acabou a voga dos seus grandes homens, esses 111d1v1duc;,s gue_en-
lativamente aos seus membros parecia igualmente encarnada no povo sintéti- globam tudo e parecem capazes de unir em si a sua época e o seu cole~t1v~.
co dos Estado-Unidenses. Posteriormente,. as perspectivas inverteram-se: em A essa era sucede o ciclo individualista em que cada um se escolhe a s1 pro-
nenhum país da Ten-a, em nenhuma população , em nenhuma cultura , as pe - prio como domínio de especialidade . As consequências disto são conhecidas;
soas se dedicam tanto ao cuidado de si biológico , psicotécnico e religióide , ao
175 ontuclo , Walter Lippman, na sua obra-prima ele cepticismo sobre a clenrn~raci a Th e Plta11-
11·1 l<11 l:1 11d Robert son, Globaliw 1io11. Social Th eory anel Global C11ilwe, L ondres , Newbury
l <nll p 11 i)lic, já cm 1927 aludia a taxas ele abstenção análogas nas massas ele (nao-)ele1tores con-
l'.11 , l' Nt1 Vll !Hi , 11)92, p. 182. l ·1111los I pass i v iduclc e i\ inco mpetência.
168 Peter Slotercl\i k

uma delas é o facto de o f~i;i.t asma antropológico da época moderna, o homn11•


monde, o homem microcósmjco, dotado de ~ma receptividade e de uma e
pressividade multidimensionais , o homem completo , se apagar, como, na or
la do mar, se apaga uma face desenhada na areia.

31 Crer e Saber: ln hoc signo (se. Globi) vinces

O conceito de Gf:!!!?!!:.LA.ge introduzido por Martin Albrow vem ao encon-


lro da necessidade sentida por uma teoria narrativa de dispor de secções por
rases no interior de séries inacabadas . Estabelece a tese segundo a qual a era
ela globalization - na nossa terminologia: da globalização terrestre - deve
ser consiçlerada como consumada, tendo-se transmutado, por um período de
poslúdio de duração indefinida, em era de história regular, um período que re-
presenta uma era de pleno direito . Como notámos, alguns autores deram a es-
sa época ultrapassada o nome de «milénio europeu» 176 ou até de «história
mundial da Europa» - expressões qÜe, por mais inactuais e duvidosas que
sejam, apresentam a vantagem de fazer aparecer a assimetria entre a acção
cios agentes europeus e acção dos não-europeus.
O que se chama assimetria do ponto de vista sistémico designa numa pers-
pectiva política fdorninação .. A expressão d~_colonialismd resume os proces-
sos e resultados ho)e proscritos da «expansão~eÜropeia» 177 . Se esta denomi-
nação rejeita os métodos da época, ela não pode, de qualquer forma, porém,
ignorar o seu resultado , o quadro de relações estabelecido no mundo. A práti-
ca colonial fundava-se na convicção das «grandes nações» - e , durante as
suas épocas de agressão , sentiam-se todas , sem excepção , no direito de serem
grandes - de que o únilateralismó"era um seu direito inato. Mas que se pas-
sa quando soa a última hora do unilateralismo e começa um período em que ,
se abrem numerosas outras páginas? As abordagens mais recentes na direcção
ele uma imagem simétrica do mundo , tal como se exprime nos Postcolonial
S1udies , não se baseiam apenas no fim endógeno do poder central eurbpeu,
presst;põem também a transição para uma concepção alterada do golpe e do
contragolpe. A preocupação da simetria faz com queragora a ãlferidade tenha
passado a assumir o primeiro planô: Presentemente somos suficientemente li-
v res para constatar que os europeus foram descobe1tos em Outubro de 1492
pelos indígenas das Caraíbas . Para os perturbados descobridores , ve io a

176 r. Os kar Hal ecki , Das europiiische Jarhtausend , Salzburgo, 1966 .


177 f. Woll'gang Rcinharclt et ai. , Geschichte der e11ropiiische11 Expa11sio11, 4 vo l .. Es tu •11nl11 ,
1983- 1 90.
170 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal 171

reve lar-se aconselhável recolher dados para estudar os seus visitantes, dados tempo - o que se segue é um patamar de cristalização, no qual , com base no
esses que ainda hoje estão hoje abertos à interpretação. l!X istente , se procede a renovações, adaptações e reconstruções; os conceitos-
-chave desse fenómeno têm como nome reticulação , optimização, estetização.
A era das 9fensivas europeias teve como consequência (há que o repetir co- Quando já não se pode construir muita coisa nova , há que passar à explora-
mo um mantra pós-moderno) o desenvolvimento e a consolidação do sistema ~ão intensificada do que existe. A aliança entre a política dos transpo1tes e o
mundial. Tal implica a reticul ação dos global players a numerosos níveis - 111arketing da cultura urbana é característica dessa fase - as cidades dos que
os nívei s dos Estados, das empresas, da economja, dos bancos e das bolsas, triunfaram querem ser focos de eventos, life quality providers, e pontos no-
do mercado científico, do mercado da arte, do mercado desportivo, do mer- uais dos corredores metropolitanos, pelo que a construção de traçados de
cado da prostituição, do tráfico de drogas, do tráfico de armas, etc. Este sis- grande velocidade entre as capitais exprime as ambições da cultura urbana in-
tema rico em retroacções, por mais instável que possa parecer, constitui o ní- teiramente cristalizada com a mesma pregnância que a edificação desses
vel de trabalho provisori amente definitivo de inúmeras rotinas graças às quais indispensáveis colectores urbanos correspondentes ao tipo dos centros de fei-
os gestos de atenção para com parceiros e antagonistas afastados no espaço ras, das arenas desportivas, dos museus de arte moderna e das filiais das ca-
mas objectivamente próximos passaram a ser o estilo dominante do estar-no- deias de hotéis internacionais 178 .
-mundo. Na sua definição actual, o conceito de civilização é quase equiva- Tal como hoje em dia em todos os grandes centros do mundo existem cul-
lente ao de tele-realidade . turas urbanas cristalizadas, também no sistema mundial se inscrevem uma in-
l ) O que significa a «conclusão da globalização terrestre»? Significa que pas- ternacionalidade e uma interculturalidade rotineiras que se encarnam nas di-

' samos a saber de un1a vez por todas que nunca seremos os primeiros a chegar
a lugar nenhum deste mundo. Significa também que devemos ter explicita-
mente em conta que não podemos exprimir-nos a propósito de nenhum as-
sunto do mundo independentemente do discurso. Os vestígios dos descobri-
plomacias, nos mercados , nas organizações universitárias e nos organizadores
que propõem músicas para tournées. Analogamente, as instituições clínicas ,
as polícias, os museus e os serv iços secretos esforçam-se para pôr em marcha
a sua interconexão transnacional. '{isto a artir_das zonas 12róspera~ mundo
dores e dos oradores anteriores estão sempre presentes sob forma compacta. produz, grosJ.O moqo, a impressão de um espaço colonizado de -~m~ a à
~s prQprias. circunstâocias militarn_conti:a a.ambição de continuar apesar de Õu - ou então,já que o nome de colónia está hoje em dia proscrito do uso
tudo a tentar co isa nova - emb,o ·ue.clamemos.sempre e eJn todo o lado,p_ro normal : um emaranhado de espaços que , a partir de substratos étnicos, auto-
forma, a inovação (ou mai s precisamente: a ascensão permanente à torre dos definiram uma ordem civil - regra geral, a constituição do Estado-nação , o
UI! rov.áveis). Os itinerários que utilizamos constantemente testemunham a qual já cedeu competências a instâncias supranacionais (ONU, FMI, UE) .
1 •
transformação das primeiras viagens de descobrimento num tráfico regular; Com o estabelecimento desta rede político-cultural, a era da globalização che-
há disciplinas comprovadas que asseguram a integração das intuições e das gou imanentemente ao seu termo.
hipóteses na vida científica. Se a era da globalização foi determinada pelas
explorações e as aberturas de vias, a Global Age foi determinada pelos itine- Defendemos aqui a tese segundo a qual a época da globalização terrest~e é
rários e a ascensão dos produtos do tráfico - incluindo os produtos do dis- a única que pode ser qualificada de «história do mundo», ou de «história» sem ,
curso. Se um dos elementos da globalização era o espírito de aventura, o ser- qualificativo. Tem como conteúdo o drama da exploração da Terra como por-
viço de reservas é o sintoma da globalidade. Com mosquetes, catanas e vagos tadora dos cultos locais e da sua compressão num contexto mundial reticula- ( -
mapas, os descobridores da era da globalização embarcaram em naus que do e feito de espumas. Se levarmos a sério esta definição da «história», resulta
saíam dos portos; quanto aos conferencistas da era global, entram no avião dela que a sequência dos acontecimentos situados entre 1492 e 1945 é a úni-
com o cartão de embarque e o seu manuscrito termjnado. ca que pode ser caracterizada como tal, ao passo que a existência dos povos
A melhor maneira de elucidar os elementos de continuidade e de ruptura e das civilizações não assume traços «históricos» nem antes n~m depois -
da época da globalização e da Global Age consiste em recorrer à analogia com sendo que as datas estabelecidas como limite são contestáveis. E claro , todos
a saturação das culturas urbanas . Regra geral, as metrópoles contemporâneas os grupos, instituições e práticas estão sempre e em todo o lado sujeitos às leis
provêm de várias centenas de anos de colonização, de planificação e de cons- cio devir; atravessam o seu tempo ao passo tranquilo da repetição com va-
trução; tal não impede que algumas grandes cidades, como Kuala Lumpur, ri antes; conhecem os saltos e as catástrofes que interrompem as longas séries.
Xa nga i ou Berlim, conheçam actualmente, graças a conjunturas reg ionais , Mas esse fenómeno ele imobilidade e de movimento não tem nada a ver com
surtos de feb re arquitectónica cujos resultados contribuem para fo 1jar as si- o que se passou na «hi stória». A história única responde narrativamente às
\h111.: ta s de ama nhã. Na maior parte das metrópoles c láss icas, contudo, as fa -
\D L ·@ sl il ui ivas de cri ação das c idades estão terminadas desde há bastant 178 Sobr o co nce it o de «co lcclor», cf. Sphiiren Ili. Schü11111e, pp. 604 sq.
17
17 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal

jectos imperiais . Na conferência de Bretton Woods , em Julho de 1944, o acor-


quc,stões ont?lógicas: como f~i possível chegarmos à situação da idade glo·
·c10 sobre a paridade entre o dólar e a libra britânica, por um lado, e o ouro, por
bo i ! Como e que a exploraçao da Terra, enquanto portadora da coesão daK
outro, funda a primeira moeda mundial contratual da Global Age; em 1969,
culturas , foi possível? Como é que os Europeus conseguiram desenhar os seus
astronautas americanos trazem da sua viagem à Lua fotografias do nascer da
mapas e estender as suas redes por todo o mundo habitado? Que papel d •
Terra. Entre tudo isso , milhões de cenas que , todas elas, dispensam o mesmo
se mpenhou aqui o dinheiro moderno, sob a tripla forma de capital comercial
ensinamento: a vida pune todo aquele que não leva o globo a sério.
ele capital indu_strial ~j~ capital finance~ro?_ _ _ _ '
No fim da Idade Média, a hipótese segundo a qual a Terra é esférica, o que
A «história» é o(mi~p1 dõ nasdmerítÕ do sistema munelial~751 . Só a podería-
implica que um globo terrestre em cuja superfície se apresentam as, imagens das
mos narrar legitirp~ih'énte-sob_aJQrm<) d_ii _epopeia heróica da globalizaçãa ter•
terras e dos mares pode representar· adequadamente o planeta, so preocupava
restre - como otr.gmance da unilateralidad<:l, bem-sucedida, aquele que os Eu-
um punhado de teólogos , cartógrafos e outros mercadores estimulados por ape-
rop~us em acção ditaram aos seus cronistas. Essa canção de gesta excede em
tites de longínquo . Para a grande maioria dos europeus, desde o século XVI a~é
muito a cumplicidade habitual entre os heróis e os seus tenores. Quando entoa-
à Declaração da Independência americana, constituía uma especulação gratUI-
da, ~esenvolve-se como a ~ande narrativa não narrável da provocação da «hu-
ta , desprovida de efeitos notáveis sobre a sua própria existência, mesmo após
mamdade» por ela própria. Podemos fazer dela as variantes que quisennos: ne-
as viagens de Colombo , Vasco da Gama e Magalhães terem ~rovocado u~ ~o-
nhuma versão poderá alguma vez estar inteiramente à altura do acontecimento .
to empírico sem equívoco a favor do que até então era uma s1mp~es_supos1çao.
_ Essa epopeia híbrida, muitas vezes tentada, nunca apresentada como con-
É certo que os mapas se precisaram pouco a pouco , que nas bibliotecas d~s
v1~ha, em todos o_s pormenores, constitui um capítulo eminente na história
príncipes começar·am a aparecer atlas, globos, planisférios, que o~ novos media
umversal do fortu1to 18 º que, apesar do seu carácter aleatório, parece tecido
da ciência da Terra deram entrada nas salas de fumo da burguesia - mas, pa-
~or uma_vo,n~ade intern~ de atingir a sua meta. Se a narrativa da globalização
ra a grande maioria dos habitantes da Europa, o teor de realidade ~a imagem do
e uma h1 stona , no sentido estrito do termo , não é apenas porque tem como
globo continuava a ser uma dimensão incerta e bastante desprov}da de 1mpo:-
deve , um princípio, um meio e um fim: é também hi stória no sentido t~leoló-
tância. A rotundidade da Terra contava-se entre as verdades que so passados va-
gico do termo , poi §~téJ!l eni sí o critério da· sua conclusão -)
rias séculos após a sua publicação alcançam os seus destinatários lógicos_ . .
Para o ,seu _início, possuímos cenas simbólicas: na sextá-feira 3 de Agosto
Par·a certos autores, a hipótese tornou-se rapidamente uma crença suf1c1en-
ele 1492, as oito horas da manhã , as três caravelas de Colombo abandonam a
temente forte para apostarem a vida por ela. Na pessoa de Colombo , Magalhães
«barra de Saltes» 18 1, perto de Paios , e fazem-se às ilhas Canárias - com as
e Dei Cano, a fé parte à busca de intelecto. Para se professar, precisava_ de ~a-
consequências de que ainda hoje falamos; ao fim de sessenta e nove dias, vis-
vios capazes de enfrentar o alto-mar e de marinheiros que , a troco de ~mhe1ro
lumbram terra . Ao septuagésimo, também uma sexta-feira, os descobridores
e boas palavras, se deixassem levar pela loucura dos capitães . Um feliz acaso
põem pé no Novo Mundo 182 . No Outono do mesmo ano, Martin Behaim
quis que se conservasse o rol das soldadas das tripulações de 1492; segundo es-
apresenta a sua «maçã terrestre» aos conselheiros de Nuremberga - leva a
se rol, o piloto Sancho Ruiz da Gama devia receber vinte ducados_pela sua p~r-
verdade terrestre à cidade comercial da Francónia. Outras imagens igualmen-
ticipação na travessia, o marinheiro Juan de Moguer quatro mil maraved1s ,
te daras e ~!aquentes existem para o fim : durante a semana do congresso do
etc _183 A profissão de fé implícita dos primeiros marinheiros que deram a vol-
partido nazi , em Nuremberga, em 1937 , Hitler, mandou que lhe trouxessem
ta ao mundo só pode , porém , ser reconstituída a partir dos actos desses homens
para o seu hotel, Deutscher Hof (A Corte Alemã) , o globo de Behaim, por um
e do que nos deixaram. Poderia ter sido semelhante ao seguinte:
lado , para contemplar por momentos essa esfera que já estivera muito ene-
grec ida e cujo restauro ele pagara, por outro lado, para que a visão desse ob-
«Credo in unam terram rotundam, vitae matrern.,fontem divitiarum , popu-
jecto venerável espicaçasse a sua motivação para pôr em prática os seus pro-
lorum domum, et in marem universalem,fecundam navigabilemque, palatium
ventorem , amicam gubernatoris vectorisque , et in aerem liberam , ubique res-
179 É nesse ponto de vista que se funda o último e nsa io em data de hi stória uni versal o de J. R 184
pirabilem, velivolantium motricem velorum , liberta tum omn.ium aulam.»
Mc Ne ill e William H. McNeill , The Human Web : A Bird 's-Eye View ofWorld Histo,y ,' Nova lor~
qu e , 2003 . Os autores descrevem a hi stória do mundo como um processo de condensação das re-
des . lnl cli zmente, o~ pássaro~ McNeillianos voam demasiado alto para compreendere m qu e são 183 Cristóvão Colombo , Texros y Documentos Com.pleros. Prólogo y noras de Consuelo Varela ,
vít, '.nas ele uma ilusao de ó pltca e projectam sobre todo o percurso ela ave ntura antrópi ca a úni - Madrid , 1982, pp. 230-234.
184 «C re io na Te rra redo nda e única , mãe ela vida , fonte das riquezas , casa dos povos , e no mar
·11 l us~ de co nde nsação efec ti va das redes, criadora de mundo , isto é, o pe ríodo de 1492 a 1974.
1 uni versal, fec undo e sempre navegável, palácio dos ventos , amigo cio timoneiro e do passagei -
1KOK1 ,ili· ·s 1 ·1·uzc e Fé li x G ualt a ri ' Ta1.1se11d P/cuea!I'" op c1·1 p 11
0
' • ., • •
ro , b , como no ar li vre, sempre respirável, que move a vela dos vele iros rápidos, pavilhão ele
W) ,·ns'. v o o lo~nbo . SchiJ7~1~1~etm,ch. Leipzig, 1989 , p. 7. 111
1 S11l11 v 11 11p11lu 111 d11 s ·XIU • I ·1n1, ·!. l lu go , Die /\ rbeirer des Meel"'.1' , o p. it .. p . 249 . todos IIS lib · rd11<.ICS.>>
1.. '/ t . .,
175
1'11 lácio de Cristal
174 Peter Sloterdijk

desocultação, a aproximação e a exploração do globo terrestre e dos seus te-


Como se sabe, Colombo era movido pela esperança de encontrar no oest. souros levou séculos, a história do mundo existiu como acção, como escrito
tanto ouro quanto o necessário para financiar uma cruzada destinada a liber- imediato e posterior do grande aventureiro; como a desocultação e a aproxi-
tar ~ Santo Sepulcro da dominação muçulmana - neste sentido também 0 111ação da Terra eram missões relativamente finitas, a história que delas fala
ca~ru_nho para oeste~dev?ria abrir a via para leste: este Christóphoros não foi devia, cum grano salis, ter um princípio, um meio e um fim. Mais: a coerên-
o ult1~0 a querer por a epoca moderna ao serviço da Idade Média 185. Contu- ·ia da sua progressão para o objectivo é tão sugestiva que, como leitores pre-
d_o, ~pos ~agalhães ~ Del Cano, após Francis Drake e Henry Hudson, a pro- venidos, gostaríamos antes de acreditar numa ilusão provocada pela óptica re-
f1ssao de f~ na glob_alid_ade da Terra foi-se tomando com o passar das décadas i rospectiva do que num acontecimento real. Não estamos nós perante uma I I 't,/,1 1
~~a doutnna que nvahzava e~. cato~icidape com a de qualquer ortodoxia re- dessas suposições teleológicas correntes que nos sussurram que os resultados /

hg_1o~a. Tal como a fé cristã, a. f~ na esfera em que vivemos, nos movemos e posteriores fortuitos permitiriam tirar conclusões sobre as intenções iniciais?
ex1s~mos, não queria só ser recitada, mas também confirmada na vida. A afir- Na história de que aqui tratamos, a situação é diferente: nos factos, a re-
maçao de ~ue a Terra é esférica deixou de ser uma hipótese esotérica, come- presentação da Terra redonda anichou-se durante quase um milénio, como
çou,ª_fun~tr-se nas convicções que orientavam a vida dos homens modernos. uma profecia auto-realizante, nas consciências dos ocidentais e dos seus me-
~ fe 1~cl~1 .ª noção ontológica que consiste em «tomar um pensamento a sé- dia. Implicou uma muito reduzida minoria activa de entre eles numa renova-
no»; s~gn!.f1ca a tomada de poder da representação sobre o Ser. ção sem precedentes - uma amálgama pragmática composta por campanhas
Assim sendo, a n~~a..!_i_va do descobrimento e da reticulação da Terra con- de conquistadores, por actos dos apóstolos e por processos exploratórios. Mas
ta uma,story que, do _mício até ao fim, foi sempre uma história de crença. Fa- a ideia da forma esférica da Terra não se manteve como uma simples figura
la da fe dos d_escobndores que não duvidaram que iam encontrar algo~ ovo, ~imbólica. O monogeísmo era mais do que um postulado da bela física. Os
da dos conqms~ado~es que cravavam o olhar no horizonte até aparecer o sa- portadores dessa ideia·verdadeira mas ainda não demonstrada, marinheiros ve-
que, e dos mannhe1ros que se agarraram muito seriamente à tese seoundo a teranos, cartógrafos pacientes , monarcas melómanos e mercadores de espe-
qu~l era possível dar a volta ao mundo e regressar a casa. O impossí~el deu- ciarias magnânimos reuniram prova após prova até que os últimos negadores,
-se. encontraram o Novo, o saque apareceu nos horizontes e os navios re- ignorantes e indiferentes, fossem forçados a submeter-se às evidências que
gressaram, os que não se despedaçaram contra os recifes e não ficaram no progrediam. A narrativa da época moderna lê-se como um longo comentário à
fundo do mar. Para_~s actores destes acontecimentos, a razão pela qual tal frase: ln hoc signo vinces - não se trata já do sign.um cru.eis, mas do sign.um
descoberta,_tal a_rai:1çao e tal regresso tiveram êxito não podia ser, no fim de globi. O signo do globo vence o da cruz - n~sta frase está contida a «histó-
contas, sena~ a ideia de que Deus os tinha chamado a tornarem-se descobri- ria». Enquanto a cruz e o globo se situavam ao mesmo nível, o resultado da
dores, conqmstadores e regressados. «história» podia parecer incerto. Cqm o fim da manobra de ultrapassagem que
Retrospectivamen~e, os êxitos dos globonautas europeus aparecem a uma relega a cruz para o segundo lugar, fecha-se o campo no qual se pôde desen-
luz ,c?mpletamente_diferente. Compreendemos hoje que a convicção da forma rolar o fenómeno «história» como um relatório sobre o êxito da fé na esfera.
e~f~n_ca da Terra nao correspondia a considerar como verdadeiras coisas ima-
gmar1~s . A fé dos marinheiros foi recompensada pela cortesia do real _ esta Para as pessoas de hoje, a missão do globo consumou-se apenas pela for-
c~nfenu ~m peso ontológico às hipóteses, mapas, imagens, histórias e sensa- ça do seu êxito penetrante . Desde que já não vem à cabeça de nenhum con-
çoes relativos ao globo terrestre, a ponto de ser o próprio objecto que fazia temporâneo mais ou menos racional pôr em causa a fé na forma esférica da
passar os crentes para o seu lado . O facto de se estar cada vez mais convicto Terra, o novo signo empalidece da mesma forma que o antigo; d~ arec em
do ser-redondo, do ser-tudo, do ser-navegável da Terra determina a partir daí virtude da sua própria redundância. Os eventuais descrentes do monogeísmo
o gosto _d~ re~ . Da mesma maneira que certas pessoas vítimas do delírio de tinham de aceitar ser tratados como revisionistas. A , fü dos marinheiros
persegmçao sao realmente perseguidas, existem marinheiros que imaginam transformou-se em saber; o saber vulgarizou-se e especializou-se; aqueles
uma Terra redonda e coberta de água e que de facto a circum-navegam . que, no século xv1, eram os crentes na Terra tomaram-se geocientistas pós-
Chegados a este ponto das nossas reflexões, ergue-se o pano para a entra- -modernos - onze mil reuniram-se em Abril de 2003 em Nice para uma con-
da em cena de uma grande palavra: a fé dos geómanos, no eixo entre os sé- ferência de trabalho euro-americana 186 . Na sua maioria, sem dúvida, ao des-
culo~ xv e XVI , era uma fé na verdade - uma verdade a princípio velada cerem do avião , não concederam mais do que um breve olhar das alturas ao
seguidamente desocultada, anteriormente afastada, depois próxima. Como ~ estranho objecto dos seus anelos .
1x, . ..
·r r •'
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So bre II ' ura de Chri stóphoros, vide Sphiiren li, Globe11 , se ção Ili da introdução: «Goll 186 Oli ver Moron, «Gcosc ience on parade» , prospect magazine, Janeiro de 2004.
" ·'l' rn ". up . ·11. , pp . 96- 11 7.
176 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal

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Todas as representações pré-colombianas e pré-copernicanas da form'' e da talvez renunciar a receber ajuda desse lado se pudéssemos demonstrar com
situação da Terra no cosmos tiveram de aceitar, em resultado das novas si - suficiente intensidade como o mundo se tornou por fim num globo terrestre.
tuações do saber, ser relegadas para o estatuto de <~ ij.e's do mundo» ultra- Tal narrativa provaria uma coisa en passant: cada cena tornada em separado
passadas. Heidegger, ao interpretar a época moderna como «a época da \{'.fS'âO , teria podido seguir um curso completamente diferente , _ao passo que ~odos ~s
do mundo» (vide atrás , pp. 36 e 105 sq.), não tocou totalmente o ponto es- episódios reunidos , arbitrariamente transformados e alinhados tarnbem arbi-
sencial. Ele só teria razão tato genere se os Europeus nunca tivessem tido a trariamente, teriam forçosamente de redundar numa forma de globalidade re-
audácia de dar a volta ao mundo com os seus navios . Mas , como se circum- flectida. Quando o tempo se consumou, tal o FACTO que se revelou na vida
-navegou a Terra, como, depois disso e em consequência disso, existe um dos marinheiros e nos diários de bordo dos pilotos .
novo saber válido do mundo - embora, em nossa casa, só vejamos dele os Recentemente , certos «adversários da globalização» não têm vindo a es-
mapas de cor pálida e só apercebamos o eco dele nos aITuídos dos imperia- conder que estão convictos de que mais teria valido que os seres humanos não
listas - , as afirmações sobre o mundo de todos os que não lhe deram a vol- atingissem o estádio global - ou então que, uma vez adquirida essa com-
ta, de todos os rapsodos sedentários e de todos os xª manes, nas suas paisa- preensão , tivessem evitado o alto-mar e ficassem na sua aldeia e nas suas
gens visíveis e invisíveis, podem ser proclamadas ;'v;,ii~e.s' do mundo». De 1 cidadezinhas. Mas que é isso senão uma forma tardia da descrença ante a
facto, mais não são do que ideias ultrapassadas sobre o mundo, figuras sem mensagem segundo a qual a Te,i-a constitui uma unidade navegável - acom-
verdadeiro saber nem poder, poesias regionais que remontam à época que pre- panhada pela dúvida quanto ao facto de os seres humanos poderem fazer al-
cedeu a navegação global. E--.m. .bora o saber mundial dos modernos esteja li- go de sensato com a bola que têm debaixo dos pés? Os incréus teriam apa-
gado , em dimensões desconhecidas, a imagens, não representa em última ins- rentemente preferido continuar a ser ptolornaicos. Dão a vantagem ao modo
tância uma imagem - neste último ponto , Heidegger enganou-se ao falar em de ser provincial e vegetal do ser humano porque consideram que o preço da
Weltbild - mas o barulho dos oceanos no corpo dos marinheiros . Quando verdade é demasiado elevado - quem pode alegar motivos suficientes para
pousamos o ouvido num globo terrestre , deveríamos ouvir o som do marulhar. os contradizer? Considerando a propensão dos seres humanos, na Europa, pa-
Se, na introdução ao Mundo como Vontade e Representação, Schopenhaue · ra sofrer (e fazer sofrer) pelo advir do novo , Immanuel Wallerstein declarou:
observou, a propósito do ser reflectido após a viragem da filosofia transcen- «Que tal se tenha passado, só honra a Europa, pois , sem o impulso do sé-
dental: culo xv1, o mundo moderno não teria nascido - ora, apesar de todas as suas
«Torna-se-lhe então claro e certo que não conhece nem um céu nem uma atrocidades , mais vale que assim tenha sido .» 188
terra , mas apenas um olho que vê esse sol e uma mão que toca essa terra; que Se a filo sofia fosse capaz de fazer profissões de fé, aqui está urna delas . Se,
o mundo que o cerca só existe como representação ... » 187, então, do ponto de no fundo , todo o Ente é bom , a sua bondade deve denamar-se sobre o que de-
vista dos marinheiros e de todos os que participavam activarnente na globali- vém . Poderá o devir-mundo da Terra constituir excepção?
zação, haveria que acrescentar que, a partir de então, havia uma Terra que não Como já atrás aludimos, a consequência lógica destas reflexões reside n_a
exi stia apenas para a mão sensível. Urna coisa se tornou clara e certa após exigência que consiste em g~ssar a liµtitar o conce~to de «hj stgria.,>~, _no sent).-
Magalhães e Mercator: só conhecemos as naves que deram a volta ao mundo do de história do mundo, a UIJIª sequê.nc.ia"de. ac.ont.ecimen.tos relauyamente J~
e os mapas e globos nos quais vem indicada figurativamente a verdade das breve: a que separa 14 ,.,- data do primeiro périplo de Cristóvão Colombo i1
grandes viagens. Entretanto , também nos familiarizámos com os telefones e ~ 1945 ou melh~r 1974 data em que as últimas colónias portuguesas se ,
' ' ~ -1,,-i.;:

os monitores que nos fornecem representações sobre as vozes e as imagens do dissociaram da mãe pátria na sequência da Revolução dos Cravos. Esta redu-
outro extremo do mundo. ção possui d~ s virtudes sedutoras . Por um lado , graças a e_la ,_ podemos -~º~:
O êxito da missão «esfera terrestre» foi tão fulgurante que , hoje em dia, os ter as excrescências normativas do evolucionismo que deseJanam compnmlf
seu s herdeiros não o reconhecem. Ante a espantosa propagação da sua fé, do todos os povos e culturas no caminho seguido pelo capitalismo~segundo o
lago de Tiberíades até à ponte Milvius, os cristãos da era pós-constantina ,modelo europeu, em conformidade com a divisa «na terra como no Oeste».
viram-se obrigados a invocar o Espírito Santo, que havia decidido a vitória da PÓr outro lado , graças a essa limitação, o conteúdo sensato dos teoremas até
Igreja sobre o Império . As pessoas da era pós-moderna contentam-se com a hoje enúidQS sobre<?. (lim ga ·história». p_ode ser cons('.!rvado numa ~ersão mi-
ide ia segundo a qual , sem dúvida, a Terra sempre foi redonda e que tal deve- ni ualista. Por «fim», entendemos aqui o estado no qual, para a muito grande
ria saber-se mai s cedo ou mais tarde. Nem um Espírito Santo pode fazer seja maiori a dos habitantes da Terra, a imagem geográfica do globo terrestre diz a
n qu e lúr no caso de uma trivialidade que assenta nela própri a. Poderíamos verdade sobre a sua situação. Podemos exprimir o «fim da história>> por uma

11 1
' ·\ 11 111 11 Srl1 n p1:11l111u · r. Oi<' Wc/1 *
ais Wille 1111d Vorstel/1111g, Li vro 1, 1. 188 l111111 11 nu •I Wiillcrstcin , Das 111odem e Weltsystem, op. cit. , p. 530.
' ,
178
Peter Sloterdijk

~-uase-tautologia:_ a h,istória do «mundo» chega ao seu termo quando a histó-


11a do desenvolvimento da imagem do mundo como Terra se encontra mai
o~ men_os acabad~ e foi :acultada a _toda a gente. Isto é, uma vez que se im-
~os, deixa de ter 1mportancia especial quem foi O primeiro a desenhar essa
imagem; ~ ele,11:ento decisivo é que a maioria das pessoas a aceitou como re-
presentaçao valida da sua situação no contexto terrestre .

êi Pós-História
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Com a passagem para a Global Age - cujo marco é a constatação da plu-
1 ralidade irredutível (embora requerendo uma domesticação) das culturas no
.,, : ., ' quadro do sistema mundial cristalizado - começou o poslúdio da época mo-
~ ;i-• derna reguJar. A partir de J 945 , verifica-se que se extinguiu a potência cria-
dora de história dos portadores europeus da expansão. O mundo antigo con-
sumiu na exploração do planeta a sua capacidade de primeiro ataque, e as
suas energias excedentárias em duas grandes guerras , a segunda das quais re-
presentava a consequência quase inevitável da primeira, a qual era relativa-
mente evitável. Desde essa altura, para as suas interacções, os agentes da
constelação que daí resultou têm de escrever enredos cujo centrÕ.de gravida-
de se encontra fora da Europa - enredos que pressupõem talvez, de manei-
ra subjacente, que a constituição do sistema mundial teve lugar da maneira
e• que se conhece, mas, quanto ao resto , têm de se preocupar com coisas mais
importantes 189 . O olhar para o passado da Europa não tem significação para
a projecção do futuro do mundo no seu conjunto. Em contrapartida, o pre-
sente europeu tornou-se exemplar de outra maneira, pois é habitado por um
, conceito c!_a política pós-imperial que chegou praticamente à maturidade ·-
um conceito que começa também a seduzir os americanos cansados da Amé-
rica l 90. Enquanto exemplo ·de potência mundial doce, poderia em breve
propor-se como modelo noutras regiões , sobretudo na Ásia e na América do
Sul. Quanto à utilidade da história para a vida, ele consiste sobretudo, depois
ele 1945 , em reunir os doss iês para eventuais inventários de danos. A história
moralizada dá endereços para o regresso das vítimas ao local do crime - on-
' ' de esperam encontrar os criminosos, também eles regressados, sem pensar

l 89 Esta restrição do conceito de hi stória é, no nosso entender, a única mane ira de consumar a
ruptura com os dogmas do eurocentrismo, do evolucionismo e do universa lismo imperial sem
negar ne m red uzir o papel e a fun ção da Europa; quem quer «provinciali zar a Europa», só o po-
de fa ze r tomando todas as dimensões reai s da produção ele mundo durante o epi sódio europeu ,
·111rc 1492 e 1945. Cf. Dipesh Chakrabarty, Provincializing Europe. Postcolonial Thought and
llistorical Dijference, Princeto n e Oxford , 2000.
l90 ·r. .l e re my Rifkin , Der europiiische Traum. Die Vision einer leisen Supermacht , Frankfurt ,
0011 : b ·111 co rno Ulri ch Bcck e Edga r Gane, Das kos111opolitische Europa , Frankfu rt , 2004.
I -
U ião Soviéti@ 191 . Neste contexto, não é de espantar que constatemos uma

forte tendência da maioria dos historiadores clássicos para se cingirem à pers-
pectiva nacional. Regra geral, as grandes narrativas sobre as nações modernas
Peter Sloterdijk Palácio de Cristal

do Europa , mas ap~ as i.mp.~.1:iali~m._o.§.11acionais c0ncorrentes~de~países_colo,-


nizadores e redes d~ ordens missionárias rivai;;, a c :ítiç-ª tão espalhada do eu- " ' 11 '
rocentri; ~o tà lha 'êm g-r~ ;--p; i·te o.. seu al·v~ ·o agente que essa crítica quer "' /
183

(/f ,·
atingir é uma ficção p.ós-colonial: a Europa existe apenas enqÜant:Ó--~uJe its> _da .,..., .,. 't.,
e o seu papel no mundo não eram apresentadas como simples histórias auto- 1
-sugestivas de cultura e de liberdade dos sujeitos colectivos; apoiavam mui- autocrítica e obj~çto da crítica exJ§JE..~2st fe s.!!:!-p-A ~ iã_q_E~~p<_?ia,!Qr.n,2u- ·
1
-s~ pos j,v~l quando todas. as naçõe.s que dela são merribro$~se e.n.c,ootr&ram • ',
tas vezes directamente as pretensões imperiais das nações de narradores. Só , . . 1 j,_,Lt ~.
numa sit__ ação p~s-(~e.e.!'lª :.
os historiadores da arte, da filosofia e da economia tinham acesso mais livre
aos estratos extranacionais e supranacionais; é neles que o espírito de pacifis- / /{ I f. l ,' I' ({ e.,/ "ltv''r
mo universitário melhor podia libertar-se da tutela das mentiras nobres ao ser-
1 ''
j
viço do colectivo de poder específico. o, ç ... 1. (,/t )\tJ· /:111/':,;/
Neste contexto, haveria que remeter os críticos do eurocentrismo para um I

facto importante: e~ n.!:!l!.m_pomento houve projecto comum de captura eu-


rope_i~ do_mundo , de tal forma que , in actu, nunca ninguém reclamou uma
narrativa centralizada e inspiradora consagrada à acção de um colectiv9_con-
quistador. Para lá do globo terrestre e das obras cartográficas, as potências co-
'Ióniais não tinham instância de coordenação superior - à parte certos gestos
universais e impotentes da Santa Sé. À falta de coordenação, s_~_existia urna
série descosida de projecções nacionais no grande e no todo - umaJlistória
mÜn~ial da Espanha, uma história mundial da IngJaterra, uma história mun-
dial da França, uma história mundial de,.EorJ~al, e talvez também uma his-
tória mundial _da Holanda. Quanto à história mundial dos Alemães, a cmtesia
do historiador poderá, por esta vez, passá-la em silêncio. A dispersão das ex-
pansões políticas repetiu-se ao nível das potências missionárias cristãs. Bem
longe de seguirem um plano eclesiológico geral, os Jesuítas, os Franciscanos,
os Dominicanos, a Fraternidade de Herrnhut, essa comunidade que possuía
inúmeras missões protestantes, e numerosos outros agentes da fé trabalharam
cada qual nos seus próprios reinos mundiais pós-apostólicos 192 _Todas essas
histórias de propagação da salvação na Terra habitada foram ainda, num pri-
meiro tempo , escritas na febre das acções conduzidas nas memórias nacionais
e eclesiais. Será preciso sublinhar que para todas elas, entretanto, soou a ho-
ra da arrumação nos grandes arquivos? Como nunca existiu um act~r chama-

191 A série dos hi storiadores propriamente ditos (após os prelúdios filosóficos de Voltaire , Her-
der, Condorcet e Hegel) é formalmente aberta por Jacob Burckhardt que , no seu estudo sobre
A Civilização do Renascimento na Itália ( 1860), traçou um quadro luminoso do início da era eu-
ropeia da captura e da criação de mundos. Entre os que viram chegar o seu fim, Qs..w.ald.Sp.e11:;
.,_gl!, continua a destacar-se: os seus estudos sobre o «declínio do Ocidente» são um canto do
adeus histórico-morfológico à cu)turi) «fau stiana» , considerada como a única capaz de pensar a
ideia da história e que foi a única a produzir, a viver e a reflectir a «história» no sentido estrito.
A meio cam inho en tre Burckhardt e Spengler encontra-se o jovem Nietzsche (que sob a palavra
de o rdem dos inconvenientes da hi stóri a para a vida) tomou posição co~-trà o_devir-idiota do.hi s-
lori c ismo . Al[recLToynbee , na sua obra tardia Manki,;;f and Mother Earth, abriu cam inho para
11111 po111 0 de vista pós- histórico.
1' >'.' ( T I lors l Gründcr, Welteroberu11g 1111d Christentum , op . ci t. ; Karl Hammer, Welt111issio11
1111,I l,i>lf> 11 i11 /i.1·11111s. Se11d1111gsidee11 de.1· 19 . .lahrhu11derts im Konjlikt , Munique, 198 1. Ver alrns ,
11 p 1 \\ l' ... :-. .
1,
.,, Palácio de Cristal 185

r.'· r\ estado-maior 194 . Uma nova estética da imersão começou com ele a sua mar-
' /, \f cha triunfal através da modernidade. Aquilo a que hoje se chama_s:apitalismo
.,,
1
psicadélico era já um facto consumado ne_s~se edifício, por assim dizer, des-
materializado e artificialmente climatizado. Durante a primeira exposição
universal agruparam-se nele uns dezassete mil expositores , sete mil dos quais
provenientes da Grã-Bretanha e das suas trinta colónias. Com a sua edifica-
ção , o princípio de interior franqueou um limiar crítico: daí em diante, já não
significava nem a habitação burguesa ou aristocrática, nem a sua projecção na
esfera das arcadas comerciais urbanas - visava antes transpor o mundo ex- 1h" ç11
33 O Palácio de Cristal terior enquanto todo para uma imanência mágica , t~~sfig!:!_ra9a pelo luxo e o , .(~ t:
cosmopoli~ismo. Após ter sido adaptado para se transformar numa g;rancl~~ s- · {' I ~
tufa e num museu imperial ela cultura , revelou a tendência ela época para ,
Entre os escritores do século XIX que, do seu posto de observação na peri- transformar a natureza e cultura , à uma, em assuntos ele interior. E, embora ,
feria este-europeia «retardada» , consideraram os jogos muito avançados de num primeiro tempo, o Crystãt Paiac e nãÕ-tenha sido concebido para os es-
exploração agressiva do mundo com uma reserva crítica, Fiódor Dosto~ ski pectáculos musicais, desenvolveu-se de forma a tornar-se local ele concertos
revelou-se o diagnosticante mais clarividente . Na sua novela Càdernos do singulares e antecipou, com programas ele música clássica interpretados pe-
Sub_terrâneo, publicada em 1864 - que não constitui apenas o documento rante um público gigantesco , a era elos concertos pop nos estádios 195 .
• l'
fÚndador da psicologia moderna do ressentimento, mas é também a ri ~ Um pouco mai s tarde, Dostoiévski estabeleci a um nexo entre as impressões
~1essão da o osiç_ão à globaJi~çãQ , se é legítima a retrodatação _d ? termo cépticas que lhe deixara a sua visita a Londres e a intensa aversão que lhe ins-
- , encontra-se uma formulação que resume com uma força metafonca sem pirara a leitura do romance Que_Fazer? de Tchernichevsky, publicado em
ioual o devir-mundo do mundo no início do fim da era da globalização: estou 1863 , e , a partir dessa associação ele ideias desenvolveu a mais poderosa visão
t, -· • . . • - ~ - ·--· -·-
ª falar -da fórmula segundo a qual ~ civilização ocid~ntal é .u m ~ -alá~ çLde,. produzida no século x1x em matéria de crítica ela civilização. No citado ro-
cristal>~_._Quando da sua visita a Londres , em 1862, Dostoiévski visitara o pa- mance , famoso na época (e ele tendência resolutamente pró-ocidental) , procla-
lácio· da Exposição Uo.i.Yersal em South Kensington (cujas dimensões ultra- mava-se , com consequências que se prolongaram até Lenine , çl chegada _desse
passariam as do Crystal-Palace de 1851) e logo apreende_r.a intuitivamente as ""«Homem Novo» que, uma vez consu_mada a solução técnka ela questão social ,
incomensuráveis dirl}_e_n.sõ.e s. simbólicas f _.progrfcl111áticas desse edifício híbri- viveria entre os seus semelhantes num palácio colecti_vo. ele viclrQ, ~ d~ 112etal -
do. Como o novo -edifício da Exposiçªo Universal não possuía nome especí- o arquétipo elas comunidades ele habitação no Leste e no Oeste. O palácio ela
fic o, somos levados a pensar que Dostoiévski transpôs para ele o nom.e de a- cultura ele Tchernichevsky era concebido como um edifício ele luxo com ar
lácio de cristal 193 . condicionado no qual devia reinar uma eterna Prima~ o _ç_ons_eQ.~0. O sol
-.Õ original gigantesco que foi construído com elementos prefabricados se- elas boas intenções brilharia nele dia e noite, a coexistência pacífica de todos
gundo os planos do perito em horticultura Joseph Paxton a partir do Outono com todos seria automática. Uma sentimentalidade sem limites determinaria o
de 1850, no Hyde Park de Londres, tendo sido inaugurado em 1 de Maio de c lima interior e uma moral doméstica humanitária e abrangente haveria ele le-
1851 na presença da jovem rainha Vitória (antes de ser reinstalado em 1854 , var a urna participação espontânea ele todos no destino ele todos . Para Dos-
ampliado segundo proporções melhoradas, no subúrbio de Sydenham, em toiévski , a imagem da entrada de toda a «sociedade?> no l?ªlácio da civilização
Londres), passou, até à sua destruição num incêndio , em 1936, por um prodí-
gio tecnológico - um triunfo da realização em série centralizada a nível de
a
sim.Q_oliza vontade ela fracção ocidental da humanidade , vontade de concluir
num relaxainentõ"pós-histórico a iniciativa queJanç9u com vista à felicidade
elo mundo e do entendimento entre os povos. Após o escritor ter descoberto ,
ciL;rant~ O- tempo em que esteve deportado na .§ibéria , O que é a existência )JU-
193 Mai s pormenores em: S ~hdren Ili ..S.dliiume PP- ~ -350. Os refl exos literários da vi sita de
1]! ~ a clos_mqrtos», a perspectiva ele uma cas_a _f~chacla da_ vida revelou-se- }, ,
Dosto iévski e nco ntram-se no se u folhetim de viagem Notas de In verno sobre Impressões de \le-
riio. 1863 . um tex to no qu al o autor zomba dos «sargentos-chefes da civili zação», do apego à cs- - lhe: a biopolítica com~ça sg b a f9i:_ma ele um ecl1J.1.s!.º e!TI recinto fechado. j' .• 1
1111:i dos «progress istas ele ora11.gerie» e ruanifesta o medo que lhe inspira.o. Lriunfaljsruo baaliano
do1 p;il;k iu d.i Ex posição Universal. Dostoi évs ki vê na burguesia franc~s!.a equa ão iós-hi stó ri ca l 94 obre a hi stó ria do edifício , cf. Churnp Fri eme rt, Die gldserne Arche. Kristallpa/ast Lrmdon
, 1. , l,1111i; 111 id;idc · d;i dete nção do pode r de compra: «Possuir dinheiro lél a maior virtu le e o maio · 18 / 1111(/ 1854. Munique , 1984.
•1. \ t"I !11 11 11 , 1111 1,))
~ .. , 11'~ 195 ·r. Mi ·lm ·I Mu sgra ve. 7'/ie M11 sical Lif e of the Crystal Pa/ace , Cambridge . 1995.
186 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal ,, , I /. lt .
~- ·, / ' 1 ·,,,' - { ,1, I ,' < i ,,, J, l.. /
V I 11 '' I
É a partir desse ponto que o motivo do «fim da história» empreende a sua bertaçã.9 do __m-ª.l no_ser humano. Aquilo que era o pecado original aparece à / ' '
marcha triunfal. Os visionários do século x1x já tinham compreendido, talco- luz do dia ,_no clima de conforto universal, sopa forma de uma liberdade tri-
mo os comunistas do século xx, que a vida social, após o fim da história Ç.O.lJl- vial de praticar o mal. Mais: o mal, privado dos seus pretextos históricos e das
1 baJ~nte, só poderia desenvolver-se num Ínterior ilargado, nu~-;sp~~-~emo suas roupas utilitárias, só no_ltc:!io pós-hisJórico (skuka) se pode cristalizar N,,,J
1. 1, ordenado como uma casa e dotado de um clima artificial. Seja o que for que sob a sua _f2rma quinta-éssencial: purificado de todos os subterfúgios, passa a / /
ser manifesto - para surpresa talvez dos ingénuos - qy_~ o.mal.de..t.é.m.J:Lqua~( 'í',t·;
entendamos pelo termo de história real, esta, tal como os seus ferros de lan-
ça, a navegação marítima e a guerra de expansão, deveria continuar a ser uma lidad~.s!..Q...P-uro ~ ~pricho. Exprime-se como acto de posicionamento abissal,
como um osto arbitrário pelo sofrimento e o fazer-sofrer, como uma !ks-
J
perfeita encarnação das empresas conduzidas ao ar livre. Mas se os combates
históricos têm de desembocar na paz eterna, haverá que integrar toda a vida truição vaga unda sem motivõses_pecíficos. o ma1 moderno éª ~~gawctade ~t, ~ L
,,. social__ num habitáculo protector. Nessas condições, nenhÚm acontecimen,to d~ e.!E reg_i!_clª - um prod_uto típico da situação, pQ§-históri~a. A sua edição
•, histórico poderia já sobrevir:, quando muito alguns acidentesd-o~ésticos. Não para o grande público é o sadomasoq,uismo praticado nas c~sas d<!s classes 1,
, haveria pois já política nem eleitores, unicamente concursos de humorês en- médias, no qual pessoas inofensivas se atam mutuamente às barras da cama
1 tre os partidos e flutuações entre os seus consumidores. Quem poderá negar para viver algo de novo ; a sua versão de luxo é o snobismo estético que pro-
que, nas suas propriedades essenciais, o muQÇ!o ocidental - e nomeadamen- fessa o primado da preferência fortuita. Nos mercados destinados à juventu-
te, a União Europeia após a sua relativa-·~onsumação ~m Maio de 2004 e a de, nos quais se difunde o prêt-à-revolter, o mal integrado parece cool . Valor
assinatura da sua constituição em Outubro do mesmo ano pelos represe~tan- ou não-valor - tanto um como o outro se fundem no resultado de um lance
tes dos povos europeus - corporifica hoje precisamente um grande interior de dados. Sem razão especial, no tédio, apreciamos isto e rejeitamos aquilo .
cjesse tipo? - - Dizermos, com Kant, que este mal é radical pouco interessa objectivamente.
Esta gigante~_ça~ s.!!lf<l_fl_o relaxamento é dedicada a um culto jubiloso e fre- Como a sua raiz não pode descer mais fundo do que o capricho , não ganha-
i / nético de Baal, para o qual o século xx propôs o nome de consumismo. O mos nada em qualificá-lo de «radical» - este adjectivo produz um relâmpa-
Baal capitalista que Dostoiévski julgou reconhecer na vida ch"õ"Za:;t~ lá- go de teatro ontológico para explicar que, no fim de contas, não sabemos de
cio da Exposição Universal e das massas londrinas que nele vinham divertir- onde vem o mal.
-se , não toma forma apenas no edifício propriamente dito, mas também e não Será ainda necessário dizer que a grande fenomenologia do tédio de Hei- {.
menos na turbulência hedonista que reina no seu interior. Aqui, formula-se degger:-no__período de 1929 a 1930, só se pode compreender cô1íiÕuma s aída '
uma ~va teoria da§.. c.oisas últimas .ob-a fo1:ma de um dogmatismo do con- do palácio de cristal esta.b~lecido em toda a Europa (embora seriamente pre- í' :.
,, sumo . A edificação do palácio de cristal só pode suceder a «cristaliza ão» da judicado pelos danos de guerra) , cujo clima moral e cognitivo interno - a ine-
1
, J rsituação ~o seu conjunto - com essa expressão fatídica, Ar;Ôld Gehlen filia- vitável ausência de toda a convic:,:ção '@liQ.as o carácter supérfluo de toda a de- l . ,
~se directamente em Dostoiévski. O termo de «cristalização» d; sign-;- o pro- cisão individual - é...E.~ ~ visto_ç_om_mais clareza do que em nenhum outro 47:' 1
_, ~ecto ?e gener~~zar n<_?rmativamente o tédio e proibir gu~ ~ história» faça de .!!:!_g_ãr? Com a sua descrição da exist~ ia .iuautêntica em O Ser e o Tempo, em k
nqyg mupção noõ:iünao püs-rustói:ico . Encorajar e proteger a imÔbilidãéte.be- 1927, e mais precisamente [1,9S f.a mosos parágrafos sobre o Man (o «se», ou I A,i 1
nig~a é agora o objectivo de todo o poder de Estado . Por natureza , o tédio ga- sujeito impessoal) (que poderiam ter sido inspirados pelas invectivas de Kier- r1-,·, ri,.
rantido pela Constituição assumirá a forma do _projecto: o seu indicativo psi- kegaard contra o «público» na sua obra A Nossa Literatura de Imprensa) p_re- j
cossocial é o ~ . t e de renovação , a sua tonalidade fundamental é o para o seu estudo sobre a sensibilidade fundamental do Dase.in entediado. Foi ,,,.
_ogtimism9. Na realidade, no mundo pós-histórico, tudo deve ser orientado pa- 1eles que tomou forma a revolta fenomen; Íógica c-;-ntra as exigênci~s da es- /
ra? futuro porque !leste é que reside a única promessá"" que devem~'s absolu- tada no habitáculo técnico. Aquilo a que mais tarde se chamará o Ge-stell ~
'" ~ l

tan:iente fazer a uma associação de consumidores: o conforto não parará de (Dis-positivo) é ~sclarecido em pormenor pela primeira vez - nomeadamen-·.
flu1r e de crescer. Assim sendo, o conceito de direitos humanos é indissociá- te no que diz respeito à existência inautêntica, privada de si própria. Quando [
vel da g_rande marcha para o confÕrto, ~a medida em que as liberdades que cad~ e~soa é outra e nenhuma é ela própria, o humano é despojado da sua L•

e les designam preparam a realização dos utentes. Por conseguinte, só estão ek-stase, da sua solidão, da sua própria deçjs~o, da sua ligação qir~ ª ~g_ ex- /,, ,
1 1
cm todas ª: bocas aí onde há que edificar os alicerces institucionais , jurfdicos terior absoluto, a morte. A cultura de massa, o humanismo e o biologismo são
l " ps1cod1na1111cos do consumismo . ,is m~scaras alegres sob as quais se oculta, do ponto de vista do filósofo , o pro-
Mas Dostoiévski estava firmemente convicto de que .a az eterna no pal á- rundo tédio da existência que não tem desafio a enfrentar. A missão da filoso-
1
1" (k n, st.d só podia levar ao desnudamento psicológico dos seus habitan- fi a seria então fazer explodir o tecto de vidro por cima da própria cabeça , a
,.... . 1\ r\·l11 xu,·fio , di z o psicó lo o cristão , tem por con ·equênc ia incviláv I u li - fim ele rcp r o in livíduo numa relação imediata com o mon struoso.
188 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal 189

,1,,..K' · Quem recordar o fenómeno eun.!5.._que pairou sobre a cultura dos jovens nos uma observação síncrona, compreende-se imediatamente por que motiv<? Ben-
anos 70 e 80 do século xx tem uma segunda ilustração do nf~0 entre o flui- jamin é ultrapassa,do por Dostoiévski , embora este se tenha contentado com
do omnipreseryte do tédio e a agressão generalizada. Numa certa medida, Hei- uma visão bastante lacónica enquanto aquele mergulhou durante vários anos
degger era o fi!ói>ofo_puflk d9s _anos 20, um jovem intelectual em cólera que no estudo do seu tema. Os trabalhos de Benjamin sobre o estar-no-mundo co-
abanava as ban-as da filosofia de escola - mas não só essas barras: atacava mo deslumbramento pei; Maya capitalista, pela escolha do objecto, estavam
também as grelhas do conforto urbano e dos sistemas de despossessão da condenados à falta de plausibilidade, tanto mais que con-iam desde logo o ris-
existência próprios do Estado-providência. Para dar conta dos seus motivos co de explic?-r o actual a partir.de UOLobjecto anaci:ónico: estavam centrados
filosóficos - isto é, do núcleo da sua reflexão, que tem a ver com a lógica num tipo de edifício ultrapassado do ponto de vista arquitectónico, económi-
temporal - há que distinguir neles a tentativa travessa de redramatizar o co, urbanístico e estético, que, por isso, não podia carregar com todo o peso de
mundo pós-histórico .do tédio, mesmo pagãnctõ"·; preço de fu·zer-da~i tástrofe uma hermenêutica do capital. A expressão bem conhecida segundo a qual, ao
a mestre-escola da vida. Nesse sentido, Heidegger teria podido dizer dessa estudar as «passagens», quis escrever uma «paleo-história do século XIX», re-
« evolução nacional» na qual, por um breve período, participou, que, a P..artir vela a pretensão pouco clara de Benjamin de procurar o supratemporal no que
dés se insta nte e desse lugar, começava uma época de re-historização e que ele já está ultrapassado. Em todas as formas de expressão do contexto financeiro
)não se contentou com esta~Qres.ente mas a ensara _ant~cipadai:nente e dedu- moderno, Benjamin queria ler os códigos da alienação, como se não fosse só
' zira o se_1:U.entido_~ amente . Como dramaturgo do ser que terá de voltar Deus quem está no pormenor, como acreditam os partidários de Espinosa 197 e
a ad-vir, Heidegger exprime o postulado de uma evasão para fora da platitu- de Warburg, mas também o Diabo. A ideologia do pormenor alimentava-se da
d~J~_ ós-histórica a partir do centro de reflexão Al~manhã ,' como que· pª,ra-ad- suposição segundo a qual o valor de troca, esse genius malign.us do mundo
mitir a história mais uma vez, no último momento; nessa lógica, note-se, a moderno , que habitualmente era considerado invisível , assumia uma forma na
«história» não é feita, mas sofrida de maneira medial. Os Alemães, único po- ornamentação da mercadoria e se revelava nos arabescos da arquitectura das
v9 capaz de sofrer do abeJto e do monstruoso, teriam de impor mai s urna yez passagens. Segundo essa superstição do pormenor, os estudos de Benjamin es-
' a sua lei a grande escala e conclamar o mupdo como testemunha da sua pai- cavavam as suas galerias em trabalhos subterrâneos de biblioteca. Eram im-
xão. Segundo o filósofo, caber-lhes-ia apresentar a prova de que, !J_Q..m~ig_do pelidas, por um génio sem liberdade, numa direcção sem saída. Quanto mais
conf?rtável e. do arbitrário: existe semp1:e e mais uma vez U[Iµ _«ev idência» material acumulavam, mais enterravam o pensamento fecundo da empresa,
que pode comandar os actos históricos - uma evidência que aparece mais ao que visava pôr a nu a energia do modus vivendi capitalista, criadora de inte-
ouvido obediente do que ao olho céptico. Com efeito, ninguém olha para o rior e de contexto. A interpretação dada por Benjamin às passagens inspirava-
exterior, mas alguns apercebem um apelo do exterior. Se os Alemães tivessem -se na ideia marxista realista , embora trivial, de que por detrás das supe1fícies
cumprido o qL~ a fabulação de Heidegger deles esperava, teriam feito com- brilhantes do mundo das mercadorias se dissimula um mundo do trabalho bas-
preender aos seus amigos e inimigos que era a eles que a luz da necessidade tante desagradável e por vezes sinistro; era deformada pela sugestão segundo
iluminava como que pela última vez 196 . Mas a ironia da situação quis que a a qual o contexto mundial criado pelo capitalismo era, enquanto tal , o inferno
evidência mudasse de campo e assentasse arraiais no adversário: é verdade - habitado por condenados que, lamentavelmente , não tiravam nenhuma li-
que o antifascismo era a coisa mais clara que a época podia oferecer de um ção da sua condenação. Sob a forma de sombrias alusões, sugeria-se que o bo- /,
ponto -de vista moral. Além disso , a-liou-se aos Estados Unidos, esses perfei - nito mundo sob vidro era uma 111etamo1fose do Inferno de Dante . Nesse con-
tos exemplos de emigração para forª' da «história» que , em suplemento ao in- texto , era impossível obter uma ideia da maneira como poderia ter lugar uma
terior total do palácio de cristal, haviam de inventar o parque nacional e o par- reconstrução democrática das passagens e, mais ainda, como se poderia pen- /
que de atracções pós-históricos em pleno ar livre. sarou sequer desejar uma saída das «massas» da matriz ou do «campo» doca- //
pitalismo. Vistos no seu conjunto, os estudos de Benjamin testemunham a fe- ' '/
\' t• ; ' Do ponto de vista da filosofia da história, a melhor maneira de medir a for- li cidade vingadora do melancólico que constitui um arquivo para provar que
ça da metáfora dostoievskiana do palácio de cristal é de a confrontar com a o mundo é um fracasso. • ' / ,
interpretação dada por Walter Benjamin às «passagens» parisienses. A com- Se os importantes impulsos dados por Benjamin para o século xx e o iní-
paração é tentadora, pois , num caso como no outro, se proclamou que uma c io do século xx1 houvessem de se prolongar pela escrita, teriam , para lá ele
rorma arquitectónica era a chave do estado capitalista do mundo. Praticando al gum as correcções metodológicas , de se reorientar também quanto ao fundo;

1% Snhrc li i111 crpn:1nç~o da 1coria hcidcggeriana do tédio no con1 ex10 cio desenvolvi111cn10 dn l 97 r. Barud1 Espin osa, Óica, Parle V, princípio 24: «Quanto mai s compreenclcmos as cois11s
11111 11 11 1· d 11 11· l11 x11 ~·1 11 1ll\1dc rn a . vi//,, S11hllre11 Ili, Schü11111e, p. il., pp . 728 . q. p11r1i ·ul111"s, 11111is comprccndcrnos Deus.»
1()() Peter Sloterdijk Palácio de Cristal 191

d ·v i11111 procurar a sua referência nas maquetes _arquitectónicas_do presente - A sua crescente integridade não servia, porém, para elevar o capitalismo ao
• 11()111 ·adamente nos-Sho . in Màlls (que, desde a abertura, em 1954, do nível de uma religião que universaliza a culpabilidade e as dívidas , como su-
Soulhdal e , perto de Min;eapolis, o primeiro complexo de edifícios deste ti - punha Benjamin, numa nota precoce excêntrica201 , pelo contrário , levava à
po , desenhado por Victor Gruen, se propagaram como uma epidemia pelos substituição do escudo psicossemântico proposto pelas religiões históricas
ê sla los Unidos e pelo resto do mundo), nos centros de feiras, nos grandes ho- pelos sís~mas da previdência activista. Esse interior mais abstracto e maior
té is, nas arenas despory:ivas e nos parques de a venturas indoors . Tais estudos nãÕ pode tornar-se visível pelos métodos da caça aos tesouros nas bibliotecas
poderiam então chamar-se O Livro dôs Palácios de Cristal, O Livro das...Es- utilizado por Benjamin 20 2 .
tufas ou até, em última instância, O Livro das Estações Espaciais 198 . Aspas- Uma vez tendo aceite a metáfora do «palácio de cristal» como emblema
sagens encarnavam incontestavelmente um ,1>ensamento sugestivo do espaço para as ambições finai s da modernidade, po~~_mg s refundar a simetri~ muitas
na era do consumismo nascente - cumpriam essa fysão, tão estimulante pa- vezes assinalada e muitas vezes negada entre o prograll!a capitalista e o pro-
raB enjaniin : do salão e do universo num interior público. Aos olhos dos in- orama socialista: o socialis~o/~omunismo era muito simplesmente o segun- · t
o . 1 .d / ' ( .
l,
vestigadores , eram os «templos do capital das mercadorias», as «ruas lascivas do estaleiro do projecto de palácio . ~nce1Tado o s~u c1c o, torn~-se ev1 en5e !e-' r,J
do comércio» 199, projecção do bazar oriental no mundo burguês e símbolo da que o comunismo era uma eta a na via do consl!m1smo. Na sua mterpretaçao (
metamorfose de todas as coisas à luz da venalidade - teatro de uma féerie - ---- ---- --- - . ,,.. \Lf\t
capita rista, as correntes do desejo conhecem um desenvolvimento de poten- \~
que transforma por magia o cliente, durante a sua visita, em senhor virtual do eia incomparável - o que também começam a admitir pouco a pouco os que ,,
mundo . O palácio de cristal , que abrigou a Exposição Universal e, mais tard tinham comprado acções do socialismo na bolsa das ilusões , acções de que se
o parque ·de lazeres (consagrado à «educação popular»), mas também e mais conservarão alguns exemplares , como essas notas de mil milhões de marcos
afoda o que se encontra no texto de Dostoiévski e se destina a fazer da socie- do ano de 1923. Doca italismo, porém, só a_gora se pode dizer qu~. represen-
dade enquanto tal um objecto de exposição em si própria, designava,yorém , tou sempre mais do que uma «relação de produção»; desde sempre , .a sua
qualquer coisa que ia bem para lá da arquitectura das passagens ; Benjamin pregnância ultrapassou amplamente o que a figura intelectµ.al. QQ _«rpercado
referiu-se, é certo, muitas vezes a esse edifício , mas não quis reconhecer ne- mundial» podia designar. Ele implica o projecto que consiste em transpor a
le muito mais do que uma passagem ampliada (do mesmo modo que , nas in - totalidade da vida do trabalho, dos desejos e da expressão artística dos seres
talações para comunidades utópicas de Fourier, mais não via do que «cidades para a imanência do poder de compra.
de passagens») - neste caso , o seu admirável sentido fisionómico abando-
t', t • (. I
nou-o . Menosprezou a regra fundamental da análise dos media segundo a I
' 1
qual o f6rr½hfo é a mensagem. Com efeito, enquanto as passagens elitistas ,
I
que nunca ultrapassaram as di~ensões pequena e média, serviam para dar
1.' 1 ' t ~ '/
aconchego ao mundo das mercadorias 200 e a assegurar a sua encenação mo-
derna num passeio coberto, o g~gantes.co. palácio fie-cristal - a forma de edi- ~ . J 1
')

fício profético válida do sééttlo XIX (que foi imediatamente imitada em todo ( ') {,
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o mundo) - cowportavajá uma alusão ao_capjtalismo integral, orientado pa- \ \1

ra o_vivencial, popular, no qual o que estava em jogo mais não eradÕq ue \


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/ a) bsorção global do mundo exterior num espaçQ..!!}t~rio_!j_nteg~ ~e cal - 1
1'
culado.As passagens constituíam um intermezza coberto entre ruas ou praça ; \
•t o palácio de cristal , pelo contrário, invocava já a içi~iª · de um habitáculo sufi -
cientemente vasto para que eventualmente'-não _tenj)<!.,~ o deixar (uma
poss ibilidade que Dostoiévski, com a sua experiência intelectual do «palácio
íechado» examinara atentamente nas suas Recordações da Casa dos Mortos).

l 98 C f . a secção Absolute Inseln in Sphiiren 1/1, Schiiume, op . cit. , pp. 317-338.


199 Walter Benjamin , Gesammelte Schriften, Yol. I , Frankfurt , 1989 , pp . 86 e 93 . 20 1 «Kapitali smu s ai s Religion» ( 1921 ), in Gesammelte Schriften, Yol. VI , Frankfurt , 1985,
200 Sobre o moti vo do capitalismo «aconchegado» ou «não-aconchegado», cf. Dieter e Karin
PI . 100- 103 .
Claessens, Kapitalismus ais Kultur: Entstehu.ng und Gru.ndlagen der bürgerlichen Gesellscltrift , 202 ol r o probl ' 111<1 da percepção e el a rcprcscnlação que oferece o con1 ex10 capi1ali sl11 da
í'rankfurt , 1979 .
• is1 n ·i11 no s ·u ·onj un10, cr. Sphiire11 Ili , S ·!tü11111e11 , op. cit. . pp. 80 -833 .
Palácio de Cristal 19.

exclusivamente na perspectiva de partilharem os lucros, reforçam a plausibi-


lidade do postulado segundo o qual as regras do jogo da reciprocidade podem
parecer tão ev identes aos outros como a eles . Tal vale para os Estados em in-
teracção como para os actores privados .
Uma permanência crónica nos meios densos faz da inibição uma segunda
natureza. Se a exercermos suficientemente do ponto de vista moral e físico, o ,
facto de unilateralmente tomarmos uma iniciativa aparecerá como uma uto- (' '· ·
1
pia que já não corresponde ao estado de facto . A liberdade de agir, tal como ,L1 ' '·
era concebida antigamente, dá hoje a impressão de um tema de conto de fa-
34 O Mundo Denso e a Desinibição Secundária: das que remonta à época em que a agressão serv ia ainda para alguma coisa.
do Terrorismo Considerado Como Se observamos ainda aqui e ali uma expansão unilateral, tal é um indício
Um Romantismo da Agressão Pura ele que certos autores continuam a achar que vão encontrar situações pré-
-densas que encorajarão a desinibição. Mas, de maneira geral , podemos dizer
que as «terras virgens», onde quer que se situassem, encontraram todas colo-
O signo característico da g lobalidade estabe lecida é o estado de vizinhan - nos. Do ponto de vista da teoria dos processos, a densidade elevada sign ifica
ça forçada com inúmeros coexistentes de acaso. A melho; rnane-ira de definir que a fase ele êxito ela prática unilateral está ultrapassada, sem que se possa
esse estado de facto consiste em utilizar o termo topológico de ç!,eJJ.Sl.dade. Nu- exc luir, ocasionalmente, uma violenta réplica. Os actores são expul sos do
ma asserç~o sobre a densidade, descreve-se o grau da p_res§.ão ç!_e çqe_xistêpcia Éde~.. histórico, no qual foi prometida a salvação ao agressor unilateral.
e!ltre p1;1.rt1c ulas e agentes. Quem utili za a expressão detém um instrument Se a telíz,9_ill.l!.nicação constitui uma noção dotada de seriedade ontológica,
que não salvaguarda apenas uma distância relativamente às mitolooias cor- é porque designa a concretização prática da densificação. A telecomunicação
rentes da distanciação (como se todos os agentes tivessem orioin alm~nte for- ele estilo actual dá origem a um mundo cuja actualização comporta dez mi-
ma~o uma família antes de se afastarem uns dos outros na se;uência de uma lhões de e-mails por minuto e transacções electrónicas ele dinheiro no mon-
catastrote)_: esse 111strumento contribui também para ultrapassar o romantismo tante quotidiano de um bilião de dólares . Não compreenderemos pois esta
da pro~1m1dade com ~ qual os filósofos morais modernos queriam genera li - expressão demasiado corrente se ela não puser em evidência de maneira sufi- t , e,; .
zar mais do que convem a abertu ra voluntária ou forçada do sujeito aos ou- cientemente exp lícita a produção do contexto mundial construído para a coo- , ~- , r
tros203 _ peração, isto é, para a inibição recíproca , incluindo todos os tele-negócios, ·'< /
Uma m31ior densidade implica um aumento dµ probabiliçlade de_e,ocontros tele-assistências, tele-condicionalismos e tele-conflitos . Só esse conceito for-
entre centros de acção , quer no sentido das transacções, quer no das colisõe te da teJecomunicação como f?rm_a s apitalista ela actio in Jlis~ans se presta a
ou q_uase-c~lisões. Quando _dominam as relações densas , as condições gerai s descrever o tom e o 11)9do da existência no palácio de vidi;o~_9Jargªdo . A tele-
da C!l"cu laçao das mercadorias e das informações transformam-se de uma ma- comunicação traz um ap_o.io. institucional ao velho sonho dos moralistas, o de
neira que exige profundos reposicionamentos morais : os diktats unilaterais um mundo em que as inibições estariam à altura das desinibições.
passam a tornar-se tão pouco plausíveis como as não comunicações duradou - Por conseguinte , a esperança , Ernst Bloch que me perdoe, não é um prin-
ras. Ao mesmo tempo , a densidade e levada garante a resistência crónica d cípio, mas um efeito . O que nos permite a esperança, caso por caso (e que tal-
meio à extensão ~nilateral - uma resistência que, do ponto de vista cogniti- vez se preste a uma generalização na teoria dos processos), é ele duas nature-
v? , podemos avaliar como um clima irritante que permite processos de apren - zas diferentes: por um lado, o facto de as pessoas terem por vezes novas ideias
?'za~em . Act?res suficientemente fortes tornam-se mutuamente amáveis , que provocam transformações da vida aq uando da passagem do modelo à
111tel_1gentes e cooperativos 204 - trivializando-se assim uns aos outros. ap licação, tanto no domínio microscópico como em grande escala - por ve-
Fazem-no porque constituem uns para os outros obstáculos eficazes e apren- zes, são boas invenções sem grandes efeitos secundários e encerrando um ele-
deram a compensar os seus interesses pessoais . Na medida em que cooperam vado potencial epidémico. Por outro lado, a constatação de que normalmen-
te, em condições de suficiente densidade, por peneiramento, se extrai da
~ll:I C' f" • Em 1m, n_ue I Lev,n
- . as·, A 111re111e111 qu ,,etre ou Au-de/a• de I 'essence ( 1974) , LGF, 2004. ca- lorrente de ideias desejosas de se realizarem um resto praticável que constitui
l"'"'" ,d ,; 1 Prox11ni1é». pp . 129-155 . um benefício , senão para todos, pelo menos para muitos. A lógica da conden-
'I I-I c 1· N 1 3
on crl I olz. «Warum cs intcll igcnt ist, nelt zu se in», i11 , cio mesmo, Blind/7 11 1!, mit z11,1,. sação produz o efeito ele uma sequênc ia de filtros que asseguram a elimina-
, !,,,,,,.,. M 1111iq11 ·.005. pp . 59-68. . ·, o d orcn s ivas unilaterais e de inovações imediatamente nocivas _ por

-L... I 7 _,.,.
194 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal
- 195

exemplo, do tipo dos crimes violentos que só se podem praticar uma vez ou Esta constatação vale singularmente para aquilo a que recentemente se tem Tt-/l ..,,.,
em breves séries. Dessa maneira, por exemplo, as novas tecnologias suscep- vindo a chamar «o ~~n-o~ismo que opera a nível global», do qual se fizeram,
tíveis de provocar acidentes são excluídas logo na fase de desenvolvimento é certo, brilhantes análises parciais, mas para o qual , até à data , não se deram
ou então, quando são indispensáveis , são melhoradas até que o risco do seu explicações satisfatórias. A melhor maneira de , a nível teórico, prestar justiça

r
.), !.
,,:
funcionamento se torne suportável.
Pode qualificar-se de «c9municacional» o modo de acção da densidade, ma.
às suas manifestações fortes, nomeadamente , ao acto incrivelmente simples
de 11 de Setembro de 200 I , é de os ler como um indício de que, no contexto
pós-histórico, os perdedores activos do C;_a mpo não ocidental se apropriaram
1 unicamente n9 sentido em que temos o direito de qualificar de comunicações
aquilo que são restrições mútuas do campo de acção. Desse fenómeno que a ~o motivo da desinibição. Tal n_ão prova que o mal tenha vindo até Manhat-
má visão levava a chamar competência comunicacional, resta , após dissolução t~n, como o proclamou o folhetim moral, que nunca tem falta de palavras rá-

(, ,. :. .- I' ( -
da bruma, a inibi ão_recjproca. O célebre consenso dos razoáveis é o lado ex-
-
terno d<l capacidade de impedir mutuamente o recurso a acções unilaterais. Até
p1das.,f\._iostr~ an~es con:io uma nova vaga de actores descobre por si própria
as deltcias da umlaterahdade . Estes, ao contrário do que até aqui tinham fei-
o conceito de reçonhecimento , tratado a um nível um pouco elevado de mai
para a filosofia moral , designa antes a energia que permite a um agente gran-
to onnovimentos de perdedores após 1789 , não imitam o modelo de uma
«revolução»; ~cagµ~iarp directamente o momento original das expansões
... ,.
je;ir o respeito enquanto obstáculo potencial ou actual de uma iniciativa estra- eur_o~eias ª.P.:ó_s 14~2: a ~j11.ação d_a inércÍa po; um acto de ataque, a__assi- .(,.1 ,, , 1
nha. É a Jürgen Habermas que cabe o mérito de ter reconhecido na «integra- metn.~ eufoQzante que traz a agressão pura, o avanço irrecuperável que con- 1 ,_ 1
ção- do outro» um ·p rocesso destinado a estender o domínio de validade de segue quem chega ao sítio mais cedo e põe o seu sínal antes dos outros. Des-
mecanismos que se inibem uns aos outros - ainda que , ligado à tradição idea- sa forma, o primado da violência ofensiva pode voltar a fazer valer-se - mas
lista, dê erradamente uma interpretação dialógica ao processo: a «integração do desta vez a partir do lado que até então era sobretudo o do sofrimento. Co- ,
outro» nã_o é a extensão da esfera de acção na direcção da comunidade, mas, mo , porém , mesmo para os terroristas islâmicos, é demasiado tarde para re-
pelo contrário, o vestígio da tendência a eliminar a acção em geral - e a sua ver a repartição das coisas e dos territórios no globo, confiscam grandes ter-
substituição por jogos de personagem em projectos colectivos. Quanto mai renos no espaço amplamente aberto da informação mundial. É n_ele que
«integrados» estão os outros, mais se liquidam as possibilidades de agir."'õcie- er~uem os seus pendões , da n:.esma maneira que, antigamente, após os seus
semprego de massa dos «actores» é o rótulo da época. Deveremos , porém, en- desembarques nas costas da Africa e da Índia, os Portugueses erigiram os
tender isto como bom sinal: há que celebrar a construção de capacidades de ini- seus padrões.
bição recíproca como o mecanismo de civilização mais eficaz - embora não Se compreendermos porque é que as circunstâncias trabalham a favor dos
se devã esquecer que ao filtraF!DOS o que a prática unilateral tem de inoportu- terroristas, podemos também fazer uma ideia mais precisa da nossa própria si-
no e insuportável , eliminamos ta,mbém muitas vezes o seu lado bom. tuação: melhor que muitos produtores de televisão, os bombistas compreen-
deram que os senhores dos cabos não podem produzir todos os conteúdos em
Neste contexto, podemos explicar por que motivo a globalização da crimi- e~túdio e conti~uam a depender dos contributos de acontecimentos prove-
nalidade é instrutiva para a situação pós-histórica: as utilizações criminosas 111entes do extenor. Passaram a sabê-lo por experiência própria: eles próprios e •
no interior do palácio de cristal e na sua periferia indicam ÇQ!DQ e 011ge a de- oferecem os acontecimentos mai~ procurados, pois possuem prati~amente um
sinibição activa - antigamente idealizada como «práxis» - continuamente morib_pólio enquanto content providers no sector da violência real. Podem, 1. /..
volta a conquistar avanços locais sobre as forças inibidoras. A criminalidade além disso , antecipar a sua hipótese de mercado: o infospace, na Grande Ins-
-'· organizada assenta num melhoramento profissionalizado da desinibição , que talação, continua também tão aberto aos actos invasivos como a África amor-
não cessa de encontrar novas ideias nas falhas de circunstâncias impraticá- fa o estava aos ataques mais brutais dos Europeus no século XIX. Tal signifi-
v&is. A criminalidade espontânea não testemunha senão a momentânea perda ca _que, a agressão continua a vender- ~ e que quanto mais impiedosa for,
de controlo de si em indivíduos confusos que o jargão dos juristas continua maior e a recompensa mediática. Desalmadamente divertidos, os agressores
obstinadamente a designar como autores. A criminalidade duradoura é essen- pe_rcebem os motivos disso: ~~ si_st~ma~ ~-e ~_2s~s dos habitantes do palácio de
cialmente um sentido da falha, fal ha do mercado e falha da lei , associado a cnst~ I podem ser ocupados sem d1f1culdade por quaisquer invasores, 12ois os ,
uma energia que nada dissuade de passar ao acto. Com ela, o estado de facto re fendos ocupantes, entediados com o palácio , continuam à espera de notícias
constituído pela paternidade de um crime cumpre-sêem todoo seu sentido, do exterior. Os subutilizados programas paranóides dos cidadãos da zona ele
11;io só jurídico , mas também filosófico. Os criminosos que se organizaram prosperidade agarram e ampliam com sofregui ão os mínimos sinais que pro- j
rn m cx it o não são vítimas dos .nervos, são pelo contrário testemunhas princi - v m a ex istência de um inimi go exterior. Na infosfera hi terizada, esse tipo A
p;1i ~ da lih rclc1clc ele ag ir, a despeito do contexto universal ela inibiçã . d amp li nçã é di stribuído sob a forma de umat agem da situ açã ·ws co n-

_J ~ L )..1 ,.
Peter Sloterdijk Palácio de Cristal 197
196

sumidores do terror, que abso~ ~~ ~ -~a ã? jndirecta ?e ~1::1eaça ::?m~ m Stockhausen contra os autores do drama de Nova Iorque , acesso que bem me-
estimulante para o seu pJQP.rio 01etabolismo. receu a celebridade mundial que teve, diz mais sobre a verdade desse dia do
A s~rna cÍestes··eÍementos quase teóricos produz nos te1TOristas uma prática que toda a indústria da literatura sobre o 11 de Setembro207 .
coerente: quando colocam as suas explosões telegénicas nos locais apropriado , Sob esses aspectos, corr1preende-se_J2Qr,_gue _(!!Otiv2 _o neolib~ralismo. e o
utilizam intuitivamente a constituição hipercomunicativa da infosfera ociden- terrorismo seguem juntos tal como o r.osJo e o verso da mesmcJ, folha. Lê-se
tal. Com algumas invasões minimalistas conseguem influenciar a totalidade do em ambas as páginas um texto idêntico e claramente articulado:
sistéma, na medida em que estimulam os seus pontos de acupunctura, se assim
n~·s podemos exprimir205 . Podem confiar no facto de que a única medida anti- «Para os homens que têm espírito de decisão , a história não chegou ao
terrorista que garantiria o êxito, a saber, o silêncio absoluto dos media quanto seu termo. O unilateralismo continua a compensar, como sempre compen-
aos novos ataques (ou então a instauração de uma quarentena da informação sou , quem confia na agressão . Os eleitos podem continuar a considerar o ·.
que produzisse uma distância entre o atentado e o seu eco sensacional), seria mundo como um bem sem dono e quem tiver a vontade necessária para ata-
inevitavelmente bloqueada, porque aqueles fariam questão de exercer o seu de- car tem o saque ao alcance da espada. A liberdade de avançar é a essência
ver de informar. É por isso que os «nossos» canais de excitação transmitem da verdade.» •
quase automaticamente as impulsões locais do terror aos adultos consumidores
do terror no palácio de cristal. A obrigação de relatar garante por um período Deveremos admitir que se trata de um canto de sereias - e não existem
indeterminado o terrorismo como arte de azer falar e siX o Í n o ~ mastros que cheguem para neles atar os que o ouvem. Tal música da desini-
rigentes do terror, tal~c~mo todos os co;quistadores que os precederam, podem bição antes da passagem ao acto é bem-vinda para os indivíduos hipertónicos
assimilar o êxito e a verdade. Absurdo ou não, o resultado da transacção apare- que desejem investir os seus excedentes de energia, seja no sentido da em-
ce no facto de se falar realmente deles - com uma regularidade que coloca o presa, seja no sentido da vingança .
terror na mesma linha que a meteorologia, os mistérios das mulheres e os últi- É pois apenas à superfície que se representa na cena do mundo uma peça
mos movimentos da bolsa. Embora seja um fantasma que raramente se mate- que , na coligação dos bem-intencionados, leva o nome de «agressão dos fun-
rializa, goza de um prestígio ontológico que, normalmente, só é atribuído aos damentalismos» ; a um nível mais profundo , é o fundamentalismo da agressão
factos existenciais. Comparado com isso, o facto de os autores de atentados que inquieta. Embora pertença a uma época ultrapassada, os seus restos no
com pesadas consequências serem considerados como heróis em amplas partes mundo pós-histórico são virulentos. O que impele os agressores mais resolu-
do mundo não controlado pelo Ocidente é um aspecto meramente secundário. tos , sejam eles autores de atentados, especuladores, criminosos, directores de ,l-{' I /

O terrorismo deu provas de eficácia como estratégia de expansão unilate- empresas , ~rtistas ou seres eleitos , é a exigência de se transformarem_nt.Jm
ral no-continente pós-histórico da «atenção»: en.~.(ra_nos cérebr9s das «mª-s- raio de iniciativa pura - e isto numa situação do mundo que tudo faz para
sas» sem enfrentar resistência notável e garante um segmento significativo_no amortecer as ofensivas e desencorajar as inicj.ativas. Por conseguinte, o fun- 1_, (
Í
, I

mercado ~undial d~s emoções temáticas. É pois, como demonstrou Boris damentalismo islâmico, actualmente apercebido como o coroamento de uma J \ f,
Groys em penet rantes análises, estreitamente aparentado com as artes moder- agress ivtêiaéíé soberana e absurda, só é interessante como arranjo mental ,que, •
nas da acção e dos media; mais: porventura, limitar-se-á a extrair as conse- nas circunstâncias mais inverosímeis, permite assegurar a passagem prec~ria
quências extremas das tradi ões da arte transgressiva de inspiraç~o__IQ_mân.ti- da teoria à prática, ou então do ressentimento à prática, ou então do apetite à-
_ca206. Essa arte adoptou precocemente o objecti.vo de_ i@P~~igni_D~ação e prática, num grupo de candidatos à acção: seja-nos permitido recordar que
\ visibilid~de ~ :_ e~ sõ~ s agressi~as do procedimento artístic_o. O desenvol- a função cognitiva do «fundamento» é desde sempre a de eliminar a inibição
. vimento desse tipo de técnica durante o século xx pôs a nu o facto de que a do agente que tem pressa de agir. No domínio da teoria , os antifundamenta- I: l
utilização de choques não é uma prova do carácter grandioso de uma obra , 1is tas actuais têm boas razões para pura e simplesmente Qe a e ~ili> s~!JS
mas um simples mec! nismo de marketing. O famoso acesso de ciúmes de dientes o direito de espfrpr~m da sua parte instruções para a acção, seja de
que natureza for, o que é, claro, uma afirmação de autQRr~s/êrvação - para os
te_óricos , evidentemente, que , após a supe1i i:iundância de criminosos no sécu-
205 Paul Berman utiliza a comparação com as «picadas de pulga»; infelizmente, o autor tanto
se coça que se vê aparecer uma sobreinterpretação do terror islâmico como novo totalitarismo . lo xx, co~ ?.s!_e!:.am a que velocidade _nos p9demos _encqntrar do lado dos
cr. Paul Berman , Terror und Liberalismus , Hamburgo, 2004, p. 21; pouco preocupado com o c ulpados quando formulamos frases gerais. ~ -
1
coxear das imagens, acrescenta que as picadas de pulga fazem «parte de uma guerra»: assim sen-
J ' '
d<> . :,consçlha-sc mais uma vez o insecticida como grande política. .,Ili ,, \

.' Ili, ll<>ris Groys. «Terror ais Beruf», in Ausbruch der K1111st. Politik 1111d Verbrechen li , organi- U? f. í'rank Lctrichia e Jody McAucliff, Crimes of Art + Terror, Chicago e Lond ·es , 2003.
1 .,,, I11 de C'11 rl li ·gc1111111 . Berlim. 2003, pp. 125- 148.
pp . 6-17.
198 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal 199

É, porém, de perguntar, retroactivamente, porque foi preciso tanto tempo tados a fazer «histó1ia» os que não podem e não querem reconhecer que ela es-
para pôr a nu o que significa concretamente o facto de dar razões aos actos: a tá ultrapassada. Tal produz autismos não resolvidos na cena do mundo - mas
,( razão activa de ter uma razão é a nece§_~ic;!_é!Qe d~ ~~ajo_qual u~~ c- com um eco ruidoso no normalmente uniforme zumbido dos media. O 11 de
tor em devir tem a vontade de se deixar «guiar». Não andam sempre as ener- Setembro é o índice mais evidente até hoje de uma pós-historicidade ê onsu-
/ gias-à p-r;c~ra do retex que lhes dará livre êurso? Sabemos _d~sde Descar- mada , embora muitos, sob o choque, tenham querido considerá-lo como um si-
' teso que os actores ambiciosos esperam das razões que os des1111b~m: que , nal da história - e mesmo como o signo do instante do «recomeço da histó-
· em tempos de incerteza generalizada, quiser~ tim!?..?r--9~,~m ~-rodeia c~ ria»208 . O 11 de Setembro deu ao mundo uma data supérflua que não designa
çõe~_Q se_c,ootenta com men_os que umTunda~ientu"!..,m~o_n~i:ssum. O i_nu- o
nada, senão o dia em que se passou - e plano iconoclasta de onde provinha.
rÕ que terá de atravessar quem quer praticar o mveros1mil so e franqueavel Os criminosos de Setembro testemunham uma violência unilateral que , in pet-
por meio de uma poderosa desinibição - e, como o mundo actual , do ponto to , não tem nada que se ássemelhe a um projecto, abstracção feita de vagas in-
de vista dos ambiciosos e- dós ofendidos, só é composto por muros que nos dicações sobre repetições - indicações que alguns maus estrategas continuam
dissuadem de sermos activos, os aríetes mais sólidos são o menos que podem a tomar por ameaças . Uma verdadeira ameaça assumiria a forma de uma «per-
pedir os actores dos últimos tempos. Como revelou Niklas _L uhma~n, ~~ suasão armada»209 , como dizem os teóricos da estratégia; ora, o acto de Se-
calismo é o meio que têm os modernos para representar o 1mplaus1vel çgmo tembro não propunha conselho nenhum, era a simples representação da capa-
único e último plausível. . cidade para levar a cabo uma agressão potencial contra o palácio de cristal, era ) ;
Di<>no de nota nos actos de terror actuais contra a·s grandes estruturas sena uma «medida» que se esgotava na sua consumação . ó._«Çiuemi Santa>~em pro- 1, Jt '
apen:S o facto de provarem a existência de um radicalismo pós-~istó~ico - veito do Estado de Deus não é um projecto, mas uma atitude viril visando de- ,
0 que equivale à descoberta de uma espécie de cisnes negros. S~ra p~ec~so_ um fender a honra da ofensivã . Quem poderá dizer se significa mais do que um /, .•
grande trabalho de frustração até que os neoliberais e os terronstas 1slam,1~os êõmp lexo de inferioridade armado? O grande atentado não revelou uma busca
_ que são ambos mártires da pós-história - compreen?am que ª s. 1_ehc_ia_s
da vida activamente assimétrica são ontologicamente c01sas do ancten regi-
-·- ~-- -- ·- -
me - resta saber se tais cisnes vão ficar brancos por seu turno.
-- -- ---- de um bom fim por meios maus , mas infelizmente necessários , como ensinava
a meta-ética revolucionária desde o século xrx . E~a a pura reivindicação da
agressão em plena época totalmente definida pelo primado das inibições e das
- Os dois tipos de agentes são intempestivos em todos os sentidos do termo. retroacções . Os actores e os mandantes do ll de Setembro, como muitos ico- '
Uns continuam a querer sair do porto como os marinheiros ávidos de ouro do noclastas antes deles, puderam , ainda assim , experimentar como uma satisfa-
ano de 1492; os outros sonham partir a cavalo como as tribos monoteístas in- ção a destruição da suposta representação de um ídolo.
flamadas do século v11. Tanto uns como os outros têm, porém , de se acomo- Podemos discernir, no exemplo do 11 de Setembro , que, na sua face dra-
dar às circunstâncias da sua época e pretender que consideram as redes mo- mática , o ~ç_o1Jteúdo dª- pós-história continuará a ser determinado pelas inte- 1 / .
,J <lemas como a sua grande oportunidade e não como a concretização de racções dos cegos. Não é uma constatação entre outras constatações . À im-
circunstâncias frustrantes. Com as suas filo sofias atrasadas do ac,.to , propor- pc7ssibilidade·ae aprender seja o que for com a história, assinalada por Hegel,
cionam as duas visões centrais de um romai1tismo da ofensiva no I n_ic\2 _d_o sé- junta-se agora a impossibilidade de aprencJer seja o que for com os episódios
culo xx1. Est~ devaneio impaciente confunde a falha com o campo livre. Os da E_~s-história. Só quem vende tecnologia de segurança pode tirar conclusões
seus actores uerem preservar a forte assime_tria ~ out-actingje missões, de a partir dos activismos pós-históricos - os outros observadores ficam entre-
't', projectos e de-outros gestos com carácter de primei:º at~que a~1t?g_ra:ifican_te, gues às marés da emotividade mediática, incluindo o frenesim das polícias in-
! ,. numa é oca já ~~jeita ao primado da gentileza, da ~1me! nª ,2!..!.1:11b1ç~o, ~a m- te~ãcionalizadas que utilizam a elevàção do stress público para legitimar a
r •" ..,;, teraéção, da cooperação, tanto a Leste como a Oeste - exce __!2_prec1samen- sua expansão. Os clientes, na grande casa de vidro , vivem séries de inciden-
te nas fàlhas que , pela própria natureza do sistema, são muito numerosas e tes sem objectivos específicos e grandes gestos sem fundamento . É deles que
- muito estreitas. falam as edições especiais. Mas as informações e os seus materiais, os actos
Do ponto de vista da teoria da acção, <:a existência histó,:ica» seria _ or c_çm- de violência real e os dramas «no local » - para retomarmos a expressão tur-
seguinte definível como a participação num campo de acç~o n? ~~1 , çle tem- · va e pseudomineira que se utiliza hoje em dia para designar os lugares-onde
posa tempos, o out-acting de excedentes internos~ o f ~erJ!_h l~!2D~-do..!P1!!}-
do coincidem . O marinheiro Cristóvão Colombo , que os documentos da epoca
representam como um autista grandiloquente, mostrou o que um h~rói hi stóri- 208 CL Ralf Dahrendorf, Der Wiederbeginn der Geschichre . Vom Fci/1 der Mauer m 111 Krie~ i111
lmk. Rede11 1111d A1if:~iirze , Munique, 2004.
co ;i anti ga é capaz de provocar. Tal como inúmeros actores depoi s dele, per-
209 Edward N . L ull wa k. Srralefiy. T!, e Logic of War a11d Peace , Capítul o 13 , «Arm ·d t1 uslo11 >,
lll ra o muro entre a neuro e e o universal. Após a «história», porém, só são t n- 11 1nbridg Londr ·s, 1987.
200 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal 201

dos acidentes e dos acontecimentos - não são mais do que rugas à superfí- çar o «mundo livre» no seu conjunto e de perturbar o ambiente propício ao
c ie das operações regulares no espaço denso. consumo indispensável ao seu sistema. Alguns autores ocidentais vão até ao
As alfinetadas terroristas não fornecem em caso algum m0tivos suficientes ponto de estilizar o romantismo da jihad antiamericana que se propaga pelos
para um regresso da cultura política do Ocidente ao «momento hobbesiano»: jovens muçulmanos desorientados , para fazer dele o objecto de uma Quarta
a questão de saber se o Estado ocidental contemporâneo é capaz de assegurar Guerra MundiaI 211 . Não podemos circunstanciar aqui as razões pelas quais se
aos seus cidadãos uma protecção vital suficiente recebe dos factos uma res- produzem essas distorções e essas ênfases. Como é natural, os interesses dos
posta tão clara, que seria estúpido afirmar que há seriamente que voltar a pô- comentadores entram também em jogo . (Uma exposição mais pormenorizada
-la. Representar o terrorismo como um «perigo mortal» para a totalidade do dessa prática teria de incluir uma passagem sobre os sistemas de regulação re-
mundo livre é uma figura e retórica que os ministros do Interior e os trafi - tórica que trataria da hi sterização como técnica pós-moderna do consenso.)
cantes de emoção-põem nos seus escaparates. Há muito tempo que a compe- Uma coisa, porém , é certa: os neo-realistas sentem-se de novo no seu ele-
tência da absorção psíquica do terror foi transmitida à «soc iedade» - da mes- mento ; encontram por fim uma situação em que podem propor-se como guias
ma maneira que a irritação terrorista só é transmitida aos destinatários pelos dos perplexos - de olhos fitos na figura do inimigo forte, a antiga e nova bi-
seus media e não por ordens de mobilização emitidas pelo Estado. O Estado tola do real , mesmo que a força do adversário seja principalmente produto de
actual é um consumidor de terror como todas as outras entidades, e o facto de exageros interesseiros. Para os consultores, a «guerra» é a fonte da sua pró-
ser cónsiderado responsável pela luta contra o terror em nada nega que seja pria significação. A pretexto de segurança, os porta-vozes do novo militantis-
exactamente tão passivo e fora de alcance como a «soc iedade». Não pode poi mo reforçam tendências autoritárias cujas forças motrizes se alimentam de
ser directamente atacado nem reagir directamente. O discurso sobre a «guer- fontes totalmente diversas . O clima de angústia cuidadosamentê ·aÍimentado
1~ contra o terror» mai s não é do que uma divers.ãÓ gue permite não com- no espaço mediático garante que a grande maioria dos consumidores de se-
preender que a agressao vive unicamente do processo mediático secundário. gurança mimados do Ocidente se verga à comédia do inelutável. E isto leva a
Aquilo a que se chama terrori smo insere-se na alteração estrutural da opinião quê? Os viajantes têm disso um antegosto quando , depois do 11 de Setembro,
pública na era da mediati zação total. Quem quisesse _realmente combater o têm de sacrificar às exigências da limitação do risco nos transportes aéreos os
terrorismo teria de cortar as suas raízes, que mergulham no fascínio que os corta-unhas que levam na bagagem de mão .
comediantes do terror e o seu público sentem relativamente à morte - e isso
iriã chocar c·o m as leis do divertimento globalizado . ·
Além di sso, a justificação da existência do Estado não decorre já das suas
funções hobbesià~ ; fÜ ndâ"~se nàs p_i-_estações de redi stribuidor de op6rtuni- j,,
dades de vida e de acesso-aô co~'fÕrto . O Estado pi·ova a sua capadctade en-
1
quanto tei:_apeuta ima&~nário global dos se us cidadãos e garante dos mimos
materiais e imaginários para as multidões2 10 . Até as suas funções militares
são agora obrigadas a respe itar o estilo terapêutico. A~_guerra§_Q_e ~<s_egui:an-
a» actuais VQO busc~r b_2~ parte doJ __seus pretex(os ª-!!.l~tivos imunológicos
interpretados no sentido do puritanismo . -----~
Assim, a · acçõesJ1~0 !i~_e rais a grande escala são sempre ina"cta_ptadas ao
terror; em primeiro lugar, porque escamoteiam conscientemente a superiori-
dade incomparável dos agredidos sobre os agressores; em seguida, porque
concedem a ataques pontuais um alcance simbólico que não tem qualquer re-
lação com o seu conteúdo material. Numerosos comentadores continuam as-
s im a inflacionar a nebulosa AI Qaeda , esse conglomerado de ódio, de de-
se mprego e ele citações do Alcorão, para fazer dela um totalitari smo dotado
cio se u próprio estilo ; alguns julgam mesmo discernir nela um fascismo i ·lâ-
mi co qu e, sabe-se lá por que meios fantásticos , estaria em condições de amea-

IO C'I', S11l1l lrc11 Ili, Schâ11111e, pp , 801 sq, ; bem co mo James L.Nolan . The 7J1erape111ic S1c11e: 2 II Norm un Podh orclz, «Worlcl War IV: How it Slarted , Whal it M ea ns, and Why Wc Hav ' ln
1
/11 111/1'/11,,, (:111 ·1·1·111111·111 111 C1•11111ry:ç b1d, Nova Iorque 1998, Win . '0 1111111•11tt 11· ,. Sc1c111bro de 2004.
Palácio de Cristal 203

1 . . .
tivo permitir a actores potenciais sobrelevarem-se ou apns1onarem-se a s1
próprios, mas antes desonerar os actores reais das consequências imprevistas
e dos efeitos secundários das suas acções . Sob a sua forma mais actual, esta
ética aconselha aos actores que nã9 ~arreguem às costas mais do que a quan- .'
tidade de- c~lpa potencial susceptível de ser carregada no quadro das rotinas
funcionais. Na versão pós-modernizada , o imperativo categórico é o seguin-
te: «Em cada instante, pratica apenas os actos que não podem deixar de ser I
praticados , tendo em conta todos os motivos inteligentes para não os pratica- \ 1.·
res em função da tua visão pessoal e do teu ponto de funcionamento.» Sob a 1.
35 Crepúsculo dos Actores e Ética da Responsabilidade máscara do princípio de precaução , a quem todos hoje tecem loas, vê-se per-
As Erínias Cibernéticas filar um pragmatism_o que lança o olhar para os seus anos loucos. Dele , pode
dizer-se que percorreu o ciclo completo das mudanças de atitude modernas, 1
desde a histeria até ao coo!. ·
Se a ética da acção era inseparável da «história» em curso, a ascensão irre- Voltemos por um momento ao espírito de acção, tal como o grande públi-
sistível da ética da responsabilidade no século xx vem testemunhar a situação co o entendia, antes de, imbuído da ética· da responsabilidade, se começar a
pós-histórica no palácio de cristal. Nesta ética encontramos uma ilusão moral cansar: no jovem ,Ooethe, o autor do primeiro .Fausto, ainda era possível re-
do utilizador, ilusão praticamente indissolúvel e que faz crer aos indivíduos que clamar incondicionalmente o Ser inicial para a «acção» - ao mesmo tempo
poderiam ser responsáveis não só pelo seu comportamento imediato, mas tam- que o vice-começo, a energia, sem a qual as acções não passariam de anún-
bém pelos efeitos secundários das acções locais, por mais longe que se façam cios; a posição «faustiana» inicial da acção reflecte a ideia fundamental da
· sentir. A existência no grande interior favorece os modos dy pensamento tele- época moderna: pensar num logos sem eµergia como motivo do mundo é tão
causais e telepáticos nos quais se associam as acçõeslocais com os efeitos à pouco possível como pensar numa energia sem espírito. Só num elemento
distâ ncia. b cÓnceJto de responsabilidade lisonjeia assim todos os que gosta- mediano que reúna energia e saber (mais recentemente: a informação) é que
riam de acreditar que, apesar da evidente nulidade dos indivíduos na maior par- se pode encontrar o verdadeiro e real valor do output dimensão de saída (vi-
te dos assuntos, tudo depende , apesar de tudo, sempre e em todos os casos dos de atrás, p. 77). O problema da maneira como a acção vem ao homem não se
seus próprios gestos e feitos; ao mesmo tempo, ajuda os inúmeros frustrados põe, pois , para os modernos , porque partem da ideia de que já existe sempre
pelo andamento das coisas a exigir que se responsabilizem os irresponsáveis. sõb a forma de «energia informada». A única coisa que é clara, é a_maneira
Contudo, querer discernir apenas os sintomas da megalomania e da rejei- como essa energia é desinibida e passa do estatuto de hesitação para a consu-
ção maníaca da complexidade nos apelos omnipresentes à responsabilidade e maçãõ do ãcto : Conhece-se uma resposta a esta questão desde a lenda do
no afluxo de voluntários prontos a assumi-la, seria fazer uma concessão in- Dr.""Fãústo, de finais do século xv1: um contrato de consultadoria com o Dia-
justificada ao psicologismo. Na verdade, ares onsabilidade, como mostraram bo assegura ao sábio o livre acesso aos m.eios de desinibição mais eficazes do
os seus pensadores mais profundos, é um conceito, não- tanto moral, mas mais seu tempo.
do âmbito da ontologia ou, melhor, da -teoria das relações - ele desejaria ra- Foi a esse estado de coisas que Goethe pôde associar-se: como se sabe, num
dicar na própria estrutura da subjectividade o estar-liga~o _r~flexiv~ utro- primeiro tempo, o s~ Fausto, com quem travamos conhecimento no momen-
real (mas também aos terceiros e à multidão dos outros) . O que está em jogo to em que passa da teoria à magia , aqda apenas à proc!.lra de_soluçõe.s e de
nele é tanto a inibição, pelo Tu que lhe faz face, das sortidas para fora do Eu , meios que lhe permitam a expansão unilateral de si próprio - e recebe aqui o
como a inibiçao retrbspectiva e a acoplagem retrospectiva das consequências, apoio do espírito tentador, o vice-deus que o assiste lege artis na desinibição
seja qual for a distância do local do drama em que elas se manifestem. Este - e que não se limita a assisti-lo, mas que lhe é adstrito como observador, co- t ,
conceito remete-nos para a expulsão dos actores para fora do paraíso, no qual mo a um alter ego 2 l3_ Em Fausto brilha visivelmente o fogo da assimetria me-
o êxi to não nos perguntava ainda como o tínhamos obtido. tafísica que estabelece de um lado os actores anim.ados e, do outro, as matérias -
Assim, a éti~ª dª responsabilidade 212 que se desenvolveu durante os últi - -primas e os espaços vazios. Designa-se já assim a orientação de todas as
mos cem anos a partir de motivos teológicos requentados não tem por objec- expansões: «actos» é aqui o nome dado a todas as acções de expressão que con-
firmam a pre[ensão do sujeito a ter o seti «próprio mundo». A partir dessa ))O
2 12 Kurt Bayertz, «Eine Kurz Geschichte der Herkunft der Verantwortung», in Vera1111vo rt1111g.
Prin zip oder Problem ?, Kurt Bayertz (organizador) , Darmstadt , 1995, pp . 3-71 . I. ' 1'. K 11111s l)rl ·gl ·h. M<:phistos «Fa11.,·1 . Tl!x1b111'11 . Es.l'lly, I Inmburgo, '191 SI.
204
' ' Peter Sloterdijk Palácio de Cristal 205

ca, o facto de estabelecer O mundo p'· 1 -


. ..
do mtrans1tivo e a «acçao» chama-se «a ob .
e «a vida» no sent·d t .. . ra», no senti- Tudo isto pode ser resumido por meio de conceitos claros da lógica dos
' , 1 o rans1tivo - 0 qu -,
de uma vida» o que é outro· ho e, composto, da «a obra processos: se a «história» ganhou a sua dinâmica com o surgimento da unila-
· , mem outro e mulher tr ·· · .
nece o material de vivência de const - d ou a, como se queira, for. teralidade, que fala no dialecto do primeiro ataque , das expedições e da con-
me do medium do unilateraiismo p:auça~ ed_e ~dondensação. A «arte» era o no- quista do mundo contemporâneo , a .Q§s-história _viu-se forçada a descobrir e a
C ... . . . os m 1v1 uos . -
suportar as retroacções. É certo q~e há magia em cada começo, mas que fa-
om o expans1on1smo estético da é oca b
obras , da invenção o~iginal e do estab
tista passou para a sua fase o I
f.
urguesa, o_so~ho da cnação de
e ec1ment~ dos _rropnos mundos do ru·-
.
zer q uando soou a hora dos efeitos secundários? Começa então uma segunda /l- / i, ,
fase da apropriação do mundo sob a forma de uma auto-retracção do eu - /t
a ideia de lançar uma olhadpelapu ar :-- e,l nessa s1tuaçao, nada militava contra dominada pelas neo-Erínias da nossa época. Após a Antiguidade ter rebapti-
ocas10na ao século x
antes das sortidas do século XIX N . VI para ganhar coragem zado Alecto («a que nunca cede»), Megaira ou Me gera ( «a Invejosa») e Tisi- "1- '
. . as cenas reais da ép d G
mente ninguém era J.á forçado a e f º
to como inventor empresa'1·1·0 ou
on 1ar-se ao Diabo se
d
. oca e oethe, certa-
·
precisasse de ter ex1-
~ .
(«as que querem o bem»), está agora na ordem do dia a sua renomeação no
,.
fonê ( «a que vinga o assassínio») para as transformar em Euménides urbanas ' ·.,,, ).,
' monstro a arte Q I h. , .
recente da cultura bastava para e t . d . u_a_ quer Jstona popular espírito do sistema mundial. Passarão a chamar-se retroacção, multilaterali- fl, _, .Jâ<-~'
tória dos grandes homens encarr: i:~:::~a o de esp1r!to do_at~que - a his- dade e responsabilidade. Estas são as senhoras discretas da densidade pós- "' / /. , ,
ofensiva unilateral atingira um g g d o resto. A fe no d1re1to natural da -histórica, que constantemente levam fios do ponto próximo A até ao ponto B .,/
zações mais grosseiras. Desde o r~~u~/i~:a:ação ~u~ convida:ª às vulgari- mais afastado e, daí, arrastando-os pelos cabelos , voltam a trazer os efeitos às I '

tamente os comunicados de ·t, . . ' s amb1~1osos podiam ler direc- suas causas, mergulhadas em deduções, empalidecendo ante as análises dos
nha, da ciência e da arte comov1uomnac pro_vte~1~nt~s do sistema militar, da mari - custos , perdidas em investimentos multifactoriais, absorvidas na oposição
. onv1 e a 1m1tação Se . .
qual fazia os possíveis para inscrever o n . . mp1e que podia, cada abissal do carma e das estatísticas, estabelecendo o balanço dos danos e prog-
berta , da conquista da arte e d . orne no livro dos recordes da desco- nosticando as perdas posteriores caso o que assim começou continue .
' e o cnme .
Na verdade, na velhice de Goethe o cre , ., Com o direito que lhes dá a nova situação, os pós-modernos acreditam na-
.O mundo ferido começara a lembra ' ..P_usculo d9s actores Ja começara. quilo que não tem começo: depois disso, podem partir quase sempre de si-
i ponsabilidade civil· até na ma1·s·-ba r alods SUJde1tos-actores que agiam a suares- tuações de complexos emaranhados nas quais já não é praticamente possível
' na e to as as h · t , · d - ·-
so de «Gretchen» , o professor ex ressi . . is onas e sedução, oca- estabelecer quem começou o quê, como e com que intenção. Na sua maioria ,
capricho , não saía da situaça-o p , vo , ªJOUJado ao resultado mortal do seu sentem de uma certa maneira que , regra geral , quando se isola um autor, e
' sem remorsos Não d.
atentos de Goethe que Fausto não eiãüm-a - . ~? ia esc:par aos leitores mesmo sendo possível deitar-lhe a mão, a única coisa que se consegue é pro-
dor-actor de grandeza 'tra' g1·ca d peça heroica alema sobre o pensa- duzir um conflito ainda mais complicado - o que não exclui que, de tempos
' ' , mas um rama da · -
flagrante, falava de remeter oh ,. . ' ' res1gnaçaq. De uma forma a tempos, tenhamos de fixar limites a canalhas comprovados; nada milita
\.,l .,
ero1 aos seus lim ·t
chamar os limites humanos . Tratava-se d 1 es : a 9ue tanto_gostamos de também contra o facto de se atribuir um prémio a um actor reincidente no do-
os aspectos , que permite que a .e • de uma renuncia reflect1da em todos mínio da arte , para prestar homenagem à obra da sua vida . Mas não se vê já
. - ,01ma e saoeza da d .d d
-restnçao em meio às possibilidades ai . d º mo ern1 a e , a auto- verdadeiramente como utilizar a posição do autor, esse grande unilateral que
ta retracção consuma a junção entre a ~-!~h ~~· _as~uma ~s_se~s c~ntomos. Es- importuna o mundo com obras , porque tudo já está inteiramente integrado nas
-húbris do sujeito que experimentou op du ns º. esp_mt_o mgenuo e a pós- formas pós-unilaterais da acção e do pensamento, nas quais a ressonância é
vo 1ta ao mundo a segunda h .1d d mun o e a s1 propno·, apos , ter d ado a
sentida como um fenómeno mais profundo do que o estatuto do autor - vê-
. ' um1 a e regressa à · · . ,.
energias criminosas da ofensiva - pnme11a. Das magnificas -se isso, nomeadamente , no facto de os mais espirituais dos que hoje criam se
agora sem obiecto que pode peça central , nao resta senão o esforçar-se apresentarem ou como simples artesãos , ou como interfaces no intertexto.
J ' sempre tentar mas que - d .
Fa!:!.sto lI oferecia pois a história de um acto1'. u . . ?ªº po e consegull". A originalidade é, como a monocausalidade , um conceito para as pessoas de ·
em todas as direcções da ambição p . q e lIUpeha as suas e;,s;pans_ões a~tig amente; ela mereceu sinceramente o nosso sorriso , tal como essa pura
su-as eufÕrias , acabar por descobrir ;a, no termo das s~as excursões e das
redenção pelo Outro indispon' l €
' ape~ar de tudo: tmha necessidade da
verdade que os honrados de ontem querem proclamar ainda hoje .
Nesta situação , as entidades inibidoras parecem ter a mesma origem da im-

11111ndo . A pós-modernid áde de Fa::t~~~~a


mo , a epifania do temeroso c~:o· o crep:.s~ulo dos idolos do unilateralis-
il1dade no contexto ressoante do
pulsão «originária», ou, mais precisamente: precedem-na, tal como o comen-
tário sobrevoa o texto e como a encenação desmonta a peça em peças - e is-
to a justo título , pois todo o autor tem de pagar o seu capricho, que consiste
'I I c·i l l l, id 1 (i •ii cr Fr1111·1· M / · em ter escrito a sua obra unilateralmente e sem autorização . Uma coisa, aliás ,
, • , .1 oi em1tli1. Essay.1·, Estuga rda, 2000 , pp . 7-56 .
é mai s verd ade ira do que nunca: o pós-moderno pratica a proibição retroacti-
Palácio de Cristal 207
Peter Sloterdijk

A grande desconsideração tem de se expatriar se quiser ainda encontrar algu-


v11 du «hi stória» por motivos que, vemos hoje , ultrapassam as objecções con-
res as situações de que tem necessidade para usufruir das ekstaseis da unila-
lra a acção histórica ligadas à técnica de seguro (cf. atrás, p. 103) .
teralidade. Talvez a fuga a conduza ao Brasil, onde as entidades que estão fa-
Enquanto a «história» se pôde desenvolver na direcção das suas condições
ce a face não são ainda o Estado e as ociedade, mas o Estado e a floresta .
iniciais, exprimiu sempre o primado da ofensiva. Para tal, não era preciso
«Floresta» já ~ão será, porém , em breve, uma alusão ao espaço livre de re-
mais do que a famosa trindade do espírito do jingo, the men, the ships and the
troacções; es se termo designa , em resumo, um problema com tantos efeitos
money too, bem como armas de ataque, algo com que escrever e historiado-
retroactivos sobre a globalidade que também ele não pode desempenhar o seu
res a bordo . O que se segue decorre das premissas: nas situações mais disten-
papel de zona de refúgio para os que fogem aos efeitos secundários.
didas, os portadores da acção avançam em meio aberto, as energias escapam-
-se de maneira expressiva e pobre em retroacções no espaço de composição,
o mundo tem ainda a qualidade de papel em branco que espera o ataque da
pluma, os actos não se voltam para o actor e se, apesar disso , o apanham de
quando em quando , o fechar do círculo é celebrado como um jubileu ou me-
ditado como uma tragédia. A retroacção trágica e o resumo dos factos na gri-
nalda da recordação designam contudo a situação de excepção. Por mais que
a utilização burguesa da tragédia prepare a inibição dos actores, no caso nor-
mal , as causas_pai:te111 ainda para o meio aberto como flechas que não regres-
.. sam _:_ um~ situação ap.I_eciada pelos artistas de vanguarda, pelos criminosos
inovadores e pelos primeiros a escalar cumes invictos .
Em contrapartida, nll;S situaçõ~ Olll gen_sidade pós-histórica, ca_d a impul-
soj.E_a_Qt_ad_o elas ! ~ oacções, muitas vezes antes mesmo de se ter verdadei-
rámente desenvo1vido. Tuço o que impele para a frente, tudo o que quer ir
longe para o exterior, o que quer construir, reflecte-se, muito antes da primei-
ra pazada, nos protestos , nas objecções, nas contrapropostas e nos cantos do
cisne; o que quer ser uma medida é apanhado por uma contramedida - a
maior parte das propostas de reforma poderiam ser postas em prática com um
vigésimo da energia despendida para a sua reformulação, a sua diluição e o
seu adiamento provisório. Para pregar um prego é preciso o acordo de uma
comissão que, antes de abordar a questão do prego , elege o presidente, o vice-
-presidente, o secretário, o delegado para as questões femininas e um mem-
bro externo que expõe as considerações éticas relativas à avaliação das con-
sequências técnicas e ecológicas . Dá-se hoje o nome de governo a pessoas
que se especializaram em fazer de conta que se podem fomentar energica-
mente as coisas no país apesar do horizonte de inibição generalizada. Analo-
gamente, na maioria dos casos, os artistas já só se preocupam com preservar
a aparência de inovação. A originalidade não autorizada vale uma observação
rfo cadastro pessoal. Pelo termo de criminosos designam-se o mais das vezes,
de facto, pessoas que foram surpreendidas a praticar o seu último acto arbi-
trário. Será ainda necessário sublinhar que estas situações , embora, num pri-
meiro tempo, nos desconcertem, têm de ser saudadas quase sem restrições?
Ante tais circunstâncias, °-s grupos de terapia podem ser considerados co-
mo os verdadeiros centros de formação.para a pós-história. Neles , cada pes-
soa pode aprender a dizer como se sente quando outrem lhe expõe isto ou
aquilo, de preferência antes que o parceiro se tenha verdadeiramente ex pri -
mido. Neles recebem-se lições para o mundo dotado de hiper-retroacç es.
Palácio de Cristal 209

disso, como já mostrámos, dar-lhe-íamos uma interpretação errada exigindo


dele que abrangesse a «humanidade» em toda a sua amplitude numérica.
A grande estrutura ..9e CO[!_forto _integrará ainda durante bastante tempo nume-
rosos novos cidadãos, fazendo dos habitantes da semiperiferia membros de
c_orpo inteiro, mas rejeita também antigos membros - e muitos dos geogra-
ficamente incluídos, ameaça-os de exclusão social, isto é, de serem banidos
de situações interiores privilegiadas_do contexto de conf?rto. A semiperiferia /t~ /
encontra-se onde quer que as «sociedades» possuam amda um amplo seg- / , /:
mento de situações tradicionalmente agrícolas e artesanais - a ocorrência 1 •
36 O Espaço Interior do Ml,!ndo Capitalista mãis dramática é a China, onde se alarga quotidianamente o fosso histórico
-Rafner Maria Rilke Quase e__ntre o regime agro-imperial (que agrupa ainda cerca de 900 milhões de pes-
Encontra Adam Smith soas) e o modus vivendi da sociedade industrial (que integra já mais de 400
milhões) 216 . O mesmo podemos dizer das nações semimodemas como a Índia
ou a Turquia, nas quais coexistem regiões urbanas relativamente prósperas ,
Em face do mundo tal como configurado pelos processos transmitidos pe- orientadas para o Ocidente e o consumo, com maiorias rurais compostas por
lo capital, há que constatar que o curso actual das coisas confirmou as ante- populações medievais pobres. (Uma razão entre outras pelas quais admitir no
cipações de Dostoiévski sobre os humores da existência no palácio de cristal. palácio de cristal bruxelense este país de semiperiferia que é a Turquia repre-
Hoje, tudo o-que acontecer no reino do poder de compra acontece no quadro sentaria para a União Europeia uma aventura incalculável.)
de uma realidade indoors generalizada. Independentemente do lugar em que Embora seja concebida como um universo indoors, a,grande estufa não pre- ,
permaneçamos, somos forçados a pensar no telhado de vidro por cima da ce- cisa de epiderme fixa - nesta medida, o palácio de cristal é também um. sím-
na. Os acontecimentos excepcionais não escapam t~mbé~DEJt~ bserva ão · bólo ultrapassado em certos aspectos. Só em casos excepcionais concretiza as
as torres de Nova Iorque ruíram no interior do palácio de vidro, as love- suãs-fronteiras num material duro , como no caso da barreira que separa o Mé-
-parades berlinenses eram divertimentos palacianos num vasto l eu de Pau- xico e os Estados Unidos ou no daquilo a que se chama a barreira de segurança
me, sob a eloquente vigilância de um anjo dourado que anuncia anacronica- entre Israel e a Cisjordânia. As suas divisórias mais eficazes a instalação de ..
1

mente a vitória alemã a oeste - a data deve remontar tão longe que até os conforto, erige-as sob a for~· de discriminações - são mu ros constituídos
politicamente correctos, sempre de atalaia, se esqueceram de reclamar que a pefã possibilidade de acesso à capacidade financeira que separam os possui-
Coluna da Vitória fosse arrasada. ~ores eôs não possuidores, muros erigidos pela repartição extremamente as-
O palácio capitalista do mundo - muito recentemente, Negri e Hardt, simétrica 9!:lS possibilidades de vida e das opções cté emprego. Na face inter-
marxistas ultratardios , voltaram a percorrê-lo sob o nome de Empire, mas a_
na, _s:omuna dos detentores de po.de . de compra põe em cena o seu sonho 1 ,
abstiveram-se voluntariamente de traçar a sua fronteira exterior, provavel- acordado de uma imunidade global que se acrescenta a um conforto de altitu- • I
mente para melhor invocarem a quimera de uma aliança orgânica entre os de estável e em expansão; na face externa, as maiorias mais ou menos esque-
opositores do exterior e os do interior - não constitui uma estrutura arqui - cidas tentam sobreviver em meio às suas tradições e improvisações. Há boas
tectónica coerente; não é uma entidade semelhante a um prédio de habitação , rãzõ'es pará afirmar que o conceito de apartheid, tendo sido eliminado na Áfri-
mas uma instalação de conforto com a qualidade de uma estufa, ou um rizo- ca do Sul, foi generalizado a todo o espaço capitalista, após se ter desfeito na
ma composto de enclaves pretensiosos e de cápsulas acolchoadas que formam sua formulação racista e ter passado paii um estado económico~cultural difi-
u'm único continente artificial. A sua complexidade desenvolve-se quase ex- cilmente compreensível. Neste estado ficou amplamente ao abrigo do risco de
. clusivamente na horizoaj:aJ , visto constituir Uf!!~ estruturq_~~m altura nem pro- setomar um escândalo 217 . Encontramos no__modus operandi do aparth?,id uni-
fundidade - eis poÍ·que já não empregamos a seu respeito a velha metáfora versal , por um lado , o facto de tomar invisível a pobreza nas zonas de pros-
da base e da superstruturâ. Já não podemos também falar de «underground» -~ idade, e por outro, a segregação dos ricos nas zonas de esperança zero.
a propósito da Babel plana - chegámos a um mundo sem toupeiras2 15 . Além
2 16
Cf. Wu Ch untao e Chen Guidi , «Untersuchung zur Lage der chinesischen Bauern», Le11re
2 15 !!. por isso. Ncgri e 1-l ardt , a justo título , abandonaram a toupeira como animal -totem cio cx - Uly.1·.1·es Preis fíir Reportageliteratur , 2004. .
11<· 1111"11" de esqu erda e proclamaram a serpente como novo totem - um símbolo bem csco lhi -
2
!'7 f. Pabl o Gaytán San tiago, Apartheid social en la ciudad de la esperanza cera, Interne-
il 11 I'·" ., 11 n q11nd11 gnost" z11 ntc, que se segue ao fracasso cio sonho elas rcvoluçõc: prolcl tl ri ,~. tn/ lob11l . M éxico . 2004.

210 Peter Sloterdijk
Palácio de Cristal

O facto de, no início do s.éculo XXI o palácio de cristal inclui,r, segundo os


Como já referimos, do ponto de vista demográfico, o espaço interior do
cálculos mais optimistas, um escasso terço dos espécimes de Homo sapiens,
mundo capitalista compreende, se tinto, um terço _de uma humanidade que
\ mas na realidade, sem dúvida, apenas um quarto ou menos, explica-se nomea-
proximamente contará sete mil milhões de pessoas e, geograficamente, ~em
' 1 \ · damente pela im ossibilidade sistémica de organizar materialmente uma inte-
um décimo das superfícies terrestres . Não precisamos de nos debruçar aqui so-
•• ··\"' gração de todos os membros do género humano num sistema de prosperidade
bre o universo marinho, pois a totalidade dos navios de cruzeiro e dos iates ha-
\, homogénea, nas condições actuais pa técnica, da política energética e?ª edcq-
bitáveis só representa um milionésimo das superfícies marítimas. Só o novo
nomia. A construção semântica e gratuita da humanidade como colecttvo os
Queen Mary 2, o último paquete de luxo da Cunard, que fez a sua viagem de
detentores dos direitos humanos Jlã..,o pode, por motivos estruturais insuperá-
baptismo a partir de Nova Iorque com 2600 passageiros a bordo, merece tal-
veis, ser transposta para a construção onerosa e operacional da humanidade co-
vez uma menção especial, na medida em que esse palácio de cristal flutuante
mo colectivo dos detentores de poder de compra e de hipóteses de conforto.
prova como ao capitalismo pós-modernizado não falta energia para ostentar o
É aí que se funda o mal-estar da «crítica» glob~lizada, que exporta, é ce1to, pa-
seu próprio prestígio . Esse grande navio provocador é a única obra de arte to-
ra o mundo inteiro osc ritérios dã cônclenação da miséria, mas não os meios de
tal existente e convincente do início do século XXI - antes mesmo do ciclo de
a ultrapassar. Neste contexfo ; podemos caracterizar a Internet- bem como, an-
ópera em sete dias de Stockhausen, Licht, acabado em 2002 - , na medida em
tes dela, a televisão - como um instrumento trágico, pois, enquanto medium
que resume o estado de coisas com uma energia simbólica !ntegral. .
das comunicações fáceis e globalo-demÕcráticas, sustenta a conclusão ilusória
Quando se pronuncia a palavra «~ ~ção», fala-se pois de um ~ontmen-
de que os bens mate~iais e excl~sivos_~~.v~ ri~m ser i~u~lmente universalizáveis. ,r te artificial dinamizado e animado pelo conforto sobre o oceano da pobreza,
Escusado será dizer que o espaço mtenor capitalista global. a que geral-
ainda que a retórica afirmativa dominante dê facilmente a impressão de que, pe-
mente se chama o Ocidente ou a ·esfera ocidentalfaada, dispõe também de es-
la sua essência, o sistema mundial inclui tudo. O contrário é que é verdade, por
truturas arquitectónicas elaborad.i°s c~m mais ou menos arte: ergue-se acima
razões imperativas que dizem respeito à ecologia e à sistémica. A exclusivida_-
do solo como um e~aranhado de COITedoreS de conforto construídos junto de
de é inerente ao projecto do palácio de cristal enquanto tal. Toda a endosfera
pontos nodais vitais,- dÕ ponto de vista estratégico e cultural, sob a forma
< •-acarinhante», construída sobre o luxo estabilizado e a superabundância
de oásis densos de trabalho e de consumo - normalmente, é sob o aspecto da
crónica, é uma estrutura artificial que desafia as leis da probabilidade. A sua 1
grande cidade aberta e dos subúrbios uniformes, mas é também e cada vez
existência pressupõe um exterior sobre que possamos descarregar o ónus e que,
mais frequentemente sob o de casas de campo, estâncias de férias , e-villages
provisoriamente, possamos ignorar mais ou menos - nomeadamente, ~ at-
e gated communities. Desde há meio século, despeja-se nesses corredores e
mosfera terrestre que quase todos os actores reivin1icam como lixeira global.
nesses nós uma forma sem precedentes de mobilidade maciça. Na Grande
É cérto, porém, que a reacção das dimensões extemalizadas só pode ser adiada,
Instalação, o habitar e a viagem entraram em simbiose - tal reflecte-se nos
e nunca duradouramente eliminada. Por conseguinte, a expressão «mundo glo-
discursos sôfüe· o regresso do nomadismo e a actualidade da herança jgd.ai-
balizado» diz exclusivamente respeito à instalação dinâmica que serve de invó-
ca218 . Numerosos animadores, cantores e massagistas propõem os seus servi-
lu;;:o do -;mundo da vida» à fracção de humanidade com poder de compra. No
ços ·de acompanhantes de viagem em direcção à vida fluidificada . Se, hoje, o
interior desta instalação, atingem-se constantemente no'0s altitudes de invero-
turismo constitui o fenómeno de ponta do way of life capitalista - e repre-
similhan a estabiliiada, como se o jogo vencedor das minorias que praticam o
seníã, em todo o mundo, juntamente com o ramo do petróleo que permite tu-
consumo intensivo pudesse prosseguir infinitame.nte contra a entropia.
do isso, o sector económico que realiza o maior volume de negócios - , tal
Não é pois por acaso que os debates sobre a lobalizaç~o são quase ex~lu-
deve-se precisamente a que a maior parte de todos os movimentos ligados à
sivamente conduzidos sob a forma de um monólogQ das :z;onas de prosp~nda-
viagem pode ocoITer no espaço pãêificado . Para partir, já não é preciso sair.
de; regra geral, a ·oria da1.9~tras reg_~ões d9 mundo não conhece a palavra
As quedas de avião e os naufrágios de navios, ocorram onde ocorram, são
nem certamente a coisa, salvo através dos seus efeitos secundários desfavo-
praticamente sempre incidentes no seio da instalação e, por conseguinte,
ráveis . As dimensões gigantescas da instalação animam no entanto um certo
são anunciados como informações locais para utilizadores de media mun-
romantismo do cosmopolitismo - entre os ·seus media mais característicos
diais. Em contrapartida, as viagens para fora da Grande Instalação passam, a
contam-se as revistas distribuídas a bordo das grandes linhas aéreas, para não
justo título, por ser turismo de risco. Esse turismo - prova-o a experiência
falar de outros produtos da imprensa masculina internacional. Pode dizer-se
diplomática e policial - transforma os viajantes dos países ocidentais em
que o c<?smopolitismo é o provincianismo dos mimados. Também_se_de~cre-
u ímpli ces de uma indústria do rapto que se mascara de crítica da civilização .
veu o estado de espírito dos cidadãos do mundo como um « rovmc1an1smo
em viagem». É e le que dá ao espaço interior do mundo capitalista o seu toque
' l li <·1 l :i,·q11 ,~ /\ llali . L'/·lo111111e 110111ade, Paris, 2003.
d ab rtura a tudo o qu_e se p de obter em tr ca de dinhe iro .
Peter Sloterdijk Palácio de Cristal
212

O «esp~ço-interior-d~-mundo» é um termo que Rilke forjou_ em f!nais d? invulgar de confirmar o éu como recipiente integral ou lugar universal - em
Verão de 1914, no contexto de uma reflexão lírica, imbuída de filosofia da vi- º1?2-sição directà à análise do ser-em , feita por Heidegger em Ser e Tempo ,
da e de neoplatonismo , so.bre o ~spaço e a participação. Nã? por, acaso , o po~- -1927, onde o «em» é apresentado como expressão de posição da ek-sistência ,
ma Todas as coisas, ou quase.fazem sinais aos nossos sentidos e um dos mais isto é , do estar-m<!ntido-no-~ terior em direcção ao aberto. Poderíamos mar- 1
car esta ·oposição com a ajuda das expressões en-stase e ek-stase.
conhecidos da sua obra. Nele constam os seguintes versos:
A Poétjca do Espaço de Gaston Bachelard atribui a atitude fundamental de I'
«Por todos os seres_passa o único espaço: Rilke à experiência da «imensidade ii;terior». Quando se consegue ter esse sen-
Espaç9 interior do mundo. Calmas aves timento, <?~espaço envolvente perde a sua qualidade de estranheza e transfor- 1
Em nós perpassam. Oh , como quero crescer, ma:~e por _inteiro e~ _<:s_asa ~a alma>~- De um tal espaço totalmente animado, é /' •
Fito o lá-fora e em mim cresce a árvore . leg1t1mo dizer que e Jª em s1 «o amigo do Ser»220 . Para o humor topófilo, os ..,_
espaços a que se prende essa qualidade designam a encarnação dos conteúdos
Em mim o cuidado, e em mim está a casa.» de uma vida que se sente em casa, como numa pele cósmica, no seu ambiente
sem limite.
«O espaço-interior-do-mundo do capital», em contrapartida, deve ser com-
«Durch alie Wesen reicht der eine Raum: preendido como uma expressão de topologia social, utijjzada aqui para a_po-
Weltinnenraum . Die Vog el fliegen. still ~ência de criação de interior associada aos media contemporâneos da circula- l
Durch uns indurch. O, der ich wachsen will, ção e da comunicação: define o horizonte das possibilidades de acesso (aos
/eh seh hinaus und .!E mir wéichst der Baum . lugares , às pessoas, às mercadorias e aos dados) abertas pelo dinheiro - pos-
sibilidades , essas, todas decorrentes , sem excepção , do facto de a forma deter-
[eh sorge mich, un.d in mir steht das Haus .» minada da subjectividade no seio da Grande Instalação ser definida pelo po- ,1_. >\
der de compra. Quando este assume uma forma concreta, aparecem espaços -J'
Como não caberia aqui apresentar uma interpretação do poema, contentar- interiores e raios de acção específicos - são as arcadas do access aonde se di-
-nos-emos com observar que o termo composto Weltinnenraum , «espaço- rige toda a espécie de passeantes dotados do poder de compra. A intuição ar-
-interior-do-mundo», se prestava aparentemente muito bem a descrever um quitectónica que levava antigamente a instalar os mercados em pavilhões teria
modo de experiência do mundo que é típico do «narc_isismo» primário. Quan- forçosamente de dar origem , no início da era global, à ideia de pavilhão em
do esse estado d~ espírÚo se torna explícito , o ambiente presente e o seu pro- forma de mundo - segundo o modelo do palácio de cristal; o recurso à forma
- longamento imaginário são moldados a partir das ex.r1eriênci_as_de c~lor e nas de pavilhão para o concerto do mundo no seu todo é seu resultado coerente.
suposições semânt~cas _de um espírito ágil, exaltado e não d1f~renc1ado. Este
dispõe da capacidade protomágica de transformar todos os o_bJ_:Ct?s que t~ca Adam Smith e Rainer Maria Rilke encontram-se sob o firmamento técni-
em coabitantes animados do seu universo . Neste modo da v1venc1a, tambem co. O poetâdo Grande Interior éruza-se com o pensador do mercado mundial
0
horizonte já não é percebido como uma fronteira e uma transição para o ex- - ignoramos se por acaso ou porque combinaram. Como não queremos uti-
t;rior mas como um recinto para o mundo interior. O derramar da alma pode lizar mai s do que convém a expressão de «encontro» , contentamo-nos com
ascender atéâÕSéntim ênto de.coe;ê~ ~nica, um sentimento que pode- fazer alusão a um quasi-encounter. Começamos por apresentar um discurso
ríamos plausivelmente interpretar como a repetiçã°. da sensação fe~al nu~a de banquete apócrifo proferido por Adam Smith em honra do primeiro-
cena exterior. (A expressão ~ sentimento oceânico» foi posta em cm~ulaç_ao -ministro Lord North, o Glasgow Toast (discurso duvidoso, também conheci-
cerc~ de uma déc.ada após Rilke ter forjado a sua expressão «espaço mtenor do pelo nome de Discurso do Alfinete) , que poderia ter sido pronunciado após
do mundo»2 l 9.)j\ssinalemos que o poeta confia à preposição «em» a missão Smith ter sido nomeado director das alfândegas da Escócia, em 1778; es-
l'V\ cusado tentar encontrar o texto aqui reproduzido na Glasgow Edition das
219 Cf. a carta em que Romain Rolland respondi a a Sigmund Freud a propósito d~ seu texto Die obras e epistolografias de Smith . Segue-se depois uma carta incunábula de
Zukunfr einer fl/u sion de 1927 . A ex pressão «esP.aço interior do mundo», aliás , fot ente ndid a co-
,i H> uma espéc ie de indicação de lugar: no seu ensaio Weltinnenraum und Technolog1e, Peter De- 220 Gaston Bache lard , Poerik des Raumes , Munique , 1960, pp . 21 3-241. Para um comentári o ela
111 1-11 fo i ao pont o de afirmar que certos leitores de Rilke , que , nisso, seguiam o autor, «fu giram »
teoria do es paço em Bachelard no contex to de uma hi stória da tensão entre localid ade e espa-
,. • , c, paço int erior do mundo como se se tratasse de um refú gio e não de um modo de ex pe-
1 11 1 1 cialidade, cr. ·dward S. Casey. Th e Fare of Place . A Philosophical History, Berke ley Los /\11-
1 ,, . 11 , " ' · cr. \\ :ter Dc mctl., «ln Sachen Rainer Maria Rilke und Thomas Mann», Sprac/1e 1111 rec/1 -
g ·l ·s, 1997, pp. 287-296.
"" ' /1,·11 / n111 /1,·1, 17-18, 1966 , pp. 4-11 .
214 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal 2 15

Rilke a incógnita fidalga, carta que, pelas características estilísticas e pelo Se a cabana lhe começa a cair em ruínas, melhora-a da forma que puder com
teor, deverá remontar ao início de 1922; será necessário sublinhar que tam- ramos e erva encontrados nas cercanias. Será ainda necessário explicar que,
bém este texto não consta das edições integrais publicadas até à data? num país deste género , em vão procuraríamos alfinetes, sem falar de dez mil
Deixaremos à imaginação teórica do leitor o cuidado de prolongar os im- outros objectos úteis? Não haveria alfinetes , para já porque ninguém saberia
pulsos dos dois documentos de maneira que se intersectem num ponto virtual servir-se deles, em seguida porque não viria à ideia de nenhum cidadão
do espaço semântico da observação amadurece nte do eu na velha Europa. Es- · fabricá-los, salvo por força de uma carolice que não desembocaria em ne-
se site deverá poder ser acedido, através da senha «!2_ª.9 hiLcapitali ~mo s.e_m nhuma produção regular, nem no comércio. O caso é totalmente diferente
-~nimismo», a partir da maioria dos postos de trabalho dotados de equipa- num país onde a grande maioria das pessoas r9mpeu com a antiga auto-
mento conforme com a nossa época ... : subsis.tência. Na verdade, gentlemen, existem já países cujos habitantes qua-
se sem excepção ~mbarcaram no V?Sto mar da gjyisão do trabalho, se me per-
mitis esta metáfora tão britânica. Não será uma gigantesca aventura o facto
Documento I, Adam Smith: de os empresários e comerciantes de uma nação terem decidido fabricar ex-
clusivamente produtos que só vêem o dia no fito de serem trocados por ou-
«Gentlemen, dirijo-me a vós, meu grande mecenas, senhor chanceler do tros valores? Uma loucura , é um facto, mas uma loucura racional e uma sa-
Tesouro, e a todos vós , amigos das Ciências e das Belas-Artes, neste serão bedoria arriscada! Inúmeras pessoas já se converteram a ela , por um motivo
de festa, para aceder ao voto do nosso anfitrião: apresentar à assembleia que facilmente se !obriga, pois, desta vez , há mais razão na audácia do que
uma breve conferência s9bre _a§_ __çausas verdadeiras da riqueza das nações . na prudência inerte. Entendei-me bem , gentlemen: nesta ordem de coisas, ca-
Ah, muito venerável Lord, como não teria eu reparado que hoje tinha de ser da f~ i~_~nte de bens deve estar individualmente dispostQ a fazer depender
vítima do vosso humor? Poderia eu na verdade estar cego de vaidade a pon- inteiramente a sua felicidade e a sua infelicidade das necessidades de outras
to de não compreender que me armastes uma ratoeira encantadora quando pessoas que, pelo seu lado, suspendem o seu destino das necessidades de ter-
me encarregastes de dar a conhecer em alguns minutos o que me custou de- ceiroS:-É loucura , mas não lhe falta método.
zenas de anos de estudos laboriosos? Mas onde, gentlemen, poderia eu ir Olhai este alfinete, gentlemen ! Podemos estar firmemente convictos de
buscar a coragem para escapar a uma artimanha imaginada pela mais nobre que o seu produtor não o criou para seu uso pessoal ou para seu júbilo soli-
amizade? Para quê ter amigos , se não lhes oferecemos o prazer de se rirem tário. Sem saber mais nada sobre a situação deste homem , gostaria de apos-
de quando em quando à nossa custa? Resigno-me, pois, e dou-vos os frag- tar que o seu alfinete o alimentou copiosamente, se é que não o transformou
mentos de uma resposta submetendo-me ao exercício que consiste em trans- em cidadão afortunado. E porquê? Porque a decisão de investir o seu pró-
formar o fruto de uma longa prática da arte numa anedota de banquete. Hão- prio bem-estar na ponta de uma agulha só podia levar a uma multiplicação
-de compreender, gentlemen., que o faço mais para vos entreter do que para inaudita da arte de produzir alfinetes deste género . Um operário não quali-
vos ensinar, e menos por temeridade pessoal do que por respeito pelas leis ficado, por mais sério e aplicado que fosse, não poderia sem dúvida produ-
da hospitalidade. zir num dia mais do que um só que pudesse servir para alguma coisa - e,
Que tenho eu aqui na mão, gentlemen? Pedi algum esforço aos vossos no melhor dos casos, só fabricaria alguns . Mas , agora que a produção de al-
olhos e levai o tempo que quiserdes, pois o que vos mostro para explicar o finetes constitui uma actividade autónoma , obtém-se, pela especialização
alfa e o ómega da ciência da riqueza das nações é mesmo um alfinete. Sim, d_:'s operários, .'-!.f!! aumento da produção que é quase milagroso. Não é ape-
vistes e ouvistes bem , um alfinete, um objecto como não há outro mais pro- nas a quantidade: também a perfeição dos objectos produzidos merece ad-
fano , mais caseiro, mais humilde. Afirmo, porém , que nesta coisinha tão fina miração . O primeiro operário puxa o fio, o segundo tende-o , um terceiro
se dissimula a soma da sabedoria económica do nosso tempo, para quem a corta-o, um quarto afia-o, um quinto afia a extremidade superior para que
observe correctamente. Será que agora ides pensar que querem gozar à vos- se possa pôr a cabeça, e o processo continua assim até que, no fim de tudo,
sa custa? De maneira nenhuma. Passo a explicar imediatamente como há que um operário consagra todo o seu ardor exclusivamente à embalagem do pro-
compreender este obscuro aforismo. Imaginai um país pouco desenvolvido , duto final. Para realizar um alfinete, são necessárias cerca de dezoito etapas
desprovido de divisão do trabalho e de trocas comerciais animadas, um país de trabalho diferentes . Ainda há pouco visitei pessoalmente uma manufac-
onde cada um se fornece pessoalmente do que precisa: num país assim, não tura na qual dez operários eram capazes de produzir quarenta e oito mil al-
0 necessário ac umular qualquer capital ou fazer reservas. Cada um satisfaz as finetes por dia, de modo que cada um deles podia reivindicar cerca de cin-
11L'l'L'ss idades que se lhe vão apresentando. Se tem fome , vai caçar à tloresta . co mil quotidianamente, ao passo que , como vimos, um operário soiinho
'-;e 11' 111 as roupas gastas, enverga a pele do próximo grande animal que caçar. teria dificuldade em fabricar um único no mesmo lapso de te mpo. . n , tu
2 16 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal 2 17

divisão inteligente do trabalho e na sua recomposição igualmente judiciosa, Centlemen, eis chegado o momento de dizer toda a verdade sobre o sis-
gentlemen., que podereis futuramente buscar as causas últimas da riqueza tema moderno das nec½ssidades ! A produçãÕ de alfinetes tão sólidos e tão
das nações, nisso e em mais nada. nu merosos nunca poderá funcionar, seja nesta nação , seja noutra , se não ti-
Mas, só por si, o forte aumento da produção e o melhoramento das mer- ver amadurecido na alma do primeiro empresário o projecto de ligar todo o
cadorias com vista ao comércio não conseguem nada . Com efeito, para a seu futuro à produção desse bem que faz parte deste mundo . Que perspicá-
produção especializada de bens torna-se necessária uma sociedade de cida- cia, quando esse produtor percebeu pela primeira vez que um novo grande
dãos despertos que fez evoluir as suas necessidades em todas as direcções. mercado prometia abrir-se aqui! Que coragem essa, a de , com base numa
Imaginai, gentlemen, que, numa nação , existem dez ou vinte manufacturas simples intuição , pedir um empréstimo junto de um banqueiro , para pagar
de alfinetes, cada uma das quais não tem nada a invejar à produtividade da ferramentas e máquinas! Que obstinação em procurar edifícios adequados e
que descrevi : seria necessário simultaneamente pedir um povo de compra- encontrar operários competentes que consagrassem as suas jornadas à ma-
dores de alfinetes, um povo que , além das suas mil outras pretensões ex- nufactura para pôr em prática o seu saber-fazer sob a direcção do proprietá-
traordinárias, exprimiria também a sua necessidade de ser abundantemente rio e dos seus subordinados ! Que habilidade , a de escolher os mercadores,
aprovisionado por essas delicadas entidades. O número requerido não seria os transportadores e os agentes sem os serviços dos quais os alfinetes não
pequeno , é fáci l de calcu lar, poi s numa só oficina se produzem quarenta e oi - chegariam nunca ao vasto mundo , às outras oficinas e às casas dos seus uti-
to mil alfinetes durante cada um dos trezentos dias úteis do ano, ou seja, um lizadores! Que energia estóica é necessária para, nos bons e mau s anos, uma
total de cerca de quinze milhões . Se essa capacidade de produção for atingi- pessoa se atirar à competição com os fabricantes de produtos seme lhantes,
da também regularmente nas dez ou vinte manufacturas do mesmo tipo, a sem que a coragem esmoreça e pensando sempre na maneira de aperfeiçoar
produção global deverá ser multiplicada por esse factor. Como se poderá de- a mercadori a ! Compreendei-me bem: não quero limitar-me a fazer o elogio
duzir do ponto de vista do economista, um povo civilizado é pois um grupo do homem diligente, cuja fé activa nos alfinetes permite propor um bem tão
de pessoas suficientemente cultivadas para consumir num ano cento e cin- prec ioso a todo o mundo , desde que este esteja disposto a pagar o preço na-
quenta ou trezentos milhões de alfinetes. Estão a perceber agora? Estão a ver tural. Queria ainda mais g lorificar o segredo que se oculta por trás do nexo
as consequências? Que fluxos de riqueza de outra natureza vemos nós for- entre todas as mercadorias para a troca nos mercados. Centlemen, mais não
çosamente desfilar diante dos nossos olhares? Com efeito, genllemen, numa desejaria do que conseguir acender em vós a faúlha do espanto que me ins-
nação que precisa de tão grande número de alfinetes, será necessário que pira o mistério quotidiano da nossa época: espantai-vos poi s comigo com
existam também montanhas de tecidos , pavilhões cheios de nobres sedas, os este aco ntecimento tão simples e contudo tão incompreensível, o facto de
mais vastos armazéns a abarrotar de têxteis do mundo e gigantescos entre- milhões de alfinetes seguirem o seu caminho desde a mina de ferro até às
postos a transbordar de roupas, de panos , de cobertores e de cortinas de to- fábricas siderúrgicas , dessas fábricas até às manufacturas , das manufacturas
das as espécies. É claro para qualquer observador que tudo isso quer ser co- aos armazéns e casas de comérc io, e das casas de comércio aos ateliês e aos
sido e combinado, tudo isso exige alfinetes, fios e dezenas de milhares de lares onde dão numerosas provas da sua utilidade, por mais triviai s que pa-
mãos que cosam e que espetem tudo o que apanhem. Vemos aparecer ime- reçam! Num capricho poético , poderíamos ceder à crendice e ace itar a ideia
diatamente a imagem de inúmeras damas e legantes que , envergando vestidos delirante de que , num mundo superior que participasse no nosso, existiria
magníficos, revoluteiam diante dos espelhos . Mas não pensamos apenas nas um povo espiritual de alfinetes que, quais demónios benfazejos, aco mpa-
mulheres ricas: também as caixeirinhas e as criadas participam nessas voltas nham os alfinetes terrestres na sua metamo1fose. Mas afastemos a tentação
coquetes. E pensai nos navios nos portos, nos veículos que percorrem as es- das imagens poéticas e olhemos sobriamente a coesão das co isas, tal como
tradas nacionais , que encaminham tais tesouros para todo o mundo! Em re- se desenvolve nos mercados deste mundo! Essa coesão, será ela menos en-
sumo, fo i preciso que todas essas necessidade.s. fossem despeitas e tivessem feitiçante quando a olhamos com o olhar da ciência? Claro que não , gentle-
atingido níveis eminentes para que a indústria local do alfinete atingisse o men! Quanto mais secamente encaramos as coisas, mais a nossa admiração
cume da sua capacidade. Em última instância, será forçosamente o estran- vai aumentar ao observar que não só os alfinetes, mas também dezenas de
geiro que prestará atenção às nossas manufacturas de alfinetes, e há-de cer- milhares de produtos diferentes seguem o seu caminho com a mais espan-
tamente ter in veja delas. Inúmeros mercadores vindos de todo o tipo de paí- tosa pontualidade , como se uma mão invisível os guiasse ao seu lugar de
ses vis itam a ilha britânica para atraírem os nossos excedentes para as suas destino .
1·r-ras. Quem não há-de poi s espantar-se por esse insignificante alfinete se Veneranda assistência, acho que devereis perdoar-me a imagem audacio-
111rn;1r uma fonte ele grande prosperidade para um número não desprezáve l sa que aca bo de utili zar, melhor, tereis de tolerar que eu vá ainda mais lon-
d · pl' Ssons . • urna ronte ele rendimentos bas tante segura para muita out ras? , ·, di z ndo que essa mã invi ível não conduz apena e sas dif rente. s-
218 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal 2l9

pécies de mercadorias pelo seu caminho, não, mas que também garante da filósofos receberão dos produtores de alfinetes uma indicação que dirigirá
forma mais estranha e mais segura essa coesão geral das coisas produzidas os seus pensamentos para novas vias. Admitirão um dia que esse elevado / j
em nome das permutas comerciais a que chamamos mercado mundial. Por bem que, desde a época dos antigos , leva o nome de liberdade humana mais /, ·· , ·
amor de Deus, exclamareis, gentlemen: será que o orador enlouqueceu? Es- não é do que o reflexo das coisas móveis nos mercados, que adquir~~m a I
tará no seu juízo a falar assim de uma mão invisível que, vinda sabe-se lá liberdade pelos seus preços, se assim me posso exprimir. A liberdade signi-
de onde, se permite intervir para pôr ordem nos mercados? Tereis certa- fica para as coisas a possibilidade de mudarem de proprietário; em contra-
mente motivo para levantar tal objecção, gentlemen , mas é meu dever res- partida, a liberdade para as pessoas significa que se libertam pelo resgate do
ponder-vos que o estudo mais pormenorizado dos mercados me conduziu à serviço que deviam aos poderes feudais, a fim de se tornarem os seus pró-
suposição, e, inclusive, à firme convicção de que deve existir neles uma po- prios proprietários. A grande libertação produz-se quando não servimos já
tência superior compensadora. Uma comparação poderá ajudar-vos a com- ~_11!:tor que conhecemos , mas as necessidades de terceiros situados ao
preender essa convicção profunda. Pensai nesses galantes desavergonhados mesmo nível que nós e os quais, na sua maioria, não conhecemos.
que noutros tempos forçaram Penélope a tecer a sua túnica de núpcias pois Gentlemen, libertai-me agora do meu dever. Peço-vos, consagrai uma
o seu esposo, Ulisses, não tinha qualquer hipótese de regressar! Com que das vossas horas ele calma ao paradoxo pelo qual concluí o meu discurso.
enfado , com que desconfiança esses senhores deviam notar que uma mão Com efeito, é um ~aradoxo insondável q_ue dev:amos a nossa liberdade, que
dissimulada desfazia regularmente durante a noite aquilo que fora tecido tão cara nos é, à nossa sujeição às necessidades de terceiros. Por hoje, que-
durante o dia! A nossa situação, hoje em dia, é bem melhor, senhores, pois remos espantar os espectros da profundidade de espírito que quer franquear
temos o privilégio de ver uma mão invisível fabricar, dia e noite, uma úni- as fronteiras do bom senso. Deixemos aos nossos colegas alemães o cuida-
ca e mesma peça, um pano vários milhares de vezes maior, mais bem teci- do de descerem aos sombrios abismos da existência e de voltarem de lá com
do, mais rico de fios e de motivos do que a túnica de núpcias de Ítaca , e bem ouro falso à luz do dia! Ergamos os nossos copos ao nosso anfitrião, o no-
mais útil , pois, como sabeis , essa camisa nunca haveria de ser vestida, já bre chanceler do Tesouro da Inglaterra! Sei muito bem a que ponto é insu-
que Ulisses acabou por regressar a casa. Como deveríamos nós ficar mais ficiente o apanhado que tive o embaraçante privilégio de vos expor. Tenho
espantados do que essa falange de convidados insolentes que rivalizavam viva consciência de que, com o que disse, abusei tanto da ciência como da
pelos favores da matrona! Enquanto a mão desta desfazia o que ela própria vossa paciência. Sede indulgentes com um discurso pronunciado à pressa.
tecera, o mercado mundial liga, segundo as suas leis ainda perfeitamente Concedei-me as circunstâncias atenuantes de que pode beneficiar um ora-
obscuras ,' o que nós desfizemos ao confiarmos o nosso destino à divisão do dor na minha situação. Mas , se hoje, eu, escocês entre ingleses, tive de ser
trabalho e ao comércio. Penélope, a tecelã ardilosa, tinha sobre nós a van- avaro de palavras, não economizarei certamente a gratidão pela honra que
tagem de ver a sua própria acção nas duas direcções. Era ela que tecia e des- me fizestes concedendo-me a vossa atenção, essa bela filha da sociabilida-
fazia . Nós fornecemos os diferentes fios e temos de deixar ao mercado o de e da gravidade masculina.»
grande tecelão, e à sua mão enfeitiçada, o cuidado de saber se quer atá-Íos
ou -técê-los. Gentlemen, aconselho-vos vivamente a que , de hoje para o fu-
turo , vos cinjais à crença segundo a qual o mercado saberá sempre mais so- Documento II, Rainer Maria Rilke:
bre o tecido no seu conjunto do que somos capazes de apreender com a nos-
sa visão limitada de fios singulares! «Venerada condessa, ó grande alma magnífica:
Que resulta disto tudo para a arte de dirigir uma grande comunidade? - Repentinamente sinto com grande intensidade a vossa presença, agora
perguntareis vós, e não queria deixar de vos dar um esboço de resposta. que tomei a decisão de aliviar o meu espírito e de depor um segredo em lu-
Num Estado bem regido onde se tenha sofreado o desperdício dos impro- gar que possa envolvê-lo sem o abafar. Com efeito, esta manhã, o vosso re-
dutivos, aparece inevitavelmente uma prosperidade geral sensível até para trato veio-me à memória como se uns anjos o tivessem puxado com fios pa-
as categorias mais baixas da população. Tal prosperidade surge obrigatoria- ra fora da luz sombria. Nesta hora, estais próxima de mim como uma casa
mente se os governos se conformarem com a ideia de não entravarem o na qual, quando jovem, passei muitos dias. Tenho a impressão de poder mar-
grande tear e a mão invisível que o move. Um Estado rico é a soma das suas char de novo nesse quadro de vida familiar até que surja o lugar preciso on-
c idades prósperas; mas ,ª cidad~ é um~ feira_p~ rmaqe_nte onde afl_µi a região de o segredo que trouxe possa ser deposto a fim de aí repousar e viver co-
ad_1acente para praticar o comérêio e estudar as inovações. Felizes as nações mo lhe cabe. Sorride tranquilamente, nobre dama , dessa arrogância que me
q11 c são já feira s permanentes! Feliz o mundo que será um dia uma única transforma em um intruso em vossa casa , ainda que esse intruso venha , des-
1t-i1 ;1 rcpl ·la do ruído cl s mercadores e dos compradores! Nesse mundo , o~ ta vez, om um presente. Fazei uso do vo so privilégio inalienável : estar ac i-
220 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal

ma dos segredos dos poetas, com o seu séquito de alusões de asas inquietas. E~ sempre sob tectos q~ .CºIE>J~(~s p ela_s próprias mãos, é
Mas sede benevolente com a grandeza de alma que vos cabe por direito ina- ser pri sioneiro ae·
uma passadª liberdade.
to e cuja existência amplifica o ar que respiro desde que a vida me fez o fa- Q céu estrelado, ah, enviámo-lo para junto de um
vor de vos revelar a mim . Deus longínquo que lamenta já ter-nos amado .
Recordar-vos-eis sem dúvida de que há alguns meses vos envie i uma car- Em seu lugar, erig imos uma abóbada de orgulho e prudência.
ta solene, quase se poderia dizer uma mi ss iva, escrita ainda nas alturas de Lá onde outrora as vigas se tendiam entre as estrelas
Muzot, na qu al vos informava de que terminara as elegias . Não duvido sobem hoje as redes audaciosas das fo1j as.
de que a importância do acontecimento esteja ainda presente no vosso espí- Vi1 ros sem mistério substituem o nobre azul ,
rito. Muito enganado teria eu de estar, se os nossos pul sos não tivessem ba- paredes constru ídas com as nossas mãos formam o hori zonte
tido então ao mesmo ritmo! Talvez desperte na vossa memóri a o eco da como se o uni verso ti vesse de se acabar
mensagem que emiti na época. Ah, certamente vos lembra is do meu apelo ali onde a obra do homem toca a sua fronteira .
aos amigos, um apelo vibrante de reconhecimento: que o número se tenha Agora, para os homens também não é mais do que barras
tornado redondo, o dez eminente, a santa década de que eu fora o receptá- e, por trás de milhões de barras, já não há mundo.
culo no decorrer desses anos de espera, de maturação e de silêncio. O~trora, mas lá fora, ao ar li vre tão velho que cresce em torno a nós ao
E agora, muito venerada e subida dama, tenho de tomar a ousadia de vos correr dos milénios
confiar aquilo que acabo de chamar o segredo . Escrevo a confi ssão que se se- quando nenhum engenheiro não tinha mais poder do que um pequeno animal
gue com uma mão fin a e esgotada, uma mão que se retira , envergonhada, mes- que
mo quando dá. Vou ter de o dizer fi nalmente, para que repouse doravante no sente constantemente a omnipotênci a do aberto, quando segue as pi stas da
vosso sorriso: as elegias.nã eri!!!J dez E ll_m_2!!Z~ . Oh , Deus, está escrito ! proximidade,
Em vão procurei em mim a expli cação deste embaraçoso excesso . Na lá fora, digo, e outrora, era a pura verdade, quando o verso
época, quando os versos me chegaram, escrev i o que graves anjos parec iam me fa lava: o espaço único passa por todas as cri atu ras.
d itar-me, como um homem que, na tempestade, já não é senhor de si. Quan- Encontre i nele todas as coisas conjuradas para coexistir,
do terminaram as semanas de febre, vi a obra com olhos onde amainava a todo o estante vac il ando no seu lugar, imperceptíve l, no mesmo sopro .
brasa , mas, sempre que contava essa di vina série, detectava üma a mais do E, como um vento que deixou a casa do Verão
que as dez providenciais. para trazer o Outono mais rico ,
Nobre dama, perdoai-me por, com esta revelação, vir obsedi ar o que ten- o ser um para o outro percorreu os
des de mai s íntimo . Mal suporto a ideia de que este segredo compartilhado corpos das coi sas separadas.
vos faça mel ancóli ca ! Garanto-vos , é impossível que tenhais de sofrer o que O espaço, o único, reinava como majestoso
soubestes de mim! Consolado por este pensamento, entrego-vos, a vós e só colector, o Deus mais expansivo, que di stribuiu almas a todos
a vós , uma cópi a do poema supranumerário , o décimo primeiro. Não co- como são di stribu ídas as prendas pelo povo nas bodas dos príncipes,
nheço alma nenhuma no mundo a quem se possa confiar com tanta con- para que até os mais pobres participem.
fiança estes versos órfãos. Ah, o que são as almas , o que são os amigos, Respirando como gémeos, os sapatos da camponesa diante do quarto sombrio,
senão também asilos para versos perdidos? Não mostreis estas linhas a nin- o martelo estava ainda quente do precioso trabalho, quando de noite
guém, salvo aos raros que se acercam da prox imidade do vosso coração . Se repousava na oficina, tal como a foice que ardia docemente
acontecer que encontreis um solitário e um único, um fa minto dessa reali- de utilidade, bem depois da colheita, até ao Inverno .
dade interior de que fo mos testemunhas tardi as, compreendereis imediata- Todas as manhãs acti vas a alma escapava-se dos cabos das ferramentas para
mente o que devereis faze r sem trai r a vossa consciência e o poema que pas- as mãos dos que partilhavam com esse mobiliário tão tranquil o
sa a ser o vosso hóspede silencioso. os seus quartos, assim como os homens roídos pelo tempo
Pensai em mim em certas noites violetas , quando passeardes nas fa lés ias partilham o le ito
e, quando a atracção do céu vos fi zer os pés ligeiros , deixai-vos invad ir pela com o perfume inexprimível das mulheres fáce is.
sensação que se encontra, mais silenciosa do que nunca, mesmo j un to a vós. Mas eis que um destino nos afasta dos seres com alma.
Tudo o que é adqui rido, gritei, a máquina o ameaça .
O Yos·o Vi vemos numa máq uina,
RMM . e o interior tornou-se emelhante ao ex terior,
222 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal

como se a alma não fosse mais do que um gás de escape que sai, a metamorfose técnica e monetária do mundo: numerosos observadores da
incómodo, de um motor ruidoso. época (nomeadamente, Baude'íaire, que Benjamin convocou como testemunha
As coisas emulam-se, venais e frias principal) narraram que as coisas esfriavam e mostravam uma face enganado-
como raparigas doentes que esqueceram o que são ra, uma manha. Como que animadas por um motivo malvado e ,!Utónomó, pa-
os amores, as flores reciam de repente esforçar-se por ir por entre as gentes em lugar de ficarem
e as estações. junto de um único proprietário orgânico. Assim, havia tr~ição no ar - como
Onde viviam almas , veio a insolência, se as coisas, tom~ndo-se mercadorias, cometessem uma infidelidade.
os animais ingénuos J A proposta feita por Benjamin, por instigação de Marx e Baudelaire, que
pendem, carne esfriada, desolados, nas vitrinas, visava considerar que a rostituição não era apenas a exploração profissional
esses nobres seres vivos, testemunhas precoces da nossa existência, deixaram da ilusão sexual, mas tam6ern ·um modo de ser geral das pessoas e das coisas
de nos fitar · no· mundo animado pelo dinheiro , acolhia esses nexos sensorialmente - e
de tal forma que nos faltam hoje as testemunhas que teriam retorcia-os de uma forma que, também ela, não estava desprovida de ilusões .
podido dizer em silêncio a jura de que nós, como eles, estamos Na medida em que dava ao dinheiro um carácter injusto por ser meio de ad-
vivos, a escutar ao longe, tão ao longe, no interior. quirir objectos do desejo , sustentava a sugestão anarquista segundo a qual as
Tudo o que se está isolado na claridade dos pavilhões ostenta agora um preço, melhores coisas deveriam no fundo ser gratuitas; ao fazê-lo, não imaginava
tudo desalmado e prisioneiro disso. que ·o acesso por pertença - no qual o princípio utópico da gratuitidade tem
Cada coisa nos grita como é jovem e importante o seu modelo - é de longe o mais on~roso de todos . o benjaminisrno forne-
e tão concupiscente como aquilo que , ce a versão histórico-filosófica de um fantasma dos homens melancólicos: a
barato, faz de objecto de luxo. ideia de que, nos tempos messiânicos, as putas e outras superfícies ilusórias
Ah, hoje em dia , a coisa já não consegue encontrar o seu homem . se reduzem ao modo de ser do puro valor de uso.
Ser venal , hoje em dia, é ter esquecido a pertença à vida.
1 '\/ I • • '- -
Comprar significa trazer levianamente para casa coisas, .s; resumirmos o que sabemos dá grande passagem para o universo do di-
convidados duma só noite que saudamos, que utilizamos
e que nunca mais vemos.» ,,
nheiro, vemos a que ponto todas as dimensões essenc[ais -~º sei; ~ão modifica-
das pela transmissão_mQn.etária: temos sobretudo aceS§O aos lugares na quali-
Se comprar, vender, tomar ou ceder de aluguer, pedir ou conceder ernprésti- (
dade de compradores de títulos de transporte; temos sobretudo acesso aos
dados na qualidade de utilizadores dos media; temos sobretudo acesso aos bens
.
mo são- operações que dizem respeito a todos os aspectos da vida na Grand:_ In~-
talação, é obrigatório que a acessibilidade das coisas produza, po~ transfe~e~~1a
~ateriais na qualidade de detentores de meios de pagamento; e atingimos so-
b-retucfo as pessoas na medida em que podemos obter entrada nos lugares de en-
f
de dinheiro , um sentimento de mundo que seja a sua contrapartida. De 1mc10, cq!!tro possíveis com elas. Todas estas coisas parecem banalidades, mas não
vemo-nos ante urna imensa expansão do número de objectos ao nosso alcance são, como mostra a recordação hoje um pouco desvanecida dos tempos em que .,
- ao fim, a coincidência entre o espaço interior do mundo e o espaço do poder o dinheiro não era ainda uma dimensão que se infiltrava em tudo. Nas situa- '
de compra torna-se verosímil, o que se reflecte no estatuto do equipamento que çõe~é-monetárias, praticamente todos os acessos às pessoas e às coisas esta-
nos cerca diariamente. Logo que muitas coisas anteriormente inacessíveis são vam abertos pela pertença a um grupo e à sua envolvência de objectos; antes
arrastadas para o lado do comprável e logo que certas indisponibilidades sur- da ;iode~idade, I!- pertença era o preço do mundo . Antigamente, para uma pes-
gem inopinadamente corno disponíveis e reversíveis, impõe-se _e~se ~xage:o soa ter um mundo, tinha de se deixar absorver pelo seu lugar. Sem ser possuí-
nascido da crítica da cultura, segundo a qual todos os valores trad1c10nais estao da pelo que se veio a chamar (mais tarde, para a neutralizar) a sua própria cul-
sujeitos à reavaliação e à desvalorização. Mas haverá que deixar claro que a cir- tura, não tinha acesso às pessoas nem às coisas.
r culação alargada das mercadorias, por si, não implica a corrupção generalizada: - Após· a viragem para as relações monetárias, os acessos resultam muito mais
quando utilizamos dinheiro para aceder a mercadorias, informações e pessoas, de actos de compra e de acoplamentos a ofertas ou a endereços abertos. Dos
pomos opções revogáveis em lugar de pertenças duradouras. . que têm êxito, espera-se hoje que possam deixar as suas pertenças para trás.
Há que compreender e exercer esta flexibilização . O facto de «as c01sas» O tema do belonging é desenvolvido sobretudo quando certos indivíduos e gru -
11 ;ío passarem incólumes d~2-.Qª- ertenç1 _para o mundo das opç?es
pos se vêem excluídos de vantagens ligadas à rique~ pelo que gostariam d '
l·, pc llw-sc cm inúmeros reflexos nervosos. Compreendemos por que motivo poder recorrer a uma vantagem de identidade a que tivessem acess s m ·us-
,·11 11 , 1i111iu 11111a das ex periências mais inquietantes dos seres humanos durante
tos - por xcmplo , o facto de serem alemães , ou bas os, u sérvios, ou (H il1'11,
Peter Sloterdijk Palácio de Cristal I 225
224
,: ,·,,

plumas que se possam ostentar gratuitamente:.E~rtença, Zugehorigkeit, belon- participar no «todo» deslocou-se , do altruísmo roveitos_o_para _Q senhor e as
ging, appartenance - expr:essões deste tipo têm boas hipóteses de dar as suas normas divinas, para a abertura às mercadorias e aos temas públicos - com o
provas como slogans dos perdedores do século XXI. Inútil dizer que fazem par- efeito secundário inevitável de entre o~ ujeito~» se propagar uma t endência a
te dos conceitos mais interessantes do futuro, nomeadamente por essa razão. tomarem-se a séri~ _como clientes, detentores de opinião e portadores de quali-
A característica psicossocial dos grupos_b~m:_sucedidos no e~paço-interior- dades Q_essuais. Os primeiros a assinalar o facto foram os autores da crítica mo-
-do-mundo do capital diz respeito à éonversão de pertenças em op_çõe?. Esta ral que, a partir do século xvm, descobriram no amour-propre e na vanity fair
reforma do estatuto ontológico das coisas e das pessoas exprime-se cogniti- , f1 objectos de comentário infinito . A rica fenomenologia do egoísmo em todas as
vamente pelo construtivismo. Temos constantemente de provar que com- categorias prepara a sua neutralização moral. Os teores analíticos dessa literatu-
preendemos o essencial: seja qual for a coisa que nos apresentem como en- ra desembocam na Gaia Ciência de Nietzsche, ao passo que os seus excedentes
contrada, é inevitavelmente uma coisa feita. De todas as naturezas aparentes em matéria de representação do homem extravasam em forma de reivindicações
ou coisas já dadas, podemos, ap9s leitura de um breve manual de instruções, do super-homem - diríamos hoje, do consumidor cosmopolita.
pôr a nu a sua «construção»~ a sua «invenção» , as suas «politics». E a conse- Para lá disso, no espaço interior do mundo capitalista, o que ocupa o lugar
quência inevitável é que essa demolição do natural se vai infiltrar nas relações central é essa tendência ~ o consumo final .e sem segundos pensamentos a
do ser humano consigo próprio - razão pela qual, em clima construtivista, que , há C~'!1 anos, num primeir~ movimento de emoção, Se chamou niilismo.
não se fazem bons prognósticos para as identidades f!x.as. Só os perdedores Este termo dá conta da observação segundo a qual con~ ll}_O e_i!!:e:;;pejto são 1 ,,
tê~ necessidade de naturezas fixas. Tal não significa que possamos deixar de fen~__Yi...zjnhos. Na realidade, a metamorfose consumista do «sujeito»
·
dizer ·
de onde vimos ·
e como nos situamos num qua d ro mais· vasto 221 . traz à consciência o direito de destruir os objectos do consumo . A.reavaliação
Compreendemos agora por que motivo os modos de vida que debilitam as de todos os valores tem o seu modelo no metabolismo orgânico . Na medida
pertenças e reforçam as opções nas esferas de conforto do mundo ocidental e em que tudo o que existe efectivamente se destina a ser absorvido e incorpo-
ocidentalizado conduzem a uma reconstr.ução psicopolítica da clientela - rado pelo consumidor, o detrito acede ao estatuto de «grande resultado da vi-
que pode ir até à reconversão pós-monoteísta do sentimen~o religioso . No~a da em todos os seus estados» , para voltar a dar a palavra ao sobrinho de Ra-
bene: o cristianismo actual é um monoteísmo a tempo parcial , e podemos di- meau, o antepassado do neocinismo. Neste quadro, a mutação dos valores
zer a mesma coisa do islão e do judaísmo, embora, nestas religiões estagnan - desemboca sempre na desvalorização.
tes relegadas para as funções de autogestão e de manutenção da tradição, exis- Segundo a mesma ordem de ideias, libertámos vagas formas de vivência
tam correntes fundamentalistas agudas cujos oradores, o mais das vezes panteístas e politeístas, pois o sistema global favorece as pessoas desprovidas
religiosos profissionais, fazem como se Deus ainda pudesse precisar do ho- de qualidades muito fixas :::- como poderia ser de outra forma se a missão do
mem na sua integralidade. A verdade é que o dinheiro há muito prestou as indFvíduo ; oo·
universo do capital, consiste em abandonar-se a ofertas de mer-
suas provas como alternativa a Deus e que essa alternativa é um êxito opera- cadorias cada vez mais numerosas,jogos de personagem cada vez mais diver-
cional. Hoje em dia, o dinheiro contribui mai~ ~~a a coesão das coisas do que sos, reclames cada vez mais invasivos e ambientes cada vez mais arbitrários?
o poderia fazer um criador do céu ê da te1Ta. A v_idJ _do mercado demole as convicções, os monismos e as originalidades
A principal metam01fose da psique moderna diz respeito à libertação d~ brutas, substituindo-os pela consciência de que existem sempre possibilidades
egoísmo, sobre o qual , durante toda a era da carência e das suas compensações de escolha das saídas laterais. Tal significa, consequentemente, que as pessoas
·holísticas, pesou um veredicto inabalável. Neste ponto , I':.ietzsche, o profeta da ficam mais pálidas e os objectos mais coloridos. Mas os incolores são chama-
ruptura dos mundos , disse o essencial com a sua doutrina neocínica da trans- dos a escolher de entre as colorações . É soberano quem decide a cor da esta- .
mutação de todos os valores. A transmutação diz respeito, antes do mais, ~ - ção. Com o discurso sobre o «homem flexibilizado» , tomamos conhecimento
rência dc1 natureza humana a si própria, esse «enroscamento em si próprio» que, destes estados de facto segundo o modo da queixa; com o discurso sobre a new
~ era da moral e da metafísica agro-imperiais, sempre foi obrigatoriamente age e a net age, fazemo-lo segundo o modo da radiação . O detentor ideal do
condenado enquanto traição ao senhor, ao colectivo e à ordem das coisas . Des- poder de compra de amanhã seria o anti-Bartleby: o homem que, treinado nas
de que os cidadãos dos Estados afortunados modernos já não se concebem co- longas listas de opções, tivesse aprendido a dizer «porque não?»222_ Seria o
mo súbditos , mas como eleitores e livres utilizadores do dinheiro, o dever de cons~midor habilitado. Poderia declarar, retomando livremente o dito ele ou-
tro J?ersonagem de Melville atrás citado: o mercado mundial foi o meu ol é-
g io de Yale e a minha Harvard.
·' 21 c r. Da vid Simpson. Situated11ess, or Why We Keep Saying Wh ere We're Comi11g fi·o111 , Durharn
,· 1 , ,11d,n. 2002. Da vid W. Winnicott, Home is Where We Start Fro111. Essays by a Psychoa11alyst,
222 0 1110 s • sab •. o Bar1lcby d · M clvillc responde a todas as propostas: « ; 111 ·lhor 11 o, >
'J.,, ., 1111q11 ,· · l .nndrcs. 1986·.
Palácio de Cristal 7

di ões de vida na «sociedade» que conseguiu a desoneração a vários níveis.


Podemos agora redesenhar tranquilamente os contornos dos estados de exis-
tência no espaço pós-necessitário , sem que a propaganda dos partidos da ur-
gência e da gravidade possam ainda falsificar decisivamente o quadro da si-
tuação . Esta é indiscutivelmente caracterizada por um singular desfasamento
histórico que integra na sua escalada a maior parte das populações das zonas
de prosperidade. , .
Oco~~~ de mimo não implica naturalmente uma concessão à pedagogia 1,,u,
conservadora , que não quer deixar de acreditar que o homem continua a ter
37 Mutações no Espaço dos Mimos necessidade de ser orientado por uma mão forte. O mimo, enquanto termo da
antropologia histórica, designa os reflexos psicofísicos e semânticos do mo-
vimento de de~?._n~ração inerente des de início ao pro-c~sso de ci~ iliz; ção·, ~as
que só pôde amadurecer e adquirir a sua plena visibilidade a partir do mo-
Ai das vanguardas que são seguidas pela massa!
mento em que os bens deixaram radicalmente de ser raros . À luz destas su-
posições (que assentam no desenvolvimento dos pontos de vista de Louis
As palavras-chave <~dia.» , «e~istência na_estufa» , «reconstrução sociopo-
~ olk _e Arnold Gehl~o), podemos dar a compreender que, com a experiência
lítica» da fracção da humanidade que detém um poder de compra reclamam
do EstqdQ e.COQÓmico e do Estado-providência moderno, se consumou um
-------
CQ!Jlentários s_uplementares. O seu ponto de partida deve ser a constatação de
que, nas populações da esfera do conforto, se consuma hoje uma mutação pro-
salto na história do mimo do Homo sapiens - um salto que abriu a todos os
que o deram com os outros um espaço imensamente alargado de possibilida-
funda do pensamento tradicional , que se exprimia segundo conceitos de ur-
des existenciais . A (eori.il do mimo orientada para a antropologia - assinale-
gência e de carência, rumo a um pensamento ainda amplamente invulgar, que
mos _P~r- precaução - não tenciona repor em causa os efeitos de desoneração
recorre às ~ões 223 . O significado desta transição ultrapassa amplamente
poss1b1htados pelo processo da civilização; o que deseja é optimizélf a capa-
aquilo que pode exprimir uma expressão como «mudança de mentalidade» .
cidade de navegação cultural dos sujeitos do mimo no seu ambiente arrisca-
Nesses colectivos ocorreu uma c~ ura tão profunda que poderíamos ser tenta-
d9 e_ a~pl~mente_incompreendido, propiciando orientações conceptuais para
d~ xprimir o seu sentido retoman -o um conceito filosófico exagerado: pa-
a ex1 stenc1a em situações fortemente marcadas pela desoneração.
rece que o r~~no da necessidade deu lugar ao reino da liberdade - por mais
O conceito de <~tédio~ exposto por Dostoiévski e Heidegger mostrou de 1.,
numerosos que sejam os partidários da necessidade que, enquistados num ma-
forma pregnante il que consequências ps°icossemânticas leva a estada no .é ter \
quis de antigos e novos conservadores, conduzem uma resistência encarniça-
G.Q!liru:tável da grande estufa . Na sua presença difusa aparece o reflexo de hu- 1.
da às novas circunstâncias. Entre eles encontramos es íritos românticos e re-
mor pro_f~ndo de uma existência que encontra no seu meio a 12_~ _permanente ,
ligiosos que reagem com indignação à descoberta do factQ_de qu~.a banalidãde
o aprov1s1onamento permanente, o divertimento permanente - embora uma
_e_ªJib_e_rdade co11ve.rgeJii - nióerã assim que se-imaginava o objectivo da ac-
agitação constante no sentido contrário, a qual põe em jogo temas de stress e
'1
tividade humana . Na realidade , após a viragem, os motivos débeis , do tipo do
de competição que tonificam o colectivo , assegure um certo equilíbrio. Em-
_p~ cap~ o e do gosto pessoal, têm de assumir o papel de motivos fortes
bora, nos meios tradicionais do radicalismo da crítica social, se alimentem
queantigamente se tinham encarnado na necessidade imperiosa e nas suas
teorias góticas da catástrofe que fixam o olhar em cenas de violência e de ca-
transposições nas figuras do fundamental , do sobrepoderoso, do magnífico , do
rência passadas e actuais , nenhuma dúvida pode existir sobre as vantagens
incontornável. Num mundo marcado pela desoneração, desaparecem os moti-
~ue a t: n~ência par_a o mimo_consei uiu sobre os novos gravames . As potên-
vos da antiga necessidade absoluta. Onde havia a necessidade, pode advir o
cias_ efect1vas do mimo formam um espaço de imersão que impregna os seus
capricho .
habitantes com as condiçõ~s atmosféricas de uma garantiª da existência co~-
A consumação teórica da grande mutação é facilitada pelo facto de que ,
cedida or princípio e antecipadamente . -- -
co_11: a p<l§-m.odemização da c_ons.c.iênc.iª, a idol;:l.tria do trabalho - no sentido
Neste---espaço de desoneração generalizada , é inevitável a descoberta dos
· económico , físico e psicológico - que dominava ·toda a modernidade, foi su-
fe ~ menos de stress, já que a formulação de um conceito geral de stress só se
ri cicntemente d~sconstruída para libertar uma visão mais clara sobre as con-
torna possível uma vez estabelecido na prática o conceito complementar de
9esoneração . Sobre esse fundo de tendência para a desoneração, o str>ss ga-
'' 1 h 1:i lese é exausti vamente fundamentada no terce iro capítul o de Sphéire11 Ili, ScMi11111e,
nha a dose de vi sibilidade indi spensável ao desenvolvimento de uma nov11
\ 111 111<· 11111 11 1 V·rwl\hnun g. Z ur Kritik der reinen L aune», pp. 67 1-85 9.
Peter Sloterdijk Palácio de Cristal 229
228

1. ', tapa ele sensibilização e à constituição ele uma teoria explícita. Como 9 stre§_I compra, por si próprio, cria facilidades de ac~sso a tudo o que existe sob for-
é a clecepção_cle uma expectativa de se ser desonerado, a SUJ!..~Xplic_itaçã? faz ~ d~~ercadori as e possui, de certa maneira , a yirtu_de mágica de , com um
parte das tarefas do trabalho teórico sobre as condições de vida no palácio de movimento ligeiro , a~rir a porta do mundo . Isso significa, na sua acepção
cri stal. O tédio difuso , por um lado, o st:!!.s não específico, por outro lado, contemporânea, que a acção a que damos o nome de «comprar» só pode ser
constituem os universais atmosféricos da existência na estufa. Assim como o expressa coJTectamente se tivermos em conta o valor de mimo do acesso ao ' ".°,h,,
tédio si 0onifica a desoneração em g-;;~al, a desoneração sans phrase, o stress objecto, quando esse acesso é facilitado por princípio . Aliás, essa facilitação ,( ·
1
dêsi;;:;á à T; ita--ã~ ~ era! a iJTitação sans phrase. Estes dois afectos fun- deve-se ao si~tema de transportes modernos, no qual o meio universal de de- ;
dam~~h!fs'°c'fu.exi; tênci a no p'alácio de cristal produzem uma ambiência croni- soneração e de mimo que é o petróleo celebra um dos seus principais êxitos. ,-'-•
camente ambígua em que alternam alarme e fim de alerta. As irritações são Prestações de transporte de custo fortemente reduzido asseguram pratica- l.
apercebidas como figuras stressantes sobre um fundo de desoneração; pos- mente por todo o lado a omnipresença das mercadorias na proximidade dos
suem sempre a forma de reonerações que se opõem a uma tendência para a compradores. Comprar significa pois também e sempre encantar com meios ,.
desoneração . Quanto às desonerações, assumem sempre a forma de medidas monetá[ios; por seu turno , o encantamento - mostrámo-lo noutro local224 -
tendentes a reduzir o stress. Uma vez ace ite isto, facilmente podemos mostrar sígnifica obter um excedente de efeitos em relação à causa. Responde a isso ., •
como, após a instalação do sistema de desoneração, o stress entra também na o espanto do público quanto aos efeitos súbitos e inexplicáveis . O espantoso
era da sua produção artificial. não ocorre quando esse tipo de excedentes é produzido de maneira prev isível
Para resumir a nova situação com uma imagem arquitectónica: no interior e constante - e a regularidade dos efeitos citados constitui o segredo da di- ,~
do palácio de cristal pós-moderno , instalou-se um elevador do mimo que visão do trabalho e da sua síntese na economia de mercado . Na sua grande 1,( ••
transporta os habitantes para os cinco vastos pisos do sistema de desoneração. maioria, os habitantes do palácio de cristal benefi ciam do c~mtexto de encan- l
Não se pode naturalmente supor quetodos os passageiros têm a poss ibilidade lamento da esfera do dinheiro que, perante cada agente singular, contrapõe às 1
de sa ir no piso de sua escolha e aproveitar as suas ofe1tas específicas. Mas, suas poss ibilidades de autoprovi sionamento pessoal uma quantidade de op- r
como em cada nível existe um número significativo de utilizadores, o conhe- <i_Õe~ !nauditas - . em poucas palavras: as compras e a foda - , E:_~_gu~n~ _ele
cimento ela existência do mimo possível noutros lugares derrama-se sobre to- sa 1sf1zer as condições de estada no espaço da prosperidade , isto é, enquanto 11
dos os outros habitantes do pal ác io. Com o tempo , a maioria destes passa em possu ir poder de compra.
revi sta todos os pisos , embora não façam todos as mesmas experiências. No ó valor de mimo do dinheiro surge ainda mai s nitidamente quando nos de-
..Pii.meiro piso, entram e s_aem os que consegu~ram realizar e~ todo ou em par- bruçamos sobre o aspecto mais fascinante da forma moderna da sua detenção:
1
te o sonho de terem rendimentos sem prestaçoes; o segundo e frequentado por esta aparece nas g~andes fortunas de origem inteiramente fortuita. É evidente
um p6..b.lico_ç(e_cidadãos descontraídos que usufruem" da seguran_ça política que a constituição de uma fo1tuna deste tipo não tem qualquer relação calculá-
sem estarem eles prqprios em condições de se batere m/ no t~rce1ro , encon- vel com os esforços que alguém tenha empreendido para a acumular. O di-
tram-se Õ; que participam nas presta ões imunitárias gerai s sem di sporem da nheiro, aqui, é pois entendido como o meio de desoneração por excelência.
?e.
sua.. P!?~i~ hi stória sof'.-i'.11~nto; o q_uarto, e~~al~an:i-se os ~on~umidm_-~s A palavra «milionário», ouvida por um ouvido de alguma idade , exprime um
certo espanto, antigamente muito espalhado, com o facto de uma pessoa po-
de um saber para cuJa aqu1 s1çao nenhuma expenencia e necessana;{io _qum-
to, encontram-se os_ que , na sequência da publicitação imediata da sua pessoa, der deter a título individual o que um indivíduo, «no fundo» , nunca pode pos-
conseouiram tornar-se célebres sem terem de brandir uma prestação ou pu- suir - a não ser que vá abastecer-se à fonte de sorte numinosa cujas emana-
º - . - ções levam desde a origem da época moderna o nome de fortunes (cf. atrás,
blicar uma obra. 01
· Entramos no primej ro .ní..-:rl do espaço do mimo quando tratamos de um as- pp . 56 sq.). O mais alto valor de mimo provém assim da detenção imerecida
pecto do valor do dinheiro que, em geral, não desempenha prati~amente ~e- do dinheiro , n·a qual a prestação pessoal aparece totalmente dissociada da for-
nhum papel n~s teorias monetárias. Chamamos-lhe o vajqr_q_e i;rumo e des1g- tuna . Quâ ndo se dá este género de coisas, não há já qualquer_ ligação. entre o ·
namÕs assim dois fenómenos assoc iados, mas que poderemos apesar de tudo qµe uma pessoa faz e o que uma pessoa t~: o sujeito da posse, seja como
distinguir claramente um do outro. Não vemos nem um nem outro quando não herdeiro 225 , descobridor de tesouro , especulador bolsista feliz ou dirigente de
podemos desfazer-nos do preconceito segundo o qual o dinheiro é um bem empresa que celebra consigo próprio acordos com manifesto carácter de pi-
por princípio em penúria e a falta de dinheiro um sinónimo de urgênci a. O pri-
meiro as pecto do valor de mimo do dinheiro aparece como o facto de que o 224 Sphi:iren Ili , Schi:iwne , op. cit. , p. 398 .
mundo do!i Qbjectos _de.sd.1 que_possamos col!!i>!á-lq_s, ~ t · ou acessível e 225 r. Jcns Bcckert, «Unverclientes Yermõgen », Soziologie eles Erbrechrs , Frankfurt e Nova
di ~p Hl ÍV ·I numa medida que não ~e conhecera nunca na hi stó ri a. O poder de lorqu ·, 2004.
230 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal 2. 1

lhagem, esse sujeito beneficia pois de uma desoneração absolutamente des- lismo. Uma vez estabilizado o nexo, o motivo da fortuna imerecida, tal como
proporcionada: nesses casos, a pessoa tem sem saber como. o desenvolve o conto, pode infiltrar-se até aos lares mais carenciados e solidi-
Não foi por acaso que a instalação da economia capitalista coincidiu com ficar-se sob forma de uma re,ivindicação a que se responde pot uma aprova-
o início do conto moderno da economia, o mito da cria ão de_c!i)!h~iro numa ção formal. Todo aquele a qúem as coisas não correm bem, uma Fortuna le-
bolsa e a sua marcha triunfal através do imaginário dessas pessoas que fize- gal o toma nos braços; aquele a quem as coisas não correm mal é livre de
~ m a's suas primeiras experiências com o uso generalizado do dinheiro: For- sonliar com fortunas superiores. Aquilo que Ernst Bloch designava por Prin-
tunatus, o herói do livro popular do mesmo nome que foi publicado anoni- cípio Esperança, o Estado-providência tornou-o operacional em massa, talco-
) mamente em 1509, em Augsburgo, tendo sido reeditado várias vezes no mo o Princípio da Desoneração assegurou em todo o sistema a supressão do
decorrer dos séculos , vê-se gratificado na cena decisiva pela virgem da sorte estado de excepção.
com uma bolsa que, sempre que for aberta, conterá quarenta moedas de ouro A criação de «redes socü~is» propicia uma base sólida para o primeiro pi- r---...1)'
na divisa do país - prenda que vale ao seu possuidor e ao filho inúmeras pe- S? do espaço de mimo. Assim sendo, a grande 'inaioria da população desen- e,.,,'
ripécias até que este último, tendo compreendido que uma possessão desse ti- volve formas de participação parcialmente atmosférica , parcialmente mate-
po não traz qualquer vantagem, acaba por se retirar para um convento. Este rial, nos fenómenos arbitrários do motivo do rendimento sem prestação . Neste
conto sobre a criação de valores situa-se no início de uma longa série de fan-
-contexto, pode exprimir-se a segunda dimensão do mimo com incidências ge-
~~

tasias cujo único tema é a irrupção vertical da desoneração na vida árdua; se- rais. Além disso, teremos de partir da tese segundo a qual g, sistema da previ-
b
ouindo constantemente as modas, as técnicas, o ar do tempo, tais fantasias dêricia é b-ªse-ªdo em processos qu~ visam eliminar o estado de excepção eco- , . !'.
passam o testemunho entre si até ao tempo presente, no qual a sua amplifica- nómica (concretamente: da pobreza aguda e êlo risco para a sobrevivência em
ção pelos mass media lhes permitiu aceder a altitudes excessivas. ~ara cada caso de acidente). Se se extrapolasse para o domínio da política externa a ten- J , .t,,

gera_ção, proclamam sob novas premissas a boa nova do conforto que chega dência para a recusa do estado de excepção, resultaria daí que a actividade do /,
de repente. Um casamento favorável , uma grande herança , a celebração mais Estado passaria da Rreparação da guerra à gestão do conflito. A consequência
· que feliz de um negócio , a descoberta de um tesouro, uma prenda inaudita, psicopolítica é a ll~ansformação «pacificante» das mentalidades na zona do
uma astúcia imparável , uma preciosa informação de iniciado, um best-seller conforto, uma conversão da qual o pacifismo explícito , que passou a ser con-
inesperado , uma patente com êxito, uma indemnização demasiado elevada, fessável no século XIX , representa uma versão exacerbada que se tornou pra-
um grande ganho ao jogo - sob estas formas e outras , um indivíduo , seja ele ticamente obsoleta.
qual for, pode encontrar o acontecimento do enriquecimento pelo qual é cata- O traço mais visível da mudança de mentalidades é a rápida desagregação J, v ;v 1
pultado ·para fora da sua pesada existência e colocado num clima mais des- ~a virilidade histórica. A razão é evidente: no decurso do último meio século,
contraído. na zona de prosperidade, o fenómeno da desoneração relativamente à guerra
O Estado-providência moderno assenta no efeito que consiste em reprodu- apoderou-se do design social do «homem» . Este, nomeadamente, foi exone-
zir em grande escala a bolsa de Fortunatus sob os traços do fisco - embora rado da proibição categórica da cobardia, em vigor nas culturas da tradição. l.::., _. ,
as condições em que uma pessoa pode apoderar-se da bolsa sejam estabeleci- Por conseguinte, o «homem novo» impôs-se como a figura sociopsicológica
b<Lr't!"
das de maneira muito mais formal do que no conto, no qual a quem usufruía do êxito na cultura pós-polemológica - com essa única excepção constituí-
da vantagem bastava-lhe ter-se perdido no bom momento na boa floresta. ·da pela zona de influência de um romantismo militar que, na nação de servi-
Também as condições em que a bolsa se enche foram elaboradas com mais ço à frente imperial, os Estados Unidos, continua a ser politicamente apoiado
sobriedade pela económica política moderna - o quinto livro do ensaio de e celebrado nos mass media, pelas razões que atrás expusemos. O homem no-
Adam Smith , A Riqueza das Nações ( 1776), pode ainda ser considerado a vo é o homem desco_Qtraído n_a vid~ civil , isto é, o consumidor de genus mas-
fonte clássica da teoria das finanças do Estado . Uma coisa, porém, é certa: o culinum. Quando aparece um mal-estar na descontracção, é compensado pe-
fisco não pode responder às suas funções primárias , que consistem em finan- los gestos simbólicQ_S ÇJJ1~ 1r.?zero propostas para a produção de uma virilidade "'j, ·
ciar as despesas do Estado e em garantir a repartição dos rendimentos, se não de designer . Graças a esse género de ofertas , os interessados podem resgatar ·'
estiver associado a um bem-sucedido sistema económico fundado no lucro. algumas características mais robustas da virilidade. Neste contexto, facil-
Ao observarmos o estado actual da grande estufa do conforto, podemos dis- mente discernimos em que medida a fricção entre pacifistas e belicistas re-
ccrn ir que se estabeleceu um nexo sólido, ainda que cada vez mais nervoso , centemente reactualizada constitui um fenómeno de colunistas de jornais.
l· 111n.: a economia do capital e ã<<mão pública» - com uma taxa de tributa- O que lhe dá dinâmica é a ~olitização das atitudes neomasculinistas - por
\ ·;°1() q11 c ullrapassa 50% do Produto Nacional, não é necessário procurar mui - exemplo , no contexto da luta contra o terror e do escalonamento de tropas de
1, , p :11 :1 l·n rn ntrar o prin c ipal ganhador neste jogo que leva o nome de capita- interv nção no estrangeiro. Na verdade , mesmo que quisessem , os eclitoria-
232 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal 2 .

listas belicistas e os ensaístas neoconservadores não estariam em condições ção sistemática - a despeito de todos os recorrentes apelos lançados pelos po-
d_e voltar ao estado de combatentes - as existências dos combatentes , no sen- líticos ref~rmi_stas d:_todas as_obediê_nci~s, ao espírito_da previdência pessoal. I t .
tido em que o entendia a antiga tradição, só já são possíveis fora da grande A precauçao s1stemat1ca permite aos md1v1duos beneficiar de espaços de imu- /,
zona de conforto. Os autores de discursos de combate neo-realistas podem nicladi _]atos . A previâência anónima estabilizada lib~rta pois a despreocupa- /
ainda assim recordar-nos de que a segurança não se conquista gratuitamente çãg privada - um efeito de mimo clássico . Não deveria ser necessário de- ·
- e que o mesmo é também válido para as populações do espaço de prospe- monstrar a q~e ~onto esta disposição está associada à transformação dos f '
ridade. Os avisos nesse sentido devem ser proferidos sempre que haja razões mercados cap1tahstas, que passaram do consumo das mercadorias ao consu- ' ~'/~'
para acreditar que a coragem da neutralidade não resolve todas as questões de m!smo da experiência e do ~isco . Complementarmente, os serviços que per- /' ' / ,
segurança. m1tem o tratamento dos acidentes e dos comportamentos autodestruidores
No que diz respeito ao significado geral das suas ofertas, o segundo nível desenvolveram-se numa abundância de variantes que nenhuma formação an-
do grande sistema de desoneração nada tem a invejar ao primeiro - nomea- terior conhecera. Constituem um ramo do luxo que permite estudar mais dis-
damente porque ~s metamo1foses que afectaram_RfQflJp.damente-as relações tintamente do que seja onde for o traço fundamental da gestão de conforto na
entre OS sexos no século XX , incluind~ o·feminismo e O homoerotismo , não grande estufa: a submissão do necessM!.2_~.P_érfü-10 . A sociologia do aci-
se; i-am c;ncebíveis sem a erosão da_virilidade bistóric~. -·É-;;;s-;-~~osã_o _qúe ; dente e as estatísticas das doenças proporcionam, até nova ordem , a melhor in-
no fim de contas, devemos o facto de que a característica de mimo da irre- trodução a uma teoria da era contemporânea. O conceüo..de luxo da morbida-
flectida reivindicação de uma segurança sem combate tenha hoje penetrado de aqui aplicável foi comentado noutras pági~ã";226_
praticamente na existência de todo o indivíduo, independentemente do sexo.
O facto de estas tendências determinarem hoje em dia o estado europeu da de- No quarto nível do sistema de desoneração, exprime-se o sentido de mimo
soneração relativamente às obrigações militares deveria ser expresso muito dos novos media . Há que mostrar como mobiliza a economia da cognição das
explicitamente , inclusive no di scurso público - no caso contrário, podemos populações desoneradas. Se , no seu tempo, o efeito Gutenberg desencadeou
prever que acabaremos por nos deixar levar por uma histeria que alastrará lo- uma forte vaga de facilitação no acesso ao saber escrito, a popularização ac-
go que a recordação de certas prestações , ele que não podemos desfazer-nos tu <!LQOS_~ d{q electrónjcos vai a par com uma dinâmica sem precedentes na
totalmente se quisermos assumir a nossa própria segurança , regressar brusca- facultação de toclaa .espécie de conteúdos. Não foi por acaso que o conceito C'"'·
mente à consciência dos sobredesonerados . de informação foi imposto simultaneamente com os novos media . Só na era ' { ,
da ãbstracção mediática a_homogeneização cio saber, no sentido da uniformi-
No terceiro nível deste sistema de desoneração , as elevadas expectativas de zação da informação , pôde ser levada à perfeição técnica - para lá do nive-
segurança são generalizadas e estendidas a perturbações e riscos ela vida pri- lamento de todos os conteúdos de consciência ao nível de «representações»,
vada como os acidentes, as doenças , o envolvimento em desastres naturais e tal como praticou a filosofia transcendental. Assim como a filosofia pós-
outras coisas do género . Quando se estuda a expansão das expectativas indi- -cartesiana se baseava na ideia de que o livro impresso e o sujeito têm ames-
viduais de segurança , podemos discernir o sentido do mimo que se prende ma idade , o pensamento contemporâneo pressupõe que a informação e os uti-
com o sistema dos seguros , cujo papel na constituição da época moderna já lizadores electrónicos dos media nasceram na mesma époc"i""·
atrás sublinhámos (cf. pp . 96 sq.): podemos descrever os s~gur s como siste- A irrupção dos novos media na esfera do conforto é um acontecimento que
mas imunitários pragmáticos que têm por função institucionalizar medidas di z êminentemente respeito ao mimo , não apenas por esses media tornarem
contra os ónus inoportunos que podemos esperar difusamente . Sempre que se praticável aquilo a que chamamos a rede mundial, inclusive para os utili za-
generalizam as práticas de risco , nunca faltam os sistemas de compensação - dores individuais, através daquilo a que se chama as rotinas simples , mas ain-
razão pela qual esse campo (abstraindo dos seguros de vida , profundamente da mais porque, no uso dos media digitais, se instalou uma relação funda-
irónicos) é dominado sobretudo pelos seguros contra os acidentes de trânsito. mentalmente novã entre os conteúdos e os seus utilizadores . A melhor mane ira
Estes sistemas devem ser compreendidos a partir do seu carácter de desonera- de caracterizar esta tendência é o co11ceito de exter·orização, na condi ção cl
~o na medida em que alijam i_o segl![a_do a exigência de se preparar p~a evi- r<::_t~rarmQs todo o valor moral_a esta expressão. A exiteriorização significa qut:
tã r e dominar as erturbãções inoportunas a nível individual. Quando o siste- uma forma mais ligeira da subjectividade, digamos 1 «ego utente», co meça a
ma ele seguros e de solidarieda de · alastra como alastrou na ala europeia substituir a forma mais pesada da subjectividade, o <ego culto» ela época mo-
oc idental cio palácio de cristal , pode prever-se um forte impulso para a frivo- derna. ,
,.y.1. , , I
lid :Hlc . roi s as populações totalmente segura(cla)s participam inevitavelmente l
226 f'. Spltéire11 Ili , Sc/1ü11111e, op. cit ., pp. 838 sq.
11 ,·,,: 1 n1 11 vc rsão que garante a ~an ição entre precaução indi vidu al pr au - /
\ 1
~ '\. , . ·' Peter Sloterdijk Palácio de Cristal 2. 5

A viragem técnica ~i oner~ o.s igçl_ivíduos das exigências associadas à for- dor, e até um centro vivo de recolha de experiências, os motores de busca ac-
mação integral da pers6nalidade, formação que era típica da existência no tuais e as novas técnicas de armazenagem dirigem-lhe um sinal segundo o
universo do saber lido e transmitido com a vida da pessoa bem-educada. qual pode descansar dos seus ónus clássicos. O gesto actual que exprime da /
O conceito de Bildut1g (formação, educação), que significa simultaneamente maneira mais perfeita a passagem à era que se segue ~ da experiência é o
cultura e desen~ ;imento de si, e no qual não se deve de modo nenhum ver download. Encarna a libertação relativamente à exigência de fazer experiên-
l apenas uma simples mania alemã, isto é, uma figura luxuosa da interioridade cias. Com ele, perfila-se um regime de cognição pós-pessoal, pós-literário,
> apolítica, designava o projecto proposto aos indivíduos durante toda a mo- pós-académico. ·
dernidade europeia de que encarnassem o livro vivo da sua própria biografia
e da sua própria hi stóri a de leitura; instava os seus destin atários a assegura- No quinto piso do grande sistema de conforto, chama-se a nossa atenção
rem na sua própria p~ss_pa ª-.Q...Qe.s_ão__cla_sof1!a daquil_o que se chamava, não sem para o valor de mimo da grfinde opinJão pública de construção mediática que
pat hos, a sua experiência . Assim como um livro pode constituir em si um se manifesta através do surgimento de uma nova categoria de notabilidades.
-;,.~- i· ' meiõ de descontextualização (cf. adiante, pp . 267 sq .), assim também a ma- Para estas, tornou-se praticamente impossível indicar as razões por que são
neira como esta se realiza na convergência do ser-leitor e do ser-indivíduo não conhecidas ou célebres. A meritocracia clássica, como se sabe ,_repousava na
deixa de ser um modelo de recolhimento . Tal recolhimento dava ao indivíduo propensão das «soc iedades» históricas para recompensar os membros que se
da época burguesa Ümpeso existencial, na medida em que se distinguia como evidenciavam pe la sua prestação , fazendo-os entrar no círculo estreito da gló-
o depósito vivo da sua história vivida . ria . Na medida em que o público burguês reconhecia aos seus portadores de
\ , -
E precisamente contra este peso da pessoa culta que se ergue a vaga de de- prestações bem-sucedidas um prémio de notoriedade , aplaudia indirectamen-
soneração provind'ãdos novos media. o seu sentido de mimo torna-se evi- te o seu próprio gosto do desempenho. Com a instalação de mundos mediáti-
dente na medida em que a subjectividade do leitor se di sso lve , fundindo-se na cos auto-referenciais no interior do palácio de cristal aparece desde há pouco,
subjectividade do utente~butênte é o agenté que já não precisa de se tornar incluindo no fenómeno da notoriedade, um efeito de desoneração que procu-
um sujeito formado segundo as regras da cultura porque pode descaITegar o ra f~ze r com que seja desfeito o velho nexo eritre a prestação e o prestígio . A /'
ónus que consiste em recolher experiências. A palavra «descarregar» designa centragem na notoriedade pode pois ser mantida como um valor em si. No sis-
aqui o efeito de desoneração que os conteúdos homogén~ os, ~s }n_formações, tema de conforto, são cada vez em maior número as pessoas a notarem , quer 1
., , ·,, asseguram ao seu utilizador desde que não tem de os adquirir por uma for- sob uma forma imaterial , quer sob uma forma pragmática, que o estar-nos-
mação consumidora de tempo, mas pode «chamá-los» por meio das técnicas -media constitui um equivalente eficaz do tradicional ser-êónhecido-em-
adequadas. É verdade que o utente não pára de recolher - na medida em que, -virtude-das-prestações, de tal modo que têm razões para poder considerar ,
·'
à sua maneira, tem de prestar justiça à qualidade cumulativa de acontecimen- /V~ boa ideia poupar o desvio pela obra e a prestação e apresentar-se directamen-
tos cognitivos que se sucedem uns aos outros . No entanto ,~ que recolhe não é(. .0 te nos estúdios. Os media apanham o comboio da notoriedade ligeira e facul-
são experiências, isto é , complexos de saber integrados sob forma pessoal,
· 1 naJTativa e conceptualmente ordenados: ;t ão endereços onde poderá dispor de
tl'J~/' tam um número indeterminado de pódios nos quais se vêm alinhar pessoas
,, ,1 . (. •1/ sem prestações. Abre-se aqui um mercado a perder de vista para os procedi-
agregados de saber mais ou menos formatados se , por uma razão ou por ou- ' 7' mentos de profiss ionalizáveis em pouco tempo sob forma de prestações se-
tra, quiser recorrer a eles. ' 11.ib • cundárias. No centro desta corrente perfila-se a figura do animç1do1 d0!lev i-
O efeito decisivo de desoneração, no domínio cognitivo, incide pois na- t> são que sobe aos cumes da notoriedade apresentando nptávt?.is. A hora da
quilo a que poderíamos chamar os custos de transporte da cultur~. Se , ante- verdade na espiral do mimo mediático soa no instante em que os apresenta-
riormente , aquilo a que chamamos o homem completo tinha de se pôr a ca- dores se apresentam mutuamente diante de um grande público. Nesses mo-
minho para encontrar o acesso a fontes de cultura dispersas, esotéricas e mentos , provam que , também na bolsa da notoriedade, se atingiu o patamar
custosas, hoje, cada vez com mais frequ ência , basta aprender o manejamento dos produtos derivados . O sistema da arte pós-moderna reagiu pelos seus
de técnicas-eficientes de acesso para ir buscar os conteúdos desejados sem meios a esta tendência para a exoneração da exigência de criar uma obra e d ,_
sair do sítio onde se está. A busca fácil transforma-se num processo anti-extra- senvolveu estratégias para alcançar a formação de uma glória de arti stas sem '
versão universalmente di sponível graç; ; ;~~ ê ãruqu1lâ Õ-princípio da ex- obras . Na cultura de massas, continua a popularizar-se este fenómeno a i s ·
pcriência227. Se o sujeito histórico empírico é necessariamente um pesqui sa- atingir uma forma puramente tautológica de notoriedade. Nas suas manif ·s
tações irradiantes, encontram-se todos os que são conhecidos por s ' I' ·m Cll
-' ·' 1 S, ,hrl' a pai xãn do ir buscar que caracteri za e m contrapartida o coleccionador tradic ional, cf. nhecidos sem nenhuma razão especial. inútil será dizer qu uma Fortllll I p1,
~ l. 1111 , l' d S n 111111 ·r. Sw1111w/11 . Ei11 pi,i/osophiscl,er Versuch, Frankfurt, 1999, pp . 392 sq . -modcma já não oferece uma 1 a de uro ao seu pro\· ido . 111 11 llw
' i • '
236 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal .,7

pergunta se gostaria de ser o autor de uma prestação notável ou antes um ho- do, que se tratava nos discursos que, após 1918, e sobretudo após 1945, con -
mem célebre sem razão de o ser - e isto de um dia para o outro. tatavam uma incompreensível «reca!9~ na .\?a.rlJ§.rie». É fácil desprezar o fac-
to de que se tratava de recaídas esejadas . Ao mal-estar crónico na civiliza-
Quando fitamos a grande estufa do mimo no seu conjunto, somos forçados ção soma-se a repugnância generalizada pela contenção civilizada. Quem
a perguntar se os diagnósticos sobre o tédio emitidos por Dostoiévski e Hei- quiser proteger-se contra os movimentos de reoneração228, contra 'o neo-
1 degger não seriam apenas prognósticos de decadência sujeitos ao código da -heroísmo, a neofrugalidade e a política da nova dureza·, deverá reflec-tir opor-
'' "I filosofia e da psicologia. A visªo n~ ti§c.!Jjana 9o_úl!imo hom~ i:n, que lhes era tunamente em conceitos de reoneração compatíveis com a democracia.
aparentada , não teria então sido mais do que a antecipação desse consumidor
que sofre de um tédio abissal e, ;o entanto, se diverte brilhantemente . Dirige- •
r '
.. ----
-se pois ao indivíduo desonerado e entediado que, por estar aprovisionado
,. -
com os bens de confô1tÕ do grande interior capitalista, possui recursos sufi-
cientes para gabar como feito o estado que atingiu. Para os novos fenómenos
-)
de mimo, o termo de decadência perderia no entanto o seu sentido tradicio-
nal , pois os mimados actuais participam simultaneamente nas intensificações
permanentes do fitness. A decadência aparente consistiria assim no zelo dos
desonerados . O seu personagem ideal apresenta-se sob os traços do despor-
tista que pratica umfitness absurdo durante a sua fase de alto desempenho -
regra geral a expensas de todos os outros aspectos do seu «potencial huma-
no»: a fim de passar pelo mais competente, não hesita a recorrer a substâncias
dopantes, pois todos os outros fazem o mesmo, de forma que o doping setor-
na inevitável no interesse da igualdade de oportunidades. Numa tal circuns-
tância, podemos poupar essa «espera dos bárbaros» característica das antigas
culturas aristocráticas em declínio . Os novos desonerados , quando tomam o
comando das mãos dos seus predecessores civilizados, são idênticos aos bár-
baros que assumem a passagem de testemunho. Face a uma tal situação, a crí-
tica vulgar da civilização já não colhe. Não é muito difícil constatar que em-
bora as pessoas, no palácio de cristal , não parem de envelhecer, os sintorrias
de infantilização, quanto a eles , se propagam rapidamente; mas o valor que há
que conceder a essas tendências continua indistinto até nova ordem . Haverá
sempre apologistas dos últimos homens prontos a apresentar provas não só de
que já não são bárbaros, mas também de que atingiram um elevado nível
de civilização - mas isso noutro registo .
./ Muito mais urgente é a questão de saber como, neste clima de exigência
coleçtiva irrefutável de intensificação constante da desoneração, se pode tra-
tar sem regressões políticas o imperativo da reoneração, que regressa perio-
dicamente. Quando se levanta este tipo de questões, seria necessário utilizar
como valor de controlo a frase pronunciada por Mussolini: o fascismo é o
horror da vida confortável. Esta frase , que nunca foi levada totalmente a sé-
rio , é suficientemente clara para explicar a ameaça que os fenómenos de pro-
testo ligados ao romantismo do ónus fazem pesar sooi-eo sistema ae confor-
to avançado . O século xx mostrou cabalmente de que grosserias é capaz o
•ustn cio regresso aÕs factos duros . Se existe um perigo específico que pe a
" ihre os beneficiários de estados de desoneração elevados , haveria que 22 8 Julien Benda , no seu panfleto La Trahiso11 des Clerc:s (1927), já sublinhn va ON l'I N 'llN !IN 11
1drntil'i uí lo ·01110 uma te ndência para a segunda crueldade. É dela , no f'un - ·i11clos 0111 11111 «romanti smo da dureza» .
~ ... . . U 11
Palácio de Cristal 2. 9

bre a direcção seguida pela evo lução dos complexos sociais da alta tecnolo-
gia, que, de um ponto de vista sistemático e psicológico, são sensivelmente
mais maleáveis do que as teses manifestamente ingénuas do século XIX sobre
a emancipação e o progresso. Se associarmos o fenómeno e o conceito de de-
soneração à exploração saint-simoniana, torna-se evidente que o efeito desig-
nado não pode ser atingido pelas multidões sem um d~ li~<!_r..Q_a exploração
para um novo 2atamar inferior.
Neste contex.tÕ, podemos enunciar a tes_e segundo a qual todas as narrativas •' ' ·· '• '•
sobre as metamorfoses da conditio humana são na realidade narrativas sobre f '
38 A Reavaliação de Todos os Valores: a m~tável exploração de fontes de energia - ou ainda descrições de.!!?gi_'!1es J.
metabólicos230_ Esta proposição não é apenas mais geral numa dimensão do ,..!/
o Princípio da Superabundância que o dogma de Marx e Engels segundo o qual toda a história é a história da
luta de classes, está também mais adaptada às constatações empíricas. A sua '> :,
universalidade tem maior alcance pois agrupa em si as energias naturais e hu-
Em contrapartida, quem quiser interrogar-se sobre as premissas gerais da
manas ( «força de trabalho»); está mais ad<!_P__!ada aos factos, pois rejeita o mau
desoneração do ser humano na época da sua intensificação, será entre os proto- historicismo da doutrina segundo o qual todos os estados da cultura humana
-s ocialistas franceses que mais facilmente encontrará a resposta: em_Saint-
estão ligados entre si numa única sequência de conflitos decorrentes da evo-
-Simon e nos membros da sua escola , cujos textos - não era por acaso que a
lução . Além disso, apesar do seu elevado grau de abstracção, não acarreta de-
s~a revista se chamava Globe - apresentam os p..rimeiros traçq_s d~ uma polí-
formação dos dados transmitidos. Tínhamos uma deformação deste tipo na pe-
tica explícit~ do mimo na __ perspectiv~_ d~ te_Q[ia _Q.fl _espécie. E ao saint-
ça didáctica e polémogena que era o Manifesto Comunista, o qual não dizia
·Simonismo que se deve a fórmula da era da desoneração ainda hoje válida tan-
nada da realidade dos compromissos interclassistas , a fim de generalizar, pa-
'· 1 'to na teoria como na prática. Segundo essa fórmula, __ ~ advento dª grande
ra dele fazer norma, o fenómeno relativamente raro das lutas abertas de clas-
indústria no s.éc.ulo xvm marcou a hora de pôr termo à «exploração d2__h_omem
ses - com o risco de atribuir às insurreições de escravos e de camponeses da
;í:o.h~ ~~m» e de i~trÕdüzu:_em lugar desta a exploração metódica da terra pe-
história anterior, com as suas tendências desesperadas, a-conceptuais, que ti-
lo ser humano. No contexto dado, podemos dar conta do teor histórico desta
nham muitas vezes que ver com o vandalismo , significações exemplares para
formulação: com ela, o género humano , representado pela sua vanguarda , a ca-
os combates de redistribuição entre assalariados .
tegoria dos inf!.ustriais, era identificado como o b.eneficiário de um movj m~n-
to de desoneJâç_ão global - ou , na terminologia dessa época: como o SUJe1to
A narrativa da exploração das fontes de energia atinge o seu hot spot actual f
lógo que se aproxima do complexo ocorrencial que a história social antiga e ·
de uma t;.ill._aJl.Çipação.•0 seu objectivo foi marcado pela expressão secular e recente chama unisono a «Revolução Indy~t~ial» - uma designação e1Tada, ·
evangélica de ressurreição da carne antes da morte.
sabemo-lo hoje, pois não setrAfa apenas aqui de um processo êle «reviravol- f~
Semelhante coisa só era concebível numa condição: era preciso que a re-
partição típica dos _pes9s n~s sociedades de ~lasse agro-imperiais, a desonera-
ta» em que o alto e o baixo tivessem trocado de lugar, mas da e~plicitação do 1. r. ·
fabrico dos produtos por meio de substitutos mecânicos dos movimentos hu-
ção e a libertação dos raros dominantes pela exploração das multidões escra-
manos. A chave da transformação entre trabalho humano e trabalho mecâni-
vizadas fosse revisível com base numa desoneração de todas as classes por
co (que conduz a novas cooperações entre o homem e a máquina) tem a ver
um novo lacaio geral , a Terra-recurso regida pela grande técnica . O que sig-
com o acoplamento entre sistemas de energia e sistemas de implementação.
nifica a palavra-chave de Saint-Simon, «..e ~plQ!IIǪ O», do ponto de vista da ló-
Na época do trabalho físico , esse tipo de acoplamento mantivera-se no esta-
gica dos processos, só se tornou explicitamente articulável após o momento
do latente, na medida em que o próprio trabalhador, enquanto conversor bio-
em que a antropologia filosófica do século xx , nomeadamente na sequência
lógico de energia, constituía a ~nidade entre o sistema de energia e o sistema
dos esforços empreendidos por Arnold Gehlen , desenvolveu um conceito su-
de implementação. Mas quando os sistemas mecânicos de energia deram um
fi cientemente abstracto de desoneração 229 . Desde que este conceito está à dis-
salto em frente com pesadas consequências, puderam passar ao estádio da ela-
pos ição das ciências da civilização, podemos formular proposições gerais so-
boração explícita.

'' ' 1 l':ira 11111a di sc ussão deste conceito, cf. Sphdren III, Schdume, op. c it. , pp . 699 sq ., onde se
111, " ', :i q11 e ( i ·hl e11 , dados os seus centros de inte resse instituc iona is, só desenvo lveu a partird es-
230 Cf. Ro lf Peter Si eferle, «Gesell schaft im Übergang», in Archdeologie der Arheit , Di ck Baec-
kcr (organizad r), Berlim , 2002, pp . l l7- 154.
,, , , " " ,· 11 11 u li11h u, ' 111 11ílo libe ral das suas co nsequê nc ias .
240 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal 24 1

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Assim começa a época dos motores: com a sua construção, uma nova ge-
ração de agentes heróicos sobe à cena da civilização e o seu surgimento trans-
nas, a pressão exercida pelo vapor de água para se descomprimir, leva natu -
ralmente a pensar nos titãs ela mitologia grega, que estavam condenados a fi-
' forma radicalmente as regras do jogo energético das culturas traclicionais.
0
car cativos sob a terra. Como num primeiro tempo se deve o vapor de água à
Desd e que os motores estão entre nós, até conceitos físicos e filosóficos co- combustão do cai·vão (haverá que esperar as centrais termonucleares do sécu- t! / 1'
mo a força, a energia, a expressão, a acção e a liberdade assumem significa- lo xx para ver surgir um agente inteiramente novo), esse combustível fóssil te- ~
dos radicalmente novos . Embora se trate normalmente de forças domestica- ria forçosamente de tornar-se o vector heróico da energia no início da era in- •
das, a mitologia da burguesia nunca perdeu totalmente de vista o seu aspecto dustrial. Uma das numerosas «dialécticas» consiste na ideia de que o poderoso ., •J•
desenfreado e potencialmente catastrófico, e, para descrever isso , serviu-se de agente de mim.9 qu~ ei:_a 5) cai~vão devia, regra geral, ser µ-aiido à luz d9 dia
reminiscências da linhagem pré-olímpica das divindades titânicas da violên- pelos esforços infernais produzidos quando da extracção subterrânea dos mi-
cia. Daí a profunda fascinação libertada pelas máquinas de explosão e pelas nerais. Os mineiros dos séculos XIX e XX, épocas que foram grandes consumi-
explosões em geral. doras de carvão, podem pois ser propostos como testemunhas vivas da tese
Desde que os neotitãs fizeram a sua aparição nos modernos mundos da vi- marxista segundo a qual o contrato de trabalho assalariado não é mais do que
da, as nações transformaram-se em países de imigração para máquinas de a máscara jurídica de uma nova escravatura. Ao cai·vão prometeico juntaram- /,
energia. l)m motor é, em certa medida , um uj.eito .de eu.eygiu em cabe a ,ue -se, a partir de finais do século XIX, o petróleo e o gás natural, que se tornaram
foi dado ao mundo por interesse pela utilização da sua potência. Mas, do ac- novos vectores de energia fóssil - e, por seu turno , agentes de desoneração e ' .,
1, tor, só tem as qualidades associadas às propulsões, sem estar carregado de de mimo de primeira ordem. Para os extrair, era necessário superar resistên- , ,
/\
>• propósitos ou de reflexões. Sujeito decapitado , o motor 11!<?.,PªSs~ da teoria à cias a uma exploração que era de um tipo totalmente diferente do da extrac- J.,.,
,/1 /
. \ t prática, mas da imobilidade ao funcionamento . Aquilo que a desinibição terá ção mineira. Na sua obtenção, podia por vezes observar-se um efeito que gos-
(. ,. 1J de produzir nos sujeitos humanos que têm de passar ao acto , nos motores, é o taríamos ele qualificar de benevolência da natureza, como se esta quisesse
démarreur que o faz. Os motores são perfeitos escravos: podemos pô-los a contribuir por si própria para põ( termo à era da penúria que fora a época agrá-
funcionar dia e noite se m que ninguém v ênha protestar em nome dos direitos ria e ao seu reflexo nas ontologias da carência e nos miserabilismos .
1
humanos . Não ouvem os predicadores abolicionistas que alimentam o sonho A cena primitiva desta resposta benevolente do recurso natural à procura hu-
de um dia não muito longínquo em que os motores e os seus proprietários go- mana desenrolou-se em 1859, nos Estados Unidos, mais precisamente na Pen-
zarão dos mesmos direitos e em que os filhos dos seres humanos e os das má- silvânia, quando , durante uma operação de perfuração peito de Titusville, se
quinas brincarão uns com os outros . abriu o primeiro grande campo de petróleo do Novo Mundo , numa bolsa pou-
Para integrar sistematicamente os motores enquanto agentes culturais, são co espessa, com pouco mais de vinte metros de profundidade. Posterio1mente,
necessários combustíveis totalmente diferentes dos víveres com que foram a imagem da fonte a irromper, que os especialistas designam por «gusher» ,
alimentados os portadores humanos e animais do trabalho muscular no mun- tornou-se um dos arquétipos não apenas do sonho americano, mas também
do agro-imperial. Tal a razão por que , na epopeia dos motores, as secções pura e simplesmente cio way of life moderno a que as energias facilmente
mais dramáticas têm a ver com cantos da energia. Podemos ir até ao ponto de acessíveis abriram a porta. O banho de petróleo é o baptismo do homem con-
perguntar se a formulação do conceito abstracto, homogéneo, da energia, da temporâneo - e Hollywood não seria a central de emissão dos mitos em vi-
energia sans phrase, pela física moderna não será mais do que o reflexo cien- gor entre nós se um cios maiores heróis cio século xx , James Dean, protago-
tífico do princípio de motorização segundo o qual o acoplamento não especí- nista de O Gigante (1955), não tivesse sido mostrado a tomar o seu banho de
fico entre alimentação e organismo foi substituído pela relação precisa entre petróleo . o..afJ.1:!_xo caclq_ vez !11aior de uma energia proveniente de depósitos
o combustível e a máquina a motor. A partir do momento em que a energia fósseis aparentemente inesgotáveis não permitiu apenas o «crescimento» per-
não provém do organismo , inicia-se na grande narrativa dos processos e dos manente, isto é, a retroacção positiva entre o trabalho, a ciência, a técnica e o
estádios da exploração das fontes de energia uma passagem que reúne todos consumo por um período de mais de duzentos e cinquenta anos, incluindo as
os pressupostos que permitem ditar um último capítulo perpétuo. implicações que descrevemos como a mudança de equipamento psicoss -
Como se sabe, a grande narrativa da desoneração nos modernos começa mântico provocado no seio das populações pelos efeitos de desoneração c cl
com a narrativa dá invasão maciça da primeira geração de escravos mecâni- mimo duradouros, levou também a uma ~brupta mudança de signifi cação
cos que teve direito de cidade a paitir do século XVIII, no mundo industriali- de categorias respeitáveis-dã antologia da velha Europa como o ser, a r ali -
1;1Jo nascente no Noroeste da Europa, sob o nome de steam engines. Estes no- dade e a liberdade.
,.,),- ;1grnt cs prestavam-se especialmente a estabelecer associações de ideias Ass im , a conotação activista cio poder-sempre-também-ser-clc-outr11-l't1n1111
11111<,I,·) •i ·as a partir cio momento em que o princípio de acção dessas máqui- ani chou -se no conceito do real (conotação ele que, até então, só os 11rli Nt, , 11 11
242 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal 243

qualidade de vigários do sentido do possível, tinham pressentid~ a~gum~ coi- agrário exprimiu as suas consequências ecológicas e morais numa proibição
sa) , por contraste com a constatação da tradição, na qual a alusao a re~hdade o
êatêg&kad o desperdíciõ : Como, normalmente , produto do trabalho não
era sempre atravessada pelo pathos de ser-assim-e-não-de-outra-maneira: es- podia aumentar, mas , quando muito, ser completado por campanhas de pilha-
te reclamava pois uma reverência ante a potência da finitude, da dureza e da gem, os 1"!9Ill.~I}§_do mundo antigo sabiam a todo o momento que o valor pro-
carência. Uma expressão como «má colheita», por exemplo , esteve durante duzidÕ constituía um dado limitado, relativamente imutável e a proteger em
toda uma época can-egada com a gravidade e a exortação inerentes à teoria absÕluto. Nessas condições, quem desperdiçasse seria forçosamente conside-
clássica do real. À sua maneira , recordava que o príncipe deste mundo só po- rado louco. Tal a razão por que os dispêndios narcísicos dos grandes senho-
de ser a morte - apoiada pelos cavaleiros do Apocalipse, o seu normal sé- res só podiam ser interpretados como actos de húbris - e ninguém podia pre-
' , quito já comprovado . Nu~ _tad ..o..mundo_como aquele-em_que no~ e~- ver a sua transmutação em «cultura».
contramos hoje , marcado pela experiência fundamental da S1:!, erabund~nc1a Tais visões foram posteriormente desactivadas desde que , com a irrupção
da e; ergia, o dogma antigo e medieval da resignação perde,u a sua validade do estilo cultural da energia fóssil, há pouco mais de duzentos anos, apareceu
_: existem hoje novos graus de liberdade que penetram ao m~el do~ ?umor~s em cena um liberalismo inquietante que começou a inverter todas as premis- . , ,. ,
profundos da existência. Não é pois de espantar q~e a t~~logia catohca, C~JO sas. Enquanto , para a tradição, o desperdício representava o pecado par ex-
pensamento é essencialmente pré-moderno e m1serab1hsta , ten~a ~erd1do cellence contra o espírito de subsistência, pois punha em risco a reserva sem-
completamente a sua ligação com os factos do tempo presente, mais amda do pre precária de meios de sobrevivência, uma profunda mudança de sentido se
que as teorias calvinistas e luteranas, que, a~esar d~ tudo, têm u~a aborda- consumou em torno do desperdício na era das energias fósseis : pode hoje
gem semimoderna. Por conseguinte, o c~~ce1~~ de ~berdad_e _tam?em teve de dizer-se tranquilamente que o desperdício se tornou o primeiro dever cívico.
se libertar nestes últimos anos das suas s1grnf1caçoes trad1c1onais . Sobre os Não que as provisões de bens e de energia se tenham multiplicado infinita-
seus harmónicos actuais, faz ressoar dimensões semânticas de um novo tipo , mente de um dia para o outro; a realidade é antes que ~s fronteiras do possí- \ I
. \,, em especial a definição da liberdade como direito à mobilidad~ sem _fro~te!- vel foram sendo levadas cada vez mais longe, o que, por princípio , confere
J
ras e ao desperdício de energia na festa 231 . Generalizam~se, ass_1m do1~ d1re1- uma nova tonalidade ao «sentido do ser» . Só os estóicos contam ainda com
tos senhoriais, a liberdade de movimento petulante e o d1spend10 capnchoso, as reservas . Para os epicuristas vulgares, na sua grande estufa confortável, as
a expensas de uma natureza que conseguimos dominar - mas isso ~~enas, «reservas» são precisamente aquilo que, por princípio, se pode supor que é
bem entendido, sempre que as condições climáticas da grande estufa Jª este- multiplicável até ao infinito. No espaço de algumas gerações, a propensão co-
jam em vigor. Com efeito, a modernidade no seu conjunto é un:ia figura qu_e lectiva para consumir mais pôde aceder ao estatuto de premissa de um siste-
se destaca sobre um fundo de cor primária da superabundância, e o senti- ma: a frivolidade de massas é o agente psicossemântico do consumismo . O
mento de que as fronteiras não param de ser abolidas põe os c~dadãos ante um seu fl Ôi·escimento permite ver até que ponto a leviandade tomou agora a po-
desafio . Podem e devem tomar conhecimento de que a sua vida se passa nu- sição do fundamental . A proibição da frugalidade veio substituir a proibição
ma época desprovida de normalidade. O estar-lançado no mundo_ do «exces- do desperdício - e tal exprime-se nos apelos constantes a apoiar a procura
sivo» paga-se pelo sentimento de que o horizonte se desloca deshzand~. interna. A civilização moderna não assenta tanto no facto de «a humanidade
ç • 1 ' A zona sensível , na reprogramação dos humores do estar na modernidade,
sair da improdutividade de que ela própria é culpada»232 , como diz Ulrich
diz pois respeito à experiência do fim das penúrias, experiência com a qual os Brõckling, mas qo afluxo constante de uma quantidade imerecida de energia
habitantes do palácio de cristal entram desde muito cedo em contacto - sem no espaço da empresa e da vivência.
nunca tirarem as respectivas conclusões. Os sentimentos de realidade dos se- Se estabelecêssemos uma genealogia do motivo do desperdício, haveria
res humanos na era agro-imperial eram regulados pela penúria dos bens e dos que sublinhar como o veredicto da tradição sobre o luxuoso, o ocioso e o su-
recursos , porque se fundavam na experiência de que o trabalho, e_n carnado pérfluo estava profundamente enraizado nas avaliações teológicas. Segundo a
nas difíceis tarefas do lavrar, só chegava para instalar na natureza Ilhas pre- opinião de escola professada pelo monoteísmo , tudo o que era supérfluo só
cárias da artificialidade humana. É já disso que falam as teorias antigas das poderia desagradar a Deus e à natureza - como se eles também contassem
idades do mundo, que nos informam com resignação que até os grandes im- com as reservas 233 . É notável o facto de até o protoliberal Adam Smith, tão
pé rios se desagregam e que o espaço de algumas gerações basta para ~ue a
11 aturcza inve ncível den-ube as ton-es mais an-ogantes . O c_~m_servadonsmo
232 Cf. Ulri ch Brêickling, «Unternehmer» , in Glossar der Gegenwart, Ulrich Brêickling, Susan-
nc Krass mann e Thomas Lenke (org .), Frankfurt , 2004, p. 275.
' 11 <·1 l'c l ·r Slotc rdijk e Han -Hirgen He inrichs, Die Sonne u11d der Tod. Dialogische U111er- 233 «c11111 ... 011111e s11pe1jl11111n Deo et naturae displiceat .. . et omne quod Deo et naturae displi-
" '' / 11111.1: 1·11 , l'rn 11 kl'11r1 . 2002. pp. 32 1 sq. <'C'I si! 11w/11111», Dant e, Mo11archia, l, 14 .
244 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal 24.

di sposto a cantar loas aos mercados estimulados pelo luxo , se manter fiel a utiliz.ê_do d~ maneira industrial não constitui uma «matéria-prima» como qual- /
um conceito bastante negativo do desperdício - razão pela qual o seu trata- quer outra , mas o primeiro grande agente de desoneração. Graças a esse «t:ra-
do sobre a Riqueza das Nações234 é percorrido por este refrão: o desperdício balhador da nà tureza» universal (que os alquimistas haviam buscado em vão i,
consiste em ceder ao desejo de gozar o momento. Faz parte do habitus das durante séculos), surgiu na esfera da civilização o princípio çia superabun-
«pessoas improdutivas», isto é, os padres, os aristocratas e os soldados, que , dância. -- J
em virtude de uma arrogância há muito enraizada, professam a sua fé na ideia Seja como for, ainda que, sob a pressão das novas evidências, estejamos /~. '/,..
de que são chamados a dilapidar a riqueza gerada pela multidão produtiva. dispostos a conceber os vectores de energia fóssil e as três gerações de moto- ,;. ,
Também Marx não se liberta do conceito de desperdício forjado pela era res que dela nasceram, a das máquinas a vapor, a dos motores de explosão e
agro-imperial quando, na esteira de Adam Smith, se atém à distinção entre a dos motores eléctricos, como os agentes primários da desoneração da mo-
classe trabalhadora e classe esbanjadora, com a nuance de que são agora os dernidade , e ainda q~ estejamos na disposição de ir até ao ponto de saudar
detentores dos capitais que, muito mais do que os parasitas feudais, desem- neles o genius benignus de uma civilização situada para lá da carência e da
penham o papel de ruins esbanjadores. Admite, no entanto, com Smith, que escravatura muscular, não podemos eljm,inar a suspeita de que a inevitável e;, ... · t
os novos modos de gestão originaram uma mais-valia que ultrapassa as pe- deslocação da exploração acarretada pela energia fóssil gerou um novo pro- J1L.
quenas margens da era agrária. O autor do Capital apresenta o seu burguês letariado cujos sofrimentos permitem criar os estados de desoneração no pa- ,.r,
como u;;-~obre vulgarizado cuja cupidez e cuja baixeza não conhecem limi- lácio do conforto. O peso central da exploração actual passou a incidir nos r .!, ·
tes. Nesse retrato do capitalista como rentista, não se tem em conta também o animais utilitários para os quais, graças à industrialização da agricultura, co- .
facto de que , com o sistema do capital, começa a sua carreira um fenómeno meçou a era da produção e da exploração de massas. A este respeito , os nú- ' /.
novo: o do worfg,~g riçh que c_omp~n.sa o «gozo do instante» pela criação de meros dizem mais do que os argumentos sentimentais: segundo o relatório de ;i.
valores . Esquece-se igualmente o facto de que , no Estado moderno do con- 2003 do governo federal alemão sobre a protecção dos animais , foram cerca
forto e da redistribuição, a improdutividade passa directamente do cimo para de 400 milhões os frangos abatidos em 2002 na Alemanha , a que se somam
a base da sociedade - o que faz aparecer o fenómeno praticamente sem pre- 31 milhões de perus e quase 14 milhões de patos; no que diz respeito aos
, cedentes do ps,_bre_parasita . Enquanto, no mundo agro-imperial , se podia nor- grandes mamíferos, 44,3 milhões de suínos, 4,3 milhões de bovinos e 2,1 mi-
malmente supor que as pessoas sem meios eram produtivos explorados , os lhões de ovinos e caprinos foram conduzidos até à sua valorização final. Po-
pobres do palácio de cristal - que levam o título de desempregados - vi- dem supor-se valores semelhantes para a maioria das sociedades de mercado
vem mais ou menos fora da esfera da criação de valores· (e o apoio que rece- e há que acrescentar aos dados das estatísticas nacionais quantidades enormes
bem é menos questão de «justiça» a reivindicar do que solidariedade nacional de importações. As proteínas animais constituem o maior mercado legal de
~-humana)235. Os seus funcionários não podem, porém, deixar de afirmar que droga. A monstruosidade dos números excede toda a avaliação afectiva -
s_e ti::.ata qe explorados cujas privações dão direito a indemnização . mesmo as analogias com os holocaustos combatentes praticados pelos nacio-
Por conseguinte, ain.9a u_~Janto os liberais como os marxistas,tenham em- nal-socialistas , bolcheviques e maoístas não esgotam as rotinas abissais a que
preendido no século XIX tentativas prenhes de consequências p~r~ in_terpreta- se chegou na produção e exploração da vida animal (não nos exprimimos aqui
rem o fenómeno da sociedade industrial, o a_çi_!'_e!ltO da energia fóssil não foi sobre as implicações morais e metafísicas da comparação entre exterminis-
apreendido nem num sistema nem no outro, tendo ainda menos sido penetra- mos humano e animal em grande escala) . Se considerarmos que a pecuária de
do no plano dos conceitos. Na medida em que colocaram o valor-trab~lho, massa tem por condição a multiplicação explosiva dos produtos de forragem
doutrinalme-;,tee xageradÔ, à frente de todas as explicações teóricas da rique- permitida pela agro-química, vê-se bem que a inundação do mercado pela
za, as ideologias dominantes do século XIX e do início do século xx encon- carne dos bioconversores animais remonta às torrentes de petróleo que come-
travam-se cronicamente impedidas de compreender que o carvão extraído e çaram a correr no século xx . «No fim de contas , alimentamo-nos de carvão e
de petróleo , uma vez que foram transformados em produtos comestíveis pela
234 Adam Smith , Der Wohlstand der Nationen , op. cit. , p. 282. agricultura industrializada»236, escreve Rolf Peter Sieferle. Nestas condições,
235 Cf. Rolf Peter Sieferle , «Gesellschaft im Übergang», in Archdologie der Arbeit, op. c it. , é de esperar que se desenvolva no próximo século uma agitação constante das
pp . 139- 140: «A ex igência actual de "justiça social" visa confiscar uma parte da propriedade populações na grande estufa sob o impacto de um movimento internaci onali - )
provenie nte do sector produtivo para a desviar "socialmente" para o sector improdutivo . Como
zado dos direitos do animal, movimento que já tomou amplamente forma ho-
"' nfo poss identes (e talvez mesmo os improdutivos ou desempregados) poderiam tende ncial-
11 1e·111 c c11co111rar-se na maioria soc ial , estaríamos perante uma notável transform ação: o Estado
je e sublinhará o nexo indissociável entre direitos humanos e sofriment os do
,1,.,11.,n:i1ico torna-se uma agência do condi cio nalismo extra-económico e tenta tributar a eco-
'" " " '·' , .q,11 11 lis111 produti va para alime nt ar braços improduti vos, parasitas .»
2 6 Ro lf P ·1 ·r S ic l"c rle. «Gcsc ll schafl im Übe rgang» . ar!. c il. , p. 125 .
246 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal 47

animaI.237 . Esse movimento poderia vir a ser o aríete de uma evolução que nãç, tardar a ser postos à prova. Então , será sobretudo no domínio dos fluxos
atribuiria aos modos de vida não urbanos um novo significado. de dados, quase imateriais, que se apreenderão as sup~rabundâncias deci si-
Assim sendo, se tivéssemos de designar o eixo em torno do qual gira a in- vas. A eles, e só a eles, caberá autenticamente a marca da globalidade.
versão de todos os valores na civilização do conforto desenvolvido, só are- Só vagamente poderemos prever hoje a maneira como a pós-fossilidade al-
ferência ao princípio da superabundância poderia dar-nos a resposta. Não há t~rará os conceitos actuais de empreendedorismo e de liberdade de expressão.
qualquer dúvida de que a superabundância actual, que exige sempre ser vivi- E provável que se venha a julgar o romantismo da explosão - ou, mais ge-
da no horizonte das expansões e das abolições de fronteiras, continuará a ser ralmente, os derivados psíquicos, estéticos e políticos da libertação súbita de
a característica pregoante das situações futuras, mesmo que, dentro de um sé- energia - retrospectivamente, a partir das futuras tecnologias solares «do-
culo ou um pouco mais tarde , o ciclo da energia fóssil chegue ao seu termo . ces», como um mundo que exprime um fascismo energético globalizado pela
Discernimos já hoje os contornos dos vectores de energia que permitirão uma cultura de massas. Neste contexto, compreende-se por que motivo a vida cul-
era pós-fóssil - será, sobretudo, ui;n)eque que vai das tecnologias solares aos tural no palácio de cristal trai unia profunda d~ ·ent,flção, que ultrapassa a • I 'I' 'I I

combustíveis renováveis . Mas, no início do século XXI, a forma que assumi- <:_on..ye.rg~ncia já sublinharj_a ~ntre.J~dJ9 ~_divertimento. O jubiloso niilismo dà
rão esses vectores não é ainda conhecida em p(_)rmenor. A única coisa certa é cultura de massas no ambiente dos consumidores finais é tão desamparado e
que o novo sistema - alguns , lapidares, chamam-lhe «a economia solar mun- desprovido de futuro como o niilismo altamente cultural dos particulares afor-
dial»- = terá de nos permitir superar os condicionalismos e as patologias da tunados que reúnem colecções de arte para conquistarem uma importância
política actual dos recursos fósseis238. pessoal. Até nova ordem, high and low continuam a viver sob a divisa: Apres
Com o sistema da energia solar, estabelece-se inevitavelmente uma inver- nous le sola ire.
são da inversão de todos os .valores - e, como a viragem actual para a ener- Após a extinção do regime da energia fóssil poderá consumar-se de facto o
gia solar vai ôr~ _brq i! b_ebedeira do consumo da energia solar fossilizaqa, que os geopolíticos do tempo presente designaram como um shiji do espaço
poderíamos falar de um retorno condicionado aos «antigos valores» - pois Atlântico p~@_ 2_~spaço Pacífico. Essa viragem desencadearia antes do mais a
estes derivavam todos do imp~rativo de produzir graças à energia renovável transição do ritmo das explosões para o das regenerações. O estilo Pacífico
no quadro de um ciclo anual. Daí a sua relação profunda com as categorias da deveria fazer florescer os derivados culturais da transição para o regime da
estabilidade, da necessidade e da carência. Na alvorada da segunda inversão energia tecno-solar. Tal corresponderia também às esperanças de processos
dos valores, desenha-se uma situação climática mundial da civilização da de paz mundiais, de equilibragem planetária dos recursos e de superação do
qual podemos dizer com certa verosimilhança que possui traços pós-liberais apartheid global? O futuro o dirá.
- será uma síntese híbrida de vanguardismo técnico e de moderação eco-
conservadora. (Para emp1~ gar'â simbólica alemã das' co; ~;-poi'íticas: negra-
-verde.) Suprimir-se-ão pouco a pouco as condições do expressionismo trans-
bordante do desperdício que caracteriza a cultura de massas contemporânea.
Na medida em que, na era pós-fóssil, se mantém a procura suscitada pelo
princípio da superabundância na era industrial, a investigação técnica terá de
se preocupar antes do mais com as fontes de um desperdício alternativo. As
futuras experiências de superabundância produzirão inevitavelmente um des-
locamento do centro de gravidade em direcção aos fluxos imaterü1is, pois há
motivos ecológicos que impedem cada vez mais um «crescimento» constan-
te no domínio material. Assistir-se-á sem dúvida a ~ma diminuição drástica
êíãcírê'clação dÓs materiais - e, consequentemente, a uma revitalização das
economias regionais. Nestas condições, os discursos, hoje ainda prematuros ,
sobre a «sociedade global da informação ou do saber» poderão muito bem

·' 17 1,11 con1rar-sc-á o relato biográfico de um agitador exemp lar nessa frente in Peter S inger,
1/,·111 ,. S11im 111ul die 7,errechtsbe wegung, Erlangen , 2001.
'is ( ·1 1 krn1111 111 Sc hccr, Solare We/1 wi/'/sc!taft. Strateg ie fiir die okolog ische Moderne, 5." ccl i-
,. ,, , ~ l , 1111q11 r , ()() .
Palácio de Cristal 24l

eles designados, no passado, por Wyoming ou Califórnia, ou, hoje em dia, por
investigação genética, nanotecnologia, colonização de Marte ou vida artificial . .
A segunda característica deve ser associada com o termo dej}!:~_ içiio....,- uma 'v... .,
expressão que varre um espectro semântico múltiplo, a começar pela concep- f'
ção segundo a qual, para os Americanos, não há nada mais natural no mundo ., ,
do que estar à frente de todos os pontos de vista possíveis, até à ideia rara-
mente declarada , mas que muitas vezes se pressente , segundo a qual o senti-
do profundo deste país é o de albergar o sobrelanço protestante à excepção ju-
daica . O tema da eleição ou do povo eleito é a declinação anglo-americana da
39 A Excepção: subjectividad~ inventada na Europa continental e segundo a qual o Ser-sujeito
Anatomia de Uma Sedução transatlântico designa a possibilidade de sair da vida normal e indiferente pa-
Americanologia II ra ser chamado como agente de uma missão intimamente sentida. A eleição é
a senha americana que dá acesso à desinibição da acção e à entrada ao ad-
ven_!Q 0.? G.~.n a _[I11,111dial : Assim sendo, o mi~s_j_on statement, a profissão de fé
Ninguém contesta seriamente que o capitalismo mundial - por mais poli- que acompanha o projecto , fornece o contributo original da América para a
cêntrica que seja a sua estrutura - privilegia certos lugares, países e popula- lista dos actos de linguagem . A face falada do americanismo não se resume
ções. Os Estac!2§__Unidos_da América contam-se inegavelmente entre essas re- a esses superlativos de que tantas vezes sorrimos e de que os filhos da pátria
giões preferidas, para não dizer que são o seu domicílio principal. São o país fazem superabundante uso: surge da forma mais imperiosa nos gestos verbais
do mundo moderno que, mais do que qualquer outro, ad~p_tou a constituição com que os cidadãos dos Estados Unidos se associam com os seus commit-
de uma grande esfera de conforto . Poderia dizer-se, literalmente: aqui, o pa- ments. A1 eJigiosiqad~ dQ..S habitantes dos Estados Unidos, sobre a qual se glo-
lácio de cristal apresenta-se como um país de imigração. Por conseguinte, na sou muito e que continua a ser enigmática para os Europeus , implica muito
sua maioria, os habitantes dos Estados Unidos desenvolveram uma tendência frequentemente a ideia , maciçamente pré-cristã e reformulada por Calvino
para não se considerarem apenas como os agentes de uma forma económica, com uma alta energia criminosa, segu~do a qual Deus está com os vencedo-
mas também como os portadores de uma motivação - há muito tempo que, res, cantem o que cantem e digam o que digam as flautas do Novo Testamen-
para a designar, dispomÕs de um nome irresistível: The American Dream 239 . to sobre a preferência do Omnipotente pelos fracos 24 0.
Uma das suas definições de base consiste no postulado segundo o qual o nú- Por fim, a terceira e última característica diz respeito ao contrato social psi-
mero das suas definições pode ser virtualmente igual ao dos habitantes do codinâmico dos Estados Unidos, que codifica o primado constante das manias
país. Mas, se reduzirmos à sua raiz todos os sonhos sonhados no solo dos Es- sobre as depressões. Este estado de facto manifesta-se nomeadamente nesse
tados Unidos da América quanto ao significado do estar-nesse-país, não se código do optimismo, que para o visitante proveniente da Europa é tão diver-
obterão provavelmente mais de ts§s ~ivos incompressíveis. tido, embora frequentemente irritante, e que constitui a verdadeira língua do
O primeiro reside no postulado segundo o qual os Estados Unidos são por país (ainda que não faltem os idiomas da autôc:"rítica ·e-;,i té uma versão especí-
natureza o país onde, ao contrário de numerosas letargocracias no resto do mun- fÍca do negativismo). Resulta daí o hábito pleno de dinâmica dos americanos
do, quem quer que queira fa zer algo novo pode fa zer algo no v.o. Entre os di- médios que consiste em formula~ os problemas em termos de desafios. A sua
reitÕsconstitúcionais dos cidadãos dos Estados Unidos , a esperança de encon- consequência espontânea é que se responde aos obstáculos por meio de pro-
trar a qualquer momento um espaço que acolha favoravelmente os avanços e gramas visando a sua eliminação. Em mais nenhum sítio do mundo se pode-
iniciativas assume um lugar proeminente. Poderíamos chamar a isso o direito ria conceber que uma iniciativa visando intensificar a investigação sobre o
ao Ocidente, num sentido mais do que simplesmente geográfico, pois o «Oci- cancro e outros projectos médicos assumisse a forma de um apelo ao aumen-
dente» - como vimos à luz do que atrás se disse - representa um símbolo da to do orçamento da Defesa - coisa que se podia ler nas colunas do New York
impunidade aquando da entrada unilateral nos territórios inexplorados , sejam Times a 3 de Maio de 1998: como a derrota no combate contra as doenças in -

·' \ </ J';,ra urna interpretação desse sonho, a que se deu também por vezes a designação de Ame- 24 0 No seu li vro The American Religion. Th e Emergence ofth e Post-Christian Na1io11 , Nova lor
"', ,,, ('r, ·ed . in ventada por Israel Zangwill (o autor da metáfora do 111elting-po1), cr. Arthur que, 1992, Harold Bl oom tenta mostrar que j á existe nos Estados Unidos uma religião sin ·r ·ti ~
\ 1 \, ltln i 11 1~ ·r .Ir .. 'f'l, e Dis1111iti11g of America. Reflections 011 a Mu/1icu/111ral Society, Nova lor- ta pós-c ri stã. C f. também Crai g Venter e Peter Sl oterdijk , «Wir erleben eine Fusion :,,w is ·li •11
,I'" ,· 1 " "drl' s ( 11) 1) 1), edição aumentada , 1998, pp . 38-39. O(lrs und Bio- lllusion», Fra11kji1rter Allge111ei11e Zei11111g, 2 1 de Fevereiro ele 2001 , pp , 1
250 Peter Sloterdijk Palácio de Cri stal 25 1

victas é radicalmente não-americana, a guerra contra as causas pérfidas da O enc~nto da América, cuja irradiação é mundial, provém pois da consti-
morte deve ser desenvolvida mobilizando «toda a vontade da nação». (Pode- tuição psicopolítica da sua «sociedade». Os habitantes dos «Estados» conse-
rá supor-se que este jogo de palavras dissimula ecos da war on poverty da épo- guiram, desde o século xvm, produzir uma versão não Ieibniziana do opti- 1,,
ca do New Deal.) Após o 11 de Setembro de 2001 , abriu-se, na guerra contra mi smo , que foi possível actualizar até à nossa época. Segundo esse modelo ,
o invisível, uma nova frente confusa e muito conspícua, pois é igualmente o mundo dado pode ser considerado como o melhor, já que , visto a partir de (.
pouco americano ser vulnerável aos ataques de terroristas impalpáveis . As Ellis Island , é suficientemente perfeito para poder admitir aperfeiçoamentos
mobilizações nacionais contra a doença e os inimigos dissimulados são as suplementares' e ilimitados. Houve amiúde quem considerasse ingenuidade ,/,
emanações directas de uma emenda constitucional implícita e maníaca, se- estas tomadas de posição sobre um pano de fundo totalmente positivo·, na ver- / ' - ' ';'
gundo a qual não se pode reclamar de nenhum cidadão dos Estados Unidos dade , trata-se de uma nova formulaç!9_do s~tido do ser do [>Onto de vista da
que deixe subsistir um motivo interno ou externo de depressão . Os US citizens participação no seu mêl oramento242 . Tal não ~ plica um-ã pi ssag~ regres-
beneficiam de um direito humano suplementar que exige a subordinação à siva do optimismo ao melho-rismo, como julgam certos europeus americanó-
exaltàção dos afectos deprimentes e autoriza a eliminação por todos os meios filos, mas a elevação do optimismo até atingir 9 nível do sobreoptimismo, que
daquilo que nos puxa para baixo. Quando se vive nos Estados Unidos, pode- autoriza a associação, sem precedente histórico , entre o realismo duro e uma 1
mos sempre , sob os aplausos do ambiente cultural, recorrer ao direito a eva- ausência ilimitada de respeito pelo real - associação, quando muito, prefi- p., /···· ,
cuar do pensamento e do ambiente as perturbações da exaltação. Tal leva a um gurada pel a si mples religiosidade dos Romanos antigos, que sabi am harmo-
,. '
habitus fundado na falsificação forçada do balanço emocional colectivo, pois ni zar uma pi edade sentimental para com a origem e uma crueldade mecânica ./ / {t,,/.,
a pessoa não quer encÕntrár-se na zona negativa no momento em que se faz o pai:a com os problemas do tempo presente. Também os Romanos eram capa- ,· ;
oalanço dÕSa l fus e dos baixos . Quando , após o escândalo Enron, alguns co- zes de baixar a cabeça perante o que era mai s elevado antes de passarem sem
nhecedores do meio afirmaram que ele mai s não era do que a ponta de um ice- transição aos negócios quotidianos da opressão. Foi por essa razão que São
bergue de dimensões monstruosas, tal pode ser correcto para o domínio em Bento de Núrsia encontrou a instrução mais eficaz para o «Homem Novo» de
que os negócios se celebram em dólares; mas não se deverá desprezar o facto uma Europa pós-românica quando substituiu o venera-e-mata do romanismo
de que o dólar se passou a apoiar consideravelmente numa economia dos sen- pelo ora-e-trabalha da civilidade conventual cristã.
timentos em que a subavaliação dos motivos de depressão e a falsificação em- Compreende-se pois por que motivo os pressupostos filosófi cos e psicopo-
belezante dos activos penetram o conjunto do sistema de motivação. líticos do american way of life produzem a expressão mais perfeita de um mo-
Resumindo as três características primárias, chega-se à seguinte constata- do de ex istência pós-histórico. Enquanto os fitg.Qp.eus (como,juntamente com
ção: os Estados Unidos da América são, pela sua concepção psicopolítica , o eles, os Japoneses, os Chineses, os Indianos , os Russos e alguns outros) e5ipe-
aís do escapismo r.ealme.nte existente 241 . Lar de fugidos de toda a espécie,· -raram durante os últimos cinquenta anos para entrarem como recém-che-
o país alberga sobretudo pessoas que , vendo-se numa situação sem saída na gados no mundo das condições pós-históricas , os Americanos podem, dado o 1 1
sua antiga terra-mãe , migraram para um vasto espaço de segunda oportunida- particular caminho que seguiram , passar por veteranos _da pós-história . Há , ,
.de.,_Lugar de asilo para inúmeros desesperados e -~a~frag.ãêios, o país admitiu muito que, para eles, a notícia do fim da «h_is1ória» deixou de ser novidade .
muitos fugitivos que conseguiram salvar-se das vagas da hi stória do mundo . Eles tinham rompido com os ve lhos guiões desde a fund ação do país . A «Re-
País de imigração para os excedentes de mobilidade não enraizada, propicia volução» Americana desenrolou-se em simultâneo com a Declaração da In-
11\.,t.l
sobretudo um cam120 de acção ara os que acreditam no primado da iniciati- d~pendência, que , mais do que abandonar a pátria inglesa, abandonava todo
va so.br.e_as..w.iblções. Cidadeluminosãsobre à colina, mostra a uma legião in- o sistema de pesos, medidas e preconceitos da velha Europa sobre o ónus do
finita de enviados de alhures uma planície suficientemente vasta para dar a to- l]l!J ndo . O conceito de «r~~olução», se o entendermos no sentido político e fu-
dos os entusiastas, situados a boa distância uns dos outros, o direito de turi sta, tem pois para os americanos de nascença o eco de uma excitação ab-
colonização e o direito de proclamação. Se tivéssemos de exprimir numa só sJ!Ui - como se se quisesse exigir deles que reco~ s em a guena ganha
frase o esplendor e o paradoxo dos Estados Unidos , seria forçosamente a se- há dois séculos contra a Coroa britânica. ~
guinte: permitiram às forças da «história» que se retirassem da «história» . Oór1Ícomõviinento de libertação que continua a parecer fazer sentido para os
habitante s a õs Esiàdos U ri.iâos dâ Arriérica é aquele pelo qual tentamos desfazer-
Outra frase explica depois a tentação actual: as forças que escaparam à «his-
l<'>ria» estão agora a descobrir a «históri a» em proveito próprio . -· -
242
A met~física e a éti ca do improvement remontam e m parte a fo ntes britânicas an tigas, 11t .
'-I I ( ·1 Yi F11 Tu11 11 , 1:·sa 1pi.1·111., Baltimore e Londres, 1998 , p. 9. Para os co nto rnos de uma es- meadame nte aos círc ulos dos liberais de Gladstone: cf. Ian Bradley, Tl,e Optimists. Th e111e.1· m,d
' "l'" '"l',111 g ·mi, ·f. Sf)h llrc11 Ili , Sc/1ii11111e, o p. cit. , pp. 748 sq . Perso11alitie.1· i11 \lictorian Liberali.1m , Londres e Boston , 1980, pp. 200-22 1.
252 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal 253

'
. -nos das relíquias pessoais da vida histórica, da descendência da nossa família: O espinh.Q n carne da grande nação escapista é, porém , o facto de, depois
" em privado, cada indivíduo p_ode r~petir a secessão. com-a.hi~_tória, libe1tando a da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos não disporem já daquilo que
criança interior da dominação do mundo dos pais. A imensa amplitude das pai- os patriotas actuais chamam a energy independence . Desde o encontro entre
sagens terapêuticas americanas testemunha que os seus habitantes se desviam re- o presidente Franklin D. Roosevelt e o rei lbn Saud a bordo do USS Quincy,
solutamente do que foi anteriormente uma realidade exterior opressora. Não se próximo do canal de Suez (poucos dias depois da conferência de Yalta , em
esqueça, neste ponto, de que a libertação da criança interior americana visa o Fevereiro de 1945), a aliança estratégica entre os dois grandes pólos de esca-
vencedor criado antes do começo dos tempos - o vencedor que entra hoje em pismo da Terra tornou-se uma constante da política mundial recente. A partir
cena com os traços da vítima. Inútil dizer que os inúmeros cuidados pediátricos desse momento, o escapismo nwcísico dos Estados Unidos anda firmemente
do arquipélago terapêutico dos EUA encarnam ainda o bastião mais poderoso da associado ao escapismo narcótico dos Estados rentistas do mundo árabe. Ten-
pós-história. Tal como ~~~g,!:_an!~~ _s.ó_pudernm tornill"-~e~ e(·d~dei~os_america- do em conta a forte dependência relativamente às importações de petróleo
nos abandonando a identidade que haviam trazi90 consigo243 , os ~ descen- provenientes das regiões do golfo Pérsico, a ~xcepção americana continua hu-
dentes passam agora a_evac~ .2_s esc.2_mbr2s psíquiçqs que foram trazidos dos milhantemente dependente de circunstâncias exteriores - a doJ1trina Carter,
mundos interiores de ontem para o Novo Mundo. A tera . i~ ·icana consiste em nome da qual os Estados Unidos se res~rvam o direito de , a qualquer mo-
em transformar o dilaceramento histórico numa selfreliance pós-histórica.
· Natu.ralmente, também o conceito d~ trabalh,o perdeu nos Estados Unidos o -, , r,
/ Jl mento e por qualquer meiõ~ garantirem o controlo dos recursos do golfo, ex-
prime essa situação intrincada. Não espanta pois que, por essa ligação realis-
sentido que tinha na velha Europa: não designa apenas a participação na con- \_1/" ~ ta, a fealdade do mundo histórico se infiltre no interior da esfera da 1t
versão de matéria-prima num produto de maior valor por meio da energia in-
1
1
r' transf igur~ã;;~ ~ri~·a;;'.244. '
/
vestida - até que , no ponto-de-fuga da criação de valor, o trabalhador se te- · ; •.Jy Vemos actualmente como o país_.9.~, em todo o planeta, t~ Of!Stituição
nha libertado do trabalho enquanto tal. O trabalho americapo é uma ' ~,Jt,1o mais ~ dic_almente pós-históri_ya, se vê, no apogeu do seu poder, as;,altado pe-
performance , cujo significado tende a demon strar-como o sujeito progride da I 'c v la tentação de intervir de novo, por seu livre alvedrio, na «história» - e não
abundância das oportunidades para a superabundância do êxito. Em que outro já , desta vez, no papel de árbitro que, saindo da sua resêrvã porÜ m breve
país se poderia conceber que haja pessoas a partir para o Sul, a fim de lá se momento , põe termo às querelas indignas das potências históricas. A incursão
desunharem ainda mais do que onde viviam até então? E em que outro país americana actual nos acontecimentos do mundo traz consigo os traços de uma
haverá pessoas que encarem com tanta despreocupação , numa cultura oficial- restauração global: implica a retrorJ]etarI!_9rfo§e dÕs Estados Uniggs em po-
mente igualitária, o abismo cada vez maior que separa ricos e pobres? A impu- tência histórica - o que é impensável se não se interpretar o mundo para de-
dência descontraída ela oligarquia americana prova como as auréolas ele gló- le fazer um teatro de operações de onde as coisas continuam ou recomeçam a
ria que cercam todos os êxitos deste país são concebidas por uma grande seguir um curso histórico . Ma§ a «história» - já atrás o comentámos - de-
maioria dos americanos como as emanações da sua própria fé. No clima me- signa a fase de êxito do estilo de acção unilateral.
ritocrático, até as prestações exageradamente· recompensadas dos outros apa- As turbulências ocorridas a propósito da guerra contra o Iraque intensa-
recem como provas da validade do sonho comum. Daí a aus~ncia de ressenti- mente desejada pela Administração }3ush , preparada com antecipação e con- /.
mento para com os que triunfaram, tão invejável para os Europeus. duzida com uma unil ateralidade exemplar, tiveram um efeito secundário men-
Neste contexto, compreende-se por que motivo os números são sempre en- tal perceptível no mundo inteiro , que mascarou amplamente as consequências
ganadores no caso dos Estados Unidos da América. Dada a sua economia pro- imediatas dos combates: de um só golpe, os Estados Unidos puderarp. ser
funda, este país não precisa de balanços. Vive num mundo superior aos nú- ape1:cebidos como um corpo estranho no ecossistema moral da comuna mun-
meros, pois, ao contrário do que acontece numa economia trivial, não se dial pós-histórica , pois o seu Governo dera a conhecer, mais claramente do
contenta com passar de um valor dado a um valor superior, antes se encontra que antes, a vontade de desempenhar o papel de única potência pós-histórica \: ... , ~

em movimento entre a peifeição e a superpeifeição. Só uma observação su- restante - não só desta vez, mas também para o futuro. É ce1to que, para
pe1ficial permite pensar que os Estados Unidos , como qualquer outra nação explicar que «job» os Americanos estavam a levar a cabo no Iraque , George
do sistema capitalista, precisam de um crescimento económico e demográfi-
co constante. Pois não são as estatísticas económicas que provam a sua gran- 244
O slogan actual da extrema-dire ita americana, «Le/'s blow up the Middle East», ex prime a /
deza: pelo contrário , a sua grandeza é que ilumina os números . forma como, nesse país central e narci sista , se imagi na a eliminação de uma dependênc ia in có-
moda . Cf. também Robert Baer, Sleepi11g with the Devi/: How Washi11gro11 Sold Our So11I .fi11·
Saudi Crude, Three Rivers, 2004. Por outro lado , é bem claro que a mi ssão cio 11 ele S t ·mhro
1
' 1 <·r i\ r1 hur M. Sch les inger Jr., Th e Disuniting of A111erica. Rejlectio11s 011 a Multicu/111ral So- co nsistia e m fa zer e xplodir a elllente cordiale entre as duas potências esca pistas . l ·oi ·rn11 'NS\'
. 1, 11. ,,p l' il .. pp . 2:l -44. fit o qlll: 13in Laclen esco lheu uma mai o ri a ele saud itas parn orga ni zar os voos cl11 rnort ·,
254 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal 255

W. Bush foi obrigado, como habitualmente, a recorrer ao Antigo Testamento, muito numerosas vítimas do outro campo , acompanhadas pelas condolências
por exemplo, Isaías, 61: « ... enviou-me para anunciar a lib_ertaçã~ ~os cativo~ glaciais de oficiais subalternos. C9mo numa cena do início da época moder-
e a liberdade aos prisioneiros .» Mas referiu-se ainQª-.JJ1_ais_exphc1tamente a na, os Estados Unidos mobilizam as suas frotas para levarem a cabo a con-
«história», únic? ~eio em que o drama actual tem sentido: quista do mundo como potência marítima; como uma potênci11_colonial mo-
derna, fazem uso das armas aéreas e estratosféricas para se imporem numa
«O apelo da história foi dirigido ao povo certo ... »245 gu~rra assimétrica contra gentes que lhes são inexoravelmente inferiores; co-
«Encontramo-nos aqui num dos momentos decisivos da história do nos- rno uma potência de propiciadores neo-apostólicos (vide atrás, pp . 63 sq.) , rei-
so país e do mundo civilizado; uma parte dessa história foi escrita por ou- vindicam o direito de invasão, o qual decorre da consciência de, se necessá-
tros que não nós; a nós cabe-nos escrever o resto ...»246 rio pela força, ter de pôr entre as mãos dos recipiendários recalcitrantes o
presente de Deus à humanidade - presente que , na ocorrência , leva o nome L,, ,
Na ocorrência, há que reconhecer a esta fraseologia qualidades analíticas. de democracy. Notemos que, no árabe moderno, começou desde há pouco a L • .,, ' ·

A América de Bush i;.e-h.istoàza-se saindo indiscutivelmente da pós-histori- circular o vo~ábulo damkrata , que significa mais ou menos «agressão oci- í · f
{\,l . ~idad;, reivi~d i~ n-do para si própria, diante da opinião pública mundial , as in- d~ntal contra um país a fim de fazer dele uma economia de merçado»247. J. ·,·.r <. ,
síonias da história a fazer. No que diz respeito a esta última, cinco sinais de Do ponto de vista da filosofia da história, o motivo decisivo da guerra do
sa°berania podem ser assinalados: ~_primado da: f~rça, a em!nê~ci~ dos ~oti- Iraque dizia respeito à refundação explícita ç!o Qnilateralismo como estilo de
vos, o privilégi2_ da__1;!!1ilatetalidade, ª~_auto-ammsttc! para a v1olenpa praticada prática do qual só agora se reconhece, à luz da teori~ da acção, até que ponto
o
- e- a praticãi·, controlo sobre as palavras (e as imagens) qu~_s_e_seguem aos ac- constituiu a característica marcante do período da história do mundo . De um
tos . Para esta re-historização unilateralmente proclamada, a América corre o ponto de vista espinosista , a única justificação da tomada do mundo pelos Eu-
risco de se afastar dos seus aliados na Europa e no resto do mundo , mas mais ropeus residiria no facto de as forças necessárias estarem presentes; como to-
ainda de romper com o melhor das suas próprias tradições. Além disso, dá-se do o poder está habitado por um dever específico, os Europeus imperiais mais
ao luxo de fazer a provocação que consistia em desprezar osten_sivamente o não teriam feito na sua época do que percorrer os trajectos de força , associa-
co·;.o dos que, racionais , advogam a inibição, inclui'ndo os seus mais próximos dos à sua capacidade . Poderia ler-se analogamente a intervenção americano-
amioos deste lado do Atlântico - os seus ideólogos excitados foram ao pon- -britânica no Iraque: ela fornecia a prova do espírito e da força , apresentando-
to deº qualificar esse grupo de bando europeu de cobardes e de adote_scentes , -se como uma simples posse imperial na cena geopolítica . Faziam o que
de comedores de queijo mole e de consumidores de entranhas suspeitas. Al- faziam , para dar a palavra a Tony Blair, «porque podiam fazê-lo» .
guns americanos, transfigurados pelo seu afecto patriótico, chegaram a acusar É claro, todos os observadores, incluindo os que encaram os Estados Uni- ..,
os Franceses de não serem mais do que uma horda de farejadores de mulhe- dos com simpatia, estão conscientes de que o militarismo americano está des- -,....~. ·
res que descuram a toilete. Se as palavras significassem a guerra, numerosos d~ há um certo tempo condenado a tornar-sé notado no mundo pós-histórico •
comentadores patrióticos dos Estados Unidos tê-la-iam declarado há muito como o pãi-asita de o ntem. Pela natureza e origem, o exército dos Estados Uni-
tempo aos cépticos do resto do mundo . dose uma r~líquia da «história» em que , de certa maneira, a América se dei- 1 '
Na tradição de uma cultura de actores prestes ao grande assalto, caracte- xara arrastar em 1916 como um moderador armado, sem pôr em questão, num
rística da época mais virulenta da Europa, a política dos Estados Unidos primeiro tempo , o seu sereno isolamento . A partir da sua própria estrela, os (. /
apresenta-se na tribuna , celebrando numa exaltação timótica as s~as próprias Americanos desenharam uma poderosa tangente ao mundo histórico , no qual
nobres motivações, sublinhando a capacidade nacional para assumir os ónus, almas privadas de liberdade rebolavam na poeira das suas guerras . Mas , poste-
seoura da sua vitória mesmo antes do fim da operação, impenitente e intro- riormente, os exércitos americanos adquiriram durante as suas intervenções na
ve;tida uma vez esta levada a cabo , redigindo sempre ela própria os seus ba- Europa e no Pacífico uma força monstruosa; durante a corrida ao armamento
lanços de êxito , sublinhando monótona e sumariamente a justeza dos ~olpes com a União Soviética, expandiram-se de maneira praticamente incontrolável
dados e desejando, quanto ao resto, inumar as vítimas nas fileiras arnencanas - esta competição durou quase meio século e carreou somas imensas para o
com as despesas cerimoniais costumeiras, mas deixando entregues aos seus as que se chamava a Defesa; acabaram por estagnar a um nível mais e levado.
quando a «história» se preparava para dar o último suspiro no impasse nucl ar,
A significação da era do armamento máximo para o ciclo de aprcncli:r,n • •111
2-15 C i1aclo a partir ele Hans-Ekeharcl Bahr, Erbarmen. mit Amerika . Deutsche Alternati ven, Ber-
pós-hi stórico aparece, retroactivamente, no facto de a inibição r cfpro ·11 <los
111 11 .:1.l)!n , p. 12.
' 11 • e ;rn rgc W. Bu sh . num di scurso ele 26 ele Fevereiro ele 2003; citado a partir ele Francis Fu-
i " ' .,11 1.1 • •• Na 1io 11 -Builcling 101 ». Th e A1/a111ic Monthly, Janeiro-Fevereiro ele 2004. 247 /\ ,,·o<Jcço n ill cs Kepel esta informação .
256 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal 257

actores do mais elevado nível se ter tornado a evidência primária da política Vemos hoje como a política externa dos Estados Unidos conjuga metodi- , /
mundial. Desde que até os generais se impregnaram da ideia de que a agres- camente ~ 2aradoxo da exce ção ~meric~.1:1~- Podemos exprimi-lo por várias /.,i:·
são perdeu a sua prioridade na história da força armada , a instituição históri- formulaçoes carregadas de um sentido prox,mo: p~ a .s alvar o sonho america- ,,.
ca que era a guerra parecia ela própria pronta para a pós=-historização. Mas, n~-'-?s s~us actores dominantes apressam-se a acordar dele; para preservar o ,,
como bem vemos hoje ,~ época do impasse deixou uma herança ambígua cu- pnv'.lég10 de ter escapado à história, os dramaturgos políticos reconduzem
ja face sombria surgiu à luz do dia., na ideia defendida pela direcção america- o país a passo firme para a história; para garantir a sua magnífica ligeireza do
na de que a experiência da inibição diria exclusivamente respeito ao nível mi- ser, _as equipas dirigentes dirigem os Estados Unido_s para graves sobreonera-
litar e poderia ser eliminada após o desaparecimento do confronto Este-Oeste. çõe~:~para garantir ao país as fontes do optimismo, os seus fazedores de cli-
éom uma cegueira que lembra os heróis antigos , os estrategas americanos e ma intelectual precipitam-no no realismo mais negro.
os seus co; sultores: dac;la a sua incapacidade adquirida de reconhecerem as O ú,!!i_mo paradoxo tem a sua mais clara expressão n"bs finos manuais de vio-
realidades elementares , desprezam o facto de a inibição recíproca constituir o lência escritos pelo repórter de guerra e polemólogo Robert D. Kaplan: War-
modus operandi do contexto pós-moderno do mundo enquanto tal , pois este rior Po~itics. Why Leadership Demands a Pagan Ethos e The Coming Anarchy.
assenta inevitavelmente na condensação , na retroacção e - para utilizarmos Shattenng the Dreams of the Post Cold War, dois livros que têm por único ob-
apesar de tudo essa palavra exangue - na reticulação. Jectivo preparar o país da bandeira estrelada para um universo hobbesiano que ,_,.
A partir daí, uma tentação sem igual ronda o Ocidente desunido: a tentação se pretenâe não estar sujeito à lei da condensação civilizante, m~s inteiramen-
de escrever para «a" única potência mundial » novos guiões destinados à sua te votado a um combate generalizado em espaços praticamente sem Estado.
desinibição : Significa isso que voltou a soar ·a hora dos intelectuais (vide Kaplan não deixa nenhuma dúvida sobre a identidade da única estrutura ad-
atrás, pp . 71 sq .)? Temos de nos preparar para que consultores , analistas e jor- missível para des~mpenhar o papel de Leviathan planetário.
nali stas do tipo de Brzezinski , Kagan , Kaplan, Luttwack, Wolfowitz , Podho- A translatio historiae nos Estados Unidos está a ser conduzida com todas
retz , Fukuyama e muitos outros corram ao assalto dos corredores do poder as pompas e circunstâncias características de uma investidura. O ritual é inau-
com mai s sucesso ainda do que nos episódios precedentes da grande política? gurado pela transferência do ponto zero territorial de onde passarão a emanar
1/ Não é já por essa razão que os redactores dos discursos do imperialismo se todos os mandatos de acção neo-histórica. Desde o Outono de 2001 , existe
acotovelam por todo o lado para tomaram as posições-chave no novo merca- um ~ an}o Sepulcro americano, o Ground Zero , esse presente do islamismo
do semântico? - militante.à-potência que se re-historiza, um presente que volta a provar, aliás ,
,l \ Na realidade, a re-ideologização do espaço público trabalha a todo o gás; a energia adâmica da língua americana quando se trata de imprimir no real no-
anuncia-se uma idàde de ouro para os autoproclamados ped tos da violência, mes reveladores pela sua própria importância . Esta translatio prolonga-se
f / tal como para os realistas que pregam uma nova dureza ou o regresso às re- com a transferência da inocência, figura central da moral pós-moderna e viti-
gras da antiga realpolitik . Parece , contudo, que ~ omenJ?, ~ão são tanto os mológ1ca sem a qual não· se pode já pensar em começar um ataque, nem se- 1

conselheiros universitários que ocupam o proscénio, mas, sim, os activistas quer nos cenários d~ neo-história - agora , é em nome da vítima que o ata-
} islamitas - e os seus intérpretes ocidentais - , que querem tornar-se úteis co- que deve ter lugar. E completada pela-transmissão do poder de proclamar o
mo intérpretes dos sonhos da violência futura 248 . Nunca será de mais subli- e~tado de emerg~n_cia, e isto, não apenas com a voz do soberano político que
nhar a importância dos islamistas para a re-historização dos Estados Unidos . da ao seu adversano durante todo o conflito o nome de inimigo , mas também
,.... 1'/, Parecem 'seros- homens do momento , aqueles qÜe dirigem o «apelo da histó- com a do soberano ontológico que constata a adversidade no mundo e lhe de-
ria» aos ouvidos sensíveis dos presidentes - ouvidos que, insuspeitamente, clara a guerra perpétua. - ···-- -
,'
se mostram abertos ao conselho do inimigo. São os neo-unilateralistas crimi- , Parece que pusemos assim em marcha um remake completo da «história». 1/ (
nosos do Próximo Ori<:_nt~ que, mais clarameritedo qu( osnossos -c::9_nsultores A translatio actionis para os Estados Unidos - "facto consumado com a de-
loéãi·s: fõrnecem aos actores dos centros de poder ocident~is as palayras-cha- mi~são da Europa após 1945 - acrescenta-se a translatio passionis que, de-
ve para a desinibição dos seus próprios ataques unilaterais. pois do September eleven, representa uma nova cor na bandeira americana.
J?esde qu~-º~ Pe!~ctor potencial pode também fazer-se passar pela superví-
tima, Jânãã a_ se opõe à mobilização do país para aquilo a que se chama a n~-
24 8 Sintomático ao mais alto nível neste papel: Paul Berman , Terror und Liberalismus, Ha m-
v_~ m~n_eira de fazer a história do mundo - excepto a sua própria tradição de-
burgo, 2004 - um li vro e m que se recorre ao termo _d e «totalitari smo», que j á não ex plicava mocrat1ca e escapista .
gra nde co isa no te mpo de Hannah Arendt , para estabelecer um paralelo e ntre os uni versos de
<>d11, dos islami stas e dos antimodernistas ocidentais mai s ant igos : uma abordagem co m se ntido , Aq~ilo que agora se segue , tanto quanto podemos perceber desde já , pode
.l,· 11 1111 dl' l' ·ri os limit es . mas cuja imple me nt ação choca c m Be rma n com a nalogias sc mi ·ult us. resumir-se sob o título: «A Vingança da Pós-História .» Com efeito, longe de
258 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal • <)

se deixar contaminar pela dinâmica da potência histórica autoproclamada, brir nas vozes do outro, quando é céptico relativamente à guerra , desde o e-
uma b(lil parte do__restq d2_ mur:ido empen~ado na democracia parece ter-se na até ao Ganges , a voz autêntica da América? Não deveriam os veteranos da
conjurado para complicar a vida do úÍtimo actor brilhante nesta terra. En- vida pós-histórica estar nas melhores condições para discutirem com os no-
qui nto o exército americano no Iraque , marginalmente apoiado pelos Britâ- vos recrutas de outros países? Para os americanos que se compreendem ca-
nicos, Polacos, Italianos e outros pretendentes às gorjetas que se deixam aos balmente a si próprios, a reacção mais natural, não seria a de desejar as boas-
empregados de mesa da «história» requentada, eliminava em poucos dias as -vindas a todos os sucessores que abjuram o pecado da velha Europa, o
tropas desmoralizadas de Saddam Hussein, o resto gigantesco , os não amigos pecado de ter feito a história? Como é possível que, no que diz respeito à po-
dos actos belicistas, erguia-se em todo o mundo com uma nova consciência lítica, a cultura mais madura da pós-historicidade se esquive às evidências
de si, como se só o espectáculo que lhe haviam oferecido tivesse podido levá- primárias do mundo pós-histórico: às leis da interacção , ao ricochete dos ac-
-lo a compreender inteiramente quais são os seus valores. Estes são natural- tos sobre o autor e à retroacção sistémica das operações? Como é possível que
mente os mesmos da América pós-histórica de ontem , a que aderiram pessoas o faça com tanta má vontade e desprezo, um desprezo que se exprime da ma-
de todos os quadrantes desde 1945, por vias directas ou ínvias . Esses críticos neira mais aberta na forma como os Estados Unidos da América tratam as Na-
da guerra do Iraque não recusam a direcção seguida pelos Estados Unidos ções Unidas - as quais não são já, a seus olhos , mais do que uma máquina
adoptando as tonalidades do «antiamericanismq» - expressão que alguns destinada a gerar paralisia em tradução simultânea e incubadora de uma me-
agitadores muito gostariam dé cÕnsiderar como-um termo sobresselente para díocre boémia diplomática? Mas, ainda que este juízos fossem exactos , tería-
o «anti-semitismo» , a fim de sublinharem definitivamente o que esse espírito mos de fazer a pergunta: por que motivo os cidadãos dos Estados Unidos da
de cóntradÍçãÕ tem de indecente . Dizem o que se tem de dizer do seu ponto América investidos em funções públicas carecem tão flagrantemente da von-
de-vista, não em virtude de um gosto imaturo pelas divergências , mas em har- tade de aderirem a um clube que os acolheria sem mais formalidades?
monia com a lógica pós-histórica que detecta na atitude unilateral da potên- A t SP._?S!!' moral a estas perguntas é que, por sentido das responsabilida-
cia mundial uma citação da idade de ouro da brutalidade europeóide. O que des , os Estados Unidos se teriam identificado com o seu papel de potência-
se exprime através das numerosas vozes que militam contra o habitus dos Es- -chave na política da ordem. mundial: esse grande país deveria pois manter o
tados Unidos da América em matéria de política externa não é nem mais nem seu unil ateralismo benevolente, a fim de poder neutralizar os países malevo-
menos do que um antiunilateralismo depurado . Num campo de prática políti- lentes e incorrigíveis (aos quais se apõe o qualificativo de rogue),, Uma res-
t' '1 ca com elevado grau de retroacção,"esse unilaterali smo constitui desde há posta enquadrada na realpolitik seria que os Estados Unidos estão condena-
muito um modo evidente da cultura da cooperação - o que implica também dosãfãzér um cálculo de interesses agressivo no domínio da geopolítica para ,
que se apresentem as diferenciações necessárias , de maneira discreta e embe- antes que se afirmem novos global players como a China ou a Europa, ocu-
lezadora, como «críticas entre amigos». Compreende-se perfeitamente , aliás , parem o máximo número possível de posições-chave no xadrez geopolítico
.. 1
•'
por que motivo ls;2el, o aliado co-excepional e c9-desprezador da opinião in- - nisto se integrando , aliás , o xeque dado à Europa quando Washington ex-
ternacional , capta uma parte dos efeitos do espírito antiunilateral mais pro- primiu o desejo de que a Turquia se integrasse na UE. A resposta noopolítica
nunciado. Que as pessoas interessadas o interpretem a contra-senso como um - proposta recentemente por esses peritos da cyberwar quesão Arquill a e
novo «anti-semitismo», é lá com elas-(mâs, parã complicar ãs cÕisas, sempre Ronfeldt - constata que , ante a irresistível information revolution , os Esta-
diremos que ta~bém exist ;-disso, e mbora a expressão «anti-semitismo», que dos Unidos mobilizam os seus recursos de ideias e comunicações para exer-
designou o racismo político e , por conseguinte, uma questão . intra-europeia cerem até às últimas consequências a sua liderança na noosfera do sécul o
historicamente ultrapassada, não esteja já desde h_á muito em condições de ex- xx, 250 . A re~post~ mitodinânúca, por último , transparece nos motivo gera is
plicar as antigas e novas tensões entre Israel e aqueles que a odeiam, árabes 'do sonho americano·: quem se define como o seu vector activo não deseja
oi( muçulmanos) 24 9 . implicar-se em situações em que quem quer fazer alguma coisa não clispõ cI
··M as por que motivo um muito grande número de americanos, incluindo al- mai;gem para levar a cabo o que tem na cabeça; continua a não querer r nun -
guns que não são suspeitos de bushismo, tem tanta dificuldade em redesco- ciar ao selo da eleição, inexoravelmente gravado nos corpos e nas alm as dos
qu$ lhe são receptivos ; continua a não querer deixar às razões objcc1i vas d ·
24 9 Sobre a origem da hostilidade islâmica tradic ional relativamente aos judeus na hi stóri a das estar deprimido a prioridade sobre o privilégio da exaltação.
ide ias, c f. Jean Lacarriere, L'Orient et l'Occident. Les origines d'un conflit , Paris , 2003. Cf. tam-
bém: Neuer Antisemitismus? Eine Globale Deba11e, Doron Rabinovic i, Ulrich Speck e Nathan
S1 11aicle r (org.) , Frankfurt , 2004 , be m como Pie rre-André Tarclieff, La Nouvelle judéophobie , Pa-
, i,. 21lll2 - es te último liv ro é notável, no meadame nte , pe lo fac to ele substituir o concei to hi s-
25
º Jo hn Arquill a e Dav id Ronfe ldt , Th e E111ergence of Noopolitics. To1vrml.1· r111 /\ 111,•1/1 •1111 /11
1.. , 11 ·11 ,k ,1111i -sc n1i1i sm pe lo conceito mais adequado ele judeofobia . fn m w 1io11 ·rraregy, Santa Mó nica, 1999 .
260 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal (, 1

A secessão americana com a história tinha, por conseguinte, '-:!.rr:! preço_ Mas, entretanto, esse mercado ficou saturado a ponto de nem uma nov a vi-
cujo montante a p"oucó e pouco-vai ·sendo quantificado: p~ po~ .,J 1á.Já-1Dais ragem da espiral do masoquismo, nem uma radicalização suplementar da sus-
de dois séculos, sair para a pós-história, os secessionistas tiveram de exportar peita já excessiva contra o «sistema» poder trazer consigo benefícios mo-
, e conservar uma formação de sujeitÓ proveniente da velha Europa, formação rais253. Em contrapartida, a segunda re-historização, a partir da era de George
que se imuniza presentemente contra a aprendizagem em proveito da pós- Bush Sénior, é integralmente encenada ao estilo de uma restauração manía-
-historicidade universalizada. O nexo entre a situação d~ excS<pção p.QS-:histó- ca. Trata-se de novo aqui, como se fosse coisa muito natural, da «história»
rica e a forte posição de actor aguarda ,2._!POmento ,_pró ximo ou longínquo , em vista de cima, ou melhor, dos cumes. Quando a «história» actual tem de jor-
que sofrerá uma desagregação êxpÍÕsiva - o que acontecerá, o mais tardar, rar das fontes mais elevadas, assume forçosamente a forma de uma activida-
no instante em que os excessos de impulsividade do potencial americano já de presente de Deus por intermédio de uma nação eleita, cujos chefes , com-
não possam descarregar-se em projectos nacionais (e no culto heróico dos paráveis a jesuítas protestantes encontraram a estratégia de autodesinibição
guiões de Hollywood251). Desde esse instante, a procura em matéria de re- mais eficaz. Com esse regresso da história também se viu chegar ao poder
constituição da «história» real por actores prontos a agir circula no ar, e isso uma variante do kitsch, desta vez sob a forma de um ready-made da teologia
tanto mais quanto , a partir do 11 de Setembro, o psiquismo ~mericano se re- política.
velou totalmente incapaz de bridar o espírito de vingança. E verdade que, o Em 1993 , Edward N. Luttwak publicou um livro cujo título valia por um
mais tardar desde o descalabro do Vietname , numerosos cidadãos dos Estados programa: The Endangered American Dream . How to Stop the United States
Unidos haviam começado a pressentir a amplitude da ameaça que pesava so- to Become a Third World Country and How to Win the Geo-Economic Strug-
bre o seu sonho - ameaça que decorria tanto da marcha interna da experiên- gle for Industrial Supremacy - um livro que uma imprensa ingenuamente pa-
cia americana como do curso exterior do mundo - , mas raros são hoje os que triótica e masoquista saudou como uma terapia de choque vinda no bom mo-
querem prolongar o caminho que, após a derrota sof~ida quando da guerra in- mento para a nação ameaçada pela decadência. Luttwak já ganhara reputação
justã conduzida no Extremo Oriente·, desembocara numa fa§e___~e dúvida e de entre os espíritos dominantes da ciência estratégica contemporânea; a partir
tomada de consciência. · - daí, podia também ser considerado como o exegeta inteligente da teologia po-
à p1i me.ira re-historização da América após 1968 estava colocada sob o lítica latente do seu país, na medida em que reformulava o imperativo elitista
signo da decepção, da depressão narcísica e da autodenunciação dos crimes da América por meio de uma sociologia seculru· da competitividade. Enquan-
de guerra praticados nos teatros de operação vietnamitas; na época, havia que to observador das tendências globais , Luttwak , é claro, compreendera que a
assimilar a evidência de que o país perdera o privilégio de estar do lado dos situação de excepção em que se encontrava a América era insustentável a lon-
bons . O primeiro regresso à história (que foi também um regresso à fealdade) go prazo; mas , enquanto excepcionalista manifesto, não tardou a estabelecer
foi levado a cabo por meio de modelos de uma crítica cultural excessiva, mo- que , tanto pru·a ele como para a grande maioria dos seus compatriotas , não se
delos de origem alemã e francesa , e desembocou num culto da singularidade admitia aceitar esse facto sem resistência . A sua intervenção associa os dois
étnica e vitimológica, culto apresentado sob a forma de uma «história vista de elementos para fazer deles uma perspectiva «visionária». Numa primeira fase ,
baixo»252 . criticai theory_ e quanJ1u:.eady-made.. da__çJitica social,sl~s~mJ?e- Luttwak expõe os sinais premonitórios da «decadência» americana: as econo-
nhou aqui u~ -~ ; ~~-~nte: mostrava co.rn que facilida~e a crítie:_a pode mias nacionais do Japão e da Europa recuperaram largamente o atraso que ti-
trànsfQ!:m_ar=..se e!T\ kit~ch; pois , da mesma maneira que, no sistema da arte , o nham em relação aos Estados Unidos no pós-guerra. O sistema escolar oficial
kitsch funciona como um shortcut dos grandes sentimentos, º~kitsch ç_i;:ítjco está no seu ponto mais baixo desde há anos, em todo o país; as classes médias
faz de shortq1_t_p,m 1.<!. indignação.Transforma em artigo de massa~s._obre- sofrem , desde a era de Reagan, de esgotamento económico e cultural ; o capi-
/' -elévâção da boa opção relativamente aos factos maus. Não é preciso expli- talismo carece desse dinheiro a que deve o nome; os passadores de droga va-
V· · ' car por que motivo essa mercadoria tinha forçosamente de encontrar o seu gueiam em plena rua até à proximidade do bairro governamental de Washing-
mercado nos Estados Unidos . ton ; sem esquecer as prostitutas americanas que trabalham no Japão e, desde
há algum tempo , não podem já pedir um suplemento enquanto US-Girl: qu an-
do a estrela de um país declina , a cotação da carne dos seus no mercado in -
25 1 Cf. Boris Groys, «Warte n au die grossen Ame isen», op. c il. ternacional também cai.
252 Para uma aguda c rítica liberal-conservadora do etnocentri smo ideológico nos Estados Uni- Destes índices , Kuttwak desejaria poder deduzir directamente que os Esta-
dos ela América a partir dos anos 70 , cf. Arthur M. Schlesinger Jr., The Disuniting of America ,
dos Unidos estão a cair em queda livre na insignificância . Aquilo qu · oulros
up. c it. : para uma crítica igualmente virulenta, mas na perspectiva da extre ma-esquerda: Lind say
\V:i 1n s. «Thc Age o f lncomme nsurability (We gotta gel outta this place)», Boundary 2, Yo l. 28,
253 r. 1:iul M111111 , Ma.1·ocri1ici.1·111 , Nova Io rque , 1999.
11 " • • •' (1() 1 , pp . l'.l:l-172.
262 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal 263

intérpretes considerariam como um regresso dos Estados Unidos à relativa outros países do mundo. Contudo , todos estes agregados de problemas conti-
normalidade de uma civilização ainda imensamente rica, mas também asso- nuam associados-ao American way of life, na medida em que se mantêm com
lada por graves problemas, o autor considera que se trata de um mergulho do a cabeça fora de água graças a um elaborado sistema de camuflagem da de-
seu país no quase nada - para os seus leitores, a expressão de país do ter- pressão e de falsificação interna do balanço . Evitam ver o abismo que se abre
ceiro mundo tem um eco suficientemente suicidário para designar o que os diante dos pés de qualquer pesquisador de felicidade infeliz neste país. Desse
Estados Unidos não devem nunca vir a ser. Aos eleitos é proibida a medio- abismo sobe uma melodia bem conhecida que há que escutar com atenção pa-
cridade. Por conseguinte, o autor recomenda numa segunda etapa um progra- ra ouvir a letra. Uma vez compreendida, provoca calafrios no auditor: lf I ca-
.-- ma de mobilização para a guerra mundial geoeconómica que aí vem, de onde n 't make it there, !'li make it nowhere.

'
. o país deverá voltar a sair como número um - antes de, seguidamente, no
Contudo, não prestaríamos justiça à excepção americana se não levásse-
cume do seu êxito ) provocar um movimento de desarmamento 1 •
segundo as
suas próprias condições. . . t J· ·' /'•' . , mos em conta o papel dos Estados Unidos da América na política mundial
após 1918. No contexto contemporâneo, tornou-se evidente que a expressão
O livro profundamente s111tomát1co de Luttwak revela que os 1deologos
americanos não procuram interpretar o sonho do seu país: querem salvares- da política mundial não designa simplesmente uma dimensão daquilo a que
- se sonho, mas não _podem fazê-lo sem o transformarem nõs~_ contrário. se chamam as relações internacionais. Exprime a globalidade das missões as-
A constituição performativa do projecto americano, o sempiterno combate pe- sociadas à política da ordem e à gestão da grande estufa . É esse o motivo por
la alma do país que houve que travar sem tréguas, inverte-se assim para setor- que a política mundial mais não é do que a administração do palácio de cris-
nar uma perigosa programação auto-hipnótica visando objectivos neo-nacio- tal - incluindo as missões de polícia, os serviços de segurança e as medidas
nalistas e ultranarcísicos. Na Jangada da Medusa americana, nega-se pura e de evacuação dos resíduos. Se os Estados Unidos da América são tantas ve- "
simplesmente a existência do grupo da depressão (vide atrás , p. 91 sq.) . Em zes interpelados, do ponto de vista da sua função extrapolítica , como uma es- j
conformidade com o código puritano, nesse país não existem perdedores, pécie de polícia do mundo, tal deve-se simplesmente ao facto de que a mis- ·
quando muito pessoas que sucumbem à pena de si próprias. No seu inventá- são do hegenwn moderno lhes foi irrefutavelmente atribuída: aceitaram o '
rio do endangered American dream, Luttwak deixa apesar de tudo escapar al- papel que consiste em garantir as condições políticas e militares gerais para
gumas indicações sobre o crescimento explosivo da droga nos Estados Uni- o funcionamento do grande sistema de conforto. Poderíamos classificar
dos. Só na capital, calcula-se que sejam em número de vinte e cinco mil as de êgoísnfo autotranscendente as premissas morais deste compromisso: tal
pessoas que ganham a vida, num quadro amador ou profissional , com oco- egoísmo assenta na pressuposição , mais do que ocasionalmente confirmada,
mércio da droga . Mas os seus clientes não são de maneira nenhuma os filhos segundo a qual o que é bom para os Estados Unidos apresenta também van-
da geração de Woodstock ávidos de excursões edificantes aos arquétipos: são tagens para os outros parceiros, atlânticos e não atlânticos. A sólida constan-
legiões de frustrados que, ante a realidade americana , se entregaram à reden- te da americanofilia oeste-europeia após 1945 encontra aqui o seu motivo ob-
ção química. jectivo. Está no entanto comprovado que o actual sistema do mundo - o
A falsifica~_ç!Q_\?~anço psicopolítico do conjunto do sistema tem por_ob- qual, como se viu, não é de maneira nenhuma uma esfera desprovida de ex- ;
ject1vo primeiro tornar invisível o gigantesco número de perdedores que tive- terior - é .c omposto por um patchwork de economias de mercado mais ou
ram de ficar para trás na sala de jogo da pursuit of happiness. Os dados são menos livres com base em Estados-nação e que as fronteiras externas desse
' .\ taó evidentes que até os admirndores do modelo americano têm dificuldade tecido são marcadas, praticamente em todo o lado, pela presença de tropas
em ignorá-los . Nos Estados Unidos, os pobres sem nenhuma Q\'!f~Qectiya são provenientes dos Estados Unidos.
mais numerosos do que os habitantes do Iraque, há mais pessoas que s9frem Uma vez que se tomou conhecimento dessa situação, a tese liberal do pri-
de obesidade aguda do que em todos os outros países do -~u21do 254 , existem mado da economia aparece sob um novo aspecto: efectivamente, no espaço
ma~s grupos sem representação política e rriais não-eleitores do que em qual- interior do mundo capitalista, há que partir do primado dos factos económi -
quer outro Estado democrático , contam-se proporcionalmente dez vezes mais cos - mas esses factos têm sempre em si um carácter que se prende com a
detidos do que na Europa e entre sete e oito vezes mais do que na maioria dos política mundial , ou, mais precisamente, com a geopolítica, pois não se pode
gerir com êxito a grande estufa sem garantia militar dos recursos e ge tão do
1'evestimento exterior. Assim, no estilo militarista da política externa am ri -
l ~-1 (: di sso testemunho um debate nacional sem precedentes sobre a gordura e até uma profun- cana (e afortiori com a militarização crescente da política ela energ ia), hó qu ·
,1., l1n 11 11: nêu1i ca ela gordura ; cf. , nomeadamente , Jededi ah Purdy, «Jeder ein Kõni g . Amerikaner
.11111 d1<·k . /\ uch ihr Politik hal ein Probl cm - da gibl es Zusammenhiinge» , Die Zeit , 44 , 2004,
ver g lobalmente a componente, em matéria ele política da orde m, das strutu
ra.- de consumo ocidentqis . Deste ponto de vista , a ç isão da camunidu<.l · 111 11
I' 11
264 Peter Sloterdijk

tica provocada pelo bushismo tem elevado significado para a política da civi-
li zação: doravante , há que saber se os_É u.ropeus estão em condições de se
emanciparem do estatiitõ- dê -cõ manditários silenciosos da política de força
conduzida pelos Estados Unidos sem percorrerem eles próprios o caminho
1
que leva à remilitarização das relações com os fornecedores de energia e de
matérias-primas . ( ;/ /,
I

I
40 O Incompressível Ou a Redescoberta do Extenso

Mais uma vez: no sistema mundial chegado ao termo da sua cristalização,


tudo está colocado sob o cond· · nalismo do movi ento. Para onde quer que ,, f t 't. ..
se olhe, na grande estrutura do conforto, vemos todos e cada um chamados à
mobiliza ão ermanente. Mas nada do que se transforma e se move tem já a
qualidade de «história». Os únicos acrescentos ao complexo de acontecimen-
tos e de narrativas que leva o nome de história do mundo poderiam consistir
num protocolo sobre o clima mundial, num correspondente código mundial
da energia e na criação de uma polícia mundial do ambiente - desideratos
cuja implementação não se perfila hoje , visto que os Estados Unidos e outros
países de consumo intensivo se sentem até nova ordem demasiado fortes pa-
ra renunciarem aos seus privilégios de consumo desmesurado do ambiente.
No que se refere à ~eriência humana d9 ~spaço, o principal_resultado da vtf ,, ..,
globalização terrestre consistiu, para os habitantes das nações europeias, no
maravilhoso crescimento do mundo , aco!J1panhado pelo terror que inspirava
a sublime inabitabilidade dos oceanos. Já atrás aludimos ao ambivalente hu-
mor antimarítimo que funda a economia afectiva da maioria dos europeus da
época moderna - atitude que culmina com a ex~antiana de ver_~
coisas serern_çr.ü~n.taJia.s_emiunção_do apatelho cognit.iyQ..c;iQ_~er humano, so-
bretudo o dos fi~sofos co_i:!!_ cáteçlra _Y.it.alícia. Temos um eco disso no .!!_gio- ~Ll,.,
nalismo de Heidegger, que considerava a vida nclli.,çicl_acjes portuárias., e a for-- I '
tiori_ÍÍÕs navios , comQJ!.111ª ab-erra ãQ. A abertura mental emcfírecçâo ao mãr
foi · durante muito tempo assunto de minorias , e só se instalava verdadeira-
mente nas subculturas mercantis das cidades costeiras; no interior dos países,
só habitava quando muito os sonhadores atit~idos pelas saudades do longe e
os leitores de memórias de descobridorei Aas, actualmente, a oposição entre v''
os «lavradores das ondas» e os lavradores de terra perdeu quase totalmente o
significado. Tenhamos uma sensibilidade sobretudo marítima ou sobretudo
terrânea , os media râpidos deram ao horizonte novos formatos. -
Podemos fazer aparecer a cesura entre modernidade e pós-modernidade es-
tudando os sentimentos do espaço das pessoas no interior da instalação con -
fortável.-A omajprese;ça viscosa das infor~ ações fez com que inúmeras p s~
rãas senti ssem, perante o que era antigamente o vasto mundo a imprcss, o d '
siar p rante uma olit1ha suja . Quem não viveu di ante da tel cvi sfio 11 1 n ·o
f..J, , ' ---~~~
Peter Sloterdijk Palácio de Cristal
266
1
t

nhece nada das doçuras do mundo desembaraçado d~s suas frontejras. 9 ver- \f'-'l \ l ,./r ' Nestas circunstâncias, o espaço tomou-se , aparentemente, uma quantid ad
dade iro sentimenUl da época moderna, que ainda conheceu alguns floresci- r Jr,._,( çiesprezável. Era vencid9_~ -- ~ _iCâ"~_ngua'Tito distâne::ia ~ _b~~i~a7"proscrito na
I
m~ntos até aos anos 30 do século xx, pressupunha media lentos. Só os navios !. ', I Ll~ \ teoria enquanto dimensão dos senhores, reduzido a um pano de fundo inerte
do alto mar, os globos terrestres e a literatura de viagens podiam dar a esta coi:n"õ veículo do trânsito _e das comunicações e: do ponto de vis!a da ideologia ,
1 ' •
mi stura de respeito e de curiosidade uma forma que , para os povos marítimos tinh,!l má reputação enquanto sede da r~jficação . Na perspectiva dos que anun-
e, em terra , para os que liam, reflectia as novas dimensões da Terra que tinham ( ,,"-- ciavam a p,:ocura de rapidez, sq__ havia um espaço b_om, o espaço morto; a sua
sido descobertas por exploração. Para isso contribuiu o facto de a J~_!!tidão dos , se
primeira virtude residia no facto de tomar iITIJ2.algá.vél. Em nome dos proces-
transportes de lo11go curso durante a era náytica preservar ~ d!gni?ade das dis- , sos rápidos, devia retirar-se de tudo aquilo que constituía tradicionalmente as
~ '\
. ·,,v.,IMI]
tâncias-. Os longos trajectos mantinham elevado o preço dos acessos ao es- suas definições ontológicas: criar vizinhanças discretas , dispersar partículas , se-
"trangeiro; participaram no véu exótico que continuou estendido sobre o nmn- i /,l·~ ._ parar corpos , posicionar agentes , propor fronteiras na extensão, complicar as
concentrações, captar explosões, reunir multidões numa unidade._D_a~ qualida-
do descoberto . Até ao advento do turismo de massas , após a Segunda Guerra
Mundial , os conhecimentos do mupgg_ad_guiridos..em primeira mão eram cus-
·-- ... L , d½,s clássicas do espaço só. conservou a sua permissividade, qu , mais exacta-
e
tosos ,_raros sea_utÕrei.°Re~orde-se que_ Otelo conquistou o amor
mona ao contar quanto sofna nas suas viagens ao mundo selvagem .
Desdé- g~s ,1
1 / mente, o feixe de aspectos constituído pela condutividade, a conectividade e a
medialidade, sem o qual os esforços da modernidade para ultrapassar o espaço
Com as técnicas da ·apidez.do século XX , tudo isso foi r~legado para o es- 1 por m~Ío da compressão não produziriam efeitos significativos . Em lugar does-
tado de uma re~ ação entre muitas . No espaço de duas gerações, a~ es te- /T JL 1, • ;.,... paço dêdistância, de separação e de localização a que se chamava natureza, apa-
lefóníéás, ~s sistemas de rádio e as propulsões a reacção no domínio aeronáu- .· 1 '1'1 /,.tr rece o espaço de recpJha., de conexão, e de c_ondensação que nos cerca e furmã
t icÓfizeram da superaçãÓ das distâncias uma coi~a tão indubitável e evidente, "' , . jt A I. 'õõsso
o ambiente técnico. Nesse espaço, o afastado pode ser citado fis.icamente
que o esp~ço passou a ser apercebido como uma _g..;!~deza q~ase ?e_sprezável. ·, / , . . J mi em efígie no aqui e agora a partir de q'úalquer distância. Os monitores mos-
Como não havia resistências notáveis a opor a essas travessias rap1da~, o es- 1 · 1 / ,, (
tram o que se passa com a espacialidade actual: ch.illlilllllQS, mJE_iPlllªIDQ.S, com-
paço parecia constituir o domínio fundamental do estar-no-mundo, que espon- .'. <(.{j'M /l"• .
binamos, g~y_amos, su rinyJTIOS. Graças às redes globais, inúmeros pontos na
tan"eamerite ia ao encontro do empequenecime_ntQ, da c_om r~s~ o., da anula- / i'.>f!'/.
r suproiçie do globo transformam-se em salas de leitura, supondo que o ler seja
ção..,Se , na segunda passagem mais conhecida do Manifesto Comunista, Marx ~ ~ 1 I ~· também a Lese que Heidegger queria fazer advir nele: o colher os signos do ser
e Engels tinham afirmado, em I 848 , a propósito das prestações «revolucioná- \ , I>." •~ 11 / num receptáculo de verdade no aqui e agora. Como se sabe , Heidegger defen-
- rias» dà época dos burgueses: «Tudo o que é sólido e permanente se desfaz em dia a ideia bizarra segundo a qual, no mundo, só existiam duãs~sãlas de leitura
fumo» a sensibilidade do século xx acrescenta: tudo o gue é extenso e reivin- autênticas nas quais era possível o grande estudo do Ser: uma nos pré-socráticos
dica o 'es_paç9...é_ co.mprimido qt~ se ~9mar U[!1,_ ~Íoco ~ rte mínimo. A utiÍizã.. (ou em Aristóteles), a outra, em Friburgo-Todtnauberg. Contentar-nos-emos
J ,,
~ tel~fone interco_!!!!.M.Vt<!,1 é a manifestação mais flagrante disto. Se que- , 1
com observar que nã9~ ~te Q_ont9 que ,Heidegger praticame..nJ~_não teve
remos ter uma confirmação do mito do desaparecimento do espaço, basta _sucessores . A sua ~oncepção da linguagem_como recolectora decisiva não tem
pegar no auscultadÕrcto e êfo11é ou-clicar duas Ôu três vezes no ratQ_:- , , / "' ,. e qualquer confirmação nas evidências do mundo multimédia actuai.
A «revolução do espaço» do tempo presente, aquela de que queria dar con- A moderna comp1:essão do espaço (aÍiás, «revolução»-do-espaço), prolonga
ta Carl Schmitt nas suas considerações sobre o papel histórico declinante da .,!;!11}ª ruptÜrãc'i.iitÜral que se operara na Antiguidade grega por meio do acres-
terra e do mar256 , tinha na verdade por tema a com ressão do espaço. O que cento de vogais às sucessões de consoantes do Próximo Oriente. Como mos-
realmente trouxe foi a neutralização das distâns ias . Aboliu o efeito s'eparador traram McLuhan , Goody, Havelock e outros, só o surgimento da escrita grega
dos espaços intermédios; encurtou os ç;;;;i~h;s entre o aqui e o ali , para os re- l permitiu o desenvolvimento da subjectividade humanista dos leitores da velha
duzir a um resto incompressível. O espaço residual podia ser incómodo, mas Eur9pa, cuja característica forte decorria da capacidade de ter uma «relação
já não podia reclamar atenção e estima. Se os modernos não dispõem também com os textos», isto é, uma compreensão do sentido independente da situa-
do dom da bilocação que foi atribuído a alguns santos medievais, o da trans- ção257_. A poesia e a prosa gregas explicitam uma capacidade do intelecto hu -
locação cabe-lhes naturalmente - e embora não possam estar em dois luga- ....mano que, de ordinário , é sobretudo latente, e que consiste em representar nu
res ao mesmo tempo , podem encontrar-se em muitos sucessivamente. ) ~ua ausência pessoas , co.i,sas e conjuntos. Graças ao texto escrito, a int. li 11 ·iu
liberta-se do con~trangimento _çla permanência in situem circunstân · ias n111 is 0t1

,, , <·r l 'l' lcr Slnrerdijk , Tau von den Bermudas , op . cit. , pp . 27-40.
.. , ,, ( ·, ,, J S,·ll 11 1i11 , ! .t11ul und Meer. Eine weltgeschichrliche Betrach11.1ng ( 1942). Estugard a, 1993,
257 C f. também , recentemente, Derriek ele Kerckhove e Claude ele Vos, i..R M1111d1• 1/1• / '1\/11/1 11
hei. manuscrito , 2004.
I' 111 ·,
268 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal 269

menos compreen~íveis. Tal tem como consequência que, para dominar cogniti- O êxito deste que foi o maior movimepto d~Jibertação eui:op~u vê-se pelo
vamente uma situação,já não preciso de mergulhar nela como participante e de facto de, desde a Antiguidade, ter havido restaurações anti-intelectuais que se f, l. ,
me fundir nela; de.,certa maneira, basta-me ler a sua descrição - no caso, sou ,,~ 1 ... ergueram contra a liberdade pretensamente ·falsa· do voo em suspensão num f
livre de ficar onde estou 'e de fazér as associações de ideias que quiser. Após a 1 espaço de representação desembaraçado de todo e qualquer nexo real. A po- ' ~, ,
cesura provocada pela escrita, o estar-no-mundo cinde-se explicitamente em si- 5, 1, , -v,_.J lémica de Jesus contra os fariseus enquadra-se nessa reacção do vivido con- -1., / ,i
tuações vividas e situações imâginadas - pãi-"a m; ~dizer, as sihiações re- .,,/ tra o que é lido, ao mesmo título que o riso da serva trácia ao ver o filósofo { ..,"'.••
presentadas, pelo facto de assumüem uma forma escrita, conseguem quebrar o ,t·' 1 Tales cair a um poço , de tão distraído. Desde a..§!oa, as teorias antigas da sa- · ,\L,,or
monopólio da compreensão-pelo-estar-em-situação. Com a escrita grega come- bedoria são motivadas prioritariamente pelo desejo de reint~gração no vivido, .,' f. r~
ça a aventura da descontextualização do sentido. Compreende-se o sentido des- l mesmo quando, com uma exaltação tipicamente filosófica, se advoga a uni-
ta expressão Se p'e°nsarmos que, até à viragem mediática do século XIX, toda a dade entre o mundo da vida e o Universo. Diógenes é o herói cómico de um
cultura altamente avançada na Europa , com excepção das evoluções específi- regresso ao encarnável que não tem nada de cómico.
cas da música e do quadro de pintura, era uma cultµr~_d.Q _e_scrito e, por conse- Poderíamos qualificar estas tendências de primeira reapropriação do prin-
guinte, simulação do ausente, e que a cultura da música e da imagem andavam cípio do in situ - exprimem o protesto do sentido da participação contra o
também elas associadas a sistemas de notações escritas. A este fenómeno cor- l· recuo (pretensa ou realmente) deriÍasiado radical da inteligência que lê e ob-
respondia uma política nascida do espírito _d él bµrQ.çracia e dq ~opeia imP.erial. {, , 11-71,,- s e; va situações partilhadas. Diógenes, Jesus e a serva trácia são pois reaccio-
nários no sentido preciso do termo, pelo menos na perspectiva dos que prefe-
A escriturai idade da velha Europ,a faz parte da pré-hjstória dª· coi:npreensão \::
·-,~ttt y~
'
l rem a leitura à vida. Todos os três , tal como os estóicos e os epicuristas,
!}10derna do espaço, pois permi~iu a ins_un-~içãg do texto contra.o contexto, o estariam de acordo com esta rotulagem - quando muito, teriam comentado
desligamento do sentido ·elfili_yamente. às situações ~vidas . Na medida em
/-,,•/1 Jl,,i a sua posição recordando qu~ da, sem deixar de ser um impulso específi-
,,/l,.J
que exercita o pensamento descontextualizante (habitualmente designado pe- I ( co primário, dev.s:..d_e uando ell) guando ser reacção: uma pura o osição n;-
lo termo de leitura), emancipa o intelecto do constrangimento de participar lativamente aos condicionalism9s defqr_mant~§. ~Am.a pu_ra.cesistênciaàs com-
em s._onstelações de fªctos reais e abre-lhe a extensão sem fronteiras dos mun- pressões inadequadas. Na língua das servas: não vamos agora aceitar tudo;
dos que não estão em situação. Produz o homem• __,., .
teórico - exemplarmente í\l ·, '"',/' em rimas pobres: quem vive a ser levado, vive desorientado .
atácado por Nietzsche, através do personagem de Sócrates . O seu represen- 1r cl ,}4-. Posteriormente, os -i~pulsos «reaccionários» deste género atravessam as
j
0

tante é o 06servador forte, esse j,!Ínior do absoluto que em todas as sitµações 11 " idades sob diversas formas;-voltam a aparecer com os primeiros socialistas, (V,, e '
está alhures por princípiô. Até na agonia, o sage comporta-se como se já ti- com os s~nistas, os comun~aristas e os terapeutas de grupo. Ressoam na
ves.se lido a cena alhures; melhor, Sócrates retende encontrar-se já \.Y.!:!1 vida , crítica dos vitalistas contra os que ficam a rondar por fora a teorizar. Poderiam
no sítio aonde a morte o vai conduzlT,.n0Uii·o teatrô,110- ioca(dâs" fÜrmas eter- terâ tingido o seu patamar mais articulado no elogio que Marshall McLhuan
nas, a pátria das letras imortais. Se Sócrates pôde tornar-se o herói por exce- faz da cultura áudio, da qual se dizia que restituía à percepção inteira, não li-
lência da sabedoria europeia, foi porque levou a sua vida na recusa constante neár,Õs- seus direitos mjnado~ pela cultura europeia do escrito. A este elogio
da autoridade do presente , rejeitando sobretudo a exigência de mergulhar cre: responde ·; tese de Maurice Blanchot, inspirada pelo romantismo do livro e se-
dulamente nas situações manipuladas pelos retóricos , pelos políticos e pelos gundo a qual a literatura encú rã 'em' si o p9tfncial d,e l!.m~ <_<e_?(Qeriência total».
tagarelas. É a principal testemunha da inteligência que «desembarca» dos Esta posição é ilustrativa pelo seu absurdo: na medida em que celebra a leitu-
meios envolventes preexistentes e dotados de uma vontade de absorver, para ra como uma potência de absorção total, quer fazer esquecer que é da nature-
se recontextualizar em situações ideais. Esta dupla operação - ruptura da in- za da leitura dissolver o totalitarismo das situações vividas 259.
~!,".'U • a.e~---..
teligência relativamente às situações actuais acompanhada por·!,l.!Il.~rein~tala-
ção em situações id.eais - tem desde Platão o nome de filosofia. Onde dei- Opera-se um movimento comparável d\'! co1:ç_ecç[ o_nq_J>e~sa!11e_nto con-i ~;i,, r_/"
xou rastos, houve que escolher entre dois tipos de relações com a vida, um temporâneo3 lativamente ao espaço ignorado. O grande regresso ao contex-/ •
fundado na leitura o outro na participação25 · • .. · - ' to aparec~ presentemente nas múltipl ª ~ ref! ex.,9~_s .~obre a «iinersro;;- enquan- ' 1 •
\-,t ., r· .. to ~oiidariedade passiva . Desde que as distâncias parece que só existem para '
serem vencidas; desde que as culturas nacionais já só existem para se mi stu-
' 'i X ( T " carta ele 12 ele Janeiro ele 1907 diri gida por Edmund Husserl a Hugo von Hofmanns-
rarem com outras tradições; desde que todas as superfícies terrestres mai não
11 ,.d ' " "" in vocação ela aliança entre a arte e a fenomenologia , com base na paixão comum pela
, , ... ,., .. p111 , 1111 · 111 ,: est ·tiea» e na atitude ele espírito «puramente filosófica» (a palavra «puramcn-
,. ,, 111 • •q,. 11 ,·cT Ir ·,. · ve,.es cm três pág in as) e a recusa co mum do cativeiro 11n simples vida . 259 M11uri ·e Blanchot , Le Livre à venir , Paris, 1959 .
Peter Sloterdijk Palácio de Cristal 271

são já do que os correspondentes imóveis dos seus resumos elegantes sob for- provinciais. É sintomática, pois exp!Jm_e o _common sense desamparado que
ma ele mapas e de fotografias aéreas; desde que o espaçp pura e simplesmen- erfc~<?_!ltr'_§l_l_!lOS sempre que se exprime a constituição espacial da existência na
te não é mais cio que o vazio enjre dois postos de trabalho electrónicos - po- G!obal Age. É i~ 1ma, porque press1:1põe uma siITietr)a onde não a pode ha-

)l, ele prever-se a direcção que assumirá a esistência _a_esta~ ®-'5-=í.ealizações: a v_~r e ab~ p.aredes onde as não há: As expressões híbridas propiciadas ao po-
cultura da pres~nçaê1êve, maTs cedo ou mais tarde, fazer valer os seus direi- vo mundial pelo sociólogo da mundialização Roland Robertson, glocal, glo-
0
J, f" ' tos com -;;ais força face à cultura da representação e da recordação . A. expe- ,'.,.I. ('-• r '
jl ;. / riência do extepso defender-se-á contra os efeitos das compressões , dos en-
. [A,:
calize, glocalization são do meSfTlO estilo 262 , também elas reflectindo as
ilu~ incrustadas nos discursos correntes sobre a globalização.
.L•l,' cuitâmentos e dos sobrevoas. Tal como o sentido descontextualizado ficou I ', ' . J.J- - Resumindo , o erro cõnsiste em ligar o locai é o global como o ponto e o 1 ') ,,.
, ' desde sempre dependente «em última instância» da integração numa situação
que não· podemos franquear de um-salto se não quisermos dissolver-nos in-
,., c,ampo. Quando 'tàl se produz , apr~ nde-s{; inêv1tavelmente o local como se vt ., /, ~
fosse da mesma natureza que o global e como se os habitantes do lugar rec~- -;:-;
'y:·•
teiramente nas abstracções, também o espaço comprimido deve ser associado sasse~ geralmente compreendê-lo. O l9cal é pensado como uma mancha num f 4 )r,·
às experiências de extensão espÕntârie'as para não desaparecer totalmente nos qu_adnculado regular do espaço . Imaginemos um burgo introvertido situado no
processos secunâários. Esta ideia é hoje expressa por aqueles que opõem are- norte dos Alpes onde a filial de uma firma multinacional quisesse instalar-se:
cordação do local à tendência descontextualizante dos universalismos e das se os gestores explicarem aos indígenas ao que vêm e se as gentes do local ad-
telemáquinas . mitirem que deixar os estrangeiros vir até eles não os prejudica, então, passa-

.. O novo pensamento do espaço é a insurreição contra o tJHJndo encolhido. ,


A redescoberta da lentii![R vai a par cô';n 'ada ~x~ n; ãQ)ocal. Que acontece-
ria ~ i~áSS!m)OS ~u~ita~~~ ge redt)Zir ~ nps~i! pi:_.ó ria exi~J~pci~ ~ c~n-
do algum tempo , deverá consumar-se a união pragmática entre Nós e Eles; o
grande sentir-se-á rapidamente em casa no pequeno, tal como, inversamente,
o pequeno se sente_ em casa no grande. fressupõe-se sempre o que não foi pro- ~~ Ílx "
tésimo milésimo ou a milioné_simo? Se re.~p~end_f~~!.flOS §Ubitamei:ite nos vado: que as relaçoes entre os estrª-nge1ros e a~ g~n!~~ do lugar se desenrolam 1 . , ,,
mapas a vida extensa260? Se abandonássemos a cronolatria em proveito da n'!_m ~ pª ç_o..homogéneo, no qual as posições são, em pr'incípio, reversíveis. t ç,~ ,,.•,,,,,
,, / . Na verdade, o significado da palavra «local » reside no facto de se voltar a /1
sens ação topófila? Se, numa palavra:-tivessê voltado o) empo de expulsar os ~
mercadores impudentes do templo do presente? - - · "" > subl ~nh_ar o assimétrico,, ':º11'!. todas as su;'s impÍicações . É um acontecimento '
Mas por mais plausíve is qúe possam parecer esses movimentos de correc- / intelectual com um certo alcance, pois, com essa tónica no lugar, anuncia uma
ção: poderíamQs nós estar s,egu.ros ~e ouvir,_ap_ps a pru::tic:la dos mercadores, as
puras vozes do lugar? Voltar a insistir no local n_ão vai _sem PW &9S, pois o ter- 1 . fala para o não comprimi do e o não encolhidq. O sublinhar-se o local faz va-
ler õ ê!Ireito _Específico _g_o extepso-em-si, a des ei!o d.9s progressos da des-
mo «local» é um dqs que suscitou mais contra-sensos nos jogg_t_de Jinguagem
desses jomal,istas _E soci<í_logos. que escQ_lb.e;-am a globªlização como domínio 1 .. • I
contê-~ Jliz~çãQ, da comQressão, da caf!~grafia e da neutralização ç!o e~pa~o. ,
Podena dizer-se que, com o localismo, o existencialismo é reformulado em
de especialização. Até o pensamento «r~llcci.2,njrip» do espaço c_arece de. ser termos _de análise do espaço. Pa; sa a poder dizer de ~an~fra ~ufi; ientemente
aprendido. Normalmente, utiliza-se a palavra «local» como antónimo de «glo- expJí9_!a _o ..9~~_2ignifica, o Estarl nq1,1anto _energia que se espacializa. Apren-
bal » ou «universal» - e o par global/local faz tan:ibém.r;eJerê,ncip ~Q,_mesmo de a articular circunstanciadamente que o ser definido pela imersão (o Estar)
espaço homogéneo e linear. A- equipÔtência dos pontos e a sua capacidade de constitui desde sempre e de facto uma dimensão que não poçe ser su_§pensa e
estarem ligados en re si p_or linha direc;ta define os espaços rogéneos. 1,, t ·' /:)k,( ) ~ razão por que assim é. Nasce daí uma lógica _geral da participação, da si-
' ' . / • ,. ..\ : f ,.q .t-, ' ( [ " c;_-.,.,- tuabilidade e da re.si,.d~n"ia - reportamo-nos mais u ma vez ao facto de a ar-
Graças a esta concepção do espaço surge a seguinte tese: «O universal é o te contemporânea, ao virar-se para a instal]_ção ter adquirido nesse plano um
lo.cal sem paredes .»261 Uma afirmação que soa bem, mas que é tudo o que há grande avanço sobre a análise filosófica 263 . Patenteia-se assim que,..não há Es-
de mais falso. É simpática porque define o mundo como uma soma de pro- tar sem participação no ser-extenso, no ser-ligado, no ser-possuído não abre-
víncias - não existe pois universalidade, mas uma soma de relações inter- viã clos - salvo se a capacidade de imersão for minada por uma psicose ou
'abaladá pela fuga permanente - , mas não é a psicose uma construção selva-

26 °C L Karl Schlêige l, Im Raum lesen wir Zeir. Über Zivilisationsgeschichte und Geopolirik ,
M1111iquc e Vi e na. 2003, um livro que se pode ler como a obra-chave de uma nova cultura da ' 262 Cf. Roland Robertson, Globalization, Social Theory and Global Culture , op . cit. , p . 193. c-
~n,~ra ri a o u de u111a to pografia existencia l histórica. g undo Robertson , estas expressões são decalcadas da palavra japonesa «dochakuka» qu e rcs l i-
,,1 t\ l1 g11 cl ·rc,rga. A Criaç< tõêlÕN!undo, c itado segundo T. N. Harper, «Empire, Diaspora and lui a prox i111ada111ente a ide ia segundo a qu al os produtos japoneses destinados ao mc r ·ndo mun-
11,, 1 ·"' l' " "l' ·s ur ilo hali s111 , 1850- 1914», in Globalizarion anel World History, A . G. Ho pkin s dial de verão adaptar-se às situações do local onde são consumidos .
263 f. Sp/1tire11 Ili. Schti11111e, o p . c it .. pp . 523 sq .
,,. \ 11 """'l''· .'()() . p . 1,11 .
J Peter Sloterdijk Palácio de Cristal
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273

gcm, e a fuga, de um certo ponto de vista, não constrói também ela espaço? Quem mora-em nãq t~m para com a sua moraqa e o seu meio ambiente e a
0 111 0 mostraram os pensadores relevantes do espaço do século. xx, a relação ~ a s_ê;,,Efe~ poraneidade a atitude de um cartógraf9 ou de U1!1 topógrafo. O to-
cio habitar com o mundo· ; nd.à associada com uma actividade criadora de in- 1 • pógrafo que regressa a casa deixa de medir e reduzir, projecta-se a si próprio
Lcrior, uma prátic~ d,e};-âfâstante (enJjerj;ç_nd como enter:dia Heidegger) e • , .... , 1\ (
na sua morada à escala [l: 1] . M_o_rar-ei:.n é um estar-empenh_é}dO p~ss ivo em fa- 1
uma actividade de cyltura _pa_c.ificante (como entendia Schmitz) 264 . No lugar i. v~r da sua ~rópria situ~ção, uma_mane~i:a de.sofrer e ,de~co-pt?duzi,.r a s.ua pró-
onde habi~amos, as coisas, os simbiontes e os seres humanos estão agrup_ados ;.,.n) • pna extensao vaga e mcomparavel; e uma tomada de partido e um saber-
')''
1
em sistemas locais so.lidários . O habitar esquissa uma prática da fidelidade lo- -integrado num pleroma regional, o que não pode ser reduzido ·à escala, nem
ca a longo prazo - especialmente sensível, aliás, n~ óínadas tantas. vezes ser ampliado para lá de uma certa medida .
\ citados e que , erradamente, são considerados testemunhas da infidelidade ju- CÕmpreende-se imediatamente que a extensividade das situações integran-
1 bilosa, nómadas que, na maioria d~~<2_s, freq_uenta1:1 ritm~caí'}e1!te os rp~s- tes é cfinplice natural do duradouro. É dela que decorrem os processos de cul-
mos lugares ao longq degràiiâesiap~os ~ tempo . O habitar cria um sistema tura que não se podem operar sem repetição nem sem permanência junto a } •· '
imunitário de gestos repetívei s: associa o ser-desonerado por habitualizações u~ -êoisa. Podemos naturalmente mudar de casa e reinstalar-nos noutro sítio,
bem-sucedidas ao ser-onerado por tarefas claras . podemos divorciar-nos e voltar a casar, podemos emigrar e pedir a naturali-
Por isso, a morada é mãe da _<!._sS.imetria . É possível que os sociofilósofos te- zação noutro lugar - como se sabe, os modernos fazem tudo isso de manei-
nham visto ; rectamente quando ensinam que as pessoas são «socializadas», ra mais frequente e mais· ofensiva do que os antigos . Mas , também nas novas
na medida em que aprendem a assumir o papel do outro - mas isso não sig- situações ressurgem as relações de base; assentamos o pé n~~ local d~termi-
nifica que se aprenda a morada do outro . Não podemos roubar, nem ·alugar o nado '"ei,rolongamo-nos por meio das ressonâncias locais. A intuição de Hõl- L f
lugar no lugar de outro. Morar vem a ser precisamente o que não pos.so f<Jzer ~ in oi a que, sem dúvida, exprimiu com a maior clareza o princípio--in-si- (, .
senão junto de mim e dos meus, e-o Õ~tro ap~nas junto dele e dos seus. As po- tu: «Com pleno mérito, mas poeticamente, habita o homem esta Teri·a ... »; o '
sições ni o são ontologicamente intermutáveis , tal como o não são a mão di- fenomenólogo Merleau-Ponty jnterpreta a radicação da existência na sua pró- '
reita e a mão esquerda no corpo bilateralizado . Quando muito, podemos de- pria luminosidad" portadora de mundo por esta frase: «O corpo não está no
,. cidir o synoikismós, a comunidade de habitação, Óu e·ntão
o koinós bios , a espaço, habita-o» 26 5; para isso, Heidegge:i;, na sua analítica do estar-no-
coexistência num recintÕ c-omum - a qual daria origem a um novo foco de -mi.i'ndo , forneceu a mais geral de 'tod\!s as fgrmulaçõ_es possíveis: «O Estar
processos de culturas partilhadas de cuja apundância e de ct1ja gue.reJ~ serão Wl!I.fin)_tempõres~ri.cia i:í'm_a tendência para a proximidade.»266 Estas teses
excluídos outros Outros . Neste caso, comunidades de habitação de nível su- convergem numa per_spectiva que se enquadra na teoria do espaço: exprime!11
perior poderiam agrupar-nos de novo com os outros Outros - mas tais sínte- o fªc.to de que o Estar (Dasein), enquanto posição de um voluIPe simbólico e
ses, para lá de certa dimensão, já não seriam senão figuras jurídicas e endere- 11
1
/J físico, significa o de-morar no incompressível. Poderíamos inclusive dizer
ços retóricos. t __ " ·1• V ' que o Estar e o prolongar-se convergem. O habitar implica o princípio da .1:-
J «e9~ ~-;.ir.c.unstãnciia», o que sigv.ifica _quç: iV;é qyêm 1puda de casa ü:e- j'
~
1
1 j 1
) fun~:; ~~:;;eddaa~:pea~:::ª~ed~rz:.e~ó:e~s~;r~~:;~ed~h;:;1;~i;/p~:~t;~~ 1 [ : quen_!,e_DJ.~nte nã9 po.de abster-se de formar, em caminho , um habitus do habi-
pluraí não é a designação de um objecto de grupo, mas a evocaçãQ_pe1forma- ,
tiva de um colectivo que se constitui por meio da auto-excitação e. da auto-
1· ....uir.. Os psicólogos observaram nos grandes viajantes mÔdelos de comporta-
mento que interpretam como um cocoon.ing móvel; encontramos modelos
-espacialização . Tal não exclui a solidariedade translocal fundada na empatia disso nos nómadas que mencionámos, pois estes, para empregar uma bela ex-
do estrangeiro ausente - as igrejas cristãs, quando não andam entretidas a pressão, moram na viagem, ou, para empregar outra menos bonita,
negar a santidade umas às outras, e as sanghas budistas , para só falar destas te.rrit,oriali~am-se na P!ÓJ[ia qest~ni tori,.alização 267 . É a outra maneira de ex-
duas entidades , provam muito bem que o amor, enquanto atenção à distância primir o facto de que as culturas n9madas , seja qual for a flexibilidade que se
e coerência na diáspora, está em condições de criar uma res extensa desse ti- lhes atribui , constituem os sistem · s mais conservadores, mais domésticos,
po. É verdade que, lado a lado com isto , existe a solidariedade projectiva com mais fechados que]'á apareceram no espectro das evoluções sociais.
a quãr a telessentimentalidade, variante contemporânea da histeria, enverga - ~ t.: " " \ r
um disfarce de Nós. Acontece sobretudo entre os habitantes do palácio de
cri stal a quem se mostram imagens de catástrofes· ocorridas no exterior. )' ,
'/
' . /
265 Mauri ce Merl eau-Ponty , Phtinonwlogie der Wahrn emung, op. cit., 169 sq.
.'<,-I <T M:irtin He idegger. Sei111111d Zeit , op. cit. , p . 105 sq .; Hermann Schmitz, Syste,11 der Phi- 266 Martin He idegger, Sein 11nd Zeit , op. cit. , p. 105 .
/,."'I''"' ·· !),.,- l<m1111 P:irl<.: Quarta. §2 18. Bona. 1995 , pp . 258-308 . 267 r. illcs Dclcuzc e Féli x Guattari, Tause11d Plarea11s, op. cit. , p. 525.
Pal ácio de Cristal

parceiros situados no seio da União Europeia e, muito especialmente, com os


que se encontram para lá das paliçadas mais próximas , França e Países Baixos .
Embora o comércio de matérias-primas a longa distância seja uma realidade
maciça, como mostram as frotas gigantescas de petroleiros e cargueiros, sem
falar sequer da dinâmica especulativa dos mercados financeiros, na sua maio-
ria , as compras e vendas de mercadorias reais consistem na mudança de pro-
prietários numa feira dominical alargada e em numerosos sectores o discurso
sobre a concorrência também não passa de um boato. A procura interna conti-
41 Elogio da Assimetria nua a ser por todo o lado a alma da economia real; a indústria automóvel ame-
ricana, para considerar um exemplo comum, já há muito que renunciou a ten-
tar sequer colocar os seus produtos no exterior do país. Na sua maioria, os
É pois hiperbolicamente verdade que tudo o que era sólido e permanente franceses , tanto os soberanistas como os atlantistas , utilizem eles o teimo mon-
se desfaz em fumo , mas, objectivamente, é falso. A grande mobilização pelo dialisation ou o de globalization, continuam a gozar férias no Sul do país. ' 1,
capital deixa forçosamente no local o que se opõe à liquidação. Não pode mu-
dar as culturas locais de sítio por transferência bancária internacional ; pode
Tais i,ndicações sobre os factos económicos só indirectamente afloram o sen-
tido do localismo , pois as dimensões decisivas do devir local não são de manei-
' (, .
alterar os processos geradores , mas não substituí-los. É igu~lmente fal s_q di- ·l ra nenhuma afectadas por oposições como a estabelecida entre mercado local e
ze,r que tudo o que é extenso desaparece por compressão. As teses de Marx e mercado mundial, ou entre aldeia e grande cidade. As extensibilidades vividas
de Hegel, bem como as dos sofistas actuais da supressão do espaço, provam não são produtos que se possam vender, nem na vizmfíãnçanem no ultramar.
antes que a c_2nde_nsação capitalista. do.mundo se reflecte numa quantidady de Também a oposição entre a cidade e o campo só desempenha um papel muito
exageros exaltados dos quais não se pode esperar que , a prazo, con.servem o indirecto na interpretação existencial-topológica do estar-no-local. Por exemplo,
seu carácter estética é moralmente aceitável. A «globalização» é , além de tu- a reprodução - para apresentar ao leitor o caso de assimetria mais maciço - é
do o que possa ser no fundo , ~m topos que atra.1 enxàmes de fogo~-fátuos po- um processo a que não se poderá recusar o qualificativo de local. Respeita leis
pulistas - serve d~ ~eceptáculÕ para afirmações sem ç.:onsistência sobre o an- espacj ais .singulares, a começar pelo fenómeno do inchaço das mães, do qual
damento do mundo . Pàra ã1ém do seu funcionamento real e complexo, produz não se pode dar conta nem nas expressões dos adversários da globlização , nem
uma superstrutura de fantasmas simplificadores para uso doméstico e políti- nas dos neoliberais . O habitat involuntário e invasivo no primeiro nicho não ex-
co - na sua maioria são versões sociológicas de sonhos de voo, imagens fó- prime uma relação paritária entre o visitante e a anfitriã; visto do ponto de vista
bicas e picantes sobre a perda do local de trabalho , do peso do corpo e da ~ Q,/4_~ operação mais unilateral a que se terá entregue em toda a sua exis-
l
identidade local. Invocam a desvalorização das competências locais, anun- tência, mesmo que venha a ser ditador. Mas o facto de, apesar de tudo, poder ser 1

ciam a invasão e o excesso de estrangeiros , mas falam sobretudo da obriga- bem-vindo prova a intensidade de~s31_assim~tria que é a vida.
ção de entrar em concorrência com invisíveis que não conhecem nenhuma Após a reprodução biológica, o crescimento e a educação das crianças , a
inibição que os impeça de fazer a maior parte das coisas melhor e mais bara- transmissão cultural e a replicação dessa oferta pelas gerações de receptores
to - tal como esses descarados dentistas da Hungria e da Polónia que subs- constituem os paradigmas mais poderosos do incompressível que s_~ de,sen-
tituem a dentição dos europeus ocidentais por metade do preço habitual. volve nos processos obstinadamente assimétricos. Aprender a viver é aprender
Os ensaístas políticos que se aproveitam do favor do momento fazem voar ~ ~ tar nun:iJugar; o~ 11u~~~~!o exte~sões esféricas"essencialmente irredutí- \ :l
por cima das cabeças do público papagaios de papel que vemos passar com fas- veis e cercada~ por um anel de coisas abandonadas e deixadas à distância f6 8
cinação durante um bom momento. Se reduzirmos os fantasmas e os exageros estar-no-mundo conserva para sempre este traço fundamental: abandona tu-
correntes a grandezas objectivas , vemôs aparecer estruturas e processos que fa- do aquilo ef!l que não pode estar ele mesmo presente . A escola da existência
lam outra linguagem. A grande maioria dos negócios , serviços e transacs:ões, •..
etc., é, mesmo em meio âo teledelírio da «globalização», inevitavelmente local ; 2 68 Nas suas observações sobre a pobreza e m mundo do animal , Heidegger assinala que este se e n-
u 1c lefon e não é o único instrumento pelo qual as comunicações locais são mui- contra encerrado num anel de dime nsões desinibitórias (isto é, que desencadeiam comportllme n-
1, 1 111ais numerosas do que as comunicações à distância e as transacções econó- tos); relativamente ao ser humano, que «constrói mundo», p odemos antes di zer que está ccr ·uc.lo
1111 L·;1s operam -se na sua grande maioria localmente e entre vizinhos, embora
por um anel de co isas e de relações que dei xa estar como estão; tal rodu z a exc lusão branch1, 1 ·x /
clu ão pelo «não-pro-duzir;e-incluir-o-próprio». Escusado será dizer que o de ixar-no-ex! ·rior o qu •
, ,. ," 11L· ·cssariamente cara a cara. Até a própria economia alemã de exportação,
cslá no cx t ri or, desprovido ele fa lta, será p ara todo o sempre um traço fun Ia m •1111' (lll 1· 11 111
1'1 " I" , 1, · 11,11 ; ilrn ·nt a primeira no mundo , faz o essencial dos seu negócios com -1111111(10 • do cstnr-tomaclo-pelo-Oulro-humano. Niklas Luhmann cx prim isso 1111 11 1111111 111•
276 Peter Sloterdijk Palácio de Cristal 277

implica pois uma aprendizagem das extensões como navegação em estruturas O p,rincípio da extensão assimé![ica não caracteriza apenas os fenómenos
espaço-tempo incÕmpressíveis . - microsociológjcos, o desenvolvimento da língua e as competências da gran- 1 .:• /iµt
de cultura. Penetra também no domínio central da esfera política - a come- / , ,, ,'
No que diz respeito à procriação e criação das crianças , a simetria da trans- çar pelo direito de cidadania que cinde a multidão dos animais bípedes sem C\.,tH..-,,ft.1
missão surge em todos os processos de geração ou de «tradições» coroadas de plumas em dois agregados assimétricos, os membros e os não-membros da 1
êxito . Até hoje nunca houve civilização que não tivesse esperado dos seus fi- ração. A mesma diferença entre os nós e os eles reside no coração das oran- , , ,, ..
• b
lhos que se comportassem como pólo receptivo da transmjssão do saber cultu- . de~ estruturas da comun_idade solidária, em especial nos sistemas .de reforma, ) , , ... ,
ral. A_!!!:!. ua recede ine}'.!l_~_v~\.mente_os _g_ue vão aprendê-la. A sua potência in- ,·\ para os quais há que velar ciosamente para que as reivindicações dos direitos ... -r•,
terna é tão vasta que havia jJoas _raz~e_s p~~-~i:__E!.ela «a casa do ser». Esta ·' estejam associadas a uma prestação adequada dos participantes: aqui, tudo re-
caracterização SQ.1)2 TT},~!1.dO moderno dos media saltarj aos olhos como hipér- iI
lt1 - side na faculdade de o sistema estabelecer com êxito uma assimetria entre
bole romântic;.a, pois ji não está adaptada à marginalização das práticas lin- co~tribuintes e não-contribuintes , e conter a subversão por parte dos «parasi-
guísticas. Compreendemos tãntÕ melh'õ; por qu-e motivo as línguas náturais L ... Í tas sociais» .
!;
-~
//-constituem uma fonte de irritação para os que defendem a tese segundo a qual , , O localismo não é de natureza reactiva mas deve ser compreendido como /. ~-
J todgs de.vemos dar mostras ~e mais mobilidade; esses sistemas simbólicos l~- a ~firmação da extensão-no-lugar criativa. Vemo~Ío no núcleo da vida de- ;11 , •• ' •
tárgicos são ~ _ p ~_porque não se vergam assim sem mais à exigência de ----· mocrática, o recrutamento dos cid~dãos pela sua cjdade pã;a o cumprimento ~ _e.
cõ mpressão e de aceleração. No império dos signos, as línguas são o que são de «missões públicas» . O que, desde o regresso das cidades no final da Ida- , 'J I'!
os béns imÕbiliários no das coisas - com a diferença de que os bens imobi- de Média europeia, chama os habitantes da cidade a participar na comunida-
liários podem ser postos em circulação como mercadorias, ao passo qu~ não de, é o campo de forças local, no qual os mais hábeis a defender os seus pró- /.
pod~mos comprar nem vender línguas , pois somos forçados a aprendê-las . Pa- prios interesses se descobrem de súbito como cittadini , citizens , Bürger, e. I~ iv0,
ra os membros das classes rápidas, a aquisição da língua é uma das piores pro- citoyens, isto é, como os portadores de um inte~ se comum e de uma ani-
vas - equivale à tortura chinesa, na qual a lentidão é a alma da crueldade. Do 'mação transbordante. O campo de forças local não é político porque nele cir-
ponto de vista dos liberais, as línguas naturais do mundo inteiro constit~e_m· os culem os afectos colectivos - senão a política mais não seria do que a ema- ~ , .
maiores obstáculos ·à· modernização , atestam o carácter retrógrad,Q e a auto- nação da agitação e das perfídias locais; é político na medi~a em que a /~., /, , e,
-satilfação dos oradores. Quem acreditar seriamente que pode atravessar o sé- comunidade , a cidade ou a nação (talvez também o grupo de nações) consti-
culo XXI com o francês, o polaco, o alemão, o coreano e outros contentores de tuem a realização de uma vontade localmente encarnada de resolver missões
letargia está abertamente incluído num colectivo de perdedores . A incapacida- idéntificâdã s · po~ meio da divergênc~a expressa entre as opÍniões e as pai-
de de fazer face ao futuro tem um nome: a monoglossia, isto é, o apego à lín- xões , sujeitando as soJuções encontradas a uma verificação ~Só se consegue
gua natal. Segundo os modernizadores , o mÚndÓ deveria ser feitÕcfe-modo que isso se o l~gar político , com o seu egoísmo local e o seu entusiasmo local , se
tõdas as situações admjti~ s J2.Ud~~.sem ser -fo1mui㪠~~-eIT_1-Bi:ísic ÉÍigli~h~~- um projectar simultaneamente no futuro - isto é , se o lugar for mais forte do
princípio que fun cionou perfeitamente nos aeroportos e nas reuniões dos con- que as ideologias e se a comuna burguesa continuar a ser mais atractiva do //
selhos de administração , por que motivo não haveria de funcionar também nas que as seitas multinacionais que tentam apoderar-se do Estado. Se não pos- .,;l ~ A,
outras situações? Por um motivo aparentado - dada a resistência à compres- so ter uma sensibilidade provincial , está totalmente excluído que faça da po-
são manifestada pelas práticas culturais mais desenvolvidas - , ,os planifica- lí~i~a a min~a prõfissão_. Ares p_u~lica_só fu~ciona_ com9 _pJtrlamento dos ~s- /
dores positivistas da educação sentem-se escandalizados com as ciências hu- pmtos locais . As sociedades c1v1 s entram rapidamente em decadênct'a
manas em geral e com o conceito de formação literária e artística em especial. quando caem nas mãos dos ideólogos e dos chefes de seita itinerantes (Hi - /
Uma coisa lhes parece perfeitamente clara: são precisos vários dias pára Íer o tler era o protótipo do .e strangeiro que conquista o podei; com frases lançadas
Fau sto. Uma obra como Guerra e Paz retém o leitor durante algumas· sema~ aos indígenas debilitados - foi isso que Hermann Broch compreendeu e
nas269 e quem quiser familiarizar-se com as sonata~ para piano de Beethovén descreveu no romance Bergroman , que continua a ser a teoria mai s av ança-
e os quartetos para cordas de Rihm tem de investir neles uns quantos meses : da ,sobre o fascismo) . Os políticos do conceito totalitário do século xx mos-
traram aonde pode conduzir, em poucos anos apenas, a tomada de pocl ·r d ·
111 1111 primeiro tempo. lo mundo] é o estado selvagem do que se desenrola simultaneamente -
programas fantasmáticos a expensas das forças imunitárias baseadas 1111 110 -
, I'' •11. 111111 i11cn111rnlave lme11te.. .», i11 Niklas Luhmann , Die Gesellschaft der Gesellschaji , Frankfurt ,
l'l'IS, I' ~27.
lis e dos espíritos cívicos locais.
.,,., 1 t 1.1111hé11 1, quant o a es te exempl o, Régis Debray, De.1· machines et des â111es. 7i'ois co11fé- No que di z respe ito ao capitalismo espec ulativo co mo pro 1 rn11 111 in v 1N o
,, '"'' l ',111 ,. _) (1() 2, p, ,10 , e abs lra ·1 que desemboca no sucesso , haverá qu co minur os s tt , •x , 111 1
278 Peter Sloterdijk

actuais a provar que não são partidários de uma seita que opera ao nível glo-
bal ; a suspeita de «capitalismo êomo
"religião» está expressa e espera que al-
guém a dissipe270_ A forma de vida da «na ão d~ _S !]tica» só sobrevive se
cri ~ um equilíbrio entre a semântic_a do interesse pessoal e da 2referência de
si e a semântica da liberd_ade para o 9utro e do ~er-a-dar-algo. ,,1, ), .•
/
I /1
- 1
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1-- l •

1 42 A Esquerda Celeste e a Terrestre


i···
1 t

( Do conceito de local assim declinado vemos pois emergir um grupo de ca-


/ 1racterísticas que enfurece os progressistas abstractos. O que nos surge, de-
can!_ado 2_el~ contrapres~ão, sob a pressão do universalismo confuso ~
pensadores do século xx encorajaram estas decantações - , é o elemento ex-
tenso da vida coroada de êxito, que não vem a ser o que pode ser sem estar
t imunizada, sem ser autopreferencial , exclusiva, assimétrica, proteccionista,
incompressível e irreversível. Este catálogo assemelha-se ao resumo do pro-
,gram de .um.parti.do qe extrema-direita. Na xealidad_x fornece a lista das ca-
)rac~e!:_ístLcas inerentes à infra-estrutura dÕ devir e~ esferas humanas rea~s.
Contam-se entre as que são próprias do Estar finito, concreto, imerso e trans-
missível. Para recorrer mais uma vez à maneira de falar da ontologia: o estar-
}'
G 'f'.: I ., . ,,.
-estendi@ no_~eu próprio lugar é o bom hábito de ser.
- Enquanto a es ueréla,tiver por projecto continuar a ser ou tornar-se uma es-
querda terrestre, e seja qual for o seu amor pela simetria, deverá entender-se

-- -- -------- ---;- ----+-i- - -


t, f' ,, .1.
com estas definições, salvo se preferir cortejar o infinito - o que pode com-
preeriêiêr-se perfeitamente, pois a social-democracia terrestre aborrece do
, ponto de vista filosófico e não satisfaz do ponto de vista estético.
,, '
l
1
) i
,.., Entre os valores da lista alternativa , ou, mais precisamente, entre as rei /, -
vindicações q~e visam ~ma metavida cuja relação com o mundo fosse indi e-
1
f /
1 --·
,!;..;;:.:,__ _•... -------J....-.. ·(----~ rente à imunidade, preferencial para com o estrangeiro, inclusiva, não selec- ~. /
tiva, simétrica, desprovida de barreiras alfandegárias, bem como discrici- \ 1 l
"! onariamente compressível e reversível, podemos ~e .9.uando em uando ~on- l
eretizar alguns aspectos no rejll, mas unicamente os comportados também na
{ pri_~ eira lista. S.1<~ segunda não existisse, não poderíamos nunca respirar «o /
ar do outro planeta» sem o qual a vida apareceria aos portadores da cultura 1
,ocidental como um sufoco permanente . Mais: talvez a característica da gran- '
).,: e cultura consista em fazer avançar a implantação do impossível no real. Ela
ro}~ct a na vida pública o dote da vida pré-natal. Numa perspectiva de filo-

l ofia da imanência, tal significa que, do estado actual das coisas , emanam es-

t
ados superiores e mais inverosímeis: a natureza activa impele as suas pró-
rias tendências para o luxo até patamares cada vez mais elevados . A ab rturn
• ·, 1 1 1 /\11 111 111 / i,rn111 s 11/,1· Ueli/i i o11 , Dirk Bacckcr (ed .) , Munique , 2003. ontual da primeira ~ a à segunda caracteriza o impul so da c ivili z.11 ' 1 <> q11 •
280 Peter Sloterdijk

se mantém expandindo-se, aumentando, diferenciando-se - só o criterioso


acõj':?famento retroactivo da segunda à primeira ·impede, porém, o reino dos
espectrosl. · -
O facto de , na era das globalizações, termos alcançado intensificações ob-
jectivas da inverosimilhança prova que as almas participam no crescimento
dos horizontes. Sob o stress do crescimento , aprenderam, há dois mil e qui-
nhentos anos, a êxphmir-se por meio de conceitos ontológicos gerais. O pen-
samento sob a forma de valores universais confere um alicerce interior, en-
quanto o horizonte desliza. Assim sendo, o universalismo abstracto não é
apenas essa fraude pérfida que nele quiseram ver os pragmáticos, os nietzs-
chi anos e todas as categorias possíveis de realistas (Carl Schmitt: todos os
que pronunciam o nome de humanidade fazem-no com intenção de enganar);
ele é também o reflexo semântico da maturação do mundo na época do siste-
ma mundial nascente. Universalismo: um estádio da maturidade. Deixar-se
enredar nos reflexos é o risco profissional que con-em os que levam as luzes.
Também eles reivindicam um apoio. Também eles, aqueles que , pelas suas
funções de ensino, se tornam deficientes da aprendizagem, compreenderão
mais tarde ou mais cedo a necessidade da formação permanente.
Mas o facto de as almas crescerem com as formas do mundo , nas estepes,
nas cidadês e nos reinos, é uma das realidades a partir das quais a filosofia er-
gueu o seu voo; essa realidade poderia também indicar-lhe a direcção da me-
tamorfose exigida pela situação global. No tempo da polis, Aristóteles defen-
dia a opinião segundo a qual só podia ser cidadão aquele para o qual a
magnanimidade (megalopsychía) se tornara uma segunda natureza. Não se
compreende muito bem por que motivo isso não deveria já aplicar-se aos con-
temporâneos da era do Estado-nação e da era global , só pelo facto de estes
pronunciarem hoje a palavra criatividade mais do que a de generosidade. Os
criativos, como se diz de tempos a tempos , são os que impedem o todo de su-
cumbir às rotinas nocivas. Talvez tenha chegado o tempo de tomar essa frase
à letra .

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