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GIGANTES NO
PÓLO SUL
Autor
H. G. EWERS
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização
VITÓRIO
Revisão
ARLINDO_SAN
Quando se encontrava no centro da Galáxia, a nave-
capitania de Perry Rhodan entrou desprevenidamente no campo
de sucção da rota de transmissores que levava para Andrômeda.
Da estação de Gêmeos, a Crest II foi arremessada pelo guardião
moribundo — bem para o interior de Horror, um mundo artificial
oco.
Lutando sempre, os terranos conseguiram passar de um
nível a outro, até chegar à superfície do planeta artificial, em
torno do qual circulam três sóis. Alcançaram a segurança do
espaço cósmico, mas sacrificam esta segurança, voltando a
aproximar-se da superfície do planeta Horror.
Dessa forma entraram no campo de ação de uma arma
secreta chamada horror — e ficaram sujeitos a um processo de
redução, que diminuiu em mil vezes o tamanho de seus corpos e
de tudo que os cercava.
Os terranos encontram-se numa situação desesperadora, já
que o processo de redução também fez com que todas as
instalações atômicas e hiperfísicas existentes a bordo da Crest
falhassem.
Mas os micro-homens não abandonam a luta contra o
destino cruel que os atingiu. Suas possibilidades de ação são
extremamente reduzidas, mas apesar disso resolvem enfrentar os
Gigantes no Pólo Sul!
1.973.
Cinco homens, quatro deles soldados, tangem um menino de treze anos. Afastam-no
da comunhão das pessoas simples e sinceras, entre os quais encontrara proteção e
respeito, desde que seus pais tinham morrido no exílio voluntariamente escolhido.
Era noite, quando Ivã tinha voltado à aldeia, só e com uma bala alojada na perna.
Não respondera às perguntas dos lenhadores. Mas havia um brilho ameaçador em seus
olhos. Pela primeira vez na vida o sentimento do ódio surgira em sua ingênua alma de
russo, ingênua e cheia de grandeza. E ele era capaz de nutrir um ódio violento e
selvagem.
Ivã notou que os desconhecidos estavam voltando.
Conhecia o instante exato em que estavam passando por cima da colina. Tratava-se
de uma colina que não se podia ver na noite da Taiga, pois ficava a dez quilômetros de
distância. Mas Ivã sabia onde ficava essa colina. Estava sentado sobre uma tora, com o
corpo inclinado para a frente e os quatro olhos fechados, mantendo o busto ligeiramente
inclinado na direção do objetivo.
De repente o lampejo de uma explosão surgiu lá ao longe, no meio da mata,
formando uma bola de fogo em cima da qual uma nuvem de vapores e fumaça subia ao
céu, espalhando-se sob a forma de um cogumelo, que emitia uma luminosidade pouco
intensa.
O ar quente deslocado pela explosão, que dali a pouco passou furiosamente sobre a
aldeia, fez balançar os casebres. O que restava de neve derreteu-se e o gelo que cobria o
rio gemeu e soltou alguns estrondos, abrindo-se em fendas largas.
Uma eternidade parecia separar esse acontecimento inesquecível dos dias atuais —
uma eternidade formada por 428 anos e um abismo de 900.000 anos-luz.
2.401.
Ivã Ivanovitch Goratchim era um dos poucos homens que usavam um ativador
celular, um aparelho deixado por um ser incompreensível no momento em que se retirou
do Universo conhecido. Goratchim tornara-se imortal.
Fora contemplado com o dom da imortalidade por ser muito valioso para a
Humanidade, isto porque possuía uma capacidade que lhe fora conferida tanto pelo
código genético transmitido por seus pais, e que sofrera uma alteração em virtude da
exposição à radioatividade, como também por seu aspecto pouco humano. Ivã Ivanovitch
Goratchim era uma espécie de detonador. Sempre que concentrava os fluxos mentais
emanados de ambos os cérebros em determinado alvo e formulava em pensamento o
comando adequado, ocorria a liberação de um impulso parafísico, que exercia sua
influência sobre os átomos de cálcio e carbono e os compostos dos mesmos, produzindo
o efeito de um detonador numa bomba de fusão em base catalítica. E os átomos de
carbono eram encontrados em quase todas as substâncias do Universo...
Naquele momento estava parado na sombra lançada por uma rocha do planeta
Horror, um prisioneiro daquele mundo de terror juntamente com os outros dois mil
tripulantes da Crest II, que era a nave-capitânia do Império Solar.
— O senhor nem está ouvindo, Ivã! — Havia um tom de recriminação nestas
palavras.
Goratchim virou as duas cabeças para o homem que se encontrava a seu lado. Teve
de olhar para baixo, mas nem por isso experimentou uma sensação de superioridade face
ao seu interlocutor. Não eram somente os olhos de Rhodan, capazes de penetrar todas as
coisas, que irradiavam autoridade; era também a voz, a postura, a expressão do rosto e os
movimentos. Os distintivos do Administrador-Geral eram simples exterioridades. Além
de respeitar Rhodan. Goratchim o amava, pois Rhodan fora o único ser humano que, num
tempo em que todos o consideravam um monstro, o tratara de igual para igual. Dali em
diante Goratchim passara a pertencer ao Exército de Mutantes de Rhodan.
— Queira perdoar, senhor. Estava pensando na Sibéria...
Um sorriso triste apareceu no rosto de Rhodan.
— Os velhos tempos... — Suspirou. — Gostaria de voltar para lá, Ivã?
— Não senhor! — De repente a voz de Goratchim adquiriu um tom áspero. — Não
existe nada dentro de mim que anseie pelos tempos passados. Acontece que preferiria a
Terra em seu estado atual a Horror.
O rosto de Rhodan adquiriu uma expressão dura.
— Se não conseguirmos superar esta armadilha na rota de Andrômeda, nunca mais
vamos rever nosso planeta!
— É verdade, senhor. Poderia fazer o favor de repetir o que eu...
— Pois não. Preste muita atenção, Ivã! Está vendo esta árvore solitária no alto do
penhasco?
— Estou, sim senhor. — Goratchim hesitou alguns segundos e prosseguiu. — Um
átomo de carbono sempre é um átomo de carbono, senhor. Se há pouco não consegui com
um tufo de capim, certamente também não conseguirei com a árvore.
— Ora! — disse Rhodan em tom decepcionado. — Vejo que não entendeu nada do
que eu disse. Bem, não posso acusá-lo por isso, Ivã. Quero pedir-lhe que desta vez não
tente detonar os átomos de carbono isolados, mas todos ao mesmo tempo. É possível que
uma massa maior de átomos detonáveis lhe dê maiores chances que apenas uns poucos.
As duas cabeças de Goratchim voltaram-se para Rhodan, mas somente aquela
conhecida como Ivanovitch, o velho, falou.
— Se eu fizer detonar todos os átomos de carbono existentes nesta árvore será o fim
de um mundo, senhor. Não se esqueça de que a árvore se encontra a cinco quilômetros de
distância, no máximo.
— São cinco metros, Ivã, cinco metros...! — Uma criatura de pêlos cinza, que mal
chegava aos quadris de Rhodan, meio castor, meio rato gigante, aproximou-se sobre duas
pernas, e pôs as mãos nos quadris, num gesto provocador. — Não se esqueça de que você
está vendo tudo isso com os olhos de um ser que tem somente dois milímetros e meio de
altura, Ivã. O que lhe parece serem cinco quilômetros, na verdade são apenas cinco
metros.
— Guck! — havia um tom de recriminação na voz de Rhodan.
O simples fato de não ter chamado o rato-castor de Gucky, como costumava fazer,
mostrava que se sentia contrariado.
O rato-castor estremeceu e piscou para Rhodan como quem tem consciência da
própria culpa. Os homens que se encontravam na Crest observavam uma lei não escrita,
segundo a qual a redução de tamanho produzida pelo processo de condensação potencial
só deveria ser mencionada quando isso se tornasse absolutamente necessário. Tratava-se
de uma espécie de defesa psicológica, pois nem todo mundo suportava a idéia de ter
apenas dois milímetros de altura.
Goratchim deu uma risada áspera.
— Ora veja, irmãozinho. Se para você são apenas cinco metros, por que não
teleporta para lá? Sempre acreditei que fosse um teleportador sofrível...
— Um teleportador sofrível...? — piou Gucky com a voz estridente. — Sou o
melhor teleportador, telepata e telecineta que existe no Universo. Além disso... além
disso...
— Que houve, irmãozinho?
— Além disso eu já o teria colocado no galho mais alto dessa arvore podre, se
pudesse. Dá vontade de chorar! Se você é capaz de fazer detonar a árvore, grandalhão,
faça logo. Afinal, ninguém vai se importar com uns anões inúteis como nós, que com um
simples pigarro de um homem de verdade são arrastados sobre as montanhas!
— Quer que lhe dê umas palmadinhas, senhor? — Ralf Marten, o teleótico,
contornou a rocha e parou ao lado de Gucky. — Pela primeira vez na vida este
camundongo Mickey seria capaz de me deixar pendurado no ar por uma coisa dessas.
Rhodan fez um gesto negativo.
— Não se preocupe — observou Goratchim. — Não levei o baixinho a sério.
Mesmo que tivesse levado... — De repente sua voz atropelou-se e a fala do gigante foi
interrompida.
— Então... nada? — perguntou Rhodan.
— Não houve a menor reação, senhor. Comecei com átomos isolados e passei a
concentrar-me num número cada vez mais elevado dos mesmos, mas o insucesso sempre
foi igual. Além de transformar-nos em insetos insignificantes, o condensador potencial
neutralizou as capacidades psiônicas que possuímos.
Rhodan baixou a cabeça. Quando voltou a erguê-la, seus sentimentos se ocultavam
atrás de uma máscara rígida e impenetrável.
— Acho que seu relato não será diferente — disse, dirigindo-se a Ralf Marten.
O teleótico acenou com a cabeça.
— Não poderia ter havido uma falha mais completa, senhor.
— Era o que eu esperava. Foi por isso que nossas experiências foram mantidas em
segredo. Não podemos sobrecarregar demais a psique dos tripulantes. Acho que os
senhores compreendem.
— Onde está Wuriu? — perguntou Gucky com a voz triste.
Goratchim estendeu o braço.
— Ali vem ele. Geco está com ele.
Gucky encolheu-se. Parecia um monte de peles sujas e amarrotadas. Rhodan fitou-
o. Tinha pena dele. Compreendia o rato-castor. Em seu estado normal era um excelente
telepata, mas na situação em que se encontrava nem sequer conseguira constatar a
proximidade de um outro rato-castor chamado Geco.
Wuriu Sengu aproximou-se em silêncio. Mantinha a cabeça abaixada, pois havia
muitas pedras soltas pelo caminho. Qualquer passo em falso poderia produzir dolorosas
contusões. Geco, o segundo rato-castor pertencente à expedição, que era o discípulo mais
bem sucedido de Gucky, caminhava atrás do mutante-espia. Geco era conhecido porque
gostava de fazer-se de importante. Mas nesse momento caminhava tristemente atrás de
Sengu. A cauda larga em forma de colher era arrastada sobre as pedras.
Sengu parou quando ainda se encontrava a três passos de Rhodan. Levantou a
cabeça e Rhodan teve a atenção despertada. Um fogo escuro parecia brilhar nos olhos do
mutante, mas o rosto amarelo continuava impassível.
— Oficial especializado Sengu de volta da missão especial, senhor. Experiência
teve êxito parcial.
— Teve êxito? Conte logo, Sengu!
— Perdão, senhor: teve êxito parcial. Ainda sou capaz de enxergar através da
matéria sólida, mas tenho de aproximar bem os olhos. Além disso meu campo de visão
sofreu uma redução proporcional à redução de meu tamanho, e infelizmente preciso de
mais tempo que de costume para concentrar-me.
— Nas condições em que nos encontramos já é muito, Sengu! — Rhodan riu
aliviado. Mas seu rosto logo adquiriu uma expressão pensativa. — Tenho a impressão de
que isso já serve para alguma coisa...
— Pelo amor de Deus, Perry! — piou Gucky. — Você só pode estar brincando.
Rhodan virou-se como se tivesse sido atingido por um raio.
— Por que diz que estou brincando, Gucky?
— Por causa das cúpulas. O que podemos fazer contra as cúpulas de... Oh!
— Gucky! — Havia um tom alegre na voz de Rhodan. — Você conseguiu ler meus
pensamentos?
— Acho... acho que li um pouco, Perry. — O rato-castor cruzou os braços sobre o
peito. — Mas já passou. Percebo que está com pensamentos alegres, mas não consigo
isolar os impulsos individuais.
— Vejo que é capaz de captar pensamentos muito intensos, impregnados de
emoções. É melhor que nada, Gucky. Até é possível que ainda acabemos saindo desta
armadilha. Já tenho um pouco mais de esperança.
— Mas desse jeito, Perry...?
— Precisamos tentar.
Gucky suspirou.
— Se sobrevivermos a isso, eu me aposento...
***
O Dr. Spencer Holfing retirou os braços do protetor de pó do manipulador mestre-
escravo.
— Que inferno de uma construção primitiva!
Levantou os punhos e agitou-os ameaçadoramente na direção em que ficava a
parede com revestimento de chumbo. Duas veias grossas e violetas apareceram em sua
testa.
O Dr. Reinhard Anficht fez avançar a chave fixável do manipulador esférico. Com
uma expressão que quase chegava a ser carinhosa pôs-se a contemplar, através da parede
de vidro-chumbo, o objeto cilíndrico que se encontrava no interior da câmara
hermeticamente fechada. Depois disso lançou um olhar de recriminação para o físico-
chefe.
— Que é isso, colega? Permite que chame sua atenção para o fato de que não
firmou suficientemente a carga de plutônio superior? Se alguém balançar isso, a mola
salta e a carga penetra no núcleo de plutônio. Neste caso o comando de tempo se tornaria
inútil.
O Dr. Holfing praguejou baixinho e enfiou as mãos nas luvas de proteção de pó.
Quando voltou a retirá-las, havia grossos pingos de suor em sua testa.
— O senhor tem razão, Dr. Anficht. Mas continuo a pensar que estamos
trabalhando em vão. Se nem os reatores plasmáticos nem as bombas de fusão estão
funcionando, acho que a bomba de desintegração nuclear não terá a menor chance.
— O senhor está suando de medo, doutor. Por quê?
Escarneceu uma voz áspera. O engenheiro Dr. Bert Hefrich, que apesar dos seus 33
anos já ocupava o cargo de engenheiro-chefe da Crest II, bateu com os dedos na parede
revestida de chumbo. — Se tem tanta certeza de que vai fracassar, por que não faz
detonar logo sua obra-prima? Será que tem medo do estrondo de uma reação nuclear?
Neste caso posso tranqüilizá-lo. O senhor não ouviria nada.
— O senhor é um sádico! — falou o Dr. Holfing para o engenheiro-chefe.
Hefrich sorriu.
— Vamos aos fatos, doutor! — Olhou para o relógio. — O Chefe marcou a
experiência para as 13:15 horas. Ainda temos meia hora para montar a bomba na cabeça
do foguete e disparar este.
O Dr. Holfing respirou profundamente. Finalmente fez um gesto de resignação.
— O.k.! O ar da câmara de trabalho já foi purificado. Onde estão os trajes
protetores?
O Major Hefrich atirou um pesado traje protetor contra radiações para o Dr. Holfing
e outro para o Dr. Anficht. Ele mesmo vestiu um. Depois disso fez descer a parede de
vidro-chumbo.
A figura inconfundível de uma bomba nuclear de tipo rudimentar apareceu diante
deles. O envoltório era de bismuto. Em seu interior havia uma carga subcrítica de
plutônio, cercada por um refletor de berílio. A chamada carga detonadora encontrava-se
num tubo, embaixo de uma mola muito forte. Era mantida na posição somente por uma
trava. Uma vez decorrido o tempo introduzido no mecanismo-relógio, este ativaria o
dispositivo de destravamento e a mola comprimiria a carga detonadora para dentro do
núcleo de plutônio, dando início à reação espontânea em cadeia. Haviam decidido
construir uma arma rudimentar como esta, porque os processos mais complicados que se
realizavam nas armas nucleares mais modernas eram inibidos pelo campo de redução que
cobria o hemisfério sul do planeta Horror.
Os três homens colocaram a bomba num carro, usando um pequeno guindaste
adaptado à operação manual. Empurraram o carro e fizeram-no sair para o corredor largo.
As esteiras transportadoras estavam paradas. A penumbra gerada pela iluminação de
emergência chegava a ter um aspecto fantasmagórico e um silêncio deprimente, rompido
apenas pelo ruído do carro e pelos passos dos homens, enchia o sistema de corredores da
Crest II.
Dois sargentos suados abriram manualmente a porta blindada que dava para a
posição de artilharia CR IV, isso depois que o carro com a bomba atômica tinha batido
ruidosamente contra a parede blindada.
— Calma! — advertiu o Major Hefrich. — Isto é uma bomba, não um saco de
batatas. Vamos ter um pouco mais de cuidado!
— Queiram interromper a conversa por alguns minutos! — disse uma voz em que
vibrava um tom sarcástico, saída do interior da posição de artilharia.
A voz era do Lorde-Almirante Atlan, que queria assistir à experiência e estava ao
lado do Major Cero Wiffert, oficial de artilharia, que também estava à espera no mesmo
lugar.
— Que carreta usaremos, Wiffert? — perguntou o Major Hefrich.
Wiffert, que era um homem calado, apontou com o polegar para um lança-foguete
que já estava em posição.
— Coloque na ranhura, Wiffert! — disse entredentes.
Os dois sargentos que tinham aberto a escotilha vieram correndo e levaram o carro
em direção ao lança-foguetes. Puseram-se a parafusar a bomba com movimentos ágeis.
Depois firmaram o revestimento da carga explosiva.
O Major Wiffert fez um gesto distraído, passando a mão pela cabeça. Depois
esfregou a cicatriz que tinha do lado esquerdo do rosto.
— Está com o alvo na mira, Wiffert? — perguntou Atlan em tom impaciente.
— Estou, sim senhor.
— Quantas vezes testou os foguetes químicos?
— Oito vezes.
— Quero um relatório decente, major! — gritou Atlan. — Diga se os foguetes
químicos funcionam perfeitamente.
— Funcionam perfeitamente, senhor.
Atlan suspirou e desistiu.
Os dois sargentos já tinham concluído os preparativos. O foguete esguio, de nove
metros de comprimento, foi girado com a carreta e foi entrando lentamente no tubo,
adaptado para funcionar com ar comprimido.
O sargento Rille ficou em posição de sentido e anunciou com a voz exaltada:
— Tubo lança-foguetes um pronto para disparar!
O Major Wiffert virou a cabeça, fez um sinal para o sargento e encostou os olhos à
mira provisória. A mira positrônica não estava funcionando, tal qual os outros aparelhos
da Crest que trabalhavam na quinta dimensão.
— Tudo bem — disse Wiffert. Olhou para o relógio.
Atlan ligou uma pequena tela de observação, para a qual o comandante. Coronel
Rudo, tinha concedido a energia necessária. Os contornos confusos de um setor do vale
com as gigantescas montanhas Torta de Areia — que na verdade eram tão pequeninas —
no plano dos fundos.
— Fogo! — ordenou.
O Major Wiffert moveu uma alavanca. O ar comprimido chiou ao penetrar no tubo
de lançamento. Ouviu-se um estrondo surdo.
O foguete prateado apareceu na tela. Por enquanto estava voando devagar e em
silêncio. De repente viu-se um lampejo na popa. Nuvens esbranquiçadas saíram dos
bocais de jato. O projétil acelerou abruptamente. Por enquanto não se ouvia nada, pois os
microfones externos tinham sido desligados. Era necessário economizar energia na Crest.
Nenhum gerador de fusão estava funcionando. As turbinas de gás que trabalhavam em
base química forneciam uma quantidade mínima de eletricidade.
As pessoas que se encontravam na posição de artilharia prenderam a respiração
quando o foguete se precipitou em direção à saída do vale.
O Dr. Reinhard Anficht olhou para o relógio.
— É agora! — cochichou.
Mas não aconteceu absolutamente nada. O foguete prosseguiu em seu vôo,
transformou-se num pontinho insignificante e acabou batendo na planície, onde levantou
uma nuvem de pó.
— Nada! — disse Atlan em tom decepcionado. — Até mesmo os processos
nucleares mais simples são inibidos. Este campo de condensação só pode ser arte do
demônio.
— Ele transformou o inferno numa fortaleza absolutamente segura — escarneceu o
Major Hefrich, que estava com o rosto pálido.
Atlan fitou-o com os olhos vermelhos de arcônida, dando a impressão de que estava
olhando através dele. Finalmente mostrou um sorriso frio.
— Se necessário abriremos caminho para o inferno com as unhas, major!
2
O zumbido profundo vindo debaixo do chão tornou-se mais forte. Sempre que
algum homem tirava o pé de cima de um lugar em que não havia capim, via-se dançar os
grãos de areia como se um gigante os estivesse agitando numa peneira.
O zumbido pacífico dos insetos parecia ter algo de irreal, da mesma forma que o
balanço das flores coloridas, que pareciam abaixar-se e soerguer-se. Mas o mais irreal de
tudo era a coisa cinzenta que fechava o mundo para o lado do sul, até onde atingia a vista.
Rhodan tinha de lembrar constantemente que só estavam vendo uma única cúpula.
E nem mesmo esta uma entre quatro eram capazes de abranger com a vista.
Alguns metros à frente de Rhodan o carro de Taka Hokkado saltitava sobre os
acidentes do terreno. À frente dele caminhava o japonês arredondado a passos curtos e
uniformes. Os pacotes de explosivos amarrados com cordas de nylon escorregavam de
um lado para outro em suas costas. A cada passo o último deles batia ruidosamente no
traseiro carnudo do sargento. Rhodan sentiu um calafrio ao lembrar-se que uma única
dessas cargas explosivas seria suficiente para transformar o pequeno grupo numa nuvem
de poeira, ainda mais quando viu Hokkado puxar despreocupadamente o carro quando as
rodas se prendiam entre as pedras.
Os cabelos negros do japonês estavam grudados à cabeça redonda. Os pingos de
suor desciam ininterruptamente pela nuca musculosa.
Fazia muito calor.
— Trinta graus centígrados — observou Atlan, como se tivesse adivinhado os
pensamentos de Rhodan. — Que temperatura para uma região polar, não é mesmo?
— Daqui a pouco sentiremos mais calor ainda — trovejou a voz de Tolot. — O
metal certamente não será muito frio.
Rhodan fitou o halutense com uma expressão pensativa.
Quando olhava para Icho Tolot, tornava-se difícil acreditar que este gigante na
verdade só tinha três milímetros e meio de altura. Perguntou-se o que estaria acontecendo
nos dois cérebros daquela criatura monstruosa vinda de um mundo antiqüíssimo. Os
halutenses já não eram os seres agressivos que a cinqüenta mil anos do calendário terrano
tinham dominado grandes setores da galáxia de origem, a Via Láctea. Se os outros
fossem como Tolot, os membros de sua raça deveriam ser seres pacatos, alegres, muito
humanos e dotados de uma grande inteligência, embora tivessem o aspecto de monstros.
Tolot só se juntara a Rhodan porque, tal qual acontecia com os membros de sua raça
a intervalos regulares, ele se sentira dominado por uma sede incontrolável de aventuras.
Por isso mesmo chamara a atenção de Rhodan para o transmissor solar galatocêntrico,
formado por sete gigantescos sóis azuis situados no centro da Via Láctea. O transmissor
era obra de uma raça incrivelmente poderosa, que numa demonstração de respeito
costumava ser designada como a raça dos mestres da galáxia, mais precisamente, da
galáxia de Andrômeda...
Essa raça criara há muitos milênios uma rota de transmissores que levava para a
galáxia Andrômeda, formada por constelações solares artificiais.
O avanço da Crest através do transmissor solar galatocêntrico levara a nave para a
rota de Andrômeda. A Crest voltara ao espaço normal no interior do receptor solar de
Gêmeos. Se não fosse o auxílio de Tolot, a expedição já ali teria encontrado um fim
inglório. Os senhores da galáxia sabiam como proteger sua rota de transmissores. Em
toda parte tinham sido colocadas armadilhas sofisticadas. Até então o sistema de Horror
tinha sido a mais perigosa dessas armadilhas, e talvez fosse mesmo a última. Ali não
estava em ação somente o dispositivo criado pelos misteriosos senhores; duas das raças
degredadas para Horror tinham travado uma guerra de extermínio, durante a qual
chegaram a exceder até mesmo a fantasia cruel de seus senhores. Estas raças, ou uma
delas, instalou condensadores potenciais e com isso condenara os objetos existentes na
superfície de Horror e todas as formas de vida que ali aparecessem em ver seu tamanho
reduzido em mil vezes — ao que parecia, para todo o sempre.
— Pelo que vejo, os senhores estão interessados em saber se minha sede de
aventuras foi satisfeita em Horror — disse a voz retumbante de Tolot. — Acho que não
compreenderão a resposta que vou dar. Para mim a aventura mal começou. Só chegará ao
fim depois que tivermos esclarecido completamente o segredo dos mestres da ilha. É bem
verdade que, se tivesse desconfiado do que estava à nossa espera, dificilmente teria me
arriscado em acompanhá-los para o transmissor dos seis sóis.
— Isso acontece quando o ovo quer ser mais inteligente que a galinha — disse
Rhodan em tom sarcástico. — O senhor sabia que mesmo nos tempos em que sua raça
era mais agressiva nunca se atreveu a desvendar o mistério do transmissor dos seis sóis...
Tolot balançou os dois braços preênseis, enquanto as grossas pernas levantavam
grandes nuvens de areia.
— Senhor, mesmo nos seus melhores tempos minha raça não possuía a coesão, o
arrojo e o bom-senso que distingue os terranos. Pensei que a união de minhas
potencialidades mentais e as características de vocês nos tornaria invencíveis.
— E acabou por sofrer uma decepção amarga, não foi mesmo?
Os três olhos vermelhos do halutense pareciam chispar fogo.
— Não foi a primeira, senhor. Superestimei a mim mesmo e aos senhores no que
diz respeito ao curso dos acontecimentos. Todo espetáculo depende do fim, e neste ponto
continuo otimista.
— O senhor com seu otimismo e eu com o estômago roncando! — exclamou
Melbar Kasom com um gemido. — Dificilmente assistirei ao final feliz, se tiver de passar
fome enquanto me arrasto pela rota de Andrômeda.
Atlan deu uma risada estridente.
— É pouco maior que um mosquito, mas sua fome continua a ser a de um
dinossauro!
Icho Tolot emitiu um som alegre, mas interrompeu-se de repente.
Seu grito de alarme foi trombeteado em halutense, mas produziu o efeito de um
choque elétrico nos homens.
Dali a um segundo o único sinal de que alguns seres vivos tinham tentado transpor a
colina baixa que os separava de um rio eram algumas nuvens finas de areia e poeira.
Em virtude da camuflagem de manchas de seus trajes e dos pacotes de explosivos
pintados da mesma forma, não passavam de pequenas elevações em meio à paisagem
natural intocada. A única exceção eram os carrinhos aparentemente abandonados.
Rhodan rolou para junto de Tolot.
— O que houve?
— Um edifício — respondeu o halutense e estendeu o braço preênsil. — Ali na
frente, senhor, entre as rochas que margeiam o rio.
***
Rhodan encostou o binóculo aos olhos.
No primeiro instante não viu nada além das rochas bizarras que se erguiam à
margem do rio, formando um conjunto de formas de cor cinza-apagada que se
enfileiravam uma ao lado da outra e uma sobre a outra. Finalmente descobriu o cone
achatado que subia obliquamente ao céu, ou melhor, notou o contraste entre sua
regularidade e as rochas irregulares.
“Acho que só mesmo quem possui os olhos aguçados de um halutense é capaz de
ver nisso um edifício, ao menos a uma distância destas.”
Mal concebeu este pensamento, o conhecimento da realidade o tocou com a força
de um choque elétrico.
Era uma espaçonave!
— Atenção! — gritou. — Vamos retirar-nos com os equipamentos para trás da
colina. Eyseman, Hokkado, Tolot! Coloquem suas cargas no chão e acompanhem-me
para lá. Atlan, você poderia fazer o favor de ficar aqui?
— Está bem, bárbaro! — respondeu Atlan em tom indiferente. — Mais uma vez
você está mostrando que não confia num velho arcônida.
— Não diga bobagens! — retrucou Rhodan em tom indignado. — Você sabe
perfeitamente por que quero que fique aqui.
Atlan deu uma risadinha.
— Sei, sim. Vá embora e dê uma olhada nos destroços da nave. Parece que seus
ocupantes tiveram mais azar que nós.
— Quer dizer que você sabe que é uma nave...?
— Vivo dizendo que você não sabe dar o devido valor a um velho como eu.
Rhodan não conseguiu disfarçar totalmente o embaraço que estava sentindo.
Permaneceu calado até que todos se tivessem retirado, com exceção do grupo de
reconhecimento. Depois levantou.
— Não vamos exagerar nas cautelas, minha gente. Venha comigo.
Os três terranos e o halutense desceram a colina com passos elásticos e animados de
uma estranha leveza depois que tinham tirado os pacotes de explosivos. A muralha de aço
cinzento continuava a cobrir todo o horizonte, mas eles não lhe deram atenção.
Levaram cinco minutos para atingir as rochas que margeavam o rio.
Nesse lugar a cortina sonora permanente formada pelo zumbido subterrâneo foi
substituída pelo rugido, burburinho e farfalhar das águas que deslizavam a uma
velocidade tremenda. Véus cintilantes de espuma levantavam-se em meio à água, quando
uma onda mais alta se desfazia numa das colunas de pedra naturais. Uma cobertura de
algas ou liquens estava grudada nas rochas, dando a impressão de que se tratava de pêlos
cinzentos. Todos os homens, com exceção de Tolot, tropeçavam constantemente.
De repente viram-se diante da parte da espaçonave que se erguia acima da
superfície. Ninguém seria capaz de dizer se era a proa ou a popa. Ninguém conhecia esta
forma de veículo espacial. Além disso o metal estava completamente coberto pelas algas.
Rhodan, Eyseman e Hokkado entreolharam-se um tanto perplexos. Já Tolot parecia
dominado por um forte nervosismo, que os outros não sabiam explicar. Seus quatro
braços giravam como asas de moinho de vento. Suas mãos arrancaram pedaços enormes
do revestimento de algas e os atiraram para trás.
Finalmente emitiu um rugido vindo bem de dentro e parou. Tomou impulso com o
punho fechado e golpeou o casco da nave. Ouviu-se o rangido do metal que cedia ao
impacto.
— O que é isso...? — perguntou Rhodan em tom de curiosidade.
Tolot soltou uma estrondosa gargalhada.
— Fui um idiota, senhor. No auge de sua evolução os halutenses construíram naves
como esta. Mas eu deveria ter visto logo que esta nave não pode ser halutense. Nossos
arquivos não têm lacunas, e neles não se encontra nenhuma referência a qualquer
expedição através do transmissor solar.
— Talvez seja uma nave que pertencia à raça dos habitantes da superfície, já
desaparecidos — disse Eyseman.
Rhodan pôs-se a refletir.
— O senhor acha que há uma possibilidade de entrar ali, Tolot?
— Lá em cima existe uma eclusa — disse Tolot, apontando para uma parede que se
erguia a cerca de quinze metros de altura. — Vou abri-la.
***
Tolot abriu os braços preênseis, enquanto as juntas de saltar das pernas se dobraram
e as mãos presas aos braços também dotados de robustas juntas de saltar tocavam o chão.
Saltou, usando braços e pernas.
Subiu feito um projétil. Foi um salto muito bem calculado. Quando se encontrava a
uns dez ou onze metros de altura, Tolot fez avançar os braços preênseis. Houve um ruído
surdo quando se agarrou ao revestimento de algas.
Apoiado somente sobre os pés, começou a arrancar grandes pedaços de algas do
casco da nave. Uma chuva de plantas malcheirosas desceu sobre os terranos que
esperavam no solo. Enojados, estes recuaram alguns passos.
“Tolot parece um monstro quando está fazendo isso”, pensou Rhodan. “Mas
ninguém melhor que ele para saber quanta inteligência há nesse monstro com aspecto de
urso.”
— Pronto! — gritou Tolot para os que estavam embaixo. — Podem subir.
Taka Hokkado soltou um assobio. Deu mais um passo para trás, impeliu-se com o
pé encostado a uma rocha e saiu correndo, subindo pela parede escorregadia. Correu pelo
casco ligeiramente inclinado com a agilidade de um macaco e agarrou-se à beira do
buraco pelo qual Tolot tinha desaparecido.
Antes que Rhodan pudesse impedi-lo, Fynch Eyseman seguiu seu exemplo. O
tenente conseguiu subir uns cinco metros. Depois passou a escorregar
descontroladamente.
Rhodan apoiou-o na queda.
— Atire sua corda, Hokkado — gritou. — Nem todo mundo sabe fazer essas
escaladas tão bem quanto o senhor.
O rosto largo e sorridente de Hokkado apareceu na eclusa.
Uma corda de nylon fina, mas muito resistente, desceu com um chiado e foi parar
bem aos pés de Rhodan.
— Faça o favor de colocar o pé no laço e segurar-se, senhor! — gritou Hokkado.
Rhodan seguiu a recomendação. No mesmo instante a parede coberta de algas
começou a deslizar à sua frente. Numa questão de segundos chegou à eclusa. Os braços
musculosos de Hokkado acolheram-no. Depois disso o japonês puxou Eyseman para
cima.
Rhodan examinou atentamente as paredes internas da eclusa, que pareciam estar
intactas. Não descobriu a menor indicação de como poderia ter funcionado o mecanismo
da eclusa. Bastante desconfiado, deu mais um passo para o interior da nave e inclinou-se
sobre uma calha lisa como um espelho, que descia em espiral. Viu um raio de luz que
caminhava de um lado para outro.
— Tolot...? — gritou.
— Um instante, senhor! — disse a voz profunda do halutense. — Estou removendo
alguns destroços pontudos. Depois que eu tiver terminado, poderá vir para cá.
Lá embaixo alguma coisa batia e rangia. Até parecia uma estrutura de aço com
concreto que estivesse desabando.
— Pronto! — gritou Tolot.
— Acha que podemos descer por esta calha?
Tolot deu uma risada. O som sofreu uma terrível distorção em virtude da acústica da
nave dos mortos.
— Não tenha dúvida. Vim pelo mesmo caminho, senhor. É bem verdade que teria
ficado espetado em algumas travessas pontudas, se meu metabolismo não fosse
modificável. Mas os obstáculos já foram removidos. Além disso eu os receberei aqui
embaixo.
Rhodan ligou a lâmpada alimentada a pilha que balançava sobre seu peito e sentou
cuidadosamente na calha estreita, que lhe comprimia o corpo. Finalmente soltou-se.
O material de que tinha sido feita a calha era liso como gelo. Paredes reluzentes,
tubos arrancados e objetos diversos agitavam-se quando eram atingidos pelo feixe de luz
de sua lâmpada.
Finalmente foi freado suavemente.
Tolot colocou-o numa viga larga.
— Pelo deus Júpiter! — gritou Rhodan em tom de surpresa. — Que seres estranhos
não devem ter sido estes que usaram uma espiral como subida!
Tolot deu uma risada que antes parecia o burburinho da água, enquanto colocava
Hokkado ao lado de Rhodan.
— Estes seres pensariam a mesma coisa, se tentassem descer por uma das escadas
de emergência da Crest.
Colocou novamente o corpo no poço e voltou com o Tenente Eyseman sobre o
braço.
— É só imaginar um molusco sem esqueleto tentando subir uma escada feita de
tubos de aço.
— Muito obrigado. Quer os seres que viajavam nesta nave tenham sido moluscos,
quer não tenham sido, só estou interessado pelo que há por aqui se puder descobrir
alguma indicação sobre a vulnerabilidade ou invulnerabilidade da estação instalada na
cúpula. O resto pode esperar.
— Infelizmente terei que decepcioná-lo, senhor — disse Tolot. — Já estive lá
embaixo. O comprimento total da nave era de cerca de cento e vinte metros terranos. Não
descobri o menor sinal de seus ocupantes. É possível que os mesmos se tenham
transformado em pó.
Rhodan ergueu-se cautelosamente, retirou a lanterna da bolsa em que estava
guardada e fez girar a mesma.
— Tenha cuidado, senhor! — advertiu Tolot. — Com exceção de uns poucos
lugares, surgiu uma confusão tremenda no interior da nave quando a mesma penetrou na
rocha.
Rhodan dirigiu o feixe de luz para baixo. Os raios passaram sobre travessas
entortadas, paredes esfaceladas e estranhos maquinismos de aspecto bizarro. Um dos
objetos enrugados encontrava-se a somente alguns metros do lugar em que estava
Rhodan. Estava apoiado sobre os restos inclinados de uma parede divisória que tinha sido
arrancada. Rhodan voltou a guardar a lanterna e dirigiu-se ao lugar em que estava o
conjunto, equilibrando-se sobre várias travessas.
O aparelho parecia uma mala amarrotada, enfiada à força num recipiente de muitas
facetas. Rhodan agachou-se à procura de apoio e casualmente pôs uma das mãos sobre o
aparelho.
Por pouco não se espatifou nas profundezas. A superfície do aparelho cedeu como
se fosse um tanque de plástico deformável.
Retirou a mão, assustado, e ouviu um ruído borbulhante.
Uma travessa de aço vergou bem a seu lado, rangendo fortemente. Rhodan levantou
os olhos e viu o halutense pendurado na travessa, segurando-se com os braços preênseis.
Os outros braços tateavam em direção ao estranho recipiente.
— Tem uma idéia do que possa ser isso, senhor? — perguntou Tolot.
— Uma idéia eu tenho...! — Rhodan sacudiu o corpo. — Abra, se puder. Tenha
cuidado!
Tolot grunhiu em tom de desprezo. Apertou o objeto enrugado com um dos dedos.
Fez um esforço e o dedo perfurou a parede. Quando Tolot o retirou, um esguicho verde-
amarelado saiu do furo, caiu sobre si mesmo e formou uma poça gelatinosa na superfície
do objeto.
Tolot enfiou o dedo na boca.
— Não há dúvida de que se trata de uma substância orgânica, senhor. — Seus olhos
iluminaram-se numa expressão de espanto, quando alguns sons sufocados se fizeram
ouvir no lugar em que deveria estar Eyseman — Perdão! — disse o halutense. — Eu
tinha esquecido de que os terranos são muito sensíveis.
— Está bem — respondeu Rhodan. — Procure controlar-se, Eyseman!
— Sim senhor — respondeu a voz apagada do tenente.
Mas o mesmo ruído logo se fez ouvir.
— Tenente! — gritou Rhodan em tom zangado.
— Não... não fui eu... — respondeu uma voz apagada. — Hokkado...
Rhodan sentiu seu estômago contrair-se.
— Vamos deixar em paz o corpo de molusco decomposto — ordenou. — Tolot,
leve-nos para cima. Temos necessidade premente de ar puro.
***
Estavam com o rosto pálido quando voltaram a pisar o chão embaixo da nave
destroçada.
Icho Tolot era o único que parecia não sentir nada. Isso não era de admirar,
considerando que em virtude de um metabolismo que podia ser modificado praticamente
à vontade, o halutense era capaz de alimentar-se com qualquer substância imaginável.
Um ser como este não poderia saber o que significava sentir-se enojado.
— Quem dera que eu estivesse em Halut — disse Tolot. — Nesse caso...
— Ora veja! — disse Hokkado com a voz rouca. — Será que ele também já está
saturado? — Cuspiu algumas vezes e respirou aliviado.
— O senhor não deixou que eu concluísse — respondeu Tolot em tom
compenetrado. — O que eu quis dizer é que nesse caso faria uma pesquisa nos arquivos
de minha raça. Tenho a impressão de já ter recebido uma informação sobre moluscos
inteligentes que construíam naves deste tipo. Infelizmente nossos arquivos registram
muitas raças deste tipo, e na oportunidade não tinha nenhum interesse por esse tipo de
informação. Só por isso não gravei na memória as características de todas as naves
construídas pelas diversas raças de moluscos.
Foram voltando devagar para a colina atrás da qual os outros membros do comando
estavam à sua espera.
— Deve ser uma raça muito pacata — disse Finch Eyseman em tom pensativo.
— O que lhe deu essa idéia? — perguntou Rhodan.
— Sua nave encontra-se nas imediações da abóbada, senhor. Apesar disso não
encontramos sinal de que tivesse havido uma luta. Provavelmente desceram aqui na
esperança de encontrar inteligências tão pacatas como eles e foram atingidos pelo campo
de condensação. É a única explicação que consigo encontrar.
— Certamente é uma tese muito interessante, tenente. Acontece que o senhor
esqueceu um detalhe. Alguém que queira chegar ao planeta Horror e, mais que isso,
quem possa atingir a superfície deste mundo diabólico, certamente já enfrentou algumas
batalhas mortais. Uma raça que seja tão ingênua como o senhor acredita que foram estes
moluscos certamente não teria chegado a Horror, pois malograria ao chegar ao sistema de
Gêmeos.
— Ou num outro receptor — acrescentou Tolot.
Rhodan pôs-se a refletir. Finalmente a expressão de seus olhos mostrou que estava
compreendendo.
— Quer dizer que em sua opinião é perfeitamente possível que estes moluscos
tenham vindo de Andrômeda?
— Um dia saberemos, senhor.
— Muito obrigado, Tolot.
— Por que, senhor?
— Por seu otimismo. Bem que eu gostaria de ser tão otimista quanto o senhor.
— Então, o que foi? — perguntou Atlan, assim que chegaram perto dele. Os
homens que tinham ficado à espera levantaram-se e fitaram o Administrador-Geral com
uma expressão de curiosidade.
— É uma nave pertencente a uma raça de moluscos que realizou um pouso forçado
— respondeu Rhodan. — No momento não sabemos mais que isso. Acho que vamos
prosseguir em nossa caminhada. De qualquer maneira o rio acarretará uma demora
desagradável.
A fileira de homens carregados de explosivos saiu andando em silêncio.
Pararam quando atingiram a margem do rio agitado e espumante.
— E agora? — perguntou o Capitão Henderson.
— Vamos atravessar o rio a nado — respondeu o Tenente Nosinsky.
— Não custa tentar — observou Tolot. — Sempre poderei tirá-lo da água.
Rhodan fez um gesto de desaprovação.
— Não devemos desperdiçar nossas forças. Ninguém conseguiria atravessar este rio
a nado, salvo talvez o senhor, Tolot, Kasom e Rudo. Vamos amarrar nossas cordas de
nylon uma à outra. Tolot, o senhor poderia fazer o favor de atravessar o rio a nado para
estender a corda?
— Para mim não há nenhum problema, senhor.
— E se os explosivos ficarem molhados? — objetou Atlan.
Os homens entreolharam-se com uma expressão de perplexidade.
— Vamos acondicioná-los à prova de água — disse Rhodan. — Você tem razão,
arcônida. Na situação em que nos encontramos não podemos assumir nenhum risco.
Tirem os pacotes e reúnam os mesmos em pilhas. Os explosivos terão que ser puxados
separadamente pela corda.
Quando tudo estava preparado, Tolot saltou nas águas agitadas, segurando a ponta
da corda. As águas espumaram em tomo de seu corpo robusto. Os redemoinhos tentaram
arrastá-lo para baixo.
De repente o halutense desapareceu.
Antes que alguém tivesse tempo de dizer qualquer coisa, Taka Hokkado saltou atrás
dele.
— Que idiota! — esbravejou Rhodan.
— Ora essa, senhor! — exclamou Eyseman. — Não podemos permitir que o
halutense morra afogado.
Melbar Kasom soltou uma estrondosa gargalhada.
— O senhor se comporta como uma criança, Eyseman! Tolot não pode morrer
afogado. Só mesmo uma pessoa que não conhece as faculdades do halutense poderia ter a
idéia de ajudá-lo, como por exemplo um sujeito metido a atleta como Hokkado.
— É verdade — confirmou Rhodan. — Tolot fará a coisa certa. Atravessará o rio
caminhando pelo fundo. Para ele isto não é problema, pois pode viver várias horas sem
oxigênio.
— Acontece que Hokkado não será capaz de imitá-lo — completou Kasom. —
Tenho a impressão de que terei de tirá-lo de lá.
A dez metros do lugar em que se encontravam um esguicho de água subiu para o ar.
Depois veio o corpo largo de um homem. Era Hokkado. Fora arrastado três metros pela
corrente. Não era muito, mas o rio devia ter cerca de seiscentos metros de largura...
— Kasom, siga-o junto à margem — ordenou Rhodan. — Se necessário, tire-o de
lá.
O ertruso saiu andando, com um sorriso de deboche no rosto. Hokkado atravessava
a água a braçadas vigorosas. Deixou uma esteira como se fosse uma lancha, mas via-se
que estava avançando relativamente devagar.
Depois de dez metros a corda foi esticada. Tolot devia ter atingido a margem
oposta. Mas teriam de esperar mais um pouco, pois para organizar o serviço de travessia,
haveria necessidade de mais uma corda.
— Perdi-o de vista! — gritou Kasom.
Encontrava-se uns cem metros rio abaixo e agitava violentamente os braços. Dali a
pouco saltou para dentro da água.
— Quem vai tirá-lo se ele também afundar? — perguntou Atlan em tom
preocupado.
— Kasom? Não se preocupe com ele — disse Rhodan.
Mas os minutos foram passando. Não havia o menor sinal de Kasom ou de
Hokkado. Tolot subiu à margem, trazendo de volta a ponta da corda. Os outros tinham
construído com três carros algo parecido com uma plataforma de transporte. Tolot
examinou a obra e, sem dizer uma palavra, enfiou mais três carros embaixo do braço.
— Tolot! — gritou Rhodan atrás do halutense.
— Assim que chegar do outro lado, dê uma olhada para ver se descobre Hokkado e
Kasom.
— Farei isso, senhor! — Mal acabou de proferir estas palavras, Tolot voltou a
mergulhar.
— Que coisa fantástica! — exclamou Eyseman.
— Acho que qualquer um de nós não chegaria à metade do rio. Talvez o Coronel
Rudo.
Rhodan acenou com a cabeça. De repente viu que o Capitão Redhorse estava
tirando a roupa.
— O que houve com o senhor? — perguntou em tom áspero.
Redhorse entesou-se.
— Ele me ofendeu, senhor. — o cheiene fitou Eyseman com uma expressão furiosa.
— Vou atravessar o rio a nado para provar do que um índio cheiene é capaz.
— Retiro as palavras irrefletidas que acabo de proferir, capitão. Sei perfeitamente
que o senhor conseguiria, mas peço-lhe encarecidamente que não se esqueça de que
estamos em situação difícil. Ainda poderemos precisar do senhor, caso Kasom ou
Hokkado tenham algum problema.
Redhorse fitou-o mais alguns segundos com uma expressão sombria, mas seu rosto
logo voltou a ficar alegre. Apertou a mão de Eyseman.
— Muito obrigado, tenente. Senhor — passou a dirigir-se a Rhodan. — Queira
avisar-me assim que precisar de mim.
— Está bem, capitão.
Rhodan mordeu o lábio. De repente começou a imaginar por que homens que
costumavam ser sensatos e disciplinados de repente começavam a agir como adolescentes
teimosos e malcriados. Ao que parecia, precisavam de uma espécie de auto-afirmação
diante da parede da cúpula que enchia todo o céu e parecia insuperável.
— Oooi! — Um grito apavorante atravessou o rio.
— Só pode ser Tolot — ou Kasom. Ninguém mais seria capaz de fazer sua voz
chegar de um lado do rio ao outro.
Quem disse isto foi Atlan.
O Coronel Cart Rudo pôs as mãos em funil à frente da boca. As veias das têmporas
incharam tanto que até se poderia ter a impressão que iriam estourar.
— Ooi! Tolot! Como estão as coisas?
Os homens taparam os ouvidos. Seus rostos estavam crispados de dor. Rhodan foi o
único que esboçou um sorriso. Viu confirmada sua teoria.
— Os dois estão aqui! — respondeu a mesma voz. — Hokkado chegou quatro
segundos antes de Kasom.
— Caramba! — exclamou Ray Burdick. — Nunca pensei que ele fosse capaz disso.
Por enquanto o assunto foi encerrado.
A manobra de travessia foi realizada sem maiores incidentes. Dentro de trinta
minutos homens e materiais estavam na margem oposta.
Melbar Kasom não dava sinais de cansaço, mas o rosto de Taka Hokkado se
contraía de dor a cada movimento que fazia. Rhodan preferiu não pregar um sermão.
Limitou-se a recomendar pressa.
Transpuseram uma colina de trezentos metros de altura. Depois disso os minúsculos
seres estavam a apenas dois quilômetros da cúpula.
Nessa altura ninguém era capaz de suportar aquele quadro. Caminhavam
cabisbaixos, mudos e obstinados, em direção à corporação da loucura, da qual parecia
partir um vento frio que queria agarrar seus corações.
***
Os últimos cem metros foram um verdadeiro martírio.
Sabiam que para um ser normal esses cem metros eram apenas cem milímetros, e
que se até então não foram descobertos, era praticamente impossível que isso acontecesse
dali em diante. Mas apesar disso sentiram-se dominados pelo pânico.
De vez em quando dois ou três homens deixavam-se cair no chão e apontavam as
carabinas automáticas.
Rhodan tremia diante da idéia de que alguém poderia ser louco a ponto de puxar o
gatilho. As carabinas estavam carregadas com minifoguetes. Cada magazin em tambor
continha sessenta tiros. Normalmente cada projétil tinha sete centímetros de comprimento
e era capaz de pulverizar um abrigo de concreto. Só depois de algum tempo Rhodan
lembrou-se de que em virtude da redução de tamanho o sistema de rastreamento da
cúpula provavelmente nem registraria um ataque com projéteis de carabina providos de
cargas químicas, ou então nem o interpretaria como um verdadeiro ataque.
Apesar disso respirou aliviado quando atingiram a cúpula.
Constatou que visto dali o paredão nem parecia tão deprimente. Bastava que a gente
tentasse esquecer que ela subia a uma altura tão grande. Já não se notava isso. A parede,
que de longe parecia bem polida, quando vista bem de perto parecia antes uma paisagem
coberta de crateras do que uma parede de metal. Não se via uma superfície lisa.
Atlan soltou um gemido.
— Eu nunca seria capaz de sonhar com uma coisa dessas, bárbaro, nunca! Se me
lembro que estamos mais ou menos na mesma situação de um micróbio que sobe pelos
poros de ferrugem de um balde que para nós é bem polido...
— Procure não pensar nisso, amigo! — cochichou Rhodan. — Estou me esforçando
há bastante tempo para não pensar nessas coisas.
Deu ordem para que fosse feita uma pausa de vinte minutos. Queria que os homens
tivessem tempo para distanciar-se um pouco das impressões deixadas pela marcha e
familiarizar-se com o problema que os desafiava. Como entrar na cúpula?
— Então, senhor, o que pretende fazer em seguida? — perguntou Tolot, deixando-
se cair no chão, fazendo com que o solo, que já estava vibrando, estremecesse ainda mais.
Atlan respirou profundamente.
— Se fosse você, proibiria perguntas ingênuas como esta.
Rhodan suspirou.
— Nesta altura nem sou capaz de exaltar-me com ninharias desse tipo, arcônida. —
Olhou atentamente para Tolot. — Sugiro que recue cem metros para tomar impulso e
atravesse a parede. Se usar seu metabolismo para que seu corpo fique duro como aço
terconite, isso não será difícil.
— Acho que o senhor está debochando de mim. — Tolot deu uma risadinha. —
Cem metros de impulso. Como sabe, em relação à cúpula seriam apenas dez centímetros.
Além disso, por maior que seja o impulso, e mesmo que o material de que é feita a cúpula
seja menos duro que o aço terconite, minha corrida chegaria ao fim no interior da camada
corroída. Esta é a realidade, senhor.
— A mesma coisa disse a pulga ao picar o pé do elefante — observou Melbar
Kasom, que acabara de aproximar-se.
Rhodan protegeu os olhos com a mão e jogou a cabeça para trás, para ver o paredão
coberto de depressões de dois metros de profundidade. Os raios do sol B, que já estava no
poente, misturaram-se à luz ainda vigorosa dos outros sóis do planeta Horror, produzindo
um jogo colorido e inebriante de luzes e sombras. Em meio à paisagem de crateras que se
estendia na vertical. No momento Rhodan não tinha olhos para isso. Fechou-os, sacudiu a
cabeça e voltou a abri-los.
— Não sei — disse em tom hesitante. — Tenho-a impressão de que lá em cima
existe uma abertura da qual estão saindo vapores.
— É verdade, senhor — disse Kasom em tom alegre. — A abertura é a cabeça do
cachimbo do Tenente Burdick, e os vapores são a fumaça de seu tabaco malcheiroso. Este
sujeito de carne e osso escolheu justamente o alpinismo como seu hobby. Imagine! Um
astronauta...! De qualquer maneira, há pouco eu o vi escalar um poro de ferrugem após o
outro. Ainda existe gente que tem o sentido do romântico.
Rhodan levantou e empertigou o corpo.
— Kasom, o homem que está lá em cima deveria ser condecorado. Sabe por quê?
— N... não senhor.
— Mas eu sei — disse Tolot. — Porque sua atitude significa a atitude humana
diante da natureza aparentemente indomável. É justamente por isso que os halutenses
sentem tanta admiração pela raça humana.
Nesse momento ouviu-se um rugido surdo. Os homens sobressaltaram-se.
Melbar Kasom parecia embaraçado.
— Queiram desculpar. Meu estômago está roncando.
4
Wuriu Sengu estava parado à frente de Rhodan, com uma expressão de indiferença
no rosto. Sabia controlar-se muito bem.
— Sengu! — disse Rhodan em tom enfático. — Sua hora chegou. Depende
exclusivamente do senhor que encontremos ou não o calcanhar de Aquiles desta estação.
— Se é que o mesmo se encontra justamente nesta estação — acrescentou Atlan
com o rosto sério.
Os lábios de Rhodan estreitaram-se.
— Arcônida — disse em tom contrariado. — No momento não queremos previsões
pessimistas. Você já deve ter compreendido que não estamos em condições de atingir
uma das outras cúpulas. As mais próximas ficam a quarenta quilômetros. Para nós são
quarenta mil quilômetros.
Atlan colocou a mão sobre o ombro do amigo.
— Está bem, meu jovem. Não quero deixar ninguém desanimado.
— Mesmo que quisesse, não conseguiria! — disse Sengu. Uma expressão de
orgulho apareceu em seus olhos. — Se desistíssemos facilmente, nem estaríamos aqui.
Atlan deu um passo para trás. Parecia contemplar atentamente a parede de aço
acidentada.
Rhodan foi o único que viu o sorriso sábio que brincou em torno dos lábios do
arcônida. Sabia que Atlan acabara de aplicar mais um de seus truques psicológicos para
que a determinação dos membros do comando se tornasse ainda mais inquebrantável.
— Quer que eu vá na frente? — perguntou Sengu. — Ou preferem acompanhar-
me?
— Daqui o senhor não vê muita coisa, não é mesmo? — perguntou Rhodan.
— Não vejo absolutamente nada, senhor.
Rhodan limitou-se a acenar com a cabeça, sem demonstrar a decepção que estas
palavras tinham provocado nele. Em condições normais o mutante-espia era capaz de
enxergar através da matéria sólida, mesmo a grande distância. Acontece que o campo de
condensação inibia as faculdades parafísicas dos mutantes. Em alguns casos essa inibição
chegava a cem por cento. Seria esperar muito que Sengu não fosse afetado pelo mesmo.
— Tenente Burdick!
Ray Burdick aproximou-se. Calçara luvas resistentes e já enrolara a corda de
alpinista em torno do corpo e dos ombros, para proteger estes segundo as regras de sua
arte. O laço duplo de auto-proteção balançava nas curvas dos joelhos.
Rhodan não pôde deixar de sorrir.
— É verdade que pratica o alpinismo como hobby?
— Sim senhor.
— Gostaria que me dissesse uma coisa. Onde encontra oportunidade para praticar
seu hobby, se permanece meses e até anos a fio a bordo da Crest?
Burdick ficou vermelho. Lançou um olhar embaraçado para o Coronel Cart Rudo.
— Senhor, nas paredes do hangar de naves auxiliares existem numerosas saliências
e reentrâncias. São plataformas de reparos e de vigilância, rampas de testes, travessas,
etc. Quando estava de folga...
— Tenente...! — exclamou Rudo em tom indignado: — Quer dizer que resolveu,
sem minha permissão...
— Faça o favor de por enquanto deixar de lado os regulamentos de bordo! —
Rhodan fitou o comandante da Crest com uma expressão de súplica. — No momento só
estou interessado em saber se o condicionamento do Tenente Burdick basta para
superarmos a etapa de escalada. Tenente Burdick, o senhor fica incumbido de comandar
o grupo durante a escalada. Providencie para que todos atem as cordas corretamente e se
protejam durante a escalada. Entendido?
Ray Burdick ficou em posição de sentido.
— Sim senhor! Permite que transmita imediatamente minhas instruções?
— Faça o favor.
Rhodan virou a cabeça e fitou Cart Rudo com uma expressão de satisfação,
enquanto o Tenente Burdick começava sem o menor constrangimento a comandar os
homens do grupo e dar-lhes instruções sobre o comportamento que deveriam adotar
durante a escalada.
— O senhor tinha um mestre em sua arte a bordo e nem desconfiava — disse com
uma risada.
— Ainda lhe darei um puxão nas orelhas de carneiro. Não tenha a menor dúvida,
senhor! — disse Rudo em tom zangado.
Estava rindo com os olhos e Rhodan sabia perfeitamente que Ray Burdick desta vez
escapara.
Ray Burdick realmente se esforçou ao máximo e, conforme logo se viu, realmente
entendia de alpinismo. Quando começou a subir pela parede, nome que deu ao paredão da
cúpula, seus movimentos eram tão ágeis e seguros como os de qualquer outra pessoa que
se locomove numa superfície horizontal. Icho Tolot era o único que talvez poderia
excedê-lo. Mas Tolot não era terrano, e nunca seria capaz de conduzir os homens tão bem
quanto Burdick, pois era simplesmente incapaz de prever as dificuldades que os mesmos
iriam enfrentar.
“Até parecemos moscas subindo numa parede”, pensou Rhodan dali a dez minutos,
ao olhar para baixo.
Felizmente Tolot, Kasom e Rudo não precisavam do auxílio de Burdick, e a mesma
coisa acontecia com Don Redhorse, que se recusava terminantemente a amarrar-se numa
corda. Taka Hokkado percorreu rapidamente os primeiros quinze metros, mas quando
não pôde tomar mais nenhum impulso, falhou por completo. Em compensação o Tenente
Eyseman, que de início sempre se mantivera bem perto de Burdick, logo pôde
desempenhar as funções de assistente do mesmo. O que mais atrapalhava eram
naturalmente os pacotes de explosivos, tanto os que os homens traziam sobre o próprio
corpo como aqueles presos às plataformas dos carros. As rodas dos mesmos tinham sido
desmontadas. Apesar disso as armações muitas vezes ficavam presas a saliências
pontudas, fendas e reentrâncias e tinham de ser cuidadosamente afastadas dessas
irregularidades, para evitar que alguma das cargas se derramasse.
Finalmente Sengu soltou um grito de alívio. Rhodan já esperava por isso há muito
tempo e imediatamente deu sinal para que os homens se reunissem.
Os membros do comando foram chegando um após o outro e penduraram-se nas
saliências e reentrâncias existentes no interior dos poros de ferrugem. Wuriu Sengu
estava de pé no interior de um poro mais profundo, com o rosto comprimido contra a
parede.
Um silêncio profundo passou a reinar em torno dele. Ray Burdick acendeu o
cachimbo e aspirou gostosamente a fumaça, deixando as pernas balançarem sobre a borda
do abismo que tinha centenas de metros de profundidade, mas que na realidade deveria
ser medido em centímetros.
Finalmente, quando para Rhodan os minutos já se tornavam martirizantes, Sengu
virou a cabeça. A pele de seu rosto se tornara cinzenta.
— Então...? — perguntou Atlan, aflito.
Sengu mostrou um sorriso resignado, que revelava um cansaço infinito.
— Consegui olhar para dentro, mas... — aspirou profundamente o ar... — não sei o
que vi. Aos meus olhos as máquinas que se encontram nesta cúpula são grandes demais.
Só enxergo uma pequena fração de um conjunto que talvez só tenha dez metros de altura.
Não devemos esquecer que para mim — ou melhor, para nós — dez metros se
transformaram em dez quilômetros. Vi uma coisa que deve ser o visor de um distribuidor
de energia sem fio. O mesmo preencheu totalmente meu campo de visão, embora
normalmente talvez tenha dez centímetros de diâmetro. À direita do mesmo vi o começo
de uma parede energética brilhante. Provavelmente trata-se de um condutor de campo ao
ar livre. — Deixou cair o ombro.
Todos viraram-se abruptamente quando de repente ouviram fortes pancadas.
Conrado Nosinsky, que estava parado num poro de ferrugem, com os punhos
ensangüentados erguidos, procurava resistir em vão aos braços de Ray Burdick que o
enlaçavam. Burdick voltou a golpear com a mão aberta. O rosto de Nosinsky ficou muito
vermelho, mas dali a pouco um véu parecia cair de cima dos olhos do tenente.
Este baixou os punhos.
— Muito obrigado, Burdick.
— O que houve? — perguntou Rhodan, embora imaginasse o que era.
— Ele começou de repente a bater na parede com os punhos — respondeu Burdick.
Estendeu as mãos e sorriu. — Isto aqui ainda é a terapia de choque mais eficiente, senhor.
— Queira desculpar, senhor — disse Nosinsky em tom embaraçado.
Rhodan limitou-se a acenar com a cabeça. Depois voltou a dirigir-se ao grupo.
— Como vêem, muitas surpresas nos estão reservadas. A fantasia humana
praticamente só vive das experiências colhidas pela Humanidade e por isso não é capaz
de imaginar qualquer coisa que fique fora do campo destas experiências. Por isso a
situação em que nos encontramos constantemente nos reserva novas surpresas, muito
embora o problema básico seja conhecido de todos. Alguém tem uma sugestão de como
levar a operação a um final feliz, apesar da pequenez a que estamos reduzidos?
— Posso falar, senhor? — perguntou a voz retumbante de Tolot, superando o ruído
das máquinas instaladas na cúpula, que vinha do alto.
— Ora veja! — observou Atlan em tom sarcástico. — O homem que traz consigo
um computador orgânico vai oferecer a solução numa bandeja.
Tolot não respondeu à observação.
— Quando nos aproximávamos da cúpula, vi algumas aberturas que só podem ter
por finalidade a ventilação. Circundam a cúpula a intervalos relativamente reduzidos.
Estes anéis continuam para cima. Acho que deveríamos entrar em uma dessas aberturas
de ventilação e tentar descobrir lá dentro alguma máquina importante embaixo da qual
possamos colocar nossas cargas.
— Quer dizer que em sua opinião devemos confiar num acaso feliz — observou
Atlan.
— Em minha opinião — disse Rhodan em tom compenetrado, na situação em que
nos encontramos não existe outro plano praticável além do de Tolot. Se o cérebro
programador de Tolot não conseguiu chegar a uma solução melhor, então nós também
não poderemos. A que altura se encontra o primeiro círculo de aberturas de ventilação,
Tolot?
— Pelos meus cálculos — respondeu o halutense com a voz mais baixa que de
costume — a três metros de altura, para seres que conservem o tamanho normal...
Atlan suspirou profundamente.
— O senhor tem todo motivo para suspirar — disse Rhodan em tom sarcástico e
com uma ponta de amargura. — São três mil metros de uma parede íngreme, quando por
enquanto não subimos mais de quatrocentos metros...!
***
Quando chegaram a dois quilômetros de altura, fizeram a quinta pausa.
Os homens quiseram entrar no canto mais profundo do poro de ferrugem em que se
encontravam e deitar para dormir, mas Rhodan deu ordem para que a pausa só fosse
aproveitada para um pequeno lanche. Receava que uma parada mais prolongada e uma
descontração total pudessem pôr em risco o resto da subida.
Lançou um olhar para Ray Burdick, e este limitou-se a acenar com a cabeça. Era um
alpinista experimentado, e por isso compartilhava as preocupações de Rhodan.
Dessa forma o grupo voltou a pôr-se em movimento depois de dez minutos de
descanso. Quase ninguém se arriscava a olhar para o abismo formidável que se abria
diante deles. Fazia uma diferença enorme flutuar no espaço, num teste de exercício, ou
estar pendurado num paredão íngreme, a dois mil metros acima do solo e sob os efeitos
da gravidade.
As conversas já tinham cessado há muito tempo. Os homens subiam metro após
metro, com uma raiva obstinada. Estavam próximos ao esgotamento total, ainda mais que
sabiam que na verdade cada metro era somente um milímetro. Até mesmo a respiração de
Kason e Rudo era mais rápida e ruidosa que de costume.
Icho Tolot era o único que nem parecia importar-se com a escalada. O halutense
estava arrastando quatro carros e se incumbira de carregar parte da bagagem de Hokkado.
Bem que Rhodan também gostaria de aliviar a carga de um dos companheiros. Mas até
ele tinha de fazer constantemente um grande esforço para não sucumbir a um acesso de
fraqueza e soltar a corda. O sangue aquecido martelava dolorosamente em sua cabeça.
Além disso o rugido e as vibrações tornavam-se cada vez mais fortes.
— Faltam cinqüenta metros! — informou Tolot quando mais uma eternidade se
tinha passado.
— Vamos fazer a última pausa! — disse Rhodan.
Sabia que não era conveniente fazer um descanso quando se encontravam tão perto
do destino, mas simplesmente não agüentava mais. Névoas vermelhas agitavam-se à
frente de seus olhos.
Dali a dez minutos, quando pretendiam partir de novo, Rhodan percebeu que a
fraqueza física lhes salvara a vida.
De repente o rugido cresceu, transformando-se num estrondo e num chiado infernal.
O barulho foi tamanho que até se poderia pensar que uma espaçonave que se encontrava
nas imediações estivesse acionando seus propulsores a plena potência.
O ar ficou aquecido. Os dedos de Rhodan agarraram-se a uma fenda produzida pela
corrosão. Respirava com dificuldade. Uma chuva de fragmentos aquecidos passou por ele
e precipitou-se para baixo. Eram minúsculas partículas de ferrugem que o furacão
desprendera da parede.
O canto da fenda em que estava agarrado quebrou quando um objeto pesado caiu
sobre seus braços. A corda de segurança cedeu. Rhodan percebeu que estava
escorregando inexoravelmente para baixo. Cuspiu, tossiu e fungou quando um líquido
quente lhe entrou pela boca. O cheiro de suor, poeira, ferrugem e sangue enchia o ar.
De repente sentiu um forte solavanco.
Ouviu vozes que pareciam vir de longe. O rugido do furacão cessou. Mas parecia
estar escuro.
— Aqui! Segure-se! — disse a voz de Eyseman.
Voltou a ficar claro. Rhodan foi subindo centímetro após centímetros, aos
solavancos, até que se viu agachado novamente no interior de seu poro de ferrugem. Só
então percebeu que ficara suspenso sem o menor apoio sobre o abismo. Passou a mão
pelo rosto e contemplou com uma expressão de espanto a luva que se tingira de
vermelho.
Ao lado dele um passo produziu um rangido.
— Quebrou o nariz, amigo? — perguntou a voz preocupada de Atlan.
Só nesse momento Rhodan voltou a enxergar perfeitamente. Reconheceu o Tenente
Finch Eyseman, Atlan e um corpo sem vida que estava sendo puxado para cima em duas
cordas.
— Quem é? — perguntou.
— Redhorse — respondeu Atlan. — Foi atingido por pedaços de ferrugem. Caiu
sobre você de quatro metros de altura. Se não fosse assim, a esta hora estaria deitado três
quilômetros mais embaixo.
Rhodan estremeceu.
— Está muito ferido?
— Está sendo examinado por Haduy Lam — respondeu Atlan. — Se não fosse
Eyseman, você e ele estariam deitados lá embaixo. Estava a dois ou três metros quando
Redhorse caiu sobre você e a corda que o segurava se desprendeu. Teve tanta presença de
espírito que se deixou balançar em sua corda e segurou você e Eyseman na corda que
prendia você, até que conseguimos chegar mais perto.
Rhodan levantou-se cambaleante.
— Tenho de agradecer-lhe. Onde está?
Lançou um olhar perplexo para o lugar em que ainda há pouco estivera sentado o
jovem tenente. Atlan deu uma risada áspera.
— Ele desconfiava de que você iria agradecer e deu o fora.
Rhodan limpou o sangue que ainda estava grudado em seus lábios. Notou que os
mesmos estavam rachados. O nariz parecia inchado e estava dormente.
— Só agora você ostenta a verdadeira pintura do guerreiro! — observou Atlan em
tom irônico.
Rhodan não deu nenhuma resposta. Sabia perfeitamente que o arcônida estava
próximo ao esgotamento psíquico e por isso procurava refugiar-se no cinismo.
Sacudiu a fraqueza.
— Venha, lorde-almirante! Vamos ver como vai Redhorse. Depois verificaremos
qual foi a causa do furacão.
Felizmente os ferimentos de Redhorse não eram perigosos. Os ombros e braços do
capitão estavam cheios de estilhaços de ferrugem, mas o enfermeiro do grupo, Haduy
Lam já tinha removido os maiores. Era bem verdade que a perda de sangue enfraquecera
bastante o cheiene. Ele não seria capaz de locomover-se com suas próprias forças.
Quando Lam concluiu o tratamento precário de Redhorse, Icho Tolot apareceu. Só
então Rhodan notou a ausência prolongada do mesmo.
— Alguma novidade? — perguntou.
— Nada de bom, senhor. A abertura não tem por finalidade a insuflação de ar, como
acreditava, mas a exaustão. Ao que parece, o sistema de exaustão não funciona
ininterruptamente. O ar aquecido é expelido pelo canal a intervalos regulares. Quando a
coisa começou, encontrava-me cerca de cinco metros abaixo do mesmo. Se fosse um ser
humano...
Não concluiu a frase, mas os que o ouviram sabiam perfeitamente o que queria
dizer.
— Realmente é uma notícia desagradável — disse Rhodan depois de uma ligeira
pausa.
— Sugiro que aguardemos a próxima fase de funcionamento do sistema de
exaustão. Só assim poderemos saber quanto tempo dura cada pausa.
Rhodan sacudiu a cabeça.
— Talvez tivéssemos de esperar um dia inteiro. Durante a subida só notamos uma
única vez os fenômenos que acompanham a exaustão. Dali se conclui que os intervalos
são grandes. Vamos partir imediatamente!
***
Os últimos cinqüenta metros de percurso antes pareciam uma fuga. Os homens
fugiam do pavor que lhes inspirava o abismo de três quilômetros de profundidade e da
impressão deprimente de estarem rastejando como micróbios pelos poros de ferrugem da
estação que queriam destruir.
Mas ninguém pode ignorar os fatos. A abertura do canal de exaustão poderia causar
por um breve espaço de tempo a ilusão de que se deslocavam como homens normais num
túnel muito grande. Os intervalos de cerca de dez metros que existiam entre as colunas de
aço de três metros de espessura pareciam ser uma grade, e a semelhança tomava-se cada
vez mais acentuada à medida que os homens se afastavam das mesmas.
Com isso voltou a sensação de vazio interior e a tensão psíquica.
Um canal de ventilação de vinte e cinco centímetros de diâmetro, situado a três
metros de altura e coberto por tela de arame de três milímetros de espessura, que o
protegia contra as plantas e os insetos maiores passara a ser, para os homens que tiveram
seu tamanho reduzido de forma tão cruel, um gigantesco túnel de duzentos e cinqüenta
metros de diâmetro, revestido com uma estrutura em favos feita de colunas de aço de três
metros de espessura e situado três mil metros acima do solo que oferecia uma segurança
relativa...
E a tudo isso se juntava o ruído causado pelos átomos liberados...
Este último inconveniente já era esperado. Os tapa-ouvidos tirados das salas de
máquinas da Crest absorveram boa parte do rugido infernal. Mas o que restava era
suficiente para forçar ao máximo os nervos dos homens, cuja tensão quase atingia o
limite de resistência.
Mas pelo menos não tinham que subir verticalmente, de um poro de ferrugem para
outro. Deslocavam-se num terreno relativamente plano. Os gases das gigantescas
unidades geradoras, expelidos a intervalos regulares, tinham impedido completamente a
corrosão. Só havia algumas ranhuras retilíneas, retas e bem polidas, que corriam ao longo
da parede, que mostrava um abaulamento quase imperceptível.
Os quinze homens que formava no comando entraram correndo no túnel, impelidos
pela coragem do desespero e numa revolta surda contra a impotência física.
Levaram apenas quinze minutos para chegar pouco acima do primeiro pavimento da
cúpula. Atordoados, olharam para uma sala de geradores, que parecia estender-se ao
infinito.
O recinto tinha dez quilômetros de diâmetro, e para aqueles homens estes dez
quilômetros transformaram-se em dez mil quilômetros, o equivalente de um quarto da
circunferência da Terra na altura do Equador...
Era um mundo estranho e apavorante, formado por aço, barulho infernal e
luminosos condutos aéreos, além de constantes descargas de raios, que causavam uma
alternância ininterrupta de penumbras e de lampejos explosivos acompanhados de fortes
estrondos.
Se no primeiro instante Rhodan acreditara que poderia realizar uma operação de
busca em grande estilo para descobrir o ponto mais sensível da estação, ele teve de
abandonar seu plano no mesmo instante.
O mundo cheio de pavor indescritível em que se encontravam era cheio de
surpresas. Nuvens de poeira de vários metros de altura dançavam num ritmo louco, ao
som das vibrações, formando um véu opaco que cobria o chão do recinto. Os lampejos
ofuscavam os homens e faziam lacrimejar seus olhos. Os membros do comando tiveram
de fazer um grande esforço para permanecer de pé.
Mas o pior era o barulho. Além de praticamente tornar impossível a comunicação
por meio de sinais acústicos e provocar uma surdez total numa questão de segundos, as
vibrações sonoras pareciam agulhas incandescentes que perfuravam os corpos frágeis,
principalmente a parte mais sensível dos mesmos: os cérebros.
Até parecia uma série de bombas atômicas explodindo em rápida seqüência.
Rhodan permaneceu num estado de rigidez que durou alguns segundos. Nestes
segundos experimentou sofrimentos psíquicos mais cruéis que os que normalmente lhe
estavam reservados no curso de vários decênios. Compreendeu que eram homenzinhos
minúsculos, insignificantes demais para produzir qualquer dano a este mundo abrigado
embaixo da cúpula com as forças violentas liberadas em seu interior.
Mas apesar de tudo a chama quente da esperança continuava acesa atrás das
ponderações que lhe apresentava a razão. Esperava que ainda seria capaz de fazer alguma
coisa contra o destino que se afigurava imutável.
Fez alguns sinais com a mão, para comunicar seu plano desesperado aos outros.
Saltou os dois metros que o separavam das poeiras agitadas.
Feito isso, saiu correndo imediatamente. O coração batia em seu peito com a força
de um martelete mecânico. Respirava com dificuldade em meio às densas nuvens de pó,
foi empurrado para a frente pelas ondas do tremor, atirado para cima e arremessado para
trás, esbarrou em outros membros de seu grupo, agarrou-se à barra de tração trêmula de
um carrinho e num minuto perdeu quase por completo o senso de orientação.
Lágrimas de raiva corriam por seu rosto. Viu lágrimas iguais no rosto de Atlan, que
apareceu por alguns segundos como um fantasma em meio ao cinza trêmulo e logo voltou
a desaparecer.
De repente bateu numa rocha em meio às ondas de barulho, poeira e luzes.
Uma mão de ferro agarrou seu braço. Sentiu-se empurrado para junto de outras
pessoas. Quando conseguiu lançar um olhar em meio às lágrimas, viu que Tolot estava
reunindo o grupo.
O halutense dirigia todo o comando juntamente com os suprimentos de
combustível, com exceção de Don Redhorse, que fora deixado junto à saída. Levava os
homens para junto de um inferno barulhento de campos condutores com suas ondas de
energia deslocando-se ora num sentido, ora noutro.
Na opinião de Rhodan devia tratar-se de um gigantesco centro de distribuição de
energia, que conduzia ao ar livre, e ligava os geradores de parte da cúpula com os mais
variados centros de consumo, ou desligava o suprimento, conforme a necessidade.
Sentiram-se um pouco menos ofuscados quando chegaram embaixo de um telhado
baixo que cobria um enorme pavilhão de cerca de dez metros de altura, situado no
interior do pavilhão maior. “Mas é provável”, pensou, “que só se trata da chapa de fundo
do conjunto, e a distância que separa a mesma do piso da cúpula corresponde a
dispositivos amortecedores de alguns centímetros de espessura.”
A visibilidade ficou maior e Rhodan viu Kasom e Rudo ao lado de Tolot. Os dois
ajudavam o halutense a manter unido o grupo. Mas também viu suas bocas abertas e os
rostos vermelho-azulados e concluiu que isso lhes custava um esforço quase sobre-
humano. Procurou localizar Acter Burrol no meio a confusão. Era o homem que tinha
preparado os pacotes de explosivos e que os acoplaria uns aos outros. Depois de algum
tempo Atlan descobriu o naesdniquense. Foi quando Atlan tropeçou num obstáculo e
descobriu que se tratava do corpo de Burrol. Sentiram-se aliviados ao perceber que o
receio de que o técnico de explosivos pudesse estar inconsciente era infundado. Acter
Burrol simplesmente preferira andar de quatro. Os outros logo o imitaram. Rhodan
chegou à conclusão que dessa forma realmente se tornava mais fácil suportar as
vibrações.
Finalmente Burrol concluiu seu trabalho, exceto a regulagem final do detonador.
Perguntou a Rhodan por meio de gestos qual deveria ser a regulagem.
Rhodan levantou a mão direita e abriu os dedos. Viu Burrol regular o detonador de
tempo para cinco horas e fitá-lo com uma expressão indagadora. Rhodan acenou
fortemente com a cabeça.
Dali a instantes Burrol desapareceu. Rhodan só compreendeu o que tinha
acontecido com o mesmo quando ele mesmo se sentiu arrastado. Alguém — devia ser
Tolot e os outros dois gigantes — tinha ligado todos os membros do grupo por meio de
cordas de nylon. No seu íntimo Rhodan disse que a pessoa que tinha feito isso era seu
anjo da guarda, pois não tinha a menor dúvida de que de outra forma a fuga conjunta
seria praticamente impossível.
Dali em diante qualquer atraso poderia representar a morte...
Às vezes os homens corriam, às vezes arrastavam-se uns aos outros. Lutavam para
atingir a saída, fungando sem que ninguém os ouvisse, em meio ao inferno que
estrondava, bramia, trovejava, relampejava e trepidava, formando um mundo que nas
dimensões e nas direções não era o seu mundo. Sentiam-se martirizados por tremendas
dores físicas e psíquicas.
Em algum lugar, embaixo do suporte de um conjunto, tiquetaqueava o relógio de
um detonador de tempo. O momento da explosão aproximava-se inexoravelmente.
O que viria depois...?
5
***
**
*
Conseguiram chegar ao centro do pavor,
pois possuíam a coragem do desespero! Mas
tiveram de reconhecer que os recursos de que
dispunham eram insuficientes para danificar
seriamente os gigantes. Por isso só lhes resta
uma esperança: a operação de salvamento a ser
realizada pela Androtest II.
Enquanto Rhodan e seus companheiros
estão presos no planeta Horror, à espera da
nave de quatro estágios, em outro lugar, bem
longe dali, o planeta Kahalo é redescoberto
pelos terranos — e A Luta Pelas Pirâmides é
travada... História do próximo volume da série
Perry Rhodan.