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A missão de PER MUSI - Revista Acadêmica de Música é 2 - Todos os exemplos musicais, figuras ou tabelas devem The mission of PER

The mission of PER MUSI - Revista Acadêmica de Música 2 - All musical examples, figures and tables must be in
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MUSI é uma publicação semestral do Programa de Pós- 3 - Para citações no texto, utilizar referências simples com Program of the Music School of the Federal University of 1983, p.139)...”. Endnotes (Arial 10) should be used only
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REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA

volume 15
janeiro / junho - 2007

ISSN: 1517-7599
Editorial
Temos o prazer de apresentar o número 15 de Per Musi - Revista Acadêmica de Música, inteiramente dedicado à voz, o instrumento
primal do ser humano na sua história de fazer música e se comunicar. A motivação para uma edição temática de Per Musi, decorreu
da realização, em outubro de 2005, do III Seminário de Canção Brasileira na Escola de Música da UFMG, em Belo Horizonte. Este Semi-
nário, promovido pelo grupo de pesquisa da UFMG Resgate da Canção Brasileira, contou com a presença de professores convidados de
diversas universidades do país e da própria UFMG, que apresentaram trabalhos relacionados à canção de câmara brasileira, abordando
desde propostas metodológicas de análise e interpretação deste gênero vocal até estudos comparativos, em conjunção com a musico-
logia, literatura, lingüística, fonoaudiologia, filosofia e psicanálise.

Abrindo este número 15 de Per Musi, o musicólogo inglês Daniel Leech-Wilkinson, em tradução, apresenta um texto denso e intrigante so-
bre a trajetória do portamento na história da música, focando especialmente na sua utilização, por cantores famosos, antes, durante e depois
das Guerras Mundiais, construindo uma hipótese que explica os motivos de mudança de seu valor estético nos estilos de performance.

Thaïs Cristófaro Silva nos apresenta uma proposta de organização da nova tabela normativa de pronúncia do português brasileiro
cantado, um esforço nacional que se encaminha para uma versão conclusiva, após uma série de encontros de Grupos de Trabalho,
realizados por professores de canto, cantores e fonólogos do país.

Na mesma direção, Martha Herr colabora com uma discussão sobre as mudanças ocorridas no português falado e suas decorrências na
interpretação da canção brasileira, enfocando principalmente documentos históricos relacionados a congressos ocorridos em 1938 e 1956.

A partir de referenciais da semiologia e da história oral, do estudo de gravações fonográficas e da análise de elementos como expressão,
intenção, significado, estrutura, forma, percepção, improvisação, gestualidade e encenação, Lucila Tragtenberg recorre à história oral de
três cantores - Marcelo Coutinho, Inácio de Nonno e Eladio Pérez-González - para refletir sobre as estratégias de interpretação em três
canções do compositor Luis Carlos Csekö.

Representando uma das vertentes do projeto Resgate da Canção Brasileira, do qual que participam (veja entrevista nesse número de Per Musi),
Mônica Pedrosa de Pádua e Margarida M. Borghoff discutem uma das primeiras peças para canto e piano de Lorenzo Fernandez, A saudade
- Op.11, de 1921, lançando mão de procedimentos de análise musical e literária, que convergem a partir do “Sistema de Análise de Arte Com-
parada”, desenvolvido por Sandra Loureiro de Freitas Reis.

Célia Maria Domingues da Rocha Reis e Marco Donisete de Campos estudam a relação texto-música na transformação do poema A Valsa,
com versos idílicos do poeta romântico Casimiro José Marques de Abreu (1839-1860), na canção de mesmo nome para coro misto à capela do
compositor Mário Ferraro.

Em uma abordagem interdisciplinar, Andréa Alves Maia, Denise Utsch Gonçalves, Letícia Neiva de Menezes, Brígida Maris Franco Barbosa,
Priscila de Souza Almeida e Luciana Macedo de Resende apresentam os resultados de uma pesquisa sobre o perfil audiológico dos músicos de
uma orquestra sinfônica brasileira, chamando a atenção para a perda auditiva de origem ocupacional.

Juliana Grassi Pinto Ferreira aborda a influência da performance vocal no desenvolvimento das funções cognitivas e comunicativas
da linguagem oral da criança, apontando o canto como recurso pedagógico na comunicação, no auto-conhecimento, na auto-afir-
mação e letramento/alfabetização infantil, na preservação da saúde vocal.

Fausto Borém e André Cavazotti entrevistam Luciana Monteiro de Castro, Mônica Pedrosa de Pádua e Margarida Borghoff sobre
o “Resgate da Canção Brasileira” - uma recente e importante iniciativa de documentação, edição, análise e performance da canção
de câmara brasileira – falando sobre música e poesia, o ensino e a performance do repertório brasileiro, as particularidades do canto
erudito, popular e folclórico, o desenvolvimento de metodologias interdisciplinares de pesquisa para a área do canto.

Na seção Pega na Chaleira, trazemos três resenhas: Maria Betânia Parizzi avalia os CDs Poemas musicais e Toda cor de Cecília Cavalieri
França (o primeiro dos quais tem um livro de partituras correspondente),cujos conteúdos integram musicalização infantil e poesia;
Fausto Borém apresenta quatro pontos-de-vista em Ensaios: olhares sobre a música coral brasileira, do experiente quarteto de autores
Carlos Alberto Figueiredo,Elza Lakschevitz, Nestor de Hollanda Cavalcanti e Samuel Kerr; Martha Herr discute o livro O Canto Antigo
Italiano, no qual Alberto Pacheco aborda três tratados sobre a estética vocal italiana entre 1650 e 1900.

Finalmente, comemoramos 15 números de Per Musi com novo design gráfico e com a disponibilização do número 1 ao número 15
para download ou impressão gratuitos de todo os seus conteúdos e capas coloridas no site de Per Musi Online, no endereço www.
musica.ufmg.br/permusi. As versões impressas de quase todos os números da revista ainda podem ser adquiridas através do e-mail
mestrado@musica.ufmg.br.

Fausto Borém Luciana Monteiro de Castro


Editor de Per Musi Co-Editora de Per Musi n.15
PER MUSI - Revista Acadêmica de Música é um espaço democrático para a reflexão intelectual na área de música, onde a diversidade e o debate
são bem-vindos. As idéias aqui expressas não refletem a opinião dos Corpos Editoriais e Conselho Científico. PER MUSI está indexada nas bases RILM
Abstracts of Music Literature, The Music Index e Bibliografia da Música Brasileira da ABM (Academia Brasileira de Música).

Fundador e Editor Científico Agradecimentos especiais em função do


Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte) III Seminário de Canção Brasileira na Escola de Música da UFMG:
Adriana Giarola Kayama(UNICAMP), ÂngelaDias (UFG), Arnon Sávio
Co-Editora de Per Musi N.15 (UEMG), Eduardo Augusto Östergren (UNICAMP), José Vianey dos Santos
Luciana Monteiro de Castro (UFMG, Belo Horizonte) (UFPB), Leda Martins (Faculdade de Letras, UFMG), Liduino Pitombeira
(Louisiana State University, EUA), LincolnAndrade (UFMG), Luciana Mon-
Corpo Editorial Internacional teiro de Castro (UFMG), Manoel Câmara Rassian (UFMTS), Maurílio Nunes
Aaron Wilkinson (Royal College of Music, Londres, Inglaterra) Vieira (Departamento de Física, UFMG), Mauro Chantal (UFMG), Sandra
Anthony Seeger (University of California, Los Angeles, EUA) Loureiro de Freitas Reis (UFMG), Vladimir Silva (UFPI).
Eric Clarke (Oxford University, Oxford, Inglaterra) O corpo de pareceristas de PER MUSI e seus pareceres são sigilosos.
Denise Pelusch (University of Colorado, Boulder, EUA)
Florian Pertzborn (Instituto Politécnico do Porto, Porto, Portugal)
Jean-Jacques Nattiez (Université de Montreal, Montreal, Canadá) Revisão Geral
João Pardal Barreiros (Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal) Fausto Borém (UFMG)
Jose Bowen (Southern Methodist University, Dallas, EUA) Maria Inêz Lucas Machado (UFMG)
Lewis Nielson (Oberlin Conservatory, Oberlin, EUA) Luciana Monteiro de Castro (UFMG)
Lucy Green (University of London, Institute of Education, London, Inglaterra)
Marc Leman (Ghent University, Ghent, Bélgica) Universidade Federal de Minas Gerais
Melanie Plesch (Univ. Católica, Univ. de Buenos Aires, Buenos Aires, Reitor Prof. Dr Ronaldo Tadêu Pena
Argentina) Vice-Reitora Profa. Dra. Heloisa Maria Murgel Starling
Nicholas Cook (Royal Holloway, Eghan, Inglaterra)
Silvina Mansilla (Universidad Católica, Buenos Aires, Argentina) Pró-Reitoria de Pós-Graduação
Xosé Crisanto Gándara (Universidade da Coruña, Corunha, Espanha) Prof. Dr Jaime Arturo Ramirez
Thomas Garcia (Miami University, Miami, EUA)
Pró-Reitoria de Pesquisa
Corpo Editorial no Brasil Prof. Dr Carlos Alberto Pereira Tavares
André Cavazotti (UFMG, Belo Horizonte)
Cecília Cavalieri (UFMG, Belo Horizonte) Escola de Música da UFMG
Cristina Capparelli Gerling (UFGRS, Porto Alegre) Prof. Dr. Lucas José Bretas dos Santos, Diretor
Diana Santiago (UFBA, Salvador)
Fernando Iazetta (USP, São Paulo) Programa de Pós-Graduação em Música da UFMG
José Vianey dos Santos (UFPB, João Pessoa) Prof. Dr. Maurício Loureiro, Coordenador
Lucia Barrenechea (UNIRIO, Rio de Janeiro) Prof. Dr. Fausto Borém, Sub-Coordenador
Márcia Taborda (UFSJR, São João del Rey)
Maurício Alves Loureiro (UFMG, Belo Horizonte) Secretária de Pós Graduação
Maurílio Nunes Vieira (UFMG, Belo Horizonte) Edilene Oliveira
Norton Dudeque (UFPR, Curitiba)
Rafael dos Santos (UNICAMP, Campinas) Planejamento e Produção
Rosane Cardoso de Araújo (UFPR, Curitiba) Iara Veloso - CEDECOM/UFMG
Salomea Gandelman (UNIRIO, Rio de Janeiro) Andréa Fernandes (estagiária), Júlia Bragança (trainee) e Juliana Lopes
Sônia Ray (UFG, Goiânia) (estagiária) - CEDECOM/UFMG
Vanda Freire (UFRJ, Rio de Janeiro)
Projeto Gráfico
Conselho Científico Capa e miolo: Sérgio Lemos - CEDECOM/UFMG
Acácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC, Florianópolis) Diagramação: Samuel Rosa Tou - CEDECOM/UFMG
Adriana Giarola Kayama (UNICAMP, Campinas)
André Cardoso (UFRJ, Rio de Janeiro) Tiragem
Ângelo Dias (UFG, Goiânia) 250 exemplares
Arnon Sávio (UEMG, Belo Horizonte)
Beatriz Salles (UNB, Brasília)
Cíntia Macedo Albrecht (UNICAMP, Campinas)
Eduardo Augusto Östergren (UNICAMP, Campinas)
Fabiano Araújo (FAMES, Vitória)
Flávio Apro (UNESP, São Paulo)
Guilherme Menezes Lage (FUMEC, Belo Horizonte)
José Augusto Mannis (UNICAMP, Campinas)
ABM
Lea Ligia Soares (EMBAP, Curitiba)
Lincoln Andrade (UFMG, Belo Horizonte) PER MUSI: Revista Acadêmica de Música - n.15, janeiro / junho, 2007 -
Luciana Del Ben (UFRGS, Porto Alegre) Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, 2007 –
Manoel Câmara Rasslan (UFMTS, Campo Grande)
n.: il.; 29,7x21,5 cm.
Pablo Sotuyo (UFBA, Salvador) Semestral
Patrícia Furst Santiago (UFMG, Belo Horizonte) ISSN: 1517-7599
Sandra Loureiro de Freitas Reis (UFMG, Belo Horizonte)
1. Música – Periódicos. 2. Música Brasileira – Periódicos.
Vladimir Silva (UFPI, Teresina) I. Escola de Música da UFMG
Sumário
ARTIGOS CIENTÍFICOS
Portamento e significado musical 7
Portamento and musical meaning
Daniel Leech-Wilkinson
Tradução de Fausto Borém
Algumas questões representacionais acerca da Tabela Normativa para o
português brasileiro cantado 26
Some representational issues related to the Brazilian Portuguese Normative Chart for Singers
Thaïs Cristófaro Silva
Mudanças nas Normas para a boa pronúncia da língua portuguesa no
canto e no teatro no Brasil: 1938, 1956 e 2005 35
Changes in Norms for the Proper Prouniciation of the Portuguese Language for
Singing and Theater in Brazil: 1938, 1956 and 2005
Martha Herr
Performance vocal: expressão e interpretação 41
Vocal performance: expression and interpretation
Lucila Tragtenberg
Imagens na canção A saudade Op. 11 de Lorenzo Fernandez:
uma abordagem intersemiótica 47
Images in Lorenzo Fernandez’s art song A saudade Op. 11: an intersemiotic approach
Mônica Pedrosa de Pádua
Margarida M. Borghoff
Entre o poema e a partitura: A Valsa, de Casimiro de Abreu 55
Between the poem and the score: A Valsa, of Casimiro de Abreu
Célia Maria Domingues da Rocha Reis
Marco Donisete de Campos
Análise do perfil audiológico de músicos de orquestra sinfônica 67
Auditory profile of symphony orchestra musicians
Andréa Alves Maia, Denise Utsch Gonçalves, Letícia Neiva de Menezes,
Brígida Maris Franco Barbosa, Priscila de Souza Almeida
Luciana Macedo de Resende
A influência da performance vocal no desenvolvimento das funções cognitivas e
comunicativas da linguagem oral da criança 72
The influence of the vocal performance in the development of the cognitive functions and
communicative of oral language of the child
Juliana Grassi Pinto Ferreira
Entrevista com Luciana Monteiro de Castro, Mônica Pedrosa e Margarida Borghoff
sobre o Projeto “Resgate da Canção Brasileira” 78
Interview with Luciana Monteiro de Castro, Mônica Pedrosa and Margarida Borghoff
about the project “Resgate da Canção Brasileira” [“Recovering the Brazilian Art Song”]
Fausto Borém e André Cavazotti
PEGA NA CHALEIRA – RESENHAS 87
Série Poemas Musicais de Cecília Cavalieri: uma análise
Cecília Cavalieri´s Poemas Musicais series: an analysis
Maria Betânia Parizzi

Quatro olhares experientes sobre a música coral brasileira 90


Four experient views about the Brazilian choral music
Fausto Borém

Resenha sobre o livro O canto antigo italiano 93


Re view on the book The historically informed italian singing
Martha Herr

6
LEECH-WILKINSON, D. Portamento e significado musical. Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 07-25

Portamento e significado musical1

Daniel Leech-Wilkinson (King’s College London, Londres, Inglaterra)


daniel.leech-wilkinson@kcl.ac.uk

Tradução de Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte)


fborem@ufmg.br

Resumo: O portamento foi um procedimento expressivo utilizado por performers durante pelo menos 200 anos, mas que,
nos últimos 60 anos, tornou-se um constrangimento na classe musical. Mais do que uma mudança de gosto, isto sugere
um tipo de resposta formada em um nível psicológico relativamente profundo. A partir de estudos na área de psicolo-
gia do desenvolvimento, sob a perspectiva da performance de canções de ninar eruditas, sugere-se que o portamento
conecta-se a respostas emocionais inatas do som humano, bem como às nossas memórias mais remotas de comunicação
amorosa e que nos proveu segurança, a fim de conferir à performance uma sensação de conforto, sinceridade e emoção
profunda. O declínio do portamento depois da Primeira Guerra Mundial e seu súbito desaparecimento depois da Seg-
unda Guerra Mundial é traçado dentro de uma nova ênfase - influenciada pela psicanálise e refletida na literatura sobre
música – centrada em significados musicais mais sombrios, que podem ser compreendidos à luz de uma re-interpretação
de causas e comportamentos humanos forçados pela Segunda Guerra Mundial. O portamento, devido à sua associação
(ainda que inconsciente) com uma verdade e amor ingênuos, tornou-se constrangedoramente inapropriado. Esta hipótese
busca, também, esclarecer os porquês de uma maior amplitude do vibrato após a II Guerra Mundial, da nova objetividade
e autenticidade na performance de Bach, da ascensão da análise musical, assim como do estilo de performance e da
literatura associadas à avant-garde.
Palavras-chave: canto, portamento, glissando, slide, vibrato, significado musical, motherese.

Portamento and musical meaning

Abstract: Portamento was a significant expressive device among performers for at least two hundred years; yet, for the
past sixty it has made musicians uncomfortable. More than a change of fashion, this suggests responses formed at a
relatively deep psychological level. Drawing on work in developmental psychology, and reading in the light of it perfor-
mances of art music lullabies, it is suggested that portamento draws on innate emotional responses to human sound, as
well as on our earliest memories of secure, loving communication, in order to bring to performances a sense of comfort,
sincerity, and deep emotion. The decline of portamento after the First World War and its sudden disappearance after the
Second is traced to a new emphasis—influenced by psychoanalysis and reflected in writings on music—on darker mean-
ings in music, which can be understood in the light of the reinterpretation of human motives and behavior forced on a
wider public by the Second War. Portamento, because of its association (however unconscious) with naive trust and love,
became embarrassingly inappropriate. This hypothesis also sheds light on the deepening of vibrato after the War, new
objectivity and authenticity in Bach, the rise of music analysis, and the performances and writings of the avant-garde.
Keywords: singing, portamento, glissando, slide, vibrato, musical meaning, motherese.

[Oito sound clips apresentando gravações históricas do início do século XX de música de Bach, Brahms, Donizetti e Schu-
bert, suplementares a este artigo, estão disponíveis com livre acesso em http://www.arts.unco.edu/jmr/. Para os títulos e
créditos específicos destas performances, veja referência às mesmas ao longo deste artigo]

Existem dois fatos incontestáveis que qualquer hipótese a performance da música erudita, e mesmo questionável,
respeito do efeito do portamento deve explicar. O primei- exceto como um efeito especial ocasional.3 Tem-se suge-
ro é que o portamento foi um procedimento expressivo de rido que o portamento foi assimilado pelos cantores po-
cantores e instrumentistas por pelo menos 100 anos (pro- pulares e que os intérpretes e público da música erudita
vavelmente mais do que isto),2 valorizado por sua contri- o consideram, por associação, como de mal-gosto.4 Mas
buição à qualidade da performance: bem realizado, era esta explicação sociológica – a qual envolve uma dose
considerado belo e emocionante. O segundo fato é que, razoável de esnobismo – parece frágil para uma rejeição
mais ou menos nos últimos sessenta anos, o portamen- tão disseminada e que se tornou uma questão central por
to tem sido considerado sentimental e complacente na tanto tempo. Parece que precisamos de uma explicação
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.15, 94 p., jan - jun, 2007 Recebido em: 12/10/2006 - Aprovado em: 11/02/2007
7
LEECH-WILKINSON, D. Portamento e significado musical. Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 07-25

que envolve níveis mais profundos de percepção. Ao mes- nem sempre positivas. É este rico campo de estudos que,
mo tempo, e em princípio, isto é questionável exatamente acredito, nos dá a melhor chance para compreender como
porque uma mudança tão radical de preferência parece funcionam as maneiras corriqueiras de moldar e organi-
improvável de acontecer tão rapidamente em algo que zar a música na sua realização e na sua escuta.
opera dentro da gente em um nível tão profundo: se al-
guma coisa a respeito de nossa resposta ao portamento Isto justifica uma das fontes para este artigo: uma pes-
foi programada em nosso cérebro, então precisaríamos de quisa sobre a comunicação em pessoas que cuidam de
uma explicação mais poderosa para esta ampla rejeição bebês, o que sugiro estar por trás, quase escondido, em
por um período razoavelmente longo de tempo. Não obs- uma obscura e maravilhosa gravação de uma canção de
tante, acho que esta explicação é possível. Schubert, pouco conhecida, mas bastante significativa;
uma performance que nos diz muito sobre portamento.
Para explicar este dois fatos, precisamos olhar para dois Outro foco de atenção é o estilo de performance e sua
lugares diferentes – lugares que não são comumente visi- relação com a literatura sobre música, vista no contexto
tados simultaneamente em estudos musicológicos. Talvez mais amplo das atitudes mentais na sociedade como um
isto explique porque o problema do portamento, embora todo. Devo procurar explicar a mudança radical de estilo
sua explicação possa parecer óbvia demais depois que imediatamente depois da Segunda Guerra Mundial em
compreendida, tem resistido à investigação até agora. As termos dos rescaldos de guerra, a partir de uma sombra
várias visões disponíveis através das lentes da musico- da qual ainda não escapamos. Claro, deve haver muito
logia são muito estreitas para chegarmos ao centro de mais do que isto envolvido na nossa resposta ao porta-
muitos dos problemas que a música nos apresenta. Ainda mento, incluindo aí uma miríade de outras associações
assim, trabalhos profundamente comprometidos com as tanto dentro, quanto além do domínio dos sons musicais
questões do significado musical e significação têm sido – talvez o efeito fonográfico de Mark Katz5 seja uma de-
desenvolvidos em outros campos do saber há mais de 100 las –, mas não defendo mais do que apresento a seguir,
anos, especialmente nas últimas décadas. Esta convicção apenas apontando uma direção específica na qual outras
(que impulsionou muitas pesquisas do pós-Guerra) de que pesquisas devem ser conduzidas. Eventualmente, uma
os estudos baseados na teoria musical são a única espe- compreensão mais complexa e carregada de nuances so-
rança para entender como a música funciona (e que, na bre portamento surgirá. De meu lado, gostaria de apre-
verdade, tem pouco a ver com esta questão) nos impede sentar estas duas abordagens e, então, sugerir algumas
de ver o muito que já se sabe sobre a percepção musical. possíveis conclusões. Entretanto, apresento, antes, alguns
Considerando que a música é menos “bolinhas pretas” so- pontos sobre o portamento.
bre as cinco linhas da pauta e mais uma interação entre
o som e a mente, deveríamos estar mais interessados em Portamento é afeto. Apesar da intensidade com que, hoje,
questões da percepção e da cognição. pode nos irritar ou constranger, está claro que sua inten-
ção, na maioria dos casos, é nos emocionar mais do que
De certa maneira, nosso interesse mais recente em teo- fariam sozinhas, as notas às quais está associado. Há um
ria da cultura tem objetivado exatamente isto, embora fenômeno semelhante e aparentado: o swoop, que preci-
sob uma abordagem mais familiar às ciências humanas sa ser conceituado, mesmo que seu efeito seja semelhan-
do que à pesquisa empírica demandada pelas ciências te. Por swoop, quero dizer slides (“escorregadas”) muito
“duras”: à medida que a influência da teoria declinou, os rápidos no início de uma nota, geralmente para cima. Por
estudos culturais têm se tornado cada vez mais impor- ser muito rápido, algo entre 50 e 300 milisegundos (50
tantes para a musicologia como rota para compreender ms são quase imperceptíveis; 300 ms são muito perceptí-
como nos sentimos a respeito da música. Em termos per- veis), na maioria das vezes, no canto, acontece entre 100
ceptivos, o contexto cultural desempenha o papel vital de e 200 ms. Mas se a trajetória do swoop é parabólica – rá-
guiar a mente na direção de modos de compreensão de pida e depois diminuindo a velocidade, o que é o mais co-
estímulos externos em detrimento de inumeráveis outros mum – pode-se percebê-lo, mesmo depois de um swoop
que seriam preferíveis em outros contextos. Mas a men- bastante longo, não como um slide, mas sim como uma
te não é um hard disk virgem, não-formatado, esperan- ênfase. No Sound Clip 1, da gravação de 1941 da soprano
do uma programação cultural antes de poder funcionar. Lotte Lehmann de Die junge Nonne, D828 de Schubert, 6
Grande parte de nossa resposta à música inevitavelmente a maioria dos ouvintes (especialmente aqueles que não
recorre a respostas programadas aos sons, que interagem estão a par desta descrição), ouvirão swoops nas sílabas
com estratégias de interpretação que escolhemos mais “und,” “fin-” e “-ster” como um tipo de ênfase, e somente
tarde. E estas respostas programadas também são ob- estes até a segunda recorrência de “Nacht,” que não é
jetos próprios da atenção do musicólogo. Assim, minha parabólica e que soa mais como um slide naquela nota
preocupação, neste artigo, é com a interação entre os (estes swoops duram cerca de 150 ms: a precisão aqui
mecanismos, naturalmente selecionados, que levam o ser é pequena porque é difícil decidir onde o slide termina e
humano a designar significados consistentes para certos onde o vibrato ao redor da nota-alvo começa). Swoops –
tipos de som, e tendências particulares, inculcadas pelo ensinado como cercar della nota desde, pelo menos, o sé-
contexto da cultura ocidental do século XX, que nos levou culo XVI – são extremamente comuns no canto (HARRIS,
a responder a estes significados de maneiras específicas, 2006),7 quase que independentemente do período estilís-

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LEECH-WILKINSON, D. Portamento e significado musical. Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 07-25

tico, à exceção do canto nas HIP (Historically Informed não está ali para dar ênfase, mas ao contrário, prover um
Performances) mais rígidas e no canto do século XX, neste caminho entre uma altura e outra, um caminho que – in-
último utilizado para dar ênfase a notas específicas sem dependentemente de suas vantagens técnicas11 – pare-
uma articulação especial ou mudança de intensidade. No ce acrescentar um significado, geralmente uma nuance
Sound Clip 1, Lehmann sugere o horror da situação: “. . afetiva.
. e escura era a noite, escura como o túmulo”. O swoop
evoca algo do terror, que poderia ser expresso na vida real Nem todos os portamenti “tocam o coração”.12 Para dar
como uma inspiração súbita, ou com os olhos abertos, ou um exemplo que é familiar a muitos dos leitores, con-
com a boca aberta, terror que atinge a protagonista nesta sidere a abertura de La donna è mobile de Verdi (Ex.1) e
bastante melodramática performance na medida em que a maneira com que a terça ascendente “è mo-” é tipi-
vê a escuridão rodeá-la como a escuridão da morte. camente cantada, especialmente por cantores antes da
Segunda Grande Guerra; o Ré # com um pesado acen-
Um outro tipo de swoop começa abaixo da nota-alvo, vai to fp, geralmente staccato, de forma que o portamento
acima e, então, retorna a ela, mas ainda muito rápido, de resulta em um gesto confiante como um “lançar fora”,
tal forma que é percebido como ênfase e não como um em nada lembrando o swoop sentimental que geralmente
deslizar (glide). Este tipo de swoop tende a ser associa- agora associamos (nada gentilmente) a esta técnica. Um
do com envelopes de amplitude sforzato fp, dando a im- outro exemplo, que Robert Philip teve a gentileza de me
pressão de empurrar, com força, a parte frontal da nota. lembrar, é a escorregada ascendente de alegria do mezzo-
Tornaram-se comuns no canto coral de música antiga soprano Janet Baker no Alleluia do The Dream of Geron-
porque parecem permitir uma boa articulação, mesmo tius de Elgar que, novamente, não é de forma alguma um
dentro das linhas em legato, que são ideais em texturas portamento do tipo mais comum: sentimental, relaxante,
polifônicas contínuas em uma época em que o bom estilo afetuoso ou triste.13 Considere também o uso freqüente,
em música antiga incluía um grande e detalhado número pelo soprano Elisabeth Schwarzkopf, de portamenti as-
de articulações. Finalmente, swoops de cima para baixo cendentes em fp com a intenção de frivolidade ou ironia.
parecem ocorrer somente como procedimentos idiomáti- Ou considere, como exemplo de música instrumental, as
cos no soluçar das óperas italianas, como swoops explo- performances do violinista Kreisler no último instante de
sivos em forma de U acima da nota-alvo e como swoops sua própria Liebesleid, um portamento arremessado no
separados da nota-alvo.8 ar como um último gesto teatral para seu público.14 As-
sim, de forma alguma, todos os portamenti têm o mesmo
Glissandi são também utilizados em performance de uma efeito que geralmente associamos a esta técnica. Estas
maneira diferente de portamento, uma vez que não são outras variedades deverão ser estudadas antes que possa-
exatamente conexões entre duas notas, mas gestos mu- mos compreender que tipos de associação eles nos reme-
sicais autônomos. Quando [o pianista] Moriz Rosenthal tem. Farei uma sugestão ao final do artigo, mas estes por-
converte uma escala pentatônica em um glissando ape- tamenti “mais alegres” não estão no meu foco principal.
nas pelo prazer de fazê-lo,9 é mais um gesto composi- Estou mais interessado agora no tipo mais comum: o tipo
cional do que um gesto de performance. Isto é tão claro que aparece em tantos movimentos lentos para cordas ou
para o ouvinte que é percebido como se ele pertencesse em contemplativas árias e canções, exemplos que podem
à estrutura musical, que incorpora as sutilezas de sua in- ser escutados nos Sound clips 2, 3, 4 e 5 [respectivamen-
terpretação. Glissandi geralmente duram mais tempo e te: os violinistas Fritz Kreisler e Efrem Zimbalist em Bach;
cobrem uma distância intervalar maior, de tal forma que, o violinista Bronislaw Hubermann em Brahms; o soprano
os glissandi nos compassos 265–272 da Havanaise Op.83 Emmy Bettendorf em Schubert; o tenor Dmitri Smirnov
para violino e orquestra (1887) de SAINT-SAENS (2005) em Donizetti].15
não devem ser confundidos com portamenti, mesmo sem
a partitura à mão.10

Embora perceptualmente distintos, este fenômenos per-


manecem relacionados. Todos eles envolvem desliza-
mentos no que normalmente conceituamos como notas
discretas, mas que aparentemente são percebidos em ca- Ex.1: La donna è mobile de Verdi
tegorias diferentes de acordo com sua velocidade e seu
contexto. O swoop é mais rápido e se direciona às notas Como este portamento mais típico funciona? E como
principais e não aos espaços entre elas; de fato, como po- passou de objeto tão amado a algo tão desprezado? Para
demos ouvir no sound clip de Lehmann, um cantor pode responder a esta questão, precisamos primeiro entender
usá-lo em uma seqüência de notas escritas na mesma como ele soa, pois música na performance é uma lingua-
altura, swooping em cada uma delas. Já o glissando tem gem de signos que não se separa das outras. Ao contrário,
a duração mais longa, tão longa que se torna um evento a música é referencial. Mas a que ela se refere? Às suas
musical em si mesmo, com se fosse parte da partitura. próprias tradições, com certeza; seu contexto cultural,
O portamento, por sua vez, não é nem um, nem o outro. claro. Mas também, é evidente – uma vez que há tan-
Embora dependa de um deslizamento contínuo da nota, tos estudos sobre isto – que a música recorre a reações

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LEECH-WILKINSON, D. Portamento e significado musical. Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 07-25

emocionais instintivas de outros tipos de som.16 Isto vai reproduzam as características dos sons vocais da raiva:
muito além de coisas óbvias como música rápida gerar um rápido crescendo, procedimentos composicionais que
excitamento, música lenta acalmar etc.; a música se ex- gerem harmônicos parciais dissonantes acima de tudo,
pande com timbres, nos quais características espectrais embora a utilização de harmonias dissonantes também
específicas se referem aos sons ambientes com conse- ajude.17 Acontece a mesma coisa com outros tipos de
qüências eminentes, em detalhes ínfimos de timing aos sentimentos que nós convencionalmente expressamos
quais os animais necessariamente se tornaram extraor- com nossas vozes ou que respondemos aos sons que nos
dinariamente sensíveis, em comunicação humana pela rodeiam. A modelação de comunicação vocal evidente-
utilização de características do discurso e de outros tipos mente desempenha um papel central em todos os tipos de
de vocalização humana que expressam sentimentos. Tudo expressividade musical e, daí, a necessidade de estudá-la
isto desempenha um papel vital na performance musical. com mais cuidado. Parece provável que nossa experiên-
A expressividade, eu argumentaria, lança mão das respos- cia musical seja formada mais pelo que a música nos faz
tas inatas ao som de maneira significativa. lembrar do que com o que fomos treinados a acreditar.

Os cantores são, penso eu, o único grupo musical para Há duas dificuldades com este tipo de estudo. Primei-
quem isto sempre pareceu óbvio. Como o ato de cantar ro, encontrar uma maneira de mostrar o que acontece
reflete, de maneira bem reconhecível, outros tipos de co- auditivamente e o que isto evoca nos ouvintes, embora
municação vocal – especialmente de signos de emoção os psicólogos tenham chegado mais longe neste assunto
expressos por mudanças na voz – os cantores tem apresen- recentemente. Em segundo lugar – e, de certa forma, o
tado uma tendência de falar sobre expressividade musical problema maior no momento – persuadir os musicólogos
em termos de estados emocionais e por meio de analogias que a própria obviedade em se chegar a uma conclusão
como, por exemplo, o falar, o gritar, o rosnar, o murmurar é um indicador não de trivialidade, mas sim da enorme
etc. Os instrumentistas falam muito menos nestes termos, importância destes tipos de fator na nossa percepção da
embora os sons que produzem se relacionam de perto com música. Este problema é particularmente interessante em
estas mesmas associações, se inspirando nelas. Mas como uma época em que a tendência entre os pesquisadores de
os instrumentistas não produzem sons a partir do interior música tem sido valorizar demonstrações de conclusões
de seus corpos, eles simplesmente têm menos consciência menos óbvias. Parece-me razoável supor, entretanto, que
de quais sons (humanos) os sons musicais se assemelham. a música é muito poderosa não porque é hermética, mas
Os cantores sabem que se “rosnarem” em uma nota, os porque é instintiva.
ouvintes irão reconhecer um sinal de raiva, porque todos
nós sabemos como aquele som se parece e reconhecemos Darei um exemplo de uma canção e sua realização que,
os tipos de situações em que o produzimos. particularmente, diz respeito às respostas inatas e que
mostra claramente o que o portamento evoca. A Fig.1
A musicologia tem apresentado uma tendência de que mostra o texto em alemão (e suas traduções para o inglês
o reconhecimento destes sinais representa apenas uma e português) de Schlaflied (Canção de Ninar) de Johann
parte trivial na compreensão musical, que são, no máxi- Baptist Mayrhofer (1787-1836), texto que Schubert musi-
mo, decorativos das relações que operam entre as notas, cou em 1817.18 O poema descreve um glorioso dia de verão
notas que, de fato, realizam o grosso do trabalho de co- no campo: uma criança se acomoda ao lado de sua mãe
municação quando a performance de peças musicais são (ou possivelmente a mãe-terra se preferirmos uma leitura
percebidas como comoventes ou satisfatórias. As notas simbólica) e adormece no último verso. O Sound Clip 6
musicais podem certamente significar raiva, mas somen- apresenta Janet Baker cantando o primeiro verso.19
te compondo-as e moldando-as de tal maneira que elas

Schlaflied (Schlummerlied) Lullaby Canção de Ninar


The forest urges, the stream calls,
Es mahnt der Wald, es ruft der Strom: A floresta convida, o riacho chama,
“You lovely baby, come to us!”
“Du liebes Bübchen, zu uns komm!” “Venha até nós, adorável bebê!”
The boy comes, and marveling stays,
Der Knabe kommt, und staunend, weilt, O menino vai e maravilhado fica,
And is cured of every pain.
Und ist von jedem Schmerz geheilt. E se cura de todas as dores.
From the crops floats the sound of a quail,
Aus Büschen flötet Wachtelschlag, No roçado voa o pio de uma codorna,
The day plays with its colors;
Mit irren Farbem spielt der Tag; O dia brinca com suas cores:
On flowers red, on flowers blue,
Auf Blümchen rot, auf Blümchen blau Em flores vermelhas, em flores azuis,
Sparkles heaven´s moist dew.
Erglänzt des Himmels feuchter Tau. Faíscam gotas de orvalho do paraíso.
In the fresh grass he lays himself down,
Ins frische Gras legt er sich hin, Allows the clouds to pass over him, Na grama fresca ele se deita
Läât über sich die Wolken ziehn, To his mother snuggled up, Permite que as nuvens lhe sobrevoem
An seine Mutter angeschmiegt, The god of dreams has lulled him to Aconchega-se em sua mãe,
Hat ihn der Traumgott eingewiegt. O deus dos sonhos o faz dormir.
sleep.

Fig.1 – Letra e traduções do poema Schlaflied (Schlummerlied) de Johann Baptist Mayrhofer, musicado por Schubert no
Op.24, n.2, D 527 (1817).

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LEECH-WILKINSON, D. Portamento e significado musical. Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 07-25

A linha vocal não é muito comum. Há saltos de oitava no modernos (friso, os modernos), cada nota deve estar no
início das três primeiras frases, que consistem principal- devido lugar o que, com esta quantidade de saltos, requer
mente de arpejos descendentes; observe a quinta justa grande concentração e controle o tempo todo. Se quiser-
descendente no c.7 sobre a palavra “Bübchen” (bebê), à mos precisão em performance, como é comum hoje em dia,
qual retornaremos (veja Ex.2). A única passagem em graus será estressante realizar e, mais ainda, gravar esta canção.
conjuntos aparece numa seqüência no meio da canção, Entretanto, apesar das características convencionalmente
quando o menino atende ao chamado e fica maravilhado “não-melódicas” da canção, é óbvio que vivenciamos algo
(a sensação de crescente encantamento do menino é cla- muito melodioso na sua performance. Há algo a respeito
ramente modelada por Schubert na seqüência ascenden- desta canção que quebra as convenções do que é aceito
te); os arpejos e quintas reaparecem no restante da canção como melódico em nossa percepção, algo que traz uma
(veja Ex.3). Em termos convencionais, a linha vocal não sensação de calma, embora a linha melódica contenha
é especialmente melódica, e por isso, Schlaflied tem uma elementos que, em outros contextos, seriam considerados
linha não muito fácil de cantar, o que talvez explique, em fragmentários. Em outras palavras, não é difícil para o ou-
parte, porque há tão poucas gravações. Para os cantores vinte aceitar esta canção como uma canção de ninar.

Ex.2 - Schlaflied de Schubert / Mayrhofer (c.1-8).

Ex.3 - Schlaflied de Schubert / Mayrhofer (c.20-23).

Tentaremos avançar um pouco mais, identificando al- como característica – como em Wiegenlied de Brahms,
guns sinais de canção de ninar na partitura – voltare- por exemplo – mas, na verdade, há canções de ninar em
mos à sua performance mais à frente. Se considerarmos métrica binária; se pensarmos bem nas leis da física,
outras canções de ninar para fins de comparação, então, não seria fácil ninar uma criança em métrica ternária.
em alguns aspectos, Schlaflied não é característica. Uma Mas isto não impede que a canção de Brahms seja muito
métrica ternária mais preguiçosa é que é geralmente tida relaxante; assim a métrica não deve ser tão relevante.

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LEECH-WILKINSON, D. Portamento e significado musical. Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 07-25

Mais importante do que isto são os saltos melódicos no justa sobre a palavra “Bübchen” (bebê), que está ali exa-
contorno melódico nos quatro primeiros compassos de tamente por esta razão – reproduz o acompanhamento.
Schlaflied; se cantarmos o Ex.4 em um andamento tí- Então, se tivéssemos um berço, ou um bebê nos braços,
pico para esta canção, podemos senti-la como que sem na parte do piano, a linha da voz teria uma outra função.
energia. Haveriam algumas razões que explicariam isto. Para entender isto, olharemos outros detalhes de canções
Observe que a estrutura melódica é consideravelmente de ninar.
diferente da estrutura da linha vocal. Somente a quinta

Ex.4- Estrutura melódica de Schlaflied de Schubert / Mayrhofer (c.1-4).

Uma dos aspectos interessantes sobre as canções de ni- Não é uma questão de notas apenas. Juntamente com
nar é que elas são muito semelhantes em várias culturas. elas, está uma prática de performance que também pare-
Segundo UNYK, TREHUB, TRAINOR e SCHELLENBERG ce estar programada. TRAINOR, CLARK, HUNTLEY e ADA-
(1992, p.15-28) e TREHUB, UNYK e TRAINOR (1993, MS (1997) mostraram que tanto adultos quanto crianças
p.193–211), as características comuns a canções de ni- (embora isto seja particularmente pronunciado em mu-
nar em todo o mundo incluem: (1) andamentos lentos; lheres) cantam canções de ninar para crianças em freqü-
que é o nosso caso, (2) média das alturas no registro ências mais agudas do que o cantar normal dos adultos
agudo; de fato, metade da duração da linha vocal (valor ou quando as crianças não estão presentes, com uma
relativo de 55 colcheias versus 58) de Schlaflied está variação maior de freqüência de notas e com harmôni-
dentro do intervalo de quarta justa Dó3 e Fá3, (3) sim- cos graves mais intensos. Os ouvintes relatam que per-
plicidade e repetição; nossa melodia apresenta muitas cebem estas características como sons mais “calorosos”
seqüências de unidades melódicas simples, (4) poucas ou “mais sorridentes”, gerando uma sensação de maior
mudanças na direção do contorno melódico; de fato, nos envolvimento:
três primeiros compassos da linha vocal de Schlaflied,
quase todos os movimentos são descendentes; nos pró- “De acordo com SCHERER (1986), emoções agradáveis
ximos três de quatro compassos, são predominantemen- levam a uma expansão facial e faríngea o que, por sua
te ascendentes; ao final, são mais estáveis e (5) grande vez, leva a um perfil espectral característico da voz mais
recorrência de intervalos descendentes; o que não é co- ampla: com uma energia nas freqüências mais graves
mum nas melodias em geral, mas bastante característico maior do que nas agudas, relativamente.” A questão so-
em Schlaflied.20 bre o sorrir é que isto muda a forma do rosto, mudando,
assim, a forma do trato vocal, o que, por sua vez, muda
TREHUB, UNYK e TRAINOR (1993) demonstraram que o som produzido (TRAINOR, CLARK, HUNTLEY e ADAMS,
canções de ninar são reconhecíveis em culturas de todo 1997, p.392–393).21
o mundo a partir de suas linhas melódicas apenas: não é
necessário ouvir o texto. Para reconhecer que algo é uma É interessante escutar algumas performances de Schla-
canção de ninar, tudo que se precisa são as notas princi- flied para verificar se conseguimos diferenciar entre o
pais da linha melódica. TREHUB (2003, p.6) demonstrou cantar direcionado para adultos e para crianças. Sugiro
que os bebês respondem mais prontamente às canções que os leitores escutem o soprano Elly Ameling na tercei-
de ninar do que às melodias de adultos, e escutam oi- ra estrofe de sua gravação de 1973.22 Sua sonoridade não
tavas, quintas e quartas justas mais facilmente do que é especialmente calorosa, embora haja certo pedantismo
outros intervalos; já vimos a importância destas duas no andamento e articulação que pode sugerir um tipo de
características na palavra “Bübchen” em Schlaflied e na fala com crianças. O sutil tremor de Ameling na palavra
melodia sem ornamentos que permeia a introdução desta “angeschmiegt” (aconchega-se) não soa como amigável
canção. FERNALD e KUHL (1987, p.279–293) mostraram às crianças; há uma irregularidade na voz durante “acon”
que são as freqüências fundamentais, e não as durações e, em “-chega-se”, ela aumenta a amplitude, acelera o
ou amplitudes, que motivam mais os bebês, o que ajuda vibrato, sobe ligeiramente e depois desce a afinação e
a explicar porque são as características melódicas e não escurece a sonoridade, cortando os parciais superiores da
as métricas que, evidentemente, são mais comuns às can- série harmônica de seus sons e realçando as cores das
ções de ninar. Em outras palavras, a música direcionada freqüências mais graves com uma amplitude irregular no
às crianças inclui estes traços, apontados em Schlaflied, vibrato. Este escurecimento, que também pode ser per-
em todo o mundo. Em Schlaflied, não estamos lidando cebido, desde que em um contexto adequado, como uma
somente com estes fenômenos histórica ou culturalmen- valorização amorosa do som, parece corresponder àquelas
te dependentes – reflexos do cuidado com as crianças na características do canto para crianças listadas logo acima.
Viena do início do século XIX – mas com conexões inatas Talvez a intenção tenha sido de que a passagem soasse
entre som e resposta. calorosa, mas há um desencontro de sinais: um crescendo

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LEECH-WILKINSON, D. Portamento e significado musical. Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 07-25

pode sugerir aproximação (pode-se imaginar que alguém UNYK, KAMENETSKY, HILL, TRAINOR, HENDERSON e SA-
está se aproximando da fonte sonora); um vibrato mais RAZA, 1997). O ambiente dos estúdios de gravação não
rápido pode indicar emoção (perde-se o controle da voz é o melhor ambiente para simular o canto de canções de
em situações emocionais); a supressão dos harmônicos ninar, mas é provável que Amleing e Baker simplesmente
parciais superiores pode indicar uma atmosfera calorosa não tomaram isto como sua responsabilidade. Para elas,
(os harmônicos parciais superiores são muito típicos nas Schlaflied é acima de tudo um Lied de Schubert, um Lied
expressões de raiva e nos sons intensos, enquanto que que, por acaso, tem características de canção de ninar.
sua ausência pode sugerir o oposto). Todos estes sinais
são potencialmente apropriados na sua própria essência; Ao mesmo tempo em que defendo meu ponto de vista
mas eles também podem ter outros significados poten- sobre as características especiais de Schlaflied, também
ciais. Um crescendo pode significar alarme; um vibrato ilustro as diferentes maneiras nas quais as associações
rápido pode ser um índice de terror, sons graves e escuros de som com respostas emocionais são trazidas à tona,
tendem provir de fontes sonoras não-humanas na natu- a partir do mundo que nos cerca, e utilizadas em per-
reza, aos quais podemos ter nos adaptados para temê- formances musicais. Algumas destas reconhecemos como
los (TRAINOR, CLARK, HUNTLEY e ADAMS, 1997, p.392).23 características do discurso emocional (como um tremor
Basta apenas um pequeno erro de cálculo na dose com que na voz, por exemplo); outras, como índices sonoros de
o cantor combina estes sinais para produzir efeitos muito eventos exteriores à nossa pessoa, que geram uma rea-
diferentes daqueles pretendidos. Na parte do piano, se o ção emocional (sons fortes e súbitos especialmente, mas
pianista privilegia os sinais de staccato ao invés das liga- também sons não característicos da vocalização humana
duras, isto resulta em um acompanhamento fragmentado normal); outras simplesmente como analogias a experi-
que parece uma atitude adulta na sua atenção à parti- ências físicas (como a aproximação, neste exemplo). Exis-
tura, mas que, certamente, não promove a continuidade tem muitos estudos sobre a percepção humana do som
melódica que tipicamente caracteriza a performance de que explicam estes tipos de respostas, que são, em grande
canções de ninar (TRAINOR, CLARK, HUNTLEY e ADAMS, parte, inatas: os cantores sempre usam efeitos como es-
1997, p.393).24 Um outro exemplo deste desencontro se- tes para obter respostas emocionais nos seus ouvintes.
ria o tratamento de Ameling do discurso direto na linha Nas questões de controle e técnica musicais, é isto que
2 do poema, especialmente nas palavras “zu uns komm” eles principalmente aprendem, dada a sua importância
(“Venha até nós”). O marcato evoca características do para a expressão vocal.
discurso de comando – sons intensos e curtos separados
por silêncios – de tal maneira que ele seria apropriado em Observamos que Schlaflied - embora esta canção pos-
uma canção mais divertida ou em uma canção puramente sa ser muito bem realizada sem uma atenção a estes
narrativa; mas estes efeitos não são relaxantes. Algumas detalhes - tem características incomuns que a tornam
características desta performance parecem distintamente menos um Lied do que uma canção de ninar. Suponha-
adultas e não dirigidas para as crianças. mos que, diferentemente de Elly Ameling e Janet Baker,
alguém fosse realizá-la de acordo com esta perspectiva.
Poderíamos apontar este mesmo aspecto em um deta- Suponhamos que esta cantora fosse evocar um discurso
lhe da gravação de Janet Baker de 1971, no seu doloroso direcionado às crianças, com uma forma particular de co-
tratamento da palavra “Schmerz” (dor) no primeiro verso municação simplificada de deslizamento entre as notas,
(SCHUBERT, 1970).25 Baker força a intensidade da nota que é utilizada quase que universalmente por pessoas
e modifica a forma de sua cavidade bucal para valorizar que cuidam de crianças e é geralmente conhecida na li-
uma seqüência de harmônicos parciais superiores disso- teratura da psicologia como motherese (“mamanhês”) -
nantes, de tal forma que, por si só, esta palavra suge- ocasionalmente, como parentese (“fala dos pais”) ou “co-
re uma convulsão de dor. É uma palavra que, em uma municação orientada para crianças”). O motherese tem
canção para adultos, a maioria dos cantores enfatizaria, sido bastante estudado por psicólogos e, tipicamente,
utilizando – como Janet Baker – um índice de dor asso- envolve freqüências agudas (como nas canções de ninar),
ciado ao discurso, por exemplo, uma dinâmica com um ampla tessitura, frases curtas e longas pausas (a linha
rápido crescendo, ou tornando uma nota mais aguda, ou 1 de Schlaflied contem todos estes elementos). Uma de
tornando sua cor mais brilhante; mas não em uma canção suas características mais típicas é o contorno exagerado
de ninar. A última coisa que alguém faria, na maneira das alturas, que vai mais alto e volteia para baixo, mais
com que canta para uma criança que está para dormir, é rápido do que a fala normal. Mais interessante, para o
lembrá-la da dor da tristeza que o sono irá apagar (como nosso propósito, é que é caracterizado por um “contorno
o texto sugere): “geheilt” (se cura) seria a palavra a ser de afinação suave, simples e altamente modular” (UNYK,
enfatizada – não a dor. TREHUB, UNYK, KAMENETSKY, TREHUB, TRAINOR e SCHELLENBERG, p.15), 26 o que, em
HILL, TRAINOR, HENDERSON e SARAZA (1997, p.505) outras palavras, significa portamento. Alguém poderia
afirmam que “a presença da criança parece ser necessária argumentar que há, neste sentido, algo semelhante na
para que os pais produzam as características próprias das linha vocal de Schubert. Como as canções de ninar, que
canções dirigidas às crianças”; e que performances sem parecem ser formalizações do motherese, Schlaflied é
a presença das crianças foram consideradas como pouco atravessada por intervalos mais amplos do que o normal;
envolventes nos estudos de TRAINOR (1996) e TREHUB, mas como está notado na partitura, isto consiste de notas

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bem definidas com intervalos entre elas, não de volteios - o portamento era habitualmente utilizado. No canto, são
particularmente quando cantado por cantores modernos. as canções e as árias lentas e afetuosas, as expressões
Mas o que aconteceria se fosse cantado em um perío- mais desinibidas e públicas de amor musical que tendiam
do em que o portamento era considerado uma virtude? a buscar o portamento mais evidente. Os slides entre as
Então, esta canção se tornaria muito mais próxima de notas mais expressivas funcionavam da mesma manei-
uma canção de ninar da vida real, cantada como um mo- ra como ocorre na performance de Schlaflied por Elena
therese real. O Sound Clip 7 apresenta o mezzo-sopra- Gerhardt. Embora excepcional - excepcional para ela – a
no Elena Gerhardt acompanhada pelo pianista Conraad gravação desta canção por Gerhardt é uma chave para
Bos em 1928.27 explicar como o portamento funciona. Ele se aplica tam-
bém à música instrumental – na música para cordas, por
Quando o portamento é permitido, você pode cantar em exemplo – na qual as escorregadas do portamento que os
motherese; a distinção que intrigou psicólogos entre a movimentos lentos tão caracteristicamente evocam – de
fala orientada para a criança e a música orientada para a acordo com minha hipótese – os deslizamentos de altu-
criança – a fala varre todo o espectro sonoro, e a música ras do motherese, trazendo à performance uma sensação
não – desaparece. É claro que os psicólogos estão consi- calorosa, de segurança e amor, e talvez, de nostalgia e de
derando como referência o canto moderno. Pouco antes alguma sensação de perda (a perda da voz); qualquer uma
da metade o século XX, eles teriam ouvido algo diferente destas sensações, e outras a elas relacionadas, podem ter
do que hoje é norma. Neste exemplo, Gerhardt canta com um compromisso mais específico, se a natureza da parti-
tantos portamenti que a canção torna-se algo mais. Os tura sugere sua predominância. Assim, o portamento em
slides são tão intensos e rápidos que algumas notas efeti- uma partitura convencionalmente “triste” tende a sugerir
vamente tornam-se curvas em forma de U. Sua interpre- uma tristeza mais intensa; em uma partitura “calma”, ten-
tação da palavra “Bübchen” tem uma deslizada ascenden- de a sugerir uma calma mais intensa; em uma partitura
te e outra descendente, que se transforma em “B/eb\ê”, o “alegre”, tende a sugerir uma sensação de maior diverti-
que é, em essência, motherese. Neste sentido, sua grava- mento, evocando o motherese das canções de brincadeira
ção de Schlaflied é excepcional. E nos permite ver como daqueles que cuidam de crianças, e assim por diante e,
os portamenti se aproximam ou se afastam do motherese em todos os casos, pela recorrência a índices diferentes
tão facilmente e tão naturalmente que é impossível não (hoje subconscientes) dessas associações.
enxergar que são dois lados da mesma moeda. O primeiro,
na verdade, é uma formalização do segundo. Duas outras qualidades do motherese são relevantes e
talvez valha a pena mencioná-las antes de abordar mi-
Cantada desta maneira, a notação de Schubert tem um nha segunda hipótese. O motherese mantem a atenção
significado muito diferente nesta performance, se com- da criança de uma maneira que a fala orientada para
parada às performaces de Ameling ou Baker. Torna-se adultos não consegue (TREHUB, 2000, p.437), e este é um
uma experiência diferente, nos trazendo à mente, ainda aspecto que propiciaria uma pesquisa interessante em
que inconscientemente, um mundo de interação e de se- que a atenção dos ouvintes modernos com e sem porta-
gurança amorosa que podemos ter esquecido ou suprimi- mento poderia ser testada. Como teste intuitivo, os leito-
do como irrelevante em nossas vidas de adultos. Cantado res familiarizados com performances históricas poderiam
com motherese, esta canção toca em nossas respostas ser avaliados se as interpretações ricas em portamento
emocionais mais profundas aos sons musicais. Ou melhor, seriam mais difíceis de serem ignoradas do que as inter-
causaria esta sensação se não estancarmos de constran- pretações sem portamento. O motherese também tende
gimento por causa do portamento. É claro que, para mui- a simplificar, reduzindo o que poderiam ser vocalizações
tas pessoas de hoje, é exatamente isto que o portamento complexas, por meio do foco no significado de superfície
causa – ou isto soa como “excessivamente indulgente” das idéias mais proeminentes. Ele identifica a palavra-
ou “brega” (“schmaltzy”) ou “sentimental”; a associação chave em uma frase - por exemplo, “É uma / ba // na \\ na
com a comunicação orientada para crianças facilmente a/ ma / re / la” - e dirige a atenção da criança tão forte-
explica isto. Para nos deliciarmos com esta performance, mente a ela quanto possível. Quando se fala na lingua-
temos de ser capazes de aceitar a escuta da música e gem do motherese, não há uma preocupação em ser sutil,
ser emocionados de uma maneira receptiva, não crítica, ou de comunicar camadas de significado, ou de se utilizar
infantil. Se insistirmos em perceber a música como um jogos-de-palavras, paradoxos ou pistas para significados
negócio sério, de adultos, como um processo intelectu- ocultos. É o mundo da comunicação simples, onde tudo
al de transferência de informação, ou (como diz Adorno) significa exatamente o que parece significar, no qual a
como um reflexo de tensões da sociedade, então este tipo verdade é absoluta. O portamento dá à performance exa-
de performance nos deixará, no mínimo, desconfortáveis tamente estas qualidades: sinceridade, profundidade de
e, provavelmente, irritados. sentimento e, consequentemente, um contexto no qual é
seguro expressar estas coisas.
Esta é minha primeira hipótese: o portamento funciona
– quando funciona – por meio de um retorno às nos- Porque isto era tão natural no começo do século XX e por-
sas respostas emocionais aos sons musicais. É fácil ver que veio a se tornar tão repulsivo mais tarde? Ao relacionar
como isto se aplica aos tipos de circunstâncias nas quais portamento com a expressão vocal das nossas primeiras

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relações de amor, coloco um enorme obstáculo a qualquer ra como re-afirmação, promessa e conforto que o estilo
hipótese que poderia, adequadamente, explicar como algo de performance rico em portamenti parece, em retros-
fundamental pode ter se transformado em algo inade- pectiva, encapsular.
quado. Não é difícil, entretanto, apontar os eventos que
propiciaram esta reversão. Embora houvesse um gradual Para testar esta segunda hipótese – de que a Segunda
declínio na utilização do portamento a partir da década de Grande Guerra tornou impossível a associação entre mú-
1910, performances como as de Elena Gerhardt ainda po- sica e ingenuidade no portamento – precisamos observar
diam ser ouvidas até o final da década de 1930 (cantores mais de perto como as atitudes frente aos significados
mais jovens como Elisabeth Schumann ou Gerhard Hüsch musicais, antes e depois desta Guerra, se transformaram.
utilizavam pouco portamento neste período). Mas com a Não há espaço aqui para um aprofundamento que este
retomada das gravações ao final da década de 1940, para tópico demanda. Entretanto, gostaria de me debruçar
uma nova geração de cantores - como o soprano Elisa- sobre as mudanças de atitude em relação aos Lieder de
beth Schwarzkopf e o barítono Dietrich Fischer-Dieskau Schubert, como microcosmo que representa mudanças
–, o portamento desapareceu. Apenas alguns cantores muito mais amplas, e também comentar sobre as gra-
cujas carreiras sobreviveram à Guerra – Lotte Lehmann, vações de Schlaflied. Por enquanto, consideraremos isto
com grande destaque – conseguiram se virar no meio pro- como emblemático de mudanças em muitos outros as-
fissional na década seguinte com amplos portamenti. E pectos da realização musical e da escrita sobre música,
somente na ópera é que esta técnica sobreviveu mais ex- uma investigação que pode ajudar a determinar se há
tensivamente (o que explicarei mais à frente). A transição mérito nesta hipótese sobre portamento.
entre estes dois estágios é mínima. Alguma coisa forçou
esta mudança que, se não fosse por isto, teria ocorrido em Em um estudo recente sobre a relação entre as mudanças
um período muito mais longo. Não é difícil ver que este nos estilos de performance e da literatura sobre música,
fato está ligado à Segunda Guerra Mundial. E, dadas as escrevi algo cuja relação com o que discuti até aqui sobre
associações do portamento com a sensação de segurança portamento e motherese fica imediatamente aparente:
e ingenuidade, uma possibilidade a ser considerada é que
esta mudança bastante radical no estilo de performance A literatura específica e detalhada sobre as canções de
e recepção envolveu uma nova seriedade na maneira de Schubert era bem escassa até a década de 1920, período
fazer e escutar música, uma consciência de que música até o qual elas já haviam sido gravadas regularmente por
tinha que se tornar algo mais do que conforto, algo que, 30 anos, e interpretadas por mais de 100 anos. Richard
para se justificar, teria que nos envolver de uma manei- Capell, que, em 1928, escreveu os primeiros comentários
ra que não fosse tão emocionalmente acrítica e, menos sobre estes Lieder em forma de livro, afirma que as can-
ainda, sentimental. A segurança, o contentamento e a ções significavam exatamente o que pareciam ser; elas
certeza moral que a música tinha evocado em suas pla- contavam estórias simples que a música ilustrava. 31 Para
téias burguesas nos anos anteriores às Guerras Mundiais, ele, suas melhores gravações eram aquelas de Sir Geor-
especialmente nas platéias austro-alemãs, assumiram o ge Henschel [barítono], gravadas em 1914: “Estes discos
significado do ridículo, da complacência e, mesmo, da hi- mostram, sem sombras de dúvida, como Schubert gosta-
pocrisia, em função do que os amantes da música fora ria que fossem cantadas. Não há a intenção de um show
deste círculo fizeram e sentiram. ou egocentrismo nesta maneira de cantar”.32 . . . Das
Wandern, a primeira canção de Die schöne Müllerin, é
Caracteristicamente, é Adorno quem aparece para firmar um bom exemplo para compreender o que Schubert quis
esta posição com muita força e clareza: dizer. [veja o Sound Clip 8]33 A abordagem de Henschel
é direta. O jovem moleiro sente precisamente o que ele
“A idéia de que a vida depois da Segunda Grande Guerra canta. Não há significados ocultos ou ilusão. Da mesma
poderia prosseguir normalmente, que aquela cultura pode- forma, para Capell, o menino é “um pirralho apaixonado
ria ressuscitar – como se a ressurreição de uma cultura não em um verde vale”. “Schubert. . .”, ele diz, “simplesmen-
fosse sua própria negação – é imbecil. Milhões de judeus te não sabia o que fazer com o Denso e o Mau sobre a
foram assassinados e, poderia este fato ser apenas um in- face da terra. Mas ele emprestou nuanças ao seu jovem
terlúdio e não a real catástrofe? O que exatamente aquela e infeliz moleiro, as quais não teria feito melhor se não
cultura está esperando?” (ADORNO, 1997, p.61-62)28 desejasse isto dentro de si mesmo. E, certamente, a mes-
ma nuança que ele sentiria, caso se sentisse atraído pelo
“Independentemente de quem estiver clamando pela charme da moleira; tímido e extasiado, de olhar parado e
ressurreição desta cultura culpada e em frangalhos, com uma flor na mão, uma fonte de delicadeza, um arre-
torna-se seu cúmplice, enquanto que quem negar esta batamento desesperado.” 34 É fácil rirmos deste quadro,
cultura diretamente promove o barbarismo cuja cultura assim como rimos algumas vezes da maneira como se
se revelou.” (ADORNO, 1973, p.360)29 cantava há 90 anos atrás. Mas era assim mesmo. O amor
de um poeta era puro, generoso e honesto e com este
Quando Adorno diz a famosa frase “Escrever poesia de- mesmo espírito é que alguém cantaria (LEECH-WILLKIN-
pois de Auschwitz seria uma atitude bárbara” (ADORNO, SON, no prelo).
1977, p.30),30 ele está falando da atitude anterior à Guer- Este era o mundo no qual o portamento era amplamente

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utilizado e no qual sua utilização fazia muito sentido. Os proximidades, de tal forma que há uma sensação de cons-
textos dos Lieder – para os cantores e platéias do final trita expressividade musical, não como uma fala real; que
do século XIX – eram lidos pelo que aparentavam ser e também pode contribuir para a sensação de que se trata
os seus ambientes musicais enfatizavam a mesma e evi- de uma expressividade formal, de atriz. Em outras pala-
dente mensagem. Música era uma expressão de estados vras, por mais que a sonoridade seja amável e por mais
de espírito claramente identificáveis. Brunilda [líder das expert que ela seja em representar textos, Schwarzko-
Valquírias na tetralogia de óperas O Anel dos Nibelungos pf canta com uma indiferença que teria sido frustrante
de Wagner] vestia-se como uma guerreira Viking, com para os ouvintes que cresceram ouvindo Elena Gerhardt
lança e capacete de chifres, não como um bombeiro sui- ou Lotte Lehmann. No seu levantamento de 1951 sobre
cida. 35 A ingenuidade que caracteriza a leitura de poemas a música disponível em gravações e, mais ainda, na sua
e canções era a mesma ingenuidade que poderia, sem as revisão de 1955, quando um número maior de discos de
insinuações de cinismo ou ceticismo das gerações do pós- Schwarzkopf estava disponível, SACKVILLE-WEST e SHA-
guerra, aceitar o portamento, por meio de sua evocação WE-TAYLOR (1951, p.529, 578; Ed. rev. de 1955, p.529,
inconsciente das mais intensas relações emocionais da especialmente p.670, 674 e passim), comentando sobre a
primeira infância, como um meio profundamente como- preferência sempre por cantores mais velhos, nos passam
vente de representar as mais poderosas emoções de uma fortemente esta impressão: ela canta lindamente, mas
maneira direta, verdadeira e inquestionável. tem ainda um caminho a percorrer antes de desenvolver
as habilidades de Lotte Lehmann ou Elisabeth Schumann.
Mas depois da guerra, o estilo de performance mudou. Claro, eles jamais saberiam – ninguém sabe, enquanto o
Emblemáticos desta nova abordagem são Elisabeth estilo está mudando ao seu redor - que as deficiências de
Schwarzkopf e Dietrich Fischer-Dieskau, que fizeram suas Schwarzkopf eram, na verdade, características centrais
primeiras gravações para o selo alemão HMV, refletindo de um novo estilo.
a recuperação da indústria alemã sob a ocupação aliada.
Para eles, estas canções representavam algo diferente. A É fato que a Segunda Guerra Mundial foi um marco na
ingenuidade cai de moda e é substituída, na interpreta- mudança de estilo da performance musical, mas as razões
ção de Schwarzkopf, por frivolidade, que é um estado de pelas quais isto ocorreu permanecem como um ponto a
espírito muito mais consciente, sugerido pela utilização ser investigado.39 Depois da guerra, para os admiradores
de swoops rápidos no início das notas. Este procedimen- de Schwarzkopf como a ideal entre as cantoras, aquele
to, antes da Guerra, geralmente acompanhava emoções estilo intensamente expressivo pareceu inapelavelmente
mais fortes, mas agora passam a sugerir mais consciência fora de moda, exagerado e alienado da realidade. Talvez
(embora seja curioso que, na sua gravação não comer- a própria experiência de serem subjugados e controla-
cial de Wiegenlied de Schubert, ela realmente utilize um dos sem piedade (e isto se aplica também aos alemães)
portamento não característico, como no motherese).36 e receberem punição extrema por pequenos delitos, pro-
Schwarzkopf, por outro lado, tende apenas sinalizar as duzam, por si só, o cinismo, como Tony JUDT (2005, p.37,
emoções profundas, ao invés de vivenciá-las, como Lotte passim) sugere; cinismo que ganhou corpo ainda mais
Lehmann acreditava ser essencial (LEHMANN, 1945; repr. com a arbitrariedade parcial e punição branda destinada
1985; LEHMANN, [1971]);37 isto talvez seja uma respos- aos nazistas e colaboradores depois que a guerra acabou.
ta à época desumana em que Schwarzkopf amadureceu. 40
Talvez, simplesmente porque a ingenuidade fosse im-
Sinais característicos incluem uma mudança do vibrato possível após a descoberta dos campos de concentração.
estreito quando cantava nas baixas intensidades (soando Não causaria surpresa o fato dos cantores da geração que
tímida) para um vibrato largo quando cantava mais for- se tornou adulta durante o período do nazismo sentirem
te (soando impositiva); a variação de freqüência dentro que não mais poderiam representar a poesia sobre o amor
das notas, especialmente subindo a afinação para suge- do século XIX sem uma ponta de ironia. Não é incidental
rir uma intensificação de sentimento; o preenchimento o fato de que Freud finalmente se tornou uma influên-
dos espaços entre as notas, em que o início da nova nota cia no pensamento popular alemão durante as décadas
começava na nota anterior e, aí, um rápido deslize para seguintes ao pós-guerra. Embora as pesquisas psicanalí-
esta nova nota, gerando a sensação de um protagonista ticas do Instituto Göring continuassem durante o período
inseguro ao longo da canção; e, acima de tudo, ruídos nazista e com a chancela do governo, uma nova geração
longos e intensos nas respirações e nas consoantes con- de psicanalistas alemães se auto-considerava um novo
clusivas, utilizadas para sugerir alarme. Seu canto, nestes ponto de partida em 1945. Os institutos de psicanálise
momentos, chega perto da fala, dando a sensação de que foram criados entre o final da década de 1940 e mea-
se trata de um trabalho de cena, muito perto da atua- dos da década de 1960, e a psicoterapia gradualmente
ção de uma atriz. Ainda assim, não importando onde este se estabeleceu dentro do sistema de saúde alemão entre
canto falado começa ou termina em cada nota, o res- meados da década de 1950 e meados da década de 1970
tante é sempre musical: pode haver muita movimentação (BRECHT, 1995, p.291–312). Os jovens alemães do pós-
dentro das notas e scoops38 entre elas, como ocorre com guerra foram, de fato, a primeira geração à qual os psica-
Lehmann, mas as notas não escritas na partitura, utili- nalistas ofereceram uma opção óbvia para compreender
zadas ao longo da canção, tendem a ser notas escalares, o comportamento humano. Não é difícil ver, dentre desse
e não freqüências randômicas que acontecem nas suas contexto, especialmente considerando o peso da culpa e

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da insegurança em relação ao passado recente, que uma poderia supor; consoantes explosivas que dão às palavras
nova geração de cantores tenderia a ler os libretos de a força de uma irresistível energia ou de um impiedoso
ópera e a poesia de canções menos literalmente e menos comando. Ao mesmo tempo, a cor e o caráter de sua voz
inocentemente do que os seus antecessores. podem variar desde sedutoramente femininos (somente
com os harmônicos inferiores, com slides no início e no
Fischer-Dieskau, que nasceu em 1925, era dez anos mais final de palavras significativas, consoantes quase mudas)
jovem do que Schwarzkopf e seus anos de estudos como até sugerir as vocalizações de dominação típicas de um
cantor se deram durante e imediatamente depois da macho alfa, com cada harmônico tão fortemente presen-
guerra.41 Para um cantor, estes são os anos em que se te que os harmônicos parciais superiores se tornam uma
investe na busca dos meios para desenvolver a voz e a tempestade de ruídos, acusticamente confundidos com as
técnica para comunicar narrativas e sentimentos de uma consoantes). Todos estes efeitos, é fácil ver, tomam em-
maneira que seja apropriada à sua época. Normalmente, prestados os sons da fala, que carrega todas estas conota-
o que soa correto para um cantor e sua geração, pro- ções. Para levar adiante a frase de Legge, Fischer-Dieskau
vavelmente soará bastante familiar aos cantores e seu declama através de seu canto, ao mesmo tempo em que
público uma ou duas décadas depois. Mas para isto ser dá às palavras significados mais profundos e geralmente
verdade, é necessário um contexto estável, tanto para o mais perturbadores do que os cantores da geração ante-
estudo e desenvolvimento profissional no início de carrei- rior. Conseqüentemente, começamos a perceber subtex-
ra, quanto para o sentido coletivo de como a música pode tos nas canções e árias que, antes dele, seriam pensadas
melhor representar os sentimentos do povo ao seu redor. como peças aparentemente imaginárias e inofensivas.
É difícil imaginar como um cantor com pouca habilidade
de enfatizar notas no seu discurso musical - teríamos aí Como Schwarzkopf, ele utiliza os sons da fala como ges-
um cantor sem envolvimento com a música - poderia se tos expressivos, mas o faz com uma intenção menos ino-
firmar como performer na Alemanha durante os últimos cente. E não pode ser coincidência o fato de que, nos
anos da Segunda Guerra Mundial e os primeiros anos da próximos 20 anos, à medida que ele se torna reconhecido
ocupação aliada, e cantar como se nada tivesse aconte- como o padrão supremo da performance dos Lieder, os
cido. Para cantores jovens e questionadores, a expressão críticos começam a encontrar significados mais profun-
ingênua da emoção poética, na qual Lehmann, Schumann dos em poemas de canções do que jamais foi pensado
e Schlusnus foram experts, teria sido quase impossível. por Capell, Sir George Henschel ou Lotte Lehmann. Va-
O contexto certamente demandaria uma nova compre- mos recorrer a alguns comentários que fiz sobre estilo de
ensão do potencial da música de evocar desconforto performance:
(pelo menos).
Para Lotte Lehmann, escrevendo em 1945,42 Am Feiera-
Se quisermos entender o estilo de performance carac- bend de Schubert “. . . deveria terminar com uma apaixo-
terístico de Fischer-Dieskau, este é um fator a conside- nada impaciência”; a “impaciência”, ele diz, “de alguém
rar. Outro, é claro, é sua própria voz. Como a voz não se apaixonado, que provoca no observador uma certa e
desenvolve somente a partir de si própria, mas também quieta diversão”, deixando escapar, nos compassos fi-
em relação aos sons que o cantor precisa realizar, não nais, uma “ânsia fantasiosa”. O ouvinte, em outras pa-
se pode separar inteiramente uma coisa da outra. Mas, lavras, vê a estória pelo que ela parece ser; um exemplo
mesmo assim, parece seguro afirmar que a voz de Fis- tocante de ardor de juventude. Para Fischer-Dieskau, no
cher-Dieskau favorecia o drama e as emoções sombrias seu livro de 1971, escrevendo para uma cultura na qual
devido à sua excepcional paleta que ia do calmo e apá- Freud já estava entranhado, a música enérgica “expressa
tico (em que os harmônicos parciais eram suprimidos) ao o desejo fanático do rapaz pelo trabalho”, a recapitula-
fortissimo e brilhante, em que regularmente atenuava ção daquele trecho no final dá à peça “uma profundida-
os harmônicos do registro grave ao agudo, o que o fazia de psicológica – que claramente vai além das intenções
soar rico e suave, também capaz de mudanças súbitas do poeta”, e os compassos finais expressam “não ape-
dentro de um amplo espectro de cores e dinâmicas. De nas cansaço, mas também profundo desejo”.43 Em outras
uma maneira geral, ele deve ter desenvolvido suas habi- palavras, tudo nas engrenagens desta música ficou um
lidades por meio de prática e preferência, e preferência dente mais apertado, e um dente bem grande (LEECH-
é certamente um fator básico no seu conhecido gosto WILKINSON, no prelo).
por aquilo que Walter Legge chamou de “sua Aussprache
beim singen [pronúncia no cantar], o exagero prussiano É exatamente o que podemos ouvir nas gravações de
das consoantes” e que o irritava, assim como a muitos Fischer-Dieskau: em 1951, já apresentava contrastes po-
outros ouvintes (SCHWARZKOPF, 2002, p.88). A variedade derosos (as descrições de sons masculinos e femininos
de recursos é fascinante: consoantes longas e arrancadas foram baseadas nesta gravação); em 1971 (novamente
com dificuldade, tanto no início quanto no final das pala- com [o acompanhamento ao piano de] Moore; obser-
vras, permitindo a ele prolongar as idéias que as palavras vo que existiu outro pianista com ele neste ínterim) os
representam, algumas vezes lúgubre, algumas vezes com sons estão ainda mais variados, evocando um espectro
um sentimento saudosista de perda, mas sempre sugerin- maior de emoções cambiantes, enfatizadas pelo manu-
do que há mais a ser lido nestas palavras do que alguém seio habilidoso do microfone, que pode trazer momentos

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de intimidade ou distanciamento em padrões que mudam forma como foram musicados, de tal maneira que refletiu
imprevisivelmente: correntes de pensamento sobre a sensibilidade e emoções
incomuns, especialmente as correntes influenciadas pela
Fischer-Dieskau [nesta gravação de 1971 de Am Feiera- psicanálise.45 O que não nos surpreende, se considerarmos
bend, especialmente no último minuto (a partir de “al- sua formação e sua inteligência; mas precisamos ver isto
len eine gute Nacht”44 ] ataca as notas com sforzandi no contexto das tendências gerais de estilo da perfor-
explosivos, consoantes fortes,algumas vezes com slides mance: por exemplo, a que se afastou da expressividade
em algumas notas, moldando-as com crescendos e de- obtida através da modificação de alturas (portamento) e
crescendos rápidos que empurram na sonoridade um andamentos (rubato) em direção à expressividade obti-
harmônico cacófono por volta de 3 kHz, no qual sua da através da declamação e das dinâmicas. Quem, com
voz está muito forte, enquanto Gerald Moore martela grande poder e motivação, poderia mudar radicalmente a
os tempo fortes no piano. Tudo isto é uma forte resposta maneira como o canto se desenvolveu? Quais elementos
a um texto que apenas fantasia sobre o trabalho. Para estariam envolvidos? Um cantor com amplo espectro de
um jovem moleiro que, na sua vida externa, é próxima a dinâmicas e timbres; um período histórico com práticas
de um perdedor, esta interpretação parece conjurar uma de performance que demandaram dos cantores a explo-
força mental que somente podemos atribuir a uma ima- ração de características apenas pelo seu potencial ex-
ginação inesperadamente poderosa. A performance de pressivo; uma disposição para enxergar o lado dramático
Fischer-Dieskau conjura uma vida interna em conflito e sombrio das canções a serem cantadas; um interesse
com sua aparência externa e, por isto, é distintamente na compreensão psicológica do comportamento humano
diferente da abordagem de Henschel ou Capell (LEECH- (o que os alemães questionadores de sua geração dificil-
WILKINSON, no prelo) mente evitariam).

Foi a partir do início da década de 1970, quando a visão Fischer-Dieskau é excepcional, fascinante pela clareza
de Fischer-Dieskau de Schubert – como pode ser ouvi- com que nos possibilita ver as complexas interações de
do nos seus discos ou lido no seu livro - parece ter sido fatores que propiciaram uma mudança no estilo de per-
aceita como normal, e mesmo como modelo, é que co- formance: voz, personalidade, contextos histórico e inte-
meçam a aparecer comentários na literatura especiali- lectual – com tudo que isto implica em relação à maneira
zada tratando as canções de Schubert mais em termos com que as pessoas tendem a pensar sobre a comunicação
de drama e perturbações psicológicas. Para Graham JO- e a expressão dos sentimentos - e o estilo de performance
HNSON (1996, p.17-19), Am Feierabend mostra o jovem de seus antecessores imediatos (neste caso, a geração de
moleiro se fechando “no seu próprio mundo de fantasia e Schwarzkopf, e não a Lehmann); a performance musical
desejo”, com seu estado de espírito mudando de “fantasia depende das interações entre todos esses fatores acima e
lunática” para “frustração” e a canção, como um todo, é é difícil dizer que qualquer um deles tem um papel menos
caracterizada por uma “atividade física saudável combi- importante do o outro.
nada com um sentimento de supressão pouco saudável”
(isto está em uma gravação na qual Fischer-Dieskau, já Espero que seja mais fácil ver agora como estas estó-
aposentado, aparece como narrador, e em que foi foto- rias de encaixam. Até a Segunda Guerra Mundial, a per-
grafado como se passasse a Johnson os benefícios de formance era – para colocar crua, mas resumidamente
sua experiência. Ainda assim, estamos conceitualmente – objetiva do ponto de vista emocional, envolvendo os
um pouco distantes da perspectiva recente de Lawrence ouvintes diretamente por meio do significado dos textos,
Kramer, em que o jovem moleiro seria um masoquista e, que era intensificado pelos procedimentos do compositor
Am Feierabend, uma fantasia que satisfaz seus desejos; a ou, na música instrumental, por meio de uma sucessão
filha do moleiro, mais à frente na canção, “abole seu pai. de idéias e gestos evocativos interagindo ao longo da su-
. . re-interpretando uma das passagens musicais com seu perfície musical. Os performers expressavam suas idéias
material temático de uma forma emocionalizada, não- o mais bonito possível, manipulando o andamento e as
fálica, ambígua”, como coloca KRAMER (1998, p.140). alturas para tornar aquela superfície a mais arrebatadora
Será que chegaríamos a este ponto sem uma tradição de e tocante possível. Depois da Segunda Guerra Mundial, a
performance anterior na qual as leituras psicologizadas música pareceu significar algo muito menos direto; pas-
pareciam essenciais? Será que esta leitura de Kramer se- sou a ter correntes submersas em direção oposta à sua
ria possível sem as gravações de Fischer-Dieskau? superfície. Torná-las aparentes passou a ser uma função
do intérprete, ou para complicar – com diríamos hoje
Vemos claramente aqui algo que pode bem ser comum, – problematizar a superfície e os significados ostensivos
talvez a norma: as mudanças no estilo da performance dos textos e sua colocação na partitura. A psicanálise
musical causam mudanças na maneira como os ouvin- influenciou profundamente a interpretação da música
tes e, por que não, os críticos, compreendem a música. tanto pelos performers quanto pelos ouvintes. Seguindo
Fischer-Dieskau representa um exemplo particularmente esta nova abordagem, surgiu a análise musical (em que
forte deste caso. Sua influência tem sido extraordinária a escolha da palavra “análise” diz tudo) – a busca por
não apenas porque ele tinha uma voz extraordinária, mas estruturas profundas, significados escondidos abaixo da
também a maneira como ele compreendeu os textos e a superfície. O portamento, tocando diretamente na evoca-

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ção musical da emoção mais intensa e envolvente dispo- tal.47 Mas estas performances de Schlaflied, que mostram
nível ao ser humano, fazia sentido na abordagem anterior como a música recorre a respostas pré-cognitivas, tam-
do significado musical. Na abordagem do pós-guerra, sua bém nos permitem ver que um processo – o portamento
inocência e ingenuidade tornaram-se impossíveis, exceto – e o significado dado neste nível relativamente profundo
como um índice de ironia, gozação ou, por assim dizer, da podem ser rejeitados e suprimidos como resultado de uma
sobrancelha levantada do cantor. mudança cultural. A música tem o potencial de evocar
algumas respostas muito profundas, mas outros fatores
Fazendo uma retrospectiva deste ponto de vista mais (psi- podem intervir para suprimi-los. Os psicanalistas, isto não
co-)analítico, poderíamos desejar ir um pouco mais longe é novidade, não teriam dificuldade para compreender a
para sugerir que o gosto pelo portamento foi uma forma idéia de que a nossa sociedade reprime nossas respostas
de infantilidade e, seu abandono, um sintoma de cresci- instintivas às outras sociedades.
mento artístico e maturidade cultural. Isto seria plausível
se o portamento fosse um fenômeno temporário, carac- Outra coisa que este fator nos permite ver claramente
terístico do escapismo do entre-guerras, cujo neoclassi- é uma mudança revolucionária que ocorreu por volta de
cismo poderia ser visto como aparentemente oposto, mas 1950, na maneira da sociedade ver a relação entre a arte
ainda fundamentalmente juvenil, uma resposta a uma e a vida, distanciando-se da idéia de arte como conforto
cultura que provou ser capaz de ter continuidade após e aproximando-se da idéia de que arte é desafio. É fácil
Primeira Guerra Mundial. A história das gravações não é confirmar isto de diversas maneiras na história da produ-
tão antiga para nos certificar que, como POTTER (2006) ção e da recepção artística, assim como na literatura crí-
argumentou, evidências escritas sugerem que o porta- tica dos últimos 60 anos. Poderíamos dizer que isto come-
mento teve uma longa história antes das gravações. Seria çou antes, com Stravinsky, Schoenberg, Picasso, Adorno,
uma luta inglória, neste momento, sustentar o argumento Freud etc. Mas a questão aqui é que o modernismo, como
de que somente agora é que o gosto musical erudito no a psicanálise, tornou-se corrente predominante depois
Ocidente entrou na maturidade. De toda forma, uma lei- da Segunda Guerra Mundial e devido à Segunda Guerra
tura do portamento como signo de infantilidade é facil- Mundial, que sacudiu todos numa busca de mudança ra-
mente sustentado hoje em dia, especialmente tendo como dical de explicações poderosas para tudo que ocorreu na
referência o modelo de desenvolvimento psico-sexual de Alemanha. É somente aí que tudo isto se torna audível
KRISTEVA (1984) no qual motherese e, consequentemen- na rotina da performance musical; e só mais tarde é que
te portamento, pode ser bem absorvido.46 isto começa a receber a atenção da crítica especializada e
da pesquisa acadêmica. O portamento foi, simplesmente,
Em suma, no portamento, associamos nossa experiência uma vítima desta revolução.
musical com a segurança e o amor de nossa primeira in-
fância – por isto o percebemos como comovente; se não Ainda vale a pena falar sobre dois tópicos subsidiários,
pudermos aceitar esta associação, ou se pensarmos que embora eu não tenha, no momento, solução alguma para
a música é um meio para outras coisas mais sérias, en- ambos. Primeiro, porque o portamento continuou ao ser
tão o portamento não faz sentido. O reaparecimento das utilizado na ópera, embora de forma bastante reduzida? A
primeiras gravações históricas permitiu a sua reabilita- projeção pode ser uma razão: assim como a produção da
ção para os ouvintes (pelo menos, para ou ouvintes de voz mudou com um re-arranjo dos formantes para projetar
gravações históricas), mas há sinais apenas remotos de melhor o canto solo acima da orquestra de formação nu-
que o portamento vá reaparecer nas salas de concerto ou merosa (SUNDBERG, 1987, p.115–129; SUNDBERG, 2000,
nos estúdios de gravação. É mais provável que permaneça p.240–246), também o portamento pode ajudar a atrair
fora do menu, a não ser que entremos em um período a atenção (assim como na fala direcionada aos bebês)
mais verdadeiro, ou se preferirem, deliberadamente mais para o solista. Neste cenário, a platéia se torna, por assim
imaturo, no qual a superfície dos eventos seja o local dizer, o bebê e, o cantor se torna quem cuida da criança.
onde estamos satisfeitos de tocar. Entre outras coisas, Um leque de fortes associações, que atrai a platéia para
penso que esta hipótese levanta algumas questões inte- o cantor – e que ocorre também na ópera – é engendra-
ressantes sobre as contingências da música. Argumentei do. Isto parece bem plausível. A tradição musical pode
que, olhando para Schlaflied como uma canção de ninar, ser o outro elemento, o sentido de continuidade do canto
as respostas que são programadas, não só neste exem- operístico anterior, que é um componente cultural muito
plo, mas talvez em outros, vão muito além, em detalhes mais importante na apreciação da ópera do que no canto
composicionais que ainda não pensamos como prováveis. dos Lieder e, mais ainda, do que na música instrumental.
Mesmo detalhes de construção melódica, que poderíamos Menos plausível (esta sugestão tem maior afinidade com
pensar simplesmente como questões locais de um esti- a teoria cultural do que com a percepção cultural), seria
lo erudito ocidental, culturalmente determinado, estão a associação existente entre o canto de palavras que nor-
relacionados a processos fundamentais que atuam nas malmente seriam faladas (o que é uma peculiaridade da
nossas respostas aos sons humanos. Neste sentido, meu ópera) e o motherese (que é isto em essência), associação
argumento vai diretamente contra as tendências das cor- na qual o portamento auxiliaria a ilusão de que a ópera se
rentes intelectuais que preferem ver a música erudita oci- torna verossímil com associações instintivas de natureza
dental como uma total contingência da cultura ociden- afirmativa do motherese. Esta vertente, com a questão da

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projeção da voz, ligaria a ópera com as melhores vivên- (à exceção de Dietrich Fischer-Dieskau), muito comum.
cias da vida musical na primeira infância. Mas isto também pode ser explicado pela minha hipó-
tese. Se a música não pode mais ser sentimental, deve
O segundo tópico diz respeito ao portamento “mais ale- então descobrir uma nova maneira de ser expressiva e
gre” que mencionei no início do artigo. A fala direciona- comovente, o que leva tempo. O portamento, por outro
da aos bebês, enquanto cruzamento de culturas, aparece lado, acontece de imediato, mas pode ser substituído de-
de duas formas: relaxante e brincalhona, representada sordenadamente com qualquer coisa que esteja à dispo-
pelas canções de ninar, parlendas e canções de roda. Em- sição. A solução imediata na música clássica e romântica
bora tenhamos nos concentrado nas canções de ninar e foi aumentar significativamente a quantidade de vibrato
na sua ligação com a forma “amorosa” do portamento, – pense no Quarteto Amadeus, o qual foi influenciado e
é certamente possível que as variedades “mais alegres” obteve reconhecimento exatamente nesta época e neste
do portamento, ilustradas logo depois do início do ar- ambiente, quando seus membros, refugiados dos nazistas,
tigo, apresentem um índice de canções de motherese, foram transplantados para Ilha de Man. Na performance
que são caracterizadas especialmente pela subida no de Bach, a solução imediata foi, ao contrário, buscar a
contorno de alturas, o que notamos com precisão nos objetividade – além de seu valor novidadeiro, nem sem-
exemplos de Elisabeth Schwarzkopf (frívola), Fritz Kreis- pre terrivelmente excitante, mas pelo menos não-crítico,
ler (brincalhão) e Janet Baker (alegre) (FERNALD, 1989, certamente um índice de uma nova seriedade na perfor-
p.1497–1510).48 Fica claro que o escopo para pesquisas mance musical como uma atividade ética. Na música de
nesta área é muito amplo, como a investigação detalha- vanguarda, colocou-se ênfase em uma completa ausência
da sobre os diferentes tipos de portamento de estilo mais de expressividade de qualquer natureza (pense em Boulez
leve e a confrontação de suas características com resul- e Darmstadt na década de 1950).49 Voltando finalmente
tados de pesquisa sobre a comunicação entre as crianças ao canto em Schubert, o novo estilo de performance da
e quem cuida delas. década de 1950, com sua ênfase teatral e dramas suben-
tendidos, simplesmente representou uma outra face do
Um aspecto final e inesperado desta hipótese do porta- modernismo. Mas uma face que seria facilmente aceitá-
mento é que ela coloca a década de 1950 em um perío- vel do ponto de vista social, de uma maneira que o mo-
do estilístico absolutamente crucial no desenvolvimento dernismo desejaria não ter acontecido e na qual a avant
da performance do século XX. Esta é a década em que garde não se reconhecia. Agora, no início da década de
as performances não despertaram ainda muita atenção, 2000, o portamento, como gesto expressivo, pode estar
simplesmente porque – comparadas às décadas anterio- iniciando o seu retorno – já existem alguns sinais – e,
res de 1920 e 1930 e, mais tarde, às décadas de 1970 neste caso, devemos nos perguntar o que ele quer dizer
e de 1980 da HIP (Historically Informed Performance), sobre nós mesmos.
todas fortemente expressivas – é uma década, no geral

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LEECH-WILKINSON, D. Portamento e significado musical. Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 07-25

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matriz 2-07918, 1915).
BRAHMS, J. Concerto para Violino, Adagio, Bronislaw Hubermann (violino), Philharmonic-Symphony Orchestra,
Artur Rodzinski (regência), 1944; re-lançamento em CD (Music & Arts, 1122).
CHOPIN, F. Étude in G, Op.10 n.5, Moriz Rosenthal (piano) (Parlophone E 11161, matriz 21783), 1931; relançado em CD
(Pearl GEMM CD 9339).
DONIZETTI, G. Spirto gentil (La Favorita), Dmitri Smirnov (tenor), orquestra anônima em St. Petersburg (HMV matriz 140
af), 1910; re-lançado em 78rpm por Historic Masters (HM 178 B), 2006.
ELGAR, E. The Dream of Gerontius, Janet Baker (mezzo-soprano) e John Barbirolli (regência) (EMI ASD 648–9, SLS 770), 1965.
______. The Dream of Gerontius, Janet Baker (mezzo-soprano) e Simon Rattle (regência) (EMI EX 7 49549 1), 1986.
KREISLER, Fritz. Liebesleid, Fritz Kreisler (violino) e George Falkenstein (piano) (C-8950-3), 1912; relançado como Fritz
Kreisler - The Complete RCA Recordings (RCA 09026 61649 2).
SCHUBERT, F. Das Wandern (Die schöne Müllerin), Sir George Henschel (barítono) (HMV 7–42006, mat. Ak17387e), 1914;
relançado em CD: Schu­bert: Lieder on Record, 1898–1952, v.1-1898–1939 (EMI Classics 5 66150 2).
______. Die junge Nonne, D828, Lotte Lehmann (soprano), Paul Ulanowsky (piano) (Columbia matriz XCO 30013), 1941;
originalmente lançado pela Columbia (71509-D) e Columbia LOX (654).
______. Franz Schubert, Lieder, Dietrich Fischer-Dieskau (barítono) e Gerald Moore (piano) (DG 437 214–2, v.3, disco 1
(437 236–2), 1971.
______. Schlaflied, Elena Gerhardt (mezzo-soprano) e Conraad Bos (piano), 1928; (HMV D 1460, matriz Cc12964–2).
______. Schlaflied, Janet Baker (mezzo-soprano) e Gerald Moore (piano), 1970; relançado em CD: Schu­bert Lieder (EMI
Classics 7243 5 69389 2).
______. Schubert Liederer, Elly Ameling (soprano) e Dalton Baldwin (piano), 1973; relançado em CD: Schubert Liederer
(Philips 464 334–2).
______. Ständchen, D957, Emmy Bettendorf (soprano), Otto Dobrindt (regência), Parlophone (E 10962, matriz 2-21496),
1929.
______. Wiegenlied, Elisabeth Schwarzkopf (soprano), gravação não-comercial (Testament SBT 2172,
disco 2), s.d.

22
LEECH-WILKINSON, D. Portamento e significado musical. Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 07-25

Daniel Leech-Wilkinson estudou composição, cravo e órgão no Royal College of Music (Londres), o mestrado em mú-
sica do século XV no King’s College London e o Doutorado em técnicas composicionais do século XIV no Clare College
Cambridge, tornando-se Professor Fellow no Churchill College. Ensinou em universidades de Nottingham e Southampton
antes de retornar ao Departmento de Música do King’s College London em setembro de 1997. Como pesquisador, estuda
a música francesa do século XIV, práticas de performance da Renascença, análise da música barroca francesa e da música
após 1945. Recentemente, tem se dedicado ao estudo de técnicas para estudar estilos de performance musical. Além de
diversos artigos e capítulos de livros, publicou os livros Compositional Techniques in the Four-Part Isorhythmic Motets of
Philippe de Vitry and his Contemporaries (Garland, 1989), Machaut’s Mass: An Introduction (Oxford University Press 1990,
1992), Guillaume de Machaut, Le Livre dou Voir Dit (co-autoria com Barton Palmer; Garland, 1998), que é a primeira
edição completa do romance autobiográfico de Machaud. Em seu livro mais recente, The Modern Invention of Medieval
Music (Cambridge, 2002), apresenta um estudo de caso sobre ideologia na musicologia histórica, apresentando como a
música medieval foi re-imaginada nos séculos XIX e XX. Atualmente, é membro do conselho editorial do periódico Early
Music, Diretor Associado e pesquisador do Centre for the History and Analysis of Recorded Music (CHARM), e contribui
regularmente para as Rádios 3 e 4 da BBC de Londres e escreve um livro sobre o estudo da performance por meio de
gravações.

Fausto Borém é Professor da Escola de Música da UFMG e pesquisador do CNPq. Coordena os grupos de pesquisa
ECAPMUS (Estudos em Controle e Aprendizagem Motora na Performance Musical) e PPPMUS (“Pérolas” e “Pepinos” da
Performance Musical), criou e edita a revista Per Musi, implantou o Mestrado em Música na UFMG. Publica trabalhos
nas áreas de performance, composição, musicologia, etnomusicologia e educação musical. Como contrabaixista, recebeu
diversos prêmios no Brasil e no exterior.

Notas:
1
Este artigo foi publicado anteriormente no Journal of Musicological Research, n.25, p.233–261, 2006. Copyright © Taylor
& Francis Group, LLC ISSN 0141-1896 print /1547-7304 online DOI: 10.1080/01411890600859412.
2
Já existe uma bibliografia significativa sobre o portamento nos séculos XVIII e XIX. Para uma pesquisa sobre sua evi-
dência, veja Beggar at the Door: The Rise and Fall of Portamento in Singing de John POTTER (2006). Para estudos mais
detalhados, veja, entre outros, Bowing Styles, Vibrato and Portamento in Singing in Nineteenth-Century Violin Playing de
Clive BROWN (1988, p.97-128); Joachim’s Violin Playing and the Performance of Brahms’s String Music de Clive BROWN
(2003, p.48-98); Portamento in Romantic Opera de Deborah A. KAUFFMAN (1992, p.139-58); Reconstructing Pre-Ro-
mantic Singing Technique de Richard WISTREICH (2000, p.178-91).
3
Como exemplos mais remotos deste desagrado, POTTER (2006, nota 55) cita Edwin Evans em 1943 e Bairstow e Plun­ket
Greene em 1945, aos quais podemos acrescentar Kate EMIL-BEHNKE (1945; veja nota de rodapé 5) e F. C. FIELD-HYDE
em The Art and Science of Voice Training (1950, p.202–203). Estes casos são bons exemplos da gradual mudança da
aceitação ao desagrado que ocorreu no período escrutinado neste artigo. Os exemplos anteriores requerem uma leitura
bastante crítica, uma vez que músicos que faziam objeção ao portamento no início do século XX freqüentemente também
o utilizavam. Penso especificamente em Harry Plunket GREENE em Interpretation in Song (1912, p.176–177) e, embora
fosse mais ambivalente, Leopold AUER em Violin Playing as I Teach It (1921, p.21–24). Agradeço a Amy Carruthers por
diversas dessas referências. Exemplos de atitudes mais recentes são encontráveis em autores que escrevem sem inibições
sobre as primeiras gravações de performances. Veja também o caso pitoresco e revelador contado por POTTER (2006, nota
66), que ilustra o corrente desagrado pelo portamento em uma renomada instituição onde se ensina períodos estilísticos
(sem o portamento).
4
POTTER (2006, antes da nota 52). Para uma citação do período, veja o conselho de Kate EMIL-BEHNKE em The Technique
of Singing (1945, p.99–100), em que o portamento e a ligadura de expressão requerem “considerável discrição” na sua
utilização, porque se “utilizado muito freqüentemente, ambos se tornam ofensivos, passando a fazer parte da ‘choradeira’
[sob-stuff] e do sentimentalismo [crooning]”. Devo esta breve exposição a Amy Carruthers, a quem sou grato por tanta
informação sobre slides e portamento na literatura histórica.
5
NOTA DO TRADUTOR: O efeito fonográfico, termo criado por Mark KATZ (2004, 2006), se refere aos efeitos gerados
pelas respostas e demandas da tecnologia de gravação. No caso do portamento, a sensação de espontaneidade ao vivo
se transformou, nas primeiras gravações (em função da tecnologia da época), em um exagero ou sonoridade artificial nos
discos, que pode ter influenciado o seu declínio enquanto prática de performance.
6
Visite o site http://www.arts.unco.edu/jmr/ para acessar gratuitamente o Sound Clip 1: Schubert, Die junge Nonne,
D828, Lotte Lehmann acompanhado por Paul Ulanowsky, Columbia matriz XCO 30013 (gravado em 4 de Março de 1941),
originalmente lançado pela Columbia (71509-D) e Columbia LOX (654. 0′ 47″–1′ 11″). Transferência generosamente ce-
dida por Karsten Lehl.
7
Devo esta conexão a Amy Carruthers.
8
Para um exemplo, veja a discussão sobre o soluço de Caruso por Daniel LEECH-WILKINSON em Using Recordings to
Study Musical Performance em Aural History: Essays on Recorded Sound (2001, p.1–12).
9
Chopin, Étude in G, Op.10 n.5, terceiro compasso antes do final. Esta performance foi originalmente lançada pela Par-

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LEECH-WILKINSON, D. Portamento e significado musical. Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 07-25

lophone E 11161, matriz 21783 (gravado em Março de 1931). Um relançamento em CD (transferência de Denis Hall) está
disponível pela Pearl GEMM CD 9339, faixa 6, 1′ 31″–1′33″.
10
Devo este exemplo a Yang’en Xu.
11
Não estou considerando aqui a conveniência técnica do portamento, os dedilhados, ligaduras etc. que podem con-
tribuir na sua produção, mas cuja simultaneidade não é indissolúvel (o portamento pode ser suprimido ao desejo do
performer). Minha preocupação é como os ouvintes escutam o portamento e como os performers o utilizam a partir
dessas percepções.
12
Agradeço a Robert Philip pela provocativa discussão sobre estes “outros” portamenti.
13
Nos c.3-4 da Fig.117 da partitura, tocando o Lá agudo opcional. The Dream of Gerontius de Elgar, regido por John
Barbirolli (EMI ASD 648–9, SLS 770, lançado em1965), lado 4. Regido por Simon Rattle (EMI EX 7 49549 1, gravado em
1986), lado 4. O mesmo gesto ocorre em ambas as performances.
14
Entre suas várias gravações, veja, por exemplo, C-8950-3 (gravado em 18 de dezembro de 1912), em que Kreisler é
acompanhado por George Falkenstein; relançado como Fritz Kreisler - The Complete RCA Recordings (RCA 09026 61649
2, disco 2, faixa 2, 3′ 19″–3′ 21″).
15
Visite o site http://www.arts.unco.edu/jmr/ para acessar gratuitamente os seguintes sound clips:
Sound Clip 2: Bach, Concerto em Ré menor para dois violinos, Largo, Fritz Kreisler e Efrem Zimbalist (HMV DB 587, ma-
triz 2-07918; gravado em 4 de Janeiro de 1915, 0′ 0″–0′ 52″; transferência de Daniel Leech-Wilkinson). A performance
completa para download está disponível em http://www.kcl.ac.uk/music/ksa/ksa_sound.html.
Sound Clip 3: Brahms, Concerto para Violino, Adagio, c.91-103, Bronislaw Hubermann (violino), Philharmonic-Symphony
Orchestra regida por Artur Rodzinski (gravação em 23 de Janeiro de 1944); re-lançamento em CD pela Music & Arts
(1122, track 2, 6′ 39″–7′39″). Reproduzido com a gentil autorização de Music & Arts Programs of America, Inc.
Sound Clip 4: Schubert, Ständchen, D957, Emmy Bettendorf (soprano), acompanhada por orquestra regida por Otto Do-
brindt, Parlophone (E 10962, matriz 2-21496, gravado em 17 de Agosto de 1929; 0′ 0″–1′ 27″). Transferência de Daniel Lee-
ch-Wilkinson. A performance completa para download está disponível em http://www.kcl.ac.uk/music/ksa/2-21496.mp3.
Sound Clip 5: Donizetti, Spirto gentil (La Favorita), Dmitri Smirnov (tenor), acompanhado por orquestra anônima (HMV
matriz 140 af; gravado em 23 de Novembro de 1910, St. Petersburg; re-lançado em 78rpm por Historic Masters (HM 178
B, 2006; 2′ 40″–4′ 09″). Reproduzido com a gentil autorização de Historic Masters.
16
A bibliografia relevante sobre este assunto é vasta. Como introdução, sugiro o trabalho de Patrik N. JUSLIN, From
Mimesis to Catharsis: Expression, Perception, and Induction of Emotion in Music (2005, p.85-115); e o trabalho de Klaus
R. SCHERER e Marcel R. ZENTNER Emotional Effects of Music: Production Rules. In: Music and Emotion: Theory and
Research (2001, p.361-392).
17
Aqui, entramos na seara da semiótica da música, embora os estudos neste campo nem sempre dêem a devida atenção
ao assunto, penso eu, devido ao fato de que os signos são, apenas teoricamente, signos de alguma coisa até que eles
sejam realizados dentro de um estilo em que fazem sentido enquanto som.
18
Schlaflied é o título original desta versão, embora tenha sido re-publicada por Diabelli como Schlummerlied, título que
aparece na maioria das edições e gravações. Existe uma versão anterior em manuscrito com o título Abendlied (REED,
1997, p.375).
19
Visite o site http://www.arts.unco.edu/jmr/ para acessar gratuitamente o Sound Clip 6: Schu­bert, Schlaflied, Janet
Baker, acompanhada por Gerald Moore (gravado em 1970). Relançado em CD: Schu­bert Lieder (EMI Classics 7243 5
69389 2, disco 1, faixa 5. 0′ 0″–0′ 56″. Reproduzido com a gentil autorização de EMI Classics.
20
Contornos de notas ascendentes são utilizados para captar o interesse e manter a atenção do da criança, o que é des-
crito durante a seqüência ascendente na linha 3 [do poema], quando o menino se encanta com o que está à sua volta, o
que é seguido por um retorno de figuras descendentes mais relaxantes na linha 4 onde ele “ . . .se cura de todas as dores”
(TREHUB, UNYK, KAMENETSKY, HILL, TRAINOR, HENDERSON e SARAZA, 1997, p.500).
21
TRAINOR, CLARK, HUNTLEY e ADAMS (1997, p.385) ainda citam SCHERER (1986, p.143–165, 393), TARTTER (1980,
p.24–27) e TARTTER e BRAUN (1994, p.2101–2107).
22
Elly Ameling, Dalton Baldwin (gravado em Amsterdam, August 1973), Relançado em CD: Schubert Liederer (Philips 464
334–2, disco 1, faixa 7. 1′ 58″–2′ 56″).
23
Os autores citam E.S. MORTON (1977, v.111, p.855–869).
24
Observe que os ritmos imprecisos das canções de ninar contrastam com o canto mais rítmico das canções de roda
infantis.
25
Com Janet Baker (mezzo-soprano) e Gerald Moore (piano), op. cit., 0′ 48″–0′ 54″.
26
Para um interessante estudo de motherese praticado como uma linguagem com inflexões de freqüência (no mandarim
chinês), veja PAPOUŠEK, PAPOUŠEK e SYMMES (1991, p.415–440). Agradeço a Bernard Sherman por esta referência e por
outras discussões no meu script.
27
Visite o site http://www.arts.unco.edu/jmr/ para acessar gratuitamente o Sound Clip 7, Schubert, Schlaflied, Elena
Gerhardt, Conraad Bos (gravado em 9 de maio de 1928): HMV D 1460, matriz Cc12964–2. 0′ 0″–1′ 09″. Transferência
de Daniel Leech-Wilkinson. O download da performance completa pode ser feito em http://www.kcl.ac.uk/music/ksa/
Cc12964-2.mp3.

24
LEECH-WILKINSON, D. Portamento e significado musical. Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 07-25

28
Em relação a esta citação e a da nota seguinte, suas traduções e seus contextos, sou grato a Elaine MARTIN (Re-Re-
ading Adorno: The ‘After-Auschwitz’ Aporia, Forum 2, 2006), http://forum.llc.ed.ac.uk/issue2/index.html, acesso em 6 de
junho de 2006. “Der Gedanke, daß nach diesem Krieg das Leben „normal” weitergehen oder gar die Kultur „wiederaufge-
baut” werden könnte—als wäre nicht der Wiederaufbau von Kultur allein schon deren Negation,—ist idiotisch. Millionen
Juden sind ermordert worden, und das soll ein Zwis­chenspiel sein und nicht die Katastrophe selbst? Worauf wartet diese
Kultur eigentlich noch?” Para uma tradução anterior em inglês, veja Minima Moralia: Reflections from Damaged Life,
trans. E.F.N. Jephcott (London: NLB, 1974, p.55).
29
“Wer für Erhaltung der radikal schuldigen und schäbigen Kultur plädiert, macht sich zum Helfershelfer, während, wer
der Kultur sich verweigert, unmittelbar die Barberei befördert, als welche die Kultur sich erhüllte. Nicht einmal Schweigen
kommt aus dem Zirkel heraus; es rationalisiert einzig die eigene subjektive Unfähigkeit mit dem Stand der objektiven
Wahrheit und entwürdigt dadurch diese abermals zur Lüge.”
30
“. . . nach Auschwitz ein Gedicht zu schreiben, ist barbarisch. . . .”
31
CAPELL ([1928], 1957, 1973).
32
CAPELL ([1928], p.282). O Appendix III, “Gramophone Records,” aparece somente nesta edição.
33
Visite o site http://www.arts.unco.edu/jmr/ para acessar gratuitamente Sound Clip 8, Schu­bert, Das Wandern (Die
schöne Müllerin), Sir George Henschel, HMV 7–42006, mat. Ak17387e (gravado em 9 de janeiro de 1914 no Hayes, com
o engenheiro de som George Dillnutt). Relançado em CD: Schu­bert: Lieder on Record, 1898–1952, v.1-1898–1939”, EMI
Classics 5 66150 2, disco 2, faixa 8. 1′30″–2′ 15″. Reproduzido com a gentil autorização de EMI Classics.
34
Capell, ([1928], p.191).
35
Produção de Phyllida Lloyd na English National Opera em abril de 2005.
36
SCHUBERT (s.d.). Testament SBT 2172, disco 2, faixa 6.
37
Veja especialmente o conselho frase-por-frase de Lehmann para o cantor incorporar seu personagem.
38
NOTA DO TADUTOR: Scoop, em performance musical, é um efeito de alteração de freqüência de uma nota musical que
imita o movimento parabólico (descendente e ascendente) de uma colherada.
39
Bernard SHERMAN (2006) me sugeriu, de maneira bastante plausível, que um fator a ser pesquisado são as mudanças
(trazidas à tona pela convulsão política) nos profissionais da performance e da gravação de música orquestral. Na Europa
da década de 1930, músicos aprovados pelo nazismo substituíam músicos judeus e, uma década mais tarde, os músicos
aprovados pela Aliança substituíam os simpatizantes do nazismo.
Ambos processos podem ter contribuído para acelerar as mudanças estilísticas.
40
Agradeço a Bernard Sherman por me mostrar o livro de Judt.
41
Para uma excelente discussão biográfica sobre Fischer-Dieskau e suas diferenças dos cantores que o antecederam, veja
POTTER (2006).
42
LEHMANN ([1971], p.24).
43
FISCHER-DIESKAU, (1976, p.178).
44
SCHUBERT (1971), Franz Schubert, Lieder, DG 437 214–2, v.3, disco 1 (437 236–2), faixa 5, (gravado em dezembro de
1971, em Berlin), 1′ 41″–2′ 36″.
45
FISCHER-DIESKAU (1990, p.42) diz em sua autobiografia: “Sigmund Freud ganhou preponderância em relação à minha
religião. De tudo que li, nada me impressionou mais do que suas reflexões”. Agradeço a Bernard Sherman por me indicar
esta citação.
46
Agradeço a Eric Clarke e Julie Brown pela discussão do portamento nesta abordagem.
47
Para este índice de mudança no pensamento antropológico, veja An Ethno­musicologist Contemplates Universals in
Musical Sound and Musical Culture de Bruno NETTL (2000, p.463–472). Também relevante é a proposta final de NETTL
(p.471): ao invés de supor que a música originou-se da simples monofonia, ele especula se ”poderia. . . também fazer
sentido imaginar que a música humana mais remota se movia no registro da voz à maneira dos glissandi como a uma
fala emocional”.
48
Para um sumário relevante desta literatura, veja TREHUB (2000, p.437).
49
Sobre a mudança no estilo de performance da música modernista, especialmente na interpretação de Boulez, veja
LEECH-WILKINSON (no prelo).

25
CRISTÓFARO SILVA, T. Algumas questões representacionais... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 26-34

Algumas questões representacionais


acerca da Tabela Normativa para o
português brasileiro cantado
Thaïs Cristófaro Silva (UFMG, Belo Horizonte / King´s College London, Londres Inglaterra)
thaiscristofarosilva@ufmg.br
www.letras.ufmg.br/cristofaro

Resumo: Este artigo tem o objetivo de documentar e avaliar a discussão de alguns aspectos representacionais relativos
à elaboração da Tabela Normativa para o português brasileiro cantado. Dois momentos distintos na elaboração da tabe-
la são discutidos. A proposta votada na ocasião do IV Encontro Brasileiro de Canto, realizado em São Paulo em fevereiro
de 2005 e o documento publicado no Boletim da Associação Brasileira de Canto, número 28, de outubro/novembro de
2005. Os dois documentos são apresentados e discutidos, indicando-se avanços obtidos e aspectos ainda serem investi-
gados. Pretende-se, assim, oferecer uma contribuição aos aspectos representacionais do registro do português cantado.
Palavras-chave: fonética, fonologia, canção brasileira, canto, português brasileiro.

Some representational issues related to the Normative Chart for singers of Bra-
zilian Portuguese
Abstract: This article aims to document and discuss some representational issues related to the development of a
Tabela Normativa para o português brasileiro cantado [Normative Chart of Brazilian Portuguese for Singers]. Two
proposals are addressed. First, the one voted at the IV Encontro Brasileiro de Canto [4th Meeting of Singers of Brazilian
Portuguese], held in São Paulo on February, 2005. Second, the article published in the Boletim da Associação Brasileira
de Canto [Bulletin of the Brazilian Association of Singing], issue 28, October/November, 2005. These two documents
are discussed, including the results already achieved and aspects deserving further investigation.
Keywords: phonetics, phonology, Brazilian song, singing, Brazilian Portuguese.

1. Introdução Tanto a linguagem oral quanto a linguagem escrita so-


Na primeira parte desta seção argumento que sistemas frem mudanças através do tempo. Ambas as modalidades
lingüísticos são dinâmicos e, sendo assim, qualquer do- apresentam também o que podemos denominar ‘lingua-
cumento de caráter normativo apresenta limitações. Em gem padrão’ ou ‘linguagem não-estigmatizada’.1 A lin-
segundo lugar, discuto questões representacionais da fo- guagem padrão é tão boa e eficiente para os propósitos
nética e da fonologia. Finalmente, indico que uma tabela de comunicação quanto a ‘linguagem não-padrão’ ou
normativa para a língua cantada deve conceber particu- ‘linguagem estigmatizada’. Uma modalidade qualquer é
laridades da língua materna para acomodar a criatividade caracterizada como padrão a partir de parâmetros não
de seus cantores. lingüísticos (ou seja, aspectos sociais, políticos, geográ-
ficos etc). Considere as três sentenças abaixo, que são
Possivelmente, um dos poucos aspectos consensuais en- exemplos de sentenças do português brasileiro:
tre os lingüistas é de que línguas são objetos dinâmicos. (1) a. Nós vamos cantar algumas músicas.
Ou seja, toda e qualquer língua atestada até hoje muda b. A gente vai cantar algumas músicas.
no decorrer do tempo. Como línguas são primordialmente c. Nós vai cantar algumas música.
objetos de natureza oral, observa-se que muitas mudan-
ças decorrem de diferenças de gerações (LABOV, 1994, As três sentenças em (1) são perfeitamente compreensíveis
2001; MOLLICA e BRAGA, 2003). Os sons são alterados ao aos falantes brasileiros. As sentenças (a, b) são compreen-
longo do tempo. A linguagem escrita reflete primordial- didas como refletindo, de alguma maneira, a ‘linguagem
mente uma linguagem oral. A linguagem escrita pode ser padrão’. Contudo, numa situação avaliativa, intuitivamen-
lida com a sonoridade de sotaques variados. Basta pensar- te, para muitos falantes brasileiros, a sentença (a) parece
mos como um leitor paraense, recifense, carioca, gaúcho ser ‘mais padrão’ do que (b). Isto nos leva a formular que
leria um texto para cientificarmos deste fato. Podemos di- temos, de alguma maneira, graus para classificarmos mo-
zer então que as línguas podem ser organizadas em duas dalidades da linguagem: neste caso a ‘linguagem padrão’.
grandes modalidades: linguagem oral e linguagem escrita. Com relação a sentença (c), haverá consenso que a mes-
Estas duas modalidades são distintas e dinâmicas. ma não representa a ‘linguagem padrão’. Geralmente asso-
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.15, 94 p., jan - jun, 2007 Recebido em: 12/10/2006 - Aprovado em: 11/02/2007
26
CRISTÓFARO SILVA, T. Algumas questões representacionais... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 26-34

ciamos sentenças desta natureza com falantes de classes conta fatores lingüísticos e não lingüísticos, como tradição
sociais mais baixas e que não tiveram acesso ao ensino e valores socioculturais (prestígio, elegância, estética etc.).
formal. Argumenta-se que a forma verbal não se adequa ao
pronome empregado e que a concordância de número entre Se adotarmos o conceito de norma apresentado anterior-
‘algumas’ e ‘música’ não foi realizada. Obviamente que a mente podemos inferir que uma tabela normativa rela-
sentença (c) não se conforma a ‘linguagem padrão’ do por- cionada a um sistema lingüístico espelha padrões repre-
tuguês brasileiro atual. Contudo, a sentença (c) é tão boa sentativos de uma determinada língua, regulando ‘o que
para propósitos comunicativos quanto as sentenças (a,b). deve ou não ser uso numa certa língua’ ao avaliar fatores
lingüísticos e não lingüísticos. Em outras palavras uma ta-
Vale dizer que as três sentenças compartilham de uma pro- bela normativa define um padrão - dentre os possíveis - em
priedade comum: em algumas variedades dialetais do por- um sistema lingüístico. Geralmente, o que é definido como
tuguês brasileiro o ‘r-final’ das formas verbais de infinitivo padrão tem valoração positiva e não estigmatizada. Por-
podem ser omitidas (OLIVEIRA, 1997).2 As sentenças de (1) tanto, ao se consolidar uma proposta de tabela normativa
podem ser pronunciadas como: ‘Nós vamos cantá algumas deve-se pensar o mais amplamente possível nos sistemas
músicas’; ‘A gente vai cantá algumas músicas’ e ‘Nós vai lingüísticos envolvidos. Como neste artigo avaliaremos a
cantá algumas música’. Embora não seja ‘padrão’ o registro tabela normativa para o português cantado faremos uso de
da forma escrita ‘cantá’, este é atestado em inúmeras produ- símbolos especiais que representam os sons atestados nas
ções escritas contemporâneas refletindo uma mudança que línguas. O conjunto de símbolos mais amplamente utilizado
ocorreu na oralidade (perda do ‘r-final’ em formas verbais de é proposto pela Associação Internacional de Fonética (IPA:
infinitivo). A mudança no registro escrito demora muito mais http://www.arts.gla.ac.uk/IPA/ipa.html.;). Neste mesmo en-
tempo para se consolidar do que a mudança no registro oral. dereço os interessados podem obter, gratuitamente, cópia
Na variedade estudada por OLIVEIRA (1997) o cancelamen- das fontes fonéticas para uso em processador de texto (ve-
to do ‘r-final’ nas formas verbais de infinitivo ocorreu entre jam o menu a esquerda nesta página).
falantes de todas as classes sociais, com qualquer grau de
educação. Contudo, é bastante comum encontrarmos regis- A fonética é a ciência que estuda a manifestação física
tros de ‘cantá’ associados às sentenças como ‘Nós vai cantá dos sons da fala e pode ser dividida em ‘fonética articula-
algumas música’, ou seja, associados à valoração social de tória’ ou ‘fonética acústica’. A ‘fonética articulatória’ es-
classe mais baixa e com baixo índice de escolarização. Os tuda os aspectos fisiológicos ou articulatórios dos sons e
falantes de classes mais altas, e com maior grau de instrução a ‘fonética acústica’ estuda os correlatos físicos dos sons
também omitem o ‘r-final’ em formas verbais de infinitivo, da fala. A fonologia estuda como os sons se organizam
mas o registro de tal omissão nem sempre é refletido no em línguas específicas buscando explicitar generaliza-
registro escrito – pois há valoração destes serem falantes da ções relevantes para os sistemas lingüísticos em geral ou
‘linguagem padrão’ e espera-se que produzam a linguagem em particular. De uma maneira bastante simplista pode-
de acordo como previsto pela ‘norma’ padrão’. O termo ‘nor- mos dizer que a fonética caracteriza a produção de qual-
ma’ é o que nos interessa. Contudo, antes de proceder a sua quer som e a fonologia contextualiza sons em sistemas
avaliação resumo o que foi dito acima como: específicos, definindo-se, assim, níveis diferenciados de
representação. Tanto as representações fonéticas quan-
(2) Toda língua é dinâmica e muda com o tempo. to as representações fonológicas fazem uso de símbolos
A língua pode se manifestar na modalidade oral ou es- fonéticos. As representações fonéticas são apresentadas
crita. A linguagem, segundo os princípios que regem sua entre colchetes, [so] ‘som’, e as representações fonológi-
organização, pode ser avaliada como:
cas são apresentadas entre barras transversais: /soN/.4
a. ‘linguagem padrão’ ou ‘linguagem não-estigmatizada’
b. ‘linguagem não-padrão’ ou ‘linguagem estigmatizada’ Na formulação de uma tabela normativa para o português
cantado deve-se estar atento para a utilização de colchetes e
Podemos dizer que ‘linguagem escrita padrão’ reflete um
barras transversais na intenção de representar sons específi-
objeto estático e de caráter normativo, mas que parado-
cos. Argumento que a formulação de um documento norma-
xalmente se reflete como um produto dinâmico e plástico
tivo deve expressar da maneira mais geral possível as grandes
na oralidade. Disto resulta o fato que as mudanças ocor-
generalizações atestadas e indicar as particularidades poten-
rem inicialmente na oralidade e posteriormente são (ou
ciais sem privilegiar qualquer modalidade específica. A coe-
não) incorporadas à escrita.
rência e consistência dos princípios assumidos devem reger
Vejamos então o conceito de ‘norma’ pois este é relevante
a organização de uma tabela normativa. Na próxima seção
na elaboração de uma tabela normativa (HOUAISS, 2006):3 apresento e discuto a Tabela normativa para o português
Norma: conjunto dos preceitos estabelecidos na seleção cantado que foi votada na ocasião do IV Encontro Brasileiro
do que deve ou não ser uso numa certa língua, levando em de Canto, realizado em São Paulo em fevereiro de 2005.
1
Língua padrão (standard language) é a variedade de uma língua que é considerada pelos falantes como a mais apropriada nos contextos formais e
educacionais (TRASK, 2004, p.174).
2
O ‘r-final’ em formas verbais de infinitive ocorre sobretudo em variedades dialetais em que uma fricative, velar ou glottal, ocorre neste contexto:
canta[x] ou canta[h] para a palavra ‘cantar’.
3
A acepção adotada a seguir se refere à rubrica: lingüística, gramática deste dicionário. O mesmo lista outras rubricas.
4
Para uma maior compreensão destes níveis de representação consultem CRISTÓFARO SILVA, 2005.

27
CRISTÓFARO SILVA, T. Algumas questões representacionais... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 26-34

2. Tabela normativa votada na ocasião do IV a minha argumentação na apresentação que fiz. Portanto, as
Encontro Brasileiro de Canto ponderações que apresento a seguir são de duas naturezas:
A Tab.1 abaixo me foi apresentada como decorrente da dis- ou dizem respeito à organização de uma tabela que envolva a
cussão ocorrida na ocasião do IV Encontro Brasileiro de Can- apresentação e classificação de símbolos fonéticos ou quan-
to à notação fonética adotada para representar os sons em
to.5 A partir da avaliação de tal tabela organizei a minha
questão. Adicionalmente, pondero, de maneira geral, sobre a
participação no III Seminário da Canção Brasileira realizado
dinamicidade dos sistemas e da necessidade de consistência
em Belo Horizonte em outubro de 2005 (CRISTÓFARO SILVA,
e coerência na formulação de um documento normativo sem
2005). A contribuição a mim solicitada dizia respeito à forma-
privilegiar qualquer variedade de uma língua.
lização de uma tabela normativa para o português cantado,
a partir do meu conhecimento da sonoridade do português Tab.1 – Tabela votada no IV Encontro Brasileiro de Canto6
brasileiro. Como lingüista, e não uma especialista em canto (Continuação da Tab.1 – Tabela votada no IV Encontro
ou música, avaliei algumas amostras de canto para subsidiar Brasileiro de Canto)

5
Para uma avaliação histórica sobe notação do português cantado, consulte França (2004).
6
Esta tabela foi posteriormente publicada no Boletim da Associação Brasileira de Canto, número 28, de outubro/novembro de 2005, com algumas
alterações em relação ao formato apresentado aqui. Veja a versão modificada, e publicada no Anexo 1

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3. - Organização geral da tabela: (segmentos também conhecidos como semivogais). O


Sugeri que não fosse utilizada a ordem alfabética na or- agrupamento desta maneira permite, no meu entender,
ganização dos símbolos fonéticos. A tabela tem por obje- apresentar generalizações relativas aos critérios articu-
tivo classificar sons e não letras. O fato de usar a ordem latórios apropriados a cada uma destas categorias. Além
alfabética na organização dos sons reflete um acidente do mais a fala é organizada pela combinação de conso-
histórico de fazermos uso, em nossa língua, de um alfabe- antes e vogais.
to desta natureza. Embora o leigo utilize letra e som com
alguma equivalência, para o técnico o sistema alfabético Outra observação que fiz em minha apresentação
tem representatividade simbólica muito diferenciada do foi a necessidade de indicar o estatuto dos símbolos
sistema fonético.7 Caso se queira utilizar a ordem alfa- fonéticos, [ ] e fonológicos, / /, pois representam
bética seria consistente listar as letras ou grafemas do diferentes níveis análises e consequentemente dife-
português e não os sons. rentes níveis de representação (e consequentemen-
te, de interpretação diferenciada). Na tabela que
Em decorrência desta observação, sugeri que se os sons avaliei, o uso de colchetes e barras transversais não
forem listados estes devem ser agrupados em duas gran- era explicitado.8 Na tabela apresentada anterior-
des categorias: consoantes e vogais. Adicionalmente mente, i.e. Tab.1, vemos para o som [ks] a seguinte
poderia ser incorporada uma categoria para os glides observação: ‘Representação de algumas ocorrências

7
Obviamente, estou ciente da correlação entre a oralidade e a escrita. O meu argumento aqui é que o estatuto dos símbolos empregados é diferente.
Para uma maior compreensão da oralidade e escrita veja CAGLIARI (1989).
8
A mesma crítica é observada em dicionários que apresentam pronúncia. Alguns dicionários usam colchetes e, outros, barras transversais sem explicitar
a natureza deste uso.

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do /x/ (táxi)’. Neste caso específico, o /x/ se refere


a uma letra (que ocorre na palavra ‘taxi’), e sendo 5. Consistência e coerência da tabela:
assim não é apropriado que tal símbolo seja repre- A minha observação com relação à consistência e a co-
sentado entre barras transversais.9 Já na classifica- erência da tabela era que a mesma poderia ser revisada
ção do ‘Grupo 1: R fricativo velar’ o símbolo [x] diz observando-se:
respeito a uma fricativa velar (desvozeada). Temos,
portanto, na tabela em discussão, o uso de /x/ e [x] Ø a não utilização de ‘letras’ para se referir a sons dada
sem explicitação de seus valores representacionais. a natureza diferente dos símbolos gráficos e dos símbolos
Ainda neste Grupo 1 pode ser observado o uso de fonéticos;
barras transversais para se referir a um dígrafo (ou Ø a classificação técnica dos símbolos adotados propi-
seja, ‘rr’), sendo que dígrafos são unidades repre- ciando a internacionalização da mesma;
sentacionais de sistemas de escrita e não devem ser
apresentados entre barras transversais. De maneira Ø a indicação dos sons presentes no português brasilei-
geral, a minha sugestão era que fosse realizada uma ro e aqueles específicos ao canto (para facilitar a apren-
ampla reavaliação da utilização dos símbolos foné- dizagem técnica de estudantes brasileiros).
ticos adotados, bem como do uso de colchetes e de
barras transversais. Na próxima seção eu avalio o documento publicado no
Boletim da Associação Brasileira de Canto, número 28, de
4. Classificação de símbolos fonéticos: outubro/novembro de 2005.
Quanto à classificação dos símbolos fonéticos utiliza-
dos, a minha crítica dizia respeito a dois pontos. O pri- 6. Tabela normativa publicada no Boletim da
meiro se relacionava à falta de dados de classificação Associação Brasileira de Canto, número 28,
fonética específica utilizando-se os parâmetros articu- de outubro/novembro de 2005
latórios sugeridos pelo alfabeto internacional de fonéti- A tabela publicada neste Boletim da Associação Bra-
ca. Algumas das classificações apresentadas indicavam sileira de Canto tem grande semelhança com a tabela
apenas o ponto de articulação: bilabial, linguo-dental, votada na ocasião do IV Encontro Brasileiro de Canto, a
etc. Outras classificações apresentadas indicavam o qual foi discutida por mim, com as ponderações acima,
modo de articulação: lateral, fricativo, etc. Em alguns na ocasião do III Seminário da Canção Brasileira reali-
casos refere-se apenas à posição estrutural: final de sí- zado em Belo Horizonte, em outubro de 2005. Contu-
laba, ou mesmo, idiossincraticamente, faz-se referência do, poucas alterações podem ser observadas nesta nova
a ‘alguns casos’. A minha sugestão era de se proceder à versão da tabela que é apresentada no Anexo 1 para
classificação dos sons a serem representados por sím- consulta, se necessário. A seguir eu apresento observa-
bolos fonéticos, como previsto pela associação interna- ções sobre sons específicos que acredito possam contri-
cional de fonética.
buir para o formato final da tabela.10 Adicionalmente,
Ainda com relação à classificação dos sons, apontei saliento alguns aspectos que me parecem importantes a
a necessidade de se discutir a interpretabilidade dos serem considerados na versão final da Tabela normativa
sobrescritos na representação proposta. Este foi o para o português cantado (Tab.2). As minhas pondera-
 ções têm por objetivo contribuir para a elaboração de
caso para vários ditongos: I,  .Finalmente, sugeri
que fossem indicados, de alguma maneira, os sons uma tabela que possa instrumentalizar os cantores do
que ocorrem tradicionalmente no português brasi- português brasileiro, oferecendo o registro técnico dos
leiro e os sons que são utilizados especificamente no sons, e que possa ser internacionalizada por considerar
português cantado. Mais especificamente, salientei aspectos consolidados na representação da sonoridade
o caso das consoantes nasais em final de sílaba, e, das línguas do mundo.
sobretudo, o uso da nasal velar N que não ocorre em
nenhuma variedade de falantes nativos do portu- Tab.2: Comentários à tabela votada na ocasião do IV En-
guês brasileiro. contro Brasileiro de Canto.

9
Foneticamente, o símbolo /x/ classifica uma fricativa velar desvozeada que pode ocorrer em algumas variedades do português na posição final da
palavra ‘cantar’ (correspondendo ao ‘r’ em final de sílaba).
10
Os sons que não discuto apresentam observações adequadas na tabela, embora, na grande maioria dos casos, as observações possam ter um caráter
mais técnico que possa permitir mais facilmente a internacionalização da tabela.

30
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[a] 1). os exemplos listados após a observação ‘posição final átona’ de fato representam somente
[a] em posição tônica. Seria bom ter exemplos de [a] também em posição átona (exceto posi-
ção final). 2). Há menção ao símbolo [Î] sendo que o mesmo não é descrito ou mencionado em
qualquer outro lugar na tabela.
[ ] Generalizar os casos de ‘am, an’ como ocorrendo em final de sílaba (e não apenas quando se-
guidos de consoantes). Esta observação incorpora nomes próprios do português: Ivan, Renan,
etc. Fazer referencia a este som em meio de palavra.
[d] Generalizar para quando [d] for seguido de qualquer vogal exceto [i]. A formulação apresen-
tada exclui as vogais nasais e os ditongos.
[eN] O som [N] não ocorre em português e não é atestado nas línguas naturais conhecidas ocorren-
do antes das consoantes ilustradas (‘v’ de ‘enviar’ e ‘p’ de ‘empório’). Tal som, quando seguido
de consoante, as mesmas são velares: [k,g]. É importante a avaliação do uso do símbolo [N]
em toda a tabela.
[eIN] Como mencionado anteriormente, é importante a avaliação do uso do símbolo [N] em toda a tabela.
[Z] A consoante g é velar (e não palatal).
[j] A inclusão de tal símbolo deve ser mais argumentada. No caso mencionado há alternância
entre a semivogal e a vogal: [j] e [i]. O mesmo pode ocorrer em casos como: ‘moicano, juizado’
etc. Os casos envolvidos estão relacionados aos ditongos. Vale consultar a literatura sobre
o português nesta área para fazer uma avaliação geral deste símbolo e também do símbolo
[w].
[i] Incorporar também casos de ‘e reduzido’. Ver observação seguinte.
[I] Na observação do som [d] há menção ao ‘e reduzido’ mas não se diz onde e quando este som
ocorre e nem qual seria a realização fonética do ‘e reduzido’. Isto poderia ser feito na obser-
vação do som [i].
[iN] Como mencionado anteriormente, é importante a avaliação do uso do símbolo [N] em toda a
tabela.
[l] Verificar a concordância de gênero: ‘a (consoante) lateral’ ou ‘o (som) lateral’, e manter a
consistência ao longo da tabela. A letra ‘l’ também tem a manifestação lateral alveolar em
encontros consonantais: ‘plano, blusa’, etc.
[U] Esta não é a representação comumente empregada na representação da vocalização da lateral,
mas pode ser adotada.
[ ]
 Verificar o símbolo adotado, pois o mesmo não é compatível com símbolos fonéticos. O sím-
bolo correto é listado à esquerda.
[U] Esta observação está estreitamente relacionada à observação feita para o som [I]. Seria impor-
tante vincular os dois casos - [I,U] - como análogos, embora tenham suas particularidades.
[oN] Como mencionado anteriormente, é importante a avaliação do uso do símbolo [N] em toda a
tabela.
 U]
[o O símbolo [U] é utilizado aqui, mas não se relaciona a vocalização da lateral. Refletir sobre o
uso destes símbolos.
[k] O uso de ‘ou algumas ocorrências’ dá margem a interpretações polêmicas. Imagino que as
exceções incluiriam casos como ‘tranqüilo, seqüela’. Acredito que se forem acrescentados os
símbolos [kw, gw] o problema de interpretação polêmica possa ser resolvido.
[s] Acredito ser importante nesta observação acrescentar os casos de ‘ss (passa), sc (nascer), ç (aço)’.
[ks] Nestes casos, no português falado pode ocorrer uma vogal entre as consoantes: ‘ta[kis],
se[kis]o’ etc. Importante verificar a generalização apresentada para o canto de se ter sistema-
ticamente duas consoantes.
[w] Veja a observação para [j]. Seria importante vincular casos de [j,w] como análogos, embora
tenham suas particularidades.
[u] Rever esta observação quanto à posição inicial.
[U] (continuação da tabela na página 10) Parece ter havido erro de digitação.
[uN] Parece ter havido erro de digitação. Como mencionado anteriormente, é importante a avalia-
ção do uso do símbolo [N] em toda a tabela.
[u ] Parece ter havido erro de digitação.
[S] O uso de ‘ou algumas ocorrências’ dá margem a interpretações polêmicas. A interpretação sonora da
letra ‘x’ é complexa no português e deverá ser levada em consideração com maior cuidado.

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CRISTÓFARO SILVA, T. Algumas questões representacionais... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 26-34

A representação dos ditongos pode ser revisada, pois não há evidências na tabela para o uso dos símbolos [j,w]
e [I,U]. Será importante avaliar tal proposta em contraste com os casos de [kw, gw] como em ‘tranqüilo, seqüela’,
o caso de vocalização do ‘l’ em final de sílaba, o caso de [oâU] como em ‘com, bom’, e deve-se mencionar o caso
dos ditongos [oU] que podem ser reduzidos na fala, como em ‘louco, sou’, mas tipicamente não são reduzidos no
canto.
Como mencionado no documento publicado, e apreciado aqui, sugiro a ampla revisão das vogais, dos ditongos
nasais e dos ‘sons de ‘r’. A revisão deve proceder a partir da investigação empírica da amostra de canto de diver-
sas variedades do português.

7. Observações Gerais: sentadas têm o propósito de contribuir para uma ava-


Ø observação do uso de termos como ‘letra’ e ‘fonema’. liação da tabela em seu formato final. As tabelas que
Como discutido anteriormente, a fonologia apresenta os avaliei, mesmo com suas limitações, representam uma
símbolos entre barras transversais e na tabela normativa grande sistematização e deve ser louvado o trabalho
se faz uso de colchetes (usados para a fonética). Contudo, empreendido na construção das mesmas. Como indi-
o termo ‘fonema’ é adotado na fonologia (e não na foné-
quei no início deste artigo um documento normativo
tica). Há, portanto, contradição na utilização do termo
‘fonema’ e uso de colchetes na tabela,
enfrenta dificuldades inerentes aos sistemas dinâmi-
cos – em que obviamente incluímos o canto! Acredito
Ø não utilização das ‘letras’ para se referir aos sons,
que a partir da tabela em seu formato final, surgirá
dada a natureza diferente dos símbolos gráficos e dos
símbolos fonéticos,
uma série de trabalhos no sentido de avaliar o can-
to de profissionais qualificados que atuam e atuaram
Ø classificação técnica dos símbolos adotados propi-
no canto do português. Os trabalhos de profissionais
ciando a internacionalização da mesma,
aposentados terão o caráter diacrônico e poderão nos
Ø indicação dos sons presentes no português brasileiro oferecer indícios da evolução do canto no Brasil. Os
e aqueles específicos ao canto (para facilitar a aprendiza-
trabalhos dos profissionais que atuam correntemente
gem técnica de estudantes brasileiros).
têm caráter sincrônico, e nos oferecerão evidências
Ø Revisão, sobretudo, dos casos dos ditongos (e classes da manifestação do canto em várias partes do Brasil.
afins), ‘sons de ‘r’ e das vogais e ditongos nasais.
O desafio será manter uma tabela coesa e coerente
a partir de informações que surgirão, oferecendo a
8. Conclusão: oportunidade de se ter um sistema normativo para o
Este artigo tem um caráter documental, no sentido de se português cantado sem cercear a criatividade inerente
registrar o processo de consolidação de uma tabela nor- à arte, e que no caso do canto se manifesta nas parti-
mativa para o português cantado. As críticas apre- cularidades dialetais de seus cantores.

Referências bibliográficas:
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CAGLIARI, L. C. Alfabetização e Lingüística. São Paulo: Editora Scipione, 1989.
CRISTÓFARO SILVA, T. Fonética e Fonologia do Português: Roteiro de estudos e guia de exercícios. São Paulo: Editora Con-
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______. Algumas questões fonéticas a cerca da tabela normativa para a pronúncia do português brasileiro cantado.
Workshop oferecido durante o III Seminário da Canção Brasileira. Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, 2005.
FRANÇA, A. Problemas na variante tensa da fala carioca. Revista DELTA: Documentação de Estudo sem Lingüística Teóri-
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HOUAISS. A. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm,(acesso em 21 de outubro,
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OLIVEIRA, M. A. Reanalisando O Processo de Cancelamento do ( R ) Em Final de Sílaba. Revista de Estudos da Linguagem.
Belo Horizonte, v. 6, n. 2, p. 70-97. 1997
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novembro de 2005.
TRASK, R. Dicionário de Linguagem e Lingüística. Tradução Rodolfo Ilari. São Paulo: Editora Contexto, 2004.

Thaïs Cristófaro Silva é Professora Adjunta da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais e Pesquisadora do
CNPq. Doutorou-se em Lingüística pela Universidade de Londres (1992) com Pós-Doutorado pela Universidade de Newcastle (2002).
Coordena o convênio da King´s College London-UFMG e atua no convênio da Universidade do Texas-UFMG orientando mestrandos e

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CRISTÓFARO SILVA, T. Algumas questões representacionais... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 26-34

doutorandos em Programa Sanduíche. Na Pós-Graduação da FALE-UFMG coordena a Linha de Pesquisa Organização Sonora da Co-
municação Humana. A sua atuação profissional tem caráter multidisciplinar vinculando-se sobretudo à Lingüística Teórica e Aplicada
com enfoque em fonologia, Aspectos segmentais de patologia da fala, Aquisição de primeira e segunda línguas e Tecnologia da Fala.
Especialista em fonética e fonologia tem interesse primordial na organização dos sistemas sonoros nas línguas naturais. É autora de
Fonética e Fonologia do Português: Roteiro de Estudos e Guia de Exercícios, Exercícios de Fonética e Fonologia (Editora Contexto) e
Pronúncia do Inglês para falantes do português brasileiro: os sons (FALE).

ANEXO1: Tabela normativa publicada no Boletim da Associação Brasileira de Canto, número 28,de outubro/no-
vembro de 2005.

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CRISTÓFARO SILVA, T. Algumas questões representacionais... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 26-34

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Herr, M. Mudanças nas Normas para a boa pronúncia... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 35-40

Mudanças nas Normas para a boa


pronúncia da língua portuguesa no canto
e no teatro no Brasil: 1938, 1956 e 2005
Martha Herr (UNESP, São Paulo)
marthalouherr@gmail.com

Resumo: A criação de Normas para a boa pronúncia do português no canto foi um dos resultados do Primeiro Congresso
da Língua Nacional Cantada de 1937 mas elas nunca foram oficialmente revisadas. Num Congresso realizado em 1956, os
atores de teatro produziram sua versão das Normas para o português falado no teatro que serviu, em grande parte, como
uma primeira revisão, utilizando como base as Normas publicadas em 1938. Em 2005, durante o 4º Encontro Brasileiro de
Canto, novas normas foram votadas em plenário, ainda faltando publicação. Este trabalho procura comparar e contrastar
os dois documentos de 1938 e 1958 com as sugestões para normas de 2005.
Palavras-chave: português brasileiro, Normas de pronúncia, canto, teatro

Changes in Norms for the Proper Pronunciation of the Portuguese language


for singing and theater in Brazil: 1938, 1956 and 2005

Abstract: The creation of norms for the proper pronunciation of sung Portuguese was one of the results of the First Con-
gress of the National Sung Language in 1937, but they never were officially revised. During a Congress in 1956, Brazilian
actors determined their own version of the norms for Portuguese spoken in the theater which served, in large part, as
a first revision of the Norms published in 1938. Em 2005, during the 4th Encounter of Brazilian Song, new norms were
voted on, yet to be published. This article seeks to compare and contrast the two documents from 1938 and 1958 with
the sugestions for norms from 2005.
Keywords: Brazilian Portuguese, pronunciation norms, singing, theater

Quando, em 1938, foram publicadas as Normas para vimento. Verificações experimentais ulteriores bem como
a “bôa pronúncia da língua nacional no canto erudito”, fixações novas que porventura apareçam, deverão trans-
resultado das reuniões do Primeiro Congresso da Língua formar necessariamente as normas que com elas colidam.
Nacional Cantada (realizado de 7 a 14 de julho de 1937 (NORMAS, 1938, p.35)
em São Paulo), foi divulgada a intenção dos participantes Ainda fizeram questão de reconhecer os “direitos de vida
deste primeiro Congresso de realizar um segundo Con- e movimentos” da língua nacional.
gresso em 1942
A grande preocupação do Primeiro Congresso foi o esta-
belecimento de uma língua-padrão, “animado pelo desejo
“. . . afim de serem homologadas oficialmente as decisões
de bem servir à causa da nacionalidade brasileira nas artes
de agora e corrigidas as que a maior experiência do
da linguagem e do canto” (NORMAS, 1938, p.6). O sonho
tempo assim aconselhar.”
de Mário de Andrade de unificar o Brasil através da língua
e das manifestações culturais tomou forma na homologa-
(NORMAS, 1938, p.2) O texto das Normas fecha com a
ção destas Normas, devido aos seguintes aspectos:
seguinte advertência:
a) considerando que a irregularidade de pronúncia duma lín-
A fixação destas normas não implica de forma alguma gua aféta perigosamente as artes do dizer e do canto;
a fixação definitiva e irrecorrível da fonética da lingua- b) considerando que o estabelecimento e fixação
padrão. Por isso mesmo foram elas chamadas “normas” duma língua-padrão virá pôr um termo à anormalidade de
e não “leis”. Casos há que, embora definidos pela atenção pronúncia que atualmente se verifica no teatro, na decla-
aguda e cautelosa de filólogos eminentes, carecem ainda mação e no canto da língua nacional;
de comprovação experimental. Outros casos há também, c) considerando que a fixação dessa língua-padrão é
dependentes de mais completa generalização, não só um elemento civilizador e um processo de cultura;
porque as línguas vivas são manifestações humanas de d) considerando que a fixação dessa língua-pa-
perpétua evolução, como por se achar ainda a língua na- drão será mais um fator patriótico de unidade nacional
cional em fase incontestável de adolescência e desenvol- (NORMAS, 1938, p.6).
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.15, 94 p., jan - jun, 2007 Recebido em: 12/10/2006 - Aprovado em: 11/02/2007
35
Herr, M. Mudanças nas Normas para a boa pronúncia... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 35-40

A filosofia estado-novista já dominava o pensamento da Canto com a intenção de revisar as Normas do Português
época e as preocupações eram muito mais que unicamen- Brasileiro no canto. A preocupação principal do Encontro
te artísticas. Hoje não existe mais preocupação política e de 2005 foi mais prática que filosófica, as necessidades
nem a pretenção de promulgar uma língua-padrão, dei- agora sendo diferentes do anos de 1937 ou 1956. Hou-
xando, então, somente as primeiras duas considerações ve a participação de lingüistas no Encontro e do grupo
acima. de trabalho que preparou a sugestão inicial das Normas
que foram submetidas à votação durante o Encontro. En-
Por razões políticas, um segundo Congresso nunca acon- tretanto, em contraste com o Congresso de 1937 houve
teceu. Porém, em 1956 realizou-se o Primeiro Congresso uma participação maciça de cantores e de professores de
Brasileiro de Língua Falada no Teatro em Salvador, Bahia. canto no Encontro de 2005. Estabeleceu-se como prio-
Nos Anais, publicados em 1958, encontram-se as Normas ridade a adoção de critérios com o objetivo de tornar a
fixadas pelo Congresso. utilização das Normas prática e de fácil entendimento.
Reconhecendo-se as divergências nas pronúncias regio-
No seu discurso de Instalação, o Prof. Celso da Cunha, nais como uma constatação da riqueza e da diversidade
Presidente Executivo do Congresso comentou que do português brasileiro, o Encontro de 2005 procurou en-
contrar aquela “… média de falar equidistante de todos
“… parece que estamos no limiar de uma era sócio-política os padrões básicos regionais” que Celso da Cunha tinha
em que as grandes línguas nacionais tendem a apresentar sugerido em 1956. Tentando-se evitar “bairrismos” e ad-
progressivamente uma unidade relativa muito mais ampla mitindo-se a necessidade de se ter pelo menos uma pro-
do que a que num passado ainda próximo parecia impossí- núncia básica do português brasileiro para que os estran-
vel” (ANAIS, 1958, p.37-38). geiros possam apreciar e estudar o repertório brasileiro,
os congressistas votaram uma tabela fonética que visa a
O Prof. Cunha chamou a atenção para o fato que através adoção de um português “neutro”, sem regionalismos.
do rádio, a televisão e o cinema, entre outros meios (sem
mencionar o canto), o padrão culto para o teatro pode Nossa intenção aqui é de comparar e de contrastar as
se propagar nacionalmente. Ele sugere a possibilidade Normas dos três eventos. Se poucos cantores leram as
de adotar “… uma média de falar equidistante de todos Normas do Congresso da Língua Cantada, principalmente,
os padrões básicos regionais”, como a pronúncia neu- pela inclusão destas em versão reduzida por Vasco Mariz
tralizada do inglês utilizado nos Estados Unidos e outros nos seus livros sobre a canção brasileira, um número ain-
países da Europa por cantores, atores e telejornalistas em da menor deve ter lido as Normas do Congresso da Língua
rede nacional. Falada no Teatro. As Normas de 2005 ainda estão em fase
de redação por uma comissão nomeada no IV Encontro e
Ainda no seu discurso, o Prof. Cunha referiu-se ao Primei- ainda estão abertas a discussão e sugestões. É um proces-
ro Congresso Nacional da Língua Cantada e a admirável so complicado que envolve consultas a lingüístas, fonólo-
posição “… naquela época, justa, no enfrentar do proble- gos e até à Academia Brasileira de Letras.
ma” (ANAIS, 1958, p.38-39), mas reconhece que as Nor-
mas de 1938 não correspondiam mais às necessidades e Os documentos antigos não utilizam o IPA (Internatio-
à realidade de 1956 devido a uma preocupação excessiva nal Phonetic Alphabet – Alfabeto Fonético Internacional),
em se estabelecer um compromisso entre o passado fôni- que formará a base das normas de 2005. Nas Normas do
co e a realidade então atual da fala carioca, adotada pelo Congresso de 1937, a natureza das 19 vogais é definida
primeiro Congresso. Certamente, em 2005 o Encontro por uma palavra utilizada como exemplo:
enfrentou novamente a mesma situação. A – oral aberto (má);
A – oral surdo (da);
No discurso de Encerramento do Congresso de teatro, An- A nasal fechado (rã).
tônio Houaiss falou que
. . .no Brasil a oscilação de pronúncias nos principais cen- Na verdade, isso dificultaria o entendimento de qualquer
tros cultos é sintoma de que não só estamos num proces- pessoa não-brasileira e poderia criar confusão entre bra-
so de decantação de tendências ainda mal definidas, mas sileiros que, sendo provenientes de regiões distintas do
também de que a interpenetração dos falares regionais, país, pronunciam os fonemas de maneira diferente.
na medida em que fôr intensificando a inter-dependência
de todos os brasileiros, possibilitará a formação de uma As consoantes são definidas com o termo lingüístico se-
unidade lingüística enormemente extensa, apoiada numa guido por uma palavra como exemplo:
base populacional considerável, com um mínimo de dife- B – oclusiva bilabial sonora (bom);
renciações locais. (ANAIS, 1958, p.88) B – fricativa bilabial sonora (aba, albor).

Em fevereiro de 2005, a Associaçao Brasileira de Canto Os ditongos não são listados de maneira específica, mas
(ABC) promoveu em São Paulo, junto com a Pós-Gradu- são dedicadas 12 páginas à discussão de ditongos e hia-
ação em Música do Instituto de Artes/UNESP e a Uni- tos, incluindo a criação dos mesmos pela ligação de pa-
versidade Livre de Música, o IV Encontro Brasileiro de lavras. Inclue exemplos musicais na tentativa de definir

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Herr, M. Mudanças nas Normas para a boa pronúncia... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 35-40

como será dividido o valor de uma nota (ou notas) para A intenção da ABC é que as Normas de 2005 sirvam como
acomodar ditongos e tritongos musicalmente. Sobre a “pronúncia neutra” do português brasileiro, e reconhece
ligação de palavras e tritongos, os autores das normas que ainda há grande necessidade de estudo sobre as ma-
admitiram a impossibilidade de fixar normas para a so- nifestações regionais e folclóricas. Acredita ainda, que a
lução musical de ligação destes casos. “Cada frase tem maioria dos brasileiros adotará aos poucos esta pronún-
seu ritmo e psicologia próprios, impossíveis de reduzir a cia não regional, com exceção dos textos com conteúdo
casos gerais.O problema dependerá, pois, quase (sic) ex- comprovadamente regional. No caso de uma música com
clusivamente da inteligência e da expressividade tanto teor regional, é de se esperar que os cantores da região
do compositor como do cantor” (NORMAS, 1938, p.28). em que foi composta ou o próprio compositor cantem
Como poderia se esperar, as Normas da Língua Cantada com seu “sotaque” de costume. Porém, será difícil para
manifestam grande preocupação com os problemas cria- cantores os de outras regiões imitar tal “sotaque” sem
dos pela união da linguagem com a voz cantada, e con- parecer caricaturizado ou falso. Daí a importância do por-
tinua sendo válida a maioria das observações, merecendo tuguês brasileiro “neutro” – reconhecidamente brasileiro
estudo em um outro artigo. e nacional, não importando a procedência do cantor. Esta
será a próxima etapa de discussão para futuras modifica-
As Normas de 1958 utilizam como base fonética a “. . . ções nas Normas.
convenção a ser seguida pelo Centro de Estudos Filoló-
gicos e pelo Boletim de Filologia, e suas publicações, de O Congresso de 1937 considerou a pronúncia carioca
Lisboa” (ANAIS, 1958, p.478). Nas primeiras páginas em da época como a “perfeita” de todo país, propondo-a
que é definido o alfabeto fonético adotado, tanto para como língua-padrão (NORMAS, 1938, p.7). As Normas do
as vogais quanto para as consoantes, o símbolo fonético Congresso de 1956 não adotaram nenhuma pronúncia
é definido com o termo lingüístico e depois seguido por específica. Nas comunicações realizadas durante este
palavras do português usual de Portugal e o que é falado Congresso, visando à determinação da língua padrão e,
no Brasil. tendo sido cada uma delas seguida pelo parecer de outro
congressista, houve uma grande tendência da maioria
O novo documento resultante do Encontro de 2005 será em respeitar as Normas do Primeiro Congresso da Língua
baseado no IPA. A maioria dos cantores estrangeiros Nacional Cantada. Entretanto, houve congressistas que
aprende o IPA como ferramenta para o estudo de línguas apoiavam a adoção de uma pronúncia paulista. No seu
para o canto e esta prática está ficando mais comum nas parecer sobre a comunicação “Padronização da Prosódia
universidades brasileiras. A tabela fonética de 2005 adota Brasileira” de Ruy Affonso, Maria José de Carvalho chama
representações dos fonemas que, em alguns casos, dife- atenção para o fato de que a fala carioca ...expurgada de
re daquelas adotadas pela Academia Brasileira de Letras seus vícios e cacoetes e, portanto de suas características,
com o objetivo de tornar mais clara a sua utilização en- resulta na prosódia paulista culta, também expurgada”
tre os cantores brasileiros e estrangeiros. As sugestões (ANAIS, 1958, p.148). Affonso sugere uma língua-padrão
apresentadas pelo grupo de trabalho foram submetidas à que considere a média entre as prosódias carioca-paulis-
votação e consideravelmente modificadas pelo plenário. ta. De certa forma, foi esta que foi adotada. As Normas
Evidentemente, ainda existe a necessidade de entrarar- que seguem deixam em aberto certas pronúncias, conce-
mos em acordo com a ABL e outros foneticistas em rela- dendo o direito de escolha a uma ou a outra. Na página
ção à tabela adotada no Encontro, para que a sua apro- 478 encontra-se a seguinte observação:
vação seja finalmente legitimada. ...Atendendo a que muitos vocábulos no portuguës do
Brasil apresentam, num só centro lingüístico, mais de uma
O documento de 2005 reconhece 10 vogais orais sendo 3 pronúncia e atendendo a que as normas do Primeiro Con-
reduzidas átonas, 4 nasais e 6 ditongos nasais e conside- gresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro não optaram,
ra a representação de ditongos crescentes e decrescen- em certos casos, entre duas variantes fonéticas de um ele-
tes orais e tritongos. Representa 18 sons consonantais mento fonológico...
com mais uma tabela especificamente sobre pronúncia
da letra r (ver detalhamento sobre isso mais adiante). As Explica que todas as transcrições fonéticas serão repre-
considerações das Normas de 1938 sobre ditongos e tri- sentadas entre colchêtes mas, dentro dos colchêtes, será
tongos continuam válidas até hoje. mostrada entre parênteses a variante admitida, “sem ca-
ráter preferencial” (griffo nosso) para o fonema que ante-
Nos primeiros dois Congressos, foi reconhecido que na ceder os parênteses. Apresenta como exemplo a palavra
interpretação de textos com óbvio conteúdo e colorido “estorvar”, podendo ser pronunciada de seis maneiras di-
regional, os cantores e atores deveriam pronunciar o tex- ferentes:[ εѕtorvar] , [ІЅtorvar] ,[έ∫torvar], [І∫torvar]
to com “a devida adequação regional e social” (ANAIS, [εѕtoxvax] ou[І∫toxvax].Devido ao amplo leque de va-
1958, p.479). As Normas da língua cantada não fazem riações, um indivíduo que não fosse brasileiro teria sérias
referência a uma pronúncia distinta associada ao nível dificuldades em entender as diferenças. A este respeito, o
social de uma possível personagem, fato essencial na Congresso decidiu deixar uma livre opção entre variantes,
pronúncia para o teatro e levado em consideração nas sendo que uma vez adotoada uma, que esta seja utilizada
Normas estabelecidas para ele. de maneira consistente.

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Herr, M. Mudanças nas Normas para a boa pronúncia... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 35-40

Ainda hoje, grande parte das Normas do Primeiro Con- de d e t antes de i ou antes de e final, sendo recomendado
gresso da Língua Nacional Cantada é aplicada sistema- que estes fonemas sejam executados de forma suave (diva,
ticamente por cantores e atores. Há, porém, certos fo- cidade, tio, partida). Porém, o d e t antes do e tônico per-
nemas que apresentaram problemas em 1937 e 1956, e manecem íntegros (cadeia, tela), como é também o caso do
que também não foram de fácil solução em 2005. Vamos d antes de e pré-tônico (dever).
olhar agora a visão dos dois Congressos sobre alguns des-
tes fonemas. Letra L:
As Normas de 1938 não admitem a redução da letra l
Letra E: para [] em posição final como na palavra ‘animal’, cha-
As duas Normas antigas levam em consideração a pos- mando esta tendência de “inculta”. Porém, as Normas de
sibilidade de um e surdo intermediário entre [e] e [i] 1958 admitam o l lateral linguoalveolar sonoro relaxado
(1938), ou reduzido em posição pré-tônica (1958). Por no caso de palavras como “alto”, “mal”, “Brasil”, “calmo”,
exemplo: pedir [pεdir] ou [pIdir]. Porém, nas Normas de “sal”, mostrando uma mudança ocorrida nos quase vin-
teatro esta redução corresponde “ ...a uma gradação de te anos que separam os dois documentos. As Normas de
freqüência de meio cultural, de nível social e/ou de tensão 2005 reconhecem a ditongação do l que se torna u em
psíquica do indivíduo falante” (ANAIS, 1958, p.482). Dá final de sílaba (mel, salgado).
para entender que, fora casos excepcionais, não é desejá-
vel fazer esta redução. É aceita em ambos os documentos Letra R:
a redução do e final para [I], como, por exemplo, nas Nas Normas de 1938 não é admitida a pronúncia vibran-
palavras “felicidade”, “e”, “se”, “que”. Em 2005, foi apro- te dorsovelar múltipla para a letra r (o r carioca). O r
vado a redução do e em posição pre-tônica [pIdir]e do e deve soar brando entre vogais ou quando final seguido
reduzido no final de palavra =[disI , pontI]). de palavra iniciada por vogal (“levar amanhã”). Quando
final ou anterior a outra consoante no interior da palavra
As Normas de 1938 sugerem o uso de três vogais de com- (“esquerda”) deve ser rolado com bastante leveza – “apro-
promisso: uma mais próxima do [e] que do [i], uma equi- ximadamente nulo” (NORMAS, 1938, p.32) Deve-se evitar
distante entre os dois, e uma terceira mais próxima do [i] a tendência de rolar excessivamente o r para que não
que do [e]. Incluem um quadro definindo qual das três se incorra em uma pronúncia estrangeirada. Não é men-
deveria ser utilizada em situações musicais específicas. cionada a pronúncia do r inicial, mas deve-se aplicar a
(NORMAS, 1938, p.15) Louvável a aplicação desta idéia mesma advertência para o r final.
ao canto, mas muito rebuscada para definir uma utiliza-
ção prática. Como já visto, as Normas de 1958 permitem tanto a pro-
núncia carioca do r quanto a pronúncia sugerida nas Nor-
Letra O: mas de 1938. Porém, na página 491, é vetado o som do
É aceita em todos os documentos a redução de o final vibrante dorso-uvular []. múltipla para uso no teatro.
para o som , como na palavra “estudo”. As Normas de As Normas de teatro permitem o som vibrante dorsove-
teatro aceitam a redução do [o] para  no mesmo caso lar múltipla [x] para r inicial em palavras como “rato”,
de diferença cultural, social ou psíquica como observado “riso”, “rosto” e “régua”. Como no outro documento, o r
no parágrafo anterior (sempre em posição pré-tônica), soa brando entre vogais ou quando no final seguido de
por exemplo “cozinha” como kzinha. As Normas para palavra iniciada por vogal.
o canto deixam de ditar regras neste caso, mas aceitam
esta pronúncia como uma tendência, sem fixar regras. As Depois de horas de discussão acalorada, o Encontro de
Normas de 1938 também admitem esta vogal de compromis- 2005 votou as seguintes regras para a letra r: uma vibra-
so entre [o] e [u] para qualquer sílaba póstônica (época = ção (flepe) simples para encontros consonantais e posi-
[pka]) e nos artigos e pronomes (os, do, dos, por, vos, etc). ção intervocálica (arara); levemente vibrado para final de
As Normas de 2005 reconhecem a pronúncia reduzida da letra sílaba e de palavra (morte, amor). Na posição inicial e no
o como normal nestes mesmos casos. dígrafo rr, o cantor deve escolher entre o fricativo velar
[x] (rua, carro) OU o alveolar vibrante [r] sem exagero.
Letras D e T: Uma vez escolhida, o cantor deverá manter a consistência
“Conserva-se sempre íntegra” nas Normas fixadas em em toda a canção. Ainda haverá muita discussão sobre a
1937. As Normas de 1958 admitem a palatalização da representação fonética da letra r.
consoante d antes das letras e ou i ou, seja, antes do som
do e reduzida [] e do semivogal [] (caracterizada pela Letra S:
letra i) passando a ter a pronúncia [d] em palavras como É vetada a palatização do s quando cantado em palavras
“dia”, “sede” e “direita”. Porém, as Normas de 1958 ditaram como “esquerda”, “as”, “pragas” e “poste”. O s chiado é o
que este som deve ser evitado na pronúncia para o teatro. “cacoete” carioca mais fortemente vetado pelo Congresso
Em ambos os casos, os mesmos argumentos são utilizado de 1937. Quando a letra s encontra-se com consoantes
para a letra t, não admitindo no canto ou no teatro a pro- sonoras ou em posição final seguida por outra palavra
núncia [t] em palavras como “teatro”, “tio” e “sete”. No que começa com vogal, o s soa como: [z] i.e. nunca mais
Encontro de 2005 adotou-se a pronúncia palatal-alveolar amei, outras batas.

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Herr, M. Mudanças nas Normas para a boa pronúncia... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 35-40

O documento de 1958 fala de dois regimes para a tido no Congresso de 2005, mas muitos compositores
pronúncia do s e z gráficos finais de sílabas ou pa- têm admitido valores musicais para as sílabas criadas
lavras: o primeiro é um regime que pode dar a im- pela interposição do [i].
pressão de excessivo “sibilamento” enquanto que
o segundo pode provocar a impressão de excessivo De resto, há grande acordo entre os três documentos. As
“chiamento”. Seguem-se quatro páginas de exposi- Normas para o teatro são bem amplas e foram organizadas
ção das regras e de exemplos dos dois regimes. Não de uma maneira mais fácil de se entender, embora tivessem
há coincidência entre eles, como no caso do r (ANAIS, tido as Normas para o canto como premissa. Num esforço
1958, p.492-495). Em 2005 foi praticamente unâni- atual de se criar novas Normas, levando-se em considera-
me o veto à palatalização da letra s. Houve somente ção as modificações na maneira brasileira de falar nestes
um voto a favor. últimos 50 anos, não podia ser ignorado o trabalho já con-
sagrado dos dois congressos anteriores. Os documentos de
Há mais um caso de grande desacordo entre os dois do- 1938 e 1958 serviram como referência relevante para a
cumentos: seqüências consonantais em que há tendên- criação do novo documento, atualmente sendo elaborado.
cia de interpor um [i] como advogado, apto, adjunto, As sugestões para a solução dos problemas vocais e musi-
recepção, rítmico, interrupta etc. (epêntese). A interpo- cais encontrados pelos cantores, são amplamente expostas
sição do som [i] é vetada no teatro em que as seqüên- nas Normas para o canto, que continuam em vigor.
cias devem ser pronunciadas com “os valores fonéticos
próprios das suas consoantes” (ANAIS, 1958, p.491). Já O português é uma língua viva, em mutação, fato consta-
as Normas de 1938 oferecem condição suficiente para tado nos três congressos. Hoje, a redação final das Nor-
que solucione a problemática musical da interposição mas do Encontro de 2005 exige a mesma dedicação e
do [i] entre as consoantes de encontro consonantal amor pela língua que foram demonstrados pelos partici-
(NORMAS, 1938, p.33-35). Este assunto não foi discu- pantes dos Congressos de 1937 e 1956.

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Herr, M. Mudanças nas Normas para a boa pronúncia... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 35-40

Referências Bibliográficas:
ANAIS do Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e
Cultura, 1958.
ANDRADE, Mario de. Normas para a boa pronúncia da língua nacional no canto erudito. Revista Brasileira de Música:
Escola Nacional de Música da Universidade do Brasil, Rio de Janeiro, v.5, 1º fascículo, p, 1-35, 1938.

Leitura Recomendada:
ANDRADE, Mário de. Os compositores e a língua nacional. In: Aspectos da música brasileira. São Paulo: Martins, 1965,
p.41-118.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,
1975.
NORMAS para a boa pronúncia da língua nacional no canto erudito, ditadas pelo Primeiro Congresso
da Língua Nacional Cantada, realizado em São Paulo, em 1937. In: MARIZ, Vasco. A canção brasileira: erudita,
folclórica e popular. 4ª Edição. Rio de Janeiro: Livraria Editora Cátedra, 1980.
O QUE FOI O 1º CONGRESSO BRASILEIRO DE LÍNGUA FALADA NO TEATRO. Revista de Teatro: SBAT, Rio de Janeiro, no.
294, novembro/dezembro, 1956.
RELATÓRIO GERAL: A VOTAÇÃO DOS FONEMAS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO NO CANTO ERUDITO. Assembléia realizada
no IV Encontro Brasileiro de Canto, Mirna Rubim, ed. In: Boletim da Associação Brasileira de Canto, N. 28 – Ano VII,
out/nov, 2005.

Martha Herr é Doutora em Música pela Michigan State University, tem participado de recitais, óperas e gravações no
Brasil, nos Estados Unidos e Europa, como solista e integrante de vários conjuntos de música brasileira e de música con-
temporânea. Coordenadora da área de Canto da UNESP (São Paulo) e professora na pós-graduação, recebeu, em 1998, o
Prêmio Carlos Gomes da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Organizou o 4º Encontro Brasileiro de Canto, no
qual as Novas Normas para a Boa Pronúncia da Língua Portuguesa foram votadas.

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TRAGTENBERG, L. Performance vocal: expressão e interpretação. Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 41-46

Performance vocal:
expressão e interpretação

Lucila Tragtenberg (PUC-SP, São Paulo)


lucilatragtenberg@gmail.com

Resumo: O processo de criação na interpretação vivenciado por intérpretes-cantores constitui o foco deste artigo.
Alguns aspectos teóricos que circundam a questão são abordados, assim como a investigação de relatos de três intér-
pretes-cantores - Marcelo Coutinho, Inácio de Nonno e Eladio Pérez-González - sobre suas interpretações de três obras
do compositor Luis Carlos Csekö: Divisor de Águas, Canções dos Dias Vãos e Brazil S/A, respectivamente.
Palavras-chave: interpretação vocal, canto, gestual, improvisação, atuação cênica, processo criativo.

Vocal performance: expression and interpretation

Abstract: The creative process of interpretation experienced by singers constitutes the focus of this article. Some
theoretical aspects related to the question are addressed as well as the viewpoints of three Brazilian singers - Marcelo
Coutinho, Inácio de Nonno and Eladio Pérez-González about their interpretations of works by Brazilian composer Luis
Carlos Csekö: Divisor de Águas, Canções dos Dias Vãos and Brazil S/A, respectively.
Key words: vocal interpretation, singing, performing gestures, improvisation, theatrical interpretation, creative process.

1- Introdução: desenvolvidos por compositores já possuem diversas


O trabalho vocal intrinsecamente ligado ao processo cria- abordagens e pesquisas facilmente encontráveis em pu-
tivo da interpretação se constitui no tema deste artigo, blicações.
centrado em minha dissertação de Mestrado. Como esse
assunto me é caro e de profundo interesse, ele será tam- Ao longo da história, algumas abordagens de performan-
bém aprofundado no Doutorado a ser iniciado brevemen- ces de intérpretes (cantores, maestros) se deram no âmbi-
te. to do estudo de gravações fonográficas, como a de Gun-
ther Shuller, instrumentista, regente e compositor citado
Os objetivos deste trabalho consistem em investigar o por J. DUNSBY (2002, p.213) em seu artigo Performers on
processo de criação do intérprete-cantor (termo que uti- Performance. Schuller discutiu em seu livro The Compleat
lizo pretendendo enfatizar o aspecto expressivo da prá- Conductor, aspectos de interpretações realizadas por re-
tica do cantor), contribuir para a produção de conheci- gentes, de grandes obras do repertório sinfônico, obtidos
mento sobre o repertório de música brasileira e registrar através da análise de gravações fonográficas.
e valorizar o trabalho de intérpretes-cantores brasileiros
contemporâneos. Dentre as muitas biografias e alguns estudos sistematiza-
dos sobre cantores, destaca-se Analysing three interpre-
Inicialmente, será apresentada uma breve abordagem te- tation of the same piece of music de Andranick TANGUIA-
órica quanto a algumas questões que circundam o tema, NE (1992), sobre três interpretações da ária da Loucura
seguida de uma reflexão sobre a prática interpretativa de de Lucia di Lammermoor de Donizetti, realizadas por três
três intérpretes-cantores. Para isto, foram selecionados grandes intérpretes do canto lírico e também abordadas
trechos de entrevistas com os mesmos, realizadas para a através de gravações fonográficas. Entretanto, a autora
dissertação, que propiciam acesso às suas partituras in- não abordou o modo como os intérpretes chegaram às
ternas de criação interpretativa, iniciando seu processo suas interpretações. Esta lacuna serviu de ponto de par-
de exposição externa. tida para nossa investigação sobre o processo de criação
do intérprete-cantor.
2- Investigação e Performance:
Os processos de criação de intérpretes-cantores se en- Há não muito tempo no curso da história, desde período
contram praticamente inacessíveis a outras pessoas que próximo à primeira metade do século XX, a performan-
não os próprios executantes. Por outro lado, processos ce musical vem sendo investigada através de trabalhos
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.15, 94 p., jan - jun, 2007 Recebido em: 12/10/2006 - Aprovado em: 17/03/2007
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TRAGTENBERG, L. Performance vocal: expressão e interpretação. Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 41-46

sistematizados quanto a tópicos ligados à expressão, in- ciliáveis, já que a própria memória necessita da razão...
tenção, significado, estrutura, forma, percepção, gestua- (SEINCMAN, 2001, p.172)
lidade.
Segundo Seincman, Bachelard compreende que o sujei-
No início dos anos 30, o assunto era tratado, segundo to desempenharia um papel ativo, interferindo de modo
aponta Enrico Fubini em seu livro Música y Lenguaje en la permanente nos rumos de sua vida, enquanto a memória,
Estética Contemporânea, com uma restrição inerente ao como uma construção, lidaria com sentimentos, fatos e
modo como os questionamentos iniciais sobre intérprete datas, visando criar um projeto da realidade:
e criação foram dimensionados pelos filósofos e críticos Quando queremos falar de nosso passado, ensinar a al-
nos anos 30 (através da revista Rassegna Musicale), ou guém como é nossa pessoa, a nostalgia das durações
seja, se seriam os intérpretes também criadores ou apenas em que não soubemos viver perturba profundamente
passivos executores de criações alheias, sem, neste caso, nossa inteligência historiadora. Gostaríamos de ter
levar em conta contextos técnicos, históricos, sociológi- um contínuo de atos e de vida para contar. Mas nossa
cos e psicológicos da questão. Desenvolveram-se então, alma não guardou uma lembrança fiel de nossa idade
ao longo do século XX, abordagens que contribuíram para nem a verdadeira medida da extensão de nossa viagem
a maior amplitude dessa reflexão nas áreas da filosofia ao longo dos anos; guardou apenas a lembrança dos
(Scruton, Clifton), da psicologia (Sloboda, Clarke), estéti- acontecimentos que nos criaram nos instantes deci-
ca, musicologia e estudos sobre a percepção. Aproxima- sivos do nosso passado. Em nossa confidência, todos
ções filosóficas quanto à natureza temporal da música e os acontecimentos são assim reduzidos à sua raiz num
ao fluxo temporal em si (Bergson, Bachelard) participam instante. Nossa história pessoal nada mais é assim que
da ampliação do campo de inserção e pesquisa do fenô- a narrativa de nossas ações descosidas e, ao contá-la,
meno da interpretação. é por meio dessas razões, não por meio da duração,
que pretendemos dar-lhe continuidade. Assim a expe-
3- Tempo e Performance: riência de nossa própria duração passada se baseia em
Em seu livro A dialética da duração, Bachelard evoca a verdadeiros eixos racionais; sem esse arcabouço, nos-
constituição do conceito de tempo e cita Hegel que, se- sa duração se desmancharia. (BACHELARD 1988 apud
gundo ele, não estaria empenhado em: SEINCMAN, 1994, p.173)
uma análise da noção de tempo, noção abstrata de tem-
po abstrato, do tempo tal como se apresenta na física, Seincman apresenta este resgate do aspecto racional da
do tempo newtoniano, do tempo kantiano, do tempo em criação humana frente à atividade artística como um as-
linha reta das fórmulas e dos relógios. Trata-se de outra pecto muito positivo:
coisa. Trata-se do tempo nele mesmo, da realidade es- Esta revisão do aspecto racional da criação humana
piritual do tempo. Esse tempo não transcorre de modo é, também para a arte, fundamental, pois nega que os
uniforme; não é tampouco um meio homogêneo através eventos sejam parte de uma “natureza” e afirma a ne-
do qual nós passaríamos; não é nem a cifra do movimento cessidade de o ser humano acreditar em algo, mesmo
nem a ordem dos fenômenos. Ele é enriquecimento, vida, que “ilusório”. Assim, a própria questão de haver ou
vitória. Ele próprio é espírito e conceito. (BACHELARD, não uma continuidade de fato, em um certo evento,
1988, p.88) deixa de ter sentido. Sabe-se que a arte é capaz de
criar “ilusões verdadeiras”, e esta é a verdadeira rea-
Esta falta de uniformidade e de homogeneidade por onde lidade do fenômeno estético. O verdadeiro intérprete
transitaríamos é retomada por Bachelard ao apontar a é aquele que tem condições de criar a ilusão de con-
descontinuidade do ‘instante’ como um aspecto criador tinuidade em seu auditório, e esta ilusão passa a ser,
de tempo. Eduardo Seincman aborda temporalidade e em última instância, a realidade de fato. (SEINCMAN,
memória na obra de Bachelard e Bergson em seu livro Do 2001, p.173)
Tempo Musical, ao estudar a questão da temporalidade
junto ao fenômeno musical. Confrontando a contradição Caberia, ainda, guardar agora uma distância em relação
entre a continuidade temporal (‘durée’) de Bergson e a à questão do que seria considerado um verdadeiro intér-
descontinuidade do ‘instante’ de Bachelard, aborda ainda prete. No momento, mais importante que uma definição
o aspecto da memória: do que constitui um intérprete, parece ser a possibilidade
Desse modo, se em Bergson o tempo é um “dado imedia- de, a partir da relação apontada por Seincman entre in-
to da consciência” e a memória é cumulativa – o passa- térprete-criação-memória-ilusão-realidade-continuida-
do debruçando-se ininterruptamente no presente -, em de, focar-se em trabalhos empíricos a serem realizados
Bachelard, por sua vez, o tempo é conseqüência não da (em perspectiva de inter-relação com estudos teóricos),
“durée”, mas do instante pensado, instante que cria o abordagens de aspectos relativos à ilusão e realidade na
tempo ao seu redor. A memória para Bachelard é, pois, situação humana, frente à condição temporal de conti-
seletiva e aponta, simultaneamente, para o passado e nuidade/fragmentação de instantes e à memória, sempre
o futuro. Não é a duração que constrói o homem, mas com vistas ao alargamento do olhar diante do fenômeno
o inverso. Não se pode mais, como em Bergson, opor da interpretação.
intuição e razão como entidades separadas e irrecon-

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TRAGTENBERG, L. Performance vocal: expressão e interpretação. Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 41-46

4- Criação e Intérpretes-Cantores: É importante assinalar que não existe aqui a intenção


Nas entrevistas realizadas com os três intérpretes-can- de buscar um método, normatizações ou uma unifica-
tores na dissertação de mestrado (e que serão abordadas ção no campo da interpretação. Os processos de criação
em seguida), foi utilizada a metodologia da História Oral, do intérprete-cantor parecem antes trafegar pela via da
que tem como uma de suas características, a utilização e diversidade. Não há também a intenção de privilegiar a
atuação da memória enquanto elemento central de ob- semântica na música em busca de qualquer simplificação
tenção de informações e conhecimento. Primando pela fácil de significados na pesquisa da criação interpretati-
valorização do depoimento individual enquanto visão va, em detrimento da realidade da música instrumental e
pessoal de realidade e de mundo, em uma linha atual do fluxo sonoro em si mesmo.
de compreensão do sujeito como criador da história, a
História Oral resgata a percepção pessoal, subjetiva e a Por certo, cada intérprete enxergará de um modo pes-
memória, alçando-as a um patamar ativo e presente no soal e único, as informações grafadas em uma partitura
processo de criação da História. de modo igual para todos que se debrucem sobre ela. O
acréscimo de sensações vividas no mundo interior do in-
Esta metodologia se coaduna perfeitamente com os ob- térprete (não necessariamente apenas afetivas, também
jetivos do trabalho, em especial, o de ouvir diretamente as racionais) é um caminho a ser investigado quanto à
dos intérpretes, o que reconhecem enquanto seu processo densidade interpretativa de um trecho cantado.
de criação interpretativo junto aos elementos musicais e
cênicos criados pelo compositor. Torna-se ainda funcio- Porém, como fazer isto? Para entrar na via que se dirige
nal e condizente com a intenção de registrar o trabalho às muitas informações que poderão compor esta com-
de um grupo específico de intérpretes-cantores, realizado plexa resposta, se faz importante o acesso à partitura
em determinada época. Sublinha também um aspecto de interna do intérprete. No sentido de ir em busca desta
singularidade que é de capital importância no trabalho. partitura interna, começando a reconhecer este terreno
amplo e desconhecido, aqui serão abordados trechos das
Retomando a afirmação de Gisele Brelet, toda execução interpretações de três barítonos sobre três peças dife-
se constitui em: rentes, porém, de um mesmo compositor, Luis Carlos
Csekö. São eles: Marcelo Coutinho, intérprete de Divisor
”..uma limitação de uma perspectiva pois que, no entanto,
de Águas; Inácio de Nonno, intérprete de Canções dos
abarca a obra em sua totalidade: a originalidade de uma
Dias Vãos 3 e Eladio Pérez-González, intérprete de Brazil
execução se constitui, precisamente, na sua maneira (do
S/A. História Oral.
intérprete) de restituir sua perspectiva pessoal da totali-
dade da obra.” (BRELET, 1947; apud FUBINI, 1994, p.121)
As investigações se referiram diretamente a três aspectos
que o intérprete-cantor observa e realiza em sua práti-
É exatamente esta maneira pessoal de interpretar (per-
ca interpretativa, partindo dos dados criados e forneci-
cepção-perspectiva pessoal) na criação da interpretação
dos pelo compositor: abordagem dos elementos musicais
de uma peça vocal que é muito importante e deve ser
de caráter improvisatório; criação de um gestual e mo-
preservada na investigação desse processo. Nesta pers-
vimentação cênica; criação de sua concepção quanto à
pectiva, a metodologia da História Oral foi escolhida nes-
expressão que norteia toda a peça.
se trabalho, a fim de valorizar e resguardar a singularida-
de do sujeito.
Devido à carência de estudos na área de interpretação
quanto ao processo de criação realizado por intérpretes-
Uma vez que apenas os próprios intérpretes podem falar
cantores, a aproximação com a obra de Constantin Sta-
a respeito da sensação implícita (ou ausente), por exem-
nislavski tornou-se fundamental e revelou-se muito apro-
plo, em uma sonoridade emitida piano ou meio forte, ou
priada, uma vez que pudemos encontrar pontos de contato
sobre seu modo de percepção pessoal da peça, o relato
diretos com os aspectos de reciprocidade criativa entre
oral torna-se imprescindível ao trabalho. Seria possível
intérprete e compositor, que interessava ser investigada.
ouvir uma gravação das peças por eles interpretadas, mas
utilizando essa audição como fonte de pesquisa em re-
Retomando o porquê, restringido neste artigo ao aspecto
lação às dinâmicas ali presentes e à percepção pessoal
das dinâmicas vivenciadas pelos três barítonos ao inter-
do intérprete em relação à peça, o que se poderia fazer,
pretar as peças citadas acima, veremos agora algumas
seria apenas tentar adivinhar o porquê das dinâmicas re-
respostas a ela. Marcelo Coutinho nos falou de um pri-
alizadas.
meiro sentido expressivo, ao descrever um Divisor de
Águas estrondoso, através de uma situação de dinâmica
Entretanto, o porquê é mais indicado ao questionamen-
contrastante:
to das dinâmicas realizadas (tomando-as como elemento
musical guia na aproximação com o intérprete) do que Marcelo Coutinho: “A Divisor de Águas é o que eu falei, é
as perguntas o quê ou como, uma vez que estas gerariam uma peça que começa de um fortissimo, de um estron-
respostas apenas descritivas (utilizando a palavra em um do, e vêm para um diminuendo, e ele trabalha com esses
sentido de restrição) quanto à interpretação realizada. claros e escuros que eu falei pra você, com essa dinâmica
forte/fraca...” (TRAGTENBERG,1997, p.10).

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TRAGTENBERG, L. Performance vocal: expressão e interpretação. Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 41-46

O primeiro aspecto percebido no relato de Marcelo diz bem agudo]. Você tem saltos aqui, grandes. Ele guarda
respeito à relação intérprete-cantor/instrumento, uma isso para o final, que é como se o cara tivesse dando a
vez que a sonoridade em fortíssimo a que ele se refere, última chance de dizer que era uma injustiça.“ (TRAG-
era executada pelo piano (página 1 da partitura citada), TENBERG,1997, p.30-31)
iniciando a peça.
Inácio de Nonno compreendeu Canções dos Dias Vãos 3
Ao levar em conta a sonoridade fortíssima que vinha do como um recorte muito pequeno de angústia na vida de
piano em sua percepção expressiva daquele momento, um homem, a partir dos elementos musicais e cênicos
Marcelo nos revela como aí se deu sua interação com o presentes na peça (alguns diretamente ligados a este
outro instrumento presente na peça. As indicações de di- sentimento) e da duração da peça:
nâmica foram feitas pelo compositor e percebemos como, “Inácio de Nonno: Com a continuação dos ensaios, so-
através delas, Marcelo criou sua intenção de “estrondo” bretudo depois que eu conversei com ele, quando ele co-
inicial que depois diminui. Um contraste estabelecido meçou a falar dele, foi que eu percebi exatamente qual
pela dinâmica foi o modo como o barítono apontou os era o efeito que ele queria nessa peça. É um corte muito
“claros/escuros” presentes na peça. pequeno de um momento de angústia, seria a análise, o
resumo da ópera. Seria isso, em que ele recorta com esses
A peça possui indicações de utilização da voz falada e elementos que ele utilizou aqui. Daí essa necessidade que
cantada e o uso dessa alternância vocal foi assim perce- ele teve de fazer a coisa curta, curta, curta.” (TRAGTEN-
bido pelo barítono: BERG,1997, p.62-63)
Marcelo Coutinho: “Nesse lance da voz falada, ele su-
gere que você fale lento, que você fale rápido, que você “Inácio de Nonno: É, reduzido o tempo. Pequeno. Não po-
fale rapidamente, que você fale mais rápido, que você dia passar de quatro minutos e meio de jeito nenhum.
fale moderado. Eu acho que nessa rapidez com que você É como se ele pegasse um segundo e prolongasse esse
fala o texto é que está a relação com a parte cantada. A segundo. É como se pegasse um segundo, um momento
dinâmica está muito ligada a isso. Às vêzes ele pede pra seu, filmasse e passasse esse filme em uma câmera lenta
você falar com a voz pesada e, logo em seguida, você que dura quatro minutos. Então, é um segundo que dura
tem um canto forte também, que vem descendo, ou quatro minutos. Foi a sensação que eu tive.” (TRAGTEN-
que vem subindo. Existe uma interligação.” (TRAGTEN- BERG,1997, p.62-63).
BERG,1997, p.12)
Sobre algum momento ou elemento musical que o tivesse
Voz falada e voz cantada estão interligadas musicalmen- levado a vivenciar mais fortemente essa angústia, des-
te em sua concepção, através dos elementos musicais de creve:
andamento e dinâmica indicados pelo compositor, e ele Inácio de Nonno: “...sobretudo o glissando, tanto o as-
termina por concluir sua concepção expressiva das mes- cendente quanto o descendente, os dois. Vinha sempre
mas: uma impressão de angústia. Eu não estava preocupado
Marcelo Coutinho: “A criação da parte cantada estava em passar nada naquele momento, mas o que eu sen-
muito ligada com a parte falada (...) você deve man- tia… Sabe, eu estou angustiado nesse momento. Então,
ter esse mesmo tom irônico (...) cantando”. (TRAGTEN- essa coisa de angústia sempre me vinha. Ahahahahahah,
BERG,1997, p.23) na minha cabeça ficava sempre uma coisa assim: angús-
tia, angústia, sofrimento, opressão. Essas palavras, esses
Para Marcelo, os glissandos estavam ligados a um senti- sentimentos me vinham a peça inteira, sobretudo nesses
mento de angústia que ele percebia através do texto e que momentos de glissando.” (TRAGTENBERG, 1997, p.59)
também imprimiam dramaticidade ao trecho (juntamente
com o falsete), o qual se encaminhava dessa forma, tenso, Tal como Marcelo, Inácio percebeu os momentos de glis-
ao “cume” final de que nos falava: sandos musicais ligados a uma sensação de angústia. Seu
“Marcelo Coutinho:“ Tinham momentos assim, por exem- gestual apresentou uma característica diferente. Nos mo-
plo, em que os improvisos, os glissandos aconteciam com mentos em que produz palmas, utiliza-se de um gestual
maior freqüência, (...) dando uma dramaticidade maior - estruturalmente ligado à produção sonora, prática muito
POóing [faz como se fosse um glissando descendente], presente na música do século XX. Ao comentar que para
gliIIIÍ [glissando ascendente] Fár [g. descendente] bIÚÚÚ ele as palmas não tinham qualquer intenção de “passar
[g. ascendente] BLIM BLIM [mantendo região aguda] ... um sentimento específico”, Inácio reconheceu, nesse tre-
retratando a angústia do poema. E isso acontece mais na cho, um gestual ligado estritamente à produção sonora e
parte final, é óbvio (...), que vai num crescendo. não uma função de simbolismo que acompanha o gesto,
e dessa forma o realizou. Este último, entretanto, está
E aí você tem aqui esse In [canta um trecho que as presente em outros momentos da peça:
alturas são bem distintas e com um falsetto exage- Inácio de Nonno: “Foram muito bruscos, todos muito
rado no final, que fora indicado pelo autor, o som que bruscos. Ele não queria nada que parecesse casual...
faz nesta sílaba In é médio], de [som grave] VÁ [som Ele não queria boneco, ele não queria um boneco, mas

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TRAGTENBERG, L. Performance vocal: expressão e interpretação. Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 41-46

não queria que parecesse nunca uma coisa natural. como eu nunca chego do trabalho dessa forma, eu me
Sempre de uma pessoa oprimida. Ele não disse isso; lembrei do tempo em que eu trabalhava na Reitoria, na
eu é que, quando comecei a sentir assim, ele disse “é seção de pagamento...” (TRAGTENBERG,1997, p.64-65)
isso que eu quero”. Eu falei: “Ahá” [rindo]... É o papel
do intérprete. Nós temos os nossos recursos.” (TRAG- A roupa foi o primeiro elemento que evocou sua lem-
TENBERG,1997, p.63) brança, localizando-a também em um tempo e espaço,
ou seja, quando realizava um trabalho burocrático na
Sua movimentação se dá, na maior parte do tempo, com universidade:
gestos bruscos, teatrais (enfáticos, amplos) e não casu- Inácio de Nonno: “Era uma coisa que estressava terrivel-
ais, para ele, ligados a um simbolismo gestual de uma mente porque eu queria ser músico, eu não queria ser
intenção, vivenciando uma “pessoa oprimida” como nos nada daquilo. Então, agora que você falou, talvez tenha
disse. O fato de ter percebido poucos contrastes entre os passado em algum momento pelo meu inconsciente
elementos musicais da peça (mais precisamente o ruído aquela sensação de angústia que eu tinha quando ia para
utilizado como fonte sonora) contribuíram para essa sen- a Reitoria trabalhar. Era uma coisa que eu detestava, me
sação de opressão: fazia mal à saúde física e espiritual... Um horror! Imagina!
Inácio de Nonno: “Eu acho que o tempo todo, na medida Eu queria ser músico.” (TRAGTENBERG,1997, p.65)
em que ele utilizava o ruído (porque sss é ruído, não é
som), e som de fato, som de voz, o contraste está estabe- Era uma lembrança igual àquela do seu personagem, uma
lecido. Por aí. Se eu fosse fazer uma crítica, eu diria que situação ruim, de estresse. Entretanto, Inácio não sabia se
ele poderia ter utilizado os contrastes para partes mais ela havia aflorado em seu inconsciente ou não. A dúvida
íntimas, mais intimistas, poderia ter utilizado isso de for- persistia:
ma mais evidente. Eu acho que a música fica muito tensa Inácio de Nonno: “Então eu tenho a impressão que eu
o tempo todo.” (TRAGTENBERG,1997, p.49) transferi um pouco daquela angústia, inconscientemente,
agora que eu estou verbalizando eu estou descobrindo
Inácio é muito claro quanto aos momentos e elementos que de repente a coisa pode ter sido por aí. Quando ele
musicais que contribuem para um contraste real que re- falou em trabalho, cansaço, depressão, opressão. No meu
conhece na peça e que conduzem a um estado de relaxa- trabalho é claro que volta e meia acontecem essas coi-
mento (apontados como muito raros): sas, mas não é marca do meu trabalho. Aí eu me lem-
Inácio de Nonno: “Era quando apareciam legato e piano. brei quando o meu trabalho me marcava a esse ponto. Foi
Quando apareciam legato e piano (...) aconteciam esses quando eu trabalhava nisso. Então isso me veio, com cer-
contrastes, para mim.“ (TRAGTENBERG,1997, p.61) teza.“ (TRAGTENBERG,1997, p.65-66)

Para ele, o contraste tensão/relaxamento (essas sensa- Inácio não tinha, de modo consciente, a ligação que ha-
ções de estados emocionais) era percebido como um forte via feito com um período em sua vida em que vivera, de
elemento de informação nova através do legato e de uma forma semelhante, uma situação de angústia, similar à
dinâmica com uma sonoridade mais fraca. Os outros con- de seu personagem (caso este que Stanislavsky denomina
trastes e elementos de tensão (glissandos), segundo nos como sinceridade de emoções). Intuitivamente, de modo
disse, eram muito repetidos. inconsciente, ele se reportara a um período em que vi-
vera, tomando contato novamente com as sensações e
Por fim, quando perguntei a Inácio se alguma vivência vivências daquela época.
pessoal anterior teria surgido em sua interpretação, o ba-
rítono me respondeu: Eladio Pérez-González, ao interpretar Brazil S/A, inse-
Inácio de Nonno: [Rindo] “Não havia esse tempo, ria seu ‘personagem’ em uma situação de humor crítico
(variado de muitas maneiras como “deboche, ironia, go-
não havia esse tempo. Adoraria que houvesse, mas
zação”...), com que atacava duramente uma medida do
não havia esse tempo.” (TRAGTENBERG,1997, p.64) governo que considerava abusiva. Como isto se dava para
ele em um nível de denotação de elementos musicais e
Um elemento cênico, a roupa indicada pelo autor, reve- cênicos presentes na partitura?
lou-se estar intimamente ligado ao sentimento de an-
gústia por ele vivenciado na peça, porém, correlacionado No início da peça Brazil S/A, o gesto de roubar é precedido
a uma situação ocorrida em sua vida pessoal. Quando lhe de uma simples e única vogal a. Vejamos como o gestual
perguntei sobre alguma recordação espontânea que ti- e elemento musical indicado pelo compositor no trecho
vesse ocorrido, disse: foram por ele interpretados:
Inácio de Nonno: “Talvez eu tenha me lembrado sim. Po-
deria ter lembrado dos tempos em que eu trabalhei na Eladio Pérez-González: “Acontece que aí, nesse mo-
Universidade [ficou em dúvida, como quem se recorda]. mento, tem um gesto. Então você ataca: aaaaaaaa
Isso aconteceu sim. Quando eu botei aquela calça preta, [cantando com sonoridade forte], e faz o gesto de rou-
camisa branca e a gravata, aquela coisa meio desleixada bar, como chamando a atenção.” (TRAGTENBERG,1997,
de uma pessoa que está chegando do trabalho, cansada, p.89)

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TRAGTENBERG, L. Performance vocal: expressão e interpretação. Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 41-46

É interessante perceber como uma vogal apenas, que não defender da coisa. Quanto mais rápido e rasteiro, melhor
possui qualquer significado intrínseco, adquiriu a inten- para o governo. Então eu colocava a crítica aí...“ (TRAG-
ção de “chamar a atenção” para o gesto, na percepção de TENBERG, 1997, p.90)
Eladio. E dessa forma, o gesto e a vogal foram enfatiza-
dos. Eladio comenta um dos raros momentos em que a Sinteticamente, alguns pontos merecem ser destacados:
voz cantada é indicada na peça: como um elemento musical, o glissando citado por Mar-
Eladio Pérez-González: “Você veja: esta repetição, esta celo Coutinho e Inácio de Nonno, trouxe a eles, de modo
reiteração aqui “a providência que o governo tomou a res- igual, associações emocionais ligadas ao sentimento de
peito foi: rápida” [lendo o texto que está na página 2 da angústia, mesmo pertencendo a contextos musicais dife-
partitura]. Rápida. “Resolveu aumentar nosso imposto de renciados. Como um figurino evocou em Inácio recorda-
renda e aqui vai um “gesto de roubar” [indicação pedida ções de cunho emocional, porém ligadas a situações por
pelo compositor] Muito bem. “Para continuar mantendo ele vivenciadas em sua vida real e transportadas, ainda
um número razoável de milhões de dólares que possam ser que inconscientemente, para o mundo interpretativo que
roubados” — rápida, rápida, rápida [voz cantada] se refere estava compondo. Como uma simples vogal cantada em
a esse roubar. Entende? Está aqui, a providência que to- uma dinâmica de crescendo trazia em si, a sensação com-
mou foi rápida. Tudo está — como se diz? — imbricado, preendida pelo intérprete, como uma função de chamar a
envolvido aí.” (TRAGTENBERG,1997, p.91-92) atenção para a denúncia que ali se fazia.

A intenção que atribuiu ao trecho cantado rápida, rápida, Por fim, ficamos um pouco mais próximos da partitura
rápida (além de sua relação com o gestual e o texto) está interna de alguns intérpretes-cantores através de elementos
correlacionada com o da voz falada, tal como Marcelo estruturados no universo de improvisação e indeterminação,
estabeleceu em Divisor de Águas, citado anteriormente. cuja amplitude colaborou para a compreensão de fragmen-
Eladio compreendeu como uma referência ao roubo que tos dos processos de criação aqui registrados, um início de
estava sendo anunciado.Vejamos qual a interpretação pesquisa em um campo tão vasto. É importante ressaltar
que ele deu a esse trecho: ainda o registro dos depoimentos de intérpretes contempo-
râneos e brasileiros atuantes sobre obras de um compositor
Eladio Pérez-González: “...Entendi que o roubo se realizava igualmente brasileiro e atuante em nossa época.
de maneira muito rápida porque você não tinha como se

Referências Bibliográficas
BACHELARD, Gaston. A dialética da duração. SP: Editora Ática, 1988.
DUNSBY, J. Performers on performance. IN: RINK, John. (Ed.) Musical Performance: a guide to understanding. New York:
Cambridge University Press, 2002.
FUBINI, Enrico. Música y lenguaje en la estética contemporânea. Madrid: Alianza editorial, 1994.
SEINCMAN, Eduardo. Do tempo musical. SP: Via Lettera, 2001.
TANGUIANE, Andranick. Analysing three interpretations of the same piece of music. In: Secondo Convegno Europeo di
Analisi Musicale. Ed. Rosanna Dalmonte e Mario Baroni. Trento: Università Degli Studi, Dipartamento di Storia della
Civiltà, 1992, p.21-40.
TRAGTENBERG, Lucila Romano. Intérprete-Cantor: Processo Interpretativo em Reciprocidade Criativa com o Compositor
na Música Contemporânea através dos Intérpretes da Obra Vocal de Luis Carlos Csekö. 1997. Dissertação (Mestrado em
Canto) - Escola de Música, Universidade Federal do Rio de Janeiro da UFRJ, 1997.

Lucila Tragtenberg, Soprano, é Mestre em Canto pela UFRJ, Professora de Técnica Vocal na PUC-SP e de Canto na escola
Seminários de Música Pró-Arte (RJ). Atualmente, grava o CD Lucila Tragtenberg: Voz, Verso e Avesso, aprovado no Progra-
ma Petrobras Cultural, com lançamento previsto para agosto de 2007.

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Imagens na canção A saudade Op. 11


de Lorenzo Fernandez:
uma abordagem intersemiótica
Mônica Pedrosa de Pádua (UFMG, Belo Horizonte)
monicapedrosa@terra.com.br

Margarida M. Borghoff (UFMG, Belo Horizonte)


guidaborghoff@hotmail.com

Resumo: Este trabalho apresenta uma abordagem intersemiótica da canção A saudade Op. 11 de Lorenzo Fernandez.
Verifica algumas articulações que se estabelecem entre as linguagens literária e musical da canção e revela imagens
suscitadas pelo texto poético, pela música e finalmente pelo texto poético–musical. Como um dos instrumentos de
análise, foi utilizado o Sistema de Análise de Arte Comparada de Sandra Loureiro de Freitas Reis, o qual emprega difer-
entes paradigmas ou “modos”, deduzidos de fenômenos comuns a várias linguagens artísticas.
Palavras-Chave: canção brasileira, análise intersemiótica, Lorenzo Fernandez, Sistema de Análise de Arte Comparada,
Sandra Loureiro de Freitas Reis.

Images in Lorenzo Fernandez’s art song A saudade Op. 11: an intersemiotic approach

Abstract: This paper presents an intersemiotic approach to Lorenzo Fernandez’s art song A Saudade Op. 11. It verifies
the articulations that can be established between the literary and musical languages of the song and reveals images
brought up by the poetry, the music and, finally by the poetic-musical text. One of the analytical tools used was the
Compared Arts Analysis System, developed by Sandra Loureiro de Freitas Reis. This system uses different paradigms or
“modes”, deduced from phenomena which are common to several artistic languages.
Keywords: Brazilian art song, intersemiotic analysis, Lorenzo Fernandez, Compared Arts Analysis System, Sandra
Loureiro de Freitas Reis.

I. Introdução Este grupo desenvolve metodologias próprias de estudo


Este trabalho apresenta um estudo sobre a canção A sau- de relações texto-música, que têm sido aplicadas em dis-
dade Op.11, uma das primeiras peças para canto e piano ciplinas do curso de graduação da Escola de Música da
de Lorenzo Fernandez, escrita em 1921. Os versos musi- UFMG e em trabalhos de pesquisa realizados nos níveis
cados são de autoria de Luís Carlos da Fonseca Monteiro de iniciação científica, mestrado e doutorado (CASTRO;
de Barros (1880-1932). BORGHOFF; PEDROSA, 2003). Essas pesquisas são tam-
bém auxiliadas por estudos realizados na área da Lite-
Neste estudo, abordamos o texto literário do qual a can- ratura Comparada, que oferece novas possibilidades de
ção se originou e, em seguida, apresentamos algumas re- acesso à obra musical, na medida em que possibilita a
lações observadas entre o texto literário e o texto musi- abordagem de diferentes sistemas semióticos e de suas
cal. Como ferramenta de análise musical foram utilizados inter-relações.
os parâmetros sugeridos por LA RUE (1970)1 e para as
análises literárias os parâmetros indicados por GOLDS- Buscando uma outra forma de abordagem das relações
texto-música, optamos por utilizar o Sistema de Análise de
TEIN (1989)2, adotados nas análises realizadas pelo Gru-
Arte Comparada (SAAC), desenvolvido por Sandra Loureiro
po de Pesquisa da UFMG “Resgate da Canção Brasileira”.
de Freitas REIS3 (2001) com a finalidade de verificar rela-

1
Os parâmetros são: som, harmonia, melodia, ritmo e crescimento.
2
Parâmetros relacionados aos aspectos formais e aos aspectos da linguagem nos níveis lexical, semântico e sintático.
3
Sandra Loureiro de Freitas Reis é Professora Emérita da Escola de Música da UFMG. É Doutora em Literatura Comparada pela Escola de Letras da
UFMG, tendo feito Pós-Doutorado com Jean-Jacques Nattiez na Universidade de Montréal no Canadá.
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.15, 94 p., jan - jun, 2007 Recebido em: 12/11/2006 - Aprovado em: 04/02/2007
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PÁDUA, M. P.; BORGHOFF, M. M. Imagens na canção A saudade Op. 11... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 47-54

ções entre as diferentes linguagens presentes na canção. ra ao analista e intérprete para que seja realizada uma
Este sistema nos permite realizar uma interpretação aberta transcriação da obra, que avance para além de seus as-
e intersemiótica da obra, porém ancorada nas análises de pectos literais. O SAAC utiliza como referência teórica a
seus aspectos semânticos e estruturais realizadas previa- semiótica de Charles Sanders Peirce e a noção de “inter-
mente. Auxiliados por este sistema, enfocamos aspectos pretante”.6
imagísticos da obra, que podem oferecer ao intérprete di-
ferentes possibilidades de compreensão da canção. III. O SAAC e a canção A Saudade
Neste estudo, em um primeiro procedimento, nos con-
II. O Sistema de Análise de Arte Comparada centramos no chamado nível “neutro” da análise, em que
de Sandra Reis foram utilizados os parâmetros de Goldstein e La Rue
O SAAC foi idealizado por Sandra Reis para ser aplicado – apesar de não ser nossa intenção apresentar aqui todas
à literatura, à música e à pintura, com o intuito de ve- as etapas deste processo analítico - procurando, tanto
rificar correspondências entre estas artes. Os parâmetros quanto possível, os aspectos literais dos textos poético
ou paradigmas utilizados neste sistema foram deduzidos e musical.
de fenômenos comuns às diversas linguagens artísticas, e
apresentam-se mais ou menos evidentes em cada obra, mas Após esta primeira análise da canção, extraímos ele-
sempre em interação dinâmica perante a percepção huma- mentos da poesia e da música que foram empregados
na. Os paradigmas são denominados “modos” ou organiza- na análise através do SAAC. Nosso objetivo foi experi-
ções de elementos que determinam um “modo de ser, de mentar este sistema buscando estabelecer correlações
estar ou de se relacionar dentro da obra”.4 Os “modos” cria- entre os textos literário e musical. Para tanto, nos con-
dos por Sandra Reis e apresentados em suas publicações centramos em avaliar aqueles elementos que se apre-
(REIS, 2001; 2004) são os seguintes: modos de valor; modos sentaram mais relevantes em cada “modo” utilizado,
rítmicos ou de duração; modos de intensidades; modos de procurando desta maneira obter uma visão de conjunto
planos; modos de direcionalidades; modos de justaposição da canção.
e simultaneidades; modos de timbres, cores ou tons; modos
de luz; modos de articulação; modos de estrutura; modos Optamos por selecionar, dentre os vários modos contidos
de instrumentação; modos de discurso; modos de signifi- no SAAC, aqueles que remetem de maneira mais específi-
cação; modos de leitura e modos de interpretação. ca aos códigos das artes plásticas, no intuito de estabele-
cer uma aproximação entre as imagens visuais e auditivas
Para a utilização deste sistema de análise, busca-se pri- que a canção fornece. Os modos utilizados nesta análise
meiramente realizar, como referência básica, uma análise foram: modos de direcionalidade; modos de planos; mo-
do nível “neutro” ou “imanente”5 da obra a ser estuda- dos de luz; modos de tons, cores e timbres; modos de in-
da. A escolha do tipo de análise neste nível fica a cargo tensidade, além dos conclusivos modos de valores e mo-
do analista, pois a autora não especifica metodologias a dos de significação, que apresentam uma síntese final dos
serem utilizadas nesta etapa. Em seguida, são efetuadas resultados obtidos. Utilizando-se os modos de valores, os
correlações entre os diversos elementos parametrizáveis elementos principais da peça foram identificados e, em
da obra (musicais, literários ou plásticos) e os parâmetros seguida, através dos modos de significação, foi articulada
ou “modos” do SAAC. uma cadeia de interpretantes, procurando-se assim chegar
a algumas conclusões sobre a obra.
Segundo Sandra Reis, este processo analítico pode en-
gendrar múltiplas significações desencadeando a semio- Através da utilização dos modos, nossa atenção volta-se
se em múltiplas direções e criando associações e inter- para a observação das imagens suscitadas pelo texto po-
pretações plurais de acordo com a percepção criadora ético, pela música e, finalmente, pelo texto poético-mu-
do intérprete, ancorada nas análises realizadas previa- sical. Interessa-nos a maneira como as imagens do texto
mente. Desta forma a análise realizada ultrapassa o nível são captadas e transformadas pelo compositor, ou como
“neutro” determinando incursões nos níveis “poiético” e imagens de naturezas diversas7 podem ser associadas às
“estésico”. Este modo de análise possibilita uma abertu- imagens sonoras da canção.

4
Citação da autora em disciplina do curso de Mestrado em Música da Escola de Musica da UFMG em 2005.
5
A Teoria da Tripartição de Jean Molino e Jean Jacques Nattiez divide os níveis da análise em neutro, poiético e estésico. O nível neutro corresponde à
observação, tanto quanto possível, das configurações imanentes da obra. O nível poiético diz respeito às estratégias composicionais do autor da obra. O nível
estésico diz respeito à construção de significação realizada pelo receptor da obra (cf. NATTIEZ, 2002, p. 7-39).
6
No momento de ser reconhecido pela percepção, cada signo, na sua relação com um objeto ou referente, se torna o que Peirce chama de
interpretante. Este, como signo, se torna, da mesma forma para aquele que o percebe, um novo interpretante, e assim por diante, num processo infinito
que é o processo da semiose (cf. REIS, 2004, p.67).
7
A imagem é normalmente caracterizada como um dado visual, seja ele referente a objetos concretos ou a imagens mentais (cf. SANTAELLA, 200,
p.15). Nosso conceito de imagem se estende para além de sua caracterização como um dado visual. Utilizamos aqui o conceito de imagens mentais
de modalidades sensoriais diversas, sejam elas visuais, sonoras ou cinéticas, independente de serem compostas por formas, cores, movimentos, sons
ou palavras faladas ou omitidas (cf. DAMASIO, 2002, p. 123).

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IV. Diferentes “modos” de ver a canção mentos que implicam em imagens de movimento e
A Saudade, Op.11 polarizações.

A saudade Nos primeiros 18 compassos da canção, como ele-


mentos que conferem estaticidade à obra, podemos
A saudade, a dor mais pura, citar primeiramente a harmonia na qual predominam
Tão pura fica ao chorar, acordes de sétima da dominante com quinta diminuta,
Que o seu pranto transfigura configurando uma harmonia suspensa. Esta harmonia
A morte, que é noite escura, proporciona uma indefinição tonal devido à ambigüi-
Numa noite de luar.8 dade dos acordes, que poderiam resolver em diferentes
tonalidades. Devido a esta indefinição a harmonia tor-
IV.1. Modos de direcionalidade na-se estática. Entretanto, os acordes dissonantes em
Os modos de direcionalidade são os que dizem respeito encadeamentos circulares sem resolução nos apontam
à condução de elementos da obra para pontos cul- para uma estaticidade em que a tensão se torna ele-
minantes, estabelecendo direcionalidades das linhas mento constante. (Ex.1)
das partes que podem ser horizontais, verticais, cir-
culares, sinuosas ou oblíquas, dentre outras (REIS, Como elementos de estaticidade encontramos tam-
2001, p 229). bém a repetição continua do motivo inicial com
impulso anacrústico. Este impulso, elemento por si
Na canção A saudade, podemos perceber elementos mesmo de movimento, encontra na sua repetição a
que nos transmitem imagens de estaticidade e ele- sua fixação temporal. (Ex.1)

Ex.1: Compassos 1-6

No poema, a estaticidade se manifesta na regulari- irregular dos compassos, que se alternam em ter-
dade de sua métrica. Na canção, a métrica regular nários, quaternários, quinários e binários, causando
do poema é diluída pela indicação calmo e triste, instabilidade e imprevisibilidade no movimento.
que sugere um andamento lento, e pela métrica

8
MONTEIRO DE BARROS, Luis Carlos da Fonseca. “A saudade”. In FERNANDEZ, Lorenzo. A Saudade. São Paulo: Irmãos Vitale, 1961 (partitura).

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Esta falta de previsibilidade deixa à deriva o intér- sua vez, desenvolve-se sem resolução melódica e
prete e o ouvinte, criando imagens de estaticidade apresenta uma grande amplitude de movimento di-
nesta seção da canção. recionado para o agudo em palavras como “chorar”
e “luar”, e para o grave, em palavras como “mor-
Como elementos de movimento e polarizações, ain- te” e “escura”. Esta linha carrega em si a tensão da
da nos 18 primeiros compassos, observamos inicial- harmonia, uma vez que se restringe às suas notas.
mente o desenvolvimento ascendente do motivo Entretanto, seu movimento contrapõe-se à estatici-
melódico da parte do piano. A linha do canto, por dade harmônica. (Ex.2)

Ex.2: Compassos 7-10

Encontramos nesta primeira seção da canção um de Si menor. Entretanto, estão presentes, no mes-
clima ambivalente, resultado da tensão dialética mo acorde que havia resolvido em Fá # Maior, duas
entre estaticidade e movimento, com impulsos para outras sensíveis: a do terceiro grau (Dó #) e a do
a frente e para o alto que, entretanto, sempre retor- quinto grau (Mi #) de Si menor. A existência destas
nam ao ponto de partida. A canção nos remete a um duas sensíveis confirma o caráter ambíguo da har-
movimento que procura, com dificuldade, distan- monia que ao final da peça encontra resolução em
ciar-se do ponto inicial, a ele sempre retornando. Si menor. (Ex.3)

No compasso 19, na última palavra do poema, exata- Observamos que a partir do compasso 19, quando a
mente na sílaba “ar” de “luar”, o compositor resolve harmonia suspensa dá lugar à cadência à tonalidade
pela primeira vez o acorde de sétima da dominante de Si menor, a canção passa a apresentar direciona-
com quinta diminuta em um acorde perfeito de Fá # lidade harmônica, apesar de diluída pela ausência da
Maior, iniciando finalmente uma cadência perfeita sensível e pela presença de dominantes secundárias.
à tonalidade de Si menor. Nestes seis últimos com- Ao final há a resolução num acorde perfeito me-
passos, que podemos caracterizar como uma coda, nor. A métrica regular nesta seção da canção aponta
observa-se a ausência de sensível no sétimo grau para a estabilização do movimento.

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Ex.3: Compassos 17-24

No poema observamos que as imagens por ele traduzidas dente, tem como elemento principal a linha melódica
se iniciam a partir de um sentimento: a saudade, que é do canto, polarizada pelas imagens suscitadas pelas
uma dor. Estas imagens caminham gradativamente do in- palavras do poema.
terior para o exterior do “eu poético”, passando, através
do pranto e das lágrimas, para as imagens exteriores do IV. 3. Modos de luz
céu. Analogamente, na macro estrutura da canção, ob- Os modos de luz referem-se a organizações que criam na
servamos um grande gesto da primeira seção em direção obra a dialética do claro-escuro, do brilho e da opacidade,
à segunda seção: um gesto que se direciona da instabi- da sombra e da luz, do agudo e do grave, da clareza e da
lidade e da tensão para a estabilização e resolução. Este obscuridade (REIS, 2001, p.229).
movimento musical sublinha a idéia poética de transfor-
mação apresentada no poema. O poema nos apresenta imagens pictóricas de luz e som-
bra em suas referências à “noite escura” e à “noite de
IV. 2. Modos de planos luar”. Também nos apresenta assonâncias de vogais de so-
Os modos de planos referem-se à construção de perspec- noridades contrastantes, abertas e fechadas, em palavras
tiva do discurso. Diferentes planos, mais próximos e mais como “chorar”, “luar”, “escura” e “transfigura”.
distantes, mais altos e mais baixos, principais e secun-
dários, podem ser discernidos tendo em vista um ponto A canção apresenta elementos que sugerem imagens
referencial (REIS, 2001, p.228). sonoras de sombra e luz, associadas às diferentes in-
tensidades luminosas do poema, como por exemplo:
No poema, imagens interiores de sentimentos caracteri- as regiões graves da voz e do piano, que reforçam as
zam um plano do discurso, em oposição a um plano ex- palavras de sonoridade escura, e as regiões agudas
terno, onde se apresentam as imagens do céu. que, em contraste, dão luminosidade às palavras de
sonoridade aberta; o uso de intervalos como o trítono
Podemos observar a canção como sendo construída em para atingir o ponto mais agudo na tessitura do canto
dois planos principais sobrepostos: horizontal e ver- na palavra “chorar”, bem como o acento no acorde da
tical. Em um único plano horizontal se desenvolve a parte do piano na palavra “morte”, com dinâmica for-
tensão e a resolução do discurso. Este plano da canção te e retorno imediato à dinâmica piano; o acorde per-
se articula com o plano interior do poema, e tem como feito maior na palavra “luar”, concluindo a seção de
elementos principais a harmonia e a repetição rítmica. harmonia suspensa, que confere uma claridade súbita
O plano vertical, com atração ascendente e descen- à canção; a resolução em um acorde perfeito menor

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no último compasso, que também nos remete a uma agógica relaciona-se com uma maior ou menor inten-
nova luz, mais difusa; o timbre criado com a utiliza- sidade resultante da movimentação rítmica, que pode
ção da harmonia suspensa, que é clareado quando se ser rápida, lenta ou moderada. A densidade relaciona-
dá a definição da tonalidade. se com os diferentes tipos de textura do discurso (REIS,
2001, p.228).
As indicações de caráter apresentadas na canção – “cal-
mo e triste” com a observação “ligado e com expressão A indicação de caráter “calmo e triste”, sugerindo
de profunda tristeza” em dinâmica p, e, ao final “com ex- um andamento lento, e as indicações de dinâmica
pressão sombria”, “sombrio”, “com doçura triste e calma” em p ao longo da peça, estabelecem a canção em
e “morrendo” - sugerem tons escuros. um patamar de dinâmica piano, apesar da presen-
ça de crescendi e dinâmica f acentuando palavra do
A linha melódica do canto apresenta características texto poético. As variações agógicas são resultantes
que podem ser encontradas nas serestas brasileiras, do desenvolvimento da linha melódica, aliado às va-
tais como terminações em cromatismo, inícios de riações de dinâmica. O compositor, por meio destes
frase em anacruse, frases sinuosas de grande âmbito recursos de dinâmica e agógica aliados à inflexão
intervalar e escalas menores. A referência melódica expressiva que ele confere ao poema, intensifica
às serestas nos remete a imagens noturnas, além de imagens e valoriza determinadas palavras tornando
evocar uma memória cultural de saudade, solidão e certas passagens em momentos de grande drama-
nostalgia. ticidade. Enfatiza assim as gradações de densidade
de emoção encontradas no poema. A saudade, a dor,
Podemos concluir que a canção apresenta acentua- o pranto e a noite escura, metáfora para a morte,
dos contrastes de luz e sombra. Entretanto, no plano sugerem um adensamento de emoções. Finalmente
geral, predominam imagens sombrias, sugeridas pe- sobrevém a rarefação, a transfiguração da morte, o
los sentimentos evocados, pelas imagens noturnas, alívio, o luar.
pela harmonia suspensa, pela tonalidade menor, pela
dinâmica predominante em p e pelas indicações de Observa-se que a canção apresenta variações expres-
caráter. sivas de intensidade, levando-se em conta as variações
de densidade dramática do texto poético, as variações
IV. 4. Modos de tons, cores e timbres de dinâmica musical, as variações na tessitura vocal
Os modos de tons, cores e timbres referem-se à avalia- do grave ao agudo, as indicações de caráter e a tex-
ção de diferentes situações cromáticas encontradas no tura harmônica apresentando regiões de consonância
discurso literário, musical ou plástico, em relação a um e dissonância.
ponto referencial (REIS, 2001, p.229).
IV. 6. Modos de valores
O poema nos apresenta duas imagens cromáticas princi- Os modos de valores estabelecem os elementos da obra
pais, em tons de azul escuro, referentes à “noite escura” que serão valorizados de acordo com seu destaque e
e à “noite de luar”. Em contraste, nos apresenta o branco, qualidade de participação no discurso. Estes elementos
quando faz referência ao luar. podem ser figuras, personagens ou procedimentos (REIS,
2001, p.228).
Observa-se ausência de modulação na canção. Entre-
tanto, a mudança da harmonia suspensa para uma har- Após a análise desta canção, consideramos que os ele-
monia tonal sugere uma importante mudança cromática mentos que mais se destacam no discurso literário-mu-
na obra, em uma analogia à transformação das imagens sical são: o sentimento “saudade”, denotado pelo título
visuais do poema. da canção; a contraposição das imagens visuais da “noite
escura” e da “noite de luar”, a mudança da harmonia sus-
A canção nos apresenta uma cor predominantemen- pensa da primeira seção para o modo menor da segunda
te escura, como já foi observado através dos “modos seção; o motivo anacrústico repetitivo e a sinuosidade da
de luz”. Surgem, entretanto, lampejos de outras co- linha do canto.
res, pelo uso de elementos tais como: o acorde dis-
sonante sob a palavra “morte”, o salto de trítono na IV. 7. Modos de significação
sonoridade aberta da palavra “chorar” em registro Os modos de significação referem-se à organização
agudo da linha do canto e o acorde perfeito maior lógica dos signos, em suas relações com os “interpre-
na palavra “luar”. tantes”, no processo da semiose. Em virtude de sua na-
tureza mais concreta ou mais abstrata e dos códigos
IV. 5. Modos de intensidade utilizados em cada obra, os signos podem ser interpre-
Os modos de intensidade relacionam-se com a dinâmi- tados de forma direta ou indireta, implícita ou explí-
ca, a agógica e a densidade apresentada por diversos cita, semiótica estrita positivista ou semiótica aberta
elementos do discurso. A dinâmica refere-se à variação no sentido infinito dos interpretantes possíveis (REIS,
de intensidade, alternando-se entre o forte e o fraco. A 2001, p.230).

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PÁDUA, M. P.; BORGHOFF, M. M. Imagens na canção A saudade Op. 11... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 47-54

Neste estudo optamos por realizar uma interpretação Consolo, entretanto, não todo para estes sentimentos
semiótica aberta, atribuindo significações diversas aos expressados de forma pungente, muitas vezes dramá-
elementos literário-musicais da canção. Na canção A tica, onírica, mas sempre carregada de dúvidas e re-
saudade, atribuímos às imagens de estaticidade, ten- ticências, que se traduzem em sua música nos efeitos
são e sombra a idéia da dor. Os elementos cíclicos e de sombra, nas tonalidades escuras, nas resoluções
repetitivos nos traduzem imagens ligadas ao próprio suspensas, nos silêncios, na ambigüidade harmônica e
movimento corporal existente na atitude de “chorar”. na irregularidade métrica.
Estas imagens nos remetem a uma difícil tentativa de
libertação de uma situação dolorosa. O “pranto” se co- Sua escolha de poemas revela sua atração pelas imagens
loca como elemento capaz de transfigurar a morte. A do céu, principalmente as imagens noturnas. Noite cheia
melodia do canto, metáfora do pranto, carrega a esta- de estrelas, Serenata, Noite de junho, Canção ao luar, No-
ticidade tensa da harmonia, mas possui movimentos no turno, Dentro da noite, Vesperal e Aveludados sonhos são
plano vertical, transitando entre as idéias da morte e da apenas alguns exemplos de canções com esta temática.
libertação. As imagens de luz e a resolução harmônica Já em A saudade, uma de suas primeiras canções para
em tom menor efetuam a transformação da “noite es- canto e piano, podemos fazer analogias entre as imagens
cura” numa “noite de luar”. do céu e as imagens sonoras de sua música.

O sentimento “saudade” é expresso de forma intensa A imagem do céu possui desde sempre valor simbólico
nesta canção, que potencializa seu caráter ambíguo de intenso. Primeira tela que se ofereceu aos olhos dos
ser ao mesmo tempo dor e consolo. A ambigüidade do homens, o céu estrelado foi um dos primeiros mode-
poema é reiterada na canção pela ambigüidade harmô- los de escrita em tradições arcaicas.9 Ler o céu é como
nica, pela tensão dialética entre estaticidade e movi- decifrar um texto. Escrever pode ser a tarefa de trans-
mento, e pelo jogo de dinâmica e cores, que confere formar os enigmas do céu em poesia. Diante destas
grande intensidade de expressão às frases melódicas e imagens cabe a quem vê ou imagina fazer analogias
grande dramaticidade às palavras do poema. O longo com suas próprias paisagens interiores. A imaginação
gesto de tensão e resolução que se percebe durante a se liberta e o processo de significação liga estas pai-
canção nos remete à idéia poética da transformação. A sagens com sentimentos experimentados, num pro-
finalização da canção conota calma e consolo advindos cesso de semiose em cadeias.
do sofrimento que, se não resolve a dúvida e a incerteza
da morte, pelo menos a transforma, ameniza, conferin- A associação de imagens é um dos elementos mais ca-
do-lhe claridade e beleza. racterísticos da poesia. Na canção, também entendida
como forma poética, as associações das imagens no-
V. Algumas conclusões turnas com os estados interiores do “eu poético” nos
Lorenzo Fernandez musicou mais de 40 poemas. O remetem às associações dinâmicas de vários eventos
compositor praticamente não repetiu poetas, talvez temporais realizados pela memória. Estas associações
porque estivesse atrás de uma temática que de certa por sua vez, permitem uma grande variedade de possi-
forma se encontra presente em todos os poemas que bilidades de sentido. Na canção A saudade, a narrativa
musicou: a temática da transformação, da transito- poética e musical se apropria dos momentos subjeti-
riedade da vida, da ambigüidade dos sentimentos e vos do ser humano com suas imagens de dor, de mor-
do canto como fonte, como alimento, como redenção, te, de transfiguração, de luz e sombra, de pranto e de
como consolo. Canto que se confunde com o pran- consolo.
to de tal forma que não se pode mais distingui-los.

9
Constatação de Anne-Marie Christin, a partir de citação de François Jullien, em “À l’origine de la notion chinoise de littérature”, Extreme-Orient-
Extrême-Occident, n.3, 1983, p.48 (CHRISTIN, 2004, p.291).

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PÁDUA, M. P.; BORGHOFF, M. M. Imagens na canção A saudade Op. 11... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 47-54

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ra. In: Per Musi: Revista de Performance Musical, V.8. Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, 2003.
CHRISTIN, Anne-Marie. Da imagem à escrita. In: SÜSSEKIND, Flora; DIAS, Tânia, orgs. Historiografia literária e as técnicas
de escrita: do manuscrito ao hipertexto. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa: Vieira & Lent, 2004.
DAMASIO, António. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
FERNANDEZ, Lorenzo. A Saudade Op.1. São Paulo: Irmãos Vitale, 1961.(partitura)
GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons e ritmo. São Paulo: Ática, 1989
LA RUE, Jan. Guidelines for style analysis. New York: W.W. Norton & Company, Inc., 1970.
NATTIEZ, Jean-Jacques. O modelo tripartite de semiologia musical: o exemplo de La Cathédrale Engloutie de Debussy. Tra-
dução de Luiz Paulo Sampaio. In: Debates, V.6. Rio de Janeiro: Centro de Letras e Artes da UNIRIO, 2002.
RAMOS, Maria Luiza. Fenomenologia da obra literária. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1974.
REIS, Sandra Loureiro de Freitas. A linguagem oculta da arte impressionista: tradução intersemiótica e percepção criadora
na literatura, música e pintura. Belo Horizonte: Mãos Unidas Edições Pedagógicas Ltda, 2001.
_______ Essais sur l’art: musicologie, sémiologie et philosophie. Belo Horizonte: Mãos Unidas, 2004.
SANTAELLA, Lúcia; NÖTH, Winfried. Imagem: cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 2001.

Mônica Pedrosa de Pádua é Professora Assistente de Canto na Escola de Música da UFMG. Bacharelou-se em Canto
nesta escola e obteve Mestrado em Canto na Manhattan School of Music em Nova York. Doutoranda em Literatura Com-
parada na Faculdade de Letras da UFMG. Membro do Grupo de Pesquisa “Resgate da Canção Brasileira”.

Margarida Borghoff é Professora Adjunta de Piano e Música de Câmara na Escola de Música da UFMG. Realizou Bacha-
relado em Piano e Música de Câmara na Escola Superior de Música de Freigurg i. Breisgau, e Mestrado e Doutorado em
Acompanhamento de Canções (Liedgestaltung) na Escola Superior de Música de Karlsruhe, Alemanha. Coordenadora do
Grupo de Pesquisa “Resgate da Canção Brasileira”.

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REIS, C. M. D. R.; CAMPOS, M. D. Entre o poema e a partitura:... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 55-66

Entre o poema e a partitura:


A Valsa, de Casimiro de Abreu
Célia Maria Domingues da Rocha Reis (ICLMA/UFMT, Pontal do Araguaia)
celiadr@uol.com.br

Marco Donisete de Campos (ICLMA/UFMT, Pontal do Araguaia)


mcampos@ufmt.br

Resumo: Nesse artigo estudamos algumas relações entre música e poesia, por meio da proposta feita por
Mário Ferraro ao musicar o poema lírico-amoroso A Valsa, de Casimiro de Abreu, criando, a partir dele,
uma obra homônima para coro misto a cappella.
Palavras-chave: Música e poesia, Casimiro de Abreu, Mário Ferraro, A valsa, música coral a cappella

Between the poem and the score: A Valsa by Casimiro de Abreu

Abstract: This article presents a study about some of the relationships between music and poetry, focusing on the lyri-
cal poem A Valsa, by Casimiro de Abreu, and its setting for mixed choir a cappella composed by Mário Ferraro.
Keywords: Music and poetry, Casimiro de Abreu, Mário Ferraro, A valsa, mixed choir.

1. Tecendo redes Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro.[...]. Olho


As artes, ainda que com variadas formas de expressão, essa jarra, essas flores, e escuto um rumor de vida o
apresentam uma consangüinidade: os artistas colhem sua sinal obscuro de uma memória de origens. [...]. Tento,
substância na realidade externa a si e em seus sentimen- há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das idéias
tos, e os expressam fazendo uso de determinados proce- solidificadas, a espessura dos hábitos, que me cons-
dimentos e materiais consoante a sua habilidade natural. trange e tranqüiliza. Tento descobrir a face última
Esses são expedientes geradores e materializadores da das coisas e ler aí minha verdade perfeita (Vergílio
visão de mundo deles, como podemos observar pela fe- FERREIRA, 1983, p.9).
cundidade de alguns depoimentos em verso e prosa:
Fica por conta do receptor, a partir daí, a percepção dessa re-
-no ato
ciprocidade como, por exemplo, no-la apresentou Baudelaire:
do exato
leitura do tato […]
ou Como ecos longos que à distância se matizam
visão do um-a-um Numa vertiginosa e lúgubre unidade,
onde o múltiplo se afunda Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade,
Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam.
[...]
o-de-fora-do-por-dentro Há aromas frescos como a carne dos infantes,
anunciando seu ímpeto (Silva FREIRE, Doces como o oboé, verdes como a campina,
“Os oleiros”, 1999, p.37). E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes,

Dançam as mãos: apressadas ou lentas. Como a fluidez daquilo que jamais termina,
Como o almíscar, o incenso e as resinas do
Sobre a superfície do fazer, expõem a máscara
Oriente,
da seiva que recolhem
Que a glória exaltam dos sentidos e da mente.
das profundezas do contato (Marilza RIBEIRO,
“A dança das mãos”, 1997, p.13).
(“Correspondências”, Flores do mal, BAUDELAI
RE, 1857, p.109).

1
No artigo “Ritmo e sintaxe”, publicado no livro Teoria da Literatura. Formalistas Russos (1971), Ossip Brick discute isso, dizendo que “o movimento
rítmico é anterior ao verso. Não podemos compreender o ritmo a partir da linha do verso: ao contrário, compreender-se-á o verso a partir do
movimento rítmico” (p.132 ).
2
Mestre em Composição pela Escola de Música da UFRJ.
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.15, 94 p., jan - jun, 2007 Recebido em: 23/09/2006 - Aprovado em: 04/03/2007
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REIS, C. M. D. R.; CAMPOS, M. D. Entre o poema e a partitura:... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 55-66

Por meio de muitas sinestesias, o poeta francês aproxima É a aproximação dessas duas linguagens pelo viés do rit-
realidades distintas. Os sons ganham cores (se matizam). mo, aqui compreendido em seu sentido estrutural e se-
Os odores, além das cores (são verdes como a campina), mântico, que constituirá o objeto do presente estudo, uma
são visualizados pela materialidade do paladar (doces), tentativa de retomada histórica da unidade original entre
comparados a instrumentos musicais (oboé), por exten- a música e a poesia, buscando nelas aquilo que é propria-
são, a sons, e também são sentidos como uma condição mente artístico segundo os procedimentos apresentados
climática (frescos). É o triunfo, aproveitando a palavra do em suas composições, que, por sua vez, tendo sido produ-
poeta, dos mecanismos sensoriais perante os três estados zidas em determinado contexto cultural, revelam circuns-
da matéria, o sólido, o líquido e o gasoso. Baudelaire faz tâncias sociais, relações humanas, modismos estéticos.
tudo isso criando poesia. E música, pois à parte o fato de
se tratar de uma tradução, esse soneto traz uma regula- Para nossas reflexões, tomaremos como base o poema “A
ridade sonora – versos em métrica alexandrina, rimas in- Valsa”, que integra a lírica amorosa do poeta romântico
terpoladas e cruzadas, assonância em i, e outros recursos Casimiro José Marques de Abreu (1839-1860), e a com-
como inversões sintáticas com elementos em gradação, posição que resultou da musicalização desse poema com
imagens cambiantes, que caracterizam um ritmo muito designação homônima, para coro misto à capela (sem
particular, de grande efeito estético. acompanhamento instrumental), de Mário Ferraro2.

Se for possível falar em parentesco entre as artes, o ritmo 2 - Música e poesia


é o elemento afim da construção artística – é a alternân- São longínquas as relações entre essas manifestações
cia, a motilidade, a periodicidade que, por sua vez, é um artísticas. Diz Salvatore D’Onofrio (1990, p.58) que “os
princípio inerente à natureza, à pessoa humana e a tudo o gregos da época clássica chamavam “mélica” (de melos,
que a circunda. Desse modo colocado, pode-se dizer que “canto”, “melodia”) a poesia acompanhada de um instru-
o ritmo pré-existe1 à realização das artes: mento musical, lira, cítara, aulos ou flauta, podendo ser
Si aceptamos la suposición de que el hombre primitivo entoada por uma única pessoa, “monódica”, ou por várias
descubrió el sonido, que más tarde lamaríamos musical pessoas, “coral”. Posteriormente, pelo fato de ser seguida
[...] creemos mucho más probable que descubriera antes por instrumentos de corda, preferencialmente a lira, essa
la sensación del ritmo, porque el ritmo es un elemento poesia ficou conhecida como “lírica”, substituindo a pa-
básico, no sólo en la Música, sino en todas las manifes- lavra “mélica”, para fazer referência a poemas curtos, por
taciones de la vida. El ritmo está presente en el universo meio dos quais os poetas manifestavam seus sentimentos
– por el movimiento de los astros, la periodicidad de las (D’ONOFRIO, 1995-2, p.56-7).
estaciones (...). Está presente en el hombre, por su pulso,
su movimiento al andar, sus actitudes, sus reacciones, su A separação entre a música e a poesia ocorreu com a
orden en el hablar... El ritmo [...] ejerce en nosotros un superação da lírica trovadoresca, no final do século XIV
grande poder de atracción, y que atua tanto sobre nuestro (MOISÉS, 1983, p.46), passando a última, paulatinamen-
espiritu, como sobre nuestros nervios, nuestros sentidos, y te, à leitura individual ou à declamação. O caráter rítmico
nuestros instintos. [...] El ritmo es “el orden y la proporción dos versos foi sendo procurado nas próprias possibilidades
en el espacio y en el tiempo”, “la relación entre las partes”. que a palavra oferecia, seu veio sonoro (metro, acento,
Él establece la ordenación de las formas, los colores y los rimas, aliterações, assonâncias, onomatopéias), a manu-
sonidos. (...) La evolución del ritmo en los bailes no popu- tenção dos refrãos, inversões e outros recursos sintáticos,
lares manifiesta la evolución de nuestras costumbres, de a representação gráfica (disposição em versos, estrofes)
nuestro modo de ser, de nuestra manera de sentir, el am- simbólica, as imagens que se repetem, variam e/ou se
biente de cada época (SCHENEIDER, 1957, p. 859-60). opõem, o emprego da metáfora como meio revelador da
“tensão entre o criador e seus objetos”. Tais expedientes
Dentre as manifestações artísticas, as que têm no ritmo conduzem à noção de periodicidade, andamento, veloci-
um elemento propriamente fundador, composicional, dade - a dinâmica do discurso poético -, o seu caráter
são a música e a poesia. Para ilustrar essa assertiva, temporal, com os temas, com o tom afetivo dos versos,
podemos observar nos fragmentos literários, em Freire, as experiências pessoais dos sujeitos líricos determinando
um jogo, por expansão e redução, de sons aliterantes a noção de tempo, opondo entre si o sentimento de per-
em palavras paroxítonas – ato exato tato --, antíteses manência e mudança, movimento e transformação (REIS,
entre o individual e o coletivo em expressões compostas 2001, p.20-1). No conjunto, resultam no amálgama da
- um-a-um/múltiplo, o interno e o externo, o-de-fora- melodia da linguagem e das idéias, de onde brota a emo-
do-por-dentro; em Marilza, na velocidade do movimen- ção e se faz a exposição subjetiva da interioridade.
to determinada pelo impulso interior do eu na criação
– apressadas ou lentas, em nível de exteriorização – su- Em termos semelhantes, na música, o ritmo pode ser con-
perfície -, e recolha – das profundezas; em Vergílio, o siderado sob o aspecto ordenador e formal, ou simples-
trânsito entre passado/presente, o olho que passeia de mente forma - a relação entre temas, períodos, processos
um ponto a outro determinando gradações, paradoxos tonais, processos expressivos e, segundo o ponto de vista
– constrange e tranqüiliza. dinâmico, de movimento, de palpitação, ou seja, a ordem
em que estão dispostas as divisões do tempo no compas-

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REIS, C. M. D. R.; CAMPOS, M. D. Entre o poema e a partitura:... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 55-66

so. Há ainda a harmonia, criada pela simultaneidade de que podríamos llamar circular”. A valsa foi adquirindo
vários sons. A música se constitui pela sucessão – melo- formas diversas, adequadas ao gosto dos países que a
dia, no sentido horizontal, e pela simultaneidade – har- importaram.
monia, no sentido vertical. A simultaneidade consiste nos
acordes. (SCHENEIDER, 1957, p.860). De acordo com VASCONCELOS (1978), a valsa aportou em
nossas terras em 1808, acompanhada pela família real
Assim colocadas, música e poesia são manifestações que portuguesa; em 1833, no Jornal do Comércio do Rio de
vivem do som, do seu articulado na expressão do senti- Janeiro, os editores Laemmert & Cia. anunciavam valsas
mento humano. O escritor-poeta mato-grossense Ricardo do compositor austríaco Henri Herz (1803-1888), mas
Guilherme Dicke, em seu romance Cerimônias do esque- considera-se o lançamento da Coleção de valsas do com-
cimento (1995), dá a essa vivência um caráter inaugural - positor Cândido Inácio da Silva, editadas por Pierre Lafor-
A vibração do som faz nascer tudo. Deus falando sozinho ge no Rio de Janeiro, em 1837, o marco introdutório da
antes da Criação, tocando seus instrumentos (p.69). valsa no Brasil. Aqui chegando,
Em contato com nossa modinha imperial, a valsa recebeu
No âmbito da variabilidade da produção musical e poé- a aderência de suas técnicas, mantendo, contudo sua pe-
tica, independentes ou com relações entre si, seus cami- riodicidade rítmica original, fixando os compassos ¾. [...].
nhos podem se cruzar de modo consolidado no terreno A valsa de timbre aristocrático [...] possuía uma modula-
das formas usualmente denominadas poéticas, a madri- ção central (a melodia, na primeira parte passava do tom
gal, o rondó, a balada, a cantiga, ou das formas classifi- principal para o da dominante, retornando e concluindo
cadas como musicais, a canção, a ópera, o musical, a mo- na tônica, na segunda parte). Esse modelo se evapora na
dinha, a valsa. É a essa última, como forma híbrida, que apropriação popular da música de dança: sua melodia re-
nos reportaremos no presente estudo, na qual os versos fere-se a uma tonalidade, aceitando, de vez em quando,
recebem outra roupagem, a sutil coordenação de vogais tensões modulantes mais livres. As insinuações da mo-
e consoantes com sons definidos musicalmente, “efeitos dinha, a adulteração de seu andamento inicial, criaram,
de linguagem laborados interfacialmente com as signifi- entre nós, condições para a adequação da valsa ao canto,
cações humanas” (REIS, 2001, p.13). gerando a valsa-canção (VASCONCELOS, 1978, p.4).

3 - A Valsa, de Casimiro de Abreu: leituras Pouco tempo depois, os acordes da valsa e seus rodopios
Ninguém há que aprecie mais as mulheres do que nós; mas haviam conquistado definitivamente o seu espaço, fazen-
aqui é difícil vê-las juntas sem fazê-las dançar e dançar do-se presentes nos mais variados eventos, misturando-
com elas. Uma só que seja, podemos dizer-lhe coisas bo- se com nossos bailes, e promovendo outros acréscimos
nitas, enquanto não ouvirmos uma valsa; em ouvindo a culturais, como o vocabular, a exemplo da expressão “pé-
valsa, deitamos-lhe o braço à roda da cintura e fazemos de-valsa” indicando o dançarino “galante, exímio, irresis-
dois ou três giros (Machado de Assis, apud VASCONCELOS, tível”, (VASCONCELOS,1978, p.2).
1978, p.2).
3.1 - Do poema
Embora se tenha notícia da valsa como gênero desde o Segundo BOSI (1983, p.127), Casimiro se singulariza pelo
século XV, ligada à história das danças alemãs deutsche “modo de compor, que remonta, em última análise, ao
e länder, ela teve ampla aceitação européia no início do seu modo de conhecer a realidade na linguagem e pela
século XIX, como uma das danças de salão mais valo- linguagem” (grifo do autor), apresentando em seus versos
rizadas no Ocidente, mesmo tendo em vista as muitas um “tom lânguido”, com “motivos [que] se diluem ao em-
oposições feitas, algumas bastante curiosas, como a dos balo das rimas, jogos de sons, repetições, frases curtas e
médicos, que achavam prejudicial a velocidade com que diretas, pleonasmos”, e resultam em “um ritmo cantante,
os dançarinos rodopiavam pelo salão e também objeções uma expressão fácil, uma palavra brejeira” (1983, p.127 e
morais, pois foi o primeiro gênero que se dançou estan- 128). Esse “ritmo cantante” ou “estilo cantante” será vis-
do os pares enlaçados, em abraço muito estreito (SADIE, to com mais detença, mas de antemão é possível inferir
1994, p.977). acerca da habilidade de versejador de Casimiro, que o fez
render-se ao gosto do público pouco erudito que, à sua
Marius SCHENEIDER (1957, p.859) tenta explicar a recep- época, reunia-se nos salões aristocráticos para participa-
tividade das valsas contextualizando-as, afirmando que rem dos saraus. Conforme AGUIAR (1993, p.15), em uma
“la evolución del ritmo en los bailes no populares ma- cultura marcadamente oral como a nossa, “poesia e mú-
nifiesta la evolución de nuestras costumbres, de nuestro sica sempre andaram juntas. [...]. Devido a esse aspecto, a
modo de ser, de nuestra manera de sentir, el ambiente de poesia romântica não pôde prescindir da música: Castro
cada época”. Segundo ele, a situação daquela época, dos Alves, [...], Casimiro de Abreu fizeram muitos poemas para
idos de 1850, a vida “plácida e tranquila” [em relação à serem divulgados através de serenatas”.
agitação da vida moderna com a qual faz um paralelo],
tornava possível a predominância de um compasso ter- O poema A valsa é composto por 155 versos breves,
nário, “el cual, por tener una parte fuerte y dos débiles, com métrica dissilábica e acento regular, divididos em
produce esta sensación tranqüila y acariciante del ritmo estrofes combinadas, cinco de vinte versos cada uma,

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REIS, C. M. D. R.; CAMPOS, M. D. Entre o poema e a partitura:... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 55-66

alternadas com um refrão de onze versos que se repete não apenas uma vez, mas em refrão, repetindo-se no per-
cinco vezes, disposição que visualmente os fazem pare- curso temporal demarcado nos versos – o desejo de que
cer acordes: a amada sinta o ciúme que ele, intensamente – “louco”
Tu, ontem, -, sentiu, por ela ter valsado com outro no dia anterior, e
Na dança denuncia a traição com o imperativo negativo, de acusa-
Que cansa, ção, e afirmativo, de ter testemunhado o fato, em discur-
Voavas so direto exclamativo – “não negues, / não mintas/ - Eu
Co’as faces vi!...”. A repetição mostra o crescente desespero do eu líri-
Em rosas co, cuja situação não se resolve, o que já estava previsto
Formosas pelo uso da subordinada volitiva “quem dera/que sintas/
De vivo, as dores/de amores”. O refrão aparece alternado com as
Lascivo estrofes, que apresentam sinedoquicamente o eu femini-
Carmin; no, o “tu”, suas faces, cabelos, colo, olhos, boca (sorriso),
Na valsa, lábios, com uma beleza pintada em cores românticas e,
Corrias, por isso, divina, fluida - “voavas”:
Fugias Valsavas:
Ardente, - Teus belos
Contente, Cabelos
Tranqüila, Já soltos
Serena, Revoltos,
Sem pena Saltavam,
De mim! Voavam,
Brincavam
Quem dera No colo
que sintas Que é meu;
as dores E os olhos
de amores Escuros
que louco Tão puros,
senti! Os olhos
Quem dera Perjuros
Que sintas. Volvias,
- Não negues, Tremias,
Não mintas... Sorrias
Eu vi!... Pr’á outro
Não eu!
O título em si é elucidativo e referencial ao assunto tra-
tado no poema, uma composição musical e um tipo de A primeira estrofe traz a situação temporal, “ontem”, só-
dança específicos. É comum na literatura brasileira essa cio-espacial, “na dança” – expressão que se alarga para
ocorrência em relação aos títulos. Temos, por exemplo, indicar a ação vivida pelos sujeitos. O verbo imperfeito
“Quadrilha”, do Drummond (1979), “Canção do exílio”, de “voavas” é uma prolepse, uma antecipação da fala enciu-
Gonçalves Dias (1952), “Ladainha”, de Cassiano Ricardo mada do eu masculino para dizer que há um distancia-
(1972), ou, em outros casos, como os poemas do livro Ou mento na relação amorosa. O tom acusativo se mantém
isto ou aquilo (1987), de Cecília Meireles, transformados em todos os versos revelando-se, inclusive, de modo im-
na Suíte Coral nº5, pelo compositor paulista Osvaldo La- pressionista no qualificativo das “faces” do eu “lascivo/
cerda. carmim”.

Há uma freqüência considerável de rimas as mais varia- O eu masculino vai reconhecendo o desabrochar de uma
das, toantes, consoantes, assonantes e aliterações que “donzela”, não para ele, mas para outro/outros, o que faz
não obedecem a nenhum esquema fixo. Mas elas, em aumentar a sua beleza e a sensualidade e a intensidade
conjunto com os versos curtos, que acentuam o ritmo, e da paixão, expressas em fartas enumerações de verbos,
as demais alternâncias, sobretudo a métrica e o acento adjetivos, substantivos, num percurso similar em cada es-
sugerindo uma leitura em compasso ternário, causam um trofe: o eu apresenta a jovem mulher – “faces/em rosas/
deslizamento na leitura. Percebe-se então que há uma formosas”, “eras bela/donzela”; afirma a traição – “tão
relação motivada da forma com o conteúdo do poema – a falsa/corrias/fugias”, “os olhos perjuros”, e fala do des-
imagem coreográfica e o tempo da valsa. prezo manifesto em relação a ele – “sem pena/de mim”,
“sorrias/p’ra outro/não eu”.
Dois motivos guiam a “melodia” do poema: a 2ª pessoa, o
“tu”, que está em movimento e a 1ª, um eu lírico estático O poema se encerra cumprindo o que foi vaticinado no
e lastimoso, voz centralizadora, cujo conflito é colocado início (3º verso da 1ª estofe), “Tu, ontem, /na dança/que

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REIS, C. M. D. R.; CAMPOS, M. D. Entre o poema e a partitura:... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 55-66

cansa”. Esse “tu” resta “prostrada”, pelos excessos da dan- ta na tonalidade de sol maior. Quanto ao andamento, a
ça, com um comparativo – “qual pálida rosa/caída/sem peça divide-se em quatro níveis: “calmamente” (= ada-
vida/ no chão”, uma desqualificação do eu feminino, que gio): compassos 1-36; “dançando mais rápido” (1ª vez) (=
jaz sem valor, após ter desrespeitado a si mesma num mo- allegro): compassos 37-88; “dançando mais rápido” (2ª
vimento exaustivo e ficado com outros, preterindo aquele vez) (= vivace): compassos 37-88; “mais lento” (= mode-
que lhe dedicava tão grande sentimento, segundo a visão rato): compassos 89-102.
dominadora e ferida do eu masculino.
Há ainda indicações de alterações de andamento: rall.
Os versos trazem um código de época, de conduta con- molto (compassos 34; 117) e rall. (compassos 82; 102),
vencionada para o masculino e o feminino – o homem que indicam uma redução da velocidade do andamento
deve tomar a iniciativa, exteriorizando suas emoções. A da execução, tornando-o mais lento.
mulher deve ser mais comedida, recatada, a idéia do ativo
e do passivo. É um comportamento e um estilo importados De acordo com SADIE (1994, p.29), o andamento pode
da Europa e que se coloca no âmbito do “mundo-valsa”. sugerir a atmosfera emocional em que a obra deve
O poema, então, mantém uma fidelidade em relação aos ser executada. Na composição coral em estudo, as
parâmetros culturais de sua origem. No entanto, apre- indicações de andamento propostas pelo compositor
senta o protótipo da mulher européia que, trazida para os apresentam uma constante aceleração culminando
trópicos, exacerba-se – é a que ousa. com um término quase súbito, sugerindo a trajetória
emocional do eu lírico masculino que vai descreven-
3.2 - Da música do a cena em que vê a amada valsando no baile. Tal
Segundo ROCHA (2004, p.77-78), ao analisar uma obra disposição dos andamentos tende a nos envolver, em
musical, parte-se sempre das grandes estruturas para as ritmo ascendente, no conflito vivido pelo par, expresso
menores, fazendo-se importante um estudo da forma e por um diálogo vivo e caloroso entre naipes masculi-
da mensagem do texto composicional em si, uma “matu- nos, tenores e baixos, – o amante ­–, e femininos, so-
ração”, para perceber suas dinâmicas (blocos temáticos, pranos e contraltos, – a amada. Também o fragmento
expressões de andamento e de intensidade, entre outros), dos compassos 1-3 e 4-6 (Figs.1 e 2) produz um mo-
seguindo-se com uma análise harmônico-funcional. Im- vimento melódico ascendente e em graus conjuntos,
porta rastrear e descobrir a linguagem e a sintaxe musical contribuindo para que haja tal envolvimento em vir-
da obra, a fim de entender o pensamento que está ali por tude da tensão criada.
trás, o que vai custar ao estudioso.
Na divisão do texto para os quatro naipes vocais, des-
Todo um trabalho de cultivo, com infinitas repetições (...)
taca-se a entrada dos naipes femininos em relação aos
até que intérprete, instrumento e obra se tornem uma coisa
masculinos (compassos 1 a 5). Enquanto os primeiros dão
só, liberando expressão com calor, cor e perfume próprios
início ao tema já no primeiro compasso, os demais, suge-
- se é que tal metáfora dá conta do que se quer dizer.
rindo como que o início da dança, entram apenas no ter-
ceiro tempo do compasso 2 (tenores) e no terceiro tempo
A peça coral A Valsa, de Mário Ferraro, possui 102 com-
do compasso 5 (baixos):
passos ternários (sendo iniciada em anacruse) e foi escri-

Fig.1: A Valsa, de Mário Ferraro, compassos 1-5

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Na composição, foram acrescentadas interjeições, não vocação, conquista e coquetismo. Por exemplo, no com-
existentes no poema original, classe de palavras que ex- passo 10 (Fig.2), a interjeição “uh” vem em resposta à fala
pressam estados emotivos, favorecendo o clima de pro- masculina co’as faces em rosas, formosas:

Fig.2: Compassos 6-11

No compasso 23 (Fig.3), a interjeição “ah” vem em res- melodia (Dó 4) que se sobrepõe, inclusive, à nota aguda
posta ao apelo (compassos 19-21; (Fig.2) e ao clamor do soprano (compassos 23-25; Fig.3 e 4), faz o fechamen-
(compassos 24-25; Fig.4) das vozes masculinas, apresen- to da passagem para o tema final (compassos 101-104;
tando-se, ainda, com outras intenções em cada trecho, Fig.5 e 6 e compassos 106-108; Fig.6) e assinala o cansa-
ora o “ah” é apelativo (compassos 23-24; Fig.3 e 4), ora é ço físico da personagem.
debochante, partindo de uma das notas mais agudas da

Fig.3: A Valsa, c. 18-23

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Fig.4: A Valsa, c. 24-27

Fig.5: A Valsa, c. 99-101

Fig.6: A Valsa, c. 102-107

Como no poema original, o refrão repete-se cinco ve- às vozes masculinas a partir do compasso 26, com a
zes entre os versos, sempre utilizando o mesmo moti- palavra dores, que se alonga pela semínima pontuada,
vo melódico. Nas três primeiras vezes, é iniciado por ressaltando o sentimento do homem em relação à indi-
vozes femininas (compassos 24-29; Fig.7), unindo-se ferença da amada.

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Fig.7: A Valsa, c. 24-29

Na segunda ocorrência do refrão (compassos 72-88), dores (compassos 75-76; Fig.8), por contraltos e te-
a dinâmica é modificada pela repetição da palavra nores.

Fig.8: A Valsa, c. 72-77


Nota-se a presença do adjetivo louco somente na – Quem dera que sintas/ de amores senti, com elip-
frase das vozes masculinas (compassos 30, Fig.9; se do adjetivo louco, o que acentua a dependência
compasso 78, Fig.10 e compasso 114, Fig.11), ao emocional do eu lírico masculino em relação ao fe-
passo que as vozes femininas colocam a situação minino.

Fig.9: A Valsa, c. 30-32 Fig.10: A Valsa, c. 78-80

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Em obediência a esse princípio, somente os naipes mas-


culinos fazem o galanteio (compassos 6 a 11). Nos com-
passos 8 a 11 (Fig.2), o adjetivo formosas aparece somen-
te na letra do tenor e do baixo, enquanto que sopranos
e contraltos estão em silêncio (compasso 9). A dama se
cala para ouvir o elogio do cavalheiro. No momento em
que o tenor termina a palavra formosas, o baixo a repe-
te (compasso 8), quase que como um reforço. E, como é
convencional após qualquer elogio, os naipes femininos
respondem com a interjeição “uh” (compassos 10 e 11).

Na composição coral, a fala masculina, presente na linha


do tenor, não admite a traição. Após o início do verso
“Eu...” (compassos 36-40; Fig.12), ocorre uma simulação
em que o tenor imediatamente começa a emitir as sílabas
Fig.11: A Valsa, c. 114-116 “pa-pa-pa”, com reticências (compassos 37-40). O baixo

Fig.12: A Valsa, c. 36-41

fala o restante do verso Eu vi, pronunciando o verbo em ½ anterior e com aqueles que a música oferece, Fer-
tempo seguido de “lá, lá...”, também simulado, o que con- raro acentua uma situação de contenda e sinaliza
trasta com a soprano, cujo verbo “vi” é alongado por 12 convenções que no poema estavam apenas suge-
tempos (compassos 37-40). O homem não pode falar por ridas, como a retomada de um lugar feminino em
si, por isso dá voz à mulher (compassos 36-40; Fig.12). obediência à ética das relações sócio-culturais e da
Laborando com os recursos poéticos vistos no item produção literária romântica. Nesse senso, é domi-

Fig.13: A Valsa, c. 54-59

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Fig.14: A Valsa, c. 60-65

nante em toda a peça a expressão de uma possível nele emoções as mais fecundas e inconscientes, impossí-
triangulação amorosa, com idealização do feminino, veis de serem verbalizadas.
na qual se percebe um confronto entre os persona-
gens em que a mulher assume a postura de defesa. Tal profundidade e instantaneidade não ocorrem com a
leitura de um poema, a não ser que o leitor seja experien-
Numa derradeira amostra, isso pode ser evidenciado nos te. Não desconsideramos exceções como a de uma pessoa
compassos 54-65, onde a expressão teus olhos escuros, que, não sendo freqüentadora de versos, de repente, ao
tão puros (compassos 56-60; Fig.13 e 14) presente na li- ouvir uma declamação, renda-se ao signo poético. O poe-
nha dos sopranos, é completada pela fala do tenor teus ma, pela sua linguagem hermética, metafórica, necessita
olhos perjuros volvias. Esse jogo dialógico confere dina- de um cultivo, de um exercício de contemplação para al-
mismo à peça, cria um cenário propício ao desenvolvi- cançar a alma do leitor. Perante a variabilidade do senti-
mento da “trama” e ao desdobramento dos personagens. mento humano, o poeta, intentando transcender o “inco-
municável”, é pródigo na busca de palavras. A dificuldade
de achar a palavra que enforme a emoção é o seu maior
4 - Algumas considerações obstáculo, como revela Carlos Drummond de ANDRADE
Mas como é que duas artes se encontram para a realiza- (1979, p.147), colocando-se como “O Lutador”, mote que
ção de uma obra mais perfeita? Há um equilíbrio natural nomeia um seu poema, no qual revela o ofício: “Lutar
entre essas duas artes ou esse equilíbrio nunca chega ver- com palavras/ é a luta mais vã. / Entanto lutamos/ mal
dadeiramente a conseguir-se? rompe a manhã. / São muitas. Eu pouco. /[...]/Mas lúcido
(Hugo von Hoffmannsthal, apud POMBO, 2001, p.40) e frio, /apareço e tento/apanhar algumas/para meu sus-
tento/num dia de vida”. Ou como Octavio PAZ, em O Arco
José Geraldo de SOUZA (2005, p.46) comenta que é pos- e a lira, que foi capaz de escrever crítica literária fazendo
sível “analisar o ritmo musical de modo autônomo, sob a poesia. Em outras palavras, compor páginas sinestésicas
faceta do fator emocional”. Também que “as fórmulas rít- inteiras falando de poesia e poema:
micas apresentam uma organização temática, podendo
suscitar sentimentos particularizados, como os de admira- A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono.
ção, satisfação, prazer e júbilo; de atenção, tensão e con- Operação capaz de transformar o mundo, a atividade po-
trição; de fé, esperança e amor”. Por outro lado, reconhece ética é revolucionária por natureza; exercício espiritual,
“que a música não pode, por si só, traduzir sentimentos é um método de libertação interior. A poesia revela este
definidos ou paixões, mas que, por meio de movimentos mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento maldito [...]
físicos, químicos, fisiológicos e emotivos, que em nós ela Obediência às regras: criação de outras [...] Regresso à
provoca, pode ‘exprimir o inexprimível’ e ‘comunicar o in- infância, coito, nostalgia do paraíso, do inferno, do limbo.
comunicável”. [...] Visão, música, símbolo. Analogia: o poema é um ca-
racol onde ressoa a música do mundo, e métricas e rimas
A dificuldade de definição obriga o autor a optar pela são apenas correspondências, ecos, da harmonia univer-
negativa e pela generalização em relação ao que a mú- sal. (PAZ, 1982, p.17).
sica desencadeia: o “inexprimível” e o “incomunicável”.
Isso implica em dizer que a música consegue atingir e O autor fala sobre “música” e “harmonia” no poema. Mú-
envolver de imediato a alma do ouvinte despertando sica ela mesma e música como ressonância do existente

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REIS, C. M. D. R.; CAMPOS, M. D. Entre o poema e a partitura:... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 55-66

vertido em palavras nos versos. Não fala em uma e outra, sócio-histórico manifesto por Ferraro na música, que de
mas uma na outra. De algum modo, isso margeia alguma certa forma a contemporaniza, por outro, encontramos
resposta às indagações colocadas na epígrafe, por Hoff- uma motivação artística nas composições, que lhes dão
mannsthal. vivacidade e graça, “calor” e uma dose de malícia.

Poderíamos pensar individualmente sobre as obras: em Em relação a isso, é possível pensar que o compositor
relação à composição coral, ficaria ela condicionada, na não se serve do poema, mas sim da interpretação que
sua interpretação, pela poesia? Quanto ao poema, é clari- faz do poema após a sua leitura. Assenhora-se dele e
ficado pela música ou relegado a um segundo plano? Mas torna-o seu ao transformá-lo em música. O que depois
achamos que essas reflexões empobreceriam as obras e se ouve na canção não é a pessoa do poeta, mas sim a
criariam uma situação de dependência entre ambas como pessoa do compositor. Se há partes que o compositor
se elas, não obstante uma seja fonte de inspiração e ma- não consegue compreender na sua leitura, elas serão
téria da outra, necessitassem dessa inerência para mani- desconsideradas na canção, pois ele não tem condições
festar o respectivo brilho. de fazer uso de algo que não compreende. Um poema
nunca é integralmente assimilado numa composição,
Colocamo-nos na orbe da inspiração de Casimiro de mas incorporado nela, onde continua com vida própria
Abreu e Mário Ferraro, separados por mais de um século, no corpo da música. Esta se apropria do poema com toda
aproximados no ritmo ternário da valsa. Quer pela obser- a sua carga fonética, dramática, sintática e semântica.
vação da estrutura, andamento, expressão, polifonia, es-
trofes, efeitos sonoros, figuras de linguagem que moldam Há, então, na produção de ambas, elementos que as tor-
o sentido, quer por este, os aspectos sócio-emotivos dos nam diferentes entre si garantindo a sua especificidade
sujeitos da instância poética e musical, diferentes faróis de arte; elementos que as tornam semelhantes, mas que
direcionados a um mesmo objeto iluminando-o de ma- denotam alguma distinção; elementos de mesma origem
neiras distintas, a grande questão é tudo isso: o modo que as tornam uma só.
especial de olhar o homem em imagem, em som, em pul-
sação; um lance do imaginário, um desejo, uma dimensão A Poesia habita a música como a música e a harmonia
existencial. E se a criação se deu, como disse Baudelaire, habitam o poema, já vimos com Octavio Paz. Segundo
como resultado de [os] sons, [as] cores e [os] perfumes Giuseppe MAZZINI (1950, p.18), “a música é a fé em um
[que] se harmonizam, e por Rocha (em fragmento citado mundo cuja suprema filosofia é a poesia”. Poesia como um
anteriormente) que, supomos, seja leitor do poeta fran- estado de alma, como a sensibilidade artística na percep-
cês, a partir de “todo um trabalho de cultivo, com infi- ção da beleza das coisas de cada época, de cada situação,
nitas repetições (...), liberando expressão com calor, cor e de cada forma.
perfume próprios”.

Se por um lado, não encontramos um conteúdo denso, da


grande problemática humana no poema, e um tênue fio

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REIS, C. M. D. R.; CAMPOS, M. D. Entre o poema e a partitura:... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 55-66

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VASCONCELOS, Ary. A Valsa Brasileira. In: Nova História da Música Popular Brasileira. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

Célia Maria Domingues da Rocha Reis é Pós-Doutoranda em Literatura Comparada pela USP, Professora do Curso de
Graduação em Letras/IUA/UFMT, em Pontal do Araguaia, e do Programa de Pós-Graduação para o Mestrado/IL/ Cuiabá. 
Estudou piano clássico. Recebeu premiações em concursos literários.  Em sua trajetória profissional tem sempre procura-
do desenvolver projetos buscando interfaces artísticas, sobretudo entre poesia, música e pintura.

Marco Donisete de Campos é Mestre em Engenharia Mecânica pela UNESP/Ilha Solteira, Professor do Curso de Gradu-
ação em Matemática e Informática/IUA/UFMT, em Pontal do Araguaia, Regente do Coral Jubilate Deo, em Barra do Gar-
ças/MT. Foi regente dos corais Canto Maior e Em... Canto. Suas performances como regente e cantor incluem concertos
e recitais em vários estados brasileiros.

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ANDRÉA ALVES et al. Análise do perfil audiológico dos músicos... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 67-71

Análise do perfil audiológico dos


músicos da Orquestra Sinfônica de
Minas Gerais (OSMG)
Andréa Alves Maia (Dep. Saúde da Criança e do Adolescente - UFMG, Belo Horizonte)
andreaalvesmaia@yahoo.com.br
Denise Utsch Gonçalves (Medicina - UFMG, Belo Horizonte)
deniseg@medicina.ufmg.br
Letícia Neiva de Menezes (Fonoaudiologia - UFMG, Belo Horizonte)
leticianeiva@click21.com.br

Brígida Maris Franco Barbosa (Fonoaudiologia -UFMG, Belo Horizonte)


brigidafb@yahoo.com.br

Priscila de Souza Almeida (Centro Auditivo Audibel, Belo Horizonte)


prialmeida82@yahoo.com.br
Luciana Macedo de Resende (Medicina - UFMG, Belo Horizonte)
lucianamacedo@medicina.ufmg.br

Resumo: Mesmo sons considerados “agradáveis”, como aqueles produzidos em música erudita, quando em elevados
níveis de pressão sonora, podem ser prejudiciais à audição. O objetivo do presente estudo foi caracterizar o perfil audi-
ológico dos músicos da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais. Foram avaliados 40 músicos que responderam a ques-
tionário e submeteram-se ao exame de emissão otoacústica e audiometria tonal liminar. De acordo com os achados
deste estudo, constatou-se que a população dos músicos da orquestra estudada constitui um grupo de risco para a
perda auditiva de origem ocupacional.
Palavras chaves: orquestra sinfônica, perda auditiva induzida por ruído, exame de emissões otoacústicas.

Auditory profile of musicians from Minas Gerais Symphony (OSMG)

Abstract: Even sounds considered “enjoyable” such as those produced in classical music can damage the auditory sys-
tem when they are too loud. The objective of this study is to describe the auditory profile of musicians of a symphony
orchestra. We evaluated 40 musicians from Minas Gerais Symphony (Brazil) with a questionnaire, an otoacoustic emis-
sions exam and an audiometry test. The findings show that orchestral musician population is a risk group to auditory
disability related to their professional work.
Keywords: symphony orchestra, occupational noise-induced hearing loss, otoacoustic emissions exam.

1 - Introdução níveis elevados de pressão sonora, PAINEPS, é: “Qualquer


Os músicos estão expostos sistematicamente a elevados alteração dos limiares auditivos do tipo sensorioneural,
níveis de pressão sonora devido às várias horas de ensaios decorrente da exposição ocupacional sistemática a níveis
e à grande freqüência de apresentações. Diante disso, po- elevados de pressão sonora, tendo como características
demos afirmar que os músicos constituem um grupo com principais a irreversibilidade e a progressão gradual com
probabilidade para desenvolver perda auditiva de origem o tempo de exposição ao risco. Sua história natural mos-
ocupacional. Sabe-se que mesmo sons “agradáveis”, como tra, inicialmente, o acometimento dos limiares auditivos
a música, quando em níveis elevados de pressão sonora, em uma ou mais freqüências na faixa de 3kHz a 6kHz. As
podem ser prejudiciais à audição e, consequentemente, à freqüências mais altas e mais baixas poderão levar mais
qualidade de vida. tempo para serem afetadas. Uma vez cessada a exposi-
ção, não haverá progressão da redução auditiva”.
De acordo com o Ministério do Trabalho e Secretaria de Se-
gurança do Trabalho, através da Portaria No 19 de 9/4/98, O ruído torna-se um fator de risco para a perda auditiva
de 22/4/98, a definição de perda auditiva induzida por ocupacional se o nível de pressão sonora e o tempo de
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.15, 94 p., jan - jun, 2007
Recebido em: 23/11/2006 - Aprovado em: 15/03/2007
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MAIA, ANDRÉA ALVES et al. Análise do perfil audiológico dos músicos... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 67-71

exposição ultrapassarem certos limites. A legislação bra- Dos 74 músicos que compunham a orquestra, 68 assina-
sileira, através da Portaria 3.214/78, determina os níveis ram o termo de consentimento pós-informado, e respon-
sonoros de acordo com a duração da exposição ao ruído. deram a um questionário que abrange questões acerca
dos antecedentes e atividades ocupacionais (relativos ou
A susceptibilidade individual tem influência na determi- não à música), histórico otológico, hábitos e observações
nação das perdas auditivas. Esse fato explica o porquê de gerais pertinentes à pesquisa.
alguns músicos apresentarem perdas auditivas mais gra-
ves do que outros, num tempo de exposição semelhante e Dos 68 que participaram da entrevista clínica, 40 (58,82%)
tocando o mesmo tipo de música (Sanelli e Schochat, se submeteram a EOAPD. Previamente ao exame, reali-
2000). zou-se inspeção visual do meato acústico externo, para
verificar presença de obstrução do mesmo, e condição da
As emissões otoacústicas evocadas (EOA) têm sido descri- membrana timpânica. Após esta etapa foram realizadas
tas como úteis na detecção precoce de perdas auditivas, as emissões otoacústicas evocadas por produto de distor-
auxiliando no monitoramento do status auditivo na re- ção, registradas pelo analisador de produto de distorção
gião da cóclea. No entanto, pouco se conhece acerca da AuDX, da marca Biologic.
variação dos níveis de resposta destas emissões, além da
grande variabilidade e susceptibilidade individuais. O protocolo adotado nesta pesquisa para avaliar as EO-
APD incluiu as freqüências de 2000 a 8000 Hz, com va-
Emissão Otoacústica por Produto de Distorção foi defi- lores de níveis de intensidades iguais a 55 e 65 dBNA,
nida como sendo a energia acústica, medida no conduto respectivamente; bem como, relação de freqüência 2 e
auditivo externo, originando-se da cóclea pela interação 1 (f2/f1) igual a 1,22. As respostas de emissões otoa-
não linear de dois tons puros aplicados simultaneamente. cústicas foram analisadas de acordo com os níveis de
Este processo permite avaliar a função coclear com sele- intensidades obtidos em cada freqüência, baseando-se
tividade de freqüências (KEMP, 1997). em f2 e também quanto à relação sinal/ruído. Também
foram classificadas como presentes, parcialmente pre-
O estudo das EOA oferece uma nova possibilidade de se- sentes e ausentes.
rem pesquisadas a fadiga e as alterações auditivas pre-
coces, evidenciando-se uma redução de suas amplitudes Após o exame de EOAPD, os músicos cujos resultados
ou mesmo a ausência de suas respostas, conforme a du- apresentaram alterações foram encaminhados para
ração e a intensidade da exposição ao ruído (Gattaz e avaliação audiológica com exames de timpanometria e
Wazen, 2001). Além disso, alterações na amplitude das pesquisa dos reflexos estapedianos bem como audiome-
EOA por Produto de Distorção (EOAPD) podem preceder tria tonal liminar através do audiômetro de dois canais
alterações audiométricas mais graves, sendo um exame AMPLAID 309 – Clinical Audiometer, equipado com fo-
recomendado para diagnóstico de perdas auditivas pro- nes TDH 49P – Telephonics, e padrão da calibração ANSI
gressivas a fim de que se implementem programas de S3.6/ISO 389. As avaliações foram realizadas antes dos
prevenção das perdas auditivas de origem ocupacional ensaios e os músicos estavam em repouso auditivo de no
(Lopes Filho, Carlos e Redondo, 1995; Gattaz e mínimo 14 horas.
Wazen, 2001).
Os níveis de pressão sonora a que os músicos estavam
O objetivo desse estudo foi descrever o perfil audiométri- expostos nas situações de ensaio e apresentação foram
co de músicos de Orquestra Sinfônica, a partir do estudo mensurados, usando-se, para este fim, um medidor de
das emissões otoacústicas evocadas por produto de dis- nível de pressão sonora, decibelímetro da marca Rádio
torção e da audiometria tonal liminar. Shack manual na escala A (dB(A) NPS), e posicionado a
15 cm do pavilhão auricular dos músicos.
2- Método
O público alvo desse estudo foram 74 músicos da Or- Foram incluídos na amostra todos os integrantes da or-
questra Sinfônica de Minas Gerais, que é uma instituição questra que se dispuseram a realizar os exames e não
estadual e multicultural. A proposta do estudo foi apre- apresentaram, à meatoscopia, alterações de orelha mé-
sentada à gerência e aos músicos em maio de 2002, que dia.
aceitaram e autorizaram a realização do mesmo.
3 - Resultados
Os critérios de exclusão foram a existência precedente de Os 40 músicos submetidos a OEAPD tinham idade varian-
perda auditiva neurossensorial ou mista não provocada do entre 22 e 63 anos, média de 38,60 anos, mediana de
pela exposição a elevados níveis de pressão sonora e a 35,36 anos, sendo 12 do sexo feminino e 28 masculino.
presença de perdas auditivas condutivas já conhecidas Os grupos mais prevalentes da amostra foram músicos
pelos músicos. O critério de inclusão foi ser membro de que tocavam violino (17,5%), violoncelo (15%) e percus-
orquestra há pelo menos 1 ano, e participar regularmente são (15%). O tempo médio de profissão dos músicos era
dos ensaios. de 17,52 anos.

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ANDRÉA ALVES et al. Análise do perfil audiológico dos músicos... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 67-71

Os níveis de pressão sonora (NPS) encontrados durante o por dia, perfazendo uma média de 2,98 horas/dia. Assim,
ensaio da orquestra variaram de 75 a 108 dB. O pico de no total, a média da carga horária da atividades dos mú-
medição de NPS durante o ensaio da orquestra foi de 105 sicos nos seus instrumentos é de 6 horas diárias.
dB para instrumentos de percussão, 95 dB para instru-
mentos de metal e 85 dB para instrumentos de madeira. Entre os músicos da amostra que se submeteram à OE-
APD, 19 (47,5%) relataram ter queixa auditiva. A Fig.1
A duração de ensaio coletivo da Orquestra Sinfônica é de mostra as porcentagens das principais queixas auditivas
3 horas. Já os ensaios individuais variam de 1 a 5 horas referidas pelos músicos.

Fig.1 – Valores percentuais de ocorrência das queixas auditivas relatadas pelos músicos de orquestra

Alterações nas EOAPD foram observadas em 10 (25%) servados na Tab.1, 70% dos indivíduos da amostra apre-
músicos e EOAPD normais nos 30 (75%) restantes. sentaram simetria de resultados entre as orelhas. Na aná-
lise por freqüência, observou-se que a mais acometida
Nos resultados das EOAPD por orelha, que podem ser ob- foi a de 6kHz na orelha direita e 2 kHz,3 kHz e 6 kHz na
orelha esquerda.

Resultado da OEAPD Orelha Direita Orelha Esquerda

Presente 17 (42,5%) 12 (30%)

Parcialmente presente 22 (55%) 28 (70%)

Ausente 1 (2,5%) 0

Tab.1 – Resultado por orelha do exame de Emissão Otoacústica por Produto Distorção dos músicos da Orquestra Sinfônica
de Minas Gerais.

Comparando-se os pacientes com e sem queixa auditiva Na análise do audiograma por orelha, verificou-se que na
em relação à alteração na EOAPD, observou-se que, no orelha direita: 66,6% tiveram resultados dentro do pa-
grupo com queixa auditiva, 73,68% tiveram alteração en- drão de normalidade, 22,2% apresentaram rebaixamento
quanto que no grupo sem queixa auditiva, 76,19% apre- no limiar auditivo, 11,1% resultado de PAIR; na orelha
sentaram alteração (p=0,5), de modo que queixa auditiva esquerda: 50% tiveram resultados normais, 27,7% com
não se correlacionou com alteração na EOAPD. entalhe e 22,2% com resultado de PAIR.

Compareceram à realização do exame audiométrico 18 No grupo de músicos que realizaram OEAPD e audiome-
(45%) músicos, sendo que 22,2% apresentaram perda tria tonal (n=18), 13 (72,22%) apresentavam o resultado
auditiva induzida por ruído (PAIR) e 33,3% apresentaram de OEAPD alterado, sendo que destes 8 (61,53%) apre-
audiograma com entalhe nas altas freqüências que suge- sentaram audiometria alterada.
rem início de PAIR.

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MAIA, ANDRÉA ALVES et al. Análise do perfil audiológico dos músicos... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 67-71

4 - Discussão tiveram seus exames alterados e, no grupo dos músicos


Os estudos da relação dos picos de alta intensidade sono- sem queixa auditiva, 40% tiveram seus exames altera-
ra dos sons de orquestra e a conseqüente alteração audi- dos. De acordo com Westmore e Everdsen (1981), com
tiva nos músicos ainda são restritos e pouco divulgados. poucas exceções a diminuição da audição é assintomá-
tica. Infelizmente, a percepção e o prejuízo na atividade
Durante a coleta de dados, 45,9% dos músicos se recusa- laboral dos músicos de orquestra são sentidos no final da
ram a participar por receio de descobrir alteração auditi- carreira, com a soma dos efeitos da idade sobre a audição.
va, mesmo cientes da importância do estudo para a classe Diante disso, podemos observar que a alteração auditi-
de músico. Esta dificuldade para a coleta de dados no va precede a queixa, enfatizando assim a necessidade de
grupo de músicos também foi relatada em outro estudo atuação preventiva nesta classe de músicos.
anterior (Sanelli e Schochat, 2000).
Inicialmente, a PAIR manifesta-se nas freqüências de 6
Os fatores de risco para a (PAIR) estão relacionados ao kHz, 4 kHz ou 3 kHz e, com o agravamento da lesão, es-
nível de pressão sonora e ao tempo de exposição. No tra- tende-se às freqüências de 8 kHz, 2 kHz, 1 kHz, 0,5 kHz
balho dos músicos de orquestra sinfônica, o nível de pres- e 0,25 kHz, as quais levam mais tempo para serem com-
são sonora varia, dentre outros fatores, de acordo com o prometidas. O perfil audiológico encontrado nos músicos
repertório e pela dinâmica dos ensaios e apresentações. da orquestra segue o padrão de evolução da PAIR, porém
Numa peça de música sinfônica, a intensidade sonora va- com alteração assimétrica entre as orelhas, sendo que a
ria muito, desde sons fracos até fortes, não havendo, por- orelha esquerda foi a mais acometida. Estes dados con-
tanto, estimulação auditiva constante e intensa nestes cordam com outros estudos (AXELSSON e LINDGREEN,
músicos (RUSSO et al., 1995). 1981; Sanelli e Schochat, 2000).

Foram encontrados durante o ensaio da orquestra picos A PAIR é uma afecção auditiva irreversível, que requer
de intensidade que chegaram a 105 dB, sendo que a mé- prevenção. Assim como na indústria, na qual as campa-
dia dos picos de intensidade encontrados nas diferentes nhas de orientação e conscientização são feitas para a
localizações da orquestra foi de 97 dB. Outras medições prevenção de perdas auditivas, medidas semelhantes de-
realizadas em orquestras também encontraram valores de vem ser tomadas no meio musical.
picos de intensidade sonora próximos (FERNANDES et al.,
1994; RUSSO et al., 1995). Os músicos da orquestra es- 5 - Conclusão
tão expostos a níveis de intensidade que ultrapassam os Músicos de orquestra sinfônica necessitam de atenção
valores considerados “seguros” pela Organização Mundial preventiva para Perda Auditiva Induzida por Ruído. É
de Saúde (85 dB A). imprescindível conscientizar os profissionais da música
sobre a importância de preservarem sua audição, contro-
Entre os músicos que relataram ter queixa auditiva, o lando periodicamente sua audição, através de realização
zumbido foi o mais freqüente, concordando com outro de avaliações audiométricas regulares, e protegendo seus
estudo (FERNANDES et al., 1994). Apesar das queixas, a ouvidos com uso constante dos protetores auriculares es-
maioria dos músicos nunca havia passado por testagem pecialmente projetados para estes profissionais.
auditiva.
O perfil audiológico dos músicos de orquestra segue o
Analisando os resultados dos exames de emissão otoa- padrão de evolução da PAIR, com início de comprometi-
cústica por produto distorção (EOAPD), 75% dos músicos mento das freqüências agudas.
apresentaram alteração. Além disso, alterações na am-
plitude das EOAPD podem preceder alterações audiomé- A assimetria de resultados audiológicos entre orelhas,
tricas mais graves, sendo recomendado um exame para tanto para os músicos com limiares dentro da normali-
diagnóstico de perdas auditivas progressivas a fim de que dade, como para os que apresentaram perda de audição,
se implementem programas de prevenção da PAIR (LOPES evidencia uma característica ototraumática para os mú-
FILHO, CARLOS & REDONDO, 1995; GATTAZ & WAZEN, sicos.
2001).
Fazem-se necessários estudos de programa de conserva-
Cruzando os dados da presença de queixa auditiva e do ção auditiva direcionados aos músicos de orquestra sin-
resultado do exame de OEAPD, observou-se que 35% dos fônica para prevenir o aparecimento de perda auditiva de
músicos que apresentavam alguma queixa auditiva, 35% origem ocupacional.

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ANDRÉA ALVES et al. Análise do perfil audiológico dos músicos... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 67-71

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DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO, Ministério do Trabalho e Secretaria de Segurança do Trabalho,Portaria nº 19 de 09/04/98
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FERNANDES, A. P.; MARQUES, R. M.; MARQUES, S. R. (1994). Um estudo sobre os efeitos de exposição à música em
músicos de orquestra sinfônica. Monografia de Iniciação Científica- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São
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GATTAZ, G.; WAZEN, S.R.G. (2001) O Registro das Emissões Otoacústicas Evocadas – Produto de Distorção em pacientes
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Westmore, Graham, A & Everdsen, Ian D. (1981). Noise-Induced Hearing Loss and Orchestral Musicians. Acta
Otolaryngol. Vol 107.

Andréa Alves Maia é Fonoaudióloga Clínica, formada pela UFMG em 2004; Pesquisadora vinculada ao Departamento de
Saúde da Criança e do Adolescente da UFMG.

Denise Utsch Gonçalves é Professora Adjunta do Departamento de oftalmologia, Otorrinolaringologia e Fonoaudiologia


da faculdade de Medicina da UFMG; Orientadora efetiva do curso de pós-graduação em Ciências de Saúde: infectologia
e medicina tropical; Doutora em Medicina.

Letícia Neiva de Menezes é Fonoaudióloga Clínica, graduada pela UFMG em 2004, Pós-Graduanda em Voz pelo Centro
de Estudos da voz (SP). Menezes, L.N.

Brígida Maris Franco Barbosa é Fonoaudióloga Clínica, graduada pela UFMG em 2004; Especialista em Psicopedagogia,
Especializanda em Linguagem pelo CEFAC.

Priscila de Souza Almeida é Fonoaudióloga graduada pela UFMG; Fonoaudióloga Clínica do Centro Auditivo Audibel.

Luciana Macedo de Resende é Fonoaudióloga graduada pela UNIFESP; Especialista em Audiologia pelo Conselho Federal
de Fonoaudiologia; Mestre em fonoaudiologia pela PUC-SP; Professora Assistente do Departamento de oftalmologia,
Otorrinolaringologia e Fonoaudiologia da faculdade de Medicina da UFMG.

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FERREIRA, J. G. P. A influência da performance vocal... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 72-77

A influência da performance vocal


no desenvolvimento das funções cognitivas
e comunicativas da linguagem oral
da criança
Juliana Grassi Pinto Ferreira (Universidade de Itaúna, Itaúna, Minas Gerais)
artenossa@nwm.com.br

Resumo: Este artigo trata da influência da performance vocal no desenvolvimento das funções cognitivas e comunica-
tivas da linguagem oral da criança e do Canto como recurso pedagógico na Educação Infantil e no Ensino Fundamental.
Prioriza os aspectos ligados à performance vocal na comunicação social e interpessoal, no processo de letramento
e alfabetização, no auto-conhecimento, na auto-afirmação e na preservação da saúde vocal. Para tanto, recorre ao
pensamento de vários educadores e especialistas no assunto e à analise e questionamento dos Referenciais Curriculares
Nacionais, que orientam as políticas e programas de educação infantil nos níveis estadual e municipal.
Palavras-chave: performance vocal, linguagem oral, canto, referenciais curriculares nacionais.

The influence of vocal performance in the development of cognitive and communicative


functions of child oral language

Abstract: This article deals with the influence of vocal performance in the development of the cognitive and com-
municative functions of the oral language of the child, approaching singing as a pedagogical resource in the Brazilian
Elementary Education for children. It gives priority to the aspects linked to the vocal performance in the social and per-
sonal communication, in the writing learning process, self knowledge, self-confidence and in vocal health care. Thus,
it resorts to the ideas of several educators and theorists in the subject and to the analysis and questionnaire from the
National Curriculum References in Brazil, which directs the policies and programs on children education at both state
and municipal government levels.
Keywords: vocal performance, oral language, singing, Brazilian teaching references.

1 - Introdução bebê pequeno tem voz, mas não fala”. O ato mecânico de
A qualidade da performance vocal pode influenciar no articulação das palavras refere-se à FALA, “uma criança
desenvolvimento das funções cognitivas e comunicativas começa a falar quando emite as primeiras palavras com
da linguagem oral da criança? Qual o diferencial do uso significado”; enquanto que a LINGUAGEM “é o código
da voz cantada como recurso pedagógico nesse proces- usado, o repertório de que dispomos para falar, o sistema
so? Tentaremos responder a estas questões, levantando simbólico adotado para a intercomunicação”. Portanto, a
aspectos que possam indicar a influência da performance voz não inclui necessariamente fala e/ou linguagem, mas
vocal no desenvolvimento das funções cognitivas e co- linguagem oral inclui automaticamente fala e voz. Sen-
municativas da linguagem oral da criança, a partir do do assim, neste artigo, sempre que nos referirmos à fala
pensamento de grandes educadores e especialistas no ou à linguagem oral, estaremos nos referindo também à
assunto, e da análise e questionamento das orientações voz como um de seus componentes fundamentais e sua
dos referenciais curriculares nacionais para a educação performance.
infantil e ensino fundamental.
2- Aspectos indicativos da influência da per-
Trataremos do termo performance vocal como o desem- formance vocal no desenvolvimento das fun-
penho e domínio da voz na emissão sonora no que diz
ções cognitivas e comunicativas da lingua-
respeito ao seu uso correto, saudável, estético e musi-
cal, seja na voz falada ou cantada, envolvendo aspectos gem oral da criança
técnicos e expressivos. BLOCH (1980, p.22), esclarece O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infan-
que “VOZ se refere, simplesmente, à emissão sonora. Um til (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO, 1998,
p.135 v.3), orienta que uma de suas tarefas é “ampliar,
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.15, 94 p., jan - jun, 2007 Recebido em: 23/11/2006 - Aprovado em: 15/03/2007
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FERREIRA, J. G. P. A influência da performance vocal... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 72-77

integrar e ser continente da fala das crianças em con- texto, a voz é considerada como o “primeiro instrumen-
textos comunicativos para que ela se torne competente to” (DEPARTAMENTO DE ENSINO FUNDAMENTAL, 1978,
como falante”, pois: p.18), e a música, como uma “forma de discurso” que
“O trabalho com a linguagem se constitui um dos eixos pode servir de “apoio ao desenvolvimento de estratégias
básicos na educação infantil, dada sua importância para a de ensino” (SWANWICK, 2003. p.15-16). VALENTE (1999,
formação do sujeito, para a interação com as outras pes- p.119), ressalta que a voz na comunicação é “mais do que
soas, na orientação das ações das crianças, na construção as palavras que são pronunciadas, mais do que a quali-
de muitos conhecimentos e no desenvolvimento do pen- dade do som que sai da boca; é o corpo inteiro, caixa de
samento.” (p.117) ressonância que fala, emanando energia”, e afirma que “a
história da voz cantada está diretamente atada à evolu-
Para GOULART (1978, p.87), a linguagem “tem um aspecto ção da música como linguagem” (P.133). BEHLAU (2004,
motor, que coexiste com o aspecto intelectual e afetivo”, p.01), atribui à voz a responsabilidade pelo “sucesso das
sendo a criança “sensível ao valor da linguagem, antes interações humanas” considerando que ela é o “meio de
mesmo de ser capaz de utilizar a palavra”. ACREDOLO & comunicação mais usado” na Educação Infantil, e “veícu-
GOODWYN (2003, p.04), defendem que a linguagem para lo de estimulação do desenvolvimento da própria lingua-
a criança pode ser “o elo para a sua sobrevivência e o seu gem da criança pequena” (p.55). Afirma que a entonação
bem estar” e que, independente da idade, “a comunicação da voz está “intimamente relacionada à musicalidade de
bem-sucedida com outras pessoas torna a vida melhor”. nossa comunicação”, uma vez que complementa o seu
E VIGOTSKI (1998, p.33), afirma que “antes de controlar o significado, dando “ênfase ao conteúdo do que é falado”
próprio comportamento, a criança começa a controlar o e tornando a emissão vocal “mais agradável” (p.32). Para
ambiente com a ajuda da fala”, pois, “(...) a relação entre BLOCH (1980, p.23), “palavras iguais significam coisas di-
fala e ação é dinâmica no decorrer do desenvolvimen- ferentes, conforme a entonação utilizada, conforme a ên-
to das crianças” (p.37). Em seus experimentos, Vigotski fase dada” e que a voz é “altamente vulnerável ao que ela
constatou dois fatos relevantes para nossa pesquisa: própria veicula: - a emoção”. FONTERRADA (1994, p.38),
destaca um outro aspecto da linguagem musical, afirman-
“(1) A fala da criança é tão importante quanto a ação para do que, “como sistema temporal, a música une passado,
atingir um objetivo. As crianças não ficam simplesmente presente e futuro”, sendo a experiência musical resultado
falando o que elas estão fazendo; sua fala e ação fazem da ligação e simultaneidade desses três momentos, le-
parte de uma mesma função psicológica complexa, dirigi- vando à utilização da memória e da imaginação. Nesse
da para a solução do problema em questão. sentido, KUSNET (apud QUINTEIRO, 1989, p.98), afirma
(2) Quanto mais complexa a ação exigida pela situação que a nossa imaginação é a fonte da palavra: “antes de
e menos direta a solução, maior a importância que a fala começar a falar, nós imaginamos o que vamos dizer, só
adquire na operação como um todo. Às vezes a fala adqui- depois transformamos essas imagens em palavras”.
re uma importância tão vital que, se não for permitido seu
uso, as crianças pequenas não são capazes de resolver a 2.2. Do auto-conhecimento e da auto-
situação.”(p.33)
afirmação
MUNHOZ (2002, p.39) ressalta a importância da voz
Para prosseguirmos nossa reflexão, levantaremos alguns
como “um instrumento vivo que nasce com a gente”, re-
tópicos que associam aspectos da linguagem oral que
velando nossa identidade e nossos sentimentos. O próprio
consideramos passíveis da influência da performance
Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil
vocal, com aspectos da linguagem musical que apontam
(MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO, 1998, p.25)
para o Canto como um valioso recurso pedagógico na
defende a importância da “aquisição da consciência dos
Educação Infantil e Ensino Fundamental:
limites do próprio corpo” no “(...) processo de diferencia-
ção do eu e do outro e da construção da identidade.” DIN-
2.1. Da comunicação social e interpessoal VILLE (2001, p.03), afirma que “a voz está intimamente
VIGOTSKI (1998, p.38) esclarece que “as funções cogniti- ligada à personalidade de cada pessoa, pois é a emana-
vas e comunicativas da linguagem tornam-se (...) a base ção de sua afetividade, de sua sensibilidade, bem como o
de uma forma nova e superior de atividade nas crianças” reflexo de sua individualidade fisiológica e psicológica.”
uma vez que, para estas, a utilização de “signos e palavras E BLOCH (1980, p.9-10) complementa defendendo que a
constituem (...), primeiro e acima de tudo, um meio de voz “(...) revela a condição física, emocional, cultural de
contato social com outras pessoas”. E a música, segun- cada ser humano” e “(...) é tão característica quanto a
do os Referenciais Curriculares para a Educação Infantil fisionomia ou a impressão digital”. Defende que “das me-
(MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO,1998, v.3, lhores coisas que se pode fazer por alguém é dotá-lo da
p.45), “é a linguagem que se traduz em formas sonoras melhor voz possível”.
capazes de expressar e comunicar sensações, sentimentos
e pensamentos, por meio da organização e relacionamen- 2.3. Da saúde vocal:
to expressivo entre o som e o silêncio” e deve ser com- BLOCH (1980, p.23), afirma que o material fornecido pelo
preendida como “linguagem e forma de conhecimento, meio ambiente é um dos requisitos da fala, além das con-
englobando as mais diversas fontes sonoras. Nesse con- dições normais do “aparelho fonador”, da boa audição

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e da maturação do sistema nervoso. “Falamos com um do mudanças “não somente nos ritmos corporais, como
aparelho que não foi criado, originalmente, para este fim, também na entoação da fala” (VALENTE, 1999, p.37). Esse
(...) por isso a fala se desorganiza com tanta facilidade” e fator vem também acarretar um aumento significativo
(...) a voz se modifica com tanta freqüência” (p.18). Uma no que os especialistas de voz definem como competição
das características da sociedade contemporânea é a ve- sonora2, aumentando o índice de problemas vocais entre
locidade crescente dos acontecimentos, com reflexos na crianças e professores, o que faz também, por outro lado,
fala das crianças das novas gerações, acompanhando o aumentar a responsabilidade da escola. A Tabela 1abaixo,
pensamento que flui cada vez mais rápido. Além disso, a partir de pesquisa feita por R. Murray Schafer (1991,
a alta incidência dos mais variados tipos de ruídos, vem p.128), mostra a ocorrência de sons humanos na “paisa-
transformando a nossa “paisagem sonora”1 e trazen- gem sonora” no decorrer das épocas.

Sons naturais Sons humanos Sons de utensílios e tecnologia


Culturas Primitivas 69% 26% 5%

Culturas Medieval,
34% 53% 14%
Renascentista e
     
Pré-Industrial

Culturas 9% 25% 66%


Pós-Industriais      
Hoje 6% 26% 68%

TAB.1 – “Paisagem sonora” humana ao longo da história da humanidade (SCHAFER, 1991, p.128)

2.4. Do processo de letramento e alfabetiza- representantes do código oral”, defendem a possibilida-


de de resgatar “(...) procedimentos relativos ao método
ção da criança fônico (...)” em momentos específicos, independente do
De acordo com o Referencial Curricular Nacional para
aspecto da reabilitação, significando um “(...) avanço
a Educação Infantil (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO
qualitativo no processo de alfabetização (...)” (SILVA &
DESPORTO, 1998, p.35-36), no processo de letramen-
ABUD 2004, v.10, n.2, p.143-146). Esclarecem que:
to e alfabetização, a questão central é a competência
discursiva, integrando, dentro de uma proposta baseada “Quando se estabelece como ponto de partida a oralidade
principalmente na psicologia genética e na teoria sócio- da criança, para inicia-la no processo de aprendizagem
interacionista, frase, palavra, sílaba e letra, de acordo do código lingüístico, estamos trabalhando, muitas vezes,
com necessidades específicas e partindo do texto como com a memória auditiva, que leva o aluno a discriminar
unidade básica. Porém, permanece ainda hoje no Brasil sons e os grafemas que os representam. As atividades
a polêmica da escolha do melhor método de alfabeti- organizadas pelo professor visando a essa identificação
zação, devido aos altos índices de fracassos escolares e necessariamente devem incorporar a correspondência fo-
baixa performance de leitura dos estudantes brasileiros nográfica, bem como palavras e textos significativos para
no âmbito internacional. Vários países de primeiro mun- as crianças. (p.146)
do optaram pelo método fônico como método oficial,
o que repercutiu positivamente no cenário educacional As letras, no contexto atual, são trabalhadas e apresen-
brasileiro, trazendo questionamentos e gerando também tadas à criança “de forma supostamente progressiva, ini-
uma maior atenção para a performance vocal, mesmo ciando com as vogais, depois as consoantes; em seguida
que com maior ênfase na articulação do que na emissão as sílabas até chegar às palavras” (BRASIL. MINISTÉRIO DA
sonora. SILVA & ABUD (2004), constataram através de EDUCAÇÃO E DO DESPORTO, 1998, p.120). Para VALENTE
pesquisa3 realizada com professores que atuam no en- (1999, p.130) “as vogais permitem a invenção melódica,
sino fundamental, que estes, na sua maioria, aprovam a enquanto as consoantes articulam o ritmo.” Segundo
orientação construtivista, porém “boa parte deles igual- SCHAFER (1991, p.224), baseado nos antigos rabínicos,
mente utiliza alguns princípios do método fônico como as vogais, “são a alma das palavras, e as consoantes, seu
a correspondência explícita entre grafema e fonema”, ou esqueleto”, porém, “(...) é a vogal que fornece asas para o
seja, utilizam um “método misto”, prevalecendo o bom vôo da palavra”. Nesse sentido, CHENG (p.52), afirma que
senso. Uma vez que “o processo de compreensão do có- “o som da voz é sustentado pelas vogais”. No canto são
digo escrito (...) é sistematizado por letras do alfabeto, utilizadas técnicas aplicadas para o refinamento da emis-

1
Termo criado por Murray Schafer em “A nova paisagem sonora” (1979)
2
“Falar competindo com ruídos do ambiente” (BEHLAU, DRAGONE & NAGANO, 2004, p.49)

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são vocal onde, na maioria delas, as vogais ocupam um Os Referenciais Curriculares para a Educação Infantil
papel fundamental. BLOCH (1985, p.18) esclarece que “as (1998, v.3, p.71) recomendam o uso de jogos e brinque-
vogais são as emissões em que não há obstaculização. A dos musicais próprios da cultura da criança e que são
constrição não se realiza”, e (...) “a coluna sonorizada cir- transmitidos por tradição oral, uma vez que “possibili-
cula; atravessa, livremente, as cavidades acima da glote. tam a vivência de questões relacionadas ao som (e suas
Já a consoante é um som da fala que apresenta um obs- características), ao silêncio e à música” e proporcionam
táculo parcial ou total”. Observa ainda que “muita gente o “desenvolvimento expressivo musical”. Neles incluem:
pensa que o treinamento de incorreções ou alterações se “os acalantos (cantigas de ninar); as parlendas (os brin-
faz somente nas consoantes e nos encontros consonan- cos, as mnemônicas e as parlendas propriamente ditas);
tais”, ressaltando que “as vogais também precisam ser as rondas (canções de roda); as advinhas; os contos; os
aprendidas. Elas não surgem prontas.” PÉREZ-GONZÁLEZ romances etc.”
(2000, p.41), estabelece a partir da análise dos movimen-
tos de lábios e língua nas vogais e suas correspondentes No que diz respeito à canção, BRITO (2003, p.91-93) es-
sensações dentro da boca, uma ordem de impedância4, clarece que é “um gênero musical que funde música e
que na emissão vocal significa “um tipo de resistência à poesia”, e que resguardado o “ambiente de orientação e
propagação da voz dentro da boca e do nariz” e que não estímulo ao canto, à escuta, à interpretação”, torna-se
coincide com a ordem inicial do processo de letramento capaz de desenvolver a expressão musical da criança. Sa-
e alfabetização: lienta ainda que o contato com a poesia que a música
possibilita, pode ser muito rico uma vez que colabora na
a – é – ó – ê – i – ô – u (ordem crescente em conscientização das crianças quanto às suas “potenciali-
impedância) dades vocais, além de unir música e literatura”. Acredita
que “interpretar uma poesia valorizando seu material fo-
Para PÉREZ-GONZÁLEZ (2000, p, 40-41), “(...) a impedân- nético, bem como o seu conteúdo expressivo, gera re-
cia é um fenômeno físico, mas o uso consciente dela é sultados interessantes que promovem o crescimento das
uma atitude técnica” e “(...) aos movimentos dos lábios crianças”, sugerindo que elas sejam sonorizadas, trans-
e da língua corresponderão sensações da voz na boca, formadas em melodias e acompanhadas por instrumentos
específicas para cada vogal (...) sensações rigorosamen- musicais. Defende ainda a importância de “apresentar às
te anteriores aos timbres respectivos que irão chegar aos crianças canções do cancioneiro infantil tradicional, da
ouvidos”. música popular brasileira, da música regional, de outros
povos etc” e que, “além de cantar as canções que já vêm
3 - O canto como recurso pedagógico na prontas, elas devem ser estimuladas a improvisar e a in-
ventar canções.” Continuando, diz que “a improvisação
educação infantil e ensino fundamental: deve ser entendida como uma ferramenta pedagógica
considerações sobre repertório importante, que acompanha todo o processo de educa-
O canto constitui-se em uma das mais significativas for- ção musical, uma vez que o brincar representa o modo
mas de expressão das crianças que, no uso espontâneo da da criança de “comunicar-se musicalmente, traduzindo
voz, utilizam-se dos mais variados recursos sonoros. Sua em sons seus gestos, sentidos, sensações e pensamentos,
importância é ressaltada por diversos autores, associada simbolizando e sonorizando, explorando e experimen-
a aspectos diferentes, porém complementares. Segundo tando, fazendo música, história, faz-de-conta, jogo...”
FONSECA (2005, p.141), “a música vocal da criança de- (p.152-153).
monstra ter um curso evolutivo previsível, de forma aná-
loga ao seu desenvolvimento cognitivo” e é utilizada pela A improvisação musical, além de desenvolver a musica-
mesma “para manifestar sua forma singular de perceber lidade, favorece a auto-percepção e conseqüentemente
o mundo”. BIAGIONI, GOMES E VISCONTI (1998) estabe- o melhor domínio da voz na performance, uma vez que,
lecem uma relação entre os elementos constitutivos da segundo PÉREZ-GONZÁLEZ (2000, p.20), a abordagem
música5 segundo WILLEMS (apud ROCHA,1990), ou seja, ocorre “de dentro para fora” sem o “compromisso com a
ritmo, melodia e harmonia considerados como elementos meta a ser atingida”. Na improvisação a memória auditi-
de vida de ordem fisiológica, afetiva e mental”, respecti- va é “acionada como referencial”, e a atenção conduz a
vamente, e os estágios do desenvolvimento da inteligên- voz e detecta as sensações de “comodidade na laringe”.
cia segundo Piaget: sensório motor, pensamento intuitivo Além disso, a improvisação musical aproxima a criança
e operações formais. E SWANWICK (apud FRANÇA, 1998) dos novos referenciais estéticos da música contempo-
afirma que “as artes envolvem os processos psicológicos rânea, onde as diversas formas de expressão se intera-
do jogo imaginativo, domínio e imitação,” que se relacio- gem. Segundo VALENTE (1999, p.163), a voz na música
nam “com as formas principais de engajamento musical: contemporânea tem seu conceito ampliado em termos
composição, performance e audição”. estéticos e cuja dimensão se deve “não somente ao de-

3
“(...) Pesquisa realizada com professores das séries iniciais do Ensino Fundamental da Rede Municipal de Taubaté”.
4
“Tipo de resistência à propagação do som dentro de uma cavidade” (HUSSON apud PÉREZ-GONZÁLEZ, 2000, p.41).
5
No que se refere à música tradicional.

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FERREIRA, J. G. P. A influência da performance vocal... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 72-77

senvolvimento das vozes exploradas no universo da mú- bem como para a necessidade de uma abordagem clara
sica”, mas também à poesia sonora. Por outro lado, KO- e específica sobre fonação e emissão vocal nos Referen-
ELLREUTTER (apud BRITO, 2003, p.152), afirma que “toda ciais Curriculares para a Educação Infantil e Ensino Fun-
improvisação, no contexto da educação, deve atender damental. Afinal, segundo os mesmos:
a objetivos musicais e humanos, especialmente porque,
para ele, o grande objetivo da educação musical tem de “a ampliação da capacidade das crianças de utilizar a
ser a formação da personalidade do aluno.” Nesse sentido fala de forma cada vez mais competente em diferentes
FRANÇA (2003), destaca que o “aspecto mais importante contextos se dá na medida em que elas vivenciam expe-
a ser cuidado nas canções é a expressividade que brota riências diversificadas e ricas envolvendo os diversos usos
do encontro entre a música e a idéia poética das letras, possíveis da línguagem oral. (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
apostando no “encantamento e na espontaneidade como E DO DESPORTO. Secretaria de Educação Fundamental,
componentes imprescindíveis ao fazer musical” e orienta 1998, 3v. p.134).
que as canções não devem ser “utilizadas simplesmente
como exemplo de padrões rítmicos, melódicos e outros, Consideramos que este é um momento propício para
que podem ser vivenciados e internalizados intuitivamen- discutir a importância do Canto na Escola, uma vez
te”. Esclarece que esses elementos devem se transformar que os métodos de alfabetização estão sendo reavalia-
em “instrumentos da sua concepção expressiva e estru- dos e rediscutidos. Surge aí a questão da capacitação
tural, cujo alcance final ultrapassa a dimensão artística e de professores, para que os mesmos possam, de forma
toca a dimensão humana”. consciente e coerente, organizar objetivos, conteúdos,
procedimentos, atividades e ainda avaliar os processos
KATER e LOBÃO (2001, p.3), recomendam “canções dos vivenciados pelas crianças. Sem a capacitação, a música
mais variados estilos e épocas, que tragam em sua consti- continuará em defasagem em relação às outras formas
tuição – música e letra – características próprias, capazes de expressão trabalhadas no processo de construção do
de possibilitar uma vivência expressiva criativa, prazero- conhecimento na Educação Infantil e Ensino Fundamen-
samente envolvente e construtiva para os participantes.” tal. O Referencial Curricular Nacional para a Educação
Defendem que o contato das crianças com o cancioneiro Infantil (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO,
musical brasileiro pode: 1998, v.3), esclarece que o professor para integrar este
“propiciar, em decorrência, um melhor conhecimento conhecimento à educação, deve “assumir uma postura
das particularidades de nossas produções artísticas, de disponibilidade em relação a essa linguagem”, e des-
assim como dimensionar a prática destas canções, taca a sua importância:
fazendo com que os participantes estabeleçam víncu- “A integração entre os aspectos sensíveis, afetivos, esté-
los próprios e autênticos com seu meio sóciocultural.” ticos e cognitivos, assim como a promoção de interação
E ainda “que se tornem mais conscientes do valor do e comunicação social, conferem caráter significativo à
patrimônio cultural que herdaram e de cuja contínua linguagem musical. É uma das formas importantes de ex-
revitalização são os legítimos responsáveis.” KATER e pressão humana, o que por si só justifica sua presença no
LOBÃO (2001, p.6) contexto da educação, de um modo geral, e na educação
infantil, particularmente.” (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E
Portanto, a influência da performance vocal no desenvol- DO DESPORTO, 1998, 3v. p.45).
vimento da linguagem oral da criança, de acordo com os
processos aqui propostos, ou seja, através do canto, está Porém, pelas possibilidades apontadas aqui, no que se re-
diretamente associada à qualidade do repertório, consi- fere à influência da performance vocal nas funções cogni-
derando aspectos técnicos e expressivos. tivas e comunicativas da linguagem oral, o Canto merece
um capítulo à parte. Lembrando SCHAFER (1991, p.239),
4 - Considerações “finais” “para que a língua funcione como música, é necessário,
Neste estudo, privilegiamos alguns dentre os muitos primeiramente, faze-la soar e, então, fazer desses sons
aspectos da performance vocal relacionados ao desen- algo festivo e importante.” Afinal, como dizia Guimarães
volvimento das funções cognitivas e comunicativas da Rosa (apud BLOCH, 1980, p.166):
linguagem oral da criança, mas que já apontam para o “A linguagem e a vida são uma coisa só”!
canto como recurso pedagógico inter e multidisciplinar,

76
FERREIRA, J. G. P. A influência da performance vocal... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 72-77

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Juliana Grassi Pinto Ferreira é graduada em Canto e Especialista em Regência Coral pela UFMG; ex-integrante do Coral
“Ars Nova” da UFMG (de 1985 a 1987); regente dos corais “Arte Nossa” de Pará de Minas (desde 1987), “Una Voz” de
Itaúna (desde 1996), Pif Paf da Rio Branco Alimentos (desde 2004); Diretora e Professora de Canto, Canto Coral, Flauta
Doce e Musicalização na Escola de Música “Arte Nossa” de Pará de Minas desde 1988; professora de Expressão vocal
e Ritmo na Faculdade de Educação Física da Universidade de Itaúna (desde 2002) e de Canto Coral e Musicalização na
Escola Berlaar Sagrado Coração de Maria de Pará de Minas (desde 2006).

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BORÉM, F.; CAVAZOTTI, A. Entrevista com Luciana Monteiro de Castro... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 78-86

Entrevista com Luciana Monteiro de


Castro, Mônica Pedrosa e
Margarida Borghoff sobre o Projeto
“Resgate da Canção Brasileira”
Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte)
fborem@ufmg.br

André Cavazotti (UFMG, Belo Horizonte)


cavazotti@ufmg.br

Interview with Luciana Monteiro de Castro,


Mônica Pedrosa and Margarida Borghoff about
the project “Resgate da Canção Brasileira” [“Reco-
vering the Brazilian Art Song”]

Palavras-chave: Canção de câmara brasileira, canto,


música erudita e popular, catalogação de música.
CRÉDITO

Keywords: Brazilian art song, singing, classical and


popular music, music cataloguing.
Mônica Pedrosa, Luciana Monteiro de Castro e Margarida Borghoff

1- FAUSTO BORÉM: O grupo de pesquisa “Resgate (www.grude.ufmg.br/cancaobrasileira) que disponibiliza


da Canção Brasileira” tornou-se uma das iniciativas e recebe informações sobre canções de câmara brasilei-
mais amplas, de que temos notícia, para coletar e ras para canto e piano. A página do grupo ainda está em
estudar a música brasileira erudita para a formação construção, mas as informações sobre as nossas ativida-
voz e piano e pequenas formações de câmara que des podem ser lidas no Diretório de Grupos de Pesquisa do
incluem a voz. Até o momento, vocês já coletaram CNPq (www.cnpq.br), acessando-se o nome do grupo.
e catalogaram cerca de 3000 partituras, realizaram
mais de 35 concertos e também têm publicado arti- 2 – ANDRÉ CAVAZOTTI: Como se formou o grupo de
gos e apresentado trabalhos nos principais congres- pesquisa “Resgate da Canção Brasileira”?
sos de pesquisa em música no país. Podemos iniciar
informando ao leitor de Per Musi sobre o surgimento LUCIANA MONTEIRO DE CASTRO: Quando entrei na
do Projeto “Resgate da Canção Brasileira” e contatos Escola de Música da UFMG como professora de canto, vi-
para maiores informações? nha de um estudo da CCB [Canção de Câmara Brasileira],
tema do meu mestrado. Na UFMG, encontrei as profes-
MARGARIDA BORGHOFF: O Projeto “Resgate da Canção sora Guida [Margarida] Borghoff [professora de piano e
Brasileira”, que surgiu em 2003, é desenvolvido pelo gru- música de câmara] e Mônica Pedrosa [professora de can-
po de pesquisa de mesmo nome e é sediado na Escola de to], duas colegas que também tinham experiência com a
Música da UFMG, em Belo Horizonte. Participam perma- canção. A Guida, que coordena o grupo, tem mestrado e
nentemente do projeto quatro professores pesquisadores, doutorado em interpretação de Lied, gênero precursor da
todos da UFMG: Mônica Pedrosa (monicapedrosa@ufmg. nossa canção de câmara, além de uma enorme experiên-
br), Luciana Monteiro de Castro (lumontecastro@ufmg. cia no acompanhamento de canções brasileiras. A Mônica
br), Mauro Chantal (maurochantal@gmail.com) e eu também tem uma longa história na interpretação desse
(guidaborghoff@hotmail.com). O projeto tem um site repertório, com vários prêmios recebidos, inclusive. Deci-
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.15, 94 p., jan - jun, 2007 Recebido em: 08/03/2007 - Aprovado em: 25/03/2007
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BORÉM, F.; CAVAZOTTI, A. Entrevista com Luciana Monteiro de Castro... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 78-86

dimos então unir os nossos interesses e criar o grupo de núncia aplicada ao repertório. Estas questões nos levaram
pesquisa. Depois, veio o Mauro Chantal, também Professor a agir em diferentes frentes. Primeiramente partimos para
de Canto na UFMG e pianista acompanhador e, esporadi- a busca e a catalogação do repertório existente, grande
camente, temos contado com muitos outros professores, parte esquecida em acervos particulares ou em pratelei-
alunos e músicos da Orquestra da Escola de Música da ras das bibliotecas. Passamos depois a estudar a obra de
UFMG, além da parceria importante com Berenice Mene- determinados compositores, buscando desenvolver uma
gale e Eladio Pérez-González da Fundação de Educação metodologia de análise que auxiliasse na performance.
Artística de Belo Horizonte. O Grupo passou a contar com Queríamos ainda envolver os jovens intérpretes e esti-
o imprescindível apoio da Escola de Música e das Pró-Rei- mular novos compositores de canção, já que o “resgate”
torias da UFMG, além das agências FAPEMIG [Fundação não é só da música do passado, mas do gênero. Passamos
de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais] e FINEP então a ministrar disciplinas sobre o tema, abertas a alu-
[Fundo de Financiamento de Estudos de Projetos e Pro- nos de canto, instrumento e composição. A partir daí, sur-
gramas], que têm financiado nossa pesquisa, permitido a giram atividades como concertos de divulgação, criação
aquisição de equipamentos, a oferta de bolsas de estudos, do site, organização de seminários, projetos de iniciação
a promoção de seminários e agora, a instituição do selo de científica, edição crítica de partituras etc.
gravação da Escola de Música da UFMG.
É claro que o crescente comprometimento com a pesquisa
3- FAUSTO BORÉM: Por que o grupo “Resgate da e com o ensino da canção brasileira nos levou a novos
Canção Brasileira” se direcionou para o estudo da questionamentos, alguns relacionados aos atuais concei-
canção de câmara? tos de canção e interpretação, sobre recepção e cognição,
sobre teorias analíticas que poderiam ser utilizadas no seu
LUCIANA MONTEIRO: A gente poderia ter partido para estudo. Fomos inevitavelmente atraídos para campos de
o estudo da ópera brasileira, das canções do teatro de re- estudos antes distantes do nosso foco, como os estudos da
vista, das modinhas, da imensa produção de música vocal semiologia, da lingüística e até da psicanálise, que amplia-
brasileira do período colonial etc., o que, aos poucos, já ram e deram um caráter interdisciplinar à nossa pesquisa.
vem sendo feito por outros pesquisadores, dentro e fora Passamos a estudar autores como J. La Rue, J. J. Nattiez,
da universidade. Mas preferimos nos aprofundar no estu- J. Molino, M. Bakhtin, J. Kristeva, L. Lacan, R. Barthes, W.
do de um gênero pelo qual já tínhamos grande interesse, Benjamin, O. Paz, Haroldo de Campos, N. Goldstein, A.
que já fazia parte do currículo que ensinávamos, do nosso Bosi, G. Nuno Vaz, L. Tatit, Sandra L. de Freitas, etc.
dia-a-dia profissional, e principalmente, que se mostrava
como um vasto e inexplorado campo de pesquisa. De fato, 5- ANDRÉ CAVAZOTTI: Por que o nome “Resgate”?
a canção de câmara brasileira é um gênero francamen-
te desconhecido no Brasil. Uma outra coisa nos motivou. MARGARIDA BORGHOFF: A palavra veio espontanea-
Paradoxalmente, já se percebe um crescente interesse por mente quando tivemos que batizar o grupo de pesquisa
nossa canção lá fora; corremos o risco de termos em bre- para registrá-lo no CNPq, já às vésperas de enviarmos
ve que comprar ou baixar na Internet partituras e grava- nosso primeiro projeto à FAPEMIG. Resgatar dá a idéia de
ções da CCB, produzidas por franceses, norte-americanos, libertar algo de uma situação de risco, do esquecimento,
chineses (eles fazem de tudo...). É ótimo ver a música bra- do extravio. E é um pouco isso que ambicionamos. Claro,
sileira difundida pelo mundo, mas é melhor que tenhamos boa parte das obras ainda se encontra na forma manus-
aqui mesmo condições de estudá-la, divulgá-la e então crita. Muitos delas são documentos históricos. Muitos
exportá-la. E temos que agir rápido! desses documentos estão desprotegidos da deterioração
do arquivamento em acervos particulares. Por outro lado,
4- FAUSTO BORÉM: Quais as principais questões do muitos estão resguardados em acervos de instituições pú-
grupo? Que metodologias e procedimentos de pes- blicas, como a Biblioteca Nacional ou a Biblioteca Alberto
quisa vocês utilizam? Nepomuceno [UFRJ], mas ainda assim permanecem des-
conhecidos da maioria dos músicos. Mas é mais do que
LUCIANA MONTEIRO DE CASTRO: O grupo começou isso; há o problema da mesmice. O que pretendemos não
pela discussão de questões como a negligência genera- é apenas tirar da gaveta um repertório importante, mas
lizada com o repertório e com certos compositores bra- estimular novas produções, novas interpretações, dimi-
sileiros, o desconhecimento dos mesmos pelo público e nuir o afastamento entre a obra, o intérprete e o público.
pelos intérpretes. Do ponto de vista da pesquisa sobre o O termo “resgate” pode parecer pretensioso, afinal a can-
repertório, constatamos uma bibliografia muito pobre, ção é muito maior do que nós, mas o volume do trabalho
uma grande escassez de partituras e gravações, proble- do grupo de certa forma já nos tranqüiliza.
mas de localização e acesso às obras, a maior parte na
forma manuscrita; sentimos a falta de estudos mais fun- 6- FAUSTO BORÉM: Quais são os principais composi-
damentados de interpretação e de ferramentas analíticas tores da CCB (Canção Brasileira de Câmara) ao longo da
específicas para a canção. Ao lado do pouco interesse de história da música brasileira? E os principais poetas?
grande parte dos alunos de canto, haviam questionamen-
tos sobre a técnica vocal e, especialmente, sobre a pro- MÔNICA PEDROSA: Estamos lidando com um corpus

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BORÉM, F.; CAVAZOTTI, A. Entrevista com Luciana Monteiro de Castro... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 78-86

muito abrangente e ainda bastante desconhecido, se 8 - FAUSTO BORÉM: Vocês se arriscam a classificar as
formos considerá-lo em toda a sua extensão. As canções canções como populares, eruditas, folclóricas?
de câmara brasileiras foram escritas em diferentes mo-
mentos da história da música e, portanto, em diferentes LUCIANA MONTEIRO DE CASTRO: Esta é uma questão
estilos de época, cada qual com suas linguagens musicais complicada. Na gênese das canções de todo mundo há
e técnicas de composição distintas. O Guia Canções Bra- sempre uma interface muito ampla entre o popular, o fol-
sileiras, que é um guia eletrônico elaborado e mantido clórico e o erudito; no Brasil, então, nem se fala. . . Nem
pelo grupo “Resgate da Canção Brasileira”, lista 180 com- achamos que seja possível ou desejável uma separação
positores que se dedicaram ou se dedicam ao gênero, de estanque, absoluta, dentro da constante hibridação de
AGUIAR, Ernani a WIDMER, Ernst, ou seja, de A a Z, por gêneros, que é característica da cultura brasileira. Apesar
assim dizer. Alguns compositores certamente são mais disso, nosso recorte trata do que comumente é designa-
conhecidos no meio musical devido, entre outros fatores, do como canção erudita, mas que preferimos chamar de
ao impacto que suas obras causam na época em que são canção de câmara. Poderíamos dizer que são obras dife-
compostas, à penetração que conseguem no meio artísti- renciadas pelo seu processo representacional, que conduz
co, à ressonância que as obras encontram nas gerações a certos processos composicionais e interpretativos. São
posteriores, à circulação que as obras conseguem e, até obras escritas numa notação musical e geralmente basea-
mesmo, aos locais onde vivem e trabalham. das em um poema ou em um texto popular ou folclórico já
existente. A instrumentação dessas canções inclui apenas
No momento, estamos começando a compreender a ex- a voz e instrumentos acústicos. Temos desde canções so-
tensão desse repertório e adotando no seu estudo uma bre poemas de grande erudição criados por poetas parna-
postura bastante aberta. Não temos ainda como citar os sianos, simbolistas, modernistas ou concretistas até tro-
“principais” compositores sem que isto nos conduza a um vas e quadrinhas bem simples, textos folclóricos e mesmo
julgamento de valor precipitado das obras. Poderíamos, textos com emprego de ortografia ou gramática errada
sim, citar o nome de Alberto Nepomuceno, por exemplo, com finalidade de caracterização. Aí, sim, no conjunto de
por ter sido ele o primeiro compositor brasileiro a se dedi- canções de câmara, poderíamos arriscar uma divisão tipo-
car ao gênero utilizando textos em português. Poderíamos lógica, mas também muito complexa de ser realizada.
também mencionar alguns compositores cuja produção é
mais numerosa, como Camargo Guarnieri, que tem cerca MÔNICA PEDROSA: Por falar no popular e no erudito, difi-
de 200 canções escritas, Helza Camêu, com cerca de 140 cilmente vemos nas outras artes esta distinção de tratamen-
canções ou Villa-Lobos, com cerca de 130 canções. Ma- to tão evidente quanto a que costuma ser feita na música.
nuel Bandeira é o poeta mais musicado ao lado de Cecília Na música existe a questão da escrita, da notação em parti-
Meireles, mas muitos textos populares anônimos foram tura e, talvez, venha daí a principal diferença. Mas existem
também utilizados nas canções. interseções que podem ser muito fluidas. Músicas populares
são freqüentemente notadas e publicadas como partituras,
7- ANDRÉ CAVAZOTTI: O que caracteriza a can- gravações funcionam às vezes como se fossem verdadeiras
ção brasileira? A nacionalidade do compositor, o notações. A questão é ampla, mas nos tempos de hoje, em
idioma utilizado, o local de composição, alguma ca- que os conceitos duais caem por terra, as oposições entre o
racterística musical específica? particular e o universal, entre o nacional e o estrangeiro e
entre o popular e o erudito devem ser repensadas em termos
MARGARIDA BORGHOFF: De fato, assumimos um cor- de categorias amplas, não excludentes, que se mesclam e
pus bem amplo. Em princípio, trabalhamos com canções que se encontram interligadas numa grande rede heterogê-
compostas por brasileiros natos ou naturalizados, escritas nea. A riqueza da canção de câmara encontra-se justamen-
em português ou em qualquer outro idioma, mas elabo- te nessa diversidade e nessa mistura heterogênea. Toda uma
radas por indivíduos inseridos no contexto brasileiro, que tradição oral de cantos e danças populares, folclóricas ou
é multifacetado. Ernst Mahle, por exemplo, que é alemão de autoria determinada, tem sido incorporada aos códigos
de nascimento, está profundamente inserido no contexto próprios da escrita musical. Às vezes esses elementos são
brasileiro há muitos anos. Assim, a sua obra é também ob- facilmente reconhecíveis, principalmente quando o idioma
jeto do nosso estudo. Um dos nossos desafios analíticos é tonal é utilizado. Outras vezes, a intertextualidade é tão in-
reconhecer a origem dos fios que se sobrepõem nos tecidos trincada que estes elementos tornam-se indistinguíveis. De
das canções de câmara brasileiras. É identificar na trama os qualquer forma, toda escrita encontra-se sujeita à memória
fios “estrangeiros” e os fios “brasileiros”, as superposições musical oral de um ambiente ou à própria memória oral do
nas quais, especialmente nas camadas mais novas, os fios compositor. Com toda essa diversidade, as canções brasilei-
herdados se confundem com o que surgiu originalmente ras, independentemente de sua qualidade como obras artís-
neste país. Daí a vasta heterogeneidade composicional e a ticas, podem ser percebidas pelos seus intérpretes e ouvin-
intrincada intertextualidade presente nas canções do nos- tes como pertencentes a diferentes mundos e sujeitos que
so repertório. Talvez cheguemos a vislumbrar uma divisão não lhes dizem respeito diretamente. As canções de câmara
tipológica dentro da nossa canção de câmara, baseada no brasileiras, ao mesmo tempo em que podem ser um ponto
reconhecimento destes fios e camadas e nos tipos de so- de diálogo privilegiado entre as culturas oral e escrita, entre
breposições verificadas, ou seja, nos tipos de “trama”. Mas a música erudita e popular, podem, também, constituir pon-
isso demanda uma pesquisa bastante extensa. tos de conflitos: às vezes evitadas por adeptos da música

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popular por serem consideradas eruditas; às vezes evitadas trama aparentemente fechada da partitura são muitas as
por músicos eruditos por conterem elementos populares; às opções que se abrem ao intérprete. Obviamente este é um
vezes evitadas por brasileiros simplesmente por serem bra- tema muito amplo e são muitas as teorias que abordam
sileiras e não européias. as questões de fidelidade ao original e as possibilidades
de transgressão. Com estudo e postura crítica o intérprete
MARGARIDA BORGHOFF: Ainda falando sobre a dis- decide até que ponto chegar. Walter Benjamin, filósofo
tinção entre popular e erudito, fico pensando em como alemão do início do séc. XX, nos diz em seu ensaio sobre
seria bom se houvesse, por parte dos brasileiros, a mes- a tradução poética que as obras se modificam em sua
ma aceitação da canção de câmara brasileira que existe “pervivência”. Isto pode significar que, muito mais do que
em relação às obras literárias de Machado de Assis ou sobreviver, as obras se mantém vivas por meio das suces-
de Carlos Drumonnd de Andrade, por exemplo. São obras sivas traduções realizadas pelos intérpretes.
eruditíssimas, todos concordam unanimemente. São vis-
tas e acarinhadas como obras legitimamente nossas, ape- 10 - FAUSTO BORÉM: Por que você diz que canção de
sar de toda a força da tradição da escrita e das inegáveis câmara brasileira “em especial” tem infinitas possibi-
“vozes” estrangeiras que compõem os textos ou tecidos. lidades interpretativas?
O mesmo deveria acontecer com as canções de câmara de
Guarnieri, de Helza Camêu, de Guerra-Peixe... LUCIANA MONTEIRO DE CASTRO: Digo que para nós,
intérpretes brasileiros, as possibilidades interpretativas
9 - ANDRÉ CAVAZOTTI: Como interpretar a canção de da CCB têm que ser mesmo mais amplas. Eu vejo a canção
câmara, uma vez que os símbolos da escrita erudita brasileira com uma grande sobreposição de textos, mais
direcionariam demasiadamente uma interpretação? do que nas canções de alguns outros povos. Trata-se de
um grande intertexto, usando o termo da lingüista Julia
LUCIANA MONTEIRO DE CASTRO: O grande número de Kristeva, um inter-tecido em que as camadas se sobre-
indicações que geralmente aparecem nas partituras - notas põem, umas com mais, outras com menos fios, uns fios
e ritmos da melodia e do acompanhamento, instrumenta- mais grossos, outros mais finos. Seriam as muitas vozes
ção, fraseado, andamentos, dinâmicas -, pode levar à idéia sobrepostas; seria a polifonia de que fala o genial crítico
de uma interpretação cristalizada, engessada. A própria Mikhail Bakhtin. Cada um desses textos ou camadas, que
designação “música erudita” sugere o encerramento da não são apenas musicais, mas literários, culturais, his-
obra numa redoma. Mas as possibilidades de leitura da tóricos, chegaram até nós pelas heranças indígenas de
canção de câmara, em especial da CCB, com suas matrizes muitas tribos, africanas de muitos povos, européias de
tão diversas da nossa cultura, são praticamente infinitas. É vários países e outras tantas não-européias, sem contar
o que ocorre nas leituras das peças de teatro, por exemplo, as camadas modernas e pós-modernas, feitas de fios im-
que também têm seus textos escritos, e cuja interpretação pingidos à cultura brasileira pelos meios de comunica-
é o resultado de uma leitura variada, dos atores, diretores, ção. Enfim, é a heterogeneidade num tecido só, em uma
cenógrafos, figurinistas, iluminadores. Assim, o intérprete canção prototípica, que seria a brasileira. Simplesmente,
musical, ao ler o texto da canção, pode ser também ator, acho que, pela nossa herança e experiência cultural, po-
diretor, cenógrafo. Isto quer dizer que, ainda que esteja demos reconhecer mais facilmente os tais fios e camadas
partindo de um texto escrito, o intérprete poderá escolher de nossas canções do que os intérpretes estrangeiros.
a cor do seu timbre vocal ou instrumental, as variações e
nuanças de andamento e agógica, os tipos de articulação, 11 - FAUSTO BORÉM: Falem sobre o conceito de
de ataque e inflexão das palavras, o modo de sua respi- “tradução” nas suas pesquisas.
ração, de sua expressão facial e corporal, enfim, fatores
que podem confirmar ou alterar inteiramente o sentido, o MÔNICA PEDROSA: Estamos tendo a oportunidade de
humor, a ambientação do texto criado pelo poeta e pelo estudar as teorias de tradução, desenvolvidas por vários
compositor! O bom intérprete deve ler nas entrelinhas da teóricos, poetas e escritores. Empregadas inicialmente
partitura e decidir como interpretar/traduzir o que está no âmbito dos estudos literários, estas teorias têm sido
nestas entrelinhas. Daí o cuidado em se conhecer bem os aplicadas à criação e à interpretação de obras artísticas
textos, tanto o musical quanto o literário, e os seus con- de uma maneira geral. Octávio Paz, escritor mexicano, diz
textos históricos, sociais etc. algo como “tradução e criação são operações gêmeas e
muitas vezes, não se distingue a tradução da criação. Há
MÔNICA PEDROSA: Também acredito nas inúmeras uma contínua e mútua fecundação”. Acredito que a histó-
possibilidades de leituras que uma partitura oferece. As ria da música ocidental pode ser vista como uma rede de
tradições orais estão sujeitas a constantes modificações imitações, traduções e criações. Cada coisa é sempre a tra-
devido à sua forma de transmissão. A música popular, for- dução de uma outra coisa. Nada é gerado espontaneamen-
temente baseada na tradição oral, esteve sempre aber- te. Traduzimos, sempre de forma diferente, contribuindo,
ta a modificações no ritmo, melodia, harmonia, instru- modificando. Quando se conhece a produção realizada no
mentação etc. Já a música de tradição escrita foi tida Brasil, modifica-se automaticamente a nossa percepção da
por muitas correntes interpretativas como uma música produção realizada fora do Brasil, por que novos elementos
fechada, com um sentido pronto e definitivo. Mas nesta serão percebidos e colocados em questão. Temos orgulho

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de nossos arquitetos, de nossos poetas, nossos pintores. tidos como brasileiríssimos. Mas ficam perguntas, como
Respeitamos a sua erudição. Com relação às nossas can- sobre a origem da polifonia dos chorões do século XIX.
ções de câmara, precisamos primeiro conhecê-las. Conhe-
cendo-as, podemos encontrar diferentes parâmetros para Uma possível contribuição do grupo talvez seja metodo-
avaliá-las, compará-las entre si e com o mundo externo. lógica. Estamos lançando mão de procedimentos analíti-
Podemos sempre encontrar nessas canções algo de único, cos interdisciplinares e diversos e os resultados tem sido
de diferente e, principalmente, algo que nos dê a sensa- satisfatórios. Por exemplo, muitas das obras analisadas
ção de pertencer a algum lugar. As várias manifestações realizam o que chamamos de traduções intersemióticas,
de música popular no Brasil são para nós tão naturais que quer dizer, os compositores buscam uma transposição da
nos parecem que foram geradas espontaneamente em solo linguagem poética para a linguagem musical (lembrando
brasileiro. Nos esquecemos de que, como nação relativa- que o nosso grupo considera a música como linguagem). A
mente nova, nossa base musical é estrangeira, assim como maior parte das canções que temos estudado, mais do que
nossa língua. Chico Buarque, em sua canção Paratodos, simplesmente comentarem o poema no qual se baseiam,
cita Tom Jobim como seu maestro soberano. Tom Jobim revela verdadeiras correspondências entre texto e música
conhecia as obras de Villa-Lobos e dedilhava os prelúdios no sentido baudelairiano do termo. Algumas canções, em
de Chopin. Isto ilustra a mistura que está longe de ser ho- geral as mais modernas, parodiam o texto com a música.
mogênea e que começou com o começo do Brasil. Pouquíssimas contrariam ou não se preocupam com o sen-
tido do texto original. Observamos ainda o uso de recursos
12 - ANDRÉ CAVAZOTTI: Um dos objetivos do proje- como a tematização e a passionalização, descritos por Luis
to é analisar todas as canções coletadas. Vocês têm Tatit para a canção popular, além de evidentes relações
encontrado alguma tendência ou características co- entre o desenho melódico e a inflexões da fala, isto sem
muns no repertório? falar nos recursos retóricos e nas figurativizações que já
eram empregados nas canções por trovadores e madriga-
LUCIANA MONTEIRO DE CASTRO: Nos três primeiros listas. Percebemos fenômenos de intertextualidade como
anos de trabalho, demos ênfase a alguns compositores a citação e a paráfrase. Alguns compositores ultrapassam
precursores da canção brasileira, nascidos nos finais do sé- a seara do simples poema, construindo novas narrativas a
culo XIX e início do século XX, como Alberto Nepomuceno, partir da junção de poemas, organização de ciclos ou gru-
Francisco Braga, Lorenzo Fernandez e Helza Camêu. Mas pos de canções. Evidentemente, há no corpus de canções
temos ainda um número de obras analisadas muito peque- de câmara brasileira algumas obras com estruturas muito
no em relação ao corpus que temos diante de nós. Mas o simples onde a música apenas sublinha as palavras ou am-
que percebemos dentro desta amostragem, é que a canção bienta o texto. Enfim, o conjunto das canções de câmara
de câmara brasileira é polifônica no sentido que Bakhtin brasileira é tão diverso que exige uma abordagem quase
atribui à palavra. Há nessas canções uma espessa sobrepo- sempre no formato dos estudos de caso ou multi-caso.
sição de textos, de camadas, daquilo que o crítico chama-
ria “vozes do outro”. Acreditamos que seja semelhante ao 13 - ANDRÉ CAVAZOTTI: Como tem sido a recepção
que acontece com as canções populares brasileiras. dos resultados do projeto “Resgate da Canção Brasi-
leira” no Brasil e no exterior?
Muitas destas canções de câmara têm características es-
sencialmente européias, como algumas canções de Alber- MARGARIDA BORGHOFF: Na realidade, alcançamos,
to Nepomuceno e Francisco Braga que conseguem pro- até agora, um âmbito regional, apesar de já termos
duzir obras maravilhosas com elementos da linguagem apresentado alguns resultados de nosso trabalho fora do
musical francesa ou das linguagens romântica e ultra-ro- estado. Em todas as ocasiões, recebemos demonstrações
mântica alemãs. Algumas canções, além de apresentarem de interesse e de valorização da nossa iniciativa. Talvez
características harmônicas e formais da música européia, os resultados práticos mais representativos só apareçam
apresentam em associação, certas constâncias rítmicas e quando a gente começar a editar e a gravar as canções
melódicas e certos modalismos característicos da música pelo selo da Escola de Música da UFMG que o Grupo
folclórica ou popular brasileira, urbana e rural. Essas as- pretende instalar até 2008. Aí entram os apoios da FI-
sociações, mais simples ou mais complexas, caracterizam NEP e da FAPEMIG para implementação dos equipamen-
uma música nacionalista, o que não é novidade. Mas o tos e subsídios de bolsistas para atividades técnicas e,
reconhecimento pontual desses elementos ou de certos naturalmente, o fundamental apoio da própria Escola de
tipos de interações entre os “fios” nos ajuda a graduar Música da UFMG, onde serão instalados os equipamen-
as ocorrências e a caracterizar melhor cada compositor. tos e onde se desenvolverão as atividades. Há mesmo a
Temos observado os recursos técnicos e criativos usa- perspectiva de construção de um novo prédio que abri-
dos pelos diferentes compositores ao tecerem um tecido gue um Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Música,
novo a partir de fios antigos e de outros pretensamente do qual faríamos parte. Esperamos também que outros
“novos”. A polifonia musical, propriamente dita, também pesquisadores se juntem a nós para que o escopo fique
se mostra muito presente nesse repertório. Observam-se mais abrangente, pois é muito trabalho para pouca gen-
heranças do período colonial, sobreposições de linhas ins- te envolvida.
trumentais típicas dos pioneiros grupos de choro, que são 14 – ANDRÉ CAVAZOTTI: O projeto tem estimulado a

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composição de novas canções, ou mesmo estimulado as fevereiro de 2005. Realizamos, em outubro de 2005, um en-
pessoas a enviarem para o grupo obras que vocês nem contro deste Grupo de Trabalho no nosso III Seminário da
imaginavam que existiam?  Canção Brasileira da Escola de Música da UFMG. A partir
de então, passamos a contar com a colaboração impres-
MARGARIDA BORGHOFF: Temos recebido correspon- cindível da fonóloga e foneticista Thaïs Cristófaro, também
dência de vários compositores que nos enviam obras nun- professora na UFMG, que deu novo direcionamento técnico
ca antes ouvidas. Eles enviam também comentários sobre ao trabalho. O último encontro deste GT na ANPPOM de
suas canções, o que nos ajuda nas análises das peças, Brasília, em agosto de 2006, foi muito produtivo.
que serão inseridas no guia eletrônico, disponibilizado no
site do projeto. Como eu já disse, nosso desejo de “res- LUCIANA MONTEIRO DE CASTRO: Apesar deste inte-
gate” é o resgate de um gênero. Assim, queremos traba- resse crescente, em algumas áreas mais conservadoras ou
lhar com canções novas também. De fato, nos diversos tradicionais da pesquisa em música, percebo certo des-
recitais do grupo, já pudemos interpretar canções novas, conhecimento do que realmente seja a CCB, do seu po-
obras muito interessantes de compositores profissionais tencial interpretativo e de pesquisa. Desconfio que muitos
ou de estudantes de composição. Neste ano, pretendemos consideram exclusivamente o lado prático dos recitais, de
buscar um maior contato com os compositores. Tenho a fato, normalmente bem tradicionais. Alguns se posicionam
intuição de que o projeto “Resgate da Canção Brasileira” negativamente frente ao rótulo “canto lírico” e não fren-
se tornará um espaço de mão dupla para a composição e te à canção propriamente dita, com seu valor artístico e
performance da canção brasileira. sua importância cultural. Outros, professores de música ou
cantores profissionais, explicitam o preconceito típico do
15 - FAUSTO BORÉM: Como a canção brasileira tem colonizado, referindo-se à CCB como “musiquinha”. Claro,
sido vista como objeto de estudo? dentro de qualquer repertório há obras fracas. Mas, ainda
assim, temos a preocupação “descolonizante” de conhecer
MARGARIDA BORGHOFF: Institucionalmente, as Pró- o amplo espectro deste gênero no Brasil, o que, no fundo, é
Reitorias e a Diretoria da Escola de Música da UFMG, seus uma busca de autoconhecimento. Eu acho que está passan-
colegiados e departamentos têm visto nossa proposta do da hora de pararmos de nos reconhecer na imagem que
com bons olhos. Tivemos o apoio na UFMG desde o come- as culturas dominantes fazem de nós e da nossa música.
ço, dentro e fora da Escola de Música, em todas as nossas
iniciativas, como a implantação das disciplinas, a cons- Por parte dos alunos, que farão o futuro da música, sinto
trução do guia eletrônico com auxílio do Laboratório da também um interesse crescente. As salas das disciplinas
Computação Científica da UFMG, o acolhimento de pro- optativas oferecidas sobre o tema estão sempre comple-
jetos de doutorado envolvendo a música pela Faculdade tas. Vários alunos que participaram do Projeto, alunos de
de Letras, a concessão de bolsas e o apoio na organização canto ou de instrumento, ao se graduarem, continuaram
de eventos pela Escola de Música e pelas pró-reitorias a estudar seus assuntos no mestrado. Há, entretanto, uma
de graduação. A Escola de Música ainda disponibilizou a reclamação freqüente, principalmente por parte de alu-
infra-estrutura necessária para elaboração de projetos de nos calouros, quanto à dificuldade de interpretar a can-
financiamentos, via agências de apoio à pesquisa, para ção brasileira, geralmente sob o ponto de vista da técnica
montagem do laboratório de pesquisa e implantação do vocal. Acho que estas dificuldades não revelam apenas
selo de gravação e edição de partituras. problemas técnicos, mas culturais, e temos trabalhado
nestas duas questões. Mas em relação ao repertório, eles
Do lado docente, percebo que os professores de canto das se mostram cada vez mais curiosos.
universidades brasileiras, de um modo geral, têm demonstra-
do uma preocupação crescente com o estudo da CCB. Mui- 16 – FAUSTO BORÉM: Como abordar um repertó-
tos desenvolveram seus mestrados e doutorados e orientam rio que traz textos tão díspares, por exemplo, tex-
alunos na pós-graduação com foco nesse tema. Isto repre- tos mais antigos, cujo português era diferente do
senta uma mudança radical em relação ao que acontecia até de hoje ou textos mais modernos, fragmentários e
meados da década de 1980. Nos últimos encontros de pes- com fortes conteúdos subliminares, como a poesia
quisa, especialmente nas áreas de performance, temos visto concreta ou, ainda, de realidades muito distantes do
o tema ser cada vez mais abordado. Uma atividade muito típico cantor urbano e “bem-educado”?
importante tem sido a busca de atualização das normas de
pronúncia do português brasileiro cantado. O assunto tem MÔNICA PEDROSA: Acredito que o primeiro passo é bus-
sido discutido em vários Grupos de Trabalho que vêem se car uma atitude aberta, evitando juízos de valor pré-con-
reunindo desde a ANPPOM de Porto Alegre, em 2003, com cebidos. Tem sido gratificante ver os alunos descobrindo as
a nossa participação e a de professores como Martha Herr, canções, num misto de estranheza e prazer, de resistência
Edmar Ferreti, Stela Brandão, Mirna Rubim, Adriana Kaya- e carinho, de aversão e vontade de se aproximar. A resis-
ma, Flávio Carvalho, Ângela Barra, Cyrene Paparotti, José tência existe, não há como negar, por muitas razões. Não
Vianey e muitos outros, com apoio das próprias universi- podemos nos esquecer que nosso país é marcado por uma
dades e de entidades como a ABC [Associação Brasileira de cultura de dominação, desigualdade e exclusão. No meu
Canto], que promoveu um amplo encontro para debate em entender, a heterogeneidade desse tecido, que é a canção

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de câmara, é conflituosa. Os elementos musicais estão lá prete. Neste gênero musical específico que é a canção
dentro mesclados, mas, do lado de fora, os diferentes sujei- de câmara, uma ênfase muito grande é dada à palavra
tos, que originaram as diferentes manifestações musicais, e, assim, a clareza da enunciação pode ser um elemento
estão se enfrentando. Por isso não é tão simples assim es- norteador para a adoção de algumas atitudes técnicas.
perar, não só de cantores, mas também de instrumentistas,
com suas preferências estéticas, inseridos num contexto Continuando meu raciocínio, as técnicas de emissão vo-
globalizado, com um ouvido no rock e outro em Mozart, cal se modificam também em decorrência do momento
que convivam naturalmente com este repertório. Lidamos histórico vivenciado pelos seus intérpretes. Em cada épo-
com uma questão de alteridade que é muito séria. Mas ca são observadas algumas tendências, alguns ideais de
sempre acreditei que é possível buscar um traço de iden- resultado sonoro. [NOTA DOS ENTREVISTADORES: veja
tificação nessas canções. Ser a voz do outro e ao mesmo abordagem histórica sobre o portamento no artigo de Da-
tempo ter a sua própria voz pode ser uma experiência con- niel Leech-Wilkinson que abre este número de Per Musi].
flitante, mas é muito bela. Vale a pena tentar. Reviver o Barroco durante o Romantismo só foi possível
porque as leituras de obras barrocas eram feitas segundo
Aqui na escola estamos satisfeitos com os resultados. É a sonoridade romântica: grandes orquestras, maior massa
uma aventura descobrir e realizar um repertório sem prati- sonora, grandes variações de dinâmica, vibrato etc. Não
camente nenhuma referência anterior, nenhuma gravação, foi à toa que o movimento pela autenticidade nas relei-
nenhum comentário de especialista. Nos divertimos com turas da música barroca, realizadas por especialistas em
os alunos nesta trajetória. Passamos tardes mergulhados música antiga, coincidiu com um momento da música
apenas na compreensão da poesia, estabelecendo relações contemporânea que privilegiava a estrutura sonora, a cla-
com a música, literalmente “viajando”. A interpretação reza dos sons e a diversidade de timbres. Cathy Berberian,
dessas canções representa um grande desafio e envolve principal intérprete da obra vocal de Luciano Berio, era
um grande trabalho de criação, ou ainda, de tradução. também uma cantora de música antiga. O estudo inter-
pretativo da música leva em conta não apenas as suas es-
Com relação aos textos antigos, às vezes eles realmen- truturas internas, mas o tipo de sonoridade pretendida pe-
te causam estranhamento nos alunos e em nós também. los instrumentistas. A voz é um instrumento que permite
Muitos contêm palavras e expressões que hoje caíram em múltiplas configurações internas. Imagine a caixa de um
desuso no português moderno. Quando cantamos em ale- violino alargando-se ou estreitando-se durante uma per-
mão um poema de Heine, esse desajeitamento se dilui por- formance! Portanto, existem muitas maneiras de cantar,
que traduzimos muito mais o sentido do texto do que as que vão se modificando com o gosto, as necessidades e
palavras propriamente ditas, adaptando-o à nossa época. os ambientes de performance de cada época. A autentici-
Mesmo quando traduções literais são feitas, é difícil dar dade na interpretação de muitas canções brasileiras pode
conta da dimensão temporal dessas palavras. Nos textos ser buscada a partir de gravações antigas. Talvez sejam
em português as palavras estão lá, intocáveis, insubstituí- mais autênticas. Mas, ao final, cabe ao intérprete se situar
veis. Acredito que este é um dos pontos centrais com o nesses diversos contextos e fazer suas escolhas pessoais.
qual o intérprete da canção brasileira tem que lidar. Es-
tranhamos mais a linguagem verbal mais antiga – muitas É por isso que, ao interpretar uma canção e escolher as so-
vezes nem tão antiga assim – do que a música mais antiga noridades, acredito na diversidade das redes de significa-
apenas instrumental. Mas trabalhar com textos poéticos é ções atuantes na música e na poesia, significações que po-
sempre instigante, sejam eles antigos ou contemporâneos. dem ser tanto intrínsecas ao fato musical e poético quanto
Canções contemporâneas, muitas vezes escritas em lin- extrínsecas, e que incluem o fator tempo, os processos
guagem atonal ou serial, podem apresentar aos intérpretes composicionais - também chamados processos poiéticos
dificuldades de leitura, mas constituem uma oportunidade - e os processos perceptivos, ou seja, aquilo que percebe-
única de expressão, pois lidam com situações e questiona- mos das obras. Há ainda os contextos sociais, culturais e
mentos atuais. Temos lido e interpretado, inclusive, obras históricos - vocês podem observar que estou utilizando a
de jovens compositores com poemas e linguagem musical teoria tripartite da semiologia musical de J.J. Nattiez.
contemporâneos, com resultados surpreendentes.
Muitas vezes as canções brasileiras acabam sendo ava-
17- ANDRÉ CAVAZOTTI: Por falar em “antigo”, como liadas a partir de suas interpretações, o que é mais fácil
vocês têm se posicionado quanto à “impostação vo- e imediato do que abrir uma partitura e estabelecer ele-
cal” ou técnicas vocais específicas para a performan- mentos sobre os quais uma interpretação será definida. É
ce desse repertório? por isso que realizamos nossas escolhas técnicas primei-
ramente mergulhando nas obras: estudamos a partitura,
MÔNICA PEDROSA: Acredito que a técnica vocal não cantamos, tocamos, observamos as relações musicais in-
é um fim, mas um meio. Ela é adaptável à variedade do ternas, estudamos o poema, procuramos sua forma escri-
repertório para que seja possível traduzir, da forma mais ta original (tarefa às vezes muito difícil de ser realizada
apropriada que se julgar possível, as particularidades de porque os volumes de poesia também andam precisando
cada canção. Em diferentes canções, elementos distintos de resgate), observamos questões estilísticas.
podem ser valorizados, dependendo da postura do intér- Mas somos cantores de hoje, inseridos na nossa contem-

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poraneidade. Construímos nossas redes pessoais de signi- de que a palavra seja bem dita e bem compreendida e para
ficação. E isto implica no som que construímos para nossa que o estilo interpretativo seja adequado ao contexto da
voz. Temos nossos ideais sonoros de colocação vocal, temos própria obra e ao ambiente da apresentação. Como já disse,
nossa língua, temos a “colocação” de nossa língua, com a este é um trabalho de “tradução” realizado pelo intérpre-
qual aprendemos a falar e que predispôs nosso trato vocal te e esta pode ser uma tradução contextualizada. Já há
para determinadas configurações. O que falei para a mú- uma grande preocupação dos profissionais do canto mais
sica erudita como uma rede de múltiplas traduções, como ligados à academia quanto à pronúncia do português bra-
um tecido onde imitação e criação se misturam, vale para sileiro cantado, como temos visto nos Grupos de Trabalho
a técnica erudita. Buscamos força, flexibilidade, igualdade dos congressos da ANPPOM. Por outro lado, ainda há uma
nas transições de registro, extensão, prezamos o controle, tendência de muitos profissionais, especialmente os que se
a clareza das notas e do texto, temos amor pelas sutilezas preocupam apenas com a performance e, geralmente, não
tímbricas, pelas sutilezas de dinâmica e, principalmente, pesquisam, de não discutirem a adequação da técnica à
respeitamos a personalidade vocal que cada voz possui. interpretação da CCB. Muitos já eliminaram excessos na
performance da canção, antes bem aceitos como prática vi-
LUCIANA MONTEIRO DE CASTRO: Esse assunto me en- gente, como certos tipos de portamento, ataques das notas
tusiasma e me leva a abordar ainda alguns pontos. Pri- “por baixo”, vibração múltipla do “r”, vibrato amplo e cons-
meiramente, lembro que a canção brasileira foi criada e tante, volume exagerado da voz etc. Também já adaptamos
tradicionalmente interpretada no meio do canto lírico a dicção a alguns padrões mais modernos e procuramos
que, como todos sabem, tem na sua base técnica os prin- fugir de alguns estrangeirismos. Mas nos falta ainda fazer
cípios da impostação vocal e da dicção lírica, desenvolvi- com que o nosso texto cantado, cujo sentido poético nem
dos para determinados idiomas europeus, com objetivo de sempre é direto e de fácil apreensão, seja mais inteligível e
melhorar a projeção do som vocal sem prejuízo da saúde contextualizado. Mesmo que a tradução seja, por princípio,
do cantor. Só mais tarde foi adaptada ao português do intimamente vinculada à obra em si, à sua partitura, ela
Brasil. Em segundo lugar, o canto lírico pode comprometer não pode desconsiderar o ambiente que a envolve, sob pena
a compreensão de palavras em qualquer idioma, não só de prejudicar a sobrevivência da obra. Como disse a Môni-
do português! Um terceiro ponto: a qualidade artística e ca, a técnica é um meio, e não um fim. Este é um assunto
a forte presença da canção popular na rotina do brasileiro polêmico no nosso meio, mas do qual não podemos fugir. E
podem ter influenciado no nosso gosto por uma voz não tudo tem nos levado a crer que a obra de arte é uma via de
impostada em português e a impostação perdeu o seu es- duas mãos – a da interpretação e a da recepção.
paço, principalmente depois do movimento bossanovista.
O jovem aluno de canto, como grande parte do público 18 - FAUSTO BORÉM: Como é a recepção do público
brasileiro, pouco habituado a ouvir a voz impostada em que ouve a canção brasileira de câmara?
português, acha muito “estranho” cantar em “brasileiro”
com “voz de ópera”, como eles dizem. E apesar do alu- LUCIANA MONTEIRO DE CASTRO: A canção de câmara
no saber que o cantor lírico interpreta tradicionalmente a não se apresenta com o mesmo acesso fácil e rápido que
canção de câmara com voz impostada, em qualquer idio- a maioria das nossas canções populares, não apenas do
ma, ele não encontra em si próprio um “ponto” de encaixe ponto de vista harmônico ou melódico, mas também pela
para cantar no seu idioma. Não consegue ouvir na sua voz praticidade de ser realizada, por exemplo, com um acom-
impostada a naturalidade que percebe na sua voz falada. panhamento simples ao violão. Não nos permite a flexibi-
lidade de escolhermos subitamente o tom, de mudarmos
Apesar do meio do canto ser bastante conservador, afi- o andamento aprendido nos discos, de inserirmos uma
nal construímos todo nosso estudo nesta perspectiva e percussão, de cantarmos uma segunda voz, de mexermos
acredito que o canto impostado é mesmo um excelente na letra, de cantarmos esse repertório nas festas, em ro-
meio de projetar e proteger a voz, não podemos deixar das de amigos e em shows com amplificação. As canções
de considerar estes três pontos que citei e de questionar de câmara são mais para serem ouvidas em ambientes
a adaptabilidade e a eficiência da “técnica erudita” na intimistas, mais contemplativos, como se estivéssemos
interpretação da canção de câmara nos dias de hoje. Não lendo um poema, ouvindo atentamente alguém contar
podemos ainda nos esquecer que o conceito de música de um caso, admirando um quadro em uma exposição, as-
câmara tem mudado muito e ainda não podemos descon- sistindo a um balé. Não é uma música pra qualquer hora
siderar a existência dos processos de amplificação sonora, e lugar. Eu acho que ela requer um lugar e um momento
cada dia melhores e mais eficientes. apropriado. Precisa haver uma adequação.

Diante destes fatos concretos, acredito que, como intérpre- Assim, temos procurado preparar os ambientes para a sua
tes da CCB, possamos recorrer a alguns aspectos técnicos recepção. Semanalmente, na Escola de Música da UFMG,
acústico-fonológicas eficientes e então negociar decisões a Guida organiza uma visita guiada de alunos de escolas
interpretativas que influem diretamente no resultado es- públicas, de jovens do ensino fundamental. Antes de cantar
tético final da performance das nossas canções. Há níveis e tocar, falamos sobre as canções, os instrumentos, as vozes,
diferentes de impostação e há cuidados com a inflexão e a a poesia, a história por trás da obra. As crianças e adoles-
dicção das palavras que podem e devem ser tomados, a fim centes ficam sempre mais atentos e muitos se emocionam:

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BORÉM, F.; CAVAZOTTI, A. Entrevista com Luciana Monteiro de Castro... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 78-86

aplaudem, riem e até choram. Esta é a adequação da qual Mestrado em Música da UFMG sobre o tema, ingresso de
estou falando. Para que alguém compreenda ou seja tocado 2 professores do Grupo em programas de doutorado com
de alguma forma por uma canção, precisa identificar-se em pesquisa sobre o tema, montagem do Laboratório da Can-
alguma camada ou fio que compõe a obra. Precisa sentir que ção Brasileira, que receberá em breve importante acervo de
pertence de alguma forma àquela trama, precisa ouvir a sua obras e finalmente, a criação do Selo de Gravação da Escola
própria voz naquele discurso, e isso nem sempre é imediato de Música da UFMG, com aquisição de novos equipamen-
na canção de câmara, pois o tecido às vezes é feito por fios tos de gravação, microfones, softwares, computadores, um
demais. Por outro lado, como exemplo de inadequação na piano de cauda Steinway e um Disklavier. Ao lado de todos
sua divulgação e percepção pelo cidadão comum, cito o que esses resultados, caminham as diversas vertentes da pesqui-
acontece na mídia, especialmente na televisão. Nas pou- sa, que englobam o levantamento bibliográfico - incluindo a
cas vezes que a CCB aparece, ela é representada por uma localização e seleção de partituras -, os estudos analíticos e
cantora estereotipada, normalmente numa situação carica- interpretativos e a adaptação ou desenvolvimento de meto-
tural. Há quase sempre uma paródia envolvida. O público dologias analíticas. Parece um trabalho sem fim, mas é tão
em geral, pouco atento às manipulações sócio-culturais, fascinante que nem nos preocupamos com isto!
simplesmente acha graça e passa a ver aquele repertório
com estranheza ou deboche. Acompanhando esta linha de Luciana Monteiro de Castro é Professora Assistente de
raciocínio, as gravadoras comerciais e editoras se afastam Canto na Escola de Música da UFMG. Concluiu o Curso de
do gênero, o que gera um círculo vicioso. Pra mudar isto, Canto no Conservatório Nacional em Lisboa e graduou-se
temos que começar pela base, pelo processo de educação. em Canto pela UFMG, onde realizou Mestrado em Per-
formance. Cursa Doutorado em Literatura Comparada na
19 - ANDRÉ CAVAZOTTI: O grupo de pesquisa “Resga- Faculdade de Letras da UFMG.
te da Canção Brasileira” tem envolvido um contingente
considerável de pesquisadores, professores, alunos e téc- Mônica Pedrosa de Pádua é Professora Assistente de
nicos. Podem fazer um “balanço” de sua produção? Canto na Escola de Música da UFMG. Bacharelou-se em
Canto nesta escola e obteve Mestrado em Canto na Ma-
MARGARIDA BORGHOFF: Embora os resultados mais vi- nhattan School of Music em Nova York. Doutoranda em
síveis e imediatos se traduzam nos recitais, nas edições de Literatura Comparada na Faculdade de Letras da UFMG.
partituras, nas análises das obras, nas palestras e nos artigos
publicados, outras conquistas só serão percebidas em longo Margarida M. Borghoff é professora Adjunta de Piano na
prazo. Esperamos, principalmente, que os alunos de canto, de Escola de Música da UFMG. Em Freiburg, Alemanha, sob
instrumento e de composição reconheçam e valorizem a can- orientação de Fany Solter e Helmut Barth, concluiu o Mes-
ção brasileira como um repertório importante e que desejem trado em Música de Câmara. Em Karlsruhe, concluiu o Douto-
difundi-lo como intérpretes ou professores; que se tornem os rado em Liedbegleitung (acompanhamento de cantores), sob
atores de ações do projeto no futuro. Queremos que a canção a orientação dos professores Hartmut Höll e Mitsuko Shirai.
de câmara brasileira seja um instrumento de construção de Coordena o grupo de pesquisa Resgate da Canção Brasileira.
identidade, um veículo de integração cultural.
Fausto Borém é Professor da Escola de Música da UFMG
Falando em termos numéricos, temos até uma resposta e pesquisador do CNPq. Criou e edita a revista Per Musi,
na ponta do lápis. Concluímos o relatório final do projeto implantou o Mestrado em Música na UFMG e coordena
referente ao período de 2003 a 2006, em que listamos as os grupos de pesquisa ECAPMUS (Estudos em Controle e
seguintes atividades: oferta, durante 8 semestres, de disci- Aprendizagem Motora na Performance Musical) e PPPMUS
plinas na graduação com foco na CCB (Canção de Câmara (“Pérolas” e “Pepinos” da Performance Musical). Publica
Brasileira) com participação de cerca de 90 alunos; apre- trabalhos nas áreas de performance, composição, musico-
sentação de 13 comunicações de pesquisa, 3 das quais em logia, etnomusicologia e educação musical. Como contra-
eventos internacionais; elaboração de um guia virtual das baixista, recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior.
canções brasileiras (disponível no site www.grude.ufmg.br/
cancaobrasileira), coordenação do Grupo “Muito Além do André Cavazotti é Professor Adjunto na Escola de Mú-
Vai Azulão”, com participação de 9 bolsistas da graduação sica da UFMG. Doutor em Música pela Boston University
e realização de 75 recitais no Campus Pampulha da UFMG (1998), sua tese de doutorado consiste em um estudo es-
e em outras escolas, orientação de 4 bolsistas de iniciação tilístico sobre as Sonatas para violino e piano de M. Ca-
científica, apresentação de 37 recitais em diversas cidades margo Guarnieri. Mestre em Música pela UFRGS (1993),
de Minas Gerais e do Brasil, 16 deles em parceria com a Fun- estudou violino com o Prof. Marcelo Guerchfeld e, sob
dação de Educação Artística (Série Musica Vocal Brasileira a orientação do Dr. Celso Loureiro Chaves, defendeu sua
em Perspectiva), organização de 3 Seminários da Canção na dissertação de mestrado, que é uma investigação sobre
UFMG com participação de professores convidados, partici- a utilização de processos seriais nas canções do LP Clara
pação em 5 Grupos de Trabalho para discussão e deliberação Crocodilo de Arrigo Barnabé. Suas atividades como violi-
nacional sobre a “pronúncia neutra” do português cantado; nista o levaram a realizar recitais e concertos em diversas
publicação de 4 artigos em periódicos científicos, publica- cidades brasileiras e norte-americanas.
ção de 2 cadernos de partituras, orientação de 3 alunos no

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PARIZZI, M. B. Série Poemas Musicais de Cecília Cavalieri... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 87-89

PEGA NA CHALEIRA - RESENHAS

Série Poemas Musicais de


Cecília Cavalieri: uma análise1
Maria Betânia Parizzi (UEMG e Núcleo Villa-Lobos de Educação Musical, Belo Horizonte)
betaniaparizzi@hotmail.com

Palavras-chave: canção brasileira, música para crianças, educação musical, Cecília Cavalieri França.

Cecília Cavalieri´s Poemas Musicais series: an analysis

Keywords: Brazilian song, music for children, music education, Cecília Cavalieri França.

Uma confluência perfeita entre texto poético e música – primeira música, Maria Fumaça, proporciona ao ouvinte
poderiam ser essas as palavras para definir Poemas Musi- um passeio, morro acima - morro abaixo, através da uti-
cais, uma série de canções compostas por Cecília Cavalie- lização expressiva do pentacorde maior, de contrastes de
ri França, destinadas às crianças e à educação musical. agógica e timbre, e de uma harmonização colorida, que
chega a surpreender! A seguir, Menina cria um clima de
Lançada em 2003, a série Poemas Musicais pode ser con- sonho, que é enfatizado pela delicadeza da marimba de
siderada uma síntese da trajetória de Cecília como edu- vidro associada à expressividade melódica do violoncelo.
cadora musical e musicista. Desde menina, fascinada Chega então uma outra menina: a Tippi. Entretanto, essa
pela poesia e pela música, ela já queria “ensinar música menina é peralta, valente. Saltita durante toda a canção
para outras meninas”. Seus poemas foram surgindo es- (através do ritmo pontuado!) enquanto brinca com seus
pontaneamente, quando Cecília era bem pequena e ainda melhores amigos – sapo, jacaré, onça, calango e, até mes-
não sabia escrever. Assim, aos poucos, a confluência entre mo, com a cobra.
texto e música foi acontecendo naturalmente e as can-
ções começaram a surgir. Fazendo parte da série Poemas De repente... Uma valsa. É a aranha que chega “croma-
Musicais, já foram lançados dois CDs e um livro com as ticamente”! Peix´ vem a seguir, com seu texto sonoro...
partituras, letras e cifras de muitas das canções dos CDs, remex´... riach´. A surpresa ao final da canção, “pescador
bem como de outras canções da autora. ensopado”, encanta e surpreende as crianças. Noir, o Gato
chega então. O compromisso entre texto e música é evi-
O CD Poemas Musicais: ondas, meninas, estrelas e bichos, dente. As notas mais agudas, alcançadas por saltos, ficam
que inaugurou com sucesso a série, foi finalista do Prê- sempre no ar, ou...“Noir”. E existe outro animal que salte
mio TIM 2004, categoria CD infantil. Logo de início, a tão bem quanto o gato e os outros felinos?

1
Todas as citações sem referências utilizadas nesse texto foram obtidas nos textos dos dois CDs, no Livro da Série Poemas Musicais ou em conversa
informal com Cecília Cavalieri França.
PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.15, 94 p., jan - jun, 2007
Recebido em: 28/11/2006 - Aprovado em: 13/02/2007
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PARIZZI, M. B. Série Poemas Musicais de Cecília Cavalieri... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 87-89

Chuva emociona pelo refinamento da melodia e pela be- o Professor Keith Swanwick2 no Mercado Central de Belo
leza do texto poético: Horizonte, quando ele experimentou, fascinado, um Ca-
“Bom é sempre transformar qui pela primeira vez! As marimbas de vidro utilizadas no
A chuva em folia belo arranjo contribuem para criar um “clima exótico” e
Só chover se precisar reforçar o jogo de palavras do refrão:
De um pouco de alegria”. “Fruta exótica aqui é fruta de lá
Fruta exótica lá é fruta daqui
Em O morro e o Sonho, “o alto morro e a velha casa” Fruta exótica aqui é fruta de lá
são surpreendidos por uma bela modulação que trans- Fruta exótica lá: caqui”.
porta “a menina e os pequenos” para outra atmosfe-
ra harmônica. A seguir, uma melodia pentatônica, em “Sanfona e guitarra” criam um clima de festa: é o Forrock
compasso composto: é o Coqueiro da Praia embalando da Bicharada. Em meio ao baile, cada um dos animais da
o ouvinte suavemente. Duna, a próxima canção, apre- floresta sugere movimentos como espreguiçar, balançar
senta uma melodia concebida em quiálteras e ritmos os braços, esticar o pescoço, pular em um só pé, rebolar,
pontuados e que também reforça o compromisso tex- os quais certamente despertam grande interesse e pro-
to-música, próprio da obra de Cecília: para se chegar à movem a imediata participação das crianças. Ao por do
última nota da canção e se cantar a palavra “céu”, há sol, tudo se acalma:
um intervalo de sétima ascendente, precedido (e valo- “Aconteceu, anoiteceu
rizado!) por uma pausa. lá na floresta.
Descansou a bicharada
O Palhaço e a Bailarina criam dois caracteres expressivos Foi sonhar com outra festa”.
que contagiam as crianças. Instantaneamente, como num
passe de mágica, elas reagem corporalmente à canção Cavalo Marinho, a seguir, emociona pelo contraste parado-
com uma enorme alegria. O Patinho Feio, última canção xal entre sua delicadeza e sua força. Aqui, entretanto, esses
deste CD, com seu tempo rubato, também é capaz de conceitos aparentemente opostos se completam para criar
mobilizar crianças e adultos. A melodia, predominante- um dos momentos mais belos do CD. A melodia tem o cará-
mente em graus conjuntos, tem seu fluxo represado nas ter pendular e flutuante, fluindo como uma onda pela ex-
três primeiras frases. A surpresa acontece quando ela se tensão de uma décima. O movimento melódico da primeira
expande, docemente, na última frase. frase, após um impulso ascendente, muda repentinamen-
te de direção e desce, docemente, o âmbito de oitava, em
Toda Cor, o segundo CD da série Poemas Musicais, foi intervalos de terças e segundas, chegando ao repouso. A
lançado em outubro de 2006 e vem consolidar o forte segunda frase repete inicialmente o mesmo procedimento
estilo da autora. Apresenta as mesmas características do da anterior, apresentando, entretanto, certa contenção do
primeiro CD: “idéias originais cheias de delicadeza, afe- fluxo rítmico-melódico ao final. A terceira frase, que tam-
to, humor e fantasia”. A primeira canção, em compasso bém se inicia com um impulso rítmico-melódico, logo após
composto e andamento rápido, transporta o ouvinte para um aparente estancamento, retoma seu fluxo em outro
a Casa de Vó, com direito a guloseimas, histórias encan- grande impulso ascendente. A última frase utiliza o mesmo
tadas e cheiros da infância. “O acompanhamento do pia- procedimento da anterior e o repouso final acontece, sur-
no (acorde no registro médio e baixo no grave) imita o preendentemente, na nota mais aguda da melodia.
andar da vovó com sua bengala”. Aqui, mais uma vez, o
compromisso evidente entre texto e música: a melodia é Toda Cor, a canção que deu nome ao CD, surge então,
pentatônica quando o texto fala das brincadeiras, e dia- quebrando o clima gerado pela música anterior, com mui-
tônica quando se refere ao dia santo e às rezas. Na última ta alegria e descontração, em compasso 5/8. Morena de
estrofe, a vovó se despede das crianças com uma melodia Angola completa essa alegria com suas síncopes que são
descendente, enquanto as crianças “sobem a serra para um convite à dança e à improvisação com instrumentos
Belo Horizonte”, impulsionadas por uma escala maior as- de percussão. De repente, uma viagem à Itália. Uma típica
cendente. Tarantela! Pietro e Maria cantam (e contam) com muito
humor suas peripécias culinárias e artísticas. O Da Capo
Bicho vem a seguir, com um texto inteligente e bem hu- acelerado, ao final da canção, é uma grande surpresa!
morado, nos remetendo, quem sabe, aos Saltimbancos...
“Tudo light para o elefante Retomando o clima de sonho, Boneco de Neve explora,
Come alface e é tão elegante”. sutilmente, contrastes de altura (voz masculina e voz in-
fantil, piano e cello) e abre espaço para Querubim, uma
Caqui, a terceira canção do CD, é igualmente bem hu- verdadeira “oração de criança”, velada pelo som da har-
morada e apresenta um padrão rítmico semelhante ao da pa... Quase uma canção de Natal. Mapa, interpretado por
anterior. Foi inspirada em um passeio que Cecília fez com Cecília e seus filhos, seria uma aula de geografia ou de

2
Keith Swanwick é Professor do Institute of Education da Universidade de Londres.

88
PARIZZI, M. B. Série Poemas Musicais de Cecília Cavalieri... Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 87-89

ciências? Ou seria, na verdade, uma aula de poesia?... Para ondas, meninas, estrelas e bichos e de Toda Cor também
encerrar o CD, quase em ritmo de samba-enredo: Samba foram criadas e produzidas por artistas plásticos, o que
pra Lua Vir. revela o cuidado e o refinamento que caracterizou todo o
processo de elaboração dessa série.
Poemas Musicais: ondas, meninas, estrelas e bichos e Toda
Cor trazem, a partir da faixa XIII, os playbacks de todas Contrastes de timbre, altura, intensidade e andamento;
as canções. Assim, os professores poderão utilizá-las em harmonias coloridas; melodias contidas, melodias que
sala de aula de uma forma mais livre e mais adequada às se expandem; caracteres expressivos contrastantes: cli-
necessidades e ao interesse de seus alunos. mas de festa e alegria, climas de introspecção e sonho;
samba, tarantela, valsa, rock, forró e muitas outras coi-
As canções de Cecília primam pela unidade formal gerada sas mais... Tudo isso com poesia, humor, inteligência e
pelos procedimentos de repetição e variação utilizados emoção. Uma criança jamais sairá ilesa após todo esse
pela compositora. As surpresas, causadas pelos contrastes acervo de experiências sensoriais, afetivas e estético-
presentes em praticamente toda a obra, muito contribuí- musicais. Essa questão é bastante significativa uma vez
ram para valorizar este equilíbrio formal e foram respon- que “o mundo da criança vem sendo invadido por um
sáveis, juntamente com a expressividade dos arranjos e repertório musical que prioriza valores comerciais e des-
das interpretações, por manter o interesse e a atenção virtua a delicadeza e sinceridade do universo infantil”
do ouvinte. Vale aqui ressaltar a beleza dos arranjos3 ela- (MARES GUIA e PARIZZI, 2003). Essas canções, utiliza-
borados por Cecília e por Luiz Enrique. Cada um deles das por educadores musicais ou mesmo ouvidas infor-
é único e pensado com exclusividade para cada canção. malmente, podem se constituir em um poderoso recurso
Os interpretes, instrumentistas e cantores (inclusive as capaz de fazer com que a música se torne uma forma
crianças!), foram também decisivos para a alta qualidade de expressão da criança e se transforme em um projeto
musical de ambos os CDs. As capas de Poemas Musicais: permanente em suas vidas.

Referências
MARES GUIA, Rosa Lúcia; PARIZZI, Maria Betânia. Prefácio. In: FRANÇA, Cecília Cavalieri. Poemas Musicais: ondas meni-
nas, estrelas e bichos. Livro de Canções. Belo Horizonte: e.a. 2003.
FRANÇA, Cecília Cavalieri. Poemas Musicais: ondas, meninas, estrelas e bichos. Belo Horizonte: Sonhos e Sons, 2003. 1CD.
FRANÇA, Cecília Cavalieri. Poemas Musicais: ondas, meninas, estrelas e bichos. Belo Horizonte: Sonhos e Sons, 2003. Livro
de canções.
FRANÇA, Cecília Cavalieri. Toda Cor. Belo Horizonte: Sonhos e Sons, 2006. 1CD.

Maria Betânia Parizzi graduou-se em piano pela Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais, onde tam-
bém obteve os títulos de especialista e mestre em Educação Musical. Foi aluna de Hans Joaquim Koellreutter por mais
de dez anos consecutivos. É professora do Curso de Licenciatura em Música e do Curso de Pós-Graduação em Educação
Musical da Escola de Música da Universidade do Estado de Minas Gerais, onde também coordena os estágios do Curso de
Pós-Graduação. É co-autora do livro Pianobrincando (1993) e do material didático do Projeto Música na Escola (Governo
do Estado do Minas Gerais), do qual também participou da equipe de coordenação (1997/8). É fundadora e diretora do
Núcleo Villa-Lobos de Educação Musical onde, desde 1985, desenvolve um trabalho de Educação Musical voltado para
crianças menores de cinco anos.

3
O arranjo para violão de Noir, o Gato foi elaborado por Luiz Naveda.

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BORÉM, Fausto. Quatro olhares experientes sobre a música coral brasileira. Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 90-92

Quatro olhares experientes sobre a música


coral brasileira
Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte)
fborem@ufmg.br

Palavras-chave: música coral brasileira, ensaio musical, práticas de performance, educação musical, voz.

Four experient views about the Brazilian choral music

Keywords: Brazilian choral music, music rehearsal, performance practices, music education, voice.

Nada de “ensaios” acadêmicos. O leitor encontrará, nes- dade e a espontaneidade. Fala sobre estratégias que agi-
te livro, “ensaios” na acepção mais musical do termo, da lizam o processo de aprendizagem do repertório, como as
prática musical. São quatro olhares experientes, bastante marcações de respiração e sinais de agógica na partitura,
experientes, os que nos fitam em Ensaios: olhares sobre a a numeração de compassos, a transcrição e a tradução
música coral brasileira, vendido a R$ 29,00 no site www. do texto literário, a qualidade das cópias e o cuidado de
oficinacoral.org.br. Três regentes e um compositor. O se evitar viradas de página desnecessárias. Lembra que o
Mestre e Doutor Carlos Alberto Figueiredo, Professor de regente de coral deve ser como “um médico, que, ao exa-
Regência Coral e Análise Musical na UNIRIO, comemora minar e dialogar com seu paciente, diagnostica o proble-
30 anos de carreira como regente coral e mais de vinte ma e apresenta soluções adequadas, naquele momento”,
como Professor de Canto Coral, tendo gravado quatro CDs mas alerta para o erro comum do “excesso de falatório
com o Coro de Câmara Pro-arte. Eclética, Elza Lakschevitz, do regente”.
pós-graduou-se pela UFRJ em composição, regência, pia-
no e órgão, coordenou o Projeto Villa-Lobos da FUNARTE A preparação da partitura para o ensaio ganha uma seção
e recebeu a dedicatória em obras de Ronaldo Miranda, à parte e Carlos Alberto não se furta de discutir tabus
Edino Krieger, Ernani Aguiar e Vieira Brandão. Enumere- como modificações na partitura pelo maestro, que po-
mos as atividades do multifário Nestor de Hollanda Ca- dem envolver transposição de tonalidades, mudanças na
valcanti: pesquisador, redator, arquivista, diretor musical, prosódia e na tradução do texto literário, mudanças de
produtor fonográfico, diretor de acervos musicais, revisor, notas ou na harmonia, modificação na designação das
arranjador, e. . . ufa, chegamos lá!, compositor de mais de vozes e, mesmo, modificação da métrica em função da
300 obras para as mais diversas formações. Samuel Kerr, acentuação das palavras. O autor valoriza a memorização
que completa o quarteto, é Professor de Canto Coral na das obras nas apresentações ou em partes do ensaio, mas
UNESP, Diretor premiado da Escola Municipal de Música lembra do risco de se aprender vícios, se esta for uma
de São Paulo e regente de diversos grupos corais e sin- prática constante. Outro erro constante que ele aponta é
fônicos, entre eles a Sinfônica Jovem Municipal de São o ensaio sempre “da capo ao fim”, o que impede os cora-
Paulo e o Coral Paulistano. listas de perceberem as seções da forma.

Carlos Alberto Figueiredo, que também é o organizador do Do ponto de vista estilístico, o autor aborda a estética
livro, apresenta uma abordagem bastante didática e ob- da emissão vocal e defende “emissões diferentes para
jetiva do canto coral. Detalha as diversas etapas na for- obras diferentes”, ilustrando seu ponto de vista com ina-
mação de regente coral, discutindo o treinamento teórico dequações como “. . . um moteto renascentista cantado
e prático da técnica de regência, da leitura, do solfejo, da com pessoas com vozes ‘de lavadeiras’. . .” ou “. . . uma
harmonia e da análise, do desenvolvimento da relação en- peça de características folclóricas. . . cantada com vozes
tre gestual e sonoridade, do conhecimento do repertório e operísticas, com vibratos excessivos.” Em outra questão
sua escolha, da disponibilidade de gravações comerciais, polêmica, alerta para o erro de “corrigir” quintas paralelas
das partituras comercializadas ou de livre acesso na in- e o dobramento de sensíveis que são manifestações es-
ternet. Discute cinco elementos que considera essenciais tilísticas típicas do período colonial brasileiro, afastadas
no desenvolvimento do cantor: musicalização, afinação, do modelo europeu. Ao mesmo tempo, advoga “peque-
emissão vocal, leitura e percepção da forma. nos pecados” os quais, em função de uma escrita mais
idiomática ter escapado aos compositores, mostram-se
Na condução do que chama de “ritual” do ensaio, o autor eficazes no dia-a-dia dos corais, como a oitavação de
enfatiza a importância de se estabelecer uma “pulsação” trechos acima e abaixo da linha do baixo para acomodar
de trabalho, no qual estão presentes a disciplina, a criativi- cantores com tessitura mais estreita ou explorar cantores

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.15, 92 p., jan - jun, 2007 Recebido em: 28/11/2006 - Aprovado em: 13/02/2007
90
BORÉM, Fausto. Quatro olhares experientes sobre a música coral brasileira. Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 90-92

com maiores recursos vocais. Mais raramente, recomenda tor de Hollanda Cavalcanti começa dizendo que “Nunca
a troca de notas entre as vozes ou o reforço do número de cantei num coral. Nunca regi um coral”, mas logo obser-
vozes por empréstimo a um naipe vizinho para enfatizar vamos como sua carreira se liga intimamente à história
uma linha que esteja meio escondida. mais recente do coral brasileiro, especialmente através da
parceria e convivência com o revolucionário Marcos Leite.
Elza Lakschevitz, entrevistada por Agnes Schmeling (esta Fala de suas primeiras experiências com a escrita coral na
uma engajada maestrina de coros e educadora musical Cantata de Natal, em Brincadêra dum Matroá, nos Cantos
no sul do país), revela a trajetória de uma primeira-dama de Trabalho e em O Morcego. Sua irreverência logo ficaria
do coral infantil brasileiro, em que se destacam sua lon- patente com a Peça de confronto para coro misto juvenil
ga experiência com o Coral do Rio de Janeiro, o Orfeão (Descontraído) em que os coralistas gritam “Meus protes-
Carlos Gomes e o Canto Em Canto e o Projeto Villa-Lobos tos . . . de estima e consideração” para o público.
que dirigiu na FUNARTE, tendo, com este último, formado
muitos regentes de coro pelo país fora do âmbito das uni- No início da década de 1980, juntam-se o humor sério de
versidades, ocasionalmente reunidos em painéis, cursos Nestor e o humor descontraído de Marcos Leite (“Marcos
de reciclagem e concursos nacionais. estava sempre bem-humorado e contrastava com minha
cara fechada”, “sentado, calado. . . [com] óculos escu-
Um dos pontos que defende ao longo de sua fala é a ne- ros”) para modelar, especialmente nos sete anos junto
cessidade de os maestros serem menos prescritivos nos com grupos Cobra Coral e Garganta Profunda, um coral
ensaios com coralistas infantis e procurarem “o som da brasileiro que se afastava da seriedade do coral europeu e
criança”, em função de sua musculatura em formação e integrava recursos cênicos, processo do qual participaram
“tessitura, volume e até colocação diferentes”. Por outro nomes como Regina Casé e Pedro Paulo Rangel.
lado, observa o artificialismo de muitos regentes de coro
infantil que usam o falsete para demonstrar às crianças Sua ópera-monólogo Cobras e Lagartos (barítono, clari-
e terminam por criar um modelo errôneo de timbre e de neta, violão e piano) mostra essa efervescência por que
ausência de relaxamento vocal. Fala também sobre o ví- passava a escrita coral no Brasil e cujo sucesso só poderia
cio da maioria dos maestros de coro de lerem os novos resultar, segundo a crítica tropicalista do colega-compo-
repertórios ao piano, ao invés de cantarem separadamen- sitor Aylton Escobar, de uma “. . . parceria de compositor
te cada linha e iniciarem a concepção sonora da obra do mais peça mais regente mais coral. Uma festa!”. Isto fica
ponto de vista da voz. mais claro na performance de Beba Coca-Cola (de Gilber-
to Mendes e Décio Pignatari), em que coralistas, ao levan-
Uma das mudanças que Elza estimulou e presenciou foi tarem a blusa para que o público lesse a palavra “cloaca”,
a atenção dos compositores se voltar para a composição deixavam os seios à mostra. Ingredientes do cotidiano
de um repertório brasileiro vocal para crianças. Aos com- viravam música, como atesta a curiosa história da gênese
positores amigos, ela sugeria que os mesmos assistissem de Agências de (o) emprego que Nestor compôs a partir de
a alguns ensaios e utilizassem sempre textos inteligentes, um caso da empregada de Aylton Escobar. Não valeram
que não subestimassem as crianças. Outra mudança foi os apelos de Cleofe Person de Mattos para que ele não
vencer a dicotomia vigente entre o modelo lírico de tra- mais compusesse “música doida”. Assim viriam ...Do cava-
dição européia e o modelo da música popular de não se lo do bandido e Oração da secretária. A crítica ao padrão
preocupar com o desenvolvimento técnico. Ainda outra, vigente do ensino de canto aparece na improvisação dos
que está ligada ao “abrasileiramento” da prática coral e cantores; um brada ”Quatrocentos anos de tradição não
que se tornou uma forte tendência na década de 1980, podem acabar assim! Oitavas seguidas, quintas parale-
foi a consciência cênica na preparação das crianças tanto las!” Mesmo os motetos do Padre José Maurício gozavam
para a ópera quanto para apresentações a cappella. de tratamento cênico inusitados.

Elza destaca modelos como a precisão rítmica e a afina- Nestor fala como a predileção dele e de Marcos Leite “. . .e
ção das crianças eslovenas, o leve vibrato e a tradição de quase toda a humanidade” pelos Beatles os motivaram
gospel norte-americana, o timbre “só de meninos” dos in- a criar arranjos de música popular (Caetano Veloso, tal-
gleses, mas defende um coral infantil brasileiro com base vez o preferido deles na MPB) que também se tornaram
no modo como as nossas crianças falam e na sua cultura, uma tendência no coral brasileiro. Estavam ajudando a
suas brincadeiras. Mostra-se preocupada com o que seria quebrar a “barreira do som”, como diz Nestor, entre as
um abaixamento da tessitura das crianças brasileiras e músicas erudita e popular. Mais tarde, já longe de Marcos
levanta a hipótese de que isto estaria ligado ao repertório Leite, Nestor dá seguimento à sua história com o canto
massificado que se ouve no dia-a-dia. Ainda sobre o coro coral ao criar arranjos e a direção musical de 15 canções
infantil, Elza fala sobre as mudanças de voz nos meni- de Gilberto Gil para o Coral e Tal.
nos pré-adolescentes, o tempo e a avaliação do ensaio, a
afinação, a dicção, a utilização de obras estrangeiras e a Ao narrar sua trajetória ao lado de Marcos Leite, Nestor
construção da autoridade do regente de coro. Autoridade passeia pela criação do repertório, seu modo de escrever
que ela construiu com muito afeto. para coro, as gravações, as viagens, os concursos, os festi-
vais e, ao final, as divergências – ele, a favor de “arranjos
No terceiro e mais extenso capítulo, o compositor Nes- e obras originais cada vez mais difíceis”, e Marcos, que os

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BORÉM, Fausto. Quatro olhares experientes sobre a música coral brasileira. Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 90-92

queria mais fáceis. O que não o impediu de concluir que prios ensaios: Meu Boi Barroso e Cunhataiporã (esta, de
Marcos Leite foi “. . . a figura do canto coral mais importan- Geraldo Espíndola). Reforçando a idéia da autonomia do
te do final do século XX no Brasil. Sem mais nem menos.” grupo vocal, ou ”comunidade”, como ele diz, Samuel su-
gere a utilização, pelos próprios coralistas, de seus recur-
Finalmente, Samuel Kerr alinhava o quarto capítulo em sos instrumentais (percussão, violão etc.), composicionais
forma de carta, à qual acrescenta textos de programas (“. . .uma linha melódica que você poderia aproveitar. . .”)
e notícias de jornais publicados a partir de 1977. O tom e, mesmo, poéticos (“Será que ninguém nunca escreveu
é confessional e, por isso, o leitor acadêmico deve estar uma letra que gostaria de pôr em música?”).
preparado para suas divertidas colocações que podem
soar, algumas vezes, contraditórias. Ele, que é professor Samuel parece ser um ótimo contador de caso, mas
universitário e dirigiu uma escola de música, começa destes cujas histórias acabam motivando a sua própria
dizendo acreditar que “Regência Coral não se ensina!”, arte. Assim, a chegada de um rei na letra da música Ano
quando muito, se ensina “padrões de regência”, para Novo de Chico Buarque serviu de inspiração para o título
adiante alertar que “padrões podem tornar-se patrões, se e movimentação cênica de O Rei chegô. A partir daí, o
escrito com T de técnica”. Mais à frente, revela mais sobre praticável desmontável desta peça serviu de mote para
a psicologia do canto coral, discorrendo sobre o convívio outra, O Estrado, que estreou na I Bienal de Arquitetura.
entre os coralistas, o que inclui, claro, os ensaios. Diz que Em outra ocasião, os sinos impertinentes de um carrilhão
essa convivência é mais importante do que os concer- ao meio-dia, que atrapalhavam o ensaio do Coral da Rei-
tos e nos conta, com humor, de uma greve de contraltos toria da UNESP, acabaram fazendo parte do espetáculo
exigindo 60% de melodia e um baixo que protesta: “. . . Praça da Sé, ao qual foram também incorporados arrulhos
Chega de tum tum tum!”. de pombos, barulhos de cascata e sons de manifestações
públicas. Em Araraquara, foi a vez do apito da fábrica das
Com um tom mais educacional, Samuel defende a ela- Meias Lupo e assim por diante. Samuel cita um célebre
boração de arranjos por maestros de coro, mas “sem provérbio chinês - “O que pode ser aprendido não merece
demérito à atividade do arranjador”, e ilustra, em de- ser ensinado”. De fato, ele não soa professoral, mas, diver-
talhes, seu próprio processo composicional em dois tindo-nos com suas histórias, nos faz aprender.
arranjos que nasceram de demandas surgidas nos pró-

Referência Bibliográfica
FIGUEIREDO, Carlos Alberto; LAKSCHEVITZ, Elza; CAVALCANTI, Nestor de Hollanda; KERR, Samuel.
Ensaios: olhares sobre a música coral brasileira. Org. Eduardo Lakschevitz. Rio de Janeiro: Centro de estudos de Música
Coral / Oficina Coral, 2006.

Fausto Borém é Professor da Escola de Música da UFMG e pesquisador do CNPq. Coordena os grupos de pesquisa
ECAPMUS (Estudos em Controle e Aprendizagem Motora na Performance Musical) e PPPMUS (“Pérolas” e “Pepinos” da
Performance Musical), criou e edita a revista Per Musi, implantou o Mestrado em Música na UFMG. Publica trabalhos
nas áreas de performance, composição, musicologia, etnomusicologia e educação musical. Como contrabaixista, recebeu
diversos prêmios no Brasil e no exterior.

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HERR, Martha. Resenha sobre o livro O Canto Antigo Italiano. Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 93-94

Resenha sobre o livro O canto


antigo italiano
Martha Herr (UNESP, São Paulo)
fraudr@macbbs.com.br

Palavras-chave: música vocal, canto italiano, tratados de canto, música antiga

Review of the book O canto antigo italiano (The historically informed italian singing)

Keywords: choral music, italian singing treatises, historically informed music

O livro O Canto Antigo Italiano: uma análise comparativa Infelizmente, esta tradução completa não foi incluída no
dos tratados de canto de Pier Tosi, Giambattista Mancini livro, salvo alguns trechos. Seria uma boa idéia se o au-
e Manuel P. R. Garcia de autoria de Alberto Pacheco foi tor futuramente disponibilizasse esta tradução completa
lançado há pouco tempo pela editora Annablume (ISBN na internet.
85-7419-605-3), com financiamento da FAPESP, dentro
da coleção Selo Universidade. Este livro é uma edição A cuidadosa análise comparativa dos tratados feita por
da dissertação de mestrado defendido por Pacheco em Pacheco, que leva em conta também o contexto históri-
2004 na UNICAMP, onde ele prepara atualmente seu co-musical dos mesmos, ajuda a compreender a estética
doutoramento. vocal dos autores e do seu tempo. O Capítulo I traz uma
apresentação biográfica dos autores e uma contextua-
Os três tratados mencionados são centrais para o enten- lização dos tratados em suas épocas. O Capítulo II trata
dimento da estética vocal corrente na Itália e de suas dos aspectos didáticos dos tratados. Tosi e Mancini de-
mudanças entre 1650 e 1900. Além de serem conside- dicaram bastante espaço para o ensino do solfejo, o que,
rados grandes professores de canto, Tosi (1653-1732) e na época, era uma das preocupações principais dos pro-
Mancini (1714-1800) foram castrati, os famosos canto- fessores de canto. Garcia, por sua vez, dá mais atenção
res alterados na puberdade para manterem a voz da in- ao ensino do canto em si mesmo. “Aspectos da Técnica
fância durante a vida adulta, e representam o Antigo Re- Vocal” é o título do Capítulo III que inclui informações
gime. Garcia (1805-1906), nascido depois da Revolução sobre respiração, fisiologia, registração, extensão e tim-
Francesa e inserido no contexto da Revolução Industrial, bres vocais. No Capítulo IV entram os “Aspectos Inter-
traz uma visão diferenciada do canto e da sua função pretativos”, sendo, talvez por isso, um capítulo de inte-
social na sociedade burguesa; ele cantava e dava aulas resse especial para o cantor de hoje. São discutidos os
no período de declínio dos castrati e do surgimento das ideais estéticos da sonoridade vocal, da ornamentação,
prime donne. Suas próprias irmãs, grandes cantoras de do vibrato, das dinâmicas, da agilidade, das cadências,
ópera, foram suas alunas em meados do século XIX. Po- dos estilos, do fraseado e da dramatização. Tudo isso é
rém, sua educação vocal foi produto da época anterior, amplamente ilustrado por exemplos musicais.
estando ele indiretamente ligado a Tosi. Garcia também
ficou famoso por ter inventado em 1854 o laringoscópio Há erros pequenos de edição – palavras repetidas, erros
e pelo desenvolvimento do interesse científico pela voz de concordância etc., porém compensados pela impor-
humana que seu trabalho suscitou. tância e relevância do conteúdo do trabalho e edição, no
mais, bem cuidada. O livro é de fácil leitura e compre-
Há muito tempo que os professores de canto já sabem da ensão, trazendo informações importantes para o cantor
importância destes tratados sobre a arte de cantar, porém atual que queira enriquecer sua interpretação de obras
a barreira lingüística sempre dificultou o seu acesso. O tra- vocais européias escritas entre 1650 e 1900. Estamos
tado de Tosi, escrito em italiano antigo, foi traduzido para ansiosos para ler a tese de doutorado do autor, esperan-
o alemão e para o inglês. Mancini escreveu em italiano e do que evidencie até que ponto a prática vocal no Brasil
Garcia em francês. Pacheco, por sua vez, faz uma grande durante este mesmo período foi influenciada por estes
contribuição, incluindo no seu trabalho amplos trechos dos autores europeus.
três tratados, em excelentes traduções para o português. A
sua dissertação incluiu também um anexo com a íntegra do Todos os cantores e regentes interessados na interpretação
tratado de Tosi, embora esta tenha sido traduzida da versão erudita da música vocal deveriam ter uma cópia deste livro tão
inglesa que, por sua vez, partiu da versão alemã de Galliard. útil e acessível. E o preço de R$ 35,00 nem dói no bolso!

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.15, 94 p., jan - jun, 2007 Recebido em: 224/03/2007 - Aprovado em: 04/04/2007
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HERR,Martha. Resenha sobre o livro O Canto Antigo Italiano. Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 93-94

Referência Bibliográfica
PACHECO, Alberto. O canto antigo italiano: uma análise comparativa dos tratados de Canto de Pier Tosi, Giambattista
Mancini e Manuel P. R. Garcia. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2006. 324pp.

Martha Herr é Doutora em Música pela Michigan State University, tem participado de recitais, óperas e gravações no
Brasil, nos Estados Unidos e Europa, como solista e integrante de vários conjuntos de música brasileira e de música
contemporânea. Coordenadora da área de Canto da UNESP (São Paulo) e professora na pós-graduação, recebeu, em
1998, o Prêmio Carlos Gomes da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Organizou o 4º Encontro Brasileiro
de Canto, no qual as Novas Normas para a Boa Pronúncia da Língua Portuguesa foram votadas.

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HERR, Martha. Resenha sobre o livro O Canto Antigo Italiano. Per Musi, Belo Horizonte, n.15, 2007, p. 93-94

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