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MD Magno

Psicanálise & Polética


Seminário 1981
2ª edição

O direito de impressão é pessoal e intransferível.


MD Magno

PSICANÁLISE & POLÉTICA


Seminário 1981
2ª Edição

editora
é uma editora da

Presidente
Rosane Araujo

Diretor
Aristides Alonso

Copyright 2007 © MD Magno

Preparação do texto
Potiguara Mendes da Silveira Jr.

Editoração Eletrônica e Produção Gráfica


NovaMente Editora

Editado por
Rosane Araujo
Aristides Alonso

M176p
Magno, M. D. (Machado Dias), 1938-
Psicanálise e polética : seminário 1981 / M. D Magno ; preparação do texto:
Potiguara Mendes da Silveira Jr. – 2. ed. - Rio de Janeiro : Novamente, 2009.
562 p. ; 16 X 23 cm.

ISBN – 978-85-87727-47-3

1. Psicanálise – Discursos, ensaios, conferências. I. Silveira Júnior, Potiguara Mendes


da. II. Título.

CDD- 150.195

Direitos de edição reservados à:

Rua Sericita, 391 - Jacarepaguá


22763-260 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Telefax: (55 21) 2445-3177
www.novamente.org.br
DEDICATÓRIA:

A Luiz Carlos Miranda


pelo estabelecimento do texto, desenho dos esquemas
e pesquisa iconográfica das 4 sessões de Corte Real,
publicadas como livro em 1982

Annita Iedda Cardoso Dias e Evany Cardoso


pelo trabalho de transcrição de fitas e organização
dos originais
Sumário

Primeira Parte
Auto Nomia

1. NÃO ME SONHEM NEM ME OUTREM


A psicanálise é a crise – A psicanálise se fundamenta numa Ética, e a política no Saber
– A psicanálise rememora seu fundamento ético para a pólis: Polética – O universal para
o falante é a conjunção Lei/Desejo – Fundamento ético da Lei: Diferença – O assassínio
está excluído da Lei – Relação das fórmulas quânticas à Lei – Binômio Lei/Desejo x
fascismos e libertarismos – Polética como dissolução da cultura – Indicações para uma
Diferocracia – O verdadeiro incesto é o impossível, por isso proibido – “A Lei não se
fundamenta num saber” – Esclarecimentos sobre perversão e perversidade em sua
relação com a Lei.
15

2. BOTEM UM TATU
Totem e Tabu: lógica da produção do Simbólico – “Ambivalência” da Lei: aquilo que ela
proíbe é seu fundamento – Entendimento da “ambivalência” da lei: a negação da função
fálica indica a exceção que funda a regra – Crítica à distinção antropológica entre o fato
“natural” da consangüinidade e o fato “cultural” da aliança – Remitificação de Totem e
Tabu: o mito do Macaco Maluco – Psicanálise: aliança significante; Antropologia: aliança
de parentesco – Articulação do conceito de creodo à lógica da estrutura – Cultura como
um caminho necessário (creodo) do Simbólico – Distinção entre ato de fundação da Lei e
enunciado legal – O enunciado legal é afiançado pela enunciação da Lei.
35

3. TARZAN DA SILVA
Apresentação da estória de Tarzan, de Edgar Rice Burroughs – Proposição de três
mitos a partir da estória de Tarzan – Mito da horda primitiva – Mito da instalação do
simbólico – Mito da passagem de animal a humano – Análise da emergência do falante
– Diferença ôntica como marca constitutiva do falante – Falta real no imaginário e
fundação do simbólico como artifício – “A cultura não é o simbólico” – O inconsciente
e a hipótese do simbólico puro.
55

4. DESDE O PARA ISSO: DE ADÃO A ÉDIPO


Distinção entre a constituição da Lei e da ordem de parentesco a partir da leitura do
Gênese – Jardim do Éden e expulsão do paraíso: origem do impossível – Caim e Abel:
momento de fundação da Lei – Noé: competência simbólica e suas aplicações na
ordenação de parentesco e na marcação territorial – Ordem de parentesco é creodo –
A cultura é fundada com o Neolítico – “História e cultura são a mesma coisa” – Torre de
Babel: totalitarismo da cultura x diferença do inconsciente.
81

5. ÉDIPO EM CALÚNIA
A questão edipiana não se reduz à cultura – Resumo comentado de Édipo Rei – Incesto
é o que permite transação – A função paterna instala a impossibilidade do incesto
como relação – Conseqüência da função paterna: não-totalização das transações –
Pregnância imaginária da cultura – Assunção da função paterna como dissolução da
cultura – Função paterna e ato-poético.
101

6. O GENE E TAL
Questionamento da tese antropológica da oposição Natureza/Cultura – “O simbólico
surge como artifício que vem em lugar daquilo que falta” – Fixões ou efeitos da função
simbólica – Distinção entre a função legal (Lei) e suas possibilidades de regulação na
cultura – Estrutura da metáfora e da metonímia em Lacan – Metáfora paterna é condição
de regulação – Metáfora como produção (Lei) e como repetição do produzido (cultura)
– Vocação genitiva e genital da cultura: ordem de parentesco como metáfora da
reprodução sexuada – Três níveis de castração como modalidades da função legal:
proibição de totalização; proibição da eliminação da diferença; proibição do incesto.
125

7. AINDA O GENE E TAL


A vigência simbólica da diferença sexual é regente de toda e qualquer diferença –
Hipótese da proibição do incesto como caso particular da diferença sexual – Duas
funções da metáfora: desvelamento e ocultamento – Cultura é metáfora de agri e
Neolítico – Édipo como proibição do incesto é uma metáfora – Superego é função
repressiva cristalizada na proibição do incesto – Dois momentos do Édipo: Nome do
Pai (Lei) e proibição do incesto (cultura) – Inclinação (em sentido orográfico) como
metáfora de produção de cultura – Indicação da periclitância da cultura: entendimento
de Lacan em oposição ao de Deleuze-Guattari.
145

8. ÉDIPO E OSOME
Dupla articulação da cultura a partir da Lei – Ciclo tebano como explicitação da Lei:
Nome do Pai, diferença sexual, laço social, ordem de parentesco e regulamento de
Estado – Pressão superegóica de um enunciado legal.
169

9. ANTI GONA
Duas posturas da Lei: sociedade (associação dos falantes) e cultura (sintoma) – Antígona
é o regime da diferença – Indiscernibilidade entre instauração do social e instauração
da cultura na emergência da Lei – Lógica dessa indiscernibilidade a partir das fórmulas
quânticas da sexuação – O real é o fundamento ético da Lei – O impossível não
podendo ser dito (Lei), só se diz como interdito (lei) – Antígona é a questão da diferença
entre Lei/Desejo e lei.
189

Segunda Parte
Corte Real

10. LE MIROIR DANS LA REINE ou


LE MI-ROI DANS L’ARÈNE
Com-sideração da obra de arte: seu lugar topológico coincide com o do analista – Ato-
poético da obra de arte é puro corte ou Córte Real – Entendimento topológico do
espelho como lógica de emergência de sujeito – Relação de Velázquez com os critérios
de “obstinado rigor” e “coisa mental” – Início da análise d’As Meninas quanto à ordem
visual, composição perspéctica e personagens – Crítica das proposições de Michel
Foucault sobre As Meninas – Os pontos dinâmicos do quadro são o espelho (reflexão do
Casal Real) e a porta (lugar do Aposentador) – Velázquez pinta o quadro olhando-o num
espelho – Dupla reflexão especular n’As Meninas explica o lugar do Casal Real – Planta
baixa aproximada do quadro – Considerações sobre uso do espelho em dois outros
quadros de Velázquez (Jesus em casa de Maria e Marta e Vênus no espelho) – Retomada da
função topológica do espelho em psicanálise.
209
11. V.v.V.
Análise de Vênus no espelho: Vênus e Velázquez em relação ao espelho; olhar recíproco
entre Vênus e Velázquez; olhar do Cupido – Considerações iniciais sobre diferença
sexual a partir da topologia do espelho – Três fases da construção da função do
espelho – Emergência de sujeito: inserção significante (feminino) e libidinal (masculino)
– Reconhecimento da diferença sexual como quarta fase da função do espelho.
247

12. E/ -SEXÃO
Retomada da análise d’As Meninas – Descrição dos quadros Apolo e Mársias e Atena e
Aracne reproduzido n’As Meninas – O quadro As Meninas é construção de espelho e
sua explicitação – Operação viravesso do quadro – N’As Meninas luz é pura superfície
de espelho – Consideração da diferença sexual a partir d’As Meninas – Sexo da obra
de arte é neutro.
279

13. APARECEU A MARGARIDA


Valor quiasmático do quadro enquanto reviramento – Esquema de emergência
de Lei e Língua – Constituição sintomática da cultura – Arte é anterior à cultura –
Lugar da Infanta Margarida n’As Meninas – Comentários sobre As Fiandeiras.
313

ANEXO

AS TRÊS DEMOSTRAÇÕES DO VIRAVESSO


(LUIZ CARLOS MIRANDA)
337
Terceira Parte
HETEROFAGIA

14. INTRODUÇÃO À HETEROFAGIA


Resumo dos temas desenvolvidos nas seções anteriores – Reconhecimento da
diferença é condição de operação da psicanálise – Sacação de Oswald de Andrade
da antropofagia como sintomática fundamental do Brasil – Proposição da oposição
homofagia/heterofagia para consideração da tese da antropofagia.
339

15. POR QUE ME AFANO COM MEU PAÍS


Assassinato cultural é tentativa de eliminação da diferença – Exame do Manifesto da
Poesia Pau-Brasil e Manifesto Antropófago – Significações da devoração da diferença –
Vocação heterossexual do sintoma antropofágico (heterofagia).
357

16. PAPO DE TUCANO


Alterofilismo (alteridade) de base do sintoma antropofágico – Masculino/feminino na
sintomática brasileira – Entendimento do sintoma brasileiro requer estrutura da
contrabanda – Vocação utópica do Brasil é pelo avesso.
379

17. A REVOLIÇÃO CARAÍBA


Alterarquia é o que rege a heterofagia – Reinvenção da língua é exemplar da alterarquia
– Sentido da esculhambação na sintomática brasileira – Discussão das distinções entre
messianismo e utopia, querigma e carisma.
395
18. A POLÉTICA DO DLESEIJO
Dleseijo: binômio Lei/Desejo – Escrição matêmica da diferença sexual segundo Lacan –
Diferença sexual é produção neguentrópica no sujeito – Condições da “escolha” sexual
– Considerações sobre o estilo: distinção entre clássico e barroco – Proposição do
estilo heterófago como terceiro lugar.
411

19. O ORA QUE EMPROGRESSE


Apresentação da carta de desligamento de MDMagno da École de la Cause Freudienne –
Significações do ora que emprogresse – Indicações históricas sobre a heterofagia –
Caracterização dos estilos clássico, barroco e maneirismo – Compatibilidade entre
maneirismo e heterofagia – Obra de arte vigora na heterofagia – Distinção entre
fantasia e fantasma.
437

20. EN L’ENDROIT OÙ VILLEGAIGNON PRINT TERRE


Amor à instituição é sustentação de fascismo – Exigência de arqué (elástica e maneira)
no processo de institucionalização – Crítica a MALU (Movimento Analítico Lacaniano
Universal) – Exame da tese de Hauser sobre maneirismo – Impossível é referência
que vigora nos quatro discursos – Proposição do discurso do capitalista – MALU é
capitalização do projeto lacaniano.
461

21. NÃO É NÃO


Distinção entre psicose (foraclusão do Nome do Pai) e feminino (suspensão do Nome do
Pai) – Loucura essencial do falante não é psicose – Avessamento das fórmulas quânticas
da sexuação para pensar a psicose – Há indecidibilidade na psicose como ausência da
função de referência do sujeito – Quatro modalidades da instalação do sujeito: homem
e mulher (instalação do Nome do Pai); paranóia e esquizofrenia (foraclusão do Nome
do Pai) – Possibilidades do feminino: da possessão ao êxtase místico.
485

22. VAE VICTIS


Quatro matrizes (homem, mulher, psicose, esquizofrenia) e uma só estrutura (R, S, I,
Sintoma) – Pseudo-psicose não pertence à matriz da psicose – Neurose como
sublegenda das matrizes masculino e feminino – Estatuto fóbico da neurose – Histeria
é acossamento da matriz feminina – Obsessivo é acossado pela matriz masculina –
Distinção entre perversão e perversão propriamente dita – Para a psicanálise aceitar
o regime da diferença é denunciar o que destrói a diferença.
513

23. NOLI ME TANGERE


Psicanálise é competência de transação – Papel de Anísio Teixeira na cultura e formação
brasileiras – O que interessa é a dissolução da cultura – Reconstrução do percurso do
Seminário a partir da Lei da diferença – Caracterização da diferocracia: governo da
diferonomia; minoriscito contínuo; articulação social baseada no simbólico – Discurso
psicanalítico diante do campo social instituído: heterofagia – Função paterna situa a
interdição como fundação simbólica.
533

ENSINO DE MD MAGNO
555
Não me sonhem nem me outrem

AUTO NOMIA

15
Psicanálise & Polética

16
Não me sonhem nem me outrem

1
NÃO ME SONHEM NEM ME OUTREM

O Seminário começa com a audição de Cálice,


de Gilberto Gil e Chico Buarque.

Já é a segunda vez que esta canção de Chico Buarque vem como epígrafe
de meu Seminário. Segundo o rit-pareidi da cultura de massas, ela talvez já esteja
velha, é natural. Entretanto, insisto na sua absoluta atualidade. Não é porque alguns
senhores ou senhoras resolvem pronunciar, ou melhor, promover, certa “abertura”,
que tenho, para ser simpático ou equânime, que perder minha memória. Não tenho
que ter nenhuma equanimidade. Não deve promover nenhuma abertura quem não
promove imediatamente, no mesmo ato, o fechamento. A abertura, a Real, aquela
que nos distingue e nos aflige, não precisa de nenhuma promoção – e muito menos
publicidade. Ela está, sempre esteve, estará sempre aberta – e foi isto o que nos
demonstrou o velho “pai” Freud – enquanto houver seres falantes. Com a psicanálise,
Freud não veio promover nenhuma abertura, veio apenas, mais uma vez, apontar
para ela, dar testemunho de seu Real, desacobertar sua memória, isto é, comemorá-
la. Promover a abertura é, primeiro, supor ser capaz de poder escamoteá-la, criando
o fechamento. É, portanto, o auge da pretensão, o ápice da soberba, se não o
cúmulo da barbárie. A barbárie, meus caros, não é senão esta pouca ou nenhuma
vergonha de se tapar o sol da abertura, abertura real, com a peneira das tramas de
politicagem. Ser bárbaro é não ter vergonha na cara: a Ver-gonha, as Ver-gonhas,
aquelas descritas por Freud. Os homens, ou seja, os chamados seres falantes, os

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Psicanálise & Polética

falesseres, têm vergonha na cara: portam esta hiância, esta greta, esta brecha, que
os obriga a não serem canalhas – a não se tomarem pelo Outro.
Há seres vivos que não têm vergonha na cara. Estes, nós chamamos
de animais. Não são animados por nenhuma vergonha, porque se animam é
pelo imaginário. Os animais são assim. Por isso, posso tratar deles, mas não
faço com eles nenhum trato – e nem com seus irmãozinhos bárbaros, que não
têm vergonha na cara.
Nós outros, os falantes, temos, com nossa vergonha, a nossa rachadura:
esta abertura do real, a nossa RACHA-DURA, essencialmente dura, de dureza
e de duração insuperáveis. A referência de nossa Ver-gonha é esta rachadura
e não nenhuma, qualquer que ela seja, linha-dura de moralismo inconseqüente,
de aspiração totalitária, ainda que espelhada por fascismos mais ou menos duros,
mais ou menos moles – até, às vezes, “simpáticos”, “alegres” ou “desejosos”.
A nossa dura racha, o real do nosso furo, da nossa falta, em todos os sentidos
da palavra, é disto que se trata.

* * *

Daí que, ao iniciar-se o Seminário, com o tema que agora temos, teimo em
reafirmar a falta e colocar a sua essência de ausência como mastro, isto é, Falo.
O tema deste ano, tal como foi divulgado nos cartazes, é “Psicanálise e
Política”. Dizem muitos e exibem por aí, os órgãos da cultura de massa, com a
cretinice que os caracteriza, que, por causa de certas abordagens deste tema, a
psicanálise brasileira, bem tropical, carioca, está em crise. Dizem, também,
alguns propagandistas da subsunção da psicanálise à política que há crise da
psicanálise por toda parte, citando até a Escola Freudiana de Paris, sua dissolução
e alguns dos sintomas subseqüentes. Posso cabidamente afiançar a vocês que
não há nenhuma crise da psicanálise... a não ser no sentido mais radical do
termo: a psicanálise não está nem nunca esteve em crise; ao contrário de nosso
amigo Eduardo Portela, ela é a crise. Quem está em crise, graças a Deus e por
causa mesmo da psicanálise, são alguns analistas, supostos, e junto com eles,

18
Não me sonhem nem me outrem

algumas instituições ditas psicanalíticas... Mas, retornando, os cartazes dizem


“Psicanálise e Política”, entretanto, o que aqui anunciei pelo fim do ano passado
foi o tema: Psicanálise e Polética.
A troca de fonema devemos, talvez, ao zelo de alguns preocupados
com as acusações constantes que nos fazem de esotéricos. Não tem a menor
importância, ou melhor, tem a maior importância, pois a psicanálise não deixa
de se elaborar no esotérico, ou não deixa de fazer isto, ou seja, aquilo que não
pode ser dito, não porque não seja permitido dizê-lo, mas porque dizê-lo é
impossível. No título deste Seminário, esta pequena diferença fonêmica é
irredutível. A psicanálise não tem qualquer espécie de relação com a política.
Não há relação no sentido preciso e, mesmo, matemático do termo. O discurso
psicanalítico não é um discurso político. A política, desde Aristóteles, tem seu
fundamento no Saber e, daí, a sua necessária ancoragem numa ideologia. Ao
passo que a psicanálise tem seu fundamento numa Ética – e não qualquer ética
como a que se reduzem, também ideologicamente, moralismo ou amoralismo.
Mas ela se fundamenta na ética talqualmente estabeleceu Freud, que tem como
decorrência ações morais centradas no real.
Lacan fez um longo Seminário em 1959/60 sobre a Ética da Psicanálise.
Os moralismos e, correlativamente, as políticas são ortológicos, ou seja,
determinam supostamente todos os enunciados, enquanto morais e imorais. E
ensinam isto a partir propriamente de um logos pré-determinado, ao qual se
submetem ortologicamente todos os enunciados; todos, segundo eles. Eles
ensinam isto, transmitem, supõem poder transmitir isto, quer dizer, são
(etimologicamente) ortopédicos. A ortopedia quer dizer a formação da criança
moral, sadia, dentro destas posições políticas e ideológicas. São posições
ortopédicas, naturalmente, nessa paixão pela transmissão, segundo seus
princípios pederásticos enquanto vocação pedagógica (etimologicamente)... Mas,
o que pode ser uma ética freudiana centrada no real? O trabalho de nosso
Seminário deste ano será abordar algumas questões que, a partir desta ética
freudiana, possamos tratar no que se refere àquilo que parece centrar, com o
nome de política, algumas posturas discursivas do nosso tempo.

19
Psicanálise & Polética

Élisabeth Roudinesco, ex-membro da ex-Escola Freudiana de Paris, em


seu livro Por uma política da psicanálise, p. 48, diz: “A ética não é uma moral
militante encarregada de fazer passar o desejo pela rede de uma escola ou para
o volante de uma teologia, ela é a política da psicanálise”. Eu quero dizer que
a ética não é nem mesmo a política da psicanálise. Ela não é a manipulação e o
controle da polis, o que me parece ser estar no âmago da política. Ela é a
rememoração para a polis do seu fundamento ético, seu dela psicanálise. Podia
ser também seu, da polis, pois é o fundamento que ela aponta como sendo o
mesmo fundamento do ser falante: ela aponta insistentemente à polis seu
fundamento ético. Ela faz, portanto, não uma política, mas uma Polética. Num
livro sobre Psicanálise e política, que foi tema num certo congresso, supostamente
baseado nos escritos de Lacan e arredores, p. 224, ed. franc., Armando Verdiglione,
que é um leitor lacaniano de Milão, diz: “E em relação à matéria que há a fuga
metonímica do discurso. Na linguagem, isso desliza: e aquilo leva à borda da
matéria, às ‘fronteiras do sentido’ (Hjelmslev), a uma ruptura do limite gramatical.
Só a borda da matéria é subversiva”. Eu não diria, aí, matéria, a qual não passa
de ser o que diz Lacan nalgum lugar, na alíngua dele, la matière (l’âme à tiers).
Ainda que fosse o nó ternário de Real, Simbólico e Imaginário, há um certo
compromisso, talvez, neste texto de Verdiglione, com algum marxismo italiano
tangencial, para substituir o que deveríamos botar aí no lugar de matéria pelo
nome de ideal ou “mater-ia”. Querem criar o materialismo lacaniano, ou freudo-
lacaniano, ou freudo-marxista, ou alguma coisa desta ordem. Entretanto, a
psicanálise não é materialista no que toca ao fundamento da sua prática. Existe o
materialismo psicanalítico, mas o que importa na psicanálise não é nenhum
materialismo e sim, um paterialismo. É uma matéria do mesmo radical de madeira.
Não é o pau, é madeira de dar em doido. E parecido com o Falo: não se trata de
pau, trata-se de outra coisa, do paterialismo do pater.
A função radicalmente subversiva não é indicada pela psicanálise senão
no binômio LEI/DESEJO, que remete para a borda não da matéria, como diz
Verdiglione, mas para a borda do Real, enquanto borda do furo, contorno de uma
falta. Assim, a nossa Polética, não podendo ser mesmo política, pode, entretanto,

20
Não me sonhem nem me outrem

ser um distanciamento, uma escansão, agindo com referência neste corte, nesta
borda, e fundamentando-se numa ética que, ao mesmo tempo, aborda e transborda
esta borda que é, afinal, significante. O significante do seu corte, o corte de sua
interminável escansão, o significante e sua infinita ou infinitiva transação. Abordar
esta borda é estar na transação significante. Em suma: uma Polética da Borda
no máximo e, por mera proporção, uma política de bordel. Mas política do bordel
apenas na medida em que seja nada mais do que um apelido para a nossa Polética.
Quando repetimos, a diferença fonêmica é irredutível e, portanto, é preciso
sustentar a diferença. Daí termos dado a esta primeira sessão o título tomado de
um poema de Fernando Pessoa. Mas como vamos pedir que “não me sonhem
nem me outrem”, justamente quando o que outrem mais faz é me sonhar e me
outrar, é um movimento espontâneo? Talvez se possa pedir “não me sonhem”
para não congelar minha diferença numa aparência, numa imagem que é produzida
e requisitada pela demanda do sonhante. “Não me outrem”, não que eu possa
exigir que não me tomem por um outro, o que, aliás, é o mais corriqueiro para o
falante, mas não me tomem pelo Outro – o grande Outro –, fazendo de mim
referência radical de uma totalidade que me encerra e coagula ao mesmo tempo
que me congela também. Ora, o canalha é aquele que se toma pelo Outro, mas
aquele que toma um outro pelo Outro é o protótipo daquele que chamamos um
babaca. “Não me sonhem”, ou seja, não me aprisionem numa configuração
imaginária, “nem me outrem”, ou seja, não sejam, por favor, tão babacas a ponto
de me transformarem num canalha. Aliás, é o que pode dizer a própria psicanálise:
“Não me sonhem nem me outrem”. Ninguém pode ser o Outro de um outro, pois,
assim, cada um poderia ser eventualmente o Outro de um que é, também, o
Outro – e, simplesmente, não há o Outro do Outro.

* * *

Se cada um é um outro para um outro, a alteridade pode vigorar entre


um e outro. Daí o amor ser impossível: já que cada um é outro para o outro o
amor é impossível, embora sempre seja recíproco. Recíproco não quer dizer

21
Psicanálise & Polética

que um ame o outro e o outro ame o um, pois isto é com freqüência – exceto,
talvez, nalgum encontro, e mesmo dentro de um encontro – o que menos
acontece. Recíproco quer dizer que um ama Outro e o outro também ama
Outro. O Outro, é claro, seguramente, não é um. O amor, portanto, pode não
ser também, ele próprio, o Outro e, por não ser o Outro, vige na mesma
impossibilidade que há na relação sexual.
A relação sexual é impossível, diz a psicanálise e o demonstra. E
impossível inscrever-se a relação entre os sexos por enunciados. A relação
sexual é impossível eqüivalendo a formular o que se enuncia como “o real é
impossível” impossível de ser escrito, é claro... Ora, se Freud nos trouxe uma
ética centrada no real, trata-se, então, de uma ética centrada no impossível, do
impossível da relação sexual, do impossível de ser inscrito na estrutura. E isto
nada tem a ver com as éticas centradas num Saber e que, por isso mesmo, são
centradas na impotência e não na impossibilidade: impotência do saber em
estabelecer a relação sexual.
Centrada nesse impossível, na excentricidade, na borda deste furo real,
enfim, é que vigora a Lei. A Lei que, como vimos, poderia ser enunciada com: “a
relação sexual é impossível”, “o real é impossível de se inscrever na estrutura”.
A Lei é Desejo. Não há oposição, há, segundo a psicanálise, o binômio: Lei/
Desejo. Quando Lacan repete, com Espinosa, que a essência do homem é o
desejo, está também repetindo, com Freud, que a essência do homem é a Lei. O
que há, então, de universal para o ser falante é o binômio Lei/Desejo. Este é o
seu fundamento e o que estatui sua diferença. A Lei com a sua outra mesma
face (unilátera) do desejo são as estruturas do simbólico, o qual é aquilo que vem
em suplência do impossível real. Daí eu poder dizer que Lei/Desejo é o universal
do falante e, talvez, seja só o que se possa colocar, para o homem, como universal.
Aqui entramos pela questão da interdição do incesto, outra vez, na medida
em que a única coisa que há de universal na questão do incesto é a Lei que lá
vigora e não o anedotário a respeito do incesto. E mais, nem mesmo o incesto a
não ser como Lei. Talvez, mesmo num incesto, a interdição só vigore na medida
em que se possa comprová-la como Lei. Esta é uma questão que quero colocar

22
Não me sonhem nem me outrem

como central do nosso trabalho, este ano. Este universal, a Lei, é pura diferença,
remissão portanto ao impossível talqualmente em “a relação sexual é impossível”.
Esta Lei é a diferença que, em seu agir, não gera senão diferença, exceto que
toda e qualquer diferença se universaliza na Lei, em sua remissão à Lei como
pura diferença – mas são diferenças, estritamente diferenças. Não sabemos o
que seja a Lei. Talvez não possamos saber. Mas sabemos que ela gera diferença
indefectivelmente. Por isso temos que supor que ela é a nossa diferença, em
todos os sentidos. A Lei é a nossa diferença. A Lei, repito, Desejo.
Estamos falando da Lei com L maiúsculo. Se supus a possibilidade do
universal por remissão a ela, ela pode ser universal e eu posso dizer: “A Lei”. A
Lei não são as leis, os regulamentos, exarados no seio da cultura e designadores
dos conjuntos, ou melhor, de determinados grupos de falantes. A Lei a que estamos
querendo nos referir é essa borda do real quando se pode dizer que a relação
sexual é impossível, que o Real é o impossível, o impossível de ser inscrito. O
referente da Lei enquanto tal é o furo do real enquanto impossível. Só podemos
sacar o referente emergente no ato de formulação da Lei, porque o real é impossível
de se abordar. A borda já é este ato significante de formulação da Lei. É o instante
da enunciação que cai imediatamente em enunciado. Neste ato aí, de travessia, é
que se poderia colocar um referente para a Lei. Todas as produções do ser
falante vêm apenas em suplência ao impossível exarado na Lei. O falante produz
tudo isso que produz como mera suplência a ser impossível para ele estabelecer a
relação sexual. Toda lei, portanto, é meramente discursiva, toda lei no sentido de
“as leis”, os regulamentos escritos nos códigos – códigos que são línguas.
Dizer que a relação sexual é impossível é afirmar que dois sujeitos, dois
falesseres, ainda que sejam um homem e uma mulher, não podem fazer UM,
isto é: H + H’ < 1. Seja qual for o sexo destes falantes eles não são UM. Não
havendo a relação, todo falante é solitário por este lado, mas, por outro, ser
solitário, não poder estabelecer relação, não significa também ser UM porque
lhe falta alguma coisa. Tanto é que ele tem que somar com outro e, nem assim,
consegue dar UM. Mesmo para o falante isolado a unidade não é possível, em
função do desejo. O sujeito não é em nada, de modo algum, igual a UM. Pelo

23
Psicanálise & Polética

contrário, ele é essa escansão que existe entre um e outro significante – mera
escansão. Assim, a Lei pode ser enunciada talvez como: “A unidade do falesser
é impossível, é impossível fazer UM”. Pode-se fazer mais um, isto está na
reprodução sexuada do falante. Mesmo que um homem se junte com uma
mulher em vocação reprodutiva, não só eles não somam UM, como não
produzem Um, produzem apenas, e por acaso, mais UM.
A Lei também pode ser enunciada como: “Há o desejo do Outro”. Por
outro lado, a solidão, a plena solidão, é impossível. É um solitário que tenta ser
solidário e cuja solidão é impossível. Solidariamente ele não soma UM e
solitariamente ele não consegue ficar em solidão. E tão impossível a solidão
quanto a união, ou seja: “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Não é
porque ninguém queira. E porque é assim. Não é possível senão a transação. É
possível, mas nunca dá UM.
Sigamos, então, estes caminhos da Lei enquanto caminhos do desejo e
continuemos perguntando por esse universal. Se a Lei se estatui por sua referência
ao impossível real, ela pode ser enunciada como relação impossível, sexual ou
qualquer outra, para o falante, inclusive a relação entre significante e significado.
Então, a Lei é a diferença, a diferença na sua origem, em cada momento que ela
brota. E é dela que se efetua qualquer diferenciação. Daí podermos enunciar que
qualquer diferença é aceitável pela Lei. Qualquer dife-rença eqüivale a qualquer
outra. Daí, talvez, que haja um certo lema de verdade: “Todos os homens são
iguais perante a Lei”. Só que têm uns que são “muito mais iguais do que outros”,
como dizia George Orwell... Entretanto, essa igualdade que é uma equivalência
enquanto diferença diante da Lei é uma equivalência entre qualquer uma e qualquer
outra diferença, mas não todas... Deixemos para mais adiante a questão do que
terá a Lei a ver com o feminino. Não posso dizer que a equivalência entre as
diferenças, entre qualquer diferença e qualquer outra diferença, diante da Lei,
seja para todas estas diferenças. Não posso dizer isto logicamente, e daí decorre
uma postura de universalização da Lei que me dá fundamento ético.
Não posso falar de todas as diferenças, pois, se pudesse, teria a totalidade
do Outro fechada. Se eu pensar por esta via, que seria uma via do feminino, nem

24
Não me sonhem nem me outrem

poderia dizer nada a respeito do universal da Lei. Perguntando sobre o universal


da Lei, enquanto Lei que vai exarar alguma coisa a respeito da diferença, repetindo
aí o impossível, é que posso conceber que todos os seres falantes sejam
universalizados por esta diferença. Se isto fosse verdade, se todos os seres falantes
pudessem ser universalizados por esta diferença, alguma diferença não seria igual
diante da Lei. Para a Lei funcionar sempre, isto é, para ser universal para todas as
diferenças serem iguais diante dela, ela precisa excluir aquilo que a eliminaria ao
mesmo tempo que aboliria a diferença que estatui a Lei. É um paradoxo, pois ao
mesmo tempo que não posso me referir a toda diferença – mesmo porque não há
tempo para pintar toda diferença, tempo lógico –, ainda posso dizer que qualquer
diferença é equivalente, diante da Lei. Em relação a outra diferença, qualquer
uma tem o mesmo valor de qualquer outra, mas não todas. Não só porque não
têm como comparecer, como é preciso que a Lei faça exclusão mesmo de alguma
diferença para que ela subsista como Lei. As diferenças se manifestam, se enunciam,
mas a diferença que se enunciar abolindo a Lei, abolirá a diferença, portanto,
abolirá a si mesma e abolirá todas. Esta diferença é excluída da Lei, quer dizer, ela
tem o corpo ausente no real. Ela participa de tal modo do real que não pode ser
proferida. Não só não pode porque abole a Lei, como ela é proibida de ser
proferida, ainda que tangencialmente. Como poderia a Lei equalizar, eqüivaler
todas as diferenças? Não é possível que ela pudesse equalizar a diferença que diz
que ela se abole, porque no ato de dizer, esta diferença também se aboliria e
estaria abolida a Lei. Então, esta diferença aí participa de tal modo do real que ela
é impossível, realmente, de ser dita. Ela é proibida de ser proferida.

* * *

Existe uma diferença que participa, talvez, de tal modo da diferença, que
se embute de tal modo no real, que ela não pode ser nem metaforizada, às vezes,
em primeiro grau. Se um diferente pratica sobre outro diferente – diferente com
aquelas diferenças que a Lei produziu pela sua ação – o assassínio, ele abole a
Lei. Tenho aqui, por exemplo, uma série de diferenças, todas iguais perante a Lei,

25
Psicanálise & Polética

e uma delas pratica o assassínio de pelo menos uma diferença. Este ato corresponde
a escapar da Lei, e aboli-la, porque se todas as diferenças se eqüivalerem diante
da Lei, todas são aceitáveis. É possível estabelecer uma convivência conivente
entre as diferenças, mas uma diferença que assassina outra, acabou de dizer que
as diferenças não podem ser justificadas perante a Lei. Ela aboliu uma diferença
e, com isto, com este ato, aboliu a Lei. Não pode nem ser dita a diferença que
aboliu as outras porque ela não consegue se dizer a não ser aniquilando a Lei que
dá segurança a ela. Ela é excluída, foracluída necessariamente do campo da Lei.
Ela é excluída da fala porque se ela se diz, no que se diz, no que se apresenta, ela
exclui a diferença, nem que seja sobre uma única diferença. Portanto, ela aboliu a
Lei e, no que ela aboliu a Lei, se aboliu. Então, ela não consegue nem se dizer. Ela
é da ordem do foracluído, do real. Não é tratável pela Lei. E indizível pela palavra.
Toda metáfora que pre-tenda tangenciá-la é abominável de um certo modo, é
pecaminosa. Não pensem vocês que não existe o pecado, o pecado existe. Se um
diferente pratica sobre outro diferente o assassínio, ele abole a Lei.
Se isto é verdadeiro, posso sugerir que o primeiro artigo da Lei, a
decorrência deste raciocínio aí, é a exclusão do assassínio, a repressão, portanto,
do assassino, para que a Lei possa vigorar. O assassínio está excluído da Lei,
ele não pode ser proferido jamais. Quando o assassínio é praticado, ele cai
numa ordem de Real tal que é impossível dar conta dele, ele se acorda fora da
Lei. O assassino, o sujeito suposto autor do assassínio, o máximo que pode ser
é reprimido – antes, é claro! Depois, não tem mais jeito. Como se pode reprimir,
dominar, um assassino? E muito menos o assassino que escapou ao ato de
assassinato? Talvez há que comparecer uma mestria do assassino que há em
nós, o domínio deste assassino para que ele não venha abolir a Lei, e para que
a Lei possa vigorar. A Lei só pode decretar o domínio do assassino. Nada mais!
Não, de modo algum, o seu extermínio, porque o extermínio do assassino, ainda
que hipocritamente legal, é um assassínio. A Lei entraria em contradição
imediatamente, isto é, eliminaria a si mesma. Ela praticaria o mesmo ato do
assassino, ainda que fingidamente assentada em seu valor de Lei. Estou dizendo
que a pena de morte é abominável, uma lei indecente. Ao invés de ser um

26
Não me sonhem nem me outrem

enunciado que se refere à Lei, ela se refere à mesma barbárie que cai no real.
Então, não se pode dizer nada. A pena de morte não é legal, em lugar nenhum,
mesmo que ela seja comandada pela igreja, como o foi tantas vezes.
Acho que há um primeiro artigo da Lei viável por esta seqüência: uma
Polética que tenha a ver com a Psicanálise. Ela pode se referir não só no estrito
campo do discurso psicanalítico enquanto tal, em suas práticas, nas suas
elaborações teóricas, porque aí temos necessariamente referência à Lei, mas
nas suas transações com o chamado “mundo”, com o “mundo da política”. E
esse princípio é intocável: a psicanálise não pode jamais compactuar com
qualquer lei, legislação, ou qualquer atitude política, por mais liberal, de “abertura”,
que inclua a barbárie, o assassínio... Freud jamais jantaria, como diz um amigo
meu, com Hitler. Embora Hitler tenha querido jantar o Freud.

* * *

O que tem a ver a Lei com o feminino já que se tem aí o não-todo?


Por um lado, a Lei vigora para todo falante, para todo homem – o homem das
fórmulas quânticas: todo homem está dentro da Lei –, o seu primeiro artigo, que
é conseqüência lógica da estrutura, só se formula no masculino para poder
emprestar universalidade à Lei. Se digo, como está escrito nas fórmulas
quânticas, que todo x é função fálica, é o mesmo que dizer: todo falante é
função da Lei. Se houvesse outra Lei que não esta, ela entraria imediatamente
em contradição com ela. A única coisa que extrapola o todo desta Lei é a
exceção. Exceção, aliás, que funda a regra. Se houvesse outra Lei, o Outro
que aí comparece entraria em contradição com a Lei. Portanto, não há outra
lei. Há Lei. Ainda que se possa pensar neste Outro como Outro barrado, não
há Outro do Outro, ainda que este seja barrado por esta contradição interna,
por este paradoxo. Aí, talvez, seja o momento em que a Lei pula para o feminino
e se torna paradoxal.
Uma vez que é impossível inscrever o universal de outra Lei, não se
pode senão desmoralizar a Lei... mas, dentro da Lei. Posso simplesmente alterar

27
Psicanálise & Polética

os enunciados legais, contestá-los, sem com isto, cair fora do regime da Lei.
Isto é importante na diferença que tentei estabelecer entre as perversões, e o
que chamei de perversão-propriamente-dita, a perversidade. O feminino não é
o angélico, de modo algum. O que a estrutura, a lógica freudiana sobre a
diferença dos sexos, vem colocar é o homem enquanto universal, de que todas
as mulheres fazem parte. As mulheres são homens diferentes, porque estão
/ ). Portanto, elas
divididas entre a função fálica e o que falta no Outro: S (A
estão absolutamente dentro da Lei, mas não-todas. Uma mulher está debaixo
da Lei, mas não-toda, ela desliza facilmente. As feministas ficaram
chateadíssimas quando Freud disse que as mulheres são menos apanháveis
pelos sistemas morais do que os homens. Elas deslizam em relação à Lei, o
que não significa que não estejam debaixo da Lei, pois não são anjos.

* * *

Estamos num momento em que as políticas se revezam em fascistóides


evidentes, em direitismos declarados ou esquerdismos de liberação que se
supõem libertários de certos desejantes, ou numa dicotomização que acaba por
cair, a meu ver, no mesmo lugar. Por um lado, temos o binômio Lei/Desejo que
não é separável. O que vemos, nas mais diversas atitudes ditas políticas, dentro
e fora das instituições psicanalíticas, e no mundo em geral, é a constante bipartição
como se se pudesse separar ora Lei ora Desejo. É algo parecido com o que
coloquei a respeito do alcoolismo: um grande pileque – de que fala Chico
Buarque – que ficasse pulando da sobriedade da Lei ao porre do Desejo. Da
sobriedade, da carranca do Pai Bedel à baderna do Pai Herói. Tem-se de
conseguir articular uma referência à Lei/Desejo, como uma única coisa, uma
única face. Mesmo do lado dos chamados adversários, destas esquerdas tipo
partido comunista e outras esquerdas militantes, vamos encontrar esta bipartição.
Mesmo em certas dicas, certas saídas, externadas por Lacan, como, por exemplo,
o anti-edipismo de Deleuze, estão nesta partição fingindo que não. Não há nada
no livro de Deleuze que não tenha sido inventado por Jacques Lacan ou por

28
Não me sonhem nem me outrem

Freud, só que há muita coisa que foi inventada por Jacques Lacan e por Freud
e que lá não está. Tudo que eles dizem a respeito desse desejismo, desejismo
militante, como diz o Coronel Odorico Paraguassu, de Sucupira, é simples-
mente escamoteamento do desejo enquanto Lei. Por outro lado, há aqueles que
pensam abolir o desejo, entrar tudo numa certa lei que não seria o desejo.
Então, nosso mastro de regulação vai ter que ser esse binômio Lei/Desejo.
Temos que escutar nesses movimentos o mínimo a que se reduzem para
fundamentar um pouco esta Polética. Seria bom tentarmos escutar nesses
movimentos ditos libertários o que têm de fascistizantes. Certamente têm. O
movimento feminista, por exemplo, nas militâncias que vemos por aí, fica
chateadíssimo com Fellini quando ele diz isto claramente. Confundem a liberdade
das mulheres, que só pode se referir à Lei/Desejo, com “sapatice”. É o movimento
sapatão, isto se demonstra com maior facilidade, quando elas conseguem ser
mais machonas do que os machos... Não estou xingando, podem trazer esta
diferença que a gente descobre isto lá dentro com a maior facilidade...
Talvez possamos colocar como núcleo deste trabalho a consideração da
cultura enquanto tal. Não é forjar nenhum culturalismo que vai explicar, mediante
as relações culturais, o comparecimento deste ou daquele significante de base,
ainda que sintomaticamente explicitado. Não é isto que está interessando, embora
seja importante. Já falei, por exemplo, que seria importante para a cultura brasileira
conseguir destacar seus sintomas, mas, neste caso aqui, não se trata disto. O
que me interessa é perguntar: que diabo é isso, a cultura? Está lá nas antropologias,
etc., que o homem é ser cultural, o universo do homem é a cultura. Pergunto eu:
será? Quer me parecer que não. O universal do homem é o simbólico e esta
referência à Lei está esteada na sua referência ao real. É preciso questionar
que o homem seja necessariamente um ser cultural e fazer esta crítica à cultura,
sempre centrada no binômio Lei/Desejo. E, nesta crítica, talvez denunciarmos,
dentro da cultura, os fascismos os menos suspeitos que devem aí estar.
A psicanálise enquanto Polética talvez pudesse ser definida como um
anti-fascismo. Ela tem a inconveniência de conceber, de pôr em evidência,
mesmo dentro de turmas ditas, às vezes, pertencentes a seu campo, estas teorias

29
Psicanálise & Polética

e idéias ditas libertárias que são, na verdade, do mais arraigado fascismo. Daí,
sempre se preferir que ela se cale ou que troque de discurso, fingindo que
continua a mesma. Queremos, também, fazer a consideração da psicanálise
com sua Polética como possível dissolução da cultura. E se conseguirmos tudo
isto, talvez possamos chegar naquilo que eu chamaria, e que já indiquei ano
passado como DIFEROCRACIA. Até mesmo a democracia pode ser a ditadura
da maioria. Não que queiramos criar uma diferocracia como ideologia, o que
seria uma estupidez igual, mas sim, esta Polética da psicanálise com o
pensamento de uma diferocracia, que é o pensamento da justiça sobre as
diferenças, mas não todas: é proibido matar. Aquelas moças lá de Minas Gerais
escreveram a frase errada: “Quem ama não mata”. Outro dia eu disse que
talvez pudesse ser: “Quem pensa não mata” – Mas, radicalmente é: “Quem
fala não mata”. Quem ama tem uma grande vocação para matar. Aí é que
escorrega o feminino. Escorregar pela ladeira do assassínio não é assassinar.
Quando digo “uma” mulher, estou me referindo às fórmulas quânticas
da sexuação. Lacan já disse: “É-se homem quando se deseja, é-se mulher
quando se ama”, ou seja, quando se aspira a um certo objeto. Por isto mesmo
que homem não chora. As pessoas acham um absurdo, vejam que machões!,
dizem que homens não choram... e é absolutamente verdadeiro, homem não
chora. Não tem machismo nisto, só mulheres choram. Alguém já viu um homem
enquanto tal chorando? Ninguém chora por desejo, nem chora de dor, você
berra, esperneia, grita, blasfema, mas você não chora. Você só chora de amor.
E no feminino que se chora. Só que os idiotas pensam que quem tem pênis não
chora, o que é muito diferente. Então, a indicação desta diferocracia como um
modo de operação desta política da psicanálise não há, porque é uma Polética,
ou seja, como um modo de abordagem do bordel.

* * *

O assassínio é possível porque sua diferença não é impossível. Ela,


simplesmente, não pode ser aceita pela Lei como igual às outras, se não a Lei

30
Não me sonhem nem me outrem

se abole. Esta diferença não é o real. Ela tem a ver com o real como qualquer
diferença. Ela é uma diferença como qualquer outra – enquanto diferença posso
equivalê-la a qualquer outra –, mas a Lei não pode igualá-la às demais diferenças
porque ela abole a Lei. Este é o verdadeiro incesto, que é impossível de ser
praticado sem abolir a Lei. O incesto é o impossível, por isto é que ele é proibido,
já falei zil vezes. Não é que seja impossível você chegar ao ato do incesto, ao
assassínio, mas, uma vez que age, que o ato se dá, imediatamente não posso
mais nem tratá-lo no regime da proibição, porque ele escapa e cai no real. O
incesto, cometido, cai no real.
Por exemplo, se argumentarem que, na antropologia, o antropofagismo
não é negação de uma diferença mas uma absorção da diferença para que o
sujeito possa continuar vivendo dentro daquela cultura, poderíamos dizer que é
assim como a tortura: eu torturo você e absorvo as diferenças que você deixou
de me dar. Se a antropofagia é decorrência de um assassínio, o assassínio veio
antes, é barbárie. Depois dessas leituras de Levi-Strauss, começamos a pen-
sar que os índios são tão inteligentes, tão civilizados... Talvez, até, o termo
possa ser “civilizado”, mas acho que nós somos é tão bárbaros quanto eles.
Toda regressão é suspeita. Este culto da natureza, além de ser uma grande
idiotice, é uma regressão suspeita. Todo mundo agora está no cultivo da natureza,
alimentação natural, habitat natural. Que natureza? NÃO HÁ NENHUM
NATURAL PARA O FALANTE. Aqui no Brasil é uma festa, basta aparecer
um partido ecologista, um “Fürher”, que já tá o pessoal todo pronto... Se começo
a dar desculpas culturais tipo sociológicas, tipo: isto é uma “absorção da
diferença”... absorção da diferença comendo a carne? Por que não come a
palavra do outro? Por que não deixa o outro falar e come a palavra dele, que é
a diferença? A cultura só come pessoas, e no pior dos sentidos. Não é o caso
da antropofagia de Oswald, que é uma antropofagia da palavra.
Será que algum assassínio é diferente, é diferente do ato de querer
calar a diferença do outro? Se argumentarem que não se cala definitivamente
a diferença, que ela comparece depois em outro lugar... entretanto, no ato
do assassino, a intenção não é de calar definitivamente a diferença do outro?

31
Psicanálise & Polética

Vejam Abel e Caim, na Bíblia... se dissermos que a diferença se restaura,


isto eqüivale a supor um ser falante idêntico ao outro. Não se pode supor
isto porque a identidade é que porta a diferença. Vejamos aquela história
que dizem ai na “moralzinha” de executivos das grandes empresas:
“Ninguém é insubstituível”. Absolutamente falso, pois ninguém é
substituível, ninguém! Lá, ninguém é insubstituível, porque não é ninguém
mesmo, é simplesmente uma peça da maquinaria. Se fosse alguém, era
insubstituível. Talvez estejamos, agora, diante das condições estruturais e
lógicas para considerarmos que nós somos os criadores do fascismo. Um
fascista, um nazista pode botar milhares de judeus no fogo, mas, do outro
lado, não se pode nem mesmo condenar à morte um único nazista, se não é
festa, importa-se Eichman e todo mundo começa a brincar, estamos todos
satisfeitos: “Vamos ver como era o nazismo, de novo!”. Senão está arriscado
a estragar a brincadeira...
Não é à toa que “não matarás” é o primeiro mandamento. Sem este,
nenhum outro é possível, nenhum outro vigora. Ele não é a garantia da
legislação, porque ele mesmo é garantido pela estrutura, mas ele é primeiro
como comparecência, primeiro comparecimento necessário, primeiro enunciado
necessário. E se “a ninguém é dado ignorar a lei”, isto é uma legislação
cultural, mas que está garantindo alguma coisa. Ou seja, o sujeito transgride,
há sanções e ele não pode se justificar dizendo que não conhecia. No que diz
respeito à Lei como tal, a ignorância dela não justifica, porque não preciso
nem aprender o enunciado “não matarás” para não ser estúpido a ponto de
não ver que, ao matar, assassinei a minha possibilidade de relação
intersubjetiva. Basta ser portador de inconsciente para saber. Ou seja, a Lei
não se fundamenta num saber. A ninguém é dado justificar-se dizendo que
ignorava a Lei porque não se trata de nenhum saber. Mas o mesmo código
que diz isto, estabelece essa igno-rância em cima de uma lei que só funciona
a partir do saber... Está aí a questão.

* * *

32
Não me sonhem nem me outrem

Gente dita lacaniana, que escreve textos por aí, confunde Lei com cultura,
confunde a Lei com as legislações em vigor. Como o perverso é um cara que
parece ir contra a lei, você faz alguma coisa contra o código tal, você é um
perverso! O perverso, no sentido que dou, o da perversidade, é aquele que
justamente assassina, que quer obnubilar a lei. Isto existe, é estrutural. A
estrutura da perversidade é diferente da perversão, a qual, segundo Freud e
Lacan, é, textualmente: a essência do homem. É a essência do homem enquanto
père-version, que está na ordem da Lei, ou seja: a diferença que cada um
porta, que tem o direito paterno de apresentá-la e reforçá-la diante de todos.
Mas a tal perversão, que chamo de perversidade, esta é abolição do outro, é
não considerar a diferença que o outro porta.
Perverso quer dizer père-version no sentido das diversões paternas.
O pensamento fascistizante sempre escolhe algumas perversões para serem o
bode expiatório da sua perversidade. Quer dizer, cria um moralismo perversista
abolindo diversões que não são aquelas coincidentes com seus interesses. Ele
tapeia a todos, extrapola da Lei e diz que é o outro porque meteu na cabeça de
todos que aquilo é que é perversão.

18/MAR

33
Psicanálise & Polética

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Botem um tatu

2
BOTEM UM TATU

Neste ano do deficiente físico... não é sem desdenhar a oportunidade


oferecida pela sorte de se rememorar um pouco, e na borda do Real, a
experiência dessa deficiência que, a rigor, é de nós todos. Por isso é que
estou trazendo aqui o meu pé quebrado, sem interromper o Seminário que,
aliás, não difere das outras vezes, senão, para vocês, por um pouco de ênfase
imaginária. Todos estão vendo que manco... que, ao menos, esse cinema
seja de lembrar que o sujeito é claudicante, aliás, como Édipo, que tem mesmo
o nome de “pé troncho” ou “pé furado”. O pé que eu sempre trouxe era
quebrado, uma vez que era incompleto, levando sua falta... porque, aqui, eu
por acaso verso, alguma coisa, embora com rima, por vezes, entretanto, sem
jamais mesmar o metro.
O pé quebrado, encanado, certamente que o meu pensamento estará
um tanto amarrado... eu costumo pensar com as pernas, andando. Por isso
digo sempre, e algumas pessoas ao meu redor não querem aceitar, que não sou
de modo algum um “intelectual”, porque, segundo minha observação, intelectual
pensa com a bunda, sentado. Eu penso andando. Uma vez, tentei ser intelectual,
por questões universitárias, resultou numa hemorróida... não dá certo.
“O meu maior compromisso intelectual é com a cultura”, tem até
psicanalista que diz isso... Teve um na TV que falou: “Meu compromisso primeiro
é com a cultura, depois com a psicanálise”... eu, não entendi nada. A cultura –
cu-leitura – tem algo de anal, claro!, no comando dela. E, dentro dela, só se

35
Psicanálise & Polética

pensa com fixação nalgum acento certo... daí que me pareceu que intelectual
pensa com a bunda, o que não é a mesma coisa dizer que ele é um “bundão’ ...
Vamos com calma!
Pensar com as pernas é diferente. É preciso caminhar pela discussão,
pelo discurso, capengar num discurso, ir de tropeção no seu impossível, ser
deslocado para um outro, talvez, e assim por diante. A claudicância é congruente
ao sujeito, que não deixa de estar requerido em cada discurso, pelo menos na
disjunção que se apresenta em todos os discursos.
Sabemos que o falante, o homem, é chamado de bípede. Lacan chamou
os discursos, segundo suas formulações matêmicas, de quadrípodes.
Quadrípodes e não quadrúpedes. Os quadrúpedes têm quatro patas, mesmo
quando a gente só vê duas. Os falantes têm dois pés, e, se os discursos têm
quatro pés, quadrípodes, é porque são dois do mesmo que se supõe agenciar os
discursos, e dois de outrem, que o discurso necessariamente inclui. Daí o
desencontro e a claudicação do discurso.

* * *

Gostaria de tomar hoje, um pouco, o Totem und Tabu de Freud. O


título da nossa sessão de hoje é Botem um Tatu... uma troca de fonemas que
pode ser interessante.
Totem e Tabu é, segundo alguns, o famoso “romance antropológico”
de Freud, aonde ele inventa um mito, o mito da origem, da origem da lei, no
momento onde emerge a cultura, digamos assim, e o surgimento, portanto, do
chamado Complexo de Édipo. Não é tão romance, nem tão mito. Este texto
é, talvez, dos mais importantes na medida em que arma uma estrutura da
qual ele vai tirar esse embasamento lógico da produção, da razão, edipiana
na sua relação com o complexo de castração, como se fosse uma verdadeira
estória da humanidade.
Não se trata, aqui, de trabalhar o texto. Pedi a Clare Isabella Paine e
Mary Kleinman que apresentassem suas anotações e questões. Tomaremos o

36
Botem um tatu

final, pois o texto completo é longo, pega toda a antropologia disponível no seu
tempo, discute uma série de coisas e vai cair necessariamente numa questão
que era urgente na antropologia da época: o totemismo.
Tudo isso é anterior a Lévi-Strauss. É, no entanto, aqui mesmo que
Lévi-Strauss vai entender a questão da interdição do incesto. Depois, atendendo
à fonologia de Jakobson, ele vai estruturar a chamada universalidade da
interdição do incesto sobre os trabalhos de campo que tinha disponíveis e, daí,
tirar toda aquela estrutura de parentesco que ele nos apresenta em Estruturas
Elementares do Parentesco.

* * *

[Observações no decorrer da apresentação do texto de Freud:]

...
O homem, em suma, o falante. Freud dá uma colher de chá aos
historiadores, dizendo que isto pode ter sido uma carga cristalizada. Mas, no
final, ele vai tentar mostrar isso como estrutura, quando diz que não se trata
desse fato, que o que se descobre no psiquismo do neurótico é o que está atrás
desse senso de culpa, são sempre realidades psíquicas. Não são realidades
factuais, quer dizer, quanto mais hostil o impulso contra o pai, maior será o
sentimento de culpa e maior será a reação moral, criando esse totemismo e
esse tabu. Ele insiste por diversas vezes e termina o texto dizendo que o que
importa é o ato. “No começo é o Ato”, diz ele citando Goethe.

...
A criança, o neurótico e o primitivo, não são tão salvos por ele como
quer a antropologia de Lévi-Strauss. Freud mostra que é nessa região aí que
esse totemismo está em efervescência.

...

37
Psicanálise & Polética

Ele faz questão de uma “realidade concreta”. Um ato que a criança


teria praticado, que só não foi efetivo por incompetência ou por impotência,
mas que ela praticou mesmo. E na história da humanidade, miticamente pelo
menos, e para dar uma resposta aos antropólogos e aos historiadores, isso teria
acontecido mesmo.
Por aí é que vamos tentar pensar a questão da Lei de que falávamos
da vez anterior.

* * *

Tentamos situar a Lei como um fenômeno incutido na estrutura e


chegamos a dizer que poderíamos destacar pela lógica de funcionamento da
Lei, enquanto estrutural, um primeiro artigo, o “não matarás”, que seria a
abolição da própria Lei. Então, se o primeiro artigo da Lei é “não matar”, como
pode justamente a Lei ser fundada no assassínio do pai?
É claro que Freud deu todas as explicações, sentimentos ambivalentes,
etc., mas, porque houve um assassínio, vem depois a proibição do assassínio,
e o controle fraterno contra o assassínio, com a Lei dizendo: “É proibido matar”.
A pergunta que me coloco, então, é: qual é o pai que se mata quando se perpetra
tal “assassínio”?
Minha tentativa será de remitificar, mas, antes, tentar ver o que se
pode tirar desse ato do assassínio do pai. Já coloquei em Seminários anteriores,
sobretudo no do semestre passado, que na lógica de exceção em que se coloca
esse pai como aquele que diz “não” à função fálica – lembrando das fórmulas
quânticas onde se coloca, também, que existe pelo menos um que não é função
fálica para que todo o seja – esta frase aquele que diz não à função fálica
seria exatamente a que indica a exceção que funda a regra.
Esse pai que cai no real, que está foracluído da regra, só pode ser
pensado como um pai animal, como um bicho. Fazendo de conta que a gente
não está interessado, que não conhece nada de Lévi-Strauss, eu me pergunto:
o totemismo não será a teoria primitiva da evolução das espécies, não será um

38
Botem um tatu

darwinismo primitivo? Através do totemismo estar-se-ia, talvez, exprimindo


que o homem, como diz Darwin, descende dos macacos, ou de qualquer outro
animal. Fazendo um parêntese, gostaria de lembrar que lá nos Estados Unidos
da América existe uma antiga briga entre os evolucionistas e os criacionistas,
as teorias da origem do homem, antropologia física, etc. Há até um juiz lá,
agora, que proibiu, num certo Estado, que os professores ensinassem que os
homens descendem dos macacos. Provavelmente ele está querendo ensinar
que os homens descendem dos juizes, o que não é muito diferente. Mas, voltando,
quero insistir em que, em toda essa estrutura complexa, e sobretudo nessa
ambivalência emocional que Freud cita a todo momento, o que está por ser
distinguido é o que Lacan destaca muito bem ao tratar da questão paterna, da
metáfora paterna e do Nome do Pai. São os registros onde são situáveis as
posições paternas. Freud está dizendo tudo isto, mas fica incutido numa situação
única, ou seja, o pai enquanto foracluído, cai no real, e tem a mesma condição
de um animal. Nos seus comportamentos fixados, enquanto isto que
reconhecemos em outras instâncias, em outras articulações, como Pai Ideal,
ele tem essa conformação imaginária com uma certa gestalt comportamen-
tal, como qualquer animal.
Uma coisa é o animal enquanto real dado, outra é o seu comportamento,
sua etologia, e, por fim, o assassínio desse pai, animal, criando um Pai Simbólico.
Aí já se mudou de registro. Talvez esse assassínio, de que fala Freud, devesse
estar entre aspas. Ele é uma exceção do ponto de vista lógico. A desculpa que
Freud dá para a validade do assassínio é que ele não é individual, que ele é
comum a todos. Mas está ali na fórmula quântica que “para que todos sejam
função fálica é preciso que haja pelo menos um que diga não a essa função”.
Ou, que não seja. Então, na verdade, o que está sendo racionalizado nessa
frase é que a função universal para o falante, a função fálica, fundada neste
cometimento, neste ato, é que é comum a todos. Ao mesmo tempo que isto
justifica esse raciocínio, de certo modo, esconde o ato enquanto tal, na medida
em que ele só foi válido porque praticado por todos. Então, cada um o pratica
individualmente no que o pratica a coletividade. Ou seja, não é mais desculpa

39
Psicanálise & Polética

para o assassínio coletivo o que prega muita situação governamental. Por


exemplo: condenar um sujeito à morte é um assassínio coletivo; ou não?
Não se trata disso. Trata-se de mitificar esse ato no que ele está
apontando a situação de universalidade que ele produz. Vemos aí um mito da
fundação da cultura, e se estiverem certos os raciocínios que fizemos semestre
passado, o que está sendo dito, de certo modo, é que a cultura, enquanto tal,
assenta-se nesse ato que faz produzir imediatamente dois momentos de tabu: a
proibição do assassínio e a proibição do incesto. Meu interesse maior é trabalhar
isso. Esse mito composto por Freud, mesmo mostrando o funcionamento da
estrutura, por mais estrutural que seja, por mais limpo de entonações
conteudísticas, está fundamentado na emergência da cultura e de dentro da
estrutura de cultura, ou seja, de dentro daquelas instituições, remetendo àquelas
instituições que são a fundação da cultura.
Dando um salto, estaríamos aí, então, na questão da passagem de
Natureza a Cultura, digamos assim, que é como põe Lévi-Strauss. Que momento
mítico é esse? Ou melhor: que referência histórica seria a desse momento
mítico? Isto é o que importa. Poderíamos, ao menos como referência, dizer
que é alguma coisa que se passa no paleolítico. Uma espécie de macaco,
hominídeo, etc., que está nessa situação e, pelo menos, segundo alguns
antropólogos, por exemplo, e pelos achados da antropologia, é o simbólico que
teria emergido no final do paleolítico. E é lá pelo mesolítico que vai ser fundada
a cultura, talvez...
Quero insistir em que não se pode confundir – o que é freqüente em
muitos textos – simbólico e cultura. A emergência do simbólico é concomitante,
necessariamente, com a emergência da cultura? Esta é a pergunta que quero
colocar a partir dos achados da psicanálise. Por exemplo, para construir a
antropologia estrutural que construiu, Lévi-Strauss não precisou, de modo algum,
fazer referência ao assassínio. Sua referência é à proibição do incesto, a qual
seria o fundamento da cultura, na antropologia contemporânea. Levi-Strauss
diz, em Estruturas Elementares do Parentesco, p. 35, (ed. franc.): “.. a
proibição do incesto exprime a passagem do fato natural”, que não sei o que

40
Botem um tatu

seja, “da consangüinidade para o fato cultural da aliança”. Se vocês têm alguma
prática dos textos de Levi-Strauss vão se lembrar que ele mostra a relação que
existe entre natureza da consangüinidade e os processos de reprodução, e,
depois, a organização da cultura sobre o fenômeno da aliança, que se basearia,
de certo modo como passe, como passagem, no fato cultural da consangüinidade.
Isso passa quinhentas vezes pela nossa leitura e não nos perguntamos: o que a
consangüinidade tem de natural para Lévi-Strauss poder dizer isso? Me parece
uma mosca na sopa do texto, que a gente tem engolido com facilidade...
Aliança, ordem de parentesco, nomeada e articulada, que funda a
cultura... e antes havia a pura consangüinidade “natural”. A única maneira de
a gente perguntar por uma consangüinidade natural seria perguntar aos bois,
cavalos, cachorros, para ver se eles sabem o que é isso. Em estado de natureza
a consangüinidade apareceria na fala deles. No entanto, essa pergunta pode
ser feita quinhentas mil vezes que não será respondida. Ou seja: quando penso
o dito fato da consangüinidade não foi preciso uma aplicação do simbólico, de
maneira que posso desarticular a reprodução, estudá-la, observá-la em
laboratório, produzir isolamento, de modo a poder traçar um quadro de
reproduções? De novo, então: o que é que há de “natural”? O que é que há de
“natural” na consangüinidade? Quando um sujeito falante diz que observa
fenômenos de consangüinidade em determinado animal ou nele mesmo, está
articulando simbolicamente um processo de reprodução e, para isso, teve que
ter todo um aparelho de divisão desses acontecimentos, de modo a saber que
cruzou este com aquele e deu aqueloutro... Isto porque, no esquema de
reprodução de onde ele teria a idéia de consangüinidade, numa espécie ou num
grupo qualquer, entre os cães, por exemplo, é a mistura de cachorro com
cachorro, e o máximo que ele poderá observar é que só dá filhote se for macho
com fêmea. É o máximo que nós podemos observar, se fizermos esse aparelho.
E preciso certo artifício lógico. O cachorro não observa nada. Ele simplesmente
tem sua maquininha etológica, seu imaginário de funcionamento que dá como
resultado, como efeito absolutamente racional, a reprodução. Portanto, quando
falo consangüinidade já estou no simbólico.

41
Psicanálise & Polética

Vamos pensar um pouco, ainda, nos animais que estão sendo


observados. Uma coisa que está escrita nas cavernas de Lascaux, Altamira
(na pré-história), etc., é uma observação acuradíssima dos animais, os quais
certamente eram os pais deles. Pelo visto, no texto totêmico, tratava-se da
família, quer dizer, da ascendência paterna dos nomes pré-históricos, que
podemos, sem nenhum procedimento, nenhuma regra onde entre interdição do
incesto, observar entre animais, mesmo cruzando filho com mãe, etc. Posso
fazer tracinhos ou marquinhas sobre animais e dizer que este aqui foi o
cruzamento desse com aquela e, este outro, deste com aqueloutra. Por acaso
este aqui é a mãe dele, mas cruzou assim mesmo... e, assim, terei um quadro
simbolicamente instituído da consangüinidade dos animais. O que não me impede
de supor que, num certo momento mítico (posso inventar), os homens se
reproduzissem à vontade e até marcassem as suas reproduções como
fenômenos de consangüinidade – e isto se chama simbólico.
Onde, então, Lévi-Strauss foi buscar essa mosca que engoli durante
anos, de que o fato cultural da aliança é uma coisa, por um lado, de cá, e a
coisa natural da consangüinidade é para o lado de lá, como se houvesse uma
oposição entre natureza e cultura capaz de ser marcada por essa dicotomia.
Não vejo mais como marcar essa dicotomia por esses dois lados, porque,
simplesmente, a Natureza, não se sabe o que é.
Toda vez que se aborda essa coisa que se quer chamar de Natureza, o
que se produz é alguma articulação simbólica. Não há acesso a nenhuma Natureza
para o ser falante. Seria o acesso ao real. Quando se fala de Natureza, ou
estamos falando de um saber qualquer, como se fala da paisagem, das árvores,
do riacho, ou estamos falando de um saber que já está se articulando num texto,
um saber organizado. Ou estamos falando de alguma coisa que ainda fica de
fora do que estamos dizendo? Sempre está fora do dito e, portanto, cai no real.
Igualmente, aquele pai, aquele bicho que cai no real, do qual não se dá
conta, enquanto bicho de carne e osso que está lá, é um real, porque quando o
estudo à luz da anatomia e da filosofia, estou fazendo anatomia e filosofia e
não estou falando mais dele.

42
Botem um tatu

Existe a impossibilidade do simbólico em falar do real, mas nossa função


é tentar o impossível. E aí estaremos falando do furo, do desejo, da nossa
tentativa de abordar uma coisa que é inabordável – e, nisso, produzimos cada
vez mais articulações simbólicas. Para falar da Natureza, o que chamamos de
Natureza é um certo discurso e estaremos produzindo determinado saber sobre
ela, ou estaremos falando histericamente sobre Natureza... ou ela é uma coisa
inatingível, aquilo que não podemos dizer. Uma vez que estamos afetados de
simbólico fica impossível articular qualquer coisa que não seja de dentro dele.
E o que não é articulável aí, cai no real. Não é dizível.
No momento, então, em que Lévi-Strauss apresenta a interdição do
incesto como sendo aquilo que distingue o fato “natural” da consangüinidade
do fato “cultural” da aliança, é preciso engolir, como um postulado, essa
mosca enorme para continuar a pensar junto com ele. Simplesmente, não há
nenhuma distinção aí entre Natureza e Cultura. Há distinção entre Cultura e
qualquer outra coisa que não é Cultura, menos Natureza. E não se trata de
distinção entre cultura e cultura, pois ele apresentou a cultura como
fundamentada na aliança e, portanto, na interdição do incesto. Se esse fato,
que podemos acompanhar simbolicamente e que, – no entanto, não cai no
registro da cultura, porque lá o incesto não está colocado, e, no entanto,
ainda podemos seguir os processos de reprodução, isto não é fazer diferenças
entre culturas, e, sim, pois, a distinção entre cultura e algo que não é cultura
– e, no entanto, está no simbólico.

* * *

Por outro lado, Freud, também, citou, naquela situação mítica lá, a
fundação da cultura, da sociedade, da arte, da religião... sobre um mito que
coloca como coisa primeira a proibição de matar. O que mostrei da vez anterior
é que esta proibição é congruente com a estrutura. Aí não se tem nenhuma
consciência, pois não é preciso nenhum superego alimentando isso, para, no
meu movimento inconsciente, estar interditado de matar. Consciência é um

43
Psicanálise & Polética

fenômeno religioso, é a neurose obsessiva. Mas Freud coloca, também, a


interdição do incesto. Foi aí que frisei que é alguma coisa “prática”. Esse
momentozinho aí, Freud sempre dá a dica para a gente: o que é essa coisa
“prática” além da interdição de matar? Deixemos em suspenso.
Lévi-Strauss cita, p. 51, por exemplo, que sabemos o que os animais
fazem, quais são as necessidades do cachorro, do urso, do salmão, de outras
criaturas, porque, antigamente, os homens se casavam com eles e adquiriam
esse saber de suas esposas animais. Eles aprenderam todos os seus usos e
passaram esse conhecimento de geração em geração. Quer dizer, uma certa
convivência animal com o animal – hoje em dia isso tem o nome de bestialismo
ou zoofilia, mas consta lá no mito desses primitivos – de onde vem esse
conhecimento que eles têm, que não é uma ciência no sentido que nós
produzimos. Então, pergunto de novo: quem é esse pai que é assassinado, senão
um animal? Mas não é um animal qualquer. É um animal que é pai mesmo, do
cara. É aquele animal que Freud diz que tem que se elevar da animalidade.
Quer dizer, mata-se o animal do falante para que este exista como
falante. O que é diferente de um assassínio verdadeiro, que é matar um falante.
Antes de o falante emergir, é o animal de onde ele provém, apesar do juiz
americano. Ou, se não, é o juiz.
Vou inventar um mito, para, através dele, ver se conseguimos pensar.
Trata-se do mito do Macaco Maluco.
Os antropólogos, os físicos, etc., têm todos as suas teorias a respeito
de seus achados sobre o momento em que apareceu o homem enquanto tal, o
dito “homo sapiens sapiens”. Mas, com todos aqueles parentescos esquisitos,
eles não sabem distinguir em que momento apareceu o homem cultural. Prefiro
dizer: o homem enquanto subdito, definitivamente, ao simbólico. Podemos supor,
lá pelos idos do paleolítico, uma emergência simbólica. Mesmo entre animais,
encontramos emergências simbólicas, mas não a subdicção à ordem simbólica,
quer dizer, à determinação pelo simbólico do ser falante, tudo ali passando
pelo simbólico. No início, era a horda. Podemos supor aquela horda com uma
fera mais feroz do que as outras – aquela violência de que fala Freud, do pai

44
Botem um tatu

– que diz: “Tudo meu, tudo meu, ninguém tasca!”. Isto certamente por uma
configuração imaginária qualquer que lá está determinando esse
comportamento. Isso é perfeitamente legal, no sentido pequeno do termo. A
lei de funcionamento daquele bicho é regida por uma estrutura imaginária e,
portanto, ele está certo. “O macaco está certo”, como diz Jô Soares. Essa
violência e a tirania desse chefe, toma tudo para ele, todas as fêmeas,
açambarca todos os bens, só deixa os restos, e tira da jogada uma grande
parte dos indivíduos da espécie.
Agora, vamos fazer um mito um pouco diferente.
Eles eram tão animais quanto os outros, e, de repente, por um acidente,
do qual não se pode dar conta, acontece uma mutação genética qualquer e
aquele famigerado furo – de que tanto falamos aqui – comparece. Falta alguma
coisa na composição desse imaginário que retira toda possibilidade de um
imaginário, ainda que existente, dar conta dos comportamentos. Dar conta
daquilo que chamei de um autossoma, de um corpo que se reproduz mais ou
menos do mesmo tipo, mas cujos comportamentos não estão mais determinados
imaginariamente porque faltou alguma coisa – um furo no imaginário desse
bicho. Ele é um macaco como outro, porque é filho dele, tem a mesma aparência,
o mesmo corpo real fundado numa genética de reprodução dos corpos, mas
lhe falta uma completude imaginária. É algo como ele nascer prematuro, como
o bebê lacaniano do estádio do espelho... Isso pode ter acontecido por um
acidente genético ou pode ser que ele seja filho de um marciano, quer dizer, o
pai é “corno”, baixou um troço marciano, um negócio qualquer, fez uma
reprodução e criou uma mutação.
O que aconteceria então, no mesmo bando, na mesma horda, com um
grupo de indivíduos que, ao invés de serem macacos, simplesmente são macacos
malucos? Eles não têm um comportamento de acordo, porque não sabem que
comportamento ter. Não está escrito. Aí é que pintou o tal do real: não estava
escrito, nunca esteve, portanto, nunca estará! Falta lá no imaginário deles
um pedaço. Como, então, poderia se comportar um bicho desses, assim perdido?
A tirar pelo mundo dos loucos, do que é pensável como tal, eles copiariam, por

45
Psicanálise & Polética

uma reflexão imaginária – o que acontece até com as nossas crianças –, os


comportamentos. Mas não ipsis literis, eles são iletrados originalmente. Falta-
lhes letra para copiar tal qual.
Com o aparecimento dessa falta, o surgimento do macaco maluco,
com essa colagem imaginária que ele fez sobre os outros, no entanto, ele não
tendo as marcações etológicas que os outros têm, é como se ele não se limitasse.
Digamos que um macaquinho qualquer, depois de levar a terceira porrada do
macaco, cai fora, fica na dele e se reduz ao seu lugarzinho ecológico e etológico.
O macaco maluco, não. Ele é completamente debilóide, ele insiste. Por ter o
furo, tem desejo, embora não saiba o que fazer daquilo... é uma loucura. Ele
insiste até, talvez, à morte. Quantos milhões não foram massacrados por serem
chatos! Massacrados por um gorila, naturalmente! O gorilão que é o dono da
situação, lá na minha estorinha. Podemos, então, colocar milênios de experiência:
essa mutação começa a aparecer, eles morrem aos milhões mas sobrevivem
muitos. Pode ser até que, de repente, sejam a maioria daquela espécie e invadam
a força paterna, façam aquele trucidamento de que fala Freud, matando um
animal. Matando um animal que proibia que eles existissem na sua diferença.
De modo algum, aquele animal poderia suportar a diferença – por absoluta
incompatibilidade, incompatibilidade com a diferença.
Eles têm, então, que produzir, eu não diria um assassínio, mas uma
matança – porque posso matar boi à vontade, não estou fazendo crime nenhum
– do gorila para conseguirem existir na sua diferença. Não é mera diferença entre
dois bandos de animais. Não é a briga, a guerra entre dois bandos de animais que
são diferentes enquanto tais. É uma diferença que se comporta como diferença
que não sabe nem que estatuto se dar. Ou seja: porta um furo real.
No momento dessa matança, e acabando com a lei menor de
funcionamento dessa máquina imaginária, desse ethos particular que é esse
bicho, eles podem, então, substituir essa ausência de LEI maior, nascida pela
morte dessa lei menor, por um pacto que permita a sobrevivência das diferenças,
inclusive das diferenças entre um e outro. Com isso, fundam a lei sobre o cadáver
paterno. Está na Bíblia: “A criança é o pai do homem”. Criar-se-ia a tolerância

46
Botem um tatu

legal diante das diferenças, ao mesmo tempo em que nasce, talvez, o fundamento
da propriedade. Não estamos falando de cultura, mas a propriedade é possível
de ser pensada e nasce necessariamente daí. A propriedade do meu sintoma
particular, a propriedade dos meus objetos privilegiados, e a discussão com os
outros quanto à divisão desses objetos.

* * *

A aliança de que fala Lévi-Strauss é a da troca de mulheres produzindo


os casamentos e as linhas de parentesco. Embora isto se dê através de pactos,
do surgimento da regra, posso ser um pouco mais sutil. Posso me perguntar:
será possível fazer pactos simbólicos com o outro a partir do meu lugar de
enunciação, antes ainda de ser marcado o meu lugar, de ser enunciado no
contexto social? Posso fazer pactos com o outro a partir de um puro nome, o
qual não esteja necessariamente me inscrevendo em determinado lugar social?
Uma coisa é a aliança de parentesco, outra, é aliança divina, a que
está na Bíblia por exemplo. No momento em que há essa transação de assassínio
do pai e fundação da lei, a aliança que se faz é a divina, é a aliança com o
grande Outro, com sua marca de diferenciação constante. Essa é a aliança
que me funda como sujeito. Outro momento, muito “prático”, talvez, como diz
Freud, já que emerge o sentido de propriedade – de pertinência, tal sintoma
“pertence a...”, no sentido matemático –, é quando se fazem esses pactos:
“Vamos dividir aqui as mulheres, estas são de cá, e essas são de lá...”. Não
está dita aí nesse momento nenhuma marcação da aliança enquanto produção
da ordem de parentesco, por exemplo: “Sou fulano de tal de linhagem tal...”.
Nada disso está marcado. Talvez seja uma emergência que virá
necessariamente, mas isso não está demarcado. Os fatos estão em vigor, mas
a partir de que momento mítico temos as linhagens fundadas? Por exemplo,
dizemos “sou cachorro, você é gato”, e escolhemos um totem para esquecer o
pai gorila que a gente matou. Isso é uma nomeação, mas posso perfeitamente
distribuir bens, etc., sobre essa nomeação sem ter ainda fundado um sistema

47
Psicanálise & Polética

de parentesco sobre essa nomeação? Lévi-Strauss diz que a relação de aliança


vai fundar a linhagem de parentesco, mas é preciso saber o que ele está
chamando de aliança. Para ele, é o nível de aliança em que eu faço um pacto
com você, em que entram nessas trocas, nessas propriedades, regras de
parentesco já. E se não forem de parentesco? Ele fala em momento sincrônico,
mas, nessa sincronia, é necessária a ordem de parentesco. Será que é necessário
à estrutura o surgimento da ordem de parentesco?
Posso, por exemplo, optar pelo conceito de creodo da teoria das
catástrofes. Num dado percurso, pode-se ter que necessariamente passar por
determinado caminho. Por exemplo: se há um incêndio aqui, você tem que
passar pela porta, porque é o único buraco nesta sala... Cre: “necessário,
obrigatório”; -odo: “caminho”. Portanto, caminho necessário num certo
percurso. Talvez, a partir do surgimento dessa diferença, da instalação da Lei,
da aliança divina, do surgimento da propriedade, necessariamente se cairia na
ordem de parentesco como creodo, mas não como função da estrutura. Minha
questão é: a aliança de que fala Lévi-Strauss é uma aliança que funda a cultura
ou é uma aliança que funda o simbólico? Pelo meu caminho, é uma aliança que
funda a cultura. Só que tudo que está no simbólico é trazido, pelo pensamento
de Lévi-Strauss, para dentro da cultura. Essa oscilação de Freud em torno da
interdição do incesto, como uma “prática”, uma praticidade, portanto, me ajuda
a pensar que talvez seja possível desarticular, na estrutura, o que é estrutura
pura e simples do que é movimento da estrutura. Movimentos por caminhos
(creodos) necessários.
Uma coisa é eu supor que a estrutura do falante inclui necessariamente
a cultura, quer dizer, apareceu a estrutura apareceu a cultura. Outra, é dizer
que a estrutura funda a articulação simbólica. Emergiu o simbólico, ele está
como dominância, mas não necessariamente a cultura, ainda que ela seja um
creodo. O que quero saber é se o homem pode existir fora da cultura, porque,
certamente, existiu o falante sem cultura. E poderá novamente existir, se meu
raciocínio estiver certo.

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Botem um tatu

Se fundamento a cultura na aliança que se estabelece na interdição do


incesto, estou dizendo que a cultura e a ordem de parentesco são a mesma
coisa. Na estrutura que Freud apresentou, ele embutiu todo o processo e o
conjugou no complexo de Édipo. Está lá a Lei, como proibição de matar – no
sentido que dei da vez anterior e vim desenvolvendo até hoje – e está lá, também,
como emergência imediata da interdição do incesto. Entretanto, Freud está
trabalhando tudo isso, também, no regime da cultura.

* * *

A Lei pertence ao registro do simbólico e à ordem divina, no sentido de


campo do Outro. A aliança que se faz é a aliança de responder à diferença que
emerge nesse campo do Outro. Campo do Outro não é a cultura! Isto está
claro no pensamento de Lacan. Encontramos todo tipo de deturpação, de
apaziguamento, do pensamento de Lacan por aí, transformando o Outro na
cultura. O simbólico é o lugar da cultura. Fora do simbólico não há cultura. A
cultura emerge, talvez, como um caminho necessário dentro do simbólico, mas
ela é aquilo sem o que o simbólico não pode se manifestar? Posso pensar
falantes antes da cultura e, até, depois dela? Na medida em que vejo que na
definição da antropologia, de Lévi-Strauss e em qualquer outra, a cultura não
comparece senão dentro de uma ordem de parentesco, ou seja, senão dentro
da interdição do incesto, onde a interdição do incesto é a lei, estou fazendo
uma pergunta muito grave: é possível existir falantes fora da interdição do
incesto, e dentro da Lei? Posso supor a Lei funcionando estritamente no
reconhecimento de que o assassínio de uma diferença, de uma única diferença,
ou seja, de um único falante, já é abolição, exterminação da Lei, e isto é
suficiente para fundar a Lei. Ela emergiu como processo relacional, na condição
pura e simples de não se abolir, de o assassínio ser proibido.
O que está misturado, a meu ver, o que não foi distinguido claramente,
embora esteja distinto em Lacan, é: “é proibido matar” e “é proibido o incesto”.
Estas duas coisas são articuladas como se fossem sincronicamente inter-

49
Psicanálise & Polética

relacionadas na estrutura. Eu me pergunto se não posso estabelecer uma


distinção mais clara. Nós outros somos seres culturais há milênios. É uma
coisa extremamente difícil pensar fora da cultura mesmo porque o superego
não deixa. A consciência começa a doer e aí é preciso um esforço de libertação
do superego para, então, se pensar este jogo.
Peço, então, ajuda às mulheres, que não crêem tanto quanto os homens,
na lei. Peço ajuda contra a patota homossexual... Já denunciei aqui, no
Seminário passado, que estamos subditos a um complô homossexual...
masculino, é claro! Um complô homossexual contra a heterossexualidade.
Peço ajuda às mulheres – que por acaso o sejam ou estejam nessa
jogada –, que promovam algum deslize aí. O que está interessando, sobretudo,
é a questão do feminino. O feminino está em jogo porque é o lugar onde se
suspende o “para-todo” da função fálica e, portanto, me ajuda a me liberar de
um superego violento que não me deixa pensar a ausência de cultura. Por isso
as mulheres são incultas e... depravadas... desculpem... Elas têm uma relação
com o superego, não deixam de ter, o jogo fálico não está ausente, embora
completamente bagunçado.
A consangüinidade observada e dita já está no campo do simbólico.
Essa aliança, então, que deu a construção da ordem de parentesco, não é um
rebatimento imaginário por sobre o reconhecimento dessa consangüinidade no
campo do simbólico? De tanto fazer a taxionomia da reprodução animal ou da
sua própria, o sujeito acabou descobrindo linhas seqüenciais de discurso e
inventando a única coisa, talvez, que ele pudesse inventar como um caminho
necessário: que se podia fazer a marcação do sujeito enquanto tal, do meu
lugar ou do outro, e a marcação dos seus bens, a partir de linhas distribuídas
como reflexo especular do acontecimento, escrito enquanto consangüinidade.

* * *

Saltos, é o que pretendo dar nestes Seminários, pensando com vocês...


Quer me parecer que Freud inventou a psicanálise como um processo de

50
Botem um tatu

dissolução, dissolução do sintoma, tentativa de dissolver o sintoma no seu meio


que é o real, e dejetá-lo para o verbo. Talvez a psicanálise seja nada mais nada
menos do que a dissolução da cultura. Se Freud inventou uma coisa de tão
radical, que nenhuma das políticas, por mais aparentemente dissolventes,
consegue ser tão radical e ir tão longe, ele talvez tenha inventado a dissolução
da cultura, na medida em que isto coincide com a dissolução do complexo de
Édipo, que é nada mais nada menos que o fundamento da cultura. O complexo
de Édipo não é a mesma coisa que a mera interdição do incesto, como se lê em
Lévi-Strauss, porque é uma estrutura tão complexa como essa que Freud
apresenta do assassínio do pai, que coloca em jogo a Lei, a própria fundação
da interdição do incesto...
Na medida em que se crê no enunciado legal, retirando dele o ato de
sua fundação, está-se acreditando numa especularidade de tal ordem que é
parecida com o que rege imaginariamente um animal. Pode-se pensar na
emergência da lei como ato, assim como na emergência do poético sem ficar-
se preso à mera recitação da poesia. Quando uma lei é dita, houve um ato.
Esse ato é uma interpretação. Não posso carregar o enunciado sem carregar
o ato junto, porque se faço o esquecimento do ato, caio numa configuração que
é imaginarização do simbólico. Isto de tal maneira que estou, como faz um bom
neurótico, querendo que o enunciado legal seja a minha definitiva garantia de
imobilidade, ou seja, de tapar o sol. Por isso, posso chamar o superego de
arcaico, na medida em que ele me pede que não movimente metonimicamente
a produção esclerosada de metáfora. Uma coisa é produzir uma metáfora, que
está no ato poético, outra é sentar em cima dela. Aí não é mais uma metáfora,
é uma banalidade. É preciso, então, distinguir a produção da metáfora da
sagração da metáfora, distinguir o ato de fundação da Lei, do enunciado legal,
que quer me aprisionar como se eu fosse um animal.
Por que Lacan ao tratar da questão da Lei, no Seminário 2, citando
aquele caso da mão cortada, que o pai seria condenado a ter a mão amputada,
diz: “há sempre algo na lei que é incompreensível”? Eu diria mais: é inaceitável.
Em que a lei é inaceitável? Primeiro porque a verdade não se diz toda. A

51
Psicanálise & Polética

emergência da lei, como vimos da vez anterior, precisa de desenvolvimento


simbólico porque ela não se dá toda, jamais. Ao passo que quando uma lei é
escrita, é dita, o enunciado enquanto tal é sempre absurdo. “Se você fizer isto,
terá a cabeça cortada”, mas porquê? Por que tenho que ficar aprisionado
nesse regime, nesse regime do enunciado? Sobretudo quando a punição é
drástica a ponto de eliminar a minha diferença, quando sou condenado à morte.
Aí, então, é absurdamente inaceitável.
Qualquer enunciado legal é um jogo que tem seus limites. É preciso
manter esse pacto de pé, porque, do contrário, não posso dar fiança ao
enunciado para aquém de suas possibilidades distintivas. Quantos sentidos tem
um enunciado? É preciso que eu o consolide de certo modo para que haja um
basteamento, tê-lo congelado, para ele funcionar. Um enunciado legal é
inaceitável porque é um enunciado, e não uma enunciação.
Quando uma mulher faz a suspensão da metáfora, o que ela está
fazendo? Ela está dizendo que isso é um absurdo. Por que “cadeira” não pode
significar “teto”? O pior é que pode, o deslizamento metonímico é possível...

* * *

Leiam, para a próxima vez, o Tarzan of the Apes, de Edgar Rice


Burroughs. E, também, outra vez, o Édipo.
Intitulei o nosso caso de hoje, o “caso especial”, de Botem um Tatu,
para enfatizar essa questão que, naquele pai assassinado, matado, o assassínio
é posterior, quando ele vira simbólico. No momento de matar aquele bicho, o
que se está matando é um animal, e é isto que está no totemismo.
Mário de Andrade tinha colocado nosso clã de brasileiros como o clã
do jabuti. O jabuti é um bicho interessantíssimo que tem uma farta mitologia no
Brasil, com uma porção de estorinhas. Vejam no Dicionário do Folclore
Brasileiro, do Câmara Cascudo. Ele é uma espécie de tartaruga terrestre.
Couto de Magalhães fez várias anotações de histórias brasileiras com o jabuti.
Ele seria nosso pai animal, então, segundo Mário de Andrade. Jabuti é o herói

52
Botem um tatu

invencível das histórias indígenas do extremo norte, cheio de astúcia e habilidade,


vencendo os animais violentos, etc.
Essa mitologia do jabuti pegou no Norte do Brasil, sobretudo quando
os negros chegaram, pois eles tinham mitologia semelhante. Em certas regiões
há um congraçamento de mitologias, quer dizer, de totemismo. Então, o clã do
jabuti é alguma coisa mais nomeada lá pelo lado Norte. Mas justamente as
mesmíssimas histórias, contos, danças folclóricas, permaneceram na parte Sul
– e, também, em alguns pontos da parte Norte – mais do lado indígena do que
do lado negro, aparecendo aí não o jabuti, mas o tatu. De um ponto de vista
mais indígena, somos do clã do tatu.
É interessantíssima a questão do tatu. Por isso me permiti dizer que a
questão do Totem und Tabu é a questão do Botem um Tatu lá nesse lugar,
porque o pai morto pode ser esse bicho.
Os indígenas têm das carnes do tatu uma concepção muito original,
afirmando que elas reúnem em si as virtudes de todas as outras carnes, e
que, por via disso mesmo, podem ser comidas sempre e impunemente, sem o
perigo de infringir qualquer proibição de comer certa e determinada qualidade
de carne.
O tatu é, então, muito interessante, sobretudo depois dos escritos do
Freud, na medida em que há uma certa universalidade animal em sua carne.
E, mais, o nosso pai tribal é um animal que já teria essa “universalidade” em
sua carne.

25/MAR

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Psicanálise & Polética

54
Tarzan da Silva

3
TARZAN DA SILVA

Um Seminário como este, é tipo de fala de analisando, onde tenho o


direito de ser histérico. Os temas que vão sendo trazidos têm uma certa
orientação, são encadeados de forma a chegar a determinado ponto. É claro
que se eu não tivesse esse determinado ponto, não pretenderia fazer um
Seminário. A gente finge que não sabe onde quer chegar, mas já chegou, talvez,
mais ou menos perto. Faço questão que as pessoas participem no Seminário,
mas gostaria que tivessem a paciência e o cuidado de um pouco de rigor, para
ficarmos dentro da linha... pois se utilizarmos nosso tempo para esclarecimentos
muito parciais, vai-se perder a linha de endereçamento. E como uma espécie
de sinfonia ou de peça musical, em que os sistemas vão se sucedendo,
retornando, se recompondo com outros. É preciso talvez, conseguir ver o
arcabouço para poder retornar – a gente retorna constantemente – e não
ficar assustados, como alguns me disseram que ficaram, dada a quantidade de
“coisas novas” que foram apresentadas mais ou menos bruscamente.

* * *

Abordaremos um pouco, então, o texto de Tarzan. Da vez anterior,


tentei forjar rapidamente um mito, que chamei o mito do macaco maluco,
para mostrar a passagem que na antropologia está como passagem da Natureza
à Cultura. Vamos, agora, fazer um outro mito.

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Psicanálise & Polética

Peço o testemunho de um escritor, Edgar Rice Burroughs. Todo mundo


conhece, a maioria das pessoas viu isso na infância, sobretudo os homens – os
chamados “rapazes” – gostavam muito de ler Tarzan. Isto na minha geração,
hoje, não sei. Tarzan é uma estória inventada, segundo certos autores, a partir
de fatos reais. Eu o entendo – estou tratando do Tarzan original, do primeiro
livro chamado Tarzan of the Apes, Tarzan dos macacos – como uma mera
invenção mítica da origem do Homem. Como todo mito, tem muitas partes
forçadas, mas acho interessante tomá-lo como um mito inventado recentemente.
Não farei, aqui, nenhuma análise estrutural da mitologia, segundo Lévi-Strauss.
Apenas abordarei certos comparecimentos nesse grande mito que Burroughs
teria inventado, construído. Ele se constitui de uma porção de pequenos mitos.
Trata-se, pois, de abordá-los para ver se podemos ter, diante de uma produção
literária, uma visão possível disso que eu estava mostrando da vez anterior.
O livro foi escrito entre 1º de dezembro de 1911 e 14 de maio de 1912.
É bem recente. Burroughs tinha 35 anos. A narrativa começa em 1888.
Separaremos as origens da família de Tarzan, que se deslocou para a África, e
a história, vamos dizer assim, propriamente do Tarzan. Ele é produzido quando
já está sem os pais, no meio dos animais. Criança, ele vai sacando as coisas.
Vamos fazer vários cortes para entendermos melhor certa montagem que me
parece acontecer no mito.
A estória, então, começada em 88, século passado, gira em torno de um
jovem nobre inglês chamado John Clayton, que era o pai do Tarzan. Ele era
nobre, Lorde Greystoke. Esse sujeito terá existido, segundo alguns pesquisadores.
Eles eram recém-casados. O casal deixou o porto de Dover com destino a
Freetown, na África, que era a capital da colônia britânica de Serra Leoa, onde
chegaram um mês depois. De lá embarcaram num pequeno navio, um brigue –
que, aliás, tem um nome que, em português, soa muito interessante para ser a
origem de Tarzan: “Fuwalda” – alugado por Clayton para atingir uma vila num
dos deltas do rio Niger, de onde contava, subindo o rio, embrenhar-se no
continente africano, numa missão, aventura, etc. O texto de Burroughs diz: “E
aqui eles vão desaparecendo dos olhos e do conhecimento dos homens”.

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Tarzan da Silva

Vejamos, dentro desse barco, um primeiro mito. A tripulação se


compunha de um bando de marinheiros muito rudes, de oficiais não menos
rudes e de um capitão brutal, quase animalesco. Aí começam as peripécias do
casal Clayton. Diz o texto, apontando a selvageria ou, digamos, a barbárie, do
capitão: “O capitão era um bruto no tratamento com seus homens. Ele só
conhecia dois argumentos com eles, o cassetete e o revólver”. Está bem
qualificado que esse sujeito não usa a palavra, só a força. J. Clayton, diante
desse tratamento rude que vê o capitão aplicar a vários marinheiros, intervém
falando com ele e exigindo uma certa referência à lei e não à violência. Ele
aparece no texto como civilizador e civilizado. O casal é como que suposto no
lugar de sujeito que tem como referência a lei. Num certo momento, o Clayton
salva um marinheiro de ser, se não morto, pelo menos massacrado pelo capitão.
Então, um dia, este marinheiro vai procurá-lo para dizer que estava se montando
um motim contra o capitão e que ele tomasse cuidado. Clayton é incitado pela
mulher a procurar o capitão para adverti-lo porque, senão, estaria participando
do motim. O capitão lhe diz que não iria acontecer nada disto, que ele não
metesse o nariz onde não era chamado, que não interferisse na disciplina do
navio - disciplina era aquela lei de ferro estritamente produzida pelo capitão
segundo sua autoridade. A esta altura, a tripulação inicia realmente um motim
violento. Antes, eles entraram na cabina dos Clayton e roubaram as armas
para que eles não interferissem. Puseram um bilhete para que ficassem de
boca fechada e não dissessem nada ao capitão. Ficaram aprisionados dentro
da cabine. Com o motim, os oficiais e o capitão foram assassinados e jogados
na água. Num certo momento, um daqueles marinheiros quis matar o John
Clayton e, certamente, mataria a mulher também, mas os outros, sabendo a
posição dele, sabendo que fizera uma intervenção em outro nível, não deixaram
que fossem mortos. Mas, também, não podiam ficar com eles. Abandonaram,
então, o casal com toda a bagagem - que era imensa - numa praia do rio.
Neste momento, aí, se tratarmos como mito o que está acontecendo,
estamos vendo um bando de ferozes, quase animais - uma verdadeira horda,
no sentido freudiano -, dominado por um capitão onipotente. Eles matam a

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Psicanálise & Polética

tripulação e o capitão, e respeitam, de certo modo, uma emergência de lei ali


na figura dos Clayton, sobretudo a de John Clayton. Em vez de matá-los também,
os isolam.
Quase uma espécie de reconhecimento de um significante que vem no
lugar do Outro, daquela grande confusão, indicar este mesmo Outro como
lugar possível de uma Lei. O pai violento, que seria mais ou menos igual ao pai
animal, fora assassinado, morto. Pai morto na figura simbólica de Clayton que
é, então, isolado, deixado à margem num isolamento, situado num lugar.
Quando eles são abandonados lá, temos o seguinte texto de J. Clayton:
“Não há nada que se possa fazer. O trabalho terá que ser a nossa salvação”.
Tinham alguns utensílios e, agora, só resta o trabalho no meio da floresta, sem
nenhuma relação com sua espécie. Aí, a Sra. Clayton responde: “Se fôssemos
apenas você e eu, poderíamos suportar isto agora, mas...”. Ela está se referindo
ao fato de estar grávida, coisa que vem atrapalhar mais ainda a luta pela sobrevi-
vência. A resposta de Clayton é: “Centenas de milhares de anos atrás, nossos
ancestrais do passado remoto se defrontaram com os mesmos problemas que
teremos possivelmente que enfrentar nestas mesmas florestas. Nós estamos
aqui e isto é evidência da vitória deles. Eles conseguiram com instrumentos e
armas de pedra e osso... Certamente que nós conseguiremos também”. Eu
diria que aqui termina o mito que é da mesma ordem do mito da horda primitiva
de Freud: assassínio do pai, recolocação de um pai simbólico, etc.

* * *

Começa, então, uma outra versão mítica. Agora eles estão lá em carne
e osso. Funcionaram da primeira vez como simbólico e agora estão lá simbólica,
real e imaginariamente perdidos na floresta. Este segundo mito, ou a segunda
parte do grande mito, digamos que seja, talvez, o mito da instalação do simbólico.
Desde o primeiro mito, o do barco, estamos vendo uma tentativa de fazer valer
a Lei, valer o simbólico no seio de uma barbárie. Agora, pelos acontecimentos
que virão, a regressão se torna ainda maior.

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Tarzan da Silva

Abandonados num lugar selvagem, os Clayton se vêem sozinhos do


ponto de vista da espécie e cercados pela selva e pela selvageria. O ambiente
natural – isto é, não tratado pelo simbólico –, a floresta e os animais mais ou
menos ferozes começam a aparecer a distância. Com a bagagem trazida e
com muito trabalho, instalam uma espécie de núcleo simbólico no meio da
selva. Constroem uma cabana, fazem móveis, têm os apetrechos que trouxeram
e com eles fazem outros: ferramentas, utensílios, armas, armas de fogo, livros
de vários tipos, etc. Isto é, produtos culturais que aqui, no caso, tratando como
mito, valem como instalação do simbólico no lugar de uma falta real no
imaginário da sua espécie. No meio de uma selva falta-lhes, realmente, qualquer
imaginário. E um núcleo simbólico se instala ali cobrindo esta falta.
De repente, começam as investidas dos animais, os quais Clayton
consegue rechaçar ou caçar com suas armas de fogo. A Sra. Clayton havia,
logo depois que chegou, vislumbrado a distância, durante a noite, o que lhe
pareceu ser uma espécie de homem brutal, grandalhão e selvagem. Na realidade
era um macacão, um símio de grande porte. John, um dia no trabalho, é atacado
por este símio. O gorila avança sobre ele, fortíssimo. Ele está desarmado. Sua
mulher o socorre, pega uma arma e atira no macaco. O macaco o ataca mais
violentamente ainda. John cai desmaiado. Ela atira outra vez no macaco, pelas
costas. O macaco então avança para ela e a machuca bastante. Ela, que estava
grávida, fica bastante ferida. John se recupera e investe contra o macaco que,
já muito ferido pelos dois tiros, acaba sendo morto. Os dois se recolhem para a
cabana. Depois desta luta, desta refrega com um animalzão, eles se trancam
no reduto simbólico – um nicho simbólico instalado no meio do campo em que
o Outro se apresenta selvagemente.
Acontece, então, uma segunda instalação de simbólico: uma espécie
de natal, natal africano. Naquela mesma noite, em função da refrega, a Sra.
Clayton entra em trabalho de parto e nasce uma criança do sexo macho, que é
Tarzan. Ou seja, Lorde John Clayton Jr. Durante um ano eles cuidam da criança,
ficam fechados ali, só acrescentando seus utensílios, cuidando do ambiente, da
alimentação da criança... Ao mesmo tempo Clayton, pai, escrevia um diário.

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Psicanálise & Polética

Interessante, que ele escrevia em francês. Uma sutileza muito interessante no


texto, porque se trata de um sujeito que lida com o simbólico com desenvoltura.
A Sra. Clayton nunca se recuperou daquela brutalidade da fera que a
atacou. Vem adoecendo e acaba morrendo no dia em que a criança faz um
ano. Um ano de idade é antes do estádio do espelho. Outra pequena sutileza do
texto. A criança está numa fase de um pequeno animal incompetente, diferente
dos outros animais. John fica numa situação de horror, com dificuldades... De
repente, diz o texto, há um grande silêncio, a única coisa que se escuta é o
choro da criança na selva... Então esta segunda instalação – o filho daqueles
que portavam a diferença, que vem de uma ordem simbólica – emerge no meio
da selva: um ser que porta – de alguma origem, que aqui é mítica, veio da
Inglaterra, de Marte, como diz Moustapha Safouan, ou de algum outro lugar –
a diferença, independentemente da existência destes pais míticos.
Por outro lado, no meio daquele bando de macacos que cercava o
meio ambiente havia um parecido com aquele capitão do barco, que dominava
a horda. Ele se chamava Kerchak, é o mais forte de todos, o mais violento e
impõe sua lei – com “l” minúsculo – a todo o bando. Era o rei dos macacos. Ele
tinha aproximadamente 20 anos de idade e era tão violento que nenhuma outra
fera ousava enfrentá-lo, nem mesmo o elefante. O texto diz: “Não havia nenhum
símio por toda a floresta, na qual ele mandava, que ousasse contestar seu
direito a comandar, seu direito de fazer a lei”, his right to law. Lei no sentido
de regra de comportamento. O texto também se refere a uma tribo de antropóides
que ele comandava. Havia uma fêmea no meio desse bando, chamada Kala,
que era a mais jovem “esposa” de um macaco chamado Tublat. Apesar de
jovem, Kala era forte e dotada de um grande instinto materno, interesse materno.
Ela tinha um filhote de colo. Quando Kerchak estava enfurecido, atacava todos
do bando, os quais imediatamente se refugiavam nos galhos mais altos, porque
ele era muito pesadão e lá não podia ir. Num desses dias que está com essa
raiva toda, ele ataca Kala. Ela tenta fugir dele, mas deixa cair o filhote, que
bate no chão e morre. O texto chama atenção para o fato de que quando
morre o filhote, passa a raiva de Kerchak. É uma raiva assassina. Uma vez

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Tarzan da Silva

que conseguiu matar alguém, fica calmo e deixa para lá. Os macacos todos
voltam com muito cuidado para ver se ele não está com raiva ainda, e continuam
a obedecer suas ordens. Kala vai junto. Ela não aceita a morte do filhote e
continua a carregá-lo morto no colo.
Os macacos resolvem, então, mais uma vez, atacar a cabana dos
Clayton. Lá estão vivos apenas John Clayton e o filho. Kerchak conduz o
bando para atacar a casa. Como Clayton está deprimido, debruçado em cima
de uma mesa, não presta atenção em nada, nem na criança chorando no berço.
Ele não percebe que os macacos estão chegando. Quando os macacos vêem
que está tudo muito silencioso, também chegam em silêncio, encontram a porta
aberta, entram sorrateiramente e atacam o Clayton, que não tem tempo de
pegar a arma. Matam-no e depredam a cabana. Kala, quando vê aquele bebê
vivo dentro do berço, joga lá dentro o filho morto e pega o outro para ela. Há
uma semelhança imaginária qualquer que permite que ela faça esta troca. Aí,
mais uma repetição: outra vez, no seio de uma indiferença animal, instala-se
um ser que porta a diferença simbólica. Imaginariamente, é filho de macaco
(porque parece), mas, por uma filiação estranha, exótica, que veio de fora, de
algum outro lugar, porta uma diferença ôntica qualquer que, certamente, vai
funcionar. Aí termina este segundo mito da emergência, da instalação do
simbólico num lugar onde ele não existia.

* * *

Talvez aí comece um terceiro, que é o mito da passagem de animal a


humano. Nós outros estamos sabendo que Tarzan é filho do Clayton, etc., mas
se abordo como mito, isto não interessa. Posso tomar esta estória como o mito
do nascimento do homem na selva, posso tomar os pais ingleses como alguma
coisa estrangeira, tão estrangeira que é completamente fora do universo selvagem.
Temos agora aquela criança reconhecidamente filha de macacos.
Tanto Kala o reconheceu, pegou-o, que os outros macacos não chiaram. Ela
ficou com o bebê: tinha uma aparência “macacóide” então era filho! E, no

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Psicanálise & Polética

entanto, portava a diferença por ter outra origem, por ter um momento
originário diverso.
Kala cuida de Tarzan como se fosse um macaquinho. E ele, que não
tem outra coisa para aprender a não ser a macaquice, mesmo cercado de
macacos por todos os lados, reage muito bem. Aprende o que lhe é oferecido
para aprender. Aprende o comportamento do bando: subir nas árvores,
acompanhar o bando, obedecer ao Kerchak... Não é a criança lobo, é a criança
macaco mesmo, aquela que ficou na cabeça de Darwin.
De repente, o mito apresenta um espelho. Ele já era mais crescidinho.
Trata-se de um espelho que não é toda a estrutura do estádio do espelho, é
uma apresentação parciária... Tarzan, de repente, é o patinho feio. Um dia ele
está brincando com o priminho dele, tem sede e, como faz todo animal, vai
beber água na superfície, onde ela está mais limpa e mais arejada. Quando
chega perto, junto com o primo, vê que o primo é lindo, todo peludo, olhinhos
pequeninos, e ele é feio, pelado, branquelo... O primo se parece com todos
aqueles animais belíssimos, inclusive com aquela que ele reconhecia como sua
mãe. Ele era horrível. O mito apresenta aí o momento em que ele vê que há
uma diferença entre ele e uma outra criança, ao mesmo tempo em que há uma
igualdade, porque são tratados como iguais. Então, há um momento depressivo.
Eles se reconhecem companheiros um do outro, primos, ao mesmo tempo que
há uma diferença que é depressiva: o outro que é normal, parece melhor –
normal que dizer “macaco”. Ele e o primo, neste momento, são atacados por
uma leoa. Ela avança sobre eles e, mais uma vez, eles apresentam uma diferença
imediata. É que o macaco, que funciona na base do instinto, dos comportamentos
imaginários programados, faz o que deve fazer: reage ao ataque da leoa, que o
mata e come. Mas Tarzan, quando vê a situação, pula para dentro do lago. Ele
descobre, naquele momento, que pode nadar e fica fora do alcance da leoa. A
partir deste dia, Kala começa a achar estranho, porque os macacos, muito
raramente, e só forçados por uma situação extrema, conseguem entrar na
água. Tarzan não, onde vê água mergulha, começa a nadar e se divertir. Quer
dizer, uma vez que adquiriu a natação, e mesmo dentro de uma situação

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Tarzan da Silva

traumática, e talvez por isso, ele transforma aquilo num prazer, num momento
de escape. Nadar é uma técnica que ele desenvolveu a partir da diferença que
porta, o que lhe permitiu fazer o que o macaco não pode.
Surge, então, outra diferença, que comparece como técnica, mas que
está na dependência de uma função simbólica que se ainda não se articulou,
está para se articular no mito. Tublat, aquele que era o macho da Kala, o
padrasto de Tarzan, se não o pai, ele detesta Tarzan. Trata-se de um mito de
luta de prestígio, a fêmea fica de bobeira com o bebê, o filhote... Talvez Tublat
saque a diferença... Tarzan também odeia o macacão. Os dois brigam e, nessa
briga, Tarzan aprende uma porção de molecagens, a jogar pedra, fruta, e depois
sair correndo para um lugar onde ele não pode pegá-lo. Tarzan começa a
manipular os cipós, consegue fazer uma armadilha, o macaco vem correndo e
cai, coisas dessa ordem... De repente, ele inventa um nó. De tanto mexer no
cipó, ele inventa o nó e, diz o texto: “Era um germe de pensamento para o
magnífico sucesso que viria mais tarde”. Não é à toa que Lacan – eu ia dizer
Tarzan – situa na concretude do nó uma espécie de núcleo lógico concreto da
possibilidade simbólica, da escrita mesmo, do real do psiquismo, real da nossa
lógica, o concreto da nossa lógica. Ele inventa o nó e o texto apresenta esta
invenção como uma grande diferença, maior do que aquela outra da natação.
Certamente que, tendo inventado o nó, a vida de Tublat torna-se um inferno,
porque Tarzan podia, então, fazer as maiores safadezas com ele, puxar-lhe o
pé, laçá-lo de longe, pular de uma árvore para outra.
O bando de símios costumava fazer várias abordagens na cabana que
fora abandonada pelos Clayton. Tarzan, que sempre ia junto, achava aquilo
fascinante e misterioso. O texto mostra o tempo todo que tudo que pinta e
aponta para a diferença específica deixa-o meio encucado. Eles têm uma certa
linguagem. Eles se comunicam com limitações. Aliás, pessoas mal informadas
querem dizer que é uma tolice circular as diferenças, a nossa diferença, como
sendo a de sermos falantes. Querem apontar certas pesquisas etológicas que
mostram que há uma certa linguagem entre os animais. É claro que há uma
fala dos animais! Lacan, num belo pedaço de Seminário, nos diz que ele conversa

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Psicanálise & Polética

com a cadela dele, que, afinal, fala, fala coisas para ele... O que é completamente
diferente de ser determinado pelo simbólico. Existe uma relação de fala entre
os animais e até dos animais conosco, mas isto não significa uma determinação
de fala, sobretudo porque estão presos a uma fala que é limitada e é sempre a
mesma. Lacan chama atenção para o fato de que a cadela dele jamais o toma
por outro, contrariamente a nós, que sempre tomamos outrem por outros. É
uma fala que, sendo estruturada imaginariamente, funciona como um código...
como certos lingüistas querem fazer funcionar nossa língua.
Kala, então, tinha lhe dito, na sua linguagem de animal naturalmente,
que o pai dele era um estranho macaco branco, que ele procedia de alguma
coisa estranha, mas ele não sabia que Kala não era sua mãe. Isto é
interessantíssimo: o pai é de outra ordem. A mãe pode ser macaca mesmo,
não tem a menor importância. O que é importante no mito é supor que o Clayton
tivesse transado com a Kala e que, por um incidente qualquer, deu certo. Trata-
se de uma diferença que, se surgir no real, se equaciona como diferença
simbólica. Não se trata do “Sr. macaco seu pai”, o Tublat. Há uma paternidade
outra, só existente no nível do simbólico. Seja qual for a indicação, ainda que
de fala animal, o portador desta diferença ôntica, da falta real, e no imaginário,
acaba vindo a funcionar como marcação simbólica. É neste momento que
acho mais importante o mito: seja como for que tenha surgido a humanização,
qualquer historinha que seja, o importante é que, por uma diferença ôntica que
é uma brecha, uma falta, um furo, uma coisa desta qualquer, o sujeito não tem
outra saída senão funcionar simbolicamente.
Um dia, quando a macacada vai em volta da cabana, Tarzan entra
pela chaminé. É o único buraco realmente aberto. Não reconhece porta nem
janela, pois está tudo fechado. Quando chega lá dentro, descobre os três
esqueletos, do Clayton, da Sra. Clayton e do macaco que estava no lugar
dele. Descobre as roupas, as armas, os livros com letras e figuras humanas
como a dele. Neste momento, poderemos encontrar mais uma articulação,
mais um momento do estádio do espelho – o primeiro momento foi de diferença
pura, imaginária –, uma outra funcionalidade, também com imagens, mas

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Tarzan da Silva

entrando uma organização tipo letra, já em movimento: aquelas letras que


vêm, afinal de contas, de seu pai. Foram portadas por ele. Ele mexe naquilo
tudo e leva uma faca – algo que corta. “Levar uma faca” tem dois sentidos:
portar uma faca ou levar uma facada.
Justamente quando sai da cabana aparece um daqueles gorilas. Um
gorilão chamado Bolgani, que o ataca. Ao invés de fugir como fazia sempre,
Tarzan ficou. Tinha uma ferramenta, um utensílio, um artificio. (Tratarei
disso com mais calma, o artifício faz parte do simbólico e não necessariamente
da cultura. A cultura tem artifícios, mas o que determina o artifício é o
simbólico. Também a cultura, supõe-se que ela seja um artifício, criado pelo
simbólico. Minha questão continua sendo questionar se a cultura é condição
sine qua non. Quero dizer que a condição sine qua non é o simbólico. A
cultura é um artifício também, utensílio, ferramenta). Mas Tarzan não tem
mais medo, porque tem a faca, que é um artifício com o qual pode enfrentar
as armas naturais do gorila – e o mata com sua faca. O artifício valeu mais
do que a natureza, ele violenta a natureza do outro, na medida em que ela é
limitada e não conta com o artifício.
Quando Kala (“Kala” é a mãe, o pai deve ser o “Falo”) ouve a gritaria
do macacão, sente falta de Tarzan, corre para socorrê-lo. Encontra-o meio
ferido e o macaco morto. Kala cuida dos ferimentos e Tarzan se recupera
depois de um longo período. De certo modo, guardadas as devidas proporções,
podemos colocar Bolgani, o macaco que Tarzan matou, em certa semelhança
com Kerchak, o capitão dos gorilas. Tarzan mata um animal tirano, que não
tem como levar um papo e quer impor a sua força de qualquer modo. Quando
se recupera da doença, o primeiro pensamento que lhe vem à cabeça é recuperar
a faca, que, na verdade, é a referência do artifício que ele tem. Um objeto que
lhe dá uma referência simbólica. Burroughs termina o primeiro livro do Tarzan
of the Apes com essa referência de Tarzan a um objeto que não existiria sem
a vigência do simbólico.
Experiências feitas em laboratório de psicologia, com macacos,
demonstram que existem certas habilidades técnicas, tecnológicas – eu tiraria

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Psicanálise & Polética

o “lógico” – que fazem parte de seu esquema imaginário. Mas é limitado. Já


tentaram fazê-los falar, mas não conseguiram. E, no entanto, não encontram
nenhuma real diferença fisiológica que proíba isso. É muito interessante. No
nível em que estão as pesquisas não existe nenhuma diferença anatômica e
fisiológica que não permita que eles falem. No entanto, não falam.

* * *

O segundo livro, então, começa quando Tarzan vai reencontrar sua


faca no, agora, esqueleto do macaco que ele havia matado. Ele pega a faca
de volta e procura, de novo, a cabana dos pais – os pais míticos, pois os pais
dele são macacos. Desta vez, já tocado por sérios acontecimentos, ele não
entra pela chaminé. Abre uma porta, entra e faz uma pesquisa apurada de
todo o conteúdo da cabana. Interessa-se mais pelos livros, onde acha figuras
de vários bichos, paisagens e, sobretudo, figuras parecidas com a dele, cuja
diferença em relação aos macacos já notara no espelho. Está aí se compondo
o estádio do espelho, longamente. Ele começa a imitar o que acontece dentro
dos livros, em termos de figuras e, mesmo, a copiar, como se fosse um mero
desenho, tanto as figuras quanto as letras, sem saber o que era. Precisa
copiar as letras. Aparece uma grafia de Tarzan que miticamente, é por cópia...
Certamente que a escrita só apareceu por uma exigência simbólica. Ao copiar
a diferença, que não era imaginária, alguma coisa ele viu na grafia, alguma
coisa supôs nas entrelinhas.
Um dia, os macacos matam um outro macaco gigante, de outra tribo, e
vão fazer uma grande festa – parece até o almoço do texto do Freud – sob a
liderança de Kerchak. Irão despedaçar o gorila morto e comer-lhe as carnes.
Tarzan, que devia ser o menos dotado de todos para conseguir um pedaço de
carne, neste momento, em que tem uma faca, consegue o maior pedaço.
Agarrou um membro inteiro, decepou e saiu correndo. Tublat, que é o pai dele,
fica danado da vida e avança contra ele. Começa a persegui-lo. Tarzan
facilmente foge dele. Tublat fica com raiva porque não conseguiu pegá-lo,

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Tarzan da Silva

começa a avançar contra as fêmeas e bate também em Kala. Tarzan avança


contra ele – e o mata com sua faca.
Já é a segunda vez que Tarzan mata um macaco. Tarzan mata animais.
Ele está ficando com a origem simbólica em desenvolvimento. Ele matou o pai
animal como tinha matado o outro gorila, da mesma espécie que o pai. Há
tribos primitivas que chamam todas as pessoas da mesma geração de “pai” e
“mãe”. Façamos, aqui, uma diferença. Freud chama “assassínio do pai” neste
momento, eu diria uma “matança”: to kill é diferente de to murder. No texto,
assassinar é diferente de matar. Não se diz assassinar um porco, e, sim, matar
um porco, uma galinha. Quando Tarzan mata o pai macaco, ele dá um berro de
vitória e diz: “Eu sou Tarzan, sou um grande matador – killer, em inglês –, que
todos respeitem Tarzan dos macacos e sua mãe Kala”. Ele arranja uma grande
confusão aí. É um macaco e está lutando, em prestígio, para ser um macaco
muito importante. Depois de dizer-se mais poderoso. ele desafia todos os símios.
Dia seguinte, continua a querer exercitar esse poder de matador. Vai
atrás de Sabor, a leoa que matou o primo dele à beira do lago. Tarzan tinha a
maior vontade de arrancar sua pele para fazer um casaco – talvez inveja dos
macacos peludos. De repente, há uma grande tempestade, ele sente muito frio
e começa a entender o que eram aquelas coisas dentro da cabana, o que eram
as roupas. Fez uma corda, e este ganho ele não larga mais. Um dia, tenta
pegar um búfalo com a corda e verifica que o búfalo tem mais força e o
derruba, ele que subira na árvore para ficar fora do alcance do bicho. Tarzan
sai correndo e pensa: “Se fosse a leoa eu estava frito porque ela iria me comer”.
Então, reconhece certa limitação na sua técnica e nos seus utensílios artificiais...
e vê que não pode, por enquanto, avançar sobre a leoa.
Reconhecimento da limitação. Limitação que ele só pôde reconhecer
porque não a tinha. Um macaco não precisa reconhecer sua limitação, a
limitação está nele, ele funciona dentro de seus limites. Este momento é
interessante porque, digamos assim, ainda na relação especular com o bicho,
ele vai reconhecer a limitação por via do utensílio, do uso de uma técnica,
corda, e não uma limitação que lhe vem pronta em seu imaginário. Aquilo que

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Psicanálise & Polética

chamamos de estádio do espelho se monta, se articula lentamente para ele.


Não que haja nenhuma seqüência genética, psicologia genética no caso. O
texto está indicando, com uma série de experiências, a montagem de uma
estrutura que só se dá depois, e sobrevirá de chofre, naturalmente. Já há um
desejo aí em jogo, que o texto escamoteia. Quando se lembrou da roupa, ele
poderia ter ido lá pegar. Mas ele gostou daquela pele. Afinal de contas, um
casaco de pele é outra coisa...

* * *

De repente, Burroughs não tem como mostrar certos aspectos


diferenciais e Tarzan, que era sozinho como ser humano, na emergência de ser
falante no meio da selva, vai ter que encontrar outros seres humanos. Um dia
aparecem outros homens e Tarzan percebe que ele, que era o rei da selva, que
controlava os macacos, tinha sua segurança meio abalada pela presença de
outros homens, o que é, também, um outro momento de limitação. Embora
estes homens fossem de cor diferente – eram negros de uma tribo primitiva
que existiria no seio da África –, portavam, também, coisas artificiais portavam
o simbólico: armas, enfeites, utensílios. Quando ele vê essa gente pela primeira
vez, está trepado numa árvore. Percebe que eram guerreiros e que fugiam de
outros guerreiros que queriam matá-los porque teriam roubado marfim. É a
primeira vez que ele vê outros homens e sente uma certa limitação.
Um dia, Kilonga, que é filho do chefe daquela tribo de guerreiros, saiu
pela floresta e se perdeu. Como era muito tarde, ele subiu numa árvore e fez
um ninhozinho para dormir com segurança. No dia seguinte, o bando de macacos,
de que Tarzan fazia parte, procurava comida e, justamente, Kala se depara
com Kilonga. Ele joga a lança para matá-la. A lança bate nela. Ela se vira para
atacá-lo como qualquer animal faria. Mas ele tem, também, arco e flecha
envenenada, e mata Kala. Morre a mãe de Tarzan.
Tarzan chora muito e consegue saber, por indicação de outros macacos,
quem foi que a matou e resolve vingar a morte da mãe. Neste momento, tendo

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Tarzan da Silva

percebido que aquela gente é da mesma espécie que ele, fica em dúvida e se
pergunta se poderá fazer justiça a pessoas da própria espécie, da própria raça.
De qualquer forma, vai à procura de Kilonga para matá-lo. Ele está acostumado
a lidar com animais na luta de prestígio, e vê Kilonga caçando javali com arco
e flecha, coisa que ele não conhecia e que foi exatamente o que matou sua
mãe. Depois, viu o primitivo fazendo uma fogueira e assando a carne para
comer. Ele ficou tão interessado na novidade técnica que suspendeu a raiva
para aprender aquele negócio que ele achou um barato. Quando o Kilonga se
afasta, ele desce e vai lá experimentar a fogueira, assa a carne, come e acha
muito bom. Aprende aquele negócio todo, adquire mais uma técnica e, depois,
recomeça a perseguir o Kilonga. Luta corporalmente com ele e o mata com
uma facada. Depois, examina muito o corpo de Kilonga. Ele ainda tinha dúvidas.
Afinal de contas o outro era preto e ele branco. Talvez fosse macaco, ele não
sabia, embora percebesse que era mais do lado dele. Examina muito o negro e,
depois, se pergunta se poderia comer o cadáver. Afinal de contas, se matou –
lei da selva – come. (Eu tinha um amigo que dizia que, ao invés de fazer pena
de morte ou prisão, uma pessoa que mata outra deveria, agora, comê-la. Aí as
pessoas parariam de assassinar. Matou para quê, se não está com fome?).
Tarzan se dá conta que não se trata de um macaco e fica nesta questão. Será
que ele pode comer? O texto diz: “Será que os homens podem comer os
homens?”. Ele não come, larga o cadáver e se manda.
Há uma pequena emergência, aí, de uma espécie de sanção do “proibido
matar”. Uma emergência de lei que, no texto, parece ser animal mas não é
senão uma emergência humana. Tarzan vai para cima da árvore, vê a aldeia
da tribo do Kilonga e, de lá, enxerga uma mulher com um caldeirão de veneno
preparando as flechas. Ele estava vidrado nas flechas e no arco, que era um
outro poder. De repente, vem um guerreiro da tribo, vê o cadáver do Kilonga e
sai correndo para avisar o pessoal. Eles todos vêm pegar o cadáver. Tarzan
aproveita que o pessoal deixou a aldeia vazia, corre lá dentro e rouba as flechas
que já estavam preparadas. De curiosidade, entra numa cabana mais enfeitada,
que era, digamos assim, o templo da religião da tribo. Lá dentro, ele acha uma

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Psicanálise & Polética

porção de coisas que vemos que têm algo parecido com a casa dos Clayton:
enfeites, armas, etc. Descobre, também, uma porção de crânios, caveiras –
devia ser alguma coisa que fazia parte da religião desses primitivos. É
interessante notar, no texto, que a emergência do simbólico em Tarzan vai se
dando rapidamente. Veremos, mesmo, mais adiante, que estes primitivos ainda
ousavam matar-se uns aos outros – ainda que fosse aquela coisa que é permitida
quando feita pelo grupo. Tarzan acha aquilo tudo muito engraçado e, de safadeza
com a tribo, monta uma espécie de boneco, como se fosse um deus ou espantalho.
Espantalho que seria o deus humanizado – uma crítica que o texto apresenta,
uma crítica àquela adoração. Quando a tribo volta, ele cai fora roubando o
arco e as flechas.
Começa a usar o arco e as flechas entre os macacos, cada vez mais
os dominando com sua presença tecnológica.
Um dia, ele retorna à cabana dos Clayton. Olha longamente o retrato
do seu pai, com quem ele se identifica. Tudo era um barato! Nesse momento,
mais uma montagenzinha do estádio do espelho: ele começa a ver que é tanto
diferente dos macacos quanto dos homens daquela tribo. Ele é particular, tem
uma diferença. Poderíamos, mesmo, dizer que há nesta manipulação do retrato,
dos livros, das figuras, das letras, etc., uma espécie de momento em que se
completa o estádio do espelho, e que ele é marcado com o Nome do Pai, um
reconhecimento que, miticamente, é feito entre Tarzan e o retrato do pai.
Nesse momento ele encontra um medalhão do pai e pendura no
pescoço. Interessantíssimo isto no livro! Ele investe na marca simbólica.
Pendura no pescoço e continua a estudar os livros, identificando-se
definitivamente com seu pai. Talvez exista aí uma primeira emergência da
Lei. E vai haver uma segunda.
Um dia, acabam-se as flechas envenenadas que ele havia roubado.
Ele resolve voltar lá para conseguir mais. Quando chega à tribo de Kilonga,
que morreu, encontra um festival: os primitivos, dançando, batendo tambores
em volta de um homem amarrado numa estaca, que seria certamente morto e
deglutido, ou coisa dessa ordem. Aproveita e rouba as flechas, já que todos

70
Tarzan da Silva

estavam distraídos. Aí há um momento interessantíssimo.


Uma vez terminado o estádio do espelho, e sua particularidade
remetendo necessariamente ao simbólico, há uma fundação de culpa assentada
na Lei. Tarzan pega um crânio daqueles que encontrou dentro da cabana dos
primitivos e, de passagem, depois de ter pego as flechas, de cima da árvore,
joga-o no meio da festa. Quando os primitivos vêem a caveira caindo do céu,
tomam isto como sinal de agouro, saem espavoridos e não matam o prisioneiro.
Espavoridos porque estaria acontecendo uma coisa terrível – isto nos faz lembrar
aqueles crânios que os artistas renascentistas e pós-renascentistas faziam em
processo de deformação anamorfótica, jogando-os por cima da onipotência
dos reis; está num quadro de Holbein e em outros trabalhos. Lança aquilo que
é a presença da morte. Os animais não são mortais, e se os primitivos insistem
em matar é porque esqueceram da mortalidade, justamente porque matam.
Então, quando pinta a morte para todos é a Lei que pinta junto.
Neste momento, vejo uma pequena emergência da Lei como
reconhecimento de que “não se pode matar”, assim como tinha já reconhecido
que “não se pode comer o humano”. Daí por diante, Tarzan não mata mais
ninguém. Pelo contrário, ele se torna um salvador de vidas em perigo. Ele mata
os animais, mas não mata as pessoas.
De repente, ele se encontra com Sabor, a tal da leoa que ele não
esqueceu e cuja pele queria. Ele está com as flechas e enche a leoa de flechada,
mas ela, sempre muito forte e vigorosa, não morre de saída e avança para ele.
Mesmo assim Tarzan consegue matá-la com a faca. Arranca a pele e leva
para fazer o casaco – desse desejo ele não abre mão – e volta para o meio dos
macacos como sempre. Outra vez grita para eles que acaba de fazer o que
nenhum deles jamais conseguiu, matar um indivíduo da espécie dos leões. Eles
tinham enfrentado tudo, mas leão não, porque eles não são bestas: “Não vou
que eu não sou leão”. Mais do que isto, ele berra alto para os macacos: “Tarzan
não é um macaco. Tarzan, ele é...”, não acha a palavra... mas é mais inteligente
que os antropólogos, que dizem que nós somos homens. O bando de símios vai
lá e verifica perplexo a proeza de Tarzan. Respeitam-no e não ousam abrir o

71
Psicanálise & Polética

bico. Kerchak, o capitão da equipe, estava lá, se enfurece e resolve desafiar


Tarzan. Ele adorou, já havia matado um gorilão que apareceu quando ele saía
da cabana, matou o pai, mas o gorilão chefe, o poderoso chefão, ainda não
matou. Ele entra em luta corporal com Kerchak, que é a última figura animal
que tinha que matar para ficar demonstrada toda a diferença e dominar os
animais. Ele mata Kerchak com sua faca. Outra vez, a faca... Aí termina o
segundo livro do Tarzan of the Apes. Ele se torna, então, o rei dos macacos.
O jovem Lorde Clayton é quem manda na selva.

* * *

Esta historinha toda é para pensarmos juntos, na tentativa de demonstrar


o mito do surgimento da diferença, do surgimento da Lei. Tarzan se deparou
até com uma cultura – a dos negros no interior da África –, mas que tinha uma
barbárie tal que ainda permitia o assassínio e a deglutição. O mito deste
surgimento, o testemunho deste escritor, eu gostaria de comparar com o mito
de Édipo e, também, com o mito do nascimento de Cristo, em outra oportunidade.
Acho que está mais ou menos indicada, no tratamento da estória de
Tarzan como mito, a possibilidade da emergência do falante como diferença
ôntica, a emergência da Lei como um “não matar”, independentemente da
criação de uma cultura. Tarzan pega, miticamente, emprestada a faca, utensílio
do pai, as flechas de outra cultura. etc., mas, do ponto de vista do seu movimento
com estes objetos, eles são artifícios, achados ou roubados. Miticamente foi
preciso o autor botar uma cultura para ele achar uma flecha, mas ele podia tê-
la inventado, como inventou o nó. Ninguém o ensinou.
Não se pode tratar este texto como se fosse uma narrativa inteira e
na ordem direta. É melhor tratarmos um pouco como se trata o sonho, o mito,
podendo trocar as ordens. Se tomarmos como uma narrativa tipo romance,
onde as coisas têm começo, meio e fim, teríamos que considerar o John
Clayton que também lutou, tentou impor a sua questão simbólica e fracassou,
por um acidente ou coisa desta ordem. Prefiro não começar a história de

72
Tarzan da Silva

Tarzan no mito de sua origem, de seus antepassados brancos, e, sim, em sua


emergência como um bebê nas mãos de uma macaca. Um filhote, um macaco,
como coloquei da vez anterior, que, aparentemente, foi aceito. Logo, se o
imaginário do bicho aceitou, é. Um filhote nas mãos de macacos e que, no
entanto, porta a diferença. E no qual o mito, para dar um pouco de
verossimilhança, faz com que seja um lorde inglês. Tiremos as Inglaterras da
face da terra e lá coloquemos, miticamente, num passado remoto, um bando
de macacóides, ou o que se quiser, desde que não sejam humanos, falantes,
determinados pelo simbólico. Suponhamos, então, que houvesse ali, não em
um, mas em milhares de Tarzans, pintado uma diferença, uma diferença real.
Aí poderemos entender que o significante não pede licença para existir, ele
só pede um lugar onde possa se ancorar. Não precisa de uma cabana, pode
ser uma árvore. Para o macaco, uma árvore é tudo menos uma árvore!
“Árvore” é uma palavra. O tratamento que um sujeito defeituoso, do ponto
de vista do imaginário, dá a uma árvore, a uma pedra, não será jamais o de
simplesmente acomodar-se ao imaginário dado. A pedra que lá está no real
vai, para esse bicho novo, deslizar, como significante. Isto é que é significante.
Não é preciso nenhuma fundação genética, do ponto de vista espiritual, a
não ser miticamente, para que o sujeito venha a apoderar-se do significante,
porque tudo que ele aborda é significante. Ser significante significa que
um real tocado escapa da limitação estritamente imaginária.
Um macaco enquanto tal pega uma pedra real? Não! Ele tem relações
imaginárias com o ambiente e ponto! Mas estes que portam a diferença, eles
pegam uma pedra tão real que é significante. Porque o real se coloca, ou
seja, porque falta o imaginário para fechar o circuito dele com a pedra, é
preciso que o simbólico pinte. Isto é que é o significante. Qualquer troço que
pintou diante do ser é significante. O significante se apóia no real, o que é
diferente de coalescer isto tudo numa letra. Significante não é letra, tanto é
que o mito foi inventar, nas letras que lá estavam, para ele coalescer
significantes e sintomaticamente estabelecer o Nome do Pai. A letra é o
significante situado em relação a um campo significante delimitado. A faca,

73
Psicanálise & Polética

por exemplo, enquanto faca é objeto, mas enquanto esquema protético da


anatomia de Tarzan é uma letra. Tarzan é como todo ser falante, um biônico.
O homem não é um animal anatômico, é um animal biônico, cheio de próteses.
Qual é a anatomia do homem? Será que um tratado de anatomia, do ponto de
vista médico, é a descrição de um animal? A minha anatomia tem asas, tem
motor.. “A anatomia é o destino”, é claro!, e o pessoal pensa que é aquele
negócio de peru e xota. Não é isto... Ninguém anda sem muleta. Falei, na
vez anterior, sobre o deficiente físico, que todos nós somos deficientes físicos,
por mais prótese que a gente tenha...
Há uma falta real de imaginário em Tarzan. Se ele fosse um macaco,
seria simplesmente um macaco com um imaginário e com todos os
comportamentos aprontados, por mais elásticos que fossem. Há um código lá
inscrito que, por mais elástico, situa um macaco como um macaco. Ele tem o
mesmo circuito num programa, do ponto de vista computacional. O macaco é
macaco na medida em que tem um corpo próprio. Isto para distinguir o que
chamo de autossoma, genético, de um etossoma, que está marcado no corpo
dele como seus comportamentos, enquanto macaco. O código não aumenta no
sentido de diversificação. Pode aumentar em tamanho, pode ser muito elástico.
Os psicólogos vivem metidos dentro de laboratórios de aprendizagem com ratos,
etc.. quando estão, simplesmente, elasticizando as competências - no sentido
chomskiano do termo – que são estritamente imaginárias, programáticas,
cibernéticas, daquele bicho. Aprendizagem do rato, o “homem dos ratos”,
Skinner... Não adianta botar a filha na jaula, como ele botou, porque ela vai
falar, há uma diferença... Há um texto muito engraçado, de Lacan, chamado O
rato no labirinto, no Seminário 20, em que ele fala do “homem dos ratos”...
Há uma falta. Não há completude imaginária no falante. Ele tem um
imaginário que, no entanto, não se fecha, tem uma racha, uma abertura... Algum
conjunto aberto, e exatamente nessa brecha é que tudo se subverte no imaginário.
O real não é senão a falta, aquilo que sempre falta, falta inscrever-se. Isto é
que Lacan veio trazer como a diferença ôntica do falante, não ontológica, mas
ôntica e inabordável. Uma vez que o falante porta o real da falta, da falta de

74
Tarzan da Silva

inscrição, não tem outra coisa a não ser tornar tudo significante, tudo deslizante.
Não adianta Deleuze, e até ditos lacanianos como Serge Leclaire, que teve a
graça de me dizer que estava contra o “imperialismo do significante...”. Não
entendi nada, perguntei o que era isso e ele não quis me explicar. Não estou
dizendo que o conceito de significante não seja superável, mas, por favor,
primeiro superem! Não tenho nada, até segunda ordem, que seja ferramenta
mais apurada. Faca melhor do que esta não me deram, então, não adianta
xingar a faca. Se não, é mera rebeldia: “Papai criou o significante, eu estou
com raiva dele, então vou dizer que é imperialista”. Não se trata disso.
Há uma vergonhosa (hontologie, de Lacan) falta real no imaginário
que posso reconhecer, simplesmente, por experiência. O ser falante nasce
absolutamente incompetente, faltoso, incompleto, e sucumbe se algo não vier
socorrer essa falta, se algum expediente não for inventado. Antigamente, víamos
nos livros de ciências naturais que o homem não tem as mesmas ferramentas
naturais que outros bichos, unhas, couro, esporas... Este era o tipo de argumento
que usavam. Já é uma incompetência bem grande quando lidamos com uma
anatomia originária, e, mais do que isto, uma prematuração que encontramos
no bebê de qualquer sujeito falante. Está lá, é dado, não tem como sair desta!
As poucas crianças encontradas entre os animais - as crianças lobo, etc. – ou
sucumbem, ou sobrevivem absolutamente na imitação do animal e socorridas
pelo expediente do animal que as elege, como foi com Tarzan. Se não, ele não
sobrevive, fica numa infantilização longa, numa longa infância, se não perene.
Então, na verdade, há uma falta constitutiva. Ele não tem como chamar-se,
como reconhecer-se de tal ou qual espécie, com sua corporeidade e com seus
relacionamentos fundados no comportamento dado. Ele saca isso de dentro
do seu imaginário. Falta alguma coisa. Não é falta no sentido de estar faltando
isto ou aquilo, é falta radical. Tem uma abertura, então, não se fecha. Tem
uma brecha, uma ferida e, por aí, é que ele pode tomar todo e qualquer
surgimento diante dele não como um deslanchador de estruturas de imaginários
gestálticos aprontados, mas, simplesmente, como algo que chamamos de
significante, justamente porque desliza. É aqui não sendo aqui. Acompanha o

75
Psicanálise & Polética

movimento da falta. Não se consegue produzir uma ontologia, uma filosofia,


muito menos uma metafísica... é um dado bruto. Falta, e porque há falta,
substituições são feitas a partir dos elementos que são todos tomados como
significantes, porque eles não são nada, eles não funcionam. A letra, então,
que designa a marcação simbólica relativa a essa falta, é a letra, também, do
conjunto vazio. Esta falta não é senão portar um conjunto de coisa alguma,
numa certa região de nossa prática.
Olhamos para o animal e não lhe falta nada para ser o animal que é.
Ultrapassou seus limites, ele morre e acabou-se. E, pior que isso, ele não
consegue nem morrer. Atingir a morte ninguém atinge, e nós morremos para
atingir a morte, isto é importante. Pode-se, também, chamar a falta de outra
coisa, de vazio como faz o zen, ou de excesso... Deleuze, por exemplo, diz que
não falta nada, que há excesso. Quero dizer que é exatamente porque falta,
numa comparatividade imaginária, em relação aos três registros – real, simbó-
lico e imaginário –, porque naquele registro que dá sustentação aos animais
alguma coisa falta, o excesso se funda. Só que é o excesso de outro nível, do
registro do simbólico. Não é imaginário. Ele pode até se imaginarizar, e se
imaginariza freqüentemente. Está aí a neurose. Mas o nível de produção é
simbólico, substituição de uma coisa por outra, o tempo todo. É de artifício.
Não adianta uma ideologia da natureza, não existe esse troço. É uma ideologia
discursiva como outra qualquer, o discurso da árvore, da água limpa, etc., tem
tanto valor quanto o discurso da água suja... É questão de prática, interesse...
Não sei de saída o que sou. Um animal sabe o que é. Tenho uma falta
que subverte toda a estrutura. Qualquer coisa de fora, ou qualquer coisa da
minha corporeidade, é puramente significante. Estou completamente
esfacelado, com uma série de significantes que vem de fora e que eu não
tinha. Mas, num certo momento, através da minha imagem, que para mim é
completamente outra, por reforço de treinagem de um outro, pela palavra
assertiva de um outro, faço daquela imagem a minha suposta imagem: “Ah!
Então eu sou aquele cara lá”. O que é já o regime de metáfora: “Eu sou como
você”. Isto é o que se situa no estádio do espelho. Esta pregnância imaginária

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Tarzan da Silva

que tomo de outro – o espelho está simplesmente como a lógica do


acontecimento –, eu não posso nem assumi-la sem a sua intervenção simbólica,
se eu não tiver a assertiva de outro, através de alguma coisa que não é
simplesmente ver a retratação, de me dizer de algum modo: “Sim, trata-se de
sua imagem”. Só posso colar isto no regime do imaginário, e numa assertiva
que vem do lado simbólico que nos prega ali naquele lugar. É isto que Lacan
chama de instância paterna. Significa simplesmente a chegada da metáfora, a
chegada do simbólico através de via metafórica.

* * *

Neste mito do Tarzan, que retomaremos, do ponto de vista estrito, se


esquecermos toda aquela mítica de sua vinda da Inglaterra, etc. – como até
hoje se vê, compra-se por aí uma porção de livrinhos bastante delirantes que
dizem que o homem veio de seres de outros planetas que desceram aqui, “serão
os deuses astronautas?”, coisas dessa ordem, na mesma tentativa de buscar,
de inventar uma historinha para a nossa origem –, veremos que isto não
interessa, seja qual for a história, até um acidente atômico ou uma explosão
solar num certo momento... o que acontece é que apareceu e está aí! Se
pegarmos, então, o mito de Tarzan nesta mesma linha – aquela criança, filho
de macaco que, por portar o simbólico, começa a ser um macaco maluco e agir
através de artifício –, veremos que há uma produção de artifício assentada na
insistência do simbólico que vem em substituição à falta real e, com isto, temos
aquilo que se pode chamar de cultura.
É preciso distinguir a cultura, do simbólico. A cultura não é o simbólico.
A Lei existe em função do simbólico, ainda que a cultura não se tenha
estabelecido. Com isto, faço a distinção entre a Lei que diz “não matar” e a
instituição da cultura que diz “é proibido o incesto”. Quero passar uma faca aí
no meio porque está tudo embrulhado na teoria até hoje. Freud tem razão em
dizer que não cometer o incesto é uma prática que interessa à formação da
sociedade, justamente porque organiza os grupos. Funciona como reforço

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Psicanálise & Polética

imaginário dizendo que eu sou um homem de uma espécie e você é um homem


de outra espécie. Minha briga é aí. Quero me perguntar se não é, justamente,
a interdição do incesto pouco trabalhada, pouco levada às suas últimas
conseqüências abstratas, que vem re-imaginarizar e separar os homens em
espécies. A interdição do incesto é universal? É condição sine qua non da
convivência dos sujeitos? Ou é uma longa fase na história da humanidade?
Esta é uma grave questão.
É interessante que no mito de Tarzan não se fala de incesto, como
também não se fala no Gênese, na Bíblia. Por que este recalcamento? No
Tarzan, trata-se da diferença e, de repente, pinta a questão de não matar o
homem. Trata-se de interdição, não necessariamente de incesto.
Temos, então, um ser que porta esta falta real e, certamente, tudo que
ele tocar será significante. E, no encadeamento deste significante, de retorno,
ele só pode recuperar isto no simbólico. Portanto, o simbólico pré-existe à sua
própria recuperação. É o só-depois. É o movimento do simbólico que só se
articula no só-depois. Ele pré-existe à sua própria instalação. No que há a
falta, e tudo é tratado de modo significante, tudo se coalesce em forma de lei e
o simbólico pré-existe à própria assunção do simbólico. Só funciona como nó.
Se não se fizer, como Freud fez, a hipótese do simbólico puro, não se chega à
psicanálise. É preciso inventar o inconsciente como um lugar, uma tópica, onde
os significantes apenas se articulam uns com os outros, o lugar onde se dá o
processo primário, metáfora-metonímia, onde, simplesmente, não há tempo e
ninguém diz qual é a metáfora privilegiada. Tem que “sartar”! É claro que,
porque existe real, simbólico e imaginário entrelaçados, estas coisas se
coalescem, se decantam sintomaticamente, incorporam-se... Mas o inconsciente,
no seu funcionamento, é simbólico puro.

* * *

A intervenção psicanalítica pretende ser no mesmo nível e na mesma


ordem do inconsciente. Nada tem a ver com os sentimentos, as emoções,

78
Tarzan da Silva

estas coisas que os psicólogos pretendem tratar... Porque tudo isto se borda e
se entretece em pura relação significante. É lá que se tem que mexer. O resto
não interessa.
Para que vou falar com o padre, se posso falar com o papa... Se posso
tocar no lugar da determinação, para que vou fazer biodança?

01/ABR

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Psicanálise & Polética

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Desde o para isso: de Adão a Édipo

4
DESDE O PARA ISSO:
DE ADÃO A ÉDIPO
Convido vocês para um pouco de reflexão, de leitura, sobre pelo menos
três ocorrências da nossa cultura.
A primeira, é o chamado Gênese, o primeiro livro da Bíblia, no Velho
Testamento. A outra seria a historinha de Édipo, o mito que existe ao seu redor.
Leiam Édipo Rei e Édipo em Colona, de Sófocles. E, finalmente, outra
estorinha também muito interessante, que está bem inserida em nossa cultura:
o nascimento de Jesus Cristo. Está, aliás, na televisão, por causa da Páscoa.

* * *

Outro dia, alguém me disse: “A Bíblia só tem sexo”. Eu disse que isto
não é verdadeiro, mas é uma inferência que as pessoas fazem, não do texto do
Gênese, mas do modo como ele costuma ser narrado para as crianças – e
ficamos com isso na cabeça. É o modo como ele é tratado no cotidiano, por
esse cristianismo de rua, e quem sabe mesmo se com certo interesse da
dominação católica... Existem algumas evidências de incesto dentro do Velho
Testamento, mas um incesto assim meio secundário, feito pai-com-filha, como
mostramos naquelas sessões sobre o alcoolismo*, no Seminário passado, sobre
as filhas de Lot – incesto com o pai, por uma razão muito justa para a cultura
* Publicadas com o título de O porre e o porre do Quincas Berro Dágua. Rio de
Janeiro, Aoutra Editora, 1985. Seminário de 1980.

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Psicanálise & Polética

ocidental: fazer a procriação do seu grupo. O que me interessa é o Gênese até


o capítulo 12, por aí, até Babel. Trata-se de procurar aí, já que esse é o começo,
aonde está alguma regra de interdição do incesto. Por outro lado, naquela historinha
que as pessoas narram no cotidiano religioso, dá para inferir que haja um grande
incesto na existência do ser humano.
Se no começo eram Adão e Eva, e todo mundo descende deles, teve que
haver incesto para haver procriação. Mas a Bíblia nada diz a este respeito. E
muito menos diz que o homem começou com Adão e Eva. Leiamos com cuidado
o capítulo 1, aonde fala da criação dos céus e da terra, e de tudo o que neles há.
A cada conjunto de produções, de criações, que Deus fazia – comentaremos
quem é Deus depois –, Ele ia contando os dias da terra. Só no sexto dia, na
véspera do repouso, que seria algo como o domingo de hoje – por isso é que os
casais até hoje só fazem sexo aos sábados – é que Ele vai criar o homem. “E
disse Deus”, parágrafos 26-7, “façamos o homem à nossa imagem, conforme a
nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu,
sobre os animais domésticos, sobre toda a terra, e sobre todo réptil que se arraste
sobre a terra. Criou, pois, Deus, o homem à sua própria imagem, à imagem de
Deus o criou; homem e mulher os criou”. Homem e mulher, acho que é um
abuso do termo, porque, certamente, machos e fêmeas os criou. Veremos por
que mais adiante. Imediatamente, Deus abençoou esses novos produtos e lhes
disse: “Frutificai e multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a”.
Quer dizer que, imediatamente, aquilo começou a se multiplicar. Se
essa tradução é válida, deve ter sido assim como foram criados os animas, que
foram uma porção... Mais adiante, quando Ele produz o Jardim do Éden, cap.
2, 16-l7, diz: “Ordenou o Senhor Deus ao homem: de toda árvore do jardim,
pode comer livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal,
dessa não comerás. Porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás”.
Esta era aquela árvore que, digamos, portava simbolicamente o conhecimento
do bem e do mal. Ou seja, portava a diferença entre bem e mal. Posso inferir
daí que o conhecimento do bem e do mal é o conhecimento da morte. Não
pode comer da árvore da morte. A árvore da morte é a mesma coisa que a

82
Desde o para isso: de Adão a Édipo

árvore do sexo. Ou seja, todo ser sexuado morre, diferentemente de todo ser
assexuado, porque é a reprodução de um indivíduo que porta a semente, mas
não se subdivide. A secção, portanto, já está instalada naquela árvore.
Imediatamente depois, como uma conseqüência lógica, Deus se manca
de que tinha proferido uma coisa espantosa e continua, cap. 2, 18: “Disse mais
o Senhor Deus: não é bom que o homem seja só”. Espantoso, porque quando
se lê os capítulos anteriores, ele não estava só, pois Ele os criara com o mesmo
nome – aliás, de Adão – criou os machos e fêmeas, talvez aos borbotões,
porque ele mandou aquilo proliferar. Já devia, então, ter uma porção, quando
ele pensou o segundo pensamento. O sétimo dia deve ter durado milênios.
“Far-lhe-ei uma ajudante”, continua Ele. Impressionante que a coisa que vem,
nova, vai se chamar “ajudante” do homem.
Como Ele vai fabricar essa ajudante? Está no feminino, “uma”
ajudante. Antigamente, quando criou Adão, Ele o criou com dois sexos. São
o mesmo indivíduo: Adões de dois sexos. “Então o Senhor Deus”, cap. 2, 21-
22, “fez cair um sono pesado sobre o homem” – portanto, sobre macho e
fêmea – “e este adormeceu. Tomou-lhe uma das costelas e fechou a carne
no seu lugar. E da costela que o Senhor Deus lhe tomara, formou a mulher e
a trouxe ao homem”.
Como é que tem duas criações? É uma estupidez do texto? Depois de
passar milênios nas mãos das pessoas? É porque são autores dispersos, que
não se encontraram? Isso deve ter um sentido, senão não passava... Depois
desse troço todo, parou, e descansou. É depois do descanso, na outra semana,
que Ele começa a pensar que o homem – que já era uma porção de machos e
fêmeas – precisava de uma ajudante... Para perceber o quê? Para ajudar a
fazer o quê? Vejamos que Ele pensou nessa ajuda imediatamente depois que
tirou a inocência do homem. O homem foi criado assim feito bicho, ele se
reproduzia aos milhares, machos e fêmeas... E, justamente, diante de um ato
de proibição, ao proibir que comesse de pelo menos uma, árvore, que é exceção
no paraíso, sem explicar coisa alguma. Essa proibição já é bem clara, como
tentei explicar aqui de outras vezes, como indicação do impossível. É impossível

83
Psicanálise & Polética

comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, sem dar de cara com


o impossível, com o Real, com a morte! Esta morte, certamente, não é
nenhuma morte física, é aquela que Lacan chama de segunda morte, essa com
que nos deparamos todos os dias. Não é a morte de ninguém, é a instância da
morte, a instância letal. Então, no momento em que Ele indica que o impossível
está lá – no momento em que faz um furo naquele Imaginário que estava lá,
em que cria o real para o ser falante, para o homem –, imediatamente, pensa
em ajudar o homem a entender isto.
Ele cria a mulher como artifício e entendimento da morte, do real, do
conhecimento da árvore do bem e do mal – artifício, portanto, do conhecimento
da diferença. Ele funda a Outra. O homem macho e fêmea, já tinha fundado,
criado, e, uma vez que é indicado o impossível, que pinta o real, que falta
alguma coisa no imaginário, o furo é criado e Ele vai precisar colocar a Outra,
ou o Outro, talvez, até, se colocar. E, imediatamente, a coisa pinta como desejo,
já que é o furo.
Como pintou a mulher? Aqui já não é a fêmea. Quero distinguir isto. A
mulher vai aparecer certamente num sonho do homem. Ele cai num sono
profundo para sonhar esse negócio de que veio Deus, tirou uma costela dele,
tapou e pintou a mulher. A diferença pintou como sonho que realiza um desejo
que, naquele momento, é criado para o homem, como produção de falta do seu
corpo. Pintou, então, no inconsciente dele, por via onírica, uma historinha que
desse conta da proibição que já devia estar lá. A ajudante que veio aparecer,
veio como resultado de uma elocubração de desejo, que se fundava naquele
momento, porque era criada a interdição, a falta, como resultado de uma
articulação, de um sonho, ou de alguma coisa que venha a produzi-la como
diferença. Lacan está careca de dizer: “A mulher não existe”. O máximo que
podemos fazer é sonhá-la, digo eu. Em sonho aparece uma historinha que,
traduzida, talvez pudesse significar que alguma coisa foi tirada e pintou do
outro lado como diferença, como falta. O que já é manifestação do desejo, que
foi criado desde o momento em que o furo apareceu na fala divina de proibição
do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal.

84
Desde o para isso: de Adão a Édipo

Essa tal mulher, que não é a fêmea, vai realmente ajudar o homem, no
sentido genérico do termo, a entender as coisas. Engraçado que, nesse capítulo
2, a coisa termina assim: “E ambos estavam nus, o homem e a mulher, e não se
envergonhavam”. Apesar de terem sonhado essa diferença, de terem sacado
a proibição como alguma coisa de estranha, certamente neles mesmos, eles
ainda não tinham vergonha de portarem esse furo. Vão precisar de toda uma
articulação para ter vergonha na cara, para que o furo compareça e eles
articulem alguma coisa sobre ele.
Quando estamos no regime da narrativa, não podemos esquecer que
o que comparece às vezes como cronologia é narrativa sucessiva do que é
cultural. O fato de eles ainda não se envergonharem significa que uma batida
está faltando, porque a coisa já está dada, desde o momento em que foi proibido
comer daquela tal árvore lá. Foi proibido porque é impossível. Quando é
impossível é sinal de que não se pode fazer isso porque dá necessariamente
naquilo: “Não ponha a mão no fogo, porque queima”. E o Deus aqui não é
idiota, ele diz. “Não coma, porque morre”. É absolutamente verdadeiro. A
interdição é uma maneira de dizer o impossível. Não se pode fazer o sujeito
experimentar a morte, pela qual ele não passou, a não ser dizendo. “Não chega
lá, que dá nisso!”. A morte que nós vivemos não é aquela que vai ocorrer se a
gente morrer, é aquela que não se pode atingir.

* * *

Imediatamente depois disso, pinta a tal da serpente, no capítulo 3: “Ora


a serpente era o mais astuto de todos os animais do campo que o Senhor tinha
feito”. Há muito tempo, e em muitas culturas, que a serpente aparece como
esse animal astuto. Talvez por alguma relação imaginária com os movimentos
de enrolar, de estender, o imprevisível de seu bote, talvez, até, a sua
configuração, que lembra o pênis, alguma coisa que funciona sintomaticamente,
que a gente não sabe de onde vem... é uma astúcia, toda especial. Em suma,
essa tal serpente, ou seja, o grilo, na cabeça de Eva, podia ser uma serpente,

85
Psicanálise & Polética

ou podia ser um grilo. Não sabemos, por exemplo, se naquele tempo se dizia
que o cara estava “com serpente na cabeça”, quando se queria dizer que tinha
alguma coisa na cabeça de alguém: “Está com minhoca na cuca”. Pinta um
grilo, uma minhoca, na cabeça de Eva... Certamente tinha que ser na dela, pois
ela foi criada para isso, para ajudar o homem a pensar a respeito da proibição.
Ela representa a falta. Ela não é a falta, ela a representa para o
imaginário. Os corpos femininos são representantes, do ponto de vista de
representações, do imaginário da falta, da falta do pênis. O que não significa
que não falte ao Outro, na virada do simbólico. Aí é que entra toda aquela
tolice da criança, no pensamento de Freud: como ele via no imaginário dos
corpos a diferença, ele tenta equacionar, pressionado por essa diferença
imaginária, por essa representação.
Mas, voltando, a serpente diz, cap. 3, 1-5: “É assim que Deus disse:
não comereis de toda a árvore do Jardim? Respondeu a mulher à serpente: dos
frutos das árvores do jardim, podemos comer”. Vemos que ela também foi
informada, não precisou Adão nenhum lhe dizer. “Mas o fruto da árvore que
está no meio do jardim, disse Deus, não podeis comê-1o, nem nele tocareis,
para que não morrais.” E a serpente, como bom grilo que era. respondeu:
“Certamente não morrereis”. O pior é que estava dizendo a verdade, porque o
morrer aí não era o morrer físico. Não é à toa que a serpente é símbolo da
ciência até hoje. Ou seja, sofre de certa histeria. Senão, vejamos: “Porque
Deus sabe que no dia em que comerdes desse fruto, vossos olhos se abrirão, e
sereis como Deus, conhecendo o bem e o mal”. E o pessoal fica esperando até
hoje, deve ser a serpente da vida... O que a mulher não sabia é que Deus era
igualzinho a ela, que Ele também não sabia, não conhecia a morte, Ele também
estava proibido de comer, a não ser como morte, como exceção. Só Ele pensava
como exceção. Quer dizer, para o homem, Deus sabe; para a mulher, Deus
não sabe coisa nenhuma. Mas, só depois é que ela vai sacar isso.
“Então, vendo a mulher”. cap. 3, 6-7. “que aquela árvore era boa para
se comer, que era agradável aos olhos” – ela tinha que ver que era bom, ela
fora trazida para isso, para ajudar o homem a conhecer essas coisas –, “e que

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Desde o para isso: de Adão a Édipo

era uma árvore a ser desejada para o seu conhecimento, tomou do seu fruto,
comeu e deu de comer a seu marido” – duvido muito que tenha a palavra
“marido” na Bíblia: deu ao seu homem – “e ele também comeu. Então, foram
abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus”. Quer dizer, ao
conseguir fechar o círculo, que tinha começado com a proibição, passou ao
sonho da diferença, e depois se concretizou, justamente, ao fazer o que era
proibido e não conseguir. Isto é, dar de cara com o real, com o impossível. Aí
se manca, de uma vez por todas, que há uma grande diferença, e percebe que
são duas. Perceber que são duas é perceber justamente que há uma diferença
radical, mais nada. A coisa está desvelada agora. A diferença pintou a olhos
vistos no imaginário das representações. Já tinha pintado no inconsciente, em
forma de sonho...
Nesse momento, Deus chama pelo homem, e ele se esconde, cap. 3,
9-15: “Onde estás? O homem respondeu: ouvi a tua voz no jardim, tive medo
porque estava nu e me escondi”. Quer dizer, ele deu toda a bandeira. Desse
momento em diante, ele não podia deixar de fazer isto, as coisas estavam
desveladas. “Quem te mostrou que estavas nu? Comeste da árvore que ordenei
que não comesse?”. Aí diz o homem: “A mulher que me destes por companheira
deu-me da árvore, e eu comi. E o senhor Deus perguntou à mulher: que é isso
que fizestes? Respondeu a mulher: a serpente enganou-me, e eu comi”. A
serpente era o grilo que ele mesmo colocou na cabeça da mulher, quando ela
foi criada. Aí vem aquela história toda, aquele pito divino no casal humano,
falante, reconhecedor da diferença aonde a Lei já começa a pintar, como
possibilidade de ser reconhecida como tal... Diz Deus, mais abaixo, à serpente:
“Colocarei inimizade entre ti e a mulher... esta te ferirá na cabeça, e tu a
ferirás no calcanhar”. Elas estão presas: toda mulher tem uma cobra no pé, e
toda cobra pega no pé da mulher. O grilo continua lá mordendo. A mulher pisa
na cobra o tempo todo. Está lá a diferença, ainda questionando... Nada se
universaliza, a coisa fica em aberto, como está no esquema de Lacan. Aí vem
a questão do suor do rosto, do trabalho, esse negócio todo, que é uma
conseqüência muito espontânea de ter deixado de ser animal. Está determinado

87
Psicanálise & Polética

pelo simbólico daí por diante.


Nesse momento entre, então, cap. 3, 20: “Chamou Adão a sua mulher
Eva, porque era a mãe de todos os viventes”. Não é a mãe de todos os homens,
é a mãe de ‘todos os viventes’. Quer dizer, pintou a diferença, sacaram até na
ordem do vivo. Então, é o próprio Deus quem vai fazer roupas para eles e dizer
que se vistam.
Aí Deus fica preocupado com as artes do casal primevo e os expulsa
do paraíso. Isto por uma razão muito lógica: eis que “o homem se tornou como
um de nós, conhecendo o bem e o mal”. Isto é dito por Deus. Ou seja, a
serpente estava certa. Quer dizer, Deus sofre dessa diferença, cap. 3,22: “E
agora, que ele não estenda sua mão e tome também da árvore da vida e coma,
e viva eternamente”. Por isso é que ele os expulsou do paraíso. Não foi, na
verdade, para punir pelo fato de terem feito aquilo. A punição já foi aquela – e
não é uma punição de obsessivo – conseqüência lógica do fato de reconhecer
a diferença, pelo menos do falante: vai ter que trabalhar, que deixar de ser
animal... E expulso para não continuar naquele desejo de totalização... de comer
da árvore da vida, e se tornar imortal.
Se o homem comesse da árvore da vida, ele superaria Deus? Por que
não? Ele já se tornou como um de nós, com o conhecimento do bem e do mal,
se se tornasse eterno... Será que Deus é eterno? Não tem nada por aqui me
dizendo que Ele seja. Certamente, se todos os homens morrerem, Ele acaba. É
preciso ter sempre um homem saudando Deus. Se o homem comesse da árvore
da vida e vivesse eternamente, se a morte não fosse o estatuto mesmo da
diferença, o que deveria acontecer? O medo de Deus é que o homem venha a
acabar com a morte que experimentou na primeira vez. Há duas maneiras de
o sujeito escpar da morte: uma é ser animal, pois animal não morre, falece. Ele
não tem nenhuma angústia de morte. Outra, é tornar-se imortal, nunca mais
morrer. E já que não vai morrer mais, dá na mesma. Seria um arqui-animal,
porque sem morte não existe o falante.
É interessante notar que Ele bota, para barrar o retorno do homem ao
paraíso, uma espada flamejante. É uma espada sozinha. Talvez, uma lâmina

88
Desde o para isso: de Adão a Édipo

cortando, barrando a entrada por um corte, por uma barra... Não tem anjo
nenhum portando a espada – isso só tem nas figurinhas da igreja católica. Os
querubins estão aí. Querubim é um arqui-anjo. E um anjo nada mais é do que
um significante, uma coisa besta, como diz Lacan. É puro significante.
Continuando, o texto diz, Cap. 3, 24: “E havendo lançado fora o homem, pôs ao
oriente do Jardim do Éden os querubins, e uma espada flamejante, que se
movia por todos os lados, para guardar o caminho da árvore da vida”. Quer
dizer, o significante é trazido, mas há uma espada sozinha, flamejante,
circundando o Jardim do Éden. Ele colocou um corte, onde estavam os
querubins... É igual à piroca voadora dos gregos.
Aí acabou-se a festa. Termina o terceiro capítulo.

* * *

O capítulo 4 é o tal de Abel e Caim, ou Caim e Abel... Todo mundo


conhece a história. Os dois eram irmãos, filhos de Adão e Eva. Eram, pelo
menos, os nomeados. É interessante que, no Velho Testamento, o sujeito tem
uma porção de filhos, mas, de vez em quando, ele nomeia algum, e outros não.
Quer dizer, a nomeação vale mais do que a consangüinidade. Como vimos,
cap. 1, 28, já estava tudo procriando a granel. De repente. é que pintou a
diferença. Esses dois, Adão e Eva, é que foram depois da diferença.
Ambos são, então, filhos de Adão e Eva. Um é pastor e o outro é
lavrador, e eles fazem oferendas ao Senhor. Cada um oferece o que tem,
naturalmente. O senhor atentou mais para Abel e para a sua oferta de carne.
E não há nenhuma explicação de por que ele queria carne e não verdura. É
uma preferência que o Velho Testamento não explica. Isto é uma coisa que –
assim como no momento em que Deus ordenou que não comesse já temos
toda a diferença que foi contada num sonho. e em reconhecimento –, aqui, no
textinho de Abel e Caim, já esta tudo embutido, a meu ver. Mas, continuando,
Caim ficou danado da vida, e, Cap. 4. 6-7, “Deus lhe perguntou: por que
ficaste irado? E por que tua fisionomia esmoreceu? Se por ventura procederes

89
Psicanálise & Polética

bem” – claro que Deus já estava sabendo que Caim ia matar Abel – “não
serás tu aceito? E se não procederes bem, o pecado jaz à porta. E sobre ti,
será o teu desejo, mas sobre ele deves dominar”.
Que desejo é esse que Deus viu na cara de Caim? Ele viu que Caim
ficou danado da vida com a diferença de recepção das oferendas, e que Caim
estava doido para matar o Abel. O desejo dele era: “Eu mato esse desgraçado!”.
Ao ver isto, Deus diz: “Eu sei que você tem esse desejo, mas você deve dominá-
lo’’. Esta é a grande proibição, fundadora da Lei. A Lei que foi apresentada
até aqui é, simplesmente, de que o real é impossível de ser tocado. É uma lei
que indica para o real, pura e simplesmente. Ela na verdade não proíbe. A
aparência de proibição que ela tem é de indicar o real; de não se poder tocá-lo.
Quando se diz para uma criança: “Você não pode botar a mão no fogo”, isto
não é só uma proibição, porque, se puser, queima mesmo. Agora, é só uma
proibição dizer. “Você não pode matar o seu irmão”, porque se ele for matar,
ele consegue. O que barra, então, é a proibição que vem como possibilidade de
dominar esse desejo. Ela é que funda a Lei entre os homens. O fundamento da
Lei, que se escora, justamente, na Lei da diferença, é a proibição de matar, e a
ordem de dominar, pelo menos esse desejo.
No entanto, Caim não consegue dominar esse desejo – que é único
proibido e é o que funda a Lei – e mata Abel. Deus sente o cheiro de sangue de
Abel na terra e diz para Caim, Cap. 4, l0-15: “A voz do sangue do teu irmão
está clamando por mim desde a terra. Agora maldito és tu, desde a terra, que
abriu a sua boca para, da tua mão, receber o sangue do teu irmão. Quando
lavrares a terra, não te dará mais, ela, a sua força; fugitivo e vagabundo serás
na terra. Então disse Caim ao Senhor: “é maior a minha punição do que posso
suportar”. Isso é extremamente importante. “Eis que hoje me lanças da face
da terra e, também, da tua presença ficarei escondido: serei fugitivo e vagabundo
na terra, e qualquer um que me encontrar, matar-me-á”. Ele cria a Lei. O
Senhor, porém, lhe disse: “Portanto, quem quer que mate Caim, sete vezes
sobre ele cairá a vingança. E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que não o
matasse quem quer que o encontrasse”. Falávamos, da outra vez, da pena de

90
Desde o para isso: de Adão a Édipo

morte. É o cúmulo do assassínio você desmoralizar o assassino, assassinando.


Isso é que era o pedido, a imploração de Pierre Rivière, lá do livro organizado
por Michel Foucault: “Se vocês me matarem, aí fico livre da justiça, porque
vocês são tão assassinos quanto eu”. É nisso aí que a punição é maior do que
a que ele pode suportar. Ele pode suportar até que o matem, mas suportar
carregar a sua ousadia contra a Lei que funda a diferença entre os homens,
sem receber o mesmo tipo de barbárie, é carregar isso para o resto da vida.
Por isso é que ele está marcado.
Chamo a atenção para o fato de que a Lei se funda nesse momento aí
do Velho Testamento. Está embutido na história de Caim e Abel. Não é na
expulsão do paraíso, que é uma conseqüência espontânea de haver a palavra,
de haver a diferença que é condição de o real ter surgido. É, repito, nesse
momento que se funda a Lei, a única que está fundada na diferença. A
interdição do Incesto é outra história...
Pintou o real, pintou a diferença, necessariamente tinha que pintar todo
aquele processo com a serpente, para equacionar essa diferença, o sono, etc.
Aí está o simbólico, que emergiu porque existe o real e o imaginário, que, este,
está furado. Uma vez que pinta o simbólico, a diferença vem comparecer
nítidamente, o homem passa a ter vergonha na cara, a portar a diferença. Ou
seja, não posso jamais ficar inteiramente à vontade diante de nenhum outro ser
humano, pelo simples fato de que eu não teria a mínima relação com ele. Ou
seja, não há relação de espécie alguma entre dois seres falantes, porque não
há relação entre significante e significado. Tenho que ter vergonha na cara
porque jamais, ninguém, nenhum outro ser falante, será idêntico a mim, de
modo que eu possa ficar inteiramente à vontade. Posso acrescentar imensamente
o número dos meus “à vontade”, mas ele não é absolutamente absoluto. Aí
está o simbólico, em sua desarmonia, me deixando com vergonha. Entretanto,
sobre esse simbólico, porque a diferença pintou, e se tornou na cara, como
vergonha – insisto em dizer como Freud, VERgonha, Verwerfung, Verleugnung
–, pinta aquela possibilidade de, se a diferença é radical, qualquer ato de
assassínio é destruir a diferença. É a Lei de que é impossível eu destruir a dife-

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Psicanálise & Polética

rença, acabar com a Lei, que me funda, a mim também. Por isso, fico, se sou
um assassino, se sou Caim, marcado como aquele que passou por cima da Lei
e, justamente por isso, os outros não podem me tocar. Caim não pode matar
Abel. Não é impossibilidade, é proibição pura e simples. Isto tem um resultado:
se ele assassinar um único diferente, ele assassinou a diferença como tal e,
portanto, ele se destituiu eticamente, e acabou com a sua posição de falante.
Ele é um falante que é como se fosse um animal, pois ele eliminou a diferença.
Ele carrega essa marca de ser um animal, mesmo sendo um homem, de agir
como se fosse um animal. Não tem outra Lei no Velho Testamento – e eu
suponho que não existe outra.
O Velho Testamento brinca com essa tentativa, essa tentação de
totalidade. Nesse momento aí não há cultura nenhuma a ser fundada, está
fundada a Lei, que tem referência no real da diferença, e no simbólico, ocupando
esse real. É preciso entender a escansão que estou tentando fazer: não há
nenhum incesto aqui, nem para fundar a Lei. Isto é suficiente para fazer os
homens verem o próximo como diferença pura e simples. Ter vergonha na
cara é respeitar o próximo. Não é amar o próximo, não! Ninguém tem que
amar o próximo. Isto é uma besteira! Basta simplesmente respeitá-lo como
diferente...
Estou propondo, então, que se coloque a origem da Lei explicitada,
como transação entre falantes, na relação entre Caim e Abel e seu fundamento
lógico está lá no paraíso perdido.
Abel morreu. Adão e Eva só tinham dois filhos. Sobrou Caim, que
começou a fazer gente, é claro! Com quem? É um incesto? É com Eva? Aqui
não diz nada disso. Fêmeas, havia aos quilos. Desde lá, Cap. 1, 28, estavam
procriando a granel. Seja quem for que ele tomasse como mulher, e quantas
mulheres fossem, ele começou a fazer filho...
“E Caim”, cap. 4, 16-24, “saiu da presença do Senhor para morar na
terra de Nod, a oriente do Éden. E Caim conheceu sua mulher, a qual concebeu
e deu à luz Enoc”. Se tomarmos a filharada de Caim: ele teve Enoc, com essa
tal mulher que ele conheceu; Enoc teve um filho chamado Irad; Irad teve

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Desde o para isso: de Adão a Édipo

Maviavel; o qual teve Metusael: o qual teve Lamec. Esse conjunto de gerações
sucessivas termina em Lamec. Esse tal Lamec, uma vez, chegou em casa e
disse às duas mulheres, Ada e Sela – ele tinha duas, oficiais: “Ouvi a minha
voz, escutai, mulheres de Lamec, as minhas palavras, pois matei um homem,
por me ferir, e um mancebo, por me pisar”. O bicho era violento. “Se Caim há
de ser vingado sete vezes, com certeza Lamec o será setenta e sete vezes”.
Tornou a assassinar. Aqui termina, some, a geração de Caim. Começou com
assassínio, e termina com assassínio. Passadas cinco gerações, termina a
descendência de Caim, com um assassínio. Imediatamente, corta, tipo cinema.
E, de repente, Adão conhece outra vez sua mulher, Eva, Cap. 4, 25-26, que deu
à luz um filho que tem o nome de Set. Abruptamente se interrompe a geração
de Caim e começa outra filharada de Adão que vai dar nessa turma toda do
Velho Testamento.

* * *

Passemos ao capítulo 5, que vai tratar justamente da genealogia do tal


Set. Ele viveu 912 anos. Enós foi seu primeiro filho nomeado, e vai ser o
responsável por sua genealogia. Ele viveu 905 anos e seu filho se chama Cainã,
que viveu 910 anos. Seu filho se chama MalalieI e viveu 895 anos. Jared, seu
filho, viveu 972 anos. Este teve um filho chamado Henoc, que viveu 365 anos.
Morreu cedo. A Biblia diz, Cap. 5,24: “Deus o tomou”. Depois vem o tal de
Matusalém, que viveu 979 anos. Nem Adão viveu tanto. Ele teve um filho
chamado Lamec, o tal com o mesmo nome que encerrou a geração de Caim.
De repente, esse Lamec não mata ninguém, só imita o outro, parece até o João
XXIII... Ele tem um filho que vocês conhecem muito, é o chamado Noé. Noé
é uma esperança. Lamec diz, Cap. 5, 29: “Este nos consolará acerca das
nossas obras e do trabalho das nossas mãos, os quais provêm da terra que o
Senhor amaldiçoou”. Noé teve três filhos machos: Shem, Ham e Jafé.

* * *

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Psicanálise & Polética

Todo mundo conhece a historinha de Noé. Este já é o capítulo 6. Tem


a corrupção do gênero humano, aquela baderna, aquele negócio todo, ninguém
estava entendendo nada... a Bíblia fala aqui dos gigantes. Nota-se que há
uma certa desordem sexual, também. Ela é, mesmo, permitida. Se não vejamos,
Cap. 6, 1-2: “Sucedeu que quando os homens começaram a se multiplicar
sobre a terra, e deles nasceram filhas, viram os filhos de Deus que as filhas
dos homens eram formosas, e tomaram para si como mulheres todas as que
escolheram”. Há uma certa bagunça, tanto do ponto de vista da violência, ou
seja, uma certa imitação da descendência , como, também, uma
desorganização nas reproduções. Mas, Cap. 6, 8-9: “Noé foi bem visto pelo
Senhor. Estas são as gerações de Noé. Ele era justo e perfeito em suas
gerações, e andava com Deus”. Noé, ele é, portanto, o tal cara que inventou
a família. A Bíblia não falou em família, até então... Só fala de Noé em
diante. Isto é que chamo de “creodo”.
Nesse momento aí, denuncio uma incapacidade de se organizar nas
suas relações interpessoais de reprodução, etc. Não dá para se pensar em
termos de conversões, porque já era uma bagunça antes. Certamente, Noé
conseguiu inventar uma organização que mantinha uma repetição ordenada.
Ele simboliza aquele momento em que, rebatendo os processos da aliança sobre
os processos da consangüinidade – que nada tem de natural, que são a
observação detalhada das reproduções animais –, ele começou a fazer do
modelo animal de reprodução um computador da sua espécie. Isso é que é a
chamada família: um computador copiado da reprodução animal, sobre os
falantes, para dar alguma ordem. Noé seria talvez o símbolo do fundador do
Neolítico, no qual ainda estamos.
Ainda não se fala de interdição do incesto, mas Noé dá uma
organização. Ele faz um pacto com Deus, tem o dilúvio para acabar com a
bagunça, mata os bagunceiros todos, e se cria aquela, separação de Noé, com
a sua própria linhagem. A arca é extremamente importante: ele bota os bichinhos
todos lá dentro, vai se acasalar e fazer seus filhos se acasalarem, na mesma
ordem que os bichinhos. Este é o mito que eu quis criar, ou recriar, pois acho

94
Desde o para isso: de Adão a Édipo

que está aí, todo mundo vê. Essa cópia da reprodução animal é aquilo que
Lévi-Strauss quer colocar como sendo da natureza. Não tem natureza nenhuma.
É simplesmente aplicação de sua competência simbólica na observação da
reprodução animal, e tomando aquilo como se fosse um ábaco, um computador
que pode dar organização à coisa, em espécie, sobre a reprodução dos outros.
Assim como posso utilizar o ciclo da lua para a lavoura, por exemplo, utilizo um
ciclo reprodutivo, que descobri nos animais, para nomear a minha espécie.
Parece, então, que Noé bota uma ordem. Não se fala em interdição do incesto,
mas se fala nos filhos de Noé conseguindo uma mulher, fazendo isso e aquilo,
sem nenhum retorno. Se antes não se falava de incesto, ele não estava também
desproibido. Não estava em questão.

* * *

A Lei se funda na proibição de matar, de eliminar a diferença. A Lei se


funda na vergonha na cara, e no respeito à diferença, por razões lógicas e reais,
e apontando para o real – e isto é suficiente para a existência do ser humano.
Entretanto, por incapacidade, por falta de ferramentas simbólicas
preparadas, o creodo – quer dizer, aquilo que estava na cara – era estudar a
reprodução animal, usá-la como computador, e inventar o Neolítico, inventar
a cultura. Cultura, para mim, não é a produção dos artifícios. Isto é efeito do
simbólico, e posso dar o nome que quiser. O que chamo propriamente de
cultura é aquilo que suponho ter-se fundado com o Neolítico. Ainda que fosse
no Mesolítico, é de fundação neolítica. Trata-se da marcação territorial – e
isto é uma dica que está no livro de Deleuze –, da organização, da demarcação
das pessoas, da interdição do incesto, para poder separar direitinho as
reproduções, as linhagens em ninhadas, como na “criação” dos bichos, e,
portanto, da fundação da ordem de parentesco como computador, para dar
lugar a cada indivíduo nascido como sujeito, numa estrutura de nomeação.
Até hoje, essas duas coisas são apresentadas como se estivessem engrazadas
e inseparáveis: a fundação da Lei e a interdição do incesto. Quero supor que

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Psicanálise & Polética

se pode fazer distinção. Ainda que a interdição do incesto fosse caminho


necessário, se é um creodo, tem que funcionar sempre. Em qualquer cultura,
assim chamada, que compareça, será desse modo. Está aí o totemismo que
não me deixa mentir. Mas, ser um caminho necessário não significa ser
universal. Não significa que o Neolítico vá durar sempre, e que tenha durado
sempre. Tanto é que teve um começo. Cultura é igual a neurose, é a mesma
estrutura. É aonde quero ir, dar uns saltos pelo menos... porque o trabalho da
psicanálise é uma dissolução da cultura.
História e cultura são a mesma coisa. Muitos historiadores – o pessoal
da esquerda – querem fazer revolução dentro da cultura: dá a volta, e fica
no mesmo lugar. A história nada mais é que essa produção fabular de vir
contando, montando as suas idéias, a respeito dos acontecimentos, no âmbito
restrito da cultura. Por isso, uma certa histeria muito convicta fala em “ciência
da história” – a serpente que vai afinal se entregar. Sem cultura, não há
história. Ou seja, a história é uma coisa que arremeda, talvez, esse modo de
computar as coisas, esse modo reprodutivo de computar as coisas. A história
não tem nenhum interesse para a psicanálise. O que não é a mesma coisa
que isso que chamamos a estória individual do analisando, sua fábula pessoal,
seu mito, seu culto individual.
Justamente – é o que veremos adiante – porque somos seres que
surgimos dentro da tal da cultura, não há como não pintar o Édipo: essa estrutura
que Freud vai descobrir em cada um, que é cada um estar dentro da cultura.
Porque o computador da espécie tem sido, durante esses milênios, edipiano –
marcando os lugares.
Eu me pergunto se não há uma pequena diferença entre o Deus até
Noé, e depois de Noé. Antes de Noé, é um Deus simplesmente criador. Depois,
é um Deus constituidor de povos. Javé, criando um pacto de fundação de um
certo povo, tem o modelo da cultura por trás. O Deus da psicanálise é Outro.
Noé queria um corte para que ele pudesse começar tudo. É um
afogamento geral. O afogamento é um nível de renascimento em qualquer
lugar. Por isso, precisamos de outro dilúvio. Não adianta querer fabricar. Isso

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Desde o para isso: de Adão a Édipo

é coisa de Deus. Por isso, não acredito em revoluções. Toda revolução é


cultural. É preciso que Deus funcione, para trazer outro dilúvio.

* * *

Deus, então, fica contente com essa historinha toda da arca, com aquele
negócio todo, o “saco” noético... Deus, Cap. 8, 21-22, diz: “Não tornarei mais
a amaldiçoar a terra por causa do homem, porque a imaginação do coração do
homem é má desde a sua meninice. Nem tornarei mais a ferir todo vivente
como acabo de fazer. Enquanto a terra durar, não deixará de haver a sementeira
e a seiva, o frio e o calor, verão e inverno’’. Quer dizer, eterniza a cultura. É
preciso aparecer o João apocalíptico, para prometer alguma coisa que preste.
Mas, vamos retornar à questão de Abel e Caim que deixamos em
aberto: por que animal era interessante e vegetal não? Por que Deus abençoa
os seus filhos e diz – o que já tinha dito para os homens, mesmo antes do
surgimento de Adão e Eva, que eles deviam dominar todos os outros seres –,
cap . 9, 1-6: “Sede frutíferos, multiplicai-vos e enchei a terra. Terá medo e
pavor de vós todo animal da terra, toda ave do céu, tudo que se move sobre a
terra e todos os peixes do mar, e nas vossas mãos estão eles entregues. Tudo
o que se move e vive vos servirá de mantimento, bem como a erva verde. Tudo
que vos tenho dado. A carne, porém, com a sua vida, isto é, com o seu sangue,
não comereis’’. É um recurso de uma certa cultura judaica que começa a
aparecer. Ele, então, repete: “Quem derramar sangue do homem, pelo homem
terá o seu sangue derramado”. Na cultura, a pena de morte, a retaliação, aí
aparece, mas agora já organizada por alguma lei cultural. A ética radical da Lei
não permite isto: não se toca em Caim. Quando a cultura se arruma assim
direitinho, para poder se organizar, é preciso matar quem mata. Espantoso!
De qualquer forma, Ele dá esse domínio sobre todas as coisas. Os
amantes da natureza que se cuidem, porque , na verdade, é direito do falante,
que não tem nada a ver com a natureza, dominar os outros seres. Apesar da
Sociedade Protetora dos Animais, a gente come carne, graças a Deus! Podemos

97
Psicanálise & Polética

matar à vontade os seres vivos... Mas, agora, se a gente achar, de repente, que
não vale a pena destruir alguma espécie, tão bonitinha, então, faz-se um pacto.
Não há nenhum crime em se matar, e sim em se assassinar. Não se assassinam
vacas, se assassinam pessoas.
Por que será, então, novamente, que Deus achou mais engraçada a
produção de Abel, mais do que a de Caim? É um negócio estranho. Abel matou
animais e serviu a Deus... Todos nós conhecemos pessoas que, certamente,
amam os animais. Acham um crime matar o bichinho! São herbívoros. O homem
é um animal onívoro, feito porco, come de tudo, mas há uns herbívoros, tipo
vegetariano, que não concebem que se possa comer carne, porque tomam
como assassínio matar o bicho. Exatamente como Caim! Caim não matava
bicho, mas ele matou Abel. Eu me pergunto se a coragem de ver o sangue de
um ser que seria como eu, se eu não falasse, não é justamente dada a mim pelo
saber de que o sangue do falante, eu não posso derramar. Quem gosta muito
de bicho... geralmente gosta mais do que de gente. Eu farejo essa coisa na
relação de Abel e Caim. Posso reinar sobre a natureza, matar o animal, não
preciso tremer porque enfiei uma faca no bicho, ou fiz uma tourada, por mais
bárbara que ela pareça... é um bicho.
A coragem de sangrar os animais, isto para existir é preciso que eu
tenha distanciado esse sangramento do imaginário, de comparar esse
sangramento com o sangramento do homem. São sangramentos
completamente diversos. Não tenho que preservar, por exemplo, uma
determinada espécie animal porque seja criminoso destruí-la. Mesmo porque
ela pode desaparecer espontaneamente. Por que devo preservar algumas
espécies sem matar? Porque há outros homens que gostam delas e as
querem. Eu não respeito aquela espécie. Eu respeito a opinião de outrem
que gosta daquela espécie. Se ninguém gostasse, eu podia matar que dava
na mesma.
Os filhos de Noé, então, que saíram da arca, foram Shem, Ham e Jafé.
E destes foi povoada toda a terra. Aí a Bíblia vai apresentar a genealogia com
as famílias, com as descendências desses três.

98
Desde o para isso: de Adão a Édipo

* * *

De repente, como o inconsciente não perdoa, chega ao capítulo 11:


“Toda a terra tinha uma só língua e um só idioma”. Os homens resolvem fazer
o seguinte, Cap. 11, 4: “Edifiquemos para nós uma cidade e uma torre, cujo
cume toque no céu, e façamos um nome para que não sejamos espalhados
sobre a face de toda a terra”. É o que começaram a fazer. Agora não há mais
restrições para tudo o que tentaram fazer. Teve uma “parana” na cultura. Já
que conseguiram montar aquele negócio tão bonitinho e tão complicado, resol-
veram criar um estado absoluto, mesmo povo, mesma língua, mesmo nome...
e, agora, uma mesma cidade: levantar uma torre como um marco único da
existência do homem.
O que fez o inconsciente? Bandalhou com elas. É o episódio da Torre
de Babel. Deus chega lá e diz, Cap. 11-7: “Eia!, desçamos e confundamos sua
linguagem, para que não entenda um a língua do outro. Assim, o Senhor os
espalhou dali para a face de toda a terra. E cessaram de edificar a cidade. Por
isso se chamou o seu nome de Babel. Porque ali confundiu o Senhor a linguagem
de toda a terra. E dali, o Senhor os espalhou sobre a face de toda a terra”.
Depois que conseguiu fundar o partido de Noé, a família, a cultura, a “parana”
veio e criou-se o estado totalitário. Como o inconsciente não se submete a isto,
imediatamente começaram a pintar as diferenças... bandalhou-se o coreto. Ou
seja, se quisermos apostar no inconsciente, como fazia Freud, não há totalitarismo
que se agüente. Pode assassinar muita gente, mas o coreto sempre se bagunça,
graças a Deus!
Mais uma vez, no texto, apesar do totalitarismo, depois de Noé, a
diferença pinta e exige ser respeitada. Porque se não o for, não se entende.
Agora, tem que ser respeitada, porque, se não, não há entendimento possível.
Tudo é mal-entendido, graças a Deus!
Primeiro tentaram abordar a árvore do bem e do mal, e pintou a
diferença. Tentaram, de novo, fazer a mesma coisa, pintou a diferença. É o
mesmo relato, mas o importante é que os momentos são diversos. No começo,

99
Psicanálise & Polética

uma certa inocência, e pinta a diferença. Depois, constituiu-se aquela coisa


toda, precisa-se totalizar, fazer um monumento único, uma língua única, uma
marca única, e isso fracassa, graças a Deus!

15/ABR

100
Édipo em calúnia

5
ÉDIPO EM CALÚNIA

As pessoas insistem em me disciplinar... Disciplina não é rigor. Rigor é


coisa de psicótico, disciplina é coisa de obsessivo, nada tem a ver uma coisa
com a outra.
Da vez anterior, a tentativa foi suspeitar no Velho Testamento dois
tempos de constituição daquilo que, na antropologia estrutural, e mesmo também
em certos aspectos da teoria psicanalítica, parece estar conjuminado num só
movimento. Ou seja, aquilo que é constitutivo da Lei e aquilo que é constitutivo
da ordem de parentesco. Nossa tentativa é destrinchar esses dois momentos,
na suposição de que a Lei em sua fundação independe da interdição do incesto.
Falamos, então, dessa passagem de Adão a Édipo, no Velho
Testamento, como um exemplo de instauração de Lei, e daquele momento.
que eu suspeitava estar em Noé, quando alguma coisa lineariza a ordem
computacional que teria sido rebatida, digamos assim, imaginariamente sobre a
consangüinidade, descrita na reprodução animal.

* * *

Continuamos, hoje, com o projeto, pensando, talvez um pouco


aleatoriamente, sobre os textos de Sófocles: Edipo Rei e Edipo em Colona.
O enfoque freudiano não está, na verdade, em questão. Isto, em função
da suposição que adiantei: a cultura se instala como ordem de parentesco e

101
Psicanálise & Polética

como alguma coisa da ordem de um creodo. No funcionamento das ordenações


do falante terei que supor que, uma vez que se está mergulhado no campo da
cultura, isso funciona, se queira ou não.
Daí uma questão que virá mais tarde para aqueles que estão interessados
em ler Deleuze, por exemplo, que sempre questiona por este lado: a possibilidade
de se desconsiderar o que é edipiano de dentro da cultura que é edipiana. Isto
porque aquele trabalho de Deleuze e Guattari apresenta as coisas como se
pudéssemos desconsiderar a edipianização que, na prática analítica, o analisando
traz necessariamente, indefectivelmente. O que eles apontam talvez até fosse
muito bonito, se fosse verdade. Não por nenhuma esquizofrenização, mas se
aquela idéia de “rizoma”, aquela proliferação multifacetada e independente de
qualquer unificação, fosse viável, seria até muito interessante. Talvez seja
exatamente o que a psicanálise pretenda produzir a partir do seu trabalho.
Quero supor que é alguma coisa assim, o que é inteiramente diferente de supor
– como é preconizado no texto deles – que não há nenhuma edipianização de
fato e de direito. Eles fazem, mesmo, acusação à psicanálise como campo de
ação, como prática. Não ousam acusar Lacan disso porque tudo que eles têm
foi tirado de Lacan. Se alguém faz rizoanálise, é Lacan mesmo. Praticou isso
e, talvez, tenha trazido isso como invenção técnica,
Não se está dizendo aqui que esse Édipo freudiano não existe aí, que
ele é forçado, que é uma barra forçada por Freud, ou que é uma solução
forçada como um gabinete psicanalítico. Muito pelo contrário. O chato é que
nunca pinta em cima do divã alguém que não seja Édipo. Quem dera que
pintasse! Imaginem se um cara chegasse, deitasse e começasse a rizomizar.
Seria um barato! Porque é um saco ouvir Édipo o dia inteiro... Todo mundo
está careca de conhecer esse cara, e ele se repete sem a menor novidade. Em
verdade, não aparece nenhum rizoma, aparece, sim, é um fecaloma, aquilo
que, em bom português, se chama cagalhão: aquele desejo edipiano, grosso e
sólido, em cima do divã.
Não estamos, portanto, pretendendo dizer que, nisso que estamos
procurando, se está tirando a evidência de uma estrutura edipiana, já que, se

102
Édipo em calúnia

for verdade que a cultura herda aquele creodo, todo mundo caiu lá e, até hoje,
não se sai. Estou dizendo que a cultura é o Édipo, se isso estiver certo.
De qualquer forma, Lévi-Strauss está certo quando diz que a interdição
do incesto é a cultura, é claro! Talvez toda a obra de Lévi-Strauss seja
decorrente dessa oposição fundamental entre Natureza e Cultura, quando, do
nosso ponto de vista, não há possibilidade de se fazer essa oposição,
simplesmente porque não se conhece o que seja a “natureza”.

* * *

Eu gostaria, então, de fazer algumas considerações sobre o tal do Édipo.


Não da estrutura edipiana apresentada por Freud no corpo da prática
psicanalítica, mas retomando algumas coisas do mito enquanto tal, sem muita
ordenação, por enquanto.
Farei um breve resumo, retirado do Édipo Rei: um oráculo proíbe
Laio, rei de Tebas, de ter uma posteridade – o termo é “proíbe”. Se nascer um
filho, esse filho matará seu pai e se tornará o marido de sua mãe. Contudo,
Laio e Jocasta têm um filho. Imediatamente, o pai fura os calcanhares do
recém-nascido para que ali se possa passar um laço e carregar o corpo. Depois,
ele o entrega a um escravo com a ordem de expô-lo no Citeron. Tomado de
piedade, o escravo cede a criança a um pastor de Corinto, que a leva ao rei do
seu país, Polibos. Este, que não tem filhos, cria-o como seu próprio filho, com
o nome que ele tinha como criança encontrada, criança achada: Édipo, que
quer dizer pés atados, furados.
Que terror é isso, essa tentativa de amarrar os pés das pessoas? Na
carta de Lacan, a respeito da dissolução da Escola Freudiana de Paris, é uma
das coisas que ele diz: “Querem amarrar os meus pés”. Como se dissesse:
“Vale tudo, Escola, tudo bem!, mas amarrar os meus pés, não!”
Tornado adolescente, jovem, Édipo conclui dos ditos de um bêbedo –
alguém que estava de pileque, enfiando veritas – que, talvez, não seja filho do
rei. Ele corre a Delfos, para consultar Apolo. Deixando de responder sobre

103
Psicanálise & Polética

este ponto, o Deus lhe prediz simplesmente que ele matará seu pai e casará
com sua mãe. Então, ele foge de Corinto para longe daqueles que ele supõe
serem seus pais. Em sua fuga, ele encontra Laio num cruzamento de estrada.
Provocado e atacado, ele o mata com toda a sua guarda. Ele cometeu, então,
aí, o crime de parricídio. E a profecia começa a se realizar.
Ele chega a Tebas, onde a esfinge, monstro com cabeça de mulher e
corpo de leoa, dizima os tebanos, matando todos aqueles que se mostram
incapazes de resolver seus enigmas. Édipo triunfa, encontrando a solução para
o enigma e livrando Tebas do monstro. Os tebanos lhe oferecem a realeza, o
lugar que fora ocupado por Laio, e a mão de Jocasta. O oráculo está cumprido:
Édipo é marido de sua mãe e tem dois filhos, Etéocles e Polinices, e duas
filhas, Antígona e Ismênia.
Esta introdução é necessária, porque Sófocles começa o drama com
Édipo já instalado, com filharada e tudo.
Tebas é tomada por um mal misterioso, uma espécie de peste ou coisa
assim. Os homens morrem em massa, as mulheres, os animais, as terras ficam
estéreis. O povo suplica ao rei a salvação da cidade mais uma vez, já que ele
havia salvo a cidade da esfinge. A essa altura, ele enviou a Delfos o irmão de
sua mulher. Creonte, que vai ser o rei no lugar dele, o cunhado, o tio, no caso...
Este último retorna com a resposta do Deus: a cidade suja do sangue derramado
deve ser purificada pelo castigo do culpado. Trata-se, evidentemente, do
assassino de Laio. Édipo se engaja em castigar o culpado. O espectador assiste,
então, à busca, em cujo decorrer, pouco a pouco, a verdade vem à luz, Édipo
fica convencido de sua dupla culpabilidade: parricídio e incesto. Jocasta se
mata e Édipo fura os olhos.
Nesta tragédia de Sófocles, Édipo aparece como um homem cheio de
boas intenções – talvez seja isto que o perde – contra quem o destino investe e
cujos esforços para triunfo da justiça chegam, finalmente, à sua ruína. Vemos
sua ansiedade crescer à medida que o círculo se fecha em torno dele, até o
desastre final. Embora não premiada pelos juizes atenienses, essa peça, Édipo
Rei, foi sempre altamente apreciada, e com justiça. Sua data é incerta, em

104
Édipo em calúnia

torno dos 430 a.C. Isso é um resumo. O mito apresenta uma grande varie-
dade de textos.

* * *

Alguma coisa disse para Laio que ele não podia ter filhos. Essa proibição
aí não aparece assim nos textos do mito que eu pude ver. Por que ele não
podia ter filhos? Por uma razão muito simples: se tivesse o filho, o filho mataria
e casaria com a mãe. De onde Laio tirou essa idéia? O que significa um
oráculo? Do nosso ponto de vista, pode ser simplesmente uma emergência do
inconsciente. Não precisava ninguém ter dito a ele que ele deveria temer isso...
Se não por nada, pelo fato de que Laio não é filho de chocadeira, pelo fato de
que tenha sido filho de alguém, deve ter tido os mesmos desejos incestuosos e
parricidas. Portanto, sabia o que vinha pela frente. Mas, se pensarmos assim,
vamos ao infinito para trás, e sempre será assim. Consideremos, então, Laio
como começo, é o jeito que temos. Vamos fazer de conta que ele é inocente –
coisa que ele não é.
Ele, então, sabe disso. Ele podia, por exemplo, absolver-se da questão,
simplesmente não tendo filhos. Mas ele não tem controle sobre isso: a pílula
ainda não tinha sido inventada, a vasectomia... Bom, podia cortar o saco, mas
ele não era burro. Então, ele continua na dele, e, de repente, aparece o tal do
filho. Ele quer se livrar dele, de qualquer maneira. Mas não é bem de qualquer
maneira. Urano e Saturno, lá na mitologia desse povo, devoraram os filhos.
Até o dia em que um dos filhos, Júpiter, conseguiu escapar, fez a revolução do
filho e arrumou as coisas de outro modo. Laio não pensa nisso. Ele teme tanto
a verdade – que ele já conhece, que é a dele mesmo – e, simplesmente, fura e
amarra os pés da criança. Ou seja, ele empecilha simbolicamente seus
movimentos e a expõe no Citeron. Essa exposição da criança é uma coisa que
aconteceu em várias culturas, sobretudo na cultura grega. É uma espécie de
jogo de azar. Acontece, por exemplo, no Velho Testamento, na vida de Moisés,
a criança é posta num cestinho, jogado no rio. É o que Jean-Jacques Rousseau

105
Psicanálise & Polética

fazia com os filhos dele: botava na porta do asilo e caía fora. Ou seja: “Eu não
vou matar, não vou me tornar um criminoso”.
Expô-lo, quer dizer, colocá-lo numa situação tal em que, se for salvo,
tudo bem!, se não for... Mas, fica expulso da situação prevista do seu
nascimento. Isso se fazia muito com os filhos considerados bastardos. Para
não ser assassinato – como faziam, por exemplo, os senhores de escravos, nos
Estados Unidos, onde, quando a mulher transava com um crioulo daqueles e
aparecia mulatinho, eles matavam na hora – e como não queriam nessas
ocasiões exercer esse crime, então expunham. Expunham à situação drástica
que poderia resultar na morte, no desaparecimento... Laio estava, então,
entregando ao destino, ao acaso. Em função desse acaso, certamente que
alguma coisa ia suceder, e ele não vai precisar nem ficar sabendo.
Mas, do nosso ponto de vista, já que é o destino do Édipo que está em
jogo, pelo oráculo, vai se cumprir esse destino. Laio não fez outra coisa senão
entregar ao destino. Esses atos de exposição têm sempre um sentido de começo
absoluto. O sujeito é deslocado da sua situação e se dá a ele um começo
radicalmente novo. Quer dizer, se ele não morresse, não acontecia nada daquilo.
Entretanto, mesmo com esse recomeço absoluto, porque ele foi entregue ao
destino, e como o destino não o matou, ele vai cair no mesmo destino. Vai cair
porque está cercado, ele não tem saída. É feito o analista: por mais que queira
não escutar Édipo, o Édipo volta e fala nos ouvidos dele. Simplesmente porque
a situação em volta é edipianizada. Cai-se necessariamente no modelo que
está em vigor.
Ora, Laio está sempre fazendo das suas. Ele está fazendo o quê, ao
ouvir o oráculo e não assumir a paternidade, mesmo com essa perspectiva que
o oráculo lhe contou? Ele está sendo um Édipo absoluto. O tipo de Édipo não
resolvido, é o Laio. . . Tal pai, tal filho, aí no caso. Se Laio pudesse supor, ou
tivesse aprendido, a diferença entre o Pai Ideal e o Pai Simbólico, ele não ia
fazer uma besteira dessas. Se esse assassínio do pai é simbólico, ele não seria
morto por nada. Assim como, se essa transação com a mãe é necessária de
saída, ele podia suportá-la se remetesse a uma posição paterna, simbólica, o

106
Édipo em calúnia

acontecimento que o oráculo estava narrando com toda a verdade. Quer dizer,
na verdade, Édipo cai nessa porcaria toda da vida dele justamente porque não
lhe é apontada a paternidade. Não estou dizendo que ele seja um psicótico,
foraclusão do Nome do Pai. Estou dizendo que essa diferença entre a
paternidade imaginária e a paternidade simbólica é evitada, Laio é que não
quer se encontrar com isso. Laio é que não saca, e não sacando, passa adiante
para Édipo a questão. Édipo, na tentativa de sair de alguma boa maneira do
que disse o oráculo, faz a mesma besteira. Como ele não sabe que o oráculo
está se referindo a essa transa edipiana, que vai ser resolvida em nível simbólico,
ele foge do que supõe serem os pais dele para não matar o Pai Imaginário, e
vai cair justamente nas mãos do mais imaginário de todos, que é Laio. Quer
dizer, o projeto já está pronto na mão de Laio.
Dizem alguns que as versões mais primitivas do mito de Édipo não
falam de incesto, mas, apenas, de parricídio. Mais uma vez, retornamos àquela
questão que foi apontada no Velho Testamento. Quando se vai procurar as
versões mais arcaicas do mito de Édipo – Sófocles não está apresentando uma
versão muito arcaica – digamos, de alto momento cultural da Grécia, o
pensamento ateniense do ciclo tebano, ele não comete incesto: ele simplesmente
mata Laio. O crime é parricídio. Parricídio, mas ele não sabe o que está fazendo.
Então, o crime é assassínio, do ponto de vista de Édipo.
Laio sempre foi meio picareta. Ele estava fugindo do rei Pélopes
porque quis faturar seu filho, Crisipo, sem sua permissão. Fato que era
considerado, pelo menos, deselegante na Grécia. Pélopes corre atrás dele
para lhe dar uma surra ou qualquer coisa assim, e é nesse momento que Laio
encontra Édipo e é morto. Laio está sempre ludibriando possibilidades legais,
está sempre incapaz de transar simbolicamente com os outros. Na verdade,
o complexo de Édipo devia se chamar complexo de Laio, que é quem prepara
a tragédia de Édipo por um não reconhecimento do simbólico: ele não pode
transmitir o que não tem.
Existem vários trabalhos em torno do mito do Édipo, que nos dizem
que esse mito tem várias narrativas. Nas versões mais arcaicas, como dissemos,

107
Psicanálise & Polética

não se fala de incesto. Laio teria, por esse mesmo motivo, afastado Édipo, e
ele mata Laio. Mesmo o casamento dele não é com Jocasta, é com outra
pessoa. Quer dizer, o mito vai sendo reforçado, analisado, talvez com o tempo,
e, cada vez mais, estruturado.

* * *

O incesto vem antes ou depois da morte de Laio? No texto de Sófocles,


como é de se supor em várias representações e narrativas do mito, ele mata
Laio e, depois, casa com Jocasta. Mas isso é linearização de uma estrutura
edipiana. Podemos ler ao contrário e dizer que ele, primeiro, se não casou,
transou Jocasta, e, depois, matou Laio, ou matou no que transou, ou transou no
que matou. Por que podemos dizer isso? Porque basta nos lembrarmos da
carência fálica das mulheres. Se é verdade que as mulheres, no drama da
castração, se supõem em falta até do ponto de vista imaginário – quer dizer,
essa imaginarização do Falo aparece como falta de pênis e vai se consubstanciar
posteriormente na possibilidade de ter um filho –, o momento da gravidez, do
nascimento da criança, é um verdadeiro instante de complementação imaginária.
Ou, pelo menos, de indicação de um elemento qualquer capaz de portar, para
essa mulher, uma indicação fálica, que ela estaria supondo não ter. Não é não
ter o Falo, é não ter essa indicação fálica, que ela estaria supondo não ter. Ou
seja, não suportando ter que ser o Falo, porque não tem, ela imita o homem,
tendo que conseguir um Falo para ela. E isso vai se portar sobre o filho.
Podemos ver isso em qualquer experiência analítica com mulheres
grávidas e seus maridos. Esse momento de adoção do Falo pelas ditas mulheres
é um momento em que se dá essa hipótese imaginária de complementação.
Não é de suplementação, mas de complementação, como se fosse um
fechamento, como se ela conseguisse o Falo, configurado em pênis, que ela
não teve. Aquela equação: pênis-criança-fezes, etc.
É como se Jocasta dispensasse Laio. A transação se torna mais ou
menos da mesma cepa da masturbação masculina. Aproveitando-se desse feto,

108
Édipo em calúnia

dessa criança, o macho é dispensado, e ela fica na sua transa com a criança.
Podemos dizer que nesse momento de aparecimento da criança há um
deslocamento de desejo. Se o pai era o suporte do desejo da mãe, se Laio era
o suporte do desejo de Jocasta, nesse momento, há uma destransação desse
desejo, e ele é situado sobre o filho, o que é alguma coisa como expor Laio,
deixá-lo entregue às baratas. No texto de Sófocles, quando Édipo descobre
que é incestuoso, Jocasta diz: “Deixa pra lá! Quem se dá bem é quem não liga
pra isso. Não esquenta a cabeça, fica numa boa”. Sófocles é quem esquenta a
cabeça. Jocasta, ela, se remete exatamente a esse momento primeiro, digamos
assim, do incesto, em que não se trata de esquentar a cabeça, se trata de
transar o filho, e ficar numa boa.
Logicamente, então, o incesto só é proibido porque cometido. Na
verdade, do ponto de vista do que nos interessa – não estamos aí, ainda, na
estruturação da ordem do parentesco –, do ponto de vista da transação que a
criança tem com a mãe, e que a mãe tem com a criança antes de a criança ter
com a mãe, que a criança teve antes de nascer, num passado que ela vai
assumir depois, podemos dizer que tudo começa pelo incesto. É uma forte
transação entre Edipo e Jocasta muito antes de Édipo se dar conta de que
existe. Até nos sonhos da mãe antes ainda daquela gravidez.
Se não houvesse um sim inicial para o incesto, como ele iria ser
recalcado? Ele seria foracluído, mas ele não é foracluído, ele é interditado,
portanto, recalcado. Antes de mais nada, há um sim. Um sim que, na verdade,
é falso. A criança e a mãe, é uma transação de tentativa de locupletação de
uma falta. Existe, então, um sim primeiro na entrada do incesto. Quando ele
vem a ser proibido, é no sentido de que isso não pode continuar. Essa situação
não pode continuar porque ela é, sobretudo, imaginarizada. Mas o incesto é
impossível. Ou seja, nenhuma transação ainda que incestuosa completaria coisa
alguma. O incesto é proibido porque ele é intentado antes de qualquer proibição,
e a proibição vem mostrar o impossível de se manter tal situação como
verdadeira. Não é porque é feio. É porque não é verdadeira.
Depois do recalque, o sujeito denega o incesto. Todo sujeito que passou

109
Psicanálise & Polética

por essa situação incestuosa e sofreu recalque dessa situação primeira, está,
freqüentemente, num processo de denegação. Se o sujeito analisa sua situação
edipiana, ele não vai chegar a conclusão de que o incesto simplesmente não
está na dele, porque ele não está na do incesto. Ele vai chegar à conclusão de
que ele só está no recalque. A denegação é prova de que o sujeito é incestuoso,
mas o momento da fundação dessa proibição não é uma denegação, é uma
indicação do impossível que está em jogo naquele ato, que está sendo cometido
mesmo – não vai ser cometido, já foi. É como se a mãe dispensasse o pai na
medida em que ela se apoderaria de um Falo qualquer imaginarizado ao máximo.
É aí nesse momento que criança fica numa grande confusão: ela não sabe qual
é o desejo da mãe e, se isto não é bem demarcado, ela fica como se tivesse que
ser o Falo que corresponde ao desejo da mãe. Então, a função da paternidade
no nível do simbólico é simplesmente dizer: “Deixa pra lá, que depois eu acabo
com essa bagunça. Tô sacando muito bem qual é! Isso não vai dar certo e eu
vou dizer que não dá”. E vai ficar no dito. Não estou pensando em nenhuma
ordem de parentesco, estou pensando nessa transação a três, nesse trio.
Se Laio, então, não fosse um debilóide, se a debilidade mental dele não
fosse tão grande, quando ouvisse o oráculo dizia: “Ah! já saquei, foi o mesmo
que já passei. Deixa a mãe transar com o garoto, e o garoto transar com a
mãe, que, no devido momento, explico pra ele que não se trata disso e ele vai
entender, porque eu tenho palavra!” Mas Laio não tem palavra, também não
foi analisado. Ou, pelo menos, não teve, também, pai. Fazendo, então, uma
infinitização disso, para trás, Laio não tinha como dizer a Édipo, e Édipo não
tem como dizer isso, a não ser tragicamente, furando os próprios olhos. O que
não é nenhuma punição, é rigor. É uma demonstração de suspensão do imaginário,
queda no simbólico. Infinitizando para trás, então, vemos que a paternidade ali
sempre falhou. Se não, Laio não estava nessa.

* * *

Por isso, Édipo é um começo absoluto. A paternidade dele vai falhar.

110
Édipo em calúnia

Ele vai custar a sacar a relação simbólica. Mas, pressionado de algum modo,
um dia, ele vai sacar, suspender esse imaginário, e cair na margem, como
veremos em Édipo em Colona. Ele será aquele ponto que traça a margem do
seu povo, como paternidade. Ele agora, Édipo, é o simbólico daquele povo.
Édipo é o mito da fundação do Nome do Pai, como se inaugurasse
essa fundação com reconhecimento do simbólico vigendo acima das, digamos,
tentações imaginárias. O mito é excelente porque, mais uma vez, ele só vai se
dar conta dessa paternidade simbólica depois que casa com Jocasta, assim
como o bebê só vai entrar “numa” de interdição de incesto depois que transa
com a mãe. Transa, mas não fecha. A transação jamais deixa de acontecer –
começa-se por ela. Não é a transação que é proibida, o que é proibido é a
permanência na transação. Mais do que isto: é proibido crer que a transação
o seja, ou seja, que seja uma relação. A relação sexual com a mãe é
impossível, como é impossível qualquer relação sexual. O grande e terrível
erro do Édipo não é que ele transa com a mãe, é que ele acredita na efetividade
da transação.
Devem existir questões práticas que reduzem o que é de estrutura
lógica de fundação a enunciados morais. Ao invés de se entender que é preciso
suspender o imaginário, conceber o simbólico como fundação paterna e perceber
a impossibilidade de realização de qualquer relação, a começar pela do incesto,
pensa-se moralizando no nível da vulgaridade prática, na interdição da transação.
O que é impossível – é impossível proibir a transação! Aquela libidinagem
uterina – até que inventem a tal da chocadeira, o bebê de proveta mais apurado
– vai funcionar... É preciso tirar a santarrice desses enunciados e entender o
que há de estrutural no processo.
Lacan já disse que A mulher só podia ser abordada como mãe, numa
“relação” sexual. Como A mulher não existe, ela só comparece, digamos assim,
como mãe, não comparece de outro modo. No regime estrutural do sujeito –
estrutural significando real, simbólico e imaginário –, a idéia de A Mulher é
aquilo que ele tomou como mãe. Mas, A Mulher não existe, é alguma coisa
que vem em substituição a essa inexistência, uma configuração da mulher em

111
Psicanálise & Polética

termos de mãe. Assim como os objetos parciais que a gente pode bolinar na
relação com os corpos ditos femininos são objetos da mãe. São aqueles objetos
primeiros, não há outros. Isso, aliás, é sempre uma reedição, seja corpo macho
ou fêmeo, do corpo da mãe. E, mais, sempre se feminiza porque sempre
comparece com aqueles objetos, ou metáforas, ou metonímias deles. Mesmo
um pênis, não é macho.
Podemos talvez suspeitar no mito de Édipo alguns níveis diversos de
construção. Esse nível mais evidente, que tratamos mais cotidianamente como
primeiro, que é o assassínio do pai e o incesto com a mãe, ou vice-versa, tem
por trás outros níveis de abordagem possível. A distinção entre pai adotivo e
pai genitor, por exemplo. Isto é importante para chegarmos, depois, àquela
questão do genital. Há uma absoluta incompetência, até o momento da
descoberta, tanto em Laio quanto em Édipo, de distinguir o que é um pai adotivo
do que é um pai genitor. Até segunda ordem, não há menor comprovação
possível de pai genitor. Há suspeitas, mas comprovação não se tem. Pai adotivo
é, na verdade, todo e qualquer pai que assume a paternidade, até que ele seja
mesmo chamado de pai do sujeito. Assumir a paternidade é ser o pai adotivo.
Todo pai é adotivo, em última instância.
Laio, ele supõe ser pai genitor. Recusa-se a ser pai adotivo para
distinguir a paternidade, assim como Édipo consegue um pai adotivo, que ele
supõe que seja genitor, foge dele (porque acha que é genitor) e cai na mão do
genitor... que vai ser assassinado por incompetência de ser adotivo. Mais ou
menos o contrário, na ordem mítica, do que acontece com Tarzan: o pai genitor,
sendo inglês, vai funcionar como pai simbólico, porque é morto antes da tomada
de consciência dele. Ou seja, ele é apresentado como pai, digamos, verdadeiro,
no sentido da palavra, nos dois sentidos, mas o mito quer passá-lo como aquele
que seria indicador do simbólico na estrutura de Tarzan. E o macacão, lá, seria
suposto por ele pai genitor, sem conseguir ser pai simbólico. Talvez se encontre
essa dicotomia sempre presente nesses mitos: a confusão do pai genitor com o
pai simbólico, o pai adotivo, aquele que assume a paternidade.
Outra coisa importante – que não sei se alguém já tratou, pois não

112
Édipo em calúnia

tenho conhecimento – é o fato de que quando Édipo quer ter certeza a respeito
da verdade, ele manda Creonte saber. Isto porque a historinha de que Laio lhe
fizera o que fez na infância, a ele que não sabia que era ele, certamente, que se
contava, que corria por ali subrepticiamente. Ele, juntando as peças, podia
supor isso, mas denegou o tempo todo e, até, deu uma bruta esculhambação e
ameaçou romper com Creonte. Tipo analisando que ameaça romper com o
analista, porque este lhe aponta a verdade.
Édipo chama, então, o testemunho de Tirésias, quando fica na dúvida.
Tirésias é o poeta, no sentido de profeta, de vate. Ele é cego e transexual, e é,
freqüentemente, chamado para dar testemunho a respeito da verdade. Tirésias,
geralmente, ou não quer se meter no assunto, ou diz a verdade. E é o que faz
nesse momento. Acaba dizendo a verdade a Édipo. Ele se rebela contra Tirésias,
mas seu testemunho é intocável, e também comprovável. Édipo não pode
fugir disto.
Se, por um lado, Édipo está metido nessa embrulhada em função da
não-decisão paterna para ele, vinda de Laio, chega afinal, através de uma
série de relações lógicas que vai tecendo, a descobrir que a situação é aquela
mesma, e que não pode ficar numa boa pensando que se locupletou, que está
tudo acabado, tudo formidável, porque a peste sobrevém. Na verdade, aí nesse
mito tem alguma coisa parecida com a Torre de Babel.
A Torre de Babel vem dizer que não existe a linguagem, que ela é
impossível. Muito menos a dominação de uma linguagem, e muito menos ainda
a dominação de uma língua. Que tudo fica fracionado em alínguas. O particular
aparece destruindo qualquer totalização. Édipo fica numa boa, é o rei, conseguiu
a felicidade do reino, etc., mas vem a peste, do mesmo modo que sobrevém a
bagunça na linguagem. A peste começa a dizimar aquela felicidade toda, justa-
mente porque essa felicidade está fundada no imaginário de uma totalização,
de uma regra plena, de uma arrumação perfeita. Se tomarmos essa peste e
essa dizimação como ação do inconsciente, ela vem em função da suposição
de que o incesto é possível. A Torre de Babel é o lugar do incesto onde se
supôs que era possível a língua materna totalizar e locupletar a todos. O Senhor

113
Psicanálise & Polética

vem e promove a desarrumação. Esse Senhor aí, em psicanálise, se chama o


Outro, o inconsciente. O Senhor é quem manda. É a Outra, Deus aí é femi-
nino. E isto que se dá não deixa de ser uma interpretação, pois quem interpreta
é o inconsciente.
Quero situar que aquela felicidade tebana era da ordem do incesto.
Era a suposição de que a relação estava dada. E sobrevêm alguma coisa
dizendo do impossível de se manter aquela situação. Ora, o que Édipo não
tinha sacado era esse impossível dito numa interdição: não há porque não
pode. O verbo poder é ambíguo. É da mesma ordem da bagunça linguística
que acontece na Torre de Babel. Como Édipo vai resolver a situação?
Simplesmente podendo fazer referência àquele que sobrevive na margem
do discurso, que é o poeta. Este é o testemunho fundamental, que vai lhe
mostrar que ele é um babaca. Ou seja, que ele acredita que pode ficar numa
boa, em totalização.
Eis a ambigüidade da situação edipiana. Ao contrário do que dizem
as interpretações farsantes, ou mal-farsantes, inteiramente cômicas, do Édipo:
Édipo teria instalado uma bagunça, uma coisa que não pode acontecer, então,
vem a punição e o cega, mata Jocasta, etc. De modo algum foi o que
aconteceu. Simplesmente, com o testemunho do poeta, de Tirésias, ele pode
reconhecer que aquela felicidade é falsa, que a totalização não é possível e a
coisa começa a degringolar espontaneamente. Ou seja, em função de haver
inconsciente, e no reconhecimento da função paterna, há o momento em que
ele reconhece e, aí, pode, ele próprio, assumir essa função simbólica. Ele se
torna paternidade. Tirésias vem mostrar que essa paternidade tem sua garantia
não na ordem em que ele crê viver, mas na relativa desordem em que é
preciso navegar. A garantia de sobreviver no seio da desordem relativa, que
é a ordem relativa, é justamente a garantia de poder navegar ali. É a referência
simbólica. Isto é, pode-se transar com os acontecimentos, mas num jogo que
não se fecha, não se locupleta. A função paterna, se isto é verdadeiro, fica
demonstrada como aquela que dá garantia ao desejo. E não àquela felicidade
que Édipo pensou ter conseguido. O interessante é que, ao reconhecer

114
Édipo em calúnia

radicalmente isto, Édipo deixa de ser rei e passa a ser poeta. Certamente, é
no lugar de Tirésias que ele cai, quando se lê Êdipo em Colona.

* * *

A função poética não é possível sem o Nome do Pai, sem assunção


desse limite, dessa borda de particularização significante, que é a instância
paterna. Ao contrário do que, sonhando com o Pai Ideal, o obsessivo, por
exemplo, pensa, que o Pai é pura lei, lei no sentido de legiferação, de regras de
comportamento, para se conseguir a felicidade geral da nação.
Édipo entende a precariedade de sua situação, como a de qualquer
sujeito falante, e dispersa o imaginário. Jocasta se mata... enquanto o quê? É
uma punição porque ela transou com o filho? Se for assim, todas as mulheres
têm que ser mortas, pelo menos as que têm filho, porque essa transação, como
já vimos, é inelutável. Por que essa metáfora de Jocasta se matar? Ela “se
mata” enquanto função materna. Se emerge a função paterna, é a mãe que é
dispensada enquanto tal. Será que se poderia dizer que uma mulher é uma mãe
morta? É uma pergunta espantosa.
Existe mãe simbólica? A mãe enquanto portadora da palavra do pai,
não se poderia, a não ser metaforicamente, chamar isso de mãe simbólica.
Mãe simbólica não existe. A mãe é objeto a, sempre recai no imaginário, não
há saída. Não é só Édipo que assume a castração aí – esse furar os olhos não
é nenhuma punição, é assumir a castração, metaforizado nisso –, pois, no mesmo
momento, Jocasta assume também. Porque para ela, enquanto representante
imaginária, não basta furar os olhos – mesmo porque ela já estava vendo tudo
há muito tempo –, ela tem que desaparecer daquele lugar, tem que se negar
enquanto mãe. Afinal de contas, se Édipo assume a castração, quem é castrada
por excelência é a mãe.
A suposição que Édipo faz antes da castração é a de que ele é o Falo
da mãe. No momento em que assume a castração, pode se referenciar ao
Falo, ou seja, tem o Falo ou tem algo a ver com o Falo, ele não o é. Está aí a

115
Psicanálise & Polética

função fálica que não é senão eco da função paterna. Não se pode confundir
Falo enquanto o significante que garante a castração, com a imaginarização
dele. Essa felicidade de certas mulheres, sobretudo mães, Jocasta em especial,
é atribuir-se imaginariamente a posição fálica – não é assumir uma posição
fálica enquanto significante paterno. Isto ela só pode transmitir da palavra de
um outro. O que está havendo é um assumir-se imaginariamente como Falo,
ou colocar imaginariamente a criança no lugar do Falo. É uma espécie de
produção metafórica que congela imaginariamente o Falo. Esta é a grande
descoberta de Édipo, nesse momento: não se trata de imaginarizar o Falo, mas
de se referenciar a ele, e nada mais. Com o que, a mãe vira simples mulher e
as filhas também, para ele pelo menos. Ele fica com aquelas filhas, deambu-
lando em torno de Tebas, mas, para ele, elas são meros significantes novos,
como quem diz cruzeiros novos, quer dizer, têm uma outra impostação.
O surgimento de Tirésias, em Édipo, é o que me parece principal. É o
momento em que Édipo pode arcar com aquilo que Tirésias tem a dizer. Ou
seja, ele pode dizer por Tirésias, dizer como Tirésias. É um negócio terrível. Há
um passe aí. E é um passe que não abomina o incesto. Tirésias fala do lugar do
analista, como Édipo, também, vai começar a falar, logo depois, como Édipo
em Colona. Quando ele diz algo, é uma interpretação que soa como violenta
para o pessoal que está em volta. Isto é não só referenciar-se ao Nome do Pai,
como assumir esse lugar, de demarcação, de escansão dos desejos. Mas não
há aí abominação do incesto. Há, sim, verificação dele, pura e simplesmente.
Fazendo um parêntese, o autista, por exemplo, é aquele que não precisa
falar, porque se ele fala a linguagem, que não existe, é como se ele falasse o
tempo todo. Ele não precisa da diferença da língua. Quer dizer, no fundo, nem
mãe ele tem. Não há diferenciação entre ele e a mãe, logo não tem mãe.
Então, ele é a mãe? Autista é a mãe. É interessante este caminho, pois a
maternidade é um autismo. Não é à toa que Jesus Cristo chamava a mãe dele
de mulher... Não há nenhum distanciamento entre o autista e a mãe, logo posso
dizer que ele e a mãe são a mesma coisa. Ele é a mãe, é mãe de si-mesmo ou
coisa parecida. Lá mesmo na relação do chamado fort-da, há alguma coisa

116
Édipo em calúnia

que prepara o reconhecimento da distância, que é, se eu não disser


reconhecimento, posso dizer o sofrimento das batidas entre presença e ausência
da mãe, situada aí já como um objeto, como um mesmo ser. Não há ainda
necessidade nenhuma da simbolização distinguindo aí. Ela virá só-depois dessa
experiência, que é de presença e ausência de um objeto. Portanto, nesse
momento do fort-da, não posso dizer que a criança está misturada com a mãe.
A mãe já é objeto para ela. Embora não saiba que tipo de objeto, faça confusões,
o objeto escape... Tanto é que o autista não precisa estar do lado da mãe, para
ter a mãe. O objeto não se ausentifica, justamente porque ele é a própria mãe.
O objeto é ele. Se você tira o objeto dele, a anatomia vai junto. O objeto dele
faz parte da anatomia.
É interessante notar que em pelo menos três dos evangelistas, Mateus
12, Marcos 13, e Lucas 8, se repete aquele dia em que apareceram a mãe de
Jesus e seus irmãos, e lhe disseram: “Sua mãe e seus irmãos estão aí querendo
falar contigo”. Ele disse: “Quem é minha mãe? Quem são meus irmãos?”. Isto
tem a ver com o que estamos tratando aqui. Do mesmo modo que a função
edipiana, através da redundância de enunciados míticos, é transformada em
vocação policialesca dos costumes e dos comportamentos, encontramos isso
ocorrendo freqüentemente, como, por exemplo, nesse momento aí do Novo
Testamento. Todo esse culto da mãe de Jesus Cristo, que nasceu no século XII
ou XIII, se não me falha a memória, não existia antes. Está absolutamente recusada
na palavra de Cristo. O tempo todo ele fala no pai, que é o mais abstrato e
celeste. O próprio São José é à parte... Cristo se refere à função paterna, que é
o que dá garantia à sua palavra e situa a fraternidade no nível da referência a
essa palavra do pai. Ele diz: “Minha mãe, meu irmão, são aqueles que estão na
mesma ordem de palavra em que estou”. Faz referência ao mesmo pai.
“Mãe não está na mesma ordem discursiva”. Se suspeitasse que fosse
o contrário, teria que puxar as orelhas desse rapaz. Isto é a fundação do racismo.
A ordem fraterna a mais generalizada só pode ser subdita à lei que é a função
paterna. E a função paterna não garante este ou aquele discurso. Está
garantindo a lei, portanto o Desejo. Estou falando aí de nossa experiência, e

117
Psicanálise & Polética

que se acrescenta cada dia mais, dessa impostação racista. Hoje, por exemplo,
tomei um táxi na cidade. O sujeito dirigia perigosamente. Eu estava sentado lá
atrás, com as cuecas na mão. Esse cara pode me matar. E o rapaz pegou uns
panfletozinhos e me deu. Tratava-se de uma irmandade desse tipo. O jovem
era protestante, de uma certa comunidade que tem uma estação de rádio, e ele
a ouvia incessantemente no carro, tocando músicas de compositores brasileiros
os mais desconhecidos. Por acaso, conheço alguns deles, que ninguém sabe
quem é, tipo professor de Escola de Música, que faz aquelas cantatas, aqueles
negócios, uma coisa horrorosa, que ele simplesmente não podia suportar. Mas,
por obsessão, ele tem que ouvir aquela rádio. E quando ele passava pelos
carros, dava aquele papelzinho falando assim: “Irmão!”. Na suposição de que
o cara ia entrar na dele. Quer dizer, aquela neurose obsessiva, dirigindo um
carro, jamais pensou por um instante que eu não quisesse ser irmão dele... e
morrer no trânsito. Isso ele não pensou.
Essa referência a um discurso fundando uma tal fraternidade chama-
se racismo. Isto é uma coisa que não consigo – é um fracasso! – transmitir
aqui neste Colégio: que isso é um racismo. A insistência das pessoas em formar
cartéis entre irmãos, em evitar certas colocações que são explosivas, é uma
acostumação a essa ordem racista em que vivemos. É um fracasso! Certamente
que meu! Se não conseguirmos desvincular essas coisas, estaremos fazendo
mais uma irmandade desse tipo. A única maneira que pode dar um pouco certo
é na referência à lei. Ela é tão difícil de se instalar justamente porque a pressão
imaginária é muito alta. Quer dizer, a castração é recusada com freqüência. A
gente se recusa a enfrentar a castração, e com muita veemência. Enfrentar a
castração é poder suportar a diferença, desde que a lei esteja em vigor. Suportar
diferença sem lei, não se consegue. Porque não se consegue fazer vigorar a lei
é que as pessoas se tornam racistas, arranjam um recanto edipiano de conforto,
e o resto é outra gente, não interessa. As sociedades psicanalíticas não são
outra coisa senão isso. Essas que existem por aí...
Lacan reclamou naquele momento de dissolução: “Estão querendo
amarrar os meus pés”. Ou seja: “Estão querendo fazer um racismo da Escola

118
Édipo em calúnia

Freudiana de Paris!”. É disso que ele estava reclamando! Todo mundo estava
metendo as unhas uns nos outros, por questões, às vezes, as mais idiotas.
Vemos a dificuldade que há. Quer dizer, a psicanálise é a dissolução: e a
dissolução terá fim? Quero supor que tem. Mas, se esse fim é remoto para
cada um, é possível, pelo menos, que se viva o trabalho da dissolução o
tempo todo.
Freud era um sujeito prudente. Não tinha a menor vocação para ser
Jesus Cristo, de abrir os braços para ser crucificado, o que demonstra que ele
tinha um pouco de saúde. Esse negócio de dar pérolas aos porcos, vamos com
calma... Entendo que está indicado claramente no Mal-Estar na Cultura que
a função da psicanálise é a dissolução da cultura. É claro que ele passa todas
as manteigas necessárias para um leitor desavisado. Ele não está dando aquele
livro para analisandos dele, com os quais vai trabalhar mais ou menos
longamente. Há prudência no texto, muito necessária, talvez, naquele momento,
talvez mais do que hoje. Mas acho que, se se espremer, vai significar que ele
está falando claramente que se trata da dissolução do complexo de Édipo, que
é fundador da cultura.
Freqüentemente, quando se aponta uma coisa desse tipo, o sujeito diz:
“Mas isso vai tirar as minhas bases, e como é que fica?”. Estamos tocando aí
no núcleo da castração. O terror que temos de que, se for tirada a regra,
ficaremos sem lei, é, simplesmente, prova de que não sabemos dela. Se não,
não se teria medo de retirar a regra.
Estou tentando, desde o começo deste Seminário – e não cheguei lá
ainda –, justamente mostrar que a cultura não é o simbólico. O simbólico é
alguma coisa que é lugar onde a cultura pode se instalar, mas ela não é o
simbólico. Se Lévi-Strauss está certo – e acho que está –, se a interdição do
incesto é essa estrutura edipiana, dissolver o complexo de Edipo é simplesmente
alguma coisa como uma faca de dois gumes. Dissolver é algo da ordem da
abolição. Freud disse, deixou claro, que a psicanálise pretende destruir o
complexo de Édipo.
Não precisa de cultura para haver superego. Se a lei está em vigor,

119
Psicanálise & Polética

existe pelo menos uma função superegóica: é proibido matar a diferença!


Vamos supor uma abolição cultural de certo nível, em que a ordem de
parentesco seja embaralhada – porque há outros modos de computação que
podem suportar as relações inter-subjetivas –, nem por isso o teorema da
castração fica abolido. Teorema este a que Lacan reduziu o Édipo! Ele continua
gerindo o processo, pois a castração é a noção da impossibilidade da relação,
da impossibilidade de totalização. Reconhecido isto, pode-se até casar com a
mãe, o que, aliás, Édipo faz. Mesmo do ponto de vista mítico, da narrativa,
temos que casar, ele casa, mas a mãe se mata, ele vai embora, etc. Entretanto,
ficaram lá quatro filhos. Isto não vai ser abolido. Nem as noites que ele passou
com Jocasta, os gozos que tiveram juntos. Isto não vai ser apagado. É preciso
distinguir aí.
É preciso entender que nada se diz fora da metáfora. O que é mãe na
metáfora? É a mãe do rapaz? Não. É a suposição de completude, mais nada.
Só isso. Quando falamos em castração, não precisamos de mãe. Ninguém
precisa da senhora sua mãe para sonhar com completude. Basta, por exemplo,
um ditador: essas “senhoras grávidas” que vocês conhecem de perto, que
retomam o poder freqüentemente.
A cultura não é o saber, é uma certa forma de congelamento do saber.
Se a cultura é imaginária, dissolvida a cultura, fica-se disponível para qualquer
coisa. Por que não? O que caracteriza o sujeito que é preso a uma formação
cultural congelada? Uma absoluta falta de imaginação.
Se sou determinado pelo simbólico, preciso me desvincular radi-
calmente de um aprisionamento imaginário... para poder criar imaginários à
vontade. Basta vermos os pintores, os que realmente o são. São aqueles que,
simplesmente, inventam um imaginário novo. Certamente que por via
simbólica. Não existe nenhum pré-verbal. Isto está na cabeça da Ligia Clark.
Não existe nenhum pré-verbal para o ser falante. Ninguém pinta com suas
relações imaginárias de ego. Pinta com a palavra na cabeça, dissolvendo a
tinta com palavras... e não com terebintina. Trata-se de poder submeter o
imaginário a quem ele, de fato, de começo, se submete, que é o simbólico.

120
Édipo em calúnia

Desde o começo de cada um que o imaginário que lhe foi trazido, o foi por
via simbólica. É uma espécie de coagulação de um texto. Esse texto toma
uma figura, toma pregnância.
É possível que essa tal cultura venha a acabar no registro de poético.
É suponível que possa acontecer. Não é nenhum voto, nenhuma suposição de
uma revolução que se possa fazer. É simplesmente o que está aí. Acontecerá
ou não. É o que se pode pensar a respeito. Assim é que acho uma sonhação
meio exótica, meio inaceitável como princípio, no pensamento de Deleuze-
Guattari. Eles falam como se Édipo tivesse sido realmente dissolvido, como se
estivessem vivendo nalguma pós-cultura. Pode ser um texto ótimo. Tudo bem,
mas, simplesmente, não se vê isso. A cada momento se reencontra no divã o
chato do Édipo, que enche o saco de qualquer um.
Se Édipo pode aceitar interpretação de Tirésias como sendo a que lhe
ocorre, ele só pode ter conseguido uma transferência com Tirésías. Por isso
funciona. Eis senão quando, num jogo de atritos, mais ou menos amorosos e
odientos, ele consegue aceitar a interpretação de Tirésias como verdadeira. E,
aí, ele saca. O sujeito suposto saber está subdito à palavra de Tirésias, o último
recurso. É o poeta. Ele fica fora da transação, fica no limite.
Suponhamos que a cultura seja um tipo de arrolamento. O que é que
mora ali? É o ato de arrolamento. O que interessa é o ato de arrolar as coisas.
Isto é que é o ato-poético, como o Nome do Pai: o desejo que está em jogo
nesse risco. O pai corre o risco de fazer essa elipse que arrola e omite. Está no
limite. Se arrola e omite, pode ser outro, o risco. O risco é sempre outro.
Porque, exatamente, o que a cultura faz é só se compreender por dentro. Ela
esquece dos seus limites e não transa com aquela gente do lado de lá, isto é, da
borda. Ela não chega à beirada, pensa que pode cair no abismo. Esta pergunta
vem sempre: “Se tirar isso, como é que fica?”. Pensa-se que a Terra é chata.
Se se chegar à beirada, se cai no abismo. Não se pode mudar a fronteira? Por
que não? Ficar em disponibilidade para outros arrolamentos significantes... Os
artistas estão carecas de dizer isto.
Só há salvação para Édipo se ele se tornar Tirésias. Não há outra.

121
Psicanálise & Polética

Assim como só há uma análise que dá certo: quando o sujeito vira psicanalista.
Se não virar, não deu certo. Pode até servir para o gasto, mas não deu certo.

* * *

[RESPOSTAS A PERGUNTAS]

(...)

Você usou a palavra “conhecimento”, e a colocou em dois níveis. Num


primeiro nível, você colocou conhecimento como conhecimento da distância,
da escansão entre bem e mal. Quer dizer, simplesmente, da diferença. Em
outro nível, você colocou a situação molar, que é mais próxima disso que
chamamos conhecimento, mesmo na clínica, que é a construção desse aparelho
de Estado, de língua, ou de gramaticalidade das instituições. Mas existe uma
diferença, um corte radical entre esses dois momentos do conhecimento. Se é,
até, que devemos usar a mesma palavra
Se a Bíblia diz que ele tomou conhecimento da árvore do conhecimento
do bem e do mal, posso achar que a tradução é ruim, ou, se lá mesmo no livro
originário diz “conhecimento”, preciso saber o que é o conhecimento dessa
gente. Porque, quando se diz que Adão “conheceu” sua mulher, ele conheceu
o quê? Conheceu a diferença. Esse verbo “conhecer” fica meio precário nessa
situação. Uma coisa é essa construção de um conhecimento, de uma episteme
que segura tudo isso, para usar o termo de Foucault, e, outra coisa, é reconhe-
cer uma origem que é sacação – tiremos a palavra conhecimento da estrutura.
Na verdade, não há, ali, nenhum conhecimento em jogo, no sentido em
que se pode falar de conhecimento disso. Isso é organização de um saber em
cima de uma verdade articulada sintomaticamente. Já a estrutura é o fundamento
de toda e qualquer possibilidade de articulação. Jamais conhecerei isso. Eu
sofro disso, e saco isso. Como posso conhecer o corte? Eu sento e faço uma
teoria do corte. Lacan fez. Mas a própria construção dessa teoria é aberta o

122
Édipo em calúnia

suficiente para não me entregar o conhecimento dela, para não me entregar,


vamos dizer assim, a paranóia completa da conceitualização desse corte. Porque
se ele é corte puro, ele corta a minha mão quando eu segurar.

(...)

Eu não diria que somos fundados na ordem do discurso. Somos fundados


na ordem da Lei, na ordem do impossível de saber, por exemplo, de se conhecer.
Uma coisa é eu estar fundado na ordem do ser falante, e, outra, é eu me fundar
na ordem discursiva. O fato simplesmente de que alguma coisa tem que ser
colocada no lugar da outra, é a minha instalação do simbólico. Os discursos
que vão se congelar, ou que vão se estatuir a partir daí são outra história.

22/ABR

123
Psicanálise & Polética

124
O gene e tal

6
O GENE E TAL

Com o titulo de Édipo em Calúnia, vimos como Édipo é caluniado


quando se supõe que ele insiste em ter o reino e a mãe. Ao passo que, na
verdade, trata-se de um ato-poético – e aí é que entra Tirésias – que o libera
da cultura. Ele aspira é por outra formação.

* * *

Ainda, insistindo, nossa questão é: o que é cultura?


O resultado da Antropologia Estrutural ligou definitivamente, pelo menos
até segunda ordem, interdição de incesto e cultura. Nas Estruturas Elementares
do Parentesco, edição francesa, p. 14, diz Lévi-Strauss: “A proibição do incesto
está, ao mesmo tempo, no limiar da cultura, dentro da cultura e, num certo
sentido tentaremos demonstrar isso –, ela é a própria cultura”. Na consideração
que vinha fazendo anteriormente e que desenvolve ulteriormente, chega mesmo,
segundo as operações do texto, a demonstrar isto em função da oposição:
Natureza/Cultura. O pensamento dessa antropologia estrutural é dependente
do reconhecimento dessa oposição. É uma espécie de oposição de base, sobre
a qual se estabelecem as operações que indicam que a cultura se funda na
interdição do incesto, como regra universal para a antropologia. Mas, ainda em

125
Psicanálise & Polética

função das nossas questões anteriores, pergunto: o que é essa cultura de que
se está falando aí?
Apesar de ser dita estrutural, essa estrutura que Lévi-Strauss demonstra
é, em última instância, de nível semiológico. É a apresentação de um mínimo
sistêmico que explica as significações pertinentes a isso que ali está como
cultura. Ou seja, nos dá a possibilidade de tirar uma significação e, às vezes,
até, com aparência de significado, dos fenômenos que ocorrem no seio disto
que ele chama de cultura. Na verdade, então, toda a operação deságua na
questão da significação, ou melhor, para falar mais amplamente, na
semiologização do campo da sociedade, que lá está confundida com cultura.
Sociedade e cultura são termos que se trocam com muita facilidade nos textos
de Lévi-Strauss. A minha questão é que a sociedade, talvez, não seja a mesma
coisa que cultura, e que cultura talvez seja, confirmando a definição de
Lévi-Strauss, isso que se estatui sobre a interdição do incesto. Com a ressalva
de que, talvez, a cultura não seja universal, e, muito menos, portanto, a interdição
do incesto que a garante.
Talvez pudéssemos chamar essa impostação geral na antropologia e,
em particular, na antropologia estrutural de Lévi-Strauss, de: nat/cult. O nat/
cult é essa tentativa de equacionar a oposição natureza/cultura para, depois,
quase que eliminar a oposição e apresentar a cultura como natureza do
homem. Se a interdição do incesto é suposta universal – ainda que na base do
sabonete Lever, porque a única garantia que Lévi-Strauss nos dá, como já
disse, é que 9 entre 10 estrelas da antropologia preferem a interdição do incesto
– de que tipo de universal está se tratando aí? Universal histórico, que
abrangeria passado, presente e futuro? É o que ele tenta. Só que o universal
é estrutural. Lacan diz mesmo que esse universal aí, só o é, na medida em
que é inscrito no simbólico. Quer dizer, é sua inscrição no simbólico que
o torna universal. É claro que tudo que está inscrito no simbólico é percorrido
por um sujeito qualquer. É ambígua essa colocação de Lacan.
O nat/cult é essa reafirmação dos ditos achados da antropologia
anterior: a questão da interdição do incesto fundando o social, que, no

126
O gene e tal

caso, é cultura e num regime de universalidade. É isso que quero questionar.

Temos aí a tal Natureza, a tal Cultura entendida até como sociedade, a


possibilidade de um passe, portanto, de uma escansão, que se chamaria proibição
do incesto, que estou escrevendo: i, na cult, temos os efeitos da determinação
simbólica. O que a cultura produz são efeitos da determinação simbólica do
˜ falante. Talvez, pudéssemos colocar Édipo e castração no regime dessa proibição
do incesto, aonde Freud, na verdade, encontrou, também, a mesma coisa.

Se é que existe uma falta, este é o esquema que a psicanálise vai nos
dar: uma barra irredutível, a barra da castração. Do lado direito, temos os
efeitos dessa barragem. Do lado esquerdo, situa-se a falta e o que fica rasurado
é a natureza. Não há nenhuma passagem de natureza a cultura, porque natureza
é alguma coisa que não entra, que é foracluída, quer dizer, cai no real. E eu
diria que os efeitos desses acontecimentos – que poderia chamar de factício,
artifício, feitiço, se não fetiche, fictício, da coisa feita, em suma, da fixão – são
as coisas que vão se ficcionar, em função do simbólico, em artifícios, em
artefatos. Do lado direito, quero situar – o que pretendo desenvolver no
Seminário do próximo ano – o lugar aonde as músicas são feitas. Copiando o
que Lacan chama de “alíngua”, eu chamaria aquele lugar de “amúsica”. Talvez,

127
Psicanálise & Polética

a tal cultura seja apenas uma certa música, uma região desse lado direito. Na
borda, entre o limiar da cultura e a fixão em geral, a proibição do incesto seria
exatamente isso que constituiria essa borda. Essa fixão, essas fixões, essas
amúsicas, ou as amúsicas, são, todas, os efeitos da função simbólica, estejam
eles articulados ou não com o conceito de cultura. Em função da fundação
pela interdição do incesto, eu diria que o que a cultura articula num primeiro
plano é, justamente, a chamada ordem de parentesco, seja ela qual for, que
Lévi-Strauss teria demonstrado estar assentada nas estruturas elementares
como efeito mesmo da proibição do incesto. Como vemos, estou questio-
nando o esquema de cima com o de baixo.
Em existindo, então, essa falta, funcionando uma barra irredutível, uma
foraclusão (de qualquer aspecto) da natureza, jogando isso no real,
impossibilitando essa abordagem, isso poria, a partir dessa barra onde se situa
a castração, o fenômeno do simbólico. O simbólico surge como artificio,
como coisa factícia que vem em lugar daquilo que falta. Não tendo um
nome melhor para essas fixões, eu as chamaria de amúsicas – construtos que
podem ser muitos talvez – e eu colocaria a cultura apenas como uma dessas
possibilidades. Aquela mesma possibilidade de que fala Lévi-Strauss, na medida
em que ela é dita assentar-se na interdição do incesto, mas não na medida em
que isso seria o universal do falante. Mesmo porque é uma comparação evidente
no centro do livro Estruturas Elementares do Parentesco, que a interdição
do incesto funcionaria como funciona a linguagem.
Sei que estou fazendo uma série de perguntas aparentemente cretinas
em função da postura estrutural do pensamento de Lévi-Strauss, que não me
parece escapar disso, mas, é preciso questionar. Por exemplo, é possível falar-
se uma língua fora da proibição do incesto? Na perspectiva de Lévi-Strauss,
uma língua é da mesma ordem da interdição do incesto, na medida em que ela
produz algumas estruturas de regramentos, alguma função de regra - mas não
nesse embrulho em que se misturam as coisas –, situando com certa clareza,
do ponto de vista, por exemplo, etnográfico, a proibição do incesto enquanto
tal, enquanto especificamente fundadora de ordem de parentesco, ou enquanto

128
O gene e tal

mera interdição, que eqüivaleria a qualquer outra. Ou seja, existe um terceiro,


um terceiro na relação da fundação do simbólico, de onde emana, certamente,
a possibilidade de Lei. Minha questão continua sendo: por que se tem insistido
nessa exigência de proibição do incesto enquanto tal? Nunca fiquei convencido
disso, alguma coisa está embrulhada aí. È preciso desembrulhar.
Temos que levar em conta o fato de que a repetição, do lado da cultura,
de certos enunciados que remeteriam a estruturas que não se dizem
necessariamente mediante aqueles enunciados, acaba por fundar uma estrutura
superegóica, à qual a gente se submete, mesmo sem se submeter à ordem
legal, à ordem da Lei, no sentido em que a tenho colocado. Nada garante que
uma submissão a superegos signifique submissão à Lei. Posso mudar de um
estado fascista, com uma farta, ampla, geral e irrestrita submissão a um
comandamento superegóico, sem que, no entanto, eu possa fazer uma refe-
rência “divina”, no sentido da nossa gíria carioca até, à Lei. Facilmente se
confunde superego com Lei. Por isso, peço que trabalhem o Mal-Estar na
Cultura, para acompanharmos certos conceitos de Freud e distinguir um pouco
as coisas. O superego é algo que se funda, segundo Freud, por deglutição,
introjeção, de uma autoridade externa. Autoridade esta que pode estar munida,
por exemplo, de um revólver, como a polícia. Não é necessária a referência à
Lei enquanto tal. Embutimos um superego de comandos, antiincestuosos, os
quais, em certas culturas, são exacerbados e tomam séries longuíssimas, a
ponto de o sujeito poder considerar como infração do incesto um sujeito
simplesmente tocar um membro da mesma metade, qualquer que ela seja, do
ponto de vista etnográfico.
Precisamos distinguir o remetimento legal da introjeção superegóica.
Legal, no sentido de fundação de lei, na estrutura do falante. É evidente que,
se tomarmos determinada cultura, observaremos que nela há interdição do
incesto regulando as relações, uma interdição qualquer, por mais variadas que
sejam reguladas as relações de parentesco. Encontraremos aí, sobretudo, alguma
coisa que terá em instância mais antiga, mais anterior, referência a essa
instalação da Lei, à instalação do que chamamos Nome do Pai, à castração

129
Psicanálise & Polética

en-quanto tal. É claro! Porque está tudo amarrado. Posso mesmo pegar o
chamado Édipo enquanto mito e verificar que há lá diversos níveis, dos quais
talvez o mais próximo seja esse da interdição do incesto. Mas será que esses
níveis não são para ser distintos? Será que não são níveis diferentes, dos quais,
alguns, talvez, sejam dispensáveis?
Para poder abolir essa interdição do incesto enquanto tal, tenho que
dizer que a Lei se situa muito bem fora dela. A que nível tenho que descer para
garantir a Lei, mesmo que a interdição do incesto seja suspensa? Nas Estruturas
Elementares do Parentesco, p. 27, Lévi-Strauss diz: “O problema da proibição
do incesto não é tanto o de procurar que configurações históricas, diferentes
segundo os grupos, explicam as modalidades da instituição em tal ou tal
sociedade particular. O problema consiste em se perguntar que causas profun-
das e onipresentes fazem com que, em todas as sociedades, em todas as épocas,
exista uma regulamentação das relações entre os sexos”. A psicanálise está
plenamente de acordo, nada tem a dizer contra. Mas que causas profundas
fazem com que, em todas as épocas, exista uma regulamentação da relação
entre os sexos? Que regulamentação? Por que tem que ser interdição do incesto?
Perguntando de novo: quais são essas causas profundas? Elas pretendem regular
o quê? E como? A tal interdição do incesto é conjuminada no pensamento
estrutural, como se vê, p. 72, por exemplo, à exogamia. A proibição do incesto
e a exogamia constituem regras substancialmente idênticas, diz ele, e só diferem
uma da outra por um caráter secundário. E ele explica a secundariedade desse
caráter. Na verdade, se são regras idênticas, se repetem a mesma coisa, podemos
perguntar por que, ao invés de se falar em interdição do incesto, não se fala em
exogamia? Em vez de é proibido o incesto, é obrigado a exogamia? Segundo
esse texto, dá na mesma. Que diabo é isso, a exogamia? Não do ponto de vista
meramente antropológico.
Lacan chamou a instalação do sujeito na ordem do simbólico de função
metafórica que vai instalar o sujeito no campo do Outro, permitir um processo
de subjetivação e a metáfora, no caso, paterna, e que é como já mostrei no
Seminário do ano passado, metáfora e nada mais. É poder situar-se metafori-

130
O gene e tal

camente no campo do Outro, ou seja, sintomaticamente.

* * *

O que é a metáfora para Lacan? Vou fazer uma retomada, em


parênteses. A Instância da letra, Écrits, p. 515.
Ele escreve: _
S , e, partindo desse algoritmo, vai fazer a função de
s
significante como a função de 1 sobre o significado: f(S)1_ , e diz: “É da
s
copresença não apenas dos elementos da cadeia significante horizontal, mas
de suas atinências verticais, no significado, que mostramos os efeitos, repartidos
segundo duas estruturas fundamentais na metonímia e na metáfora. Podemos
simbolizá-las assim: f(S. . . S’)S~
=S(-)s”. Esta é a fórmula da metonímia: função
de passagem de um significante para outro, congruente com significante, numa
relação barrada, (-), ou seja, não-relação com significado.
Para a fórmula da metáfora, temos: f(_ ~
S’)S=S(+)s: função de significante
s
com significante, um sobre o outro, congruente com significante com travessia
para significado, (+). Ou seja, uma possibilidade de atravessamento da barra,
que não é, de modo algum, a conquista de um significado. É uma produção de
significação porque, se faz algo que parece uma travessia de significante, não
é uma colagem de significante para significado.
A estrutura da metonímia é “a conexão do significante ao significante,
que permite a elisão mediante a qual o significante instala a falta do ser na
relação de objeto, servindo-se do valor de remetimento da significação para
investi-la do desejo, visando essa falta que ele suporta”. Por isso, ele diz que a
metonímia, esse remetimento à falta, tem a estrutura do desejo. “O sinal –
colocado entre ( ) manifestando aqui a manutenção da barra –, que, no algoritmo
primeiro, marca a irredutibilidade em que se constitui, nas relações do significante
ao significado, a resistência da significação”. Aí, a significação resiste. O
remetimento é ao deslocamento, ao deslizamento, e, portanto, a função que
está em destaque é o desejo.

131
Psicanálise & Polética

A estrutura metafórica, por sua vez, “indicando que é na substituição


do significante pelo significante” – substituição agora, não mais deslizamento
– “que se produz um efeito de significação que é de poesia ou de criação, dito
de outro modo, de advento da significação em questão. O sinal + colocado
entre ( ) manifestando aqui o atravessamento da barra – e o valor constituinte
desse atravessamento para a emergência da significação”.
Lacan não diz que na estrutura metafórica o significado se produz.
Existe apenas uma emergência de significação possibilitada, e não a fundação
de um significado. Ou seja, há alguma referência, inter-significante de tal
maneira que se monta uma arrumação qualquer que passa a se dar como se
fosse significação atribuída àquele significante. É isso que chamei do “faz-
de-conta” da metáfora paterna. Faz-de-conta porque é uma emergência de
uma significação e não prende nenhum significado. É isso que relacionei
com o “ponto de basta”: esta elasticidade de uma parada, de uma meia-
trava, de uma pequena coagulação que empresta significação, mas não fecha
o significado.
No texto sobre Schreber, Écrits, p. 557, Lacan retoma a questão da
metáfora para explicar a foraclusão do Nome do Pai, já que ele está falando
de metáfora paterna. Apresenta de outro modo a fórmula de metáfora:
_S, , _S/’  S( _1s ). Significante sobre significante outro, ponto, repetição desse
S/ x
outro significante sobre x, que vai dar em significante função de 1 sobre
significado. Escreve agora deste modo para explicar que a substituição que
aí se dá é a de um significante por outro que se oculta. Um significante se
oculta, dando lugar a outro, na tentativa de atravessar para uma certa
significação, que vai fazer surgir a relação de um significante a um suposto
/ são exatamente para mostrar que eles estão ocultados,
significado. Esses dois S
o sujeito rasurou – no texto está só barrado, parece que é sujeito, mas é só
significante.
Nesse momento ele vai mostrar aquela formulinha, substituindo alguns
lugares. Quer dizer, se

132
O gene e tal

esse significante, nome do Pai, não surge, não emerge no lugar daquilo que é
significante para o sujeito, como desejo da mãe em função do que é significado
para o sujeito – essa palavra aí, no caso, me parece ruim, pois Lacan quer
dizer: expresso ao sujeito de algum modo, como o desejo da mãe –, o desejo da
mãe fica ocultado para haver emergência do Nome do Pai como função
significante, permitindo, portanto, o Falo surgir em lugar de significado do Nome
do Pai. Trata-se de uma função emprestada de significação ao Nome do Pai
por esse significante oculto, que é desejo da mãe, e que compareceu como
expressão, digamos, de significado do sujeito. Mas o engraçado é que o que vai
emergir como significado é o Falo, que é só significante. É um troca-troca de
significantes. Na verdade, Lacan estava demonstrando, nesse trabalho, que
não comparece jamais o tal significado e que a relação não existe. É apenas
transação de significante com significante, ou deslizando ou fazendo uma
atribuição que não é senão um tour de force de emergência de significação
possível. Nada mais.
Não é outra coisa que vai comparecer, na verdade, naquelas fundações
do lado da chamada cultura, naquele nosso esquema anterior. Foi, aliás, uma
coisa de que tentei falar um pouco na introdução de um texto sobre Guimarães
Rosa, de que posso pensar perfeitamente essa articulação como dupla atribuição
significante ao mesmo conjunto significante. Ou seja, isso que é significado ao
sujeito, no caso da fórmula, é um significante que serviu como média e extrema
razão. No pensamento de Lacan, nessas fórmulas que construiu, esse
significante como média e extrema razão entre o que é significado ao sujeito e
o significante paterno, não é senão esse conjunto significante que foi
empacotado, digamos assim, no mesmo campo expressivo, no mesmo conjunto
emprestado ao sujeito.
O que foi significado ao sujeito? Um pacote, um arrolamento de coisas
que exprimem o desejo da mãe. Esse pacote – já que o significado não existe,
e que o pré-verbal simplesmente não é pensável – não é senão um pacote
significante que remete a essa coisa que não é dita, mas que é o significante
que promove a significação daquilo que se chama o desejo da mãe.

133
Psicanálise & Polética

Na verdade, temos algo bem simples. Se pensarmos numa relação


significante significado, ou significante/significação, deixando o significado fora,
o máximo que teremos é uma relação de significante a conjunto de significantes.
É como no dicionário: uma palavra é definida por um conjunto que é arrolado e
timbrado com essa palavra. Jamais poderemos saber o que é mesa, por exemplo,
se não formos para outro verbete, olharmos todo o dicionário e voltarmos de
novo... Depende de certas acomodações que me permitem falar de “mesa”.
Agarro um pouco, faço uma espécie de arrolamento que – nessa tentativa de
segurar de mão aberta, pois não dá para fechar – é o conceito.
Simplesmente, o que acontece é que esse significante é ocultado e
aparece outro. Qual é a troca que se dá? É que posso ter um conjunto de
significantes que merece, por seu aspecto mesmo de conjunto, ser nomeado
por um novo significante. E, depois, posso descobrir que considerados, digamos
assim, os significantes enquanto traços mínimos dessa composição, esquecida
a secundariedade, as cadeias infinitamente grandes podem também ser
nomeados por outro significante. A metáfora é assim. Cada vez que uma
metáfora se produz – já que ela não produz significado, faz emergência de
significação –, por mais que ela arrole, condense – metáfora e condensação é
quase a mesma coisa – ela acaba produzindo efeito metonímico, simplesmente
porque trocou significante. Quer dizer, só posso discernir isso historicamente,
pois se, enquanto deslocamento, tenho metonímia, enquanto arrolamento, tenho
metáfora. Mas é impossível produzir uma coisa sem outra.
De algum modo, romper o limite é o gozo. Simplesmente, porque é
impossível que se chame, mesmo um conjunto de dois significantes, sem de
certa forma esgarçar pelo menos a circunscrição – há um gozo nisso. Por isso,
Lacan diz que a poesia se faz aí. É a única transgressão possível, se é que é
transgressão... Não chega a ser transgressão, porque a Lei é isso. É, na verdade,
cumprimento da Lei.
É quando o sujeito se instala como tal no campo do Outro que ele
precisa, a não ser que caia na estrutura psicótica, assentar-se metaforicamente
ali: conduzir-se sintomaticamente para poder referenciar-se à Lei, uma vez

134
O gene e tal

que o Nome do Pai, como Lacan o define, é aquele significante que, no campo
do Outro, é significante desse Outro, como lugar da Lei. Que Lei? Justamente
essa que dá fundação à possibilidade de produzir metáfora, ou seja, produz
esse esgarçamento. A Lei se funda como (e funda o) desejo, e não como
proibição. Só se diz como proibição na medida em que não se pode dizer tudo.
A proibição se diz como limite. No entanto, o que importa é esse dizer, e não o
limite. Não é, falando melhor ainda, a limitação, o coágulo, mas essa fundação
limiar do dizer. E como não se pode dizer tudo, algo se diz, e nesse ato, há
movimento de desejo, no que há movimento metonímico/metafórico. Por isso,
não há nenhuma possibilidade de se fazer metáfora, sem fazer metonímia. Se
há binômio Lei/ Desejo, metáfora e metonímia não se separam senão
teoricamente.
Se aplicarmos aquele esqueminha à fórmula do Booz, de Lacan, veremos
que dá certo. Sa gerbe, sa femme, un homme, o feixe de traços que demarcam
Booz, uma coisa é substituída pela outra. O nome Booz é substituído por sa
gerbe na medida em que ambos são feixes de coisas, de traços, têm aspectos
de deslizamentos nas cadeias.

* * *

Retomei isso simplesmente para mostrar que essa formação chamada


cultura – e que se garante pela interdição do incesto – é uma metáfora, assim
como o Édipo. O que importa é que se entra nesse regime por via metafórica,
por via sintomática, e é preciso distinguir o que é a produção de metáfora, do
que é o metaforizado. Lacan engraza Lei/Desejo no Nome do Pai porque
esse momento, que é de congelamento, de certa forma de arrolamento, exigiu
ao mesmo tempo um deslocamento.
Outra coisa é pensar na repetição da metáfora produzida, em
congelamento, o que está na cabeça do chamado Pai Ideal. Isto é justamente
não reconhecer a função paterna, porque só se pode reconhecer a função
paterna na medida em que se reconhecer a metáfora como tal, como produção

135
Psicanálise & Polética

e significação e não como significado produzido. Uma coisa é o momento


poético da produção da metáfora. Outra, é a repetição banal do produzido.
Aí, pergunto: será que não se pode suspeitar, na tal proibição do incesto
– dita por vias edipianas, de complexo de Édipo – níveis diferentes de produção?
Há algum tempo, escrevi um texto intitulado Gerúndio, onde fui anotar uma
velha suspeita disso que estou tentando articular outra vez: não será possível
pensar a existência de três níveis de castração?
Essa valorização do genital que a história inglesa da psicanálise foi
encontrar não sei em que lugar da obra de Freud – porque lá não se diz isso –,
o que quer dizer? Será que tem algo a ver com essa questão da cultura, com a
interdição do incesto? E em que nível? Genital vem do latim genitalis e significa
“que engendra”. Deu genitus, que é o particípio passado do verbo gigno que é
“engendrar”. E tem o termo “genitivo” que indica um caso gramatical na língua,
que vem de genitivus. Tudo vindo desse verbo que quer dizer “engendrar”. O
engraçado é que o caso genitivo explicita, em qualquer língua, a posse. Ainda
que se faça uma distinção entre propriedade e posse, segundo o direito romano,
o genitivo explicita alguma coisa dessa ordem. “Estar na propriedade” é o caso
genitivo em que uma coisa é atribuída a determinado sujeito, como objeto seu.
“Estar na posse” é estar na fruição desse objeto. Quer dizer, o sujeito pode até
ser proprietário e não estar na posse, ele pode alienar o objeto.
O que me interessa é o genitivo enquanto tal, pensar o que ele tem a
ver com o genital. Isto porque o tal genital, que a psicanálise inglesa tanto
preza, por razões óbvias – óbvias porque se trata de herança de famílias e
Lacan já disse que não basta portar as relíquias do gens para ser herdeiro –, se
transforma, em última instância, no amor do genital. É um espanto. Como é
que pode haver amor genital? Fico imaginando assim aquele tipo de coisa que
acontece nas histórias em quadrinhos de americano: duas piroquinhas
conversando, elas se apaixonam, coisas assim...
Retomando, Lévi-Strauss situou a exogamia no mesmo nível da interdição
do incesto. O que é exogamia? Segundo o Vocabulário das Instituições Indo-
Européias, de Émile Benveniste, no verbete “o princípio da exogamia e suas

136
O gene e tal

aplicações”, p. 226, temos que “é preciso lembrar que, segundo o princípio da


exogamia, os sexos diferentes pertencem sempre a metades diferentes, não há
casamentos possíveis a não ser entre membros de metades opostas”. O princípio de
exogamia é isso. As pessoas são divididas em metades e o casamento só é possibilitado
com metades diferentes, é claro! Ele faz um lembrete, de que se esquece
freqüentemente que os sexos são divididos em metades diferentes. É por isso que
só pode casar mulher com homem. Se quisessem fazer uma outra arrumação,
podiam casar mulher com mulher, bastava rachar ao meio uma metade. Isto no
momento me serve para perguntar se essa vocação genitiva, genital, da cultura não
se esteia estritamente no processo de reprodução, nos interesses reprodutivos. Daí,
a descoberta, lá em algum neolítico passado, de que o genital só funciona pela
distribuição dos gametas, tudo sendo reduzido, então, a esse momento, a essa
articulação. Por outro lado, uma invenção de metáfora, a produção de um computador
para organizar essa zorra – computador que situei miticamente em Noé –, e que,
copiando as séries reprodutivas daquilo que Lévi-Strauss chama consangüinidade,
vem instalar a cultura, como creodo. Mas não se trata aí, de modo algum, de passagem
de Natureza a Cultura. Natureza não se dá, como já disse, a não ser como articulação
do lado do simbólico, o que houve foi uma certa atribuição de filiação em função de
uma observação muito precisa, mediante escansões que são, em última instância,
da mesma ordem de um aparelho que divide metades.
Se fui capaz de montar um computadorzinho para separar os animais
que estou criando para a minha posse, para a minha riqueza, e separar as
reproduções, as linhagens, etc., estou fazendo, aí, uma ascensão de metades de
deslizamentos. Posso metaforizar isso para o bem dos seres falantes, com o que
terei a possibilidade de uma computação, da ordem disto que é posto como a
ordem de parentesco. Isto me dá não só o resultado da operação genital, metades
diferentes, situadas por comparação anatômica. Eis senão quando, o homem
deve ter descoberto que se não transar macho com fêmea, não há possibilidade
de reprodução. E em seguida a isso, o funcionamento de um genitivo, ou seja:
filho de quem? O genitivo se mistura muito facilmente com o genital na medida
em que a propriedade e a posse são do interesse do sujeito – e sempre são.

137
Psicanálise & Polética

Posso imaginar uma sociedade onde haja propriedade privada, etc.,


mas onde a transmissão dos bens, a questão da herança, fica prejudicada
porque não se tem uma regra de definição do genitivo como ordem de
parentesco. O que estou perguntando é: a chamada interdição do incesto não
vem como garantia do genitivo genitalizado na apropriação? Isso é o que a
antropologia está careca de mostrar. Lacan, quanto a ele, vem marcar um
lugar para o sujeito, mas lugar este cujo interesse fundamental é saber o que
é de quem. E mais do que isto: quem é de quem. Ficaria difícil estabelecer as
heranças sem um código qualquer. Mas por que tem que ser tal código?
Sabemos que o direito romano tem uma série de desvios interessantes. Era
comum, por exemplo, um patrício adotar uma pessoa, não uma criança, uma
pessoa... Todo pai é adotivo em última instância, mas o que vemos é uma
insistência imaginária, narcísica, engrossada em seus argumentos por esse
método de computação copiado talvez de uma observação dos animais. Isto
garantindo ao sujeito que quando ele passa seus bens, coisa que ninguém
gosta de passar, ele pelo menos está passando pela Lei, que o receptor é a
sua repetição, porque está demonstrado que ele é seu produto genital e genitivo
segundo tal ordem de parentesco.
Vocês conhecem a implicância do chamado Karl Marx com a tal da
família. Lévi-Strauss situa o fundamento da interdição do incesto baseado na
família, no princípio da troca, na possibilidade das negociações. Ou seja, é
preciso sempre ter as coisas estabelecidas segundo metades diferentes para
se separar em x do lado dos machos e y do lado das fêmeas. Mas, por que essa
insistência numa separação tão imaginária? Esta é a minha questão. Algum
cacoete existe no percurso da chamada humanidade, cacoete que posso supor
– antes de desenvolver melhor – que seja um creodo, isto é, alguma coisa
forçosamente obrigou a passagem por ali. Uma espécie de bacia orográfica
com as águas correndo por ali, certamente por facilidade imaginária... E o
homem desemboca no simbólico, constrói coisas espantosamente abstratas, as
mais altas matemáticas, a tecnologia mais avançada... e continua neolítico nas
suas concepções de lugares, como sujeito.

138
O gene e tal

Como lembrou Benveniste, as metades são divididas conforme a


anatomia. O interesse disto só pode ser reprodutivo, genital, mas os enganos
não deixam de se impor no processo. É como aquela estória do papa: é
preciso “pegar” nele para ver se é papa mesmo, pois a Joana XXIII deu o
golpe na paróquia. Então, saímos separando os bichinhos, iguaizinhos com
iguaizinhos... é claro que, no caso dos pintos, há um interesse específico, uns
vão para a granja botar ovos, outros para o corte. Esse rebatimento imaginário
produziu uma função de separação de metades, de qualquer tipo de ordem
que seja, por vigência imaginária. Ou seja, ao invés de perguntar aos falantes
como é que se separam as coisas, vão perguntar ao tal japonês que é o único
a saber separar pintinhos...
Insisto em que alguma coisa tornou-se um creodo, se é que se tornou,
pois só se poderia garantir isto se se pudesse provar (coisa que a antropologia
suspeita, mas não demonstra) que se encontraria a interdição do incesto em
toda e qualquer cultura. Supondo isto, posso, no máximo, conjeturar que é uma
espécie de creodo, quer dizer, de pressão, de vertente imaginária que conduziria
espontaneamente para este lado. Em não se sabendo o que fazer, nada se cria,
tudo se copia, então, parte-se para este logro, e copia-se o modo de articulação
de um computador que é dado num processo supostamente natural, mas que
só pode ser percebido por vias de articulação simbólica. Mas dado em função
do interesse da reprodução e da posse.
É claro que, uma vez esse narcisismo instalado – o sujeito reconhecer-
se na sua prole, transmitir os bens a essa repetição sua –, estamos diante daquilo
que é o mais difícil de dissolver. Talvez, a psicanálise tenha esta função precípua:
dissolver esse narcisismo. Esse narcisismo defende com unhas e dentes a
permanência desse estado de coisas, dando-nos a impressão de ser necessário,
e vai acrescentando obsessivamente, com apoio no superego, não por vias de
Lei, as regras, a ponto de, para o sujeito que nasce naquela agressividade que o
caracteriza – no lugar onde estão situados os discursos, essas falas todas –,
impregnado de tal modo dos enunciados, o que se obscurece mais é a função
legal desse fenômeno. O sujeito fica embotado de pressão superegóica.

139
Psicanálise & Polética

Vamos supor que, no interesse de uma hegemonia genital, e para se


distribuírem as séries de modo que elas nunca tenham retorno, se propusesse a
interdição do incesto, e, para isto, bastasse garantir, por exemplo, o incesto
com a mãe como proibido, ou mesmo com a irmã. Mas essa interdição logo
começa a permear todas as funções cotidianas do sujeito, sobretudo quanto à
reprodução.
Mas tomemos incestos impossíveis de saída. Estou falando de incesto
do ponto de vista estruturador das ordens de parentesco. Por exemplo, a relação
do pai com o filho, ou da mãe com a filha, é incesto? Como, se não há reprodução
em jogo? A coisa passa da ordem lógica, com a qual foi criada por um interesse
específico, para a ordem religiosa, para a obsessão.
Daí Freud insistir no Mal-Estar na Cultura, assim como a psica-
nálise na sua prática, que há que tentar demolir o superego para se chegar à
estrutura. O superego não deixa sacar que, por trás da sua bobagem, o que
interessa é a estrutura. Há que reduzir à função mínima, senão não se chega à
lógica das coisas. Isto fica em suspenso por enquanto. Isto foi apenas para
colocar uma pedrinha no sapato da questão.

* * *

Em função desse genital e desse genitivo é que me pergunto sobre as


possibilidades de distinção, na castração, de níveis diversos. Nesse momento
aí, vamos nos perguntar se é possível pensar na instalação da Lei fora da
interdição do incesto.
Quando fiz uma tentativa de leitura dos primeiros capítulos do Gênese,
foi no sentido de mostrar que, parece, podemos encontrar a Lei se fundando
no episódio de Abel e Caim. Isto sem que ali haja algo a ver, necessariamente,
com interdição do incesto. Há que haver é uma relação de cada um deles
com o Pai, com Deus-Pai, em função de um desejo que está em jogo. O
desejo ali é do reconhecimento de Deus-Pai. É claro que em função dos
objetos que foram colocados lá... Também frisei como certos autores colocam

140
O gene e tal

que o mito arcaico de Édipo não fala de incesto, fala de parricídio. Édipo se
casa com outra pessoa, não com a mãe, e o clima é o mesmo em função do
parricídio. O que está em jogo aí é a questão da existência do sujeito. Até
segunda ordem, existe função de acoplamento de fulano com sicrano e, como
mostra Lacan, da postura sexual do sujeito, ou seja, seu entendimento e opção
diante da diferença sexual. Mas não necessariamente incesto, enquanto
incesto tenha a ver com essa proibição que funda a regra de parentesco.
Eu diria – sem me aprofundar hoje – que é possível encontrarmos três
níveis na castração. O que interessa, na verdade, é a castração.
O primeiro nível – fazendo a ordem inversa –, o nível mais antigo, mais
radical, mais de base, é a castração enquanto proibição de totalização para
significar uma impossibilidade. Alguma coisa vai ser dita proibindo o impulso
de toda completa ligação. Não porque isto seja possível, mas justo porque é
impossível, ou seja, a proibição é dita, porque não se pode dizer o impossível. É
proibido grudar com a mãe, grudar com qualquer coisa, simplesmente porque
essa coisa não totaliza pois não é A COISA. É proibido dizer tudo porque não
se pode dizer tudo. É proibido dizer A Verdade porque ela não pode ser dita, é
impossível. Pode-se dizer alguma verdade, mas não toda. Este seria um nível
mais radical.
Num segundo nível, talvez, pudéssemos situar o complexo de Édipo
– excluindo daí, portanto, a interdição do incesto como fundadora do
parentesco – com “é proibido matar”, no caso, “matar o pai”. O que está
sendo dito nesta proibição? Posso dizer simplesmente que é proibido matar.
No complexo de Édipo é proibido matar o pai, em função da eliminação da
diferença diante da convergência de desejo. Ou seja, o mesmo objeto é
erigido em objeto de desejo por mais de um sujeito. Nessa convergência
vem a luta de prestígio e o impulso é de eliminar o outro e ficar com o objeto
só para si. Nisto está a assunção do parricídio no complexo de Édipo. É
criminoso Édipo matar o pai, sobretudo porque ele não quer admitir – talvez
na suposição de que o objeto possa completá-lo – que este objeto só é
desejável porque é desejado por alguém, se não, não o seria nem por ele. A

141
Psicanálise & Polética

tentativa de eliminar a diferença passa a ser a de eliminar o desejo do outro.


O que está em jogo, então, é a tentativa de eliminar a diferença, e suponho
que podemos situar a Lei neste nível.
Lacan, aliás, reduziu perfeitamente o complexo de Édipo, e abandonou
a teatralidade edipiana, como se pode ver em Scilicei 4, p. 14, no L’étourdit.
Apresentando as fórmulas quânticas da sexuação, levando em conta o complexo
de Édipo, ele diz: “É mesmo a essa lógica que se resume tudo que diz respeito
ao complexo de Édipo”. Tudo se reduz pura e simplesmente à lógica das fórmulas
quânticas da sexuação, ou seja, ao reconhecimento da diferença sexual que é,
em última instância, segundo esse tipo de pensamento, na verdade, o
reconhecimento da diferença, puramente.
E outro nível, o terceiro, que se apresenta na cultura como interdição
do incesto, e que eu ponho na conta de uma castração imaginarizada.
Imaginarizada pois que, já no nível anterior, há fundação de metáfora para
reconhecimento da diferença, há vigência do Nome do Pai, que é de instalação
divina. No terceiro nível trata-se não de produção de metáfora, mas de
congelamento numa metáfora que, praticamente, interessou. Recorro aí,
novamente, à questão da praticidade para Lacan, e ao Totem e Tabu, onde
se trata de uma proibição que existe para que a coisa não se desarvore. Uso
o verbo desarvorar fazendo uma referência a Deleuze/Guattari, no texto
chamado Rizoma, onde mostram essa obsessão na nossa cultura de tomar a
árvore como metáfora de tudo. Tudo menos desarvorar-se. E a árvore
genealógica não é senão a impossibilitação de qualquer confusão entre o
genital e o genitor. Então, trata-se dessa reposição constante de um
narcisismo arborescente.
Eu disse: referência paterna no nível divino. Se tomarmos aquele
mesmo Vocabulário de Émile Benveniste, quando ele trata do conceito de
paternidade, veremos como o autor chama atenção para o fato de que a
fundação mais arcaica que podemos elaborar em função disso, do termo
paternidade, exclui a paternidade por inteiro. Ele diz que o problema verdadeiro
é muito mais importante: pater, será que isto designa exclusivamente a

142
O gene e tal

paternidade física? O termo pater é pregnante no emprego mitológico, ele é


a qualificação permanente do Deus Supremo dos indo-europeus, figura
invocativa do nome divino de Júpiter. A própria origem do nome de Júpiter
vem de uma fórmula de invocação: Zeus Pater, Zeus Pai, Zópater, Júpiter.
Oh Deus Pai! Este é o único Nome do Pai possível. Nada no pensamento de
Lacan leva a pensar outra coisa. A área dessa alteração divina é bastante
vasta para que se possa, de direito, recortar o período indo-europeu como o
emprego mitológico desse Nome do Pai. Ora, nessa figuração original, a
relação de paternidade física está excluída. Estamos fora do parentesco
estrito. Pater não pode designar o pai, no sentido pessoal, e não se passa
facilmente, do ponto de vista linguístico, de uma a outra acepção. São duas
representações distintas e podem, segundo as línguas, mostrar-se irredutíveis
uma à outra.
Aí, Benveniste mostra uma série de classificações, a partir do indo-
europeu, para apontar que alguma coisa passou, sem nenhuma possibilidade de
articulação linguística, dessa referência paterna ao Nome do Pai enquanto tal,
que é a referência bíblica – não deixa de ser – para o genital, mas,
originariamente, são dois textos completamente diferentes, irredutíveis. Mais
do que isto, ele vai mostrar que o termo “irmão” é a mesma coisa. A fraternidade
se reporta ao Pai e existe um outro termo com várias correspondências em
outras línguas, que designa o filho da mãe, aquele que se genitaliza. Daí a
importância de Lacan ter pensado a articulação do Nome do Pai e mostrado
que ela funciona mesmo independentemente da referência a essa outra que
Benveniste citou como esse Papai do Céu.

* * *

Aquele que estaria no lugar do reprodutor, ou de ser responsável,


ali, pela criação do sujeito, e a paternidade. Na verdade, se o sujeito chega
a se referir ao Nome do Pai, e só há um, a esse ser que nunca chegou a
existir, porque sempre esteve morto, nenhuma paternidade do mundo funciona

143
Psicanálise & Polética

mais. Porque tudo cai numa cadeia. Eu diria mesmo que uma coisa de se
observar numa análise é o momento em que o pai real vira irmão.

28/ABR

144
Ainda o gene e tal

7
AINDA O GENE E TAL

Justo quando estamos falando de Psicanálise e Polética, e tratando


dessa questão da interdição do incesto, da formação da cultura, estão
acontecendo coisas interessantes. Trouxe, a título de ilustração, sem pretender
me deter muito, três acontecimentos jornalísticos.
Um trata de uma nova direita norte-americana, que se intitula, muito
apropriadamente, moral majority, maioria moral. Se quiserem se dar ao trabalho
de ler o artigo, verão como é interessante e como tem a ver com o que estamos
pretendendo abordar. Sobretudo, tem muito a ver com o Mal-Estar na Cultura,
de Freud.
Um outro acontecimento interessante. Não acreditem que costumo ler
as Seleções do Reader’s Digest, mas eu passava na banca e havia uma
publicidade tão grande, escrita assim: “Incesto, o derradeiro tabu”. Isto no
número de abril de 1981, páginas 47 a 50. Por cima da capa, uma sobrecapa
colada com letras ainda maiores: “Silenciar não ajuda – Incesto, o derradeiro
tabu”. E havia mais, um fato que a gente esquece: “mais de 30 milhões de
exemplares vendidos em 16 idiomas”. Pensei cá comigo assim: “Será que
alguém está pensando em abordar a questão do incesto como último tabu”? E
fui ler. É uma porcariazinha de quatro páginas, aonde se conta o caso de uma
menina de 12 anos, cujo pai passou da paquera ao ato. Ela, certamente, começou
a apresentar deficiências na escola – geralmente, os americanos, quando têm
problemas, apresentam deficiências na escola –, a professora desconfiou que

145
Psicanálise & Polética

havia algum problema, começou a conversar com ela, e ela acabou se abrindo.
Papo de psicóloga, contou aquela coisa toda... A coisa, então, tomou um caráter
psicopolicial e, naturalmente, eles foram tratados: o pai foi posto para fora de
casa, textualmente, para que Peggy, a garotinha, pudesse viver com sua mãe e
irmãos. Mas foi permitido ao pai continuar a trabalhar para poder sustentá-los,
o que é uma grande sacanagem. Descaradamente eles dizem isso assim, sem
a menor vergonha. Imediatamente, ele passou a se juntar aos “Pais Unidos”,
que é um grupo de ofensores das suas mulheres, que se encontram regularmente
para discutir os seus problemas e que agora possui 46 dependências em 15
estados norte-americanos. A coisa vai bem. É por isso que o Colégio Freudiano
é desse tamanhinho. O pai já apresentou 600 horas de serviço à comunidade,
em lugar da prisão, e por aí vai... Depois, temos as indicações dessa instituição,
com seus 28 programas na Califórnia, terra do nosso “amigo” , que está citado
no artigo sobre a moral majority, o chamado Reagan, e 18 outros estados, 200
programas de tele-educação... É aquele negócio, aí temos que lembrar do nosso
amigo Michel Foucault, quando fala dessa obrigatoriedade de confessar... E o
conselho final: “Não escondam isso, vocês não estão sozinhos e podem ser
ajudados”. É claro que não estão sozinhos. Quem quiser, pode ir lá. Existe toda
uma armadura, além das institucionais e normais, tem todo um aparelho, toda
essa coisa linda, para tentar não coibir, mas tentar ajudar, e curar essas coisas.
O outro caso foi em Minas, negócio de brasileiro – vocês viram n’O
Globo? Apareceu Diadorim, afinal, Guimarães Rosa já tinha escrito esta história,
antes de ela acontecer. Uma moça, filha de rico fazendeiro, usando os poderes,
talvez, que ela tem, foi na cidade vizinha, fez outro registro com o nome no
masculino, casou com outra moça, na Igreja. Elas têm 10 anos de casadas e
têm um filho. Tudo direitinho. Certamente deve ter havido uma grande conivência
para tudo isso acontecer, porque a família tinha testemunha, tinha tudo... e, a
certa altura, a denúncia aparece, etc. Ela confessou que o filho era de um
pedreiro que lá passou... Ela conseguiu um espermatozóide emprestado e, agora,
estão fazendo um escândalo. Interessante que no primeiro artigo de jornal que
saiu, a coisa estava assim meio sobre celeuma jurídica. Diz o jornal que o

146
Ainda o gene e tal

código civil não prevê o caso. Vejam só que foraclusão. Várias proibições são
previstas e esqueceram que podiam dar esse golpe. Não passou pela cabeça
dos redatores justamente porque não deve ter passado outra coisa. A diferença
sexual deve ter sido recalcada. Nos impedimentos do artigo 208 não há menção
a casamento de pessoas do mesmo sexo. Esqueceram. E a moça, que é a tal
da José Dolores Durões, fazendeiro, agora está sendo processado, etc. Há um
processo de anulação do casamento. Os juízes e os advogados começaram a
brigar porque foi o pai dela quem pediu a anulação do casamento. Certamente,
ele estava careca de saber que não era o caso. Ele pediu a anulação para o
filho dela não herdar a fazenda, porque é filho da outra... Isto dez anos depois.
É ilegal porque não foi uma das partes que pediu. O casamento é feito entre as
partes, o juiz é testemunha. Agora o juiz está querendo botar todo mundo na
cadeia, os vizinhos, o gato, o papagaio, etc. O engraçado é que o advogado de
defesa sentiu-se tão pressionado que, de repente, deu o parecer que a promotoria
estava com toda a razão. Ou seja, ele não sabe se comportar nem
profissionalmente.
Quer dizer, começam a pintar coisas interessantíssimas que a gente
precisava pensar. Aí retornamos ao tal do incesto, e pensando como minoria,
certamente em contraposição àquela indecência que é a tal da moral majority...

* * *

Gostaria de retomar de onde paramos da vez anterior, ou seja: a


possibilidade de destrinchar no tal complexo de Édipo, na tal proibição do incesto,
etc., alguns níveis que parecem estar imbricados sem muita distinção. Isto não
significa que estamos descobrindo nada de muito novo. A meu ver, Lacan já
nos deu quase todas as dicas a respeito. Por exemplo, de que o complexo de
Édipo é o complexo de castração. No L’Étourdit, que é um dos textos mais
densos que Lacan escreveu – não faz parte dos Écrits porque é posterior –
tratando das fórmulas apelidadas quânticas da sexuação, que ele estabeleceu
sobre a diferença sexual, ele diz, como já vimos, que “é mesmo a esta lógica

147
Psicanálise & Polética

que se resume tudo o que diz respeito ao complexo de Édipo”. Podemos, então,
dizer que se o complexo de Édipo é o complexo da castração, trata-se de
pensar a castração. E, se tudo que é do complexo de Édipo, que é do complexo
da castração, se resume na lógica da diferença sexual, com referência nessas
fórmulas quânticas, é isto que tem que ser pensado.
Ao mesmo tempo, uma referenciazinha à questão da Lei. Nos Écrits,
p. 852, coisa antiga, Lacan diz: “A Lei está a serviço do desejo que ela institui
pela interdição do incesto”. A Lei, então, está imbricada no complexo de
castração e, portanto, em última instância, segundo o percurso de Lacan, na
questão central da psicanálise, por onde tudo passa, que é a questão da diferença
sexual. Aí vem a questão da diferença entre amor e desejo, referenciada à
diferença sexual. Isto num texto de Ornicar?, 19, p. 9: “É quando um homem
é mulher que ele ama, quer dizer, no momento em que ele aspira por algo que
é seu objeto. Por outro lado, é enquanto homem que ele deseja, isto é, que ele
se suporta por algo que se chama propriamente tesão”, bander em francês.
Noutro lugar, falando de uma postura em final de análise, diz que é quando o
sujeito assumiria seu sexo. Assumir seu sexo é, para um homem, como está
definido nas fórmulas quânticas, reconhecer que há mulheres, e, para uma mu-
lher, reconhecer que há homens. Então, simplesmente, para um homem
reconhecer que há mulheres, é o sujeito ter-se situado numa postura masculina
e reconhecer a diferença, e vice-versamente.
É quando um homem é mulher que ele ama. Homem, aqui, no sentido
da espécie – a espécie se define pelo masculino. Quer dizer, no momento
em que ele aspira por algo que é seu objeto, ele é mulher. Uma coisa é
bander, ter tesão por objeto, outra, é viver em aspiração por ele. Aspirar,
lembra furo.
Com referência à interdição do incesto, e do ponto de vista da Lei, em
Ornicar?, 11, p. 7, Lacan chama a atenção para que “a Lei não tem
absolutamente nada a ver com as leis do mundo real, é simplesmente a lei do
amor, quer dizer” – aí temos que falar em francês – “la père-version” – a
versão paterna, a pater versão que, em francês, soa perversion, perversão.

148
Ainda o gene e tal

O que quer dizer isso tudo? Como podemos tentar juntar esses
caquinhos? Peço-lhes que me acompanhem – criticamente, de preferência –
num começo de tentativa de distinguir momentos imbricados no complexo de
Édipo e na castração.
Em algum lugar – nos Écrits, se não me engano –, falando da questão
do surgimento desse desejo que é garantido pela Lei mediante a proibição do
incesto, Lacan diz que “o gozo deve ser proibido no plano do mito para ser
permitido no plano da realidade cotidiana”, estou citando de cabeça. Essa
proibição é um embargo ao gozo. Ele aparece miticamente como embargado
para que, no plano do cotidiano, possa ser diluído. Está mal citado, mas acho
que a referência, aí, no caso, é que o que o mito apresenta como embargo,
como proibição, é o que possibilita a produção de gozo, naturalmente que
fálico, no cotidiano. Esta citação antiga de Lacan é de antes da referenciação
ao gozo do Outro. A coisa fica, mesmo, superada, pois no outro texto dos
Écrits, p. 852, que citei há pouco, a Lei está a serviço do desejo que ela
institui pela interdição do incesto. Em suma, poderíamos dizer que essa coisa
que é fundamental, nuclear, em toda a estruturação da psicanálise, em todo
acontecimento psicanalítico, não é senão, em última instância, a vigência
simbólica da diferença sexual, a qual é regente, digamos assim, de toda e
qual-quer diferença, no plano freudiano. Quer dizer, o reconhecimento da
diferença no plano sexual, como regente de toda e qualquer diferença, e o não
reconhecimento da diferença como homossexualização generalizada e,
portanto, uma espécie de assassínio da diferença. Em última instância, temos,
então, a diferença sexual como regente da diferença, contendo o que seja
reconhecido pelo sujeito. E nisto se resumiria o que é todo o engrazamento do
complexo de castração.

* * *

O tal complexo de Édipo, que aparece indefectivelmente nos falantes


culturais, que são os que nós temos, naturalmente que nodula, amarra tudo isso

149
Psicanálise & Polética

na diferença: a diferença sexual, a castração simbólica enquanto tal, a introdução


da Lei e a proibição do incesto. Será que podemos tentar separar esses três
níveis, esses três momentos, e verificar que – se chamarmos isso de um conjunto
da diferença sexual, uma espécie de conjunto significante portador do núcleo
psicanalítico – talvez essas outras coisas fossem todas parciárias, subconjuntos
desse conjunto, e não necessárias? Talvez a chamada proibição do incesto
seja um modo de aparecimento não necessário da diferença sexual. Assim
como há uma memória encobridora, pode haver uma proibição encobridora.
O que sempre comparece nos textos de Freud, e no divã, é o complexo
de Édipo entrelaçado à castração. Mas, se há um nível lógico fundamental,
uma formalização possível do acontecimento, este nível da castração é
subjugante do outro. O anedótico que vai entrar aí é o subjugado. A coisa,
entretanto, comparece primeiro pelo anedotário. Não fosse assim, Freud jamais
descobriria que se estava realizando o complexo de Édipo, pois o que ele estava
procurando é o que se formaliza por trás daquilo. O anedotário, então, é que
está subjugado ao acontecimento formal. Se não, não adiantaria nada.
Lacan disse que foi ele quem inventou o simbólico. Ele disse também,
por outro lado, que quando se lê Freud, não se consegue distinguir real,
simbólico e imaginário, numa primeira leitura. Isto porque Freud, lidando direto
com o fenômeno que lhe aparecia, apresentava um nó a quatro: esses três
entrelaçados e um quarto nó, o do sintoma. Mas é preciso saber distinguir o
que está ali entrelaçado.
Num dos Seminários mais recentes (1977) de Lacan, Vers un
signlficant nouveau, publicado em Ornicar?, 17/18, p. 12-13, ele diz: “Um
chamado Rodney Needham” – que organizou um livro intitulado La Parenté
en Question –, “que não é o Needham que se ocupou com tanto cuidado da
ciência chinesa, imagina estar fazendo melhor do que os outros, observando,
com toda razão, aliás” – atenção para esse detalhezinho: com toda razão –,
“que o parentesco deve ser posto em questão pela razão de que comporta nos
fatos uma variedade maior do que” – é a isso que ele se refere – “os analisandos
dizem. Mas o que resta muito evidente” – chocante, como diriam hoje – “é que

150
Ainda o gene e tal

os analisandos, eles, não falam senão disso. A observação incontestável de que


o parentesco tem valores diferentes em diferentes culturas” – e aí chegamos
ao ponto das culturas – “não impede que sejam repisadas pelos analisandos as
suas relações com seus pais” – parents, que significa também parentes –,
“aliás, próximos, é um fato que o analista tem que suportar. Não há nenhum
exemplo de que o analisando note a especificidade que diferencia sua relação
particular aos seus parentes [pais] mais ou menos imediatos. O fato de que ele
não fala senão disto, tapa todas as nuances de sua relação específica”. Ele
está mostrando que o analisando sempre fala disso, e sem mostrar nuances de
cultura para cultura, que era a crítica do Needham. Lacan diz que é “com
razão” que se deve fazer a crítica disto, mas não é essa a crítica. “De sorte
que O Parentesco em Questão – obra patrocinada por esse Needham –
finalmente valoriza esse fato primordial que” – e é isso que Lacan quer enfatizar
– “é da alíngua que se trata, que o analisando só fala disso porque seus parentes
próximos lhe ensinaram alíngua”. Foi reduzida a questão do parentesco à
decantação, à deposição sobre o sujeito de uma língua. Quer dizer, aquilo vem
na alíngua. Não é a questão dos pais que interessa. É a questão da alíngua. “A
função da verdade é, aqui, de algum modo, amortecida por algo de prevalente;
seria preciso dizer que a cultura está tamponada, amortecida, e que, nessa
ocasião, far-se-ia melhor, talvez, evocar a metáfora.” Vejam, então, como isto
é rigoroso: Lacan disse que nesse acontecimento de o analisando falar sem
distinguir diferenças, há apenas essa relação que não é senão uma transmissão
que vem por alíngua; e segue dizendo que a função verdade está ainda
obscurecida, a cultura não comparece nesse nível, e seria talvez melhor evocar
a questão da metáfora.
E segue: “– já que ‘cultura’ é também uma metáfora, aquela de agri
do mesmo nome”. Foi exatamente daqui que tirei a dica do Neolítico, que,
para mim, significa: a cultura é a metáfora de agri. A cultura é uma metáfora
de dimensão neolítica. Lacan não diz agricultura. “Seria preciso substituir a
agri em questão pelo termo de bouillon de culture.” Aí está uma palavra
difícil de traduzir: bouillon, que é um caldo, ao mesmo tempo que carrega uma

151
Psicanálise & Polética

coisa que caldo em português não diz, que é a fervura, a borbulhância, ou seja,
é um caldo quente e borbulhante. Bouillon é uma espécie de sopa “lavoisier”
fervendo. Em português mal traduzido, então, seria, continua Lacan: “uma
caldo-cultura; seria melhor chamar cultura de um caldo de linguagem”. Seria,
digamos, a “cozido-cultura” em lugar de agricultura e isto daria alguma coisa
completamente diferente da cultura. Está aí toda a dica de que não é por essa
via em que o moço, o Needham, está indo, de diferença de cultura para cultura,
mas, sim, a cultura posta em questão, como, nada mais, nada menos, metáfora.
Ou seja, sintoma, conforme definido no rigor da teoria lacaniana. Sintoma é
metáfora. Então, quando estamos vivendo na cultura, seja ela qual for – e não
pelo fato de haver diferença cultural, mas pelo fato de haver cultura –, estamos
metidos num certo sintoma. E sintoma tem data, não é algo que existiu sempre.
Uma metáfora é algo localizado. Metáfora e significado são a mesma
coisa. Não há significado no sentido saussureano, o máximo que podemos ter
é significado no sentido lacaniano: metáfora produzida num certo momento,
passagem a certa significação. No que ela é produzida é desvelamento de
sentido, mas no que é um produto, é ocultamento de significante. São as duas
faces da coisa, ou a mesma face ambígua. Quando perde o sentido, salta o
significante tresloucado, em busca de novas e possíveis amarrações. Por isso
é rico aquele pedacinho de texto: estamos metidos num sintoma chamado
agricultura, e que chamo de neolítico. Então, não fará parte desse sintoma –
chamado neolítico, chamado agricultura, chamado cultura, em última instância,
como metáfora de agri –, não será o núcleo disso, dessa metáfora, o Édipo?
Não o Édipo por inteiro – porque Édipo é uma grande metáfora para várias
metaforazinhas –, mas essa metáfora chamada proibição do incesto. Proibição
do incesto é estrutural, ou é metáfora? Se é estrutural, é condição sine qua
non do falante. Se é metáfora, se é sintoma, é um aparelho de significância,
produzindo significação num certo prazo.
O sintoma é inaugural do falante, instala o falante, mas não tem que
ser esse. Não estou dizendo que a interdição do incesto é o sintoma, ela é um
sintoma. É um, como uma mulher. Uma mulher é um sintoma. Existem sintomas,

152
Ainda o gene e tal

não o sintoma. Se você mantém um sintoma, sabe o que fazer com ele e sabe,
sobretudo, dizê-lo, o que acontece? Se tenho uma metáfora, chamada sintoma,
sobre a qual eu me esteio, e, de repente, sei fazer com ela, no sentido de
savoir-faire, o que posso fazer, senão continuar a metaforizar... e, portanto,
dissolver? Dissolver não significa acabar com a possibilidade de metáfora.
Lacan diz: dissolver no real. O real é isso: o impossível à espera de ser dito.
Não é esperança, é attendre. Consigo ler em Lacan uma denúncia da cultura,
esta sendo pura metáfora. Tanto é que a ordem de parentesco, o sofrimento
edipiano, etc., reduzido a tudo isso que vimos ser reduzido e, aqui, no caso, no
seu surgimento em divã, o próprio anedotário, não é senão exposição de alíngua,
ou seja, de sintoma.
Nada impede que o superego continue, como coloca Freud, considerado
como herdeiro do complexo de Édipo. Isto na medida em que possamos distinguir
essa metáfora da estrutura que a garante, pois existe uma estrutura que garante
a metáfora. Metáfora não aparece sozinha. Vamos escalonar isso. Há.
primeiramente, garantia estrutural do surgimento da Lei por alguma via que vai
criar um universal possível, dizível, nem que seja dizer “não” ao gozo fálico,
criando castração, nesse nível abstrato. Em seguida, a conteudização, a
sintomatização disso num regime chamado edipiano. Aí eu poderia dizer que o
complexo de Édipo é herdeiro da Lei, se seguir o raciocínio que estou seguindo.
Só que podia ser o complexo de Édipo quanto podia ser outro, pela mesma Lei.
Qualquer outra invenção seria plausível, desde que estivesse conforme com a
Lei. Em última instância, qual é a Lei? A relação sexual é impossível, a diferença
existe, o real é impossível. Não está proibido aí de transar com a mãe, mas isso
tem que ser dito de algum modo. A Lei é essa impossível totalização, impossível
relação sexual, etc., e isso se quantifica, se conteudiza, num anedotário chamado
Édipo. O superego passa a ser o herdeiro do Édipo. O superego não é Lei, de
modo algum. Ele é uma espécie de parasita da Lei.
O senso de culpa, como Freud coloca, é senso de falta. Não é senso
de exigência de punição no nível da consciência. É aquilo que comparece,
como estrutura, no regime da falta, de pura dívida simbólica, o que vai ser

153
Psicanálise & Polética

fagocitado pelo superego e outras estruturas, para fundar o aparelho de


consciência e toda a estrutura da neurose obsessiva. O que vem primeiro é o
regime de fundação da falta. A castração não é senão reconhecimento disso,
puramente, e isso legisla a possibilidade de eu inventar sintomaticamente. Quer
dizer, de metaforicamente inserir isso num contexto de língua, digamos, onde
isto é narrativa tipo mito, coisa dessa ordem, complexo de Édipo... A culpa é
nada mais, nada menos que efeito da falta. A fagocitose disso é que vai dar
consciência, de culpa, que é estrutura obsessiva. O tal trognon, como Lacan
chama, e que gosto de traduzir por “cagalhão”, vai pintar ali dentro: coloco o
anedótico edipiano como uma metáfora possível, legal. Não estou dizendo que
o complexo de Édipo é legal, nem que a interdição do incesto é ilegal. Ela não
é fora da Lei, simplesmente. Ela é um dos enunciados possíveis.
Existem metáforas e metáforas. Existem metáforas mais bem
construídas poeticamente do que outras. Existem até metáforas mais
abrangentes do que outras. Só me pergunto: por que essa metáfora tão careta,
essa “má poesia”, o Édipo? Se não vejamos, você está fazendo doce, aqueles
docinhos que a gente enrola na mão, brigadeiro, e você edipianiza, dá aquele
anedotário da receita. Aí, dá aquele trognon dentro, aquele negociozinho
condensado. Às vezes você cospe fora porque está ruim de gosto... Por que
esse lugar de cristalização pintando assim? Por que pinta esse negócio chamado
superego aí? Por pressão externa, disse Freud. Se o movimento intersubjetivo,
mediante uma palavra qualquer, vai situar o sujeito, e vai – mal dizendo –
“transmitir” ou “imprimir” a Lei, isso vem por um anedotário, e esse anedotário
é fartamente recomposto com uma sintomática da mais grave, de mil falas,
neuróticas, etc. Ora, qual é a pressão que o sujeito sente de fora? É uma
pressão com relação a enunciados dados, sobre comportamentos, etc., dentro
da qual, eventualmente, está a interdição, mas essa pressão – que quero chamar,
agora, de repressão – não é um recalque. Há uma distinção muito grande. O
recalque está instalado para que qualquer coisa possa funcionar em nível de
inserção nesse campo todo, mas o que vem como superego é todo um construto.
O nome está claro em Freud: superego quer dizer um egão, o alterego, o grande

154
Ainda o gene e tal

ego externo. Ou seja, um objetão imaginário, o qual, imaginariamente, reprime,


em função de enunciados interessados em passar os conteúdos, produzindo
em cada relação intersubjetiva, mesmo que isso tenha a ver com a lei enquanto
proibição, um grande imaginário de “podes” e “não-podes”. Isto é que vai
cristalizar o tal superego.
As pessoas, sem se darem conta de que estão agindo no segundo
nível, chamado edipiano, estão simplesmente no movimento dos enunciados.
Como elas constroem esse objeto? Por essa via, puramente repressiva, de
apresentação de enunciados válidos ou não-válidos. Nesse sentido, encontramos
tanto em Freud, quanto em Lacan: “Cuidado com o superego, esse cara não
presta!”. Se prestasse, o ego também prestava. Daí que, necessariamente,
uma análise de reforço de ego acaba sendo uma análise de reforço de superego.
O imaginário da cultura é muito pregnante pelo mesmo motivo que se
encontra no narcisismo de cada sujeito uma forte predominância imaginária.
Afinal de contas, a chamada cultura que se absorve, se assume, etc., passa
a ser uma extensão corporal – que me desculpe o cadáver de McLuhan –
muito grande, mesmo que pareça, digamos, adjacências, de sua construção
egóica. Como não teria importância? O que é o homem culto? Ele vai para a
Academia Brasileira de Letras, o ego vai ficando cada vez maior. Se o ego não
crescesse no ritmo do superego, não se entrava nos lugares onde se indicam os
grandes egos.
Por isso essa coisa é estranha, esse objeto não identificado, esse trognon
aí, porque, de fato, ele não teria modo de surgimento, se não estivesse embutido
dentro desse conjunto da diferença sexual, que estou colocando como o núcleo da
psicanálise. Assim como um recalque secundário só apareceria com um recalque
primário. Quer dizer, o superego tem possibilidade de dizer “eu sou legal”, mas, de
que modo? Ora, toda e qualquer interdição que se pronunciar carrega a estrutura
da interdição, o que nada tem a ver com a proliferação de congelamentos
imaginários com exigência de inserção de tal sintoma. O que imediatamente vem
na chamada consciência da nossa partezinha obsessiva: “Mas como é que vou
ficar sem o sintoma?”. Sim, mas outro não serve? Tem que ser esse?

155
Psicanálise & Polética

* * *

Continuemos então, na possibilidade de distinguir esses níveis no Édipo.


Lacan reforça mais adiante no mesmo texto, p. 13-14: “É um fato que
as línguas [les langues] – que escrevo l’ élangue – se esforçam longamente
em se traduzir uma na outra, mas que o único saber resta sendo o saber das
línguas. O parentesco não se traduz em fato” – atenção, isso é importantíssimo:
o parentesco não se traduz em fato, em que pese a consangüinidade de Lévi-
Strauss –, “mas só tem de comum o seguinte, que os analisandos sempre falam
dele”. Por que falam? Porque estão nele, estão nessa, não são essa. Se o
sintoma transmitido é este, dificilmente poderia pintar outro. Evidentemente
que pode, mesmo sendo este o transmitido, mas genericamente, é este que
passa, ou, pelo menos, é este que a cultura diz – o que significa que é este que
o sujeito em particular tem a dizer.
Lacan diz que o único saber que há é o saber das línguas. Todo saber
é regulado pelas línguas – as línguas, o sintoma, enquanto línguas que se falam
realmente. Não há outro saber senão este. Por mais abstrato e matemizado
que seja, por exemplo, um tratado de matemática, em última instância, para
falar, terá que apelar para uma língua, para dizer o que está lá. É importante
para ele que lá esteja dito isto, porque a estrutura de parentesco se reduz a
essa deposição, a esse depósito sintomático chamado alíngua. Mas não é porque
eu me esforço por transmitir um sintoma, que ele vai pegar. Se não, a pedagogia
seria rainha das ciências: transmitiu, colou!
Retomemos o nosso brinquedo: a possibilidade de pensarmos o Édipo
como subdito a essa coisa que é fundamental, que é o teorema da castração, o
qual não é senão a diferença enquanto tal, ou seja, a diferença sexual. Isto, até
segunda ordem, para o pensamento psicanalítico, é o que fundamenta, condição
sine qua non da existência do falante como tal.
Será que posso, pelo menos por enquanto, pensar dois momentos que
estão ditos no Édipo? Ou seja, o que se diz enquanto estrutura suficiente para
castração, e o que se diz enquanto sintomatização, quer dizer, metaforização

156
Ainda o gene e tal

especial, particular. Nesse primeiro momento, me pergunto: não entra aí a Lei,


enquanto pura produção de metáfora? Não esta ou aquela metáfora, mas
enquanto produção de metáfora, portanto, vigência do Nome do Pai – que é
um termo da teoria psicanalítica, mas pode ser o Nome do x. Digamos que
existe aí uma fundação de inter-subjetividade. É nisso que se funda a
possibilidade de reconhecimento do Outro, portanto, de fazer vigorar a Lei de
“não matarás”, ou seja, “não destruirás a diferença por ser diferente”. É a
“transação” inter-subjetiva, já que a relação não existe. No segundo tempo é
que tenho a proibição do incesto que é, ela sim, fundação da cultura. A cultura
se fundaria num modo particular, num sintoma particular de dizer a possibilidade
do vigor da Lei. Aí é que está o genital, o genitivo, o esquecimento de botar na
Lei que o homem pode se casar com homem e mulher pode se casar com
mulher, se os dois se distraírem. É uma espécie de foraclusão. Aqui é que se
funda a ordem do parentesco. Já o Nome do Pai do primeiro momento é como
está no Velho Testamento e como está equacionado por Lacan: é referência
divina. Esta Lei nada tem a ver com as leis, as regras. Édipo, por sua vez, é um
enunciado legal que fundou a cultura, e não a Lei enquanto tal. Ele é metáfora
da Lei, porque a Lei não consegue se dizer. Como se dizer a interdição sem
dizer o enunciado? É proibido o quê? Aqui, neste caso, praticar o incesto.
Nesse segundo momento, gostaria de falar do recalcamento da diferença
enquanto tal, na medida em que ela aparece metaforicamente como diferença
disso com aquilo. É o lugar onde se dá o recalque imaginário.
Então, um significante que nunca vai se achar, foi metaforizado como:
“É proibido”. Esse significante é outra vez metaforizado como: “casar com a
mãe”. Só que este “é proibido” primeiro, não é proibido, é alguma coisa que
não se soube dizer ainda. Como é que se diz a Lei enquanto tal? É a questão
que se delonga na psicanálise, de como instalar esse terceiro, sem ser nesse
anedotário do Édipo, da proibição do incesto. É preciso muita prática do discurso
analítico para poder tirar todo esse imaginário cultural que está na nossa frente,
para vazar isso e sair do outro lado.
Vamos esquematizar um pouquinho, tipo reprodução, consangüinidade:

157
Psicanálise & Polética

Papai, mamãe, trepou, nasceu neném. É uma configuração tipo reprodutiva,


onde estabeleci a questão em nível de parentesco.

“Papai” vai funcionar como terceiro, cortar essa tendência coagulante entre
esses dois, etc., e, então, está montado o quadro do Édipo. Se tirarmos esses
nomes e pusermos letras, quaisquer que sejam, A, B e C, dará no mesmo.

Está aí uma relação inter-subjetiva que age como sempre.


Aí, critico o termo creodo que utilizei. Ele é ruim, pois creodo quer
dizer que há um caminho necessário. Ou seja, tenho um labirinto, desses
que vêm nas revistinhas para a gente cobrir, e que, geralmente, só apresentam
um caminho possível. Um creodo é isso: só há um caminho possível para
chegar de A a B. A cultura não é bem um creodo. Se fosse sempre se
passaria por ela, seria um universal. Usei mal o termo querendo fazer boa
metáfora, mas foi ruim. Prefiro voltar a termos antigos. É inclinação, no
sentido orográfico: a água vai pelo caminho em que o ângulo seja mais fácil.
Ora, nada mais fácil do que copiar a imagem. Então, é possível que por
inclinação – como se diria nos velhos tempos, o que, naturalmente, não quer
dizer coisa nenhuma – o homem, o ser falante, teria caído nessa porque era
mais fácil: “Vamos organizar esta zorra, copiemos o imaginário!”. Acontece
que o simbólico fica cada vez mais rebelde. A invenção das máquinas, essas
coisas todas que aparecem recentemente, impõem uma certa pressão
simbólica, queiramos ou não. Os computadores irritam, não porque, como
nos filmezinhos de science-fiction, viram monstrinhos, mas porque
simbolizam demais, numeram e simbolizam demais. Então, há que
imaginarizar o computador do monstrinho, ou seja, é a re-imaginarização de
uma coisa que está fazendo uma pressão simbólica. Será que preciso de um

158
Ainda o gene e tal

computador tão mixuruca, tipo árvore de parentesco, para organizar a zorra


de hoje? Esta é a questão.

* * *

Gostaria de continuar, implicando com esses dois níveis. Resumindo o


quadro: o complexo de Édipo que Freud descobriu – porque não podia descobrir
outra coisa, estava lá – até hoje comparece no divã, consegue, de modo mítico,
expor a instância legal, expor a interdição do incesto como sintoma que porta
essa instância legal, consegue indicar a diferença sexual, indicar a castração,
mas esses dois níveis são absolutamente distintos.
Há, num primeiro nível, a introdução da Lei com referência ao Nome
do Pai, que é diferente de referência paterna que é, no segundo nível, referência
a essa instância terceira que funciona nesse quadro segundo essa narrativa.
Essa narrativa não se chama Édipo, chama-se “proibição do incesto”. Essa
narrativa é o modo metafórico de apresentação do sintoma, de instalação,
localização da Lei. Seria uma espécie de S1 da cultura. O que é o S1 para o
sujeito? É o modo de instalação significante dele, contingente. Estou me per-
guntando, é uma grave questão: a proibição do incesto, é ela o S1 da cultura? É
ela a localização do traço unário na cultura? Estou distinguindo, dentro da
fundação de um S1, o movimento de intervenção do Nome do Pai, produtor de
metáfora e, em seguida, o modo de instalação, porque isso tem que ser dito de
algum modo como enunciado. Há dois movimentos na produção de um S1: a
intervenção do Nome do Pai enquanto tal em pura abstração e a queda disso
num campo agri-cultural, no caso, ou agrícola.
Dando um salto, não estará surgindo por aí uma sintomática outra que
pode pegar de sopetão a cultura? A árvore do parentesco anda desmoralizada,
e tenho a impressão de que vai brotando uma sintomática nova. Se não, vejamos,
para se manter a eminência, o vigor e a supremacia de um enunciado, é preciso
um nível de redundância extremamente forte. Acontece, por exemplo, que no
campo da ciência, de uma determinada teoria científica, consegue-se redundar

159
Psicanálise & Polética

muito bem, mas não se tem força suficiente para não ser, daqui a pouco, invadida
por outra. Essa metáfora chamada cultura tem tido uma força de redundância
extrema porque tem esteios fortíssimos em toda função narcísica, em toda
essa inclinação de que falei. Entretanto, algo está acontecendo por aí, com
uma invasão simbólica cada vez mais fracionante, que vem tirando, mesmo
com a permanência, digamos, legal, no sentido jurídico, essa figura. Os
comportamentos a estão engolindo. É aquilo que Lacan diz: a agri-cultura está
meio desmoralizada, o bouillon é que está fervendo cada vez mais. Não acho
que eu esteja dando nenhum passo de vanguarda, estou me perguntando como
se pode pensar esta zorra. Porque a zorra já pintou e a cultura não tem se
sustentado enquanto tal em seus aspectos mais superficiais. Estaria me sentindo
delirante se, simplesmente, estivesse inventando esta questão. Só me permito
estar falando disto porque é a maneira que suponho ter para interpretar algo
que estou escutando, algo que passa pelos meus ouvidos, pela minha escuta da
cultura. Não estou supondo, de modo algum, que o meu analisando vá fazer
isto ou aquilo. O que parece é que ele está falando de um troço assim e esse
enunciado não se aguentaria, num determinado prazo a não ser por terrorismo.
Terrorismo de Estado, terrorismo de cultura, não terrorismo tipo vagabundo,
desse que atira no João Paulo... E qual seria o outro Estado possível? Não
faço a menor idéia. Se soubesse, não estava contando a vocês. Eu simplesmente
me espanto com esta zorra, e suponho que é por aqui a reflexão.
Lacan diz que o racismo vem do futuro. Isto sem nenhum otimismo
quanto ao que vai acontecer para frente, e a gente fica embananado com esta
frase. O que me ocorre no momento é supor, por exemplo, que, se não se cai
no conto da cultura, se a coisa começa a fracionar, por exigência ou necessidade
de interseção de enunciados, a coisa pode se exacerbar em núcleos muito
diversos, e fundando um certo racismo, que não é senão uma repetição discursiva.
Racismo é um discurso brigando com outro. É um discurso se supondo
fundamental. O que me parece, assim de longe, que me chega a longa distância,
é que, talvez, se esteja atravessando uma barra em que isto impera, mas não
está conseguindo governar. Reina, mas não governa. Dá para perceber isto na

160
Ainda o gene e tal

zorra. Aí teremos que pegar material em jornal, cinema, televisão... As pessoas


estão pensando em lutas partidárias, que são reflexos de lutas de discursinhos
isolados, etc., quando, na verdade, isto aqui talvez esteja em ponto de ebulição,
quer dizer, vai virar bouillon. Como passar de agricultura para a sem-cultura,
para o caldo?
Por exemplo, um Gilles Deleuze... aponto no seu texto que ele embroma.
Embroma e cai nessa da cultura, pois não consegue sair. Se não vejamos seu
último livro. Mille Plateaux, p. 134, onde ele dá a volta e estabelece um universal,
quase idêntico ao que propus aqui. Vejam bem, metaforizando, a distância que
existe entre Deleuze e Lacan é, ou melhor não é, mas faz de conta, a mesma
que existe entre um politeísmo e um monoteísmo. Lacan é monoteísta e Deleuze
é politeísta. Desconfio que todo politeísmo acaba em nazismo, por mais boa
vontade que tenha, pois deixa de fazer referência a Uma Lei. Posso ter essa
ebulição de metaforinhas isoladas – é aonde quero chegar aqui no meu Seminário,
àquilo que gosto de dizer que é a diferocracia –, quinhentas mil ebulições,
desde que a referência não seja esquecida. Essas ebulições ocultam mais
uma vez isso que será a zorra, que tem sido. E lá nessa página, vemos como
Deleuze usa os termos de maioria (como citei no início, de moral majority) e
minoria. Ele diz que é preciso partir para minorias cada vez menores. O conceito
de minoria é radical em oposição ao conceito de maioria. Aliás, não é nem
mesmo uma oposição, pois a maioria, para ele, é um enunciado da ordenação,
uma ordem que vier. As minorias são brotos, são articuladas no sentido de
sintomático, religioso. Estou aí de pleno acordo, só que quando ele vai atingindo
esse fracionamento das minorias, vai precisar de um termo que recai na cultura.
Ele diz que a minoria, em seu fracionamento, em sua divisão extrema, funda,
em última instância, um universal. Caiu lá. Quer dizer, qualquer minoria tem
como universal a aproximação disso, ser minoria, ser particularidade. Não estou
dizendo a mesma coisa quando falo em diferocracia, que é aonde quero chegar
e que é, exatamente, a possibilidade dessa ebulição, de um respeito recíproco
de zil possibilidades de articulações sintomáticas. Esse universal não é efeito
disso não. A diferença é que ele acha que esse universal pinta como efeito,

161
Psicanálise & Polética

enquanto que eu quero supor, com Lacan, que ele é estrutural. Como bom
monoteísta, fico com Lacan. Ele está dizendo que esses surgimentos todos
aparecem e são denunciados ali como mera repetição de um pensamento velho,
porque, afinal de contas, é velho. Afinal, se é isso que a gente está aqui
articulando, é apenas uma metáfora.
O que está como uma dispersão muito grande, o fato de estarmos
nesse caminho, como esquecimento do primeiro nível que coloquei, vai criar
uma micro-política, como a chama Deleuze-Guattari, que fica apenas no segundo
nível. E isto do mesmo modo que a cultura, como totalizante, até agora, faz o
mesmo, desemboca na mesma configuração, também, por esquecimento da
mesma coisa. Guattari teve uma briga comigo, em plena praia de Copacabana,
por causa da Lei. Ele diz que não há esse troço. Se quiserem, podemos chamar
o Guattari aqui para ele falar. Mas o que eles dizem nada tem a ver com Lei. O
que existe para eles é um ritmo politeísta, uma grande dispersão de elementos
brotando, cada um na sua especificação, no segundo nível. Considero isto um
esquecimento do primeiro nível e, portanto, algo que pode dar numa vocação
nazista. Não havendo nenhuma referência para reconsiderar o outro como
outro, na sua diferença, e dar um basta na minha intervenção no outro. Neste
nível, vale tudo, vale aparecer um Hitler dizendo: “Vamos fazer um devenir-
animal... nazista”. Aí, ele diz que é um movimento de política da diferença e
não consegue realizá-lo, mas enche o nosso saco, e enche o forno de judeus. E
cai numa perversidade, numa perversão propriamente dita. E com isto eu não
posso concordar, não entra na minha cabeça. Em Mille Plateaux, segundo
ele, é da ordem da psicose, para mim é da ordem da perversidade, pura e
simples. Se ele entra na ordem da psicose pura e simples, seria esta aqui, a não
ser que ele me defina outra ordem de psicose.
Ele quer o acontecimento independente da Lei, no momento mesmo
do aparecimento do acontecimento. Pintou o aparecimento do instante
histórico, o aparecimento no momento, é muito bonito, pode até ser curtido,
estou com ele e não abro. Agora, se isso esconde a referência à possibilidade
de manter um distanciamento, e um basta às ações neste primeiro nível, isso

162
Ainda o gene e tal

recai necessariamente em perversidade pura e simples. Se há uma ocultação


disto que promove a manutenção do distanciamento em relação ao outro,
como respeito limítrofe em relação ao outro, simplesmente se cai numa tal
perversidade que, aí, vai-se candidatar a Hitler. Basta aparecer um candidato
para ganhar. Há um rapaz que faz crítica muito interessante a essa coisa
toda. É um jovem francês que escreveu Le Testament de Dieu. Foi discípulo
de Lacan, mas é preciso ler com cuidado, porque milita no campo político,
põe paradigmas como, por exemplo, pensamento judaico, e isso pinta meio
religioso. Falta-lhe inventiva, então vai buscar aparelhos usados, e aí é perigoso
também. Nós, hoje em dia, estamos entre esses racismos todos e a vitória de
João Paulo.
Na diferocracia, como a coloco, o segundo nível em que há os
enunciados não é anárquico. O enunciado não pode ser abolido, pois como se
poderia dizer as coisas sem enunciado? Isso pode ser extremamente
fracionado, sem que uma legislação, no sentido jurídico, venha totalizar, quer
dizer, é anti-totalitário, é extremamente fracionário, mas que se dê o máximo
de atenção a esta via do primeiro nível, e que a coisa seja pensada daí para
lá, e não ao contrário. É exatamente o oposto da tese de Deleuze, a qual é
pensar nesse segundo nível e que daí surgiria, por efeito, um universal que é
a minoria. Mas por que dizer que não há vigência da Lei, se pinta um universal
no meu nariz? Por que esconder isso se esse nível tem o perigo de uma
filiação, de um regimezinho sem limites em relação ao outro, a ponto de
provocar histeria, grandes assassínios? Acho que um cara intoxicado por
Deleuze está sujeito a se tornar um assassino a longo prazo. Essa minoria
seria o absoluto em sua singularidade? E isso é extremamente perigoso porque
para as minorias tudo é grupal, é estatístico demais para se considerar isso
não perigoso. Que as minorias se encontrem em pequenos grupos, tudo bem.
Agora, o que é que vai garantir a auto-limitação desses grupos? A alteração
que a psicanálise pode fazer é a referência constante a esse primeiro nível.
Se existe a possibilidade de uma intervenção política, digamos, no pensamento
psicanalítico, é simplesmente apontar para isso o tempo todo.

163
Psicanálise & Polética

Deleuze resta na ambigüidade porque, quando fala em Lei, só pode,


para ser rigoroso com seu pensamento, dizer que não existe a Lei, que existem
essas leis aí. Então, a Lei é neurotizante, ao mesmo tempo que, sub-
repticiamente, ele põe um universal. A compulsão à repetição está contida
nesse primeiro nível, pois isso não se instala sem esse movimento de repetição.
Por isso é que preciso fazer referência a isso. É o caminho avesso: Deleuze/
Guattari pegaram Lacan, e o que disseram nada tem que Lacan não dissesse,
a não ser esse avesso de, digamos, que a Lei vai ser efeito dessa bagunça.

* * *

PERGUNTAS

• P – Na sua colocação inicial, a Lei se dá e incide sempre como um dado


inescutável. Ela nunca pode ser informada, ela aponta sempre para um
imaginário, um conteúdo. Ela seria uma existência, um contingente, através
do qual essa Lei poderia ser deduzida e admitida a sua atividade
estruturante prévia ao acontecimento dado. Ela sempre aparece dentro
dessa organização imaginária, dentro da viabilização no campo das
coisas, no campo dos contatos...
Para dizer melhor, dentro de um enunciado.
• P – ... dentro de um enunciado: Deleuze diz que a pressuposição de um
universal só pode ser admitida a partir da primeira leitura de uma
ordenação específica de determinado enunciado. Nós temos, na base, um
jogo de diferenças, mas todo jogo se caracteriza por uma determinada
organização, uma determinada ordem, mas uma ordem que, como você
parece que admite de inicio, só pode ser deduzida a partir do confronto
dessas unidades. Agora, a questão é saber se essa dedução, ou seja,
essa organização que pode ser deduzida, tem uma função prévia, ou seja,
é anterior à organização, anterior ao próprio aparecimento do
acontecimento, do minoritário, do imaginário, ou seja, ela só é um efeito

164
Ainda o gene e tal

possível dessa organização imaginária. Fala-se de uma crítica que Deleuze


faria à psicanálise, de uma imposição, de uma edipianização do sujeito
falante, na medida em que ela tornaria algo que se dá como um efeito
histórico em determinada injunção discursiva, em determinado enunciado
que é emitido pelo confronto de diferenças que são particulares em
determinada geografia, em determinada história. Ela tomaria esse efeito
e o anteporia ao próprio acontecimento, impondo assim uma repetição,
portanto, fazendo um fascismo e traindo a história. E aí a questão é que,
realmente, não cabe um paralelismo entre Lacan e Deleuze, mas há um
nó, um nó entre os dois. Eles estão tratando de um mesmo segmento, mas
apontando para direções opostas.
Não é reconhecido a Freud, nem a ninguém até hoje, conseguir tirar
essa função da Lei, a não ser por essa emergência empírica no trato do divã.
Aí Deleuze diz o que diz, que a psicanálise teria inventado o Édipo, feito um
rebatimento do Édipo, e esse rebatimento se apresentaria como um universal
que fascistamente estaria reconfigurando como necessário, etc. Mas eu não
consigo, até segunda ordem, verificar que Deleuze esteja falando do primeiro
nível. Ele está falando do segundo nível e, aí, isso é verdade. Tirante a teoria e
a prática de Lacan, é possível que a psicanálise esteja metida aí. Por isso digo
que não reconheço psicanálise por aí. Aí rebate, edipianiza tudo mesmo, porque
não consegue ler o que está por trás e vem primeiro – não em sentido cronológico
– como coisa expressa a partir dessa emergência. Vejo Deleuze fundando
uma estratégia para hoje, porque só posso repetir esse acontecimento. Ele está
pedindo que se esqueça tudo isso, se denuncie essa edipianização, se produza
essa mesma política, para daqui surgir o quê? “Esqueçamos a psicanálise, a
filosofia, vamos produzir a zorra toda de novo para ver se pinta a Lei, se pinta
o tal universal”, que ele já disse qual é. Aí é que eu me pergunto se ele não está
chovendo no molhado, porque o nível de abstração que ele pede – não é por
ser muito abstrato, é porque é outro abstrato – eu consigo encontrar no primeiro
nível que coloquei. Por que ele finge que não encontra? Suponho que seja por
uma questão de estratégia: “A guerra no momento é explodir o segundo nível”.

165
Psicanálise & Polética

Então explodamos. Aí posso até dizer: Deleuze não é um filosofo, não é um


analista, não é nada, é um estratego que está usando de um poder de fala, etc.,
para fazer funcionar certa coisa. Está bem, mas se isso comporta o esquecimento
do primeiro nível que é estruturante e que já se tem condição de apontar, ele
não está apontando para novidade nenhuma. Ele não está esperando nenhu-
ma outra coisa senão esse segundo nível mesmo.
• P – Se o projeto da psicanálise seria a liberação do simbólico, da
cultura, ou seja, deixar que a função metáfora se exerça, sem um
segmento duro, cristalizando, ou seja, que essa Lei faça com que se
possa correr as cadeias significantes da maneira mais flexível possível,
como é que posso pressupor a possível leitura, ou dedução da Lei a
partir de um determinado contingente discursivo? Se posso ler, deduzir
essa Lei a partir de um determinado discurso, de um determinado
enunciado, isso quer dizer que ela já existe numa certa completude, ou
seja, já tem uma certa pré-existência, já tem um caráter factual, já se
deu, já está ali – ela está antes do acontecimento. Se não é isso, como é,
então, que posso entender, compreender a Lei?
Jamais compreenderei a Lei. Jamais. Tenho que partir desse
pressuposto. Você sabe o que é a psicanálise? É essa questão: o que é a
psicanálise? Isso já situa seu modo de operação. Quer dizer, na medida em
que, só-depois, continuo reconhecendo o abstrato da Lei que funciona neste
enunciado, é que vejo a repetição dela. Não que ela lá estivesse antes, mas
estaria antes, porque só-depois é reconhecida. Que pinte outra coisa, tudo
bem! Mas, essa Lei sendo reconhecida, ela está em nível de abstração fora
dessa estrutura que chamo edipiana. Ela pode determinar esta estrutura, mas
é fora dela. E os próprios Deleuze/Guattari, quando pensam nessa coisa toda,
acabam desembocando aqui. A não ser que eles falem de uma esperança
de desembocar em outra coisa. No percurso que eles fazem, acabam
desembocando no universal da diferença.
• P – Mas, supondo que este universal estaria como efeito, é diferente de
admiti-lo como estruturante.

166
Ainda o gene e tal

Mas a psicanálise só o admite como estruturante só-depois. O que


existe em Lacan é fazer vigorar aquilo que ele supõe ser o discurso psicanalítico,
para que pinte a coisa, inclusive nisto. Fica-se de saco cheio, não se inventa
uma perversão nova, nem se deixa de falar em papai e mamãe. É um saco!
Um analista velho, um velho analista, diz ele, já está de saco cheio porque
essas são as anedotinhas contadas. Melhor do que repetir papai e mamãe,
seria pintar uma perversão nova. Mas não pinta!

* * *

É preciso ressalvar o seguinte: vocês estão escutando a minha


leitura de Lacan. Porque vocês encontram muitos alunos do Lacan que
apresentam aquele significante que o Deleuze indica. Eu não entendo aquele
significante como sendo de Lacan. Estou mostrando a minha leitura de Lacan.
Não tenho outra.

13/MAI

167
Psicanálise & Polética

168
Édipo e osome

8
ÉDIPO E OSOME

Édipo é aquele personagem da mitologia grega antiga, e osome são da


mitologia de hoje. Vamos ver qual é a relação entre Édipo e osome.
No final da vez anterior, alguém me chamou a atenção para que eu
devia retornar e retomar a questão da Lei. Talvez não estivesse ainda muito
claro como ela é fundamental no desenvolvimento do que tenho tentado colocar.
Na verdade, tentarei, então, fragmentariamente, retratar a Lei e apresentar
outra leitura de Édipo. Claro que fazendo alguma referência ao que é anotado
como memória do mito, mas, fundamentalmente, pensando nos textos de
Sófocles que foram os indicadores de Freud.

* * *

Já falei aqui da situação em calúnia de Édipo. Há uma certa calúnia


em relação à sua figura na medida em que, para expor o que naquela época
parecia de difícil aceitação – a requisição, o pedido da criança em relação à
mãe, a sexualidade infantil funcionando ali, etc. –, Freud teve que ressaltar
essa faceta do assassínio de Laio, do casamento com Jocasta e, até mesmo,
chamar momentaneamente de complexo de Édipo essa tentativa de completação
com a mãe. Entretanto, pessoas que vêem só esse tipo de coisa, esquecem que
é através desse Édipo, e ao longo do tempo, que Freud vai articular o teorema
da castração e vai reexpor a diferença dos sexos. Na leitura de Lacan, o que

169
Psicanálise & Polética

vai aparecer de uma vez por todas é a generalidade do fenômeno edipiano, sua
abrangência maior, suas franjas, reduzindo, em última instância, toda a questão
do Édipo à castração. E, ulteriormente, há o teorema formulado nas fórmulas
quânticas da sexuação, da diferença sexual. A calúnia que se faz a Édipo é
aproveitar o folclore psicanalítico, veiculado sobretudo pela IPA e seus
seguidores, em torno dessa fantasiazinha, dessa aparência sintomática mínima
com que Édipo se apresenta, desse romancezinho familiar com a mãe, e a
necessidade de cortar aí – quando isso é apenas uma primeira movimentação
do campo edipiano.
Nosso interesse é mostrar uma dupla articulação fundamental, ou
fundadora, da cultura. Ou seja, na tentativa de distinguir o momento de entrada
da Lei e o momento de fundação da cultura, é preciso estabelecer que aí vai
surgir uma dicotomia. Isto, pensando que a cultura, no entrelaço, se articula
duplamente. Por um lado, há a instauração da Lei enquanto tal e, nesse momento,
eu gostaria de tentar a distinção entre sociedade e cultura. A Lei talvez seja
suficiente para fundar o social pura e simplesmente, a relação entre falantes,
ao passo que a cultura, para se fundar, exige uma segunda articulação: a
proibição do incesto como fundadora de ordem de parentesco.
É preciso, então, agora, detalhar alguns momentos importantes do Édipo.
Por exemplo, ele mata Laio e se dirige para Tebas. No caminho, encontra a
Esfinge que lá estava para propor enigmas e devorar as pessoas que não os
resolvessem. Édipo resolve o enigma, etc., e acontece aquilo tudo... Já abordei
diversas vezes, em anos sucessivos, essa questão do texto de Sófocles dizendo
coisas as mais diversas. Hoje vamos dizer outras que, talvez, até, fiquem em
contradição com as anteriores, mas vamos ver aonde isso vai chegar. Uma
coisa que sempre fica meio mal tratada na historinha de Édipo é essa moça aí,
esse personagem esquisito, a Esfinge. O que ela está situando no mito e no
texto? Se pesquisarmos pela mitologia encontraremos que, na cultura grega
daquele momento, ela é um monstro que nem por isso deixa de ter aspectos de
divindade, no sentido do politeísmo grego, de origem infernal. Ela é uma
composição muito estranha, como outras divindades oriundas do mesmo lugar.

170
Édipo e osome

Ela tem como mãe Échdna, de quem consegue tirar o rosto e os peitos de
mulher, melhor dizendo, de fêmea, de fêmea de homem. O pai, Tífon, empresta-
lhe o rabo de dragão. Não é uma herança genética, pois eles dizem que ela
herda ou, digamos, toma emprestado de sua irmã, Quimera, o corpo de leão, e
das suas irmãs, as Harpias, as asas. A Esfinge é, portanto, o tipo de monstro
criado por pesadelo numa condensação – no sentido mais simples da exposição
freudiana – de elementos formando um ser mais ou menos aterrador por causa
dessa estranheza metafórica. É alguma coisa meio terrível que precisava ser
destrinchada aos pedacinhos para ser reconsiderada.
Quimera, sua irmã, é um ser infernal do mesmo tipo: tem cabeça de
leão ou de cabra, segundo a tradição, rabo de dragão, vomita fogo, persegue e
mata os homens por alguns motivos. Foi um tal Belerofonte, montado em seu
cavalo Pégaso, que conseguiu, a pedido de um certo rei, matar Quimera fazendo
virar o feitiço contra o feiticeiro. Ele lhe joga lanças de bronze, se não me
engano. Ela bota aquele fogo para fora, o qual esquenta as lanças, e ela morre
queimada pelo próprio fogo. Uma luta oniricamente composta, muito estranha.
As outras irmãs da Esfinge são as Erínias, seres infernais da mesma ordem.
Elas são três, uma das quais é a mais conhecida no jargão comum: Alecto,
Tisífone e Megera. Quando se quer dizer de uma mulher terrível, que enche o
saco do próximo, diz-se que é uma megera. As Erínias viviam percorrendo a
superfície da terra para atormentar os mortais culpados. Aliás, se observarmos
bem a estrutura da narrativa sobre a Quimera e, também, sobre a Esfinge,
recairemos na mesma coisa: são seres infernais, tipo sonho mau, que perseguem
os mortais culpados. Elas perseguem sem trégua os criminosos que, por suas
ações nefastas, perturbaram a ordem pública e social. Isto parece que fica
claro nas referências gregas. Às vezes, elas enviavam verdadeiras produções
coletivas a todo um povo, cidade, região, em forma de epidemia. Baixa uma
epidemia em determinado povo e ele pensa que está sendo castigado por ter
alguma culpa. As Erínias seriam as transportadoras dessa perseguição. Porém,
mais freqüentemente, elas perseguem o criminoso suposto inspirando-lhe
remorso, angústia sem fim e – o que mais nos interessa – medo do castigo.

171
Psicanálise & Polética

Édipo, então, encontra a Esfinge, que é um ser desse tipo, lá postada


no meio do caminho, fazendo a devastação. Alguma coisa aconteceu de culposo
em Tebas para que ela tenha sido posta como enviada para punir devorando
pessoas que não conseguissem “transar” com ela numa boa, ou seja, decifrar
o enigma. Édipo não é nenhum analista nesse começo da história. Essa decifração
não é do mesmo nível de uma interpretação. Ela havia sido, então, enviada
para essa região chamada Beócia. Em português, um “beócio”, antigamente,
era, como se diz hoje, um “babaca”. Isso é apenas um adendo porque não tem
nada a ver, eles não sabiam que a gente ia chamar o beócio de babaca. É
engraçado porque dá na mesma dentro da historia. A região da Beócia foi
ocupada pela Esfinge, perto da cidade de Tebas, para punir a cidade de um
certo crime. Aquele, como vimos, que Laio havia cometido quando Édipo o
encontra e mata. Laio estava em visita no reino vizinho e “faturou” Crisipo, o
filho de Pélopes, sem nenhuma “contratação” com seu pai. Isso era um
verdadeiro crime – sobretudo, deselegância – entre os gregos. Podia “comer”
o garoto, desde que o pai permitisse. Segundo os textos, a Esfinge foi posta lá
para punir Tebas do crime de Laio. É uma punição de ultrapassagem de uma
determinada lei local.
Insisto em fazer diferença entre a Lei que Lacan situou como nada
tendo a ver com essas leis do mundo real, como ele diz, a Lei que é do coração,
ou seja, la père-version, e as leis que, por enquanto, é melhor chamarmos de
regulamentos locais. O interessante é que em algum lugar, como veremos,
certas instâncias tipo Esfinge, Erínias, etc., estão para punir a ultrapassagem
de uma lei de um determinado local, ou seja, de um regulamento de
comportamento social. Por isso elas vão punir crimes contra a ordem pública e
social, quer dizer, a ordem daquela cultura ali. Laio não foi punido por esse
crime, é o povo dele que estava debaixo da pressão da Esfinge, o que nos
mostra que Laio estava um pouco “cagando” para o tal regulamento. O povo é
que estava sentindo uma pressão culposa em função do ato de Laio. E Édipo
mata Laio nesse momento de fuga. Quer dizer, não se trata aí, segundo o mito,
de nenhuma instância primitiva. Trata-se do confronto de Édipo com Laio, em

172
Édipo e osome

função do que havia sido predito como destino. Não há nenhuma punição pessoal
para Laio, o povo dele é que é o punido. Édipo mata Laio cortando o timão do
seu carro. Laio morre nesse desembestamento porque perdeu o timão, porque
Édipo tirou-lhe o governo do carro.
Édipo enfrenta, então, a Esfinge. Ela lhe pergunta: “Qual o animal
que tem quatro pés de manhã, dois ao meio-dia, e três à noite?”. Ele podia
ter respondido, como disse Lacan em seu Seminário: “É o quadrípode de
Lacan”. Mas ele não conhecia Lacan e, então, respondeu: “O homem” – ele
anda de quatro na infância, na idade adulta fica de pé e, na velhice, se apóia
numa bengala. A Esfinge é tão babaca quanto os tebanos, de tal forma que
aceita isso como uma interpretação, fica desesperada, se joga de cima do
penhasco e morre.
Quem é a Esfinge? Vou propor que a consideremos como titular de
uma inculpação. Ela vem inculpar os outros, portanto, é a culpa titular de uma
inculpação emanada do superego. O que é um pesadelo desse tipo, senão o
desejo de punir-se por pressão superegóica? Quer dizer, transformando a base
lógica daquilo que falamos da vez anterior como senso de culpa instalado na
própria estrutura, em perseguição proveniente de um superego. O superego,
afinal, é aquele tal que vem como herdeiro do complexo de Édipo. Freud o
situa assim, sendo que existe uma transa muito diversificada do superego com
o sujeito: ele “transa” um pouco obsessivamente com os chamados homens, e
um pouco mais frouxamente com as chamadas mulheres. Isto em função
justamente de o complexo de Édipo não ter a mesma operação na diferença
sexual, segundo Freud. Como o complexo de Édipo não é o mesmo para os
dois sexos, o superego também não pode ser o mesmo, já que ele é herdeiro
dessa transação. O superego – simplificando alguns pontos que interessam – é
formado, do ponto de vista da segunda tópica freudiana, por identificação
parental. Quer dizer, identificação com os ideais tal como são ditos pelos pais.
Ele é superego porque é uma parte do ego que se diferencia, se distingue do
ego para pressioná-lo segundo essa identificação parental. Portanto, se tenho
que considerar, segundo a perspectiva de Lacan, o ego como uma produção de

173
Psicanálise & Polética

objeto, tenho que considerar o superego como parte retirada daí, no mesmo
nível, ou seja, na mesma pressão imaginária do ego. E, mais que isso, Freud
insiste em que esse superego não é tirado das ações dos pais, dos ditos diretos
dos pais, mas, sim, mesmo, que vem pela textualidade desse tipo parental do
superego parental. É uma coisa em cadeia. Em algum lugar está composta
uma produção imaginária egóica, tipo imaginária objetal, que vai sendo
transmitida de avô para neto. A Esfinge, então, pode ser considerada, neste
momento, como essa produção superegóica, esse objeto, esse animal montado
oniricamente, metaforicamente, como representante arcaico de um superego
parental, ou melhor, é o superego parental postado no caminho... Existem
superegos e superegos... De acordo com sua herança, cada um tem o superego
que merece...
Édipo encontra a Esfinge no caminho. Quem é Édipo para a Esfinge,
nesse momento, e até para ele mesmo que não sabe, ou, pelo menos, não sabe
que sabe? Édipo, para a Esfinge, não é senão um estrangeiro. Édipo se confronta
bem com ela porque, se a Esfinge é um superego forte, Édipo é um ego forte.
Isso está evidenciado na história dele, até então. Ele é corajoso, ouve falar das
coisas, sai de casa para enfrentar o destino, não quer que aquilo aconteça,
encaminha-se decisivamente para o outro lugar, encontra Laio, sai no tapa e
mata não só Laio como seus acompanhantes. No texto de Sófocles sobra um
dos acompanhantes de Laio. Ele consegue fugir, mas vai contar em Tebas que
quem matou todos foi um verdadeiro exército. Ele ficou com vergonha de dizer
que chegou um cara sozinho e acabou com todo mundo. Então, vê-se que
Édipo é um machinho, fortinho, arrogante, um ego forte, faz e acontece,
um grande decifrador de coisas que dizem a ele. Um barato, o cara!
É o próprio catedrático.
A Esfinge estava lá para punir quem? Os tebanos. Ela não podia, se a
minha via é certa, puni-los a não ser que, superegoicamente, tivesse poderes
para isso. Ou seja, que os tebanos tivessem um pavor da Esfinge com relação
ao dito crime praticado. Se achassem que aquilo não era crime, eles estariam
pouco se incomodando com a porcaria da Esfinge. Mas os tebanos, só

174
Édipo e osome

de ver a Esfinge, já começavam a tremer e, certamente, a gaguejar e não dizer


nada. Édipo vem machinho arrogante, sapiente, estrangeiro, particular. Quando
a Esfinge diz aquilo, ele toma uma interpretação. As representações na
iconografia grega, a respeito de Édipo, em muitos autores que observei, chamam
a atenção para isso: Édipo conversando com a Esfinge, na maior, com as pernas
cruzadas, numa boa. O desenho é muito sugestivo, ele não estava com nenhum
medo: “Se ela veio aqui para assustar, não me toca, não tenho nada que ver
com isso”. Então, quando ela propôs um enigma, que lhe parecia muito
vagabundo, ele respondeu: “É isso, e agora, o que você vai fazer?”. Ela tem
que se precipitar, porque não o atinge. Não o atinge porque é uma luta de
prestígio entre dois egos, sendo que um é supostamente super de outrem. Na
verdade, é luta de ego de Édipo com ego de tebano, e ele tira de letra, não se
assusta. E aquele superego simplesmente não vale, desaba. Desaba, porque
ele serve para ser superego de tebano, mas não de Édipo.
Se esta nossa via serve, os tebanos são aqueles cujo superego
supostamente é o mesmo de Laio, só que Laio – talvez por isso mesmo tenha
conseguido ser rei – conseguiu driblar o superego dos tebanos, que supostamente
era o dele. Os tebanos estão horrorizados com os atos de Laio, ele ultrapassou
uma lei local. Isso, de certa forma contradizendo outras visões anteriores, até
nossas, é uma herança que Édipo tem de Laio. Ele pouco se lixa, em certos
momentos, para o superego local. Isto, por arrogância, não por superego, mas
por hiperego. É a briga de superego com hiperego.
Quando Édipo responde à Esfinge o que respondeu, “é o homem”, ele
está funcionando não como nenhum analista, e, sim, como uma espécie de
resolvedor de quebra-cabeça. Um semiólogo, digamos assim, que saca qual é
a significação do texto, no máximo um hermeneuta que dá uma interpretação,
tipo entendimento do sentido. Mas, podemos dizer que uma coisa que, talvez,
Édipo não sacasse naquele momento, só vai sacar muito mais tarde, é que ele
estava dizendo a seguinte resposta: “É o homem”, ou seja, “sou eu”. “Sou eu”,
dito aí no sentido narcísico da força de Édipo. Vamos dizer que, também, em
outro sentido, ele só vai saber mais tarde, trata-se de Édipo, a resposta. Na

175
Psicanálise & Polética

medida em que, primeiro, ele é quadrúpede, como verdadeiro animal egóico;


depois, ele se instala sobre dois pés numa arrogância de rei; e lá no final, em
Colona, é que ele vai ser cambeta mesmo, como seu nome sugere. Pensemos
nesse ritmo ternário de ter dois pés e se apoiar em alguma coisa para poder
caminhar, momento em que ele vai, talvez, conseguir ser poeta e pai.

* * *

O que acontece? Para entendermos com mais precisão, teríamos


que percorrer a visão do ciclo tebano na obra de Sófocles. Digo Édipo
em Calúnia porque é aí que se reforçam os anti-edipianos. Eles reforçam o
retrato de Édipo no momento de Édipo Rei, estritamente nesse momento, e
sem dar muita conta no final, como que chamando de punição Édipo furar
os olhos, Jocasta se enforcar... Sentimento de culpa, coisa dessa ordem, talvez
não seja bem isso que vai comparecer em Édipo em Colona, onde se
mostra outro tipo de arcabouço. E mais, a coisa continua, porque, embora
Sófocles termine Édipo em Colona dizendo que aí se encerra toda a história,
como se esse texto teatral fosse o epílogo de Édipo Rei, a história não se
fecha. Os descendentes continuam carregando a dita maldição dos filhos de
Édipo, e, na verdade, eventualmente, também, carregando a força paterna de
Édipo. Quer dizer, a instalação de Édipo como Nome do Pai, como encontraremos
em Antígona, que começa exatamente com a palavra de Antígona dizendo
para Ismênia, sua irmã: “Você é o meu sangue, minha irmã, minha cara, você
sabe todas as infelicidades” – eu poderia traduzir por azares – “que Édipo
legou aos seus”, etc. O texto começa dessa herança. Precisamos ver como
percorre, de Édipo-Rei até Antígona, todo esse processamento do Édipo, para
não ficarmos na historinha tola de que Édipo é matar Laio por amor a Jocasta,
virar rei, perceber que fez uma besteira, se punir e acabou. Não é isso. Édipo,
na verdade, não resolve, ele derruba a Esfinge, chega lá e oferecem a ele o
reino. Ele não pediu nada. Isso estava a prêmio para quem acabasse com
aquela perseguição da Esfinge.

176
Édipo e osome

Continuamos aí na pregnância egóica de Édipo: aquele heroizinho que


chega, aquela macheza toda, toma o reino, casa com Jocasta, instala uma
felicidade em Tebas, reina em termos de bem-estar social, tem quatro filhos,
Ismênia, Antígona, Etéocles e Polinices. Está aí o Creonte que é o tio e cunhado
dele ao mesmo tempo... É o momento de Édipo bípede, de pé, reinando. As
outras duas patas são de Jocasta. O homem é sempre quadrúpede. Ou anda
de quatro, ou anda pendurado nas duas patas de outrem, junto com as dele. Ou,
senão, começa a andar só nas suas e mais um pedacinho de pau, onde se
apoia, e falta a quarta pata, e ele fica meio cambeta.
Aí pinta a peste no reino. Quem traz? Aqueles seres infernais, tipo
Esfinge, que vêm punir alguma falta contra a ordem social. A peste se espalha
pelo mesmo motivo pelo qual esteve lá a Esfinge: alguma transgressão na
ordem instituída. Isto é evidente nos mitos gregos: uma transgressão do status
quo social traz a punição. Então, uma vez mais, é preciso perguntar: que superego
aí traz a peste?
Há todo aquele desenvolvimento: o surgimento de Tirésias, que não
quer denunciar, é preciso que Édipo denuncie a ele. Tirésias, que tem ouvido
de analista, como que diz: “Se você está dizendo que fui eu, é porque foi você”.
Édipo, primeiro, se recusa a qualquer culpa, não aceita aquilo. Para ele, é
alguma transação para tomar o reino, feita pelo irmão de Jocasta, Creonte, ou
é alguma tentativa de Tirésias de derrubá-lo. Mas, de repente, a coisa se
comprova de tal maneira, Tirésias insiste, sem nenhum medo, que ele reconhece,
afinal, que certamente foi ele mesmo que transgrediu a lei local. Transgrediu a
regra de ser proibido casar-se com Jocasta, já que ele era filho dela. E, mais,
matou Laio, matou o rei dali. Édipo reconhece isso e podemos dizer que,
nesse momento, reconhece sobretudo o quê? Que matou o pai e casou
com a mãe? Não, o reconhecimento é para outros, a ordem instalada começa
a reconhecer o crime nessa transgressão da regra. Lacan chama a atenção
para que quando Édipo, ao reconhecer, arranca os broches que seguram sua
roupa e fura os dois olhos, não há nenhuma punição nisso. É uma espécie de
referência a uma tentativa de desmanchar o imaginário no qual ele teria caído

177
Psicanálise & Polética

sem se dar conta. Não é, pois, nenhuma punição.


A punição foi do povo, pois a regra era daquela instituição. Há uma
espécie de participação divina no rei, de tal maneira que não cai sobre ele. Pois
se ele é representante da lei, ainda que a transgrida, não poderá ser punido... É
paradoxal. O texto é cada vez mais claro, e, pela fala de Édipo, verifica-se que
o de que ele se dá conta, o que realmente o assusta, vem da boca do Tirésias,
e vem numa equiparação com Tirésias. Ele se assusta com o quanto ele é tolo,
com quanto passou a vida inteira querendo se desfazer de um certo destino, e
desenhando um ego cada vez mais forte, a ponto de não poder reconhecer a
evidência do que Tirésias estava jogando na cara dele com toda força. E ele
faz uma identificação com Tirésias: para que servem os olhos, se a gente não
consegue ver? As prisões imaginárias são de tal nível, que não me deixam ver
o essencial. É preciso não investir o olhar nessas miragens, para que se possa
sacar o que realmente é verdadeiro. Édipo é um babaca no sentido mais pleno
que a psicanálise pode apontar, enquanto analisando. Ele se supõe constituído
no mesmo nível das suas pregnâncias imaginárias. Ele pensa que é rei mesmo,
que faz aquilo com seu talento adivinhatório, decifratório, com seus braços
derrubando Laio, matando soldados, derrubando a Esfinge, numa interpretação
puramente hermenêutica. Ele está pensando que é um vitorioso. Mas o texto
insiste em que o que é preciso é perceber que a má hora vem sempre na vida
mesmo daqueles que pensam que têm a boa hora. Não quero falar de felicidade
e infelicidade, porque acho muito mais preciso bonheur e malheur, no sentido
de Fernando Pessoa: a hora, o que vem.
Ele saca que não pode viver daquela felicidade, até então
primariamente edipiana, em que vivia desse ego maravilhoso. É como se
Édipo, com o ego desse tamanho, fosse mais um Éguipo. Depois que
ele se defronta com Tirésias – numa espécie de equivalência e de
identificação –, consegue agora ser Céguipo. Édipo é um ego que quando fura
os olhos, fica S/ ’ego. É um momento de assunção subjetiva. É preciso entender
que não há a mágica da assunção subjetiva, não existe isso em lugar algum
da prática ou da teoria analítica. A assunção subjetiva, se, por momentos

178
Édipo e osome

sucessivos, não fosse isso, o passe seria uma coisa teoricamente resolvida. É
onde vamos chegar.
Que diabo de passe é esse? Que Édipo faz o passe, quer me parecer
que sim. Édipo se cega e fica postado no mesmo nível de Tirésias. Aí é que
ele passa a ser um que anda com três pernas, usando a sua bengalinha, isto é,
apoiando-se em Antígona. É interessante notar que no final de Édipo Rei,
para corroborar essa visão egóica que estou tentando mostrar, Creonte
diz uma frase decisiva para Édipo: “Não pretenda, então, triunfar sempre.
Teus triunfos não acompanharam tua vida”. É uma declaração de castração.
O que Édipo saca? Qual é o acontecimento? É o acontecimento de poder se
dar conta de que a totalidade, a totalização é impossível: você não será
sempre um vencedor. E o corifeu vai terminar a peça: “Aí está este Édipo,
esse perito em enigmas famosos, que se tornou o primeiro dos humanos.
Ninguém na sua cidade podia contemplar o seu destino sem inveja. Hoje, em
que fluxo de terrível miséria ele foi precipitado! É preciso, portanto, esse último
dia para o mortal sempre considerar. Guardemo-nos de chamar jamais um
homem de feliz, antes que ele tenha alcançado o último termo da sua vida, sem
ter sofrido uma pena”. Sófocles é menos estúpido do que muitos analistas e
doutores da psicanálise. Mostra como o acontecimento aí é um reconhecimento
da impossibilidade de completação.

* * *

Passamos a Édipo em Colona. Encontramos Édipo nos arredores


da cidade, justamente porque seus próprios filhos, Etéocles e Polinices, o baniram
da cidade, por causa de ele ter, afinal de contas, transgredido uma lei da cidade.
A função daqueles elementos infernais, que comparecem nos textos gregos,
não é outra senão de punir por falta de cumprimento de uma regra desse tipo.
Regra esta que em toda e qualquer instituição do tipo é o banimento de
quem não está dentro da regra. Saiu da regra, estragou a brincadeira, é expulso.
Se não se expulsa, se não se faz funcionar a regra, vem a punição por parte

179
Psicanálise & Polética

desses dois seres infernais que associei com o superego. Se o superego é essa
fundação egóica, imaginária, e que é, como fica claro nos textos
freudianos, uma introjeção, não da Lei, mas de uma lei, de uma regra de
comportamento, temos aí que o superego é este ser infernizante, que
vem perseguir aqueles que deveriam ser banidos, por não se conformarem a
uma regra instituída. Estamos falando de instituições, não da Lei. Qualquer
regra de funcionamento desse tipo, de enunciado legal, não é senão regra
de limitação desse logro. Ela só pode ser produzida porque há Lei, mas
ela não é a Lei.
Tanto é que podemos ver que há seres chamados marginais como
Tirésias, por exemplo, que vivem fora da lei, fora da regra, e que, no entanto,
têm uma certa acomodação com as pessoas que acreditam na regra. Por isso
ele não queria dizer a Édipo, pois ele só é permitido na margem, na medida em
que ele diga sempre a verdade, não-toda, é claro, mas tenha um regime de
transação que não venha a ser ativo dentro do próprio social. Toleram-se os
poetas, desde que eles não sejam bandeiras de dissolução social. Por isso mesmo
é que se promovem freqüentemente os poetas ditos marginais. Hoje li no Jornal
do Brasil, ou sei lá onde: “O poeta marginal, fulano de tal...”. Não tem marginal
nenhum, nada de marginal, os marginais não lêem...
Os filhos, então, o expulsam e Édipo lhes roga uma praga. Ele prediz
o que vai acontecer. Uma previsão que é óbvia, está na cara: “Vocês vão
se matar um ao outro”. É claro, para dividir o reino, eles vão sair no tapa.
Édipo se afasta e, realmente, os dois começam a brigar. Um dentro de Tebas e
o outro fora, atacando Tebas. Nessa hora, Creonte corre para Édipo para
pedir ajuda. Quer dizer, reconhece a paternidade de Édipo como possível de
estancar a luta entre os filhos. Reconhece que se Édipo interviesse, acabava
com aquilo. Diz Édipo: “De modo algum, não faço nada, agora sou marginal
mesmo, sou o poeta, não tenho nada com isso. Digo, mas não vou me meter”.
Queriam utilizar agora a paternidade que ele conseguiu atingir a duras
penas, isto é, demolindo o seu ego, como demoliu a Esfinge, para luta de prestígio,
em nível egóico. Ele disse que não, do mesmo modo que Tirésias se recusou, e

180
Édipo e osome

começa a dizer a verdade. A equivalência poética, a partir daí, é entre Tirésias


e Édipo. Estamos no terceiro tempo do Édipo, que é sua transformação
em poeta, capaz agora de interpretar e não de resolver enigmas. Um Édipo
cambeta, com três pernas.
Os irmãos, realmente, acabam se destruindo. Creonte, o tio, é quem
vai herdar o trono. Encontramos, agora, Antígona no seu problema diante da
briga entre seus irmãos, Etéocles e Polinices. Édipo fica nas periferias, com
Ismênia e Antígona, e auxiliado apenas por Teseu, que é uma figura mítica. As
pessoas vão lá falar com ele, e pedir. Ele não é expulso, nem pode mais ficar.
Ele fica na periferia, no corte.
A morte de Édipo, mesmo no texto de Sófocles, como no mito, não
comparece como morte. Ele foi tragado pela terra, ou subiu aos céus. Ninguém
sabe mesmo o que aconteceu. Só Teseu sabe, pois estava junto com ele, mas
não diz para ninguém. Ele sabe que as Erínias, aqueles seres infernais,
persecutórios, o levaram para a morte, para debaixo da terra, para o Inferno,
para junto da deusa. É o momento de a gente perguntar: são as Erínias que o
levam, ou é ele que leva as Erínias? Sartre passou perto em sua peça As
Moscas, em torno das mesmas Erínias. Certamente Édipo conseguiu carregar
as Erínias para os Infernos. Elas não têm mais que perseguir ninguém, pelo
menos ninguém em torno da postura de Édipo, não iam mais perseguir o
acontecimento Édipo na história de Tebas. Édipo leva as Erínias de volta para
o Inferno, junto com ele.
Antes de falarmos de Antígona, há uma outra coisa que é muito difícil
de abordar: aquele reconhecimento, quando Jocasta se enforca, é uma punição,
é um remorso, é uma pressão superegóica? Duvido muito que com sua
perspicácia, Sófocles fosse colocar, numa mulher, uma posição desse tipo. Nesse
momento pergunto a Marcel Duchamp, que fez um quadro de que já falei
bastante em anos anteriores, La Mariée mise à nu par ses Célibataires,
même, A noiva desnudada por seus celibatários, mesma. Sua construção é
extremamente complicada. Ele pendura a noiva lá em cima e o apelido que lhe
dá é le pendu femelle. Ele não diz “a enforcada”, e, sim, “o enforcado fêmea”.

181
Psicanálise & Polética

É uma espécie de resto pendurado lá em cima. A máquina celibatária com toda


aquela engenharia simbólica que ele monta, e emitindo tesões para cima,
justamente em função daquela maçã pendurada no galho, aquele pendu femelle,
que é uma espécie de objeto a, de resto, sobrando. É interessante que
Pisanello, em São Jorge e a Princesa, faz algo muito parecido. Duchamp
nunca disse isso, mas a temática sendo mais ou menos a mesma, me
parece que o afresco de Pisanello tem estrutura de encadeamento do
mesmo tipo do Grand Verre. No canto esquerdo, justamente na parte em que
Duchamp coloca le pendu femelle, estão os enforcados de Pisanello. Há
toda uma mitologia, e toda uma bruxaria em torno dos enforcados. Eles,
ao morrerem, ejaculam, e as mulheres mais velhas, que sabem das coisas,
vêm colher o esperma no chão, porque aquilo vai ter utilidades mágicas,
para fazer uma série de defesas. O enforcado fêmea, não deve ejacular,
certamente... o que temos, então, é a manipulação, a transação com esse resto,
tipo maçã pendurada no galho, que vai determinar todo o processo.
Estou aventando uma abertura. Acho que há que retomar Duchamp
por aí, pois ele está tratando justamente da diferença sexual em seu
quadro. Os teóricos desejantes – desejantes são a patota anti-edipiana
– têm escrito trabalhos sobre Duchamp, mas ficam na parte de baixo,
nas máquinas celibatárias, evitando a barra. Aliás, nas fórmulas quânticas,
se virarmos – não sei até que ponto Lacan transou isto tudo com Duchamp,
porque era amigo dele –, botando o masculino embaixo, é muito parecido
com a estruturação que Duchamp dá ao quadro.
Há como que uma barra de separação entre o masculino e o feminino,
que é o problema que o Duchamp está abordando. Ele está tentando esta
equação na Mariée. Em seu último trabalho – que ele escondeu durante anos
e hoje está em exposição nos Estados Unidos –, Étant donnés 1º la chute
d’eau 2º le gaz d’éclairage..., Sendo dados 1º a queda dágua 2º o gás de
iluminação..., ele vai fazer aquela abstração de engenharia simbólica em nível
pop. É sua última obra, com mesma questão, a castração e a diferença sexual,
que o aborreceu a vida inteira, que foi seu problema.

182
Édipo e osome

* * *

Antígona tem um problema sério com Creonte. Como Édipo dissera,


os dois se matam, Etéocles e Polinices, nessa luta de prestígio para agarrar o
poder. Creonte assume e resolve que Etéocles pode ser sepultado em local
sagrado porque estava dentro da pátria, estava a favor, defendendo do lado de
dentro. E o outro – atacando, até com ajuda de estrangeiros, do lado de fora,
cometendo, de certo modo, atos tipo Laio, tipo Édipo, rompendo o cerco familiar
de Tebas – é considerado espúrio. Creonte proíbe seu enterro. Antígona resolve
criar um caso. Ela não aceita, de modo algum, que seus dois irmãos não sejam
enterrados do mesmo modo, já que estão mortos. Todo o drama de Antígona é
em torno desta questão.
Um comentarista, que introduz esse texto em francês, chama a atenção
para que o drama se torna um conflito entre a consciência humana, o humanismo,
etc., e a razão de Estado. Diz ele ainda que o autor toma nitidamente partido
pela consciência humana. Vamos ver se é bem isto o que acontece. Pode ser
isto, mas talvez não o seja muito bem.
Há, também, uma diferença entre Ismênia e Antígona. O tempo todo,
Ismênia é uma figura muito engraçada porque aparece assim como uma
bobalhona, que vai sempre carregada. Quando Antígona lhe diz que, como
irmã e filha de Édipo, ela não pode fazer outra coisa senão exigir o mesmo que

183
Psicanálise & Polética

ela está exigindo, Ismênia tira o corpo fora e, entre outras coisa, diz: “Pretendo
obedecer os poderes estabelecidos, os gestos vãos são tolices”. Ela toma o
partido do tio por uma questão muito simples: regra é regra, não vou embaralhar
as coisas. Ismênia funciona, no texto, como uma espécie de menininha mimada
o tempo todo. Hoje seria madame pequeno-burguesa.
Antígona insiste. Cria todo aquele caso, mesmo com a ameaça de
punição por parte de Creonte. A coisa chega a um ponto tal que ela, no peito,
enterra o irmão que estava proibido de ser enterrado. Creonte, então, tranca
Antígona numa caverna completamente fechada, uma espécie de sepultura,
fecha-a com uma pedra pesada e ela é condenada a perecer lá dentro, sozinha.
Lacan, quando mostra – no Seminário da Ética – a diferença entre a
primeira e a segunda morte, dá como exemplo, justamente, Antígona. A morte
que nos habita, a mais importante, que é a indicação da pulsão de morte em
Freud, é a segunda morte. Não é essa morte, perecimento, que supomos que
vamos encontrar. Essa condenação toda, que os homens são mortais, que vão
perecer, não é disso que Freud está falando. Essa que nos habita nas angústias,
etc., que é o cerne da pulsão de morte, é a segunda morte, ou seja, a morte de
Antígona. A de Ismênia deve ser a primeira.
Qual é a morte de que Antígona está sofrendo, quando presa dentro da
caverna? É a morte em vida, o morto-vivo. Ela fica condenada a viver como
morto, pelo menos por um tempo, até sucumbir. Essa morte que portamos
como vivos, que é a morte que interessa na pulsão de morte. Porque há um
gozo fundamental para Antígona, ela está gozando a cara do povo tebano e de
Creonte, sobretudo. É esse gozo aí que nos mostra a relação que tem a morte
com o gozo, a morte com a diferença sexual. É nesse nível de morte. Se não a
estivesse gozando, o que ela estaria fazendo lá dentro? Bastava cumprir a
ordem, como Ismênia. Ismênia era bem-comportada, não abria mão do prazer
de estar bem-instalada, no social, de cumprir as leis para não se ferrar.
O autor do prefácio mostrou uma luta entre uma consciência humana
e uma razão de Estado. Antígona diz que a lei de Creonte, a lei do Estado, não
pode ser superior à Lei dos Deuses, à Lei do coração, à Lei do Amor. É dessa

184
Édipo e osome

Lei que Lacan está falando. Seja o que for, ele, Polinices, é um sujeito falante.
Exijo respeito a essa diferença e morro por ela porque vou gozar nessa diferença,
custe o que custar. Não se trata aí, de modo algum, de respeito à lei de Tebas,
a regulamentação que foi posta num momento estratégico, particular.
Por que, então, Antígona faz tudo isso, toda essa luta que não é de
prestígio, como aquela entre Etéocles e Polinices, como aquela entre Creonte
e Édipo, antes de ter furado os olhos? Porque ela está herdeira do Nome do
Pai, herdeira de Édipo. Não o Édipo tolo de antes do trágico, mas o Édipo
poeta que ela conheceu no seu passe, aquele que assumiu o Nome do Pai, que
não é ele, é o abstrato a que ele também está referido, à terceira instância.
Édipo descobriu a Lei e percebeu que, tolamente, estava defendendo as leis de
Estado sem querer se dar conta da diferença que Tirésias lhe mostrava como
Lei fundamental. Ele recupera a posição nessa Lei. É essa Lei de que fala a
psicanálise. Que Lacan diz que não é a lei do mundo, mas a lei do coração: a
versão paterna.
Ela faz das tripas, coração. Fez do corpo, o coração. Tudo que pintou,
ela colocou como respeito à diferença. Por quê? Porque o outro é meu irmão,
não há mais o que discutir. Ele é filho da mesma coisa, do mesmo pai. Posso
respeitar as razões de Estado até o limite do respeito a essa diferença. Eu não
diria, também, de jeito nenhum, que o gozo fálico é o da Ismênia, porque o
gozo-fálico é gozo. Quer dizer, então, ela goza contra a corrente. E se o gozo
do Outro não existe, porque não existe, ele é indicado de qualquer modo aí.
Antígona indica a sua relação com o divino, esse divino que venho insistindo. É
nesse divino que ela insiste. As leis de Creonte não podem ser superiores às
Leis dos Deuses e eu, como herdeira de Édipo, não vou permitir isto, custe
quanto custar.
Creonte, também, vai ser atingido, não punido. Creonte não vai ser
punido, porque está dentro das regrinhas, ele funciona... Ele será atingido pela
mesma desgraça, ou seja, pela mesma graça que atingiu Édipo e Antígona: a
morte do seu filho em função de seus atos, em função da punição que ele deu
a Antígona. Isto é mais um reforço do poeta Sófocles mostrando que o que ele

185
Psicanálise & Polética

quer indicar, nesse ciclo, é toda essa passagem desse animal de quatro patas a
duas e a três patas, deixando, portanto, de ser animal, nesse processo. Processo
este que Freud concebe como sendo a castração, e que Lacan esmiuça e
acrescenta as suas intervenções.
Este ciclo Édipo Rei, Édipo em Colona e Antígona é o que fecha o
processo edipiano. Não se pode ficar em Édipo Rei, sobretudo na sua primeira
metade, como se fica nas críticas às construções edipianas de Freud na
psicanálise.

* * *

O que é o Édipo, ou melhor, qual é o tempo do Édipo em Freud? As


primeiras abordagens de Freud deixam o Édipo completamente sem tempo.
Tempo na vida particular, individual, de cada um. Ele mostra que a coisa vem,
só se organiza mesmo na puberdade, etc., e ele fica meio perdido... Depois,
como ele consegue montar aquele quadro em torno dos três aos cinco anos de
idade, vai acabar dizendo que é por ali. Acontece que esse “por ali” fica des-
mentido tanto pelo próprio texto freudiano quanto pelos atos de Freud, como a
descoberta, por exemplo, da pulsão de morte. Freud, aos sessenta e quatro
anos de idade, em 1920, faz certos acrescentamentos. Qual é, então, o tempo
do Édipo? Quando é que se resolve o Édipo? O tempo integral, digamos assim,
não tem integração nenhuma. Qual o tempo linear, longitudinal, do Édipo? No
caso do propriamente dito, é extremamente longo. Termina no passe, no passe
de Édipo, de garoto babaca a poeta. Não será a dissolução mesma do complexo
de Édipo, que passe por todas essas fases, que traz o chamado passe?
O interesse desta abordagem foi para reduzir, em última instância, o
percurso chamado edipiano, na psicanálise, a isso que Lacan reduziu, que é a
insistência na Lei, enquanto suporte de pura diferença. A redução de toda essa
estrutura à diferença sexual. Por que estou dizendo diferença sexual? Porque
Sófocles, com muita sensibilidade, com cuca lacaniana avant la lettre, vem
mostrar que o masculino na sua forma específica de castração se contenta

186
Édipo e osome

muito facilmente com a lei dos homens, a lei d’osome, esse personagem criado
pela mitologia contemporânea. Não é que ele seja necessariamente osome,
mas ele se contenta muito mais facilmente com essa lei. Ele mostra que, numa
postura feminina, numa partição entre a pressão d’osome e a Lei divina,
encontra-se essa requisição da diferença que comparece em Tirésias, em Édipo
depois do passe, e, mais regionalmente, sem aparecimento de nenhum passe,
como herança do Nome do Pai, em Antígona, que exige, numa postura feminina,
o reconhecimento da supremacia da Lei e do Pai, e não da regra social, da
regra cultural.
Estaria eu aí dizendo que só existe analista no feminino? Que Deus é
feminino, já se sabe, que o pai usa a máscara da mulher, ou é uma mulher
mascarada, já se sabe. A mais importante, para retornarmos às questões que
vínhamos colocando, é a possibilidade de utilizarmos essa tentativa de visão de
hoje como um aparelho de distinção daqueles dois momentos que tentei situar da
vez anterior: o momento de instalação da Lei não sendo do mesmo nível lógico,
da mesma instância, que o movimento de instalação da cultura. O movimento de
instalação da Lei como reconhecimento de uma diferença não é o momento de
instalação da lei como regra, como modo de operação do social.
Melhor dizendo, se pudermos fazer a distinção entre o social e o cultural,
a Lei de Antígona instala o social, a possibilidade de convivência entre falantes,
seja em que tipo de enunciado for, e criticando esses enunciados em todos os
momentos da sua aparição, porque qualquer enunciado será careta em função
dessa Lei. Ao passo que o enunciado que precede aquele momento na tragédia
não é senão esse outro nível de instalação da lei como razão de Estado, como
regra de comportamento desses falantes. Isto é que estou chamando de cultura
naquela fundação. A interdição do incesto, da qual o Édipo não se pune, e que
vem fundar a cultura, é sintoma de instalação, herdeira da Lei, é claro, mas como
enunciado específico, seja qual for a dimensão da sua estabilidade democrática
no mundo contemporâneo. É uma diferença, digamos, entre o poder e a Lei. Não
se instala nenhum enunciado a não ser com base no poder. O que está dito no
segundo momento é que o poder garante o funcionamento da regra. Mas é a

187
Psicanálise & Polética

ordem divina, a ordem paterna que Lacan tentou estabelecer com mais clareza,
que funda a Lei.
Osome, esse personagem, ele nos faz acreditar – posso dizer “ele”,
porque está no masculino – que está nos destruindo em função da Lei, mas
ele só está fazendo isto porque tem o poder de manter um certo enunciado
que pode ser o que podemos chamar uma lei celerada, uma lei facínora, esta
é a palavra que eu gostaria de substituir naquela distinção que tentei entre
perversão e perversidade. Existe o perverso, aquele que está na versão
paterna, e existe o facínora, para o qual a diferença é anulada. Osome é
facínora... todo mundo sabe.
É preciso perguntar sobre o nível de perversidade, de facinoriedade,
que se encontra na pressão sem limite de um enunciado legal. Foi contra isso
que Antígona se rebelou. Há um limite para a pressão do enunciado legal que
defende o status quo social, limite este que é a Lei, aquela que instaura a
diferença e exige a sustentação da diferença, embora com controles. É possível,
pois para alguma sobrevivência é preciso certa pressão de controle, mas não
se pode ultrapassar certo limite.
Cada vez mais, estamos vivendo dentro de um círculo e de um cerco,
em que osome quer nos fazer crer que são representantes da Lei enquanto tal,
quando são imposições de poder que estão devastando a face da Terra. É o
terrorismo fundamental... Este é o fundamento do terrorismo – ainda que oficial.

20/JUN

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Anti gona

9
ANTI GONA

Anti, como vocês sabem, é prefixo que vem da preposição anti, que
significa contra, em contrário. Não é o mesmo prefixo que, em português,
deu ante, que significa antes. Gonos, do grego, é o que, em brasileiro, deu
gônada, no sentido fisiológico, como diz o dicionário, de semente genital.
Semente genital quer dizer sêmen, esperma, como, por exemplo, está na
palavra brasileira gonorréia, que vem do grego, só que não significava isso
que significa hoje. Corretamente, é corrimento seminal. Certamente, eles
confundiam pus com sêmen.
Anti-gona quer dizer contra-sêmen. Raymond Roussell tem um conto
interessantíssimo, se não me engano em Impressions d’Afrique, onde existe
uma estatueta, na África, que ele chamava de sêmen-contra. Talvez isso
tenha alguma relação. Trata-se de um caso de impossibilidade de fecundação
de certa princesa. Então, anti-gona, anti-sêmen.
Forcei essa escansão, essa interpretação, na verdade, para mostrar
como Antígona propõe uma Lei que não é seminal, ou seja, não é genital, não
é genitiva no sentido da lei do Estado que Creonte, por exemplo, representava.
A proposição de Lei que ela faz é proposição de Lei Divina. Divina aí
significando o que Lacan chama a Lei do coração, quando diz que não são
essas leis do mundo real. É simplesmente a Lei do amor, quer dizer, a père-
version. Neste sentido é que estou colocando Lei divina, contra-sêmen.
Exatamente aquela que já tive oportunidade de mostrar num pequeno verbete

189
Psicanálise & Polética

de Émile Benveniste, no Vocabulário das Instituições Ocidentais, que


produz a diferença entre frater e adelphos, a diferença entre fraterno, que
é por lei, por ordem simbólica, e o irmão, supostamente carnal, que chamamos
de adelphos. São duas posturas para o irmão. Assim como há, também no
mesmo Vocabulário, duas posturas da paternidade, a filiação recebe o título
de nepos, genérico, de onde vem a palavra brasileira “nepotismo”, que é a
influência do sobrinho, no sentido do favoritismo por via dos parentes, e filius,
que é aquele que era sustentado pelo pai.
Tanto aí no Vocabulário quanto nestes textos de Sófocles encontramos
essa diferença entre duas posturas da Lei, que tentei escandir numa dupla
articulação: enquanto castração, proveniente do Nome do Pai, e aquela que
instaura a cultura e funda, portanto, a ordem do parentesco e o regulamento de
Estado, do grupo social. Uma fundando sociedade, possibilidade de associação
dos seres falantes, e outra, noutro momento, fundando cultura, um certo modo
de associação, uma certa postura sintomática. É nesse sentido que coloco Anti
Gona, pois a postura de Antígona, no texto de Sófocles, é defender a Outra
Lei quando se insurge contra a lei de Creonte. Creonte é o tirano.

* * *

Há um outro sentido que quero dar à Antígona. Como se diz vulgarmente


“antigona”, antiga, muito antiga. Antigona é a mais antiga, no sentido mesmo
da postura legal. Quero supor que essa posição de Antígona é surgimento do
feminino, o qual vem em sustentação da Lei. É através do feminino que se
evidencia, se mostra, pelo menos, a diferença. Se não, não se teria a diferença:
se os homens fazem um todo, a diferença não aparece lá, a não ser nessa
confrontação com o diferente. O feminino é o lugar de exibição, de mostração,
da diferença. Assentado, portanto, nessa diferença, o feminino nos mostra que
a Lei se sustenta em sua suposta universalidade de que tudo é particular, tudo
é diferente. Seu surgimento é, retrogressivamente, o mais antigo, isto é,
estruturalmente, tem que ser considerado como primeiro. A dedução que a

190
Anti gona

psicanálise faz é de que a diferença pinta indefectivelmente e a estrutura se


apresenta no regime da diferença. Estruturalmente, essa postura, essa emergência
de sustentação da Lei com o feminino, com a diferença, é, então, primeira, mais
antiga. É a postura antigona da Lei.
Entretanto, Freud descobriu que se começa – nos logros imaginários e
nas incertezas lógicas – pela renegação da diferença. Ou seja, começa-se
aparentemente, entra-se na jogada, pela lei do homem, que não é a mais antiga.
Todos sabem que a lei do homem é: “Primeiro você dá, depois você come”. Daí
é que vem essa imposição. Do ponto de vista dessa lei do homem, todos são
iguais perante a Lei. Se houvesse essa possibilidade de indicar uma lei de mulher,
diríamos que a Lei instaura a diferença, entre cada um e todos. Melhor dizendo,
entre cada um e cada um.
Mas, alguma coisa se passa na medida em que esses dois momentos
não são distinguíveis, discerníveis: a instauração do social e a instauração da
cultura. Um momento da possível fundação de um universal suposto, puramente
suposto, que se dê logicamente, e a instauração dessa diferença, entre cada um
e cada um. Esses dois momentos estão engrazados, entrelaçados na própria
emergência da Lei. Um depende do outro e o outro depende do um. Se não há
suposição de que “existe pelo menos um que faça suspensão da função fálica”,
nada se organiza, nada se articula como universal. “Para todo homem há função
fálica”, porque houve uma suspensão lógica dessa função. Isto não se diz sozinho,
mas, só, na contrapartida da possibilidade de não se fazer essa suspensão e,
portanto, de não haver uma paratodização do processo. Quer dizer, o que sus-
tenta como emergência a Lei é justamente a particularidade do feminino que
pinta diante da suposição de um universal que só se dá do lado do homem.
Fazendo um parêntese, aconselho a leitura de um texto que acho
importantíssimo: L’Amour de la Langue, de Jean-Claude Milner. Lá encontramos
um grande esclarecimento das questões que estamos tratando aqui.
Não se pode, como já vimos, situar nenhuma função de totalização se
não se supuser, por exclusão, por princípio lógico, existir pelo menos um que
seja limite dessa função. Só assim se pode chamar essa função de uma função

191
Psicanálise & Polética

para todo. Toda vez que se pensa numa totalidade, a borda, o limite dessa
totalidade supõe a suspensão dessa função situada em algum elemento da
mesma ordem. É o velho problema de ser necessário, para que haja o suposto
todo, haver a não inclusão desse todo em si mesmo. É uma espécie de solução
daquele famoso paradoxo de Russell, que já comentamos: o catálogo de todos
os catálogos não se inclui a si mesmo, pois o catálogo de todos os catálogos,
incluindo a si mesmo, produziria uma série infinita de catálogos. Então, não se
pode jamais dizer “para todo catálogo, a função catalogal...” se não se suspender
essa função como borda do catálogo que contém os catálogos. Tenho que
considerar, do ponto de vista externo, uma função catálogo que se suspende:
“existe pelo menos um, que não é função aqui”, se não haveria este catálogo
contendo todos... e mais ele próprio... e não tenho como fechar o parêntese. É
uma questão de série.
Então, só posso dizer “para todo falante há função fálica” justamente
porque posso supor que “existe pelo menos um onde essa função é suspensa”.

xx  xx. Se isso não se colocar, terei a outra fórmula: “Se não existe

nenhum que faz suspensão à função fálica, a função fálica permanece, mas
não se totaliza”. Não posso fechar o cinturão desse conjunto porque não tenho
o limite do conjunto. Se não houver suspensão para a totalização mediante um
elemento que sustente a existência de pelo menos um que não é função fálica,
onde essa função é negada, não posso dizer que para todo há função. Não
existe nenhum limite determinado. Logo a função fálica está aí, mas tem que
aparecer essa coisa estranhíssima para a matemática que Lacan foi o primeiro
  
a acentuar, a negação sobre o todo: x x x x. Quando Lacan escreve
“para não-todo – ou não para todo, que dá na mesma – existe função fálica”,
não significa que existe pelo menos um que não seja. De modo algum! Não é
que haja exclusão de algum que faça com que o total não se realize. Não é por
somatório ou por justaposição. Significa, sim, que, se para não-todo há função
fálica, ela há a cada momento, mas não se totaliza. É da ordem do infinitivo. É
o jogo de Aquiles e a tartaruga, de Zenão. Não se trata de um momento de
exclusão que viria, outra vez, fundar um universal. Esse momento, que pinta

192
Anti gona

como diferença, vai me dar justamente a suposição do acontecimento com a


suspensão do que aconteceu com a suspensão.
A função paterna tem a ver com isso na medida em que a referência
desse externo é paternidade caída no real, que é só existir pai simbolicamente.
O outro que está do lado de fora, que permite essa todização, cai certamente
na máscara do feminino como excluído, como suspensão. Esse momento de
suspensão cria uma ambigüidade entre a função que funda a totalização e a
função não fundando a totalização. Ele fica no limiar. A lógica até Lacan –
porque isto também é lógica –, essas estruturas matemáticas, têm recaído na
função para-todo. Por isso, a negação do para-todo se abole na exclusão. Em
Lacan, ao contrário, é preciso manter o para-todo e escrevê-lo. Ele é escritível
e mantenível na medida em que aponta para a infinitização na função: é função
fálica, mas não-toda.
A partir daí, não há Outro do Outro. Não há nem mesmo o Outro, pois
ele só pode existir como suposição. A referência limiar do psicótico é de um
Outro concreto. Se essa função suspensiva da castração se situa do lado de
fora para garantir que os homens façam um todo, é porque esta função participa
da não existência do Outro. O pai do psicótico, por exemplo, não suspende, ele
nega a função fálica. Não é negar no sentido lógico, é como se abolisse a
função fálica. É como se fosse um pai onipotente. Se esse Outro, o Outro de
todos, que garante seu limite, vive nesse mito de infinito, nessa ambigüidade,
ele tem que, necessariamente, participar do feminino. A função paterna não é
masculina. Ela não se diz no masculino, não pode se situar aí, pois, justamente,
profere a suspensão. A função é esse proferimento. É preciso fabricar um Pai
Ideal – até mesmo congelado – para ele vir se figurar como capaz disso. É o
Pai Ideal, e extremamente esse pai do psicótico, que vai tentar congelar essa
figuração masculina do pai.
Trata-se, então, de pura suspensão lógica de uma função, pois não há
nada no corpo que obrigue a isso. Existe apenas diante da diferença que se
impõe porque surge como particularidade. É essa emergência que se supõe no
campo do feminino e, diante dela, diante do processo de renegação, nessa

193
Psicanálise & Polética

oscilação de há-diferença/não-há-diferença, só se tem duas saídas: suspender


ou incluir. Ou se suspende a função fálica e, então, parece que a função fálica
ordena um todo; ou se inclui a diferença e não se consegue ordenar nenhum
todo. Por exemplo – apenas para situar momentaneamente –, quando se dá
atenção às lutas feministas, verifica-se que elas se apresentam como lutas de
machos. Isto na medida em que não lutam pela inclusão da função e, portanto,
lutam pela não suspensão. Elas lutam – como se fosse um outro partido de
homens – por um processo de totalização. Denuncio as funções chamadas
feministas de homossexualidade masculina. Está lá no filme de Fellini.
Logicamente, não é possível, dentro desse rigor, estabelecer-se nenhum
universal enquanto tal. É possível, apenas, fazer-se a suposição do contraste
dessas duas possibilidades lógicas. Se a diferença é irredutível, pode ser
renegada, denegada, etc., mas cola-se necessariamente sobre todo e qualquer
falante. E, no que ela se cola como pura diferença, podemos fazer a suposição
desse universal. É mera suposição, assim como o é o sujeito, pois ninguém
segura um sujeito. A psicanálise colocou a diferença como uma dedução da
sua prática. Digamos que, indutivamente, o processo se apresenta constante-
mente em toda e qualquer fala. Deduz-se daí a diferença como indefectível.
Posso, portanto, fazer a suposição de que há um universal que não é o universal
do homem, o para-todo, a totalização. É, sim, a repetição da diferença, fundando
incessantemente – não deixando de se escrever – isso que colocamos como a
Lei, ou seja, a diferença. Sempre há diferença. Não é possível, senão por
denegação, fingir que não há. A renegação supõe reconhecimento, parcial que
seja, da diferença.
Podemos dizer, então, que o reconhecimento da diferença vem em
suplência a um universal – que seria dado se pudesse. É a coisa necessariamente
mais antiga, e historicamente mais nova. Ou seja, o reconhecimento da diferença
é aquilo que é recusado, renegado, denegado, recalcado, em função de um
aprisionamento nessa totalização de um momento outro da Lei. Quer dizer,
essa machificação, senão massificação da Lei. Isso aparece na língua, quando
ela deixa de ser suposta como alíngua que é. Ou seja, quando da alíngua se

194
Anti gona

quer fazer uma língua, no sentido linguístico do termo. Quando se quer fazer
da alíngua, que só se diz no feminino, a linguagem suposta como sendo universal
da língua. Momento que, em última instância, vem a ser de codificação. Estou
querendo dizer, entre outras coisas, que existe na fundação da cultura esse
processo de machificação, de massificação, essa tentativa de equacionamento
definitivo de um sistema que possa totalizar os falantes. Retornarei a isso.

* * *

Poderíamos procurar uma metáfora de aproximação dessa tal Lei,


que se instala como de ordem divina, nisso que se chamou lei natural. É claro
que não existe isso, lei natural. Mas pudemos supor, como mera construção
imagética, uma lei natural que funcionasse... Supor, por exemplo, que as leis
da física não fossem leis da física e fossem mesmo leis da natureza. Então,
posso supor que há suplência à falta de universal nisso que estou colocando
como Lei, ou seja, a diferença indefectível, a repetição incessante da diferença,
situando, sobretudo, a impossibilidade de relação sexual. É impossível porque
a diferença indefectivelmente aparece. Aí estou fazendo a metáfora de um
conto de fadas, de uma lei natural. Aí é que se enrascou a Antropologia, por
exemplo, para a qual há natureza, deve ter a coisa natural... Não há nada de
natural, só pura metáfora.
Outro dia me perguntaram se era possível a existência dessa Lei
fundamental, essa que garante qualquer processo do falante, na medida em
que ela é a estrutura, dizendo que toda lei é função de um poder. É preciso
fazer uma distinção, pois o poder faz cumprir uma lei sob ameaça de punição.
É a gramática normativa de qualquer língua codificada. O poder entra por aí. A
lei de que Lacan está falando, tirada de Freud, tirada dessa estrutura, não
depende de nenhum poder para ser exercida. Ou seja, o descumprimento da
Lei não incorrerá em nenhuma punição. Não há transgressor da Lei. É
impossível transgredir a Lei, já que a Lei coloca como impossível qualquer
plena identificação. Por isso faço a metáfora da lei natural: jogo a pedra para

195
Psicanálise & Polética

cima, ela cai, posso proibi-la de cair, mas ela cai. Ela não cai transgredindo
nada. Mas é pura metáfora, porque isto é uma lei da física... Ou pode ser uma
lei da minha experiência: se jogo uma pedra para cima, ela pode cair na minha
cabeça, realmente.
É o real sustentando a Lei, o fundamento ético da psicanálise. Essa
Lei, essa ética, se sustenta num real como impossível de ser escrito. Portanto,
impossível de ser transgredido. A diferença, como universal suposto na
psicanálise, pintará em qualquer condição. Este é um dos motivos de a
psicanálise não acreditar em revolução enquanto tal: um giratório das formas
produzindo a forma esférica perfeita... Mas pinta a diferença... graças a Deus!
Se a psicanálise é a peste, e se tem contra ela certas ordens instituídas, essas
ordens todas não conseguem cobri-la, porque ela é não-toda. Ela vem colocar
essa Lei do não-todo e, portanto, o vírus a que a psicanálise se refere é
indestrutível. Pode-se acanalhar a massa ao máximo porque, eis senão quando,
o vírus pinta. Pelo menos, a suposição que podemos fazer é de que, talvez, este
seja o único otimismo da psicanálise, pois tudo nela é pessimista. Talvez ela
tenha um único otimismo: a diferença não deixa de comparecer – para o melhor,
ou para o pior.
Não há transgressor possível no regime dessa Lei que não depende de
nenhum poder. A Lei que só se instala e se instaura porque há um precedente
na Lei enquanto tal, ou seja, o impossível não podendo ser dito, só se diz como
interdito porque há esse precedente. A lei se instala com base em algum discurso,
em algum poder, certamente, e a sua referência é pura codificação. Por exemplo,
as leis da língua brasileira que a Academia se esforça por estabelecer e que os
falantes, sem esforço algum, subvertem... porque a Lei se reporta à estrutura
e não a nenhum código.
Em qualquer proposição de história, salvo erro, quero supor que exista
um encadeamento de causas e efeitos. Se penso em história é porque estou
supondo que determinado acontecimento, determinada série, tem a ver com
outra determinada série, que foi por ela determinada. Não preciso da
determinação nessa produção de sentido de cadeia para cadeia, cadeia de

196
Anti gona

eventos, para pensar o contingente. Aí é que Lacan deu um grande golpe na


lingüística, quando inventou o que chamou de alíngua, numa palavra só. O
emaranhado em que vivemos, observando a língua através de uma pressão
paradigmática, de ordem instituída, de nível de poder masculinizante, totalizante,
etc., se esconde – e, sobretudo, de modo pedagógico. A lingüística não tem
nenhuma função a não ser universitária. Podemos até recolher achados da
lingüística para pensar, mas, sem a função pedagógica, ela não existe, ela é
função do discurso universitário. Na medida em que é meio de transmissão
desse processo de totalização de uma cultura, a lingüística estuda aquilo que
chama a língua, na suposição de que ela existe como um todo. É melhor se
dizer: o língua, ou seja, uma “unilíngua”.
Lacan mostra que a lingüística só consegue fazer isto abolindo o que é
possível de se escrever na alíngua. Só consegue o contrário se houver suspensão
da proibição. Caso, por exemplo, dos anagramas, como Saussure estudou, caso
do ato-poético, temos toda uma estética da transgressão na poesia... O poeta
transgride o quê? Nada, do ponto de vista da psicanálise. Do ponto de vista da
lingüística, ele faz uma transgressão, seja sintática, semântica, etc., em relação
à codificação. O estudo da língua evita pensar justamente o que a sustenta.
Por isso Lacan usa o termo alíngua para significar que não existe possibilidade
de se construir um “para todo” da linguagem. Onde se desemboca de mais
antigo, na lingüística, é, supostamente, no indo-europeu, que aliás é fabricado.
Existe o ser falante falando alíngua. Por pressões paradigmáticas, se
pergunta: “Que língua você fala?” Responde-se: “Falo francês, inglês, etc.”
porque se está estatística e pedagogicamente situado numa certa referência.
Entretanto, no dizer a verdade segundo o modo de operação do inconsciente,
cada sujeito situa a língua – não é nem como língua materna, que é mera
aparência, mera emergência da sua colocação particular no seu caminhar como
sujeito – de um modo estritamente particular. Em última instância, o sujeito
falante não tem outra ética, senão o estilo. O estilo não está aí definido do
ponto de vista da teoria, dos teóricos da literatura, da linguagem, como modo
de operação de figuras de retórica, de gramática, de escrita, etc. Cada falante

197
Psicanálise & Polética

tem seu estilo. É nesse momento que Lacan situa o Wo es war de Freud, que
muitas pessoas ficam pensando que é um comando superegóico, obrigação
moral de ir à verdade. De modo algum! É o retorno ético do sujeito à sua
própria fundação. Se ela vai pintar indefectivelmente, mesmo que seja por via
gravemente sintomática, é porque é irredutível, indestrutível. Freud está dizendo:
“Por que vou fugir da minha alíngua, da minha particularidade falante? Defronto-
me com ela e deixo que ela fale”. Isto é função de uma ética da repetição, que
tem fundamento no real, e não função de um superego que tem fundamento
numa obrigatoriedade figurada.
É a suposição de que esse real pinta, e que o sujeito – emergindo,
quer dizer, ex-sistindo, existindo fora desse real, com assento no simbólico – é
estritamente particular. Em última instância, outra vez, vem o antigamente da
Antigona. Por essa particularidade é que o sujeito existe. Aí que Deleuze-
Guattari aproveitaram para inventar o tornar-se mulher, devenir femme. Saiu
daí... por outras vias evidentemente. Ninguém começa mulher. Isto é
descoberta freudiana, e é difícil demonstrar o contrário. O mais antigo é essa
fundação, mas ninguém começa, nas suas transações em torno do subjetivo,
por esse lado. Talvez seja a coisa mais difícil de se atingir. Por isso Lacan diz
que as mulheres são muito mais homens do que os homens. Não existe estilo
no masculino.
Não é possível não renegar, porque a diferença pinta sem esteio
originário do sujeito. Não há nenhuma marca, e não é possível não produzir
recalque originário. Do contrário, é a folia. O que vai entrar aí, é outra história.
A estrutura quando funciona não pode não produzir renegação. Não pode não
produzir recalque originário. O que não significa, como querem alguns teóricos
de vocação fascistóide, que entre nesse lugar a lei codificada. Não se encontra
isso em Freud. Não se trata de nenhuma codificação privilegiada. Trata-se de
que funciona assim. A renegação tem que pintar. É preciso uma polarização.
Funda-se um recalque originário a partir desse momento que é o de entrada de
uma particularidade chamada alíngua. Seja qual for a língua que caia sobre o
sujeito, a língua do lingüista, ele jamais vai falar... nem a língua da própria mãe,

198
Anti gona

porque senão seria a transmissão da língua. Não há transmissão da língua,


justamente porque o significante não tem significado. Bastava que um
significante, uma vez só tivesse um significado para transmitir a língua. Este é
o ideal dos lingüistas. Mas a língua se deposita sobre o sujeito de modo particular.
Assim como a escansão sexual se deposita do mesmo modo. Jamais se pode
dizer que, entre dois sujeitos, encontra-se o mesmo sexo. Não porque haja
muitos, mas, justamente, porque só há dois. Um diante do outro, pinta como o
outro diante do um. A diferença se instala. O que não é, de modo algum, desculpa
para a homossexualidade institucional.

* * *

Cada vez mais me dou conta de que Sófocles é poeta. Isto porque
quando leio um texto assim, minha intenção malévola é de derribá-lo para ver
se ele resiste. Deve-se ler um poeta sempre suspeitando que ele não o seja,
poeta. Se ele resiste, é você que cai. Em Antígona fica evidenciado o que se
passa naquela trilogia. A insistência de uma Lei fundamental contra a lei do
tirano, vigendo, apesar e contra a lei do tirano.
O próprio Édipo, com tudo o que tenha feito, ainda que numa inocência
forjada, não mereceu nenhuma punição que viesse dos Céus, ou coisa desta
ordem. Foi expulso por Creonte, etc... Nenhuma punição de destino veio sobre
ele, a não ser, o que não é uma punição, ter que tornar-se algo como Tirésias.
Ele matou o pai simbolicamente. O pai tornou-se um morto. Engraçado que o
ciclo começa com o assassínio do pai e termina com o assassínio do filho, de
que Creonte é acusado pela mulher e por todos. Não foi ele quem matou
diretamente o filho, mas seu ato resultou na morte do filho. Aí, sim, há punição,
pois não vemos Creonte virar Tirésias. Ele virou um rei troncho, fraquejante. É
interessante notar como é a questão da diferença sexual que está em jogo: a
questão da diferença entre a Lei maior e a lei menor é apontada freqüentemente
no regime da diferença sexual.
Antígona discute com Creonte sobre a questão da Lei: “Tenho que

199
Psicanálise & Polética

defender a Lei dos Deuses. Você está defendendo a sua tirania, o seu
interesse...”, etc. Creonte, imediatamente depois de condenar Antígona, diz:
“Ela está agindo como homem. Ela está sendo mais homem do que eu”. Ele
não suporta a diferença e pensa que ela está em luta de prestígio de homem
para homem. Quando o noivo dela, Hemon, que é filho de Creonte, também vai
discutir com o pai, aí, ele diz o contrário: “Você está agindo como as mulheres,
você é o herói das fêmeas”. A confusão que fica para Creonte é a distinção da
sexualidade. Antígona defende o tempo todo a postura da Lei maior, que não
suporta não se aceitar a diferença do frater, do irmão, que aqui, por acaso, é
filho do mesmo pai. Ela exige que ele seja respeitado com igualdade, porque é
diferente, mas é irmão. Ao passo que Creonte representa até o fim, até que
seu filho morra, e morre justamente por isso. O filho se mata quando vê Antígona
trancafiada. E sua mãe, que já tinha perdido o outro filho na guerra contra
Polinices, se mata quando vê o filho se matar. É uma punição total para ele, em
termos de perda de objetos. Mas, até esse momento, Creonte representa a
tirania. E essa tirania representa a absoluta caturrice em relação ao código,
pois a lei menor não diz apenas “é proibido isto”, ela diz: “Quem fizer isto, vai
ter aquilo como paga”. A caturrice de Creonte é o verdadeiro crime que
acontece nessa estória toda.
No fim, Antígona acaba por vencer. Ela se ferra, se enforca dentro da
caverna... Vemos Ismênia, junto com o chamado povo, se pendurando de um
lado e do outro. Quando pinta, de novo, Tirésias para avisar a Creonte que ele
está fazendo besteira e que vai pintar coisa ruim, não é o mesmo caso de
Édipo, que é contra o povo. Ocorre, outra vez, briga com Tirésias, parecida
com a briga de Édipo. Mas Creonte admite tudo, menos que se toque no seu
poder. Quando acontece – até do ponto de vista da opinião do povo, quando
começa a pintar a palavra de Tirésias e a possibilidade de vir a punição por via
de destino – de ele perceber que estava fazendo asneira, e ele sai correndo
para consertar, não dava mais tempo, o filho já tinha se matado. Ele vai lá
pegar o cadáver de Polinices para fazer o enterro, as libações, etc., mas aí já
havia tudo acontecido. Pela caturrice – o texto deixa isso claro – de ele se

200
Anti gona

reportar duramente à função do código. Era o machão. Não teve como aprender
a postura de um Nome do Pai, que é a função Lei/Desejo.
Por outro lado, acho que, talvez, encontremos outras posturas simétricas
à de Creonte: a de uma têmpera histérica de Jocasta, a de Eurídice, mulher de
Creonte que se mata, a do próprio Hemon, filho dele, noivo de Antígona.
Antigona fica um pouco afastada disso, mais na referência ao Nome do Pai o
tempo todo. Creonte quer fabricar um Pai Ideal que faça a abolição do Pai
Simbólico. Quer produzir-se e produzir um Pai Ideal que diz a Lei contra o
Desejo, não a Lei como Desejo. E, imediatamente, vira obsessivo – naquilo
que Daniel Sibony chama la haine du désir, o ódio do desejo – caindo numa
postura absolutamente homossexual de que não há diferença: “Não admito
diferença no meu reino. A lei é igual para todos e vai ser cumprida assim,
porque quero!” Jocasta estaria do lado não da haine du désir, mas do désir
de l’amour, o desejo do amor, que não é o amor, é a postura histérica. É o
desejo de ser amada. Nesse momento aí é que dizem que há diferença. Não a
diferença pura e simples, como artigo “a” diferença. É a postura justamente
das feministas, mães, etc., quer dizer, “eu sou o objeto amado”. A histérica não
é bem uma mulher, ela se faz de homem. O que Antígona quer relembrar, custe
o que custar, sem nenhum medo da morte, é o que ela insiste em dizer: “A
morte não vai me libertar”. É a diferença pura e simplesmente, a Lei do Pai. É
isso que Lacan chama a função paterna, o Nome do Pai. Lei e Desejo são a
mesma face da mesma uniface. Se a Lei não supõe Desejo, se Desejo não
supõe a Lei, estamos no arbítrio de algum senhor, de algum dono.
Há, a meu ver, clivagem entre uma postura supostamente de emergência
do feminino e outra que não é que se masculinize pura e simplesmente, é que
se homossexualiza, o que é muito diferente. Ou seja, abole a diferença. Não
existe outra homossexualidade pensável pela psicanálise, senão a tentativa de
abolir a diferença. Trata-se daquilo que eu disse no final do ano passado, quando
falava de Se é que Só é Isso, que era um grande complô homossexual das
instituições contra a diferença. Não se trata de nenhuma indicação neces-
sária de corpos, de relações homo corporais. É indicação dessa abolição

201
Psicanálise & Polética

homossexual, estritamente masculina, da diferença.


Toda vez que historicizo e que tento particularizar pelo anedótico, caio
numa imposição discursiva, numa figuração imaginária que, se pintar como
verdade vencedora, ou coisa desta ordem, é uma imposição imaginária como
outra qualquer. O que é a história? É a anedota que alguém resolveu contar.
Acho engraçado supor-se a essencialidade da história juntamente com a
invocação do desejo. Isto me parece absurdo. Certos grupos de pensamento
que assim fazem se contradizem necessariamente. O historiador aqui é Creonte
que olha para aquele discurso chamado Tebas e diz: “Este discurso, esta anedota
aqui, é a verdade. E tudo vai funcionar segundo essa anedota, a história de
Tebas”. Sem história, sem aquela função discursiva, não há Creonte, não há
trono, não há nada disso. A verdade aí vem do simbólico instalado
discursivamente. O que a psicanálise vem denunciar é que o discurso não é o
ser falante. O discurso é modo de produção, é equacionável. Não existe história
sem mestre, sem senhor, sem significante-mestre de referência.
A história só me é referência se eu entrar na patota do historiador, se
não, não é referência de espécie alguma para mim. Ela vai determinar o meu
desejo? É o logro em que cai freqüentemente o analisando. O analisando é
historiador. Ele deita lá e fica naquela bobice de produzir a sua história. Ele
produz a história dele, escreve as memórias, tudo o que aconteceu com ele,
procurando a determinação nos fatos. Não há determinação nos fatos. Quando
ele supõe ter a determinação, ele esbarra, leva uma rasteira, quebra alguma
coisa... Não há determinação nesse mito individual que ele está trazendo como
se fosse a transparência imediata e evidente da sua verdade.

* * *

PERGUNTAS

•P – Na base dessa inauguração de um estilo que seria o lugar mesmo da


particularidade, da singularidade, do homem, já haveria marcas

202
Anti gona

significantes, quer dizer, um esteio significante.


Isso é o que Lacan chama a metáfora paterna.
•P – E a questão é que, na psicanálise, é dito que esses significantes se
ordenam numa relação de cadeia a partir de um momento preciso da
história desse falante. É da ordem de um evento, de um trauma, de alguma
coisa que, praticamente, se pensou ser do complexo de Édipo, da lógica
edípica, que se instaurava essa cadeia de signilicante. Se estamos
pensando nessa grande Lei como anterior à cultura, anterior às relações
de parentesco, anterior mesmo ao complexo de Édipo, como podemos
pensar num significado que não seja a relação dessa cadeia já formada?
Dessa cadeia que já pressupõe o tal traumatismo, o tal evento cultural, a
tal relação triádica: pai, mãe e filho? Você quer entender tudo antes disso
acontecer, não é?
Existe um entrelaço, no qual suponho a existência de duas meadas
nesse mesmo momento. Uma de um lado, outra do outro. Não há anterioridade.
Uma coisa se funda no momento da outra. Você tem toda razão, não é possível.
Isso é o que se tem pensado até hoje, e aí é que está a nossa brecha. Não seria
possível, sem esta instalação sintomática, fundar-se essa Lei.
•P – Mas aí depende desse traumatismo, desse...
...desse não-saber. Não há possibilidade de emergência da Lei sem
entrelaço com esse sintoma, digamos, fundamental.
•P – A Lei grande é sempre um efeito. Só posso apreendê-la a partir de
seu efeito...
...nos falantes. Eu a deduzo a longo prazo. A partir dos efeitos que os
falantes me apresentam, vejo que a repetição da diferença é irredutível e
incessante. Daí é que a psicanálise deduz a existência da Lei, com a
impossibilidade da relação, como diferença não deixando de se escrever, não
deixando de surgir. Esse momento de emergência da diferença é o momento
mesmo em que há decantação sintomática. Ou seja, é o momento de alíngua,
que está lá. Minha pergunta é: por que tenho que supor isso que chamei de
cultura como sendo um universal?

203
Psicanálise & Polética

•P – Porque é necessário para essa Lei.


Devo supor que alguma coisa é necessária. Mas será que é a cultura?
Esta é a distinção que quero fazer. Até hoje, excluindo o que tento entender de
Lacan – me parece que ele deixa isso mais ou menos indicado –, se pensou
que a cultura é isso que é regido pela interdição do incesto como fundadora da
ordem de parentesco. Isto não tem sido um sintoma que, posteriormente, por
pressão de poder, por facilitações técnicas, digamos, no sentido tecnológico do
termo, tem aumentado esse poder de tal maneira que isso pinta por inclinação,
como via mais fácil? Não estou livre de um evento qualquer – até por efeito
dessa tecnologia mesma que outrora tivera produzido isso – se produzir numa
inserção social que não seja cultural. O temor que temos de pensar a possibilidade
de entrar na relação inter-subjetiva, mediante alíngua, é que nos tem, até hoje,
transmitido isto. Então, o que vem transmitido junto com a nossa operação de
língua é essa função edípica aí, no sentido de interdição do incesto.
•P – Essa Lei só pode aparecer em função dos seus efeitos, segundo o
aparecimento de algum sintoma, logo, segundo a organização de algum
evento que é da ordem da cultura, da ordem da história.
De modo algum. Temos que supor que o sintoma é dado como tal,
pronto?
•P – Estou querendo entender essa relação, que até então me pareceu
necessária, entre o sintoma e, pelo menos, a determinação dessa Lei. Se
não a formação dessa Lei, pelo menos, o impedimento dela como tal. A
Lei não aparece senão como um efeito, como uma configuração em cima
de uma organização sintomática. E nós sabemos que o sintoma é da ordem
do cultural...
Aí é que está o erro. O sintoma não é da ordem do cultural, o sintoma
é da ordem do real. Isso é o que querem nos fazer acreditar. Você está
parecendo supor que está aqui a chamada cultura e ali a emergência de um
outro ser falante, que vai pegar elementos que, por acaso, estão na cultura,
pegar elementos do Outro. O Outro não é a cultura. Que a cultura tenha
deglutido, nessa fundação de história em que vivemos, o Outro como se fosse

204
Anti gona

ela, é paranóia da cultura. Ali está o Outro e aqui elementos do Outro,


eventualmente pertencentes à cultura. A cultura pertence, está no lugar do
Outro, ela não o é. Há uma fundação, digamos, uma sintomática de base, que
vai dar alíngua. Isto veio como sintoma pronto? De modo algum! Aqui, nas
pegadas de Freud, Lacan vai falar do Nome do Pai, da metáfora paterna. Quer
dizer, a partir de um assentamento sintomático, significante, o sujeito vai produzir
a sua ordem sintomática, que não é, de modo algum, copiada daqui. É por
identificação de traços. Freud jamais falou em identificação imaginária na
fundação do sujeito. Alguns traços que vêm dali, certamente depois que en-
tram, vão aparecer, estar presentes aí. Ele vai mexer ali dentro com aqueles
traços e eles vão se decantar aqui numa metáfora.
Metáfora paterna quer dizer que o pai é pura metáfora. Qual é a
metáfora? É mero faz-de-conta. Essa metáfora não é senão decantação
significante para, mediante essa decantação, começar a relação de significante
para significante. Como não temos acesso, vivemos sem saber esse saber, e
como esse saber pintou como cultura, pensamos que, se o sujeito nasce dentro
da cultura, ele tem que ser cultural. Não! Ele está sendo, mas não tem que ser.
É no movimento significante que ele vai se inserir nessa cultura que está aí.
Estou chamando de cultura o que se estratifica como ordem de
parentesco sobre a fundação que se chama interdição do incesto, estritamente
do ponto de vista antropológico. Não estará o sujeito aí entrando por vias de
pressão cultural? Ou é porque, necessariamente, ele tem que entrar nessa? A
interdição do incesto é uma interdição como outra qualquer. É a interdição que
existe na língua, de se dizer tudo – porque é impossível dizer tudo. Quando me
coloco do lado do fechamento da língua e digo “isto não se pode dizer, é proibido”,
só faço isto porque sou professor de português. No entanto, e é aí que a
lingüística quebra a cara, isso pode ser dizível na alíngua. Esta proibição não
vem em lugar de um impossível – o real, como diz Lacan, é o impossível... à
espera de ser escrito. É o que se verifica no caso do ato-poético, como alíngua.
Quando o poeta consegue dar estilo, diz-se, por exemplo, “a língua de Guimarães
Rosa”, ele consegue mostrar a sua língua, como faz o Einstein do poster: bota

205
Psicanálise & Polética

a língua para fora, e faz a sua própria careta. Todo mundo fica apavorado
porque pensa que ele é um transgressor. Rosa não transgrediu nada porque
não disse o impossível de dizer, disse o que era possível, senão não dizia. É
claro que ele disse coisas proibidas pela idiotia dos normativistas, mas não
transgrediu coisa alguma. Existe estética da transgressão? Não. Existe est’ética
do corte. Quer dizer, na medida em que penso que a cultura decanta o sujeito,
estou tratando de Pedagogia.
•P – Mas a questão é que, em função desse corte, parece que não há
outra maneira de realização da Lei, que não seja a partir dos seus efeitos.
À Lei mesma, nunca se chega. Que lugar é esse aonde ela pode exercer a
sua função, portanto, aonde se possa depreender os seus efeitos, que
não seja da ordem disso que até agora entendemos por cultural? Ou
seja, as normas, as regras, as repetições, as decisões?
Não há onde. Você está definindo isto como cultural, eu não. Estou
diferenciando cultura de artifício. O artefato, o artifício, não é cultura. O que
estou chamando de cultura, não é tudo isso que o homem faz e,
megalomaniacamente, chama de cultura. Quando se observa os textos desses
culturalistas, sejam eles antropológicos, o que for, vemos que eles assentam
sempre o fenômeno da cultura na ordem do parentesco e, portanto, na interdição
do incesto. É a isto que estou chamando de cultura, e não o artificio. Que
outros artifícios podem fazer os homens para viver em sociedade? Que outros
artifícios os homens podem inventar, que não essa facilidade (que me parece
de imaginário animal) da cultura? Quer dizer, vê-se até Freud, e mesmo Lacan,
com cuidado, mantendo a interdição do incesto como fundamental, embora me
pareça que eles no fundo subvertem isso. Digo que é possível pensar a produção
do artifício com outros meios.
Saber é aquilo que ocupa o lugar do Outro, S2. Pintou S1, pintou S2. Só
pintou S1 porque há S2, que vai dar passagem. S2 não é senão o apelido sensível
do A. É isto que é S2 para Lacan. Em vez de falar o Outro, é o Saber que
transa por aí. Minha crítica à cultura não é, de modo algum, supor que as
ordenações, as invenções de regras, etc., sejam a cultura. O que chamo de

206
Anti gona

cultura é o modo de aparelhamento do social por uma, talvez, inclinação


imaginária, mais imediata. Há a inclinação de denegar a diferença sobre a
ordem de parentesco e a interdição do incesto.
Não há falante sem artifício. Não há falante sem proibição, mas há
proibições e proibições. Por que tenho que viver no Neolítico, quando a zorra
já se tornou a face da terra? Minha denúncia é: a grande zorra que está surgindo
no mundo é por permanência de um artifício que não mais nos serve. Estou
denunciando que a grande zorra é falta de imaginação. Tudo se transforma,
os processos de produção são completamente outros – e temos que viver,
ainda, no Neolítico?

27/JUN

207
Psicanálise & Polética

208
Le Miroir ou Le Mi-roi

CORTE REAL

209
Psicanálise & Polética

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Le Miroir ou Le Mi-roi

10
LE MIROIR DANS LA REINE OU
LE MI-ROI DANS L’ARÈNE
Ainda é o tema da Lei que estávamos tentando abordar e que, parece,
exige repetição. Vamos pedir o testemunho de um poeta, melhor que isto, de
um poema, de uma obra de arte, considerada uma das obras primas da produção
ocidental da pintura e que tem inspirado, a pessoas as mais sutis, lúcidos e
poéticos pensamentos.
Pretendo com-siderar essa obra, partindo da suposição de que se trata
de uma obra de arte. Com-siderar, siderar com ela, ou siderar em torno dela. O
que tentei conceituar como com-sideração, falando da obra de arte, em dois
trabalhos. Primeiramente, no texto chamado Senso Contra Censo: Da Obra-
de-Arte, onde fiz um esboço inicial do que penso poder ser, do ponto de vista da
teoria psicanalítica, o lugar da obra de arte. Não se trata de nenhuma crítica, de
nenhuma avaliação da obra, mas de achar o seu lugar. E continuei num outro
texto, Rosa Rosae: Leitura das Primeiras Estórias de Guimarães Rosa.
Agora, gostaria de conseguir que este trabalho, em torno dessa obra suposta,
fosse do mesmo estofo, do mesmo padrão desses dois, ou seja, mais um trabalho
em continuação.
O que chamei com-siderar vem em substituição a qualquer possibilidade
de crítica da arte, e mesmo de estética, na medida em que, mesmo do ponto de
vista da teoria psicanalítica, temos que repudiar, como sem assentamento em
qualquer base freudiana, o que tem aparecido no campo da psicanálise como
abordagem da obra de arte.
Há uma verdadeira interdição, em Freud, de se psicanalisar a obra de

211
Psicanálise & Polética

arte. Isto é impossível, pretensioso, se não delirante, na medida em que estou


certo nos desenvolvimentos que fiz, a obra de arte, quando realizada, ocupa o
mesmo lugar do analista. Diante da obra, os trabalhos sobre ela produzidos
não são, ainda que ditos psicanalíticos, psicanálise da obra – qualquer que tenha
sido a teoria, tipo Charles Mauron, Princesa Bonaparte, e outros mais recentes
– justamente porque a obra de arte produz esse lugar, que é o lugar do analista.
E o que dizemos diante dela, ainda que com aparência de discurso psicanalítico,
não é senão fala de analisando. É, no máximo, aproximação do passe. Se me
encontro com esse lugar da obra, estou fazendo alguma coisa da ordem de
conceber o passe. É o que tentei teorizar nesses dois livros.

* * *

O trabalho do qual vamos tratar aqui é o famoso quadro apelidado As


Meninas, de Velázquez. Apelidado porque este não é um nome que o pintor
tenha dado. Anos depois da sua morte, o quadro foi achado e arrolado num
conjunto de obras que pertenciam ao palácio e ficou com esse nome justamente
porque se chamava, em português, na Corte espanhola, Meninas às damas de
honra da princesa, da Infanta, da herdeira do trono.
Velázquez foi um pintor do século XVII. O quadro foi pintado em 1656,
quando ele tinha 57 anos. Ele era espanhol, mas sua família era de origem
portuguesa. Houve mesmo um momento, se não me engano sob o reinado de
Felipe II, em que a idéia era constituir um reino espanhol-português. Aí nesse
quadro é mais o momento de Felipe II, já é um momento de decadência dos
Habsburgos. É o reinado de Felipe IV, um rei do qual se poderia dizer aquela
frase de Lacan, no Seminário 2, para demonstrar a questão da censura, diz a
respeito do rei da Inglaterra: “Le roi d`Anglaterre est un con”. O rei da Espanha
é um babaca, na medida em que Felipe IV era uma coisa meio frouxa. Velázquez
vai pintar, a partir dos 23 anos de idade, para Felipe IV, como pintor da Corte.
Ele pintava desde cedo, desde os 16 anos, sob a orientação de um mestre, com
cuja filha veio a se casar.

212
Le Miroir ou Le Mi-roi

Velázquez: As Meninas, 1656.


Com uma obra bastante vasta como pintor, Velázquez certamente
produziu, nesse quadro, a sua obra. Todo poeta, quero supor, passa a vida
fazendo esboços da sua obra. Se ele tem tempo e ocasião de conseguir fazer a
obra, acaba juntando aquilo tudo e fazendo a obra definitiva. Às vezes não
consegue fazer e ficam uns fragmentos. Quanto mais se estuda Velázquez,
mais se percebe que As Meninas é a obra da sua vida.
Que interesse essa obra teria para nós? Diversos. Por exemplo, o de
eu, mais uma vez, poder mostrar o que mostrei naqueles dois livros: a produção

213
Psicanálise & Polética

da obra de arte como a do analista, topologicamente. A construção de um


espelho, da topologia do espelho como lugar da obra de arte e como lugar do
analista. Também o estádio do espelho, de Lacan, funcionando no quadro com
sua estrutura inteiramente desvelada. A questão do objeto a encontrando um
certo lugar como uma demonstração. E, sobretudo, o que mais nos interessa no
presente seminário, A Lei, funcionando como lei da diferença, no interstício dos
diferentes, na diferença sexual, onde vai reaparecer a dicotomia que tenho
apontado entre a lei do homem e a lei do coração. A Lei sendo o interstício
desses dois lugares.
Como indicações, poderia sugerir, como textos básicos, além
desses dois livros meus, o Seminário 11, de Lacan, sobretudo onde ele fala
do objeto a e do quadro; o Seminário 20, onde ele trata do feminino; o
texto de Michel Foucault, já bastante conhecido, que é uma tentativa de
análise desse quadro, chamado Les Suivantes, que vem como introdução de
seu livro Les Mots et les Choses; o texto de J. A. Miller, Teoria da
Alíngua; e o texto de Jean-Claude Milner, L‘Amour de la Langue. Para
uma bibliografia mais abrangente, há o Tratado da Pintura de Leonardo da
Vinci e as seleções ou a integridade dos seus Cahiers, cadernos ou notas; há
um livrinho de Paul Valéry, Introduction à la Méthode de Leonardo da
Vinci, que é muito interessante; Pierre Francastel, em La Figure et le Lieu,
que tem como subtítulo L‘Ordre Visuel du Quatrocento, que é o momento
em que se funda o Renascimento, a idéia de quadro e a perspectiva
linear ou exata; há também um autor, chamado Blunt, que escreveu um livro,
em inglês, que li em tradução francesa, La Théorie des Arts em Italie, de 1450
a 1600, onde ele fez um resumo desse período; o famoso livro de Bukhardt,
historiador da arte, A Civilização da Renascença na Itália; assim como o
livro de Heinrich Wölfflin, que também é um célebre historiador da arte,
Renascença e Barroco.
Como iconografia, além do quadro As Meninas, temos Picasso, que,
numa certa época, pintou, em tempo relativamente curto, 44 vezes sobre o
quadro de Velázquez. Cito isto para vermos como esse quadro tem criado

214
Le Miroir ou Le Mi-roi

problemas para artistas e para teóricos. Não se trata de cópia. Ele reinventou o
quadro 44 vezes. Numa dessas reinvenções é que vou buscar a dica de
certa impostação do quadro. O quadro de Goya chamado A Família Real.
Já no século XIX, Goya pinta a família real de então baseando-se em Velázquez,
mas, a meu ver, sem entender o que estava no quadro. Goya é um
grande poeta, mas foi em outro lugar e de outro modo que ele foi dizer
suas coisas. Há mais dois quadros de Velázquez que gostaria que vissem: Jesus
em Casa de Maria e Marta e Vênus no Espelho. Há ainda um terceiro
que vou mostrar, Retrato do Infante Balthazar Carlos, e, mais para o final,
ainda iremos ver um outro, As Fiandeiras. Já mais atual, há Escher, que fez
uma pintura toda lógica, e do qual vou me referir a O Espelho Mágico. E
Marcel Duchamp, em quase tudo, especialmente as perspectivas pintadas sobre
vidro, a Mariée, por exemplo, onde ele estudou coisa semelhante ao que vou
mostrar em Velázquez.
Se uma obra é obra de arte, se ela porta o que quero chamar de ato-
poético, ela chega a uma perda de sentido, a um puro corte, um absoluto corte
enquanto borda do significante, simples momento e lugar de instalação do
significante. Diante da obra, o analisando acaba perdendo o sentido, de tanto
falar. De tanto com-siderar, ele acaba perdendo os sentidos que possa arrumar
na obra. Surge então, puramente, a Lei de instalação do simbólico, o puro corte
do significante, a diferença pura, e seu lugar. Por isso chamei esse conjunto de
quatro sessões do nosso Seminário, de Côrte Real ou Córte Real. Trata-se da
Côrte Real, onde está inscrito um Córte Real.
Peço desculpas pelo título da sessão de hoje ser em francês. Só funciona
em francês, não é por esnobismo. Mesmo porque o primeiro esboço que fiz
deste trabalho era para Jacques-Alain Miller, que me encomendara alguma
coisa para sair em Ornicar?. Entretanto, eu não havia chegado aonde cheguei
agora. Então resolvi não mandar. O trabalho tinha esse título, que posso ler de
duas maneiras: Le Mi-Roi dans l'Arène ou Le Miroir dans ia Reine, ou seja,
O Semi-Rei ou O Meio-Rei dentro da Arena, ou então, O Espelho dentro da
Rainha. Veremos porquê.

215
Psicanálise & Polética

* * *

Trata-se de ver o que é um espelho. Se o lugar do analista coincide


topologicamente com o lugar do espelho, assim como com o da obra de arte,
deveríamos considerar o que seja um espelho. Vocês poderão ver o
desenvolvimento da questão do espelho nas Primeiras Estórias, de Guimarães
Rosa, sobretudo a partir da página 88, onde há uma tentativa de explicar o que
acontece topologicamente diante de um espelho. Aliás, já tratei disso aqui neste
Seminário mais de uma vez, mostrando que o espelho, como superfície, como
lógica de superfície, não é o vidro que o constitui. O espelho é a lógica da
reflexão. No conto, Guimarães Rosa mostra a diferença entre a relação
especular, imaginária, e a concepção, a visão, como ele diz, do espelho enquanto
tal, que o nada reflete. É tornar-se próximo do lugar do espelho. Considero que
a topologia do espelho é a topologia da banda de Moebius. O espelho é uma
superfície uniface. Ele não é senão a borda de um furo, isto é, tem o mesmo
estatuto topológico do significante. Tudo isto está mais longamente desenvolvido
naqueles dois livros meus.
Em torno da questão do espelho, carregando as questões da castração,
da diferença sexual, da Lei, do objeto a, do sujeito, é que suponho estar Guimarães
Rosa. Ele aponta para as primeiras estórias de qualquer sujeito, sua instalação
na ordem significante, na ordem simbólica. E quero supor que aqui neste trabalho
de Velázquez encontramos a mesma coisa. Só que não são estórias. É uma
pintura que mostra a estrutura. Nada impede que, sem conhecimento da
psicanálise e muito antes de Freud, Velázquez, como qualquer poeta que o
seja, consiga me entregar isso.
O que é o espelho? O espelho é essa superfície uniface que vira
pelo avesso o que está diante dela. Não vira ao contrário, vira pelo avesso,
e, nessa operação de reviramento, se eu trouxer para o lado de cá, o único
lado para onde posso trazer, o que está no aparente lado de lá, tudo vai
coincidir. Vai coincidir, mas sobra a operação de reviramento, que é a
operação sujeito.

216
Le Miroir ou Le Mi-roi

Acabo de ler a conclusão do livro de Rosine e Robert Lefort,


Naissance de l’Autre, e fico satisfeito em saber que, através de uma prática
longa com duas crianças, eles chegam a constituir o movimento topológico
do acontecimento de emergência do sujeito, do mesmo modo, com
articulações e metáforas, que pude encontrar em Guimarães Rosa, e como
encontro agora aqui em Velázquez.
Tudo isso tem a ver com o surgimento do sujeito, com a entrada na
ordem significante, na ordem simbólica. Se o espelho é, como borda de
furo, o lugar de um corte real, é a partir do espelho, na possibilidade de
conjugar os significantes com o real, depois de considerar as imagens –
como Lacan mostra no Estádio do Espelho, o movimento da constituição
da posição subjetiva –, é nessa conjugação de simbólico com o real mediante
articulação imaginária, que emerge qualquer possibilidade de se estar como
sujeito na fala. E, também, qualquer possibilidade de se considerar essa
borda real do espelho como lugar de surgimento daquilo que, digamos assim,
emana do real, passa do real ao simbólico, que é o ato de instauração do
significante.

Escher: O Espelho Mágico.

217
Psicanálise & Polética

Ninguém mostrou isto melhor, para mim, num verdadeiro chiste, do


que Escher. Está também no quadro de Velázquez, mas Escher, nesse trabalho
intitulado O Espelho Mágico, mostra o espelho funcionando. Ele nos
apresenta um espelho atravessado por sobre uma folha de papel e inventa
um bichinho, mistura talvez de cachorro com águia, que está circulando em
torno do espelho. E o lugar de emergência desse bicho é justamente a superfície
do espelho. Há um espelho como corte real de onde emerge o bicho aos
pedacinhos, e quando emerge, já emerge refletido, como uma duplicação. Primeiro
um pedacinho da asa que vai crescendo em fatias, se duplicando, e o bicho sai
para um lado e para outro do espelho, para o espaço real com espaço virtual,
nos confundindo, porque somos terceiros. Não estamos diante do espelho, de
maneira que ficamos sem saber qual o lado virtual e qual o lado real, diante
desse quadro. Ele projeta, ele reflete uma esfera sobre o espelho, desde o
ponto de vista do observador, para nos dar uma pequena noção de qual seja o
espaço real. E apresenta, do outro lado do espelho, uma outra esfera, como se
fosse real, quer dizer, o ponto de onde esta esfera se veria. O interessante é
que o real do bicho nasce do real do espelho, portanto, ele já nasce trazido para
o simbólico. Não posso conceber mais esse bicho como puro real, como coisa
deslocada da função significante. Ele já nasce, já comparece afetado do simbólico
no jogo imaginário com a sua forma. É mais um testemunho a respeito do que
coloquei como lugar do espelho.

* * *

Voltemos às Meninas de Velázquez e vejamos por que esse rei é meio


e por que há um espelho dentro da rainha.
Tenho como referência um livro da editora Skira sobre o Século XVII,
com textos de Jacques Dupont e Francois Mathey, num capítulo que fala de
Velázquez e de Le Nain. Velázquez foi considerado como vivendo num momento
barroco. Foi considerado um realista, daquele realismo que só vai acontecer
muito mais tarde com Courbert. Ele próprio se considerava um realista, se dizia

218
Le Miroir ou Le Mi-roi

“meio rústico”, querendo com isto dizer que pretendia uma ligação mais direta
com os objetos, sem as regrinhas renascentistas, ou mesmo sem as regrinhas
barrocas de representação. Ele foi considerado, também, o inventor do
impressionismo, que só vem aparecer muito mais tarde e porque, afinal de contas,
os artistas impressionistas declararam que foi na tessitura luminosa e no colorismo
de Velázquez que eles teriam buscado inspiração para isolar o que chamariam de
impressionismo na pintura. Renoir chegou a dizer que “toda arte da pintura está
na fitinha cor de rosa da Infanta Margarida”, falando d’As Meninas. Mas será
que Velázquez é isto, embora tenha inventado tudo isto? Ele dizia mesmo que
preferia ser o primeiro entre os rústicos do que o segundo entre os delicados.
Uma certa rudeza, uma certa crueldade no tratamento da pintura.
Velázquez pintava desde os 23 anos para Felipe IV, por influência de seu
mestre e sogro Pacheco, no palácio de Alcazar. Para demonstrar certa coisa que
vou mostrar a vocês depois, era preciso que o palácio de Alcazar estivesse de pé,
ou que, pelo menos, eu tivesse uma planta desse palácio; mas, infelizmente, esse
palácio pegou fogo num certo Natal de mil setecentos e não sei quanto, não
sobrou nada dele. Coisa interessante na vida de Velázquez é que ele era pintor da
Corte, mas exerceu cargos importantes, cargos oficiais, como Rubens, por exemplo,
que foi embaixador. Rubens, aliás, também esteve durante algum tempo pintando
na Corte de Felipe IV, ensinou muita coisa a Velázquez e se tornou seu amigo.
Mas Velázquez teve cargos interessantes como, por exemplo, o de Chefe de
Câmara Real, o de Oficial do Guarda-Roupa Real, que são cargos oficiais muito
metidos dentro da fofoca da alcova do rei. Quer dizer, ele tinha, assim, uma
grande transação íntima com aquele pessoal da Corte. Foi Auxiliar da Câmara
com uma chave, que era coisa importante naquele tempo, foi Valet de Chambre,
Assistente das Construções Reais, Inspetor das Construções e, no final de todos
esses cargos, ainda pintando, chegou a ser o Grande Marechal do Palácio, em
1652, um pouco antes de morrer. Morreu em 1660. As Meninas foi pintado em
1656, quando tinha 57 anos, momento em que consegue achar a grande dica.
Grande Marechal do Palácio é justamente o responsável pela ordem
da casa, quer dizer, é o pai da casa. O pai da Casa Real não é bem o rei. O rei

219
Psicanálise & Polética

toma conta do reino, o Marechal do Palácio toma conta da casa do rei. N’As
Meninas está representado o Grande Marechal da época em que o quadro foi
pintado, que era do tio de Velázquez. Interessante essa relação de Velázquez
com o poema, e com a ordem instituída. Ele está no lugar adequado, talvez,
para pensar A Lei. Vários autores insistem em que não lhe interessava quando
pintava, nem um pouco, a pessoa, a psicologia do personagem. Ele botava o
sujeito lá, como se fosse uma pedra, uma cadeira, como Cézanne, aliás. Mas
notam que ele se utilizava do lugar social do personagem para estabelecer
associações muito interessantes, muito importantes. Os dois grandes quadros,
as duas grandes obras da vida de Velázquez, são As Meninas e, posteriormente,
As Fiandeiras. Veremos a relação especial que existe entre eles.
No livro da Skira, tentando refletir sobre o que pensa Velázquez, o
autor diz que “o quadro possui uma realidade que lhe é própria. Não lhe cabe
figurar o mundo pela pintura, mas transformar o mundo em pintura. Já o artista
não toma mais o mundo por uma realidade, a qual a tela deva subordinar-se em
expressão, nem mesmo por aparência de realidade, não tendo mais que dar
conta das formas ordinárias do real” – no sentido da realidade –, “mas devendo,
ela própria, a pintura, criar sua ordem interior, no interior da tela. A pintura
metamorfoseia os dados fundamentais da sensação”. Então, onde podemos
inserir o ato de pintura de Velázquez? Justamente em algo que é uma longa
tradição, em certa franja do pensamento ocidental que poderíamos situar em
dois momentos que não são iniciais nem terminais: o obstinado rigor, o “hostinato
rigore” de Leonardo da Vinci, quando dizia que a pintura é “cosa mentale”,
que a pintura não era feita para os olhos nem o refresco do olhar, mas era coisa
mental. A única regra fundamental na pintura, dizia Leonardo, era o obstinado
rigor, ou seja, aquilo que Lacan diz que ele próprio faz como o psicótico.
Encontraremos depois, recentemente, a grande revolução de Marcel Duchamp,
que diz isto de outro modo. Mas em ambos trata-se da produção de uma obra
plástica, visual, não-retiniana, quer dizer, feita para se pastar com a mente.
Insisto em que independentemente de qualquer consciência, porque o
poeta não é obrigado a ter consciência do que faz, algum rigor obstinado e

220
Le Miroir ou Le Mi-roi

alguma produção estritamente da ordem da coisa puramente mental, acaba


produzindo a obra. E o ato-poético se põe no nível lógico dessa produção. Não
é enfeite, coisa bonita. Não é do agradável que trata a obra de arte, não é o
belo, a não ser que o belo seja o que Lacan chamou, aquilo que colocamos à
nossa frente como anteparo à segunda morte, aquela de Antígona, de que falei
anteriormente. O belo como mostra dessa inserção do Corte Real na Corte
Real vem como anteparo à segunda morte.
Velázquez, como todo grande poeta, ou, tirando o grande, como qualquer
poeta – ou se é poeta ou não se é, ninguém é poeta, a obra é que é poeta, o que
seja o Sr. Velázquez não nos interessa –, põe-se diante dos entendidos com
esse problema de não se conseguir inseri-lo numa escola. Os autores dizem
que ele é “o pintor dos pintores”, quer dizer, aquele no qual os próprios pintores
reconhecem para si uma simetria. Não se sabe dizer, todos ficam perplexos,
não só ao que pertence Velázquez – como pintor da época do barroco, dentro
da estrutura renascentista, inventando o que está no impressionismo, pré-criando
o realismo de Courbet –, como o que esse cara está fazendo? Qual é a dele?
Não é nenhuma? Ou é qualquer uma? Assim como também ninguém sabe
onde inserir esse quadro d’As Meninas. É um quadro de gênero? É um auto-
retrato? É um quadro da Corte? Não interessa, não é esta a questão. Então, o
que há nesse quadro?
Do ponto de vista da construção, estamos diante de um modelo
aparentemente renascentista, que não escapa à ordem visual do Quatrocentos,
àquele momento em que a pintura, em rivalidade com a teologia e com a ciência,
pretende cientifizar-se e inventa a perspectiva linear ou exata para configurar
e conceituar o que fosse o quadro. Mas os artistas do renascimento, mesmo
aqueles de maior importância, como Paolo Uccello, Piero Della Francesca,
Leonardo, Dürer, esses que inventaram a perspectiva exata, por mais fechados
que estivessem na ordem euclidiana, na exatidão dessa perspectiva, como poetas
que eram, e, portanto, não medíocres, lidando com este ato instaurador, usavam
dessa cientificidade mais para convencer os olhos de certas mentes, sobretudo
da Igreja, no caso da teologia. Entretanto, desobedeciam freqüentemente essa

221
Psicanálise & Polética

ordem, para poder dizer o poema. É o caso, por exemplo, de Leonardo, que é
um dos fundadores dessa ordem visual, mas em cuja pintura encontramos
deformações da perspectiva, se não mudanças bruscas de pontos de vista,
como o que ocorre na Mona Lisa. Ele construiu aí uma perspectiva de cima,
de um lado, e outra de baixo, do outro lado da mesma paisagem, e como a
cabeça da Mona Lisa está junto ao céu, e o céu é um ponto neutro em
perspectiva, ele faz, pelo céu, a passagem de um lado para outro, criando com
isto uma estranheza muito maior do que a do “sorriso” da Mona Lisa, que não
é tão estranho assim. No Tratado da Pintura mesmo, Leonardo mostra as
regras da composição, da anatomia, de que ele era pesquisador – é claro que
cheio de erros –, e, no caso da perspectiva exata, ele aponta todos os elementos,
mas, quando chega ao final – e não havendo naquela época uma ótica
desenvolvida como temos hoje na base eletrônica, etc. – , vemos a graça de
Leonardo, se aproveitando da grande ignorância sobre o assunto naquele
momento, para dizer que existe “a perspectiva aérea, que trata das cores, das
densidades”... Ali ele faz o seu bordel e acaba conseguindo fazer obra de arte,
apesar da caretice, da idiotice da perspectiva do renascimento.
Não há dúvida de que a perspectiva é uma grande invenção. É a
descoberta do geometral do olho. Mas um quadro que só se prende a idiotia da
perspectiva não consegue dizer nada. Nem mesmo uma fotografia, que é da
mesma ordem geometral, é tratada desse modo pelo poeta.

* * *

Como vimos, então, do ponto de vista da estrutura, o quadro de


Velázquez é de construção renascentista. Entretanto, ele vai se aproveitar de
certa dubiedade dos espaços, de certas distâncias como grandes, no teto por
exemplo, para deformar violentamente a perspectiva, a ponto de nos confundir
a respeito da questão do centro geométrico do quadro e dos seus pontos
dominantes. O que Velázquez está representando? Apontarei as questões no
quadro, para não haver maior dúvida.

222
Le Miroir ou Le Mi-roi

Vejamos o Esquema 1 abaixo, onde as duas linhas cheias, AB e CD,


são perpendiculares e se cruzam no meio geométrico, linear do quadro (ponto
O). Aí, sobre a reta CD, está esta menina, que não é uma das Meninas. É a
Infanta Dona Margarida, a filha do rei, que será a herdeira do trono. Seu irmão
mais velho, que Velázquez já havia pintado montado a cavalo, o Infante Baltazar
Carlos, havia morrido criança.

Esquema 1

223
Psicanálise & Polética

Temos ainda esta outra linha, a horizontal AB, que mostra o meio do
quadro no sentido da altura, e estes dois triângulos, indicados pelas letras RST
e XYZ, que são apenas dois momentos que pude distinguir como de deformação.
Deformação como aquela que os renascentistas já faziam e que encontramos,
com grande quantidade de exemplos, no livro chamado Anamorphoses, de
Baltrusaïtis. Neste livro, que é citado no Seminário 11 de Lacan, podemos ver
brinquedos e distorções das quais muitos artistas se utilizaram, no sentido poético,
para quebrar a idiotice da estrutura renascentista, como é o caso do quadro Os
Embaixadores, de Holbein, que está na capa do Seminário 11, onde aparece
aquele crânio deformado. Em seu livro, Baltrusaïtis vai colher, a partir do
renascimento e mesmo até o barroco, essas deformações mais ou menos
violentas na ordem renascentista, para que o poeta possa dizer, inserir ali a
violência significante.
Do mesmo modo que Leonardo na Mona Lisa, no Retrato do Infante
Balthazar Carlos, Velázquez também constrói duas perspectivas
completamente diversas. É um jogo de deformação no sentido que os críticos
dizem “expressivo” – e veremos que muitas vezes, é significativo, se não
produção de significante. O infante, no quadro, está sendo visto de baixo para
cima e, no mesmo horizonte, Velázquez faz, ao fundo, uma perspectiva vista de
cima para baixo. Está tudo certo geometricamente, porque o horizonte é o
mesmo. Entretanto, esse efeito de-baixo-para-cima e de-cima-para-baixo cria
uma distorção significante. É importante notar isto porque veremos a repetição
desses momentos em Velázquez, e como ele vai juntar tudo isso numa só obra,
nesse quadro d’As Meninas, sua s’obra. Ele nos tapeia aí dando a impressão
de um certo ponto de vista, declarando formalmente o seu ponto de vista. Em
perspectiva, o ponto de vista, como sabemos, é o ponto que denota o olho do
observador, o olho de quem vê o quadro, e a projeção desse ponto sobre o
quadro se chama ponto principal.
Neste quadro, há erros propositais. Assim, essas duas retas do teto, RT
e ST, do triângulo RST, têm seu ponto de fuga sobre o braço desse personagem,
no fundo do quadro, no ponto T, que não é absolutamente o ponto de vista do

224
Le Miroir ou Le Mi-roi

quadro. E isto é notável porque essas duas retas são perpendiculares ao plano
do quadro, portanto, deveriam ter, como ponto de fuga, o ponto principal, que é
a projeção do ponto de vista. Velázquez aproveitou-se da grande distância em
que se encontram essas retas e foi deformando suas posições, para nos
embaralhar a posição do ponto de vista.
Da mesma forma, as duas luminárias do teto, as quais também pertencem
a uma perpendicular ao plano do quadro, ou melhor, ao plano do fundo, também
estão deslocadas, pois se observarmos com cuidado – somente no quadro
original seria possível uma determinação mais precisa – veremos que seu ponto
de fuga – elas estão indicadas pelas retas XZ e YZ –, aparentemente, ou está
na cabeça do cachorro, ponto Z, ou está na borda inferior do quadro, quase fora
dele. Contudo, prefiro supor que a localização correta dessa fuga é no ponto Z,
vértice do triângulo XYZ. Veremos porquê. Velázquez deforma a perspectiva
do quadro para nos deixar em complicações a respeito do ponto de vista.
Foucault, em seu texto, que citamos no início, pretende dar conta deste
quadro como sendo um momento em que Velázquez representa – o sentido aí é
de Vorstellung, representação, representação imaginária, e não de
Repräsentanz – a imagética da ordem do século XVII. Foucault diz isto porque,
para produzir aquele livro, precisava de um testemunho. Foi buscá-lo em
Velázquez e o encontrou, de certo modo, embora eu tenha que discordar
radicalmente de certas observações que ele faz sobre o quadro. Todos os autores
ficam perplexos diante desse quadro. Ele cria uma trama tal de linhas dentro da
perspectiva, de luzes dentro da perspectiva aérea, de cores dentro da pincelada,
de olhares dentro da representação imagética dos personagens... É uma tal
tapeçaria, que deixa todo mundo perplexo, sem saber como se situar diante
dele. Pretendo mostrar o que acho que seja o modo de construção deste quadro
de Velázquez.
Vamos nomear os personagens que estão representados no quadro.
Da esquerda para a direita temos: no canto esquerdo, uma tela virada ao
contrário, presa no cavalete, um pedacinho da tela; um pouco mais atrás, uma
das Meninas, que se chama Dona Maria Augustina Sarmiento, uma das Damas

225
Psicanálise & Polética

de Honra da Infanta, ajoelhada e servindo um copo de vinho, ou coisa parecida,


à Infanta. Atrás dessa Menina, um pouco mais para o fundo, talvez bem mais
afastado, esse Pintor, com a paleta numa das mãos e o pincel na outra, que é o
próprio Velázquez – é talvez o único auto-retrato que ele pintou, e isto é importante:
o momento em que ele se colocou dentro do quadro – olhando para nós. Os
olhares representados imageticamente são do tipo produzido na perspectiva
renascentista, que se conduz para quem observa o quadro – tanto que, para onde
quer que se ande, tem-se a impressão de que se está sendo olhado. Então,
Velázquez está olhando para nós; aquela Menina de que já falei, não está olhando
para nós, ela olha para a Infanta. Em seguida temos a Infanta, que está no meio
do quadro, e aonde se adensa – digamos que existe uma perspectiva luminosa a
partir dela – a luz, em camadas. É o ponto mais luminoso, o centro do quadro, no
sentido da largura – a Infanta também olha para nós. Logo depois temos a outra
Menina, outra Dama de Honra, Dona Isabel de Velasco, que está um pouco mais
atrás da Infanta, também olhando para nós. Ao lado, e um pouco mais à frente,
uma anã – era moda, naquela época, a rainha comprar anões para o ambiente
ficar engraçadinho na sua alcova – que se chama Maria Barbolo. Cá na frente,
essa coisinha que parece uma criança mas não é, nem é um anão no sentido
deformado da Barbolo, é um liliputiano – são adultos inteiramente proporcionais,
mas que não crescem e não têm deformações – que se chama Nicolasito Pertusato,
e ele está fustigando com o pé esquerdo o grande cão, deitado à sua frente. Mais
atrás está aquele casal que são a Aia do aposento real, uma espécie de governanta,
e o outro é o Guarda-Damas dos Aposentos Reais – os guarda-damas são
aqueles cavalheiros que acompanham as mulheres quando vão aos lugares, andar
na rua, etc. Lá no fundo, de pé, quase na soleira da porta, como uma espécie de
personagem limite do quadro, está justamente o tio de Velázquez que é Don José
Nieto Velázquez, que era, nesse tempo, o Grande Marechal do Palácio, também
chamado O Aposentador, ou seja, o pai da casa, o dono da casa, porque o rei
tomava conta do reino, e esse aí tomava conta da casa do rei. Existem vários
quadros pendurados nas paredes, os quais vemos muito mal nesta reprodução,
mas no quadro original consegue-se distinguir quais são os dois quadros que estão

226
Le Miroir ou Le Mi-roi

na parede do fundo. Falarei deles depois. Finalmente, temos, ao lado da porta em


que se encontra o Aposentador, também na parede do fundo, aquela representação
que poderia parecer um quadro, mas que, dado o tratamento de pintura que ele
nos apresenta, está indicado que se trata de um espelho. Espelho no qual estão
refletidos o Rei Felipe IV e a Rainha Dona Mariana.
Michel Foucault faz um texto muito bonito e aponta para coisas
extremamente importantes, mas vem nos dizer que o quadro é representação da
ordem epistêmica do século XVII. Para que isto seja demonstrado, ele diz que
todos os personagens, inclusive os reflexos do rei e da rainha, olham para mim,
para o espectador. Velázquez então teria construído esse lugar vazio, de alguém
que vai se colocar como sujeito diante do quadro, no mesmo lugar do rei e da
rainha que, estando fora do quadro, se refletem no espelho do fundo. Esse lugar
vazio ordenaria toda a estrutura do quadro, como ordenaria toda a estrutura do
reino, toda a episteme mesmo do século XVII, como lugar de poder, lugar a ser
ocupado por alguém, e de onde se regra toda a estrutura do poder de então.
Ele também nos mostra que o quadro instala uma relação especular porque
há uma reciprocidade: eu olho para os olhares, os olhares olham para mim, enquanto
olhar. Tudo bem, no nível imaginário, concordo. E também coloca que há uma
relação de incompatibilidade entre a linguagem e o visível, como a dizer que a
pintura é coisa da ordem extra-verbal, do extra-linguagem, do pré-verbal, como
querem agora alguns pedagogos da arte... Isto não cabe na nossa referência, não
existe nenhum pré-verbal. Ninguém constrói um quadro a não ser por via
significante, passando pela língua, que vai ordenar o quadro. Então, o que Foucault
vai nos dizer é que o rei e a rainha, neste lugar extremo, lugar do vazio, apenas
representados como reflexos no quadro, ordenam, ao seu redor, toda a
representação. Aí começo a achar que está ficando perigoso, e mostrarei porquê.
Ele diz que o verdadeiro centro da composição é esse lugar do rei e da
rainha, o qual posso conceber como reflexo ou como lugar, falando desde o lado
de fora. Ele coloca a Infanta como centro da organização do espaço, mas o
centro ordenador do quadro é esse lugar vazio do rei, como o seria na episteme
do século XVII. Tudo isto pode ser interessante, mas não é por onde temos que

227
Psicanálise & Polética

ir. O que ele mostra é que quando ocupo esse lugar do rei e da rainha, esse lugar
elidido, passo a ser, enquanto sujeito, o centro mesmo dessa composição, uma vez
que o lugar é o mesmo. Ele termina o texto dizendo: “E livre, enfim, dessa relação
de encadeamento, a representação pode se dar como pura representação”.
No texto de Lacan sobre “o quadro”, no Seminário 11, temos, como
vou desenvolver aqui, que uma pintura, um quadro, nada tem a ver com nenhuma
representação. Não é enquanto representação que um quadro interessa, mas
sim enquanto ordenador de um olhar. Tentarei ir a um ponto dessa mesma
postura colocada por Lacan, mostrando que é enquanto demonstrador do corte,
demonstrador do significante – portanto, no momento em que aparece o sujeito,
a Lei, a castração –, que um quadro interessa enquanto obra de arte.
Não posso aceitar a postura de Michel Foucault porque me parece que
há nele um erro grave de perspectiva e de análise formal do quadro. Se eu
quiser o rei e a rainha do lado de cá, fora do quadro, preciso necessariamente,
apesar da deformações que Velázquez introduz, considerar o lugar do rei e da
rainha como ponto de vista do quadro, se não os olhares não convergem para
mim. Isto está na perspectiva do renascimento que, aliás, é a que informa o
quadro. É preciso, portanto, conceber o lugar do rei e da rainha como ponto
principal, ou seja, ponto de fuga de todas as perpendiculares ao quadro.
Fiz há algum tempo um pequeno artigo, meio embaralhado, apenas como
comentário a algumas colocações de McLuhan – que está como etc. no Senso
Contra Censo –, chamado Alffabetto e Esquizousia, onde tentei mostrar que
não posso conceber essa ordem visual, que Foucault coloca no século XVII,
como sendo a invenção e a construção daquele século. Posso dizer, sim, que o
século XVII primou pelo reconhecimento dessa ordem, mas ela é invenção do
Quatrocentos. Até à possibilidade de ruptura disso, que não foi certamente com
o impressionismo, estamos sob a ordem visual do renascimento, sob o reino da
perspectiva linear. E se o século XVII faz coincidir Descartes com o quadro
renascentista, ou até, digamos, com o sistema tonal bachiano – o sistema, não o
sintoma de Bach enquanto poeta –, por outro lado, a invenção disso se deu
muito antes.

228
Le Miroir ou Le Mi-roi

* * *

Trata-se agora de ver se a posição do observador coincide com a posição


do rei e da rainha, e se o ponto principal do quadro estaria realmente lá.
Vejamos o Esquema 2, abaixo. A linha horizontal EF EF não está passando
no meio do quadro, no meio no sentido vertical. Ela é a linha do horizonte, é a
linha que passa pelo olho do pintor, e que está bastante reforçada pelas linhas
de força do quadro. A outra horizontal, AB,
AB do Esquema 1, é a que passa pela
borda da moldura do espelho e se completa com a moldura da porta em que se
encontra o Aposentador, e com a da outra porta que fica atrás de Velázquez.
Mas a horizontal que está mais reforçada é essa de baixo, EF
EF, pelo contraste
com o grande brilho atrás do Aposentador, da luz que por ali penetra, e com o
brilho do espelho. Esta horizontal mais reforçada vai dar bem no olho de
Velázquez ali representado. Vou considerá-la, pois, como a linha do horizonte,
ou seja, a reta que fica na altura do olho do observador.
Temos ainda as duas diagonais do quadro, GH e IJ IJ, que são
importantíssimas. Primeiro, porque Velázquez, de certo modo, ajusta a composição
do lado direito em função da diagonal que se forma com a inclinação do corpo da
Menina da direita, e faz um certo peso no quadro sobre essa diagonal. Se
observarmos bem, percebemos que essa diagonal GH conduz um pouco o nosso
olho pelo quadro. Assim como também a outra diagonal IJ – o que só se pode ver
na obra original, pois na reprodução aparece muito mal – indica a direção da
única luz que Velázquez colocou como entrando no quadro, através da grande
janela aberta, que está do lado direito. Essa luz varre o quadro como num corte
sagital, iluminando os personagens. É claro que Velázquez não se utilizou apenas
dessa luz para a construção do quadro, se não, o rosto da Infanta estaria sombreado,
mas a luz que ele indica como a luz do quadro é essa lâmina que o atravessa, da
janela, mais ou menos no sentido diagonal.
As duas diagonais GH e IJ também estão ali para determinar os pontos
dinâmicos do quadro. Esse pontos eram extremamente importantes na pintura
renascentista e Velázquez se utiliza demais deles, em vários de seus trabalhos.

229
Psicanálise & Polética

Esquema 2

Assim, o retângulo GJHI é um retângulo áureo, ou seja, está dividido em


média e extrema razão – que é justamente o elemento que tomei para demonstrar
certas relações nas fórmulas dos discursos em Lacan –, e temos que a soma
dos dois lados, GJ + JH,
JH está para o lado maior, GJ,
GJ assim como o lado maior,
GJ, está para o lado menor, JH
GJ JH: GJ + JH =JH . O uso desta Relação era um
GJ JH

230
Le Miroir ou Le Mi-roi

conselho formal renascentista, e que a Gestalt depois resolveu tomar como


sendo alguma coisa que satisfaz melhor o olho. Chamavam-se pontos
dinâmicos, sobretudo quando o quadro era um retângulo em média e extrema
razão, aureamente dividido, os pontos de encontro de cada uma das diagonais
com a perpendicular traçada do vértice oposto. Temos, então, JN perpendicular
à diagonal GH IJ M e N são os pontos dinâmicos
GH, e HM perpendicular à diagonal IJ;
do quadro. São esses pontos dinâmicos que são considerados pelos
renascentistas, e também pela Gestalt, como sendo os pontos pregnantes
no retângulo áureo, ou num retângulo qualquer. E justamente Velázquez vai
colocar nesses dois pontos dinâmicos o Aposentador, ponto N, e o espelho,
ponto M.
Esses dois elementos, o espelho e a porta, constituem os dois elementos
de força dinâmica do quadro. Velázquez utiliza isto propositalmente. Do
ponto de vista da dinâmica do retângulo do quadro, ele está utilizando
essas forças em dois lugares especiais: o lugar do Aposentador e o lugar
do Casal Real refletido. Justamente os dois lugares que, ao tomar o centro
do quadro, podemos ver – e isso não só por causa dos pontos dinâmicos –
que eles são simétricos em relação ao eixo central, reta CD
CD, no Esquema 1.
Então, em relação ao meio do quadro, há uma simetria dinâmica lá no fundo
que conduz nosso olhar. Isto cria muita confusão. Alguns autores dizem que
o centro visual é o espelho, outros apontam que é o Aposentador, e outros
consideram, ainda, que é a Infanta. Isto não interessa. Velázquez está
jogando com pesos e superfícies, pesos e profundidades, deformações
perspécticas, angulações deformadas, etc., para nos deixar justamente
numa dança dentro da dinâmica do quadro. Essa dança só vai se resolver,
talvez, no final.
Do ponto de vista da perspectiva, se não pelas linhas que se possam
traçar sobre o quadro, mesmo sabendo que Velázquez introduz deformações,
podemos garantir que, como matemático que ele também era, e seguidor
das normas renascentistas de montagem de um quadro, logicamente, a linha
do horizonte está no olho de Velázquez, do pintor ali representado. Além disso,

231
Psicanálise & Polética

o ponto principal, como projeção do ponto de vista, não está, de modo


algum, na posição do rei e da rainha, como querem Foucault e outros. Os
olhares todos convergem, sim, para o ponto de vista, se não eles não nos
acompanhavam. Se Velázquez fez questão de que os olhares convergissem
para o observador, é que ele os fez convergir para o ponto de vista que, ali na
sua perspectiva, iriam para o ponto principal. O ponto principal é que tem que
ser achado.
Por que ele, Velázquez, está dentro do quadro? Estar dentro do quadro
e, ao mesmo tempo, representar o quadro é uma questão que os pintores
freqüentemente se colocaram. Mas ninguém, talvez, tenha se colocado com
tanto brilho, com tanto rigor, como fez Velázquez. Ele está dentro do quadro.
Como é que, como pintor, observando aquela cena, pode Velázquez pintar
esse quadro? Diversos autores opinam e sugerem várias coisas, mas nenhum,
que eu saiba, enfrentou este problema até destrinchá-lo. Apenas um autor faz
uma leve alusão ao que interessa, se perguntando: “O que Velázquez está
pintando no quadro que está dentro daquele quadro?”. Ele está pintando um
quadro e, naquele momento, tomou distância, saiu de junto do quadro e olhou
para o modelo. Ficam todos perplexos. Um deles, Orian Gallego, autor
espanhol, na sua Grande História da Pintura, sugere que esse quadro que
Velázquez está pintando dentro do quadro, mas do qual só se vê o avesso,
nada nos impede de imaginar que seja justamente este mesmo quadro, As
Meninas. É o único, que eu saiba, que sugere isto. Sugere mas não demonstra
que Velázquez pintou um quadro no qual ele se representa pintando o próprio
quadro que nós estamos vendo. Este é o retorno do quadro. Estou com este
autor e não abro... mas preciso demonstrar.
Todos ou quase todos os outros autores falam nessa relação recíproca
de que fala Foucault, mas não se perguntam: e o espelho? Não o do fundo,
mas aquele que é preciso pensar, porque nenhum pintor, pelo menos de modelo
renascentista, poderia pintar um quadro – renascentista na estrutura,
embora barroco – em que ele se represente no ato de pintar, sem olhar para um
espelho, sem pelo menos considerar um espelho. Todo mundo que estudou um

232
Le Miroir ou Le Mi-roi

pouco de pintura sabe que, hoje, ou você copia de uma fotografia, ou você se
surpreende num espelho.
Entretanto, tenho dois testemunhos que me ajudam a pensar que
Velázquez pintou mesmo o quadro olhando para um espelho. Primeiro a in-
tuição de um museólogo que lá no Museu do Prado, onde eu nunca estive,
aonde moram As Meninas de Velázquez, botou uma sala só para este quadro e,
diante do quadro, um espelho, no qual se vê o quadro refletido por inteiro.
Ele não demonstrou nada, que eu saiba, mas estou cada vez mais con-
vencido de que Velázquez pintou este quadro vendo tudo isto que ele está
representando num espelho. Por isso ele pôde se representar, dentro do quadro,
pintando o quadro.
Mas tenho um testemunho mais grave, dois, aliás. Primeiro, o testemunho
posterior de Goya que, ao tentar seguir a idéia deste quadro, soubesse ele
ou não do fato, pintou a Família Real de seu tempo diante de um espelho,
e se retratou ele mesmo, lá no canto, por trás dos personagens, pintando
o quadro. Pintou diante de um espelho e disse que era uma reflexão no
espelho, mas não conseguiu as coisas que, a meu ver, Velázquez conseguiu.
Ele apenas aproveitou a idéia da especularidade. Segundo, o testemunho,
bem mais grave, de Picasso que ficou encucado com este quadro de Velázquez,
como se fosse o centro de algum pensamento fundamental, e fez 44 telas
baseadas nele. Ninguém faz isso sem estar de certo modo possuído pelo quadro.
Numa dessas quarenta e quatro telas, a que talvez seja o ápice dessa série,
seja ela ou não a final, ele incluiu tudo que está no quadro de Velázquez.
Ele repensa o quadro de cima abaixo. Encontramos todos os personagens
representados: a tela, o pintor, as duas Meninas, a Infanta, o cachorro, a anã, o
liliputiano, a aia, o Guarda-Damas, o Aposentador, a janela por onde a luz entra...
Mas onde estão o rei e a rainha? Ele não botou. No lugar do rei e da
rainha, Picasso colocou apenas o espelho. Ele o representou – e certamente foi
aí que ele sacou a estrutura do quadro – justamente do modo como acontece
com um espelho diante de outro espelho, que dá aquela reprodução infinita dos
espelhos. Ele infinitizou o espelho.

233
Psicanálise & Polética

Picasso: As Meninas

Assim, ao ver que Picasso representou um espelho diante de outro


espelho, tomo dele o testemunho de que, aquele espelho, onde se refletem o rei
e a rainha, estava diante de outro espelho. É claro que, perspectivamente, o
quadro de Picasso está errado. Mas ele não tem nada a ver com a perspectiva
do renascimento. Ele só mostrou, simbolicamente, que aquele espelho está diante
de outro espelho.
Com estes dois testemunhos, então, digo que Velázquez pintou este
quadro, As Meninas, olhando-o num espelho. Portanto, o lugar do rei e da
rainha não é no ponto principal, nem é o ponto de vista, como querem Foucault
e outros.

* * *

Onde estão o rei e a rainha para que possam aparecer no espelho que
Velázquez está olhando? Na frente? Se estiverem na frente, tapam o espelho e

234
Le Miroir ou Le Mi-roi

Velázquez não vê o resto. Esta, agora, é a grande questão.


Velázquez está ali, o espelho está lá, na sua frente, ele está ali pintando
tudo o que está vendo lá no espelho e, nesse espelho, ele vê refletido o espelho
lá de trás, onde estão refletidos o rei e a rainha. Isto deixa todos perplexos,
pois nenhum autor, que eu saiba, descobriu onde estão o rei e a rainha. Acho
que descobri.
Velázquez tem que ter o rei e a rainha lá, se não ele não pinta. Ele não
pintava um copo sem botar um copo à frente. Isto é declarado por ele. Ele pode
não ter feito aquela cena toda ao mesmo tempo – ele pode ter chamado um
para posar, depois outro, pode ter levado trinta anos pensando, para montar
esse quadro, mas ele teve os modelos.
Tem que ser um espelho, onde estão o rei e a rainha, pois ninguém
representa aquilo, daquele modo, na pintura barroca, sem ser um espelho. O
espelho é uma tradição na pintura, desde Van Eyck, com o Retrato do casal
Arnolfini, que é, talvez, um dos primeiros quadros em que aparece um espelho,
ali convexo. Este quadro de Velázquez, de certo modo, nada tem a ver com
aquele do casal Arnolfini, mas ficou a tradição do uso do espelho na pintura,
desde os Van Eyck, o que faz, freqüentemente, os artistas colocarem um espelho
na tela, e criarem relações perspécticas muito interessantes. E o espelho é, também,
uma tradição na pintura de Velázquez, ele sempre esteve encucado com espelhos.
Já se disse que, depois de sua morte, encontraram, entre suas coisas, uma coleção
de espelhos. Ele era, realmente, um cara lacaniano, só que não sabia disso. Passou
a vida invocando os espelhos. Era o estádio do espelho dele.
Mostrarei rapidamente – porque é simples lógica geométrica – este
esquema de incidência dos raios visuais num espelho. Este Esquema 3, abaixo,
não está geométrica e graficamente perfeito como desenho, mas sua lógica
está correta. Podemos considerar a superfície do quadro de Velázquez
como sendo a de um espelho. Estou considerando assim porque posso pôr o
ponto de vista na figura de Velázquez: se quase todos os personagens
olham para o ponto de vista, se Velázquez está diante do espelho, tem que ser o
dele. Então, quando estou diante de um espelho, desde um ponto de vista que é

235
Psicanálise & Polética

necessariamente lateral – no quadro só aparece uma parede, e bem


inclinada, e para esta parede estar assim inclinada, o ponto de vista tem que
ser bem lateral, no olho de Velázquez –, o que vejo? Diz a ótica geométrica, a
qual Velázquez obedecia: “ângulo de incidência igual a ângulo de reflexão”.
No Esquema 3, então, quando olho, incido uma luz ou uma visual sobre o
espelho. Enxergarei aquilo que faz complemento, isto é, a outra parte igual ao
que divide a bissetriz, a perpendicular ao plano do espelho. Se estou no
/ , no ponto 12, verei o que está lá no ponto 24,
ponto V e olho para o espelho E
e aquela reta perpendicular ao espelho, que sai do ponto 12, é a bissetriz do
ângulo V 12 24. Na perpendicular não há reflexão, ou seja, do ponto de vista V,
a projeção no espelho é V’, que vai ser o ponto principal, sendo VV’ perpendicular
/ . Quanto mais para longe o olhar se dirige, maior é o ângulo de
ao espelho E
reflexão. Ele vai se abrindo de tal maneira que, num espelho pequeno, se me
coloco de lado, posso ver muito mais coisas quanto mais longe de mim elas
estejam.

Esquema 3

236
Le Miroir ou Le Mi-roi

No quadro de Velázquez, é o que acontece. Ele está num canto e,


em frente a ele, há um espelho grande, deve ser bem grande, deve ter
mesmo o tamanho aproximado do quadro real, ou talvez um pouco menos,
onde ele está se vendo, vendo também a tela no cavalete – a angulação
permite pensar o que mostrei no esquema dos raios visuais em relação
ao espelho – e vendo cada um dos personagens segundo o seu ângulo de
reflexão. Os personagens não estão amontoados, é o ângulo de reflexão
que os amontoa. Eles estão espalhados mais ou menos em
semi-círculo. Velázquez é que os está vendo todos ali, dali daquele ponto
onde ele está.
E, onde estão o rei e a rainha?
Tentei fazer, no Esquema 4 abaixo, aproximadamente, no olho, a planta
baixa aproximada deste quadro de Velázquez: na parede do fundo temos uma
/ 2) e, em seguida, a
porta que fica atrás da figura de Velázquez; o espelho (E
porta onde está o Aposentador (Ap). À frente de Velázquez há um espelho
/ 1), indicado com linha cheia e tracejada, e a letra V indicando o lugar de
(E
Velázquez. Olhando para o espelho do lugar onde ele se encontra, o pintor se vê
em v (minúsculo), na perpendicular Vv
Vv, e vê um pedaço do quadro Q em q
(minúsculo). Ele vê cada personagem nessa angulação, que está indicada na
planta baixa do quadro, segundo as leis da ótica. Pelo reflexo simétrico de v
vV’ logo v é o ponto principal. Velázquez
(minúsculo) determino V’, isto é, Vv = vV’,
está no ponto de vista V, e v é o ponto principal, não é lugar do rei e da rainha.
Ele está vendo todos os personagens: a Menina (M1); a Infanta (I); o cão (C);
o liliputiano (An); a anã (Añ); a outra menina (M2); a Aia (Ai); o Guarda-
Damas (G); o Aposentador (Ap) e a imagem do rei e da rainha (R’r’). A
/ 1, em que Velázquez está olhando, são as
imagem dos personagens no espelho E
letras minúsculas correspondentes.

237
Psicanálise & Polética

Esquema 4

238
Le Miroir ou Le Mi-roi

Se a imagem do rei e da rainha está naquele espelho E/ 2, Velázquez


/ 1 , ali no ponto R”r”.
vê esta imagem refletida no espelho E
Então, basta encontrar o ângulo de incidência igual ao ângulo de
reflexão para ver que Velázquez, deste ponto V, vê no espelho E/ 1, o reflexo
do rei e da rainha neste ponto R”r”, porque o verdadeiro reflexo,
/ 2, está refletindo a imagem Real (R,r) do
que está atrás, no espelho E
rei e da rainha que se encontram lá na frente, do lado do espelho E/ 1, no
mesmo nível deste espelho. Eles estão numa porta que é simétrica à porta em
que se encontra o Aposentador (Ap), perto do cão e do liliputiano. Eles estão
entrando, tanto é que há uma cortina sobre a cabeça do rei, como a de lá
do outro lado, sobre a cabeça do Aposentador. Eles estão entrando por
uma porta, no mesmo plano do espelho /E1. Por isso, Velázquez, de lá do ponto
V, vê o reflexo deles no ponto R”r”, lugar que certamente ele arrumou, porque
queria assim.
Repetindo: tenho um grande espelho (E/ 1), Velázquez, sua patota toda
que é vista neste espelho. E justo do lado do espelho, uma porta por onde
entram o rei e a rainha, e que se refletem lá no fundo, no espelho /E2. Isto vai
criar uma série de argumentos.
O artista, que está presente aqui, Luiz Carlos Miranda teve a paciência
de desenhar para nós tudo que Velázquez via. Na parede, em frente ao pintor,
Velázquez via o que está no desenho abaixo, o tamanho do rei e da rainha é
grande porque é real, o que está no espelho é menor. Ele via uma parede com
um espelho grande. Ao lado desse grande espelho, a porta com a cortina, e o
rei e a rainha entrando justo naquela posição, para que o seu reflexo do fundo
dê aquele que está no quadro. Velázquez podia ter pintado a cena por inteiro,
como está neste desenho. Ele podia ter pintado este quadro, mas ele pintou
apenas o que estava no espelho. Isto é que é interessante para refletirmos
junto com ele, e junto com outros quadros dele. Há três anos que eu brinco
com este quadro – não é de repente que a gente acha essas coisas, é um de
repente meio forçado.
Entretanto, observemos uma coisa que está indicada neste desenho.

239
Psicanálise & Polética

Se Velázquez está vendo esta cena diante de um espelho, ele tem que ver o
que vemos aí no desenho, e não o que está no quadro, que é o avesso daquilo.
Para ele pintar este quadro, ele está vendo o seu avesso. Por que ele não
pintou igual? Penso que tudo isto tem alguma razão. Para se dizer que há um
espelho em frente, há que se dizer que ele não está vendo assim como no
quadro, ele está vendo pelo avesso como no desenho. O que está no quadro é
o avesso do que está no espelho. O que ele vê no espelho é tudo isso, inclusive
o reflexo do Casal Real. Basta ele ficar no ponto de vista dele, que ele vê tudo.
O rei e a rainha não estão ausentes, só que só aparecem, no quadro,
refletidamente.
É preciso que Velázquez veja ao contrário. Isto é fundamental no
raciocínio. Deixemos em suspenso, por enquanto.

* * *

/ 1, conforme a
O rei e a rainha estão ali, no mesmo plano do espelho E
planta baixa e o desenho, talvez em simetria ao Aposentador que está na porta

240
Le Miroir ou Le Mi-roi

/ 2, que
em frente, e aparecendo necessariamente naquele espelho do fundo, E
/ 1. Tratam-se, então, de dois espelhos. A questão
Velázquez vê do outro espelho, E
que Velázquez está estudando aí é O Espelho. Posso dizer isto baseado em,
pelo menos, mais dois de seus quadros.

Velázquez: Jesus em casa de Maria e Marta

Velázquez pintou um quadro chamado Jesus em casa de Maria e


Marta. É só abrir o Novo Testamento, Lucas, X, 38, para saber do que se
trata. Nesse quadro relativamente grande Velázquez mostra duas mulheres em
afazeres de cozinha, com um bodegón na frente, uma natureza-morta e, no
canto, à direita, lá no cantinho do quadro, há um espelho, no qual vemos Jesus
sentado, dizendo a prédica que ele fez para Marta e Maria. Duas mulheres que
estão à frente dele, e um espelho, ali adiante, onde está se vendo Jesus falando
com Marta e Maria. Para Velázquez pintar este quadro, ele tinha que estar em
frente às duas mulheres, que estão junto à mesa com o bodegón. Portanto,
aquele espelho está à sua direita. De onde ele está vendo, do seu ponto de vista,
temos que considerar que os três personagens que aparecem no espelho, Jesus,
Marta e Maria, encontram-se dentro do atelier em que ele está pintando lá à
sua direita, no canto do atelier, para que ele possa vê-los refletidos, daquela

241
Psicanálise & Polética

forma, no espelho, conforme está o Esquema 5, com a planta baixa. A


composição deste quadro é, pois, idêntica à d’As Meninas, que mostrei há
pouco. Mudou apenas o tamanho do espelho. É uma composição que ele repetiu,
só que, da primeira vez, ele se colocou ali, pintou as duas mulheres e mais o que
estava vendo no espelho. Depois, da segunda vez, ele se colocou lá, diante do
espelho, pintou o que nele via e retirou o resto que, para ele, não interessava.

Esquema 5

Era um hábito de Velázquez fazer esse tipo de jogo com o espelho. É o


caso de outro quadro, Vênus no Espelho, que considerarei com mais detalhes
depois, e que também é tido como um trabalho importante em sua obra. Em
suma, é a mesma coisa. Ele pinta Vênus e Cupido, e um espelho que Cupido
segura, no qual vemos refletido o rosto de Vênus. Isto é, então, uma constante.
Ele repete a composição, só que, da última vez, com As Meninas, ele tirou o
resto e ficou só com o que aparece no espelho.

242
Le Miroir ou Le Mi-roi

Mas, voltando, o que está em Lucas, X, 38? Jesus entrou numa cidade
e uma mulher chamada Marta o recebeu em sua casa. Ela tinha uma irmã
chamada Maria que, assentando-se aos pés do Senhor, escutava sua fala.
Marta estava atarefada num serviço complicado, veio a Jesus e disse: “O
Senhor não acha nada de minha irmã me deixar sozinha fazendo o serviço?
Diga-lhe que venha me ajudar”. E Jesus lhe respondeu: “Marta, Marta, você
se inquieta com um bocado de coisas, mas só uma coisa é necessária, e foi
Maria quem escolheu a melhor parte. Essa parte não lhe será tomada”. É
interessante Velázquez se incomodar com essa passagem da Bíblia. Marta
por um lado, a favor de certa lei, da regra, do trabalho, do comportamento
em casa. Maria, por outro, preocupada com outro tipo de Lei, com alguma
coisa Outra. É isto que Velázquez vai representar aí n’As Meninas.
Retomaremos isto.

* * *

No livro de Rosine e Robert Lefort, Naissance de l’Autre,


encontramos coisas muito interessantes. Estão tratando de duas meninas
psicóticas, de um ano e pouco. Uma, Rosine diz que não é psicótica, mas eu
digo que é. Ela não conseguiria encontrar aquele momento no trajeto da
criança, sem encontrar uma estrutura psicótica antes. Não posso garantir
que se tratasse de uma psicose porque a menina entrou no processo. Mas
entrou no processo mediante o trabalho de Rosine e, não, sozinha, por obra e
graça de sua vida quotidiana. Depois que aparece, digamos, o deslizamento
da psicose, não se pode mais garantir que fosse uma psicose. Mas, para
mim, trata-se de uma psicótica que “entrou na linha”, e de outra que não
entrou. É claro que fica ambíguo porque posso dizer que se tratava de uma
criança que não tinha entrado no simbólico ainda e, através do trabalho de
Rosine, entrou. Mas duvido muito que, sem esse trabalho, a criança entrasse,
dado o que Rosine nos apresentou dela. Prefiro ficar com a idéia de que o
“acabou-se o psicótico” tem que ser pensado.

243
Psicanálise & Polética

Mas o que importa, o que é extremamente interessante no percurso de


hoje, é que Rosine e Robert Lefort conseguem mostrar duas posições de sujeito,
na sua emergência, diante do real:
- A primeira, é uma posição em que a criança se depara com o real
numa espécie de “linha direta”. A criança não consegue situar, por exemplo, a
ela, Rosine, que está com a criança no colo, etc. Embora a criança perceba o
real do seu corpo, não consegue situar o lugar do Outro e estabelecer alguma
relação significante com esse Outro que Rosine seria para a criança. Ao invés
de situar o significante por aí, essa criança olha através de uma janela
envidraçada, esbarra na vidraça, não pode passar, mas se interessa pelo real,
que está lá fora, sem fazer ligação desse real com o Outro, uma postura simbólica.
- A segunda posição é a que foi tomada pela outra criança, que
diferentemente da primeira, conseguiu defrontar-se, não com uma janela
envidraçada, mas com o espelho. Mediante esse espelho, nesse estádio, esta
criança consegue situar o corpo da analista como Outro, localizar o significante
e, daí, poder trazer, situar o furo que há no corpo do Outro – coisa que a
primeira criança não conseguiu – e, mediante essa relação especular, trazer o
furo para o seu corpo. Nesse momento, por ligação do real com o significante,
consegue estabelecer-se como sujeito, o que a primeira não conseguiu. Esta,
apenas olhava para a janela, para reais, ou, mesmo, para significantes que ela
pudesse proferir, mas que não estavam relacionados, através da borda do
espelho, com esse lugar do Outro. E assim, não situou um furo, no seu corpo,
como o furo que o Outro porta no seu próprio corpo.
Estou fazendo apenas um resumo. É preciso ler o livro para entender
melhor. Mas o que interessa, neste caso, é que Rosine e Robert fazem a dialética
da janela com a sua vidraça e do espelho com o seu vidro. Nessa topologia, o
importante é que o espelho, como uniface, como quero situar, me promete um
lado outro que é puramente virtual. Nessa promessa, sendo ele uniface, acaba,
mediante minha relação com o Outro, revirando o que está lá para cá, me
entregando o real do lado de cá, e me situando em relação com o Outro do lado
de cá, me permitindo ser introduzido ao significante por esta relação. É aquilo

244
Le Miroir ou Le Mi-roi

de que já tratamos na consideração do estádio do espelho. Ao passo que olhar


através de uma porta, de um furo, é perder-se no real, sem situar-se como
sujeito. O importante é a dialética que existe no espelho enquanto tal, a dialética
que existe quanto a essas estruturas na banda de Moebius, que é a dialética de
um furo com sua borda, entre o furo e a borda.
Se tenho uma superfície plana, ou uma superfície qualquer, e tenho
nela um furo, esse furo liga imediatamente os dois semi-espaços, o que me
permite atravessar de um para outro lado. Mas posso pôr uma vidraça naquele
furo, onde vou quebrar a cara, ou a vidraça.
Posso também pensar o espelho sem o vidro, pura superfície refletora.
Mas, se o considero é a borda e não o furo, vou poder percorrer a superfície,
borromeanamente, segundo nosso amigo Pierre Soury, através dessa borda,
suas duas faces e considerar a possibilidade de reviramento de uma face para
um lado, e outra para o outro.
O que importa é que a borda do furo é um lugar de reviramento de um
espaço no outro, de uma face na outra. Considerar essa borda, esse “liame”,
como corte, é poder me situar diante do real, diante do imaginário dessa
passagem, de avesso para avesso, que é uma relação biunívoca aparente, e me
situar, também, como percorrendo essa borda no lugar da marcação, de
repetição, onde entra o significante para articular o simbólico. É o que tratei um
pouco num texto sobre Guimarães Rosa.
O que me interessa é que Rosine e Robert saíram de uma prática com
duas crianças, como eu saí de uma prática com um texto. É, também, essa
dialética do espelho com o furo, do espelho com a janela, do espelho com a
porta, que vamos encontrar aqui n’As Meninas, de Velázquez: o espelho e a
porta, a borda e o furo.

10/JUN

245
Psicanálise & Polética

246
V.v.V.

11
V.v.V.

Deixei com vocês uma batata fria. Não foi uma batata quente porque,
me parece, consegui explicar alguma coisa. Batata fria porque esperei que
vocês cozinhassem a batata que Velázquez nos entregou.
O interessante, como veremos, é a função da alíngua, nas possibilidades
de articulação que o sujeito acontece produzir.
A língua de Velázquez, no sentido mais geral, era o espanhol e era,
certamente, o português, na sua origem familiar. Assim como a nossa língua é
o português, ou seja, o brasileiro. Assim como a língua de Picasso, por mais
francês que ele se fingisse, era o espanhol. Acredito que é por esta razão que
Picasso nos dá o testemunho mais importante a respeito daquela reflexão
especular dupla, que tentei apontar na construção d’As Meninas: há um espelho
diante de um espelho. Isto porque em espanhol assim como em português,
diferentemente do francês, do inglês e de outras línguas, há na palavra REAL
a feliz equivocidade de realeza e realidade.
Real, de rei, rex/regis em latim, vai dar royal em francês e royal em
inglês, por exemplo. Real, de coisa, res/rei em latim, dá réel em francês e real
em inglês... sendo tudo real em espanhol. É mediante essa equivocidade que
Velázquez – certamente no que ele freqüenta essa língua – situa o lugar do
espelho por outra equivocidade que funciona também em espanhol como em
português: a de côrte e córte. É pela realeza e/ou realidade de Corte Real,
aonde a diferença se instala entre Rei/Rainha, como indicação de Nome do

247
Psicanálise & Polética

Pai e de castração, em suas duas vertentes, masculina e feminina. Não


podemos desprezar a presença da alíngua aí, talvez, estruturando não só o
anedótico do quadro mas indicando o significante que importa.

* * *

Vamos deixar um pouco de lado este quadro d’As Meninas –


mantendo-o, contudo, no horizonte – para questionar sobre outras coisas,
tanto na obra de Velázquez quanto na teoria psicanalítica. Por isso o título da
sessão de hoje me ocorreu dever ser aquele V.v.V., para abreviar uma ida e
um retorno. Quero com isso dizer que o que está, antes mesmo da construção
d’As Meninas – ou Corte Real, como quero que seja o quadro intitulado –,
nesse outro quadro, Vênus no Espelho, V.v.V., vem simplesmente indicar o
que me parece ser sua construção. O que me importa aí é a posição do
espelho que reflete o rosto de Vênus.

Velázquez: Vênus no Espelho, 1648/51

Velázquez pinta este quadro de algum ponto de vista situado mais ou

248
V.v.V.

menos na margem esquerda do quadro – ponto V, no Esquema 6, abaixo. O


quadro representa Vênus e Cupido: Cupido segura o espelho onde se vê o
rosto de Vênus, que está deitada de costas para nós.

Esquema 6

Vários autores suspeitam, e até querem garantir, que Velázquez teria


se inspirado, para a postura corporal de Vênus, num famoso e conhecidíssimo
trabalho que está numa das galerias do Louvre. Uma escultura antiga, talvez
de Roma, que se chama O Andrógino. Trata-se de uma bela mulher, deitada,
mais ou menos, nessa mesma posição de Vênus de Velázquez, com suas tetas,
etc. Só que, quando damos a volta, vemos um pênis repousando no chão. É
claro que Velázquez, como bem-pensante, não acreditava em andrógino, mas
devia estar interessado na diferença sexual, que veremos situada n’As Meninas,
na função de Lei da Diferença, ou Lei simplesmente, bem como nesse quadro
da Vênus.

249
Psicanálise & Polética

É preciso lembrar, em cada caso, que Velázquez era, às vezes, apelidado


“realista” – coisa que ele não me parece ser –, precursor de Courbet, etc.,
justamente porque queria o modelo lá na sua frente, funcionando com as regras
do geometral, para depois dar sua deformadinha... Ele exigia a frequência do
geometral, do ótico, do retiniano. Então, podemos supor que respeitando a ótica
geométrica, talqualmente n’As Meninas, ou conforme nosso Esquema 4 anterior
com a planta baixa deste quadro, para ele pintar o rosto da Vênus, era preciso
que ele visse esse rosto espelhado no espelho. Portanto, ela, Vênus, não se vê
nesse espelho.
Qualquer pessoa que lida com câmera de televisão ou de cinema sabe
que, para filmar uma pessoa diante de um espelho, é preciso que esta pessoa
não esteja se vendo nesse espelho. É um trabalho difícil o ator representar que
está se vendo quando não se vê, pois, do contrário, apareceria a câmera lá no
espelho.
Logo, por esta simples lei da ótica geométrica, ou seja, ângulo de
incidência igual a ângulo de reflexão, concluímos que Vênus não está se vendo
no espelho. Cupido, no caso, apresenta um espelho que nos engana ao
pensarmos que é para a Vênus se ver. O espelho é para Velázquez ver Vênus.
Velázquez vê a Vênus, como “vovô viu a uva”– é uma cartilha fundamental.
Para que Velázquez veja Vênus – como ele de fato vê para poder construir
este quadro – é preciso que, na mesma composição ótica, Vênus veja Velázquez.
Por isto que só coloquei as iniciais V.v.V.: uma ida e um retorno.
Neste quadro, Velázquez nos propõe um enigma em que, para cada
um que venha a se colocar como observador – e o observador está sempre no
lugar de Velázquez, no seu ponto de vista, ocupando, portanto, o lugar de
Velázquez –, é preciso que esse observador veja Vênus e, supostamente, esteja
sendo visto por ela. Velázquez não está brincando em serviço, ele está
trabalhando com a cabeça: cosa mentale.
É, supostamente, de uma posição masculina – uma vez que todo quadro,
segundo Lacan, enquanto objeto, enquanto quadro, é situado no lugar do objeto
a, ou tentaria ocupar esse lugar, na medida em que compõe um olhar – que eu

250
V.v.V.

sapremo o quadro como objeto a. Velázquez nos obriga a ver o rosto do outro,
que, no caso de ser Vênus, Afrodite, é Outro mesmo, o lugar do feminino. Só
fui até aí neste quadro, mas esta questão é importante porque, como veremos,
vai se repetir n’As Meninas.
Há, ainda, uma coisa para observarmos nesse quadro, uma questão
que deixo em suspenso: para quem, para onde olha o Cupido? Não é para o
espelho. Para Velázquez também não é, pois o olho do Cupido não acompanha
o olhar do observador. Tentei, no Esquema 6, traçar a direção do olhar de
Cupido e penso que ele olha exatamente para o lugar onde há falta. Ele olha
para a chamada “xota”, para o púbis, mas não o vê, porque há um pano na
frente. Pela reprodução, fica difícil resolver estas questões. Seria preciso medir
o quadro real, pois ainda podemos supor que há um ângulo de incidência, da
direção do olhar de Cupido, sobre o olhar da Vênus espelhada. Isto, de tal
modo que, se houvesse um espelho no púbis de Vênus, Cupido veria o quê?
Não sei. Aí é que teríamos que pensar. A questão está em suspenso, pois, do
ponto de vista da pintura, podemos dizer que Cupido veria o rosto de Vênus,
mas, do ponto de vista do espelho, não seria isto. Há uma reflexão especular
desse Cupido com dois espelhos: um é o que ele segura, o outro é o que estaria
no lugar da falta, só que ele não a vê porque há um pano na frente.

Esquema 7

Para caminharmos mais um pouco, ainda que por mera indicação, é


preciso pensar este V.v.V. como interseção: Velázquez vê a Vênus e Vênus vê
Velázquez. Este olhar (v) é uma espécie de interseção desses dois lugares (V,
V), um objeto a, talvez, como suspensão. Está sendo equacionada aí, no quadro,
lentamente, por Velázquez, até chegar às Meninas e até as Fiandeiras, que

251
Psicanálise & Polética

veremos adiante, a questão da Lei, sobre o lugar onde ela realmente opera, que
é o lugar da diferença – em última instância, diferença sexual. Trata-se,
portanto, para Velázquez, de tentar inscrever, em termos pictóricos, aquilo
que, suponho eu, Lacan escreveu formularmente como as “fórmulas quânticas
da sexuação”, com seus dois lados.

* * *

Neste momento, vou ter que perguntar à teoria psicanalítica, naquilo


que ela nos ofereceu até agora, para tentar endereçar isto. Do ponto de vista
da diferença sexual, uma vez que o homem nada tem a ver – não há relação
de espécie alguma – com uma mulher, são completamente diferentes, é preciso
reconsiderar isto, para que, outra vez, se pergunte a respeito dessa relação e
de como Velázquez trataria a questão.
Num esquema que tentei produzir n’O Pato Lógico, a respeito da
sexualidade humana comparada com a do animal, indiquei que, no caso do
ser falante, ao invés de ele encontrar uma figuração pronta que lhe servisse
de imaginário, correspondente a uma inscrição real da sexualidade, ele
encontra algo da ordem do espelho, um puro corte, uma pura superfície
refletora do que ali pintar. Entretanto, ali vai se instalar, como um filme postiço,
artificial, um artifício, uma letra qualquer que situa o sujeito numa postura
quanto a seu sexo.
Agora, eu diria que, se refletíssemos em torno das fórmulas quânticas,
talvez pudéssemos pensar na existência, para o homem e para a mulher,
desse furo, dessa falta de marca da sexualidade, como espelho, do mesmo
modo para os dois, metaforizando, no caso do homem, como alguma coisa
que segurasse a barra desse furo mais cerradamente, digamos, do que no
caso da mulher. Fazendo metáfora de que o furo seja um espelho, o que me
interessa é a borda.
No lugar daquele furo, então, uma vez que considero a borda como a
mesma topologia do espelho, estou imaginando ali um espelho, nos dois lados.

252
V.v.V.

Mas, naquilo que Freud diz a respeito da castração, no tipo de construção da


castração, há uma figuração muito mais cerrada em H do que em H’. Na
medida em que se substitui aquele espelho, ele continua espelhado por uma
espécie de filme, ou coisa assim meio transparente, que viesse como
embasamento sintomático – pura metáfora, para situar a coisa. Mas é como
se o espelho do homem fosse da ordem do opaco, ele se tornaria opaco,
enquanto que o da mulher, por mais que fosse marcado continuaria sendo
reflexivo, polido... nisso pelo menos as mulheres são mais polidas, ou
costumam ser...

Esquema 8

É algo mais ou menos, também fazendo uma figuração, da ordem da


construção do Esquema 9 abaixo, onde temos um espelho, E/ , para o caso do
masculino, e é como se tivéssemos, diante desse espelho, uma espécie de
esfera, e – a esfera aqui simbolizando alguma coisa de opaco –, que se
/ . No caso do feminino teríamos, diante do espelho E/ ,
espelharia no espelho E
uma esfera polida, espelhada, ou uma esfera furada, espelhada por dentro,
contendo um espelho E/ ’. Assim, estou fazendo a metáfora do masculino como
algo opaco, que pode se espelhar, e do feminino como algo que se espelha, mas
que espelha um espelho. Quer dizer, o feminino é algo que contém o espelho,
como furo.

253
Psicanálise & Polética

Esquema 9

Isto na medida em que, na castração, do lado do homem temos que


“todo x é função fálica, porque existe pelo menos um que não é função
fálica”, e, em função desse embargo da castração, o S1 espessa, ou torna
opaco aquele espelho. Por isso o homem é tão arrogante na sua função
superegóica, como na sua obediência ao superego. Ao passo que, no caso da
mulher, há manutenção parcial pelo menos da sua referência ao furo, portanto,
/ ). Estou representando isto como se fosse um
ao campo do Outro, S(A
polimento tal que, por mais que se faça uma gravura, por exemplo, ali no
espelho, opacizando-o um pouco, ele vai continuar espelhando. Não é à toa
que as mulheres de Velázquez procuram freqüentemente situar-se diante de
um espelho... Os tolos dizem que isso é vaidade feminina...
Todo espelho é uma borda. Se minha tese de que o espelho tem a
topologia da banda de Moebius, o que indiquei no texto sobre Guimarães Rosa,
for verdadeira, o espelho é uma borda. A banda de Moebius enquanto superfície
é a construção de uma borda, de um corte. Ela é a topologia do corte. E o
espelho, enquanto superfície, tem a estrutura topológica de uma banda de
Moebius e, portanto, a estrutura do corte. Por isso que, diante do espelho, sou

254
V.v.V.

bi-partido em duas aparências de realidade simétricas. Assim como um espelho


diante do outro infinitiza, parte infinitamente. É por esta razão que estou fazendo a
metáfora de que o feminino é mal opaco, é mais polido – digamos que o feminino é
“mal castrado”. Veremos isso melhor depois.
Não há um desvelamento do objeto no feminino. O que há é uma
infinitização da possibilidade de desvelamento do objeto, ao passo que, no caso do
masculino, há uma espécie de empolgação, de conceituação. O homem se empolga,
se pega, aparentemente, ao objeto – fica espelhado.
Estou interessado na partição do espelho por causa da questão que já
apareceu quando tratamos da lei da infinitização ou não, na relação especular –
que é o caso de que Velázquez está tratando nesses quadros.
Eu disse que se um pintor, ao contrário do que fez Velázquez, representasse
o quadro onde Vênus, ao invés de estar de costas, estivesse de frente para nós,
teríamos um quadro onde se vê representado o quadro que se olha. Mas se nesse
Quadro ele estivesse pintando, por acaso, um quadro em que ele se representa,
que é o caso de Velázquez n’As Meninas, ele estaria pintando o que ele está vendo
no espelho, isto é, ele estaria pintando o quadro onde está representado esse quadro.
Então, se aquele quadro dentro do quadro, que n’As Meninas vemos de costas,
estivesse de frente para nós, de algum modo teríamos que ver ali um quadro onde
se vê o pintor que está pintando um quadro que é o mesmo que o de fora. E, se é
o mesmo quadro de fora, teríamos que ver, naquele quadro de dentro, um outro
quadro onde o pintor está representando o mesmo quadro. Mas se o quadro de
dentro é o mesmo de fora, estaríamos vendo, no quadro, um quadro que é aquele
onde o pintor está representando um quadro, etc... e assim até o infinito. Alguns
artistas americanos fizeram isto: viraram a tela para o lado do espectador e pintaram
aquela infinitização perspéctica para mostrar um quadro pintado dentro do quadro
onde ele se pinta. Velázquez fez isto, só que, invés de apresentar a infinitização, ele
resolve a questão da Lei e a diferenciação do masculino e do feminino com muito
mais sutileza e precisão lógica.
Estou colocando que ver um quadro onde é representada alguma coisa
é simplesmente produzir essa situação do objeto a, o que eu citaria como uma

255
Psicanálise & Polética

produção da ordem do envolvimento masculino – está lá, vejo o quadro. Mas,


quando o quadro se inclui, aparentemente, a si mesmo, sem nenhuma metalinguagem,
no caso, temos apenas a infinitização do quadro. Isso é que estou querendo dizer
quando faço metáfora do espelhamento do lado do feminino: uma mulher inclui o
espelho, ela se infinitiza. Lacan diz que “A Mulher, ela não existe” porque nenhuma
delas é A Mulher. Cada posição do significante é Outra. Cada significante é Outro,
mesmo quando se repete. Quer dizer, não existe tautologia nem metalinguagem.
Ainda, para situar este tipo de questão, eu diria que há infinitização, ou não,
diante de um quadro como diante de um espelho. Suponho que uma mulher que
esteja diante de um espelho, esteja sempre se infinitizando. Por isso que os tolos,
geralmente homens, dizem que as mulheres se olham muito no espelho porque são
vaidosas. Elas se olham porque nunca se encontram: têm que conferir a toda hora,
e nunca se encontram. O imbecil, ou seja, o homem, ele olha no espelho e pensa
que está se vendo, que se encontrou e acabou-se. As mulheres não são vaidosas:
elas são a prova da vanidade do Homem.
Estou situando este problema, que Velázquez tenta resolver num estádio
seguinte ao estádio do espelho, que, estando resolvido, trata-se, então, de reconhecer
o Outro. A castração uma vez complementada, digamos assim, terminada, acabada,
me apresenta sempre a seguinte estrutura: sempre verei na superfície do espelho,
aonde olho tudo, ou seja, no lugar do sujeito, sempre verei o Outro. É claro que o
imbecil vai ver a si mesmo, porque ele é Narciso.
Então, como veremos no final, no quadro d’As Meninas, assim como já o
vinha preparando desde esse quadro da Vênus, Velázquez consegue construir o
lugar do espelho, duplicando a função, que me parece ser a de uma obra de arte,
que é a de construir um espelho. Além da construção do próprio quadro, que já se
tornou anedotário, ele também constrói para si o lugar do espelho. O que vale dizer
que o ato de inscrição da pintura – não o Sr. Velázquez, não é isto que
interessa –, o ato-poético, seria o mesmo que um ato de análise. Portanto, é lugar
do espelho. Chegaremos a isto com calma.

* * *

256
V.v.V.

Continuaremos pensando a questão da diferença sexual para ver como


ela vai funcionar na obra de Velázquez.
Referi-me, sessão passada, à dialética entre a porta e o espelho,
aproveitando-me do trabalho dos Lefort, Naissance de l’Autre, onde está sendo
tratada a dialética da janela e da vidraça. Como disse, fiquei bastante impressionado
na medida em que, por outra via, este trabalho me dá esteio para o que tentei
demonstrar no texto sobre Guimarães Rosa. Parece que, tanto eu como eles,
achamos a mesma coisa.
Há, nesse texto, uma coisa muito bem sacada nas suas conclusões, que é
a reflexão sobre o momento de instalação do significante sobre o real. Eles chegam
a dizer que a psicose viria não de uma falta, de um não surgimento de significante,
mas de uma falta de articulação, de sobreposição de uma falta de significante ao
real. Eles dizem, p. 390, algo que me pareceu absolutamente verdadeiro, que o
corpo do sujeitinho, petit sujet, é, primeiro, arrolhado não por um objeto-alimento-
real, mas por um objeto tomado do Outro, do campo do Outro, quer dizer, um objeto
significante, pois o Outro só se postura enquanto significante. Essa estrutura do
corpo de que eles falam é uma estrutura significante, e só pode existir enquanto tal.
Um pouco mais adiante dizem que logo que há Outro com seu estatuto significante
de Outro, há uma perda real, que o sujeitinho inscreveu por conta desse Outro, na
conta desse Outro, mediante o quê, ele mesmo, o sujeitinho, escapa dessa perda.
Então, num primeiro tempo, o sujeitinho não é furado no seu próprio corpo.
Em suma, os Lefort nos apontam um primeiro tempo, na inscrição
significante, em que o corpo do Outro é dado como significante, de saída. O
significante está lá e o sujeitinho reconhece esse campo, como campo significante.
Ele pode morder aquele campo, tascar um pedaço para ele. Um objeto que ele
constitui significantemente não é um alimento real, é um significante tomado do
corpo do Outro, desse campo do Outro, que vem arrolhar o furo do corpo do
sujeitinho, do sujeito. Esse furo, que eles chamam de “boca-ânus” – constituído
como buraco do toro, que é a forma que estão considerando –, é um furo do corpo
do sujeito, tomado como significante. De saída, então, nesse primeiro tempo, o
corpo do Outro é furado. E, certamente, o corpo do sujeito que considera esse

257
Psicanálise & Polética

Outro, também é furado. Mas, o sujeito, para não sofrer desse furo, tasca um
pedaço, tipo Adão e Eva na maçã, e se arrolha com essa importação significante
do campo do Outro. Eles mostram como, por exemplo, essa importação se dá no
caso da menininha que mete o dedo na boca da analista. Rosine, saca a borda do
furo e depois traz esse dedo, para arrolhar sua boca. Quer dizer, com esse significante
do furo do corpo do Outro, a criancinha arranca aquela borda de lá, fatura uma
zona erógena do Outro, e arrolha a sua a constituir-se, também, como zona erógena.
Mas, se o corpo do Outro não é, para o sujeito, furado de modo significante
– o corpo do Outro, como o corpo do sujeito, como o mundo, são realmente furados,
ou seja, há muitos furos reais tanto no corpo como no mundo –, de modo que o
significante furo venha distanciar esses furos, ausentificá-los significantemente, ou
melhor, faltando o significante que situe o furo, o sujeito cai no caso da psicose. Isto
quer dizer que se o sujeito não pode considerar o corpo do Outro como furado
significantemente, esse furo se apresenta no corpo dele, e no corpo do Outro,
como no mundo em geral, como um furo real, do qual ele não pode dar conta, por
não ter articulado esse real dos furos como significante que ele capturou do campo
do Outro, e com o qual ele se arrolhou para poder, inclusive, sacar esse furo. É aí
que Rosine e Robert Lefort situam a psicose, e eu estou plenamente de acordo.
Vamos, agora, pensar o segundo tempo, o advento da fase seguinte,
como os Lefort dizem: a estrutura especular. O estádio do espelho, aquele que
Lacan articulou, vem aí nesse momento, com uma duplicação e um distanciamento.
Eles chamam a atenção para este fenômeno – a duplicação e o distanciamento
– com toda correção. Nesse regime, o do estádio do espelho, o sujeito se depara
com a duplicação do seu furo, seja onde for esse furo – boca, por exemplo,
fundamentalmente boca-ânus –, assim como com a duplicação do furo do Outro.
Com o que o furo do sujeito pode ser considerado por ele, que agora está em
emergência, pela intervenção do Outro, a indicar, a nomear mesmo o seu furo –
por exemplo, o seu nome. Isto é, em suma, aquilo que Lacan articula no estádio
do espelho. Não tem nada de novo.
Tentarei representar, com uma figuração, estas fases:
Na primeira fase, ou primeiro tempo, temos um furo no corpo do Outro

258
V.v.V.

/ ) que é reconhecido pelo sujeito (S/ ). E o furo que o sujeito (S/ ) teria é suturado,
(A
/ ) de modo significante.
arrolhado, por aquilo que o sujeito tira do corpo do Outro (A
Então, a referência da sutura para o sujeito é o furo do Outro. Ele, o sujeito (S/ ),
joga para lá o furo, para não ter o furo do seu lado. O sujeito (S/ ) só pode fazer
/ ) um objeto constituído significantemente.
isto tomando do Outro (A

Esquema 10

Vejamos agora a segunda fase, fazendo outra figuração:

Esquema 11

259
Psicanálise & Polética

Temos aqui o estádio do espelho de Lacan e, neste caso, podemos


dizer que está tudo furado. Considerando o lado (a) como real e o lado (b)
como virtual do espelho E / , teremos, então, tanto o sujeito (S/ ) como o Outro
/ ) do lado (a), e o que se vê em (b) é a reflexão especular. Logo, do lado (a)
(A
o sujeito não tem como reconhecer nenhum furo, assim como não tem como
reconhecer nem a sua imagem. O sujeito vai reconhecer a sua imagem porque
ele (S/ ) vai poder ver o Outro (A
/ ) espelhado (em A/ ’), assim como ele vê ele
mesmo em S/ ’. Ou seja, ele vai poder ver o Outro não espelhado e duplicado
/ /A/ ’) e, por uma palavra do Outro, vai construir aquele Z que interessa – em
(A
linha tracejada – como o esquema de Lacan. Assim, o sujeito vai poder constituir
um lugar para si a partir dessa reflexão especular, onde, então, ele pode se
reconhecer, porque o que está do lado (b) é como o que está do lado (a). A
/ /A/ ’ é a reflexão S// S/ ’. Há um momento, nesse como, de aparente
reflexão A
proporcionalidade, que vem por via significante, que é o momento de instalação
da imagem própria, portanto, de emergência do EU. Em suma, é aquilo que
está no estádio do espelho. É preciso reconhecer aí uma complexidade muito
grande, inclusive a estrutura da castração, pois, do contrário não haveria
fundação do EU.
Terminada esta segunda fase de que falam os Lefort, ocorre,
imediatamente após, uma terceira fase, onde vamos poder encontrar o
acabamento, a completação disso que produziu o estádio do espelho. Aquele
tal objeto que o sujeito tirara do corpo do Outro de modo significante, na primeira
fase, aquele objeto tomado como significante, Corte Real do corpo do Outro,
como significante que é, acaba por vir a situar como significante – zona erógena
ou borda pulsional – o furo no corpo do próprio sujeito. Por causa dessa
operação que se produziu na segunda fase, no estádio do espelho, segue-se,
então, a possibilidade de situar o furo significante no corpo do sujeito,
talqualmente aquele furo no corpo do Outro. Certamente que este
reconhecimento, pelo sujeito, do seu furo, se dá mediante aquela relação
especular e pela intervenção do Outro, o qual, agora, o sujeito pode nomear. É
isto que os Lefort apontam quando a criança diz: “mamã”. Isto ocorre nesse

260
V.v.V.

momento de acoplamento do significante com o real – do lado (a) no Esquema


11. E o término disso não é senão a instalação do furo significante no corpo
próprio do sujeito. Agora não é mais o real que o assusta, pois, manejando o
significante do furo que o sujeito tirou do corpo do Outro, ele pode inseri-lo no
seu corpo – no lado (a) – o que é a mesma coisa que instalar esse furo no
campo do grande Outro, ou seja, instalar-se na ordem significante. E não se
trata mais de corpo de um outro, mas, sim, do campo do Outro. Quando esse
furo se instala no campo do Outro, como significante que o sujeito possa verificar
lá nesse campo do Outro assim como no seu corpo, é o mesmo furo.
Completando-se, então, aquela terceira fase – indicada no Esquema
11 em linha cheia – como vimos, há um significante que remete ao Outro, que
está inscrito no campo do Outro. O sujeito inscreve seu próprio furo na estrutura,
ou seja, no campo do Outro. E esse sujeito agora pode dizer uma frase como a
seguinte: “Meu corpo é furado como o do Outro”. Esta frase me parece poder
resumir o que aconteceu até a terceira fase, como que, articulando da forma
que os Lefort vão articular no texto: momento de metáfora paterna, ou,
simplesmente, momento de metáfora. Paternidade é esta metáfora e nada mais
do que isto: “Meu corpo é furado como o do Outro”. Está inscrito o significante
e a metáfora. É advento, como metafórico, do Nome do Pai.

* * *

Para começar a abrir questões, pergunto: não é esta a via do feminino,


para qualquer sujeito? Interessante que os Lefort falam de duas meninas, o que,
nem que seja como metáfora, serve. Não é esse o advento do feminino poder
dizer: meu corpo é furado como o do Outro? Se eu estiver certo em dizer isto,
eu estava certo quando disse numa sessão deste Seminário que “Antígona é a
mais antiga”, na medida em que se entraria nessa via simbólica por função
feminina. Estou dizendo tudo isto justamente porque, quando Lacan formula a
diferença sexual, ele nos diz que o tal ser falante se biparte nessas duas espécies:
uma espécie que é a espécie humana, a espécie Homem; e a Outra espécie.

261
Psicanálise & Polética

Vejamos, então, as fórmulas quânticas para que se possa seguir o


desenvolvimento que pretendo fazer:

Esquema 12

Nessa formulação, Lacan nos coloca que, do lado H, do Homem, existe



pelo menos um que diz não à função fálica (x x). Uma coisa que cria
problema na cabeça de muita gente é entender se, em Algumas conseqüências
psíquicas da diferença sexual anatômica, Freud coloca a diferença sexual
como simples diferença anatômica, e saber, então, como o tal do menino vai
lidar com aquele narcisismo da castração, em torno do pênis. Mas, por algum
motivo, medo da castração ou coisa parecida, o que Lacan aponta na formulação
é que esse sujeito, Homem, se instala falicamente com referência ao seu S1.
Ele se coloca como sujeito na medida em que pode dizer que todo x é função

fálica (x x). É a partir de uma referência, de uma exceção (x x), da
foraclusão do pai real (P), que o sujeito se instala como todo (x x), do lado
H, como metáfora. Fecha-se o círculo.
/ ). É
Mas as mulheres mantêm uma abertura no campo do Outro, S(A

262
V.v.V.

aí que Lacan vai inventar a bi-partição, a duplicação da mulher, dizendo: “A Mulher


não existe”. Justamente porque ela tem a referência fálica – quer dizer, ela participa
de ser Homem como espécie – mas, por outro lado, não deixa de manter referência
ao furo, no campo do Outro.
Se voltarmos a pensar naquela terceira fase, que desenvolvemos com
base do texto dos Lefort, e se nos referenciarmos ao que está expresso aqui na
formulação de Lacan, poderemos, então, dizer que o término daquela fase é da
ordem do feminino, se é que, agora, o sujeito pode dizer: “Meu corpo é furado
como o do Outro”.
É preciso, ao sujeito, manter o furo no corpo do Outro como lembrança
da produção da metáfora que instalou o furo no seu próprio corpo. Isto é não
esquecer o furo do corpo do Outro, e não é senão a referência a S(A / ), do
feminino.
Se a cada momento que o sujeito reconhece o furo instalado
significantemente no seu próprio corpo, ou do lado da sua posição subjetiva, ele
recorda que, metaforicamente, esse furo se instalou por referência ao furo do
corpo do Outro, ao furo no campo do Outro, ele se encontra na posição feminina –
ele não esquece o furo no corpo do Outro. Ou seja, essa metáfora, por mais
metafórica que seja, não consegue esquecer, definitivamente, o furo do corpo do
Outro, que foi de onde o sujeito tirou o significante do furo do seu próprio corpo.
Penso que esta é uma metáfora mal pregnante, que é, justamente, o
que Lacan está dizendo nessa formulação, e que Freud sempre disse: o homem
produz um recalcamento de tal ordem que ele esquece de alguma coisa. Já as
mulheres, por não poderem dizer que existe pelo menos um que não é função
 
fálica, na medida em que dizem que não existe nenhum que não seja (x x),
estão suspendendo um certo recalcamento. As mulheres são mal recalcadas em
algum lugar, embora não em tudo. Nas mulheres o recalcamento é meio faz-de-
conta porque há lembrança constante do furo de onde veio a metáfora, mal
pregnante. Isto faz sentido, tanto no texto de Freud, como no texto de Lacan.
Cria-se um impasse, pois o que estou dizendo é que o sujeito entra na
ordem significante por uma posição feminina. E, com isto, também estou dizendo

263
Psicanálise & Polética

que a metáfora está em se reconhecer o furo como do Outro. Ou seja, por um


instante, por um átimo que seja, o reconhecimento desse furo, mantendo a
referência do furo do corpo do Outro, é posição feminina: é reconhecer furado
o corpo do Outro, é não esquecer disto.
Será que Freud disse o contrário do que estou dizendo? Ele disse que
qualquer sujeito começa por uma posição masculina – de começo, todo mundo
é menino. No processo de castração, o menino vai continuar menino – no
masculino – porque o seu objeto continua o mesmo. Naquele “teatrinho”,
Freud nos deu a figuração de que, para o menino, seu objeto continua o
mesmo, ele só vai ter que abrir mão do portador, digamos assim, desse objeto,
que é a mãe, e continuar com esse objeto em alguém outro, cedendo à pressão
do pai, isto é, cedendo ao medo de uma castração real, castração do seu
pênis. Nesse momento é que Freud faz uma articulação com a suposta
anatomia. Mas Freud também diz, nesse texto sobre a diferença sexual, que
as meninas vão fazer o contrário. Elas têm uma posição avessa à dos meninos,
de tal maneira que vão começar pelo complexo de castração para, depois,
entrar no Édipo. Pelo que fica meio flou, é um processo que nunca termina...
Por isso Freud diz que os homens são muito mais propensos a se submeter à
ordem moral do que as mulheres.
Alguém me disse que a polícia, nessas blitzen que vem dando nos
ônibus, aqui no Rio, só pede a carteira de identidade aos homens. Mulher não
tem identidade. Se mulher tivesse identidade seria uma coisa horrorosa. Vocês
acham que Velázquez tem identidade? Vocês acham que este quadro, As
Meninas, tem identidade? Ele tem é estilo.
Freud parte do masculino quando situa a castração para o menino e
para a menina, de modos diferentes. Ele diz que o masculino vem antes da
função de um movimento libidinal, e mais nada. A libido para Freud é,
essencialmente, masculina, ou seja, é essa “vontade de morder”, tascar de lá
para arrolhar para cá. Todo movimento libidinal é o que ele chama de masculino.
Com essa via ele pode, me parece, situar tudo no masculino, de começo. Tendo,
então, a menina que passar uma fase pela qual não passa o menino, isto é, uma

264
V.v.V.

fase de deslocar-se do objeto e arranjar um outro, ao passo que o menino


mantém o mesmo. E, assim, o menino vai identificar-se com o seu rival (o pai)
e a menina identificar-se com o primeiro objeto (a mãe). Isto é o que diz Freud
naquele texto. Do ponto de vista da libido, do ponto de vista das articulações,
das identificações, das figurações, tudo bem!
Mas, eu, estou dizendo o contrário. Supondo que os Lefort e Lacan
estão certos, o que estou dizendo é que, se o movimento daquelas três fases,
que foram descritas aqui, é correto, o sujeito começa pelo feminino: “Meu
corpo é furado como o do Outro”... Não se esquecendo deste como. Mas será
que Freud estava errado? De modo algum. Simplesmente, ele estava em outro
registro. Do ponto de vista da via libidinal, todo sujeito começa pelo masculino,
Freud estava certo. Ele diz isto no sentido daquele movimento libidinal em que
o sujeito tem colagem sobre o outro. Entretanto, do ponto de vista da inserção
na ordem significante, só se pode começar pelo feminino.
Vejam se conseguem juntar as duas coisas. Em termos dessa formulação
que Lacan nos apresenta e desse percurso proposto pelos Lefort, aquela
identificação que Freud coloca é posterior. E se, como estou dizendo, há uma
via que começa pelo masculino e outra pelo feminino, isto não é senão a razão
daquela embananação em que Freud cai naquele texto, a tal da bissexualidade
a que ele se refere, porque são dois registros diferentes. Um é o que, a longo
prazo, numa análise, você pode encontrar: a sua identificação, de um lado ou
de outro, homem ou mulher. Outro, é o movimento lógico de inserção na ordem
significante. Se este percurso, como colocamos, está certo, o sujeito começa
referindo-se a um furo no próprio corpo, sem esquecimento do furo que é
mantido no corpo do Outro. A partir daqui segue-se um processo de infinitização.
Estou mostrando esse momento lógico, o furo, que pode ser tipo boca-
ânus. É o simples fato desse reconhecimento, do furo, que salva o sujeito de
ficar na psicose. Seguindo o processo dos Lefort, é esta a lógica. Não é preciso
ainda, neste momento, nenhum reconhecimento anatômico, genial, deste tipo,
para que o Outro se funde em diferença para com o sujeito, marcando a posição
de significante, fundando a estrutura. Quer dizer, qualquer sujeito começa sua

265
Psicanálise & Polética

inserção significante de maneira feminina, e sua inserção libidinal de maneira


masculina. E isto é bissexual – porém, cada um está num registro. Em suma,
Freud está certo e Lacan também – são dois registros. Lacan não disse isto, eu
é que estou dizendo em cima do que, suponho, Lacan mostrou.
Como eu disse, então, esse terceiro momento é quando o sujeito resolve
a relação especular: funda o furo do Outro, funda o seu furo e emerge como
sujeito que pode dizer Eu em função do reconhecimento desse furo como
significante. Isto é suficiente para marcar a diferença significante, o significante
com a diferença funcionando.

* * *

Vou, agora, dar mais um passo, para ver se acham outro furo. Como o
sujeito vai passar, eventualmente, dessa postura que seria feminina, para qualquer
sujeito, no começo, para uma postura masculina? Como é que ele vai passar?
Não na via libidinal, a de Freud, mas nesta via da inserção significante, a de
Lacan. O que será preciso para um sujeito, ao contrário do que acontece,
segundo Freud, com a menina – para Freud é a menina, o feminino, que tem
um segundo tempo, mas agora é o menino, o masculino –, encontrar um segundo
tempo para se tornar masculino?
A construção é cruzada, é reversa. Do ponto de vista libidinal, tudo é
menino e um deles vai passar para o outro lado, feminino, numa segunda
instância, num segundo momento. Mas, do ponto de vista da inserção significante
– Lacan e os Lefort –, tudo é feminino, e um deles, o masculino, vai ter que
passar para o outro lado. Como isto pode acontecer?
Em vista disso que foi proposto, ofereço à discussão um quarto tempo,
ou quarta fase. A via masculina só pode vir depois, mediante alguma coisa
que vou tentar chamar de “encarnação” do falo. O falo não é senão aquele
significante que se instala mediante a metáfora paterna propiciada no estádio
do espelho. É o falo como significante de haver significante, aquilo que Lacan
veio ressaltar: o falo é puro significante da diferença. Então, findo o terceiro

266
V.v.V.

tempo, ele já está inscrito de algum modo, operando como diferença, de furo
para furo.

Esquema 13

Mas há a possibilidade da encarnação deste falo, pela presença – agora


é que vem a questão do anatômico – real ou imaginária, do pênis. Seja a
presença real no corpo próprio, do pênis, ou seja esse real suposto e
imaginarizado, ele dá garantias para a encarnação desse falo no corpo próprio
– não esse corpo tornar-se o falo, mas alguma região desse corpo tornar-se
fálica –, o que vai, talvez, até possibilitar a instalação de um feitiço. É a referência
imbecil. O falo agora é referido a S1. Referido é instalado, isto é, encarnado no
corpo. Isso que Salvador Dali chamou O Grande Masturbador se escora,
ainda por cima, na encarnação do falo que é produzido, e acaba por tornar-se
propriedade do sujeito, no sentido do verbo ter.
Encarnado no seu corpo um falo, o sujeito diz: “Eu tenho o falo”.
Certamente que não é o falo enquanto significante, mas enquanto significante
agora ancorado, sintomaticamente ali no corpo do sujeito. Isto, ou porque o
real assim se oferece, ou porque o sujeito construiu esse falo sobre seu corpo.
Estou, como já disse, considerando agora uma quarta fase, mas o
momento inaugural é aquele, na terceira fase, de um lugar subjetivo. É a partir
daí, a partir de um S1, que o sujeito vai encarnar ou não.
A função mulher estaria num limite dessa inauguração de um certo

267
Psicanálise & Polética

sujeito. Por isso é que eu disse que as mulheres não têm identidade. Isto não é uma
ofensa, é um elogio. As feministas acham isto uma ofensa porque não querem ser
mulheres, querem ser homens. O que irrita na sapatice feminista é que elas não
querem arcar com a diferença. Elas querem ser homens, querem ser iguais aos
homens, o que é uma merda absoluta.
A referência idiota, então, ainda por cima, se escora nesta encarnação do
falo, que é uma espécie de feiticização sobre o corpo ou, pelo menos, uma instalação
sintomática enxertada ali no corpo. Vem, então, o verbo ter como garantia para a
sua relação com o significante fálico. Com esse “pau na mão” – a expressão tem
que ser assim –, o sujeito pode agora arrolhar, ainda que como promessa, o Outro.
Aí ele vira homem. É o inverso daquela posição original, da primeira fase.
A posição masculina invoca esse falo encarnado para, como promessa,
pelo menos, arrolhar o Outro, suturar o Outro, produzir uma sutura no campo do
Outro. É isto que Lacan vem nos dizer naquelas formulações.
Cria-se aí um problema sério porque, ao mesmo tempo que a castração é
condição sine qua non para se suspender o narcisismo, há uma função narcísica
posterior, e isto deixa muita gente embananada. Há uma função narcísica de
invocação de um falo tido, mediante o qual o sujeito vai poder fechar o círculo e
dizer: todo homem é função fálica. O corpo do Outro é suturado pela empolgação
do falo. Empolgação no sentido de conceito, que toma o falo enquanto significante
encarnado e capaz de suturar, arrolhar o corpo do Outro. Ainda que não esteja
arrolhando o tempo todo, a qualquer susto, o que faz um bom macho? Oferece o
falo, arrolha o campo do Outro, e está encerrado. Ele segura o tal do pau, o tal do
cetro ou coisa que o valha, e o oferece como uma espécie de ato apotropéico. O
Outro se cala.
Afinal, não é esta a postura que a mãe do psicótico exige do seu filho,
quando tenta arrolhar, suturar, seu próprio corpo? Ela, que está na posição de ser
Outro furado, para com o filho? Essa postura que ela exige, não é com o falo que
o filho tem, mas com um falo que o filho é chamado a representar, a ser. Ela se
masculiniza porque pega o filho como se fosse o falo e tapa o buraco. Ele tem que
ficar psicótico, pois não encontra o furo no corpo do Outro.

268
V.v.V.

O que diz o homem se a mulher pode dizer: “Meu corpo é furado como o
do Outro”? Basta acrescentar uma pontuação e é o que ele diz: “Meu corpo é
furado: como o do Outro”. Agora o verbo é comer. Por isso os homens pensam
que comem as mulheres, quando, na verdade, é o contrário: elas é que andam
comendo os homens por aí – elas é que são furadas. Então, com essa pontuação –
“Meu corpo é furado: como o do Outro” –, o imbecil passa a vida pensando que
tem o falo e que arrolha, com a oferta desse falo, o corpo do Outro. O corpo do
Outro sendo inteiro, não tem mais problema: quando o furo dele coça, ele come o
do Outro. Com isso ele fica espedaçando em pedacinhos, momento em que a
posição masculina vai poder considerar o Outro, não como tal, mas como objeto.
Neste momento é que aquele a que fica na meia divisão entre as duas
posições das fórmulas quânticas – naquela reta que chamei de bussetriz, a
bissetriz do ângulo formado pelas duas posturas femininas –, quando o Outro é
tomado como objeto, vai pintar para o homem como esse outro que ele “come”.
Maternidade é produção de psicose. Felizmente, há intervenções outras
que não permitem que ela sempre se dê assim. Lacan já disse que “mãe é
jacaré”. A maternidade é em si essa maternidade que se produziu simbolicamente
nesse percurso que fizemos com base nos Lefort e Lacan, ou se não, é a produção
da psicose. “Ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração...”. O filho é o falo da
mãe. Ela tem aquele falo. Quer dizer, ela não tem o direito nem de ser mulher. A
mulher tem o direito – porque funciona assim – de dizer: “Não tenho falo, sou
falo enquanto significante, enquanto furo”. Mas o homem, encarnando o falo
sintomaticamente, diz assim: “Tenho o falo”. Então, cadê a anatomia? Num
outro texto, Freud repete Bonaparte: “A anatomia é o destino”. Ele não está
errado dizendo isto porque a anatomia é o destino, sim. Resta saber o que ele
está querendo dizer com isto. Temos que ler Freud com o que ele produziu e não
com o anedotário da leitura pedestre, se não pederasta. A anatomia é o destino –
resta saber qual. Pois, na verdade, a anatomia é o des-tino.
O verbo ter é o que rege o processo masculino, é ele que paratodiza.
Sem o verbo ter não se pode paratodizar. Só posso dizer “todo homem é isto-
assim-assim”, porque tem isto. Sem esse ter não há paratodização. Já o verbo

269
Psicanálise & Polética

ser não pode paratodizar, porque não passa por captura de objeto, ele só passa
pela palavra. A palavra é infinitizante: ninguém é. Mas acontece que quando
alguém diz que “é isto-assim-assim”, no regime da sua boçalidade, está dizendo
que tem tal configuração imaginária. É como dizer: “Eu sou um objeto”. Qualquer
um pode ter, basta pagar o preço. Se uma pessoa pode dizer: “Sou professor”,
é porque a universidade pode cobrar isso dela, e ela pagou para ter. Ou, se
não, aluga-se um pouquinho... a prostituição é universal. Entretanto, o verbo
ser designa o que passa pela fala, ou seja, pelo que Lacan chama de
“obscurantismo do mal-entendido”, e não encontra esteio sobre o corpo.
Mesmo assim, é claro que a anatomia é o destino, como Freud inventou.
Só que, ao invés disso, digamos que “o a, na tomia, é o destino”. Agora fica
certo. Tomia é partição, logo, na partição há um lugar para o objeto a que, na
tomia, é o destino. Se a leitura que Lacan fez de Freud está certa, e é da
suposição dessa correção que partimos, o que Freud tentou pensar como
anatômico – porque é anatômico onde a diferença, digamos, evidentemente,
ou pelo menos, geometralmente, visualmente, pinta – vai dar para ele, em última
instância, a distinção de masculino e feminino, a qual recai, ulteriormente, nessa
postura formulada por Lacan: as fórmulas quânticas da sexuação. Não se
trata de pênis, trata-se de Falo. Em se tratando de falo, quando a referência
do sujeito é o gozo fálico, quando este sujeito é o masturbador que empolga
alguma coisa como sendo encarnação do falo, ele constrói essa anatomia das
fórmulas de Lacan que é da ordem da estrutura do inconsciente. O sujeito
constrói, por cima de qualquer aparelho da anatomia que rege esse discurso
científico, um órgão real, porque é sintomático, sobre o qual ele esteia o gozo
fálico, que passa a ser a sua referência.
Se no lugar daquilo que Freud chama de anatomia, menino/menina,
instalarmos, não um pênis mas, uma referência fálica, de gozo fálico estrito,
veremos o que ele disse ficar perfeitamente correto: essa anatomização que
dali se destaca, é o destino. Isto que dizer que, ou o sujeito se escora no gozo
fálico e fica imbecil, ou ele não se escora só no gozo fálico, e portanto nem no
gozo fálico, pois se escora também no furo do Outro, o que acaba embaraçando

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V.v.V.

completamente, desfigurando completamente o gozo fálico, e ele dá a louca.


Não tem saída: ou se é imbecil, ou se dá a louca. Isto é que são homens e
mulheres, o que nada tem a ver com macho e fêmea, muito menos ainda com
ter pênis ou não ter pênis.
Quero, com isto, frisar o que é de interesse para essa quarta fase que
propus. É preciso conseguir coalescer em cima de um sintoma, que é referência
ao gozo fálico, sutura do corpo do Outro, ainda que seja oferta desse falo,
como para tapar o buraco do Outro. É preciso conseguir, repito, articular essa
ordem sintomática, para se tornar homem. Digo “para se tornar”, pois mulher
é o mais antigo para o sujeito. É nesse interstício, no que se faz a diferença,
que vai ter que vigorar a Lei. A lei do homem é que “primeiro você dá, depois
você come”. E há o artifício lévi-straussiano que diz que “primeiro você recebe
uma mulher, para depois dar uma filha”. Mas o certo é que, primeiro você
cedeu a mãe, primeiro você-deu a Outra, para conseguir uma outrinha, isto é,
uma-zinha, ou um-a-zinho.
A lei do homem se configura nesse fechamento que, suturando o furo
do Outro, legifera a partir de uma ordem instaurada por cima da Lei. Essa
ordem não é a Lei – é aqui que vai ser a nossa briga. Vai-se instaurar uma
ordem do lado do pensamento, digamos assim, masculino, do lado H, por cima
do vigor da Lei, suturando o Outro. E a Lei não é isto. A Lei vige na diferença
que faz Velázquez ver a Vênus e Vênus ver Velázquez.
Não estou pedindo que se exterminem os homens. Seria um absurdo,
acabava a diferença. Querer que todo mundo seja mulher é o mesmo que
querer que todo mundo seja homem... são as feminista de um lado e Deleuze
do outro. Afinal de contas, se entramos direto na maluquice do feminino, fica
muito difícil de se instalar qualquer coisa. As mulheres, por falta de identidade,
vão fazer uma zorra, e não sei se a zorra sustenta o corpo... É meio perigoso.
Viver da zorra pode acabar com a existência física.
É preciso zelar pela diferença. É preciso lembrar ao homenzinho que o
Outro existe, e furado, graças a Deus! Assim como, com referência ao Homem,
as mulheres podem encontrar, ainda que momentaneamente, alguma identidade

271
Psicanálise & Polética

para se situarem no campo de arrumação de algum sistema, sempre provisório,


de sobrevivência.
Mas acontece que os que optam pelo lado feminino pensam que podem
fundar uma esquizofrenia generalizada... Quero ver o que sobra disso. Enquanto
isso, os que optam pelo lado masculino ficam querendo fazer – como muitos
estão fazendo – a ditadura, se me permitem dizer, do caralho. “Essa ditadura
é do caralho!”, é o que pensam.
A questão do masculino e/ou feminino é uma opção na medida em que
existe pelo menos um discurso que pode nos lembrar disso, e que não custa
nada tomar um certo contato com ele – chama-se: discurso psicanalítico.
Pois se a diferença está aí, se ela está na cara, se ela funciona, depende da
intencionalidade do sujeito considerá-la ou não. Isto, eu digo, em nível político.
Não é não-recalcamento o que se dá nas mulheres, é uma duplicação.
Se Freud coloca que, nas mulheres, há um recalcamento falho, não realizado,
uma instalação falha do superego, isto é excelente porque, se não, seria a
animalização total do falante. Esse bicho, o Homem, se deixar, se o Outro não
estiver lá para encher o saco dele, ou, pelo menos, proporcionar-lhe lesões que
ele não consegue resolver, a não ser se masturbando, que é o que ele faz o
tempo todo, ele fica numa ótima. Por isso Freud situou a estrutura do social –
certamente foi o que ele pôde pensar – como estatuto homossexual masculino.
É o que Lacan também diz, fazendo um jogo com os dois m de homme, em
francês: o estatuto do homem é o estatuto do homossexual, hommosexuel.
Nada propicia melhor melhor uma homossexualização generalizada do
que o apagamento da diferença que, de certo modo, já vige na tentativa de
suturação do Outro. O fato de estar do lado masculino já é um vigor pederástico:
os homens são homossexuais por construção. Mas, eis senão quando, mesmo
sendo homem, e isso é uma coisa espantosa, eles amam. Quer dizer, ficam
afeminados, ou feminilizados. Aí comparece o furo do Outro. Por mais que ele
ofereça o falo, o outro não fala que está satisfeito. É nessa questão que temos
que ver o vigor de uma obra como a de Velázquez.
No regime do desejo, o homem está sempre oferecendo o falo, e

272
V.v.V.

supondo que o Outro vá satisfazer-se, suturando-o com esse falo encarnado


que ele oferece. Mas, se o homem passa da sua essencialidade (x x) para
um outro movimento que não existe necessariamente e, muito menos, o tempo

todo (x x), ele passa a vigorar no regime do amor. Esse regime,
/ ). O amor do homem seria uma
simplesmente, lhe mostra o furo do Outro: S(A
espécie de barateação do falo. É quando o falo pode ser um barato. Com o
amor o falo “brocha”. Por mais que o sujeito o ofereça, ele poderá até satisfazer,
na ordem fálica, um outro, mas não tapa o buraco da infinitização. Amar é
reconhecer a diferença.
Não se pode, absolutamente, confundir este amor de que se fala na
psicanálise, com um outro, de que também se fala, que se chama amor-
paixão. Esta questão está muito bem situada no Seminário 1, de Lacan, p.
314 s., (ed. bras.), onde se lê que “o amor distingue-se do desejo, considerado
como relação-limite que se estabelece de todo organismo ao objeto que o
satisfaz”. Lacan está mostrando a distinção exata entre o amor e desejo.
Desejo, nessa organização-limite entre organismo e esse objeto satisfatório.
Isto “porque seu ponto de mira não é a satisfação, mas o ser”, que jamais se
completa. “É por isso que não se pode falar de amor senão onde a relação
simbólica existe como tal”.
“Meu corpo é furado como o do Outro”. O homem se essencializa no
desejo, fazendo aquela pontuação: “Meu corpo é furado: como o do Outro”.
“Aprendam a distinguir agora o amor, como paixão imaginária, do dom ativo
que constitui no plano simbólico. O amor, o amor daquele que deseja ser amado,
é essencialmente uma tentativa de capturar o outro em si mesmo, em si mesmo
como objeto”. Essa coisa que a gente chama de amor é muito ambígua, porque
é o amor-paixão que é mais cantado por aí – é essa captura. “A primeira vez
que falei longamente do amor narcísico, era, lembrem-se disto, no prolongamento
mesmo da dialética da perversão”. Então, esse amor-paixão é estritamente
perverso, captura o outro como objeto amado. O sujeito se objetifica, se egoiciza,
é a perversão propriamente dita. Não é a perversão polimorfa do macho, porque
ele não sabe fazer outra coisa. Ele só sabe comer e não é por amor, é por

273
Psicanálise & Polética

tesão, é desejo. A perversão polimorfa do macho é aquele desejo que Lacan


falou primeiro. A perversão propriamente dita objetifica, anula o sujeito, e é
esse amor passional que pinta como exigência de objeto-feitiço.
“O desejo de ser amado é o desejo de que o objeto amante seja tomado
como tal, enviscado, submetido na particularidade absoluta de si mesmo como
objeto. Aquele que aspira a ser amado se satisfaz muito pouco, isto é bem
sabido, com ser amado pelo seu bem. Sua exigência é ser amado tão longe
quanto possa ir a completa subversão do sujeito numa particularidade, e no que
essa particularidade possa ter de mais opaco, de mais impensável. Queremos
ser amados por tudo – não somente pelo nosso eu, como diz Descartes, mas
pela cor dos nossos cabelos, pelas nossas mãos, pelas nossas fraquezas, por
tudo”. É o cúmulo da babaquice. “Mas inversamente, direi correlativamente,
por causa disso mesmo, amar” – agora é o amor de que eu estava falando – “é
amar um ser para além do que ele parece ser”. Para além do semblnate, para
além da sua objetivação no objeto a, para além do imaginário. “O dom ativo do
amor visa o outro” – agora ele faz uma distinção de palavras –, “não na sua
especificidade, mas no seu ser”. O importante é que aqui ele distingue
especificidade de particularidade. “O amor, não mais como paixão, mas
como dom ativo, visa sempre, para além da cativação imaginária, o ser do
sujeito amado, a sua particularidade”. Não é especificidade do objeto, mas a
particularidade simbólica, significante do sujeito, ou seja, os movimentos que o
sujeito tem a partir de sua letra de instalação. Esse movimento se infinitiza,
uma vez que a letra se reduz, em última instância, à ordem significante, e
significante não tem sentido de espécie alguma. “É por isso que pode aceitar
dele até muito longe as fraquezas e os rodeios, pode mesmo admitir os erros,
mas há um ponto em que pára”– aí vem a sabedoria de Freud: amor tem li-
mite –, “um ponto que só se situa a partir do ser – quando o ser amado vai
muito longe na traição de si mesmo e persevera na tapeação de si, o amor não
segue mais”. Não se pode amar um babaca, aquele que trai.
Esse tal de amor só vigora no feminino, porque é a rememoração do
furo do Outro. É o que está nessa instalação significante de que falamos.

274
V.v.V.

Se do lado de H, na formulação de Lacan, há desejo e satisfação, do


lado de H’, é possível o amor como dom ativo. A lei do homem se escora no
desejo, mas existe lei de mulher que se escora no amor. E, qual é a Lei? Seria
uma, ou outra? A Lei é, simplesmente, aquela que vige apontando a diferença
entre essas duas leis.
O amor-paixão se situa no nível da homossexualidade, da absorção
narcísica, que o homem faz do outro como objeto. É também do lado do homem
que, talvez, possamos instalar o poder, o que talvez seja a lei do homem, a lei
do homossexual. Mas o homem quando ama, mesmo no regime do desejo,
quando ele pode, até no regime do desejo, da captura, referenciar o Outro
como existente, ele passa a heterossexual. Não existe outra heterossexualidade
possível senão esta.
Há, como já disse, um verdadeiro complô homossexual, que é essa tentativa
de masculinizar tudo. Tudo, inclusive da parte das ditas mulheres do movimento
feminista. A suposição de que é possível a relação sexual é uma suposição
estritamente homossexual: somos todos iguais, estamos na mesma relação de
igual para igual.
Porém, qualquer que seja o outro, se ele se postura como Outro, estamos
no regime heterossexual – e retirem disto a anatomia. Podemos até supor - e
esta é uma questão que Lacan deixa em suspenso – que a presença ou não do tal
do pênis contribua para que haja uma divisão aproximada de cinqüenta por cento
para cada lado, de homens e mulheres, mas nada pode garantir isso. Talvez a
presença do real de um tal de pênis empolgável, segurável concretamente, possa
facilitar as coisas para essa encarnação. Não estou teorizando sobre isto porque
não tenho a menor garantia... Por que não pode ser um clitóris, um dedo, etc?
Isto é feiticista. É possível que o discurso do Outro, enquanto como do chamado
social, da cultura, indicando mais para determinado objeto, talvez ajude a marcar,
significantemente, um lugar de real. É bem provável que pela via cultural se
reforce a colagem do significante no pênis, a encarnação do falo no pênis. Tanto
é que a imagem popular do falo é um “caralho voador”. Está lá na arte grega,
aquele pênis com asinhas, sozinho, voando no espaço.

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Psicanálise & Polética

Desconfio seriamente que cinqüenta por cento de mulheres é, até, muito,


principalmente no mundo contemporâneo, onde quase todo mundo é homem.
Por incrível que pareça, são, às vezes, os portadores de pênis que mais afirmam
o feminino: Jacques Lacan, Velázquez, Guimarães Rosa, Marcel Duchamp e
alguns outros. São estes caras que nos dão de presente um feminino. As
mulheres estão cada vez mais pirocudas e achando que estão fazendo um
grande negócio. Quer dizer, a homossexualidade tomou conta do planeta.
Por isso, por causa dessa homossexualização generalizada, é que é
tão reprimido o que os homens pensam que seja a homossexualidade. É uma
espécie de denegação. Há que denegar a suposta homossexualidade, porque
só se tem isto, então, tem-se que fingir que não se tem.
Se vamos ao seio da chamada família, é aquele bando homossexual:
mulher e marido são o mesmo – homem com homem – não há alteridade. É o
que, aliás, Lacan diz do casamento, que “o homem inventa o casamento para
dizer que tem uma mulher”. Ele sutura o corpo do outro, e agora tem um
objeto redondinho. O casamento é a instituição que visa suturar o corpo da
mulher. Como todo bom babaca, depois de casado, o marido apresenta: “minha
mulher”. É o chamado corno manso. Uma “renegação mantida” é como Freud
situa esse fator homossexualizante, essa pregnância masculina, que é a
renegação da diferença. Quer dizer, é perversidade, e se o olho do Outro se
abre, ele cai de pau, mostra o cetro. É a ditadura, como já disse, a dita, dura.
Parece que estamos sendo muito maldosos com a posição masculina.
O que há de errado com ela não é ser posição masculina, é supor poder
homossexualizar tudo. É o reforço da “masculinidade” contra a existência
do feminino. É o que encontramos, freqüentemente, nas “Senhoras”, digamos,
ditas “mineiras”. A “Senhora” é a tal, mulher do cara. Ela é redondinha, não
tem furo. Ela endossa a obturação do furo que o outro lhe prometeu, para
não ter o corpo furado. Ou seja, é um produtor de psicose. Nada é mais
produtor de psicose do que uma “Senhora”, que, aliás, os portugueses dizem
muito melhor do que nós: uma “Senhôra”. É muito preciso: “Um Senhor e
sua Senhôra”.

276
V.v.V.

* * *

Retornaremos, na próxima sessão, às Meninas para verificar, segundo


minhas observações, que Velázquez equacionou todas essas questões nessa
obra. Para mim, a formulação de Lacan, a marcação significante do sujeito, o
vigor da Lei, e tudo que abordamos aqui, está dito com todas as letras nesse
quadro. Com isso, reforço a idéia de que a pintura é “cosa mentale”, ainda que
seja inconsciente. Por isso pedi o testemunho do poeta.

17/JUN

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Psicanálise & Polética

278
E-Sexão

12
E-SEXÃO

Há, repetindo, n’As Meninas, de Velázquez, uma ordenação típicamente


renascentista do quadro que, entretanto, está deformada nos seus aspectos
perspéticos através da mudança da posição de alguns elementos, de alguns
pontos de fuga. Os pontos fundamentais, tanto no que toca à composição da
superfície, como do ponto de vista da dinâmica e da construção da perspectiva,
estão respeitados e reiterados pelo pintor.
Questionando, então, aquela trama de olhares e de linhas de construções
que estão no quadro, fizemos uma objeção ao texto de Michel Foucault que
trata desta obra de Velázquez, na medida em que, segundo o que o autor ali
coloca, teríamos que supor que o ponto de vista, o qual se projeta no ponto
principal sobre o quadro, estaria situado naquele espelho onde estão refletidos
o rei e a rainha – o espelho que está no plano de fundo do quadro, e que
denominamos E/ 2 ou R’r’. Assim sendo, todos os olhares convergiriam para
aquele ponto, R’r’, e o observador estaria, neste caso, situado no mesmo lugar
do rei e da rainha, olhando o quadro.
Segundo nossa postura, tanto o ponto de vista como a linha do horizonte
estão no olho do próprio artista, Velázquez, ali representado no quadro. Não
há, portanto, lugar coincidente do observador com o do rei e da rainha. Foi
mediante um estudo ótico das possibilidades do quadro que construímos uma
planta baixa aproximada, situando, assim, o ponto principal no olho do artista.
Com isto viemos a mostrar que o quadro é perfeitamente plausível se entendido

279
Psicanálise & Polética

como sendo aquilo que se reflete num espelho. O rei e a rainha estão numa porta
ao lado do grande espelho no qual o quadro se reflete e, portanto, em frente à
cena que se representa neste quadro, conforme foi desenhado.
Pudemos ver que em alguns quadros da sua produção mais antiga,
Velázquez já vinha situando a questão do espelho. O espelho foi um objeto de
interesse constante na sua vida e na sua obra, assim como também foi muito
comparecente e repetitivo por toda a fatura da teoria da pintura no Renascimento
e no Barroco. Fizemos algumas considerações a respeito de dois quadros seus,
Jesus em casa de Marta e Maria e A Vênus ao Espelho. Verificamos que, no
primeiro quadro, Velázquez apresenta a mesma composição que As Meninas,
sendo que representou a cena toda, inclusive os elementos que não estão no
espelho – n’As Meninas representou apenas o que via no espelho. Com o quadro
da Vênus, chegamos a concluir que o que Velázquez está colocando em relação
à problemática dos espelhos não é senão a questão do ponto de vista do quadro
e, portanto, a questão da situação do sujeito no quadro.
Tomamos, também, a referência da leitura do Seminário 11, onde Lacan
pensa o que seja o olhar e o que seja um quadro, e nos diz que um quadro é, em
última instância, a construção de um certo olhar. Uma vez que ele afirmara antes
que o olhar é objeto a, vai ter que dizer, em seguida, que o quadro, afinal de
contas, é alguma que se dá por objeto a. Não que um quadro seja um objeto a,
mas é aquilo que se oferece como um objeto a.
Lacan também situa a questão do sujeito no quadro, retomando certos
estudos de Merleau-Ponty, em Le Visible et l’Invisible e num outro livro mais
antigo, Phénoménologie de la Perception, onde este autor pensa a questão da
experiência de Gelb e Goldstein quanto à questão do anteparo no processo da
visão, numa idéia de quiasmo existente entre o sujeito e o quadro, onde o sujeito
se coloca sobre o quadro e o quadro se coloca no olho, numa mesma reversão.
Lacan acaba demonstrando que há um quiasmo entre o observador e o quadro e
que, portanto, o sujeito enquanto tal, S/ , está situado no quadro.
Se tomarmos o modelo de construção de Velázquez n’As Meninas,
veremos que, realmente – e este será o tema da próxima sessão –, há aí uma

280
E-Sexão

espécie de indicação do objeto a. Não só o quadro como objeto a, mas uma


indicação de lugar de objeto a dentro do quadro. Veremos, também, que
Velázquez não só situa o sujeito no quadro – ele está em qualquer quadro –
como reforça esta inclusão do sujeito, fazendo com que o ponto de vista coincida
com o lugar do observador.
Houve ainda outras considerações sobre pequenas questões como,
por exemplo, os personagens representados no quadro. É importante lembrar
que Velázquez está nomeando e indicando certas posições que esses
personagens ocupam, o Aposentador, o Guarda-Damas, as Meninas, a Infanta,
etc., e tais considerações vêm, também, corroborar nossa idéia sobre o quadro.
Fiz, ainda, uma colocação sobre o local onde o quadro foi pintado, o
palácio de Alcazar. Este palácio foi queimado e não existe mais, mas tenho
para mim que esta região do palácio que serviu de cenário para o quadro de
Velázquez deve ser referente a algum local vizinho aos aposentos reais.
Provavelmente trata-se de uma extensa galeria, coisa bem característica desse
tipo de construção, ainda com certos traços do período medieval. Pela
quantidade de quadros que há nas paredes, pelo tipo da construção de
perspectiva, etc., Velázquez teria pintado o quadro numa galeria do palácio, e
não numa sala, ou atelier, como ordinariamente se tem admitido. Quando tentei
fazer a planta baixa do quadro, percebi tratar-se de uma sala extensa, como
um grande e largo corredor no qual desembocam várias outras salas. Aliás, as
gravuras existentes sobre este palácio, que o retratam parcialmente, dão a
entender que ele é permeado de galerias compridas e com aquele tipo de
janela na sua fachada.
Até que se prove o contrário, então, ou talvez uma pesquisa possa vir
a confirmar, este quadro de Velázquez foi realizado numa das galerias do palácio
de Alcazar, contígua aos aposentos reais, local este que Velázquez devia
freqüentar, pois como sabemos ele chegou a ser o Grande Marechal do Palácio,
o que prova a sua intimidade com o Rei Felipe IV.

* * *

281
Psicanálise & Polética

Comecemos, hoje, nossa com-sideração pelos dois quadros que se


encontram na parede dessa galeria e que servem de plano de fundo no quadro
d’As Meninas.
Nesse local do palácio onde o quadro foi pintado vemos vários quadros
dispostos pelas paredes que, até, contrastam, tanto na fatura como no tratamento
da luz, com aquele retângulo onde aparecem, lá no fundo, o rei e a rainha. Esta
é uma das razões porque afirmamos que não é um quadro e sim um espelho.
Sabe-se que, no quadro original do museu do Prado, esses dois quadros,
que se encontram de frente para nós, são perfeitamente visíveis e identificáveis.
Certamente que pertenciam à pinacoteca privada do rei, a qual foi constituída
em grande parte por Velázquez, pois ele era, também, uma espécie de
comprador de obras de arte para a Corte. Velázquez, em certa época, manteve
amizade com Rubens, que esteve na Corte a convite de Felipe IV, e que muito
o influenciou na sua pintura como também na escolha da compra desses quadros.
Um dos quadros representados n’As Meninas é de Jordaens, pintor
flamengo contemporâneo de Velázquez e que foi discípulo de Rubens. O quadro
intitula-se Apolo e Mársias. Segundo o mito grego, Mársias era um sileno que
foi o inventor da harmonia frígia. A harmonia musical grega funcionava com
quatro modos fundamentais, um dos quais é o modo frígio. Cada modo tinha
certa estrutura particular e os gregos adequavam cada um desses modos a
certos tipos de representação afetiva, etc. Este modo frígio muito especial, diz
o mito, teria sido inventado por Mársias, o qual aparece, segundo o anedotário,
quando a deusa Atena – a deusa do mental, ao mesmo tempo que funciona
como deusa da guerra, às vezes – jogou fora sua flauta porque estava muito
preocupada com sua beleza, e a flauta poderia deformar as suas bochechas, se
ela a continuasse soprando. Mársias pega essa flauta e passa a tocar tão bem
que, um dia, desafia Apolo, que era o Deus das artes, cercado das suas Musas,
etc. Ele era o maior aulete do Olimpo e aceitou o desafio de Mársias. Só que
com a condição de o vencido ficar à disposição do vencedor – criar-se-ia,
entre eles, uma relação senhor/escravo. Foram escolhidos como árbitros desse
torneio as Musas e o Rei Midas. Após uma competição renhida, as Musas,

282
E-Sexão

naturalmente, foram a favor da vitória de Apolo, mas o Rei Midas foi a favor de
Mársias. Houve empate e não se conseguiu desempatar. Apolo ficou tão
enraivecido que castigou Midas e infligiu a Mársias o terrível suplício de ser
escorchado vivo e pendurado num pinheiro. Entretanto, Apolo, depois, fica
arrependido dessa vingança tão violenta e transforma Mársias num rio.
É uma belíssima figura: Mársias é transformado num rio e sua flauta,
que ele pegara do lixo de Atena, é consagrada a Dionísio – este é uma espécie
de outro-Apolo; assim como Apolo é seguido das Musas, Dionísio é seguido das
bacantes; essa dialética Apolo/Dionísio é uma velha dialética em nossas cabeças.
Esse pequeno falo, então, esse menos-um que sobrou de Atena, vai parar na
mão do poeta Mársias e, na vingança com os deuses, porque Mársias consegue
dominar o mundo de Apolo, ela, a flauta, vai parar em Dionísio. A flauta atravessa
todo o panorama da “cosa mentale”, a produção poética, o panorama grego, e
sobra como um resto maravilhoso, representando a possibilidade de ato-poético.
Apolo é aquele mesmo que inspira as profecias, aquele que dissera a
Édipo o que iria acontecer, através de sua pitonisa – a pítia, de onde vem a
palavra pitiatismo, ou seja, ataque histérico. Ele é, também, o inspirador dos
músicos e dos poetas. Atena, a tal que jogou a flauta fora, é a Minerva dos
romanos.
Atena era filha de Júpiter – Deus-pater – e de Metis, que era a Prudência.
Um dia Metis foi devorada por Júpiter, que a engoliu porque estava grávida dele.
Ele assim o fez para que o filho não viesse a destroná-lo – filho da Prudência
com Deus-Pai... destrona qualquer um... Imediatamente depois de engoli-la, ele
sente uma terrível dor de cabeça e vem a parir Atena, pela cabeça. Ele teve que
pedir a Hefaistos, que não é outro senão Vulcano, aquele da forja, para que
abrisse a sua cabeça. Assim, se fizermos o percurso de Atena, com sua flauta,
que vai cair na mão de Mársias, Apolo, Dionísio, etc., mais uma vez se reitera
que a Arte, e sobretudo o ato poético, é “cosa mentale”, representada nessa
gravidez encefálica de Júpiter.
Atena, que é a deusa da sabedoria e da Lei, às vezes é representada
com armas de guerra, porque ela vai à luta. É interessante que no escudo que ela

283
Psicanálise & Polética

usa como guerreira está figurada a cabeça de Medusa, que, esta, é aquela que
representa o ato apotropeico por excelência: paralisa as pessoas. Como sabemos,
Freud tem um texto sobre ela, onde tenta explicar o que é essa aparição do falo
enquanto significante, que paralisa a todos. Se Atena é a deusa da sabedoria, da
Lei, e portador da cabeça de Medusa no seu escudo, há uma relação, digamos,
por tabela, entre ela e Édipo.
Na história do Édipo, podemos tomar como centro de aparecimento da Lei,
isto é, da palavra da Lei, do ato-poético, a presença de Tirésias, o qual ficou cego
porque foi surpreender Atena tomando banho. Ele quis ver a nudez da sabedoria e da
Lei e, por isso, ficou cego, não foi nenhuma punição. Tirésias foi enceguecido pela
presença nua e crua da sabedoria e da Lei. A Lei da diferença, aliás que se indica
numa outra versão do mito, quando Tirésias separa a copulação de duas cobras.
Há, também, o que já contei aqui, que Tirésias é o único na história
mítica da Grécia que foi testemunha dos dois sexos. Não que fosse bissexual,
porque isto simplesmente não existe, mas pelo fato de que passou de homem a
mulher, levou sete anos mulher, e depois pôde retornar. Certa vez, numa discussão
no Olimpo, Tirésias foi chamado a dar o seu testemunho para os deuses. Eles
estavam discutindo sobre quem gozava mais, se os homens ou as mulheres.
Embora os deuses gregos sejam bastante situáveis, eles não são o Outro, quer
dizer, eles não são representantes ou a representação do Outro. Eles são
pedacinhos desse Outro, eles caem no real como frações, por isso não sabiam
chegar a uma conclusão sobre a contenda. Tirésias, então, respondeu: “É muito
fácil. Se fizermos uma partilha de dez, os homens gozam um, enquanto que as
mulheres gozam nove. As mulheres gozam muito mais que os homens”. É
absolutamente verdadeiro. É o gozo do Outro, o de que Tirésias estava falando.
Interessante Velázquez colocar escolhidamente esse quadro de Apolo e
Mársias naquela parede do fundo d’As Meninas. Talvez com isto, trazendo o
testemunho de que, na sua obra, quis falar do ato-poético enquanto tal. Ou, talvez,
estivesse na tentativa de expor a questão em torno da Lei, da sabedoria, da
recuperação daquela flauta, menos-fi (- ), cadente. Com o que poderemos,
também, dizer que ele estaria situando a questão em torno da diferença sexual

284
E-Sexão

por tabela, entre Apolo e Atena pelo menos. Talvez a presença da representação
do quadro de Jordaens estivesse como que a glosar o próprio quadro d’As
Meninas. Esta seria a necessidade do tema de Apolo e Mársias aí. Certamente,
é na mão do Mársias-Velázquez que está aquela flauta – a sua batuta.
Passemos ao outro quadro representado ao lado daquele de Jordaens, e
que vem glosar tanto este de Jordaens quanto o do próprio Velázquez. Trata-se
de um quadro de Rubens, o amigo de Velázquez e mestre de Jordaens, chamado
Atena e Aracne.
Aracne era uma jovem mortal da Lídia, cidade que era extremamente
importante naquele momento grego por suas tinturas de púrpura e excelência na
arte da tecelagem. Por esta razão, muita coisa da mitologia se passa em torno
dessa cidade, das suas representações pragmáticas. Um dia, porém, Aracne,
que era extremamente perita na arte da tecelagem e da tapeçaria, gabou-se de
ser melhor fiandeira do que Atena, desafiando-a. Atena, que, no Olimpo, era
reconhecida como a deusa mais excelente na arte da fiação, aceitou o desafio de
Aracne. É outro desafio. Antes era o desafio de Mársias a Apolo, e Atena entrava
por tabela, aqui ela entra direto.
Aracne, então, teceu uma peça onde figurou os amores dos deuses do
Olimpo, ou seja, contou a fofoca toda... E o fez com tanta perícia, que Atena não
pode encontrar, naquela peça, nada a retomar, nada a melhorar. Quer dizer,
Aracne, além de fazer uma peça extremamente bem-feita, também fofocou –
tipo de coisa de mulher: O Outro fala pelos cotovelos e acaba contando quase
tudo. Atena ficou extremamente encolerizada com Aracne tanto pela fofoca
como pela perfeição do trabalho. Rasgou a obra da rival e a atacou tanto,
perseguiu-a tanto que Aracne acabou se enforcando. Façamos aqui uma longínqua
referência ao le pendu femelle, o enforcado fêmea, no Grand Verre de
Duchamp. Aracne se enforcou e Atena, então, transformou-a numa aranha,
penduradinha no seu fio. Será que é do beijo dessa mulher que Puig está tratando
no seu livro? É uma mulher-aranha, de qualquer forma.
Temos, portanto, nos dois quadros que aparecem n’As Meninas, de
um lado, a tessitura que Freud chamou de apanágio das mulheres nas culturas.

285
Psicanálise & Polética

Por que, pergunta Freud, em todas as culturas, as fiandeiras são


mulheres? Por que a tecelagem está mais nas mãos das mulheres?
Com aqueles dois quadros, o que temos é a grande textura, a produção
do texto enquanto tal, que se faz representar em dois desafios aos deuses, na
excelência da prática artesanal e artística, ao mesmo tempo que na vigência
da Lei, do ato-poético, em suma. Foram estas duas coisas que Velázquez
resolveu representar lá no fundo, glosando certamente o que se apresenta
com muita evidência a vários observadores e críticos, que é o aspecto textual,
em todos os sentidos, do quadro As Meninas – a grande trama de olhares, de
linhas, de luzes.
Digamos, então, que Velázquez, ao produzir este quadro, poderia estar
desafiando Apolo, como o fez Mársias. Ou poderia estar desafiando Atena,
como tecelão, como o fez Aracne. É de se notar um detalhe interessante:
Velázquez era encarregado do atelier de tecelagem do rei. Ele não fazia
tecelagem, mas ele governava as fiandeiras do rei. O grande desafio da vida
de Velázquez, exposto em sua obra fundamental, é desafio a muita coisa, inclusive
a Apolo e Atena. É certamente a procura do lugar desses que desafiam, no
intervalo entre eles talvez, que se situa o lugar de vigência da Lei, que comparece,
praticamente, em modo duplo.
Dissemos isto tudo para situar um pouco essa ambivalência lógica do
quadro de Velázquez.

* * *

Voltemos a situar os elementos d’As Meninas, sobretudo a relação de


espelho a espelho. Isto me interessa, principalmente, por dois motivos.
O primeiro, que tenho desenvolvido em trabalhos anteriores é que a
obra de arte é a construção de um espelho. Aonde vige o ato poético, o
poeta conseguiu ou terá conseguido produzir um espelho. Não se trata da
superfície material, mas de repetir a lógica do espelho, a lógica do furo e de
sua borda. Por isso que a obra de arte ocupa o mesmo lugar que tenta ocupar

286
E-Sexão

o analista, razão pela qual não se pode fazer psicanálise de uma obra e sim ser
analisando diante dela. Mas, como diz o Zen que “quando se aponta para a lua,
o imbecil olha para o dedo”, é preciso não confundir porque quando a obra
aponta para o espelho, o imbecil olha para a imagem. Guimarães Rosa,
justamente, mostra no seu conto central das Primeiras Estórias que, diante do
espelho, na nossa debilidade, nos deparamos com a imagem e esquecemos o
espelho. O poeta constrói esse espelho. É para ele que temos que olhar, e
tentar desfazer as imagens. Não no que ele reflete o imaginário, que aliás é
extremamente útil na formação do eu, no estádio do espelho, mas enquanto
espelho vazio.
Em algum lugar do Seminário 2, Lacan declara numa frase o que é o
lugar do analista: “... que o analista não seja um espelho vivo, mas um espelho
vazio”. Em páginas tantas de meu trabalho sobre Rosa, tento mostrar esta
metáfora, muito antiga em Lacan, apontando também o que acontece na análise
e situando naquele esquema da espiral elíptica o lugar do analista no lugar do
espelho plano, central na dialética dos espelhos côncavos.
O segundo motivo que está me interessando é que temos no quadro,
além da construção da obra, a explicitação dessa construção. Vez por outra
encontramos uma obra em que o artista, ou melhor, o poeta, além de construir,
explicita, dá os dados da construção, da estruturação que utilizou para nos
entregar seu espelho. Foi o que encontrei, por exemplo, em Guimarães Rosa e
encontro agora nesta obra de Velázquez. Não é só que o espelho esteja lá,
construído logicamente como obra, mas também lá está explicitado aquilo do
que está tratando. Ele poderia não explicitar. Todas essas referências que estou
buscando no quadro são no sentido de mostrar que lá está a construção do
espelho e sua explicitação, como se Velázquez legasse esse achado, essa
“reflexão”, à nossa com-sideração, enquanto analisandos que somos.
Tentemos, agora, descobrir essas duas coisas: a construção do espelho
enquanto tal e a questão que importa quanto ao real do espelho. Isto, uma vez
que o espelho é aquela partição: esbarra-se num real diante dele, e ele devolve
tudo para o mesmo lado. A questão é a de que nesse espelho vai a marca da

287
Psicanálise & Polética

Lei, ou seja, a instalação da diferença enquanto tal, da diferença sexual. A meu


ver, assim como Velázquez está explicitando a construção do espelho, explicita
também a questão da Lei enquanto função do real da diferença sexual, ou,
pura e simplesmente, a simbolização do real da diferença.
Repetindo, então, os dois pontos que vamos levantar aqui são: no que é
que Velázquez constrói um espelho, não uma representação do espelho – não é isto
que está interessando –, mas no que é que ele nos dá o quadro como construção de
espelho; e no que é que, a partir mesmo dessa construção do espelho, ele nos dá a
referência da diferença sexual e da instalação da Lei nessa diferença.
Consideremos Velázquez, no quadro, enquanto pintor representado, ao
mesmo tempo que Velázquez enquanto pintor real, pintando este quadro d’As
Meninas. São dois problemas diferentes. E vejamos os testemunhos que ele
invocou e utilizou para nos dar o quadro como espelho.
Um espelho é algo que vira pelo avesso porque sua topologia é a da
banda de Moebius, a qual não é senão a topologia da borda única, absolutamente
unária, de um furo. Isto é facilmente representável: suponhamos uma superfície
qualquer, considerada infinita ().

Esquema 14

Se tivermos um furo nessa superfície, através da borda desse furo, podemos


virar (2) pelo avesso (3) essa mesma superfície. A charneira de viragem é o

288
E-Sexão

fato de a borda do furo ser única e unária. É a charneira de rebatimento.


Geometricamente temos que, para fazer o rebatimento de uma linha,
precisamos de uma charneira que é uma linha: para fazer o rebatimento de
um sólido em três dimensões, precisamos de uma charneira que é uma
superfície, um plano:

Esquema 15

Duchamp dizia, então, que, para fazer o rebatimento de uma quarta dimensão,
precisamos de uma terceira dimensão como charneira. Ele disse isto e isto não
nos foi dado, simplesmente porque não precisamos pensar em nenhuma quarta
dimensão para pensar que a charneira de reviramento de uma superfície é ela
própria. É o próprio furo que ela porta, através do qual, como se faz com uma
luva ou uma meia, nós a viramos pelo avesso. Esta é a estrutura do espelho.
O espelho é aquele furo que é charneira de rebatimento, virando pelo
avesso. É a operação que chamei de “viravesso”, operação que sobra. Quando,
diante de um espelho, podemos reconhecer a imagem que ele nos apresenta é
porque podemos trazê-la para o outro lado – viramos pelo avesso –, e o que
sobra é a operação do “viravesso” que é o espelho enquanto borda única,
enquanto banda de Moebius – superfície unilátera.
Portanto, para que se possa dizer que Velázquez está construindo um
espelho – segundo a tese que estamos defendendo, uma obra teria que
comportar isto –, teríamos que dizer que, em algum ponto, pelo menos, do
quadro, ele não só teria feito esse reviramento, como, ainda por cima, teria
explicitado isto. É como se Velázquez nos dissesse: “Deixem de ser tolos, olhem

289
Psicanálise & Polética

como eu reviro o quadro”. Quero dizer que temos ali inscrita uma banda de
Moebius aparentemente invisível. Mas, se estudarmos o quadro, vamos retirá-
la de lá e apresentá-la limpinha. Ou seja, Velázquez construiu uma banda de
Moebius neste quadro d’As Meninas. É só procurá-la que a acharemos.
Vamos recompor tudo outra vez.
Velázquez está pintando Velázquez enquanto representado no quadro.
Ele está pintando um quadro que, se minha operação lógica está certa, ele está
vendo, no real, como reflexo no espelho. Portanto, temos que dizer que Velázquez
está pintando naquele quadro em que ele aparece pintando – o quadro que está
de costas para nós – o próprio quadro em que ele está se representando: As
Meninas. O quadro que está lá dentro é o mesmo quadro que nós vemos.
Então, ele está diante do espelho pintando As Meninas. Por esta razão, o rei e
a rainha lá estão representados do modo que mostrei: há uma dupla reflexão
para que eles possam aparecer.
Neste ponto, temos que ter certo cuidado. Se Velázquez está vendo
aquela cena do modo como está representada no desenho de Luiz Carlos
Miranda que mostrei, ou seja, se da sua posição real Velázquez vê aquilo como
está no desenho, temos que pensar que eventualmente – e talvez o mais correto
seja isto –, ele está vendo o avesso do que está representando: lá no espelho,
conforme mostra o desenho, e se foi isso que ele viu, o quadro está pelo avesso.
Temos aí neste fato uma grande ambigüidade. Há uma tradição desde
o Renascimento, desde a invenção da perspectiva exata, por conselho de
Leonardo, Dürer, Piero Della Francesca, Paolo Uccello, etc. – sobretudo
Leonardo e Dürer, que são os mestres da construção da perspectiva, da
construção renascentista –, da farta utilização do espelho para um artista.
Leonardo chegou a dizer que todo quadro, ao ser considerado terminado, ou
quase, deve ser posto pelo artista diante de um espelho para ver se ele é tão
bom de forma especular quanto da forma normal. Ou seja, que a composição
tenha uma estruturação de equilibração tão bem-feita que o quadro possa ser
visto diante do espelho sem incomodar. Mas, pode-se dizer que Leonardo tinha
um cacoete, pois ele era absolutamente ambidestro, escrevia, pintava, fazia de

290
E-Sexão

tudo, do mesmo modo, com as duas mãos. Este “cacoete” passou a ser uma
espécie de “recomendação didática” para os artistas que vieram em seguida.
Não podemos saber se Velázquez entrou nessa de usar as duas mãos e, também,
não se sabe se era canhoto ou destro. O fato é que se ele pintasse com a mão
direita, poderíamos afirmar que este quadro d’As Meninas está pelo direito, ou
melhor, é o avesso do que mostra o espelho. Isto porque, no quadro, Velázquez
segura o pincel com a mão direita. Mas, quanto a isto, nada se pode afirmar.
Somente uma pesquisa mais apurada poderia nos esclarecer.
Talvez Velázquez fosse ambidestro como Leonardo. Leonardo até
escrevia ao contrário, quer dizer, escrevia cadernos inteiros da direita para a
esquerda, ao contrário da esquerda para a direita que é a nossa maneira. Assim,
para lermos os manuscritos de Leonardo, temos que olhar por um espelho.
Seria, mais ou menos, como o exemplo que se segue:

Se Velázquez está vendo pelo avesso o que está pintando, teríamos


que supor que existe uma certa incongruência entre o quadro enquanto tal e o
quadro que ele está pintando (aquele quadro que está dentro do quadro). Quer
dizer, o quadro que estamos vendo, que é a arte final de Velázquez, o quadro
acabado, ele está supostamente pelo direito ou pelo avesso, pouco importa.
Vamos tomar o direito como sendo verdadeiro. Logo, se o quadro que estamos
vendo, o quadro real d’As Meninas, está pelo direito, podemos supor que aquele
quadro que ele está pintando lá dentro, está pelo avesso. Pois se Velázquez se
representa pintando o que ele está vendo no espelho, logicamente ele está
pintando o avesso daquilo que vemos. Nada impede que ele fizesse realmente
isto, que ele pintasse o que via no espelho e, depois, passasse a limpo o quadro,
pelo avesso, avesso do espelho. Então Velázquez está pintando o quadro que
estamos vendo, mas não o mesmo. Ele está pintando o seu avesso.
O que é um quadro pelo avesso? Nada mais nada menos que o avesso
do quadro. É o que podemos ver numa tapeçaria bem-feita, pois as boas

291
Psicanálise & Polética

tapeçarias são aquelas que não têm avesso nem direito. Se nelas há alguma
indicação geométrica ou figurativa, isto será visto tão bem pelo direito como
pelo avesso. É a mesmíssima coisa que ocorre com o espelho, ou que ocorre,
por exemplo, com uma transparência, com um slide.
Assim, poderíamos dizer que este quadro d’As Meninas que estamos
vendo é o quadro que veríamos se aquela tela está lá dentro, de costas para
nós, fosse um vidro. Se aquela tela, a que está lá no quadro representada,
fosse, então, de vidro, Velázquez pintaria normalmente pelo avesso, e veria o
quadro como nós o vemos, na mesma superfície.1
O mais importante é que Velázquez, nessa mesma superfície, constitui
de tal modo as coisas que temos que pensar o tempo todo nesse “viravesso”, e
já vai aí algo da natureza do espelho e da banda de Moebius na nossa reflexão,
na nossa consideração sobre o quadro. No que começamos a considerar o
quadro, não há como não pensar esse pelo-direito-pelo-avesso, se é que nosso
caminho é válido. Poderíamos, também, dizer que Velázquez teria uma perícia
tão grande, tipo Leonardo, que seria capaz de pintar o quadro pelo direito,
mesmo quando vendo o seu avesso. Se o sujeito tem uma perícia lógica e uma
perícia perspéctica bem grande, pode perfeitamente representar, de imediato,
o avesso daquilo que está vendo. Entretanto, onde está o viravesso? Tem que
estar em algum lugar para que o quadro As Meninas seja pensado. Este lugar
é a cabeça dele, a cosa mentale de Velázquez.
Poderiam dizer que estou forçando a barra. E fica difícil demonstrar o
contrário, pois Velázquez, realmente, se pintou representando o quadro. Com
isso poderíamos dizer que ele só poderia estar vendo aquilo como está no
espelho. Porém, o próprio Velázquez nos dá uma segunda dica desse
reviramento.
Se Velázquez acaso estiver pintando o quadro pelo avesso, seja qual
for o direito ou o avesso, ele representou o rei e a rainha naquele espelho que
está lá no fundo. Eles só puderam aparecer segundo a planta baixa que fiz do
quadro – Esquema 4, acima – porque estavam, digamos, num plano do real
1
Cf. Anexo, nota 1, p. 296 adiante

292
E-Sexão

/ 1, em que Velázquez olha a cena. Logo, para


que é o mesmo do grande espelho, E
o Casal Real aparecer representado no quadro, eles tiveram que sofrer duas
reflexões: uma no espelho do fundo e outra no grande espelho. Então, Rr para
serem representados no quadro sofreram duas reflexões, ao passo que todos os
outros elementos, representados no mesmo quadro, sofreram uma só reflexão.
Por isso, se Velázquez está representando o que vê no espelho, está representando
pelo avesso, pois o que está no espelho é avesso, ao passo que, nesse mesmo
espelho em que tudo está pelo avesso, ao passo que, nesse mesmo espelho em que
tudo está pelo avesso e para o qual ele está olhando, ele está vendo o rei e a rainha
pelo direito, por caus da dupla reflexão que eles sofrem. Ou seja, lá naquele espelho
para o qual Velázquez está olhando, o rei e a rainha apresentam-se, devido à dupla
reflexão, na mesma posição que teriam no real, ao contrário do resto da cena que
se apresenta na posição avessa àquela que teria no real.
Mais uma vez, então, Velázquez nos dá a dica da torção: nesta
superfície do quadro, sem que se tenha que repetir o que lá está pintado, vemos
representados todos os elementos menos um segundo uma estrutura de reflexão,
e um elemento, que é aquele espelho ao fundo (R’r’), representado segundo a
avessa estrutura dessa reflexão. Isto quer dizer, novamente, que temos aqui
uma banda de Moebius. Para que uma superfície seja unilátera, basta que se
tenha nela um reviramento, mas aqui no quadro, Velázquez nos apresenta o
reviramento duas vezes. Ele, certamente, repetiu este reviramento para ele
ficar evidenciado. São duas bandas representadas numa mesma superfície,
não um duplo reviramento de uma superfície. Uma superfície virada uma vez
é unilátera e virada duas vezes é bilátera. Mas, se temos uma ampla superfície
e estabelecemos uma torção numa região dela, ela fica unilátera. E podemos
estabelecer nessa superfície uma outra torção, ou quantas torções quisermos,
em regiões diferentes, que ela irá continuar unilátera. No caso de Velázquez,
bastaria uma torção, mas ele repetiu o reviramento para explicitá-lo. Ou seja,
ele constrói o espelho e explicita essa construção.
A posição do rei e da rainha foi deduzida, e suponho que, até agora,
tenho conseguido demonstrar. O desenho do Luiz Carlos, acima, representa o

293
Psicanálise & Polética

que Velázquez está vendo daquela posição em que se encontra, como está
indicado no seu quadro. À frente dele há um grande espelho onde ele está
vendo toda a cena. O que está no espelho, então, é o avesso do que está no
quadro. Em seguida, ao lado do espelho, há uma porta onde estão o rei e a
rainha: é a posição em que eles se encontram no real.
Pela planta baixa que fiz do quadro, Esquema 4 acima, fica bem
claro que, para que Velázquez possa ver o rei e a rainha refletidos no espelho
grande que está à sua frente, é preciso que haja aquela angulação, com
relação ao espelho do fundo, que reflete a imagem dos dois. Nessa angulação,
Velázquez vê o rei e a rainha segundo uma dupla reflexão – de espelho para
espelho –, o que faz com que, naquele espelho grande, E/ 1, a imagem deles
se apresente, justamente, como eles estão no real. Ou seja, lá no espelho
grande, o rei e a rainha aparecem sem torção. Então, o rei e a rainha são
representados como reais, e o resto é representado pelo avesso. É isto que
cria, na superfície mesma do quadro, logicamente, como construto, uma
uniface, uma contrabanda, de Moebius.
Podemos, então, concluir que, com o quadro As Meninas, é como se
Velázquez nos dissesse que tanto faz pensar nisto como avesso ou como direito,
pois só há uma face – e o quadro tem a mesma topologia de um espelho.
Para terminar o raciocínio, ainda diria que, se o quadro é uma superfície
unilátera, se ele tem a estrutura da banda de Moebius, é porque ele porta o
furo que é o Corte Real, representado segundo a Corte Real, reiterando o
meu título.

* * *

São o rei e a rainha que vêem a cena como ela está representada no
quadro: eles estão em cena real. É como se fizéssemos a seguinte torção: o rei
e rainha são a posição Real; seguramos o resto e torcemos, apareceu uma
contrabanda. Quer dizer, aquilo tudo que está ali representado está, ao mesmo
tempo, pelo direito e pelo avesso.

294
E-Sexão

Velázquez construiu o quadro talqualmente uma banda de Moebius,


talqualmente a lógica da superfície de um espelho vazio, no que ele nos apresenta
o quadro como puro significante, vazio, puro corte. Podemos, a partir daí, jogar
fora todas as representações, pois elas não interessam mais. Somos dejetados
para o real. Por isso, temos que começar a reconsiderar. Por isso é que somos
analisandos diante da obra, quando atingidos pelo ato-poético tranchant com
que ela nos corta.
Para entendermos melhor, temos que colocar o quadro d’As Meninas
em frente ao desenho do Luiz Carlos. Considerando a posição em que Velázquez
se encontra no quadro – ou como indica a planta baixa –, ele está vendo o rei
e a rainha à sua esquerda, naquela porta. Logo, no espelho que está à sua
frente, ele vê todos os outros personagens em cena junto com ele pelo avesso,
enquanto que o rei e a rainha ficam refletidos na mesma posição devido à
dupla torção dos espelhos. De fato, Velázquez não poderia ver nada daquilo se
não estivesse diante de um espelho. Isto porque ele está lá, dentro do quadro.
Em qualquer quadro em que o pintor se coloca presente, por exemplo,
um auto-retrato, ele representa o avesso da posição real, porque há apenas
uma reflexão no espelho em que ele se vê. Mas se nesse mesmo quadro algum
elemento é representado segundo uma dupla reflexão de espelho, esse elemento
aparece na sua posição real, pois um espelho anula a torção do outro. É o que
temos neste quadro, onde Velázquez está representando o direito e o avesso ao
mesmo tempo. Se supomos, então, que o quadro real d’As Meninas nos
apresenta uma cena Real, no espelho do quadro, o Casal Real está pelo avesso.
Ou vice-versa: se é a cena que é o avesso, então é o Casal Real que está em
cena Real.2
Numa banda de Moebius, perde-se o sentido, um ponto não pode ser
orientado, é impossível orientar porque ela remete ao real do não orientável,
do puro corte. Portanto, quando nos defrontamos com este quadro de
Velázquez, temos que ter um cuidado extremo porque a todo momento nós
nos perdemos.
2
Cf. Anexo, nota 2, p. 297 adiante

295
Psicanálise & Polética

Suponhamos que temos, na mesma superfície pintada de um quadro,


uma representação correspondente à posição tautológica da imagem real, na
mesma superfície que uma representação avessa – o que é a mesma coisa,
como demonstrei. Então, o que temos é uma superfície onde há um ponto de
torção. É como se tomássemos uma folha de papel, ou de borracha, e fizéssemos
num ponto qualquer um pequeno corte onde revirássemos essa superfície e a
colássemos de novo. Com isto estaríamos fazendo algo da ordem deste quadro
de Velázquez, pois há um lugarzinho onde há uma torção. Uma única torção é
suficiente para instalar uma superfície unária. Essa torção é estritamente lógica,
é inscrita pela pintura sobre uma superfície plana. A torção não está aqui na
superfície material do tecido da tela, ela está na pintura de Velázquez. Está
nesse olhar que Velázquez constituiu. Materialmente, concretamente, a torção
está, pois, na pintura de Velázquez, no seu ato de inscrição, como o poeta a põe
no seu texto. Só que, além de Velázquez escrever essa torção, como todo
poeta o faz, ele ainda a exibe. É como se Velázquez nos dissesse: “Descobri o
ato-poético e o revelo, e além de pôr o ato, vou dizer, vou contar como ele é
segundo a minha lógica, a minha postura diante do espelho: reviro tudo para o
mesmo lado, pois é desse mesmo lado que a obra se constitui, desde um puro
Corte Real, que s’obra”.
Isto se reduz, em última instância, àquilo que suponho ser uma obra de
arte: a absoluta perda dos sentidos. Em suma, é o que Rimbaud dizia do poema,
e que as pessoas pensavam que se tratava de ficar bundeando pela vida, como
ele, aliás, o fez, porque era meio doidinho: “O desregramento absoluto de todos
os sentidos”. É o que ele trazia como ato-poético.
Há mais, uma coisa extremamente importante neste quadro, mas que
não aparece muito bem nas reproduções: a luz. A única iluminação que aparece
é a de uma luz lateral que é representada penetrando pela janela que está à
nossa direita no quadro. É uma iluminação real que ele aplicou ao seu modelo.
Sendo aquela janela, de onde parte a luz, a única que se encontra aberta, o
quadro é cruzado por uma laminosa: lâmina luminosa. No quadro original, ou
numa boa reprodução, podemos perceber que essa lâmina como que descreve

296
E-Sexão

uma diagonal do quadro,


_ que vai do canto direito superior ao canto esquerdo
inferior – a diagonal IJ no Esquema 2.
A luz, pelo menos na física e em outros discuros, é aquilo que –
embora Einstein tenha nos propiciado uma outra concepção dessa
relatividade – se supõe de absoluto em relação ao que é relativo. A luz era
um problema central na obra de Velázquez. Tanto que, segundo os
impressionistas, ele foi o proto-criador do chamado Impressionismo na
pintura, a pintura da luz.
Nesse quadro d’As Meninas, Velázquez nos apresenta uma luz,
que em última instância, logicamente, ilumina a torção enquanto tal.
Podemos retirar isso do fato de que esta tela d’As Meninas que nós
vemos está sendo iluminada, digamos assim, diferentemente daquela outra
que é a mesma, e que nós vemos lá dentro do quadro. Trata-se de uma
luz que atravessa o quadro iluminando direitos e avessos, mas, também,
iluminando direitos e avessos na relação do quadro com o real, entre a
postura real do Casal Real e a postura pintada dessa imagem real. A luz
ali é tudo: é a lâmina que atravessa o quadro, iluminando, num só jato,
direitos e avessos. 3
A luz aí é contrabanda. Ela é a banda de Moebius atravessando as
Meninas, iluminando, sobretudo, aquela menina, a Infanta, e iluminando tudo
– certamente para que Velázquez possa pintar aquela tela que ele lá está
pintando. Essa luz é o único jato que ilumina a tela, para ele, e que ilumina o
quadro, para nós. Logo, ela, a luz, é uma superfície uniface: puro espelho. É
a terceira vez que apontamos a repetição da construção do espelho. As
Meninas, de Velázquez, é, portanto, uma superfície unilátera, uma banda de
Moebius, a construção de um espelho mental, ou seja, de um corte.
Nesta sala em que estamos, supondo-se que aqui não exista nenhuma
superfície unilátera, a luz está orientada. Por isto há sombras que nos permitem
distingüir, nos objetos, uma face da outra. Mas, se introduzirmos aqui, nesta
sala, uma única torção, ainda que seja uma banda de Moebius, qual será,
3
Cf. Anexo, nota 3, p. 297 adiante

297
Psicanálise & Polética

então, a orientação da luz? Foi isto que Velázquez fez no quadro: ele
desorientou a luz. É o cúmulo! E ainda não havia um Einstein para pensar
isto, só foi pensado muito depois. Velázquez chegou e disse: “A luz não tem
orientação possível se ela é considerada enquanto tal”.
Pura maluquice da cabeça do artista? É como isto, como pura
maluquice que, no Impressionismo e um pouco mais tarde, os artistas, aos
gritos, urrando como feras, fauves, vão conseguir a pura luz, não orientada.
Quanto a isto ainda não tenho nada para dizer. O que me interessou até aqui
foi a luz enquanto tal, a pura superfície do espelho.

* * *

Há uma partição muito nítida neste quadro de Velázquez, mas é


preciso considerá-la, às vezes, do ponto de vista das linhas de força que
estão na superfície do quadro. Linhas de força que nos dão os pontos
dominantes do quadro. Conforme o Esquema 2 acima, temos os seguintes
pontos dominantes: M, no espelho R’r’, e N, no Aposentador Ap. Ou então,
podemos, às vezes, considerar a partição do ponto de vista da perspectiva,
conforme o Esquema 1: a perspectiva da parede lateral direita e a perspectiva
das luminárias no teto.
O tema que parece central no quadro é a Infanta que ocupa
exatamente o seu centro, dividindo-o em duas metades: tanto do ponto de
vista da construção dinâmica, quanto do ponto de vista perspético. A Infanta
encontra-se no meio, dividindo tudo, rasgando o quadro em duas metades. E
também, do ponto de vista dos volumes, da composição das massas, existe,
de alguma forma, uma divisão simétrica com relação ao eixo central do quadro,
onde se encontra a Infanta: de um lado, o artista, Velázquez, e, do outro, o
par formado pela Aia e o Guarda-Damas, ou a mesma divisão com relação
às duas meninas.
Os autores chamam geralmente atenção para a oposição dinâmica
entre as duas diagonais do quadro. Podemos notar que, enquanto os volumes

298
E-Sexão

__
acentuam a diagonal GH
GH, do Esquema 2, na disposição dos_dois anões e na
inclinação do corpo da menina da direita, a outra diagonal, IJ
IJ, acompanha o
movimento da luz juntamente com a inclinação do corpo da outra menina, a
que está à nossa esquerda. É pura questão de composição dinâmica.
Mas, do ponto de vista da estruturação perspética dos volumes,
Velázquez modificou, ali no teto, o lugar de, pelo menos, uma daquelas
luminárias. Como já dissemos, se aquelas luminárias estão numa
perpendicular ao plano do quadro, elas, obrigatoriamente, teriam o ponto
de fuga no ponto principal, que, no caso, seria no olho de Velázquez, ali
representado no quadro. Então, podemos dizer que, do ponto de vista de
Velázquez, aquela primeira luminária, a que está em primeiro plano, estaria
na sua posição correta, ao passo que a outra, a luminária que se encontra
mais ao fundo, estaria deslocada da sua posição correta. Velázquez fez
uma torção na perspectiva para nos enganar, para construir aquele tal olhar
de que falamos.
Para determinar o ponto de fuga dessas luminárias, uma vez que
isto só seria possível corretamente no quadro original, fiz uma forçagem
perspética, o que me deu aquele ponto Z, na cabeça do cachorro – Esquema
1, triângulo XYZ. Mas desconfio que esse ponto de fuga, se determinado
sobre o original, estaria localizado ali no canto inferior do quadro: ponto H,
no Esquema 2. Este seria o ponto em que se encontra o Casal Real, em sua
posição real. Este ponto H estaria justamente entre o rei e a rainha, aos pés
do rei e da rainha.
Há, portanto, um ponto de massa naquele cachorro, que força o
nosso olhar para aquele canto do quadro. Além do que, podemos dizer que o
cão é o objeto mais próximo do espelho e, também, o mais próximo do rei e
da rainha no real.
_Se
______considerarmos,
___ agora, as linhas de força do quadro – Esquema
2, retas HM e JN –, no que elas determinam os pontos dominantes do quadro,
M e N, poderemos estabelecer uma cruz em perspectiva, conforme o
Esquema 16, abaixo.

299
Psicanálise & Polética

Esquema 16

Existe uma cruz em perspectiva, cortando o quadro, a qual é determinada


em seu eixo central pela dinâmica que liga o ponto H ao ponto M, sendo H um
ponto situado entre o rei e a rainha, na posição real, e M, um ponto que também se
situa entre o rei e a rainha, lá no espelho R’r’. O eixo transverso dessa cruz estaria
determinado pela reta que liga Velázquez, V, ao Aposentador, Ap, sobre o qual
incide o ponto dominante N. Ou seja, é como se houvesse uma perspectiva de uma
cruz ligando Rei/Rainha a R’/r’, no espelho, e Velázquez, V, ao Aposentador, Ap.

300
E-Sexão

Tirando-se a cruz da perspectiva e reduzindo-a ao plano, temos a


seguinte representação:

Esquema 17

Quero supor que existe um espaço dividido pela cruz, no que ela
separa, pelo seu eixo maior, dois campos: o campo do rei e o campo da
rainha.
Apenas como lembrete, naquele momento vige o Barroco, e Lacan diz
no Seminário 20 que o Barroco é “a história de Cristo, são corpos em gozo”.
A cruz estava lá como símbolo de gozo, de morte, o corte de tudo. É como essa
cruz, no quadro de Velázquez, onde temos a separação masculino/feminino.
Nessa divisão promovida pela cruz, temos, então, um jogo de imaginário
e simbólico muito intrincado. Eu diria que neste momento, na dinâmica desta
partição, Velázquez re-instituiu a diferença sexual e mostrou dois campos,
com a Lei vigendo no meio.
O Aposentador é o tal, o pai da família. Não é o pai simbólico, é o
representante da paternidade na casa real – lugar que Velázquez um dia veio
a ocupar. Pela cruz que traçamos, Rei e Aposentador estão do mesmo lado,
e duplamente, porque, lá no espelho para o qual Velázquez está olhando, eles
também comparecem do mesmo lado. Quer dizer, é uma repetição entre
imagem real e imagem virtual, que no caso do Rei é a mesma, e no caso do
Aposentador é cruzada.

301
Psicanálise & Polética

Do outro lado da cruz, comparecem Velázquez e a Rainha. É como se


Velázquez tivesse exigido, para a indicação da alteridade, uma postura feminina
para si mesmo. Ele, enquanto artista, não enquanto obra, podia tratar da
diferença, na medida em que se colocasse do lado do Outro.
Comecem a juntar os cacos e vão ver a trama que Velázquez faz para
nos mostrar o que é a Obra, e o que é Isso, o que é o Inconsciente.
Assim, nessa partitura e nessa partição, está mostrado, com todas as
letras, que o que se corta no quadro, o que o quadro corta enquanto o Corte
que é dentro daquela Corte, não é senão a partição sexual, enquanto
representante lídimo e, talvez, único e unário da diferença – a diferença sexual
enquanto representação, enquanto representante da diferença. Velázquez pensa
o que é a diferença através da diferença sexual. É claro que ele vai se utilizar
do imaginário dos corpos machos e fêmeas, tanto faz. Entretanto, segundo
nossa perspectiva, ele se colocou do lado da Rainha, do lado onde há espelho,
dentro da Rainha, e nos mostrou que o Rei é pelo meio, ele reina mas não
governa. Governar é impossível... Ele é Semi-Rei, ele semi-governa. Por isto,
le mi-roi dans l’arène ou le miroir dans la reine.
Existe o Rei, existe o masculino, mas existe o Outro. É como se, fazendo
a partição entre Rei e Rainha, Velázquez fizesse a partição entre o Artista e o
Marechal (o Aposentador). Se o Marechal da Corte Real pode tentar governar
isso, quem pode dizer o simbólico disso não é o Marechal da Corte Real, mas
o Artista do Corte Real. Está aí no quadro a dicotomia, a dialética entre a
Corte Real e o Corte Real, entre Velázquez e o Aposentador, que Velázquez,
não esqueçamos, também foi numa certa época. Quer dizer, Velázquez deu
uma de Tirésias: situou-se de um lado, e de Outro, reconhecendo o que se
passa entre os dois, que é o Corte que aqui se chama a Obra. Então, enquanto
situado na Corte para poder secar o Corte, Velázquez teve que se supor no
lugar do Outro. Outro é outro-sexo, o representante lídimo do Outro, sexo, que
se chama A/ Mulher, que não existe, aliás.
Não estou dizendo que a obra tenha que recair, em seu ato poético, no
lugar do Outro. E, vai aí uma questão que não sei se deixei clara no texto sobre

302
E-Sexão

Guimarães Rosa. Se o quadro – o quadro, não a obra –, segundo Lacan, se dá


como objeto a, se põe no lugar do objeto a, é na medida em que ele se imaginariza
como tal, pois o objeto a é aí do campo do imaginário, mais do que qualquer
outro campo. Mas, por outro lado – e já não estou dizendo, agora, o que Lacan
disse, naquele momento, sobre o quadro, mas estou dizendo o que ele disse
sobre o sujeito, em suas formulações, me referindo à obra –, a obra se apresenta
como puro corte, lugar de sujeito, portanto, lugar de puro significante, lugar de
espelho, lugar de pura Lei.
A Lei é isto, é essa superfície do espelho que instaura a diferença,
corta e instaura a castração, diferença, isso que está inscrito no quadro de
Velázquez. É o que podemos ver, como já tratei aqui, situado no Estádio do
Espelho de Lacan: a castração, a emergência do sujeito, o espelho enquanto
tal. Tudo isto está instalado naquele construto que Lacan faz para nos expor
uma estrutura. E Velázquez está nos dando este testemunho.
Mas, a Obra, se ela é da Lei, ela é esse homem ou mulher? Ela não é
nenhum dos dois. Qual é o lugar da obra na diferença sexual? É puro corte, ou
melhor, barra pura – ela é escansão. A Lei aí é Obra, é o ato-poético, pura
escansão. A Lei é aquilo que emerge como diferença, como borda de furo,
puro corte, puro interstício, inter-dito. É essa inter-dicção.
É posto debaixo da Lei que o poeta pode chegar a nos mostrar a Lei –
sob o império da Lei, referindo-se não às leis, não aos códigos, mas sujeito à
Lei. Por isso, como dissemos, Velázquez foi ter que se colocar no lugar do
Outro, para poder sacar o que há no meio. Isto é que é belo na figura de
Tirésias, que é um poeta-representante-da-Lei porque ele foi, metaforicamente,
para o lugar do Outro, ou seja, sacou que há Outro e, portanto, que não há
Outro do Outro.
Lacan disse da assunção do sexo para cada sujeito: “Para os homens,
reconhecer que há mulheres; para as mulheres, reconhecer que há homens”.
Só isto. Não se trata de assumir este ou aquele sexo, nada a ver com anatomia.
Trata-se de reconhecimento do Outro. O que não deixa de ser conseguir
posturar-se de algum modo, discursivamente, no lugar do Outro. Com isso,

303
Psicanálise & Polética

estou dizendo que a obra enquanto tal é a instauração, a instalação, a inscrição


do ato-poético, essa torção: puro significante, puro corte.

* * *

O quadro, o trabalho de arte, o produto, cai no lugar do objeto. Mas, o


sexo da obra, o sexo do ato-poético, qual é? Se dissemos que o ato-poético
está no mesmo lugar do analista, certamente que a obra tem o mesmo sexo do
analista, ou, do lugar do analista. Mas repetindo, qual é o sexo da obra?
Recomendo que leiam Ornicar?, 22/23, que, por uma boa coincidência,
me chegou às mãos às vésperas deste Seminário. Lá temos uma série de
artigos que tratam do transexualismo. É um tema muito interessante de ser
estudado, pois embanana muita gente. Os médicos têm uma saída, os psicólogos
outra, etc... enfim, um monte de patacoadas. Não se pode confundir
transexualismo com outras transações sexuais. Nada tem a ver com a
homossexualidade, por exemplo. É cabeça de médico ou de psicólogo que
pensa que transexual é homossexual que quer mudar de sexo. Isto não existe.
Um homossexual sob análise faz questão de manter sua corporeidade e sua
inscrição oficial, digamos assim, de identidade, no sexo em que está. Se não,
ele deixa de ser homossexual, ela passa para o outro lado. A homossexualidade
exige esta impregnância de um lado.
Travesti não é transexual. O barato do travesti é o feiticismo da roupa
e o feiticismo de um “baratinho” corporal. O que é um barato na cabeça de um
travesti macho é que ele parece uma mulher, mas se a gente passar a mão, tem
um troço. Na fêmea é a mesma coisa. Tanto é que, freqüentemente, ela não
usa nenhum postiço para imitar o pênis. O travesti só quer o barato da fantasia
indumentária e o barato da diferença que está lá. Nisto é que está aquela
perversãozinha do travesti.
Os transexuais são outra coisa. Não são, também, anfissexuais, e
essa coisa que os jornais chamam de bissexual, coisa que não existe. Existem
anfissexuais, ou seja, caras que passam para lá e para cá, dão uma voltinha,

304
E-Sexão

tudo bem. Tampouco são o dissexual, aquele que é isto ou aquilo. E nem unissex,
nem do ponto de vista da indumentária.
O transexual é um problema particular, que espanta as pessoas e mesmo
os analistas. O transexual é alguém que “nasceu com o corpo errado”. Está
absolutamente convencido de que, no caso, por exemplo, de ter um corpo macho,
sofreu uma injustiça ao nascer, pois ele pertence a outro sexo. Ele não tem a
menor vontade de ser homossexual. A maioria deles, ou quase todos, por exemplo,
um macho transexual que quer ser mulher, se recusa a transar com homens,
ou mesmo com mulheres, porque, se não, vai haver homossexualidade. Ou,
então, aceitam transar com alguém da mesma corporeidade, mas não aceitam
tirar a roupa; o outro tipo tira a roupa, mas ele não. Do contrário tudo fica
falso. Eles declaram isto. O transexual está absolutamente convencido da sua
identidade num determinado sexo, que é, supostamente, o outro daquele que o
seu corpo lhe deu. Por isso, ele vai querer uma mudança na sua identidade. Ele
quer mudar de sexo em juízo, através de novo registro, e no corpo, através de
uma cirurgia. Isto cria um problema terrível porque, até o momento, ainda não
se conseguiu uma cirurgia adequada.
Os ditos especialistas em transexualidade, endocrinologistas, cirurgiões,
etc., fora da psicanálise, dizem até que, freqüentemente, o transexual já fica
satisfeito com apenas mudar de identidade – livra-se metaforicamente da
anatomia –, desde que seja reconhecido por outrem como o que ele supõe ser.
Um autor diz ser isto uma diferença de sexo-gênero. É meio difícil aceitar, mas
isto vem figurar, pelo menos, essa necessidade de mudar, simbolicamente, de
sexo, não exigindo necessariamente uma mudança anatômica. Mas, em última
instância, o que os transexuais querem mesmo é que haja um tratamento
adequado para mudá-los, radicalmente, inclusive anatomicamente, de sexo.
A sexão, que é a diferença sexual – a sexão que está entre os dois
sexos, o espelho que é a sexão –, é o próprio núcleo da estrutura psíquica. Por
isso Freud coloca a psicanálise girando em torno do sexo. Em qualquer lugar
desses que citei, seja no sexo do dissexual, anfissexual, transexual, travesti,
homossexuais machos ou fêmeas, sejam masculinos ou femininos, eles são

305
Psicanálise & Polética

completamente diferentes uns dos outros, não têm a mesma estrutura, não há
simetria de espécie alguma entre eles. Qualquer deles está em mal-estar diante
da sexão, porque não existe nenhuma posição que seja a verdadeira. Só existe
a verdadeira naquilo que a análise supõe que é reconhecer o Outro, não fugir,
não achar rolhas para tapar buraco do Outro, ao contrário da homossexualidade
masculina que impera na face desta Terra.
Neste número de Ornicar? Há um pequeno artigo de Cathérine Millot
que me pareceu feliz. Ela é quem procurou o transexual para tentar fazer um
estudo sobre o assunto. A demanda parte dela, portanto, não se trata de um
analisando seu. Ela mostra um caso – não um caso analítico – de transexualismo
a partir de ter conversado muito com um transexual que é um rapaz, que ela
tem o respeito de chamar de Sr. Fulano (o nome é Gabriel), só, que ele era
uma moça. Gabriel está absolutamente enquadrado no clube masculino: é
homem que nasceu “xotal”, digamos. Esse transexual se submeteu a todos os
tratamentos, fez cirurgias, tirou os seios, etc., tudo direitinho. Na França, a
legislação já está avançada neste sentido, e estão trabalhando uma última
legislação para tentar a passagem radical para o outro lado.
Eles fazem uma cirurgia toda especial, e, quando a moça já é bem-
dotada, com um clitóris grande, a coisa fica mais fácil, digamos: puxam os
lábios, colocam umas bolinhas de isopor... Vocês estão rindo? Mas é isto sim,
por que não? É uma tecnologia como outra qualquer. Há cirurgiões
especializados que dão declarações sobre o assunto. Eles fazem uma “prótese
peniana”, como chamam, e conseguem um pênis relativamente satisfatório,
funcionando com orgasmo e tudo. Embora o negócio seja um pouco precário,
os caras se sentem muito bem. É bom lembrar que existem homens com clitóris
que funcionam muito bem.
O caso desse transexual – que já tem papéis com nome masculino e,
portanto, é um rapaz – é considerado por Cathérine Millot como um caso bem
particular: l’étrange, como diz ela. Aquilo que Lacan, no Seminário 20, mostra
que é o significante mesmo: “besta”. L’étrange, o estranho, ou seja, l’être-
ange, o ser anjo. É uma espécie de go-between, como também diz Cathérine

306
E-Sexão

Millot. O que ela mostra muito bem é que, depois da operação, esse sujeito
passa para um estado aonde ele se sente muitíssimo bem, mas que não é uma
passagem para o masculino. Depois da operação, não se tratava mais do falo
imaginário de que ele suportava a função, mas do falo simbólico, como
significante da diferença.
Cathérine Millot vai, pois, surpreender esse sujeito, Gabriel, num grande
bem-estar, tentando ser transexual, mais caindo num lugar intermediário, o que
me parece bastante plausível. A cuca do cara deu uma volta terrível e foi se
situar, depois da cirurgia, como numa espécie de anjo, num lugar intermediário.
Ele não faz questão nem de transar sexualmente. Ele só fazia questão daquele
lugar simbólico que funciona na sua fala, na sua postura, como uma espécie de
anjo, de coisa intermediária.
A autora se pergunta: será que ele é psicótico? O encaminhamento de
certa psicanálise quer situar os transexuais no lugar da psicose. Eu não acredito
nisto. Ela mesma diz que nada permite afirmar tal coisa. E se situarmos o
transexualismo no caso da perversão propriamente dita, diríamos que se trata de
uma defesa contra a psicose, que para Gabriel funcionou com sucesso. É um
espanto! Quer dizer, se seguirmos a via da perversão, uma perversão bem-sucedida
não cria nenhum perverso: ela defende contra a psicose e cria um anjo.
Qual é o sexo dos anjos? Sejamos dignamente medievais. Um certo
racionalismo clarividente quis acabar com esta questão, como se a Idade Média
fosse completamente imbecil. Lacan disse que o analista é “a-sexuado”, o que
tem conotações as mais diversas: poderíamos dizer que ele não tem sexo, é
assexuado, ou, que este lugar do analista é lugar de sexo, objeto a. Ora, qual é
o sexo do objeto a? Ele cai do lado feminino, mas é bem difícil dizer que o sexo
a é feminino. O a é uma espécie de objetinho, de diamante, que corta, que
percorre essa borda. Ele se imaginariza para o sujeito, porque não pode se dar
como tal. É como imaginário que o sujeito o surpreende, mas a topologia e a
lógica do objeto a é intersticial.
O lugar do analista, se é lugar de espelho, de obra, de ato-poético, se é
lugar, não de Tirésias, mas, dos passos de Tirésias, não será senão essa espécie

307
Psicanálise & Polética

de lugar neutro, angelical, como esse que está apontado no relato de Cathérine
Millot. Eu diria que o sexo dessa “pessoa”, Gabriel, como o sexo da obra, como
o sexo do analista, são todos o mesmo lugar. Por isso é que o analisando pode
jogar imaginariamente, botar o analista de qualquer lado, na transferência. Ou
seja, é o sexo da Lei, que é o Sexão, puro corte, aquilo que escande os dois
campos, como mostramos com aquela cruz no quadro de Velázquez.

* * *

Partindo de nossas considerações, aonde pretendo chegar, se puder,


não é em nenhum devenir femme, que salvaria o mundo – o que não descarta
o fato de que, talvez, se os caras pusessem um pezinho lá fora para saber que
existe um Outro, fosse importante – mas, simplesmente, a esse vigor da Lei
que instala e aponta a diferença como tal. Não se vai salvar o mundo com todo
mundo devenindo femme. Vai-se, simplesmente, reconhecer a alteridade, a
alteração que a Lei causa na face da Terra. Se todo mundo devenir femme,
acho que isto vai virar uma zorra, assim como na que se está, em que todo
mundo deveniu homem, que é este pardieiro pederástico em que vivemos.
O depoimento do poeta vem para nos dizer que o sexo enquanto sexão
é instalação dessa Lei.
Ambas as coisas, devenir femme como devenir homme, estão
completamente errôneas. Do lado do machismo, essa tentativa de tornar tudo
homossexual. Do lado do feminismo, uma tentativa que é idêntica à dos homens:
tornar tudo macho. Por mais que venham falar dos direitos da mulher, estão é
repetindo os homens. E, por outro lado, existe uma certa tendência feminizante
que gostaria de transformar tudo em feminino – o que é, talvez, uma denegação
da diferença, por outro modo. Posso acreditar, por exemplo, que Deleuze não
esteja errado quando fala nesse devenir femme, pelo lado de que a mulher não
existe, e de que existem as mulheres, mulheres diferentes, e de que essa
diferença se exacerba diante do sujeito quanto mais ela é praticada. Mas o
simples fato de querer um devenir femme integral, me parece recair, em última

308
E-Sexão

instância, no devenir homme. É extirpar a diferença: falicizar as mulheres é


eliminar a diferença. Em última instância é isto, enquanto não se inventar um
terceiro sexo.
Lacan se pergunta por que Freud pensou o ça, mas nunca falou no lui,
a terceira pessoa do singular. Eu, tu, ele, é pura indicação? Ou esse lui é o
lugar de produção dessa outragem? Não estou chamando isto de terceiro sexo
e talvez não seja preciso. Quero apontar para a sexão, para esse espelho que
está no meio de tudo, este corte, puro significante, que, por não ser pensado,
deixa tantos nessa confusão de ou todo mundo passa para o lado do masculino,
ou para o lado feminino. Por que não manter a diferença, lembrando dela?
O imaginário é muito cômodo e muito pregnante. Então, ao refletir
sobre estas coisas, as pessoas, facilmente, ao invés de conseguirem conviver
com essa barra, essa que o artista lhe mostra, que o poeta erige, querem, sair
correndo, para um certo comportamento. Em termos de comportamento,
certamente que as pessoas têm, por enquanto, que se transexualizar, no sentido
de passar para o outro lado, mesmo. Quer dizer, não agüentam a barra intersticial
da diferença e viram homens.
É o processo, por exemplo, de Luce Irigaray. Mesmo sendo discípula
de Lacan, seu trabalho quer nos mostrar a diferença num projeto que me
pareceu imaginarizado demais. O que lá é ressaltado não é a Lei, a diferença,
o corte. É “esse outro mundo e outras imagens...” que podem ser simplesmente
imagens masculinas e respeito da suposta mulher. Das feministas não vale
nem a pena falar, porque elas são evidentemente homens, para não dizer
machistas. Quando o nosso caro Fellini faz um filme como A Cidade das
Mulheres, elas trepam nos seus sapatões, sobem nas tamancas, porque ele
deixa claro o de que estou falando.
Será tão difícil tentar manter a diferença, ou seja, reconhecer que há
Outro? Estou sempre buscando o testemunho dos poetas, porque eles sempre
reconhecem isto, e insistiram em nos apontar. Mas as pessoas ficam olhando
para as imagens, pois, afinal, precisamos de imagens. As pessoas pensam em
metáfora produzida, não na metáfora enquanto produção. Ficam com a

309
Psicanálise & Polética

sintomática opaca, porque o quadro é um sintoma que está constituído ali.


Ficam todos olhando para essa opacidade, essa realidade do sintoma, essa
produção metafórica, sem pensar que a metáfora foi produzida nesse golpe do
interstício. O efeito da produção não é o que aí interessa. O que interessa n’As
Meninas de Velázquez é o Corte Real que ele expõe.
A estrutura da neurose precisa justamente dessas imagens para uma
ancoragem, por isso vemos a histérica sempre querendo trocar de lado e o
obsessivo sempre indeciso. Mas não estou falando desta ou daquela estrutura
diante disso, estou falando dessa reflexão que até leva a saídas políticas, recaindo
nesse imaginário, quando teríamos uma política histérica, uma política obsessiva.
Temos que pensar a partir da estrutura e fazer viger a diferença, que é a Lei.
Quando um poeta consegue um ato-poético, ainda que o homem seja
neurótico, alguma coisa ali se desfaz para ele. Alguma coisa da ordem da
análise se passou para que ele possa deixar sair uma coisa assim. Ou, então,
não é da ordem da análise na vida dele, é simplesmente que o inconsciente se
diz como é em sua estrutura mínima, quer dizer, fala através dele. Aí está o
grande erro, por exemplo, de uma Princesa Bonaparte, de um Charles Mauron,
e de todos esses que tentaram fazer uma estética ou uma crítica de arte
estudando a personalidade, a sintomática, analisando, por exemplo, o Sr. Allan
Poe. O que nos interessa a vida de Allan Poe? Ou a neurose que ele tivesse, ou
o pau-d’água que ele fosse? O que importa é que ele nos deu uma obra...
Como, eu não sei. Dele é que não é... Certamente é do Outro. É claro que a
mais-valia fica para ele... E como nós acreditamos mais na mais-valia do que
na Lei, ele assinou o nome embaixo, ele pode ganhar os direitos autorais. Mas
os jogos que o dito proprietário da obra faz com ela no mundo, isto depende do
discurso do Senhor.
A produção, a existência, a emergência do ato-poético, não estão nessa
mais-valia. Nada impede que um neurótico seja acometido de alteridade e
produza uma obra. Ele fala, ele faz, às vezes, poemas deitado no divã. É ato, é
ato-poético. O que se pode dizer dele não cabe em nenhum genitivo, e muito
menos em nenhum genital.

310
E-Sexão

Costuma-se dizer: a obra do Sr. Velázquez. Isto é coisa de historiador


de arte. Velázquez é o apelido desse conjunto de obras, ou será que esse
conjunto é que é Velázquez? Acho que Velázquez é o que é constituído por
esses quadros em si.

24/JUN

311
Psicanálise & Polética

312
Apareceu a Margarida

13
APARECEU A MARGARIDA
O Seminário começa com a
audição da abertura da cantata
Carmina Burana, de Carl Orff,
enquanto são distribuídas
margaridas a todos os presentes.

Vimos que na construção do quadro As Meninas, Velázquez teria nos


dado como que a formulação mesma do ato-poético na perda dos sentidos a
que chega o significante, mediante uma torção que unilateraliza a superfície e,
portanto, proíbe qualquer orientação. Mediante a introdução das figuras Reais
– o rei e a rainha –, Velázquez inventa uma dupla projeção, dupla reflexão
especular e, com isso, a relação da imagem do Casal Real para com o resto
das imagens é uma torção, produzindo na superfície do quadro uma banda de
Moebius. Situamos aí a topologia do espelho enquanto superfície unilátera,
correspondente topologicamente à borda de um furo e lugar do ato-poético, e,
com isso, a reinscrição do chiste, que é repetição dessa borda.
Reiteramos, também, o que já dissemos em outras ocasiões sobre o
lugar da obra de arte enquanto portadora do ato-poético: lugar do espelho,
dessa superfície unilátera, desse corte. Situamos aí o lugar mesmo do analista,
no ato analítico, homotópico do ato-poético, ou seja, lugar onde o sentido, por
se fazer, se perde na interpretação que é sua denúncia: apontar para o significante
enquanto tal, instalando o sentido ao mesmo tempo que o perdendo.

313
Psicanálise & Polética

Para terminar, mostramos, em perspectiva, aquela cruz que separaria,


mediante o eixo maior, vertical, dois campos de vigência da Lei. De um
lado, o Aposentador e o Rei com garantias da lei do homem, da referência
à castração enquanto tal e, portanto, ao Nome do Pai e à possibilidade de
limitação e de paratodização. Do outro lado, Velázquez e a Rainha, isto é, a
representação do artista, o poeta, e da Rainha, aquilo que poderíamos chamar
a Outra Lei, não necessariamente em contraposição, mas em diferença
para com a primeira, introduzindo a referência ao furo, à falta, o que torna
o Rei apenas um semi-Rei – a comparação, na verdade, é da mesma ordem
da que fizemos entre a lei de Creonte e a lei de Antígona. E falamos na
vigência da LEI no interstício dessas duas posturas possíveis para o ser
falante.
A referência que pedimos, no percurso até aqui, à Lei, é a referência
fundamental a essa diferença que o campo psicanalítico, freudiano,
equacionou como diferença sexual: a única referência possibilitadora de
uma heterologia, disso que podemos chamar de heterossexualidade.

* * *

Para encerrar, hoje, sem muita delonga, vamos ao Seminário 11,


onde Lacan apresenta sua concepção do que seja a pintura e do que seja
um quadro, relembrando um texto que aparecia naquele momento, póstumo,
Le Visible et L’Invisible, de Merleau-Ponty. Lacan mostra como o filósofo,
na medida em que pode se afastar de certas obrigações para com a filosofia,
vai encontrar o seu autêntico percurso, chegando, com considerações cada
vez mais apuradas, a conceber coisa da mesma ordem que Lacan atinge
por seu percurso na psicanálise.
Nesse livro, cuja maior parte é de anotações para uma futura redação,
Merleau-Ponty apresenta sua idéia de quiasmo entre o sujeito e o mundo, a
reversão entre o sujeito e o mundo, que numa nova instauração vai diferir
em muito daquilo que ele propôs na sua Fenomenologia da Percepção de

314
Apareceu a Margarida

anos anteriores. Lacan vem demonstrar como esse quiasmo é rigorosamente


verificável. Mesmo do ponto de vista da pura apreensão geometral, é o que
se pode equacionar a partir de uma ótica, do estudo da reflexão e da projeção
no fundo do olho.
Se considerarmos a imagem de um objeto que está situado diante de
um sujeito, a percepção desta imagem por este sujeito se dá segundo uma
projeção desse objeto num plano que se interpõe entre o sujeito e o objeto.
Isto nada mais é do que o esquema da construção perspéctica do
Renascimento, cujo melhor exemplo é o da famosa “portinhola” de Dürer,
que ilustra a sua Teoria da Perspectiva.

Dürer coloca uma tela, ou vidro, entre o observador e o objeto, para


traçar os raios visuais do olho ao objeto, constituindo sobre a tela, anteparo
intermediário, esse objeto observado geometralmente. Podemos dizer que o
sujeito que observa o objeto emite um jato de luz sobre esse objeto e, na
medida em que o objeto, ou melhor, o quadro se faz supostamente presente

315
Psicanálise & Polética

à frente do sujeito, ele se rebate sobre o fundo do seu olho, no que,


reversamente, é o sujeito que vai se situar lá no quadro. Este revertimento
proposto por Merleau-Ponty é o mesmo que faz Lacan quando situa o sujeito
enquanto tal, representado de significante para significante. O quiasmo é
essa reversão.
Quiasmo é uma figura de retórica; é uma inversão de ordem de
segmentos fraseológicos que são tomados simetricamente. Os dicionários e
as gramáticas costumam, mesmo em português, citar um quiasmo muito
exemplar de Victor Hugo: un roi chantait en bas, en haut mourait un
dieu, um rei cantava embaixo, em cima morria um deus. O quiasmo é essa
relação estilístico-retórica de reversão das posições imagéticas. No exemplo
citado, estão em quiasmo tanto o sujeito criticado como o predicado e o
adjunto circunstancial nas duas frases, na ordem sintática em que o quiasmo
se compõe. Essa questão do quiasmo, essa reversão, é aquilo que se repete
na aparente simetria de defrontação do sujeito com sua imagem diante do
espelho, como tentei anotar no texto sobre Guimarães Rosa.
Diante do espelho, o olhar, na verdade, se separa como um objeto
que transita, que transa, pelo menos aparentemente, de lado para lado, já
que é ele que percorre a superfície mesma do espelho, lugar de onde ele
teria caído, exatamente como de uma banda de Moebius, de um corte. Esse
objeto que teria caído daquela borda é o objeto perdido, que ali se qualifica
como olhar.
O sujeito olha para o espelho, projeta um olhar sobre o espelho,
numa espécie de tentativa de amarração, de reconstrução desse olhar sobre
as imagens, e se depara com o rebatimento em pingue-pongue desse olhar,
a partir da imagem que surpreende olhando para ele próprio, a sua própria
imagem – aí que é impegável o olhar. Na medida em que o sujeito é olhado
pelo espelho, o olhar se transmite como objeto, quica de lado para lado, ou
melhor, o sujeito é olhado pela imagem que reflete seu olhar. Mas, na verdade,
esse olhar sendo objeto, pode cair dessa relação especular, rolar e roçar
pela superfície do espelho. Agora é o espelho que olha tudo, é sobre ele que

316
Apareceu a Margarida

o olhar se constitui. Ou seja, é o espelho que constitui o olhar.


Lacan diz mesmo que o quadro é algo constituído como uma
armadilha de olhar, capaz de prender repentinamente o olhar do sujeito, mas
que, no entanto, se apresenta destacado quando, por exemplo, o sujeito se
movimenta e as peças do quadro não se movimentam na visão geometral.
Isto faz com que o sujeito tenha que ler o que se coloca no quadro como faz
o sujeito no texto, de significante para significante. Ao mesmo tempo, o
quadro, por ser portador desse olhar que resvala sobre ele, se constitui, se
dá como sendo, se apresenta no lugar do objeto a. Aí é que Lacan nos
mostra que o olhar é um objeto a, coisa que havia escapado a Freud. O
quadro se dá, portanto, como objeto para um sujeito que, eventualmente, na
medida em que parou, estacionou diante dele, poderia colocá-lo no lugar do
objeto por ele procurado. Lacan diz que um quadro, em última instância, é
como se o pintor nos dissesse: “Queres olhar? Pois bem, então veja isto!”.
E ele brande, diante de um sujeito, um objeto a. Se os quadros são amados
é certamente porque acabam apresentando, para um ou para outro sujeito,
certa localização do objeto.
Vamos fazer, neste ponto, algumas considerações no nível da
alíngua, do atingimento estilístico de um artista, de um poeta: o momento
em que o poeta chega a desejar, a evacuar – o termo seria este – a sua
obra, aonde podemos reconhecer a sua alíngua, que não é senão o seu
estilo. Alíngua é o lugar do chiste, do reviramento. Ela é borda unária, é
superfície unilátera, por isso a lingüística não consegue dar conta dela.
Ela revira sobre si mesma e é capaz de fazer com isso qualquer coisa.
Havendo tempo, talvez tempo para compreender, ela é capaz de
transformar-se em qualquer coisa, pois um significante sempre pode ser
dado por outro, ou passar para outro: metáfora e metonímia. Alíngua é o
lugar onde se executa o processo primário.
Seguindo as pegadas de Saussure, não do Curso de Lingüística
Geral, mas nos largados da sua loucura, nas gavetas do impublicável,
encontramos a grande questão do anagrama e sua relação com o ato-poético.

317
Psicanálise & Polética

O anagrama não é estritamente da mesma ordem do quiasmo, mas é, talvez,


da mesma topologia: os reviramentos do significante no corpo da língua,
produzindo, a partir dos mesmos elementos fônicos, significantemente
situáveis, reviramentos de significantes e reviramentos de sentidos. Um
anagrama que além de ser anagramático é quiásmico, é o famoso anagrama
muito caro à Igreja: ROMA/AMOR. Nós outros temos um anagrama
extremamente interessante, que não cabe em francês, entre LETRA e
ALTER, o Outro. O anagrama é da ordem desse reviramento que alíngua
instala: a letra de cada um é outra, letra.
Aqui estamos de retorno a duas inserções do que é essencial na
estrutura do falante em relação à Obra: o valor quiásmico do quadro enquanto
reviramento, e o valor quiásmico e anagramático da alíngua, tal como se
inscreve no quadro. Foi o que nos possibilitou todo este passeio como
analisandos, repito, na com-sideração dessa obra de Velázquez, sem dizê-la
toda. Pode-se falar dela, mas não toda, ficando ela, então, à disposição de
outras com-siderações, se não delírios.
Retomemos, pois, a questão, por enquanto situada referentemente
ao quadro, da Lei – para que Lei aponta Velázquez nesse testemunho?
Assim como a questão da alíngua que no quadro se inscreve, uma vez que
alíngua é, pura e simplesmente, a vigência dessa Lei, dessa diferença, na
medida em que não existe a linguagem e nem existe a língua no sentido
do lingüista. Existe apenas esse a minúsculo língua, que não deixa de se
dar como se fosse da ordem da causa do desejo, produção de sintoma,
como uma mulher.

* * *

Tentaremos a possibilidade de separar tanto Lei quanto Língua em


quatro níveis de seus surgimentos, de suas emergências entre nós: dois níveis,
eventualmente, efetivamente verídicos, digamos assim, e dois outros que se
fundamentam na aparência.

318
Apareceu a Margarida

Esquema 18

Temos, no primeiro nível, a LEI escrita com três letras maiúsculas.


Trata-se de uma conjetura, ou seja, simplesmente aquilo que “se diria”, como
real impossível. Ou melhor, trata-se de nossa necessidade de supor esse real,
na medida em que algo de impossível de se inscrever pinta diante de nós, na
dureza do real. Na verdade, só temos relação com a LEI nesse nível mais alto,
na medida em que o real da diferença se impõe. Temos, então, que conjeturar
esse real de que Lacan diz ser impossível inscrever-se e que se consubstancia
e se reduz, em última instância, ao real da diferença sexual, da relação sexual
impossível. Esse real é referente ao registro de ser impossível inscrever-se a
diferença. Nada tem a ver com a realidade. Por isso estou dizendo que
conjeturamos, falamos a respeito de alguma coisa que chamamos real, porque
se pudéssemos nomeá-lo, ele se nomearia. É impossível até chamá-lo de real,

319
Psicanálise & Polética

pois já é apelido, é metafórico daquilo que é impossível inscrever-se e que só


se nos aponta pela LEI.
Num segundo registro, ou segundo nível, em seqüência ao nosso
esquema, temos a Lei com L maiúsculo. É a Lei que já situei como aquela que
nos daria a referência para a função social, pura e simplesmente, sem
necessidade de referenciação à cultura no nível em que, partindo de Benveniste,
situei como frater em contraposição ao adelphós que se situa na ordem da
consangüinidade. Ou seja, o frater diante da Lei, diante do reconhecimento de
sermos falantes, uns reconhecidos pelos outros. Foi o que, naquele momento
chamei de Lei Divina, quer dizer, a Lei que nos vem do Outro e que é aquela a
que se refere Antígona quando se defronta com Creonte. Nessa Lei foi que
tentei situar a possibilidade de, ainda que pseudo, digamos assim, um universal.
É a diferença funcionando em qualquer situação: se não paratodiza, pelo menos
funciona sempre, a cada caso. É a Lei da diferença de sujeito para sujeito. É
puramente o reconhecimento da diferença, a qual, em última instância, vai ser
localizada pela alíngua, de que falaremos adiante.
É desse vigor da Lei, instalando esse corte, instalando a diferença pura
e simples, entre cada um e qualquer outro, que vai se retirar um valor sintomático
para se tentar dizê-la. Isto porque, nesse segundo nível, essa Lei não se saberia
dizer, pois ela mora ainda no regime da enunciação, da pura diferença pintando
a cada movimento pulsional.
O terceiro nível é a lei com todas as letras minúsculas, a qual vai
instalar-se sintomaticamente. Isto porque, se não pinta um sintoma, a Lei não
encontra palavras para se dizer, e, no regime do sintoma, ela encontra palavras,
mas não todas, por não poder dizer-se inteiramente. É esse sintoma que estou
chamando de lei minúscula, porque é nessa tentativa de dizer a Lei que ela vai
coagular-se em sintoma. Ainda não estou falando das leis que vigem nesta ou
naquela sociedade, nesta ou naquela cultura. Estou falando, e por isso fiz uma
escansão, da lei tal como ela se apresenta no que chamei de cultura, no
fundamento de toda cultura, como sendo a proibição do incesto.
Situei a proibição do incesto como fundadora da cultura, enquanto

320
Apareceu a Margarida

enunciado a partir da Lei que proíbe. Não proíbe necessariamente isso ou


aquilo, mas é enunciado de um certo regime de lei, é um certo enunciado legal,
portanto. Com isso estou querendo dizer que estamos longamente situados na
ordem do incesto, na ordem neolítica, nesse sintoma que aí está repetido
longamente, talvez, por uma inclinação qualquer, que veremos melhor quando
tratarmos de Lévi-Strauss, no próximo semestre.
Essa lei, no terceiro nível, é a fundadora do adelphós, do irmão
consangüíneo da ordem de parentesco. É a regra enquanto lei humana que,
em última instância, só mantém configuração pelo poder instalado por certo
sintoma. É aquilo que chamei de Nat/Cult, a cultura como transformada da
natureza, quando a diferença começa a indicar o comportamento na ordem do
parentesco. Aqui já existe o comportamento porque “é proibido casar com a
mãe”, pelo menos, além de outras proibições rebarbativas.
O quarto nível da Lei, chamei a l-e-i, com letras minúsculas separadas
para significar sua fragmentação pelos códigos parciais que aparecem no seio
da cultura. São as diferenças culturais, as regras de cada cultura, a
regulamentação parciária dos comportamentos.
Estou querendo dizer com esta divisão da Lei em níveis que, a partir
daquela linha tracejada – conforme indicado no esquema com a letra  – para
baixo, ou a partir do terceiro nível, o que vamos encontrar é a massificação, se
não a “machificação” da Lei. É a lei do homem, que vigora a partir de um
sintoma. Embora herdeira da possibilidade sintomática de se instalar – herdeira
da única saída que existe que é a fundação de uma alíngua por via sintomática
– aprisionando-se nesse sintoma e querendo dar conta dele, não como puro
sintoma que recai no real, não como alíngua enquanto tal que se revolve sobre
si mesma, mas procurando, para esse sintoma, uma regragem universal: aquela
que nos é conferida pela possibilidade masculina, a partir do temor da castração,
a partir da obssessiva referência ao Nome do Pai, não da simples referência,
mas da obssessiva, ou seja, da idealização desse nome.
Vejamos, agora, os quatro níveis da Língua, que pensei em paralelo
aos da Lei. É o lado B do Esquema 18.

321
Psicanálise & Polética

No primeiro nível – paralelamente ao que chamei a LEI como conjetura


sobre aquele real que pinta e do qual não se pode dar conta, não se pode
escrever –, temos o simples aparecimento dos falantes: o surgimento, em cada
sujeito, disso que chamamos o falesser, traduzindo o parlêtre de Lacan. Aqui
direi que há-língua, com verbo haver, há falesseres. Neste nível, deparamo-
nos com o real e ele nos garante até a conjetura de pensar a LEI, com três
letras maiúsculas, que é simplesmente o real pintando, e, no que ele pinta, a
gente fala, pois que pinta o simbólico.
No segundo nível, o que fala, no que fala e como fala, se instala esse
falesser, sintomaticamente, numa alíngua absolutamente incomensurável, de
cada alíngua para cada sujeito. É só nos remetermos ao texto de Milner,
L’Amour de la Langue, onde esta questão está posta com muita clareza.
Este segundo nível é o mesmo da Lei, com L maiúsculo, que vem
como sintoma. Esse sintoma que aí se coloca, essa alíngua, não se pode regrá-
la nem universalizá-la, nem mesmo completar sua gramática. Esta é a tentativa
que encontramos, sobretudo no discurso universitário, de estabelecer, a partir
da alíngua, alguma coisa que resulta sempre num mal-entendido, mas
conseguindo, afinal de contas, comunicar com um troço que não foi feito para
tal. Alíngua não foi feita para comunicar, pois se assim o fosse, comunicava-
se. Mas alguma residual comunicação consegue emergir e, com isto, os
semiólogos, os lingüistas e outros, na vigência do discurso universitário, querem
por força nos entregar – haja Chomsky como exemplo atual – A Linguagem.
Com essa tal linguagem, já estamos no terceiro nível, quando tento
fazer pequena ou grande denúncia. Trata-se de que essa idéia de linguagem,
como penso e como tento demonstrar, é a mesma idéia que vem na fundação
da cultura como ordem de parentesco, a partir da interdição do incesto – aquela
lei no terceiro nível, ou seja: a universalização do sujeito mediante uma regragem
universal. A antropologia nos deu uma lingüística onde se procura mostrar qual
seja a linguagem do homem: são as Estruturas Elementares do Parentesco,
segundo Lévi-Strauss. Não estou querendo dizer que por trás do que ele coloca
não esteja vigendo a estrutura, mas certamente que não se trata daquilo.

322
Apareceu a Margarida

Em conclusão, temos o quarto nível, onde coloquei a língua, separado.


Este é o nível que a lingüística pode abordar – já que a linguagem ela não pode
– porque, neste campo menor, ela é mera conjetura de quem reduz o somatório
de alguns falantes a uma certa regragem. É a língua enquanto essa coisa que
está nos livros dos lingüistas, cujo Outro é alíngua. Milner coloca muito
claramente em seu texto: a língua é a tentativa de supor o real da alíngua.
Se a língua, então, tem como seu Outro alíngua, levando-se esta questão
para as fórmulas quânticas da sexuação de Lacan, a língua dos lingüistas seria
uma tentativa de fazer olíngua, ou seja, de constituir olíngua universitário,
olíngua dos gramáticos, já que Lacan nos trouxe alíngua – prefiro chamar
olíngua ao que Lacan chama La Langue, separado. Olíngua é da mesma ordem
da l-e-i, ou do l-e-i, se quiserem.
Voltando a invocar o testemunho que Velázquez nos dá n’As Meninas,
vemos que ele está nos mostrando exatamente a vigência dessa diferença,
masculino/feminino, na partição que mostrei com aquela cruz – Esquema 16 e
17 –, que no quadro está posta com muita clareza na semi-postura de poder do
rei. Isto é, a mesma partição que Lacan nos mostra nas fórmulas quânticas da
sexuação. Colocamos, na vez anterior, o vigor da Lei justamente no interstício
entre um lado e outro, masculino/feminino, no reconhecimento de um pelo outro
como diferença, mas é importante notar que há uma coisa extremamente forte
na formulação de Lacan: do lado H’, do lado de A / Mulher, que não existe,
vigendo em cada postura radicalmente feminina, já há diferença. Mulher não é
um anjo. Mulheres não são anjos, são seres partidos, divididos entre a referência
ao furo e a referência ao falo, referência ao gozo-do-Outro e ao gozo fálico.
Quer dizer: ali, na postura feminina, já vige a Lei nas suas duas vertentes.
A diferença entre os dois lados estando mais ou menos situável e
evidente do lado feminino, é o que permite Lacan dizer que “as mulheres são
muito mais homens do que os homens”, no sentido da espécie. É, também, o
que me permite dizer que, do ponto de vista da inserção significante –
contrariamente à colocação de Freud do ponto de vista libidinal –, o sujeito
primeiro se postura como mulher para, depois, eventualmente, posturar-se como

323
Psicanálise & Polética

homem. Ou seja, a mulher é mais antiga. Mesmo segundo os biólogos, do


ponto de vista hormonal, todo sujeito, ao nascer, hormonalmente é mulher. É
preciso que haja uma impregnação de hormônio masculino para que, depois, o
sujeito venha a se tornar homem. A Lei mais antiga é a de Antígona, a “antigona”,
a que reconhece a diferença de saída.
A tal da cultura, como a coloquei, aquilo que é designado pela ordem
de parentesco com assentamento na interdição do incesto, é apenas um
sintoma... poderia ter sido outro... poderá ser outro... pode ser outro. A
homossexualização generalizada dessa cultura é que vem nos impor essa
obrigatoriedade de sermos cultos: “o homem é um ser cultural”. Mas o homem
não é um ser cultural, é preciso que se entenda isto. Aqui está o retrato da
cultura. Ela é esse elozinho em branco: Real, Simbólico, Imaginário e Sintoma
(). Esse elo poderia ser outro. A cultura é o sintoma que está no nó borromeano
a quatro. É esse elo que nos deixa de quatro.

A Lei encontra referência suficiente no nó borromeano a três, com


seu entrelaço borromeano da estrutura, RSI, onde vige o impossível e onde se
engasta o objeto a. Poderíamos dizer, talvez, que o nó borromeano a três,
como estrutura da Lei, garante a enunciação, isto é, o movimento do desejo.
Só que não encontra palavras para enunciar isto, porque sem uma alíngua,
sem um sintoma, o enunciado não se concretiza. Quando o nó borromeano a
três, segundo Lacan, sofre o golpe que o desfaz ao mesmo tempo que o

324
Apareceu a Margarida

recupera, com um quarto elo que é o Sintoma, é que se constitui o nó


borromeano a quatro.
Se alíngua, qualquer alíngua, é sintoma, por outro lado, não é forçoso
que alíngua inclua a cultura, isto é, a ordem de parentesco. Quando Lévi-Strauss
diz que “a proibição do incesto é universal como a linguagem”, podemos levantar
que, na cultura, a inclinação imaginária, tomada da reprodução regrada, instalou-
se nas alínguas como enxerto parasitário, sintomático. A via de facilitação desse
enxerto é certamente a inter-dição que vige em cada alíngua, ou seja, não se
pode dizer tudo, alguma locução é proibida, é impossível. Entretanto, nenhuma
alíngua, aprofundada cada uma em sua estrutura, não nos apresenta nada que
seja da mesma estrutura de uma ordem de parentesco. Fala-se em famílias de
línguas, famílias de palavras, etc., mas é mera analogia, para dentro da língua,
a dos lingüistas, do que se lê na ordem de parentesco. Se cada alíngua é
estritamente da ordem particular, semelhanças entre elas não as arrolam em
nenhum grupo, e menos ainda em nenhum universal, em nenhuma linguagem.
Não há nenhum universal para alínguas. Há um universal para a cultura,
isto é, para a ordem do parentesco: é a proibição do incesto que embarga que
se suba na escala das filiações – apenas descendentes –, com o que se
embrulharia ou se destruiria essa ordem. A interdição do incesto, universal
cultural, é da ordem do para-todo – x, para todo homem na cultura há interdição

do incesto – e, com isso, vai-se produzir a sutura do para-não-todo, x. É uma
sutura produzida pela lei dos homens, é algo que se poderia chamar de castração
velada: a castração lá está e, em seguida, é velada pela própria produção do
para-todo.
Castração velada é aquela que se monta, primeiro, reconhecendo o
furo do Outro e com isto arrolhando o furo do próprio corpo; segundo,
espelhando-se no Outro que é furado para, em seguida, terceiro, reconhecer o
furo no próprio corpo; e quarto, que é o momento de velamento, suturando o
corpo do Outro – as quatro fases da inserção significante do sujeito,
desenvolvidas com base no texto dos Lefort. O masculino precisa instalar o
/ ), para poder paratodizar. Se essa
furo e, depois, suturar o furo do Outro, S (A

325
Psicanálise & Polética

referência ao para-todo se torna obssessiva, esquece-se definitivamente o furo


do Outro, tapa-se-lhe o furo.
Não existiria o masculino sem o para-todo, mas dá-se que o para-
todo é uma promessa de sutura, como Jacques-Alain Miller nos mostra num
texto bem antigo, A Sutura, que publicamos na revista Lugar, nº 4. Ele trata
da produção do zero como um número suturante, não como referência ao
furo, na insistência dessa aritmética falsa que Frege denuncia num trabalho
que escreveu sobre o zero lá nos Princípios da Aritmética. A insistência
nessa suturação do zero vai criar isso que Freud teve que reconhecer que é
o estatuto homossexual do homem: para ser homem é preciso, antes de mais
nada, estatuir-se homossexualmente, velar, de algum modo, aquele Outro.
Com isso, digo e repito que a tal da cultura é concebida como sintoma. Podemos
embutir no meio da palavra cultura o sigma do seu sintoma : Cultura. A
CULSTURA é apenas uma costura, uma das costuras possíveis, nada mais.
Neste ponto tento fazer uma diferença entre artifício e cultura, pois, do
jeito como a cultura nos impões que ela é universal, constantemente
confundimos estes dois níveis.
A origem etimológica da palavra artifício, segundo a maioria dos
especialistas, vem do indo-europeu are, que vai dar arti, que em latim significa:
ajustar, encaixar. Em última instância, em todas as palavras que este radical
are vem produzir efeitos significantes, teremos sempre presente a idéia de
articulação. Assim é que, por exemplo, na forma ar do latim, vai dar artus
que quer dizer membro, isto é, um membro que se articula, de onde vem
articulus, articulação. Ars, artis, que hoje chamamos de arte, em latim tinha o
sentido de maneira, ou maneiro, ou seja, maneira de bem articular, de bem
encaixar. Donde o iners, inertis, sem arte, inábil. Também temos em latim
arma, que vem do grego arthron, articulação, que com um acrescentamento
da letra i vai dar arithmós, número. Ou ainda com o acrescentamento de s e
m, também no grego, originou arsmo, harmonia: a arte da justa proporção. Na
forma re, com um acrescentamento da letra i, temos em latim ritus que quer
dizer o processo de repetição de uma articulação feita.

326
Apareceu a Margarida

No latim popular a palavra arti tem o sentido de mister, que em francês


é métier, técnica; e artesão, que vem do italiano artiggiani. Artesanato,
artesanal, artelho (que se articula), são palavras que se originam do latim
articulus. O latim erudito deu-nos artista artístico, artigo, articulado,
desarticulado e, sobretudo, o artifício de que falei, de onde saiu arte, que
nasceu no século XIII, tirado do artificium que significava o métier, a produção,
o mister do sujeito, ou a sua arte, a sua habilidade, a sua astúcia. Isto é o que
quer dizer o artificium, os chamados fogos de artifício – fogos feitos com
habilidade de articulação –, ou o artificial, o ritual, o ritualismo.
Em grego, o radical are, suposto indo-europeu, vai dar artrite, artritismo,
que são doenças das articulações. Ou, ainda, podemos ter as palavras artrose,
artrópode, aritmética, logaritmo e harmonia, conforme disse, divisão harmônica.
Tudo isto que acabo de articular é que contraponho à cultura. Os
estudiosos da pré-história ficam com a cuca fundida, pois querem reduzir de
qualquer modo a pintura rupestre à cultura, sem ter o menor registro para tanto.
Mas aquilo é Arte! Não precisamos de cultura para fazer arte, para fazer artifício.
O artifício é da ordem do processo primário: a possibilidade de, com astúcia,
articular os significantes – sem ser preciso estar submetido ao sintoma da cultura.
Mediante arte é que inventamos sintomas, ou que os cristalizamos de algum
modo. A arte vem primeiro... A cultura vem depois – e nem precisava ter vindo.
Por terem na cabeça como indiscutível a oposição natureza/cultura,
muitas pessoas, não suportando a pressão da cultura, dessa imposição da ordem
do parentesco, para escapar dela tentam refugiar-se no que supõem ser a
natureza. É a moda. A pressão da cultura é terrível, insuportável, porque é um
sintoma imperialista, e as pessoas pensam que vão conseguir fugir dele “indo
para a natureza”. Por que não fogem para a arte, que é o único lugar para onde
o homem pode fugir? Ou seja: para a invenção. Para a natureza não há como
fugir, porque, a natureza, não há. Não há para o falesser, nenhuma natureza,
senão como real impossível de se inscrever na estrutura. A oposição de
que essas pessoas não se dão conta, a que verdadeiramente existe, é a do
artifício: arte/cultura.

327
Psicanálise & Polética

A cultura pode – e deve – ser retomada e, talvez, dissolvida, pelo


artifício, o qual emprestará outros modos de articulação que não os exarados
na cultura (= estrutura de parentesco). Neste ponto é que o artista poeta vem
nos dar seu testemunho.

* * *

Voltemos ao quadro onde, com arte, só aparentemente no imaginário,


Velázquez nos apresenta a Corte Real, mas insiste em nos dar o Corte Real
na referência daquilo de que não abre mão: A Lei.
Aliás, a Lei que Velázquez nos aponta é o lugar onde deve chegar
uma análise no seu fim, que é o atingimento do que indica a ética que fundamenta
a psicanálise: “ir até no rabo da palavra”, como diz Guimarães Rosa, ou seja,
Wo Es war, Soll Ich werden. O fim da análise é poder referenciar-se à Lei, é
assumir o sexo. Quer dizer, segundo Lacan, para o homem, reconhecer que
há mulheres; para a mulher, reconhecer que há homens. Não se trata de ser
isto ou aquilo, porque não é o verbo ser que está em jogo mas, radicalmente,
simplesmente, saber da heterologia que rege a ordem significante e que, diante
de qualquer outro falante, estamos sempre no impossível da relação. Portanto,
se o fundamento do homem é a homossexualidade, ele, por outro lado, está
condenado a heterossexualidade... Condenado pelo Outro.
O fim de uma análise é, segundo a formulação lacaniana do discurso
psicanalítico, atingir o significante de fundação do sujeito, o significante sê-lo
como puro significante. Mas é, radicalmente, nessa perspectiva e segundo
um artigo muito bem construído de Jacques-Alain Miller, publicado em
Delenda, o atingimento, o destacamento do objeto do sujeito: o sujeito verificar-
se causado, em seu desejo, por um objeto igual a x que é particular a cada um,
no que A Coisa é absolutamente impegável para qualquer um de nós. A ética
da psicanálise se fundamenta no real, no impossível, e, no entanto, não esquece
a possibilidade de um certo cruzamento extremamente difícil de pensar.
Voltaremos a isto.

328
Apareceu a Margarida

Retornando àquela cruz no quadro d’As Meninas, que separa os dois


campos de referência de Lei, é interessante notar que alguma coisa se destaca
por vias de construção dinâmica do quadro, por vias, sobretudo, de construção
da iluminação. Alguma coisa de destaca, justo, talvez, debaixo do centro daquela
cruz, do centro em perspectiva daquela cruz e no centro de todos os olhares
daqueles protagonistas, quando eles se olham reciprocamente: o rei e a rainha
olhando Velázquez, Velázquez olhando o rei e a rainha. Nesses cruzamentos
de linhas, tudo gira à sua volta, em volta do centro da cruz que Velázquez quis
botar lá. Quem está nesse centro? A Infanta, que Velázquez pintou um sem-
número de vezes, sempre encucado com essa menina desde que ela nasceu
(cheguei mesmo a fazer uma fofoca de que, talvez, essa menina fosse filha de
Velázquez, mas é pura fofoca, pois nunca me dei com a família real espanhola,
sobretudo naquele século).
No centro está a Infanta. A Infanta Margarida que aparece ali como
desvelada, afinal, por Velázquez, depois que ele a pintou em tantos retratos e
outras construções, tantos quadros de que já falamos. Ela aparece ali como
sendo o objeto que ele destaca. Assim como o quadro é um objeto a, talvez do
rei e da rainha, ou talvez dele mesmo, porque, afinal de contas, ela é a herdeira
dessa Corte e, portanto, desse Corte. Ela está ali, no meio da cruz, como uma
espécie de ponto morto, algo impegável, indefinível, em torno do qual gira todo
o processo... Seja como for, Velázquez vem a destacar a Infanta como objeto,
se não dele, objeto dessa obra, objeto destacável nessa obra, como num término
de análise. Ela, a Infanta, é o objeto que sobra, no que o quadro se obra.
O que é margarida? Este nome é interessante...

Ela está em seu castelo


Olê, olê, olá...

...vem do grego, margárites, margaron, que significa simplesmente essa cor


com que Velázquez destaca a Infanta Margarida: o cabelo louro meio desbotado,
assim como a roupa, meio bege. Em latim, deu a palavra margarita, que quer

329
Psicanálise & Polética

dizer pérola – cor de pérola. Engraçado que é o nome de uma flor que na
verdade, é flor do campo.
Em francês, a palavra margarita deu muitas outras, inclusive uma
muito usada no jargão menor, digamos assim, que é margot, que já deu nome a
muita gente. Margot em francês significa boneca, ou putinha. Uma putinha, o
objeto a do que sobra da família, aliás Real no caso. Putinha no sentido diminutivo,
uma garota que anda dando por aí para as pessoas. Margaridinhas do amor.
O que é uma pérola? Uma vez que Velázquez situa esse objetinho, é
para que se pense sobre ele. A pérola é uma concreção dura e brilhante que é
considerada preciosa, quer dizer, vem no lugar de uma pedra preciosa.
Freqüentemente ela é esférica, mas pode, às vezes, ser irregular. Ela é formada
por camadas sobrepostas – aquela sua rotundidade – de um material chamado
nácar que é secretado pelo epitélio da capa de certos moluscos. A ostra, por
exemplo, é um deles. Entre a capa interna do molusco e a concha, o epitélio
produz essa dureza de nácar para separar e isolar um corpo estranho. Daí que
certas pessoas, folcloricamente, dizem que a pérola é uma doença da ostra.
Ela é uma formação, digamos, reativa, não com o sentido que se pode dar em
psicanálise propriamente, mas uma formação reativa a um corpo estranho.
Isto que acontece na formação da pérola, não é exatamente o mesmo
que se dá com cada um de nós? Para se instalar na ordem simbólica, o sujeito
tem que receber o corpo estranho de um significante do Outro, o chamado S1:
do campo do Outro se retira um significante para que se possa ter entrada na
ordem simbólica com a senha desse corpo estranho, o significante sê-lo. Isto
porque não havia nada lá naquele instante, de antes da passagem. É justamente
em torno desse corpo estranho, ou a partir dele, de sua presença, desse exame
de significantes que o sujeito vai tomar do Outro, que ele vai ter que fundar a
sua pérola: o objeto a que o sujeito acaba produzindo para se separar e poder
isolar sua diferença. Por isso Lacan insiste que o final da análise exige que o
sujeito se aproxime desse objeto, da sua pérola, da sua mais preciosa formação,
absolutamente, radicalmente diferente de qualquer outra, na maior
irregularidade.

330
Apareceu a Margarida

Como se chama uma pérola irregular na linguagem que se criou com o


tempo? Chama-se barroca. Daí a palavra barroco, que vem da língua
portuguesa. Era, pois, o nome que se dava a uma pérola que não fosse esférica,
ou seja, que fosse excêntrica, descentrada. E Velázquez põe no quadro a sua
pérola barroca: não há nenhuma simetria entre as duas posições cuja escansão
é a Lei.
Por extensão, barroco, que em português designava essa tal pérola
irregular, tornou-se sinônimo daquilo que é de uma irregularidade bizarra, e daí
veio a significar bizarro, chocante, estranho, excêntrico, irregular, enfim,
unheimlich, o mais familiar porque é o mais estranho. Esta é a razão da
estranheza fundamental em que este quadro de Velázquez nos coloca, como
acontece com toda obra de arte: sua unheimlichkeit. São pérolas que foram
feitas para serem lançadas aos porcos, é claro – como já falei aqui, num
Seminário intitulado Aos Cães e aos Porcos –, pois nunca se sabe com quem
se está falando. Então, não se tem outra saída senão lançar pérolas aos porcos
que, aliás, em francês, se diz semer de marguerites devant les porcs, plantar
margaridas diante dos porcos.
Temos um ditado que percorre muitas línguas, muitos países, “desfolhar
a margarida”, que é uma espécie de tirar a sorte: bem-me-quer, mal-me-
quer... Lembro-me de que, quando criança, fazíamos uma espécie de teatrinho,
talvez copiando de uma brincadeira francesa, em que havia uma garotinha, a
Margarida, que ficava cercada por outras meninas – era uma mistura de
brincadeira de roda e teatro. As meninas escondiam a Margarida e aí vinha um
cavaleiro cantando “Où est la marguerite, etc.”, e ia tirando uma pedra, tirando
duas pedras, tirando três pedras, até que aparecia a Margarida. Poderia ser
bem-me-quer, mal-me-quer, mas o que importa é que aparecia a Margarida.
Tirar a sorte... procurar o encontro com o quê? Com o Real, que não se dá.
Velázquez nos mostra isto no quadro.
Lacan já disse que a civilização é o esgoto. Ele chamava os livros que
publicava de poubellication - poubelle, em francês, é a lata de lixo. Tentei
traduzir com o verbo publixar: eu publixo, tu publixas, ele publixa... Quer dizer,

331
Psicanálise & Polética

na verdade, o poeta é o gari. E se a gente fica girando em torno dele, é mais


lixo que se faz: um Seminário como este, por exemplo... A Margarida dá nisso...
amor-gari-dá nisso de publicar mais lixo.
Não é à toa que Ortega y Gasset, depois secundado por outros críticos
que escreveram a respeito dessa obra de Velázquez, declarou que ele foi um
artista que “brandiu a vassoura”, querendo com isto dizer que Velázquez limpou
a cultura, limpou as culturas locais e jogou para a frente, para o novo. Acho
correta a indicação, pois Velázquez, como qualquer poeta, acaba limpando a
barra. Eles deixam a barra aparecer: o corte. E aí tem futuro. Limpando a
barra, tem futuro.
Está tirada a sorte, alea jacta est... E diante disto, nesse momento em
que a obra se perfaz, em que a análise termina, não há outra coisa a fazer
senão saltar para o lugar do analista, pois o que vem a acontecer diante desse
objeto destacado é o assujeitamento do sujeito. Assujeitamento à causa do seu
desejo que é esse objeto, portanto, assujeitamento à Lei, à ordem do Outro, à
alteridade, ao campo do Outro. Esse assujeitamento é o que se encontra quando
se tira a sorte: tiquê, chamou Lacan.
Tiquê é a deusa grega que simbolizava o acaso, a chance. Ela estava,
digamos, como lugar do destino, por cima de todos os deuses e por cima de todos
os homens. Em latim se chamava Fortuna. Sobre essa deusa, Fortuna, é que
falam os versos cantados – versos medievais descobertos tardiamente, a
sacanagem medieval, o carnaval medieval – nessa espécie de cantata composta
por Carl Orff, Carmina Burana, que ouvimos no início da sessão de hoje: “O
Fortuna, velut luna...”, Ó Fortuna, lua volúvel. Ela, Tiquê, preside a todos os
eventos da vida e tem todos os poderes sobre os homens. Ela leva, como seus
símbolos, nas mãos, uma cornucópia e um leme – o leme da deriva, do Trieb –,
pois ela detém a direção, com o rosto velado, sobre os negócios do mundo.
Retomo o Seminário 11, de Lacan, no capítulo sobre a famosa
repetição, a qual não é o automatismo puro e simples da ordem do princípio
do prazer, algo tipo digestão, coisas que se repetem. Ilustrando com aquele
sonho da criança morta, “pai não vês que estou queimando?”, tirado de

332
Apareceu a Margarida

um texto de Freud, Lacan nos diz que “nenhuma práxis, mais do que a análise,
é orientada para aquilo que, no coração da experiência, é o núcleo do real”.
E nos aponta que o visado na repetição é um encontro, aliás sempre faltoso,
com o real: “É, com efeito, de um encontro, de um encontro essencial que se
trata no que a psicanálise descobriu - de um encontro marcado ao qual somos
sempre chamados, com um real que escapole”. A tiquê, “nós a traduzimos
por encontro do real. O real está para além do autômaton... O real é o que
vige sempre por trás do autômaton... O que se repete, com efeito, é sempre
algo que se produz... como por acaso”. O “por acaso” aí é essa Tiquê. O
que se reproduz nessa repetição é o traumatismo inassimilável, ou seja, o
mal-entendido, o não ter-se podido saber: não se ter podido dar conta da
cena, seja ela qual for.
“...É por isso que não se poderia conceber o princípio da realidade
como tendo, por sua ascendência, a última palavra”, como querem tantos
analistas: fazer do analisando um princípio da realidade. Não se trata disso, ele
tem que chegar ao que está por trás do princípio de realidade, por trás da
fantasia: à repetição do trauma que exige um encontro marcado com o sujeito.
Encontro que se ilustra no texto do sonho: “pai, não vês que estou queimando?”,
com o surgimento do real do inconsciente, da estrutura – a reinvocação da
estrutura. A estrutura nos reinvoca na deriva da pulsão, a qual não é
absolutamente uma compulsão de repetição no sentido obssessivo do termo,
pois é a exigência de repetição do trauma que nos remete ao nível da pulsão.
É, portanto, a partir de um encontro marcado com a pulsão que o sujeito tem
futuro. Não há futuro fora da pulsão. Pulsão que seja destilada, digamos assim,
e que reconheça o seu objeto: para a devida sublimação.

* * *

As Meninas é, praticamente, o penúltimo grande quadro de Velázquez,


pois, depois de ter feito tudo isto, ele ainda pinta As Fiandeiras, sua última
grande obra.

333
Psicanálise & Polética

As Fiandeiras, 1657/60

O que Velázquez representa nesse quadro - cuja composição se


estabelece sobre um grande V – cheio de mulheres fiando, fiando...? Um quadro
que tem um vazio central imenso, assim como aquele d’As Meninas? O que
mais tem impressionado os artistas n’As Meninas é que, do ponto de vista da
superfície pintada, em quase dois terços de sua área, ele é quase totalmente
vazio, o que cria essa idéia de amplidão. N’As Fiandeiras, Velázquez repete
essa mesma idéia de amplidão, de vazio: há como que um buraco no meio,
tudo se espalha e se cria um vácuo central. Lugar real da sua pérola.

334
Apareceu a Margarida

Mas, insisto, o que Velázquez está pintando n’As Fiandeiras? Ele


“encheu” o quadro de mulheres. São cinco no primeiro plano, e há mais quatro
lá no fundo. Em última instância, ele está pintando as herdeiras da Fortuna, que
no pensamento greco-romano se chamavam Parcas ou Moiras. As Parcas
eram três fiandeiras que moravam ao lado do Olimpo. Na antiga religião romana,
elas se revestiam do aspecto de fiandeiras e presidiam, a primeira, ao
nascimento, a segunda, ao casamento e, a terceira, à morte. Três momentos
que os romanos escolheram como marcantes na vida de um sujeito – claro que
os romanos eram culturais. Elas eram, também, cognominadas pelos romanos
tria fata, trio fatal, ou as três destinadas. O trio fatal é uma espécie de visão da
Fortuna, Tiquê. São imagens refletidas do destino, factum, ao qual está ligada
a vida de qualquer um.
Elas foram assimiladas pelos romanos às servas Moiras dos gregos,
e, em latim, tomaram o nome de Nona, Décima e Morta (será que a terceira
tem alguma coisa a ver com a Menina Morta do nosso Cornélio Penna?). As
Moiras gregas, de onde saíram as Parcas dos romanos, eram três irmãs: Cloto,
Láquesis e Átropos, filhas de Zeus e Têmis, que é a deusa da Lei. As Moiras
constituíam primitivamente uma só divindade que podemos, eventualmente,
assimilar à Tiquê. Sua aparição no culto grego é tão antiga, dizem os especialistas,
quanto o começo da religião e dos mitos gregos. Elas viviam num palácio vizinho
ao Olimpo e velavam pelo desenvolvimento da vida de cada humano. Cloto
fiava, e o giro de sua roca simbolizava o curso da existência, Láquesis
dispensava a sorte reservada a cada um e Átropos cortava o fio – é a tal
Morta – sem jamais deixar desviar o golpe que termina o curso de uma vida.
No interior do Brasil, quando criança, contavam-me dessas mulheres – não
estou certo se as chamavam de Parcas ou de outro nome – como sendo três
velhas que determinavam o fio de uma vida. Diziam que a primeira tece, a
segunda mede e a terceira corta.
Em suma, é isso aí que talvez haja como assujeitamento ao Outro.
Aquilo que Lacan disse ser a verdade da psicanálise: “Seja feita a vossa
vontade”. Não a de um Senhor qualquer que discurse por cima de nossas

335
Psicanálise & Polética

cabeças, mas a vontade Tua, do Outro: no nosso encontro, que é reconciliação,


afinal, com a ordem do significante... e com o Senhor Absoluto, que se chama
A Morte e que reclama o Morto.

1º/JUL

336
As três demontrações do viravesso

ANEXO
AS TRES DEMONTRAÇÕES DO
VIRAVESSO
no quadro As Meninas de Velázquez

Luiz Carlos Miranda

1 - Velázquez está pintando diante de um espelho

Assim sendo, aquele quadro que aparece dentro do quadro, e de costas


para nós, representa o que ele vê no espelho. Como o espelho mostra o avesso
do que nele se reflete, aquele quadro lá dentro seria o avesso daquela cena que
vemos no quadro, ou vice-versa. Quer dizer, se aquela cena do quadro que nós
vemos (As Meninas) for o avesso, naquele outro quadro – o que está lá dentro
– a mesma cena está pelo direito.

337
Psicanálise & Polética

2 - O rei e a rainha aparecem no espelho para o qual Velázquez está olhando,


segundo uma dupla reflexão.

Assim sendo, nesse espelho, o Casal Real está na posição real, ao


passo que o resto da cena está pelo avesso. Quer dizer, a estrutura de reflexão
do Casal Real é sempre inversa à do resto da cena. Logo: se o quadro As
Meninas mostra o direito da cena, o Casal Real está pelo avesso; mas se o
quadro é que é o avesso, o Casal Real está pelo direito – no mesmo quadro.

3 - A Luz.

Se o quadro está mostrando ao mesmo tempo direito e avesso, a luz ali


perde a orientação. Quer dizer, a luz que penetra no quadro (na cena real), pela
esquerda de Velázquez, naquele quadro que ele pinta lá dentro do quadro, esta
mesma luz penetra pela direita, sendo esta direita a mesma que a esquerda. O
mesmo pode se ter em relação ao Casal Real lá no espelho de fundo: a luz que
vem do lado esquerdo, digamos, lá no fundo, este mesmo lado é o lado direito.

338
Introdução à Heterofagia

HETEROFAGIA

339
Psicanálise & Polética

340
Introdução à Heterofagia

14
INTRODUÇÃO À HETEROFAGIA

O que coloquei até agora sobre esse tema que nomeei Psicanálise e
Polética é, em suma, a insistência da psicanálise sobre seu fundamento ético,
que tem como decorrência ações centradas no real. Daí, dessa referência
indefectível ao real, é que tiramos o vigor de uma Lei que, na sua essencialidade
– segundo não nenhuma evidência mas um percurso da teoria analítica –, aponta
para esse real impossível de se inscrever na estrutura e que, também, no seu
aspecto de impossibilidade da relação sexual, nos exibe, incessantemente, o
ôntico da falta.
Fizemos uma breve crítica – que talvez devesse ser melhor trabalhada
– da perspectiva antropológica, sobretudo, da antropologia estrutural do tipo
Lévi-Strauss. Crítica da “universalidade” da interdição do incesto procurando
distinguir a cultura – definida como o que decorre da interdição do incesto
como princípio e, portanto, fundando-se na ordem de parentesco – da função
eminentemente e essencialmente simbólica do falante. A dependência, a
determinação simbólica do falante, como puro artifício e não como cultura,
segundo nossa definição.
Fizemos várias passagens, relativamente breves, por alguns textos onde
fomos apontar a situação de algum Pai Real, digamos assim, no nível do animal,
de sua morte, situando-se simbolicamente quando fizemos, por exemplo, uma
troca de fonemas e traduzimos o Totem und Tabu de Freud pelo nosso Botem
um Tatu. Tomamos o mito de Tarzan, inventado por Burroughs, para tentar

341
Psicanálise & Polética

situar, na estorinha, a existência desse pai ancestralmente morto, diferenciável


da morte de um pai que se apresentasse familiarmente como tal. Passamos
pelo Velho Testamento com o mito de Adão e Eva para falarmos do Paraíso,
enquanto perdido, e da distinção de masculino e feminino por uma visada pouco
comum. Fomos ao Édipo e, mais uma vez, questionamos essa distinção da Lei
em dois tempos, o que também chegamos a ilustrar com momentos do Velho
Testamento, como, por exemplo, o momento Abel e Caim, o momento Noé.
Chamamos o mito que a antropologia nos passa de mito do Nat/Cult,
quer dizer, da tentativa de demonstrar alguma passagem de natureza a cultura
que pretendi não reconhecer em qualquer hipótese. Não há nenhuma passagem
de natureza a cultura, mas uma ruptura radical com qualquer situação natural
para o ser falante. Daí passamos ao genital e ao genitivo como vigorando também
nessa tal fundação da cultura. Insistimos na função superegóica falando de um
Édipo e Osome quando temes essa função trabalhando no sentido da aglutinação
dos falantes, esquecendo o vigor fundamental da morte e, portanto, da pulsão,
isto é, da rememoração da falta sem acobertá-la com essa tentativa de bem-
estar que a cultura pretende ser, e de certeza comportamental. A cultura no
sentido geral, e não uma cultura em particular.
Em termos de abstração, tentamos mostrar que é um equívoco, na
leitura de Sófocles, a distinção entre a lei divina e a lei do homem. O que há é
a necessidade do reconhecimento constante da diferença esteada na Lei, que
aí comparece como a determinação do heteros da diferença que não pode
deixar de vigorar em todo e qualquer confronto entre falantes.
Por último, tentamos uma abordagem um pouco mais longa do quadro
As Meninas, de Velázquez, que apelidei de Côrte ou Córte Real, aonde tentei
mostrar, também com o depoimento de um poeta, que é muito clara a distinção
que ali se faz da Lei vigorando entre duas posturas possíveis: a lei do homem,
numa tentativa de universalização de determinações comportamentais, e a lei
enquanto confrontada com o heteros, digamos com o feminino, quando o uni-
versal se decompõe, apresentando-se como impossível. Em última instância, e
repetindo o que dissemos na última sessão do Seminário do ano passado, trata-

342
Introdução à Heterofagia

se de um confronto entre homossexualidade e heterossexualidade. Falamos de


um verdadeiro complô homossexual que é a base, o fundamento do sistema em
que vivemos. E do apagamento, da sutura, como tentei mostrar, utilizando
naquele momento certos achados da prática e da teoria do casal Lefort. Essa
tentativa de o homem – da postura dita masculina na sua manifestação, no seu
desempenho – tentar obturar o furo do Outro.

* * *

Se, portanto, existe alguma decorrência ética, compatível com a teoria


e a prática do discurso psicanalítico, seria a de propor a heterossexualidade.
Como sabem, estes termos estão aqui definidos de modo completamente
diferente da banalidade imaginária do cotidiano. Por isso cheguei a situar outros
termos como homocorporal e heterocorporal para distinguir disso que estou
chamando de homossexualidade.
A homossexuação produzida pela prática discursiva do sistema é mais
do que uma tentativa, é um atentado cultural contra a possibilidade, talvez única,
não de nenhum paraíso, mas de uma abertura constante, de uma hominização
do homem. Não sei se hominização é um termo propício, mas estou pensando
aí no que Lacan coloca quando diz que “as mulheres são muito mais homens do
que os homens”. Não se trata absolutamente do mesmo que me parece estar
sendo produzido por pessoas de vários campos da produção contemporânea,
inclusive dentro da psicanálise, talvez mesmo nos arredores lacanianos: uma
afeminação do mundo. De princípio, já não é nenhum feminismo, que é a caretice
machista em todos os detalhes, e não é, também, nenhuma afeminação do
mundo no sentido de sonhar-se com o discurso de A Mulher – não estamos de
volta ao medievalismo da novela de cavalaria.
Trata-se de pensarmos aquilo que é onde está o que há de maior
importância no trabalho psicanalítico: o reconhecimento da diferença enquanto
tal. Digamos que da diferença sexual em particular, na medida em que esta
diferença se apresenta para cada um nesses termos. O reconhecimento da

343
Psicanálise & Polética

diferença enquanto tal é o mais difícil, ou seja, a possibilidade da criação da


heterossexualidade. Não há outra heterossexualidade senão a tentativa de
vigorar no regime da alteridade, no reconhecimento da diferença Na experiência
que tenho, na teorização que posso fazer, a alteridade comparece em todo e
qualquer confronto, em toda e qualquer manifestação entre falantes. Ou se é
heterossexual ou não se é heterossexual.
Essa insistência tem a ver com o que é de se supor como atingível,
como aquilo que é de se conseguir no final de uma análise: o indivíduo se
encaminharia para o destacamento de seu significante unário, seu S1, assim
como para o destacamento do seu objeto – já que Lacan defende que a análise
não é infinita, que ela pode encontrar seu termo, seu fim – e se destacaria a
diferença enquanto tal, e talvez mesmo exacerbada no diferente, senão no
diferencial específico de cada sujeito, na sua fundação simbólica, significante,
na sua invenção de objeto. A psicanálise realizada – se é que isto há, se é que
é o postulado – é produtora de heterossexuais. Isto quer dizer que uma psicanálise
destacaria de tal modo a diferença específica que não haveria mais possibilidade
de o sujeito acreditar, ou pelo menos de lograr-se com facilidade, nos seus
encontros com outrem, ou seja, com o Outro nas suas manifestações, na
suposição de qualquer relação, seja de que tipo for, já que, em última instância,
qualquer uma se reduziria à estrutura que sustenta a “relação” sexual
propriamente dita.
A psicanálise seria, portanto, produtora dessa diferença como
evidenciada, desvelada. É claro que não vai se desvelar aí a causa dessa
diferença, ou seja, o significante Falo, , porque este é para ser “velado”
eternamente. Vai se desvelar o surgimento, a cada encontro, de uma
pequeníssima, mas importantíssima diferença, ao mesmo tempo que a
possibilidade do reconhecimento de uma particularidade. Em última instância,
somando essa base significante e esse objeto destacado, teríamos o
reconhecimento de um desejo indestrutível para cada sujeito, como diria Freud.
Claro que o desejo, aí, é ancorado, o que não significa desejo significado, mas
desejo significável, que pode ganhar sentido, muito sentido, pode transar no

344
Introdução à Heterofagia

campo da alíngua bem à vontade. Lacan chega a dizer que depois desse encontro
do sujeito com o seu desejo, trata-se – e isto é problema desse sujeito e não da
análise, muito menos do analista – de ele saber se ainda quer o seu desejo.
Uma coisa é reconhecer um desejo, outra, é decidir o que se quer fazer dele.
Esta afirmação de Lacan é muito rica, cheia de sentido, ao mesmo tempo que
equivocada, no sentido pleno do termo, pois que é equivoca. O que pode fazer
um sujeito com o seu querer a respeito de um desejo que se qualifica, se situa,
se desvela? No máximo, pode querer de outro modo, querer variar de sentido.
Se uma análise progredir e atingir aquilo, vai ficar evidenciado para o sujeito
que ele pode ser outro, o que não impede que ele assim mesmo também o
queira, sem tornar-se menos Outro por isso.
Continuando nessa via da Polética – que não deixa de ser uma postura
política, mas cujo fundamento é ético – é justamente a partir daí, de que o
sujeito vai encontrar, em última instância, não outra coisa senão as raízes do
seu sintoma, sintoma que o produz como tal falante e não como tal outro. A
psicanálise não destrói um sintoma, ela simplesmente leva o sujeito a se deparar
com ele, e talvez assumi-lo, em plena palavra, a partir desse sintoma. Um
sintoma que não se dissolve no imaginário, nem se dissolve no simbólico – a não
ser produzindo psicose, é possível que isto exista – mas eu diria que ele se
dissolve no real. Isto não significa desaparecer: ele se realiza, se mistura com o
que há de real, em emergência diante dos outros sintomas.
A partir, então, dos pontos a que chegamos semestre passado – o
vigor da diferença, a Lei como referência radical, a diferença irredutível, aquilo
que Lacan chama a “Lei do coração”, ou seja, a Père-version – eu não veria
outra postura política para o sujeito em travessia no campo psicanalítico, senão
a afirmação da diferença. Para cada sujeito, em particular, a afirmação da
diferença, da sua diferença. O que simplesmente anula qualquer possibilidade
de grupo. Seria uma política não-partidária – se é que isto pode ser pensado já
por nós – porque não seriam possíveis os grupetos que se ordenassem em
torno de uma sintomática comum, mas apenas sujeitos que se organizariam
em função de um intocável respeito pela diferença que, aliás, é sua como é

345
Psicanálise & Polética

dos outros. Essa polética seria a administração da diferença, aquilo que eu já


disse que gostaria de poder pensar no nível da ficção política com o nome de
Diferocracia, o governo da diferença. Parece que isto jamais existiu na face
da Terra, embora se fale disso quando se tenta definir democracia. Seria uma
novidade o discurso psicanalítico trazer como conseqüência a ficção de uma
possível Diferocracia: os homens governados pelo respeito estrito à Lei da
Diferença. Não deixa de existir algo disto no texto Declaração Universal dos
Direitos do Homem, que é um papel muito bonito, mas que no máximo tem
servido para se pendurar no banheiro, pois não constituiu lei de espécie alguma
até hoje. Talvez consigamos farejar, no coração desse texto, a vocação para a
Diferocracia de que estou falando.

* * *

Como se trata de afirmação de diferenças e, portanto, de cada diferença


em particular, minha proposta para o núcleo deste Seminário, em seu segundo
semestre, é tratar de algo que já foi abordado aqui diversas vezes nos semestres
anteriores – mais veementemente, aliás, por Betty Milan, do que por mim. Em
termos de mundo contemporâneo – se é que isto existe –, do cenário em que
vivemos, afinal de contas, nos dizemos brasileiros e não se sabe bem o que é
isto, mas, por inserções simbólicas as mais diversas nos discursos
contemporâneos e, também, com várias pregnâncias imaginárias muito fortes,
às vezes violentas, somos brasileiros. Havia uma preocupação bem grande, e
ainda há, retomada com certo vigor no começo da chamada Abertura – a
Fechadura não pensa nem a sua própria diferença, acho que essa diferença é,
enfim, um tema de organização –, com a tal cultura brasileira. O que temos nós
a ver e a dizer com e sobre isso? Desde aquela época – se não me engano, isto
foi mesmo dito a um jornalista que não sei se botou lá nessas entrevistas que
publicaram de Betty Milan e eu algum tempo atrás – que, nesse campo aí, a
perspectiva que poderíamos visualizar de imediato era a de que, se existe essa
coisa chamada Brasil, cultura brasileira, nosso campo de existência, de língua,

346
Introdução à Heterofagia

etc., não se tratava, para nós, de acompanhar essas vias sociológicas, filosóficas,
antropológicas, etc., que ficam coletando as produções e os dados para tentar
uma espécie de, digamos, estatística ou somatório de emergências intelectuais,
etc. Mas, sim, que, do nosso ponto de vista, da nossa perspectiva, o que
poderíamos talvez pensar seria uma espécie de escuta, de auscultação que nos
permitisse, eventualmente, sacar, destacar, o sintoma do que pinta por aqui. É
uma via completamente diferente da de se atuar sociológica ou
antropologicamente.
Será que nós outros teríamos algo a colocar no sentido da distinção de
alguma sintomática, de um sintoma básico, nisso que chamamos de cultura
brasileira? Uma vez que fiz a distinção entre cultura e artificio, tenho que ver
que, é claro, estamos todos aprisionados na cultura, pois não houve nenhuma
transformação, nenhuma mutação pós-neolítica, na face do planeta, que nos
mostrasse em qualquer lugar, alguma mudança de tipo. Por isso estamos
mergulhados na cultura, mesmo sem pensarmos em aspectos culturais no sentido
antropológico, em termos de ordem de parentesco, de família, da produção
discursiva, da agitação simbólica neste país, ou algo que se chama “este país”.
No campo do artifício, há algum sintoma ou sintomas que pudéssemos destacar
como base, a ponto de nos dar um pouco do endereçamento sobre nós mesmos?
Claro que são muitos sintomas. Penso que não é só por uma convivência com tal
cultura, no cotidiano, mas, sobretudo, por uma pergunta que possamos fazer àqueles
que, supostamente, por terem ocupado um lugar, digamos, de poeta, um lugar de
onde brotou a invenção poética, que talvez devêssemos tentar sacar o que eles
farejam no ambiente, de modo a nos dizer, como Tirésias lá do lugarzinho dele.
Aí é que trago, como abertura da continuação do Seminário, o título
Introdução à Heterofagia. Heterofagia é devorar o Outro. Trata-se de comer
o Outro, uma coisa muito cara aos brasileiros. Acho que o verbo mais importante
do Brasil é o verbo comer, sobretudo quando se trata de comer um outro.
Brasileiro é vidrado em comer, em vários sentidos. Há uns passando fome,
outros gulosos, afora esse tesão nacional que se oraliza a cada momento, sempre
dito, sempre explicitado, da musiquinha de carnaval à piadinha de rua, do grande

347
Psicanálise & Polética

texto teatral à paquera comezinha. Há uma oralidade muito importante, muito


vigorosa, no meio da nossa cultura.
Ainda outro dia, alguém me dizia que não era analista, mas "oralista",
aliás com muita propriedade. Esse nome analista é meio chato porque sempre
dá a impressão de um processo de acumulação que é muito diferente dessa
oralidade que é mais nossa. Eu diria mesmo que o analista é, antes de mais
nada, um oralista. Digo isto porque o analista escuta com a boca. Quando
McLuhan publicou seu livro chamado The Media is the Massage, alguém fez
para ele uma capa em que um sujeito tinha no lugar do olho uma orelha. Ele
estava falando da nova cultura auditiva, eletrônica, etc. Para figurar numa capa
de livro, eu poria, para analista, a orelha no lugar da boca, pois pode-se dizer
que o analista escuta com a boca. É claro que mais de boca fechada, porém só
aparentemente fechada. Não é à toa, aliás, que existe, anatomicamente, uma
ligação entre o ouvido e a boca, a Trompa de Eustáquio...
O analista é uma espécie ruminante: ele escuta e, em vez de logo falar,
rumina, fica com o chiclete, do dito do analisando dentro da boca. É, aliás, como
ele consegue traduzir. Lacan deu um testemunho brilhante, que não é diferente
do que pode acontecer na prática analítica, quando fala da tradução. Ele inventou
a tradução via inconsciente, quer dizer, inventou o esclarecimento disso, pois o
que todo bom tradutor faz é isso mesmo. O que é uma tradução via Isso, que
passa por Isso? Quando explicou a tradução do inconsciente de Freud,
Umbewusst em alemão, Lacan disse que basta repetir 66 vezes – 66 é por
conta dele – a palavra Umbewusst. Nessa mastigação de chiclete aquilo vira a
sua língua, porque é com a sua língua que você rumina, e não com a dos outros.
Nessa ruminação é que ele, que vivia subdito à língua francesa, transformou,
traduziu Umbewusst por l’Une-Bévue. O termo tem um sentido todo parti-
cular francês, mas é perfeitamente cabível, e melhormente do que inconscient.
Foi pela mesma via, repetindo o ensino do mestre, que eu mesmo mastiguei
certa vez a mesma palavra – não sei se foram 66 ou 132 vezes, porque havia a
língua do mestre no meio, para atrapalhar. De tanto repetir, disse, então, que o
inconsciente é UM-BIVISTO. Fiz até um textinho a respeito que certamente

348
Introdução à Heterofagia

sairá na revista L’ Âne que o encomendou. Isto é o que estou chamando de


escutar com a boca... dessa mastigação dos significantes ditos, acaba pintando
uma interpretação. Igual a isto é o oralismo do analista. Quem sabe se um dia
nós analistas não nos nomearemos de oralistas? Podemos mudar o termo e, aí,
analistas ficarem sendo aqueles outros.

* * *

Assim como certo dia, aqui no Seminário, pintou o objeto privilegiado do


brasileiro como sendo a bunda, eu diria que a sintomática nacional se aloja na
boca. Vou propor para nosso caminho deste semestre um certo retorno, não a
Freud, mas a alguém que, infelizmente, jamais tive oportunidade de conhecer
pessoalmente, que nos deixou uma produção realmente rica que já tem sido
tomada de modos os mais diversos e que me parece um bom indicador para
sacação da nossa posição numa polética. Posição que me parece ser tanto a
posição a se dizer nacional quanto nossa situação no campo dessa zorra que é o
movimento psicanalítico mundial. Esse autor, essa autoridade, se chama Oswald
de Andrade. Não é nenhuma volta tipo Rei-da-Vela-68, ou algum tropicalismo,
que mais não é hora. Entretanto, talvez tornássemos a percorrer, a partir da
sacação de Oswald, quando tirou o pau-brasil e instaurou a antropofagia.
Para mim, Oswald era um homem de gênio, ou seja, aquele que dá a
dica certa, mesmo desenhando o mapa errado. O caminho sempre está indicado
certo, mesmo que haja erro grande no mapa desse tipo de sujeito, pois acaba
sempre indicando o sítio do tesouro. Afinal de contas, trata-se de um tesouro:
um certo capitão, ora morto, um dia escondeu muito bem de nós um tesouro. É
importante ter escondido, pois, em vez de vivermos da renda desse tesouro,
que tenhamos também o vigor de achá-lo, e não de só ir buscá-lo. Oswald, a
meu ver, é um sujeito desse tipo. Ele vai rememorar muitas coisas na chamada
História do Brasil.
O termo história, aqui, não está me interessando como historiografia,
mas sim como estorinha, como a que o analisando conta, aonde desponta o que

349
Psicanálise & Polética

restou como mito individual desse analisando. Lá estão os signíficantes


determinantes da sua história. É com tal escuta que temos que enfrentar o que
se diz desse lugar, não sei se geométrico, geográfico, mas certamente um lugar
topológico, aonde estamos enquanto supostamente brasileiros. Coisas velhas
que vivemos e repetimos a nosso respeito, contadas pelos avós e escritas em
textos os mais diversos, por exemplo: o fato de que o Brasil é uma ilha. Está lá
no nome: Ilha de Vera Cruz. Chegaram aqui e perceberam logo que era uma
ilha. Os geógrafos não perceberam isto porque ficam medindo terreno. Trata-
se de uma ilha. A verdade histórica, no nosso sentido, é aquela do significante
que acabou nos determinando, e aí está o significante na textualidade, na fala,
desde nossa infância. Desde minhas investidas na chamada América Ladina,
tenho dito que o Brasil é separado. Há outras coisas, como, por exemplo, quando
Oswald cria o seu Manifesto da Poesia Pau-Brasil, pensando no tempo em
que a Europa vinha explorar o nosso pau, brasil naturalmente, será que a Europa
ainda quer o nosso pau-brasil? Às vezes, parece que sim. E as Américas também.
Das Obras Completas de Oswald de Andrade, publicadas pela Civilização
Brasileira, destaco especialmente o volume 6: Do Pau-Brasil à Antropofagia e
às Utopias. Este é que é o importante do ponto de vista da sua teorização, o resto
é solução literária que ele deu à coisa. É preciso, também, ler o livro de Sérgio
Buarque de Holanda – mais conhecido como pai do Chico Buarque – chamado
Visão do Paraíso, e Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. Não podemos
esquecer a obra de Mário de Andrade, especialmente o grande mito que ele
inventou, Macunaíma. Por essas coisas assim de destino, Mário de Andrade é
mais conhecido do que Oswald. Tem-se mesmo a impressão de que Mário teria
fundado o movimento em que Oswald entrou, quando é o contrário. Os irmãos
Campos já se deram ao trabalho de demonstrar que o grande movimentador, o
grande inventor da coisa toda é Oswald. Macunaíma seria, assim, do ponto de
vista de produção literária, uma espécie de aboletar-se um pouco nos romances
de Oswald, Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande.
Mário foi talvez mais compacto na produção de Macunaíma, de tal maneira que
ele passou, mas é Oswald o motor dessa movimentação.

350
Introdução à Heterofagia

Além desse tal Manifesto da Poesia Pau-Brasil, publicado no Correio


da Manhã. em março de 1924, um pouco depois, em 1928, numa chamada
Revista de Antropofagia, que era dos modernistas, Oswald publicou o
Manifesto Antropófago, criando o Movimento Antropofágico e a idéia do Brasil
tendo como sintomática fundamental essa antropofagia. Eu não falei em
antropofagia, mas em heterofagia, pois, como já disse, um sujeito de gênio me
dá a dica certa, mesmo com o mapa errado. É preciso produzir uma leitura para
poder abordar um sujeito desses, um texto dessa ordem, porque se formos
ingênuos de acompanhar o texto na aparência de um significado que ele tenha
tido num certo momento, ou que a ele se tenha dado quando surgido, perdemos
a essencialidade do texto. Quanto mais releio Oswald, mais tenho a impressão
de que ele sacou certíssimo, deu a indicação do lugar do tesouro. Mas, assim
como aconteceu com Freud, que Lacan teve que destrinchar para desvelar sua
essencialidade, em meio a uma série de hesitações em função da disponibilidade
da produção científica de seu tempo, das produções discursivas em geral, também
há em Oswald muita coisa aparentemente ingênua, muita demonstração tola,
muita nomeação que saca mas não distingue, talvez mesmo por falta de material.
Oswald é contemporâneo da produção das Estruturas Elementares
do Parentesco, de Lévi-Strauss. Certamente ele leu algumas páginas – como
bom brasileiro, não teria tido o saco de ler aquilo tudo, que é muito chato, um
livro muito grosso... Não interessa o que ele leu, e com alguma razão em certos
pontos, mas vemos que ele vai buscar em autores mais ou menos disponíveis no
ápice da cultura daquele momento, uma justificativa para sua sacação. Se
considerarmos a justificativa, ela é decepcionante, mas, com a ferramenta que
temos, nós outros, essa que veio, de presente, da herança de Freud e Lacan,
podemos olhar isso de modo completamente diferente e perceber que o
homenzinho sacava muito bem. Digamos que ele era um analista nada ruim
quando apresenta, por exemplo, o Manifesto Antropófago.
Antropofagia é um termo que ele vai buscar a partir de uma observação
dos acontecimentos típicos, segundo ele, da culturalidade brasileira: o modo do
brasileiro, essa zorra étnica, cultural, etc., que é, supostamente, o que se encontra

351
Psicanálise & Polética

na cabeça de um sujeito que nasce por aqui. Ele não está tipificando um
determinado sujeito. É de se pensar, não que cada brasileiro seja assim, mas
que há uma subjetividade solta, a de um sujeito Brasil aí representado de
significante para significante. Uma certa posição de sujeito que não é de se
esperar que cada um seja esse sujeito, mas é o que há como efeito da passagem
de significante a significante nesta nossa zona – em todos os sentidos – nacional.
Acho que Oswald sacou certo, quando tira daí essa antropofagia, como ele a
chama: o brasileiro é esse oralista comedor do Outro. O que, às vezes, abordado
com ingenuidade – o que se faz freqüentemente –, parece uma coisa
completamente diferente, mas que, acompanhado no processo, é de se ver que
não se trata bem do que estávamos pensando. Quando, por exemplo, se pensa
que brasileiro é puxa-saco de estrangeiro. Não é bem assim...
Num outro momento, depois de situar essa antropofagia como marca
da cultura brasileira, ele faz um estudo sobre o Messianismo, com veleidade a
tomar cátedra na Universidade de São Paulo. É uma tese espantosamente
louca, muito mais interessante, aliás, do que as que a Universidade costuma
produzir, embora uma balbúrdia.
Em outro momento, ainda, aborda a questão das Utopias. Faz uma
oposição, para pensar o fenômeno brasileiro, entre messianismo e antropofagia.
Messianismo seria, segundo ele, uma idéia completamente fora da nossa
perspectiva cultural, já que é a de sempre procurar por um Messias com idéia
redentora que venha resolver os problemas dos homens, que venha a ordenar,
organizar o mundo. Oswald nos mostra que isto não é deste país: o Brasil não é
dado a acreditar em redentoras, nem na recente, generalizada, nem na parcial.
de uma outra princesa de antanho. A antropofagia, para ele, é que seria a
tipicidade da nossa cultura. Aqui não se procura nenhum messianismo, nenhuma
idéia salvadora: come-se de tudo e, certamente, que se digere um bocado e não
se deixa de cagar um pouquinho, é claro, senão se fica entupido.
Quando ele situa essa oposição messianismo/antropofagia, põe,
conjuminadamente, outra oposição, que chama de patriarcado e matriarcado.
Para ele, o messianismo é patriarcal e a antropofagia, matriarcal. Ele quer

352
Introdução à Heterofagia

fazer o brasileiro se dar conta de sua vocação matriarcal e fazer uma grande
revolução contra os messianismos e os patriarcalismos. Aí vai uma grande
ingenuidade. Com o termo messianismo, ele foi preciso, a meu ver. Com o
termo antropofagia, ele foi metaforicamente preciso. Mas quando tenta
distinguir esses dois momentos colocando-os como patriarcado e matriarcado,
aí lhe falta a ferramenta com a qual eu poderia – e é o que tentarei fazer –
abordar a questão pelos termos – poderiam ser outros, mas escolhi estes – de
homologia e heterologia, ou melhor, homofagia e heterofagia. Calcado
nesse percurso que vim fazendo desde o semestre passado, posso dizer que é
o imperativo da Lei, da diferença, que Oswald, no fundo, está pensando em
todo esse processo.
Eu gostaria de chegar ao ponto de mostrar que Oswald nos dá, de
presente, a visão – muito satisfatória, gratificante, a meu ver, do ponto de vista
narcísico, e por isso é que temos tão pouco cuidado – de que é possível que a
sintomática básica deste pais seja uma vocação heterológica, heterofágica, em
alteração, em altericidade, em suma: heterossexual.
Oswald foi buscar o termo antropofagia numa velha raposa francesa,
tão antiga e tão disseminada que, hoje, é propriedade de qualquer um, bem
deglutida e digerida, que é Michel de Montaigne. Nos famosos Ensaios, livro
1º, cap. 31, Montaigne fala dos canibais, que ele comenta a partir da narrativa
de um viajante que lhe teria contado sua experiência no Brasil, onde existia um
povo que tinha um costume inteiramente interessante que era, ao invés de
simplesmente matar ou ainda espedaçar o adversário, o de comê-lo – o que é
bem mais interessante, pois não é completamente um desperdício. Essas tribos
tratavam muito bem, com todo respeito – e Montaigne chama atenção para isto
– o adversário que caísse em suas mãos como prisioneiro. Com tanto respeito
que ficavam instigando, enchendo o saco do cara, o dia inteiro, que era para ele
não se dobrar. Esperavam que o adversário não se dobrasse: o sujeito tinha que
xingá-los, tinha que fazer aparecer a diferença, até o fim. Depois de tê-lo durante
longo tempo tratado com todo conforto, mas com exigência de não acomodação,
o dono do prisioneiro amarrava uma corda a um dos seus braços, cuja outra

353
Psicanálise & Polética

extremidade ele segura nas mãos, o mesmo fazendo com o outro braço cuja
corda dava a um amigo para segurar do outro lado. Os dois, então, em presença
de toda a assembléia, o assomavam de “golpes de espada” – claro que não é
espada, Montaigne não sabe que índio não tem espada – despedaçavam o
inimigo vivo. Feito isto, o assavam e o comiam. E mandavam pedaços muito
delicados para amigos ausentes – feito festa de aniversário de brasileiro, em
que se manda um bolinho para lá, um docinho para acolá.
Montaigne chama atenção que não é para se alimentar que faziam isto,
mas, sim, para representar uma extrema vingança. Justamente aquela que,
baseado no Totem e Tabu de Freud, e o citando, Oswald vai dizer que é a
vingança de transformar o tabu em totem, como se fez com o pai ancestral.
Pega-se, mata-se e come-se. Ou seja, ao invés de ter que viver o resto da vida
exorcizando o outro, eles simplesmente entravam simbolicamente de algum
modo na do outro, ou o outro entrava de algum modo na deles, o que é a mesma
coisa. Daí que Oswald tira a idéia da antropofagia que ele diz reconhecer sempre
nas atitudes do brasileiro. O brasileiro sempre tenta retirar o Tabu do que é
externo e o deglutir em forma de Totem.

* * *

Será que podemos falar em “cultura brasileira”? Quem sabe não


temos o privilégio de não precisar ter uma cultura? Temos é o sintoma de
comer as culturas. No entanto, há a chamada de atenção, muito sóbria,
muito sábia, de Montaigne, dizendo que ele não está para não ver o horror
bárbaro que há numa ação dessas. É sutil o pensamento dele a esse respeito.
Comentando, ele vai desculpar a barbárie dos índios: “Penso que há muito
mais barbárie em se comer um homem vivo do que o comer depois de
morto. Em despedaçar com tormentos e aflições um corpo ainda cheio de
sentimentos, fazê-lo assar para o menu, fazê-lo morder e ferir por cães e
pulgas, como temos, não somente lido, mas visto, de memória recente, não
entre inimigos antigos, mas entre vizinhos e concidadãos. E, o que é pior,

354
Introdução à Heterofagia

com pretexto de piedade e de religião, se não de moral e patriotismo”. E


continua: “Penso que isto é muito mais bárbaro do que assá-lo e comê-lo
depois que ele foi morto”.
É este, então, o caminho que proponho: a retomada, com Oswald, da
significância dessa devoração.

19/AGO

355
Psicanálise & Polética

356
Por que me afano com meu país?

15
POR QUE ME AFANO
COM MEU PAÍS?
O verbo afanar, segundo Aurélio, tem dois sentidos, digamos, principais.
Por um lado, é uma das possibilidades do termo faina: o verbo pode ser afainar,
ou afanar. Por outro, existe, não sei de onde tirado isto, afanar no sentido de
surrupiar, de furtar. Estou me perguntando por que me afano, nos dois sentidos,
com meu pais: por que me dou ao trabalho para com ele e por que me deixo
roubar junto com ele?
Quando começamos a interrogar Oswald, nossa questão era saber se
ele nos daria alguma coisa, alguma dica, a respeito do possível destacamento
de uma sintomática nossa, um encaminhamento, o levantamento de alguns pontos
ou algum ponto mais importante, quem sabe, da nossa sintomática “cultural”,
como se costuma dizer, não no sentido que dou ao termo. Eu dizia que Oswald
era o que considero um homem de gênio. Não se está romanticamente acredi-
tando em “genialidade”. Eu disse que homem de gênio era aquele que dava a
dica certa, do tesouro, mesmo com o mapa errado. O gênio, o homem de gênio,
genial, é a mesma coisa que o que se chama de um homem “genioso”. Não
vejo a menor diferença. Não é o sujeito que tem um saber especial, um modo
especial de operação, mas, simplesmente, um sujeito que faz afirmação pública,
veemente e séria – quer dizer, em série – da sua diferença. Afirmar a diferença
é vigorar no desejo. Assim, um gênio, trata-se de um sujeito chato, genioso, que
insiste na diferença. E como insiste seriamente, ela acaba produzindo uma série

357
Psicanálise & Polética

de efeitos. O significante produz os efeitos que produz. É o caso do santo, do


artista, do poeta, do grande filósofo, etc.
Não é de modo algum, aqui, a noção de prodígio que está em jogo, de
rapidez, de velocidade, de maior inteligência. As crianças-prodígio, por exemplo,
são algum outro tipo de emergência, escutadas, talvez, por via da psicologia da
inteligência e outras banalidades. São uma espécie de computadores sofisticados.
Isto acontece até entre computadores. Então por que não entre falantes? As
pessoas ficam muito encantadas com as crianças-prodígio quando aparecem
num campo desses da matemática, da tecnologia, um músico tipo Mozart...
Mas se, por exemplo, uma criança fosse prodígio em sexo, as pessoas ficariam
muito assustadas. Mas existem computadores sexuais sofisticados, mesmo desde
a infância. Há pouco tempo, não sei se nalgum Fantástico da vida, apareceu
uma menininha da Inglaterra que, com uns nove ou onze anos de idade, acabara
de ser aprovada na Universidade, em matemática. Os pais declararam uma
coisa que achei interessantíssima: que ela nunca foi para a escola. Sorte dela,
de ter a felicidade de não ser mandada para escola. A escola é um lugar onde
existe uma plêiade, uma seleção de moçoilas, as educadoras, que acabam
cretinizando até o mais sofisticado computador. Muito a propósito, aliás, são
chamadas de professoras... primárias. Não há inteligência que agüente esse
tipo de discurso pedagógico.

* * *

Quero falar daquela coisa em que Lacan insistiu, dessa dialética, dessa
talvez dicotomia entre os seres falantes, os quais não têm escapatória: ou a
estupidez ou a loucura. Talvez essa opção se faça em função da pressão
significante: ou se trancam na estupidez, para sobreviver, ou partem para a
loucura. Há, também, aquele bando maior que fica assim-assim pelo meio,
fingindo um pouquinho de cada lado, o que é um depoimento velho de quem
quer que alguma vez já tenha pensado. Fernando Pessoa, por exemplo, tem um
poema, em seu Cancioneiro, que começa dizendo:

358
Por que me afano com meu país?

Só quem puder obter a estupidez


Ou a loucura pode ser feIiz.

Não sei o que ele quer dizer com “ser feliz”. Talvez, permanecer na situação de
ser falante.

Buscar, querer, amar... tudo isto diz


Perder, chorar, sofrer, vez após vez.
A estupidez achou sempre o que quis
Do círculo banal da sua avidez;

Isto é brilhante, pois a estupidez não costuma ser modesta, ela é de uma avidez
incrível.

Nunca aos loucos o engano se desfez


Com quem um falso mundo seu condiz.

O de todo saber-se enganado e enfrentar a si.

Há dois males: verdade e aspiração,


E há uma forma só de os saber males:
É conhecê-los bem, saber que são
Um horror real, o outro vazio –
Horror não menos – dou como que vales
Duma montanha que ninguém subiu.

É impressionante como ele situa bem que não há outra opção: estupidez ou
loucura. Ou se namora com uma, pelo menos, ou com outra. Já na Mensagem,
falando a respeito de D. Sebastião, ele dizia:

Minha loucura, Outros que me a tomem

359
Psicanálise & Polética

Com o que nella ia.


Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver addiado que procria?

O dilema é este: Ou se opta pela estupidez e se procria, e se procria como


cadáver adiado, ou se tenta dizer alguma coisa e isto tem a ver com a loucura,
que não é necessariamente aquilo que chamamos um caso psiquiátrico. É essa
loucura de vigorar na sujeição à linguagem, à ordem significante, como dizemos.
Aí está a dialética da burrice e da loucura, apresentadas tanto por Lacan quanto
pelo poeta, como o foi por tantos outros que se tenham debruçado sobre a
mesma coisa.
Estamos falando de homens de gênio e da dicotomia estupidez/loucura.
Como não poderia deixar de acontecer, o significante é forte e acaba nos
aprisionando, e assim não se pode deixar de dizer alguma coisa, entre as
tolices que se disseram sobre o desaparecimento recente de Glauber Rocha...
Este significante está aí no meio da nossa cultura, e o próprio Glauber invadiu
com força esse campo. Era um tipo que eu diria ser um sujeito de gênio, no
sentido em que coloquei o termo. O significante, sobretudo quando é nome
próprio, faz muita pressão. É importante considerarmos o nome de um sujeito.
Glauber Rocha... Não é um nome fácil de dissolver. Em alemão, esse radical,
glaube, glauben, quer dizer crença, fé. Crer, acreditar, donde suponho que
Glauber deve ser um crente, um crente que não é mole, que é Rocha, um
crente muito duro de roer. E tal significante pode dar força, embora o corpo
não agüente, com muita freqüência, suportar tanta carga. No velório do rapaz,
me lembrei de um outro velório, ao qual fui há muitos anos, o de Villa-Lobos.
Mais ou menos 20 anos. Era outro homem de gênio, brasileiro. São poucos
assim, os que a gente pode dizer que invadiram o espaço significante até
transbordar, fronteiras, tipo Villa-Lobos na música, Guimarães Rosa, na
literatura, Glauber Rocha, no cinema. Invadem o espaço simbólico na
afirmação de uma diferença, sem abrir mão dela.

360
Por que me afano com meu país?

Mas as histórias são diferentes. Villa-Lobos – a cuja festa de


comemoração dos seus 70 anos eu fui – devia ter 70 e muitos anos quando
morreu. Havia todo um aparelho de estado suportando Villa-Lobos, mesmo porque
ele tinha certas mazelas compatíveis com o sistema, como, por exemplo, um
ufanismo tipo grande nação, estado forte. Isso facilitou as coisas para ele, de
certa forma – mesmo que houvesse muito rato em volta – na medida em que ele
contava com um Ministério forte, tipo Capanema, disposto a exaltar artistas
brasileiros – como ele próprio e Portinari – naquele momento. Ele escrevia
musiquinhas para as crianças cantarem nos estádios, tipo Viva o Brasil. Mas
não deixava de ser um homem de gênio. Fez coisas importantíssimas, respeitáveis
em qualquer lugar deste vale de símbolos em que vivemos. Já, quanto ao outro,
não era bem ufanismo, talvez, mais, porém, um ufanismo quanto ao país. E,
ademais, de lá para cá as coisas mudaram muito. De tal maneira que a pressão
mudou de aspecto. A pressão, digamos política, a política cultural, mudou muito
de aspecto. Eu via esse moço se debatendo, sobretudo na sua última fase. Ele
foi paquerado pela esquerda, foi cortejado na sua juventude dita brilhante, de
certa forma a do tipo menino-prodígio. Mas, depois, ao insistir na diferença, o
pessoal já não gostou. Não gostou da insistência naquela diferença. De tal maneira
que ele ficou numa posição difícil e quase insustentável que é a de tomar porrada
de dois lados. Justamente por não estar inserido no discurso de um partido.
O que é impressionante é a pujança, a insistência geniosa na diferença.
A preços altíssimos, certamente. Não precisamos repetir aqui tudo que já se leu
nos jornais, as opiniões, a festa fúnebre que se fez, a intensa participação nesse
esforço de deglutição de Glauber. Todo mundo teve que faturar um pouco –
mesmo eu estou faturando um pouco neste momento. Interessante que alguns
notaram e tiveram a decência de confessar chamando o acontecimento de
assassinato cultural – se não me engano, um termo do morto. Assassinato
cultural que, aliás, existe mesmo. Um jornalista chamado Oliveira Bastos, cujo
artigo está aqui na minha mão, diz que Glauber Rocha foi assassinado pela –
atenção, o termo é exato – indiferença. Inconsciente ou não, o termo foi exato.
Não se suportando a diferença, tenta-se eliminar pela indiferença. A indiferença

361
Psicanálise & Polética

não é só o desprezo, é o não reconhecimento da diferença. E ele diz: “Glauber


não morreu. Ele foi assassinado pela intolerância da direita e pela burrice das
esquerdas”. Já o outro moçoilo lá, que é membro da Arena, acadêmico José
Sarney, eu o surpreendi na televisão como que também endossando esta tese.
Notem que o rapaz do jornal disse “intolerância” da direita e burrice das
esquerdas, não se trata a direita com maus modos porque não fica bem, pode
dar galho. Sarney falou e disse que é intolerância da esquerda e da direita.
Quer dizer, foi gentil para os dois lados. Prefiro o último termo: a burrice de
ambos, a estupidez de que estávamos falando.
É importante, acho, do ponto de vista do discurso que habitamos, pensar
nessa tese do Glauber. Existe um assassinato cultural? E isso se dá somente no
nível do simbólico, ou atinge o real do corpo? Não me consta que ninguém
tenha ido lá e inoculado o rapaz com algum vírus. Existe a guerra biológica, mas
não sei se a coisa está sofisticada a esse ponto. Contudo, não deixa de haver
certa inoculação, por via de enfraquecimento dos vigores do sujeito que tenta
dizer certas coisas.
Lévi-Strauss, na Antropologia Estrutural, vol. 1, chamou isto de
Eficácia Simbólica. Ele mostra, fazendo oposição entre psicanálise e magia
xamânica, que a magia funciona no nível de impregnação verbal do sujeito,
quando o paciente recebe uma carga significante que é mesmo capaz de atuar
no seu corpo. O exemplo que dá, no caso, é de um parto difícil, e o xamã
dizendo coisas, poetando, nos ouvidos da parturiente para que ela possa fazer,
sintomaticamente, o corpo funcionar. E funciona mesmo, por vias de uma,
digamos, histerização do corpo por inseminância verbal. Ele mostra que a
psicanálise é o inverso: o paciente entrega uma massa significante, onde seriam
deslocadas – pontuadas, segundo Lacan – certas formações significantes.
Pontuações capazes de desenlaçar as cadeias, justamente por achado de sentido.
É importante pensar nisto, pois a magia existe, concretamente: Yo no
lo creo, pero las hay. É denegação dizer que é coisa de ignorante, que esse
negócio não funciona, que não existe. Não se trata de produção de religiosidade,
ou coisa desta ordem, em torno desses aspectos mágicos, nem de reforço da

362
Por que me afano com meu país?

superstição, mas de não denegar o fato de que há essa eficácia simbólica.


Tanto que o sujeito comum, na sua história, ficou amarrado foi por cadeias
significantes, que a psicanálise pretende desenlaçar, desnodular: é o que estou
chamando de magia – e magia capaz de matar. Há o exemplo que Lévi-Strauss
nos dá de que, num grupo social, um sujeito pode, por algum motivo, ser escolhido
para ser foracluído, e ser levado assim à morte física, concreta, só por essa
eficácia simbólica. Se a intenção da psicanálise foi, ao contrário dessa
impregnação sobre o sujeito, a de escutá-lo de modo a desenlaçá-lo dessas
amarrações, ela está procurando o contrário dessa eficácia mágica justamente,
como põe Lévi-Strauss, e, mais do que isto, aceitando e promovendo a dife-
rença. Na medida em que o chamado paciente é escutado para fazer saltar a
diferença, ele está no movimento da intenção de sobreviver. Há duas eficácias
mágicas que considero igualmente destrutivas: a que pretende matar
concretamente o sujeito e aquela que promove o enrijecimento do seu Ego a tal
ponto que, ele, sujeito não será. São coisas opostas. O reforço do Ego é tão
assassino quanto a tentativa de arrasamento do sujeito.
Acontece não se crer em bruxarias, mas que elas existem, existem.
Não é o caso de bancarmos os céticos ainda que científicos. Para nós, é preciso
saber disso, saber porque, em nossa experiência, funciona. Está aí a histérica
com seu sintoma de conversão, produzido nessas cadeias, incorporado, trazido
ao corpo, com efeitos destrutivos. Está aí o obsessivo, a prática obsessiva –
para não falarmos de um sujeito obsessivo, mas de uma prática – que localiza o
sintoma no corpo de um outro. A meu ver, a prática obsessiva tem para com a
histeria esta diferença: a histérica o localiza no seu corpo, o obsessivo se vira
para localizar no corpo de um outro. Existe, por exemplo, um sistema burocrático,
de constituição nitidamente obsessiva que, enquanto sistema, funcionando, não
se corporifica senão nos enunciados e que, no entanto, histericiza um outro. Se
desloco o discurso, e não apenas o de um sujeito que estou escutando, mas o
discurso enquanto tal, da maneira como ele funciona, ele pode acabar numa
aplicação obsessiva de si mesmo, acabar histericizando o corpo de alguns.
Quantos sujeitos que talvez não tivessem necessariamente, por sua configuração

363
Psicanálise & Polética

peculiar, que portar determinada conversão, por via dessa magia de que estou
falando, não acabam tendo que incorporar uma conversão?
Não se pode dizer que a tese de um assassinato cultural seja coisa
ingênua. Poderíamos dizer que há assassinato cultural em simplesmente se
apagar o nome, por exemplo, de um sujeito; esconder, obnubilar sua obra. Quando
se vê exalçado um determinado poeta num momento histórico, no Brasil, por
exemplo, Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, com uma mediocridade
visível e, contemporâneo a ele, poetas completamente obscurantizados pela
estupidez ambiente... Então, há assassinato cultural, em termos, para uma parte
das pessoas. Para mim, por exemplo, que não estou sabendo da existência
daquele, e que estou lendo bobagens de um outro, de algum Jornal do Brasil,
de algum Droumedário de Andrade...
Não se pode negar que uma pressão dessa ordem – certamente em
função da situação, quer dizer, da topologia, da tópica desse sujeito nesse campo
simbólico que é chamado campo social –, eventualmente, chegará ao corpo,
numa luta tão incessantemente ingente com essa derrubada constante, que
pelo menos não deixa de esperdiçar quanta energia do sujeito. Mesmo que seja
só por essa simples via de dispêndio, quando o sujeito insiste na diferença de tal
maneira, paga-se um preço dez vezes maior por uma produção. Então, sucumbe-
se fisicamente, por falta de recursos mesmo fisiológicos. Estou dizendo que
acredito nas bruxas: é que elas são tão sobrenaturais quanto os significantes. A
oposição que Lévi-Strauss faz entre psicanálise e xamanismo é uma oposição
radical, em que uma é o avesso do outro. Não estou fazendo nenhuma analogia.
Estou dizendo que o discurso psicanalítico tenta justamente destacar a diferença
a partir da fala do sujeito, no que algo da ordem do que pudéssemos, talvez,
chamar de libertação do sujeito, iria aparecer, se é que o termo serve.
De um lado, encontramos uma impregnação de fora para dentro. O
sujeito é impregnado das frases que, histericizadas, acabarão por influir mesmo
no seu corpo. Há uma coisa – que Lacan coloca no nível do real – que se
chama sintoma. Trata-se até de sintomatização de nível histérico, produzida de
fora para dentro. Isso existe, existe porque há vias de histerização no discurso.

364
Por que me afano com meu país?

Pode-se girar pelos discursos e cair na posição da histérica. Isto depende,


certamente, das posturas, disso que chamei de situs, a tópica do sujeito. Mante-
nho a distinção. Mas não é suficiente dizer que, de um lado, é via imaginária
estrita e, do outro, estrita via simbólica. Não garanto que Lévi-Strauss diga
assim. De qualquer modo, trata-se de um processo de impregnação imaginária
por via simbólica, uma coagulação imaginária por via simbólica, por repetição,
como, por exemplo, o cacoete obsessivo da televisão com sua propaganda
nos intervalos. Acaba impregnando sim. Lacan tem quase 81 anos – não
morreu aos 42, apesar das pressões. Mas ele é outro caso. Ele disse
claramente: “Graças a Deus que tenho a voz fraca, que não me entendem,
que as pessoas não me levam a sério”. Se não a gente vira Glauber Rocha.
Entendem como funciona? Não é sem esteio prático e teórico a existência
desse tipo de coisa.

* * *

Isto vem a calhar na continuação do que eu tentava dizer da vez anterior


que é, justamente, o que poderíamos sacar de específico, de particular, na eventual
existência de uma sintomática brasileira, ainda que esteja sufocado, acobertado
por farta impregnação de vários discursos não deixando a coisa aflorar.
São dois momentos. Minha tentativa de reflexão, a partir da experiência
e da teoria analíticas, sobre essa postura sintomática do nosso caso. Nós que
estamos mergulhados, cada um com seu sintoma particular, dentro desse sintoma
grande que está aí à nossa volta, não seria mal se pudéssemos destacar alguma
coisa muito nossa que pudesse se dizer de algum modo, que viesse a tomar
palavra. E a recorrência a Oswald, como disse, é no sentido de supor que,
como homem de gênio, ele parece que nos dá certa dica, mesmo se o mapa
acaso estiver errado. Ou seja: como é que fica a nossa diferença, enquanto
participantes desse sintoma geral no qual habitamos? Como seria essa diferença,
é a primeira questão. A segunda questão: como se comporta a diferença, enquanto
tal, no seio dessa sintomática particular que seria o Brasil, e, certamente, cada

365
Psicanálise & Polética

sujeito com a sua sintomática específica diante dessa questão geral?


No momento em que Oswald está criando isso – nos arredores e dentro
do próprio movimento que ele está promovendo – verificamos que há certa
vocação nacionalista. Esta palavra tem vários sentidos: nacionalismo verde-e-
amarelo de um grupo de tendência direitista, se não fascista, e essa outra via de
Oswald com o Pau-Brasil, com a Antropofagia, na tentativa de sacar uma
particularidade nossa que não fosse aquele verde-amarelismo fanático. Ele vai
colocando assim, no rompante das inspirações, as coisas que ele acha, os projetos
de operação que propõe. No tal Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de 1924,
aponta algumas coisinhas, elementos isolados do que supõe ser a sintomática
nacional. Por exemplo, que “o Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da
raça”. O carnaval sempre foi uma festa religiosa, pertencente ao calendário da
Igreja, foi assimilado. “O lado doutor” do brasileiro. É interessantíssimo esse
falar difícil, coisa muito nossa. Certos textos meus, por exemplo, as pessoas
pensam que são influência da fala ou da escrita de Lacan. É não conhecer
Brasil, é não saber que existe o Padre Vieira, Guimarães Rosa e essa cabotinice
brasileira de falar complicado porque, se não, não se está sabendo. É preciso
optar por isso. O bacharelismo brasileiro de “não podemos deixar de ser doutos.
Doutores. País de... doutores anônimos”. Exato! “Eruditamos tudo.” O brasileiro,
qualquer coisa que ele pega, dá uma “eruditada”. Não é um erudito, ele é
eruditante, quer dizer, dá um ar assim de sofisticação, um barato: tipo fantasia
de carnaval. tem que botar uns enfeites... Por que não?
“A poesia Paul-Brasil. Ágil e cândida. Como uma criança.”. Ele está
procurando me parece, pela originalidade do nosso sintoma: o que há não de
infantilismo, mas de infância, de fundação sintomática nessa cultura. Ele pede
“a língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição
milionária de todos os erros”. É uma grande pedida. “Como falamos, como
somos.” Já encontramos aí nessa “contribuição milionária de todos os erros”
esse germezinho do que ele vai futuramente colocar como antropofagia. É a
possibilidade de ele estar nos apontando, na sintomática brasileira, essa devoração
das alteridades: tudo que pinta interessa. Não é este ou aquele tipo de

366
Por que me afano com meu país?

comportamento cultural que ele está qualificando como brasileiro –


comportamento, digamos, em cima de enunciados típicos como se pode encontrar
na cultura francesa ou inglesa, digamos aquela modalidade de enunciar - mas
essa deglutição das alteridades, o que ele vai desenvolver com muito mais
precisão e mais radicalmente no manifesto antropófago. Então, ele pede uma
“Poesia Pau-Brasil, de exportação”, ou seja, que possa ser vendida para fora
porque é diferente, se não, não interessaria.
“Nossa época anuncia a volta ao sentido puro.” Não faço a menor
idéia do que ele próprio quer dizer com isto, mas é muito preciso. Ao sentido
puro: ao sentido enquanto sentido, quer dizer, a operação de produzir sentido
enquanto tal. Essa volta ao sentido puro, como já tentei colocar em trabalhos
sobre arte, pode ser a intuição de Oswaíd em confrontar-se com o chiste, a
volta ao chiste puro, à produção do não-senso. Tanto é que no outro
manifesto, ele propõe a prova dos nove, que chama de alegria: “a alegria
é a prova dos nove”.
Ele vai pedir, então, uma atividade “sem pesquisa etimológica. Sem
ontologia”. Não se trata de saber qual é o ser do brasileiro, porque simplesmente
isto não existe, mas de saber qual é a dica do seu sintoma.
Já na Revista de Antropofagia, de 1928, lança o Manifesto An-
tropófago, partindo de uma idéia tirada do texto de Montaigne. “Só a
Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única
lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os
coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.”. Aí ele
lança a famosa frase “Tupi, or not Tupi, that is the question”. Se quisermos
botar em inglês poderíamos dizer: to peer or not to peer, parelha ou não
parelha, esta é a questão. É a diferença que está em jogo. “Contra todas as
catequeses e contra a mãe dos Gracos”, que, com sua dureza, sua honra,
etc., é aquela que, como diz Lacan, acaba produzindo apenas filhos loroteiros,
que só contam vantagem...
“Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.”.
Interessa o que é Outro, o que é do Outro, quer dizer, o desejo está em vigor

367
Psicanálise & Polética

atrás do objeto, está em outra parte. Claro que ele leu Freud, mas nada impedia
de ele ter sacado isto. Em 1928. Lacan não sabia disso. Ele não leu Lacan.
Lacan ainda não existia enquanto Lacan. “Freud acabou com o enigma da mulher
e com outros sustos da psicologia impressa.”. Leu a obra de Freud e vai se
apoiar nela para fundar o que pretendia fazer com o nome de Revolução Caraíba.
“Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito
sonâmbulo.”. Isto é da maior importância. Faria parte dessa antropofagia não a
aceitação de uma catequese... Não é uma conversão – que o grego chama
terapia - que tem, segundo a visão de Oswald, sido a tônica do Brasil: come-se
o Bispo Sardinha, mas não se fica catequizado por isso. É extremamente
importante retomar esse tipo de coisa neste momento em que a catequese
cresce e se avoluma de todos os lados, do lado econômico, filosófico,
psicanalítico... Há uma tentativa de catequizar esse sujeito que é meio tupi
sempre, se queira ou não. Oswald está nos dizendo que a gente pega e come,
mas comer não significa transubstancializar-se na comida. Pode-se incorporar
um pouco dela, pois há sempre uma sobra fecálica, e, talvez, esse exame de
fezes é que seja importante, o que sobra dessa operação, o que resta. Afinal de
contas é um dos objetos a definidos o que sobra dessa deglutição.
Trata-se da “transformação permanente do Tabu em totem”. Aí que
ele entra na do Freud de Totem e Tabu. Ele supõe poder encontrar, por essa
não suscetibilidade à catequese, uma sintomática brasileira de, ao invés de
viver no subjugamento a um tabu, retornar, reverter o tabu em totem, devorá-
lo, ficar com algumas das suas matérias e não se transformar em obediente
cego ao tabu.
Mais adiante, dá um berro e pede “o instinto Caraíba”. A palavra não
serve, “instinto”. Melhor, talvez, o tesão caraíba, Trieb. “Nunca fomos catequizados.
Fizemos foi Carnaval.”. Daí é que certo grupo sociológico de escritores, no presente
movimento cultural brasileiro, entrou nessa de carnavalização. Processo de
carnavalização que seria a definição do Brasil. Mas interessaria, a nós, saber
como é, o que há por trás, que matemas, se os pudéssemos pensar, estão em jogo
nesse processo que acaba carnavalizando. A tal carnavalização, para mim, é um

368
Por que me afano com meu país?

efeito de algo sintomático que está na base do processo.


Oswald lembra que, na nossa fundação, não se tratou de movimento
romanesco de convicção, de tentativa de convencer, pois “não foram cruzados
que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque
somos fortes e vingativos como o Jabuti”. Não colou, talvez, na nossa história,
nenhum movimento de impregnação de determinada idéia, mas as coisas vieram
de um modo tangencial, foram sendo comidas, deglutidas e viraram esse grande
carnaval barroco. Ele diz mesmo em algum lugar, não sei se nesse texto, que o
Brasil é barroco, com o que estou plenamente de acordo. Vimos o que é o
núcleo do barroco semestre passado quando falamos de Velázquez: essa
construção que sempre tem um remetimento ao furo. Como diz Lacan, o barroco
é esse estertoramento corporal, são corpos em estertores.
Por fim, Oswald define a antropofagia: “Absorção do inimigo sacro.
Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém,
só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si
o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males
catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala
termométrica do instinto antropofágico”. É o verbo comer de que já falamos.
“De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativa,
a ciência.”. São delírios de Oswald, mas pode ser que haja alguma coisa aí.
“Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia
aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o
assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que
estamos agindo. Antropófagos (...) A nossa independência ainda não foi
proclamada (...) Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por
Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem
penitenciárias do matriarcado de Pindorama.” Ele chega, então, à questão que
colocávamos da vez anterior: a oposição – de que ele se aproveita numa certa
antropologia um tanto ingênua – entre matriarcado e patriarcado.
Se quisermos, podemos, sem maior rigor, apenas no nível de exposição
de signifícantes, colocar duas colunas:

369
Psicanálise & Polética

Em suma, uma dialética que vem sendo retomada nos pensadores


contemporâneos que mais influem aqui no nosso mandiocal, que é a oposição
monoteísmo/politeísmo, de que eu falava semestre passado, e acho que não fui
muito preciso. Teríamos, de um lado, uma postura que acaba desembocando
em monoteísmo e, do outro, uma postura que acaba desembocando em politeísmo,
onde situei, por exemplo, as investidas de Deleuze e Guattari. Eles diriam que,
na via psicanalítica, estaríamos do lado monoteísta, em oposição ao lado
politeísta. Mas quer me parecer, agora, que a questão não é bem assim porque,
afinal de contas, a vocação monoteísta, enquanto discurso religioso, portanto
aprisionado na postura obsessiva, é de índole de idealização, de imaginarização.
Estamos aí no seio da neurose. A postura monoteísta, não enquanto
artigo filosófico, vamos dizer assim, mas enquanto artigo de religião, pelo menos,
é uma postura de idealização do Nome do Pai. O que está em jogo aí é o Pai
Ideal, ainda que esculhambado, conforme o que chamei de Pai Herói em oposição
a Pai Bedel. Não deixa de ser idealização do Nome do Pai. É uma postura que
instala necessariamente um maniqueísmo radical: tem o bem/tem o mal, tem
isso/tem aquilo, está certo/está errado... Deus é o bem e tem o Diabo do outro
lado, que não transa com ele.
No lado politeísta a imaginarização seria, como diz Lacan falando de
religião, do politeísmo grego, “os deuses são reais”, quer dizer, reais que
comparecem certamente como frações de imaginário, aparências que acabam

370
Por que me afano com meu país?

participando da postura de objeto: o politeísmo se suporia idealizando e


concretizando frações do feminino. Não seria uma transa com o feminino, mas a
idealização desses objetos reinantes dentro do real. Os deuses são, talvez, desejos,
concretizados em objetos, desejantes infernais, ou, pelo menos, objetos desejados.
Quem não quer transar com um Deus? O que fica nessa linha de partição?
Nas fórmulas quânticas da sexuação é preciso compreender a postura
fálica de um lado e, do outro, a relação com o gozo-do-Outro. É preciso, também,
procurar a vigência da Lei – embora ela se institua por função do Nome do Pai,
mesmo quando ele está em suspensão do lado feminino – no interstício entre
esses dois lados. Só se pode reconhecer a diferença nessa barra, situada no
lugar do corte. Aí que o alterismo, digamos assim, o legalismo da lei teria lugar
para vigorar naquele faz-de-conta. A curtição do faz-de-conta, que se refere
ao simbólico, tem que estar aí nesse reconhecimento de diferença. É nesse
lugar que, talvez, vigore o que Oswald chama de transformação do tabu em
totem: a possibilidade de se tentar a devoração do outro, a devoração da
diferença. “Só me interessa o que não é meu”, o que tem alguma coisa a ver
com o esquecimento.
Como tratar, por exemplo, essa questão do esquecimento na história
do Brasil? Que posição tomar? Alguns acham que se trata de um sintoma
produtor de aspectos negativos na cultura brasileira, mas, por outro lado, é
preciso pensar também que, esquecendo, se altera. Não é o mesmo esquecimento
que funciona no caso do recalque. Talvez existam dois tipos de esquecimento
no que interessa ao campo psicanalítico. Há aquilo que não se consegue
rememorar porque houve um recalque e é preciso rememorar para se conseguir
acertar com o sintoma, em todos os sentidos. E posso pensar, também, no
esquecimento pós-luto: uma vez feito o luto, após a rememoração, lembrar para
quê? Vamos comer o outro, que é muito mais interessante do que ficar comendo
o mesmo! Se houve luto é porque aquilo deixou de ser mesmo e passou a ser
outro, ou chegou-se a abrir uma via para o Outro. É preciso dialetizar um
pouco esse esquecimento na nossa história.
Não interessa lembrar. É aquele esquecimento, por exemplo, do sujeito

371
Psicanálise & Polética

que um dia diz uma coisa e quando o lembram disso fica perplexo: “Eu disse
isso? Não sabia. Lá eu disse, não sei quem foi que disse. Se você está me
contando uma estória que aconteceu comigo ou com qualquer outro, dava na
mesma, eu entendo a estória”. Não deixa de ser enfraquecimento do ego. Será
que por essa coisa intrincadíssima, essa porção de sintominhas que estão
dispostos aí por Oswald, encontraríamos o caminho de recuperar - o verbo é
este, mesmo no caso de uma psicanálise – a sintomática desse suposto sujeito
chamado Brasil?
Oswald teria sacado – como se poderá ver também no Macunaíma de
Mário de Andrade –, por uma estória pelo corpo deste Brasil, a sintomática de
que encontramos sempre tentativas vigorosas de fazer de conta que nosso
sintoma não existe: tentativas de catequese. Por exemplo, há um momento que
acho espantoso – e que as pessoas interessadas na História da Arte, se é que
isto existe, poderiam pesquisar – que é a Missão Artística de l8l6. É um sufoco.
Pode ter dado coisas interessantes que estão nos álbuns de turismo do Brasil,
Grandjean de Montigny e outros, Teatro Municipal, Operinha de Paris, etc.,
tudo plantado aí. Não custa também a gente comer francês – “como era gostoso
o meu francês”, já dizia um outro...
Nessa tal missão artística”, não há como não ver uma tentativa de
catequese, pois não se estava precisando tomar arte emprestada de ninguém.
O barroco brasileiro é anterior a isso. Aleijadinho foi possível aqui dentro, e
vem sobre ele uma forte catequese. Era D. João VI pensando que era francês
quando era um galegão comedor de frangos. Ele dá uma de obediência à
catequese da cultura francesa e faz aquele escândalo que é tentar perverter –
é o nome – a nossa possibilidade de fala com uma imposição cultural. A falecida
Escola Nacional de Belas-Artes, grudada no Museu Nacional de Belas-Artes,
foi uma dessas casas francesas aonde reinou o academicismo francês que era,
naquela época, o rebotalho da Europa, pois a missão trouxe aqueles artistas que
não tinham mais emprego. Lá, até que se faziam coisas interessantes naquele
momento. Lembrar que aquela titica é contemporânea do Impressionismo...
Não é grande coisa o impressionismo, mas, pelo menos, impressiona. Pegou-se

372
Por que me afano com meu país?

o rebotalho lá da Academia Francesa e se o trouxe para cá, para academizar.


Não foi fácil. Foi preciso chegar, do ponto de vista institucional, um Portinari,
que até aprendeu a pintar direitinho, quer dizer, acadêmico, para depois conseguir
tentar outra coisa, num esforço ingente de insistir numa diferença qualquer. E
quantos aspectos desses não sofremos?

* * *

A psicanálise, por exemplo, invadiu o Brasil – o verbo é este – pela


Argentina. E que psicanálise?! Aquela! Invasão de “cucaracha” não há inseticida
que dê jeito. Ou há? De tal forma que, como disse Oswald, o Brasil não se
deixando catequizar, e o resto aí em volta da nossa ilha sendo talvez mais propício
a essa catequese, eles se tornaram um veículo adequado de tentativas de
catequese e de colonização cultural. Quando o gringo, muito distante, não
consegue fundar o seu imperiozinho dentro do nosso terreno, ele se alia a algum
veículo cucaracha que lhe parece mais fácil de transar, e tenta invadir por outra
fronteira. Estou chamando atenção para isto porque, na medida em que estamos
tratando de psicanálise e polética, interessa saber também – e não com nenhum
sociologismo de algibeira, mas com o tratamento da diferença que a psicanálise
reclama ser reconhecida – como é a postura da psicanálise entre nós.
Diriam alguns, como muitos já disseram, certas esquerdas pouco
reflexivas, que nós próprios, aqui, estaríamos subditos a uma ordem francesa.
Isto porque se trata de um rapaz chamado Jacques Lacan, que escreveu em
francês e é um francês. Mas nós estamos colonizando ou sendo colonizados?
Aliás, retornando á palavra do Glauber, ele reclamou, e veementemente, em
suas últimas investidas, quanto a essa vocação de certos grupos no Brasil de
serem colonizados. Porém, é muito diferente comer francês e se subjugar a
francês. É claro... Não interessa muito se não o que não é nosso... Mesmo
porque os marxistas não vão dizer que Marx é paraíba. Podia, ele trabalhou
numa obra a vida inteira... Mas acontece que, nem tão pouco seria nada mais
do que carneirismo, e pior do que carneirismo, tolice da nossa parte, se

373
Psicanálise & Polética

simplesmente estivéssemos aqui repetindo e mastigando o discurso do senhor


fulano. Bem que se pode tomar a palavra a partir de certas coisas que a gente
comeu de um prato que estava disponível. Por que não comer?
Ainda hoje eu estava lendo as atas do Encontro de Paris, esse último
encontro que houve lá na Escola, esse tal Fórum, e alguém, não me lembro
quem, dizia que essa colocação sintomática da diferença, da diferença sexual,
certamente, era o que Lacan teria – se não me engano foi o próprio Jacques-
Alain Miller – resumido como o pensamento de Freud. Ou seja, o resumo que
Lacan fez do pensamento de Freud foi dizer que “a relação sexual é impossível”.
E essa pessoa se perguntava: “Qual será o resumo que se conseguirá fazer do
pensamento de Lacan?”.
Este enunciado, “a relação sexual é impossível”, não tem outro campo
de inserção, outro aparelho, senão aquele que Lacan escreveu como fórmulas
quânticas da sexuação, a dissimetria radical entre homem e mulher. É espantoso
me parecer – com a ferramenta que utilizo – que Oswald já nos dizia isto. Não
que a relação sexual é impossível, porque isto não está explicitado, mas que –
na distribuição quântica do para-todo e do para-não-todo que Lacan escreve –
existe, nisso que chamam de cultura brasileira, uma peculiaridade espantosa: a
heterossexualidade. É o que leio do discurso dele. Ele convoca o brasileiro a
assumir a radical heterossexualidade de seu sintoma: só nos interessa o que
não é nosso, o que é Outro.
O que é essa tentativa de comer o outro senão o regime da LEI, o
regime da heterossexualidade? Seria interessante que estivesse certo o Oswald,
que fosse isto que ele estivesse dizendo sem saber o que estava proclamando
através de antropologias simplórias, tipo matriarcado e patriarcado. O que, aliás,
se presta a movimentos feministas e coisas que tais. Não é disto que se trata,
pois quando ele tenta definir o que é esse matriarcado, esse Pindorama de que
fala, está apontando para essa aspiração de invadir o campo do Outro.
O verbo “comer” tem vários sentidos: sou furado tal qual o outro; sou
furado, então devoro o outro. Existem duas possibilidades de o homem situar-
se nesse comer. Uma é homossexualizante, ou seja, tenta simplesmente tapar o

374
Por que me afano com meu país?

furo do Outro: o Outro fica igual e, então, só como os iguais. Isto é que chamo
de homossexualidade. Comer os iguais é praticamente não comer nada, é
simplesmente manter o corpo vivo. Mas existe uma vertente heterossexual,
que vai por vias do reconhecimento do Outro: comer o outro enquanto diferença,
incorporar a diferença. O que poderia ser, no que vou deglutir o outro, conseguir
incorporar a diferença, senão o que o Lacan diz que “é quando um homem ama
que ele é mulher; é quando ele deseja que ele é homem, ou seja, tem tesão”?
Estou me perguntando se a vocação heterossexual, por excelência, não é aquela
na qual vigora o desejo, ao mesmo tempo em que ele se periclita por esse
reconhecimento do Outro enquanto tal, ou seja, na medida em que esse desejo
não deixa de se acompanhar disso que está definido em Lacan como amor. Aí,
de certo modo, o homem se feminiza.
Brasil seria um lugar onde o machismo não daria certo. “Seria”, disse eu.
Se há isto na sintomática de base, quando esta sintomática é trazida à luz, explicita-
se o afastamento dessas catequeses que, no fundo, são homossexualizantes. A
obsessão religiosa é homossexualizante, não há menor dúvida.
Já disse que o Brasil é uma ilha. De um lado, temos o Oceano Atlântico
e, de outro, temos o Oceano Cucaracha. Não acredito nesse negócio de América
Latina. Não entra na minha cabeça. América Latina é um troço, Brasil é outro.
E quero supor que essa tal de América Latina, que são eles, é muito mais
catequizável. É muito mais fácil, por exemplo, ser francês na Argentina do que
no Brasil, Brasil é muito grande, muito complicado. Mas, de qualquer forma,
deve estar na língua essa espécie de rejeição, ao mesmo tempo que um certo
tesão. Por exemplo, tem-se a impressão de que o brasileiro é um típico puxa-
saco de estrangeiro. Pintou um estrangeiro todo o mundo puxa o saco. Basta o
sujeito falar enrolado... Se ele quer ganhar dinheiro, ou alguma outra coisa,
basta falar enrolado e dizer que é da estranja, que fala javanês, por exemplo,
como diz o conto... Todo mundo puxa o saco. Eu pergunto: é uma entrega, é
uma vontade de ser colonizado? Isto não é de certos grupos, é um negócio de
rua. Não acredito que seja vontade de ser colonizado. Acredito que seja vontade
de comer o outro, só porque é diferente. É só um tesão novo. Mas se o outro

375
Psicanálise & Polética

começa a botar banca, leva cacete. E o pior é que está certo.


Ser colonizado é deixar-se devorar. Temos a famosa esculhambação
nacional, onde aparece sempre o nego que quer comer, mas se faz com ele
uma molecagem. Repetindo o que já disse, falando na Améfrica Ladina: tem
sempre um troço de crioulo, quando não se caga na entrada, se caga na saída,
de algum modo...
Será que posso sacar da leitura dessas propostas de Oswald, essa visão
que ele teria de que uma coisa fundamental em nossa sintomática seria a de
não ser catequizado apesar de só se interessar pelo que é do outro? E essa
deglutição vingativa, totêmica?
O Brasil é um país que faz tudo para não entrar em guerra. Se eu
recalco e fico ruminando, aquilo vai, vai, e chega um dia em que tenho que
declarar guerra, não tem saída... Aqui, vai uma molecagem, ali, se dá um jeitinho
e não se faz a guerra... Não sei se foi Millôr Fernandes, ou alguém de semelhante
porte, que uma vez disse que militar brasileiro só perde sangue quando faz a
barba. Não é um defeito, é uma virtude... Ou quando fica menstruado... porque
agora tem mulher militar...
Parece-me que essa revolta, como por exemplo a de um Glauber Rocha,
é no sentido de que, com a pressão mundial – pressão econômica,
comunicacional, etc. – estamos vivendo um outro período de forte catequese
sobre o país, a qual não deixa de se colar em certos núcleos, em certos lugares.
Oswald era um sujeito que passou pelo marxismo, passou por quase tudo e
disse que não se tratava de nada disso, que aqui tem que ser um negócio diferente,
outro, particular. E nós outros que ficamos nesta mesma posição, tomamos,
como já disse, porrada de um lado e de outro.
Podem argumentar que como na heterossexualidade só interessa o que
não é nosso, tudo que aparecer interessará, então é uma confusão desgraçada...
Mas não custa, através de um trabalho, ainda que longo, destacar a diferença
enquanto sintoma. Aí não vai aparecer uma confusão e, sim, uma maquininha
simples de comer, de deglutir, de devorar.
Cultura brasileira, isto existe? A América do Norte levou longo tempo

376
Por que me afano com meu país?

para conseguir produzir uma explicitação, digamos, sua, de sintomática sua.


Isto só aconteceu com a Pop Art, que veio da Inglaterra, mas só encontrou
solo verdadeiro na América e foi o primeiro momento em que ela conseguiu
dizer alguma coisa. O que se diz é que o Brasil não pintou com a sua. Não será
justamente porque o Brasil não tem a sua, em termos de postura discursiva, de
aparência discursiva? Não será que a do Brasil é justamente essa de deglutir o
que pinta? Por que não? A missão francesa foi uma imposição catequética, se
não caquética, e que não dura. Por maior duração que tenha, a coisa acaba se
dissolvendo. No campo das artes plásticas no Brasil, por exemplo, se faz de
tudo, mas você vai ver e não é nada daquilo, é uma lambança...

* * *

Na literatura, um Guimarães Rosa é muito mais importante do que se


pensa. Crítico, digamos, formado via Universidade, só vê que tem Joyce, mas
não vê que aquilo tudo do Rosa foi montado de outro modo. Não é a mesma
coisa. Ninguém pode tascar Guimarães Rosa. Não é tradução nenhuma. Rosa
foi traduzido para o francês. Eles contam a história em francês e sabe-se que
francês não consegue contar a história tal como acontece na língua de Guimarães
Rosa. Nesse ponto aí é que posso dizer que Lacan é francês, sim, não tem nada
mais francesão. Entretanto, ele é bem mais primo do tupi do que se pensa. Não
sei por que vias. Talvez pela via das suas velhas relações surrealistas. Oswald
diz que o Brasil já era surrealista muito antes de tentarem isso. Acontece que
não é fácil, para um francês, deglutir essa coisa estrangeira que é Lacan mesmo
lá dentro da França...

26/AGO

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Psicanálise & Polética

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Papo de Tucano

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PAPO DE TUCANO
O VIRAVESSO DA UTOPIA
Dois dias atrás, foi a Festa da Independência. Isto é importante. Festa
da Independência também na televisão. Tinha o Projeto Aquarius, muito bonito.
O repertório estava ruim, mas estava bonito. Pelo menos tinha mais gente do
que a Festa de João Paulo. Isto é importante. Não é de não se levar em conta.
Independência. Fica-se discutindo no nível político, econômico, etc.,
sobre a tal Independência do Brasil. Há aqueles que dizem que o Brasil ainda
não fez sua independência. Talvez foi por causa disso que o Maltrapilho foi
expulso do pais, o tal Padre. Porque dissera que o Brasil não é independente.
Mas a Independência, a Festa da Independência é que interessa, no nosso
caso, mais de perto, a festa que possibilita a Independência...
Independência mesmo não existe. Nem país rico é independente.
Depende dos outros para explorar, senão ele ia viver do quê? O Senhor depende
do Escravo. De qualquer forma, interessa essa Festa da Independência, na
medida em que, a independência que nos interessa, aonde poderíamos sacar
algo de sintomático, é exatamente aquela da nossa infância, da bandeirinha que
a gente desenhava no colégio, do Pedro I, do verde e amarelo, dessas coisas
que podem situar significantes que estejam em jogo nessa constituição de algum
sintoma de base que nos daria a marca distintiva que é marca da independência:
não existe outra.
Não existe outra marca de independência para um sujeito – e sujeito
não é pessoa – senão o apoio siguinificante que ele tenha como fundamental.

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Psicanálise & Polética

Certa vez insistiram, perguntando a Lacan sobre a questão do coletivo: onde


fica o coletivo, o social, na psicanálise? Ele respondeu o que era de responder:
que coletivo é o Sujeito no Discurso. Toda vez que se fala em Sujeito, mesmo
no campo psicanalítico, as pessoas tendem a pensar que são elas próprias, que
são pessoas, que o sujeito é uma pessoa, ou um indivíduo Não existe outra
coleção que forme coletivo do falante senão a posição Sujeito, coletora dos
significantes. As invectivas que se fazem à psicanálise, no sentido de que ela
estaria desprezando o social, são simplesmente de não se entender o que
acontece no discurso psicanalítico, que é justamente aquele que trata do que
se assenta em algum lugar discursivo que tem a ver com o Outro,
indefectivelmente.
Por isso é que dou importância ao sete de setembro. Afinal de contas há
uma grande massa humana interessada, de uma maneira ou de outra, ainda que
seja pela sintomática nacional da festa – pintou festa, a gente vai –, mas em
torno de alguns significantes que não deixam de ser rememoração de marcas
infantis.
A questão da festa para o brasileiro me parece de importância. Se não
for festa, não interessa. Daí que não gosto muito do nome que se dá a este
negócio que faço aqui uma vez por semana, o Seminário. Chamo de Sarau, em
particular, que é muito mais adequado. Sarau é uma festa onde se vai fazer
uma transação literária, musical, etc.
Desta vez, tinha até encenação do Pedro I montado no cavalo, apontando
a espada e gritando aquelas coisas que são afirmação do Discurso do Senhor –
Independência ou Morte! Interessante esse rapaz, é muito inteligente. Não sei
se vocês acham, mas esse Pedro I, eu o acho uma figura maravilhosa, um grande
cara. Morreu com 35 anos numa pior. Mas parece que ele já porta – embora
sendo, na verdade, português com um faro incrível para as mulatas – essa jogada:
sacou muito bem o que seria tornar-se brasileiro, do ponto de vista sintomático.
Há várias tiradas dele que valem a pena ler. Leiam os depoimentos
dos contemporâneos. Uma coisa me chamou atenção quando ele foi relembrado
no momento da tal festa. Como sabemos, os reis, no mundo ocidental – o

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Papo de Tucano

chamado mundo civilizado – têm uma marca bem característica na sua roupa:
para situar que ali é o lugar do rei, eles usam um manto onde há uma gola feita
de pele de arminho. O arminho, que parece ter recebido o signo da pureza, vai ali
com o sentido de realeza, realeza que teria que ser pura, em todos os sentidos,
para ousar ocupar aquele lugar, de Real. Pois o tal Pedro I, no que proclama a
Independência, além de jogar os laços fora e mudar suas cores – naturalmente,
pois dizia Lacan num Seminário que “nada é mais distintivo do que as cores” –,
ele manda que se jogue fora a pele de arminho do seu manto real e que se faça
uma gola de penas de papo de tucano. O que é uma interpretação absolutamente
correta. Fez um corte, e remanejou tudo. Passou a usar um belíssimo manto,
puxado para o verde e amarelo, com gola de penas de papo de tucano. Daí para
frente, com essa interpretação, com esse significante destacado em brasileiro,
se identificou de certo modo com o tucano, tornou-se um bicão.
O tucano é de uma família complicadíssima daquelas lá da zoologia. É
aquele bicho que tem um bico enorme e cores maravilhosas. É o bicão por
excelência, na paisagem brasileira. E dentre as características que os
dicionaristas arrolam, ele é justamente um pássaro que vive de comer pequenos
frutos transando pelas árvores, e, de sobejo, pilha o ninho das outras aves. É
uma acumulação significante interessantíssima: pintou ninho de outra ave, ele
vai lá e dá uma bicada. É isto que se chama heterofagia. Come tudo que pinta
das outras aves. Nem por isso ele deixa de ser tucano. Aliás, a característica
dele é esta, a de ser bicão.

* * *

“Tucano” pra frente a nossa correlação, essa Heterofagia que tentei


colocar, em cima de Oswald com a sua Antropofagia, seria um sintoma
destacado de há muito nisso que se quer chamar de cultura brasileira. Essa
tentativa heterofágica, que na verdade é uma espécie de alterofilismo (sem h),
de alter-filia, pelo outro, aquilo que Oswald dizia: “só me interessa o que não é
meu”. Há aí uma série de coisas a serem consideradas.

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Psicanálise & Polética

Vários desses textos de Oswald são mais ou menos contemporâneos


dos primeiros Seminários de Lacan. O primeiro Seminário é de 1953. É
espantoso que, quanto mais os relemos, mais descobrimos como, a golpes de
faro, Oswald vai articulando coisas importantes para a nossa visada. É claro
que ele leu Freud, ele era mesmo apaixonado por Freud. Mas não leu Lacan.
Acontece que Lacan também leu Freud. É interessante que – na p. 140
desse volume VI das Obras Completas de Oswald –, justamente falando de
Um Aspecto Antropofágico da Cultura Brasileira: O Homem Cordial,
texto de 1950, ele coloca essa questão da alteridade, isso que estou chamando
de alterofilismo do brasileiro. Sabemos que halterofilismo é aquele de levantar
os pesos. Tirando-se o h, é uma figura do Outro que não deixa de levantar o
peso massacrante das culturas, onde se almoça e janta, e tornar um pouco
leve a digestão.
Gostaria de refletir um pouco sobre esse conceito de alteridade que
Oswald coloca nesse pequeno comentário sobre o homem cordial. Começa
assim: “Pode-se chamar de alteridade ao sentimento do outro, isto é, de ver-se
o outro em si” – isto é importante: ver-se o outro em si –, de “constatar-se em
si o desastre, a mortificação ou a alegria do outro” – aí ele mostrou por vias de
sentimentos. “Passa a ser assim esse termo o oposto do que significa no
vocabulário existencial de Charles Baudelaire – isto é, o sentimento de ser ou-
tro, diferente, isolado e contrário.”
Ele critica esse que é o sentimento de marginalidade, de estar fora,
dejetado, foracluído em relação ao outro, quer dizer, esse sentimento dúbio e
existencial do sujeito que, sendo diferente, não é no sentido da diferença, que
não encontra lugar, mas, sobretudo, é um sujeito jogado fora, isolado, contrário
às convicções, etc. Pode ser até que esse sentimento de alteridade exija a
participação desses objetivos que Baudelaire situa... Mas, por outro lado, Oswald
fazia esforço para destacar uma outra concepção, um outro conceito de alteridade,
e não consegue, a meu ver, senão dar as dicas sem explicitar muito bem.
Ele está querendo dizer – e insiste nisso pelo texto todo, de várias
maneiras – que a alteridade de que ele está falando não é um sentimento de

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Papo de Tucano

marginalidade, de ser jogado fora, mas, justamente, o sentimento de estar com


o nariz metido na vida do outro. É o sentimento do bicão por excelência, ou
seja, de conseguir estar, para com o outro, numa certa transação deste gênero.
Ele faz – nesse e em outros textos – comparações com outras culturas, outros
lugares, que acusa, por exemplo, de – por influência protestante – um
bitolamento, um toma-lá-dá-cá, uma secura nas relações. Ele está tentando
comentar alguma coisa produzida por Sérgio Buarque de Holanda, no capítulo
V do texto clássico Raízes do Brasil, intitulado “O Homem Cordial”. Ele cita:
“A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por
estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do
caráter brasileiro (...) Seria engano supor que essas virtudes possam significar
‘boas maneiras’, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um
fundo emotivo extremamente rico e transbordante”. Segue-se uma crítica
interessantíssima, ainda do Sérgio: “Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo
– ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentenças”. Ou seja, ser
civilizado é alguma coisa da ordem do superego, quando se está sob o
mandamento superegóico do bom comportamento. “Nossa forma ordinária de
convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez.”. O brasileiro
não é polido, ele pode ser macio... Antes, sempre, faz uma grossura.
“No ‘homem cordial’, a vida em sociedade é”, ainda citando Sérgio,
“de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver
consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da
existência. Sua maneira de expansão para com os outros reduz o indivíduo,
cada vez mais, à parcela social, periférica, que no brasileiro – como bom
americano – tende a ser a que mais importa. Ela é antes um viver nos outros”
(grifos de Oswald).
Oswald destaca essa questão toda para mostrar que o homem cordial
do brasileiro não é, de modo algum, uma civilidade, tem alguma coisa de quente,
que tanto aceita como rejeita na mesma hora. É essa devoração constante. Ou
seja, não se espere da tipologia brasileira uma cordialidade civilizada. Espere-
se um calor humano – como dizem que o brasileiro tem –, que é quente para

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qualquer lado, e que, na verdade, não se importa muito com instâncias


superegóicas no momento em que resolve botar pra quebrar.
Aí Oswald retorna àquela dicotomia entre matriarcado e messianismo,
que já tivera colocado. “A devoração traz em si a imanência do perigo. E
produz a solidariedade social que se define em alteridade. Ao contrário, as
civilizações que admitem uma concepção messiânica da vida, fazendo o indivíduo
o objeto de graça, de eleição, de imortalidade e de sobrevivência, se
dessolidarizam, produzindo o egotismo do mundo contemporâneo. Para elas,
há transcendência do perigo e a sua possível dirimição em Deus. A periculosi-
dade do mundo, a convicção da ausência de qualquer socorro supra-terreno,
produz o ‘Homem Cordial’, que é o primitivo, bem como suas derivações no
Brasil.”. São, como vemos, tentativas de definição com a mercadoria que ele
tinha no momento e se perdendo com muita facilidade. Por outro lado, é de se
perguntar, dado o tipo de sacação – freqüentemente brilhante que sujeitos como
Oswald têm se não há uma grande verdade no fundo de tudo isso. Se não é
muito mais possíveis um processo de transação entre sujeitos não civilizados –
como o brasileiro –, mas cordiais no sentido desse calor da transação, do que
nessa disciplina que parece ser uma reverência legal, mas que, no fundo, é
imposição superegóica. Se nessa transação, nessa possibilidade de transação,
que existe certamente em nossa sintomática, não se possa estar muito mais
aproximado de uma emergência de cordialidade verdadeira, quer dizer, que
saiu do sintoma e não da regra de funcionamento.

* * *

Há a vocação colonialista, do ponto de vista cultural. Uma coisa que


me parece extremamente grotesca é a invasão colonialista, por meios culturais,
tentando calar o sintoma fundamental desse sujeito que se chama Brasil.
Hoje em dia estamos mergulhados numa estrutura muito complicada,
onde vemos repetidas tentativas e esforços de se calar uma sintomática nacional
através do investimento sobre aparelhos de comportamento importados

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Papo de Tucano

prontinhos, tipo sistema funcional, bancário, etc., da ordem instituída inteira


que, no Brasil, graças a Deus, não funciona... Existe o jeitinho, e é uma
esculhambação. No entanto, a repetição dessa força colonialista desfigura o
sintoma fundamental de certo modo.
O que me interessa, nessas questões, é saber se podemos fazer algum
tipo de trabalho que venha destacar e tornar eminente o que é da nossa
fundação. Por que deveríamos ser outros? Que a gente vai bicar o do outro, é
ótimo! Tem que bicar porque a nossa sintomática faz bicar o ninho de todo o
mundo, tucanamente.
Devoração não é, absolutamente, aceitação de colonialismo. Haja
exemplo na história da psicanálise no Brasil. Felizmente não deu certo como
ela vem entrando por aí... Porque a gente se dana ao se perguntar como funciona
essa tal cordialidade de aparência tão simplória, babaca – este é o termo. Todo
gringo que pisa no Brasil poderia pensar que o brasileiro é antes de tudo um
babaca... Nessa “cordialidade” parece que aceita umas entradas, etc., mas
sempre há o momento de se dizer: “Chega!”. Isso não é um golpe, um desejo,
isso está aí nas nossas relações através dos tempos. Não vamos pensar que a
cordialidade do brasileiro seja algum motivo de puxassaquismo. Em algum lugar,
que não me lembro agora, Glauber diz que a população cucaracha tem muito
mais tendência a essa aceitação do colonialismo, e às vezes servem de módulo
de passagem. Mas à heterofagia ou alterofagia – que, talvez, nos qualifique –
não interessa o mesmo e nem mesmo o outro que tenha entrado com papeleta
de alfândega. O que interessa é o que de fora se possa comer de contrabando.
É isso que Oswald situa em seus textos. O brasileiro é contrabandista, no
sentido da contrabanda.
Contrabanda é a banda de Moebius. Tem algo da ordem do inconsciente.
Num texto brilhante, Jacques-Alain Miller diz que o ICS pode perfeitamente
ser chamado o inconsistente na medida em que é um-dois e revira sobre si
mesmo... Na medida em que é contrabandista. É o “contrabanjo”, como diria
um Guimarães Rosa... Existem brasilianistas nos Estados Unidos que ficam
inventando uma teoria sobre a existência do brasileiro... Mas o Brasil causa

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Psicanálise & Polética

perplexidade nas pessoas, inclusive nos brasileiros, como se fosse algo


incompreensível, muito estranho, unheimlich... Fico me perguntando se, de
certo modo, o Brasil não é a pátria da psicanálise. Oswald sugere em diversos
momentos que o Brasil é o único lugar onde a psicanálise consegue vencer...
Há uma paixão pela psicanálise nesses visionários tipo Oswald,
Glauber... Não querem nada com a psicanálise como teoria, às vezes até falam
mal, mas há uma paixão pela existência da psicanálise. Glauber e Oswald
repetem isso várias vezes. Quem sabe se Freud era brasileiro e não sabia?
Não foi talvez a esse ponto na análise dele... Na medida em que a paixão da
psicanálise é um inconsistente e essa inconsistência nossa parece que se revela
ser aquilo que é a nossa paixão, esse transacionismo. Aliás, dizem que brasileiro
só pensa em sacanagem, embora seja o português que inventou o termo. Há
até uma piada que diz que com brasileiro a gente fala: “Vamos tomar um café
na esquina?” E o cara responde: “Não, estou cansado”. Daí a gente retruca:
“Então vamos só de sacanagem”. Aí ele vai.
O que é fazer as coisas só de sacanagem? Oswald não usa este termo,
mas, talvez, fosse preciso introduzi-lo. Em vez de dizer que o brasileiro vive só de
sacanagem, ele diz que o Brasil seria o único lugar onde poderia vencer o ócio.
Ele faz a oposição ócio/negócio. O ócio não é ficar em dolce far niente, isso é
coisa de italiano, mas é fazer só porque é de sacanagem, se não for, se for por
obrigação, não interessa. Por isso não gosto de usar, para mim, o termo Seminário...
Como é que um sujeito desses, com as ferramentas que tinha, começa
a sacar esse tipo de coisas, apontando – com a sintomática que se deve
distinguir com clareza, justamente, para ela poder se afirmar, não
inconscientemente, mas com uma verdade da sua inconsistência – o que
estou agora falando com essa contrabanda, caracterizando tudo isso? Oswald
faz essas oposições, ócio/negócio, patriarcado/matriarcado, porque não tem
ferramentas para distinguir masculino/feminino.
O que interessa é que Oswald diz que o Brasil teria a sintomática de
sua fundação na reminiscência do mais antigo, que para ele é o matriarcado. É
o mito que ele inventou – tirou lá desse pessoal, talvez de Marx – para dizer

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Papo de Tucano

que há essa rememoração do mais antigo que é o feminino. Eu já tentei


demonstrar aqui que, realmente, o feminino é mais antigo que o masculino. E
engraçado isso num país chamado O Brasil, quando me parece que a maioria
dos outros países tem nome feminino. Num país de gosto extremamente fálico,
com vocação assim para adoração do priápico – o pau-brasil é importantíssimo...
Mas aí começa uma grande ambigüidade: esse masculino do Brasil é
apresentado na transação do seu povo com essa folia, essa loucura carnaval
que é o que ele mostra nesse sentimento matriarcal.
Estamos aí, outra vez, na oposição masculino/feminino. Afinal de contas,
é o masculino ou é o feminino, o que se destacaria no campo desse sujeito
chamado Brasil? Se seguirmos a via dicotomizada que Oswald nos sugere,
teríamos que dizer que o Brasil é um país do feminino enquanto tal: pintou assim
o feminino, acabou-se. Mas há essa contradição, inclusive no nome. E agora?

* * *

Oswald não fala em estádio do espelho, mas fala em estado de um


espelho, frase completamente clara: “Começou-se enfim a compreender”,
diz ele na sua tese A Crise da Filosofia Messiânica, p. 124, “que o Superego
também podia estar errado. Do mau acolhimento dado ao direito do instinto
submetidos que estavam às disposições disciplinares da Moral de Escravos,
passou-se a uma fase psicanalítica em que se procurou legalizar o homem
natural que resistia, por meio de neurose e estados de ficção, às injunções
seculares do socratismo ocidental. Chamamos estados de ficção aos distúrbios
e alienações em que se enforca e se envolve o Eu agredido pelo ambiente.
Histeria, paranóia, delírios de ciúmes e religião, ausências, tudo passa a ser
nas mãos do Eu poeta, do Eu romancista, do Eu moralista, desenvolvidos no
trauma, temas da derivação da doença. Se recorrermos à História, veremos
como esses estados príncepes, produzidos em geral nas personalidades fortes,
promovem outros que chamaremos estados de espelho e daí a extensão de
grupos contagiados e multidões passivas”. Ele destacou o especular daqui.

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Ele não conhecia Lacan: o Estádio do Espelho é de Lacan, não está em


Freud.
Ele faz a acusação desses homens de negócio, desses estados que ele
chama de patriarcais – ao invés de chamar de homossexuais, que é o
termo –, e mostra que é especular: são estados que vivem do imaginário violento.
Anteriormente, ele havia dito, p. 123, que a psicanálise só se tornou alguma
coisa quando Freud percebeu que era preciso brigar contra o superego. Ele
está dizendo que o Brasil não é homossexual – no que o brasileiro tem a vocação
do ócio, não do negócio, do matriarcado e não do patriarcado –, na medida em
que o interesse é sempre pelo outro.
Pergunto, então, uma coisa que é de limiar extremamente difícil – porque
Oswald se perde, não dá para ver o corte, salta de repente – trata-se de
emergência pura e simples do feminino, ou de uma vocação heterossexual?
Seria um espanto, pois os estados têm uma vocação homossexual incrível,
esse narcisismo especular de manter o mesmo a qualquer preço. Oswald critica
até a revolução francesa dizendo que aconteceu neste país alguma coisa que é
uma revolução bem mais importante, que ele chama de Revolução Caraíba.
Como já vimos, é em função estrita do desejo, no sentido do gozo
fálico, que Lacan define o masculino do homem, que é quando o homem ama
que ele é mulher. Nessa vocação alterossexual, não haveria, então, no estilo
desse sujeito, essa virulência do amor, que é alterossexualizante? E qual é o
limiar que posso distinguir, numa vocação alterossexual, entre uma vocação
heterossexual e uma posição feminina? Deve haver a distinção, mas a queda é
fácil na perspectiva do feminino. Não é a loucurinha das mulheres, pura e
simplesmente brotando na sua espontaneidade...
Na medida em que o desejo é pressionado pelo objeto a do outro lado
– seja qual for – o desejo mesmo acossado pela presença do Outro em questão,
quer dizer, quando o desejo se desvaira ou se desbunda no sentido de começar
a dissolver-se, a tornar-se meio dissoluto, ele faz uma travessia, digamos, para
uma “relação” heterossexual. É um esforço de passar para o outro lado: acaba
com isso lá e isso acaba virando amor, impossível como todo amor, uma transação

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Papo de Tucano

com a loucura, por vias, digamos, de movimento desejante que varia para o
lado da loucura. Eu pergunto: isso não é mais ou menos ter uma certa paixão
ou sofrer uma certa pressão da borda, do corte, em suma, a pressão do ócio, do
gozo? Não esquecer que o gozo-fálico situa alguma borda, mas no que ele a
situa, ele a reflete, contorna. Todo gozo é causado, afinal de contas, por um
objeto que é a causa do desejo, e acaba se dando numa espécie de imantação
de uma borda, de um limite, de uma ruptura de limite.
Estou chamando gozo-fálico a ruptura e o retorno. E aí que Lacan
coloca o gozo-do-Outro, que não há: não há A mulher, logo não há o gozo-do-
Outro. Mas existe alguma coisa que extrapola o gozo, e no que extrapola,
nessa vocação heterossexual, quer tanto atingir o Outro que goza e se perde.
Parece que não gozou e, então, quer mais, outra coisa a mais, como as mulheres
pedem... Isso é que chamo de uma espécie de imantação da borda, de paixão
pela ruptura, pelo limite. A coisa é muito crua – não dá para segurar o corte
quando ele corta...
Mais adiante, p. 167, falando de Erasmo e seu Elogio da Loucura,
Oswald cita alguma coisa que parece texto de Lacan: “Quando os gregos
hesitavam em classificar a mulher entre animais irracionais, queriam apenas
exprimir a imensa dose de loucura que caracteriza o referido animal”. Lacan
está careca de dizer que as mulheres são loucas: loucas no sentido de que o
mesmo não se repete nelas: “Como o macaco é sempre macaco vestido de
púrpura”, continua ele, “a mulher é sempre mulher, isto é, sempre louca...”
Um alterossexualismo, uma coisa que vai por esta via que chamei de
sacanagem não é uma coisa da ordem do gozo-fálico, puro e simples. Não é só
isso que é pedido. A gente usa o termo sacanagem para tudo, até para produzir
o chiste: quando você faz um chiste em que o outro tropeça, fez-se a maior
sacanagem. Tem vários sentidos: alguma coisa que extrapola, que rompe não
no sentido de retornar, mas no de cair, de entrar noutra. Isso é que estou
chamando de alterofilismo, que acaba caindo nisso que Oswald quer chamar
de matriarcado e que não é senão uma espécie de chamamento ao feminino,
pelo feminino. Uma espécie de vocação para a folia que seria o que os

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Psicanálise & Polética

sociólogos dizem que é o processo de carnavalização, que seria a estrutura do


brasileiro. Não é o carnaval puro e simples, da sua aparência festiva – é
sociologismo cair nessa, levantar essa aparência festiva para ver ali as injunções
denunciadas –, mas, sim, esta sintomática de ter ficado nesse significante de
passar para o outro lado, o qual não é existir na postura feminina pura e
simplesmente, mas querer amulherar-se, o que é diferente de afeminar-se.
Isso é que estou dizendo que é viver de contrabanda, e que existem
muitos discursos que querem sufocar nossa contrabandice ou contrabanditismo.
Justamente é a única postura viável em contraposição aos estados de espelho,
de que fala Oswald, que não são senão a tentativa de mesmar-se, de viver
numa reflexão especular constante. Ao passo que essa contrabandice é um
chamamento a habitar o lugar do espelho.

* * *

Vou ao ponto que mais importa: o viravesso da utopia.


Talvez a dicotomia mais forte que Oswald faz nesses textos seja
justamente entre messianismo e utopia. No texto que estamos citando – que
pretendeu ser uma tese para concurso da cadeira de Filosofia da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, em 1950 –, ele faz
essa tese tratando d’A Crise da Filosofia Messiânica.
Mas Utopia vem do grego oú, que quer dizer “não”, e tópos, “lugar”.
Portanto, “não-lugar”, lugar que não existe em parte alguma. É título a uma
das obras de Thomas More, A Utopia, 1516. O termo se encontra, às vezes,
no séc. XVI, como nome desse país que não há, mas não é mais atestado no
séc. XVII. Em inglês, se torna substantivo desde 1613, “uma utopia”, para
designar a concepção imaginária de um governo ideal, de uma quimera, momento
em que a utopia se traveste justamente de messianismo, de resultante de
messianismo. O francês toma emprestado o termo ainda no século XVI...
Uma coisa que se diz a respeito do Brasil – e que se diz aqui a respeito
de muita coisa - é que “o Brasil não existe”. É inconcebível, não há lugar para

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Papo de Tucano

se situar isso. Stefan Zweig chamou o Brasil de “país do futuro” e os


messiânicos ficam pensando que vai ter um certo momento e lugar no futuro
em que o Brasil será a grande potência, etc... Mas ele disse com muita precisão
que o Brasil é o país do futuro. Ele não disse que vai ser... Oswald, sem nenhuma
correlação com Zweig, vai dizer justamente o que é a essência da utopia. É,
justamente, virar a mesa: haver chance de marcha social. Não é que vai se
chegar a lugar nenhum, o que importa é romper...
Existe utopia? Claro que existe! Chama-se inconsciente. É o lugar. O
que é o sentimento utópico senão essa transa mais aproximada com o
inconsciente que, afinal de contas, é aquilo que podemos chamar de feminino?
O feminino é essa transa mais fácil com o inconsciente. Lacan sempre achou
que as mulheres são melhores analistas, quando não são estúpidas, na medida
em que há uma transa em aberto na referência ao significante faltoso que
define o inconsciente como tal, e que mantém essa inconsistência visível.
Oswald acentua, justamente, essa vocação utópica do Brasil. Ele diz
n’A Marcha das Utopias, p. 157, que a ilha da utopia é o Brasil. Diz, também,
p. 153, que, no Brasil, “somos a Utopia realizada”. Ele está defendendo que
uma das coisas importantes na postura brasileira foi a Contra-Reforma, pois os
países que foram mais tocados diretamente pela Reforma ficaram caretas. Ele
faz a ressalva de que não está defendendo a Igreja, nem lambendo sotaina de
jesuíta, mas mostrando que a Contra-Reforma – o movimento de abertura na
Igreja para poder debelar o processo da Reforma protestante –, essa
elasticidade dos jesuítas, talvez, tenha ajudado na promoção desse sintoma:
“Nós brasileiros, campeões da miscigenação, tanto da raça quanto da cultura,
somos a Contra-Reforma mesmo sem Deus ou culto. Somos a Utopia realizada,
bem ou mal, em face do utilitarismo mercenário e mecânico do Norte”. É uma
maneira expressiva e sintomática de se dizer isto, de chamar atenção para que,
talvez, a sintomática de base do país seja exigir a utopia, que não é senão a
festa, o carnaval dos sentidos.
Oswald não está sendo beato nem apaixonado pela Igreja. Está
mostrando que a Contra-Reforma, contudo, é o momento em que a Igreja tem

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Psicanálise & Polética

que fazer, até, concessões de assimilar a Reforma – engolir, assimilar e transar


com outras. O jesuíta tem, por exemplo, que se virar com o índio no Brasil: é
claro que tentando catequizar. Poderia ter sido, no entanto, uma coisa pura e
simples de massacre...
Quando diz que o Brasil é utopia, Oswald quer mostrar que é utopia
sim, mas pelo avesso. “Há o que se poderia chamar o avesso da Utopia”, diz
ele, p. 166, “e que justamente no século XVI, nos é dado por três mestres da
Europa culta. São eles: Rabelais, Cervantes e Erasmo”. Mais adiante, p. 169,
ele tenta explicar isto: “É a Utopia negativa, é o avesso da Utopia. Ou melhor,
a Utopia que o homem encontra em si mesmo, na saúde e no vinho”. Ele está
meio perdido, mas, seguindo, ele diz com uma clareza, que talvez para ele não
fosse grande clareza no momento: “No padre Rabelais há menos pensamento
que em Erasmo e mais literatura. As molas do riso, tanto em Gargântua como
em Pantagruel, brotam às vezes duma colocação de frase, dum trocadilho,
duma invenção vocabular”. Ele reclama o chiste para explicar o que é o avesso
da utopia situando o sujeito na posição do reclamo do corte, do reclamo da
perda da língua – o próprio estofo da sátira. É esse namoro, essa transação
com a outra por excelência, que é a língua, na produção do chiste pedindo essa
utopia, pedindo conseguir viver no lugar do chiste – pura sacanagem... O desejo,
a vocação de perder os sentidos.

* * *

Brasileiro fica de saco cheio de teoria. É interessante, etc., mas enche


o saco... Pode ser ruim num certo sentido, se é puro boçalismo, mas se é a
nossa bossalidade brasileira, é ótimo! É preciso conseguir distinguir quando é
boçalidade com ç: não querer saber, a grossura pura e simples desse machismo
ignorantista militante, feito o do coronel de Sucupira. A bossalidade é por vias
de bossa, não se submete por muito tempo, e sem muito saco para imposições
catequéticas, que, no fundo, as teorias tentam. É uma coisa que vigora no
campo freudiano, na medida em que não se sabe o que é a psicanálise, pois

392
Papo de Tucano

psicanálise não é essa teoria que se fez. Quando Lacan afirma que ninguém
sabe o que é a psicanálise, é dessa bossalidade que se trata: uma convivência
com a bossa, suportando o não saber e denunciando que esse saber construído
não é saber de quase nada.
Por isso, insisti que, talvez, pudesse dizer – não como acontecimento,
porque os colonialismos estão aí com todo vigor, mas que é verdade como
sintomática de fundo – que o Brasil é a pátria da psicanálise.
Quando digo que essa sintomática requer o lugar do espelho, estou
dizendo uma coisa grave: que todo brasileiro quer ser psicanalista. Todo
brasileiro quer o passe, requer o passe, nessa espécie de, como chama Oswald,
p. 172, “ateísmo com Deus”, que, afinal de contas, é a definição que Lacan
dá da psicanálise: Deus existe, esse é o ateísmo verdadeiro. Oswald chama
atenção para que “hoje vivemos a cultura de um século que admite o ateísmo
com Deus”, e vai reclamar isso da nossa posição. Vai chamar o Dom Quixote,
de Cervantes, que colocou como criador dessa utopia possível, de “a epopéia
do equívoco”.
A psicanálise, a prática psicanalítica, é a epopéia do equívoco. Cada
análise é uma epopéia do equívoco...
Digo isto para chamar atenção para que não nos venham ofender com
essas “psicanálises” homossexuais e institucionalizadas como práticas corretas,
dominadas, sapientes, competentes, suficientes...

09/SET

393
Psicanálise & Polética

394
A Revolição Caraíba

17
A REVOLIÇÃO CARAÍBA

No Manifesto Antropófago, Oswald dizia: “Queremos a Revolução


Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas
eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre
declaração dos direitos do homem. A Idade de Ouro anunciada pela América.
A idade de ouro. E todas as girls”. Ele supunha a possibilidade disso que chamou
a Revolução Caraíba.
A palavra “caraíba”, segundo Aurélio, é um termo que vem do tupi
kara’ib, que significa astuto, inteligente, sábio. É substantivo masculino que
tem, primeiro, o sentido de designação que os índios davam ao homem branco,
ao europeu – certamente porque achavam que os europeus eram muito vivos a
ponto de tomarem as terras deles. Segundo, o sentido de coisa sobrenatural.
Uma outra acepção, ainda de Aurélio, diz que significa bento, sagrado – e é,
também, o nome de uma árvore típica do cerrado, da família das bignoniáceas,
de casca suberosa e grossa. Por um lado o caraíba é astuto, inteligente,
sobrenatural, sagrado e, por outro, casca grossa...
Já, do nosso ponto de vista, o que interessaria seria não nenhuma
revolução que não tem, necessariamente, ou talvez de modo algum, nada a ver
com a postura psicanalítica. Mas é possível que possamos surpreender nessa
vocação utópica – na existência mesmo dessa ilha da Utopia, de que fala Oswald,
desse prazer como utopia realizada, no sentido de utopia como sendo o campo
do Outro – não nenhuma revolução feita, nem a fazer, mas, sim, a repetição

395
Psicanálise & Polética

pura e simples, no regime do discurso com que trabalhamos, desse desejo


fundamental atribuível a esse sujeito chamado Brasil como isso que articulei
com o nome de uma Revolição Caraíba: uma revolição constante, uma repetição
desejante a partir disso que seria a nossa sintomática fundamental.
A suposição dessa sintomática seria aquela que promoveria, segundo o
dizer ainda de Oswald no mesmo Manifesto, a prova dos nove configurada.
“A alegria é a prova dos nove.”. Não sei se alguém tomou conhecimento de
que, num texto em que comentava Guimarães Rosa, tentei mostrar que o lugar
da obra de arte, talvez isotópica ao lugar do analista, era o lugar da alegria.
Alegria no sentido desse movimento que fica entre o gozo possível e o gozo-do-
Outro, impossível, já que o Outro não existe, muito menos seu gozo. A
movimentação no sentido desta realização seria o movimento utópico da alegria.
O que eu gostaria de fazer hoje era falar muito pouco e tentar suscitar
mais a participação em cima das temáticas que estou trazendo. Não podemos
ficar apenas nessa conjetura, nessa suposição de sintoma. É preciso que o
depoimento de outros, acossados pela mesma sintomática que pretendo chamar
de Brasil, do brasileiro, pudesse participar na constituição de alguma coisa
sobre isso...

* * *

Essa Revolição Caraíba é uma espécie de fundação do que eu


chamaria de uma Alterarquia. Oswald fala em Pindorama, na Utopia de
Pindorama e coisa dessa ordem... Seria a alterarquia de Pindorama isso que
coincidiria com o conceito que tentei colocar de Heterofagia no encaminhamento
geral do Seminário deste ano, no sentido do que chamo uma Diferocracia. Uma
alterarquia não é absolutamente uma anarquia. É justamente alguma coisa que
tem um regime de arqué centrado na alterabilidade constante em função da
referência ao Outro em sua falta. Seria fazer, ao contrário da hierarquia do
ócio, ou talvez dentro da hierarquia do ócio de Oswald, a República do Ócio: a
República desse movimento da alegria que está sempre em postura heterossexual.

396
A Revolição Caraíba

Algumas pequenas coisas qualificam este país, que Oswald repetindo


a postura de outros escritores a respeito – chama de país do futuro: o lugar
onde vigoraria esse ateísmo com Deus, que é exatamente a própria postura da
psicanálise. Oswald coloca no sentido do “avesso da Utopia”, falando dessa
utopia negativa que seria o Brasil: a utopia em que o homem encontra em si
mesmo alguma coisa que “já começa a fazer da língua o próprio estofo da
sátira e da fantasia”, como vimos na vez anterior.
É importante como o brasileiro reinventa a sua língua. No caso de
comparar-se, por exemplo, a forçagem gramatical que tiramos da língua
portuguesa – que em Portugal parece que ainda hoje se mantém no mesmo
nível – e como as coisas aqui se organizam linguisticamente de modo
completamente outro. É o caso, por exemplo, da miscelânea dos pronomes
pessoais na língua brasileira... A canção popular, quando observamos as letras
daqueles autores mais espontâneos, em que o “tu’ e o “você” participam da
mesma frase. Em função de uma prosódia específica da melodia que pinta,
passa-se de uma pessoa para outra. Ou seja, como se diria em bom português,
“se você não cabe vai tu mesmo”. Isso é uma das pequenas coisinhas, dos
pequenos sintomas que vemos no uso, no cotidiano...
Tenho uma analisanda que é mestra nesta questão. Como ela pintou de
um ambiente completamente fora das minhas cercanias, há uma estranheza
maior no começo da relação. Acho espantoso como ela me trata. Chegou me
chamando de Doutor, falando “o Senhor”, aí, ela passa imediatamente para
“você” e, depois, passa para “como eu te disse, sabe Doutor...”. Ela pula de
uma coisa para outra. No começo, pensei que isso pudesse ter até implicação
com a sua análise, mas depois percebi que é uma espécie de repetição farta na
fala, uma sintomática muito nossa, na nossa pontuação com a língua.
O que significa misturar esses pronomes e esses apelativos em períodos
tão curtos no movimento da língua? É preciso ter uma forte vocação de gramático,
em muitos desses casos, para se manter em períodos mais ou menos longos
com uma concordância pronominal. É preciso estar com a cabeça no código –
na língua enquanto codificada escolarmente, academicamente segundo uma

397
Psicanálise & Polética

gramaticalidade – para que se ponha um sujeito de frase na terceira pessoa por


exemplo, ou na segunda, e se lembre o tempo todo que as concordâncias devem
ser feitas como manda a Academia Brasileira de Letras.
Quando o sujeito usa e abusa das colocações gramaticais durante a
sua fala, qual será a norma, ou melhor, a regra de funcionamento – em
contraposição ao normativismo da gramática – que estará em exercício nessa
troca de pessoas gramaticais? Quer me parecer que a troca constante, na
mesma frase, das pessoas gramaticais se refere a uma regra que, ao invés de
apontar para uma concordância constante e gramaticalmente coerente com
uma pessoa marcada no começo da frase, está fazendo a concordância com
o movimento inconsciente, com a relação com os efeitos inconscientes que
cada frase apresenta no momento de sua instalação. Quer dizer, no caso
dessa analisanda, por exemplo, na relação transferencial, em função dos efeitos
de sentido promovidos pelo que ela diz, pelo nível de afastamento e
aproximação, etc., ela usa os pronomes e os apelativos à vontade. Uma regra
absolutamente correta.
À medida que vou escutando, percebo que há o momento certo de
chamar “sabe, doutor?”. Aí sei que vai ser dito algo que é do nível de uma
suspensão dentro da transferência. E, de repente, “ah! como eu te disse”, aí o
negócio é por cima... Alguém que olhasse isso de um modo estritamente
gramatical veria erro de concordância e suporia não existir nenhuma regra de
funcionamento, quando há uma regra de funcionamento em função de efeitos
inconscientes da relação transferencial.
Nas conversas cotidianas talvez possamos surpreender esse mesmo
tipo de coisa. O sujeito passa de um pronome pessoal para outro, em relação ao
outro, num sentido de aproximação e distanciamento. É uma espécie de jogo de
cintura, drible, está mais preocupado com a dança entre os sujeitos, do que com
as regras que conseguiriam de modo codificado as relações. Isto não significa
que não se esteja fazendo a referência intermediária, necessária, indefectível,
ao Outro A mediação do Outro está presente, porque na língua estão as duas
posturas. Quero destacar aí exatamente esse jogo de cintura que vai na

398
A Revolição Caraíba

musicalidade da frase e na relação intersubjetiva. O saboroso é justamente


esse deslizamento constante que o brasileiro faz na sua fala cotidiana. A presença
do “tu”, por exemplo, no carioca, é alguma coisa, talvez, da ordem do expressivo,
do imperativo... O que importa é essa maleabilidade com a língua. A língua
brasileira não é de modo algum a língua portuguesa.
Quero valorizar essa recusa – pelo menos nos níveis onde a possibilidade
existe – ao imperialismo de determinados significantes que se querem fechar
em significados. Em suma, eu surpreenderia aí de saboroso, de valorizável na
sintomática brasileira, justamente uma recusa constante nos lugares mais macios,
quer dizer, onde imperativo é menos rigoroso, uma recusa de manutenção de
um código vigente... É preciso dançar a língua. Encontramos mesmo nas pessoas
um verdadeiro mal-estar em ter que sustentar a concordância, até no nível do
número, não só no nível da pessoa. A insistência do homem do interior, em
várias regiões do Brasil, em eliminar as redundâncias: “As casas são brancas”,
por exemplo, é absolutamente redundante. Basta dizer que “as casa é branca”,
que todo mundo entende que são várias. Eles, então, eliminam a redundância e
entram num contato mais, eu diria, erótico com a língua. Mais erótico, na medida
em que a língua não fica feito uma deusa intocável. Ela fica como uma mulher
assim, que você pode passar a mão... Existem várias maneiras de fazer isto,
como, por exemplo, o contrário, como faz o Rosa, que vai buscar essas coisas
no interior, e que sofistica e brinca. Ele curte, é uma curtição de língua, e não
um respeito a uma língua fundada, demarcada acadêmica e sistematicamente
por alguma agência instituidora da correção linguística.
Esse “tu” e esse “você” se misturam de tal maneira em certas regiões,
que são simplesmente uma troca prosódica: é como a frase fica mais macia,
mais fácil. De tal maneira que o homem do interior, ao falar com uma pessoa
que ele acha extremamente graduada – e encontramos isto num personagem
de Sucupira, chamado Zeca Diabo –, faz uma série de prolegômenos ao
apelativo, ele bota uma série de títulos para essa pessoa, etc., para destacar a
diferença, porque o tratamento pela pessoa gramatical não faz diferença.
Essa possibilidade de transação que parece demarcar essa face da

399
Psicanálise & Polética

sintomática brasileira de apagar freqüentemente os distanciamentos, em função


daquela tese do “homem cordial” que Oswald cita, poderíamos dizer que não é
por nenhuma cordialidade piegas, mas, simplesmente, por uma coisa que, sem
demarcações legais, a gente encontra aqui. Nos Estados Unidos, por exemplo,
a “democração” americana, todos são iguais perante a lei, etc., no Brasil isso é
uma espécie, também, de ato, de afirmação. Junto com essa quentura de
tratamento, existe uma afirmação de que nós somos diferentes do ponto de
vista das instituições: temos posições hierárquicas diferentes. Nós estamos
sujeitos. Não é de tanta separação assim. “Não vem porque tem”, como diz
Betty Milan. “Tudo bem, você é uma ‘otoridade’, mas eu sou um sujeito” – eu
posso enfiar um pouco de quebra nas demarcações hierárquicas, na medida
em que me esqueço e te chamo de você no meio dessa estória...

* * *

É preciso chamar atenção para uma coisa extremamente interessante,


nessa revolição caraíba. Vários escritores e a fala de rua chamam atenção para
uma característica suposta do brasileiro, exarada num termo delicioso, que é ao
mesmo tempo às vezes considerado pesado: a chamada esculhambação
brasileira.
Não sei se vocês se lembram de uma piada que correu a rua depois
de 1 de abril de 1964. Alguém contava para um tipo mineirão comum que
º

osome fizeram a revolução e que iam botar ordem nessa bagunça, etc. E o
tal mineirão respondia: “Deixa eles fazê o que êlis quizé, depois, devagarzinho,
nóis escuiamba tudo...”
Freud tem um pequeno texto, que é citado muito freqüentemente,
chamado A Cabeça da Medusa, no qual ele trabalha o que nomeia, sobre um
termo grego, de ato apotropéico, uma apótrope. Ele tenta, nesse trechinho,
pensar o que significa esse horror, essa paralisação que produz a exposição da
cabeça de Medusa. Perseu é quem consegue vencer a Medusa com o artifício
de levantar o escudo espelhado frente a seu rosto. Ela ao se ver, fica paralisada,

400
A Revolição Caraíba

e ele pode escapulir. Ele devolve o brilho e aproveita a jogada para cortar-lhe
a cabeça. Entretanto, ele não olha para essa cabeça porque, mesmo morta,
bastava que ele a apresentasse sem olhar para que os outros ficassem
paralisados. Freud chama atenção para que a cabeça de Medusa é a exposição
da castração que paralisa, terrifica as pessoas: é deparar-se com a configuração
da castração, em termos de vulva, de órgão sexual fêmeo. Ele diz que aquela
proliferação de cabelos como serpentes, não só lembra a vulva com seus pêlos,
etc., como abranda também, de certo modo, a castração, na medida em que
repete o pênis, por outro lado. O excesso de personificação de pênis é a falta
de pênis, quer dizer, estar cercado de pênis por todos os lados é estar se
deparando com a castração. É essa exposição da Medusa como pura e
simplesmente referência à castração.
Freud chama atenção, também, para o fato de a cabeça da Medusa,
como símbolo do horror, ser usada sobre o escudo da deusa Atena, repelindo
os desejos sexuais. Quer dizer, a exposição veemente da falta é, como se diz à
brasileira, “brochante”. É ela, justamente, que acirra o desejo, mas sua violenta
exposição decepa, de certo modo, o desejo, ou o congela. Freud também cita
Rabelais, que dizia que um demônio podia ser espantado pelas mulheres de
uma maneira muito interessante: bastava levantarem a saia e mostrar a xota
que o demônio fugia... Lacan já disse que o inferno não são os outros, como
disse Sartre, o inferno é o desejo...
Vocês devem se lembrar de que as menininhas, quando éramos crianças,
de repente, nos agrediam, talvez pela nossa exibição do pênis, levantando a
saia e nos dando aquele susto: vem que tem, vem porque tem... Os menininhos
ficam se exibindo, fazendo pipi de pé, essas coisas... Há uma cena muito especial
no filme Viridiana, de Buñuel, em que a máquina fotográfica é substituída por
aquela paralisação conseguida por uma exibição vulvar. A fotografia é o
congelamento. Ela congela aquele momento sem tirar nenhuma fotografia.
Uma das mendigas, de costas para a câmera, simplesmente levanta a saia.
Freud, revertendo a posição, diz, também, que o membro, o órgão do
macho, também tem o efeito de um ato apotropéico. Aí já não talvez pelo

401
Psicanálise & Polética

mesmo mecanismo. É como se o mito estivesse dizendo: “Eu não tenho medo
de você, eu desafio você, eu tenho um pênis”. Aí, então, está outro modo de
intimidar o espírito do mal, o diabo. A coisa é ambígua, pois na medida em
que ele mostra um outro mecanismo no modo de operação, por outro lado,
estruturalmente, é a mesma coisa. Ele chama atenção para que um pênis
ereto não é senão sintoma de falta. Nada mais nitidamente sintomático do
que um pênis ereto. É um sintoma histérico na carne, exibidor do Falo. É o
caso, por exemplo, daquele texto de Moustapha Safouan sobre o Édipo em
que analisa a pederastia grega. Ele mostra que, exatamente porque está lá o
pênis em falta, é que é interessante. A coisa se reverte sobre si mesma na
medida em que a exibição do sintoma do desejo é tão faltosa quanto a exibição
da falta configurada, por exemplo, na falta do pênis. A coisa se reverte e o
efeito é o mesmo.
Em ambos os efeitos podemos encontrar uma oscilação. Oscilação
na medida em que a cabeça de Medusa é repleta de pênis, como diz Freud,
repetindo a falta, mas, por outro lado, substituindo um pouco por alguma
presença essa falta, quer dizer, abrandando a falta. Assim na exibição do
pênis ereto ao mesmo tempo que há esse terror, o surgimento fálico é um
abrandamento. Abrandamento na medida em que é terror, mas é fascinação
em ambos os casos.
Em suma, é a famosa banana brasileira, que tem uma certa graça e é
ato apotropéico por excelência: dá-se uma banana e vai-se em frente. Mas,
essencialmente, o que vigora no cotidiano da nossa fala, mais do que a banana,
seria justamente a esculhambação, que tem muitos sentidos. Posso dar uma
esculhambação no sujeito, mas também o sujeito pode montar um esquema
todo bonitinho, todo gramatical, e ser esculhambado por cima...
O mesmo gesto que pode brandir fascinatoriamente o tesão do Falo é
denunciador da castração para um outro sujeito. O que é dar essa banana ou
fazer vigorar essa esculhambação? O verbo esculhambar significa tirar os
culhões: ex-culhonar. O que faz a esculhambação como sintomática é a mesma
coisa que o “tu” e o “você”: recusar a imposição superegóica constante de

402
A Revolição Caraíba

determinado código, de determinado império, simplesmente exibindo para o


Outro a falta – a falta que há nele, Outro. Dizer “não vem que tem” significa:
“Olhaí, tu é muito macho, mas pras tuas negas...”. Tipo da frase de brasileiro.
E a tal da cordialidade que observava Oswald.
A miséria que se fala do brasileiro não é uma miséria puramente
financeira. Esse sentimento de miserabilidade, que talvez seja muito nosso, é
extremamente importante, pois é saber transar com a falta. A língua ajuda
nesses termos e esses hábitos, essa esculhambação, seriam uma tentativa de
deixar claro que, embora tendo suas autoridades, seus signos maiores, é tudo
muito importante, mas, “não vem porque tem”.
Minha questão é perguntar se nessa “brincanagem” típica do brasileiro
não existia uma denúncia constante do pudor. Na cabeça de cada brasileiro,
quer me parecer, há o pensamento: “Estou aturando tudo isso porque estou por
baixo, mas quando tiver meu dinheiro, ganhar na loteria, dou uma banana...”.
Está-se sabendo o tempo todo que é um jogo de poder e não aquela
respeitabilidade do submisso ao superego. Ou seja, existe esse sintomazinho a
ser acirrado, destacado, que pode ser extremamente importante do ponto de
vista de uma ética de comportamento nacional. No que, então, dá-se uma
banana, esculhamba-se com alguma coisa, ao mesmo tempo se fascina pela
exibição do falo, expõe-se a falta que se supõe no Outro, que se mostra tão
arrogante: é brandir no nariz do Outro a sua falta, quando ele está se supondo
completo e cheio de poderes... ao mesmo tempo que abrandando isto com
certa fascinação.
A respeitabilidade, por exemplo, que a língua francesa instituída merece
do francês é uma respeitabilidade de código, de respeito a uma ordem
universitária. Podemos ver isso com clareza no texto de Jean-Claude Milner,
O Amor da Lingua: ou bem se transa com alíngua e ela desliza, ou bem se
transa com a língua, que é a suposição do lingüista e do gramático, de
estabelecerem um código. É nessa distinção que é preciso se colocar.
Hoje em dia, pegamos muitos trabalhos universitários, e a concordância
está toda errada. Certa vez, tive uma briga com um membro da banca de

403
Psicanálise & Polética

vestibular, porque dei 10 numa prova brilhante, de redação, cujas concordâncias


estavam erradas... Está no código lá do vestibular que não pode haver erro de
concordância. Mas ele está concordando com o quê? Está concordando com a
gramática, ou está concordando com o movimento do texto?
Quero chamar atenção para que a esculhambação pode não ser
absolutamente de araque, embora a suposição que se faz seja esta de que é
uma falta de responsabilidade, de caráter, etc. Mário de Andrade talvez tenha
se enganado no subtítulo que deu de Macunaíma – o herói sem nenhum
caráter –, a não ser que ele quisesse instituir esse caráter pela falta de
caracteres costumeiros... Na verdade, não há nenhum araque na verdadeira
esculhambação. Ser de araque era ser sem nenhuma marca, sem nenhuma
referência, mas essa esculhambação não é atividade de um desossado, uma
coisa mole, sem núcleo. É, sim, justamente, o vigor de um sintoma particular,
duro como osso, como se fosse uma espécie de S1 do Macunaíma, já que
supostamente seria o brasileiro. Só que o S1 dá a impressão de uma falta
absoluta de caráter quando o seu caráter não é senão o que qualifica nós
outros, ou seja, a prática dessa esculhambação para demonstrar o desvigor dos
códigos, dos sistemas.
Esse jogo de cintura de Macunaíma – que é índio, preto, louro, nortista,
paulista, pula por este país inteiro – é, afinal de contas, alguma coisa que vive
numa heterofagia conseqüente. No fim se decepa no confronto com a castração
enquanto tal, no caso, que é a Uiara, se espatifa e se projeta no céu, como uma
constelação, a Ursa Maior.
Mário de Andrade, com o Macunaíma, quer me parecer, destacou que
essa aparência de falta de marca é simplesmente não se ver a marca que lá
está, só porque ela é diferente: esse gosto alterofílico, heterofágico,
heterossexual, do brasileiro, de estar sempre partindo para outra, e poder estar
exibindo, a cada momento, a sua castração.

* * *

404
A Revolição Caraíba

Oswald de Andrade, n’A Marcha das Utopias, p. 182, chama a nossa


atenção para a Guerra Holandesa, que ele chama de guerra Utópica do Brasil.
Vieram os holandeses, que são de uma estrutura tipo Reforma – e ele fala da
contraposição do brasileiro contra-reformista, abarrocado, pois o barroco era
o lugar dessa transação corporal e aberta –, que eram extremamente fortes e
organizados e... ficou no Brasil a idéia de que eles eram uns bundões...
“Os holandeses”, diz ele, p. 189, “eram chamados ‘homens de manteiga’
pela sátira, pela tortura católica do duque D’Alba. Pois esses ‘homens de
manteiga’, estruturados na Eleição e na Graça da religião reformada, opuseram
o próprio peito ao mar. Venceram Felipe II, legando à história das lutas pela
liberdade a estampa homérica de Halckmar. Forçaram os horizontes marinhos
da Utopia humanista. Varreram do oceano as esquadras mais aguerridas e
fortes, ingleses, espanhóis e lusos. E vieram, no Brasil, tomar uma tunda
tremenda de negros, mulatos, cafuzos e degregados. Não se tratava somente
duma guerra tipo marxista entre o monopólio e o livre comércio. Não se tratava
de interesses dinásticos ou políticos. Tratava-se apenas da primeira luta titânica,
no mundo moderno, entre o ócio e o negócio. E o ócio venceu”. Vejam a virada
que Oswald dá na suposição de que brasileiro não agüenta o rojão. Na medida,
então, em que se possa ressaltar, a partir da sacação de um poeta desses, essa
sintomática específica nossa, mais vigorosamente do que qualquer sociologia –
ou coisa desse tipo, que se faz aí no jornalês contemporâneo, graças a Deus,
até, senão era todo mundo a falar francês – pode-se pensar na possibilidade de
uma tremenda tunda cultural. Não que se tenha saído dando tunda nas pessoas,
mas, simplesmente, porque é o caso de tunda toda vez que aparece um
colonialismo forte por aqui.
É preciso simplesmente sair do marasmo dessa falta de marca e
ressaltar, na sintomática desse sujeito, essa possibilidade do desregramento.
Oswald recai naquela questão do Brasil, país do futuro, como era
colocada nesse momento e, para dizer dessa possibilidade, desse futurível para
o Brasil, vai falar de Osvaldo Aranha, p. 151: “O que me interessa no Sr.
Osvaldo Aranha, mais do que sua carreira, são certas afirmativas suas que

405
Psicanálise & Polética

julgo de primeira ordem. Disse ele agora a um jornal: ‘O Brasil será um dos
grandes líderes do fim do nosso século e dará à nova ordem humana
contribuições materiais e espirituais que não serão excedidas por outros povos,
mesmo os que hoje se mostram mais avançados’. É exatamente o que penso.
E minha fé no Brasil vem da configuração social que ele tomou, modelado
pela civilização jesuítica em face do calvinismo áspero e mecânico que
produziu o capitalismo na América do Norte”.
Há certo ufanismo, certo ingenuísmo, nesta postura de Oswald, mas
prefiro, ao invés de criticar, sacar no contexto dessa situação, dessa
textualidade que ele nos apresenta, não um messianismo, mas a possibilidade
de se reconhecer, na prática sintomática desse sujeito, não liderança futura
mas exibição franca, diante do mundo, dessa sintomática, de modo a exercer
alguma influência – a meu ver, bastante benéfica. É preciso não confundir –
e talvez seja isto que Oswald confunde nesse momento, talvez por falta de
ferramental teórico, embora sua sacação poética seja generosa por si – essas
duas aparências que podemos colocar sob o título de liderança.
O carisma é algo da ordem do fascínio. Falamos em líderes carismáticos,
etc. O querigma, a declaração futurível, por exemplo, é da mesma ordem. Mas
essas duas coisas, carisma e querigma, funcionam em campos diversos, talvez
mesmo opostos, que nem sempre sabemos distinguir com clareza. Embora Oswald,
para ficarmos na dicotomia que ele criou, esteja fazendo a crítica do messianismo
com esse ufanismo, cai numa espécie de messianismo brasileiro, tipo o Brasil
virá e salvará a situação, a liderança messiânica do Brasil... Não é por aí. Isto
não é compatível com a sintomática da nossa esculhambação que, se esculhamba
geral, esculhamba também a si mesmo.
Existe um outro lado que comporta, também, um certo carisma e um
querigma, que é justamente o lado da denúncia, no sentido em que chamo
atenção para a sua existência no ato-poético. Tentei, antigamente, num texto,
distinguir o que chamei de dichter, o vigor do poético como denúncia. E que não
é produção de um líder messiânico, mas de um indicador de utopia, no sentido
de vigência do Outro, de alteridade inconsciente, de Deus nesse ateísmo nosso.

406
A Revolição Caraíba

Em nosso campo, por exemplo, em proximidade, percebo


freqüentemente essa confusão em torno do nome se não da pessoa de Jacques
Lacan. Vemos nos jornais mesmo discípulos de Lacan, recaindo no mal-
entendido que a língua permite, que o discurso permite, confundindo esses dois
lados. Jamais consegui situar no nome, na pessoa, de Lacan, nenhum carisma
de líder. Ele não me pareceu aderir a esse tipo de sintoma. Seria mais para
indicador utópico.
O que faz oposição ao líder messiânico – que vem como salvação,
com discurso pronto, e dizendo qual é a verdade a ser instalada – é o indicador
utópico, o qual tem postura poética. O carisma pode se dar com aparência
semelhante, as massas podem se aproximar do indicador utópico com o mesmo
tipo de comportamento, mas se pudermos destacar o que é colocado aí, veremos
que se trata da possibilidade da utopia, da alteridade. Não estamos livres de
ver as pessoas se agruparem, se melarem, se colarem, imaginando-se em torno
de uma liderança messiânica.
Digo isto, por exemplo, a respeito de uma conclusão que teria sido
feita no momento em que tantos se acharam chocados por um ato aparentemente
desvairado quando Lacan dissolveu a Escola Freudiana de Paris. Houve quem
teve por bem achar que se tratava de um ditador messiânico. Jacques Lacan,
para quem o conheceu um pouco de perto, era na verdade uma figura grotesca.
Era como uma escultura do Aleijadinho. Nunca vi uma pessoa se parecer tanto
com uma estátua do Aleijadinho, barrocamente brasileira. É um engano pensar,
quando se lê Lacan, que haja ali algum purismo como o de Mallarmé, por
exemplo. Lacan é, para mim, da ordem do grotesco. É espantoso o dito
barroquismo, fraturado, quebradiço, estranho, que pinta no seu texto.
Nenhum messianismo, nenhum carisma de líder na figura de Lacan. É
o oposto justamente de uma liderança carismática. Pode ser um indicador
utópico. É de fazer furo, de topar com a alteridade, de não resistir, que a coisa
se movimenta. E isto acabou forjando um nome para ele. Lacan insistiu em
que a resistência está do lado do analista. Foi um escudo maravilhoso o que os
analistas inventaram, a partir de um dito de Freud, que a resistência é só do

407
Psicanálise & Polética

analisando. A resistência é do analista que tem o ouvido tapado. Se ele escuta,


deixa falar, e se ele deixa falar, isso fala.

* * *

Para entendermos a nossa dita esculhambação, é preciso não resistir,


é preciso deixar que ela fale.
Vai aí a diferença que é preciso reiterar entre um indicador desse tipo
e qualquer pretensão de virar a situação e fazer-se um líder messiânico do
espólio de Lacan para multinacionais psicanalíticas lacanianas.
Menos ainda, coisa a que me recusei desde o início do Colégio
Freudiano do Rio de Janeiro – e isso está publicado em algum papel por aí
sobre encontros em Recife e São Paulo –, que algumas pessoas entusiasmadas
com a existência da Escola Freudiana de Paris, queriam me agarrar para
fundar um Movimento Lacaniano Brasileiro, como Escola única. Não. Eu
moro no Rio de Janeiro, ou melhor, no Leblon. Não vou tomar o País, não vou
fundar a Inter Estadual de Psicanálise. Estamos trabalhando, fazendo o que
podemos. Se isto tem efeito, tem efeito, se não tem, não tem. Não é agora
que vou me submeter a qualquer imperialismo ou colonialismo ávido por
implantar uma Multinacional.
Por causa dessa recusa, que Betty Milan e eu temos feito há anos,
passamos, de repente, para alguns, de amigos interessantes a pessoas não
gratas. Isto tem a ver com nossa recusa a ir ao Congresso de Caracas.
Não temos a menor necessidade – está aí o dito de Lacan, está aí a
experiência que se teve perto ou longe dele –, desaparecido o mestre, de nenhum
bedel para tomar conta de nosso estudo e da nossa prática. Mas não estamos
livres de nos defrontarmos com esta questão por vias transversas, pelo caminho
normal das tentativas de assalto do litoral brasileiro (que geralmente são por
vias do Oceano Cucaracha – pelo lado do mar, já se veio e já se ferrou, então,
dá-se a volta por terra). Temos que começar a dizer publicamente não a esse
tipo de catequese.

408
A Revolição Caraíba

Não temo contaminações, pois existem anticorpos – e as alterações


são possíveis.
Mas há esse tipo de intermediário que, por uma prática ou outra, se
apodera dos efeitos... Há exemplos de alguns que tiveram a audácia de entrar
aqui. Foram chamados à palavra e, aí, só disseram “No, porque no conozco
bien Lacan”. Agora me dizem que eles estão dando cursos... Fazem muito
bem. Cada um dá o que tem. É direito de todo mundo, abrir a boca. Pois falem.
Nada tenho a dizer contra isto. Simplesmente, não pretendo ceder a
configurações multinacionais, lacanianas ou não, e sair desse percurso que
fazemos há tempo, lentamente, como se pode, como se deve...
Já repeti aqui que não sou nenhum representante ou embaixador. Tenho
minha experiência, que é a minha, para o gasto do meu discurso. Só isto.

* * *

Na verdade, não há o que temer. Quem está empenhado no que está


fazendo, está fazendo. Quem é que sabe onde vai dar nosso trabalho a partir
de Lacan? Não faço a menor idéia. Seria liderança messiânica, justamente,
saber-se que o que está sendo feito é para dar nisso ou naquilo.

23/SET

409
Psicanálise & Polética

410
A Polética do Dleseijo

18
A POLÉTICA DO DLESEIJO

A palavra dleseijo é tentativa minha de escrever o que me parece ter


sido uma grande contribuição de Lacan: um certo atravessamento mediante o
qual ele conseguiu produzir o que interessa na questão da oposição Lei/Desejo.
Estes dois termos, por carência de leitura, antes de Freud e mesmo
depois – quer dizer, sem a leitura de Lacan –, pareciam ainda existir em
antagonismo: Lei X Desejo. O Desejo seria algo parecido com aquilo que ainda
se fala por aí a respeito de uma pretensa afetividade, embora não se diga ao
certo o que isto seja. E a Lei seria um enunciado proibidor.
Lacan atravessa por aí e põe que Lei e Desejo estão do mesmo lado,
ainda que um seja a contraface do outro, no sentido topológico de um reviramento,
em contrabanda de Moebius. Lei e Desejo exigiam, portanto, alguma
reconsideração da sua oposição. E mediante esse processo que, abrasileirando,
eu chamaria de movalização (de mot-valise), Lacan teria revirado certas
oposições, imbricando um termo no outro, mostrando a uniface de tais oposições.
É nesse jogo de palavras, de movalização que venho com o termo dleseijo.
Há Desejo e Lei nesse dleseijo. Posso destacar fonologicamcnte aí os
dois termos. Um é garantia do outro, e o outro garantia do um. O que me parece
que Lacan conseguiu, nessa travessia, foi posturar uma política do sujeito, uma
política dessa escansão, que tem como uma de suas estratégias essa movalização.
Outra estratégia é a interpretação, a qual opera em equivocação sobre
a exposição significante pronunciada pelo analisando. E isto nos dá, em função

411
Psicanálise & Polética

de Lei e Desejo, uma ética do real e uma política do sujeito que se instala numa
prática da diferença. A palavra polética inclui esses termos todos.
Lacan disse que o desejo é o que essencializa o sujeito, o falante. A
essência do homem é o desejo. E o é na medida em que, se o sujeito se assujeita,
é ao campo do Outro, enquanto lugar onde vigora a Lei, a Lei da diferença.
Esta é a Lei possível, em substituição do impossível Real (ela vem em suplência
ao Real impossível).
A Lei da diferença, ou a Lei simplesmente, não é senão a Lei do Amor
(do Outro Amor): aquela que sustenta a possibilidade de uma prática analítica,
isso que se chama de clínica. Lacan definiu a clínica como o real enquanto
impossível de suportar. A Lei da diferença é a Lei do amor, isto é, do Outro
Amor, na medida em que este amor propicia a possibilidade de suportar.
Essa Lei rege o campo do Outro enquanto Nome do Pai. A vigência
dessa Lei no campo do Outro é haver significante que faz a referência à Lei da
diferença, à qual Lei cada sujeito só tem acesso pelo que Lacan chamou Lei
do Coração, la Père- Version, que só consigo traduzir por P-versão, P maiúsculo
do Nome do Pai. Ou seja, a versão paterna da instalação do sujeito, por via
metafórica de fundação, por via sintomática.
A Lei do Coração é fundamental, na medida em que dá acesso à Lei
da diferença, enquanto Lei do Amor. E o desejo essencializa o homem
justamente na medida em que a sujeição desse falante é ao campo do Outro,
onde impera essa Lei.
Nesse momento Lacan faz contrabanda com essa oposição Lei/ Desejo.
O que é oposto ao Desejo não é a Lei, pois ela está do mesmo lado do desejo,
e, sim, justamente, a não assunção da subjetividade, isto é, o aprisionamento
dos enunciados – e isto não é legal, em todos os sentidos. Essa revirada que
Lacan faz amainando essa oposição é o que o garante – o que é claro nos
últimos textos em que ele reafirmava sua exigência de dissolução da Escola
Freudiana de Paris – de se manter caturramente no seu desejo. Ele sempre
disse que o importante, como resultado de uma análise, é que o sujeito não
venha mais a abrir mão do seu desejo, uma vez reencontrado.

412
A Polética do Dleseijo

Je père-sévère. Que ele tenha escrito assim nos permite reescrever


de vários modos, pois isso se lê e isso tem efeitos de leitura. Portanto, podemos
escrever: je persévère, do verbo perseverar; j’ai père sévère, que Lacan tem
pai severo. A severidade do pai não é absolutamente a de afirmação de um
enunciado, mas justamente a da afirmação do Desejo enquanto referente à Lei
do coração: a perversão que funda o sujeito na sua sintomática particular.
Quando ele diz je père-sévère, significa que o exemplo do mestre dado nesta
carta – porque esta afirmação faz parte de uma carta – é justamente não abrir
mão do seu desejo. E isto é o que venho ensinando o tempo todo. Não é não
abrir mão de um capricho: não confundir de modo algum desejo com capricho...
Nessa severa P-versão, Lacan afirma a postura do desejo, reproduzindo
esse atravessamento, essa travessia, sua travessura.

* * *

Nosso encaminhamento tem sido, desde o semestre passado, o de


mostrar o vigor da Lei da diferença, o vigor da Lei, no sentido de afirmação de
uma fundação do social estritamente sobre a Lei, e não necessariamente sobre
determinado tipo de interdição. Neste semestre, é nossa intenção destacar, se
possível – e para isto é que tomamos Oswald de Andrade –, o que seria de se
supor como alguma possibilidade de topologização, de situação do sujeito Brasil
enquanto sintoma particular.
Retorno pois ao lugar de onde isto foi tirado, de onde começamos –
que foi trabalhado em cima d’As Meninas, de Velázquez –, ou seja: a questão
da Lei do amor e da lei do Homem, a questão da diferença sexual, e a
formulação quântica da sexuação produzida por Lacan.
Já dissemos muita coisa sobre as fórmulas quânticas mas, do ponto de
vista desse atravessamento produzido, um fenômeno ficava extremamente
confuso nos discursos proferidos até antes de Lacan, embora possamos dizer
que ele pôde tirar isso de Freud – está lá para quem sabe ler –, pôde destacar
a lógica de formação daquele discurso. É que a nomeação da diferença sexual,

413
Psicanálise & Polética

do mesmo modo que determinados outros conceitos, outras categorias, em


outros campos – por exemplo, da Física, das Ciências Naturais e das chamadas
Ciências Humanas –, esteve absolutamente encoberta pela pressão
(imaginária) das aparências.
Na história da Astronomia, da Física, tivemos um processo de
abordagem do suposto objeto dessas supostas ciências, que descreve o
comportamento aparente dos astros, dos fenômenos físicos. E mais tarde
também, na tentativa de abordagem da chamada natureza, no sentido de tal
Botânica, Zoologia, etc., os processos iniciais são de descrição dos apareceres,
que se regulam por um discurso que está interessado nas grandes formas,
digamos, mais evidentes do imaginário comparecente.
Antes de se pensar na regulação sistêmica dos aparelhos que estão
envolvidos no espaço físico, na Astrologia se fazia uma relação entre os mitos
que regulavam o social e o aparecimento dos astros. O comportamento destes
parecia estar de acordo com funções às vezes completamente externas a seus
movimentos. A coisa se descrevia mais ou menos deste modo. No caso, por
exemplo, da Zoologia e da Botânica, os objetos eram descritos pelas partes
geometricamente discerníveis na sua aparência externa: o corpo humano é um
troço tipo cabeça, tronco e membros. Então se pensava o que estava na cabeça,
no tronco e nos membros...
Era difícil aparecer um sistema que dissesse, por exemplo, que o sistema
circulatório passa pelo corpo todo, mas que é sistêmico enquanto conjunto
discernível... Vai se percebendo, então, que há uma textura sistêmica dos
sistemas e que se pode destacar esses sistemas independentemente da
aparência externa. É claro que muita coisa ainda resta definida segundo uma
aparência figural, porque ainda aí se isolam esses sistemas por uma via de
dissecação e de separação de grandes formas.
Quanto mais o discurso científico vai se desenvolvendo nas suas
abordagens de aparência, melhormente vai conseguindo perceber sub-sistemas
e grandes interferências entre sistemas, criando sistemas e ecossistemas, isto
é, sistemas relacionais entre sistemas referentes, e assim por diante. Vai se

414
A Polética do Dleseijo

tornando abstrata essa configuração, se não mesmo matêmica, como acontece


no caso da Física, em que as grandes inscrições são transformadas em fórmulas
que regulam movimentos de articulações gravitacionais.
O que é um pouco assustador para o leigo, para o absolutamente
desinformado, quando Lacan escreve uma formulação como esta, é que é
algo muito recente e, embora esteja em Freud, foi preciso que Lacan fizesse
essa dissecação que é da ordem do infinitamente pequeno, do atômico. Do
ponto de vista da nossa estada, da nossa existência de falantes, em função
dos significantes que pintam na nossa história, mantêm-se ainda na mente
das pessoas, por absoluta falta de divulgação, se não por absoluta falta de
equacionamento, que a diferença sexual se dá em termos de configuração
anatômica, das aparências –, e, no fundo, continuamos a transar desse modo.
Apenas como lembrete, porque não há nenhuma novidade, é preciso dizer
que essa formulação lacaniana é ter-se conseguido no nível da referência ao
sujeito falante, especificamente no campo psicanalítico, destacar o que é do
sexual, que o sexual não existe sem a palavra. Ele pode estar no reino
animal, mas apenas como bi-polaridade de fecundação, ou de efeitos
secundários no corpo dos animais. No caso do falante é de conseqüência
estritamente da fala, do significante.
Destacar isto das aparências macro-formais, anatômicas e outras,
distingue-se de certas tentativas do tipo das operadas no seio das Ciências
Naturais e Humanas, que certamente deixaram de lado o sexo. Lacan teria
tentado – e isto é uma tentativa que ele sempre declarou ter feito – uma
cientificidade de escrição matêmica: uma ciência do sujeito, se podemos dizer
assim, que vem substituir a descrição baseada na aparência anatômica por uma
escrição por via simbólico-estrutural, uma matemização desse objeto destacado.
É como se deu no passado, no séc. XVIII, por aí. Um certo
acontecimento nas Ciências Naturais promoveu a substituição de uma História
Natural descritiva por uma História Natural sistêmica. É o caso, por exemplo,
de Lineu, com a estrutura das plantas... Mas não é do mesmo modo que estamos
trabalhando hoje, pois a estruturação do discurso da Fitologia é, digamos, da

415
Psicanálise & Polética

ordem do classicismo – gênero, espécie, etc.


Esse destacamento da diferença, enquanto diferença sexual,
primordialmente para o falante, é a única produção neguentrópica no campo
do sujeito. Neguentropia sendo, como se sabe, o contrário da entropia, a qual
é um conceito físico que se prende, se não me engano, no campo da
Cibernética, à segunda lei da Termodinâmica, que faz a suposição de uma
equalização radical do universo em termos calóricos. Existe um trabalho físico,
na Termodinâmica, que vem a supor que o universo faria uma troca de calor,
ou seja, eliminaria a diferença no calor. Eliminar a diferença calórica é, num
processo extremamente longo, se fazerem transposições calóricas de tal tipo
que, no final, o nosso suposto universo, isolado de fora, não sei pelo quê,
estaria todo ele com a mesma quantificação calórica, o que eliminaria toda
possibilidade de diferença. Seria, então, a parada absoluta, a morte. No
conceito da Física, da Termodinâmica, e, depois, da Cibernética, a morte do
universo seria por entropia.
Entropia não é uma perda. É uma equalização. Não é que o universo
perca calor, simplesmente as diferenças desaparecem, fica tudo empastado,
do ponto de vista de temperatura. Posso pensar a entropia para dois lados.
Para um, ela seria esse processo de equalização. Mas do ponto de vista
comunicacional, por exemplo, posso pensar a entropia em função daquilo que a
comunicação supõe como sendo seu modo de relanceamento dos processos,
que é o chamado ruído. Ou seja, quanto mais ruído maior possibilidade de
comunicação: maior possibilidade de informação no sentido do novo.
O processo de comunicação ficaria numa média estatística entre uma
quantidade de redundância, de repetição de coisas sabidas, e uma entrada de
algum elemento novo. Esse elemento novo que entra é chamado de informação.
É aquilo que não está no meu sistema, por exemplo. Para me comunicar com
outro, se me comunico de um modo extremamente redundante, não estou tendo
nenhuma informação, nem mesmo posso dizer que há alguma comunicação.
Existe, sim, um empastamento. Seria a relação especular pura. Se existe ruído,
há possibilidade de movimentação, no sentido de captação, assimilação,

416
A Polética do Dleseijo

fagocitose do ruído, ou coisa dessa ordem, de modo a produzir informação.


Portanto, a comunicação estaria em movimento. A entropia acabaria com todo
processo de informação. Se produzisse comunicação, produziria uma
comunicação narcísica absoluta, isto é, de imagem para imagem, um se vendo
na cara do outro. A suposição do Narciso no mito da sua morte, diante do
espelho, é a entropia absoluta.
Mas posso distinguir, talvez, na entropia, dois momentos: um momento
de empastamento geral do Outro, que seria a morte do universo, e um momento
de fechamento radical ao ruído, no caso de um determinado sistema. Quer
dizer, se um sistema conseguisse fechar-se absolutamente ao ruído, se
ensurdecesse – como acontece que um sujeito fique –, estaria se fechando a
toda possibilidade de informação e, portanto, estaria entrando em entropia
privada, digamos assim.
Os físicos, tanto quanto os cibernéticos, tentam situar – e Norbert
Wiener faz um esforço muito grande para isso no ser, digamos, afetivo – alguma
neguentropia que se movimentasse em contrário à dinâmica universal da perda
de calor, que movimentasse o universo outra vez. Nessa abordagem que chamei
de afetiva, de Wiener, ele diz que o neguentrópico é o Homem. Quer dizer, o
homem, na maneira como ele intervém nos processos naturais, em certas explo-
sões atômicas, de alguma maneira a fazer um movimento, etc. Mas eu diria
que quem estabeleceu, destacou, a lei da neguentropia foram Freud e Lacan,
justamente no momento em que mostram que o sujeito falante é essencializado
pelo desejo, que se esteia como funcionamento da Lei da diferença. Esta é a
única neguentropia destacada no universo daquela Física: o falante pode ser
neguentrópico, quer dizer, subversivo. Se pinta o desejo, o marasmo é deslocado,
se mexe. Isto porque a Lei da diferença é a manutenção do mesmo enquanto
sintoma demarcado para cada sujeito que afirma o seu desejo enquanto
mesmidade sintomática, ao mesmo tempo que é, também, a afirmação do Outro,
na medida em que a mesmidade do Outro é outra mesmidade. Então, não é
mesmidade, é Outro, sem congelamento nem para um lado, nem para outro,
como acontece nessa suposição de entropia.

417
Psicanálise & Polética

* * *

Por isso mesmo o núcleo da teoria psicanalítica é a questão da diferença


sexual. Isto porque ninguém faz sexo com o corpo, mas, sim, com as palavras.
Corpo não faz sexo. Sem as palavras ninguém vem a transar coisa alguma,
não saberia o que fazer. É justamente o caso do romance, tantas vezes indicado
por Lacan, Daphnis et Chloé, de Longus. Somos aquela suposta espécie que
não sabe absolutamente o que fazer com o corpo, a não ser que o corpo se
incorpore em palavras. A sexualidade está no corpo, como inscrição significante,
mas não é o corpo como constituição anatômica.
Retorno agora a um tema de que já tratei com o título de FM-Histérico.
Só que agora vou falar do FM-Histórico.
A questão que está no começo da reflexão psicanalítica, ser ou não
ser, por um lado, e ser homem ou mulher, por outro, é a frase que se coloca
diante de cada um para uma “escolha”. Peço licença, aqui, para minha
tradução de Nachtraglich, não só por “só-depois” mas também por “ao-
depois”, que se diz muito no interior, só que lá eles dizem “ao-dispois”.
Nachtraglich, o après-coup, não é senão ao-dispois. Ao-dispois a coisa fica
necessária... Há uma “escolha” sexual porque, em função da
sobredeterminação, o sujeito acaba não só empurrado, mas caindo em cima
de determinada posição. A “escolha” é entre aspas porque, ao-dispois, fica
escolhido, e então pratrásmente como diz Odorico Paraguassu.
Essa “escolha” diante desta frase, ser homem ou ser mulher, que é
posta diante de cada sujeito – e aí esbarramos no mesmo ou que Lacan trata no
Seminário 11 –, significa pelo menos três coisas: ou bem homem ou bem mulher,
por exclusão; homem ou (também) mulher; nem homem nem mulher, que é o
caso do processo de alienação, onde se escolhermos um perdemos o outro, e se
escolhermos o outro perdemos o um. A “escolha”, apesar do vel, ou melhor, por
isso mesmo que é o vel, é inarredável. Na medida em que essa formulação se
estabelece, apesar do vel da escolha, dessa indecisão, desse buraco que resta
no processo da escolha, Lacan insiste em que o sujeito acaba por determinar-se

418
A Polética do Dleseijo

enquanto homem ou mulher. E ele insiste mesmo que o processo da análise


deve propiciar ao sujeito – não é o analista que vai propiciar e, sim, o processo
– uma definição a respeito da sua sexualidade, homem ou mulher.
É preciso haver “escolha” porque não se pode (e o verbo poder aí está
como impossibilidade e como proibição, pois no regime do discurso psicanalítico
o impossível se diz como proibido) ser Outro senão a partir do mesmo. É a
questão, por exemplo, de Rosine Lefort com a criança: tem que ser furada
como o Outro, mesmar do lado de cá, para o Outro poder pintar, ou, pelo
menos, se manter como Outro, em suspensão de mim. Alguma mesmidade é
preciso se colocar para se poder sacar o Outro como alteridade. Logo, alguma
escolha tem que ser feita, ainda que seja para tentar atravessar-se para o
outro lado. Ninguém atravessa para outro lado a não ser que esteja de algum
lado – o andrógino não há.
Escolher ser mulher é aspirar por um homem que a situe como desejo.
Uma mulher não se qualifica pelo desejo. Quem se qualifica diretamente pelo
desejo é o homem. Então, a mulher aspira a um significante (o homem é um
significante, e nada mais) situável do lado masculino, que lhe permita tentar o
desejo. Escolher ser homem é desejar uma mulher, que também é significante,
que o desvaire no amor, se não ele fica imbecil. O regime do desejo é o regime
do homem. O regime do amor é o regime da mulher.
Então, o que quer uma mulher? Ela quer aquela marca, aquela posição
– que, no caso, só posso situar do lado do masculino – que permita a ela
também desejar, embora ela seja sugada, aspirada, pelo lado do amor. E o
homem tem como única saída o amor, quer dizer, tentar furar para o outro
lado, justamente porque aí ele perde sua postura imbecil e rompe para o
outro lado, no que se feminiza. Quer dizer, ele pode transar na do Outro;
pode transar com o Outro por essas vias. Não há de ser nenhuma cópula.
Cópula não produz nenhuma relação.
Como se pode entrar na do Outro? O homem entra no amor pela porta
do desejo. Ele corre atrás do objeto e quebra a cara, porque, de repente, pinta
o amor, e ele chega feminizado – que é diferente de afeminado. Uma mulher

419
Psicanálise & Polética

entra no desejo pela porta do amor. No que ela aspira, de repente gama no
desejo. É uma chance. Não há nenhuma coincidência prévia, embora
pudéssemos pensar numa necessidade ao-dispois – necessidade, podemos dizer,
corporal, com inscrições. Não há, pois, nenhuma coincidência prévia entre
anatomia e sexuação.
Na medida então em que a “escolha” se instala discursivamente, o
corpo vira esse tipo de inscrição e, ao-dispois, necessariamente o sujeito é
homem ou mulher. Mas é preciso alguma mesmação para poder haver uma
outra ação. Uma mesmice para haver uma outragem, ou ultraje. A tentativa,
pelo menos, de transar o Outro.
Naquela distinção entre H e H’, como costumo chamar Homem e
Mulher, temos que fazer uma interpolação que é meramente folclórica, mas
ajuda a desmoronar o imaginário. Vou usar um jargão bem vulgar, pois me
parece bem mais preciso. Do lado de H existem dois tipos de homem: o pirocudo
e o despirocado. O homem pirocudo é aquele que tem pênis, e o despirocado é
o homem que não tem pênis. Isto para acabarmos logo com essa confusão das
anatomias. Do lado de H’, da mulher, existe a mulher pirocuda, que tem pênis,
mas, também, a mulher que prefiro chamar de bucética, porque é cética, tem
um ceticismo quanto a estes comandos masculinos. A mulher bucética é aquela
que tem uma coincidência incrível de falta. É quase Ur-cética, um ceticismo
primordial diante, pelo menos, dos comandos masculinos.
Não vamos confundir isso com ser ou não ser fálico. Usei três termos
do baixo calão, pirocudo, despirocado e bucética, para distinguir disto. Falo é
significante, não anatomia. Uma mulher fálica é um sujeito que se “escolheu”
a identificação simbólica por via significante, mulher, mas – e daí é que Freud
deve ter tirado a famosa inveja do pênis – ela pode denegar isto. Não denega
por ser pirocuda, despirocada, ou bucética, e sim denega a “escolha” feminina
que fez. Denega isto querendo, como homem, acesso ao amor. Em vez de
partir daquilo que é seu próprio efeito, quer acesso ao amor por via do desejo,
porque denega sua “escolha”. A histérica, por exemplo, é o tipo da mulher
fálica. Ao invés de partir do seu princípio de “escolha” que fora feminino,

420
A Polética do Dleseijo

denega o feminino e copia, imita o homem. Quer ter acesso ao amor, que é o
seu próprio princípio, através do desejo, em vez de fazer seu próprio percurso,
que é de ter acesso ao desejo através do amor. Isto é que é o fálico. Nada tem
a ver com anatomia.
Uma mulher fálica, mulher de “escolha” fálica, não é o mesmo que
uma mulher pirocuda, ou seja, uma mulher que tem pênis – está atrapalhando,
mas tem; como diz Lacan, são aquelas que são mulheres apesar daquele troço
atrapalhando no meio das pernas. Mulher pirocuda é anatomia macha com
“escolha” feminina.
No caso da histérica, vimos a “inveja do pênis”, para o que, talvez,
tivéssemos que sugerir outro nome, porque na verdade é inveja do desejo. A
histérica inveja o homem porque ele parte do desejo e ela também queria partir
do desejo, denegando, pois não foi por lá que ela entrou. Não é o pênis que se
inveja, embora, por interferências imaginárias, possa se invejar o pênis como
signo – enquanto aquilo que significa alguma coisa para alguém, dentro de uma
cultura –, não como significante, desse desejo. Nisso até os homens invejam os
homens que têm maior.
O homem afeminado é um sujeito que se “escolheu” homem por
identificação na sexuação e, nesse momento afeminado, o tal protesto macho
é luta de imposição de desejo. Não é de luta de prestígio que fala Freud quanto
ao protesto macho, pois a referência é a uma convergência desejante para o
mesmo objeto. Pode resultar imaginariamente em luta de prestígio, porque é o
mesmo objeto. Aí vem o conhecimento paranóico, como Lacan o colocou...
“Eu também desejo.” Este é o protesto.
A falta de protesto macho no homem afeminado é justamente porque
ele se “escolheu” homem, mas denega isto e quer, como a mulher, acesso ao
desejo – que, aliás, é o seu princípio – por via do amor. Há denegação de sua
própria instalação, tanto para a mulher fálica quanto para o homem afeminado.
Ele não quer ter acesso direto ao desejo, ele quer fazer o percurso do feminino,
não porque esteja na posição feminina, mas porque denega sua posição
masculina. Daí que o homem afeminado não é o mesmo que o homem

421
Psicanálise & Polética

despirocado, o qual é anatomia fêmea com “escolha” de homem – é homem


sem pênis. Engraçado que Lacan chama isto de mulheres fálicas. Isto está
meio indistinto, mas está no pensamento de Lacan a possibilidade dessa distinção
segundo as fórmulas quânticas.
Considero as lutas feministas, na sua maioria – não todas porque seria
abuso –, lutas de falicismo. São freqüentemente mulheres fálicas. Elas têm a
faca e o queijo na mão, porque sempre possuíram os homens – ao contrário do
que dizem os homens –, querem denegar sua posição e tomar a posição do
Outro. Ou senão, são homens despirocados que não entendem sua situação e,
em vez de brigar do lado do homem, ficam criando um outro partido de homens
de saia. É muito mal compreendido isto. As lutas feministas em geral não me
parecem reivindicações femininas. Quando percebemos pelo que estão lutando,
é simplesmente por serem tratadas em função de um desejo, com igualdade
para com os desejantes homens. As mulheres enquanto tais poderiam
simplesmente reivindicar a sua diferença, ou seja, não tolerar o fechamento
homossexual dos homens. As lutas feministas são também freqüentemente
uma luta homossexual. E isto não sei se não é ficar pior do que se estava, se
não é aumentar ainda mais o poder homossexualizante do sistema.
Na verdade, essa luta feminista parece querer fazer entropia para
acabar com a diferença – todo mundo agora é macho. Por isso é que chamo
de homossexualizante, pois se apaga o Outro. O amor foi para o beleléu. Amor
no sentido em que Lacan o chama de dom ativo, que é conseguir suportar o
Outro, que é insuportável. As mulheres são insuportáveis! É uma coisa
horrorosa! Mas há que suportá-las: “É preciso”, Lacan disse claramente, “tudo
suportar”. E aí ele não disse não-tudo. O psicanalista, por exemplo, seria aque-
le que é suposto saber suportar tudo. Mas isto é impossível.
Ao fazer distinção entre H e H’ nas fórmulas quânticas Lacan pergunta:
“Por que será que há mais mulheres...?”. Agora continuo eu, “...bucéticas do
que pirocudas?”. Ele faz a suposição – porque isto nunca foi contado, é claro
– de que há mais mulheres sem pênis. Talvez por via sintomática, na medida
em que a transmissão do sintoma é por via simbólica, metafórica, mas com

422
A Polética do Dleseijo

impregnação imaginária. Isto que estou dizendo é um risco, porque não tenho a
menor segurança teórica para dizê-lo. É apenas abertura, uma tentativa. A
transmissão do sintoma enquanto imaginário do corpo, tomado como metáfora
de presença e ausência de falicidade. Não tenho garantia de presença ou
ausência de falicidade por pressão do imaginário do corpo entrando por via
simbólica. Mas explicar isto é outra questão...
A maioria dos não possuidores de pênis, por via simbólica, aí entraria
por pressão do imaginário do corpo, o qual daria, no momento do
equacionamento da diferença (que Freud coloca diante do ter-pênis/não-ter-
pênis, etc., pela não presença do pênis, sobretudo talvez por causa da sua
ereção, sei lá), daria a possibilidade de ancoramento num significante de não-
falicidade. Seria o significante pintando diante dos olhos, digamos assim, por
pressão imaginária. Mas é difícil dizer que é só por pressão imaginária, porque
há o real, o real da falta de carne. Aí então ponho minha questão, de que não
é referência só ao imaginário, pois existe o real de uma falta, a qual, por outro
lado, no que diz respeito a um pênis, aparece sobretudo diante de um pênis em
ereção. A multipresença do pênis não foi justamente destacada por Freud
como referência à sua falta?
Pode-se falar de homossexualidade masculina, mas a feminina não
existe. Se uma mulher, situada como tal, for capaz de tomar a outra como
Outra, é o cúmulo da heterossexualidade. Não estou falando aí de posições
neuróticas. Mulheres fálicas podem querer tomar Outra no sentido falicizante.
Mas a transação de duas mulheres seria o cúmulo da heterossexualidade. Já
os homens são homossexuais espontaneamente, tanto é que se pode dizer O
homem, titulo que serve para qualquer homem. Mas as mulheres são
heterogêneas, portanto é a alteridade enquanto tal. Elas são outras diante dos
homens... e de mulheres. Se não posso dizer A mulher, é porque só existem
mulheres no plural, elas são heterogêneas diante de mulher, como diante do
homem. Os homens são homossexuais de saída... Eles que se virem para
conseguir não sê-lo.
Tudo isto interessa fundamente no caso das leituras das produções

423
Psicanálise & Polética

sintomáticas que pintam no seio da chamada cultura (que prefiro chamar de


artifício), no seio da arte como estilo. “O estilo é a suprema moralidade do
espírito”, como dizia Whitehead. Lacan não repete essa bobagem porque
moralidade não interessa para ele, é coisa de sádico. “A moralidade é Sade”,
diz Lacan. Mas fazendo paráfrase de Whitehead talvez pudéssemos dizer que
“o estilo é a eminência do falante”. Produzir, inscrever um estilo é o ponto mais
alto a que pode chegar um falante. E os estilos estão aí. Quando, por exemplo,
trato de abordar o que é o sujeito Brasil, a cultura, etc., preciso sacar qual é o
estilo, isto é, qual é a letra, a qual é efeito de discurso, portanto é instalação
sintomática de S1 que tem a ver com toda essa ética, em todo esse processo.

* * *

Peço licença agora para tratar de algo que ainda é provisório no meu
estudo.
Num documentário que passou na televisão, Picasso disse que não
tinha estilo. Ele supunha que não tinha estilo porque estava lutando contra uma
certa crítica que queria que ele fosse radicalmente idiota, que fosse Picasso o
tempo todo. Nesse momento aí, vou tentar um começo de operação a respeito
dos estilos, digamos, os mais fundamentais do falante. Eu não diria só do
ocidental, mas do falante mesmo.
Há uma grande e velha discussão a respeito da oposição Clássico/
Barroco. Isto me interessa na medida em que é preciso fazer algumas correções
ao que venho trabalhando sobre Oswald, pois uma das afirmações dele é o
barroquismo do brasileiro. É esteado num barroco, que ele supõe de instalação
jesuítica (as ferramentas que ele tinha de crítica, de história da arte, de estilística,
eram estas), que ele nos vem com o argumento do barroquismo brasileiro como
garantia da sua antropofagia (que quero chamar de heterofagia).
A suposta oposição, no campo da estilística, entre clássico e barroco é
mais uma tentativa de travessia que Lacan faz, e muito bem, no Seminário
Encore – que traduzi por Mais, ainda –, onde ele trata do feminino. Um dos

424
A Polética do Dleseijo

capítulos do Seminário é sobre o barroco, pois era preciso, para Lacan, situar
as relações do inconsciente com o estilo. As relações, digamos, dentro do estilo
de Lacan, pois ele dizia que era acoimado de barroco com certo desdém.
Sabemos que o francês tem um certo desdém pelo barroco desde que nasceu
Descartes lá dentro.
Em alguma parte desse Seminário, citando os escritos místicos e os
situando no campo do feminino (como o caso de São João da Cruz, Santa
Tereza), Lacan nota que é preciso também acrescentar ali os Escritos de
Jacques Lacan, porque se trata da mesma coisa. Nos seus Escritos Lacan se
situou do lado feminino, místico, ou ele se supõe assim naquele momento. No
campo do estilo ele aceita e veste a camisa do barroco: “Como alguém percebeu
recentemente”, diz ele, “eu me situo – quem me situa? Será que é ele ou será
que sou eu? Finura da alíngua – eu me situo mais do lado do barroco”. Ele é
prudente. Não diz “eu sou barroco” e, sim, “eu me situo mais, plutôt, du côté
du barroque”. Esse plutôt é que é preciso destacar.
Em contraposição ao barroco, ele diz o que é, para ele, o clássico: “O
que é o mais certo do modo de pensar da ciência tradicional é o que se chama
seu classicismo – ou seja, o reino aristotélico da classe, quer dizer, do gênero e
da espécie, dito de outro modo, do indivíduo considerado como especificado”.
O que é o indivíduo considerado como especificado senão a referência do
sujeito à sua postura sintomática, S1? Isto é justamente o que não acontece do
lado do feminino pois, se por um lado uma mulher tem alguma chance de se
referenciar a S1, também essa referência fica prejudicada por sua outra postura,
já que sua referência essencializante é o furo, a falta de referência, por
suspensão do Nome do Pai. Assim, eu diria que Lacan, de certa forma, situou
o classicismo na posição masculina, mas não necessariamente homossexual.
Não estou querendo desdoirar o classicismo, pois ele produz coisas
importantes. Mas não existe arte que consiga ser rigorosamente clássica. A
obra está ali, no classicismo, mas se é poesia, acaba se furando de algum modo
– e, no entanto, ela se produz canonicamente. O típico de qualquer arte clássica
é sua canonicidade. Há cânones estabelecidos, embora furados. É o caso do

425
Psicanálise & Polética

renascimento italiano que inventa “cientificamente”, classificatoriamente, um


processo de representação sobre uma superfície, a chamada perspectiva linear.
É o caso da Grécia Clássica, que vai construir seus modos arquitetônicos, que
têm efeitos musicais, dórico, jônico, etc., como canônica, medida regrada,
classificada, de auto-referência mesmo masturbatória: canônica. Fora do cânone
não há salvação. Não preciso desdoirar isso porque o homem é necessário,
senão as mulheres não tinham como se situar. Aliás, é preciso lembrar que a
arte grega não é toda clássica, temos um barroco alexandrino, por exemplo.
Fazendo um pequeno esboço, podemos dizer que o classicismo se
classifica por auto-referência de estabilização, do ponto de vista da arquitetura
por exemplo. A arquitetura é algo de estável, de preferência simétrico, auto-
referente ao seu centro gravitacional, tectônico, que está incluído em cada
movimento do gráfico da sua aparência, tem uma canônica regulando e medindo
um módulo único (o dórico, por exemplo). Um templo dórico, é construído, por
inteiro, em todas as suas medidas, a partir do diâmetro maior da coluna. É sua
regra canônica para construir templos de qualquer sorte de colunata.
O românico, por outro lado, já é um desbunde. É anterior ao classicismo.
O romano enquanto tal é clássico, canônico. Não é à toa que foi inventado o
Direito Romano em cima de uma canônica rigorosa. Mas o românico é uma
espécie de desbunde que talvez se aproxime justamente do barroco franciscano,
na medida em que feminiza o processo pela via do movimento franciscano.
A distinção que os historiadores de arte fizeram durante um longo período
de tempo é justamente através de uma cronologia que absolutamente não
significa nada. Há uma tentativa frustrada por parte desses historiadores de
situar o barroco, as emergências barrocas, nos sécs. XVII e XVIII. Mas esta
via de situação, para nós, interessa menos. Estamos aqui no campo da letra. E
também podemos encontrar, por vezes, isto mesmo dentro do campo da crítica
de arte, ou seja, a situação mesma do barroco enquanto letra, enquanto
movimento específico. Onde vai se situar o barroco? Na arte rupestre, na arte
gótica, há barroco, etc. Para essa crítica o barroco não é tratado como uma
invenção de um determinado momento da história, mas como determinado estilo,

426
A Polética do Dleseijo

determinada forma de tratamento, de uma forma que é radicalmente diversa do


tratamento dito clássico. O barroco não é classificatório, ele é volutivo,
circunvolutório, expansivo, furado. Ele tem seu centro fora, fora da sua sime-
tria e fora do seu corpo. Quer dizer, ele tem referência ao furo, campo do Outro
– o centro está lá fora.
O barroco seria, e Lacan deixa isto bastante claro, da ordem do feminino.
Do ponto de vista da história do barroco enquanto surgimento cronológico, Lacan
diz que ele é a historinha do Cristo, pois o centro do Cristo dessa historinha está
fora, no Pai do Céu. O barroco é obsceno, é nu. Quanto mais vestido, mais
pelado ele fica. É a exposição do corpo em movimento, porque se o corpo não
for regrado, do ponto de vista da arte egípcia, da canônica grega, se ele fizer o
menor movimento, abarrocou-se. O corpo é barroco – o corpo é feminino. A
arte egípcia é masturbatória ao extremo, auto-referência constante. Coisa que
não encontramos, por exemplo, na Pré-História, que é mais – plutôt – barroca.

* * *

O que me interessa situar, como já disse, é esse barroquismo que Oswald


está procurando.
Do lado do clássico, então, talvez possamos situar essa vocação
masculina do desejo, mas referente ao mesmo, na escrita sintomática daquilo
que Lacan apontou como o lugar do tesão. É o lugar da língua dos lingüistas, da
classificação da língua. É um lugar de onde o sujeito não quer atingir o Outro,
mas sim exibir-se na sua glória sistêmica, mediante a afirmação purista de um
cânone que regula a obra, e que é comensurável com ela. É o narcisismo da
canônica. É o gozo idiota. O clássico pensa que goza falicamente.
Naquela distinção – que sempre me pareceu careta – entre apolíneo e
dionisíaco, é preciso apreender Apolo, porque Apolo não é assim tão careta.
Mas já fizeram essa distinção, quer dizer, o apolíneo feito o clássico, regrado,
regroso, centrado, com sua canônica, etc., é o dionisíaco como barroco. Essa
dicotomia é o que tentam alguns historiadores da arte.

427
Psicanálise & Polética

Mas o que seria o espírito do barroco na medida em que ele pudesse


ser situado como feminino? Ele é ex-cêntrico, descentrado, querendo ser Outro.
É algo como “sartar” fora, até das leis inarredáveis da ereção tectônica. Os
arquitetos levantam o prédio, o prédio fica de pé, e aí eles começam a desregrar,
a movimentar o edifício – como fez um Gaudí. O centro de gravidade parece
estar fora. O barroco, não diria nem mesmo que ele quer atingir o Outro, ele
quer ser Outro.
Como ninguém consegue ser Outro, o que acontece nessa tentativa é
que se pode fazer algum desregramento, uma referência insistente ao furo, a
essa ausência de centralismo dentro do próprio corpo: o processo é dispersivo,
as formas se jogam para fora, quando não produzem, no sujeito mesmo, na
tentativa de ser Outro, um fracionamento em ser outros.
Aí encontro o que nenhum crítico (por falta de Lacan – não tiveram
bom padrinho) conseguiu abordar na chamada heteronomia de Fernando Pessoa,
nos seus heterônimos, na sua heteronominação. A dispersão de Pessoa pelos
heterônimos é aquilo que ele confessa em tantos poemas, em várias declarações
em prosa: Eu queria ser outro para não ser eu mesmo... E ele nunca sacou
bem o que fosse isto, pensava que tinha algum problema psiquiátrico...
É aí que se situa Picasso quando diz que não tem estilo. O que não é
verdadeiro. Na medida em que tenta ser Outro, ele encontra Picassos. Ele só
não se deu ao trabalho, como Fernando Pessoa, de partir-se em vários nomes.
Na medida em que se esbarra com o furo do Outro, espedaça-se. Fernando
Pessoa se espedaçou ao mesmo tempo, por isso precisava de um nome para
cada um, senão se perdia. Picasso foi uma espécie de Don Juan da pintura:
uma depois de outra e, assim, não precisava inventar vários nomes. Ele fez
isso na sua própria vida, como lembrou o fazedor do tape sobre ele, que passou
na TV. Picasso mudava de Picasso a cada mulher. E “cada mulher” não é um
Picasso. A cada mulher Picasso virava Outro, a cada picada espicaçava Picasso.
Eu não poria Picasso e Pessoa no mesmo lugar. Diria que Picasso
participa desse barroquismo no esfacelar-se. Foi depois que Picasso inventou
a “fase” que os artistas que o seguiram se acharam na obrigação de ter fases...

428
A Polética do Dleseijo

Picasso mudava de idéia e dizia que era uma fase – azul, rosa, cubista, etc.
–, quando, na verdade, ele ia era se partindo. Outros fazem isso por imitação.
Não têm coragem de pintar a vida toda a mesma coisa, tem alguma vergonha
depois que Picasso fez isso.
Ficou então essa dicotomia clássico/barroco, masculino/feminino. Eu
me pergunto se não faltou uma certa inscrição nessa história, pois nem tudo é
clássico ou barroco. Os críticos ficam perplexos, na medida em que tentam
amarrar as estruturas. Eles oscilam. No campo da abordagem dos estilos, da
estilística – não no campo da história da arte, pois esta porcaria não existe, é
sonho de historiador –, não ficou, então, faltando um termo? Não é precisamente
só um lugar, mas um modo de operação, pois afinal de contas o estilo, além de
ser um lugar, é um modo de operação. Não faltou isso que Lacan veio nos
mostrar, esse argumento que é a travessia, a transação?
Estou insistindo na heterofagia, em substituição ao termo antropofagia
de Oswald. Gostaria de situar melhor o que é essa heterofagia, que ponho
como principio de heterossexualidade. O que é isto, a rigor? Onde foi que os
falantes acaso escreveram isso por aí estilisticamente?
Há pouco eu disse que a língua, do ponto de vista do lingüista, é macha,
clássica. E o desvario, o palavrório feminino, é barroco. A alíngua, onde é que
ela fica? Ela não é barroca. Ela não tem centro fora, porque não se trata de
centro. Lacan disse que ela é feminina, mas, por outro lado, ela se regra a si
mesma, esteada em alguma coisa, por exemplo, no Nome do Pai, embora o
sustente provisoriamente. Ela participa, ao mesmo tempo, como Milner situa,
do ponto de vista da língua, da gramática, e, como Outro, do feminino. En-
tretanto, Milner também diz que alíngua tem a estrutura da banda de Moebius,
e a estrutura da banda de Moebius não é o feminino. É o entre, a travessura:
a estrutura da travessia. Só se atravessa, só se faz passe, pela alíngua. Então,
proponho, como estudo, pensar: o Clássico, o Barroco e o Heterófago, uma
outra categoria.
O heterófago não é um caso do clássico, que não quer atingir o Outro.
Também não é um caso do barroco, que quer ser Outro. Ele é o que quer

429
Psicanálise & Polética

atingir o Outro. Temos então duas vertentes do heterófago: a masculina, de


atingir o Outro pelo desejo, chegando ao amor pelo desejo, e a feminina, de
chegar ao desejo pelo amor. A heterofagia tenta estas duas vias querendo atingir
o Outro. Reconhece entretanto não poder passar para o Outro lado, nem ser de
Outra espécie (que, infelizmente, não há). Neste caso, o sujeito aplica a um
sistema rigorosamente clássico, regulável, matematizável, um estilo barroco, e
aí ele fura, mas por dentro.
Quem fez isso, que nós conheçamos? Jacques Lacan, Marcel Duchamp,
Pablo Picasso (este inventou rigorosamente o cubismo, e o abarrocou), Cézanne,
Guimarães Rosa... Estou farejando, não estou demonstrando: Beethoven, que
pensam que é um romântico – o romantismo é um certo desvio do barroco –,
mas é aquele sujeito que abarroca tudo, e quando se analisa sua partitura, ela é
rigorosamente computável, canônica... Ele fura por inscrição. É na escrita que
ele fura... Bach, outro exemplo, do ponto de vista da história da música, é
considerado clássico, quando ele se situa num momento barroco e abarroca
sua música. Há, como se sabe, uma sistêmica rigorosa em Bach, e um reviramento
estilístico barroco.
O regime do inconsciente, por sua vez, também, ou melhor, sobretudo,
fica no entre, na medida em que vai do amor ao desejo e do desejo ao amor. É
radicalmente heterófago. Por isso você às vezes se surpreende femininamente
e às vezes masculinamente. Atenção: o inconsciente não é um sujeito, ele não
tem que escolher se é masculino ou feminino... Freud disse que ele não tem
sexo. Ele há.
Heterófagos são Mársias e Aracne, de que tratei quando falei de
Velázquez. Não o são nem Apolo nem Dionísio. Aracne, que vem, de uma via
de amor, fazer as suas tessituras em busca do desejo, e Mársias que, através do
desejo, faz pintar o amor.
O heterófago parece mais barroco do que clássico porque, na sua
emergência, inscreve barrocamente. Por isso Lacan se tornou uma figura
inassimilável para o francês, difícil de engolir. Se tomamos sua via barroca, ele sai
para o centramento e diz: “Je père-sévêre”. Aí começam a dizer que ele é autoritário.

430
A Polética do Dleseijo

Encontramos masturbações masculinas, homossexuais, tentando se


meter dentro do campo da psicanálise. Encontramos também desbundes
femininos ou feminizantes que não suportam coexistir com o discurso
psicanalítico enquanto tal, nem com nenhum rigor. E o que Lacan vem nos
mostrar é que justamente uma heterofagia é possível. A transação é possível,
embora a relação sexual seja impossível, embora o próprio amor seja impossível.
Lacan vem inaugurar um terceiro lugar.
Há historiadores da arte, críticos, estilísticos, que situam uma coisa
importante que interessa no caso do sujeito Brasil. Na tentativa de abordar
esses barrocos e situar o barroco enquanto descentramento que se pode
reencontrar da Pré-História aos nossos dias em diversas aparições, eles não
colocam uma terceira posição, eles abarrocam ou classicizam, mas chamam
atenção para o fato de que o barroco é uma invenção de Portugal. Críticos e
historiadores deixam isto claro, mas isto tem sido denegado. O barroco foi
recusado em vários lugares, e foi assimilado fingindo-se de filho legítimo em
outros. O barroco é português. É o império da vontade portuguesa de ir ao mar
dos seus descobrimentos, de querer atingir o Outro. Mesmo a Espanha, segundo
historiadores espanhóis, tem o seu barroco tirado de Portugal. Camões é clássico
para a História? Tornou-se um clássico, mas clássico não é.
Vejamos, por exemplo, um autor espanhol, Eugenio Dors, do livro Le
Baroque, edição francesa, no qual previu e visualizou coisas importantes. Embora
espanhol, ele defende a origem portuguesa do barroco. Ele diz mesmo que
“aquele que deseja possuir uma das chaves-mestras que permitem explicar a
arte espanhola e definir o caráter que ela tem, que a procure em Portugal. De
Portugal, com efeito, provém a metade do sentido secreto da nossa história
espiritual. Que digo eu, da nossa? De toda a história européia, provavelmente”.
E ele vai fundo: “Certa vez arrisquei que, no composto designado com o nome
de cultura, a Europa não apresentava à análise rigorosa senão dois corpos: a
Grécia e Portugal. O resto é talvez uma questão de dosagem”. Era preciso
retomar esta via. Não devemos esquecer – Oswald me lembrou isto –, por
exemplo, que a Demanda do Santo Graal é um texto português.

431
Psicanálise & Polética

Se foi na Grécia que se procurou a essência mesma do classicismo,


Portugal nos ofereceu a estrutura do barroco. Esse autor tenta demonstrar isto
e nos diz que aquilo que chamamos de estilo jesuítico, que ele situa como certa
emergência do barroco, não são senão os estilos mesmos da civilização. E,
mais adiante, pega o exemplo do pintor Nuno Gonçalves para demonstrar que
é este o precursor da pintura barroca. Esse autor diz que Portugal inventou o
barroco. Inventou significa que aquilo que se chama barroco de época, emergiu
lá. Ao mesmo tempo, ele também diz que a Pré-História é barroca, o gótico é
barroco, etc., enquanto letra fundamental.
O que Portugal inventou? Inventou foi o Brasil, o heterófago. Portugal
inventou a heterofagia na medida em que lá há rigor, e também na medida em
que a arquitetura portuguesa ficou deslocada. O estilo manuelino, por exemplo,
ninguém soube entendê-lo porque dava aparência de rigor arquitetônico e, de
repente, pintava aquela floração numa janela, uma coisa que é do barroquismo
mais exacerbado. As pessoas diziam que era uma emergência local, um negócio
sem pé nem cabeça, etc. A meu ver, é simplesmente a heterofagia. É a via de
atravessamento, de manter o rigor e furar esse rigor.
Estive falando aqui de Velázquez, e eis que topo, no texto desse
livro que estou citando, e que recebi esta semana, não o havia lido antes,
com o autor dizendo que Velázquez é a fina flor da pintura portuguesa,
desse “barroquismo” português. O que eu estava mostrando em Velázquez
é que ele justamente põe esse rigor, fura esse rigor, e lhe contrapõe a Lei
do Amor.
Minha tese de anos atrás é a de que no ato-poético ou se vai de H
para H’, ou de lá para cá. Mesmo o clássico, por mais rigoroso que seja –
clássico não é o acadêmico –, com todo o seu rigor, em sendo poeta, faz a
travessia. O que tentei demonstrar com Guimarães Rosa é justamente que o
ato-poético faz perder os sentidos. Naquele tempo eu dizia assim. Hoje diria
que o ato-poético faz a travessia. Isto na medida em que ele pode partir do
clássico e furar, abarrocar-se, ou na medida em que ele pode partir do barroco
e organizar-se, canonizar-se.

432
A Polética do Dleseijo

O fato, por exemplo, de introduzir algo que dantes não estava em moda,
pode ser tomado como um furo nos costumes. Há tendência, da crítica musical,
de tomar os acontecimentos musicais através da audácia do artista de romper
com uma forma habitual. Não é aí que está a questão. A questão é que
justamente se fura uma estrutura rigorosa mesmo dentro de uma aparente
mesmice dos hábitos. Foi para isto que chamei atenção em Velázquez. Ele
finge muito bem que é careta a ponto de poder ser nomeado Aposentador
Real, no entanto ele é poeta, fura, e instala a diferença. Não se pode fazer a
crítica dos estilos pelas audácias particulares, porque isso fica frouxo. Peguem-
se, por exemplo, as produções certinhas de Beethoven. Gosto de citar a Sonata
ao Luar: é aquele negócio aparentemente quadradinho, mas com um só
acordezinho que ele pega, faz aquela loucura. Outro exemplo, a 5ª Sinfonia, a
caretona, aquela que dizem que é coisa de povão: “Tcham-tcham-tcham-
tchaaam!”. No entanto, com isto quebrado, alternado, repetido, ele faz aquela
loucura, ele fura. O tal “tcham-tcham-tcham-tchaaam” é um suspense... do
furo. Beethoven não é romântico, nem clássico. Beethoven é heterófago.
Faço distinção entre o romântico e o romantismo enquanto tal. Segundo
esse historiador espanhol e outros, não é romantismo, é barroco. Certa vez
escrevi, há tempo, um artigo que não publico porque é péssimo, mas que talvez
seja um primeiro farejamento meu a respeito desse assunto, que se intitulava
Romantismo e Neurose. O romântico não é senão o discurso da – histérica –
insisto nisto que escrevi lá. A histeria é justamente a denegação do feminino,
querendo ser homem: a histérica, como disse, quer chegar ao amor pela via do
desejo, quando a sua própria via é a do amor.
Fico tentado a fazer uma coisa perigosa, que é assimilar os quatro
lugares de que falei aos quatro discursos de Lacan. Poderíamos dizer que o
clássico é o discurso do Senhor... a sua impostação de dominação através de
S1 de auto-referência, etc., e a tentativa impossível de se apoderar do objeto.
Impossível no discurso do Senhor, significa que há lugar para o poeta, dada a
impossibilidade de fechar. Mas nem toda impossibilidade é da mesma natureza,
por isso Lacan faz diferenças na instalação dos discursos. No discurso da

433
Psicanálise & Polética

Histérica, na disjunção entre o primeiro e o último termos, Lacan não fala de


impossibilidade e, sim, de impotência. O impossível não pinta para a Histérica,
assim como também não pinta para o Universitário. Ele pinta para o Senhor, e
por isso é possível ser poeta clássico. Também pinta para o analista, por isso é
possível ser poeta heterófago. Mas isto não cola bem.
Eu não diria, portanto, que o barroco é um desses discursos, o barroco
é a referência ao furo – o barroco é feminino. O barroco vai abarrocar para
algum lado. Não vou dizer que ele seja situável num discurso, como é o Clássico,
por exemplo. Os clássicos são determinados e canonizados, são discurso de
mestre. Com o barroco, tem-se a sensação de poder situá-lo, mas os críticos
ficam perdidos, pois há barroco em toda parte. Eles não o situam porque o
barroco não é um discurso, ele é a referência feminina, referência ao furo.
Onde ele pinta, abarroca tudo. Então, ele pode abarrocar o discurso do Senhor...
e o discurso do Analista, na medida em que o discurso do Analista é
heterossexual, é de transação. Mas ele não consegue abarrocar o discurso da
Histérica, ele o desmunheca, ele o romantiza. Isto não significa que, lá no
período romântico, usando os estilemas do romantismo, não tenham existido
poetas, porque eles não são românticos, eles são barrocos e lançaram mão dos
estilemas. Mas encontramos aqueles que são absolutamente românticos, quer
dizer, histéricas que vivem da tentação de fechar o processo, esteados numa
estrutura neurótica, e que não conseguem fazer um poema e, sim, uma
desmunhecação: eles dão um ataque histérico. A vocação do show-man
romântico, a vocação que existe por aí em certas músicas populares, etc., é a
vocação histérica.
Quem é o Universitário? Pode ser o chamado acadêmico, que pega
a receita, põe no sovaco, leva para o ateliê e pensa que vai produzir uma
obra de arte.
Portugal inventou a heterofagia, inventou o Brasil, como já disse, e nós
precisamos sacar, na nossa via, essa vocação heterossexual do brasileiro. Por
isso o brasileiro dá sempre um jeitinho. O que é o jeitinho? É a possibilidade de
transar com Outro, lado, com a maneira de atuar do Outro, de inventar um

434
A Polética do Dleseijo

modo de aturar o Outro. Quando digo que Freud inventou a psicanálise, que já
existia, quero dizer que ele destacou o seu discurso. A psicanálise não foi criada
por Freud, ela foi inventada por Freud. Ela foi criada pelo inconsciente, já
estava aí. Freud criou a invenção chamada psicanálise. O que estou dizendo,
comparativamente, é que o português criou a invenção chamada heterofagia.
Há uma congruência, destacada por esse mesmo autor que venho
citando, entre Portugal, os Países Baixos e os países nórdicos, em termos de
filosofia. Consta que houve emigrações em conseqüência de algumas guerras,
e muita gente foi para a Bélgica, para a Holanda. É o caso, por exemplo, de
Espinosa, com o seu barroquismo holandês. Espinosa é galego, português. A
família dele era portuguesa, e não adianta escrever em holandês porque está
na cara que ele é português.

* * *

Quero ir por essa tentativa de distinguir uma terceira via, que nos foi
aberta por Lacan, nesse campo de abordagem estilística, e ver a nossa história
heterofágica pela via de Oswald. Felizmente, na minha infância, os livros que
eu lia escondido eram livros dos chamados “clássicos portugueses”, onde
podemos situar Camões, por exemplo. Então isso me passa bem na cabeça...
O Oriente, também, é demais importante, na medida em que o português
é tão heterossexual que vivia paquerando as Índias, em todos os sentidos... O
português vivia procurando o caminho para chegar às Índias. E chegou mais
às índias diversas...
O barroco brasileiro é uma coisa estranha. Esse autor espanhol quer
destacar algo que me deixa impressionado, e que merece estudo, quando fala
justamente sobre isso que chamamos de estilo colonial, que suponho inventado
por Portugal. Mas ele vem dizer justamente da dificuldade de situar esse estilo,
na medida em que é de impostação da estilística barroca e tem aparência de
construto clássico. Aí me pergunto se esse estilo, colonial, não é lugar propício
à proliferação da heterofagia, já que há nele certa relação entre mestre e

435
Psicanálise & Polética

escravo. Se o escravo é o Outro, há relação entre a referência ao furo e a


dominação do significante, na impostação do processo de colonização.
É o que foi destacado por Gilberto Freyre como a grande maleabilidade
portuguesa: a possibilidade de transar, a possibilitação de esses dois lugares
se sustentarem em transação. O português não foi aquele colonizador que
dizia “o mestre sou eu, e ponto”, como fizeram o espanhol, o inglês, o francês.
O português dizia “o mestre sou eu, logo, me desbundo com as investidas do
escravo”. É a política do dleseijo. Assim como ele fez com o Oriente, o fez
aqui. Quando Portugal sai procurando o caminho das Índias, começa a ficar
reorientado, orientalizado.
É essa transa, essa textura, a questão principal do que eu pretendia
colocar aqui: o lugar do terceiro.

07/OUT

436
O ora que emprogresse

19
O ORA QUE EMPROGRESSE

Antes de retornar propriamente ao nosso tema, quero apresentar, à


guisa de ante-fala, como quem diz ante-sala, duas pequenas coisas:
Em primeiro lugar, a carta que enviei à École de la Cause
Freudienne de Paris, com data de 9 de outubro passado, um mês após o
falecimento de Lacan:

M. Le Directeur de l’École de la Cause Freudienne


Cher Monsieur
Après la disparition de la Cause Freudienne, où
j’ai été reçu comme membre par M. Le Docteur Jacques
Lacan, je me suis inscrit comme membre dc l’École de la
Cause Freudienne – c’est que c’était là qui enseignait
mon maître –, et j’avais l’intention d’y rester pour les temps
de sa presence personnelle.
C’est donc ma démission que je vous présente. Ça
va sans dire que ladite démission ne porte pas sur le respect,
l’amitié même que je puisse attribuer à tant de ses
membres.
Avec mes sentiments les meilleurs,
Votre,
mdmagno

437
Psicanálise & Polética

Ou seja, traduzindo: “Caro Senhor” – não sei quem é o Senhor, porque


não sei quem está na direção da École. “Após o desaparecimento da Causa
Freudiana,” – ela não foi dissolvida, ela sumiu –, “onde fui recebido como
membro pelo Sr. Doutor Jacques Lacan, eu me inscrevi como membro da
Escola da Causa Freudiana – é que era lá que ensinava meu mestre –, e tinha
a intenção de lá restar pelo tempo de sua presença pessoal. É, portanto, minha
demissão que lhe apresento. É evidente que tal demissão nada tem a ver quanto
ao respeito, à amizade mesma que eu possa atribuir a muitos dos seus membros.
Com meus melhores sentimentos...”.
A segunda coisa é que ontem, embora fosse terça-feira, Clare Isabella
Paine e eu, junto com mais algumas pessoas, também ditas psicanalistas,
participamos de um Sábado forte, que é o nome de um programa que a TVE
faz, e que seria levado ao vídeo no sábado. Dessa oportunidade cheguei a
fazer mesmo questão, pois é um tipo de experiência que gostaria de mensurar.
Não a experiência de sentar lá diante das câmeras com as pessoas, porque
isso a gente já conhece, mas de sentir, após a manipulação que certamente
esses acontecimentos sofrem por parte da direção do meio, a televisão, que
eventualidades podem se dar mais ou menos eficazes no destacamento de
alguma diferença. Gostaria de ver isso funcionando. Não é, na verdade, um
lugar onde se vá. Não pensem que é o tipo de ato, de ação, que interessa, pois
não interessa muito para nós. Não se deve fazer isso. Minha intenção era
justamente tentar medir certos efeitos. Quero ver como funciona... Curiosidade.
Minhas relações com a imprensa sempre são meio ruins. Embora
imprimir livros também seja imprensa, chamam mais de imprensa essa coisa
que é da ordem do jornalístico... Para mim, “imprensa marrom” é pleonasmo,
pois não existe imprensa de outra cor. Até acho que os jornais deviam ser
impressos em sépia, para isso ficar evidente. Marrom, castanho, em suma, as
cores da merda, como diz Lacan, que são as que nós temos. A televisão cobre,
tenta se aproximar da pintura, tenta soltar cores do nosso corpo, que não sejam
as únicas que a gente costuma soltar... Não sei como se poderia reduzir isto,
mas me parece constante na chamada imprensa, essa atividade anal.

438
O ora que emprogresse

Já dissemos aqui que nós queremos ser oral-listas, e não anal-listas.


Anal-lítica, essa escrita de pedra, é da ordem da prisão de ventre. Se
aproximarmos isto da mentalidade medieval, ficamos no mesmo escopo de
proporcionalidade que se poderia encontrar entre o discurso psicanalítico e a
alquimia. Se observarmos bem, a psicanálise transa com o mesmo objeto da
alquimia, mas não é o discurso da alquimia, pois este trata a pedra filosofal dentro
de um escopo anal, merdoso, de laboratório, de manipular massas tipicamente
fecálicas, para ver se o acha... Não pode achar mais do que um fecaloma.
A gente não faz só o que deve, faz também um monte de besteiras. E
isso participa da ordem do escrito em geral. Lembro-me que num texto meu,
bastante velho, publicado em 74, que é supostamente literário, em algum lugar
escrevi que “todo papel tem vocação para higiênico”. Anos depois, num dos
Seminários que assisti, de 1978, Lacan dizia, mais ou menos, pois não tenho de
memória, que “l’écrit participe du papier avec lequel on en torche le cul”, que
o escrito participa do papel com o qual a gente limpa a bunda. É esse tipo de
gretamento da superfície limpa, pelo nosso dejeto. Agora, o modo de operação,
na medida em que a gente limpa mesmo o rabo e deixa aparecer a dejeção, é
lidar com o modo de surgimento de risco que o objeto a traça por aí.
Quando digo que toda imprensa para mim é marrom – o “marronzismo”,
como diz o coronel de Sucupira –, é na medida em que quero supor que é da
ordem do impraticável – não sei se é bem impossível –, dadas as conjunturas,
que houvesse uma imprensa limpa. Ou seja, que pudesse expor toda dejeção
do discurso. Tem a pressão de custos, de público, de interesses, etc., e,
sobretudo, no momento em que vivemos... Não é brasileiro, é mundial, momento
no sentido de inserção cultural, da intencionalidade da imprensa. No fundo, o
melhor dos jornalismos é um O Dia sofisticado. A intenção é o chocante.
Acontece com o discurso do jornalismo a mesma coisa que acontece
com o discurso da pedagogia, que diz que está lá para “desenvolver plenamente
as potencialidades do educando”. É mentira. Está lá para entupir o cara, e
demarcar um lugar para ele. O jornalismo diz que está lá para informar o
público. É mentira. Está lá para destacar essas coisas chocantes e faturar em

439
Psicanálise & Polética

cima da besteira. Então, não se pense que não se sabe desse risco... Estou
apenas alertando que não se deve fazer isso que a gente fez, mas insisti em
fazê-lo porque é um certo tipo de experiência, de risco que quis correr.
Por exemplo, o próprio Lacan, depois de certa insistência da televisão
francesa em entrevistá-lo, só aceitou na medida em que se pusesse tudo o que
ele disse, sem interferência, e que o entrevistador fosse fulano de tal. Isto é
possível, de vez em quando, num certo lugarzinho, de certa cultura... Mas a
televisão francesa não é assim. Ela é igualzinha à nossa, só que com menos
refinamento. Meu interesse, portanto, ao ir lá na televisão, é somente saber se
pinta, apesar de tudo, alguma diferença. Quero saber se o fato de estarmos
falando de outra postura, mesmo com os estilhaços, recortes, etc., consegue
fazer pintar alguma diferença. Vou medir isso por alguns efeitos de público,
que eu possa pegar de orelha, mas, sobretudo, quero ver a minha própria visão.
Se acaso sinto que está diferente. Não tenho certeza, preciso ver...

* * *

Nosso título de hoje está escrito na intencionalidade de um voto: o ora


que emprogresse.
Ora, sem h, pode ser uma conjunção adversativa, significando: mas,
note-se que; pode ser um advérbio, significando agora, atualmente,
presentemente – o que ora digo; pode ser uma interjeição, significando
impaciência, zombaria, menosprezo – ora! Tudo isso segundo o Aurélio. Pode
significar também dúvida: ora isso, ora aquilo, umas vezes isso, outras aquilo;
ora pois, outra expressão que significa: assim sendo, ou, à vista disto; por ora,
por enquanto, sobretudo. Em todos esses momentos, sobretudo no que o Aurélio
destaca como dúvida, o ora é equívoco ou leva mesmo a certa perplexidade. É
importante destacar o sentido equívoco desta palavra. E também não esquecer
que pode ser tempo e modo de pessoa do verbo orar, aquele com que o
psicanalista tem a ver. O verbo orar, em torno da pulsão, que organiza os
movimentos na psicanálise, a oralidade e a fala.

440
O ora que emprogresse

Adiante, boto o termo “que emprogresse”. Não está dicionarizado. Aurélio


não botou, mas é português, é brasileiro. Ele diz o progressivo, o progresso, o
improgressivo, o contrário de progressivo, etc., mas o emprogresso, o
emprogressar, não está no dicionário. Mas é válido na medida em que esse “em”
tem, na língua brasileira, duas origens, uma latina e outra grega. Na latina vem de
um certo in, prefixo, que significa movimento para dentro, como aparece na
palavra embarcar, engarrafar, ingerir, irromper, emprenhar, encher, etc. Tem
também o sentido prefixativo de transformar, guarnecer, prover, como no caso
de encher, embelezar, enrodilhar, enriquecer. Pode ser um prefixo expletivo –
aquele que tem a função do ne francês, que é de grande equivocidade –, enfitar,
embonecar, enfincar. Pode vir, também, do en grego, como prefixo. Significa
posição interior, dentro, elíptico, embrião, assim como pode vir do latim ex,
significando movimento para fora, separação, transformação, intensidade, como
emigrar, espernear...
É uma grande equivocidade, por isso que falo: o ora que emprogresse.
Lacan veio mostrar justamente que a própria psicanálise é um ora que
emprogressa, em todos os sentidos dessas fixações... É um ora equivocativo,
que emprogressa no seu movimento. No sentido em que Lacan diz que ninguém
sabe o que é a psicanálise, pois ela é a pergunta “o que é a psicanálise?”. A via
da psicanálise é esse ora, sobretudo, enquanto oração. O oralismo da
psicanálise, que diz, ora...
Estou me referindo ao movimento mesmo do nosso trabalho aqui. Se
prestarem atenção no que venho dizendo durante este segundo trimestre,
verão que estou tentando, cada vez mais, aproximar o objeto, fazendo
correções, modificações... E hoje vão pintar modificações. Isto é que faz
diferença entre Seminário e curso, aqui na nossa terminologia. Curso é quando
se estudou determinado assunto e se vai explicar para alguém. Seminário é
lugar onde estou pensando, tentando pensar, enquanto vai-se produzindo o
Seminário. O ora que emprogresse é aquilo que Joyce demonstrou ser esse
tipo de atividade: work in progress – foi a maneira como consegui traduzir.
Lacan se referiu algumas vezes a isto. É um trabalho que está se fazendo,

441
Psicanálise & Polética

inclusive com respostas às perguntas, etc. É da mesma estrutura do jazz, e


do pensamento de Joyce... Vai surgindo do relance do próprio despejo
significante, no relanceamento do desejo, no público... Foi o que Lacan fez,
work in progress, o tempo todo, o ora que emprogresse. Donde esta
tentativa minha de tradução...
Não é o mesmo dístico que lemos na sagrada bandeira brasileira,
Ordem e Progresso. Mas deveria ser o ora que emprogresse... Pois, aonde
vamos chegar, também, é que o Brasil talvez apresente como uma
característica dos elementos significantes da sua sintomática ser um país em
obras. Um país em obra, melhor dizendo, um work in progress, um ora-que-
emprogresse. O lema, então, é esse, mas eles pegaram, naquele momento da
República, o lema comtiano. Erraram a coisa, não tem nada a ver. Escutaram
o Augusto, não conheciam o Lacan, o Joyce... Foi o que tinham disponível no
momento. Só que fizeram uma leitura pior, porque mesmo em Augusto Comte...
Vocês sabem que ele foi o primeiro maluco que se chamou de Napoleão.
Quando pirou, ele botou a mão no peito e disse: “Eu sou Napoleão”. E esse
negócio pegou...
Esse positivismo desvairado luta nos jornais brasileiros, hoje, pela via
de determinado civismo escritor, para se reinstalar desesperadamente no
Brasil, porque é muito aproximado das potencialidades da tomada do poder.
A idéia de positivismo é a idéia de açambarcar e de agarrar, como se o
conceito fosse no sentido do Zenão: a apreensão mesma da coisa, agarrar o
objeto, o saber, e conhecer definitivamente. O positivismo está aí brigando
pelo retorno àquele lema do Augusto... Só que acho que o Augusto era até
mais inteligente. Quando o lemos um pouco verificamos que está falando
justamente daquilo que ele não sabia nomear no momento: metáfora e
metonímia. Não era bem um estúpido. Podia ser maluco, mas estúpido não
era. Isto na medida em que consigo entender que ordem e progresso é
justamente a postura de mostrar que o movimento das estruturas sociais –
ele foi o homem que fundou a tal da sociologia –, a estrutra dos movimentos
sociais, dos movimentos sociológicos, é um processo de ordem, quer dizer,

442
O ora que emprogresse

de coagulação de uma ordem e, depois, de um progresso: desmembramento


de uma ordem e a constituição de outra. Mas os positivistas ficaram só com
o lema e esqueceram de ler o próprio Augusto. E pensam que é progresso
em cima da ordem antiga – ele não disse bem essa bobagem...
Ontem, aliás, na tal entrevista da televisão, tive, de repente, que ficar
meio bravo porque um rapaz, se dizendo psicanalista, só falava sociologia
pura. Tive que dizer que se a psicanálise é isso, não serve para nada, acho
bom os psicanalistas abandonarem o campo. Se já há sociologia, precisa-se
de psicanálise para quê? Não há motivo para ninguém ser analista. Se é isso
a psicanálise, então, acabemos com isso, pois é um absurdo – e sejamos
sociólogos. Ou ela tem uma diferença, ou ela não tem.
Nesse sentido do ora-que-emprogresse, não é bem nem a ordem e
progresso do Augusto, nem a leitura, pior ainda, que se fez. É essa sintomática
que Oswald, em contraposição ao movimento dos positivistas, vem mostrar
como furo no discurso. Isso vai ser importante para nós, exatamente porque
talvez possamos fazer uma diferença entre ordem e progresso aí, e entre o
ora-que-emprogresse naquelas duas posturas.
Essa postura positivista promete posições, cargos, dominações, do
nível do poder instituído. Aliás, os renovadores dessa postura estão buscando
desesperadamente discurso tipo Popper, etc., para garantir uma lógica
coerente, fechada, que considero da ordem da burrice mesmo... Mas o pobre
do burro não tem nada com isso. O burro é um animal muito interessante...
Simboliza, até, para Lacan, o analista. Ele diz que o analista é um burro, isto
é, enquanto, totemicamente, o pai do analista fosse um burro, aquele ser que
é simplório, carrega as cargas, etc. Tem outra conotação, diz ele, l’âne-à-
liste: o burro listado, alistado, que está dentro da lista – a lista dos significantes,
dos nomes. O burro está lá na capa da última revista que tem a ver com
Lacan, L’Âne.
No Brasil, chama-se jegue. Em brasileiro, o analista é um jegue. Agora,
é um jegue que está armado de um discurso virulento, percuciente, tem
ferramentas, armas para não ser simplesmente a metáfora do estúpido. Não é

443
Psicanálise & Polética

igual a outra via, aonde vamos encontrar, por exemplo, um jegue inerme, que
pode, por essa via do discurso positivista, tomar o poder, daqui a pouco tem um
jegue inerme no mercado e ó... O jegue inerme quer pior...

* * *

Bom, então, estabelecidas essas diferenças, vamos à nossa política e


ao ora-que-emprogresse, se conseguirmos.
Dia 12 passado, acumulando cargos com o dia da criança, o calendário
fundou um novo feriado depois que Sua Santidade esteve entre nós. O dia foi
santificado como o dia de Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Como
coincide com o dia da criança, restaura a força da reprodutividade do sexo,
então a Conceição entra aí com muita precisão – isto no nível do espraiamento
do sintoma. Aparecida, que coisa estranha, esquisita, apareceu... Porque as
coisas aparecem, são fantasmáticas... Aparecida ainda por cima, se não A
Parida – é muito pregnante. Mas é interessante porque é uma espécie de
peixe insolúvel – ao contrário de Breton, que, de repente, é pego numa lenda
–, pois parece que uns barqueiros pescadores, no que puxaram a rede com os
peixes, veio aquela estatuazinha no meio: ela apareceu, aparição escurinha.
De repente, então, numa pesca, o objeto a se configurou, se localizou ali
para eles como essa padroeira, este é o nome. Não é madroeira. Quer dizer,
seria justamente o objeto da perversão, da père-version, brasileira. Em brasileiro,
o Nome do Pai é a Padroeira do Brasil: Maria Aparecida, parecida com o objeto
a, a escurinha aparecida, tipo mulata... Gosto muito dessa figurinha, porque
coincide com a sintomática nossa. Quando a gente tem uma mulata, não se sabe
bem qual foi a transa. Não sabe, por exemplo, se o pai é preto ou branco, se a
mãe é preta ou branca, se tem alguma gota de índio... Estou querendo destacar
como se coalesce, até na distinção de um objeto que vai significar a paternalidade,
o objeto de père-version, que se configurou nessa Senhora a-parecida. Ou a
parricida... É a questão do Nosso Pai, entre o preto e o branco: ora um, ora
outro, talvez, ora, ora. E a equivocidade mesmo do pai brasileiro – ora pois.

444
O ora que emprogresse

O Nome do Pai é sempre equívoco, como é essa equivocidade do


preto e do branco no nosso caso. Equívoco sobretudo no que o Nome do Pai
indica o feminino, como já vimos. Por exemplo, na minha fala sobre a tal
Améfrica Ladina, eu me perguntava a respeito da relação do português com
o negro, do surgimento desse Pai Preto, Macunaíma, etc.
Hoje gostaria de acrescentar alguma coisa, talvez equivocar um pouco
mais. Naquele momento eu dizia que talvez a sintomática cultural brasileira
fosse a do amefricano. Será que é vergonha? E se o pai é crioulo? Mas, na
verdade, é equívoco esse pai. É equivoco na medida em que o português –
lembrando, por exemplo, do testemunho de Gilberto Freyre – talvez seja, na
nossa perspectiva, o inventor da Heterofagia. A Antropofagia de Oswald
vem também do português. Oswald situou a antropofagia no índio, citado por
Montaigne nos processos rituais, canibalísticos, de comer a carne do outro,
na suposição de introjetar os elementos sígnicos, simbólicos desse outro.
Isso aí funciona como mito da antropofagia: comer o totem, na transformação
de tabu em totem, na prática índia. Entretanto, nessa antropofagia mítica,
ritual, sexual inclusive, Gilberto Freyre chama atenção para o fato de que as
índias aceitavam muito bem os portugueses... porque eles tinham pau grande.
Quando elas viram aqueles homens com aqueles perus enormes, ficaram
desbundadas, porque os índios eram mal dotados. Elas receberam um
presente... carnal. Por outro lado, é o português que pratica, há muito, na
Europa mesmo, antes até da descoberta do Brasil, a heterofagia de que
estou falando.
Fernando Pessoa nos mostrou com clareza que o português tem a
nostalgia do longe, que poderia se chamar a nostalgia do Outro, assim como
tem, também, uma situação limiar tanto do ponto de vista geográfico quanto
cultural, aquela coisa de ficar assim nas brebas da Europa, na vizinhança da
África, de olho grande na Ásia, paquerando as índias, olhando para o outro
lado do oceano, fingindo que não estava vendo, que foi por acaso... Tem
essa nostalgia do Outro e a tentativa de integrá-lo não só como mero objeto
fagocitado ou devorado totemicamente.

445
Psicanálise & Polética

Gilberto Freyre reclama isto para o português, mostrando que ele


talvez tenha sido o melhor colonizador que existiu. Tenho a impressão de que
ele tem razão, na medida em que o princípio que geria a colonização portuguesa
diferia do princípio de outras colonizações como a espanhola, a inglesa, a
francesa. Na medida em que, em termos meus, o português era heterófago:
ele paquerava o longe, mas se abria para que essa lateralidade pudesse entrar
na dele, e ele entrar na dela. Ou seja, havia a transação do português. Gilberto
Freyre nos demonstra que o português é um povo dividido entre Europa e
África, nem intransigente de uma, nem intransigente de outra, mas nas duas.
Ele fala da indecisão étnica do português, uma espécie de bicontinentalidade
– note-se o paradigma que ele traz – que corresponde, em população assim
vaga e incerta, à bissexualidade do indivíduo. Ele está falando de Freud.
Embora pouco entendendo o que fosse a sexualidade em Freud, ele nos mostra
essa equivocidade do português: geográfica, cultural, etc.
“Místicos e poéticos” são os portugueses, segundo Aubrey Bell, certo
inglês citado no Casa Grande & Senzala, onde Gilberto Freyre mostra, p.
17, a diferença para com outros colonizadores. O português, “por todas
aquelas felizes predisposições de raça, de mesologia e de cultura a que nos
referimos, não só conseguiu vencer as condições de clima e de solo
desfavoráveis ao estabelecimento de europeus nos trópicos, como suprir a
extrema penúria de gente branca para a tarefa colonizadora unindo-se com
mulher de cor. Pelo intercurso com mulher índia ou negra multiplicou-se o
colonizador em vigorosa população mestiça, ainda mais adaptável do que
ele puro, ao clima tropical. A falta de gente, que o afligia, mais do que a
qualquer outro colonizador, forçando-o à imediata miscigenação – contra o
que não o indispunham, aliás, escrúpulos de raça, apenas preconceitos
religiosos –, foi para o português vantagem na sua obra de conquista e
colonização dos trópicos. Vantagem para a sua melhor adaptação, senão
biológica, social”. Os portugueses, diz ele mais adiante, p. 18, que “pela
hibridização, realizariam no Brasil obra verdadeira de colonização, vencendo
a adversidade do clima”.

446
O ora que emprogresse

Isto parece com a diferença que Oswald faz entre a postura norte-
americana de civilização de status messiânico, e a postura brasileira, de status
utópico. “O colonizador português do Brasil foi o primeiro, dentre os colonizadores
modernos, a deslocar a base da civilização tropical da pura extração da riqueza
mineral, vegetal ou animal – o ouro, a prata, a madeira, o âmbar e o marfim –
para a de criação local de riqueza. Ainda que riqueza – a criada por eles sob a
pressão de circunstâncias americanas – à custa do trabalho escravo: tocada,
portanto, daquela perversão de instinto econômico que cedo desviou o português
da atividade de produzir valores para a de explorá-los, transportá-los ou adquiri-
los”, p. 23. Ele está mostrando como se foi pervertido pela ideologia, mas que
a tendência sintomática era a de entrar no barato, e não a de se ficar apenas
assentado na situação. Talvez tenha sido esta a grande condição de invenção
da sintomática brasileira, via sintomática portuguesa.
Por outro lado, se o índio apresenta, ou apresentava essa antropofagia
ritual, canibalística, do ponto de vista da heterofagia – de comer da ordem
simbólica do Outro diretamente, e não por essa via pseudo-deglutiva que fica
apenas como metáfora, como metáfora dolorosa, mastigada, carne –, o índio
foi difícil de comer simbolicamente. O português comeu do índio – taí na nossa
comida, na nossa língua –, mas o índio não quis comer. Isto é interessante,
porque há, hoje em dia, essa coisa de ficar admirando índio quando, na verdade,
ele é bastante caturra do ponto de vista simbólico. É pouco heterofágico na
medida em que se prende na dele e diz: “Daqui não saio!”. Tanto é que Gilberto
Freyre chama atenção para que o português não conseguiu transar com índio
não porque não quisesse, mas porque o índio se recusava.
O português inventou – querendo ou não, isto pouco importa – um
mediador: o negro. A intervenção do negro conseguiu mediar a relação do
português com o índio, porque o negro é, mesmo nas relações com o Senhor
imposto, mais transador. Ele era mais aproximado daquela transação do
português. O índio parece que não, ele vem de estruturas muito fechadas. E
aqui chamo atenção para o que venho colocando desde o primeiro semestre,
essa vocação cultural, essa manutenção do status quo da ordem de parentesco

447
Psicanálise & Polética

que o português não manteve: ele tinha a ordem do parentesco aqui, etc., mas
não a ordem das reproduções... foi se esculhambando, mesmo.
O princípio básico de toda heteronomia é primum vivere, princípio
que, como sabemos, Lacan recoloca em toda “relação” analítica. Mas o índio,
não. Ele é aquele que quebra, mas não curva – o que é a estrutura mesma da
estupidez. O português é mais maleável, o negro também... De qualquer modo,
pela maleabilidade dos outros e pela referência antropofágica, mítica e
canibalesca, eles acabaram entrando na nossa. Ou seja, não se precisa mais
fazer reserva negra no Brasil, mas, reserva de índio, ainda se precisa.
Nossas estupidezes culturais estão bem representadas nesses pequenos
aglomerados fechados, na suposição de que tudo parte da interdição do incesto
como estruturação da ordem de parentesco e fundação do homem. O índio
está muito nessa: “Primum vivere, não! Morro mas não dou!”. Na verdade,
há que relaxar e aproveitar. Transar o simbólico é isso, que é o que faz
correntemente o brasileiro... O tal do jeitinho, da esculhambação...
Parece pusilanimidade, mas não é, porque, com certo prazo, mais ou
menos longo, vemos que a infiltração se dá pelo outro lado, e tudo se desfaz. A
morfologia perde a característica... E se a gente não contar com essa sintomática
do brasileiro, a gente se desespera. Com os índios a coisa se dá de maneira
rígida. Aliás, uma pesquisa que eu gostaria de pedir para o pessoal que faz
antropologia, história, sociologia, essas coisas, que por acaso queira abordar
isso, é verificar algo de que suspeito: quanto mais forte e mais careta foi a tribo
de índio que tomava conta de uma certa região do Brasil, mais o local se
transformou numa pregnância de estupidez, mesmo com a presença do
português e do negro.
Vejo isto pelos índios Goitacazes que dominavam toda a bacia do
Paraíba e, sobretudo, o norte do Estado do Rio, e que eram chamados de
terríveis, ferozes, que não se dobravam nunca... Eles foram dizimados, foi o
único jeito de lidar com eles – eles não transavam. É a Baixada Fluminense, lá
para cima, sobretudo, onde dá petróleo, etc., é um antro de estupidez, mesmo
no sentido econômico, do ponto de vista de falta de condições de transar. Eu

448
O ora que emprogresse

me pergunto, também, sobre a mineiridade, e deixo para os mineiros me


explicarem se isso acontece por lá. Não será um sintoma da mesma ordem de
não arcar com o primum vivere, dos Goitacazes, que conheço bem, que aparece
lá nas Minas Gerais? O português fundador de São Paulo, do Rio de Janeiro,
era o mesmo, mas o que aconteceu ali?
O negro deu um jeito. Mesmo como escravo ele se apoderou do
significante, deu uma transada e acabou intervindo e rearranjando posições.

* * *

Nessa relação do português e do negro, talvez pudéssemos ver a


essencialidade dessa Heterofagia, isto é, o símbolo, a possibilidade da transa.
Isso tudo interessa na distinção desses sintomas na medida em que o
português tem muito a ver com o destacamento dessa formulação que é o
barroco, enquanto situado na história da arte com determinado tipo de
composição estilística. Como disse da vez anterior, isso é português. Chamei
até o testemunho de pelo menos um historiador e crítico, Eugenio Dors,
para mostrar isto.
Retomando, então a “oposição” clássico/barroco, lembro o que
estávamos tentando pensar em função das fórmulas quânticas da sexuação.
Isto porque certos historiadores e críticos, mesmo sem essa definição freudiana
e lacaniana, é pela via do masculino e feminino que ressaltam a questão.
Ponho, então, de novo, as fórmulas quânticas, acrescentando o princípio
do prazer, PP, o princípio de realidade, PR, fazendo as equiparações que já fiz
anteriormente em outros trabalhos, sobretudo no que diz respeito à obra de
arte. Coloco no lugar do racha, da brecha, da diferença, o espelho como
topologia, relação especular. Vou tentar juntar isso numa formulação mais ou
menos compacta.
Do lado do homem (H) o desejo, o gozo-fálico. Do lado da mulher (H’)
o amor, o gozo-do-Outro. Não que seja proibido à mulher transar com o desejo,
e vice-versa. Travessias são possíveis.

449
Psicanálise & Polética

Heinrich Wölfflin, historiador da arte dos mais destacados, é autor


de um tratado bem conhecido a respeito da distinção entre renascimento e
barroco, Renaissance und Barock, onde ele tenta destacar a noção de barroco
pela idéia de pitoresco. Ele diz que a arquitetura clássica – e mesmo a pintura,
etc. – se situa no sentido arquitetônico propriamente dito. Isto significa que a
coisa é canônica, se destaca como objeto isolado, com centro em si mesmo.
As linhas de demarcação, de peso, de equilíbrio, etc., estão assentadas sobre
a própria estrutura da arquitetura, da pintura, da escultura, etc., e que esse
objeto é olhado enquanto tal. Ao passo que o objeto barroco teria seu centro
fora de si mesmo. A tensionalidade dos movimentos e dos pesos de suas
conformações, levaria à idéia de uma movimentação incontida, de uma
tendência a saltar fora, a subir para o céu, a movimento nesse sentido. E isso
é pitoresco. Ele não consegue um conceito melhor, e diz que é pitoresco.
O que é pitoresco? É como, por exemplo, Ouro Preto: quando se olha
para suas construções, ao invés de se ficar na arquitetura, tem-se vontade de

450
O ora que emprogresse

pintar um quadro com a igrejinha dentro. Aquela arquitetura, ao invés de acabar


em si mesma, projeta outro movimento. É como se ela assumisse corpo humano,
ou animal, um troço movimentado, de tal maneira que se insere na paisagem e
vamos ver tudo junto. Vamos querer ver o quadro daquilo e não a arquitetura.
Isto é o que Wölfflin traz como um dos conceitos de diferenciação de
barroco. “O Renascimento é a arte da beleza pacífica” – diz ele, p. 81, em
edição francesa –, “ele nos oferece essa beleza libertadora que sentimos como
um bem-estar geral e um crescimento regular da nossa força vital”. É o tal
negócio assentado, equilibrado, centrado em si mesmo. “Em suas criações
perfeitas não se encontra nenhum peso, nenhum mal-estar, nenhuma inquietude,
nenhuma agitação. O barroco se propõe a operar de outro modo. Ele apela à
potência da emoção para empolgar e subjugar diretamente. Ele não traz a
animação regular, mas a comoção, o êxtase, o embriagamento.”. Ele está
tentando distinguir justamente duas posições: masculino/feminino. A postura
de movimento, de aceleração, de direcionamento para algum lugar que o barroco
tem, e que o clássico não teria, se houvesse essa estabilização sobre si mesmo,
sobre o seu centro.
Podemos perguntar, por exemplo: na história do renascimento, quando
abordamos o barroco por via italiana, não se esquecendo do português – isso
que a história da arte conta como historinha caseira –, onde todos situam o
nascimento do barroco? Na mão de um renascentista chamado Michelangelo.
Renascentista, ele, quando, onde, como? Ninguém definiu melhor o barroco do
que Michelangelo nessa emergência do barroquismo que fez. Botticelli, outro
que não era estúpido – era poeta –, a história da arte diz que é renascentista.
Engulo se eu quiser, se puder... O Nascimento de Vênus é um quadro esquisito,
sobretudo pela figura central. Ela é abarrocada. O quadro não causou espanto
na época. Foi absolutamente aceito – o rapaz tapeava direitinho. O quadro, aliás,
foi feito por encomenda. Michelangelo também fez sob encomenda, e os cardeais
queriam sua cabeça. Não fosse ele “sobrinhozinho” de Júlio II, estava frito.
Insisto em que Lacan promoveu uma leitura precisa de Freud bastante
ajudado por sua convivência com a obra de arte, as articulações do poeta e,

451
Psicanálise & Polética

mesmo, com a observação curiosa que tinha do movimento da história da arte.


Não esquecer de seu convívio com o grupo surrealista. Não que ele fosse um, no
sentido do termo, mas procurava o significante no lugar onde ele emergia como
Outro – Vers un Signifíant Nouveau, título de um dos seus últimos Seminários.
Retornando a Wölfflin, vejamos como ele define com clareza o imaginário.
“Supomos por toda parte uma existência corporal, conforme a nossa” – diz ele,
p. 170. “Damos um sentido ao conjunto todo do mundo exterior a partir de
esquemas expressivos que aprendemos em nosso corpo. Reportamos sobre
qualquer outro corpo a experiência que fizemos com nosso próprio corpo, quando
ele exprime uma vigorosa gravidade, um rigoroso controle de si, ou, ao contrário,
um apoio, uma atonia de peso” – deve ser pressão do imaginário. “É que a
arquitetura não teria nada a ver com essa animação inconsciente da matéria.”
Engraçadíssimo, pois não é que o cara por alguma via saca – via sacra – a
posturação da ordem imaginária na configuração da subjetivação! É claro que
ela não pode, enquanto arte das massas corporais, ter relações com o homem
senão como ser corporal. Ele está configurando o imaginário da arquitetura.
Adiante, ele fala do ideal-de-eu, mas, enquanto arte, a arquitetura elevará e
idealizará esse sentimento vital e procurará propor o que o homem quereria ser.
É preciso percorrer esses casos, pois há coisas claríssimas por aí.
“O barroco tenta representar o não-representável, o abismo, o infinito.”.
Ele insiste nessa infinitude e na particularidade de cada edifício barroco – ou
seja, naquilo que Lacan define como o feminino –, que não tem a universalidade
da canônica, clássica. Tudo encaixa perfeitamente na formulação, mas é quando
observamos o classicismo do ponto de vista formal, sobretudo no que diz respeito
às artes visuais, que isso fica muito mais evidente e dito.
Os tratadistas da arquitetura clássica, por exemplo, Vignola,
Brunelleschi, além de apresentarem a canônica, naturalmente por retorno –
pois é isso que se faz no renascimento: o retorno à canônica grega –, apresentam,
também, embora isso tivesse nascimento com Pitágoras, uma postura que se
aproxima muito da postura psicanalítica, talvez, enquanto estrutura matemática:
a referência constante a um numero de ouro, de que já falamos, sobretudo em

452
O ora que emprogresse

meu Seminário Ad Sorores Quatuor, nos velhos tempos do Colégio. A


proporcionalidade é uma razão do classicismo. O barroco é desproporcional,
excêntrico, torcido, movimentado. O classicismo vive da sua proporcionalidade
por falta de regência divina. Perguntaram a Deus qual era o número certo e
Ele não disse. Mas foi revelado aos matemáticos que um certo número mantinha
uma lei de proporcionalidade que se chamava lei áurea, e que seria encontrada
na beleza absoluta, dentro do corpo humano, das construções do homem, etc.,
que teria sido revelada pela visão pitagórica.
Onde se coloca o número de ouro? Na caretice da auto-referência, na
idiotice, na masturbação macha, ou na loucura do desregramento do feminino?
Lacan, para tentar a matemização da psicanálise, retorna a Pitágoras, pega o
número de ouro e nos entrega como paradigma da possibilidade de escrita. O
número de ouro é extremamente regrado. É pensável matematicamente como
inscrição formular, ao mesmo tempo que nos indica a impossibilidade do
fechamento no que infinitiza qualquer relação. Ou seja, Aquiles e a tartaruga
só podem progredir numa relação áurea: o áureo desencontro. Terminei mais
ou menos o Seminário da vez anterior perguntando – quando tentei falar, entre
clássico e barroco, de um heterófago estilístico – quem era assim. Lacan,
Picasso, disse eu, e fomos vendo aqueles que num rigor clássico apresentavam
o furo ou, na visão do furo, rigorizavam os matemas. E também a psicanálise é
esse objeto estranho porque participa desses dois campos.
Custou muito para os historiadores e críticos da arte se darem conta de
que estava faltando alguma coisa na distinção barroco/clássico, Wölfflin, Luckács
e muitos outros, antigos e mais atuais, ficam perplexos de encontrar obras
classificadas no classicismo que, no entanto, se movimentam no sentido de infinitude.
Ou, então, obras classificadas nitidamente no barroco e, no entanto, regradas
matemicamente. Havia um preconceito de historiador no meio da jogada, pois ou
bem se é clássico, ou bem se é barroco. E aquilo que ficava parecendo que era
no meio, eles diziam que é maneiroso, amaneirado... E pintou na história da arte
um negócio chamado MANElRISMO: El Greco, Michelangelo, etc., segundo o
livro que Arnold Hauser escreveu e que se tornou um clássico sobre o assunto.

453
Psicanálise & Polética

O que Hauser nos apresenta como sendo o maneirismo, que ele quer
retirar do esgoto, do dejeto cultural, por parte dos historiadores, e trazer
como coisa importante, na história da arte? A visão dele é por via marxista,
sociológica, etc., mas, de qualquer modo, tenta destacar o que seja o
maneirismo dando, mesmo, uma definição logo de entrada, p. 40: “É um
menoscaso e até uma falsificação da verdade dizer simplesmente que o
maneirismo é anti-clássico, omitindo acrescentar-se que é também classicista.
De igual maneira, é uma meia-verdade descrevê-lo meramente como
naturalista e formalista, ou irracional e extravagante. O maneirismo não contém
menos traços racionalistas do que irracionalistas, nem menos naturalistas do
que não-naturalistas. Um conceito utilizável de maneirismo só pode sair da
tensão entre classicismo e anti-classicismo; naturalismo e formalismo;
racionalismo e irracionalismo; sensualismo e espiritualismo; tradicionalismo
e afã de novidade, convencionalismo e protesto contra todo conformismo. A
essência do maneirismo consiste nesta tensão, nesta união de oposições
aparentemente inconciliáveis”.
Ele arranjou um lugar na história da arte onde vai meter uma quantidade
imensa de autores que eram situados de modo mais ou menos estranho:
Montaigne, Kierkegaard, Kafka, Shakespeare, Goethe, Beethoven, sem falar
na grande quantidade de artistas plásticos que já citamos. Quando chega aos
modernos, vai dizer exemplos típicos como o Picasso do cubismo e do
surrealismo, o próprio surrealismo... É de se notar a patronagem do próprio
Lacan aí, pois aqueles que poderíamos dizer que foram seus mestres são
Espinosa, Kierkegaard...
Ele coloca, também, por exemplo, Mallarmé, o rigor e aquela loucura
mallarmaica, Calderón de La Barca, Baudelaire, Proust... Vamos ficando com
a impressão de que, daqui a pouco, ele mete todo mundo aí dentro, com raras
exceções... Michelangelo, todo o surrealismo – com o que não posso concordar,
mas existe um afã de rigor nos surrealistas, sobretudo quando vão perguntar a
Freud qual é –, Rilke, Gide, Joyce, Eliot... Ele vai falar, também, dos conceitos
de alienação, de narcisismo...

454
O ora que emprogresse

* * *

Gostaria de ficar, por hoje, nessa questão interessante de ter aparecido


um sujeito que, com as ferramentas e materiais da história da arte e da crítica,
vem dizer que há um tensionamento no seio do chamado maneirismo.
Não vou querer concordar com isto, pura e simplesmente. Há o
maneirismo, sim – a via que ele coloca é de observação formal e histórica: a
questão da emergência do capitalismo moderno, etc., essas coisas da abordagem
marxista –, mas, no que nos interessa, quero me perguntar sobre esse heterófago
que está aí nesse meio. Como é que se transa de H para H’, do clássico para
o barroco e vice-versa? Por que essa pletora de nomes?
Preciso distinguir a postura clássica enquanto ordenação pura e simples
da forma, enquanto enformação, aprisionamento numa fôrma; e uma postura
dita barroca, também de enformação formal, de molde numa fôrma
supostamente destacável por estilos e maneiras de composição. Então, em
nosso gráfico, do lado H, numa espécie de fanatismo da postura, encontramos
um formalismo clássico. E do lado H’, um formalismo barroco. Mas pergunto,
podemos encontrar essas distinções de forma em alguma coisa que possa
merecer o nome de obra de arte?
Nosso amigo, como historiador, precisa defender uma posição central,
mediana, que é uma necessidade sua para existir como historiador da arte. Em
nosso caso, trata-se simplesmente de que, no lugar onde vigora a obra, onde
surge o ato-poético, está-se necessariamente em algum discurso. Lacan veio
mostrar isso como discurso psicanalítico. A obra de arte vigora na
heterossexualidade, na heterofagia, no princípio heterofágico, ainda que por
vias de H para H’, ou vice-versa, como já tentei mostrar em dois trabalhos,
Senso Contra Censo e Rosa Rosae.
O que é obra de arte? Suponho, pela minha experiência, que não é
senão a inclusão topológica no seu corpo do ato-poético, ou seja, de um
reviramento de sentido, que faz perder os sentidos. Como ela faz isso? Ou
melhor, que vias ela tem para fazer isso?

455
Psicanálise & Polética

Duas vias, que são as que temos da diferença sexual. Ou ela vai pela
via masculina de partir do rigor canônico, digamos, da auto-referência fálica,
para encontrar o furo e ansiar amoriscar-se. Ou ela parte do perdido, da
perdição, do feminino, da zona amorosa, para encontrar uma postura desejante.
Ou seja, ou parte do desejo e se perde no amor, ou, perdida no amor, se encontra
no desejo. Por isso é que cabe todo mundo, desde que seja uma obra de arte,
mas não se poderia jamais pôr um acadêmico aí dentro, embora a Academia
inclua barrocos, ou ditos barrocos, talvez por essa via. O acadêmico
propriamente dito só tem fôrma, não consegue produzir o ato-poético enquanto
tal, pois se limita ao receituário.
O ato-poético, que só vigora na transação com a topologia do espelho,
esbarra na diferença, na impossibilidade de estabelecer a relação. No entanto,
consegue transar no cometimento, a partir do desejo de dissolver-se no amor,
de deparar-se com o furo, quer dizer, limitação ao princípio do prazer. É preciso
lembrar que se o inconsciente, como dizia Freud, é regido pelo princípio do
prazer, não tem nada de errado nisso. Se o princípio do prazer o faz movimentar-
se, tudo bem! Acontece que o próprio furo do significante – que postura a
própria posição do inconsciente – re-exige o princípio de realidade, ou seja,
repõe a fantasia.
O princípio do prazer não tem a ver com a fantasia e, sim, com o
fantasma. Faço questão de diferençar fantasia de fantasma. O princípio do
prazer vive do fantasma, no sentido de: aparece fantasma, pinta fantasma para
ele. Lacan não escreveu nenhuma fórmula do princípio do prazer. Ele escreveu
o princípio de realidade na fórmula da fantasia, S/ <>a – sujeito barrado punção
de a minúsculo. Ou seja: o sujeito enquanto tentando abordar o real na sua
relação de fantasia que se qualifica por essa punção. Está aí o impossível da
alienação, o impossível de coalescer. O princípio do prazer não é esse, ele é a
tentativa de arrolhar o buraco do Outro (S(A / )) com o objeto a localizado,
fazer uma bola.
Exatamente o que é o princípio da ciência renascentista, o universo
como camadas, como esferas concêntricas, tudo arrumadinho, etc., que Kepler

456
O ora que emprogresse

vem feminizar. Ele puxa e faz uma elipse – o troço desbunda, os planetas são
meio desbundáveis, há uma diferença de oito minutos que ninguém explica. O
real do planeta começa, então, a pintar. A forma da Terra é terróide, é o máximo
de explicação que se pode dar – é a própria função do significante. A Terra se
parece mesmo é com a Terra. E a Terra do segundo significante não consegue
ser a mesma do primeiro.
Está aí o campo da psicanálise. Como estava dizendo, Lacan não
escreveu nenhuma fórmula do principio do prazer. Vou, então, abusar da
paternidade, e tentar escrever assim: a  S(A
/ ), a sutura de S de A barrado. É
como uso. Se vocês também quiserem usar, está à disposição. A fórmula do
fantasma é então: a sutura do furo.
A construção da realidade significa, como diz Lacan, que a fantasia
protege o real na medida em que – no que ela destaca a punção entre o sujeito
e o objeto, no que ela porta esse impossível de locupletação – ela nos dá o real
nesse impossível. O objeto a está no campo do objeto desejado, ou seja, está
causando o movimento do sujeito. A causa do desejo é o objeto. E no que o
sujeito é causado pela falta desse objeto, tudo se punciona, quer dizer, é o
buraco que pinta no meio. Então, a própria construção da fantasia inconsciente
é princípio de realidade e salva o real, protege-o, digamos assim. Isso é o que
Freud chama de princípio de realidade.
O princípio do prazer é tentar não viver da fantasia, mas dos fantasmas,
quer dizer, chega ao limite da crença, na prática. Sua postura global, digamos
assim, se isto é possível, no inconsciente – isso não existe, é metáfora –,
seria a de tentar arrolhar. Mas o princípio do prazer não vive sozinho, ele se
depara no regime da fantasia com a falta por causa do próprio objeto – tudo
isso são princípios lógicos. Enquanto princípio do prazer, eu sou um sujeito
que se nega, enquanto sujeito, tentando suturar o furo do Outro com um
objeto fantasmatizado. No entanto, no momento mesmo em que consigo me
deparar com esse objeto, pinta o principio de realidade me situando a falta. É
aí que tenho que buscar no inconsciente a fantasia que me dá um pouco do
real, de impossibilidade.

457
Psicanálise & Polética

Essas construções puramente formalistas, aonde não entra o ato-


poético, são, pois, construções que estão na suposição de poderem viver
estritamente do princípio do prazer. Isto porque o princípio de realidade me
promete gozo e, às vezes, me dá. Isso é fálico. O homem é estúpido, mas não
tanto quanto essa machificação aí – que é bem diferente de ser homem. A
machificação é um sintoma em que o homem enquanto tal não quer apenas se
referenciar pela função fálica, pelo gozo-fálico, mas vem a supor que existe
um falo auto-masturbatório que vive no prazer de bolinar-se a si mesmo.
A fantasia se confronta com o objeto enquanto faltoso e causante do
seu desejo. Não só é causa, como é tampão no fantasma, no princípio do
prazer. Mas ele não é os dois, de modo algum. O objeto a enquanto tal é aquilo
que esburacou o imaginário do sujeito, e só lhe dá a falta. Acontece que o
sujeito re-imaginariza o objeto a sobre um objeto dado. Por exemplo, se o
sujeito pega seio, configura seio anatomicamente, figuracionalmente, etc., e
fica em cima desse objeto como tampão, podemos dizer que esse objeto é, na
sua fundação, uma metonímia de objeto a, mas, agora, ele é um fantasma.
Nada impede que na elaboração que o sujeito faz da fantasia inconsciente, se
veja a fantasia virando devaneio em torno de um fantasma. Mas é preciso
saber distinguir os dois. Se não, por que interessa que o analisando chegue a
destacar a fantasia? Justamente porque o objeto vai deixar de ser fantasma, e
ser causa de desejo.
Antes de ser atravessada, a fantasia não é tocada nem como fantasia,
é a chamada fantasia impossível. Quando ela pinta, se sustenta como fantasia
que sustenta o real através da causa do desejo, produzindo o momento do
sujeito – e é fantasia. Ninguém vai ter o objeto a enquanto furo absoluto, é
a morte. Ninguém atravessa isso. O objeto está lá, posso até configurá-lo
como certa fantasmagoria, mas ele se depara para mim como construção
causadora de movimento desejante, em função mesmo de eu estar
demarcado por um S1 que me inaugura. Eu não sou neutro, não sou uma
fórmula matemática, apenas. Trata-se do a como objeto de desejo e produtor
da fantasia no inconsciente. Se tenho o princípio do prazer para falar disso,

458
O ora que emprogresse

por que vou meter o nariz para falar do princípio de realidade, e fingir que
ele é do prazer?
Se não puder abordar a sua fantasia, o sujeito está na análise para
quê? Ele está lá, sim, para sacar que a fantasia o é: “Façamos de conta. Não
vou perder o meu barato, porque é um barato, mas agora estou sabendo que
não é!”. O material que está compondo a configuração de objeto a na fantasia
pode ser o mesmíssimo que está compondo no fantasma, mas o modo de
produção do fantasma não é o da fantasia. Pode ser o mesmo material, mas ou
eu a trato como fantasia, e para isso serviria a análise, ou eu a trato como
fantasma. A distinção, então, entre fantasia e fantasma está simplesmente no
modo de operação. Não está na substância da coisa. Uma fantasia inconsciente
está determinando fundações fantasmáticas. E na medida em que se possa
chegar a aproximar essa fantasia inconsciente, saca-se o quê? Que ela estrutura
o próprio real do sujeito, ela lhe empresta real, na medida em que ela falta,
porque é impossível. A punção na fórmula de Lacan é para dizer que ali, na
própria fantasia, justamente porque o sujeito está em exercício, o impossível
comparece no interstício.

* * *

Isto é para mostrar que, no regime do que estou chamando heterófago,


tenho as posturas de clássico e barroco, mas enquanto obra, enquanto inclusão
no ato-poético, indo de H para H’ e vice-versa, quer dizer, na travessia do
espelho que é na verdade inatravessável. Só se atravessa o espelho em dois
deslizamentos.
O sentido é de me perguntar por nossa sintomática para destacar, em
suma, a fantasia do brasileiro, que suporta esse real de brasilidade.

14/OUT

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Psicanálise & Polética

460
En L’Endroit où Villegaignon Print Terre

20
EN L’ENDROIT OÙ
VILLEGAIGNON PRINT TERRE
Francês arcaico, escrito por Montaigne no Ensaio 31, livro 1º, onde ele
fala justamente dos canibais, e onde, no Manifesto Antropofágico, Oswald
vai buscar a noção de antropofagia, citando mesmo esta frasezinha de Montaigne:
“Durante muito tempo tive a meu lado um homem que havia morado 10 ou 12
anos nessa parte do Novo Mundo descoberto em nosso século no lugar onde
Villegaignon tomou terra e a que deu o nome de França Antártica”... E escreve
Oswald: “Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Où Villegaignon print
terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau...”. Situando, pois, o lugar,
geograficamente, topologicamente, da tal antropofagia... Print Terre, tomou,
perdeu. Tomou terra e perdeu terra.
Todos se recordam da história de Villegaignon. Ele tentou fundar uma
França Antártica – que talvez só dê certo ao sul do Rio Grande do Sul... Por
isso é que os maiores poetas uruguaios, por exemplo, são de língua francesa e
não são uruguaios, ou são os únicos habitantes do Uruguai, como diz o nosso
Murilo Mendes... Justamente porque aconteceu um barato qualquer por aqui,
essa falta de transação autoritarista da cultura francesa obriga ao canibalismo
ou à expulsão. O chamado Villegaignon era assim o protótipo do paranóico bem
instalado, mas que topou com a malandragem – é o termo –, que não é nenhuma
sabedoria específica mas uma capacidade de escorregar, que naquela época já
estava fundada por aqui... E toda vez que Monsieur de Villegaignon rides again,
a gente tem história, ainda que seja na cuca, para não aceitar tal tipo de invasão.

461
Psicanálise & Polética

Os franceses no Rio de Janeiro, é uma história velha. Depois, em


1816, veio a chamada Missão francesa – estragou um bocado mas não
conseguiu fazer um Rio de Janeiro acadêmico, com o apelido de neo-clássico,
é claro... Mas há um embasamento de história nossa, no sentido de
acontecimento, que serve como certa garantia de funcionamento significante
antecessor para não cairmos em certas algumas.

* * *

Como estamos falando em Polética, gostaria hoje de fazer um parêntese


– sem deixar de tratar do que estamos tratando, porque se conjuga facilmente e
continua mesmo a questão do barroco, do clássico, do maneirismo, a postura de
Hauser – e falar mais explicitamente de certos comportamentos ditos políticos.
De saída, peço desculpas a alguns dos presentes se tiver que indicar
com certa dureza coisas que me parecem pedir uma abordagem, a mais clara
possível, neste momento em que se tenta distinguir o Ético, que fundamenta o
discurso psicanalítico, do político, enquanto essa forma moderna – no sentido
de invenção de certo momento, que é exarada no discurso de Maquiavel, dessa
autonomia do político – que, freqüentemente, com ares de grande transtorno
dos processos, com ares de subversão de alguma ordem autoritária, sempre
acaba servindo a essa ordem. Vejamos então se por acontecimentos
aproximados conseguimos estabelecer algum confronto entre essa Ética e a
política no sentido da tal Polética.
Não estou aqui para criticar a escolha de ninguém. Longe de mim a boa
intenção de aconselhar qualquer um a respeito de comportamentos – “de boas
intenções o inferno está cheio”, já disse Outro. Tendo aprendido com Lacan, não
vivo cheio de boas intenções. Trata-se no entanto de questionar a justificativa
que alguns sujeitos encontram para sua participação política. A de que a parti-
cipação política se apresenta mais urgente, senão mais importante, do que a
participação nesse esforço de distinção de uma estrutura fundamentalmente ética
em relação a certos temas, com a psicanálise, no caso.

462
En L’Endroit où Villegaignon Print Terre

Se não se tem nada a ver com as escolhas que as pessoas façam, no


entanto não se deve deixar de pensar e refletir um pouco sobre elas. Como, por
exemplo, a justificativa desta tal participação – coisa que me deixa um pouco
perplexo – achar-se que é mais importante, mais urgente, porque o acontecimento
brota, participar dos debates políticos a respeito dos acontecimentos na IPA,
ou das falações de indivíduos supostamente psicanalistas que estão metidos
nesses embates, em contraposição à participação, por exemplo, no meu sarau,
na minha festa que tem o péssimo nome de Seminário, da quarta-feira. Nada
tenho com isso, é uma escolha, mas dá no que pensar.
Por que será que esse engodo cola? O discurso psicanalítico não recusa
pôr a mão na coisa nem a coisa na mão. Toca a coisa, por isso tenho que
pensar em falar aqui. Não estou me referindo tanto às pessoas que estão
metidas lá dentro, porque é natural – já que lá estavam, então isto tem efeitos.
Mas pessoas que nada têm a ver com o peixe estavam tão afeitas a uma
participação dita política em torno de fatos ocorridos numa região da IPA,
chamada Sociedade do Rio de Janeiro, um tal de Fórum que decide ou não a
respeito de coisas, etc., como, também, debates a respeito disso, que ocorrem
na Sagrada PUC, em torno das figuras de pessoas que estavam como foco das
atenções nesse movimento...
A PIPA está no ar, parafraseando uma musiquinha do Dicró. Agora
está mesmo. A PIPA é a IPA com um P que coloco à frente para imitar uma
criança, parente de alguém daqui do Colégio, que tem mãe psicóloga, e que um
dia em que a mãe se meteu muito a besta com ela, lhe disse: “Não adianta você
pensar que só porque é pepsicóloga que...”. A palavra exata. O inconsciente
não perdoa. Pepsicólogos são os digestivos do inconsciente, dão sempre um
jeito para o indigesto não incomodar – a diluição do que possa acontecer nesse
inferno chamado Desejo. A beatificação do diabo é trabalho dos pepsicólogos.
Mas existe também a Pepsicanálise, a P-Psicanálise, da PIPA – é o
mesmo P que está na frente –, e os efeitos de fagocitose desse tipo de instituição
amante da institucionalidade e que por ser assim, recebe o amor dos
institucionalizados, que declaram isso: “Eu faço tudo por amor à instituição” –

463
Psicanálise & Polética

a televisão e o jornal registraram. Por “amor à instituição” é justamente aquilo


que, num texto brilhantíssimo e muito bem fundamentado, erudito mesmo,
Pierre Legendre – psicanalista da falecida Escola Freudiana de Paris –
demonstrou no livro O Amor do Censor, cuja leitura já recomendei tantas
vezes. A tese fundamental é que, justamente, a censura, o autoritarismo, o
fascismo nuclear dessas instituições vive de conseguir o amor dos que a ela
estão ligados. Ama-se a institucionalidade desses órgãos e por isso não se
pode deixá-los, tipo love me or leave me.
O argumento daqueles cavalheiros foi preciso: Faço tudo isso, insisto
em brigar pelo meu lugar na PIPA, para manter e defender o meu amor pela
instituição. Aí que muitas pessoas fazem tremendas confusões com o Colégio
Freudiano do Rio de Janeiro, por exemplo, que tem certa aparência de desordem
interna, porque evita se fazer amar. A tolice – que nunca deixa de dizer alguma
coisa – fica pensando que basta o sujeito ter um estatuto, ter institucionalizado
o Colégio, para ele virar uma instituição talqual, etc. ... E começam a dizer
asneiras. Não é pelo fato de haver uma instituição escrita e inscrita que há que
bem funcionar o amor da instituição. A própria Maud Mannoni, por exemplo,
inventou um termo muito interessante a respeito da sua escola de Bonneuil:
institution éclatée. Não gosto muito porque não é “explodida”, é uma instituição
cambeta, coxa, manca. Desde a fundação da Escola Freudiana de Paris por
Lacan, onde ele tentava fazer essa instituição manca. Ele a fundou para ser
um lugar onde os analistas tivessem algum esteio diante do social – lugar de
encontro dos seus desencontros, onde os desencontros pudessem ocorrer. Não
confundir esse lugar que sustenta uma possibilidade de agrupamento, de
ajuntamento, melhor dizendo, dos desencontros, com aquilo que ele chamou (a
PIPA) de outro modo: a SAMCDA, Sociedade de Auxílio Mútuo Contra o
Discurso Analítico – está lá em Télévision. Uma sociedade de auxílio mútuo
fazendo grupo para não vigorar o discurso analítico.
Naquela jogada que tentei mostrar de juntar o clássico com o barroco,
de fazer o discurso heterófago, é que Lacan nos dá essa inspiração de poder,
sim, institucionalizar alguma coisa. Duvido da possibilidade de algum

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En L’Endroit où Villegaignon Print Terre

ajuntamento social em termos de Estado, por exemplo, em torno do anarquismo


de se acabar com o Estado. Suponho sim a postura de exigir a melhor das
constituições, a melhor das instituições, que seria aquela que pudesse dar um
pouco de forma, com elasticidade topológica suficiente para que a diferença
conviva, e não essa porcaria que pensam que é a democracia, o governo da
maioria. É um fascismo como outro qualquer, Nem o avesso, o anarquismo
puro e simples, porque é impossível para seres sintomáticos como somos
viver numa falta de arqué. E se essa arqué não é euclidiana, se é elástica,
nada impede que se pense – nesse maneirismo, nessa heterofagia – uma
instituição que não está lá para ser amada e, sim, como ferramenta de uso.
Tanto é que, no mundo político brasileiro, o de que mais se tem medo é de
uma assembléia constituinte, de um lugar onde se possa discutir os fundamentos
mesmos da instituição, o estatuto do Brasil.
De um lado, então, as PIPAS do mundo, que sobem ao ar com a sua
forma euclidiana, se erigem euclidianamente com estatutos, com
institucionalidades rígidas, mas que não deixam de fazer as suas barganhas
quando o poder fica ameaçado. Isso não é bem elasticidade. De outro, as
alternativas de caos que propiciam, também, uma retomada dos movimentos
autoritários, fascistas.
Não se quer pensar a possibilidade da referência a um texto, da constante
reflexão e possível remanejamento desse texto institucional, e poder conviver
com uma instituição mal-amada, que é o que deve ser uma instituição. Por
que toda vez que se pensa institucionalmente, se tem que trazer um amor, mais
que um zelo por essa instituição? Pode-se zelar, sim, pela eficácia da ferramenta.
Eu, por exemplo, não amo o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, quero que
ele se dane. Mas é uma ferramenta que nos serve, e é só neste regime que ele
é importante. Ele funda um lugar dentro do qual as coisas podem ser
questionadas em vez de serem puramente fofocadas ou transadas em regime
de poder. Se não é isto, não me interessa. Zelar pelos trabalhos da instituição
não é zelar por nenhum amor. Zelo é uma palavra que tem o mesmo radical de
ciúme. O termo é ambíguo. Trata-se do zelo pela ferramenta como faz um

465
Psicanálise & Polética

artesão, que não é estúpido, que não tenta entalhar a madeira com um formão
estrumbicado. É simplesmente querer exprimir-se bem, expressar-se bem, falar
bem, dizer bem. Outra coisa é botar as ferramentas enferrujadas na gaveta e
zelar, ciumentamente, por essa fechadura.
A acusação que Lacan faz à PIPA é justamente a de se ter fundado
sobre determinado desejo do Pai – portanto uma perversão de Freud – e depois
ter-se trancado na gaveta dos guardiães das relíquias do defunto. A exigência
de rigor que Lacan sempre fez, não fez com que ele se tornasse autoritário a
ponto de consolidar a Escola com um regulamento fechado, tanto é que ele
mesmo a dissolveu. Certas pessoas acham que isto é autoritarismo, quando é
um ato de esculhambação – no sentido que já trouxe aqui –, de castração. Isto
é importante quando vemos as celeumas instauradas no campo das PIPAS do
mundo e, depois, as barganhas e acomodações em função da perda de poder e
de prestígio que a instituição vem sofrendo – porque há pessoas que pensam,
do lado de fora, não é só lá dentro que moram eventuais leitores de Freud –, e
aquelas pessoas que supostamente estavam incomodando e deveriam ser expul-
sas, são acolhidas e diplomadas – até saiu no Zózimo.
Ora, pergunto eu, essa atitude de lutar pela permanência na instituição,
por amor a ela, aceitando a traficância, e que toma foros de rebeldia e de
subversão, de renovação política, não é na verdade um reforço da moral da
instituição? Sempre fiquei perplexo diante da pergunta: que autoridade extra-
pipal têm as PIPAS do mundo para alguém ter que viver se curvando a elas?
Não é discursiva. Discursivamente não se precisa trabalhar isto porque Lacan
já liquidou o assunto, e outros também. Não é nem policial – nem mesmo isto
eles têm – com certa instalação de poder, por exemplo dentro do nosso país,
que possa obrigar ninguém a nada, nem talvez mesmo em outras partes do
mundo. Que poder tem uma instituição assim para conseguir o que tem
conseguido, senão esse amor zeloso, ciumento, de alienação tipo marxista (na
definição marxista da alienação, não hegeliana ou lacaniana) a recolher mais-
valia e faturar em cima dela, nesses acordos, quando certos sujeitos ao invés
de lhe darem as costas, peidarem-lhe na venta, como faz o inconsciente (Lacan

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En L’Endroit où Villegaignon Print Terre

diz que o inconsciente peida na cara da gente) e tratarem das coisas sérias,
isto é, que têm seriedade, conseqüência, até às últimas, restam nesse jogo de
zelo por um amor do qual não podem abrir mão?
É válido pensarmos que, em anos idos, Lacan tenha brigado com a
PIPA, tenha tentado ficar, etc., e acabando por ser expulso. É válido porque é
uma experiência primeira. Mas depois de tudo que aconteceu – as pessoas
não devem estar desinformadas disso –, repetir o mesmíssimo sintoma? E sem
a mesma glória? É espantoso. São essas pessoas com essas atitudes que estão
reforçando o poder pipal – aí já sendo pipa de madeira, onde o sujeito se tranca.
E isso é puro incesto.
O incesto de que fala Freud – não o da antropologia que viria fundar o
social, etc. – é a repetição da vontade de sutura, por não se querer aceitar a
castração. Estou dizendo que isso é incesto pura e simplesmente porque se
essa mãe, dona PIPA, é sustentada no seu poder exclusivamente pelo amor
dos seus filhotes que não conseguem lhe dar as costas e tratar da vida com
outras mulheres, estamos aí no caso do “Não posso abrir mão do amor de
mamãe. Amo tanto mamãe que não vou deixá-la. Ela tem que me aceitar
assim mesmo”. É a falta radical de limites. O grande pecado de Caim, no
Velho Testamento, é justamente não poder aceitar, na sua estupidez, que o pai
tem suas preferências – gosta mais de animais do que de frutas. Ele não
consegue aceitar que o pai preferiu Abel porque ele transava carneiro. O pai
não gosta de frutas, não é frugívoro, e pronto! É um limite. Não é que ele tenha
escolhido Abel, ele escolheu foi carneiro. O tesão dele, quer dizer, a perversão
que nos transmitiu foi esta.
E aí estamos no mesmo regime. A Santa Madre se reforça com o
amor ciumento dos seus filhotes que não querem abandoná-la de modo algum,
para não serem castrados, para não se defrontarem com a castração.
O amor de que fala Pierre Legendre no Amor do Censor é essa paixão
narcísica e incestuosa, aquilo que Serge Leclaire, numa palestra aqui no Rio,
chamou de Social-Incestocracia: essa paixão pela instituição. É o amor dessa
língua, o amor institucional universitário que é a paixão pela língua. Esse amor

467
Psicanálise & Polética

que estou criticando é o amor-paixão, essa função narcísica de o sujeito não


poder ficar sozinho, por um instante que seja. Ele não pode deixar a sua
sagrada família.
Isto se reflete no que eu estive criticando em nossas transações aqui.
Vejo, boquiaberto, algo que já aconteceu milhares de vezes na chamada história,
quando um Reich, por exemplo, se pergunta por que, de repente, um sujeito
deseja a opressão de amar o Estado fascista. Não estará aí o germe da coisa?
É como se, por estar abordando esses momentos lógicos, esses momentos de
possível intervenção, que podem ocorrer ou não, aqui no nosso trabalho, não
estivéssemos agindo no vigor do discurso psicanalítico. E, portanto, com mais
virulência política do que a participação nessas tragicomédias da mãe redentora
e que, no final, acolhe as crianças de sua filiação debaixo das asinhas.
Isto me deixa perplexo. A falta de seriedade, no sentido lacaniano do
termo: está-se desenvolvendo um pensamento e as pessoas parecem que não
podem seguir de começo a fim a coisa porque um acontecimento lá parece
mais político, mais urgente, mais necessário – porque é uma questão prática e
isso aqui não é uma prática... Fico perplexo e temo que as pessoas estejam
disponíveis a tal tipo de cantada, mesmo lidando com o discurso psicanalítico,
podendo cair nessa cantada da comunicação de massa.

* * *

Não preciso sair do caminho que vinha trilhando para continuar a refletir
sobre isto. A tendência – que, um dia, pretendo apresentar com o nome de
fagocitose do imaginário – dessa vocação de açambarcamento que o imaginário
tem, de impregnação, é e tem sido, através dos tempos, ou seja, através dos
discursos, a de tapar o sol do significante novo com a peneira da acomodação
formal. Vemos isto claramente depois da presença de Freud e de outros. No
nosso campo, Freud traz a virulência do seu discurso, e aquilo é acobertado
num psicologismo do ego. A PIPA se reforça, acontece tudo isso, as coisas se
acomodam, e portanto podem ser espelhadas no imaginário dos sistemas.

468
En L’Endroit où Villegaignon Print Terre

Não pensem que isso não está vigorando para a palavra de Lacan,
porque está. Quando vemos certas vozes de força – não é porque discordo
delas que vou dizer que não sejam fortes, veementes e até honestas, no sentido
da honestas latina (sua relação limpa com o objeto do seu trabalho) –
combatendo a psicanálise e até descendências de Lacan, elas não deixam de
ter alguma razão. Isto no sentido de que o rigor que um sujeito como Lacan, no
seu discurso, é capaz de impostar pode ser facilmente transcrito de discurso
para discurso, saltado do discurso psicanalítico ou mesmo do discurso do mestre
(do ensino de Lacan) para discursos menos interessantes, para aqueles que
padecem do seu comando.
A vontade de pipação do campo lacaniano existe, e tenho brigado com
ela desde 1975. Todo tipo de efeitos neste pais já se fez, de Nordeste a Sul,
tentativas de organização do lacanismo brasileiro e luta pela chefia, esse tipo
de bobagem, no sentido, certamente, de alguém assumir a herança, ainda com
o homem vivo, de ser o representante de Lacan. Já insisti certas vezes aqui
que não me chamo Jacques Lacan e que não sou representante de ninguém
com esse nome. Meu encontro com esse sujeito, ou seja, primeiro com seu
escrito, segundo com seu divã, terceiro com seu ensino, não me põe, de modo
algum, nenhum diploma de embaixador debaixo do braço. Não posso falar
senão por mim – e ouve quem quer!
Tais coisas existem nas rebarbas do nome de Lacan – nas franjas e
dentro mesmo do lacanismo. Esforços de aglutinação e de comando são feitos,
os quais não têm surtido grande efeito nem mesmo lá do outro lado do Atlântico,
e resultaram necessariamente em explosões (não são cisões, cisão é coisa
muito precisa entre tal e tal na discussão, são explosões dentro do mesmo
discurso talvez) que mesclam de tal modo as coisas, que as compreendemos
muito mal. A explosão é tanto no nível da má leitura de Lacan quanto no nível
simplesmente da rejeição de tal sujeito dentro do campo. Isso fica embaralhado,
e é preciso analisar para discernir.
Nós outros que iniciamos essa operação que acabou resultando em
Colégio Freudiano (inicialmente eu e Betty Milan) não deixamos de sofrer

469
Psicanálise & Polética

tentativas de aprisionamento. Pelas vias mesmo das relações pessoais que


tenhamos tido com determinado sujeito daquele campo. E freqüentemente
somos maltratados porque desobedientes. Não se trata de birra. É uma
desobediência que vem de termos aprendido, com o próprio Lacan, a sustentar
certa vigência do discurso psicanalítico, de não subtrocarmos nossa intenção
de fazer vigorar o mais possível esse discurso contra o açambarcamento, a
dominação, a imposição, mesmo a regulação de comportamentos supostamente
“lacanianos”. O sucesso de Lacan não me parece da ordem da picaretagem.
Pode até haver picaretagem de outrem, mas não me parece que Lacan tenha
feito esforços para manter estruturas institucionais e posturas de alienação
institucional que lhe garantissem comando. Havia era transferência ao seu
redor, e reconhecimento, como há ainda hoje. O que não impede que algumas
pessoas se confundam e forcem transmutações discursivas. Daí que a gente
pode tomar algumas cacetadas quando denuncia que determinado sujeito veste
as roupas que herdou, do espólio do falecido, esquecendose de que se pode
ver, com evidência, que o defunto era maior: engole ele, paletó!
Certa vez, referindo-se à senhorita Anna Freud, Lacan disse que
não basta portar as relíquias do gênio... É o que se pode repetir hoje para
quem, herdando por direito comum as relíquias de Lacan, queira impor
hegemonia antes ainda de receber as devidas transferências, os devidos
reconhecimentos. Cada Lacan tem a Anna Freud que merece. É assim que
nossa desobediência, dada a falta de respeito para com nossa posição
enquanto sujeitos habitantes de determinado lugar sintomatizado por
determinada língua, e que sofreram as marcas de alteração do mestre, nos
fez recusar a participação no Congresso de Caracas, com todo o respeito
que tenhamos pela inteligência e valor do organizador – nada a ver uma
coisa com outra. Mas não autorizo ninguém a me comandar sem que eu lhe
tenha tido: “Tu és meu mestre”. De lá para cá, somos alvo de algumas
investidas, de implicâncias, porque não estamos dispostos a dizer amém ao
que nos parece, pela veemência de institucionalização e de comando, a
fundação da PIPA Lacaniana.

470
En L’Endroit où Villegaignon Print Terre

Por essas e outras é que Betty Milan se recusou a inscrever-se, mesmo


com Lacan ainda vivo – não se sabe como, vivo como, não se sabe em que
condições –, na dita Escola da Causa Freudiana. Eu me inscrevi sim porque
Lacan lá estava, foi este o meu argumento. E me demiti, como li para vocês,
quando ele, bem ou mal, já lá não estava. Depois de todo um longo trabalho de
demonstração de estarmos, pelo menos com seriedade, se bem que
eventualmente com erros, dentro do nosso percurso, vemos certa linha, mediante
nomeadamente o referido herdeiro, se encostar em cucarachas de oportunidade,
em paulistas e mesmo cariocas de acomodação. Já que a carniça pintou, sem
nenhum percurso, sem nenhum antecedente, correm a nos fazer frente os urubus
da boa ocasião.
Só que, como brasileiro, eu digo, curta e grossamente, que estou
cagando para isso. Escreva-se e grave-se. Ninguém é proprietário do discurso
de Lacan. A experiência que passamos com a indicação dele não é substituível
pela experiência de outrem, e muito menos sob o comando de ninguém. Somos
sérios, ainda que eventualmente lucrativamente burros. Não vamos refazer a
brincadeira que acabamos de criticar na PIPA, de pedir pelo amor de Deus
não nos mandem embora, e lutar por isto numa instituição que não fede nem
cheira. Além do mais, não estou me sentindo pior acompanhado aonde estou.
E com o trabalho que tenho a fazer... veremos no que isso resulta. Como disse
Lacan, “minha vantagem é saber o que esperar significa”. Esperemos então.
É o risco do meu petisco.
Antropofagia sim – pode ser bom comer francês – mas não dominação.
Aliás, é antropofagia contra dominação. Não estou interessado em nenhum
Movimento Analítico Lacaniano Universal, MALU, MALU MILHER, que
me parece vir contra o que ensinou Lacan. Não estou interessado em entronizar
ninguém, ainda que fosse eu, no trono de um império lacaniano. O que interessa
é que efeitos se possam tirar e fazer vigorar, sim ou não. Haja o discurso psicanalítico
enquanto tal, aquele que ele afinal conseguiu nos mostrar. E a postura ética de
não abrir mão do seu vigor. MALU Ml-LHER tem aliás um sabor de feminismo
universal, no sentido machista do termo: já calando Lacan, tão cedo.

471
Psicanálise & Polética

Por isso é que me lembrei de Monsieur de Villegaignon que vem nos


relembrar que podemos – e porque podemos, devemos – enfrentar essa
grossura.

* * *

Aí vou reencontrar minha fala da vez anterior quando coloquei a questão


do antropófago, do heterófago, em lugar do maneirismo de Hauser.
Hauser coloca, justamente, que o cerne do maneirismo é a alienação.
É bem colocado, de certo modo, na medida em que ele apresenta o que é a
alienação em Hegel e em Marx – e certamente que ele opta pela alienação em
Marx – para mostrar a passagem do classicismo para um reboliço social que
acontece por fundação do Estado moderno, de capitalismo moderno, da
burocratização de tudo e de todos, como está explicitado no Rei Lear, de
Shakespeare, do sistema capitalista organizado segundo os princípios dessa
ordem monetária, a visão maquiavélica (de referência a Maquiavel) da au-
tonomia da política racionalista ao mesmo tempo que realista. Esse reboliço
causa, segundo ele, um certo mal-estar, e propicia um movimento contrário de
luta por parte de quem, de dentro da institucionalização e da cadeia de aço
desse arcabouço, tentava escapar. Aí há o aparecimento desse maneirismo
que, ainda segundo ele, é essa coisa formalmente aferrada a uma aparência
canônica ao mesmo tempo que lutando contra isto na tentativa de fazer emergir
o particular. Quer dizer, o sujeito começa – levando em conta o conceito marxista
de alienação – a perder sua particularidade, a se ver alienado ao sistema –
uma ordem canônica tentando se impor como ordem capitalista, política, etc.,
e, na tentativa de escapar disso, de afirmar alguma individualidade, apareceria
o tal maneirismo.
A alienação definida por Hegel é aquela de que o sujeito não poderia
escapar – e é daí que Lacan parte, segundo o curso de Kojève que seguiu –
uma vez que o sujeito não consegue se fundar a não ser a partir do Outro e
teria que destacar daí, segundo um movimento dentro da história, como Hegel

472
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coloca, a sua individualidade. Partindo, pois, da alienação para o destacamento


da sua individualidade. Marx mostra isto como mais-alienação. A cisão do
trabalhador, a subdivisão, a eliminação do trabalho especializado através das
máquinas, a referência do trabalhador ao pagamento das suas horas de trabalho
como neutralização produzida pelo capital, etc., seriam o fundamento dessa
mais-alienação. Hauser tenta explicar por aí, simplesmente porque a ferramenta
que ele tem é essa.
Não é a descoberta de Marx do movimento da alienação na sua
historicidade, de pintar a alienação a partir daquele momento como mais-
alienação do trabalhador diante da definição nova do seu trabalho, mas sim a
alienação que Lacan coloca no Seminário 11 que é o fundamento mesmo do
sujeito, com aparência de ele estar retornando a Hegel, mas sem nenhuma
possibilidade de síntese na história. Trata-se da alienação como fratura entre a
bolsa e a vida que o sujeito vai carregar como princípio da castração por toda
a sua existência no jogo desse processo com o Outro, sem que por isso deixe
de ter o discurso psicanalítico à sua disposição para defrontar-se com a base,
não da sua individualidade – pois não interessa a individualidade –, mas a base
da sua particularidade sintomática e a sua aceitação da sua posição de sujeito,
sujeito ao significante, ao desejo do Outro. Estas ferramentas nos possibilitam
pensar, talvez, com mais clareza a questão da alienação.
Diferentemente do que pensa Hauser a respeito da arte daquele
momento, podemos ver durante o período chamado renascentista, com as
ferramentas do renascimento, as brincadeiras, as deformações que os artistas,
por serem poetas e tentarem produzir uma obra, produzem na própria sistêmica
do renascimento: anamorfose, como o caso de Holbein; outras deformações,
como o caso de Velázquez, que mostrei aqui; uma contorção específica daquele
que talvez foi o primeiro que apareceu, no campo onde o renascimento italiano
reinava, fazendo certa arruaça na via renascentista, que se chama Michelangelo
Buonarroti, tanto na arquitetura, quanto na escultura, na pintura.
Trata-se aí do que tentei mostrar como o núcleo heterófago do processo.
Não se trata de ter que viver, como mostra Hauser, o processo de neurotização

473
Psicanálise & Polética

por que passaram os artistas, poetas, teóricos, pensadores, porque ficavam


perdidos. Quando o renascimento caiu, eles se viram sem cânones e tornaram-
se sujeitos suicidas, sofridos, etc., com aparência do romantismo, que vem
depois e tem uma certa tônica desse lado. É possível até que eles tenham
sofrido isso que Hauser pensa que é por uma descompensação, por falta de
referência porque o classicismo faliu, quando, na verdade, era uma falta radical
de poder situar a diferença que estamos tomando a partir de Lacan. Quer
dizer, tendo perdido sua postura de impostação masculina do discurso do
classicismo e caído nesse resvalo do feminino, não tiveram condições de ordenar,
se não na obra pelo menos nas suas vidas, a transação entre esses dois campos
de um modo a heterofagar, a produzir uma heterofagia que viesse a fazer a
transação de um e de outro.
Esta é a precisão que nos empresta o pensamento lacaniano. Ela não é
bem maneirista nesse sentido que Hauser coloca, mas produz essa heterofagia
e vem mostrar que é preciso, sim, o rigor do matema, aonde o sentido não está,
mas a articulação e a sintaxe estão presentes para que se possa transar a
abertura do Outro. É preciso rigor para que se possa transar essa loucura. É
preciso fazer o cruzamento desses dois lados, e com discurso inteiramente novo.
É o que Freud entregou como reconhecimento do Outro, ou seja, saber-se que
se está na referência de uma sintomática de base, sim, que o masculino existe
sim, mas que há Outro e que não é preciso nem dissolver para um lado nem
coagular para o outro... Que as mulheres não existem sem o homem, pois que
elas se perdem, e o homem não existe sem mulheres, pois que vira um animal.
Fazendo um parêntese, quero lembrar que o maneirismo não é Kitsch.
Meu conceito de Kitsch é de que ele é o jogo, o princípio, da tradução. Lembro-
me que quando nomeei o meu Seminário do ano passado de Acesso à Lida de
Fi-menina, imediatamente alguém disse que era um Kitsch. A tradução que
lida com o Outro tem essa aparência, mas não utilizo as definições que dão
Abraham Moles, Gillo Dorffles, etc. Já tentei mostrar que o Kitsch é uma
tradução ruim, falta de talento na tradução. O espírito do Kitsch é o espirito da
tentativa de traduzir – toda tradução é de certo modo Kitsch.

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Aliás, lembro também que é necessária uma nova leitura do romantismo.


Isto porque ele é um retorno disso que lemos, por exemplo, no chamado
maneirismo, mas com alguns cacoetes. É preciso retomar isto, sobretudo porque
os poetas românticos brasileiros – que é o que mais nos interessa de perto –
têm um espantoso vigor na relação com o Outro. Não vamos de modo algum
menosprezar os Navios Negreiros desta vida, pois são extremamente
importantes. O romantismo brasileiro tem coisas muito sérias...

* * *

Lacan é um mestre. E mestre não morre. Mestre que é mestre não


morre. Tem um poeta engraçadíssimo neste pais, que descobri hoje. Ele faz a
seguinte gozação com o sistema: “Todo homem é mortal. Sócrates era
homossexual, logo ele é imortal”. Só que homossexual que ele quis dizer é o
hetero que eu aponto. Eu diria que “todo homem é mortal, Sócrates é
heterossexual, logo não é mortal”. Mortais são os homossexuais.
Mas Lacan é um mestre, quer dizer, fazia vigorar o discurso do mestre.
A partir da sua postura sintomática fazia trabalhar o saber, o campo do Outro,
na tentativa de tomar dali uma mais-valia – no sentido marxista –, que chamamos
de mais-gozar. Para fazer isso, para ser o mestre que ele foi, teve que ocultar
um pouco a sua cisão – por isso mesmo que ele disse que todo conhecimento
é paranóico. Na medida em que fico ocultando minha cisão para tentar produzir
um discurso de mestre, não deixo de estar na tangente da paranóia.
Lacan, certamente, foi um analista. E digo no passado porque analista
ocupa o lugar do morto, mas, uma vez morto, não pode mais ocupar esse lugar.
O morto permanece como ancestral e a parceria dele é com o Outro.
O morto não pinta se não há um sujeito-suposto-saber que,
eventualmente, consiga fazer pintar esse lugar. Se não, a presença do analista
seria absolutamente desnecessária. Há um savoir-faire qualquer, muito mal
definido, que faz com que um sujeito cheio de vida – e não cheio da vida, se
não não vai para lá, pois há um desejo que situa isso – faça pintar o lugar do

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Psicanálise & Polética

morto, ou seja, possa até, eventualmente, ocupá-lo, justamente porque é sujeito-


suposto-saber para um outro. Mas se esse sujeito, como presença, desaparece,
não dá mais para ocupar esse lugar. Não adianta tentar fazer desaparecer o
fato da morte, vai-se ficar é na saudade...
Lacan foi analista. Posso garantir isto porque ele o foi para mim. O
discurso do mestre nada tem a ver com o discurso do analista. Não se trata de,
a partir de uma posição fundamental que lhe é particular, fazer trabalhar o
outro para a produção de um mais-gozar que possa ser faturado por esse
fundamental num certo ocultamento da partição da sua posição subjetiva, que
é o que Marx mostrou com clareza quando pensou estar declarando que fosse
o discurso do capitalista. Lacan, quando escreve o discurso do mestre, diz que
isso é o que Marx chamava de mais-valia, ou seja: a partir de uma posição
fundamental – no caso a propriedade dos meios de produção, etc. –, fazer
trabalhar outrem como escravo para produzir uma mais-valia capitalizável pelo
proprietário, escondendo aquilo que o faz, por ser partido, igualar-se ao escravo:
sua partição subjetiva. Isso já é, no discurso de Marx, um congelamento da
dialética do senhor e do escravo em Hegel.
O que Lacan mostrou com clareza foi a impossibilidade vigendo aí. Há
uma disjunção e o discurso não se fecha: o objeto a como mais-valia ou como
mais-gozar, por ser impegável, não é capaz de suturar o sujeito. Então, o escravo
tem por onde dialetizar o processo com o senhor. Agora, a dominação capitalista,
segundo Marx, ocultaria mesmo essa fratura. A impossibilidade não está aí, ela
está no discurso inteiro, que ocultaria na medida em que se apodera mesmo,
realmente, dos meios, e recupera como lucro, como acrescentamento do capital
– tudo traduzido em forma de verba.
Há discurso do psicanalista quando alguém se coloca (porque outro o
nomeia) como objeto a. Como algo irrecuperável, impegável. Ou seja, ele tem
um savoir-faire para além da designação que o outro lhe faça de ocupar o
lugar do suposto saber. É um savoir-faire estilístico de fazer-se impegável (o
que chamei a “forma psicanalítica”) de maneira que possa fazer funcionar a
fratura do sujeito, para que seja ejetada a particularidade desse sujeito. Isto é

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que é a escuta: conseguir aproximar a neutralidade absoluta do objeto a, causa


do desejo, mediante um savoir-faire que finge bem isto... Como o poeta, que
é um fingidor – nesse sentido rigoroso de ser um bom falante, não no de ser um
canastrão –, de maneira que a cisão do sujeito seja destacada. Não há
interpretação a não ser por aí.
Já começa a aparecer um folclore lacaniano, deplorável, de sim-
plesmente se ficar de brincadeira com as palavras. Pode ser interessante no
nível do artístico, mas é mais freqüentemente como folclore que isso está
começando a aparecer: intervenção da bobagem do analista. O que importa é,
por qualquer meio, fazer-se a indicação da ruptura, da brecha do sujeito, para
que ele, fracionado assim, venha a nos pintar em sua particularidade. Para isto o
analista coloca o saber no lugar da verdade, o saber que o inconsciente lhe traz
na fala desse Outro que é o seu analisando. Analisando não mente, ele só diz a
verdade, não toda, mas a diz o tempo todo. Esta é a escuta que Freud inventou
quando conseguiu destacar o discurso psicanalítico. Não que este discurso não
houvesse antes, era capaz de vigorar por aí à revelia dos outros discursos. Freud
o destacou, descobriu que a transferência lhe dava este poder. O meio que colou
a seu tempo foi o de ficar contando aquelas anedotas para as pessoas. Mas isto
não cola mais. Todo mundo já aprendeu. Aí é que há que ser poeta. É porque já
se aprenderam as anedotas freudianas que elas não colam mais. Assim como já
se começam a aprender os jogos de palavra de Lacan e, daqui a pouco, isso não
cola mais. Quero ver quem tem talento para inventar outra.
A anedota edipiana todo mundo já conhece. Virou resistência, a qual
está do lado do analista, como notou Lacan. Se o analista está por um lado
contando com transmitir essa anedota e curar o outro, o outro já está careca
de ter deglutido essa anedota do outro lado... Este é o drama e o interesse da
psicanálise. Daqui a pouco todo mundo aprende lacanês. O sujeito diz tênis e
o analista diz pênis... E ficam nessa brincanagem. De vez em quando pode até
funcionar... Por isso Lacan diz que se tem que reinventar a psicanálise a cada
passo. O que importa é o que vai fazer trabalhar a cisão do sujeito a partir da
sua fala que se põe no lugar da verdade. O resto é folclore.

477
Psicanálise & Polética

Se Lacan não estivesse na freqüentação do discurso analítico não


poderia escrever as fórmulas que escreveu. Ficaria eternamente pensando na
possibilidade de síntese (de Hegel), a possibilidade de um dia a história se tornar
universal, pegar o objeto a e pôr no seu bolso, ou ficaria trabalhando a disjunção
apenas no processo da luta de classes, que é a masturbaçãozinha marxista –
briga para lá e para cá, de se tomar o poder. Só que o poder... não era bem isso
que se queria. Pode ter eficácia, não digo que não tenha, mas é parciária,
localizada. A luta de classe é classicista, é clássica, é classista. O barroquismo
de Lacan não o permite acreditar nesse tipo de coisa. Os “jovens” da PIPA que
eu comentava há pouco, estavam em processo de luta de classes. Para quê?
Para acrescentar o poder da PIPA.
Há diferença, nas disjunções, entre impossibilidade e impotência. No
discurso da histérica, a disjunção funciona, por causa da localização das letras
nos lugares, como mera impotência de seu processo discursivo. Nada há na
sua formação discursiva que lhe facilite supor o impossível. Já o mestre, este, o
supõe. O mestre tem esta dignidade. Sabe que está lidando com o impossível,
mas não quer deixar de gozar por isso: enquanto pinta o possível, ele se vira e
agarra um mais-gozarzinho. A histérica, não. Para ela, trata-se de impotência:
“Com mais um jeitinho, mais uma cantada, eu consigo”. Se ela soubesse do
impossível, deixaria de ser histérica, virava senhor. O que ela não suporta... é o
feminino. Fica fingindo que é homem, ou seja, quer aplicar modelos de desejo a
partir do seu próprio discurso porque não consegue passar para o lado do mestre.
Ela quer reinar sobre o mestre. E quando não consegue, pensa que ela não fez
algo direito, não arrumou direito, algum troço ela fez em impotência. Ela insiste
na cantada.
O analista, mais do que ninguém, está no regime do impossível. Ele
sabe que é impossível analisar. O mestre até sabe que é impossível governar,
mas governa assim mesmo. O analista bem sabe que é impossível analisar...

* * *

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Lacan, como sabemos, se referiu a outros discursos que ele não teria
escrito: o discurso da ciência, o discurso do capitalista... Já falei sobre isto e já
fiz algumas enrascadas na tentativa de abordá-los.
Hoje vou ousar escrever um discurso que Lacan não nos escreveu –
em outra oportunidade escrevo outros como pude estudar... Com a mesma
disjunção que, neste caso, posso traduzir não por impotência, mas por
incompetência. Aliás me pergunto se, em sua origem histórica, a incompetência,
seu surgimento no tráfego e no tráfico cotidianos das operações e dos trabalhos,
não é um conceito advindo com o capitalismo. Antes da posição capitalista,
tínhamos os mestres, e a relação de respeito recíproco entre mestre e discípulo,
as corporações, etc... Não era o conceito de incompetência, o qual é
psicologizável e transformável num regulamento que se aplica ao operário da
fábrica quando ele vai lá se inscrever. O que se está medindo? Sua competência
para servir como peça de máquina.
Suponho, então, que posso escrever assim o Discurso do Capitalista:

É o discurso do mestre com rotação só de S/ e S2.


Lacan escreveu quatro discursos e falou da existência de, pelo menos,
mais dois. Quanto mais tento procurar de onde ele tirou a montagem inicial
nessa possibilidade de produzir os matemas dos discursos, mais tenho a
impressão de que são oito de base. E entre esses oito discursos, por seguir a
rota que Lacan parece que seguiu para escrever os quatro – mostrarei isto

479
Psicanálise & Polética

mais tarde –, parece que encontro assim o discurso do capitalista. Ele participa,
por algumas posições, do discurso do senhor – no lugar do agente e no lugar da
produção. Há reversão quanto ao lugar da produção e do saber e, nessa reversão,
justamente esses dois lugares são o inverso do analista. É o inverso segundo
um eixo. Totalmente não é, porque o eixo permanece. Há uma reversão topológica
e, depois, tudo gira do mesmo jeito. Mostrarei isto com um tetraedro numa
outra ocasião.
O discurso do capitalista coloca como agente o mesmo que o mestre
coloca: uma posição particular, fundamental. No caso, aquilo que Marx trouxe,
a posição fundamental de apropriação dos bens, dos meios de produção, etc.
Esta é a minha partida. Mas não é o discurso do senhor justamente porque não
faz trabalhar o outro – ele evita uma relação com o Outro enquanto tal. Ele faz
trabalhar é a cisão, como o psicanalista faz, mas não com a mesma produção
discursiva. A cisão que ele faz trabalhar é a partição do sujeito mediante alienação
por fragmentação. É a divisão do trabalho, para Marx. O fracionamento do
sujeito a ponto de ele poder ser mera peça do sistema, em não especialização.
A especialização de que falava antes era a possibilidade de se
encomendar o trabalho de um escravo que, por seu lado, ali era mestre. Ele
partia da sua particularidade criativa. Aqui, não. O próprio sujeito é fragmentado.
Fragmenta-se um outro, faz-se operar nele, depressivamente, a cisão do sujeito
– “você e um mero sujeito a um, não ao Outro” – sem deixar de colocar no
lugar da verdade o saber. Mas não é o saber do outro como na análise se faz,
aquele que o outro apresenta como verdade. É um certo saber que é produzido
como sistema e como verdadeiro. Um certo saber que, certamente, lhe é
oferecido pelo universitário, que é o empregadinho do capitalista.
Vem então a produção de um objeto como pura mais-valia, que é o
lucro que se pode recuperar, na posição do capitalista, pelo uso dessa fórmula
discursiva. Aí está a mais-valia, puramente. No discurso do mestre, Lacan
chamou a isto de mais-gozar. Trata-se aqui do lucro financeiro, esse de que se
fala no banco e que vem neutralizado como moeda. Está tudo lá, no Marx...
Venho a transar com a moeda e com um falso lucro porque deprimo o outro,

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pela sua partição, e não o deixo ser alguém – ou seja, um sujeito, mas vigorando
a partir da sua particularidade – porque lhe digo que, no lugar da verdade, tenho
um saber dado, certamente pelo discurso universitário.
A diferença, então, é que, no discurso analítico, o saber que está no
lugar da verdade, é o saber do outro na medida em que o analista está fazendo
funcionar, como objeto, a cisão do sujeito no lugar de um outro. E se está como
objeto a, o saber do outro vai saltar, porque o a causa o desejo dele. A postura
do analista é de causa do desejo, e assim o Outro vai colocar-se verdadeiramente
com o seu saber, que é saber do Outro e não do analista. No discurso do
capitalista, não se coloca no lugar do agente a causa do desejo, e sim o imperativo
superegóico de uma posição de comando, como faz o mestre. Só que o comando,
no caso do mestre, é dialetizável, pois quando faz funcionar o saber, este está
cindido pelo sujeito. O capitalista faz funcionar depressivamente a cisão do
sujeito garantindo-se, como verdade, num saber dado, o savoir-faire do lucro.
É depressivamente, então, que o Outro é abordado.
É claro que o discurso do capitalista, como qualquer outro, tem sua
disjunção, é impossível. Se fosse possível, já haveria dominado tudo. Ele também
não pode operar, como a histérica, essa impossibilidade, pois, para ele, só há
defeito nesse saber, uma impotência, na verdade uma incompetência... dos
senhores professores que não fizeram uma tese decente para se obter todo o
lucro possível. Por isso é que há tantos professores como Ministros. Espera-se
que eles tragam um saber, que a universidade lhes deu, para que esse saber
funcione no lugar da verdade, oferecendo todo o lucro. O saber universitário
não é o saber científico. O discurso da ciência é outro...
A histérica fica produzindo saber o tempo todo, ela não faz outra coisa.
O discurso científico faz a mesma coisa, mas por outra via. O discurso do
capitalismo não consegue lidar diretamente com o discurso da ciência. Ele dá
prêmio Nobel porque tem dinheiro para isto. Ele só pode lidar com isto através
do discurso universitário, que lhe dá, como produção, um sujeito prontinho, botando
o saber como sua causa. Ele captura sujeitos “preparados” para lhe garantir
que esse saber é verdadeiro. Ele não lida diretamente com a ciência, porque

481
Psicanálise & Polética

não é besta. A ciência é doidivana, ela produz saberes e quer garantias, mas
não é pedagógica. Basta lermos os cientistas... Como eu vejo o mundo, obra
de Einstein... É a produção de um saber que se entrega, e não o convencimento
de um sujeito para acreditar nesse saber dado. A pedagogia é que garante que
vocês todos sejam bem treinados, para que eu, como capitalizador, tenha o
público certo: aquele que vai poder aceitar eu propor esse saber dado sem
maiores contestações. Se pintar um poetinha, um doidinho, vão dizer que não é
nada disso, que ele só está fazendo arruaça.

* * *

Estou, hoje, nesse papo porque, a partir das coisas que disse desde o
começo – tanto sobre a PIPA quanto sobre a MALU –, me pergunto se não há
agora uma lacanagem sem Lacan. Com Lacan era interessante; o nome é
dele, ele pode fazer com seu nome o que quiser. Agora há outro sentido da
lacanagem, que é a de quem tente fazer de forma com que Lacan habite, ou
que tenha habitado, o discurso do capitalismo...
A PIPA não me interessa nem um pouco, mas a MALU ainda me
incomoda, pois o que vejo nesse tipo de atitude me parece tentativa de
capitalização do projeto lacaniano. Não é um mero faturamento, pois todos
nós faturamos em cima dele. Estou chamando de capitalização do projeto
lacaniano o fato de se arvorar algum suposto herdeiro – ainda que a roupa do
defunto seja evidentemente maior, como disse – o qual, ao invés de continuar o
ensino do mestre, na tentativa de, pelo menos, recompor esse lugar, e ao invés
de fazer vigorar o discurso analítico, queira transformar sua suposta herança
dos meios de produção – e que é uma farsa ruim porque não há essa herança
– em mera capitalização desse projeto.
Aí é que venho denunciar tais atos que não esperam por transferências,
nem por reconhecimentos, e só querem negociar. O papo tem sido neste nível.
O que preocupa é essa transa de se pegar o que se produz, se efetiva (ou se
efetivou porque não se efetiva mais já que Lacan está morto), pegar os dejetos

482
En L’Endroit où Villegaignon Print Terre

desse discurso e situar-se como seu herdeiro. E fracionar os outros – regra


antiga de dividir para reinar – de maneira a capitalizar, fazendo-se, de contas
que se está do nosso lado.

RESPOSTAS

(...)
Dizer que o saber não aparece manifestamente é dizer que ele não
aparece como saber puro e simples que é. Mas aparecer, ele aparece. O
capitalista, quando fala, diz que tal coisa está cientificamente correta, olha
para o lado e se garante: “Não é, professor?”. Ele não vai perguntar ao cientista...
E há professor para isto, sempre há. O professor é aquele que transformou o
discurso científico em discurso pedagógico. O cientista, o capitalista o premeia
– e é só.
Todo o sistema se remete à Universidade, que foi fundada não para
ensinar a ninguém, e sim para garantir que as criancinhas digam amém, para
que se formem sujeitos adaptados ao saber instituído.
(...)
Há tentativa de sufocação do discurso científico por parte do
capitalismo. Se o cientista não se comporta universitariamente, fica mal visto:
“Quer descobrir saberes para quê, esse cara?” – pergunta o capitalista – “Qual
o lucro que vou ter com isso?”.
(...)
Tanto é que se você tentar uma bolsa de estudo ou de pesquisa sobre
algo de sério – ou seja, cuja tese vai ficar certamente inacabada, porque toda
coisa séria é assim –, você não vai conseguir. A não ser por descuido. Para se
redigir um bom processo para ganhar bolsa, há que se mostrar que se vai
chegar a tal termo e que isso serve a um lucro tal. Capitalista não é besta de
financiar o que não lhe vai render lucro. Até o discurso científico – que não é
lá essas coisas –, que bem ou mal na sua histerização de base acaba produzindo
saberes. que por acidentes do Outro podem até subverter as crenças, anda

483
Psicanálise & Polética

meio desmoralizado. Por que e a quem se dá Prêmio Nobel? Àqueles que


fizeram um saber imediatamente rentável... “Prêmio Nobel da Paz”, àquele
que foi ali e pacificou uma fofoca. Ninguém se lembrou de dar um Prêmio
Nobel a Lacan. Neste ponto, com toda a caretice do seu papo, o velho Marx
está com a razão, pois o discurso dominante é este... O sujeito, que não só está
cindido como está fodido, está de vez cedido, e acaba investido e se fraciona
outra vez.
É o que acontece com a luta feminista. Vai produzir mais homens, de
saia. Aliás, de calça comprida mesmo, igualzinho. Já se confunde quase tudo.
Antes, e pelo menos, a única coisa que ainda dava para diferençar era certa
postura. O unissex é isto: é que tudo se masculinizou e, até, para não parecer
muito diferente, o machão desmunheca um pouquinho.

21/OUT

484
Não é Não

21
NÃO É NÃO

Três palavras: Não, é, não. De acordo com as pontuações possíveis,


há uma série de leituras que, na língua brasileira, cria um equívoco extremamente
produtivo:
Não é não.
Não é não?
Não! é não - e por aí vai...
Talvez, então, possamos dizer de modo bem masculino que: Não é
não – está encerrado! Mas as mulheres dizem: Nãããão, não é não... E, no
ápice da dúvida, a gente fala muito: Né não? – que é tipo expletivo.
O título de hoje justamente aí está para essa equivocação, quando
possamos repensar um pouco, se possível, a nossa questão de Psicanálise &
Polética. Ou seja, o que a política tem a ver com a psicanálise.
Gostaria de retomar o que vem sendo dito desde o começo deste
Seminário, que é nossa posição crítica em relação a uma série de posturas
discursivas que estão aí.
Por exemplo, o chamado feminismo, que acusei de machismo – um
positivismo renascente, que quer dizer que não é não, sempre. E isto por
vocação de um certo existencialismo que, por vias de retorno a Sartre, pretende,
talvez, negar as contribuições da psicanálise. Outro dia mesmo alguém me
dizia que há muita semelhança entre Lacan e Sartre, porque “o inferno são os
outros”. Jamais se teve na psicanálise a idéia de que o inferno seja o Outro. O

485
Psicanálise & Polética

Outro é Deus. O inferno, o infernal, é o desejo. Lacan já teve oportunidade de


criticar Sartre justamente aí.
A crítica da sussexologia, e, também, do romantismo psiquiátrico, onde
se inclui a anti-psiquiatria, o Guattari-Deleuzismo... É por essa via que vou
retomar, principalmente na relação ao feminino, essa equivocação do homem.
Do ponto de vista do feminino propriamente dito, as mulheres já
conseguiram lavrar algum tento. Tenho nas mãos esta maravilha aqui, cujo texto
da embalagem é: “As mulheres vão conseguir igualdade de condições com os
homens no lugar onde eles menos esperam – no mictório”. Está à venda nos
supermercados... As mulheres já podem fazer pipi de pé. Isto é propaganda deste
piruzinho de papel que inventaram com a desculpa de que as mulheres não precisam
mais sentar nos vasos sanitários sujos. Elas agora podem ir ao mictório e fazer
como todo homem faz. E, isso, sem inveja do pênis... Elas tiram esse pênis do
bolso e fazem o seu pipi. Chama-se Discret – o charme discreto da piroquinha...

* * *

O tema em que pretendo ficar por hoje é justamente o da relação da


Psicose com o Feminino, se é que há alguma.
Quero falar um pouco sobre a psicose retomando o que havia tratado
n’O Pato Lógico, em 1979, quando pensava a possibilidade de articular alguma
coisa da neurose e da perversão sobre os níveis de renegação. Tentava dizer
algo sobre essa distinção e frisei que era preciso considerar o que chamei de
pseudo-psicose. Tratava-se de distinguir o que é da ordem da psicose daquilo
que muitos teóricos, inclusive analistas, colocaram no campo da psicose e que
não consigo aceitar, que é o caso de certos poetas, certos místicos.
Citei Artaud, Van Gogh, Hölderlin e outros, os quais é preciso abordar de
modo mais particular. Eu dizia que essa pseudo-psicose apresentava eventualmente
relações com a loucura, certas características aproximadas da psicose. Mas ali não
havia possibilidade, dado o tipo de produção desses sujeitos, que podíamos abordar,
de reconhecermos a foraclusão do Nome do Pai que caracterizaria o psicótico.

486
Não é Não

Naquele momento eu dizia, então – pelo menos é o que está aqui na


minha ficha –, que dizer não ao Nome do Pai não é o mesmo que não
escrevê-lo, ou seja, foracluí-lo, e, com isso, fazia comparação com a postura
feminina, a qual, de certa forma, suspende a função paterna. Donde, não só
Lacan, como a maioria dos observadores, apontam uma certa loucura no
feminino. Tentava inserir na via do feminino, por um certo risco de entrada
em relação com o furo, essa aparência de psicose que encontraríamos
eventualmente nesses poetas e místicos.
Hoje vou fazer um pouco de consideração disso e relembrar que essa loucura
é fundamental do falante e deve ser carinhosamente tratada. Como diz Fernando
Pessoa no poema que já citei: “Minha loucura, outros que a tomem, com o que nela
ia. Sem a loucura, que é o homem mais que a besta sadia? Cadáver adiado que
procria?”. Ele está reclamando essa essencialidade de rédea-frouxa que é do falante.
Não podemos esquecer, também, de um trecho de Lacan freqüentemente
citado, Écrits, p. 176: “Pois o risco da loucura se mede pelo atrativo mesmo das
identificações em que o homem engaja ao mesmo tempo sua verdade e seu ser.
Longe de a loucura ser o fato contingente das fragilidades de seu organismo, ela
é a virtualidade de uma falha aberta na sua essência. Longe de ser para a liberdade
‘um insulto’, ela é sua mais fiel companheira, ela segue seu movimento como
uma sombra. E o ser do homem não apenas não pode ser compreendido sem a
loucura, mas não seria o ser do homem se não portasse em si a loucura como o
limite da sua liberdade”. E depois de dizer que não se torna louco quem quer,
continua: “Mas é também que não atinge quem quer os riscos que envolvem a
loucura. Um organismo débil, uma imaginação desregrada, conflitos que
ultrapassam as forças não bastam para isso. Pode-se dar que um corpo de ferro,
identificações poderosas, as complacências do destino, inscritas nos astros, levem
mais seguramente a essa sedução do ser”.
Aí ele faz a grande ressalva: “Pelo menos essa concepção terá
imediatamente o beneficio de fazer apagar-se a ênfase problemática que o
século XIX colocou sobre a loucura das individualidades superiores – e de
acabar com o arsenal de golpes baixos que trocam Homais e Bournisien sobre
a loucura dos santos ou dos heróis da liberdade”.

487
Psicanálise & Polética

Ele diz isto no seu texto Proposições sobre a Causalidade Psíquica,


de 1948. E, no texto De uma Questão Preliminar a todo Tratamento Possível
da Psicose, de 1958, cita a frase acima: “E o ser homem não apenas não pode
ser compreendido sem a loucura...”
Os termos da língua: loucura, louco, maluco, maluquice, doido, doidice,
tantã, pancada, biruta, pinel, o sujeito tem uma telha a menos, macacos no
sótão, parafuso faltando, etc., tudo isso é uma ambigüidade muito grande e não
faz a distinção entre a loucura da essencialidade do falante e a inscrição
psiquiátrica, digamos assim, do psicótico. A loucura do homem não é
necessariamente a psicose. É preciso fazer esta distinção.
Temos aí a crítica da anti-psiquiatria, de posições como a de Deleuze,
que supõe poder reduzir a uma psicose esquizofrênica o processamento de
libertação do sujeito. Temos, também, que cobrar da anti-psiquiatria certo
romantismo que faz do psicótico a salvação do mundo. O respeito à diferença
que um psicótico apresenta é uma coisa, mas supor que a normalidade deva
ser psicótica é um pouco forte.
Vamos, então, tentar um pouco de discernimento. Prestem atenção, no
esquema seguinte, primeiro, na coluna da esquerda onde estão as Fórmulas
Quânticas da Sexuação, que já conhecemos. Na parte de cima, é aquele
esqueminha que tentei mostrar aqui de uma possibilidade de leitura dessas
fórmulas, por via das interseções, apontando que há um quadro mais ou menos
compacto dependente da instauração do sujeito, no momento do Fort-da, em
relação à presença e ausência do objeto. Isto, situando o Falo, que está
representado no meio dos quadradinhos, como significante entre presença e
ausência, e as duas posturas que Lacan nos dá como sendo as que
fundamentariam as posições dos sujeitos, enquanto homem e mulher, que teriam
uma fundação bastante antiga e radicalmente instalada.
O sujeito terá que redescobrir sua instalação, ou seja, um certo momento
lógico de emergência do sujeito. Portanto, isso deve ter a ver só com o momento
do Fort-da, mas com a estrutura geral que está no estádio do espelho, quando o
sujeito vai cair numa dessas posições. É claro que, depois, ele vai deixar de saber

488
Não é Não

que caiu lá e vai ter de redescobrir. Mas, certamente, por aí só existem dois
sexos: o sujeito ou cai num, ou cai noutro. E sexo nada tem a ver com a anatomia,
a não ser por extrema coincidência. Masculino e feminino, homem e mulher, não
são necessariamente macho e fêmea, são as posturas significantes que vão
determinar a posição do sujeito.

489
Psicanálise & Polética

Abaixo, na mesma coluna, temos as fórmulas de Lacan para a garantia


de ser homem e para não conseguir ser homem, ou seja, de ser “apenas uma
mulher”, como diz a música. O universal ser homem – x x – só se constitui
na medida em que existe “pelo menos uma” exceção - que contradiz e funda,
portanto, a regra.
Tentarei uma distinção, talvez um pouco forçada, para ver se fica um
pouco mais claro. Tomemos a cor, por exemplo – nada mais distintivo do que a
cor –, vamos escolher a cor verde. Se chamarmos y = cor e x = verde, poderíamos
dizer que:
x y: toda cor é cor. Para se poder tratar com as coisas, já se parte
de um universal colorístico.
x y: todo verde é cor.
Se disser que existe pelo menos uma cor que não é verde, ou seja, que
existe pelo menos uma possibilidade de dizer não ao verde, de limitar o verde,
poderei concluir daí que todo verde é verde, pois todo verde é função de verde:

y x: existe pelo menos uma cor que não é verde.
x x: todo verde é verde.
Ou seja, para se poder fechar o universal, colocar um todo, é preciso ter
pelo menos um que negue isso. Negar isso é o que garante o universal. Todo
verde é verde, na medida em que pelo menos uma cor é diferente de verde,
diferente de verde negado enquanto verde, que é não-verde, a negação do verde.

No fundo deste processo existe, então, a remissão constante a uma


Alteridade que nega a Metalinguagem. Isto porque para se dizer que todo verde
é verde, é preciso dizer que pelo menos um não o é. Mas, à medida que estou

490
Não é Não

falando de verde, estou situando um universal cor que está por fora disso tudo.
Há sempre referência a outra coisa no regime das oposições, como no caso da
linguística. É preciso colocar um espaço maior como englobando tudo para
estabelecer a distinção por dentro. Toda cor é cor, e isto é o universal da cor –
y y. E a cor verde precisa, para ser cor – x y –, de outra referência que

não seja cor. Existe pelo menos uma cor que nega o verde – yx –, logo todo
verde é verde: x x.

Aqui posso fazer a eliminação dos y e acabar com o y x, pois Lacan

disse que existe pelo menos um que não é função fálica: x x. Dentro desta
estruturação, basta se ter a exceção para se ter a regra, pois,por fora da exceção,
há outro universal que a está segurando. Daí a inexistência da metalinguagem,
pois trata-se de outra postura de universal, segurando uma particularidade como
diferente e fundadora desse universal. Temos aí a fórmula do distintivo, a fórmula
das oposições. Não se consegue estabelecer oposições escansivas sem esta
formação. Com isto, Lacan está garantindo que não há possibilidade de se
negar que a exceção funda a regra, que só se pode dizer o universal pela
diferença em relação ao que está por dentro.
Só posso dizer que todo verde é verde na medida em que há uma cor
que não é verde – o que está escondido aí é a referência à cor. Posso até dizer
o “absurdo” de que existe pelo menos um verde – algo que participa das
condições do verde – que não é verde, que é o seu limite. E como há um limite,
a oposição pode ser escrita.
Ora, quando Lacan escreve as fórmulas do feminino, posso dizer que
ele parte das mesmas premissas, ou seja: toda cor é cor; e todo verde é cor.
Até aí nada mudou, pois tenho que ter uma referência qualquer de escansão.
Mas, ele continua e diz que não existe nenhuma cor que não seja verde –
 
y x –, que é contraponto dessa outra afirmação de que existe pelo menos

uma cor que nega o verde – yx. Então, se disser que não posso reconhecer
que existe uma cor que negue o verde, é a mesma coisa que dizer que há uma
certa gradação, que as coisas não são assim tão nítidas e que, se for procurar
a distinção entre um verde e um não-verde por gradações sucessivas e sutis,

491
Psicanálise & Polética

vou perder o momento onde o verde deixa de ser verde. Então, posso dizer que
qualquer cor participa de uma certa “verdidade”.
Uma coisa é estabelecer as oposições entre x e x’. Outra, é dizer que
não se pode estabelecer nitidamente essa oposição, que a gradação é tão sutil
e tão infinita, que não se sabe onde está a oposição. Isto logo se espraia pelas
cores em geral e elas ganham certa verdidade. E os artistas garantem isso.
Basta estudarmos pintura para saber que um professor pode pedir que se
prepare um trabalho pictórico aonde o vermelho “funcione” como verde...
Em função das jogadas pictóricas, vou verdalizar o vermelho e o que
vai acontecer é que se disser que não existe nenhuma cor que diga não definitivo
ao verde, terei essa negação no universal que Lacan colocou. Poderei dizer

que não-toda cor é verde y x –, ou seja, é verde, mas não-toda. Tem uma
verdalidade, uma certa verdice, aquilo que posso atribuir gradativamente às
cores, reduzindo essas expressões... E reduzindo vai acabar... Não existe
nenhum que não seja fálico e diga não em definitivo sem gradações. Portanto,
as mulheres estão garantidas na sua posição feminina por dizerem que não-
toda é função fálica. O negócio escorrega, logo, a própria função fálica fica
prejudicada. A função fálica da mulher é algo precária, não é aquela coisa
batatal dos homens.
Posso, mesmo, trocar a palavra verde e a verdidade do verde pela
verdade. A verdade do verde está na dependência de alguma coisa externa.
Toda verdade é verdade. Todo verdadeiro é verdadeiro. Toda verdade é
verdadeira. Existe pelo menos uma verdade que não é verdadeira, então, toda
verdade é verdadeira. São os limites da verdade. E se não existe nenhum
verdadeiro que não seja verdade, não-toda verdade é verdade. Aí Lacan diz:
“Eu digo a verdade sempre, mas não-toda” – porque a língua não consegue ser
macha, nem que os gramáticos insistam nisto.
Como só posso falar alíngua, só posso dizer a verdade, mas não-toda.
Lembrando dos esqueminhas do “existe pelo menos um”, não posso dizer que
existe um horizonte distante – ao qual não preciso me referir, ao qual Lacan
não se referiu quando falou nisto –, mas existe um horizonte quando digo que

492
Não é Não

toda cor é cor, que verde é cor, porque existe pelo menos um que não é verde
e, dentro do colorismo, o verde se destaca. Posso sempre pensar nesse hori-
zonte. É muito distante, mas posso pensá-lo.
Já no caso da mulher, esse horizonte pode estar lá, mas a falta de
existência daquele que diz não, abre o contorno do universo. Fica, então, uma
certa indistinção entre verde e cor. A distinção masculina diz que cor é cor, que
entre as cores há verde e não-verde. Já as mulheres podem até dizer que faz
de conta que cor é cor, mas que há verde em qualquer lugar. Ficando, assim,
indistinto do ponto de vista das oposições, mas extremamente distinguido do
ponto de vista da infinidade sensível de sutilezas colorísticas... Basta pegar um
bom pintor para se verificar isto.
Cheguei mesmo a pensar em dois termos para distinguir isto: o digital e
o analógico. A mente digital seria o masculino e a analógica o feminino. Mas
não vou pôr no esquema porque o digital me parece muito mais para o obsessivo
e o analógico para o histérico.
Diria melhor: há concepção e aceitação da oposição em H, e concepção
e aceitação da infinitização contra a oposição em H’. As mulheres não se
opõem a nada – muito pelo contrário, não há oposição definitiva, elas deslizam,
dão um jeito, escorregam... É o caso do artista em relação à cor. Ele distingue
o seu estilo, mas sua transação com as cores não é de eliminação. Mesmo que
ele prepare sua paleta, ele faz a maior zona dentro dela. Tem a paleta do
artista, um certo conjunto de cores que ele usa, mas justamente para fazê-la
funcionar de outro modo, para tornar sutil a relação entre as cores.
Lacan diz que sempre disse a verdade, mas não-toda. É a garantia de
que ele fazia um mi-dire. Tenho a desconfiança de que esse seu mi-dire é
mesmo estratégico. Não só porque ele está garantindo que não pode dizer toda
a verdade – porque lhe é impossível –, mas estava também usando isto como
estratégia nos seus ditos. Sempre tenho a impressão de que Lacan pensa uma
coisa mais ampla e só mostra metade. Tenho essa desconfiança com ele, que
não sei se é mítica. Cada vez que ele diz alguma coisa, pergunto pelo outro
lado... Vai ver que ele escondeu um lado aí, para não ser totalitário... Ele talvez

493
Psicanálise & Polética

tinha esse cuidado de pensar grande e dizer a metade. Como não sou obrigado
a ser Lacan, porque não o sou, fico só implicando com suas fórmulas.

* * *

Consideremos agora, um pouco, a coluna da direita, onde tento fazer


uma reversão, onde me pergunto se essas fórmulas têm um avesso. Quer me
parecer que poderia escrever o avesso da coluna da esquerda na da direita.
Avesso não significa o oposto e, sim, uma reversão.
Na parte de cima, escrevi a mesma coisa, mas, em vez de botar a negação
da função fálica, inverti a coluna vertical e botei a afirmação da função fálica.
Na de baixo, continuo dizendo, só que está trocado e o que está como interseção
não é a função fálica e, sim, sua negação. Na verdade, bastou virar a coluna
vertical para aparecerem essas fórmulas aí. Será que isto tem leitura possível?
Quem me pressionou a fazer isto foi um psicótico. Ele me dizia umas
coisas que eu não conseguia atinar. Tratava-se de que ele tinha que atravessar
uma porta e ele se negava a atravessá-la. Não adianta chamá-lo à realidade,
porque não pinta essa realidade para ele atravessar a porta. E eu me perguntava
por que ele não queria atravessar a porta.
O desgraçado ficava me enchendo o saco, como todo psicótico. Fazia
uma série de frases. Eu não tentava convencê-lo a atravessar a porta, eu tentava
ver qual era a frase que pudesse fazer, na cabeça dele, com que ele a atravessasse.
E descubro que eu não tinha frase capaz de fazê-lo atravessar. Ele não conseguia
sair de dentro do meu parlatório – como convém chamá-lo –, se recusava a isto,
mesmo que soubesse que deveria sair.
Ele estava convicto de que tinha que sair para poder voltar várias
vezes, ele concordava com isto. Aí eu dizia: “Está bom, então saia.” Ele
perguntava: “Por onde?” Eu dizia: “Por aquela porta.”. E ele fazia uma cara de
quem entendeu – o pior era isso. E eu dizia: “Então, vamos sair.”. Ele se
retinha, chegou até a me agredir físicamente. Eu perguntava: “Por que não?
Por que você não pode sair por aquela porta?”. Ele retrucava: “Porque eu

494
Não é Não

tenho que sair por aquela porta”. E eu pensava que ele estava com alguma
questão contra “aquela porta”. Até que, de tanto insistir, ele deixou claro para
mim o que era o aquela da porta que era absolutamente indecidível. Ele tinha
que sair por “aquela” porta. Eu dizia: “Então sai”. Aí ele dizia: “Não, mas eu
tenho que sair por aquela porta, não por aquela”. Quando ele disse esta última
frase, só então eu saquei: não havia jeito de fazê-lo atravessar o aquela da
porta. Eu o botei para fora no tapa, na porrada como se diz. Ele tinha que
atravessar a porta para fazer a experiência em outro nível. Agarrei-o à força e
o botei para fora. Suspendi o aquela e o fiz atravessar a porta “naquele” tapa.
Ele não podia situar na medida em que o “aquela” tem algo de shifter.
Podemos observar no texto sobre o Tratamento Possível da Psicose, como
Lacan situa as suspensões do psicótico no momento do shifter. São estes termos
da língua que, ao mesmo tempo que fazem a passagem, criam uma certa
indistinção entre enunciação e enunciado, como é o caso do pronome pessoal
eu. Eu é quem? O psicótico não pode bem dizer eu porque há uma indecisão
radical entre enunciação e enunciado. O eu fica sem a função shifter que tem
na frase, a função de referência do sujeito. Lacan acredita em Jakobson,
mostrando que é justamente naquela equivocação como está em não é não
que pinta o expletivo, a função de sujeito fundamental.
Todos os shifters acabam carregando um pouco dessa indecisão. Para
se tomar alguma decisão é preciso escolher uma via da instância do equívoco
para fazer a oposição, ou que, pelo menos, se faça uma gradação que dance.
Mas o psicótico fica inteiramente sem referência para fazer distinção aí. Ele
não podia atravessar o aquela, o aquela era um abismo. Ele só podia sair
carregado por outro que se suportasse como sujeito – foi o que fiz, contra os
medos dele, tomando porrada. Até que funcionou porque ele, pelo menos, se
hebefrenizou um pouco. Talvez, nessa hebefrenia, consiga vir a instalar-se na
função paterna.
Engraçado é que, a partir desse momento de expulsão, ele começou –
sem nenhuma transferência, claro – a dizer que eu era o seu pai. Isto é talvez
uma tentativa de salvação; antes ele não dizia isto. Porque fui responsável pela

495
Psicanálise & Polética

decisão do aquela. Ele continua na sua hebefrenia muito simpática. Assume


uma posição de criança que está aprendendo, parece um escolar. Veremos no
que dá. Não conheço o milagre.
De qualquer forma, a tentativa de entender essa indecidibilidade me
ajudou a pensar essas fórmulas.
Na coluna da direita, onde fiz a reversão da coluna vertical, temos a
seguinte leitura. Na primeira coluna horizontal: Existe pelo menos um que é

função fálica – x x. Em oposição: Não existe nenhum que seja – x x.
 
Na trave de baixo: não-todo não é função fálica – x x; e todos são não-

função fálica – x x.
Poderíamos ler de outro modo? Observem que botei o existe pelo
menos um dentro de um quadradinho. Isto porque se disser assim a coisa fica
frouxa. Para fazer a oposição, a interseção, de que não existe nenhum, só
existe uma maneira de pensar isso, que é dizer que existe apenas um. Botei o
quadradinho, pois foi a maneira que achei de escrever isto. Pegando, então,
pelas metades, como Lacan escreveu, as garantias que existem são de que
existe pelo menos um que não é, logo todo é; e não existe nenhum que
negue, logo não-todo é.
Se puser cor, terei as mesmas premissas. Direi que toda cor é cor,
que todo verde é cor, entretanto existe apenas uma cor que é verde
 

– x x. O que eu poderia dizer? Não todo verde é não-verde – x x?
Como chegaria aí? Para se poder dizer que todo verde é verde, é que há
muitos verdes que se distinguem de um não-verde. Então, para se dizer que
não-todo verde é verde, é preciso suspender a existência de pelo menos um.
Aqui, a coisa é muito mais radical. Se se cai neste acidente lógico de
que existe no meio de todas as possibilidades uma única verdadeira, só o que
ele vai conseguir pensar a respeito de todo é que não-todo verde é não-verde
 
– x x. Ele pode até se deparar com os verdes, mas só existe um, e ele nem
sabe qual é. É uma loucura! Ele sonha com um único verde em que não tem
como distinguir, porque não tem nem uma coisa nem outra... Estou tentando
escrever as fórmulas da psicose.

496
Não é Não

Este outro cai em outra loucura, porque diz que não existe nenhuma

cor que seja verde – x x –, que não há nenhuma cor que seja distinguível
como verde. A mulher não diz isso e, sim, que não há nenhum que não seja
 
– x x.

De um lado, então, um diz que não existe verde – x x. O outro, por

sua vez, tem certeza de que há um só – x x –, que não consegue encontrar.
Então, se um diz que não existe nenhuma cor verde, portanto, toda cor é não-
verde. Qualquer cor que pintar é tudo menos verde. Se substituirmos por verdade,
fica uma loucura porque todo verdadeiro é verdade. Existe apenas um verdadeiro
que é verdade. E esse verdadeiro não é encontrável, até segunda ordem. Ele vai
ter que explicá-lo, logo, não-toda verdade é não-verdadeira. Já imaginaram o
abismo? Não é apenas uma infinitização gradual, macia. É o abismo repentino.
O outro vai dizer que não existe nenhum que seja verdade, logo toda
verdade não é verdade. Com a cor, teremos que todo verde é não-verde –

x x –, porque o verde não existe, toda verdade é não-verdade.
Nos dois casos, temos uma impossibilidade de estabelecer a distinção
– é indecidível. Mas podemos acompanhar certas formações na tentativa da
decisão. Adianto que estou chamando o lado esquerdo de paranóia (PN), e o
direito de esquizofrenia (SF).
Todo verde é não-verde, SF, o que é muito diferente de dizer que é
verde, mas não-todo, PN. Há um reconhecimento deslizante, um buraco, não
se acha o desgraçado do verde, porque ele não existe. Remetendo, aqui, a
Rosine Lefort, onde, então, está o furo do Outro nesses dois casos? É preciso
reconhecer o furo do Outro para poder incluir o furo. Um é furado e não pode
reconhecer porque o furo do Outro não pinta; o outro esbarra no furo do Outro
e não pode incluir – são completamente diferentes.
Existe uma afirmação primeira, uma Bejahung, para poder fundar-se
a negação, mas em SF só existe foraclusão, porque a afirmação se funda
sobre coisa alguma. Isto é conseqüência de uma não-instalação da Bejahung.
As coisas se depositam, ficam assim acidentalmente, mas não têm fundamento
afirmativo, por isso só afirmam.

497
Psicanálise & Polética

Dir-se-ia que o psicótico não pode negar. É uma espécie de fantasma


de negação que pinta por falta de afirmação. Nos dois casos existe um abismo.
Não existe uma referência distintiva ou a possibilidade de deslizar pelas encostas.
Ou tem um abismo lá, ou tem cá, portanto o não não se diz como não. O não,
não é não. Não é sim nem não, muito pelo contrário. Ele entra em cadeias
eventuais e, no momento em que o indecidível fica terrível, não se pode passar
por aquela, em função das cadeias – não há nodulação.
Poderíamos, então, dizer que, em PN, a afirmação de que existe apenas
um vai – porque este apenas um não é encontrável, se o fosse, nós seríamos
animais, teríamos a nossa distinção de saída – se transformar numa criação
delirante, terá um núcleo de delírio que será a referência da existência. Por isso
o paranóico só faz referência ao núcleo do seu delírio, embora o delírio varie.
Isto porque, para ele, existe apenas uma metade que é a sua verdade nuclear.
Isso pode significar que ele como que se fecha não por referência a uma negação
exterior, mas como uma espécie de cristalização – fecha-se o circuito – onde
pode dizer que não-todo x é não-verdadeiro em função de existir apenas
este. Mas este não é encontrável. Isto vai se criar como núcleo de função
verdade, delirante, e há um outro que fica furado, sem reconhecimento. Ou
seja, aquele horizonte é que é estilhaçado. Qualquer horizonte possível, com
referência a outrem, ou a Outro, é estilhaçado, porque o que vai se fundar em
PN é força centrípeta. O Outro é estilhaçado, só existe este ponto que é
verdadeiro, sem nenhuma função externa que garanta o seu para-todo.
Fica, então, essa existência única confrontada com o não-todo não-
verdadeiro, com a abertura para o lado de fora que o paranóico tem que
centrípetar para transformar o Outro em si. Um ego de aço. Ou seja, tudo que
pinta no campo do Outro só encontra como referência não o faz-de-conta da
função paterna, não o desejo, não o amor, mas uma espécie de imantação que
é preciso resolver, empacotar tudo com o delírio para que as coisas tenham
existência. Suga-se tudo para dentro.
O que decide é o núcleo de verdade, aquilo que bateu e encalhou lá,
que não é concebível como sendo o núcleo. É uma espécie de, digamos, falso

498
Não é Não

S1. Não posso chamá-lo de S1 porque a função sujeito não entrou, mas entrou
um significante que se comportou como significado. Aquele chumbo faz, então,
o lastro, e a imantação suga tudo que pinta no Outro. Por isso o delírio não é
constante como dizem certos tolos da psiquiatria. Lacan diz que o delírio muda
de vez em quando. E tem que mudar porque é a maneira de reduzir de novo a
esse núcleo. Tudo que pinta no campo do Outro é uma tentativa que nem
podemos dizer que seja de suturar o Outro, porque o Outro não é concebido. O
Outro é furado porque é, e ele não consegue conceber o furo do Outro. Se
conseguisse, entrava no faz-de-conta. Mas o que ocorre é que, imediatamente,
tudo se recolhe ao núcleo.
É como se fosse uma espécie de falso S1 radiante, maravilhoso,
significado. É o S1 propriamente dito, coisa, significado, não há nenhuma função
subjetiva em jogo. É o uso próprio, perfeito, do S1... Lingüista devia saber disto
já que ele procura o uso próprio da palavra na língua – só pode ser paranóide...
O esquizofrênico fica numa ruim como essa, mas de características
completamente diferentes. O Outro não se apresenta furado. No seu acidente
lógico não há reconhecimento. O paranóico também não reconhece o furo do
Outro, mas é atacado, porque o Outro é furado mesmo e esse furo é que o
incomoda. O esquizofrênico não reconhece o furo, mas tem que trabalhar o
tempo todo para não reconhecê-lo.
SF, então, no seu acidente lógico, cai numa espécie de Outro sem furo,
como se tivesse dois e fosse compacto. O saber é saber significado, mas não
pode ter relações com esse saber significado porque sua posição aí dentro é
que é aberta, furada. Não é como aquela abertura de PN, é simplesmente um
buraco. É uma espécie de S1 falso e rasurado. PN inventa em cima de um
significado um núcleo, SF não tem nem significante nem significado, não tem
um núcleo. No lugar do núcleo tem um buraco. Isto na medida em que, para
ele, não existe nenhum que seja função fálica.
Os homens dizem que todos são função fálica, pois existe pelo menos
um. As mulheres dizem que a função fálica não é todo, porque não existe
nenhum que não diga não. O que SF vai dizer é que não existe nenhum que

499
Psicanálise & Polética

seja função fálica, ela não funciona nunca. Não há gozo-fálico por mais que se
masturbe o dia inteiro, talvez por isso mesmo, porque não encontra a função
fálica. PN tem um buraco e, toda vez que procura alguma referência do lado
de H, é um abismo. Por isso ele é um andarilho. Sai desvairado pelo campo do
Outro. A única maneira de ele subsistir um pouco é estar procurando um lado
onde tudo parece compacto para ele entender.
O paranóico diz: “Sou Napoleão. Só existo eu. O resto que se submeta
a meu núcleo”. O esquizofrênico diz: “Só existe o que está aí, porque aqui não
há nada”. Terrível!

* * *

Estou fazendo a suposição de que, no momento de instalação do sujeito,


existem apenas quatro possibilidades – excluindo-se naturalmente a suspensão,
que é a perversão propriamente dita. Aliás, quero supor que se pode apontar
mesmo no perverso propriamente dito uma possibilidade de instalação subjetiva,
suspensa pela referência a um certo objeto. Aí é que certas pessoas não
conseguem distinguir a psicose da perversão, e talvez possamos fazê-lo, mas
fica para outra vez...
Na instalação do sujeito, então, no acidente lógico em que cai na posição
de falante, só há quatro saídas: ou ele é homem, ou mulher, ou paranóico, ou
esquizofrênico. Porque: ou bem houve instalação do Nome do Pai e, dentro
dessa instalação, ele se instalou necessariamente de lado de H ou de H’; ou
bem não houve, e houve foraclusão, e ele caiu dentro de PN ou de SF. Esta é
a proposta que aqui está em jogo. A se pensar.
De lambuja, há o perverso, o qual ainda suponho que seja homem ou
mulher. É outra formação. Isto me parece importante porque situa as coisas lá
no começo da instalação do falante, ao mesmo tempo que permite, através de
matemas, repensar a nosografia.
As neuroses estão certamente no esquema da esquerda. Elas estão nos
equívocos e nas arrumações dos equívocos entre ser homem ou mulher: a histérica,

500
Não é Não

o obsessivo, a fobia, etc. Os lugares que o sujeito tem para se instalar de começo
são esses. Falou, ou é homem ou é mulher. Ou nada tem a ver com o ser homem
ou mulher – é paranóico ou esquizofrênico. Será isto?
O anjo, por exemplo, tinha-se alguma certeza de que era mulher de
Deus. Esta certeza não é da ordem da certeza mística, que é um voto. É
alguma coisa que se instalava corporalmente nele, direto. Diante de Deus,
ninguém é macho, todo mundo é feminino... Não encontramos em toda
literatura um Deus que seja feminino para quem o aborde. Pode ser no feminino
puro, sempre, mas quando faço a referência divina, vou de certo modo instalar
uma função paterna ali dentro e me feminizar diante desse Deus. Ele feminiza
tudo o que toca, homens e mulheres. Até na mitologia grega é assim: Zeus
transava com todo mundo... como homem.
O paranóico é aquele que não pode hesitar, porque o indecidível o joga
imediatamente naquele núcleo que é compacto – bateu, valeu! A série não se
equivoca, ela segue concretamente seu curso. Quanto ao esquizofrênico, é: bateu,
não valeu! É o abismo, um embate do lado de fora. Bateu, é isso. concretamente!
É como se realizasse tudo. Daí a questão da alucinação, etc. Não é simbolizável,
tudo se realiza. A psicose não hesita – aliás, nas suas articulações, também, o
neurótico não hesita, ele sintomatiza logo. Eu não diria que seja uma certeza. É
uma compulsão. Esbarrou na cadeia, ele segue – segue a cadeia. Ou, senão,
inclui a cadeia sintomaticamente...
Quer me parecer que, como avesso das fórmulas quânticas, Lacan deixou
em suspensão uma formulação possível da psicose. Quanto mais leio o texto Do
Tratamento da Psicose, encontro coisas que podem garantir isto. Mas veremos.
Tudo isso é para fazer a distinção entre a loucura do ser falante e a
psicose – para acabar com esse romantismo besta que quer colocar o psicótico
como a grande verdade.
Tenho mesmo que conceber que, se o esquema da esquizofrenia é
este que apresentei, poderia dizer que onticamente somos esquizofrênicos.
Começa-se, pois, por esse buraco que lá coloquei, mas ali vai se instalar alguma
coisa para poder dar conta. Ficar nesse buraco, é sem saída. Mesmo

501
Psicanálise & Polética

reconhecendo que onticamente a esquizofrenia nos determina, nos embasa,


ficar nela não é nada que interesse ao falante.
É preciso ficar claro, então, que a função paterna é que vem entrar
para mitigar o caso. Mitigar significando apenas jogar o sujeito numa posição
dentro da qual ele poderá transar como sujeito falante. A psicose vai destransar
tudo... E não criar nenhum paraíso psicótico. Reconhecer que, “acidentalmente”,
alguns caem na psicose é diferente de lançar mão disso e fazer um projeto de
psicotização do mundo.
A meu ver, o sujeito não passa de neurótico a psicótico. Pode ficar
parecido, mas não cai lá. Agora, nosso caminho de neuróticos “terapêuticos”
é tentar tirar o que se passa no esquema da direita para o da esquerda.
Talvez porque eles incomodem... Quando se fala em cura de psicótico, seria
essa nossa ocupação mental de tentar trazer de lá para cá. Talvez seja possível,
não sei. Não podemos confundir a aparência antes do surto do psicótico com
ele estar ali.
Pessoas que parecem estar no campo do subjetivo, de repente entram
em surto, se tornam psicóticos. Não acredito muito que ninguém se torne, o
sujeito é psicótico. De repente, pinta com todas as letras a psicose. Até
então, ele estava esteado numa formação delirante ou esquizofrênica, que
era garantida pelo discurso ao redor. Falhou, caiu no surto. O que falhou? A
aparência mesmo Esse psicótico de quem eu estava falando, certamente
sempre foi psicótico... Só que, um dia, ele se depara com a função paterna –
que, no caso, lhe tinha sido adscrita – de uma maneira inconcebível: ele teria
sido pai de uma criança jogada no lixo quando nasceu. Ele entra em surto.
Vem à tona ali o núcleo e vai progredindo. Ao deparar-se – como Lacan diz
das pessoas quando entram na cadeia psicótica –, ao topar-se com um pai,
não tem onde se inscrever.
As aparências vão segurando, principalmente porque os outros insistem
em que ele não é psicótico e vão levando como se não fosse. Mas, de repente,
ele tropeça na falta mesmo, precisa dela, não encontra nenhuma referência,
cai no abismo... Ele pode nunca tropeçar e ficar sempre parecendo isso. O

502
Não é Não

caso de um Hitler, por exemplo. Tudo garantia a manutenção de sua glória


porque tudo se paralisava para ele não cair em surto. O surto estava lá fora...
A função paterna, segundo Lacan, é simplesmente a Lei, a Lei de
haver significante. Ausência da função paterna dá no esquema da direita. Ao
deparar-se, então, com presença e ausência, uma coisa se erige como presença
não tendo sido inscrita como simbolizável. Pinta uma espécie de Bejahung
que não tem onde se estear porque não foi simbolizável e desvaria. Se não
marcou a função paterna aquilo se erige e come o cara, ou faz um buraco nele.
A função paterna aponta para um horizonte de não-saber, de angústia
do falante, de derrelição. É um engano pensar que o psicótico está em
derrelição. A situação angustiante não pinta para ele. Talvez pinte no momento
de entrada no surto... É como se fosse uma angústia que não tem horizonte,
então, ele desaba e cai no abismo. A gente fica angustiado, dá uma volta, faz
de conta, se vira... Toda angústia é de castração: é o que lá não está
funcionando. O psicótico até diz que está angustiado, mas não está. Ele não
está conseguindo chupar o que está do lado de fora, ou não está conseguindo
percorrer o concreto que está lá fora. Não é uma angústia, é uma falta de pé,
é uma coisa bem mais estranha...

* * *

A distinção que me interessa é a que diz respeito ao respeito ou


desrespeito que se tem para com essa loucura dos seres superiores, como
diz Lacan.
É preciso pegar esses sujeitos e reestudar o que ali acontece. Acho
abuso chamar Nietzsche, Artaud, Van Gogh de psicóticos. Psicótico não faz
aquilo. Pode fazer museu da Dra. Nise mas, aquilo, não faz, pois é função
paterna em exercício, e rigorosíssimo. Não é nenhum araque. A obra de arte
nada tem a ver com a psicose e, sim, com o espelho, corte, função paterna,
posição subjetiva de cada um. Agora, lambuzar os delírios, os sonhos, etc., tem
a ver com qualquer um, até com psicóticos...

503
Psicanálise & Polética

O que acontece, o que faz com que esses sujeitos nos dêem a impressão
de psicóticos? Certamente a nossa burrice... Mas algo tem lá que nos dá essa
aparência. Estudem os poetas, os artistas e os místicos. Façam isto e verão
que há diferença...
Tenho aqui comigo o livro Extases Féminines de Jean-Noël Vuarnet.
Não tem nada de novo, mas é interessante porque faz uma espécie de
compilação. Vê-se que o autor estudou Lacan, um pouco pelo menos. Ele
pega os místicos mais importantes, sobretudo, do fim da Idade Média até o
Racionalismo do séc. XVII, quando a Igreja permitia que existissem místicos
de verdade...
Ele cita literalmente o Seminário 20, Encore, de Lacan. Como sabemos,
na capa está a Santa Tereza, de Bernini. Lacan diz aí como a função feminina
ou, pelo menos, a heterossexualidade de o homem avançar para o feminino, se
levada muito longe, pode parecer do nível da psicose. “Levada muito longe”
porque tem gente que vai lá perto...
Lacan disse, também, que uma psicanálise levada muito longe acabaria
na psicose. Como ele não nos apresentou essa distinção com toda nitidez, eu
diria, agora, que não acaba em psicose nenhuma e, sim, numa coisa parecida
com a psicose que é uma certa exacerbação da relação ao furo, uma exacerbação
do discurso feminino. Toda vez que se é mulher extremamente, fica muito parecido
com o louco. Por isso as mulheres são mulheres, mas não-todas.
Jacques-Alain Miller escreveu um texto falando de Lacan, o mestre;
de Lacan, a histérica; de Lacan, o analista; e de Lacan, o educador – fazendo
o elogio desses Lacans. Quero colocar algo que é evidente em Lacan, que não
está nesses quatro discursos. Lacan, o Secretário.
Lacan foi secretário, por isso ele trabalhava, produzia tanto.
Secretário é um trabalho muito pesado. Lacan era secretário de quem? Da
Outra. A palavra secretário tem algo de secreto, privado. Então na sua
privação com a Outra, encarregado, porque caiu nessa de ser secretário
Dela, ele ficava testemunhando. Ou seja, ele é um mártir. Ele ficava lá,
testemunhando a Outra gozar, redigindo e secretariando esse gozo. Passou

504
Não é Não

a vida secretariando a Outra e sendo testemunho do seu gozo. Daí essa


produção, esse lixo, esse arquivo imenso, essa excreção, essa secreção que
produziu como secretário.
O secretário goza enquanto mártir, enquanto testemunho do gozo-do-
Outro. É exatamente o nome que se dava àqueles que eram os secretários das
místicas. Não são todas as místicas que exaravam diretamente os seus
depoimentos. A maioria, se não todas, embora exarassem de próprio punho,
tinham a referência masculina – o que já é uma prova de que não eram
psicóticas. Elas punham um homem ali – x x – para poderem ficar

maluquinhas aqui – x x. As mulheres são assim. Elas podem fazer o diabo,
mas têm que ter um homem ali marcando, com certa elasticidade, uma cordinha
para saberem que não vão se afogar.
Essas místicas tinham um secretário. Elas tinham suas visões e seus
gozos místicos, e o secretário estava lá. A maioria das obras escritas dessas
mulheres é escrita pela testemunha do seu gozo. Elas entravam no êxtase e
transmitiam o que estavam passando durante o êxtase ou, preferencialmente,
depois. A maioria delas diz que o êxtase corta a palavra. Raramente algumas
se extasiaram falando.
Na verdade, devíamos falar a Outra e não o Outro, pois que é o
feminino por excelência. Podemos dizer, por exemplo, as frases, os ditos de
Lacan, de outro modo: “o inconsciente é o discurso da Outra”, ou então, “o
inconsciente é estruturado como uma alíngua” ... O fundamento da psicanálise
é ético, mas o fundamento dessa ética, como dizia Guimarães Rosa, está no
“rabo da palavra”.
O que é esse êxtase feminino, esse êxtase místico? O século XVII se
apoderou do Falo racionalista e, mesmo dentro da Igreja, se virou para calar os
gozos místicos, regrando o que poderia ser ou não religioso. Mas essas mulheres,
mesmo quando às vezes têm pênis, como São João da Cruz por exemplo...
Aliás, o autor de que estamos falando comete certos erros graves. Ele coloca
Angelus Silesius e Mestre Eckhart nesse caso, mas trata-se aí de um discurso
de mestria sobre o êxtase e, não, de um êxtase.

505
Psicanálise & Polética

Há também aquela coisa espantosa de esse êxtase levar a um


embalsamamento espontâneo do corpo. Pelo menos é o que dizem. Quando
abriram o caixão de Santa Tereza, o corpo estava lá inteirinho, e exalava
perfume... de rosas. Não deixo de acreditar nisso porque já vi sintoma histérico
que exala podre... E o sabor necrófilo das pessoas que vieram em torno dela,
arrancando um dedinho, um tirou o coração, outro a mão, levou pra casa – e
aquela coisa não apodrece... Essas santas que se espalharam de tal modo pelo
Outro, que ficaram com todas as doenças, apodreceram em tudo que é lugar,
exalavam podre a quilômetros e, depois, aquele podre foi virando cheiro de
perfume... É preciso acompanhar esses casos de artistas, poetas e místicos
para verificar como, mesmo sob a instância paterna, sob a referência de algum
modo ao Falo, esses sujeitos se encaminham por veredas tão parecidas com a
psicose, os delírios, etc.
A tese feminista, por exemplo, acaba com o reconhecimento das
mulheres: elas têm que ter igualdade com os homens, ou seja, serem homens
reconhecidos. A diferença, o reconhecimento da via mística, da via poética,
etc., não é o fundamento dessa tese.
Teríamos, por outro lado, que fazer uma série de distinções para
conseguir diferençar o êxtase, o extático, do que é uma possessão, que era
também muito comum na Idade Média e hoje ainda o é entre nós: as
possessões do Candomblé, etc. Na Idade Média, através de exorcismos,
etc., essa distinção era feita e se reconhecia que a possessão era da ordem
do diabólico, e o êxtase da ordem do divino. Estou de acordo. A possessão é
da ordem do diabólico, ou seja, da ordem do desejo. O inferno é o desejo, o
diabo é o desejo, um desejo coalescido com determinado tipo de demanda,
de pedido.
O declínio do êxtase começa com o século XVII e, hoje, está
completamente desmoralizado. Psiquiatrizou-se o êxtase: deve ser histérico,
psicótico, etc. As mulheres não existem mais. O feminino está calado. No
máximo – está aí o João Paulo que não me deixa mentir –, a Igreja reconhece
o Outro numa espécie de transação social: o irmão, a caridade, etc. O êxtase

506
Não é Não

particular, numa relação direta com a divindade, com a Alteridade, não interessa.
Por isso Lacan disse que o marxismo só vence se se tornar cristão.
O êxtase e a possessão não são, também, da mesma ordem do culto da
Virgem Maria, que foi uma troca muito marota que a Igreja fez e que a prática
instalou definitivamente desde o século XVII. A Virgem Maria é filha do
racionalismo, embora tenha nascido na metade do século XIII, depois do amor
cortês. É uma transação anti-movimento inconsciente. Afinal de contas, é uma
boneca. No Brasil foi tipicamente objeto a, achado, uma boneca mesmo.
Quanto às resultantes mais atuais, mais próximas do que seria a vocação
extática, encontramos os aparecimentos da Virgem – de Salete, de Lourdes, etc.
– para crianças tolas. Há beocidade diante da aparição de um objeto que fica
como que sublimado, e não um confronto virulento, violento mesmo, com o dizer
do Outro. A Virgem Maria nunca disse nada. A única coisa que ela disse foi:
“Magnificat, etc.,” que está no começo da estorinha.

* * *

Tentarei abordar um pouco essa questão mulheral, que está colocada no


quadrinho de Lacan, na parte de baixo da coluna da esquerda de nosso esquema.
O sujeito em função fantasística do Outro, como não havendo A Mulher,
não existindo como universal na sua relação com o Falo, na sua relação ao furo,
dividido entre essas duas referências: ao Falo e ao furo, as duas referências
ficando meio prejudicadas.
Quando falo em levar muito longe sua relação com o furo é, justamente,
impregnar-se tanto na sua relação ao furo que se deixa a relação ao Falo meio
de lado.
Isto é que parece loucura. É uma espécie de abandono, desinteresse
pelo lado fálico e um grande incentivo ao lado furo. Isto parece psicose, pois o
furo é um abismo. Mas elas têm a referência ao Senhor e o seu amor por Ele
demarcando uma certa limitação e, portanto, não as deixando cair em tentação,
inclusive do lado fálico, abolindo de certo modo o desejo. Isto é que é a santidade.

507
Psicanálise & Polética

Lacan já disse que o único remédio contra o capitalismo é a santidade, mas a


gente não tem culhão feminino para ir lá.
Gostaria de ressaltar as correspondências com o quadro da direita.
Temos a paranóia e a esquizofrenia. Não há relação entre as duas, mas é
como se o paranóico quisesse açambarcar o Outro, ao passo que o esquizofrênico
dá a volta e, a partir de um Outro, que para ele não existe mas é compacto,
quisesse situar-se um si.
Voltando, então, ao quadro de Lacan, o da esquerda, estou interessado
na relação ao Outro. Estamos aqui, dando uma cortada polética no romantismo
psiquiátrico e na porralouquice feminista. As mulheres, segundo esse
esqueminha de Lacan, estão partidas na sua referência ao Falo e ao furo.
Naturalmente, o Falo tem um índice S1 qualquer, nem que seja o secretário... E
é aí nessa participação entre o Falo e furo que as mulheres – embora não
sejam homens, os quais se qualificam por sua função desejo estrita – caem,
também, ainda que de modo precário, na função desejo.
Eu diria mesmo que o estritamente masculino difere do estritamente
feminino porque as mulheres vivem no regime dos contos de fadas e os homens
vivem no regime dos contos de fodas. A tal competição masculina, da
homossexualidade, está o tempo todo em torno de quantas vezes se gozou, de
quantas se conseguiu dar na vida. As mulheres fazem contos de fadas, mas
mesmo os contos de fadas das mulheres têm certa nuance.

A possessão que os teólogos queriam exorcizar, eles tinham razão em


querer fazê-lo, porque reconheciam como sendo uma intenção diabólica. Ou
seja, tem a ver com a mulher mesmo transando por via do Outro. Ela incorpora
o Outro, ela está transando no nível do desejo. É uma espécie de incorporação

508
Não é Não

de outra alma, digamos assim. Quer dizer, ser cavalo de ApoIo, ou ser cavalo
de Oxumaré dá na mesma. A possuída tenta realizar o desejo, porque do lado
de H é onde está o desejo, a referência.
Está me ocorrendo aqui, quanto à possessão, que a invocação do espírito
da Umbanda é por via de mestria, uma mestria que regula e normativiza as
relações com o Outro. Podemos dizer que a Umbanda está para o Candomblé,
assim como a Universidade está para o poeta, em níveis diferentes.
Do outro lado – H’ – está o amor, no sentido de amor divino, distinto do
amor-paixão, que é uma espécie de confusão entre a relação ao Outro e a
relação ao Falo. Amor divino é aquele que Lacan diz que é dom ativo. Gosto de
chamá-lo de HP, ágape.
Aquelas mulheres são possuídas pelo demônio, daimon, uma espécie de
alma, é um tipo de êxtase inverso. Digo isto porque os homens nunca são
possuídos. Não acredito em possessão masculina. É preciso uma certa queda
para o lado feminino para haver possessão. Isto porque ela se dá pela tentativa
de realizar o desejo por via de furo. Em vez de a postura ser diretamente masculina,
de colocar o desejo e provocar o seu conto de fodas, ela coloca o desejo e dribla
pelos encaminhamentos do Outro. Ela põe o desejo diretamente como o desejo
do Outro, incorpora uma alma externa e fica possuída. A possessão, por mais
feminina que seja, é a vertente fálica, embora precária, do lado feminino.
Já na extática, que é a mística, sempre há uma referência masculina, um
secretário. No misticismo cristão se fala de tornar-se a esposa mística de Cristo.
Trata-se de uma postura em que há necessidade de tornar-se marcada por algum
significante masculino, o qual é, em última instância, o Nome do Pai. É a referência
que está lá. Ela suspende a função paterna quando diz não ao não da castração,
mas não a abole. Sem essa referência, ela se perde. Ela vai, então, produzir os
esponsórios místicos com o Pai. Quer dizer, é a produção do incesto com o Pai,
suspendendo a castração, mas não a abolindo. É transgressão radical.
O modo como a possuída lida com a participação é de estar furada por
um lado, mas insistir, por via de captação do que vem do Outro, no gozo-fálico.
Ela vai dizer coisas que dizem respeito diretamente aos desejos que pintam

509
Psicanálise & Polética

diante dela. Ela trabalha com os desejos. Ninguém vai a um pai-de-santo para
se tornar um sujeito. Vai-se lá para demandar respostas aos seus “desejos”. A
possessão não deixa de ser um modo de produção histérica – que não é o
modo da extática, a qual não é histérica nem psicótica. Claro que encontramos
momentos histéricos aí, mas a essencialização não é histérica.
A extática não é possuída pelo desejo, ela fala na sua relação com o
Outro. Nem o desejo a interessa. Nos textos de Santa Tereza, e de todos os
outros, encontramos patente a desconfiança para com o desejo. Ela fica até se
perguntando se isso não é coisa do demônio. Encontramos mesmo vários que
partiram de uma posição praticamente histérica e vão fazendo a subida, a
ascese. Não é aquela coisa boba, repentina. É um trabalho de elaboração que
vai dissolvendo e deixando só o furo à mostra.
Santa Tereza é muito especial. Acho que Lacan tem certa queda por
ela, justamente porque tem muito a ver com o processo analítico. É um negócio
lento, desmanchando devagar e procurando uma ascese. A meu ver, a psicanálise
também é uma ascese. A extática tenta a realização do amor divino por via do
furo, da alteração – isso é ascese.
Vocês, talvez, tenham achado espantoso eu ter colocado a ninfômana do
lado direito. Sempre pensamos que a ninfomaníaca quer comer todos os homens,
quando ela só quer comer um... Só que ela não agüenta. No seu Satiricon,
Fellini mostra uma ninfomaníaca amarrada, e o marido chamando as pessoas –
porque ele não pode dar conta. Ele chama os que passam... para sempre serem
o mesmo homem. Não há outro. A ninfomaníaca simplesmente tem que estar
constantemente naquela referência fálica, mesmo que não goze, para subsistir.
Por que a coloco do lado direito? Não estou dizendo que ela tenha a
ver com o êxtase e, sim, que do mesmo modo como a possuída é uma espécie
de esposa de pacto com o demônio, a mística não faz pacto. Ela faz contrato
com Deus. É o termo que elas usam – um contrato. Temos, então, todo um
conjunto de leis funcionando aí. A possuída faz um pacto: “Você garante o meu
desejo e eu te dou isto”. A mística faz um contrato que tem algo a ver com a
via de ascensão. A ninfômana não é esposa mística, nem esposa do diabo, ela

510
Não é Não

é a esposa em geral, porque, se me permitem o português claro, é a esposa do


caralho. Tendo a rolha, tudo bem, é sempre a mesma! Ela faz a tentativa – e a
coloco deste lado por isto – cruzada de realizar o amor divino, de que ela
suspeita, por via fálica. Aí é que está seu engano. É o contrário da possuída
que tenta realizar o amor fálico por via do desejo, do desejo do Outro. A
ninfômana tenta realizar o amor divino, mas não entendeu nada, e pensa que
esse amor divino é por via fálica...
Coloquei do lado esquerdo aquela que chamo a princesa. É a do conto
de fadas, a esposa fiel o tempo todo, mesmo que corneie o marido. Seu regime
de referência é o prometido. É o “casaram-se e foram felizes para sempre”, o
encontro de alguém que suporta a posição fálica. É a referência masculina
para ela e ponto! Não precisa pensar mais, mesmo que o sujeito acabe, morra,
que ela transe com outro, ou que nunca chegue a casar com ele. Não tem
importância, aquela é a referência fidelíssima na sua cabeça. Uma espécie de
monomania, onde existe um príncipe encantado que lhe dá a sua marca. É
quando ela consegue realizar o desejo por via fálica. Quer dizer, ela se
masculiniza muito.
A princesa, Fernando Pessoa o disse com todas as letras, é o cara
botar a mão na cabeça e era a própria princesa – referência fálica: a bela
adormecida. É uma espécie de não querer saber do furo: encontro o príncipe
encantado, me homossexualizo ali, não vou deslizar, aquela referência me segura,
e ponto! É o ideal da burguesia.

* * *

O que é espantoso, ao nível polético, que é o que interessa aqui, é


que, do século XVII para cá, o mundo foi sendo tomado por um discurso
reducionista à função masculina, se não – porque há masculino e masculino
heterossexual – à homossexualidade radical que, no fundo, é um sistema
obsessivo ou paranóico, onde se cala definitivamente a diferença, até nas
frases, nas falas das ditas mulheres.

511
Psicanálise & Polética

Nosso campo de trabalho é ingrato porque os outros discursos estão


contra nós. Ao tentar fazer pintar essa diferença, quando falamos
veementemente, se diz logo: “é um fascista”, porque se falou veementemente.
Fazer pintar essa diferença é o de que se trata no campo psicanalítico. A
intervenção que podemos fazer no campo do chamado social é esta. Isto é
árduo e frustrante porque não se está a fim de ouvir isto. Além do mais, os
outros discursos gratificam muito bem. Mas pagam bem para o sujeito desistir,
não para insistir.
A pressão vem de todos os lados, inclusive de pessoas que se dizem do
campo psicanalítico. Há um ferrenho massacre da diferença, como, por exemplo,
é o caso da sussexologia que já tomou a televisão como papo “psicanalítico”.
É o caso também de certa postura dita psicanalítica adotada por alguns
na entrevista que tivemos na TVE, a que já me referi aqui. Trata-se pura e
simplesmente de uma redução da psicanálise ao sociologismo. E as pessoas
querem acreditar, porque está na moda um certo sociologismo de esquerda,
que aquilo que é psicanálise...
Essa redução é tentativa de regulação do campo do Outro por vias de
mestria, ou do discurso do universitário, ou do discurso científico. Por outro
lado, vemos outro tipo de ataque “sexológico” onde os falantes são todos iguais.
Uma nova espécie de determinação da normalidade do comportamento sexual.

04/NOV

512
Vae Victis

22
VAE VICTS

Retomaremos aquelas fórmulas que foram mais ou menos abordadas


na sessão passada para fazermos novas implicações, para situarmos
pontualmente algumas pequenas correlações desses lugares nessa topologia.
Se nosso percurso for válido, teremos, então, fundamentalmente, quatro
matrizes básicas: masculino, feminino, paranóia e esquizofrenia. Do ponto de
vista do que pensou a psicanálise, especialmente com Lacan, a estrutura é uma
só e se chama: Real, Simbólico e Imaginário – com o surgimento do Sintoma
situando estes três registros para atacar cada sujeito. Momento em que, como
quero supor, sobre essa estrutura – a qual, em última instância, emerge da pura
e simples existência do furo – se fundam as matrizes primeiras, fundamentais,
que incluem, já, uma certa conformidade sintomática. São instalações eventuais
do sujeito em quatro posições fundamentais. Eu diria mesmo, já que estamos
falando de Psicanálise & Polética, que são quatro partidos.
O mundo contemporâneo está perdido em dezenas, senão centenas,
de psicoterapias e coisas parecidas, que vão da religião à prática sexual de
grupo, espalhadas por aí. Isto significa que há uma demanda crescente e
esfarinhada de uma re-situação de sujeitos quanto a sua posição de falante e
as tentativas de segurar isto. Há todo tipo de charlatanismo, de embuste, até
dentro do campo dito psicanalítico – há psicanálise para cachorros nos Estados
Unidos –, assim como também todo tipo de iniciação: macumba, candomblé
– um leque imenso.

513
Psicanálise & Polética

Há, por exemplo, uma coisa que considero muito perigosa: o romantismo
psiquiátrico, que pegou até nos Estados Unidos, depois da anti-psiquiatria, de
Michel Foucault, etc. – talvez lendo mal esses autores –, que é a colocação do
psicótico no pedestal. Acho, pois, e isto politicamente, importante tentar
rigorosamente uma distinção de tudo isso para com o que falei da vez anterior
quanto àquelas matrizes.

* * *

Terminei, então, na questão que chamei de pseudo-psicose: essa


aparência de psicose em sujeitos que simplesmente não estão, do ponto de
vista de uma matriz básica, instalados em nenhuma psicose, mas sim que tenham
avançado muito longe – e talvez muito sozinhos – num processo de deslocamento
da posição estritamente masculina e que, depois, talvez, de uma posição
heterossexual a um avanço dentro da suspensão do Nome do Pai no feminino,
eles possam ter caído numa deriva parecida com a psicose. Isto pode até ter
efeitos, digamos, maléficos para esses sujeitos, mesmo não sendo uma psicose
fundamentada numa matriz competente. É uma deriva levada muito longe.
Isto é possível de ser pensado, pois essa pseudo-psicose costuma
estancar quando existe uma intervenção limitadora, por exemplo, do que alguns
historiadores apontam como sendo um apagamento, uma inibição, um declínio
do extatismo, do feminino, depois de o racionalismo ter tomado conta da Europa
e da Igreja, em particular. Por que houve esse declínio? Será que as mulheres
ficaram menos capacitadas ao extatismo ou, simplesmente, algum cinturão as
limitou de fora? Ou seja, uma referência masculina, se não uma imposição de
imitação de discurso tipicamente masculino, limitou essa deriva, e pôde limitar
a ponto de fazer regredir a foraclusão.
Se este raciocínio é verdadeiro, é de se supor que quando a deriva vai
muito longe, quando perde referenciais do discurso masculino, entra num
desligamento de aparência psicótica. Quando o pseudo-psicótico se encontra
sozinho e começa a perder os referenciais, é o gozo solitário por excelência.

514
Vae Victis

Costuma-se chamar de prazer solitário à masturbação do macho, mas o gozo


solitário por excelência é esse gozo em relação ao Outro.
Há o caso do secretário, de que falava da vez anterior. Sem pelo menos
essa referência ao secretário, o pseudo-psicótico vai deslanchando, deslizando e
se perdendo dos referenciais de limite, da referência a uma qualquer repetição, a
qualquer insistência do Nome do Pai, nem que seja lateral. Ele suspende de tal
modo o Nome do Pai que pode parecer uma foraclusão. Quando se encontra
sozinho demais – como Nietzsche, Van Gogh, etc. – nada parece limitar essa
deriva, e daí ele desembocar numa loucura... não-psicótica.
Não foi à toa que Lacan fundou uma Escola. Ele não estava a fim de
brincar de psicótico. Manteve nesse cinturão – mesmo com processos de
dissolução, etc. – a certeza de que se pode passear numa loucura não-psicótica
sem fazer a experiência de um Artaud – o que ele, aliás, num Seminário,
desaconselha a todos – de isolar-se de tal modo na sua tentativa de relação com
o Outro, de referenciar-se ao gozo-do-Outro, que desemboca numa coisa de
aparência de sofrimento semelhante ao da psicose. O que é, de certo modo,
estabelecer uma distinção entre a foraclusão prévia a qualquer manejo do simbólico
e um deslizamento com extrema suspensão do Nome do Pai – donde é possível
algum tipo de retorno, certamente.
É claro que aqueles sujeitos foram abordados como psicóticos comuns
pelas entidades psiquiátricas de sua época – o caso de Van Gogh, por exemplo –,
e não por um esteio qualquer na região do Outro, enquanto instalada no social,
digamos assim, a qual, com um mínimo de reconhecimento, suspenderia o
exacerbamento de suas loucuras não-psicóticas. Não podemos esquecer – se
há algum social válido nesse assunto – a recusa peremptória por estupidez
específica do grupo social em aceitar pura e simplesmente, ainda que com
estranheza, os manejos daqueles sujeitos. É uma recusa tão grande a reconhecer
o deslizamento pelo campo do Outro naqueles sujeitos que eles se sentem isolados,
tão sem referências externas, e avançam intrepidamente por esses deslizamentos.
Isso foi comum em certas épocas e talvez o seja menos hoje. Temos
talvez menos casos de artistas – não estou me referindo a psicóticos que são

515
Psicanálise & Polética

tratados como artistas – que tenham ido tão longe... Isto porque, depois do
impacto de certos grandes artistas do passado, houve uma espécie de – “tudo
bem, é um direito do artista, ele pode fazer isso” – certo “reconhecimento”
que o situa de algum modo em relação a um Outro social e, portanto,
demarcado masculinamente.
A biografia de Van Gogh, por exemplo, diz que, nos hospitais, ele tinha
períodos de “norma1idade” em que voltava a produzir. Temos que admitir que
ele ia tão longe que, por assim dizer, saia do quadro. Aliás, as mulheres extáticas,
a que já me referi, dão depoimento de que, no ápice do êxtase, não podem nem
falar. Freqüentemente o depoimento é dado depois de um êxtase. Então, no
seu ápice, um Van Gogh, por exemplo, não pode pintar, a suspensão foi longe
demais. Não pude acompanhar o cara, pois não estava presente para saber
que entradas e saídas significantes lhe davam certo retorno, mas quero dizer
que não posso conceber psicose num sujeito desses. Não é um mero psicótico
borrador de telas para algum Museu do Inconsciente. Ele tem todo um percurso
e com solidez.
Teríamos aí então o partido das psicoses e, se esse pseudo-psicótico
não consegue ter poder aí nesse partido, ele é envolvido diretamente com o
psicótico. No entanto existem sujeitos não-psicóticos que tomam esse partido,
e se estabelecem no seio da sociedade...
Seguindo aquela via, apenas passando de raspão hoje, o que seria
então uma neurose? Eu disse que só há quatro partidos, e se não aparece aí
nenhum partido de neurótico é porque, certamente, a neurose é uma
sublegenda, com todos os casuísmos. Posso supor, juntamente com vários
autores, que toda neurose é essencialmente fóbica, que seu estofo é a fobia.
E a partir do núcleo fóbico que existe em toda neurose, poderíamos distinguir
estas duas matrizes fundamentais: histeria e obsessiva. Já a perversão é
uma outra sublegenda de alguma coisa.
O que poderíamos considerar como sendo a neurose, se supusermos
que seu estofo é a fobia? Isto é a mesma coisa que dizer que toda neura é,
antes de mais nada, uma fobose. Não estou fazendo um Seminário sobre a

516
Vae Victis

fobia, estou abrindo questões... O que estou chamando de núcleo fóbico de


qualquer neurose é o recalque, que traduzo agora pelo termo repelão. Não
gosto da palavra recalque porque dá a impressão de que há uma coisa para
dentro ou para baixo que você empurra. Em francês, por exemplo, refoulement,
é um chega pra lá, uma repelência, um repelimento qualquer. O núcleo da
fobia, certamente, é que se repele uma certa matriz.
Talvez achem isto estranho se considerarem o Seminário de Lacan
sobre a Relação de Objeto, onde todo o caso Hans, do furo, da castração,
está representado de certo modo em relação com o objeto, etc. Essa matriz a
que estou me referindo é um desses quatro: masculino, feminino, paranóia e
esquizofrenia. Em não se tratando de psicose, só posso pensá-la do lado da
matriz masculina ou feminina; e uma dessas matrizes é repelida nuclearmente.
Como estamos cansados de saber, o que está em jogo numa neurose é
o deparar-se com a castração, que é denegada. Se, por um lado, no discurso, o
homem é situado enquanto castração, é na medida em que existe pelo menos
um que garante o seu para-todo. Esta é a estrutura do masculino. Por isso
Lacan diz que um homem é posturado quoad castratione, enquanto castração.
Isto, entretanto, na medida em que a castração vige para ele no horizonte
como pura ameaça diante da qual ele está o tempo todo controlando o seu
universal – o que não significa que ele tenha assumido a castração.
Diferentemente, no discurso feminino, não é a castração que está como
definidora da matriz e, sim, a suspensão possível do Nome do Pai – suspensão,
não é foraclusão. Na medida em que a castração não é considerada, ela não é
algo que esteja morando no horizonte como ameaça, mas, sim, algo como que
acontecido. É como se, no fundo, o feminino pudesse, pelo menos, dizer não à
instância paterna, na medida em que pode dizer: “Não tenho nada a perder”.
Tenho então que situar uma castração autenticada para o sujeito, se não na
postura feminina, pelo menos no reconhecimento do feminino. Lacan diz que,
se é a castração que está em jogo numa análise, é do reconhecimento da
diferença e, portanto e sobretudo, da referência do Outro, do feminino enquanto
Outro radical, que depende a assunção da castração. Embora a castração

517
Psicanálise & Polética

defina o homem, é a sua heterossexualidade, no sentido que coloco, que define


a sua assunção da castração.
Não se pode ser o Outro. Pode-se fazer uma metáfora qualquer de
reconhecimento do Outro. No caso que fundamenta a neurose, se estou certo
em dizer que a fobia é seu núcleo, a fobia é fobia do quê? De uma certa matriz
que exibe a castração. Portanto, é a fobia do feminino. Toda neurose é fobia
do feminino. Quer dizer, repelão numa certa matriz, porque ela incomoda por
expor a castração. Posso facilmente, mediante esse percurso, deslocar, por
exemplo, a homossexualidade, essa de que falam por aí, a suposta
homossexualidade masculina, como exclusiva de qualquer outra postura sexual,
para o lado da fobia, e não da perversão. Isto me parece muito nítido. O tal
homossexual exclusivo masculino, no jargão comum, não é senão fóbico, assim
como o macho não deixa de ser fóbico também. Eles se merecem
reciprocamente, têm medo de buceta, é este o nome...
Existe muita diferença entre a fobia e o terror constante. Essa matriz
que é repelida, recalcada, eventualmente se objetifica mediante uma
imaginarização na forma de um objeto, de uma situação. Não vejo por que a
genitália feminina não possa se objetificar como esse objeto fóbico. É uma
situação que podemos dizer de agorafobia, claustrofobia, etc., de constituição
imaginária de um objeto fóbico... O fóbico tem medo, pânico, efeitos sintomáticos
graves, etc., mas não é a vivência do terror do psicótico.
Estou tentando distinguir estas coisas, e mesmo usando essas palavras
que poderiam ser outras. Terror é essa queda: lá na objetificação do Outro só
há um buraco. Terrorismo é esse do furo do lado de lá, como no esquizofrênico,
ou é o terror de sentir qualquer abertura do lado de fora e ter que se resumir na
sua pregnância, como no paranóico. É esse o terrorismo do psicótico, para
com ele mesmo e para com tudo. O fóbico não é isso. Ele entra em crise e tem
que ter um ataque – ele sintomatiza o medo.
Encontramos, então, fóbicos típicos: sujeitos que organizam a sua fobia
em torno da eventual objetificação dessa matriz repelida. Pode ser a
transformação numa histeria, numa neurose obsessiva, mas pode simplesmente

518
Vae Victis

objetivar essa matriz recalcada. Isto nada tem a ver com fetichismo. Todos os
autores, aliás, estão de acordo que o fetichismo não é o avesso da fobia, pois
não pertence ao mesmo registro. É uma objetificação de uma matriz repelida,
eventual em certos casos. É o que se diz do fóbico propriamente dito.
Mas a histérica é fóbica, o obsessivo é fóbico, só que em vez de
objetificar, temos aí toda uma trama segurando contra a matriz repelida, a qual
ressurge. Como, aliás, também a fobia. No fim é a mesma coisa. É uma questão
de composição de objeto – e por que não dizer que a histérica compõe um
objeto complexo? –, mas é um objeto. É uma situação, uma configuração.
Estou, então, propondo a fobia como sendo a essencialidade da neurose. Neurose
e fobia seriam a mesma coisa, neste caso.
Mesmo no caso da eventual objetificação na fobia propriamente dita, o
ressurgimento dessa matriz que foi repelida funciona como retorno do repelido:
o retorno do recalcado, com a ameaça de fazer comparecer e funcionar a
matriz que está recalcada. Está lá no Joãozinho, no Seminário de Lacan sobre
ele. A conseqüência sine qua non da fobia, e da neurose em geral, é viver-se
em denegação e erigir-se a denegação em principio de relação. O
relacionamento com o repelido é sempre de denegação.
É preciso pintar uma situação em que o objeto ameace, pois quando
não está me ameaçando, não sou fóbico, só o sou sob ameaça. A matriz fóbica
está nesta ameaça. Eu diria que não se encontra uma fobia pura e, sim, obsessiva
e histérica que possam ter como recalcamento certa fobia que pinta. Na
verdade, as sublegendas são: histérica e obsessiva, porque são fobias... E, de
vez em quando, pinta uma fobia para valer.
Se, então, como já disse, no horizonte do masculino está a castração –
mas como horizonte, como promessa ou ameaça de castração, o que situa o
universal do masculino –, é no campo do feminino que essa castração pode ser
suspensa, não como alguma coisa que não irá acontecer, mas como alguma
coisa que teria acontecido. Pelo menos parcialmente, as mulheres não têm
nada a perder porque, no seu acidente, já perderam. Então, “não vem, porque
tem”, é a frase de Betty Milan, que é um lídimo representante desse troço. Ou

519
Psicanálise & Polética

seja: “Não vou perder nada, não vou ser castrada. Você é que tem medo de
minha existência” – diz a mulher. É aquela história que falei sobre Viridiana:
“Se me encher o saco, levanto a saia e mostro... E você vai tomar um susto”.
Quer dizer: há furo.

* * *

A articulação que consigo fazer sobre a histeria, segundo estas


matrizes, é a de que ela só se diz com base no feminino. Por isso digo a
histérica, pois ela, seja fêmea ou macha, é acossada sintomaticamente pela
matriz feminina que, aliás, ela denega. A histérica, então, se incluiria diretamente
ou, pelo menos, facilmente, nessa matriz feminina, a qual ela repele, pois não a
quer aceitar. Ela não deixa de ter S1 por isso, e um S1 exacerbado, porque
pretende se ancorar nele para fingir que não é mulher, para fingir que é homem.
Lacan diz que “elle fait l’homme”. O que ela recalca é sua matriz feminina.
Eu não diria que o que ela recalca seja o a, porque o a pode comparecer
/ ), ela quer fingir uma matriz masculina
no nível do S1 para ela. Ela recalca o S(A
por via da denegação da sua matriz feminina, que é seu objeto fóbico. A histérica
é uma mulher que insiste em se inscrever no partido do homem, como, por
exemplo, o movimento feminista.
Quando disse que existem partidos psicóticos e não psicóticos, é porque
a histeria, no fundo, imita os artifícios da esquizofrenia tentando – observem o
esquema – fugir para o Outro, como a esquizofrenia faz. Ela está fugindo do
/ ), que ela não quer aceitar. Ela
furo, que não é um furo por foraclusão: é o S(A
tem que fugir desse furo para as instâncias do Outro, através de uma fuga para
outrem. Vem daí essa pegajosidade da histérica com as pessoas, ou em caçar
um senhor para ela... Ela imita, então, os modelos da esquizofrenia, mas não é
esquizofrênica. Ela só imita esse modelo que é de cair, de estear-se no Outro,
porque, do lado de cá do feminino, há lembrança, por retorno do recalcado, que
/ ), e, toda vez que há esse retorno, ela foge para lá simulando
é esse S(A
esquizofrenia.

520
Vae Victis

Existem umas histéricas tão óbvias que sabemos com quem elas estão
andando cada vez que as encontramos. Quando elas falam ficamos sabendo
imediatamente, porque já caíram na de outrem. É essa espécie de
descentramento da histérica que parece, às vezes, esquizofrenia. Chamo
atenção para este fato porque, com essa nosografia fóbica de nós outros
(quando temos as nossas fobias, começamos a fazer nosografias), aplicamos
diretamente sobre as pessoas por meros comportamentos acidentais ou
temporários: “Fulana está psicótica, sicrana está psicótica...”. É preciso ter
cuidado porque existem histerias com aparências de psicose. Elas vão muito
longe e, por causa dessa imitação, se tornam cronologicamente próximas para
serem confundidas com psicose... E as pessoas acabam levando o outro a se
instalar numa aparência definitiva ou longa de psicose, de tanto convencê-las
de psicose – isso é canalharia.

* * *

O obsessivo é outro caso. Ele só se diz com base no masculino. Seja


macho ou fêmea, ele é acossado sintomaticamente pela matriz masculina e a
reafirma. Ele não denega o feminino como a histérica. A denegação é uma
conseqüência do recalque, pois não há denegação sem recalque.
O obsessivo não pode senão obedecer à sua posição masculina. Assim
ele não se ocupa senão da oposição das oposições, aliás, oposição que o pré-
ocupa, que o ocupa mesmo antes de ele ocupar-se dela. Trata-se sempre, e
insistentemente, de estabelecer oposições. É a velha história do obsessivo:
entre H e H’, perdido num emaranhado de oposições.
Toda oposição, como já disse, só se garante pela imposição de um
terceiro excluído: para que se possa fazer a oposição de x e não-x, é preciso
que se coloque um y. Para que se tenha verde e não-verde, referente à cor, há
uma cor verde que é excluída dali de dentro para poder garantir a oposição...
Torna-se, então, impossível para o obsessivo estancar o processo porque, no
que ele faz a oposição, vem um terceiro, sempre... É a sua dívida eterna. É

521
Psicanálise & Polética

disso que ele sofre. Para serenar-se, precisava estancar um pouco o processo,
o que só se daria por totalização, se ele encontrasse Metalinguagem. Mas ele
não pode estancar o processo, pois sofre incessantemente o empuxo do terceiro
em exclusão.
O obsessivo vai, então, empanando o sujeito e coagulando o Nome do
Pai, ou seja, não vai conseguindo reter-se por referência ao faz-de-conta
paterno, o que faz com que, na verdade, não consiga nem ser homem. Ele
podia, de repente, dizer, “faz de conta”, e cortar o terceiro excluído, mas não
consegue. Vive em dívida, em dúvida eterna entre duas oposições. Ou, pode-
se dizer, em dúvida interna promovida pela dívida externa. É o caso dos nossos
economistas no poder...
Qual é a base fóbica do obsessivo? É a ameaça de castração que está
no horizonte. Em vez de garantir-se na referência ao Nome do Pai, fundador do
seu para-todo, há uma espécie de coagulação, pura e simplesmente. Ele reafirma
a matriz masculina, que, aliás, lhe é própria, por ter reconhecido e renegado a
diferença sexual. Lembrem-se de que botei a renegação na base de tudo, lá no
seminário O Pato Lógico. Portanto, o obsessivo não poderia denegar tudo isso
se não tivesse de algum modo reconhecido por processo de renegação.
Ele teme a castração, teme ser castrado como o Outro, o que não é
o caso da histérica. Ela quer tapar o furo, que nele indica a castração, imitando
o Outro, que é macho, o homem. O obsessivo tenta não ver, não reconhecer
a diferença sexual, porque ele ficaria com medo de ser castrado, como o
Outro que ele supõe castrado. Esse reconhecimento é que o faz ser obrigado,
pelo Outro, a ceder em sua masculinidade. É disso que ele tem medo. Assim
como a histérica imita o esquizofrênico, o obsessivo imita o paranóico. Daí
que esse estado obsessivo em que vivemos nos dá a impressão de um estado
paranóico. O obsessivo imita o paranóico tentando centrar-se na sua matriz
e reduzir o Outro também a ele, que é o que o paranóico faz, segundo aquele
esquema da sessão anterior.
O paranóico se centra na sua base S1 – postiço, com foraclusão – e
tenta fechar o Outro. O obsessivo, não tendo foraclusão, tenta se centrar na

522
Vae Victis

sua matriz masculina, por medo de castração, e tenta reduzir o Outro, em sua
diferença, a uma pura e simples masculinidade. O obsessivo é a
homossexualidade por excelência. A homossexualidade é obsessiva. Não é a
prática homossexual como chamam por aí, é essa homossexualidade que sempre
cito, a homossexualidade do sistema: o não reconhecimento da diferença.
Quero ainda supor que essas matrizes têm outras sublegendas. Estou
tentando pincelar através dessas matrizes quais seriam as dominantes, enquanto
matriciais. Essas ortografias complicadas que existem aí nos livros são
simplesmente confusões conteudísticas por falta de conceber qual é a matriz
que está em jogo nas nosografias e nas políticas, nas diferenças anedóticas
dos casos... Cada caso é um caso, justamente por isso. O modo de entrar, o
anedótico em que o sujeito entra nessas matrizes, difere de sujeito para sujeito,
mas existe lá por baixo uma matriz que é constante. Então, quando tomamos
os tratados de psiquiatria, de nosografia, que têm aqueles números todos, vemos
que eles fazem quadros de semelhanças comportamentais dentro das matrizes.
Todo ano eles têm que fazer uma reunião, porque o número aumenta. Vai
chegar um dia em que vai ter um computador para estabelecer quinhentas mil
matrizes, a ponto de que aí poderíamos até botar a minha, quer dizer, é mais
uma. Eles estão é falando de comportamento a partir das matrizes e, não,
contemplando as matrizes, por isso há essa zorra dentro da nosologia.
O obsessivo faz uma promessa de pagamento de dívida, para não ser
castrado -– de dívida e de dúvida, eternamente pagando. A histérica porta o
furo na sua matriz e tenta tapá-lo o tempo todo, fingindo que ela é do outro
lado. O obsessivo não porta o furo na sua matriz. Sabemos que todo falante é
/ ), como constituinte de uma matriz primeira, mas o
furado, daquele furo de S(A
obsessivo não está nessa e, toda vez que vê o Outro, tem medo de ficar igual.
Então, ele constrói um sistema financeiro de pagamento de dívida, para manter
o Outro numa satisfação que não o castre...

* * *

523
Psicanálise & Polética

A perversão – não vou desenvolvê-la muito hoje – é um caso todo


especial. Com base na renegação, trata-se de um objeto que garante a função
fálica para o perverso, pois este objeto suspende tudo. Não se trata daquele
objeto da fobia que veio concretizar o que foi repelido. É um desvio de olhar
direto, um objeto mesmo, uma espécie de cristalização que é o feitiço por
excelência. Cristalização de um objeto, uma espécie de pedra filosofal da
alquimia, que constitui o lastro, uma espécie de âncora capaz de estancar e
estacar a deriva do sujeito.
O perverso – aquele que chamo de “propriamente dito” ou “facínora”
– é, na verdade, o tal do P.P. da psiquiatria. Os psiquiatras não sabem disso e
inventaram a “Personalidade Psicopática”. Eles não sabem distinguir a
perversão propriamente dita da perversão sadia, legal, que é a de nós todos.
Diferentemente do psicótico, tanto esquizofrênico quanto paranóico, o perverso
propriamente dito pode reconhecer o Outro, a diferença, o tempo todo, mas de
modo renegador, porque renegação é apenas um reconhecimento: ele suspende
imediatamente a diferença logo que a reconhece, por meio, ou com o apoio, de
um ponto fixo que é o seu objeto perverso.
Ele ancora imediatamente e, portanto, faz a suspensão da diferença,
do sujeito, inclusive a dele. Há um reconhecimento claro e uma suspensão
disso em cima de um objeto (fóbico) perverso. Seria aquele ponto fixo do
Universo, que Arquimedes exigia para mover todas as estrelas. O perverso
propriamente dito é muito menos comum, muito mais raro do que se supõe,
porque se entende mal a relação com a perversão.
Há um caso na Scilicet – que estou apontando aqui pela segunda
vez –, não sei qual número, que traz o fenômeno interessante de um sujeito
fóbico diante de um objeto isolado, um botão, e perverso diante do mesmo objeto
em série, uma série de botões. Se visse um botão sozinho, entrava em ataque
fóbico, mas se visse uma pessoa qualquer com uma série de botões, como, por
exemplo, uma batinha de padre, etc., ficava doidão, irresistivelmente fascinado.
Acho este caso mal estudado. Ele narrava freqüentemente, com relação à série
de botões, um fato sobre sua mãe, que era atriz ou coisa assim, a qual lhe pedia

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Vae Victis

para que desabotoasse um vestido seu cheio de botõezinhos nas costas. Ele ia
desabotoando e, quando chegava no final, tinha um orgasmo, gozava. Mas se
visse um botão isolado, ficava fóbico. Sobretudo, se não me engano, se esse
botão caia da série. Quando caia um botão da roupa, era a fobia total.
Acho este caso mal situado porque a coisa tem característica de perversão
comum, de fazer gozar – e aí situou-se o cara como perverso: trata-se de gozo
perverso –, mas se trata de um perverso? Posso aventar, por exemplo, a hipótese
de, por um lado, uma estrutura fóbica assentada na falta, na queda, no isolamento
de um botão como iminência de castração. Por outro, uma transação perversa
comum com a série de botões que justamente exorciza a queda do botão.
Quando está em série, ela aponta para a falta na medida em que é
sempre possível mais um. Na contagem dos mais um, o sujeito goza em algum
ponto. É o caso do Don Juan, por exemplo, que mantém a falta em suspenso.
Agora, caindo um botão ou vendo um botão isolado, isso significa que ele pode
ter caído de uma série que exorciza o botão. A castração, aí, é tomada como
motivação, não podemos esquecer disto. Se aquele sujeito tivesse
reconhecimento da castração, não seria fóbico. A fobia do fóbico, num caso
como este, é simplesmente de não entender a castração: para ele é motivação.
E já que a série não apresenta motivação, ele pode simplesmente suspender a
castração na série, porque ela não é mutiladora.

* * *

Vae Victis é uma frase dita pelo general Bruno aos romanos seus
compatriotas, enquanto arrancava ouro dos gauleses que estavam pagando
por sua liberdade. Ele meteu a espada em cima da balança – quer dizer, roubou
no quilo, como se faz na feira –, a balança pesou para um lado e os vencidos
comentaram: “Puxa, mas assim?”. No que ele disse: “Ai dos vencidos”.
É preciso refletir um pouco sobre essa questão dos vencidos, sobretudo
no que diz respeito ao que trouxe a psicanálise, para que se possa,
eventualmente, situar-se em relação a qualquer política.

525
Psicanálise & Polética

Lacan, por exemplo, não disse vae victis e, sim, primum vivere, que é
a base da prudência que leva em consideração a existência do Outro. Sabemos
que ele passou a vida fazendo uma série de coisas estranhas que as pessoas,
parece, não chegaram a entender, ou entenderam mal – o mal-entendido estava
sempre ao seu redor, naturalmente. No nosso caso específico, talvez seja preciso
que tenhamos bastante cautela, calma... Há, por exemplo, o cartel como idéia
fundamental do que Lacan chamou de sua escola, e aquilo parece que nunca
funcionou direito. Há, também, os chamados Analistas da Escola – em dois
sentidos: analistas que pertencem à Escola enquanto analistas e analistas que
são analistas da Escola, enquanto analisanda. E nós outros, aqui, temos que
manter um certo esforço de sustentação dessa prática: tentar botar a Escola
no divã, tanto quanto este Colégio. Veremos no resto do Seminário de hoje, e
em outros que virão, como está intricado o chamado político e o chamado
social – e não pelas vias que estão sendo trabalhadas por aí. É preciso tomar
certas posturas com base no assentamento do discurso psicanalítico e, também,
com base na prática desse discurso entre nós, aqui dentro.
De vez em quando, levo um pito de alguém do Colégio... Aliás, muito
freqüentemente – levo pito à beça. O que chamo pito é diferente de uma
interpretação, que seria manter um rigor de discurso psicanalítico. Se estou falando
num Seminário é porque pretendo me situar na histeria e, portanto, manter-me
numa análise em outro nível, o que é viável, já que Lacan fez isto. Então, nada
tenho contra, muito pelo contrário, a todo e qualquer tipo de interpretação que
possa, eventualmente, me dar um chute para frente. Mas, às vezes, ouço pitos...
E como é preciso tentar analisar um pouco a Escola, não eu no caso,
vou contar apenas o sonho da Escola – vocês têm que analisar. Hoje estou
chamando o Colégio de Escola – é coisa muito estranha que está acontecendo
na minha cabeça.
Um pito, por exemplo – um específico que já veio de várias fontes –, é
o de que tenho um sintoma muito engraçado, e que não é legal. Este sintoma
que é meu, como dizem, é que fico falando dos outros, seja em Seminário ou
em outro lugar: dou uma porradinha aqui na Internacional, outra ali em outro

526
Vae Victis

grupo, e por aí vai. Neste último pito que ouvi a este respeito me disseram: “O
que você devia fazer era ficar, como Lacan, na sua produção científica, etc., e
deixar para lá esses caras, isso é um sintoma chato”. Mas não pude tomar isso
como interpretação e, sim, como pito...
O sintoma que está em jogo e que precisa ser interpretado não é o
sintoma de, eventualmente, querer saber do que se passa com os outros, coisa
que, ao contrário do que esses pitos supõem, Lacan fez o tempo todo. Se
acompanharmos seus Seminários, veremos que ele estava sempre escandindo,
dentro do discurso teórico de outros, certos comportamentos – na Internacional,
aqui e ali – para estabelecer casuísticamente o máximo de diferença. Isto pode
e deve ser feito. As pessoas, então, estão dando pito sobre coisas erradas. O
sintoma verdadeiro não é este e, sim, que falo pelos cotovelos, aqui, para tentar
manter uma análise do meu não querer saber de nada disso. É o contrário
do que dizem. Na medida em que você lida, o mais longamente e constantemente
possível, com o discurso psicanalítico, digo a vocês que a tendência é o contrário.
É de não querer saber de nada disso – não me encham o saco!
O sintoma que me aborrece não é de tratar dessa ou daquela conjuntura,
aqui e ali. É justamente de mandar tudo às favas... Aquilo que Lacan disse: “Fini,
c’est fini”, acabou a porcaria do Seminário, não falo mais. Este é que é o sintoma.
O que, sintomaticamente, me dá vontade de fazer é isto. Por isso, tenho que sair
sacalmente do meu sintoma e falar essas bobagens, porque é preciso ficar um
pouco atento. É preciso, já que estamos estabelecendo diferenças, falar dessas
diferenças e do processo de denúncia, que não é a mesma coisa que deduragem.
A denúncia é da ordem do poético e de manter uma enunciação viva,
criticando os enunciados que se vê ao redor, seja fora, seja dentro, seja em si
mesmo. Denúncia é aquilo que vigora entre enunciado e enunciação. É uma
tarefa nossa e foi tarefa de Lacan, denunciar o que não é psicanalítico. É
denunciar, no campo das teorias como no campo das práticas em geral, não
para se ficar xingando o próximo, mas para distinguir, para tentar a vigência do
discurso psicanalítico.
Por que, então, vem esse pito? É uma questão, aí, de análise do Colégio.

527
Psicanálise & Polética

Digo que – e isto é apenas uma suposição, não estou analisando, estou contando
sonhos –, então sonho que esse pito pode ser o de o sujeito querer estar metido
na nossa, tentando aproximar-se do rigor que tomamos emprestado do Mestre,
mas não querer perder um pé lá do outro lado porque, eventualmente, ele
sarta. É uma coisa rigorosa você estabelecer a diferença e poder dizer: “É
diferente mesmo, e lá eu não caio”. Evitar-se o apontamento dessas diferenças
é, pura e simplesmente, dizer: “Tudo bem, mas não fica falando do outro, etc.,
porque, afinal de contas, tenho amigos lá, posso ter um interesse qualquer
lá...”. Não parece assim para vocês? Ou será que o raciocínio está errado?
Lacan não teve papas na língua. Pegava e dizia as coisas com risco
absoluto, porque sem retorno. Dizer é dizer a tal ponto que não há retorno
possível. E ele fez isto. Quando conseguia dizer, estava dito, lembro-me desta
frase de Kafka, em Fragmentos: “De um certo ponto em diante, não há retorno
possível, urgente é chegar lá”. Isto é que é escansão. Insisto nisto porque sei
que há o jeitinho do nosso meio cultural que é como se diz por aí: “Tudo bem, o
tempo lógico é tão interessante, mas já que é tempo lógico, por que não posso
marcar o horário como anteriormente?”. Não pode porque não há retorno.
Depois que se instalou esta diferença, não há retorno possível. Do contrário, é
manter as coisas em aberto, porque não se quer correr o risco do dizer...
Quando um sujeito recrimina, por exemplo, tipo pito, que eu aponte a
diferença a respeito de uma ocorrência possível com alguém numa Sociedade
qualquer, um determinado caso do qual tenho alguma notícia, por qualquer via,
ele diz: “Você não pode dizer uma coisa dessas”. Por que não? Estou trabalhando
no simbólico quando falo. E se não citei entidades nem nomes, qualquer
deduragem fica por conta de quem quer nomes, e não por minha conta. Existe
hoje confusão a respeito do que possa ser um governo. O mundo está
conturbado. Não estou falando de simples mal-estar e sim de zorra, a estrutura
social na qual vivemos. Tivemos séculos de cada coisa no seu lugar, com mal-
estar lá dentro, mas com uma espécie de saber dominando a situação. Isto não
está havendo mais.
Um dos efeitos disto tem sido a “democracia” que chamo de sovaco.

528
Vae Victis

Por que se fala com veemência e se estabelece diferenças com veemência?


Porque, obsessivamente, mantendo o ritmo da dominância que está em vias de
explodir, as oposições são estabelecidas em nível puramente lingüístico. Basta
estabelecer as diferenças? Não se tem que valorizar isto ou aquilo? Seria
farisaico, senão fascista, dizer que tais pensamentos estão errados, que é preciso
pensar de determinada forma, que é a certa. Temos que pensar isto com calma.
Esta é uma maneira de se restar numa infinitização tipo obsessiva, sem assumir
nenhum dizer dentro das diferenças.
Não se trata de um aspecto religioso, que seria o farísaico, de se dizer
que a verdade está originariamente em tal lugar, por revelação, e que portanto
o resto está errado. Podemos entender – e Lacan já disse que a psicanálise não
é panacéia – que, eventualmente, um pensamento pode chegar à mesma
conclusão que outro, ou a coisa melhor. O que não significa que, dentro de um
escopo de reflexão, de teorização, não se tenha que marcar diferença só por
mera oposição, de que isto é diferente daquilo, porque não é só diferente. Temos
que considerar a diferença para dizer o quê, a partir de um rigor originário,
consideramos errado. Se não, não podemos nem ver o erro para abandoná-lo.
Aceitar a diferença não é simplesmente ser “boa gente”, liberal,
simpático. É, sim, ser rigoroso com a diferença de tal maneira que se possa
respeitar o Outro na medida em que ele esteja sustentando sua diferença, até
mesmo contra a nossa, mas continuando fiel à nossa diferença e denunciando,
para nós e para outrem, do ponto de vista do simbólico, o que é dejetável no
processo das diferenciações.
Isto não constitui partido de espécie alguma. Só se constitui partido no
regime em que a diferença é nomeada a priori. Quando se está no rigor de um
processo, por trabalhar esse processo vai-se encontrando, no regime da
diferença, o que tem que ser abolido em outro campo. Mesmo o discurso
científico opera assim. Se não, se poderia dizer que certa teoria a respeito do
átomo é válida, só que apenas diferente... Mas é preciso dizer não, que isso
não funciona. E quando se trata de relações subjetivas, mais ainda. Se não,
diria que o fascista é muito simpático, que ele só pensa diferente de mim...

529
Psicanálise & Polética

Estabelecer o governo (o regime) da diferença, só podemos fazê-lo na


medida em que as diferenças se denunciem, que a diferença enquanto tal isole
os aparelhos de deterioração da diferença, se não, é o caos. Não há democracia
do vale-tudo. Democracia é um negócio completamente gagá. É o governo da
maioria, ou seja, ditadura da maior quantidade.
Já é momento de se pensar outra coisa, de inventar de novo. O diferente
– e comecei por aí o Seminário deste ano – é primar pelo estabelecimento da
diferença e, não, dizer que vale tudo. É sustentar que mantém a diferença. Não
posso deixar de apontar, a partir do dizer-se habitar-se o mesmo discurso, a
canalharia que destrua o processo da diferença. Ainda que, eventualmente, eu
esteja errado, o meu rigor me dá licença de continuar tentando distinguir o assassino
da diferença aonde me possa parecer que ele esteja pintando. Não por mera
fantasia, mas por tentativa de rigor.
Não é o regime gramatical do que está certo e do que está errado na
língua. Depois que se fez a crítica disto, as pessoas pensaram: “Então vale tudo”.
É como a imbecilidade do pai Karamazov: “Se Deus não existe, então vale tudo”.
Mas é preciso existir Deus para valer tudo, ou para tudo ter chance de se dizer,
porque não vai ser dito, apenas há chance. Quer dizer, produz-se o assassínio do
Outro e pensa-se que, aí, valeria tudo... Aí é que não vale mais nada. Uma
oposição anula outra e está-se na suposição de que são meras diferenças, que
tudo está valendo. Exatamente porque a diferença rege o processo é que é
preciso ser rigoroso com ela, de modo a que ela se sustente. Parece paradoxal,
mas não há paradoxo aí.
No regime do tudo é igual, do vale-tudo, ninguém é insubstituível. Mas
justamente ninguém é substituível – na medida em que se fala como sujeito, se
estabelece diferença. E se a subjetividade está em jogo, essa diferença produz
não meras oposições, mas pode produzir tentativas de anular aquilo que anularia
a possibilidade de oposição. Estamos nesta moda e considero isto o terrorismo
da nossa época. Há essa coisa como, por exemplo, psicoterapia: “pode ser assim,
pode ser assado”. Não é assim não! Isto se chama picaretagem. Quer-se apagar
a idéia de picaretagem porque, simplesmente, tudo vale. E já que vale tudo, então

530
Vae Victis

se pode até fazer a psicoterapia nazista. A tal psicoterapia analítica, por exemplo,
é o cúmulo da canalhice. A psicoterapia nada tem a ver com a psicanálise. A
psicanálise nega a psicoterapia. Inventaram até tempo lógico de 20 minutos –
isto é canalhice. Se entendo o que é o tempo lógico, não posso mais fazê-lo
cronológico. Não posso porque é um erro, se não for um embuste.
Coisa séria para quem entra no barco lacaniano, para as pessoas ligadas
ao discurso psicanalítico, é o que Lacan freqüentemente reclamou: “Tentem
não ser iletrados”. Faz parte de um letrado procurar um mínimo de informação
sobre o Outro, informar-se um pouco sobre o que acontece no chamado mundo
– se é que isto existe – para não ficar numa bobeira, que é não só ficar aquém
das descobertas e invenções da psicanálise, mas aquém até mesmo do mundo
quotidiano, o que é tão freqüente.
Se observarmos o que Lacan fez através da sua vida e de sua reflexão
e tomarmos contato um pouco maior com os acontecimentos do chamado mundo,
veremos como não só ele deu passos incríveis do ponto de vista de pensar o
que seja o falante, a psicanálise, etc., mas conseguiu interpretar, a tempo e a
hora, no tempo lógico do acontecimento, o fenômeno mundial. Se prestarmos
atenção veremos que suas invenções como a estrutura da Escola, do cartel, do
tempo lógico etc., não são senão rigor na teoria psicanalítica, ao mesmo tempo
que nos oferecendo, de antemão, ferramentas para serem aplicadas no mundo
ora emergente e que ninguém quer ver.

* * *

Psicanálise & Polética não é pensar essas tolices de partidarismos


ou de situações grupeiras. Seria pensar um pouco mais fundo e no
reconhecimento dessa virada sobre a qual, quero deixar isto claro, apenas o
discurso psicanalítico tem condições de vir a ser a ferramenta para a
zorra que vem. Não estou querendo bancar o profeta, porque não é preciso,
isto está na cara.
Um profeta disse: “A 1000 chegarás, de 2000 não passarás”. É

531
Psicanálise & Polética

verdadeiro hoje em dia. Não é nenhum Juízo Final, como extermínio – é tomar
juízo, afinal. A experiência de Lacan, é uma experiência também. Não estou
dizendo que ele estava lá para fazer isso, pois não era sociólogo nem futurólogo.
Mas um dos efeitos, entre suas intenções de manejo dentro da psicanálise, é
uma experiência prévia diante da mudança – e estou falando de mudança
concreta – na sintomática mundial.
Ele disse: “Não serei eu que vencerei, mas o discurso a que sirvo”. Em
outra ocasião, já havia dito: “Le propre de la psychanalyse n’est pas de vaincre,
con ou pas”, o próprio da psicanálise não é de vencer, babaca ou não. Não se
trata de vencer no sentido competitivo, de ganhar a partida, por convencer o
outro de uma verdade que estaria previamente dada. Portanto, não se trata,
para a psicanálise, de tentar convencer ninguém, nem de ganhar a partida, no
sentido de apoderar-se do poder enquanto discursivo, coisa aliás que a psicanálise
enquanto tal jamais conseguiria.
Quando ele diz: “Não serei eu quem vencerei, mas o discurso a que
sirvo”, o verbo vencer tem aí o sentido de romper, irromper. Ou seja, o discurso
psicanalítico vencerá, junto com o processo. Aliás, é o único que tem condições
para isto.

11/NOV

532
Noli Me Tangere

23
NOLI ME TANGERE

Dia 8 de abril de 1975, Lacan fazia um Seminário intitulado R.S.I.,


onde dizia: “É verdade que minha voz é fraca para sustentar o discurso
psicanalítico, mas é melhor assim, porque se ela fosse forte, eu teria, talvez,
menos chance de subsistir. Quero dizer que me parece difícil que, por toda a
história, os laços sociais até então prevalecentes não façam calar qualquer voz
que sustente um outro discurso emergente. É o que sempre vimos até agora, e
não é porque não há mais Inquisição que é preciso crer que os laços que defini,
o discurso do senhor, o discurso universitário, mesmo o discurso histérico-
diabólico, não sufocariam o que eu pudesse ter de voz. Dito isto, eu aí dentro
sou sujeito, estou preso neste troço, porque me pus a ex-sistir como analista.
Isto não quer, de modo algum, dizer que eu creia ter uma missão de verdade –
houve gente assim no passado, eles viraram de ponta-cabeça. Não tenho
nenhuma missão de verdade, pois a verdade só pode ser semi-dita. Então,
regozigemo-nos de que minha voz seja fraca”.
“Em qualquer filosofia até o presente, houve a boa filosofia, a filosofia
corrente e, depois, de tempos em tempos, há uns birutas que acreditam ter uma
missão de verdade. O conjunto é simplesmente palhaçada. Mas eu dizer isto,
não tem nenhuma importância – felizmente para mim, as pessoas não acreditam
em mim. Afinal de contas, por enquanto, a boa domina.”.
É por isso que nossa voz, aí no caso a voz que tenta portar alguma
coisa do discurso psicanalítico, é fraca. Ela não tem senão ínfima chance de

533
Psicanálise & Polética

ser ouvida no meio desse burburinho da boa filosofia. Repetindo Lacan, é bem
melhor que ela seja pouco ouvida, senão a boa filosofia, de tão boa que é, de
tão bem intencionada, vai se esforçar ainda por cima para calar essa voz fraca.
A psicanálise não é bem intencionada justamente por saber que as boas
intenções levam direto, para o inferno, para o inferno da filosofia, naturalmente.
Venho falando da Zorra que estaria se instalando no seio disso que
chamamos de social, dessa zorra que nossa época oferece como o chamado
fenômeno histórico. A única arma adequada, aí – do radical inglês arm, como
um braço, talvez, ou ferramenta adequada –, é o discurso psicanalítico. De
outra vez eu dissera mesmo que não adianta ser um jegue-inerme, ainda que
cheio de engenhocas positivas que, se levam depressa a algum poder de
circunstância, não ajudam a cruzar a Zorra. O jegue-inerme é, portanto,
desarmado, ainda que abarrotado de armas eruditas: suas armas não são as
que interessam.
São tempos de burro analítico, embora mal armado, até como um
Mallarmé, mas armado assim mesmo, de qualquer modo. Dizer que o discurso
psicanalítico é a chave certa para atravessar a Zorra não significa que fora da
psicanálise não há salvação. Não é de salvação que trata a psicanálise e, sim,
de transação. No século da Zorra – supostamente é o século em que estamos
entrando –, fora da psicanálise, não há transação... que se agüente. Mas, em
suma, o que permanece é a boa filosofia que, como toda filosofia, é discurso do
senhor, e, como sempre, oferecendo salvação. Oferta que ela faz girando em
círculos, que é o que ela pode fazer. Girar em círculos é o que define a revolução:
toda revolução acaba em devolução. Entre nós, a Revolução de 64 está passando
à Devolução de 82. Em breve, teremos completado a devolução: 18 anos, isto
é normal, é tempo de maioridade no sistema.
Tanto numa quanto noutra, não é a voz fraca do novo discurso – novo
que eu digo é o nosso – que será chamada para se ouvir. Quem vai chamar por
nossa voz não é a boa, filosofia. Por que haveria de reclamar a presença do
discurso psicanalítico quem está numa boa? Não há o menor motivo. Quem
vai, talvez, chamar, senão reclamar por outra voz, são os filhotes da Zorra.

534
Noli Me Tangere

A Zorra, todos sabemos, é a mulher do Zorro. O Zorro é aquele herói


bem intencionado, que tem uma boa filosofia e que é especialista em manter a
lei e a ordem, dos “homens” é claro. A Zorra é aquela que só se interessa pela
LEI, enquanto lei da diferença. A Zorra é zarolha: tem um olho num mundo dos
homens e outro no furo – no imundo, no real impossível. E a Zorra está chegando
porque o discurso do senhor está começando a puir, mostrando seu tecido
esgarçado e, nesse puído, seu avesso.
O avesso do discurso psicanalítico não é o discurso do senhor. Quando
Lacan disse l’envers de la psychanalyse, muitos pensaram que era o discurso
do senhor. Não é. O discurso psicanalítico é aquele que pode emprestar alguma
luz para se andar no meio dos outros. Aliás, o avesso do discurso do senhor
não é tampouco o escravo, pois escravo e senhor são o mesmo: um sintoma do
retorno da boa, retorno circular da revolução à devolução.

* * *

Pode-se ver a olhos vistos, ou melhor, a olhos televistos, por exemplo,


num exemplar do programa de TV, que tem a ironia de se chamar Canal
Livre... Se fosse Canal Preso, seria redundância...
Domingo passado – aliás, domingo é dia do Senhor –, uma entrevista
canal-livresca com Darcy Ribeiro que, tirante os bagrinhos, tinha como
entrevistadores pessoas como Oscar Niemeyer e Paulo Alberto Monteiro de
Barros, dito às vezes Artur da Távola. Foi muito interessante a entrevista, para
sacarmos certos sintomas... Poderíamos, por exemplo, perguntar quem são
esses cavalheiros, Darcy, Oscar, Paulo Alberto e outros da mesma fala.
Darcy Ribeiro foi quem sofreu um bocado. Ele chegou a confessar no
programa que, praticamente, derrubou João Goulart porque não soube transar
como devia, e ficou numa pior. Para as pessoas mais jovens, isto não vai fazer
sentido, mas o pessoal da minha geração – que estava nos inícios da
profissionalização, ainda com o pé na Universidade, naquela época – deve se
lembrar de como era importante naquele movimento e que figurão era o Sr.

535
Psicanálise & Polética

Darcy Ribeiro, o homem da Universidade de Brasília, o chefe da Casa Civil. E


ele ficou numa ruim de certo modo, teve que se mandar e voltou, disse ele,
graças ao prestígio do câncer. O câncer tem muito prestígio, como ele disse –
e é absolutamente verdadeiro –, e os homens o deixaram entrar, pensando que
ele fosse morrer de câncer. Ele declarou que, na sua luta contra o câncer,
aproveitou-se disto para se reintegrar ao país. Aquele momento de confrontação
com a Morte que o câncer lhe trouxe fez com que ele tivesse um investimento
ainda maior na vida, entrasse cada vez mais na ação.
Achei muito interessante esse depoimento porque, se a psicanálise
presta para alguma coisa, é que ela consegue fazer isso sem o câncer. Na
medida em que a psicanálise é, segundo Lacan, o discurso da ação, ao contrário
do que dizem alguns idiotas de certa esquerda que acham que ela é contra o
ato, uma falação contra o agir... A psicanálise transada deveria pôr o sujeito
nessa situação. Não por nenhuma defrontação com a Morte... Ninguém se
defronta com Ela, mas faz alguma travessia que a introduz na fala e, portanto,
topa a ação. E lá estava o nosso caro Darcy Ribeiro metido de novo na sua
antropologia romântica, de paixão pelos índios, exaltação da cultura, com aquele
mesmo papo, tingido de atualidade que faz com que tudo se devolva a um
status quo ante, que é, na verdade, uma reintronização de certo discurso do
senhor com outra postura.
O Sr. Oscar Niemeyer, por exemplo, com todo talento que tem, que é
indubitavelmente visível, insiste em nos fazer crer que Brasília é uma cidade do
futuro – é uma cidade barroca, até. É um arquiteto de governo forte, de um
classicismo pseudo-barroco, que desbunda nas curvas. Mas a engenharia, a
engenharia extremamente precisa é de um poeta chamado Joaquim Cardoso,
que conseguiu botar a bola de pé sobre a tenda de índio. Não sei se vocês sabem
que a responsabilidade de Brasília ficar de pé é de Joaquim Cardoso, um dos
maiores poetas deste país. Brasília é uma cidade nitidamente de governo forte.
Apesar de construída muito antes, ela ficou muito bem como roupa adequada
para Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel. E estes sub-trocam,
confundem a cabeça da gente... Quer dizer, é uma guerra entre senhores, querendo

536
Noli Me Tangere

nos fazer acreditar que está se passando para uma outra. Não vou dizer que não
haja senhores mais ou menos elásticos, depende para quem...
Darcy e Paulo Alberto, embora não tenham declarado formalmente os
fatos que digo, declararam ter tido forte influência de um sujeito que é um dos
poucos que aponto como meu Mestre: Anísio Teixeira. Darcy repetiu várias
vezes a influência que Anísio teve sobre ele. Afinal de contas, a Universidade
de Brasília saiu da cabeça de Anísio e não da de Darcy.
Anísio era professor, e foi uma figura extremamente importante no
meio educacional e cultural brasileiro, inclusive com muito poder em certos
momentos. Mas ele conseguiu manter uma relação meio distanciada com o
Poder, a ponto de conseguir continuar digno. Nunca foi ministro, por exemplo,
porque não aceitava certas barganhas, nem certos cargos. Ele era uma pessoa
extremamente cautelosa, extremamente brilhante, extremamente culta,
extremamente inteligente, extremamente ativa... e tinha algo de desbundante.
Quando conheci Anísio, ele já era velho. Tive o privilégio de ter trabalhado
com ele no Centro de Pesquisas do falecido INEP, Instituto Nacional de Estudos
Pedagógicos, de ter sido seu aluno na Universidade e, depois da Revolução, com
aquelas pressões, etc., ele se afastou e tive o privilégio de conviver com ele em
seus sete últimos anos de vida. Todas as quartas-feiras, eu passava três, quatro,
cinco horas conversando com ele, numa sala de editora onde ele trabalhava. Eu
era uma espécie de discípulo e, digo mais, havia ali algo de análise. Ele me
deixava falar horas e horas e me dava umas cortadas de vez em quando: a
chamada porradinha que botava as coisas no lugar. Anísio era um sujeito que era
amigo de Oswald. Foi a pessoa, não sei se vocês psicólogos sabem, que trouxe a
Gestalt para o Brasil. Foi o primeiro a introduzir os autores da Gestalt aqui.
Ficava todo mundo deslumbrado em São Paulo, contava ele... Até Oswald ficava
babando na gravata, achando que dali podia tirar alguma coisa.
Ele convivia com os artistas, os poetas da época, vivia metido com
jovens de 20, 30 anos, ao mesmo tempo que era Secretário de Educação da
Bahia, fazendo a Escola Parque, querendo virar a Nação de cabeça para baixo.
Ele tinha sido discípulo de John Dewey e tentava implantar a tal democracia

537
Psicanálise & Polética

americana nova, porque da democracia americana ele não gostava. E ele tinha
alguma coisa diferente aí pelo meio que, para mim pelo menos, hoje, passado
muito tempo, dá a impressão de uma espécie assim de destino lacaniano.
Vocês devem se lembrar que, na televisão, Darcy Ribeiro disse que
era muito difícil trabalhar com ele. Ele estava repetindo a críitica que sempre
escutei fazerem a Anísio, de que ele era um sujeito que tinha milhares de
pessoas ao redor, ele era extremamente lógico, seu projeto de trabalho era
extremamente bem traçado, mas ele degringolava as coisas ao mesmo tempo
que as fazia. Essa crítica me pareceu, desde aquela época, ser uma incapaci-
dade de as pessoas lidarem ao mesmo tempo com o sistema e com um discur-
so que o desbundava de certo modo.
Quer dizer, havia alguma coisa de presença do discurso psicanalítico
na fala de Anísio. O que era uma coisa estranhíssima porque muitas vezes ele
estava falando comigo e eu lhe dizia: “Isso é Freud, isso parece Freud”. E ele
arrasava com Freud, mas o Freud que ele citava era aquele parecido com o da
PIPA, o qual justamente ele criticava. Nesse tempo eu não tinha Lacan para
apontar para ele.
Ao mesmo tempo, então, que exercia os cargos, metido na educação,
etc., ele não aceitava os anqüilosamentos. Uma frase sua que foi citada por
Darcy: “Não tenho comunismo como idéia”, isso era uma coisa que ele sempre
dizia. Quer dizer, ele não tinha o comunismo como enunciado, para ele, era
preciso remanejar, o tempo todo. No meio daquele pessoal, aquele velhinho
pequenininho, que parecia um mosquitinho, era o mais jovem da patota.
Uma vez lhe perguntei – e só vou contar isto porque, como vocês vão
ver, é muito ambíguo – por que, naquelas alturas em que vivia, com aquele
saber todo, etc., dava atenção a um caipira feito eu, jovem, que não estava
sabendo das coisas, por que perdia tanto tempo comigo. E ele me disse uma
coisa que, das duas uma, ou é elogio ou é gozação: “Conheço muitas pessoas
inteligentes, há pessoas extremamente inteligentes na minha vida, mas você é
uma pessoa que, além de ser inteligente, tem espírito”. Isto não quer dizer
nada, fiquei com a minha cabeça rodando, mas aí vem a segunda parte, o

538
Noli Me Tangere

equívoco: “Só conheço duas pessoas que, além de inteligentes, têm espírito” –
não sei se ele estava se referindo apenas a uma faixa etária –, “você e o Paulo
Alberto”.
Já disse que não conheço o Paulo Alberto, talvez o Artur da Távola
seja outra pessoa... O que está me interessando aí, é justamente que ele faz
distinção entre inteligência e espírito. Eu não sabia o que era isso, não fazia
a menor idéia. Hoje, faço. Talvez ele quisesse se referir a essa dicotomia que
encontramos no percurso deste semestre. Afinal de contas, os homens podem
ser inteligentes, mas só o feminino tem espírito. Quer dizer, transar o discurso
para além da inteligência, talvez seja um pouco de espírito, talvez seja isto que
ele quis dizer.
Dei esse exemplozinho apenas para indicar isso, porque, na televisão,
pareceu que é uma boa entrar naquele partido... Só estou chamando atenção
para o fato de que se deve escutar cautelosamente porque não há ali chance
para o discurso que estamos colocando. Na verdade, aquilo é um exemplo vivo
do retorno da boa, da boa filosofia, em termos de revolução e devolução.

* * *

Jacques-Alain Millier escreveu, na Teoria da Alíngua, que de certo


modo o discurso do senhor pode ser considerado como o matema da Linguagem
na medida em que esta não existe e na medida em que sua vocação de
Bejahung seja algo que possa se adscrever ao discurso do senhor. Quanto a
mim, quero dizer que o discurso do senhor é o matema da cultura, no sentido
em que venho colocando aqui todo este ano.
O que interessa não é, de modo algum, nenhuma Revolução Cultural,
coisa que toquei da vez anterior. Quando Lacan diz que a única saída é a
Revolução Cultural, as pessoas o confundiram com Mao Tsé Tung. Não se
trata disso, pois ainda é cultural essa revolução.
A revolução do Mao não é menos do mundo que a revolução do Bem,
seja ela de Platão, Aristóteles, ou João Paulo. O que vai interessar no reinado

539
Psicanálise & Polética

da Zorra é a dissolução da cultura, e não nenhuma revolução na cultura. Aí


que a intuição de Oswald é um guia para nós, pois ela suspeita na sintomática
brasileira a vigência da Zorra e o talento de transar com ela. Não há nenhum
nacionalismo no que coloquei durante todo este período, nenhum salvadorismo.
O que há é a sacação da Utopia, não no sentido magistral em que ela foi
tratada por tantos autores, mas quando ela toma o nome de Zorra. Zorra
facilitada por esse sintoma nosso. Não é de nenhum nacionalismo que estou
tratando, mas da suposição de que essa Zorra pinta no horizonte, já nos foi
indicada como sintoma no discurso de um poeta chamado Oswald e que, talvez,
estejamos bem armados – se não quisermos, mais uma vez, mediante um
discurso magistral outro, acobertar essa sintomática brasileira – para dar um
salto de vôo de século. Isto não é o mesmo que ser nacionalista.
Comecei dizendo Não me sonhem nem me outrem, com Fernando
Pessoa, para a distinção entre polética e política, botando nessa diferença
fonêmica a indicação do fundamento ético da psicanálise, ou seja, seu
centramento no real, no impossível e indicando a Lei como Lei da diferença –
que porta, portanto o desejo – como universal do falante. Tentei, pelo menos,
forjar esse universal, longamente.
Depois, falei do Botem um Tatu, para traduzir Totem und Tatu, dizendo
que o simbólico, esse que depende da Lei estrita da diferença, não é de modo
algum o cultural. Falei no mito do macaco maluco e na possibilidade de algo
como um creodo – que pudesse sair desse macaco maluco – inicialmente na
cultura. Tentei um pouco de crítica aos pressupostos de Lévi-Strauss, para
ressaltar o totemismo como um darwinismo do primitivo e insistindo na distinção
entre o simbólico e o cultural. Isto porque o simbólico estaria assentado no
assassínio do pai, de Freud, ou melhor dito, num pai prévia e definitivamente
morto, e o cultural inserido na proibição do incesto enquanto fator de propriedade,
de apropriação, e fundador da cultura na medida em que funda a ordem de
parentesco como computador da cultura.
Em seguida, falei em Tarzan da Silva e tomei o mito de Tarzan como
uma espécie de intuição daquele macaco maluco de que havia falado.

540
Noli Me Tangere

Depois, com o título de Desde o Para Isso: de Adão a Édipo, fui ao


Velho Testamento sacar o assentamento da Lei no não-matar que estaria no
episódio de Caim e Abel. Mostrei que não se pode misturar a fundação do
homem enquanto diferente da mulher e a fundação da Lei com a aparência do
que é o Antigo Testamento.
Depois, fui a Édipo em Calúnia, falando do percurso de Édipo a Tirésias
e mostrando que, afinal, Édipo teria que ser condenado, pois ele foi ao lugar do
poeta. Outra vez retomei o Nat/Cult do sistema cultural, baseado na ordem do
parentesco, por sua vez baseada na proibição do incesto figurativo, e situei como
puro Neolítico. Estaríamos vivendo ainda o Neolítico que se configuraria por
essa ordem de parentesco, pela proibição do incesto e, portanto, pela ordenação
dos homens pela cultura. Mostrei, então, que não era senão um modo de pura e
simples semiotização da estrutura. Semiotização no campo do simbólico, e não
algo necessariamente assim, ou seja, não algo fundado em nenhum universal.
Depois, falei do Gene e Tal, onde situei o genitivo e mostrei como
Lacan pôde reduzir o complexo de Édipo, no final do seu pensamento, às
fórmulas quânticas da sexuação, onde veremos claramente que o princípio de
nomeação é distinto do princípio de propriedade, distinto do genitivo, da interdição
do incesto, que insisto em chamar de figurativo. A consangüinidade e o
parentesco se engalfinhando dentro da cultura e reimaginarizando o que seria
estrutural como pura diferença.
Continuei Ainda o Gene e Tal e mostrei que poderia distinguir três
níveis dentro da castração. A castração simbólica que é a fundadora como
proibição de totalização, como surgimento de Babel. Outra vez fui ao Velho
Testamento aonde se diz que há diferença e lá situei o momento da castração
sintomática, senão semiótica, senão idiótica, no que chamei de primeiro
complexo de Édipo na relação Caim/Abel, fundando um enunciado legal: “É
proibido matar”. Depois, um terceiro nível de complexo de Édipo, em segunda
instância, que é a proibição do incesto figurativamente dito e que situei em
Noé e sua arca. É a proibição do incesto figurada numa interdição que vai
fundar a ordem do parentesco, garantindo a cultura.

541
Psicanálise & Polética

Depois, falei de Édipo e Osome, onde ensaiei pensar de outro modo a


esfinge e as eríneas, mostrando a dupla articulação da cultura. A primeira
estando na Lei como metáfora paterna, pura e simplesmente, e a fundação da
subjetivação. A segunda configurando-se como Vorstellung, como proibição
de incesto, mediante o genitivo e o genital pela ordem de parentesco.
Fui a Antígona e à Lei divina. Falei, então, de Anti-Gona, a mais antiga.
Consegui fazer um pequeno percurso de Édipo Rei e Édipo em Colona e,
finalmente, a própria Antígona, onde teríamos o enunciado legal do homem,
“todos são iguais perante a lei”, a lei enunciada no sistema, e o enunciado feminino
que diz que “a Lei instaura a diferença entre cada um e todos”, uma Lei divina.
Depois, caí naquele longo período de análise d’As Meninas, de Velázquez,
que chamei Córte Real ou Côrte Real, na com-sideração desse quadro, tentando
mostrar aí a inscrição da Lei na sua dicotomização masculino/feminino, o ato-
poético em congruência com o ato analítico, a psicose como diferente do feminino,
a lei dos homens como diversa da lei de Deus. E aí terminou o primeiro semestre.
Recomecei, então, falando da nossa Introdução à Heterofagia. Foi o
momento em que pedi o testemunho de Oswald de Andrade.
Depois, me perguntei: Por que me afano com meu país? Fui buscar
mais elementos para essa nova sintomática apontada por Oswald na dicotomia
entre patriarcado/matriarcado, que poderíamos traduzir por masculino/
feminino; e a fundação do princípio heterofágico sobre aquilo que ele tentou
chamar de Antropofagia.
Em Papo de Tucano, falei d’O Viravesso da Utopia, que também foi
indicado por Oswald. Tentamos colocar a Utopia com o sentido de Heterofagia,
ou seja, aquilo que seria a única possibilidade de se resolver, res-solver a Zorra.
Ou seja, o que, depois, tratei como sendo a possibilidade de uma Revolição
Caraíba, a partir da Utopia considerada como o lugar certo, chamado
Inconsciente, e não como nenhuma forma definitiva de governo. A utopia é uma
espécie de desgoverno, bem organizado, bem dito. Não é nenhuma anarquia, é
uma Alterarquia, a “república do ócio”, como diria Oswald. Aí fiz a distinção
entre líder messiânico e indicador utópico, que não é uma questão de liderança.

542
Noli Me Tangere

Entrei n’A Polética do Dleseijo, pegando a Heterofagia e a relação


com o barroco, e retornei às fórmulas quânticas da sexuação, para distinguir
decisivamente da diferença anatômica.
Na produção de um Ora que Emprogresse, continuei retomando
esse barroco, para reestudar a distinção clássico/barroco. Peguei alguns
historiadores da arte importantes: Hauser, Wölfflin, Burckhardt, Eugenio Dors,
etc., para tentar essa distinção de que a psicanálise nos dá conta com muito
mais clareza.
Chegou o momento, então, que já vinha sendo preparado há algum
tempo, de relembrar aquilo que se passa En l’Endroit où Villegaignon print
Terre, de mostrar que temos as armas contra todo tipo de colonialismo, seja o
da PIPA, seja o da MALU.
Não é não – chegamos lá no momento adequado, com a retomada das
fórmulas quânticas para tentar distinguir o feminino da psicose.
Ensaiei, depois, escrever quatro posições, em Vae Victis, onde situei
quatro partidos. Deu talvez a impressão de que eu estava falando de psicanálise
e futuro – é e não é. Afinal de contas, nada me garante sobre governos. Não
estou dizendo em termos de Brasil, pois nada impede que se tenha uma recaída.
Não se vai jurar quanto ao progresso de uma análise.
Nosso percurso foi, em suma, para destacar a Lei da diferença, a
diferença entre o simbólico e o cultural, a diferença entre o estritamente artificial
e o cultural, que é em suma a ordem de parentesco, a Lei de instalação do
falante como simbólico e não como cultural, para situar a heterossexualidade e
a heterofagia em contraposição ao reino da homossexualidade vigente.
Tudo isso de retorno e na insistência da ética da psicanálise, que é o
fundamento da psicanálise para Lacan e que diz: Não abre mão do teu desejo.

* * *

Pontilhei esse percurso com uma palavra que nunca expliquei – e nem
sei se posso fazê-lo –, que é DIFEROCRACIA.

543
Psicanálise & Polética

Tudo isso, então, para desembocar nessa suposição de que, a partir do


discurso psicanalítico, e diante do estado geral da discursividade, só há, talvez,
se é que pinta a Zorra, a saída de se tentar a invenção de uma Diferocracia.
Nossa tarefa é continuar no discurso psicanalítico, entretanto, ele pode – e,
portanto, deve – contribuir com seus achados para a eventual invenção de
uma diferocracia.
Considero, como já disse, democracia um negócio gagá, faz parte do
Neolítico. Enquanto for Neolítico não se tem saída. Essa invenção, pelo discurso
psicanalítico, de uma diferocracia, teria que dar não o governo da maioria (e
ninguém apareceu até hoje com uma democracia que não seja isto), mas um
governo que trouxesse alguma Diferonomia. Já insisti em que o governo da
maioria não é senão a ditadura da maioria. E qualquer ditadura, ainda que do
proletariado, que na verdade não existe mais, não levaria em conta a diferença.
Na cabeça de Marx talvez levasse porque o seu proletariado era uma maneira
de ele nomear o poeta. Leiam bem Marx e vejam o que ele chama de
proletariado, é o poeta, um sujeito por fora – isto não há mais como massa.
Temos pequenos burgueses miseráveis, passando fome na favela... Proletário
não conheço, a não ser alguns que, na verdade, hoje, temos que chamar de
poetas, ou coisa desta ordem.
O que poderia ser, então, uma diferocracia? Não estou respondendo e
sim perguntando. Ou seja, um governo mal-chamado de governo, porque o dis-
curso do governo é o discurso do senhor. Seria outro discurso que estaria na
tentativa de manejar esse troço, um governo que pintasse uma diferonomia
onde houvesse lugar para qualquer diferença, fora uma, é claro, senão não se
poderia dizer: “para todo, pelo menos um”. Para continuar com o meu universal,
tenho que ter no horizonte pelo menos um na garantia da função paterna. Por
isso todas as diferenças são viáveis, menos uma: justamente aquela que diz que
as diferenças não são viáveis, se não é suicídio, no mínimo burrice... Burrice é
coisa muito séria... A psicanálise não cura imbecilidade. Ela pode curar ignorân-
cia. A imbecilidade não é a debilidade mental, a qual é de todos nós, ela é a
absoluta crença num sentido. Por isso Lacan diz que católico não é analisável.

544
Noli Me Tangere

O que seria – estou perguntando a vocês, inventem por favor – um


governo da diferença? Esta é a pergunta que a psicanálise pode fazer em ter-
mos de política. Ou seja, onde todas as diferenças, menos uma, têm vez, voz,
participação, direito. Todas as diferenças, ou seja, cada um dos sintomas procu-
ra ser bem dito porque tem a sua referência respeitada. Isto seria alguma coisa
propiciada por esses ledores dos acontecimentos como um Alvin Tofler, com
sua Terceira Onda, isso seria uma espécie de plebiscito perene, mas o nome
está errado porque plebiscito levaria à idéia de povo, e povo leva à idéia de
maioria. Não sei o que é isso. Sociólogo logo entra com IBOPE, ou coisa pare-
cida, mas talvez pudesse traduzir plebiscito perene por minoriscito contínuo,
quer dizer, a citação contínua que cada minoria faria diante de cada problema.
Estamos longe desses raciocínios porque há certas pessoas que domi-
nam os satélites, as ferramentas que estão aí. Por exemplo, porque não posso
ver a TV francesa, italiana, a americana no meu televisor? Porque está proibi-
do pelos donos do satélite. Só por isso. É uma questão de divisão do bolo. Se de
repente se põe no ar um programa em russo, pode-se começar a subverter a
ordem dos camaradas...
Talvez, então, fosse possível inventar uma espécie de articulação social
com base no que é a base do social, que é o Simbólico, e não, com base nesse
genitivo fundado pela ordem do parentesco. E talvez se pudesse manter isto
articulado de alguma maneira por uma constante consulta às minorias... Para
operacionalizar isto é muito fácil. Computador é coisa extremamente importan-
te, ninguém deve ter medo dele. É uma das ferramentas mais deliciosas da
nossa época, usemo-la. Não sei por que as pessoas têm medo de tecnologia.
Aliás, computador não erra. Na verdade, ele talvez esteja mais atual que seus
operadores, mais aberto. Mas fica a pergunta: é possível essa diferocracia?
Não acredito em maiorias, pois elas se estabelecem sempre sobre
demagogia. O termo minoria, por sua vez, não é muito preciso, mas temos o
exemplo das minorias em confronto com as maiorias. Quer dizer, diante da
existência, aliás falsa, das maiorias, a minoria aparece como esse isolamento
que se dá, mesmo em certas monarquias, digamos assim, tentativas de

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Psicanálise & Polética

apoderação do poder pelas minorias. Quando estou na maioria, restam essas


particularidades que se ajuntam em novas minorias, não existe mais maioria.
No sentido em que estou colocando o particularismo da minoria só há
coalisão em função da Lei: “Me respeite, que eu te respeito”. Quanto ao resto,
não há coalisão possível. Isto seria justamente permitir que a verdade fosse de
algum modo tocada, pelo menos semi-dita. O que acontece nas tais maiorias,
na tal democracia, é que, em última instância, ou vira imposição de um pequeno
grupo que não é uma minoria, é um pequeno grupo que impõe a vontade da
maioria, ou é demagogia. Ou isso vai por imposição, ou isso vai por cantada...
É aquele negócio do amor – como está no Amor do Censor, de Pierre
Legendre –, ou vai por via do amor ou vai por via do ódio. É a hainamoration,
como diz Lacan. Ou seja, esse interesse pelo amor, em querer fundar as coisas
no amor, no sentido apaixonado em que se usa dele, ou em mera cantada:
“ama-me e eu te darei o que você quiser”, ou em posição odienta: “faça como
eu digo, ou te destruo”. Trata-se, sim, da dissolução disso – que não aconteceria
sem dissolução da cultura, segundo São Oswald –, que produziria esse
espraiamento de minorias que podem bem transar perfeitamente sem amor.
Uso o termo minoria no sentido em que os cartéis se agrupam em
torno de manter a ética, em torno de não se abrir mão do seu desejo. E isto
não significa não abrir mão da demanda. Trata-se de usar o termo lembrando
constantemente do que existe no confronto com a pressão da chamada
maioria. Na verdade, não se trata de minorias, mas de particularidades. Não
são também, de modo algum, as singularidades de Deleuze, pois estas são
meras compulsões sintomáticas.
Ficamos também pensando que em algum lugar deva haver um centro,
mas por que isso não pode ser ex-cêntrico? Por que a invenção do átomo – ele
não existia, foi inventado – tem que ser o modelo de tudo? A física é outro
problema. Qual é o núcleo de Real, Simbólico e Imaginário, senão esse objeto
que não há? É um centro vazio, mera sideração, mera com-sideração. Não
preciso de nenhum modelo estabelecido da física, mesmo porque, Lacan insiste,
o nó borromeano não é um modelo.

546
Noli Me Tangere

* * *

Não me consta que Jesus Cristo falasse latim, mas quando ele levanta
da tumba, na chamada Ressurreição, encontra Madalena – logo quem! – que
corre em sua direção e ele lhe diz: “Noli me tangere”, não me toques.
Isto é uma proibição? Por que “não me toques”? Para não se sujar? Por
mais santa que ela se houvesse tornado, havia sido puta. Alguns disseram que
foi por isso. De modo algum, embora isso possa sujar, não é de impossível que se
trata. Quando se diz “é proibido tocar”, é porque é impossível tocar. Se não o
fosse, não precisava proibir. É impossível tocar o quê? Tocar o Outro enquanto
tal, ou melhor, tocar o furo do Outro. Como é impossível tocar o recalque originário.
É impossível tocar a fundação de real, simbólico e imaginário, que não são senão
os Nomes do Pai. O Pai Simbólico é o furo – ele é prévia e definitivamente
morto. Ele só retorna, e simbolicamente, para dizer: “Não me toques”. Tanto é
que, no mito de Jesus Cristo, ele leva tempo para se reimaginarizar o suficiente,
virar fantasma, entrar no meio dos homens e aí deixar tocar as chagas. Há
aquele Santo duas vezes imbecil, uma vez porque não acreditou, outra porque
tocou o imaginário e achou que estava tocando o simbólico.
O que é proibido tocar não é bem a mãe. E agora é hora de falar baixo,
pois a mãe, justamente por ser a mãe, já foi tocada. Maior que a intimidade entre
um homem e uma mulher, nomeadamente entre um pai e uma mãe – se existe o
tal pai, se é localizável – é a intimidade entre a mãe e o filho. Portanto, impossível
não tocar a mãe. O que é proibido tocar, porque é impossível, é o pai. O pai,
como fundação do simbólico, não o senhor dito pai de fulano ou de sicrano.
Cultura é metáfora, uma das metáforas possíveis da função paterna, a
qual é que, ela sim, é metáfora fundadora. A base dessa metáfora da cultura é
o genitivo: “É proibido tocar o que é do pai”. Mas o que é do pai não é
fundamentalmente proibido, pois não é do impossível. O que é proibido é tocar
o pai simbólico, pois que ele é impossível de ser tocado.
A proibição do incesto é estrutural sim, Lacan insiste. Mas por tudo o
que ele próprio articulou em seu pensamento, posso dizer que o que ela designa,

547
Psicanálise & Polética

e que está metido lá no miolo, é o impossível, o furo, e a conseqüente metáfora


paterna. Nomear a mãe para esse lugar é histórico e vem determinar a ordem
do parentesco, ou seja, a cultura. A proibição do incesto não é senão enunciado
que tenta dizer, sem conseguir, o impossível, porque não se pode dizer A verdade.
Ela é a barreira contra a loucura e só pode ser transgredida no assassínio e na
psicose. O êxtase, por exemplo, não é incestuoso. Como vêem, estou tentando
virar alguma coisa.
Tentei tocar um pouco o que seria o êxtase quando falei das místicas,
mostrando que há uma distinção a ser trabalhada entre esse percurso do feminino,
/ ), e a psicose enquanto
quando ele se interessa, investe no lado da referência do S(A
tal. Entre essa espécie de deslizamento no campo do Outro, mantendo porém no
horizonte a função paterna, e a falta radical dessa referência.
Precisamos saber que discurso estamos habitando. Uma minoria, no
discurso do senhor, é resto na sua operação discursiva, já que tal operação
pretende englobar tudo, monta o seu sistema e, no que precisa capturar um
mais-gozar para isto, tem que esconder esse resto que sobra. Funda-se assim
a minoria que, em jogo entre senhor e senhor, dependendo das transações, se
torna facilmente maioria. Quer dizer, toma o poder outra vez. Fica-se então em
eterna disputa, rivalidade entre senhores.
Parece absurda a Utopia de Oswald, bem como a simples existência
do discurso psicanalítico dentro do chamado mundo, justamente porque não se
tem a experiência disso no campo social instituído. Não estou aqui fazendo
nenhuma pregação de que se deve fazer isto ou aquilo, pois seria tolice. O
discurso psicanalítico não pode e não tem como fazer a apologia de nenhum
tipo de revolução, pois seria cair na mesma. Está-se apenas mostrando que,
por efervescência do próprio discurso, de tanto aquecer-se o Outro ele come-
ça a se dilatar e a se vaporizar. Ou seja, começa a funcionar como Outro que
é, começa a não mais se deixar prender por tal discurso dominante. E, diante
de tais fenômenos, não vamos pensar em fazer o “partido da diferença”. O
que se pode fazer é a experiência da diferença.
Fundar no mundo um partido psicanalítico, isto já foi feito. Está aí a

548
Noli Me Tangere

PIPA que não me deixa mentir. No máximo virou empresa, não conseguiu nem
ser bom partido. A psicanálise já elegeu alguém? A Umbanda elege.
Não temos essa experiência senão, digamos por exemplo, na tentativa,
de Lacan, de fundar uma instituição que nem por isso tivesse que ser careta,
meramente magistral. Ele fracassou, mas deixou sua experiência por aí para
ser considerada. Afinal de contas, quando se funda uma Escola tal como ele
fundou, é na tentativa de, mesmo do ponto de vista institucional, fazer vigorar
o discurso psicanalítico. O que faria, segundo o próprio Lacan, que aquilo fosse
uma anomalia, um anomos. Isto é, uma heteronomia, uma heterofagia, uma
heterossexualidade em vigor.
Mas a barra é muito pesada, pois ao redor está todo mundo cercando,
e as prebendas dos de fora são muito boas. Não há nenhum messianismo
nessa tentativa. Lacan não estava cumprindo nenhuma missão. Trata-se
simplesmente da experiência de lidar com essa coisa que parece estar
emergindo espontaneamente no campo do Outro. Se o ser falante é
dependente do simbólico, é de se esperar que, as fechaduras não sendo
assim tão bem trancadas, de algum modo a coisa venha a sofrer um
crescendo, mesmo uma explosão. Maud Mannoni, por exemplo, falava de
institution eclatée...
Se o cartel, outra invenção de Lacan, for trabalhado tal como pensado,
não tem condições de se estratificar. Mas é muito difícil, reconheço, as pessoas
abandonarem a idéia de que o cartel tem que fazer grupo. Esta idéia está tão
ferrenha nas cabeças, que há grupos que dizem coisas como: “Não é possível
trabalhar tal assunto no cartel porque há dois que pensam uma coisa, três que
pensam outra, e não se aceitam”. “Não se aceitam”, aí, indica algo que não
está sendo dito. “A gente marca reunião e as pessoas não vão.”. Está todo
mundo imbuído da idéia bem empresarial de que o cartel é uma espécie de
operação de lucro ou salvamento. Não é não. Não tem a menor importância
um sujeito não ir. O cartel existe assim mesmo. Basta a possibilidade de
enunciação, inclusive essa de apontar que o cartel não dá certo, de que o
sintoma está lá, e o sintoma que está lá é o do grupo.

549
Psicanálise & Polética

A Diferocracia seria, como alguém me disse, vocação de amálgama


social. Seria o social enquanto tal, pura e simplesmente. Esse papo de social,
que ouvimos no discurso dos políticos, inclusive de analistas que pensam estar
pensando política, é o político no pior dos sentidos, é o que tem a ver com o
policial, pois se trata de discutir qual partido vai vencer. Cada um com suas
fantasias e com seus jogos imaginários, sem levar em consideração que é
necessário permitir o vigor da diferença, de todas as minorias, de todas as par-
ticularidades... e sem consenso. Nada mais desmoralizado do que consenso.
Era preciso um discurso de dominação, de mestre forte, e arrebanhando um
grupo grande sob ameaça de castração, para que muitos rezassem por aquele
credo. A diversificação discursiva, hoje, é tão grande que só alguma ameaça
no horizonte, ameaça de castração, mantém essa aparência de consenso, que
aliás absolutamente não há. Não há consenso no mundo de hoje.
Não se trata de ameaça de guerra. Esta é do tipo da imagem encobridora.
Está todo mundo sofrendo desse medo de guerra total. Enquanto se tem medo
dessa palhaçada, desse fantoche, desse espantalho, está-se encobrindo com
isto justamente a possibilidade de disseminação. Não se está fazendo aqui
nenhum messianismo lacaniano. O pior é que vamos entrar, talvez, no mais
exacerbado de todos os períodos desde o Neolítico, que é o de laceração. Mas
inventaram esse espantalho pregado no meio da plantação: “Não mexe porque
isso pode dar em guerra!”. Não se trata disto. Nenhum estado é doido a tal
ponto. E isso não está na mão de um só – é coisa muito complexa.
O sistema, que não é senão o arrebanhamento das maiorias, na tentativa
de dominação de certo discurso, levanta este último espantalho: “Comportem-
se senão sobrevirá a catástrofe!”. Mas a catástrofe já está aí, não precisa
ninguém se comportar melhor nem pior. É bem por dentro desse tal consenso
que a coisa já está explodindo. O que está explodindo? Um avesso. É a cultura
que está explodindo, por avesso ao discurso da dominação.
A sintomática particular não está encontrando mais barreiras suficientes
no discurso dominante para se comportar segundo suas negras. Ele não
convence mais, simplesmente porque produziu tanta ferramenta, tanto

550
Noli Me Tangere

aquecimento, que se torna incoerente o tempo todo consigo mesmo... Ele se


torna furado. O discurso do senhor tentou tapar o furo de todas as maneiras,
até pedindo emprestado à histérica, à ciência, ao obsessivo, à universidade, a
qualquer discurso, mas de tanto se esquentar, de tanto se movimentar, seu furo
foi se tornando evidente. E com furo evidente, imediatamente se particulariza,
se feminiza o sistema.

* * *

O incesto, o verdadeiro, seria tocar o Nome do Pai. Isto é impossível,


então é proibido, e isto se diz como: “´É proibido matar”. Esta é a proibição de
incesto verdadeira. Só se comete incesto no assassínio. E “se comete”, à revelia
da psicose, porque nem se sabe que se o está cometendo. Coloco entre aspas
porque ali é como se o indivíduo caísse no Outro, de vez, entre aspas. Comete-
se sem nenhuma demarcação para isto. Não o estou mostrando do ponto de
vista do psicótico, e sim de quem não está na psicose e considera o incesto
absoluto que é a psicose. E se não há inscrição do Nome do Pai – a coisa é
paradoxal – se poderia dizer, por outro lado, que só há Pai. Há sempre uma
borda qualquer, que é dessa ordem.
O assassínio, aliás, foi para calar o desejo do Pai que se figurava ali.
Afinal de contas, por que Jeová não podia preferir carneiros? Ora, Ele não
gostava de frutas. Aliás, a Igreja tentou fazer a inversão, situar o Filho no lugar
do Pai. O assassínio, ao invés de ser do Pai, fica sendo do Filho. A Igreja, o
Cristianismo, armou esta inversão. Mas aí é outra questão...
Está então fundada a cultura quando se metaforiza a proibição, situan-
do aquele objeto, que pertencia ao Pai no regime da distribuição, como sendo o
objeto da proibição. Neste nível da cultura, seria como se a totalização fosse
possível – é o que venho dizendo há anos, em alguns pequenos escritos. Existe,
na verdade, uma metaforização que apontei como sendo da ordem de uma
imaginarização baseada numa prática que é a do Neolítico. Quem sabe até se
dependente da observação pura e simples do processo reprodutivo. O sexo

551
Psicanálise & Polética

mistura os dois níveis: a relação é impossível no sexo, separa tudo porque é


impossível, mas a transação produzindo, reproduzindo corpos, reimaginariza
sobre o corpo aquilo que é não-relação no nível da relação sexual. Minha
insistência é em que, para cada sujeito, a aparência de totalização vai se
situar na conjugação com a mãe, de onde Freud teve que inventar o tal com-
plexo de Édipo, do qual Lacan diz que “não é tão complexo assim”... O que
nos vem garantir, então, que vai ser sempre assim? Situou-se a ordem do
parentesco, a ordem cultural de interdição do incesto, etc., como uma espé-
cie de garantia do não-enlouquecimento do social, mas simplesmente esse
traço não está funcionando mais a todo vapor, não está mesmo, embora
recompareça sempre no divã.
É preciso fazer distinção para se ver com mais clareza o que é realmente
proibição pura e simples, no simbólico, como fundação. Não se está aqui fazendo
a apologia de transação com a mãe e nem dizendo que isto é uma boa estratégia.
Pode ser até que alguma daquelas minorias, ou muitas, continue achando que a
coisa é assim. Pois que achem! Mas o que estou dizendo é que não se pode
mais teoricamente situar a fundação do social, do falante enquanto tal, sobre
esse nível do genitivo que é a interdição do incesto, enquanto “é proibido casar
com a mãe”.
O Pai Simbólico não comparece a não ser na fala da mãe (e dos
irmãos). O Pai Real é impossível de ser tocado, por isso é proibido. É impossível,
mesmo, de ser dito, pois seria dizer toda a verdade. Ele comparece, então,
como Pai Simbólico, ou seja, como proibição dita no lugar do impossível de se
tocar o Pai Real. Qualquer proibição é vigência metaforizada e metonimizada
desse Pai simbólico, mas a proibição fundadora é aquela que vem no lugar da
impossibilidade. E nisto que insisto.
O que quer que esteja situado no lugar do materno vem proferir
interdições; mostrar que há desejo no Outro; portanto, que há falta no Outro.
O que é apontar para o Pai simbólico? É mostrar que há furo no Outro. É o que
Rosine Lefort estava tratando: há que se reconhecer que o Outro é furado, que
eu sou furado e que há uma correlação entre significante e real do furo – isto

552
Noli Me Tangere

é que é dizer a interdição. Isto não me obriga a pensar em nenhuma


universalidade e perenidade de um certo modo de dizer a proibição, fundando
tal arcabouço que se chama cultura.

* * *

Corregio, Duccio e vários autores que pintaram a cena do Noli me


Tangere apresentam Jesus com dois gestos: uma mão que afasta; outra mão
apontando para cima. É bem ambíguo, pois há, ao mesmo tempo, um convite. Se
não houvesse um convite, ia-se proibir para quê? Ele está apontando para o lugar
onde não se pode tocar, por impossível. O “não me toques” significa: “Estou aqui
como representante do Impossível. Sou a proibição, porque lá é impossível”. Eis
a essência da função paterna. Só nos resta transar com e como o filho.
Já o êxtase é, ao invés de se ficar olhando, de se ficar deslumbrado
com a figura de Jesus Cristo, considerar o que ele está apontando. O êxtase é
olhar para lá, é tentativa de encarar o furo.
Muito bem, até o próximo.

18/NOV

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Psicanálise & Polética

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Ensino de MD Magno

SOBRE O AUTOR

MD Magno (Prof. Dr. Magno Machado Dias):


Nascido em Campos dos Goitacazes, Rio de Janeiro, Brasil, em 1938.
PSICANALISTA.
Bacharel e Licenciado em Arte. Bacharel e Licenciado em Psicologia. Psicó-
logo Clínico.
Mestre em Comunicação; Doutor em Letras; Pós-Doutor em Comunicação –
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (RJ, Brasil).
Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Santa Maria (RS, Brasil).
Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Univer-
sidade do Estado do Rio de Janeiro.
Ex-Professor Associado do Departamento de Psicanálise da Universidade de
Paris VIII (Vincennes), quando era dirigido por Jacques Lacan.
Fundador do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro (instituição psicanalítica).
Fundador da UniverCidadeDeDeus (instituição cultural sob a égide da psica-
nálise). Criador e Orientador de , Centro de Estudos e Pesquisas,
Clínica e Editora para o desenvolvimento e a divulgação da Nova Psicanálise.
Atualmente, além de sua atividade como Psicanalista, continua o
desenvolvimento de sua produção teórico-clínica (work in progress) em
Falatórios e Oficinas Clínicas, realizados na sede da UniverCidadeDeDeus e
publicados regularmente.

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Psicanálise & Polética

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Ensino de MD Magno

ENSINO DE MD MAGNO

MD Magno vem desenvolvendo ininterruptamente seu Ensino de psicanálise des-


de 1976, ano seguinte à fundação oficial do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro.

1. 1976: Senso Contra Censo: da Obra de Arte


Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978. 216 p.

2. 1976/77: Marchando ao Céu


Seminário sobre Marcel Duchamp. Proferido na Escola de Artes Visuais do Rio de
Janeiro (Parque Laje). Inédito.

3. 1977/78: Rosa Rosae: Leitura das Primeiras Estórias de João Guimarães Rosa
3ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1985. 220 p.

4. 1978: Ad Sorores Quatuor: Os Quatro Discursos de Lacan


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007. 276 p.

5. 1979: O Pato Lógico


2ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 252 p.

6. 1980: Acesso à Lida de Fi-Menina


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 316 p.

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Psicanálise & Polética

7. 1981: Psicanálise & Polética


Quatro sessões, sobre Las Meninas, de Velázquez, reunidas em Corte Real,
1982, esgotado. Texto integral publicado por Rio de Janeiro: Aoutra Editora,
1986. 498 p.

8. 1982: A Música
2ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 329 p.

9. 1983: Ordem e Progresso / Por Dom e Regresso


2ª ed. Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1987. 264 p.

10. 1984: Escólios


Parcialmente publicado em Revirão: Revista da Prática Freudiana, n° 1. Rio
de Janeiro: Aoutra editora, jul. 1985.

11. 1985: Grande Ser Tão Veredas


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006. 292 p.

12. 1986: Ha-Ley: Cometa Poema // Pleroma: Tratado dos Anjos


Publicados em O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise. Rio
de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p.

13. 1987: “Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise”, Ainda // Juízo Final
Publicados em O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise. Rio
de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p.

14. 1988: De Mysterio Magno: A Nova Psicanálise


Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1990. 208 p.

15. 1989: Est’Ética da Psicanálise: Introdução


Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992. 238 p.

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Ensino de MD Magno

16. 1990: Arte&Fato: A Nova Psicanálise, da Arte Total à Clínica Geral


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2001. 520 p., 2 vols.

17. 1991: Est’Ética da Psicanálise (Parte 2)


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2002. 392 p., 2 vols.

18. 1992: Pedagogia Freudiana


Rio de Janeiro: Imago Editora, 1993. 172 p.

19. 1993: A Natureza do Vínculo


Rio de Janeiro: Imago Editora, 1994. 274 p.

20. 1994: Velut Luna: A Clínica Geral da Nova Psicanálise


2ª ed. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 310 p.

21. 1995: Arte e Psicanálise: Estética e Clínica Geral


2ª ed. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 264 p.

22. 1996: “Psychopathia Sexualis”


Santa Maria: Editora UFSM, 2000. 453 p.

23. 1997: Comunicação e Cultura na Era Global


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005. 408 p.

24. 1998: Introdução à Transformática: Por uma Teoria Psicanalítica da


Comunicação
Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2004. 156 p.

25. 1999: A Psicanálise, Novamente: Um Pensamento para o Século II da Era


Freudiana: Conferências Introdutórias à Nova Psicanálise
2ª ed. Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 224 p.

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Psicanálise & Polética

26. 2000: “Arte da Fuga”


Revirão 2000/2001: “Arte da Fuga”; Clínica da Razão Prática. Rio de Janeiro:
NovaMente Editora, 2003. 656 p.

27. 2001: Clínica da Razão Prática: Psicanálise, Política, Ética, Direito


Revirão 2000/2001: “Arte da Fuga”; Clínica da Razão Prática. Rio de Janeiro:
NovaMente Editora, 2003. 656 p.

28. 2002: Psicanálise: Arreligião


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005. 248 p.

29. 2003: Ars Gaudendi: A Arte do Gozo


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006. 340 p.

30. 2004: Economia Fundamental: MetaMorfoses da Pulsão


Proferido na UniverCidadeDeDeus [a sair].

31. 2005: Clavis Universalis: Da cura em Psicanálise ou Revisão da Clínica.


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007. 224 p.

32. 2006: AmaZonas: A Psicanálise de A a Z


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 198 p.

33. 2007: A Rebelião dos Anjos: Eleutéria e Exousía


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2009. 210 p.

34. 2008: AdRem: Gnômica ou MetaPsicologia do Conhecimento [a sair]

35. 2009: Clownagens [a sair]

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Ensino de MD Magno

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Psicanálise & Polética

Formato
16 x 23 cm

Mancha
12 x 19 cm

Tipologia
Times New Roman e Amerigo BT

Corpo
11,0 | 16,5

Número de Páginas
562

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