Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
de habitar
Uma cartografia pessoal sobre o viver-casa
Suzana Massini
Volume 2
Modos de habitar: uma cartografia pessoal sobre o viver-casa
Suzana Massini
1ª edição, 2018
Apoio editorial
Círculo das Artes
www.circulodasartes.com.br
ISBN: 978-85-67449-07-4
ISBN COLEÇÃO: 978-85-67449-05-0
CDD 372.5
Artes-manuais
para a educação http://artesmanuaisparaeducacao.wordpress.com
aprendizagens e processos artesmanuaisparaeducacao@gmail.com
de singularização
A AMPLIAÇÃO DE UM TERRITÓRIO INVESTIGATIVO
Ana Lygia Vieira Schil da Veiga (Nina Veiga)*
*www.ninaveiga.com.br
1 VEIGA, Ana L.V.S. da. Fiar a escrita: Políticas de narratividade – exercícios e experimentações entre arte
manual e escrita acadêmica. Um modo de existir em educações inspirado numa antroposofia da imanência.
Tese de Doutorado. Universidade de Lisboa. Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2015.
2 BRESSAN, Carlos Vinicius. Encarnação: pistas para livr_, São Paulo: Círculo das artes, 2018. p.103.
Os livros foram compostos pelos participantes da pós-graduação em
Artes-manuais para a educação, curso que idealizo, coordeno e ministro
na A Casa Tombada/Facon, e que tem por vocação dar amplitude às
pesquisas desenvolvidas desde a tese de doutoramento3. Nesta exposição
de vozes que se fazem letra, percebe-se os processos ensaiados na
trajetória da especialização, em movimentos junto às artes domésticas
perdidas: costura, bordados, tecelagem, fiação e suas afetações.
Não sei escrever... nunca soube muito bem usar as palavras escritas.
Não sou de contar muitas histórias com palavras ditas também, a não ser
para os mais íntimos. Meus processos sempre foram mais demorados –
não à toa, estou aqui, às vésperas da entrega, a escrever essa introdução.
E o que escrever afinal? O que é tudo isso que pode caber em algumas
palavras e transborda em uma vida inteira?
...
7
...
Olho meus escritos bagunçados das primeiras aulas com a Nina sobre
as possibilidades da pesquisa e me deparo com a seguinte anotação:
...
8
Um afeto
9
“A boca da casa me beija.
A casa quer me conquistar,
quer me engolir,
tem fome de mim.
Sou eu
o alimento da casa,
sou eu as substâncias,
sou eu que transpira
e as veias que cingem
o espaço.
Na boca da casa,
degusto meu gosto,
relembro meus sais,
salivo meus sonhos.
Na casa, descansa meu verbo.
A casa quer que eu pare um pouco,
me entranhe,
dê tempo para a digestão.
Vasculho
entre os dentes da casa,
meus restos, meus mortos,
minhas ninharias.
E a língua em que piso,
em que digo,
em que ouço,
é toda inventada,
só fala comigo,
é feita de vento
e ruídos.
Na casa repousam meus signos.”
O que é uma casa?
Raiça Bomfim e Vânia Medeiros
11
Rua Ouvidor Portugal, 74, apartamento 33.
Minha primeira referência de casa não foi onde eu nasci, mas foi a
casa onde passei a maior parte da minha infância.
Aquela casa era uma casa de verdade, cada pedaço dela era usado
e vivido, não me lembro de nada ali que não fizesse sentido. Não
sei se era porque criança consegue transformar tudo em qualquer
coisa que sente e dá sentido, ou se porque era uma casa de verdade
mesmo, tão de verdade que, hoje, eu já adulta, consigo ver, nesse
lugar, uma casa.
Lá vivíamos, meu pai, minha mãe, meu irmão Rafael, minha irmã
Simone (a única que nasceu naquela casa), Bruno, um primo que virou
irmão, e eu. Um lugar com tanta vida nova acontecendo, não tinha
como não ser esse o primeiro que chamei de casa.
13
Eu poderia ficar aqui descrevendo cada canto dessa casa. Ao invés
disso vou me atentar aos que me são mais presentes na memória. O
que poderíamos chamar de sala de estar, onde ficava nossa televisão,
foi, durante muito tempo, uma sala sem sofá, havia muitas almofa-
das enormes, um tapete verde escuro, uma cortina com estampa de
vegetação que cobria toda a parede onde tinha a porta para a sacada.
Nossa sala era uma floresta. Quando criança, não me recordo de ter
reparado nesse detalhe, talvez porque era uma estética muito comum
naquela época, me lembro de outras casas com uma cortina no mesmo
padrão de estampa.
Ao lado dessa sala, ficava nossa sala de jantar, ou sala das mil e uma
possibilidades, como já mencionei. Em algum momento, nossa sala de
jantar, sem mesa de jantar, ganhou uma mesa. Nessa época, eu e meu
primo costumávamos fazer a lição de casa nessa mesa, que ficava encosta-
da na parece. Parede essa que costumávamos usar para rascunhar alguns
cálculos da nossa lição de matemática. “Virava e mexia”, minha mãe nos
fazia apagar todos aqueles números, mas eles sempre tornavam a aparecer.
Os quartos não tinham nada de muito especial, mas cabe falar aqui
que era um quarto típico de crianças, quatro camas enfileiradas uma
ao lado da outra. Quando um de nós ficava com medo, todos ficavam
também. Logo, o quarto dos meus pais, com sua cama de casal, por
muitas noites acolheu a família inteira.
14
15
No nosso banheiro, havia uma pia, uma privada, um bidê e um box
com chuveiro. Alguns de nós levamos dele cicatrizes, uma combinação
de peraltices e um chão molhado. Minha maior memória dele tem a
ver com minha transição de criança a adolescente. Menstruei. Minha
cicatriz veio de um corte na perna com lamina para barbear, uma ten-
tativa de depilação malsucedida.
1994 foi nosso último ano nessa casa. Ganhamos a copa do mundo.
Vimos o maior ídolo da fórmula 1 morrer em um acidente durante as
clássicas corridas de domingo. Ganhei minha primeira nota de Real.
Meu pai ficou desempregado, o aluguel atrasou, vários aluguéis... Adultos
preocupados, uma crise financeira, uma crise familiar, uma ordem de
despejo. Saímos daquela casa sem termos outra para morar.
Nem tudo o que estava acontecendo naquela época era claro para mim.
Passei alguns meses na casa de uma tia com meu irmão e meu pai. Minha
mãe e minha irmã foram com nossos móveis para a casa de uma outra
tia. Meu primo já não morava mais com a gente. Estava nascendo ali um
outro olhar sobre a casa, que trazia consigo algumas dificuldades. Talvez
tenha sido nessa época que ouvi pela primeira vez minha mãe falar sobre
o desejo de uma casa própria e de não ter que pagar mais aluguel. Não
era apenas minha mãe, o sonho da casa própria piscava nas propagandas
de loterias e agências bancárias. Todos queriam uma casa.
16
Uma porta, uma janela,
uma casa com o mundo dentro
A disposição dessa casa não era das mais comuns (eu, na verdade,
sempre a achei um pouco estranha). Logo no começo do corredor, à
direita, tinha a porta onde se entrava para a casa, uma sala que seguia
para um hall, onde tínhamos um banheiro, e, mais à frente, uma co-
zinha. Da cozinha, uma porta que também dava para o corredor e
uma outra, que ia para os quartos. Um quarto seguido do outro: para
entrarmos em um, era preciso passar pelo outro. Três criaturas entre a
pré-adolescência e a adolescência, zero privacidade.
Não à toa, as memórias mais marcantes dessa casa têm a ver com
essa expansão.
Nossa janela costumava estar sempre aberta e dava direto para a rua.
Era daquelas janelas de “fofoqueira” que se via nas novelas. A rua era
17
movimentada, na frente de casa, do outro lado da rua, tínhamos uma
padaria e o ponto final de uma linha de ônibus. Ali fora, muita vida
acontecia – daquela janela se via tudo.
Aquela janela baixa que dava para a rua era sempre o convite para
uma conversa. Naquela época, eu e meu irmão tínhamos alguns amigos
18
19
pelo bairro e não era difícil ver a frente da nossa casa cheia de gente
reunida, ainda mais quando entramos na fase dos namoricos.
20
A casa caos,
ou uma casa com muita vida dentro
Três pessoas crescidas. Nossa nova casa tinha apenas dois quartos e
dividir o quarto com essas “novas pessoas”, com quem eu havia divi-
dido quartos ao longo da minha vida, já não era mais tão simples. As
dinâmicas eram outras, as brigas de criança viraram discussões calorosas
com xingamentos. Foi uma época turbulenta da vida.
A casa era assim: um portão que dava acesso a uma escada que levava
a dois “apartamentos”, o nosso era o de número dois. Ao abrir a porta
da casa, dávamos de cara com um corredor, logo próximo à entrada,
à direita, uma porta para um dos quarto, o menor. Um pouco mais
à frente, duas portas, a da direita, dava para um banheiro, e outra, à
esquerda, dava para a cozinha, e, desta, uma porta para a pequena área
21
de serviço. Logo à frente, uma sala que tinha a largura de todo o imóvel,
do outro lado, como se continuasse o corredor, uma porta para outro
quarto, que também ocupava a largura da casa.
Apesar de todo caos, ainda era o lugar que eu queria chegar depois
de horas de trânsito, trabalho e estudo. De repente, eu comecei a per-
ceber que eu passava menos da metade do dia dentro de casa. Afinal,
para que serve uma casa?
22
23
saía de casa pela manhã, atravessava a cidade; no final da tarde, mais
um longo percurso até a faculdade, 5 horas de aula; volta pra casa,
janta, toma banho e dorme. No outro dia, tudo de novo. Mas eu
tinha descoberto um fazer que eu amava e toda essa vida louca era
como combustível.
Vivemos mais dois anos e meio naquela casa, era um viver diferente,
tinha um buraco ali, um incômodo persistente. Com menos uma pessoa,
aquela casa podia parecer mais confortável, mas não era.
24
Nessa época, a Judy também já havia partido, eu decidi que queria
adotar outro cachorro, era uma maneira de preencher aquele vazio e
aquele silêncio. Então, eu e Jujuba nos encontramos, ela chegou em casa
com apenas 3 dias, desde então, ter uma companhia canina se tornou
sinônimo de “sentir-se em casa”.
25
Era uma vez uma casa
A primeira coisa que eu gostaria de dizer sobre essa casa é que tí-
nhamos um quintal! Sonho de criança era ter uma casa com quintal e,
quando me lembro disso, consigo sentir o calorzinho do sol que batia ali.
Talvez eu não tenha histórias muito marcantes para contar sobre esse
lugar, aqui, a vida já tinha outras dinâmicas, o tempo parecia passar ainda
mais rápido, minha relação com o trabalho e a cidade se conturbava,
episódios de ansiedade, crise de pânico. Que vida era aquela que eu
estava construindo? Que relação era essa que eu tinha com a minha casa?
27
de se trabalhar 6 horas. Entrava às 7h da manhã e ia até às 14h, uma
tarde livre para as possibilidades, ledo engano. Percebi que não era esse
o caminho. Eu queria mudar minha relação com o trabalho. Nessa
época, eu já ajudava nos custos da casa e não fazia sentido para mim
não aproveitar o sol do quintal daquela casa pela qual eu trabalhava
para manter. Foi nesse ano e nessa casa que eu comecei a trabalhar
como freelancer e explorar as possibilidades de passar a maior parte
do meu dia dentro dela. Mudei minha rotina e minha relação com o
trabalho se transformou. Descobrir como é ter outras possibilidades
para nortear o seu dia que não seja um horário rígido de trabalho foi
um tempo de aprendizagem. Voltei a desenhar, a andar de bicicleta, fiz
uma horta no quintal, adotei mais um filhote, a Amora. Simone casou.
Quando voltei para São Paulo, nossa casa já não era mais ali. Hoje,
no lugar do simpático predinho onde ficava minha casa com quintal,
foi construído um enorme edifício que, de longe, dá para se ver.
28
29
30
4m2 em Copacabana
31
A casa da minha mãe
Essa casa também era um assobradado, mas, dessa vez, com uma entrada
independente e, possivelmente, também havia sido um imóvel comercial.
No número 415 da Rua Mesquita, abria-se uma porta de vidro e logo em
seguida uma porta de madeira dando para uma escada. Subindo, à esquerda,
um quarto com sacada, que dava para a rua. À direita, um corredor, do
lado esquerdo dele, vitrôs que davam para a rua e, do lado direito, logo
no começo, outro quarto, o meu quarto. Seguindo o corredor, uma sala,
em seguida, um banheiro e, mais à frente, a cozinha e a área de serviço.
Ali, vivíamos nós quatro, eu, meus pais e Jujuba e Amora.
No meu quarto, uma janela que dava de frente para um dos vitrôs
da sala e para a parte externa da área de serviços da casa de baixo. Se
via alguns pombos a observar meu quarto do telhado da casa e se ouvia
sabiás em plena madrugada.
33
A busca por um outro modelo de vida, apesar de trazer uma leveza
de ser o que se acredita, vem com o peso de sustentar tudo isso. A
ansiedade ainda estava ali todos os dias.
34
35
assombrava e me encantava, tudo junto ao mesmo tempo. No meio disso
tudo, uma crise! No país, em mim, na vida. Fui dispensada do trabalho
alocada na editora, passei a prestar serviços em casa novamente. Era o que
eu queria, mas não ali, não naquela casa. Já que eu não iria mais precisar
trabalhar dentro da empresa, podia escolher morar em outro lugar que
não São Paulo. Fui atrás de outro sonho na vida, viver perto do mar...
36
Enquanto escrevo memórias,
a vida continua a acontecer...
Enquanto escrevo sobre essa casa, uma nova experiência está a caminho.
37
Uma casa com histórias
Foi depois desse dia que aquele prédio de três andares, que havia
sido uma fábrica de costura, e virou um depósito de coisas inutilizadas,
se transformou no Canto Único. Marcel, Marcela, Bi e mais outros
amigos do colégio passaram a frequentar o predinho, escolheram o
39
segundo andar, onde tinha um banheiro. Limparam, pintaram, come-
çaram a ocupar as paredes daquele andar com desenhos e pinturas e a
habitar aquele espaço. Virou um lugar de encontro, de troca, de festas
para aqueles meninos que estavam prestes a sair do colégio. Com o
tempo, veio a faculdade, as dinâmicas foram se transformando e, em
algum momento, os fluxos diminuíram. O Marcel era um dos amigos
que vez ou outro ainda aparecia no Predinho, o Bi foi fazer faculdade
em Piracicaba, mas a família continuava morando na casa da frente.
40
A Casa do Predinho
Logo que me mudei para cá, vim sozinha. O casal estava em outro
processo de mudança e, apesar de já habitarem a casa alguns dias da sema-
na, só se mudaram de fato para cá, meses depois. Amora e Jujuba ficaram
na casa de meus pais, pois aqui já tínhamos ilustres presenças caninas.
A casa, que é grande, parecia ainda maior com apenas uma pessoa
morando nela. Ao entrar pelo portão, duas ou três palmeiras, um pi-
nheiro, várias orquídeas junto às árvores, um jardim. Sim! Eu tenho um
jardim! Que além de plantas, possui um laguinho pequenininho onde
mora Frederico, uma tartaruga, também herança da casa.
Quem olha a casa do lado de fora, vê, ao lado do portão, uma outra
porta de ferro. Essa é a entrada lateral de um corredor que dá direto
nas escadas do Predinho. É complicado tentar explicar todos os espaços
da casa. Temos três quartos, um banheiro, sala, copa, cozinha, quintal,
terraço, jardim, lavanderia e um predinho!
41
O Predinho tem três andares, no primeiro andar, onde já foi o “de-
pósito das coisas que ninguém queria”, temos um espaço aberto que se
divide entre aulas de yoga, estúdio de fotografia, filmes no telão e o que
mais quiser ser. O segundo andar é o “quarto do Marcel”, o primeiro
lugar a ser habitado pelos amigos quando começaram a frequentar o
predinho, com suas paredes cheias de desenhos e memórias. No terceiro
andar, um possível laboratório fotográfico, que começou a ser usado
para queimar telas para serigrafia, uma cozinha e uma caixa d’agua para
captar água da chuva, onde moram peixes e um vaso de papiro.
42
43
Uma casa é uma vida que acontece
Até aqui escrevi memórias dessas casas e toda vida que aconteceu.
É mais fácil contar sobre o que a gente olha de longe, tentar entender,
perceber o que cada pedaço de vida quis dizer, ou simplesmente lembrar
com calorzinho no coração. Difícil é contar vivendo essa casa que está,
agora mesmo, acontecendo. Mesmo já fazendo um pouco mais de um
ano, assimilar esse novo eu-casa é complexo e delicado.
Todo dia aqui é uma descoberta, uma casa é feita de muitas coisas.
Seguimos aprendendo...
45
Entrei na graduação em Artes Plásticas em busca de modos
de existir, trabalhar e comunicar diferentes do lugar comum. Por
meio das artes visuais, comecei a trabalhar com design editorial e
nunca mais parei...
suzana.massini@gmail.com @smassini
Artes-manuais para a educação
aprendizagens e processos de singularização
organização Ana Lygia Vieira Schil da Veiga