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São essas as razões que nos mostram impreterível que os seres humanos
deveriam ser livres para formar opiniões e expressá-las sem reservas, e tais
são as consequências nefastas para o intelectual e, por isso, para a natureza
moral do homem a não ser que essa liberdade seja concedida ou afirmada
apesar da proibição. Deixe-nos agora examinar se as mesmas razões não
requerem que o homem deva ser livre para agir de acordo com suas opiniões—
para concretizar isso em suas vidas sem obstáculos, sejam eles físicos ou
morais, de seus colegas homens, contanto que assumam o risco e o perigo.
Essa última ressalva, é claro, é indispensável. Ninguém está dizendo que as
ações deveriam ser tão livres quanto as opiniões. Ao contrário, até as opiniões
perdem sua imunidade quando as circunstâncias em que elas são expressas
são tais que constituem à expressão uma incitação positiva para com algum
ato malicioso. Uma opinião como a de que comerciantes de milho são
responsáveis pelo problema da fome, ou de que a propriedade privada é roubo
deve passar incólume quando simplesmente circulada pela imprensa, mas
pode justamente incorrer numa punição quando dita em voz alta para uma
multidão exaltada reunida perante a casa do comerciante de milho ou quando,
entre a mesma multidão alguém exibisse a opinião numa placa. Atos de
quaisquer tipos que, sem uma causa justificável, causam sofrimento aos
outros, podem ser (e nos casos mais importantes são absolutamente
requeridos que sejam) controlados pelos sentimentos desfavoráveis, e, quando
necessário, pela interferência ativa da humanidade. A liberdade do indivíduo
deve ser, então, extremamente limitada; ele não deve incomodar outras
pessoas. Mas, se ele se abstivesse de molestar os outros acerca do que
concerne a estes, e agir meramente de acordo com sua própria inclinação e
julgamento sobre as coisas que interessam apenas para si mesmo, as mesmas
razões que mostram que a opinião deveria ser livre também provam que ele
deveria ter permissão, sem penalizações, de colocar suas opiniões em prática
a suas próprias custas. Que a humanidade não seja infalível, que suas
verdades, a maior parte do tempo, sejam meias verdades; que a unidade de
opinião, a não ser que seja resultado da mais livre e completa comparação de
opiniões opostas, não é desejável, e que a diversidade não é um mal, mas ao
contrário, um bem. Até que a humanidade seja muito mais capacitada do que
no presente para reconhecer todos os lados da verdade, os princípios são
aplicáveis não menos para os modos de ação dos homens do que para suas
opiniões. Como é útil o fato de que enquanto a humanidade é imperfeita, deve
haver opiniões diferentes, também o é o fato de que deve existir diferentes
experiências do viver. Esse escopo livre deve ser referido a variedades de
caráter que tem dano reduzido a outrem; e os valores dos diferentes modos de
vida devem ser provados de maneira prática quando qualquer pessoa ache
válido tenta-los. É desejável, resumidamente, que quando se tratando de
coisas que não interessam primariamente a outros, a individualidade deveria
afirmar-se. Onde não é o próprio caráter da pessoa, mas as tradições ou
costumes de outros que são a regra de conduta, há carência de um dos
principais ingredientes da felicidade humana e praticamente o ingrediente
fundamental do progresso individual e social.
Ele, quem deixa o mundo, ou sua porção dele, escolher o plano de sua vida pra
si, não tem necessidade de nenhuma outra faculdade além da macaquice que
é a imitação. Aquele que escolhe um plano para si mesmo, emprega todas as
suas faculdades. Ele deve usar da observação para ver, da racionalização e
julgamento para antecipar, atividade para reunir materiais para decisão,
discriminação para decidir, e, quando ele houver decidido, firmeza e
autocontrole para conferir credibilidade a sua decisão deliberada. E essas
qualidades, as quais são requeridas e exercitadas exatamente nas proporções
da parte de sua conduta a qual ele determina de acordo com seu próprio
julgamento e sentimento, são grandiosas. É possível que ele possa ter sido
guiado por um caminho bom e se manteve fora de perigo, sem nenhuma
dessas coisas. Mas qual será seu valor comparativo como ser humano? É
realmente da maior importância não apenas o que os homens fazem, mas
também de qual maneira eles fazem e são. Por entre os trabalhos do homem,
em que a vida é corretamente empregada no aperfeiçoamento e
embelezamento, o primeiro em importância é a humanidade em si. Supondo
que fosse possível construir casas, cultivar milho, travar lutas, tentar causas, e
até erigir igrejas e rezar por meio de máquinas—por autômatos de forma
humana—seria uma perda considerável substituir esses autômatos até pelo
homem e a mulher que no presente habitam as partes mais civilizadas do
mundo, e que certamente não são nada além de espécimes famintos do que a
natureza pode e irá produzir. A natureza humana não é uma máquina para ser
construída através de um modelo e programada para fazer exatamente o
trabalho prescrito para ela, mas uma árvore que requer seu crescimento e
desenvolvimento de si para todos os lados, de acordo com uma tendência das
forças internas que a produzem como uma coisa viva.
Na verdade crua, qualquer que seja a homenagem proferida, ou até paga, para
a real ou suposta superioridade, a tendência geral das coisas ao redor do
mundo é a de prestar à mediocridade o poder ascendente entre os humanos.
Na história da antiguidade, na idade média, e em grau reduzido durante a longa
transição do feudalismo para o tempo presente, o indivíduo era um poder em si
mesmo, e se ele obtivesse grandes talentos ou uma posição social alta, ele era
um poder a ser considerado. No presente, os indivíduos estão perdidos na
multidão. Na política é quase uma trivialidade dizer que a opinião pública rege
o mundo. O único poder que merece essa atribuição é o das massas, e dos
governos enquanto eles se mostrem como um órgão das tendências e instintos
das massas. Isso é verdade tanto nas relações morais e sociais da vida
privada, quanto em transações públicas. Aqueles cujas opiniões se reivindicam
em nome da opinião pública não são sempre o mesmo tipo de público: nos
Estados Unidos da América eles são toda a população branca; na Inglaterra
são majoritariamente de classe média. Mas, sempre há uma massa, isto é,
uma mediocridade coletiva. E, o que é uma inovação ainda maior, as massas
agora não tomam suas opiniões baseando-se na Igreja ou no Estado, de
líderes pomposos, ou de livros. Seu pensamento é feito por homens muito
parecidos com eles, que se dirigem a eles e falam em seu nome no calor do
momento através dos jornais. Não estou reclamando de tudo isso. Eu não
afirmo que qualquer melhoria é compatível com o presente estado da mente
humana como regra geral. Mas isso não impede o governo da mediocridade de
ser um governo medíocre. Nenhum governo que seja de uma democracia ou
de uma numerosa aristocracia poderia superar a mediocridade nas opiniões,
qualidades, e nos tons de mentalidade os quais ele fomenta, exceto quando
tratando dos soberanos. Muitos deixaram-se guiar (o que eles sempre fizeram
em seus melhores governos) pelos conselhos e pelo influência de uma ou
poucas pessoas mais dotadas e instruídas. A iniciação de todas as coisas
sábias e nobres vêm e deveriam vir dos indivíduos, geralmente primeiro de
alguém individual. A honra e glória dos homens ordinários é o fato de que ele é
capaz de seguir essa iniciativa, de que ele pode responder internamente coisas
sábias e nobres, e ser guiado a elas com os olhos abertos. Não me
contraponho, aqui, a essa espécie de endeusamento do herói que aplaude o
homem forte e de gênio por forçosamente apoderar-se do governo do mundo e
fazer valer sua ordem apesar dele. Tudo o que ele pode alegar é a liberdade de
mostrar o caminho. O poder de coagir os outros não é inconsistente com a
liberdade e com o desenvolvimento de todo o resto, mas sim um poder que
corrompe esse homem forte, propriamente. Nos aparenta, entretanto, que
quando as opiniões ordinárias das massas se tornaram, ou estão se tornando,
em todo lugar, o poder dominante, uma contraposição e correção dessa
tendência seria cada vez mais e mais a evidenciação da individualidade
daqueles que têm um pensamento que se destaca. É especialmente nessas
circunstâncias que indivíduos excepcionais, ao invés de ser desencorajados,
deveriam ser incitados a agir de maneira diferente da massa. Em outras
circunstâncias não seria interessante para eles agir dessa maneira a não ser
que agissem não apenas diferentemente, mas também melhor. Nessa era, o
mero exemplo do inconformismo, a mera recusa a dobrar os joelhos aos
costumes já é um serviço. Precisamente porque a tirania da opinião se dá
através da censura da excentricidade, é desejável que as pessoas sejam
excêntricas para destruir a tirania. A excentricidade sempre foi abundante onde
a força de caráter também foi, e a quantidade de excêntricos em uma
sociedade tem, geralmente, sido proporcional à quantidade de genialidade,
vigor mental e coragem moral nela contida. O fato de que poucos ousam ser
excêntricos marca o grande perigo do nosso tempo.
NOTAS
CAPÍTULO IV
Ambas irão receber sobre sua própria demanda se cada uma tem aquela que
mais lhe concerne. A individualidade pertenceria àquela parte da vida na qual o
interesse acerca do individual predomina, analogamente à sociedade onde
predomina os interesses da sociedade.
Seria muita falta de compreensão supor que essa é uma das doutrinas da
indiferença egoísta que imagina que os seres humanos não têm relação uns
com os outros no que diz respeito a suas condutas, e que eles não deveriam se
preocupar com o bem-estar uns dos outros a não ser que seus próprios
interesses estejam envolvidos. Ao invés desse retrocesso, é necessário investir
num esforço desinteressado para promover o bem. Porém, essa benevolência
desinteressada pode utilizar-se de outros instrumentos, que não o chicote e o
flagelo, para convencer as pessoas a fazerem o bem para si mesmas, seja
metaforicamente ou literalmente. Eu seria a última pessoa a subestimar as
virtudes que dizem respeito ao individual, elas vêm em segundo lugar em
relação às do social. Cabe igualmente à educação o dever de cultivar ambas,
mas até a educação funciona tanto por convicções e persuasão como por
compulsão, e é pelos primeiros, apenas, que, quando o período destinado à
educação tem seu fim, essas virtudes que dizem respeito ao individual
deveriam ser inculcadas. Os seres humanos devem ajuda uns aos outros para
distinguir o que é melhor do que é pior, e coragem para escolher o primeiro em
detrimento do pior. Eles deveriam estar sempre se estimulando para
exercitarem suas mais altas faculdades e os direcionamentos de seus
sentimentos e objetivos para opções sábias ao invés de tolas, grandiosas ao
invés de degradantes, objetivos e contemplações. Mas ninguém, e certamente
nenhum grupo, se garante ao dizer para outra criatura humana em idade
madura que ela não deveria fazer com a sua vida o que ela quisesse para seu
próprio benefício. Ela é a pessoa mais interessada em seu próprio bem estar:
os interesses os quais qualquer outra pessoa, exceto em casos de forte apego
emocional, podem vir a ter em relação a isso são mínimos quando comparados
ao interesse da pessoa sobre si mesma. O interesse que a sociedade tem em
relação a isso individualmente (exceto sobre sua conduta para com os outros)
é fracionário, e, em suma, indireto: enquanto, no que diz respeito aos seus
sentimentos e circunstâncias, o mais ordinário dos homens ou mulheres têm
meios de se informar que superam imensuravelmente os meios de quaisquer
outros. A interferência da sociedade em rejeitar seus julgamentos e propósitos
a respeito de si mesmo deve basear-se em pressupostos gerais, os quais
podem vir a mostrar-se completamente errados e, mesmo se corretos,
provavelmente não seriam aplicáveis corretamente em casos individuais por
pessoas que não estão mais familiarizadas com as circunstâncias destes casos
do que aqueles que meramente os observam de fora. Neste departamento,
portanto, dos assuntos humanos, a Individualidade tem seu próprio campo de
ação. Na maior parte da conduta dos seres humanos uns para com os outros, é
necessário que regras gerais sejam observadas com o intuito de informar às
pessoas quais expectativas devem ter. Porém, no que cabe somente à pessoa,
a sua espontaneidade individual é designada o exercício livre. Considerações
para guiar seu julgamento e exortações para fortalecer sua vontade podem ser
oferecidas a ela, e até mesmo impostas a ela por outros, mas ela sozinha é o
juiz, afinal. Todos os erros que ela provavelmente irá cometer, à revelia de
conselhos e avisos, compensam de longe quando comparados ao mal de
permitir que os outros a restrinjam ao que eles julgam ser bom.
Não quero dizer que os sentimentos com os quais uma pessoa se depara em
relação aos outros não é afetado de alguma forma pelas suas qualidades e
deficiências. Isso não é nem possível, nem desejado. Se ela mostrar
proeminência em quaisquer qualidades que conduzam ao seu próprio bem, ela
é, até então, digna de admiração. Está muito próxima do ideal de perfeição da
natureza humana. Se ela se mostra grosseira e deficiente nestas qualidades,
um sentimento oposto à admiração segue. Há um grau de loucura e do que
poderia ser chamado (apesar de a frase não passar isenta de censura) de
baixeza ou de depravação de gosto os quais, embora não justifiquem violência
contra as pessoas que as manifestem, as apresentem como necessariamente
e devidamente como objeto de aversão ou, em casos extremos, até de
desprezo: uma pessoa não poderia ter qualidades opostas a estas na sua
devida força sem despertar esses sentimentos. Apesar de não fazer mal a
ninguém, uma pessoa pode agir de forma que nos compele a julgá-la e
percebe-la como insensata ou como sendo de uma ordem inferior: e, já que
esses julgamentos e percepções são fatos os quais ela desejaria evitar,
fazemos um favor avisando-as com antecedência sobre eles, assim como
sobre quaisquer outras consequências desagradáveis às quais ela se expõe.
Com certeza seria ótimo que esse exercício fosse tratado de maneira mais livre
do que as noções de etiqueta nos permitem até o presente e que uma pessoa
pudesse apontar honestamente defeitos que ache em outras sem ser
considerado inadequado ou inquisidor. Nos também temos o direito de agir de
várias formas sobre as opiniões desfavoráveis de qualquer pessoa. Não no
sentido de oprimir sua individualidade, mas, sim, pelo exercício da nossa. Não
temos a obrigação de almejar a sociedade como ela, por exemplo. Nós temos o
direito de evita-la (apesar de não podermos promover um boicote), pois temos
o direito de escolher a sociedade que mais se adeque a nós mesmos.
Possuímos o direito, e talvez o dever, de alertar os outros sobre si mesmos se
acharmos que seu exemplo ou seu discurso têm efeito negativo sobre as
pessoas com as quais ele se relaciona. Poderíamos dar preferência a outros ao
oferecer bons empregos, a não ser aqueles que os levem ao amadurecimento.
Dessas formas variadas, uma pessoa poderia sofrer sérias penalidades pelas
mãos de outrem sobre falhas que só dizem respeito a ela mesma. Porém, ela
sofre essas penalidades apenas enquanto consequência natural e, como a
tratamos, espontânea de seus próprios erros, e não por serem
propositadamente impostas a ela com o intuito da punição. Uma pessoa que
demonstre dureza, obstinação, autossuficiência—que não pode conviver dentro
de meios moderados—que não seja moderada em relação à complacência—
que persegue prazeres animalescos às custas dos prazeres do sentido e do
intelecto— já deve esperar que seja rebaixada na opinião dos outros, e que
tenha uma parcela menor dos sentimentos favoráveis. Mas estes ela não tem o
direito de reivindicar, a não ser que ela tenha a seu favor o merecimento de
uma excelência especial de relações sociais e tenha, então, estabelecido um
status para seus serviços de qualidade, os quais não seriam afetados por seus
deméritos pessoais.
A distinção entre a falta de consideração na qual uma pessoa pode incorrer por
falta de prudência ou de dignidade pessoal, e a reprovação que ela acarreta
pela infração dos direitos dos outros, não é uma distinção meramente nominal.
Ela faz muita diferença tanto no que diz respeito aos nossos sentimentos
quanto nas nossas atitudes em relação a ela, se ela deixa a desejar em
assuntos nos quais acreditamos que temos controle sobre ela, ou em assuntos
nos quais nós sabemos que não o temos. Se ela nos desagrada, podemos
expressar nosso desgosto, e podemos ficar alheios à pessoa ou à coisa que
nos desagrada. No entanto, não devemos nos sentir impelidos a tornar sua
vida desagradável. Devemos refletir sobre o fato de que ela já desenvolve, ou
desenvolverá total responsabilidade sobre seus erros; se ela estraga sua
própria vida devido ao mau gerenciamento, por esta mesma razão, não
deveríamos estraga-la mais ainda: ao invés de desejar sua punição,
deveríamos empreender a atenuação de sua punição, mostrando como ela
poderia evitar ou curar os males que sua conduta tende a trazer à tona. Para
nós, ela pode ser alvo de pena, talvez de desaprovação, mas não de raiva ou
ressentimento. Não deveríamos trata-lo como inimigo da sociedade: se não
interferimos benevolentemente demonstrando interesse ou preocupação por
ela, a pior coisa justificável que poderíamos pensar em fazer é deixa-la
sozinha. Se ela infringiu as regras necessárias para a proteção dos colegas
humanos, individualidade ou coletividade, estamos num outro extremo. As
consequências nefastas de seus atos não recaem sobre ela mesma, mas sobre
os outros, e a sociedade, como protetora de todos os seus membros, a deve
retaliação, deve afligir-lhe dor com o proposito expresso de punição, e deve
cuidar para que ela seja suficientemente severa. Neste caso, ela é uma
infratora em nosso bar, e nós somos responsabilizados não apenas de sentar e
julgá-lo, mas, de uma forma ou de outra, de executar nossa própria sentença:
em outro caso, não cabe a nós afligir-lhe sofrimento algum, exceto no que
poderia se seguir do nosso uso dessa mesma liberdade na gerência de nossos
próprios negócios, coisa que permitimos que ele faça.
Muitos irão recusar admitir a distinção que aponto aqui entre a parte da vida de
uma pessoa que interessa apenas a ela mesma, e aquela que concerne a
outros. Como (deve-se perguntar) poderia qualquer parte da conduta de um
membro da sociedade ser matéria de indiferença para os outros membros?
Ninguém é inteiramente isolado, é impossível uma pessoa fazer algo realmente
ou permanentemente destrutivo para si mesma sem ser importunada por suas
relações mais próximas e, com frequência, muito além delas. Se ela causa
dano a sua propriedade, ele causa dano a todos aqueles que direta ou
indiretamente contavam com seu apoio, e comumente diminuem, pouco ou
muito, os recursos gerais da comunidade. Se ela deteriora suas faculdades
corporais ou mentais, ela não apenas faz mal a todos que dependem dela para
alguma porção de sua felicidade, como também perde sua credibilidade para
prestar os serviços que ela deve a suas colegas criaturas em geral. Talvez ela
se torne um peso sobre as afecções e a benevolência de outros, e se tal
conduta for muito frequente, dificilmente alguma infração cometida desviaria
mais ainda a soma geral do bem na sociedade. Por fim, se uma pessoa não
causa danos diretos a outrem com seus vícios e desvario, todavia ela é (se
poderia afirmar) nociva por seu exemplo, e deverá ser compelida a controlar-
se em nome daqueles que poderiam corromper-se ou ser mal direcionados por
tal visão ou conhecimento acerca de tais fatos.
E, mesmo que (acrescento) as consequências dos desvios de conduta
pudessem ser confinados ao indivíduo viciado ou negligente, a sociedade
deveria abandonar sob seus próprios jugos aqueles que são manifestamente
inadequados a ela? Se a proteção contra eles mesmos é destinada às crianças
e menores de idade, a sociedade não é igualmente obrigada a lidar com
pessoas maiores de idade que são igualmente incapazes de gerenciar sua
própria vida? Se o vício no jogo, se o alcoolismo, ou a incontinência ou o ócio
são tão prejudiciais à felicidade, e um obstáculo ao desenvolvimento tão
grande como a maioria das condutas proibidas por lei, por que (deve-se
perguntar) a lei não deveria as reprimir, também, se ela for consistente com a
praticabilidade e com a conveniência social? E, como um suplemento às
imperfeições inevitáveis da lei, a opinião não deveria, pelo menos, organizar
políticas poderosas contra esses vícios e responder com penalidades sociais
rígidas àqueles que sabemos que os praticam? Não estou pondo em questão
(devo dizer) a restrição da individualidade ou o impedimento de novas
tentativas e experimentações originais. As únicas coisas que procuro prevenir
são as coisas que foram tentadas e condenadas desde o início dos tempos até
agora, coisas que a experiência mostrou serem inúteis e inadequadas para
qualquer individualidade. Deve haver algum período de tempo ou quantia de
experiência sob os quais a verdade moral ou prudente podem ser reconhecidas
como estabelecidas, e é simplesmente desejável prevenir que caiamos no
mesmo princípio que tem sido fatal, geração após geração, para nossos
predecessores.
Admito que o transtorno que uma pessoa causa para si mesma pode afetar
seriamente, devido à sua simpatia ou seus interesses, aqueles que estão a sua
volta e, em grau menor e no limite, afetar a sociedade amplamente. Quando,
devido a uma conduta desse tipo, uma pessoa é levada a violar uma obrigação
distinta e imputável dela perante outro ou outros, o caso está agora fora da
categoria individual e se torna, então, passível de desaprovação moral no
sentido próprio do termo. Se um homem, por exemplo, por extravagância e
intemperança, se vê incapaz de pagar suas dívidas ou, tendo assumido a
responsabilidade por sua família, se torna, pela mesma causa, incapaz de
apoia-la e educa-la, ele se torna, de maneira justa, reprovável e deve ser
punido. Porém, apenas pela violação dos direitos de sua família e
dependentes, e não pela extravagância. Se os recursos os quais foram
destinados a eles fossem utilizados num investimento prudente, a culpabilidade
moral seria idêntica. George Barnwell assassinou seu tio para conseguir
dinheiro para sua amante, mas, se ele houvesse roubado para se beneficiar
nos negócios, ele seria enforcado da mesma forma. Novamente, no caso
recorrente onde um homem causa sofrimento para sua família devido ao vício
dos maus hábitos, ele merece censura por sua ingratidão e falta de empatia.
No entanto, o mesmo deve ocorrer caso ele cultive hábitos que não são
violentos em si, mas que causam algum sofrimento àqueles com os quais ele
passa sua vida, ou àqueles que dependem dele para seu conforto. Qualquer
um que falhe em considerar os interesses e sentimentos dos outros, em geral,
e que não seja compelido por alguma obrigação mais imperativa ou justificável
por uma preferência permitida, torna-se objeto de desaprovação moral por essa
falha, não por sua causa, não pelos seus erros simplesmente pessoais os
quais podem ter levado a ela. De maneira parecida, quando uma pessoa se
torna incapaz de, por uma conduta puramente egoísta, performar algum dever
definido para ele em relação ao que é público, ele é culpado por uma infração
social. Ninguém deve ser punido simplesmente por estar bêbado, mas um
soldado ou um policial bêbado em serviço deve ser punido. Em resumo,
quando há, claramente, dano ou risco de danos seja a um indivíduo ou coletivo,
o caso é retirado do reino da liberdade e posto no reino da moralidade ou da
lei.
O mal apontado aqui não é aquele que existe apenas na teoria, e pode ser que
esperem que eu deva especificar as instâncias nas quais o público dessa era e
país investe inapropriadamente suas próprias preferências ao caráter das leis
morais. Eu não escrevo um ensaio sobre as aberrações do sentimento de
moral existente. Esse tema é muito amplo para ser tratado de maneira rápida e
o faço no sentido de ilustração. Ainda assim, exemplos se fazem necessários
para mostrar que o princípio que mantenho diz respeito a um momento sério e
prático, e que não pretendo erigir uma barreira contra males imaginários. E não
é difícil demonstrar, por instâncias abundantes, que alargar as fronteiras do que
se pode chamar de política moral até que ela invada a mais inquestionável e
legítima liberdade do indivíduo é uma das inclinações humanas mais
universais.
NOTAS:
CAPÍTULO V.
PROPOSTAS.
Novamente, existem muitos atos que não deveriam ser interditos legalmente
por serem prejudiciais apenas aos próprios agentes, mas que, se realizados
publicamente, violam as boas maneiras estando, portanto, entre a categoria
das ofensas a outrem, tornando-se passíveis de proibição. Nessa categoria
estão as ofensas contra a decência, sobre as quais não é necessário me
alongar tendo em vista que elas estão apenas indiretamente conectadas ao
nosso assunto, sendo que a objeção pública é tão forte quanto no caso de
várias ações que não são, nem deveriam ser condenáveis por si só.
Uma questão que vai além é a de que, se, enquanto o Estado for permissivo,
ele deveria, afinal de contas, desencorajar diretamente a conduta a qual ele
contraria para interesse do agente. Se, por exemplo, ele deveria tomar medidas
para aumentar o preço da bebida, ou dificultar seu acesso limitando o número
de lugares onde ela pode ser vendida. Muitas distinções devem ser feitas para
tratarmos dessa questão, assim como na maioria das outras questões práticas.
Taxar os estimulantes com o propósito de apenas tornar mais difícil sua
obtenção é uma medida que difere apenas em grau de sua total proibição, e
seria justificável apenas se a última também o fosse. Todo aumento de preços
é uma proibição àqueles cujos meios não dão conta da inflação, e, para
aqueles que conseguem, é uma penalização por serem dotados de tal gosto
particular. A escolha de seus prazeres e do modo de gastar sua renda após
terem satisfeito suas obrigações morais e legais em relação aos indivíduos e
ao Estado, diz respeito somente a eles mesmos e estão sob seu próprio jugo. A
primeira vista, pode parecer que essas considerações condenam a seleção de
estimulantes como objetos especiais de taxação em prol do rendimento. Mas,
sabe-se que a tributação com propósitos fiscais é absolutamente inevitável,
tanto que na maioria dos países se faz necessário que uma parte importante da
taxação seja indireta. Que, portanto, o Estado não pode evitar a imposição de
penalidades sobre o uso de alguns artigos de consumo que, para algumas
pessoas, deveria ser proibitório. Consequentemente, é dever do Estado
considerar, na taxação de impostos, quais commodities deveriam estar mais
disponíveis aos consumidores, e, com muito mais razão, selecionar
preferencialmente aquelas que, se utilizadas para além de uma quantidade
moderada, podem, positivamente, ser danosas. Portanto, a taxação de
estimulantes até o ponto em que ela produz o máximo de rendimento (supondo
que o Estado precisa de todo rendimento que estiver a seu alcance) não é
apenas admissível como aprovável.
Guardei para o último lugar uma larga classe de questões a respeito dos limites
da interferência do governo, as quais, apesar de estreitamente relacionadas ao
assunto desse Ensaio, não pertencem a ele estritamente. Esses são casos
onde as razões contrárias à interferência não contradizem com o princípio da
liberdade. A questão não é sobre restringir as ações de indivíduos, mas sobre
ajuda-los: perguntamos se o governo deveria fazer ou forçar uma benfeitoria
para eles ao invés de abandoná-los para o fazerem sozinhos, individualmente
ou combinando voluntariamente.