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Setecentista (1748-1800)*1
Roberta Sauaia Martins** 2
PPHIST-Universidade Federal do Pará
Resumo
Este trabalho tem por objetivo analisar os surtos epidêmicos de sarampo e varíola como
plataforma de compreensão das diferentes dinâmicas populacionais, administrativas e
econômicas nos anos de 1748-1800. Destacam-se neste cenário as políticas reformistas de
Marquês de Pombal para o Grão- Pará e suas implicações na região. A segunda metade do
século XVIII foi repleta de modificações sociais, de (re) arranjos espaciais e demográficos, os
quais as epidemias não podem ser pensadas separadamente dessas dimensões históricas. Com
um diversificado corpo documental, busca-se apreender quais medidas e estratégias foram
forjadas na sociedade colonial do Grão- Pará, a partir desses surtos epidêmicos.
*Trabalho apresentado no XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em São Pedro/SP
– Brasil, de 24 a 28 de novembro de 2014.
**
Mestranda do programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará
(PPHIST) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
Introdução
A Capitania do Grão- Pará foi grassada por diferentes surtos epidêmicos, os quais
contribuíram para importantes (re) arranjos populacionais, sociais e econômicos durante o
século XVIII. A mortalidade, além de ser um elemento de grande importância sobre o
crescimento demográfico, afeta também as bases sociais e econômicas de uma região.3 Nesse
sentido, pretende-se trabalhar neste artigo os surtos epidêmicos, em especial os de sarampo e
varíola, sobretudo na segunda metade dos setecentos a partir de um esforço em compreender
as relações e influências entre os impactos demográficos desses surtos com as esferas
econômicas e sociais do Grão-Pará.
Este artigo é um desdobramento do projeto de mestrado enviado no início deste ano
ao Programa de Pós- graduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal do
Pará. O objetivo da pesquisa que norteia este trabalho é o estudo das epidemias sarampo e
bexiga (varíola) no Grão- Pará4, sobretudo na segunda metade do século XVIII. Esta pesquisa
dialoga com os conceitos elaborados pela História da População, cujo objeto essencial de
análise é configurado pelos dinamismos demográficos e suas articulações com outros sistemas
(econômicos, sociais, ideológicos, dentre outros)5. Assim, a proposta deste presente estudo é a
investigação das epidemias de sarampo e varíola (1748-1800) inseridas e associadas às
relações sociais, administrativas e econômicas ensejadas no Grão- Pará.
As epidemias que incidiram no Grão- Pará entre os anos de 1748 e 1800 podem ser
caracterizados, em linhas gerais, nos seguintes recortes cronológicos: o “sarampão” que
perdurou entre os anos de 1748 a 1750, “hua terrível epidemia” de bexiga em 1755 e os
demais surtos de varíola, até então investigados, os quais destacam-se dois: 1776-1778 e
1793-1800.
Sobre os surtos epidêmicos na Amazônia colonial é importante que não sejam
pensados isoladamente das esferas sociais, econômicas e políticas que os cercam. Os
3
CANCHO, Miguel Rodriguez. La villa de Cáceres en el siglo XVIII (Demografia y sociedad). Cáceres:
Universidad de Extremadura, 1981, p. 97. MOREDA, Vicente Perez. Las crisis de mortalidad en la España
interior. Siglos XVI-XIX. Madrid: Siglo XXI de España, 1980, p. 24
4
O estudo que se pretende tecer é sobre a capitania do Pará. Levando-se em consideração o desmembramento da
Capitania do Rio Negro em Carta Régia de 03 de março de 1755. SAMPAIO, Patrícia. Administração Colonial e
Legislação Indigenista na Amazônia Portuguesa. In: PRIORE, M. D; GOMES; F (orgs). Os Senhores dos Rios.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.
5
NADALIN, Sergio Odilon. História e demografia: elementos para um diálogo. Campinas: Associação de
Estudos Populacionais- ABEP, 2004.
microorganismos não incidiram num vácuo social e político, e sim num mundo socialmente
ordenado6.
O período delimitado é um momento em que a Coroa Lusa coloca em prática uma
política sistemática de desenvolvimento da região. Obviamente que não se pode desconsiderar
o interim entre a fundação de Belém, 1616, e o ano de 1750, não devendo compreender esse
lapso de tempo como um vazio de políticas metropolitanas. Portanto, este estudo trabalha com
a ideia de política reformista. Pois, a coroação de Dom José (1750) e a instituição de
Sebastião José de Carvalho: o Marquês de Pombal, como Ministro da Secretária de Estado
dos Negócios Estrangeiros e de Guerra, marcaram uma nova fase de administração
metropolitana voltada ao Estado do Grão- Pará e Maranhão.
Nesse cenário de (re) configurações e inter-relações entre fatores externos e internos
na Amazônia Colonial, as epidemias que grassaram no Grão- Pará não podem ser pensadas
separadamente dessas dimensões históricas da região, tendo em vista que as mesmas
influenciaram e foram influenciadas pelas dinâmicas populacionais, dentre as quais os surtos
epidêmicos de sarampo e varíola se insere.
Os espaços que formam a região amazônica, nos quais o Grão-Pará se insere, devem
ser analisados a partir das suas múltiplas realidades naturais e humanas. 7 Patrícia Sampaio
destaca que a experiência colonial portuguesa na Amazônia se deu de forma multifacetada e
dolorosa8. Um dos elementos que formaram esse cenário foi a incidência de surtos
epidêmicos. Compreendido como um dos grandes motivos de depopulação indígena, já que,
em grande medida, esses sujeitos foram submetidos a conviverem com agentes patológicos
alienígenas nas missões e aldeamentos. As epidemias também podem ser pensadas como um
fator de grande importância para (re) configurações de cotidianos e de políticas
administrativas. É sobre essas perspectivas que será abordado o surto de sarampo no Grão-
Pará colonial
6
CUNHA, Manuela Carneiro da. Introdução a uma História indígena. IN: CUNHA, Manuela Carneiro da.
História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, pp. 9 a 17.
7
GUZMÁN, Décio. A colonização nas Amazônias: guerras, comércio e escravidão nos séculos XVII e XVIII.
Revista Estudos Amazônicos, vol. III, nº 2, p. 103-139, 2008.
8
SAMPAIO, Patrícia. Administração Colonial e Legislação Indigenista na Amazônia Portuguesa. In: PRIORE,
M. D; GOMES; F (orgs). Os Senhores dos Rios. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003, p. 123-137.
As especificidades da Amazônia em relação aos variados surtos epidemiológicos em
diferentes cronologias são de suma importância para o entendimento das transformações em
relação à força de trabalho; aos índices de mortalidade; para os impactos demográficos e
análise das múltiplas ações das autoridades, moradores e dos índios diante das doenças e seus
rastros. (CAMBOULEYRON, BARBOSA, BOMBARDI & SOUZA, 2011).
As incidências de epidemias, inegavelmente, geram inflexões no quadro demográfico
de uma determinada sociedade. Contudo, a proporção e o alcance dessas inflexões, nem
sempre, são homogêneos. A “rigorosa epidemia9” de sarampo, sobre a qual se tem indícios
que ocorreu em 1748, ocasionou grande impacto demográfico e foi palco para especulações.
João Daniel, jesuíta e cronista que trilhou uma importante vivência na região
amazônica entre os anos de 1741 a 1757, quando então foi preso a mando do Marquês de
Pombal, nos deixou sua valiosa impressão acerca de “um tal sarampão” que “os mortos se
computaram para cima de 30 mil (...)”. Ainda segundo o jesuíta, “sarampão e bexigas, é tão
nociva aos índios naturais, que algumas vezes quase lhes despovoa as aldeias” 10.
O relato de João Daniel nos remete a dois significativos aspectos evocados a respeito
da epidemia de sarampo no Grão- Pará setecentista. O primeiro deles é voltado ao elevado
número de mortos que a epidemia teria vitimado e, consequentemente, ocasionado um
representativo abalo populacional. O segundo faz referência que esse impacto populacional
se abateu, sobretudo, na população indígena. Esses elementos que dão forma a uma memória
catastrófica voltada ao sarampo não foi evocado apenas pelo jesuíta. A administração colonial
também apresentou os impactos acarretados pela epidemia.
Em carta para ao rei D. João V, o Governador e capitão- general do Estado do
Maranhão e Pará, Francisco Pedro de Mendonça Gorjão noticiava ao rei que em meados de
1748, quando o mesmo se encontrava em São Luís recebera notícias do Pará que um “novo
mal contagioso” fora trazido por moradores que retornavam da coleta das Drogas do Sertão e
que “depois de comunicarem às Aldeias domésticas” situadas ao longo do rio Amazonas11
alastrou-se por toda a “cidade e suas capitanias”. Na viagem de retorno, ainda a caminho de
Belém, foi informado sobre:
9
CARTA dos oficiais da Câmara da cidade de Belém do Pará, para o rei D. João, em 30 de maio de 1749.
AHU_ACL_CU_013, Cx. 31, D.2917.
10
DANIEL, João. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas. Vol. I. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004, p
80.
11
SOUSA, Claudia. O “Lastimoso contágio, e fatal estrago” das epidemias no estado do Maranhão e Grão-
Pará na primeira metade do século XVIII. Monografia. Belém: Universidade Federal do Pará, 2011, p. 42.
mortandade de Índios e Mestiços o que chamão Mamelucos, e cafuzes, sem excesão
de idade ou sexo.12”
12
Todos os trechos transcritos dos documentos foram atualizados em sua grafia para a melhor compreensão do
leitor.
Podemos vislumbrar que a fala do Gorjão é entreposta por uma descrença quanto
algumas notícias e listas que já circulavam a respeito do impacto demográfico acarretado pelo
sarampo. No entanto, não é uma desconfiança a respeito do impacto em si que o sarampo
deixara na sociedade do Grão- Pará, mas sim em não crer que pudesse haver tantas pessoas
habitando os sertões e demais localidades da região. Ao longo desta apresentação vamos ver
que o nosso governador deixou a descrença de lado e reafirmou com veemência os
“irremediáveis efeitos” do “formidável contágio que afligiu aos moradores da capitania”13
(grifo meu).
E o impacto populacional desse “formidável contágio” foi sentido, sobretudo, na
população indígena, como já apontado. De acordo com o historiador Ronald Raminelli
(1988) dentre os fatores que contribuíram, sobremaneira, à depopulação na Amazônia
Colonial encontram-se as epidemias. As epidemias de sarampo e de varíola foram noticiadas
com catastróficas para a economia da região, economia esta que sempre se encontrava
debilitada pela carência de mão-de- obra, devida a grande mortandade de braços indígenas.
E a grande mortalidade de braços indígenas podia indicar uma baixa nas produções de
produtos, tanta para a exportação como para o abastecimento da capitania do Pará. Pois
faltando os braços indígenas com que possam extrair as Drogas do Sertão e nem quem possa
“colher os frutos das suas próprias fazendas” os habitantes da Capitania do Pará poderão se
encontrar em “última miséria”14.
Esses argumentos que reportam a um abalo na esfera da economia do Estado tem um
apelo significativo, quando compreendemos a base econômica em que se assentava o Grão-
Pará. Maria Angelo- Menezes afirma que durante os primeiros séculos da colonização da
Amazônia, as instituições coloniais e as forças da economia mercantil formularam um novo
sistema agrário15. Esse sistema compreende os ideais mercantilistas e os objetivos do mercado
colonial. No Estado do Grão- Pará e Maranhão foi fomentado a produção do espaço apoiado
13
CARTA do governador e capitão-general do Estado do Maranhão e Pará, Francisco Pedro de Mendonça
Gorjão, para o rei D. João V, em 13 de agosto de 1750. AHU_ACL_CU_013,Cx.31, D. 2982.
14
Carta do governador e capitão general do Estado do Maranhão e Pará, Francisco Pedro de Mendonça Gorjão,
para o rei D. João V, em 26 de abril de 1749. AHU_ACL_CU_013,CX.31, D.2910.
15
Segundo Menezes: “o termo sistema agrário é empregado para caracterizar, dentro deu espaço determinado, a
associação das produções e das técnicas praticadas por uma sociedade em via de satisfazer suas necessidades.
Ele exprime, particularmente, a interação entre um sistema biológico representado pelo meio natural, e um
sistema sociocultural, por meio das práticas saídas do conhecimento técnico”. MENEZES, Maria de Nazaré
Angelo. O Sistema Agrário do vale do Tocantins Colonial: Agricultura para o consumo e para exportação.
Projeto História, São Paulo, 1999, p. 239.
no mercantilismo das drogas do sertão. As drogas do sertão consistiam nos gêneros como
cacau, canela, salsaparrilha, cravo, anil, baunilha, copaíba, breu, andiroba e casca preciosa16.
Os relatos aqui apresentados, configurados nas “vozes” do jesuíta João Daniel e,
principalmente do Governador e capitão- general do Estado do Maranhão e Pará, Francisco
Pedro de Mendonça Gorjão nos apresentam um quadro “nefasto” em que se encontrava o
Grão-Pará. Esses testemunhos nos dão indícios que a epidemia de sarampo (1748-1750) foi
sentida de forma traumática na sociedade do Grão-Pará, com destaque para a grande
mortandade de índios e o estado de miséria em que se encontrava o Estado em tempos de
epidemia.
No entanto, a problematização e a desconfiança são ferramentas que acompanham o
ofício do historiador. Nesse sentido, nos cabe a seguinte indagação: de que forma se deu esse
impacto demográfico? O que nos dizem as estimativas feitas a esse efeito? Ele foi sentido de
maneira homogênea? Com o objetivo de dar respostas a essas perguntas, a seguir será
analisado de forma mais contundente alguns dados quantitativos acerca da epidemia de
sarampo, revisitando-os e problematizando-os para que possamos descortinar esse universo de
medo e clamor que pairava sobre os cotidianos daqueles que tiveram suas vivências alteradas
pelo curso do sarampo.
Em carta ao rei, em agosto de 1750, o governador Gorjão informa que morreram nas
Aldeias e nas fazendas dos religiosos na cidade de Belém 10.777 pessoas. Juntamente com
mais 7.600 índios do serviço dos moradores da mesma cidade somam o valor de 18.377
indivíduos mortos pela epidemia apenas em Belém. Mas o governador tece uma estimativa
mais alarmante ainda, afirma que se acrescerem a esses dados os que faleceram nas inúmeras
fazendas da Capitania (que não entraram na contagem), as vilas de Vigia, Caeté e Cametá
“hão delegar a quarenta mil”.
Gorjão não apresenta listas de contagem de mortos e muito menos o total de pessoas
existentes nas localidades anteriormente ao surto. Há de ser lembrando também que esse
16
É importante destacar que enquanto o cravo e a salsa destinavam-se, sobretudo, ao comércio internacional,
uma parte das atividades de coleta estava voltada para o mercado interno. O breu é utilizado para calafetar
canoas; parte da produção de andiroba e copaíba era transformada em óleos consumidos internamente, tanto para
os cuidados do corpo quanto para iluminação. Nesse sentido ver: COELHO, Mauro Cezar. Do Sertão para o
Mar. Um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a partir da Colônia: o caso do Diretório dos
Índios (1751-1798). Tese de Doutorado em História . São Paulo: Universidade de São Paulo, 2005. p. 239-240.
momento ainda não se tinha realizado os Mapas de População, que só serão levados a cabo a
partir da década de 1770 no Grão-Pará. Esse período em que se debruça este trabalho é
denominado de “fase pré - estatística”, como bem elucidou Maria Luiza Marcílio. A
preocupação de conhecer numericamente a população da colônia brasileira coincidiu, em
Portugal, com as orientações e os objetivos da política mercantilista, especialmente a partir da
época de Pombal17.
Os fatores acima elencados tornam mais desafiante o esforço de trilhar uma análise
quanto ao impacto populacional de surtos epidêmicos. No entanto, me valho aqui de uma
importantíssima lição proferida por Ginzburg: “sé a realidade é opaca, existem zonas
privilegiadas- sinais, indícios- que permitem decifrá-la”18. Nesse sentido, é preciso seguir os
indícios, “farejar as pistas”, interconectar sinais que as fontes nos dão, para assim, apreender
as múltiplas possibilidades de análise nos rastros dos surtos epidêmicos.
Seguindo os rastros que a documentação nos deixava, foi cotejada uma Consulta do
Conselho Ultramarino ao rei D. João V, a respeito da situação “deplorável das capitanias
daquele Estado” em decorrência do sarampo19. Nesta correspondência havia em anexo duas
listas com o número de mortos por fogo referentes a duas freguesias de Belém, Rosário da
Campina e Sé. Voltada a Sé foi arrolado o total de 3.348 mortos e para Rosário da Campina
estimou-se em 3073 falecidos pelo sarampo. Apesar de serem arrolados muitos moradores
mortos pelo sarampo, o maior impacto foi sentido pelos índios. Assim a freguesia da
Campina, no fogo encabeçado por José Alves Rosa morreram 79 índios, entre machos, fêmeas
e pequenos, no fogo de Antônio Mendes além do próprio, faleceu mais 58 índios em seu
domicílio; Manoel Francisco assistiu ao falecimento de seu irmão e mais 19 escravos; na
freguesia da Sé Caetano Eleuterio- padre- assistiu a morte de 48 índios em sua residência;
Damazo de Barros além de vítima fatal, morreram mais 12 escravos de sua pertença;
Sebastião Roiz Barbosa presenciou o falecimento de 110 índios em seu fogo.
Mas, ainda restava saber o “deplorável estado em que achava reduzido” não só a
cidade, mas as aldeias e fazendas da Capitania do Pará. Um missiva enviada pelos oficiais da
Câmara da cidade de Belém, em setembro de 1750, ao rei D. José I nos é bastante
esclarecedora quanto a mortalidade sentida nos diferentes espaços do Grão Pará.
17
MARCÍLIO, Maria Luiza. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista: 1700-1836. São Paulo:
Hucitec, 200, p 31-33.
18
GINZBURG, Carlo. Sinais: Raízes de um paradigma indiciário. IN: Mitos, Emblemas e Sinais: morfologia e
história; tradução: Frederico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 177.
19
CONSULTA do Conselho Ultramarino para o rei D. João V, sobre a carta do governador e capitão-general do
Estado do Maranhão e Pará em 16 de maio de 1750. AHU_ACL_CU_013,Cx.31, D.2976
O motivo da correspondência era informar ao recente rei do “lamentável estado” em
que se encontrava tanto a cidade de Belém quanto as suas regiões circundantes devido a uma
“rigorosa epidemia” que a todos tem atingindo e “reduzido a miséria e penúria”.20
Os oficiais informavam ainda que o maior “estrago” havia sido na escravatura
(índios), dos quais os moradores se achavam tão carentes que as suas “lavouras e culturas”
encontravam-se “sem benefício algum”. Para apaziguar os danos ocasionados pela epidemia,
descritos na carta, os oficiais pediam que a Real Fazenda pudesse disponibilizar algumas
Tropas de resgates bem como a entrada de alguns navios de escravos africanos para se
“repartirem com os moradores”.
O discurso voltado à questão da falta de mão-de-obra e a importância dos braços
africanos foram acrescentados aos vários anos em que a região sofreu com relevantes perdas
de índios pelas epidemias, tanto de bexigas quanto a de sarampo aqui apresentada21.
E para ilustrar que a capitania necessitava de ajuda e que muitas vidas haviam sido
ceifadas pelo sarampo, os oficiais mandaram anexada a carta uma série de listas com
contagens de mortos em diferentes localidades no Grão-Pará.
A somatória das listas nos dá o seguinte valor: 13.111 pessoas falecidas pelo sarampo.
No entanto, com o andamento da pesquisa percebemos que essas listas não arrolavam o
número de mortos da Freguesia da Sé, a mais populosa da capitania do Pará. Desta forma,
estabelecemos por estimativa o valor de 16.467 mortos pelo sarampo.
Gorjão havia estabelecido por estimativa o valor de 40.000 mil mortos pelo surto de
sarampo. A contagem das listas veiculadas pelos oficias da Câmara de Belém nos informa um
valor bem abaixo daquele estipulado pelo governador. Uma das possibilidades para essa
discrepância entre os dados seria a hipertrofia dos dados pelo governador com o intuito de se
valer como uma medida de justificar os pedidos de recursos ante a Metrópole, como a
autorização para fazer descimentos de índios22 e inserção de braços africanos, por conta da
Fazenda Real23, como já citado neste trabalho.
20
Carta (2ª via) dos oficiais da Câmara da cidade de Belém do Pará, para o rei D. José I, em 15 de setembro de
1750. AHU_ACL_CU_013,Cx.32, D.3001
21
BARBOSA, Benedito Costa. Em outras margens do Atlântico: tráfico negreiro para o Estado do
Maranhão e Grão-Pará (1707-1750). Dissertação (Mestrado) Belém: Universidade Federal do Pará, 2009, p.
59.
22
Carta (2ª via) dos oficiais da Câmara da cidade de Belém do Pará, para o rei D. José I, em 15 de setembro de
1750. AHU_ACL_CU_013,Cx.32, D.3001.
23
CARTA do governador e capitão – general do Estado do Maranhão e Pará, Francisco Pedro de Mendonça
Gorjão, par o rei D. João V, em 13 de agosto de 1750. AHU_ACL_CU_013, CX. 31, D. 2982; Carta (2ª via) dos
oficiais da Câmara da cidade de Belém do Pará, para o rei D. José I, em 15 de setembro de 1750.
AHU_ACL_CU_013,Cx.32, D.3001
Entendemos o sujeito histórico tal qual Barth (1981), enquanto agente capaz de
realizar escolhas e tomar decisões; deste modo, trabalhamos com a possibilidade de que esses
sujeitos históricos do Grão- Pará setecentista poderiam valer-se das epidemias como uma
forma de estratégia para legitimar seus pedidos. Nesse sentido, aderimos ao menor valor com
estimativa mais plausível, logo, o de 16.467 mortos.
Ainda a respeito das listas veiculadas pelos oficias da Câmara, as mesmas foram
feitas por diferentes religiosos, abrangendo 71 localidades do Grão-Pará, entre aldeias,
missões, conventos e fazendas. Para além do total de mortos por povoação, missão ou aldeia,
algumas delas nos apresentam informações sobre o total da população anterior a epidemia, o
número de desertados, o número de homens, mulheres, rapazes, raparigas, inocentes, velhos.
Uma parcela significativa dessas listas apenas nos apresenta o número de mortos,
como podemos perceber alguns exemplos na tabela abaixo:
Tabela 01
Estimativas de mortos pela epidemia de Sarampo por localidade
Local Nº de mortos Informante Data do registro
Missão de Santa Tereza de Frei José Lopes da Cunha
Teffé 147 31 de agosto de 1749
Convento de Nossa Senhora
das Mercês do Grão- Pará 253 Frei Antonio 24 de agosto de 1750
Fonte: Carta (2ª via) dos oficiais da Câmara da cidade de Belém do Pará, para o rei D. José I, em 15 de setembro
de 1750. AHU_ACL_CU_013,Cx.32, D.3001
24
CROSBY, Alfred. Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa, 900-1900. Trad. José Augusto
Ribeiro, Carlos Afonso Malferrari, São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
25
ALENCASTRO, Luiz Felipe. O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo:
Companhia das Letras, p. 127-129, 2000.
26
ALDEN, Dauril e MILLER, Joseph. Out of Africa: The Slave Trade and the Transmission of Smallpox to
Brazil, 1560-1831. Journal of Interdisciplinary History, v. 18, n. 2, p. 195-224, 1987
da doença, de forma maciça, era preciso reintroduções de fontes externas, no caso aqui
apresentado, inicialmente os portugueses e, posteriormente, os africanos.
Situação de fome, secas e epidemias de varíola na África e a chegada de contingentes
de braços africanos para o Brasil correspondem, em grande medida, a periodização de surtos
de varíola nas colônias portuguesas durante o século XVII até os anos iniciais do XIX. Além
do contexto africano, há outro fator de suma importância para entendermos o alastrar da
varíola no Brasil, são os processos de mobilidade e comercialização desses indivíduos
infectados já em portos locais. (ALDEN & MILLER, 1987, p. 196).
A incidência de diferentes surtos de varíola foi um dos desdobramentos dos contatos
ensejados no processo de colonização na América portuguesa. Com a colonização, veio
também uma gama de agentes patológicos desconhecidos. E nesse processo, a atividade
voltada ao tráfico negreiro teve relevante importância na transmissão de doenças nos
territórios coloniais, dentre os quais a Amazônia colonial também foi palco.
27
CHAMBOULEYRON, Rafael; BARBOSA, Benedito; BOMBARDI, Fernanda & SOUZA, Claudia Rocha.
“Formidável contágio”: epidemias, trabalho e recrutamento na Amazônia colonial (1660-1750). História,
Ciência, Saúde- Manguinhos, Rio de Janeiro, v.18, n. 4, p. 988, 2011.
28
BEZERRA NETO, José Maia. Escravidão Negra no Grão- Pará: Secs. XVII- XIX. Belém: Paka Tatu, p. 26,
2001.
mesmo com a extinção da Companhia houve uma considerável entrada de cativos nos portos
do Grão-Pará. Ainda segundo o historiador, se nos determos nos números de escravos
importados em relação ao período de entrada nos portos perceberemos que houve uma maior
densidade de atividade do tráfico negreiro nos quatorze anos decorridos ao fim da
Companhia29. A circulação de africanos nos portos do Grão- Pará se deu de maneira
significativa na segunda metade dos setecentos, e os quais também foram assolados por
diferentes surtos de bexigas.
Em 1755, 1776 e 1793 ocorreram diferentes surtos de varíola no Grão-Pará.
Importante ressaltar que, diferentemente do surto de sarampo (1748-1750), não será analisado
aqui o impacto demográfico das bexigas, a partir de indicadores demográficos. Por um motivo
bem simples: Até o atual momento da pesquisa, não encontramos fontes que nos permitam
trabalhar com indicadores demográficos voltados a esses surtos, por exemplo, listas
nominativas30. No entanto, a documentação cotejada nos deixa indícios que nos permitem
inferir alguns aspectos importantes sobre a mortalidade ocasionada pela varíola, sua
espacialidade e interferência na conjuntura administrativa e no cotidiano da sociedade
colonial do Grão-Pará.
Em 1755, ainda sobre o rescaldo do Sarampo que há poucos anos havia cessado, o
governador interino do Pará, o bispo Miguel de Bulhões e Sousa informava sobre os “efeitos
negativos de uma epidemia” na cidade de Belém do Pará.31A notícia se pautava na
justificativa que Miguel de Bulhões dava ao Secretário de Estado da marinha e Ultramar
referente ao atraso de uma frota que partiria desta cidade para o reino. E o atraso advinha de
um inesperado contágio em que se “principiava (...) nesta terra” e acometeu as pessoas que
estavam prontas a partir para o reino.
Miguel de Bulhões vai além da justificativa e informa que a epidemia que se
principiava no começo do ano ainda se fazia sentir na cidade, tendo em vista que o mesmo
escrevera em setembro. Bulhões resumo o contágio aos sujeitos da “Equipação das Naus de
Guerra e alguns soldados desta praça”. Contaminados pela epidemia, sofriam com “uma
dissolução de sangue tão rápida, que no tempo peremptório de três dias tira a vida,
acometendo logo no seu primeiro impulso a cabeça, de sorte, que apenas permite lugar para se
receberem os sacramentos”.
29
Idem, p 31.
30
Este trabalho, como já mencionado, é fruto da pesquisa que está sendo desenvolvida no mestrado. Com o
prosseguimento da mesma, os dados aqui elencando podem sofrer alterações.
31
Ofício do governador interino do Estado do Maranhão e Pará, Bispo do Pará, D. Fr. Miguel de Bulhões e
Sousa para o secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Diogo de Mendonça Corte Real, em 3 de setembro de
1755. AHU_ACL_CU_013, Cx.39 , D. 3644.
Bulhões não faz menção ao alastrar da epidemia junto aos indígenas. Um elemento
que o diferencia do, então recente, surto de sarampo. O alcance geográfico da epidemia
também é outro fator de diferenciação. O Frei indica que apenas a cidade padecia do surto até
o momento. Mas, como o medo é um elemento que acompanha processos traumáticos na
história e parece ter pairado sobre aqueles que assistiram a “huma conjuctura tão funesta”
deixada pelo sarampo, Bulhões teme e pede a Deus que coloque “termo a tão formidável
castigo, e que se lhe não comunique as mais partes desta Capitania”.
O contágio entre os soldados parece não ter cessado com o surto de 1755 e muitos
menos ter se restringindo a cidade de Belém. O governador do Grão- Pará e Rio Negro32, João
Pereira Caldas em 1776 afirmava a respeito de dois Regimentos- Infantaria de Macapá e da
Cidade do Pará- de Tropas Pagas da Guarnição do Estado do Pará:
“(...)contudo ao presente se acham diminuídos de algumas praças
pertencentes ao Estado completo, pelos muitos soldados, que tem morrido
da lamentável Epidemia de perniciosíssimas Bexigas, que se tem aqui
procedido, e está ainda padecendo com grande força.” 33
32
Levando-se em consideração o desmembramento da Capitania do Rio Negro em Carta Régia de 03 de março
de 1755. SAMPAIO, Patrícia. Administração Colonial e Legislação Indigenista na Amazônia Portuguesa. In:
PRIORE, M. D; GOMES; F (orgs). Os Senhores dos Rios. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.
33
Ofício do governador e capitão general do Estado do Grão-Pará e Rio Negro, João Pereira Caldas, para o
secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, em 4 de novembro de 1776.
AHU_ACL_CU_013, Cx.76, D. 6350.
34
ALEXANDRINO, Wania. A “gente de guerra” na Amazônia colonial. Composição e mobilização de
tropas pagas na capitania do Grão-Pará (primeira metade do século XVIII). Dissertação. Belém:
Universidade Federal do Pará, p.20, 2013.
“(...)Para resolver os seus problemas com a Espanha e a França, Portugal
firmou alguns tratados ao longo do século XVIII. Os principais tratados
foram os de Utrecth (1713), de Madri (1750), El Prado (1761) e Santo
Ildefonso (1777). O último ratificou como limite entre Portugal e Espanha o
rio Solimões com o rio Napo, a oeste, e o rio Yapouque, ao norte, com a
Guiana Francesa.”35
35
NOGUEIRA, Shirley Maria Silva. “O recrutamento militar no Grão-Pará”. In: Paulo Possamai (org.).
Conquistar e defender: Portugal, Países baixos e Brasil. Estudos de história militar na Idade Moderna.
São Leopoldo: Oikos, 2012, p. 285.
36
Ofício do bispo do Pará, D. fr. João Evangelista Pereira da Silva, para o secretário de Estado dos Negócios do
Reino, visconde de Vila Nova de Cerveira, D. Tomás Xavier de Lima Vasconcelos Brito Nogueira Teles da
Silva, em 15 de setembro de 1777.
para os comerem, entrariam os gados a pastar em cima, e outras indecências
indignas da piedade Cristã, que deve usar com os que morrem no grêmio da
Igreja Católica.”
37
SCOTT, Ana Silvia; FREITAS, Denize; SILVA, Jonathan; CARDOZO, José Carlos; VALADAS, Marcelo.
Reflexão sobre mortalidade em Porto Alegre (1773-1797). XVIII Simpósio de História da Imigração e
Colonização. Anais. UNISINOS:RS, 2008, p. 460.
38
VIANNA, Arthur. As Epidemias no Pará. 2ed. Belém: UFPA, 1975, p. 44.
39
Oficio de Luís Tomás Navarro de Campos para o secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de
Melo e Castro, em 24 de março de 1795. AHU_ACL_CU_013, Cx.105, D. 8298.
40
Seção de Manuscritos cit: Bandos, editais e Proclamações, 1772 a 1820, pág. 42v. 26 de Junho de 1794.
o fazer a sua custa, o poderá fazer nas situações e acomodações que a Câmara
determinar (...)”
Francisco Coutinho ainda recomendava aos chefes de família que mantivesse todo o
cuidado com o asseio e limpeza das suas casas, utilizando perfumes purificadores do ar, como
também o fumo de alcatrão que deveria ser queimado e vaporizado pelas ruas 41. Arthur
Vianna atenta que “apesar da boa vontade do governador”, essas medidas não repercutiram de
forma positiva e nem produziram os resultados esperados. O autor assinala ainda que era
preciso expurgar os locais contaminados; a remoção do doente sem esse expurgo nos
hospitais e casas em nada adiantava42.
Segundo Marley da Silva, outros tentativas já tinha sido implementadas com o intuito
de apaziguar os danos da epidemia que afligiam aos moradores. Já haviam experimentado a
inoculação do vírus e também a construção de um lazareto, para a fiscalização dos navios que
chegavam. No entanto, as duas medidas falharam. A autora percebeu que no ano de 1796 não
há indícios de trabalhadores escravizados chegados aos portos de Belém, justamente no
momento em que a exportação crescia do estado. Desta forma, a epidemia de bexigas nos
surge enquanto possibilidade de entender essa ausência de fornecimento de trabalhadores
africanos neste ano, tendo em vista, que as demais ações tomadas não surtiram o efeito
esperado43.
A ineficácia das medidas apontadas pelo governador foi sentida em 1796, quando no
verão houve um acréscimo no número de casos. A esperança do governador era que no
decorrer do ano de 1797 a mesma pudesse chegar ao fim com a chegada da “Estação das
águas”44, ou seja, com o período de chuvas, marcadamente nos meses de janeiro, fevereiro e
março.
Apesar da diminuição do surto em tempos de chuvas, a mesma não cessou e continuou
até os princípios de 180045. Assim, temos a possibilidade de analisar a questão da
sazonalidade do surto. A varíola que se deu na ultima década do século XVIII incidia de
forma mais intensa no verão e nos três primeiros meses do ano se abrandava com a chegada
das chuvas.
41
VIANNA, Arthur. As Epidemias no Pará , p.39
42
Idem, p. 41
43
SILVA, Marley. Estimativas do tráfico de escravos no Grão- Pará (1674-1815). In: PACHECO, A. S; SILVA,
J. S. (Orgs.). Textos e Fontes do Arquivo Público do Pará. Belém: Secult, 2013, p. 47-48.
44
Ofício do governador e capitão general do Estado do Pará e Rio Negro, D. Francisco Mauricio de Sousa
Coutinho, para o secretário de estado dos Negócios Estrangeiros e Guerra, em 12 de fevereiro de 1797.
AHU_ACL_CU_013, Cx.108, D. 8538.
45
VIANNA, Arthur. As Epidemias no Pará, p 44
As epidemias variólicas ocorreram no Grão-Pará em um momento marcada por
políticas reformistas pombalinas. Dentre elas, a redefinição da estrutura político-
administrativa; a questão da liberdade e civilidade dos índios; o fomento a ocupação e
povoamento, às atividades econômicas; a questão da defesa e ocupação do território, ligada a
demarcação e consolidação dos limites do território estabelecidos pelo Tratado de Madri; a
criação da Companhia Geral de Comércio do Grão- Pará e Maranhão. Todos esses fatores
foram primordiais para reordenamentos de cunho populacional, econômico e administrativo
na capitania.
A dinâmica da mortalidade, ocasionada pelas bexigas nesse momento, nos faz refletir
a partir de uma dupla ótica Se por um lado esses surtos influenciaram esse contexto, na
medida em que ensejaram modificações no bojo da sociedade colonial do Grão-Pará, por
outro, a incidência dos mesmos foi também reflexo de uma política que se instala, com
incremento à economia e a inserção de novos contingentes populacionais, contribuindo para
novos “encontros patológicos”.
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