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O CABO DO MEDO

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NUNO ROGEIRO

O CABO DO MEDO
O DA E S H E M M O Ç A M B I QU E
(JUNHO 2019-2020)

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Título: O Cabo do Medo – O DAES H em Moçambique (Junho 2019­‑ 2020)
Copyright: ©2020, Nuno Rogeiro e Publicações Dom Quixote

Edição: Duarte Bárbara


Revisão: Isabel Garcia

Capa: Carlos Miranda


Fotografias: Direitos reservados
Paginação: Manuela Pinto / LeYa

Impressão e acabamento: Multitipo


1. a edição: Maio de 2020
Depósito legal n. o 469 655/20

ISBN: 978­‑972­‑20-7033-1

Publicações Dom Quixote


[Uma editora do Grupo LeYa]
Rua Cidade de Córdova, n. o 2
2610­‑038 Alfragide – Portugal
www.leya.com

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor.


Este livro segue a grafia anterior ao Novo Acordo Ortográfico de 1990.

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Aos irmãos moçambicanos
Às vítimas inocentes da carnificina em curso
Às centenas de portugueses que trabalham em Cabo Delgado

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Índice

SIGLAS 11
NOTA PRÉVIA 13
ÂMBITO DA INVESTIGAÇÃO 21
INTRODUÇÃO A UM LUGAR DIFÍCIL 25
1. PARTE: DEFINIÇÃO DA AMEAÇA
a
35
No Princípio: O «Islão Social», «Revolucionário» e «Libertador» 37
O Lugar do Crime: Bandidos, Pistas, Detidos 43
Objectivos do Bando 51
Os Custos da Campanha Negra 53
Cronologia e Detalhes dos Principais Ataques 57
Conclusões 71
Tácticas e Armas dos Grupos Atacantes 73
Quem São? Identificar as Sombras 81
Bases, Poisos, Esconderijos: Um «Califado» Instável e Fungível 89
Outros Problemas num Cenário Complexo 95
Resposta Oficial e Contraterror 103
Excurso: A Verdade sobre a Presença Russa 121
2.a PARTE: DO SHABAAB AO DAESH 127
O Ângulo da Jihad: Essencial, de Oportunidade ou Acessório? 129
A Jihad do Daesh: O Verdadeiro Inimigo 143
O Abc do ADF: A Origem 144
O Estranho Caso do MTM: Polémicas em Curso 153
Os Resultados da «Metamorfose» 160
CONCLUSÃO NECESSARIAMENTE PROVISÓRIA 167
NOTA FINAL 179
DEPOIS DO FIM: MOCÍMBOA DA PRAIA 181
EPÍLOGO: O TÚNEL AO FUNDO DA LUZ 187
Anexos 207
Índice Onomástico 227

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SIGLAS

AAWI = WILAYAT
ADF – Allied Democratic Forces (Uganda e República Democrática do Congo)
ANR – Agência Nacional de Informações, serviço secreto da RDC
AK-47 – Espingarda automática ou «de assalto», vulgarmente conhecida como
Kalashnikov
AKM – Versão posterior da AK-47 introduzida para serviço do Exército Ver-
melho no final da década de 1950
Al Shabaab – Harakat al-Shabaab al-Mujahideen, ou «Movimento dos Jovens
Mujahedin» (Somália)
ALFA – Unidade antiterrorista e contraterrorista do FSB (Rússia)
AQ – Al-Qaeda, «A Base», organização fundada por Osama bin Laden
ASSMT – Analytical Support and Sanctions Monitoring Team, da ONU
CMI – Chefia de Informações Militares (Uganda)
CTC – Comité Contraterrorista do Conselho de Segurança da ONU
CTED – Directorado Executivo do CTC
DAESH – «Discórdia», transcrição fonética de acrónimo do chamado ISIS/
ISIL, considerado derrogatório por este
DEDI – Dito Estado Dito Islâmico
EIPAC – Estado Islâmico Província da África Central
EIPACKM – Estado Islâmico Província da África Central – Kativa (batalhão)
de Moçambique
ESO – Organização de Segurança Externa (Uganda)
FADM – Forças Armadas e de Defesa de Moçambique
FARDC – Forças Armadas da República Democrática do Congo

11

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FDS – Forças de Defesa e Segurança (Moçambique)
FRELIMO – Frente de Libertação de Moçambique (partido político)
FSB – Serviço Federal de Segurança, serviço de contraespionagem e informa-
ções de segurança interna (Rússia)
GOE – Grupo de Operações Especiais, Polícia de Moçambique
HTS – Hayat Tahrir al Sham, «Organização para a Libertação do Levante»
HVA – Serviço secreto externo do distrito de Pankow
ISCAP – Acrónimo inglês do EIPAC
ISIL – Acrónimo de «Estado Islâmico do Iraque e do Levante»
ISIS – Acrónimo de «Estado Islâmico do Iraque e da Síria»
MdP – Mocímboa da Praia, vila sede de distrito em Cabo Delgado
MTM – Madina at Tawheed Wau Mujahedeen («Cidade do Monoteísmo e dos
Combatentes da Jihad»), organização do Uganda e República Democrática
do Congo, novo nome do ADF
MVD – Ministério do Interior (Rússia)
MONUSCO – Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo
NOI – Novas Operações Industriais
OCT – Gabinete Contraterrorista da ONU
PSC – Companhias de Segurança Privadas
RENAMO – Resistência Nacional de Moçambique (partido político)
RJM – Junta Militar da Renamo
RPG 7, 22, etc. – Lança-granadas-foguete, de fabrico original soviético
SADC – Southern Africa Development Community (Comunidade de Desen-
volvimento da África Austral)
SHABAAB DE MOÇAMBIQUE – Ahlu Sunnah Wa-Jama, «Ansar al Sunna»,
ou ASWJ
SISE – Serviço de Informações e Segurança do Estado (Moçambique)
SMR – Serviço de Informações Militares (RDC)
SNASP – Serviço Nacional de Segurança Popular (Moçambique)
TISS – Serviço de informações e segurança da Tanzânia
TPI – Tribunal Penal Internacional
UFIR – Unidade da Força de Intervenção Rápida (Moçambique)
UIR – Unidade de Intervenção Rápida (polícia de Moçambique)
UNHCR – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR)
VBTP – Veículo blindado de transporte de pessoal
WILAYAT – Província (em árabe)

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N O TA P R É V I A

O Grupo de Peritos da ONU (ASSMT1) sobre o novíssimo


terrorismo, coordenado pelo diplomata britânico Edmund
Fitton­‑Brown, preparou um relatório actualizado, sobretudo
focado na continuada ameaça do Dito Estado Dito Islâmico
e da Al­‑Qaeda, e perspectivas durante 2020.
O estudo, com contribuições de serviços de informações
de todo o mundo, originou a carta formal do indonésio Dian
Triansyah Djani, entregue ao presidente do Conselho de
Segurança da ONU, no dia 20 de Janeiro deste ano.
Havia uma cópia para o secretário­‑geral da Organização,
António Guterres.
Nela se detalha a actividade da chamada «Província da
África Central» do Daesh, formada em 2019. Aí se incluía,
infelizmente, Cabo Delgado, a província nordeste de Moçam-
bique.
Por outras palavras, depois de meses de acumulação
de indícios e provas, negados ou minimizados por alguns,

1
O acrónimo inglês designa o «Analytical Support and Sanctions Monitoring Team»
da ONU.

13

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O Cabo do Medo

receados por muitos e escondidos por outros, era a ONU


que reconhecia o que, em círculos especializados de inves-
tigadores, se vinha a verificar e a estudar profundamente:
o Estado moçambicano, membro da CPLP, da SADC, da
União Africana e das Nações Unidas, tinha em mãos uma
campanha terrorista organizada pelo grupo mais perigoso e
letal de todo mundo, pelo menos desde o desmantelamento
da Al­‑Qaeda inicial.
As conclusões dos investigadores da ONU eram cruciais,
não só em razão da legitimidade específica da organização2,
mas por causa das credenciais específicas.
O referido grupo de peritos é o braço analítico/operacio-
nal das entidades que, na ONU, tratam dos assuntos integra-
dos no combate ao terror.
São elas o Gabinete Contraterrorista da ONU (OCT), diri-
gido pelo russo Vladimir Voronkov (subsecretário­‑geral para
a matéria, desde 2017), o Comité Contraterrorista do Conse-
lho de Segurança (CTC, dirigido pelo tunisino Moncef Baati),
criado em 2001, na sequência do 11 de Setembro (quando a
ONU despertou para o problema como uma ameaça global,
para além das fronteiras ideológicas), e o seu Directorado
Executivo (CTED), dirigido por Michèle Coninsx, secretária­
‑geral adjunta das Nações Unidas e antiga procuradora­‑geral
belga.
De repente, a situação de instabilidade civil em Cabo Del-
gado ganhou contornos de presença na luta global contra o
terror, e sobretudo no contexto da progressiva desestabiliza-

2
O Comité contraterrorista do Conselho de Segurança da ONU é constituído por
15 estados: Bolívia, Cazaquistão, China, Costa do Marfim, Guiné Equatorial, Etiópia,
França, Kuwait, Países Baixos, Peru, Polónia, Federação Russa, Suécia, Reino Unido e
EUA, representando, portanto, a mistura ecléctica de membros permanentes e temporá-
rios, e não uma «mundividência» específica sobre defesa e segurança.

14

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Nota Prévia

ção do Sahel, dos Grandes Lagos e da África Oriental. Era


como se Moçambique, que quer ser conhecido pelo turismo
paradisíaco, pela descoberta de novas fontes de energia, pela
recuperação nacional após várias catástrofes, fosse de repente
revelado ao mundo como mais uma Somália ou Darfur.
Percebe­‑se que a publicidade é negativa, se olhada de
forma primária e meramente sensacionalista.
Mas há a obrigação de todos – a começar pelo Estado
moçambicano, pelos seus irmãos na CPLP, pelos seus aliados
na SADC e na Commonwealth, pelos seus vizinhos continen-
tais na União Africana (UA) – em fazer com que da revelação
do problema haja a aceitação natural das medidas a tomar.
A situação em Cabo Delgado não pode ser tratada em
segredo, em silêncio, punindo o mensageiro, fazendo dos
media mais esforçados os bodes expiatórios de uma campanha
difícil.
O problema não desaparece só porque deixamos de falar
dele. Sobretudo dado que, face ao silêncio oficial, crescem
e multiplicam­‑se as informações, verdadeiras, falsas, exage-
radas ou correctas, incompletas ou detalhadas, propaladas
através das redes sociais, e através dos órgãos de informação
do inimigo. A narrativa vitoriosa e agressiva deste tem de ser
combatida, mas para isso não pode ser ignorada, e tem de ser
compreendida3.
Durante a sua mais recente guerra de África, entre 1961 e
1974, o comando militar português decidiu publicar boletins
semanais e mensais onde se detalhavam operações, baixas em
mortos e feridos, material capturado, situação de populações
civis, estragos causados ao inimigo, etc.
3
O já aludido CTC da ONU organizou recentemente (28 de Janeiro, Nova Iorque)
um seminário internacional dedicado ao tema: «Combater a Narrativa Terrorista e Pre-
venir o Uso da Internet por Esta».

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O Cabo do Medo

Moçambique optou por não seguir esse modelo. Segundo


me diz uma fonte da antiga equipa do Ministério da Defesa
de Maputo, a decisão foi tomada para «não causar alarmismo
na população local, não fornecer dados operacionais e com-
bativos ao inimigo, não revelar segredos militares e de segu-
rança, e não colaborar no esforço de propaganda dos ditos
insurgentes».4
Mas a própria fonte expressava­‑me dúvidas sobre a linha
a seguir, temendo que os efeitos negativos da medida se
fizessem sentir rapidamente: «dificuldade em comunicar com
as populações, impossibilidade de contrariar boatos, mesmo
bem­‑intencionados, e falhanço na resposta a todas as campa-
nhas de propaganda do adversário» (sic).
Este livro faz­‑se também para tentar ultrapassar esse
dilema. Não apenas porque o autor lutou quase sozinho para
revelar a face negra da penetração do Daesh, mas também
para dar uma voz e um sentido de justiça às vítimas, aos
sobreviventes, aos que, civis, polícias ou militares, se têm
oposto bravamente à maré da barbárie, e para responder ao
apelo de muitos moçambicanos que me dizem precisar de
separar o trigo do joio. Como me referia um autarca de Cabo
Delgado:

«Somos inundados todos os dias com notícias falsas sobre


a situação de segurança, umas colocadas pelo próprio
Shabaab ou pelo Daesh (sic), já não sei, e pelas suas quintas
colunas e cúmplices, outras destiladas por adversários e
rivais de Moçambique, mais ainda por falsos jornalistas ou
aprendizes de feiticeiro, e outras só devidas ao vácuo infor-
mativo oficial. E no entanto, nós que vivemos e morremos

4
Nampula, contacto telefónico, Agosto de 2019.

16

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Nota Prévia

aqui, somos os primeiros a querer saber correctamente o


que é que se passa, quem é que nos ataca, com que objectivo
final e com que resultados esperados.»5

E faz­‑se o livro para ajudar a construir a tal «contranarra-


tiva» que às vezes falta. Assim como em livro anterior6 tentei
afastar do nome do Daesh qualquer fidelidade legítima a uma
religião, a um povo ou a uma ideia política, o mesmo tento
fazer em relação às palavras a usar para caracterizar as presen-
tes hordas que destroem Moçambique.
Assim como sempre chamei DEDI («Dito Estado Dito
Islâmico», em vez de «Estado Islâmico» disto ou daquilo) ao
sucessor e competidor da Al­‑Qaeda (esta nunca pretendeu ser
mais do que era, uma rede de células de terror), para impedir
que se propagasse o cancro da legitimação pelo nome7, assim
tenho de rejeitar a designação de «insurrectos», para referir os
que atacam civis e aldeias, hospitais e escolas, raptam mulhe-
res e crianças, decapitam idosos, em Cabo Delgado.
O seu projecto político e as suas alegações – que exis-
tem para quem queira ver, ouvir e ler – não escondem a sua
5
Pemba, conversa telefónica, Janeiro de 2020.
6
N. Rogeiro, O Mistério das Bandeiras Negras, Verbo, 2015.
7
A «legitimação pelo nome» foi um problema real em 2015. Cf., p. ex., T. Sin-
ger, «3qs: What using the name ‘daesh,’ rather than ‘isis’ or ‘isil,’ really means», em
News@Northeastern, 24 de Novembro de 2015, acessível em https://news.northeas-
tern.edu/2015/11/24/3qs­‑what­‑using­‑the­‑name­‑daesh­‑rather­‑than­‑isis­‑or­‑isil­‑really­
‑means/. Em 25 de Junho de 2015, um grupo de 120 deputados britânicos, dirigido por
Reham Chisthi (e que incluía Boris Johnson, Keith Vaz e membros dos principais par-
tidos) escreveu uma carta à BBC, pedindo que o órgão de informação deixasse de dizer
«Estado Islâmico» e passasse a dizer «Daesh», para não ofender nem os muçulmanos
nem os estados islâmicos, ou de maioria islâmica, membros da ONU. A BBC respondeu
de forma ambígua, dizendo que não iria mudar para não «favorecer os inimigos do ISIS»
e para se manter «neutral», mas que noticiaria sempre um «autoproclamado Estado Islâ-
mico», ou designação semelhante. Sobre o problema mais vasto do «nominalismo legi-
timador» no fenómeno terrorista, Cf. M. Bhatia, ed., Terrorism and the Politics of Naming,
Routledge, 2013.

17

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O Cabo do Medo

natureza e a essência das suas acções. Trata­‑se de «bandidos


armados», ou BA, como se dizia antes no léxico militar da
contraguerrilha portuguesa e da pior repressão Frelimista.
Só que agora a expressão designa perfeitamente o que se
passa, e devia ser consensual.
Independentemente de saber se – por acção ou omissão,
oportunismo ou defeito de outros – gozam de alguns apoios
sociais, de cumplicidades locais e de simpatias envergonha-
das, os próceres do Daesh local (EIPAC, como se chamam
e como veremos) agem como bandos sem escrúpulos con-
tra aquele que as guerrilhas geralmente dizem defender: o
próprio povo, onde se deveriam confundir como peixe na
água8.
Não são as «últimas sentinelas da terra», nem a voz radical
e violenta das raízes e dos antepassados humilhados, mas
simples criminosos e torcionários, escondidos por trás de
uma bandeira ambígua, carregada de ódio e de razia.
Claro que o «terrorismo» é, de muitas maneiras, o único
«crime político» que ainda é penalizado em todo o mundo.
Mas há que dizer aqui, com precisão, que «crime político» só
pode significar, no terrorismo, «crime com alegação política
(ou «religiosa», sendo esta aqui uma óbvia arma político­
‑ideológica e de propaganda), e não mera questão de cons-
ciência, dissensão cultural e intelectual, ou mesmo de radical
oposição a um estado de coisas.
A «violência política» torna­‑se «terrorista» quando toma
como alvo a população civil, quando procura dar um «exem-
plo» através da destruição indiscriminada, quando delibera-
damente evita e substitui o confronto político pela mera lei
da força.

8
Cf. C. Schmitt, Teoria da Guerrilha, Arcádia 1975.

18

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Nota Prévia

O que está em causa em Cabo Delgado não é a apreciação


da justeza ou injustiça do poder da FRELIMO, ou da oposi-
ção política e «político­‑militar» histórica.
Pode encontrar­‑se na fragilidade, inépcia, corrupção, nepo-
tismo, manipulação eleitoral e antigo terrorismo de estado, no
desvio de agentes públicos, na prepotência, na arrogância e
na ignorância do sector público, numa série de causas, razões
e circunstâncias agravantes, na questão da violência como
política. Mas o desencadear do «terrorismo» real, provado e
perpetuado, significa a ultrapassagem definitiva de uma fron-
teira de humanidade. Está para além não só da compreensão
dos simples agentes sistémicos, como para além de quaisquer
regras de moralidade, ética, respeito pelo adversário ou refe-
rência, mesmo que mínima, ao «direito da guerra e dentro da
guerra», às normas internacionais ou ao conforto de uma Fé9.
O terrorista em causa, que nesta dimensão corresponde ao
destruidor catastrófico, que ameaça massas, cidades e conti-
nentes inteiros, tem, como dissemos, um programa político
último: neste caso, a transformação de Cabo Delgado numa
«província» do DEDI, como veremos em pormenor.
Do mesmo modo o Daesh dominou durante anos um
território vasto, quase das costas do país que um dia se cha-
mou Síria às imediações de Bagdade, a Magnífica. Parecia um
«estado», com exército regular, taxas e administração central e
local, «comunicação social», «assistência na doença», notários
e até os primeiros ensaios de cunhagem de moeda.10
Mas por trás dos projectos e das formas encontrava­‑se a
realidade crua de um bando terrorista mais eficaz do que a

9
Um ensaio lúcido sobre a «violência política» e o terrorismo encontra­‑se em
M. Sageman, Turning to Political Violence: The Emergence of Terrorism, University of Pennsyl-
vania Press, 2017.
10
Uma visão detalhada está em N. Rogeiro, op. cit.

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O Cabo do Medo

Al­‑Qaeda no extermínio global, inimigo público que decla-


rara guerra ao universo visível, e parecia conseguir abater o
seu império sobre homens e mulheres de carne e osso. Já vi
comparar esta experiência ao reino mítico de Mordor, o lorde
sinistro de O Senhor dos Anéis, de Tolkien11.
A verdade é que, com dimensão física de ocupação de
espaço de manobra e poder, o terror de bando torna­‑se em
terror feudal ou paraestatal, paródia demoníaca das velhas
instituições dos regimes políticos. Há um trono de sangue e
uma série de antecâmaras mortuárias, zelotas carniceiros que
aplicam «a lei», uma polícia de «costumes» e celebrações com
forcas, cadafalsos, guilhotinas, chicotes e crematórios, uma
vida de permanente opressão e sobressalto, à espera do pre-
monitório bater à porta, a altas horas da noite.
Há um terror que se transforma de excepção em regime,
de momento em lodaçal permanente. Há uma vida impossí-
vel de permanente exílio, perseguição, refúgio, fuga e prova-
ções para crianças, mulheres, anciãos, famílias inteiras. Há um
universo de escravos laborais, sexuais e militares.
Este Novo Mundo, abismal, do horror contínuo, está pre-
sente quase todos os dias nas aldeias, trilhos, matas e savanas
de Cabo Delgado.
O que também, por si só, serviria para justificar o livro.

11
A tentação de interpretar a narrativa de Tolkien à luz da «Guerra contra o terro-
rismo» surge, por exemplo, em K. Gelder, «Epic Fantasy and Global Terrorism», em
E. Mathijs/M.Pomerance, From Hobbits to Hollywood – Essay’s on Peter Jackson’s Lord of the
Rings, Rodopi Ed., 2006.

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 M B I T O D A IN V E S T I G A Ç Ã O

O presente livro é uma avaliação provisória das ameaças,


riscos e desafios à segurança na província de Cabo Delgado,
norte de Moçambique, em particular em relação às áreas a
serem industrializadas em torno de Palma, principalmente
relacionadas com a produção de energia.
Do mesmo modo se analisam os actores de desestabili-
zação e insegurança no interior da província, e as possíveis
ligações dos mesmos com personalidades e grupos interna-
cionais.
Este resumo também se refere às regiões ao longo da
fronteira com a Tanzânia, a área de Mocímboa da Praia e a
costa marítima, continental e insular, a oeste de Comores,
e, finalmente, a conexões entre eventos e tendências locais, e
desenvolvimentos gerais em importantes centros urbanos
como Pemba e Nampula.
Largamente fora deste estudo, a não ser num grupo pon-
tual de incidentes, está a também preocupante região fron-
teiriça do Niassa, onde eventos criminosos parecidos fazem
alguns pensarem no mesmo tipo de grupos e fenómenos
envolvidos.

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O Cabo do Medo

Um elemento menor tratado aqui, de forma sumária,


refere­‑se às actividades da RENAMO, o ainda principal
grupo de oposição, agora dividido entre um «mainstream polí-
tico», em torno do ex­‑general e ex­‑candidato presidencial (ao
voto de Outubro de 2019) Ossufo Momade, sucessor eleito
do líder histórico, Afonso Dhlakama, e uma «Junta Militar»,
comandada por Mariano Nhongo.
A maioria das fontes é feita de autoridades autárquicas e
de ONG locais, e em particular fontes humanas e documen-
tais seguras nos tribunais locais e nas unidades operacionais
e comandos militares (FADM) e policiais (PRM), sob o
«guarda­‑chuva» das FDS (Forças de Segurança e Defesa) da
República de Moçambique.
Um outro elemento de consulta gira em torno de familia-
res de vítimas e sobreviventes da tragédia em curso, incluindo
associações informais de mães de desaparecidos civis e mili-
tares.
Obtivemos ainda acesso processual a diversas instâncias
de averiguação e julgamento sobre as redes delinquentes, e a
arrependidos e desertores dos grupos criminosos, alguns em
Moçambique e outros fora do país.
Também foram utilizadas fontes diplomáticas de Portugal,
França, Reino Unido e EUA, com base em Maputo e Nam-
pula, assim como dois informadores de alto escalão da nova
liderança da oposição da RENAMO.
Este livro não seria possível também sem a ajuda e o con-
selho de diversas entidades religiosas, cristãs e muçulmanas,
sediadas em Cabo Delgado, muitas vezes em situação precá-
ria e ameaçada.
Agradecemos ainda às fontes diplomáticas, militares e de
segurança da Federação Russa, que permitiram o esclareci-
mento de alguns pontos sensíveis, e ao continuado contacto

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Âmbito da Investigação

com organizações internacionais que ajudam e conhecem


bem Moçambique, como a Fundação Aga Khan.
Finalmente, consultámos fontes de segurança internacio-
nais de vários países de relevância regional, incluindo Tanzâ-
nia, Quénia, Somália, EUA, Reino Unido, Turquia e Israel,
ouvidos com detalhe, principalmente em relação aos possí-
veis líderes Al Shabaab – Al­‑Qaeda ou Boko Haram / Daesh.
Muitas fontes não quiseram – por agora – ser identifica-
das, alegando o seu estatuto profissional (sobretudo funcio-
nários públicos da área da segurança e defesa), ou receio de
represálias. São sempre referidas através do sítio onde foram
contactadas e, quando possível, pelo meio (telefone, etc.), ou
directamente pelo autor ou pelos seus informadores directos.
A responsabilidade da tradução de três línguas é do autor.
Muitas pessoas ajudaram também a solidificar o conheci-
mento de pormenores menos conhecidos do Moçambique
contemporâneo, em especial dos seus últimos 20 anos.
Não posso esquecer, a esse respeito, os meus queridos
Jaime Nogueira Pinto, Carmo Jardim e André Thomashau-
sen, o empresário e intelectual Fernando Couto, o embaixador
José Augusto Duarte, o comendador Nazim Ahmad, Ivone
Soares e Alberto Chichone, da RENAMO, os presidentes
Armando Guebuza e Filipe Nyusi (que tive repetidamente,
com o Martim Cabral, como convidados no «Sociedade das
Nações») os ex­‑directores do SISE José Castiano de Zum-
bire (falecido) e Gregório Leão José, o malogrado autarca
da Matola e meu caro antigo aluno Carlos Tembe, e diversos
chefes militares que fui conhecendo, antes e depois da criação
do Centro de Análise Estratégica da CPLP, em Maputo.
Não esqueço ainda, de outros tempos e de outras guerras,
o meu amigo e tragicamente desaparecido Evo Fernandes,
que acreditou na paz e tentou construí­‑la.

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IN T R O D U Ç Ã O A U M L U G A R DI F Í CI L

Tenho um primo direito que nasceu em Lourenço Mar-


ques, filho de um distinto militar da Força Aérea Portuguesa,
que servira em terras moçambicanas, durante a guerra que
terminou em 1974.
Como ele, que o destino profissional levou depois outra
vez a Cabora Bassa, cresci com amigos que consideravam a
Beira, Nampula ou Porto Amélia (hoje Pemba), Quelimane
ou Tete, como sua casa e sua pátria, e nunca olharam para
o Portugal europeu a não ser como um acolhedor lugar de
passagem.
Na verdade, mesmo sem recuar aos Descobrimentos, as
ligações históricas entre Lisboa e Maputo não carecem de
demonstração. A começar pelas raízes familiares do actual
chefe de Estado português, cujo pai foi um dos últimos
governadores de Moçambique após a revolução de 1974 em
Lisboa.1

Baltazar Rebelo de Sousa (1921­‑2001) foi governador­‑geral de Moçambique entre


1

1968 and 1970, e tornou­‑se depois no último ministro do Ultramar antes do Movimento
de 25 de Abril de 1974. No último cargo supervisionou todos os actuais estados da
CPLP, com a óbvia exclusão do Brasil. Depois de a FRELIMO ter conquistado o poder

25

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O Cabo do Medo

E há uma geração de moçambicanos e portugueses que,


apesar de ter amplamente superado as feridas físicas e morais
da guerra terminada no PREC metropolitano, recorda ainda
toda a província de Cabo Delgado e o chamado Planalto
Maconde, como o início da guerra de guerrilha da FRE-
LIMO e da insurgência contra o estado português, em 1962­
‑1964.
Diz um interveniente, hoje perto dos 70 anos:

«É uma área que tem um instinto natural de expressão, de


queixas e de indignação social autónomo, através de acções
radicais e até violentas. [...] A vizinhança da Tanzânia tam-
bém se mostrou um elo especial para a logística – inclusive
em armas e equipamentos – de qualquer grupo que qui-
sesse actuar no norte de Moçambique, com subclãs inteiros
vivendo nos dois lados da fronteira com o Rovuma.»2

Esta não foi a única guerra portuguesa do século xx em


Cabo Delgado. Ainda antes da declaração bélica luso­‑alemã,
no conflito de 1914­‑18, e sobretudo em 1917, a província foi
palco de grandes devastações, já que Moçambique fazia parte
do «mapa cor­‑de­‑rosa» de Berlim3, encontrava­‑se no cami-
nho da disputa anglo­‑alemã, e, por consequência estratégica
e táctica, viu­‑se invadido por tropas germânicas vindas da
Tanzânia.

na ex­‑província ultramarina portuguesa, Rebelo de Sousa foi condecorado pelo novo


regime do novo Estado, independentemente de considerações «ideológicas», pelo traba-
lho a favor do desenvolvimento humano, social e económico local. A condecoração está
em exposição no Círculo Eça de Queiroz, em Lisboa.
2
Lisboa, Janeiro de 2019.
3
Que incluía ainda, de ocidente à contracosta, a Serra Leoa, parte do Togo, dos
Camarões e dos extremos sul do Sudão e Egipto, todo o Congo belga, Angola, as Áfricas
Ocidental e Oriental alemãs, toda a África Oriental portuguesa e Madagáscar.

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Introdução a um Lugar Difícil

Os combates entre portugueses e alemães foram cruéis


para as forças do Portugal precocemente republicano, em que
a tarefa de edificação militar foi penosa, decapitado, exilado,
desprestigiado, faccionado e fraccionado, enfraquecido, des-
moralizado ou despromovido que estava o antigo corpo de
oficiais da monarquia, e desorganizadas que se encontravam
as linhas de decisão estratégica e diplomática (a precisar de
optar, numa nação de parcos recursos, sobre os meios a usar
entre o teatro europeu e o africano).
Os ataques às posições portuguesas prefiguraram as outras
guerras que viríamos a sofrer no mesmo lugar. As operações
foram levadas a cabo pela hábil campanha de guerrilha do gene-
ral Paul Emil von Lettow­‑Vorbeck, que usou contra nós todos
os trunfos da guerra irregular, das acções especiais, das embos-
cadas e dos golpes de mão, do engodo e da acção psicológica.
Como se viu na desastrosa batalha de Negomano (a norte
de Montepuez, junto ao actual Bloco A da zona de caça do
Niassa), em que perdemos 200 homens, mortos e feridos,
e tivemos 700 prisioneiros, não havia na tropa portuguesa
soldados experientes em número suficiente, nem uma clara
visão dos objectivos.
A coragem e determinação de oficiais como o «Capitão
Diabo», João Teixeira Pinto (um dos primeiros a morrer no
assalto), afastado do comando imediato por um oficial hie-
rarquicamente superior mas sem experiência de combate, não
chegava para suplantar os problemas estruturais, que nem
sequer se referiam a equipamento: como excepção à regra,
o corpo militar português na África Oriental possuía mais e
melhores armas do que o contingente alemão4.
4
Lettow­‑Vorbeck capturou seis metralhadoras, 900 espingardas e pistolas e 250
mil munições. Noutros enfrentamentos, aumentou o espólio em material moderno. Cf.
R. Gaudi, African Kaiser, Dutton Caliber, 2017.

27

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O Cabo do Medo

O problema era a falta de unidade do comando, inde-


terminação estratégica (desde 1914, quando não se sabia se
Portugal devia tomar acções preventivas contra as forças
alemãs a norte, ou guardar a todo o custo a neutralidade, face
aos pedidos britânicos de intervenção), divisão no corpo de
oficiais, afastamento – por idade ou conveniência política –
de toda a geração que tinha combatido em África no fim do
século xix, e sobretudo dos companheiros mais jovens de
Mouzinho de Albuquerque e de Paiva Couceiro, desactua-
lização táctica e operacional, com as lições aprendidas nas
campanhas de 1895 e 1896 totalmente postas de parte, e com
a impreparação face a novas formas de conflito irregular e
«político­‑militar», como se diria hoje.
Na verdade, não se podia combater uma guerra de som-
bras e ardis, de movimento e triunfo das missões de reconhe-
cimento, espionagem, dissimulação, numa terra tão difícil,
como se disputaria um conflito napoleónico tradicional, com
cavalaria, artilharia e infantaria reluzentes, convencionadas e
em linha, apetrechados os generais e oficiais superiores com
mesuras e protocolos sem sentido5.
As forças portuguesas enviadas à pressa para a África,
ameaçada por uma república que tinha inimigos em todas
as esquinas, partiam também – para além do referido défice

5
Cf. a película de João Nuno Pinto, Mosquito, Leopardo Filmes, Fevereiro de 2020,
para alguns pormenores preciosos do ambiente do conflito, referente à chamada «Coluna
do Lago Niassa». Cf. ainda o utilíssimo contributo de M. A. da Costa, É o Inimigo que Fala:
Subsídios inéditos para o estudo da campanha da África Oriental, 1914­‑1918, Imprensa Nacional,
1936; F. Falcão, A Grande Guerra em Moçambique: Diário do Tenente Frederico Marinho Falcão
(1916­‑1918), Colibri, 2018; J. C. de Moura, Os Últimos Anos da Monarquia e os Primeiros
da República em Moçambique, Imprensa Nacional de Moçambique, 1965; E. Moreira dos
Santos, Combate de Negomano (Cobiça de Moçambique), seus Heróis e seus Inimigos: Memórias,
Ed. Gráficas Pax, Braga, 1961. Para abordagens ou reedições contemporâneas de relevo,
A. Afonso, Grande Guerra: Angola, Moçambique e Flandres, Quidnovi, 2008, R. Marques,
Os Fantasmas do Rovuma, Leya, 2012.

28

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Introdução a um Lugar Difícil

doutrinário e das insuficiências do oficialato – com grandes


deficiências logísticas, de planeamento, de apoio e de cuidado
médico­‑sanitário. Bem armadas mas mal equipadas, suficien-
temente municiadas mas sem treino suficiente, em número
razoável mas tacticamente cegas.
É precisamente nesta área tradicionalmente difícil para
as forças da contra­‑insurreição6, que o estado de Moçambi-
que, politicamente dominado pela FRELIMO desde 1974,
enfrenta sua principal ameaça à segurança «não típica» desde
o final da guerra semiconvencional e semiguerrilheira contra
a RENAMO.
Num breve resumo inicial, pode dizer­‑se que existem dois
períodos nesta «insurreição», que verdadeiramente se traduz
em actos de terrorismo contra civis e terra queimada: um de
meados de 2017 a Junho de 2019, outro a partir desta data
até agora.
O termo «insurreição» é, neste caso histórico, altamente
ambíguo, como vimos. E pode ser ofensivo, do ponto de
vista de um verdadeiro revolucionário.
Os primeiros tempos do conflito, depois do período
de incubação «política» (2014­‑2016), viram a acção de um
número reduzido de jovens muçulmanos, alegando serem
marginalizados e não capazes de espalhar suas crenças reli-
giosas, e lutando contra o que viam como «ocidentalização
demoníaca de Cabo Delgado». Este é o conjunto de células
que os locais chamavam de «Shabaab».

6
Ironicamente, Mueda, em Cabo Delgado, foi uma das primeiras bases da
FRELIMO contra a presença da administração portuguesa, passou a base contra­
‑insurrecional das forças armadas de Lisboa, e agora é um importante centro militar
com as mesmas funções, em pleno território assolado pelo Daesh. Outros sítios de Cabo
Delgado foram marcantes para a guerrilha da FRELIMO, a partir de Setembro de 1964,
como Chai, no distrito de Macomia, onde se moveu a unidade de Alberto Chipande, um
dos históricos do partido.

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O Cabo do Medo

Mas de Maio a Junho de 2019, a situação mudou radical-


mente: o Daesh, baseado em combatentes originalmente na
República Democrática do Congo (RDC), principalmente
dissidentes muçulmanos do ADF, decidiu criar, meses antes,
uma «Wilayat», ou «província», que os seus líderes chamam
de ISCAP/EIPAC (acrónimo do inglês ou português, para
designar o «Estado Islâmico» da «África Central»).
Como se verá, não correspondia ao que vulgarmente
chamamos de «África Central»7 em nenhuma das defini-
ções usuais, formadas por critérios político­‑económicos e
geográficos. Mas reúne antes, como se assinala no relatório
da ONU, grupos de combate no leste/sudeste da RDC, na
Tanzânia/Zanzibar, em Moçambique e no sul da Somália,
provavelmente agregando veteranos das guerras no Burundi
e no Uganda.
Mais ou menos naquela época do início do nosso Verão
de 2019, os jovens moçambicanos do Shabaab fizeram o seu
solene acto de lealdade (bay’ah) ao califa de Daesh, de que
temos documento fotográfico.
Aí surgem – alegadamente na zona de Mueda – cerca de
20 militantes bem armados8, prestamento juramento sobre
a bandeira do DEDI, sob comando de dois alegados cabeci-
lhas, oriundos de Nampula.
Depois do acto solene, que tinha sido executado dois
meses antes nas florestas do Congo, na zona de Beni, Abu

7
A Comunidade Económica dos Países da África Central inclui Angola, Burundi,
Camarões, a República Centro-Africana (RCA), Chade, RDC, República do Congo (Bra-
zzaville), Guiné Equatorial, Gabão, Ruanda e São Tomé e Príncipe. Quanto ao Banco de
Desenvolvimento Africano, define os membros da área como Camarões, RCA, Chade,
RDC, Congo Brazzaville, Guiné Equatorial e Gabão.
8
Sete espingardas do tipo Kalashnikov, uma G3 de fabrico português, alegadamente
capturada às forças de segurança moçambicanas, três metralhadoras ligeiras, três lança­
‑granadas­‑foguete RPG­‑7 e um RPG­‑22.

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Introdução a um Lugar Difícil

Bakr Al Baghdadi e o comando «província» da RDC retribuí-


ram, enviando um fluxo constante de instrutores, comandan-
tes e alguns equipamentos para Moçambique, via Tanzânia
(terrestre e marítima9), resultando num aumento de ataques
violentos, precisos, numerosos e «tecnicamente proficien-
tes» em Cabo Delgado, principalmente contra civis e infra­
‑estruturas, mas também – frequentemente – contra unidades
policiais e militares.
Moçambique tentou obter soluções de segurança impro-
visadas e baratas (dado o estado geral da economia e a
desconfiança com gastos militares, depois do escândalo da
EMATUM), entrou em pacto ou aconselhamento com várias
entidades, incluindo os empreendimentos de Erik Prince
(fundador da Blackwater, o único especialista de segurança
americano com algum à vontade no mercado chinês), acedeu à
multiplicação de firmas de protecção VIP, vigilância industrial
e patrulha de infra­‑estruturas (sobretudo dada a necessidade
de preservar os novos investimentos das multinacionais de
gás natural), mas finalmente decidiu implementar novos e
contínuos pactos com a Federação Russa, complementados
com ajudas pontuais, ou promessas de apetrechamento, de
entidades brasileiras, francesas, chinesas, dos Emirados Ára-
bes Unidos (EAU) e indianas10.
Os últimos seis meses de 2019, e os primeiros de 2020,
foram infernais para as populações e forças de segurança de
9
Apesar dos rumores de aterragem em Cabo Delgado de alguns monomotores de
desporto, que poderiam trazer material para o bando, não há dados suficientes para con-
cluir um abastecimento aéreo. Mas a investigação continua em Nampula, Palma e Pemba.
10
Os Emirados têm sido importantes no fornecimento de veículos blindados, e a
Índia na facultação de lanchas rápidas para a patrulha costeira para a Marinha, duas das
quais recebidas em 29 de Julho de 2019. São a Namiliti e a Umbeluzi, do tipo L&T FIC,
com casco de alumínio, de 30 metros de comprimento, 90 toneladas e que podem atingir
45 nós. São essenciais para o combate ao banditismo costeiro na costa leste. A Índia
forneceu também, em 2019, 44 SUV Tata ao SERNIC, a PJ moçambicana.

31

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O Cabo do Medo

Cabo Delgado, apesar de algumas interrupções na fluidez


dos ataques, devidas a condições climatéricas, incluindo chu-
vas fortes em trilhos já de si intransitáveis, perseguição de
forças da ONU e do exército congolês ao «quartel­‑general»
do Daesh em Beni, operações de interdição feitas pelos tan-
zanianos, e ainda alguns sucessos de medidas de segurança
em Cabo Delgado, incluindo a cooperação entre civis e for-
ças especiais, e melhor treino operacional dos contingentes
contraterroristas instruídos pela Rússia, bem como mais e
melhores operações de desmantelamento das redes interna-
cionais de narcotráfico marítimo.
A situação da RENAMO não tem relação com tudo isso,
embora Cabo Delgado, para tornar as coisas mais complica-
das, também tenha muitas áreas fiéis à antiga e presente opo-
sição armada, ou político­‑militar, moçambicana.
Após a morte de Afonso Dhlakama, a Resistência dividiu­
‑se em várias facções, mas Momade, o antigo comandante
das forças armadas do partido, venceu as eleições internas,
aparentemente garantindo o controlo sobre o grupo parla-
mentar, as delegações no exterior, as finanças internas e o
controlo administrativo das principais bases e equipamentos
militares, no quartel da Gorongosa (Sofala), e em alegada-
mente mais 15 locais.
A pressão política contra o regime de Maputo, enfra-
quecido pelos irresolvidos casos das «dívidas ocultas», a
actividade de denúncia de ONG e de figuras prestigiadas da
intelectualidade e da sociedade civil (muitos vindos da área
histórica da FRELIMO), a possibilidade de a RENAMO
capitalizar com a afeição face ao desaparecido líder carismá-
tico, e a proximidade de eleições, levou o presidente Nyusi a
celebrar um novo pacto com Momade, onde os militares da
oposição seriam reintegrados ao FDS nacional.

32

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Introdução a um Lugar Difícil

Moçambique já tinha tido várias rondas de «acordos de


paz», desde o fim da guerra civil (1990, 1992 e 2014), mas
este referia­‑se ao período 2014­‑2019, e sobretudo à recusa
da oposição em reconhecer os resultados das eleições gerais.
Para além disso, a Resistência Nacional queria verdadeira-
mente ser incluída na segurança pública, desejava ter os seus
militares e guarda­‑costas integrados socialmente «de forma
digna», e lutava por mais mecanismos de democracia directa
na designação de altos funcionários, incluindo provinciais.
Mas a RENAMO separou­‑se novamente, com diversos
críticos do acordo de Agosto de 2019 a dizer que o mesmo
enfraquecia o antigo partido de Dhlakama e não lhe dava
nada em troca, que não havia garantias de apoio à reintegra-
ção de combatentes, e que o sistema político não mudava um
milímetro. Da discussão à cisão foi um passo, e formou­‑se,
em torno de um combatente histórico (Mariano Nhongo), a
chamada Junta Militar da RENAMO (RJM), aparentemente
centrada apenas em homens armados.
Esta prometeu continuar o estado de alerta e combate,
e não reconhecer nenhuma disputa eleitoral nacional. Foi a
RJM foi acusada de ataques contra veículos e civis em várias
áreas, incluindo Gaza, Manica e Sofala. A Junta nega tudo
isso, pede provas, mas Nhongo profere diversas vezes amea-
ças parecidas com as acções no terreno.
Em Fevereiro de 2020, não estava ainda executado um
dos elementos do acordo de paz, o chamado protocolo
DDR, relativo ao desarmamento e reintegração dos cerca de
cinco mil homens armados da Resistência Nacional. Estes
encontravam­‑se ainda nas suas «bases naturais», como Savane,
Merringue, Tete e Zambézia. E a violência «sem rosto» no
centro do país continuava também, embora menos frequente,
menos intensa e menos espalhada do que em Cabo Delgado.

33

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1 . ª PA R T E
DEFINIÇÃO DA AMEAÇA

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N O P R INC Í P I O : O « I S L Ã O S O CI A L » ,
« R E V O L U CI O N Á R I O »
E « L I B E RTA D O R » 1

Antes e depois da colonização portuguesa, a costa oriental


de Moçambique e da Tanzânia, incluindo Zanzibar, foi um
dos pontos naturais de influência de navegantes, pescadores,
conquistadores, caçadores de escravos, mercadores e prega-
dores árabes e islâmicos.
Vinham dos hoje Iraque, Egipto, Paquistão, Irão e Ará-
bia Saudita, através do mar Vermelho e do mar Arábico. As
linguagens marcantes nos contactos eram o Kiswahili e o
Kimwani, assim como o árabe simplificado, tendo­‑se Pemba
tornado num importante centro multicultural.
Pode dizer­‑se que Cabo Delgado, devido a essas raízes, se
transformou na província moçambicana mais «islamizada»,
ou onde a fé muçulmana ganhou mais peso e penetração

1
Especial agradecimento a V., ex­‑analista de informações do Estado moçambicano,
que colocou a necessidade de reposição dos factos à frente das eventuais divisões parti-
dárias e doutrinais. Agradecimento também ao xeque AL, por ter revisto esta secção, e
de a ter confrontado com a sua experiência. O melhor estudo sociológico moçambicano
sobre a progressão jihadista, entre 2017 e 2019, é Habibe, Saide, Forquilha, Pereira, «Radi-
calização Islâmica no Norte de Moçambique: O Caso de Mocímboa da Praia», em Cadernos
do IESE, 2019, acessível em http://www.iese.ac.mz/wpcontent/uploads/2019/12/
cadernos_17eng.pdf.

37

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Definição da Ameaça

social. Tratou­‑se sempre, no entanto, de um culto religioso


pacífico e natural, que se adaptava à terra mais do que a obri-
gava a adaptar­‑se2.
Os mais velhos de Cabo Delgado, como me dizia um xeque
(entretanto também ele «exilado interno»), «habituaram­‑se a
uma situação de tolerância, sem qualquer apelo a conquistas
políticas ou territoriais, e muito menos a uma pregação de
violência, ofensa e represália»3.
Com a conquista do poder pela FRELIMO, em 1974­
‑1975, o «bloco» antiportuguês da guerra e pós­‑guerra foi­
‑se dissolvendo, com fracções agravadas pela repressão do
regime de Samora Machel, e a construção dos chamados
«campos de reeducação».
Macondes cristãos de Mueda e Muidumbe dividiram­‑se,
a favor e contra a FRELIMO, com muitos Kimwani e diver-
sos microgrupos muçulmanos a aderir à RENAMO (então
um poder guerrilheiro temível4), e com Mocímboa da Praia
como uma zona importante de resistência ao regime «mar-
xista importado» de Maputo.
As relações entre o estado laico e as religiões tiveram con-
sequências nem sempre esperadas.
Se a «primeira abertura» de 1982 começou a normalização
com católicos e muçulmanos, já a adesão à Organização de
Cooperação Islâmica, em 1994, levou a Moçambique muitos
estados antes divorciados do seu curso, incluindo a Arábia
Saudita e o Paquistão, com frequente troca de estudantes.

2
Cf. N. Levtzion, ed., The History of Islam in Africa, Ohio University Press, 2000,
especialmente os caps. 12­‑16.
3
Maputo, contacto telefónico, Novembro de 2019 e Fevereiro de 2020.
4
Multiplicado com o breve apoio rodesiano, que só durou até 1978, e apesar das
campanhas militares anti­‑RENAMO que envolveram conselheiros militares de vários
países do Pacto de Varsóvia, e, nos anos 1980, de unidades do Zimbabué conduzidas
por norte­‑coreanos.

38

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No Princípio: o «Islão Social», «Revolucionário» e «Libertador»

Também se entronca aí a chegada da Rede Aga Khan, essen-


cialmente feita de ismaelitas, uma minoria xiita em terra
essencialmente sunita.
Depois dos primeiros acordos de paz com a RENAMO,
em 1992, Cabo Delgado começou a albergar e a aceitar uma
grande diversidade de grupos religiosos com liberdade de
culto. Mas duas décadas depois, por volta de 2012, surgiram
tensões com a radicalização de grupos vindos, por exemplo,
da Tanzânia, contrariados por associações fundamentalistas
cristãs.
As mesquitas e madraças de Cabo Delgado passaram a
ser grandes centros de discussão teológica com consequên-
cias sociais e, no fim, políticas, com o período 2013­‑2016 a
ver chegar muitos pregadores que tinham contactado com
grupos militares jihadistas do Quénia, dos Grandes Lagos, da
Arábia Saudita, da Líbia e do Sudão, da Argélia e da Somália.
A influência destas franjas de «radicais activos» tornou­‑se
notória no distrito de Nangade, em alguns sítios de Maco-
mia, em Balama e Chiure, em zonas da periferia de Pemba,
Memba, Angoche, etc.
Todo o contencioso em torno de empregos, subdesenvol-
vimento, falta de oportunidades para a juventude, controlo
das estruturas estaduais, regionais e municipais por burocra-
cias da FRELIMO ou da RENAMO reciclada, acabou por
ser incentivado e dirigido por muitos desses novos prega-
dores, que voltaram a sua fúria também contra as estruturas
islâmicas tradicionais em Cabo Delgado em particular, e em
Moçambique em geral.
Tornaram­‑se usuais os confrontos entre grupos «radicais»
e «tradicionais» dentro da comunidade muçulmana, das suas
mesquitas mais representativas, das escolas corânicas e das
associações reconhecidas pelo Estado. Da discussão acesa

39

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Definição da Ameaça

aos insultos, às esperas à noite nas esquinas de bairros pobres,


foi um passo.
A «nova vaga» – largamente vinda da Tanzânia, e depois
da RDC e do Uganda (onde clamava contra a «repressão do
Estado») – induziu a juventude a outras formas de interpre-
tação do Corão, novas práticas, novas palavras e novas apro-
ximações em relação a temas fundamentais como os direitos
das mulheres, as condições da prática e do culto, a aplicação
da Sharia, as regras bancárias ou de empréstimo, o vestuário e
a visão do mundo, o consumo de álcool e os rituais de prepa-
ração de alimentos, os programas escolares e o recurso à segu-
rança social, a incorporação nas forças armadas e a atitude face
aos recursos naturais, formas de sua exploração e proventos.
As condições reais de desequilíbrio de fortunas e rendi-
mentos, numa província potencialmente rica, foram também
sendo denunciadas pelo que viria a chamar­‑se «Shabaab», ou
«movimento da juventude».
As mesquitas fundaram «centros de apoio social» e de dis-
tribuição de alimentos. Fundos especiais surgiam para pagar
viagens a centros de «cultura» no Médio Oriente, para os
menores mais dotados.
A mensagem geral era de que só o «Islão Político» poderia
salvar Cabo Delgado da injustiça, dos maus serviços públicos,
da pobreza e da humilhação de jovens crentes numa socie-
dade dessacralizada, povoada por ateus, agnósticos, apóstatas
e ímpios, onde proliferavam os magnatas instantâneos, os
funcionários partidários e as «seitas», da IURD às Testemu-
nhas de Jeová, das diversas missões protestantes ao fervor
pentecostal, dos mórmones e aos evangélicos reconvertidos5.
5
Alguns aspectos do universo cristão não católico de Moçambique são desenvolvi-
dos em D. Premawardhana, Faith in Flux: Pentecostalism and Mobility in Rural Mozambique,
University of Pennsylvania Press, 2018.

40

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No Princípio: o «Islão Social», «Revolucionário» e «Libertador»

Lentamente, entre 2000 e 2015, tinha­‑se criado em Cabo


Delgado uma espécie de mini­‑estado paralelo, assistencial
e alternativo, com regras próprias a funcionar entre mem-
bros.
A chegada dos grandes grupos multinacionais de explora-
ção de gás natural e o aumento de actividade na extracção de
madeiras preciosas e rubis criaram novas oportunidades de
revolta: muitos «radicais» ingressaram no garimpo e no abate
de árvores, geralmente de forma clandestina6, e juntaram­‑se
aos grupos de protesto contra a exploração desenfreada de
gás costeiro, pedindo mais transparência, mais divisão dos
futuros lucros e mais empregos na indústria principal e nos
sectores auxiliares7.
Um outro elemento a ter em conta é o da divisão profunda
no quadro de fidelidades e valores.
Face a um Estado considerado corrupto e cleptocrático,
face à quebra de confiança nas chamadas autoridades natu-
rais, o movimento da «Juventude Islâmica» embarcou, como
muitos outros grupos descontentes, numa série de teorias
de conspiração sobre roubo de impostos, disseminação de
doenças através de presumíveis campanhas de vacinação,
recurso a feitiçaria e canibalismo por parte de cidadãos que
pareciam respeitáveis de dia, mas se tornavam monstros à
noite, cultos demoníacos à solta, tráfico de órgãos, extracção

6
Desde 2014 que as autoridades alfandegárias moçambicanas apreendem grandes
carregamentos ilegais de madeira, a ser exportados para a China por via marítima, ou
para a Tanzânia por estrada. Em 2016 deu­‑se a descoberta de mais de mil contentores
com madeira preciosa no valor de quase um milhão de dólares, só num porto do país.
7
A grande corrida aos recursos naturais de Cabo Delgado dá­‑se a partir de 2017, e
com mais intensidade em 2019. Hoje em dia os projectos mais importantes são os do gás
natural, sob responsabilidade da TOTAL (Área 1) e do consórcio Mobil/ENI (Área 4),
entre outros. Só em Fevereiro de 2020, a TOTAL celebrou acordos de venda futura de
gás, correspondente a 11.1 mtpa.

41

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Definição da Ameaça

de sangue humano, envenenamento de alimentos e destrui-


ção concertada de colheitas.
Tornaram­‑se endémicas as campanhas violentas contra
as equipas de vacinação anticólera, contra as escolas, contra
os administradores, contra as empresas «oficiais», contra os
políticos e as polícias.
Os «jovens islâmicos», muitas vezes apoiados por pais
e amigos mais velhos, residentes em sítios distantes como
Pemba, Nampula e Nacala, começaram a partir para as matas,
savanas, ribeiros e zonas de difícil acesso, e aí criaram cam-
pos de treino de combate, tiro, guerra subversiva e acções
de sabotagem. Tudo isto começou a tornar­‑se conhecido
só depois de diversos assaltos e desmandos em 2016, com a
PRM, sem meios competentes e desmoralizada, a enviar rela-
tórios sobre a «aparência paramilitar» de vários manifestantes
violentos.
O «Islão vocal» do início da contestação tinha­‑se tornado
no «Islão violento», e cedo se tornaria no pseudo­‑Islão jus-
tificativo, essencialmente uma carapaça «política» sobre um
banho de sangue.8

8
Cf. a útil distinção entre «Islão vocal», ou vociferante, e «Islão violento», em
E. Orofino, Hizb ut­‑Tahrir and the Caliphate: Why the Group is Still Appealing to Muslims in the
West, Routledge, 2019. Cf. ainda E. Rabasa, Radical Islam in East Africa, Rand Corp. 2009;
O. Yinka, Frontiers of Jihad: Radical Islam in Africa, Safari Books, 2015.

42

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O LUGAR DO CRIME:
B A NDID O S , P I S T A S , DE T ID O S

Cabo Delgado é o local de um crime continuado. Começa-


mos, em jeito de investigação policiesca, por responder a uma
pergunta, que me foi colocada já em 2020 pelo responsável
de um dos mais importantes serviços de informações a ana-
lisar esta área:

«Porque é que não temos os nomes dos suspeitos e dos


seus mandantes?»

Mas a verdade é que temos, como o mesmo funcionário


veio a reconhecer, afirmando que a sua pergunta era, de certa
forma, «um sofisma provocatório»1.
«Temos», com um grão de sal. As autoridades moçam-
bicanas possuem muitos nomes de presumíveis implicados,
detiveram diversos mandantes, recrutadores e intermediários
desde 2017, identificaram vários dos neutralizados, mas ainda
se discute, no meio do SISE e do SERNIC, da vontade de
apresentação, mesmo em círculo restrito, de um organigrama

1
Roma, 2020.

43

Cabo do Medo_01a232.indd 43 07/05/20 16:36


Definição da Ameaça

do EIPAC e do seu antecessor, detalhando nomes, alcunhas,


nomes de guerra, códigos e funções.
Como me dizia um profissional moçambicano desta área:
«Quando o grupo se chamava informalmente Shabaab,
tínhamos conseguido reconstruir a identificação de parte da
sua estrutura orgânica e de comando, que era aliás reduzida
e muito básica. Mas entretanto esta alterou­‑se, reforçou­‑se e
ampliou­‑se – em quantidade e qualidade – com a criação
do EIPAC, e com a introdução na equação de comando de
vários elementos estrangeiros, alguns não aparecendo no
radar dos serviços de informações amigos. Por outro lado,
multiplicou­‑se o número de unidades celulares no terreno,
também com os seus chefes. Estamos assim numa fase de
recriação do nosso modelo analítico sobre a organização.2»
Discutiremos a seguir, nessa esteira, os meandros da
organização inicial, nos casos criminais que correram em
2017­‑2019 (i.e., antes da transformação em EIPAC), contra
supostos autores capturados.
Existem, claro, muitas dúvidas sobre certos procedimen-
tos e prisões, houve enormes repercussões negativas com a
morte de André Hanekom (ver adiante), há prisioneiros reco-
nhecidos como maltratados e torturados, e muitos também
reclamam que tiveram confissões extorquidas e retrocedidas.
Por outro lado, se é certo que um inimigo esquivo e trai-
çoeiro pode usar todas as armas, e misturar operacionais
com profissionais e civis insuspeitos, há uma grande onda de
protesto pela detenção de jornalistas que cobriam os aconte-
cimentos no terreno. Alguns foram acusados de serem eles
mesmo recrutadores para a jihad militar. E líderes religiosos
locais, que parecem militantes contra o Shabaab e seu suces-

2
Maputo, via telefónica, Fevereiro de 2020.

44

Cabo do Medo_01a232.indd 44 07/05/20 16:36


O Lugar do Crime: Bandidos, Pistas, Detidos

sor, que promoveram manifestações de desagravo e cerimó-


nias fúnebres pelas vítimas, são às vezes também acusados de
constituírem agentes ocultos do terror.
Há ainda as queixas sobre a competência técnica de alguns
órgãos de investigação de Moçambique, e a acusação de que
vários agentes se comportam como peões partidários. Por
fim, espalham­‑se dúvidas sobre o envolvimento de elementos
putativos dos sectores da Lei e da Ordem em alguns desman-
dos, através de condutas dúplices, desviadas ou corrompidas.
Mas tudo isto não nos pode desviar de uma série de fac-
tos já demonstrados, ou com força indiciária suficiente para
serem mencionados.
A seguir, por exemplo, expomos nomes de pessoas que
parecem (do ponto de vista de um serviço policial indepen-
dente, membro da UE), com base nas provas mostradas, e
num trabalho comparativo e de cruzamento de dados entre
redes de informações criminais, ter pelo menos «algum
grau de conhecimento e conexão com ataques verificados»,
havendo ainda outros que «parecem ter estado em algum tipo
de posição de comando e controlo»3:

a) Não apreendidos (até início de 2019)4

Momad (Momade) Ibrahim (Ibrahimo),


Chefe Ali Hássne (Tanzânia),
Salimo Kidjepéri (ou Kijepel),
Chefe Ndzorógue (Tanzânia),

Dados de início de 2019.


3

Estes nomes foram ou denunciados por atacantes detidos, ou vistos e reconhecidos


4

por populações afectadas, ou ainda identificados por amigos e antigos associados, ou


através do trabalho de agências de polícia judiciária e informações regionais e interna-
cionais.

45

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Definição da Ameaça

Aly Machud (Massude),


Ali Bonomar
«Comandante Nuro Salimo»
Idin Omar
Abdul Remane
Abdul Aziz
Nuro Adremane
Jafar Alawi
«Iman Musa» (Gâmbia),
Nuro Remane (irmão de Abdul, aparentemente),
Ibn Omar (aliás «Obimo Omar», antes crente da mesquita
«Africa Muslim»)
Amisse Bacar, também conhecido como Itisse Bacar, um
tanzaniano que tentou recrutar combatentes em Mueda, e
talvez um elo do QG do Daesh no Congo.

Outro nome é o de Mahamudo Saha (nascido em Issa


Sumail, que também forneceu informações a um autor deste
relatório policial), originalmente da vila de Mocímboa da
Praia (MdP), co­‑fundador da mesquita «Africa Muslim»,
numa aldeia do distrito de Macomia.
Adremane e Alawi fundaram uma mesquita em Mocím-
boa da Praia (onde nasceram), mas fugiram da cidade após
os ataques de Outubro de 2017. Diz­‑se «curricularmente»
que entraram em contacto com militantes na Tanzânia e no
Sudão, estudaram na Arábia Saudita e ensinaram na Somália.

b) C
 apturados (e, em 2019, em diversas fases de postura
processual)

Kadah Sualeh, xeque de Mucojo, retirado de sua casa em


Janeiro de 2013, 2020, pelo SISE, acusado de dirigir o recru-

46

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O Lugar do Crime: Bandidos, Pistas, Detidos

tamento para o Daesh na região. Sualeh tem sido um forte


inimigo dos insurgentes e presidiu aos serviços religiosos,
condenando o jihadismo e orando pelas vítimas.
Aly Nuro, um empresário de Mocímboa da Praia, detido no
dia 24 de Agosto de 2019, acusado de ser um financiador
dos grupos jihadistas.
Até à «reconstrução como Daesh, Abdulrahim Abu Faizal
(Faiçal) Nsamba era provavelmente o líder «Shabaab de
Moçambique» mais importante, depois de uma incursão
policial num suposto esconderijo em Mocímboa da Praia,
em 2018.

Faizal supostamente liderou um ataque a Pundanhar, e


contratou pescadores para logística e recolha de informações.
O SISE e dois serviços secretos de fora de África vêem­‑no
como um elo importante, que liga Moçambique à «Jihad Afri-
cana» (ver também abaixo)5.
Nsamba tem várias nacionalidades, incluindo a ugandesa.
Reconhece que é um simpatizante «espiritual» do Al Shabaab
da Somália, mas diz que nunca esteve envolvido em actos
armados, ou em qualquer violência. Há outros cinco ugande-
ses na prisão, parte do seu grupo, incluindo Mansour Kigozi.
Um dos serviços de informações em causa tentou mostrar­
‑nos, a partir destes nomes, como os contactos são esta-
belecidos entre os radicais regionais de vários países, «sem
aparecerem em nenhum radar de detecção»6.
Faizal, por exemplo, era um dos líderes da Mesquita Usafi,
sita na estrada Mengo Hill, no bairro de Kiguli, paróquia de
Kesinyi III, Kampala, no Uganda.
5
A confissão de Faizal levou à captura de pequenos botes e pirogas de pesca, mas
nem todos os putativos donos foram encontrados ou identificados.
6
Paris, Março de 2019.

47

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Definição da Ameaça

O grupo que frequentava o local de culto espalhou men-


sagens de violência e militância armada, preparou alegadas
acções predatórias, ficou sob investigação, e foi finalmente
invadido e desmantelado por forças especiais de polícia, no
fim de Abril de 2018.
Faizal – que pode ter comandado um grupo inicial de
40 homens e mulheres – escapou do cerco e da cintura de
segurança, aparentemente disfarçado de mulher, durante o
tiroteio (que originou dois jihadistas mortos e vários feridos).
Os fugitivos terão levado armas de fogo, mas deixaram para
trás dois carregadores de 60 munições de 7.62 mm, dezenas
de machetes de lâmina dupla e um computador com dados
de futuras acções7, confirmadas pelas dezenas de militantes
capturados.
A mesquita tinha mais de cem mulheres e crianças seques-
tradas.
Faizal disse ao PRM, e depois repetiu ao SISE, que veio a
Moçambique para «resgatar o irmão Abdul Aziz», sendo este
o líder muito procurado do «Shabaab Moçambicano», que,
segundo fontes tanzanianas, deve ter tido alguns meses de
treino no RDC (ver também abaixo).
Confessou ainda que havia moçambicanos no seu grupo
radical em Kampala, e que toda a estrutura era um ramo local
do Al Shabaab, em contacto com a Al­‑Qaeda. Faizal também
terá ajudado a identificar pelo menos quatro campos/bases
do «Shabaab Moçambicano» (ver abaixo), o que levou à cap-
tura de uma dúzia de presuntivos líderes nacionais. E alertou
o SISE de que a organização é «real», não «uma invenção de

7
Cf. S. A., «SHOCKING: Usafi Mosque leaders were dubious, access was restricted
to Confidants – Witnesses», em SoftPower News, Uganda, 30 de Abril de 2018, 21.40,
acessível em https://www.softpower.ug/shocking­‑usafi­‑mosque­‑leaders­‑were­‑dubious­
‑access­‑was­‑restricted­‑to­‑confidants­‑witnesses/.

48

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O Lugar do Crime: Bandidos, Pistas, Detidos

terceiros», e está espalhada por «vários distritos de Cabo Del-


gado, não apenas Mocímboa».
Faizal também terá colaborado com o SISE e o PRM,
na tentativa de convencer outros «senhores da guerra» a
entregarem­‑se, mas acredita que «o sistema celular está a fun-
cionar, e muitos comandantes agem sem receber instruções
de outras células ou comandos».8
Um analista de um dos serviços de informações mais
experientes da SADC diz­‑nos que o «laço Faizal» é essencial
para perceber o nascimento do EIPAC.
«Na verdade, a mesquita em causa era há anos controlada
pela facção jihadista do ADF congolês, que hoje controla o
EIPAC, e que era comandada por Jamil Mukulu9. Este, como
se sabe, foi extraditado para o Uganda e é acusado de alguns
dos piores crimes de guerra praticados em solo congolês.»
A fonte prossegue:

«O homem detido em Moçambique é, achamos nós, Faisan


Abdullahaman, ou “Hassan Mussa”, uma das suas múltiplas
alcunhas. Sabemos que era um dos elementos mais impor-

8
Sic, de um documento classificado, alegadamente do SISE para um congénere
africano, de 2019.
9
Mukulu, que aguarda julgamento no TPI, era originariamente ugandês sob o nome
de David Steven, e vem de uma família cristã para um «islamismo profundo e cultivado»,
como diz um antigo amigo, que estudou consigo na Arábia Saudita. «Era um verdadeiro
revolucionário», diz a mesma fonte, que o perdeu de vista quando Mukulu comandou um
ataque contra fuzileiros americanos no Uganda. Preso, libertado, Mukulu entrou no cha-
mado Exército de Libertação Nacional do Uganda (ENLU). Fundou o ADF «separado»
em 1996, depois de ter militado e sido comandante na chamada frente ENLU­‑ADF
desde 1989. Saiu com o seu bando do Uganda para o Congo. Procurou ser o principal
representante da Al­‑Qaeda para a África Oriental. No seu caminho «doutrinário» esteve
ainda a passagem pelo grupo «missionário» dos Tablig, que entrara em confronto com
as autoridades tradicionais islâmicas de Kampala. Muitos Tablig negaram­‑se sempre, no
entanto, a pegar em armas, salientando, como noutros sítios do mundo, que a sua missão
era «vigorosa mas pacífica».

49

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Definição da Ameaça

tantes na ligação entre o ADF, o Daesh “central” e as células


a serem criadas no Congo, na Tanzânia, no Uganda, em
Zanzibar, no sul da Somália, e, numa segunda fase, em paí-
ses mais meridionais da SADC. Faisan escapou­‑se a várias
operações policiais, sobreviveu a um ataque aéreo de forças
ugandesas ao QG do ADF, tornou­‑se numa lenda e pode
ser a chave para explicar muito do que se passa agora em
Moçambique.»10

Outros supostos líderes capturados incluem Chafim


Mussa e Adamu Nhaungwa Yangue, ambos da Tanzânia.
Mais sobre isso a seguir (em «Quem são?»).

10
Pretória, Janeiro de 2020, contacto telefónico. F. diz­‑nos que Faisan possuía vários
documentos de identidade e diversos disfarces, e que muitos serviços secretos não pos-
suíam a noção exacta da sua cara.

50

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O B J EC T I V O S D O B A ND O

Como se seguíssemos o processo judicial em curso ou a


vir, mostramos, a seguir, mais matéria de investigação que
parece importante e permanece classificada (obtida através
de fonte policial de uma embaixada em Maputo).
O anterior Shabaab, e com menos frequência o actual
EIPAC, deixaram para trás, em campos capturados, dados
sobre futuras operações, ou listas de alvos. Várias empresas
que operam em Moçambique apareceram num desses mapas
de alegado planeamento. Outras surgem num documento
apreendido a um jihadista abatido na Tanzânia, em 2018, ale-
gadamente parte do mesmo grupo.
Há referências a nomes de pessoas, companhias, infra­
‑estruturas, lugares e marcas. Não estão os documentos
acompanhados de análise do que isso tudo significa, mas os
pesquisadores acreditam, segundo nos revelaram, que essas
designações são objectivos passados, actuais e futuros.
Uma fonte adicional de intelligence (africana) sugere que
isso pode significar instituições ou lugares onde os «radicais»
também têm o seu pessoal ou informadores infiltrados, o que
seria mais preocupante.

51

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Definição da Ameaça

A seguir, os elementos decifráveis da lista, e os que nos


foram transmitidos pela fonte (esta avisou­‑nos de que se
tratava apenas de uma «amostra» de um documento maior).

a) Empresas

Mokzen, Montepuez Ruby Mining, Wentworth, Syrah,


ENH Rovuma, Mitsui, ONGC, BEAS Rovuma, BPRL, Ana-
darko, PTTEP, ENI, SASOL Temane (sic), Bagamoto, Puma,
BCI, MM, Zagote, «Ojeda Group» (transcrição fonética a
partir de indicação telefónica), TRACUS, Século Africano,
Rani Nexar (transcrição fonética a partir de indicação telefó-
nica).

b) Infra­‑estruturas ou outros

Ponte Unidade (Unidade), Mueda, Namoto, fronteira com


a Tanzânia, balsa ANE (batelão).
O documento também indica notáveis muçulmanos que
os grupos «radicais» consideram inimigos ou alvos:
Saide Bacar (Montepuez), Abacar Abdala (Quiterajo),
Shumar Alifa (MdP), Hamido Abdul Camal (Montepuez),
Selah Haif (Macomia), Tuaha Hassane (MdP), Nassuruhale
Dulá (Pemba).
Os ataques contra esses homens e suas famílias, e outros
cujos nomes não nos foram divulgados, aumentaram depois
que o Daesh assumiu o controlo de Shabaab, nos últimos sete
meses.
O mesmo documento também sugere que Pemba é um
objectivo «final», pelo menos para os grupos desmantelados
na Tanzânia, perto da fronteira com Moçambique (ver tam-
bém abaixo).

52

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O S C U S T O S D A C A M P A N H A NE G R A

Em cerca de três anos, houve muitos ataques do bando


inicial, e dos vários grupos que actuam incluídos em alguns
papéis visíveis de «jihad, pseudo­‑jihad ou proto­‑jihad» (como
será discutido a seguir), incluindo o Daesh EIPAC, a partir de
Junho de 2019.
Fornecemos uma lista detalhada de ocorrências, e uma
espécie de resumo geral de baixas e danos, para mostrar
o consenso mais importante, verificado por duas fontes
de serviços de informações (uma não europeia e uma não
africana).
O balanço feito por observadores independentes, trans-
mitido a uma agência de informações confiável (fora de
Moçambique), e analisado e confirmado por outra instituição
homóloga (europeia).
Indica os seguintes números de consequências da violên-
cia organizada, de 5 de Outubro de 2017 a final de Janeiro de
2020:

200­‑350 mortos, incluindo civis, pessoal de segurança e bandidos.


Uma terceira agência eleva esse número, em torno de 500,

53

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Definição da Ameaça

com 100 perdas para o FDS (polícia e militares1) e cerca de


80 para atacantes. Coloca civis mortos em cerca de 200 a
300. Já os bispos de Pemba e Tete revelaram a fonte credível
que estimavam em 500 o número de mortos civis, até ao fim
de 2019. Quanto à organização Médicos Sem Fronteiras,
fala em 700 mortos até à mesma data.
450 a 600 civis feridos, incluindo 100 amputações. Um número
sugerido por uma das agências totaliza cerca de 800.
Pelo menos 145 ataques importantes, provavelmente 200 no total
(incluindo assaltos gorados e não relatados, e também rou-
bos sem vítimas humanas), no mesmo período.
Registam­‑se 830 a 1200 residências destruídas (casas, cabanas,
palhotas). Uma agência das três consultadas coloca o
número no dobro, mas inclui também currais, oficinas e
edificações não residenciais.
70 edifícios e instalações públicas e administrativas de vários tamanhos,
total ou parcialmente destruídos. Uma das agências consultadas
regista «mais de cem».
70 a 90 veículos ligeiros, médios e pesados danificados, destruídos
ou sequestrados, públicos (inclusive das FDS), empresariais
ou privados. Duas agências colocam o número em cerca do
dobro, mas incluem tractores e máquinas agrícolas.

A nossa avaliação é diferente, se bem que não excessiva-


mente divergente.
Apenas com base em cem por cento de incidentes con-
firmados, descritos meticulosamente a seguir (Cf. Cronolo‑
gia), calculamos um mínimo de 219 mortos civis, 137 feridos
também civis, 121 a 138 elementos das FDS mortos, 800
1
As FDS são as «Forças de Defesa e Segurança», incluindo as FADM (forças arma-
das e de defesa de Moçambique), a PRM (Polícia da República) e outras entidades de
patrulha fronteiriça, investigação criminal, segurança e informações.

54

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Os Custos da C a m pa n h a N e g r a

casas destruídas, e cerca de 95 alegados «radicais» elimina-


dos.
O número de raptados e desaparecidos não está determi-
nado, até porque muitos deslocados internos integram desa-
parecidos ainda não identificados, mas fala­‑se em cerca de um
milhar de civis, sobretudo crianças e mulheres, no campo dos
sequestrados pelos bandos.
Quanto ao número de deslocados internos – em Cabo
Delgado e para outras províncias – há também contas diver-
sas.
Um boletim informativo do governo provincial de Cabo
Delgado, pouco divulgado e publicado em 5 de Fevereiro de
2020, indicava 156 428 refugiados internos, referentes a sete
distritos atacados. O mesmo documento referia a destruição
permanente de, pelo menos, 76 escolas.
Já o braço humanitário da ONU, a UNHCR, calcula em
«no mínimo 100 mil deslocados», desde 2017.

55

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C R O N O L O G I A E DE T A L H E S D O S
P R INCI P A I S A T A Q U E S

Pré­‑2017 sa fonte que também um total de 10 mortos.


Em Outubro de 2016, anunciaram futuros * Ainda em Outubro:
houve um ataque às sub- ataques contra a polí- ataques a vários pré-
unidades PRM no bair- cia se fossem «tocados dios públicos e estações
ro Ncolarinho de Pal- mesmo com um dedo de PRM. Quinze fuzis
ma. Em retrospectiva, é enquanto estivessem na AK­‑47 Kalashnikov
atribuído aos «primeiros prisão». roubados da PRM, com
bandos armados», numa * 5­‑7 de Outubro: pri- 8000 cartuchos de mu-
tentativa «experimental» meiros ataques orga- nição.
que envolveu «coopera- nizados; os principais * 12 de Outubro: ata-
ção» com civis «radica- alvos foram estações de que contra Maculo, Mo-
lizados». PRM. No final dessa sé- címboa da Praia (MdP),
rie de incidentes, pelo com 22 mortos, incluin-
2017 menos 4 militares, 2 po- do 4 policiais. O restan-
* Um «grupo de doutri- lícias, 12 atacantes e um te das baixas foi feito de
na» de pelo menos três chefe tradicional foram «radicais».
homens foi detido em mortos. * 13 de Outubro: nunca
Mucojo, Macônia, em * Outubro de 2017: admitido oficialmente
30 de Junho de 2017, ataque ao Comando por Maputo, emboscada
acusado de pedir uma Distrital do PRM em contra um comboio de
rebelião muçulmana Mandimba, com AK­ dois camiões de trans-
(Cabo Delgado é 58 a ‑47, granadas e RPG. O porte e um jipe, vindos
65 % muçulmano) con- posto policial foi incen- de Pemba a Mocímboa
tra a «opressão». Uma diado, juntamente com (distância de 340 km).
testemunha disse à nos- quatro veículos. Houve Os veículos transpor-

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Definição da Ameaça

tavam polícias, equi- cional da polícia, Ber- * 27 de Maio: grande


pamentos e alimentos. nardino Rafael, ter dado ataque contra Olumbi
Baixas desconhecidas, um ultimato de sete dias (Palma), com 10 mortos
mas a carga foi parcial- para que todos os «in- e 11 feridos. Aconteceu
mente destruída. surgentes» se entregas- em plena luz do dia, às
* Ainda em Outubro: sem, sob risco de serem 14 horas.
ataque à delegacia e pon- caçados sem piedade *31 de Maio: ataques a
tos comerciais locais, como «terroristas». Mucjo­‑Quiterajo, Ma-
Mocímboa. Os atacan- comia, com 16 mortos
tes tinham fuzis AK­ 2018 civis e 3 das FDS.
‑47 e HK 33. Tentaram * 14 de Janeiro: ataque * 11 de Junho: 4 mor-
assaltar uma delegação de Olumbi (Olumbe), tos em ataque contra
local do Millenium BIM Palma; AK­‑47 usadas; Changa, Nangade. Ata-
e mataram dois guardas. 5 mortos e 20 feridos. que contra o posto da
* 21 de Outubro: 11 su- Destruição do mercado FADM.
postos «radicais» captu- de Nturleni. * 18 de Junho: ataque à
rados por civis. * 15 de Janeiro: ataque vila de Ibu (Ibo), Quite-
* Dezembro: Várias contra o centro médi- rajo, Macomia, com 44
tentativas de cortar a es- co em Nangade, com casas queimadas.
trada R762, envolvendo saqueadores a roubar 4 * 20 de Junho: assal-
40 «radicais». motos e um Landcruiser tos a Litandacua, Chai,
* 17 de Dezembro: ata- 22 de Abril: ataque con- Macomia, com 40 casas
ques em Mutumbane, tra Chilanga, Ntamba, queimadas, 5 mortos,
também com AK­‑47. Nangade; 1 decapitado; vários feridos.
Ataque contra o posto 6 casas destruídas; gado * 20 de Junho: ataque
de FDS em Mitumbate roubado. contra posto da FADM
(Mitambate), MdP. Vin- * Maio­‑Junho: ataques em Macomia, pelo me-
te e cinco casas incen- em Quissanga. Alguns nos 4 mortos.
diadas. Alegadamente, falharam, levando à *26 Junho: ataques per-
o director de reconhe- detenção de supostos to de Palma e Ntole,
cimento da 10.ª UFIR líderes (7). Vários dos com 11 mortos. Ata-
(FIR/UIR) 1 foi mor- suspeitos foram tam- ques na fronteira entre
to. Estava baseado em bém presos depois de Tanzânia e Moçambi-
Pemba. Isso ocorreu ataques em Mucojo que, com 8 mortos da-
depois de o chefe na- (Macomia). quele país.

1
UFIR­‑ Unidade da Força de Intervenção Rápida, a polícia especial do Ministério do
Interior, integrada na PRM, com funções que vão desde o controlo de motins ao contra
e antiterrorismo.

58

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Cronologia e Detalhes dos P r i n c i pa i s A taqu e s

* 7 de Julho: ataque mados com espingardas lotão da FADM, 10


contra Macanca­‑Nhica, automáticas e granadas; mortos e 14 feridos.
Pundanhar, 4 mortos. A 10 mortos, 15 feridos, *18­‑19 Setembro: ata-
SE do centro industrial 40 a 60 casas queimadas, ques a Quiterajo, Ma-
de Palma. saques em larga escala. comia, Cobre. Alegação
9 de Julho: ataque de 21 de Setembro: grande de um máximo de 30
Mbau, na margem do ataque a Piqueue, Maco- vítimas civis e militares,
rio Messalo, 4 decapita- mia, com 10 mortos, 14 e muitas armas rouba-
dos. Aparentemente, as feridos e 55 casas quei- das, incluindo Kalashni-
vítimas estavam numa madas. kovs, morteiros ligeiros
lista de jovens «recrutas * 23 de Setembro: ataque e RPG.
desertores». contra N’Pundanhar, *21 Setembro: ataque
10 de Julho: ataque con- perto de uma suposta a Pequene, Macomia,
tra Quissingula, Palma; base de bandidos. Um alegadamente com 12
20 homens, armados grupo de cerca de 40 mortos
com AK­‑47; Ar mas agressores, subdividi- *7 de Outubro: alega-
roubadas. O grupo veio dos em 6 grupos, estava damente 9 mortos en-
de Namoto, uma vila totalmente activo. Uso tre o Daesh, depois de
fronteiriça. de pelo menos 3 RPG­ ataques a Limala­‑Mbau,
* 23 de Agosto: ataque ‑7 contra um blindado Mocímboa da Praia.
contra Cobre, Quitera- das FADM (VBTP2 do *22 de Outubro: ata-
jo, Macomia; 2 mortos, tipo BTR), 4 militares ques a Miangaleuwa,
12 casas destruídas, 8 a mortos, incluindo um Mui­dumbe.
12 espingardas de servi- coronel. Ataques tam- * Final de Outubro:
ço roubadas às FDS. bém em Mbau, com 10 a Aldeia Unidade, em
*5 de Setembro: ataque mortos civis e 50 casas Quiterajo, Macomia, foi
a Malinde e Ilala (Ma- incendiadas. Ataque a totalmente destruída.
comia), com destruição uma sede da FRELI- *27 de Outubro: ataques
de todas as habitações e MO. Aleg adamente a Namala e Miangaleua,
roubo de víveres e ani- 15 armas capturadas à alegadamente com 20
mais. Baixas não calcu- UIR, com vítimas entre baixas entre FDS e ins-
ladas. esta. Ataques também trutores militares.
*20 de Setembro: ataque em Lindala, Muidumbe, *1 de Novembro: FDS
contra Ntoni, Mucojo, com 2 mortos civis. contra­‑ataca em Uidum-
Maconia. Os atacantes * Início de Setembro: be, Marere, rio Messalo.
estavam todos vestidos ataque a 15 km de Co- 11 de Novembro: ata-
com farda militar, e ar- golo, onde há um pe- que contra um grupo

2
VBTP – Veículo Blindado de Transporte de Pessoal.

59

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Definição da Ameaça

de caçadores, perto da Chicuaia Velha; 12 mor- recusaram a usar véu.


Tanzânia, em Punda- tos, os sobreviventes Casas queimadas.
nhar; 6 mortos, alguns correram para a Tan- * 6 de Janeiro: ata-
decapitados. zânia. Primeiro negado que contra transporte
*3 de Novembro: ata- e depois admitido pela (táxi informal), estrada
que às aldeias de Mani- polícia. Não havia ar- Palma­‑Mpundanhar; 7
lha e Mumu, Mocímboa mas de fogo envolvidas, mortos, 7 feridos.
da Praia, alegadamente mas vários tipos de fa- * 10 de Janeiro: Ataque
4 a 10 mortos e feridos. cões, alguns para «exe- ao centro médico de
*4 de Novembro: ata- cução ritual». Maganja, a leste de Pal-
que do EIPAC em Beni, * 25 de Novembro: ata- ma (4 km de Quitupo,
RDC, alegadamente que a um camião, perto onde a FADM tem um
com baixas militares das do rio Ruaça, na fron- posto com 20 soldados),
FARDC. O comandan- teira com o Niassa; um 2 mortos e 4 casas quei-
te do grupo atacante morto, carga roubada. madas. Alegações de
teria regressado de Mo- Transportava diferentes participação de deser-
çambique uma semana mercadorias destina- tores da FADM, reco-
antes. das a Pemba. Pessoas nhecidos pelos locais. O
*13 de Novembro: ata- na vila vizinha de Ba- ataque provocou muito
que a Nsemo, alegada- lama testemunharam a pânico e uma pequena
mente com 3 mortos, a fuga dos agressores, que onda de refugiados em
Afungi e Mute (Palma), eles identificaram como Mocímboa, e também
já perto das instalações Shabaab. Foi o ataque nas ilhas Ibo e Matemo
de exploração. mais ocidental até a (com mil refugiados).
* 14 de Novembro: ata- data. Uma equipa do SISE
que a Nagalue (Nagu- *17 de Dezembro: ata- tenta investigar infil-
lue), Mucojo, Macomia; que a Mengaleua (Chi- trações para explorar
um morto, 20 casas tunda), Muidumbe, as ilhas como próximo
destruídas. Pelo menos alegadamente com 5 alvo. A FADM levou
uma AK­‑47 usada. O baixas das FDS e 3 civis. 6 horas para chegar a
grupo consistiu em cer- Maganja. Decapitações
ca de 8 a 10 homens. 20193 relatadas, embora não
* 22 de Novembro: ata- * 5 de Janeiro: ataque haja um aviso firme de
que contra Mitumbati, contra Mussemuku, vítimas.
Mocímboa da Praia. distrito de Ibo, com su- *10 de Janeiro: ataque
* 24 de Novembro: posta ameaça de execu- em Nailwa (Palma), um
grande ataque contra ção de mulheres que se morto.

3
NB – A negro, as reclamações no Congo.

60

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Cronologia e Detalhes dos P r i n c i pa i s A taqu e s

11 de Janeiro: ataque a mortos e 12 feridos apoio logístico contra


Manilha (Manila), 21,4 em ataques no trajecto os bandidos armados.
km a oeste, ligeiramente Macomia­‑Mucojo. Temeu­‑se um disparo
ao sul de MdP, e duas *Fim de Fevereiro: dois de míssil portátil to tipo
aldeias na região de ataques na estrada Mo- SA­‑74, mas tratou­‑se de
Nambude; 4 mortos, 4 címboa da Praia, penín- um acidente mecânico,
feridos, 6 casas queima- sula de Afungi, com um e depois possível erro
das. colaborador da empresa humano na aterragem
* 12 de Janeiro: falha no de gás natural Anadar- em solo demasiado aci-
ataque à vila de Man- ko morto e 6 feridos. dentado.
guna (Palma); 4 captu- A violência deu­‑se a es- *18 de Abril: primei‑
rados pela FADM, de cassos 20 km da sede ro ataque reclamado
uma suposta base em operacional da empresa. pelo recém­‑formado
Quipuide­‑Mipama. *6 de Abril: ataque a «EIPAC» no Congo,
* 14 de Janeiro: tiroteio posição das FDS, em em Bovata, Kamango.
próximo ao posto admi- Maculo, Mocímboa da * 1­‑4 de Maio: fontes
nistrativo de Olumbi; 7 Praia, com 2 mortos e de ONG dizem­‑nos
mortos. armas roubadas que houve 13 ataques
* 20 de Janeiro: ataque *7 de Abril: as FDS durante este mês, com
contra Chitolo, a 20 km tomam de assalto uma 25 mortos, 60 feridos e
do Mocímboa da Praia, base alegada do bando 500 cabanas/casas quei-
às 22h; um morto, 20 terrorista, em Macomia. madas.
casas queimadas. Feitos alguns prisionei- *5 de Maio: EIPAC
* 1 de Fevereiro: ataque ros. Congo mostra armas
a Mwangaza (Nangade), *14 de Abril: um heli- e equipamentos ale‑
4 decapitados, incluin- cóptero militar Mil Mi­ gadamente captura‑
do o professor da escola ‑8TV, da Força Aérea dos às FARDC em
local. de Moçambique, com o Mamuri e Kalyanjoki
*7 de Fevereiro: 7 mor- número FA 079, cai em (Butembo): 11 AK­‑47,
tos civis e 4 raptados em Muidumbe, na aldeia de 1 RPG, 22 carregado‑
vários sítios de Cabo Lijungo, posto adminis- res de espingarda au‑
Delgado. Uma ONG trativo de Muambula. tomáticas, centenas
fala de 60 a 100 mil de- Os feridos são trans- de munições, 2 rádios,
salojados internos. portados para Mueda. 5 telemóveis, 1 calcu‑
*25 de Fevereiro: 6 Vinha de uma missão de ladora.

4
A posse de meia dúzia de tubos lançadores foi sugerida por fonte militar estrangeira
em Maputo, mas nunca confirmada. Seria uma alteração qualitativa brutal das circuns-
tâncias da guerra.

61

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Definição da Ameaça

*8 de Maio: EIPAC Congo reclama ata‑ Tipo 69, da fabrico


Congo reclama ata‑ ques no Kivu do chinês, 40 carrega‑
ques contra posições Norte, contra postos dores de AK­‑47, mi‑
militares em Bundu‑ militares. lhares de munições,
guya. *4 de Junho: o EIPAC, 7 granadas­‑foguetes,
*9 de Maio: novas re‑ «Katiba de Moçambi- 4 coletes balísticos e 9
clamações do EIPAC que», anuncia o seu capacetes.
Congo. primeiro ataque, a uma *25 de Junho: o EI‑
*16/17 de Maio: o EI‑ localidade que chama PAC do Congo recla‑
PAC Congo reclama de «Mitopy», em Mo- ma ataques a postos
ataques contra milita‑ címboa da Praia. Diz militares em Totoli‑
res em Beni, incluin‑ ter investido contra um to, com 9 mortos das
do o assalto a um posto das FDS em «Mi- FARDC (o comunica‑
aquartelamento. topi», com 16 mortos do é complementado
*23 de Maio: o EI‑ e 12 feridos. Distribui no dia seguinte).
PAC do Congo recla‑ fotografias de armas *26 de Junho: ataques
ma ataques na região alegadamente captu- na aldeia de Ntole, Pal-
de Beni e Kamango, radas, que incluem um ma, com 11 mortos e 8
contra posições das R P G ­‑ 7 c o m c i n c o feridos civis. Ataques
FARDC. granadas­‑foguetes, uma a pescadores tanzania-
*28 de Maio: ataque metralhadora de cali- nos.
em Macomia, camião bre médio PKM, 2 es- *26 de Junho: o EI‑
Mitsubishi destruído, 19 pingardas automáticas PAC Congo anuncia
mortos, incluindo 3 ele- Kalashnikov e 18 car- ter morto 9 elementos
mentos das FDS. regadores de AK­‑47, das FARDC no Kivu
*30 de Maio: EIPAC com algumas centenas do Norte, e ataques
Congo reclama ata‑ de munições. em Kasinga (incluin‑
ques às FARDC e à *4­‑5 de Junho: o EI‑ do atentados à bom‑
ONU, em Mavivi, PAC do Congo recla‑ ba), com «muitas
Beni. AS FARDC con‑ ma ataques em Beni, vítimas». As FARDC
firmam uma batalha com 25 vítimas. confirmam os com‑
contra o ADF, mas em *16­‑17 de Junho: o EI‑ bates, mas falam em
Ngite, dizendo que PAC, Katiba do Con‑ «ADF».
abateu 20 terroristas. go, publica imagens *28 de Junho: EIPAC
*31 de Maio: ataques de armas apreendi‑ do Congo reclama
em Mucojo­‑Quiterajo, das alegadamente às ataques e posições
Macomia, com 16 mor- FARDC , em com‑ militares em Tinam‑
tos civis e 3 das FDS. bates em Butem‑ bo e Oicha, com víti‑
*31 de Maio: EIPAC bo – 3 PKM, 3 RPG mas nas FARDC.

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Cronologia e Detalhes dos P r i n c i pa i s A taqu e s

*10 de Julho: EIPAC polícia: mais armados, ne, Camalinga (MdP),


do Congo reclama mais disciplinados, mais Nacotuco e Simbolon-
ataques em Kishanga, comandados e com go (Norte de Mucojo).
com 3 soldados das mais noções tácticas. *Início de Setembro:
FARDC mor tos. A *10­‑19 Agosto: os pri- chegada de 3 helicóp-
agência AMAQ mos‑ meiros ataques comple- teros Mi­‑8/17 a Nacala,
tra filme. tamente «profissionais» fornecidos pela Federa-
*1­‑12 de Julho: ataques comandados por ele- ção Russa à Força Aé-
em Malinde e Makulo mentos veteranos do rea de Moçambique.
(Mocímboa da Praia), e Daesh, vindos do Con- Os aparelhos vinham
Namaneco (Macomia). go, mas quase todos acompanhados por téc-
*5 de Julho: o EIPAC não africanos, segundo nicos e instrutores.
de Moçambique recla- testemunhos de sobre- *14 de Setembro: ata‑
ma nova captura de viventes. Os alvos fo- que do EIPAC Congo
armas, e mostra 6 AK­ ram várias aldeias de a uma aldeia descri‑
‑47 novas, 2 granadas Macomia e Mocímboa ta como «Kinshanga,
de morteiro de 60 mm da Praia, como Milamba em Beni».
e diversas munições de (Quiterajo), Ilala e Ntu- *15 de Setembro: o
RPG. leni. O Daesh reclamou EIPAC, comando da
*12 e 14 de Julho: EI‑ também um ataque a RDC, anuncia ata‑
PAC Congo reclama Lidjungo, que diz ficar ques contra forças
ataques a posições em Nangade. congolesas e da ONU
militares em Owicha, *11 de Agosto: a Amaq (MONUSCO), em
com 8 mortos milita‑ (agência noticiosa do Kishanga, Beni, com
res das FARDC (fil‑ Daesh) reclama ataques muitas baixas.
mados). do EIPAC a várias «co- *12­‑16 de Setembro:
*26 de Julho: o EIPAC munidades cristãs» de ataque 15 km de Cogo-
anuncia a «execução» de Cabo Delgado, uma das lo, onde há um pelotão
4 «espiões militares» e poucas reivindicações da FADM, com 10 mor-
destruição das suas re- apenas sobre alvos civis. tos e 14 feridos. Ataque
sidências, perto de Mo- *23 de Agosto: ataque ao posto policial de
címboa da Praia. a Machava, Nangade, Quiteraje, com destrui-
*Até 10 de Agosto: ata- com 5 mortos. ção de vários blindados
ques em Linche (Nanga- *26 de Agosto: ataque de transporte.
de), Limala (MdP), Chai a Ulo, Mocímboa da *23 de Setembro: ata-
(Macomia) e Maganja Praia, com um morto ques com pelo menos
(Palma). A organização civil. 12 mortos, feridos, de-
dos atacantes mudou *27 de Agosto: 7 mortos saparecidos e aldeias
totalmente, segundo a em ataques a Quelima- devastadas. Principal-

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Definição da Ameaça

mente afectadas aldeias ataques de morteiro de fiantes, sobretudo os


no distrito de Mocím- 120 mm e canhão sem grupos de combate trei-
boa da Praia, com 20 recuo B11, em Napa- nados em Mueda, Mon-
raptos e 50 casas incen- la, Mucojo, Macomia e tepuez e Nacala.
diadas. Mbau, Quiterajo, Diaca, *21 de Outubro: a Ka‑
*25 de Setembro: o Pre- Miangalewa e Chitoio tiba do Daesh continua
sidente Nyusi declara (Mocímboa da Praia), e a afirmar ter capturado
«estamos a ser invadidos na Nova Zambézia. Foi um sargento moçambi-
do exterior». a maior contra­‑ofensiva cano, que diz ir mostrar
*26 de Setembro: a moçambicana de 2019, em público, assim como
agência Amaq do Daesh havendo registo de de- «dezenas de armas»,
anuncia a captura de zenas de mortos do mas ainda não apresen-
muitas armas e muni- Daesh, incluindo em tou provas do sucedido.
ções às FDS de Moçam- duas bases costeiras. *22 de Outubro: alguns
bique. São divulgadas Do lado moçambicano, ex­‑oficiais da RENA-
imagens de 14 espingar- também algumas baixas, MO têm tido papel re-
das automáticas Tipo incluindo 3 mortos e levante nas operações
56 (cópias da AK­‑47), dois feridos graves das do Norte de Moçambi-
1 metralhadora RPD e equipas russas. que, entre eles o coronel
milhares de munições. 20 de Outubro: duas António Pedro Douce
*26 de Setembro: o bases que já foram da (Defesa Antiaérea) e o
EIPAC do Congo re‑ guerrilha da FRELIMO coronel Inácio Macha-
clama ataque a posto contra Portugal, deno- meche (comandante de
militar, com baixas. minadas «Domingos» infantaria na unidade de
*2 de Outubro: 34 deti- e «Rússia», estiveram Pemba).
dos à saída de Nampula, também no centro dos *25 de Outubro: a agên-
aparentemente futuros aludidos combates. O cia Amaq do Daesh diz
recrutas do jihadismo. Daesh retirou o que que capturou muitas
*6 de Outubro: em- pôde dali. Embora não armas aos «cruzados»
boscada das FDS, sob tenha havido ainda a moçambicanos, numa
enquadramento de ins- captura do comandante localidade que designa
trutoresrussos, ao Daesh, da Katiba, alegadamente como Imbatu.
em Limala­‑Mbau, dis- um antigo pregador de *31 de Outubro: o EI-
trito de Mocímboa da Nampula, nem do seu PAC quebra o silêncio,
Praia. Pelo menos 9 grupo de segurança, depois da ofensiva go-
mortos do EIPAC. aparentemente consti- vernamental. Diz tê­‑la
*15/20 de Outubro: as tuído por tanzanianos «travado», e reclama em
FDS, enquadradas por e congoleses, as FDS comunicado a captura
peritos russos, lançaram tornaram­‑se mais con- de muitas armas das

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Cronologia e Detalhes dos P r i n c i pa i s A taqu e s

FDS de Moçambique – creto de Saddam Hus‑ * 27 de Novembro:


25 AKM, metralhadoras sein, companheiro do ataque contra Nacutu-
ligeiras e 10 RPG­‑7 e abatido Al Baghdadi. co, perto de Mucojo,
22 com munições. Pu- A publicidade é dada Macomia – um mor-
blica através da agência no boletim Naba n.º to, 20 casas destruídas,
Amaq as fotografias das 207. 14 barracas roubadas
mesmas. *13 de Novembro: o e destruídas. Ataque a
*1­‑2 de Novembro: EIPAC anuncia a «exe- Tingina, Nangade, com
ataque a Mau e Mumu, cução» de 11 «espiões» destruição de 8 veículos
incluindo um camião moçambicanos na fron- e 30 casas.
de passageiros. Alega- teira com a Tanzânia. * 3 de Dezembro: ata-
damente 13 mortos e 7 *10­‑15 de Novembro: que à vila de Machava,
feridos. ataques às aldeias de Nangade, em plena luz
* 2 d e N o ve m b r o : Quibunji, Fungi e Pon- do dia, na hora do al-
ataques na zona de ta Nssemo, junto a Pal- moço; 4 mortos; AK­‑47
M a n i l h a ­‑ M u nu , n o ma e aos projectados usadas. Carga de caju
trajecto Mocímboa da complexos industriais roubada. Ataque, tarde/
Praia­‑Mueda, com 4 multinacionais. Ataque noite, na vila Quinto
mortos e 10 feridos ci- a Ngongo, no rio Ro- Congresso, Nangade
vis. vuma, do lado tanza- – 43 casas queimadas,
*4 de Novembro: o EI‑ niano, com «execução uma pessoa morta, com
PAC, Katiba do Con‑ sumária» de pescadores milícias da defesa local a
go, afirma ter morto locais. Bob Boaz, chefe repelirem o ataque.
um número indeter‑ da polícia de investiga- *4 de Dezembro: 2
minado de militares ção criminal da Tanzâ- mortos civis depois de
das FARDC (6?), em nia, atribui os ataques ao ataque e destruição de
Kokola, Beni. Do ter‑ EIPAC. Matapata, perto de Pal-
reno fala­‑se em 10 bai‑ *16­‑17 de Novembro: ma, Mocímboa da Praia.
xas, mas civis, e mais ataque e ocupação por *5­‑6 de Dezembro: ata-
de 20 sequestrados. um dia de Miangaleua, que inicialmente recla-
*7 de Novembro: o distrito de Muidumbe. mado (no próprio dia
EIPAC, incluindo as *21 de Novembro: ata- 6, pelo Daesh) a Malali,
Katiba de Congo e que a Tingina, Nangade, dita em MdP. Alegada-
Moçambique, procla‑ com destruição de casas mente 16 membros das
mam «oficialmente» e veículos. FDS mortos ou feridos.
a submissão, lealdade *22 de Novembro: ale- O Daesh filma e divulga
e compromisso com o gadamente 8 mortos a pós­‑violência, mos-
novo chefe do Daesh, das FDS em ataques a trando algumas dezenas
um antigo agente se‑ Mengalewa e Dimaio. de jovens bem arma-

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Definição da Ameaça

dos, de cara descoberta. * 11 de Dezembro: ata- cisterna ao serviço das


Descobre­‑se depois que que a Nalyandele (Pal- FADM, em Mbau.
o raide foi contra Na- ma), 3 mortos, 15 casas *20 de Dezembro: ata-
rere (Marere), na área queimadas. que a Chitunda, Mui-
do posto administrativo *12 de Dezembro: ata- dumbe, com 2 mortos,
de M’Bau, MdP. Deu­ ques a Mengalewa, Chi- e raide a Milamba, Ma-
‑se alegadamente com tunda, com 5 mortos. comia, com 3 mortos,
14 baixas entre as FDS. Vários membros das uso de AK­‑47, 30 casas
Pelo menos um veículo forças de segurança es- queimadas.
da Polícia (PRM) rou- tão desaparecidos ou *21 de Dezembro: ata-
bado pelo Daesh, com a falecidos, e familiares e que a autocarro em Gai,
matrícula AIG­‑985­‑MC. amigos dizem que quem 2 mortos. Ataques a
* Primeira semana de tiver informações so- norte de Pemba, posto
Dezembro: ataque à vila bre as famílias telefo- de Chitunda (Muidum-
de Nfindi, um centro ne s.f.f. para o (00258) be).
de pesca, localizado na 845211317. *23 de Dezembro: fu-
fronteira dos distritos *14 de Dezembro: navio zileiros e polícia judi-
de Mocímboa­‑Palma. com droga (alegadamen- ciária moçambicana
Este ataque ocorreu te 1000 kg, queimados (SERNIC) interceptam
muito cedo pela manhã pelos traficantes) in- carregamento de 431 kg
(6h30) e envolveu dois terceptado pelas auto- de heroína, que seriam
comandos de cerca de ridades moçambicanas. introduzidos por via
20 homens, e pelo me- Treze membros de marítima, através de
nos duas mulheres. Três uma família de origem Pemba. Treze detidos
pescadores foram deca- iraniana (de apelido de origem paquistane-
pitados: eles alegaram Buluj) presos. Suspeita sa. As mesmas suspeitas
ter informado as autori- de ajudarem ao finan- relativas ao outro navio
dades de uma «unidade ciamento do Daesh. O capturado: o EIPAC fa-
de espiões marítimos» grupo era comandado zia parte do sistema de
da organização radical, do Iraque, através do financiamento?
que tinha uma base por número de telefone *25 de Dezembro: dez
perto até sua destruição 00989153453001, e dizia mortos e 9 feridos em
pelo FDS, em Outubro que o alto contacto da ataques a Chibabawa.
de 2018. rede se chamava Adjuba *26 de Dezembro: ata-
* 10 de Dezembro: falha Kibabaro (Kebbabaro), que a Inguane, Maco-
no ataque a Malamba tendo o carregamento o mia, um morto e 6 casas
(Palma), seis bandidos número de código 8751. queimadas.
capturados, um morto *18 de Dezembro: des- *29­‑30 de Dezembro:
civil e três sequestrados. truição de um camião a katiba congolesa do

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Cronologia e Detalhes dos P r i n c i pa i s A taqu e s

EIPAC ataca Apetina, (Muidumbe) e Matola sas de ajuda, mas afirma


no Kivu do Norte, e (Norte de Pemba). que estes oferecimentos
mata 18 pessoas, em *22 de Janeiro: EIPAC não eram «concretos»
contraciclo da plena Congo reivindica ata‑ quanto às modalidades.
campanha das FAR‑ que em Beni, depois O novo adido de defesa
DC contra o grupo. de o comando das americano em Maputo,
* 30 de Dezembro: FARDC ter anunciado coronel O’Reilly, afir-
ataque contra Pequené a tomada do quartel­ ma que o seu governo
(Ilala), ataque ao pos- ‑general do ADF, e de «está disposto a todas as
to de Quiterajo (Maco- o ter reduzido a «20 % formas de ajuda» para
mia). dos seus efectivos». combater o terror no
*Fonte canadiana con­ *23 de Janeiro: EIPAC Norte.
firma­‑nos, em Dezem- Congo reivindica dois *17 de Janeiro: ataque
bro, «conselhos para ataques no Norte de e destruição da aldeia
não viajar até Ancuabe, Kivu. Manica, em Mucojo, e
Ibo, Macomia, Meluco, *24 de Janeiro: alegação de Ningaia – um morto,
Mocímboa da Praia, de ataque a Ibo (ilha?), um ferido, dezenas de
Muidumbe, Nangade, feita por Telegram (não refugiados.
Palma e Quissango», Amaq). *21 de Janeiro: um
alargando assim o alerta *28 de Janeiro: 38 grupo numeroso do
diplomático ao norte do mortos no Congo pro‑ EIPAC – Katiba do
arquipélago das Quirim- vocados pelo EIPAC, Congo, ataca três po‑
bas. segundo uma ONG sições das FARDC
*Uma fonte da PRM fiável (não reivindica‑ em Kokola, não mui‑
diz­‑nos que, durante dos pela Amaq, mas to longe de uma base
2019, 250 jovens foram sim por Telegram). alegadamente tomada
interceptados quando se *5 de Fevereiro: EI‑ do grupo, e a cerca de
tentavam juntar aos gru- PAC Congo reivindica 60 km a norte da cida‑
pos de bandidos. ataque às FARDC em de de Beni. O ataque
Butembo. falha, o bando foge
2020 *14 de Fevereiro: na para as matas, e talvez
*5 de Janeiro: ataque apresentação de cum- por isso a acção não
a um camião de pas- primentos do Corpo tenha sido reivindica‑
sageiros em Antadora, Diplomático, o presi- da na agência Amaq.
Macomia, ido de Palma dente Nyusi reconhece a *23 de Janeiro: ata-
para Pemba. Alegada- dimensão internacional que devastador a duas
mente 10 mortos civis. da ameaça sobre Cabo companhias da escola
*8 de Janeiro: 9 mor­ Delgado, afirma ter re- de sargentos Alberto
tos em ataques a Miteda cebido muitas promes- Chipande (Boane), en-

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Definição da Ameaça

viados para Cabo Del- Quissanga, às aldeias de contraditórias: locais


gado em missão de fim Nraha 2, Mahate, Nami- afirmam que o bando
de curso – 22 mortos ruma, Namadai e Mus- terrorista fugiu após
militares, dezenas de somero. Destruição de perseguição das FDS,
feridos, 4 blindados e casas e alegadas decapi- enquanto fontes des-
toneladas de armas e tações. O Daesh utiliza tas indicam 20 mortos
munições roubadas pelo menos um VBTI entre o Daesh. Tudo se
ou inutilizadas. O rai- das FADM, de fabrico deu no distrito de Me-
de ocorreu quase em chinês, com o número cula, a sul de Macalange.
simultâneo com um 314. *18 de Fevereiro: EI‑
ataque do EIPAC no *5 de Fevereiro: boatos PAC anuncia ataques
Congo Democrático, espalhados em Maputo em «Manzini, Me‑
em Beni, com 6 mortos sobre uma campanha de bundi e Mutwanga»,
militares. recrutamento forçado no Congo, via Tele‑
*25 de Janeiro: ataques de jovens para combater gram, com 11 mortos.
às aldeias Xitaxi (Mui- o Daesh em Cabo Del-
dumbe), Namaluco, gado, com raptos, agres- *24­‑25 de Fevereiro: o
Cagembe e Nagrawala, sões e perseguições. Os EIPAC Congo anun‑
também conhecida rumores podem ter sido cia ataques em Beni
como Nancaramo (Qui- lançados por células do (Kado, Wangadi), a
sanga). Decapitados e EIPAC em Moçambi- morte de um oficial
casas incendiadas. que. A verdade é que o das FARDC, e de vá‑
*29 de Janeiro: ataque recrutamento decorreu rios outros militares
devastador no distrito com normalidade, in- regulares.
de Quissanga, com pelo gressando na instrução *18­‑26 de Fevereiro:
menos 12 aldeias arrasa- cerca de 185 mil jovens, ataques e destruição to-
das. Destruída também num universo de 200 tal das aldeias de Maku-
a escola técnico­‑agrícola mil previstos pelo censo lo, Chikuluka (Chiculua,
de Bilibiza, a única de militar. distrito de Palma), Nko-
Cabo Delgado, finan- *5 de Fevereiro: o EI‑ mangano, Mitumbate e
ciada pela Organização PAC Congo anuncia a Anga (distrito de Mo-
Aga Khan (hoje com morte de um militar címboa da Praia), Im-
sede em Lisboa). A con- das FARDC em Bu‑ bada (Mbada, Meluco),
tabilidade de vítimas, tembo. Litingina (Nangade)
entre mortos, feridos, *12 de Fevereiro: ale- e Ntessa (Quissanga),
desaparecidos e rapta- gadamente os ataques com pelo menos 9 mor-
dos nunca foi feita. expandem­‑se para o tos, embora algumas
*Início de Fevereiro: leste da província com fontes falem em 16
ataques no distrito de o Niassa. Informações civis decapitados. No

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Cronologia e Detalhes dos P r i n c i pa i s A taqu e s

mesmo período, ataque bique, em comunicados rizadas.» A reclamação


a posições das FDS, e separados, uma média do grupo deu­‑se apenas
oposição a operação de 3 por mês. Só em Fe- dois dias depois do ata-
das mesmas em Chicu- vereiro de 2020, assu- que. Imagens do EIPAC
lua, com roubo de 17 miu 4 ataques. mostram armas captu-
espingardas automáti- *1 de Março: dois cor- radas: 2 metralhadoras
cas AK­‑47 e cerca de pos encontrados criva- ligeiras, 12 AK­‑47, 3
4400 munições dessa dos de balas em Metuge, pistolas, 20 carregado-
arma, 6 RPG.7 com 12 talvez mais de uma se- res para Kalashnikov,
granadas­‑foguetes, e um mana antes. O rumor é cerca de mil munições.
morteiro ligeiro com de que seriam «recrutas Ataques ainda em Na-
duas granadas. Referên- renitentes» do Daesh. bage (MdP), nas cerca-
cia ainda (por Telegram, A 20 km na direcção de nias de Ulo, a caminho
não Amaq) de ataques Montepuez fica a prisão de Marere, em Milamba,
a duas povoações que de Mieze, onde estão in- Naquitenge, Naikidun-
não pudemos identifi- ternados vários supos- ga, Macimoja, Natige,
car: Chiuwakulu e Nan- tos jihadistas. Mas a tese Kalugo e Nazimo.
kindunfa. de que se preparava um *4 de Março: EIPAC
*5­‑28 de Fevereiro: o ataque ao cárcere não anuncia, via Tele‑
EIPAC desencadeou está provada, nem a re- gram, ataques em
durante este mês pelo lação do crime com o «Biakato e Bangole»,
menos 8 ataques na Daesh. No mesmo dia no Ituri, RD do Con‑
RDC, sobretudo em Itu- deram­‑se ataques a Ca- go.
ri e no Kivu Norte, com jembe (Macomia). *6 de Março: EIPAC
mais de 70 baixas civis. *4 de Março: o Daesh anuncia, via Telegram,
*28 de Fevereiro: ata- reivindica a morte de ataques em Kawame,
ques a Mbada, com 12 12 elementos das FDS, Mutwanga. Junto ao rio
civis alegadamente de- num ataque a Mahate, Semuliki. Confrontos
capitados. Quissanga, uma locali- confir mados pelas
*Desde o começo das dade já antes flagelada. FARDC. Aparente‑
reclamações oficiais, e Uma testemunha diz mente 13 terroristas
até meio de Fevereiro, a que «O bando é o mes- mortos, 4 militares
agência Amaq do Daesh mo que veio em Feve- também, e 11 vítimas
reivindicou pelo menos reiro, mas agora mais civis.
25 ataques em Moçam- armado, e com moto-

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C O NC L U S Õ E S

1. 2018 e 2019 viram um incremento substancial da activi-


dade terrorista. São os anos em que a suspeita da colaboração
entre os jihadistas locais e os seus cúmplices no Congo e na
Tanzânia é maior.
2. Note­‑se que a estratégia de ataque às FDS mudou de
prioridade em 2017 para alvo acessório em 2018 e 2019,
quando a maioria dos ataques atingiu civis, partindo­‑se daí
outra vez para vários golpes de mão contra posições ou con-
tingentes mais importantes das forças de segurança, no fim
de 2019 e durante 2020.
3. Estimávamos, em Maio de 2019, que cerca de 400
pessoas pudessem estar envolvidas nos ataques, incluindo
autores e guias/batedores. Há indicações do terreno de que
o número pode ter subido para quase 800, até Fevereiro de
2020.
4. Alguns ataques ocorreram no mesmo dia, mostrando a
capacidade desses grupos para desenvolver acções simultâ-
neas.
5. Diversas localidades foram atacadas várias vezes, ao
longo dos últimos dois anos.

71

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Definição da Ameaça

6. Até agora, não havia nenhum uso relatado de armas


com poder de calibre ou destruição superior ao de RPG e
metralhadoras.
7. Não havia ocupação permanente de qualquer vila, posto
administrativo ou policial, para além de 24 horas.
8. Os distritos mais visados são Mocímboa da Praia, Maco-
mia e Palma. Outros distritos de Cabo Delgado parecem por
enquanto relativamente seguros.
9. Ainda não houve um grande ataque às próprias ilhas. As
Quirimbas, atraindo turismo de alto nível, são sempre temi-
das pelo SISE como possível alvo para sequestrar hóspedes
ricos ou influentes.
10. Os 25 comunicados de reclamação do Daesh nunca
foram traduzidos em português nem em suaíli, ou em línguas
locais, pelo movimento. Os especialistas dizem que partem de
um núcleo central de redacção.
11. Todos os comunicados estão formulados tendo como
base acções contra alvos militares, policiais ou de «cruzados».
Só um ou dois é que admitem que se trata de martirizar a
população civil.
12. Há mais de 25 reclamações para o teatro operacio-
nal do Congo, portanto um número equivalente às acções
moçambicanas. Correspondem geograficamente às zonas de
implantação do ADF/MTM. Traduzem dezenas de vítimas,
sobretudo militares. Antes da adesão ao Daesh, o ADF não
costumava reclamar oficialmente as suas acções.

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T Á C T IC A S E A R M A S D O S G R U P O S
ATA C A N T E S

Há, verdadeiramente, um modus operandi verificado.


Nada de grandes ofensivas militares contra posições forti-
ficadas, nem acções sempre expectáveis.
Nada de ocupação permanente de posições atacadas, nem
de tentativa (até agora) de tomar um grande centro urbano,
embora muitos temessem um avanço armado sobre Quis-
sanga, depois da destruição em Bilibiza.
Os grupos responsáveis pela onda de ataques montam
geralmente emboscadas a civis que trabalham em campos
agrícolas, a comboios ou patrulhas militares, e atacam ou rap-
tam grupos de jovens, supostamente para tentar recrutá­‑los à
força, ou fazê­‑los servir como carregadores e escravos1.
Um dos objectivos nos ataques a postos militares e poli-
ciais é a captura de armas e munições, mas também de far-
damentos, depois usados como engodo em assaltos a civis,
e mesmo a outras unidades de segurança. Um detido refere
ainda que o porte do uniforme das forças armadas ou poli-

1
Um documento encontrado no Uganda justifica «teologicamente» a posse de escra-
vos «infiéis», como consequência da sua derrota.

73

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Definição da Ameaça

ciais pode lançar o opróbrio e a dúvida, levando as vítimas a


achar que estão a ser chacinadas pelos próprios agentes do
Estado que os devia proteger.2
Uma fonte militar diz­‑nos que, nos ataques a posições
das FDS, é usada especial crueldade para com os mortos, de
forma a lançar a imagem de que o EIPAC é invencível e até
«sobrenatural».3
A mesma fonte diz­‑nos que princípio igual foi utilizado
pelo Daesh original no Iraque, quando fez fugir em massa
o exército de Bagdade, chocado com a crueldade para com
capturados, feridos e mortos.
Uma agência de inteligência diz que tem «evidência sufi-
ciente» de que os grupos não têm como alvo principal
mulheres ou idosos, excepto como vingança ou «justiça pela
colaboração com o inimigo», e se concentram nos jovens do
sexo masculino. Aparentemente, existem «listas» de jovens
em idade militar e também listas de pessoas que foram
«recrutadas» e fugiram de «serviço» nas bases do grupo (ver
também à frente).
Os ataques às aldeias costumam ter o mesmo plano: tiros
para o ar e gritos de intimidação, para detectar quaisquer
defesas, e depois movimentos de ângulos inesperados. Os
assaltos acontecem geralmente à noite, mas alguns surgem
também de surpresa em plena luz do dia. Nalguns casos,
apesar de os terroristas possuírem armas de fogo, usam facas

2
Embora não se descarte a acção de funcionários desviados e de desertores, como
se verá à frente.
3
Numa região muito influenciada por lendas e mitos, com muitos receios sobre feiti-
çaria e maus espíritos, alguns dos «grupos de combate» do EIPAC saem do espírito «islâ-
mico» e praticam actos, ou usam apetrechos, mais típicos de seitas animistas ou pagãs.
Nalgumas regiões de Cabo Delgado, os terroristas são conhecidos como «Homens
Violeta». Noutras cometem mutilações indescritíveis, que parecem destinadas a práticas
rituais ou a um circuito de tráfico de órgãos humanos.

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Tácticas e Armas dos Grupos Atacantes

e catanas, aparentemente para adensar o aspecto melodra-


mático do ataque, e para não alertarem unidades policiais ou
militares próximas.
Observação, reconhecimento e espionagem antes dos ata-
ques são feitos por meio de grupos de mulheres e crianças, às
vezes de bicicleta ou motorizada. Informações coincidentes4
focam a actividade de pescadores como batedores, colectores
de informações e força de trabalho. Um dos centros suspei-
tos é a ilha do Ibo, mas existem «elementos operacionais»
vindos de Nampula e, em particular, de Geba e Memba.
Os atacantes são sempre organizados em pequenos gru-
pos de no máximo dez pessoas, às vezes designados como
«mbegu», em suaíli. Alguns têm elementos equipados com
armas de fogo, outros apenas com catanas, facas e espadas,
outros com uma mistura de armas e explosivos.
Pelo menos um texto em árabe de uma fonte capturada
refere­‑se às unidades como «migwahr» ( ), que pode ser
traduzido como «comando».
Um relatório classificado do SISE diz que 60 % dos radi-
cais têm «armas de fogo modernas», incluindo «espingardas
de assalto automáticas, metralhadoras, lança­‑granadas e pis-
tolas». Essa percentagem pode ter subido para cem por cento
ou mais, dado que, como refere fonte de um serviço de infor-
mações criminais ocidental a operar na região, «temos hoje
dados que nos permitem confirmar a existência de reservas
de guerra entre o EIPAC, depois de múltiplas capturas e rou-
bos de arsenais e postos de segurança».5

4
Informações coincidentes do SISE, PRM, Inteligência Militar de Moçambique,
uma agência de informações africana, um gabinete de adidos militares em Maputo e
outro em Dar Es Salam.
5
O cálculo desta fonte (norte­‑americana) é a de que o EIPAC tenha capturado, desde
2017, só em Moçambique, 500 espingardas semiautomáticas e automáticas, pistolas­

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Definição da Ameaça

Tudo isto parece confirmado por relatórios forenses e de


informações mais antigos, que mostraram os grupos de ban-
didos bem fornecidos em munições. Somente no ataque de
2017 contra um posto da PRM, os polícias que chegaram ao
local, ou sob o fogo, contaram cerca de 200 buracos de bala
nas principais fachadas do edifício do comando da polícia de
Mandimba.
Muito do equipamento é transportado de acção em acção,
mas houve também a descoberta de pelo menos dois escon-
derijos de granadas de mão e granadas­‑foguete, a oeste de
Palma, no final de 2017.
«Nunca encontrámos, no entanto, grandes depósitos de
armas e munições, sobretudo a partir de 2019. Sabemos toda-
via que há capturas bélicas enterradas, sobretudo no norte­
‑centro de Cabo Delgado», afirma uma fonte militar, no fim
de 2019.
Um relatório anteriormente referido diz que, até 21 de
Outubro de 2017, um comboio que transportava 35 tonela-
das de armas foi interceptado pela polícia: vinha de Nampula
para Cabo Delgado, mas nunca se esclareceu o destino do
equipamento.

‑metralhadoras, metralhadoras ligeiras e pistolas, com dezenas de milhares de munições,


entre 30 e 50 lança­‑granadas­‑foguete com centenas de munições, 10 morteiros de vários
calibres, 25 metralhadoras pesadas/antiaéreas, mais de 100 granadas de mão e alguns
lança­‑granadas múltiplos, para além de milhares de peças de vestuário militar, incluindo
fardas completas. Diz o informador: «Baseámo­‑nos exclusivamente em 125 fotografias
que nos foram facultadas desde Outubro de 2017, oriundas de várias fontes, incluindo
do inimigo; pode obviamente haver muito mais equipamento tomado, e algum pode não
estar já operacional. Também não podemos confirmar a existência de mísseis antiaéreos
de porte individual, ou MANPADS, se bem que alguns existam nos grupos do Congo
Democrático. Tivemos também relatos de captura de pequenos drones, ou uso dos
mesmos, sem confirmação. Quanto ao uso de veículos, calculamos que, desde 2017, os
grupos terroristas tenham usado, apenas temporariamente, cerca de 25, abastecendo­‑os
com gasolina também roubada em aldeias ou colunas militares.»

76

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Tácticas e Armas dos Grupos Atacantes

Não só a remessa não tinha um destino claro, como os


condutores se puseram em fuga. Suspeita­‑se que o equipa-
mento militar tinha sido desviado ou comprado por suborno,
e se destinava a um «grupo de combate» em formação, apa-
rentemente na zona de Nangade.
Um outro relatório do SISE identifica, como fontes de
equipamentos, contingentes de armas roubadas, furtadas ou
desviadas da PRM e das FADM, armas compradas no mer-
cado negro, e armas ou trazidas da Tanzânia e do Congo, por
terra, mar ou rio.
Há também casos de ex­‑polícias e militares que desertaram
com as suas armas e se juntaram aos bandos, se bem que as
autoridades de Cabo Delgado considerem esses aconteci-
mentos «excepções à regra».6
Como observado no início, em 2017, os alvos principais
eram policiais e militares, para mostrar a «vontade política de
destruir o regime» (sic, militante capturada), até que as popu-
lações começaram a denunciar os radicais e se tornaram alvo
de represálias.
Uma fonte policial de Palma diz­‑nos que «essa ideia inicial
de uma guerrilha romântica para defender o Islão oprimido
rapidamente desapareceu, com ataques furiosos contras
populações que teimavam em não querer seguir a via das
armas, por mais descontentes que estivessem».
A partir de meados de 2018, alguns dos agressores tam-
bém queimaram casas em «execução judicial» (sic).

6
Uma fonte militar moçambicana diz­‑nos que as deserções se devem mais ao medo
e à indisciplina, mas reconhece que nalguns casos pode haver infiltrados a regressar aos
bandos, e recrutas demasiado jovens ou descontentes com algumas condições do seu
serviço, incluindo a alimentação, alojamento e serviços médicos. «Estes ditos desespe-
rados não aderem ao Shabaab, mas às vezes podem passar­‑lhes armas, sob pagamento.»

77

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Definição da Ameaça

Formavam «grupos de fiscalização», e declaravam que os


moradores estavam a viver em terras reivindicadas pelo cali-
fado («ulichukua ardhi», em suaíli, de acordo com fonte de
intelligence queniana), não se tendo convertido ao «Verdadeiro
Islão».
Deve­‑se notar que nunca houve ocupação permanente de
qualquer parte do território de Cabo Delgado, como men-
cionado anteriormente, embora os grupos atacantes tenham
estabelecido bases, acampamentos e esconderijos, o que é
descrito a seguir.
«A ocupação do território» nunca foi considerada prio-
ritária em nenhum documento apreendido, nem através de
interrogatórios, embora um elemento detido tenha referido
(informação da PRM) «que o movimento ainda está na pri-
meira fase da sua acção, destrutiva e subversiva».
«A ocupação da terra plena do Califado, como no Iraque e
na Ásia (sic), virá depois.»
A destruição de aldeias também foi apontada por uma
fonte de informações da UE como tendo «o objectivo de
criar terra arrasada e pânico, constrangimento para as for-
ças de segurança, aviso aos habitantes locais, mas também,
acreditamos, forçando demografia e pressão sobre cidades
maiores, a fim de os cidadãos urbanos se sentirem sitiados e
se entregarem a actos de vingança e pura paranóia» (sic)7.
Muitos ataques são acompanhados de roubos maciços
de gado e alimentos, aparentemente destinados a nutrir os
grupos de bandidos, e transportados por eles mesmos, ou
por elementos sequestrados. O elemento do rapto, do cár-
cere privado e da escravidão não foi quantificado, mas as
7
«Desde 2017 que as nossas cidades costeiras se povoaram de boatos e mitos urba-
nos, com pessoas a denunciar inocentes, e a polícia mobilizada contra alvos fictícios, ou
nunca confirmados», diz­‑nos um autarca de Mocímboa da Praia.

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Tácticas e Armas dos Grupos Atacantes

autoridades locais de Mocímboa falam­‑nos, no seguimento


de uma observação anterior, em «centenas de pessoas desa-
parecidas».
Também há notícias de mulheres sequestradas para noivas
ou serviços servis em Moçambique, e também no Congo
(onde os chefes do EIPAC são polígamos activos), tal qual os
reféns do Boko Haram na Nigéria. Duzentas dessas mulheres
terão sido recuperadas pela PRM.

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Cabo do Medo_01a232.indd 80 07/05/20 16:36
Q U E M S Ã O ? IDEN T I F IC A R
AS SOMBRAS

Discutimos a questão do alegado chefe/recrutador Faizal,


do Uganda. É apenas a ponta do icebergue.
De mais de 500 pessoas inicialmente detidas, 205 suspeitos
estavam a ser julgados, em 2019. Havia também 35 militan-
tes/agressores identificados, mas ainda não capturados, no
fim de 2018, e 40 suspeitos sob vigilância, na mesma altura.
Os números aumentaram substancialmente, diz­‑nos fonte
judiciária, desde Setembro de 2019.
Há gente de origens diversas, de migrantes vindos de seis
países da África Central e Oriental a um geólogo que tra-
balhava na infra­‑estrutura de gás de Anadarko e ENI. Pelo
menos 50 a 100 dos detidos são da Tanzânia, incluindo ex­
‑pescadores de Zanzibar.
As fontes de serviços de informações da UE, dos EUA
e dos organismos locais não concordam cem por cento em
tudo o que diz respeito a esta secção, mas decidimos criar
uma lista de observações que podem constituir um mínimo
de aceitação mútua entre essas entidades.
A visão mais aceite é a de que os grupos com os quais esta-
mos agora a lidar têm, sem dúvida, um componente «dife-

81

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Definição da Ameaça

rente» das verdadeiras insurreições anteriores (RENAMO),


ou de simples grupos «apolíticos» de bandidos já vistos
(envolvidos em roubos, sequestros em busca de resgates, e
«protecção» de actividades ilegais).
Essa diferença é conferida pelos laços, mais ou menos
estreitos, com os círculos militantes muçulmanos, ou pro-
clamados «islamistas». Este elemento putativamente «doutri­
nal­‑ideológico» será discutido em mais detalhe depois.
(Cf. capítulo «O ângulo da jihad»).
Dito isto, as nossas fontes e nossa própria observação
– após uma longa e acidentada digressão regional – levam­
‑nos a concluir que, embora não possamos descartar o
elemento islâmico «puro» (antes pelo contrário, sobretudo
depois de 2019), há um conjunto mais complexo de pessoas
e influências em jogo, ao analisar os verdadeiros culpados
dos ataques.
Os implicados podem ser divididos em várias categorias,
correspondendo também a diferentes motivações, embora
possam cooperar em actos finais de violência, tanto no pla-
neamento, direcção, apoio, perpetração e cobertura, ou sim-
ples divulgação, das mesmas acções.
Como nos jogos sociais sobre assassínios em busca de
detectives (Whoddunit, Cluedo, Sherlock, etc.), podemos ter
vários suspeitos a colaborar para o mesmo fim, ou a executar
acções paralelas (com ou sem conhecimento dos actos vizi-
nhos), ou a declarar guerra ao mesmo adversário («o estado»,
«o poder», «as instituições», «os infiéis», etc.), mas podemos
também conceber uma «divisão técnica» de trabalho, em que
certos bandos executam tarefas determinadas, e outros ban-
dos delitos diferentes, uma forma de copycat, ou imitação, para
baralhar pistas, e muitas outras hipóteses.

82

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Quem São? Identificar as Sombras

Aqui estão as categorias e os tipos de delinquentes detecta-


dos:

Grupos clandestinos de moradores radicalizados e desviados (prin-


cipalmente de Mocímboa da Praia), insatisfeitos com sua
posição na sociedade, falta de integração económica e
relações hostis com certos grupos étnicos considerados
«dominantes» (cf. infra), com esses elementos de alienação
agravados pelo desejo de «reencontrar o Islão» em novas
bases. Algumas destas aprendidas através de grupos extre-
mistas de dimensão regional, e/ou de pregadores e grupos
ligados a visões ultra­‑radicais, «militarizadas», do salafismo
e wahabismo, que consideram até lugares como a Arábia
Saudita como «infiéis e centros de traição».
Jovens militantes (28­‑35 anos, alguns mais novos ainda) radicais,
locais e regionais, com queixas sociais, que desejam, por
exemplo, vingar o suposto massacre de muçulmanos idosos
em Nampula, em 3 e 6 de Novembro de 2017. Alegada-
mente, como foi publicitado através de panfletos e nunca
confirmado oficialmente, elementos do SISE e da FIR
executaram 116 pessoas suspeitas de fazerem parte do «pri-
meiro Shabaab».
Pequenos Imãs desinteressados, em ruptura com as estruturas islâ‑
micas tradicionais, aceites pelo Estado e pela sociedade
dominante, pré­‑existentes sob o CIMO (fundado em 2004 e
liderado por Abdul Rashid Ismail) e opositores dos «xeques
infiéis», como o educador e imã Saide Habibo. Habibo tem
proferido discursos ferozes e cultivados contra o grupo
radical, dizendo que ele é feito «de não­‑muçulmanos», ou
«desviados e ignorantes», ou «gente de má­‑fé», que tenta cul-
par o Islão e prejudicar a sua comunidade de crentes, «com
objectivos obscuros de poder e destruição». O xeque Ami-

83

Cabo do Medo_01a232.indd 83 07/05/20 16:36


Definição da Ameaça

nuddin Muhammad, da CISCAMO, tem o mesmo discurso


de rejeição total, e tomou a iniciativa de denunciar como
«anti­‑islâmico» o comunicado do antecessor do EIPAC em
Moçambique, o Ahlus Sunnah Wal Jamaah, que no princípio
de Setembro de 2019 fez circular panfletos «doutrinários»
contra a visita do Papa Francisco a Maputo, englobando o
pontífice entre «os inimigos decretados por Alá»1.

Habibo gravou um vídeo para explicar que esses homens


são «terroristas, o que significa que espalham o medo,
enquanto o Islão vem de Salaam, significando paz, para que
não possam viver juntos» (Maio de 2018).
Quanto a Ismail, foi o autor de um decreto interno que
proibia mesquitas de aceitar imãs que não eram certificados
e treinados em Moçambique. O CIMO havia descoberto –
com a ajuda de um serviço de inteligência de língua portu-
guesa – um grupo de professores que viajava pelas mesquitas
e madraças, depois de retornar dos cursos da Arábia Saudita.
Ismail instituiu um painel de fiscalização e acompanhamento
reforçado, para inspeccionar madraças a formar cerca de
cinco mil crianças na província.

Ex­‑soldados da FADM e ex­‑agentes e oficiais da PRM. Uma ava-


liação secreta do próprio sector de segurança mostra que
existem cerca de quinhentos desertores em Cabo Delgado.
Refira­‑se o que se disse antes sobre o destino da maioria.
Mas vários acabam por se juntar aos bandos de desesta-
1
Quando se diz que o Shabaab nunca divulgou a sua posição doutrinal, ou objecti-
vos, antes da ascensão do EIPAC, esquece­‑se do rasto panfletário desse Ahlus Sunnah
Wal Jamaah (ASWJ). Os documentos não eram transmitidos pela Internet, como com
a agência Amaq do Daesh, mas circulavam em papel e fotocópias (e às vezes via SMS),
entre os membros da comunidade muçulmana e à entrada e saída de mesquitas e madra-
ças, de forma mais ou menos discreta.

84

Cabo do Medo_01a232.indd 84 07/05/20 16:36


Quem São? Identificar as Sombras

bilização, incluindo os «radicais muçulmanos». A situação


foi denunciada depois de Mustafa Suale Machinga, um
ex­‑soldado da FADM, ter sido capturado pela população
em Litingina, ferido após um ataque, revelando nomes de
outros ex­‑camaradas. A FADM também reconheceu à fonte
(de um serviço de informações da CPLP) que havia uma
dúzia de armas e pistolas Ak­‑47 roubadas em Julho de 2018,
em Quisingule e Namoto, perto da Tanzânia, provavelmente
após uma fuga interna de informação2.
Criminosos de países vizinhos. O Presidente Nyusi disse à fonte
(militar) que o SISE suspeita de uma «conspiração inter-
nacional» para enfraquecer Moçambique, agora que o gás
foi encontrado, e se encontra em fase de pré­‑exploração.
Embora isso seja controverso, algumas das suas palavras
pareciam inicialmente dirigidas contra «certos sectores
oportunistas» na África do Sul.
Funcionários e trabalhadores menores, pagos pelos gangues. Um
exemplo foi uma enfermeira assistente do Hospital Rural de
Mocímboa, que pode ter facilitado detalhes e planos para
um ataque.
Jihadistas de países vizinhos e de outras nações africanas. Além
do dito Faizal, pelo Tribunal de Pemba passaram arguidos
da Tanzânia, Somália, Burundi, RDC, Gâmbia e «regiões
insulares», e também africanos sem nacionalidade declarada.
Além disso, as forças de segurança da Tanzânia realizaram
duas grandes operações, em Outubro de 2018, detendo 104
«radicais» que queriam juntar­‑se «à luta em Moçambique»

Quanto à situação interna da PRM, um suposto líder detido confessou que tentou
2

recrutar «instrutores» da sua unidade policial de origem. Desertou depois de trabalhar


para o grupo muçulmano radical por pelo menos um ano, enquanto ainda servia em
Cabo Delgado. Mas retractou­‑se outra vez diante do juiz de instrução (12 de Dezembro
de 2018), e acrescentou que as suas palavras tinham sido obtidas sob coacção.

85

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Definição da Ameaça

(declarações de fonte policial de Dar Es Salam). Há ainda,


pelo menos, dez mulheres tanzanianas detidas.

Uma fonte de serviço de informações de dimensão inter-


nacional diz­‑nos que não se pode inflacionar a dimensão da
parte jihadista do problema, mas também não é a mesma de
menosprezar:

«Está provado que alguns dos líderes vêm de grupos arma-


dos de vários pontos de África, dos países limítrofes aos
grandes estados falhados do Sahel, ou a nações fragilizadas
do Norte. Infelizmente, nalgumas dessas paragens Moçam-
bique é visto por vários grupos acossados – como o Shabaab
ou o Boko Haram – como uma espécie de Oeste selvagem,
caótico mas com alguma infra­‑estrutura moderna, em que
há sempre a possibilidade de organizar empreendimentos
para financiar organizações terroristas principais. E diversos
grupos expulsos de outras paragens consideram o país uma
boa zona de refúgio, recomposição, descanso e anonimato.
Parecia ser, por exemplo, o caso do aludido Faizal.3»

Pequenos criminosos que fizeram vida e carreira em actividades ilegais


várias, do pequeno garimpo ao corte clandestino de madeira,
do narcotráfico à prostituição e ao furto de residências, e
que «arrendam» os seus talentos e competências aos grupos
jihadistas.
Elementos excêntricos apontados por várias teorias da conspiração:
claro que em terra de rumores e desconfiança em relação à
informação oficial, muitas teses circulam sobre operações de
provocação de empresas, para conseguirem mais protecção

3
Nova Iorque e Virginia, contacto telefónico, início de Fevereiro de 2020.

86

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Quem São? Identificar as Sombras

policial, acções de rivais das multinacionais de exploração do


gás, funcionários públicos venais, interessados em expulsar
de certos terrenos «reservados» civis incómodos, e até gru-
pos «capitalistas» que desejam libertar espaço para maiores
infra­‑estruturas industriais.

No que toca à estrutura interna, informações cruzadas


dizem­‑nos que os alegados grupos jihadistas – de acordo com
um militante capturado num país vizinho (a fonte é um ser-
viço secreto ocidental) – são constituídos por células de seis a
12 homens e mulheres (e não 10, como verificado em várias
acções, e atrás registado), muitos treinados e formados fora
de Moçambique, e sujeitos a rituais iniciáticos mais ou menos
esotéricos4.
Alguns dos detidos em Nampula e Pemba identificaram­
‑se, depois de interrogados, com o aludido Ahlu Sunnah
Wa­‑Jama (ou Wal Jamaa, ou ASWJ), falando às vezes de
«Ansar al Sunna», «Al Shabaab», apenas «Shabaab», Boko
Haram e ISIS.
A referência à pertença ao Daesh, por parte de alguns
detidos, começou ainda antes da constituição formal do
EIPAC, no início de 2019, e do alegado juramento das células
moçambicanas, no tal segmento de Maio­‑Junho desse mesmo
ano.
Outros questionaram as ligações com as já aludidas For-
ças Democráticas Aliadas (ADF/A) da RDC e Uganda, e
de que falaremos com mais detalhe. Parecia, até meio de
2019, uma pista ténue, remota e estranha. O grupo, apesar
de inicialmente limitado, tem vindo a criar laços seguros
com a maioria dos comandos jihadistas presentes em África.

4
Lovaina, Dezembro de 2020.

87

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Definição da Ameaça

Primeiro, incluindo Shabaab/AQ, e depois mudando a fide-


lidade para e Boko Haram/Daesh. O bando é dirigido pelo
alegadamente violento e instável Musa Baluku, como vere-
mos, e actua em lugares como Beni, no Congo.
Mas muitos dos detidos dizem que foram presos por
engano ou reconhecem que são «muçulmanos descontentes»,
mas não estão ligados a nenhum grupo em particular.
Há também perguntas sobre pelo menos um militante
branco morto, localizado numa casa mortuária. Uma foto
que consultámos foi tirada pelo SISE ao falecido, em Mocím-
boa da Praia, a 22 de Março de 2018. Os oficiais de ligação da
inteligência tentaram identificar o homem, mas sem sucesso.
Algumas especulações colocam­‑no como um europeu cen-
tral, embora os testes de ADN mostrem que também possui
genes do Médio Oriente.
E em diversos ataques no fim de 2018 e 2019, testemu-
nhas sobreviventes referem a «asiáticos que falam uma língua
estranha», ou «árabes que não compreendem nenhum dia-
lecto local, e proferem gritos de guerra de base religiosa».

88

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B A S E S , P O I S O S , E S C O NDE R I J O S :
U M « C A L I F A D O » IN S T Á V E L
E FUNGÍVEL

Quando se começou a estudar verdadeiramente o universo


operacional da Al­‑Qaeda, «A Base» de Osama bin Laden, a par-
tir de 19961, discutia­‑se o seu «ser existencial», como me dizia
um colega do grupo de representantes especiais dos MNE da
UE para o «terrorismo e o fundamentalismo extremo»2.
Lembro­‑me de, no fim de 2001, debater com o agente de
ligação do MI6, num importante país do Médio Oriente, se a
Al­‑Qaeda era um «grupo», uma «federação de «células», uma
«aliança», uma «rede de organizações mais ou menos autóno-
mas», uma «estrutura nova, radicalmente antipiramidal», ou

1
Com a deserção de Jamal Ahmed al­‑Fadl, um dos «tesoureiros» da organização.
Em Dezembro desse ano, al-Fadl começou a revelar os detalhes da organização aos
investigadores americanos, na altura comandados pelos agentes especiais do FBI Jack
Cloonan e Dan Coleman. Al­‑Fadl foi essencial no primeiro processo judicial contra a
organização, US. Vs. Osama bin Laden, N.º. S(7) 98 Cr. 1023 (S.D. N.Y.). O julgamento
começou em Fevereiro de 2001, e viria a verificar­‑se que, nos testemunhos e conclusões,
se passou a «saber tudo» sobre a organização. Sinistramente, a Al­‑Qaeda, ao mesmo
tempo que estava a ser julgada, preparava e executava, no mesmo território dos EUA, o
11 de Setembro.
2
Formado em 2002. A primeira reunião deu­‑se em Copenhaga, a segunda em Ate-
nas, a terceira em Bruxelas, e aí por diante.

89

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Definição da Ameaça

uma empresa secreta «mafiosa», em torno «do gangue que


controla os gangues».3
O mesmo se discutiu em Moçambique, a partir da verifica-
ção de uma forma de organização, por trás dos ataques de fim
de 2017. Um dos elementos de prova mais poderosos, mas
que implicaria operações de informações, cerco e desman-
telamento, girava à volta de um propalado sistema de «bases
jihadistas» em Cabo Delgado.
Embora nunca se tenha provada a existência de grandes
campos de esconderijo, treino ou prontidão operacional (os
de maior dimensão estão nas selvas do Congo), comprovou­
‑se a existência de pontos de apoio e repouso, atacados e des-
feitos (ao menos provisoriamente4), tanto em Moçambique
quanto na Tanzânia.
Alguns, como mencionamos, foram apontados por ele-
mentos ligados ao alegado líder do Al Shabaab no Uganda,
Abdul Rahim Faizal, já referido. A desarticulação deu­‑se, com
intervenções planeadas das FDS, mas na esmagadora maioria
dos casos as pequenas «bases», essencialmente acampamen-
tos de recurso, estavam vazias.
Porém, na maioria das vezes, os grupos de ataque jihadis‑
tas parecem viajar constantemente, parando apenas para se
esconder em arbustos ou locais inacessíveis.
Um militar envolvido nas perseguições diz à nossa fonte que:

«Aquela gente parece conhecer bem o terreno, ou usa pistei-


ros locais, e tem sempre o cuidado de apagar rastos ou espa-

3
Parte dessa discussão está em N. Rogeiro, O Inimigo Público: Osama Bin Laden, Carl
Schmitt e o Terrorismo Pós­‑Moderno, Gradiva, 2002.
4
«Provisoriamente» dado que, segundo uma fonte da PRM, alguns poisos de bandi-
dos foram reactivados várias vezes, «dado corresponderem a locais naturais de esconde-
rijo ou pausa» (Maputo, 2019).

90

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Bases, Poisos, Esconderijos: um «Califado» Instável e Fungível

lhar falsas pistas, incluindo pagando a falsos informadores,


que depois desaparecem.»

Prossegue:

«Estabelecem apenas pequenas trincheiras ou covas, refú-


gios improvisados debaixo de árvores, sabem onde fazer
fogueiras sem alarmar ninguém, criam grupos de alerta em
torno de falsos camponeses, pescadores, caçadores ou até
pseudo­‑guias turísticos, mas quase nunca estabelecem locais
permanentes para dormir, treinar, planear ou guardar armas
e equipamento.»
«Descobrimos grupos de raptados e reféns que serviam
apenas para transportar víveres e munições, e eram guarda-
dos numa espécie de currais de prisioneiro, ou só mandados
sentar no chão, rodeados por uma corda. Estavam em geral
exaustos, e afirmavam que os bandos mudavam de lugar
várias vezes durante um dia.»

Por fim:

«Nalguns casos descobrimos esconderijos de munições, que


estavam assinalados no mapa de um capturado. Mas são
triunfos raros da nossa parte. O inimigo, infelizmente, não
é estúpido, e alguns dos seus chefes operacionais possuem
óbvia experiência de guerra irregular e operações não con-
vencionais.»5

Também foi estabelecido pelas autoridades (sobretudo da


PRM e da Investigação Criminal) que, antes de 2017, o treino,

5
M., oficial das FADM, a fonte, Mueda e Pemba, 2019.

91

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Definição da Ameaça

a palestra e a divulgação de instruções e metas eram realiza-


dos em alguns dos principais pátios de mesquitas semilegais
ou clandestinas, pertencentes ou construídos pelo grupo
inicial.
Foi o caso, disseram­‑nos, de um edifício no bairro de
Nandwadwa (Nanduadue), Mocímboa da Praia, visto como
um dos locais iniciais de «comando, controlo e discussão»
do movimento radical. Refere­‑se também, nos relatórios
que consultámos, um local de encontro perto de Mocím-
boa Velha (MdP), entre ruínas esquecidas, no caminho para
Mpanda.
Algo mais próximo de uma «base de pleno direito» – i.e.,
um campo permanente – foi encontrado nas cercanias de
Pundanhar (também conhecido como Npundanhar), em
Palma, e em Lilembo e Muangaza (MdP). Todos os três luga-
res foram destruídos ou queimados, mas algumas indicações
referem que os grupos voltaram perto das «bases» originais,
tendo aí depositado «sinais de contacto»6.
Outro acampamento existia em Quionga, perto da fron-
teira com a Tanzânia, ao norte de Palma, a 44,8 km a sudeste
de Mahurunga. O grupo que costumava passar por lá, e
anoitar­‑se, atravessou o Rovuma várias vezes em barcaças, e
possuía pelo menos «uma arma pesada», segundo o testemu-
nho de caçadores locais. Suspeita­‑se que o mesmo «comando»
tenha montado uma operação para vigiar e tentar destruir as
barcaças usadas no ferry regular de transbordo binacional.
Há também dois ou três campos relatados por moradores
locais em Quissanga (todos móveis), pelo menos um acam-
pamento reportado em Balama, e dois lugares em Nangade,
considerados «altamente móveis» (basicamente tendas).

6
Fontes da PRM (investigação) e do seu Grupo de Operações Especiais (GOE).

92

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Bases, Poisos, Esconderijos: um «Califado» Instável e Fungível

O SISE também falou a um contacto diplomático sobre


seis residências no bairro Mwaha, nos arredores de Palma,
que foram investigadas «com resultados diversos» (sic) em
2018 e 2019.
Um documento desenvolvido por um serviço de infor-
mações da região, classificado, fala longamente na instalação,
a partir de 2018, de campos «da jihad de Moçambique», e
da criação de «escolas de doutrina e treino» na RDC, que
tiveram «alunos» moçambicanos (algumas «dezenas»), des-
cobertos em Março de 2018, ligados ao futuro EIPAC (mais
adiante).
Um «líder» militar dos terroristas, alegadamente respon-
sável pelo recrutamento de Moçambique, foi visto nesses
lugares, responde pelo nome de «Daouda», e diz­‑se ser de
Mocímboa.
De toda a forma, a interpretação geral dos observadores
moçambicanos é da que o «jihadismo original», agravado por
deficiências na resposta, criou uma espécie de «exército de
reserva» de criminosos que se consideravam justificados,
transformando­‑se na pior praga de uma sociedade: a de car-
niceiros auto­‑aureolados de libertadores.
Esse «jihadismo original» era fluido nas suas ideias e objecti-
vos, mas podia ser consultado, por aqueles que se arriscassem
aproximar dos seus antros de doutrina. Por outro lado, os
grupos que o incarnavam estavam embrenhados no secre-
tismo, nos juramentos de células, numa acção semipolítica,
semimilitar, mas com contornos às vezes supersticiosos e
herdados de seitas sanguinárias que o tempo parecia ter feito
esquecer.
A ideia da «seita armada», ofuscada pelos seus próprios
crimes, convenceu parte dos intérpretes. Outros acham que a
transformação do grupo inicial num ramo do Daesh tornou

93

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Definição da Ameaça

o todo simultaneamente mais claro e mais ambíguo. Mais


claro, porque o Daesh era uma «marca» terrorista conhecida,
cujas tácticas tinham sido estudadas em vários países, e cujos
objectivos eram conhecidos.
Mais ambíguo, porque, em matéria terrorista, o Daesh se
tinha transformado, desde a progressiva derrota territorial na
Síria e no Iraque, num animal mais complicado e escondido,
mais amante da conspiração e da sombra. E porque, na rela-
ção com o «afilhado» moçambicano, não se tinha descoberto
tudo (se calhar, quase nada) sobre a natureza dos laços, das
ordens, das formas diárias de comunicação, comando e con-
trolo.
Uma fonte de investigação moçambicana dizia a pro-
pósito: «O que a internacionalização do jihadismo de Cabo
Delgado fez foi transformar um enigma menor, o chamado
Shabaab, num mistério maior, o EIPAC.»7

7
Maputo, Março de 2020. Sobre diversas interpretações do Shabaab e seus sucesso-
res, cf. E. Morier­‑Genoud, «Tracing the history of Mozambique’s mysterious and deadly
insurgency», em The Conversation, 18 Fevereiro 2019, acessível em https://theconversation.
com/tracing­‑the­‑history­‑of­‑mozambiques­‑mysterious­‑and­‑deadlyinsurgency­‑111563;
P. Fabricius, «Is Islamic State taking charge of Mozambique’s jihadist insurgency?», em
USS Today, 10 Janeiro 2020, acessível em https://issafrica.org/iss­‑today/is­‑islamic­
‑state­‑taking­‑charge­‑of­‑mozambiques­‑jihadist­‑insurgency; H. Matfess, «Clear threat,
murky objectives: Ahlu sunna wal jamaa and instability in Cabo Delgado, Mozambique»,
em ACLED, 30 Novembro 2018, acessível em https://acleddata.com/2018/11/30/
clear­‑threat­‑murky­‑objectives­‑ahlu­‑sunna­‑wal­‑jamaa­‑and­‑instability­‑in­‑cabo­‑delgado­
‑mozambique/; B. Weimer, Vampires, Jihadists and Structural Violence in Mozambique. Reflec‑
tions on Violent Manifestations of Local Discontent and their Implications for Peacebuilding. An
Essay, Março 2018, acessível em https://www.academia.edu/39009630/Vampires_Jiha-
dists_and_Structural_Violence_in_Mozambique._Reflections_on_Violent_Manifes-
tations_of_Local_Discontent_and_their_Implications_for_Peacebuilding_An_Essay.

94

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OUTROS PROBLEMAS NUM
CEN Á R I O C O M P L E X O

Outras questões podem ser interessantes e complicar ainda


mais toda a situação, revelando um cenário mais intrigante.

a) Negócios e redes

Ausência de lei e ordem, corrupção endémica, subdesen-


volvimento e carência de funcionários públicos credíveis em
muitas áreas pobres de Cabo Delgado, também se reflectem
negativamente em áreas ligadas à segurança e à mineração,
dois pólos importantes na província, nos dias que correm.
Em 2018, os EUA detêm o queniano Waleed Ahmed
Zein, tido como um dos «correios financeiros» do Daesh
para a África Oriental. Descobre­‑se, na sequência, que o
grupo tentava ganhar proventos de vários negócios laterais,
que não dependiam de si, mas que podiam ser úteis. Por um
lado, agregavam dinheiro para operações, por outro, serviam
de cobertura a actividades sinistras, ligadas à violência e ao
terror.
Já no caso do aludido ADF se tinha descoberto que os
apoiantes «islamistas» do grupo na Europa, e sobretudo no

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Definição da Ameaça

Reino Unido e na Bélgica, faziam transferências bancárias


para intermediários, situados no Quénia, Somália e no pró-
prio Uganda, dinheiro por sua vez ou levado em numerário
por «mulas», ou investido em negócios locais.
Em Moçambique, a confusão entre interesses radicais,
pessoais e empresariais também se coloca.
Existem pistas fortes, por exemplo, a mostrar alguns dos
elementos do «Mozambique Shabaab», e o do seu ainda mais
terrível sucessor, que penetram nas áreas de exploração de
pedras preciosas.
O suposto anel «radical» estava a ser inserido através de
«Zama Zamas» (garimpeiros clandestinos) de rubis e outras
pedras, em Namucho­‑Ntoro, Namahumbir (Montepuez).
Até recentemente, a PRM e o SERNIC tinham apenas
conhecimento de escavadores «normais», «não­‑políticos»,
embora ilegais, que tentavam explorar as sobras de empresas
locais. Mas movimentos estranhos e brigas internas entre os
aludidos «zama zamas» levaram a que alguns revelassem uma
«quinta coluna islâmica», que estava a trabalhar no seu seio.
Estamos ainda no início das investigações sobre essa ale-
gação, tornada mais difícil por distúrbios recentes nas minas
oficiais, e por cruzamento entre interesses de delinquentes
comuns e aventureiros, empresas clandestinas que desejam
exportar para a Ásia, associados de grupos de «zama zamas»
na África do Sul (sobretudo do Limpopo) e do Zimbabué,
grupos que trabalham alegadamente para funcionários cor-
ruptos, e os tais «mineiros religiosos».

b) A Justiça e os seus meandros

O «julgamento do Shabaab» trouxe também à tona elemen-


tos conflituantes. O caso ocupou a atenção nacional durante

96

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Outros Problemas num C e n á r i o C o m pl e x o

todo o ano de 2019, e continuará este ano, com novos inqué-


ritos, novas acusações e novas sessões de julgamento, com
as discussões sobre a qualidade da prova, as absolvições de
grandes quantidades de arguidos em processos mal instruí-
dos, e a dimensão da culpa dos condenados, muitos dos quais
a reconheceram actos violentos mas não organizados, e às
vezes mesmo sem significado político.
Existiam inicialmente quatro processos judiciais separa-
dos: 67/18, 68/18, 99/18, todos a terminar agora a fase de
recurso, ou tendo este já terminado, e 32/18, cuja fase de
inquérito e audição de testemunhas e suspeitos se foi arras-
tando durante 2019. O caso foi interrompido sem explicação
e reiniciado em 5 de Fevereiro desse ano, e os outros foram
ouvidos em tribunal após o dia 12 de Março. Um mês depois,
fontes judiciais diziam­‑nos que existiam 339 acusados, em 19
processos separados, revelando, portanto, a tentativa de iden-
tificar arguidos em grupos de atacantes.
Note­‑se, no entanto, que cerca de 75 pessoas podem ter
desaparecido enquanto aguardavam o julgamento criminal,
enquanto estavam confinadas às suas residências.
Todos eles foram acusados de crimes menores – como
ajudar e encorajar radicais, mas não directamente ligados a
crimes de sangue – e mantidos em casa, presumivelmente
sob vigilância, pois todas as celas da região estavam super-
lotadas.
Alguns foram recapturados, mas podem ter passado ele-
mentos processuais importantes para contactos entre o ban-
ditismo.
Em geral, discute­‑se na questão judicial a necessidade de
formar mais procuradores e magistrados especializados neste
tipo de criminalidade (que possam sobretudo perceber como
funcionam as estruturas do terrorismo internacional), em

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Definição da Ameaça

garantir a segurança e independência dos funcionários dos


tribunais, em geral mal pagos e sujeitos a propostas corruptas,
em alargar o número de salas de audiência e de cadeias com
condições, e de reorganizar profissionalmente os serviços de
investigação criminal, na senda da modernização trazida com
a introdução da nova polícia judiciária.

c) A nova indústria

Se Cabo Delgado realizar os projectos que se perfilam,


relativos ao gás natural liquefeito (LNG) e indústrias subordi-
nadas, pode não só ver crescer um novo tecido urbano impo-
nente – o mais moderno de Moçambique – mas também
trazer para a região importantes contribuições financeiras
que, finalmente, compensem os danos ambientais e sociais
sempre causados pelas empresas extractivas.
Em Palma, alguns grupos de cidadãos «preocupados»
dizem que os «bandidos armados» querem apenas sabotar
as perspectivas de exploração de gás, a fim de ganhar reco-
nhecimento global, por se oporem a importantes empresas
multinacionais ocidentais.
Um desses grupos reuniu­‑se com as nossas fontes, e admi-
tiu que recebeu «informações do mato», por meio das quais
os militantes disseram que «os ataques aumentarão depois de
a instalação das infra­‑estruturas de gás serem concluídas, pois
os alvos serão mais remuneratórios».
Por outras palavras, Shabaab ou Daesh gostariam de surgir
perante a opinião pública «islamista» internacional como uma
força que impediu a expansão de «apóstatas e infiéis» em terra
de crentes. Um elemento de um serviço secreto europeu acha
mesmo que este é o factor mais importante a mobilizar os
jihadistas:

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Outros Problemas num C e n á r i o C o m pl e x o

«A extracção de gás é aquela área que retira Moçambique


da periferia e do anonimato, e pode atrair as atenções dos
bandos terroristas internacionais do costume.»1
Outras ONG estão­‑se a distanciar de qualquer apelo à vio-
lência contra essas indústrias, mas continuam sendo críticas
quanto ao «aspecto processual da instalação de gás» e o seu
«impacto social, económico, ecológico e ambiente jurídico e
administrativo».
A Declaração de Pemba, aprovada em 2019, levanta claras
dúvidas sobre todo o processo, desde a forma como foram
seleccionadas as empresas exploradoras ao controlo dos
impactos ambientais, às políticas de melhoramento social e
emprego local, às relações com os sindicatos, à comunica-
ção de futuros planos e expansões à opinião pública, e à real
repartição de lucros com os cidadãos da província.
Essa observação lembra­‑nos as ONG que se opõem a
certos aspectos da «mineração imposta» na África do Sul,
incluindo o grupo Amadiba e seus apoiantes, que trabalham
através de centros de advocacia e estudo académico, como
Richard Spoor, CALS e LHR.
As ONG moçambicanas contestam principalmente a
«natureza realista» do período obrigatório de consulta, jun-
tamente com a avaliação dos preços e transacções da terra.
Reúnem, por exemplo, em torno da Coligação Cívica para
a Indústria Extractiva (CCIE), e há intervenientes conhe-
cidos em torno de Tomás Vieira Mário, e de coligações de
interesses que incluem vários grupos não estaduais, como
Skelekani CEPC, CTV, CIP, CCM e Kukuwa. Pelo ângulo da
«ecologia pura», temos também vários grupos, por exemplo
ligados à UICN (WWF), dirigida por Robert Zollo.

1
Londres e Pretória, Agosto de 2019.

99

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Definição da Ameaça

Outros grupos, embora de composição genuína e natural,


veiculam às vezes teorias de conspiração sobre toda a situa-
ção de segurança, sugerindo que existe maior violência con-
tra o consórcio Anadarko, hoje TOTAL, para justificar uma
retracção face à população, e construir mais defesas quase
militares, enquanto outras notícias propagadas sugerem que
o Shabaab está a infiltrar sectores de descontentamento em
Palma, e a inflamando paixões em torno das actuais perspec-
tivas de exploração.
Nos nossos contactos com as ONG mais credíveis ou
importantes, muitos dos seus líderes parecem bem cientes das
restrições necessárias de segurança, e não acham que a ameaça
Shabaab foi inventada. Pelo contrário. Alguns deles acreditam
que existe um risco de ataque directo e deliberado à área de
desenvolvimento industrial de Afungi, no distrito de Palma,
que pode tomar TOTAL, ENI e Exxon Mobil como alvos.
Discussões com as mesmas ONG também revelam que
alguns distúrbios e violências atribuídos ao Shabaab podem
ter que ver com moradores de vilas renitentes, recém­
‑relocados, como em Quitupo­‑Afungi, ou com pequenos
donos de terreno que querem fazer mais dinheiro com a
venda dos mesmos.
Quando perguntados sobre o impacto positivo de 4700
locais que trabalhavam para a Anadarko, e passaram depois
para a TOTAL, representantes sindicais reconhecem o «pro-
gresso», mas dizem que muitos cidadãos de Cabo Delgado
ainda se sentem «discriminados».
O papel da ONG Sekelekani é particularmente interes-
sante. Parece um fornecedor de notícias importantes, às vezes
não alcançáveis por outros meios, mas tem também uma
participação activa, através de manifestações: é portanto, ao
mesmo tempo, observador e player.

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Outros Problemas num C e n á r i o C o m pl e x o

Um membro da nossa equipa de pesquisa foi a um pro-


testo do grupo, juntando­‑se a 200 a 400 pessoas, em 14 de
Janeiro de 2014. Alguns proclamados «jornalistas» despiram
a camisola de observação e exortaram ao bloqueio da estrada
Pundanhar­‑Palma. Outros disseram­‑nos acreditar que uma
decisão anti­‑extractiva, com fim da exploração e transfe-
rência de gás de todas as operações planeadas, para outras
áreas de Moçambique, «diminuiria radicalmente a pressão do
Shabaab». Quando confrontados com a pergunta «Mas isso
não é precisamente o que os radicais querem?», responderam:
«Talvez, mas o resultado poderia ser a paz.»
Também discutimos no local, através de uma fonte eco-
logista, a acção de outra ONG, que teria promovido SMS
ameaçadores a residentes em Palma, ao Amarula Palma Hotel
e a operações aéreas na pequena pista ao norte da cidade. Mas
ninguém quis verdadeiramente assumir a autoria dessas men-
sagens, nem o seu verdadeiro significado: brincadeira de mau
gosto, ou pressão social difusa?
Com outra ONG discutimos a alegação de que o Shabaab
envolveu radicais na venda de machambas (parcelas). Diz­
‑se que alguns dos seus agentes infiltrados constituíram um
movimento por preços livres, não controlado pelo Estado,
mas apenas pela vontade de vendedores.
Essa organização confidenciou­‑nos suspeitas de que os
radicais também estão a «doutrinar negativamente» pessoas
deslocadas de Senga, Maganjo e Quitupo, e que as incenti-
vam a tentar voltar a lugares onde as empresas industriais já
estão a montar infra­‑estruturas, de forma a causar comoção
e bloqueio.

101

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R E S P O S T A O F ICI A L
E C O N T R AT E R R O R

1. O que não se trata

Infelizmente, muitas coisas não correram bem, na resposta


do Estado moçambicano às vagas do terror.
Nem no tempo, nem no espaço, nem nos meios (qualitati-
vos e quantitativos), nem nos parceiros e modos, nem na ati-
tude, nem na táctica, nem na estratégia, nem na compreensão
política e operacional do problema.
Não vamos aqui divagar sobre a natureza desse mesmo
Estado, dos regimes políticos que foram mudando (por
convicção própria, por pressão, por habituação, por oportu-
nismo1) desde o que algumas forças em Lisboa chamaram de

1
A resistência interna às purgas Frelimistas (que mataram muitos moçambicanos
acusados primeiro de colaboração com Portugal, e depois de uma «contra revolução» de
costas largas) foi seguida pela luta armada da RENAMO, apoiada durante alguns anos
por Salisbúria, e depois, intermitentemente e de forma ambígua, pela África do Sul. Pres-
são para obrigar à mudança. Pressão existiu também das comunidades internacionais
africanas, com as exigências de «democratização» e «abertura». O mesmo para outros
parceiros internacionais, investidores e credores. Pressão, ainda, para levar as partes
beligerantes ao acordo de 1992. Pressões internas para a alteração das regras do jogo
económico. Pressão para aceitar o multipartidarismo e o espírito de eleições universais.
Mas também convencimento, por muitos actores estatais, de que não havia muitos cami-

103

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Definição da Ameaça

«descolonização exemplar», mas que mantiveram sempre no


poder o mesmo partido, com mais ou menos alas.
Não vamos aqui especular nem criar teorias sobre um
passado já muito estudado, onde coexistiram sonhos mais ou
menos brilhantes de um Estado separado, branco, negro ou
multirracial, projectos totalitários com gulags, polícia política e
campos de reeducação, utopias africanas guiadas pela poesia,
pela música, pela arte, ideias e percursos entre vários mundos,
do anglófono ao lusófono, do africano do sul ao africano do
leste, da África marítima à África continental.
Não vamos também revisitar as divisões, as uniões, os pro-
cessos de paz e reintegração, a transformação do estalinismo
em constituição com liberdades e garantias, ao menos estatuí-
das, a combinação entre culturas familiares, tribais, clânicas e
contributos cosmopolitas e da civilização de massas.
Não referiremos ainda o crescimento de mecanismos de
freios e contrapesos materiais, tantas vezes apesar do Estado,
contra o Estado, sem o Estado, com a tentativa de edificação
de vozes de imprensa livre, com órgãos quase pessoais, de
papel, de circuito restrito ou amplificado pela Internet, de
pequenos jornais a grandes plataformas de discussão. Meca-
nismos em torno de novas gerações com consciência cívica,
ambiental, religiosa, que procuraram as suas organizações
nacionais, regionais e locais. Mecanismos de novas classes pro-
fissionais, intelectuais, artísticas. Mecanismos nascidos do des-
contentamento, da curiosidade, da necessidade fiscalizadora.

nhos de alternativa. E oportunidade, ou oportunismo, quando as mudanças foram sendo


«controladas» por alguns que não as queriam, mas as conseguiram cavalgar. Um blogue
útil para seguir este processo tem sido, há décadas, o precioso espaço de Fernando Gil,
«Moçambique para Todos», popularmente conhecido como «Macua». O mesmo para
o mais recente «Carta de Moçambique». E não se pode esquecer o papel histórico dos
escritos livres e dissidentes de João Craveirinha.

104

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Resposta Oficial e Contraterror

Não referiremos os talentos, novos, velhos ou renovados,


nem as grandes oportunidades que se podem abrir a um país
novo com velhos e testados laços, origens e raízes.
Não nos focamos nas correntes que verdadeiramente ten-
taram reformar o Estado, as suas instituições, o seu estatuto,
o seu rumo, a sua realização. Nem nas que, por ortodoxia ou
doutrina, viesse de onde fosse, resistiram sempre às mudan-
ças, moderadas ainda, ou às mais ambiciosas.
Não temos tempo para falar do «espírito nacional moçam-
bicano», na sua especificidade e diferença, identidade e
memória, complexidade e clareza, que não podem ser arru-
mados facilmente em blocos, blogues e blagues.
Não podemos ressuscitar a discussão em torno do amor
português a Moçambique, do interesse dos dois pela CPLP,
dos projectos que – referindo só a área em apreço – poderiam
ter sido, poderiam ser ou podem vir a ser desenvolvidos2.

2. Instituições e mecanismos

O confronto ao avanço do Shabaab podia dar­‑se «à


americana», com uma declaração universal de «guerra ao
terrorismo», ou com o tratamento do caso como um pro-
blema interno de ordem pública e policial. Nas duas opções
Moçambique teria de fazer escolhas, e encontraria dilemas
adicionais.

2
Portugal mantém programas de Cooperação Técnico­‑Militar com Moçambique,
referentes aos três ramos, que nas últimas décadas mobilizaram centenas de profissionais
dos dois países, e que muitas vezes não evoluem apenas por restrições orçamentais. Por
outro lado, a cooperação no seio da CPLP, em matérias de defesa e segurança, tem­‑se
revelado na série de exercícios de forças especiais «Felino», e na criação do Centro de
Análise Estratégica.

105

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Definição da Ameaça

Não existia, por exemplo, uma competente e equipada


Polícia Judiciária, formulada em termos modernos. A direc-
ção de investigação criminal de Moçambique, SERNIC,
chefiada por Ilídio José Miguel, foi criada apenas em 2017,
sucedendo a uma agência desacreditada (que não podia
conter uma onda de sequestros em Maputo), mas faltava
ainda tudo, desde pessoal suficiente, redes de TIC, estrutura
forense, armas e sensores, escritórios e veículos.
De qualquer forma, o SERNIC assumiu a enorme tarefa
de ser o principal braço estatal na tentativa de reunir evi-
dências, apresentáveis em julgamento, contra o suposto
Shabaab.
A agência tem tido um desempenho muito baixo nessa
tarefa, mesmo em associação com o SISE, a antiga polícia
secreta política, que se transformou – pela pressão social e
pela mudança dos ventos – em «órgão de inteligência» (ser-
viço de informações), depois da paz com a RENAMO, e da
dissolução da odiada SNASP.
O combate ao Shabaab não se podia fazer apenas com
investigação, mas com força física propriamente dita, e estru-
turas preventivas e repressivas dessa área.
Houve um reforço geral das estruturas militares e policiais
em Cabo Delgado, sobretudo a partir de Março de 2018,
incluindo o envio de mais veículos blindados de transporte de
pessoal, teoricamente resistentes a munições de armas ligei-
ras, principalmente dos tipos Casspir, Mamba, OTT Puma,
Mahindra e BTR­‑60, e unidades de infantaria equipadas com
armas mais pesadas.
Mas há uma enorme falta de apoio aéreo às operações,
sensores de vigilância nocturna, coletes balísticos em quanti-
dade, e número suficiente de oficiais, suboficiais e unidades
de forças especiais adequadamente treinadas. A situação pode

106

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Resposta Oficial e Contraterror

agravar­‑se se algumas informações militares forem confir-


madas, indicando que os radicais têm cerca de 20 a 40 minas
(recebidas da RDC), que podem ser usadas para emboscar
comboios. E há a questão da posse ou não de armas de defesa
aérea. Uma fonte militar da UE fez­‑nos um resumo, a seguir
a um grande exercício multinacional, em 2019:

«Moçambique tem algumas unidades de elite que funcionam


razoavelmente, incluindo comandos, fuzileiros e operações
especiais, mas por natureza são pequenos grupos, que não
podem estar em toda a parte. A falta de tropa de quadrícula
moralizada e bem equipada é evidente. Quanto aos meios
aéreos, sabemos que alguns não descolam por receio de con-
tramedidas do jihadismo. Helicópteros a voar muito baixo,
sem blindagem ventral ou lateral, podem ser pasto fácil para
metralhadoras pesadas que o Daesh traz do Congo, e sobre-
tudo para RPG, desviados da luta antiveículo para o tiro
anti­‑helicóptero a curtíssima distância. Os bandos do Daesh
têm treinado isso por toda a parte.»3

Uma fonte militar moçambicana queixa­‑se de outros pro-


blemas:

«A grande pressão sobre o Estado desestabilizou os circui-


tos logísticos, havendo ainda omissões e desvios difíceis de
entender, com algumas unidades de frente a não receberem
conveniente apoio alimentar e sanitário [...] e há uma clara
insuficiência dos serviços de informações, com redes de
espiões e agentes provocadores a rodearem os nossos agru-
pamentos e subagrupamentos, e um geral desconhecimento

3
Norfolk e Virginia, Novembro de 2019.

107

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Definição da Ameaça

dos elementos mais dinâmicos do inimigo, do seu comando,


das suas tácticas e até de algum do seu equipamento [...]
preocupa­‑me também a perda constante de armamento de
algumas das nossas tropas isoladas, espingardas e metralha-
doras depois usadas contra nós, frequentemente».4

Mesmo assim, as forças de segurança fizeram alguns pro-


gressos na tentativa de entender o que realmente é o Shabaab
e seus sucessores, e na percepção de fraqueza e cumplicidade
de certos actores locais. Também foi visto como triunfo
o facto de, no final de Março de 2018, uma investigação
conjunta de Moçambique, Uganda e RDC ter levado a que
duzentas mulheres fossem libertadas em Macomia, das garras
dos grupos radicais e dos bandos terroristas.
Mas há também reservas de operacionais. Um elemento
das informações militares moçambicanas diz que «A troca
de dados actualizados, contínua e eficaz, entre os nossos
serviços, os homólogos congoleses, tanzanianos, ugandeses
e somalis, é extremamente deficiente, [...] perdemos muito
tempo em concretização de protocolos, e muitos agentes
transnacionais do inimigo circulam sem identificação, [...]
muitas vezes só os assinalamos quando já não estão no local
onde cometeram crimes.»5

Prossegue a fonte:

«Neste tipo de conflito, a posse de elementos imediatos de


identificação, o alerta prévio, o estabelecimento de mapas

4
Maputo, via telefónica, Janeiro de 2020. Uma fonte militar da região, não moçam-
bicana, calcula que entre 80 a 90 % do armamento do EIPAC é material capturado às
forças de defesa e segurança de Moçambique e do Congo.
5
Maputo, Janeiro de 2020.

108

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Resposta Oficial e Contraterror

dinâmicos e a existência de especialistas suficientes em reco-


nhecimento visual de material e perfis é um factor­‑chave, e
temos aí, como vários países da sub­‑região, muitas lacunas.»

O informador refere ainda que:

«Há que aprimorar a coordenação entre pequenas unidades


especializadas e circuitos de rádio e telecomunicações. Neste
conflito não se resolve quase nada com grandes manobras
planeadas e divulgadas de antemão.»

Em Janeiro de 2019, Moçambique assinou um memo-


rando com a Tanzânia para operações conjuntas contra os
terroristas, e desde 2017 Nyusi e o seu núcleo decidiram a
manutenção de linhas directas de alto nível, e multiplicação
de contactos com seus colegas de Uganda, Quénia e RDC.
As estruturas da FADM/PRM em Cabo Delgado também
receberam novos equipamentos de comunicação, novos qua-
dros, novos camuflados e – apenas em Macomia – em mea-
dos de 2018, havia 46 «brigadas» das FDS, presumivelmente
envolvidas em acções de perseguição.
O comando da PRM em Mocímboa foi reforçado a partir
de 2018 com seis VBTP, e desde o fim desse ano que existem
novas forças antiterroristas na base Mueda, com assessores
internacionais, cobrindo a zona sensível de Macomia.
A protecção de Palma é garantida por dois terços de um
batalhão de infantaria, e o comando operacional FDS para
Quissanga e Macomia, instalado apenas de forma completa
no ano passado, recebeu também novos equipamentos e pes-
soal treinado.
As agências de informações presentes em Cabo Delgado
tentam continuar a avaliar os vínculos operacionais reais,

109

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Definição da Ameaça

comprovados, entre a «segunda geração de jihadistas» (sendo


a primeira o Shabaab) e o alegado comando no Congo, e
também, ou sobretudo, determinar as rotas de penetração de
grupos armados vindos da Tanzânia.
Um elemento que tem feito parte desse esforço realça:

«Cabo Delgado é mais perto da República Democrática do


Congo e da Somália do que parece, mas a verdade é que
quaisquer forças vindas daí precisam de usar a Tanzânia
– marítima ou terrestre – como terreno de passagem. Sabe-
mos que, até agora, há uma espécie de pacto com actores
não­‑oficiais locais, para que esses grupos viajem sem proble-
mas, desde que não toquem em cidadãos e bens locais, mas
mais tarde ou mais cedo estes pactos diabólicos de ocasião
desmoronam­‑se.»6

A vizinhança de muitas ilhas estratégicas e ilhas­‑nação,


como Comores, Mayotte e Madagáscar, e o suposto trân-
sito de grupos clandestinos Shabaab/sucessores/aliados em
pequenos barcos de pesca, entre a costa da Somália, Somália
e Puntlândia, Tanzânia e Moçambique, começaram a ser
vistos com mais atenção por grandes potências ocidentais,
sobretudo a partir de 2019.
Embora não esteja directamente relacionado com a ameaça
actual, esse ambiente volátil e enigmático foi um elemento
que norteou o recente exercício Cutlass Express, liderado pelo
US AFRICOM, que ocorreu de 29 de Janeiro a 7 de Fevereiro
de 2019, em várias áreas pontuais, como Pemba.
As forças portuguesas, holandesas e francesas também
cooperaram no mesmo conjunto de manobras, que infeliz-

6
Kampala, Dezembro de 2019.

110

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Resposta Oficial e Contraterror

mente serviram para demonstrara a fraqueza da Guarda Cos-


teira da Marinha de Moçambique, mesmo com as lanchas que
a EMATUM negociou.

Muito do que se fez na segunda metade de 2019, em parte


aqui relatado, no sentido de adquirir mais meios navais e
sobretudo competências, entronca­‑se nas lições aprendidas
naquele exercício.
A criação de uma força costeira permanente, moderna,
flexível e equipada, é vista como essencial para a ameaça
«pós­‑Shabaab» em Moçambique. Um elemento ocidental
envolvido refere:

«É preciso que o problema não evolua de uma terra blo-


queada para uma ameaça de arquipélago. O isolamento
táctico de Moçambique só pode ser quebrado com forças
móveis, e o seu sustento orçamental não pode obviamente
ser sustentado por Maputo.»7

Temos ainda o problema da profusão de firmas de


segurança privada, como resposta quase instintiva à vaga
desestabilizadora. Há dezenas de companhias, escritórios,
representações, secções de firmas importantes, a fazer todo o
tipo de trabalho em Cabo Delgado.
Um empresário que beneficia de protecção, em Palma,
resume a questão:

«Companhias conhecidas com sede em Londres, Paris,


EUA, Dubai, Rússia e China, às vezes com sócios moçambi-
canos, proliferam desde Janeiro de 2018. Há as companhias

7
Londres e Dar es Salaam, Julho de 2019.

111

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Definição da Ameaça

de análise de risco, que fazem alertas e relatórios, e que mui-


tas vezes nos dizem o que já sabíamos.
Existem as especializadas em segurança pessoal, que essen-
cialmente arranjam guarda­‑costas e protecção VIP, nem
sempre eficaz e às vezes sujeita a negociações sobre limites
da acção, porte de arma, licença de veículos, etc.
Temos as empresas que essencialmente prestam serviços de
protecção física de instalações, de veículos, de transferências
de bens (não só de meticais e divisas estrangeiras, mas tam-
bém de jóias e ouro, ou bens necessários de pequena oferta),
há os grupos que fazem rondas com motorizadas, jipes ou
cães, temos firmas que só se especializam em protecção noc-
turna, outras que trabalham sobretudo com videovigilância,
há polícias avençados que trabalham no privado quando
largam o serviço, firmas locais de ex­‑polícias e militares, ou
ex­‑elementos do SISE, serviços de alarme e antibanditismo,
etc.
É um mercado importantíssimo neste momento. Mas é
essencialmente reactivo e estático. Não avança contra os
meliantes, nem os vai procurar aos covis. Isso é suposto ser
feito pelos militares e pela polícia de reacção rápida.»8

É aqui que entram as propostas internacionais de segu-


rança, que procuram «suplementar ou complementar» as
capacidades do Estado. De empresas francesas e sul­‑africanas,
dos EUA à Rússia, do Brasil à Itália, de Portugal ao Reino
Unido, chegou de tudo. Os licitantes mais conhecidos, como
Erik Prince (ex­‑Blackwater), entraram em momentos de con-
senso e conflito. O empresário americano propôs um orça-
mento securitário «integral» (ou «de chave na mão») de 800

8
Palma e MdP, Dezembro de 2019, Lisboa e Londres, Janeiro e Fevereiro de 2020.

112

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Resposta Oficial e Contraterror

milhões de euros, com 160 milhões pagos por Moçambique,


e o restante a ser satisfeito em parcelas de lucros futuros na
exploração de gás e petróleo.9
Prince queria renomear e reestruturar firmas como a
EMATUM, ProIndícus e Monte Binga, a fim de criar um
novo núcleo de empresas de segurança de dupla finalidade, e
ajudou a lançar a empresa de protecção Pro­‑6 (ProIndícus +
Lancaster 6, sob Christaan Durant). Quis também contratar
e angariar (Fase 2) mais recursos, por meio da sua «empresa
chinesa», a Frontier Services Group10.
Mas qualquer luta sistemática contra a ameaça actual, que
seja permanente e, como se diz hoje, «sustentável», e que se
coadune com a criação de um futuro ambiente (também justo
e seguro) para as NOI (Novas Operações Industriais), tam-
bém tem de envolver, salvo melhor opinião, a total atenção e
cooperação da RENAMO.
Esta, mesmo dividida ao meio ou em três partes, possui
pessoas influentes na parte costeira de Cabo Delgado, e é

9
Prince terá entrado num negócio contestado judicialmente nos EUA, com a com-
pra de dois ou três helicópteros Gazelle, transformados e armados, através da sua parti-
cipação na empresa UMBRA (onde detinha 49 %).
10
Sobre Erik Prince e a sua «galáxia», algumas precisões: empresarialmente, o seu
cavalo de batalha tem sido a HK Frontier Services Group (FSG), com papel accionista
do CITIC chinês (uma das principais empresas de investimento público da RPC), e sede
social em Hong Kong: está presente em Moçambique, Tanzânia e na RCA, falando ape-
nas na África subsaariana. Competiu em tempos pela segurança das empresas madeireiras
da RPC em Moçambique, com o VSS. O presidente da empresa é o presidente do CITIC,
Chang Zhenmin. Ko Chun Shun (Johnson Ko) é o co­‑CEO não­‑oficial do CITIC, que,
segundo alguns, é a «sombra empresarial» de Erik Prince. Luo Ning é o representante
não oficial do Exército Popular de Libertação. O FSG também está presente em Angola
em infra­‑estrutura (habitação social) e protecção de áreas industriais. A FSG reforçou a
sua presença na região da RDC/Uganda, África do Sul (Gauteng, logística e segurança
do local) e na Zâmbia. Na RDC, segundo a mesma fonte, a empresa está­‑se «expandindo
bastante em mineração e logística», no Kasai, por exemplo. O FSG também tem um
papel crucial e menos conhecido, ao ministrar treino a outras companhias de segurança
privada chinesas, que desejam trabalhar no mercado africano.

113

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Definição da Ameaça

vista de maneira mais favorável por muitos não muçulmanos


Maconde, mas ainda por líderes islâmicos tradicionais, que
olham o movimento como «descomprometido» em relação
a cegas represálias passadas. A posição da nova liderança da
RENAMO, sob Ossufo Momade, parecia sólida no processo
de reconciliação, em 2018­‑2019, mas a cisão com a Junta
colocou novos problemas.
Sei que há, nos vários círculos do partido, a vontade de
ajudar eficazmente na eliminação do Daesh, mas conheço
também os problemas derivados de desconfiança em relação
à própria essência do problema. Em poucas palavras, muitas
estruturas da RENAMO em Cabo Delgado achavam que o
Shabaab era apenas parte de uma grande manipulação, para
justificar e fazer avançar projectos político­‑económicos cor-
ruptos da área do poder, que não podiam revelar­‑se de cara
aberta, sob risco de revolta popular generalizada e de conde-
nação internacional exemplar.
Mas tudo muda. Muitos dos meus contactos na RENAMO,
mesmo não tendo vencido as anteriores desconfianças natu-
rais, estariam dispostos para um plano antiterrorista concer-
tado, desde que este parecesse, como me dizia um dirigente,
«de boa­‑fé, razoável e com pés e cabeça».11
Um elemento ligado às estruturas do Estado diz que, se a
RENAMO apresentasse um projecto alternativo de combate
ao Daesh, dificilmente este poderia deixar de ser discutido
«nos ministérios pertinentes e na chefia do Estado e do
governo»:

«Apesar da sua actual debilidade, e divisão interna em fac-


ções políticas e militares, a RENAMO é uma força histórica

11
Lisboa e Coimbra, Dezembro de 2019.

114

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Resposta Oficial e Contraterror

com experiência na guerrilha e contraguerrilha, e, apesar da


idade de muitos dos seus operacionais, tem núcleos úteis,
e, portanto, não há desculpa para não integrar totalmente o
partido da oposição nesta luta comum.»12

A captura de André Meyer Hanekom («Baba Mzungo»),


e a sua morte na prisão, em 2019, criaram mais problemas
e dúvidas, e denunciaram algumas falhas radicais em toda a
estrutura de combate ao terrorismo.
Preso em Agosto de 2018, por meio de uma operação
especial do SISE, Hanekom terminou num hospital prisional,
sendo a morte atribuída a um edema cerebral derivado de
«uma encefalite provocada por vírus» (a fonte é médico da
prisão na origem).
Hanekom, originariamente sul­‑africano, era um opera-
dor logístico em Palma Marina, caçador e pescador, guia e
aventureiro. As autoridades moçambicanas continuavam
«bastante seguras», durante muitos meses, de que, por razões
«não ligadas à ideologia», o empresário garantiu a sua vida em
Pemba, actuando como «financiador do Shabaab». Maputo
convenceu provisoriamente as fontes judiciais e judiciárias
de Pretória, mas a falta de provas e os erros processuais aca-
baram por fazer desmoronar esse consenso.
Alguns agentes do SISE revelaram a fontes fidedignas
que as informações sobre Hanekom vieram de um homem
que, entretanto, deixou de «cooperar» com a polícia, e pode
ter agido por mero ódio e vingança, ou só para «favorecer
concorrentes, que queriam a licença de Hanekom numa

Maputo, Dezembro de 2020. A possibilidade de «reciclar» os cinco mil alegados


12

combatentes da RENAMO em «força especial antiterrorista» em Cabo Delgado poderia


ser um projecto com futuro, mas antes teria de se saber o real estado operacional dos
eventuais integrantes, e a sua disponibilidade, operacionalidade e proficiência.

115

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Definição da Ameaça

parte privilegiada da praia»13. Embora o Tribunal de Pemba


ainda tenha mantido formalmente o processo acusatório,
o conjunto probatório é frágil e, no máximo dos máximos,
circunstancial. O que nos reconduz à necessidade de um
corpo de investigação judiciária treinado e impoluto.
Embora, neste campo, haja sempre a possibilidade de
falhas. Um ex­‑oficial de serviço contraterrorista ugandês
dizia a uma fonte, a propósito do «Caso Hanekom»:

«A natureza dos grupos terroristas da nossa região é, como


noutros sítios, a dissimulação, o segredo, a mentira e a mul-
tiplicação de falsas pistas. Mesmo serviços com recursos
muito superiores, larga capacidade técnica e tradição de
investigação, sem interferência do poder político, face a esse
adversário difícil, cometem e repetem erros e podem, por
vezes, ter dificuldade em reconhecer esses mesmos erros.
Isto não pode ser uma desculpa, e tais erros precisam de ser
entendidos, corrigidos e punidos. Mas existem.»

Ainda:

«O terrorismo nos nossos países envolve muitas vezes acto-


res políticos, sociais e económicos de algum relevo. E há
diversos tipos de cumplicidade na sociedade, às vezes invo-
luntários, outras vezes difíceis de descobrir em tempo. É um
erro crucial ver este combate como uma mera extensão da
luta contra bandidos ou delinquentes comuns.»14

13
Palma, Maio de 2019.
14
Kampala e Londres, 2020.

116

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Resposta Oficial e Contraterror

Por fim:

«Neste quadro, tal como Moçambique, o meu país, o Qué-


nia e a Tanzânia ganham muito em se modernizar, aceitar
a colaboração de serviços experimentados, participar no
máximo de seminários, conferências, treinos operacionais
e operações conjuntas, desde que o objectivo final seja o
combate ao terrorismo, e não a criação de blocos políticos
neocoloniais.»15

Outras respostas aos grupos violentos incluíram o restabe-


lecimento do toque de recolher (21h­‑4h) em Palma e Mocím-
boa da Praia, decidido após a visita do presidente Nyusi, de
26 a 27 de Janeiro de 2019.
Agentes do SISE informaram a FADM de que uma «sec-
ção» de bandidos usava motos em Palma e Mocímboa, disfar-
çando as suas viagens de comunicação e espionagem como
actividades de lazer e de mercado. Uma fonte nessa altura
no SISE, e hoje promovida, lembra­‑se de que «tal como se
veio a verificar em Beni, no Congo, o Shabaab usava jovens
em motorizadas, incluindo muitas mulheres, que observavam
alvos potenciais e movimentações de pessoas, transmitiam
mensagens, ordens e ameaças. As informações e suspeitas do
SISE revelaram­‑se perfeitamente razoáveis, nessa altura, mas
as recomendações respectivas nem sempre foram seguidas
por quem de direito.»16
A nova tendência dos serviços de polícia criminal e de
investigações, a partir de 2019, foi a de sofisticar as opera-
ções de vigilância contra indivíduos e grupos nas principais

15
Ibid.
16
Maputo e Lisboa, fim de 2019.

117

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Definição da Ameaça

cidades costeiras, após denúncias – nacionais e regionais – de


que os agentes do «Moza Shabaab» estavam a infiltrar­‑se em
várias áreas urbanas, lojas, infra­‑estruturas, etc., «com objec-
tivos de médio prazo, tentando primeiro criar uma rede de
agentes adormecidos».
Mas os principais grupos muçulmanos, não radicalizados
contra o Estado, dizem que o SISE, e sobretudo as forças
policiais de intervenção, foram desajeitados nas medidas de
vigilância, julgando «a olho» e misturando reuniões políticas
e religiosas legítimas, onde certamente e frequentemente são
ditas «certas palavras desagradáveis», com «células subversivas
ou armadas»17. Algo melhorou nesta linha, no fim de 2019,
mas há muito ainda a transformar. Voltamos ao problema da
ténue diferença – mas que tem de ser reconhecida – entre o
«Islão vocal» e o «Islão violento».
Existiram também planos (vários abandonados por ques-
tões logísticas e de cepticismo quanto às capacidades ou
fidelidades locais) para estender e racionalizar a criação
de unidades de autodefesa das aldeias, como na época do
governo português. Estes corpos existiam nos chamados
«aldeamentos» (ao contrário de aldeias) fortificados, e fun-
cionavam de 1963 a 1975 como um formidável obstáculo à
progressão dos guerrilheiros da FRELIMO.
Na luta do regime contra a RENAMO, houve também ten-
tativas de recriar essa ideia, sob a forma de «resistência popu-
lar armada». Mas há certa relutância em dar armas a aldeões
cujas simpatias nem sempre vão para a FRELIMO, ainda por
cima num meio onde o adversário se mistura nas sombras
com grupos de civis. Apesar disso, trata­‑se de um plano que
pode ser activado de forma generalizada e permanente, se for

17
Pemba, Maio de 2019.

118

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Resposta Oficial e Contraterror

conseguido um consenso entre autoridades locais e nacionais


ligadas às FDS, e se forem criados laços fortes e sinceros entre
líderes tradicionais, responsáveis de aldeias e ONG. Algumas
«equipas de defesa» foram constituídas em lugares como Mon-
jane, Quinto Congresso, Chidwadna, Olumbi, Cequaia Velha,
Mitumbate, em algumas áreas de Nangade e Mocímboa, e em
torno de associações de caçadores, muitas vezes com armas
obsoletas, mas denotando um espírito essencial de «vigilância
cívica», extensível também a diversos bairros urbanos.
Um céptico de Mocímboa da Praia refere­‑nos:

«Mas eles [os comités de vigilância] geralmente são equipa-


dos com poucas armas e mais antigas, caçadeiras e arpões,
no caso dos pescadores, e vários comandantes das FDS têm
medo, se calhar fundado, de recriar estruturas que poderiam
ser controladas por grupos políticos como a RENAMO, e
também que poderiam servir como uma nova fonte de trá-
fico de armas, numa região já saturada pelo mercado negro.
De qualquer forma, a necessidade aguça o engenho, e tudo
pode mudar com o aumento da ameaça e com a consciencia-
lização das partes. Nu fundo, somos todos moçambicanos...
menos os que não querem ser.»18

É claro que também existe, por fim, o conjunto de planos


de vários países da UE que desejam ajudar Moçambique.
Regressando ao que foi dito sobre a CPLP, as propostas são
ainda preliminares, mas consistem em programas de treino
rigoroso de forças flexíveis, capazes de combater formas não
convencionais de guerra, mas também especializadas em ope-
rações psicológicas e assuntos civis.

18
Janeiro de 2020.

119

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Definição da Ameaça

Uma fonte diplomática em Maputo diz que «Há um apre-


ciável consenso em relação ao que deve e pode ser feito, e ao
que estamos já a realizar. A edificação económica de Cabo
Delgado também precisa de consenso europeu na área de
defesa e segurança.»19
Finalmente, as rivalidades entre SERNIC, SISE e os
órgãos de inteligência das FADM e da PRM (especialmente
no que tange às secções de elite da UIR) podem e devem
ser contornadas, quando derivam da natural competição e
orgulho entre ramos. Já se trata de um caso grave se tais riva-
lidades se transformam ou denotam formas menos saudáveis
de divisão.

19
Maputo, Março de 2020. A fonte diz que «tem de ser parada a sangria que leva
jovens impreparados, ou a terminar a recruta, para zonas de combate real sem tréguas:
«muitas das baixas militares das FDS devem­‑se a esse facto. Por muita coragem que
demonstrem, e que conhecemos, os jovens que morrem precisavam de ter sido enqua-
drados por combatentes experientes».

120

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E X C U R S O : A V E R D A DE S O B R E
A P R E S EN Ç A R U S S A

Tem­‑se especulado muito sobre a presença de forças da


Federação Russa em Moçambique. A verdade é que a URSS
prestou ajuda ao estado «revolucionário» da FRELIMO,
directamente e através de permissões a satélites do Pacto de
Varsóvia, em especial a RDA. Markus «Mischa» Wolf, o lendá-
rio chefe do serviço secreto externo do distrito de Pankow, o
HVA, foi uma das figuras­‑chave na organização da polícia polí-
tica pós­‑portuguesa em Moçambique, a famigerada SNASP.
A «República Popular de Moçambique» recebeu também
importantes remessas de material militar feito na ex­‑URSS,
administrado por conselheiros húngaros, checos, búlgaros e
polacos, cubanos e, nalguns casos, jugoslavos. A China esteve
também muito presente, assim como a Coreia do Norte, mas
não faziam parte do Pacto de Varsóvia.
Depois do fim da guerra activa com a RENAMO, muito
desse equipamento foi conservado em péssimas condições, e
entrou em degradação irreversível1.
1
A Força Aérea, por exemplo, converteu­‑se para o material soviético em 1977,
apesar de ter herdado mais de 40 aparelhos a hélice da aviação portuguesa, incluindo
seis transportes tácticos Noratlas, sete helicópteros Alouette III e 12 aviões de treino e

121

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Definição da Ameaça

Mas a URSS foi­‑se, a Rússia entrou em convulsões, e


passou a interessar­‑se mais por outras paragens, incluindo a
reorganização do seu «espaço natural». Apesar de Moscovo
ter entretanto iniciado um caminho de «regresso a África»,
sobretudo imediatamente antes e depois da cimeira de Sochi,
em Outubro de 2019, e de se terem celebrado acordos gené-
ricos de defesa entre o Kremlin e muitos Estados do conti-
nente, não havia unidades militares russas, e muito menos
«tropas combatentes», em Moçambique, até fim de Janeiro
de 2020.
Existiam, sim, especialistas em segurança interna e contra-
terrorismo, alguns já destacados nas zonas quentes de Cabo
Delgado, outros com experiência no Sudão e na RCA.
Chegavam sobretudo do MVD (Ministério do Interior), da
Guarda Nacional e do FSB (serviço de segurança interno), e
entidades subcontratadas.
Têm também passado por Moçambique navios de várias
tonelagens da armada e guarda costeira russas, sobretudo
desviados de tarefas de segurança de navegação e antipirataria
na costa leste de África e no golfo de Aden, mar Vermelho,
mar Arábico e Mediterrâneo. Transportam peritos e equipas
especializadas em interdição costeira, sobretudo na repressão
da criminalidade embarcada.
Havia ainda assessores, instrutores, conselheiros e técnicos
das forças armadas e serviços de segurança. E a missão de
defesa russa na embaixada, em torno do adido.

ataque ao solo T­‑6. Do período de fornecimento e formação da URSS ficaram dezenas


de caças Mig 17 e 21, e dezenas de helicópteros Mil­‑8/17 e 24, que foram entrando
em desuso e abandono a partir do meio dos anos 90 do século xx. A Força Aérea e a
Marinha moçambicanas entraram no novo milénio em estado de total pauperização de
equipamento, e a tentativa de modernização só se deu a partir de 2009. Portugal esteve
presente neste esforço, por exemplo, com o Projecto 12 da CTM.

122

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Excurso: A Verdade Sobre a Presença Russa

Por seu lado, o MDN de Moçambique pediu formalmente


uma «equipa de conselheiros de defesa e segurança russa», no
dia 4 de Abril de 2018, em Moscovo.
Há também quadros das FDS moçambicanas a estudarem,
a treinarem­‑se e a especializarem­‑se na Rússia, com alguns
cursos administrados depois em território moçambicano
(não necessariamente Cabo Delgado), com instrutores da
Federação Russa.
Nada disto era espantoso e ainda menos ilegal. Tudo se
baseava em quatro acordos e num memorando associado,
celebrados entre os dois países.
O primeiro é o protocolo de Cooperação Técnico­‑Militar,
semelhante ao que Portugal mantém com Maputo.
Foi assinado em Dezembro de 2015, e aditado em Maio
e Outubro de 2016, em Moscovo e Moçambique. Foi con-
firmado e entrou na ordem jurídica moçambicana em 1 de
Fevereiro de 2017. É válido até 2022. Trata de tudo no campo
da defesa, da instrução e treino ao fornecimento e reparação
de material, e diversas formas de consulta e acção conjunta.
Os signatários foram os ministros da Defesa dos dois paí-
ses, com a parte russa representada pelo Serviço Federal de
Cooperação Técnico-Militar (CTM) (Федеральная служба
по военно-техническому сотрудничеству). Os legisladores
russos que co-prepararam estes instrumentos foram Viktor
Bondarev, Mukharbek Didigov, Vyacheslav Markhaev e Ale-
xander Suvorov.
Uma fonte envolvida na CTM diz que «O acordo produziu
programas para os ramos, traduzidos no fornecimento de
helicópteros e artilharia, uniformes e armas de pequeno cali-
bre, treinamento e supervisão técnica, mas não tropas de com-
bate, como reivindicado em certos meios de comunicação.»2
2
Maputo, Dezembro de 2019, via telefónica.

123

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Definição da Ameaça

A mesma fonte diz que foi ao abrigo deste acordo geral


que Moçambique discutiu, a partir de 2013, a possibilidade de
substituição dos seus helicópteros Mi­‑8/17, ou a sua moder-
nização na Rússia.

«Os contactos iniciais foram tidos em 2012, creio, pelo


nosso ministro do comércio Denis Manturov, e o Estado
moçambicano ficou interessado num plano para adquirir
dois hélis ligeiros Kazan Ansat­‑U e pelo menos 4 MIL­‑17.
Este processo foi complicado por restrições orçamentais,
mas nunca foi abandonado, dada a urgência das FADM em
possuir apoio aéreo para operações terrestres. A chegada de
três aparelhos em 2019 concretizou essa ideia.»3

O segundo texto é o acordo sobre Simplificação de Medi-


das de Entrada em Porto por parte dos navios da armada
russa e serviços de segurança do país, empenhados na luta à
pirataria e banditismo marítimo. Foi celebrado em 4 de Abril
de 2018, em Moscovo, e ratificado em Moçambique em 2019.
Este acordo está associado a um memorando mais vasto
sobre cooperação naval, assinado também pelos titulares
da defesa dos dois países. Para além de facilitar as entra-
das navais russas em portos moçambicanos, proporciona
acções de treino conjunto, e o fornecimento de fuzileiros
navais moçambicanos com plataformas ocasionais de lan-
çamento, incluindo navios anti­‑sabotagem (como Moscovo
lhes chama) da classe Grahsonok, e outros.
A segurança das vias marítimas parece ter sido definida
bilateralmente como elemento essencial para travar a vinda
3
Ibid. A mesma fonte diz que, erroneamente, um dos MI­‑17 desembarcados em
Nacala foi atribuído pela imprensa a um veículo de uma companhia militar privada russa,
quando na verdade era fornecido à Força Aérea de Moçambique.

124

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Excurso: A Verdade Sobre a Presença Russa

de embarcações do Daesh da Tanzânia, do Quénia e da


Somália para Moçambique. A formação e equipamento do
pelotão de abordagem da unidade de fuzileiros de Moçambi-
que é um dos programas multinacionais mais bem­‑sucedidos
da FADM, apesar do número limitado de efectivos.
Nas operações respectivas têm estado envolvidos sub-
contratados pelo MVD (não soldados), elementos de
segurança embarcada do RSB Group (cujo CEO é Oleg
Krinitsyn), outras PSC (Companhias de Segurança Priva-
das), e um pequeno destacamento do grupo Alfa, a unidade
CT do FSB.
O terceiro documento, rubricado em Moscovo a 22 de
Agosto deste ano, é o protocolo para tratamento e protecção
de dados confidenciais, a cargo dos serviços de segurança.
Foi assinado pelo MDN de Moçambique e por um dos vice­
‑directores do FSB. Trata de criar uma infra­‑estrutura de tec-
nologias de informação e comunicação que permitam o sigilo
no tratamento de matérias sensíveis, e insere­‑se nas medidas
de cooperação entre os serviços de segurança interna dos
dois países.
O quarto documento, celebrado em Moscovo na mesma
data (entre o responsável do MVD russo e o MDN moçam-
bicano), é o protocolo de cooperação entre os ministérios do
Interior, incluindo em matéria de segurança interna e com-
bate ao terrorismo.
Como se disse, o fornecimento de material, como os três
Mi­‑8/17 reparados e melhorados, deriva do primeiro acordo.
O treino das FDS por especialistas russos no contra e antiter-
rorismo deriva do último.

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2 . ª PA R T E
DO SHABAAB AO DAESH

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O ÂNGULO DA JIHAD:
E S S ENCI A L , DE O P O R T U NID A DE
O U A CE S S Ó R I O ?

Em que medida são os ataques de Cabo Delgado inspi-


rados ou comandados por uma organização «ideológica» de
tipo jihadista?
Essa organização é nacional, regional ou internacional?
Trata­‑se do Daesh, ou de outro grupo?
É essa organização responsável por todos os ataques, ou
apenas por alguns?1
Pode falar­‑se de um modelo uniforme de influência e obe-
diência, desde 2017, ou houve mudanças?
A influência do jihadismo, a existir, dá­‑se por mera «inspira-
ção» dos atacantes em relação a um modelo global, resulta de
contactos directos e troca de ideias e informações, ou é mais
apertada, verificando­‑se através de instruções operacionais,
comando, comunicação e controlo a partir de um quartel­
‑general, fornecimento de meios humanos e materiais, manu-
tenção de uma estrutura de combate, etc.?

1
O Daesh (EIPAC) reivindicou apenas cerca de 15 % do total de ataques desde
2017, mas cerca de 95 % das acções verificadas desde Julho de 2019.

129

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Do Shabaab ao Daesh

Por outras palavras: o grupo jihadista de Cabo Delgado


é uma «sucursal», uma «unidade militar», um «ramo», um
«filiado» de algo maior, ou apenas um grupo independente,
na mesma galáxia doutrinal?
Estas são algumas das perguntas que surgem, em todas as
discussões mais informadas sobre o problema central deste
livro.
Até fim de 2018, não havia sinais suficientes, ou provados,
de um centro de comando e controlo a dirigir os bandos
moçambicanos, sediado fora do país ou da região. Não se
tinha apurado, sobretudo, a identidade de um «combatente
inimigo» jihadista conhecido, figurável nas listas das organiza-
ções policiais regionais e globais.
Mas muitos elementos de transformação do referido «Islão
vociferante» em verdadeiro plano de batalha (a chamada
«Jihad Menor»2) estavam presentes nestes atacantes, pelo
menos desde fim de 2017, e sobretudo a partir do momento
em que o alegado «núcleo de comando» apareceu em público.
Houve também uma forte corrente probatória, a mostrar
contactos entre elementos desses grupos moçambicanos e
militantes dos grupos jihadistas fora do país, o que não devia
ser confundido com filiação formal a qualquer estrutura
conhecida.
Mas um analista experimentado de um serviço de infor-
mações africano, também veterano de operações na Somália,
alerta para um elemento às vezes minimizado:

«Aprendemos na luta contra a Al­‑Qaeda, contra o grupo


de Al Zawahiri, contra o Shabaab somali, contra o Boko

2
Sendo que a «Grande Jihad» é o combate interior e espiritual para o melhoramento
individual.

130

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O Ângulo da Jihad: Essencial, de Oportunidade ou Acessório?

Haram na Nigéria e, finalmente, contra o Daesh, que o jiha‑


dismo militar possui uma forte cobertura dos seus próprios
serviços de segurança – alguns treinados em países árabes e
depois desertores – e de redes de dissimulação, intoxicação,
engodo, espionagem e contra­‑espionagem. Fica isto dito
para explicar que muitos laços não provados de cumplici-
dade, fidelidade e submissão só se descobrem muito tempo
depois de terem sido celebrados. Há uma larga dimensão de
clandestinidade, mentira e duplicidade nas associações que
apoiam estes grupos, e muitos pactos secretos. Ou seja, nem
tudo é o que parece, por estas paragens».3

E prossegue:

«Muitos dos grupos jihadistas que combatemos e analisamos,


em conjunto com os nossos parceiros de estados árabes (no
meu caso), sabemos que para além dos instrumentos nor-
mais de ocultação, vigentes nas células terroristas de todo
o mundo e de todas as orientações políticas e doutrinais, há
aqui um fundamento pseudo­‑religioso, com o uso da tradi-
ção do segredo sobre as suas próprias convicções, num meio
interno ou internacional tido como inimigo. Essa é, não nos
esqueçamos, a ideia de Taqiyya, e outras palavras que entram
num léxico mais “secular” das várias células, como “likhfa”,
“makar” ou “khadae”. A manutenção de ligações secretas
não é só uma orientação vaga, mas um dever preciso.»4

3
Londres, 2020. Sobre o papel da «dissimulação», «engano», «engodo», «segredo» e
«clandestinidade» nos grupos terroristas, cf. J. Holeindre, La Russe et la Force – Une Autre
Histoire de la Stratégie, Place des Éditeurs, 2017.
4
A (taqiah), ou «prudência», começou por ser ensinada como uma necessidade
virtuosa de esconder a verdadeira fé e o verdadeiro culto, quando o crente está ameaçado
de extinção, e pode prejudicar a sua comunidade ao revelar a verdade. Uma das grandes
questões doutrinais no mundo islâmico – e em todas as religiões (cf., por exemplo, o

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Do Shabaab ao Daesh

Uma fonte de serviço de informações ocidental de renome


diz­‑nos que elementos capturados do Shabaab no Quénia
confessaram «ligações comerciais» com os moçambicanos,
inclusive através de meios electrónicos e redes sociais. Um
dos suspeitos líderes do ataque ao Hotel Dusit (Nairobi,
15 de Janeiro de 2019), Violet Kemunto (aka «Hadja» ou
«Khadija») Omwoyo, era uma aparentemente respeitável e
cosmopolita jornalista, licenciada em Relações Públicas, que
tinha contactos moçambicanos em Cabo Delgado, alguns via
Whatsapp, ainda em investigação, um ano depois.
Embora alguns elementos de ligação entre militantes
somalis, quenianos e moçambicanos tenham sido demons-
trados, discute­‑se se foram meros laços pessoais ou de orga-
nização.
Um membro do comité de peritos da ONU diz­‑nos que se
trata «de um problema complexo, porque o Shabaab somali­
‑queniano e o grupo congolês que tomou conta da jihad moçam-
bicana pertenciam a movimentos distintos, às vezes rivais e
outras vezes inimigos, a saber a Al­‑Qaeda e o Daesh. Verifica­‑se
que alguns operacionais terroristas tinham objectivos comuns,
mas recebiam instruções diversas dos seus chefes.»5
A senhora Omwoyo, por exemplo, pode ter viajado tam-
bém para Pemba6, e as agências de informações mostraram

filme Silêncio, de Scorsese) – é a de saber se a omissão, o silêncio, a dissimulação podem


incluir a negação formal e a apostasia pública, mesmo se feita sob reserva mental. Cf.
R. Ibrahim, «Islam’s Doctrines of Deception», em Middle East Forum, Outubro de 2008,
acessível em https://www.meforum.org/2095/islams­‑doctrines­‑of­‑deception.
5
Reportado por fonte. Londres e Bruxelas, Janeiro de 2020.
6
Este elemento feminino era a «Noiva do Shabaab» do comandante do grupo, Ali
Salim «Farouk Jouma» Gichunge, morto durante o ataque, que tinha também estado
várias vezes em Moçambique. Alguns negócios e contactos entre jovens de Moçambique
e o casal do Al Shabaab ainda estão por esclarecer, e terão sido mantidos através de
«Junior Red», cobertura empresarial para um pequeno negócio de importação e exporta-
ção de diversos tipos de bens de consumo e peças de veículos.

132

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O Ângulo da Jihad: Essencial, de Oportunidade ou Acessório?

às autoridades moçambicanas um vídeo onde a militante jiha‑


dista clandestina se estreava numa balada pop: https://youtu-
be/FD1jzSkONjs
Esta gravação foi feita em 2013, retratando a música «Njoo
Kwangu», de um artista queniano chamado B.T. Garoto. Os
investigadores querem saber se os estúdios de produção
(Carta Um, de Nisba Midundo) também funcionaram em
Moçambique.
Há assim ainda muito a investigar e descobrir sobre os
laços mais profundos e confidenciais de todos estes grupos.
Mas se voltarmos ao nascimento do Shabaab moçambicano,
descobrimos um caminho evidente, visto noutros sítios do
mundo.
De 2011 a 2015, de acordo com dissidentes que agora aju-
dam a polícia, um grupo de jovens «muçulmanos inquietos
e preocupados» formou a associação religiosa «missionária»
e de assistência Seguidores da Tradição Profética e da Con-
gregação (Ahlu Sunnah Wa­‑Jamma, ou em árabe ahl alsanat
waljamaea / ) ou Seguidores de Al Sunna
(tradição) e Al Gamaa (comunidade)7.
O «clube de pensamento e acção» (como designa um
antigo membro) era inicialmente formado por «equipas de
estudo, reunidas em sessão regular», mas pode ter evoluído
para a formação, em Maio e Junho de 2017, de «unidades de
defesa» com capacidade militar, inicialmente não armadas (ou
«não equipadas com armas de fogo», segundo a mesma fonte),
mas estimadas após análise cuidada (SISE, SERNIC) em cerca
de oitocentos a mil homens, e algumas dúzias de mulheres.

7
Uma síntese razoavelmente adequada aparece em Pirio, Pitteli, Adam, «The Emer-
gence of Violent Extremism in Northern Mozambique», em Africa Center for Strategic
Studies, Março de 2018, acessível em https://africacenter.org/spotlight/the­‑emergence­
‑of­‑violent­‑extremism­‑in­‑northern­‑mozambique/.

133

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Do Shabaab ao Daesh

O grupo nasceu através da reunião de várias facções em


diferentes cidades e aldeias, tão longe da linha de frente actual
como Nampula8.
Alguns nomes influentes – depois de suspeitos de «saber
demasiado sobre os bandos, ou de os guarnecer e coman-
dar» – vieram das aldeias de Ruela (pelo menos 26 nomes),
Mucojo, Macomia, Kogolo (40 indivíduos) e Quiterajo (46).
Começaram a disseminar imãs «subversivos» dentro de
mesquitas, escolas, associações culturais, entrepostos e can-
tinas dominadas pelos «tradicionalistas», essencialmente do
principal Congresso Islâmico, e do Conselho Islâmico. Esses
«sacerdotes viajantes» deixavam as pessoas rezar sem lavar a
roupa previamente, com sapatos, calções ou mesmo de peito
nu, ou ainda usando machados, punhais e facas durante os
cultos. Essa série de práticas não­‑ortodoxas causou desaca-
tos, vozearia acesa, confrontos e expulsões dos «radicais» das
principais salas de culto.
Depois veio o recrutamento de descontentes através das
famílias, mesquitas e escolas formais e informais (madraças),
círculos de amigos e até clubes desportivos. O objectivo
principal era trazer soldados de infantaria e peregrinos para
a célula «subversiva», e também obter fundos para construir
mesquitas «alternativas».
A fonte referida, que entretanto denunciou muitos dos
excessos em preparação, faz­‑nos uma boa síntese:

«Como noutros sítios do mundo, tudo começou com um


movimento de juventude idealista, rapidamente controlado
pelos leões e pelas raposas, e não pelas pombas e pelos cor-
deiros.»

8
A capital da província do mesmo nome fica a 410 km a sul de Pemba.

134

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O Ângulo da Jihad: Essencial, de Oportunidade ou Acessório?

Também houve recrutamento (fonte regional de servi-


ços de informações) através da propagação de vídeo com
material proveniente da Tanzânia, e publicações associadas,
impressas por uma rede chamada «Swahili Sunna». Aí se
fazem várias referências históricas a um sistema pré­‑europeu
de cidades­‑estados muçulmanas, e à necessidade de regressar
a essa espécie de Idade do Ouro de um Califado Islâmico em
África9.
A maioria dos convertidos para a nova seita era (fonte
PRM), até 2017, feita por Quimuanes. Os Quimuanes/
Muani falam principalmente suaíli, uma língua unificadora
para os quenianos. Muitos «seguidores», como mencionado,
foram recrutados entre jovens descontentes dessa etnia, que
acreditavam ter sido oprimidos e minimizados – ao longo da
história do século xx – pelos Maconde. Para muitos investi-
gadores, os Muani muçulmanos eram tradicionalmente a elite
até aos tempos coloniais europeus. Em tempos escravizaram
os Maconde, mas estes foram depois favorecidos, sobretudo
depois das conversões ao catolicismo e protestantismo. Os
Macua (importantes em Macomia, por exemplo, e em Palma)
são às vezes um factor de equilíbrio, não tendo tomado ini-
cialmente partido. Temos também aqui uma grande parte dos
apoiantes da RENAMO na região.
Segundo a fonte do ex­‑membro do grupo, «Houve
muitas pessoas que se associaram sem saberem os fins
últimos dos que depois partiram para as matas, a matar.
Conheci gente descontente com a FRELIMO, membros
da RENAMO e de outros grupos, sem conotação religiosa
imediata, que achavam útil e benéfico aparecer um movi-

9
Esta ideia surge também no próximo volume de J. Warner, R. Cummings, R.
O’Farrell, The Islamic State of Africa, Hunt Publishers, Dezembro de 2020.

135

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Do Shabaab ao Daesh

mento de protesto que obrigasse o governo provincial a


transformar Cabo Delgado num sítio mais próprio para
viver.»
Mas o mesmo informador diz que, desde o início, o grupo
mais radical, «sempre com a guerra nas palavras», tinha
grandes contactos com estrangeiros que chegavam frequen-
temente, e «mantinham reuniões misteriosas até altas horas.
Eram sobretudo tanzanianos e ugandenses, mas havia tam-
bém alguns congoleses e somalis».
Muitos dos «seguidores» de Moçambique estavam ligados
aos chamados «missionários» do imã queniano Aboud Rogo
Mohammed, morto em 27 de Agosto de 2012, que foi com-
batido pelas autoridades da Somália e da Tanzânia, e fazia
parte do Shabaab inicial, e provavelmente da rede africana
da Al­‑Qaeda. Rogo restabeleceu­‑se várias vezes na Somália,
e viajou para Moçambique, antes da sua alegada «execução
extrajudicial» no Quénia. Vários clérigos muçulmanos de
Nampula dizem lembrar­‑se bem da actividade «perturba-
dora» dos primeiros «Rogoístas».
Centros de estudo e doutrina para este círculo de radicais
foram encontrados em Tora, Tibit e Epunchumbura (trans-
crição fonética, Tanzânia), na RDC e no Quénia. Como visto
anteriormente, a conexão queniana preocupa vários serviços
de segurança ocidentais, e sabe­‑se que alguns dos radicais
moçambicanos encontraram um imã conhecido (ver abaixo)
em Mombaça, podendo ter­‑se dado «uma série de sessões de
discussão operacional para Cabo Delgado» (fonte de segu-
rança de Nairobi).
Alguns documentos apreendidos também afirmam que
o grupo «rogoísta» afirmava representar «cinco milhões de
muçulmanos moçambicanos», que «têm o direito de formar
um Estado e uma sociedade separados».

136

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O Ângulo da Jihad: Essencial, de Oportunidade ou Acessório?

Um relatório de segurança de Moçambique, ainda clas-


sificado, identificava, em 2017­‑2018, cerca de 40 mesquitas
em Cabo Delgado onde o grupo tinha alguma representa-
ção.
A «ala militar» deste continente «rogoísta» foi vista como
a primeira responsável pelos ataques de Mocímboa da Praia,
em Outubro de 2017, e outro relatório de segurança, da
mesma altura, adverte logo para a aliança entre «jihadismo dou-
trinal» e redes de delito comum:

«Alguns dos elementos assinalados tinham ligações com


negócios provinciais, mesmo quando não os dominavam
por inteiro, […] braço de protecção da caça furtiva e da
pesca ilegal (em particular polvos e lulas, enviados para a
Tanzânia e carimbados lá como país de origem, antes do
congelamento e processamento), alegadamente prostitui-
ção ou comércio de escravos e de empregados domésticos
não­‑salariados em diversos pontos de África, incluindo o
Sudão, tráfico de madeira ilícita, comércio de marfim, às
vezes com cumplicidade de funcionários policiais venais,
extracção clandestina de rubis e diamantes, mercado negro
de armas, e tráfico de drogas, neste caso em relação à
heroína e ao ice.»10

10
Excerto de relatório de informações de uma agência não­‑africana, Janeiro de 2020.
O documento explica que «não parece haver contradição fundamental» entre o «ele-
mento dito jihadista» e o «elemento de delito comum e banditismo organizado», já que,
«para além das técnicas verificadas de dissimulação, comuns à Al­‑Qaeda e ao Daesh», o
«primeiro elemento serve para justificar o segundo», e «o segundo é perdoado por líderes
religiosos autoproclamados, como meio de atingir os fins supremos da organização, a
saber uma sociedade baseada na Sharia e com o poder político administrado pelo alegado
Califado Global, através das suas “províncias”, “regiões” e “distritos”».

137

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Do Shabaab ao Daesh

A ideia de que estes bandos cobravam protecção e outras


«taxas» a empresários venais, ou faziam o seu próprio negó-
cio, ainda não está plenamente provada, mas muitas inves-
tigações que se iniciaram em 2019 apontam nesse sentido.
Lembre­‑se de que o comércio ilegal de madeira, essencial-
mente por intermediários asiáticos, não é um mito: a 8 de
Dezembro de 2018, por exemplo, as autoridades alfandegá-
rias descobriram 1200 contentores com madeira ilegalmente
extraída, no valor de 800 mil dólares. O destino seria um
porto chinês.
Já este ano, foram interceptadas várias camionetas com
madeira igualmente ilegal, a exportar para a Tanzânia.
Quanto à possibilidade de o tráfico de heroína subsidiar os
grupos terroristas, através da cobrança de uma percentagem,
é também uma hipótese investigada pelo menos desde 2018,
segundo uma fonte judiciária moçambicana.
A mesma explica­‑nos que há provas quanto a uma grande
rede internacional, que produz a substância no Afeganistão, a
transporta para o Paquistão, daí por barco para ilha de Lamu,
no Quénia, depois para a baía de Pemba, a seguir para Zan-
zibar, depois para Nacala e, por fim, para Durban, na África
do Sul11.
De qualquer forma, o tráfico de droga transformou­‑se
num problema maior de Moçambique, que fez perigar inclu-
sivamente a sua imagem e relações internacionais, e o rumo,

11
Uma ponta do véu sobre esta rede terá sido levantada com a detenção do cidadão
paquistanês Tanveer Ahmed Allah, conhecido como «Galby», em Janeiro de 2019, e
posterior extradição para os EUA (Janeiro de 2020), onde será julgado no Tribunal de
Distrito do Sul do Texas, acusado de co­‑comandar uma vasta organização com base
em Moçambique. «Galby» foi escoltado por um comando armado da DEA, a partir de
Maputo, e pode estar em negociações com a justiça americana, como arrependido. O
paquistanês foi detido com dois alegados cúmplices tanzanianos, e foram­‑lhe apreendi-
das 24 viaturas.

138

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O Ângulo da Jihad: Essencial, de Oportunidade ou Acessório?

orçamento e estruturas objectivas desse tráfico, em Cabo


Delgado, mereceria um estudo à parte12.
O recurso a dinheiros carreados de participação, aprovei-
tamento ou controlo de negócios ilegais não pode ser exa-
gerado, dado que o Shabaab nunca pareceu ter uma grande
estrutura financeira de apoio, mas a verdade é que, ao curso
dos anos, o movimento pareceu crescer também em logística,
capacidade de deslocação e armamento.
Fonte policial explica que, «inicialmente, os bandos viviam
sem meios logísticos importantes, nem uma aparente grande
estrutura militar de apoio, e usavam sobretudo armas rou-
badas a agentes do Estado ou a cidadãos locais. [...] A sua
principal força era a surpresa e a disposição de informadores
em várias terras.»
Um vídeo supostamente de Janeiro de 2018, mas revelado
apenas alguns meses depois, mostra cinco espingardas auto-
máticas AK­‑47 (tipo Kalashnikov), manejadas por jihadistas
muito jovens, que falavam em português, e não em suaíli
(como mencionado em muitos sítios electrónicos de «inteli-
gência»).
A mensagem era clara:

«Começámos em Mocímboa da Praia, pouco a pouco, pela


Graça de Deus.
Não somos fortes, mas com a ajuda de Alá, viemos lutar
contra Trojut, Chirki, o Sheitan.

12
Cf. J. Hanlon, «The Uberization of Mozambique’s heroin trade», em London
School of Economics, International Development, Working Paper 18­‑190, Londres 2018,
acessível em http://bit.ly/Mozheroin and Portuguese: http://bit.ly/Moz­‑heroina, e
Haysom, «Where crime compounds conflict: Understanding northern Mozambique’s
vulnerabilities», em Global Initiative Against Transnational Organized Crime, 2018, acessível
em https://globalinitiative.net/wp­‑content/uploads/2018/10/TGIATOC­‑North­
‑MozambiqueReport­‑WEB.pdf.

139

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Do Shabaab ao Daesh

Irmãos de Moçambique:
A nossa geração, devido às obras do Diabo [Sheitan], corre
o risco de perder o conhecimento de Alá e do Seu Mensa-
geiro Rasud, mas vamos parar com isso.
A religião é para nós uma maneira de construir a sociedade,
um comando, e somos soldados, como o Hizbollah.»

O grupo fala em português, como dissemos, mas os seus


supostos membros também foram capturados em vídeo do
Shabaab a declamar em suaíli e kimwani. Num ataque em
Palma, os bandoleiros gritaram «Mwizi» (ladrão) e «Ni Kubwa»
e «Mwenyezi Mungu Ni Mzuri», formas de «Alá é grande».
Também é importante notar que o SISE tem um grande
número de documentos e objectos encontrados nos acampa-
mentos do grupo, ainda não divulgados para não criar pânico,
e não dar a impressão de que há uma verdadeira insurreição
muçulmana em Cabo Delgado. Mas muitos desses dados,
incluindo mapas em vários idiomas, o Corão também em
múltiplas línguas, fotos de família, instruções e documentos
de identidade (alguns boas falsificações), mostram a verda-
deira natureza «internacional» desse grupo ou dessas «células»
federadas.
Há exemplos.
Abilah Hamisi Kahamba, tanzaniano, de Lindi, nascido
em 1 de Julho de 1999, com ocupação «camponesa», foi
morto em Ulumbi, Palma, em Junho de 2018, após um ataque
e perseguição dos FDS aos jihadistas, e colaboração preciosa
de um grupo de autodefesa. A sua espingarda automática
AKM tinha 29 munições, e o combatente terrorista transpor-
tava duas bolsas com carregadores.
Tinha entrado em Moçambique legalmente, com os seus
documentos originais (que não parecem forjados, de acordo

140

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O Ângulo da Jihad: Essencial, de Oportunidade ou Acessório?

com uma fonte da PRM), depois encontrados no acampa-


mento da sua «célula».
Um outro tanzaniano, Ahmad «Jundi» Mahamood, che-
gado ao Congo em 2017, através da África do Sul, tinha
também mostrado vontade de criar um «grupo de combate»,
no seio do ADF­‑MTM (discutido a seguir), para ajudar «os
irmãos perseguidos de Moçambique».

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A JIHAD DO DAESH:
O V E R D A DEI R O INI M I G O

Entramos no ponto crucial desta investigação: a passa-


gem do Shabaab inicial para o comando organizado do Dito
Estado Dito Islâmico.
O acontecimento teve consequências imediatas, e deu­‑se
formalmente entre 1 de Maio e 30 de Junho de 2019, com
o juramento de fidelidade e vassalagem dos grupos jihadistas
moçambicanos ao califa Al Baghdadi.
Este tinha anunciado, meses antes, a criação do cha-
mado «Wilayat» (província) da África Central do Daesh,
ou AAWI (aldawlat al’iislamiat
wasat ‘iifriqia). Era nessa zona político­‑geográfica e sob esse
comando que se inseria o antigo Shabaab de Cabo Del-
gado.
Utilizamos aqui o acrónimo português EIPAC («Estado
Islâmico, Província da África Central», ISCAP para os
anglo­‑saxónicos), com ou sem a menção ao braço de Cabo
Delgado, designado em comunicações da «agência de infor-
mação» terrorista Amaq como , ou «katibatan
muwzimbiq», i.e. «Katiba (batalhão) de Moçambique».

143

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Do Shabaab ao Daesh

O ABC DO ADF: a origem

Como veremos, o quartel­‑general (maqarun, ) do EIPAC


fica nas selvas do leste da RDC, por exemplo, perto de Beni,
e baseia­‑se, a partir da maioria dos seus membros fundado-
res e comandantes, na milícia Ugando­‑Congolesa do ADF
(Aliança de Forças Democráticas).
O ADF, combatente extremado nas várias guerras de
predação do Congo, que envolveram tropas de muitos países
vizinhos (Uganda, Ruanda, Zimbabué, Angola), tinha­‑se divi-
dido em duas facções, uma «nacionalista­‑identitária» e outra
jihadista, em 2018.
Foi a facção «islamista», denominada Tawheed Wau
Mujahe­deen, TWM (descendente dos chamados «Tablighi
Jamaat»), ou Madina at Tawheed Wau Mujahedeen (MTM,
«Cidade do Monoteísmo e dos Combatentes Sagrados»), que
esteve na origem do EIPAC, tendo aderido ao Daesh, por
acto de bay’ah ( ), entre 10 e 20 de Abril de 2019. O jura-
mento dos grupos moçambicanos deu­‑se assim cerca de dois
meses depois.
O acto de vassalagem e compromisso de fidelidade de
Abril foi publicado «oficialmente» no boletim do Daesh
Al Naba, n.º 179, de 25 de Abril de 2019. Muitos observado-
res desatentos falharam este pormenor, e concluíram que não
tinha havido uma «declaração formal de adesão do ADF ao
grupo de Al Baghdadi1.

1
Um informador arrependido diz que o juramento foi feito na base principal do
«complexo da Grande Madina II», perto da cidade de Beni, na região congolesa do Norte
do Kivu. Madina era o quartel­‑general do ADF, no dia 10 de Abril de 2019. Refere ainda
que o acto foi participado por 45 «comandantes» armados, representantes de várias «uni-
dades de toda a RDC». Na imagem mais conhecida sobre o assunto, surgem menos de
20 desses «chefes de guerra».

144

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A Jihad do Daesh: O Verdadeiro Inimigo

Desde a prisão do fundador Jamil Mukulu (descrita noutra


parte do livro), o ADF/TWM (também conhecido como
MTM) era comandado, até Março de 2020, por Musa «Seka»
Baluku.
Pertencia este por nascimento (1976, em Karese, no
Uganda) à tribo Mukonjo, e tornou­‑se desde jovem num
estudioso de teologia islâmica, tendo ascendido a imã da mes-
quita Malakaz, de Kampala.
Baluku é considerado um chefe militar terrível, impiedoso
e temperamental, que ordena campanhas de decapitação e
crucificação de inimigos, e que parece ter dado ordens direc-
tas para as operações em Cabo Delgado, segundo a inter-
cepção de comunicações de fim de 20192, emanadas de um
telemóvel que emitia do alegado comando do grupo, no cha-
mado «Campo Medina» (Madina), a sul de Eringeti (Eringite),
na zona da reserva natural do Parque de Virunga.
O TWM/MTM tinha muitas bases no chamado «Grand
Nord», ou Kivu do Norte, no Congo. E era um grupo flexí-
vel, resiliente, impiedoso e eficaz, mas misterioso.
Os seus objectivos nunca foram claros, e alguns observa-
dores dividem­‑se quanto a quase tudo.
Sabe­‑se que, em 1993, o grupo nasceu no Uganda com a
intenção de criar aí um «estado islâmico separado». Adop-
tou o nome ADF quando se ligou a elementos radicais do
Uganda, depois expulsos ou presos, e se imiscuiu na guerra
civil congolesa.
Uma fonte do Congo diz que se trata, no caso do ADF,
de «uma quinta coluna de um serviço secreto estrangeiro»
(o mesmo dizem os serviços ugandeses, mas apontando nou-
tro sentido), mas um informador do Ruanda afirma estarmos

2
Segundo um serviço de informações da Europa Ocidental, contactado já em 2020.

145

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Do Shabaab ao Daesh

perante «um dos mais perigosos grupos terroristas da actua-


lidade, e daí o facto de ser sido integrado, através de uma das
suas tendências, no Daesh».3
A dimensão da organização terá sido radicalmente alte-
rada quando aderiu ao Daesh, com a chegada de «conselhei-
ros militares» de origem paquistanesa, síria e argelina (ou
líbia).
Mas antes de se tornar no núcleo fundamental do EIPAC,
o comando da ADF emitia poucas declarações públicas, e
deixava ambígua a responsabilidade por vários ataques.
Fontes do governo de Kinshasa, e dos peritos da ONU, já
colocaram a estimativa de homens armados grupo entre mil e
quinhentos e dois mil, com agentes de recrutamento noutros
países da região, embora uma fonte ugandesa refira que «se
tratava de pouco mais de trezentos homens, hoje expandidos
para cerca de dois mil e quinhentos, mas em todos os países
onde há elementos do dito EIPAC»4.
O financiamento do ADF, antes da adesão ao Daesh, era
também obscuro, mas falava­‑se em muitos elementos seme-
lhantes à situação moçambicana, com exploração ilegal de
madeira e minério, incluindo ouro e diamantes, tráfico de
marfim, roubo e comércio de armas, mas também «produção
agrícola em zonas libertadas», a manutenção de uma rede de
casas de remessa de dinheiro, ou hawala, que ia do Congo ao
Reino Unido, e até um pequeno negócio de cobertura, com
uma empresa de táxis»5.
Em Dezembro de 2019, as forças congolesas afirmavam
ter descoberto mais documentos, testemunhos e confissões

3
Kigali, Janeiro de 2020, Paris, Fevereiro de 2020.
4
Kampala e Londres, Fevereiro de 2020. A estimativa ugandesa parece ser em parte
aceite pelo grupo de peritos da ONU.
5
Ex­‑elemento do grupo, hoje detido num país limítrofe do Congo.

146

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A Jihad do Daesh: O Verdadeiro Inimigo

que provavam estar muitos financiadores do grupo fora da


zona de Beni, e até no exterior.
A verdade, porém, é que o grupo parecia controlar, até
2019, muitas áreas rurais, onde os seus agentes obrigavam
os civis a trabalhar e a pagar em espécies, e onde organizava
sessões de propaganda e esclarecimento. Com a adesão ao
Daesh, essas sessões alargaram­‑se, e trouxeram também
«estudantes» de Moçambique.
Os futuros candidatos à Katiba de Cabo Delgado foram
treinados e estudaram «ciências religiosas» em vários dos
campos militarizados do EIPAC no Congo.
A lista inclui bases e acampamentos, ou «aldeias liber-
tadas» em Mayangose, Ngite­‑Mavivi, «Canada», Tsotsota,
Mwalika, Kididiwe, Kokola, Mbau, Mavete, Beni leste,
Vemba, Kadou, Karwamba, Masulukwede, Mabeto, Bahari,
P46 e Chochota. As maiores bases, para além do «complexo
da Madina II» (o aludido QG, que incluía Kajuju), eram
Mapoba e Mulalo.
Os moçambicanos foram treinados por instrutores como
Amisi Kasadha («Kalume»), Ibrahim Muzaganda e um tal
«Issa John» Katembo (também conhecido como «Rafiki»), e
ainda um Nasser Abdu Hamid Diiru, conhecido por Mzee
Wa Kazi ou «Kikute», aparentemente morto pelas FARDC
no fim de 2019. Algumas mulheres moçambicanas que ade-
riram à jihad ficaram sob controlo de uma tal «Mama Sarah»,
morta pelas forças congolesas em Novembro de 20196.
Os «comissários políticos» enviados para Cabo Delgado
incluíam os chamados «Waswa», aliás «Ibrahimo», e «Kadala»,
conhecido como M.
6
Um informador das FARDC sobre as ligações Moçambique­‑Congo­‑Quénia­
‑Somália foi o ex­‑combatente queniano do ADF, Stephan Obuor Barasa, capturado
pelos congoleses em Fevereiro de 2019, em Kichanga, Watalinga, em Beni.

147

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Do Shabaab ao Daesh

A operação moçambicana foi várias vezes visitada pelo


chefe do serviço secreto do EIPAC, um tal Ben Kisokeranjo,
e muitas indicações operacionais começaram a provir do
«comandante Elias Segujja» e de um tal «general Mohamed
Mukubwa», abatido em 29 de Novembro de 2019, perto da
base ADF de Mabopu, pelo exército congolês.
Outros homens do ADF que contactaram os moçam-
bicanos nas matas de Medina (descrito por um detido
do grupo como «um complexo de três bases, a norte de
Mbau­‑Kamango, que incluía Bango, onde se treinavam
combatentes estrangeiros» 7), faziam parte da estrutura
dirigente e operacional que transitou para o EIPAC. A
saber, segundo fonte congolesa, Lukwago Rashid Swaibu
Hood, conhecido em Moçambique como «Pierro», Kayiira
Ogundipe, Musa Barau, Amigo Kibirige (que para os
moçambicanos era «Marine»), Fezza Mulalo, «Rick Muzei»
(que terá também tomado conta das operações vídeo e
fotografia), «Tiger» Ansa, «Werasson», Abdul Lubega e
«Toyo» Litope, entre outros nomes de uma lista de quase
40 pessoas.
Aquilo que os moçambicanos descobriram nas matas de
Beni foi algo agora confirmado pelas unidades de informa-
ções das FARDC: grande parte dos comandantes do ADF­
‑EIPAC era estrangeira, e a maior parte dos combatentes
vinha também do exterior, essencialmente do Uganda, do
Burundi, da Tanzânia e da Somália.
As forças congolesas juraram a extinção do movimento
em 2017, quando se deu a primeira acção de tomo contra
o presumível sítio da «Base Madina», mas a verdade é que o
movimento sobreviveu, expandiu­‑se e aderiu ao Daesh.

7
Esta fonte diz que os moçambicanos passaram também pela base de Mwalika.

148

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A Jihad do Daesh: O Verdadeiro Inimigo

Uma segunda grande operação, denominada «Sukola II»,


coordenada pelos generais Jacques Nduru Chaligonza (Icha-
lingoza) e Peter Chirimwami8, envolvendo mais cinco oficiais
generais e cerca de 22 mil homens, com apoio aéreo e de
blindados, começou a 2 de Outubro de 2019.
Até Dezembro, as forças congolesas afirmavam ter morto
dezenas de terroristas, e feito fugir outros para a Tanzânia
e Moçambique. Algumas operações conduzidas por oficiais
mais reconhecidos e eficazes das FARDC, como Jérome
«Chico» Tshitambwe (32 BRR), ou o coronel Fabien Dunia
Kashindi (forças especiais), parecia confirmar o abandono
pelos jihadistas das suas bases, mas sem que deixassem para
trás muito material de guerra ou munições.
As FARDC anunciavam entre 80 a 100 «combatentes»
mortos, mas reconheciam que os fugitivos regressavam para
atacar civis. Ainda assim, os generais congoleses afirmavam
que o «sucesso» era evidente, e tudo poderia estar consumado
para os jihadistas até Maio de 2020.
Mas observadores de ONG locais do norte do Kivu, e um
analista sénior de um serviço de informações ocidental, que
trabalha muito com as forças armadas da RDC (FARDC),
referem­‑nos que a situação «é ainda fluida» (informação de
Dezembro de 2020).
Uma dessas fontes refere:

«É verdade que várias unidades directamente sob comando


de Musa Baluku foram destruídas, mas outras trocaram as
fardas por roupas civis e autênticos trapos, misturaram­‑se
com a população e atacaram as FARDC pela retaguarda.
8
Chirimwami, que tinha estado nas operações militares em 2014, era um dos milita-
res congoleses que mais sabia sobre as ligações entre o ADF e o Shabaab moçambicano,
mas sempre se queixou de falta de colaboração entre os dois países neste assunto.

149

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Do Shabaab ao Daesh

Isto levou a retaliações sucessivas sobre a população civil, o


que serviu os interesses do EIPAC. No fim de 2019, havia
mais de mil mortos entre não­‑combatentes, incluindo civis
mortos pelo Daesh, outros mortos pelo exército, outros
ainda apanhados em situações desesperadas de fogo cruza-
do.»9

O EIPAC herdou das ADF uma localização geográfica


ímpar, na medida em que as florestas, lagos e rios onde
sobrevivia eram inóspitos, com as FARDC e o numeroso
contingente da ONU a patrulhar sobretudo locais povoados,
servidos por estradas ou por trilhos, e não comunidades iso-
ladas.
Um alto responsável militar congolês dizia a uma fonte
deste livro:

«É verdade que houve muitas insuficiências. Só muito tarde


fomos informados da transformação do ADF em comando
do Daesh, e da chegada maciça a Beni de ditos “combaten-
tes internacionalistas”, simpatizantes do chamado jihadismo.
Até 2019, mantínhamos as nossas bases, aquartelamentos
e postos em zonas urbanas, de forma a proteger melhor as
grandes concentrações populacionais, e deixámos os bandos
terroristas tomar conta dos campos, das matas, das zonas
mais pobres e remotas. Desde Janeiro desse ano que come-
çámos a construir áreas militares nas antigas “zonas segu-
ras” do inimigo, e conseguimos que as suas unidades, antes
arrogantes e atrevidas, começassem a fugir para sul e leste.

9
Kizito Bin Hangi tornou­‑se um activista conhecido, que diz a ofensiva ter sido mal
preparada, e ter­‑se transformado numa batalha desorganizada onde às vezes é difícil
perceber quem é quem.

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A Jihad do Daesh: O Verdadeiro Inimigo

Agora estamos numa fase de balanço, mas pensamos que o


EIPAC está destruído na sua capacidade, em pelo menos 60
%. Isso poderá ter consequências na situação de Moçambi-
que.»10

Não há certezas sobre o verdadeiro resultado desta ofensiva.


Alguns cépticos dizem que ela envolveu demasiada
repressão contra civis, que não terá morto, na realidade, mais
de 12 terroristas, no meio de cerca de cem pessoas abatidas,
que as FARDC não possuem meios humanos nem orça-
mento para permanecerem nos locais conquistados durante
os necessários meses ou anos, de forma a evitar o regresso
do EIPAC, que a força da ONU oferece apenas apoio limi-
tado, e não combativo, que o Uganda se recusou a participar
nas operações, assim como outros países convidados, e que
o grosso dos grupos terroristas está outra vez activo, e em
movimento.
Como que a demonstrar isto, novos ataques contra civis,
em zonas aparentemente controladas pelas FARDC e pela
polícia, no dia 4 de Março de 2020, em Nyaogo (Biakato),
com grupos que se diziam activos ainda em Bangole e Mwa-
lika.
Um elemento da ONG Lucha disse a uma fonte:

«Se olharmos bem para o nosso passado massacrado, o


ADF, que ainda não se chamava Daesh, apareceu e desa-
pareceu várias vezes, e foi decretado extinto também várias
vezes. E mesmo quando surgiu como grupo de criminosos,
nos massacres de Dezembro de 2014, conseguiu matar
centenas de civis sem ter sido extinto pelas forças armadas.

10
Paris, Fevereiro de 2020.

151

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Do Shabaab ao Daesh

Daí que deve compreender o nosso cepticismo sobre estes


novos triunfos.»11

O seu pessimismo ficava a dever­‑se aos factos: apesar de


as FARDC terem anunciado a campanha militar referida, e a
tomada «da maior parte das bases do ADF, incluindo Madina
(em 11 de Janeiro de 2020), o grupo terrorista matou 393
civis entre Novembro de 2019 e Março de 2020.
Estas baixas incluíam cerca de 94 civis, entre 28 de Janeiro
de 2020 e fim de Fevereiro do mesmo ano, nas aldeias de
Manganagalo (Matumbi, não muito longe de uma base do
ADF dita «destruída»), Makeke, Mutwango, Manzalawu,
Manzinzi, Mebundi, Halungupa, e em diversas povoações
da província contígua do Ituri, que tinha até agora sido pou-
pada.
Por outro lado, também não há certezas sobre o destino
dos comandantes, ou «generais», do ADF/MTM/EIPAC. As
FARDC dizem ter «morto ou ferido gravemente cinco dos
seis responsáveis máximos», mas não foram divulgadas nem
identidades nem fotografias dos mesmos.
No entanto, foi a ONU a anunciar que, a 9 de Fevereiro
de 2020, as suas forças ajudaram as FARDC a capturar 40
homens do ADF/EIPAC, em Makeke, depois de um ataque a
civis, apesar de tudo se ter passado numa zona onde... o ADF
tinha sido anunciado como extinto.
E quanto ao chefe máximo, o xeque Baluku, encontrava­
‑se ainda a monte até à conclusão deste livro. Algumas fontes
brasileiras12 diziam que poderia tentar fugir para Moçambique

Beni, Março de 2020.


11

12
Forças especiais do Brasil, treinadas para a luta na selva, tinham integrado a
MONUSCO e dado treino específico às FARDC, na luta contra o ADF/EIPAC, no
quadro de uma unidade chamada JWMTT.

152

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A Jihad do Daesh: O Verdadeiro Inimigo

ou Tanzânia, o que seria uma óbvia má notícia para Cabo


Delgado.

O estranho caso do MTM: polémicas em curso

A já referida «conversão» do ADF em MTM13 continua a


dividir os analistas mais especializados, e tem consequência
directa sobre Cabo Delgado.
À superfície, parece igual a outras dissensões dentro do
«terrorismo jihadista», e do terrorismo, ou «banditismo polí-
tico», em geral.
Primeiro, temos um movimento ideologicamente mes-
tiçado, o ADF. Com correntes identitárias e nacionalistas,
regionalistas ou autonomistas relativas ao Uganda, que se
combinam com facções jihadistas em sentido estrito. Estas
desejam uma «guerra santa e justa» que ultrapasse fronteiras
étnicas, tribais, nacionais ou regionais, e una toda a África
Central num «Grande Califado Meridional», nas palavras de
um membro arrependido.
Como noutros grupos de outras paragens, parece o cho-
que entre «nacionalismo pequeno­‑burguês» e «internaciona-
lismo proletário».
Depois há as divergências sobre as formas de acção.
Uns acham que se deve encontrar uma plataforma entre as
populações locais, que possa impulsionar uma linha de mas-
sas humanas que apoie, aceite, proteja e cubra os militantes
armados. Outros entendem que o povo local é essencial-

Uma fonte antes ligada aos meios radicais moçambicanos, mas que os renun-
13

ciou e denunciou, diz que a designação correcta do MTM devia ser, em árabe,
, ou «madinat al tawhid wa muqatil jihad», se quisermos dizer
«Cidade do Monoteísmo e dos Combatentes da Jihad».

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Do Shabaab ao Daesh

mente infiel ou apóstata, não fiável e parte do inimigo e do


problema, não da solução.
Este segundo ponto é agravado pelas polémicas sobre o
que é o «Islão puro», o que valem os «convertidos», as dife-
renças entre xiismo e sunismo, mas também entre sufis e
salafistas, deobandis e wahabitas, para já não falar da transfor-
mação da liderança inicial do ADF, do «tabligismo» missioná-
rio extremo para o «tabligismo armado e predador». Ou seja,
outra vez, do «Islão vociferante» ao «Islão armado».
O mesmo conflito tinha­‑se dado com o Boko Haram,
contendo uma ala que justificava o ataque sistemático a popu-
lações infiéis. Para os chefes do bando, mesmo os muçulma-
nos civis a viver sedentariamente em aldeias onde houvesse
alguns cristãos ou animistas, eram adversários. Tinham sido
«contaminados». Só os civis que se arriscavam e se arrasta-
vam, em movimento perpétuo atrás dos senhores da guerra,
eram confiáveis.
No caso do Boko Haram, a cisão deu­‑se entre a velha
guarda «purista», que defendia o total isolamento dos civis
locais, e o Daesh que, na sua barbárie, não ignorava que era
preciso uma dose de apoio popular, para sobreviver.
Por fim, o conflito interno entre adeptos da «guerra total
e permanente» e partidários de um combate com algumas
regras mínimas, incluindo a não execução imediata de pri-
sioneiros. Esta divisão entroncava na anterior: os «puros»
desejavam a terra queimada e o extermínio total, para semear
o terror nos corações e o «exemplo», enquanto os outros
propunham uma guerra que, apesar de combinada com o
terrorismo, se aproximava cada vez mais da guerra «político­
‑militar» da guerrilha.
Tudo isto pesou na transformação do ADF em MTM.
Ainda se discute se foi «cisão» ou «transformação», como

154

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A Jihad do Daesh: O Verdadeiro Inimigo

vimos. Isto é, se só alguns dirigentes e «soldados» se passaram


para a nova entidade, ou se todo o grupo, os seus meios e
estruturas se limitaram a adoptar um novo nome e uma nova
bandeira.
Quem falar com ex­‑cativos do ADF, com militares congo-
leses (sobretudo das forças especiais que tomaram o temido
«complexo da Madina»), com «arrependidos» do movimento
e com os seus contactos em Moçambique e Tanzânia, recebe
respostas diferentes.
A maior parte diz que a mudança de ADF para MTM
foi uma «transformação» de todo o movimento, e não uma
fusão. Uma testemunha privilegiada afirma:

«Foram os líderes que incentivaram a mudança. MTM pas-


sou a ser o “nome islâmico” do ADF, e também a desig-
nação do complexo­‑base do comando, perto do parque
de Virunga. Achamos que foi sugerido pelo Daesh e pelos
seus emissários vindos de Borno (Nigéria), mas caiu bem
entre os chefes, que pensavam nas mesmas linhas. Todos os
comandantes, comissários políticos, instrutores, pregadores,
chefes de campo, responsáveis dos batalhões, guardas dos
depósitos de munições e armas, dos postos secretos, das
unidades de mulheres, do “corpo de artilharia”, dos técnicos
de comunicações, passaram a ser MTM.»14

E continua:

«A nossa liderança não se quis imiscuir na luta – que sabía-


mos real – entre Al­‑Qaeda e ISIS, e por isso escolheu uma
bandeira de combate que não ofendesse nenhuma das fac-

14
A., Londres 2019 e 2020.

155

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Do Shabaab ao Daesh

ções. Começou aí uma espécie de estágio para a conversão


aos modos, códigos, protocolos e acções do Estado Islâ-
mico, a que o MTM aderiu de facto em 2018 e formalmente
em 2019. A redesignação do nosso grupo como fundador
de uma Província foi o sinal do reconhecimento do califa Al
Baghdadi pelos esforços do xeque Musa Baluku.»15

Uma fonte congolesa, dos serviços de informações mili-


tares16, tem uma visão diferente do acontecido, que diz ser
baseada em «relatos de prisioneiros e documentação apreen-
dida».
Refere:

«Não há dúvida de que o EIPAC, no Congo e em Moçam-


bique, derivou do MTM, e este do ADF, mas achamos que
só passou para o MTM uma fracção do ADF original. Na
nossa estimativa, entre 30 a 50 % dos seus efectivos, e 45 %
dos seus comandantes. Mas as relações entre os dois gru-
pos passaram a ser cordiais, partilhando muitas instalações
e postos. Ficou também acordado, por um documento
que descobrimos já em 2020, que todas as acções dos dois
grupos seriam reivindicadas pelo chamado EIPAC, ou seja,
nem pelo MTM nem pelo ADF. Alguns detidos dizem­‑nos
que a intenção do Daesh era conseguir a unificação total do
ADF e do MTM em 2020, e trazer para o movimento um
outro grupo jihadista perto de Beni, próximo da Al­‑Qaeda,
e elementos Mai Mai convertidos, que tinham desistido de
guerrear o ADF.»

15
Ibid.
16
Coronel do SRM, ex­‑SARM e ex­‑DEMIAP, chefiado até há pouco pelo general
Delphin Kahimbi, entretanto suspenso e que acabou por morrer em circunstâncias
estranhas, já em 2020.

156

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A Jihad do Daesh: O Verdadeiro Inimigo

Mas o mesmo oficial refere:

«Estamos no entanto conscientes de que muitos dos com-


batentes internacionais que detivemos nos últimos meses,
na ausência de provas concludentes, dizem agora nada ter
a ver com as acções reclamadas pelo EIPAC, e afirmam ter
sido meros combatentes do ADF. São, se calhar não por
coincidência, os mesmos que afirmam ter sido a separação
MTM­‑ADF uma verdadeira cisão, e não uma mera mudança
de nome.»17

Este oficial congolês diz também que «verificámos, ao


longo de 2019 e 2020, ataques contra as nossas forças e con-
tra a polícia, e contra civis, que foram protagonizados por ele-
mentos do ADF que conhecíamos e perseguíamos, e foram
reivindicados pelo EIPAC. Se este, ou o MTM de base, fosse
um grupo dissidente e estranho, como é que podia saber das
mesmas acções, em tempo real?»18
Uma terceira posição foi­‑nos carreada por oficiais de
informações do Uganda19:

«O nosso país é, modéstia à parte, o que conhece melhor


o problema. Seguimos o ADF há décadas, sabemos o que
fez e aquilo de que é capaz, e conhecemos a sua escola de

17
Fonte citada, Kinshasa, Março de 2020.
18
Ibid. Em linhas gerais, esta tese é comungada por uma fonte privilegiada da União
Africana, que trabalhou durante muito tempo no gabinete contraterrorista (ACSRT), sob
a orientação de Larry Gbevlo­‑Lartey. Mas o informador da AU diz que «com o tempo, o
MTM absorveu quase todo o ADF, e tornou­‑se difícil distinguir entre os dois».
19
Um elemento é oficial superior do ESO, o serviço de informações estratégico
(externo), e trabalhou com os directores Bob Masolo e Joseph Ocwet, a que chama
«o embaixador». O outro é analista das informações militares (CMI), que trabalhou no
departamento contraterrorista de «Chuck» Asiimwe. Finalmente, uma fonte é professor
na academia IISS, que treina também agentes de informações.

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Do Shabaab ao Daesh

secretismo e dissimulação. Os seus chefes usavam frequen-


temente disfarces elaborados, e desmontámos alguns dos
seus laboratórios de falsificações, feitos também com técni-
cos ugandeses dispondo de bons contactos no Reino Unido,
nos EUA, e até em Israel. Muito do que sabemos sobre isto
foi­‑nos também transmitido pelo Mossad, que ajudou a des-
montar a rede.»

Prosseguindo, e tentando sintetizar o pensamento das três


fontes:

«O ADF transformou­‑se num dos grupos mais difíceis de


penetrar na galáxia jihadista. Mesmo a CIA, que tinha entre
nós uma rede capaz, até 2010, com Darrell Blocker e os seus
sucessores, confessava­‑nos regularmente que se tratava de
uma noz difícil de quebrar. Quando o grupo é desmante-
lado e expulso para o Congo, depois de ter em vão tentado
instalar­‑se na Tanzânia e na Somália, já sabíamos dos planos
de “adesão futura” a um bando da Primeira Liga do terro-
rismo jihadista. A partir de 2015 seguimos a pista dos que
queriam a “fuga para a frente” e a construção de um jiha‑
dismo ainda mais puro e terrível. Foram eles – Baluku, Hood,
Butambala, Katungi, Lumisa, e vários outros que estiveram
sempre no radar – que apoiaram a transformação do nome
do ADF em MTM, também com ajuda de gente vinda da
Tanzânia, da Somália, da RCA e do Burundi, no sentido de
dissipar a ideia de um “grupo nacionalista ugandês”, para
um verdadeiro “exército de mujahideen e da jihad autêntica”20,
que, para um dos membros, devia ser aliás o novo nome do
grupo.»

20
Fontes citadas, Kampala, 2020.

158

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A Jihad do Daesh: O Verdadeiro Inimigo

Mais:

«Quando começaram os contactos com o Shabaab somali e


com o Daesh, um dos planos era o de transformar o grupo
numa galáxia de combatentes pan­‑africanos, e o próprio
comando de Al Baghdadi achava que a zona de Beni tinha
condições ideais para albergar grandes zonas de treino e até
complexos de experiências em armas, incluindo químicas.
Ficámos alerta, por exemplo, quando nos informaram de
que um “médico” do grupo, chamado Amisi Kashada, se
tinha especializado no estudo do vírus ébola. Por outro lado,
a ideia de expansão para Moçambique e para a Tanzânia
deveu­‑se aos elementos que também foram expulsos do
Uganda, e fugiram para aqueles países, a ajudar dois grupos
jihadistas locais, que não estavam antes juntos.
O MTM foi assim um plano deliberado para mudar a face
do ADF e o integrar plenamente no Daesh, criando um
“batalhão” em Cabo Delgado e no Niassa, e não uma mera
cisão de um grupo de iluminados. Claro que vários mili-
tantes do ADF, sobretudo ligados aos assuntos civis e de
contacto com as populações locais, não simpatizaram com a
ideia. Mas não houve nenhuma oposição organizada e muito
menos uma guerra fratricida. Decidiu­‑se, a partir do início
de 2019, que os comandantes ugandeses do ADF não apa-
receriam nos vídeos e fotografias da agência Amaq, substi-
tuídos por elementos de várias origens africanas. O mesmo
para Moçambique.21»

21
Apesar disso, afirmam as fontes, vários ugandeses aparecem, como o filho mais
velho de Mukulu, e uma das mulheres de Musa Baluku. Mas a mesma fonte adverte que
«os ugandeses que chegaram ao Congo casaram­‑se entretanto com muitos civis de etnias
locais, e possuem já famílias sem filiação étnica directa no Uganda». Um dos capturados,
diz a fonte congolesa atrás citada (SMR), afirmou em interrogatório que «A ideia era a

159

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Do Shabaab ao Daesh

Por fim, os nossos contactos ugandeses advertem para um


facto cronológico:

«A adopção da bandeira do MTM só se tornou mais conhe-


cida a partir de 2015, e imediatamente antes da integração
no EIPAC, em 2018, mas o nome já era usado pelos coman-
dantes do ADF desde 2012. Sabemos isso de documentos
capturados e de mensagens interceptadas, e o mesmo foi
confessado pelo fundador detido do ADF, Jamil Mukulu.
Dizer, portanto, que o MTM fundador do EIPAC era uma
“pequena parcela” do ADF pode ser tranquilizador, mas
não corresponde à verdade histórica.»22

Os resultados da «metamorfose»

A partir de Junho de 2019, a intromissão e submissão do


Daesh produziu consequências importantes.
Por um lado, detectaram­‑se movimentos de entrada
em Moçambique de estrangeiros com experiência militar,
segundo testemunhas de civis locais, que terão assistido à
chegada de «árabes e asiáticos equipados com material só
visto entre as forças especiais»23.
Por outro lado, os ataques dispersos de jovens tornaram­‑se
mais profissionais, mais focados, com grupos mais organiza-
dos, «aparentemente a dominar todos os aspectos da táctica

de cortar os laços nacionais com o Uganda, uma pátria que nos tinha perseguido e que
já não nos dizia nada. Começáramos ali, nas chamadas “selvas” do Congo, uma nova
existência, sob protecção divina.» (sic)
22
Ibid.
23
Refugiado hoje em Pemba, refugiado em Maputo, refugiado em Quelimane,
ex­‑autarca hoje na Tanzânia, refugiado em convalescença na Europa, etc.

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A Jihad do Daesh: O Verdadeiro Inimigo

e da técnica operativa», segundo uma fonte militar de inspec-


ção moçambicana.
A mesma fonte refere que «Nos ataques a posições milita-
res, como em Mbau ou Marere, os terroristas usaram diversos
ardis, incluindo retirada aparente, e pareciam dispor de um
conhecimento total da área, e até do dispositivo das nossas
tropas, o que pode denotar um corpo de espiões, a ser tratado
de forma séria pelo nosso comando.»24
Os mesmos ataques passaram a empenhar grupos total-
mente armados com espingardas automáticas e lança­
‑granadas, e outros fardados com uniformes da polícia e das
forças armadas de Moçambique, ou roubados previamente a
tropas mortas e feridas, ou furtados de depósitos25.
Os grupos de combate passaram a incluir uma espécie de
«comissários políticos», que executavam interrogatórios e
se erguiam como «juízes de guerra», e se exprimiam sempre
através de tradutores locais.
As informações sobre a esmagadora maioria dos assaltos,
desde Julho de 2019, foram transmitidas rapidamente aos
órgãos da AMAQ/Daesh, incluindo a exibição de armas
capturadas às FDS, incluindo AK­‑47, fuzis de assalto G3
de origem portuguesa, RPG, morteiros leves e canhões sem
recuo, entre outros26.

24
Contacto com fonte directa deste livro, na região de Mueda, fim de Janeiro de 2020.
25
A informação, segundo a qual os bandos tinham acesso a uma fábrica de farda-
mento, não pode ser confirmada.
26
A existência de canhões sem recuo de tipo B­‑10, entre as armas capturadas pelos
terroristas de Cabo Delgado só nos foi avançada por uma fonte. A mesma fonte identi-
ficou, nalguns documentos capturados num telemóvel do Daesh, na RDC, espingardas
automáticas VZ­‑58, espingardas semiautomáticas SKS, pistolas Makarov e Stechkin,
metralhadoras RPK, PK, DShk (com capacidade antiaérea) e SG­‑43, pelo menos dois
lançadores do míssil AA 9K32 (Strela 2), e alguns lança­‑foguetes bitubo, rebocados. Não
se sabia, no entanto, se o material dizia respeito apenas a armas roubadas em Moçambi-
que, ou também na Tanzânia e no Congo.

161

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Do Shabaab ao Daesh

Há alguma controvérsia nos serviços de polícia e infor-


mações, sobre o modo de transmissão de dados operacionais
entre os grupos que atacam em Cabo Delgado e o comando
de Beni, no Congo.
Alguns elementos que viram esse processo dizem a um
serviço de informações africano (já terá comunicado com
o SISE) que cada «grupo de combate» tem um «câmara de
serviço», geralmente usando um telemóvel só utilizado para
certas transmissões, e com localização GPS desactivada.
É esse elemento que filma e fotografa as acções, entrega o
telemóvel ao «comissário político», recebe indicações sobre o
que aproveitar e o que cortar, e só depois de autorizado envia
o material para o contacto no Congo. O EIPAC do Congo
possui, por sua vez, dois elementos da agência Amaq, que
recolhem a informação visual e escrita, e a transformam em
«comunicado oficial», autenticado com o logo do media em
causa, uma marca especial de reconhecimento, e o número e
data da comunicação.
Segundo o mesmo serviço de informações, considerado
muito competente pelos homólogos europeus, «muitas vezes
a comunicação é feita primeiro por via oral, com o “comis-
sário político” a explicar a operação, resultados, localização e
data, e o agente do Amaq a passar o relatado a escrito, muitas
vezes com erros derivados da tradução dos nomes das locali-
dades, que às vezes são corrigidos, e outras vezes não»27.
Continua a fonte:

«As comunicações são muitas vezes retardadas por dificul-


dades de rede, ou por deliberações das células no terreno
sobre a melhor maneira de explicar o que se passou. Outras

27
Londres, 2020.

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A Jihad do Daesh: O Verdadeiro Inimigo

vezes é preciso tempo para que os “comissários políticos”


decidam sobre o que pode ser ou não enviado como foto-
grafia ou filme. Sabemos que o grupo gosta de realçar sem-
pre confrontos com entidades armadas ou oficiais, e evita
passar a impressão de que ataca alvos indefesos ou simples-
mente civis. É evidente que alguns relatos são exagerados
quanto ao número de vítimas, mas contêm sempre uma base
factual, que pode parecer surpreendente para quem estude
as regras da propaganda. Há também situações em que o
Daesh moçambicano considera o “triunfo” tão importante
que precisa de ser publicitado imediatamente, ou ainda
enquanto decorrem os combates e as acções. Por fim, há
algo que está sempre ausente, a saber a descrição das baixas
dos próprios terroristas.»28

A mesma fonte alerta para um elemento «ainda por pro-


var», mas que pode ser determinante, se existirem suficientes
indícios:

«Temos a informação de que, nalguns casos, o comando do


Congo pede imagens específicas, ou chega a enviar especia-
listas a Cabo Delgado, para dirigir o esforço mediático e de
propaganda. A captura ou denúncia destes elementos seria
fundamental.»

28
Londres, ibid. A fonte refere que, segundo documentos capturados e escutas, a
Amaq recomenda que nunca se divulguem caras descobertas de comandantes, ou ima-
gens gerais onde se possa perceber o número exacto de elementos do grupo de combate.
Por outro lado, há um conselho para revelar rostos determinados, para realçar certas
mensagens («juventude» dos «soldados do Califado», revelação da militância de vizinhos,
companheiros de trabalho e escola, no sentido de promover a causa e lançar perturba-
ção), e para «provar» a captura de material militar, embora algumas imagens não revelem
quantidades exactas, para criar dúvida entre os analistas dos serviços de informações das
forças armadas.

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Do Shabaab ao Daesh

A entrada do Shabaab de Cabo Delgado no Daesh trouxe­


‑lhe ainda uma nova organização, novas armas e novas técni-
cas no uso destas, como vimos. Como diz uma fonte militar:

«Do uso de RPG contra helicópteros à utilização de mulhe-


res em tarefas de espionagem, da aprendizagem de tiro
nocturno à construção de engenhos explosivos artesanais,
do manuseamento de morteiros à montagem de armadilhas,
de novas técnicas de comunicação à correcta interpretação
de mapas e dados electrónicos, o antigo grupo jihadista
progrediu imenso, e isso mostra­‑se na sua eficácia recente.
Não deixou as tácticas cobardes e o uso da população como
carne para canhão, mas tornou­‑se definitivamente mais peri-
goso para todos.»29

Por outro lado, há também sinais de que os fluxos finan-


ceiros aumentaram. Embora ainda sob investigação, suspeita­
‑se de uma rede clandestina de angariadores em pelo menos
seis cidades moçambicanas, com cobertura semi­‑empresarial,
por exemplo, em mediadores de obras públicas e pesca.30
Diz a fonte:

«Esta rede custa dinheiro, gera dinheiro, e sabemos que


recebe remessas com alguma regularidade. Resta saber se
conseguiremos deter os mandantes antes que se eclipsem
para outro país.»31

29
Maputo, Dezembro de 2020.
30
Agradecemos a M., ex­‑operacional da secção de investigação criminal da PRM.
31
A «rede» funciona em várias dimensões, das mesquitas oficiais às «informais», mas
também em estabelecimentos escolares e em lugares públicos onde se formam filas de
jovens à procura de emprego.

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A Jihad do Daesh: O Verdadeiro Inimigo

Dois elementos finais sobre aquilo que mudou, com a


«aquisição amigável» do Shabaab de Cabo Delgado pelo
Daesh do Congo.
Primeiro, a revelação ou aquisição de uma base doutrinal
de justificação. Depois, a propaganda.
Durante muito tempo, observadores locais em Cabo Del-
gado, repetidos até à náusea por uma imprensa sem fontes, e
portando obrigada a cortar e colar, diziam que os atacantes não
tinham nem cara, nem ideias, nem objectivos declarados, nem
doutrina estabelecida.
Já vimos que o Shabaab moçambicano possuía um discurso
só conhecido em círculos restritos, e o mesmo acontecia para
o ADF congolês­‑ugandês, sem especialistas de comunicação
e sem preocupações de propaganda internacional.
Com a entrada no Daesh, os grupos moçambicano e
congolês ganharam a «cobertura profissional» das agências
Amaq e Nashir, ficaram no circuito de promoção do boletim
Al Naba, entraram na rede semiclandestina que transmite
elementos noticiosos para os media do Médio Oriente (dos
mais obscuros à Al Jazeera e à organização SITE Intelligence
de Rita Katz, a Aaron Zelin e investigadores semelhantes), e
puderam assim expor as suas façanhas ao mundo.
Mas ao mesmo tempo construiu­‑se a tal narrativa de
justificação: as organizações pertencem a um projecto – o
«Califado» do Daesh – e uma interpretação religiosa, definem
as suas atitudes perante os homens e o mundo, expõem a
divisão técnica entre «soldados» e «simpatizantes», expõem
teorias sobre alvos e melhores formas de actuação, etc.
No caso moçambicano, resultou caricato (ou aterrador)
para muitos a designação de civis, polícias e militares como
«cruzados», por parte do EIPAC. Ironicamente, o estado laico
criado pela FRELIMO era acusado, nestes meios jihadistas,

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Do Shabaab ao Daesh

de ser afinal o descendente dos conquistadores de Jerusalém,


das ordens religiosas cristãs e dos cavaleiros de resgate do
Santo Sepulcro.
Os jihadistas moçambicanos ganharam assim um rosto,
uma estrutura, uma ideia e um objectivo. Reclamam um fim
claro e sem ambiguidades: construir o «Estado Islâmico» na
África Oriental, se preciso chacinando todos os que não se
converterem a tempo.

166

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C O NC L U S Ã O NECE S S A R I A M EN T E
PROVISÓRIA

Começámos com a referência ao documento do grupo


de peritos dos órgãos contraterroristas da ONU acerca do
Daesh e da Al­‑Qaeda.
O que diz o mesmo relatório, afinal, sobre a extensão deste
flagelo a Moçambique?
Merece e pode ser citado na íntegra, dado que abrange
apenas dois parágrafos (44 e 45).
Eis o texto:

«África Central
§44. Os Estados­‑Membros observaram que a ameaça do
Estado Islâmico na Província da África Central (EIPAC),
um ramo do “Madina Tawheed wal Muwahedeen (MTM)”,
continuou a evoluir.
Em Julho de 2019, a MTM mudou o seu nome, subs-
tituindo seu logotipo pelo do ISIL. Segundo alguns
Estados­‑Membros, a adesão ao EIPAC consiste em dois
mil recrutas locais e combatentes terroristas estrangeiros
do Burundi, Chade, República Democrática do Congo,
República do Congo, Eritreia, Etiópia, Quénia, Moçam-

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O Cabo do Medo

bique, Ruanda, Somália, República Unida da Tanzânia e


Uganda.
No entanto, os Estados­‑Membros afirmaram que não ficou
clara a forma como os elementos combatentes estrangeiros
e os militantes locais do ADF­‑MTM foram integradas no
EIPAC, e nas acções que este leva a cabo.
§45. Na última parte de 2019, o Ansar Al Suuna de Moçam-
bique foi adicionado ao EIPAC. Consequentemente, a
presença on­‑line do movimento começou a combinar ima-
gens da República Democrática do Congo, Moçambique
e Somália, uma indicação de coordenação, ou tentativas de
unificar os três teatros. Além disso, os Estados­‑Membros
observaram uma melhoria impressionante na qualidade e
no conteúdo dos materiais de propaganda, uma possível
indicação de novo financiamento e recursos do grupo. Um
Estado­‑Membro informou que as operações em Moçambi-
que foram planeadas e comandadas pela República Demo-
crática do Congo.»

O documento é obviamente devastador para os que sem-


pre negavam a presença do Daesh na região, e para os que
duvidavam da ligação entre o jihadismo na antiga província
ultramarina portuguesa e o QG do EIPAC no Congo Demo-
crático.
O autor deste livro sabe quem foi o estado­‑membro que
informou sobre a centralização do comando do EIPAC,
Katiba de Moçambique, na RDC. Fê­‑lo com conhecimento de
causa, e sem nenhum interesse em lançar polémica, ou ofen-
der os governos dos dois estados envolvidos. Pelo contrário,
pesou a afirmação, depois de contrastar informações regista-
das em Beni e em Cabo Delgado, e de ter cruzado dados de
serviços secretos, policiais, judiciários e alfandegários, com

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Conclusão Neseccariamente Provisória

confissões de ex­‑membros do EIPAC e com relatos detalha-


dos de autarcas e populações das áreas. Usou também dados
evidentes, que decorrem de intercepção de comunicações
entre o Congo e Moçambique.
O documento do Grupo de Peritos é importante como
alerta para uma situação catastrófica, e como pré­‑conselho
a todos os estados­‑membros da ONU, e em primeiro lugar
para Moçambique.
Claro que no texto há algumas ambiguidades. Diz­‑se, por
exemplo, que o ADF­‑MTM só adoptou o logo do Daesh
EIPAC em Julho de 2019. Ora, o EIPAC, que tem o Congo
como centro de comando, foi anunciado como «Província», e
não mera «rede» do «Califado»1, muito antes, em 29 de Abril
desse ano.
Isso aconteceu quando Abu Bakr al Bagdhadi2 deu a
sua última conferência de imprensa, e passou em revista os
«relatórios de actividades» de cada ramo territorial do bando.
Esses mesmos dossiês mostravam as novas «províncias»
operacionais, como a da «África Ocidental», mas o director
de um serviço secreto centro­‑africano diz­‑nos que o EIPAC
estava em preparação pelo menos desde Abril ou Maio de
2018. E a verdade é que Al Baghdadi lhe tinha feito referência
nessa altura.
Mas, diz a fonte, «uma coisa era a ideia dessa dita provín-
cia, e outra a actuação prática de força e grupos no terreno.
Segundo a nossa apreciação, e com base em confissões obti-
das já em 2019, podemos dizer que o EIPAC foi fundado em

1
O Daesh dividia o seu território físico­‑espiritual em «províncias» (Al Sham/Síria,
Iraque, Sinai, Khorasan­‑Paquistão/Afeganistão/Irão, Iémene/Península Arábica, Somá-
lia, Cáucaso, Turquia, Ásia Oriental, África Ocidental, Grande Sahara) e «redes» (Tunísia,
Europa).
2
De nome real Ibrahim Awad Ibrahim al­‑Badri.

169

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O Cabo do Medo

2018, mas só em Abril de 2019 foi lançado oficialmente com


forças no terreno, a partir da verificação do candidato mais
forte, o ADF do Congo­‑Uganda, e do seu irmão menor, o
alcunhado Shabaab moçambicano».3
Segundo esta tese, entre Abril de 2018 e Abril de 2019, o
Daesh investiu, portanto, meios humanos e materiais, finan-
ças e comunicações nos bandos congoleses e moçambicanos,
dando­‑lhes tempo e espaço para uma entrada em acção redo-
brada espectacular um ano depois.
E antes da preparação do terreno em 2018­‑2019, os mili-
tantes influentes e dirigentes do Daesh tinham já saudado
o que alguns chamam «a construção espiritual pré­‑EIPAC»
nas selvas do Congo. Esta deu­‑se, segundo uma fonte arre-
pendida do ADF4, entre Agosto e Outubro de 2017, com a
transformação «doutrinária, de imagem e de propaganda do
ADF em MTM».

Diz o informador:

«O ADF era, na origem, um movimento jihadista nascido


do proselitismo Tablig. Propunha a criação de um estado
islâmico na África Oriental. Quis primeiro que a sede fosse
o Uganda, onde achava que não havia outro movimento
igual, depois tentou a Somália, com demasiados competi-
dores naturais, e por fim o Congo Democrático, onde tudo
era mais cinzento e sem regras. A liderança do ADF tinha
um grupo de estudo obcecado com as estatísticas sobre o
número de muçulmanos em cada estado­‑alvo. Um docu-
mento de 2016 referia a Somália com 99 %, Moçambique

3
Kampala e Londres, Outubro 2019.
4
Que também informou grupos de estudo sediados nos EUA e no Reino Unido.

170

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Conclusão Neseccariamente Provisória

com 19 %, o Uganda e o Quénia com 15 % cada, e o Congo


com cerca de 12 %.»

E na continuação do raciocínio:

«Ao contrário do que se julga, e do que já vi escrito, a trans-


formação do ADF em MTM mobilizou a maioria do antigo
movimento, e foi promovida pela sua direcção político­
‑religiosa, com poucas excepções (10 % de oposição, no
meu julgamento). Em 2017 vivia­‑se um fervor quase místico
nas nossas bases, com a ideia de que o MTM representava a
necessária transformação do Dar al Kufr, ou lar dos infiéis,
em Dar al Jihad, Dar al Qih, Dar al Eman e Dar al Islam, a
casa santa da guerra justa e do Justo Islão.»

Por fim:

«Isto derivou dos contactos aprofundados entre a direcção


nacional, o Shabaab somali e o Daesh. A decisão de preferir
este baseou­‑se em critérios objectivos de força, populari-
dade, imagem, eficácia, promessa de apoios de Al Baghdadi
e de laços operacionais com o EIAO­‑ex­‑Boko Haram, que
tomava decisões semelhantes.»

Este contacto precisa que muitas das reuniões entre o


ADF e o Daesh se deram em África, até 2019, e que existiram
vários intermediários, como Abu al Wahd Al Sarawi (Lahbib
Abdi Sa’id), chefe «ocidental africano» do DEDI, Abdul
Qadir Mumim (que passara da Al­‑Qaeda para o Daesh na
Puntlândia, Somália) e al­‑Barnawi do Daesh nigeriano5.

5
Abu Mus’ab Habeeb Bin Muhammad Bin Yusuf al­‑Barnawi, que liderou uma cisão
no Boko Haram, a partir de 2016, aderindo plenamente ao círculo do Daesh.

171

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O Cabo do Medo

Aparentemente, segundo a mesma fonte, a «direcção


nacional» do ADF não quis tomar posição na guerra entre
Al­‑Qaeda e Daesh, que se tornou dura na Nigéria e na
Somália, a partir de 2017: «Se bem que a tendência natural
do ADF fosse de alinhar com a Al­‑Qaeda, os elementos
mais jovens que estiveram na origem do MTM queriam sem
dúvida o Daesh. Quando se ofereceu a hipótese de criação do
EIPAC, os líderes nacionais não contrariaram as propostas
do MTM.»6
Tal como a província da «África Ocidental» derivou da
conversão do Boko Haram, ou de metade dele7 ao Daesh,
a «África Central» provinha do juramento de fidelidade do
ADF congolês, como vimos, chama­‑se esse ADF propria-
mente dito ou MTM.
Ora esta declaração de submissão deu­‑se também, reite-
rada, em Abril de 2019, como vimos. O dito bay’ah alegada-
mente celebrado na base Madina, de Beni, foi imediatamente
seguido por acções operacionais documentadas, tendo o
primeiro documento fotográfico de «troféus de guerra das
FARDC» sido publicado entre 3 e 5 de Maio.
Quanto a Moçambique, a ambiguidade do relatório dos
peritos parece mais um erro.
Como se viu do conteúdo do livro, o bay’ah de Cabo
Delgado dá­‑se entre Maio e Junho, alegadamente depois do
tal «ano de preparação», e nesse último mês começam a ser
reclamadas acções. E a primeira acção reclamada pela Katiba

6
Londres, 2019.
7
O BH era formalmente o Jamã’at Ahl as­‑Sunnah lid­‑Da’wah wa’l­‑Jihãd
( ), ou «Grupo do Povo da Sunnah para a Prédica e
Jihad». Estava activo na Nigéria, mas também nos Camarões, Chade, Nigéria e Mali. Mais
uma vez, a «África Ocidental» era, para o Daesh, uma designação de conveniência. Ou,
como dizia um analista francês, «uma designação que adapta a realidade às forças exis-
tentes, e não o contrário» (sic, Bamako, 2019).

172

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Conclusão Neseccariamente Provisória

de Moçambique, através da Amaq Daesh, dá­‑se no dia 4 de


Junho de 2019, um raide mortífero, com quase 30 mortos e
feridos, contra Mitopi (Mitopy, Mitope), em Mocímboa da
Praia, e contra um posto das FADM.
Portanto, a integração dos jihadistas moçambicanos no
EIPAC não se dá em «fins de 2019» («última parte do mês»),
como se diz no documento em apreço, mas a «meio» do
mesmo ano.
Mas são correcções menores. O grande aviso está dado no
texto.
O documento da ONU também não detalha – ainda, e em
público – os laços operacionais entre o «Daesh­‑pai» e as suas
criaturas no Congo e em Moçambique. Mas sabemos que o
mesmo grupo técnico trabalha activamente na descoberta,
exposição e recomendações para a desmontagem desses nós.
Se e quando esta organização de medo for vencida, há
que fazer justiça às vítimas e famílias, à sociedade dilacerada
e aos que sofreram com cumplicidades e silêncios, ou foram
«danos colaterais» do «projecto político» insano. Assim
como o ex­‑líder do ADF se vai sentar no banco dos réus to
TPI, é preciso que os cabecilhas do Daesh moçambicano
respondam pelos seus actos, e apontem as ligações ainda
escondidas: um oficial congolês que tomou a sede do ADF,
já este ano, numa batalha com dezenas de mortos, diz que o
que se descobriu nos escombros é «profundamente pertur-
bador».
Na verdade, há a suspeita de que, acima dos «soldados do
Califado» que executam mulheres e crianças, existem man-
dantes, dentro e fora de Moçambique, visíveis, suspeitos ou
ocultos, incluindo noutros países da CPLP e em Portugal,
que manipulam os cordéis da dança macabra, com interesses
não aparentes.

173

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O Cabo do Medo

Por outro lado, não sabemos que consequências terá para


Moçambique a eventual desarticulação do ADF/MDM no
Congo.
Poderá fazer com que a Katiba de Moçambique perca
orientação, direcção, objectivos e força, obrigando os seus
membros a desertar ou a render­‑se?
Poderá, ao contrário, tornar mais radicais e odientos os
ataques, como represália ou vingança, mesmo que breve?
Poderá trazer para Moçambique os inspiradores e cabe-
cilhas do Congo, reforçando a katiba local e tornando­‑a
mais incisiva e mais «profissional», adquirindo também mais
armas?
Poderá, ao contrário, fazer afluir ao Congo «combaten-
tes internacionalistas» de Moçambique, que queiram salvar
o ADF/MTM/EIPAC do aniquilamento, libertando assim
Cabo Delgado da pressão actual?
Muitos cenários estão em aberto.
Desde logo, o possível êxodo do Congo, com armas e
bagagens, requer especial atenção nas fronteiras, no Niassa, ao
longo do Rovuma e na costa, e ainda colaboração mais intensa
com polícias, militares e forças de segurança tanzanianas.
Por outro lado, tem­‑se verificado alguma acalmia em Cabo
Delgado, quando o «centro de comando» congolês é atacado,
pressionado, obrigado a deslocar­‑se.
No passado, o ADF foi repelido, escorraçado, desmante-
lado, com dezenas ou centenas de mortos, mas reconstruiu­‑se
sempre. E mesmo que o EIPAC, feitas as contas, represente
apenas uma facção do ADF, não se pode subestimar a sua
capacidade de regeneração, facilitada pelas fraquezas sociais e
económicas dos dois países.
O relatório da ONU, em boa hora divulgado, não resolve
uma série de problemas técnicos:

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Conclusão Neseccariamente Provisória

Reconhece a presença do Daesh, o Grande Mal, em Moçam-


bique, mas não vai até ao princípio dos tempos, nem pode-
ria. Por exemplo, não especifica se os «fundadores» são só o
ADF/MTM e o Shabaab moçambicano, ou também outros
grupos. Quer no Congo quer em Moçambique, havia outros
bandos delinquentes, embora estes fossem os mais imedia-
tamente reconhecíveis como jihadistas.
Quanto aos fundadores: o ADF e o MDM são a mesma
coisa, ou este é apenas uma fracção daquele? E se é só uma
fracção, onde existe? Coexiste e coopera com o ADF, ou
vivem apartados, mas na mesma zona? E cooperam, colabo-
ram, ou agem independentemente?
Em Moçambique, o antigo Shabaab entrou por inteiro no
EIPAC, ou há grupos autónomos e exógenos ainda em acção?

Embora não existam respostas absolutas, a quase exacta


correspondência entre reclamações do EIPAC em Moçam-
bique e no Congo, e a verificação dos respectivos incidentes
por testemunhas ou por entidades oficiais, leva a crer que a
integração se deu de forma generalizada e sem mácula: o ano
e meio de preparação para a entrada surtiu efeito.
Mas a pista do Daesh­‑ADF­‑MTM­‑Shabaab Moçambi-
cano continua complexa, e deve ser estudada, com todas as
conclusões a ter de ser revistas, em face de novas confissões,
documentos, testemunhos e ocorrências.
Por fim, e como vimos também, a actividade jihadista,
carniceira e cega, não é o único problema de Cabo Delgado.
Entre outras pessoas de boa­‑fé a denunciar os poderes sociais,
temos tido o bispo de Pemba, injustamente crucificado pelas
suas opiniões e acção pastoral.
D. Luís Fernando Lisboa, nascido há 65 anos no Rio de
Janeiro, escreveu, em 18 de Julho de 2019, uma «Carta Aberta

175

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O Cabo do Medo

ao Povo de Cabo Delgado», como preâmbulo à visita do Papa


Francisco, que se daria um mês e meio depois.
Aí se insurge contra a cortina de segredo em torno dos
massacres de Cabo Delgado. Pergunta a quem serve o medo,
o silêncio, a intimidação de jornalistas e a punição dos meros
portadores de mensagem, ou de desejo dela.
Refere que é preciso saber mais sobre os autores da violên-
cia, e os seus planos, para que a comunidade se possa defen-
der deles. E acrescenta que as dúvidas, nascidas do silêncio
oficial, levam muitos a perguntar o que pode estar por trás
do terror, para além do anunciado fundamentalismo islamita:

O tráfico de órgãos?
O branqueamento de capitais?
O comércio de pedras preciosas?
A criação de um corredor de todos os tráficos?
Consequências das dívidas ocultas?
Sublimação da pobreza extrema?
Concessão exacerbada de terras de prospecção mineira?

Como vimos, muitos destes elementos não são dissociá-


veis da violência, ao menos nas suas sementes. Mas o bispo
pergunta mais, sobre a resposta das FDS:

Estão realmente preparadas?


Conhecem as matas de Cabo Delgado?
São em número suficiente?

Salientando que a justiça é inseparável da paz, D. Luís


Lisboa refere a urgência de sair de uma cultura de ocultação
para um modelo de verdade. E continua a sua obra apostó-
lica, desde os seminários sobre Tomás de Aquino à distribui-

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Conclusão Neseccariamente Provisória

ção de alimentos, do diálogo com outros prelados cristãos


e representantes de outras religiões, ou de pessoas de bons
costumes, que não se revêem em nenhuma delas.
Ao seu lado, por baixo de si, no emaranhado de paixões e
interesses de Moçambique, vão no entanto germinando flo-
res perversas.
O silêncio oficial é muitas vezes justificado, como vimos,
pela necessidade de não colaborar com o inimigo.
O jornalista preso é várias vezes acusado de espionagem.
O falsamente apontado como chefe de bando é depois
esquecido.
A morte por engano de inocentes, confundidos com os
jihadistas, é muitas vezes minimizada.
Não podemos continuar a pactuar com isto.

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N O T A F IN A L

No dia 14 de Março, uma fonte do grupo rebelde sírio


HTS (Hayat Tahrir al Sham, «Organização para a Libertação
do Levante») diz que esta facção capturou o novo líder do
Daesh, Abdullah Qardash «O Destruidor», a sua guarda pes-
soal e vinte comandantes e ajudantes.
Ter­‑se­‑ia isto dado a seguir a uma emboscada na zona de
Batbu, perto de Idlib. Tudo se passa no noroeste do país que
um dia se chamou Síria.
O HTS é uma frente derivada da fusão ou colaboração
entre várias facções rebeldes: Jabhat Fateh al­‑Sham (antiga
al­‑Nusra), Frente Ansar al­‑Din Front, Jaysh al­‑Sunna, Liwa
al­‑Haqq, Movimento Nour al­‑Din al­‑Zenki, etc.
Seria uma óptima notícia na luta contraterrorista contra o
Inimigo Público Nº 1 da comunidade internacional, mas o
HTS continua a ser acusado de cultivar laços secretos com a
Al­‑Qaeda, o que nega veementemente, mostrando que alguns
grupos da «coligação» são eles mesmos vítimas do gangue de
Al Zawahiri.
A AQ da ex­‑Síria tem sido, pelo menos ali, um dos grandes
opositores ao Daesh, mas os serviços de segurança costu-

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O Cabo do Medo

mam comentar «venha o diabo e escolha», na escala de bar-


baridades dos dois bandos.
Não houve confirmação desta captura, até à altura de
fecho deste livro. Mas um rumor «cultivado» dizia que, a ser
verdade, Qardash podia estar a ser guardado como «moeda
de troca».
Mas por quem e para quem?
E em troca de quê?

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DE P O I S D O F I M :
MOCÍMBOA DA PRAIA

A operação «Mão do Profeta»1

À meia noite do dia 22 de Março de 2020, a vila­‑sede de


distrito de Mocímboa da Praia foi atacada pelos «bandidos
armados» do Daesh EIPAC, «katiba» de Moçambique.
Nas 18 horas seguintes, os terroristas ocuparam este cen-
tro populacional de mais de 20 000 habitantes, que dispõe de
porto e aeroporto.
Metodicamente destruíram todos os edifícios públicos
civis e militares, saquearam os bancos e os mercados, rouba-
ram veículos, combustível, alimentos, armas e munições. «O
equipamento levado chega para equipar um batalhão de infantaria»,
revelou­‑nos uma fonte civil da administração local.
Em 5 de Outubro de 2017, como vimos, o Shabaab inicial
tinha perpetrado aí o seu primeiro ataque de peso. Mas agora
era diferente. Cerca de 200 operacionais do Daesh convergi-
ram para Mocímboa por terra e por mar.

1
Seria este o nome da operação, segundo uma reclamação via Telegram, de 24 de
Março: «yd alnabii», ou .

181

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O Cabo do Medo

Quatro embarcações (a que o Daesh local chama «bagas da


Jihad»2) lançaram «forças especiais» na direcção do mercado
de peixe popularmente conhecido como «Zavala» (Milamba),
que rapidamente ocuparam vários pontos da costa, a coberto
da noite.
Um grupo de motociclistas, com uniformes das FADM e
turbantes, deslocou­‑se para a rotunda do aeroporto, a escoltar
três camiões com dezenas de homens armados com espingar-
das automáticas, metralhadoras ligeiras e RPG.
Outros grupos ocuparam as principais entradas da vila, na
estrada que conduz ao centro industrial de Palma, a norte, na
via principal N380 (sudoeste), que leva ao distrito de Maco-
mia, e na estrada meridional para Narere. Criaram barreiras
de controlo nos bairros de Nanduadua, Pamunda e Milamba.
Um dos primeiros alvos foi a prisão municipal, com a sua
tomada sem resistência e a libertação de todos os detidos.
Muitos comprometeram­‑se a entrar no Daesh, outros eram
colaboradores que tinham sido presos, sem nunca terem
revelado o nome dos seus mandantes.
O cerco ao quartel das FADM (junto ao salão das Tes-
temunhas de Jeová), perto do aeroporto, a um outro aquar-
telamento na Avenida Samora Machel (fronteiro ao campo
de futebol) e à esquadra principal de polícia foi rapidamente
montado, e resultou na fuga dos elementos das FDS, alguns
deles desfardados e rapidamente misturados com a população.
Um blindado Mahindra e uma moto­‑quatro do GOE
foram apanhados pelo bando assaltante.
A bandeira do Daesh passou a flutuar na pequena base
militar.

2
«Baga» é o tipo de barco baptizado pelo Daesh na localidade com o mesmo nome,
perto do Lago Chade, no nodeste da Nigéria, estado de Borno.

182

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Depois do Fim: Mocímboa da Praia

A meio da tarde, estavam a arder a residência do adminis-


trador, a secretaria provincial, o conselho municipal, o registo
civil, o edifício das finanças, as delegações bancárias do BCI
e BIM, ABSA e Millenium (este só em parte danificado por
uma granada), a autoridade portuária, o comando da PRM, a
residência das FADM, o quartel do aeroporto e dezenas de
veículos militares, policiais e civis.
Foram poupados o hospital, as escolas, e as mesquitas.
Nos bairros vizinhos da pista de aviação, houve distribui-
ção de comida pela população, e de doces pelas crianças. Dois
camiões do Daesh foram recebidos em festa em Milamba, e
deixaram um aviso a todos:
«Estamos perto e vamos voltar. Iso é terra libertada.»
Muitas das pessoas que me falaram pelo telefone ou por
mensagem electrónica dizem algo que nos pode gelar:
«O Daesh é assassino, mas se nos portarmos bem protege­
‑nos. O governo não nos dá nada, e neste ataque fugiu. O que
é que podemos fazer?»

A verdade nua e crua

Ou seja, uma verdade nua e crua: o bando terrorista usou


aqui o livro do bom guerrilheiro.
Destrói os símbolos do Estado, baixa a bandeira de Moçam-
bique e substitui­‑a, mas tenta poupar os civis, doutriná­‑los e
mostrar que, na ausência do poder público, a Lei é o Daesh.
Combina a crueldade contra quem não crê ou não obe-
dece, e a protecção armada dos mansos e dos desesperados.
Já vimos isto em muitos sítios, em muitos tempos, com
muitos nomes e protagonistas.
Por outro lado, há lições militares a tirar:

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O Cabo do Medo

a) O EIPAC aparece aqui como tropa organizada, discipli-


nada, bem equipada mas cruel e terrível (como na conquista
de Mossul). Consegue fintar todas as manobras das autori-
dades, aparecer e desaparecer sem baixas, montar embosca-
das e deslocar grandes quantidades de combatentes sem ser
detectado. Antes do ataque a MdP, foram montadas incursões
em Meluco, centenas de quilómetros ao sul, nas aldeias de
Unguia e Muaguide, e criadas situações de instabilidade nas
imediações de Mueda. Por outro lado, os bandidos armados
sabiam que parte do oficialato saíra de MdP para Mueda, e
que muitas forças estavam também em operações em Nan-
gade: a rede de espiões e colaboradores é enorme. Também
já vimos isto.

b) O ataque anfíbio confirma todas as suspeitas sobre


uma «frota do Daesh» (que se conhecia da África Ocidental),
acoitada nas ilhas do arquipélago paradísiaco das Quirimbas,
sobretudo na primeira linha face à costa, perto de Mechanga,
Congo e Lipulula.

É uma lição dos manuais de propaganda: pela primeira


vez fora do Iraque e da ex­‑Síria, o Daesh (dito moribundo)
ocupava durante tempo razoável um grande centro urbano.
Não vale a pena cobrir a cabeça de cinzas e clamar contra
o «fascismo islâmico» ou o «bolchevismo jihadista», ou o
«pior reaccionarismo religioso». E sobretudo não serve de
nada martelar na ideia segundo a qual se trata de um «inimigo
sem rosto», «cujas reivindicações não são conhecidas».
O rosto, o nome, os comandantes, a estrutura e os objec-
tivos são conhecidos, embora seja difícil admitir que existem:
trata­‑se de criar uma «província» do «Califado universal» do
«Estado Islâmico» na «África Central», que inclui, como se

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Depois do Fim: Mocímboa da Praia

viu, a RDC, a Tanzânia, o Sul da Somália e... o nosso querido


Moçambique.
Ainda a pior confirmação: acossado nas matas do Congo
pelas operações das FARDC, o MTM­‑ADF­‑EIPAC reins-
talou o seu comando em Cabo Delgado, e transferiu para
aí (via Tanzânia e mar) os seus melhores «operacionais».
Esta operação foi montada pelos mesmos. Todos os avisos,
recomendações, pormenores e ofertas de ajuda dados às
autoridades de Maputo foram ou minimizados ou ignorados,
ou rejeitados.
Alguém há­‑de viver, e sobretudo morrer, com esse peso
na consciência.

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Epílogo : O T ú n e l ao F u n d o
da Luz

O fim de Março, Abril e parte de Maio assistiram ao recru-


descer dos combates em Cabo Delgado.
Catapultados pelo êxito em Mocímboa, os bandos do
EIPAC puseram em prática o plano de ocupação progressiva
da costa, de forma a ameaçar Pemba.
Instalaram bases nas Quirimbas, disfarçaram muitos meios
navais como barcos de pescadores, e executaram um ataque
fulgurante contra Quissanga­‑sede, no dia 25 de Março.
Fui acordado de madruga por um elemento militar que
dizia ser difícil resistir: o inimigo tinha morteiros ligeiros e
RPG­‑22, e «dezenas de homens com óbvia preparação de combate em
meio urbano e irregular» (sic). O mesmo elemento despediu­‑se,
e disse­‑me que não sabia se iria sair dali vivo. Informou­‑me
ainda que havia um ataque simultâneo ao que me pareceu
soar a «Tandanhane».
Em Quissanga, os atacantes eliminaram os elementos da UIR
que resistiram, devastaram edifícios públicos, roubaram bens
privados e alimentos, capturaram armas e tentaram reabilitar
dois blindados parcialmente destruídos. Mataram muitos civis:
contei nas fotos imediatas cerca de 12, incluindo um inválido.

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O Cabo do Medo

A terra calcinada

Foi em Quissanga que um dos «grupos de combate» de


cerca de 15 homens (quatro ao todo, neste caso) tirou a foto-
grafia que aparece na nossa capa1, e que um «comissário polí-
tico», antes residente em Nampula, arengou em português,
pedindo o fim do regime da FRELIMO e a instalação da Lei
Islâmica. Disse também que não combatiam por riquezas
materiais, mas por Alá e pelo seu profeta, e anunciou ser
dever de todo o «soldado» do Califado morrer pela sua fé2.
A seguir, surtidas fora do esperado, já não em Cabo Del-
gado, mas no Niassa, em Mandimba. Depois, novas destrui-
ções em Macomia, distrito particularmente flagelado. Uma
comunicação interceptada dizia que a província do nordeste
de Moçambique seria tomada antes «do dia da festa dos
cruzados». Todos o interpretaram como uma referência ao
domingo da Páscoa, este ano a 12 de Abril.
A seguir, caiu o pesadelo da Covid 19 sobre a Terra, e
Moçambique não foi poupado. Casos graves foram identifi-
cados na sede da empresa Total, e gerou­‑se grande apreensão.
Foi decidida a quarentena, mas os responsáveis de segurança
sabiam que o EIPAC iria aproveitar qualquer acantonamento
da polícia e exército. Por isso planeou­‑se ao mesmo tempo
uma grande ofensiva de todos os meios disponíveis: soube da
ideia exactamente no dia 26 de Março. E sabia também que
tinha sido notada a grande necessidade: meios aéreos.3

1
Em frente do comando da PRM da sede do distrito.
2
Quissanga, segundo informações confidenciais, estava a ser planeada pelo EIPAC
como ponto de recepção de material de guerra e provavelmente droga, vindos de algum
navio que estava aprazado chegar àquela bela praia, que já não via operações de tráfico
de narcóticos em larga escala desde o período de 1997­‑2000, quando várias redes foram
desmanteladas.
3
Mais precisamente, como me foi dito, de «heliassalto, porque os terroristas transitam por

188

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Epílogo: O Túnel ao Fundo da Luz

Vários responsáveis operacionais voltaram a confidenciar­


‑me receios: fraca moral e fraca liderança em diversas uni-
dades, má alimentação e indecisão no comando e ordens
dadas, intimidação ou sedução do inimigo em relação a civis
de declaradas «zonas libertadas», e a existência de uma rede
(coagida ou não) de informadores e espiões, que divulgam
muitas medidas e operações planeadas4.
Também me confidenciou a mesma fonte o desuso de
material militar moderno, que ficou ou sem peças, ou sem
apoio operacional, ou sem preparação de tripulações, por
diversos problemas contratuais.5
Por fim, preocupou­‑se com a onda de cepticismo que se
levantou nas empresas de LNG de Palma, incluindo ENI,
Exxon, ENH Bonatti e outras, que começaram a reduzir pes-
soal ou a fechar as portas, a pretexto da Covid 196, mas com
olho posto no Daesh, apesar da entrada de mais empresas de
segurança, como a Gaboon Protection7.
Numa adenda, referiu­‑me «conversas preliminares» com
a Renamo, para a possibilidade de fornecimento de uns 350

zonas não servidas por estrada, de recolha de informações, vigilância e reconhecimento, e de ataque ao
solo e apoio às tropas no terreno. Não temos nada disto, praticamente».
4
Conversa telefónica a 28 de Março.
5
Falámos, por exemplo, dos vários tipos de lanchas rápidas da Privinvest, feitas em
Cherburgo, inoperacionais ou pouco usadas, em Mocímboa da Praia e na Base Naval e
no Porto de Pemba. Ao todo umas 12 embarcações de diversos tipos, incluindo trimarans
da classe Ocean Eagle 43, supostas operar «drones» e canhões automáticos, e navegar
240 milhas a 15 nós sem reabastecimento, com velocidade máxima próxima dos 45 nós.
6
Sob pretexto da Covid, foi também retirado, no dia 17 de Abril, para a Costa do Sol,
em Maputo (dado o fecho dos portos sul­‑africanos), o gigantesco navio de exploração
SAIPEM 12000, ao serviço da Total, e antes da Anadarko, que custa cerca de 1 milhão
de dólares por dia em operações. Mas um dos motivos da retirada provisória foi um rela-
tório secreto de segurança, que incluía a hipótese de o Daesh colocar minas magnéticas
no casco, a partir de um dos seus meios navais, incluindo uma lancha da marinha, a Alha,
roubada em Mocímboa.
7
Pan­‑africana, mas com escritórios mais importantes na África do Sul, filial da G4S
britânica.

189

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O Cabo do Medo

homens com experiência de guerrilha para Cabo Delgado.


Mas estas negociações acabaram antes de começar, desde logo
pela oposição da chamada Junta Militar de Mariano Nhongo.
E não deixou de explicar um problema maior: a «decapi-
tação» do SISE por causa do escândalo das dívidas ocultas
agravou os problemas da carência de informações fidedignas
e bem analisadas. As redes de colaboradores e informadores
tinham­‑se extinguido ou desagregado, com medo de ser leva-
das na varridela dos seus chefes, e o que restava da estrutura,
dizia­‑me o interlocutor, «não era de grande qualidade, criando pro‑
blemas operacionais imensos que não podiam ser superados pela contra­
‑inteligência militar, dado que esta não estudava, em geral, nem o meio
civil nem as redes subversivas não­‑militarizadas».

«Invencíveis»?

Começaram entretanto a correr boatos sobre a «invencibi-


lidade» do EIPAC, com populações a fugir do Norte, entu-
pindo as estradas para Pemba, com muitos barcos também
carregados para a capital, vindos das ilhas.
Seguiram­‑se ataques a Miangaleua e Chitunda, no dia 6
de Abril, de madrugada, por dois grupos de 15 combatentes
cada. Membros do EIPAC usaram pirogas no rio Mapuedi.
Data negra.
Foi o sinal de partida de uma ofensiva violenta em todo o
distrito de Muidumbe. Os «fasyil» (pelotões), «majmueat qita-
lia» («unidades de guerra») e «comandos» («alkawmanduz»)
do EIPAC, às vezes conhecidos como «quwwat aleamaliat
alkhasa» (forças especiais), começaram a movimentar­‑se em
diversas direcções, como que a querer estabelecer uma espé-
cie de zona de ocupação permanente.

190

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Epílogo: O Túnel ao Fundo da Luz

Foram observados pelo menos cinco grupos terroristas


fortemente armados, cada um com cerca de 20 a 25 homens,
depois divididos em secções mais pequenas.
Os ataques foram mais ousados porque se deram já muito
próximo do QG das FDS em Mueda, um dos sítios onde
precisamente se preparava a contra­‑operação de larga escala
de fim de Abril.
Foram atacados estaleiros de construção de pontes de uma
empresa japonesa e da portuguesa Conduril, de Ermesinde, a
sul de Macomia8.
Em Muidumbe e distritos limítrofes, o terror espalhou­
‑se: N’Chinga, Bilibiza, Muatide, Muatade, imediações da
Base Central, Xitaxi e a própria sede do distrito, uma antiga
pequena aldeia (Namacande) promovida e modernizada. Aí
assaltaram bancos, roubaram muitas motorizadas, alimen-
tos, armas de um paiol das FDS, e filmaram um vídeo com
versões longa e curta, imediatamente publicado pela agência
Amaq do EIPAC.9
Em Mambalale, Miteda, Muatide e Namacande, houve
tensão, tentativas de transformar o terror em guerrilha pie-
dosa, e comícios revolucionários.
Comícios onde foi falado um dialecto local, o kimuani
(quimuane), mas também o suaíli puro, com tradução para
português e para a variação local e fundida daqueles dois
dialectos.

8
O ataque foi­‑me imediatamente confirmado por André Afonso, da empresa. A
Conduril é uma das firmas portuguesas que mais se tem distinguido nas obras públicas
em África, sempre elogiada pela competência, profissionalismo e consciência social.
9
«Foi esta gota de água que nos convenceu da ligação directa dos bandos locais ao
tal Daesh da África Central. Era impossível terem conhecimento, no Congo, do que se
passava aqui, com todos os pormenores.»

191

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O Cabo do Medo

Nos vários casos, os chefes de guerra, ugandeses que vive-


ram no Congo e tanzanianos, falaram suaíli. Uma mensagem
interceptada na totalidade fala do «combate aos porcos» do
governo, da necessidade de o povo «coordenar acções» com
o EIPAC, do imperativo de seguimento do Islão, «o único
caminho», e a garantia de que as propriedades da população
não seriam destruídas. A certa altura, o «qayid» (comandante)
volta­‑se para os restantes terroristas e diz: «só destruímos bens
do regime».
De salientar que foi assaltado um armazém do Programa
Alimentar Mundial (ONU), com parte do conteúdo distri-
buído localmente.
Disse­‑me minutos depois um civil, pelo telemóvel, tré-
mulo mas irónico: «Ouve, eles deram­‑nos parte da comida que já nos
tinha sido destinada. Ficaram com o resto. Mas dá ideia de que parte do
público de fora achou isto um gesto de grande bondade!».
Entretanto deu­‑se uma deserção maciça de funcionários
de segurança, polícia e defesa, reconhecida oficialmente
num ofício que intimava ao seu regresso até 20 de Abril. E
ocorreram muitos massacres de civis que tentaram resistir
(incluindo veteranos da FRELIMO e Renamo, e os seus des-
cendentes, sobretudo a 9 de Abril), e ainda cenas bizarras de
invocação de feitiçaria, magia negra e curandeiros. No dia 20
de Abril, o régulo Mazeze pedia ainda que se trouxesse um
feiticeiro de Macomia, pertencente à AMETRAMO (associa-
ção de «medicina tradicional»), para completar os rituais de
expulsão dos demónios, em troca de 40 mil meticais.
Pelo meio ficou a profanação da Igreja de Nangololo, em
Muambula. Era um dos mais antigos templos católicos da
região. Venerado pelos locais por causa da fé, era também o
símbolo da missão social da hierarquia, tão bem representada
pelo Bispo de Pemba. O Daesh tinha algum receio supersti-

192

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Epílogo: O Túnel ao Fundo da Luz

cioso do lugar, e de todas as imagens ou símbolos relaciona-


dos com Fátima, por causa da dimensão histórica e espiritual
da filha do profeta10.
Não houve a destruição total do interior, mas a vanda-
lização e o acender de uma fogueira com todos os bancos.
A Rádio de São Francisco de Assis, no recinto maior, foi pou-
pada, assim como a escola Vyaka Sabriu. Quanto ao dormi-
tório dos missionários, serviu de lugar de concentração dos
«jihadistas», com expulsão daqueles.
De 7 a 10 a atenção voltou­‑se também para as ilhas, com
tentativas de incursão do Daesh na Quirimba, em Situ e no
Ibo, a partir da sua alegada nova base insular em Matemo.
Na Quirimba, por exemplo, o EIPAC usou pelo menos duas
chatas e um barco à vela, disfarçados de actividade de pesca.
Atacaram a ilha à 1h da madrugada de dia 10, espalharam o
pânico, destruíram propriedade e fizeram reféns.

A reconquista

Tudo isto obrigou as FDS a modificar planos e a acelerar


uma ofensiva em regra.
Chegaram no dia 7 ao pôr­‑do­‑sol, a Pemba, três helicóp-
teros pintados de azul, um deles sem matrícula. Tinham uma
tripulação conjunta de 9 sul­‑africanos e cidadãos do Zimba-
bué. Um residia em Pemba. Eram todos ex­‑militares. Esta-
vam ligados a Lionel Dyck (erradamente identificado como
«Dyke»), um antigo oficial dos RAR da Rodésia e dos «páras»
do Zimbabué. Dizia­‑se que tinham vindo através da empresa
de conservação animal e protecção DAG, num contrato com

10
Fatimah bint Muhamad, ou Fatimah al­‑Zhara, filha de Muhamad e Khadijah.

193

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O Cabo do Medo

o Ministério do Interior, por um mês, com o preço de 2


milhões de dólares.
Os meios incluíam dois Gazelle bastante antigos. De toda
a frota disponível havia meios militarizados: um com canhão
Vektor de 20 mm11 e outro com uma metralhadora M134
minigun de 7.62mm12. Havia ainda um Bell 206 Jet Ranger
multimissões13 e algumas unidades de transporte e observa-
ção e reconhecimento. Somavam­‑se a outros meios de uma
empresa chamada Ultimate Aviation, da África do Sul, ligada
a uma macro­‑entidade sediada em Singapura, a CADG, com
escritórios nos EUA14, que controlava os meios de vigilância
e sobretudo os drones, incluindo a maravilha tecnológica,
para a região, conhecida como Helix ISR15. Uma outra com-
panhia envolvida era a Manticorp Holdings LLC (com sede

11
Versão sul­‑africana do canhão MG­‑Matra dos Alouette III/«Lobo Mau» da nossa
FAP, usados com sucesso operacional em Moçambique, até 1975.
12
Máximo de 6 mil tiros por minuto, alcance 1 km.
13
Foi este que, numa missão arriscada, resgatou os dois ocupantes de um dos
Gazelle, alvejado sobre Quissanga, e que ficou com um problema na caixa de mudanças.
Quando o «comando» do Daesh (15 homens) chegou, já tinha sido destruído o Gazelle
pelos sul­‑africanos. O héli sobrevivente foi também alvejado, mas conseguiu pousar de
emergência em território livre de inimigo.
14
A Ultimate é dirigida por Craig Munro, e a CADG tem um grupo de veteranos
de assistência alimentar no Afeganistão e «segurança humanitária», dirigido pela senhora
Raju Shaulis.
15
A frota incluía, para além dos meios citados, e de dois antigos helicópteros Mil Mi­‑2
Hoplite (um modelo russo do fim dos anos 60 do século xx, modernizado), seis aviões:
um jacto de transporte VIP do tipo HS125 /Hawker 800XP, um BE20 ­‑ Beech Super
King Air B200 Turboprop, e quatro C208B ­‑ Cessna Grand Caravan, para transporte
e observação. Os helicópteros eram ou antigos ou ultralimitados: dois AS/350/AS355
Squirrel/Twin Squirrel da Airbus, um Eurocopter EC130, um BH412 Huey (silhueta que
muitos reconhecem da Guerra do Vietname), e dois minúsculos Robinson R44/R66. De
todos os aparelhos, Mi­‑2, Gazelles, Huey e Eurocopter podiam ser armados. Havia ainda
um avião Diamond DA42 MPP Twin Star/Guardian de reconhecimento, vigilância e
recolha de informações, e um Cessna C441 de transporte executivo. O Helix derivava das
experiências da Ultimate (divisão de UAV’s), que resultaram nos modelos Viper 100MR/
UAS, e da colaboração da CADG com as empresas Ecarys e S­‑Plane, sobre a plataforma
de um avião ultraligeiro da Stemme alemã, o ES­‑15.

194

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Epílogo: O Túnel ao Fundo da Luz

no estado de Maryland, EUA), que havia feito combate anti-


terrorista contra o EIPAC na RDC, sob contrato da ONU e
do governo de Kinshasa, e que também já tinha estado no
Sudão do Sul e no Donbass (observação de zonas ocupadas
de Donetsk e Luhansk). Operava os drones mais modernos
em território de Moçambique. Estavam desarmados, mas
podiam ser equipados com submunições muito precisas, de
origem ucraniana16.
O que estava na origem deste reforço, que parecia mais um
remendo? A anteriormente referida carência de apoio aéreo,
e sobretudo uma série de informações derivadas de observa-
ção no terreno e de comunicações interceptadas: o EIPAC
preparava­‑se para tomar a capital de Cabo Delgado, Pemba,
até 12 de Abril. A «festa dos cruzados», lembremos.
Nesse Domingo de Páscoa sombria, um sinal de mudança
importante foi sentido em Maputo: urbi et orbi, o Papa Fran-
cisco lembrou a tragédia de Cabo Delgado. Dias antes tinha
recebido missivas dos prelados de Pemba, a descrever os
horrores.
Todo o resto do mês de Abril foi verdadeiramente aluci-
nante.
No dia 13, uma operação internacional planeada pela
Polícia Federal brasileira e pela DEA dos EUA levou o
SERNIC moçambicano a deter, em Maputo, o alegado trafi-
cante de droga mais conhecido em Brasília, fugido há 20 anos
à justiça: nada menos do que Gilberto Aparecido dos Santos,

16
A Manticorp tinha como «assessores» o capitão reformado Simon Mann, um
ex­‑SAS britânico que se envolvera, com o filho de Margaret Thatcher, num patético
golpe na Guiné Equatorial (que o levara à prisão em Malabo) em 2004, e que fizera um
dia declarações desastrosas sobre o combate ao IRA, e o inevitável Erik Dean Prince,
sempre referenciado nas ajudas reais e imaginárias a países com crises de segurança.
Dado o peso algo embaraçoso dos nomes, a companhia acabou por tirá­‑los da conhecida
organização, e depois saiu ela própria da cena pública.

195

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O Cabo do Medo

mais conhecido por «Fuminho». Este fugitivo tinha grandes


meios à disposição, relacionava­‑se com o grupo delinquente
brasileiro PCC, estaria a preparar um assalto para libertar o
líder preso, e tinha estado, nas décadas de fora­‑da­‑lei, em
diversos países latino­‑americanos (do Paraguai à Bolívia, do
México ao sul dos EUA) e africanos, incluindo a República
da África do SUL (RAS) e Moçambique.
Como se viu atrás, Moçambique tornou­‑se um ponto de
passagem de muitas rotas de droga, quer as redes tenham
negociado com altos, médios ou baixos funcionários, quer
as regras tenham sido de não consumo interno e desvio para
Tanzânia e África do Sul, ou outras. Certo é que a fácil che-
gada de Fuminho a Maputo, vindo da RAS com documentos
falsos, por terra, e a sua instalação discreta num hotel de luxo
da capital, levantava suspeitas.
No âmbito deste livro, só nos interessa uma alegação
de um serviço de informações da SADC: Fuminho teria
contactado um presuntivo financiador do EIPAC, para
se assegurar de que Cabo Delgado poderia voltar a ser o
paraíso de desembarque de grandes quantidades de estu-
pefacientes. «O Daesh, se bem negociado e manipulado, poderia
constituir uma boa protecção dessas redes, e o sr. dos Santos [sic]
tinha experiência de lidar com grupos paramilitares numerosos, como
o bando semipolítico que o guardara na selva boliviana, ao arrepio
do governo central».17
Entendi a alegação, tenho o nome do suposto «interme-
diário» entre os traficantes e o EIPAC, mas não me parece
haver provas concretas de nada. Não digo que não seja uma
pista a seguir, mas certamente que não neste volume.

17
Conversa telefónica com uma grande capital da SADC, dois dias depois da rápida
devolução de Fuminho às autoridades judiciárias brasileiras.

196

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Epílogo: O Túnel ao Fundo da Luz

De qualquer forma, e apesar da «distracção» Fuminho, as


coisas não pararam no terreno do nordeste.
A FRELIMO, sobretudo com base nos «tecnocratas» e
na «nova geração», que diz querer mudar as coisas depois de
Nyusi, colocou o governo entre a espada e a parede, pedindo
mais determinação e competência no combate em Cabo Del-
gado. Exigiu ainda a investigação e punição de altas patentes
civis e/ou militares, homens de negócios ou personalidades
que, por acção ou omissão, incitamento ou mera negligência
grosseira, ajudaram ao crescimento do mal.

Mudanças radicais

15 de Abril marcou uma mudança radical. A prometida


contra­‑ofensiva começava a ter pernas para andar. Os fuzi-
leiros navais, vindos da base de Pemba e da escola­‑mãe de
Katembe (Maputo) começaram a ser usados com mais efi-
cácia e frequência. Eram a tropa ideal para Cabo Delgado.
Agentes de informações de vários países tentaram, sem êxito,
atribuir o reforço militar a Angola, ao Zimbabué ou à Tanzâ-
nia, mas as botas no terreno eram moçambicanas. A primeira
vitória deu­‑se num Domingo de Páscoa com Pemba livre do
Daesh.
Começava então a tentativa de as FDS retomarem as
«zonas libertadas» pelo jihadismo, onde o EIPAC chegava
a impor as suas regras: Quiterajo, Mbau, partes de Maco-
mia, Meluco, partes de Mocímboa (incluindo em Milamba/
Zalala), Muidumbe e Quissanga.
No dia 23 de Abril, o ponto de viragem: com solenidade, o
Conselho Nacional de Defesa e Segurança reconhecia que era
realmente o Daesh EIPAC o inimigo. E prometia medidas.

197

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O Cabo do Medo

Não se abriram garrafas de champanhe no meu «bunker»,


mas senti calmamente que uma missão estava cumprida. Ao
fim de um ano de esforços, reconhecia­‑se o nome do adver-
sário. Só assim podia começar o exorcismo.
A 24, um dia inteiro de chamadas e contactos. Fúria nal-
guns sectores, que acusaram o governo de estar a exagerar,
aconselhando­‑o antes a munir­‑se de um manual de sociolo-
gia, a não militarizar o conflito, a não pactuar com a «inven-
ção» do EIPAC. Alguns, aparentemente mais ingénuos ou
menos informados, achavam mesmo que o Daesh EIPAC
era uma invenção, feita por um grupo de traficantes de armas
com acesso à Internet.
Havia depois os informados e culpados, que sabiam estar
à beira de uma derrota: o ataque sistemático ao Daesh signi-
ficava também o fim do seu reino ambíguo de negociatas e
compromissos com poderes, contrapoderes e candidatos ao
poder.
A verdade é que a declaração do CNDS tinha sido muito
ponderada. Não só nos círculos de decisão da própria FRE-
LIMO, em torno do SG, mas também nos contactos com o
Grupo de Peritos da ONU, algumas embaixadas e governos,
e dados do terreno. Na verdade, baseava­‑se também em
avisos de agências internacionais de segurança, e em novas
imagens e intercepções dos combatentes do EIPAC: falhada
a operação da Páscoa, preparava­‑se a do Ramadão: o bando
queria tomar Pemba, num assalto bem planeado, até 23 de
Maio.
A reacção tinha de ser ponderada mas firme.
Para isso foi também preciso afastar as chefias da Defesa
e Segurança. No dia 26 eram nomeados o comissário Timó-
teo Bernardo para chefiar a Polícia, o investigador e analista
Sérgio Nathu Cabá para o SISE, e o brigadeiro Ezequiel

198

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Epílogo: O Túnel ao Fundo da Luz

Muianga, ex­‑CEME, para CEMGFA. Eram todos números


dois das antigas equipas dirigentes, mas pareciam mais «ope-
racionais» e decididos.
Moçambique, por várias razões e culpas, continuava a não
ter os meios necessários, mas precisava de agir com aqueles
de que dispunha.
Foram, entretanto, desde os desmandos de Muidumbe,
duas semanas de «guerra silenciosa», onde a principal preo-
cupação de todos os que amam Moçambique era a de não
se transformar tudo numa «guerra suja» com eliminação de
alvos falsos, raptos de jornalistas ou morte de civis. Algumas
operações limitadas contra o Daesh tiveram também lugar na
RDC, Tanzânia­‑Zanzibar e Uganda. Houve algum apoio dos
EUA com o fornecimento de imagens obtidas por satélite.
Mas a verdade é que os meios importantes das FARDC con-
golesas, por exemplo, não tinham ainda conseguido desarti-
cular o ADF­‑MTM­‑EIPAC das selvas de Beni, e continuava
a haver ataques diários contra militares e civis, até meio de
Maio. E na Tanzânia nenhum resultado espectacular resultou,
a não ser menos tráfego marítimo de pequenas embarcações.
Por outro lado, dois líderes importantes do EIPAC­‑KM,
o ex­‑pregador AB (ou AA), formado na mesquita do centro
Mosab bin Umar e desaparecido, e o ex­‑militar DTJ, ambos
de Nampula, continuavam à solta, vistos em várias movimen-
tações do Daesh.
Uma outra vertente causava apreensão. Este tipo de guerra
gera paranóia, desconfiança permanente entre os civis, ondas
de rumores e constante pressão. Tudo isso era notório, em
Pemba, de onde todos os dias me chegavam relatos angustia-
dos: «o que é que se está a preparar?».
O desaparecimento do jornalista da rádio comunitária de
Palma, Ibraimo Abú Mbaluco, levou dezassete organizações

199

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O Cabo do Medo

não governamentais locais e internacionais18 a escrever ao


Presidente Nyusi, pedindo protecção dos direitos fundamen-
tais, incluindo o acesso livre à informação. Houve também
peocupação com o bairro de Paquitequete, em Pemba, em
torno da mesquita Aqswa. Infiltrações de espiões e unida-
des de reconhecimento do Daesh, que se misturaram com a
população, levaram a acções policiais às vezes indiscrimina-
das, que causaram tensão. O bairro, realce­‑se, fica na periferia
da importante Base Naval.

A batalha de Metuge

O penúltimo grande episódio foi a «batalha de Metuge»,


que se desencadeou largamente fora do olhar público.
Entre 25 e 27 de Abril, os meios ISR ao serviço das FDS,
baseados em Pemba e num aeródromo discreto, consegui-
ram um elemento qualitativo que mudou as coisas. Filmaram
metodicamente a entrada, vindos de Quissanga e Macomia,
das ilhas e do extremo norte, de vários grupos de combate
do EIPAC. Eram essencialmente patrulhas de longo raio de
acção e de combate, que procuravam detectar os pontos fra-
cos e fortes do cordão defensivo em torno de Pemba.
No dia 28, estes grupos começaram a engrossar, e a eles
adicionaram­‑se os «comandos navais» do EIPAC, os chama-

18
A saber: Africans Rising, Amnesty International, Associação Dos Jornalistas
De Cabo Verde – AJOC, Centro Democracia e Desenvolvimento (CDD), CIVICUS,
Committee to Protect Journalists (CPJ), Friends of Angola, Federação de Jornalistas de
Língua Portuguesa – FJLP, Federação Nacional dos Jornalistas – FENAJ, Brasil, Inter-
national Press Institute (IPI), Media Institute of Southern Africa (MISA), OMUNGA,
Reporters Without Borders (RSF), Solidariedade Moçambique (SOLDMOZ­‑ADS),
Southern African Human Rights Defenders Network, Southern Africa Litigation Centre
(SALC) e The African Editors’ Forum (TAEF).

200

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Epílogo: O Túnel ao Fundo da Luz

dos «alkumanuduz albahri». Formados perto de Zanzibar


e no Lago Chade, eram alegadamente comandados por um
antigo guarda­‑marinha fuzileiro das FADM (10º Curso da
Academia Militar)19.
Dirigiam­‑se a Ingalane, Nangua, Nampala, Manono, 25 de
Junho, Sanjala, Bandar e Mueve. Sabia­‑se que queriam captu-
rar Metuge, para obter armas e mantimentos, e atacar a cadeia
de Mieze, libertando os clandestinos presos mais relevantes,
atacando ainda uma missão brasileira.
Metuge era um ponto­‑chave, pois controlava todas as
aproximações terrestres a Moçambique.
Tentaram entrar em Metuge a partir de Tara­‑Tara, mas
foram travados. Denunciados pelas populações, perseguidos
pelas FDS, helicópteros e drones, começaram a fugir para
norte. A ofensiva para chegar junto à baía de Pemba parecia
estar a falhar. Na retirada, queimaram Muaja, no limite de
Ancuabe e Metuge. Deixaram mensagens a dizer que eram
«o governo islamista do Novo Al Shabaab, que quer levar o
Estado Islâmico ao Mundo Inteiro»20. Aí mostravam, mais
uma vez, a impressão digital da metamorfose de Maio­‑Junho
de 2019.
A população de Pemba via, ao longe, o resultado dos com-
bates, com colunas de fumo e incêndios avistados da Avenida
Marginal, do porto, do Paquitequete.
Os bandos usaram muitas munições de granada­‑foguete
e morteiro, e tentaram alvejar helicópteros com metralhado-
ras antiaéreas, alegadamente traficadas da RDC. Mas foram
perdendo terreno, fugindo para as matas, e começaram a
concentrar a sua fúria nas populações locais. Desembarcaram
19
Várias tentativas para que se entregasse, feitas pelos antigos camaradas, não logra-
ram efeito.
20
Escritos semelhantes tinham sido deixados em Muidumbe, quando da ocupação.

201

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O Cabo do Medo

em Situ, decidiram­‑se por Arimba, que incendiaram­‑ depois


de roubar tudo o que podiam.
Por um puro acaso, intervim directamente numa missão
de ajuda, que me fez lembrar as peripécias da série Homeland,
com o comando à distância de UAV’s e outros pássaros sem
ocupantes. Desta vez, porém, tratava­‑se não de tirar vidas,
mas de as salvar.
Num dos primeiros dias de Maio, um amigo telefona­‑me,
ainda de noite: «O bando que atacou Arimba está a devastar várias
aldeias. Estamos todos no mato, e há 15 decapitados. Podes ajudar?».
Pedi as coordenadas. Tudo se passava em Nacoba, Napuda
(num posto de controlo do Parque Nacional das Quirimbas),
em Namavi (Rio Tavi), no leste de Mahate, e em frente dos
«resorts» de luxo das ilhas Situ e Azura Quilatea, entretanto
desertos.
Eram 50 membros do Daesh com motos21. Subdividiram­
‑se à procura de alimentos. Matavam quem discutia ou pare-
cia querer fugir. Andavam na zona desde 29 de Abril. Diziam
que tinham estado em Namiteue, Walopwana (Messanja,
posto de Metuge­‑sede), e que haviam de voltar.
Tinha entretanto contactado o comando dos meios aéreos
em Pemba. Reportei a urgência, e prometeram que em 10
minutos estariam no local, apesar das múltiplas ocorrências.
Cerca de meia hora depois, o meu amigo, M, disse­‑me que
um drone e um helicóptero tinham feito fugir o bando, e
causado baixas, que levaram consigo. A população estava
salva.
A seguir veio a cimeira Moçambique­‑Zimbabué, onde
Harare reconheceu o problema e prometeu reforçar laços de
21
O Daesh tinha motorizadas de várias origens: roubadas em Muidumbe e Mocím-
boa da Praia, desviadas do uso «normal» para a clandestinidade, e ainda veículos trafica-
dos da África do Sul e do Malawi.

202

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Epílogo: O Túnel ao Fundo da Luz

cooperação e treino militar, mas de onde não saiu nenhum


compromisso para tropas no terreno. É uma guerra preo-
cupante mas longínqua. No entanto, o alto comando do
Zim­babué, para além da determinação de ajudar em matérias
de treino operacional, prometeu meios mais musculados, se
ficasse provado que o EIPAC também o ameaçava directa-
mente.
E a verdade é que uma tal rede sob o nome cibernético
de «France Al Rasak» prometeu «fazer desabar o fogo»
sobre Harare, e executar o exército da ex­‑Rodésia, se este
prometesse algum apoio a Maputo. A Zanu PF (por Twit-
ter) exigiu imediatamente do governo uma resposta a este
desafio.

O fim do princípio

No dia 5 de Maio, enquanto continuava a contra­‑ofensiva


das FDS, com a recuperação de Quissanga­‑sede, onde o
Daesh filmara a cena que temos na capa, o alto comando de
Harare decidiu que tropas do Zimbabué poderiam passar
também a conduzir operações contra­‑terroristas conjuntas
com Moçambique, se a ameaça se revelasse.
Por outro lado, ficava sob ataque a principal base do
Daesh em Cabo Delgado, cognominada «Síria» pelo EIPAC.
Os chefes jihadistas vindos da Tanzânia foram os primeiros
a ser alvo de evacuação, com protecção especial dos melhores
«comandos».
Mas uma fonte das FDS assegurava que se trata de uma
«operação de desmantelamento total, perseguição e interdi-
ção». Por outras palavras, nada de deixar germinar as metás-
tases de um terrorismo em fuga.

203

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O Cabo do Medo

Ou seja: ao contrário de alguns relatórios que previam a


perda de Cabo Delgado para o jihadismo22, a situação parecia
mais controlada em Maio, se bem que ainda se jogassem mui-
tas incógnitas.
Na verdade, cerca de 40 comandantes estrangeiros do
EIPAC continuavam em Cabo Delgado, os bandos fugiram
para as matas, e sem uma campanha concertada civil­‑militar, a
província arriscava­‑se a ser uma terra de posições entrinchei-
radas, cercadas por grupos hostis.
Mas a verdade e que o «exército profissional» do Daesh
estava derrotado.
Era a sua primeira grande batalha perdida desde a expul-
são da Síria e do Iraque. A sua primeira derrota de grande
escala em África, dado que as campanhas no Chade, Nigéria,
Sahel a Congo continuavam.
Mas isto foi apenas o fim do princípio.
Como se sabe de todas as experiências de grupos terro-
ristas que se transformam em guerrilha, o conflito assume
várias formas.
O referido fim de um «exército profissional de guerrilha»
origina sempre mutações no combatente provisoriamente
derrotado.
No dia 5 de Maio, o Daesh começou a fazer circular ima-
gens de alegadas armas das FDS, também alegadamente rou-
badas de um acampamento militar isolado em Cajembe, na
fronteira entre os distritos de Macomia e Quissanga.
Tratava­‑se de 15 espingardas automáticas, cópias da
Kalashnikov, 1 metralhadora ligeira (mais usada pelas FARDC
da RDC do que pelo exército moçambicano, o que levantou

22
Da Bloomberg, Africa Confidential e Intelyse, com graus diversos de cepticismo
quanto à possibilidade de ser reposta a ordem por parte do governo.

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Epílogo: O Túnel ao Fundo da Luz

suspeitas) RPD, 1 morteiro ligeiro com munições, e granadas­


‑foguete de RPG­‑7, mas não os lançadores.
O EIPAC dizia ainda ter morto dezenas de elementos das
forças de segurança.
A verdade é que, na sequência da base «Síria», o grupo
terrorista começou a criar manobras de diversão e ataques
de retaguarda, permanecendo a instabilidade em todo o eixo
Mucojo­‑Quiterajo. E continuaram também as incursões por
países limítrofes.
Uma fonte das FDS dizia­‑me, da primeira linha:
«Estamos a lutar em várias frentes, o terreno é difícil, o
inimigo foge para matas densas, ensaia emboscadas, e a sua
rede é muito grande. Tinha sido minimizada. Mas agora não
podemos parar.»
A outra chave, que faltava ainda, para além da necessidade
de estabelecer poderes legítimos e representativos na pro-
víncia, desenvolver a economia, reintegrar jovens alienados e
desesperados, e reformar e moralizar as FDS, despolitizando
o SISE, tinha que ver com a segurança regional.
Sem uma conferência executiva que sentasse à mesma
mesa todos os actores (Zâmbia, Malawi, RDC, Tanzânia,
Uganda, Somália e Moçambique), as rotas de infiltração do
Daesh continuariam. O mal podia regressar.
E com estas reacender­‑se­‑ia sempre o rastilho, no Cabo
do Medo.
Entretanto, perderam­‑se muitas vidas, património, projec-
tos individuais e colectivos, esperança. Mas existem outros
motivos que ajudam a construir uma alternativa.
Há assim, no momento em que acabo, uma luz ao fundo
do túnel.
Sem se resolver a essência, porém, existirá outro túnel ao
fundo da luz.

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ANEXOS

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O Cabo do Medo

208

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Anexos

O trio de Faizal, capturado em Moçambique: «Somos Shabaab do Uganda, é


a nossa paixão, mas não estamos envolvidos em violência.» Abdulrahim, sus-
peito de ligação ao ADF/MTM/EIPAC, é o elemento do meio.
Ao lado, a presumida noiva de um «radical» em fuga.

O comando do primeiro Shabaab moçambicano (Outubro de 2017),


com os irmãos Adremane em destaque.

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O Cabo do Medo

210

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Anexos

Uma das primeiras esquadras da polícia atacadas, em Mandimba (2017).


Note-se a intensidade dos disparos, através das marcas na parede.

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O Cabo do Medo

Uma das primeiras mesquitas do Shabaab moçambicano, em Quiterajo.

Abilah Hamisi Kahamba, membro tanzaniano do Shabaab de Moçambique.

212

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Anexos

Rotas de infiltração do Daesh em Moçambique, desde a base do Congo.

213

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O Cabo do Medo

Elementos do EIPAC em Cabo Delgado, fim de 2019.

Aspectos da destruição do EIPAC em Moçambique, incluindo a escola técnica


de agricultura de Bilibiza, subsidiada pela Fundação Aga Khan, de Lisboa.

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Anexos

A tentativa de ajuda russa. Em cima, os oficiais russos mais envolvidos:


Oleg Ilyinich, departamento contraterrorista, Pyotr Popov, cooperação
internacional, Ilya Bondar (treino) do Ministério do Interior e Kyril
Kurnosov, comandante da Unidade antiterrorista/contraterrorista Alfa,
do FSB (serviço de segurança interna). Em baixo, reunião plenária
das delegações militares moçambicana e russa, em Moscovo.

215

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O Cabo do Medo

O anúncio formal do EIPAC, pelo «Califa» Al Baghdadi, agora neutralizado,


em Abril de 2019, e o acto de Bay’ah em Cabo Delgado, em Maio-Junho
de 2019, fundador da chamada Katiba de Moçambique.

O juramento ao Daesh, na constituição do EIPAC, comando do Congo.

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Anexos

O alegado comando do ADF/MTM/EIPAC no Congo, que controla


Moçambique. As elipses designam elementos que teriam sido mortos
na ofensiva da FARDC (Outubro 2019-Fevereiro 2020).

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O Cabo do Medo

Parte das alucinantes quantidades de armamento e veículos roubadas


às FDS de Moçambique pelo Daesh.

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Anexos

Musa Baluku Lumu, comandante supremo do ADF e


alegadamente do MTM, ainda à solta em Março de 2020.

Juramento de fidelidade do EIPAC (Moçambique e Congo),


7 de Novembro de 2019, ao novo «califa» do Daesh.

219

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O Cabo do Medo

Identidade e currículo do novo chefe global do Daesh.

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Anexos

O fim do caminho? Elementos do ADF/MTM/EIPAC, de várias


nacionalidades, capturados na sede do grupo, no Congo Democrático,
e imagem de destruição de uma base. Fotos das FARDC.

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O Cabo do Medo

O local da incursão anfíbia em Mocímboa da Praia.

A estrela mostra a barreira principal colocada pelo Daesh na vila


de Mocímboa da Praia, e os círculos os bairros onde o bando tentou
seduzir os civis, distribuindo comida.

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Anexos

Um dos camiões do Daesh é aplaudido por


populares, em Mocímboa da Praia.

A ilha de Congo, que seria uma das bases provisórias da «frota» do Daesh.

223

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O Cabo do Medo

A retomada de Quissanga pelas FDS, mais de um mês depois


de destruída pelo Daesh.

Alguns dos comandantes tanzanianos e ugandeses do EIPAC


que se refugiaram na «Base Síria».

224

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Anexos

O primeiro vídeo de vigilância de um grupo de ataque do Daesh,


que se aproximava de Pemba.

O novo chefe do Daesh, Abdullah Qardash,


segundo um retrato robô de documento classificado.

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Í NDICE O N O M Á S T IC O

A 149, 152-3, 158


Abdala, Abacar 52 Barau, Musa 148
Abdullahaman, Faisan (Hassan Bernardo, Timóteo 198
Mussa) 49, 50 Bin Laden, Osama 89
Adremane, Nuro 46 Blocker, Darrell 158
Ahmad, Nazim 23 Boaz, Bob 65
Al Baghdadi, Abu Bakr 31, 65, Bondarev, Viktor 123
143-4, 156, 159, 169, 171 Bonomar, Ali 46
Al Sarawi, Abu al Wahd (Lahbib Brown, Edmund Fitton 13
Abdi Sa’id) 171 Butambala 158
Al Zawahiri 130, 179
Alawi, Jafar 46 C
al-Barnawi 171 Cabá, Sérgio Nathu 198
Albuquerque, Joaquim Cabral, Martim 23
Mouzinho de 28 Camal, Hamido Abdul 52
Alifa, Shumar 52 Chaligonza, Jacques Nduru
Aquino, Tomás de 176 (Ichalingoza) 149
Aziz, Abdul 46, 48 Chichone, Alberto 23
Chirimwami, Peter 149
B Coninsx, Michèle 14
Baati, Moncef 14 Couceiro, Henrique de Paiva 28
Bacar, Amisse (Itisse Bacar) 46 Couto, Fernando 23
Bacar, Saide 52
Baluku, Musa «Seka» 88, 145,

227

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O Cabo do Medo

D Ismail, Abdul Rashid 83-4


«Daouda» 93
Dhlakama, Afonso 22, 32-3 J
Dyck («Dyke»), Lionel 193 Jardim, Carmo 23
Didigov, Mukharbek 123 José, Gregório Leão 23
Diiru, Nasser Abdu Hamid
conhecido por Mzee Wa Kazi K
ou «Kikute» 147 «Kadala», conhecido como M
Djani, Dian Triansyah 13 147
Douce, António Pedro 64 Kahamba, Abilah Hamisi 140
DTJ, ex-militar 199 Kasadha, Amisi («Kalume») 147
Duarte, José Augusto 23 Kashindi, Fabien Dunia 149
Dulá, Nassuruhale 52 Katembo, «Issa John» (também
Durant, Christaan 113 conhecido como «Rafiki») 147
Katungi 158
F Katz, Rita 165
Fernandes, Evo 23 Kemunto, Violet (aka «Hadja»
Francisco, Papa 84, 176, 195 ou «Khadija») Omboyo 132
Kibabaro, Adjuba (Kebbabaro)
G 66
Garoto, B.T. 133 Kibirige, Amigo «Marine» 148
Guebuza, Armando 23 Kidjepéri, Salimo (ou Kijepel)
Guterres, António 13 45
Kigozi, Mansour 47
H Kisokeranjo, Ben 148
Habibo, Iman Saide 83-4 Krinitsyn, Oleg 125
Haif, Selah 52
Hanekom, André Meyer (“Baba L
Mzungo”) 44, 115-16 Lettow-Vorbeck, Paul Emil von
Hassane, Tuaha 52 27
Hássne, Ali 45 Lisboa, D. Luis Fernando, bispo
Hood, Lukwago Rashid Swaibu, de Pemba 175-6
«Pierro» 148, 158 Litope, «Toyo» 148
Hussein, Saddam 65 Lubega, Abdul 148
Lumisa 158
I
Ibn Omar aliás «Obimo Omar» M
46 Machameche, Inácio 64

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Índice Onomástico

Machel, Samora 38 Ogundipe, Kayiira 148


Machinga, Mustafa Suale 85 Omar, Idin 46
Machud, Aly (Massude) 46
Mahamood, Ahmad «Jundi» 141 P
«Mama Sarah» 147 Pinto, Jaime Nogueira 23
Manturov, Denis 124 Pinto, João Teixeira (Capitão
Mário, Tomás Vieira 99 Diabo) 27
Markhaev, Vyacheslav 123 Prince, Erik 31, 112-13
Mazeze, régulo 192
Mbaluco, Ibraimo Abú 199 Q
Midundo, Nisba 133 Qardash, Abdullah «O
Miguel, Ilídio José 106 Destruidor» 179-80
Mohammed, Aboud Rogo 136
R
Momad (Momade) Ibrahim
Rafael, Bernardino 58
(Ibrahimo) 45
Remane, Abdul 46
Momade, Ossufo 22, 32, 113
Remane, Nuro 46
Muianga, Ezequiel 198-9
«Rick Muzei» 148
Muhamad, Aminnuddin 83-4
Mukubwa, Mohamed 148 S
Mukulu, Jamil 49, 145, 160 Saha, Mahamudo 46
Mulalo, Fezza 148 Salimo, Nuro 46
Mumim, Abdul Qadir 171 Santos, Gilberto Aparecido
Musa, «Iman» 46 dos, «Fuminho» 195-7
Mussa, Chafim 50 Segujja, Elias 148
Muzaganda, Ibrahim 147 Soares, Ivone 23
Spoor, Richard 99
N
Sualeh, Kadah 46-7
Ndzorógue 45
Suvorov, Alexander 123
Nhongo, Mariano 22, 33, 190
Nsamba, Abdulrahim Abu T
Faizal (Faiçal/ Abul Rahim Tembe, Carlos 23
Faizal) 47-9, 81, 85-6, 90 Thomashausen, André 23
Nuro, Aly 47 «Tiger» Ansa 148
Nyusi, Filipe 23, 32, 64, 67, 85, Tolkien, J. R. R. 20
109, 117, 197, 200 Tshitambwe, Jérome «Chico»
149
O
O’Reilly, cor. 67

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O Cabo do Medo

V
Voronkov, Vladimir 14

W
Wolf, Markus «Mischa» 121

Y
Yangue, Adamu Nhaungwa 50

W
«Waswa», aliás «Ibrahimo» 45, 147
«Werasson» 148

Z
Zein, Waleed Ahmed 95
Zelin, Aaron 165
Zollo, Robert 99
Zumbire, José Castiano de 23

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