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Introdução
O papel que desempenha o temperamento na vida espiritual costuma ser objeto de dois
mal-entendidos: de um lado, há quem defenda uma ataraxia que nada tem de católica; de
outro, há quem, rendido à desesperança, pense que o temperamento é um fato biológico
invencível. Entre tais extremos, encontra-se a verdade, sempre serena e modesta, da
genuína espiritualidade cristã.
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Daqui se vê, pois, a importância desta vida: é nela, como numa longa e muitas
vezes sofrida peregrinação, que temos a oportunidade de preparar a nossa
eternidade, e é à luz dessa meta, ao mesmo tempo árdua, se pensamos na
insuficiência das nossas forças, e esperançosa, se nos fiamos dos auxílios de
Deus, que devemos medir o valor de todas as outras coisas.
Pois bem, sabemos que, feitos para a glória do céu, temos de ser santos e que,
para ser santo, é necessário unir-se a Jesus Cristo. Ora, o que une duas
pessoas não é outra coisa senão o amor, que é uma forma muito especial
de amizade, porque só os que se conhecem e se querem bem, de forma mútua
e manifesta, podem ser amigos e amar-se como tais. Por isso, quanto mais
amor tivermos a Jesus, mais unidos a Ele estaremos e, por conseguinte, maior
será a nossa santidade.
Aqui, no entanto, se nos depara uma dificuldade: se devemos nos unir a Jesus,
onde encontraremos o amor com que iremos amá-lo? Afinal, sendo Ele não
somente verdadeiro homem, mas verdadeiro Deus, é digno de um amor que
em muito supera qualquer afeto humano que lhe possamos dar. O nosso
carinho, a nossa estima, a nossa amizade, por mais sinceros que sejam, são
de per siinsuficientes, no plano meramente humano, para nos unir a Cristo.
Temos necessidade, numa palavra, de um amor proporcionado à grandeza de
Deus, razão por que tal amor só pode ser, também ele, de natureza divina.
Sabendo da nossa incapacidade, Deus, que nos amou antes que pensássemos
em amá-lo, deu-nos a solução: trata-se da graça santificante, de ordem
estritamente sobrenatural, pela qual somos elevados à condição divina e
enriquecidos com a capacidade de amar a Deus com o amor com que Ele quer
ser amado.
Prova disso é a vida dos inúmeros santos da nossa Igreja. Nela, vemos com
clareza meridiana que a graça divina é não somente uma realidade viva, mas
um poder efetivo e fecundo, que realiza na alma humana uma modificação de
tal ordem, que ela se torna capaz de atos de amor a Deus que, em si mesmos,
não podem ser fruto da nossa simples natureza. De fato, assim como seria um
milagre que uma pedra pensasse, assim também é como um “milagre” que o
homem, de coração tão pequeno e mesquinho, ame a Deus com o amor
do próprio Deus.
A razão disto é óbvia: não somos anjos, mas seres humanos, unidades de
corpo e alma, e é neste “terreno”, em que convergem o material e o espiritual, o
intelectual e o sensitivo, que está plantada a graça e, portanto, há de crescer a
árvore frondosa de uma santidade perfeita. E o temperamento é uma, não a
única, das propriedades deste terreno que devem ser levadas em conta se
queremos entender e orientar de forma inteligente a dinâmica da santidade.
Por isso, a santidade não se alcança por certa ataraxia, como se fôra
necessário “reprimir” ou anular todas as nossas paixões. Antes, pelo contrário,
é preciso ordená-las, orientando-as segundo as disposições temperamentais
de cada um, para fazê-las servir à nossa vida espiritual. É fato que as paixões
predominantes de cada temperamento podem às vezes ser um grande
obstáculo; mas se as conhecemos e, com a ajuda da graça, aprendemos a
dominá-las racionalmente, podem ser um auxílio poderoso, como um
“combustível”, para caminharmos a passos rápidos na senda da perfeição.
Por outro lado, também é preciso advertir que os temperamentos não são, no
sentido forte do termo, determinantes. O que isto significa? Significa que, por
mais que cada indivíduo tenha seus traços temperamentais, que tendem a
permanecer estáveis ao longo da vida, não existe uma pré-determinação
biológica que impeça esta ou aquela pessoa de vencer os aspectos negativos
do seu temperamento ou de adquirir, com esforço e constância, as boas
qualidades que comumente caracterizam outros tipos temperamentais.
Nesta matéria, é preciso lembrar sempre que somos livres e, por mais “peso”
que tenha o corpo, está sempre em nossas mãos decidir a que tendências,
vícios, qualidades etc. daremos livre curso. No fim das contas, não estamos
nunca “aprisionados” no nosso temperamento: Deus nos deu um para ajudar-
nos a amá-lO, pois, sendo seres corpóreos, também a nossa dimensão físico-
biológica entra em jogo na hora de nos entregarmos a Ele com tudo o que
somos e possuímos.