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Volume 17, Número 2, Jul/Dez 2013, p.

102-114

A FUNÇÃO TERAPÊUTICA DOS CONTOS DE FADAS:


SENTIMENTOS E CONFLITOS HUMANOS

Veruska Oliveira Bonete Pereira


Moises Fernandes Lemos
(Universidade Federal de Goiás, Regional Catalão – UFG/RC)

RESUMO
O presente artigo tem por objeto os contos de fadas como documentos históricos que se
perpetuaram ao longo dos séculos em função de seus conteúdos essenciais sobre a condição
humana. O estudo visa compreender como tais narrativas expressam sentimentos, conflitos e
simbolizam fantasias universalmente conhecidas, assim como pesquisar junto a autores
dedicados a esse tema, sobre o potencial terapêutico dos contos de fadas, a partir do
referencial teórico psicanalítico. Sendo assim, o método utilizado foi a pesquisa bibliográfica.
O trabalho, além de ter viabilizado uma visita a psicanalistas de importante contribuição ao
meio acadêmico e clínico, reafirma sob múltiplos olhares, que os símbolos presentes nos
contos de fadas possibilitam o acesso ao inconsciente infantil, valioso recurso terapêutico para
a abordagem dos conflitos.

Palavras-chave: contos de fadas; função terapêutica; psicanálise; narrativas simbólicas;


fantasia.

Abstract

The Function of Therapeutic Fairy Tales: Feelings and Human Conflict

This article focuses on fairy tales as historical documents that have been perpetuated over the
centuries due to its essential content about the human condition. The study aims to understand
how these narratives express feelings, conflicts and symbolize universally known fantasies, as
well as research with the authors dealing with this subject, about the therapeutic potential of
fairy tales, from the psychoanalytic theoretical framework. Thus, the method used was the
literature research. The work, besides having made possible visits to psychoanalysts of
important contribution to the academic and clinical setting, reaffirms under multiple looks that
the symbols found in fairy tales provide access to child unconscious, valuable therapeutic
resource for addressing of the conflicts.

Keywords: fairy tales; therapeutic function; psychoanalysis; symbolic narratives; fantasy.

Introdução séculos, este estudo visa compreender


como os contos de fadas expressam
Considerando que as narrativas sentimentos, conflitos e simbolizam
ocupam lugar privilegiado ao longo dos fantasias universalmente conhecidas, assim
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como pesquisar junto a autores dedicados a


esse tema, sobre o potencial terapêutico Metodologia
dos contos de fadas, a partir do referencial
teórico psicanalítico. Este trabalho caracteriza-se como
Um conto de fadas representa uma um estudo de natureza qualitativa,
proposta de simbolização, em que os delineado como um estudo descritivo,
elementos mágicos podem gerar sentido e conforme classificação proposta por
possibilitar a resolução de um conflito. O autores da área de metodologia científica
conto de fadas é um “[...] importante (Gil, 2009; Marconi & Lakatos, 2009;
instrumento para auxiliar a criança a lidar Severino, 2007).
com a ansiedade e suportar obstáculos, Quanto aos procedimentos de
favorecendo o desenvolvimento de sua coleta de dados o trabalho pode ser
personalidade” (Radino, 2003, p. 22). classificado como pesquisa bibliográfica,
A escolha deste tema deve-se à haja vista ser um procedimento formal,
importância da fantasia como mediadora com método de pensamento reflexivo, com
para a criança lidar com a sua realidade. tratamento cientifico a se constituir no
Gutfreind (2003) refere-se ao efeito caminho para se conhecer a realidade ou
terapêutico dos contos, pois oferecem a para descobrir verdades parciais. Significa
possibilidade da criança criar muito mais do que procurar a verdade: é
representações dos arcaísmos; possibilitam encontrar respostas para questões
pensar os conflitos e desenvolver propostas, utilizando métodos científicos
capacidade para lidar com as angústias. (Marconi & Lakatos, 2009; Severino,
Habitar o mundo de fantasias é uma forma 2007).
de refletir, simbolizar, criar novas histórias, Toda pesquisa bibliográfica implica
brincar, experenciar. no levantamento de dados de variadas
Este trabalho objetiva compreender fontes, quaisquer que sejam os métodos ou
como tais narrativas expressam técnicas empregadas. A fim de conhecer os
sentimentos, conflitos e simbolizam traços principais de um abusador infantil e
fantasias universalmente conhecidas, assim as seqüelas resultantes para a vítima,
como pesquisar junto a autores dedicados a realizou-se como caminho a pesquisa
esse tema, sobre o potencial terapêutico bibliográfica, ou seja, a consulta em fontes
dos contos de fadas, a partir do referencial secundárias, definida de acordo com
teórico psicanalítico. Severino, como sendo:
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Aquela que se realiza a partir do contos de fadas são considerados


registro disponível, decorrente de documentos históricos, que surgiram ao
pesquisas anteriores, em documentos longo dos séculos e foram sofrendo
impressos, como livros, artigos, teses transformações conforme a sociedade e a
etc. Utiliza-se de dados ou categorias cultura. Na forma como atualmente são
teóricas já trabalhadas por outros conhecidos, os contos de fadas datam do
pesquisadores e devidamente Século XIX, juntamente com a invenção da
registradas. Os textos tornam-se fontes infância (Corso & Corso, 2006).
dos temas a serem pesquisados. O Também sobre a origem dos contos
pesquisador trabalha a partir das de fadas não existe consenso. A literatura
contribuições dos autores dos estudos levanta algumas hipóteses. Inicialmente, de
analíticos constantes dos textos. tradição oral, eram histórias repletas de
(Severino, 2007, p.122). rituais e interditos, passadas de geração a
geração. Com a invenção da prensa
A principal vantagem da pesquisa
tipográfica, a tradição oral dos contos de
bibliográfica reside no fato de permitir ao
fadas foi sendo transformada em narrativa
investigador/pesquisador a cobertura de
escrita (Radino, 2003).
uma ampla gama de fenômenos. Sendo
De acordo com Hisada (1998, p.
assim, para realizar a pesquisa sobre a
37) a origem dos contos de fadas pode ser
função terapêutica dos contos de fadas
encontrada nos escritos de Platão, “[...]
realizou-se uma pesquisa bibliográfica
onde as mulheres mais velhas contavam as
junto a psicanalistas de importante
suas „estórias‟ simbólicas, voltadas para a
contribuição ao meio acadêmico e clínico.
educação de crianças”. A autora cita o
romance “O Asno de Ouro” escrito por
A Clínica e o Conto de Fadas
Apuleio, filósofo do século 02 d.C.;
também, faz referência aos contos
Era uma vez... o conto não tem tempo
encontrados no Egito, nos papiros dos
irmãos Anubis e Bata.
Não existe unanimidade entre os
Os contos não se dirigiam ao
autores sobre o tempo do conto. A
público infantil, originalmente foram
concordância existe em um ponto: os
criados como entretenimento para adultos.
contos sempre ocuparam lugar importante
“Os contos de fadas eram contados em
nas sociedades (Gutfreind, 2003). Os
reuniões sociais, nas salas de fiar, nos
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campos e em outros ambientes onde os diferente dos outros escritores,


adultos se reuniam” (Cashdan, 2000, p. considerados compiladores e pesquisadores
20). As histórias incluíam temas como dos relatos orais, fabricou seus contos de
exibicionismo, estupro, canibalismo e fadas diretamente para crianças, por isso é
voyeurismo. Na forma como atualmente considerado por muitos como o pai da
são conhecidos, se constituíram durante a literatura infantil. A maioria de seus contos
Idade Média e Moderna, como literatura retrata o maravilhoso, com elementos
popular na Europa em geral. A partir do mágicos e sobrenaturais, suas histórias, por
século XVIII, essas narrativas foram sendo vezes, eram estruturadas como contos de
reunidas, recontadas e as histórias repletas fadas clássicos, outras, eram fábulas
de referências sexuais, foram morais com forte densidade cristã (Radino,
transformadas em contos (Cashdan, 2000). 2003; Corso & Corso, 2006).
Entre as compilações mais O que assegura sua difusão através
conhecidas pode-se citar Charles Perrault, dos séculos? As antigas histórias de
que fez alguns retoques, suprimindo encantamento certamente sobrevivem,
questões de violência e sexualidade, porque ainda servem de veículo para
presentes nos contos originais. Segundo questões que persistem, apesar das
Radino (2003, p. 78) “ele deu um novo revoluções dos costumes. Tudo muda, mas
tom à narrativa dos contos de fadas, dilemas como as dificuldades de crescer,
marcando simbolicamente a transição da de aprender a amar, de construir uma
sociedade”, retratando assim uma nova identidade feminina ou masculina possuem
concepção de infância que estava se elementos que através dos tempos
consolidando. conseguem apoiar-se em alguns contos de
Para Gillig (1999, p. 27) a fadas centenários (Corso & Corso, 2010).
passagem dos contos de fadas para o Segundo Sinattolli (2008, p. 35) as
público infantil torna-se evidente com as histórias, inclusive os contos de fadas,
histórias escritas pelos irmãos Grimm. “Os “continuam existindo depois de séculos da
contos dos irmãos Grimm marcam a sua criação, porque trazem dilemas e
transição na literatura oral em que conflitos universais que ajudam o homem
personagens passam do estatuto sagrado ao em seu processo de desenvolvimento, de
estatuto laico ou mágico, conservando ao crescimento”.
mesmo tempo suas funções”. Bettelheim (2001) afirma que os
O poeta Hans Christian Andersen, contos de fadas desafiam o tempo. Corso e
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Corso (2011, p. 169) defendem a ideia de – as que vivemos, as que contamos e as


que o maravilhoso se perpetua sob novas que nos contam” (Corso & Corso, 2006, p.
formas, assim “os contos de fadas, 23). Quando ouvimos, criamos ou
incluindo sua magia e seu incurável contamos uma história descobrimos a
romantismo, não morrem, apenas se magia da ficção. Nos transportamos para
transformam”. Para Gutfreind, (2003, p. um mundo de fantasia que pode servir
23), “O conto é fora do tempo”, como mediador, onde aprendemos a lidar
constatação que chega o autor frente à com a realidade. As bruxas, fadas, ogros,
tarefa de situar a origem dos contos. Freud príncipes, tapetes voadores, dragões,
(1908a, p. 142) em Escritores criativos e gigantes, favorecem o desenvolvimento
devaneios coloca, ao explorar a origem dos afetivo e cognitivo. Isso é o encantador dos
contos, a hipótese de que eles são “os contos de fadas, pois eles nos questionam,
sonhos seculares da jovem humanidade”. nos angustiam, nos põem em processo de
produção.
O certo, porém, é que os livros que têm
resistido ao tempo, seja na Literatura O conto de fadas é a cartilha onde a
Infantil, seja na Literatura Geral, são os criança aprende a ler sua mente na
que possuem essência de verdade, capaz linguagem das imagens, a única
de satisfazer à inquietação humana, por linguagem que permite a compreensão
mais que os séculos passem. (Meireles, antes de conseguirmos a maturidade
1984, p. 117). intelectual. A criança precisa ser exposta
a essa linguagem, e deve aprender a

A importância da fantasia para o prestar atenção a ela, se deseja chegar a

desenvolvimento dominar sua alma (Bettelheim, 2001, p.


197).

No artigo “Para que servem as


A vida imaginária é uma
ficções?” (2007) o psicanalista Contardo
necessidade fundamental. A fantasia é a
Calligaris escreve que a ficção inventa
mediadora para a criança lidar com a
experiências singulares que revelam a
realidade, “a paixão pela fantasia começa
humanidade que é comum a todos nós.
muito cedo, não existe infância sem ela, e a
Essa é a magia da ficção, pois traduz de
fantasia se alimenta da ficção, portanto não
maneira simbólica os desejos do homem.
existe infância sem ficção” (Corso &
Sendo assim, “uma vida se faz de histórias
Corso, 2006, p. 21). Radino (2003, p 116)
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refere-se à fantasia como sendo nosso realmente acontece, onde há aventuras


combustível interno. “Desde o nascimento, imaginárias que deixam efeitos
para que possamos sobreviver perceptíveis em quem as viveu”.
psiquicamente, criamos fantasias, tão Para Nasio (2007) a realidade
necessárias para dominar nossas angústias psíquica é coberta de fantasia.
e realizar nossos desejos”.
Que é então uma fantasia? É uma cena,
Em Sobre As Teorias Sexuais das
às vezes uma recordação esquecida que,
Crianças, Freud (1908b) argumenta que
sem ter retornado à consciência,
desde a infância tenta-se desvendar
continua ativa. É uma cena em geral
enigmas e que a maior motivação é a
inconsciente destinada a satisfazer um
curiosidade sexual. Esses enigmas geram
desejo incestuoso que não pode se
fantasias que tentam desvelar o mundo dos
realizar. O filho nunca copulará com a
adultos, assim a criança necessita utilizar a
mãe e, se o fizesse, seu desejo
fantasia para estabelecer uma ponte entre o
continuaria insatisfeito. A fantasia tem
mundo interno e a realidade exterior.
como função substituir uma satisfação
“A ficção, infantil ou adulta, supre
real impossível por uma satisfação
os indivíduos de algo que não se encontra
fantasiada possível. O desejo é então
facilmente em outros lugares: todos
parcialmente saciado sob a forma de
precisamos de fantasia, não é possível
uma fantasia que, no cerne do
viver sem escape. Para suportar o fardo da
inconsciente, reproduz a realidade. Eis
vida comum, é preciso sonhar” (Corso &
porque Freud qualificou a fantasia de
Corso, 2006, p.304). Esses autores
realidade psíquica. Em outros termos,
acreditam que a fantasia, além de ajudar a
quando um desejo incestuoso não
suportar os fatos reais da vida, “ela nos
encontra seu objeto na realidade
constitui, nos molda e faz parte da
concreta – e, insisto, ele nunca o
arquitetura da nossa personalidade”.
encontrará – o eu o inventa e cria
(Corso e Corso, 2011, p. 19). No mundo de
integralmente em sua imaginação
fantasias a criança pode criar personagens,
(Nasio, 2007, p.10).
podem surgir figuras temidas e perigosas,
um coelho usa relógio que não marca as Para Freud (1908a, p.135) a criança
horas, o lobo entra em cena, a mãe é bruxa cria a fantasia, já que ela “cria um mundo
e o sapo pode ser rei. Fantasia é o “lugar próprio, ao juntar os elementos do mundo
onde ocorre aquilo que não é verdade, mas de uma nova forma que lhe agrade”. Na
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fantasia não há tempo estabelecido e criança questões humanas, que ela


lógico, por isso existe uma relação entre vivencia, mas não tem condições de
fantasia e sonho; nela, passado, presente e verbalizar. Os contos dão forma aos
futuro se misturam com as lembranças do desejos, de tal modo que a criança pode
que a criança já viveu, do que vive e do vivê-los sem culpa. As histórias oferecem à
que deseja viver. criança as experiências de memorização e
Gutfreind (2003) afirma que os de utilização do pensamento para tratar os
contos trazem fatos que a criança vive em conflitos propostos pelo conto,
seu inconsciente e que auxiliam a confrontando-os com seus próprios
transformar o conteúdo inconsciente em conflitos internos, tendo como objetivo
fantasias representáveis, abrindo uma melhor gestão da angústia, como
dimensões imaginárias. A simbologia, que enfatiza Gutfreind (2003) citando as ideias
habita os contos de fadas, torna possível o de Lafforgue (1988).
acesso ao inconsciente, chegando a tocar Corso e Corso (2006) enfatizam
em situações conflituosas ou mesmo que a criança ainda não delimitou as
desafiadoras, como um importante recurso fronteiras entre o real e o imaginário, entre
para a transformação ou superação de o que aconteceu de verdade e o que
problemas ainda intocados. poderia ter acontecido, todas as
possibilidades de linguagem lhe interessam
A função terapêutica dos contos de fadas para compor o repertório imaginário de
que ela necessita para entender os enigmas
Etimologicamente, o termo conto do mundo e do desejo.
vem do latim computare, que se refere a Conforme Ferro (1995), o conto
relatar uma história e a palavra fada do permite que a criança viva em outro lugar e
latim fatum, que significa destino. Relatar outro tempo, seus medos mais
significa que uma história pode ser inconfessáveis, justamente por estarem
repetida quantas vezes for atrativa, assim relacionados às pessoas que mais preza
um conto de fadas representa relatar o como a mãe e o pai, ou ainda por
destino. Esse destino, na existência representarem aspectos seus.
humana, gera um conflito entre ternura e Gutfreind (2004, p. 24) trata o
tragédia, intimidade e universalidade conto como uma obra aberta e como fonte
(Alberti, 2006). de prazer, relaciona-o com o brincar: “[...]
Os contos de fadas mostram à a fonte importante de seu potencial
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terapêutico parece vir de sua dimensão fadas não morrem. “Os contos de fada,
lúdica. Conto é também brinquedo. além de serem aventuras mágicas, ajudam
Diversão pura e simples, perda de tempo, as crianças a lidar com as lutas internas
descanso da realidade e todos esses que são parte de sua vida diária”.
aspectos fundamentais para que a criança A literatura sustenta a
consiga se desenvolver e elaborar-se”. aplicabilidade terapêutica dos contos de
Corso e Corso (2006, p. 178) fadas na clínica psicológica com crianças,
defendem a eficácia psicológica das tanto para diagnóstico quanto para o
histórias infantis, se referem às histórias tratamento, quando são usados como uma
como brinquedos verbais que a criança forma de expressão e simbolização do
pode encaixar à sua maneira. Segundo os sofrimento (Bettelheim, 2001; Corso &
autores, Corso, 2006; Ferro, 1995; Gillig, 1999;
Gutfreind, 2003, 2004; Hisada, 1998;
[...] o compartilhamento de trechos do
Radino, 2003).
imaginário entre as crianças é o que
De forma simbólica, como nos
possibilita sua utilização como se fosse
sonhos, os contos de fadas narram nossas
um brinquedo. Se uma menina diz para
histórias e propõem pontos de identificação
a outra: „seremos princesas, eu quero
(Corso & Corso, 2011). Assim, João do Pé
ser a Bela Adormecida‟; a amiga pode
de Feijão, filho que está longe de ser o que
responder: „e eu a Cinderela‟; e então a
a mãe idealizava, enfrenta o gigante; o
brincadeira pode começar sem maiores
nascimento de um patinho diferente em o
esclarecimentos. [...] o imaginário
Patinho Feio; os irmãos do conto João e
infantil abastece-se de histórias, traços
Maria oferecem a fantasia sobre a expulsão
de personalidade de personagens e
do lar; a rivalidade fraterna vivida em
cenários provenientes da ficção, que são
Cinderela; Chapeuzinho Vermelho
utilizados conjuntamente como bonecas,
associando o tema da curiosidade sexual;
carrinhos, bichos de pelúcia ou super-
Os Três Porquinhos narram o risco de ser
heróis de plástico (Corso & Corso,
devorado e, tantos outros.
2006, p. 178).
As histórias constituem-se num

Cashdan (2000, p. 25) conceitua os produto do saber humano, pois lidam com

contos de fadas como dramas sérios que as certezas fundamentais do existir,

refletem eventos que acontecem no interior questões que se referem à morte,


da criança e é por isso que os contos de nascimento e sexualidade. Conectam as
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crianças com seu mundo interno, Gutfreind (2003), a partir dos


possibilitando o autoconhecimento e estudos de Bonnafé (1994), Lafforgue
posterior identificação com a realidade (1995) e de sua experiência pessoal, propôs
exterior. Introduzem os pequenos no um modelo de trabalho chamado ateliê
mundo dos porquês, acolhem o caos e o terapêutico de contos. Utilizando o conto
vestem de representações, ilustram temores como mediador terapêutico em
e encarnam ideais e desejos. “As histórias psicoterapia de grupo, o autor apresenta
com suas metáforas permitem ao paciente uma metodologia própria, apesar de deixar
a iniciativa de apreender o que estiver ao claro que não existe uma única forma de
seu alcance e de acordo com seu tempo trabalhar. Inicialmente a história é contada,
interno” (Hisada, 1998, p. 7). existe espaço para o desenho, para
representação dramática da história e
As histórias infantis, por falarem do
discussão sobre o conto. O uso do conto,
paciente através de personagens da
na psicoterapia infantil, revelou o potencial
imaginação recriam a ilusão, que o
terapêutico dos contos, pois trouxe alento
paciente pode utilizar como informação
para o sofrimento psíquico das crianças
para autoconsciência, podendo então
envolvidas por temas, como carência
usar estas informações para representar
afetiva ou, pelo menos, de um transtorno
angústias, que até então não se
relacionado à ruptura prolongada do
expressavam num código lingüístico
vínculo com os pais. Houve uma melhora
(Safra, 2005, p. 84).
geral na capacidade de construir relatos,

Gillig (1999) propõe uma colocar em cena os afetos, o

abordagem didática com efeitos enriquecimento da vida imaginária, a

pedagógicos, a partir dos contos de fadas, possibilidade de expressar e elaborar

enfatiza que visa simultaneamente um conflitos, ligados especialmente, à

melhor desempenho no nível da psique, separação e à carência.

processo de identificação, gestão da Sinattolli (2008) conclui que a

angústia e um ingresso no mundo da utilização de histórias como instrumento na

cultura do escrito. O autor ressalta que o entrevista devolutiva, tanto para crianças

conto, na psicopedagogia, proporciona à quanto para os pais, facilita na integração

criança capacidade de se projetar para dos aspectos do psicodiagnóstico. O uso da

querer crescer e ressignificar as história na entrevista devolutiva serve


dificuldades para ler e escrever. como uma técnica lúdica e facilitadora no
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processo de comunicação de informações, contexto de uma clínica-escola de


sem invadir a criança, já que possibilita o psicologia. A autora considera que houve
apaziguamento dos conteúdos que foram contribuição dessa atividade em relação ao
tocados durante todo o processo de fluxo da fila de espera; possibilitou a
psicodiagnóstico. formação de vínculo entre paciente e
Romaro e Fernandes (2011) instituição; auxiliou na avaliação,
enfatizam a utilização dos contos de fadas assemelhando-se a uma triagem estendida;
como recurso terapêutico que pode ser estimulou a imaginação por meio das
usado pelo psicólogo no contexto histórias, bem como a expressão do mundo
hospitalar. As autoras consideram os interno das crianças.
contos de fadas como uma estratégia
Nossas histórias favoritas acabam sendo
terapêutica importante durante o processo
fontes de inspiração e identificação,
de internação, na tentativa de minorar o
refinam ou embrutecem nossa
sofrimento. A criança se identifica com os
sensibilidade, nos ampliam ou cerceiam
conteúdos dos contos, relacionando-os com
os horizontes, ajudam a penetrar na
seus próprios conflitos psíquicos; a partir
realidade ou a evitá-la, sendo, portanto,
desse contato, de forma lúdica, surge a
decisivas para o que nos tornamos
possibilidade de transformação da
(Corso & Corso, 2011, p. 13).
realidade, fortalecimento do ego e
organização das estruturas psíquicas. Essa argumentação, apresentada pelos
Godoi e Chacon (2011), em terapia autores, nos lembra os traçados do bloco
de grupo com crianças e adolescentes em mágico, que têm a superfície receptiva para
situação de abrigo, utilizaram os contos de ser utilizada repetidas vezes, ou seja, capaz
fadas como recurso terapêutico; sendo de receber muitas impressões, como
possível verificar mudanças no também, possui traços permanentes, onde o
comportamento. Nos referidos grupos os que foi escrito será retido. (Cfe. Freud,
membros do grupo cooperaram mais e 1924).
diminuíram as agressões verbais.
Soares (2011) propôs verificar o Considerações Finais
impacto da realização da oficina
terapêutica de contos de fadas com A literatura selecionada oferece
crianças de 6 e 7 anos, que estavam importante contribuição para a
aguardando atendimento psicoterápico, no compreensão de como os contos de fadas
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expressam sentimentos e conflitos infantis, ajudam a elaborar impasses subjetivos, já


simbolizam fantasias universalmente que simbolizam fantasias infantis
conhecidas, assim como se configuram universais.
num importante recurso terapêutico. O psicólogo pode utilizar os contos
O valor terapêutico das histórias de fadas como recurso para abordar os
está em permitir que as crianças coloquem conflitos da criança, oferecendo histórias
em palavras, experiências traumatizantes, que servem de instrumento para
revelando ser a narrativa um meio capaz de interpretação. São vias de acesso para
produzir sentidos, resgatar histórias de compreensão do psiquismo infantil e
vida, avançar no processo de podem levar o paciente à experiência de
aprendizagem, dizer dos seus sintomas, surpreender-se durante a sessão. As
suas dores, suas angústias e seus fracassos. narrativas ajudam o paciente a reconhecer
Os símbolos presentes nos contos o que ele tem de mais íntimo e, com isso,
de fadas possibilitam o acesso ao os desejos inaceitáveis podem se tornar
inconsciente da criança e, portanto, tocam aceitáveis, já que possibilitam encenar os
em pontos importantes, conflituosos e dramas e, assim, pensar sobre eles.
desafiadores e, com isso, um importante Enriqueceria o presente estudo
recurso para transformá-los. Os contos de trazer ao contexto teórico a utilização dos
fadas enriquecem o desenvolvimento da contos de fadas em experiência clínica;
criança e oferecem fantasia. A fantasia nos entretanto, não havendo ainda se
revela porque somos feitos dela, nos proporcionado tal vivência, cumprem-se os
acompanha e representa a realidade de objetivos propostos através da pesquisa
cada sujeito. O prazer que não pode ser bibliográfica efetivada. Assim, sugere-se
encontrado no mundo real pode ser para trabalho futuro um estudo de caso à
satisfeito na fantasia. As histórias servem luz da bibliografia aqui utilizada ou ainda,
para brincar, fantasiar e elaborar conflitos. nova pesquisas que oportunizem ampliar o
Os personagens dos contos de fadas universo teórico subsidiando os
apresentam um potencial de representações profissionais da psicologia quanto à
para o imaginário infantil. Cenários com utilização dos contos de fadas como
gigantes, bruxas, reis, rainhas, lobos, recurso terapêutico.

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Os autores

Veruska Oliveira Bonete Pereira e psicóloga, graduada pela Universidade Federal de Goiás, Regional Catalão,
e.mail: vbonete@yahoo.com.br.

Moises Fernandes Lemos e psicólogo clínico, especialista em Psicologia Clínica e em Filosofia, mestre em
Psicologia e doutor em Educação. Atualmente e professor adjunto da Universidade Federal de Goiás,
Regional Catalão – UFG/RC. Endereço – Rua Eduardo de Oliveira, 289, apto 102, Bairro Lídice, CEP
38400-068 – Uberlândia – MG.. E.mail – moisesflemos@yahoo.com.br

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