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O FILHO1

de Alexandre Dal Farra

fevereiro de 2015

- Você está com dívidas?

- Sim.

- Quantas.

- Algumas só. Por quê?

- Isso é ruim.

(tempo)

- Você tem como pagar essas dívidas?

- Estou tentando.

(tempo)

- Tem namorada?

- Não.

- Mas está com mulher.

- Um pouco.

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Livremente inspirado na Carta ao Pai, de Franz Kafka. Sugestão de divisão das personagens em 3 atores e 2 atrizes.
Ator 1: Pai (que depois vira avô); Ator 2: filho (que depois vira pai); Ator 3: neto e Júlio (o "homem de verdade");
Atriz 1: mãe e Paula (mulher que o pai chama); Atriz 2: todas as outras mulheres.

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- Novinha?

- Mais ou menos.

- Tem peitinho bonito? Eu adoro quando elas tem aqueles peitinhos assim. Ou

peitão, mesmo. Sabe? Ficam fazendo assim, ó. Sabe como é?

- Não. Ela tem a minha idade, pai!

- Então! É disso que eu estou falando. Olha.

- Prefiro não olhar isso.

- Olha. Assim, ó, elas ficam fazendo assim, sentando em você, olhando pra sua

cara, batendo com os peitos na sua cara assim, pá, pá, pá... e vai embora!...

- Tá, sei.

(tempo)

- Você precisa pagar essa dívida. Uma dívida dessas é a pior coisa na vida da

pessoa. O seu tio, irmão da sua mãe. Está atolado em um barraco com uma dívida

dessas enfiada no meio do cu dele, casado com uma professora gorda e sebosa.Se você

cai nessa, de repente está morando em um barraco sujo e fedido, com câncer no joelho e

uma mulher horrível cuidando de você. E aí você olha para a sua própria vida e pensa,

"meu Deus, como eu vim parar aqui, como é que eu consegui de repente olhar para essa

coisa oleosa e cheia de banha, com essas dobras no corpo, assim, de banha mesmo, você

olha para ela, para essa gorda e diz, "eu te amo", e até não é uma mentira completa, de

certa forma você ama ela mesmo, por conta da sua situação como um todo, ela foi o que

te restou, a sua única opção!... Tudo por causa de uma dívida dessas. Às vezes é dez,

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quinze reais no começo. Depois vai, vai, vai... Essas coisas te fodem totalmente pro

resto da sua vida e te transformam em um arrombado que não tem onde cair morto.

(tempo)

- Eu estou querendo mudar.

- Vai sair da casa da sua mãe?

- Vou lá para São Vito acho. Casa da minha tia. Alguma coisa assim.

- Sei. Tem muita coisa ruim lá também.

(tempo)

- ...e até coisa boa, também. Todo lugar tem coisa boa, coisa ruim. Todo lugar é

igual. Em todos os lugares você fica lá tentando dar conta de viver, e não consegue

direito. Aqui também. A vida é assim. Mas a gente vai fazendo o que dá. Não pode

parar de fazer esporte. Eu caminho cinco quilômetros por dia. Olha isso. Não deixo a

barriga crescer. Sequinha. Não é? Por isso eu tenho charme. As mulheres gostam. Quer

que eu te apresente umas?

- Não precisa.

- Tem umas muito gostosas. Elas te adoram.

- Não me conhecem.

- Ah, tudo bem. Elas já te adoram mesmo assim, porque você é meu filho. Você

se deu bem nessa.

- Isso não garante nada, pai.

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- Como não garante!! Eu garanto. Eu falo pra elas: "olha esse aqui. É meu filho.

Puxou tudo de mim." E aí você entra em cena e pá, pá, pá, no lugar do papai. Elas vão

gostar! Deixa eu ligar para a Paula. Sabe a Paula?

- Não, pai.

- Espera aí. Paula? (...) Oi. Tá à toa? (...) Então, por que você não dá uma

passadinha aqui em casa? (...)

- Eu vou embora, pai.

- Não... (...)É que tem um rapaz aqui.Ele disse que quer te conhecer. (...) Isso.

(…) Uns... quinze anos?... (...)Puxou tudo do pai. (...) Quem?... (...) Quem você acha?

Eu! (...) Isso que eu estou te dizendo! Vem pra cá! Ele está louco pra te conhecer!...

(tempo)

- O que foi isso?

- Ela está vindo.

(tempo)

- Eu te falei para não chamar!

- Acabei chamando, agora ela vem para cá. Ela já vai querer cair de boca no seu

pinto de cara, para ver se é igual ao meu.

(tempo)

- ...mas pai, é ruim isso... Eu fico me sentindo mal... Não sei se eu quero isso...

Quem é essa mulher? Ela é velha?

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- Que velha! É linda! Vai ser bom, você vai ver. Ela vai te ensinar umas coisas

boas.

- Mas, como?...

- Você vai ver. Vai entender na hora.

(tempo)

- Nossa! São dez e meia já?!

- É...

- Preciso sair. Fica aí.

- Eu?

- É. Preciso resolver umas coisas. Fica aí. Mas você vai se virando, tá? Fala pra

ela que você é meu filho, tal... Se não gostar manda ela embora!...

- Mandar ela embora?

- Depois eu volto e te explico mais umas coisas sobre a vida. Você tem muito o

que aprender. Agora não dá tempo, mas eu vou te explicar, te ensinar umas coisas aí,

que eu aprendi com o tempo. Eu tenho experiência para te ensinar umas coisas.

- Pai, eu não quero ficar aqui esperando, eu preciso sair, também!...

- Fica com essa chave.

- Mas, que horas você volta? Espera um pouco mais, essa Paula, ela... Vai saber

que sou eu? Pai? Já foi embora. Agora fiquei aqui sozinho, na casa do meu pai.

Esperando uma mulher que costuma ser dele. Eu não quero fazer isso. Faz muito tempo

que estou sozinho aqui. É isso que eu sou então, um filho que sobrou na casa vazia do

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pai, esperando o retorno dele. Agora ela já chegou. Está examinando o meu corpo. Ela

puxou a minha camisa. Depois tirou a minha calça. Eu fiquei olhando. Eu não sei o que

fazer. Ela percorreu o meu corpo inteiro com a língua. Me deitou na cama, como se eu

fosse uma espécie de refeição dela. Ela degustou o meu corpo inteiro como se eu fosse

um frango, ela me mastiga. Ela poderia ser a minha mãe. Ela chupa os meus dedos do

pé, um por um, como se fossem as asinhas do frango. Ela geme e me mostra que tem

prazer com isso. Você está tendo prazer?

(tempo)

- O que significa isso, essa risada? Ela me deixou aqui deitado depois de ter me

degustado inteiro, começou a rir e saiu de cima de mim. Pegou bebidas no armário do

meu pai. Nós bebemos as bebidas. Ela conhece bem essa casa e lida com tudo com

naturalidade. Ela sabe o que fazer. Faz muitos dias que estamos aqui já. Aprendi

algumas coisas sobre viver aqui. Já sei me locomover pela casa no meio da noite,

quando está escuro. Aprendi que ela gosta que eu passe a língua de forma circular nos

mamilos. Ela me ensinou isso na verdade, me disse assim, "passa a língua assim nos

mamilos, roda a língua assim". Eu obedeci, e como resultado ela ficou gritando de

prazer. Ela é bem mais velha que eu, e tem uma barriguinha pequena, projetada para

frente. Comentei com ela que nunca tinha beijado uma mulher com uma barriga dessas.

- Meu útero tem cinquenta anos de idade. Já saíram dois seres humanos bebês

daqui de dentro.

- Mas então você tem filhos?

- Preciso dar uma saída rápida, volto em meia hora.

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- Tá bom. Ela sai e volta muitas vezes. Nem sempre ela dorme aqui. Me ligaram

do trabalho do meu pai. Ele não foi lá. Eles disseram que ele é empacotador lá. Eu fui

no lugar dele. Agora eu trabalho lá também. Mas vão me demitir hoje. Eu não sirvo para

o trabalho dele. Eu arrumo outro, eles disseram. Me deram um dinheiro pela demissão,

o pagamento pelo que trabalhei no mês. Agora eu tenho que achar um outro emprego.

Eles disseram que eu tenho que fazer uma coisa que exija menos das mãos. Eu disse que

vou tentar. Pelo menos eu tenho onde morar, eles disseram. Mas, eu não sei o que eu

estou fazendo nessa casa há mais de dois anos, vivendo com essa mulher que não é

minha, é do meu pai. Ela me diz que isso não importa mas muitas vezes eu já disse isso

para ela, que ela não é minha. Que mesmo essa casa não é minha. Nada disso é meu.

Nem eu mesmo sou meu. Eu disse isso para ela também.

- Como assim?

- Você está me controlando demais. Eu acho que é isso. Como se eu fosse seu.

Mas eu não sou. Eu não sou seu, nem meu! Eu só estou solto por aí, vagando de um

jeito estranho, por lugares que eu não conheço. Mas você está me guiando o tempo todo

ultimamente.

- Não consigo entender o que é isso que você está dizendo, Bruno.

- Você me indica os caminhos, sabe? Tudo o que eu faço passa por você antes.

Eu tenho a impressão de que isso é ruim.... Aí, às vezes eu tenho muito medo de você

sumir, porque eu só sei fazer as coisas que te agradam, e só sinto prazer quando eu te

agrado, sabe?

(tempo)

- O que você disse é a coisa mais estranha que eu já escutei.

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- Você precisa ir embora. Sabe? Você escutou isso? Eu não sei se você me

escuta quando eu digo isso. Você às vezes não escuta. Eu peço para você ir embora mas

muitas vezes não funciona, são palavras que não geram nada! Eu quero que você vá

embora. Você não escutou?

- Sim.

- Então?

- Eu não acredito que seja verdade. É mentira. Você me ama. Eu sinto isso aqui,

olha. Você não quer que eu vá embora.

- Mas eu quero que você vá embora... Porque eu preciso estar longe de você para

aprender umas coisas. O meu pai me deixou um monte de coisas, casa, mulher, mesmo

o meu corpo de certa forma foi ele que deixou para mim, de repente eu me dou conta

disso, ele deixou para mim mãos, pés, unhas, garganta, pinto. Mas não me ensinou

como usar nada disso!!! Eu olho para essas mãos aqui, que eu não sei para que

servem!... Estamos sentados comendo, na mesa da sala. Tem um prato na minha frente.

Ela cozinhou uns peixes. Tem um peixe em cima do meu prato. O meu papel agora é

comer esse peixe aqui. Pegar um pedaço dele com a ponta do garfo. Colocar dentro da

boca. Mastigar, engolir, digerir... Esse tipo de coisa. Estou comendo o peixe que você

cozinhou.

- Gostou? É para você gostar. Gosto de te alimentar de todas as formas

possíveis. Eu te amo.

(tempo)

- Obrigado. Você não vai mais comer? Por que você está vindo aqui? Por que

está ajoelhada aí? Ela abriu a minha calça e agora me puxa para fora de mim, pelo pinto,

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colocando ele na boca. Ela me mostra como eu ocupo espaço dentro dela, faz isso

sempre. Ela me mostra o quanto eu existo realmente, porque senão às vezes eu acho que

eu poderia ficar em dúvida. Já que realmente a única coisa que me dá algum tipo de

certeza é a presença dessa mulher. Já faz mais de dois que é assim. Hoje ela disse que

vai embora. Como assim, vai embora? Eu já pedi muitas vezes para ela sair, mas ela não

saiu quando eu pedia. Achei que ela não iria mais e aprendi a aceitar. Eu ia morrer com

ela aqui. Mas agora ela disse que vai embora. Por quê?

- Eu preciso ir.

- Por quê?

- Cansei.

- Por quê?

- Cansei de você.

- Por quê? Você precisa me dizer o que eu fiz de ruim!... Eu preciso saber dessas

coisas, vai ser um aprendizado para mim...

- Você não fez nada de errado. Eu me cansei de você, mesmo. Do seu jeito,

sabe?

- Mas por quê??

- É um jeito chato e repetitivo. Eu preciso de um homem de verdade.

- Por quê? Um homem de verdade? O que é repetitivo em mim?

- Ele está chegando para me pegar.

- Ele??

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- É. O Júlio. Você não precisa ficar andando de um lado para o outro assim pelo

apartamento, só porque eu estou dizendo que vou embora. Aceite isso. Ele foi ao

banheiro agora e me deixou um pouco sozinha aqui, o que é um alívio. Ele fica o tempo

todo em volta de mim, agarrado, mesmo até sem perceber que está fazendo isso. Eu

gostava dele. Mas depois começou a ficar cansativo, porque eu gosto de ter liberdade

própria. No fundo ele é muito dominador, me demanda demais. Você me força a ser

sua, não pela força, mas pela necessidade. O que é ainda pior. Olha aí, já voltou do

banheiro, não precisa ficar com a cara vermelha de chorar. Estava chorando?

- É. Fiquei chorando e olhando para o reflexo da minha cara no espelho, vendo

as lágrimas brotarem de dentro dos meus olhos, dos cantos dos meus olhos.

(tempo)

- ...o que é um homem de verdade?

- Você vai ver. Ele está vindo para cá. Eu já estou tendo relações com ele há

muito tempo, porque é melhor para mim ficar com ele do que ficar aqui com você.

- Por quê?

- Porque não dá para responder. Por isso!

- Como assim.

- Ele já chegou. Está aqui. Olha para ele. Vê se você entende. O nome dele é

Júlio.

- Júlio? Você veio buscar essa mulher?

- Vim.

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- Ela morava comigo até agora!

- Paula, vai pro carro e espera lá. O que você disse?

- Essa mulher aí! Ela morava aqui comigo, eu não sei como eu vou fazer agora.

- É, eu sei. Agora ela é minha. Vou usar bastante.

- Como você fez para conseguir levar ela embora?

- Eu sou um homem de verdade. Não sou um imbecil sem vida própria.

- Como é isso?

- Cala a boca.

- Não, é sério, eu quero saber...

- Cala a boca mesmo. Sabe por quê? Porque eu estou mandando. Eu sou o

homem de verdade aqui. Eu sei chegar e dizer assim: "Vem cá. Pega aqui. Senta aqui.

Vira. Abre a boca. Vira de costas. Não mexe. Fica parada. Levanta. Anda até ali."

Coisas assim. Entendeu? Sou homem de verdade. Ela gosta porque onde eu estou eu

boto ordem.

- Mas como você sabe se ela vai gostar?

- O que eu gosto, eu vou lá e faço. Pego as coisas que eu quero para mim. Vou

até as coisas e pego elas para mim. Coisas, pessoas. Agora você não pode mais falar.

- Por quê? Eu queria ir com vocês.

- Porque se você não ficar quieto eu vou quebrar a sua cara. Sabe como quebra

uma cara que nem a sua? Eu cato você assim e arregaço com a sua cara. É isso que eu

faço com você. Quer?

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- Não. Acho que não.

- Então é por isso que eu mando em você. Quer ver?

- Quero.

- Espera. Olha. Pega aqui. Pode pegar. Agora mexe a mão. Deixa eu abrir o zíper

e colocar ele para fora. Olha pra ele. Abre a boca. Fica com a boca aberta. Fica parado

assim mesmo. Olha o que eu faço. Olha o que eu faço. Viu? Eu enfio ele na sua boca e

tiro. Enfio de novo. Sentiu? Está sentindo? Viu o que eu faço? Não se mexe não. Agora

eu vou tirar. Viu como eu faço? E você fica quieto. Você faz o que eu mando.

(tempo)

- Espera. Você vai embora? Ele foi embora. Ele organizou o lar aqui um pouco.

Mandou em mim. Enfiou o pinto na minha boca aberta. Ele sabe como dominar um

lugar. Eu preciso aprender a fazer isso. Pelo jeito não é tão difícil assim. É só ordenar.

Dar umas ordens. Eu não sei quais são as ordens para serem dadas. Agora por exemplo.

O que é para se fazer?

(tempo)

- Não sei. Agora estou sem mulher aqui. Vivendo nessa casa que não é minha.

Com esse corpo que no fundo também não é meu. Esse corpo era dela, ela foi a última

dona dele. Agora ela deixou ele aqui, virou um tipo de resto. Faz muito tempo, mais de

um ano que eles foram embora, mas eu ainda lembro de tudo. Continuei vivo, andando,

comendo, dormindo. Conheci outras mulheres. Tenho a sensação de que naquela época

eu era mais completo. Minha vida continua acontecendo, mas eu não sei como. Sei que

eu tenho ido a alguns lugares, onde me dão dinheiro em troca das coisas que eu faço ali.

Empilho coisas, lavo talheres. Outro dia uma dessas mulheres que eu conheci veio aqui

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e disse "você vai ser pai". Ela ficou grávida do meu pinto. A sua barriga já está grande e

ela veio morar aqui. A barriga está crescendo mais. Vai nascer uma pessoa de dentro

dela. Um tipo de pessoa. Que nem eu, por exemplo. Ela fica o dia inteiro jogada na

cama. Eu não sei o que fazer com isso. Quando vai nascer?

- Não dá para saber. Acho que hoje.

- Hoje?

- É. Talvez agora.

- Então a gente precisa ir para o hospital de novo. Vamos para o hospital.

Ficamos aqui no hospital algum tempo já, esperando para nascer. Eu estou na sala de

espera. Ele nasceu. Estou com o bebê no colo. É pequeno, e vivo. Ele fica com os olhos

abertos. Ele olha em volta. Olha para a minha cara. De repente eu me transformei nisso.

Em um pai. Ele é muito pequeno. É muito ruim ser pequeno assim, e sem nenhuma

capacidade de sobreviver sozinho. Com medo de tudo. Eu sei o que é isso. Pai? O que

você veio fazer aqui?

- Ver o seu filho.

- Você quer ver ele?

- Quero.

- É esse aqui.

(tempo)

- Pode pegar.

- Posso?

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- Pode.

- Mas ele é muito pequeno.

- Acabou de sair.

- Se eu pegar pode ser que quebre.

- Não pode apertar muito.

- Prefiro não pegar. Mas ele está bem? Está respirando?

- Está.

(tempo)

- Onde está a mãe dele?

- Não sei. Em algum lugar por aí. Numa sala. Deixaram o bebê comigo.

- Não tem ninguém para olhar o bebê nesse hospital inteiro? Que absurdo! É isso

que se faz com a população. Cospe na cara dos desgraçados. Larga o bebê na mão do

pai, sem ter nem o que dar para ele.

- Não, está tudo bem. É bem leve até.

- Ele pode morrer de fome em muito pouco tempo.

- Acho que não. Ele não está com fome. Eu sei como ele está se sentindo.

- Eu também me sinto assim.

(tempo)

- Assim, como?

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(tempo)

- Olha como ele move os olhos. Está vendo? Ele move os olhos em volta. Não se

fixa em nada. Ele não consegue manter o olhar parado em lugar nenhum, porque não

tem onde se apoiar. Ele se sente assim, solto, vagando, boiando em um espaço

totalmente estranho e disforme. É só um resto de uma outra pessoa, um pedaço de um

outro, expelido para fora, que sobrou e não tem como se apoiar em nada que ele mesmo

sustente. Sabe?

(tempo)

- Nossa. Você se sente assim?

- Você não?

- É horrível.

- Eu me sinto assim desde essa época.

(tempo)

- Nossa. Deve ser muito angustiante.

- É.

- O que eu deveria ter feito para evitar isso em você?

- Não sei. Alguma coisa que você não fez. Eu também não vou saber fazer. Nem

sempre é possível dar as ordens corretas. Não sei quais são as ordens. Você também não

sabe, né? Onde você vai?

- Preciso dar uma saída, já volto.

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- Normalmente quando você sai assim você só volta depois de muitos anos. É

isso que você vai fazer dessa vez? Já saiu. Agora somos só nós dois de novo. Não sei o

que nós dois podemos fazer. Do que você precisa? Do que eu preciso? Do que o mundo

precisa? Você tem essas respostas?... A mãe dele já veio aqui, e fomos para casa. Ela

colocou a pequena boca dele no peito dela. O que você está fazendo?

- Dando o peito para ele.

- Não faz isso tanto!

- Por quê?

- Faz mal para ele, olha como ele acha que fica feliz!

- Então! Por que você não gosta de ver?

- Não gosto de ver isso. Não gosto! Ele vai ficar muito, muito triste depois! Isso

vai acabar matando ele, essa ilusão de felicidade, que depois vai acabar, e ele vai ficar

decepcionado, deprimido, querer se matar e tudo o mais. Eu saio do quarto e venho para

a sala. As paredes estão muito mal pintadas. Nunca tinha me dado conta disso. São

beges. Eu nunca tinha reparado, mas elas realmente são horríveis. Elas me incomodam.

Muitas coisas de repente estão me mostrando que me fazem mal. O apartamento inteiro

parece nunca ter sido pensado para que morassem nele. O sofá fica no meio da sala, a

janela sempre esteve fechada e uma outra janela pequena tem os vidros quase brancos

de tanto tempo sem limpar. Vou pintar essas paredes pelo menos. Esse sofá está mal

posicionado. Desloco o sofá para o outro lado. Aqui fica melhor. Volto para o quarto.

Eles estão dormindo. Eu prefiro assim. Mas ainda me incomodo com a presença dessa

mulher. É feia. É ruim. O seu corpo é torto, e muito mole. É muito ruim olhar para ela.

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Tem um barulho na sala, vou ver o que é. É o meu pai que acabou de entrar pela porta

da sala.

- Eu voltei.

- Você está colocando uma mala no chão da sala?

- Oi?

- Quando eu vi esse gesto seu, de colocar a mala no chão, senti um desgosto que

me embrulhou o estômago. Isso também é claramente algo de ruim para mim. Está

dando para perceber isso neste momento. Não coloque essa mala aí. Ela fica melhor ali.

- Onde?

- Aqui também está ruim. Ela está boa aqui. Do lado de fora do apartamento.

Depois dessa porta, pode deixar em qualquer lugar, para mim fica melhor.

- Você está me expulsando?

(tempo)

- Não. Não vem para cá também. É bem pior para mim quando você vem. Fica

aí. Para mim é melhor. Vou fechar a porta. Com licença.

(tempo)

- O que você está fazendo? Ai.

- Dá licença.

- É bem pior quando você entra aqui.

- Eu sou seu pai.

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- É.

(tempo)

- Vai um pouco mais para fora. Por favor.

- Eu vim morar aqui. Essa casa é minha.

- É ruim você aqui. É ruim para mim.

- Nunca pensei que fosse escutar isso de você. Eu te dei tudo o que eu pude. Não

sei o que aconteceu que você agora ficou assim. Mas você pelo jeito não quer que eu

fique por perto.

- Nesse momento eu estou sentindo isso realmente. Estou sentindo com clareza

aqui dentro de mim: é ruim que você fique por perto.

- Sinto muito, filho. Agora chegou a sua vez de cuidar do seu pai. O seu pai

agora é um senhor, filho. E ele precisa de ajuda.

- Não consigo entender o que você fala.

- O quê?

- Você fala umas coisas que não dá para entender. Eu só consigo ficar pensando

em formas de você sair daqui.

- Eu tenho que morar aqui. Você precisa me deixar morar aqui. Essa casa é

minha.

- Você precisa ir embora. Mas você não vai. Vai ficar aqui. Dormindo na sala

por muitos dias, meses. É concretamente uma herança indesejada. Agora ela já parou

faz alguns meses de ficar dando o peito para meu filho sugar. Ela parou inclusive de ter

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qualquer tipo de contato com o meu filho. E agora está dormindo o tempo todo lá dentro

do quarto, enfiada na cama. Com o passar dos meses, o meu filho foi parando de

chorar. Eu explico para ele com cuidado “filho, não chore, a vida é muito ruim mesmo,

em geral, você tem toda razão de se sentir desta forma, mas não adianta chorar”. Agora

ele desistiu de chorar. Às vezes eu entro no quarto para olhar para a mãe dele e ver a

desgraça da situação dela. Eu acho ela feia e gosto de tratar ela mal. Você vai ficar até

quando deitada nesse quarto deprimida?

- Não sei.

- Normalmente você deveria levantar daí, fazer coisas, ir cuidar do seu filho.

- Não quero. Não quero fazer nada. Levantar dessa cama é algo de impensável

para mim. Faz muitas semanas que estou aqui. Se ninguém me trouxer nada para comer

eu vou morrer de vez. Eu era jovem, eu gostava de sexo, eu andava por aí, dançava nas

festas, conhecia pessoas. Mas de repente eu me tornei mãe e isso foi muito trabalhoso,

foi um trabalho infinito que sugou para fora de mim tudo o que eu tinha de vida em

menos de três semanas. Eu não quero mais contato com aquela criança que consome

tudo o que eu sou capaz de gerar e me mata aos poucos. Quando ele vem eu sempre

finjo que estou morta, porque quando ele vem eu morro um pouco mais, de medo e de

desgosto, por não ser o que eu deveria ser, por não ter nada em mim que eu possa dar

para ele. E então, eu fico agora enfiada nessa cama. Olhando para esse teto. Esse é o

meu horizonte. O pai do meu filho de vez em quando também vem até mim e fica me

olhando por muito tempo. Já voltou de novo aqui? Por que você não me mata logo?

- Por que isso ia me causar muitos problemas.

- Pare de me alimentar, que eu morro sozinha.

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- É? E nesse caso não teria problema?

- Não. Eu é que ia ter morrido.

- Mas pode ser que me culpem. Pode ser que digam, "você não alimentou ela

direito. Era uma pessoa doente. Você deixou ela morrer". Aí eu vou dizer, "mas ela me

pediu para deixar ela morrer sem comida". Mas eu não sei se isso vai servir como

resposta. Pode ser que eles digam assim, "você não poderia ter deixado ela morrer,

mesmo assim". Por que você não se mata sozinha?

- Não quero me matar. Me matar é muito diferente de morrer aos poucos, e por

culpa sua.

- Nossa, é muito desagradável quando eu escuto você falar. Principalmente se eu

deixo você concluir um raciocínio. Vou sair deste quarto. Pode ficar aqui. Vou

economizar ao máximo com você. Você vai continuar comendo sempre o que tiver de

mais barato, e que der menos trabalho para mim. Salsicha, batata... O que foi? Por que

você está rindo? Que foi?

- Fiz xixi.

- O quê?

- Fiz xixi. Tem que trocar os lençóis.

- Fez aí?

- Fiz. É para te dar trabalho. Para te lembrar que eu existo.

- Nossa, eu preciso sair daqui o quanto antes. Fique aí quieta que você acaba

secando. Eu não vou tocar nesses lençóis. Tem essa criança ali na sala. Eu cuido dessa

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criança. Você não, porque você não me causa nenhum tipo de vontade de cuidar. Você

me causa vontade de te matar.

(tempo)

- Na sala também é ruim. O meu pai está lá. Eu vou embora desse lugar aqui.

Você quer que eu leve ele junto?

(tempo)

- Você não se move. Você precisa me fazer um sinal corporal. Eu vou deixar a

criança então, embora eu tenha um pouco de pena dele. Mas depois passa, acho. Pelo

menos assim eu vou ter menos trabalho.

(tempo)

- Fala alguma coisa.

(tempo)

(tempo)

- Sua puta desgraçada. Você não vai responder nada? Você não quer nem saber,

é isso? O que é isso? Você está sorrindo? É isso mesmo? Tem um sorriso na tua cara? O

que você está fazendo agora? Quer que eu enfie o pinto aí? Já entendi o seu jogo. Tá

bom. Vamos lá então.

(tempo)

(tempo)

(tempo)

- Pronto. E agora? Está se sentindo melhor?

21
(tempo)

- POR QUE VOCÊ ESTÁ RINDO DE NOVO???

(tempo)

- Você me ama.

- O quê?

- Você me ama. Eu sei disso. Você um dia vai sofrer muito quando lembrar do

que me fez.

(tempo)

- É melhor eu sair daqui agora. Vou largar tudo aqui.

(tempo)

(tempo)

- Consegui alugar um quarto em uma pensão, depois de alguns meses. Você

ainda é uma criança pequena. Faz dois anos que parou de chorar de uma vez só e não

voltou. De vez em quando o meu filho fica pendurado na janela olhando para fora. A

mulher do quarto vizinho disse que poderia olhar o meu filho para eu poder trabalhar.

Vou te deixar no quarto vizinho. Você olha ele então? Ela faz que sim. Ela liga a

televisão. Ele senta na frente da televisão. Vou para o bar hoje, não vou trabalhar.

Aprendi a fazer isso quando saí da casa onde eu vivia. Passei a ficar em bares às vezes

por horas, quieto, olhando para a rua, sem pensar em nada. Uma mulher está do outro

lado do balcão, olhando para mim. Ela está vindo para cá. Tem alguma coisa nela que é

totalmente diferente de tudo o que eu já vi.

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- Oi? O que você disse?

- Você me enche de, me deixa cheio de uma coisa. De uma dor. De vontade de

me enfiar em você.

- É?

- É. Acho que é.

(tempo)

- Eu também estou com vontade disso.

- Não sei o que me deixa assim em você. É uma coisa totalmente diferente. Acho

que é isso aqui.

- O quê?

- Essa tinta azul aqui. Em cima do seu olho.

- Vamos para a minha casa.

- Eu não sei por que eu fiquei com tanta vontade de me enfiar em você.

- É porque eu sou gostosa.

- Mas você não é gostosa. Tem alguma coisa que dói!

- Deita aqui na minha cama.

- Aqui que você mora então? Você dorme aqui? Se veste aqui, assim? Você

acorda aqui todos os dias?...

- É. Deita aí.

- O que você está fazendo?


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- Tirando a roupa. Tira também.

(tempo)

- Por que você está me olhando? Por que você está nua, aqui na minha frente, me

olhando?

- Não sei se eu quero fazer sexo com você.

- Por que não?

- Porque ou vai ser muito bom, ou muito ruim.

- Eu estou com muita vontade. Eu tenho total certeza disso, sabe, eu modificaria

tudo, absolutamente tudo para poder continuar aqui o tempo todo, na sua frente, dentro

de você, o mais perto possível desse cheiro de cigarro com cerveja misturado.

- É?

- É. Me dói de tanta certeza que eu tenho, de que eu quero isso.

- Então tá. Vem.

(tempo)

(tempo)

(tempo)

(tempo)

(tempo)

(tempo)

- Foi muito bom.

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- O quê?...

- Eu tinha dito que ia ser muito bom ou muito ruim. Foi muito bom.

- Eu poderia não fazer mais nada, nunca mais. Só isso aqui. Respirar. Com a

cabeça aqui, com a nuca encostada na sua batata da perna, inteiramente mergulhado na

sua cama, boiando aqui, como se fosse uma piscina...

- Eu também.

- Então eu te dei prazer?

- Deu.

- Eu aprendi essas coisas com uma mulher que me ensinou. Pelo jeito não

funcionava só com ela.

- Você é um putinho de um go-go boy?

- Como assim?

- Putinho. Não me fala dessas coisas. Para mim, você não teve nenhuma outra

mulher na vida inteira. Vai embora agora. Não dá para você ficar aqui.

- Depois eu volto?

- É.Ele me beijou antes de sair. Ele pegou a minha nuca e mordeu a minha boca,

ficou ofegante, segurando os meus lábios entre os dentes, como se fosse a última boca

do mundo. Saio pela manhã, tomo café na padaria, fico o dia inteiro na rua. Não tomo

banho para não tirar o cheiro de sêmen. Deixo os restos dele no meu corpo e caminho

pela cidade. Volto para casa e me masturbo. Fico deitada mais um tempo. Ele veio de

novo aqui. De novo ficamos enfiados na cama. Prefiro mandar ele embora, para

25
encontrar de novo depois. De repente essa pessoa parece que ficou necessária e eu

espero ele voltar aqui no meu apartamento de novo todos os dias, como hoje, agora à

noite, depois do trabalho. Você tem que ir embora de novo.

- Eu sei. Eu preciso mesmo. O meu filho está me esperando.

- Você tem um filho? Eu quero ter um filho seu.

- É? Eu não sei o que isso significa. O que é querer ter um filho? O que é querer

ter um filho meu?

- Eu quero que você meta muito, até gozar dentro de mim e que isso gere um ser

humano que vai sair daqui de dentro para o mundo.

- Você quer isso?

- Quero. Quero muito. Agora.

- Eu gostei muito de escutar o que você disse. Eu fiquei com o pinto duro

escutando isso. Vamos fazer sexo de novo.

(tempo)

(tempo)

(tempo)

- Pronto. Agora vai. Você precisa ir.

- Eu preciso ir por causa do meu filho. Saio do apartamento dela e fecho a porta.

Fico parado na frente da porta. É como se aqui dentro, atrás dessa porta, ficasse

guardada uma fonte, um tipo de usina, um depósito de energia armazenada. Vou para

casa revigorado e pego o meu filho na vizinha. Nós comemos, dormimos, no dia

26
seguinte eu trabalho. Ele vai para a escola, e assim por diante, há muito tempo isso vem

se repetindo, e eu encontrando a Júlia. Trabalho em uns bicos enquanto isso. O meu

filho cresce mensalmente alguns centímetros. A Julia não quer que eu vá morar lá. Eu

levaria o meu filho comigo e moraria lá com ela hoje mesmo. Eu já tentei diversas vezes

mas ela me impediu. Já deve fazer dois anos que eu vou e volto na casa dessa mulher.

Eu não sei mais viver sem ela. O que foi? Por que você está olhando para a minha cara?

- Estou grávida.

- Oi?

- É... Que foi?

- Nada.

(tempo)

- Você está grávida?

- É. Estou.

- Vai nascer uma pessoa daí de dentro. Um bebê?? Daqui a pouco vai existir esse

bebê, e ele vai ser um filho meu...

- É.

(tempo)

- O que você está fazendo, Bruno?

- Eu preciso ir embora.

- Você vai embora?

27
- Eu vou embora.

- Como assim Bruno?

- Eu fui embora dali e fiquei tentando me distanciar dela. Foi uma sensação clara

e inevitável de não querer ver o corpo dela se deformar e de não querer ver o ser

humano sair de dentro dela e sugar tudo o que ela tem. Depois de alguns meses decidi

encontrá-la de novo. Pode até ser que o bebê tenha morrido, que ela esteja como antes.

O cara do bar disse que ela foi para o interior. Ele me deu o endereço dela. Um dia eu

vou lá. Fico muito tempo tentando me organizar para isso. De repente percebo que se a

criança tiver nascido ela já deve estar andando. Decido ir para o interior. A vizinha vai

ficar com o meu filho. Bato palmas na frente do portão. Surgiu uma criança pequena.

Um bebê que caminha. Oi, Julia.

- Oi, Bruno.

(tempo)

(tempo)

- Nossa. ...como ele está?...

- Assim.

- ...está comendo bem?

(tempo)

- Come.

(tempo)

- Está grande. Ele está um pouco calmo.

28
- É. Está tranquilo.

- Como se a vida não fosse assim tão assustadora.

(tempo)

(tempo)

- Onde ele vai?

- Ah, vem cá. Olha, ele adora esses passarinhos.

- Que passarinhos?

- Está vendo os filhotinhos?

(tempo)

- É estranho ver isso.

- Não são bonitinhos?

- Não sei. São filhotes.

- Bruno, isso é uma coisa maravilhosa para ele! Imagina que ele ia poder ter isso

na cidade?

(tempo)

- Na verdade eu não acho bonitinhos. Você fica mostrando isso para ele?

- Claro que eu mostro, ele adora! Quer ver? Filho. Filhinho, onde estão os

passarinhos?... ...viu? Ele sabe!...

- Eu acho que você não devia ficar mostrando essas coisas.

29
- Mas é lindo, é a vida crescendo...

- Para mim não é nem um pouco agradável olhar para isso. Eles pedem comida o

tempo todo. Eles tem uma pelinha rosa, meio transparente, uma coisa estranha que dá

para ver o corpo deles por dentro um pouco... Onde está a mãe deles?

- Ela está por aqui em algum lugar.

- Se ela tem algum problema, eles morrem sozinhos aí.

(tempo)

- Outro dia entrou um cara aqui.Um ladrão... pela janela do quarto do Julio, eu

estava no outro quarto.

- Júlio?

- Ele pegou a minha máquina fotográfica e mais algumas coisas, e tal.

- O cara invadiu a casa? Pela janela do... Julio??

- É. Mas não fez nada. Como eu fiquei quieta, ele foi tranquilo. Mas não tem o

que fazer. Eu moro aqui sozinha. Imagina, só uma mulher e o filhinho, eles sabem que é

fácil roubar.

(tempo)

- Você quer que eu fique?

- Como assim?

- Para ajudar! Eu cuido de vocês.

- Não. Você pode vir para ver ele se quiser. Mas não vai ficar aqui.

30
- Nossa. Estou com o pinto duro.

- Ah. Agora pode ir embora.

- É?

- É. Vai.

- Mas eu achei que a gente pudesse transar talvez. Você continua me dando

vontade de transar com você. Eu lembro muito disso. É muito bom sentir o seu cheiro

de novo.

- Bruno, sai daqui.

- Nossa. Nunca fui expulso assim.

- Então olha bem para a minha cara e tenta escutar cada palavra que eu estou te

dizendo. Vai embora. Se você insistir de alguma maneira em ficar, eu vou chamar a

polícia. Aí eles vem aqui, te pegam e te impedem mesmo, fisicamente. Sabe como é,

coerção física mesmo?

- Mas eu tenho um vínculo aqui.

- O vínculo está sendo cortado agora. Na verdade faz tempo que ele se desfez

completamente mas de alguma forma se manteve dentro da sua cabecinha. Agora ele

está sendo cortado dentro da sua cabecinha também

- Essa criança vai ficar sem pai.

- Pode ser que sim. A não ser que eu passe a viver com outra pessoa.

- Nossa. Eu estou sentindo a pior dor de toda a minha vida. Por favor, fala de

novo isso que você disse? Para eu sentir direito.

31
- Pode ser que eu viva com outro homem aqui. E ele vai ser o pai do menino. E

esse homem não pode ser você de forma alguma.

- É como se você enfiasse uma tesoura aberta dentro da minha barriga, fechasse

as lâminas, cortando alguns órgãos, e depois torcesse a tesoura, dando um nó. Então eu

vou embora assim? É isso que eu faço. Não existe vínculo. Nem mesmo dentro da

minha cabecinha pequena e mole. Eu volto para a pensão onde vivo com o meu filho,

durmo, acordo, me alimento. Repito isso muitas vezes e nada no meu interior se

transforma. Voltei a trabalhar mas é como se eu não tivesse voltado. Eu me lembro

todos os dias daquela mulher. O meu filho está sentado no chão comendo um pedaço de

pão. O meu emprego está muito melhor do que antes. Fiz um curso de inglês e trabalho

no aeroporto. Acho que o meu filho está utilizando drogas. Eu não sei se eu quero saber

sobre isso, mas de alguma forma eu sinto que deveria perguntar. Você está usando

drogas?

- Eu?

- É.

- Por que a pergunta?

- Por causa da sua cara. Você está com cara de drogado. Você só fica olhando

para os lados, nunca olha ninguém nos olhos.

- Estou. Eu uso algumas drogas.

(tempo)

- Eu não sei o que fazer com essa informação, agora... Eu, enquanto seu pai. Não

tenho a menor ideia do que eu devo fazer. O que eu devo fazer? Você não pode fazer

32
isso, acho, usar drogas... Não é permitido... Sabe? É ruim para você, é melhor você não

fazer isso, entendeu?... A vizinha sabe?

- Não. A dona Ivete?

- Você se droga na casa dela? Isso é proibido por lei!

- Não uso drogas lá, pai. Nunca usei.

- É uma coisa que não pode ser feita.

- É.

- Então. Isso significa que você pode ser preso.

- Posso.

- Por que você está querendo ser preso?

- Eu não estou querendo ser preso.

- Você pode ser preso. Para de usar drogas entendeu? Acho que é isso que você

precisa fazer. É isso que eu te digo nesse caso.

- Tá. Parei, então. Saio. Vou encontrar algumas pessoas.Fico aqui na ruasem

fazer nada, olhando as pessoas na praça, pulando com os skates no concreto. Eu começo

a cheirar um saco de cola que chegou na minha mão. Tem um riso saindo de mim. Eu

não tenho poder sobre esse riso. Tenho a sensação de que estou rindo há muitos

minutos. Caí no chão agora, sinto a pele da minha cara roçando no cimento do chão.

Daqui a pouco eu preciso me levantar desse cimento. Vejo a cara do Pedrinho me

olhando. Ele me entregou uns saquinhos que eu vou vender. Comecei a passar umas

drogas também há um tempo, como uma maneira provar para o meu pai que eu consigo

33
encher o meu cu de grana rapidinho, enquanto ele fica fazendo um monte de merda e

não consegue nada, porque ele é cuzão pra caralho. Eu não, eu pego e corro o risco, eu

sei que eu posso me fuder, mas eu vou ficar esperto e vou encher o meu cu de grana e

sair daquela merda, vou morar em um apartamento foda, ter grana. Eu fico indo até o

apartamento onde eu moro com ele, olho para o meu pai com uma superioridade secreta.

Ele não sabe como eu estou começando a ganhar grana pra caralho já. Ele fica me

olhando.

- O que você está olhando pai?

- Nada. Eu fico pensando. Lembrando de umas coisas.

- Que coisas?

- É sobre um outro filho que eu tenho, com uma mulher. Essa mulher ficou

marcada aqui dentro da minha cabeça.

- Ah, é só parar de pensar.Vai fazer outra coisa.

- É, né? Vou mais cedo para o trabalho. Qual é o meu trabalho? Receber as

pessoas, sorrir, não devolver os xingamentos. Chamar o superior da seção. Estou há

muito tempo trabalhando aqui. Mais de dois anos. Hoje o aeroporto está cheio. Algumas

velhas me chamam de lerdo. Porque eu demoro para olhar as informações dos

documentos que elas me entregam. Normalmente é a última coisa que elas dizem.

"Lerdo", "Tonto", coisas assim. Na verdade é bom trabalhar aqui. Isso acaba virando

uma distração, mesmo. O meu filho tem toda a razão quando ele me manda fazer coisas.

Já faz muitos meses que eu parei quase totalmente de pensar o dia inteiro naquela

mulher. Aqui eu sei o que eu tenho que fazer. Não tenho nenhuma dúvida. Não fico com

medo de errar. É só fazer as coisas que tem para serem feitas. Tarefas. Eu gosto muito

34
de tarefas. Eu cuido bem do que eu faço. Um chefe deve saber reconhecer isso. Na

verdade o meu chefe não reconheceu isso e me demitiu ontem. Eu estava muito

desatento, ele disse. Agora eu não sei para onde ir de novo. Trabalhei um pouco de

garçom, alguns meses, mas me disseram que eu não era bom o bastante para aquele

estabelecimento. Continuei arrumando bicos. Continuo lembrando da mulher de vez em

quando. Ontem me deu a ideia de tentar esquecê-la por meio de outra mulher. Por meio

da mãe do meu primeiro filho.

- Você envelheceu. Continua jogada aí? Não está um pouco louca? Não

responde mais nada? Onde está o meu pai? Posso meter o pinto em você? É porque eu

encontrei uma mulher que eu realmente amei, mas ela me impediu de estar com ela,

então, eu pensei em tentar esquecê-la por meio do sexo com você.

(tempo)

- Isso significa que sim? Não tem nada de engraçado aqui.

(tempo)

- É para eu meter então?

(tempo)

(tempo)

(tempo)

(tempo)

- Obrigado. Na verdade não adiantou nada. Caminho pela cidade e não estou

nem um pouco melhor, continuo pensando na Julia, mas o meu pinto desaguou um

pouco. Volto para casa, trabalho, como, durmo. Agora o meu filho começou a ajudar a

35
comprar coisas para a casa. Continuo arrumando trabalhos e vivendo, por vários meses,

e a impressão que eu tenho é que as coisas estão finalmente se organizando de alguma

forma. Eu quase nunca lembro da Julia e vivo por aí fazendo coisas. De repente me vem

a ideia de levar o meu filho até a casa do meu pai. Eu li em uma revista que a tradição

familiar é muito importante para as pessoas. A porta da sala está entreaberta, o meu

filho se senta automaticamente no sofá e eu entro no quarto.

- ...mas ela vai morrer de fome desse jeito.

- O que você está fazendo, pai?

- Bruno? Por onde você entrou?

- O que ela tem?

- Talvez morra daqui a pouco. Mas a criança precisa de leite!

- Criança?

- O bebê.

- Que bebê é esse??

- Nasceu ontem. No hospital. Puxaram esse corpo para fora dela e deram pra

mim. Mas eu pedi para colocar ali. Eu acho que vai morrer, se já não estiver morta.

- Morta?

- É. Ela também.

- De quem é esse filho?

- É sua, Bruno.

36
- Minha? Como você conseguiu engravidar e ter uma filha? Você não morreu

ainda

- Pega ela. Precisa dar leite. Senão vai morrer em pouquíssimo tempo.

- Ela está toda suja.

- Cuida dela. Eu não consigo.

- Você engravidou de novo?

- É.

- Tipo, ficou grávida e tudo? E teve uma filhinha? Quando você fez isso?

- Quase o último ano inteiro.

- Faz tanto tempo assim?

(tempo)

- E como vocês estão sobrevivendo.

- O seu pai foi um anjo. Ele me dá um pouco de comida quando eu tenho fome.

- Não teve outro jeito, filho.

- Que coisa horrível. É muito ruim para mim fazer parte disso tudo aqui. Eu

odeio estar aqui com vocês dois. Esse bebê está praticamente morto. Ela não chora

porque já desistiu.

- Ela chorou muito de ontem para hoje. Mas eu não peguei. Eu tenho medo de

fazer mal.

- Pai, você precisa morrer.

37
- Eu não vou morrer ainda, filho.

- Isso é muito ruim. Fiquem dentro desse quarto. Vou levar ela para fora. Olhe

para a sua irmã, filho.

- Não sabia que eu tinha uma irmã.

- Eu também não sabia. Eu não sei o que isso significa.

- Significa que tem que dar comida.

(tempo)

- É. Isso. Pega alguma coisa na geladeira.

(tempo)

- Tem leite.

- Pega isso. Vamos dar leite para esse bebezinho. Quem está aí? Veja na porta.

(tempo)

- Uma velha.

- Com licença. É a casa do Bruno?

- É. Ele está ali com a minha irmã.

- Com a sua irmã?

- É.

(tempo)

- Oi, Bruno.

38
- Oi mãe.

(tempo)

- Que bebê é esse?

- É uma filha minha.

- Onde você esteve esse tempo todo?

- Não sei, mãe. Eu não saberia contar. Mas eu fiquei trabalhando, tendo filhos,

coisas assim.

- Você está bem.

- Não sei direito. Foram muitas coisas.

- Bom, o que importa é que... Você está com saúde. Não está?

- Eu tenho saúde, mãe.

- Você vai dar leite para ela? Onde está a mãe dela?

- Está morrendo. Ali.

- Ela está doente? Que coisa horrível!!

- Ela está morrendo há muito tempo. Há vários anos. Desde que ela teve o outro

filho. Ele.

- Eu.

- Ele é seu filho também?

- É. É um menino. Mais velho. Tem uns quinze anos já.

39
- Dezesseis.

- E o seu pai?

- Está ali dentro também.

(tempo)

- Pode entrar aí mãe. Por mim pode ficar aí dentro se quiser.

(tempo)

- Essa é a minha avó?

- É. Ela é minha mãe.

- Ela é velha.

(tempo)

- É. Ela é bem velha, mesmo.

(tempo)

- Vamos dar o leite. Me dá uma colherinha.

- Pai, eu não quero ajudar nisso. Vou sair.

- Então sai.

(tempo)

- Você consegue tomar isso aqui? Se você não comer nada, você vai morrer bem

rápido. Você quer viver? Ou para você morrer é tranquilo?

(tempo)

40
- Pode ser que você esteja em dúvida, se é melhor se manter viva, ou não. Eu

também tenho essa dúvida.

(tempo)

- Ela estava com fome.

- Não tinha visto que você estava aí, mãe.

- Eu fiquei algum tempo aqui. Observando você alimentar a minha neta. Você é

um ótimo pai.

- Eu abandonei um dos meus filhos.

- Não é culpa sua.

(tempo)

- Dentro do quarto está escuro. O seu pai está deitado ao lado daquela mulher,

acariciando a cabeça dela. Eu acho que ele deve ter penetrado ela.

- É?

- Pelo jeito como eles estavam deitados acho que sim.

- Mas então essa filha deve ser dele.

- Deve ser.

- Mas eles iam deixar ela morrer.

- Isso seria problema deles. Você pode levar ela de volta lá para dentro e ir

embora.

- Você está me aconselhando a deixar ela morrer ali dentro, com eles?

41
- Assim você não precisa cuidar para o resto da vida de mais um bebê, alimentá-

la para sempre, limitar tanto as possibilidades da sua vida.

- Mas aí pode ser que ela morra ainda hoje.

- Não morre não. Um bebê como esses dura muito antes de morrer por conta

própria. Mas isso não vai ser mais problema seu. Aproveita. Depois vai ficar impossível

se livrar.

(tempo)

- Mas se eu deixasse ela, estaria praticamente matando...

- Você estaria só devolvendo ela para os pais. Por enquanto você não é pai. É só

um irmão. Um meio irmão.

- Mãe, por que você está me dando esse conselho? Eu nunca esperaria isso de

você.

- Você precisa ser feliz.

- Eu?

- É. Eu vim atrás de você para isso, para te ver feliz. Quero voltar a morar aqui,

para te ajudar. Eu tenho um pouquinho de dinheiro guardado, que economizei da minha

aposentadoria. Você vai poder comprar algumas coisas que você quiser, passear, não

sei. Eu só quero poder ficar aqui para garantir que vai ficar tudo bem. Faz mais de vinte

anos que eu não te vejo. Sabia que eu ia te encontrar de novo, para poder te dar o

dinheiro. Coloquei nessa bolsa. Você pega isso vai embora. O seu primeiro filho já está

crescido, você pode deixar ele comigo, e essa filhinha não é sua, você deixa ela com a

mãe dela, pega esse dinheiro e vai ser feliz em qualquer lugar do mundo.

42
- Eu tenho ainda um outro filho.

- Outro? Onde ele está?

- A mãe desse outro filho não me deixou ficar lá.

- Por que ela não quis que você ficasse? Deve ser louca. Deixa ela para lá então.

Pega isso e vai. Pega. Por que você não está segurando a bolsa que eu estou te dando?

(tempo)

(tempo)

(tempo)

- Nossa. Também é muito ruim para mim quando você está por perto, mãe.

(tempo)

- O quê?

- Acabei de me lembrar totalmente a razão da minha vinda para cá há vários

anos. Estar perto de você chega a ser pior do que estar perto do meu pai.

- É para o seu bem, filho...

- ...mas você vai ficar com ela então?

(tempo)

- Não sei. Vou.

- Olha. Ela está com fome... Deixa que eu pego, filho.

- Não vai ser possível. Sai de perto de mim. Eu estou com muita vontade de te

atacar. De te causar dor física, mesmo. De pegar a sua cabeça e bater com ela no chão
43
até abrir um racho. Eu sei o que eu quero, agora. Isso ficou claro para mim de repente.

Eu quero te machucar.

- Mas o meu próprio filho! O que eu fiz?

(tempo)

- Você não é bem vinda aqui. Olha como eu faço, te empurro para fora da minha

casa. Está vendo?

- Estou.

- Tenta sentir bem mais forte. Agora eu estou me vingando mesmo, de tudo o

que você me fez de mal. Meu pai não me fez quase nada. Ele quase não esteve presente.

Então, ele me fez só um pouco de mal. Mas você me fez muita coisa. Muita coisa ruim.

- Que mal eu te fiz?

- Me amou o tempo todo.

(tempo)

- Você é a pessoa mais ingrata e cruel que eu já vi. Você não percebe tudo o que

eu te fiz, todo o sacrifício.

- Não era sacrifício. Euera só um instrumento do seu prazer de ser mãe.

(tempo)

(tempo)

(tempo)

(tempo)

44
- Você não vai ficar aqui, mãe.

- Vou. Olha como ela estava com sede. Agora está dormindo!...

- Sai daqui mãe. Vou te empurrar de novo até o lado de fora. Como se você

fosse uma pomba que fica voltando e eu preciso espantar. Fica aí. Do lado de fora. Vou

trancar a porta. Você agora está dormindo, digerindo o leite que tomou. Agora você não

vai mais morrer de fome. Vou deitar dormir também um pouco. Quem está aí? Que

horas são?

- Estou voltando para casa, pai. É madrugada agora. Aquela velha está aqui na

porta.

- A sua avó?

- É.

- Vamos mandar tirar.

- Mandar?

- É. A gente pode chamar a polícia.

- A polícia não vai tirar ela daqui. Ela é sua mãe!

- É, né?

(tempo)

- Vó. Sai daqui. O meu pai está pedindo isso. Você precisa ir embora. Se você

não for embora eu te mato com as minhas mãos, quebro todos os ossos da sua cabeça,

eu não tenho nenhum medo de fazer isso. Já matei um cachorro com um martelo. Eu

comecei a dar marteladas na cabeça do cachorro, até amassar o crânio totalmente. O

45
dono quase morreu também, sem conseguir respirar, porque a gente segurou ele e fez

com que ele assistisse tudo. Eu não tenho nenhum vínculo com você, e mesmo que eu

tivesse um vínculo com você eu não teria problema em te espancar até a morte.

- Bom, nesse caso então eu vou.

(tempo)

- Como você conseguiu isso?

- Eu falei com firmeza.

- Você sabe falar com firmeza? Com quem você aprendeu isso?

- Pai, eu preciso ir embora agora. Eu vou ser preso hoje.

- O que você fez?

- Vendi drogas. Encontraram um monte de cocaína comigo, que eu ia vender. Eu

estava enchendo o meu cu de grana. Ia tacar a grana na sua cara e te mostrar como você

é trouxa.

(tempo)

- Por que você fez isso?

- Era um jeito de tentar ganhar bastante dinheiro com rapidez.

- Você foi pego então? Não acredito! Eu sempre te disse isso!

- É. Eles me deixaram vir aqui para me despedir.

- Como eles te deixaram fazer isso?

- Eles confiaram em mim, porque eu olhei dentro dos olhos deles.

46
- Filho, você é muito estranho.

(tempo)

- Eu preciso ir. Tchau, pai. Fique cuidando dela.

- Tá. Eu vou ficar. Eu vou obedecer o meu próprio filho. Ele tem clareza das

coisas. Ele é um homem de verdade? Com quem ele aprendeu isso? Não tenho a mínima

ideia! O seu irmão foi embora. A sua mãe está dentro do quarto com o meu pai. Nós

estamos vivendo assim há anos. Eu nunca mais consegui sair daqui, porque estou

cuidando da criança e não tenho como pagar aluguel porque não consigo emprego fixo

nenhum. Estão enfiados no quarto. Eu fico por aqui, trabalho, deixo a menina na creche,

pego ela depois, estou trabalhando de forma passageira como cuidador de cavalos na

hípica. Eles disseram que eu faço isso bem. Estamos aqui eu e você, filha. Talvez o meu

pai já tenha morrido. Você agora já está andando. Eu saio para trabalhar e levo ela

comigo. Eu não sei mais de nada sobre o que tem dentro do quarto há mais de dois

meses. No fundo eu prefiro deixar mais algum tempo fechado, para que eles morram de

vez lá dentro. Não tem nenhum ruído vindo lá de dentro. Que barulho é esse na porta do

apartamento. Quem é você? Que máscara é essa?

- Sou eu, pai. Eu uso essa máscara agora.

- Você voltou? Saiu da prisão?

- Saí. Eles me soltaram.

- Quanto tempo passou?

- Alguns anos. Dá pra ver pelo tamanho dela. Ela já cresceu muito.

- É verdade.

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- Deixa eu sentar aí no sofá. Levanta daí para eu poder sentar, pai. Só mora você

aqui?

- Não. Tem o meu pai e a sua mãe. Eles ainda estão ali dentro. Não sei se ainda

estão.

- Você não olhou?

- Não.

- Então vai olhar.

- Não quero.

- Olha lá para dentro agora.

- Mas eu não estou querendo ver. Eu tenho medo de eles virem falar comigo.

Olha você.

- Eu não vou olhar. Olha lá. Você às vezes demora para entender o que deve ser

feito. Se precisa então eu te empurro. Vai lá para dentro. Se não der para ver direito abra

a janela.

- Está um cheiro horrível aqui!

- Entra assim mesmo! Não perguntei sobre o cheiro, he, he!... Você é engraçado

pai! Fica fazendo uns comentários, né? Não entendo essas coisas que você fala só por

falar. Ele faz isso bastante. Na cadeia também tinha uns caras assim. Eles faziam isso

por medo. Agora, se o cara ficava com medo demais a gente enrolava ele no cobertor e

enfiava várias facadas nele por todos os lados. Depois, dá para arrancar a cabeça. Fica

parecendo um... Um peixe morto, sabe? Por que você está com essa cara.

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- Eles já estão podres lá dentro. Umas partes estão pretas, de tantas moscas.

- Então o melhor é enrolar em uns plásticos. Enrola lá que depois eu tiro daqui,

limpo tudo de uma vez.

- Como assim, "tudo de uma vez"?

- Ué. Tudo. Limpo tudo de uma vez, entendeu? He, he, você parece que não

entende o que eu falo, pai! Que engraçado isso... Enrola eles em uns sacos por enquanto.

(tempo)

(tempo)

- E como foi na cadeia?

- Muito ruim.

- Não teve nenhum aprendizado para você?

- Não.

- Deve ter pessoas boas lá dentro.

- É todo o mundo ruim. Você nunca devia ter me deixado cair lá.

- Mas eu avisei, só que não adiantava.

- Esse é o seu problema. Nada do que você faz adianta. Você continua sendo um

mal.

- Um mal?

- É. Terminou de ensacar?

- Eu fiz o que pude.


49
- Você sempre faz o que pode. Vamos lá.

- Onde?

- Vamos entrar no quarto também. Eu vou te matar lá.

- Me matar?

- É. Para ficar com o apartamento para mim. E porque eu quero te matar mesmo.

- Espera, mas você quer me matar, só que você não pode fazer isso!...

- Tá. Deita aí.

- Por que você quer me matar? Eu vou embora, você fica com a casa.

- Não. É melhor te matar. Por tudo o que você representa.

- Mas o que eu represento?

(tempo)

- Muita coisa. Não dá para dizer.

- Eu não sabia que eu representava essas coisas.

- É. Mas não faz nenhuma diferença você saber ou não. De qualquer forma você

representa. Daqui a pouco você vai estar morto, vai ser um corpo mole e sem vida.

(tempo)

- O que é isso.

- Trouxe da cadeia. É uma faca enferrujada e mal afiada. Olha. Olha isso que eu

estou fazendo com você, pai.

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- Espera! Quantos anos você tem mesmo?

- Dezenove. Olha aqui. Eu subo em cima de você, piso na sua cara e enfio a faca

na sua barriga, pai. Olha, olha isso! Vai, vai, vai, vai, vai!!!

(tempo)

- Você enfiou a faca em mim?

- É. Cinco vezes. Pelos lados aqui, que é para pegar em vários órgãos. Vai

morrer com toda a certeza em alguns segundos. Vem um pessoal mais tarde aqui.

Vamos zuar pra caramba com isso tudo. Com você também. Sabe como é? Aqui em

casa vai ser tudo liberado! Chega dessa merda.

- Não entendo. Como assim, liberado? O que não estava sendo liberado? Não

entendi direito o que aconteceu? E a sua irmã? Cadê ela?

- Está dormindo. Depois eu vejo o que eu faço com ela.

- Você cuida dela? Por favor.

- Não, cuidar eu não vou, com certeza. Vou vender acho.

- Por que você fez isso? Eu não entendo.

- Tudo bem. Para mim não é necessário que você entenda. Morre assim mesmo

sem entender. Espera um pouco.

- O que você está fazendo?

- Estou bebendo o seu sangue.

- Mas por quê?

51
- Pra provar que agora já era.

- Já era? Mas o que era?

- Tudo isso. Você. Acabou. Agora eu mando aqui de forma definitiva. Eu bebi o

seu sangue, e tudo o mais. Já era.

- Mas para que beber o sangue? É um tipo de um ritual?

- Não, é só para te mostrar mesmo. Olha. Estou bebendo o seu sangue. Você já

era, e eu, não. Eu faço o que eu quiser com você.

(tempo)

- Deixa eu ligar a câmera antes. Vou colocar a máscara de volta. Vou filmar isso

aqui pai, você morrendo e tal, e eu me aproveitando da situação para curtir, pra zuar

mesmo.

- Como assim? Por que você vai querer filmar agora?... E a sua irmã... Você

precisa... Não dá mais para... Espera... Que é isso?

- Isso aqui? É uma dança, sabe? Olha o que eu faço pai. Te matei e fico só na

dancinha. Com o pinto pra fora e tudo. Olha como o meu pinto é grande, pai! Tenta

abrir os olhos. Não consegue mais né? Já era! Não, espera, olha! Está indo agora! Olha

aqui. Está indo. Está indo... Foi?! ...foi de vez!... ...hum?...

(tempo)

(tempo)

(tempo)

(tempo)

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