Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
Dados editorais:
Edição:
Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais
Revista Direito e Práxis
Coordenação:
Carolina Alves Vestena
Organização:
Bruna Mariz Bataglia Ferreira
Isadora Lins
Nina Alencar Zur
Capa: Imagem, “A Cavalaria Vermelha”, de Kazimir Severinovich
Malevich – 1932 (licença em creative commons).
Rio de Janeiro, 2017
ISBN: 978-85-67551-11-1
3
A Revista Direito e Práxis, em parceria com o Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGDir-UERJ) e com o Instituto de
Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) — seção Rio de Janeiro, realizou o
Seminário “Direito e Revolução: 100 anos da revolução que transformou o mundo e sua
atualidade”, na Faculdade de Direito da UERJ, entre os dias 24 e 25 de outubro de 2017.
O objetivo do evento consistiu na criação de um espaço de debates acadêmicos em
torno dos 100 anos da Revolução Russa e a sua importância para o desenvolvimento da
história recente da humanidade, bem como para a compreensão dos fenômenos
políticos e jurídicos da atualidade.
Além das palestras centrais, foi realizada uma chamada de trabalhos com vistas
à congregação de pesquisas sobre a Revolução Russa, sobre movimentos contestatórios,
protestos, revoluções contemporâneas e seus impactos políticos e jurídicos, bem como
sobre a produção de conceitos e paradigmas analíticos deles decorrentes. A questão
central do evento foi: de que forma, hoje, produz-se e se organiza o contraponto ao
sistema capitalista, e em que medida a Revolução Russa é uma referência para esse
caminho de resistências?
Os grupos de trabalho foram divididos nas seguintes áreas temáticas: 1)
Revolução Russa, marxismo e forma jurídica; 2) Revoluções no centro e na periferia:
história dos movimentos sociais; 3) Movimentos contestatórios: protestos e
criminalização dos movimentos sociais; 4) Gênero, raça, classe: intersecção das lutas e
reprodução social; 5) Reforma e/ou revolução; 6) Lutas por direitos sociais e reforma
trabalhista. Ao todo, foram mais de 100 trabalhos submetidos, avaliados pela comissão
organizadora do evento, e distribuídos entre os grupos de trabalho. As apresentações
ocorreram nas tardes do evento e proporcionaram o diálogo entre os participantes,
comissão organizadora e parceiros. Após as apresentações, os trabalhos foram reunidos
para a composição dos anais.
O evento também contou com três mesas de debate compostas por
pesquisadoras e pesquisadores nacionais e internacionais. A primeira, de abertura do
evento, foi intitulada “Acumulação Primitiva e Imperialismo” e contou com contribuições
de Klaus Dörre (Universidade Jena, Alemanha), Virgínia Fontes (UFF) e Esteban Torres
(Universidade de Córdoba, Argentina). A mesa foi moderada pelo professor Guilherme
Leite Gonçalves (UERJ), um dos organizadores do dossiê sobre a Revolução Russa,
publicado na Revista em setembro de 2017. A segunda mesa de debates ocorreu
também no primeiro dia, na parte da noite, e foi destinada, por sua vez, ao lançamento
do referido dossiê. A mesa foi moderada pelo professor Felipe Demier (UERJ), também
editor do dossiê temático, e contou com a participação da professora Fabiana Severi
(USP), uma das autoras do dossiê, dos debatedores Guilherme Leite Gonçalves e Carolina
Vestena (editora da Revista Direito e Práxis). Por fim, a mesa de encerramento ocorreu
no segundo dia do evento e teve como tema “O debate jurídico soviético: interpretação
histórica e leituras atuais”. O debate foi organizado em parceria com o GT de Direito e
Marxismo do IPDMS e contou com a participação de Ana Lia Almeida (UFPB), Moisés
Soares (UNISOCIESC) e Ricardo Pazello (UFPR), tendo sido moderada por Carolina
Vestena (Universidade de Kassel).
4
Sumário
APRESENTAÇÃO: A REVISTA DIREITO E PRÁXIS E O EVENTO 100 ANOS DA
REVOLUÇÃO RUSSA ........................................................................................... 3
1 DADOS GERAIS DO EVENTO ............................................................................ 8
2 APRESENTAÇÃO: INSTITUTO DE PESQUISA, DIREITOS E MOVIMENTOS SOCIAIS
(IPDMS) ............................................................................................................. 9
3 REGISTRO DOS DEBATES ............................................................................... 11
3.1 CONTINUANDO COM PACHUKANIS: POSSIBILIDADES ANALÍTICAS PARA O
SUJEITO DE DIREITO – ANA LIA DE ALMEIDA ....................................................... 11
3.2 OS IMPASSES ENTRE O MAXIMALISMO E O REFORMISMO JURÍDICO NO
BRASIL – MOISÉS ALVES SOARES .......................................................................... 14
3.3 PARA UMA TEORIA MARXISTA DO DIREITO DESDE (DA+NA) AMÉRICA
LATINA: PACHUKANIS, AQUI E AGORA – RICARDO PRESTES PAZELLO ................. 19
4 TABELA DE GTS ............................................................................................. 23
5 ARTIGOS E RESUMOS ................................................................................... 24
GT 01 – REVOLUÇÃO RUSSA, MARXISMO E FORMA JURÍDICA ......................... 24
ESTADO E REVOLUÇÃO NO SÉCULO XXI: O PROBLEMA DA VIOLÊNCIA POLÍTICA -
ALLAN M. HILLANI ................................................................................................ 24
O APROFUNDAMENTO DA LÓGICA DE VALORIZAÇÃO DO VALOR PELO
TRABALHO ABSTRATO ATRAVÉS DO PODER PUNITIVO NA REVOLUÇÃO RUSSA:
POSSÍVEIS DIÁLOGOS ENTRE A CRIMINOLOGIA MARXISTA E A TEORIA CRÍTICA DO
VALOR - ANDRÉ VAZ PORTO SILVA ....................................................................... 40
O SUJEITO DE DIREITO EM PACHUKANIS: ANÁLISE CRÍTICA SOBRE O INSTITUTO
E SUA IMPORTÂNCIA PARA A COMPREENSÃO DA REVOLUÇÃO RUSSA - JÚLIO
CÉSAR VILLELA DA MOTTA FILHO ......................................................................... 54
PARA UMA CRÍTICA EPISTEMOLÓGICA REVOLUCIONÁRIA: DA MITIFICAÇÃO DA
FORMA JURÍDICA - ROSÂNGELA LUNARDELLI CAVALLAZZI E VÍVIAN ALVES DE
ASSIS ..................................................................................................................... 69
FORMA JURÍDICA, MERCANTIL E POLÍTICO-ESTATAL: DA EXTINÇÃO À
TRANSIÇÃO DO ESTADO E DO DIREITO EM E. B. PACHUKANIS - GEOVANI
LEONARDO DORATIOTTO DA SILVA ..................................................................... 73
6
Programação
24 de outubro
9h: Abertura do evento com os editores da Revista Direito e Práxis e representantes do
IPDMS
10-12h: Mesa sobre "Acumulação Primitiva e Imperialismo"
Debate com Klaus Dörre (Universidade Jena, Alemanha), Virgínia Fontes (Universidade
Federal Fluminense) e Esteban Torres (Universidade de Córdoba, Argentina)
Moderação: Guilherme Leite Gonçalves (UERJ)
14-18h: Apresentação de trabalhos
19-21h: Debate de lançamento do dossiê da Revista Direito e Práxis sobre
a Revolução Russa com autoras e autores do dossiê
Moderação: Felipe Demier (UERJ)
25 de outubro
14-18h: Apresentação de trabalhos
19-21h: Mesa de fechamento sobre “O debate jurídico soviético: interpretação
histórica e leituras atuais”, organizada pelo GT de Direito e Marxismo do IPDMS com
Ana Lia Almeida (UFPB), Moisés Soares (UNISOCIESC), Ricardo Pazello (UFPR) e Carolina
Vestena (Universidade de Kassel)
Equipe organizadora
Bruna Mariz Bataglia Ferreira
Carolina Alves Vestena
Igor Ferreira
Isadora Lins
Lucas van Hombeeck
Nina Alencar Zur
Raíza Uzeda
Taísa Rodrigues
Apoios
Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais - Seção Rio de Janeiro
Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ
9
O IPDMS reúne pesquisadores e pesquisadoras, especialmente da área das
ciências humanas e sociais, para realizar pesquisas e ações sobre “direitos e movimentos
sociais”.
Atualmente, conta com 12 grupos de trabalho sobre temas como teorias críticas,
educação, pesquisas aplicadas e produção de dados.
Periodicamente, são realizados seminários nacionais em diferentes regiões do
país. São publicados anais dos encontros dos grupos de trabalho, que contam com
apresentação de artigos e pôsteres.
Alguns seminários temáticos aconteceram para aprofundar temas sobre
marxismo e outras teorias críticas. Também, realiza encontros locais em parceria com
outros grupos de pesquisa e extensão. Em 2018, aconteceu o 7º Seminário Direitos,
Pesquisa e Movimentos Sociais, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Já foram
realizados encontros em São Paulo-SP, Franca-SP, Cidade de Goiás-GO, Natal-RN,
Curitiba-PR, Vitória-ES, Vitória da Conquista-BA, Rio de Janeiro-RJ, Niterói-RJ, Belo
Horizonte-MG, Juiz de Fora-MG, Florianópolis-SC, Fortaleza-CE, João Pessoa-PB, Recife-
PE, Brasília-DF, Ceilândia-DF, Palmas-TO, Altamira-PA, Santarém-PA, Aracaju-SE e
Quebec-Canadá.
A “InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais” tem como objetivo
impulsionar a atividade de pesquisa desenvolvida sobre estes temas, e foi criada em
2015 em parceria com o Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos e Cidadania,
da Universidade de Brasília (UnB). Atualmente conta com o apoio na diagramação da
Editora Lumen Juris. Já foram publicados dossiês temáticos sobre “Povos e comunidades
tradicionais, questão agrária e conflitos sócio-ambientais”, “Direito e marxismo:
método, ontologia e práxis”, “Assessoria jurídica popular”. Estão sendo produzidos os
dossiês sobre “Gênero e direitos” e “Direito, memória e justiça de transição”.
As publicações do instituto incluem dossiês em parceria com outras revistas,
como a Revista Direito e Práxis (UERJ), Revista de Direitos Fundamentais (FDV), Caderno
Eletrônico de Ciências Sociais (UFES) e Revista El Otro Derecho (Colômbia).
Os Cadernos InSURgentes são instrumentos de formação e divulgação das lutas
dos movimentos sociais. São confeccionados em parcerias, como o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o blog AJPopular e o NAJUP Luiza Mahin-RJ,
abordando pesquisas de estudo de caso, poesias e temas da conjuntura política.
Os anais dos seminários nacionais, os Cadernos InSURgentes, a revista
InSURgência, entre outras produções, são publicadas virtualmente e disponíveis
gratuitamente na página www.ipdms.org.br
Seção Rio de Janeiro do IPDMS
Em 2018, o Rio de Janeiro recebeu, pela primeira vez, o Seminário Direitos,
Pesquisa e Movimentos Sociais, na UFRJ, entre os dias 27 a 30 de abril. O tema é
“Mobilizações por direitos e políticas do sistema de justiça”, para compreender temas
relacionados como os modos de criminalização e o desmonte dos direitos sociais. Desta
vez são 13 espaços de discussão, uma vez que está incorporado o tema sobre “Questão
10
Abaixo, seguem os textos que resumem as intervenções feitas durante a Mesa “O
debate jurídico soviético: interpretação histórica e leituras atuais”, ocorrida no dia 25 de
outubro de 2017, às 19h, e organizado pelo GT Direito e Marxismo do IPDMS.
mais pragmáticas em sua práxis. Na verdade, desejava potencializar uma síntese entre
as duas posições políticas que se faziam dominantes na disputa interna do PSI naquele
momento. Então, já em sua primeira intervenção como jornalista, no texto Neutralidade
Ativa e Operante, atingirá diretamente questões vinculadas à estratégia e tática do
partido presente nos anos seguintes, que girará em torno dos conflitos com os
reformistas e maximalistas.
Nesse artigo, o revolucionário italiano coloca em discussão a tese de
neutralidade absoluta frente ao contexto da guerra imperialista que começara. Não
admite que o PSI seja incapaz de tomar resoluções nacionais, mesmo inseridas num
protagonismo internacionalista da classe operária, para a situação organizativa italiana.
Ele critica qualquer abordagem fatalista ou mecanicista do processo revolucionário,
pensando-o “como criação do próprio espírito, feita de uma série ininterrupta de
rupturas operadas sobre as outras forças ativas e passivas da sociedade, e preparando o
máximo de condições favoráveis para a ruptura definitiva” 3. Muito cedo, portanto,
estava colocado enquanto leitmotiv a “necessidade dos socialistas pensarem sua
atuação como relação de forças, como intervenção da vontade consciente na luta e na
história”4.
Com o aprofundamento da articulação de Gramsci no interior do PSI, cada vez
mais fica clara a sua insatisfação perante o falso dualismo entre a corrente reformista e
maximalista. Não concordava com os reformistas pela sua política de conciliação de
classe e a incapacidade de visualizar o caráter contraditório do impulso político em
reformas institucionais. Igualmente, contudo, não poderia endossar a tese dos
maximalistas, pois, embora indicasse aproximações com sua leitura radical da
conjuntura, era contrário às suas implicações na práxis política, isto é, a concretização
de uma postura determinista da ideia de revolução – a espera do acirramento “natural”
do conflito final de classes –, que resultava numa combinação de barulhento verbalismo
abstrato com passividade política na luta cotidiana.
O estertor dessa contradição se mantém com a ruptura e fundação do PCI, pois
é a fração liderada por Amadeo Bordiga (um dos principais lideres maximalistas) que
assume a hegemonia do partido em seus primeiros anos. Como consequência, é
estabelecida uma linha política radical que promove uma paralisia na condução do PCI.
Mesmo compondo o bloco, Gramsci dispara uma avaliação, que para efeitos de
comparação com a crítica jurídica é central, ao afirmar que se trata de uma postura
“intransigente e não oportunista, mas também crê que é inútil mover-se e lutar no dia-a-
dia. Ele espera o grande o dia” 5. Logo, Gramsci vê o acerto da fórmula de frente única
proposta por Lenin, cujos efeitos concretos implicavam como “indispensável, e
historicamente necessário, separar-nos não só do reformismo [realizado com a
fundação do PCI], mas também do maximalismo” 6. Assim, era fundamental a ruptura
com o reformismo para excluir disputas estéreis na vanguarda do partido, no entanto
também era urgente aglutinar as forças políticas de esquerda e disputá-las em sua base,
abandonando posições abstencionistas.
3
GRAMSCI, Antonio. Neutralidade Ativa e Operante. Escritos Políticos. Volume I. Lisboa: Seara Nova, 1976,
p.67.
4
DIAS, Edmundo Fernandes. Gramsci em Turim. A construção do conceito de hegemonia. São Paulo: Xamã,
2000, p.54.
5
GRAMSCI, Antonio. Maximalismo e Extremismo. Escritos Políticos. Volume II (1921-1926). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2004, p.312, grifo nosso.
6
GRAMSCI, Antonio. O Significado e os Resultados do III Congresso do Partido Comunista d'Italia . Escritos
Políticos. Volume IV. Lisboa: Seara Nova, 1978, p.88.
17
populares que lutavam pelo socialismo, o próprio movimento expõe suas vísceras, suas
limitações e sofre um transformismo galopante.
De outro lado, sempre coexistiu ao MDA, uma série de reflexões radicais à forma
jurídica, que se centravam numa crítica estrutural ao direito, mas que possuíam pouco
espaço mesmo em territórios tão ilhados da sociedade como as universidades. Com o
réquiem do Direito Alternativo, uma série de iniciativas que já possuíam vida própria,
mas estavam sob o guarda-chuva do movimento, alçam voo próprio, isolam-se ou
mesmo desaparecem, mas, por outro lado, ocorre o fortalecimento e resgate
progressivo de leituras inspiradas no relegado marxismo soviético, em particular, a
partir da obra Teoria Geral do Direito e Marxismo de Pachukanis.
Uma crítica potente que alia a necessidade de visualizar o direito como uma
mediação constitutiva da produção do mais-valor e que alcançou grande visibilidade no
ano passado (2017), em virtude da comemoração do centenário da Revolução Russa e
da publicação de duas traduções diretas do russo da monumental obra de Pachukanis8.
Entretanto, a recepção teórica do jurista soviético tem colocado um marco maximalista
na crítica marxista do direito, pois a grande maioria dessas contribuições tem redundado
em abstencionismo no cenário da práxis jurídica. Por isso, mesmo em pedaços, tem
ainda os resquícios do MDA muita influência nos movimentos sociais e na formulação
dos partidos de esquerda, onde tal crítica maximalista não alcança pela negligência com
os problemas táticos imediatos.
Na presente quadra histórica, período em que o direito assume uma
centralidade impar na vida brasileira, o equilíbrio catastrófico entre uma abordagem
estruturada nos nexos da crítica da economia política marxista, mas sem dentes para
morder a conjuntura política, e uma projeção politicista e instrumental da práxis jurídica
como confronto de classes, mas incapaz de compreender a dinâmica de nossa forma
jurídica, tem impedido nocivamente o avanço da crítica marxista do direito. Então,
vivemos um tempo onde a tragédia do reformismo jurídico brasileiro se impõe, bem
como insurge os descaminhos de uma crítica incisiva e frontal, mas que se converte em
abstencionismo jurídico.
Referências bibliográficas
BOBBIO, Noberto; et al. O Marxismo e o Estado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
GRAMSCI, Antonio. Neutralidade Ativa e Operante. Escritos Políticos. Volume I. Lisboa:
Seara Nova, 1976.
_____. O Significado e os Resultados do III Congresso do Partido Comunista d'Italia .
Escritos Políticos. Volume IV. Lisboa: Seara Nova, 1978.
_____. Maximalismo e Extremismo. Escritos Políticos. Volume II (1921-1926). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
_____. Quaderni del carcere. Edizione critica dell’Istituto Gramsci. A cura di Valentino
Gerratana. Volume terzo. Quaderni I2-29 (1932-1935). Turim: Giulio Einaudi, 2007.
DIAS, Edmundo Fernandes. Gramsci em Turim. A construção do conceito de hegemonia.
São Paulo: Xamã, 2000.
8
Há a tradução da editora Boitempo, que conta com o Prefácio de Antonio Negri e Posfácios de Umberto
Cerroni e China Miéville. Cf. PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo:
Boitempo, 2017. Além disso, ocorreu outra tradução realizada pela Editora Sundermann, que abrangeu
alguns outros textos escolhidos entre 1921 e 1929. Cf. PACHUKANIS, Evgeni. A Teoria Geral do Direito e
Marxismo e ensaios escolhidos (1921-1929). São Paulo: Sundermann, 2017.
19
relações de capital. Assim é que se poderá produzir uma teoria marxista do direito
desde a América Latina (ao mesmo tempo da América Latina, pois criativamente
produzida por ela, e na América Latina, já que nela se difunde sem desprezar avanços
teóricos similares havidos em outras regiões geopolíticas), levando em conta os acertos
teóricos fundamentais de Pachukanis, mas também o aqui e agora da práxis jurídica
insurgente.
Referências bibliográficas
PAZELLO, Ricardo Prestes. “Pensamento descolonial, crítica al derecho, movimientos
populares: la problemática de los derechos humanos”. Em: REDHES: revista de derechos
humanos y estudios sociales. San Luis Potosí: Facultad de Derecho de la Universidad
Autónoma de San Luis Potosí; Sevilla: Departamento de Derecho de la Universidad de
Sevilla; Aguascalientes: Universidad Autónoma de Aguascalientes; Comisión Estatal de
Derechos Humanos de Aguascalientes, año IV, n. 8, julio-diciembre 2012, p. 195-218,
2016.
PAZELLO, Ricardo Prestes. Direito insurgente e movimentos populares: o giro
descolonial do poder e a crítica marxista ao direito. Curitiba: Programa de Pós-
Graduação (Doutorado) em Direito da Universidade Federal do Paraná, 2014, p. 141 e
seguintes.
PAZELLO, Ricardo Prestes; FERREIRA, Pedro Pompeo Pistelli. “Tática e estratégia na
teoria política de Lênin: aportes para uma teoria marxista do direito”. Em: Verinotio.
Belo Horizonte: UFMG, v. 23, 2017, p. 126-151.
PAZELLO, Ricardo Prestes. “Acumulação originária do capital e direito”. Em:
InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais. Brasília: IPDMS; PPGDH/UnB;
Lumen Juris, vol. 2, n. 1, janeiro-junho de 2016, p. 66-116.
PAZELLO, Ricardo Prestes. “A práxis da assessoria jurídica popular como vetor para o
estudo da relação entre direito e movimentos populares: ensaio sobre o direito
insurgente”. Em: Caderno eletrônico de ciências sociais. Vitória: UFES, v. 4, 2017, p. 94-
117.
PAZELLO, Ricardo Prestes. “Pachukanis: a teoria marxista do direito aos cem anos da
revolução russa”. Em: Margem esquerda. São Paulo: Boitempo, v. 28, 2017, p. 75-89.
23
4 TABELA DE GTS
5 ARTIGOS E RESUMOS
Não é claro, no entanto, que para Marx essa “acumulação primitiva” tenha se
encerrado em um processo histórico pontual. Na verdade, como ele afirma sobre a
teoria de Wakefield, o processo de colonização revela não algo novo sobre as colônias,
ele revela nas colônias “a verdade sobre as relações capitalistas da metrópole” (2013, p.
836). Se Schmitt propôs que “a exceção revela o mais claramente possível a essência da
autoridade estatal” (2006, p. 14), o mesmo parece ser confirmado por Marx a respeito
do capitalismo: o processo violento, excepcional, “antiliberal” que produziu as condições
de funcionamento normal revelam a sua verdade brutal. Apesar de ambos pressuporem
um pano de fundo “normal”, “regular”, “pacífico”, são nesses momentos críticos que é
possível vislumbrar sua dimensão mais fundamental. Desse modo, se a acumulação
primitiva revela a “verdade” do capitalismo, como disse Marx, não é razoável afirmar
que ela desaparece quando a acumulação de capital se torna a “regra”.
A esse respeito, é famosa a proposta teórica de Rosa Luxemburg. Para ela, a
acumulação de capital e a acumulação primitiva não deveriam ser entendidas como
duas etapas da acumulação, mas como duas formas complementares e mutuamente
dependentes: a primeira é um “processo puramente econômico” que envolve produção
de valor e a relação trabalho-capital; na segunda, “força, fraude, opressão, saques são
abertamente utilizados sem nenhuma tentativa de conciliação” (2013, p. 432). A
primeira se dá dentro do capitalismo, a segunda caracteriza os meios pelos quais se dá a
relação entre capitalismo e modos de produção não-capitalistas. A violência e outros
meios extraeconômicos de acumulação, portanto, se revelariam necessários tanto para
lidar com as formas não capitalistas de sociedade que persistem de formas contraditória
no capitalismo, como para reproduzir a relação entre proprietários e não-proprietários
dos meios de subsistência em situações típicas do capitalismo avançado.2
Apesar de complementares, contudo, é preciso perceber que são duas formas
de algum modo excludentes de acumulação. Apesar de a acumulação “primitiva” ser a
contraface necessária da acumulação propriamente capitalista – ao manter a divisão
entre proprietários de dinheiro e populações despossuídas ela garante a condição
absoluta para a relação de capital – ela não pode ser confundia com as formas violentas
de reprodução da forma valor e da forma jurídica. É preciso reconhecer a diferença
entre a violência extraeconômica exercida no processo fundacional das relações
capitalistas e as formas de violência que persistem existindo em sua dinâmica, isto é: a
relação entre a violência objetiva do capital, a “coerção muda exercida pelas relações
econômicas” que “sela o domínio do capitalista sobre o trabalhador”, e a violência do
Estado, a “violência extraeconômica, direta”, que ainda se faz necessária mesmo que
“apenas excepcionalmente” (Marx, 2013, p. 808-809).
A compreensão dessa passagem da violência de Estado pré-capitalista para a
violência de Estado “propriamente” capitalista, a permanência distorcida de uma na
outra, é chave para entender seu papel na dinâmica atual. Marx deixa claro que a
acumulação primitiva dependeu da violência ilegal do Estado para vir a existir: “[todos
2
David Harvey argumenta na mesma linha quando diz que é preciso compreender a continuidade da
acumulação capitalista no que ele chama de “acumulação por despossessão”, que envolveria formas
contemporâneas de produção de despossuídos como as privatizações, a propriedade intelectual, o
endividamento privado, etc. (ver Harvey, 2004). O possível problema de tal concepção é tratar todas as
formas de violência no capitalismo como formas de “repetição” da acumulação primitiva violenta,
ignorando que medidas plenamente jurídicas como uma ação e cobrança ou uma ação de reintegração de
posse estão de acordo com os fundamentos da forma jurídica e, consequentemente, da troca de
mercadorias. Ainda que em muitos casos essas medidas jurídicas se deem com uma boa dose de abuso e
ilegalidade, mesmo quando elas obedecem o regime legal não deixam de ser violentas, nem de serem
adequadas à acumulação de capital.
29
insustentável se em algum lugar ainda se permite que fins naturais sejam perseguidos
de maneira violenta” (2011, p. 125-127).
Benjamin até então está apenas reconstruindo um dos fundamentos do Estado
de direito. No entanto, seu ponto é que a proibição de perseguição de fins naturais por
meio da violência se dá não porque ela colide com os fins de direito, mas porque sua
proibição é condição de garantia do próprio direito. A violência fora do controle estatal é
tida pelo Estado, segundo Benjamin, como em si mesma perigosa, independentemente
de seus fins. A “prova” de Benjamin de que o problema não é exatamente a finalidade
da ação pode ser encontrada no fato de que “o Estado reconhece uma violência cujos
fins, enquanto fins naturais, ele às vezes considera com indiferença, mas em caso sério
[...] com hostilidade” – um problema de “grau” e não exatamente dos fins perseguidos.
Nesses casos em que o poder estatal se sente “ameaçado”, então, ele pode utilizar uma
carga de violência inimaginável para se “defender”. Benjamin encontra na greve geral
um exemplo dessa relatividade da violência, mas é possível estender a reflexão para
qualquer manifestação política que possa ser enquadrada nos limites do “aceitável”.
Quando a greve geral toma grandes proporções (a ponto de poder ser considerada
revolucionária), “o Estado a classifica como abuso de direito e pode chegar a usar
“decretos de emergência” para reprimi-la, já que o direito de greve não teria sido
pensado para ser exercido “dessa maneira” (2011, p. 129).
O Estado não é, portanto, somente um terceiro neutro que normaliza o conflito
de classes. O conflito de classes (representado em Benjamin pela greve geral) põe o
próprio Estado e o direito em xeque. O que a greve geral prova – e por isso ela é tão
perigosa – é que a violência é “capaz de fundamentar e modificar relações de direito”,
que a violência não é só o que reprime e mantém a ordem, mas também aquilo que cria,
que produz outras ordens. Benjamin identifica essa mesma potência no direito de guerra
e na consequente possiblidade de reestabelecer a paz, isto é, a possibilidade de
sancionar uma nova ordem vitoriosa. O perigo da greve geral (conflito interno) como
também da guerra (conflito externo) é que eles podem ambos resultar na criação de um
direito novo. Dessa forma, surge outra violência com uma função diametralmente
oposta: uma violência que objetiva a manutenção do direito posto, a violência estatal
utilizada (de forma sancionada) para manter a ordem (2011, p. 130-132). Percebe-se,
então, que não há uma divisão a priori entre a violência legítima e ilegítima, mas uma
disputa (efetiva, material, violenta) pela afirmação da (i)legitimidade da violência – e
quando deixados falar por si, “os Estados têm poucos problemas em distinguir o uso
legítimo e o uso ilegítimo da violência” (Durantaye, 2009, p. 338).
É nesses casos limites, na passagem do uso aceitável de um direito e sua
possibilidade de desestabilizar a ordem jurídica, que o direito se torna violência – em
ambos os sentidos, tanto o direito de manifestação passa a ser encarado como violento
pelo Estado como o direito estatal passa de mero direito para violência em forma de
direito. Essa “contradição objetiva” do direito, segundo Duy Lap Nguyen, “constitui uma
‘lei da lei’, uma meta-lei governando a conversão histórica do direito em seu oposto”
(2015, p. 103). O que Benjamin percebe, portanto, é que o conflito, na verdade, nunca
cessa. A paz externa (fim da guerra) e a paz interna (fim da greve) são apenas arranjos
provisórios, frágeis, constantemente passíveis de rediscussão em um processo que é
inevitavelmente violento. Portanto, na antinomia entre direitos iguais que Marx
apresenta, há sempre uma decisão sobre a legitimidade da demanda que é
acompanhada da violência para resolvê-la. Quando “a força (Gewalt) decide” (Marx,
2013, p. 309), no entanto, não decide somente sobre o conflito: decide sobre sua
própria manutenção, decide por suprimir a anomia que ameaça radicalmente a própria
31
que encontra sua unidade conceitual e prática na “caça ao homem militarizada”. Essa
caça, aponta ele, é essencialmente preventiva: “não se trata tanto de replicar ataques
determinados, mas sim de prevenir a eclosão de ameaças emergentes pela eliminação
precoce de seus potenciais agentes”. Nessa lógica de segurança baseada na “eliminação
preventiva de indivíduos perigosos”, a guerra toma a forma de “vastas campanhas de
execuções extrajudiciais” (Chamayou, 2015, p. 41-45).
Qualquer análise que se pretenda séria sobre o uso da violência na ação
transformadora não deve ignorar esse quadro. Não só o Estado é capaz de usar
quantidades inacreditáveis de violência para assegurar a atual ordem política como tem
progressivamente expandido seu uso com base no discurso securitário. Estamos diante
do declínio do capitalismo democrático como o conhecemos. O estado de exceção se
espalha progressivamente nos Estados mundiais e os remédios imediatos se
caracterizam por formas inimagináveis de violência e destruição. Como ironiza Grégoire
Chamayou, “ao contrário do que sugerem os roteiros de ficção científica, o perigo não é
que os robôs comecem a desobedecer; é justo inverso: que nunca desobedeçam” (2015,
p. 240). Em um mundo em que drones podem ter o tamanho de uma abelha, em que o
robocop pode deixar de ser ficção científica, em que as infinitas possibilidades de
vigilância e rastreamento virtual podem se somar a algoritmos direcionados à
perseguição de um grupo de pessoas, o futuro pode fazer as distopias do século XX
parecerem contos de ninar.
O que nos impede de simplesmente jogar a toalha e lamentar diante do grande
hotel abismo, é que há boas evidências para acreditar que o que quer que nos espere
não será indestrutível. Como percebe Chamayou, “os grandes mitos da invulnerabilidade
são quase todos relatos de um fracasso”. O que eles evidenciam é que há sempre um
calcanhar em cada Aquiles em qualquer ameaça indestrutível, que “toda tentativa de
invulnerabilidade engendra como contrapartida sua vulnerabilidade”. Com os drones
não é diferente, e o próprio Chamayou relata como os alvos terroristas se utilizam do
delay da imagem para zigue-zaguear e escapar da sua mira (2015, p. 87-88). Toda nova
tecnologia de dominação inevitavelmente cria novas brechas de resistência e
sabotagem. Onde há poder, há sempre resistência, não por princípio moral, por fato
político.
3. Pode a violência nos salvar?
Ao problema político da necessidade – bem como da possibilidade – do uso da
violência na transformação social, soma-se um outro problema tão central quanto:
como não deixar que a violência necessária para a ruptura não seja o fundamento da
nova ordem que se instaura. Este é o problema ético da violência: como conciliar a
violência da transformação e a não-violência da sociedade emancipada que se almeja.
Novamente, o ensaio de Benjamin se propõe a enfrentar a questão. Ciente desse duplo
problema, ele propôs que o necessário seria uma forma de violência que pudesse pôr
fim a esse ciclo “termidoriano” que atormenta a experiência revolucionária, uma
violência que ele chama de “violência divina” (2011, p. 150). A interpretação sobre essa
violência, no que ela consistiria em termos práticos, contudo, de modo algum é
unívoca,3 mas duas interpretações merecem atenção por conseguir iluminar dois pontos
que me parecem centrais da saída benjaminiana.
3
Uma apresentação geral das diversas interpretações do ensaio de Benjamin pode ser encontrada em
Bernstein, 2013.
34
pode ser bem-sucedida – como os exemplos de Mahatma Ghandi e Martin Luther King,
sempre lembrados quando se discute o tema, parecem provar – mas há, igualmente,
muitas outras situações em que “a resistência não-violenta é simplesmente esmagada
pelas forças do Estado, da polícia e do exército” – como em muitas oportunidades
foram, inclusive, as manifestações de Ghandi e Luther King. As estruturas violentas de
dominação não vão se dissolver por conta própria. Pelo contrário, em caso de ameaça,
elas podem utilizar quantidades assombrosas de violência para reprimir transformações.
O que importa aqui é, precisamente, “a complexa relação entre violência e não-
violência, em que o compromisso com esta ainda exige a execução daquela.
Paradoxalmente, uma ética e uma política de não-violência não pode excluir a
possibilidade de atos violentos”. Se o objetivo é quebrar o direito, destruir o ciclo mítico
da violência de Estado, é preciso desenvolver uma “economia da violência” (Critchley, p.
219) apta a tal tarefa, seja para gerar ruptura, seja para construir uma nova sociedade.
Como ele afirma, “tal concepção de ação ética não levaria a um tipo de celebração da
violência endêmica do fascismo e nacional-socialismo, mas a uma responsabilidade
infinita pela violência que, em circunstâncias excepcionais, pode nos levar a quebrar o
mandamento” (p. 237). O problema, portanto, não é o uso da violência na ação política,
que em situações drásticas é indispensável. O problema é como “domesticar” essa
violência posteriormente, como introduzir a não-violência no horizonte ético da
sociedade por vir, aquilo que Étienne Balibar chamou de política de civilidade: “a menos
que uma política de civilidade seja introduzida no coração da política transformadora,
tudo sugere que esta última não vai criar por si própria as condições para a emancipação
(somente condições para uma nova forma de servidão)” (2015, p. 103-104). Longe de
uma crítica inocente da violência, é essa preocupação ética com o “dia seguinte” que
parece orientar a perspectiva de Critchley e Butler – bem como, podemos dizer,
também a de Arendt.
A dificuldade imposta para a esquerda hoje é formular o que ainda não existe,
pensar em formas de sociabilidade política para além das formas capitalistas – ou
quaisquer outras da história que tenham de algum modo reproduzido a violência e o
sofrimento. Esse processo radicalmente criativo (que não se reduz, porém, ao exercício
intelectual, mas está articulado com as dinâmicas práticas dos movimentos políticos) se
inicia no presente, não é uma decorrência inevitável da tomada do poder. Pensar em
novas formas de organização é a grande dificuldade de debater uma política
efetivamente revolucionária (que inevitavelmente está atrelada a ações violentas), mas
é a única esperança de que uma eventual revolução não seja uma farsante repetição das
experiências trágicas do passado. De modo algum a tarefa que se apresenta é simples,
mas por mais dura e violenta que uma situação possa ser, podemos estar certos que
nada poderá matar a ideia de uma sociedade solidária e emancipada. Nossa tarefa é
fazer da ideia realidade, não importa o quão desolador e distópico seja o nosso
presente.
Referências bibliográficas
ADORNO, Theodor W. (2009) Dialética negativa, Rio de Janeiro: Zahar.
AGAMBEN, Giorgio (2004) Estado de exceção, Homo sacer II, 1, São Paulo: Boitempo.
_____. (2015) “Polícia soberana”, em Meios sem fim: notas sobre a política, Belo
Horizonte: Autêntica.
ARENDT, Hannah (2008) “Da violência”, em Crises da república, São Paulo: Perspectiva.
39
BALIBAR, Étienne (2015) Violence and civility: on the limits of political philosophy, New
York: Columbia University Press.
BENJAMIN, Walter (2011) “Para uma crítica da violência”, em Escritos sobre mito e
linguagem (1915-1921) (org. por Jeanne Marie Gagnebin), São Paulo: Duas cidades;
Ed.34.
BERNSTEIN, Richard (2013) Violence: thinking without banisters, Cambridge: Polity.
BOEVER, Arne de (2009) “Agamben and Marx: sovereignty, governmentality, economy”,
em Law critique, 20 (3), p. 259-270.
BUTLER, Judith (2006) “Critique, coercion, and sacred life in Benjamin’s ‘Critique of
violence’”, em Hent de Vries & Lawrence Sullivan (ed.) Political theologies: public
religions in a post-secular world, New York: Fordham University Press.
CHAMAYOU, Grégoire (2015) Teoria do drone, São Paulo: Cosac Naify.
CRITCHLEY, Simon (2012) The faith of the faithless: experiments in political theology,
London: Verso.
DERRIDA, Jacques (2010) Força de lei: o fundamento místico da autoridade, São Paulo:
Martin Fontes.
DURANTAYE, Leland de la (2009) Giorgio Agamben: critical introduction, Stanford:
Stanford University Press.
ELBE, Ingo (2013) “Between Marx, Marxism, and Marxisms: ways of reading Marx’s
theory”, em Viewpoint magazine, disponível em: https://goo.gl/W6vrPj.
GRAHAM, Stephen (2016) Cidades sitiadas: o novo urbanismo militar, São Paulo:
Boitempo.
HARVEY, David (2004) O novo imperialismo, São Paulo: Loyola.
HOLLOWAY, John & PICCIOTTO, Sol (ed.) (1978) State and capital: a Marxist debate,
London: Edward Arnold.
LENIN, Vladimir (2007) O Estado e a revolução: o que ensina o marxismo sobre o Estado
e o papel do proletariado na revolução, São Paulo: Expressão popular.
LUXEMBURG, Rosa (2013) The accumulation of capital, London: Routledge.
MARX, Karl (2013) O capital: crítica da economia política, Livro I: o processo de produção
do capital, São Paulo: Boitempo.
_____. (2011) Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da
economia política, São Paulo: Boitempo.
NEOCLEOUS, Mark (2014) War power, police power, Edinburgh: Edinburgh University
Press.
NGUYEN, Duy Lap (2015) “On the suspension of law and the total transformation of
labour: reflections on the philosophy of history in Walter Benjamin’s ‘Critique of
violence’”, em Thesis eleven, 130 (1), p. 96-116.
SCHMITT, Carl (2006) Teologia política, Belo Horizonte: Del Rey.
TOMBA, Massimiliano (2009) “Another kind of Gewalt: beyond law re-reading Walter
Benjamin”, em Historical materialism, 17 (1), p. 126-144.
ŽIŽEK, Slavoj (2012) O ano em que sonhamos perigosamente, São Paulo: Boitempo.
_____. (2014) Violência: seis reflexões laterais, São Paulo: Boitempo.
40
O argumento identifica essa crítica sob o ponto de vista do trabalho como uma
crítica produtivista. Por ela, visualiza-se uma oposição entre forças produtivas e relações
de produção, na qual estas, vinculadas à propriedade privada e ao mercado, devem ser
superadas por sua negatividade, para com isso liberar o potencial das primeiras – vistas,
portanto, como positivas. O esquema leva necessariamente a uma crítica no âmbito do
político-jurídico e, no campo econômico, restrita à esfera da circulação: afinal, as formas
atacadas referem-se ao direito (a propriedade privada) e ao aspecto distributivo da
formação social (o mercado). O predicado produtivista, nesse sentido, significa uma
tomada de posição no sentido da neutralidade das tecnologias forjadas sob o
capitalismo, mormente no que se refere à grande indústria, pois a produção sob esse
modelo representaria o desenvolvimento ótimo das forças produtivas. Ademais, essa
concepção personaliza a dominação, concentrando-a na imagem das classes,
especificamente na figura do capitalista, que, por deter os meios de produção (esfera
jurídica da propriedade), é o responsável pela extração e apropriação do mais-valor que
ele realiza no mercado (esfera econômica da circulação), em relações sociais de
produção que paralisam o potencial produtivo num nível aquém do que seria possível
se, eliminadas as classes, todas as forças sociais se convertessem em trabalhadores
proletários, a produzirem não mais sob a direção não da burguesia, mas do Estado. Com
isso, a propriedade privada estaria eliminada – pois o Estado deteria os meios de
produção –, e a esfera mercadológica estaria anulada – porque a ela se contraporia o
planejamento estatal.
Por isso, o marxismo tradicional consistiria, na verdade, num elogio ao trabalho,
e especificamente ao trabalho proletário, tomado como trans-histórico. Postone explica
que teóricos como Paul Sweezy e Maurice Dobb, por exemplo, entendem a categoria
marxiana de “valor” exclusivamente em termos de mercado: as relações de troca de
mercadorias, inclusive da força de trabalho, definem a lei de valor. Com isso, deixam de
fora da crítica o âmbito da produção, e apresentam como estratégia a supressão do
mercado: opõe-se “valor, como princípio do capitalismo, ao planejamento, como o
princípio do socialismo. O modo pelo qual se efetua a distribuição é o foco crítico
essencial dessa interpretação” (POSTONE, 2014, p. 63).
Muito desse marxismo tradicional, em termos de estratégia política, reflete-se
no campo político nas propostas de Lênin, que reverberam de modo ainda persistente
na militância de esquerda como um modelo quase evangélico de roteiro. Sobretudo em
O Estado e a Revolução, o líder soviético expõe ideias como a seguinte:
Essa expropriação tornará possível uma expansão das forças produtoras.
Vendo, desde já, o quanto o capitalismo entrava essa expansão, e quanto
progresso se poderia realizar, graças à técnica moderna já alcançada,
estamos no direito de afirmar, com uma certeza absoluta, que a
expropriação dos capitalistas dará infalivelmente um prodigioso impulso às
forças produtoras da sociedade humana. (LÊNIN, 2011, p. 146)
Ao lado do acento leniniano na formulação da chamada ditadura do
proletariado – desproporcional à importância que o próprio Marx lhe conferia, no cotejo
com o apogeu de sua crítica da economia política centrada no valor –, o trecho acima
destacado deixa clara sua filiação às linhas gerais daquilo que Postone entende por
crítica produtivista, ou, em outros termos, crítica do ponto de vista do trabalho. Ora, a
expropriação ataca diretamente a dominação jurídica, tida como exercida pessoalmente
pelos capitalistas, e a ditadura do proletariado, além de efetivá-la, também refrearia a
circulação mercadológica dos produtos do trabalho. Com isso, se pensa estar
expurgando os aspectos, por assim dizer, negativos da sociabilidade capitalista, que
42
impedem o “prodigioso impulso” das forças produtivas, e abolindo a lei do valor. Ainda
em outras palavras, o caminho a ser seguido é o da autorrealização do proletariado
como classe universal no socialismo, e não o de sua autoabolição.
Por outro lado, Postone adverte que a crítica a ser extraída de Marx é a crítica
do trabalho (proletário). Isso significa que o modo de produção em si deve ser o objeto
dessa crítica, dada a inviabilidade, para os propósitos emancipatórios, de cisão na
unidade dialética entre forças produtivas e relações de produção, que devem, então, ser
enfrentadas em simultâneo. A perspectiva é convincente: de fato, o auge da crítica
madura de Marx tem o seu foco no trabalho proletário, historicamente localizado. Se,
no capitalismo, a riqueza aparece como uma “imensa coleção de mercadorias”, e se
estas são dotadas não só de valor de uso mas, especificamente sob essa formação
social, também de valor, é necessário investigar o que induz a que o produto do
trabalho seja dotado dessa substância. Essa investigação deve recair sobre a própria
atividade laboral sob o capitalismo, e ela revela que há aqui também uma bifurcação: ao
lado de sua concretude, pela qual se diferenciam qualitativamente os diversos fazeres
humanos, aparece algo que os homogeneíza. Esse algo é a abstração dessa atividade
como dispêndio de tempo de trabalho. É esse trabalho abstrato que produz o valor, que
é a forma de riqueza social apenas no capitalismo, e não em outra formação social.
Como, segundo as formulações marxianas, é a partir da práxis humana vital, por sua
prioridade ontológica, que são moldadas todas as formas sociais, a manutenção desse
tipo de trabalho (sua autorrealização) manterá o núcleo da sociabilidade capitalista,
ainda que aquelas formas decorrentes sejam artificialmente abolidas – as classes, as
configurações jurídicas de propriedade, as formas mercadológicas de distribuição, etc.
E o que caracteriza este tipo de trabalho proletário produtor de valor, típico da
formação social capitalista? Pelo método dialético de Marx, definições não são
recomendáveis para apreender objetos que constituam unidades contraditórias –
menos ainda o são definições direta e concisamente formuláveis. No entanto, alguns
traços a ele relativos devem ser passíveis de exposição, com vistas a captar o essencial
para o escopo de nosso breve texto. O trabalho abstrato é aquele que, medido
exclusivamente pelo tempo também abstrato, tem por produto especificamente a
mercadoria, dotada de valor (e também valor de uso, sem o qual o valor seria de
impossível realização na troca). Nesse contexto, o trabalhador produz não para si, mas
para que possa consumir por meio do trabalho. O trabalho não é feito em nome do
próprio trabalho. A produção social é realizada não para o consumo, mas em nome da
produção mesma (POSTONE, 2014, p. 50). O resultado da atividade produtiva é
estranhado e domina o trabalhador externamente. Em termos sociais, por sua vez, o
trabalho abstrato produtor de mercadorias, já que estas determinam as relações sociais
e são resultado daquele, termina por consistir no mediador determinante das relações
nas formações capitalistas. Se o capital é uma lógica relacional atravessada pelo
trabalho abstrato, essa lógica pode ser ativada e mantida por quaisquer indivíduos ou
grupos que personifiquem os papéis concernentes a tal lógica1, de modo a se reforçar a
hipótese de que o socialismo real, por não ter alterado essa forma de labor, não
extirpou a essência do modo de produção capitalista. Por fim, dado que a dinâmica da
lógica do capital é a valorização do valor, e se este só se produz por meio do trabalho
1
Inobstante passar despercebido por muitos teóricos, esse ponto atinente à personificação de uma lógica é
recorrente na obra de Marx. Apenas no Livro I de O Capital, para apresentar a lógica que é operacionalizada
pela relação entre capitalista e pelo proletário, apenas por meio de recurso expresso ao termo
“personificação” a ideia é repetida por onze vezes (MARX, 2013, p. 80, p. 160, p. 229, 237, 307, 317, 380,
381, 667 [aqui por duas vezes] e 692).
43
abstrato proletário, parece lógico que a expansão dessa forma de trabalho lhe é
absolutamente imprescindível e, se é assim, a dominação da qual devemos nos libertar é
a do trabalho abstrato, e a do tempo abstrato que lhe está na base.
2. O tempo abstrato
O tempo abstrato é a dimensão temporal do trabalho abstrato. É o que permite
quantificá-lo e, por conseguinte, mensurar o valor e a dinâmica de sua valorização.
Na formação social capitalista, Postone (2014, p. 220) argumenta que o valor é a
forma dominante de riqueza social. Valor é a exteriorização do trabalho, mas
especificamente do trabalho abstrato – aquela atividade laborativa humana
indiferenciada, abstraída de suas especificidades. Em contraste, no caso de outros tipos
de formação em que prepondera a riqueza material como forma de riqueza social, o
trabalho (concreto) produz valores de uso, e a quantificação correspondente opera pela
avaliação “qualitativa do produto [desse trabalho concreto], da atividade que o produz,
das necessidades que pode satisfazer, bem como do costume” (ibid., p. 219-220).
Da possibilidade de mensurar o valor decorre que, para receber o “valor total”
de seu tempo de trabalho, o produtor deve ao menos igualar o ritmo de sua atividade à
média representada pelo tempo de trabalho “socialmente necessário” à produção
daquele artigo. Isso exprime o crucial aspecto da dominação temporal engendrada, no
capitalismo, pela predominância do valor como riqueza social – e, consequentemente,
do trabalho abstrato que o produz, mensurado pelo tempo abstrato.
Se o trabalho humano abstrato é o produtor de valor, este terá um critério de
mensuração – o tempo abstrato de trabalho socialmente necessário à produção de um
valor de uso qualquer – dotado de traços que lhe são homogêneos. Esse tempo
abstrato, portanto, também é indiferenciado – é um tempo “uniforme, contínuo,
homogêneo, ‘vazio’, (...) dividido em unidades iguais, constantes e não qualitativas”
(POSTONE, 2014, p. 234-235). Tais predicados se justificam por expressarem a
concepção socialmente construída do tempo tornado independente das atividades nele
praticadas, ou, em outros termos, abstraído das peculiaridades com as quais se o gasta –
e aí se insere a constatação histórica de Edward Thompson de que foi a introdução
paulatina do trabalho abstrato na Europa a partir do século XIV a responsável, por um
lado, pelo eloquente giro idiomático pelo qual as pessoas deixaram de passar o tempo
para gastá-lo e, por outro, pela exponencial difusão de relógios de todo tipo: de torre
nas praças de cidades onde feiras comerciais ocorriam, de pé nas residências em geral,
de bolso nas vestimentas de membros de todas as classes, e de parede, sobretudo nos
ateliês manufatureiros e posteriormente nas fábricas (THOMPSON, 1998).
Colocadas essas premissas, estamos de posse do suficiente para ingressar na
reflexão central deste artigo, que em seguida receberá novamente o aporte de outros
desenvolvimentos concernentes à teoria crítica do valor na forma como colocada, entre
outros, por Postone.
3. A crítica criminológica
No seio da criminologia, o campo crítico divide-se nos setores mais diversos.
Como nas ciências sociais em geral, o influxo do pós-modernismo se fez nele notar de
maneira bastante visível. É amplo o espaço atualmente ocupado, por exemplo, pela
chamada criminologia cultural, que “propõe pesquisas e intervenções no campo dos
estudos sobre as violências a partir da compreensão do desvio e dos mecanismos de
controle social como produtos culturais” (CARVALHO, 2014, p. 146). São bastante
difundidos, também, os estudos de David Garland, cuja obra principal se intitula A
44
cultura do controle, autor este que sempre se opôs à abordagem do fenômeno do crime
e da pena sob o prisma da economia política (cf. GIORGI, 2012)2. Isso se deve a várias
razões. Primeiro, porque na origem do marxismo – pensamento crítico moderno mais
poderoso até hoje elaborado – a preocupação de realizar sua conexão com o fenômeno
da criminalização foi posta à margem, devido a que o próprio Marx deste não se ocupou
centralmente, e a uma suposta negligência com o chamado lumpemproletariado, muito
por conta de uma interpretação que via até mesmo um tom pejorativo no tratamento
que lhe era conferido (cf. GREENBERG, 1993, p. 11). Segundo, porque, em decorrência
disso, o pensamento crítico acerca da punição desenvolveu-se mais acentuadamente a
partir dos anos 1970, justo quando se verificava a ascensão do pensamento pós-
moderno na intelectualidade ocidental.
Dadas essas circunstâncias, a criminologia de corte rigorosamente marxista se
vê, ainda hoje, limitada em seus desenvolvimentos relativamente a ambos os
fenômenos dos quais a ciência criminológica em geral se ocupa: o delitivo e o reativo.
No que toca ao primeiro aspecto, para se distanciar da abordagem etiológica
característica do positivismo, a criminologia marxista quase o abandonou. Cuida-se de
lacuna relevante, visto haver um potencial imenso, pouco explorado, de investigação
acerca da relação entre o fenômeno criminoso e a sociabilidade capitalista, informada
pelo plexo ético-valorativo do egoísmo e da competição que intimamente se relaciona à
alienação.
Quanto à reação social, por sua vez, a dedicação foi quase absoluta. A
penalização burguesa foi, inicialmente, objeto de pensadores como Pachukanis, que no
início do século XX relacionou a teoria do delito e teoria da pena burguesas à forma
mercadoria que está na base da sociabilidade capitalista. Após um hiato considerável em
termos de produção realmente emancipatória – em grande parte por conta das
deficiências teóricas do marxismo oficial de corte estalinista –, apenas a partir das
décadas de 1960 e 1970 se observa um revigoramento nessa direção: o nascimento da
teoria criminológica crítica. O fato, contudo, de ter avançado a partir descobertas
essenciais da teoria do etiquetamento (labeling approach) deixou, nesse contexto,
marcas profundas em seu desenvolvimento posterior, incluindo o da criminologia
marxista. Deste último campo, são diversos os textos seminais que enveredam pelo
desvelamento das relações entre penalidade sob o capitalismo e controle social da
classe trabalhadora, muitas vezes pela exploração do célebre capítulo 24 do livro 1 de O
Capital, de modo a estender o debate acerca do processo de acumulação primitiva e do
papel da legislação que esteve na base do cercamento dos campos. É o que, por
exemplo, Dario Melossi em termos centrais trabalha em conhecido artigo (1976), ao
lado do desenvolvimento da questão disciplinar que, abordada por Marx e Engels em A
Sagrada Família, é por Melossi notavelmente ampliada em seu famoso livro de autoria
conjunta com Massimo Pavarini (MELOSSI; PAVARINI, 2006).
No que se refere à primeira faceta – a do fenômeno criminal propriamente dito
–, um dos poucos criminólogos a se dedicar a essa empreitada foi o holandês William
2
Entre outros aspectos, a centralização na cultura é ressaltada como típica da abordagem pós-moderna por
autores como Terry Eagleton, que afirma que, para ela, “a verdade é o produto da convenção cultural (...). A
cultura é uma ideia popular no pós-modernismo por todos os tipos de razão, uma dais quais é o fato de que
ela aparentemente funde os domínios de fato e valor” (tradução livre de EAGLETON, 2005, p. 276-277).
Ellen Wood também identifica, entre os relevantes traços da esquerda pós-moderna, a “ênfase na
linguagem, na cultura e no ‘discurso’” (WOOD, 1996, p. 123). Paradoxal e curiosamente, em artigo de clara
exposição, Garland (2003), sem perceber que seu enfoque cultural a fomenta, rejeita a visão que encara a
punição contemporânea como pós-moderna, e que exigiria portanto uma leitura também pós-modernista.
45
Bonger ao início do século XX. Ele apresentou uma tentativa de relacionar a incidência
da criminalidade e condições econômicas, articulada a uma
análise qualitativa do processo produtivo capitalista e da sua influência sobre
o fenômeno criminal através da esfera ética (...), com a qual a teoria das
condições econômicas da criminalidade encontra uma linha de
desenvolvimento diretamente ligada a uma interpretação da teoria marxista
da sociedade. (BARATTA, 2011, p. 242-243)
Inobstante realmente, na linha do que apontam diversos críticos (cf. p. ex.
TAYLOR; WALTON; YOUNG, 1973), muitas das análises de Bonger possam ser
consideradas toscamente elaboradas por força de uma influência acentuada do
positivismo, é certo que sua proposta foi insuficientemente desenvolvida pelos
criminólogos marxistas. Há pontos de partida que deixaram de ser explorados: se, como
Bonger constata (2012), o egoísmo no capitalismo consubstancia-se no propulsor de
atos antissociais (e portanto criminalizáveis) por parte de membros de todas as classes,
cuida-se de observação consonante, em primeiro lugar, com a teorização de Marx (2010,
p. 50) no que toca à separação entre sociedade política e sociedade civil (esta domínio
pleno do homme egoísta), e ao processo de desumanização que a alienação impinge a
trabalhadores e capitalistas (MARX, 2015, p. 308-309). Em segundo lugar, há
compatibilidade com estratégias alinhadas à teoria crítica do valor e dedutíveis das
formulações de Postone, Lukács e Chasin – como demonstrado em ARAÚJO, 2011 –, no
sentido da promoção de um plexo ético-valorativo antitético ao do egoísmo e da
competição, que informa a lógica do capital. Tal plexo produz-se em gérmen no seio da
classe trabalhadora, proletária ou não, pois encontra-se na base mais geral da atividade
laborativa, e deve florescer justamente por uma revolução na práxis vital (produção
material da vida) que resgate esta sua lógica onímoda.
Mas, para além dessa mera indicação atinente à possibilidade de avanço no
aspecto da atividade criminosa em si, o objetivo central deste artigo é o de indicar como
elementos da teoria crítica do valor, mormente os já delineados nos itens anteriores,
podem subsidiar o enfoque mais desenvolvido da criminologia marxista: o da análise da
reação social ao delito.
4. Punição e forma-mercadoria: Postone e Pachukanis se encontram
Se, como indicado, os trabalhos de Dario Melossi e Pavarini podem, ao lado,
entre outros, da obra de Alessandro Baratta e Jock Young, ser tomados como
representativos das formulações da criminologia e da crítica marxista do direito penal
desenvolvidas a partir dos anos de 1970, os lineamentos mais fundamentais e
promissores de tal abordagem já haviam sido colocados por Evguiéni Pachukanis na
década de 20 do século passado. O tema foi por ele trabalhado sobretudo no conhecido
capítulo 7 de sua principal obra, Teoria geral do direito e marxismo (2017).
O que Pachukanis expõe de modo instigante é a maneira pela qual a afirmação
da privação de liberdade como punição penal dominante na formação social capitalista,
para além de funcionar como mecanismo de dominação de classe – isto é, como
instrumento de subordinação da nascente classe proletária à disciplina do trabalho
produtor de valor –, encontra raízes mais profundas na própria forma mercadoria que se
encontra na base da sociabilidade sob o capitalismo.
Nessa linha, o modelo da proporcionalidade entre, por um lado, pena e, por
outro, dolo ou culpa reflete o princípio de equivalência que, na esfera econômica,
46
método de Marx, sendo correta tal análise de derivação imediata e estando ela já
presente em O capital:
Pachukanis, rigorosamente, retorna a Marx, isto é, não apenas às referências
ao direito encontradas em O capital- e não seria exagero dizer que ele é o
primeiro que verdadeiramente as lê, mas principalmente, ele retorna à
inspiração original de Marx, ao recuperar o método marxiano. (NAVES, 2000:
16)
O presente trabalho, então, procura se inserir nesse debate, analisando a
correlação entre a noção de sujeito de direito e a noção de pessoa presentes em Marx e
Pachukanis. Ademais, visa demonstrar que a categoria sujeito de direito não pode ser
derivada imediatamente do termo “pessoa” presente em O capital. Mesmo se possível
uma derivação/analogia do termo, ela deveria ser mediada por outras derivações mais
claras na obra de Marx (Como o sujeito automático e o aspecto religioso), não sendo o
sujeito de direito, ou a própria forma jurídica, centrais para o autor de O Capital. Longe
de tentar retirar as importantes contribuições de Pachukanis como marxista, busca-se,
aqui, compreender um caráter de inovação do autor, e não mera continuidade das obras
do autor alemão. Ou seja, se é possível conferir centralidade às categorias do direito,
Pachukanis é o grande responsável por essa análise (SARTORI, no prelo a,b), e não
propriamente Marx.
Compreendendo a maneira como Pachukanis parte do sujeito de direito e como
ele enxerga que esta categoria se deriva do termo “pessoa”, pode-se compreender
como a forma jurídica ganha enfoque elevado em comparação a Marx. Isso permite, por
fim, devido à importância de Pachukanis no momento revolucionário russo, levantar as
hipóteses que: a) há mais relevância dada ao Direito que em Marx; b) a maior
centralidade do direito pode não advir diretamente do autor Alemão, mas de leituras
diferentes, como de Engels; c) talvez, deva-se ler Pachukanis como um autor que não foi
completamente fiel ao método de O capital ou como um explicitador de ideias já
inerentes em Marx, mas com seu caráter de inovação em certo sentido, permitindo,
assim, uma melhor compreensão de suas obras e, consequentemente, melhor
compreensão do próprio cenário revolucionário soviético e d) interpretando o principal
teórico marxista do direito (SARTORI, no prelo a,b) de forma adequada e, questionando
alguns de seus pontos, abre-se a possibilidade para ir além de suas análises.
1. Método e construção do pensamento em Pachukanis
Para melhor compreensão das razões que levaram Pachukanis a partir e dar
centralidade ao sujeito de direito em seu livro Teoria Geral do Direito e Marxismo, deve-
se compreender o modo pelo qual: “Explicitamente, o autor soviético tenta transpor a
análise marxiana trazida em O capital para o campo do Direito”. (SARTORI, no prelo
b:15) Mesmo que não seja o objetivo primordial do presente trabalho um estudo acerca
do método de Marx, não há como se tratar da tentativa (e se ela é possível ou não) de
derivação imediata realizada por Pachukanis de sujeito de direito advinda das obras de
Marx 2, sem passar brevemente por esse ponto. Primeiramente, deve-se ter em vista
questionar como um todo. O objetivo é, exclusivamente, questionar a presença de um Sujeito de Direito já
em Marx.
2
Mesmo com uma abordagem que visa questionar em parte as interpretações de Pachukanis referentes às
obras de Marx, deve-se, sempre ter o devido cuidado, uma vez que a análise feita pelo autor soviético é
bastante minuciosa, tendo, inclusive, sido um dos primeiros teóricos marxistas a se ater à Introdução de
1857. (CERRONI, 2017)
56
que o autor soviético visa uma análise da forma jurídica não apenas como uma mera
ideologia3 ou com enfoque exclusivo em seu conteúdo, sendo a forma jurídica, sem
dúvidas, histórica e devendo ser analisada como tal. Com a suposta falha dos autores
marxistas em se desvencilhar das teorias psicológicas e sociológicas, torna-se necessário,
para Pachukanis, compreender o conteúdo real da forma jurídica. (PACHUKANIS, 2017:
72) Assim:
Ou seja, o marxismo, ao tratar da forma jurídica e da própria direito, não
deve focar única e exclusivamente em seu conteúdo, mas também deve
analisar a materialidade da própria regulação jurídica, do direito e da
regulamentação jurídica enquanto forma jurídica, alcançando o “ passado,
presente e futuro das instituições jurídicas”. Tal análise possibilitaria a
compreensão do direito em sua forma mais acabada e conferiria a
capacidade de compreender o direito em seu movimento real.
(PACHUKANIS, 2017:73)
Para realizar tal análise e crítica à forma jurídica da forma explicitada, há uma
aparente relação e tentativa de se utilizar do método presente em O capital — e sua
crítica da economia política — para o direito. Tendo em vista que tanto a teoria geral do
direito como a economia política começam com a mercadoria (PACHUKANIS, 2017:75),
há uma similaridade de origem em ambas, permitindo uma análise parecida. Assim, a
teoria geral do direito percorreria uma história paralela, mesmo que não autônoma, em
relação à economia política, sendo forma jurídica igualmente capaz de refletir um
desenvolvimento histórico real da sociedade burguesa:
Dessa maneira, o desenvolvimento dialético dos conceitos jurídicos
fundamentais não apenas nos oferece a forma do direito em seu aspecto
mais exposto e dissecado, mas, ainda, reflete o processo de
desenvolvimento histórico real, que não é outra coisa senão o processo de
desenvolvimento da sociedade burguesa. (PACHUKANIS, 2017:76)
Ou seja, o direito forneceria, assim como a economia política, uma base
igualmente firme de estudos, sendo que história que percorreria um caminho
análogo/paralelo à forma mercadoria, possibilitando o estudo do desenvolvimento da
sociedade burguesa. Forneceria, então, um “terreno” sólido, passível da aplicação do
método presente em O capital. Como se verá posteriormente, essa qualidade da forma
jurídica pode advir de uma suposta concepção jurídica de mundo e valorização do
Direito presente em Engels4·, e não em Marx. Por hora, o objetivo é demonstrar que
Pachukanis tenta, sem dúvidas, utilizar-se do Método presente em O capital. Para
demonstrar isso, tem-se por central a seguinte passagem:
Do mesmo modo que a riqueza da sociedade capitalista assume forma de
uma enorme coleção de mercadorias, também a sociedade se apresenta
como uma cadeira ininterrupta de relações jurídicas. (PACHUKANIS, 2017:83)
No trecho, a relevância que Pachukanis começa a dar à forma jurídica é notória,
destacando as relações jurídicas para a esfera de troca de mercadorias, sendo que estas
3
Entende-se como visão ideológica da forma jurídica aquela em que esta seria dependente de
características extrajurídicas ou encarada como uma “mera ficção”. (PACHUKANIS, 2017:71)
4
Não se busca, aqui, questionar se há em Engels igual valorização da forma jurídica como há em Pachukanis.
Porém, o que se mostra claro é uma concepção jurídica de mundo presente em sua obra Socialismo Jurídico,
havendo valorização do Direito. (ENGELS E KAUTSKY, 2012)
57
existentes ou são geradas por lei estatal, devendo, mesmo nesse último caso, se basear
ou originar de relações sociais preexistentes.6
Ademais, Pachukanis atribui importância às relações jurídicas uma vez que elas
seriam essenciais para o processo de troca. O processo de troca na esfera de circulação
de mercadorias, efetivamente, por mais que não central, aparece em Marx como
importante para que o produto de trabalho se torne mercadoria:
Para se tornar mercadoria, é preciso que o produto, por meio da troca, seja
transferido a outrem, a quem vai servir como valor de uso. Por último,
nenhuma coisa pode ser valor sem ser objeto de uso. Se ela é inútil, também
o é o trabalho nela contido, não conta como trabalho e não cria, por isso,
nenhum valor. (MARX. 2013:119)
Supostamente partindo de Marx, Pachukanis entende ser a relação jurídica — e,
posteriormente, a relação jurídica entre sujeitos de direito por meio do contrato7 —
fundamental para que a troca ocorra, completando, assim, a forma mercadoria.
Portanto, para o autor “A relação jurídica entre sujeitos é apenas outro lado das
relações entre os produtos do trabalho tornados mercadorias”. (PACHUKANIS, 2017:97)
Para ele, existiria já em Marx um vínculo fundamental entre forma jurídica e forma
mercadoria, sendo a primeira indispensável para a concretização do processo de troca e
da própria formação da mercadoria:
Além disso, Marx revela a condição fundamental, enraizada na própria
economia, da existência da forma jurídica, que é justamente a igualação dos
dispêndios do trabalho segundo o princípio da troca de equivalentes, ou seja,
ele descobre o profundo vínculo interno entre a forma do direito e a forma
mercadoria. (PACHUKANIS, 2017:80)
Mesmo dando claro destaque à relação jurídica, Pachukanis, como já salientado
no tópico II, não comete o erro de autonomizar a forma jurídica, continuando esta
dependente do processo produtivo8:
Dessa maneira, onde quer que se encontre uma camada primária da
superestrutura jurídica, a relação jurídica é diretamente gerada pelas
relações materiais de produção existentes entre as pessoas. (PACHUKANIS,
2017:104)
Do mesmo modo, o direito considerado em suas determinações gerais, como
forma, não existe somente na cabeça e nas teorias dos juristas especialistas.
Ele tem, paralelamente, uma história real, que se desenvolve não como um
sistema de ideias, mas como um sistema específico de relações, no qual as
6
A discussão acerca da preexistência da norma ou da relação jurídica levará o autor ao embate entre a
superestrutura jurídica e política. Entender a norma como um momento primário seria o mesmo que
entender a superestrutura jurídica como uma mera consequência da superestrutura política. Porém,
entende o autor que a superestrutura política e a própria organização estatal constituem momentos
“secundários e derivados”. (PACHUKANIS, 2017:102) Então, a superestrutura jurídica não seria criada pelo
poder estatal, não se fundamentando nesse, mesmo sendo esse poder importante para conferir clareza e
estabilidade. O que se tem é que a superestrutura jurídica apoiada diretamente no modo de produção.
Porém, não se pretende no presente trabalho entrar detalhadamente nesta discussão.
7
Importante afirmar que: “Ao tratar da questão, o autor também deixa claro que o central são “os vínculos
entre as diversas unidades econômicas privadas e isoladas” e não os contratos propriamente ditos, de modo
que, também sob este aspecto, escapa de uma análise rasteira do Direito”. ( SARTORI, no prelo:15)
8
A importância e centralidade da esfera produtiva em Marx é fulcral para a compreensão de sua teoria.
Isso é afirmado, tendo em vista, inclusive, que a mudança para outro modo produtivo eliminaria o
fetichismo “fantasmagórico” da mercadoria. (MARX, 2013)
60
que distintos produtos de trabalho possam se confrontar como trabalho humano igual,
trabalho abstrato. (MARX, 2013)
Assim, na esfera de circulação de mercadorias, a força de trabalho deve ser
incorporada ao produto do trabalho de forma abstrata, gerando valor de uso para outra
pessoa e valor de troca para que mercadorias diferentes possam se confrontar
mutuamente. Porém, o caráter fetichista não se completa com a relação entre sujeitos
de direito abstratos e impessoais, ou mesmo do valor social ou de troca (como
Pachukanis propôs), mas decorre, mais, da naturalização dos inícios e fins do processo
produtivo e de troca entre coisas, que passam a ter o caráter de mercadoria como uma
qualidade natural para as pessoas:
O caráter místico da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente no
fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio
trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho, como
propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete
também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma
relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores. É por
meio desse quiproquó que os produtos do trabalho se tornam mercadorias,
coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais. (MARX, 2013:147)
O fetiche da mercadoria envolve, muito mais que uma relação entre sujeitos de
direitos, o próprio processo de reificação em que “Uma relação social determinada
entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma
relação entre coisas”. (MARX, 2013:147) Para Marx, a mercadoria traria uma forma
social, por se tratar de: “uma coisa muito complicada, cheia de sutileza metafísica e
manhas teológicas”. (MARX, 2013:146). Ou seja, por trazer uma forma social repleta de
misticismos, não haveria a precisão pretendida por Pachukanis, não dependendo, pois, a
mercadoria tão diretamente da forma jurídica. (SARTORI, no prelo b) Estaria a reificação
presente em primeiro momento, e não a forma jurídica. O próprio Marx destaca que a
possibilidade de uma analogia mais próxima seria em relação ao campo religioso, não
destacando em nenhum momento o aspecto jurídico como essencial para esse processo
no Capítulo I de O capital. Tem-se que a analogia religiosa seria possível tendo em vista
que o próprio capital consiste em “uma relação social entre pessoas intermediada por
coisas” (MARX, 2013:147), sendo o valor, e não sujeitos de direito, apareceria como
sujeito desse processo. Assim, o valor: “Tal qual um Deus, assume uma posição
demiúrgica“. (SARTORI, no prelo a:15).Por mais que a relação de troca se dê entre os
“guardiões”, a forma social do valor sujeita os próprios homens. As mercadorias, de
criaturas, viram criadoras, e aos trabalhadores:
aparecem as relações sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos
privados como o que são, isto é, não como relações diretamente sociais
entre pessoas em seus próprios trabalhos, senão como relações reificadas
entre as pessoas e relações sociais entre coisas. (MARX, 2013:148)
Ademais, o valor e seu processo de autovalorização se apresentam na esfera de
circulação e troca, tanto como mercadoria como dinheiro, havendo sucessivas
alterações entre valor como dinheiro e valor como mercadoria. Essa mudança de forma,
sem que haja a perda do valor no processo, cria um “sujeito automático”, capaz de se
valorizar — ou melhor, autovalorizar — apenas por ser valor. Ou seja, o valor se valoriza
devido a sua qualidade mística e “oculta” de ser valor:
63
seja, não há em Marx possibilidade para se entender que as relações pessoais da idade
média alteram-se — na sociedade capitalista — para, apenas, relações jurídicas entre
sujeitos de direitos. Tal passagem de uma visão religiosa de mundo para uma visão
jurídica de mundo, que parece basear as análises pachukanianas, está muito mais
presente nos textos de Engels do que de Marx.
Há, nesse ponto do trabalho, importantes considerações a se fazer para que a
linha raciocínio fique mais elucidada: a) Como visto, talvez, a derivação entre pessoa e
sujeito de direito, se possível, não possa ser feita sem as devidas mediações; b) Pensa-
se, aqui, que há em Pachukanis, com a maior centralidade dada ao direito, uma visão
mais próxima de algumas obras de Engels do que Marx; c) Chegando a essa conclusão,
como ficará demonstrado a seguir, há um fortalecimento do entendimento de não mera
continuidade da obra desses três autores e d) Explicitada a existência de
particularidades e inovações na obra de Pachukanis, com o enfoque no sujeito de
direito, tem-se que, será possível fornecer suporte teórico para posteriores estudos de
influências diretas do autor soviético na própria Revolução Russa, uma vez que a melhor
elucidação dos seus conceitos basilares e ideias auxilia nesse processo.
Feita as devidas considerações, retorna-se para a explicação em relação à
proximidade da maior valorização do Direito observada em Pachukanis, e também
presente anteriormente em Engels, mas não claramente em Marx. Em Pachukanis, pode
ser observada uma clara substituição das relações pessoais e patriarcais características
do feudalismo por relações jurídicas, característica extremamente importante para a
dominação impessoal12 do capitalismo. Ou seja, o Direito aparece como substituto das
relações pessoais feudais marcadas pelo aspecto religioso, havendo não mais uma
relação pessoal direta, mas uma relação jurídica entre sujeitos de direito:
Esse processo pode também ser caracterizado como uma dissolução das
relações orgânicas patriarcais e sua substituição por relações jurídicas, ou
seja, por relações entre sujeitos formalmente iguais perante a lei. A
dissolução da família patriarcal, em que o pater familias era o proprietário da
força de trabalho da esposa e dos filhos, e a conversão em uma família
contratual, em que os cônjuges celebram entre si um contrato de bens, e os
filhos (por exemplo, nas fazendas americanas) recebem do pai uma
remuneração pelo trabalho, é um dos exemplos típicos dessa evolução. O
desenvolvimento das relações mercantis-monetárias acelera essa evolução.
A esfera da circulação, abarcada pela fórmula M-D, D-M, desempenha um
papel dominante. (PACHUKANIS, 2017:62-63)
Efetivamente, pode-se observar em Marx um destaque de importância da
religião na Idade Média, uma vez que esse período histórico foi dominado pelo
catolicismo (MARX, 2013). Tal ideia de concepção católica de mundo também é
observada em Engels e Kaustky:
A concepção católica de mundo, característica do feudalismo, já não podia
satisfazer à nova classe e às respectivas condições de produção e troca. Não
obstante, ela ainda permaneceu por muito tempo enredada no laço da
onipotente teologia. Do século XIII ao século XVII, todas as reformas
efetuadas e lutas travadas sob bandeiras religiosas nada mais são, no
aspecto teórico, do que repetidas tentativas da burguesia, da plebe urbana e
12
Impessoal, pois as relações no capitalismo não se dão direta e imediatamente entre pessoas. Na Idade
Média, o senhor feudal, na visão do autor soviético, dominava o servo de forma a gerar uma dependência
direta, pois seria este grande proprietário de terras e poder bélico. Essa dominação direta, efetivamente
existente, apoiava-se, indiretamente, na visão religiosa de mundo, sendo que o poder do senhor feudal
adivinha indiretamente de Deus. (PACHUKANIS, 2017:144)
66
Conclusão
Pachukanis foi um dos mais influentes juristas soviéticos, tendo sua obra Teoria
Geral do Direito e Marxismo sido publicada em 1924, ou seja, em momento próximo à
Revolução Russa. Resta clara, pois, a importância da correta compreensão do autor para
a análise do próprio momento russo, uma vez que ele participou “como personagem
principal de todas as polêmicas de seu tempo”. (LEANDRO MASCARO, 2002:139) Porém,
o que se vê em grande parte na academia nacional é a visão de Pachukanis como uma
espécie de continuidade de Marx:
Podemos dizer que a concepção de Pachukanis corresponde inteiramente às
reflexões que Marx desenvolve, sobretudo nos Grundrisse e em O Capital, a
propósito do lugar central que ocupa a análise da forma para compreender
as relações sociais capitalistas. (NAVES, 2000:40)
Por outro lado, o que se viu no decorrer do presente trabalho é que a concepção
de Pachukanis, no tocante a sua categoria sujeito de direito, não é uma mera
reprodução ou continuidade de Marx, não existindo, já em Marx, tal analogia ou
possibilidade de uma derivação direta. Do termo pessoa na esfera de circulação, não há,
imediatamente, a noção de sujeito de direito, ou seja, não há a centralidade dada por
Pachukanis à forma jurídica. O que se vê é que, caso possível tal derivação, suas devidas
mediações deveriam ter sido mais bem explicitadas, pois, em Marx, o foco está na noção
de relações sociais reificadas sendo que a dialética entre pessoas e coisas (SARTORI, no
prelo a) é o central no tocante ao termo pessoa. Ademais, uma possível analogia, se
possível, seria com a religião, não propriamente com o Direito. Portanto, seja na esfera
de circulação de mercadorias, com as pessoas (“guardiões”) trocando mercadorias, seja
no momento em que a pessoa dispõe de sua força de trabalho, o sujeito de direito e a
forma jurídica não se mostram centrais como em Pachukanis, apresentando este uma
interpretação, inclusive, mais próxima da pensada por Engels e sua valorização do
Direito. Portanto, resume-se:
Pachukanis, pois, é bastante perspicaz: traz as raízes de uma categoria
decisiva da teoria do Direito para o centro de sua crítica ao mesmo. No
entanto, sejam quais forem as vantagens de sua teoria, ela não deriva
diretamente da análise presente em O capital. (SARTORI, no prelo a:25)
Com o fortalecimento dessa “nova” visão interpretativa acerca do grande autor
soviético, passando a ser analisado com caráter de inovações e tendo em vista as
diferenças em relação à Marx, há novas possibilidades de estudos acerca das influências
diretas desse autor no momento revolucionário soviético e, consequentemente,
contribuindo para uma análise da Revolução Russa como um todo e, é claro, ir além das
próprias análises já feitas sobre Pachukanis.
Referências bibliográficas
ALTHUSSER, Louis. A favor de Marx. Tradução por Dirceu Lindoso. São Paulo: Zahar,
1979.
_____. A querela sobre o humanismo (I). In: Crítica Marxista n. 9. São Paulo: Xamã, 1999.
_____. A querela sobre o humanismo (II). In: Crítica Marxista n. 12. Rio de Janeiro, 2002.
68
_____. Aparelhos Ideológicos de Estado. Tradução por Valter José Evangelista e Maria
Laura Viveiros de Castro 3ª edição. Rio de Janeiro A individualidade moderna nos
Grundisse: Edições Graal, 1987.
CASALINO, Vinícius. O Direito e a mercadoria: para uma crítica marxista da teoria de
Pachukanis. São Paulo: Dobra Universitária, 2011.
CERRONI, Umberto. A teoria socioeconômica de Pachukanis. In: PACHUKANIS, Evgeni.
Teoria geral do Direito e marxismo. Tradução por Paula Vaz de Almeida. São Paulo:
Boitempo, 2017
CHASIN, José. Marx. Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica. São Paulo:
Boitempo, 2009
ENGELS, F e KAUTSKY, K. O Socialismo Jurídico. São Paulo: Boitempo, 2012.
KASHIURA JR., Celso Naoto. Sujeito de direito e capitalismo. São Paulo: Expressão
Popular, 2014
LEANDRO MASCARO, A. Nos extremos do direito (Schmitt e Pachukanis). In: Revista de
cultura e política, n° 57. São Paulo: 2002.
LUKÁCS, György. Ontologia do ser social I. Tradução por Nélio Schneider. São Paulo:
Boitempo, 2012.
MARX, Karl. O Capital, livro I. Tradução por Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013
_____. Crítica do programa de Gotha. Tradução por Rubens Enderle. São Paulo:
Boitempo, 2012.
NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. Boitempo:
São Paulo, 2000.
NASCIMENTO, Joelton. Com Pachukanis, para além de Pachukanis: direito, dialética da
formavalor e crítica do trabalho. In: Verinotio: Revista On Line de Filosofia e Ciências
Humanas, n° 19. Belo Horizonte: 2015
_____. A questão do direito em Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2014.
PACHUKANIS, Evgeni. Teoria geral do Direito e marxismo. Tradução por Paula Vaz de
Almeida. São Paulo: Boitempo, 2017
PAÇO CUNHA, E. Marx e Pachukanis: do fetiche da mercadoria ao “fetiche do direito” e
de volta. In: Revista On Line de Filosofia e Ciências Humanas, n° 19. Belo Horizonte:
2015.
SARTORI, Vitor Bartoletti. SARTORI, Vitor Bartoletti. Teoria geral do direito e marxismo
de Pachukanis como crítica marxista ao direito In: Verinotio: Revista Online de Filosofia e
Ciências Humanas, n. 19. Belo Horizonte: 2015 a.
_____. Direito, política e reconhecimento: apontamentos sobre Karl Marx e a crítica ao
Direito. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 61, 2016.
_____. (no prelo a). Acerca da categoria de “pessoa” e de sua relação com o processo de
reificação em O capital de Karl Marx: um debate com Pachukanis. Belo Horizonte
_____. (no prelo b). Crítica da economia política e crítica ao Direito: uma “teoria do
direito” marxiana?. Belo Horizonte.
69
WARAT, Luis Alberto. A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica.
Florianópolis: Ed. da UFSC, 1983.
_____. Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2004.
_____. Mitos e teorias na interpretação da lei. Porto Alegre: Síntese, 1979.
_____. O lugar da fala: digna voz da majestade. In: (Org) FALCÃO, Joaquim. Pesquisa
científica e direito. Recife: Ed. Massangana, 1983.
73
[...] essa indistinção dos tempos passados não foi algo que aconteceu apenas
com o direito. Entre a moral e a religião também se deu o mesmo. O
Iluminismo, um movimento filosófico do século XVIII, demonstrou que seria
possível compreender a moral independentemente da religião. Para os
iluministas, poderia haver uma moral racional válida para todos os homens,
universal e superior, independente da religião de cada qual. Mas para os
povos do passado essa separação seria muito difícil. Moral e religião
estavam misturadas. Só os tempos modernos, devido a certas condições, e
estruturas sociais, como a organização capitalista, deram especificidade à
religião, à moral, à política, à economia e também ao direito. (MASCARO,
2015, p.2, negrito nosso)
Desta maneira, mirando o passado pelas lentes do presente, podemos perceber
que a concepção dos juristas modernos, o juspositivismo, restringe o fenômeno jurídico
ao processo produção de normas jurídicas estatais e suas consequências de reprodução,
sendo obstáculo a uma compreensão do Direito como produto de relações sociais
concretas. Para MASCARO,”[...] No passado o direito era inespecífico, misturado à moral
e à religião; no presente ele se revela algo distinto. Um fenômeno singularizado. Mas,
mesmo assim, a questão ainda permanece, posta agora em outro patamar, mais
profundo [...]”. (MASCARO, 2015, p. 2).
Analisar o desenvolvimento de formas sociais torna-se indispensável. Assim, a
observação da forma jurídica, e consequentemente do fenômeno jurídico moderno, está
relacionada de maneira indissociável com as formas sociais emergidas do Capitalismo,
que tem como características fundamentais operar na subjetivação e na atomização dos
agentes: os indivíduos que trocam isoladamente sua força de trabalho por salário
encontram no Sujeito de Direito e na mercantilização generalizada da produção,
finalidades sociais concretas, consubstanciada em um instrumento próprio do Direito
moderno—o contrato de trabalho. “[...] O direito é capitalista não apenas porque seus
criadores ou agentes o sejam. A forma direito é capitalista” (MASCARO,2015, p. 13).
E ainda, vale ressaltar, conforme MASCARO:
As ordens sociais primitivas não tem, portanto, semelhança com as formas
de dominação moderna. A dominação antiga tem um caráter direto,
exercendo-se pela força ou pela posse da terra. Poderíamos ilustrar essas
relações com a seguinte regra de dominação: senhor → escravo; ou senhor
→ servo. Um domina diretamente o outro. Quando perde o domínio, acaba a
relação de exploração. No passado, ninguém conserva o direito de ser senhor
quando sua força termina. (MASCARO, 2015, p.18, negrito nosso)
Um dos juristas mais importantes do século passado é, sem sombra de dúvida, o
russo Evgeni Bronislavovitch Pachukanis (1891-193?), que retomou o método marxiano
de análise do Direito, contribuindo com uma perspectiva crítica singular. O autor de “A
teoria geral do direito e marxismo” teve “[...] o efeito de uma pequena revolução teórica
na jurisprudência.” (NAVES, 2008,p.16). Ainda segundo NAVES:
[...] rigorosamente, retorna a Marx, isto é, não apenas às referências ao
direito encontradas em O capital—e não seria exagero dizer que ele é o
primeiro que verdadeiramente as lê —mas, principalmente, ele retorna à
inspiração original de Marx [...]É isso que vai emprestar à sua obra toda
radicalidade teórica e prática, consagrada no princípio que ele começa a
desvendar—não obstante os seus limites—da extinção da forma jurídica.
(NAVES, 2008, p.16, 2008, negrito nosso)
76
Com o advento da revolução de 1917 na União Soviética, houve espaço para que
as contribuições jurídicas fossem pautas do processo revolucionário. Entretanto, como
bem demonstrou NAVES (2009), a falta de referências teóricas levou muitos intelectuais
do Direito à utilização do aparato teórico sistematizado pelo direito burguês. Assevera
ele: “[...] não é de surpreender, portanto, que a grande influência no período pós-
revolucionário seja proveniente de um jurista burguês—Petrajitski—, mesmo que lido na
versão 'marxista' de Mikhail Reisner”. (NEVES, 2009, p. 17) Um lapso de lucidez e
inovação se dá na retomada do método marxiano realizado por Pachukanis. Para o autor
russo, o Direito surge como a legitimação que permite à mercadoria cumprir o seu
processo metabólico na troca capitalista. Emergindo das necessidades da mercadoria, o
Direito garante que essa circule, principalmente através da figura do “sujeito de
direitos”, uma abstração que determina todos os homens como iguais. “Iguais” que aqui
não deve ser lido sem o seu subtexto “iguais para trocar”, ou seja, “iguais perante a lei”,
o que evidência a desigualdade real ante a formal.
Entre a publicação de sua obra principal, supra mencionada, e o início de sua
forçada autocrítica (entre 1924 e 1929), o processo revolucionário, então deflagrado na
União Soviética, sofre um retrocesso com a indicação de J. Stalin à direção do Partido
Bolchevique e a sua adequação à concepção juspositivista do promotor Andrei
Vychinski, célebre por atuar nos processos de Moscou. Essa perspectiva teórica
juspositivista dominará a União Soviética nos períodos subsequentes. Comparando a
obra de Pachukanis à corrente teórica “oficial” adotada à época, afirma MASCARO:“[...]
destaca-se do marxismo vulgar. Vychinski, ao tempo de Stalin, foi o nome maior de um
marxismo jurídico, que se confundia, na prática, como uma mera expressão do Estado
Soviético, uma espécie de juspositivismo socialista”. (MASCARO, 2008, p. 46) O potencial
transformador das principais teses pachukanianas é refreado, como salienta NAVES:
“[...] Com a consolidação da direção stalinista e a promoção, na virada dos anos 20 para
os 30, da coletivização forçada dos camponeses e da industrialização pesada, a União
Soviética ingressa na via do Capitalismo de Estado [...]”. (NAVES, 2009, p. 17). Esse
período vai exigir que o aparato Estatal seja reforçado e, com ele, também seja
reconstituído o tecido jurídico que lhe dará suporte.
À época, a obra teórica do autor é contraposta a de outro autor russo, Piotr
Ivanovitch Stutchka, cuja obra principal é o livro “Direito e luta de classes”, publicado em
1921. Nele, Stutchka foge das teorias ecléticas, como o psicologismo, ou do
reducionismo extremo, representado pelo juspositivismo. Insere no contexto de análise
do Direito o fenômeno do poder, não o poder vulgarizado—já explorado por outros
autores, como Hobbes e Hegel—, exercido diretamente, mas aquele relacionado aos
pormenores da luta de classes. Podemos observar comforme Alysson Mascaro, uma
síntese de sua tese central:
Quando, no Colégio do Comissariado do Povo para a Justiça, redigimos os
princípios do Direito Penal da URSS e precisamos formular, por assim dizer, a
nossa concepção ‘soviética’ do direito, escolhemos a seguinte definição: ‘O
direito é um sistema (ou ordenamento) de relações sociais correspondente
aos interesses da classe dominante e tutelado pela força organizada desta
classe’, (...) Em conjunto considero ainda hoje totalmente válida a definição
do Comissariado do Povo para a Justiça, porque inclui os principais
componentes dos conceito do direito em geral, e não só do direito soviético.
O seu principal mérito consiste em colocar, pela primeira vez, o problema do
direito em geral sobre uma base científica, renunciando a uma visão
puramente formal e vendo no direito um fenômeno social, que muda com a
luta de classes, e não uma categoria eterna. Esta definição rejeita, em suma,
a tentativa própria da ciência burguesa de conciliar o inconciliável e, pelo
77
contrário, encontra uma medida aplicável aos mais diversos tipos de direito,
pois adota o conceito de luta de classes e das contradições entre as mesmas.
1
(Stutchka apud MASCARO, 2008, p. 46, itálico do autor)
O desenvolvimento da teoria exposta pelo autor deveu-se principalmente pela
especificação do fenômeno jurídico com a própria evolução sócio-histórica, a qual
corresponde a um determinado avanço da luta de classes, ou seja, a historicidade do
fenômeno. Observado historicamente, o Direito se revela diferente do conjunto de
técnicas que nos propõe o juspositivismo. Esta perspectiva demonstra-se dinâmica, já
que admite variações, matizações, ora avançando, ora retrocedendo segundo as
singularidades das situações jurídico-políticas, bem como as ações revolucionárias
praticadas durante o período denominado “Revolução Russa”. Porém, como observa
MASCARO: “[...] Falta-lhe, no entanto, uma mirada mais ampla, que abrigue o casual da
luta de classe no estrutural da própria lógica do capital. [E ainda] Se tomado em base de
comparação, com as distâncias devidas, Stutchka praticamente é um ulterior hegeliano
de esquerda radical ou um antecipado Carl Schmitt marxista”. (MASCARO, 2008, p. 47).
Pachukanis, no entanto, avança de maneira indiscutível, ao buscar encontrar, a
específica relação social, que é fundamento do Direito. A luta de classes não se
desenvolve, no capitalismo, por meio de relações entre forças neutras e indiferentes,
assim como não é mais a violência direta que opera a exploração, pois o trabalhador é
impelido a colocar à venda sua força de trabalho, sob pena de perecer, caso rejeite o
acordo, expresso no contrato de trabalho. Encontramos nas representações jurídicas,
dentre elas os “Sujeitos de Direitos” (igualados formalmente) que podem comprar e
vender em um circuito universal de trocas, o âmago da concretude do direito, ou seja,
segundo Alysson Mascaro: ”[...] Na circulação de mercadorias—dentre as quais o
próprio trabalho—está o cerne lógico de toda a manifestação do direito”. (MASCARO,
2008, p. 48)
1. Karl Marx e Friedrich Engels: Marxismo e Direito
As obras teóricas de Karl Marx e Friedrich Engels não guardam estreita relação
com a produção cientifica do Direito, senão de maneira lateral, entretanto, podemos
observar já nos escritos da juventude de Marx um interesse pelo fenômeno jurídico,
bem como sua correlação com o Estado (fenômeno político-estatal).
Num primeiro momento a posição adotada por Marx é a de um “Hegeliano”2 de
esquerda, na concepção do filosofo alemão Hegel, segundo Alapanian: “[...] o Estado é a
materialização do interesse geral da sociedade e o responsável pela sua universalização.
Quando o Estado se sobrepõe à sociedade civil, torna esta esfera ética e moral[...]”.
(ALAPANIAN, 2008, p. 21). Tendo em vista isso, só o Estado é capaz de universalizar a
humanidade. Porém já em 1843, Marx redige seu trabalho “Introdução à Crítica da
1
Originalmente in: STUTCHKA, PiotrIvanovitch. Direito e Luta de Classes: teoria geral do direito. São Paulo:
Acadêmica, 1988. p. 16.
2
Hegelianos de esquerda ou Jovens Hegelinianos: corrente idealista na filosofia alemã dos anos 30-40 do
século XIX, que procurava tirar conclusões radicais da filosofia de Hegel e fundamentar a necessidade da
transformação burguesa da Alemanha. O movimento dos jovens hegelianos era representado por D.
Strauss, B. Bauer e E. Bauer, M. Stirner e outros. Durante certo tempo, também L. Feuerbach partilhou as
suas ideias, bem como K. Marx e F. Engels na sua juventude, os quais, rompendo posteriormente com os
jovens hegelianos, submeteram à crítica a sua natureza idealista e pequeno-burguesa em A Sagrada Família
(1844) e em A Ideologia Alemã (1845-1846). Disponível em:
<https://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/h/hegelianos_esquerda.htm,>. Acesso em: 10
Jun. 2016.
78
[...] Não se pode dizer que foi elaborada uma reflexão acabada acerca do
direito, seus vários ramos, suas formas de operacionalização, porque as
reflexões de Marx e Engels sobre a ideologia jurídica burguesa não foram
utilizadas por eles, para um estudo específico da superestrutura jurídica
(Pachukanis, 1977). O centro de suas atenções estava na afirmação da
concepção materialista da história, segundo a qual o que determina a
consciência é a existência e não contrário, como afirmava a maior parte da
filosofia idealista de sua época. Segundo esse ponto de vista, era mais
importante mostrar o direito como epifenômeno e não como elemento
determinante da realidade. (ALAPANIAN, 2008, p. 24, negrito nosso)
Entretanto no ano de 1917, na União Soviética, o então partido Bolchevique, de
orientação marxista, tem uma tarefa árdua: O desenvolvimento de um “Estado
operário”, o que necessitaria supostamente da construção de um aparato jurídico, é aí
que o debate sobre o Direito ganha profundidade e centralidade na modernidade, sob a
perspectiva da totalidade de seu fenômeno social e concreto.
2. Teoria geral do Direito e forma jurídica: Teses de E. B. Pachukanis
No cerne da teoria pachukaniana do Direito, o autor buscava desenvolver o
debate teórico então proposto, ou seja, a possibilidade de existência de um “Direito
proletário”. Para tanto, utiliza analogicamente das observações perpetradas por Karl
Marx, principalmente no que se refere à perspectiva metodológica adotada por este,
quando da análise da economia política, especificamente no Capitulo I, de sua obra
máxima “Das Kapital” (O Capital-Crítica da Economia Política). O modo de pesquisa
adotado pelo autor procura o átomo do fenômeno jurídico, assim como em Marx, que
encontra na mercadoria o substrato da estrutura do modo de produção capitalista, E. B.
Pachukanis encontra na figura do “Sujeito de Direito” a base estrutural fundadora da
forma jurídica, essencial à circulação de mercadorias e dependente deste circuito
generalizado de trocas mercantis.
Salienta ALAPANIAN:
Pachukanis enxergava uma estreita relação entre a forma jurídica e a forma
mercadoria e pleiteava o desenvolvimento de uma teoria geral do direito
com o mesmo status de uma teoria da economia política, utilizando-se,
para isso, do método de Marx.
Polêmicas mesmo na sua época, as teses de Pachukanis negavam a
possibilidade de um direito socialista ou proletário e reafirmavam a
proposições de Marx e Engels a respeito da necessidade da extinção da
forma jurídica juntamente com a extinção do Estado. A defesa de suas teses
custou-lhe a vida. Ele foi executado em 1937 após ter sido forçado a fazer
várias ‘autocríticas’, num cenário em que o direito soviético foi amplamente
utilizado como instrumento de reforço do Estado na era Stalinista.
(ALAPANIAN, 2008, p. 27, negrito nosso)
Para nosso autor, o principal problema nas perspectivas teóricas adotadas, para
a observação científica do fenômeno jurídico, residia na valorização excessiva do
intrafenômeno da coerção, como demonstra Pachukanis: Os marxistas que se
debruçavam sobre o tema entendiam “[...] o momento da regulamentação coativa
social (estadual) como a característica central, fundamental e a única típica dos
fenômenos jurídicos” (PACHUKANIS Apud ALAPANIAN, 2008, p. 31). Foi, portanto, nesse
diapasão teórico que o aspecto vinculante entre Sujeito de Direito e forma mercadoria,
81
segundo o método marxiano, foi negligenciado por estudiosos como Stutchka, aponta
ALAPANIAN:
[...] Ele (Pachukanis) atribui essa negligência à necessidade de uma
radical diferenciação por parte dos estudiosos do marxismo da atitude dos
sistemas idealistas, daquela filosofia do direito cujo fundamento é
representado pelo conceito de sujeito e sua capacidade de
autodeterminação. (ALAPANIAN, 2008, p.33, negrito nosso)
A subjetividade jurídica, incorporada nos princípios formais de igualdade e
liberdade, não são apenas e somente instrumentos abstratos de dominação da
burguesia que os utiliza contra o proletariado, são também associados ao surgimento da
sociedade burguesa, encontrando aí sua base fundamental. Nesse sentido afirma
PACHUKANIS:
[...] a vitória deste princípio não é apenas, e deste modo, um processo
ideológico (Isto é, um processo que pertence inteiramente à história das
idéias [sic], das representações, etc.), mas antes um processo real de
transformação jurídica das relações humanas, que acompanha o
desenvolvimento da economia mercantil e monetária (na Europa da
economia capitalista) e que engendra profundas e múltiplas modificações
de natureza objetiva. (PACHUKANIS apud ALAPANIAN, 2008, p. 33)
Segundo Pachukanis, a forma jurídica tem existência concreta, e não se constitui
somente de um reflexo ideológico, assim afirma: “[...] o direito, enquanto forma, não
existe somente no cérebro e nas teorias dos juristas especializados; ele tem uma história
real, paralela, que não se desenvolve como um sistema conceitual, mas como um
particular sistema de relações” (PACHUKANIS apud ALAPANIAN, 2008, p. 33, itálico do
autor). Isso não significa absolutamente a derradeira negação das representações
erigidas dos sujeitos de direito, como “direitos e deveres”, “limites da lei”, “bem comum”
etc. O autor considera que o momento central está consubstanciado no acordo, como
expressão de vontade. Em uma sociedade onde a produção mercantil encontra-se
generalizada, os contratos privados têm função primordial nas relações de produção e
na reprodução social do modo de produção, e são o necessário objetivo da mediação
jurídica.
Salienta ALAPANIAN:
Assim, as condições para o desenvolvimento de uma superestrutura
jurídica (as leis, os tribunais, os processos, os advogados, etc) surgem a
partir do momento em que as relações humanas são construídas como
relações entre sujeitos. Daí a importância do estudo da superestrutura
jurídica como fenômeno objetivo, o que não foi feito por Marx. (ALAPANIAN,
2008, p. 33)
O caminho para a teoria crítica do direito e a possibilidade de uma teoria geral
do direito, para ele, dependeria da metodologia adotada. Fosse possível a análise da
forma jurídica, como Marx analisou a forma mercadoria, seguiria ela um modelo
científico dialético que vai do abstrato ao concreto, como o método em O Capital,
notadamente no Capítulo I. Nestes termos o autor lembra que toda ciência, no estudo
de seu objeto, parte sempre de uma mesma realidade, total e concreta, diferindo-se
pelo método de analise dessa realidade, como resultado de combinações das abstrações
mais simples.
82
Assim, poderia parecer coerente e até mesmo natural, que Marx perpetra sua
análise da economia política a partir de uma determinada realidade total e concreta, por
exemplo, a delimitação de uma população em um dado espaço geográfico, que produz
em determinadas circunstâncias. Entretanto, o termo “população”, se ignorados os
componentes da luta de classes, e das classes sociais em si, é uma abstração vazia. Cada
classe nada significa caso não se compreenda o lucro, a renda etc, até que se cheguem
às categorias elementares como valor, preço e mercadoria. Por fim, Pachukanis
questiona se à teoria do Direito não caberiam às mesmas considerações, no sentido
anteriormente mencionado quanto à população, à sociedade e ao Estado: não devem
ser o ponto básico metodológico, senão resultado das diversas reflexões dialéticas
possíveis.
Para o autor algumas abstrações gerais decorrem da funcionalidade lógica do
sistema de normas no direito positivo, representando assim, um produto posterior, e
superior, de uma elaboração consciente. São conceitos fundamentais, que são
encontrados em todo o pensamento jusfilosófico, e principalmente juspositivista. Assim,
segundo Pachukanis:
Podemos, portanto, ter como ponto assente que o pensamento jurídico
evoluído independentemente da matéria à qual se dirige não pode passar
sem um certo número de definições muito abstratas e gerais. Mesmo a
nossa ciência jurídica soviética não pode passar sem elas, pelo menos
enquanto ela permanecer, também, enquanto tal, uma jurisprudência, ou
seja, dê respostas as suas tarefas práticas e imediatas.(PACHUKANIS apud
ALAPANIAN, 2008, p. 35, negrito nosso)
Outro aspecto metodológico abordado por Pachukanis consiste, novamente
buscando em Marx e na construção histórica das abstrações jurídicas, em contrapor-se
aos que defendiam a substituição dos conceitos gerais no suposto “Direito proletário”
como tarefa essencial da teoria marxista. Para ele, ao contrário, o direito deve ser
tomado como categoria histórica, assim negando a legitimidade histórica de um “Direito
revolucionário”. Para Karl MARX:
A sociedade burguesa é a organização histórica da produção mais
desenvolvida e mais variada que existe. Por esse fato, as categorias que
exprimem as relações desta sociedade e que permitem ao mesmo tempo
perceber a estrutura e as relações de produção de todas as formas de
sociedade desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos ela se edificou, de
que certos vestígios, parcialmente ainda não apagados, continuam aliás a
subsistir nela, e de certos signos simples, desenvolvendo-se nela, se
enriquecem de toda sua significação.(MARX apud ALAPANIAN, 2008, p. 35,
negrito nosso)
A invariabilidade da forma jurídica, assim, estaria representada numa suposta
criação de novos conceitos pra um “Direito proletário”. Dessa maneira, haveria uma
desvinculação da mesma com a realidade histórica e concreta, escamoteando o
processo real de sua culminância e da necessidade de sua extinção. Seria o mesmo, para
o autor, que criar uma economia “proletária” capitalista, com categorias contraditórias,
por exemplo, o “valor” proletário.
Entendido o método adotado pelo autor, resta determinar se a essência do
direito reside na base material ou na superestrutura, para melhor entender a relação
entre direito e ideologia. Pachukanis, nesse sentido, demonstra que a ciência jurídica
não é necessariamente uma espécie particular de ideologia, como afirmavam alguns
83
Estado.” Somente uma visão idealizada do socialismo pode pretender que esse período
extinguirá a luta de classes através da vitória sobre as antigas classes dominantes.
Aceitar essa visão é assumir uma harmonia (igualdade formal) entre o Estado (e seu
partido [ou partidos] representante [s], nominado [s] “Dos Trabalhadores”) e os
operários, justificando assim que esse mesmo Estado aja coercitivamente contra os
trabalhadores como se essa fosse à vontade da classe trabalhadora, como fez a União
Soviética durante os anos de 1920-1930.
Para BILHARINHO NAVES, Márcio, 1993, p.6:
No decorrer desse processo é possível que surjam duas alas no interior do
partido dirigente e do Estado. Uma primeira ala que apoia as iniciativas das
massas, participa e até mesmo — em alguns momentos — dirige a luta de
transformação das relações sociais capitalistas, e uma segunda ala,
identificada em diferentes graus com o capitalismo de Estado, que reprime
as massas e reforça a dominação de classe e a reprodução das relações de
produção capitalistas
O período de transição ainda é um período revolucionário. Até a tomada efetiva
do poder pela classe trabalhadora, as ações do Estado que tenham por objetivo
estabilizar e reproduzir as relações sociais, como revisões legais, decretos e ferramentas
legislativas, conduz inevitavelmente à manutenção das relações sociais de estabilidade e
reprodução burguesa. Assim a luta que se trava pela transformação completa do modo
de produção é ainda mais complexa, já que fundamentalmente remanescem no núcleo
dessa nova forma socialista elementos das relações burguesas. Assim, NAVES (1993),
p.6, entende: “Em decorrência, a democracia não pode favorecer essa luta, antes, ao
contrário, a democracia constitui-se em um obstáculo à luta da classe operária pelo
comunismo”.
A aceitação da democracia universalmente idealizada delimita a luta de classe
impedindo que a transformação real possa acontecer mesmo durante o período de
transição ou socialista. Estabelecer limites jurídico-políticos de participação legaliza a
classe operária, que somente poderá recorrer a órgãos e procedimentos oficiais. Desse
modo, atingir uma sociedade igualitária e livre realmente é improvável.
O Direito cumpre funções especificas nesse processo, como podemos observar,
NAVES (1993), p.7:
O recurso ao direito, notadamente, joga um papel fundamental ao interditar
qualquer outra via de manifestação das massas a não ser aquelas oferecidas
a elas pelo Estado. Assiste-se, assim, não só ao processo de legalização da
luta de classes, à qual já nos referimos, mas também a um processo de
criminalização da luta de classes, ou seja, à tipificação penal das formas de
expressão e luta das massas não previstas em lei, com a correspondente
sanção.
Percebemos que há uma identificação dos partidos (Como instituições jurídicas
de representação) de esquerda com a democracia, bem como os instrumentos jurídicos
como “Os Direitos humanos”, o que nos condiciona a uma série de discussões a respeito
dessa correlação e suas decorrentes contradições. Diversas correntes teóricas também
identificam socialismo com democracia, ora como mantenedora do aparato burguês
universal, ora como uma ruptura completa com o mesmo. Para ambas as concepções,
permanecem invariavelmente a forma do Direito (forma jurídica) como
regulamentadora das regras políticas.
Como salienta NAVES (1993), p.8:
86
Nada garante, porém, que mesmo que um partido definido como “socialista” ou
dos “trabalhadores” , quando se apodere do aparato estatal, coloque em marcha um
processo revolucionário capaz de alterar o modo de produção, imprimindo
características “socialistas” ao Estado. Não há impedimento que as circunstâncias sejam
mais favoráveis a determinadas condições após a tomada do poder, mas a manutenção
do Estado, mesmo que socialista, mantém e acentua a separação entre poder político e
as massas, nas clássicas dicotomias: Sociedade civil e Estado, Direito público e Direito
privado.
Segundo NAVES (1993), p.10:
[...] Essa separação pode acarretar uma situação em que os dirigentes do
Estado não identifiquem os seus interesses com os interesses das massas,
passem a favorecer e a reproduzir as condições que permitem justamente
manter e ampliar essa separação, e a exercer sobre as massas um domínio
político similar àquele levado a cabo pela antiga burguesia “privada”.
Ante as crises do Capital e mobilizações sociais no mundo, resta estudar o
período de transição e suas consequências, com vistas a contribuir teoricamente com o
processo de transformação radical do modo de produção, analisando assim: socialismo
e a fase de transição, comportamento da forma jurídica, mercantil e estatal, durante
esse período nas experiências denominadas “socialismo real”, principalmente a
Revolução Russa (1917) e a tese pachukaniana de extinção do Estado e do Direito.
Conclusão
O cerne da questão apresentada encontra-se na relação entre Direito e
socialismo. A fim de manter a coerência de sua obra, Pachukanis não poderia admitir a
existência de um “Direito socialista e/ou proletário”. Pela análise perpetrada no
repertório teórico do autor, conclui-se que levando em consideração que o socialismo é
uma fase de transição, a persistência do aparato jurídico e político-estatal representa
verdadeiro óbice à superação do modo de produção, mantendo sob outros signos as
mesmas formas fundamentais.
Se para o liberalismo e neo-liberalismo a sofisticação da técnica do direito
representa a verdadeira liberdade do homem, para a concepção marxista esse fato
torna as relações sociais cada vez mais feitichizadas, sendo um obstáculo formal e
material para a necessária transformação social. O autor assim desenvolve a sua teoria
levando em consideração os apontamentos realizados por Marx, preenchendo uma
lacuna então deixada por este. Culminam em um ponto comum: que a transformação
social é necessária dado o caráter evolutivo dos modos de produção, e que não será
concretizada com a mera substituição de conceitos gerais, mas somente quando as
relações não mais se dividirem entre relações privadas e sociais,.
No processo de planificação econômica mais significativo, ocorrido durante a
revolução russa, não se vislumbra ainda a transição completa das formas sociais,
permanecendo o que se denominou posteriormente de “Capitalismo de Estado”. O
direito como sustentáculo, mesmo desse projeto, não pode perdurar na superação dos
sistemas econômico, político e jurídico. Apropriando-se das teses marxistas, não observa
o autor a passagem direta de um Direito Burguês para direito nenhum. Para ele, o
processo jurídico no período de transição, será de “um Direito burguês sem burguesia”,
realizando uma diferenciação entre direito genuíno burguês, propriamente dito, e
direito não-genuíno, que vigoraria durante o processo de transição.
88
No dia 21 de janeiro de 1882, Karl Marx e Friedrich Engels, a propósito do
“Prefácio à edição russa” do Manifesto comunista, afirmavam:
O Manifesto comunista tinha como tarefa a proclamação do
desaparecimento próximo e inevitável da moderna propriedade burguesa.
Mas na Rússia vemos que, ao lado do florescimento acelerado da velhacaria
capitalista e da propriedade burguesa, que começa a desenvolver-se, mais da
metade das terras é possuída em comum pelos camponeses. O problema
agora é: poderia a obctchina russa – forma já muito deteriorada da antiga
posse em comum da terra – transformar-se diretamente na propriedade
comunista? Ou, ao contrário, deveria primeiramente passar pelo mesmo
processo de dissolução que constitui a evolução histórica do Ocidente? Hoje
em dia, a única resposta possível é a seguinte: se a revolução russa constituir-
se no sinal para a revolução proletária no Ocidente, de modo que uma
complemente a outra, a atual propriedade comum da terra na Rússia poderá
servir de ponto de partida para uma evolução comunista. (MARX; ENGELS,
1998, p.73, grifo meu)
Em 1894, 12 anos depois, Engels disse, no “Posfácio” a Questões sociais na
Rússia:
A partir disso, já se depreende que a iniciativa para uma eventual
reconfiguração da comuna russa não poderá partir dela mesma, mas única e
exclusivamente dos proletários industriais do Ocidente. A vitória do
proletariado europeu ocidental contra a burguesia e a substituição a ela
associada da produção capitalista pela produção socialmente conduzida
constituem as precondições necessárias para alçar a comuna russa ao mesmo
4
estágio. (ENGELS, 2013, p. 132, grifo meu)
E, reportando-se diretamente ao “Prefácio à edição russa” do Manifesto
comunista, finalizou:
Não me aventuro a responder à questão se ainda terá se salvado desta
comunidade o suficiente para que ela eventualmente, como Marx e eu ainda
esperávamos em 1882, se torne o ponto de partida de um desenvolvimento
comunista em consonância com uma reviravolta na Europa ocidental. Porém,
isto é certo: para que ainda se conserve um resquício dessa comunidade, a
primeira condição é a derrubada do despotismo tsarista, a revolução na
Rússia. Esta não só arrancará a grande massa desta nação, os camponeses,
do isolamento em seus povoados que constituem o seu mir, seu “mundo”, e
a conduzirá ao grande palco, onde conhecerá o mundo exterior e, desse
modo, a si própria, a sua própria situação e os meios para salvá-la da
presente penúria, mas ela também proporcionará ao movimento dos
trabalhadores do Ocidente um novo impulso e novas e melhores condições
de luta e, desse modo, acelerará a vitória do moderno proletariado industrial,
sem a qual a Rússia atual não conseguirá sair nem da comuna nem do
capitalismo, rumo a uma transformação socialista. (ENGELS, 2013, p. 142,
grifo meu)
4
Engels ainda observou: “Em contrapartida, não é só uma possibilidade, mas uma certeza que, após a
vitória do proletariado e a transferência dos meios de produção para a posse comum dos povos europeus
ocidentais, os povos que recém-sucumbiram à produção capitalista e conseguiram salvar as instituições
gentílicas ou resquícios destas dispõem, na forma desses resquícios de posse comum e nos hábitos
populares que lhes correspondem, de um meio poderoso para abreviar significativamente seu processo de
desenvolvimento até a sociedade socialista e resguardar-se da maior parte dos sofrimentos e lutas que nós,
da Europa ocidental, só com muito esforço conseguimos superar. Mas, para isso, o exemplo e o apoio ativo
do Ocidente até agora capitalista constitui uma condição incontornável.” (ENGELS, 2013, p. 134, grifo meu)
92
Dizem que a história é irônica. Às vezes essa percepção se confirma. Exatos 20
anos depois, os deputados do Partido Social-Democrata alemão (SPD), representante do
proletariado mais cônscio e organizado da Europa ocidental e suposto “herdeiro” da
tradição marxista, aprovaram os créditos de guerra pretendidos pelo Kaiser e ajudaram
a precipitar a Alemanha na I Guerra Mundial. Ao fazê-lo, contrariaram toda a sorte de
análises teórico-políticas levadas a cabo pelas melhores cabeças da esquerda
revolucionária europeia. Isabel Loureiro explica:
No dia 4 de agosto, a bancada social-democrata no Reichstag votou
unanimemente os créditos de guerra solicitados pelo governo, inclusive os 14
deputados (entre eles Hugo Haase, Georg Ledebour, Karl Liebknecht, Otto
Rülle) que se opunham à maioria (78 deputados) e que concordaram depois
de muita discussão em respeitar a disciplina partidária. O dia 4 de agosto
tornou-se uma data histórica para a esquerda mundial. A partir daí, a social-
democracia converteu-se à política da união nacional (Burgfrieden),
abandonando o princípio marxista da luta de classes tanto no plano prático –
o que não era novidade – quanto no plano teórico. A Internacional Socialista,
Kautsky passará a explicar, era um instrumento adequado a tempos de paz,
não a tempos de guerra. Ou como disse ironicamente Rosa Luxemburgo:
“Proletários de todos os países, uni-vos na paz, e degolai-vos na guerra”.
(LOUREIRO, 2005, p. 43)
No dia 24 de outubro de 1917, num movimento rápido e genial, e dando de
ombros à convocação de Kerensky para a formação de uma Assembleia Constituinte, os
bolcheviques, com uma mobilização relâmpago, tomaram de assalto o poder e
proclamaram a vitória da revolução operária e camponesa contra a burguesia e
resquícios da aristocracia russa. Daniel Aarão Reis Filho narra com maestria o episódio:
O governo sentia, como todo o mundo, que o desenlace era uma questão de
tempo, de muito pouco tempo. Foi então que resolveu tomar medidas
repressivas contra um jornal bolchevique que se destacava particularmente
na agitação entre os soldados. Mandou fechá-lo, uma atitude drástica
naquelas circunstâncias. Pretextando a defesa da liberdade de imprensa
ameaçada, Trotsky garantiu a circulação do jornal. Na sequência, sempre
argumentando que estava empenhado em defender a liberdade das
organizações populares contra a tentativa de um novo golpe, o comitê militar
do soviete de Petrogrado ordenou a ocupação dos pontos estratégicos da
cidade. Uma tática de guerra usual: encobrir a própria ofensiva com
argumentos defensivos. Era noite de 24 de outubro de 1917, véspera da
abertura do II Congresso dos sovietes. De forma metódica, quase silenciosa,
as tropas aquarteladas na cidade tomaram a capital da Rússia, só
encontrando resistência digna desse nome no Palácio de Inverno, onde o que
restava do governo foi preso (Kerensky exilou-se na embaixada dos Estados
Unidos). O poder mudara de mão. (REIS FILHO, 2003, pp. 65-6)
Golpe de estado ou revolução? O autor observa:
Um golpe? Formalmente, sem dúvida. A insurreição desdobrou-se como uma
operação militar, sem prévia autorização do governo legal, nem sequer das
organizações soviéticas. A autoridade que a desencadeou foi o comitê militar
do soviete de Petrogrado, com a anuência e sob a liderança de seu
presidente, Trotsky. Não haviam recebido delegação, nem autorização, de
nenhuma instância soviética para fazê-lo. Na verdade, a ordem tinha vindo
do comitê central do partido bolchevique (...). Golpe ou revolução? A análise
das circunstâncias sugere a hipótese de uma síntese: golpe e revolução.
93
portanto, essencialmente burguês, poderia ser utilizado como parâmetro por uma
Revolução Socialista? Nesse sentido, Stutchka, a propósito deste Decreto, observava:
Quando promulgamos o Decreto sobre o Tribunal foi-nos colocada, em
primeiro lugar, a seguinte pergunta: em conformidade com que lei julgarão
os Tribunais Revolucionários? Queriam nos convencer de que, antes de tudo,
era necessário criar um novo direito material revolucionário, tanto civil como
penal, que pudesse dirigir o novo Tribunal. E até lá? Seria indispensável
seguir julgando-se no velho Tribunal, em conformidade com as leis
precedentes? Já observei que semelhantes argumentos caracterizam-se por
uma concepção puramente mecânica do direito, entendido enquanto norma
de emanação arbitrária e não como uma superestrutura, naturalmente
emergente das relações socioeconômicas existentes e cambiantes.
(STUTCHKA, 2001, p. 23, passim)
Que solução foi adotada pelos revolucionários? A certa altura, o Decreto
prescreve:
Os Tribunais Locais decidem as causas em nome da República Russa e guiam-
se, em suas decisões e sentenças, pelas leis dos governos derrubados, apenas
na medida em que essas não tenham sido ab-rogadas pela Revolução e não
contradigam a moral revolucionária e a consciência jurídica revolucionária.
(Decreto n. 1, sobre o Tribunal de 24 nov. 1917, in STUTCHKA, 2001, p. 116,
grifo meu)
Percebe-se que houve a recepção da legislação pré-revolucionária, inclusive das
leis aprovadas sob o governo dos tsares. Além do mais, o Decreto fala explicitamente
em “moral revolucionária” e “consciência jurídica revolucionária”. Ora, estariam os
revolucionários apelando para concepções burguesas ou mesmo aristocráticas de
direito? Pois “moral” e “consciência”, como fontes normativas, remetem,
evidentemente, a escolas que viam a criação do direito em origens não-legislativas. A
esta crítica Stutchka respondeu:
O nosso Decreto sobre o Tribunal efetuou todas as concessões possíveis, a
partir de nosso ponto de vista. Ele não nega, completamente, a lei escrita,
porém atribui-lhe um lugar adequado, em uma época de transição. Ele
reconhece a lei escrita dos governos derrubados, apenas na medida em que
essa não tenha sido abolida pelos decretos revolucionários ou pela
consciência jurídica revolucionária do povo. Essa formulação sofre,
efetivamente, de uma certa insuficiência, porém é franca e, de nenhuma
maneira, hipócrita. Ela chama o próprio povo, até a instauração definitiva da
nova ordem, a decidir, em cada caso particular, a questão relativa ao que
deve permanecer em vigor dos antigos dezesseis (16) volumes do Svod
Zakonov (Compilação das Leis do Império Russo), bem como sobre o que
deles já foi efetivamente abolido pela Revolução. (STUTCHKA, 2001, p. 26)
As regras de transição têm de haurir fundamento na velha ordem. Não há como
fugir desta condicionante socioeconômica. Assim, embora sob impulso revolucionário, o
alto comando da Revolução viu-se obrigado a reconhecer as antigas fontes “burguesas”
e “pré-burguesas” do direito: a lei; a moral; os costumes. Não obstante, ainda assim,
restava a questão de saber o que garante a natureza socialista da produção normativa.
Em outras palavras, que garantias a Revolução poderia oferecer de que os casos
concretos seriam solucionados à luz do “novo” direito revolucionário? A solução residia
na composição do órgão julgador. Disse Stutchka: “Com o que propomos substituir o
95
Tribunal de classe abolido? A resposta pode ser apenas uma única: com um Tribunal
Popular Eletivo.” (STUTCHKA, 2001, p. 28)
A aposta da Revolução no sistema orgânico era arriscada, embora não se
pudesse vislumbrar outra resposta no horizonte da época. Sob a ótica marxista, as
pessoas que compõem determinada estrutura desempenharão uma função que é
condicionada à forma da relação social na qual se inserem. Nesse sentido, o órgão
julgador, ainda que popular e eletivo, tenderá a resolver os conflitos sob o paradigma do
direito burguês, se as relações capitalistas se mantiverem intactas. Em outras palavras, o
caráter “revolucionário” do Tribunal não poderia depender da “boa vontade” dos
julgadores, mas sim de transformações socioeconômicas substanciais levadas a cabo
pelo movimento.
De qualquer maneira, o desenrolar dos acontecimentos conduziu a Revolução à
adoção de uma lei fundamental, vale dizer, a Constituição de 1918. Ora, não resta
dúvida de que as constituições são filhas legítimas das revoluções burguesas, sobretudo
as cartas escritas, que derivaram especialmente das revoluções Francesa e Americana.
Não significam senão a elevação do princípio da legalidade ao status máximo de
conformador de todas as relações, inclusive as políticas, sobretudo a submissão do
próprio estado ao direito, o que é, evidentemente, uma ficção. Não estaria o socialismo
rendendo homenagens demasiadas à tradição jurídica burguesa? Stutchka observava:
Nesse contexto, prevaleceu a concepção de que é indispensável expor nos
artigos de uma lei fundamental aquilo que se conseguiu na vida, desde que
não se tratem de artigos petrificados, do tipo daqueles contidos nas
Constituições Burguesas, e contanto que sejam modificados no curso da
Revolução Proletária. Assim, surgiu a nossa Constituição da época de
transição, a Constituição da Guerra Civil – tal qual eu a chamaria – a qual, em
seu artigo 9º, estabelece como sua tarefa essencial “o estabelecimento da
Ditadura do Proletariado urbano e rural e dos camponeses pobres, na forma
de um poderoso Poder Soviético de toda a Rússia, com o objetivo de derrotar
completamente a burguesia, aniquilar a exploração do homem pelo homem
e instaurar o socialismo, no qual não existirá nem divisão em classes nem
poder estatal”. (STUTCHKA, 2001, p. 36)
Para além de questões teóricas, o fato é que a adoção do “paradigma burguês”,
digamos assim, isto é, uma Constituição escrita, que certamente foi fruto da experiência
haurida com a regulamentação “legal” levada a cabo pelos decretos revolucionários, sem
dúvida garante, em maiores e melhores proporções, o alcance dos objetivos
revolucionários. Não podemos esquecer que a “lei”, como parâmetro normativo
“objetivo”, foi uma arma poderosa da classe burguesa contra as particularidades
“jurídicas” do mundo feudal que, em alguns lugares, custaram a desaparecer. O Código
Napoleônico não poderia ser melhor exemplo disto. Não resta dúvida de que a Rússia de
1917 apresentava uma configuração social feudal/camponesa bastante relevante, de
modo que um dos “trunfos” de Lênin foi justamente a compreensão da importância dos
camponeses no que concernia ao sucesso da empreitada revolucionária.
De qualquer maneira, a forma “jurídica” da Revolução ganhou vida por meio de
decretos e de uma Constituição, vale dizer, pela adoção do mesmo paradigma formal da
tradição burguesa. Evidentemente, esta homologia está correta do ponto de vista da
forma, porém não do conteúdo. No que concerne a este, ao menos no nível da
linguagem, o novo ordenamento assegurava a existência de um estado proletário e,
consequentemente, de um direito proletário. Quer dizer, a ditadura do proletariado
estava assegurada “juridicamente”. Stutchka anotou:
96
Mais tarde, em meados dos anos 30, novos processos voltariam a chamar a
atenção da sociedade e da opinião pública mundial, os chamados grandes
processos de Moscou, que liquidaram uma parte importante dos altos
dirigentes do Partido Bolchevique durante a Revolução de 1917. O primeiro,
em agosto de 1936, teve 16 acusados, todos fuzilados, entre os quais G.
Zinoviev e L. Kamenev. Em janeiro de 1937, mais 17 acusados e 13
condenações à morte, entre os quais I. Piatakov, G. Sokolnikov, L.
Serebriakov e K. Radek. Finalmente, em março de 1938, 21 acusados e 18
condenações à pena máxima, entre eles, N. Bukhárin, A Rykov, N. Krestinsky,
C. Rakovski, G. Iagoda. (...) Ao longo dos anos 30, os expurgos continuaram,
implacáveis. Dos 1.966 delegados ao XVII Congresso, em 1934, 1.108 foram
atingidos até 1938. Dos 139 dirigentes eleitos para o Comitê Central, em
1934, nada menos do que 98 desapareceram. (REIS FILHO, 2003, p. 101)
Em 1937 Pachukanis foi preso e executado. Em 1939, Stálin foi eleito “homem
do ano” pela revista Time.
2. O debate teórico
O debate teórico soviético no campo do direito é marcado pelas condições
socioeconômicas encontradas na Rússia pela Revolução de 1917, e, evidentemente,
pelas vicissitudes e necessidades práticas oriundas da, e, em certa medida, impostas
pela, vitória do movimento revolucionário. É nesse contexto que se devem compreender
as críticas e autocríticas produzidas na época. Esse contexto é responsável, também,
pela característica mais importante do debate: a necessidade de se estabelecerem os
contornos teóricos de um conceito marxista de direito.
Ora, até 1917 o pensamento jurídico russo não poderia escapar aos limites
estabelecidos pela infraestrutura econômica daquela sociedade, bem como dos
elementos superestruturais que a caracterizavam. Nesse sentido, o debate tinha de girar
em torno de uma concepção de direito em que predominavam pontos de vista ligados à
tradição rural feudal-campesina, de um lado, mercantil-capitalista, de outro, e pela
centralização do poder político na figura do tsar.
Nesse sentido, a Revolução estabeleceu um marco de ruptura até certo ponto
“dramático”, pois se deveria passar, de uma hora para outra, de uma discussão
incipiente no que concerne às questões jurídicas fundamentais do capitalismo para a
solução de problemas postos imediatamente pela construção do socialismo. Um enorme
“salto teórico”, digamos assim.
O ponto de partida do debate jurídico soviético, no entanto, não remete à
tradição jurídica russa mais ancestral, ligada à base socioeconômica e política
mencionada, mas a autores que expressam uma postura mais moderna, em certo
sentido contestatória do paradigma tradicional. Em outras palavras, o “caldo jurídico” a
partir do qual as principais questões foram postas e debatidas já estava, por assim dizer,
“ocidentalizado”.
Nesse sentido, o primeiro nome digno de nota, embora não se situe no campo
marxista, é o de Lev Iosifovitch Petrazitsky 7 . Sua “teoria psicológica do direito”,
7
“Lev Iosifovitch Petrazitsky (1867-1931) foi professor na Universidade de São Petersburgo e, depois da
Revolução de 1917, na Universidade de Varsóvia. Publicou em 1900 Ocerki filosofii prava (‘Princípios de
filosofia do direito’) e em 1904 O motivach celoveskich postupkov (‘Acerca dos motivos dos comportamentos
humanos’). Em 1907 completou a sua obra principal, Teorija prava i gosudarstva v svjavi s teoriej
nravstvennosti (‘Teoria do direito e do estado em conexão com a teoria da moral’). Ocupou-se também de
direito civil e de direito romano.” (CERRONI, 1976, p. 19, nota 26)
101
a ordem jurídica em geral”, o autor abstrai das diferenças específicas que distinguem as
diferentes classes, portanto, os interesses específicos e as específicas formas de
“estado”.
Ora, o excedente econômico do senhor de escravos provém do mais-trabalho
extraído ao escravo; a riqueza do senhor feudal, da exploração do servo da gleba; o
mais-valor do capitalista, da espoliação da moderna classe proletária. São formas
econômicas distintas, que redundam em interesses políticos essencialmente diferentes.
As relações de classe não coincidem na forma, embora o façam no conteúdo: a
drenagem do sobretrabalho. Uma definição universal de direito é, portanto,
inadequada. Ela lembra a crítica de Marx aos economistas burgueses que veem na pedra
ou no pau que abate o animal uma manifestação do capital. Como em todos os lugares
sempre existiram pedras, paus e animais, o capital existe e existiu desde o início dos
tempos e em todos os cantos do planeta.
Desse modo, a escravidão produz um conjunto de formas econômicas e políticas
distintas daquelas que se encontram no modo de produção feudal, que, por sua vez, são
diferentes das que se verificam no capitalismo. Os interesses de classe são distintos,
tanto quanto as formas do “estado”. Cada qual engendra, à sua maneira, relações
determinadas, diferentes. Pois bem, que elemento comum pode ser apontado como
específico do direito? Quer dizer, que relação social, sistema ou ordem é esta, que
expressa os interesses da classe dominante e é assegurada pelo estado?12 Stutchka tinha
sérias dificuldades para se desvencilhar desta questão.
Não obstante as observações críticas que se façam aos pontos de vista teóricos
de Stutchka, não se deve nunca deixar de reconhecer o imenso significado de seu nome,
quer sob o aspecto científico, quer sob a perspectiva da história da Revolução. Quanto a
esta, diga-se de passagem, sua importância é ainda maior que a de Pachukanis. Apenas
para exemplificar, como vimos, Stutchka assinou, juntamente com Lênin e a velha
guarda dos bolcheviques, o Decreto n. 1, de 24 de novembro de 1917. Quer dizer,
participou de grandes momentos da formulação jurídica do movimento. Sua figura
resplandece e o destino lhe concedeu a “sorte” de uma morte natural em 1932, quando
muitos de seus companheiros começariam a ser executados covardemente com tiros na
nuca.
De qualquer maneira, oito anos antes, em 1924, vinha à tona o livro que
significaria o ponto mais elevado das análises marxistas no campo do direito, ainda hoje
inalcançado: Teoria geral do direito e marxismo: ensaio de crítica dos conceitos jurídicos
fundamentais. Com esta obra, Evgeny Pachukanis colocou seu nome entre os grandes do
marxismo, não apenas no campo das análises jurídicas, como também no das pesquisas
12
Quem primeiro formulou essa observação crítica à perspectiva de Stutchka, regurgitada no Brasil sem o
devido crédito, foi Pachukanis: “O próprio livro de Stutchka, Revoljucionnaja rol’prava i gosudartstva, já
citado, que desenvolve toda uma série de questões de teoria geral do direito, não as agrupa numa unidade
sistemática. O desenvolvimento histórico da normatividade jurídica, do ponto de vista do seu conteúdo de
classe, é, na sua colocação, posto em primeiro plano relativamente ao desenvolvimento lógico e dialético da
própria forma (por outro lado, é preciso salientar que, ao comparar-se a terceira com a primeira edição,
notar-se-á naturalmente que o autor na sua terceira edição deu muito mais atenção às questões da forma
jurídica). Além disso, Stutchka procedeu apenas em função de seu ponto de partida, isto é, em função de
uma concepção do direito que faz dele, em essência, um sistema de relações de produção e de troca. Se, à
primeira vista, se considera o direito como a forma de toda e qualquer relação social, então pode dizer-se a
priori que as suas características específicas passarão sem serem percebidas. Muito pelo contrário, o direito,
como forma de relações de produção e de troca, desvenda facilmente, graças a uma análise mais ou menos
cuidadosa, os seus traços específicos.”
(PACHUKANIS, 1988, p. 20, nota n. 16; 2003, pp. 50-1, nota n. 1, grifo meu)
105
sobre política e estado 13 . Sua principal “façanha”, digamos assim, foi o rigor
metodológico com o qual abordou a questão do direito, retornando a Karl Marx e
Friedrich Engels. Não se valeu, porém, da leitura vulgar, muito em moda à época, mas
mergulhou na análise dialética das formas sociais, a partir de O capital.
A estupenda originalidade de seu pensamento reside na aproximação entre
forma jurídica e forma mercantil, ou seja, entre direito e mercadoria. De fato, ao abrir o
Capítulo II de O capital, Marx explica, em uma passagem que já se tornou clássica, que
as mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado para se trocarem umas com as
outras. Cabe a seus guardiães, os proprietários destas “coisas”, o papel de relacioná-las
entre si. Para que a troca ocorra, no entanto, é preciso um ajuste de vontades: o
contrato. Este enlace volitivo entre proprietários privados é precisamente a relação
jurídica, cuja forma contratual, reconhecida ou não em lei, é um reflexo da relação
econômica. Dito de outro modo: a troca de mercadorias “põe” a relação jurídica.
A aproximação entre mercadoria e direito é uma constante nas obras de Marx e
Engels, sobretudo em O capital. Ocorre que esta aproximação passou despercebida por
tantos quantos se debruçaram sobre a análise marxista da forma jurídica até 1924.
Como vimos, o ponto mais avançado, até então, fora a perspectiva de Stutchka, que via
o direito como uma relação social representativa dos interesses de classe, assegurada
pelo estado, mas não apontava a especificidade desta relação. Pois bem, Pachukanis fez
exatamente isso, e seu mérito foi reconhecido, inclusive, por aquele importante autor.
No “Prefácio” à segunda edição de Teoria geral do direito e marxismo ele anota:
Acho conveniente adiantar, desde já, neste prefácio, algumas observações
prévias quanto às ideias fundamentais do meu trabalho. O companheiro P. I.
Stutchka definiu, muito corretamente, a minha posição com relação à teoria
geral do direito, como uma “tentativa de aproximar a forma do direito da
forma da mercadoria”. Na medida em que o balanço final permite julgar,
esta ideia foi reconhecida em geral, e salvo algumas reservas, como feliz e
frutuosa. A razão disso se deve, por certo, ao fato de eu não ter tido neste
caso a necessidade de “descobrir a América”. Na literatura marxista e, em
primeiro lugar, no próprio Marx, é possível encontrar elementos suficientes a
uma tal aproximação. Basta citar, além das passagens mencionadas neste
livro, o capítulo intitulado “A moral e o direito. A igualdade”, do Anti-
Dühring. Nele é dada por Engels uma formulação absolutamente precisa do
vínculo existente entre o princípio da igualdade e a lei do valor; numa nota
ele afirma que “esta dedução das modernas ideias de igualdade, a partir das
condições econômicas da sociedade burguesa, foi exposta pela primeira vez
por Marx em O capital”. Depois de Marx, a tese fundamental, a saber, de que
o sujeito jurídico das teorias do direito se encontra numa relação muito
íntima com o proprietário das mercadorias, não precisava mais uma vez ser
demonstrada. (PACHUKANIS, 1988, p. 8; 2003, p. 36, grifo meu)
De fato, Pachukanis solucionou o “mistério” da forma do sujeito de direito. Este
não passa da figura do proprietário de mercadorias, encontrado no mercado capitalista,
que, aos poucos, com o desenrolar do sistema de trocas, autonomiza-se das relações
13
“Evgeny Bronislavovitch Pachukanis nasceu a 10 de fevereiro de 1881, em Staritsa, distrito de Tver,
atualmente Calinine. Foi vice-presidente da Academia Comunista e diretor do Instituto da Construção
Soviética e do Direito, de que foi destituído após um duro ataque de P. Judin (Pravda, 10 de janeiro de
1937). Desapareceu durante as repressões stalinistas, provavelmente fuzilado. A sua reabilitação foi
publicamente comunicada pelo Prof. Orlovsky, membro correspondente da Academia das Ciências da União
Soviética, num artigo publicado no Vestnik Akademii Nauk (n. 8, agosto de 1956). A sua obra principal teve
três edições (1924, 1926, 1927) e foi seguidamente traduzida em alemão, inglês, servocroata e italiano.”
(CERRONI, 1976, pp. 63-4, nota n. 85)
106
concretas, obtém reconhecimento legal e, com ele, é transposto para as nuvens das
teorias jurídicas tradicionais. A partir daí, como bons ideólogos que são, os juristas
burgueses só veem a relação “invertida”, isto é, a prescrição normativa, e então estão
aptos a sustentar, com absoluta tranquilidade, que, na verdade, o “dever-ser” é que
qualifica o “ser”, quer dizer, todos são sujeitos de direito na forma da lei.
A partir deste núcleo essencial – a forma sujeito, já desvendada –, Pachukanis
procedeu à crítica das categorias da teoria geral do direito. Nesse sentido, observou que
a relação jurídica é a “célula central do tecido jurídico” e precede, em termos históricos
e sob perspectiva lógica, a norma jurídica. Com isso, colocou em xeque o positivismo
tradicional, encetando contra Kelsen um debate que já se tornou clássico. No que
concerne à forma do estado, Pachukanis anotou que sua gênese reside no momento em
que a organização do poder da classe dominante abrange relações mercantis
suficientemente extensas. Quer dizer, a mercadoria é o núcleo constitutivo das relações
entre classes sociais e, portanto, também do estado moderno. Sua obra termina com
análises originais e instigantes da relação entre direito e moral, além de apontamentos
sobre a natureza do direito penal.
O debate teórico teve início imediato e foi razoavelmente “acalorado”.
Pachukanis não era simplesmente um “acadêmico”, embora tenha tido rigorosa
formação jurídica em solo alemão. Ocupou postos importantes no alto escalão
bolchevique, alcançando, inclusive, o lugar de vice-comissário do Povo para a Justiça.
Logo, sua concepção sobre o direito expressava, de alguma maneira, a “opinião oficial”
do partido. Nada mais natural, portanto, que as críticas proviessem, em primeiro lugar,
do próprio Stutchka. Assim, o ponto de vista de Pachukanis apresentava “sérios
problemas”, dentre os quais: a percepção da forma jurídica como “simples reflexo de
uma pura ideologia”14; o fato de “não reconhecer a existência do direito a não ser na
sociedade burguesa” (cf. PACHUKANIS, 1988, p. 13); a ausência de uma análise mais
apurada do direito no período de transição, isto é, o direito soviético 15 ; uma
permanência teórica excessiva na “abstrata sociedade de simples produtores de
mercadorias” em detrimento da crítica da sociedade de classes (PACHUKANIS, 2009, p.
147)16, entre outros.
Não obstante, o debate, observado anos depois, produziu algum consenso no
sentido de que os apontamentos de Pachukanis eram superiores aos de Stutchka, ao
menos no nível teórico. Quer dizer, se a teoria deste último adequava-se mais
perfeitamente aos problemas jurídicos encontrados pela Revolução, a obra daquele, por
sua vez, atendia de maneira mais rigorosa às exigências metodológicas do marxismo
enquanto ciência. Nesse sentido, no que concerne às observações de Pachukanis sobre
o estado, por exemplo, Cerroni anota:
Estas – e outras semelhantes – afirmações ultrapassam em muito a análise
de Stutchka, interrompida na concepção do estado (e da norma) como
simples instrumento desejado e “inventado” pela classe dominante,
concepção manifestamente impotente em face do estado de direito e do
estado que baseia a sua soberania no sufrágio universal. Elas permitem
também eliminar a aparente antinomia que Stutchka via entre igualdade
jurídica e desigualdade de fato (“exploração”), e que ele procurava resolver,
definindo a garantia publicista da propriedade privada como um “direito da
14
De acordo com Pachukanis (1988, p. 12), a observação consta do “Prefácio” de O papel revolucionário do
direito e do estado, de Stutchka.
15
Apontamento de Stutchka em O estado e o direito no período da construção socialista, conforme
salientou Pachukanis (2009, p. 144).
16
A propósito deste último aspecto, confira-se Casalino (2011).
107
norma posta pelo estado, salientando, inclusive, o papel que seu conteúdo de classe
desempenha em todo o sistema. Dizer, contudo, assim como faz Kelsen, que o caráter
jurídico de um fato depende da existência de uma norma que o qualifique como tal
estava, realmente, fora do horizonte de Pachukanis, pela simples razão de que ele se
situava no campo da crítica marxista e não nos domínios do positivismo jurídico acrítico.
De qualquer maneira, os debates em torno da obra de Pachukanis ficaram
durante muito tempo “interditados”, assim como as homenagens que se poderiam
render ao pensamento de Stutchka. A virada política que ocorreu na União Soviética,
com a consolidação do stalinismo e o princípio do “socialismo em um só país”, atingiu o
debate jurídico em cheio, sobretudo com a ascensão de Andrei Vichinsky20. Cerroni
observa:
Vichinsky ocupa na história do pensamento jurídico soviético um lugar de
primeira plana, pelo menos por duas razões. Antes de mais, foi o teórico
político-jurídico da época de Stálin, o que conduziu a batalha contra as
escolas de Reisner, Stutchka e Pachukanis, e foi também ele quem, ocupando
altos cargos políticos, profundamente influiu na práxis legislativa e
jurisprudencial da União Soviética, conduzindo particularmente a obra de
repressão contra os principais expoentes da oposição teórica e política.
Evidentemente que o que aqui nos interessa é o primeiro aspecto de
Vichinsky, mas é também oportuno indicar o segundo para demonstrar que o
seu triunfo teórico teve uma motivação política. (CERRONI, 1976, p. 75)
Para aquém das questões políticas, o ponto de vista “científico” de Vichinsky é
pobre, se bem que Cerroni ostente uma opinião em contrário21. Ora, uma definição
como esta que segue abaixo, por exemplo, forjada num caldo “marxista” dogmático,
remete muito facilmente ao ponto de vista tradicional, burguês, de um positivismo
bastante elementar. Cerroni explica:
O ponto de partida de Vichinsky é a aceitação integral da versão stalinista do
“materialismo dialético e histórico”, que justamente em 1938 era sintetizada
no famoso texto do mesmo nome: uma versão que não deixava certamente
de ter antecedentes na tradição cultural marxista – com referências
sobretudo a Engels e Lênin – e que, todavia, não se tinha tornado ainda
“cânone” indiscutível (...). Simplificando toda a problemática filosófica e
uma superestrutura jurídica, com suas leis formais, seus tribunais, seus processos, seus advogados etc.”
(PACHUKANIS, 1988, p. 10)
20
“Andrei Januarevitch Vichinsky (1883-1954) nasceu em Odessa e fez seus estudos jurídicos na
Universidade de Kiev, onde se licenciou em 1913. Em 1902 aderiu à ala menchevique do movimento
socialista e só entrou no Partido Comunista em 1920. Entre 1921 e 1922 ensinou na Universidade de
Moscou e no Instituto de Economia Plekhânov. Entre 1923 e 1925 foi membro do colégio penal do Tribunal
Supremo da União Soviética e de 1925 a 1928 foi reitor da Universidade de Moscou, onde ensinava direito
penal. Foi seguidamente procurador da RSFSR, vice-comissário de Justiça da própria república e, de 1931 a
1933, vice-procurador-geral da União Soviética. De 1935 a 1939, nos anos das grandes repressões
stalinistas, foi procurador-geral da União Soviética e representou a acusação pública nos mais importantes
processos. De 1939 a 1944 foi vice-presidente do Conselho e em 1949 veio a ser ministro dos Estrangeiros e
chefe da delegação soviética na ONU. Entretanto, em 1937, tinha sido nomeado diretor do Instituto do
Direito da Academia das Ciências da União Soviética, que é o principal instituto de investigação científica no
campo das ciências jurídicas. Manteve esse cargo até 1941 e em 1949 passou a membro efetivo da
Academia das Ciências da União Soviética.” (CERRONI, 1976, p. 74, nota n. 101)
21
“Seria, contudo, um erro considerar que os seus trabalhos teóricos não apresentam interesse científico.
Vichinsky foi, pelo contrário - precisamente como estudioso –, o caso mais emblemático da cultura jurídica
soviética no período de Stálin: de uma cultura fortemente pragmatizada, mas que não renunciava
completamente a medir forças com as argumentações e os instrumentos científicos.” (CERRONI, 1976, p.
75)
109
política no qual, por meio de determinado acordo, ocorre a transição para tal estado de
sociabilidade política estatal.
O enfoque naturalista considerava a sociedade civil como o reino da ordem
sobre um estado de natureza, no qual os homens encontravam-se em
algumas sociedades pré-estatais. A sociedade civil significava uma
organização dos indivíduos, além da família, produção, etc., em uma
entidade coletiva governada pelas leis (CARNOY, 1988, p. 91).
Há sim que se atentar para o caráter específico de determinada forma política
correlata ao momento específico em que ocorrem determinados tipos de relações
econômicas, estas abarcadas como um todo pela sociedade civil.
A soma total dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da
sociedade; o fundamento real sobre o qual se ergue uma superestrutura
política e jurídica e ao qual correspondem formas definidas de consciência
social (TUCKER, 1978. p. 04). A sociedade civil engloba o conjunto do
intercâmbio material dos indivíduos, no interior de um estágio determinado
de desenvolvimento das forças produtivas. Ela engloba toda atividade
comercial e industrial de um dado estágio de desenvolvimento, e, portanto,
ultrapassa o Estado e a nação, embora, por outro lado, ela novamente se
faça valer para fora como nacionalidade e tenha que se estruturas como
Estado para dentro (TUCKER, 1978. p. 163).
Tal perspectiva surge também como rompimento com a tradição idealista
alemã, que possui Hegel como seu maior expoente, para quem a sociedade civil era o
reino da “dissipação, da miséria e da corrupção física e ética” (CARNOY, 1988. p. 91);
sendo apenas e somente no Estado em que haveria um desenvolvimento da capacidade
ética e moral do homem; sendo, portanto, o Estado o elemento necessário para tal
desenvolvimento. Em síntese, há na perspectiva marxista uma predominância da
sociedade civil (infraestrutura) em relação à instância político-estatal (superestrutura).
Dominância esta que não se dá de forma lógica ou imediata. Para evitar equívocos neste
sentido, cabe a advertência efetuada por Poulantzas:
É mais do que nunca necessário demarcar-se da concepção economicista-
formalista, que considera a economia como sendo composta de elementos
invariantes .através dos diferentes modos de produção – de natureza e de
essência quase aristotélicas, e como sendo autorreproduzível e
autorregulável por uma espécie de combinatória interna. Essa foi, sabe-se,
uma tentação permanente na história do marxismo e que mantém-se ainda
atual. Esta concepção, reatando neste ponto com o economicismo
tradicional, oculta as lutas travadas no cerne mesmo das relações de
produção e de exploração. Considera igualmente o espaço ou campo do
econômico (e, em contrapartida, o do político, do Estado) como imutável,
possuindo limites intrínsecos, traçados de uma vez por todas por sua
pretensa autorreprodução, através de todos os modos de produção
(POULANTZAS, 1980. p. 18).
Ou seja, não há derivação lógico-formal entre sociedade civil, como
infraestrutura, e entidade político-estatal como superestrutura. Mais à frente, quando
do tópico devido, discorrer-se-á acerca da funcionalidade estatal4.
4
Tal funcionalidade em sentido cumulativo, isto pelo fato de não ser unívoco o agir de tal instituto e, ainda
mais, não ser propriamente configurada em uma única instituição.
127
acesso aos meios de produção e, por conseguinte, garantidor da existência material dos
que com ela se relacionam – mediatamente ou imediatamente.
Entretanto, a possibilidade de ler corretamente a articulação de uma
formação na articulação das funções do Estado supõe previamente um
princípio de leitura: este consiste precisamente no papel do Estado, fator de
coesão de unidade de uma formação. Neste sentido, a dominância, no papel
global do Estado, da sua função econômica indica, regra geral, que o papel
dominante na articulação das instâncias de uma formação cabe ao político
(POULANTZAS, 1977, p. 53).
Em síntese, a função do Estado dentro da produção não é a priori determinada,
mas sim determinável, isto em vista de caráter consolidador das contradições inerentes
ao todo do complexo social. Sendo aí onde se dão as relações de produção e, portanto,
determinando certa instância como preponderante e, por consequência, determinando
do papel intervencionista do Estado em certa ordem social. Necessidade esta (como
funcionalidade do Estado) que é inerente ao próprio sistema implementado, o qual é
oriundo das contradições antes alertadas e implementadas por um complexo estrutural.
4. A revolução e o Estado
Guardando estrito vínculo com o exposto no tópico acima discorrido, enveredar-
se-á sucintamente no agora apresentado sobre algumas das propostas apresentadas
pelos autores até então explorados, seja pela ótica revolucionária ou mesmo pelo sua
negação.
Como já exposto, na perspectiva leninista o Estado surge como aparato especial
de repreção e, desta forma, sua funcionalidade revolucionária não deveria ser distante
da já perpetrada, conquanto tendesse a uma completa guinada valorativa. Explica-se da
seguinte forma, uma vez posto o Estado, como aparato especial burguês, este mesmo
deveria ser conquistado pelo proletariado e submeter-se à especialidade proletária, em
suma, como repressão revolucionária, contra anseios burgueses e em favor do
proletariado.
Contudo, tal visão do Estado (como sendo uma instituição neutra por
excelência) trata-se de uma concepção conservadora (MASCARO, 2013. p. 10) e não
vislumbra uma perspectiva paraláctica da ideologia burguesa intrinsecamente
relacionada à figura do Estado. A paralaxe é um termo da física que compreende a
observação de um objeto a partir de dois pontos de vista diferentes em que, ao mudar-
se o ponto de vista, ocorre uma mudança do objeto observado. Slavoj Žižek trabalha
essa perspectiva de forma contundente em seu livro Violência: Seis Reflexões Laterais.
Diz Žižek sobre como funciona a paralaxe no que tange à violência:
[...] a violência subjetiva é somente a parte mais visível de um
triunvirato que inclui também dois tipos objetivos de violência. Em
primeiro lugar, há a violência “simbólica” encarnada na linguagem e
em suas formas [...] Em segundo lugar, há aquilo a que eu chamo
violência “sistêmica”, que consiste nas consequências muitas vezes
catastróficas do funcionamento regular de nossos sistemas
econômico e político [...] a violência subjetiva é experimentada
enquanto tal contra o pano de fundo de um grau zero de não
violência. É percebida como uma perturbação do estado de coisas
“normal” e pacífico. Contudo, a violência objetiva é precisamente
130
uma vez que se torna difícil conceber, em vista do aspecto globalizado da modernidade,
uma solução que parte de assembleias regionais do proletariado em direção a instâncias
superiores.
Ponto de retoque conferido por Gramsci à questão levantada por Lênin acerca
do momento de transição, onde o Estado já não mais se mostraria necessário, ao
comunismo avançado poder ser exposto pela sua ótica da revolução, a qual deveria
ocorrer no nível superestrutual (atentando à especificidade da caracterização da
sociedade civil) através da “guerra de oposição”, a qual contaria com uma i)
institucionalização da contra hegemonia ii) Nacionalização (em oposição ao
internacionalismo da revolução permanente). Desta forma, estaria instituído o caminho
para a modificação revolucionária direcionada aos meios de produção.
Isto posto, depreende-se o caráter solidificado com que as instituições estatais
são revestidas dentro da forma jurídico-estatal, conferida pela instância política. Ou
seja, uma vez assumida a forma-valor com que o indivíduo (como quer o sistema político
liberal) é constituído, reificação humana em essência, mostra-se de grande monta o
evento “revolucionário”, não obstante a indeterminação quanto à instância ou nível em
que deva ter início, que virá a romper com o até então instituído.
Em extrema discordância com essa aspiração revolucionária, surge à concepção
reformista com a qual o sistema até então instituído, mesmo que opressor, pode
receber uma guinada em sentido favorável ao proletariado e, desta forma,
proporcionar-lhes melhoras nas condições de vida.
Ou os fatores de adaptação são capazes de evitar realmente o
desmoronamento do sistema capitalista e assegurar a sua sobrevivência,
portanto, anular essas contradições e, nesse caso, o socialismo deixa de ser
uma necessidade histórica e, a partir dai, é tudo o que se queira, exceto o
resultado do desenvolvimento material da sociedade (LUXEMBURGO, 1986,
p. 04).
Em suma, cabe considerar tal perspectiva como um idealismo a-histórico, isto
por desconsiderar o desenvolvimento contraditório dentro do bojo socioeconômico da
sociedade e, portanto, crer em tal contradição mesma como o fator final de uma
intervenção positiva do Estado. Nada mais seria do que a própria alimentação do já
instituído.
Conclusão
Com o até então, fica claro que a concepção acerca do Estado e sua
funcionalidade dentro do sistema capitalista não é unívoca, o que, com efeito, dificulta o
já tão complexo caminho entre teoria e práxis. Com efeito, determinadas críticas ou até
mesmo perspectivas melancólicas acerca de experiências passadas precisam ser
redirecionadas pala a melhor elaboração do tema.
Mostrou-se necessária uma abordagem para além das teorias “oficiais” do
Estado, uma teoria de abordagem crítica, não se contentando apenas com o discurso
que se mostra, mas ultrapassando o dito e observando o não dito sobre as justificativas
de perpetuação do poder estatal burguês.
De igual maneira, fez-se necessário salientar o caráter anti-estatal (de
desfazimento do aparato estatal) presente nas teorias de Estado socialistas-comunistas,
ou melhor dizendo, nas teorias de anti-Estado socialistas que buscam a emancipação do
ser humano em face de qualquer forma de domínio, sendo o Estado um instrumento de
dominação par excellence; não obstante, a simples tomada de poder do Estado pela
132
classe trabalhadora não põe fim ao jugo estatal, visto que o Estado (moderno) é uma
ferramenta derivada do capitalismo e necessária para seu funcionamento, usá-lo como
uma ferramenta em prol da classe proletária é inviável, visto sua natureza intrínseca e
indissociável burguesa.
Uma vez compreendida materialidade histórica com que o fenômeno político e,
por extensão, estatal é revestido, faz-se mister a elaboração teórica acerca de como a
reificação humana é capaz de ultrapassar a forma-valor instituída no bojo social e, desta
forma, evoque o Gramsci titula de “homem motriz ontológica”.
Referências bibliográficas
BOBBIO, N (org). O Marxismo e o Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1979;
CARNOY, M. Estado e Teoria Política. Campinas: Papirus, 1988;
GRUPPI, L. Tudo Começou com Maquiavél – As Concepções de Estado em Marx, Engels,
Lênin e Gramsci. 8ª ed. Porto Alegre: L&PM, 1987;
HOBBES, T. Leviatã. In HOBBES. São Paulo: Abril Cultural, 1979;
KOSIK, K. Dialética do Concreto, 2ª ed., São Paulo: Paz e Terra, 1976;
LÊNIN,V. O Estado e a Revolução. São Paulo: Hucitec 1983;
LOCKE, J. Segundo Tratado de Governo. São Paulo: Abril Cultural, 1983;
LUXEMBURGO, R. Reforma ou Revolução. São Paulo: Global, 1986;
MASCARO, A. F. Estado e Forma Política. São Paulo: Boitempo, 2013;
POULANTZAS, N. O Estado, o Poder, o Socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1980;
______. Poder Político e Classes Sociais. São Paulo: Martins Fontes, 1977;
ROUSSEAU, J. J. Do Contrato Social. São Paulo: Abril Cultural, 1983;
TUCKER, R. The Marx-Engels Reader. Nova York: W.W. Norton Company, 1978;
ŽIŽEK, S. Violência. São Paulo: Boitempo, 2014.
133
trabalho, na qual “as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou
recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência17”, nas palavras de
MARINI. Portanto, as burguesias brasileiras, como classes dirigentes de um país
periférico, serão caracterizadas, essencialmente, por “sua obediência à dependência
subalterna e sua própria reprodução enquanto classe capital-imperialista com base no
Brasil18”, convertendo-se, conforme FERNANDES, em “autênticas ‘fronteiras internas’ e
em verdadeiras ‘vanguardas políticas’ do mundo capitalista ou seja, da dominação
imperialista sob o capitalismo monopolista. (...) Elas querem: manter a ordem, salvar e
fortalecer o capitalismo, impedir a dominação burguesa e o controle burguês sobre o
Estado nacional se deteriorem19".
Será, portanto, exatamente a conquista de novos territórios que permitirá a
instituição de um novo ciclo de acumulação. No início deste novo ciclo, o Estado
exercerá a essencial função de prover marcos legislativos e regulatórios que sejam
capazes, não só, de atrair investimentos, mas também de fornecer instrumentos para
assegurar a lucratividade destes investimentos e conferir "segurança" aos investidores.
Neste processo, os aparatos estatais se apresentarão como instituições
mediadoras entre as alianças regionais de classe das zonas expropriadas e o capital
internacional. Conforme explicita HARVEY, a construção dessas pactuações regionais é
impulsionada pelo poder estatal, mediador dos conflitos entre as classes, bem como
intraclasses, com vistas à garantia dos processos de reprodução da dinâmica do capital.
Portanto, “o vínculo entre sociedade civil e Estado explica como a dominação poreja em
todos os espaços sociais, educando o consenso, forjando um ser social adequado aos
interesses (e valores) hegemônicos e formulando, inclusive, as formas estatais da
coerção aos renitentes20”.
Cabe, aqui, uma ressalva metodológica quanto à abordagem do Estado, em que
se pressupõe, acima de tudo, uma formação histórica baseada no antagonismo
irreconciliável entre as classes21, na forma de um comitê para gerenciar os negócios
comuns do conjunto das diferentes frações das classes dominantes22. Na mesma linha,
GRAMSCI caracteriza o Estado como a plataforma pela qual o grupo dirigente
coordenará, de forma concreta, os interesses gerais dos grupos subordinados, sendo "a
vida do Estado um processo contínuo de formação e superação de equilíbrios instáveis
(no plano jurídico) entre os interesses do grupo fundamental e dos grupos
subordinados 23 ." Assim, KLAUS DÖRRE 24 enfatiza que o Estado se constitui como
parceiro essencial dos capitalistas no processo da Landnahme:
17
MARINI, Ruy Mauro. Dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil. In: SADER, Emir (org.). Dialética
da Dependência: uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. Petrópolis: Vozes, Buenos Aires: CLACSO,
2000. p. 109. apud WAGNER, Adolfo. Ruy Mauro Marini: Uma interpretação marxista do Capitalismo
Dependente. In: Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Número 22. 2009
18
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de
Janeiro: Zahar, 1975. p. 294-295 apud FONTES, Virgínia. Op. Cit. p. 308
19
Idem.
20
FONTES, Virgínia. Op. Cit. p. 127
21
LENIN, Vladmir. O Estado e a Revolução. Capítulo I: As Classes Sociais e o Estado. Disponível em
<https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/cap1.htm>
22
MARX, Karl. FRIEDRICH, Engels. Manifesto do Partido Comunista. Disponível em
<https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/index.htm>
23
GRAMSCI, Antonio. Selections from the Prison Notebooks, London. p. 182. apud HARVEY, David. A
produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005 (Coleção Geografia e Adjacências). p.84
24
DÖRRE, Klaus. A Nova Landnahme. Dinâmicas e limites do capitalismo financeiro. Rev. Direito
Práx. [online]. Rio de Janeiro, Vol. 06, N.12, 2015.p. 536-603. p.21
138
ensejado pelas forças policiais era infligir sofrimento aos manifestantes, e modo a servir
ao objetivo pedagógico de convencê-los a não aderir aos próximos protestos49”.
Táticas reativas e combativas como a black block entraram em cena, momento a
partir do qual a contraofensiva do governo cresceu em tamanho e em brutalidade. As
demandas inicialmente dispersas (“Não é só pelos vinte centavos”) tomaram a forma de
oposição aos megaeventos esportivos e aos “preparativos” que seriam realizados,
principalmente, na cidade do Rio de Janeiro. Os patrocinadores dos megaeventos,
preocupados com a lucratividade de seus contratos milionários, já externalizavam
preocupação com este panorama50.
Tais movimentos, portanto, passam a representar uma ameaça à persistência da
acumulação financeira na medida em que procuram reverter a tomada de espaços não
capitalistas pela lógica de mercado, promovendo a deslegitimação deste modelo. Estes
movimentos são a reação da sociedade à um modelo que favorece, tão somente, uma
minoria proprietária.
3. O contra-ataque
Com a preocupação ensejada pela reação social à Landnahme, em um contexto
de viabilização dos megaeventos de temática esportiva no Rio de Janeiro, surge a
pressão, por parte de mecanismos financeiros internacionais associados à difusão do
neoliberalismo, pela adoção de marcos regulatórios e atuações institucionais capazes de
garantir um ambiente lucrativo e estável, no qual a lógica da acumulação financeira
possa se reproduzir de maneira segura e livre e que sejam capazes de fazer frente aos
referidos movimentos contestatórios.
Portanto, o aparato estatal, capitaneado pelas pontas mais concentradas das
burguesias nacionais, empreende uma série de manobras destinadas a “assegurar um
salto na concentração de capitais e reduzir as reivindicações populares a uma gestão de
conflitos negociáveis51”, destroçando “o caráter igualitário das reivindicações sociais,
adequando-as à modernidade, através de intensas expropriações, de velhos e novos
formatos52”. No contexto específico da Landnahme, essa lógica se comportará de uma
maneira singular, conforme explica GONÇALVES53:
A reprodução sócio-jurídica da expropriação capitalista se desenvolve em
três etapas: (a) a criação do Fora não-capitalista por meio de othering; (b) a
privatização e (c) a repressão/disciplinamento pelo direito penal. (...)
(a) No que se refere à criação do Fora não-capitalista por meio de
othering, os direitos humanos são um instrumento clássico, cujo emprego
pode ser amplamente constatado desde o início do colonialismo europeu até
os processos contemporâneos de financeirização (Anghie 1999; Barreto
2012; Costa e Gonçalves 2011; Gonçalves e Costa 2016; Gonçalves 2012).
Nesses processos, como afirma Chimni (2006), o projeto neoliberal tem
usado amplamente essa experiência para a abertura de novos mercados e
investimentos.
Decreto 44.302 do Governo do Estado do Rio de Janeiro. R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 185-205,
jan-fev. 2015.)
49
SOUZA, Taiguara Libano Soares e. Op. Cit. p. 11
50
Patrocinadores da copa temem fazer promoções na rua por protestos. Uol. Disponível em
<https://rodrigomattos.blogosfera.uol.com.br/2014/01/03/patrocinadores-da-copa-temem-fazer-
promocoes-na-rua-por-protestos/>
51
FONTES, Virgínia. Op cit. p. 320
52
Idem.
53
GONÇALVES, Guilherme Leite. Op. Cit.
143
força policial irá ocupar as zonas favelizadas, impedindo que as forças ali residentes
constituam qualquer ameaça, conforme enuncia VERA MALAGUTI:
Temos que entender essa transformação da cidade em commodity, cidade-
empresa a ser vendida na bolsa de imagens urbanas na disputa desse capital
fugaz. O projeto das UPPs faz parte desse projeto de cidade que precisa
aparecer como único, necessário, imprescindível, um uníssono que precisa
muito do esplendor do Estado de polícia com seus símbolos: quem pacifica
57
são os caveiras de camisa preta .
A própria distribuição geográfica das UPPs vem a confirmar esta lógica58, na
medida em que "a militarização da vida social subjacente às UPPs tem a pretensão de
produzir e reproduzir uma força de trabalho disciplinada, ao qual se associam os
processos de mercantilização e expropriação cotidiana59". Em verdade, um telegrama da
Embaixada dos Estados Unidos para o pentágono, divulgado pelo Wikileaks, explicita de
forma acurada a lógica do dentro e fora não capitalista, e o anseio pela sua
incorporação60:
Além dos óbvios fatores de segurança envolvidos no programa de
pacificação, há também interesses econômicos significativos em jogo, com
muitos analistas estimando que a economia do Rio de Janeiro poderá crescer
38 bilhões de reais (21 bilhões de dólares) caso as favelas sejam
reincorporadas à sociedade e aos mercados tradicionais. O programa de
pacificação compartilha muitas características com a doutrina e estratégia de
contra insurgência dos EUA no Afeganistão e Iraque. O sucesso do programa
dependerá em última instância não somente da coordenação eficaz e
sustentada pela polícia e pelos governos estaduais e municipais, mas
também da percepção dos moradores de favelas da legitimidade do Estado.
Nesse processo, situa-se uma funcionalidade adaptacional do sistema penal às
determinações estruturais derivadas do sistema de produção e sua necessidade de
controle social61. Portanto, frente à necessidade de contenção destes riscos, uma série
de aparelhos privados de hegemonia, representando os interesses comuns do capital
financeiro, exigiram 62 a adoção de legislações penais que contivessem tipos penais
57
BATISTA, Vera Malaguti. O Alemão é Muito Mais Complexo. p.24 Disponível em <
http://gajop.org.br/justicacidada/wp-content/uploads/O-Alem%C3%A3o-%C3%A9-muito-mais-
complexo.pdf>
58
Nas palavras de VIEIRA, “a implementação progressiva das UPP’s em alguma medida companha o mapa
da especulação imobiliária e dos grandes eventos. Primeiro foram instaladas centralmente na Zona Sul,
Tijuca, entorno do Maracanã e no caminho para a Barra da Tijuca (Cidade de Deus). Posteriormente, haveria
sequência na Zona Sul, zona portuária, Centro e em outras regiões da Zona Norte. O Complexo do Alemão,
que fica na proximidade de vias de acesso de diversas modalidades esportivas dos Jogos Olímpicos e que
liga Zona Norte à Oeste, seria ocupado em 2010 depois de uma megaoperação. Já o Complexo da Maré, que
liga o aeroporto internacional às áreas de acesso para as zonas ricas da cidade está hoje em dia ocupada
pelo exército. (VIEIRA, Rafael Barros. Op. Cit. p.11 )
59
VIEIRA, Rafael Barros. Sobre o regime empresarial-militar de ocupação das favelas do Rio de Janeiro:
uma análise (crítica) das UPPs. in Revista Direito & Práxis. Rio de Janeiro, vol. 07, n.15, 2016. p.284-339.
p.18
60
http://wikileaks.ch/cable/2009/09/09RIODEJANEIRO329.html. Acesso em 21/08/2015 apud VIEIRA, Rafael
Barros. Op. Cit.
61
RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social (1939). 2. ed. Tradução de Gizlene Neder.
Rio de Janeiro: Revan, 2004.
62
O Globo. Brasil é advertido por não se empenhar no combate ao terrorismo. Disponível em
<https://oglobo.globo.com/brasil/brasil-advertido-por-nao-se-empenhar-no-combate-ao-terrorismo-
14447615>
145
questão, nada mais correto do que buscar-se deixar de forma clarividente o seu amparo
no projeto de lei"75.
Não se explica, exatamente, de que forma a transferência de competência
poderia amparar o militar, "mais exposto à prática da conduta delituosa" em questão,
embora os inúmeros relatos de violência por parte de moradores destas comunidades
possam fornecer alguns indícios76. Não à toa, o projeto foi classificado pela ONG Anistia
Internacional como “licença para matar77".
Especificamente no estado do Rio de Janeiro, seria publicado, em julho de 2013,
o Decreto nº 44.302, que, originalmente, criava uma “Comissão Especial de Investigação
de Atos de Vandalismo em Manifestações Públicas”, formada por representantes de
diversas agências penais, com atribuição de "tomar todas as providências cabíveis à
realização da investigação da prática de atos de vandalismo, podendo requisitar
informações, realizar diligências e praticar quaisquer atos necessários à instrução de
procedimentos criminais com finalidade de punição de atos ilícitos no âmbito de
manifestações públicas".
Em seu texto original, previa um prazo de 24 horas para que empresas de
telefonia e internet fornecessem informações dos "potenciais suspeitos", ainda que sem
autorização judicial específica. O decreto veio a ser alterado posteriormente em função
das diversas críticas recebidas, em especial da OAB, tendo sido substituído o prazo de 24
horas pela exigência de prioridade à CEIV. Trata-se, essencialmente, de estratégias que
visam facilitar a neutralização de qualquer tipo de obstáculo à reprodução do capital.
Nesse sentido, é possível observar a eficiência da estratégia empregada pelas
forças hegemônicas, bem como a brutalidade do instrumento empregado. A atuação,
pautada na influência direta sobre o processo legislativo, ensejou modificações penais
que facilitaram a criminalização de processos de resistência social e garantiu condições
especiais de julgamento aos agentes estatais que cometeram crimes neste âmbito.
Conclusão
Ao longo do presente artigo, foi possível perceber que a ofensiva da Landnahme
no contexto dos megaeventos teve um caráter abertamente antissocial, ensejando uma
diversidade de movimentos contestatórios que convergiam em sua oposição à forma
como se davam os preparativos dos megaeventos. Assim, neste período dos
75
A justificativa pode ser encontrada, na íntegra, na página respectiva do Senado:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1474872&filename=PL-5768-
2016
76
As violações aos Direitos Humanos foram amplamente divulgadas pelos veículos de mídias alternativas e
até por alguns grandes veículos midiáticos, em virtude da proporção que tomaram, ainda que retratadas
como exceção. Alguns exemplos são listados: Maré, a vida sob a ocupação. Outras Palavras. Disponível em
<https://outraspalavras.net/brasil/mare-vida-sob-a-ocupacao/>. Moradores do Alemão e da Maré
denunciam agressões de militares. Jornal O Dia. Disponível em <http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-
janeiro/2015-07-07/moradores-da-mare-denunciam-chutes-e-dedos-quebrados-por-militares.html>.
Moradores da Maré denunciam abusos da Força de Pacificação. Agência Brasil. Disponível em
<http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2014-11/moradores-da-mare-denunciam-
abusos-da-forca-de-pacificacao-no>. O que dizem os moradores sobre a Ocupação do Exército no Complexo
da Maré. Nexo Jornal. Disponível em <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/06/06/O-que-dizem-
os-moradores-sobre-a-ocupa%C3%A7%C3%A3o-do-Ex%C3%A9rcito-no-Complexo-da-Mar%C3%A9>.
Moradores de Favelas Denunciam nas Redes Sociais o número de Mortes dos Jogos Olímpicos. Rio On
Watch: Relatos das Favelas Cariocas. Disponível em < http://rioonwatch.org.br/?p=22011>
77
Justiça Militar se torna responsável por julgar militares que matarem civis durante missões. Estadão.
Disponível em < http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,justica-militar-se-torna-responsavel-por-julgar-
crimes-de-militares-contra-civis,70002048438>
148
guerra? Não prorromperá ela apesar do direito penal? Evitada a guerra, quem ganha e
quem perde com essa 'paz' que o Direito Penal assegurou?'
Referências bibliográficas
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal brasileiro. 8a ed. Rio de Janeiro: Revan,
2002.
BATISTA, Vera Malaguti. O Alemão é Muito Mais Complexo. p.24 Disponível em
<http://gajop.org.br/justicacidada/wp-content/uploads/O-Alem%C3%A3o-%C3%A9-
muito-mais-complexo.pdf>
CASARA, Rubens. Mitologia Processual Penal. Rio de Janeiro: Saraiva, 2015.
CASARA, Rubens. Realidade e Ideologia no Sistema de Justiça Criminal. Justificando.
Disponível em <http://justificando.cartacapital.com.br/2016/01/30/realidade-e-
ideologia-no-sistema-de-justica-criminal/>
CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da
internet. Tradução Carlos Alberto Medeiros. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2017
DÖRRE, Klaus. A Nova Landnahme. Dinâmicas e limites do capitalismo financeiro. Rev.
Direito Práx. [online]. Rio de Janeiro, Vol. 06, N.12, 2015
FONTES, Virgínia. O Brasil e o capital imperialismo: teoria e história - 2. ed. Rio de
Janeiro: EPSJV/Editora UFRJ, 2010.
GONÇALVES, Guilherme Leite. Acumulação primitiva, expropriação e violência jurídica:
expandindo as fronteiras da sociologia crítica do direito. Rev. Direito Práx. [online].
2017, vol.8, n.2
GONÇALVES, Guilherme Leite. Marx está de volta. Um chamado pela virada materialista
no campo do direito. in Revista Direito & Práxis. Revista Direito e Práxis, vol. 5, n. 9,
2014
GONÇALVES. Guilherme Leite. MACHADO, Marta R de Assis. Por uma Lei Antiterrorismo
de Estado. Ou não sobrará ninguém. Disponível em http://diplomatique.org.br/por-
uma-lei-antiterrorismo-de-estado-ou-nao-sobrara-ninguem/
HARVEY, David. A produção capitalista do espaço - São Paulo, Annablume, 2005. Coleção
Geografia e Adjacências
LENIN, Vladmir. O Estado e a Revolução. Capítulo I: As Classes Sociais e o Estado.
Disponível em
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/cap1.htm
LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social v. II. São Paulo: Boitempo, 2013
LUXEMBURG, Rosa. The Accumulation of capital. London and New York. 2003
MARX, Karl; FRIEDRICH, Engels. Manifesto do Partido Comunista. Disponível em
https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/index.
htm
OFFE, Claus. Capitalismo desorganizado: transformações contemporâneas do trabalho e
da política. São Paulo, Brasiliense, 1989.
PATNAIK, Prabhat. O Capitalismo neoliberal e a sua crise. Disponível em
<http://resistir.info/patnaik/patnaik_24out17.html>
RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social (1939). 2. ed. Tradução
de Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
SAAD FILHO, Alfredo. Crise no Neoliberalismo ou Crise do Neoliberalismo? Disponível
em http://www.seer.ufu.br/index.php/criticasociedade/article/view/14547
SOUZA, Taiguara Libano Soares e. Estado Policial e Criminalização dos Movimentos
Sociais: Notas Sobre a Inconstitucionalidade do Decreto 44.302 do Governo do Estado
do Rio de Janeiro. R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 67, p. 185-205, jan-fev. 2015.
150
Intento buscar na própria história deste partido elementos que corroborem essa
afirmação. Discutirei algumas possíveis causas deste fenômeno, avaliando algumas
posições políticas do Partido Trabalhista durante seu primeiro governo, principalmente
com relação à questão das nacionalizações (bandeira histórica do movimento operário
britânico). Buscarei demonstrar a função específica que o Partido Trabalhista assume na
democracia britânica e as consequências dessa função para as lutas dos trabalhadores,
tendo em vista o seguinte questionamento: qual o significado histórico da experiência
trabalhista no pós-guerra e como essa se conecta com a história anterior do partido e
com as necessidades do capitalismo na época? Para tal, darei especial atenção às
matrizes ideológicas do partido, fundamentais pontos de análise para quem busca
compreender tais questões, tratando documentos de debate interno do partido,
resoluções em conferências partidárias e, em especial, obras teóricas de importantes
dirigentes. Na segunda parte do artigo, a ênfase recairá nos teóricos do fabianismo,
importante corrente teórico-política surgida nos estertores do século XIX e que teve
papel fundamental na formação do Partido Trabalhista em seus primórdios. Tentaremos
analisar até que ponto os resquícios desta teoria permanecem latentes no partido, e
principalmente, avaliar sua relação direta com a conjuntura do pós-Segunda Guerra.
1. Trabalhismo no poder: o governo Attlee e o Estado de bem-estar social
A vitória trabalhista na primeira eleição do pós-guerra significou um marco na
política britânica: liderado por Clement Attlee, o partido fundado pelo movimento
sindical britânico, agrupamentos socialistas e intelectuais de esquerda em princípios do
século XX assumiu o poder com uma confortável maioria parlamentar que lhe permitiria
implementar as políticas sociais prometidas e exigidas ao fim da guerra, que envolviam
modificações substantivas na estrutura do Estado britânico, continuando a trilha iniciada
ainda no período da guerra.
Importante salientar que diversos autores1 apontam com ressalvas os avanços
de 1945, tratando-os mais como continuações das políticas do período da guerra em
tempos de paz, do que qualquer outra coisa. Para Saville, a fama posterior do primeiro
governo trabalhista do pós-guerra – estatista, radical, revolucionário e inovador – seria
resultado tanto da forte campanha conservadora contra o governo como da própria
propaganda trabalhista, ansiosa em apresentar-se sob pressupostos diferentes da
política britânica até ali2. Durante a guerra ainda, por exemplo, integrantes do governo
conservador admitiam que os controles impostos à indústria deveriam ser mantidos por
um tempo após a guerra até que a economia se estabilizasse. A defesa do pleno
emprego e a extensão da previdência e do bem-estar também eram vistas como
essenciais para a manutenção da coesão social, pois a lembrança da forte militância
trabalhadora do entre guerras e o sucesso soviético ainda eram vivos. Por mais que
discordassem com relação à intensidade da aplicação de suas políticas, trabalhistas e
conservadores concordavam quanto ao teor fundamental do papel do Estado no pós-
guerra.
1
MILIBAND, Ralph. Parliamentary Socialism: A Study in the Politics of Labour. Londres: Merlin Press, 1979;
PANITCH, Leo. Social Democracy and Industrial Militancy (1945-1974). Cambridge: Cambridge University
Press, 1976; SAVILLE, John. “Labourism and the Labour Government” (1967). In: COATES, David (Ed.) Paving
the Third Way: The Critique of Parliamentary Socialism – a Socialist Register anthology. Londres: Merlin
Press, 2003; COATES, David. The Labour Party and the Struggle for Socialism. Cambridge: Cambridge
University Press, 1975.
2
SAVILLE, John, op. cit.
153
objetivos e ao caráter do governo que chegava ao fim e também dos futuros governos
do partido. Os ativistas e militantes do partido pareciam ver as medidas de
nacionalização e o Estado social construído durante a primeira administração trabalhista
como os primeiros passos do que se imaginava ser uma revolução social e política que
enfim implantaria o socialismo na Grã-Bretanha. Construíam-se assim os primeiros
passos para a “via britânica para o socialismo”. Por outro lado, para os parlamentares e
líderes do próprio partido, suas medidas implantadas nesse momento já significavam em
si e por si, o próprio socialismo. Para eles, grande parte da missão trabalhista já havia
sido alcançada pelas mudanças promovidas pelo governo Attlee. O mesmo Morrison
afirmou, na Conferência de 1949 – que discutiu o programa para a eleição do ano
seguinte – que o partido trabalhista
introduziu um novo modelo de Socialismo e da doutrina Socialista, algo como
um Empreendedorismo Público Competitivo. Através dela exploraremos
novos ramos e revitalizaremos empreendimentos privados a partir de suas
próprias técnicas de competição e, me arrisco a dizer, não será um mau
negócio para os empreendimentos privados que isto assim seja. Devemos
viver numa economia mista por um longo período pela frente. Parte da
economia será nacionalizada, parte será de empreendimentos privados; a
rede privada será chamada a se adequar às exigências gerais do
14
planejamento econômico no interesse do público como um todo.
Pautando sua campanha eleitoral mais nas conquistas do governo anterior do
que em projetos para o futuro visando aprofundar as reformas, convivendo com uma
forte oposição tory que, ao mesmo tempo em que se comprometia em manter o pleno
emprego, atacava o programa trabalhista de nacionalizações sob a ameaça de
“bolchevização” do país, o partido acabou derrotado nas eleições de 1951,
permanecendo longe do governo até a segunda metade da década de 1960. Neste
contexto, os questionamentos de Saville trazem ressonância ao que argumentei até
aqui. Pergunta ele:
O que é que estava sendo remediado, e no interesse de quem? Teria o
governo trabalhista do pós-1945 feito mais do que efetuar uma transição
para o funcionamento normal de uma economia cujos fundamentos e
estrutura estavam basicamente intactos? (...)
Ao se avaliar as políticas econômicas do governo Attlee, torna-se claro que
não havia nenhuma intenção, de parte alguma, de fazer algo que não fosse
seguir a linha de ortodoxia econômica e industrial. Das indústrias
nacionalizadas, carvão e ferrovias estavam virtualmente falidas, e qualquer
governo seria forçado a prover um gigantesco suporte financeiro ao
investimento em larga escala necessário para se alcançar certo grau de
15
eficiência.
2. Fabianismo, keynesianismo e corporativismo
Qual seria, então, o real caráter histórico do reformismo trabalhista? Pode-se
falar em reformismo, no sentido clássico da política de esquerda? Teriam as instituições
principais do movimento trabalhista britânico – o partido Trabalhista e o T.U.C. – servido
aos interesses do capital desde que alcançou o poder, se aproveitando da sua inserção
entre a classe operária para desarticulá-la e ajudar na expansão do capitalismo no pós-
guerra? Ou teria sido um caso de ingenuidade e equívoco tático perante os limites
14
Labour Party Annual Conference Report, 1949, p. 155.
15
SAVILLE, John, op. cit., pp. 79-80.
157
estruturais que o Estado capitalista impõe às forças de esquerda? Até onde se deve
acreditar na autoimagem do partido nos anos 1970, “socialistas democráticos cuja
missão é trazer uma mudança fundamental e irreversível no equilíbrio de bem-estar e
riqueza a favor da classe trabalhadora e de suas famílias”16? Nesta seção, debateremos
algumas das premissas políticas do modo de regulação instaurado no pós-guerra e o
papel fundamental assumido pelo Partido Trabalhista neste contexto, além de trazer à
luz certos pressupostos teóricos do socialismo fabiano, que em muito ajudam a
compreender a adequação do partido a este fim. Por fim, tentaremos demonstrar
brevemente as contradições despertadas por esta forma específica de regulação social,
a partir dos próprios suportes desta: os partidos e os sindicatos.
2.1 Corporativismo e keynesianismo: o Partido trabalhista enquanto correia de
transmissão da colaboração de classes durante o Estado de bem-estar social
Para responder a essas questões, devemos nos voltar para o próprio
ordenamento político-estatal britânico nesse período. As necessidades político-
econômicas do capitalismo no pós-guerra já mencionadas anteriormente fizeram do
corporativismo17 em sua faceta liberal algo essencial para a acumulação capitalista e a
reprodução da dominação política burguesa a partir de 1945. A explicação para isso está
no fato de que o corporativismo
autoriza as organizações políticas do capital e do trabalho a participarem na
formulação e implementação de políticas relacionadas à acumulação de
capital, para que a responsabilidade de tais intervenções seja entregue
aqueles imediatamente afetados por elas, mais do que sejam mediadas pela
representação parlamentar e pela administração racional-legal. Isso se torna
particularmente crucial quando a intervenção se relaciona à assuntos que
não poderiam ser prontamente efetivadas sem a cooperação do capital e/ou
do trabalho; e/ou que não podem ser prontamente atingidos através de
meios administrativos racionais-legais. Tais assuntos incluem reorganização
do processo de trabalho, reestruturação industrial, planejamento dos
programas de bem-estar, provisão de infraestrutura, política de rendimentos
18
e planejamento econômico.
Conclui-se disso que, para “funcionar” corretamente – ou seja, para dar plena
vazão à acumulação capitalista –, um regime corporativista exige organizações que
estejam comprometidas com a legitimação do sistema econômico existente e que
confinem suas demandas em termos compatíveis com os desse mesmo sistema. Mais do
que isso, particularmente com relação aos representantes operários, exigia sindicatos
centralizados capazes de controlar movimentos mais radicais nas bases. No específico
caso britânico, com os laços estruturais entre o T.U.C. e o Partido Trabalhista, o terreno
16
Retirado do manifesto eleitoral trabalhista para as eleições de 1979, intitulado Britain Will Win With
Labour. Disponível em: http://www.politicsresources.net/area/uk/man/lab74oct.htm. Acesso em:
15/10/2017.
17
Corporativismo sendo entendido aqui como “uma estrutura política no interior do capitalismo avançado
que integra grupos organizados de produtores socioeconômicos através de um sistema de representação e
interação cooperativa mútua no nível das lideranças e de mobilização e controle social no nível das massas”,
cf. PANITCH, Leo. Working Class Politics in Crisis: Essays on Labour and the State. Londres: Verso, 1986, p.
136.
18
JESSOP, Bob. “Corporatism, Parliamentarism and Social Democracy”. In: SCHMITTER, Philippe C. &
LEHMBRUCH, Gerhard (orgs.). Trends toward Corporatist Intermediation. Londres: SAGE Publications, 1979,
p. 200.
158
estava aberto para o protagonismo do partido nesse esquema enquanto ator principal
no processo de hegemonização do período. Como afirma o mesmo Jessop,
a socialdemocracia [no nosso caso, o trabalhismo] é a base social mais
apropriada para o corporativismo liberal pelo fato de assegurar o apoio da
maior e mais poderosa das classes dominadas no capitalismo monopolista.
Ao mesmo tempo, partidos socialdemocratas (ou seus equivalentes) são os
partidos naturais do governo no corporativismo liberal porque eles fundem
importantes e variadas funções numa mesma organização política. Eles
possuem ligações próximas com o movimento dos trabalhadores cujo
envolvimento em órgãos corporativistas é essencial para seu sucesso;
possuem apoio eleitoral substancial entre a classe trabalhadora organizada; e
conseguem articular demandas ‘econômico-corporativas’ e democrático-
populares num programa que apoie intervenção estatal no interesse da
acumulação capitalista. Em resumo, a socialdemocracia oferece meios
apropriados para se fundir formas parlamentares e formas corporativistas de
19
representação e dominação.
Entretanto, essa fusão entre formas parlamentares e formas corporativistas não
está isenta de contradições, trazendo, pelo contrário, novos tensionamentos políticos à
cena, transformando a força trabalhista em fraqueza. Para Panitch, falando já da crise
dos anos 1970,
visto que as estruturas corporativistas são agora um importante locus para a
legitimação e a administração dos sacrifícios da classe trabalhadora em prol
do ‘interesse nacional’, e visto que a compensação por estes sacrifícios não
pode ser obtida do capital pelos próprios sindicatos via estruturas
corporativistas, ela precisa ser fornecida pela arena partidária/parlamentar
(onde os custos desta compensação, em qualquer caso, podem ser tornados
difusos, ou seja, divididos pelo ‘público’ em geral). Partidos socialdemocratas
interpretam o difícil papel de articular essas duas arenas: eles se oferecem
para ganhar compensações para a classe trabalhadora através das
instituições parlamentares – que dissociam a relação entre Estado e classe
via representação/mediação –, em troca de compromissos feitos pela classe
em instituições corporativistas – onde a representação/mediação é
explicitamente pautada em critérios classistas.
(...) Essa contradição é agravada porque as reais compensações obtidas em
estruturas corporativistas e oferecidas na arena parlamentar à classe
trabalhadora pelos seus sacrifícios geralmente ficam muito aquém das
promessas feitas pelos partidos socialdemocratas, particularmente devido às
restrições que a atual crise impõe aos gastos sociais do Estado capitalista e à
sua disposição em desafiar os humores da ‘confiança do mercado’.
20
Falando de forma mais geral, podemos afirmar que essa contradição na verdade
se manifesta devido ao fato da estruturação dos partidos políticos partir de premissas
diferentes das sindicais. Poulantzas, ao discutir as características específicas do Estado
capitalista enquanto condensação material de uma relação de forças em conflito, trouxe
à luz diversos conceitos que nos permitiremos expandir neste trabalho, notadamente as
ideias de efeito de isolamento e de efeito de representação da unidade, dois efeitos
consagrados na/pela ossatura material do Estado capitalista e que servem para avançar
no entendimento de nossa problemática.
O efeito de isolamento atomiza as classes sociais (tanto as dominantes como as
dominadas, é bom lembrar) dando forma material à ideia de que todos os agentes de
19
Idem, p. 207.
20
PANITCH, Leo, op. cit., p. 207.
159
desmoralizantes para ela; (4) especificamente neste país, sob qualquer nível,
28
constitucionais e pacíficas.
A crença de que “a democracia traz o socialismo em seu ventre”29 se coaduna a
esta visão do gradualismo e do caráter democrático e pacífico que a transição ao
“socialismo” teria na Grã-Bretanha. Para os fabianos, o aumento da participação popular
nas eleições com os sucessivos aumentos no número de eleitores ao longo do século XIX
trazia a massa da população para dentro da política e do Estado, tornando mais fácil a
elaboração de leis que iriam aos poucos enfraquecendo o poder absoluto dos
capitalistas, quebrando o monopólio privado destes dos meios de produção e troca em
favor do Estado. A institucionalização do imposto de renda, em 1842, seria exemplo
disso, visto como “transferência forçada da renda, do lucro e até do aluguel, de donos
privados para o Estado, sem compensação”.30
Muitos equívocos podem ser extraídos dessas assertivas. O Estado é visto pelos
fabianos como um ente que paira acima da sociedade e se configura enquanto máquina
independente do chão social que o gera e o possibilita, isolado da incidência política da
classe capitalista. Só isso explica a ênfase na democracia e no papel do Estado como
organizador e receptor dos lucros e da renda nacional total, para que este a redirecione
e a redistribua por toda a população. A evolução na consciência da classe trabalhadora –
provida pela democracia, esta vista como resultado direto da industrialização e a
urbanização, raciocínio tautológico que termina por concluir que é o próprio capitalismo
que cava o seu túmulo31 – se daria no sentido de ver o Estado não mais como o inimigo a
ser combatido, mas como o seu salvador, “seu administrador, guardião, seu homem de
negócios, gerente e secretário”. 32 Ao mesmo tempo, com o avanço da democratização,
“a luta por vir entre os proprietários e os não-proprietários será uma disputa entre
partidos ambos perfeitamente conscientes do que estão lutando”.33
Capitalismo-industrialização-urbanização-democracia-partido-Estado: este foi o
caminho percorrido pela evolução da História em solo britânico, conforme a visão dos
fabianos. E é por ser vista exatamente assim, como uma evolução inevitável e lógica,
que, para os fabianos, a transição gradual para o socialismo “significa a gradual extensão
do voto; e a transferência da renda e dos lucros para o Estado, não de uma tacada só,
mas à prestações”34, sendo este o método adequado para a Grã-Bretanha, pois “não
obriga o uso da palavra revolução” e “em nenhum ponto envolve guilhotinagem,
declaração dos Direitos do Homem, blasfêmias ou qualquer outra coisa que é
essencialmente ‘não-inglesa’”.35 É este o rol de justificativas e explicações dos fabianos
para sua crença no papel do Estado e da democracia frente ao capitalismo. O fervor
antirrevolucionário ecoa Burke36; a crença no evolucionismo social que desembocaria no
28
WEBB, Sidney. “Historic”. In: SHAW, George B. Fabian Essays in Socialism. New York: The Humboldt
Publishing Co., 1891, p. 9.
29
BLAND, Hubert. “The Outlook”. In: SHAW, George B., op. cit., p. 264.
30
SHAW, George B. “Transition”. In: SHAW, George B., op. cit., p. 227.
31
Claro, de forma muito diferente daquela apontada por Marx no Manifesto Comunista.
32
Idem, p. 223.
33
BLAND, Hubert. “The Outlook”. In: SHAW, George B., op. cit., p. 252.
34
SHAW, George B. “Transition”. In: SHAW, George B., op. cit., p. 226.
35
Idem, p. 247.
36
Edmund Burke (1729-1797), membro do partido Whig, é considerado por muitos o pai do
conservadorismo moderno, principalmente a partir de sua obra mais famosa, Reflexões sobre a revolução
na França, onde se posiciona claramente contra os revolucionários franceses de 1789.
163
parlamentar pela primeira vez na história, que explica o caminho percorrido pelo Partido
Trabalhista no pós-guerra, pois, conforme resume Saville
a teoria fabiana da História inevitavelmente se apoia numa premissa ampla:
a de que o governo numa democracia política está em pleno controle do
Estado e do poder de Estado, e que não há limites efetivos à capacidade
legislativa do governo. É baseado no postulado da neutralidade do Estado:
que qualquer administração que chegue ao poder ipso facto está em
41
controle amplo e total do seu programa legislativo.
É essa premissa equivocada que guia grande parte das ações do Partido
Trabalhista, tomando forma prática a partir do governo Attlee. Essa confusão entre
poder de Estado e poder de governo 42 trouxe consequências duradouras para o
movimento trabalhista e, ao avaliarmos a história do desenvolvimento do Partido
Trabalhista, não podemos deixar de notar como a ideologia fabiana se adequa ao papel
desempenhado pelo partido no pós-Segunda Guerra. A crença numa conquista, pelo
interior de um Estado visto como neutro e através das suas próprias vias e instituições,
de uma nova sociedade, sofreu modificações, mas não se eliminou a visão mais geral da
sociedade enquanto um todo não-homogêneo mas não contraditório e, portanto,
possível de ter suas diferenças amenizadas ao máximo pelo próprio Estado. Sua
conjunção com o arranjo corporativista do período foi a chave-mestra que definiu a
atuação do partido e o sentido com que este se portava perante as demandas das
classes trabalhadoras, sempre se equilibrando entre seu papel político-parlamentar e
sua atuação organizativa da própria classe trabalhadora. É nessa linha que a definição de
Saville faz sentido, quando este vê o trabalhismo britânico como
uma teoria e uma prática que aceitam a possibilidade de mudanças sociais
apenas no interior das estruturas existentes da sociedade; que rejeita ação e
violência revolucionária (...); e que cada vez mais reconhecia o
funcionamento da democracia política em sua variável parlamentarista como
43
o meio prático de se alcançar seus próprios objetivos e planos.
Papel vital nos trinta anos “dourados” do capitalismo britânico do pós-guerra
tiveram o Partido Trabalhista e o T.U.C., levando a cabo um processo de despolitização
das demandas operárias e apassivamento político desta classe, repelindo seus
elementos mais radicais e se adequando aos limites vigentes da hegemonia deste bloco
histórico, contribuindo de maneira crucial para a manutenção e perpetuação da relação
de classes sob a democracia do Estado de bem-estar social de forma muito mais
implícita do que se pensa naturalmente, reforçando um espectro de opções políticas
claramente definido (e reduzido).
A partir disso, o debate central na esquerda britânica sobre os “fracassos” do
Partido Trabalhista em organizar politicamente a classe trabalhadora britânica em
direção ao socialismo adquire um outro significado. Para Panitch, na verdade,
em grande medida, o que são vistos como fracassos do Partido Trabalhista
são na verdade o seu sucesso. A função do partido no sistema político
britânico consiste não apenas em representar os interesses da classe
trabalhadora, mas também em agir enquanto um dos principais mecanismos
41
SAVILLE, John, op. cit., p. 86.
42
Debate importante na tradição marxista mas que, por falta de espaço, não entrarei aqui.
43
SAVILLE, John. “The ideology of Labourism”. In: BENEWICK, R. et al (orgs.). Knowledge and Belief in
Politics. Londres: Allen and Unwin, 1973, p. 215.
165
Referências bibliográficas
ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
COATES, David. The Labour Party and the Struggle for Socialism. Cambridge: Cambridge
University Press, 1975.
DAHRENDORF, Ralf. As Classes e seus Conflitos na Sociedade Industrial. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1982.
JESSOP, Bob. “Corporatism, Parliamentarism and Social Democracy”. In: SCHMITTER,
Philippe C. & LEHMBRUCH, Gerhard (orgs.). Trends toward Corporatist Intermediation.
Londres: SAGE Publications, 1979.
MILIBAND, Ralph. Parliamentary Socialism: A Study in the Politics of Labour. Londres:
Merlin Press, 1979.
_____. O Estado na Sociedade Capitalista. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1972.
PANITCH, Leo. Working Class Politics in Crisis: Essays on Labour and the State. Londres:
Verso, 1986.
_____. Social Democracy and Industrial Militancy (1945-1974). Cambridge: Cambridge
University Press, 1976.
POULANTZAS, Nicos. O Estado, O Poder, o Socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2015.
PRZEWORKI, Adam. Capitalismo e Socialdemocracia. São Paulo: Companhia das Letras,
1989.
SAVILLE, John. “The ideology of Labourism”. In: BENEWICK, R. et al (orgs.), Knowledge
and Belief in Politics. Londres: Allen and Unwin, 1973.
_____. “Labourism and the Labour Government” (1967). In: COATES, David (Ed.) Paving
the Third Way: The Critique of Parliamentary Socialism – a Socialist Register anthology.
Londres: Merlin Press, 2003.
SHAW, George B. (org.) Fabian Essays in Socialism. New York: The Humboldt Publishing
Co, 1891.
167
diferentes, três ocupações na região Central da cidade (e muito próximas uma das
outras) merecem destaque: OcupaMinc, OcupaSUS e OcupaINSS.
Uma primeira ida a campo foi capaz de constatar alguns elementos: o
integracionismo existente entre as ocupações; o caráter festivo do OcupaMinc - por
mais que mantivesse programação com atividades políticas e culturais; o OcupaMinc
servir como local de encontro e de partida para atos e passeatas no Rio de Janeiro; a
disputa de forças políticas ainda recente no OcupaSuS, com a CTB, CSP/conlutas/CUT/
RUA disputando centralidade do debate político. Em breve voltaremos a essas primeiras
impressões.
A equipe de pesquisa composta por Leandro Boechat, Lucas Moura e Rodolfo
Noronha realizou entrevistas e visitou essas ocupações em momentos diferentes, tanto
em grupo quanto individualmente. A proposta de pesquisa passa por comprender esses
movimentos a partir de sua dinâmica real; aqui, as ferramentas da pesquisa
antropológica foram de grande importância. Talvez por isso o texto, nesses dois itens,
pareça estranho por assumir um caráter narrativo quase pessoal; esse recurso à
Antropologia permite coletar dados que forneçam chaves analíticas para entender esses
movimentos enquanto eles acontecem.
Uma primeira ida a campo foi capaz de constatar alguns elementos: a boa
relação entre as ocupações; o caráter festivo do OcupaMinc - por mais que mantivesse
também programação com atividades políticas e culturais; O espaço do OcupaMinc
como local de encontro e de partida para atos e passeatas no Rio de Janeiro; a disputa
de forças políticas ainda recente no OcupaSuS, com a CTB, CSP/conlutas/CUT/ RUA
disputando centralidade do debate político; a presença de três grupos distintos,
conforme descrito mais acima. Essas foram algumas das primeiras impressões. A partir
delas, foi possível enxergar as diferenças mais nítidas de cada ocupação, isto porque
cada categoria que estava lutando desenvolve seu próprio modus operandi de resistir. O
OcupaMinc, que iremos trabalhar com mais afinco, por exemplo, lutava mais em defesa
de Dilma e PT, contra o golpe e a favor de políticas na área de Cultura. Já o OcupaSUS
mantinha a defesa do processo democrárico e dos direitos sociais, em especial do SUS.
E, por fim, o OcupaINSS traz palavras de ordem contra o governo e as reformas
impostas, além da luta pela moradia. Ao 46º dia do OcupaMinc fomos ao campo
observar a ocupação do prédio do Palácio Gustavo Capanema. Neste momento, o
Ministério da Cultura, que havia sido transformado em secretaria pelo governo ainda
interino de Michel Temer, voltou a funcionar, coexistindo com a ocupação. Este fato fez
com que os próprios ocupantes criassem limites básicos para coexistência entre
Ocupação e Ministério da Cultura, visto a gama de obras com valores inestimáveis
dentro do ministério.
Voltando à primeira ida a campo, a fachada do mezanino foi o primeiro
elemento que chamou atenção. Diversas faixas estendidas no lado de fora, tais como
UNE, UJS, UBES, é facilmente perceptível a defesa do governo que sofreu o
impeachment, enquanto uma única faixa "Leilão é privatização" demonstrou um caráter
de crítica ao ex-governo. Ao entrarmos no prédio, fomos acompanhados por um
integrante, que conseguiuexplicar o funcionamento da ocupação, sua trajetória e suas
motivações pessoais. Em seguida nos levou para conhecer o espaço. Conversamos,
também, com os vendedores ambulantes que vendiam cerveja, água, coca-cola, dentre
outras bebidas para saber sobre como estava o movimento. Todos estavam bem
contentes com a ocupação, afinal, era trabalho para muita gente. Três notas
importantes sobre o Ocupa MinC ajudam a ilustrar a dinâmica da ocupação. Um dos
integrantes da pesquisa descreveu uma conversa casual que teve com um amigo da
vizinhança, de perfil político de direita, onde esse conhecido dizia que tinha ido na noite
173
anterior ao Ocupa MinC. Surpreso, perguntou o que ele tinha ido fazer lá, e recebeu
como resposta que aquela era a melhor "night" do Rio de Janeiro no momento. O
mesmo componente da equipe pegou um panfleto em um hostel, que indicava lugares
bons e baratos na noite do Rio. O panfleto continha um mapa com indicações sobre a
Lapa, Baixo Gávea, e o Ocupa MinC, dentre outros lugares. Ou seja, a ocupação era ao
mesmo tempo um espaço político que se pretendia de resistência, e uma "noitada"
barata e divertida.
O terceiro acontecimento importante de ser destacado foi o fim da ocupação. O
Ministério da Cultura13 utilizou-se da obra que estava ocorrendo na área externa do
Palácio Capanema para requerer ordem judicial de reintegração de posse, apesar da
convivência pacífica. Os ocupantes, expulsos pela Polícia Federal sem violência em
grande parte graças à atuação da advocacia na negociação para o fim do movimento,
conseguiram se deslocar e ocupar, dias depois, a antiga casa de shows Canecão, em um
bairro da Zona Sul da cidade. O prédio da UFRJ foi palco de diversos outros atos,
debates, festas e exibições artísticas até que o Ministério da Educação insta a reitoria da
UFRJ a desocupar o prédio, o que foi negociado diretamente com os ocupantes.
Concomitante à observação participante realizada no Ocupa MinC, verificou-se
também, como estratégia de comunicação, a articulação da ocupação e as redes sociais.
Nesse sentido, analisamos tal articulação entre o ocupar e o comunicar. Se o ocupa
MinC tornou-se um espaço de debates, shows, apresentações, atividades culturais
(yoga, teatro, música, dança, filmes, performance, etc) resistência e um QG permanente
de protestos contra o governo pós-impeachment, com apoio dos principais nomes da
classe artística e musical do país como Fernanda Montenegro, Chico Buarque e Caetano
Veloso, foi a partir das redes sociais que o Ocupa ampliou sua comunicação e
estabeleceu um marco identitário nas redes sociais como objetivo de dar visibilidade em
contrapartida à grande mídia para suas pautas e agenda. A página no Facebook "Ocupa
MinC RJ" serviu como meio de comunicação e articulação entre seus atores/agentes,
bem como com meio de divulgação de suas atividades. A partir da rede foi possível
também acompanhar on line, quase em tempo real toda a mobilização e programação
desde o início da ocupação, até o 46º, dia no qual iniciou-se o trabalho de campo, até o
73º dia de ocupação no Palácio Capanema – RJ, a transferência do ocupa para o
Canecão e até os dias atuais.
2.2 O Nuit Debout - Ocupação no prédio L da Universidade de Nanterre: prelúdio das
manifestações contra a lei do trabalho.
Enquanto o item anterior, relativo ao Ocupa MinC, reúne relatos de campo dos
três pesquisadores no Rio de Janeiro - Leandro Boechat, Lucas Moura e Rodolfo
Noronha, os relatos sobre o Nuit Debout foram integralmente redigidos por Aléxia
Kilaris, que realizou mobilidade acadêmica em 2016. Novamente, o tom da narrativa é
descritivo, ainda que mantendo o caráter analítico.
Até então não sabia muito sobre as mudanças na legislação trabalhista. Na
semana do 21 de março cheguei para uma dessas aulas e me deparei com esta
ocupação, organizada pelos estudantes. Adentrando a ocupação tirei algumas fotos do
ambiente e reparei alguns cartazes, produzidos pelos membros da ocupação, nos quais
havia críticas à nova proposta de lei do trabalho, bem como um posicionamento
explícito a favor da retirada do projeto. E, além disso, um calendário de atividades. Para
13
Pressionado, o governo federal cede e volta a conceder status de ministério à pasta da Cultura. Ainda
assim, a ocupação perdurou por muitos dias.
174
compartilhada entre eles. Mas a cerveja continuava cara em todos os cantos da praça.
Percebemos, então, que as pessoas já chegavam com suas cervejas na mão. Ora, havia
de ter algum lugar próximo para comprá-las de forma mais barata. Constance ligou para
Dani e o encontramos com outros cinco amigos espanhóis como ele. “Belleville! A gente
comprou cerveja lá nas vendinhas dos árabes". Belleville é um bairro que se localiza às
costas da Marianne – a estátua, símbolo da revolução francesa, que fica no centro da
praça da República. É um bairro com uma rua principal que sobe e liga a praça da
república ao parque de Belleville, sendo conhecida por possuir, na parte ainda plana da
rua, restaurantes e vendinhas onde a especialidade é kebab com batata frita,
empacotados para viagem em embalagens de isopor amarela. Essas embalagens
compunham o cenário do amanhecer da praça. A sujeira da soirée-République foi um
dos motivos alegados pela municipalidade para proibir que as pessoas ocupassem a
praça a noite. Adentramos uma dessas kébaberias e, enfim, compramos nossas cervejas
e voltamos para a praça. Marianne estava cercada de cartazes e dizeres sobre
democracia e lei do trabalho, que se misturavam com as velas e as palavras de luto em
memória das vítimas do atentado de novembro de 2015. A praça, meses antes, fora
também reduto das manifestações por paz. Havia um cartaz grande, escrito com letras
coloridas, aos pés da Marianne, que indagava simbolicamente à praça: Démocratie, t’es
où?16
Fiquei entre amigos estrangeiros conversando e bebendo. A prosa não era sobre
política. A política, até então, só havia sido o pretexto do encontro. Por vezes me
deslocava um pouco da roda e ia ler os cartazes colados em uma espécie de varal. A
maioria fazia jogos de palavras com debout – cujo significado acabei aprendendo neste
dia – e début – cuja pronúncia correta passou a ser necessária a título de diferenciação.
Outros ironizavam a lei do trabalho e seu mentor Valls, bem como a ministra do
trabalho El Khomri. Outros ainda fazia referência ao ditado francês que diz que a noite
traz conselhos. 17 No entanto, a única coisa que a noite de fato trouxe foi a polícia, por
volta de umas 22h30. Já ligeiramente embriagados, não estávamos entendendo muito
bem o que estava acontecendo, afinal era uma festa!(?). Houve bombas de gás e o
público, cativado pela ambiance soirée, se dispersou rapidamente.
Estava já no segundo bimestre do ano de 2016, a ocupação na Praça da
República estava acontecendo já havia, mais ou menos, duas semana. Era uma quinta
feira e a professora de estudos de gênero terminou a aula anunciando que, na semana
seguinte, a séance estaria suspensa em razão da greve geral e da convocação para a
manifestação contra a loi du travail. Em Paris, assim como no Rio e em São Paulo, os
roteiros das manifestações indicam o viés politico e ideológico de cada uma delas.
Geralmente as manifestações que percorrem os eixos simbólicos entre République,
Bastille e Nation são historicamente manifestações da esquerda francesa. Já as que se
iniciam na praça da Concordia e vão até o arco do Triunfo são as manifestações da
direita. Esses eixos de manifestações ganharam tais simbolismos durante os anos 30,
antes das eleições de 1936: o partido nacionalista francês, alinhado ao fascismo italiano
e ao nazismo alemão, sempre marcava ponto de encontro ou na praça da Concordia ou
no Arco do Triunfo – símbolos do nacionalismo e imperialismo francês; já os
manifestantes do Front Populaire, encabeçadas por Léon Blum, eleito em 36, se reuniam
próximo aos símbolos republicanos da cidade, Nation, Republique e Bastille.
Curiosamente, após a vitória nas eleições deste ano, Macron marcou como ponto de
encontro para seu festejo público uma localidade entre Concorde/Triunfo e
16
"Democracia, onde você está?", em tradução livre.
17
“La nuit porte conseil”
176
Republique/Bastille: qual seja, a pirâmide do Louvre – friso que é bem mais perto de
Concorde. Bref.
Quando saí de casa para encontrar Caro, naquela quinta-feira de aulas
suspensas, me deparei com as catracas do trem suburbano liberadas. Isso só aconteceria
por dois motivos: em razão dos altos níveis de poluição da capital, o que fazia o governo
municipal incentivar o uso do transporte público, ou em razão das greves gerais
anunciadas, nas quais os funcionários da SNCF participavam e mantinham o sistema de
transporte com intervalos irregulares. Para chegar à minha primeira manifestação, saltei
do trem em Saint Lazare e fui andando até République. Nesse caminho já havia muitos
trabalhadores na rua caminhando até a concentração. Identifiquei-os, pois, a maioria
vestia ou coletes, ou macacões azuis ou capacetes. Eles realmente estavam vestidos à
caráter para a manifestação. Quando me aproximei mais da praça da República fiquei
impressionada: havia muita gente, muitos caminhões de som e muitos balões redondos
com o nome dos sindicatos. A faixa etária das pessoas lá presentes era realmente
diversificada, havia jovens do ensino médio, os chamados lycéens, universitários, como a
Caro, e trabalhadores sindicalizados, na faixa de 40/50 anos. O debate sobre a mudança
legislativa me pareceu ter atingido transversalmente esses grupos: os jovens indagando
as futuras condições do trabalho e, principalmente, questionando a precarização tida
como solução para o desemprego que essa juventude vem vivendo; os adultos,
trabalhadores sindicalizados, questionando a precarização que essa nova lei traria as
relações trabalhistas. As pessoas não se limitavam à área da praça, ocupavam também
suas ruas laterais. No espaço da praça, em si, havia alguns “varais de cartazes”
ironizando as figuras políticas que encabeçavam a mudança – Valls e El Khomri – e
questionando as falsas soluções que a reforma visava trazer. Muitos manifestantes
levavam seus próprios cartazes, com jogos de palavras e críticas.
Estava realmente cheio. Tão cheio que não consegui localizar a Caro e seu
grupo. O ponto de referencia, que era um balão de sindicato, existia em vários lugares
da praça e se movia. Então segui a manif sozinha aquele dia. Foi uma longa caminhada
até o monumento da rotatória de Nation – próxima à Nation há também a sede da CGT.
Durante o percurso havia gritos sendo puxados pelos grupos, músicas sendo cantadas.
Os jovens se dividiam por universidades/colégios ou de acordo com seus movimentos. A
maioria dos jovens levava faixas e panfletava intensamente tanto adesivos como
folhetos problematizando e informando sobre o projeto de lei. Vi, durante o caminho,
algumas ações diretas em paredes de bancos, no entanto não notei conflitos com a
polícia. Quando cheguei à Nation já havia muita gente. O monumento da rotatória da
Nation é enorme e alto, estava tomado: havia jovens manifestantes que o escalavam e
ficavam sentados ao lado da cabeça das estátuas que compõem o monumento. Alguns
prendiam suas placas junto às estátuas. A que mais estava em evidência quando cheguei
dizia: on vaut mieux que ça, valemos mais do que isso, o que, ao menos para os meus
olhos, foi um dos grandes slogans desse processo político. Fiquei um tempo sentada em
um dos bancos que circundam o monumento, observando a dispersão dos
manifestantes pelos buracos que davam acesso ao RER. A maioria que ocupou o
monumento era jovem, alguns bebiam, outros se reuniam em grupos para papear.
Apesar de ter participando das manifestações durante o mês de maio/abril, era
realmente difícil de participar das atividades da ocupação na praça da República. Até
então minha única ida havia sido com a Constance. Isso se deu, pois as atividades, que
no início da ocupação ocorriam literalmente de noite – fazendo jus ao nome nuit
debout, passaram a ser feitas no final da tarde, entre 17h e 20h. Neste horário, durante
os meses de abril/maio eu ainda estava tendo aula na faculdade. A mudança de horário
das atividades se deu pois a polícia e a prefeitura interditaram a ocupação da praça
177
depois das 22h18. A motivação para essa proibição foi em razão do barulho, que se
estendia para além das 22h, e da sujeira da praça ao amanhecer. Segundo o jornalzinho
do mêtro, a praça da república ficava repleta de garrafas, latinhas de bebida e de
caixinhas de isopor de kebab. O consumo de bebidas alcoólicas na praça também foi
proibido pois, segundo a polícia, os conflitos se davam em razão do consumo excessivo.
Penso que essas restrições feitas foram um divisor de águas no estilo da ocupação,
mudando o público que a frequentava e, consequentemente, suas atividades. A nuit
debout dançante deixou de sê-la, como indicava um dos cartazes que vi na minha
primeira ida à praça.
A segunda manifestação que participei, muito provavelmente, ocorreu no mês
de maio. Minhas férias tinham acabado de começar, os dias ficavam mais longos e mais
quentes, os casacos já estavam mais leves. O rendez-vous fixou-se às 13h na rotatória da
Bastilha. A manifestação também tinha como destino final Nation, a única diferença é
que partindo de Bastille para Nation a rota seria mais curta. Tive a impressão, nesse dia,
depois de inúmeras manifestações – que ocorriam, aliás, desde o início do mês do
março, antes da ocupação da praça com a nuit debout – que havia uma pequena
desmobilização. Eu e Caro não andamos até o fim da rota da manifestação. Fizemos,
mais ou menos, metade do caminho. Lembro-me que um dos motivos, além do cansaço,
para termos parado na metade do caminho foi que houve boatos de conflito com a
polícia e que esta estava utilizando gás contra os manifestantes. A ocupação da praça da
República ocorreu dia 31 de março de 2016 e se autodenominou Nuit Debout. Não
estava presente neste dia, nem mesmo na manifestação que a antecedeu. Meu primeiro
contato com a ocupação se deu em razão do convite de uma amiga. O olhar tido,
portanto, quando da primeira ida, foi diferente daquele que viria a ter nas outras visitas.
Isso porque as tratativas para a realização da pesquisa se deram em 29 de maio. Eu já
possuía algumas percepções sobre a praça. Assim, na primeira conversa sobre o Nuit
Debout ainda antes de tratarmos de pesquisa, instantaneamente disse que a ocupação
me fazia pensar muito nas noitadas boêmias da Praça São Salvador. A diferença
aparente é que no centro da praça no Rio há um chafariz, já em Paris uma Marianne. O
local de sociabilidade pública e com entrada ao ar livre, a bebida, a jovialidade dos
frequentadores organizados em grupos de amigos me parecia ser bem similar nas duas
praças. Além disso, nos dois ambientes, apesar das nuances culturais, havia um ritmo
dançante: no Rio com a trilha sonora feita pelo samba improvisado pelos encontros dos
artistas; em Paris a musicalidade se dava mais graças às caixas de som portáteis, que
ambientavam a praça com rap francês.19
18
http://www.bfmtv.com/societe/nuit-debout-la-prefecture-de-police-de-paris-interdit-le-mouvement-
apres-22-heures-972895.html , acessado em 10/10/2017.
19
Isso porque a praça, além de seu simbolismo político à gauche, é também ponto de encontro de uma
jeunesse (juventude) especifica em seu momento de lazer: os chamados “franceses de segunda/terceira
geração”, jovens nascidos na França, portanto franceses, e filhos de pais árabes, que aprendem e falam
árabe em casa e francês no colégio. Possuidores, portanto, de um vocabulário muito criativo que mistura
árabe e francês, com gírias e expressões próprias, principalmente cristalizadas no rap. Aqui uma observação
importante: enquanto a praça possuía um ambiente mais festivo e dançante, com frequentadores, tive a
impressão que essa jeunesse específica estava mais integrada à ocupação em si e às atividades propostas
pela ocupação. Os frequentadores da festividade nuit debout e essa jeunesse se misturavam e ocupavam de
forma mais homogênea o território amplo da praça. Quando, no entanto, houve a proibição do consumo de
álcool depois das 22h e a limitação de horário para as atividades da ocupação na praça – o que, aos meus
olhos, foi o acontecimento que ocasionou a mudança na dinâmica da ocupação e suas atividades -, essa
juventude especifica deixou de ocupar conjuntamente a praça, deixou de compor espacialmente o
movimento, deixou de participar do debate e das atividades da chamada nuit debout. Essa jeunesse passou
a ocupar de maneira mais restrita a praça, o que espacialmente se refere a rotatória do monumento da
Marianne e o lado esquerdo da praça – olhando de frente para a estátua da Marianne. É de se questionar: a
178
No entanto, essa primeira percepção estava apoiada sobre o que pude ver e
constatar naquela única noite, até então, que havia estado na praça com a Constance,
ainda no mês de março. Assim que decidi frequentar mais a praça e entender o que
estava ocorrendo por lá, agora naquele início do mês de junho de 2016, essa primeira
percepção alterou-se drasticamente. Assim, mais uma vez a convite de Caro, no dia 13
de junho de 2016 estivemos na praça, ainda que fizesse nublado, os casacos já estavam
mais abertos ao verão que se aproximava. Naquele momento meu olhar possuía a
intenção expressa de entender o que se passava na ocupação. Caro me convidou para o
rassemblement depois de ver um evento no Facebook, organizado pela página da
própria nuit debout20, em resposta aos ataques homofóbicos que ocorreram em uma
boate nos EUA.
Nesse dia, pude presenciar a dinâmica de participação dos ocupantes e
frequentadores ocasionais, durante as assembleias 21 . A dinâmica de
participação/integração das assembleias foi explicada justamente porque,
pontualmente nesse dia, o público de frequentadores ocasionais estava “em alta”, em
razão da temática que envolvia a assembleia. Muitas foram as falas dos ocupantes no
sentido de que nas assembleias anteriores havia apenas 20 pessoas, enquanto que
nesta, onde a temática era pontual e em reação a um acontecimento especifico, a
quantidade de pessoas sentadas no chão da praça estava maior.22 Assim, no que tange à
dinâmica das assembleias da ocupação: do lado direito da praça – olhando de frente
para a Marianne – havia uma caixa de som com um microfone. As pessoas, ocupantes
ou frequentadores curiosos, se sentavam no chão de maneira meio aleatória olhando
para a pessoa que estaria com a parole. Algumas pessoas também ficavam de pé
ouvindo, geralmente os de pé coincidiam com os transeuntes que, ao sair do metrô, se
nuit debout dialoga com essa juventude da praça? essa juventude que têm como espaço público de lazer e
de encontro a praça? com esses que convivem, povoam a praça desde sempre? Seria essa juventude de
“franceses de segunda/terceira geração” os verdadeiros ocupantes da praça e os membros da nuit debout
frequentadores ocasionais da praça, na situação em que um debate politizado é suscitado, fomentado,
organizado?
20
Aqui é muito importante de dizer que desde o início da ocupação houve uma preocupação com a forma
pela qual a mídia hegemônica retrataria e se reportaria à ocupação. Essa preocupação fez com que os
ocupantes, organizados em uma comissão específica, desenvolvessem meios de comunicação entre a
praça/ocupantes e o mundo/não-ocupantes/simpatizantes/frequentadores. Garantindo, portanto, a
produção de informação acerca do que do é/era a Nuit Debout a partir da percepção dos próprios
ocupantes. Lembro-me que ouvi uma transmissão da radio France Culture em que os jornalistas narravam a
dificuldade em informar, precisar o que ocorria, posto que os ocupantes se recusavam a prestar
informações a essas mídias, alegando que tais seriam feitas nos canais de comunicação próprios da
ocupação. Assim, foi criado um canal de YouTube, com transmissão ao vivo das assembleias; páginas de
Facebook, normalmente uma para cada comissão, concentrando a difusão dos eventos organizados e
realizados por cada uma dessas comissões; um site, onde os próprios ocupantes faziam descrição e
narravam suas experiências políticas na praça, bem como publicavam fotos, filmagens; rede de e-mails, para
facilitar o contato entre os membros das comissões e organizar intervenções e reuniões – principalmente
quando, durante o inverno, as reuniões mudavam de endereço, deixando de ser na praça e passando a ser
em locais fechados, como cafés.
21
Aqui friso que me utilizei propositalmente do termo ocupantes e não frequentadores. Penso que no início
da ocupação, antes da proibição de bebidas alcoólicas e da limitação de horário para as atividades nesse
espaço público, havia muitos curiosos – como minha própria amiga Constance –, interessados no ambiente
sociável e dançante que se tornou a praça; diferencio-os dos ocupantes que, mesmo depois da mudança da
dinâmica das atividades, continuaram a participar das atividades de cunho político. Há também uma
diferença entre esses ocupantes e aqueles que realmente fazem da praça um lugar de convívio cotidiano, os
que chamarei de “franceses de segunda geração”, os povoadores da praça, que escutam rap, se encontram
com amigos, andam de skate.
22
Há, no final do capítulo, uma foto do público presente na praça em resposta do atentado na boate gay
nos EUA.
179
deparavam com uma foule23 e paravam um pouco para entender o que se passava na
Praça da República. Há uma saída de metrô na praça, o que justifica o fluxo de pessoas
pela praça, principalmente durante o horário marcado para o rassemblement: 18h/19h,
já com o dia mais longo que a noite.
Uma moderadora organizava a ordem das falas e incitava, inclusive, que mais
mulheres pegassem a parole. Antes que a assembleia temática começasse essa
moderadora deu algumas instruções: disse que as falas não tinham tempo de duração
pré-estipulado, quem decidia se a fala estava demasiadamente longa era o público, que,
neste caso, deveria gesticular de uma certa maneira – também mostrada pela
mediadora. Nesse mesmo sentido, era o público presente que deveria reagir de modo a
rechaçar o conteúdo de uma fala, principalmente em relação a racismo, LGBTfobia,
machismo. O público da praça nesse dia era de jovens e brancos majoritariamente. Uma
grande parte carregava consigo cartazes e bandeiras com signos do movimento LGBT.
Enquanto ouviam as falas durante a assembleia alguns fumavam e bebiam. Houve falas
de, no mínimo, 3 mulheres trans, fazendo citação ao movimento queer. Nesse dia havia
uma barraquinha montada - bem provisoriamente - com uma placa indicando assistance
juridique. Muito provavelmente isso se deu pois na manifestação anterior havia ocorrido
um grande número de prisões arbitrárias de manifestantes, bem como racismo por
parte da polícia e cerceamento do direito de manifestação, foram contabilizadas 190
prisões24.
Minha segunda aparição na praça no segundo semestre de 2016 foi em uma
segunda-feira, dia 27 de junho de 2016. Saí do metrô e me deparei, logo de cara, com
uma roda com cerca de 8 pessoas.25 Eles usavam um megafone – bem potente para a
quantidade de pessoas que integravam a roda – e discutiam sobre a tramitação da lei do
trabalho no parlamento francês. Fiquei um tempo ouvindo as infos e, depois, me dirigi à
segunda roda presente na praça. Ela também estava do lado direito da praça sob uma
tenda azul improvisada, contavam com cerca de 15 pessoas e mais um megafone.
Sentei-me, lembro que senti o chão tremer com o metrô que passava logo embaixo.O
tema da roda era economia: falavam sobre financiamento individual de políticas por
parte dos cidadãos, emissão de moeda. O mais interessante de reparar é que nesta roda
havia uma integração muito interessante que eu diria ser intergeracional: havia jovens,
aparentemente universitários – tendo em vista a densidade do assunto – e pessoas com
cabelos brancos, que presumi serem mais velhas, de uma faixa etária mais avançada,
contei cerca de 5 pessoas com essa característica. As discussões pareciam estar bem
aprofundadas – foi bem difícil acompanhar o debate em razão da utilização de vários
termos técnicos os quais não possuía domínio – e as pessoas se tratavam com certa
intimidade, chamavam-se pelos primeiros-nomes. Isso me fez pensar que aquele,
definitivamente, não era o primeiro encontro do grupo.
Esta foi minha última ida à praça, antes da suspensão das atividades da
ocupação durante as férias de verão, no mês de agosto. A chama rentrée deboutiste26 foi
organizada alguns dias antes da rentrée das universidades, estive presente em um dos
23
"Multidão", tradução própria.
24
https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=1046606135431414&id=998145016944193
25
A saída do metrô République que leva à praça é justamente nesse lado direito – olhando, sempre, de
frente para a Marianne. Nesse dia 27 de junho, as duas rodas presentes com atividades eram também nesse
lado direito. Do lado esquerdo da praça há um bar, com copo de cerveja a 7 euros (assez chèr) e o memorial
às vítimas do 13 novembre. Eu tenho a percepção que neste lado esquerdo também ficam os jovens
“franceses de segunda geração”, filhos de migrantes, normalmente sentados na base da estátua da
Marianne, ouvindo rap, alguns andando de skate, em grupos conversando.
26
A “volta” da nuit debout, em alusão à rentrée scolaire, “volta às aulas”.
180
dias de atividade. O mês de agosto é o mês oficial das férias, dos congés payés. Durante
o mês de agosto, assim, as atividades na praça da República também tiraram congé. A
volta das atividades foi anunciada por um evento do Facebook, feito pela própria página
da Nuit Debout. As atividades estavam marcadas para começar na quarta feira, dia 31 de
agosto de 2016, com atividades a partir das 16h. Dentre as atividades havia:
apresentação das comissões, conferências com temas sugestivos - “O que é uma
TAZ?”27, explicação sobre que são ZADs28, bem como os GPII29 - e exibição de filmes em
um telão na praça. Quando cheguei na praça estava dia ainda e bem calor, por volta das
18h. Os mais jovens, embalados pelos costumes incitados pelo verão sem praias, se
refrescavam com cerveja gelada comprada em um supermercado próximo. O público da
praça, desde a primeira vez que lá estive, sempre me chamou atenção. Ele quebra
alguns clichês interessantes e se relaciona com a própria localidade da praça da
República na cidade. Mais uma vez, ele se mostrou intergeracional: havia pessoas de
cabelo branco; pessoas engravatadas, que pareciam ter saído do trabalho; jovens
estudantes, que voltariam nos próximos dias às rotinas das universidades; grupos que
aparentavam formar uma família, com suas crianças, que brincavam livremente pela
praça.
Foi bem interessante notar como a estação do ano – final do verão- e o local da
ocupação – uma praça pública no centro de Paris, onde várias estações de metrô se
cruzam – permitem/facilitam que essa pluralidade intergeracional se encontre. No
entanto, ainda que esta diversidade tenha se mostrado visível, não sei se uma
pluralidade de classe e raça estava presente. Digo isso, pois foi-me evidente nesse dia
que a praça se dividia em dois lados. O lado das atividades Nuit Debout e o lado das
atividades dos povoadores da praça (falo sobre esse termo na parte IV do texto, nota de
rodapé 1 e 3). Do lado das atividades Nuit Debout, essa diversidade intergeracional se
entretia em uma assembleia. As regras de interação, em algum momento, já haviam
sido apresentadas pelo moderador, pois os ouvintes interagiam com o que era dito no
microfone através de gestos já dotados de sentido naquele contexto. Notei um tema
bem aprofundado e denso para um dia quente de verão: as pessoas falavam de formas
de distribuição de riqueza, moedas alternativas, trocas sem uso de dinheiro. Até que um
garoto foi ao microfone e, mudando um pouco de temática, começou a explicitar o
conceito de Zona Autônoma Temporária (TAZ), sobre como as pessoas possuíam poder
naquela praça, sem, no entanto, terem sido eleitas. Como, assim, as pessoas estavam
empoderadas na praça, sem compor o Estado.
O microfone livre durou até às 19h30, quando começou um show. Achei a banda
bem ruim, então decidi dar uma volta pela praça. Esse passeio pela praça que me
permitiu entender um pouco mais sobre como os ocupantes da praça e membros do
movimento se organizavam estruturalmente, bem como perceber que a praça da
Republica é, realmente, dividida em duas partes consideravelmente diferentes.
Seguindo o perímetro retangular da praça, havia pequenas barraquinhas organizadas e
27
Temporary Autonomous Zone, Zonas autônomas temporárias, termos que serão melhor explorados na
parte teórica do artigo.
28
Zone à défendre, Zona a defender. No entanto, o significado original da sigla é do direito urbanístico e
quer dizer Zone d’Aménagement Différée, ele foi ressignificado e reapropriado pelos militantes que
resistiram à realização dessa ZAD na região do que se tornou o aeroporto de Notre-Dame-des-Landes.
https://zad.nadir.org/spip.php?article3367
29
Grands Projets Inutiles Imposés , Grandes Projetos Inúteis Impostos, seria algo como obras faraônicas que
degradam a natureza e o meio ambiente, financiadas pelo dinheiro público e que pouco solucionam as
necessidades da população e geram grandes lucros às empresas que os desenvolvem.
https://npa2009.org/arguments/gpii-les-grands-projets-inutiles-imposes-mieux-les-connaitre-pour-mieux-
les-combattre
181
mantidas pelos membros das comissões. Elas estavam organizadas lado à lado, de forma
esparsa, com cartazes denominando e dando uma identidade visual própria a cada uma
delas. Achei curioso: os temas que davam nome a essas comissões - núcleos que
organizavam por interesse/afinidade os membros/ocupantes da praça - eram muito
específicos. Eu penso que quase inusitados. Nesse dia, estavam presentes a comissão de
recepção (accueil), comissão ambiental, comissão de jovens do ensino médio (lycéens),
comissão anti-espécies de animais e a comissão anti-publicidade. Essas comissões me
fizeram pensar que a praça, mesmo sendo o espaço de organização contra uma pauta
conhecida pela esquerda (mudanças/precarização da legislação trabalhista), era,
também, o espaço que catalisou o encontro de pessoas ao redor de pautas muito
específicas e diversificadas.
Assim, me aproximei das barraquinhas das comissões para ouvir o que os
membros tinham para dizer sobre esses engajamentos específicos e/ou pegar o material
que ofereciam. Desloquei-me, então, à comissão anti-pub (anti-publicidade) e lá me
detive por um bom tempo. Confesso, foi uma das comissões que mais me impressionou
em termos de engajamento e atividades propostas. Assim que me sentei no chão da
praça, ao lado das oito pessoas que compunham a roda (quatro jovens de 20 anos, mais
ou menos, e quatro adultos com, mais ou menos, 30/40 anos – todos estudantes ou
formados em publicidade pelo que pude entender), fui abordado por um senhor,
também membro. Ele, prontamente, me entregou o manifesto da comissão anti-pub e
me explicou o funcionamento da comissão, enquanto os outros membros debatiam. Ele
me disse que uma das principais pautas da comissão é o chamado direito de recepção,
direito/liberdade de poder escolher o que se quer ver nos anúncios publicitários. Eles
argumentam que a propaganda é um ato unilateral que se impõe à todos, sem antes
permitir que os indivíduos decidam e escolham o que querem ou não ver.
Eles possuem algumas atividades de intervenção nas publicidades da cidade.
Uma delas consiste em: abrir os painéis onde são colocados os cartazes de propaganda
(o mais incrível é que eles possuem as chaves necessárias para abrir esses painéis);
retirar esses cartazes, trazê-los para a praça da republica, nos chamados ateliês de
modificação de propagandas - que ocorrem aos sábados no meio da praça; realizar
intervenções, modificações no conteúdo dessas propagandas; e recolocar esses cartazes
de propaganda de volta em seus painéis, agora alterados pelo público que
ocupa/frequenta a praça. Estive presente um sábado na praça e presenciei esse ateliê da
comissão anti-pub. A maioria das publicidades colocadas no chão da praça para
intervenção dos frequentadores/transeuntes eram publicidades de cunho sexista.
Algumas canetas eram disponibilizadas, assim, as pessoas desenhavam, escreviam frases
ironizando e/ou contestando o conteúdo da publicidade. Era um ambiente
descontraído, pessoas se juntavam para pensar em intervenções, comentavam as
intervenções ocorridas antes. Além dessa atividade, eles fiscalizam a eficácia da lei
francesa que proíbe propagandas na proximidade de escolas e colégios. Nesse sentido,
assim que eles encontram propagandas nas redondezas desses estabelecimentos, eles
denunciam às subprefeituras de bairro. Nesse dia, depois de ouvir o senhor que me
acolheu, concentrei-me em entender o debate que ocorria na roda da comissão anti-
pub – que tinha ao centro uma das chaves usadas para abrir os painéis onde ficam as
propagandas de rua: percebi, mais uma vez, que o debate e a articulação dos membros
já estavam bem avançados, sinal, ao meu ver, que o grupo já se reunia há um tempo.
Na ocasião, foi explicitado que eles estavam criando páginas no Wikipédia para
disponibilizar o savoir faire de abrir os painéis de propaganda, bem como discriminar
quais tipos de painéis existem na cidade e as respectivas chaves utilizadas para abri-los.
182
Eles estavam com seus computadores no colo e redigiam os textos para colocar no
Wikipedia.
Depois de mais um tempo de conversa e debate o encontro deles acabou. Eles
me informaram que ocupam a praça todas as quartas-feiras, por volta das 19h. O
senhor, que havia gentilmente me apresentado a comissão, pediu meu e-mail e me
colocou em uma cadeia de e-mails usada para fixar os encontros e as atividades dos
membros da comissão e frequentadores. Ressalto que até hoje, momento em que
escrevo, dia 23 de outubro de 2017 – c’est-à-dire, mais de um ano depois de ter
disponibilizado meu e-mail - ainda recebo notificações sobre as intervenções, atividades
e encontros da comissão. Pelo que leio elas ocorrem de maneira mais desconcentrada
pela cidade, penso que a temperatura e o mal tempo são fatores importantes para o
local de reunião e articulação das atividades.
Já estava noite e já estava um pouco cansada, então me dirigi às outras
comissões só parei para pegar o material panfletário que eles ofereciam. Remarco que a
comissão anti-especies de animais me pareceu bem engajada também, os membros
respondiam perguntas, explicavam. É de fato um assunto bem pontual que serviu de
eixo de organização para alguns ocupantes da praça. A praça em si estava repleta de
faixas: uma escrito “occupons les places”,“convergence de luttes” e “faites valser la
republique”30. Nesse dia, havia também em uma das laterais uma exposição de fotos da
praça, durante os eventos anteriores da ocupação.
Antes de ir embora, já de noite, resolvi dar uma volta no monumento da
Marianne e acabei por atravessar a fronteira imaginaria que divide a praça em dois lados
diferentes. Sempre olhando de frente para o monumento, estava agora do lado
esquerdo da praça. Lado que denominei como sendo o dos povoadores da praça da
república, dos chamados jovens de franceses de segunda/terceira geração, que usam a
praça como local de encontro, como espaço público de convívio com os amigos, como
local de atividades de lazer ao ar livre, como ouvir música, andar de skate, fazer aula de
dança e papoter31. Lembro-me, todavia, que havia ficado inquieta ao perceber isso. Não
entendi porque a Nuit Debout não ocupava a praça inteira, tampouco porque
especificamente aqueles jovens franceses ditos de segunda/terceira geração estavam na
praça, mas não participavam das atividades do lado direito.
Tendo essa inquietação em mente, nesta presente etapa de descrição e
apuração dos fatos percebidos em campo, resolvi, então, contatar um querido amigo,
Charles, para lhe indagar sobre esse jeunesse do lado esquerdo da praça. Apesar de não
ter frequentado a ocupação, ele foi categórico ao dizer que tinha a impressão que não
eram esses jovens que participavam da Nuit Debout. Mas, se de alguma maneira esse
perfil de jovens se mostrou presente, isso se explica, muito provavelmente, pois existem
muitas populações estrangeiras que moram em Belleville e no 20e arrondissement,
regiões da cidade que não são longe da praça da Republica. Para além disso, explicou
que a região onde se localiza a praça é de classe média alta, politizada e de cultura
politica laica e à gauche, o que também se relaciona com o perfil das pessoas que
compunham a Nuit Debout.
3. Algumas considerações finais
30
Ocupemos as praças, Convergência de lutas e Façam bailar a república (na ordem escrita no texto,
tradução própria).
31
Bater papo, papear, tradução própria.
183
QUINALHA, Renan. In: JINKINGS, Ivana; DORIA, Kim; CLETO, Murilo. Por que gritamos
golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. São Paulo: Coleção
Tinta Vermelha, Boitempo editorial, 2016.
JINKINGS, Ivana. Apresentação. In: JINKINGS, Ivana; DORIA, Kim; CLETO, Murilo. Por que
gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. São Paulo:
Coleção Tinta Vermelha, Boitempo editorial, 2016.
LUDD, Ned (org.). Urgência das ruas: Black Block, Reclaim the Streets e os Dias de Ação
Global. São Paulo : Conrad Editora do Brasil, 2002, pg. 10.
ORTELLADO, Pablo; SOLANO, Esther; MORETTO, Marcio. Uma sociedade polarizada. In:
JINKINGS, Ivana; DORIA, Kim; CLETO, Murilo. Por que gritamos golpe? Para entender o
impeachment e a crise política no Brasil. São Paulo: Coleção Tinta Vermelha, Boitempo
editorial, 2016.
185
2. Funções latentes direcionadas: aparato punitivo versus manifestações coletivas
2.1. Quem são os movimentos sociais?
A investigação através de literatura específica revela que a busca por conceitos
estanques é demasiado arriscada. Enquanto agentes em constante transformação, com
formas de manifestação distintas, não parece possível atribuir aos movimentos sociais
categorias e definições rígidas, sob o risco de esvaziar sua importância e não contemplar
a multiplicidade de ações reivindicatórias.
Gianfranco Pasquino, através da obra Dicionário de Política, publicada
originalmente em 1983, apontava para a existência de duas vertentes dentre os teóricos
clássicos a respeito dos movimentos sociais: de um lado, os que atribuem às
reivindicações coletivas no cenário político como “manifestação de irracionalidade”,
como Le Bom, Tarde e Ortega Gasset; de outro, a exemplo de Marx, Durkheim e Weber,
os que caracterizavam os movimentos coletivos como uma forma de ação social voltada
para transformações solidárias e até mesmo revolucionárias12.
A atribuição de valores depreciativos aos movimentos sociais, como sugere a
expressão “manifestação de irracionalidade”, vigorou durante considerável período.
Conforme leciona Maria da Glória Gohn13, remetendo às publicações de Lorenz von
Stein (1842), os movimentos eram tidos como “distúrbios populares”, diretamente
derivados de “instintos selvagens da natureza humana”.
As novas teorias, que eclodiram nas décadas de 1950 e 1960, são fruto de um
contexto muito particular: eclodiam, à época, movimentações que não se pautavam na
luta de classes, como o movimento operário, e com caráter essencialmente reformador,
vez que não pretendiam a tomada do poder do Estado. Os movimentos se articulavam
fora das instituições políticas, protagonizados por indivíduos que reclamavam não a
condição, mas a qualidade de vida, pautada no respeito à diversidade cultural 14. O
movimento da contracultura, com grande expressão nos Estados Unidos, é fruto deste
processo.
Dentre teóricos brasileiros, somente a partir de 1980 nota-se sensível mudança
nas produções a respeito da temática, influenciadas pela ascensão de práticas sociais
populares em contraposição ao regime ditatorial. Ao contrário dos movimentos
europeus e estadunidenses, marcados pela forte presença da classe média, aponta-se
para a prevalência, nos movimentos que aqui eclodiram, de uma base social marcada
pela pobreza, a exigir análises e formulações próprias.
A insuficiência da tradicional concepção de classes para abranger todos os
movimentos sociais, contudo, já se fazia notar; ascendem, assim, a partir das duas
últimas décadas do século XX, movimentos que deram forma à corrente teórica
culturalista-identitária. Tal corrente de pensamento ganhou força com a virada para a
pós-modernidade, divisor de águas na forma de se pensar a sociedade a partir da
ampliação da questão identitária: “identidade passa a ser vista como força e resistência,
assim como fonte de conflitos, e também elemento de construção de emancipações”15.
12
BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de Política: volume um. 11ª ed. Brasília: UnB, 1998, p 787.
13
GOHN, Maria da Glória. Novas Teorias dos Movimentos Sociais. 1ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p.
20.
14
ALONSO, A. As teorias dos movimentos sociais: um balanço no debate. Lua Nova, São Paulo, 76: 49-86,
2009, p. 51.
15
GOHN, Maria da Glória. Novas Teorias... P. 46.
193
editado logo após a eclosão das manifestações de rua que tomaram todo o país,
iniciadas a partir da reivindicação do aumento da tarifa de ônibus em São Paulo, capital.
Registre-se, em tempo, a existência do PL nº 5.065/2016, de autoria do
Deputado Delegado Edson Moreira (PR/MG), cujo teor objetiva incluir na definição de
terrorismo a motivação ideológica. Válido relembrar que tal aspecto fora excluído da Lei
13.260/2016, durante sua tramitação, em razão das fortes críticas sofridas. O atual PL
objetiva, ainda, revogar a cláusula excludente do art. 2º, § 2º, única salvaguarda, ainda
que questionável, de que a legislação antiterrorista não seria direcionada a
manifestações reivindicatórias sociais.
3.2. Análise das disposições normativas da lei 13.260/2016
O texto legal é marcado por disposições sobremaneira abrangentes, ferindo o
princípio da legalidade, na sua vertente da taxatividade: não basta à norma penal, para
que se adeque à ordem constitucional, que esteja posta e vigente; imprescindível, ainda,
que seu conteúdo se adeque a todas as garantias fundamentais, a todos os axiomas
erigidos enquanto limitadores do poder punitivo32. A prevalência de termos valorativos
e vagos, a exemplo de “provocar terror”, cede espaço à discricionariedade do
interpretador, o que, por sua vez, dá margem à insegurança jurídica33.
Indaga-se, ainda, a respeito da necessidade da legislação em comento. O art. 2º
da Lei 13.260/16, em seu § 1º, elenca uma série de condutas que consistem em “atos de
terrorismo”. Através do inciso I, criminalizam-se os atos de “usar ou ameaçar usar,
transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos,
conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou
promover destruição em massa”. Todavia, o Título VIII do Código Penal, que abrange os
crimes contra a incolumidade pública, inicia-se pelo capítulo dos delitos de perigo
comum; do art. 250 ao art. 259, CP, estão tipificadas as condutas de causar incêndio,
explosão, inundação, desmoronamento, utilização criminosa de gases tóxicos,
fabricação de explosivos e difusão de doenças e pragas. Além disso, os artigos 131 e 132,
mesmo códex, tipificam o perigo a contágio por moléstia grave e a conduta genérica de
causar perigo à vida e saúde de outrem.
O inciso IV do § 1º, art. 2º da Lei 13.260/16, por sua vez, tipifica o ato de sabotar
o funcionamento de meios de comunicação ou transporte, bem como de instituições
que prestem serviços públicos essenciais, como hospitais e escolas. Tais condutas,
entretanto, já encontram tipificação no Código Penal através do capítulo II do Título VIII,
dos artigos 260 a 266.
Já o inciso V do § 1º, art. 2º da Lei 13.260/16, define como crime de terrorismo o
ato de “atentar contra a vida ou a integridade física de pessoas”. Os dois bens jurídicos
protegidos por este dispositivo encontram-se sobremaneira contemplados pelo Código
Penal através dos capítulos I e II, denominados, respectivamente, “Dos Crimes Contra a
Vida” e “Das Lesões Corporais”.
Os artigos 3º, 4º e 5º da Lei 13.260/16 destinam-se a criminalizar a consecução
de atos preparatórios ao “terrorismo”; o primeiro deles, ao contemplar a conduta de
integrar organização terrorista, encontra-se contemplado pelo art. 288 do Código Penal,
denominado “associação criminosa”. Registre-se, mais uma vez, que a recente legislação
32
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 4ª ed. rev. São Paulo: Editora dos tribunais,
2014. P. 38/39, 93.
33
ZAFFARONI, op cit, p. 206.
198
Universidade Estácio de Sá
Introdução
Entender a cidade e as causas de seus problemas é uma tarefa complexa. E
entender corretamente a cidade e as causas de seus problemas é uma condição prévia
indispensável à tarefa de se delimitar estratégias e instrumentos adequados para a
superação desses problemas. Só que se informar sobre essa temática não deve ser visto
como uma tarefa somente para especialistas, todos precisam conhecer corretamente as
causas dos problemas dos espaços onde vivem e os debates em torno disso. Essa é a
única maneira de participar mais ativamente, como cidadão, da vida da cidade.
O ambiente urbano é o espaço onde ocorrem os principais conflitos
sociopolíticos contemporâneos, pois as cidades, no geral, têm sido vistas como um
espaço de contradições. A vida na cidade,
[...] tem sido percebida com um misto de sentimento de orgulho e satisfação,
por um lado, e descontentamento e frustação, e até mesmo medo por outro.
A cidade, especialmente a grande cidade de um país periférico ou
semiperiférico, é vista como um espaço de concentração de oportunidades
de satisfação de necessidades básicas materiais (moradia, saúde, etc.) e
imateriais (cultura, educação, etc.), mas também, como um local
crescentemente poluído, onde se perde tempo e se gastam nervos com
engarrafamentos, onde as pessoas vivem estressadas e amedrontadas com a
violência e a criminalidade. (LOPES, 2003)
Com o crescimento do neoliberalismo nas últimas décadas do século XX um
modelo de ‘‘cidade-empresa’’ ganha visibilidade a partir de Barcelona, quando faz uma
restruturação urbana para sediar os Jogos Olímpicos de 1992. Este modelo de cidade foi
chamado por Harvey (1996) de ‘‘empresariamento da gestão urbana’’, uma vez que suas
características são a produtividade, a competitividade e a subordinação a lógica do
mercado. Isto é, este modelo trata a cidade como empresa e aplica nela técnicas de
gestão empresarial. A cidade passa a ser tratada como um produto a ser vendido e é
pensada e planejada de acordo com o com as características dos compradores visados.
Karl Marx e Friedrich Engels (1982) ainda em meados do século XX já alertavam
que o modo de produção capitalista iria trazer uma inversão de papéis: a cidade, que
durante o feudalismo tinha expressão econômica e política limitadas, lutando para
preservar sua autonomia (enquanto ‘burgo livre’) perante os senhores feudais, passaria
a ser, gradualmente, ‘senhora’ do campo, submetendo este. No decorrer dos séculos XIX
e XX o campo fica cada vez mais dependente das cidades: dependente de máquinas e
ferramentas produzidas nos centros urbanos; dependente dos conhecimentos técnicos e
tecnológicos gerados em universidades, laboratórios e centros de pesquisa situados, via
de regra, em cidades; dependente dos fertilizantes químicos, dos agrotóxicos e das
sementes selecionadas produzidos por núcleos urbanos; e, por último, dependente do
sistema bancário, por meio do crédito ao produtor (sem a qual a moderna agricultura de
mercado não se opera) e do crédito em geral, sistema esse ancorado ao longo da rede
205
urbana, onde as sedes dos grandes bancos se articulam com as agências de pequenas
cidades.
Nesse sentido, o presente trabalho insere-se no âmbito de pesquisa em
andamento sobre o tema do direito à cidade diante da política global de intervenções
urbanas, tendo por objeto o plano de remoções implementado na Vila Autódromo/RJ e
a luta de permanência dos moradores. O objetivo é investigar e compreender o papel
das intervenções urbanas como meio de ‘‘solucionar’’ provisoriamente as crises
inerentes ao capitalismo e como elas afetaram os moradores da Vila Autódromo. A
metodologia utilizada tem orientação epistemológica da Teoria Crítica por meio do
marco teórico-metodológico do materialismo histórico dialético, com raciocínios
indutivo e dedutivo, numa pesquisa qualitativa, através das técnicas de pesquisa da
revisão bibliográfica e análise documental.
Por conta do referencial teórico metodológico, esse trabalho inverte a forma
tradicional de como análises sociais costumam ser feitas: ao invés de partir de temas
gerais, abstratos, até chegar à pontos específicos, concretos, aqui faço o caminho
inverso, partirei do meu objeto.
1. Rio de Janeiro e Vila Autódromo
Buscando sediar os Jogos Olímpicos para se inserir no mercado de cidades para
receber capital1, a prefeitura do Rio de Janeiro, em 22 de novembro de 1993, faz um
acordo com a Associação Comercial (ACRJ) e a Federação de Indústrias (FIRJAN), que
deu início a elaboração do Plano Estratégico do Rio de Janeiro (PECRJ). Um dos pilares
do planejamento estratégico são as parcerias públicos-privadas (PPP), assim, em 4 de
fevereiro de 1994, 46 empresas e associações empresarias instauraram o Consórcio
Mantenedor do PECRJ. O próximo passo, foi a contratação de uma empresa consultora
catalã, a Tecnologies Urbanas Barcelona S.A. (TSUBASA) para assumir a Direção
Executiva do Plano.
Por conta disso, em 31 de outubro de 1994, foi criado o Conselho da Cidade – a
cúpula do PECRJ –, bem como o seu Conselho Diretor, notadamente formada por
empresários e políticos conservadores. Apesar de todos o esforço para sediar os Jogos
em 2004, a cidade só foi eleita em 2009, para ser sede em 2016. A partir desse
momento ganhou força um projeto em curso de levar a centralidade da cidade em
direção à Barra, de modo a entregar o local onde está localizada a Vila à interesses
privados de empresas supranacionais, lugar onde se localiza a Vila Autódromo, que viu,
com isso, a necessidade de enfrentar uma política de remoções – que teve início ainda
nos anos 1990, mas que nesse momento ganhou muito mais força.
Com isso, a Vila que antes formada por 700 famílias, hoje possui apenas 20.
Maria Rita Rodrigues (2016, p. 56) aponta que seus moradores sempre sofreram com
omissões de serviços estatais, principalmente no quesito moradia.
Para amenizar esses efeitos, em 08 de março de 2016, o prefeito do Rio,
Eduardo Paes, apresentou um Plano para a Vila Autódromo para um restrito
grupo de jornalistas. O que gerou indignação, e fez a população exigir que o
plano fosse debatido abertamente com a comunidade. Mais uma vez o direto
à cidade não foi efetivado, e a cidade foi pensada de ‘‘de cima para baixo’’.
Atualmente, tudo que existe publicamente a respeito do plano é um
Powerpoint. E, ao lê-lo, vemos que o na pratica foi remoção e demolição, é
chamado de urbanização. (FRAGA, 2016).
1
Esse ponto será explicado no item 3.
206
Para não permitir que acontecimentos passados, como o da Cidade de Deus, no
governo de Carlos Lacerda, no qual as populações foram removidas para locais distantes
de suas antigas casas, bem como resistir as ações da prefeitura, a comunidade, com o
auxílio técnico da Universidade Federal Fluminense e Universidade Federal do Rio de
Janeiro, elaboraram o Plano Popular da Vila Autódromo.
O Plano Popular prevê a integração social, igualdade e diversidade, através
de áreas residências com diferentes possibilidades em termos de tipologia e
preço que permite moradores de diferentes origens e níveis de renda vivam
juntos. Em questão ambiental o Plano dispõe sobre a recuperação da área
em torno da Lagoa de Jacarepaguá e da beira do canal, o alargamento das
ruas para a drenagem da água, a circulação melhorada e a renovação do
parque. Aborda inclusão dos membros da comunidade no Programa Saúde
da Família, bem como a construção de uma creche, uma escola pública e
novas áreas de esporte e lazer. Os desenvolvimentos culturais e comunitários
incluem a criação de um centro cultural para sediar eventos públicos, como
teatro e shows de música. A estratégia para desenvolver a comunicação e
mobilização tanto interna quanto externa para a comunidade também foi
parte do desenvolvimento do plano. Em linhas gerais, o Plano Popular visa o
uso sustentável de recursos compartilhados, busca reduzir a grande
exploração de recursos naturais e facilitar a vida comunitária, permitindo a
igualdade de acesso à terra, à comida e à água para todos. (ADIALA; FRAGA,
2016).
Como reconhecimento de sua qualidade, o Plano Popular recebeu o prémio
‘‘Urban Age’’ do Deutsche Bank.
O Prêmio Urban Age do Deutsche Bank foi criado em parceria com a London
School of Economics, ‚para estimular as pessoas a assumirem
responsabilidade por suas cidades‚ e é concedido aos projetos que melhorem
a condição física de suas comunidades e as vidas de seus moradores.
(Steiker-Ginzberg, 2013)
Apesar da qualidade internacionalmente reconhecida do projeto, as remoções
continuaram.
No quesito ambiental, mais de 500 árvores foram demolidas, inclusive a espécie
protegida Pau Brasil, que estavam no local há mais de 40 anos. Todo esse processo sem
qualquer consulta a população (ADIALA; FRAGA, 2016).
Provavelmente, se os moradores fossem consultados, essa devastação
ambiental não ocorreria. Já que havia uma forte ligação da população com as
árvores, era consenso que elas melhoram a qualidade de vida. Por exemplo,
Delmo Oliveira, que viveu 26 anos na Vila, junto com seu filho, planou 7600
mudas na comunidade, e 3 anos após o início do plantio, 2 ruas já estavam
repletas de árvores. Elas foram plantadas para que os moradores tivessem o
conforto de andar até o ponto de ônibus na sombra. Esse desmatamento não
coaduna com o Plano de Gestão da Sustentabilidade dos Jogos Rio 2016, que
prevê iniciativas para amenizar a emissão de gás carbônico relacionada aos
Jogos. (ADIALA; FRAGA, 2016).
Ademais, outros projetos ambientais do Governo Municipal para o Rio de
Janeiro Olímpico ficaram inconclusos: o plantio de 24 milhões de árvores, a limpeza da
lagoa de Jacarepaguá e da Baía de Guanabara. Todos esses projetos, que foram grandes
promessas do governo, ficaram inconclusos.
207
centros urbanos, ao invés de investir em áreas sociais com demandas mais necessárias e
urgentes.
Vainer (2002a) chama a atenção que todas as cidades acabam por vender o
mesmo ideário e o mesmos ‘‘produtos’’, uma vez que os compradores têm sempre as
mesmas necessidades. As cidades apresentam as mesmas estruturas urbanas
construídas nos seus centros econômicos e turísticos, pois como cidades globais, o
desenvolvimento das áreas centrais das cidades globais se encontra nas mãos das
mesmas instituições financeiras que são submissas as mesmas multinacionais.
Nesse processo não só constrói o novo, mas destrói o velho. A destruição é
necessária no processo de revalorização. O setor imobiliário cria espaços novos e faz as
pessoas acreditarem que morar neles é melhor do que nos espaços anteriores que esse
mesmo setor criou no passado. Harvey (2014) mostra que, historicamente, os processos
de (re)urbanização da cidades se apresentam como uma forma de dominação. Isso
porque
As contradições geradas pelo desenvolvimento capitalista não se esgotam no
chão da fábrica. O espaço urbano é como algo que se desenvolve para que o
capitalismo possa avançar e que se desenvolve na medida em que o
capitalismo avança. Uma espécie de retroalimentação. (SANTIAGO;
RODRIGUES, 2016, p. 13)
Sob a influência de Marx, Lefebvre compreende o homem como sujeito da sua
história. Para esse autor o direito à cidade é uma necessidade para se contrapor ao
processo de submissão das cidades ao capitalismo. Por meio desse direito o homem
pode chegar à cidade como totalidade orgânica, socialmente produzida por cada
indivíduo que habita esse espaço. Lefebvre vai além da imediaticidade, para ele o direito
à cidade é:
direito à vida transformada, renovada [...] direito à obra e no direito à
apropriação (bem distinto do direito à propriedade) [...] direito à vida
urbana, à centralidade renovada, aos locais de encontro e de trocas, aos
ritmos de vida e empregos do tempo que permitem o uso pleno e inteiro
desses momentos e locais. (LEFEBVRE, 2006, p. 137-135-143)
A cidade de que trata Lefebvre, para se realizar, necessita da aproximação do
espaço pelos cidadãos e sua transformação para satisfazer e expandir necessidades e
possibilidades da coletividade. Nesse sentido também entende Harvey (2014, p. 28):
É o direito de mudar e reinventar a cidade mais de acordo com nossos mais
profundos desejos. [...] a liberdade de fazer e refazer a nós mesmos e as
nossas cidades, como pretendo argumentar, é um dos nossos direitos
humanos mais preciosos, ainda que um dos mais menosprezados.
Esse direito é o de
irmos e virmos pelas ruas em um transporte público de qualidade cuja rota e
horário não sejam definidos por uma empresa ou cartel. O direito de termos
emprego ou acesso aos mais diversos serviços sem que questões de cor,
classe ou gênero interfiram. O direito de morarmos onde seja mais adequado
socialmente, independentemente dos interesses imobiliários do capitalismo
especulativo. Sem que os interesses das empresas de saúde limitem a
quantidade de remédios que há no estoque de cada hospital. O direito à
cidade na prática é o direito da sociedade decidir os rumos da cidade, sem
210
imobiliário especulativo, de forma a produzirem uma cidade com base no valor de uso e
que atenda realmente aos interesses das pessoas.
Assim, é possível afirmar que a luta pelo direito à cidade na Vila Autódromo é
uma luta entre classes. Enquanto os agentes do capital imobiliário lutam para apropriar
a cidade como mercadoria, a massa dos trabalhadores busca na cidade a fruição plena
de suas potencialidades.
A luta entre classes pela apropriação da cidade em que as classes populares
politizam o espaço urbano representando os interesses das grandes massas, tornando-
se o sujeito histórico coletivo que irá construir uma nova cidade e uma nova sociedade.
Assim, para além da posição de classe no contexto das relações de produção, os
trabalhadores que lutam pelo direito à cidade são sujeitos das transformações
históricas, promovem tensões que influenciam nas contradições estruturais que se
forma na sociedade urbana.
Dessa forma, a consciência de classe no contexto urbano se dá na luta política
contra o capital imobiliário especulativo na perspectiva de superação das contradições
do urbano que tornam as cidades espaços de injustiças. A segregação urbana, então,
ganha relevos de conflito de classes de caráter político em que está em jogo um modelo
de cidade que priorize o seu valor de uso em detrimento de seu valor de troca.
Referências bibliográficas
ADIALA, J. FRAGA, V. DIREITOS SOCIAS E PLANEJAMENTO URBANO NA CIDADE OLÍMPICA
RIO 2016. In: Célia Barbosa Abreu et al. (Org.). Escritos Menores sobre Direitos
Fundamentais. 1ed. Niterói: Editora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Direito da Universidade Federal Fluminense, 2016, v.2, p. 136-151.
BRAGATO, F. F. Discursos desumanizantes e violação seletiva de direitos humanos sob a
lógica da colonialidade. Quaestio Iuris (Impresso), v. 9, p. 1806-1823, 2016.
_____. PARA ALÉM DO DISCURSO EUROCÊNTRICO DOS DIREITOS HUMANOS:
CONTRIBUIÇÕES DA DESCOLONIALIDADE. Novos Estudos Jurídicos (Online), v. 19, p. 201-
230, 2014.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988.
BRASIL. Lei 10.257, de 10 de julho de 2001.
CARLOS, Ana Fani Alessandri. O Espaço Urbano: Novos Escritos sobre a Cidade. São
Paulo: Labur Edições. 2007, 123p.
HARVEY, D. A Liberdade da Cidade. Disponível em:
http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-82/tribuna-livre-da-luta-de-classes/o-direito-
a-cidade. Acesso em 11 de outubro de 2017.
_____. Cidades Rebeldes. Do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo, Martins
Fontes, 2014.
_____. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração
urbana no capitalismo tardio. Espaços e Debates; ano XVI, n. 39, 1996, p.48-64.
LEFÉBVRE, H. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
_____. O Direito à Cidade. São Paulo: Centauro, 2006.
LOPES, Marcelo Lopes de. ABC do Desenvolvimento Urbano. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2003.
MALDONADO, Nelson. Sobre la colonialidad del ser, contribuciones al desarrollo de un
concepto. In: CASTRO-GOMEZ, Santiago; GOSFROGUEL, Ramón (Comp). El giro
decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global.
Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad Central-IESCO, Siglo del
Hombre, 2007. P. 127-167.
214
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich (1982 [1848]): A ideologia alemã (I > Feuerbach).
Oposição das concepções materialista e idealista (Capítulo primeiro de ‘‘A Ideologia
Alemã’’). In: MARX/ENGELS: Obras escolhidas. Moscou e Lisboa: Edições Progresso e
Edições ‘‘Avante!’’.
RODRIGUES, M. R. A realidade social das ocupações em áreas de risco: um descompasso
com o direito humano à moradia adequada. In: Célia Barbosa Abreu et al. (Org.). Escritos
Menores sobre Direitos Fundamentais. 1ed. Niterói: Editora do Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, 2016, v. 12, p.
54-59.
MASCARO, A. Filosofia do Direito. Ed. 5. São Paulo: Atlas, 2016.
PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. 1ª ed. São Paulo:
Boitempo Editoral, 2017.
PAULO NETTO, J.; REIS, M. B. Economia política. Uma introdução crítica. 8. ed. São
Paulo: Cortez, 2012.
SANTIAGO, L.; RODRIGUES, T. O que é o direito à cidade na prática? In: O Rio que
queremos: propostas para uma cidade inclusiva. Théofilo Rodrigues (org.). Rio de
Janeiro: NPC, 2016. Págs. 11-16.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a
uma ecologia de saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, 78, Outubro, 2007. p. 3-46.
SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ser Constituinte. Brasília: Editora UnB. Revista
Humanidades, nº 1, novembro/janeiro, ano III, 1986/1987.
_____. Direito como liberdade: o direito achado na rua. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 2011.
_____. O Direito Achado na Rua. Concepção e prática. Rio de Janeiro: Editora Lumen
Juris, 2015.
Steiker-Ginzberg, Kate. Plano Popular da Vila Autódromo Recebe o Prêmio ‘‘Urban Age’’
do Deutsche Bank. dez. 2013. Disponível em: <http://rioonwatch.org.br/?p=9595>.
Acesso em: 25 set. 2017
VAINER, Carlos B. Pátria, Empresa e Mercadoria. Notas sobre a estratégia discursiva do
planejamento estratégico urbano. mar. 1999. p.75-103.
_____. Os liberais também fazem planejamento urbano? Glossas ao ''Plano Estratégico
da Cidade do Rio de Janeiro''. In: Proposta, Rio de Janeiro, n. 69, p. 28-34, jun. 1996.
_____. Pátria, empresa e mercadoria. Notas sobre a estratégia discursiva do
Planejamento Estratégico Urbano. In: ARANTES, Otília; VAINER, Carlos & MARICATO,
Ermínia. A cidade do Pensamento único. Editora Vozes, 2002a.
_____. et al. O Plano Popular da Vila Autódromo, uma experiência de planejamento
conflitual. In: Anais do Encontro Nacional do ANPUR, v. 15, p. 1-18, 2013.
215
para possíveis guerras, constitui a cidade como base bélica. Unificada pelo Estado, a
comunidade então se estabelece através de uma espécie de contrato, onde “a relação
recíproca entre os proprietários privados livres e iguais, [é] sua aliança contra o mundo
exterior e, ao mesmo tempo, sua garantia.” (MARX, 1985, p. 70). Quanto mais a tribo se
isolava do mundo exterior, mais os indivíduos se tornavam interdependentes. Com o
tempo, bastava-lhe a propriedade privada para suprir seu sustento.
...quanto mais cresce a tendência de se definir o caráter comunal da tribo –
enquanto unidade negativa contra o mundo exterior – mais se impõem as
condições que permitirão ao indivíduo tornar-se proprietário privado de um
lote definido de terra, cujo cultivo corresponderá somente a ele e à sua
família. (Ibid., p.70).
A agricultura da propriedade greco-romana era feita em pequena escala, para o
consumo imediato,
...e a manufatura como trabalho subsidiário, doméstico, das esposas e filhas
(fiando e tecendo) ou alcançando existência independente em umas poucas
ocupações artesanais (fabri, etc.). O pré-requisito para a continuação da
existência da comunidade é a manutenção da igualdade entre seus
camponeses livres auto-suficientes, e de seu trabalho individual como
condição da persistência de sua propriedade. Suas relações com as condições
naturais de trabalho são as de proprietários; mas o trabalho pessoal tem de
estabelecer, continuamente, tais condições como condições reais e
elementos objetivos da personalidade do indivíduo, de seu trabalho pessoal.
(Ibid., p. 70-71, grifo nosso)
Destaca-se aqui a clareza com que Marx deixa transparecer que a igualdade à
qual se referia não incluía as mulheres. A profunda desigualdade do trabalho doméstico
feminino obrigatório, lhe passou despercebida, aparentemente por uma naturalização
ainda presente na perspectiva do autor. Nesta inicial divisão sexual do trabalho, a
mulher já acumulava trabalho doméstico com manufatura, um forte indício de que a
dominação masculina já havia se estabelecido.
A propriedade comum germânica se fixava no campo e não era organizada em
torno de um Estado. No entanto, coexistia com a propriedade individual. Assim como no
caso da antiguidade clássica, Marx a entende como um “ager publicus”, mas no sentido
de territórios de fundos de pastoreio e caça livre. Essas propriedades não podiam ser
repartidas, não por serem de um Estado ou entidade política, mas sim porque só
existiam enquanto território comum de defesa contra tribos hostis.
Os homens eram livres, proprietários de terra e “chefes de família”. Distribuíam-
se de forma difusa pelo território e a comunidade só surgia temporariamente, mediante
assembleia de seus membros, “para finalidades bélicas, religiosas, solução de disputas
legais, etc” (MARX, 1985, p. 76) e, portanto, precisavam acontecer periodicamente para
que continuassem a existir.
220
...a comunidade existia, mesmo do ponto de vista externo, somente em
virtude dos atos de união dos seus membros, embora sua unidade, existente
por si mesma, fosse corporalizada (gesetzt) na descendência, na linguagem,
5
no passado e história comuns, etc. ” (Ibid., p. 75)
Marx defende que, no caso germânico, a propriedade individual da terra não
surge em contradição à propriedade comum, nem como propriedade intermediada pela
comunidade, pelo contrário, a propriedade individual precederia à propriedade comum:
No fundo, cada família possui uma economia completa, constituindo, realmente, um
centro independente de produção (onde a manufatura é apenas uma espécie de
trabalho doméstico subsidiário, realizado pelas mulheres, etc). (Ibid., p. 76, grifo nosso)
Estranhamos, porém, esta “geração espontânea” da propriedade individual
germânica. Mesmo que Marx supusesse que elas constituíssem os primórdios da
civilização, não podemos deixar de notar que já se encontravam inseridas nas condições
patriarcais. Ainda assim, a análise de suas estruturas mostra-se bastante elucidativa
sobre as transformações que as sociedades sofreram para darem origem ao capitalismo.
Até que, em 1877, Lewis Morgan, publicasse seus estudos sobre o comunismo
primitivo, estas comunidades eram consideradas as mais primitivas. Diante dos novos
dados, estes escritos precisariam ser revisados. Esta tarefa só pôde ser concluída por
Engels. Antes que isso acontecesse, Marx fez um outro importante estudo sobre o
comunismo primitivo. Ele articula os tipos apresentados em Formações de forma
diferenciada e desconstrói a leitura a-histórica que fizeram deles.
3. A comuna rural russa
Em Lutas de classes na Rússia, encontramos a correspondência de 1881 entre
Marx e Vera Zasulitch e seus esboços, onde o autor apresenta um “estudo especial”
sobre o comunismo primitivo na Rússia. À época, a propriedade comum na Rússia ainda
existia em escala nacional. Isto tornava o caso extraordinário frente às primeiras
propriedades comuns estudadas por Marx (2013).
Desde 1861, a propriedade comum na Rússia6 se via ameaçada pelo avanço do
capitalismo. A decretação da emancipação dos camponeses em condição de servidão,
por parte do Estado russo, levava milhões de camponeses libertos e sem-terra a lotarem
as propriedades comuns. As grandes indústrias, interessadas nessas propriedades, se
aproveitavam da situação caótica estabelecida pelo Estado russo para acelerar o fim das
comunas.
Nesta conjuntura, Vera Zasulitch, como integrante da organização a “Vontade
do Povo”, envia uma carta a Marx, pedindo que esclarecesse sobre o destino do
capitalismo na Rússia. Na carta, Zasulitch denuncia que alguns revolucionários russos
faziam uso dos estudos de O Capital para argumentar contra a resistência da comuna
agrícola russa.
5
Vale ressaltar a importância que Marx demonstra aqui sobre o campo simbólico. A identidade e a cultura
comum, na composição da comunidade seriam fatores de grande relevância na constituição de uma
comunidade.
6
Explicaremos à frente. Ver: Comuna Russa, in: BOTTOMORE, Tom (Org.). Dicionário do Pensamento
Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2012. pp.104.
221
Nos últimos tempos, ouvimos dizer com frequência que a comuna rural [está]
condenada à morte, como se fosse a coisa mais indiscutível, pela história, pelo
socialismo científico. As pessoas que apregoam isso se dizem vossos discípulos por
excelência: “marxistas”7 (ZASULICTH, 2013, p. 79)
Vera estava intrigada com a perspectiva etapista difundida no movimento
narodnik, que afirmava uma “teoria da necessidade histórica de que todos os países do
mundo passassem por todas as fases de produção capitalista” (Ibid., p.80).
Segundo Theodor Shanin, o movimento narodnik foi a principal tradição
autóctone revolucionária russa. Ser narodnik “podia significar qualquer coisa, desde um
terrorista revolucionário até um filantropo latifundiário”, mas, segundo este autor, o
movimento atingiu sua
“expressão política mais espetacular, ao mesmo tempo em que Marx viveu,
na Narodnaya volya; ou seja, o partido “Vontade do Povo. [...] Esta
organização clandestina chegou a exercer influência considerável durante o
período de 1879-1883, e foi finalmente esmagada em 1887 pela ação
policial, as execuções e o exílio.” (SAHNIN, 1990, p. 22)(Tradução nossa.)
Ao contrário da organização de Vera, afirmava-se no restante do movimento
narodnik que, para que fosse possível uma revolução na Rússia, seria necessário
desenvolver “todas as fases da produção capitalista” e acabar com as comunas. Então,
Vera pediu que Marx explicasse seu posicionamento sobre a comuna russa para ajudar a
desfazer este dilema, do contrário, os revolucionários russos corriam o risco de
adotarem políticas reformistas, visando o desenvolvimento capitalista da Rússia para só
depois organizarem a revolução.
Antes de responder a carta, Marx escreve quatro longos esboços. Mas, como o
próprio autor afirma na carta, por conta de sua saúde debilitada acaba entregando uma
resposta bem mais sucinta.
...a “fatalidade histórica” desse processo está expressamente restrita aos
países da Europa ocidental. A razão dessa restrição é [que] [...] Nesse
processo ocidental, o que ocorre é a transformação de uma forma de
propriedade privada para outra forma de propriedade privada. Já no caso
dos camponeses russos, ao contrário, seria preciso transformar sua
propriedade comunal [propriété commune] em propriedade privada.
Desse modo, a análise apresentada n’O capital não oferece razões nem a
favor nem contra a vitalidade da comuna rural, mas o estudo especial que fiz
dessa questão, para o qual busquei os materiais em suas fontes originais,
convenceu-me de que essa comuna é a alavanca [point d’appui] da
regeneração social da Rússia. (MARX, 2013, p. 114-115, grifo nosso)
Neste “estudo especial”, Marx tenta esclarecer a perspectiva materialista
histórico-dialética sobre a comuna russa. Inicialmente pretendia incorporá-lo ao texto
final, o que acaba não acontecendo. No entanto, seu esforço ficou registrado em quatro
esboços.
Na década de 1880, mais da metade das terras era de posse coletiva
camponesa. As comunas (mir, ou obshchina) se organizavam em vilas comunais,
constituídas de casas familiares (dvor). Eram organizadas através de um “corpo
governamental composto por todas as cabeças das casas” (skhod) (GOLDMAN, 2014, p.
7
Referência a “Nicolai Mikhailovski, um teórico do movimento narodnik”, que escreveu um ensaio onde
dizia estar fazendo “uma ‘defesa’ de Marx, mas acabava por lhe atribuir uma visão completamente unilinear
e eurocêntrica da história.” (LÖWY, 2013, p. 10)
222
materialista, traçando uma linha histórica entre eles desde a horda até a família
monogâmica, passando por sistemas intermediários.
É importante ressalvar que Morgan naturalizava um progresso evolutivo da
humanidade. Segundo este progresso, todas as sociedades já existentes teriam,
necessariamente, passado por todos os “estágios”: selvagem, barbárie e civilização, que
eram subdivididos em fase inferior, média e superior 14 . Para ele, um burguês
republicano, o caminho natural e desejável da humanidade era a “sociedade política”, a
democracia liberal.
Marx, além de já haver desfeito o equívoco do etapismo, mostrando a
possibilidade dialética de existirem formas variadas e combinadas de “progresso”,
desejava o comunismo, a vida genérica por excelência, o que implicaria um “retorno ao
arcaico”. O interesse dele sobre a origem da sociedade de classes era no sentido de
entender como a sociedade chegou ao capitalismo, para encontrar meios de dissolvê-lo,
algo que não aconteceria naturalmente. Engels tenta fazer isso em A Origem, com
dificuldade, por conta da influência etapista de Morgan.
Por isso, faremos uma leitura dialética de A Origem, focando no que nos ajuda a
compreender o comunismo primitivo, desde a definição da gens de direito materno,
passando pela família pré-monogâmica até a família monogâmica. Observaremos
também o surgimento, dentro de uma sociedade completamente coletivista, das
primeiras manifestações patriarcais de classe: 1) escravidão; 2) propriedade privada.
Como hipótese, considera-se a existência da horda, que já aparece em
Formações Econômicas Pré-Capitalista, um “acidente da natureza”, sem pressupostos
culturais. A terra era ao mesmo tempo a base da comunidade, o local de moradia, e
meio de subsistência e de experimentação. Também hipoteticamente, considera-se a
família consanguínea como forma provável de primeiro sistema de parentesco. Era
formada por parceiros sexuais consanguíneos diretos, de tal forma que todos eram
considerados irmãos e irmãs e relacionavam-se e reproduziam-se entre si. Eles se
relacionavam mutuamente e de forma livre dentro de um mesmo “grupo conjugal”,
dividido por geração. Engels o considera um “casamento comunal”15.
Depois da família consanguínea, a introdução da linhagem materna foi a
primeira grande mudança constatada, encontrada por Morgan na família punaluana.
Surge como desdobramento do tabu do incesto sobre os irmãos uterinos, que requeria o
reconhecimento da mãe de sangue para seu funcionamento. Apesar disso, todas as
mães da tribo eram consideradas mães de todas as crianças e todos irmãos da mãe
eram todos considerados pais das crianças. Posteriormente, o tabu do incesto estendeu-
se aos “irmãos colaterais” (os primos de primeiro a terceiro grau).
A estrutura matrilinear deu origem à gens, sistema de parentesco que constituiu
o comunismo primitivo. O desconhecimento da participação masculina na reprodução
impedia o reconhecimento da paternidade sanguínea. Graças a isso e à
matrilinearidade, os filhos nascidos na gens pertenciam a toda a comunidade, sendo
todas as mulheres consideradas mães e todos os irmãos das mães considerados pais.
Assim, as responsabilidades e direitos de criação se confundiam, e pertenciam a todos
os adultos da comunidade.
Os filhos não eram uma propriedade como os demais artigos de propriedade
14
Aqui, “fase superior” e “fase inferior” remete apenas à noção temporal e de desdobramentos de uma fase
do sistema de parentesco em outra. É curioso notar que esses termos, frequentemente atribuídos a Lênin,
vieram, na verdade, de Lewis Morgan.
15
“Communal marriage” é traduzido como “casamento por grupos”, mas, como veremos, “comunal” se
encaixa melhor no conceito, apesar de que o casamento propriamente dito só é instituído posteriormente.
227
privada, nem eram estranhos uns aos outros, de acordo com a sua riqueza, classe ou
raça de suas famílias. Todos os adultos de um clã16 se consideravam pais sociais de todas
as crianças, e se preocupavam com todos, igualitariamente. Não existia uma situação
tão trágica e anormal como a de uma criança superalimentada de um lado, e do outro,
crianças abandonadas, doentes ou famélicas. Na sociedade comunitária, em que ainda
não existia a família como um núcleo isolado, era inútil e irrelevante saber quem era o
pai biológico, ou inclusive a mãe biológica. (REED, 2008, p. 35)
Também não havia razões para se distinguir estas relações de forma binária ou
heteronormativa, entre homens e mulheres, pois, por não estarem associadas as
relações sexuais à reprodução, as relações eram igualitárias e livres. Por esta mesma
razão, divinizavam-se as mulheres por proverem a vida. Para Bachofen (apud ENGELS,
2012, p.16-17), a divinização da maternidade tornava estas sociedades matriarcais. Mas
Briffault mostra que:
...as mulheres haviam adquirido sua posição privilegiada na sociedade
primitiva não só por serem procriadoras, mas porque como resultado desta
função específica haviam se convertido nas primeiras produtoras de gêneros
essenciais para viver. (BRIFFAULT apud REED, 2008, p.37)
Ainda que houvesse uma divisão sexual do trabalho, ela não era compulsória, e
sim consequência espontânea das condições materiais inerentes a ela. O poder
atribuído às mulheres não era baseado na inferiorização dos homens, mas no trabalho
produtivo “impulsionado pela maternidade” (Ibidem, p. 61). Este trabalho só era
possível por que era realizado coletivamente. O caráter comunista da sociedade
primitiva nascia do poder matriarcal, que, por sua vez, vinha do fato das mulheres serem
o ser genérico daquela sociedade, a “vida engendradora da vida” em seu sentido mais
genuíno. Desta forma, o sistema de parentesco se revela o fundamento da estrutura
social, transmitindo formas mais ou menos igualitárias de comunidade: “A economia
doméstica comunista [...] é a base efetiva do predomínio das mulheres que, nos tempos
primitivos, esteve difundido por toda parte...” (ENGELS, 2012, p.53).
A partir dos “casamentos comunais”, ainda existentes na gens matriarcal
punaluana, mulheres e homens começaram a relacionar-se preponderantemente com
uma única pessoa, ainda que não apenas com ela, e esta preponderância era mútua
(Ibid., p.51). Com a expansão do tabu do incesto, os relacionamentos por grupos
gradativamente deram espaço para relacionamentos nucleares da família pré-
monogâmica. Entretanto, estes relacionamentos, ainda não se baseavam na
exclusividade. Ainda era permitido ao casal que cada indivíduo se relacionasse com
outros, não constituindo relacionamentos fixos nem traição.
Na família pré-monogâmica, começam a surgir os primeiros sinais de
desigualdade entre homens e mulheres. A exigência de exclusividade surge a princípio
apenas para as mulheres. Aos homens, permanecia permitida tanto a “infidelidade”
quanto a poligamia:
Neste estágio, um homem vive com uma mulher, mas de maneira tal que a
poligamia e a infidelidade ocasional continuam a ser um direito dos
homens, embora a poligamia seja raramente observada, por causas
econômicas; ao mesmo tempo, exige-se a mais rigorosa fidelidade das
mulheres, enquanto dure a vida em comum, sendo o adultério destas
cruelmente castigado. (ENGELS, 2012, p. 51, grifo nosso)
16
Reed usa “clã” como sinônimo de “gens”.
228
Em uma sociedade genuinamente moral e civilizada, as pessoas interagem
exclusivamente por meio da persuasão. A força não é um método válido de
interação social. Sendo assim, e por mais paradoxal que isso possa parecer
para alguns, a única ferramenta que pode remover a força dessa lista de
opções é uma arma de fogo pessoal. E o motivo é simples: quando estou
portando uma arma de fogo, você não pode lidar comigo por meio da força.
Você terá de utilizar apenas a sua razão e a sua inteligência para tentar me
persuadir. Portando uma arma de fogo, eu tenho uma maneira de
neutralizar a sua ameaça ou o seu uso da força (KLOOS, 2015).
Nas propostas do armamento civil, os grupos ditos “liberais e libertários”
reconhecem que o controle estatal sobre as armas acentua o poder policial do Estado, o
qual é, em grande maioria ineficaz na proteção de violações a propriedades das e dos
cidadãos. Apontando que as leis para o controle de armas “têm sido uma fonte de
combustível para o fogo da violência do Estado. Expandir o controle sobre armas
significa expandir o poder da polícia para perseguir, coagir, e prender” (GOODMAN,
2017). Nesse sentido, pregam que o armamento da população a torna mais segura.
A arma de fogo remove a disparidade de força física, tamanho ou número
entre atacantes em potencial e alguém se defendendo. Há muitas pessoas
que consideram a arma de fogo como a causa do desequilíbrio de forças. São
essas pessoas que pensam que seríamos mais civilizados se todas as armas
de fogo fossem removidas da sociedade, porque uma arma de fogo deixaria
o trabalho de um assaltante (armado) mais fácil. Isso, obviamente, somente
é verdade se a maioria das vítimas em potencial do assaltante estiver
desarmada, seja por opção, seja em virtude de leis – isso não tem validade
alguma se a maioria das potenciais vítimas estiver armada (MELO,2013).
Recentemente, a ideia do armamento de mulheres para a autodefesa de crimes
sexuais tem tomado a ordem do dia em razão do aumento do número de estupros. Um
dos principais movimentos nesse sentido é liderado pela americana Regis Giles com a
campanha “Girls Just Wanna Have Guns”4. O principal argumento para essa ideia no
Brasil é de que índices brasileiros de violência sexual são maiores, comparados aos norte
americanos, principalmente naqueles estados em que o porte de armas é liberado.
Neste ponto, os defensores neoconservadores5 consideram que no Brasil não
convivemos com uma cultura do estupro6 - a qual existe apenas em culturas Islâmicas do
Oriente Médio - mas, temos uma relativização do estupro e consequente, culpabilização
da vítima. Portanto, o fato de formar uma sociedade sob parâmetros de igualdade de
gênero e educar homens para que não violentam sexualmente as mulheres é meio
ineficaz e imatura para lidar com o assunto.
Os crimes sexuais, nessa por essa abordagem, não são cometidos com o uso da
arma de fogo. De tal modo, outros dados7 indicam que em países, como os Estados
Unidos, quando as mulheres detêm o porte da arma de fogo, os crimes sexuais são
evitados em 97% dos casos. Partindo desse pressuposto, simbolizam a arma como o
instrumento que equaliza as relações entre homens e mulheres. Tal discurso, subjuga as
potencialidades de uma mulher e apresenta-se extremamente misógino ao afirmar que
“permitir que uma mulher possa se defende com uma arma produz uma mudança muito
4
Nesse sentido, ver mais em: < http://girlsjustwannahaveguns.com/> . Acesso em 19 out. 2017.
5
Posição externada ao longo do debate entre os Núcleos de Estudos.
6
Adotam essa posição levando em consideração o fato de que no Brasil nenhum indivíduo aceita os crimes
de violência sexual e até mesmo aqueles que os praticam, o repudiam (GARCIA, 2017b).
7
As fontes dos dados não foram encontradas (GARCIA, 2017).
237
Nesse ponto, desde logo, é importante trazer ao centro da discussão o papel do conflito
entre classes. De acordo com Marx (2017), dinheiro e capital são tão pouco capital
quanto os meios de produção e de subsistência. Devendo ser transformados em capital.
Essa transformação, no entanto, só pode operar em determinadas circunstâncias, quais
sejam: espécies bem diferentes de possuidores de mercadorias que se defrontem e
estabelecem um contato (MARX, 2017:786). Nesse processo, a relação capitalista
pressupõe uma separação entre trabalhadores e a propriedade das condições de
trabalho. E, a acumulação primitiva se estabelece como o processo histórico de
separação entre produtor e meio de produção. O elemento “primitivo” surge devido ao
fato que se constitui como a pré-história do capital e do modo de produção capitalista.
Nessa linha de interpretação, o capitalismo opera não por meio da força
coercitiva direta, mas por mediação do mercado, ou seja, “são os imperativos
econômicos – a compulsão da ausência de propriedade – que forçam os trabalhadores a
vender sua força de trabalho por salário e tornam possível ao capital exercer poder sobre
ele” (WOOD, 2006:4). No estabelecimento pleno do modo de produção capitalista há,
portanto, uma naturalização sistêmica das leis imanentes ao capital, ofuscando a
exploração e opressão da classe trabalhadora (MARX, 2017:808). Dessa maneira, fica
evidenciada a contradição: “de um lado o capital é dependente da capacidade de se
livrar de limitações da dominação política e militar. Doutro há necessidade dos poderes
políticos e militares para manutenção de sua expansão” (WOOD, 2006:6). O poderio
militar possui um papel estratégico na manutenção do capital, pois:
Qualquer projeto de hegemonia imperial num sistema global administrado
por múltiplos Estados exigirá poder militar para desempenhar uma
variedade de diferentes funções, nenhuma das quais é nítida e
autolimitante. As tarefas da força militar num projeto dessa natureza
tendem a ser sem fim, a não ter objetivos específicos, resolução final ou
estratégia de retirada. Com certeza, há objetivos óbvios, como o controle de
reservas de petróleo ou a mudança de regime para a instalação de um poder
estatal subserviente. Mas esses objetivos relativamente bem definidos são,
pensando bem, apenas uma pequena parte do que é preciso ser feito para
sustentar este tipo de hegemonia global. No mínimo, porque há
relativamente poucos candidatos sérios à mudança de regime por meio da
guerra. (WOOD, 2006:10,grifo nosso)
Por essa razão, rememorando-se a centralidade da luta entre classes
supracitada, há que se considerar que pelo sistema de impostos indiretos e tarifas
aduaneiras 11 a classe operária e campesina suporta os gastos com o militarismo
(LUXEMBURGO, 1970:401). Sob essa ótica, a tributação da classe operária para a
manutenção da indústria bélica permite a repetição dos processos de acumulação e
autovalorização do capital. Nesse sentido o militarismo mantido sob os impostos
indiretos “assegura, às custas das condições normais de vida da classe operária, tanto a
manutenção do órgão de dominação capitalista - o exército permanente - como a
criação de um magnífico campo de acumulação para o capital.” (LUXEMBURGO, 1970,
p.409)
Rosa. Acumulação do Capital: Estudo sobre interpretação econômica do imperialismo. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1970.
11
Brevemente, de acordo com Rosa Luxemburgo (1970), os impostos indiretos representam a transferência
de uma parte do poder de compra da classe operária para o Estado. Ainda merece destaque o fato de que o
sistema fiscal moderno introduz, forçadamente, a produção de mercadoria entre os camponeses. Assim,
lança o produto da economia rural em circulação e transforma o camponês em comprador forçado de
produtos capitalistas.
239
contra a mulher.. Estas classes são, em sua maioria, compostas por negros e negras. Em
2009, os/as negros/as tinham 6,7 anos de estudos, contra 8,4 anos da população
branca. No mesmo ano, 65,5% de mulheres ocupadas, com 16 anos ou mais, tinham
pelo menos 9 anos de estudo, contra apenas 48,7% das mulheres negras.
Pelo padrão, o estupro é uma violência que deixa marcas, porquanto o estupro é
uma violência silenciosa carregada de simbologias. Na cultura do estupro em que
vivemos o estupro, para além de ser uma violência silenciosa, é uma violência silenciada.
Em uma comparação forçada , ao se trazer o contexto norte-americano, país em que o
porte de armas é legal, percebemos que há um estupro a cada 2 minutos porquanto no
brasil há um estupro a cada 11 minutos22:
A analogia continua válida quando observamos a diferença populacional, já
que se trata de cinco vezes mais estupros nos EUA, sendo que a população
não chega ao dobro da brasileira. E vale lembrar que, por lá, 56% dos crimes
sexuais são cometidos por estranhos, o que torna bem mais fácil reagir com
arma (QUEIROZ,2016)
Percebe-se que o armamento civil não desestimula a prática dos crimes sexuais,
mais precisamente o estupro. De maneira contrária, o armamento se mostra como
estratégico para ordem do capital, colocando na linha de frente de violência e
dominação os grupos mais vulneráveis da sociedade, no caso analisado, mulheres
negras e pobres. A opção pelo armamento é opção pelo capital.
Esses dados revelam a intensificação da violência sexual em razão do gênero.
Projetos de armamentismo civil desconsideram essas nuances. A violência sexual é
estabelecida e naturalizada dentro da cultura do estupro, como a dominação dos
homens sobre mulheres. O armamentismo civil, contudo, reafirma a lógica de defesa
da propriedade e manutenção de imperativos sistêmicos do capital, dentre os quais a
opressão e violência de gênero devem ser mantidas. A violência sexual é, para essa
ideia, uma violência contra a propriedade individual do corpo. Desconsideram, desde
logo, suas causas sociais inerentes, reduzindo as como crime contra propriedade. O
objeto material do estupro é reificado na propriedade nesse discurso conservador,
possibilitando que a luta pela emancipação feminina seja reduzida à manutenção da
defesa da propriedade no modo de produção capitalista.
Considerações finais
Este trabalho apresentou as contradições do discurso pretensamente liberal e
libertário sobre o armamentismo feminino e a defesa de crimes de violência sexual a
partir de uma análise marxista sobre o militarismo e do feminismo interseccional. Após,
a apresentação dos principais argumentos neoconservadores sobre o armamentismo
civil, buscou-se apoio na teoria marxista para apontar as contradições desse discurso,
tomando por base a análise luxemburguista do militarismo. Demonstrando a
funcionalidade do armamentismo para manutenção do império do capital através do
militarismo.
22
Dados retirados de: QUEIROZ, Nina. Armar mulheres, castrar agressores e moralizar a sociedade
acabaria com o estupro no Brasil? Revista Azminas: 31/05/2016. Disponível
em:http://azmina.com.br/2016/05/armar-mulheres-castrar-agressores-e-moralizar-a-sociedade-acabaria-
com-o-estupro-no-brasil/ Acesso em:18/10/2017
244
direito à cidade é recorrente tanto no estudo de caso sobre o Mais JF como no Comitê
Popular. Nos dois casos, o direito à cidade é colocado como uma espécie de “guarda-
chuva” que abrangeria várias necessidades sociais e seu conteúdo é dependente da
associação a outros direitos relacionados à vida urbana.
Ressalta-se ainda que em nenhum momento foi feita qualquer referência
normativa a esse direito. Não se reivindicou o direito à cidade com base em algum artigo
expresso da Constituição Federal ou, tampouco, no Estatuto da Cidade. Essas normas
são citadas para ratificar outros direitos (inclusive, direitos constitucionais) ou
questionar a omissão do poder público diante da violação dos Direitos Humanos.
Tal aspecto suscita, ao menos, duas questões. A primeira delas é que, embora
muitos possam reconhecer que o direito à cidade tenha sido consagrado no nosso
ordenamento a partir da constituição de 1988, de fato, não houve uma definição do
conteúdo desse direito nem na Carta Magna ou ainda no Estatuto da Cidade. Outra
questão é questionar até que ponto a definição de um conteúdo normativo favorece ao
exercício desse direito pelos sujeitos coletivos urbanos que almejam a transformação
radical das cidades.
Por intermédio do pensamento jurídico crítico, acreditamos que a definição de
um conteúdo legal do direito à cidade poderia limitar as possibilidades de se construir
esse direito por meio da prática, condicionando de alguma forma a atuação e as
reinvindicações dos sujeitos coletivos urbanos a determinado(s) dispositivo(o) legal(is)
ao permitir que o Estado regule essa luta colocando-a sobre as regras próprias das
relações mercantis. Entendemos que a positivação desse direito favorece ainda a
concretização do espaço abstrato pelo Estado e pelo mercado, tão presente nos
modelos de planejamento urbano traduzidos em legislação urbanística (LEFEBVRE, 2002,
p.144).
Na abrangência e imprecisão do conteúdo do direito à cidade mobilizado por
esses sujeitos é que talvez resida o potencial emancipatório do direito à cidade,
entendido enquanto um processo de luta, de resistência ao modelo neoliberal de
cidades e de transformação do espaço urbano em uma perspectiva anticapitalista. Essa
perspectiva coaduna, necessariamente, com a dimensão utópica do direito à cidade que
tem na práxis política campo fértil para se pensar e ser criar novas perspectivas do que
sejam as cidades para além do capitalismo. Essa potencialidade, contudo, resta-se
ameaçada ao encerrar-se nos esquemas totalizantes do fenômeno jurídico positivado
pelo Estado.
A principal conclusão desse trabalho, portanto, é que a positivação do direito à
cidade por meio da definição de um conteúdo normativo pode contribuir para a perda
da dimensão emancipatória desse direito ao instrumentá-lo como mediador dos
interesses da classe dominante.
Referências bibliográficas
HARVEY, David. Cidades Rebeldes. São Paulo, Martins Fontes, 2014.
LEFEBVRE, Henri. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: Humanitas, 2002.
_____. O Direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.
MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. 5ed. São Paulo: Atlas, 2016.
_____. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2015.
PACHUKANIS, Evguiéni B., Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Boitempo,
2017.
249
REIS, Ana Beatriz Oliveira. A ideário do direito à cidade na identidade e atuação dos
sujeitos coletivos: reflexões a partir da experiência do comitê popular da copa e das
olimpíadas do Rio de Janeiro. E-metropolis. nº 29. ano 8 |junho de 2017. pp- 15-22.
_____. A dinâmica do direito à cidade em Juiz de Fora. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
250
[...]
May the child you conceived
Be no burden to your soul;
Just see how brightly the universe is gleaming!
There’s a glow around everything;
You are floating with me on a cold ocean,
But a special warmth flickers
From you into me, from me into you.
It will transfigure the strange man’s child.
You will bear the child for me, as if it were mine;
You have brought the glow into me,
You have made me like a child myself.
[...]
(DEHMEL, 1896, p. 2)
Um casal caminha por um bosque escuro em uma fria noite enluarada. Eles
estão apaixonados, mas a mulher espera um filho de outro homem. Ela teme que o novo
amante a abandone. Contudo, para a surpresa da mulher, há a superação do
estranhamento entre o amante e a criança; homem e mulher podem, assim, realizar o
amor em sua plenitude. Tal relação afetiva possibilita à noite fria e escura transfigurar-
se magicamente numa noite em que é possível ao homem reconhecer o filho de outro
251
A atividade vital consciente distingue o homem imediatamente da atividade
vital animal. [...] Eis por que a sua atividade é atividade livre. O trabalho
estranhado inverte a relação a tal ponto que o homem, precisamente porque
é um ser consciente, faz da sua atividade vital, da sua essência, apenas um
meio para a sua existência. (MARX, 2008b, p. 84-85)
Assim, não há qualquer contradição na obra de Marx entre as afirmações de
que, por um lado, é através do trabalho que o homem realiza sua humanidade e, por
outro, que o objetivo da revolução seria emancipá-lo do trabalho para que pudesse ser
livre verdadeiramente. Isso porque a segunda afirmação concerne, especificamente, ao
trabalho alienado, à fissura na consciência, à ruptura que o modelo burguês proporciona
na unidade do trabalho intelectual e corporal (MAGALHÃES, 1985, p. 23).
O próprio homem é feito pelo social, que, enquanto social, é trabalho. Afirma
Marx que “o modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida
social, política e intelectual em geral. [...] Não é a consciência dos homens que
determina seu ser; é seu ser social que, inversamente, determina sua consciência”
(MARX, 2008a, p. 47). Ocorre que, no motor da história, o modo de produção capitalista
estruturou-se de forma a transfigurar em mercadoria a força de trabalho de quem nada
mais tem senão ela própria, fazendo surgir uma massa que, alienada do produto do
próprio trabalho, vê-se privada da realização de seu ser social. A condição atual do
trabalho é a condição da alienação. O estranhamento cega o trabalhador da prisão em
que se encontra: condenado a vender a própria força de trabalho, único bem disponível,
faz mercadoria e torna-se mercadoria.
E a afirmação do trabalho enquanto atividade essencial de produção do social
contém em si a premissa de que o processo revolucionário de emancipação da classe
trabalhadora só pode se dar pelo e através do trabalho, e não a despeito dele. A
produção de sociedade é feita na própria realização do trabalho e nas alterações das
condições materiais de vida que o homem empenha no mundo.
É nessa esteira que os prognósticos de crise da sociedade do trabalho, ou
mesmo de “fim do trabalho”, não se sustentam. O controle das relações de trabalho – e
da exploração subjacente – ainda é a forma como o capitalismo se reproduz e contorna
suas crises. Nem a automação, tampouco a financeirização (vale notar que o capital
financeiro não se desgarra do capital funcionante extrator de mais-valia), pôde pôr em
xeque a centralidade do trabalho na sociedade hodierna (FONTES, 2010, p. 26-35). O
que se verifica, não obstante, é um crescente processo de precarização das relações de
trabalho, que culmina na intensificação dos expedientes de espoliação (ampliação de
jornada, achatamento do padrão remuneratório, retirada de garantias etc.) e na criação
sempre constante de exército de reserva.
A emancipação é a reidentificação do trabalho enquanto atividade e produto do
trabalhador. E é justamente através da categoria trabalho, na sua concepção primeira
de atividade vital consciente, que se dá esse processo revolucionário de superação da
alienação. Relegar tal categoria a um plano subalterno ou, pior, sustentar seu fim ou
inutilidade (ainda que epistemológica), traduz-se em expediente destinado ao
enfraquecimento estratégico das lutas da classe trabalhadora.
Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, Marx (2008, p. 82-85) desenvolve os
vários aspectos do trabalho estranhado vigente no sistema capitalista e aborda em que
medida a superação do estranhamento, como superação da mercadoria, é o passo para
a emancipação. A alienação se dá com relação ao produto do trabalho e também na
atividade produtiva em si; opera-se uma exteriorização na medida em que o trabalho e
257
mãe se entrega como possibilidade de preencher um vazio interno, sem, contudo, com
ele ter qualquer relação afetiva significativa que pudesse significar qualquer vínculo
emocional. Sua função é instrumental, concretizada tão somente pela geração do bebê.
O segundo homem, o amante, é potencialmente aquele que negará a mulher e a criança
estranha, impedindo a realização do amor. Ao bebê resta a condição de elemento
duplamente estranho: é estranho ao pai que o aliena, e é potencialmente estranho ao
amante que não o tem como seu filho.
Schoenberg desenvolve uma narrativa musical especialmente interessante com
base neste enredo. O compositor utiliza o mesmo motivo-condutor para ambas as
figuras masculinas. Há identidade entre pai e amante pela representação por um mesmo
leitmotiv. Assim, o violoncelo, voz masculina por excelência na obra, ressoa o mesmo
tema tanto quando a mulher se entrega ao estranho quanto no momento em que o
amante se pronuncia.
O estranhamento do bebê é, assim, uma condição dada na construção poética
por sua relação com a infelicidade da mulher, o alheamento por parte do pai e o
estranhamento pelo amante. Assim, a transfiguração da noite é o momento de
superação das condições de distanciamento no qual o reconhecimento do bebê como
próprio consagra uma relação de amor entre homem e mulher e criança.
Daí que a alteração entre a identidade do pai e do amante é realizada após a
aceitação do bebê como próprio pelo último. O leitmotiv masculino é modificado pelo
motivo-condutor da criança. Na mesma passagem, o leitmotiv feminino encontra o
motivo-condutor da aceitação. A alteração dos leitmotive masculino e feminino
apresenta, portanto, a conciliação entre os personagens externalizada pela
transfiguração da noite. Poema e música terminam com a caminhada do feliz casal sob o
brilho bruxuleante do luar.
O arranjo de Schoenberg da Noite Transfigurada de Dehmel chama atenção,
portanto, pela equiparação entre as figuras masculinas. A identidade entre elas causa
desconforto frente às figuras da mãe e do bebê. O mesmo elemento masculino é capaz,
por um lado, de gerar o estranhamento e a subjugação da mulher e da criança, e, por
outro, a abertura para a felicidade, o amor e o acolhimento.
É possível, aqui, traçar um paralelo entre tal configuração e a alienação do
trabalho levada a cabo pelo capital. Da superação do regime capitalista de produção,
espera-se a apresentação do trabalho como atividade de realização da plenitude do
sujeito. A emancipação é, assim, o estágio em que atividade e produção não se
conformam ao imperativo do valor de troca substancializado em mercadoria, mas
permita a realização do sujeito no objeto de sua produção enquanto realização própria.
O bebê, como forma do estranhamento, está posto numa condição de
externalidade que não é sua própria. Pensar a categoria trabalho no capitalismo é
defrontar-se com a alienação do trabalhador com sua produção. Não reconhecer o
produto do trabalho como próprio é alienar-se da própria produção; o trabalho
realizado pertence a um outro que não aquele que o produz. Subverter esta lógica é
tomar a própria produção como sua, ressignificando o produto do trabalho como
elemento não estranho, mas próprio.
Ampliando o paralelo aqui proposto (entre a alienação do trabalho e o poema)
para levar em conta, ademais, a questão dos mecanismos reprodutores da desigualdade
de gênero na sociedade, é possível tecer ainda alguns comentários adicionais. Note-se
que é questão sobre a qual não se debruçou Adorno, tampouco Schoenberg ou Dehmel,
mas que encontra, no enredo do poema e na problemática da alienação, cenário
propício para ser colocada em debate.
260
Da identificação entre pai e amante, identificação essa que fica mais evidente no
arranjo de Schoenberg, seria possível pressupor que o gênero masculino contém em si a
própria negação do estranhamento da criança. De fato, nos termos em que sugere o
enredo da obra, uma primeira leitura poderia indicar que a superação do
estranhamento (em outras palavras, que o processo emancipatório) se operaria pela
aceitação da paternidade pelo segundo homem. Ocorre que assim concebê-lo significa,
ao fim e ao cabo, chancelar o machismo estrutural que permeia a sociedade, já que
implica caracterizar a mulher como figura subordinada ao homem.
A aparência de igualdade que a aceitação da paternidade pelo amante produz
pode ser comparada aos mecanismos de alienação que o sistema capitalista empreende.
O mesmo gênero que aliena o bebê é depois o que o reconhece – e que confere a esse
fato uma espécie de redenção. Da mesma forma, o capital gera a desigualdade, cria as
condições da alienação do trabalho e, posteriormente, a oculta, e o faz dando azo a
expedientes de abstração que buscam engendrar um espaço de sociabilidade onde há
um antagonismo inconciliável de classes, que buscam forjar uma aparência de igualdade
que encobre os conflitos e as assimetrias da instância material. Uma aparência de
igualdade que, ao invés de minimizar as disparidades da essência, as reforça.
É nessa esteira que aqui se reivindica uma outra interpretação: ao invés de
conceber a emancipação da mulher por meio do atendimento aos padrões impostos
pelo patriarcado, o que espelha uma visão subjugadora, concebamos a emancipação por
ela própria e pelo filho que gera. Frise-se que, de toda forma, a luta emancipatória da
mulher na sociedade não está desgarrada, em hipótese nenhuma, das lutas do trabalho
tencionadas ao aniquilamento do sistema exploratório capitalista.
Dessa forma, assim como a emancipação da mulher não passa por uma espécie
de correção do “grave delito”, para usar a expressão do poema (o que configuraria, ao
revés, a reafirmação dessa engrenagem reprodutora de desigualdade, e não sua
superação), tampouco o processo revolucionário de emancipação da classe trabalhadora
depende de outros elementos que sejam externos a ela própria e a seu trabalho. É o
proletariado por si mesmo a classe alienada do próprio trabalho e a que carrega a
potência emancipatória. É na classe trabalhadora que reside a potencialidade de
negação da condição de alienação; a superação de tal condição está nela contida na
direção de um novo mundo que é este mesmo.
Se é a classe trabalhadora que deve liderar o processo revolucionário com vistas
à derrocada da dominação do capital, ela deve fazê-lo tendo como norte o trabalho e a
necessidade de transformação de sua natureza: do trabalho alienado ao
verdadeiramente livre. Tendo em vista que o trabalho é o elemento precursor da
própria vida social, fica evidente a sua centralidade no processo revolucionário de
emancipação quando Marx frisa que a revolução proletária precisa ser “política com
uma alma social” (1844) e que, “uma vez emancipado o trabalho, todo homem se
converte em trabalhador” (2011, p. 59).
Importante notar, por fim, retomando Rosa Luxemburgo, que são as massas
populares que contêm em si a potencialidade da revolução. “A vontade enérgica do
partido revolucionário não basta”, tudo há de ser “fruto da experiência das massas”
(LOUREIRO, 1991, p. 21). A transfiguração da noite, para usar a alegoria do poema, delas
partirá unicamente; são elas que desencadearão o processo revolucionário apto a fazer
enxergar a nova condição sob o brilho transfigurador. E então, uma vez superadas as
desigualdades da instância material, haverá, de fato, uma transfiguração verdadeira das
condições de vida, e não o reforço das assimetrias pela aparência de igualdade operada
pelos expedientes de alienação do sistema capitalista.
261
Max Weber, libertar a empresa de negócios dos grilhões dos deveres para
com a família e o lar e da densa trama das obrigações éticas; ou, como
preferiria Thomas Carlyle, dentre os vários laços subjacentes às
responsabilidade humanas mútuas, deixar restar somente o ‘nexo dinheiro’.
Por isso mesmo, essa forma de ‘derreter os sólidos’ deixava toda a complexa
rede de relações sociais no ar – nua, desprotegida, desarmada e exposta,
impotente para resistir às regras de ação e aos critérios de racionalidade
inspirados pelos negócios, quanto mais para competir efetivamente com
eles.Esse desvio fatal deixou o campo aberto para a invasão e dominação
(como dizia Weber) da racionalidade instrumental, ou (na formulação de Karl
Marx) para o papel determinante da economia: agora a ‘base’ da vida social
outorgava a todos os outros domínios o estatuto de ‘susperestrutura’ - isto é,
um artefato da ‘base’, cuja única função era auxiliar sua operação suave e
contínua. O derretimento dos sólidos levou à progressiva libertação da
economia de seus tradicionais embaraços político, éticos e culturais.
Sedimentou uma nova ordem, definida principalmente em termos
econômicos.” (BAUMAN, 2001, p. 10)
Além disso, a busca incessante pelo lucro como um fim em si mesmo tende a
esvaziar a ética e a moralidade. Até mesmo o “outro” passa a ser visto também como
meio de obtenção de algo, sobretudo financeiro. A política real, por sua vez, é também
esvaziada, tomada pela racionalidade instrumental. Não que em períodos anteriores não
havia racionalidade instrumental, na busca desenfreada pelo lucro ou vantagens, mas
agora isso é estrutural da sociedade, formando um de seus pilares. Tanto que os
poderes políticos capazes de, pelo menos em tese, impedir retrocessos não mais o
conseguem a força associativa de outrora, os indivíduos estão mais preocupados
consigo mesmos, sem tempo ou vontade para as lutas coletivas.
Em decorrência ainda, outros fenômenos vêm associados à leveza dessa nova
era. Se antes o perigo, muitas vezes real e também hipotético, era da colonização do
privado pelo público- como lembra o autor ao se referir à distopia de George Orwell,
1984-, hoje é justamente o contrário, o privado cresce e tende a sobrepor o público. A
dificuldade em conservar as relações no tempo levou a um processo de individualização,
refletindo em desinteresse e indiferença quanto às questões públicas, deslocando o
peso do sucesso ou fracasso para os ombros de cada um, por considerar o indivíduo
autônomo, emancipado, apesar das contingências sociais (no sentido mais lato possível)
que o cercam.
Ao contrário da maioria dos cenários distópicos, este efeito (de
impossibilidade de alteração da ordem e supressão da liberdade) não foi
alcançado via ditadura, subordinação, opressão ou escravização; nem através
da ‘colonização’ da esfera privada pelo ‘sistema’. Ao contrário: a situação
presente emergiu do derretimento radical dos grilhões e das algemas que,
certo ou errado, eram suspeitos de limitar a liberdade individual de escolher
e de agir. A rigidez da ordem é o artefato e o sedimento da liberdade dos
agentes humanos. Essa rigidez é o resultado de ‘soltar o freio’: da
desregulamentação, da liberalização, da ‘flexibilização’, da ‘fluidez’
crescente, do descontrole dos mercados financeiro, imobiliário e de
trabalho[...] em outras palavras, técnicas que permitem que o sistema e os
agentes livres se mantenham radicalmente desengajados e que se
desencontrem em vez de encontrar-se. (BAUMAN, 2001, pp. 11 e 12)
Por essa razão, Baumann vai diferenciar dois tipos de autonomia: de jure e de
facto, respectivamente falsa da real, ou melhor, da suposta (ou imposta) da efetiva.
Embora não sejam, em sua maioria, realmente autônomos, o capitalismo leve assim os
considera e os impõe essa condição na forma de jure.
269
A distinção entre liberdades ‘subjetiva’ e ‘objetiva’ abriu uma genuína caixa
de Pandora de questões embaraçosas como ‘fenômeno versus essência’ – de
significação filosófica variada, mas no todo considerável, e de importância
política potencialmente enorme. Uma dessas questões é a possibilidade de
que o que se sente como liberdade não seja de fato liberdade; que as
pessoas poderem estar satisfeitas com o que lhes cabe mesmo que o que
lhes cabe esteja longe de ser ‘objetivamente’ satisfatório; que, vivendo na
escravidão, se sintam livres e, portanto, não experimente a necessidade de
se libertar, e assim percam a chance de se tornar genuinamente livres. O
corolário dessa possibilidade é a suposição de que as pessoas podem ser
juízes incompetentes de sua própria situação, e devem ser forçadas ou
seduzidas, mas em todo caso guiadas, para experimentar a necessidade de
ser ‘objetivamente’ livres e para reunir a coragem e a determinação para
lutar por isso. Ameaça mais sombria atormentava o coração dos filósofos :
que as pessoas pudessem simplesmente não querer ser livres e rejeitassem a
perspectiva da libertação pelas dificuldades que o exercício da liberdade
pode acarretar (BAUMAN, 2001, pp.24/25)
Por essa razão, vai permeando o ordenamento jurídico a concepção de
indivíduos iguais, livres e emancipados, um dos pilares que norteia, por exemplo, a
reforma trabalhista.
Ao se considerar a indiferença marca estrutural da individualização, outra
questão suscitada pelo filósofo é a inércia quanto às questões coletivas, porque
ninguém parece mais se interessar por movimentos coletivos, na medida em que seria
preciso abandonar, ou deixar em suspenso, em certa medida, os projetos individuais.
Por isso, em lados opostos encontram-se o cidadão e o indivíduo. Enquanto o primeiro
busca seu bem-estar através de projetos coletivos, o segundo o faz por condutas
individuais, sem se preocupar com o coletivo. O que vai levar Baumann a replicar a
afirmação de Tocqueville: que o indivíduo é o pior inimigo do cidadão (p.45).
A individualização traz para um número sempre crescente de pessoas uma
liberdade sem precedentes de experimentar – mas (timeodanaoset dona
ferente...) traz junto a tarefa também sem precedentes de enfrentar as
consequências. O abismo que se abre entre o direito à auto-afirmação e a
capacidade de controlar as situações sociais que podem tornar essa auto-
afirmação algo factível ou irrealista parece ser a principal contradição da
modernidade fluida – contradição que, por tentativa e erro, reflexão e crítica
e experimentação corajosa (BAUMAN, 2001, p.47)
Esse fenômeno encontra-se pulverizado na sociedade, permeando as
instituições e as leis. Mesmo naqueles pontos em que o “sólido” se mantém, há uma
insistência para sua liquefação, de modo a criar uma tensão entre o “velho” e “novo”, o
“sólido” e o “líquido”, o “antigo” e o “moderno”. Assim, não seria estranho que sob uma
análise do discurso, um dos argumentos centrais, senão o principal, constantemente
utilizados pelos que eram a favor da reforma trabalhista foi a necessária
“modernização”, conquanto seu significado tomasse em suas palavras uma conotação
positiva, conforme a seguinte fala do Ministro da Trabalho: “Estamos em um processo
de modernização, que aperfeiçoa e adapta esta mesma CLT à realidade do século XXI,
preservando e assegurando todos os direitos da classe trabalhadora
1
.Como a modernidade líquida é sempre incompleta por definição, dada a ausência de
270
um fator constante, que perdure no tempo, a não ser a própria inconstância, a história
deixa de ter um fim, mesmo que planejado ou previsto, para ser um processo aberto a
todas as possibilidades que a constrangem. Possibilidades essas reformuladas a cada
nova alteração das relações. Os argumentos de modernização estarão sempre
presentes, pois marca atual do capitalismo, em tempos fluidos, é crise constante, como
diz Harvey:
A novidade histórica da crise de hoje torna-se manifesta em quatro aspectos
principais: (I) seu caráter universal, em lugar de restrito a uma esfera
particular (por exemplo, financeira ou comercial, ou afetando este ou aquele
ramo particular de produção, aplicando-se a este e não àquele tipo de
trabalho com sua gama específica de habilidades e graus de produtividade
etc); (2) seu alcance é verdadeiramente global (no sentido mais literal e
ameaçador do termo), em lugar de limitado a um conjunto particular de
países (como foram todas as principais crises do passado); (3) sua escala de
tempo é extensa, contínua, se preferir, permanente, em lugar de limitada e
cíclica, como foram todas as crises anteriores do capital; (4) em contraste
com as erupções e os colapsos mais espetaculares e dramáticos do passado,
seu modo de se desdobrar poderia ser chamado de rastejante, desde que
acrescentemos a ressalva de que nem sequer as convulsões mais veementes
ou violentas poderiam ser excluídas no que se refere ao futuro: a saber,
quando a complexa maquinaria agora ativamente empenhada na
‘administração da crise (ALVEZ, 2009, p.31)
Nesse terremoto de transformações, uma conectada a outra pela fluidez dos
tempos e marcada pelo consumismo, o trabalho perde sua centralidade. De uma
concepção de coletiva em direção ao progresso da coletividade, dos outros, volta-se
para si mesmo, em si mesmo, sem um fim específico. Com ele, a noção de progresso é
rompida. Não existe mais um fim (telos) a ser alcançado por todos nós através do
trabalho, numa ação conjunta. Nessa fase, as ações políticas planejadas possuem em
realidade grande incerteza, dada a inexistência de qualquer técnica de previsão do
futuro. O presente cresce em relevância, as previsões não se adentram muito no futuro,
tornam-se mais imediatas e pouco distantes do hoje e, ainda assim, seu resultado é tido
por incerto, sobretudo porque as variáveis também são fluidas. A cada promessa
frustradas, outras vêm em seu lugar. E, mesmo que eventualmente se cumpram é
preciso que novas surjam, manter a constante modernização, porque sua fluidez impõe
também a constante renovação. O progresso, incerto e precário, renova-se a todo
momento, junto com a fé e confiança também precárias. Por isso, vai dizer Baumam de
forma diferente de Marx, que nessa fase do capitalismo “leve” a progressiva e gradual
evolução em direção a um fim esvaiu-se. Giram em torno do progresso as concepções
de confiança e fé na historia, com base no presente e não mais no futuro, só que o
presente é fluido, tornando o futuro também incerto.
Está é a questão: o ‘progresso’ não representa qualquer qualidade da
história, mas a autoconfiança do presente.[...] Mas se a autoconfiança – o
sentimento tranqüilizador de que se está ‘firme no presente’ – é o único
fundamento me que a fé no progresso se apóia, então não surpreende que
em nossos tempos a fé seja oscilante e fraca. E as razões por que isso se dá
não são difíceis de encontrar.
1
Retirado do site: http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2017/04/modernizacao-trabalhista-
marca-novo-momento-historico-no-pais. Acessado em 02/08/2017 , às 14:19.
271
páginas e palcos de Maiakóvski, um pouco acerca de uma destas tábuas que serviram à
formação da arca - ou seria apenas um frágil dedo nessa história? -, aplainada com o
intuito de normalização da ordem capitalista e contenção da luta de classes no seguir do
processo de Outubro: a Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Tendo germinado no mesmo complexo conjuntural que o processo
revolucionário ora em tela (MATTOSO e POCHMANN, 1997, p. 8), não são poucos os
autores que projetarão no Tratado de Versalhes e na criação da OIT – constituídos
enquanto mecanismos políticos e ideológicos utilizados pelas classes dominantes de
mundo afora para conter o ímpeto avassalador da internacionalização da Revolução
Russa – a pedra fundamental do Direito do Trabalho moderno (BIAVASCHI, 2016, p. 77).
Por esse motivo, soa-nos extremamente oportuno o diálogo de alguns aspectos
concernentes a OIT e a Revolução, sobretudo levando-se em conta o esforço coletivo de
conjugação de debates políticos e jurídicos com a experiência inaugurada em 1917.
Assim, nosso intuito com esta pequena contribuição é a de, sobretudo a partir
das reflexões conjunturais de José Carlos Mariátegui, das leituras de Rubens Ricupero e
em diálogo com Maiakóvski, destacar alguns pontos concernentes às funcionalidades
que a constituição do Direito do Trabalho, com esteio em um Direito Internacional do
Trabalho, acabou por cumprir no seio da ordem de produção capitalista e no deslinde da
Revolução de Outubro, revelando contradições que esse corpo normativo de proteção
jurídica dos interesses imediatos da classe trabalhadora acaba por também servir
àqueles que vivem da exploração do trabalho.
***
Em material oficial, registra a Organização Internacional do Trabalho ter sido
“fundada em 1919 pelos países industrializados a fim de dar resposta aos seus
problemas" (OIT, s/d “b”, p. 3). Afinal de contas, quais seriam esses “problemas”?
O mais importante deles é certamente político, e decorre do medo da
revolução.
Inegável que foi a Revolução Russa de 1917 um dos eventos políticos mais
impactantes da história. Divisora de águas no arranjo da ordem que se pretendia cada
vez mais global, questionadora da dominância hegemônica do capital, afirmada sob a
consigna do poder popular. Não hesitamos em mencionar ser o mais retumbante evento
do primeiro quartel do séc. XX1.
Referida repercussão fez José Carlos Mariátegui (2012, p. 57) apontar que, nos
anos que imediatamente seguiram 1917, “a Revolução Russa estava na moda”. Essa fato
ensejou uma difusão de estudos acerca do processo social, inclusive quanto a questões
jurídicas do Estado operário então erigido:
Urgidas pela demanda do público estudioso, as grandes editoras de Paris, de
Londres, de Roma e de Berlim editaram compilações das leis russas, assim
como ensaios sobre tal e qual aspecto da Revolução (MARIÁTEGUI, 2012,
1
Rubens Ricupero, de outra banda, projetará na I Grande Guerra o maior abalo de alicerces à ordem
ocorrido no período, sendo a Revolução Russa apenas consequência desta: “A homogeneidade
demoradamente fabricada ao longo de quase um século voará de novo em estilhaços por obra da Primeira
Guerra Mundial e de suas conseqüências diretas ou indiretas: a chegada ao poder dos bolchevistas na
Rússia e dos nazistas na Alemanha. O traço de união entre esses países com regimes tão díspares e até
antagônicos é terem sido ambos excluídos e marginalizados do sistema restaurado em Versalhes, em 1919,
sob a égide das três potências burguesas vitoriosas: Estados Unidos da América, cedo retornados ao seu
relativo isolamento, e a Grã Bretanha e a França, a partir de então, garantes exclusivas da ordem encarnada
na Sociedade das Nações” (RICUPERO, 2008, p. 60)
282
p.56)
Da mesma forma que causou furor e curiosidade em amplos extratos da
população – inclusive nas massas operárias das maiores urbes europeias –, esse impacto
não poderia ensejar outro efeito que não o temor da burguesia dos países centrais do
capitalismo de então, que responderam esse frenesi com chamados ao enfrentamento
do ascenso bolchevique. Afirma o marxista peruano:
2
Até um mês e meio atrás a voz de Clemenceau ululava como um clarim na
Câmara francesa, contra a impúbere república soviética, anunciando que
nenhum diálogo, pacto e transação, moral ou física, era possível com ela e
expressando sua fé em que a cruzada antibolchevique, comandada pela
Polônia – dona de todas as complacências do velho tigre -, acabaria por
varrer o maximalismo da Rússia. (MARIÁTEGUI, 2012, p. 39)
A incursão militar imperialista que se voltou contra a Rússia soviética foi, como
sabemos, malfadada. Nenhum animar dos exércitos brancos foi suficiente para sustar –
ainda que a duríssimas penas – o triunfo militar da revolução.
Não foi pela guerra que, nesse caso, se alcançou a tão almejada “paz social”.
Esse foi o elemento fundamental que leva às nações imperialistas vencedoras da
I Grande Guerra a alterar a forma de abordagem da “ameaça” soviética, inobstante
sejam “vários e complexos (...) os fatores dessa mudança”, que o Amauta aponta com
acerto na época não ser “fácil defini-los exata, ordenada e juridicamente, em um
momento em que não se conta ainda com todos os elementos de juízo” (MARIÁTEGUI,
2012, p. 40). Dentro desse complexo, e no bojo das negociações do fim da I Guerra,
encontrava-se a criação da OIT. Tais elementos são sensíveis à doutrina trabalhista
brasileira, mesmo de matiz conservador, como demonstra a leitura de Arnaldo
Süssekind, citando Nicolas Valticos (SÜSSEKIND, 1987, p. 52).
Não se trata porém de uma simplista, objetiva e mecânica resposta ao levante
insurrecional do Leste. Essa posição seria reflexo da sensação de que, como apontará o
revolucionário latino em O crepúsculo da civilização, “a situação dos países vencedores
está vinculada à dos países vencidos” (MARIÁTEGUI, 2012, p. 52). Logo, há um misto de
elementos políticos e econômicos que perpassam essas necessidades de inflexão no
trato com a Rússia tomada por camponeses e operários. Decorrentes, de um lado, da
dependência econômica que os países da Entente mantinham para com insumos
importados da Rússia, o que reclamava o sustar do bloqueio imposto à nação dos
sovietes no período que segue a revolução:
A Europa quer se independizar, no que for possível, da América do Norte
[Estados Unidos, G.S.]. Volta os olhos para a Rússia, seu antigo celeiro. A
Rússia precisa das manufaturas da Europa Ocidental; e esta precisa das
matérias-primas, dos cereais e da lenha da Rússia. O bloqueio dos
bolcheviques custa muito à Entente; é uma prolongação da guerra, com a
consequente carga sobre o orçamento e a flutuação do ‘câmbio’. Para os
aliados, mantê-lo é privar-se de sua fonte natural de abastecimento.
(MARIÁTEGUI, 2012, p. 41)
Inobstante o alterar de intuitos para estabilização da ordem internacional por
parte do já cristalizado bloco ocidental capitalista, as animosidades existentes entre as
nações que disputavam a hegemonia global era evidente. Tanto que depreendemos de
2
Referido artigo, “A Entente e os sovietes”, foi escrito em Roma em 12.02.1920, e publicado originalmente
em El Tiempo, Lima, Peru, em 9 de julho de 1920 (MARIÀTEGUI, 2012, p. 39).
283
SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Curso de Direito do Trabalho: História do Direito do Trabalho
no Brasil. Vol. I, parte II. São Paulo: LTr, 2017.
SÜSSEKIND, Arnaldo. Direito Internacional do Trabalho. 2a ed., São Paulo: LTr, 1987.