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Agencia individual e tradução cultural no nomadismo contemporâneo.

Anamaria Morales – PPGA/ UFBA

A reflexão aqui proposta sobre as circulações humanas em tempos de globalização


dirige seu foco a um tipo particular de migrante na atualidade: europeus que optaram
por instalar-se em países do “sul global” a partir da década de 70 passada. A coleta de
dados sobre a trajetória destes indivíduos se refere à Bahia e busco aqui levantar
algumas hipóteses sobre a lógica que anima esse movimento atomizado de “nômades
contemporâneos” e seu significado no quadro global.
Uma seleção de conceitos-chave propostos pelos autores que teorizam sobre a
circulação de bens, idéias e pessoas no mundo atual permitiram circunscrever esse
objeto de estudo: Transnacionalismo, Cidadania Flexível, Imaginação e Agência,
Cosmopolitismo/Mobilidade e Subjetividade Pós-Moderna.
O estudo se debruça sobre a constituição de novas disposições e subjetividades no
presente, expressas nas motivações de sujeitos ocidentais para migrar dos países centrais
do sistema econômico para o “sul global”, envolvendo a imaginação e agência na
fabricação de projetos de vida que pressupõem a mobilidade, a desterritorialização e o
recurso à cidadania flexível. Busca também relacionar as práticas e imaginações
transnacionais do sujeito “nômade” às condições sociais que permitem e que mobilizam
sua flexibilidade, tal como sugerido por Ong. (ONG 1999:3)
Essa autora levanta a questão crucial de como os fluxos culturais e a imaginação
humana, associados ao paradigma da mobilidade, são condicionados e modelados pelas
relações de desigualdade global. Observa que o acesso a uma cidadania flexível marca o
privilégio de classe e a posição da nação de origem do sujeito dentro da “hierarquia das
nações”, produto da história do colonialismo e do pós-colonialismo.
Europeus “outsiders”, “drop-outs”, investidores, cosmopolitas, binacionais,
oportunistas, hedonistas, aventureiros e os que, militantes ou não, se querem “cidadãos
do mundo”, buscam a Bahia e o Nordeste brasileiros para fixar-se: uns mais, outros
menos definitivamente. Sua presença desperta a questão do apelo global do Brasil no
imaginário europeu, definido pela mestiçagem, pela possibilidade mítica do recomeço
em outro lugar e pela sensualização dos trópicos. Instiga à investigação sobre o campo
representacional no qual se movem, na arena global, as idéias de exotismo e sua
interface com a desigualdade.
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- As teorias dos fluxos culturais globais e o transnacionalismo.
Teorizações sobre os tempos atuais de Globalização tem associado a “era da
informatização”, a constituição de redes e de identidades múltiplas e flexíveis, e
processos paralelos de desterritorialização, ao surgimento de novos fenômenos de ampla
escala, entre os quais se situaria um tipo de “nomadismo contemporâneo”. (1) Nômades
no sentido figurado, significando indivíduos que traçam suas trajetórias de vida
atravessando fronteiras físicas, sociais e mesmo simbólicas.
Entre elas, a Antropologia do Movimento esboçada por Tarrius aponta o surgimento
de populações móveis, desterritorializadas, na contemporaneidade, cujos sujeitos
improvisam identidades mestiças transnacionais, a partir de suas experiências
circulatórias, criando um pertencimento em forma triádica, o“ser daqui” e “ser de lá” ao
mesmo tempo, que expressa o cosmopolitismo contemporâneo. (Tarrius 2000: 39,41)
Tal hibridez identitária foi também apontada por Hall, sugerindo que na pós-
modernidade a continuidade e a historicidade da identidade são questionadas pela
imediatez e a intensidade das confrontações culturais globais, dando lugar às novas
identidades e/ou culturas “híbridas” representadas por pessoas pertencentes a dois
mundos - pessoas “traduzidas”- produto de novas diásporas criadas pelas migrações
pós-coloniais , que devem aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, falar duas
linguagens culturais, a traduzir e negociar entre elas. (Hall 1997: 89)
O olhar antropológico sobre a globalização envolve também o debate sobre a
possibilidade de pensar uma cultura mundializada. As metáforas de “fluxos” culturais e
“hibridismo”, sugeridas por teóricos da Antropologia Transnacional, como Hannerz,
buscam dar conta das “interconexões culturais no espaço e da atual reorganização da
diversidade cultural no mundo”, com destaque para a multiculturalidade e os fluxos
entrecruzados e contrafluxos . (Hannerz 1997: 2,4)
Questionando o conceito de fluxos culturais, Friedman argumenta que as relações
globais estruturam Estados, mercados, movimentos e a vida cotidiana, não sendo estes
tão somente perpassados pelos “fluxos culturais”. Refuta o transnacionalismo cultural,
denunciando-o como ideologia que apresenta a globalização como “liberadora” para
todos, e a identidade cosmopolita como restrita ao mundo transnacional de uma elite.
(Friedman 2000:638, 646)

(1) Ver Castells 1996; Bauman 2001 ; Hall 1997; Maffesoli 2001; Tarrius 2000.
2
Face ao desafio de se abarcar o conjunto das relações globais em múltiplos níveis,
Appadurai concebeu uma Teoria da “economia cultural global”, que deve ser vista
como uma ordem complexa, superposta e disjuntiva. O autor oferece um panorama
multi-determinado das relações mundializadas, identificando cinco dimensões de fluxos
culturais globais, que em suas disjunções promovem tanto a homogeneização quanto a
desordem cultural. Relaciona o estudo dos novos cosmopolitismos com a análise dos
fluxos culturais transnacionais no interior dos quais eles se retroalimentam , com ênfase
na dinâmica cultural da desterritorialização. (Appadurai 1996:49)
Entre os críticos da meta-teoria da contemporaneidade de Appadurai, Heyman e
Campbell questionam a excessiva ênfase dada às disjunções e o ofuscamento pelos
fluxos múltiplos e não priorizados, mistificadores das reais relações que levam à
diferenciação e à polarização no quadro de desigualdade mundial. Apontam o
enrijecimento das fronteiras, as novas formas de controle do movimento e os direitos de
de mobilidade desiguais, em um mundo em que emergem novas formas de poder de
Estado, para além das unidades nacionais territorialmente delimitadas. (Heyman &
Campbell 2009: 133)
Ao identificar como questões essenciais da Antropologia a agência e a imaginação
humanas , Ong investiga como sujeitos são moldados por estruturas de poder e reagem a
elas de modos culturalmente específicos. Relacionando “cidadania flexível” e
transnacionalidade, Ong destaca a flexibilidade nas estratégias de cidadania como
produto e condição do capitalismo tardio, em que as relações cambiantes entre os
sujeitos, o Estado e o capital devem ser analisadas através da dinâmica cultural. (Ong
1999: 240) A autora destaca em Appadurai uma teoria da ruptura que toma a Mídia e a
Migração como os principais diacríticos interconectados, apontando seus efeitos
conjuntos no papel da imaginação como um aspecto constitutivo da subjetividade
moderna. (Ong 1999: 9)

- Agência , imaginação social e cosmopolitismo.


A questão da agência e da imaginação é central na análise de Appadurai : a
imaginação na vida social vista como um campo organizado de práticas sociais e de
negociação entre os locus de agência (indivíduos) e campos de possibilidades
globalmente definidos. Imprescindível a todas as formas de agência, a imaginação
constitui um fato social e um componente chave na ordem global.(Appadurai 1996: 31)
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O autor salienta que a imaginação tornou-se uma prática social que integra a
fabricação da vida social para muitos indivíduos, constituindo um novo poder ligado a
imagens, idéias, oportunidades que vem de outro lugar, circuladas pela Mídia. Propõe
que vidas parcialmente imaginadas sirvam de base para etnografias que captem vozes
significativas em um mundo transnacional, desterritorializado. (Appadurai 1996: 54,55)
O “ser cosmopolita” como meta de vidas construídas.
A “busca pelo Outro” e por “outro lugar”, movidas pela imaginação, que geram a
errância, vista como uma circulação social globalizada, nos remete ao cosmopolitismo,
vivenciado como estratégia de inserção individual no mundo atual, projeto de vida e de
construção de si. Hannerz evoca uma intensa mobilidade de indivíduos portadores de
experiências multi-diversificadas e distingue o cosmopolita/expatriado do migrante,
destacando o senso de domínio do primeiro ao se submeter à cultura estrangeira,
subordinação essa que envolve a autonomia pessoal em face da cultura da qual se
originou(Hannerz 1990:254)
Tais cosmopolitas “legalizados” e livres para circular são poucos, observam
Heyman e Campbell, em relação aos muitos migrantes ilegais que não podem usufruir
de um mundo transnacional. Apontam ainda que as pessoas móveis no mundo
contemporâneo estão engajadas na construção de novas e complexas políticas de
localização e viagem, e que ao invés de desaparecer, a diferenciação sócio-espacial está
ganhando densidade e força, enquanto muda na forma e no conteúdo. A mobilidade
significa desigualdades de riscos, direitos, status e de efetiva liberdade de movimento.
(Heyman &Campbell 2009: 140,141)
Face à constatação das distintas condições de mobilidade, que podem ou não levar
os sujeitos à uma prática flexível de identidade e cidadania, cabe perguntarmos se há um
novo tipo de subjetividade em construção na pós-modernidade e qual a sua relação
com a agência individual de diferentes indivíduos móveis. Ortner aborda as questões da
subjetividade como “estruturas de sentimento complexas”, ansiedades existenciais
fundamentais e como construções sociais e históricas específicas de consciência. Define
a consciência pós-moderna como uma configuração específica de ansiedades, ligadas ao
capitalismo tardio, que podemos aproximar dos sujeitos nômades aqui tratados. A
questão da subjetividade implicando, para a autora, uma visão do sujeito como
existencialmente complexo, um ser que sente, pensa e reflete, que faz e busca
significado. (Ortner 2007: 375,379)
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Flexibilidade, auto-domínio e inquietação poderiam ser vistos como traços
recorrentes no sujeito nômade, remetendo-nos a Bauman, que descreve o mundo atual
como um território flutuante, ao qual só se adaptam pessoas e coisas fluídas, ambíguas,
em estado constante de auto-transgressão (Bauman 2001: 238). O autor define o
movimento como a própria essência da (pós) modernidade, a “impossibilidade de se
permanecer fixo”, que nos tornaria a todos nômades, indivíduos sem uma identidade
assegurada. (Bauman 2005: 33)
Recuperando o lugar do sujeito no mundo atual, Garcia Canclini propõe que se veja
os migrantes contemporâneos como o suporte humano da globalização, evitando assim
reduzir os movimentos econômicos a fluxos anônimos. Sugere pensar as pessoas como
o locus em que as decisões são tomadas e a liberdade é posta em jogo, e que deixemos
falar os atores sobre suas experiências de interculturalidade transnacional. (Garcia
Canclini 2007:58,59)
Ao refletir sobre a Interculturalidade globalizada, desde um ponto de vista latino-
americano, o autor propõe que se estude os Imaginários sobre a globalização
produzidos a partir de diferentes perspectivas - da América Latina , da Europa e dos
EUA, abarcando os diversos destinos migratórios e considerando suas ambivalências e
transformações na virada do século. Dirige sua atenção à relação entre o mercado e a
interculturalidade e destaca que mudanças simbólicas radicais vem se gerando tanto nas
sociedades e nos sistemas de comunicação, como nas representações que cada nação
tem de si mesma e das outras. (Garcia C. 2007:69)

Vida imaginada nos trópicos


Ao destacar o novo papel da imaginação na vida social como uma forma de
negociação entre locus individuais de agência e campos de possibilidades globalmente
definidos, Appadurai abre espaço para as biografias individuais, ressaltando o poder das
possibilidades da vida imaginada em larga escala, sobre as trajetórias de vida
específicas. (Appadurai 1996:31,55)
A avaliação do campo de possibilidades dos sujeitos móveis ao migrar é facilitada
pelo fluxo de informações e tecnologia entre o centro do sistema e suas áreas de
influência no sul global, o que mobiliza diferentes capacidades para conciliar suas
habilidades e capital cultural e financeiro com as possibilidades da realidade local.
Bauman se destaca entre os autores que buscam interpretar as repercussões da pós-
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modernidade na consciência e na prática individual, focando sobre as ansiedades que
modelam o sujeito contemporâneo. Na sociedade pós-moderna a liberdade de escolha
torna-se , segundo o autor, o mais essencial entre os fatores de estratificação social ,
nosso lugar sendo definido pelo o grau de liberdade que temos para escolher nossos
itinerários de vida . (Bauman 1998: 118)
Veja-se o caso de B.(45 anos), alemão, que após abrir e dirigir uma empresa de
consultoria em Berlin por 12 anos, chegando a ter 40 funcionários, hoje trabalha em
Salvador como guia de turismo. Ao chegar na Bahia em 1999 buscava mais
flexibilidade, autonomia e novas possibilidades criativas em uma atividade “diferente”.
Trazia um certo capital que investiu em parte na compra de um terreno frente à praia em
Ilhéus, visando no futuro construir um hotel. Comenta sobre as múltiplas oportunidades
que vislumbra aqui em função de sua prática profissional anterior.
Os cosmopolitas em foco constroem suas vidas possíveis localmente, sem perder a
conexão com a escala global, através dos recursos eletrônicos e do deslocamento
freqüente entre o país de origem e o de acolhida .Com respeito às vantagens diferenciais
de que podem usufruir os europeus “nômades” providos de um capital para
investimento no Brasil, no mais das vezes buscam se beneficiar da disponibilidade de
áreas territoriais para comprar e do espaço aberto a iniciativas econômicas em regiões
relativamente menos desenvolvidas como o Nordeste. Seu critério de seleção contempla
em primeira instância aspectos hedonistas como o usufruto do clima, a proximidade nas
relações humanas e um certo “provincianismo” associado ao ritmo de vida nos trópicos.
T. (40 anos) alemão, formado em um curso pluri-disciplinar de humanidades ,
administração cultural e informática, mora em Salvador desde 97 e atua como guia de
turismo. Sobre as razões para instalar-se na Bahia relata o sonho de viver no Brasil e a
atração “pela música, pela cultura, pela mistura de raças , a confusão na maneira de
viver e o tempo ameno”. Relata de um lado a sensação de “ter nascido no lugar errado” ,
de outro as compensações relativas para as dificuldades aqui encontradas, devido à
ausência de cobertura social em matéria de saúde e educação, no acolhimento afetivo
interpessoal.“Hoje, com todas as dificuldades existentes, eu não quero deixar isso aqui”.

C.( 55 anos) irlandês, que chegou ao Brasil em 1984, aos 29 anos, depois de ter
passado por um colapso nervoso por stress no trabalho gerencial em sua cidade natal e
um período difícil em Londres, comenta sobre a decisão de mudar-se para a Bahia o
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desejo de livrar-se daquele mundo com o qual não se identificava. “Foi uma fase de
questionamento. (...) O Brasil era o contato prolongado com a luz, com a cor, com as
pessoas... Daí foi a mudança, eu comecei a me sentir melhor e decidi ficar.”
A migração como impulso de errância, envolve a disponibilidade para
desterritorializar-se, na busca pelo “outro lugar”, que seja também o “meu lugar” quase
ideal, pois por algo sempre se há de sofrer. Bauman e Maffesoli ressaltam que na
Modernidade a Ordem nas sociedades européias se fez acompanhar da regulação da
conduta, da supressão das pulsões e da fixação dos indivíduos, o que resultaria no
excesso de ordem e na escassez da liberdade que constituem os “mal-estares da
civilização” apontados por Freud. O princípio do prazer reduzido à medida do princípio
de realidade e as normas conformando a realidade. ( Bauman,1998:8)
Consideremos ainda a hipótese de que o mal-estar do excesso de Ordem nas
sociedades reguladas do centro capitalista motive seus indivíduos a buscarem no “sul-
global” um maior grau de liberdade, nas sociedades “em construção”, que escapam aos
padrões de organização alcançados em suas sociedades de origem. Aqui irão se deparar,
entretanto, com outros mal-estares, como a prática da corrupção como mecanismo
integrante das instituições e relações em múltiplos níveis e a exclusão social de ampla
parcela da população, sob um regime neo-liberal e reduzida proteção do Estado.

A busca do exótico na mestiçagem do Sul global


Na experiência dos nômades-cosmopolitas europeus o “exótico” do Brasil pode ser
constituído pelo próprio modelo de convivência das culturas de classes diferentes, em
constante negociação e tensão, no processo de construção de uma sociedade
estruturalmente desigual e no entanto permeável a reacomodações. A criatividade e
originalidade no modo de viver brasileiro, apesar de todas as contradições e distorções,
continua ,aparentemente, atraindo mesmo os nômades mais experientes.
R. (62 anos) austríaco, veio para a Bahia aos 22 anos, através de uma ONG , como
instrutor técnico-metalúrgico e aqui permaneceu e tenta interpretar o Brasil à luz de sua
experiência de vida pessoal:
“Nada me tira de Salvador, não existe no mundo um lugar mais apaixonadamente louco do que Salvador,
Bahia, com todas as dificuldades. (...) Aqui se vive de sobressalto em sobressalto, você fica sem saber o
que vai ser amanhã. Isso é que é interessante, embora isso seja estressante e enervante, porque você vê
muita gente transgredindo (...) e a passividade de certas pessoas e principalmente do poder público (...) a
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falta de disciplina , coisas perniciosas que puxam prá trás o Brasil. (...) Mas eu conheci o outro lado, que
eu vivi como se estivesse no livro do G. Orwell, 1984. Então é isso mesmo, o patrulhamento ideológico é
uma miséria.”
Garcia Canclini aponta o fascínio distante que a América Latina exerceu sobre os
europeus, que aqui sempre viram o que o racionalismo ocidental reprimiu: prazeres sem
culpabilidade, relações fluídas com a natureza que a intensiva urbanização européia
sufocou e “a exuberância da natureza que envolve a história e alimenta a corrente da
vida” , que deu lugar às narrativas edênicas de artistas dissidentes europeus que se
refugiaram nos trópicos. A América Latina vista como o lugar remoto para situar as
utopias dos europeus; como um lugar onde tudo é possível, onde se vê múltiplas
maneiras de fazer fortuna ou fazer revolução impraticáveis na Europa. O autor
questiona porém se nossas sociedades seriam de fato mais livres e transgressoras ou
mais hierarquizadas e rituais até a rigidez. (Garcia Canclini 2007:82-84)

Errância e Alteridade : o desejo por outro lugar.


Maffesoli vê no mundo pós-moderno o momento em que a circulação social,
estancada pela Modernidade pela via da uniformização, do controle e do imobilismo ,
recomeça. A errância torna-se então um valor social, e o não-pertencimento a um lugar
é visto como condição para a realização de si. O autor identifica no avanço da
tecnologia da comunicação o que permite viver coletivamente experiências ocultas,
científicas, religiosas, sexuais próprias da aventura existencial e ressalta o
enriquecimento cultural ligado à mobilidade. Vê o desejo de errância como um pólo
essencial de qualquer estrutura social : uma expressão da rebelião contra a divisão social
do trabalho e a especialização, em suma, contra o embrutecimento do instituído -o
cinismo econômico, a reificação social, o conformismo intelectual.(Maffesoli 2001: 32)

O autor identifica o nomadismo contemporâneo com valores humanistas por buscar


no dinamismo, no desprezo por fronteiras - nacionais, civilizacionais, ideológicas,
religiosas, vivenciar concretamente algo de universal. O desejo do exílio, a viagem
como “doce desterritorialização” (remetendo a Baudrillard), como iniciação e
aprendizagem constante, busca de um eu aberto as dimensões do vasto mundo e às
intrusões da Alteridade. (Maffesoli 2001: 70,93)

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A errância e o transnacionalismo na contemporaneidade se expressam, entre outras
formas, na busca pela experiência da alteridade. A “busca do Outro” e de “outro lugar”
se concretiza na escolha do sujeito ocidental por deixar seu país, sua matriz cultural,
para lançar-se numa exploração existencial, através da experiência com o “diferente”,
uma mudança radical de trajetória. O diverso, constituído como exótico, torna-se um
pólo de oposição ao “centro” de referência – a Europa, enquanto o indivíduo oscila
entre os dois.

Célestin sugere que o exotismo requer a presença de uma identidade instalada, para
a qual há um “resto” identificável como “outro” e que a infra-estrutura tecnológica e
cultural do ocidente fornece a perspectiva a partir da qual a diferença (o exótico) é
percebida. E ainda, que designar o não-ocidental como exótico é partir da tradição
ocidental, mesmo se através de manobras empáticas, altruístas, ingênuas, hedonísticas,
revolucionárias, iconoclastas, solipsistas ou aventureiras, o sujeito ocidental se
identifica ou até mesmo mergulha no exótico. (Célestin 1996: 181) A existência de um
terreno sólido que constitua uma perspectiva para perceber o outro como exótico e
desejar mergulhar nele, nos remete ao papel do desejo na subjetividade contemporânea.

P. (46 anos), ex-ferroviário na França , reside na Bahia desde 1988, foi sócio de
uma Pousada em Porto Seguro por 17 anos, antes de vir para Salvador. Sobre o que o
atraiu para a Bahia , evoca a idéia exótica de Brasil, o clima e a vegetação tropicais e a
mistura de raças. Define o exotismo local como um jeito de viver, de trabalhar, de fazer
amizade, de brincar “diferente”. “Aqui eu posso ganhar menos , mas posso viver
melhor, eu me sinto mais vivo aqui.” Define o dinamismo do país pela sua composição
populacional mais jovem : “Eu me sinto bem, você não envelhece tão rápido aqui, pelo
entorno, aqui tudo é mais solto”.

A maleabilidade dos contatos sociais no Brasil, percebida pelo novo migrante


europeu, pode ser vista como um modo específico de elaborar as diferenças internas à
nação. G. Canclini sugere que o Brasil apresenta uma sociedade nacional mais disposta
à hibridação, com múltiplas interpenetrações entre os grupos sociais e contingentes
migratórios que contribuíram para sua formação. Ali as identidades seriam menos
monolíticas, sem perder sua idiossincrasia; o sujeito conservando para si a possibilidade
de várias filiações, circulando entre identidades e misturando-as. (Segato 1998:14,15)
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Nesse quadro ,há uma interrelação profunda, a identificação, a convivência possível
entre os diversos segmentos da população, sem se negar porém suas enormes
desigualdades e seus abismos entre classes e regiões. (Garcia Canclini 2007: 108,109)

A mestiçagem cultural e étnica local surge no discurso e imaginário dos nômades-


cosmopolitas europeus com força, enquanto figura que encerra a possibilidade de uma
“nova sociedade” em gestação, um “laboratório da pós-modernidade”. As diferenças
culturais associadas à classe não deixam, porém, de ser percebidas e os mecanismos de
sujeição econômica das camadas populares também, tão logo se estabeleçam as relações
de convivência e de trabalho dos sujeitos nômades com os locais.

O relato de J. (39 anos), belga-congolesa é particularmente rico para se refletir sobre


a representação da mestiçagem na construção da subjetividade, em tempos de
globalização. Chegou ao Brasil em 2001 com o marido belga (europeu), médico
vinculado a uma ONG. Com a separação e o retorno do marido para a África, J. e a filha
de 4 anos permaneceram no Brasil, por decisão do casal, apesar de ter ela na Bélgica seu
emprego assegurado e nenhuma família no Brasil. Comenta sua identificação com o
Brasil a partir de sua própria mestiçagem (filha de mãe congolesa, pai mulato e neta de
grego) , do clima e do ambiente acolhedor local. Relata sua experiência de “estar fora de
lugar” tanto na África quanto na Europa, tendo sido criada em um ambiente europeu
(paterno) no Congo belga , porém sem acesso a bens culturais e de consumo que
almejava; enquanto na Europa o clima frio e a distância interpessoal lhe faziam pensar
na África. “Você está na sua terra mas sabe que uma parte sua não é dali. Talvez isso
não seja percebido por quem está em um laboratório de culturas como é o Brasil.”

No depoimento de J. podemos identificar não apenas a liberdade de escolher onde


viver, enquanto cosmopolita munida de diferentes códigos culturais , mas o desejo de se
beneficiar do “melhor de dois mundos” no laboratório da mestiçagem cultural que é o
Brasil : acesso à tecnologia , aos bens de consumo e à informação , com o bônus do
clima tropical e da afabilidade do povo local. As fronteiras cedem lugar aqui ao
território flutuante evocado por Bauman, ao qual se adaptam as pessoas fluídas.

A importância do projeto, enquanto expressão da agência e da imaginação na


contemporaneidade, na busca do “outro lugar” e de uma vida que se quer mais
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compensadora do ponto de vista de crescimento pessoal, revela o desejo de desencadear
a mudança em si próprio para participar da mudança no mundo. A subjetividade, aqui
vista como base para a agência, veiculando ansiedades existenciais fundamentais e a
construção de um tipo específico de consciência , pós-moderna. (Ortner 2007: 375)
O depoimento de M & B remete tanto ao projeto, como à figura da mestiçagem.
M & B (40 e 41 anos), franceses, residem há 7 anos em Salvador e arredores, 3 filhos,
(18, 8 e 2 anos). Ambos formados em gerenciamento (ela de livrarias e ele de
restaurantes) comentam sobre o projeto de mudar para um país que fosse mais atrativo
que a França no sentido de humanismo, porque “lá já não existe o contato amigável
entre as pessoas, o que conta são os aspectos exteriores, a aparência ou o ter ou não
ter”. Para concretizar o projeto B. percorreu uma seleção de países – Cuba, Brasil,
Portugal,Espanha,Senegal, Ilhas Reunião, Maurício e Taiti. Como critérios de escolha
do Brasil constam : um país miscigenado, com uma perspectiva de futuro reconhecida
mundialmente, clima e atributos naturais.
Velho propõe as noções de projeto e campo de possibilidades para analisar
trajetórias e biografias enquanto expressão de um quadro sócio-cultural, sem que se
perca as peculiaridades. A noção de projeto é vista pelo autor como uma antecipação, no
futuro, de uma trajetória biográfica individual, existindo no mundo da
intersubjetividade. E ainda como instrumento de negociação da realidade com outros
atores individuais ou coletivos, tornando-se meio de comunicação para articular
interesses, aspirações para o mundo, determinado campo de possibilidades para o
sujeito. (Velho 1994: 40,101,103)
Complementarmente, as políticas de previdência social e de aposentadoria em seus
países de origem também influenciam os trajetos e projetos de vida destes europeus ,
que podem lá exercer atividades temporárias e eventualmente contar com um aporte
financeiro do Estado Social, mesmo residindo uma parte do ano no Brasil. Gozam de
relativa liberdade para optar viver no exterior, sem perder seus direitos de cidadania,
mesmo antes da aposentadoria, o que lhes permite considerar a Bahia, ou os trópicos e
sua cultura diferenciada como local conveniente para estabelecer-se.
M. (28 anos) espanhol, vive em Salvador desde 2001, onde permaneceu por 5 anos
como professor de galego ,através de convênio entre universidades. Tem uma
“tortilleria” no Porto da Barra e comenta sobre os italianos ali instalados, que
caracteriza como pessoas de meia-idade, aposentados , divorciados, que vendem um
11
apartamento por 400/500 mil euros na Europa e investem aqui em aptos e táxis , vivem
de renda e arranjam uma mulher baiana. Outros se dedicam a bares, restaurantes , à
infra-estrutura para turistas.
É necessário considerar também as diferenciações internas entre os sujeitos
nômades, que podem ser enunciadas pelos próprios entrevistados ou não. Para além das
circunstâncias individualizadoras , pode-se dizer que todos são investidores e
consumidores, mas nem todos são ou pretendem estar integrados à vida e cultura locais.
Os “nômades” estão sujeitos aos imperativos econômicos (custo de vida, regras do
mercado profissional) mas guardam certa autonomia na sua inserção local , podendo
optar por criar laços familiares que se estendam ao seu país de origem ou não. O projeto
do nômade-cosmopolita europeu se mantém em aberto, ele pode permanecer ou voltar,
a depender das conjunturas econômicas, políticas ou mesmo pessoais.
Solicitados a listar os pontos positivos e aqueles negativos relacionados à sua
experiência de vida na Bahia , que justificariam sua opção por ali permanecer, ou lhes
daria motivos para partir, os entrevistados abordaram frequentemente aspectos como a
alegria de viver, a hospitalidade, o acolhimento carinhoso às crianças, o clima, a
espontaneidade, a paisagem, a natureza e a cultura local. E entre os fatores
desestimulantes mencionaram a falta de respeito entre as pessoas, a pouca consciência
ambiental, a violência, a corrupção, o precário sistema de saúde e de educação locais,
além de uma eventual crise econômica que os afetasse fortemente. É a conjunção de
determinados fatores, entretanto, de ordem pessoal e profissional o que pode determinar
o fechamento do ciclo do exílio voluntário para o nômade-cosmopolita contemporâneo.
Na sociedade brasileira construída no imaginário europeu há lugar para migrantes
contemporâneos de diferentes tipos, variando num gradiente entre as extremidades
representadas pelo calculista de um lado, e o hedonista do outro. O primeiro mais
próximo de usufruir de vantagens relativas como investidor e empreendedor,
sintonizado com o mercado global, sem fronteiras; o segundo priorizando a experiência
existencial de mergulho na alteridade e reconstrução de si, ao mesmo tempo que
emprega seu know-how cosmopolita para garantir sua inserção local.
Sempre presente está a estratégia de fixação, sobretudo para os homens, através do
casamento, por vezes comportando relações inter-étnicas, socialmente assimétricas, que
podem eventualmente gerar suspeitas de oportunismo de ambas as partes. O “resgate da
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pobreza”, conjugado ao acesso à sensualidade atribuída aos nativos dos
trópicos,também pode se constituir para o indivíduo europeu uma porta de entrada para
a cultura local e para posteriores investimentos, pessoais e financeiros.
A adoção da “família brasileira” da mulher na incorporação do nômade à sociedade
local também é recorrente, mesmo que se siga uma separação, pois o vínculo com os
filhos continua e legitima a permanência do sujeito nômade no país. É possível também
analisar a sua inserção local considerando a conversão do capital econômico em
prestígio social, que acompanha a figura do “estrangeiro” do centro europeu e estimula
os casamentos binacionais. Retomando Bourdieu, Ong observa que há diferentes formas
de capital em jogo em um quadro transnacional de viagens e encontros transculturais.
(Ong 1999: 25)
Não se deve ignorar, no entanto, que a experiência de encontro com o Outro, como
mergulho no exótico, implica uma disponibilidade por parte do indivíduo para desligar-
se dos valores culturais referenciais europeus, em benefício do que está se gestando
“aqui e agora”, e que passa pela subjetividade. O que nos remete ao desafio, proposto
por Constable, de dar conta das desigualdades estruturais e dos fatores sócio-culturais
envolvidos nas opções de homens e mulheres, sem subtrair às pessoas sua
individualidade, emoção e agência. (Constable 2005: 225)
A busca por “outro lugar”, pelos sujeitos nômades europeus, envolve as fantasias
sobre o Outro e sua cultura exótica, que no comércio global de bens diferenciados,
extraídos da cultura local e adaptados à demanda nos países europeus centrais, aparece
veiculada pela música, pela dança , pela religiosidade popular e pela capoeira
brasileiras, como expressões de uma mestiçagem cultural carregada de vitalidade e auto-
renovação permanente.
S. (46 anos) francês, ex-carteiro em Paris, veio à Bahia em 1988 , onde reside desde
2000; pesquisador independente, porém vinculado ao Institut d’Hautes Études de
l’Amérique Latine , é casado com uma socióloga baiana. Relata o contato prévio com a
música brasileira através de amigos e o interesse pela percussão que o trouxe à Bahia e
o levou ao Candomblé ; já tivera entretanto contato com o exótico” em países africanos.
Os nômades-cosmopolitas envolvidos com o setor de Turismo e lazer voltados para
seus conterrâneos, lhes oferecem um vislumbre da “doce desterritorialização”, um
desligamento parcial dos vínculos protetores e opressores da sociedade de origem, que
testemunham com sua opção por habitar o “outro lugar’ mítico. Alguns depoimentos
13
demonstram que , ao justificar sua migração para o Brasil, se estabelece uma oposição
entre sua cultura de origem - marcada pela liberdade vigiada da sociedade e do Estado
sobre o indivíduo- e a cultura local, assentada em relações pessoais mais próximas ,
normas de comportamento flexíveis e uma margem de ação e de expressão individual
relativamente maior.

Reflexos do capitalismo tardio no nomadismo contemporâneo

Ainda que pouco expressivo numericamente, visto seu caráter individualizado, o


movimento de nômades-cosmopolitas europeus para o Brasil pode nos sugerir que as
representações que os sujeitos constroem e que determinam sua decisão por migrar e
onde se instalar, tem uma participação direta do regime de trabalho, como regulador da
vida social. Tal migração pode ser vista como uma resposta às demandas estressantes do
mercado de trabalho capitalista nos países centrais, da parte de indivíduos dotados de
determinados recursos, que lhes possibilitam tornar-se cosmopolitas, ou “cidadãos
flexíveis”. Por outro lado, certas condições de acolhida no país hospedeiro estimulam
investidores nômades, com certo espírito aventureiro, a ocupar espaços ainda vagos e
explorar possibilidades na economia local não efetivadas pelos autóctones e tampouco
estimuladas pelo Estado.
Entre os 11 entrevistados , três (2 alemãese 1 irlandês) relatam terem sofrido alto
grau de stress profissional, identificado como colapso nervoso ou labirintite/tinitus, que
os fez mudarem radicalmente seu ritmo de vida, motivando a saída de seu país. Ao
chegar, uma reorganização pessoal, mobilizando as potencialidades de cada indivíduo,
se mostra necessária durante um período de adaptação ao mercado de trabalho e ao
panorama de investimentos local. Flexibilidade, disponibilidade, iniciativa e abertura
para decifrar os códigos culturais que regem as relações interpessoais e de trabalho,
tornam-se imprescindíveis à inserção do sujeito nômade. Custos e benefícios são
colocados na balança, onde a qualidade de vida pode pesar mais do que o alto nível de
rendimentos e um padrão de consumo elevado.
F. (46 anos) alemão, conheceu o Brasil em 94 e mudou-se em 2002. Foi casado
com uma baiana que já residia na Alemanha ao se conhecerem. Ex-executivo de
companhias seguradoras, hoje atua como guia de turismo em Salvador. Relata a
ocorrência de um pequeno derrame devido ao stress, atuando em marketing e
propaganda , apesar de satisfeito com o trabalho que desempenhava. Decide “começar
uma vida nova” no Brasil, com algumas reservas financeiras, e se instala frente à prais
em Stella Maris. “Ganho 10% do que eu ganhava na Alemanha, o que dá bem pra aqui,
em comparação com antes , está bom. Estou perto da natureza e gosto do que faço.”

Ao tratar da subjetividade contemporânea Ortner resgata em Sennett os tipos de


subjetividade produzidos sob o regime de flexibilidade, nas condições de trabalho no
capitalismo tardio, que tem efeitos profundos na consciência do indivíduo. Jornadas de
trabalho sem especificação de horário, impulsionadas pela competitividade do meio
profissional, podem levar o indivíduo ao limite de sua resistência física e mental
(Ortner 2007: 396) A transferência de capital através do investimento em um
pequeno negócio ou imóveis se efetiva como um projeto de “qualidade de vida” no
discurso dos nômades-cosmopolitas europeus, que pode comportar uma maior margem
de controle do próprio tempo, o acesso a locais mais sadios próximos à natureza para
moradia ou mesmo a possibilidade de estreitar contatos com populações diferenciadas
pela cultura de classe ou da localidade , vista como enriquecedora existencialmente.

A presença dos sujeitos nômades europeus no sul-global pode também ser


entendida como um reflexo dos efeitos da descolonização ocorrida a partir da década de
60 passada , sobre os países metropolitanos. A busca de qualidade de vida no discurso
de alguns entrevistados remete por vezes à questão dos conflitos “em casa” relacionados
à presença de comunidades de imigrantes, expressos como um choque cultural que
repercute na educação dos filhos e na própria auto-consciência de identidade nacional.

B. (45 anos) ex-empresário em Berlin, comenta sobre a relação com o “Outro”


interno, representado pelo imigrante, sobretudo turco, como problemática em termos de
adaptação e assimilação à sociedade alemã, formando guetos lingüísticos e culturais,
que imprimem sua marca no sistema público de educação. “O bairro onde eu morava foi
cercado por comunidades turcas. Uma turma na escola tem de 25 a 30 alunos e 60% a 80% é de turcos, e
a metade deles nem fala alemão.(...) Aí a qualidade do ensino vai prá baixo.(...) Quando minha esposa
(brasileira) ficou grávida, pensei no futuro de minha filha: o que ela vai ter aqui em 20 anos ?”

R. (47 anos) italiano, residente desde 1990, gerente de restaurante na Barra, relata o
sentimento de “ser italiano” resgatado no Brasil, por falta de identificação com a Itália
atual , devido às transformações sofridas nas últimas décadas com a chegada de
15
populações pobres do leste europeu. “A Itália piorou muito nesses últimos anos(...) eu
não me reconheço mais no meu país.”
A respeito das transformações ocorridas nos países europeus nas últimas décadas
do século XX , Garcia Canclini observa que o compromisso histórico entre os
“diferentes” dentro da nação sob o Estado do Bem-estar , que garantia a todos os
cidadãos o acesso aos bens básicos e à segurança social foi abalado, a partir da abertura
das fronteiras para a unificação política e econômica européia e a entrada maciça de
imigrantes europeus do leste, africanos e latinoamericanos , tornando incertos os modos
de imaginar o nacional, o regional e o universal. (G. Canclini 2007:103)
Para os sujeitos nômades em estudo a possibilidade de administrar os próprios
recursos, livres de pesadas imposições tributárias e das políticas sociais de integração
das populações imigrantes nos seus países de origem, quando posta na balança, pesaria
mais que o ônus do convívio com as desigualdades sociais no Brasil, a falta de
segurança pessoal e a ausência de cobertura social.

A referência ao Brasil como “o país do futuro”, onde podem administrar com maior
liberdade suas próprias condições de vida , sugere em seus discursos uma projeção do
desenvolvimento local pela via neo-liberal, com reduzida participação do Estado e uma
ampla margem de barganha para o capital nas arenas político-econômica e sócio-
ambiental, deixando para o futuro a resposta às demandas por desenvolvimento humano
drasticamente contidas. Em seus países de origem no entanto tais demandas são
inadiáveis e incidem de imediato na distribuição de encargos e vantagens sociais.

Algumas considerações finais


As biografias individuais dos sujeitos nômades europeus vistas contra o panorama
da mudança global, na qual se inserem os movimentos populacionais no quadro da
União Européia e o reordenamento social nos países metropolitanos, revelam uma
flexibilização da referência identitária nacional e a emergência da imaginação dos
sujeitos na busca de posicionamentos econômicos alternativos, lançando mão do
cosmopolitismo.
A migração dos nômades-cosmopolitas europeus em direção ao sul-global não deve
ser vista tão somente como efeito da imaginação estimulada pela comunicação
globalizada, mas como uma expressão da agência de sujeitos que assumem a cidadania
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flexível como estratégia para realizar seu projeto de vida, impulsionados em certos
casos por um questionamento dos padrões culturais de referência e pelo fracionamento
identitário característico da pós-modernidade, tornando-se “pessoas traduzidas”.
A vida dos nômades contemporâneos pode ser dita “imaginada”, posto que pautada
em uma reformulação e reorganização dos termos que a compõem, atribuindo pesos
diferentes à qualidade de vida, à importância dos contatos sociais e da estabilidade
profissional, em relação aos anteriores à migração. A possibilidade de abrir novos
campos de atuação e investimento, longe do estrito controle estatal ou de ter acesso a
novas experiências profissionais e pessoais, sob um regime de controle social mínimo,
são fatores que se combinam com o exotismo na imaginação e fabricação da vidas dos
sujeitos cosmopolitas europeus nos trópicos.
A dimensão existencial envolve não apenas a “construção de si” no espelhamento
das culturas que a busca do Outro propicia (Hannerz), mas o “prolongamento de si” ,
quando se dá a projeção do futuro dos filhos, sob parâmetros cosmopolitas: a dupla
nacionalidade, o manejo de códigos culturais diferentes, a relativização de valores e a
flexibilização de práticas exigidos no mundo flutuante da pós-modernidade, no dizer de
Bauman.
Considerando que na contemporaneidade a metáfora subjacente ao discurso da
globalização econômica e cultural seja a da flexibilidade e fluidez, pode-se dizer que ela
contribui, por um lado, para as ansiedades existenciais do indivíduo e por outro o
envolve numa teia de conectividade mundial, produzindo nele uma “consciência pós-
moderna” de auto-superação que mobiliza sua agência.
Romper os limites da consciência nacionalmente referenciada pode ser visto como
um traço marcante dessa consciência pós-moderna, destacada por Ortner como uma
configuração específica de ansiedades ligadas ao capitalismo tardio. À medida que as
informações transitam livremente através de fronteiras físicas e sociais, o indivíduo é
instado a alargar seus horizontes, agindo sobre o próprio destino sob o apelo da
mobilidade. Não se trata aqui de ignorar a instância reguladora dos Estados sobre suas
fronteiras, visto ser essa uma condição de sua própria existência, mas de reconhecer o
surgimento de novas disposições que impelem o sujeito a exercer sua agência, para além
do habitus que o condiciona.
Na contemporaneidade a “apropriação do mundo” pelo indivíduo se efetiva através
do acesso à informação sobre a gama de possibilidades de definir o próprio destino, à
17
sua disposição. A cada um cabe a responsabilidade de romper com os próprios limites
de consciência, de formação, de inserção social. A “construção-de-si” torna-se um
imperativo nas sociedades globalizadas, em que o ethos comunitário cede lugar ao ethos
nômade- o indivíduo em constante transformação , cidadão do “mundo flutuante”.
O despertar do desejo por “outro lugar” e outras formas de viver, propiciado pelo
acesso eletrônico e mediático, põe aos indivíduos no centro do sistema capitalista a
possibilidade de projetar suas vidas sobre um mapa em que os limites territoriais são
colocados “em suspenso” pelo sujeito cosmopolita. Uma errância estimulada pelas
transformações internas nos países centrais, que exigem da sociedade e do Estado uma
acomodação, vai contribuir para uma migração de capital e de indivíduos para certas
áreas emergentes sob a influência do capitalismo tardio, no sul global.
Enfim, os dados disponíveis e as reflexões teóricas a que se teve acesso, nos
permitem pensar o movimento dos nômades-cosmopolitas contemporâneos europeus
em direção ao Brasil, como uma estratégia de posicionamento múltiplo e manobra dos
próprios destinos que buscam eludir os regimes de regulação na construção do sujeito,
constituindo uma expressão da subjetividade pós-moderna.
Os motivos pelos quais indivíduos identificados com a “cultura da mobilidade”,
prenunciada pela ruptura de valores da década de 70, mas efetivada pela globalização,
vem se deslocando em direção ao Brasil, nos leva a arriscar algumas hipóteses. Seria em
parte por rejeitarem o excesso de obrigações e de garantias sociais de suas sociedades de
origem, excessivamente reguladas pelo Estado, buscando recuperar no sul-global
tropical o princípio do prazer e um senso de liberdade pessoal, embotados pelo controle
social institucionalizado nas sociedades européias?
A busca da alteridade, na convivência com a incerteza e a desorganização relativas
com que ali se deparam, poderia representar um desejo de desconstrução do seu próprio
referencial sócio-cultural, para construir algo novo? Criar os filhos nos trópicos, livres
das excessivas regulamentações sociais e da forçosa adaptação ao novo panorama étnico
“em casa”, com a possibilidade de distanciamento cultural e oportunidade de exercer o
próprio empreendedorismo, pode ser muito atraente para o sujeito nômade.
Dotados de uma flexibilidade cosmopolita, associada à cidadania “mundializada”,
os europeus migrados nas últimas 3 a 4 décadas que vemos na Bahia, extraem do
movimento vantagens relativas, pois podem estar uma parte do ano no Brasil e outra na
Europa. Transitam entre dois mundos e transferem capital financeiro e cultural de um
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lado para o outro, buscando novos campos de investimentos para seus excedentes em
uma sociedade pouco regulada nas franjas do sistema global, onde vislumbram um
amplo leque de oportunidades.
Essa racionalidade instrumental é ao mesmo tempo revestida de um apreço pela
diversidade cultural, pelo “outro” exótico e de certo modo complementar. E mesmo face
às contradições sociais inerentes às sociedades herdeiras do colonialismo, sujeitas à
lógica, por vezes perversa, da globalização econômica e cultural, elas continuam ainda,
aparentemente, a se constituir em um “objeto perfeito de desejo” para o homem europeu
– o lugar da fantasia ocidental sobre a alteridade e a possibilidade de se experimentar
algo de novo, em outro lugar.

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ABSTRACT- This paper focuses on the constitution of new dispositions and


subjectivities rising in the contemporary scene which motivate western subjects
(europeans specifically) to migrate from the central countries of the economic world
system towards the “global south” ( Bahia/Brazil). It is assumed that imagination and
agency play a significant role in the making of the life projects of such individuals,
leading their choice for mobility , detachment from a territory and a flexible
citizenship. It also discusses the global appeal of Brazil in the european imaginary,
defined by the ethnical/cultural mixture (métissage), the mythical figure of “starting
over again” in a different place and by the “sensualization” of the tropics, which
instigates the investigation on the representational field within which circulate, in the
global arena, the ideas of exoticism and their interfaces with social inequalities.

Key-words: transnationalism, flexible citizenship, cosmopolitanism, subjectivity.

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ANAMARIA MORALES – Doutoranda em Antropologia pela Faculdade de Filosofia e


Ciências Humanas - Universidade Federal da Bahia.
Professora de francês no curso de extensão do Instituto de Letras da UFBA.

Rua Macaúbas,634 – Rio Vermelho , Salvador – Bahia cep 41940-250


morales@ufba.br / anamaria.morales@uol.com.br

Publicações:
- MORALES, Anamaria. 1988. “O afoxé Filhos de Gandhi pede paz.” In: João José
Reis (org.), Escravidão e Invenção da Liberdade. São Paulo: Brasiliense. pp. 264-274.

- MORALES, Anamaria. 1991. “Blocos Negros em Salvador: Reelaboração cultural e


símbolos de baianidade.” Cadernos do CRH (UFBA). Suplemento: 72-92.

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