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VOl.
Armando Vidigal
OUveiros S. Ferreira
Carlos de Meira Mattos
O reatamento com Cuba
Sonia de Camargo
Clóvis Brigagão
Paulo Wrobel
O Brasil e a América Central
Nicolas Bóer
Dissuasão nuclear e moral católica
Cr$ 15.000
Wrobel ,258
BIBLIOGRAFIA
Se, por um lado, constroem sua própria imagem a ser mostrada à socie- Nada ilustra melhor essa sensibilidade que as modificações curriculares no
dade, por outro, a imagem só se mantém se a sociedade, como um espelho, a ensino militar ao longo dos tempos 2, A história do Exército brasileiro está
reflete de volta. Este movimento especular confere à Força Armada um tipo entrelaçada com modificações no ensino militar que correspondem a momentos
de legitimidade da qual não pode prescindir. de crises na sociedade 3. Nossos "momentos históricos" são, portanto, os mes-
Ampliada em grau desmedido, estrategicamente orientada, a função militar mos, como diria o Conselheiro Acácio.
~o longo desses 20 anos não foi exercida com competência. Injustiça, violência, Oscilando entre um conhecimento especificamente técnico e outro mais abran-
msegurança, arbitrariedade, dilapidação do bem público estão hoje associados, oente voltado para uma formação geral, as modificações do currículo militar
como nunca o foram em nossa história, ao desempenho profissional dos mili- ~xpr;ssam a tensão permanente entre dois modelos de profissionalização que se
tares no governo. excluem mutuamente. No entanto, esta oscilação pendular 4 revela que ambos
Imagino que, diante da imagem que lhe é devolvida, a corporação militar es- permanecem como alternativas sempre à disposição, de acordo com as necessi-
teja a se indagar estarrecida: que Exército é este? Imagino também que a recusa dades institucionais de sobrevivência, o que equivale a dizer, de conquista ou
da corporação em se identificar com esta imagem tenha provocado cisões pro- preservação da autonomia da instituição.
fundas em sua coesão interna. E de se esperar, por isto, que em nome da Há, contudo, uma diferença de fundamento entre os dois currículos, ponto
própria sobrevivência ela se concentre agora num esforçO' supremo para recons- de partida para qualquer reflexão sobre o papel dos militares, seja ela feita por
truir uma identidade ameaçada que lhe traga de volta a legitimidade perdida. militares, pela ESG ou pela sociedade.
O caminho para a legitimidade começa com o desenvolvimentO' de uma O modelo técnico-profissional se orienta pela idéia de que a definição do
ética profissional capaz de reconhecer que as habilidades dos militares devem modelo profissional militar é um problema especificamente militar, cujas solu-
ser exercidas em tarefas socialmente responsáveis, tendo comO' beneficiária a ções devem ser buscadas dentro e a partir de características estruturas da pró-
Nação como um todo.
pria organização, excluindo qualquer referencial externo. O o~tro ~odelo, que
A difusão dessa ética dentro da corporaçãO' se dá através do ensino militar. amplia as perspectivas da função militar, parte do pressuposto illlplíclto de que,
É aí: que entra a Escola Superior de Guerra. fazendo parte da sociedade, de um mundo político, o projeto de, profissionali-
zação deve levar em conta esses condicionamentos externos. A sombra da
Definida comO' um laboratório onde são pensadas questões referentes à fun- oscilação entre projetos "excludentes" acobertaram-se clivagens na elite militar em
ção e ao papel das Forças Armadas, o principal efeito dos trabalhos da ESG, função de suas relações com as elites no poder e seus projetos políticos.
embora menos conhecido, foi o de orientàr ética e politicamente o ensino militar.
Todos nós sabemos que temos feito mais uso das armas que do voto para
Basta examinar os currículos da Academia Militar das Agulhas Negras 1
para avaliar a influência da Doutrina de Segurança Nacional no treinamento dos fazer nossa história política. Embora poucos se identifiquem como sujeitos
cadetes. Nela inspirados, os currículos ensinaram-nos a ver o mundo e a Histó- desta história, ela está aí e não me deixa mentir.
ria através de uma ótica parcial, em função dos interesses e objetivos da insti- A constância dO' apelo às armas acabou por legitimar a função de inter-
tuição militar. Ótica e ética se articulam em uma proposta de desempenho venção no processo político. A intervenção foi a solução histórica conveniente
profissional que exclui toda a complexidade da sociedade à qual a competência às elites que se alternavam no poder e à própria instituiçãO' militar que, evi-
militar também deveria servir, tando a participação na vida política - vista como ameaçadora à coesão in-
Eqüidistante das três Armas, a ESG poderá articular o esforço da institui- terna -, permitia aos militares o desempenho de um papel político.
ção como um todo, de forma integrada; o fato de não ser ligada diretamente A diferença inicialmente apontada entre os dois projetos se diluiu a parti!
à instrução das tropas minimiza os possíveis efeitos instabilizadores na estrutura de 64, quando os currículos de formação geral passaram a se preocupar não
do sistema de ensino, aos quais a instituição é muito sensível; finalmente, depo- mais em levar em conta a inserção da instituição na sociedade mais ampla,
sitária do acervo do pensamento militar acerca de suas relações com a socie- mas a sua participação na estrutura de poder, no Estado-governo.
dade, a ESG está habilitada a retirar mais uma vez, da experiência histórica
das Forças Armadas, as lições que lhe permitam compatibilizar interesses e obje- Na década de 70, os objetivos da formação dos militares são assim expli-
tivos institucionais com os interesses, objetivos e aspirações da sociedade à qual citados:
deve servir. E aqui reside o x do problema que parece mais difícil do que é.
"Ao longo de toda sua carreira, o seu preparo técnico-profissional o capa-
Embora parecendo um corpo blindadO', a instituição militar não o é. citará ao eficiente emprego de força sob seu comando, em uma ação repressiva,
Arrisco-me a dizer que ela é mais sensível ao que ocorre em sua volta que as se a Segurança Nacional assim o exigir, e sua formação cultural sócio-polític.a o
demais inlStituições sociais. É como se, sentinela, estivesse sempre alerta. faz igualmente hábil a utilizar esta mesma força, em ordenada ação prevenÍlva,
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para contornar a possibilidade de desfecho de críticas situações sócio-polítíco-mi- É verdade que os sinais ainda são fracos. Tanto que vale a pena enfatizar
litares" ... 5 alguns aspectos. Ressalto de início a substituição da idéia de que o poder
deve estar submisso à orientação do Estado pela idéia de que ele deve ser
A ESG desempenhou um papel fundamental na institucionalização acionado pela vontade nacional. Embora a Escola se mantenha na linha de
modelo. A princípio inteiramente desvinculada do sistema de ensino, tornou-se atribuir às elites o papel de captar, interpretar e difundir esta vontade nacional,
a peça fundamental para a implantação sistemática desse projeto. através da explicitação dos "objetivos autênticos" da Nação, ela mesma incor-
Os resultados dessa experiência certamente levaram-na a repensar sua porou à sua doutrina a presença de um ator muito mais amplo, capaz, só ele,
doutrina. de expressar a vontade nacional. Este ator aparecerá novamente em sua expli-
citação da idéia de democracia - a opinião pública.
Podemos apontar alguns sinais de que a ESG está envolvida nesse esforço Mas o sinal mais evidente de que a ESG se está transformando a si pró-
há algum tempo. São pequenas transformações no conteúdo dos conceitos dou- pria num toar de force essencial à sua nova tarefa é a orientação que parece
trinários relativos a Poder Nacional e Objetivos Nacionais Permanentes.
estar disposta a imprimir em seus trabalhos. Desde sua fundação até a época
em que estudei minuciosamente seus currículos e programas, por volta de 1978,
Em 1971, para a ESG, o Poder Nacional seria "a expressão integrada dos a ESG dizia fundamentar seus trabalhos em "princípios, isto é, conclusões que
meios de toda ordem de que dispõe efetivamente a Nação, numa época consi- são aceitas como verdade" . " Seus métodos e didática se preocupavam funda-
derada, para promover sob a direção do Estado, no âmbito interno e externo, mentalmente em moldar informações, conhecimentos e opiniões dos que por lá
a consecução ou manutenção dos Objetivos Nacionais" .. , Em 1981 a ESG passavam, encaixando-os nestes princípios.
pensou o Poder Nacional como "a expressão integrada dos meios de toda ordem
que dispõe a Nação, acionados pela vontade nacional para conquistar e manter A Escola sempre foi clara no que dizia respeito à validação de seus prin-
interna e externamente os Objetivos Nacionais" 6. cípios. Não importava se fossem verdadeiros ou falsos. Importava antes de
tudo sua instrumentalidade e articulação lógica em função do projeto da insti-
Como se sabe, ao longo desses anos, Objetivos Nacionais nos foram im- tuição. O prefácio do Manual Básico de 1983 subverte esta orientação:
postos como sendo de Segurança e Desenvolvimento. A argumentação interna,
na Escola, acerca destes dois objetivos, parece no entanto ter mudado de ma- " ... o sentido da expressão 'doutrina' assume, na ESG, um colorido espe-
neira significativa. Se em 75 estes objetivos eram colocados como síntese de cífico. Não se trata de um sistema fechado de conceitos, métodos, processos,
nossas aspirações, excluindo-se qualquer outro 7, em 1983 a argumentação muda, normas e valores aceitos como verdade acabada e indiscutível, mas, ao contrá-
e vale a pena reproduzi-la no que interessa: rio, um sistema aberto aos influxos das mudanças sociais e, por isto mesmo,
capaz de conciliar a herança do conhecimento anterior com as novas posturas
. .. "O objetivo-síntese pode, com efeito, ser enfocado sob dois critérios que a Nação vem assumindo".
(Segurança e Desenvolvimento) . " (mas) a vida de uma nação consiste, sobre-
tudo, em manter os valores, ampliando e enriquecendo cada vez mais a com- A natureza instrumental da doutrina permitia - como se pode observar
preensão de seu significado, ao mesmo tempo que os aplica adequadamente a em sua evolução - mudanças de ênfase e mesmo de conteúdo dos conceitos.
circunstâncias novas". . . 8 Eles têm plasticidade e se amoldam a conjunturas novas. Por isto mesmo a
amplitude das modificações varia. Como já disse Alexandre Barros, "outra
A concepção de Democracia como Objetivo Nacional Permanente foi tam- sociedade, outro Exército" 9, Mas essa nova concepção da doutrina promete
bém explicitada: "Para os brasileiros a Democracia como Objetivo Nacional alterações significativas. Disposta agora a pensar, a refletir, a Escola parece
Permanente tem dois significados essenciais: refletir as mudanças que a sociedade inteira está tentando. Para permanecer
deverá modifiçar-se, "vivifica da pelo sopro da realidade social". Mas nada será
1 . busca de uma sociedade que se caracterize pelo respeito à dignidade como antes.
de pessoa humana; Há um tom hobbesiano quando justifica a adoção de Objetivos Nacionais
definidos por ela própria, como "estímulo à ação coletiva" e (criação) de "um
2. adoção de um regime político baseado nesses valores e que se carac-
universo selllântico comum ao povo e governo", permitindo a este aglutinar
teriza fundamentalmente:
esforços populares em .torno dos objetivos da Nação, e àquele um referencial
a. pelo aprimoramento de representação política e da opinião públi- com que avaUar o desempenho governamental 1Q • .
ca, bases para a legitimidade das instituições; De qualquer forma, as modificações, em processo desde 83 e possivelmente
b. adequação das instituições aos reclames da realidade nacional". desde antes, mostram uma evolução clara. Na concepção de poder, na aceita-
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