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Kerry Allyne
Kelly era rude, não gostava dela e estava comprometido com outra, Paige
sabia.
Título original:
"BINDABURRA
OUTSTATION'
Depois que a chuva passou e que as primeiras estrelas surgiram no céu, entre as nuvens ralas
sopradas pelo vento, Paige saiu do bar do único hotel em Tingala e decidiu dar uma volta para conhecer a
cidade. Não havia, contudo, muita coisa para além da rua larga que atravessava o centro de um lado ao
outro. Mas depois de três dias de viagem na direção do Volkswagen apertado, Paige estava necessitando
urgentemente de um pouco de exercício.
A viagem tinha transcorrido normalmente até o momento em que ela topou com a tempestade
que desabou à tarde. Ao ser surpreendida pelas chuvas fortes a uns sessenta quilômetros de Tingala, tudo
mudou, de repente. Houve um momento, inclusive, em que Paige considerou seriamente a possibilidade
de passar a noite na estrada, dentro do pequeno Volks atolado até o capo num dos inúmeros lamaçais que
surgiram de uma hora para a outra. Felizmente chegou ao seu destino antes do anoitecer.
Com uma careta de desagrado por ter de desistir do passeio noturno, Paige levantou as bainhas
da calça e voltou cautelosamente para o hotel, onde limpou as solas dos sapatos num raspador antigo que
havia na entrada.
— As ruas estão muito enlameadas para se andar a pé — comentou o dono do hotel, na
portaria. — Ainda vai levar algum tempo para o chão secar completamente.
— Desisti do meu passeio — disse Paige com um sorriso. — Resolvi voltar antes de me
esparramar na lama. É sempre assim quando chove?
— Acho que sim. Faz pouco tempo que estou aqui. Eu venho do litoral. Mas, pelo que ouvi
contar, as estradas ficam intransitáveis durante a estação das chuvas.
— Não me diga! — exclamou Paige com ansiedade. — Será que não vou poder continuar
minha viagem? Ou você acha que o tempo vai melhorar?
— Olhe, não posso adiantar nada, ainda mais que não estou acostumado a viajar por estas
estradas do interior. Mas conheço um homem que poderá lhe dar todas as informações que desejar. Ele
chegou hoje à tarde, do norte. Veio até aqui comprar mantimentos para a Fazenda Agrícola de
Bindaburra.
— Você quer que eu chame esta pessoa para ela lhe dar uma orientação?
— Seria ótimo.
O dono do hotel voltou-se para o fundo da sala.
— Ei, Kelly! Você tem um minuto livre? Esta moça aqui deseja conversar com você.
Paige ouviu o ruído de uma cadeira sendo afastada e, logo depois, os passos pesados que
atravessaram a sala.
— É esta moça que deseja saber como estão as estradas do interior.
Paige lançou um olhar de relance para o homem de botas que se aproximou dos dois com o
andar indolente. Era alto, forte, de ombros largos, e usava uma camisa xadrez e calça de brim justa no
corpo. Tinha os cabelos pretos usos e dois olhos muito vivos. Paige afastou os cabelos da testa, com um
gesto nervoso, quando Kelly a observou atentamente, em silêncio. A presença dele tinha alguma coisa
inquietante que a deixou imediatamente tensa.
— Desculpe incomodá-lo, mas eu estava pensando em viajar para Greenvale amanhã e queria
saber como estão as estradas daqui para lá.
— Vocês me dão licença? — disse o dono do hotel. — Estão me chamando na sala. Até mais
tarde.
— Muito obrigada — disse Paige ao ver o dono do hotel afastar-se em direção à sala.
— As estradas estão péssimas — disse Kelly com o rosto impassível. — Eu não aconselharia
você a usá-las.
— Você acha que não é possível continuar viagem depois da chuva de hoje? — insistiu Paige,
sem se deixar abalar pela resposta dele.
— Acho muito difícil. A não ser num jipe com tração nas quatro rodas.
— Mas será que as estradas não vão melhorar até amanhã? Pelo jeito as chuvas passaram...
— Tem certeza?
— Esta é a estação das chuvas. Vai continuar a chover durante dias ou semanas. Você tem
alguma coisa importante para fazer em Greenvale?
— Eu e algumas amigas fomos convidadas para assistir às corridas da primavera e tomar parte
no baile anual que se realiza lá. Foi Stuart quem nos convidou pessoalmente para a festa!
— Stuart...
— Conheço. Você está viajando sozinha pelas estradas do interior? Não tem medo de que lhe
aconteça alguma coisa?
— Foi. Eu resolvi ir à festa de qualquer maneira. Sempre quis conhecer o interior e aproveitei
a oportunidade.
— E agora você está na dúvida se deve prosseguir ou voltar para trás?
— É. As festas só vão começar na semana que vem e até lá eu tenho tempo para decidir o que
vou fazer. Talvez fique mais alguns dias aqui, até as estradas secarem.
— Quanto mais tempo você ficar aqui será pior. Dentro de alguns dias todas as estradas
estarão intransitáveis. Tanto as do norte quanto as do sul, por onde você veio.
— Não brinque! — exclamou Paige com ansiedade. — Essas chuvas não vão parar nunca?
— Tão cedo, não. Como eu lhe disse antes, estamos na estação das chuvas. Chove sem parar.
Durante dias, semanas...
— Eu moro no interior e tenho um veículo apropriado para andar na lama — disse Kelly,
apontando para o jipe que estava estacionado diante do hotel, coberto de lama dos pneus até o teto. —
Você não pode comparar seu carrinho, baixo, com este jipe. As estradas vão estar inundadas dentro de
alguns dias...
— Mas agora não vão subir mais. A chuva parou — insistiu Paige com obstinação.
Kelly deu um sorriso e balançou a cabeça com um gesto indolente.
— Acredito. Mas isso não é motivo para voltar do meio do caminho. Eu prometi a Stuart...
— Quer um conselho? Volte enquanto é tempo. Isto não é lugar para moças, muito menos
desacompanhadas.
— Sempre ouvi dizer que as pessoas do interior eram simpáticas e hospitaleiras. Você, pelo
visto, é uma exceção...
— Se você não quer ouvir meu conselho, não posso fazer nada. Mas depois não se queixe de
que eu não avisei...
Que sujeito antipático!, pensou Paige com irritação. Só ele tinha o direito de andar pelas
estradas do interior?
— Bem, de qualquer maneira, muito obrigada pela informação. Vou lhe mandar um cartão
postal de Greenvale.
No momento em que Paige passou por ele, ao lhe dizer essas palavras mal-humoradas de
despedida, Kelly segurou-a pelo pulso.
— Eu estou falando sério. As estradas vão estar intransitáveis nos próximos dias. Se você
quer viajar, tome a direção sul, de onde veio. Em qualquer outra direção você terá problemas. Essas
chuvas estavam sendo esperadas há várias semanas.
Paige estava tão furiosa com o tom da conversa que não encontrou palavras para responder. Em
vez disso, soltou o braço com um gesto brusco e atravessou a sala em direção ao seu quarto. Foi somente
depois que bateu a porta com toda a força que tomou consciência de sua irritação. Estava com tanta raiva
dele que bateria a porta uma meia dúzia de vezes antes de satisfazer completamente sua agressividade.
Kelly não apenas tinha dado a entender que ela era uma desmiolada por andar sozinha pelas
estradas do interior, como também que não era bem-vista ali, por ser uma moça da cidade que não tinha o
menor conhecimento dos costumes da gente do campo.
Paige acordou cedo na manhã seguinte e a primeira coisa que fez foi olhar para o céu através
da janela do quarto. O tempo estava firme, claro, e não havia nenhum indício de que fosse chover mais
tarde. As únicas nuvens que havia no céu eram ralas, esgarçadas, muito altas, sinal de bom tempo. Além
disso, a névoa úmida que subia do solo indicava que o sol quente estava começando a evaporar a umidade
do dia anterior. Kelly enganara-se redondamente nas suas previsões meteorológicas! Ela ia cair na
gargalhada na cara dele quando o encontrasse à mesa do café.
No entanto, depois de tomar banho e vestir a roupa esporte que usava para viajar, Paige não
escondeu sua frustração ao entrar no salão do hotel e constatar que todas as mesas estavam vazias. Não
havia o menor sinal de Kelly. Após tomar o café em silêncio, ela se dirigiu à portaria, onde um rapaz de
uniforme azul e gravata preta anotava alguns nomes num livro grande de registro.
— Bom dia, Andy.
— Kelly?
— É.
— Ele saiu hoje de madrugada. Disse que tinha muito trabalho na fazenda e que não queria
perder mais tempo na cidade.
— Ah, que pena! — murmurou Paige, ligeiramente frustrada. — Eu queria conversar com ele
sobre as previsões meteorológicas. O que você acha do tempo, Andy? Vai chover ou o tempo firmou?
Será que as estradas vão secar rapidamente depois das chuvas de ontem?
— Tenho a impressão de que é meio difícil chegar a Greenvale nesta época do ano.
— Não, as chuvas de ontem foram fichinha. Eu digo isso por causa dos aguaceiros torrenciais
que estão caindo no norte, em Queensland.
— Não, nunca vi. Essa será uma experiência nova para mim.
— Exatamente. Aliás, esta também é a opinião de Kelly. Ele me disse que as estradas estarão
intransitáveis dentro de alguns dias. Por que você pergunta? Está querendo mesmo assim continuar
viagem?
— Que remédio! Não tenho outra escolha. Eu não vou voltar do meio do caminho, quando
falta apenas mais uma centena de quilômetros para chegar ao meu destino. Afinal, Greenvale não é tão
longe assim.
— Estou disposta a tentar a sorte — disse Paige com um sorriso. — Vamos ver no que dá.
— Eu lhe desejo boa sorte — exclamou Andy com um aceno de mão.
Depois de guardar a mala no carro, Paige despediu-se do dono do hotel, que estava lendo o
jornal da manhã na sala de espera, e rumou diretamente para o posto que ficava na esquina, a fim de
abastecer o carro de óleo e de gasolina.
— Você me limpa também o vidro da frente — pediu ao homem do posto. — Está embaçado
e eu não estou enxergando bem.
Depois de andar alguns quilômetros pela rodovia principal, que era inteiramente asfaltada,
Paige tomou uma pequena estrada de terra, seguindo cuidadosamente os rastros deixados pelo jipe de
Kelly no dia anterior. Assim, pelo menos, não tinha que abrir caminho pelas poças de água que havia na
estrada. Kelly naturalmente estava habituado a fazer aquele caminho, como indicava a trilha segura e
regular aberta pelo jipe.
Em alguns trechos, no entanto, Paige foi obrigada a brecar repentinamente, devido à mudança
brusca de direção da trilha. Uma vez, quando Kelly desviou da estrada a fim de contornar uma barreira
que caíra recentemente; a segunda vez, ao atravessar uma ponte estreita sobre um ribeirão. Paige
aproveitou essa segunda ocasião para descer do carro e verificar o nível da água do pequeno rio.
Descalça, com as barras da calça dobradas até os joelhos, deu alguns passos dentro da água para testar a
profundidade. O ribeirão tinha pouca altura e ela pôde atravessá-lo sem dificuldade.
A planície onde estava agora estendia-se a perder de vista por uma região árida, sem
praticamente nenhuma vegetação, a não ser algumas moitas que resistiram aos rigores do clima e que
davam a sensação penosa de serem os únicos sobreviventes na região deserta. Paige ficou apavorada com
a idéia de atolar na lama ali e não poder mais sair. Sentiu um arrepio ria espinha. Sua reação instintiva foi
pisar no acelerador e imprimir maior velocidade ao carro, o que um motorista experiente teria julgado
uma verdadeira loucura naquelas estradas escorregadias que não ofereciam a menor segurança.
Uma meia hora depois, avistou as primeiras nuvens negras que se formavam no horizonte, bem
na direção em que ia. Negras como a noite, ameaçadoras, as nuvens estendiam-se numa formação maciça
que lembrava a forma medonha de um espírito maligno disposto a barrar sua passagem. Pelo menos, foi
essa a impressão que ela teve.
O temporal desabou de repente. Gotas grossas batiam nos vidros do carro, como se ele
estivesse embaixo de uma cachoeira. No momento em que ligou os limpadores e avistou a nuvem negra
através do vidro embaçado, o coração de Paige gelou. Passou a mão na testa e sentiu as gotinhas de suor
frio. Não somente a trilha aberta por Kelly no dia anterior estava desaparecendo rapidamente sob a
enxurrada, como as beiras da estrada estavam se tornando invisíveis devido à torrente de água que caía. A
chuva grossa formava uma cortina densa, opaca, irritante, que não a deixava enxergar um palmo adiante
do nariz.
Procurando manter a calma e tomando todo o cuidado para não se perder, Paige resolveu parar
o carro ao lado do caminho e aguardar pacientemente que a tempestade passasse. A chuva era tão intensa
que não podia se prolongar durante muitas horas. Ela partiria logo que enxergasse a estrada com
segurança. Entretanto, após aguardar dentro do carro uma hora e meia, sua cota de paciência e de
sacrifício estava esgotada. Ligou o motor com um gesto nervoso e engatou a marcha, a fim de sair o mais
rapidamente possível daquele sítio desolado. No instante porém em que acelerou O motor, com a marcha
engatada, as rodas começaram a derrapar e a deslizar de tal modo, em direção ao barranco, que ela foi
forçada a desistir de sua tentativa.
Aterrada e sem saber o que fazer, olhou em volta de si e avistou a região completamente
desolada, sem árvores, sem casas, sem nada. De sede pelo menos não morreria, pensou, ao lembrar-se do
pequeno ribeirão que atravessara alguns minutos antes. Voltou a cabeça para trás e viu que o rio estava
começando a transbordar. Logo, logo, as águas chegariam até perto do carro. Por outro lado, se
continuasse dentro do Volks, que era de um vermelho vivo* alguém notaria sua presença ali e viria
socorrê-la. A pior coisa que podia fazer naquela situação era sair à procura de socorro, sobretudo porque
não tinha idéia da direção que devia tomar para chegar a uma casa ou a uma vila.
E se subisse no alto do morro? De lá pelo menos teria uma visão dos arredores. Quem sabe
descobriria alguma casa pelas imediações? Sem hesitar um segundo, Paige dirigiu-se para lá a passos
rápidos. Estava subindo a encosta suave do morro quando avistou, com o canto dos olhos, um movimento
estranho à sua direita. O que seria? Voltou-se rapidamente e percorreu a paisagem em volta com atenção,
tentando localizar o que chamara sua atenção. No entanto, a cerração formada pelas chuvas não facilitava
a visão.
Desistiu de identificar o objeto brilhante que se movera à sua direita e estava disposta a
continuar a subida quando percebeu, pela segunda vez, o mesmo brilho esquisito com o canto dos olhos.
O que podia ser? Desta vez, ela teve a nítida impressão de que o objeto estava mais perto. Seria um
rebanho de carneiros?
Se fosse, estaria salva!, pensou com um sorriso de alegria. Onde havia rebanhos, havia gente.
Era só uma questão de procurar com paciência a casa da fazenda. Ficou tão contente com essa
possibilidade que subiu correndo os poucos metros que a separavam do alto do morro. De lá, teria uma
visão perfeita dos arredores.
Escorregando em cima das pedras, segurando no mato para não cair, fez uma pausa no meio do
caminho e olhou em volta de si, com a respiração ofegante. Sim, não havia dúvida, o objeto brilhante
estava mais perto agora. Mesmo assim, era difícil identificá-lo com segurança. Visto daquela distância
parecia um grande rebanho de carneiros que levantava uma nuvem de poeira em sua passagem.
Mas não havia poeira depois das chuvas recentes!, pensou Paige, franzindo a testa. O objeto se
movia rapidamente por baixo das árvores, sumia da vista e tornava a aparecer logo depois. Não, aquilo
não era um rebanho nem aqui nem na China!, pensou Paige, observando atentamente o estranho brilho
esverdeado embaixo das árvores. Nenhum rebanho de carneiros se movia com aquela rapidez.
De repente, ela prendeu a respiração ao sentir uma contração violenta na boca do estômago.
Um rebanho de carneiros não brilhava daquele jeito, mas a água brilhava! Após dois dias de chuva
torrenciais, os rios estavam começando a transbordar e a inundar toda a planície — e era isso o que ela
estava enxergando do alto do morro. As águas invadiam lentamente o terreno plano e cobriam tudo em
volta.
Alarmada diante do perigo iminente, Paige subiu correndo até o ponto mais alto do morro e
olhou com ansiedade para o local onde deixara o carro. Se as águas o arrastassem consigo, ela estaria
perdida! No carro estava seu dinheiro, as roupas, os documentos... tudo, enfim. Rezou para que isso não
acontecesse.
A correnteza, porém, não atendeu seu pedido murmurado em voz baixa. Em questão de
minutos as águas engrossaram, submergiram o pequeno veículo em sua passagem e continuaram o
caminho sem serem detidas por nenhum obstáculo.
— E agora? — exclamou Paige em voz alta, completamente aturdida com a visão do carro
sendo engolido pela correnteza. O que faria agora? Em questão de segundos, perdera tudo o que tinha.
As águas que batiam no pé do morro onde ela estava não eram profundas. Tinham quando
muito uns trinta centímetros de altura. Mesmo assim, isolavam-na de tudo em volta num raio de muitos
quilômetros. Levantou a cabeça e avistou os morros que se erguiam no meio da planície desolada, como
pontinhos minúsculos na imensidão da paisagem. De que adiantava trocar uma ilha pela outra? Sua única
esperança era que passasse por ali um avião de reconhecimento, dos que sobrevoam as regiões inundadas
à procura de sobreviventes.
Abatida, trêmula de frio e de ansiedade, Paige abrigou-se do vento que soprava embaixo de
uma pedra. Com a cabeça enfiada nas mãos, a pele toda arrepiada, os braços gelados, ela se arrependeu
amargamente de não ter ouvido o conselho de Kelly, de Andy, do homem do posto de gasolina... Kelly a
prevenira de que as chuvas iam continuar durante dias, semanas. Por que ficara surda às suas palavras?
Ela não soube quanto tempo permaneceu naquela posição. Ao levantar a cabeça com um
suspiro e tomar consciência da passagem das horas, estremeceu ao imaginar que seria obrigada a
pernoitar ali, sozinha, no alto daquele morro. Esse pensamento assustou-a de tal modo que ela se levantou
de um pulo, como se tivesse enxergado um bicho à sua frente.
No mesmo instante, ao fixar a vista na planície alagada, enxergou um vulto que se aproximava
por entre as árvores. Sem hesitar um segundo, começou a berrar e a acenar freneticamente. Alguém estava
vindo na sua direção! Alguém a cavalo! Ela estava salva!
O cavaleiro solitário levou algum tempo, porém, para chegar embaixo do morro. Ele escolhia
atentamente seu caminho por entre as poças de água. Havia algumas mais fundas, onde as patas do cavalo
afundavam até os joelhos.
Minutos depois, a alegria de Paige transformou-se num sentimento penoso de decepção. Seu
salvador providencial era Kelly e ela notou, ao observá-lo de mais perto, que ele não estava
absolutamente contente de encontrá-la naquele local e naquela circunstância. Os olhos claros a fixaram
com frieza, em silêncio. Paige conseguiu manter a cabeça erguida com dificuldade diante do olhar de
desagrado que Kelly lhe lançou do alto do cavalo.
— Só podia ser você! — disse ele, balançando a cabeça. — Eu não avisei que essas estradas
não ofereciam a menor segurança? Eu devia deixá-la aí, para você aprender a lição...
Consciente de que não podia refutar as acusações merecidas, Paige abaixou ainda mais a
cabeça.
— Desculpe! De que adianta você se desculpar agora? Vai ter que ficar aqui até as chuvas
passarem.
— O quê? — exclamou Paige, alarmada corri a idéia de permanecer naquele local deserto,
durante semanas, na companhia de alguém tão insuportável quanto Kelly. — Aqui, no alto deste morro?
— Essas chuvas duram semanas, inundam tudo, isolam as cidades. Antes de umas cinco ou
seis semanas será impossível sair daqui. As estradas estarão intransitáveis.
— Mas eu não posso ficar todo esse tempo fora de casa. Eu preciso voltar!
— Eu disse: "Volte para casa enquanto é tempo". Em vez disso, você se comportou como a
verdadeira desmiolada que é. Meteu-se sozinha por essas estradas e veja só onde foi parar... No alto do
morro!
— Estou.
— É mais chuva que vem aí. Acho bom você descer desse morro, caso contrário nós dois
vamos ficar isolados aqui, sem poder sair. As águas continuam subindo.
Como se quisesse comprovar a veracidade das palavras de Kelly, o cavalo castanho balançou a
cabeça em sinal de impaciência diante da água que lhe batia nos joelhos.
— Suba no cavalo — disse Kelly, abrindo um pequeno espaço para ela na frente da sela.
— Eu não posso sentar na garupa? — perguntou Paige, mordendo o lábio com nervosismo. A
proximidade de Kelly era desagradável como um contato repugnante.
— Você pode tentar, mas não vai agüentar muito tempo. Nenhum cavalo gosta de andar com
uma pessoa na garupa.
Paige amarrou a cara. Kelly, pelo visto, não ia facilitar as coisas para ela. Em vez de
aproximar-se do morro com o cavalo, permaneceu no mesmo lugar, e Paige foi obrigada a entrar com os
pés dentro da água para chegar até onde ele estava.
— Perto do ribeirão.
— Da próxima vez eu vou me informar com alguém mais delicado — disse Paige de mau
humor. — Você disse que a inundação só viria dentro de alguns dias e que eu necessitava de um jipe para
andar nessas estradas.
— Ah, só faltava essa! Tomar a estrada errada... Vai ver que a estrada para Greenvale está
seca.
— Onde?
— Muito!
— Agora está perto. Está vendo aquele bosque de árvores no alto do morro? É para lá que nós
vamos.
Paige olhou para a direção indicada e avistou um arvoredo no meio da planície árida. A que
distância estaria? Ela simplesmente não agüentaria mais cinco minutos em cima do cavalo! Estava toda
moída, como se tivesse levado uma surra.
— O que você estava fazendo quando a chuva caiu? — ela perguntou em dado momento, para
se distrair e passar o tempo. Era preferível conversar com qualquer pessoa, mesmo com um homem
antipático como Kelly, a sofrer em silêncio os solavancos na anca do cavalo.
— Vi. Você passou a toda velocidade, como se estivesse apostando corrida. Teve muita sorte
de não sofrer um acidente.
Paige não se deu ao trabalho de explicar a razão de sua pressa. De que adiantava? Kelly não
entenderia sua explicação.
— Ah, foi esse o meu erro! Pensei que só havia uma estrada...
— Pois é.
— E você, estava pensando em quê quando me avistou no alto do morro? Você levou um
tempão para me socorrer! Eu podia ter morrido afogada que você não ia apressar o passo desse cavalo...
— Só porque eu berrei como uma louca. Você podia ter tirado meu carro do atoleiro.
— É verdade que você ia me deixar a noite toda no alto daquele morro?
— Você seria encontrada, de qualquer modo. Se não chegasse a Greenvale até o anoitecer,
Stuart sairia à sua procura. Ele não está esperando por você?
— Não é possível! Esta é a primeira providência que você devia ter tomado. Quer dizer que
seus amigos não sabiam que você estava indo para lá?
— Só mesmo você — disse Kelly, balançando a cabeça. — Se eu soubesse disso, juro que a
teria deixado no alto do morro a noite toda, para você aprender a ser mais responsável da próxima vez.
— É aqui que nós vamos ficar? — perguntou Paige, ligeiramente apreensiva com o aspecto
silencioso da casa.
— É, aqui. — Kelly pulou do cavalo e amarrou o cabresto numa argola. — Esta será nossa
residência nas próximas semanas. Depois que o nível das águas baixar, podemos ir para Ainslie.
— Quer dizer que nós vamos ficar durante semanas sozinhos nessa casa? — indagou Paige
com um calafrio. — Não tem mais ninguém morando aqui?
— Mais ninguém.
— Virgem!
— Você esperava que fosse uma casa de campo, dotada de todo o conforto, onde você jogasse
cartas esperando a chuva passar?
— Se eu fosse você, me daria por muito satisfeito. Sua situação no alto do morro era muito
pior. Esta casa oferece o conforto de uma fazenda do interior. Tem inclusive gerador próprio. Luz, pelo
menos, não faltará.
— Eu não estou me queixando! — exclamou Paige com vivacidade. — Só que pensei que
houvesse mais gente morando aqui. Quem não gosta de ter companhia?
— É porque você não está acostumada a andar a cavalo — disse Kelly, levantando-a da
garupa e colocando-a no chão.
— Quem disse? Eu vou e volto do trabalho a cavalo, todos os dias. É a única maneira de
chegar na hora com o trânsito atual.
— Nesse caso, você vai ter muito tempo para praticar equitação. É o único esporte que temos
aqui.
A casa era limpa e arrumada, como se tivesse uma mulher tomando conta, e tinha a mobília
essencial para um homem solteiro. Três aposentos mostravam sinais de terem sido usados ultimamente —
o banheiro era antigo, a sala de jantar espaçosa e a cozinha bem clara, com espaço de sobra para a mesa
comprida e algumas cadeiras de palhinha. A mobília original devia estar guardada no depósito. No lugar
dela havia diversos equipamentos agrícolas espalhados pela casa, que Paige nunca tinha visto na vida.
— Uma roçadeira.
— Uma debulhadeira.
— Ah!
— Agora que você conhece a casa, fique à vontade e não faça cerimônia. Vou providenciar
certas coisas lá fora antes que escureça.
— Falou.
Ah, seria uma delícia tomar um banho quente de imersão e depois deitar na cama! Como faria
porém para trocar de roupa? A ordem era procurar no armário algum lençol ou toalha comprida com que
pudesse se embrulhar depois do banho. Feito isso, deixaria as roupas lavadas na corda para secar. Na
manhã seguinte estariam secas e limpinhas.
— É isso que eu vou fazer — murmurou Paige em voz alta, dirigindo-se ao armário do quarto.
Felizmente, encontrou tudo o que precisava, inclusive alguns lençóis coloridos, bem como
toalhas de banho, felpudas e compridas, que batiam nos calcanhares. Escolheu um lençol azul e uma
toalha vermelha. Dirigiu-se em seguida ao banheiro com um sorriso de antecipação no rosto.
Após encher a banheira de água quente, afundou devagarinho e fechou os olhos com uma
expressão de beatitude. Nada como um banho quente depois de uma viagem repleta de acidentes! Era
essa, por sinal, a receita do seu médico quando ela se queixava de dores pelo corpo. Os músculos
doloridos pareciam tão contentes quanto ela com a imersão na água morna. Relaxavam, descontraíam-se,
estalavam de felicidade.
De repente a porta do banheiro abriu-se por fora e ela ouviu uma voz bem conhecida dizer de
lá:
— Muito obrigada, mas eu não estou precisando de nada no momento, a não ser terminar meu
banho em paz.
— Tenho certeza de que você vai gostar do que eu trouxe — disse Kelly com as mãos atrás
das costas, aproximando-se da banheira de onde saía um vapor perfumado.
— O que é? — perguntou Paige com os olhos arregalados, tentando ocultar em vão sua nudez.
— A melhor coisa que existe para dores musculares. Bicarbonato de sódio e vinagre!
Antes mesmo que Paige pudesse responder ou fazer um comentário, ele despejou o conteúdo
de um saquinho e de uma garrafa na água quente.
— Ah, muito obrigada — disse Paige, sem jeito. — Agora dê o fora que eu vou me esfregar.
— Você não precisa fazer essa cara. Eu já fui casado e estou acostumado a ver a mulher em
diversas situações de nudez.
Continuou a ensaboar o corpo com o pensamento em outra parte. Como era a mulher dele?
Onde morava? Na tal cidade que ele mencionara antes? Como se chamava mesmo? Ainslie. No fundo, o
casamento não devia ser lá essas coisas, uma vez que os dois moravam em casas separadas e só se
encontravam — se é que se encontravam — quando Kelly visitava a estação principal, a sede da
companhia.
Mas podia ser também que a mulher não morasse em Ainslie e que Kelly não trabalhasse
permanentemente em Bindaburra. Quem sabe ele estava ali só de passagem? Não foi isso que ele dissera
no dia anterior? De qualquer maneira, isso não queria dizer nada. Kelly podia estar substituindo alguém
na fazenda e era por essa razão que a mulher tinha ficado em Ainslie.
Após ensaboar os cabelos e enxaguá-los demoradamente, Paige se sentiu outra. Saiu animada
da banheira, enxugou-se e passou o lençol em volta do corpo, prendendo as pontas na cintura.
Feito isso, lavou as roupas sujas na pia e torceu-as bem. Com a roupa úmida em cima do braço
e com o pente que encontrara no armarinho do banheiro na mão direita, dirigiu-se à varanda onde tinha
visto minutos antes uma calça comprida pendurada no varal. Prendeu a roupa lavada ao lado, colocou os
sapatos úmidos na beira da varanda, para secarem ao sol da manhã, e demorou-se alguns momentos
debruçada no parapeito de madeira, admirando a paisagem. O cavalo que os trouxera para a fazenda
estava pastando perto dali. A cena não podia ser mais repousante.
— É pena Stuart não estar aqui. Vocês poderiam bater um bom papo, admirando a paisagem.
O comentário irônico apanhou-a de surpresa. Nada estava mais distante do seu pensamento que
a lembrança de Stuart. No momento ela não trocaria a paisagem vista da varanda por nenhum papo, por
mais agradável que fosse. As planícies alagadas refletiam o azul do céu e o tom avermelhado do sol
poente, que afundava lentamente no horizonte. Por alguma razão inexplicável, no entanto, não quis
confessar que era a paisagem e não a ausência de Stuart que lhe dava aquele ar pensativo, que Kelly
interpretara como se estivesse com saudade do amigo distante.
— Estou. Afinal, eu fiz esta viagem para encontrá-lo e posso apostar que ele apreciaria muito
mais minha companhia que você. Ele sabe que ninguém é perfeito neste mundo e que todos cometem
erros graves, uma vez na vida...
— Graves não, imperdoáveis — corrigiu Kelly. — No seu caso, não foi um mero erro de
julgamento, mas antes de temperamento. Você simplesmente achou que podia fazer o que lhe passasse
pela cabeça, sem pensar um instante nas conseqüências!
— O que o leva a fazer essa suposição? Nós mal nos conhecemos! Como você pode saber
como eu sou na realidade?
— Sua observação de alguns momentos atrás foi bastante clara e eu já conheci muitas
mulheres do seu tipo antes. Todos os anos elas vão a Greenvale para assistir às corridas e tomar parte no
baile de encerramento. E, todos os anos, acontece a mesma coisa. Elas ficam tão ansiosas para encontrar
um bom partido que agem e se comportam como loucas varridas, sem pensar nas conseqüências que isso
acarreta e nos problemas que criam para os outros.
— Que mal há em procurar um marido? — perguntou Paige com inocência. — Todo mundo
quer melhorar de condição social. Se os bons partidos, como você diz, estiverem de acordo em aceitar
essas mulheres por esposas, ninguém pode impedi-los. Afinal, são os homens que decidem sempre se
querem ou não casar, mesmo nos confins do Judas...
— É, isso mesmo. E daí? Você tem inveja das pessoas que agem assim?
— Eu, ter inveja? Você está sonhando! — disse Kelly com uma risada que soou terrivelmente
falsa no silêncio da varanda. — Eu tenho é dó das coitadas que agem dessa maneira!
Como ela estava agindo!, pensou Paige, furiosa. Depois de tudo que sofrerá naquele dia no
lombo do cavalo e na enxurrada, não estava com paciência para ouvir desaforos desse tipo, muito menos
de um homem que mal conhecia.
— Ah, é? Pois fique sabendo que você não é o único aqui que se sente incomodado com a
situação... Sua atitude puritana também não me agrada nem um pouco! Eu estava indo realmente para
assistir às corridas em Greenvale, mas não pretendia absolutamente encontrar um bom partido! E, mesmo
que pretendesse, o que você tem a ver com isso? Você se julga porventura meu anjo da guarda?
— Não, de jeito nenhum. Deus me livre! Eu sou apenas alguém que observa com atenção o
comportamento das mulheres. No fundo, elas não passam de criaturas oportunistas que topam qualquer
situação, contanto que atinjam seus objetivos.
— Como você ousa afirmar uma coisa dessas? — exclamou Paige, com os olhos brilhantes de
indignação.
Ela estava furiosa demais para manter a conversa num plano impessoal, mas a ação que
acompanhou suas palavras foi inteiramente imprevista.
Com o rosto vermelho de raiva, Paige deu um passo à frente e lançou um tapa com toda força
na direção dele.
Infelizmente, não contava com a reação dele. No momento em que Paige levantou o braço para
desferir o tapa, Kelly também ergueu o seu para defender-se e o resultado foi que o choque dos dois
braços fez com que Paige perdesse o equilíbrio e caísse de costas sobre o parapeito da varanda. Como
estava com os movimentos tolhidos, devido ao lençol que lhe cobria o corpo, ela bateu numa das vigas da
varanda, roçando o rosto no parapeito de madeira. Deu um grito de dor e, imediatamente, seus olhos
ficaram rasos d'água.
— Você se machucou? — perguntou Kelly com solicitude. — Bateu com o rosto na viga?
Ele agachou-se ao lado dela e examinou-a com atenção.
— Você é um bruto! — murmurou Paige, levando a mão ao rosto ferido. — Até parece que eu
recebi o coice de uma mula! O que você pretendia com seu soco? Desfigurar meu rosto para o resto da
vida?
— Sem querer uma ova! — exclamou Paige entre soluços de dor. — Você sente um prazer
especial em espancar as mulheres!
— Você não tem o direito de dizer que eu sou uma mulher oportunista e que corro atrás dos
homens ricos. Você não me conhece para afirmar uma coisa dessas.
— Ah, me deixe em paz, pelo amor de Deus! Eu estou farta de ouvir seus desaforos!
— Já paguei por tudo que fiz de errado. Perdi meu carro novinho na enxurrada, perdi minhas
roupas, meu dinheiro... Como se isso não bastasse, quase morri afogada. Por cima de tudo isso, passo
duas horas sentada no lombo de um cavalo, jogada de um lado para o outro como se fosse peteca. Chego
descadeirada em casa, tomo um banho e penso que vou descansar algumas horas... Aí, sem quê nem pra
quê, você dá um murro no queixo e quase me desloca o pescoço, como se eu fosse uma bola de futebol. E,
em vez de me dirigir algumas palavras carinhosas de conforto, ainda me acusa de gananciosa e de
oportunista, como se eu passasse os dias correndo atrás de milionários...
— Não chore. Eu vou fazer um chá. Você quer tomar um comprimido para dor de cabeça?
Está com fome? Você comeu alguma coisa depois do café da manhã?
— Meu lanche estava no carro — disse Paige com um suspiro. — Meu lanche, meus vestidos,
meu dinheiro...
As palavras pareciam uma ladainha. Entretanto, o fato de estar abraçada contra o peito forte de
Kelly lhe deu uma sensação reconfortante de bem-estar, o que serviu para interromper momentaneamente
suas queixas.
— Não há de ser nada. Vou fazer outro lanche para você. O que está com vontade de comer?
Paige passou a língua nos lábios secos.
— Por que você não o usa, em vez de ter todo este trabalho com o fogão a lenha?
Kelly endireitou o corpo e virou-se para ela.
— Não, nem um pouco. Deixe ver como está seu queixo. Infelizmente eu não tenho gelo aqui,
mas água oxigenada também é bom. Logo esse vermelho vai desaparecer.
— Qual é a graça?
— Nenhuma.
— Se você costuma tratar as mulheres deste jeito, não me espanto que sua esposa respire
aliviada quando você sai de casa. No fundo, este é o mal das pessoas solitárias. Elas perdem o hábito da
companhia e se comportam como verdadeiros selvagens.
— Minha mulher não pode se queixar. Eu lhe dei o divórcio por livre e espontânea vontade e,
atualmente, ela está desfrutando as delícias da liberdade, da mesma forma que eu. Estamos ambos felizes
com a situação.
Paige mordeu o lábio com um gesto nervoso. Depois daquela confidencia, não podia acusá-lo
de insensibilidade.
— Desculpe. Eu não sabia que vocês eram divorciados. Vocês ficaram casados muito tempo?
— Não. Porquê?
Ela fitou-o de relance e notou de novo a mesma tensão que pairava antes no ar.
— Escute, se nós vamos passar alguns dias aqui, temos que conversar sobre alguma coisa,
bolas! Ou você prefere ficar em silêncio?
— Bem, neste caso, pode me trancar num dos quartos vazios e fingir que eu não existo.
— Grande! — disse Kelly, aproximando-se da mesa com o bule de chá. — Você quer se
servir? Aproveite e tome um comprimido para a dor de cabeça. Mal não faz.
— Muito obrigada — disse Paige com frieza, sem levantar a cabeça do colo. — Não precisa.
— Desculpe.
— Pelo quê?
— Por tudo. Por não ter seguido seu conselho, por lhe dar todo esse trabalho, por estar aqui
infernizando sua vida, por fazer perguntas de que você não gosta.
— Pois é.
— Não precisa. Prefiro que fique sentada aí. Você está exausta depois dos acontecimentos do
dia.
— Desistiu de trabalhar no campo. O negócio não estava indo muito bem. Ele vinha da cidade
e desconhecia completamente as condições de vida no interior. A mulher também não gostou daqui. Ele
cometeu alguns erros graves e a terra fez o resto.
— A terra?
— É. A terra o expulsou daqui, por assim dizer. Algumas temporadas más. O negócio aqui
não tem meio-termo. Ou vai bem ou vai mal.
— Eram.
— Mas não podiam ser orientados por alguém com experiência? Como você, por exemplo?
Kelly colocou a panela em cima do fogão e voltou-se com o rosto sério.
— Charles é terrivelmente cabeçudo e não ouve a opinião de ninguém. Ele é dos tais que
dizem: "Eu sei errar sozinho". Quando passou um ano sem chover, ele entregou os pontos e viu que havia
cometido um grave erro.
— Perdeu tudo?
— Perdeu.
— É.
— Não, nem tanto. Nós pagamos o preço justo. Charles inclusive ficou contente com a venda.
— Que remédio?! Nessa altura ele teria dado a propriedade por qualquer preço!
— Pode ser. Mas não foi isso o que aconteceu. Por que você quer distorcer os fatos?
— Ah, eu tenho uma aversão solene pelas grandes companhias! A verdade é que os ricos
enriquecem cada vez mais e os pobres ficam cada vez mais pobres. Como se chama o dono da
companhia?
— Bruce Morgan.
— Quer saber minha opinião? Tenho a impressão de que esse tal de Bruce Morgan está
sempre tirando proveito das situações, em detrimento dos outros. É ou não é?
— Não acho. Ele pagou o que Charles pediu. Não houve especulação de nenhuma das partes.
Ou você acha que Charles devia receber mais do que pediu?
— Lógico que não! Você gosta muito do seu patrão, pelo visto. Você o defende com unhas e
dentes!
— Você prefere trabalhar para ele do que possuir uma fazenda própria?
— Sem dúvida.
Talvez essa pergunta já tenha sido feita uma dezena de vezes pela esposa, pensou Paige,
arrependida. Isso explicava em parte o mau humor da resposta. As mulheres, em geral, preferem possuir
casa própria em vez de morarem na casa dos outros. Mas podia ser também que Kelly não tivesse
condição no momento para adquirir uma propriedade. Até mesmo as fazendas pequenas custavam uma
fortuna, provavelmente mais do que ele ganhava com seu ordenado de empregado.
— Você trabalhava em Ainslie antes de vir para cá?
— Não repare se o bife não sair exatamente como você gosta. Eu não sou muito entendido em
carnes...
— Não tem importância. Contanto que não esteja muito cru, para mim está ótimo. — Como
ela não entendia nada de cozinha, não podia se queixar. — Quer dizer então que você veio para cá depois
do divórcio?
Kelly colocou as duas fatias de carne na frigideira quente e voltou-se de perfil para ela.
— Eu não estou criticando, apenas comentando. No fundo, gostaria de saber qual é a razão
desse interesse repentino por minha atividade.
— Qual é?
— Na minha opinião, as pessoas que trabalham no campo fazem parte do mesmo contexto
social.
— E daí?
— Em outras palavras — disse Paige hesitante, mais vermelha ainda com a gozação de Kelly
—, a maneira como as pessoas vivem ilustra as condições do lugar em que trabalham.
— Fiquei na mesma.
— Estou ouvindo.
— Ah, pare de me gozar! — exclamou Paige com irritação. — É claro que estou interessada
no que você faz! É a primeira vez que conheço um fazendeiro em carne e osso...
— E Stuart?
— Stuart não é um fazendeiro típico. Ele aprecia mais a paisagem e as condições ambientais
do que o trabalho propriamente dito.
— Isso é verdade. Ele adora a vida mansa. Ainda bem que o irmão trabalha pelos dois.
— Parece, mas não é. Isso altera alguma coisa nos seus planos?
— Não amole! — exclamou Paige com impaciência. Como Kelly estava com a atenção
voltada para os bifes que fritavam na frigideira, ela apagou o cigarro com um suspiro de desânimo e
levantou-se da cadeira. — Posso ajudar em alguma coisa? Você quer que eu ponha a mesa?
— Não precisa, muito obrigado. Fique sentada onde estava. Está quase pronto.
Paige voltou a sentar-se na cadeira e ajeitou o lençol em volta do corpo.
— Ah, antes que me esqueça. Eu peguei emprestado este lençol no armário. Não tinha outra
coisa para me cobrir.
— Não faça cerimônia. Apanhe o que você precisar. Tem agulha e linha na gaveta do armário.
Veja se precisa de alguma outra coisa. Infelizmente, eu não tenho máquina de costura aqui.
— Muito obrigada por me ceder este lençol. Mas será que seu patrão vai achar ruim?
— Achar ruim do quê? — perguntou Kelly, aproximando-se da mesa com os dois bifes.
— São, e daí?
— E daí você não pode dispor deles como bem entender.
— Quem falou?
— Você está enganada, querida. A companhia nunca pediu contas do que eu faço.
— Bem, neste caso, vou lhe devolver um lençol novo na primeira oportunidade, porque este
eu vou cortar pela metade.
— Ah, não seja ridícula! Se você me devolver um lençol, vou ficar ofendido.
— Não tem de quê. Bom, agora que acertamos este assunto, vamos ao nosso jantar. Sirva-se,
por favor.
O jantar estava gostoso, embora não fosse nenhuma maravilha. Kelly usava o tempero correto,
mas não fazia nenhuma questão de ser um grande cozinheiro. Paige estava com tanta fome que raspou o
prato, embora a refeição transcorresse num clima ligeiramente tenso.
Por alguma razão misteriosa, a discussão sobre o lençol deixara Kelly de mau humor. Para não
agravar a situação, Paige comeu em silêncio. Ao terminar o prato, ofereceu-se para lavar a louça, sugestão
que foi aceita de bom grado por Kelly..
— Não necessariamente. Estou acostumado. Você, sim, é que vai sentir-se sozinha aqui, sem
os programas de televisão e os telefonemas para as amigas.
— Também não precisa levar o caso tão a sério assim — acrescentou Kelly, procurando
desfazer o efeito de suas palavras rudes. — Nem mesmo uma moça bonita como você agrada a todos os
homens, à primeira vista.
— Eu não me incomodei com seu comentário — disse, procurando manter a voz calma. —
Simplesmente me surpreendi com o fato de você dizer isso na minha cara. Mas foi bom eu saber. Só
assim tenho a liberdade de dizer que eu também não simpatizo nada com a vida que você leva. Estamos
quites. Eu não suporto os homens solitários e egoístas que se julgam os modelos de virtude.
— Fim de papo.
Paige deu um sorriso amargo e guardou o último garfo lavado e enxuto na gaveta do armário.
— Vou dar uma volta lá fora. Estou precisando urgentemente arejar a cabeça.
— Bom passeio — disse Kelly no momento em que ela virou a maçaneta da porta. —
Cuidado com as cobras.
— Está cheio. Afinal, nós não somos a única espécie que foi perturbada pela chuva.
Ao aproximar-se do varal de roupas, Paige apalpou a calça pendurada para verificar se estava
secando rapidamente. No mesmo instante, sentiu uma picada dolorosa no braço e no pescoço. Deu um
tapa com a palma da mão para afastar os insetos.
Kelly estava sentado confortavelmente na cadeira de balanço, com um livro na mão e uma
xícara de café ao lado.
— Não gostou do passeio? — perguntou com o olhar inocente. Paige fechou a porta
rapidamente para impedir a entrada dos insetos.
— Adorei.
— Não, pelo contrário. Está gostoso demais. A lua brilha, enorme, e os grilos estão com toda
a corda.
— E os insetos?
— Que insetos?
— O que você vai fazer agora? Dar uma volta dentro de casa?
Paige estava andando de um lado para o outro da sala, louca para coçar em paz as mordidas dos
pernilongos que ardiam corno brasa na pele sensível.
— Vou ao banheiro — murmurou com os dentes cerrados. — Ou você tem alguma objeção?
— Muito obrigada.
Correu para o banheiro e mergulhou o rosto e os braços embaixo da torneira. A água fria
porém não teve muito efeito sobre as mordidas. Desesperada, procurou no armarinho do banheiro alguma
pomada para passar. Infelizmente, encontrou apenas objetos de uso masculino, como creme de barbear,
pincel de barba e pasta de dente. Sem saber o que fazer para aliviar a dor, cedeu ao impulso incontrolável
de coçar as feridas inflamadas.
Estava nas pontas dos pés, com a cabeça voltada para trás, tentando alcançar uma mordida no
ombro, quando avistou Kelly apoiado no batente da porta, observando-a tranqüilamente.
— Espertinho!
— Quer fazer o favor de dar o fora daí? — gritou Paige furiosa, fazendo menção de bater a
porta na cara dele. — Eu não sou palhaço para você se divertir às minhas custas.
No momento em que ela estendeu a mão e puxou a porta pela maçaneta, um pé com bota
intrometeu-se no vão, impedindo que ela levasse a cabo sua intenção.
— Para que, então? Você não fez outra coisa desde que eu entrei nesta casa!
— Eu trouxe um creme para a pele.
Paige fitou-o com os olhos arregalados e a expressão de idiota.
— Você não tem tido sorte em sua estada aqui — comentou Kelly com a voz calma.
— Que culpa eu tenho? Não fui eu que pedi para andar durante horas no lombo daquele
cavalo, nem para ser derrubada no chão com um soco no queixo. Você podia ter me dito que lá fora
estava cheio de pernilongos.
— Duvido.
— Pelo menos estaria preparada para enfrentá-los e não teria sido comida desse jeito.
— Adivinhe!
— Esses bichinhos são terríveis. Mordem mesmo através da roupa. — Kelly levantou uma
mecha de cabelos para examinar a região da nuca. — Deixe eu passar o creme aqui. Suas costas estão
vermelhas de mordidas.
Paige ficou toda arrepiada com o contato da mão dele na nuca e não queria falar, com receio de
trair sua emoção. Se o simples contato da mão a deixava tão excitada, o que seria então ser beijada por
ele?
— Pronto, agora você vai se sentir melhor — disse Kelly, fechando o tubo de creme.
— Muito obrigada. O que você faz num caso de acidente? Você tem alguma maneira de se
comunicar com alguém?
— Claro. Por quê? Você tem receio de que sua estada aqui seja mal interpretada?
— Não, não é isso! — negou Paige com vivacidade. — Em circunstâncias como essa, é
comum as pessoas desconhecidas se ajudarem mutuamente. E as pessoas que moram no interior sabem
disso melhor do que ninguém. Além disso, aposto que você deixou bem claro que minha presença aqui só
lhe causa aborrecimentos...
— Até que não — disse Kelly com um sorriso. — A gente acaba se acostumando à presença
do outro.
— Contanto que eu obedeça em silêncio suas ordens e não abra a boca para me queixar de
nada — acrescentou Paige com uma risada bem-humorada. — Para você as mulheres são apenas objetos
decorativos, não é verdade? Você detesta as mulheres ativas, desembaraçadas, independentes. Elas
ofuscam sua imagem de macho.
— De onde você tirou essa conclusão? — perguntou Kelly, com a testa franzida.
— De sua maneira de ser, é evidente. O machismo está estampado no seu rosto, meu caro.
Não adianta negar.
— Qual?
— Da próxima vez que usar o rádio, você manda um recado para mim?
— Pois não. Mas eu posso adiantar desde já que Stuart foi informado de seu paradeiro.
— Eu não me referia a Stuart! — disse Paige com impaciência. — Estou pensando em meus
pais. Eles vão ficar preocupados se não receberem notícias minhas nos próximos dias.
— Escreva o endereço deles num papel que eu transmito o recado — disse Kelly com frieza.
Colocou o bilhete dobrado em cima da mesa e retirou-se da sala sem fazer mais nenhum
comentário.
Estava na hora de providenciar uma cama para dormir, pensou Paige, rumando diretamente
para o quarto onde tinha encontrado o lençol e a toalha de banho. Se achasse um colchão sobrando, em
algum canto da casa, daria um jeito de dormir ali, sem incomodá-lo. A ordem era falar o mínimo possível
com ele, para evitar agressões.
Levou um susto ao ouvir o ruído de passos no corredor e rumou rapidamente para a porta. No
instante seguinte, chocou-se contra outra coisa dura que lhe arrancou uma exclamação de dor.
— Ai!
— No escuro?
— Não tem nada escondido! — exclamou Kelly com impaciência. — O interruptor está
pendurado no meio do teto, como era antigamente.
— Um colchão.
— Para quê?
— Onde?
— Numa casa tão grande como essa não há uma cama de armar?
— Infelizmente, não. Eu já lhe expliquei que só há uma cama na casa e essa cama está no meu
quarto.
— Neste caso, onde eu vou dormir? — perguntou Paige com os olhos arregalados.
— Como não há outra escolha, você tem que se conformar em dormir na minha cama.
— A cama é grande. Cabem os dois. A menos que você prefira dormir no banco da cozinha.
— Boa idéia.
Kelly balançou os ombros com indiferença, como se o problema não lhe dissesse respeito, e
preparou-se para sair do quarto.
Com o que forrar o banco?, pensou Paige ao dirigir-se à cozinha. Podia usar a manta grossa
que encontrara no armário, a toalha de banho, o lençol extra que estava levando no braço.
Entretanto, mesmo depois de reunir todos os tecidos que encontrou e dobrá-los cuidadosamente
em cima do banco de madeira da cozinha, o resultado não lhe pareceu muito satisfatório. A cama
improvisada estava dura como um pau.
— Você devia ter deixado a manta para se cobrir — comentou Kelly da porta.
— Por quê? Não está frio aqui.
— Você é quem sabe — disse Kelly, voltando para o quarto. — Durma bem.
— Você também.
Paige apagou a luz da sala, deitou na cama improvisada e ficou ouvindo atentamente os ruídos
que vinham do banheiro. Após alguns minutos, virou para o lado e cobriu o ouvido com o braço, a fim de
abafar o assobio melodioso de Kelly. Pelo menos naquela posição não sofria muito com a tábua dura do
banco. Após ter mudado o travesseiro de lugar umas três ou quatro vezes, deu um suspiro e pôs em
prática todos os truques que conhecia para apressar a vinda do sono.
Infelizmente, nenhum deles foi bem-sucedido naquela noite. Continuou acordada muito tempo
depois que Kelly saiu do banheiro e voltou para o quarto. Rolou de um lado para o outro, deitou de
bruços, de costas, de lado, mas nenhuma posição era suficientemente confortável para pegar no sono.
Cada movimento que fazia despertava o protesto de um músculo dolorido. Embora cochilasse durante
alguns minutos, o sono era interrompido a todo instante pelos movimentos bruscos que fazia.
No meio da noite a temperatura baixou sensivelmente. Uma brisa fria começou a entrar pelas
frestas da janela e da porta. A partir desse momento, Paige foi obrigada a reunir todas as suas energias
para manter a temperatura do corpo, e o sono foi praticamente impossível.
Estava puxando a manta para cobrir a cabeça quando avistou o vulto alto de Kelly.
— Venha dormir na cama! — disse Kelly com voz firme. — Eu tenho que trabalhar amanhã e
não agüento mais ouvir seus gemidos e esse mexe-mexe incessante.
— Eu sei... Agora você vai dormir comigo — disse Kelly, levantando-a no colo com uma
facilidade incrível e transportando-a para o quarto. Ele deitou-a na cama grande de casal, ajeitou-se ao
lado dela e virou as costas. — Agora veja se dorme em paz.
Paige guardou a maior distância possível do corpo dele. Mesmo assim, não conseguiu relaxar
imediatamente. Estava com o rosto dolorido da pancada que recebera, o tremor do corpo continuava a
torturá-la e o traje sumário que vestia estava incomodando-a terrivelmente.
— Pelo amor de Deus, veja se pára! — exclamou Kelly, irritado — Feche os olhos e durma!
— Eu não trouxe o travesseiro. Como você quer que eu durma com o rosto dolorido e o lençol
que está me apertando na cintura?
No silêncio mortal que se seguiu, Paige notou que Kelly estava prestes a explodir numa crise
de fúria. Em vez disso, porém, levantou-se da cama, atravessou o quarto e foi à sala apanhar o travesseiro.
Paige aproveitou sua ausência para arrumar rapidamente o lençol em volta do corpo.
Kelly entrou no quarto, aproximou-se da cama e enfiou o travesseiro embaixo da cabeça dela
sem a menor cerimônia.
— Pronto. Agora você não tem mais desculpa para me encher a paciência!
— Você.
fundo e enrolou-se na coberta, com uma sensação agradável de bem-estar. Era melhor dormir
ali do que no banco duro de madeira. Minutos depois, sem se dar conta do que estava acontecendo,
mergulhou num sono profundo.
Capítulo III
Era um dia claro quando Paige acordou. Depois de constatar que estava sozinha na cama de
casal, deu um bocejo comprido e afundou de novo a cabeça no travesseiro, prestando atenção aos ruídos
que vinham de fora. Kelly provavelmente já tinha tomado café e saído de casa. Levou um susto ao
perceber que eram mais de nove horas. Era natural que Kelly não estivesse mais em casa.
Após lavar o rosto e vestir as roupas secas que estavam penduradas no varal, Paige fez a cama
e tomou café na cozinha. Em seguida, pegou o lençol que lhe servira de pijama naquela noite e pensou
fazer uma túnica para vestir em casa. Sem um molde, era difícil fazer uma roupa perfeita. Entretanto,
como não tinha preocupação de estar vestida na última moda, não fazia diferença se a túnica ficasse
grande ou pequena demais. O importante era ocupar as horas compridas do dia e ter alguma roupa para
vestir em casa.
O trabalho caminhou lentamente, uma vez que não tinha máquina de costura nem muita pressa
de terminar. Kelly estava fora e ela não tinha praticamente nada com que se ocupar na casa-grande da
fazenda.
Pelo fim da tarde, no entanto, estava contente com o resultado do trabalho. Além de uma blusa
e de uma saia, cortara também uma túnica sem mangas, com um decole fundo, que batia nos joelhos e que
serviria de camisola de dormir. Assim, pelo menos, não sofreria uma outra noite com o lençol enrolado no
corpo.
Às seis da tarde Kelly não tinha voltado ainda. Paige estava debruçada na janela da sala,
percorrendo com a vista o caminho em todas as direções, preocupada com sua demora. Kelly saíra a
cavalo de manhã bem cedo e não dissera onde ia.
Às sete da noite, cansada de esperar na sala, Paige tomou um banho comprido de imersão e
pensou nos preparativos para o jantar. A inquietação anterior deu lugar a um início de irritação. Não havia
nenhum motivo para Kelly demorar tanto, sobretudo sem haver deixado um bilhete dizendo onde ia e a
que horas pretendia voltar. Ele devia saber que ela ficaria preocupada e ansiosa com sua demora. O bruto
estava fazendo isso de propósito, somente para se vingar da noite maldormida.
Depois de mais duas horas sem nenhum sinal de Kelly, a atitude de Paige passou por uma nova
alteração. A raiva deu lugar a uma ansiedade insuportável. Alguma coisa tinha acontecido com ele. Não
era possível que se atrasasse tanto sem um motivo justo. Como faria para comunicar o fato a alguém?
Havia o rádio transmissor no quarto, mas de que adiantava se não sabia usá-lo?
Quanto a si mesma, não havia motivo para se inquietar. Os mantimentos na despensa eram
mais do que suficientes para uma longa estada na casa. Se fosse necessário, podia aguardar com paciência
que o nível das águas baixasse antes de aventurar-se à procura de auxílio. Quanto a Kelly... Mesmo que
conseguisse transmitir uma mensagem pelo rádio, não tinha a menor idéia do local onde deveriam ser
feitas as buscas. Também, por que ele não deixara um bilhete dizendo onde ia?
Ansiosa demais para concentrar a atenção na costura, Paige levantou-se da cadeira e foi
esquentar o jantar pela terceira vez em banho-maria. Estava retirando a panela do fogão quando ouviu um
ruído distante do lado de fora. Eram os passos de um cavalo? Sem hesitar, correu até a porta, abriu-a de
par em par e deu um grito de alívio ao avistar Kelly desmontar do cavalo diante de casa.
Ao vê-lo são e salvo, andando com indolência na sua direção, a irritação anterior voltou a todo
vapor. Ela xingou-o em voz baixa de todos os nomes que lhe passaram pela cabeça e aguardou com
impaciência que ele subisse os degraus que levavam à varanda. Quando Kelly entrou na sala, ela nem lhe
deu tempo para explicar o atraso. Partiu imediatamente para o ataque:
— Onde você estava até essa hora? Não lhe passou pela cabeça que eu podia estar morta de
ansiedade, imaginando que alguma coisa tinha acontecido com você? Você podia pelo menos ter deixado
um recado dizendo que ia voltar tarde e que eu não devia esperá-lo para jantar.
Kelly levou alguns segundos para voltar a si de sua surpresa. Ao perceber, porém, que ela
estava realmente furiosa com sua demora, ele deu uma risada descontraída.
— Não é possível! Faz apenas um dia que você está aqui e seu comportamento é igualzinho
ao da minha ex-mulher. Espere mais um pouco, garota!
— Escute aqui, seu... Você não é meu marido, mas eu tenho o direito de dizer o que penso,
bolas! Quem sofreu com seu atraso fui eu! Você não tem a menor consideração por mim...
Kelly tirou o chapéu da cabeça e passou os dedos por entre os cabelos escuros, observando-a
com atenção.
— Não é isso! Você tem sempre que fazer mal juízo de mim. Eu não sou tão egoísta assim.
— Desculpe — disse Kelly, levantando o queixo dela com os dedos. — Eu não sabia que ia
me atrasar tanto quando saí daqui. Aliás, eu também fiquei preocupado com você.
— Sempre pode acontecer alguma coisa num lugar isolado como este.
— Mais ou menos.
— Um pouquinho.
— Eu tentei fazer uma comida gostosa, mas não sou lá essas coisas na cozinha. Sem contar
que o jantar está pronto há horas...
— Ah, nem me fale! — disse Kelly, dirigindo-se ao banheiro. — Vou contar depois que lavar
o rosto e as mãos.
Kelly, porém, não contou seu problema porque, ao voltar à cozinha, o prato estava feito e ele
começou a comê-lo com um apetite de leão. Mas, após algumas garfadas, ele parou repentinamente e
voltou-se para ela com uma careta de desagrado.
— Nossa mãe, você botou sal demais no macarrão! Você não provou a comida?
— Ah, meu Deus, desculpe! Eu fiquei na dúvida e coloquei um pouquinho mais do que devia.
— Um pouquinho? Muito mais — disse Kelly, afastando o prato da sua frente.
— Eu avisei antes que não tenho experiência na cozinha. Sempre acontece alguma coisa...
— Estou acostumado. Mesmo porque eu tenho que cozinhar para mim quando estou sozinho.
Não faz nenhuma diferença cozinhar para dois.
— Bem, faça como você achar melhor — disse Paige deprimida, retirando os pratos da mesa.
— No fundo, você preferia estar sozinho. Esta é a verdade.
Seja porque estava ocupado com os preparativos do segundo jantar, ou porque achou que não
valia a pena responder, a verdade é que Kelly ouviu o comentário dela em silêncio. Paige imaginava que,
de um dia para o outro, ele podia ter mudado de opinião a seu respeito. Tudo, no entanto, continuava na
mesma.
— Não diga! Foi isso então que eu ouvi? Eu não saí lá fora porque estava com minhas
costuras.
— Eu deixei um sinal ontem à noite dizendo que tudo estava bem. Mas seria bom você saber
alguns outros, em caso de necessidade.
— Com pedras, troncos, panos, qualquer coisa que você encontrar na hora, contanto que seja
bem visível do alto.
— Como o piloto reconhece a estação que está sobrevoando? Do alto, todas elas devem
parecer umas com as outras...
— Você não reparou que o nome da estação está escrito no telhado, em letras brancas?
— Olhe, para falar a verdade eu nunca pensei nisso antes — disse Paige com impaciência.
Kelly deu um risinho zombeteiro.
— Não, não é! — exclamou Paige furiosa, voltando a atenção para os pratos que lavava na
pia. — Você não perde uma oportunidade de fazer pouco caso de mim.
— Desculpe.
Durante o segundo jantar, que Kelly preparou com a quantidade correta de sal e de tempero,
Paige guardou um silêncio obstinado, embora mantivesse a fisionomia serena. Duas vezes naquela noite
Kelly dera a entender que a presença dela na casa lhe desagradava. Ela não ia lhe dar a chance de
mencionar o fato uma terceira vez. Se Kelly desejava a solidão, ele teria a solidão, pensou Paige de mau
humor, sem perceber que seus olhos azuis estavam denunciando sua raiva.
— O que mais você tem contra mim? — perguntou Kelly em dado momento.
— Não disse, mas pensou. Você me xingou de todos os nomes durante o jantar. Pensa que eu
não percebi?
— Eu não abri a boca durante o jantar inteiro.
— Você nega que me desejou todo o mal desse mundo e que me condenou ao fogo eterno?
Por mais incrível que fosse, Kelly lia a mente dela com a maior facilidade do mundo.
— Eu não tenho nenhum motivo para odiá-lo — disse Paige com um olhar inocente.
— Como não? Você odeia as críticas que eu faço, os comentários, os conselhos que lhe dou.
Você não pensa em outra coisa a não ser vingar-se de mim na primeira oportunidade.
— Eu, me vingar de você? Depois de tudo o que você fez por mim? Seria o cúmulo da
ingratidão!
— Claro, você não fez outra coisa depois que nos conhecemos senão me criticar o tempo
todo.
— Neste caso, o melhor que você tem a fazer é comportar-se com juízo. Concorda?
Kelly estava tão perto dela que o seu campo de visão limitava-se ao rosto sorridente e ao peito
largo na sua frente. Ela sentiu-se pequena e indefesa diante de sua força bruta.
— Por que só eu tenho que mudar de atitude? Por que você não muda também uma vez?
— Porque não fui eu que errei. Você tem que aprender a se comportar com juízo, como um
adulto responsável por seus atos.
— Você não tem medo de que essa tarefa esteja acima de suas forças? Quem sabe se desta vez
você vai aprender alguma coisa comigo...
— Perca as esperanças, minha querida. Não sou eu que vou me deixar seduzir por seus belos
olhos.
— Há outros que não têm utilidade no momento, nem se aplicam ao nosso caso.
Ela repetiu mentalmente as instruções fornecidas por ele: Uma barra vertical significava:
"Necessita-se de Médico". Duas barras verticais: "Enviem Medicamentos de Emergência". Três barras:
"Necessita-se de Meios de Transporte".
— Devem ter mais ou menos uns três metros de comprimento. E nunca menos de dois metros.
— O piloto balança as asas de um lado para o outro quando entende a mensagem. Se a
mensagem não foi compreendida, ou tem alguma dúvida, ele descreve um círculo completo da esquerda
para a direita com o avião.
— Certo. Espero que não haja necessidade de usar esses sinais. A não ser o sinal de que tudo
está bem.
— Você só terá que usá-los num caso de emergência. Em geral, sou eu que mando os sinais.
A idéia de que Kelly pudesse estar impedido por algum motivo de mandar os sinais não era
muito agradável. Paige terminou de tomar o café e levou as xícaras vazias para a pia.
— Escute, não seria preferível você me ensinar a usar o rádio? — perguntou. — Assim eu
posso entrar em contato com a estação de Ainslie se acontecer alguma coisa com você.
— Não há necessidade. Afinal, se você não estivesse aqui eu teria que me virar sozinho.
— Eu não vou quebrar seu aparelho, nem usá-lo indevidamente. É apenas uma precaução a
mais.
— Sem contar que você pode manter longos papos com Stuart...
O ressentimento borbulhou dentro dela. Imagine se faria uma coisa dessas! Era só o que
faltava... Bater papo com Stuart! Como se ela tivesse muita intimidade com ele para ficar pendurada no
telefone durante horas...
— Não, não basta! — exclamou Paige sem controlar sua raiva. — Você tem é medo que o
pessoal de lá saiba que eu estou morando aqui!
— Que me importa que eles saibam ou não? Você vai estar lá dentro de algumas semanas e
poderá contar tudo o que lhe passar pela cabeça. Por que eu haveria de me inquietar com isso?
— Você disse antes que teríamos que ficar aqui mais um mês. Agora são apenas algumas
semanas?
— Lá onde?
— Ah, quer dizer que eu vou ficar hospedada lá, sem ser convidada?
— Que diferença faz ficar aqui ou lá? As duas estações são do mesmo dono. Tanto faz uma
quanto a outra.
— Não, senhor. Aqui eu me sinto em casa. Eu trabalho, eu lavo a louça, eu varro a sala, os
quartos, eu espano os móveis...
— Há duas vagas no momento na companhia. Mas eu não creio que nenhuma das duas sirva
para você.
— Nada muito importante. Apenas para cuidar da manutenção dos tratores, roçadeiras,
empilhadeiras, bombas hidráulicas, sem falar nos outros equipamentos agrícolas mais complicados...
— Não, de jeito nenhum. Entendi perfeitamente. Você quer um trabalho na companhia para
pagar sua estada aqui.
— Eu só não entendo uma coisa. Qual a diferença entre hospedar-se aqui e na fazenda de seu
amigo Stuart?
— A diferença é que eu fui convidada pessoalmente para visitar a fazenda dele. Eu não iria
bater lá sem mais nem menos, como aconteceu aqui.
— Bem, se você está se sentindo uma intrusa aqui, posso remediar essa situação.
— Muito simples. Vou convidá-la pessoalmente para ser minha hóspede. Está bom assim?
— Quanta gentileza! — exclamou Paige com um sorriso. — Até parece que estou sonhando.
Mas eu tenho a impressão de que a única pessoa que pode me fazer este convite é o dono da casa.
— Não seja boba! Ele sabe que você está aqui e está esperando que eu a leve até Ainslie. Em
caso de emergência, você não precisa ser convidada para ficar numa fazenda que lhe oferece um mínimo
de conforto.
— Entendo. — Paige apanhou o pano de prato e começou a enxugar a louça lavada. — Você
pretende ficar em Ainslie ou vai voltar para cá?
— Não sei ainda. Depende de uma série de fatores. Por que você quer saber?
— Preferia.
— Não se esqueça de que o rio transbordou e levou a ponte embora. Somente daqui a algumas
semanas será possível atravessá-lo com segurança.
Paige afundou a cabeça ao ouvir a explicação. Ela não fazia idéia, até aquele instante, da
gravidade do acidente.
— E minha bagagem? Minhas roupas? Meu dinheiro? Kelly passou os dedos pelos cabelos
escuros.
— Acho que dificilmente você poderá recuperar esses objetos. Se é que não foram levados
pelas águas...
Paige balançou a cabeça e apanhou um outro prato limpo na pia, que enxugou vigorosamente
com o pano de prato. Ela não queria chorar de novo na frente dele como uma idiota. O carro novo, os
vestidos que ia usar nas corridas, o dinheiro que levara meses para juntar — tudo perdido
irremediavelmente!
— Não fique triste — disse Kelly, retirando o pano de prato de sua mão e abraçando-a com
carinho. — A gente vai dar um jeito.
— Essa foi a viagem mais cara que eu fiz na vida — murmurou Paige com vontade de chorar
e de rir ao mesmo tempo. — Tudo porque não ouvi seu conselho.
— Pois é.
— Pobre menina levada — disse Kelly, inclinando a cabeça e beijando-a de leve nos lábios.
Antes que Paige voltasse a si de sua surpresa, ele afastou-a dos braços.
— Você fez uma roupa? — perguntou, examinando a costura que estava estendida em cima
da mesa.
— É uma espécie de conjunto. Não é lá muito elegante, mas dá para o gasto.
— É a saia.
Paige levantou-se da cadeira e passou o pano em volta da cintura.
— Fiz uma blusa para acompanhar a saia e uma túnica para dormir.
— Ah, boa idéia! Aquele lençol em volta do corpo não estava muito legal. Você parecia uma
múmia...
— Não brinque! — exclamou Paige com uma gargalhada. — Eu não fazia idéia de que dava
essa impressão.
— Levei um susto quando acordei e virei para o lado. Parecia que tinha voltado ao Egito
antigo.
— Não exagere! Eu sei que devia estar medonha com aquele lençol, mas nem tanto assim.
— O quê?
A primeira vez que isso aconteceu, ela levou um susto e tentou afastar o braço de Kelly de
cima de seu corpo. Entretanto, ao perceber que ele dormia profundamente, relaxou e não pensou mais no
caso. O gesto dele talvez fosse devido à posição em que dormia — de barriga para baixo, com o braço
estendido para o lado — ou a um costume adquirido na época em que era casado. Seja qual fosse a
explicação, Paige resolveu aceitar o gesto com naturalidade.
Deitada de costas, imóvel para não acordá-lo, voltou ligeiramente a cabeça para o lado, a fim
de observá-lo à vontade. Kelly dormia serenamente, com a expressão descontraída, os cabelos pretos
cobrindo parte da testa, a boca ligeiramente entreaberta.
Fascinante demais, pensou Paige com um suspiro. Raras vezes ela se deixara cativar por
alguém dessa forma. Embora Kelly não tivesse voltado a beijá-la depois daquela noite na cozinha, ela
reconheceu que sentia muitas vezes falta de um contato mais íntimo. Desde o primeiro encontro no hotel,
Kelly exercera uma influência profunda sobre suas emoções e isso aumentava com a passagem dos dias.
No seu caso, contudo, a solidão e o isolamento não estavam incomodando tanto quanto
imaginara inicialmente. Cada dia que passava aumentava o fascínio que sentia pela região campestre.
Talvez a companhia de Kelly na casa-grande da fazenda lhe desse uma segurança que contribuía para a
sensação de bem-estar que experimentava ultimamente.
— Perdi.
— Estranho.
— As mulheres em geral não gostam daqui, especialmente as que estão acostumadas ao
conforto da cidade.
— Talvez minhas raízes não estejam na cidade, como eu pensava. Foi por isso que sua mulher
pediu o divórcio?
— Olhe, para falar francamente, Nadine nunca tomou consciência de que estava morando no
interior.
— Não é possível!
— A única coisa que a interessava realmente era dar reuniões e jantares. E ela não ficava
satisfeita com pequenas recepções. Não! Tinha que receber dezenas de convidados, hospedá-los nos
melhores quartos, banqueteá-los com champanhe.
— Não. Em Ainslie.
— E você?
— O que eu podia fazer? Evidentemente não podia me dar ao luxo de ter convidados em casa
que bebiam champanhe no café da manhã!
— Eu imagino.
— Eu não dava um passo dentro de casa sem esbarrar num convidado de Nadine.
Convidados! A maior parte deles era parasita que não fazia nada, a não ser viver de expediente...
—E aí?
— Que remédio... Eu agüentei cinco anos essa bagunça dentro de casa. Nadine, porém, ficou
tão feliz com a decisão quanto eu. Ela não suportaria passar um dia comigo se não pudesse ter sua corte
em volta.
— Você quer saber se eu me arruinei por causa dela? Você não me conhece... Acha mesmo
que eu vou falir por causa de uma boneca de franja na testa e sombra verde nos olhos?
— Mas não comigo! Eu não perdi nada com o divórcio. Pelo contrário, saí ganhando!
— E Nadine?
— Acertou.
— Respeita uma ova! Mesmo porque não há nada muito especial na vida de uma secretária.
— Ué, eu tenho curiosidade de saber certas coisas a seu respeito. Afinal, vai fazer duas
semanas, que estamos morando na mesma casa.
Por que ele agia assim? Não eram somente questões de ordem pessoal que o irritavam, eram
também assuntos relativos ao trabalho. Até aquele instante, a única explicação satisfatória que encontrara
para essa atitude era supor que Kelly agia assim por estar levando uma vida solitária. Ele tinha perdido o
hábito da convivência, essa era a verdade. Que outra explicação podia haver?
Por volta do meio-dia, Paige terminou os trabalhos da manhã e estava pronta para dar a volta
costumeira pelos arredores da casa, onde o terreno estava seco. Mais além, estendia-se a vasta planície de
terras alagadas. Na véspera o nível da água subira ao ponto máximo e Paige estava curiosa para saber se o
nível continuava subindo ou se havia descido ligeiramente, como Kelly tinha previsto no dia anterior.
O sol transformava a superfície inundada num espelho ofuscante e Paige tinha que cobrir a
vista para protegê-la dos raios que incidiam diretamente sobre os olhos. Deixou as dependências da
fazenda para trás e caminhou em direção ao pasto, onde Kelly costumava deixar o cavalo alazão que
montava. Sorriu ao lembrar-se da tarde em que chegara na fazenda montada na garupa do cavalo.
Caminhou por baixo da sombra das árvores e olhou para tudo em volta com um sentimento de
alegria. A manhã estava linda, se bem que quente demais para seu gosto. Felizmente as árvores altas a
protegiam dos raios inclementes do sol.
Ao voltar a cabeça para o lado, Paige franziu a testa instintivamente com uma expressão de
espanto. Um touro enorme, terrivelmente mal-encarado, surgiu de repente a alguns passos do lugar onde
estava.
Nos dias anteriores ela tinha avistado diversos animais que se aproximavam da casa, fugindo
das águas que subiam. Era possível que aquele touro fizesse parte do mesmo rebanho.
Entretanto, no momento em que o touro abaixou a cabeça enorme e começou a cavucar o chão
com a pata direita, Paige concluiu imediatamente que ele estava com más intenções. O que mais chamou
sua atenção foi o pêlo arrepiado do animal, os olhos injetados que a fitavam atentamente, sem falar no par
de chifres curtos e retos que apontavam ameaçadoramente na sua direção.
Tomada de pânico, Paige fez duas coisas ao mesmo tempo. A primeira foi procurar com a vista
um abrigo perto dali; a segunda foi berrar com toda a força dos pulmões por Kelly. Ele estava trabalhando
na oficina e era possível que estivesse ao alcance de sua voz.
No instante seguinte, o touro e Paige se moveram ao mesmo tempo. O touro partiu no galope
na sua direção e ela partiu na corrida em direção à árvore mais próxima que avistou. O medo deu asas às
suas pernas e ela correu velozmente na direção do abrigo, agarrou-se ao primeiro galho baixo que
encontrou e levantou rapidamente as pernas, ficando dessa forma fora do alcance dos chifres do animal.
Aterrada com a investida do animal, Paige trepou em cima do galho e tornou a gritar a plenos
pulmões por Kelly. Sua esperança era que os chamados fossem ouvidos devido ao ar silencioso da
fazenda.
Bufando e cavando o chão embaixo da árvore, o touro bravo não se deu por satisfeito.
Arremeteu novamente contra o tronco, como se estivesse disposto a derrubar a árvore com suas chifradas.
Paige ficou branca como cera e tornou a gritar, pela terceira vez:
— Estou vendo — disse Kelly, parando o cavalo a uma distância respeitável do animal.
No primeiro instante, o touro teve a atenção desviada pela chegada do cavalo e do cavaleiro.
Ele hesitou alguns segundos antes de tomar uma decisão e de partir na direção do alvo mais acessível.
Paige prendeu a respiração ao observar a cena do alto da árvore. Kelly aguardou calmamente a
investida do touro furioso, com a espingarda apontada para ele. Quando o animal chegou a uma distância
de dez metros, ele disparou a arma poderosa de dois canos. O touro foi detido na corrida
instantaneamente, como se recebesse uma machadada na nuca.
Tudo aconteceu tão depressa que Paige continuou alguns segundos de olhos arregalados,
estupefata diante da cena. A massa enorme que estava prostrada no chão era o touro bravo e feroz de
alguns minutos atrás! No momento em que Kelly se aproximou da árvore, ela perguntou com a voz
engasgada:
— Ele é bravo por natureza. Esse touro fugiu do pasto há alguns anos e se tornou um animal
selvagem.
— Não. Vou arrastá-lo com o jipe e levá-lo para o outro lado do morro, longe da nossa vista e
do nosso olfato.
— Boa idéia.
Kelly estendeu a mão para ela.
— É preferível trepar na árvore do que ser pisada por um touro bravo.
— Você fez bem. Melhor isso do que correr do touro ou se esconder atrás da árvore.
— Eu quase me escondi atrás daquela árvore ali — disse Paige, apontando para um tronco
grosso que havia perto.
— Ainda bem que você mudou de idéia. Caso contrário, não estaríamos agora conversando
aqui.
— Porquê?
— Por mais incrível que pareça, o touro bravo dá a volta mais depressa na árvore que uma
pessoa.
— Não brinque!
— Juro. Num caso como esse, se você não tiver outra escolha, esconda-se atrás de uma árvore
menor, onde você possa dar a volta mais depressa que ele.
— Há, é claro. Mas, em geral, ele prefere atacar as pessoas aos objetos.
— E as vacas? Elas também atacam a gente?
— Está vendo? — exclamou Paige com um sorriso de triunfo. — Numa coisa pelo menos as
fêmeas são mais humanas que os machos.
— Só nisso, também — disse Kelly com um risinho irônico. — Você vem comigo ou não?
— Não, muito obrigada. Eu mal acabei de me recuperar de minha última experiência com
garupas de cavalo. Além disso, estava dando uma volta para verificar o nível da água. Vou continuar
minha inspeção, que foi interrompida por esse pequeno incidente...
— Você vai ver que o nível baixou cinco centímetros de ontem para cá.
— Ainda vai levar algum tempo para a estrada secar completamente. Mesmo um jipe com
tração nas quatro rodas atola se a lama for muito funda.
— Bem, a data da partida fica por sua conta. Você sabe melhor do que eu decidir esse
assunto. Pelo que entendi, você não vai me guardar aqui mais tempo do que for necessário.
— Por duas razões. A primeira é que você prefere a solidão à companhia de uma mulher
chata. A segunda...
— Olhe, eu não estou tão certo assim — interrompeu Kelly. — A cama com duas pessoas é
mais quente que com uma só.
— Bem, já que você não quer descer daí e não precisa da minha companhia, vou voltar ao
meu trabalho.
— Fica para outra vez. Hoje você já teve sua dose de emoções. Não é bom exagerar. Lembre-
se de que você está sob minha responsabilidade nesta fazenda. Eu tenho que zelar por sua segurança.
— Em outras palavras, você pode me agredir à vontade, mas não quer que mais ninguém me
pise em cima...
— Isso mesmo.
Paige aceitava com naturalidade o braço que Kelly passava em cima do seu corpo quando
estavam dormindo na mesma cama. Entretanto, o contato dele durante o dia lhe causava sempre uma
impressão inquietante. Para não trair seus sentimentos íntimos, ela decidiu repentinamente descer do
cavalo.
— Olhe, acho que eu vou dar meu passeio a pé. É mais seguro...
— Eu lhe pedi para você não passear mais hoje, está lembrada?
— Bem, de qualquer maneira, não vou mais andar a cavalo. A primeira vez bastou. Solte-me,
por favor. Eu quero descer.
— Eu não quero que você desça. Vamos ver quem ganha.
— Não abuse de minha paciência, Kelly! — exclamou Paige, dando com toda força uma
cotovelada nas costelas dele.
Logo que chegaram lá, ele desmontou, encostou a espingarda no canto da varanda e ficou com
as mãos na cintura, observando-a com uma expressão de desafio.
— A boa educação em certos casos não funciona — disse Kelly, estendendo os braços para
segurá-la pela cintura.
Ao ser puxada do lombo do cavalo, Paige agarrou-se na crina do animal. No mesmo instante, o
cavalo virou de lado e deu as costas a Kelly, que continuou segurando-a pela cintura. Com o movimento
inesperado do cavalo, Kelly perdeu o equilíbrio e caiu de costas no chão, arrastando Paige na queda, que
se estatelou em cima dele.
— Desculpe. Sei que não devia me aproveitar de uma situação como essa.
Paige passou os dedos trêmulos por entre os cabelos emaranhados.
— Você não tem culpa. Nós dois estamos sofrendo do mesmo mal. A proximidade exerce um
efeito muito forte sobre as pessoas.
— Mas nenhuma se aplica ao nosso caso. Nosso comportamento é ditado pela intimidade
forçada e não por um sentimento especial.
— As conseqüências, porém, são as mesmas, ainda que as intenções sejam diferentes.
Paige abaixou a cabeça, convencida momentaneamente pela lógica do argumento. Até o
momento conseguira controlar-se, mas não podia prever o que aconteceria no futuro se fosse tentada uma
outra vez.
— Um dia ou dois de viagem, no máximo. Tudo depende das condições da estrada e das
demoras causadas pelos desvios.
— Bruce Morgan possui a maior parte das ações da companhia, que é a legítima proprietária
das terras.
— É.
— É, a Greenvale.
— Eu não fazia idéia de que essas estações agrícolas fossem tão imensas assim.
— E agora? O que você vai dizer a Stuart? Que está furiosa com a injustiça da situação e que
não deseja mais conhecer a fazenda dele?
— Neste caso, chegamos a um acordo. Eu também não tenho nada a ver com isso. O tamanho
da propriedade onde trabalho não é da minha conta.
Kelly segurou o cavalo pelo cabresto e levou-o em direção ao pasto. Paige observou-o afastar-
se com os olhos pensativos. Mais uma vez Kelly interpretara mal suas palavras. Entretanto, como sabia
por experiência própria, não adiantava tentar corrigir uma impressão falsa.
A opinião que ele tinha a respeito dela estava feita de uma vez por todas e nada do que dissesse
ou fizesse iria demovê-lo dessa opinião. Somente o tempo poderia alterar essa situação. Quem sabe se
daqui a alguns meses ele passaria a vê-la com outros olhos?
Capítulo V
Ao entrar na sala da frente, depois do banho, Paige ouviu a voz de Kelly que vinha do quarto
de hóspedes. Embora estivesse há duas semanas na fazenda, era a primeira vez que ouvia Kelly falar no
rádio. Das outras vezes, ele aproveitava o momento em que ela estava usando o banheiro para transmitir
seu boletim diário. Naquela noite, contudo, a conversa pelo rádio prolongou-se além do tempo habitual.
— Aqui vai tudo bem — disse uma voz de homem. — As águas estão descendo lentamente.
— Não. As cercas foram derrubadas em alguns lugares, mas já foram endireitadas. Ah, antes
que me esqueça, Larry encontrou um potrinho no campo. Mãe e filho foram separados do resto dos
animais quando as águas subiram.
— Larry está de parabéns. Ele terá o privilégio de amansar o potro daqui a algum tempo.
— Um pouquinho. Como não há muito o que fazer nesta época, o pessoal fica inquieto dentro
de casa.
— Por que você não pede a Suzanne e a Michele para organizarem alguns passeios? Isso
serviria para passar o tempo.
— Boa idéia! Vou conversar com as duas sobre isso. E você, como está se dando com sua
hóspede?
Como a pergunta lhe dizia diretamente respeito, Paige aproximou-se da porta e ouviu a
resposta de Kelly com toda a atenção.
— Muito bem — respondeu Kelly com uma risada. — Minha hóspede está gostando muito
desta temporada na fazenda.
— Tanto assim? Eu pensei que você viria antes. A estrada está quase seca.
Paige aproximou-se ainda mais da porta. Seu interesse pela conversa aumentou ao ouvir a
referência à estrada e ao nível das águas, que baixava dia a dia. Ela também estava contando partir nos
próximos dias para Ainslie.
— Eu sei, mas não gosto de perder tempo com desvios. Prefiro esperar um pouco mais até que
a estrada esteja completamente transitável.
— Olhe, há alguém aqui que quer falar com você — disse Dave com vivacidade.
— Kelly, querido, eu estou morrendo de saudade sua! Por que você não vem correndo para
cá? Você não gosta mais de mim?
— Não dá, querida. Eu não posso arriscar a passar a noite atolado na estrada. Seja um pouco
mais paciente. Na semana que vem eu estarei aí sem falta. É uma promessa.
— Ah, eu conheço suas promessas! De qualquer modo, venha o mais rapidamente possível.
Todo mundo aqui está morrendo de saudade de você. Não se faça de rogado, que é feio.
— Eu não estou me fazendo. Prometo que irei logo que a estrada estiver seca.
— Veja se desta vez você mantém a palavra. Você mentiu para mim quando disse que não ia
passar tanto tempo longe.
— Mas por que tinha que ser você? Você não podia mandar outra pessoa em seu lugar?
— Mas nem por isso estou mais conformada com sua ausência — disse Suzanne com um
suspiro fundo.
— Está nada! — exclamou Suzanne com uma gargalhada alta. — Você não liga para
ninguém. Você é um egoísta de marca maior!
— Você não mudou nada, pelo visto — comentou Kelly com um risinho de zombaria.
— Nem vou mudar nunca. O que você vai trazer para mim desta vez?
A pontada de dor que sentiu no peito ao ouvir a gargalhada de Suzanne foi o início da
desconfiança. Estava ridiculamente apaixonada por um homem que não apenas demonstrava a maior
indiferença por ela como tinha sua afeição dirigida para outra mulher.
Era uma loucura total! Só mesmo uma idiota como ela podia pensar que um homem como
Kelly estava livre para gostar da primeira mulher que passasse pelo seu caminho.
Paige apanhou o maço de cigarros que deixara em cima da mesa da cozinha e acendeu um com
os dedos trêmulos. Ah, Deus do céu, por que não vira em tempo a direção que estavam tomando seus
sentimentos? Por que se deixara apaixonar desse jeito, sem a menor esperança de retribuição? Era por isso
que o simples contato da mão dele deixava-a toda arrepiada, com o sistema nervoso abalado, era por isso
que o sorriso dele a fazia feliz como uma criança. Estava tudo tão claro agora!
Ao ouvir os passos de Kelly na sala, Paige voltou a atenção para o chá que estava fazendo e
preparou-se emocionalmente para recebê-lo. Quando os passos dele se dirigiram para o banheiro, em vez
de rumarem diretamente para a cozinha, Paige deu um suspiro de alívio. Naquele momento não estava em
condições de ocultar seus sentimentos verdadeiros e a presença dele teria um efeito desastroso.
Minutos depois, quando Kelly saiu do banheiro e entrou na cozinha, com os cabelos ainda
úmidos do banho que tomara, Paige estava ocupada na arrumação da mesa e parecia inteiramente refeita
do choque anterior.
— O que você está com vontade de comer? — perguntou Kelly, passando a mão de leve sobre
os cabelos dela.
— O que você quiser — disse Paige, procurando expressar-se com naturalidade. — O que for
mais fácil de fazer.
— Porque eu conheço essa cara. Desde que entrei na cozinha, você se recusou a me encarar.
Eu conheço você, garota.
— Por favor, não me chame de garota. Eu tenho vinte e dois anos.
— Não tem nada a ver com a conversa que você ouviu pelo rádio?
— Eu vi seu reflexo no vidro da janela. Você se aproximou da porta e ficou parada ali, um
tempão, ouvindo minha conversa pelo rádio.
— Ah, era só o que faltava! — exclamou Paige com os olhos brilhantes de raiva. — Eu ficar
de conversinha fiada pelo rádio!
— Ué, por que não? Você deve estar com saudade dos papos que batia com suas amigas pelo
telefone. É por isso que as mulheres se dão tão mal no interior. Elas sentem falta do telefone, da
televisão...
— Não foi bem isso. Eu disse que não via necessidade de ensiná-la a usar o rádio, o que é
bem diferente, concorda?
— Quanta sutileza, meu Deus! De qualquer maneira, não tenho nada para conversar com essa
tal de Suzie... É assim que ela se chama?
— Ah, é bom eu saber. Por falar nisso, quem é ela exatamente? Uma funcionária da
companhia? Uma amiga da casa? Ou sua namorada?
— Desde criança.
Paige arregalou os olhos, completamente desorientada com a resposta. Ela não estava
entendendo mais nada. Se Suzie era namorada dele desde criança, por que ele se casara com Nadine e não
com ela?
— Vocês namoram desde criança? — perguntou por fim, com a testa franzida.
Duas deliciosas covinhas se formaram no rosto de Kelly no instante em que ele caiu na
gargalhada.
— Que boba você é, santo Deus! Suzanne é minha irmã, sua bocó!
Paige sentiu um alívio tão grande com a explicação que quase perdeu a fala. Foi inundada por
um incrível sentimento de felicidade.
— Ah, que burra eu sou! Não é à toa que você achou graça na minha pergunta. Jamais podia
me passar pela cabeça que sua irmã morava com você na fazenda. Ela também trabalha lá?
— Isso mesmo.
Enquanto Kelly apanhava os mantimentos no armário para fazer o jantar, Paige permaneceu em
silêncio durante alguns minutos, refletindo sobre tudo que ouvira.
Depois do jantar, os dois jogaram uma partida de xadrez. Embora Paige não tivesse ganho até
então nenhuma partida, continuava corajosamente a tentar a sorte, tendo a intenção de vencê-lo, nem que
fosse uma única vez, antes de partirem da estação de Bindaburra.
— Assim não vale! Você pensa demais — queixou-se ela, quando Kelly lhe deu um xeque-
mate pela terceira vez naquela noite. — Eu não vi que você estava planejando comer meu bispo. Você
tem que me dar uma vantagem na próxima partida.
— Está bom. Não precisa me dar a rainha. Mas não é justo que você ganhe todas as vezes, né?
— Um dia você vai ganhar. O importante é perseverar — disse Kelly com um sorriso irônico.
— Eu sei...
Sem se deixar abater pela perspectiva de perder mais uma partida, Paige começou a arrumar as
peças no tabuleiro. Um dia, quando ele menos esperasse, iria vencê-lo no xadrez! E não apenas no xadrez,
como também nas discussões que trocavam habitualmente, todas as vezes que sentavam para conversar
como duas pessoas educadas.
— Você já imaginou...
Kelly levantou a cabeça do tabuleiro e fitou-a nos olhos.
— O quê?
— Nós dois estamos sozinhos neste fim de mundo, mas pelo menos temos um rádio no quarto
ao lado. E antigamente? Como as pessoas faziam para viver no interior sem recurso de espécie alguma?
Sem rádio, sem telefone, sem médico por perto...
— Não só isso, como também de doenças desconhecidas. As histórias que correm sobre essas
regiões desoladas são terríveis. Contam que algumas pessoas andavam centenas de quilômetros a cavalo,
durante dias seguidos, para chegar a um povoado onde houvesse um médico. E não pense você que isso
foi há muito tempo. Até recentemente não havia recurso de espécie alguma no interior. Aliás, mesmo hoje
em dia, muitas pessoas ainda morrem por descuido ou por não tomarem as devidas precauções. O interior
é sempre um desafio. Quem se esquece disso, está correndo o risco de perder a vida a qualquer momento.
— Eu que o diga! — exclamou Paige, sentindo um arrepio na espinha. — Por um triz aquele
touro não me deu uma marrada...
— Ele ia se arrepender o resto da vida — disse Kelly com um sorriso no canto dos olhos.
— Seu estúpido!
A reação dela foi tão espontânea que os dois caíram na gargalhada.
Os três dias seguintes foram dedicados à pintura da casa. Kelly caiou as paredes de branco,
enquanto Paige pintou de azul as janelas e as portas. Ela nunca tinha pintado antes com rolo e ficou
surpresa com a facilidade do sistema, sem contar que o serviço rendia muito mais desse jeito do que pelo
sistema convencional do pincel.
No fim da tarde, após terminar uma parte do serviço, ela se afastou alguns passos e admirou o
resultado com um ar de satisfação.
— Agora, sim!
— A casa ficou com outra cara — disse Kelly, lavando os rolos e as brochas na torneira.
— Mais ou menos.
— E comigo?
— Que remédio? Afinal, foi você quem me introduziu nas maravilhas da vida no interior.
— Até certo ponto, sim. Mas não é no sentido em que você está pensando. Ser desejada para
mim significa contar como gente. Ter valor próprio... Apesar de tudo que você fez para me convencer do
contrário, gostei muito dessa estadia aqui — disse Paige, fazendo meia-volta e dirigindo-se para a casa.
Ela estava se enxugando no banheiro quando ouviu Kelly entrar na sala da frente. Não custava
nada fazê-lo esperar um pouco para tomar seu banho de chuveiro. A fim de dar maior crédito à sua
demora, ela abriu a torneira do chuveiro.
— Deixe um pouco de água para mim! — disse Kelly, tamborilando com os dedos na porta.
— Lembre-se de que não estamos na cidade.
— Já estou saindo — disse Paige. — Um minutinho só.
Quinze minutos depois, ao abrir a porta do banheiro, ela avistou Kelly encostado no batente,
esperando pacientemente que chegasse sua vez.
— Ah, desculpe! Eu não sabia que você estava esperando — disse Paige, embrulhada na
toalha, com a expressão mais inocente do mundo. Ela tinha prendido os cabelos úmidos no alto da cabeça
com um grampo e parecia uma odalisca com seu traje sumário. — Por que você não me apressou?
— Mentira! Esta é a primeira vez que você espera por mim. Em geral, você só toma banho
antes do jantar.
— Achei melhor adiantar tudo hoje para a gente levantar mais cedo amanhã.
Paige encarou-o surpresa, com a testa franzida.
— O que foi que você disse? — perguntou Paige, batendo com o punho fechado na porta.
Ele tinha feito aquilo de propósito, somente para irritá-la! Era sua maneira de vingar-se da
espera...
Estava encostada no batente da porta quando Kelly saiu finalmente do banheiro. Paige ignorou
o olhar espantado que Kelly lhe dirigiu e foi diretamente ao assunto.
— Que história é essa? Você disse que nós vamos viajar amanhã...
— Disse.
— Ué, a gente tinha que ir embora um dia. Tanto amanhã como na semana que vem.
Paige seguiu-o em direção ao quarto de dormir, fazendo um esforço para conter sua raiva.
Mal ela tinha acabado de pronunciar essas palavras ríspidas, seu queixo foi levantado por dois
dedos fortes.
— Não vamos brigar de novo, querida. Você sabe que as conseqüências nem sempre são
agradáveis...
— Para quem?
— Essa foi a pergunta mais tola que você já fez até hoje. Você sabe perfeitamente para quem.
Era difícil manter a frieza e a cabeça no lugar com os lábios dele roçando sua boca. Paige
estava inquieta e insegura, sem saber o que vinha em seguida. A agressividade e os gestos de carinho
andavam de mãos dadas na fazenda.
— De qualquer maneira, por uma simples questão de cortesia, você podia ter discutido essa
viagem comigo.
— Está bem. Vamos conversar sobre isso no jantar, com toda calma. Agora dê o fora que eu
vou me vestir — disse Kelly, empurrando-a em direção à porta.
— Este quarto é meu também! — protestou Paige, indignada por ser posta para fora sem a
menor cerimônia.
No momento em que Kelly fez menção de retirar a toalha que estava passada na cintura, ela fez
meia-volta e saiu do quarto espontaneamente.
O jantar naquela noite foi servido mais cedo, com o que havia sobrado do almoço. Kelly não
queria desperdiçar comida e pôs na mesa tudo o que havia na geladeira, que seria desligada no dia
seguinte, quando fossem embora. Mesmo assim, o jantar foi copioso para duas pessoas e os dois estavam
perfeitamente satisfeitos quando terminaram o último prato.
— De madrugada.
Ela balançou os ombros e fez uma careta de desagrado.
— Provavelmente. Leve uma malha grossa e uma manta para cobrir as pernas no jipe.
— Eu não tenho malha.
— Não. Vou deixar uma parte aqui. Eu não gosto de carregar muita coisa quando viajo nesse
tempo. Se a gente tiver que empurrar o jipe, é melhor ele estar bem leve.
— Ele vai ficar preso no pasto perto de casa. Há bastante capim, sombra e água fresca. Mais
alguma pergunta?
— Quem?
— Dave!
— Para quê?
— Escute, não vamos discutir de novo este assunto! — exclamou Kelly com impaciência. —
Finja que você está indo para Greenvale, a fim de se encontrar com Stuart.
— Está bom, eu vou fazer isso. Talvez eu esteja vendo problemas onde não existem. Prometo
que não vou falar mais nada antes de conhecer seu patrão. Ele vai estar lá?
— Com toda certeza. A menos que tenha viajado repentinamente. Ele passa a maior parte do
ano lá.
— Com a família?
— Convidados?
— Ah, agora estou entendendo... São essas visitas que você mencionou outro dia na conversa
com Dave pelo rádio?
— Sim.
Kelly serviu duas xícaras de café e estendeu uma para ela.
— Muita! Você não ouviu a risada de Suzanne quando eu perguntei como iam as visitas?
— Eles também não previram as enchentes?
— Eles estavam sabendo perfeitamente e alguns deram o fora enquanto era tempo, mas os
outros foram ficando... No fundo, é uma experiência divertida passar algumas semanas isolado numa
fazenda.
— Pois é. — Kelly estendeu o braço e apanhou o tabuleiro de xadrez que estava em cima da
cômoda. — Você quer ir à revanche?
— Você fala como se tivesse certeza de que eu vou perder todas as partidas. Por que faz
pouco caso de mim?
No início, conseguiu levar alguma vantagem. Logo depois, no entanto, Kelly inverteu a
situação e ameaçou seu rei ou sua rainha quando ela menos esperava.
— Xeque!
— Vamos ver.
— Quer apostar?
— Nada.
Decidida a se recuperar de todas as derrotas anteriores, Paige concentrou toda a atenção no
tabuleiro. Antes de cada lance, estudava cuidadosamente a posição das peças do adversário. Nos
primeiros minutos da partida estava nitidamente com uma posição superior.
Entretanto, quando Kelly rechaçou seu ataque com algumas jogadas bem pensadas e colocou-a
na defensiva, Paige reconheceu, desanimada, que o resultado da partida seria o mesmo de sempre. Mais
uma vez Kelly ia vencê-la sem dó nem piedade. Por mais que se esforçasse, não era uma adversária à
altura. A menos que...
A menos que, sem deixar Kelly perceber, afastasse o bispo branco que ameaçava seu rei! Ela
respirou fundo e reprimiu o sorriso que desabrochava nos lábios. O que pretendia fazer não era muito
limpo nem muito correto. E daí? Tinha que ganhar de qualquer maneira aquela última partida. Era sua
honra de mulher que estava em jogo!
— Estou pensando.
A oportunidade surgiu de repente. Kelly levantou-se da mesa para apanhar o maço de cigarros
que deixara no quarto de dormir. Mais do que depressa Paige empurrou o bispo branco para a casa ao
lado.
O movimento não teve conseqüências imediatas, mas fez uma tremenda diferença alguma
jogadas depois, como Paige constatou ao comer um cavalo do adversário.
— Um momento! — exclamou Kelly, segurando-a pelo pulso. — Tem alguma coisa errada
aqui!
— Você não pode mover esta peça — disse Kelly, observando atentamente o tabuleiro. — O
que aconteceu aqui? Esta peça não estava aqui!
— Como não?
— Olhe só! — exclamou Kelly, apontando para o tabuleiro. — Os meus dois bispos estão em
casas pretas! Foi por isso que você comeu meu cavalo!
— Claro! Você não reparou porque foi você quem tirou meu bispo do lugar!
Paige levantou-se da mesa.
— Como você tem coragem de dizer uma coisa dessas? Se você não sabe perder, não deve
jogar!
— Mentira!
— Vamos ver se é mentira — disse Kelly, segurando-a pelo pulso. Paige soltou-se com um
movimento brusco da mão.
— Não seja teimoso! — exclamou Paige, procurando manter uma distância constante dele. —
Por que você não leva isso na brincadeira?
— Eu vou levar na brincadeira. Vamos ver quem vai rir por último...
— Veja bem o que você vai fazer, Kelly! Quem avisa, amigo é...
Kelly caiu na gargalhada.
— Escute, se você não sabe se comportar como um homem civilizado, eu lhe peço apenas um
pouco de consideração por sua convidada.
— Você não é minha convidada — disse Kelly com um risinho de deboche. — Nós vamos
acertar contas de qualquer jeito!
Ao passar diante da porta, Paige voltou-se repentinamente e saiu correndo pela noite escura,
Durante alguns segundos, o único ruído que ouviu foi sua respiração ofegante. Não havia
ninguém por perto. Onde estava Kelly? Perdera-a de vista? Após alguns minutos de expectativa, ela
relaxou e deu um suspiro de alívio. Kelly, pelo visto, desistira de procurá-la na escuridão. Ou então tinha
ido à garagem buscar a lanterna que guardava no jipe.
De repente ela tremeu dos pés à cabeça ao ouvir no silêncio da noite o mugido aflito de uma
vaca chamando seu bezerro. No mesmo instante, escutou um ruído de passos atrás de si e voltou-se com o
coração batendo naquela direção.
Um vulto alto estava de pé a alguns passos dali, afastando as folhas de uma moita com a mão.
Ela deu um grito de susto.
— Sou eu. Quem você pensou que era?
Perdeu a noção de tudo. Só tinha consciência do homem de ombros largos que a estreitava nos
braços. O cheiro forte de loção de barba penetrava em suas narinas dilatadas como um perfume exótico
do Oriente. A musculatura tensa parecia entumescer-se sob suas mãos; a carne dele tinha um gosto limpo,
de coisa fresca,
Paige estava completamente zonza e sem forças quando os dedos dele desabotoaram os
primeiros botões da blusa e acariciaram os contornos entumescidos de seus seios. Deu um gemido de
prazer a afundou a cabeça no peito dele.
— O que foi? — perguntou sobressaltada quando Kelly deu um passo atrás e soltou os braços
que a cingiam pelo pescoço.
— O quê?
— Não.
— Ah, depois a gente conversa. Eu dei um jeito. O café está pronto. Vem logo antes que
esfrie.
— As roupas que eu fiz. Vou precisar de alguma coisa para vestir em Ainslie.
— Suzanne vai arrumar uma roupa para você vestir enquanto estiver lá. Vocês duas são quase
do mesmo tamanho.
— Você.
— De qualquer maneira, por medida de segurança, vou levar minha camisola. Afinal, é uma
recordação da minha estada aqui.
— Tudo bem — disse Kelly, preparando-se para sair do quarto. — Não demore.
— Sim, senhor.
As primeiras luzes avermelhadas da manhã estavam tingindo o oriente, expulsando as sombras
negras da noite, quando os dois partiram de Binda-burra meia hora depois. Paige voltou a cabeça para ver
pela última vez a casa-grande da fazenda e deu um suspiro de saudade. Ela recordaria sempre com
carinho, e com uma certa tristeza, a temporada que passara ali.
Foi somente uma hora mais tarde, após terem percorrido algumas dezenas de quilômetros na
estrada de terra, que a luz da manhã clareou perfeitamente os campos. A paisagem era muito imponente
no momento em que o sol nascente banhou os morros e as planícies com um brilho intenso.
Vez por outra passavam por poças de água que não tinham secado completamente e que
refletiam nitidamente as árvores e arbustos que beiravam a estrada. Embora a terra escura estivesse
escorregadia sob os pneus do jipe, a viagem transcorria num ritmo normal e seguro.
Aqui e ali avistaram pequenos aglomerados de vacas que procuravam os pastos verdes depois
do recuo das águas. Os rebanhos pastavam tranqüilamente nas planícies cobertas de capim-gordura,
salpicados de gotas de orvalho, juntamente com uma profusão de flores silvestres de todas as cores.
Mais ao longe, uma família de cangurus fazia um buraco no chão embaixo de uma árvore
frondosa, a fim de dormir tranqüilamente durante as horas quentes do dia, antes de saírem à procura de
alimento ao entardecer.
Pouco adiante começaram a surgir os primeiros trechos alagados. Paige notou que o jipe estava
encontrando alguma dificuldade em transpor os atoleiros fundos e escorregadios. Kelly aliás deixou isso
bem claro com o comentário impaciente que murmurou em voz baixa:
— Eram — murmurou, sem voltar a cabeça na direção dela. — Eu supunha que a estrada
estivesse mais ou menos seca até aquele morro lá na frente. Pelo visto, vamos pegar um longo trecho
repleto de atoleiros.
— A fazenda vem até aqui? — perguntou Paige com os olhos arregalados.
Fazia uma hora pelo menos que andavam e não tinham saído ainda dos limites da propriedade.
— Nossa mãe!
— De avião porém levam apenas algumas horas.
— Claro. Este sistema vem sendo usado desde alguns anos. É muito mais rápido e prático que
a cavalo.
— Um helicóptero.
— Alugado?
— Lógico. Quem não estaria? Afinal, não é todos os dias que eu sou apresentada a um
milionário...
— As terras foram compradas pela companhia, para a companhia. Não são dele pessoalmente.
— Ah, não vamos discutir por questões de detalhe! — exclamou Paige com impaciência. —
Eu não me importo a mínima com as terras de Bruce Morgan. Nem com os helicópteros que possui. Cada
qual faz o que bem entende com o dinheiro que tem.
— Bruce Morgan vai ficar contente com sua aprovação. Ele é muito sensível à opinião dos
outros.
— Não goze. Ele nem vai dar por minha presença na casa.
— Você está muito enganada. Ele faz questão de conhecer pessoalmente todos os hóspedes.
— Inclusive estes. Não pense você que os outros convidados que estão lá são todos
milionários. Tem muita gente nas mesmas condições que você.
— Muito obrigada! É um consolo saber disso.
— Desculpe. Eu não falei por mal. Eu pensei que você ia sentir-se mais à vontade sabendo
que não é a única pobre do bando — comentou Kelly com um sorriso.
Paige fez uma careta, mas ficou em silêncio. No momento toda sua atenção estava voltada para
os buracos da estrada. Ela agarrou-se com força no painel para proteger-se contra os solavancos que o jipe
dava ao transpor o caminho acidentado, repleto de pedras e raízes aéreas, que Kelly fora obrigado a tomar
para fugir dos atoleiros que surgiam agora com mais freqüência em todas as direções.
Ao meio-dia, Kelly parou o jipe embaixo de uma árvore e anunciou que estava na hora do
lanche. Paige desceu do carro com uma exclamação de alegria e esticou os membros doloridos. Eram as
cadeiras que sofriam mais cem os solavancos do jipe.
— Está cansada?
— Estou derreada!
— Quase.
— Graças a Deus! — exclamou Paige com alegria. — Eu preciso estar andando normalmente
quando chegarmos a Ainslie. Senão as pessoas vão pensar que eu andei bebendo durante a viagem.
— Quem mandou você se meter no mato? Se você tivesse voltado para casa, como eu sugeri,
nada disso teria acontecido.
— Já sei! Não precisa repetir mais uma vez que eu sou uma desmiolada e uma irresponsável.
O único episódio digno de nota na tarde daquele dia foi o ribeirão de leito arenoso que
atravessaram. Kelly manobrou o jipe cuidadosamente para que não entrasse água no distribuidor e
interrompesse a passagem da corrente elétrica, que mantém o motor em movimento. Depois disso, a
viagem transcorreu normalmente.
Mesmo assim, a tarde começava a cair no momento em que Kelly apontou para um aglomerado
de construções que se avistava no horizonte.
— Estamos chegando.
— Aquelas casas fazem parte da fazenda?
— Sim. Dentro de uns quinze minutos estaremos em casa. — Kelly voltou-se para ela: —
Acho bom você passar um pente nos cabelos.
— Boa idéia — disse Paige, apanhando o pente no bolso da calça comprida. — Sua mãe vai
me achar medonha com esta roupa e este rosto sujo de poeira.
— Ela sabe que você está viajando o dia inteiro na estrada de terra.
Como estavam atravessando o campo aberto e não o caminho habitual que dava uma volta
maior, eles se aproximaram da estação de Ainslie pela parte de trás. Após passarem o mata-burro que
marcava os limites da casa, Kelly apontou para as diversas dependências que constituíam o grande
complexo agropecuário. De longe, a fazenda tinha a aparência de uma vila.
Mais adiante, Paige avistou a sede propriamente dita, ligeiramente afastada das outras
construções e cercada por um gramado cuidadosamente tratado. A casa era imponente na sua
simplicidade, grande e baixa, tendo em toda a volta uma varanda larga, com diversas entradas.
Entre as duas alas da frente havia um pequeno pátio, com jardim e repuxo de água. As
trepadeiras cobriam as paredes de tijolos, subiam pelas vigas da varanda e se alastravam pelo telhado.
Uma mulher alta, de cabelos castanhos, vestida com elegância, foi a primeira a aproximar-se
do jipe. Paige desceu no chão e passou as mãos pela cintura, para desfazer as dobras da calça. Em
seguida, caminhou em direção à mulher que ela identificou imediatamente como sendo a mãe de Kelly.
— Fizeram boa viagem? — perguntou Michelle com um sorriso cordial. — Não estão muito
cansados?
— Paige está exausta — disse Kelly, retirando a mala do jipe. — Acho bom você
providenciar um banho quente para ela o quanto antes!
— Pula é apelido...
— Eu vou levá-la ao seu quarto — disse Michelle, segurando-a com delicadeza pelo braço.
Antes porém que as duas subissem os degraus que levavam à sala da frente, Suzanne e Nadine
aproximaram-se delas para as apresentações de praxe. Suzanne, a mais moça, tinha cabelos bem negros,
olhos castanhos e meigos, e um sorriso simplesmente encantador.
Nadine era alguns anos mais velha. Tinha cabelos bem claros, lisos, e estava vestida com um
requinte exagerado para uma casa de fazenda. Ela dirigiu sua atenção especialmente para Kelly, que
acompanhava a mãe e Paige com as malas nas mãos.
— Esta é minha filha Suzanne — disse Michelie, segurando a jovem pelo braço. — E esta é
Nadine...
— A mulher de Kelly.
Ela lembrou-se das palavras de Kelly sobre o trabalho que podia fazer na fazenda de Ainslie;
recordou-se do convite dele para passar alguns dias lá, como sua convidada. Lembrou-se das confissões
de Kelly sobre as festas que Nadine dava e que podiam levá-lo à ruína. Todas essas recordações voltaram
subitamente com uma clareza ofuscante e Paige morreu de vergonha ao lembrar-se do papel de idiota que
fizera durante as últimas semanas.
Ele era o dono das duas propriedades e de todas as terras que se estendiam por quilômetros e
quilômetros, até se perder de vista no horizonte! Ele não era o administrador da companhia, como ela
pensara inicialmente e como ele dera a entender tantas vezes.
A verdade cristalizou-se diante de seus olhos estupefatos com um clarão de agonia e de fúria.
Ela ficou literalmente cega pelo ódio.
Com a mão aberta, deu um passo à frente e desferiu um tapa estalado no rosto dele. Kelly
estava ouvindo alguma coisa que Nadine lhe dizia e foi apanhado inteiramente de surpresa. Não fez o
menor gesto para defender-se da mão que o atingiu em cheio.
O estalo do tapa ecoou pelo pátio como um tiro de pistola. Todos os olhares convergiram para
os três. Ninguém podia entender a reação inesperada de Paige, tanto mais que, alguns minutos atrás, ela
estava com a fisionomia aberta num sorriso, cumprimentando educadamente todos os convidados a quem
era apresentada por Michelle.
A primeira pessoa que voltou a si do choque foi Nadine. Com um sorriso amargo, ela
comentou em voz baixa com Kelly:
De fato, estava evidente a todos que o gesto de Paige fora ditado pelo instinto e que era talvez a
única maneira que ela havia encontrado para se vingar de alguma humilhação que sofrerá nos dias
anteriores na companhia de Kelly.
No momento em que Kelly aproximou-se dela, com os olhos brilhantes de ódio, Paige recuou
automaticamente, como se temesse uma reação brutal por parte dele.
— Nunca mais faça isso! — murmurou Kelly entre os dentes, encarando-a no fundo dos
olhos.
Com as pernas bambas, o coração batendo alucinadamente, Paige deixou-se guiar por Suzanne
para a sala da frente, onde havia alguns convidados debruçados nas janelas, observando os últimos atos da
cena anterior. Todos guardavam um silêncio educado, embora reinasse no ar um clima intenso de
curiosidade.
— Eu vou levá-la a seu quarto — disse Suzanne, segurando-a pelo braço.
Se não fosse o gesto delicado da irmã de Kelly, Paige não teria coragem de entrar na sala e
enfrentar os olhares curiosos das visitas.
— Está todo mundo de orelha em pé — disse Suzanne com um risinho malicioso. — Mamãe
está numa dúvida atroz. Ela não sabe se deve ignorar o caso ou se deve pedir satisfação a você pela
agressão dirigida ao filho querido.
— Ah, ela deve estar morrendo de ódio de mim — murmurou Paige, sem jeito. — Eu mal
cheguei...
— Que nada! — interrompeu Suzanne. — Mamãe está acostumada com cenas desse gênero.
Kelly e Nadine viviam brigando quando estavam casados. Os tapas voavam sem parar, você nem faz
idéia! Era um deus-nos-acuda...
— Mas eles, ao menos, eram da família. Eu não. Mal acabei de chegar, aprontei uma dessas!
Morgan Sinclair Mamãe ficou surpresa no primeiro momento, mas ela percebeu imediatamente
que você deve ter tido suas razões para agir assim. Michelle é muito legal nesse ponto. Ela não tem nada
das mães de antigamente — acrescentou Suzanne com um risinho.
— Se você faz questão — disse Suzanne. — Olhe, mamãe está ali. Aproveite que ela está
sozinha.
Paige fez o que seu coração ditou e desculpou-se junto a Michelle pelo ocorrido.
— Isso acontece nas melhores famílias — comentou Michelle com um sorriso, procurando
tranqüilizá-la. — Vamos esquecer o que aconteceu e encarar as coisas com maior compreensão daqui
para a frente.
— Eu não disse? — comentou Suzanne, conduzindo-a para o quarto no fim do corredor. —
Mamãe é superlegal. Todos aqui a tratam com a maior intimidade. Ela gosta disso, porque se sente mais
moça.
— Ela é uma simpatia. As mães que eu conheço não me perdoariam nunca. Imagine só!
Agredir o filho na cara delas...
— Mas você tinha razão para fazer o que fez, não é verdade? — perguntou Suzanne quando
pararam na porta do quarto.
— Ah, é uma história muito comprida... Em suma, ele deu a entender que era um empregado
da companhia e não o dono da fazenda.
— Nada! E eu aqui que nem uma bocó, tratando-o o tempo todo como um simples
empregadinho da companhia. Você já imaginou?
— Quer dizer que durante todo esse tempo que vocês passaram juntos ele não disse que se
chamava Kelly Morgan Sinclair, nem que era o maior acionista da companhia?
— Não. Juro que não. Ele disse apenas que se chamava Kelly Sinclair. Eu só descobri a
verdade quando sua mãe começou a fazer as apresentações.
— Mama mia! — exclamou Suzanne, pensativa. — Você acha que ele fez isso de propósito?
Com segundas intenções?
— Mas isso não é absolutamente do gênero dele. Kelly pode ser mandão, metido, chato, mas
ele não é gozador!
— Eu realmente não entendo... Você não é absolutamente o tipo de mulher que desperta a
agressividade dos homens.
— Eu também não compreendo o que aconteceu. Para falar a verdade, não vejo a hora de
voltar para casa. Estou meio cansada de todas essas confusões.
— Ela também está de malas prontas para ir embora — acrescentou Suzanne. — A casa vai
ficar vazia. Todos vão embora, inclusive os amigos de Nadine.
— Sua mãe não mora aqui? — perguntou Paige, surpresa com a informação.
— Eu acabei me acostumando. Afinal, ela tem o direito de morar onde gosta mais.
— E você toma conta dessa casa enorme sozinha? — perguntou Paige, admirada.
Suzanne não tinha absolutamente o jeito de uma dona-de-casa convencional. Ela era alegre e
despreocupada como uma criança.
— Não parece, não é mesmo? — exclamou Suzanne com uma risada. — Por falar nisso, eu
me esqueci completamente de avisar a cozinheira que vocês dois chegaram. Eu vou dar um pulo na
cozinha para conversar com ela sobre o jantar. Até mais tarde...
Depois que Suzanne saiu, Paige entrou no banheiro e tomou o banho mais demorado de sua
vida. Ela estava exausta com todas as peripécias do dia e desejava relaxar o corpo dolorido com os
solavancos da estrada para ter uma aparência razoável à hora do jantar.
Era uma sensação completamente nova mergulhar numa banheira enorme de mármore e
perfumar a água com os sais de banho que encontrou no armarinho do banheiro. Ela lavou os cabelos com
xampu, enxaguou-os de-moradamente no chuveirinho do box e por último passou um creme para
recondicioná-los. Os cabelos estavam precisando realmente de todos esses cuidados após as três semanas
passadas em Bindaburra.
No momento em que voltou ao quarto de dormir, embrulhada no robe de chambre felpudo que
encontrou no banheiro, Suzanne bateu na porta.
— Vamos ver o que combina com você — disse Suzanne, abrindo o guarda-roupa e
percorrendo com os dedos os vestidos pendurados nos cabides. — O verde vai bem com seus cabelos
loiros e com seu tom de pele, mas não pode ser muito escuro para não apagar o brilho dos olhos. Ah, já
sei! Eu tenho um vestido que vai servir. Pronto! É esse aqui. O que você acha?
Suzanne tirou do armário um vestido longo de crepe transparente forrado de seda. O estampado
do tecido tinha diversas tonalidades de tons verdes, desde os mais escuros aos mais claros.
— É lindo! — murmurou Paige, deslumbrada com o brilho acetinado do pano. — Eu até
tenho medo de pôr esse vestido!
— Ele deve servir em você — disse Suzanne com naturalidade. — Nós duas somos quase do
mesmo tamanho. Experimente para ver como fica. — Ela abriu uma outra porta do armário. — Enquanto
isso vou escolher algumas roupas para você vestir. Kelly me contou que você perdeu tudo na inundação.
— Que horror!
— Pois é. Se eu tivesse ouvido o conselho de seu irmão, isso não teria acontecido. Ele insistiu
comigo para voltar de Tingala. Fui eu que teimei e viajei para o interior. Dito e feito! Desabou uma
tempestade no meio do caminho e eu perdi o carro, com tudo o que eu tinha, na enchente.
— Que tristeza!
— Como é mesmo aquele ditado? Deus escreve certo por linhas tortas. Vai ver que foi melhor
assim.
— Que nada! Está lindo e muito correto. Não tenha medo. Você não vai escandalizar ninguém
com esse vestido. Pelo contrário, vai deixar as mulheres com inveja e os homens com água na boca.
— Deus me livre! — exclamou Paige com uma risada. — Eu prefiro que ninguém note minha
presença na sala. Depois do que aconteceu hoje à tarde, eu não quero mais chamar a atenção para mim.
Estou morta de vergonha.
— Deixe disso! Estão todos morrendo de curiosidade para saber por E que você agiu daquela
forma. Quanto mais suspense você criar, tanto melhor. Só assim eles têm alguma coisa interessante para
conversar...
— Só no começo. Logo eles se cansam. Eu só queria preveni-la de R uma coisa. Tome muito
cuidado com o que você falar diante de Nadine. Ela é uma víbora.
— Ela está uma fera por você ter vindo com Kelly. Ela suspeita inclusive que Kelly adiou a
vinda por sua causa.
— Que injustiça! Nós não podíamos vir antes porque a estrada estava alagada.
— Eu sei disso. Nadine porém vai aproveitar qualquer pretexto para agredi-la. Ela não suporta
as rivais.
— Foi Kelly quem sugeriu o divórcio. Por ela, estariam casados até hoje. Nadine não se
conforma em perdê-lo.
— Que idéia! Ela não tem motivo nenhum para ter ciúme de mim. Depois do que aconteceu
hoje, Kelly não vai nem mesmo falar comigo.
— Você acha?
— Tenho certeza.
— De qualquer forma, eu fico muitíssimo agradecida a você por tudo o que fez por mim,
inclusive por sua advertência.
— O que é isso? — disse Suzanne com um sorriso. — Se você precisar de mim, não faça
cerimônia.
Capítulo VII
Depois que Paige terminou a maquilagem e escovou os cabelos, mirou-se uma última vez no
espelho antes de acompanhar Suzanne à sala de estar, onde os convidados estavam reunidos tomando o
aperitivo antes do jantar.
O som estridente de uma gargalhada foi a primeira coisa que as duas ouviram quando saíram
no corredor.
— Eles passam o dia todo fofocando — comentou Suzanne com uma expressão de desagrado.
— Está ouvindo as risadas?
— Nem diga!
— Nosso helicóptero foi emprestado para um vizinho e só estará de volta aqui no fim do mês.
Até lá temos que agüentar as visitas com paciência.
— Ela finge que não vê nem ouve nada para não se aborrecer.
— E Kelly?
— Ele detesta este tipo de conversa. Eu estou rezando para ele dar um jeito nas visitas.
Inventar um programa, descobrir uma ocupação para elas longe de casa, qualquer coisa, contanto que não
fiquem enchendo a paciência da gente o dia inteiro.
Nesse instante, um dos convidados de Nadine aproximou-se delas e passou os braços em volta
da cintura de cada uma.
— Vamos entrar, gente! O pessoal está curioso para conhecer a nova convidada. O que vocês
vão beber?
Ao constatarem que não havia outra alternativa a não ser unir-se aos outros, as duas sorriram
para o rapaz e pediram cada uma a bebida de sua preferência. Paige sentiu-se ligeiramente ansiosa ao
entrar na sala de estar e aproximar-se de um grupo constituído por Kelly, Michelle, Nadine e um outro
casal desconhecido.
Paige cumprimentou-os com um sorriso que pretendia ser descontraído, mas que tinha algo de
forçado. Kelly balançou a cabeça e observou-a de alto a baixo, sem fazer nenhum comentário, contudo.
Pelo visto, ele não se esquecera ainda do que sucedera algumas horas antes.
— Esse vestido ficou muito bem em você — comentou Michelle com voz afetuosa. — Ainda
bem que você e Suzanne são do mesmo tamanho.
— Foi uma sorte, realmente — concordou Paige, sentindo-se mais à vontade com as palavras
amáveis de Michelle.
— Você não se importa de vestir roupa emprestada? — Nadine interveio na conversa com
uma expressão de espanto. — Eu prefiro andar nua a vestir roupa dos outros.
Alguns convidados que estavam perto sorriram uns para os outros com o comentário mordaz
de Nadine.
— Eu só usei esse vestido uma vez — explicou Suzanne, procurando desfazer a impressão
penosa produzida pela intervenção de Nadine. — Ele está praticamente novo...
— Mesmo que não fosse, ele é cem vezes mais bonito que as roupas improvisadas que
costurei na fazenda—disse Paige ganhando coragem.
— Kelly contou que você perdeu todas as suas coisas na enchente — interveio Michelle.
— Pois é. O carro foi levado pelas águas com tudo o que eu tinha. — Paige voltou-se para
Kelly, que ouvia a conversa com o rosto impassível.
— Por falar nisso, preciso lhe devolver os lençóis que tomei emprestado na fazenda.
— O que você fez com os lençóis? — perguntou Suzanne com uma risada nervosa.
— Os lençóis são um presente da companhia — disse Kelly quando as três sossegaram um
pouco.
— Muito obrigada — disse Paige, estendendo a mão para apanhar seu copo.
— Depois desse aperitivo que eu fiz, você vai comer como um leão — disse o rapaz.
— Você só pensa em comer, Vaugham! — exclamou Nadine com uma risada. —O jantar não
foi servido ainda.
— Mas não vai demorar — disse Vaugham. Ele voltou-se para Paige: — Você é tão doce
quanto seu nome sugere?
— Só provando! — disse alguém com uma risada sonora.
— Se ela fosse doce, não batia no marido dos outros — acrescentou Nadine com frieza.
— Você devia ter uma boa razão para isso, não é mesmo, doçura? — perguntou Vaugham,
tomando o partido de Paige.
Paige corou diante do olhar que os convidados lançaram na sua direção. Estavam todos
aguardando com impaciência um esclarecimento sobre a cena ocorrida naquela tarde.
— Por que vocês duas não vêm sentar aqui? — sugeriu Vaugham apontando para o sofá onde
havia lugar para os três. — Eu estou curioso para saber como foi sua estada de três semanas na fazenda.
— Agora, pelo menos, estamos livres dos comentários maldosos de Nadine — disse
Vaugham, acendendo o cigarro dela.
— Ela me assusta — comentou Paige com um risinho nervoso, olhando de relance para o
pequeno grupo que acabara de deixar.
— Amantes?
— Quase.
— Verdade?
— Não!
— O quê?
— Você nega?
— Está na cara, meu bem. Eu me conheço nesses assuntos. Nós dois sofremos do mesmo mal.
Eu sei de cor todos os sintomas. Você pode confiar em mim, eu sou um túmulo. Nunca traí a confiança de
um amigo... ou de uma amiga.
— E aí?
— Que remédio? — disse Vaugham com um sorriso de ironia. — E você? Seu amor é
retribuído?
— Isso não quer dizer nada. Kelly é tão reservado que a gente nunca sabe o que se passa na
cabeça dele. Nadine, pelo menos, não faz segredos do que sente por mim.
— Você tem mais sorte que eu. É horrível a gente ficar na dúvida!
Vaugham sorriu e levantou-se do sofá.
No momento em que ocupou seu lugar à mesa, procurou associar o homem moreno que estava
na cabeceira — dono de um império e senhor de propriedades que não tinham fim — com o desconhecido
que encontrara no hotel de Tingala e que julgara ser o administrador de uma estação agrícola perdida nos
confins do Judas.
— Conte como foi sua estada forçada em Bindaburra — disse Vaugham após estarem
instalados na mesa. — Você gostou?
— O que vocês faziam o dia inteiro? — perguntou uma moreninha de cabelos ondulados, com
duas covinhas ao lado da boca.
— Eu varria a casa, costurava roupas para mim, dava passeios pelos arredores. Ajudei
também Kelly a pintar as portas e janelas da casa. Enfim, havia sempre alguma coisa para fazer. Não
posso me queixar de ter me sentido entediada lá...
— Mas não são todos que gostam de fazer essas coisas — comentou alguém.
— Paige adora os trabalhos domésticos — observou Nadine com um risinho de pouco caso.
— Também, nem tanto — corrigiu Paige. — Eu prefiro estar na companhia de pessoas amigas
do que sozinha numa fazenda.
Alguns risinhos deram a entender que a indireta atingira seu objetivo. Nadine fechou a cara e
voltou-se para o lado, como se fosse dizer alguma coisa a seu vizinho de mesa. No mesmo instante, a
moça morena, de covinhas, voltou a perguntar
— Foi só isso que você fez durante essas três semanas? Não aconteceu nenhuma aventura
especial?
— Depende do que você chama de aventura — disse Paige, bem-humorada. — Eu posso dizer
que morri de medo quando um touro bravo avançou para mim.
— Não brinque!
— Verdade?
— Ele estava trabalhando ali perto. Ele montou no cavalo em pêlo e veio a galope na minha
direção. Quando o touro investiu sobre o cavalo, ele o matou com um tiro de espingarda.
— Claro que foi com um tiro. Com o que você queria que fosse? Com arco e flecha? —
exclamou Nadine com uma risada, dirigindo sua agressividade para outra direção.
— Que tem de mais perguntar? — insistiu a moça que se sentiu agredida. — Se a gente não
pergunta não fica sabendo.
— Isso mesmo! — interveio Vaugham com um sorriso. — Pergunte tudo o que você tem
vontade.
— Felizmente, não. Mas eu não gostaria de correr de novo de um touro bravo. Eu morri de
medo. Ele estava realmente decidido a me dar uma chifrada.
— Por que você não me contou? — perguntou Michelle, voltando-se na direção do filho.
Kelly deu um sorriso sardônico.
— Pela maneira como as notícias voam, eu não queria que Stuart ficasse preocupado com sua
convidada... Afinal, ela estava sob minha responsabilidade.
Mentiroso!, pensou Paige na outra extremidade da mesa. Kelly não se preocupava a mínima
com o que Stuart pensasse ou não. A única coisa que o irritava era saber que ela fizera uma viagem de
três dias unicamente para visitar seu amigo em Greenvale.
— Ah, foi bom você falar! Eu me esqueci de dizer a Paige que Stuart pediu notícias dela.
— Foi. Mas como a ligação não estava muito boa, Kelly achou preferível fazer outro chamado
amanhã.
— A que horas? — perguntou Paige com interesse. — Eu gostaria muito de estar aqui para
conversar com ele.
— Nós adotamos a única solução realista — disse Kelly com o rosto impassível. —
Dividimos a cama todas as noites.
— Delícia é apelido — acrescentou Nadine, olhando furiosa para Paige. Os olhos dela
lançavam faíscas de ódio.
— Vocês estão redondamente enganados — acrescentou Kelly com a mesma voz serena de
antes. — Não foi delicioso nem muito confortável. Foi simplesmente uma solução de ordem prática. E, se
alguém tem uma opinião diferente, eu preferia que não a comentasse em voz alta.
As palavras do dono da casa caíram sobre todos como uma ducha de água fria. Nem mesmo
Nadine ousou desobedecer à ordem emanada da cabeceira da mesa, embora estivesse se roendo de raiva e
louca para fazer algum comentário maldoso.
Paige deu um suspiro de alívio quando o copeiro retirou os pratos e desviou a atenção dos
presentes de sua pessoa. O jantar terminou num clima de tranqüilidade aparente. A tensão, porém, pairava
sobre a sala e estava prestes a explodir de um momento para o outro.
Quando os convidados se dirigiram à sala pegada para tomar café, na companhia dos donos da
casa, Suzanne segurou Paige pelo braço e levou-a para o mesmo sofá onde Paige conversara alguns
minutos antes com Vaugham.
— Desculpe minha pergunta idiota! — disse Suzanne em voz baixa. — Não me passou pela
cabeça que vocês dois tinham dormido na mesma cama, se bem que fosse a solução mais prática, como
Kelly afirmou.
— Ah, sim, já sei qual é. A que faz umas perguntas meio sem pé nem cabeça...
— Essa mesma. Ela é bem pirada. Quanto a Vaugham... Olhe, eu não sei sinceramente o que
pensar dele. Ele contou a você que está apaixonado por Nadine?
— Não é estranho ele confessar isso a todas as pessoas que conhece? Pela maneira como
Nadine o trata diante dos outros, eu não sei realmente se ele é um santo por aturar sua agressividade, ou
se é um perfeito idiota. O que você acha?
— Não sei. Vai ver que ele sofre com isso, mas não pode fazer nada. Afinal, nem sempre a
gente gosta de quem gosta da gente.
— Não, Deus me livre! Estou falando em geral. Eu simpatizo com Vaugham. Ele me pareceu
ser muito sensível, se bem que um pouco ingênuo...
— Concordo com você. Às vezes, no entanto, ele responde a Nadine na mesma moeda. Vai
ver que, se ele adotasse sempre essa atitude, Nadine acabaria respeitando-o como homem.
— Ela piorou muito depois do divórcio. Antes ela era bem mais simpática, se bem que todos
tinham que fazer sua vontade. Ela e Kelly tinham brigas horríveis por causa disso. Bastava contrariá-la
em alguma coisa para ela aprontar uma cena medonha. A verdade é que ela sempre foi tremendamente
egoísta e nunca abriu mão de seus interesses. No casamento isso é um inferno, como você pode imaginar.
Paige aproveitou o clima de intimidade que havia entre as duas para esclarecer uma dúvida.
— Dificilmente. Aliás, eu não entendo até hoje como Kelly casou com Nadine. Os dois não
combinam em nada. Pode ser que eu esteja enganada, mas acho que Kelly se arrependeu amargamente de
sua decisão.
— Como foi que eles se conheceram?
— O pai de Nadine morreu de um ataque cardíaco, após perder todo o dinheiro num negócio
arriscado. Como a mãe de Nadine e Michelle eram muito amigas, Nadine aproveitava para chorar as
mágoas na companhia de Kelly, enquanto a mãe dela passava a tarde com Michelle. Kelly tinha tudo o
que ela desejava num homem... dinheiro, prestígio social, uma bela aparência... Em pouco tempo as
visitas de Nadine se tomaram mais freqüentes.
— Bem, eu não posso afirmar que tenha sido só por causa disso. Kelly exerce uma atração
muito forte sobre as mulheres, como eu mesma presenciei várias vezes. Mas, basicamente, foi esse o
motivo. Nadine. É uma egoísta de marca maior e ela viu no casamento a oportunidade para recuperar-se
economicamente da grande crise que atravessou depois da morte do pai.
— Mais ou menos — disse Suzanne, pensativa. — Kelly tolera as visitas de Nadine e de seus
amigos. Como se cedesse a casa, uma vez por ano, para Nadine trazer os convidados que deseja.
Suzanne interrompeu repentinamente o que dizia e voltou-se para Paige com o rosto ansioso.
— O que vocês estão cochichando aí? — perguntou para Suzanne, com ar de cumplicidade.
— É alguma coisa que eu posso ouvir? Ou Paige está contando suas aventuras noturnas com meu marido?
— Escute, Suzanne, este seu comentário está começando a me deixar nervosa — disse Nadine
com irritação. — Por que você não me deixa em paz uma vez na vida? Para mim, Kelly continua sendo
meu marido, você queira ou não!
— Está bom, Nadine, você é quem manda — disse Suzanne em tom de brincadeira. — Mas
eu preferia que você perdesse essa mania de chamar as coisas pelos nomes errados...
— Se Kelly não se importa com isso, por que você tem que tomar as dores por ele?
— Kelly não fala nada porque é muito educado. Mas, se eu fosse você, não contaria muito
com as reações do meu irmão. Uma vez você fez isso e entrou pelo cano, está lembrada?
Os olhos verdes lançaram faíscas de ódio. Estava visível para todos que Nadine ia explodir de
um momento para o outro numa crise de fúria.
Paige corou até a raiz dos cabelos com a indireta maldosa. Estava evidente agora que todo o
ódio de Nadine estava dirigido contra ela. Suzanne era um simples pretexto.
— O que você quer dizer com isso? — perguntou Paige, decidida a enfrentar a outra de
cabeça erguida.
— Ah, não se faça de sonsa! — disse Nadine com vivacidade, como se estivesse aguardando
aquela oportunidade para abrir o jogo. — Todos ouviram o que Kelly disse à mesa... Você fez papel de
coitadinha para ganhar uma meia dúzia de vestidos e de lençóis usados. E isso porque Suzanne ficou com
pena de você!
— Você tem toda razão! — disse Paige em tom de zombaria. — Mas como você não pode
entender a diferença que existe entre dormir na mesma cama por necessidade e dormir por prazer, eu não
vou perder meu tempo explicando.
— Nem eu quero ouvir sua explicação! — exclamou Nadine com raiva. — Só desejo
acrescentar uma coisa, sua metida! Você não passa de uma vigarista que se insinua na casa dos outros
com segundas intenções!
Sem prestar atenção aos sussurros e aos olhares que os convidados trocavam entre si, Paige não
conteve mais tempo sua irritação. Realmente Nadine tinha passado da conta e não era ela quem ia levar
desaforos para casa!
— Eu prefiro ser uma vigarista a uma prostituta de segunda classe, que se casa por interesse e
continua uma parasita...
— O que foi que você disse, sua cadela? — exclamou Nadine, desferindo um tapa com toda a
força na face de Paige.
A xícara que Paige estava segurando voou pelos ares, derramando café em cima do vestido
novo que Suzanne lhe emprestara. No primeiro instante, Paige ficou na dúvida se dirigia sua atenção para
a mancha de café na saia ou se para a presença furiosa de Nadine na sua frente. Felizmente, Suzanne
acudiu em sua defesa.
— Escute aqui, Nadine, acho bom você ter modos! — disse Suzanne com a autoridade de
dona da casa, ajudando Paige a se recompor do susto e apanhando a xícara de café caída no chão, em
cima do tapete. — Caso contrário, vou ser obrigada a tomar uma providência enérgica. Não se esqueça
de,que Paige é minha convidada...
Surpreendida com o tom ríspido de Suzanne, Nadine levou as mãos ao rosto e começou a
soluçar como uma criança. Ao avistar Kelly, que havia entrado na sala naquele momento, ela se levantou
do sofá e atirou-se nos braços dele, como se houvesse sofrido uma grande injustiça por parte das duas.
Com a face vermelha em conseqüência do tapa recebido, Paige enxugou o café que havia
escorrido pelo braço e examinou a mancha na saia com os olhos aterrorizados.
— Não foi nada — disse Suzanne, procurando tranqüilizá-la. — Isso sai com água quente.
Michelle, que assistira à discussão entre as duas sem interferir, aproximou-se de Paige com
uma expressão de solicitude.
— Não, não foi nada — disse Paige com um sorriso sem graça. — Felizmente o café não
estava muito quente.
— Ah, boa idéia. Talvez fosse bom passar água quente antes que a mancha seque.
— Ah, a gente nunca sabe o que se passa na cabeça dela. Nadine é imprevisível. Sem contar
que é um poço de egoísmo. Quer um conselho? Esqueça o que aconteceu. Não vale a pena você quebrar a
cabeça por causa de Nadine. Ela não merece isso... Uma coisa é certa: quem começou a briga foi ela.
Você não teve culpa nenhuma.
— Ela é uma fúria! — exclamou Paige de repente, sem controlar mais tempo o riso nervoso.
— Você viu como ela virou uma fera quando eu mencionei seu casamento por interesse?
— Você tem razão. Vou seguir seu conselho. Mesmo porque, estou morta de cansaço com
todas essas peripécias do dia e vou aproveitar para dormir mais cedo.
— Isso mesmo! Você já devia ter ido para a cama há mais tempo depois dessa viagem que
vocês dois fizeram. A gente se vê amanhã à mesa do café. Por falar nisso, você gosta de andar a cavalo?
— Ah, que pena! Kelly e eu costumamos passear a cavalo de manhã cedo, antes do café. Eu
achei que você gostaria de ir conosco.
— Eu posso lhe dar uma aulas, se você quiser — interrompeu Suzanne com vivacidade. —
Andar a cavalo é o melhor programa que há na fazenda. É uma delícia...
— Acredito. Acontece que eu não me dou muito bem com cavalos. Nas duas vezes em que
me aventurei a montar no cavalo de Kelly, me arrependi amargamente.
— Também, logo no cavalo de quem você foi andar! Kelly adora os cavalos ariscos e
trotadores. Se você mudar de idéia, eu providencio uma égua bem mansinha para você montar. Não se
assuste. Você não vai se arrepender amargamente — disse Suzanne com um sorriso, despedindo-se dela.
Minutos depois, no momento em que Paige se preparava para dormir, alguém bateu de leve na
porta.
— Pode entrar.
Ela ficou gelada quando avistou Kelly parado diante da porta.
— Eu vim saber como você está — disse ele da porta, com o rosto impassível. — Você já vai
dormir?
— Não. Já passou.
— Esta é a minha cara de sempre. É porque você não está acostumado a me ver sem
maquilagem.
De fato, Paige tinha acabado de lavar o rosto no banheiro para retirar a maquilagem que
Suzanne lhe fizera para o jantar.
— Ah, não se faça de ingênua! — exclamou Kelly com impaciência. — Estou farto de vê-la
sem maquilagem, de rosto lavado. Já vi seus olhos inchados de sono, sua face marcada pelo travesseiro.
Não é nada disso. Você está abatida como se não dormisse há uma semana. O que você tem? Eu faço
questão de saber... Foi por causa da discussão com Nadine? Você se sentiu agredida com as palavras
dela?
— Eu? Você não me conhece... A discussão com Nadine não teve a mínima importância. Eu
só fiquei aborrecida com a mancha de café no vestido novo de Suzanne. Quanto ao mais, está tudo bem.
Amanhã vou estar boa. Preciso apenas de algumas horas de sono.
Nadine resolveu usar todos os recursos da arte da sedução a fim de reconquistar o amor de seu
ex-marido, e ele, por sua vez, decidiu ignorar completamente a presença de Paige na fazenda.
Fazia quatro dias exatamente que os dois não trocavam uma palavra. Paige estava pagando
todos os seus pecados e não via a hora de voltar para casa e esquecer de uma vez por todas os
acontecimentos penosos das últimas semanas.
Assim, quando Suzanne perguntou, à hora do almoço, se ela queria assistir a um rodeio na vila,
Paige declinou educadamente do convite, alegando que estava com dor de cabeça e que preferia passar a
tarde no quarto.
— Quer tomar um comprimido? — insistiu Suzanne, fitando a amiga com expressão inquieta.
— Ou prefere pôr um lenço mergulhado em água fria na testa?
— Não precisa, muito obrigada — disse Paige sem jeito diante da boa vontade da dona da
casa. — Algumas horas de repouso são suficientes. Logo eu vou estar boa.
— Muito raramente. Só quando fico muito tempo com a cabeça exposta ao sol — mentiu
Paige.
Ela nunca sofrera de enxaqueca na vida e podia passar horas ao sol sem sentir o menor
incômodo.
— Ah, você devia ter me avisado! Se eu soubesse disso, não teria insistido para jogarmos
tênis hoje de manhã.
— Mas eu adoro jogar tênis! — exclamou Paige com vivacidade, procurando desfazer a
impressão que dera. Só faltava agora Suzanne sentir-se culpada por sua dor de cabeça. — E não é sempre
que isso acontece...
— Espero que você fique boa depressa. Deve ser horrível passar o dia trancada no quarto... Na
volta eu dou um pulinho lá para saber notícias suas.
Ao passar diante das cocheiras, tomou a direita e seguiu a cerca de tábuas largas que separava o
pastinho da casa propriamente dita. Avistou do outro lado da cerca um cavalo alazão, muito parecido com
o que Kelly montava em Bindaburra.
Paige fez festa na testa do animal e correu a mão aberta sobre o pêlo macio do pescoço. Agora
não tinha mais dúvida. Era o mesmo cavalo que a transportara na garupa no dia da tempestade.
Emocionada com essa recordação de um fato tão importante na sua vida, começou a chorar
baixinho enquanto fazia festa e conversava com o cavalo, como se fosse uma pessoa a quem confiasse
suas mágoas.
Estava tão distraída que levou um susto ao escutar o ruído de passos que se aproximavam na
sua direção. Pensando ser um dos empregados da fazenda que passavam por ali, Paige enxugou
rapidamente as lágrimas que escorriam pelo rosto e continuou a afagar o cavalo, sem virar a cabeça na
direção do ruído.
— Talvez — disse em voz baixa, passando os dedos trêmulos pelos cabelos soltos, que
brilhavam como seda sob os raios do sol.
— E o melhor remédio para isso é ficar exposta ao sol na hora mais quente do dia?
A voz dele estava tão próxima agora que Paige sentiu um arrepio na espinha, como se tivesse
sentido o contato de sua mão na nuca.
— Foi por isso que você me deu um tapa na frente de todo mundo? Porque estava com
vontade?
— Para que você quer saber? Você não liga a mínima para o que eu faço ou não faço!
— Como não?
O sorriso nos lábios dele é realmente irresistível, pensou Paige, fitando-o fascinada. Por que
Kelly a procurava após passar quatro dias num mutismo absoluto, evitando todas as oportunidades de
encontrar-se a sós com ela?
— Está bom! — exclamou, procurando conter a emoção que a ganhava. — Eu não devia tê-lo
agredido diante dos outros. Desculpe. Mas você também não devia ter-me iludido de propósito durante o
tempo que passamos em Bindaburra. Você agiu muito mal comigo.
Paige deu um grito de susto quando Kelly tentou segurá-la pela cintura. Sem hesitar um
segundo, afastou-se da cerca e saiu correndo na direção das árvores que formavam um pequeno bosque
perto dali.
Antes porém que conseguisse alcançar seu objetivo, Kelly enlaçou-a pela cintura e deteve-a na
corrida. Ela rodopiou sob o efeito do impulso, perdeu o equilíbrio e caiu de costas sobre a grama verde
que cobria uma extensão do bosque. No instante seguinte Kelly estava deitado com todo o seu peso em
cima do corpo de Paige, imobilizando seus braços no chão, o rosto colado ao dela.
— Bata se você tem coragem! — disse Paige ofegante, sentindo a respiração dele sobre seus
olhos.
— Eu tenho uma idéia melhor — murmurou Kelly, roçando os lábios sobre sua boca
entreaberta. — Eu devia ter feito isso há quatro dias.
— Não Kelly, não! — exclamou Paige, voltando o rosto para o lado. — Eu não sou um objeto
para você usar quando tem vontade.
Descrevendo um rastro úmido com os lábios sobre a pele rosada, ele parou finalmente no canto
da boca.
— Você me bota louca — murmurou, como se fosse uma queixa arrancada do fundo do
coração.
Num transe voluptuoso de sensualidade, contorceu-se sob o corpo que pesava sobre o seu,
enroscou-se entre as pernas musculosas e passou os braços em volta do pescoço dele, abandonando-se
inteiramente ao desejo que a consumia.
Sem parar de beijá-la, Kelly abriu os botões da camisa e soltou a alça do sutiã, descobrindo
ligeiramente o seio intumescido. Ao contato de sua boca, Paige arrepiou-se toda. O arrepio, porém, não se
limitou àquela região apenas. Correu até as extremidades dos nervos e arrancou um gemido de êxtase.
Como se quisesse castigá-lo pelo excesso de prazer, ela enterrou as unhas nas costas dele, com toda a
força, a ponto de lhe arrancar uma exclamação de dor.
— Mentirosa! Diga que você quer, que você está louca para casar comigo.
Ela estendeu os braços e afundou a cabeça no peito de Kelly.
— Eu adoro você, amor. Não penso em mais nada desde a noite em que nos conhecemos
naquele hotel, lembra?
— Que jeito...
— Zangada? Eu fiquei uma fera! Nunca me senti mais humilhada na vida. Eu tive vontade de
matá-lo e cortá-lo em pedacinhos!
— Eu acredito. Seu tapa me acertou em cheio.
— Também, não era pra menos. Mas eu me arrependi logo depois. Eu sei que não devia ter
feito aquilo. Pelo menos diante dos outros. O que sua mãe não deve ter pensado de mim...
— Ela já perdoou.
— Por que você mentiu para mim, Kelly? Por quê? Você me odiava tanto assim?
— Como é possível você dizer uma coisa dessa?! — exclamou Kelly, estreitando-a nos
braços. — Você se engana redondamente, amor! Primeiro, eu nunca senti ódio por você, nunca! Pelo
contrário...
— Foi você quem tirou essa conclusão — interrompeu Kelly, silenciando-a com um beijo. —
Eu simplesmente não desmenti essa impressão falsa. Mas eu nunca menti deliberadamente para você. Eu
reconheço que não contei toda a verdade...
— Por quê? Por que você me deixou na dúvida todo esse tempo?
Kelly respirou fundo, como se tomasse fôlego para contar o que ocorrera com ele desde o
primeiro dia em que os dois se conheceram no hotel de Tingala.
— Confesso que minha decisão foi lenta. Quando conversamos naquela noite no hotel, eu
fiquei na dúvida sobre os motivos que você tinha para encontrar-se com Stuart em Greenvale. Por isso,
em vez de confessar a atração que sentia por você, preferi ocultar meus sentimentos verdadeiros e deixar
você pensar que eu antipatizava com sua maneira de ser. Desta forma eu não coma o risco de me prender
a você enquanto não soubesse ao certo quais eram seus sentimentos por mim.
— Está bom, isso eu entendo. Você agiu com cautela. O que eu não compreendo é por que
você não me contou a verdade antes de chegarmos aqui. Teria sido muito melhor e eu não me teria
sentido humilhada daquele jeito...
— Sei, mas eu estava numa situação muito difícil. Primeiro, não tinha Certeza se você gostava
ou não de mim. Em segundo lugar, não estava decidido a me casar de novo. E, além de tudo isso, eu me
sentia terrivelmente atingido pelas críticas que você fez a Bruce Morgan. Você declarou abertamente que
não suportava os milionários, os monopólios, as grandes empresas, os donos de terras... Lembra? Eu
realmente não tinha coragem de lhe dizer que o dono das duas fazendas era eu. Estava apavorado com a
idéia de que, ao saber da verdade, você se desinteressasse completamente por mim ou me acusasse dos
piores nomes por ter ocultado a verdade todo esse tempo.
— Eu também pensei que você não fosse mais falar comigo depois do tapa que lhe dei. Você
me olhou com uma cara, naquela noite, que eu quis morrer!
— Realmente, eu fiquei uma fera na hora. Mas você também me recebeu muito mal quando
fui ao seu quarto para saber como você estava depois daquela discussão com Nadine.
— É verdade. Eu estava com muita raiva de você. Não gostei nada da maneira como você
abraçou Nadine quando ela correu na sua direção.
— O que eu podia fazer, meu bem? Ela se atirou nos meus braços na frente de todo mundo.
Aproveitei para levá-la embora dali o mais rapidamente possível, antes que você recebesse outras
agressões. Você não conhece Nadine...
— Nem quero! E foi por isso que você andou de braços dados com ela nos últimos quatro
dias?
— Ah, que bandido! E eu sofrendo como uma danada. Você quase me matou de ciúme.
— Foi isso o que eu deduzi quando vi você se trancar no quarto e só sair para as refeições.
— Suzanne não passou três semanas com você em Bindaburra. Eu sabia que o sol nunca fez
mal a você. Quando Suzanne me disse que você estava com enxaqueca por ter apanhado sol na cabeça,
desconfiei imediatamente do motivo que você deu para não sair do quarto.
— Eu confirmei minha suspeita quando avistei você abraçada com o cavalo.
— Não, sua bobinha. Porque você estava chorando como uma criança pequena que perdeu seu
brinquedo preferido.
Paige deu um suspiro e se aninhou nos braços dele. Só faltava uma pequena providência para
se sentir de novo em paz com sua consciência.
— Você faz uma ligação para Stuart? Eu estou em falta com ele. Afinal, não me desculpei
ainda por todo esse atraso. E não se esqueça de que foi graças a ele que nós dois nos conhecemos...
— Hoje à noite. Agora temos a tarde toda para nós. Os outros não vão voltar tão cedo para
casa.
— Beije-me...
— Quantas vezes você quiser...
O círculo de luz que passou por entre os galhos abertos da árvore estreitou-os num abraço
quente, voluptuoso como o sol do meio-dia.
FIM