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O amor não espera convite

Kerry Allyne

Kelly era rude, não gostava dela e estava comprometido com outra, Paige
sabia.

Mas, como o amor não espera convite...

Então Kelly tinha uma namorada! A descoberta atingiu Paige em cheio.


E nem era preciso ser muito esperta para descobrir por que ela ficara tão
decepcionada: estava ridiculamente apaixonada por um homem divorciado, que
não apenas demonstrava a maior indiferença por ela, como tinha uma namorada
firme. Era uma loucura total! Paige precisava afastar-se dele, afogar suas
mágoas num ombro amigo, esquecer que Kelly existia. Mas, nem isso ela podia.
Enquanto aquelas chuvas durassem, teria de continuar vivendo com ele naquela
fazenda isolada do mundo, comendo da mesma comida, dormindo na mesma
cama...
Copyright: KERRY
ALLYNE

Título original:
"BINDABURRA
OUTSTATION'

Publicado originalmente em 1980 pela

Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra

Tradução: MARCELO CORÇÃO

Copyright para a língua portuguesa: 1981

EDITORA EDIBOLSO LTDA. — São Paulo

Uma empresa do GRUPO ABRIL

Composto e impresso nas oficinas da


ABRIL S.A. CULTURAL E INDUSTRIAL

Foto da capa: THREE LIONS


Capítulo I

Depois que a chuva passou e que as primeiras estrelas surgiram no céu, entre as nuvens ralas
sopradas pelo vento, Paige saiu do bar do único hotel em Tingala e decidiu dar uma volta para conhecer a
cidade. Não havia, contudo, muita coisa para além da rua larga que atravessava o centro de um lado ao
outro. Mas depois de três dias de viagem na direção do Volkswagen apertado, Paige estava necessitando
urgentemente de um pouco de exercício.

A viagem tinha transcorrido normalmente até o momento em que ela topou com a tempestade
que desabou à tarde. Ao ser surpreendida pelas chuvas fortes a uns sessenta quilômetros de Tingala, tudo
mudou, de repente. Houve um momento, inclusive, em que Paige considerou seriamente a possibilidade
de passar a noite na estrada, dentro do pequeno Volks atolado até o capo num dos inúmeros lamaçais que
surgiram de uma hora para a outra. Felizmente chegou ao seu destino antes do anoitecer.

Evitando cuidadosamente as poças de água da calçada, Paige percorreu um quarteirão antes de


chegar à conclusão de que estava perdendo tempo à toa. A lama grudava nos sapatos e tomava a marcha
impraticável, sem contar que ela deslizou duas vezes no cimento escorregadio e quase caiu de bruços no
chão.

Com uma careta de desagrado por ter de desistir do passeio noturno, Paige levantou as bainhas
da calça e voltou cautelosamente para o hotel, onde limpou as solas dos sapatos num raspador antigo que
havia na entrada.

— As ruas estão muito enlameadas para se andar a pé — comentou o dono do hotel, na
portaria. — Ainda vai levar algum tempo para o chão secar completamente.

— Desisti do meu passeio — disse Paige com um sorriso. — Resolvi voltar antes de me
esparramar na lama. É sempre assim quando chove?

— Acho que sim. Faz pouco tempo que estou aqui. Eu venho do litoral. Mas, pelo que ouvi
contar, as estradas ficam intransitáveis durante a estação das chuvas.

— Não me diga! — exclamou Paige com ansiedade. — Será que não vou poder continuar
minha viagem? Ou você acha que o tempo vai melhorar?

— Olhe, não posso adiantar nada, ainda mais que não estou acostumado a viajar por estas
estradas do interior. Mas conheço um homem que poderá lhe dar todas as informações que desejar. Ele
chegou hoje à tarde, do norte. Veio até aqui comprar mantimentos para a Fazenda Agrícola de
Bindaburra.

— Onde fica esta fazenda?

— No caminho de Greenvale, a localidade para onde você está indo.

— Ah, sim? Foi bom eu saber.

— Você quer que eu chame esta pessoa para ela lhe dar uma orientação?
— Seria ótimo.
O dono do hotel voltou-se para o fundo da sala.

— Ei, Kelly! Você tem um minuto livre? Esta moça aqui deseja conversar com você.
Paige ouviu o ruído de uma cadeira sendo afastada e, logo depois, os passos pesados que
atravessaram a sala.

— O que você quer de mim, Bill?

— É esta moça que deseja saber como estão as estradas do interior.
Paige lançou um olhar de relance para o homem de botas que se aproximou dos dois com o
andar indolente. Era alto, forte, de ombros largos, e usava uma camisa xadrez e calça de brim justa no
corpo. Tinha os cabelos pretos usos e dois olhos muito vivos. Paige afastou os cabelos da testa, com um
gesto nervoso, quando Kelly a observou atentamente, em silêncio. A presença dele tinha alguma coisa
inquietante que a deixou imediatamente tensa.

— Desculpe incomodá-lo, mas eu estava pensando em viajar para Greenvale amanhã e queria
saber como estão as estradas daqui para lá.

— Vocês me dão licença? — disse o dono do hotel. — Estão me chamando na sala. Até mais
tarde.

— Muito obrigada — disse Paige ao ver o dono do hotel afastar-se em direção à sala.

— Estamos sempre às ordens.


Ela voltou-se e olhou Kelly de frente.

— As estradas estão péssimas — disse Kelly com o rosto impassível. — Eu não aconselharia
você a usá-las.

— Você acha que não é possível continuar viagem depois da chuva de hoje? — insistiu Paige,
sem se deixar abalar pela resposta dele.

— Acho muito difícil. A não ser num jipe com tração nas quatro rodas.

— Mas será que as estradas não vão melhorar até amanhã? Pelo jeito as chuvas passaram...

— Tem certeza?

— Bem, neste momento, pelo menos, não está chovendo.


Paige deu um risinho, aguardando uma reação dele, mas Kelly continuou de rosto fechado.

— Esta é a estação das chuvas. Vai continuar a chover durante dias ou semanas. Você tem
alguma coisa importante para fazer em Greenvale?
— Eu e algumas amigas fomos convidadas para assistir às corridas da primavera e tomar parte
no baile anual que se realiza lá. Foi Stuart quem nos convidou pessoalmente para a festa!

— Stuart...

— Você o conhece? — perguntou Paige com vivacidade.

— Conheço. Você está viajando sozinha pelas estradas do interior? Não tem medo de que lhe
aconteça alguma coisa?

— No início, nós éramos em quatro. Depois as outras desistiram do programa.

— E só sobrou você?

— Foi. Eu resolvi ir à festa de qualquer maneira. Sempre quis conhecer o interior e aproveitei
a oportunidade.

— E agora você está na dúvida se deve prosseguir ou voltar para trás?

— É. As festas só vão começar na semana que vem e até lá eu tenho tempo para decidir o que
vou fazer. Talvez fique mais alguns dias aqui, até as estradas secarem.

— Quanto mais tempo você ficar aqui será pior. Dentro de alguns dias todas as estradas
estarão intransitáveis. Tanto as do norte quanto as do sul, por onde você veio.

— Não brinque! — exclamou Paige com ansiedade. — Essas chuvas não vão parar nunca?

— Tão cedo, não. Como eu lhe disse antes, estamos na estação das chuvas. Chove sem parar.
Durante dias, semanas...

— E como você fez para chegar aqui?....

— Eu moro no interior e tenho um veículo apropriado para andar na lama — disse Kelly,
apontando para o jipe que estava estacionado diante do hotel, coberto de lama dos pneus até o teto. —
Você não pode comparar seu carrinho, baixo, com este jipe. As estradas vão estar inundadas dentro de
alguns dias...

— Inundadas? — repetiu Paige, incrédula. — Eu não vi nenhum rio transbordando pelo


caminho.

— Eles sobem lentamente, com o passar dos dias.

— Mas agora não vão subir mais. A chuva parou — insistiu Paige com obstinação.
Kelly deu um sorriso e balançou a cabeça com um gesto indolente.

— Pelo jeito, nada a demove de seus planos.

— O que você quer que eu faça?


— Se eu fosse você, voltaria para casa enquanto é tempo. Você está fora do seu elemento
aqui. Você não faz idéia do que seja viajar pelas estradas do interior na estação das chuvas. É um
inferno...

— Acredito. Mas isso não é motivo para voltar do meio do caminho. Eu prometi a Stuart...

— Quer um conselho? Volte enquanto é tempo. Isto não é lugar para moças, muito menos
desacompanhadas.

Paige deu um suspiro de impaciência.

— Sempre ouvi dizer que as pessoas do interior eram simpáticas e hospitaleiras. Você, pelo
visto, é uma exceção...

— Estou sendo franco.

— Você está sendo rude.

— Se você não quer ouvir meu conselho, não posso fazer nada. Mas depois não se queixe de
que eu não avisei...

Que sujeito antipático!, pensou Paige com irritação. Só ele tinha o direito de andar pelas
estradas do interior?

— Bem, de qualquer maneira, muito obrigada pela informação. Vou lhe mandar um cartão
postal de Greenvale.

No momento em que Paige passou por ele, ao lhe dizer essas palavras mal-humoradas de
despedida, Kelly segurou-a pelo pulso.

— Eu estou falando sério. As estradas vão estar intransitáveis nos próximos dias. Se você
quer viajar, tome a direção sul, de onde veio. Em qualquer outra direção você terá problemas. Essas
chuvas estavam sendo esperadas há várias semanas.

Paige estava tão furiosa com o tom da conversa que não encontrou palavras para responder. Em
vez disso, soltou o braço com um gesto brusco e atravessou a sala em direção ao seu quarto. Foi somente
depois que bateu a porta com toda a força que tomou consciência de sua irritação. Estava com tanta raiva
dele que bateria a porta uma meia dúzia de vezes antes de satisfazer completamente sua agressividade.

Kelly não apenas tinha dado a entender que ela era uma desmiolada por andar sozinha pelas
estradas do interior, como também que não era bem-vista ali, por ser uma moça da cidade que não tinha o
menor conhecimento dos costumes da gente do campo.

Paige acordou cedo na manhã seguinte e a primeira coisa que fez foi olhar para o céu através
da janela do quarto. O tempo estava firme, claro, e não havia nenhum indício de que fosse chover mais
tarde. As únicas nuvens que havia no céu eram ralas, esgarçadas, muito altas, sinal de bom tempo. Além
disso, a névoa úmida que subia do solo indicava que o sol quente estava começando a evaporar a umidade
do dia anterior. Kelly enganara-se redondamente nas suas previsões meteorológicas! Ela ia cair na
gargalhada na cara dele quando o encontrasse à mesa do café.

No entanto, depois de tomar banho e vestir a roupa esporte que usava para viajar, Paige não
escondeu sua frustração ao entrar no salão do hotel e constatar que todas as mesas estavam vazias. Não
havia o menor sinal de Kelly. Após tomar o café em silêncio, ela se dirigiu à portaria, onde um rapaz de
uniforme azul e gravata preta anotava alguns nomes num livro grande de registro.
— Bom dia, Andy.

— Olá, Paige. Dormiu bem?

— Muito bem, obrigada.

— O que você manda?

— Vim pagar o quarto.

— Ah, sim. Eu vou fechar sua conta.


Enquanto Andy fazia algumas anotações numa folha de papel, Paige debruçou-se sobre o
balcão e olhou à sua volta com naturalidade.

— Você sabe me dizer se aquele rapaz da Fazenda de Bindaburra já foi embora?

— Kelly?

— É.

— Ele saiu hoje de madrugada. Disse que tinha muito trabalho na fazenda e que não queria
perder mais tempo na cidade.

— Ah, que pena! — murmurou Paige, ligeiramente frustrada. — Eu queria conversar com ele
sobre as previsões meteorológicas. O que você acha do tempo, Andy? Vai chover ou o tempo firmou?
Será que as estradas vão secar rapidamente depois das chuvas de ontem?

— Para onde você está indo?

— Para o norte. Pretendo passar alguns dias em Greenvale.

— Ah, você vai às festas da primavera?

— Pretendia ir — disse Paige com um risinho. — Mas agora estou na dúvida...

— Tenho a impressão de que é meio difícil chegar a Greenvale nesta época do ano.

— Por causa das chuvas de ontem?


Andy deu uma risada descontraída, irradiando simpatia.

— Não, as chuvas de ontem foram fichinha. Eu digo isso por causa dos aguaceiros torrenciais
que estão caindo no norte, em Queensland.

— Mas isso fica a centenas de quilômetros daqui!

— Eu sei. Mas as inundações costumam vir sempre do norte.


— Você já viu isso acontecer alguma vez?
Andy balançou a cabeça com vivacidade.

— Não, nunca vi. Essa será uma experiência nova para mim.

— Quer dizer então que, na sua opinião, é impossível chegar a Greenvale?

— Exatamente. Aliás, esta também é a opinião de Kelly. Ele me disse que as estradas estarão
intransitáveis dentro de alguns dias. Por que você pergunta? Está querendo mesmo assim continuar
viagem?

— Que remédio! Não tenho outra escolha. Eu não vou voltar do meio do caminho, quando
falta apenas mais uma centena de quilômetros para chegar ao meu destino. Afinal, Greenvale não é tão
longe assim.

— Não, não é — disse Andy, estendendo a Paige o recibo de sua conta.

— Estou disposta a tentar a sorte — disse Paige com um sorriso. — Vamos ver no que dá.

— Eu lhe desejo boa sorte — exclamou Andy com um aceno de mão.
Depois de guardar a mala no carro, Paige despediu-se do dono do hotel, que estava lendo o
jornal da manhã na sala de espera, e rumou diretamente para o posto que ficava na esquina, a fim de
abastecer o carro de óleo e de gasolina.

— Você me limpa também o vidro da frente — pediu ao homem do posto. — Está embaçado
e eu não estou enxergando bem.

— Pois não. A senhora está de viagem para o norte?

— Estou indo para Greenvale.

— Tome cuidado. Ouvi dizer que está chovendo muito no norte.

— Eu estou sabendo — disse Paige, de cara fechada.


Era a terceira pessoa que a advertia das chuvas torrenciais que caíam no norte do país.

Depois de andar alguns quilômetros pela rodovia principal, que era inteiramente asfaltada,
Paige tomou uma pequena estrada de terra, seguindo cuidadosamente os rastros deixados pelo jipe de
Kelly no dia anterior. Assim, pelo menos, não tinha que abrir caminho pelas poças de água que havia na
estrada. Kelly naturalmente estava habituado a fazer aquele caminho, como indicava a trilha segura e
regular aberta pelo jipe.

Em alguns trechos, no entanto, Paige foi obrigada a brecar repentinamente, devido à mudança
brusca de direção da trilha. Uma vez, quando Kelly desviou da estrada a fim de contornar uma barreira
que caíra recentemente; a segunda vez, ao atravessar uma ponte estreita sobre um ribeirão. Paige
aproveitou essa segunda ocasião para descer do carro e verificar o nível da água do pequeno rio.
Descalça, com as barras da calça dobradas até os joelhos, deu alguns passos dentro da água para testar a
profundidade. O ribeirão tinha pouca altura e ela pôde atravessá-lo sem dificuldade.
A planície onde estava agora estendia-se a perder de vista por uma região árida, sem
praticamente nenhuma vegetação, a não ser algumas moitas que resistiram aos rigores do clima e que
davam a sensação penosa de serem os únicos sobreviventes na região deserta. Paige ficou apavorada com
a idéia de atolar na lama ali e não poder mais sair. Sentiu um arrepio ria espinha. Sua reação instintiva foi
pisar no acelerador e imprimir maior velocidade ao carro, o que um motorista experiente teria julgado
uma verdadeira loucura naquelas estradas escorregadias que não ofereciam a menor segurança.

Uma meia hora depois, avistou as primeiras nuvens negras que se formavam no horizonte, bem
na direção em que ia. Negras como a noite, ameaçadoras, as nuvens estendiam-se numa formação maciça
que lembrava a forma medonha de um espírito maligno disposto a barrar sua passagem. Pelo menos, foi
essa a impressão que ela teve.

O temporal desabou de repente. Gotas grossas batiam nos vidros do carro, como se ele
estivesse embaixo de uma cachoeira. No momento em que ligou os limpadores e avistou a nuvem negra
através do vidro embaçado, o coração de Paige gelou. Passou a mão na testa e sentiu as gotinhas de suor
frio. Não somente a trilha aberta por Kelly no dia anterior estava desaparecendo rapidamente sob a
enxurrada, como as beiras da estrada estavam se tornando invisíveis devido à torrente de água que caía. A
chuva grossa formava uma cortina densa, opaca, irritante, que não a deixava enxergar um palmo adiante
do nariz.

Procurando manter a calma e tomando todo o cuidado para não se perder, Paige resolveu parar
o carro ao lado do caminho e aguardar pacientemente que a tempestade passasse. A chuva era tão intensa
que não podia se prolongar durante muitas horas. Ela partiria logo que enxergasse a estrada com
segurança. Entretanto, após aguardar dentro do carro uma hora e meia, sua cota de paciência e de
sacrifício estava esgotada. Ligou o motor com um gesto nervoso e engatou a marcha, a fim de sair o mais
rapidamente possível daquele sítio desolado. No instante porém em que acelerou O motor, com a marcha
engatada, as rodas começaram a derrapar e a deslizar de tal modo, em direção ao barranco, que ela foi
forçada a desistir de sua tentativa.

Aterrada e sem saber o que fazer, olhou em volta de si e avistou a região completamente
desolada, sem árvores, sem casas, sem nada. De sede pelo menos não morreria, pensou, ao lembrar-se do
pequeno ribeirão que atravessara alguns minutos antes. Voltou a cabeça para trás e viu que o rio estava
começando a transbordar. Logo, logo, as águas chegariam até perto do carro. Por outro lado, se
continuasse dentro do Volks, que era de um vermelho vivo* alguém notaria sua presença ali e viria
socorrê-la. A pior coisa que podia fazer naquela situação era sair à procura de socorro, sobretudo porque
não tinha idéia da direção que devia tomar para chegar a uma casa ou a uma vila.

E se subisse no alto do morro? De lá pelo menos teria uma visão dos arredores. Quem sabe
descobriria alguma casa pelas imediações? Sem hesitar um segundo, Paige dirigiu-se para lá a passos
rápidos. Estava subindo a encosta suave do morro quando avistou, com o canto dos olhos, um movimento
estranho à sua direita. O que seria? Voltou-se rapidamente e percorreu a paisagem em volta com atenção,
tentando localizar o que chamara sua atenção. No entanto, a cerração formada pelas chuvas não facilitava
a visão.

Desistiu de identificar o objeto brilhante que se movera à sua direita e estava disposta a
continuar a subida quando percebeu, pela segunda vez, o mesmo brilho esquisito com o canto dos olhos.
O que podia ser? Desta vez, ela teve a nítida impressão de que o objeto estava mais perto. Seria um
rebanho de carneiros?

Se fosse, estaria salva!, pensou com um sorriso de alegria. Onde havia rebanhos, havia gente.
Era só uma questão de procurar com paciência a casa da fazenda. Ficou tão contente com essa
possibilidade que subiu correndo os poucos metros que a separavam do alto do morro. De lá, teria uma
visão perfeita dos arredores.

Escorregando em cima das pedras, segurando no mato para não cair, fez uma pausa no meio do
caminho e olhou em volta de si, com a respiração ofegante. Sim, não havia dúvida, o objeto brilhante
estava mais perto agora. Mesmo assim, era difícil identificá-lo com segurança. Visto daquela distância
parecia um grande rebanho de carneiros que levantava uma nuvem de poeira em sua passagem.
Mas não havia poeira depois das chuvas recentes!, pensou Paige, franzindo a testa. O objeto se
movia rapidamente por baixo das árvores, sumia da vista e tornava a aparecer logo depois. Não, aquilo
não era um rebanho nem aqui nem na China!, pensou Paige, observando atentamente o estranho brilho
esverdeado embaixo das árvores. Nenhum rebanho de carneiros se movia com aquela rapidez.

De repente, ela prendeu a respiração ao sentir uma contração violenta na boca do estômago.
Um rebanho de carneiros não brilhava daquele jeito, mas a água brilhava! Após dois dias de chuva
torrenciais, os rios estavam começando a transbordar e a inundar toda a planície — e era isso o que ela
estava enxergando do alto do morro. As águas invadiam lentamente o terreno plano e cobriam tudo em
volta.

Alarmada diante do perigo iminente, Paige subiu correndo até o ponto mais alto do morro e
olhou com ansiedade para o local onde deixara o carro. Se as águas o arrastassem consigo, ela estaria
perdida! No carro estava seu dinheiro, as roupas, os documentos... tudo, enfim. Rezou para que isso não
acontecesse.

A correnteza, porém, não atendeu seu pedido murmurado em voz baixa. Em questão de
minutos as águas engrossaram, submergiram o pequeno veículo em sua passagem e continuaram o
caminho sem serem detidas por nenhum obstáculo.

— E agora? — exclamou Paige em voz alta, completamente aturdida com a visão do carro
sendo engolido pela correnteza. O que faria agora? Em questão de segundos, perdera tudo o que tinha.

As águas que batiam no pé do morro onde ela estava não eram profundas. Tinham quando
muito uns trinta centímetros de altura. Mesmo assim, isolavam-na de tudo em volta num raio de muitos
quilômetros. Levantou a cabeça e avistou os morros que se erguiam no meio da planície desolada, como
pontinhos minúsculos na imensidão da paisagem. De que adiantava trocar uma ilha pela outra? Sua única
esperança era que passasse por ali um avião de reconhecimento, dos que sobrevoam as regiões inundadas
à procura de sobreviventes.

Abatida, trêmula de frio e de ansiedade, Paige abrigou-se do vento que soprava embaixo de
uma pedra. Com a cabeça enfiada nas mãos, a pele toda arrepiada, os braços gelados, ela se arrependeu
amargamente de não ter ouvido o conselho de Kelly, de Andy, do homem do posto de gasolina... Kelly a
prevenira de que as chuvas iam continuar durante dias, semanas. Por que ficara surda às suas palavras?

Ela não soube quanto tempo permaneceu naquela posição. Ao levantar a cabeça com um
suspiro e tomar consciência da passagem das horas, estremeceu ao imaginar que seria obrigada a
pernoitar ali, sozinha, no alto daquele morro. Esse pensamento assustou-a de tal modo que ela se levantou
de um pulo, como se tivesse enxergado um bicho à sua frente.

No mesmo instante, ao fixar a vista na planície alagada, enxergou um vulto que se aproximava
por entre as árvores. Sem hesitar um segundo, começou a berrar e a acenar freneticamente. Alguém estava
vindo na sua direção! Alguém a cavalo! Ela estava salva!

O cavaleiro solitário levou algum tempo, porém, para chegar embaixo do morro. Ele escolhia
atentamente seu caminho por entre as poças de água. Havia algumas mais fundas, onde as patas do cavalo
afundavam até os joelhos.

Minutos depois, a alegria de Paige transformou-se num sentimento penoso de decepção. Seu
salvador providencial era Kelly e ela notou, ao observá-lo de mais perto, que ele não estava
absolutamente contente de encontrá-la naquele local e naquela circunstância. Os olhos claros a fixaram
com frieza, em silêncio. Paige conseguiu manter a cabeça erguida com dificuldade diante do olhar de
desagrado que Kelly lhe lançou do alto do cavalo.

— Só podia ser você! — disse ele, balançando a cabeça. — Eu não avisei que essas estradas
não ofereciam a menor segurança? Eu devia deixá-la aí, para você aprender a lição...
Consciente de que não podia refutar as acusações merecidas, Paige abaixou ainda mais a
cabeça.

— Desculpe — disse em voz baixa.

— Desculpe! De que adianta você se desculpar agora? Vai ter que ficar aqui até as chuvas
passarem.

— O quê? — exclamou Paige, alarmada corri a idéia de permanecer naquele local deserto,
durante semanas, na companhia de alguém tão insuportável quanto Kelly. — Aqui, no alto deste morro?

Ele ignorou a pergunta, como se não merecesse uma resposta.

— Essas chuvas duram semanas, inundam tudo, isolam as cidades. Antes de umas cinco ou
seis semanas será impossível sair daqui. As estradas estarão intransitáveis.

— Mas eu não posso ficar todo esse tempo fora de casa. Eu preciso voltar!

— Por que você não pensou nisso ontem?

— Já sei, você me avisou para voltar.

— Eu disse: "Volte para casa enquanto é tempo". Em vez disso, você se comportou como a
verdadeira desmiolada que é. Meteu-se sozinha por essas estradas e veja só onde foi parar... No alto do
morro!

— Chega, eu já ouvi isso demais!

— Mas não deu a menor importância.

— Vou dar, de hoje em diante.


Kelly ajeitou-se na sela e voltou a cabeça na direção do horizonte.

— Está vendo aquelas nuvens escuras?

— Estou.

— É mais chuva que vem aí. Acho bom você descer desse morro, caso contrário nós dois
vamos ficar isolados aqui, sem poder sair. As águas continuam subindo.

Como se quisesse comprovar a veracidade das palavras de Kelly, o cavalo castanho balançou a
cabeça em sinal de impaciência diante da água que lhe batia nos joelhos.

— Como vou sair daqui?

— Suba no cavalo — disse Kelly, abrindo um pequeno espaço para ela na frente da sela.

— Eu não posso sentar na garupa? — perguntou Paige, mordendo o lábio com nervosismo. A
proximidade de Kelly era desagradável como um contato repugnante.
— Você pode tentar, mas não vai agüentar muito tempo. Nenhum cavalo gosta de andar com
uma pessoa na garupa.

Paige amarrou a cara. Kelly, pelo visto, não ia facilitar as coisas para ela. Em vez de
aproximar-se do morro com o cavalo, permaneceu no mesmo lugar, e Paige foi obrigada a entrar com os
pés dentro da água para chegar até onde ele estava.

— Onde você deixou o carro?


Paige apontou com o queixo na direção do pequeno rio.

— Perto do ribeirão.

— Ele não está mais lá.

— Eu sei. Foi arrastado pela correnteza.


Ela enxugou com as costas da mão as lágrimas que rolaram pela face, sem ele perceber. Todas
as economias que fizera durante anos para comprar o carro tinham ido por água abaixo.

— Estava no seguro, pelo menos?

— Meu seguro não cobre esse tipo de acidente.


Kelly deu um assobio.

— Da próxima vez, ouça os conselhos que as pessoas lhe dão.

— Da próxima vez eu vou me informar com alguém mais delicado — disse Paige de mau
humor. — Você disse que a inundação só viria dentro de alguns dias e que eu necessitava de um jipe para
andar nessas estradas.

— Exatamente. Para chegar a Greenvale.

— E o que você acha que estou fazendo aqui?

— A entrada para Greenvale ficou a muitos quilômetros para trás.

— Não brinque! Eu passei por ela sem perceber?


Paige estava tão contente com a possibilidade de seguir o rastro do jipe que não prestou
atenção em mais nada e não enxergou a seta que indicava a entrada para Greenvale.

— Exatamente. Você passou direto, a toda velocidade.

— Ah, só faltava essa! Tomar a estrada errada... Vai ver que a estrada para Greenvale está
seca.

— Pode ser, mas eu tenho minhas dúvidas.


Paige afundou os ombros e olhou desconsoladamente por cima da cabeça do cavalo, que
caminhava passo a passo por entre as poças fundas de água.

— Falta muito para chegar?

— Onde?

— Para onde você está indo.

— Você está cansada?

— Muito!

— Preferia ter ficado no alto do morro?


A pergunta era tão cruel que ela deu um suspiro e abaixou a cabeça, momentaneamente
vencida. Numa situação como aquela, qualquer companhia era preferível a estar sozinha.

— Não, não preferia. Falta muito ainda?

— Agora está perto. Está vendo aquele bosque de árvores no alto do morro? É para lá que nós
vamos.

Paige olhou para a direção indicada e avistou um arvoredo no meio da planície árida. A que
distância estaria? Ela simplesmente não agüentaria mais cinco minutos em cima do cavalo! Estava toda
moída, como se tivesse levado uma surra.

— O que você estava fazendo quando a chuva caiu? — ela perguntou em dado momento, para
se distrair e passar o tempo. Era preferível conversar com qualquer pessoa, mesmo com um homem
antipático como Kelly, a sofrer em silêncio os solavancos na anca do cavalo.

— Levei o gado para o pasto hoje de manhã.

— Você viu quando eu passei na estrada?

— Vi. Você passou a toda velocidade, como se estivesse apostando corrida. Teve muita sorte
de não sofrer um acidente.

Paige não se deu ao trabalho de explicar a razão de sua pressa. De que adiantava? Kelly não
entenderia sua explicação.

— Você viu quando eu atolei na lama?


Kelly ignorou a pergunta.

— Você estava seguindo o rastro do jipe?

— Estava — confessou Paige com relutância.

— Por que, se você sabia que eu não ia para Greenvale?


Paige corou como um pimentão, humilhada com sua própria estupidez.

— Ah, foi esse o meu erro! Pensei que só havia uma estrada...

— Você não viu a placa indicadora?

— Se eu tivesse visto, não teria me perdido!

— Ah, bom... Você estava distraída...

— Pois é.

— Em que você estava pensando? Em Stuart?

— E você, estava pensando em quê quando me avistou no alto do morro? Você levou um
tempão para me socorrer! Eu podia ter morrido afogada que você não ia apressar o passo desse cavalo...

— Eu não a socorri, por acaso?

— Só porque eu berrei como uma louca. Você podia ter tirado meu carro do atoleiro.

— De que jeito?

— Tirando, ué! Para isso você é homem...


Kelly deu uma risada.

— Não houve tempo.

— É verdade que você ia me deixar a noite toda no alto daquele morro?

— Você seria encontrada, de qualquer modo. Se não chegasse a Greenvale até o anoitecer,
Stuart sairia à sua procura. Ele não está esperando por você?

— Eu não avisei a ninguém que ia chegar hoje a Greenvale.

— Não é possível! Esta é a primeira providência que você devia ter tomado. Quer dizer que
seus amigos não sabiam que você estava indo para lá?

— Não. Ninguém foi avisado.

— Só mesmo você — disse Kelly, balançando a cabeça. — Se eu soubesse disso, juro que a
teria deixado no alto do morro a noite toda, para você aprender a ser mais responsável da próxima vez.

— Você não teria coragem de fazer isso.

— Por que não?


— Afinal, você é um ser humano como os outros.

— Quem disse? — perguntou Kelly com um riso zombeteiro.


Capítulo II
Paige deu um suspiro de alívio no momento em que o cavalo saiu do terreno alagado e
atravessou um caminho seco por baixo de um bosque de árvores copadas. Depois do comentário
sarcástico de Kelly, o silêncio era interrompido apenas pelos passos pesados do cavalo ao atravessar as
poças de água. Paige não via a hora de chegar na casa, tomar um banho quente e descansar o corpo
dolorido. A perspectiva de deitar numa cama confortável lhe parecia naquela circunstância um luxo
inestimável.

— Chegamos — anunciou Kelly em voz baixa.


A casa-grande surgiu no meio das árvores, rodeada por construções mais antigas. Kelly
conduziu o cavalo em direção à escada que dava na varanda.

— É aqui que nós vamos ficar? — perguntou Paige, ligeiramente apreensiva com o aspecto
silencioso da casa.

— É, aqui. — Kelly pulou do cavalo e amarrou o cabresto numa argola. — Esta será nossa
residência nas próximas semanas. Depois que o nível das águas baixar, podemos ir para Ainslie.

— Ainslie? Onde fica isso?

— Ainslie é nossa estação principal, a sede da companhia.

— Quer dizer que nós vamos ficar durante semanas sozinhos nessa casa? — indagou Paige
com um calafrio. — Não tem mais ninguém morando aqui?

— Mais ninguém.

— Virgem!

— Você esperava que fosse uma casa de campo, dotada de todo o conforto, onde você jogasse
cartas esperando a chuva passar?

— Engraçadinho! Não foi isso que eu quis dizer.

— Se eu fosse você, me daria por muito satisfeito. Sua situação no alto do morro era muito
pior. Esta casa oferece o conforto de uma fazenda do interior. Tem inclusive gerador próprio. Luz, pelo
menos, não faltará.

— Eu não estou me queixando! — exclamou Paige com vivacidade. — Só que pensei que
houvesse mais gente morando aqui. Quem não gosta de ter companhia?

— E a minha, não basta?


Paige pensou um segundo antes de responder. Não valia a pena provocá-lo no instante em que
punha o pé dentro de casa.
— Basta — disse por fim, sem convicção. — Ai, minhas costas!
Kelly deu um passo à frente e ajudou-a a descer do cavalo.

— O que foi? Está doendo muito?

— Doendo é apelido. Eu estou completamente descadeirada!

— É porque você não está acostumada a andar a cavalo — disse Kelly, levantando-a da
garupa e colocando-a no chão.

— Quem disse? Eu vou e volto do trabalho a cavalo, todos os dias. É a única maneira de
chegar na hora com o trânsito atual.

— Nesse caso, você vai ter muito tempo para praticar equitação. É o único esporte que temos
aqui.

— É bom eu saber.


Paige o seguiu em direção à casa, arrastando as pernas bambas que se recusavam a andar
normalmente depois da longa caminhada na garupa do cavalo.

A casa era limpa e arrumada, como se tivesse uma mulher tomando conta, e tinha a mobília
essencial para um homem solteiro. Três aposentos mostravam sinais de terem sido usados ultimamente —
o banheiro era antigo, a sala de jantar espaçosa e a cozinha bem clara, com espaço de sobra para a mesa
comprida e algumas cadeiras de palhinha. A mobília original devia estar guardada no depósito. No lugar
dela havia diversos equipamentos agrícolas espalhados pela casa, que Paige nunca tinha visto na vida.

— O que é isso? — perguntou, intrigada.

— Uma roçadeira.

— E isso aqui?

— Uma debulhadeira.

— Ah!

— Agora que você conhece a casa, fique à vontade e não faça cerimônia. Vou providenciar
certas coisas lá fora antes que escureça.

— Você vai demorar?

— Por quê? Você tem medo de ficar sozinha?

— Lógico que não!

— Por que não aproveita e toma banho? Eu volto num minuto.

— Falou.
Ah, seria uma delícia tomar um banho quente de imersão e depois deitar na cama! Como faria
porém para trocar de roupa? A ordem era procurar no armário algum lençol ou toalha comprida com que
pudesse se embrulhar depois do banho. Feito isso, deixaria as roupas lavadas na corda para secar. Na
manhã seguinte estariam secas e limpinhas.

— É isso que eu vou fazer — murmurou Paige em voz alta, dirigindo-se ao armário do quarto.
Felizmente, encontrou tudo o que precisava, inclusive alguns lençóis coloridos, bem como
toalhas de banho, felpudas e compridas, que batiam nos calcanhares. Escolheu um lençol azul e uma
toalha vermelha. Dirigiu-se em seguida ao banheiro com um sorriso de antecipação no rosto.

Após encher a banheira de água quente, afundou devagarinho e fechou os olhos com uma
expressão de beatitude. Nada como um banho quente depois de uma viagem repleta de acidentes! Era
essa, por sinal, a receita do seu médico quando ela se queixava de dores pelo corpo. Os músculos
doloridos pareciam tão contentes quanto ela com a imersão na água morna. Relaxavam, descontraíam-se,
estalavam de felicidade.

De repente a porta do banheiro abriu-se por fora e ela ouviu uma voz bem conhecida dizer de
lá:

— Ah, você está aí! Eu estava à sua procura.


Paige afundou depressa as partes expostas do corpo, ficando somente com a cabeça corada do
lado de fora, quando Kelly entrou.

— O que você quer?

— Eu trouxe uma coisa para você.

— Muito obrigada, mas eu não estou precisando de nada no momento, a não ser terminar meu
banho em paz.

— Tenho certeza de que você vai gostar do que eu trouxe — disse Kelly com as mãos atrás
das costas, aproximando-se da banheira de onde saía um vapor perfumado.

— O que é? — perguntou Paige com os olhos arregalados, tentando ocultar em vão sua nudez.

— A melhor coisa que existe para dores musculares. Bicarbonato de sódio e vinagre!
Antes mesmo que Paige pudesse responder ou fazer um comentário, ele despejou o conteúdo
de um saquinho e de uma garrafa na água quente.

— Ah, muito obrigada — disse Paige, sem jeito. — Agora dê o fora que eu vou me esfregar.

— Você não precisa fazer essa cara. Eu já fui casado e estou acostumado a ver a mulher em
diversas situações de nudez.

— Mas eu não estou acostumada com isso!

— Já vou indo. Tome seu banho à vontade.


Depois que a porta tornou a fechar, Paige começou a esfregar o corpo vigorosamente, segundo
a recomendação de Kelly. Ele era casado ou tinha sido casado? Ela aceitou o fato com naturalidade,
inclusive com indiferença, após uma leve frustração inicial. Por alguma razão misteriosa, talvez preferisse
que ele fosse solteiro.

Continuou a ensaboar o corpo com o pensamento em outra parte. Como era a mulher dele?
Onde morava? Na tal cidade que ele mencionara antes? Como se chamava mesmo? Ainslie. No fundo, o
casamento não devia ser lá essas coisas, uma vez que os dois moravam em casas separadas e só se
encontravam — se é que se encontravam — quando Kelly visitava a estação principal, a sede da
companhia.

Mas podia ser também que a mulher não morasse em Ainslie e que Kelly não trabalhasse
permanentemente em Bindaburra. Quem sabe ele estava ali só de passagem? Não foi isso que ele dissera
no dia anterior? De qualquer maneira, isso não queria dizer nada. Kelly podia estar substituindo alguém
na fazenda e era por essa razão que a mulher tinha ficado em Ainslie.

Após ensaboar os cabelos e enxaguá-los demoradamente, Paige se sentiu outra. Saiu animada
da banheira, enxugou-se e passou o lençol em volta do corpo, prendendo as pontas na cintura.

Feito isso, lavou as roupas sujas na pia e torceu-as bem. Com a roupa úmida em cima do braço
e com o pente que encontrara no armarinho do banheiro na mão direita, dirigiu-se à varanda onde tinha
visto minutos antes uma calça comprida pendurada no varal. Prendeu a roupa lavada ao lado, colocou os
sapatos úmidos na beira da varanda, para secarem ao sol da manhã, e demorou-se alguns momentos
debruçada no parapeito de madeira, admirando a paisagem. O cavalo que os trouxera para a fazenda
estava pastando perto dali. A cena não podia ser mais repousante.

— Estava bom o banho?


Ela voltou-se, assustada com a pergunta repentina, e avistou Kelly ao lado da porta que dava
para a sala.

— Sensacional. Estou me sentindo outra.

— É pena Stuart não estar aqui. Vocês poderiam bater um bom papo, admirando a paisagem.
O comentário irônico apanhou-a de surpresa. Nada estava mais distante do seu pensamento que
a lembrança de Stuart. No momento ela não trocaria a paisagem vista da varanda por nenhum papo, por
mais agradável que fosse. As planícies alagadas refletiam o azul do céu e o tom avermelhado do sol
poente, que afundava lentamente no horizonte. Por alguma razão inexplicável, no entanto, não quis
confessar que era a paisagem e não a ausência de Stuart que lhe dava aquele ar pensativo, que Kelly
interpretara como se estivesse com saudade do amigo distante.

— Ah, seria muito legal!

— Você está com saudade dele?

— Estou. Afinal, eu fiz esta viagem para encontrá-lo e posso apostar que ele apreciaria muito
mais minha companhia que você. Ele sabe que ninguém é perfeito neste mundo e que todos cometem
erros graves, uma vez na vida...

— Graves não, imperdoáveis — corrigiu Kelly. — No seu caso, não foi um mero erro de
julgamento, mas antes de temperamento. Você simplesmente achou que podia fazer o que lhe passasse
pela cabeça, sem pensar um instante nas conseqüências!
— O que o leva a fazer essa suposição? Nós mal nos conhecemos! Como você pode saber
como eu sou na realidade?

— Sua observação de alguns momentos atrás foi bastante clara e eu já conheci muitas
mulheres do seu tipo antes. Todos os anos elas vão a Greenvale para assistir às corridas e tomar parte no
baile de encerramento. E, todos os anos, acontece a mesma coisa. Elas ficam tão ansiosas para encontrar
um bom partido que agem e se comportam como loucas varridas, sem pensar nas conseqüências que isso
acarreta e nos problemas que criam para os outros.

— Que mal há em procurar um marido? — perguntou Paige com inocência. — Todo mundo
quer melhorar de condição social. Se os bons partidos, como você diz, estiverem de acordo em aceitar
essas mulheres por esposas, ninguém pode impedi-los. Afinal, são os homens que decidem sempre se
querem ou não casar, mesmo nos confins do Judas...

— Em outras palavras, o fim justifica os meios.

— É, isso mesmo. E daí? Você tem inveja das pessoas que agem assim?

— Eu, ter inveja? Você está sonhando! — disse Kelly com uma risada que soou terrivelmente
falsa no silêncio da varanda. — Eu tenho é dó das coitadas que agem dessa maneira!

Como ela estava agindo!, pensou Paige, furiosa. Depois de tudo que sofrerá naquele dia no
lombo do cavalo e na enxurrada, não estava com paciência para ouvir desaforos desse tipo, muito menos
de um homem que mal conhecia.

— Ah, é? Pois fique sabendo que você não é o único aqui que se sente incomodado com a
situação... Sua atitude puritana também não me agrada nem um pouco! Eu estava indo realmente para
assistir às corridas em Greenvale, mas não pretendia absolutamente encontrar um bom partido! E, mesmo
que pretendesse, o que você tem a ver com isso? Você se julga porventura meu anjo da guarda?

— Não, de jeito nenhum. Deus me livre! Eu sou apenas alguém que observa com atenção o
comportamento das mulheres. No fundo, elas não passam de criaturas oportunistas que topam qualquer
situação, contanto que atinjam seus objetivos.

— Como você ousa afirmar uma coisa dessas? — exclamou Paige, com os olhos brilhantes de
indignação.

Ela estava furiosa demais para manter a conversa num plano impessoal, mas a ação que
acompanhou suas palavras foi inteiramente imprevista.

Com o rosto vermelho de raiva, Paige deu um passo à frente e lançou um tapa com toda força
na direção dele.

Infelizmente, não contava com a reação dele. No momento em que Paige levantou o braço para
desferir o tapa, Kelly também ergueu o seu para defender-se e o resultado foi que o choque dos dois
braços fez com que Paige perdesse o equilíbrio e caísse de costas sobre o parapeito da varanda. Como
estava com os movimentos tolhidos, devido ao lençol que lhe cobria o corpo, ela bateu numa das vigas da
varanda, roçando o rosto no parapeito de madeira. Deu um grito de dor e, imediatamente, seus olhos
ficaram rasos d'água.

— Você se machucou? — perguntou Kelly com solicitude. — Bateu com o rosto na viga?
Ele agachou-se ao lado dela e examinou-a com atenção.
— Você é um bruto! — murmurou Paige, levando a mão ao rosto ferido. — Até parece que eu
recebi o coice de uma mula! O que você pretendia com seu soco? Desfigurar meu rosto para o resto da
vida?

— Foi sem querer, dou minha palavra.

— Sem querer uma ova! — exclamou Paige entre soluços de dor. — Você sente um prazer
especial em espancar as mulheres!

— Nesse caso, pense duas vezes no que faz.


Paige virou a cabeça, sem jeito. A agressão partira dela e Kelly não fizera mais do que se
defender.

— Você não tem o direito de dizer que eu sou uma mulher oportunista e que corro atrás dos
homens ricos. Você não me conhece para afirmar uma coisa dessas.

— Se você não é, por que se sentiu atingida?

— Ah, me deixe em paz, pelo amor de Deus! Eu estou farta de ouvir seus desaforos!

— Está bom, não falo mais.

— Já paguei por tudo que fiz de errado. Perdi meu carro novinho na enxurrada, perdi minhas
roupas, meu dinheiro... Como se isso não bastasse, quase morri afogada. Por cima de tudo isso, passo
duas horas sentada no lombo de um cavalo, jogada de um lado para o outro como se fosse peteca. Chego
descadeirada em casa, tomo um banho e penso que vou descansar algumas horas... Aí, sem quê nem pra
quê, você dá um murro no queixo e quase me desloca o pescoço, como se eu fosse uma bola de futebol. E,
em vez de me dirigir algumas palavras carinhosas de conforto, ainda me acusa de gananciosa e de
oportunista, como se eu passasse os dias correndo atrás de milionários...

Um soluço abafado, que soou terrivelmente melancólico no silêncio da varanda, interrompeu as


queixas de Paige.

Kelly sorriu com os olhos e levantou-a do chão com um gesto carinhoso.

— Não chore. Eu vou fazer um chá. Você quer tomar um comprimido para dor de cabeça?
Está com fome? Você comeu alguma coisa depois do café da manhã?

— Meu lanche estava no carro — disse Paige com um suspiro. — Meu lanche, meus vestidos,
meu dinheiro...

As palavras pareciam uma ladainha. Entretanto, o fato de estar abraçada contra o peito forte de
Kelly lhe deu uma sensação reconfortante de bem-estar, o que serviu para interromper momentaneamente
suas queixas.

— Não há de ser nada. Vou fazer outro lanche para você. O que está com vontade de comer?
Paige passou a língua nos lábios secos.

— Qualquer coisa quente está bom.


— Combinado.
Kelly levou-a no colo até a cozinha e sentou-a cuidadosamente no banco comprido de madeira.
Em seguida, pôs água na chaleira e se preparou para acender o fogão a lenha, embora houvesse um fogão
elétrico, praticamente novo, no canto da sala.

— O fogão elétrico não funciona?

— Funciona. Por quê?

— Por que você não o usa, em vez de ter todo este trabalho com o fogão a lenha?
Kelly endireitou o corpo e virou-se para ela.

— Eu fui criado com fogão de lenha...

— Ah, bom. Você é saudosista. Pensei que você fosse masoquista.


Ele deu um sorriso e aproximou-se dela.

— Não, nem um pouco. Deixe ver como está seu queixo. Infelizmente eu não tenho gelo aqui,
mas água oxigenada também é bom. Logo esse vermelho vai desaparecer.

— E eu vou ficar com o olho preto.

— Não, não vai — disse Kelly com um sorriso.

— Qual é a graça?

— Nenhuma.

— Então por que você riu?

— Porque você deve ficar muito engraçada de olho preto.

— Se você costuma tratar as mulheres deste jeito, não me espanto que sua esposa respire
aliviada quando você sai de casa. No fundo, este é o mal das pessoas solitárias. Elas perdem o hábito da
companhia e se comportam como verdadeiros selvagens.

Kelly colocou a chaleira em cima da pia com um gesto estudado.

— Você se engana redondamente.

— Em que sentido?

— Minha mulher não pode se queixar. Eu lhe dei o divórcio por livre e espontânea vontade e,
atualmente, ela está desfrutando as delícias da liberdade, da mesma forma que eu. Estamos ambos felizes
com a situação.
Paige mordeu o lábio com um gesto nervoso. Depois daquela confidencia, não podia acusá-lo
de insensibilidade.

— Desculpe. Eu não sabia que vocês eram divorciados. Vocês ficaram casados muito tempo?

— O suficiente para querer a separação.

— Foi depois disso que você mudou para cá?

— Não. Porquê?
Ela fitou-o de relance e notou de novo a mesma tensão que pairava antes no ar.

— Escute, se nós vamos passar alguns dias aqui, temos que conversar sobre alguma coisa,
bolas! Ou você prefere ficar em silêncio?

— Até que seria uma boa idéia...

— Bem, neste caso, pode me trancar num dos quartos vazios e fingir que eu não existo.

— Grande! — disse Kelly, aproximando-se da mesa com o bule de chá. — Você quer se
servir? Aproveite e tome um comprimido para a dor de cabeça. Mal não faz.

— Muito obrigada — disse Paige com frieza, sem levantar a cabeça do colo. — Não precisa.

— Quer experimentar um desses aqui?


Ela não teve outra alternativa senão erguer a cabeça para ver o que ele estava lhe oferecendo.
Kelly estendeu o maço de cigarros na sua direção.

— Ah, boa idéia — disse ela, apanhando um cigarro.


Qualquer coisa era preferível a cair na depressão, pensou Paige, puxando uma tragada
comprida.

— Devagar. Senão você fuma o cigarro em duas vezes.

— Desculpe.

— Pelo quê?

— Por tudo. Por não ter seguido seu conselho, por lhe dar todo esse trabalho, por estar aqui
infernizando sua vida, por fazer perguntas de que você não gosta.

— Não esqueceu nada?


Paige não sabia se ele estava brincando ou não. De qualquer maneira, estava muito cansada
para averiguar. Antes de mais nada, precisava comer alguma coisa, porque a última explosão de fúria
consumira todas as suas energias.
— Ah, sim... Eu me esqueci de agradecê-lo por ter me trazido até aqui. Realmente, seria
medonho passar a noite no alto do morro.

— Sendo comida pelos mosquitos.

— Pois é.

— Você está com fome?

— Estou. Quer que o ajude a preparar o jantar?

— Não precisa. Prefiro que fique sentada aí. Você está exausta depois dos acontecimentos do
dia.

— De fato, eu me sinto um caco.

— Num minuto o jantar está pronto.


Com os cotovelos em cima da mesa, Paige acompanhou os movimentos de Kelly na cozinha.
Ela sabia que os homens eram ativos, mas nunca imaginou que fossem tão eficientes quanto as mulheres.

— Há quanto tempo você está aqui?


Kelly interrompeu o que estava fazendo e voltou-se para ela.

— Vai fazer dois meses. Esta fazenda foi adquirida recentemente.

— Que fim levou o antigo proprietário?

— Desistiu de trabalhar no campo. O negócio não estava indo muito bem. Ele vinha da cidade
e desconhecia completamente as condições de vida no interior. A mulher também não gostou daqui. Ele
cometeu alguns erros graves e a terra fez o resto.

— A terra?

— É. A terra o expulsou daqui, por assim dizer. Algumas temporadas más. O negócio aqui
não tem meio-termo. Ou vai bem ou vai mal.

— Os dois eram inexperientes?

— Eram.

— Mas não podiam ser orientados por alguém com experiência? Como você, por exemplo?
Kelly colocou a panela em cima do fogão e voltou-se com o rosto sério.

— Os conselhos só adiantam quando o outro está em condições de ouvi-los.


Paige mordeu o lábio com despeito, atingida em cheio pela indireta.
— Ele também não ouviu seu conselho?

— Charles é terrivelmente cabeçudo e não ouve a opinião de ninguém. Ele é dos tais que
dizem: "Eu sei errar sozinho". Quando passou um ano sem chover, ele entregou os pontos e viu que havia
cometido um grave erro.

— Perdeu tudo?

— Perdeu.

— E foi por isso que vendeu a fazenda?

— É.

— Por uma ninharia, evidentemente?

— Não, nem tanto. Nós pagamos o preço justo. Charles inclusive ficou contente com a venda.

— Que remédio?! Nessa altura ele teria dado a propriedade por qualquer preço!

— Pode ser. Mas não foi isso o que aconteceu. Por que você quer distorcer os fatos?

— Ah, eu tenho uma aversão solene pelas grandes companhias! A verdade é que os ricos
enriquecem cada vez mais e os pobres ficam cada vez mais pobres. Como se chama o dono da
companhia?

— Bruce Morgan.

— Quer saber minha opinião? Tenho a impressão de que esse tal de Bruce Morgan está
sempre tirando proveito das situações, em detrimento dos outros. É ou não é?

Kelly balançou a cabeça com um gesto indolente.

— Não acho. Ele pagou o que Charles pediu. Não houve especulação de nenhuma das partes.
Ou você acha que Charles devia receber mais do que pediu?

— Lógico que não! Você gosta muito do seu patrão, pelo visto. Você o defende com unhas e
dentes!

— Claro. Ele paga bem aos empregados.

— Você prefere trabalhar para ele do que possuir uma fazenda própria?

— Sem dúvida.
Talvez essa pergunta já tenha sido feita uma dezena de vezes pela esposa, pensou Paige,
arrependida. Isso explicava em parte o mau humor da resposta. As mulheres, em geral, preferem possuir
casa própria em vez de morarem na casa dos outros. Mas podia ser também que Kelly não tivesse
condição no momento para adquirir uma propriedade. Até mesmo as fazendas pequenas custavam uma
fortuna, provavelmente mais do que ele ganhava com seu ordenado de empregado.
— Você trabalhava em Ainslie antes de vir para cá?

— Trabalhava — respondeu Kelly distraído, abrindo a porta do armário onde estavam os


mantimentos. — Como você gosta do bife? Ao ponto ou mal passado?

— Ao ponto — respondeu Paige, após um instante de hesitação.

— Não repare se o bife não sair exatamente como você gosta. Eu não sou muito entendido em
carnes...

— Não tem importância. Contanto que não esteja muito cru, para mim está ótimo. — Como
ela não entendia nada de cozinha, não podia se queixar. — Quer dizer então que você veio para cá depois
do divórcio?

Kelly colocou as duas fatias de carne na frigideira quente e voltou-se de perfil para ela.

— Você gosta de fazer perguntas, não?

— Desculpe. Você disse que eu podia perguntar o que quisesse.

— Eu não estou criticando, apenas comentando. No fundo, gostaria de saber qual é a razão
desse interesse repentino por minha atividade.

— Bem, como é a primeira vez que visito uma estação agrícola...

— E talvez seja a última.

— ... Tenho curiosidade de saber certas coisas.

— De acordo. Só faço uma objeção.

— Qual é?

— Até agora suas perguntas foram de ordem pessoal.


Paige corou como um pimentão. De fato, todas as perguntas que fizera referiam-se à pessoa
dele, e não à sua atividade profissional.

— Na minha opinião, as pessoas que trabalham no campo fazem parte do mesmo contexto
social.

— E daí?

— Em outras palavras — disse Paige hesitante, mais vermelha ainda com a gozação de Kelly
—, a maneira como as pessoas vivem ilustra as condições do lugar em que trabalham.

— Fiquei na mesma.

— Ah, não amole!


— Quer dizer que o tempo que estou aqui lhe diz alguma coisa a respeito da região?

— É, isso mesmo.

— Em que sentido?

— Bem, eu fico sabendo...

— Estou ouvindo.

— Eu fico sabendo...

— Você já disse isso uma vez.

— Ah, pare de me gozar! — exclamou Paige com irritação. — É claro que estou interessada
no que você faz! É a primeira vez que conheço um fazendeiro em carne e osso...

— E Stuart?

— Stuart não é um fazendeiro típico. Ele aprecia mais a paisagem e as condições ambientais
do que o trabalho propriamente dito.

— Isso é verdade. Ele adora a vida mansa. Ainda bem que o irmão trabalha pelos dois.

— Stuart tem um irmão? Eu pensava que ele fosse filho único!

— Parece, mas não é. Isso altera alguma coisa nos seus planos?

— Não amole! — exclamou Paige com impaciência. Como Kelly estava com a atenção
voltada para os bifes que fritavam na frigideira, ela apagou o cigarro com um suspiro de desânimo e
levantou-se da cadeira. — Posso ajudar em alguma coisa? Você quer que eu ponha a mesa?

— Não precisa, muito obrigado. Fique sentada onde estava. Está quase pronto.
Paige voltou a sentar-se na cadeira e ajeitou o lençol em volta do corpo.

— Ah, antes que me esqueça. Eu peguei emprestado este lençol no armário. Não tinha outra
coisa para me cobrir.

— Não faça cerimônia. Apanhe o que você precisar. Tem agulha e linha na gaveta do armário.
Veja se precisa de alguma outra coisa. Infelizmente, eu não tenho máquina de costura aqui.

— Muito obrigada por me ceder este lençol. Mas será que seu patrão vai achar ruim?

— Achar ruim do quê? — perguntou Kelly, aproximando-se da mesa com os dois bifes.

— Se eu cortar o lençol?


— O que ele tem a ver com isso?

— Ué, os objetos da casa são propriedade da companhia.

— São, e daí?

— E daí você não pode dispor deles como bem entender.

— Quem falou?

— Sou eu que estou supondo.

— Você está enganada, querida. A companhia nunca pediu contas do que eu faço.

— Bem, neste caso, vou lhe devolver um lençol novo na primeira oportunidade, porque este
eu vou cortar pela metade.

— Ah, não seja ridícula! Se você me devolver um lençol, vou ficar ofendido.

— Muito obrigada, então — disse Paige com um sorriso.

— Não tem de quê. Bom, agora que acertamos este assunto, vamos ao nosso jantar. Sirva-se,
por favor.

O jantar estava gostoso, embora não fosse nenhuma maravilha. Kelly usava o tempero correto,
mas não fazia nenhuma questão de ser um grande cozinheiro. Paige estava com tanta fome que raspou o
prato, embora a refeição transcorresse num clima ligeiramente tenso.

Por alguma razão misteriosa, a discussão sobre o lençol deixara Kelly de mau humor. Para não
agravar a situação, Paige comeu em silêncio. Ao terminar o prato, ofereceu-se para lavar a louça, sugestão
que foi aceita de bom grado por Kelly..

— Enquanto isso eu vou fazer o café.


Paige estava distraída, lavando a louça na pia, quando sentiu a necessidade incontrolável de
voltar ao assunto da conversa anterior.

— Você não se sente muito só aqui?


Kelly voltou-se com a cara amarrada.

— Não necessariamente. Estou acostumado. Você, sim, é que vai sentir-se sozinha aqui, sem
os programas de televisão e os telefonemas para as amigas.

— Você odeia as mulheres sociáveis, não é mesmo?

— Eu devia gostar?


Por mais que estivesse habituada com suas agressões, a franqueza da confissão apanhou-a de
surpresa. Paige voltou a cabeça, atônita, e observou-o com os olhos fixos.
— Não, creio que não...

— Também não precisa levar o caso tão a sério assim — acrescentou Kelly, procurando
desfazer o efeito de suas palavras rudes. — Nem mesmo uma moça bonita como você agrada a todos os
homens, à primeira vista.

A leve nota de ironia atingiu-a em cheio. Ela levantou o queixo, na defensiva.

— Eu não me incomodei com seu comentário — disse, procurando manter a voz calma. —
Simplesmente me surpreendi com o fato de você dizer isso na minha cara. Mas foi bom eu saber. Só
assim tenho a liberdade de dizer que eu também não simpatizo nada com a vida que você leva. Estamos
quites. Eu não suporto os homens solitários e egoístas que se julgam os modelos de virtude.

— Fim de papo.
Paige deu um sorriso amargo e guardou o último garfo lavado e enxuto na gaveta do armário.

— Vou dar uma volta lá fora. Estou precisando urgentemente arejar a cabeça.

— Bom passeio — disse Kelly no momento em que ela virou a maçaneta da porta. —
Cuidado com as cobras.

— Tem cobras aqui? — exclamou Paige com os olhos arregalados.

— Está cheio. Afinal, nós não somos a única espécie que foi perturbada pela chuva.

— Ah, não amole.


Kelly só está querendo assustar, pensou Paige, abrindo a porta da sala que comunicava com a
varanda. Mesmo assim, limitou-se a dar a volta na casa. A noite estava escura como breu e a lua crescente
mal chegava a iluminar a copa das árvores.

Ao aproximar-se do varal de roupas, Paige apalpou a calça pendurada para verificar se estava
secando rapidamente. No mesmo instante, sentiu uma picada dolorosa no braço e no pescoço. Deu um
tapa com a palma da mão para afastar os insetos.

— Pernilongos! — murmurou em voz baixa.


Felizmente as pernas estavam cobertas pelo lençol comprido, que batia no calcanhar. Em toda
parte, porém, onde a pele estava descoberta, os insetos atacavam vorazmente. Balançando os braços no
alto da cabeça, freneticamente, ela correu de volta para a sala.

Kelly estava sentado confortavelmente na cadeira de balanço, com um livro na mão e uma
xícara de café ao lado.

— Não gostou do passeio? — perguntou com o olhar inocente. Paige fechou a porta
rapidamente para impedir a entrada dos insetos.

— Adorei.

— Então por que voltou nessa correria?


— Ah, resolvi encurtá-lo.

— Está frio lá fora?

— Não, pelo contrário. Está gostoso demais. A lua brilha, enorme, e os grilos estão com toda
a corda.

— E os insetos?

— Que insetos?

— Não me diga que não tinha pernilongos com esta chuva.

— Eu não vi nenhum.

— O que você vai fazer agora? Dar uma volta dentro de casa?
Paige estava andando de um lado para o outro da sala, louca para coçar em paz as mordidas dos
pernilongos que ardiam corno brasa na pele sensível.

— Vou ao banheiro — murmurou com os dentes cerrados. — Ou você tem alguma objeção?

— Não faça cerimônia.

— Muito obrigada.
Correu para o banheiro e mergulhou o rosto e os braços embaixo da torneira. A água fria
porém não teve muito efeito sobre as mordidas. Desesperada, procurou no armarinho do banheiro alguma
pomada para passar. Infelizmente, encontrou apenas objetos de uso masculino, como creme de barbear,
pincel de barba e pasta de dente. Sem saber o que fazer para aliviar a dor, cedeu ao impulso incontrolável
de coçar as feridas inflamadas.

Estava nas pontas dos pés, com a cabeça voltada para trás, tentando alcançar uma mordida no
ombro, quando avistou Kelly apoiado no batente da porta, observando-a tranqüilamente.

— Coçar não adianta. Só piora...

— Espertinho!

— Venha aqui para eu ver essas mordidas.

— Quer fazer o favor de dar o fora daí? — gritou Paige furiosa, fazendo menção de bater a
porta na cara dele. — Eu não sou palhaço para você se divertir às minhas custas.

No momento em que ela estendeu a mão e puxou a porta pela maçaneta, um pé com bota
intrometeu-se no vão, impedindo que ela levasse a cabo sua intenção.

— Eu não vim aqui para me divertir.

— Para que, então? Você não fez outra coisa desde que eu entrei nesta casa!
— Eu trouxe um creme para a pele.
Paige fitou-o com os olhos arregalados e a expressão de idiota.

— Por que você não disse antes?


Ela apanhou com vivacidade o tubo de creme e começou a passá-lo freneticamente em todas as
mordidas.

— Você não tem tido sorte em sua estada aqui — comentou Kelly com a voz calma.

— Que culpa eu tenho? Não fui eu que pedi para andar durante horas no lombo daquele
cavalo, nem para ser derrubada no chão com um soco no queixo. Você podia ter me dito que lá fora
estava cheio de pernilongos.

— Adiantaria alguma coisa?

— Claro que sim! Eu não teria saído.

— Duvido.

— Pelo menos estaria preparada para enfrentá-los e não teria sido comida desse jeito.

— Está doendo muito?

— Adivinhe!

— Esses bichinhos são terríveis. Mordem mesmo através da roupa. — Kelly levantou uma
mecha de cabelos para examinar a região da nuca. — Deixe eu passar o creme aqui. Suas costas estão
vermelhas de mordidas.

Paige ficou toda arrepiada com o contato da mão dele na nuca e não queria falar, com receio de
trair sua emoção. Se o simples contato da mão a deixava tão excitada, o que seria então ser beijada por
ele?

— Pronto, agora você vai se sentir melhor — disse Kelly, fechando o tubo de creme.

— Muito obrigada. O que você faz num caso de acidente? Você tem alguma maneira de se
comunicar com alguém?

— Há um rádio transmissor no quarto.

— Ah, é? Eu não sabia.

— Em geral, eu faço uma ligação à noite, dando as notícias do dia.

— E você já fez essa ligação hoje?

— Já. Enquanto você estava no banho.


— Mencionou alguma coisa a meu respeito?

— Claro. Por quê? Você tem receio de que sua estada aqui seja mal interpretada?

— Não, não é isso! — negou Paige com vivacidade. — Em circunstâncias como essa, é
comum as pessoas desconhecidas se ajudarem mutuamente. E as pessoas que moram no interior sabem
disso melhor do que ninguém. Além disso, aposto que você deixou bem claro que minha presença aqui só
lhe causa aborrecimentos...

— Até que não — disse Kelly com um sorriso. — A gente acaba se acostumando à presença
do outro.

— Contanto que eu obedeça em silêncio suas ordens e não abra a boca para me queixar de
nada — acrescentou Paige com uma risada bem-humorada. — Para você as mulheres são apenas objetos
decorativos, não é verdade? Você detesta as mulheres ativas, desembaraçadas, independentes. Elas
ofuscam sua imagem de macho.

— De onde você tirou essa conclusão? — perguntou Kelly, com a testa franzida.

— De sua maneira de ser, é evidente. O machismo está estampado no seu rosto, meu caro.
Não adianta negar.

— Neste caso, não vou nem mesmo tentar.


Pouco a pouco, a alegria descontraída de minutos atrás deu lugar ao clima tenso de antes. Kelly
voltou a encará-la com a fisionomia pensativa e sombria. Paige deu um suspiro de cansaço antes de voltar
ao tópico anterior da conversa.

— Você me faz um favor?

— Qual?

— Da próxima vez que usar o rádio, você manda um recado para mim?

— Pois não. Mas eu posso adiantar desde já que Stuart foi informado de seu paradeiro.

— Eu não me referia a Stuart! — disse Paige com impaciência. — Estou pensando em meus
pais. Eles vão ficar preocupados se não receberem notícias minhas nos próximos dias.

— Escreva o endereço deles num papel que eu transmito o recado — disse Kelly com frieza.

— Muito obrigada — murmurou Paige.


Kelly apanhou o livro em cima da mesa e retomou a leitura interrompida. Pelo visto, os únicos
momentos em que ele lhe dedicava atenção era quando estava ferida, mordida por insetos ou em alguma
dificuldade séria. Entretanto, como ela não tinha a intenção de ferir-se constantemente para chamar a
atenção dele, a estada na fazenda seria terrivelmente tensa e tempestuosa. Os dois brigavam o tempo todo
como cão e gato.
Era provável, inclusive, que a hostilidade de Kelly se estendesse a todas as mulheres e não
apenas a ela. O primeiro casamento, pelo jeito, o traumatizara contra toda a espécie feminina, sem
exceção!

— Escute, você pode me arrumar uma caneta e um pedaço de papel?


Ele levantou os olhos do livro com uma expressão horrível de tédio.

— Tem lápis e papel na segunda gaveta do armário.

— Obrigada. Desculpe incomodá-lo.


Ela podia ser tão fria e impassível quanto ele, se era isso que Kelly desejava. Sem dizer mais
uma palavra, Paige dirigiu-se ao local indicado. Apanhou o bloco de papel, a esferográfica e apoiou-se no
armário para escrever o endereço dos pais. Feito isso, arrancou a folha do bloco e tornou a guardá-lo na
segunda gaveta do armário, junto com a caneta esferográfica.

Colocou o bilhete dobrado em cima da mesa e retirou-se da sala sem fazer mais nenhum
comentário.

Estava na hora de providenciar uma cama para dormir, pensou Paige, rumando diretamente
para o quarto onde tinha encontrado o lençol e a toalha de banho. Se achasse um colchão sobrando, em
algum canto da casa, daria um jeito de dormir ali, sem incomodá-lo. A ordem era falar o mínimo possível
com ele, para evitar agressões.

O primeiro contratempo no entanto surgiu com o interruptor de luz. A casa estava


completamente escura no fim do corredor. Após apalpar a parede, à procura do botão, Paige entrou
cautelosamente no quarto com a esperança de encontrar a tomada de luz. No meio do caminho, porém,
tropeçou em alguma coisa que estava caída no chão e pisou num objeto mole. O que podia ser, santo
Deus?

Levou um susto ao ouvir o ruído de passos no corredor e rumou rapidamente para a porta. No
instante seguinte, chocou-se contra outra coisa dura que lhe arrancou uma exclamação de dor.

— Ai!

— O que você está fazendo aqui?

— Ué, estou procurando um colchão para dormir. Não posso?

— No escuro?

— Eu não encontrei o interruptor. Está tudo escondido nesta casa!

— Não tem nada escondido! — exclamou Kelly com impaciência. — O interruptor está
pendurado no meio do teto, como era antigamente.

— Como eu podia adivinhar?


Piscando à luz forte da lâmpada, Paige fez uma careta ao avistar o fio pendurado no meio do
teto. Era por isso que não o tinha encontrado!
— Pronto. Agora o quarto está claro. O que você quer?

— Um colchão.

— Não tem colchão sobrando. A única cama está no meu quarto.

— Neste caso preciso de mais roupa de cama.

— Para quê?

— Ué, para fazer a minha cama!

— Onde?

— Na sala, é lógico.


Kelly abriu o armário e fez um sinal para ela se aproximar.

— Procure aí dentro. Talvez você encontre.


Paige agachou-se e esmiuçou tudo rapidamente. Só havia uma muda de roupa de cama.
Apanhou as peças que encontrou e endireitou o corpo.

— Numa casa tão grande como essa não há uma cama de armar?

— Infelizmente, não. Eu já lhe expliquei que só há uma cama na casa e essa cama está no meu
quarto.

— Neste caso, onde eu vou dormir? — perguntou Paige com os olhos arregalados.

— Como não há outra escolha, você tem que se conformar em dormir na minha cama.

— Você está louco!

— A cama é grande. Cabem os dois. A menos que você prefira dormir no banco da cozinha.

— Boa idéia.
Kelly balançou os ombros com indiferença, como se o problema não lhe dissesse respeito, e
preparou-se para sair do quarto.

Com o que forrar o banco?, pensou Paige ao dirigir-se à cozinha. Podia usar a manta grossa
que encontrara no armário, a toalha de banho, o lençol extra que estava levando no braço.

Entretanto, mesmo depois de reunir todos os tecidos que encontrou e dobrá-los cuidadosamente
em cima do banco de madeira da cozinha, o resultado não lhe pareceu muito satisfatório. A cama
improvisada estava dura como um pau.

— Você devia ter deixado a manta para se cobrir — comentou Kelly da porta.
— Por quê? Não está frio aqui.

— Agora não, mas costuma esfriar durante a noite.

— Se esfriar, eu me viro.

— Você é quem sabe — disse Kelly, voltando para o quarto. — Durma bem.

— Você também.
Paige apagou a luz da sala, deitou na cama improvisada e ficou ouvindo atentamente os ruídos
que vinham do banheiro. Após alguns minutos, virou para o lado e cobriu o ouvido com o braço, a fim de
abafar o assobio melodioso de Kelly. Pelo menos naquela posição não sofria muito com a tábua dura do
banco. Após ter mudado o travesseiro de lugar umas três ou quatro vezes, deu um suspiro e pôs em
prática todos os truques que conhecia para apressar a vinda do sono.

Infelizmente, nenhum deles foi bem-sucedido naquela noite. Continuou acordada muito tempo
depois que Kelly saiu do banheiro e voltou para o quarto. Rolou de um lado para o outro, deitou de
bruços, de costas, de lado, mas nenhuma posição era suficientemente confortável para pegar no sono.
Cada movimento que fazia despertava o protesto de um músculo dolorido. Embora cochilasse durante
alguns minutos, o sono era interrompido a todo instante pelos movimentos bruscos que fazia.

No meio da noite a temperatura baixou sensivelmente. Uma brisa fria começou a entrar pelas
frestas da janela e da porta. A partir desse momento, Paige foi obrigada a reunir todas as suas energias
para manter a temperatura do corpo, e o sono foi praticamente impossível.

Estava puxando a manta para cobrir a cabeça quando avistou o vulto alto de Kelly.

— Venha dormir na cama! — disse Kelly com voz firme. — Eu tenho que trabalhar amanhã e
não agüento mais ouvir seus gemidos e esse mexe-mexe incessante.

— Eu estava quase dormindo — disse Paige, sem muita convicção.

— Eu sei... Agora você vai dormir comigo — disse Kelly, levantando-a no colo com uma
facilidade incrível e transportando-a para o quarto. Ele deitou-a na cama grande de casal, ajeitou-se ao
lado dela e virou as costas. — Agora veja se dorme em paz.

Paige guardou a maior distância possível do corpo dele. Mesmo assim, não conseguiu relaxar
imediatamente. Estava com o rosto dolorido da pancada que recebera, o tremor do corpo continuava a
torturá-la e o traje sumário que vestia estava incomodando-a terrivelmente.

— Pelo amor de Deus, veja se pára! — exclamou Kelly, irritado — Feche os olhos e durma!

— Eu não trouxe o travesseiro. Como você quer que eu durma com o rosto dolorido e o lençol
que está me apertando na cintura?

No silêncio mortal que se seguiu, Paige notou que Kelly estava prestes a explodir numa crise
de fúria. Em vez disso, porém, levantou-se da cama, atravessou o quarto e foi à sala apanhar o travesseiro.
Paige aproveitou sua ausência para arrumar rapidamente o lençol em volta do corpo.

Kelly entrou no quarto, aproximou-se da cama e enfiou o travesseiro embaixo da cabeça dela
sem a menor cerimônia.
— Pronto. Agora você não tem mais desculpa para me encher a paciência!

— Eu não tenho culpa de estar sem sono.

— Feche os olhos e durma!

— Está bem. Não precisa berrar.

— Quem está berrando?

— Você.

— Ah, chega de conversa!


Kelly virou para o lado e afundou a cabeça no travesseiro. Pouco a pouco o calor do corpo dele
chegou até onde ela estava. Paige deu um suspiro

fundo e enrolou-se na coberta, com uma sensação agradável de bem-estar. Era melhor dormir
ali do que no banco duro de madeira. Minutos depois, sem se dar conta do que estava acontecendo,
mergulhou num sono profundo.
Capítulo III
Era um dia claro quando Paige acordou. Depois de constatar que estava sozinha na cama de
casal, deu um bocejo comprido e afundou de novo a cabeça no travesseiro, prestando atenção aos ruídos
que vinham de fora. Kelly provavelmente já tinha tomado café e saído de casa. Levou um susto ao
perceber que eram mais de nove horas. Era natural que Kelly não estivesse mais em casa.

Após lavar o rosto e vestir as roupas secas que estavam penduradas no varal, Paige fez a cama
e tomou café na cozinha. Em seguida, pegou o lençol que lhe servira de pijama naquela noite e pensou
fazer uma túnica para vestir em casa. Sem um molde, era difícil fazer uma roupa perfeita. Entretanto,
como não tinha preocupação de estar vestida na última moda, não fazia diferença se a túnica ficasse
grande ou pequena demais. O importante era ocupar as horas compridas do dia e ter alguma roupa para
vestir em casa.

O trabalho caminhou lentamente, uma vez que não tinha máquina de costura nem muita pressa
de terminar. Kelly estava fora e ela não tinha praticamente nada com que se ocupar na casa-grande da
fazenda.

Pelo fim da tarde, no entanto, estava contente com o resultado do trabalho. Além de uma blusa
e de uma saia, cortara também uma túnica sem mangas, com um decole fundo, que batia nos joelhos e que
serviria de camisola de dormir. Assim, pelo menos, não sofreria uma outra noite com o lençol enrolado no
corpo.

Às seis da tarde Kelly não tinha voltado ainda. Paige estava debruçada na janela da sala,
percorrendo com a vista o caminho em todas as direções, preocupada com sua demora. Kelly saíra a
cavalo de manhã bem cedo e não dissera onde ia.

Às sete da noite, cansada de esperar na sala, Paige tomou um banho comprido de imersão e
pensou nos preparativos para o jantar. A inquietação anterior deu lugar a um início de irritação. Não havia
nenhum motivo para Kelly demorar tanto, sobretudo sem haver deixado um bilhete dizendo onde ia e a
que horas pretendia voltar. Ele devia saber que ela ficaria preocupada e ansiosa com sua demora. O bruto
estava fazendo isso de propósito, somente para se vingar da noite maldormida.

Depois de mais duas horas sem nenhum sinal de Kelly, a atitude de Paige passou por uma nova
alteração. A raiva deu lugar a uma ansiedade insuportável. Alguma coisa tinha acontecido com ele. Não
era possível que se atrasasse tanto sem um motivo justo. Como faria para comunicar o fato a alguém?
Havia o rádio transmissor no quarto, mas de que adiantava se não sabia usá-lo?

Quanto a si mesma, não havia motivo para se inquietar. Os mantimentos na despensa eram
mais do que suficientes para uma longa estada na casa. Se fosse necessário, podia aguardar com paciência
que o nível das águas baixasse antes de aventurar-se à procura de auxílio. Quanto a Kelly... Mesmo que
conseguisse transmitir uma mensagem pelo rádio, não tinha a menor idéia do local onde deveriam ser
feitas as buscas. Também, por que ele não deixara um bilhete dizendo onde ia?

Ansiosa demais para concentrar a atenção na costura, Paige levantou-se da cadeira e foi
esquentar o jantar pela terceira vez em banho-maria. Estava retirando a panela do fogão quando ouviu um
ruído distante do lado de fora. Eram os passos de um cavalo? Sem hesitar, correu até a porta, abriu-a de
par em par e deu um grito de alívio ao avistar Kelly desmontar do cavalo diante de casa.

Ao vê-lo são e salvo, andando com indolência na sua direção, a irritação anterior voltou a todo
vapor. Ela xingou-o em voz baixa de todos os nomes que lhe passaram pela cabeça e aguardou com
impaciência que ele subisse os degraus que levavam à varanda. Quando Kelly entrou na sala, ela nem lhe
deu tempo para explicar o atraso. Partiu imediatamente para o ataque:

— Onde você estava até essa hora? Não lhe passou pela cabeça que eu podia estar morta de
ansiedade, imaginando que alguma coisa tinha acontecido com você? Você podia pelo menos ter deixado
um recado dizendo que ia voltar tarde e que eu não devia esperá-lo para jantar.

Kelly levou alguns segundos para voltar a si de sua surpresa. Ao perceber, porém, que ela
estava realmente furiosa com sua demora, ele deu uma risada descontraída.

— Não é possível! Faz apenas um dia que você está aqui e seu comportamento é igualzinho
ao da minha ex-mulher. Espere mais um pouco, garota!

— Escute aqui, seu... Você não é meu marido, mas eu tenho o direito de dizer o que penso,
bolas! Quem sofreu com seu atraso fui eu! Você não tem a menor consideração por mim...

Kelly tirou o chapéu da cabeça e passou os dedos por entre os cabelos escuros, observando-a
com atenção.

— Você estava com medo de ficar sozinha aqui?

— Não é isso! Você tem sempre que fazer mal juízo de mim. Eu não sou tão egoísta assim.

— Desculpe — disse Kelly, levantando o queixo dela com os dedos. — Eu não sabia que ia
me atrasar tanto quando saí daqui. Aliás, eu também fiquei preocupado com você.

— Por quê? O que podia me acontecer?

— Sempre pode acontecer alguma coisa num lugar isolado como este.

— Especialmente comigo, não é isso o que você quer dizer?

— Que culpa eu tenho se você não me inspira confiança?

— Você vai repetir isso o resto da vida?


Em vez de responder, Kelly percorreu o rosto dela com a ponta dos dedos.

— Como está o machucado? Sarou?

— Mais ou menos.

— Ainda está doendo?

— Um pouquinho.

— Daqui a alguns dias vai estar completamente bom.

— E aí a pele vai ficar amarelada.


— Pode ser que não.
Kelly caminhou em direção ao fogão com o braço passado em cima do ombro dela.

— Que cheiro gostoso! O que você fez para o jantar?

— Eu tentei fazer uma comida gostosa, mas não sou lá essas coisas na cozinha. Sem contar
que o jantar está pronto há horas...

— Depois do dia que eu tive, tudo tem um sabor maravilhoso.

— O que aconteceu? Você teve algum problema?

— Ah, nem me fale! — disse Kelly, dirigindo-se ao banheiro. — Vou contar depois que lavar
o rosto e as mãos.

Kelly, porém, não contou seu problema porque, ao voltar à cozinha, o prato estava feito e ele
começou a comê-lo com um apetite de leão. Mas, após algumas garfadas, ele parou repentinamente e
voltou-se para ela com uma careta de desagrado.

— Nossa mãe, você botou sal demais no macarrão! Você não provou a comida?

— Ah, meu Deus, desculpe! Eu fiquei na dúvida e coloquei um pouquinho mais do que devia.

— Um pouquinho? Muito mais — disse Kelly, afastando o prato da sua frente.

— Eu avisei antes que não tenho experiência na cozinha. Sempre acontece alguma coisa...

— Neste caso, é preferível você deixar a comida por minha conta.

— Mas isso não é justo! Afinal, você trabalhou o dia todo.

— Estou acostumado. Mesmo porque eu tenho que cozinhar para mim quando estou sozinho.
Não faz nenhuma diferença cozinhar para dois.

— Bem, faça como você achar melhor — disse Paige deprimida, retirando os pratos da mesa.
— No fundo, você preferia estar sozinho. Esta é a verdade.

Seja porque estava ocupado com os preparativos do segundo jantar, ou porque achou que não
valia a pena responder, a verdade é que Kelly ouviu o comentário dela em silêncio. Paige imaginava que,
de um dia para o outro, ele podia ter mudado de opinião a seu respeito. Tudo, no entanto, continuava na
mesma.

— Você conhece os sinais aéreos de emergência?


Paige voltou-se com a chaleira de água quente na mão. Os pratos sujos estavam dentro da pia.

— Não. Quais são?


— Há diversos sinais que você pode fazer para os aviões de reconhecimento. Hoje à tarde um
piloto sobrevoou esta região.

— Não diga! Foi isso então que eu ouvi? Eu não saí lá fora porque estava com minhas
costuras.

— Eu deixei um sinal ontem à noite dizendo que tudo estava bem. Mas seria bom você saber
alguns outros, em caso de necessidade.

— Como são feitos esses sinais?

— Com pedras, troncos, panos, qualquer coisa que você encontrar na hora, contanto que seja
bem visível do alto.

— Como o piloto reconhece a estação que está sobrevoando? Do alto, todas elas devem
parecer umas com as outras...

— Você não reparou que o nome da estação está escrito no telhado, em letras brancas?

— Não, não reparei.

— Você já viu alguma fotografia aérea de uma estação agrícola?

— Já, mas não pensei que fosse com esta finalidade.

— Para que você achava que era?

— Olhe, para falar a verdade eu nunca pensei nisso antes — disse Paige com impaciência.
Kelly deu um risinho zombeteiro.

— Pensar não é o seu forte.

— Não, não é! — exclamou Paige furiosa, voltando a atenção para os pratos que lavava na
pia. — Você não perde uma oportunidade de fazer pouco caso de mim.

— Desculpe.
Durante o segundo jantar, que Kelly preparou com a quantidade correta de sal e de tempero,
Paige guardou um silêncio obstinado, embora mantivesse a fisionomia serena. Duas vezes naquela noite
Kelly dera a entender que a presença dela na casa lhe desagradava. Ela não ia lhe dar a chance de
mencionar o fato uma terceira vez. Se Kelly desejava a solidão, ele teria a solidão, pensou Paige de mau
humor, sem perceber que seus olhos azuis estavam denunciando sua raiva.

— O que mais você tem contra mim? — perguntou Kelly em dado momento.

— Eu não disse nada! — exclamou Paige, sem jeito.

— Não disse, mas pensou. Você me xingou de todos os nomes durante o jantar. Pensa que eu
não percebi?
— Eu não abri a boca durante o jantar inteiro.

— Você não precisa falar. Está escrito em seus olhos.

— Ah, você está sonhando!

— Você nega que me desejou todo o mal desse mundo e que me condenou ao fogo eterno?
Por mais incrível que fosse, Kelly lia a mente dela com a maior facilidade do mundo.

— Eu não tenho nenhum motivo para odiá-lo — disse Paige com um olhar inocente.

— Como não? Você odeia as críticas que eu faço, os comentários, os conselhos que lhe dou.
Você não pensa em outra coisa a não ser vingar-se de mim na primeira oportunidade.

— Eu, me vingar de você? Depois de tudo o que você fez por mim? Seria o cúmulo da
ingratidão!

Kelly estendeu a mão e segurou-a pelos cabelos.

— Não minta. Você me odeia, confesse.

— Claro, você não fez outra coisa depois que nos conhecemos senão me criticar o tempo
todo.

— Neste caso, o melhor que você tem a fazer é comportar-se com juízo. Concorda?
Kelly estava tão perto dela que o seu campo de visão limitava-se ao rosto sorridente e ao peito
largo na sua frente. Ela sentiu-se pequena e indefesa diante de sua força bruta.

— Por que só eu tenho que mudar de atitude? Por que você não muda também uma vez?

— Porque não fui eu que errei. Você tem que aprender a se comportar com juízo, como um
adulto responsável por seus atos.

— Entendo. Você resolveu me educar no bom caminho.

— Exatamente. Aliás, não tenho outra escolha.

— Você não tem medo de que essa tarefa esteja acima de suas forças? Quem sabe se desta vez
você vai aprender alguma coisa comigo...

— Perca as esperanças, minha querida. Não sou eu que vou me deixar seduzir por seus belos
olhos.

Paige procurara ignorar essa possibilidade até o momento.

— Sei que não. Você é inflexível.


— Insensível aos encantos femininos — corrigiu Kelly com um sorriso.
Enquanto tomavam café, Kelly mostrou a ela a lista de sinais que devia utilizar em caso de
emergência. Paige acompanhou a explicação atentamente e procurou gravar todos os principais sinais
aéreos.

— São só esses? — perguntou no fim.

— Há outros que não têm utilidade no momento, nem se aplicam ao nosso caso.
Ela repetiu mentalmente as instruções fornecidas por ele: Uma barra vertical significava:
"Necessita-se de Médico". Duas barras verticais: "Enviem Medicamentos de Emergência". Três barras:
"Necessita-se de Meios de Transporte".

— De que tamanho devem ser os sinais?

— Devem ter mais ou menos uns três metros de comprimento. E nunca menos de dois metros.

— Entendi. E como eu sei se o piloto compreendeu os sinais que eu fiz?

— O piloto balança as asas de um lado para o outro quando entende a mensagem. Se a
mensagem não foi compreendida, ou tem alguma dúvida, ele descreve um círculo completo da esquerda
para a direita com o avião.

— Certo. Espero que não haja necessidade de usar esses sinais. A não ser o sinal de que tudo
está bem.

— Você só terá que usá-los num caso de emergência. Em geral, sou eu que mando os sinais.
A idéia de que Kelly pudesse estar impedido por algum motivo de mandar os sinais não era
muito agradável. Paige terminou de tomar o café e levou as xícaras vazias para a pia.

— Escute, não seria preferível você me ensinar a usar o rádio? — perguntou. — Assim eu
posso entrar em contato com a estação de Ainslie se acontecer alguma coisa com você.

— Não há necessidade. Afinal, se você não estivesse aqui eu teria que me virar sozinho.

— Mas não custa nada eu aprender!

— Está bom, vou pensar nisso.

— Eu não vou quebrar seu aparelho, nem usá-lo indevidamente. É apenas uma precaução a
mais.

— Sem contar que você pode manter longos papos com Stuart...
O ressentimento borbulhou dentro dela. Imagine se faria uma coisa dessas! Era só o que
faltava... Bater papo com Stuart! Como se ela tivesse muita intimidade com ele para ficar pendurada no
telefone durante horas...

— É essa a única razão?


— Não basta?

— Não, não basta! — exclamou Paige sem controlar sua raiva. — Você tem é medo que o
pessoal de lá saiba que eu estou morando aqui!

— Que me importa que eles saibam ou não? Você vai estar lá dentro de algumas semanas e
poderá contar tudo o que lhe passar pela cabeça. Por que eu haveria de me inquietar com isso?

Paige afundou os ombros, convencida pela lógica irrefutável do argumento.

— Você disse antes que teríamos que ficar aqui mais um mês. Agora são apenas algumas
semanas?

— Algumas semanas aqui e outras lá.

— Lá onde?

— Em Ainslie, é claro.

— Ah, quer dizer que eu vou ficar hospedada lá, sem ser convidada?

— Que diferença faz ficar aqui ou lá? As duas estações são do mesmo dono. Tanto faz uma
quanto a outra.

— Não, senhor. Aqui eu me sinto em casa. Eu trabalho, eu lavo a louça, eu varro a sala, os
quartos, eu espano os móveis...

Kelly deu um sorriso.

— Está bom. Eu vou pedir ao pessoal de lá para lhe dar um trabalho.

— Um trabalho de secretária?


Kelly enfiou os dedos no cinto largo de couro e sentou-se na beira da mesa, com uma perna
balançando no ar.

— Há duas vagas no momento na companhia. Mas eu não creio que nenhuma das duas sirva
para você.

— Por que não?

— Porque uma é para um homem casado e a outra é para um mecânico.

— Ué, para que eles querem um mecânico neste fim de mundo?

— Nada muito importante. Apenas para cuidar da manutenção dos tratores, roçadeiras,
empilhadeiras, bombas hidráulicas, sem falar nos outros equipamentos agrícolas mais complicados...

Paige corou com o tom irônico da resposta.


— Como eu podia adivinhar? Você está sempre me ridicularizando por minha ignorância. Eu
não sou uma agrônoma, bolas! Eu estou apenas querendo retribuir de alguma forma por esses dias que
passarei aqui. Será que é tão difícil assim você entender?

— Não, de jeito nenhum. Entendi perfeitamente. Você quer um trabalho na companhia para
pagar sua estada aqui.

— Isso mesmo. Parabéns! Você entendeu exatamente o que eu disse.

— Eu só não entendo uma coisa. Qual a diferença entre hospedar-se aqui e na fazenda de seu
amigo Stuart?

— A diferença é que eu fui convidada pessoalmente para visitar a fazenda dele. Eu não iria
bater lá sem mais nem menos, como aconteceu aqui.

— Bem, se você está se sentindo uma intrusa aqui, posso remediar essa situação.

— De que maneira?

— Muito simples. Vou convidá-la pessoalmente para ser minha hóspede. Está bom assim?

— Quanta gentileza! — exclamou Paige com um sorriso. — Até parece que estou sonhando.
Mas eu tenho a impressão de que a única pessoa que pode me fazer este convite é o dono da casa.

— Não seja boba! Ele sabe que você está aqui e está esperando que eu a leve até Ainslie. Em
caso de emergência, você não precisa ser convidada para ficar numa fazenda que lhe oferece um mínimo
de conforto.

— Entendo. — Paige apanhou o pano de prato e começou a enxugar a louça lavada. — Você
pretende ficar em Ainslie ou vai voltar para cá?

— Não sei ainda. Depende de uma série de fatores. Por que você quer saber?

— Por nada — disse Paige, pensativa.

— Você preferia voltar para o litoral?

— Preferia.

— Não se esqueça de que o rio transbordou e levou a ponte embora. Somente daqui a algumas
semanas será possível atravessá-lo com segurança.

A menção do rio repercutiu na mente dela como um estalo. Lembrou-se repentinamente de um


outro assunto que fora esquecido por completo nos últimos dias.

— E meu carro? Não posso retirá-lo do rio?


Kelly fitou-a com o rosto sério, como se compartilhasse de sua perda.
— Acho que não. E mesmo que isso fosse possível, seria preciso reformá-lo completamente,
porque tudo apodreceu nesse meio tempo. É preferível, neste caso, comprar um carro novo. Sai mais
barato.

Paige afundou a cabeça ao ouvir a explicação. Ela não fazia idéia, até aquele instante, da
gravidade do acidente.

— E minha bagagem? Minhas roupas? Meu dinheiro? Kelly passou os dedos pelos cabelos
escuros.

— Acho que dificilmente você poderá recuperar esses objetos. Se é que não foram levados
pelas águas...

Paige balançou a cabeça e apanhou um outro prato limpo na pia, que enxugou vigorosamente
com o pano de prato. Ela não queria chorar de novo na frente dele como uma idiota. O carro novo, os
vestidos que ia usar nas corridas, o dinheiro que levara meses para juntar — tudo perdido
irremediavelmente!

— Não fique triste — disse Kelly, retirando o pano de prato de sua mão e abraçando-a com
carinho. — A gente vai dar um jeito.

— Essa foi a viagem mais cara que eu fiz na vida — murmurou Paige com vontade de chorar
e de rir ao mesmo tempo. — Tudo porque não ouvi seu conselho.

— Pois é.

— Bem-feito! Foi bom para eu aprender a lição.

— Pobre menina levada — disse Kelly, inclinando a cabeça e beijando-a de leve nos lábios.
Antes que Paige voltasse a si de sua surpresa, ele afastou-a dos braços.

— Vou tomar banho.

— É melhor, mesmo — concordou Paige com a face corada.


Quando Kelly voltou, alguns minutos depois, Paige terminara de arrumar os pratos no armário
e estava ocupada na costura da roupa que começara algumas horas antes.

— Você vai falar hoje à noite no rádio?

— Eu já falei de manhã.

— Você mandou meu recado?

— Mandei. A essa hora seus pais já receberam a notícia.

— Ah, que bom!

— Recomendei a Dave que passasse um telegrama urgente. Você toma café?


— Tomo. Minha xícara está aqui.
Kelly aproximou-se da mesa com o bule na mão.

— Você fez uma roupa? — perguntou, examinando a costura que estava estendida em cima
da mesa.

— É uma espécie de conjunto. Não é lá muito elegante, mas dá para o gasto.

— E isso aqui?

— É a saia.
Paige levantou-se da cadeira e passou o pano em volta da cintura.

— Não tem cinto?

— Não. Vou prendê-la com um alfinete de fralda.

— Tem um na gaveta. O que mais você fez?

— Fiz uma blusa para acompanhar a saia e uma túnica para dormir.

— Ah, boa idéia! Aquele lençol em volta do corpo não estava muito legal. Você parecia uma
múmia...

— Não brinque! — exclamou Paige com uma gargalhada. — Eu não fazia idéia de que dava
essa impressão.

— Levei um susto quando acordei e virei para o lado. Parecia que tinha voltado ao Egito
antigo.

Paige foi tomada de um acesso de riso nervoso.

— Não exagere! Eu sei que devia estar medonha com aquele lençol, mas nem tanto assim.

— O pior você não sabe...


Paige ficou repentinamente séria, com os olhos arregalados.

— O quê?

— Você não notou nada à noite?


Paige sentiu o rosto pegando fogo.

— Não. O que aconteceu?


— Quando eu acordei, você estava nua em pêlo — disse Kelly com um sorriso. — Você não
percebeu?

— E foi você quem me cobriu?


Ele saboreou longamente a surpresa dela antes de responder:

— Bem, eu fiz o que pude...


Paige ouviu a explicação em silêncio, de olhos arregalados. Kelly estava falando sério ou
brincando? Seu único consolo era saber que aquele fato não se repetiria de novo. Agora ia dormir de
camisola... Se não fosse isso, não teria coragem de deitar uma segunda vez ao lado dele na cama grande
de casal.
Capítulo IV
Uma manhã, no fim da primeira semana, Paige acordou mais cedo que de costume. Em vez de
dormir novamente, ficou de olhos abertos, refletindo sobre tudo que acontecera nos últimos dias. Quando
ela imaginaria, uma semana atrás, que acordaria no meio da noite numa casa estranha, numa cama de
casal, dormindo com o braço de um homem passado em cima de sua cintura?

A primeira vez que isso aconteceu, ela levou um susto e tentou afastar o braço de Kelly de
cima de seu corpo. Entretanto, ao perceber que ele dormia profundamente, relaxou e não pensou mais no
caso. O gesto dele talvez fosse devido à posição em que dormia — de barriga para baixo, com o braço
estendido para o lado — ou a um costume adquirido na época em que era casado. Seja qual fosse a
explicação, Paige resolveu aceitar o gesto com naturalidade.

Deitada de costas, imóvel para não acordá-lo, voltou ligeiramente a cabeça para o lado, a fim
de observá-lo à vontade. Kelly dormia serenamente, com a expressão descontraída, os cabelos pretos
cobrindo parte da testa, a boca ligeiramente entreaberta.

Os olhos dela percorreram lentamente os ombros largos e as costas musculosas; a pele, de um


moreno mate, parecia mais escura ainda na meia-luz do quarto. Depois que os dois começaram a dividir a
mesma cama, Kelly punha um short para dormir. Antes provavelmente ele dormia sem roupa nenhuma, já
que não havia sinal de pijama no armário.

Os pensamentos dela divagaram livremente enquanto passeava os olhos pelo corpo


adormecido. Por que ele se divorciara da mulher? Ou fora ela quem pedira o divórcio? Não havia dúvida
de que Kelly podia ser tremendamente irritante às vezes e havia uma crueldade latente no seu
comportamento que era muito desagradável. Mesmo assim, ele era um homem fascinante, que
dificilmente podia ser esquecido.

Fascinante demais, pensou Paige com um suspiro. Raras vezes ela se deixara cativar por
alguém dessa forma. Embora Kelly não tivesse voltado a beijá-la depois daquela noite na cozinha, ela
reconheceu que sentia muitas vezes falta de um contato mais íntimo. Desde o primeiro encontro no hotel,
Kelly exercera uma influência profunda sobre suas emoções e isso aumentava com a passagem dos dias.

Virou-se na cama como se quisesse afastar fisicamente os pensamentos inquietantes que a


importunavam. Entretanto, com receio de acordá-lo, voltou lentamente à posição anterior. Como seria a
mulher dele? Era do campo ou da cidade? Ela também não tinha se habituado com a vida no interior?
Teria sido essa a razão do divórcio?

No seu caso, contudo, a solidão e o isolamento não estavam incomodando tanto quanto
imaginara inicialmente. Cada dia que passava aumentava o fascínio que sentia pela região campestre.
Talvez a companhia de Kelly na casa-grande da fazenda lhe desse uma segurança que contribuía para a
sensação de bem-estar que experimentava ultimamente.

— Você perdeu o sono?


Ela voltou-se para o lado ao ouvir a voz dele.

— Perdi.

— No que está pensando?


— Na minha estada aqui.

— Foi por isso que você sorriu?

— Pode ser... Eu estou gostando daqui.

— Mesmo depois de perder o carro, os vestidos, o dinheiro?

— É, mesmo assim.

— Estranho.

— Por que estranho?

— As mulheres em geral não gostam daqui, especialmente as que estão acostumadas ao
conforto da cidade.

— Talvez minhas raízes não estejam na cidade, como eu pensava. Foi por isso que sua mulher
pediu o divórcio?

— Porque as raízes dela estavam na cidade?

— Porque ela não agüentou a solidão.


Kelly virou-se de barriga para cima e olhou para o teto, com as mãos atrás da cabeça.

— Olhe, para falar francamente, Nadine nunca tomou consciência de que estava morando no
interior.

— Não é possível!

— A única coisa que a interessava realmente era dar reuniões e jantares. E ela não ficava
satisfeita com pequenas recepções. Não! Tinha que receber dezenas de convidados, hospedá-los nos
melhores quartos, banqueteá-los com champanhe.

— Aqui? Nesta casa?

— Não. Em Ainslie.

— E você?

— O que eu podia fazer? Evidentemente não podia me dar ao luxo de ter convidados em casa
que bebiam champanhe no café da manhã!

— Eu imagino.

— Eu não dava um passo dentro de casa sem esbarrar num convidado de Nadine.
Convidados! A maior parte deles era parasita que não fazia nada, a não ser viver de expediente...
—E aí?

— Bem, chegou o momento em que perdi a paciência.

— E mandou todo mundo embora?

— É. Mais ou menos. E ela, junto com os outros...

— Não! Você fez isso? Com sua mulher?

— Que remédio... Eu agüentei cinco anos essa bagunça dentro de casa. Nadine, porém, ficou
tão feliz com a decisão quanto eu. Ela não suportaria passar um dia comigo se não pudesse ter sua corte
em volta.

— Vocês estavam casados com comunhão de bens?


Kelly ajeitou-se na cama e observou-a com o canto dos olhos.

— Você quer saber se eu me arruinei por causa dela? Você não me conhece... Acha mesmo
que eu vou falir por causa de uma boneca de franja na testa e sombra verde nos olhos?

— Essas coisas acontecem nas melhores famílias...

— Mas não comigo! Eu não perdi nada com o divórcio. Pelo contrário, saí ganhando!

— E Nadine?

— O que tem Nadine?

— Ela sofreu com a separação?

— Claro que não. Foi ela quem sugeriu o divórcio.

— Porque você insistiu, é claro?

— Acertou.

— Ela era do interior ou da cidade?

— Da cidade, como você.

— E foi na cidade que vocês se conheceram?

— Não. Foi em Ainslie.

— Como vocês se conheceram?


Kelly ergueu-se da cama e espreguiçou-se longamente, dando um bocejo enorme.
— Escute, vamos mudar de assunto, tá? Afinal, eu respeito sua privacidade.

— Respeita uma ova! Mesmo porque não há nada muito especial na vida de uma secretária.

— E no meu casamento, há algo especial?

— Ué, eu tenho curiosidade de saber certas coisas a seu respeito. Afinal, vai fazer duas
semanas, que estamos morando na mesma casa.

— E dormindo na mesma cama.

— Pois é. Não vejo mal nisso.

— No quê? Em dormir na mesma cama?

— Em fazer perguntas.

— Eu não gosto de falar neste assunto.

— Desculpe. Eu não sabia.


Paige levantou-se da cama e rumou diretamente para o banheiro. Abriu a torneira de água fria e
mergulhou o rosto embaixo. O dia começara mal. Era sempre assim... Kelly lhe dava liberdade de
perguntar o que bem entendesse e, de repente, quando menos esperava, cortava o fio com uma agressão
que a deixava ferida e magoada o resto do dia.

Por que ele agia assim? Não eram somente questões de ordem pessoal que o irritavam, eram
também assuntos relativos ao trabalho. Até aquele instante, a única explicação satisfatória que encontrara
para essa atitude era supor que Kelly agia assim por estar levando uma vida solitária. Ele tinha perdido o
hábito da convivência, essa era a verdade. Que outra explicação podia haver?

Por volta do meio-dia, Paige terminou os trabalhos da manhã e estava pronta para dar a volta
costumeira pelos arredores da casa, onde o terreno estava seco. Mais além, estendia-se a vasta planície de
terras alagadas. Na véspera o nível da água subira ao ponto máximo e Paige estava curiosa para saber se o
nível continuava subindo ou se havia descido ligeiramente, como Kelly tinha previsto no dia anterior.

O sol transformava a superfície inundada num espelho ofuscante e Paige tinha que cobrir a
vista para protegê-la dos raios que incidiam diretamente sobre os olhos. Deixou as dependências da
fazenda para trás e caminhou em direção ao pasto, onde Kelly costumava deixar o cavalo alazão que
montava. Sorriu ao lembrar-se da tarde em que chegara na fazenda montada na garupa do cavalo.

Caminhou por baixo da sombra das árvores e olhou para tudo em volta com um sentimento de
alegria. A manhã estava linda, se bem que quente demais para seu gosto. Felizmente as árvores altas a
protegiam dos raios inclementes do sol.

Ao voltar a cabeça para o lado, Paige franziu a testa instintivamente com uma expressão de
espanto. Um touro enorme, terrivelmente mal-encarado, surgiu de repente a alguns passos do lugar onde
estava.

Nos dias anteriores ela tinha avistado diversos animais que se aproximavam da casa, fugindo
das águas que subiam. Era possível que aquele touro fizesse parte do mesmo rebanho.
Entretanto, no momento em que o touro abaixou a cabeça enorme e começou a cavucar o chão
com a pata direita, Paige concluiu imediatamente que ele estava com más intenções. O que mais chamou
sua atenção foi o pêlo arrepiado do animal, os olhos injetados que a fitavam atentamente, sem falar no par
de chifres curtos e retos que apontavam ameaçadoramente na sua direção.

Tomada de pânico, Paige fez duas coisas ao mesmo tempo. A primeira foi procurar com a vista
um abrigo perto dali; a segunda foi berrar com toda a força dos pulmões por Kelly. Ele estava trabalhando
na oficina e era possível que estivesse ao alcance de sua voz.

No instante seguinte, o touro e Paige se moveram ao mesmo tempo. O touro partiu no galope
na sua direção e ela partiu na corrida em direção à árvore mais próxima que avistou. O medo deu asas às
suas pernas e ela correu velozmente na direção do abrigo, agarrou-se ao primeiro galho baixo que
encontrou e levantou rapidamente as pernas, ficando dessa forma fora do alcance dos chifres do animal.

Incapaz de parar a tempo no meio da corrida, ou de mudar de direção, o touro investiu


diretamente contra a árvore e deu uma marrada com tanta força no tronco que os galhos tremeram.

Aterrada com a investida do animal, Paige trepou em cima do galho e tornou a gritar a plenos
pulmões por Kelly. Sua esperança era que os chamados fossem ouvidos devido ao ar silencioso da
fazenda.

Bufando e cavando o chão embaixo da árvore, o touro bravo não se deu por satisfeito.
Arremeteu novamente contra o tronco, como se estivesse disposto a derrubar a árvore com suas chifradas.
Paige ficou branca como cera e tornou a gritar, pela terceira vez:

— Kelly, socorro! Socorro!


Segundos depois, ao levantar os olhos, deu um grito de alegria. Kelly vinha a todo galope na
sua direção, balançando uma espingarda na mão direita. Com a outra, segurava a crina esvoaçante do
cavalo. Ele tinha montado em pêlo e saíra correndo ao ouvir os chamados dela.

— Cuidado! — gritou Paige ao vê-lo aproximar-se. — Esse touro é bravo!

— Estou vendo — disse Kelly, parando o cavalo a uma distância respeitável do animal.
No primeiro instante, o touro teve a atenção desviada pela chegada do cavalo e do cavaleiro.
Ele hesitou alguns segundos antes de tomar uma decisão e de partir na direção do alvo mais acessível.

Paige prendeu a respiração ao observar a cena do alto da árvore. Kelly aguardou calmamente a
investida do touro furioso, com a espingarda apontada para ele. Quando o animal chegou a uma distância
de dez metros, ele disparou a arma poderosa de dois canos. O touro foi detido na corrida
instantaneamente, como se recebesse uma machadada na nuca.

Tudo aconteceu tão depressa que Paige continuou alguns segundos de olhos arregalados,
estupefata diante da cena. A massa enorme que estava prostrada no chão era o touro bravo e feroz de
alguns minutos atrás! No momento em que Kelly se aproximou da árvore, ela perguntou com a voz
engasgada:

— Ele está morto?

— Mortinho da silva. Pode descer daí.


Ela continuou, porém, abraçada no galho, com os braços trêmulos e o rosto horrivelmente
pálido.
— Por que ele avançou contra mim? Eu não fiz nada!

— Ele é bravo por natureza. Esse touro fugiu do pasto há alguns anos e se tornou um animal
selvagem.

— Há muitos como ele no pasto?

— Espero que não.

— O que você vai fazer agora? Deixá-lo aí?

— Não. Vou arrastá-lo com o jipe e levá-lo para o outro lado do morro, longe da nossa vista e
do nosso olfato.

— Boa idéia.
Kelly estendeu a mão para ela.

— Esta é a segunda vez que vou recebê-la de braços abertos.

— Quando foi a primeira vez?

— No dia da enchente, quando você subiu no alto do morro.

— É preferível trepar na árvore do que ser pisada por um touro bravo.

— Você fez bem. Melhor isso do que correr do touro ou se esconder atrás da árvore.

— Eu quase me escondi atrás daquela árvore ali — disse Paige, apontando para um tronco
grosso que havia perto.

— Ainda bem que você mudou de idéia. Caso contrário, não estaríamos agora conversando
aqui.

— Porquê?

— Por mais incrível que pareça, o touro bravo dá a volta mais depressa na árvore que uma
pessoa.

— Não brinque!

— Juro. Num caso como esse, se você não tiver outra escolha, esconda-se atrás de uma árvore
menor, onde você possa dar a volta mais depressa que ele.

— E há perigo dele derrubar a árvore com uma chifrada?

— Há, é claro. Mas, em geral, ele prefere atacar as pessoas aos objetos.
— E as vacas? Elas também atacam a gente?

— Raramente. Em geral, as vacas são mais mansas que os touros.

— Está vendo? — exclamou Paige com um sorriso de triunfo. — Numa coisa pelo menos as
fêmeas são mais humanas que os machos.

— Só nisso, também — disse Kelly com um risinho irônico. — Você vem comigo ou não?

— Não, muito obrigada. Eu mal acabei de me recuperar de minha última experiência com
garupas de cavalo. Além disso, estava dando uma volta para verificar o nível da água. Vou continuar
minha inspeção, que foi interrompida por esse pequeno incidente...

— Você vai ver que o nível baixou cinco centímetros de ontem para cá.

— Ah, que bom! Logo podemos partir para Ainslie.

— Ainda vai levar algum tempo para a estrada secar completamente. Mesmo um jipe com
tração nas quatro rodas atola se a lama for muito funda.

— Bem, a data da partida fica por sua conta. Você sabe melhor do que eu decidir esse
assunto. Pelo que entendi, você não vai me guardar aqui mais tempo do que for necessário.

— Por que você chegou a essa conclusão?

— Por duas razões. A primeira é que você prefere a solidão à companhia de uma mulher
chata. A segunda...

— Olhe, eu não estou tão certo assim — interrompeu Kelly. — A cama com duas pessoas é
mais quente que com uma só.

— Ainda bem que você reconhece uma qualidade em mim!

— Juntamente com seus outros defeitos, é claro.

— Lógico. Ninguém é perfeito.

— É bom você me lembrar. Eu ia me esquecendo...

— Enquanto eu estiver aqui, você não vai se esquecer.


Kelly deu um pequeno sorriso.

— Bem, já que você não quer descer daí e não precisa da minha companhia, vou voltar ao
meu trabalho.

— Muito obrigada por ter-me salvado uma segunda vez!

— Não tem de quê. Estamos sempre às ordens.


— Você me dá a mão para descer?
Kelly aproximou o cavalo do galho onde Paige estava trepada e estendeu-lhe a mão. Ela
deixou-se cair sobre seu corpo; ele segurou-a pela cintura e sentou-a na frente da sela.

— E meu passeio?

— Fica para outra vez. Hoje você já teve sua dose de emoções. Não é bom exagerar. Lembre-
se de que você está sob minha responsabilidade nesta fazenda. Eu tenho que zelar por sua segurança.

— Em outras palavras, você pode me agredir à vontade, mas não quer que mais ninguém me
pise em cima...

— Isso mesmo.
Paige aceitava com naturalidade o braço que Kelly passava em cima do seu corpo quando
estavam dormindo na mesma cama. Entretanto, o contato dele durante o dia lhe causava sempre uma
impressão inquietante. Para não trair seus sentimentos íntimos, ela decidiu repentinamente descer do
cavalo.

— Olhe, acho que eu vou dar meu passeio a pé. É mais seguro...

— Eu lhe pedi para você não passear mais hoje, está lembrada?

— Bem, de qualquer maneira, não vou mais andar a cavalo. A primeira vez bastou. Solte-me,
por favor. Eu quero descer.

— Eu não quero que você desça. Vamos ver quem ganha.

— Não abuse de minha paciência, Kelly! — exclamou Paige, dando com toda força uma
cotovelada nas costelas dele.

Em vez de responder, ou de gemer de dor, Kelly esporeou o cavalo e partiu no galope em


direção à casa.

Logo que chegaram lá, ele desmontou, encostou a espingarda no canto da varanda e ficou com
as mãos na cintura, observando-a com uma expressão de desafio.

— Vamos ver agora quem pode mais.

— Você não tem vergonha de bater numa mulher?

— Foi você quem começou. Agora agüente as conseqüências.


Por mais arrependida que estivesse de seu ato, Paige estava decidida a não pedir desculpa desta
vez. Se Kelly tivesse cedido ao seu desejo, ela teria dado uma volta sem criar nenhum problema. Ela se
ajeitou no lombo do cavalo, mas não fez menção de descer.

— Você não vai descer?

— Estou esperando você ir embora.


— Se você não descer, eu vou tirá-la daí à força.

— Pensei que você fosse um homem educado e não um selvagem.

— A boa educação em certos casos não funciona — disse Kelly, estendendo os braços para
segurá-la pela cintura.

Ao ser puxada do lombo do cavalo, Paige agarrou-se na crina do animal. No mesmo instante, o
cavalo virou de lado e deu as costas a Kelly, que continuou segurando-a pela cintura. Com o movimento
inesperado do cavalo, Kelly perdeu o equilíbrio e caiu de costas no chão, arrastando Paige na queda, que
se estatelou em cima dele.

— Você se machucou? — perguntou ela, aflita.

— Não foi nada. Eu tenho as costas duras.


No momento em que Paige fez menção de levantar-se de cima dele, Kelly passou os braços em
volta do corpo dela e estreitou-a contra si. A princípio, ela tentou reagir. Entretanto, ao sentir a mão dele
aberta em cima de sua nuca, forçando o pescoço para baixo, Paige murmurou apenas um "não" sem muita
convicção, o que não impediu os lábios dele de cobrirem os seus num beijo ardente.

Cedendo ao desejo que despontava, Paige deu um suspiro fundo e abandonou-se


completamente ao prazer do momento. Sua cabeça estava tão zonza que tinha a nítida impressão de ver
tudo girando em sua volta.

— Isso não vale — murmurou baixinho. — Você me pegou de surpresa.


Sem soltá-la e sem interromper o beijo, Kelly inverteu a posição e deitou-se ao comprido sobre
ela, beijando-a com redobrado ardor no rosto, no pescoço, nos ombros, nos olhos, até voltar finalmente à
boca.

Em seguida, com uma exclamação de incredulidade e com um movimento brusco da cabeça,


ele deu um último beijo no canto da boca de Paige e sentou-se no chão.

— Desculpe. Sei que não devia me aproveitar de uma situação como essa.
Paige passou os dedos trêmulos por entre os cabelos emaranhados.

— Você não tem culpa. Nós dois estamos sofrendo do mesmo mal. A proximidade exerce um
efeito muito forte sobre as pessoas.

— Pode ser — disse Kelly, sem muita convicção.

— Mas você não está convencido.

— Há outras explicações possíveis...

— Mas nenhuma se aplica ao nosso caso. Nosso comportamento é ditado pela intimidade
forçada e não por um sentimento especial.

— As conseqüências, porém, são as mesmas, ainda que as intenções sejam diferentes.
Paige abaixou a cabeça, convencida momentaneamente pela lógica do argumento. Até o
momento conseguira controlar-se, mas não podia prever o que aconteceria no futuro se fosse tentada uma
outra vez.

— Ainslie fica muito longe daqui?


Kelly fitou-a, intrigado com a pergunta inesperada.

— Um dia ou dois de viagem, no máximo. Tudo depende das condições da estrada e das
demoras causadas pelos desvios.

— Ainslie é maior do que Bindaburra?

— Bem maior. Ainslie tem dois mil alqueires de terra.

— Nossa senhora, que propriedade imensa! E tudo isso é de um dono só?


Não entrava na cabeça dela que um único homem pudesse possuir uma área tão grande de
terras.

— De certa forma, sim.

— Como de certa forma?

— Bruce Morgan possui a maior parte das ações da companhia, que é a legítima proprietária
das terras.

— A companhia é dos parentes?

— É.

— Neste caso, está tudo em família!

— O que há de mal nisso?

— Nada, contanto que você seja um membro da família...

— O que não é o seu caso.


Paige mordeu o lábio com despeito.

— Como eu disse antes, odeio as grandes empresas, os monopólios, os grupos financeiros...


Não acho justo que uma única pessoa, ou um grupo de pessoas, possua uma área tão grande de terras.

— Isto é, contanto que essa pessoa não faça parte da família.


Paige piscou os olhos, atrapalhada pela sutileza do argumento.

— Onde você quer chegar exatamente?


— Você saiu de casa e fez uma viagem de três dias para visitar uma fazenda do mesmo
tamanho de Ainslie.

— Você está se referindo a Greenvale?

— É, a Greenvale.

— Eu não fazia idéia de que essas estações agrícolas fossem tão imensas assim.

— E agora? O que você vai dizer a Stuart? Que está furiosa com a injustiça da situação e que
não deseja mais conhecer a fazenda dele?

— Lógico que não! Eu não tenho nada a ver com isso.

— Neste caso, chegamos a um acordo. Eu também não tenho nada a ver com isso. O tamanho
da propriedade onde trabalho não é da minha conta.

Kelly segurou o cavalo pelo cabresto e levou-o em direção ao pasto. Paige observou-o afastar-
se com os olhos pensativos. Mais uma vez Kelly interpretara mal suas palavras. Entretanto, como sabia
por experiência própria, não adiantava tentar corrigir uma impressão falsa.

A opinião que ele tinha a respeito dela estava feita de uma vez por todas e nada do que dissesse
ou fizesse iria demovê-lo dessa opinião. Somente o tempo poderia alterar essa situação. Quem sabe se
daqui a alguns meses ele passaria a vê-la com outros olhos?
Capítulo V
Ao entrar na sala da frente, depois do banho, Paige ouviu a voz de Kelly que vinha do quarto
de hóspedes. Embora estivesse há duas semanas na fazenda, era a primeira vez que ouvia Kelly falar no
rádio. Das outras vezes, ele aproveitava o momento em que ela estava usando o banheiro para transmitir
seu boletim diário. Naquela noite, contudo, a conversa pelo rádio prolongou-se além do tempo habitual.

— E aí, como estão as coisas?

— Aqui vai tudo bem — disse uma voz de homem. — As águas estão descendo lentamente.

— Houve algum dano sério?

— Não. As cercas foram derrubadas em alguns lugares, mas já foram endireitadas. Ah, antes
que me esqueça, Larry encontrou um potrinho no campo. Mãe e filho foram separados do resto dos
animais quando as águas subiram.

— Larry está de parabéns. Ele terá o privilégio de amansar o potro daqui a algum tempo.

— Eu gostaria de encontrar uma ocupação parecida para as visitas.

— Elas estão dando trabalho?

— Um pouquinho. Como não há muito o que fazer nesta época, o pessoal fica inquieto dentro
de casa.

— Por que você não pede a Suzanne e a Michele para organizarem alguns passeios? Isso
serviria para passar o tempo.

— Boa idéia! Vou conversar com as duas sobre isso. E você, como está se dando com sua
hóspede?

Como a pergunta lhe dizia diretamente respeito, Paige aproximou-se da porta e ouviu a
resposta de Kelly com toda a atenção.

— Muito bem — respondeu Kelly com uma risada. — Minha hóspede está gostando muito
desta temporada na fazenda.

— Ainda bem. Quando você pensa vir para cá?

— Daqui a uns seis ou sete dias.

— Tanto assim? Eu pensei que você viria antes. A estrada está quase seca.
Paige aproximou-se ainda mais da porta. Seu interesse pela conversa aumentou ao ouvir a
referência à estrada e ao nível das águas, que baixava dia a dia. Ela também estava contando partir nos
próximos dias para Ainslie.

— Eu sei, mas não gosto de perder tempo com desvios. Prefiro esperar um pouco mais até que
a estrada esteja completamente transitável.

— Faça como achar melhor.

— Bom, até a vista então, Dave. Lembranças a todos aí.

— Olhe, há alguém aqui que quer falar com você — disse Dave com vivacidade.

— Kelly, querido, eu estou morrendo de saudade sua! Por que você não vem correndo para
cá? Você não gosta mais de mim?

— Não dá, querida. Eu não posso arriscar a passar a noite atolado na estrada. Seja um pouco
mais paciente. Na semana que vem eu estarei aí sem falta. É uma promessa.

— Ah, eu conheço suas promessas! De qualquer modo, venha o mais rapidamente possível.
Todo mundo aqui está morrendo de saudade de você. Não se faça de rogado, que é feio.

— Eu não estou me fazendo. Prometo que irei logo que a estrada estiver seca.

— Veja se desta vez você mantém a palavra. Você mentiu para mim quando disse que não ia
passar tanto tempo longe.

— Alguém tinha que vir, Suzie.

— Mas por que tinha que ser você? Você não podia mandar outra pessoa em seu lugar?

— Você sabe a resposta tão bem quanto eu.

— Mas nem por isso estou mais conformada com sua ausência — disse Suzanne com um
suspiro fundo.

— Eu também estou com saudades de vocês aí.

— Está nada! — exclamou Suzanne com uma gargalhada alta. — Você não liga para
ninguém. Você é um egoísta de marca maior!

— Você não mudou nada, pelo visto — comentou Kelly com um risinho de zombaria.

— Nem vou mudar nunca. O que você vai trazer para mim desta vez?

— Ah, isso é surpresa.

— Eu vou esperar com ansiedade.


— Prometo que você não vai se decepcionar.
Paige afastou-se da porta em silêncio, de cabeça baixa, sem querer ouvir o resto da conversa.
Nunca lhe ocorrera antes que Kelly pudesse ter uma namorada em Ainslie, e essa descoberta a atingiu em
cheio. Não era preciso muita sagacidade para suspeitar da razão de sua decepção.

A pontada de dor que sentiu no peito ao ouvir a gargalhada de Suzanne foi o início da
desconfiança. Estava ridiculamente apaixonada por um homem que não apenas demonstrava a maior
indiferença por ela como tinha sua afeição dirigida para outra mulher.

Era uma loucura total! Só mesmo uma idiota como ela podia pensar que um homem como
Kelly estava livre para gostar da primeira mulher que passasse pelo seu caminho.

Paige apanhou o maço de cigarros que deixara em cima da mesa da cozinha e acendeu um com
os dedos trêmulos. Ah, Deus do céu, por que não vira em tempo a direção que estavam tomando seus
sentimentos? Por que se deixara apaixonar desse jeito, sem a menor esperança de retribuição? Era por isso
que o simples contato da mão dele deixava-a toda arrepiada, com o sistema nervoso abalado, era por isso
que o sorriso dele a fazia feliz como uma criança. Estava tudo tão claro agora!

Ao ouvir os passos de Kelly na sala, Paige voltou a atenção para o chá que estava fazendo e
preparou-se emocionalmente para recebê-lo. Quando os passos dele se dirigiram para o banheiro, em vez
de rumarem diretamente para a cozinha, Paige deu um suspiro de alívio. Naquele momento não estava em
condições de ocultar seus sentimentos verdadeiros e a presença dele teria um efeito desastroso.

Minutos depois, quando Kelly saiu do banheiro e entrou na cozinha, com os cabelos ainda
úmidos do banho que tomara, Paige estava ocupada na arrumação da mesa e parecia inteiramente refeita
do choque anterior.

— O que você está com vontade de comer? — perguntou Kelly, passando a mão de leve sobre
os cabelos dela.

— O que você quiser — disse Paige, procurando expressar-se com naturalidade. — O que for
mais fácil de fazer.

Kelly segurou-a pelo queixo a fim de encará-la nos olhos.

— Você não tem preferência por nenhum prato especial?


Paige balançou a cabeça e afastou-se, voltando a atenção para os pratos e talheres que colocava
na mesa.

— Qualquer coisa está bom.


Antes que ela pudesse reagir, Kelly segurou-a pelo rosto, com as duas mãos em forma de
concha, e encarou-a fixamente.

— Olhe para mim. O que foi que eu fiz desta vez?

— Você? — repetiu Paige, procurando ganhar tempo. — Nada. Por quê?

— Porque eu conheço essa cara. Desde que entrei na cozinha, você se recusou a me encarar.
Eu conheço você, garota.
— Por favor, não me chame de garota. Eu tenho vinte e dois anos.

— Desculpe. Eu conheço você, mulher.


Paige tentou afastar a cabeça, mas Kelly continuou segurando-a com firmeza, mantendo o rosto
dela de frente para ele.

— O que você quer saber?

— No que você está pensando.

— Coisas sem importância. Bobagens.

— Não tem nada a ver com a conversa que você ouviu pelo rádio?

— Que conversa? Que rádio? Eu não estou entendendo mais nada.


Kelly puxou os cabelos dela com força.

— Não se faça de sonsa!

— Ai, você está me machucando, seu bruto!

— Eu vi seu reflexo no vidro da janela. Você se aproximou da porta e ficou parada ali, um
tempão, ouvindo minha conversa pelo rádio.

— Desculpe. Foi sem querer.

— Você podia ter conversado com Suzie, se quisesse.

— Ah, era só o que faltava! — exclamou Paige com os olhos brilhantes de raiva. — Eu ficar
de conversinha fiada pelo rádio!

— Ué, por que não? Você deve estar com saudade dos papos que batia com suas amigas pelo
telefone. É por isso que as mulheres se dão tão mal no interior. Elas sentem falta do telefone, da
televisão...

— Você não disse antes para eu não usar o rádio?

— Não foi bem isso. Eu disse que não via necessidade de ensiná-la a usar o rádio, o que é
bem diferente, concorda?

— Quanta sutileza, meu Deus! De qualquer maneira, não tenho nada para conversar com essa
tal de Suzie... É assim que ela se chama?

O que podia conversar com a namorada ou a amante do homem de quem gostava?

— Ela está muito curiosa para conhecê-la.


— Ah, é? Você falou de mim para ela?

— Lógico. Contei que você está hospedada aqui.

— Ah, é bom eu saber. Por falar nisso, quem é ela exatamente? Uma funcionária da
companhia? Uma amiga da casa? Ou sua namorada?

A última pergunta provocou um risinho involuntário em Kelly.

— Eu pensei que você tivesse descoberto, pela nossa conversa.

— Eu só notei que vocês dois são íntimos, mais nada.

— De fato, somos passavelmente íntimos.

— Vocês se conhecem há muito tempo?

— Desde criança.
Paige arregalou os olhos, completamente desorientada com a resposta. Ela não estava
entendendo mais nada. Se Suzie era namorada dele desde criança, por que ele se casara com Nadine e não
com ela?

— Vocês namoram desde criança? — perguntou por fim, com a testa franzida.
Duas deliciosas covinhas se formaram no rosto de Kelly no instante em que ele caiu na
gargalhada.

— Que boba você é, santo Deus! Suzanne é minha irmã, sua bocó!
Paige sentiu um alívio tão grande com a explicação que quase perdeu a fala. Foi inundada por
um incrível sentimento de felicidade.

— Ah, que burra eu sou! Não é à toa que você achou graça na minha pergunta. Jamais podia
me passar pela cabeça que sua irmã morava com você na fazenda. Ela também trabalha lá?

— Ela toma conta da casa. Mamãe também está lá.

— E Dave? O que ele faz na estação?

— É o encarregado da supervisão dos trabalhos.

— Ah, já sei. Ele é o intermediário entre os administradores e o dono.

— Isso mesmo.
Enquanto Kelly apanhava os mantimentos no armário para fazer o jantar, Paige permaneceu em
silêncio durante alguns minutos, refletindo sobre tudo que ouvira.
Depois do jantar, os dois jogaram uma partida de xadrez. Embora Paige não tivesse ganho até
então nenhuma partida, continuava corajosamente a tentar a sorte, tendo a intenção de vencê-lo, nem que
fosse uma única vez, antes de partirem da estação de Bindaburra.

— Assim não vale! Você pensa demais — queixou-se ela, quando Kelly lhe deu um xeque-
mate pela terceira vez naquela noite. — Eu não vi que você estava planejando comer meu bispo. Você
tem que me dar uma vantagem na próxima partida.

— O que você quer? Um peão?

— Um peão é muito pouco. Me dê a rainha!


Sem rainha no tabuleiro, ela teria a chance de ganhar uma vez pelo menos, bolas!

— Você não tem vergonha?


Ela deu um suspiro de desânimo. Kelly era insuportável. Ele tinha o mau hábito de ler seus
pensamentos à distância.

— Está bom. Não precisa me dar a rainha. Mas não é justo que você ganhe todas as vezes, né?

— Um dia você vai ganhar. O importante é perseverar — disse Kelly com um sorriso irônico.

— Eu sei...
Sem se deixar abater pela perspectiva de perder mais uma partida, Paige começou a arrumar as
peças no tabuleiro. Um dia, quando ele menos esperasse, iria vencê-lo no xadrez! E não apenas no xadrez,
como também nas discussões que trocavam habitualmente, todas as vezes que sentavam para conversar
como duas pessoas educadas.

— Você já imaginou...
Kelly levantou a cabeça do tabuleiro e fitou-a nos olhos.

— O quê?

— Nós dois estamos sozinhos neste fim de mundo, mas pelo menos temos um rádio no quarto
ao lado. E antigamente? Como as pessoas faziam para viver no interior sem recurso de espécie alguma?
Sem rádio, sem telefone, sem médico por perto...

— Muitas morriam, esta é a verdade.

— Mordidas por cobras?

— Não só isso, como também de doenças desconhecidas. As histórias que correm sobre essas
regiões desoladas são terríveis. Contam que algumas pessoas andavam centenas de quilômetros a cavalo,
durante dias seguidos, para chegar a um povoado onde houvesse um médico. E não pense você que isso
foi há muito tempo. Até recentemente não havia recurso de espécie alguma no interior. Aliás, mesmo hoje
em dia, muitas pessoas ainda morrem por descuido ou por não tomarem as devidas precauções. O interior
é sempre um desafio. Quem se esquece disso, está correndo o risco de perder a vida a qualquer momento.
— Eu que o diga! — exclamou Paige, sentindo um arrepio na espinha. — Por um triz aquele
touro não me deu uma marrada...

— Ele ia se arrepender o resto da vida — disse Kelly com um sorriso no canto dos olhos.

— Seu estúpido!
A reação dela foi tão espontânea que os dois caíram na gargalhada.

Os três dias seguintes foram dedicados à pintura da casa. Kelly caiou as paredes de branco,
enquanto Paige pintou de azul as janelas e as portas. Ela nunca tinha pintado antes com rolo e ficou
surpresa com a facilidade do sistema, sem contar que o serviço rendia muito mais desse jeito do que pelo
sistema convencional do pincel.

No fim da tarde, após terminar uma parte do serviço, ela se afastou alguns passos e admirou o
resultado com um ar de satisfação.

— Agora, sim!

— A casa ficou com outra cara — disse Kelly, lavando os rolos e as brochas na torneira.

— Eu vou sentir saudade daqui quando formos para Ainslie.

— Você se acostumou à solidão?

— Mais ou menos.

— E comigo?

— Que remédio? Afinal, foi você quem me introduziu nas maravilhas da vida no interior.

— Você já se esqueceu do Stuart?

— Stuart não sabe fazer a gente se sentir desejada.

— Não diga! Você gosta de se sentir desejada?


Paige abaixou a cabeça sem jeito diante do olhar zombeteiro que Kelly lhe dirigiu.

— Até certo ponto, sim. Mas não é no sentido em que você está pensando. Ser desejada para
mim significa contar como gente. Ter valor próprio... Apesar de tudo que você fez para me convencer do
contrário, gostei muito dessa estadia aqui — disse Paige, fazendo meia-volta e dirigindo-se para a casa.

Ela estava se enxugando no banheiro quando ouviu Kelly entrar na sala da frente. Não custava
nada fazê-lo esperar um pouco para tomar seu banho de chuveiro. A fim de dar maior crédito à sua
demora, ela abriu a torneira do chuveiro.

— Deixe um pouco de água para mim! — disse Kelly, tamborilando com os dedos na porta.
— Lembre-se de que não estamos na cidade.
— Já estou saindo — disse Paige. — Um minutinho só.
Quinze minutos depois, ao abrir a porta do banheiro, ela avistou Kelly encostado no batente,
esperando pacientemente que chegasse sua vez.

— Ah, desculpe! Eu não sabia que você estava esperando — disse Paige, embrulhada na
toalha, com a expressão mais inocente do mundo. Ela tinha prendido os cabelos úmidos no alto da cabeça
com um grampo e parecia uma odalisca com seu traje sumário. — Por que você não me apressou?

— Eu estou acostumado.

— Mentira! Esta é a primeira vez que você espera por mim. Em geral, você só toma banho
antes do jantar.

— Achei melhor adiantar tudo hoje para a gente levantar mais cedo amanhã.
Paige encarou-o surpresa, com a testa franzida.

— Mais cedo? Para quê?


Em vez de responder sua pergunta ansiosa, Kelly entrou no banheiro e bateu a porta por dentro.

— O que foi que você disse? — perguntou Paige, batendo com o punho fechado na porta.
Ele tinha feito aquilo de propósito, somente para irritá-la! Era sua maneira de vingar-se da
espera...

— Nós vamos viajar amanhã cedo.


Lá de dentro vinha o assobio displicente e o ruído da água jorrando pelo chuveiro. Ela podia
abrir a porta por fora, se quisesse, como Kelly tinha feito no primeiro dia, quando a surpreendeu coçando
as mordidas dos mosquitos, mas preferiu aguardar pacientemente que ele terminasse o banho.

Estava encostada no batente da porta quando Kelly saiu finalmente do banheiro. Paige ignorou
o olhar espantado que Kelly lhe dirigiu e foi diretamente ao assunto.

— Que história é essa? Você disse que nós vamos viajar amanhã...

— Disse.

— Você tomou essa decisão assim, sem mais nem menos?

— Ué, a gente tinha que ir embora um dia. Tanto amanhã como na semana que vem.
Paige seguiu-o em direção ao quarto de dormir, fazendo um esforço para conter sua raiva.

— Você podia ter me consultado, ao menos!

— Para quê? Você não conhece a estrada que vamos tomar...


— E daí? Eu também sou uma pessoa, bolas! Tenho o direito de dar minha opinião sobre algo
que me diz respeito! Ou você nunca consulta os outros para nada?

Mal ela tinha acabado de pronunciar essas palavras ríspidas, seu queixo foi levantado por dois
dedos fortes.

— Não vamos brigar de novo, querida. Você sabe que as conseqüências nem sempre são
agradáveis...

— Para quem?

— Essa foi a pergunta mais tola que você já fez até hoje. Você sabe perfeitamente para quem.
Era difícil manter a frieza e a cabeça no lugar com os lábios dele roçando sua boca. Paige
estava inquieta e insegura, sem saber o que vinha em seguida. A agressividade e os gestos de carinho
andavam de mãos dadas na fazenda.

— Você e suas ameaças!

— Você e suas perguntas...


O brilho nos olhos dele era uma advertência clara. Paige, no entanto, resolveu ignorar isso e
insistiu sobre o assunto da conversa anterior.

— De qualquer maneira, por uma simples questão de cortesia, você podia ter discutido essa
viagem comigo.

— Está bem. Vamos conversar sobre isso no jantar, com toda calma. Agora dê o fora que eu
vou me vestir — disse Kelly, empurrando-a em direção à porta.

— Este quarto é meu também! — protestou Paige, indignada por ser posta para fora sem a
menor cerimônia.

No momento em que Kelly fez menção de retirar a toalha que estava passada na cintura, ela fez
meia-volta e saiu do quarto espontaneamente.

O jantar naquela noite foi servido mais cedo, com o que havia sobrado do almoço. Kelly não
queria desperdiçar comida e pôs na mesa tudo o que havia na geladeira, que seria desligada no dia
seguinte, quando fossem embora. Mesmo assim, o jantar foi copioso para duas pessoas e os dois estavam
perfeitamente satisfeitos quando terminaram o último prato.

— A que hora nós vamos sair?

— De madrugada.
Ela balançou os ombros e fez uma careta de desagrado.

— Vai estar gelado.

— Provavelmente. Leve uma malha grossa e uma manta para cobrir as pernas no jipe.
— Eu não tenho malha.

— Eu vou arrumar.


Enquanto Kelly saiu à procura do agasalho, Paige levantou-se da mesa e foi lavar os pratos e
talheres na pia. Tinha praticamente terminado quando Kelly voltou com algumas roupas de lã.

— Veja se este pulôver dá em você.


Paige colocou-o em cima do peito e mediu a largura dos ombros.

— Dá de sobra. Está ótimo.

— Eu deixei uma jaqueta de couro em cima da cadeira no quarto.

— Ah, muito obrigada. Você vai levar todas as suas roupas?

— Não. Vou deixar uma parte aqui. Eu não gosto de carregar muita coisa quando viajo nesse
tempo. Se a gente tiver que empurrar o jipe, é melhor ele estar bem leve.

— Não me diga que a gente vai empurrar o jipe na lama!

— Ué, quem sabe...


Paige voltou a concentrar sua atenção na louça.

— Você pretende ficar muito tempo em Ainslie?


Kelly balançou os ombros com indolência e começou a fazer o café.

— Não sei ainda.

— O que você vai fazer com o cavalo?

— Ele vai ficar preso no pasto perto de casa. Há bastante capim, sombra e água fresca. Mais
alguma pergunta?

— Não. Mais nenhuma.


Com a atenção voltada para outra parte, Paige começou a enxugar os pratos e os talheres
lavados.

— Você avisou Dave que vai chegar amanhã?

— Já. Foi a primeira providência que tomei.

— E o que ele disse?

— Quem?
— Dave!

— Mandou um beijo para você.

— Ah, não goze!


Por alguma razão, ela estava preocupada com a ida para Ainslie. E não era apenas porque
ficaria hospedada numa casa desconhecida, entre pessoas estranhas.

— Eu achei que você podia... preveni-lo de minha ida.

— Para quê?

— Ué, para as pessoas ficarem sabendo!

— Você não aceitou ainda a idéia de ficar lá?

— Não muito — confessou Paige com um sorriso sem jeito.

— Escute, não vamos discutir de novo este assunto! — exclamou Kelly com impaciência. —
Finja que você está indo para Greenvale, a fim de se encontrar com Stuart.

Paige deu um sorriso sem graça.

— Está bom, eu vou fazer isso. Talvez eu esteja vendo problemas onde não existem. Prometo
que não vou falar mais nada antes de conhecer seu patrão. Ele vai estar lá?

— Com toda certeza. A menos que tenha viajado repentinamente. Ele passa a maior parte do
ano lá.

— Com a família?

— É. E com alguns convidados.

— Convidados?

— Claro, convidados. A casa é grande. Cabe um mundo de gente.

— Ah, agora estou entendendo... São essas visitas que você mencionou outro dia na conversa
com Dave pelo rádio?

— Sim.
Kelly serviu duas xícaras de café e estendeu uma para ela.

— Tem muita gente lá no momento?

— Muita! Você não ouviu a risada de Suzanne quando eu perguntei como iam as visitas?
— Eles também não previram as enchentes?

— Eles estavam sabendo perfeitamente e alguns deram o fora enquanto era tempo, mas os
outros foram ficando... No fundo, é uma experiência divertida passar algumas semanas isolado numa
fazenda.

— Só que agora estão começando a se encher da estada forçada...

— Pois é. — Kelly estendeu o braço e apanhou o tabuleiro de xadrez que estava em cima da
cômoda. — Você quer ir à revanche?

— Você fala como se tivesse certeza de que eu vou perder todas as partidas. Por que faz
pouco caso de mim?

— Desculpe, querida. Não foi por mal.


Paige enxugou as mãos na toalha e sentou-se na mesa, diante do tabuleiro. Estava decidida a
vencer uma única partida antes de saírem da fazenda. Redobrou a atenção por causa disso e refletia
longamente antes de fazer um lance.

No início, conseguiu levar alguma vantagem. Logo depois, no entanto, Kelly inverteu a
situação e ameaçou seu rei ou sua rainha quando ela menos esperava.

— Xeque!

— Ah, isso é irritante! Você ganha todas as vezes.

— Esta é a última — disse Kelly, arrumando as peças no tabuleiro.

— Desta vez eu vou à desforra.

— Vamos ver.

— Quer apostar?

— O quê? — perguntou ele, fitando-a no fundo dos olhos.


Ela abaixou a cabeça, sem jeito.

— Nada.
Decidida a se recuperar de todas as derrotas anteriores, Paige concentrou toda a atenção no
tabuleiro. Antes de cada lance, estudava cuidadosamente a posição das peças do adversário. Nos
primeiros minutos da partida estava nitidamente com uma posição superior.

Entretanto, quando Kelly rechaçou seu ataque com algumas jogadas bem pensadas e colocou-a
na defensiva, Paige reconheceu, desanimada, que o resultado da partida seria o mesmo de sempre. Mais
uma vez Kelly ia vencê-la sem dó nem piedade. Por mais que se esforçasse, não era uma adversária à
altura. A menos que...
A menos que, sem deixar Kelly perceber, afastasse o bispo branco que ameaçava seu rei! Ela
respirou fundo e reprimiu o sorriso que desabrochava nos lábios. O que pretendia fazer não era muito
limpo nem muito correto. E daí? Tinha que ganhar de qualquer maneira aquela última partida. Era sua
honra de mulher que estava em jogo!

— É sua vez — disse Kelly, levantando o rosto do tabuleiro.

— Estou pensando.
A oportunidade surgiu de repente. Kelly levantou-se da mesa para apanhar o maço de cigarros
que deixara no quarto de dormir. Mais do que depressa Paige empurrou o bispo branco para a casa ao
lado.

O movimento não teve conseqüências imediatas, mas fez uma tremenda diferença alguma
jogadas depois, como Paige constatou ao comer um cavalo do adversário.

— Um momento! — exclamou Kelly, segurando-a pelo pulso. — Tem alguma coisa errada
aqui!

— O quê? — perguntou Paige, com expressão inocente.

— Você não pode comer meu cavalo!

— Por que não? Nada me impede...

— Você não pode mover esta peça — disse Kelly, observando atentamente o tabuleiro. — O
que aconteceu aqui? Esta peça não estava aqui!

— Como não?

— Escute, vamos recapitular alguns lances.

— Pode recapitular à vontade—disse Paige com um bocejo.

— Olhe só! — exclamou Kelly, apontando para o tabuleiro. — Os meus dois bispos estão em
casas pretas! Foi por isso que você comeu meu cavalo!

Paige mordeu o lábio com nervosismo.

— Ah, é? Eu não tinha reparado nisso.

— Claro! Você não reparou porque foi você quem tirou meu bispo do lugar!
Paige levantou-se da mesa.

— Como você tem coragem de dizer uma coisa dessas? Se você não sabe perder, não deve
jogar!

— Logo quem está falando!


— O que foi que eu fiz?

— Você simplesmente moveu meu bispo do lugar. Só isso!

— Mentira!

— Vamos ver se é mentira — disse Kelly, segurando-a pelo pulso. Paige soltou-se com um
movimento brusco da mão.

— Você não pode provar.

— Claro que posso.


Kelly levantou-se e começou a dar a volta na mesa atrás dela, com os olhos brilhantes.

— Não seja teimoso! — exclamou Paige, procurando manter uma distância constante dele. —
Por que você não leva isso na brincadeira?

— Eu vou levar na brincadeira. Vamos ver quem vai rir por último...

— Veja bem o que você vai fazer, Kelly! Quem avisa, amigo é...
Kelly caiu na gargalhada.

— Você está me ameaçando, garota?

— Escute, se você não sabe se comportar como um homem civilizado, eu lhe peço apenas um
pouco de consideração por sua convidada.

— Você não é minha convidada — disse Kelly com um risinho de deboche. — Nós vamos
acertar contas de qualquer jeito!

Ao passar diante da porta, Paige voltou-se repentinamente e saiu correndo pela noite escura,

— Ah, não, você não vai fugir de mim!


Ela deu um grito de excitação e nervosismo ao ver Kelly lançar-se ao seu encalço. Desceu a
escada da varanda de dois em dois degraus, deu a volta correndo na casa e escondeu-se atrás de uma
árvore.

Durante alguns segundos, o único ruído que ouviu foi sua respiração ofegante. Não havia
ninguém por perto. Onde estava Kelly? Perdera-a de vista? Após alguns minutos de expectativa, ela
relaxou e deu um suspiro de alívio. Kelly, pelo visto, desistira de procurá-la na escuridão. Ou então tinha
ido à garagem buscar a lanterna que guardava no jipe.

De repente ela tremeu dos pés à cabeça ao ouvir no silêncio da noite o mugido aflito de uma
vaca chamando seu bezerro. No mesmo instante, escutou um ruído de passos atrás de si e voltou-se com o
coração batendo naquela direção.

Um vulto alto estava de pé a alguns passos dali, afastando as folhas de uma moita com a mão.
Ela deu um grito de susto.
— Sou eu. Quem você pensou que era?

— Ai, que susto você me deu!


Kelly aproximou-se e segurou-a pela cintura. Ela abandonou-se languidamente nos braços dele,
ofegante e submissa sob os beijos que cobriam seu rosto.

Perdeu a noção de tudo. Só tinha consciência do homem de ombros largos que a estreitava nos
braços. O cheiro forte de loção de barba penetrava em suas narinas dilatadas como um perfume exótico
do Oriente. A musculatura tensa parecia entumescer-se sob suas mãos; a carne dele tinha um gosto limpo,
de coisa fresca,

Paige estava completamente zonza e sem forças quando os dedos dele desabotoaram os
primeiros botões da blusa e acariciaram os contornos entumescidos de seus seios. Deu um gemido de
prazer a afundou a cabeça no peito dele.

Em seguida, passou os braços em volta do pescoço e enroscou-se no corpo dele, como se


desejasse unir-se para sempre num abraço eterno. Ela nunca tinha pensado ser possível desejar tanto
alguém quanto o desejava naquele instante.

— O que foi? — perguntou sobressaltada quando Kelly deu um passo atrás e soltou os braços
que a cingiam pelo pescoço.

— Você esqueceu que vamos viajar amanhã?


Ela abaixou a cabeça com um suspiro de desânimo. A frustração estava estampada em seus
olhos.

— Não, não me esqueci.

— Vá na frente. Vou ver se está tudo em ordem.


Ela deu alguns passos em direção à casa e voltou-se, indecisa.

— Você não acha estranho?

— O quê?

— Essa atração que a gente sente um pelo outro.

— É a atração dos opostos — comentou Kelly com frieza.


No momento em que ele se afastou em direção à garagem, Paige sentiu-se muito sozinha na
escuridão da noite. Kelly era um homem prático, a quem os problemas do coração deixavam indiferente.
Ela não tinha ninguém a quem recorrer naquele fim de mundo, ninguém com quem trocar confidencias.
Capítulo VI
Ao abrir os olhos na manhã seguinte a primeira coisa que Paige avistou foi o rosto moreno
debruçado sobre o travesseiro.

— Acorde. Nós já vamos.

— Que horas são? — perguntou Paige com um bocejo.

— São mais de cinco.

— Tão cedo assim?

— Quanto mais cedo, melhor.


Tonta de sono, Paige sentou-se na beira da cama. Pouco a pouco, ela lembrou-se vagamente
dos acontecimentos da véspera. Voltou-se para o lado e reparou que o travesseiro de Kelly estava liso,
sem nenhum sinal de que houvesse dormido na mesma cama que ela.

— Ué, você não dormiu aqui?

— Não.

— Onde você dormiu?


Paige sabia perfeitamente que não havia outra cama na casa.

— Ah, depois a gente conversa. Eu dei um jeito. O café está pronto. Vem logo antes que
esfrie.

— Eu me visto num segundo.

— Você tem alguma coisa para levar?

— As roupas que eu fiz. Vou precisar de alguma coisa para vestir em Ainslie.

— Suzanne vai arrumar uma roupa para você vestir enquanto estiver lá. Vocês duas são quase
do mesmo tamanho.

— Quem é mais alta?

— Você.

— De qualquer maneira, por medida de segurança, vou levar minha camisola. Afinal, é uma
recordação da minha estada aqui.
— Tudo bem — disse Kelly, preparando-se para sair do quarto. — Não demore.

— Sim, senhor.
As primeiras luzes avermelhadas da manhã estavam tingindo o oriente, expulsando as sombras
negras da noite, quando os dois partiram de Binda-burra meia hora depois. Paige voltou a cabeça para ver
pela última vez a casa-grande da fazenda e deu um suspiro de saudade. Ela recordaria sempre com
carinho, e com uma certa tristeza, a temporada que passara ali.

Foi somente uma hora mais tarde, após terem percorrido algumas dezenas de quilômetros na
estrada de terra, que a luz da manhã clareou perfeitamente os campos. A paisagem era muito imponente
no momento em que o sol nascente banhou os morros e as planícies com um brilho intenso.

Vez por outra passavam por poças de água que não tinham secado completamente e que
refletiam nitidamente as árvores e arbustos que beiravam a estrada. Embora a terra escura estivesse
escorregadia sob os pneus do jipe, a viagem transcorria num ritmo normal e seguro.

Aqui e ali avistaram pequenos aglomerados de vacas que procuravam os pastos verdes depois
do recuo das águas. Os rebanhos pastavam tranqüilamente nas planícies cobertas de capim-gordura,
salpicados de gotas de orvalho, juntamente com uma profusão de flores silvestres de todas as cores.

Mais ao longe, uma família de cangurus fazia um buraco no chão embaixo de uma árvore
frondosa, a fim de dormir tranqüilamente durante as horas quentes do dia, antes de saírem à procura de
alimento ao entardecer.

Pouco adiante começaram a surgir os primeiros trechos alagados. Paige notou que o jipe estava
encontrando alguma dificuldade em transpor os atoleiros fundos e escorregadios. Kelly aliás deixou isso
bem claro com o comentário impaciente que murmurou em voz baixa:

— Raios, começaram os atoleiros!

— Eram esses os desvios que você falou?

— Eram — murmurou, sem voltar a cabeça na direção dela. — Eu supunha que a estrada
estivesse mais ou menos seca até aquele morro lá na frente. Pelo visto, vamos pegar um longo trecho
repleto de atoleiros.

— Vamos ter que desviar para uma outra estrada?

— Por enquanto não é preciso. Vamos continuar nas terras da fazenda.

— A fazenda vem até aqui? — perguntou Paige com os olhos arregalados.
Fazia uma hora pelo menos que andavam e não tinham saído ainda dos limites da propriedade.

— E continua ainda um bom pedaço.

— Como os vaqueiros fazem para recolher o gado?

— Eles levam bem uma semana, às vezes.

— Nossa mãe!
— De avião porém levam apenas algumas horas.

— Não brinque! É possível reunir o gado de avião?

— Claro. Este sistema vem sendo usado desde alguns anos. É muito mais rápido e prático que
a cavalo.

— Que tipo de avião eles usam?

— Um helicóptero.

— Alugado?

— Ou comprado. Depende.


Paige recostou-se no banco do jipe e deu um suspiro de admiração enquanto percorria com a
vista a extensão de terras que se perdiam no horizonte.

— Esse Bruce Morgan tem terra que não acaba mais!


Kelly observou-a de perfil, com o canto dos olhos.

— Você está curiosa em conhecê-lo?

— Lógico. Quem não estaria? Afinal, não é todos os dias que eu sou apresentada a um
milionário...

— As terras foram compradas pela companhia, para a companhia. Não são dele pessoalmente.

— Mas ele não é o dono da companhia?

— Ele retém a maior parte das ações.

— Ah, não vamos discutir por questões de detalhe! — exclamou Paige com impaciência. —
Eu não me importo a mínima com as terras de Bruce Morgan. Nem com os helicópteros que possui. Cada
qual faz o que bem entende com o dinheiro que tem.

— Bruce Morgan vai ficar contente com sua aprovação. Ele é muito sensível à opinião dos
outros.

— Não goze. Ele nem vai dar por minha presença na casa.

— Você está muito enganada. Ele faz questão de conhecer pessoalmente todos os hóspedes.

— Inclusive os duros que não têm um tostão furado no banco?

— Inclusive estes. Não pense você que os outros convidados que estão lá são todos
milionários. Tem muita gente nas mesmas condições que você.
— Muito obrigada! É um consolo saber disso.

— Desculpe. Eu não falei por mal. Eu pensei que você ia sentir-se mais à vontade sabendo
que não é a única pobre do bando — comentou Kelly com um sorriso.

Paige fez uma careta, mas ficou em silêncio. No momento toda sua atenção estava voltada para
os buracos da estrada. Ela agarrou-se com força no painel para proteger-se contra os solavancos que o jipe
dava ao transpor o caminho acidentado, repleto de pedras e raízes aéreas, que Kelly fora obrigado a tomar
para fugir dos atoleiros que surgiam agora com mais freqüência em todas as direções.

Ao meio-dia, Kelly parou o jipe embaixo de uma árvore e anunciou que estava na hora do
lanche. Paige desceu do carro com uma exclamação de alegria e esticou os membros doloridos. Eram as
cadeiras que sofriam mais cem os solavancos do jipe.

— Está cansada?

— Estou derreada!

— Agora falta pouco.

— Já passamos a metade do caminho?


Kelly estava reunindo galhos e gravetos para fazer uma fogueira.

— Quase.

— Ah, não sei se minhas cadeiras vão agüentar até lá!

— Daqui para a frente vai melhorar. O pior já passou.

— Graças a Deus! — exclamou Paige com alegria. — Eu preciso estar andando normalmente
quando chegarmos a Ainslie. Senão as pessoas vão pensar que eu andei bebendo durante a viagem.

— Quem mandou você se meter no mato? Se você tivesse voltado para casa, como eu sugeri,
nada disso teria acontecido.

— Já sei! Não precisa repetir mais uma vez que eu sou uma desmiolada e uma irresponsável.

— Desculpe, querida. Prometo que não falo mais nisso.


Era a terceira vez que ele prometia e não cumpria com a palavra.

O único episódio digno de nota na tarde daquele dia foi o ribeirão de leito arenoso que
atravessaram. Kelly manobrou o jipe cuidadosamente para que não entrasse água no distribuidor e
interrompesse a passagem da corrente elétrica, que mantém o motor em movimento. Depois disso, a
viagem transcorreu normalmente.

Mesmo assim, a tarde começava a cair no momento em que Kelly apontou para um aglomerado
de construções que se avistava no horizonte.

— Estamos chegando.
— Aquelas casas fazem parte da fazenda?

— Sim. Dentro de uns quinze minutos estaremos em casa. — Kelly voltou-se para ela: —
Acho bom você passar um pente nos cabelos.

— Boa idéia — disse Paige, apanhando o pente no bolso da calça comprida. — Sua mãe vai
me achar medonha com esta roupa e este rosto sujo de poeira.

— Ela sabe que você está viajando o dia inteiro na estrada de terra.
Como estavam atravessando o campo aberto e não o caminho habitual que dava uma volta
maior, eles se aproximaram da estação de Ainslie pela parte de trás. Após passarem o mata-burro que
marcava os limites da casa, Kelly apontou para as diversas dependências que constituíam o grande
complexo agropecuário. De longe, a fazenda tinha a aparência de uma vila.

Mais adiante, Paige avistou a sede propriamente dita, ligeiramente afastada das outras
construções e cercada por um gramado cuidadosamente tratado. A casa era imponente na sua
simplicidade, grande e baixa, tendo em toda a volta uma varanda larga, com diversas entradas.

Entre as duas alas da frente havia um pequeno pátio, com jardim e repuxo de água. As
trepadeiras cobriam as paredes de tijolos, subiam pelas vigas da varanda e se alastravam pelo telhado.

Uma mulher alta, de cabelos castanhos, vestida com elegância, foi a primeira a aproximar-se
do jipe. Paige desceu no chão e passou as mãos pela cintura, para desfazer as dobras da calça. Em
seguida, caminhou em direção à mulher que ela identificou imediatamente como sendo a mãe de Kelly.

— Fizeram boa viagem? — perguntou Michelle com um sorriso cordial. — Não estão muito
cansados?

— Paige está exausta — disse Kelly, retirando a mala do jipe. — Acho bom você
providenciar um banho quente para ela o quanto antes!

— Também não é tanto assim! — disse Paige, sem jeito.

— Esse jipe pula como um cabrito — comentou Michelle.


Paige deu uma risada, sentindo-se imediatamente à vontade na presença da mulher morena de
cabelos castanhos.

— Pula é apelido...

— Eu vou levá-la ao seu quarto — disse Michelle, segurando-a com delicadeza pelo braço.
Antes porém que as duas subissem os degraus que levavam à sala da frente, Suzanne e Nadine
aproximaram-se delas para as apresentações de praxe. Suzanne, a mais moça, tinha cabelos bem negros,
olhos castanhos e meigos, e um sorriso simplesmente encantador.

Nadine era alguns anos mais velha. Tinha cabelos bem claros, lisos, e estava vestida com um
requinte exagerado para uma casa de fazenda. Ela dirigiu sua atenção especialmente para Kelly, que
acompanhava a mãe e Paige com as malas nas mãos.

— Esta é minha filha Suzanne — disse Michelie, segurando a jovem pelo braço. — E esta é
Nadine...
— A mulher de Kelly.

— A ex-mulher—corrigiu Suzanne em voz baixa.

— Pegaram muita lama no caminho?

— O rio estava cheio?


Enquanto todos falavam ao mesmo tempo, Paige dirigiu o olhar perplexo para Nadine, a ex-
mulher de Kelly, como Suzanne tinha feito questão de deixar bem claro. Ela sentiu um nó na garganta no
primeiro instante, como se fosse ficar muda de repente diante de todas aquelas caras desconhecidas que
sorriam na sua frente. Felizmente ninguém percebeu o que se passava.

Seus reflexos porém estavam funcionando automaticamente. A mente registrava todas as


palavras que eram trocadas em sua volta e, no mesmo instante, comparava com as conversas trocadas nos
dias anteriores com Kelly em Bindaburra.

Ela lembrou-se das palavras de Kelly sobre o trabalho que podia fazer na fazenda de Ainslie;
recordou-se do convite dele para passar alguns dias lá, como sua convidada. Lembrou-se das confissões
de Kelly sobre as festas que Nadine dava e que podiam levá-lo à ruína. Todas essas recordações voltaram
subitamente com uma clareza ofuscante e Paige morreu de vergonha ao lembrar-se do papel de idiota que
fizera durante as últimas semanas.

Quando terminaram as apresentações, os convidados voltaram para dentro da casa a fim de se


abrigarem dos raios inclementes do sol que castigava o pátio. No momento em que Michelle tornou a
convidá-la para entrar, Paige voltou-se instintivamente para trás e avistou Kelly e Nadine conversando em
voz baixa, como dois namorados que não se viam há muito tempo.

No momento em que o olhar dela encontrou-se com o de Kelly, Paige compreendeu


subitamente a verdade que ele procurara lhe ocultar nas últimas semanas: Kelly era filho de Bruce
Morgan. Seu nome completo, como podia deduzir agora, depois das apresentações de Michelle, era Kelly
Morgan Sinclair.

Ele era o dono das duas propriedades e de todas as terras que se estendiam por quilômetros e
quilômetros, até se perder de vista no horizonte! Ele não era o administrador da companhia, como ela
pensara inicialmente e como ele dera a entender tantas vezes.

A verdade cristalizou-se diante de seus olhos estupefatos com um clarão de agonia e de fúria.
Ela ficou literalmente cega pelo ódio.

Com a mão aberta, deu um passo à frente e desferiu um tapa estalado no rosto dele. Kelly
estava ouvindo alguma coisa que Nadine lhe dizia e foi apanhado inteiramente de surpresa. Não fez o
menor gesto para defender-se da mão que o atingiu em cheio.

O estalo do tapa ecoou pelo pátio como um tiro de pistola. Todos os olhares convergiram para
os três. Ninguém podia entender a reação inesperada de Paige, tanto mais que, alguns minutos atrás, ela
estava com a fisionomia aberta num sorriso, cumprimentando educadamente todos os convidados a quem
era apresentada por Michelle.

A primeira pessoa que voltou a si do choque foi Nadine. Com um sorriso amargo, ela
comentou em voz baixa com Kelly:

— É assim que ela retribui sua generosidade.


Michelle, por sua vez, manteve uma atitude digna. Embora estivesse atônita com o fato,
procurou não intervir, suspeitando naturalmente que havia alguma razão muito forte para Paige agir
daquela forma.

De fato, estava evidente a todos que o gesto de Paige fora ditado pelo instinto e que era talvez a
única maneira que ela havia encontrado para se vingar de alguma humilhação que sofrerá nos dias
anteriores na companhia de Kelly.

No momento em que Kelly aproximou-se dela, com os olhos brilhantes de ódio, Paige recuou
automaticamente, como se temesse uma reação brutal por parte dele.

— Nunca mais faça isso! — murmurou Kelly entre os dentes, encarando-a no fundo dos
olhos.

Ele passou por ela e entrou em casa.

Com as pernas bambas, o coração batendo alucinadamente, Paige deixou-se guiar por Suzanne
para a sala da frente, onde havia alguns convidados debruçados nas janelas, observando os últimos atos da
cena anterior. Todos guardavam um silêncio educado, embora reinasse no ar um clima intenso de
curiosidade.

— Eu vou levá-la a seu quarto — disse Suzanne, segurando-a pelo braço.
Se não fosse o gesto delicado da irmã de Kelly, Paige não teria coragem de entrar na sala e
enfrentar os olhares curiosos das visitas.

— Ah, muito obrigada, Suzanne. Você é um amor.

— Está todo mundo de orelha em pé — disse Suzanne com um risinho malicioso. — Mamãe
está numa dúvida atroz. Ela não sabe se deve ignorar o caso ou se deve pedir satisfação a você pela
agressão dirigida ao filho querido.

— Ah, ela deve estar morrendo de ódio de mim — murmurou Paige, sem jeito. — Eu mal
cheguei...

— Que nada! — interrompeu Suzanne. — Mamãe está acostumada com cenas desse gênero.
Kelly e Nadine viviam brigando quando estavam casados. Os tapas voavam sem parar, você nem faz
idéia! Era um deus-nos-acuda...

Paige não conteve o riso. Suzanne era realmente uma graça.

— Mas eles, ao menos, eram da família. Eu não. Mal acabei de chegar, aprontei uma dessas!
Morgan Sinclair Mamãe ficou surpresa no primeiro momento, mas ela percebeu imediatamente
que você deve ter tido suas razões para agir assim. Michelle é muito legal nesse ponto. Ela não tem nada
das mães de antigamente — acrescentou Suzanne com um risinho.

— Você chama sua mãe pelo primeiro nome?

— Às vezes. Quando me dá na telha...


— Pois olhe, eu estou envergonhadíssima com o que aconteceu — acrescentou Paige após um
instante, procurando localizar Michelle no meio dos convidados. — Acho que seria mais educado se eu
fosse lhe pedir desculpas.

— Se você faz questão — disse Suzanne. — Olhe, mamãe está ali. Aproveite que ela está
sozinha.

Paige fez o que seu coração ditou e desculpou-se junto a Michelle pelo ocorrido.

— Isso acontece nas melhores famílias — comentou Michelle com um sorriso, procurando
tranqüilizá-la. — Vamos esquecer o que aconteceu e encarar as coisas com maior compreensão daqui
para a frente.

— Muito obrigada, Michelle.


Enquanto Michelle se reunia às visitas, Paige voltou para junto de Suzanne.

— Eu não disse? — comentou Suzanne, conduzindo-a para o quarto no fim do corredor. —
Mamãe é superlegal. Todos aqui a tratam com a maior intimidade. Ela gosta disso, porque se sente mais
moça.

— Ela é uma simpatia. As mães que eu conheço não me perdoariam nunca. Imagine só!
Agredir o filho na cara delas...

— Nem fale! Elas comeriam você viva.

— Sem dó nem piedade — acrescentou Paige com uma gargalhada.

— Mas você tinha razão para fazer o que fez, não é verdade? — perguntou Suzanne quando
pararam na porta do quarto.

— Evidente! Kelly me enganou o tempo todo! Eu fiz o papel de idiota!

— Não diga! Como foi?

— Ah, é uma história muito comprida... Em suma, ele deu a entender que era um empregado
da companhia e não o dono da fazenda.

Suzanne arregalou os olhos, boquiaberta.

— Ele não contou nada a você?

— Nada! E eu aqui que nem uma bocó, tratando-o o tempo todo como um simples
empregadinho da companhia. Você já imaginou?

— Quer dizer que durante todo esse tempo que vocês passaram juntos ele não disse que se
chamava Kelly Morgan Sinclair, nem que era o maior acionista da companhia?

— Não. Juro que não. Ele disse apenas que se chamava Kelly Sinclair. Eu só descobri a
verdade quando sua mãe começou a fazer as apresentações.
— Mama mia! — exclamou Suzanne, pensativa. — Você acha que ele fez isso de propósito?
Com segundas intenções?

— Claro! Para se divertir às minhas custas.

— Mas isso não é absolutamente do gênero dele. Kelly pode ser mandão, metido, chato, mas
ele não é gozador!

— Mas foi comigo.

— Eu realmente não entendo... Você não é absolutamente o tipo de mulher que desperta a
agressividade dos homens.

— Eu também não compreendo o que aconteceu. Para falar a verdade, não vejo a hora de
voltar para casa. Estou meio cansada de todas essas confusões.

— Deixe disso! Você não tem culpa nenhuma.

— Foi isso o que sua mãe falou.

— Ela também está de malas prontas para ir embora — acrescentou Suzanne. — A casa vai
ficar vazia. Todos vão embora, inclusive os amigos de Nadine.

— Sua mãe não mora aqui? — perguntou Paige, surpresa com a informação.

— Ela mudou para a cidade depois que papai morreu.

— Ela vem muito aqui?

— Somente durante as férias e os aniversários. O resto do tempo ela passa na cidade.

— Você não sente falta?

— Eu acabei me acostumando. Afinal, ela tem o direito de morar onde gosta mais.

— E você toma conta dessa casa enorme sozinha? — perguntou Paige, admirada.
Suzanne não tinha absolutamente o jeito de uma dona-de-casa convencional. Ela era alegre e
despreocupada como uma criança.

— Não parece, não é mesmo? — exclamou Suzanne com uma risada. — Por falar nisso, eu
me esqueci completamente de avisar a cozinheira que vocês dois chegaram. Eu vou dar um pulo na
cozinha para conversar com ela sobre o jantar. Até mais tarde...

Depois que Suzanne saiu, Paige entrou no banheiro e tomou o banho mais demorado de sua
vida. Ela estava exausta com todas as peripécias do dia e desejava relaxar o corpo dolorido com os
solavancos da estrada para ter uma aparência razoável à hora do jantar.

Era uma sensação completamente nova mergulhar numa banheira enorme de mármore e
perfumar a água com os sais de banho que encontrou no armarinho do banheiro. Ela lavou os cabelos com
xampu, enxaguou-os de-moradamente no chuveirinho do box e por último passou um creme para
recondicioná-los. Os cabelos estavam precisando realmente de todos esses cuidados após as três semanas
passadas em Bindaburra.

No momento em que voltou ao quarto de dormir, embrulhada no robe de chambre felpudo que
encontrou no banheiro, Suzanne bateu na porta.

— Eu vim buscá-la para escolher um vestido no meu quarto.

— Você não está muito ocupada com o jantar?

— Que nada! Eu tirei o dia para cuidar dos meus convidados.

— Ah, muito obrigada. Desculpe eu lhe dar todo esse trabalho.


Paige acompanhou-a ao quarto de dormir, que ficava numa outra ala da casa, e cujos móveis
eram todos brancos, inclusive os armários embutidos que ocupavam toda uma parede. Paige teve a
impressão de entrar num cenário de cinema.

— Vamos ver o que combina com você — disse Suzanne, abrindo o guarda-roupa e
percorrendo com os dedos os vestidos pendurados nos cabides. — O verde vai bem com seus cabelos
loiros e com seu tom de pele, mas não pode ser muito escuro para não apagar o brilho dos olhos. Ah, já
sei! Eu tenho um vestido que vai servir. Pronto! É esse aqui. O que você acha?

Suzanne tirou do armário um vestido longo de crepe transparente forrado de seda. O estampado
do tecido tinha diversas tonalidades de tons verdes, desde os mais escuros aos mais claros.

— É lindo! — murmurou Paige, deslumbrada com o brilho acetinado do pano. — Eu até
tenho medo de pôr esse vestido!

— Ele deve servir em você — disse Suzanne com naturalidade. — Nós duas somos quase do
mesmo tamanho. Experimente para ver como fica. — Ela abriu uma outra porta do armário. — Enquanto
isso vou escolher algumas roupas para você vestir. Kelly me contou que você perdeu tudo na inundação.

— Tudo, tudo, tudo! Inclusive meus documentos.

— Que horror!

— Pois é. Se eu tivesse ouvido o conselho de seu irmão, isso não teria acontecido. Ele insistiu
comigo para voltar de Tingala. Fui eu que teimei e viajei para o interior. Dito e feito! Desabou uma
tempestade no meio do caminho e eu perdi o carro, com tudo o que eu tinha, na enchente.

— Que tristeza!

— Não há de ser nada. Só assim eu aprendi a lição.

— Como é mesmo aquele ditado? Deus escreve certo por linhas tortas. Vai ver que foi melhor
assim.

— Foi o que eu pensei.


— Ficou bom o vestido? — perguntou Suzanne com algumas mudas de roupa nos braços.
Paige estava em pé diante do espelho grande do quarto, deslumbrada com o efeito que um
simples vestido fazia em sua aparência. O tecido caía suavemente sobre seu corpo magro; o decote fundo
terminava um pouco acima da cintura numa fita larga, do mesmo pano, e a saia rodada esvoaçava em
volta das pernas com uma leveza incomparável. A cor, por sua vez, não podia ser mais apropriada com o
tom dourado dos cabelos.

— Gostou? — perguntou Suzanne com um sorriso, ao surpreender seu olhar embevecido.

— Adorei! — disse Paige com vivacidade.

— Ele cai melhor em você do que em mim.

— Você não acha que está um pouco decotado demais?

— Que nada! Está lindo e muito correto. Não tenha medo. Você não vai escandalizar ninguém
com esse vestido. Pelo contrário, vai deixar as mulheres com inveja e os homens com água na boca.

— Deus me livre! — exclamou Paige com uma risada. — Eu prefiro que ninguém note minha
presença na sala. Depois do que aconteceu hoje à tarde, eu não quero mais chamar a atenção para mim.
Estou morta de vergonha.

— Deixe disso! Estão todos morrendo de curiosidade para saber por E que você agiu daquela
forma. Quanto mais suspense você criar, tanto melhor. Só assim eles têm alguma coisa interessante para
conversar...

— E eu vou ser a vítima?

— Só no começo. Logo eles se cansam. Eu só queria preveni-la de R uma coisa. Tome muito
cuidado com o que você falar diante de Nadine. Ela é uma víbora.

— Ah, foi bom você me avisar!

— Ela está uma fera por você ter vindo com Kelly. Ela suspeita inclusive que Kelly adiou a
vinda por sua causa.

— Que injustiça! Nós não podíamos vir antes porque a estrada estava alagada.

— Eu sei disso. Nadine porém vai aproveitar qualquer pretexto para agredi-la. Ela não suporta
as rivais.

— Mas os dois não estão separados?

— Foi Kelly quem sugeriu o divórcio. Por ela, estariam casados até hoje. Nadine não se
conforma em perdê-lo.

— E você acha que os dois têm condição de se reconciliar?


— Muito difícil. De qualquer maneira, você está avisada. Pelo que pude observar, Nadine está
morrendo de ciúme de você. Pelos dias que vocês passaram juntos na fazenda.

Paige deu uma risada sem graça.

— Que idéia! Ela não tem motivo nenhum para ter ciúme de mim. Depois do que aconteceu
hoje, Kelly não vai nem mesmo falar comigo.

— Você acha?

— Tenho certeza.

— Bem, neste caso, fica o dito por não dito.

— De qualquer forma, eu fico muitíssimo agradecida a você por tudo o que fez por mim,
inclusive por sua advertência.

— O que é isso? — disse Suzanne com um sorriso. — Se você precisar de mim, não faça
cerimônia.
Capítulo VII
Depois que Paige terminou a maquilagem e escovou os cabelos, mirou-se uma última vez no
espelho antes de acompanhar Suzanne à sala de estar, onde os convidados estavam reunidos tomando o
aperitivo antes do jantar.

O som estridente de uma gargalhada foi a primeira coisa que as duas ouviram quando saíram
no corredor.

— Eles passam o dia todo fofocando — comentou Suzanne com uma expressão de desagrado.
— Está ouvindo as risadas?

— Você deve estar cansada de agüentá-los.

— Nem diga!

— Por que eles não vão embora no helicóptero?

— Nosso helicóptero foi emprestado para um vizinho e só estará de volta aqui no fim do mês.
Até lá temos que agüentar as visitas com paciência.

— Que amolação para você. Sua mãe não se importa?

— Ela finge que não vê nem ouve nada para não se aborrecer.

— E Kelly?

— Ele detesta este tipo de conversa. Eu estou rezando para ele dar um jeito nas visitas.
Inventar um programa, descobrir uma ocupação para elas longe de casa, qualquer coisa, contanto que não
fiquem enchendo a paciência da gente o dia inteiro.

Nesse instante, um dos convidados de Nadine aproximou-se delas e passou os braços em volta
da cintura de cada uma.

— Vamos entrar, gente! O pessoal está curioso para conhecer a nova convidada. O que vocês
vão beber?

Ao constatarem que não havia outra alternativa a não ser unir-se aos outros, as duas sorriram
para o rapaz e pediram cada uma a bebida de sua preferência. Paige sentiu-se ligeiramente ansiosa ao
entrar na sala de estar e aproximar-se de um grupo constituído por Kelly, Michelle, Nadine e um outro
casal desconhecido.

Paige cumprimentou-os com um sorriso que pretendia ser descontraído, mas que tinha algo de
forçado. Kelly balançou a cabeça e observou-a de alto a baixo, sem fazer nenhum comentário, contudo.
Pelo visto, ele não se esquecera ainda do que sucedera algumas horas antes.
— Esse vestido ficou muito bem em você — comentou Michelle com voz afetuosa. — Ainda
bem que você e Suzanne são do mesmo tamanho.

— Foi uma sorte, realmente — concordou Paige, sentindo-se mais à vontade com as palavras
amáveis de Michelle.

— Você não se importa de vestir roupa emprestada? — Nadine interveio na conversa com
uma expressão de espanto. — Eu prefiro andar nua a vestir roupa dos outros.

Alguns convidados que estavam perto sorriram uns para os outros com o comentário mordaz
de Nadine.

— Eu só usei esse vestido uma vez — explicou Suzanne, procurando desfazer a impressão
penosa produzida pela intervenção de Nadine. — Ele está praticamente novo...

— Mesmo que não fosse, ele é cem vezes mais bonito que as roupas improvisadas que
costurei na fazenda—disse Paige ganhando coragem.

— Kelly contou que você perdeu todas as suas coisas na enchente — interveio Michelle.

— Pois é. O carro foi levado pelas águas com tudo o que eu tinha. — Paige voltou-se para
Kelly, que ouvia a conversa com o rosto impassível.

— Por falar nisso, preciso lhe devolver os lençóis que tomei emprestado na fazenda.

— O que você fez com os lençóis? — perguntou Suzanne com uma risada nervosa.

— Fiz uma saia, uma blusa e uma camisola de dormir.


Michelle e Suzanne caíram na gargalhada. Nadine fingiu que não tinha ouvido a resposta de
Paige e continuou com um risinho de deboche no canto dos lábios.

— Os lençóis são um presente da companhia — disse Kelly quando as três sossegaram um
pouco.

— Ah, muito obrigada!


O rapaz que tinha ido apanhar as bebidas voltou nesse instante com os copos numa bandeja.

— As bebidas, pessoal! Cada um apanha a sua.

— Muito obrigada — disse Paige, estendendo a mão para apanhar seu copo.

— Depois desse aperitivo que eu fiz, você vai comer como um leão — disse o rapaz.

— Você só pensa em comer, Vaugham! — exclamou Nadine com uma risada. —O jantar não
foi servido ainda.

— Mas não vai demorar — disse Vaugham. Ele voltou-se para Paige: — Você é tão doce
quanto seu nome sugere?
— Só provando! — disse alguém com uma risada sonora.

— Se ela fosse doce, não batia no marido dos outros — acrescentou Nadine com frieza.

— No ex-marido dos outros — corrigiu Suzanne, saindo em defesa de Paige.

— Você devia ter uma boa razão para isso, não é mesmo, doçura? — perguntou Vaugham,
tomando o partido de Paige.

Paige corou diante do olhar que os convidados lançaram na sua direção. Estavam todos
aguardando com impaciência um esclarecimento sobre a cena ocorrida naquela tarde.

— Escute, gente, vamos esquecer esse incidente — interveio Suzanne.

— Por que vocês duas não vêm sentar aqui? — sugeriu Vaugham apontando para o sofá onde
havia lugar para os três. — Eu estou curioso para saber como foi sua estada de três semanas na fazenda.

— Vocês dão licença? — disse Paige, afastando-se na companhia de Vaugham em direção ao


sofá da sala.

— Esteja à vontade — disse Michele.


Antes de sentar-se no sofá, Vaugham apanhou um maço de cigarros que estava em cima de
uma mesinha baixa de centro e ofereceu um a Paige.

— Agora, pelo menos, estamos livres dos comentários maldosos de Nadine — disse
Vaugham, acendendo o cigarro dela.

— Ela me assusta — comentou Paige com um risinho nervoso, olhando de relance para o
pequeno grupo que acabara de deixar.

Michelle e Nadine estavam conversando animadamente. Kelly, no entanto, estava voltado de


frente para Paige. No momento em que os olhares se cruzaram, ela afastou prontamente a cabeça, com
receio de decifrar a mensagem que estava por trás da fisionomia severa do dono da casa.

— Vocês são amigos há muito tempo? — ela perguntou.


Vaugham deu um sorriso cúmplice, como se a pergunta fosse inteiramente absurda.

— Mais do que amigos.

— Amantes?

— Quase.

— Verdade?

— Eu gosto dessa mulher.


Paige fitou-o, boquiaberta. Ela não sabia se o que a surpreendia mais era a franqueza de
Vaugham ou a confidencia inesperada.

— Não!

— Da mesma forma que você gosta do ex-marido.


O comentário foi feito num tom de leve ironia. Paige quase engasgou com a bebida.

— O quê?

— Você nega?

— De onde você tirou essa conclusão?

— Está na cara, meu bem. Eu me conheço nesses assuntos. Nós dois sofremos do mesmo mal.
Eu sei de cor todos os sintomas. Você pode confiar em mim, eu sou um túmulo. Nunca traí a confiança de
um amigo... ou de uma amiga.

— Olhe lá! Eu vou cobrar...

— Eu sou um homem de palavra.

— Vamos ver. Você já confessou seu amor a Nadine?

— Para quê? Ela já está farta de saber.

— E aí?

— Ela acha graça.

— E você sofre com isso?

— Que remédio? — disse Vaugham com um sorriso de ironia. — E você? Seu amor é
retribuído?

Paige corou com a pergunta.

— Olhe, para falar a verdade, eu não significo nada para Kelly.

— Nem um pouquinho? — insistiu Vaugham, encorajando-a.

— Você não viu a maneira como ele me trata?

— Isso não quer dizer nada. Kelly é tão reservado que a gente nunca sabe o que se passa na
cabeça dele. Nadine, pelo menos, não faz segredos do que sente por mim.

— Você tem mais sorte que eu. É horrível a gente ficar na dúvida!
Vaugham sorriu e levantou-se do sofá.

— Olhe, a mesa está servida. Você me faz companhia?

— Com muito prazer.


A sala de jantar era de um luxo e de uma opulência fora do comum, em tudo diferente da
cozinha rústica onde Paige jantara na véspera na companhia de Kelly.

No momento em que ocupou seu lugar à mesa, procurou associar o homem moreno que estava
na cabeceira — dono de um império e senhor de propriedades que não tinham fim — com o desconhecido
que encontrara no hotel de Tingala e que julgara ser o administrador de uma estação agrícola perdida nos
confins do Judas.

— Conte como foi sua estada forçada em Bindaburra — disse Vaugham após estarem
instalados na mesa. — Você gostou?

— O que vocês faziam o dia inteiro? — perguntou uma moreninha de cabelos ondulados, com
duas covinhas ao lado da boca.

— Eu varria a casa, costurava roupas para mim, dava passeios pelos arredores. Ajudei
também Kelly a pintar as portas e janelas da casa. Enfim, havia sempre alguma coisa para fazer. Não
posso me queixar de ter me sentido entediada lá...

— Mas não são todos que gostam de fazer essas coisas — comentou alguém.

— Paige adora os trabalhos domésticos — observou Nadine com um risinho de pouco caso.

— Também, nem tanto — corrigiu Paige. — Eu prefiro estar na companhia de pessoas amigas
do que sozinha numa fazenda.

Alguns risinhos deram a entender que a indireta atingira seu objetivo. Nadine fechou a cara e
voltou-se para o lado, como se fosse dizer alguma coisa a seu vizinho de mesa. No mesmo instante, a
moça morena, de covinhas, voltou a perguntar

— Foi só isso que você fez durante essas três semanas? Não aconteceu nenhuma aventura
especial?

— Depende do que você chama de aventura — disse Paige, bem-humorada. — Eu posso dizer
que morri de medo quando um touro bravo avançou para mim.

— Não brinque!

— Verdade?

— O touro correu atrás de você?

— Nossa! O que você fez?

— Eu subi em cima de uma árvore.


— E aí?

— Aí eu gritei por socorro.

— E Kelly ouviu seus gritos?

— Ele estava trabalhando ali perto. Ele montou no cavalo em pêlo e veio a galope na minha
direção. Quando o touro investiu sobre o cavalo, ele o matou com um tiro de espingarda.

— Matou o touro com um tiro?—perguntou alguém.

— Claro que foi com um tiro. Com o que você queria que fosse? Com arco e flecha? —
exclamou Nadine com uma risada, dirigindo sua agressividade para outra direção.

— Que tem de mais perguntar? — insistiu a moça que se sentiu agredida. — Se a gente não
pergunta não fica sabendo.

— Isso mesmo! — interveio Vaugham com um sorriso. — Pergunte tudo o que você tem
vontade.

— Você se machucou? — indagou Michelle da cabeceira da mesa.

— Felizmente, não. Mas eu não gostaria de correr de novo de um touro bravo. Eu morri de
medo. Ele estava realmente decidido a me dar uma chifrada.

— Ele tinha cara de mau? — perguntou a moreninha.

— Você nem imagina!

— Por que você não me contou? — perguntou Michelle, voltando-se na direção do filho.
Kelly deu um sorriso sardônico.

— Pela maneira como as notícias voam, eu não queria que Stuart ficasse preocupado com sua
convidada... Afinal, ela estava sob minha responsabilidade.

Mentiroso!, pensou Paige na outra extremidade da mesa. Kelly não se preocupava a mínima
com o que Stuart pensasse ou não. A única coisa que o irritava era saber que ela fizera uma viagem de
três dias unicamente para visitar seu amigo em Greenvale.

Michelle, no entanto, achou a resposta do filho perfeitamente lógica.

— Ah, foi bom você falar! Eu me esqueci de dizer a Paige que Stuart pediu notícias dela.

— Ele ligou para cá?

— Foi. Mas como a ligação não estava muito boa, Kelly achou preferível fazer outro chamado
amanhã.
— A que horas? — perguntou Paige com interesse. — Eu gostaria muito de estar aqui para
conversar com ele.

— Eu a aviso com antecedência — disse Kelly.

— Não se esqueça, por favor! Eu estou com muita saudade dele.


Durante o jantar, o interesse que a presença de Paige despertou inicialmente foi sendo
substituído lentamente por outros assuntos. Os convidados já tinham esquecido sua presença à mesa do
jantar quando Suzanne, sem querer, voltou a chamar a atenção dos demais para a temporada que Paige
passara na fazenda.

— Como vocês dividiram a cama? Cada um dormia uma noite?


Paige voltou-se para Suzanne com o rosto vermelho, sem saber o que responder. Com as
orelhas pegando fogo, virou a cabeça para a extremidade da mesa, na esperança de que Kelly corresse em
seu auxílio.

— Nós adotamos a única solução realista — disse Kelly com o rosto impassível. —
Dividimos a cama todas as noites.

— Ah, que delícia! — comentou alguém.

— Delícia é apelido — acrescentou Nadine, olhando furiosa para Paige. Os olhos dela
lançavam faíscas de ódio.

— Vocês estão redondamente enganados — acrescentou Kelly com a mesma voz serena de
antes. — Não foi delicioso nem muito confortável. Foi simplesmente uma solução de ordem prática. E, se
alguém tem uma opinião diferente, eu preferia que não a comentasse em voz alta.

As palavras do dono da casa caíram sobre todos como uma ducha de água fria. Nem mesmo
Nadine ousou desobedecer à ordem emanada da cabeceira da mesa, embora estivesse se roendo de raiva e
louca para fazer algum comentário maldoso.

Paige deu um suspiro de alívio quando o copeiro retirou os pratos e desviou a atenção dos
presentes de sua pessoa. O jantar terminou num clima de tranqüilidade aparente. A tensão, porém, pairava
sobre a sala e estava prestes a explodir de um momento para o outro.

Quando os convidados se dirigiram à sala pegada para tomar café, na companhia dos donos da
casa, Suzanne segurou Paige pelo braço e levou-a para o mesmo sofá onde Paige conversara alguns
minutos antes com Vaugham.

— Desculpe minha pergunta idiota! — disse Suzanne em voz baixa. — Não me passou pela
cabeça que vocês dois tinham dormido na mesma cama, se bem que fosse a solução mais prática, como
Kelly afirmou.

— Ah, não tem nada — respondeu Paige, procurando tranqüilizá-la. — Mudando


completamente de assunto... O que você acha de Vaugham?

Suzanne balançou a cabeça, pensativa.

— Ele e Emma fazem um par perfeito.


— Quem é Emma?

— Aquela moreninha de cabelos ondulados.

— Ah, sim, já sei qual é. A que faz umas perguntas meio sem pé nem cabeça...

— Essa mesma. Ela é bem pirada. Quanto a Vaugham... Olhe, eu não sei sinceramente o que
pensar dele. Ele contou a você que está apaixonado por Nadine?

— Contou — disse Paige com um sorriso sem jeito.

— Não é estranho ele confessar isso a todas as pessoas que conhece? Pela maneira como
Nadine o trata diante dos outros, eu não sei realmente se ele é um santo por aturar sua agressividade, ou
se é um perfeito idiota. O que você acha?

— Não sei. Vai ver que ele sofre com isso, mas não pode fazer nada. Afinal, nem sempre a
gente gosta de quem gosta da gente.

— Você diz isso por experiência própria?


Paige corou com a pergunta inesperada de Suzanne.

— Não, Deus me livre! Estou falando em geral. Eu simpatizo com Vaugham. Ele me pareceu
ser muito sensível, se bem que um pouco ingênuo...

— Concordo com você. Às vezes, no entanto, ele responde a Nadine na mesma moeda. Vai
ver que, se ele adotasse sempre essa atitude, Nadine acabaria respeitando-o como homem.

— É provável. E Nadine? — perguntou Paige, indecisa.

— O que tem?

— Ela foi sempre assim?

— Agressiva, você quer dizer?

— É. Agressiva e maldosa...

— Ela piorou muito depois do divórcio. Antes ela era bem mais simpática, se bem que todos
tinham que fazer sua vontade. Ela e Kelly tinham brigas horríveis por causa disso. Bastava contrariá-la
em alguma coisa para ela aprontar uma cena medonha. A verdade é que ela sempre foi tremendamente
egoísta e nunca abriu mão de seus interesses. No casamento isso é um inferno, como você pode imaginar.

Paige aproveitou o clima de intimidade que havia entre as duas para esclarecer uma dúvida.

— Você acha que os dois vão fazer as pazes?

— Dificilmente. Aliás, eu não entendo até hoje como Kelly casou com Nadine. Os dois não
combinam em nada. Pode ser que eu esteja enganada, mas acho que Kelly se arrependeu amargamente de
sua decisão.
— Como foi que eles se conheceram?

— O pai de Nadine morreu de um ataque cardíaco, após perder todo o dinheiro num negócio
arriscado. Como a mãe de Nadine e Michelle eram muito amigas, Nadine aproveitava para chorar as
mágoas na companhia de Kelly, enquanto a mãe dela passava a tarde com Michelle. Kelly tinha tudo o
que ela desejava num homem... dinheiro, prestígio social, uma bela aparência... Em pouco tempo as
visitas de Nadine se tomaram mais freqüentes.

— Você acha que ela casou por interesse?

— Bem, eu não posso afirmar que tenha sido só por causa disso. Kelly exerce uma atração
muito forte sobre as mulheres, como eu mesma presenciei várias vezes. Mas, basicamente, foi esse o
motivo. Nadine. É uma egoísta de marca maior e ela viu no casamento a oportunidade para recuperar-se
economicamente da grande crise que atravessou depois da morte do pai.

— Os dois continuaram amigos depois da separação?

— Mais ou menos — disse Suzanne, pensativa. — Kelly tolera as visitas de Nadine e de seus
amigos. Como se cedesse a casa, uma vez por ano, para Nadine trazer os convidados que deseja.

Suzanne interrompeu repentinamente o que dizia e voltou-se para Paige com o rosto ansioso.

— O que foi?

— Não olhe agora. Nadine está vindo em nossa direção...


No instante seguinte, de fato, Nadine aproximou-se das duas com o ar confiante que ostentava
quando estava cercada de pessoas amigas.

— O que vocês estão cochichando aí? — perguntou para Suzanne, com ar de cumplicidade.
— É alguma coisa que eu posso ouvir? Ou Paige está contando suas aventuras noturnas com meu marido?

— Com seu ex-marido — corrigiu Suzanne pela segunda vez.

— Escute, Suzanne, este seu comentário está começando a me deixar nervosa — disse Nadine
com irritação. — Por que você não me deixa em paz uma vez na vida? Para mim, Kelly continua sendo
meu marido, você queira ou não!

— Está bom, Nadine, você é quem manda — disse Suzanne em tom de brincadeira. — Mas
eu preferia que você perdesse essa mania de chamar as coisas pelos nomes errados...

— Se Kelly não se importa com isso, por que você tem que tomar as dores por ele?

— Kelly não fala nada porque é muito educado. Mas, se eu fosse você, não contaria muito
com as reações do meu irmão. Uma vez você fez isso e entrou pelo cano, está lembrada?

Os olhos verdes lançaram faíscas de ódio. Estava visível para todos que Nadine ia explodir de
um momento para o outro numa crise de fúria.

— Você está se referindo ao divórcio? — perguntou ela, assumindo um tom de dignidade. —


Pois olhe, eu fiquei muito contente com essa decisão. Não somente recuperei minha liberdade como a
separação foi muito satisfatória do ponto de vista prático. Eu pelo menos fui indenizada e não me
contentei em receber presentes dos outros — acrescentou Nadine, virando-se de frente para Paige.

Paige corou até a raiz dos cabelos com a indireta maldosa. Estava evidente agora que todo o
ódio de Nadine estava dirigido contra ela. Suzanne era um simples pretexto.

— O que você quer dizer com isso? — perguntou Paige, decidida a enfrentar a outra de
cabeça erguida.

— Ah, não se faça de sonsa! — disse Nadine com vivacidade, como se estivesse aguardando
aquela oportunidade para abrir o jogo. — Todos ouviram o que Kelly disse à mesa... Você fez papel de
coitadinha para ganhar uma meia dúzia de vestidos e de lençóis usados. E isso porque Suzanne ficou com
pena de você!

— Você tem toda razão! — disse Paige em tom de zombaria. — Mas como você não pode
entender a diferença que existe entre dormir na mesma cama por necessidade e dormir por prazer, eu não
vou perder meu tempo explicando.

— Nem eu quero ouvir sua explicação! — exclamou Nadine com raiva. — Só desejo
acrescentar uma coisa, sua metida! Você não passa de uma vigarista que se insinua na casa dos outros
com segundas intenções!

Sem prestar atenção aos sussurros e aos olhares que os convidados trocavam entre si, Paige não
conteve mais tempo sua irritação. Realmente Nadine tinha passado da conta e não era ela quem ia levar
desaforos para casa!

— Eu prefiro ser uma vigarista a uma prostituta de segunda classe, que se casa por interesse e
continua uma parasita...

— O que foi que você disse, sua cadela? — exclamou Nadine, desferindo um tapa com toda a
força na face de Paige.

A xícara que Paige estava segurando voou pelos ares, derramando café em cima do vestido
novo que Suzanne lhe emprestara. No primeiro instante, Paige ficou na dúvida se dirigia sua atenção para
a mancha de café na saia ou se para a presença furiosa de Nadine na sua frente. Felizmente, Suzanne
acudiu em sua defesa.

— Escute aqui, Nadine, acho bom você ter modos! — disse Suzanne com a autoridade de
dona da casa, ajudando Paige a se recompor do susto e apanhando a xícara de café caída no chão, em
cima do tapete. — Caso contrário, vou ser obrigada a tomar uma providência enérgica. Não se esqueça
de,que Paige é minha convidada...

Surpreendida com o tom ríspido de Suzanne, Nadine levou as mãos ao rosto e começou a
soluçar como uma criança. Ao avistar Kelly, que havia entrado na sala naquele momento, ela se levantou
do sofá e atirou-se nos braços dele, como se houvesse sofrido uma grande injustiça por parte das duas.

Com a face vermelha em conseqüência do tapa recebido, Paige enxugou o café que havia
escorrido pelo braço e examinou a mancha na saia com os olhos aterrorizados.

— Ah, Suzanne, seu vestido novo! Veja só o que aconteceu.

— Não foi nada — disse Suzanne, procurando tranqüilizá-la. — Isso sai com água quente.
Michelle, que assistira à discussão entre as duas sem interferir, aproximou-se de Paige com
uma expressão de solicitude.

— Você se queimou, Paige?

— Não, não foi nada — disse Paige com um sorriso sem graça. — Felizmente o café não
estava muito quente.

— Você não quer tirar esse vestido?

— Ah, boa idéia. Talvez fosse bom passar água quente antes que a mancha seque.

— Isso mesmo. Vá se trocar com Suzanne.


Ao encontrar-se sozinha no quarto de dormir com Suzanne, Paige voltou ao assunto do
incidente.

— Por que você acha que Nadine fez isso?

— Ah, a gente nunca sabe o que se passa na cabeça dela. Nadine é imprevisível. Sem contar
que é um poço de egoísmo. Quer um conselho? Esqueça o que aconteceu. Não vale a pena você quebrar a
cabeça por causa de Nadine. Ela não merece isso... Uma coisa é certa: quem começou a briga foi ela.
Você não teve culpa nenhuma.

— Ela é uma fúria! — exclamou Paige de repente, sem controlar mais tempo o riso nervoso.
— Você viu como ela virou uma fera quando eu mencionei seu casamento por interesse?

— Ela é louca varrida. Não pense mais nisso.

— Você tem razão. Vou seguir seu conselho. Mesmo porque, estou morta de cansaço com
todas essas peripécias do dia e vou aproveitar para dormir mais cedo.

— Isso mesmo! Você já devia ter ido para a cama há mais tempo depois dessa viagem que
vocês dois fizeram. A gente se vê amanhã à mesa do café. Por falar nisso, você gosta de andar a cavalo?

— Não muito — confessou Paige.

— Ah, que pena! Kelly e eu costumamos passear a cavalo de manhã cedo, antes do café. Eu
achei que você gostaria de ir conosco.

— Muito obrigada pelo convite, mas eu não sou muito...

— Eu posso lhe dar uma aulas, se você quiser — interrompeu Suzanne com vivacidade. —
Andar a cavalo é o melhor programa que há na fazenda. É uma delícia...

— Acredito. Acontece que eu não me dou muito bem com cavalos. Nas duas vezes em que
me aventurei a montar no cavalo de Kelly, me arrependi amargamente.
— Também, logo no cavalo de quem você foi andar! Kelly adora os cavalos ariscos e
trotadores. Se você mudar de idéia, eu providencio uma égua bem mansinha para você montar. Não se
assuste. Você não vai se arrepender amargamente — disse Suzanne com um sorriso, despedindo-se dela.

Minutos depois, no momento em que Paige se preparava para dormir, alguém bateu de leve na
porta.

— Pode entrar.
Ela ficou gelada quando avistou Kelly parado diante da porta.

— Eu vim saber como você está — disse ele da porta, com o rosto impassível. — Você já vai
dormir?

— Vou. Estou um pouco cansada; foi um dia cheio.

— Você está sentindo alguma coisa?

— Não, nada. Só cansaço.

— Você ainda está com raiva de mim?

— Não. Já passou.

— Então por que está com essa cara?

— Esta é a minha cara de sempre. É porque você não está acostumado a me ver sem
maquilagem.

De fato, Paige tinha acabado de lavar o rosto no banheiro para retirar a maquilagem que
Suzanne lhe fizera para o jantar.

— Ah, não se faça de ingênua! — exclamou Kelly com impaciência. — Estou farto de vê-la
sem maquilagem, de rosto lavado. Já vi seus olhos inchados de sono, sua face marcada pelo travesseiro.
Não é nada disso. Você está abatida como se não dormisse há uma semana. O que você tem? Eu faço
questão de saber... Foi por causa da discussão com Nadine? Você se sentiu agredida com as palavras
dela?

— Eu? Você não me conhece... A discussão com Nadine não teve a mínima importância. Eu
só fiquei aborrecida com a mancha de café no vestido novo de Suzanne. Quanto ao mais, está tudo bem.
Amanhã vou estar boa. Preciso apenas de algumas horas de sono.

— Você prefere que eu vá embora?

— Se você não se importar—disse Paige com frieza.


Entretanto, no momento em que se encontrou sozinha no quarto e que se deitou na cama de
casal, as lágrimas rolaram de seus olhos. Na noite anterior dormira na mesma cama que Kelly, com o
braço dele passado em cima de sua cintura, desfrutando uma sensação deliciosa de intimidade.
Somente agora, comparando uma coisa com a outra, podia compreender verdadeiramente o que
representava a cama vazia, os lençóis frios, a falta insuportável de calor humano.
Capítulo VIII
Nos dias seguintes, a fim de fugir dos encontros inevitáveis com Kelly e Nadine, e também
porque não queria dar a entender que sofria terrivelmente com a situação, Paige passou a maior parte do
tempo no quarto.

Nadine resolveu usar todos os recursos da arte da sedução a fim de reconquistar o amor de seu
ex-marido, e ele, por sua vez, decidiu ignorar completamente a presença de Paige na fazenda.

Fazia quatro dias exatamente que os dois não trocavam uma palavra. Paige estava pagando
todos os seus pecados e não via a hora de voltar para casa e esquecer de uma vez por todas os
acontecimentos penosos das últimas semanas.

Assim, quando Suzanne perguntou, à hora do almoço, se ela queria assistir a um rodeio na vila,
Paige declinou educadamente do convite, alegando que estava com dor de cabeça e que preferia passar a
tarde no quarto.

— Quer tomar um comprimido? — insistiu Suzanne, fitando a amiga com expressão inquieta.
— Ou prefere pôr um lenço mergulhado em água fria na testa?

— Não precisa, muito obrigada — disse Paige sem jeito diante da boa vontade da dona da
casa. — Algumas horas de repouso são suficientes. Logo eu vou estar boa.

— Você costuma sofrer de enxaqueca?

— Muito raramente. Só quando fico muito tempo com a cabeça exposta ao sol — mentiu
Paige.

Ela nunca sofrera de enxaqueca na vida e podia passar horas ao sol sem sentir o menor
incômodo.

— Ah, você devia ter me avisado! Se eu soubesse disso, não teria insistido para jogarmos
tênis hoje de manhã.

— Mas eu adoro jogar tênis! — exclamou Paige com vivacidade, procurando desfazer a
impressão que dera. Só faltava agora Suzanne sentir-se culpada por sua dor de cabeça. — E não é sempre
que isso acontece...

— Espero que você fique boa depressa. Deve ser horrível passar o dia trancada no quarto... Na
volta eu dou um pulinho lá para saber notícias suas.

— Muito obrigada. Você é um anjo.


Paige despediu-se de Suzanne e foi para o quarto. Como não conseguia concentrar a atenção na
leitura, largou o romance em cima da cama e começou a andar de um lado para o outro, debatendo
consigo mesma o que devia fazer.
O dia estava realmente lindo, sem uma nuvem no céu. A tentação de dar uma volta por baixo
das árvores era irresistível. Ela foi até a varanda e olhou em volta, para ver se avistava alguém pelas
imediações da casa. Como estava tudo deserto, saiu furtivamente pelos fundos e tomou o caminho
arborizado que levava às outras dependências da fazenda.

Ao passar diante das cocheiras, tomou a direita e seguiu a cerca de tábuas largas que separava o
pastinho da casa propriamente dita. Avistou do outro lado da cerca um cavalo alazão, muito parecido com
o que Kelly montava em Bindaburra.

Quando se debruçou na cerca, para examiná-lo de perto, o cavalo levantou a cabeça e


observou-a com atenção, balançando as orelhas. Ao ouvi-la estalar os dedos, aproximou-se lentamente
dela, como se esperasse receber um torrão de açúcar.

Paige fez festa na testa do animal e correu a mão aberta sobre o pêlo macio do pescoço. Agora
não tinha mais dúvida. Era o mesmo cavalo que a transportara na garupa no dia da tempestade.

Emocionada com essa recordação de um fato tão importante na sua vida, começou a chorar
baixinho enquanto fazia festa e conversava com o cavalo, como se fosse uma pessoa a quem confiasse
suas mágoas.

Estava tão distraída que levou um susto ao escutar o ruído de passos que se aproximavam na
sua direção. Pensando ser um dos empregados da fazenda que passavam por ali, Paige enxugou
rapidamente as lágrimas que escorriam pelo rosto e continuou a afagar o cavalo, sem virar a cabeça na
direção do ruído.

— Você não estava com dor de cabeça?


Não havia necessidade de voltar a cabeça para descobrir quem era. Somente uma pessoa tinha
o poder de abalá-la tão facilmente com algumas palavras ditas em voz baixa.

— Estava — murmurou, com a garganta seca.


E não era mentira. A palpitação que sentia nas têmporas com a presença inesperada de Kelly
era idêntica à sensação de mal-estar provocada pela dor de cabeça.

— Do sol que você apanhou?


A ironia da pergunta atingiu-a em cheio. Pela proximidade da voz, Paige concluiu que Kelly
estava mais perto da cerca onde ela continuava debruçada, afagando a testa do cavalo, sem se voltar para
o lado.

— Talvez — disse em voz baixa, passando os dedos trêmulos pelos cabelos soltos, que
brilhavam como seda sob os raios do sol.

— E o melhor remédio para isso é ficar exposta ao sol na hora mais quente do dia?
A voz dele estava tão próxima agora que Paige sentiu um arrepio na espinha, como se tivesse
sentido o contato de sua mão na nuca.

— Eu saí para dar uma voltinha.

— Sem cobrir a cabeça? Por que você não põe um chapéu?


— Primeiro porque não tenho chapéu, e depois porque não estou com vontade — disse Paige,
voltando-se para ele com o olhar insolente de outros tempos. Ela continuava a mesma, no fundo, e não
suportava que as pessoas se metessem na sua vida.

Kelly desmontou do cavalo e colocou a mão de leve sobre seu ombro.

— Foi por isso que você me deu um tapa na frente de todo mundo? Porque estava com
vontade?

Paige encarou-o no fundo dos olhos, sem pestanejar.

— Para que você quer saber? Você não liga a mínima para o que eu faço ou não faço!

— Como não?
O sorriso nos lábios dele é realmente irresistível, pensou Paige, fitando-o fascinada. Por que
Kelly a procurava após passar quatro dias num mutismo absoluto, evitando todas as oportunidades de
encontrar-se a sós com ela?

— Está bom! — exclamou, procurando conter a emoção que a ganhava. — Eu não devia tê-lo
agredido diante dos outros. Desculpe. Mas você também não devia ter-me iludido de propósito durante o
tempo que passamos em Bindaburra. Você agiu muito mal comigo.

Paige deu um grito de susto quando Kelly tentou segurá-la pela cintura. Sem hesitar um
segundo, afastou-se da cerca e saiu correndo na direção das árvores que formavam um pequeno bosque
perto dali.

Antes porém que conseguisse alcançar seu objetivo, Kelly enlaçou-a pela cintura e deteve-a na
corrida. Ela rodopiou sob o efeito do impulso, perdeu o equilíbrio e caiu de costas sobre a grama verde
que cobria uma extensão do bosque. No instante seguinte Kelly estava deitado com todo o seu peso em
cima do corpo de Paige, imobilizando seus braços no chão, o rosto colado ao dela.

— Mentirosa. Você merecia uma surra.

— Bata se você tem coragem! — disse Paige ofegante, sentindo a respiração dele sobre seus
olhos.

— Eu tenho uma idéia melhor — murmurou Kelly, roçando os lábios sobre sua boca
entreaberta. — Eu devia ter feito isso há quatro dias.

— Não Kelly, não! — exclamou Paige, voltando o rosto para o lado. — Eu não sou um objeto
para você usar quando tem vontade.

Descrevendo um rastro úmido com os lábios sobre a pele rosada, ele parou finalmente no canto
da boca.

— Eu estou falando sério.

— Você só me procura para isso...


A resposta de Paige foi abafada pela boca que cobriu a sua com um beijo apaixonado. Não
adiantava se defender, lutar, debater-se. Ela perdia completamente a cabeça quando se encontrava nos
braços dele. Sua única reação era devolver beijo com beijo, carícia com carícia.
As razões que ditavam o comportamento dele perdiam toda a importância diante da languidez
que tomava conta de seus membros, de seus nervos tensos. Era como afundar numa banheira e sentir os
músculos relaxando sob o efeito da água morna.

— Você me bota louca — murmurou, como se fosse uma queixa arrancada do fundo do
coração.

Num transe voluptuoso de sensualidade, contorceu-se sob o corpo que pesava sobre o seu,
enroscou-se entre as pernas musculosas e passou os braços em volta do pescoço dele, abandonando-se
inteiramente ao desejo que a consumia.

Sem parar de beijá-la, Kelly abriu os botões da camisa e soltou a alça do sutiã, descobrindo
ligeiramente o seio intumescido. Ao contato de sua boca, Paige arrepiou-se toda. O arrepio, porém, não se
limitou àquela região apenas. Correu até as extremidades dos nervos e arrancou um gemido de êxtase.
Como se quisesse castigá-lo pelo excesso de prazer, ela enterrou as unhas nas costas dele, com toda a
força, a ponto de lhe arrancar uma exclamação de dor.

Ela voltou a si repentinamente, assustada com seu gesto.

— Desculpe. Eu machuquei você?


Kelly afastou-se e contemplou-a um instante em silêncio, com os olhos esgazeados.

— Você quer casar comigo?


A pergunta foi tão inesperada que ela recuou instintivamente, como se acordasse de um sonho.

— Casar com você?

— É. Antes que eu perca completamente a cabeça.

— Você é quem sabe.

— Mentirosa! Diga que você quer, que você está louca para casar comigo.
Ela estendeu os braços e afundou a cabeça no peito de Kelly.

— Eu adoro você, amor. Não penso em mais nada desde a noite em que nos conhecemos
naquele hotel, lembra?

Kelly beijou-a com carinho na testa.

— Você já me perdoou de todo o coração?

— Que jeito...

— Você ficou muito zangada?

— Zangada? Eu fiquei uma fera! Nunca me senti mais humilhada na vida. Eu tive vontade de
matá-lo e cortá-lo em pedacinhos!
— Eu acredito. Seu tapa me acertou em cheio.

— Também, não era pra menos. Mas eu me arrependi logo depois. Eu sei que não devia ter
feito aquilo. Pelo menos diante dos outros. O que sua mãe não deve ter pensado de mim...

— Ela já perdoou.

— Por que você mentiu para mim, Kelly? Por quê? Você me odiava tanto assim?

— Como é possível você dizer uma coisa dessa?! — exclamou Kelly, estreitando-a nos
braços. — Você se engana redondamente, amor! Primeiro, eu nunca senti ódio por você, nunca! Pelo
contrário...

— Você não disse...

— Foi você quem tirou essa conclusão — interrompeu Kelly, silenciando-a com um beijo. —
Eu simplesmente não desmenti essa impressão falsa. Mas eu nunca menti deliberadamente para você. Eu
reconheço que não contei toda a verdade...

— Por quê? Por que você me deixou na dúvida todo esse tempo?
Kelly respirou fundo, como se tomasse fôlego para contar o que ocorrera com ele desde o
primeiro dia em que os dois se conheceram no hotel de Tingala.

— Confesso que minha decisão foi lenta. Quando conversamos naquela noite no hotel, eu
fiquei na dúvida sobre os motivos que você tinha para encontrar-se com Stuart em Greenvale. Por isso,
em vez de confessar a atração que sentia por você, preferi ocultar meus sentimentos verdadeiros e deixar
você pensar que eu antipatizava com sua maneira de ser. Desta forma eu não coma o risco de me prender
a você enquanto não soubesse ao certo quais eram seus sentimentos por mim.

— Está bom, isso eu entendo. Você agiu com cautela. O que eu não compreendo é por que
você não me contou a verdade antes de chegarmos aqui. Teria sido muito melhor e eu não me teria
sentido humilhada daquele jeito...

— Sei, mas eu estava numa situação muito difícil. Primeiro, não tinha Certeza se você gostava
ou não de mim. Em segundo lugar, não estava decidido a me casar de novo. E, além de tudo isso, eu me
sentia terrivelmente atingido pelas críticas que você fez a Bruce Morgan. Você declarou abertamente que
não suportava os milionários, os monopólios, as grandes empresas, os donos de terras... Lembra? Eu
realmente não tinha coragem de lhe dizer que o dono das duas fazendas era eu. Estava apavorado com a
idéia de que, ao saber da verdade, você se desinteressasse completamente por mim ou me acusasse dos
piores nomes por ter ocultado a verdade todo esse tempo.

— Eu também pensei que você não fosse mais falar comigo depois do tapa que lhe dei. Você
me olhou com uma cara, naquela noite, que eu quis morrer!

— Realmente, eu fiquei uma fera na hora. Mas você também me recebeu muito mal quando
fui ao seu quarto para saber como você estava depois daquela discussão com Nadine.

— É verdade. Eu estava com muita raiva de você. Não gostei nada da maneira como você
abraçou Nadine quando ela correu na sua direção.
— O que eu podia fazer, meu bem? Ela se atirou nos meus braços na frente de todo mundo.
Aproveitei para levá-la embora dali o mais rapidamente possível, antes que você recebesse outras
agressões. Você não conhece Nadine...

— Nem quero! E foi por isso que você andou de braços dados com ela nos últimos quatro
dias?

Kelly deu um sorriso que desfez imediatamente as suspeitas de Paige.

— Não. Isso eu fiz de propósito. Para deixar você com ciúme.

— Ah, que bandido! E eu sofrendo como uma danada. Você quase me matou de ciúme.

— Foi isso o que eu deduzi quando vi você se trancar no quarto e só sair para as refeições.

— Suzanne, pelo menos, não suspeitou de nada.

— Suzanne não passou três semanas com você em Bindaburra. Eu sabia que o sol nunca fez
mal a você. Quando Suzanne me disse que você estava com enxaqueca por ter apanhado sol na cabeça,
desconfiei imediatamente do motivo que você deu para não sair do quarto.

— Realmente, eu não suportava mais ver você de conversinha com Nadine.

— Eu confirmei minha suspeita quando avistei você abraçada com o cavalo.

— Porque eu estava no sol?

— Não, sua bobinha. Porque você estava chorando como uma criança pequena que perdeu seu
brinquedo preferido.

Paige deu um suspiro e se aninhou nos braços dele. Só faltava uma pequena providência para
se sentir de novo em paz com sua consciência.

— Você me faz um favor?

— Quantos você quiser.

— Você faz uma ligação para Stuart? Eu estou em falta com ele. Afinal, não me desculpei
ainda por todo esse atraso. E não se esqueça de que foi graças a ele que nós dois nos conhecemos...

— Você tem razão. Stuart merece uma desculpa.

— Mas não já, neste minuto.

— Hoje à noite. Agora temos a tarde toda para nós. Os outros não vão voltar tão cedo para
casa.

Os olhos dela estavam banhados de felicidade.

— Beije-me...
— Quantas vezes você quiser...
O círculo de luz que passou por entre os galhos abertos da árvore estreitou-os num abraço
quente, voluptuoso como o sol do meio-dia.

FIM

Uma espetacular história de amor!

SABRINA 123: VINGANÇA! - Violet Winspear


"Queira ou não, señorita Darcy, você vai se casar com Ramón. E saiba,
desde já, que depois daquele maldito acidente, do qual você é a culpada, Ramón é
um homem vivo só da cintura para cima." Na expressão dura de Júlio Valdez, Darcy
via sua vida amorosa arruinada. Amor completo... entrega apaixonada de corpo e
alma... nada disso ela teria. Que loucura! Ela nunca deveria ter ido à Espanha, para
se deixar apanhar naquela armadilha de vingança. Sentia agora, na carne, que
envolver-se com um homem fascinante e cruel como Júlio Valdez significava perigo.
Mas ela tinha vindo. E agora era tarde... tarde demais!

Você vai viver uma história emocionante!

SABRINA 124:  TORTURA DE AMOR - Anne Mather


Rachel tinha apenas dezoito anos de idade e uma certeza muito grande: ela
amava Jake Courtenay. Pouco lhe importava que ele fosse vinte e dois anos mais
velho, que carregasse nas costas um casamento fracassado e que sua saúde
estivesse abalada por uma esta-fã. Ela o queria e aceitou casar-se com ele em duas
semanas. Orgulhosa da paixão e da atração física que sentia por seu marido, Rachel
ofereceu-lhe seu corpo, pediu a Jake que a amasse. Mas ele disse que não, que eles
tinham que esperar. O que significava aquilo? Então era verdade que Jake havia
casado com ela só para fazer ciúmes à primeira mulher?
Você vai viver uma história emocionante!

SABRINA 125: A FORÇA DO DESTINO - Charlotte


Lamb
Só um destino muito cruel faria com que Joanne se apaixonasse tão
perdidamente por Ben Norris. Primeiro, porque ele nem notava que Joanne existia,
empenhado apenas em conquistar sua mãe, Clea, a grande estrela de cinema.
Depois, porque Clea era uma mulher vaidosa, que tinha horror a parecer velha, e
mantinha a filha à sua sombra. Joanne quase não podia sair de casa, tinha de se
vestir e se comportar como uma menina, proibida de crescer. Onde Joanne
encontraria forças para rebelar-se contra Clea, assumindo a mulher que
despontava dentro dela? Onde buscar coragem para roubar o namorado da própria
mãe?

Não perca esta espetacular edição!

SABRINA 126: O SENHOR DO CASTELO - Kay Thorpe


"Aqui está o contrato, srta. Vanessa. Assine-o e será minha secretária por
seis meses." Vanessa hesitou, pensando por um momento em recusar o emprego
naquele castelo. Ela não entendia Brent Mallory, seu futuro patrão. Ele era
arrogante demais... auto-suficiente demais... e, sem querer, pensou: atraente
demais! Num impulso, assinou o contrato, sem saber que, naquele momento, estava
abrindo para si mesma as portas do inferno. Pois, em apenas duas semanas, estava
apaixonada por Brent Mallory. Ah, antes nunca tivesse respondido àquele anúncio
no jornal! Porque era melhor não amar, do que amar e não ser correspondida!

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