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Aposta no passe
seguido de 15 testemunhos de
Analistas da Escola, membros da
Escola Brasileira de Psicanálise
ORGANIZAÇÃO E TRADUÇÃO
ORGANIZAÇÃO
Ana Lydia Santiago
REVISÃO
Maria Lúcia Brandão Freire de Mello
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7740-270-o
2018
Todos os direitos desta edição reservados à
CONTRA CAPA LIVRARIA LTDA.
<atendimento@contracapa.com.br>
www.contracapa.com.br
I
Tel (55 21) 2507.9448 (55 21} 3435.5128
S.UMARIO
9 PREFÁCIO
Angelina Harari
APOSTA NO PASSE
31 Sobre o desencadeamento da
saída de análise ( conjunturas freudianas)
CLASSICISMO DO PASSE
47 A pergunta de Madri
117 É passe?
125 O ultrapasse
13 7 A via da perplexidade
Bernardino Horne
163 Relato
Ana Lucia Lutterbach Holck
171 Túnicaíntitna
Sérgio Passos Ribeiro de Campos
181 Parceiros no singular
Angelina Harari
19 7 «Toma!"
Rómulo Ferreira da Silva
9
Entusiasmada com o sucesso do evento, e apoiada e acompanhada de Ana
Lydia Santiago, manifestei a Jacques-Alain Miller minha mais profunda con
vicção de que havia chegado o momento de o Bra'sil contar com um disposi
tivo de passe final, imprescindível para que a EBP chegasse ao Congresso que
seria realizado em Roma, igualmente em 2006, cujo tema era os Nomes-do-
-Pai, com a perspectiva de poder questionar o Nome-do-Pai, pluralizando-o.
Parecia-me que não havia nada mais impactante para isso do que a EBP con
tar com sua própria experiência do passe no seio da comunidade, podendo
amealhar a confiança de todos nesse formato de trabalho institucional.
E, para selar o apoio à proposta, praticando nosso jeitinho brasileiro de
ser, nosso jeitinho brasileiro de brindar, nada melhor do que uma caipirinha,
tendo ao horizonte o mar aberto do sul da Bahia: "Bom-dia AMP, bom-dia
Bahia, bom-dia ilha de ltaparica': refrão com o qual tinha sido dada a largada
aos trabalhos naquele Congresso de julho de 2004.
10 APOSTA NO PASSE
APOSTA NO PASSE
A FAVOR DO PASSE OU
DIALÉTICA DO DESEJO
:E FIXIDEZ DA FANTASIA 1
13
modo, se pudesse escrever: o Congresso Lacaniano de Caracas chega à con
clusão de que o inconsciente não fala!
Mas não, esse outro Lacan é o mesmo que vocês seguem há muito tem
po e que retirou de sua célebre hipótese certas consequências nem sempre
percebidas. E também, creio, muitos problemas que já encontramos e ainda
encontraremos tanto no avanço da teoria da psicanálise quanto na institui
ção psicanalítica.
O que é ainda mais lamentável, já que muitas das dificuldades que vimos
enfrentando recentemente na instituição psicanalítica se devem a esse des
conhecimento, o qual explica igualmente a est�gnação observada na teoria.
As referidas consequências concernem expressamente ao fim de análise e
ao momento dito de passe.
Vou lhes apresentar alguns pontos desse tema complexo sobre os quais
me questionei.
Passe, o termo usado por Lacan, assume o sentido de impasse, que, se
gundo Freud, corresponde ao desfecho normal da experiência analítica para
todo sujeito.
A esse respeito, portanto, discordo do que disse há alguns minutos,, . de
que há um termo para a experiência analítica, mas que esse termo é um im
passe - testemunho deixado por Freud de sua prática, em especial no texto
"Análise finita e infinita': Para ele, pode-se dizê-lo, toda psicanálise - toda psi
canálise- tropeça numa resistência irredutível.
A existência desse tropeço não diz respeito, de maneira alguma, à parti
cularidade clínica do paciente ou à falta de habilidade do analista praticante.
Não é porque o sujeito é muito neurótico ou o analista é incompetente que se
chega a esse obstáculo. De forma alguma. Freud define algo muito singular:
um impasse de estrutura, que vale para qualquer sujeito.
E, de fato, quanto mais a experiência é levada adiante, quanto mais ela é
conduzida com competência e conforme as indicações de Freud, mais esse
impasse, segundo ele, deve manifestar-se.
Vocês conhecem a designação freudiana desse impasse. É o complexo de
castração, e na mulher, em especial, a Penisneid, essa «inveja': como em geral
se traduz o termo, que lhe é, ousaria dizer, cravada no corpo. Para Freud, esse
obstáculo não é contingente; ele se produz necessariamente. É um impasse
que não existe de fato, mas de direito. A direção mais segura do tratamento
só pode ser navegar rumo a tal rochedo, que, por fim, se revela como um recife.
De acordo com Freud, portanto, a experiência analítica implica um en
cerramento, mesmo que isso desagrade a todos que valorizam apenas a aber
tura de uma experiência. É o que acontece tanto aqui quanto na França: uma
14 APOSTA NO PASSE
ênfase positiva é sempre dada a questões em aberto: "É preciso que as ques
tões permaneçam abertas': No mais das vezes, diz-se isso porque, evidente
mente, quer-se continuar a abrir a boca. Essa claustrofobia é uma herança da
fenomenologia, do bergsonismo, da qual não se pode dizer que seja consubs
tancial à psicanálise.
Observa-se, nesse caso, uma ironia, um paradoxo: a experiência analítica
implica um fim ideal, distinto de toda interrupção acidental ou, digamos, por
conveniência pessoal, e esse fim ideal é o fracasso.
Nessa perspectiva, podemos dizer que, para Freud, há efetivamente uma
"cláusula de clausura': que é o complexo de castràção.
Então, para retomar o debate entre Lacan e Freud - já que Lacan quis
situar este Encontro sob tal signo -, é evidente que ele pretendeu estender
suas análises para além do ponto que parecia a Freud constituir o resíduo
irredutível, o "caput mortuum"2 da experiência. É por isso que Lacan fala de
passe, quando Freud evidencia o impasse.
Dito isso, ambos concordam quanto à finitude da experiência analítica.
A cláusula de encerramento de Lacan, todavia, é completamente distinta da
quela de Freud, pois comporta a transformação do analisante em analista,
a passagem de uma posição a outra.
Trata-se, portanto, de uma questão que importa não apenas ao analista,
como também, e antes de a qualquer outro, ao analisante.
2 N. da T. A expressão "caput mortuum" [cabeça morta] era usada pelos alquimistas para
designar os resíduos não líquidos de suas análises, que representavam como uma caveira,
uma cabeça de que se retirava, por destilação, o "espírito': o valor, a vida.
16 APOSTA NO PASSE
NO INCONS C IENTE, HÁ UM PONTO DE NÃO S A B ER: do homem sobre a
mulher e da mulher sobre o homem. Pode-�e dizer isso, a princípio, da se
guinte maneira: os dois sexos são estranhos um ao outro, exilados. Quando
estive aqui em Caracas em outubro, havia um congresso sobre o exílio. Pois
bem, talvez façamos um congresso sobre o exílio sexual.
Atualmente, essa formulação simétrica não é a mais razoável.
De fato, o não saber de que se trata incide, preferentemente, sobre a mu
lher. Se não se sabe nada do outro sexo, isso ocorre, antes de tudo, porque no
inconsciente nada se sabe da mulher. Daí a expressão Outro sexo, para dizer
que ele é, de forma incontestável, Outro. O significante do homem, nós o
temos, mas apenas esse. Esta é a constatação de Freud: há um único símbolo
da libido e este é viril; o significante da mulher, por sua vez, é um significante
perdido, o que faz Lacan ser totalmente freudiano, ao afirmar que "a" mulher
não existe. É Freud que, sem dúvida, não é inteiramente lacaniano, pois não
formulou tal princípio da mesma maneira.
Isso explica por que o sujeito que entra no dispositivo analítico é subme
tido a uma histeria estrutural. O que ocorre não apenas porque ele se experi
menta dividido pelos efeitos do significante, mas também porque é lançado,
valens nolens ,3 à procura do significante da mulher, de que ele precisaria para
que a relação sexual existisse.
A psicanálise não precisa escrever em sua porta «Que ninguém entre aqui,
se não procura a mulher': pois quando alguém passa por ela, irá procurá-la,
mesmo que seja geômetra.
A ausência do significante da mulher dá conta muito bem da ilusão de
infinito a que essa experiência dá origem, ainda que marcada de finitude, mas
que se constitui em uma experiência de fala. Ora, a estrutura diacrítica da lin
guagem, que faz com que um significante valha apenas para outro ( S1 � S),
abre, como tal, a palavra a uma recorrência sem fim.
Evidentemente, se o Outro significante, o da mulher, existisse, poder-se-ia
supor que esse fluxo estancaria. Porque o analisante é um Diógenes com
sua lanterna, mas que procura a mulher e não um homem. Nesse processo,
encontram-se sempre os homens, e pode-se mesmo tomar uns por outros�
como revelou o lapso histórico de Éric Laurent, ao confundir Chamorro com
Sawicke - mas ele confundiria a senhora Chamorro com a senhora Sawicke?
3 N. da T. Expressão latina que significa "querendo ou não [querendo]'; vale dizer, indepen
dentemente da vontade do sujeito.
·1
A FAVOR DO PAS S E OU DIALÉTICA D O D ES E J O E F I X I D E Z DA FA N TA S T A '7
A paixão pelo simbólico não tem outra raiz. Se há a ciência, é p�rque
a mulher não existe. O saber, como tal, situa-se no lugar do saber do outro
sexo. Essa fórmula tem aplicação imediata. Por exemplo, pergunta-se hoje,
em todos os jornais de Caracas, por que todo mundo joga paciência. Então,
sabemos dar a resposta cientifica que se impõe: todo mundo joga paciência
porque a mulher não existe!
A P O STA N O PASSE
entre os latinos, uma valorização da interpretação como algo significativo.
Nessa perspectiva, a psicanálise tende ao delírio de interpretação.
É preciso dizer que há uma fé ingênua no inconsciente, que é, a ri
gor, paranoica. Alguém evocou, no primeiro dia, a estrutura paranoica do
conhecimento. Não vejo nenhum mal em lembrar a estrutura paranoica
da psicanálise. Vocês conhecem a antiga definição de Lacan da psicanálise
como paranoia dirigida. Afinal, quem dirigiria melhor uma paranoia do
que um paranoico?
Há um filão na psicanálise que vai nesse sentido, razão pela qual Lacan
recomenda as entrevistas preliminares na entrada da análise. O dispositivo
analítico, dispositivo de interpretação, é muito favorável à eclosão da psicose.
O que se chama na clínica psiquiátrica - ao menos na francesa, mas creio
que se utiliza a mesma referência aqui - de automatismo mental não é jus
tamente o sujeito suposto saber, o sujeito suposto saber tudo o que penso?
Há alguns anos, no Hospital Sainte-Anne, vimos um caso muito interessante
de psicose alucinatória crônica associado a um psicanalista considerado ma
nipulador da máquina de influenciar. Isso não é raro.
Critica-se muita gente aqui, Melanie Klein, os analistas americanos e, tal
vez, até um pouco Lacan ou, ao menos, certos efeitos de seu ensino, que favo
recem a exaltação da função interpretativa. Essa exaltação não está presente,
de forma alguma, em Lacan e vocês poderão observar que, afinal, no que
concerne à interpretação, ele demonstra admirável discrição. Ele, frequente
mente, evitou dizer que é preciso fazê-la como preciso, o que, vocês hão de
convir, não ajuda muito.
Já falei da interpretação, quando estive aqui em outubro, e como, se
gundo me disseram, isso deve ser publicado na revista Analítica, não quero
me estender sobre o tema. A função da interpretação deve, evidentemente,
situar-se na estrutura que faz da linguagem a linguagem do Outro, já que é
o ouvinte que decide qual a significação do que é emitido. Ao destacar esse
ponto, Lacan não hesita em declarar que o analista é o mestre da verdade.
Trata-se de uma fórmula de 1953, a que ele não mais retorna, mas explica por
que a interpretação pode, efetivamente, reduzir-se a uma simples pontuação: ·
Ouvindo algumas exposições, dei-me conta de que essa era uma dimen
são muito apreciada do ensino de Lacan e de que esse interesse se justifica
ainda mais pelo fato de a maioria de vocês se ter formado na falação inter
pretativa kleiniana. Nos contatos que mantiveram neste evento, já devem ter
percebido o quanto se exagera, em torno de Lacan, a ideia de que a interpre
tação pode estar em uma escànsão. Isso vai muito mais longe do que podem
imaginar pelo que foi exposto.
A P O STA NO PAS S E
As cintilações do desejo, suas urdiduras ardilosas, suas metamorfoses à
moda de Fregoli, suas arlequinadas, há tudo isso, com certeza, na exphiência.
É isso que torna uma psicanálise tão prazerosa. É seu estilo de nomadismo,
para retomar uma expressão utilizada ontem por Melman. A análise sem dú
vida possibilita ao sujeito, ainda que nos trilhos do significante, um espaço
de errância. Assim como o faz a felicidade da interpretação, e não é isto, afi
nal de contas, o que se paga: a mais-valia do gozo, o mais-de-gozar liberado
pela operação? Por conseguinte, o analista que se crê lacaniano é levado a
imaginar que a interpretação é uma espécie de "paixão do dizer':· Encontrei
essa fórmula nos Cuadernos.Sigmund Freud, na conclusão de um artigo sobre
os limites da interpretação. Nessa vertente em que se exalta a interpretação
como criação poética, confunde-se o psicanalista com o escritor, profetiza-se.
Esse fervor invoca o testemunho de Lacan. Não é difícil apreender o que,
em seu ensino, autoriza esse desvio.
Porém a tese de que o inconsciente se estrutura como uma linguágem
não implica, de modo algum, a valorização unilateral do significante poético
e de suas consequências, que relembro brevemente.
Pretendo, nesta oportunidade,. seguir no sentido oposto. Ser inspirado
não cabe nem ao analista, nem ao analisante. A experiência analítica é um
processo de extrema regularidade, rotineiro, "quase burocrático': assinala
Lacan. O desejo, indubitavelmente, fulgura e esquiva-se. Mas também, como
o anel do jogo, gira em círculos.
Chamamos esse giro de fantasia.
5 N. da T. Referência ao conto "La chevre de Monsieur Seguin': de Alphonse Daudet, sobre uma
cabritinha criada em um cercado, na fazenda de Seguin, onde tinha tudo de que precisava. Po
rém, ao contemplar as montanhas, ela vivia a imaginar como seria bom estar lá no alto e, então,
começou a achar tudo sem gosto e sem graça. Apesar de advertida dos perigos que envolviam
seu sonho de viver nas montanhas, foge para alcançá-las. Chegando lá, é devorada por wn lobo.
22 AP OSTA NO PASSE
Ora, por um efeito singular, o entusiasmo, e mesmo o acesso pseudo
maníaco, induzido pelo procedimento do passe favoreceu, com frequência,
essa idealização naqueles que teriam sido os melhores, mesmo apostando no
contrário.
A "travessia da fantasia", sem dúvida, dá asas, mas ei-los uns e outros,
albatrozes e pombas de Platão!
25
Há, portanto, dois buracos na sequência de seu ensino. Quem sonharia
em preencher os buracos deixados por Lacan? Pode-se, no entanto, almejar
explorar o entorno deles.
É o que me proponho ao longo destas reuniões, em que se discute, por
iniciativa de Delenda, o pas�e. Tema estagnado há muito tempo. Com efeito,
pouco se disse sobre ele depois que Lacan concebeu o termo e lançou a ex
periência.
2
SENHA
Delenda não se contentou com um "sobre o passe», mas fala, sem dificuldade,
de "afavor do passe". É preciso acreditar que, na verdade, o passe acabou por
ter uma reputação muito ruim, para que muitos tenham dito, por ocasião
da dissolução da EFP, que se poderia abster do passe. A meu ver, não se pode
extrair o passe do ensino de Lacan como uma peça descartável, sem que haja
prejuízos. A descoberta do momento de passe e a invenção do dispositivo
que então se articula a ele são parte integrante desse ensino, respondem a um
problema que o atravessa de ponta a ponta.
Em nome de que posso me permitir falar do passe aqui, como falei, há
pouco, em Caracas?
Tomem o texto intitulado "Proposição de 9 de outubro de 1967': em sua
primeira versão, publicada na revista Analytica, n. 7, e vejam como Lacan qua
lifica o passante, aquele que atravessa o passe: ele o nomeia (<psicanalisante".
O passante é, por definição, um psicanalisante. Ele pode já estar estabelecido
como psicanalista, mas não é como psicanalista que faz o passe, e sim como
--
psicanalisarite.
Reconheço que o passe satisfaz a funções de seleção no âmbito do grupo
analítico e, por isso, comporta uma dimensão, em certa medida, ((política".
Isso se evidencia, de maneira clara, após a dissolução da École: Lacan não
hesitou em alertá-la sobre o fracasso do passe. Mas o passe interessa, antes de
tudo, ao psicanalisante: como momento, define a saída do processo em que
ele se engajou; como dispositivo, lhe dá a palavra.
Eis, pois, o suficiente para me permitir abordar um assunto que, por muito
tempo, se quis considerar reservado. Reservado, contudo, para quem? Para
ninguém, sem dúvida, já que o passe, na EFP, foi reduzido ao estatuto de uma
26 APOSTA NO PAS S E
"senha': O que contrariava completamente sua finalidade, que era a trans
missão - transmissão esotérica. Essa transmissão foi impedida, e até mesmo
corrompida, na EFP. Lacan chegou a dizer que esta corria o risco de funcionar
em sentido oposto àquele que motivara sua fundação - nada o demonstra
melhor que a deriva da experiência do passe.
A Éc�le de la Cause freudienne foi fundada sobre um engajamento explí
cito de crítica assídua da École freudienne. Comecemos, pois, a aplicar esse
engajamento à questão do passe - de preferência a outras que o testemunho
de vocês me pode trazer aqui. Tentemos reencontrar o fio do que Lacan in
troduziu em 1967, antes de o passe se tornar senha.
A M N É S I A D O AT O
O passe torna nulo o didata. Mais do que isso, pressupõe que a psicanálise
não depende de qualquer didatismo.
Onde se pratica a análise didática, finge-se acreditar em uma aprendiza
,
gem da psicanálise. Esse ((learning, não se completa com o tratamento do pa
ciente; estende-se muito além dele. Leva-se em conta a prática como analista -
analista jovem, analista menos jovem -, suas supervisões, e seus superiores, à
medida que ele trabalha a vida toda e se posiciona como deve, o promovem
na hierarquia, o que lhe vale, na oportunidade, a admissão final pelos didatas.
Há, então, um trajeto, que pode ser longo, uma ascensão em que o tempo,
como duração, tem função essencial. Na experiência analítica, o candidato
começa a ser ensinado por seu suposto didata, ele se instrui na própria práti
ca, pois esta tem, crê-se, uma virtude didática e, enfim, é admitido, cooptado
como alguém capaz de ensinar.
Isso não é insensato. É assim em diversas práticas. A questão consiste em
saber se isso se conforma à estrutura da experiência freudiana.
O curso, que até Lacan era a tradição, valoriza a experiência. Mas de que
experiência se trata? Da experiência que agrega, como se acredita, os ensina
mentos resultantes de uma experiência contínua da psicanálise, experiênci�.
que se tem, que se adquire ao longo de uma prática e se soma ao sujeito como
uma segunda natureza.
Esse valor inverte-se com o passe. Este não apenas desconsidera a prática
do solicitante, pois nem mesmo exige que ele tenha uma, como também, ao
contrário> atribui um valor negativo à duração da prática.
O praticante se acostuma, isso é um fato. Congratula-se a International,
gabam-se as virtudes do hábito, vê-se nele uma promessa de sabedoria. Com
SER E SABER
28 A P O STA NO PASSE
para ele oferecer sua experiência à transmissão. Na EFP, quanto mais dramá
tico, mais esotérico se tornou o passe: eliminou-se dele a finalidade de saber.
Tudo isso demonstra que, na EFP, passe e materna foram considerados
antinômicos. Ora, faz-se o passe para a transmissão. O que se destaca no pró
prio procedimento que ele implica: o do testemunho indireto.
Vocês sabem que o passante não se apresenta pessoalmente diante de
seus juízes (digo "juízes': já que há um "júrf'). Lacan previu que outros psi
canalisantes, chamados passadores , intervêm, recolhem o testemunho, para
entregá-lo em seu devido lugar. Trata-se de um paradoxo. Comumente, o
testemunho pessoal é considerado superior ao testemunho indireto. Neste,
há mediação, interseção forçada. A função da transmissão é de algum modo
demonstrável, evidenciada pelo próprio procedimento.
Transmissão de quê? Isso também se esclarece pelo procedimento: trans
missão do que não se perde ao ser repetido por outros para outros , mas, ao
contrário, constitui-se dessa própria divulgação.
Estrutura de Witz, lembra Lacan, que se presta tão bem a confundir-se
com a do materna, que dele se distingue e de que se imaginou ser um passe
por escrito. Erro simétrico e inverso do precedente. Witz não é materna: ao
mesmo tempo que se repete e circula, admite variantes, amplificações e mal-
-entendidos, a fala - não a escrita - o faz existir e o sujeito emerge nele, ao
passo que, no caso do materna , ele se ausenta. O materna, sem dúvida, tem
seu lugar, que se segue ao Witz do passe, na elaboração requerida ou, antes,
esperada do Analista da Escola:
Admito, considerando o que foi dito, que a estrutura do passe é homólo
ga à de uma formação do inconsciente. Lacan o disse, o que não deixa de ser
um paradoxo, visto que o passe está fundamentalmente no plano do objeto.
Para ser mais preciso: o dispositivo do passe recupera, no plano do signifi
cante, o momento do passe, cujo essencial se desenrola no plano do objeto.
Dito isso, explica-se a dicotomia, sempre mantida opaca, entre passante e
passador - um transpõe o passe; o outro "é o passe". Com efeito, o primeiro
narra seu tratamento, extrai dele a história (menos epos do que boa história) ,
logo reportada ao júri, que não se limita a representar o Outro; o segundo,
mensageiro da boa palavra, não se encontra suficientemente em uma relação
de disjunção com o objeto, para não ser o passe.
O júri entra no dispositivo como o Outro - barrado ou não, eis a alterna
tiva. Como Lacan o �oncebe, não é duvidoso, uma vez que obriga esse Outro
a se manifestar por seu trabalho, pelo qual se demonstrará não saber tudo.
Condição para que ele possa dar a resposta que se impõe a seu lugar, ou seja,
o significante que não existe.
INTROD UÇÃO
No ano passado, propus ao Ateliê Milanês da Escola Europeia estudar as saídas de análise
nos cásos de Freud e, em setembro de 1992, voltei a Milão para ouvir e discutir os traba
lhos apresentados. Minhas intervenções foram reunidas e redigidas por Rosa Elena M�
zetti, a fim de serem publicadas, com os textos italianos, na revista Agalma; Anne Dunand
as traduziu para o francês; o que se apresenta aqui foi publicado em Lettre Mensuelle.
N. da o. As versões francesas a que o autor se refere foram publicadas em Lettre Mensuelle,
n. 118 (Paris, abril de 1993) e Lettre Mensuelle, n. 119 (Paris, maio de 1993), e traduzidas para
o português em Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internadonal de Psicanálise, n. 7-8,
São Paulo, 1993. Esta tradução foi feita a partir das versões francesas.
31
É surpreendente que a perspectiva de se refletir sobre a saída propria
mente dita ainda não tenha sido introduzida, como se a diversidade e a varie
dade das saídas de análise obliterassem tal conceito. Trata-se de um verdadeiro
trabalho de pesquisa, de que ninguém conhece ainda os resultados.
O segundo conceito, o de conjunturas de desencadeamento, é utilizado
por Lacan a propósito da psicose, em especial no texto "De uma questão pre
liminar a todo tratamento possível da psicose" (Lacan, 1957-8).
Nesse texto, ele propõe o seguinte esquema do desencadeamento da psi
cose: o sujeito psicótico não desencadeado se encontra implicado em uma
situação dual, de simetria, em que se imiscui um terceiro que evidencia a
falha do Nome-do-Pai, ou antes, que ativa os efeitos de sua foraclusão. Lacan
vê, nessa conjuntura, o fator desencadeante da psicose. Trata-se de um apelo
feito em vão ao simbólico,· a partir de uma relação imaginária simétrica, em
que se intromete um terceiro elemento não simetrizável, que é objetivamente
simbólico e, no entanto, subjetivamente não simbolizável. O que chama a
atenção é a extrema simplicidade desse esquema e o esforço que testemunha
para que se determine uma fórmula única.
No que concerne à saída de análise, minha ideia, que ponho à prova, é
definir uma ou várias conjunturas de saída.
Cada um dos casos de Freud é absolutamente particular. Tentaremos en
contrar uma fórmula interessante em cada um deles e compará-las, para ver
· se encontramos, ou não, uma fórmula única.
Se pensarmos, como propõe Maria Teresa Maiocchi, que a saída de
análise de Hans se fez por meio da construção de uma fantasia, poderemos
comparar as saídas pela fantasia e as saídas pela construção de um sintoma.
A propósito da psicose, diz-se, de born,grado, que a saída da relação é facili
tada pela construção de um sintoma elaborado graças à análise. Muitos tra
balhos foram escritos na Escola a respeito desse ponto. Vale a pena estudá-los.
Tomemos o caso do Homem dos lobos. A análise dele é marcada pela von
tade de Freud de fazê-lo sair. O Homem dos lobos, por sua vez, não revela
vontade alguma de sair. Acontece com frequência de que seja o analista, e não
o paciente, quem quer sair da análise. Freud é frequentemente motivado por
um desejo muito preciso de saída. O Homem dos lobos, em compensação, é
bastante incentivado por um desejo de permanecer, a ponto de manter-se
em análise até o fim de seus dias. Os analistas costumam considerá-lo um
verdadeiro monumento.
Em cada um dos casos de Freud, observa-se o que se nomeia de "contra
transferência': ou seja, a particularidade do desejo do analista. Qual é a par
ticularidade do desejo do analista em Freud? Ele é marcado por um desejo
32 A P O STA NO PAS S E
de saber que se caracteriza por poder ser situado no discurso da ciência, o
que incide sobre certo número de coisas. Por meio de seus casos, assiste-se à
emergência progressiva do desejo do analista em Freud. No caso Dora, por
exemplo, o desejo do analista não está completamente esclarecido.
Quero evocar ainda um ponto. O esquema lacaniano do desencadeamento
da psicose pode ser lido sobre o esquema L inicial.
IZl
O sujeito se encontra preso em uma tensão entre dois termos imaginários
e, em determinado ponto, intervém o apelo ao significante que falta do pai sim
bólico. Lacan apresenta alguns exemplos clínicos dessa conjuntura, em que a
relação simbólica, traçada a partir da relação imaginária, não chega a se concluir.
A S A Í DA D E D O R A
A
a
S O B R E O DE S E N C AD E A M E NTO DA S A Í DA DE ANÁLISE 35
tender: "Não compreendi nada!': Seria manter um ponto de interrogação so
bre a causa do desejo. Eis o que não é preciso sufocar com cadeias associativas
ao infinito.
A
?
A S A Í DA D O P E Q UENO HANS
A P O STA N O PAS SE
Hans mantinha com sua mãe foi a intrusão de um elemento "real" no jogo, o
gozo do órgão. O falo, que era, até então, um elemento imaginário que circu
lava entre a mãe e a criança, como em um jogo de esconde-esconde, torna-se
real e não se presta mais a isso.
É a questão "O que fazer?': de Lênin: "O que fazer com o gozo fálico?"
A resposta de Lênin é o Partido Comunista. A do pequeno Hans, um apelo
ao pai para ceder seu lugar ao gozo fálico. Esse apelo atravessa toda a obser
vação. Sem encontrar em seu pai um suporte adequado para simbolizar o
falo, Hans se esforça para pôr em cena uma extração de gozo na dimensão
do imaginário. Ele não deixa de provocar seu pai, para que ele represente o
papel que lhe cabe. "Por que você se irrita?': pergunta-lhe. "Mas isso não é
verdade': responde-lhe o pai, para se livrar da situação. "Sim, é verdade. Você
está muito zangado. Isso é necessário': insiste Hans. O que ele quer obter de
seu pai? Que ele alivie o excesso de gozo, que ele legalize o falo, situando-o
em seu lugar simbólico. É interessante destacar que o questionamento ao pai
se origina da dificuldade concernente ao gozo. É o que se chama de castração,
conjunção operada entre o gozo e o pai. No gozo, há sempre um fator excessi
vo que requer uma subtração. É aí que se opera o laço entre o lugar do Outro
e o objeto como mais-de-gozar.
O impasse de Hans é o circuito em que se ligam o papel imaginário dele,
a figura da mãe que lhe responde e o falo que circula entre os dois. A introdu
ção do elemento real de gozo, ou seja, o deslocamento do pênis que produz
algumas sensações novas, suscita um apelo à função paterna. A questão de
Hans se concentra nisso. A resposta vem sob a forma de variações do sintoma
fóbico, que desempenha o papel do pai. O sintoma fóbico é uma elaboração
subjetiva do pai. Aliás, é isso que permitirá a Lacan afirmar que o pai não é
nada mais do que um sintoma. Hans encena uma castração dramática. O sin
toma assume o lugar do Outro, lá onde se espera a manifestação, no mundo,
de uma potência terrível. A fobia ordena o mundo, estabelece seus limites, diz
que daquele ponto não se irá muito longe.
Aproximemos, agora, Dora e Hans. Dora apresenta sua questão por inter
médio do sr. K. Ela se pergunta: "O que é uma mulher?" "O que um homem
encontra em uma mulher?" Para explicitar tal questionamento, ela se volta' ·
para o sr. K. e se identifica com ele. É o princípio da identificação viril da his
térica, que permitirá a Lacan dizer: '� histérica se faz de homem': ou seja, faz
semblante, age como o homem. Creio que é interessante perguntar se Hans
também não elaboraria a sua questão pelo viés de um determinado x.
Na verdade, Lacan não acredita na cura de Hans. Quando se entende
a cura como desaparecimento do sintoma, tudo bem. Nós, porém, distin-
S OB R E O D E S E N C A D E AMENTO DA S A Í DA D E ANÁLISE 37
guimos o sintoma da problemática que se exprime por meio dele e temos ·
razões para duvidar de que tal questão encontra, no caso de Hans, a melhor
resolução possível.
Em sua exposição, Riccardo Scognamiglio retomou uma citação impor
tante e esclareceu o questionamento que proponho: "Por meio de quem Hans
apresenta sua questão sobre o pai?" É a passagem em que o pai pergunta a
Hans: "Você pensava, então, ser a mamãe?': e Hans responde: "Eu era a ma
mãe de verdade': Hans informa, assim, quem é o objeto de sua identificação:
a mãe.
Suponhamos que é por intermédio da mãe que Hans expõe sua questão
sobre o pai. O que Freud diz? Ele conta que, no final, há uma fantasia formi
dável e que tudo acaba da melhor forma. No dia 30 de abril, Hans declara:
"Antes, eu era a mamãe; agora, sou o papai': Para verificar se Hans de fato está
no caminho certo, o pai lhe pergunta: "Quem é a mãe das duas crianças?': e
Hans responde: "É a mamãe e você é meu avô': O pai e Freud consideram en
tão que tudo está bem, que acaba bem. Cito: "Tudo acabou bem. O pequeno
Édipo encontrou uma solução mais feliz do que aquela que o destino havia
prescrito: em vez de matar o pai, ele o promove a avô': e assim por diante. Isso
indica para Freud a cura do pequeno Hans.
Ora, o que precede essa frase do pequeno Hans? Ele insiste em querer ser
a mamãe de seus filhos. Seu pai intervém, determinando: "Não, isso não é
possível". Todos os diálogos registrados de 22 a 30 de abril se dão entre Hans,
que diz: "Sou a mamãe", e o papai, que lhe explica que isso não é possível.
Hans tenta convencê-lo de todos os jeitos possíveis: "Mas os meninos podem
ser mamães"; "Eu sei que os meninos não podem ser mães, mas acredito nisso
mesmo assim". Em vez de decifrar esses enunciados, o pai inventa fantasias
para ele. Por exemplo: "Se papai morresse, seria sempre papai': e outras do
mesmo tipo. Em 26 de abril, Hans afirma: "Sou a mãe delas de verdade, eu
ponho as crianças, os meninos e as meninas, para dormir comigo': O pai lhe
diz: "Você sabe muito bem que um menino não pode ter filhos': e Hans lhe
responde: "Sim, sim. Mesmo assim, acredito nisso': Apenas em 30 de abril,
ele dirá: "Antes, eu era a mamãe; agora, sou o papai". Considerando-se essa
frase, todo mundo fica contente - tudo está bem, tudo acaba bem. Happy end.
O caso, porém, não termina tão bem assim.
O que quer dizer o fato de Hans continuar, por dias, a introduzir a ques
tão do pai via identificação com a mãe? Isso quer dizer que, no que diz respei
to à questão do pai, a resposta que ele dá para si mesmo é a reprodução. O pai
é aquele que faz crianças. Isso não é desonroso. Sabemos o que ele se tornará,
um diretor de teatro, que põe em cena as crianças de sua imaginação. Será
38 A P O STA NO P A S S E
um artista, «sublimará': povoando o mundo com suas crianças imaginárias.
Quando diz ao pai: «Antes, eu era mamãe; agora, sou o papai': ele responde
ao desejo do Outro.
O que Hans de fato encontra no Outro é tão somente o falo imaginário.
Hans se sustenta não apenas da identificação com a mãe, mas também
da função da irmã. É a identificação a um personagem feminino que lhe
permite superar a angústia de castração. De algum modo, ele resolve a castra
ção como uma menina o faria. Aliás, a história do mecânico incide sobre o
traseiro e não sobre o órgão masculino. Hans encontra sua solução mediante
a procriação, como uma espécie de solução feminina imaginária para uma
espécie de inveja do pênis. E a ideia de Lacan é a de que toda a vida de Hans
se manterá determinada por sua identificação feminina.
Para Hans, o objeto a continua a ser o falo imaginário. Sua saída de aná
lise o direciona para uma produção que, de alguma maneira, contorna o sim
.bólico do falo.
A SA Í DA D E A N Á L I S E N O S CA S O S DA J O V E M H O M O S S E X UA L ,
D O H O M E M D O S RAT O S E D O H O M E M D O S L O B O S
S O B R E O D E S,E N C A D EA M E N T O DA S A Í D A DE ANÁ L I S E 39
Nos dois casos, o que importa a Freud é explicitar o motivo dos fenôme
nos psíquicos. No caso do Homem dos ratos, trata-se de uma obsessão, um
mal-estar bizarro, estranho, que não se sabe de onde vem. Freud se empenha
em provar de onde ele vem, como se constrói, de que modo se instala, e pensa
que basta uma explicação para que o fenômeno desapareça. Ele acredita na
cura pelo saber, na cura epistêmica. O elemento transferencial propriamente
dito, ou seja, distinto da repetição, lhe é pouco evidente e aparecerá, mais
tarde, sob a forma da reação terapêutica negativa, que é a recusa da cura en
tendida como cura epistêmica.
O caso da Jovem homossexual já foi bastante estruturado por Lacan.
Com base nessa estruturação, podemos abordar outros casos de Freud. Tanto
no caso do Homem dos ratos quanto no do Homem dos lobos, há uma pas
sagem essencial. Para o Homem dos lobos, trata-se de uma passagem que
se lê no primeiro capítulo, em que Freud expõe seu método para conduir o
tratamento: o método da antecipação do fim. A razão que fundamenta esse
método atípico é descrita da seguinte maneira: ((O paciente de que me ocupo
permaneceu muito tempo entrincheirado, inatacável, detrás de uma postura
de dócil indiferença. Ele escutava, entendia, e não permitia que nada se apro
ximasse" (Freud, 1918: 18). Eis aqui uma descrição muito precisa da relação do
sujeito com a fala, com sua própria fala e com a de Freud. O método de Freud
consiste, pois, em jogar com o tempo e, por esse viés, realizar um forçamento.
É o que predomina no caso. Pode-se, aliás, perguntar se Freud não acelerava
sempre a saída de análise, bem como questionar se estamos confrontados
com uma exceção ou se não há em Freud certo autómaton, que consistiria em
forçar o momento de concluir.
A passagem essencial no caso do Homem dos ratos, para o que nos inte
ressa nesta discussão, encontra-se na parte E. Trata-se da exposição que Freud
faz de seu método. As obsessões, no caso, parecem absurdas; é preciso, pois,
lhes dar um sentido, procurar traduzi-las, mesmo que elas se afigurem inso
lúveis. Ele explica precisamente como procede:
40 A P O S TA NO PAS S E
Eis a ideia de uma cura pelo saber. Assim, quando considera ter traduzido
metodicamente todas as obsessões do paciente� Freud lhe diz adeus. É como
pegar um livro, traduzi-lo e, ao final, tudo se fez. O efeito terapêutico é indu
bitável: o Homem dos ratos chega em estado de pânico; o pânico cede; alguns
aspectos de sua vida encontram uma solução.
Barbui estava certo ao introduzir a expressão "momento de concluir" e ao
falar de "precipitação do tempo para compreender': Com efeito, o método de
Freud no caso do Homem dos lobos põe em evidência o tempo lógico. É uma
aposta no tempo lógico. Toda a observação do Homem dos lobos valoriza o fa
tor temporal e é assim que Freud desenvolve a função do só-depois, de que La
can se servirá. Ao constatar os remanejamentos da significação por escansões
sucessivas, Freud aplica esse método ao tratamento propriamente dito e espera
que, fixando o fim por antecipação, fará surgir uma nova significação. O que
Freud tentou suprir, ao determinar, antecipadamente, o ponto de conclusão?
A falta de um ponto de estofo. Efetivamente, há no tratamento uma espécie
de movimento ao infinito - Freud emprega, a propósito do presidente Schre
ber, o termo assintótico, que inspirará o esquema hiperbólico de Lacan. Diante
do autómaton infinito do caso, que vai, sem dúvida, além da neurose, Freud
procura produzir artificialmente um ponto de estofo, o que fará com que, em
seguida a isso, o Homem dos lobos seja tomado pelo delírio de se submeter a
uma cirurgia no nariz, ou seja, de realizar uma castração no real. Cada caso
de Freud demonstra a importância, o peso e a densidade do fator temporal na
psicanálise. Lacan enfatiza que a sessão psicanalítica se realiza essencialmente
no manejo desse fator. Ao lado do fator epistêmico, há o fator temporal.
O sintoma do Homem dos ratos, ao menos sob o impacto intenso do iní
cio, adquire alguma solução, mas devemos disting1:1ir, também nesse caso, o
sintoma e a questão expressa por ele. Lacan pensava que, no caso do Homem
dos ratos, a questão não tinha sido resolvida de forma eficaz e, assim, levou
a sério a nota final sobre a morte do paciente durante a guerra. No fundo,
no curso de sua análise, formalizou-se o casamento do sujeito com a morte.
Lacan considera o encontro dele, na escada, com Anna Freud, que tinha es
trume na área dos olhos, o emblema do caso. Dora e o Homem dos ratos: de
um lado, o sorriso da Gioconda; do outro, a moça com olhos de betume.
Por que Lacan valoriza esse encontro na escada? Porque, para ele, o pro
blema fundamental do obsessivo é: "Estou morto ou vivo?" Lacan, assim, dá a
entender que o Homem dos ratos não escapou da ascendência da morte; em
vez disso, na análise, fez um pacto com ela.
Chegamos a formular, nessa perspectiva, que interrupções se produzem
inesperadamente, quando o analista passa da posição simbólica à posição
" H Á S E M P RE M AN I F E S TA Ç Õ E S RE S I D UA I S "
Tínhamos combinado que Marco Focchi comentaria a frase de Freud "há sem
pre manifestações residuais': que se encontra no terceiro capítulo de ''Análise
finita e infinita" (Freud, 1937). Preferindo decifrá-la na particularidade do
texto, ele não cedeu à vontade de generalizá-la. Eu me permito traduzi-la em
nosso jargão: "Há sempre o objeto a''.
Jamais há sistema significante sem o objeto a. Isso é uma espécie de axio
ma freudiano. Isso quer dizer que, na psicanálise ou na ordem do sujeito,
nada não é tudo. Trata-se de uma maneira de se aproximar do significante do
Outro barrado, S(,A'.) .
De outro ponto de vista, isso se inscreve no antiprogressismo característico
do final do século XIX, que contrasta com o progressismo do século xvm e a
confiança na capacidade da humanidade de eliminar o Antigo Regime. Con�ta
ta-se, no século XIX, uma derrocada da ideologia progressista, de que Nietzsche
é uma das expressões. A frase de Freud também expressa isso. Ela afirma que o
homem novo é impossível. A Revolução de Outubro dirá o contrário.
Estamos no final do século XX e a ponto de confirmar a exatidão da frase
de Freud sobre as manifestações residuais. É surpreendente constatar certo
"retorno a 1914': bem como à bomba atômica. Seria preciso completar a frase
de Freud da seguinte maneira: há sempre manifestações residuais e ainda
bem que elas não passam disso.
Generalizando a frase de Freud, chega-se a dizer: "O sujeito é sempre
dividido".
42 A P O STA NO PAS S E
,
Todo o terceiro capítulo de ''Análise finita e infinita, é consagrado ao
enigmático fator quantitativo e ao que Freud chama de potência irresistível
desse fator. Quando declara ter negligenciado o fator econômico, Freud se re
fere ao que nós constatamos nos relatos de caso: uma elucidação significante
não é suficiente para operar; resta alguma resistência, não a do paciente, mas
a da própria coisa, uma resistência do isso, da libido, de sua viscosidade, da fi
xação. O encantamento provocado pela leitura dos casos de Freud está ligado
ao mito de uma libido fluida, que estaria inteiramente na decifração, como se
pudéssemos escrever no quadro a operação e seu resultado, e seguida mostrá-
-lo ao paciente, que, nesse momento, se levantaria, como Lázaro, e iria em
bora, liberto do sintoma. Quando Freud diz: "Esqueci o fator econômico': ele
extrai essa conclusão de suas dificuldades com seus pacientes. Ele revela isso
,
com base no modo pessimista de que ''Análise finita e infinita , é testemunha.
O que faz Lacan? Ele afirma: "Já que há sempre manifestações residuais,
já que há sempre um resto, estudemos então o que podemos fazer com esse
· resto. Chamo esse resto de objeto a". Em termos freudianos, trata-se de um
resto de libido presente, paradoxalmente, em um conjunto significante de
que é desarmônico.
A grande ideia de Lacan é a de que, para o analista, vale mais se identificar
com o objeto a causa do desejo do que com o a da relação imaginária. A ma
nifestação residual da análise é o analista. Sair de análise implica tentar deixar
para trás essa manifestação residual. O analista, no entanto, é uma manifes
tação residual muito resistente. Talvez não se leve a pátria na sola dos sapatos
(Danton), mas corre-se grande risco de levar o analista Muitas vezes, alguém
se torna professor para não deixar a escola, do mesmo modo que tornar-se
analista significa permanecer na análise. Pode-se presumir que os melhores são
aqueles que saem completamente da psicanálise. Lacan dizia isso.
Tudo o que Freud analisou do lapso e do ato falho como a revelação de
uma verdade se traduz, do ponto de vista econômico, na presença de um
mais-de-gozar.
A frase de Freud "Quem é habitualmente muito amável se deixa levar a
um ato de hostilidade..." me evoca um episódio, já contado em meu curso, e
que, para mim, permaneceu inesquecível. Tem a ver com meu filho, quando
tinha três anos de idade e era apaixonado pelas galinhas do galinheiro de' ·
Guitrancourt. Ele se levantava muito cedo para levar comida para elas. Vesti
do dos pés à cabeça como devia, com botas, um balde muito pesado para um
menino tão pequeno carregar, mexendo e remexendo os grãos, ele entrava ar
rojadamente no galinheiro e os distribuía a todas as galinhas que se dirigiam
até ele. Era um modelo de generosidade, de ablatividade, de caridade. Eu o
S O B R E O D E S E N CA D E A M E NT O DA S A Í DA DE ANÁLI S E
43
observo. E eis que, em determinado momento, inesperadamente, ele dá um
chute nas galinhas, que se dispersam. Foi como um raio em um céu sereno.
A frase de Freud sobre as manifestações residuais implica uma libido
inerte e não mais móvel. Muitas passagens de Freud inspiraram a Lacan o seu
objeto a, mas o terceiro capítulo de ''Análise finita e infinita" é, certamente,
uma das fontes fundamentais. Ao passo que o significante é metáfora e meto
nímia, mobilidade, a manifestação residual é fixação. H� sujeitos que, mesmo
tendo acesso ao outro sexo pelo coito, jamais serão persuadidos a obter tanto
gozo disso quanto da masturbação. Eis um exemplo de manifestação residual.
44 A P O STA NO PAS S E
C L A S S I C I S MO D O PAS S E
A PERG U N TA DE MADR I 1
A ÉCOLE EURO P ÉENNE DE PSYC HANALYSE tira sua energia da rapidez das
trocas favorecidas pelo fax. É um "fato específico': um fato novo que introduz
a presença da ciência na vida cotidiana, com efeitos devastadores.
N. da o. Convidado a participar do colóquio Uno por Uno, organizado pelo Campo freu
diano em Madri, no dia 17 de novembro de 1990, Jacques-Alain Miller deu à sua alocução
a forma de uma pergunta. O texto dessa alocução, após ser publicado, em espanhol, em ' ·
Uno por Uno, n. 17 (Barcelona, 1991, p. 15�), foi traduzido para o francês e publicado em
Recuei!, n. 9 (Angers, 1991, p. 109-18) . Posteriormente, foi publicado, entre outros textos
resultantes desse evento, que refletem um debate sobre a Escola e o passe, desenvolvido de
1990 a 1992, na rubrica "A entrada pelo passe" em Orientação Lacaniana: Revista Brasileira
Internacional de Psicanálise, n. 13 (São Paulo, 1995, ago., p. 9-13). Esta tradução foi feita a
partir da versão reeditada por Jeanne Joucla, Nathalie Georges-Lambrichs e Pascale Fari,
. e publicada em La Cause freudienne, n. 74 (Paris, 2010, p. 125-31).
47
Esse fato novo introduz o domínio da tecnologia no dia a dia, impli
cando repercussões irrefutáveis: certamente, Heidegger jamais teria tido um
fax. Poderíamos, talvez, falar do deus Fax, um deus desconhecido da mito
logia grega e inventar uma genealogia para ele. Por exemplo, filho de Íris,
a mensageira, e de Hermes, visto que, para Lacan, os deuses são da ordem
do real. Com efeito, como produto do discurso da ciência, o fax é algo real.
Vemos isso na facilidade com que ele se faz obedecer - pode-se mesmo dizer
que toma seu usuário um escravo -, assim como pela velocidade com que
modifica a realidade do mundo, a estética kantiana e a doutrina clássica do
"espaço-tempo". O fax modifica também a noção de proximidade e a relação
de vizinhança, aproximando-nos, apesar das distâncias geográficas. Enfim,
ele altera as relações temporais pela aceleração que imprime a nossos atos -
ele nos faz correr. Assim, marca a vida e a realidade de cada um.
Em O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, Lacan introduziu as pe
quenas letras dos discursos: em vez de estratosfera, ele sugere aletosfera, ou
seja, a esfera do mundo transformada pela aletheia, os efeitos de verdade.
Vivemos menos no cosmos, diz ele, do que em um mundo estruturado por
esses efeitos. A exemplo de Santo Agostinho, para quem "em Deus vivemos,
bebemos e comemos': podemos dizer que é na linguagem e nos efeitos de
verdade que fazemos tudo isso. Ora, por se constituir um efeito do discurso
da ciência, o fax cristaliza ainda a transformação e o deslocamento do nosso
mundo: poder-se-ia falar, a propósito, do mathemundo - mathema e mundo -
engendrado por ele. O efeito fax difere do efeito telefone: não transmite a fala,
mas o escrito. Poderia ter-se chamado telegrama ou telégrafo, mas não havia
outro nome a não ser "telecópia': que lhe foi atribuído. Aliás, não pensei mais
a respeito, porque o deus Fax não nos dá tempo para pensar nele: ele ordena
e deve-se segui-lo.
O telefone favorece uma ilusão da presença do outro, uma falsa presença,
não uma presença verdadeira, embora, em análise - isto é um aspecto técnico-,
creio que não seja preciso dizer a um analisante coisas especiais por telefone;
pode-se dizer "sim': "não': "venha': quase nada mais. Além disso, dado que se
trata de fala, não resta qualquer objeto concreto da operação, enquanto o fax
é como uma carta - lembremos, a esse respeito, o estatuto específico atribuído
por Lacan à carta de amor. A carta tem, em relação à chamada telefônica, a
superioridade de reconhecer a distância. Na literatura, as correspondências
amorosas sempre incorporam a distância existente entre dois que têm neces
sidade da linguagem e da carta como vínculo. É a assunção da distância que
torna a carta mais autêntica do que o telefone. Com o fax, um objeto material
fica entre as mãos, algo mesmo que se pode mostrar, que tem objetividade;
A P O S TA NO PAS S E
é como um combinado que, por telefone, se mantém incerto. O fax nos co
munica o significante e produz um objeto, semelhante, nesse ponto, à carta,
que tem duas vertentes: a do significante e a do objeto.
A EEP, portanto, desenvolveu-se rapidamente no novo mundo do fax, em
que as pessoas se comunicam sem a fala viva. O fax produz um estranho sen
timento de falar pela escrita, como se ele, mutatis mutandis, «realizasse um
discurso sem palavras" - o ideal de Lacan -, mas trata-se de algo desprovido
de fala viva. No mundo fax, nada resta esquecido, da mesma maneira que se
fala de uma "memória" do computador.
O U N I VE R S A L E O E X I S T E N C I A L
"Que se diga fica esquecido por trás do que se diz. . .': assim começa o escrito de
Lacan intitulado "O aturdido" (1972). É preciso refletir sobre o fato de que a
aparência do universal se revela, na realidade, em um modal existencial, cuja
prova repousa no subjuntivo. Isso se esclarece se pensamos no que seria essa
proposição sem subjuntivo. Poder-se-ia dizer, então, que, como enunciado,
ela esconde ou faz esquecer sua declaração ou, ainda, que todos os enuncia
dos fazem esquecer sua declaração, o que seria, obviamente, uma proposição
universal sem subjuntivo. Dizer "que se diga" faz ver em que sentido o exis
tencial se esconde sob todo universal. Trata-se de uma tese geral de Lacan,
que se lê em seu próprio exemplo: "Que se diga fica esquecido...". O que se re
fere àquilo que se diz. O emprego do subjuntivo significa que se pode, ou não,
dizê-lo, que não há obrigação alguma, que não é necessário, mas contingente.
Por exemplo, na EEP, para nos comunicarmos, preferimos amplamente o fax,
que nos parece mais claro, pois não precisa de escuta, a escuta que caracteriza
a prática da psicanálise, ou seja, a Escola "em si': Para evitar os "Eu não disse
isso" ou "Não foi isso que eu quis dizer': é melhor se comunicar por fax.
Consequentemente, poder-se-ia decidir que a EEP somente se comuni
cará por fax, de forma que ninguém decidirá nada por outra pessoa. Consi
derando-se o "que se diga fica esquecido ...': poderíamos , portanto, graças ao
fax, nada esquecer... Todavia a operação estaria sempre sujeita à contingência,
dimensão em que se coloca o problema específico relativo a toda proposição
universal: saber se há ou, então, se não há. Dito de outro modo, ainda é pre
ciso que haja o fax. Se é possível, com efeito, declarar que "o unicórnio está
de mau humor" ou mesmo que ''todos os unicórnios têm pelagem ruim': é
muito difícil prová-lo, considerando-se a natureza evanescente do unicórnio.
Desde a Idade Média, é um problema saber o que acontece com uma propo-
A PERGUNTA DE M A D R I 49
sição universal , quando ela não existe. Tratava-se da questão da articulação
de um universal com o existencial.
Por que é modal, e não assertivo? A asserção se produz porque o subjun
tivo é modal. Na asserção, trata-se de saber se há ou se não há: é um problema
de exatidão e de verificação, para dizer-se sim ou não. Por exemplo, quando é
o momento de dizer sim ou não - a célebre frase da primeira página de Uno
por Uno -, isso quer dizer que todas as outras modalidades diferentes do sim
e do não desaparecem. É complicado, porque, no subjuntivo, experimenta-se
o desejo ou a inveja. Nesse caso, não é mais o tempo do desejo, mas o de
sua realização, o momento horrível do cumprimento dos desejos: após o
«o que você gostaria?" ou "Você não gostaria?': com sua carga de desejo no
subjuntivo, vem o momento do "o que você quer" ou do "o que você não
quer': o momento de dizer sim ou não.
Compreende-se, então, a fragilidade de todo universal, sempre ameaçado
por um contraexemplo: "há um que diz não': É sobre isso que Karl Popper ba
seou toda a sua epistemologia; o discurso da ciência formula proposições uni
versais invariavelmente intimidadas pela ocorrência potencial de um contrae
xemplo, de sorte que vivemos geralmente na expectativa desse contraexemplo.
A única coisa que permite verificar uma proposição universal é, após
se ter examinado um a um, poder dizer: "não há um que diz não': O "para
todo x" [Vx] pressupõe o estabelecimento de que não há um x que não res
ponde à propriedade. Além do fato de que o universal depende do existencial,
quando se trata de um conjunto vazio - vazio de unicórnio, por exemplo -, é
impossível apresentar um contraexemplo à proposição "todos os unicórnios
estão de mau humor". Se vocês quiserem demonstrar o contrário, deverão
apresentar ao menos um unicórnio de bom humor.
AS D UA S L Ó G I C A S D O " T O D O S "
50 A P O S TA NO P A S S E
nome e dizer-lhe: "Por favor, saia, ,; diz-se "todos", de modo que se simplifica
- bastante a vida, quandonos dirigimos a todos. O um por um se impõe, quan
do o todo não funciona, e o todo parece não funcionar, quando há o infinito,
quando não chegamos a terminar algo, quando há sempre mais e mais. Vocês
sabem, por exemplo, que Cantor conse&uiu falar de todos os números intei
ros e inventar um significante para designar todos eles, a saber, o· todos do
todo dos números inteiros; porém, uma vez completada essa façanha, foi-lhe
forçoso inventar sempre mais significantes, porque a operação se reproduzia
de uma maneira infernal.
A primeira lógica é, portanto, a do todo e do mais-um ou do menos-um.
Há, porém, outra: em vez de fechàr o todo, deixa-se um ponto negativo fora
dele, um ponto diferente; então, o todo não se constitui e se formula o "não
todos': "não todos" que respondem ao predicado segundo o qual não pode
mos dizer «todos': Há, pois, duas maneiras de não poder dizer "todos': Por
exemplo: ''Todas as ovelhas são brancas': Se, em dado momento, vemos uma
ovelha negra, dizemos: "Não todas as ovelhas são brancas". Pegamos a ove
lha negra e a colocamos .de fora, porque não queremos mais vê-la. Podemos,
então, dizer: "Antes, não todas as ovelhas eram brancas, mas agora todas as
ovelhas sã0 brancas': Há, no entanto, outra maneira de entender "não todas
são brancas". É um fenômeno curioso: elas são todas brancas, exceto a que é
negra. Pegamos a ovelha negra e a retiramos. Ora, eis que, de volta, entre as
ovelhas brancas, há outra negra; fazemo-la sair; e assim sucessivamente.
A E S C O L A PA R A D OXAL O U N Ã O HÁ S E R D O A NA L I S TA
A PER G U N TA DE M A D R I 51
Trata-se de verificar se há a essência não do analista, e sim do predicado.
Não temos uma máquina precisa de critérios para verificar se alguém respon
de a algum deles. E, ao mesmo tempo, há um tipo de marca - eventualmente,
a do passe - que parece poder indicar que há um analista. De modo que o um
por um funciona no modo do não todo segregativo ou, em outras palavras, no
do não todo que não permite reconstituir um todo pela exclusão de um ou de
alguns elementos.
Afirmamos, pois, que o passe e o cartel são dois pilares da Escola: o cartel
responde à lógica do todo, uma vez que constitui um pequeno grupo sob a
condição de haver um mais-um; o passe responde à lógica do não todo. Aliás,
isso também se articula com o que, em outra perspectiva, eu disse do cartel,
ao caracterizá-lo como destotalizador.
O um por um é necessário, quando o todo não funciona. E o todo parece
não funcionar quando há o infinito.
A E N T R A DA NA E S C O L A
Volto ao que m e parece necessário discutir como pergunta e não como deci
são: a entrada na Escola.
Lacan não determina, propriamente falando, um critério para a entra
da na Escola. Vamos constituí-la fechada e estabelecer o Grupo de Estudos
de Madri ( GEM) como seu limiar. O GEM tem uma porta, guardada por um
Conselho, que trabalha, atualmente, para que ela seja transposta. Qual é, en
tão, a pergunta que decidirá a entrada na Escola? Lacan, certa vez, propôs
uma fórmula: a do ''trabalhador decidido': Essa expressão, que ele utilizou
apenas uma vez, nós a repetimos tanto, que o dito trabalhador decidido aca
bou se tornando um personagem burlesco: "O que faz você na vida?" "Sou
um trabalhador decidido!': Não sei se o trabalhador decidido se apresenta
dando acesso a seu foro íntimo ou se ele promete maravilhas para o futuro...
Em todo caso, a pessoa entra, a máquina funciona e sai dela sim ou não. Pode-
-se dizê-lo assim, já que é preciso ser reconhecido como trabalhador decidido
para entrar no GEM. Alguém me perguntou se seria necessário demonstrar
duas vezes que se é um trabalhador decidido: na entrada e, depois, compro
vá-lo por via de consequência... É um problema sério, não? Sempre se pode,
portanto, invocar esse critério previsto por Lacan em 1964.
Contudo, em 1974, ele apresentou aos italianos outro critério. Propôs
-lhes que, para entrar na Escola, se demonstrasse ter sido analisado. Tal é a
questão que Lacan lhes fez. A proposição foi, ao que parece, tão impositiva,
52 A P O STA NO PAS S E
tão amedrontadora, que ninguém se apresentou e todos fugiram das reuniões,
cada um correndo para sua catástrofe pessoal ...
É um fato.
Em Granada, evidenciei esses critérios para entrada propostos por Lacan:
0 de 1964 e o de 1974. O que fazemos com isso? Pois as pessoas dizem: "Miller
passa muito tempo às voltas com questões institucionais e rapidamente nos
voltamos para as questões analíticas': Estamos nesse ponto.
Em dois momentos diferentes, Lacan indica duas maneiras de entrar na
Escola: a primeira consiste em demonstrar que se é um trabalhador decidido;
a segunda, em demonstrar que se é analisado. Agora que entramos nos anos
1990, qual desses critérios adotar? Tive um lampejo a respeito disso em Gra -
nada, há 15 dias.
Não creio que tenha sido um acaso Lacan ter proposto dois tipos de en
trada. Isso traduz plenamente os dois tipos de seleção do analista que ele
previra: a seleção como Analista Membro de Escola (AME) - ou seja, a do
analista que trabalha bem como analista -, que é uma seleção pelo trabalho,
e a seleção pela análise, que resulta no Analista de Escola (AE ) . A entrada na
Escola advém, igualmente, dessa problemática. A homologia entre os dois
modos de entrada na Escola e as duas formas de seleção do analista no seio
da sua École freudienne de Paris me parece extraordinária:
Eis, pois, minha pergunta: não seria um alívio prever, hoje, dois modos
de entrada na Escola, em vez de apenas um? Não estou falando dos grupos
de estudos. Prever dois modos de entrada na Escola, ou seja, dar a cada um
a liberdade de saber se demanda sua entrada com base em seu trabalho para
a causa analítica ou se quer entrar como analisado, pelo passe, argumentando, ·
que fez ou está fazendo análise.
Não me parece possível manter apenas a seleção de 1974 e dizer a todos:
"Ninguém entra aqui, se não se submeteu ao passe': "Todos" é também uma
proposição universal: "Todo membro da Escola foi analisado!" É tão surpre
endente que não haja alguém no conjunto! Trata-se de um conjunto vazio,
como o dos unicórnios.
A PERGUNTA DE M A D R I 53
Como delegado geral, importa-me não impor procedimentos impossí
veis nessa área, mas deixar a cada um decidir se quer entrar na Escola, argu
mentando com o que faz, ou quer fazer, para a difusão da psicanálise, bem
como com seu trabalho como analista, ou alegando seu trabalho, passado ou
atual, como analisante. De maneira análoga à seleção do analista prevista por
Lacan, trata-se de distinguir um passe na entrada, em que estará em questão
menos o fim de análise do que o seu início, e, para os não analistas, a via
do trabalho feito ou por fazer. Essa é minha pergunta. O que vocês pensam
a esse respeito? Jamais falei disso a alguém. O que vocês pensam sobre dar a
cada um a liberdade de entrar na Escola segundo uma ou outra dessas moda
lidades? É uma verdadeira questão. As contribuições de vocês serão muito
importantes para o futuro da Escola.
Obrigado.
54 A P OSTA NO PAS S E
"LO GO, E U sou 1 s s o "1
Qual é o logo que nos interessa aqui? Parece-me necessário precisá-lo. Qual é
o logo que nos diz respeito agora, o que, para nós, está em questão neste ano?
É o logo da conclusão do tratamento analítico.
Essa palavra, conclusão, não encontrou, até agora, uso corrente nessa
função. Se a levamos a sério, para designar o autêntico fim de análise, seu
verdadeiro termo, para distingui-lo da interrupção, da saída prematura, da
saída, digamos, não necessária, seja ela contingente ou simplesmente pos
sível, então é preciso tomar como seu pivô um logo, já que uma conclusão
comporta, implícito ou explícito, um logo. E queremos, neste ano, fazer essa
palavra existir na psicanálise, no intuito de possibilitar um conteúdo preciso
ao verdadeiro termo da análise.
De que ordem é esse logo da hipotética conclusão do tratamento? Qual é
seu estatuto? Será que vem coroar uma dedução? Ou se trata de uma indução
a que ele põe o ponto final? Eis uma alternativa que se propõe. O que supõe
questionar, igualmente, em que sentido ou em que medida o tratamento ana
lítico é assimilável a um processo lógico e a qual deles. Nada esclarece que
os conceitos de dedução ou de indução bastam para capturar esse eventual
processo lógico, se é que ele existe.
Não pude, neste curso, fazer alusão a Scepticism, Rules and Language (Baker & Hacker,
1984), panfleto antikripke. Consultei com interesse Boghossian (1989). Em francês, destaco
La force de la regle: Wittgenstein et l'invention de la nécéssité (1987). N. da o. Quarta lição, de
12 de janeiro de 1994, do curso "Donc" (1993-4), ministrado no âmbito do Departamento
de Psicanálise de Paris vm. O texto, redigido por Catherine Bonningue, foi publicado na
revista La Causefreudienne, n. 27: La passe, fait ou fiction?, Paris, 1994, p. 9-20.
55
Isso não é nada, ainda que Lacan tenha aberto - e tornado assustador -
o caminho que vai do terapêutico ao lógico. Nada garante que o lógico tenha
prevalência sobre o terapêutico. Há uma tensão entre o terapêutico e o lógico.
Na expressão conclusão do tratamento, as duas dimensões estão justa
postas, mas não se pode afirmar que nela esteja prevista a articulação entre
o terapêutico e o lógico. A palavra "conclusão" pertence à dimensão lógica.
Um tratamento designa um processo terapêutico. Seguimos claudicando na
tentativa de nos virar com isso. E, considerando que a ênfase, ao menos neste
ano, recai sobre o termo conclusão, o termo tratamento se encontra conde
nado, tem vocação para ser dissolvido.
A P O S TA NO PAS S E
O conceito hegeliano de experiência é imediatamente valorizado no iní
cio de Fenomenologia do espírito, essa fenomenologia que inspirou Lacan, de
que ele se serviu e que só descartou, ou relativizou, no final de seus Escritos,
ao passo que está muito presente, para ele, quando se trata de pensar sobre o
curso da análise. Não existe na obra de Lacan, propriamente falando, um ma
terna do curso da análise. Há uma fórmula de seu início, uma fórmula de seu
fim, uma fórmula da estrutura do discurso analítico. Não há - poder-se-ia
pensar que isso faz falta - uma fórmula do próprio curso da análise. Talvez,
por muito tempo, ele tenha encontrado um substituto para ela precisamente
no conceito hegeliano de experiência.
Essa palavra está em evidência bem no início de Fenomenologia do espí
rito. Hegel empregou provisoriamente o título "Ciência da consciência da
experiêncià: em lugar de Fenomenologia do espírito, logo depois do prefácio e
antes da introdução: Wissenschaft der Erfahrung des Bewusstseins. Erfahrung,
e não Erlebnis.
Há um texto importante de Heidegger sobre Hegel, intitulado «Hegel e seu
c onceito de experiência" (Heidegger, 1937) . Experiência quer dizer, de maneira
resumida, que não se deve começar a expor a ciência filosófica pela crítica do
conhecimento. Não é preciso fazer o que foi feito por Kant, que não é referido
na introdução - começar por examinar, criticar nosso poder de discernir - , mas
também não se deve começar de imediato pelo que seria o saber verdadeiro, o
que significaria, escapando ao criticismo, cair no dogmatismo. No sentido de
Hegel, estabelecido por ele desde a introdução da sua obra, a ciência, o conhe
cimento efetivo do que, na verdade, é o saber verdadeiro, encontra-se intrinse
camente ligada a uma experiência. Esse saber verdadeiro, como ele entraria em
cena - entrar em cena é uma expressão de Hegel -, são e salvo, para formular o
conhecimento absoluto, para dizer o que é verdadeiro e o que é o falso? Se o saber
verdadeiro entrasse em cena desse modo, rejeitando os saberes, as crenças que
não são autênticas, assegurando-se de constituir-se em um saber de ordem com
pletamente diferente e remetendo todo o resto ao nada, seria apenas um saber
parcial, ou seja, um saber que manteria sempre como seu Outro o saber não ver
dadeiro, e a que se teria ainda de pedir explicações sobre tal saber não verdadeiro.
É uma objeção que se apresenta facilmente, quando se leem os filóso -: .
fos da lógica modernos, aqueles que desencaminham nossas falsas crenças.
Ainda assim, é- lhes necessário, vez por outra, dedicar alguma consideração
ao problema de saber por que se fala assim, para não dizer nada, isto é, para
dizer coisas que não são tão pertinentes quanto a neve é branca porque a neve
é branca. E, na maior parte do tempo, eles não têm a mínima ideia de por que
não se passa o tempo a dizer coisas verdadeiras desse tipo.
"LOGO, EU S O U I S S O " 57
De acordo com Hegel, portanto, o saber verdadeiro não se dá de uma só vez,
e sim passo a passo, precisamente ao longo de uma experiência em que o sa
ber não verdadeiro se modifica. É por isso que ele define Fenomenologia do es
pírito como um processo - em francês, curiosamente, como a apresentação do
saber se apresentando - die Darstellung des erscheinenden Wissens. Erscheinung
é a aparência, ou seja, ele demonstra, ordena, no decorrer de um tempo, de
que modo o saber, no próprio movimento de se revelar, penetra a não verda
de. O que ele expõe e chama de ciência apresenta o saber se constituindo no
movimento de seu aparição; e ela mesma aparece, nessa apresentação, desfa
zendo-se das aparências não verdadeiras.
A própria palavra fenomenologia indica que se seguem, precisamente, es
sas aparições do saber, que há um itinerário que vai da consciência natural,
da consciência cotidiana, aquela que reside no mundo, no meio do ente, até a
conclusão, que é o conhecimento filosófico, científico, a que Hegel dá o nome
de saber absoluto. O caminho da experiência corresponde a seguir o que está
dado, a apoiar-se nos fenômenos para acompanhar o vestígio da consciência
natural que se põe em movimento.
Pergunta: por que essa consciência não permanece bem tranquila se pro
cessando no mundo? Ela é impulsionada a avançar. Já há, de saída, algo que a
aflige, que age sobre ela, e ela se sente arrancada de si mesma por uma inquie
tação, levada para além de si mesma. A palavra angústia vem da pena de Hegel
na referida introdução. A consciência como refletida, como consciência de si,
comporta o sentimento de uma violência que a extirpa. Ele afirma: "A angústia
pode bem recuar diante da verdade, mas não,,pode se apaziguar. Em vão, ela
quer se fixar em uma inércia sem pensamento, mas este perturba a ausência de
pensamento e sua inquietação incomoda a indolência': Essa palavra angústia, já
no início de Fenomenologia do espírito, é destacada por Heidegger, bem como o
reino da inquietude que impulsiona a consciência em seu itinerário.
Esse itinerário assume certo número de formas, que são, para Hegel, es
truturas da consciência, cada uma delas situando uma relação precisa do su
jeito e da verdade. Em cada uma dessas formas, que são, na maioria das vezes,
historicamente identificáveis, pode-se dizer que, a cada oportunidade, o su
jeito formula um isso é verdade. E depois, dialeticamente - ou seja, por sua
própria experiência dessa verdade -, ele descobre nisso a não verdade, desfaz-
-se da verdade anterior, apenas transitória, para passar a um novo regime da
verdade. Veem-se, assim, mais ou menos - isso é habilmente entabulado -
as formas da consciência se sucederem umas às outras sem solução de con
tinuidade. Portanto, na continuidade das passagens, para-se em uma delas;
em seguida, a Aufhebung opera, e a consciência se torna uma nova forma.
58 A P O S TA N O PA S S E
A tradução, hoje abandonada, de Aufhebung como ultrapassamento
[dépassement] tinha, para nós, muitas ressonâncias. De certo modo, a cons
ciência não cessa de passar, não cessa defazer o passe de uma forma a outra,
até o passe final, o saber absoluto, que é a conjuntura última. E eu disse que,
ao longo dos Escritos, Lacan se liga a essa experiência dialética das formas da
consciência para pensar sobre o curso da análise.
É notável que, tal como Hegel imagina, essa experiência da consciência
que se desdobra na história convirja - não é uma história aberta - para de
terminada conjuntura, "a conjuntura do saber absoluto': E, quando se chega
a esse ponto, é o fim da história. Audacioso.
Audacioso, mas, de tempos em tempos, há frutos do processo e alguém
se levanta para dizer: "Não, não, vejam bem, olhem à sua volta, isso continua
apesar de tudo".
Pois bem, Lacan introduziu a ideia de que a psicanálise era um<1; expe
riência dialética. Isso quer dizer que o sujeito se desdobra, se desloca, como
Hegel o diz, no elemento da verdade. É com isso que, primeiro, ele tem de
se haver: uma verdade que é transitória, uma verdade que se pluraliza, uma
verdade que pode entrar em decadência, da qual o sujeito pode se extrair,
quando encontra algumas de suas consequências, uma verdade continua
mente insustentável. E o sujeito, enfim o que circula no interior, encontra-se
incessantemente desalojado. É com base nesses abandonos da verdade e nessa
trajetória que ela própria se constrói, que se amplia o reino do saber, o que
Lacan resumia, ao apontar, em Hegel, a verdade em constante absorção no
saber. Seria possível dizer também um arranjo simbólico permanentemente
confrontado com um real que desconcerta sua organização.
Há, como preâmbulo ao ensino de Lacan, o mais preciso emprego dessa
concepção aplicada à análise. É a conceituação do caso Dora, que vocês en
contram nos Escritos e na qual veem uma ordenação do contexto, em que,
segundo Lacan, se alternam desenvolvimentos da verdade que são verdadeiras
figuras da consciência e transbordamentos dialéticos, revelando a instabilidade
da posição do sujeito (Lacan, 1951: 217-ss) .
É inegável - já destaquei isso várias vezes no passado - que o fim de aná
lise começou a ser pensado por Lacan em função do saber absoluto. Vocês
encontram isso no final do Relatório de Ronia: " [ ... ] a questão do término
da análise é a do momento em que a satisfação do sujeito encontra meios de
se realizar na satisfação de cada um, isto é, de todos aqueles com quem ela se
associa numa obra humana" (Lacan, 1953: 322).
Pode-se dizer que essa redução da questão do término da análise a uma
reabsorção do particular no universal é, de um lado a outro, de inspiração
"LO G O , EU S O U I S S O " 59
hegeliana, curiosamente corrigida por Heidegger, já que o saber absoluto é ·
suposto equivaler à assunção pelo sujeito de seu ser para a morte [être-pour-
-la-mort] . O próprio Heidegger teve, mais tarde, a oportunidade dé esclarecer
que preferia a tradução "ser em direção à morte" [être-vers-la-mort] . Tem-se
o testemunho disso nessa mesma passagem dos Escritos, quando Lacan afir
ma que a obra do psicanalista opera como mediadora entre º homem da
·
preocupação [l'homme du souci] - é uma expressão de Heidegger, em francês -
e o sujeito do saber absoluto, nomeado como tal nesse esboço de uma teoria
do fim de análise.
São tant�s sinais, tantos testemunhos presentes no curso da análise, cuja
fórmula, o materna, parece fazer falta, que o primeiro recurso que ele encon
trou para abordá-lo foi o esquematismo da experiência dialética das formas
da consciência. Imediatamente depois do Relatório de Roma (Lacan, 1953),
no escrito "Variantes do tratamento-padrão" (Lacan, 1955), dá-se uma es
pécie de preferência à ênfase heideggeriana para qualificar o fim de análise.
Lacan abandona suas referências à subjetividade da época, que o sujeito anali
sante deveria tornar a juntar em seu horizonte, conservàndo a noção de que o
processo analítico é animado por uma dialética que permanece convergente,
o que é propriamente hegeliano, mas converge para a experiência da morte,
e isso é heideggeriano. A�redita-se de bom grado que, para pensar sobre a
conclusão do tratamento, Lacan, a princípio, fez de Hegel e Heidegger seus
companheiros, em um sincretismo muito curioso. Mesmo quando abandona
a noção de saber absoluto para qualificar o fim de análise, ele o faz como um
itinerário apresentado pela experiência - em "Variantes do tratamento-pa
drão", por exemplo, é o itinerário do narcisismo -, de modo que a experiência
analítica consistiria em uma análise do eu, ao longo da qual cairiam, suces
sivamente, as fascinações do narcisismo, bem como figuras da consciência,
que são tomadas, igualmente, como máscaras da morte, cuja figura - aí está
o termo hegeliano - se desvelaria, no final, como sustentáculo da imagem
narcísica. Portanto, um itinerário em que o eu se livraria, progressivamente,
de seus falsos brilhos, de suas identificações, para, no fim dos fins, encontrar
o 'que, sob a imagem, a mantém, a saber, o que Lacan qualifica, de modo sur
preendente, no lugar de mestre absoluto: a morte.
O mestre absoluto, a morte - não o saber absoluto -, é uma referência
hegeliana. Evidentemente, como há o termo absoluto, isso dá a vocês peque
nas ressonâncias de saber absoluto. De fato, a morte de que se trata aqui é a
morte no sentido de Heidegger, e não no de Hegel. Enfim, é uma controvérsia
que tem toda a sua consistência graças ao estilo e à nova noção que Lacan en
tão introduz, mas que, retrospectivamente e, principalmente, na comparação
60 A P O S TA N O PASSE
de concepções, se é possível dizê-lo, autóctones à psicanálise por ele desen
volvida posteriormente, não podem deixar de aparecer como uma recompo
sição de Hegel e Heidegger. De modo que o termo ideal da análise implicaria,
para o sujeito, retornar às origens do eu, e isso seria então, em um sentido
de que nada é precisado - é sobretudo a Ser e tempo que se é remetido -,
0 momento em que a morte seria subjetivada.
Há muito poucas coisas para dar um conteúdo de pensamento a essa ex
pressão, a não ser uma remissão à última grande filosofia. Sem dúvida, a sub
jetivação da morte é uma experiência limite, visto que a realidade da morte
não é imaginável, e portanto um obstáculo ao imaginário. Lacan já teria po
dido introduzir, nesse ponto, o quadro de Holbein, com sua caveira em ana
morfose no chão da sala, em que se multiplicam todas as moiras e todos os
sortilégios da imagem, mas em O Seminário, livro 17: os quatro conceitosfun
damentais da psicanálise (1969-70 ), dez anos mais tarde, ele enfatiza menos a
morte do que a própria anamorfose como índice fálico. No final, não a morte,
mas um desvelamento da verdadeira função do falo.
II
É preciso esperar o fim dos Escritos, para que, de certo modo, Lacan repudie
Hegel, mas ele não o faz sem sublinhar que o utilizou.
Ele o utilizou, diz Lacan, contra as evidências da identificação e, com efei
to, esse movimento sucessivo das figuras da consciência caindo umas após
as outras é uma boa lição para curar do narcisismo. De certo modo, Lacan
recorre a Hegel para curar do narcisismo ou, em todo caso, dessa posição
,,
do sujeito que adere ao seu "Eu digo a verdade ((Você diz a verdade, m�s
por quanto tempo? Por quanto tempo, sua verdade, você pode habitá-la?':
O que Lacan opôs ao ((Eu digo a verdade" foi ((Eu, a verdade, falo», que é com
pletamente diferente, já que fala justamente no não verdadeiro, no que se
toma, mais essencialmente, como não verdadeiro. A ideia de um uso de He
gel, vocês a encontram em ''Posição do inconsciente" (Lacan, 1964: 851), bem
como desenvolvida no texto imediatamente anterior, "Subversão do sujeito
e dialética do desejo no inconsciente freudiano" (1960b ) , que se originou de
um colóquio sobre dialética organizado pelo filósofo Jean Wahl, autor de um
livro clássico, A infelicidade da consciência na filosofia de Hegel.
Nessa oportunidade, Lacan explica por que Hegel faz falta, quando se
trata de conceituar a experiência analítica. No saber absoluto, em que o real
está tão estreitamente associado ao simbólico, que não há mais nada a es-
" LO G O , EU S O U I S S O " 61
perar dele, encontra-se, pois, um sujeito que se extingue na sua identidade
a si mesmo, e é essa a hipótese fundamental de todo o processo. A hipóte
se do processo é um sujeito idêntico a si mesmo, mesmo se inquieto, mes
mo se angustiado, razão pela qual se pode deduzir . disso o saber absoluto.
Em contrapartida, o sujeito de que se trata na experiência analítica - e é aí
que ele corta o- vínculo com a conceituação dialética da experiência analítica -
não é um sujeito idêntico a si mesmo, não é um sujeito que, do princípio
ao fim, sabe o que quer, como o suJeito fundamental da dialética hegeliana.
Portanto, quando introduz o sujeito do inconsciente, Lacan, explicitamente,
coloca-o na balariça com o sujeito do saber absoluto, para diferenciá-lo dele.
A figura que ele então evoca é uma figura que não pertence ao batalhão
das figuras hegelianas. É a figura - a palavra hegeliana esta aí - do pai morto
que vem em sonho, e o sonhador o acompanha com este enunciado que vo
cês conhecem: «Ele não sabia que estava morto". Lacan faz dele o paradigma
do sujeito freudiano, ou seja, um sujeito que só subsiste por não saber a ver
dade. E é por isso que se pode dizer: "Contanto que ele saiba que eu morro,
sim, é assim que Eu [Je] vem lá onde isso era".
É o valor que Lacan dá ao «lá onde isso era, Eu deve advir" - esse advento
é uma desaparição. A história do pai que não sabia que estava morto está aL
para ilustrar a posição do sujeito do inconsciente, haja vista este não querer
saber, isto é, como sujeito do recalcamento - para ele, vir a saber é desa
parecer. Nesse caso, é preciso pôr aspas no termo advento. Esse «advento" é
uma desaparição. É o que Lacan, mais tarde, ao falar do passe, concepção que
igualmente nada tem de hegeliana ou heideggeriana, qualificará de destitui
ção subjetiva. Dito de outro modo, termo a termo, no lugar do sujeito idên
tico a si mesmo, que condiciona a experiência dialética, o sujeito barrado, S;
no lugar do saber absoluto, S(,K); no lugar da satisfação capaz de entrar na
conjunção universal das satisfações, o gozo.
Temos aí os três termos, o triângulo -em que se dá a conclusão do trata
mento: o sujeito, o saber e a satisfação. E, no entanto, o que permanece he
geliano em Lacan, na sua noção de curso de uma análise e de sua conclusão,
é a ideia de uma experiência subjetiva. Certamente, ela não é mais animada
pela Aufhebung logicizante de Hegel, como diz Lacan. Porém a, experiência
subjetiva continua, para Lacan, animada por uma instância logicizante. Ela se
encerra, como em Hegel, em uma conjuntura deduzida. A noção de passe é
hegeliana ao menos no aspecto de que é uma co.µjuntura deduzida das condi
ções da experiência - não o é em seu funcionamento, nem em sua estrutura.
É preciso dizer que Lacan, a esse respeito, e mais hegeliano do que freu
diano, uma vez que Freud não nos apresenta, de modo algum, a análise como
62 APOSTA NO PASSE
uma experiência que teria um princípio de encerramento. É justamente esse
sem fim que justifica, para ele, o convite feito ao analista para retornar, perio
dicamente, ao divã. Para falar a verdade, Freud pensava que a própria posição
do analista era contraditória às exigências da análise, especialmente às suas
exigências éticas, e por isso julgava necessário que este voltasse a ser analisante,
para, se posso dizê-lo, ser moral.
A noção de Lacan é, ao contrário, a de um sem retorno, do fim verdadeiro
da análise, à condição de que o analista, o tornado analista, entre no ensino
da psicanálise, encontre uma relação de deciframento com o sujeito suposto
sab er no ensino da psicanálise, o que distingue esse ensino de toda pedagogia.
Sigamos um pouco mais longe nesse sentido, para explicar, tornar sensí
vel, o contexto em que a pesquisa sobre o logo persevera. O que é ainda mais
hegeliano em Lacan é essa articulação que, de certo modo, faz com que a
hipótese fundamental do processo volte a se encontrar sob outra forma no
fim, e que, se há um fim dessa experiência, é porque ela é prescrita no próprio
início do processo, já que a própria conclusão era dedutível da estrutura da
experiência.
É isso que se observa, quando Lacan introduz o que nos serve de referên
cia: seu conceito de passe. Ele estabelece, precisamente, uma articulação em
curto-circuito do início e do fim da análise. E, quando tem de apresentar a
estrutura do fim da análise em termos que são estudados durante anos, ele
infere a estrutura do fim da estrutura do início. No começo, é a transferência.
Pois bem, o fim da análise requer que se registre o término da relação de
transferência. Desde então, trata-se menos do fim do eu do que de uma forma·
de morte do sujeito, que não é dramatizada por essa expressão que tem seu lugar
na teoria da psicose, mas antes apresentada, de maneira mais moderada, com
o termo destituição, o qual também equivale à queda do sujeito suposto saber.
O sujeito suposto saber é uma espécie de sombra carregada pelo sujeito,
é o sujeito suposto saber que fala, uma vez que, correlativamente, o sujeito
analisante está na posição de não saber o que diz. É a respeito do que o sujeito
suposto saber diz que o sujeito analisante pode estar em situação contrária.
Nesse sentido, a queda do sujeito suposto saber se traduz pelo fato de que, daí
para a frente, o sujeito sabe o que fala. Enfim, é o termo2 ideal.
É o termo ideal, e isso corresponderia à definição do analista. Ele é tido como
alguém que sabe o que diz, razão pela qual não pode ser considerado irrespon-
" L O G O , EU S O U I S S O " 63
sável pelos efeitos de sua fala. E também é o sujeito suposto saber o que quer. Ele
não se encontra no início. Portanto, a queda do sujeito suposto saber implicaria
a emergência do sujeito que sabe o que quer. E, para falar a verdade, saber o
que se quer é o que se chama de pulsão, a vontade que quer o gozo, custe o que
custar. Por isso, Lacan pode dizer que o fim da análise supõe a resolução do
desejo. Na psicanálise, o desejo é essencialmente problemático e a definição
do desejo mais segura de Lacan é a de que se trata de uma proteção para não de
ultrapassar um limite no gozo. Enquanto o desejo, na perspectiva da psicanálise, é
essencialmente problemático, a pulsão é resolutória. Nesses termos, a resolução
do desejo é, de certo modo, equivalente à reconciliação com o gozo.
A reconciliação com o gozo pulsional, com a pulsão, que só faz o que lhe
vem à cabeça, ainda mais porque não tem uma cabeça, é o que Lacan resume
na expressão destituição do sujeito. Seria possível falar de destituição pulsio
nal do sujeito. Por isso, não se encontra, na obra de Lacan, parece-me, a ideia
de subjetivar a pulsão, como no início se subjetivava a morte. Ainda que não
seja um objeto imaginável, a morte é pensável a partir da filosofia de assumi-
-la e particularizá-la, enquanto o termo sujeito enfraquece quando se trata
de pulsão. A expressão sujeito da pulsão, empregada uma vez sob a pena de
Lacan - um hápax, portanto - não é encontrada com muita frequência, ao
passo que, no que concerne ao desejo, pode-se dizer que resta uma intersub
jetividade inerente ao desejo, como se vê em toda forma de identificação -
desejar como o outro, desejar o que o outro deseja -, mesmo que Lacan, para
articular o desejo à pulsão, tenha feito do objeto a sua causa. A pulsão ques
tiona o Outro, ao menos como sujeito. Portanto, quando inventa um mito
da pulsão, Lacan faz dele um órgão que precede o subjetivo e o condiciona.
No que respeita à conclusão do tratamento, a questão que de fato supera
o par infernal Hegel e Heidegger é a de saber como a relação do sujeito com
o saber, instaurada pela análise, opera no vínculo do sujeito com sua satisfa
ção. Em que o fato de instaurar uma ligação inédita do sujeito com o saber,
convidando-o à associação livre, a dizer não importa o quê, a falar mais do
que sabe, a não se preocupar com controlar seus ditos, altera o vínculo do su
jeito com sua satisfação? Em que isso modifica a relação do sujeito com essa
satisfação que chamamos de gozo? E como disso pode surgir o logo sou da
conclusão, o logo sou analisado, o logo sou analista e, digamos, o logo sou isso?
Quando se reflete não sobre a subjetivação da morte, e sim sobre a pulsão, a
fórmula mais lógica é: logo, Eu sou isso.
É por isso que não é necessário tomar pelo avesso o lá onde isso era, Eu
deve advir. Vocês têm esse isso todo empoeirado, e em seguida o Eu advém,
tudo se areja, tudo se ilumina, o Eu adveio. De modo algum. A crença na
APO S TA NO PAS S E
subjetivação comporta a ideia de que isso segue nesse sentido - subjetiva-se,
passa-se tudo isso para o Eu, lustra-se tudo isso de novo. Essa é a ideia
"hegeliano-heideggeriana" de que Lacan partiu para pensar o fim de análise,
ao passo que Freud não lhe atribuía o princípio de suspensão. Esta é a verten
te da subjetivação: pensar o fim de análise como subjetivação, o todo sujeito,
o quase todo sujeito. Parece-me que a conclusão a que Lacan chegou e sobre
a qual continuamos a trabalhar é, em vez disso, a de que o sujeito se apaga.
O sujeito se apaga em um tornar-se isso. Assim, onde havia, na teoria, subje
tivação, passa a haver, daí em diante, destituição subjetiva. Eis onde está em
jogo o enunciado particular da existência de um analista, quando há alguém
cujo Eu não está mais por vir - não está mais por vir não por iluminar o todo,
e sim, ao contrário, porque veio para apagar-se.
III
Pode parecer que isso nos provém dos mitos da lógica. Todavia, no mesmo
momento em que, de maneira suficientemente velada para que a oposição
acirrada que eu aponto entre subjetivação e destituição não se torne imedia
tamente aparente, Lacan deixa entrever o devir issa. do Eu, e não o devir Eu
do isso, ou seja, ele confirma que a estrutura lógica nunca perde seus direitos,
que é a lógica que comanda, que ela está presente nas questões do gozo, que
o objeto a é uma realidade sustentada pela lógica pura. Há um uso da lógica
matemática, como havia antes um uso de Fenomenologia do espírito, no que
respeita, afirma ele, ao que atesta um Outro cuja estrutura não vai, ela mesma,
recobrir-se. A lógica, portanto, certifica, testemunha o não recobrimento do
Outro, de S(A) . A lógica é a Fenomenologia pelo avesso.
É por esse motivo que comecei pelos paradoxos da indução, por Carl
Gustav Hempel, por Nelson Goodman. Eu poderia ter começado por outros
paradoxos, mas estes são menos explorados e mais próximos da indução ca
racterística do pen�amento analítico. São os paradoxos que se revelam quan
do se pergunta o que se pode concluir dos fatos, da observação dos fatos - e
nos damos conta de que tentar tirar conclusões de fatos faz surgir um furo.
Eu trouxe Courteline e seu Boubouroche - que nome!, que nome! -, per
feito para ilustrar o provérbio "Não se deve jamais crer . em seus próprios
olhos': Isso supera o princípio de São Tomé, que só crê no que toca. Enfim,
sempre se pode dizer: "Isso não prova nada". "Isso não prova nadà' é uma
réplica que tem a força do "Caralho! ': de Zazie. "Isso não prova nada" e, em
particular, nenhum fato prova nada.
"LO G O , B� S O U I S S O "
Talvez vocês tenham lido Boubouroche e conhecido esse personagem sim
plório que nos é incialmente apresentado em um jogo, no qual se deixa enga
nar pelos parceiros e é advertido por um vizinho, caridosamente, de que, mal
ele se afasta, sua patroa faz sair, não se sabe de onde, um homem afável. Todos
os dias, quando ele se vai, ela faz isso. Ele então se entrega, quer falar com a
mulher, timidamente pedir satisfações, não pede e, bom, depois, tudo se re
solve por uma pane elétrica. Então, percebe-se André - que nos foi mostrado
um pouco antes ....:... em um armário, um grande armário, no interior do qual,
com uma vela, ele tranquilamente... talvez leia Fenomenologia do espírito! E
ele se vai muito dignamente. Boubouroche então quer mat.ar sua mulher. Em
seguida, desanima. Nesse momento, ela fala e ele se vê perdido, pois ela faz
significar o fato. "Você me enganou': ele diz. Poderíamos dizer: "Isso salta aos
olhos': Ela responde: "Nunca!': Ele: ''E esse homem?". Ela: "Não posso lhe
responder, é um segredo de família. Não posso revelá-lo". Ele: «Só me faltava
essa!" E ela o demonstra: «Se eu não fosse uma mulher honesta, não sacrifi
caria minha vida por causa de uma palavra empenhada". E acrescenta - o
trecho, na verdade, foi reduzido ao mínimo, é um esboço que revela com9 o
fato se volatiliza: ''Inútil discutir por mais tempo, jamais nos entenderemos':
Sente-se bem que, de - fato, é preciso um acordo de base; basta um acordo so
bre princípios, para já se estar em desacordo. Ela continua: "São sentimentos
femininos que os homens não são capazes de entender':
O que regula a questão da verdade nesse apólogo? O fato de que o homem
chora e diz: ''Não posso deixar você, é mais· forte que eu': E, no fundo, tudo é
dito, ela só tem que se mostrar e dizer: «Pal".eço ou não uma mulher que diz a
verdadet: Ah, o idiota! E, então, ele sai para quebrar a cara do vizinho.
Retenhamos esse pequeno apólogo e consideremos que ele valoriza o
princípio de Adele: "Crê-se em quem se ama" (Courteline, 1893) . Isso introduz
o amor na teoria da verdade. Uma teoria da verdade, como se busca na filo
sofia da lógica, sempre malsucedida por falta. de uma erótica. Não há teoria
da verdade sem doutrina do amor.
Isso volatiliza o fato ou ao menos indica que nenhuma ocorrência tem
sentido em si mesma, mas apenas pelo que é dito: o dito segredo de família
está lá onipotente. Talvez, em outra oportunidade, eu lhes traga uma história
em . que as piores suspeitas também recaem em uma mulher - sempre dif a
mada, como observava Lacan - e em que também há, verdadeiramente, um
segredo de família. Há, ainda, um lobo escondido em algum lugar, mas se
trata de um verdadeiro segredo de família.
Portanto, até onde vai a dúvida? Não há dúvida de que não se pode pôr
em dúvida, pelo significante, tudo o que é. O logo sou cartesiano é eminente-
66 AP OSTA NO PASSE
mente obtido após um duvidar generalizado, hiperbólico, que chega a atingir
as verdades matemáticas. O portanto de Descartes é filho da dúvida. A dúvida
é igualmente evocada por Hegel na introdução de sua obra: "A consciência
natural se envolve em seu árduo caminho em direção ao saber absoluto como
caminho da dúvida e até mesmo do desespero'� Esse desespero, chamado por
Hegel de ceticismo, não é o ceticismo revigorante de Descartes, a que alude,
ao falar da resolução de não se render à autoridade dos pensamentos de ou
trem, e sim de examinar tudo por si mesmo. Não, o ceticismo evocado por
Hegel é o ceticismo radical que acaba no vazio, que espera o novo que vem e
que o lança imediatamente no mesmo velho abismo. Encontramos em deter
minada passagem de Fenomenologia do espírito a figura do cético. E quando
caímos no abismo cético, é muito difícil sair dele. Há um pequeno remendo
possível, mas é necessário_ dar um pequeno salto para ser bem-sucedido.
Pois bem, gostaria de abordar uma recente revivescência do ceticismo,
surgida no âmbito de uma reflexão sobre a lógica. Trata-se do paradoxo de
·Kripke, que ele forjou a partir de Wittgenstein (Kripke, 1982) .
É inacreditável que isso tenha empolgado os filósofos da lógica! Durante os
anos 1980, fizeram-se objeções e objeções das objeções ao ceticismo inventado
por Kripke. Há, portanto, uma literatura que, no final da década, foi ampla
mente revisada. Talvez seja preciso eu lhes dizer isso, para que vocês levem a
sério tal paradoxo. Vocês não lhe dedicarão o mesmo cuidado e atenção que
os filósofos, que têm interesses diferentes dos nossos, mas, enfim, saibam que,
para eles, isso foi um encantamento: "Isso nos reconduziu aos primeiros tem
pos, quando se estudava Wittgenstein, o que poupou nosso Wittgenstein de
todos os comentários tediosos, e realmente nos pusemos a pensar a partir daí':
Esse paradoxo ocorreu a Kripke pela leitura do parágrafo 201 de Investi
gações filosóficas, de Wittgenstein. Penso que vocês não teriam tido a ideia de
Krip_ke - nem eu - ao ler esse trecho. Wittgenstein, referindo-se ao que dissera
um pouco antes, escreve: "Esse era nosso paradoxo". Nenhum modo de agir
[Handlungsweise] - pode-se dizer nenhuma sequência de comportamentos,
de maneiras de fazer - pode ser determinado por uma regra, porque cada
modo de ação pode ser concebido como estando em conformidade com uma
regra. Eis a formulação com que Kripke fez maravilhas. Aliás, a continuação
do parágrafo de Wittegenstein é: "Se todo modo de agir pode se conformar à
regra, pode igualmente contradizê-la''. Rigorosamente, não pode haver nisso
nem conformidade, nem contradição. Foi isso, nessa obra considerável que
mobilizou grandes espíritos, que levou Kripke a dizer: "Eis o problema cen
tral de Wittgenstein", bem como, na página 20 de seu opúsculo: "Isso não dei
xa de se assemelhar ao que desenvolveu Goodman': que mencionei há pouco.
�LO G O , EU S O U I S S O "
Com base nisso, ele traz um personagem, um cético, que não é o cético
hegeliano, nem o cartesiano, que é cético apenas por um momento, mas que é
um cético bizarro. "Suponhamos': diz ele - o modo como encena o paradoxo é
um pouco obscuro - "que vocês nunca tenham somado 68 e 57. De todo modo,
sempre há uma operação de soma que vocês não fizeram': Vocês só fizeram
um número finito de operações de soma. Sempre é possível, portanto, apre
sentar-lhes uma soma com números que vocês não haviam adicionado. Para
cada um de vocês, não é difícil encontrá-la, sobretudo com grandes números.
Vocês fazem, então, a operação: 68 + 57 == 125. Surge o cético bizarro · de
Kripke. Vocês já formam uma pequena multidão e, evidentemente, ele é mi
noritário, e no final isso conta bastante para sair do problema da maioria e da
minoria. Vocês, portanto, fazem a operação e um cético bizarro chega e põe
em questão a certeza de cada um de vocês. Aliás, não deixa de ser divertido
estar em um lugar em que se fazem objeções a 2 + 2 = 4 ou a algo parecido
68 A P O STA N O PAS S E
e que extrapolo a regra depois. Não faço uma indução da regra de somar a
partir de exemplos de somas". Não faço indução, quando somo. Na realidade,
0 que aprendi é a regra de somar, ou seja, aprendi certo número de instruções,
um conjunto de instruções que aplico e que dizem como se soma. Conto,
portanto, de certa maneira, em conformidade com o algoritmo da soma, com
0 procedimento regulado pela soma.
Não pensem que isso desmonta o cético. Ele diz: "Sim, vocês aprenderam
a contar com base em um número finito de exemplos. O que prova que isso
que vocês chamam de contar não era quontar" - e que, de fato, enquanto
vocês quontam até 57, abaixo desse número a coisa vai bem, mas depois isso
quer dizer 5. Então, vocês explicam que, precisamente, a validade do proce
dimento do algoritmo da soma não depende da composição da soma, pois,
caso contrário, não se trataria de uma soma. Ele diz: "Ah!, portanto, é inde
pendente. É independente, mas é quindependente?"
Em outras palavras, quanto mais vocês multiplicani as objeções, mais se
pode estender à significação de todas as palavras a objeção que se faz ao sen
tido de mais, até se chegar a uma total subversão semântica.
Isso se encontra no próprio Wittgenstein. Vocês fazem testes para saber
se pensam bem, rapidamente, se são astuciosos; Então, é apresentada a vocês
a sequência 2, 4, 6, 8. O que vem depois? Vocês pensam que é 10. De fato, um
número de regras absolutamente indefinido é compatível com esse segmento
e vocês podem, muito bem, ter 2, 4, 6, 8, 11, 23 etc., se a regra que se aplica é
suficientemente complexa. Dito de outro modo, a partir de um número fini
to de exemplos, pode-se sempre supor um número indefinido de regras. Uma
regra muito mais complexa que a adição +2 pode igualmente ter 2, 4, 6, 8
como o seu segmento inicial.
Kripke ressalta bem que esse raciocínio pode se estender para toda a lin
guagem. Vocês· dizem mesa e pensam saber o que é uma mesa, mas ele diz:
"Será que isso se aplica também a uma mesa sob aTorre Eiffel?" A Torre Eiffel
faz sua aparição! O que não está longe desta tão perturbadora questão pro
posta por Wittgenstein: "Como é que eu sei que isso é vermelho?" E também
do que se encontra neste paradoxo de Goodman: "Talvez, ao dizer verde, qui
sesse dizer azul':
O que se destaca nessa consideração é o fato de ela revelar certa fraqueza
do sentido na função a que, precisamente, os filósofos da lógica o reduzem,
a saber, a de fornecer a referência. É aí que há uma espécie de breakdown.
Como se alguém descobrisse que o sentido não consegue fornecer, prescrever
a referência, e como se o pequeno engate intensão/extensão de Rudolf Car
nap - intensão é o nome que se dá ao sentido, quando não há outra função a
70 AP OSTA NO PA S S E
Tal dificuldade em relação à regra tem toda razão de nos reter, pois uma
regrá, para nós, determina toda a experiência, e uma regra cuja aplic�ação, é
preciso dizê-lo, está sujeita à dúvida. ((Será que faço bem o que devo fazer?"
pode, legitimamente , perguntar-se o analisante. É claro que, com ele, há o
analista, que não é um cético bizarro. O analista está lá para confirmar: «Sini,
vo cê se adapta à regra': E é aí que a interpretação confirma que o discurso é
inconsciente, como diz Lacan.
O que podemos conservar de Kripke é a cisão que ele introduz no sujeito.
Este acreditava aplicar mais, enquanto poderia, de fato, estar aplicando qual
quer outra coisa. Surge aí uma opacidade subjetiva, que resulta unicamente
do fato de que o sentido torna a cruzar o material significante. Na análise,
dois algoritmos - sigo rapidamente - tornam qualquer discurso interpretá
vel: o primeiro, o algoritmo de Saussure, cliva o significante e o significado;
o segundo remete o oral ao escrito. Por isso, não se faz análise por escrito.
E, justamente, a diferença entre o oral e o escrito, princípio da interpretação,
· é constitutiva do sujeito suposto saber.
Compreender é dominar uma técnica? É preciso uma regra para compre
ender. Wittgenstein, assim como Kripke, busca a regra para compreender, e é
isso que sempre escapa.
Ora, o que se deduz pela análise é que a regra para compreender é parti
cular a cada um. Trata-se do que chamamos de fantasia. Nós substituímos o
meaning is use pelo meaning isf antasy - a significação é a fantasia. Compre
ende-se pela fantasia. Propriamente falando, só se compreende a fantasia. E a
inconsistência semântica .no que concerne à referência, que Kripke faz valer
com grande arte, indica-nos o estatuto de consistência lógica que atribuímos
ao objeto a, princípio de intelecção.
A fantasia fixa o sentido, esse sentido inconsistente, sempre duvidoso.
Por isso, a conclusão do tratamento modifica a fantasia. Modifica justamente
o modo como cada um compreende. Por isso, nosso «saber absoluto,, é o
objeto a - esse a absoluto em face do que cai.
"LOGO, EU S O U I S SO" 71
1
O AVES S O D O PAS S E
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prêserifê â êssac;ntínua demanda de você;.
Eu teria certamente de me alegrar com isso, haja vista ter recebido retor
nos muito bons, inclusive de longe. A voz que faço ouvir aqui tem alcance
muito maior que o deste anfiteatro, por meio de gravadores e de outros apa
relhos, dos que os utilizam e se esforçam para transcrever meus ditos para o
papel e, em seguida, mandá-los por toda parte.
S O L I D Ã O D O S UJ E I T O
N. da o; Este texto se refere à sexta aula do curso de Orientação lacaniana "Le tout demier
Lacan" (2006-7), proferida em 10 de janeiro de 2007. Traduzido com base em sua transcri
ção em francês e na versão que se encontra em Jacques-Alain MILLER. El ultimísimo Lacan.
Los cursos psicoanaliticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2013, p. 95-102.
73
transforma o ·semblante, já que é necessário inscrevê-la em oposição à de
inconsciente transferencial:
74 APOSTA N O PASSE
analistas freudianos e lacanianos em uma posição que se verificará cada vez
roais na história, a posição de parasita, parasitas da solidão.
Há um terceiro termo que se agrega a inconsciente transferencial e in
co n sciente real, e me par.e. _e que juntá-lo a eles produz um efeito de sentido.
Ess e terceiro termo é pass à condição de que ele se oriente do inconsciente
tra nsferencial ao inconsciente real: -·---�._....---- - - · · - · --
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O AV E S S O DO PAS S E 75
então sobrepor ao passe o passe bis, certamente para aliviar o peso que o
inconsciente real comporta. O passe bis é uma t!ans(�_r.�nci.i com a análise e,
portanto, o avesso do passe. _Isso supõe; em termos topológicos, transpor um
.� ·- "li:, .... - -- ·-. ___.............:.:..,, . .,,,- ....... .� -: .. .. ,�--"'<, -,-._....... � - -· ·; _ _ _ . '
o
pôiif de revêrsãó. :A ideia que Lacan propõe não é, em absoluto, um retorno
ao status quo ante.
�,��,,e . �. . h.i�!.�I�3: Y�t;!!i_çá.�J�,-R9j§_�e -��Q��<;Í..��tt��;; . WJP. . S�. g�:
guiu Lacan. É, portanto, muito pouco provável que permita evitar uma trans-
ferê;dá'p��a um analista, posto que Lacan foi analista. Afinal, aqueles cuja
vida e prática foram afetadas pelo discurso de Lacan não o seguiram nessa
re�avolta, o que evidencia a questão de saber até que ponto evocamos uma
experiência limitada e sempre precária.
Em resumo, em "Prefácio à edição inglesa do Seminário 11': há uma pala
vra que destaquei nas lições anteriores e qualifica a operação que identifico
como a q.o p'1;sse bis: histoerização,3. uma história histerizada. A história que é,
por assim dizer,
uni prõces�Õ de líist:Ôrii;ção· fntersubjetiva. E o passe bis é a
histoerização da própria análise. Não consistiria somente em estabelecer uma
lógica, que seria, de algum modo, a metalinguagem da análise em si. Se Lacan
escreve histoerização com y, ele o faz porque se trata não de objetivação, e sim
de um teatro. Trata-se de elaborar como, em minha análise, pude dar sentid_o
ao real, às vezes tapando furos que separam os extremos, para que, no fim das
contas, apesar de tudo, me aplaudissem.
O passe bis, .µoda que se situe :p€S$e --.ponto de · reversão, o passe bis se
elabora, portanto, na solidão. Uml solidãd que transparece na fórmula de
Lacan, segundo a qual "0..11-n�s�a-�ó)e ;;i�t<Jriza de simesmo': Cada um então
é convidado a se reunir ::o� -Fi-é{id e ��m 1.;caó.' -�ni-��à solidão.
A histoerização do passe se sustenta nessa solidão, embora se realize por
meio de parasitas, os passadores. Estes, que, afinal, são dois, atuam junto ao
candidato e prestam contas a um júri estabelecido na famosa Escola. Trata-se,
na realidade, de um teatro, em que os passadores são os mensageiros que
prestam contas a um júri. É fundamental que essa transmissão seja indireta,
denot3:_114o qu� e�s�� p�,ss&:1go re� ç�p_rem t����- é:1J\mç��, �� - !:la. No que
�,,.,.,.. • · ··-"ou, ' · ·· � ·• .• .•• • ·- ··"· '·- ·,·- ·
. ,,:; � , , <""· · "" .,._.,,r,. ·--... ..�--�
.
concerne aó júri, não se supõe que veja, nem que - escute o que o - passante de- 0
clara. Não se supõe que escute o que este diz a seus passadores, que são tanto
espectadores quanto críticos de teatro, vale dizer, um tipo de placa sensível,
3 N. da T. Optou-se por traduzir hysto risation, usado pelo autor, pelo termo histoerização.
Ao grafar hystorisation com o y de hystérie, Lacan reúne, em um único vocábulo, história
e histeria. Cf. a nota do editor em Lacan (1977: 567).
AP OSTA NO PA � SE
que O júri interroga a respeito do que experimentaram ao escutar alguém que
teria atingido o inconsciente real.
D E R IVA D O REAL
o passe bis é, por assim dizer, uma prova de verdade, cum grano salis. A prova
de verdade é a análise, em que alguém tenta, se esforça para dizer a verdade.
o companheiro analista age para lhe inspirar certo entusiasmo pelo dizer ver
dadeiro. O passe bis, no entanto, embora também seja uma prova de verdade,
comporta o fato de que se ,imagina que alguém, após ter alguém alcançado o
in consciente real, sabe gue a verdade -� uma ilusão, e que, .depois da verdade,
.........-----..�· ..,.. _,. ,��-.........,..-r,. �-- ,.,...,..,........ ..
ira. Kmentira;·tõdavia, não é uma objeção à verdade, pois
O
,..... , , ,,. K
��--�.�E���=ª-1!:l��!
- • · •' •• • ' · ._ :. ' • _,... -�.• •
,.•'' , , ,,,. . ,, . ,:. • h . , , ...-'' "':_. �• .� ..-. , •. ,. • ,, - �-
, •
O AVE S S O DO PAS S E 77
do ponto de vista do simbólico, chamávamos demanda é, na verdade, um
pedido de urgência. E esse pedi_�o { -� - q������ia �!.!!f���-�� �?trevista_�,
preliminares: há OU não�iirgência de satisfação? Ü S\J.jeito chegou â°-jJ<n?,t:O de
já riãô sabérlidar bem com S�ll sintomct? . ..
Sabe-se qüe James Joyce rejeitou a análise, análise que lhe propunham
fazer com Jung, e que Laca.p.,..�rante um ano, dedicou a ele O Seminário,
livro 23: o sinthoma. Jamesf,Joyce';recusou a análise, mas não impediu que
Lacan visse nele o melhor ei:�mplo do qlle se · pod� esperar de uma análise
e de seu fim, isto é, ter sabi9:�_ liqar_ colTl seu sintoma, ter sabido obter dele
e,
a satisfação de seus dias· inclusive, a expêétâtiva· revelada de imortalizar o
próprio nome; Mas se poderia dizer, atentando para a precaução de Lacan
que se lê no último capíiulo.q� O Seminário, livro ,23, que chamei de "A escrita
do ego': que não há;�ternidad�� Seria possível dizer com ele: "é pre,çiso tentar
se desprender da ideiâ d;e êiériiidade", �ssa ideia que "niO:gu éJ,n sabe o que é ,,?
(Lacan, 1975-6: 145). Nesse ponto, som�s le�bradÔs 'da esi;utura temporal
que governa o i p.consciente e não permite que alguém se perca em algu_õ;:_tipo
de contemplação de c�mbinatória que interrompa o tempo.
É assim que, nesse último capítulo, Lacan evoca o que seria a falta de
estrutura presente no caso de James Joyce, falta que necessitaria de uma cor
reção, ou melhor, de uma sutura: o próprio sintoma de Joyce, que passaria
pela escrita. A respeito do conceito de falta, que nesse caso nada tem a ver
com a culpa, Lacan esclarece que a lei de ioda interpretação consiste em que
há, "por trás de todo lapso [ ... ] uma finalidade ;ignificante". E ele acrescenta:
"Se há um inconsciente, a falha tende a querer exprimir algu ma coisa, que não
é somente o que o sujeito sabe, uma vez que o sujeito reside nessa divisão
mesma que representei em outros tempos pela relação de um significante
coin outro significante" (: 144). Há algo que o sujeito não sabe e que impele
para se revelar.
Creio enfim que, precisamente a partir desse ponto, · Lacan ressalta, em
seu último escrito, o esp de um laps ,. ou seja, o fato de que é preciso quel'.,tionar
a finalidade significante. A finalidade significante convida à abrangência de
sentido ou de interpretação das formações do inconsciente; presume que, sob
elas, há uma verdade, que busca se fazer escutar, se dar a conhecer. Porém
Lacan, ao q1._1estionar a própria noção de finalidade significante das formações
do inconsciente, ise>la o in�on�ciente real, qu� � um.iQ.�opsciente_�,r�_çalqµç.
Por isso, dur�t�· Ô an� que �e s·;g�-; -0
S��indri�, li;,� 23: o sintho,;;a,
não sem tropeços, Lacan, em "Le Séminaire, Livre xxrv: L'insu que sait de
�__........,_,,""·· ·.-·· .:.,·. .,�
l'une-bévue s'aile à mo urre" ( 1976-7) , ten!a elaborar algo que vá ma!s
. long� .do
que o i11co:risdente. Isso o ocupa até o óÍtÚno suspiro, e eu diria que tem�s de;
A P O S TA N O PA S S E
em vez de nos familiarizar com isso, elaborar o que, para ele, era o hiato, a
falha, entre o verdadeiro e o real
O verdadeiro, o que se crê como tal, é a ideia do real desprendido de toda
cr a. Como definir essa crença? Eu diria que são mentiras em atos, que têm
enç
seus efeitos.
A fé, inclusive a fé religiosa, diz Lacan, é o verdadeiro, que nada tem a ver
com o real. E ele chega a formular que a psicanálise é a forma moderna da fé
religiosa, devendo isso ser outra vez situado no plano do inconsciente trans
ferencial, que em Freud se liga justamente ao Nome-do-Pai. O inconsciente
.
transfet:enciaj._ � o. Nomç do Pai cam.inham de mãos dadas. ,. ..
_.. L�a� -��s diz que o verdadeiro, o �erdadeiro d� crença, está à deriva, quan
a· -
O AVESSO DO PASSE 79
C O M O A L G UEM S E T O RNA P S ICA NALIS TA
/
N A O RLA D O S ÉC U L O X X l 1
81
terapêutica equivaleria a formar-se como psicanalista, que isso seria a via
régia da psicanálise.
A NÁ L I S E F I N I TA E I N F I N I TA
82 APOSTA NO PASSE
faz com outro sentido. A análise é suscetível de terminar. Sim, uma escansão
em seu trabalho de psicanalisante lhe permite separar-se daquele que o enga
jou e sustentou nesse trabalho. Mas não, não é. por isso que você deixará de
ser analisante, a fim de dedicar-se a ser apenas analista, a fazer girar a mani
vela do dispositivo e ser um profissional. É o que nos. exigem, evidentemente,
por todos os lados. É o que nos exige o Estado, em particular: que sejamos
uma associação de profissionais.
Quando_ o nomeiam AE, Analista da Escola, é porque se considera que,
doravante, você está em condições d� prosseguir sozinho seu trabalho de
analisante. E apenas isso! Prosseguir sozinho não quer dizer na solidão. É pros
seguir sem que lhe seja necessário que 6 sujeito suposto saber seja suportado,
encarnado por alguém a quem você paga. É prosseguir numa relação direta, se
assim posso dizer, com o sujeito suposto saber. Esse adjetivo, «direto': não me
agrada muito porque isso não se dá sem mediação. A mediação que se propõe
é a Escola. Ao menos, é isso o que lhe propõem, quando o nomeiam Analista
da Escola. Não se poderia ser analista sem ser analisante. E não se poderia ser
analisante sem transferência. Nomeá-lo Analista da Escola é propor-lhe a Es
cola como suporte da transferência, a Escola, uma vez que ela quer ser sujeito,
sujeito suposto saber. Disso decorre o título com que Lacan adornou a revista
de sua Escola, Scilicet, ''Tu podes saber': em latim, completado por: "Tu podes
saber o que pensa sobre isso a École freudienne de Paris':
O fato de a transferência com a Escola ser positiva sem dúvida facilita
as coisas, todavia o fato de ser negativa não é uma objeção. Estar insatisfeito
com seu funcionamento, reivindicar coisas à sua direção, ser hostil às suas
instâncias ou estar descontente com seus colegas, nada disso é grave. E tal
vez seja até o mais comum. Negativa, ela é igualmente transferência. Mas a
transferência tem também outros destinos. Seja como for, ela nunca se anula.
Quando se desvia da Escola, volta-se, por exemplo, para o que chamamos de
sociedade.
O A C O N T E C I M E N T O D E S U J E I T O Q U E FA Z U M A N A LI S TA
AP O STA NO PAS S E
se trata. O ser é limitado pelo devir, mas não o real. No âmbito do real, a
oposição entre o ser e o devir cessa de ser pertinente. Nesse campo radical,.ser
analista, devir analista, poderia decorrer apenas do imaginário, dos efeitos de
prestígio social, como Lacan o indicava em seu derradeiro ensino. Temos
de levá-lo a sério. Disso resulta uma questão que considero não respondida:
no âmbito do real, podemos dar à.o analista um status que não seja apenas
semblante? Meu título, que também se dirige ao grande público, situa-se
aquém dessa questão e a deixa em seu horizonte.
Portanto, tendo de escolher entre ser e devir, optei por este. Isso implica
apontar o acontecimento de sujeito que pode f azer um analisante merecer o
título de Analista da Escola. O acontecimento de sujeito que faz o analista,
ao menos o Analista da Escola - e aqui temos uma restrição - é, em primeiro
lugar, uma realização de significantes, vale dizer, uma articulação, uma orde
nação dos significantes-mestres, do amontoado, do enxame, da constelação
de significantes mestres que determinaram o destino de um sujeito. É a realida
de psíquica, Realitiit, tornada Wirklichkeit, realidade significante.·Essa realiza
ção significante apresenta-se, pode apresentar-se, como um sistema dedutivo
apenso a axiomas. Posso trazer um exemplo que me ocorreu nesta semana, o
axioma: "Toda mulher é mulher do pai': ou seja, um axioma do tipo "Totem
,,
e tabu . Desde então, na relação sexual, eu sou um ladrão, um larápio, um
transgressor, um perverso. Durmo toda noite com a mãe, ou a filha. Por
tanto, exponho-me sempre à cólera do pai e vivo aterrorizado usando de ar
dis, engano o pai e sou tanto ma1s ameaçador quanto mais incessantemente
ameaçado.
A perversão não se enraíza, como se crê, na relação com a mãe. Ela se enraíza
na relação com o pai, em conformidade com o célebre neologismo de La
can que permaneceu não compreendido, a saber: a pai-versão [pere-version] .
O Édipo é o princípio da pai-versão, razão pela qual Lacan pôde dizer que o
desejo como tal é perverso. A pai-versão é o substituto mais comum da rela
ção sexual que não existe. O que chamamos de perversão é o que faz existir
a relação sexual.
Mas, para o acontecimento de sujeito que faz o analista, não basta uma
realização significante. Ele se completa, diz Lacan, por meio de uma revelação, ·
da fantasia, à qual está ligada. Aliás, é por meio dessa revelação que o passe é
mais comumente designado sob o nome de "travessia da fantasia", expressão
que figura apenas uma vez em Lacan. Nós é que fizemos dela um xibolete.
Eritre realização significante e revelação da · fantasia há ligação, isto é, re
lação íntima. A palavra ligação [accointance] merece ser retida. Entre as duas,
não há continuidade, não há consecução; não há articulação. Existe, ao con-
S I N G U L A R E PA R A D I G M A
86 A P O S TA NO PA S S E
preservará de confundir seu trabalho tenaz de analisante com seu exercício,
de analista. Os dois devem ser mantidos disjuntos, caso contrário, como eu
disse, será a análise da contratransferência.
No título que proponho, eu disse também como. Como alguém se torna.
Disse isso à maneira de uma paródia de tudo o que se propõe nos manuais
de savoir-faire. Em inglês: how to. Quando se trata de tornar-se analista, todo
savoir-faire desfalece. E essa é a razão pela qual ocasionalmente nos lançamos
de novo ao savoir-faire clínico. No entanto, deveria nos deixar de orelha em pé
o fato de que, a fim de aclimatar a psicanálise à universidade, um senhor cha
mado J)aniel Lagache, cuja subsistência se deve ao "Relatório" que escreveu e
suscitou de Lacan algumas observações (Lacan, 1960a), teve de inventar a psico
logia clínica. Isso continua a ser o que era: apenas a promessa de um savoir-faire
que desconhece o inconsciente e o desejo - em particular, o desejo do analista.
Há uína clínica. Ela não é e nunca foi psicológica. Ela é, em primeiro lu
gar, psiquiátrica. Foi transformada pela experiência freudiana, foi levada ao
materna por Lacan e a originalidade da École de la Cause freudie?-ne foi pro
mover o slogan do retorno à clínica. Ao menos, foi assim que um historiador
da psicanálise contemporânea resumiu a orientação dada aos trabalhos dessa
Escola em 1981, momento em que ela nascia miraculosamente dos escombros
de uma dissolução que, um quarto de século depois, ainda determina o pa
norama da psicanálise francesa.
Não renego o retorno à clínica. De fato, há vinte anos o esforço das Se
ções Clínicas tem sido condensar, resumir, tornar pragmático o saber clínico
que se deposita do ensino de Lacan. Mas o que qualifica o clínico é sua expe
riência, seu savoir-faire, o talento de apertar os botões necessários para que
o outro se ponha em marcha. Coisas que devem ser desaprendidas para tor
nar-se analista. É o esquecimento da clínica que funda a operação analítica.
Somos clínicos quando acumulamos a experiência de um grande número
de pacientes. É preciso que isso vire nada para, no discurso analítico, acolher
como único o sujeito que se oferece a ele.
Esse é então o âmago do título que proponho: Como alguém se torna
psicanalista na orla do século xx1. Acrescento que, por _trás desse título, há ou- .
tro, de um artigo de Baudelaire, de sua juventude. Ele tinha 24 anos quando ·
escreveu "Como alguém paga suas dívidas quando tem talento': a respeito de
uma gatunice de Balzac. O que me agradou nesse título foi o "alguém" [ on] .
"Caro alguém': diz Lacan. Esse on é qualquer um, é o HCE, de Joyce, o here
comes everybody. Cada um se inscreve aí. Como alguém se torna psicanalista
na orla do século xx1 quer dizer, então, abaixo os analistas que seriam clínicos.
Deixemos o ser clínico para os psicólogos.
N. da o. Texto estabelecido por Christiane Alberti e Philippe Hellebois, com base na séti
ma aula do ·curso de Orientação lacaniana "Choses de finesse em psychanalyse': proferida
em 14 de janeiro de 2009. Originalmente publicado sob o título "Une psychanalyse a
structure de fiction': La Cause du Désir. Revue de Psychanalyse, n. 87: Fictions, Paris, 2014,
p. 69-77.
91
deixar O meu consultório vermelho e ir até o quarto an�ar, onde receberei
. você no consul�ório azul". Tudo permanece semelhante. O exemplo que g.ei,
no entanto, pode indicar o progresso do saber pela troca de um lugar ou de
um professor.
De todo modo, pode ocorrer uma troca de analista para que uma análise
se conclua. Isso pode ser inclusive uma tradição em uma comunidade analíti
ca em que há analistas habilitados a iniciar as análises, mas não a terminá-las.
E, vez por outra, tais analistas se questionam s.e estão mesmo à altura de fazer
com que seus pacientes terminem as suas análises.
Mas deixemos isso de lado e admitamos que a estrutura permanece a
mesma. Constatamos que essa permanência não é um obstáculo para que os
acontecimentos se apresentem de maneira bastante diferente, de acordo com
o que se passou no início ou foi instalado ao longo da duração. O que se passa,
como nomeá-lo? Trata-se de um fenômeno ou de fenômenos? Para que haja
fenômeno, é necessário que exista nômeno, e não a estrutura. Ora, a estrutura-
-nômeno, por hipótese, não é o nômeno no sentido em que Kant emprega essa
palavra - não desenvolverei esse ponto. Como digo estrutura, prefiro dizer
acontecimento, em vez defenômeno.
Uma análise que se inicia é rica em acontecimentos. Isso muda, o que cha
mamos de transferência, palavra gloriosa para qualificar tal mudança. Trans
porta-se para outra pessoa o que se tem na cabeça, o que se dizia a si mesmo.
É um fato de transmissão, ·de comunicação. Partilha-se o que se crê ter de
mais íntimo. Evidentemente, há uma parte disso que já se havia dito a fulano
ou beltrano, mas normalmente também existe o que jamais se disse a alguém.
Trata-se, portanto, de uma transposição, o que não é algo anódino.
Não empreguei a expressão o que se diz a si mesmo sem alguma reticên
cia, pois é bastante complicado o que dizemos a nós mesmos. Percebe-se
só-depois que a si mesmo se dizia apenas a metade, de modo vago. Essa im
precisão é o que adornamos com o nome de consciência. É abusivo imaginar
que a consciência definiria um lugar transparente. O que se diz consciente
mente aparece, na maioria das vezes, de maneira esboçada, permanecendo no
conjunto, em termos estritos, amorfo, sem ter sido posto em forma.
Notamos isso nos romancistas que, no fim do século xrx e no início do
século xx, se puseram a escrever sobre o "fluxo da consciência': the stream of
consciouness, algo que teria sido inventado pelo francês Édouard Dujardin.
92 AP OSTA NO PASSE
James Joyce se notabilizou com Ulisses pela escrita desse fluxo de consciência.
Virgínia Woolf também se entregou a esse fluir em seu delicado romance
Miss Dalloway - sua esquizofrenia ainda não estava completamente desenvol
vida para que isso se tornasse mais interessante. Eu classificaria tudo isso nos
efeitos de invenção freudiana sobre a literatura. Por que não uma enformação
literária do amorfo mental?
Uma análise começa sob o modo da formalização, em que o amorfo se vê
dotado de uma morfologia. Não se trata apenas de que o implícito se torne
explicito; há uma transformação, que é radical, porque se passa da ausência de
forma a uma determinada forma. O amorfo se desenha a cada sessão, ele adqui
re seus ângulos e se apresenta sob wna luz diferente. O que mais se aproxima
do que então está em jog� é a configuração de nós que têm a mesma estrutura,
mas que assumem formas diferentes, de acordo com a maneira com que se
puxam as cordas que os representam. Isso é muito realista, mas é de fato o que
acontece. Ao longo das primeiras sessões, a massa mental do amorfo se distri
bui em elementos de discurso.Apenas o fato de convidar a falar aquele que está
diante de você faz com que o amorfo mental adote a estrutura de linguagem.
E quando isso não se produz, é muito inquietante. Às vezes, isso se produz de
modo apressado, premente, como se essa massa apenas esperasse uma ocasião
de dividir-se, repartir-se e comunicar-se. O desenho que então surge está con
dicionado, ao menos em parte, pelo endereçamento, pelo destinatário.
Eu me referi há pouco aos escritores que, na época de Freud, buscavam
transcrever seu fluxo de consciência. Eles o formalizavam no tom, no estilo
do que eles acreditavam ser - merecidamente, no caso dos autores citados - a
literatura, com preocupações de cadência, harmonia, beleza e emoção. Outro
exemplo a esse respeito é o verdadeiro católico, que, de acordo com Lacan, é
inanalisável. Por quê? Porque seu amorfo mental está submetido à prática da
confissão e, portanto, se formaliza espontaneamente segundo as categorias
de seu destinatário. Pode-se observar que essas categorias concernem essen
cialmente ao gozo errôneo - trata-se de confessar que o gozo não é aquele
que deveria ser. Evidentemente isso se abrandou sob a influência de Freud,
mas é a orientação dessa prática que visa assediar o pecado. Felizmente, não
existe o pecado, mas os pecados, avaliados segundo uma escala que vai dos
mais graves àqueles que na verdade não contam, os veniais. Isso permite to
das as astúcias - por exemplo, confessar o venial para adiar o capital -, num
jogo que se destina a obter, por um bom preço, a absolvição. Lacan pensava,
imagino, que aqueles que estão muito agarrados a essa prática, os ases da con
fissão, são impermeáveis à analise porque se tornaram demasiados astutos
para dizer de seu gozo.
94 A P OS TA NO P A S S E
exemplo supostamente cabe ao analista, devendo o analisante imitá-lo - e
na implantação de outro supereu, próprio à experiência analítica, entendido
como a imposição de dizer a verdade, toda a verdade, sem fingimento. Tal
injunção é bastante valiosa numa análise que se inicia, porém se torna para
doxal e mesmo impossível de ser satisfeita na análise que dura.
A entrada em análise produz efeitos imediatos, lógicos. Regularmente,
mas nem sempre, na maioria das vezes, são efeitos de alívio, terapêuticos.
Uma análise que se inicia produz efeitos terapêuticos rápidos. Uma análi�e
que dura tem efeitos não terapêuticos le:ritos e pode, inclusive, ter efeitos de
deterioração. Corrijo de imediato o excessivo otimismo em falar em efeitos
terapêuticos rápidos da análise que se inicia, já que é bem conhecido o fato
de que a formalização, em particular a do sintoma, pode se traduzir por um
agravamento. O sujeito se dá conta que está mais doente do que pensava. Tra
ta-se do efeito Knock da psicanálise. Agrava-se a doença quando se vai ver seu
médico, como ensina a lição de Moliere em O doente imaginário. No fundo,
trata-se de um efeito de alívio por objetivação; pela transmutação do amorfo,
o paciente se torna um objeto, uma referência, de que se fala. E o milagre
da operação é que assim se obtém o efeito brechtiano de distanciamento.
O íntimo passa para o exterior, sempre acompanhado de um sentimento de
"Eu já sabia disso, mas eu não sabia disso>: podendo o acento recair de um
lado ou do outro.
A transmutação do amorfo traz em si a ideia de inconsciente. Se quiser
mos pôr em questão o termo de inconsciente, como o fez Lacan - a própria
noção de inconsciente era demasiadamente vaga para dar consistência à sua
negação, e também porque estruturar o inconsciente em termos de lingua
gem tornava ineficiente a referência ao consciente - enfim, se quisermos se
guir nessa direção, diremos que tal noção do inconsciente responde ao efei
to de extimidade engendrado pela formalização do amorfo. ((Isso estava em
mim e, no entanto, isso me era desconhecido, isso não era sabido por mim.':
É nesse sentido que é êxtimo o que chamamos de inconsciente.
Uma análise que se inicia ocorre em uma atmosfera de revelação. Ela não
necessariamente se inicia quando se estabelece um processo de encontros
regulares, mas ela se desenvolve como fogos de artifício de. revelações, a partir
do momento em que o sujeito se esforça em fazer passar o acontecimento de
pensamento para a fala. O amorfo dá lugar à articulação de elementos indivi
dualizados, que desse modo se mostram rastreáveis, para empregar um termo
de nossos dias, demarcando-se que eles provêm de um antes - em geral, da
infância - e que retornam.
Em uma análise que dura, logo se percebe que a revelação é mais rarefeita, es
fuma-se e chega mesmo a desaparecer. Trata-se, pois, de um regime comple
tamente distinto, em que a revelação é substituída, em sua prevalência, pela
repetição.Trata-se não da repetição de elementos rastreáveis produzindo um
efeito de revelação, e sim de uma repetição que conflui para a estagnação.
Uma análise que dura requer atravessar a estagnação, suportá-la, explorar
os seus limites,- que são a jaula do sinthoma. Chamei isso, tempos atrás, de a
experiência do real à maneira da inércia - espera-se que isso ceda. Na análise
que dura, há por certo revelações, mas o que na verdade mais se espera - tan
to o analisante quanto o analista - é algo próximo da renúncia da libido, da
retirada da libido de alguns elementos rastreáveis que foram desembaraçados
na época da revelação. A questão que consome não é tanto aquela de um
tempo para compreender quanto a de um tempo para desinvestir, para que -
tomo isto emprestado de Lacan - o interesse da libido venha se condensar
no que ele chamava de objeto a. Mesmo que o modelo desse objeto seja um
objeto pré-genital, ou ainda o objeto winnicottiano, trata-se aqui da hipótese
de que o gozo se retira para se condensar em um p9nto e de que se faz desse
ponto um objeto condensador que possa absorvê-lo.
Isso estabelece uma diferença na vida de um analista. Um analista ini
ciante tem a experiência da análise enquanto ela se inicia - estando a sua
supostamente à parte -, e uma análise enquanto se inicia é o tira-gosto do
analista, o prazer do analista e o prazer do analisante - os americanos cha
mam esse período de "lua de mel': Ah, que maravilha, que triunfo apenas
fazer as análises se iniciarem!
Estar implicado com a análise enquanto ela dura é outra coisa. Em mi
nhas reflexões, eu dizia a mim mesmo: "Eu me viro, mas a questão é saber
como". Refleti sobre isso tendo Lacan como companheiro, tal como Dante
segura na mão de Virgílio e o próprio Lacan segura na de Joyce para que este
o guie no sinthoma, a mesma mão de que me sirvo para orientar-me nessa
selva obscura que é a análise que dura. E sem duvidar do peso das reprova
ções que isso pode acarretar: "Você não faz nada para me tirar daír'. O que
me dá essa mão é esta proposição que sublinhei e já comentei tantas vezes, e
que tomo como uma indicação: a verdade tem estrutura de ficção.
A verdade é a substância da experiência analítica, o que é engendrado
por ela. Isso só se mantém porque há revelações, iluminações·, instantes de
ver, o que os ingleses chamam de insight. À diferença das verdades com que
Descartes sonhava à luz das matemáticas - no âmbito do materna, pode-se
A P O S TA NO PASSE
ter certeza de que há verdades eternas -, as verdades engendradas pela experi
ência analítica são mortais, elas se encontram no plano do paterna, do que se
sente. Elas são verdades patéticas - paterna tem a mesma raiz que patológico,
patético etc. Ora, é nesse plano que elas são variáveis, o que fez Lacan criar o
neologismo varité, verdade variável. A propósito, é por isso que se pode que
rer mudar de analista; cansados da verdade alcançada, dirigimo-nos a outra
pessoa, dizendo para nós mesmos que iremos mudar de verdade.
Ficção, o que isso quer dizer? Que se trata de uma fabricação, que isso não
pertence à ordem da natureza, à physis dos gregos, e sim à ordem da poeisis,
da produção, do fazer. Uma ficção é uma produção que contém a marca do
semblante, o que de modo algum a desvaloriza. Modifica-se a configuração
dos nós, multiplicando-se assim os modos em que aparecem, os seus sem
blantes. Na análise, a ficção é um fazer que repousa em um dizer. Mas o fictí
cio se opõe ao real, e já que há tempos tomei como slogan a orientação para
o real, isso obriga a extrair todas as consequências da estrutura de ficção da
verdade.
Lacan sé lançou em desavenças, ao se opor a uma orientação da prática
da psicanálise para o imaginário, substituindo-a por uma orientação para o
simbólico, que consiste em reconhecer o inconsciente como uma estrutura
de linguagem, em formular que o inconsciente tem estrutura de linguagem.
Isso quer dizer que o significante é distinto do significado, que ele prevalece
sobre o significado, que as combinações e as substituições significantes deter
minam o significado.
Tudo oscila - como assinalei, é de fato um corte - com o que Lacan for
mulou na última lição de O Seminário, livro 20: mais, ainda, que escutei ser
pronunciado: a estrutura de linguagem, no fim das contas, não é mais do que
uma elucubração de saber sobre a língua, ou seja, a estrutura de linguagem é
tão somente ficção, ela tem estrutura de ficção - em termos radicais, uma elu
cubração -, uma ficção coletivizada, sedimentada, consolidada ao longo dos
séculos. Isso, todavia, não se transmitiu para uma parte não negligenciável de
seus leitores que se tornaram seus alunos. Não há jeito de eles conseguirem
considerar o simbólico algo próprio à ordem da ficção. Pensam que é da or
dem do real. No entanto a ideia de que ele é da ordem da ficção é necessária ,
para se dizer, por exemplo, que não há relação sexual e que a ordem simbólica
é uma espécie de penso [pansementJ , uma elucubração de saber que tenta
mitigar essa ferida.
Não estamos a ponto de proferir algo mais agudo, mais arriscado, de dizer
que o inconsciente, em análise, tem estrutura de ficção? Ou que o inconsciente
freudiano tem estrutura de ficção? O ultinússimo ensino de Lacan me parece
O Q U E P O D E S E R U M A ANÁLI S E Q U E T E R M I NA
O ensino de Lacan está marcado por seus começos, que são marcados pelos
começos de Freud, eles próprios marcados pela análise que se inicia. É a raiz
do entusiasmo que caracteriza c'Função e campo da fala e da linguagem em
psicanálise" ( 1953), e Lacan, ao reler em 1966 o texto de 1953, já se distancia
desse entusiasmo. Ele afirmou logo em seguida: a destituição subjetiva gravada
no bilhete de ingres�o não afasta ninguém. E verdade, mas isso está escrito em
2
letras miúdas. O que está escrito em letras garrafais é: 'Venha, venha, a verdade
o espera, e não apenas uma, mas várias!" Bilhete de ingresso? Isso parece mais
um galhardete - pensem num circo que chama seu público tocando bumbo.
Quando a análise dura, isso se conclui sabendo-se se seu eixo se desloca
para a oposição entre saber e gozo, explicitada por Lacan em suas fórmulas
dos quatro discursos. Ele tentou agrupar tudo isso, a partir do momento em
que a dinâmica disso de que se trata começou a pôr em questão a noção
de objeto a, noção que visava encerrar o gozo em um objeto, situado, em
2 N. da T. Cf. "Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola (I.acan, 1967a: 257).
A P OSTA NO PASSE
geral, como a produção de uma articulação significante. Foi assim que ele
situou no inconsciente, sob o nome c:J.e discurso do mestre, uma articula
ção significante, S1-Sl , um efeito de verdade, S, e uma produção de gozo, a.
Em O Seminário, livro 16, ele inventou esse objeto como o objeto mais-de-
-gozar; em O Seminário, livro 17, ele o inseriu na estrutura de linguagem; e em
O Seminário, livro 20, foi preciso fazer aparecer um espaço amorfo, no qual
pôs um J maiúsculo [ de jouissance, gozo] , para desmentir justamente que se
pode encerrá-lo daquela maneira. A seguir, Lacan se dedica à estrutura do nó,
que não tem m�s nada a ver com a estrutura de linguagem.
s -s
I 2
S a
1. gozo-excesso
2. gozo-satisfação
Uma psicanálise tem . estrutura de ficção. O que se pode dizer do que eu, há
não muito tempo, estabeleci como inconsciente transferencial, além de que se
trata de um inconsciente construído na análise? Como não abrimos mão de
falar de construção da fantasia, sigamos em frente, rumo à construção do in-
100 A P O S TA NO PASSE
consciente em que o analista tem algo a fazer. É porque o analista está presente
e dirige a construção que o inconsciente adquire sentido e se interpreta. Isso é
0 que se encontra escondido sob o termo associação livre, que é um convite a
prestar atenção no que se diz, no que nos ocorre. Não há ocasião mais propícia
para que a associação livre se manifeste do que uma parada forçada, operada
por uma interpretação, que pode, com efeito, resumir-se a sublinhar a inter
rupção da fala em uma determinada palavra. Uma vez que se presta atenção a
isso, pode-se começar a fazer o que, em inglês, chama-se de to connect dots, ligar
os pontos, como nos passatempos que se encontram em determinadas revistas.
Fazemos então nascer formas, de acordo com o ponto em que se para, ou seja,
fazemos o imaginário florir a partir do simbólico.
O inconsciente real, de sua parte, é aquele que não se deixa interpretar, ra
zão pela qual, nesse último ou penúltimo texto - ainda há "Todo mundo é lou
co" -, o inconsciente é definido como um lugar onde a interpretação não tem
mais nenhum alcance. O inconsciente real é o lugar do goro opaco ao sentido,
e em que se pode, pela ficção, começar a tomá-lo falador. Por isso, Lacan, nesse
mesmo texto, evocou a histoerização da análise para qualificar o passe. Mas é
a própria análise que é uma hístoeria. Pode-se então dizer que uma psicaná
lise tem estrutura de ficção é uma histoeria, seja isso um relato ou mesmo um
romance, com sua continuidade, ordenada de acordo com o desejo do Outro.
Onde repousa a questão do passe? Como se pode localizar um analista?
De qual articulação entre ficção e gozo resulta? O que esse gozo deve ou não
deve ao desejo do Outro? Lacan supõe que o passante, o Analista da Escola
por vir, sabe bastante sobre isso porque ele liquidou a transferência, como
se diz. Por que retomar essa velha expressão dos supostos ortodoxos, se não
para designar, nas entrelinhas, o inconsciente transferencial?
Surge assim como indicação do que pode ser uma análise que termina os
modos em que se podem reunir o testemunho da hístoería e o da satisfação
no fim da análise. O inconsciente transferencial tem um nome, um nome
lacaniano, que é verdade mentirosa. É assim que nos é indicado o que abre a
porta do fim de análise, o que pode fraturar a reserva mental que se chama
de falta da relação sexual
D O UT R I NA C L Á S S I C A
103
para grande parte de seu ensino. Quando se acompanha o seu Seminário
cronologicamente, percebe-se a insistência crescente, a urgência que ele ex
perimenta em propor uma doutrina . . . .do fim de análise. Essa doutrina lhe é
. . -,. -� . . . . .
reclamada e ele a promete. - �--
o,, .•, ·
ª
rificação, se nã�-ae�@�;;�õ �����:·;ufici��t�m�iiii1�iif�_:ii�; p�der obt�r
�i>i<>;ªç_ãg_de llPlª co�uajdadé:A·doutrina que então estabe1eceeuídi;;o
ciáve1 do procedimento que el�- -inventa para tornar essa formulação efetiva.
O primeiro resultado obtido por Lacan foi, em vez disso, uma cisão entre seus
discípulos, dos quais alguns recusaram o procedimento assim definido. Esse
resultado inicial foi, então, dar um brado especial a essa novidade, fazê-la
aparecer como uma escansão essencial, P!e��edig?.;. 4�. ,W11--Semm�iQ_�_?.!?t�, a
lógic.a.. q;;1 :fa,ntasia e seguida,, de um Seminári9;obr� o a�o an��iço.
Todo esse �parelho - dois . �eminário·s� a própria pr�posição sobre o psi
canalista da Escola e os escritos produzidos logo depois, por ocasião de uma
viagem para conferências na Itália (Lacan, 1967b) -, conforma um conjunto
considerável, em relação ao qual as três pequenas páginas do último texto
de Outros escritos parecem bem franzinas. Não obstante, pretendo levá-las a
sério e mensurá-las em face do enorme maciço da doutrina clássica do passe.
D E S L O C A M E NTO
seminários, a função do desejo do analista era tida por Lacan como uma en-
,.. ,..
. - - ,��� ...�...�........,�:'1..........,.., ..........,.....,..,,.·· '"�-... ,.._,,.-::,,.__a..:·.::.-· · '·'l..i ...&.,_,,..,,,..
104 A P O S TA NO PASSE
contratransferência. Essa era a maneira de os membros dessa associação di
zerem que o analista era solicitado pela experiência que governava, e que isso
ocorria no âmbito de seu inconsciente, outra maneira de dizer que ele não
p odia se subtrair da operação. É nesse lugar que Lacan inscreve o desejo do ·,
analista, atribuindo-lhe, porém, um valor completamente diferente do valor
da contratransferência, já que ele entendia o desejo do analista nos termos
de uma função simbólica que devia encarnar-se no analista, sem que por isso
mobilizasse o seu inconsciente.
De maneira breve, digamos que o desejo do analista se resume à questão:
"O que tudo isso quer dizer? Tudo que eu, o analisante, digo, o que tudo isso
quer realmente dizer?" É essa a questão, transposta em termos de vontade.
Trata-se da questão da significação, mas em que o quer - o que isso quer di
zer? - se destaca do dizer, em que o querer se destaca do dizer e se torna um
"O que quer o analista?"
Como o apresento aqui, esse deslocamento indica bem a que ponto o senti
do é dependente do destinatário do discurso. No que se subtentende, o que ele
quer é o que isso quer dizer. -A interpret�çã<?. �e � _n,o lugar e� que o �alista
indica o que ele quer queJss� qlleira _d!zer. �implesm�nt;, iiêm-�ím i�s�se
esclarece, porque· repercurte nos termos da questão: O que ele quer?': e isso se
- .
,-...........__,.,.•.....,...,.__---..___,.. . .. • ·-- · .
. . •� - -� .. . '• .. . . • ,.. • . • . •. . , .. . ,..e . • . • ..-· �- ... ''
inverte e retorna para o sujeito, o analisante, como "O que você quer?"
Tais efeitos só são obtidos, se o desejo do analista permanece velado, co
dificado. Nessa perspectiva, o desejo do analista corresponde ao "O que isso
quer dizer?" tornado incandescente. Trata-se do enigma intrínseco a toda ar
ticulação significante, ou seja, ao fato de que um significante remete a outro
significante. Por isso, o desejo do analista, apreendido como tal, é um x, situado
no lugar da significação última.
O fim da análise seria a solução desse x. Em "Proposição de 9 de outubro
de 1967'', Lacan propõe duas versões equivalentes: um certo há e um certo não
há - uma solução positiva e outra negativa.
A solução negativa é um n ad a, um nada há nesse lugar. No lugar da sig
nificação última, só há ·o vazio, a P.��-�unç�� do desejo. Lacan escreve essa
solução negativa, nos termos freudianos com que fez maternas, como --<p.
Trata-se de uma alusão à castração, de que o próprio Freud, em seu texto
sobre o fim de análise, tinha como o nec plus ultra da análise: o que deve se
revelar no fim da análise é a significação da castração:
-<p
castração
2 ''A miragem da verdade, da qual só se pode esperar a mentira [ ... ] não tem outro limite
senão a satisfação que marca o fim da análise" (Lacan, 1977: 568).
106 A P O STA N O P A S S E
certo efeito de significação que obtura a solução do desejo do analista. É, para
simplificar, ª�,�µposiçã9 do insc9nsciente; a �oção segundo
. a qual o que se diz
em at1.álise _qµ�r _dizer o_utra c�is�. -
Tal suposição do i�conscie�te se mostra necessária para recolher o que
aparece como as palavras, a�ressões e os significantes que determinam o
sujeito, de tal modo que (i S<!�r _: que, no início, é apenas suposto, apenas
uma significação ..,. se efet�e· p:r9gress�v3.1!1enJ� ao longo da_. a_)?_álise, e se acu
mulem os significantes articulados que constituem'-iim s'aber:-saber que se
torna o sujeito. O sujeito, que no começo é um saber apenas suposto, torna-se,
pela experiência analítica, um saber efetivo.
É assim que o analisante se situa, no termo da análise, como sabedor. Tra
ta-se de um versado [savantJ , em sentido literal. A análise produz um versado.
O analisante é, essencialmente, o versado de seu desejo. Ele sabe o que causa
seu desejo. Ele conhece a falta em que se enraíza seu desejo e o mais-de-gozar
que vem obturar essa falta.
No fim da análise, temos então u111 sujeito que sabe. É p.esse c:ontexto
que ,ç. pãsse "àciquire �al.or; _() sujeito tem a dizer � quê ele sabe,
. isto é, de que
modo se_ preencheu o lugar vazio do sujeito suposto saber, de. que modo esse
saber se efett1ou para ele, de que modo ele passou da suposição ao apanhado
d� que s�_ :r�vela como um significante. chave e,, _g_ep9.is..,.Jk.JJ:IJ1i;� outro, que
não são forço�aÍnente compatíveis/Mud.�n.ças ocorrem,. .pod�_!l-toJNão são
elementos independentes uns dos o'i:1tros.' A. chegada de um elemento novo
modifica o valor dos elementos acumulados. Trata-se precisamente de uma
articulação que continuamente se faz só-depois. O fim da análise demarcaria
o encerramento da experiência, isto é, o acesso a um só-depois definitivo.
Após inúmeros vaivéns, hesitações e oscilações, haveria um sujeito novo.
A medida que desaparece o sujeito que ignorava a causa de seu desejo, emerge
o sujeito versado. É esse saber que o passe tenta extrair do sujeito. Ele tenta
obrigar o sujeito - com o consentimento dele - a partilhar esse saber com
uma comunidade reunida em uma Escola e também com o público, já que
Lacan indica que o sujeito deseja publicá-lo.
A desaparição do acontecimento-passe
Disse que esse último escrito é UJ.11 retornq ao passe. Trata-se de um retor
no d1s?rito:· que n.ão se mostra com� tal, nerri " anuncia a retificação que opera.
Êss� t�xto se apresenta, aliás, sob a forma de wna sequência de proposi
ções que podem parecer desconexas ou, ao menos, testemunhar uma organi.,.
zação bastante imprecisa. Caracterizar esse texto como um retorno ao passe
já é uma pontuação, já é uma proposição de leitura que faço, haja vista o texto
conter - isto é notável - apenas metade da questão do passe.
gg_���Y:�� ,�����?���:"�!31: ��,?�����-�to��1;!,�J?E�:dim��,�ra-
ta-se de um acontecrmento que suposta - mente mtervem no curso da análise
e, na sequência, de um procedimento oferecido àquele que "p ensa ter sido o
sujeito desse acontecimento, a fim de que ele possa comunicar alguma coisa
disso a uma comunidade analítica.
Ora, nesse último texto de Lacan, não há nada sobre o acontecimento -
nem uma palavra Nele, o passe é essencialmente um procedimento inventado -
108 A P O S TA NO PASSE
para verificar o fim de análise? � termo verificar nem mesmo está lá - para
submeter ao dizer o fim de análise.
U R G ÊNCIA E S AT I S FA Ç Ã O EM ANÁLI SE
3 Esta é a frase completa: "Posto que dar essa satisfação é a urgência que a análise preside,
interroguemos como alguém pode se dedicar a satisfazer esses casos de urgência" (Lacan,
1977: 569).
Q UAND O O S S E M B L A N T E S DA P S I C A N Á L I S E VAC I L A M
O PA S S E D O PALASSBR 115
É PA S S E ? 1
PROPULSÃO O U RETENÇÃO
117
nos subterrâneos da École de La Cause freudienne, no subsolo da rua Huys
mans - na sala da biblioteca; conclui-se por um "Sim" e isso se espalha pelos
quatro cantos do mundo. É muito singular.
Tanto quanto o "Sim" é propulsivo, o "Não" é retentivo: retém-se o discurso.
O foguete é desmontado e não saímos do lugar.
Eu testemunho desse modo a minha impressão, a minha emoção de re
tomar este lugar nesta comissão, que é verdadeiramente um júri2 é assim -
À C E RT E ZA A N T E C I PA DA , P E R F O R M A N C E I N C E RTA
2 N. da T. Em francês, o termo jury é usado também com o sentido de banca e não apenas
no sentido jurídico, como fazemos em português. Convém ter em mente essa dualidade,
Neste artigo, penso que o mais apropriado é aproximar o júri do dispositivo do passe do
júri de um programa de auditório.
3 N. da T. Em francês, écho-le e École (Escola) têm a mesma pronúncia.
118 AP O STA NO PA S S E
"Talvez': Ser posto na posição de ter de dizer ''Sim" ou "Não" muda alguma
coisa. Com o "Talvez': o analista deixa o analisante tentar sua sorte - não levo
em conta os casos em que ele se precipita para o passe, sem lhe perguntar sua
opinião, ou mesmo segue adiante contra a sua opinião.
Parece-me que, na prática, o analista não julga o passe, sobretudo porque
este é uma performance, e não uma competência. Digo com segurança, no
tom da conversação, mas isso é uma referência a Lacan. Enunciar "o passe é
uma performance, não uma competência" tem muitas consequências. Quer
dizer, primeiramente, que, no dia previsto, é necessário estar bem disposto.
O passe não é um recorde! Assemelha-se muito mais aos Jogos Olímpicos.
Do lado do passante, seja qual for o grau de sua certeza ao apresentar-se,
trata-se sempre de uma certeza antecipada e, se ela é razoável - o que nem
sempre é o caso -, há necessariamente para ele uma incerteza quanto à sua
performance no dia previsto, posto que muitos fatores entram em jogo: a
qualidade dos passadores, sua adequação ao passante, a composição do júri
etc. Estamos, portanto, necessariamente em uma incerteza, visto que o passe
não verifica a competência. Trata-se de uma performance. Na "certeza ante
cipada", é preciso acrescentar um aspecto não eliminável para o passante, a
saber, a aposta do passe, aposta que nunca se está certo de ganhar.
Há, portanto, uma aposta do passe que consiste em pôr sua análise em jogo,
quer dizer, reuni-la como uma unidade, fechá-la como uma, e fazer dela uma
coisa no sentido da aposta de Pascal - na qual o sujeito faz de sua vida uma
aposta, que já está, como sublinha Lacan, sempre perdida: esforça-se para fazer
de sua própria análise um objeto a, sob a forma do agalma, a fim de que todo
mundo reconheça o seu brilho e exclame: "Está lindo, é novo': e mesmo "É um
golpe no saber': como Esthela Solano-Suárez acaba de formular. Tenta-se fazer
de sua análise um agalma. Eis, finalmente, o que comanda o passe.
Seria possível sustentar que o passe tem a mesma estrutura que o discur
so do analista: o que domina a coisa é a análise tomada como um agalma; os
passadores estão do lado do sujeito barrado, que deve ser comovido pelo dito
agalma; ele é a "placa sensíve1''4 - a fórmula foi relembrada . - dessa análise
agalmática, cujo produto suposto, esperado, é o S1 do título AE. Reencontra
mos então as funções do discurso do analista e, se seguimos às cegas essas
formas, é notável que o saber que - ao menos no esquema - suporta esse
agalma seja um saber suposto, e não um saber exposto.
É PAS S E ? 119
Se há fracasso no passe, é porque o que se apresentou como agalma se
tornou palea; resta que esse objeto a do passe é um produto do fechamento
da análise como uma, que não se encontra no curso da análise.
D O " S A B E R " D E PA S S E A U M A S AT I S FA Ç Ã O
No passe, o saber talvez seja sempre suposto. Relembrar que se trata de unia
performance, e não uma competência, me leva a pensar que nele há dois re
gimes distintos, um regido pelo saber e outro pela verdade.
Há aí uma ambiguidade, pois o projeto inicial de Lacan, em 1967, referia-se
à elaboração de um saber de passe, ao qual ele dava um aspecto quase en
ciclopédico: marcavam-se os efeitos, seriavam-se as modalidades - um pa
rágrafo é consagrado a esse ponto em ((Proposição de 9 de outubro de 1967
,
sobre o psicanalista da Escola , e, de fato, atribuímos grande importância a
isso nos primórdios da École de la Cause freudienne (ECF) .
Entre 1967 e 1980, no entanto, a aplicação do passe na École freudienne de
Paris ( EFP ) não provocou nenhuma elaboração de saber. O balanço foi quase
nulo e Lacan o ratificou, dizendo que o passe era um "fracasso" (Lacan, 1978;
1979) , o que foi tomado em sentido literal; considerando-se a acumulação de
um saber de passe, podia-se apenas segui-lo.
Então, sobre essa base, na ECF, procedeu-se de outra maneira. Fizemos
um forçamento no sentido do saber de passe, dizendo: "Já que se esperava
um saber do passe e que todo mundo fez greve durante 13 anos - era esse o
caso dos caciques da EFP -, nós, nós iremos passar à produção': Instituímos,
por isso, nessa Escola, a obrigação de produzir e de ensinar apoiando-se
no AE e no júri. Periodicamente, essa Escola era, ou ainda é, movida pelo
desejo de estender igualmente essa obrigação aos passadores, e mesmo aos
analistas que os nomeiam e, eventualmente, aos passantes não nomeados.
Todo mundo na produção! Considerado o ponto de partida de "tomar o
avesso", essa Escola era animada por uma verdadeira paixão da produção.
Era produzir, produzir, produzir - Maurice Thorez após a Segunda Guerra
Mundial.
Em seguida, no curso dos debates do início deste ano, notou-se com sur
presa, com estupefação;que o júri do passe, os cartéis do passe tinham parado
de ensinar, a despeito de essa obrigação figurar nos estatutos da ECF.
Admiramo-nos com o fato de que a constituição da Escola fosse violada
desse modo e que os cartéis caíssem em uma espécie de afasia, porém, pas
sado o tempo do opróbio, diz-se que isso talvez seja um sinal dos tempos,
B PASSE? 121
O PAS S E É S UA I N T E R P RE TAÇÃO
122 A P O STA NO PA S S E
PA RA A L É M D E A L C A N Ç A R O E S T R E LAT O
B PASSE? 123
ao passo que, na ECF, é absolutamente essencial que o júri do passe se mostre
animado por uma certa paixão pela ignorância. É preciso que ele se apresente
como surpresa, com seu próprio furo no saber, como um furo em seu pró
prio saber, já que o passe é também o júri ao qual se endereça. Se o Outro do
passe se põe do lado do saber do passe, se ele se apresenta como um clínico
geral, armado de referências já adquiridas, isso torna o passe muito difícil.
É preciso que o júri do passe aceda ao seu próprio desnudamento, que ele .o
aceite e mesmo o manifeste. É preciso que ele se mostre desprovido e, eu diria,
inclusive um pouco confuso. É isso, aliás, o que nós conseguimos fazer muito
bem: se re1,1nimos todos os nossos discursos juntos, realmente, não afinamos
nossos violinos , mesmo se citamos uns aos outros! O passe é, portanto, tam
bém sua interpretação pelo júri.
Ora, por meio de suas fendas, seus momentos, seus ciclos, o passe re
siste há mais de quarenta anos. Basta considerar o que o desaparecimento
do passe produziria para querer preservá-lo. Se não houvesse mais o passe,
poder-se-ia dizer que isso seria um atentado contra a imagem de uma análise.
Haveria a imagem de uma análise fragmentada, sem alma, se posso dizê-lo,
no sentido aristotélico, uma análise da qual não se poderia fazer a súmula e
que estaria à deriva. Assim, por meio de suas dificuldades, por meio de nossa
própria desorientação, é preciso que ele continue, e sem que desejemos que
ele se aperfeiçoe além de nossos meios.
O R E A L RE L U TA N T E À V E R D A D E
Neste ano, mostro, a partir do último ensino de Lacan, que o ser e a existência
são duas coisas diferentes. Essa distinção, ou desnível, se torna necessária para
podermos pensar o que nos impõe a prática e constitui o espaço mais além
do passe, que chamarei de ultrapasse. Somos chamados a responder a isso
como psicanalistas na atualidade. Somos chamados porque são muitos aque
les que, mais além da prova do passe, tendo-a superado ou não, continuam
a sua análise. É preciso, portanto, constatar que existe o ultrapasse.
O ultrapasse condiciona a experiência analítica desde o momento em
que esta se instaura. Tal experiência se inaugura efetivamente com uma busca
da verdade, uma busca que toma a forma de uma demanda do psicanalista,
a saber: "Diga-me a verdade". Essa demanda, explícita ou não, desencadeia,
favorece, nutre-se de tudo o que vem à mente do paciente, ou seja, a demanda
de verdade, implícita ou explicitamente, anuncia-se assim: "Diga-me sem flo
rear, sem rodeios, de modo bruto e mesmo um pouco selvagem, o que você
pensa. O que você me disser dessa maneira será a sua verdade".
Trata-se de uma verdade momentânea, provisória. O analista sabe de an
temão que essa verdade não é definitiva, que ela é eminentemente variável;
sabe que, mais tarde, o paciente dirá algo que não é a mesma coisa. Da parte
do analista, sabe-se que, quando se diz a verdade, mente-se e que não se pode
fazer mais do que mentir. Isso é o que chamamos de real. Damos o nome
125
de real ao fato de que só se pode dizer a verdade mentindo. O real é a razão
da verdade mentirosa. Mentirosa porque variável. A que chamamos de real?
Ao que só podemos dizer mentindo, ao que se �evela relutante à verdade, ao
dizer verdadeiro.
O PAI E M S UA S I N G U L A R I D A D E
Ensino aqui, mas não apenas, porque também faço Apresentações de Pacien
tes. Trata-se de uma prática que se encontra em continuidade com a de Lacan,
surgida em uma tradição dos psiquiatras de seu tempo. Consiste em interrogar
publicamente pacientes hospitalizados, com a intenção de demonstrar sua es
trutura subjetiva ao longo da entrevista, em beneficio dos aprendizes que com
põem a audiência. Essa prática tem sido criticada porque se inscreve no discur
so psiquiátrico, mas Lacan recusou as objeções que se formularam a título de
certa rebelião contra as instituições e a prática se manteve no Campo freudiano.
Tenho, então, regularmente a oportunidade de entrevistar sujeitos hospi
talizados e que são selecionados por se acharem preparados para esse exercí
cio. A maioria deles o quer e, muitas vezes, ou quase sempre, são tidos como
psicóticos. Devo, no entanto, constatar, depois de vários anos de exercício,
q:ue esse diagnóstico na verdade me irrita, porque ele se refere ao complexo
de Édipo, ou seja, à função do pai considerada em sua universalidade. A ques
tão em jogo, portanto, é a função do pai.
A universalidade como tal se apoia no plano do ser, contudo a universa
lidade de uma definição não assegura de modo algum que haja uma única
existência que responda a tal definição. A existência corresponde a um regis�
tro diferente do registro da universalidade. É preciso pensar o pai com base
no universal, ou seja, como aquele que diz não, como a função que erige a
castração em lei geral e constitui a exceção? Foi isso o que Lacan se pergun
tou, ao fazer confluir o complexo de Édipo para a construção freudiana qe
«Totem e tabu". Retornou a esse ponto em diversas ocasiões, mas apenas em
seu último ensino extraiu o pai do universal, o pai cuja menção no singular
se erige em totem da universalidade.
Lacan fez muito em seu ensino anterior para universalizar a função do
pai. A exaltação universal do pai como aquele que diz "não" se converteu
em um traço distintivo do lacanismo. Trata-se do pai que diz não, liberando
a criança de sua sujeição à niãe e do gozo implicado nessa relação. É assim
que se ensina habitualmente Lacan, isto é, como aquele que soube extrair de
Freud a universalidade da função do pai.
O U LTRAPA S S E 127
mas sim o que, na condição de singular, mantém-se à margem do universal.
O universal está no plano da função, mas só se encarna e opera no plano da
singularidade. Isso quer dizer que convém não diluir a existência em nossa
crença no todo, em nossa perspectiva do que vale para todos, substituindo o
ponto de vista do Um pelo do todo. Essa é a indicação que nos dá a expressão
de Lacan existe o Um [ Yad'lunJ. Tomo-a aqui no âmbito clínico e como um
convite para sacrificar o totalitarismo do universal em nome da singularidade
do Um. Considerar o pai com o artigo definido que o translada à essência
corresponde a situá-lo outra vez no plano do sintoma, e não no do Um.
A B Ú S S O L A D O S I N T O M A C O M O RE S P O S TA DA E X I S T Ê N C IA
O Q U E I T E RA N O S I N T O M A . U M S EMEL FAC T Í VE L
Como entender esse saber? Pode-se entendê-lo, e foi esta a forma pela qual
Lacan o introduziu, como o saber que dá sentido, que completa um signifi
cante, S1, com outro significante, S2, o significante do saber que dá sentido aQ
primeiro. Existe, contudo, outra definição do saber que não passa por essa
atribuição de um sentido incapaz de reabsorver o que o próprio Freud cha
mou de restos sintomáticos. Essa outra · definição corresponde a uma pura
iteração de S ou seja, a uma identidade de si mesmo que se mantém e cons
1
,
O ULTRAPASSE 129
sintoma que persiste depois da interpretação, do sintoma que resta atrás da
verdade (Lacan, 1977) .
Freud, no início de sua prática, não se confrontou com isso. Todavia,
quando as análises começaram a se prolongar, ele foi forçado a inventar uma
segunda tópica, com o objetivo de dar conta da existência do sintoma além
da interpretação, ou seja, como iteração. Lacan escutou de um de seus pa
cientes uma fórmula que ele adaptou para fazer do sintoma o equivalente
dos pontos suspensivos, de um et cetera. Trata-se de uma forma de expressar,
a partir dos signos de pontuação da escrita, que a fala solicitada pelo analista
e que lhe é dada na experiência depende de uma escrita, ou seja, articula-se à
permanência de um sintoma que itera.
Uma iteração é uma ação que repete um processo. Uma vez desvanecidas
as miragens; quando elas já se dissiparam no desser, resta, além desse desser, a
iteração. A iteração do si�toma implica, ao menos se deve referi-la a isso, um
semel factível. Semel, em latim, quer dizer "de uma vez': Um semel factível é
um acontecimento singular, único, do qual se pode dizer que tem valor de
trauma. O último ensino de Lacan nos convida a cernir, justamente além da
fantasia, esse semel factível que, na clínica, é chamado de trauma e se dá no
encontro com o gozo. É nisso que consiste a diferença entre o gozo no sentid�
de Lacan e a libido freudiana. O gozo sempre se refere a um encontro, a um
semel factível que permanece inalterado por trás de toda dialética.
Dito de outro modo, o que resta do sintoma uma vez interpretado, uma vez
atravessada a fantasia e alcançado o desser, é o que não é dialético e representa e
reitera o uma só vez. Após ter sido cernido, isto é, ter sido apreendido, na expe
riência e certamente na fala, em sua forma mais pura, o sintoma se assemelha a
algo autossimilar, como se diz nas matemáticas. Damo-nos conta de que a tota
lidade é parecida com wna de suas partes e que o sintoma, nesse sentido, é frac
tal. Quando nos ocupamos do que resta mais além do passe, deparamos com o
sintoma em sua acepção autossimilar, permitindo-nos perceber que tudo o que
se percorreu até então apenas reitera essa mesma estrutura.
D UA S E S C U TA S D O P S I CANA L I S TA
Tudo isso tem consequências para a escuta do psicanalista. Um dos níveis des
sa escuta é o da dialética e consiste em adaptar-se e seguir as variações da onto
logia do discurso do paciente, ou seja, do que faz sentido para ele. Em seguida,
no, curso · da análise, isso pouco a pouco perde o brilho, murcha e se desva- .
nece. De forma geral, essa ontologia se dirige para o desser e seus efeitos para
130 AP O S TA NO PASSE
o sujeito são tanto depressivos, por ter desejado apenas coisas evanescentes,
quanto de entusiasmo, por ter-se liberado de um peso em sua vida libidinal.
O psicanalista certamente pode precipitar essa interpretação do anali
sa nte, por meio de intervenções que a favoreçam, e que são sempre interpre
tações de desser. Mas há um segundo tipo de escuta, que é a da iteração e se
volta para a existência. O analista circula entre essas duas escutas, uma vez
que se trata de duas dimensões que se mantêm unidas apenas por um hiato.
Como Lacan disse em seu penúltimo escrito, «Joyce, o Sintoma" (1975), há
uma dimensão em que o sujeito vive da letra [ vit de lettre] . Ele constrói um
equívoco com vida do ser [vie de l'être] e com vazio do ser [vide de l'être J .
O sujeito vive do ser e, ao mesmo tempo, esvazia-o. Está destinado a isso e
nós o acompanhamos nesse esvaziamento.
Certamente há a outra dimensão, aquela em que o sujeito tem um corpo.
É preciso passar pela diferença entre o ser e a existência para dar seu valor ao
que há entre o ser e o ter. O ter, ter um corpo, é da ordem da existência e se
trata de um saber que não se obtém a partir do vazio do sujeito, razão pela
qual Lacan foi levado a abandonar o termo sujeito, sujeito da fala essencial
mente, e a forjar o defalasser [parlêtre] . No fundo, ela extrai disso a raiz do
que até então chamava de o sujeito como falta a ser. Com o termofalasser,
portanto, ele indicou que esse sujeito só tem ser a partir do que se refere à fala,
mas só pode se pôr como tal a partir do corpo, do fato de que tem um corpo.
O que o sujeito faz com esse corpo que ele tem? Esse corpo está essen
cialmente marcado pelo sintoma e é por isso que pode ser definido como um
acontecimento de corpo. Isso supõe que o corpo está marcado pelo signifi
cante, ou seja, pela fala, visto esta inscrever-se e poder, como tal, ser repre
sentada por uma letra. É j�stamente essa inscrição que merece ser qualificada
com o nome de inconsciente freudiano. Ademais, deve-se dizer que tudo isso
procede do enunciado existe o Um, o qual quer dizer que existe o sintoma e
que, mais além do desser, resta o acontecimento de corpo. O existe o Um é
uma formulação que constitui o primeiro passo de a relação sexual não existe,
ela mesma consequência da primazia do Um, entendida como o que marca o
corpo com um acontecimento de gozo.
Esse Um não é, como se sabe, o da fusão, do qual surgiria o dois, o Eros a
que Freud se referiu. Ele se referiu a ele, mas fez surgir T ânatos, para contra
riar a fusão. Lacan se dá conta da emergência de Tânatos ao lado de Eros, ao
dizer que existe o Um, ou seja, que não existe o dois, que não há relação sexual.
O último ensino de Lacan parte precisamente da solidão do Um, do Um
solitário que fala sozinho. Na análise, restitui-se o dois em face do Um sim
plesmente porque a ele se acrescenta a interpretação. Há esse Um solitário ao
O ULTRAPASSE 131
qual se acrescenta o dois que lhe permite dar sentido, mas justamente para
que o sujeito experimente que isso não resolve seu sintoma. Inscreve-o em
um saber, atribui-lhe sentido, mas para chegar ao dessaber. [desavoir] e ao
dessentido [ desens] . No sintoma, há um Um opaco, um gozo que, como tal,
não corresponde à ordem de sentido. Para isolá-lo, no entanto, deve-se passar
pelos caminhos oferecidos pela dialética e a semântica.
Pode ocorrer que a análise se satisfaça com o sentido que ela libera, mas
nesse caso ela se constitui em uma forma de engano. Nela, trata-se, com efeito,
de que o ultrapasse e a prova sancionada por ele retracem os meandros das ver
dades mentirosas em sua assunção do que faz o real ser rebelde ao verdadeiro.
Pode-se chamar isso de destino, mas seria, de todo modo, outra forma
de comprovar o que Lacan deixou a seus seguidores sob o nome de passe, de
habitá-lo como ultrapasse, mais além da fantasia: assunção do não sentido
desse Um que, no sintoma, se assim posso dizê-lo, itera sem rima, nem razão.
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M E M B R O S DA E S C O L A
.,
B RAS ILEI RA D E P S I CANALI S E
Bernardino Horne1
I N T RO D U Ç Ã O
AS E N T RE V I S TA S P R E L I M I NA RE S
Nomeado Analista de Escola (AE) pelo Cartel do Passe da École Européenne de Psycha
nalyse (EEP) em 1996.
2 Texto apresentado na Plenária dos AES, durante o 1x Encontro Internacional do Campo
Freudiano, realizado em Buenos Aires, em julho de 1996, e publicado originalmente em
Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 17, São Paulo, 1996,
nov., p. 16-7.
137
O sujeito recordou o enigma do sonho que Freud relata em A interpreta
ção dos sonhos: "Pai, não vês que estou ardendo?':
A ANÁLISE
O PA S S E
13 8 A P OSTA NO PASSB
revelada e oculta por uma luminosidade especial. Ao vê-la, o sujeito soube
a verdade sobre a sexualidade. Um fenômeno da ordem do despertar - abrir
os olhos. A segunda, a imagem do homem ideal: uma figura proibidora mas
c ulina que impunha um "Não!" à curiosidade, a esse olhar e querer saber do
suj eito infantil.
Foi o estabelecimento de uma articulação em sequência - "B" imedia
tamente antes de "A" - que desencadeou o clarão de saber durante a s,essão.
A defesa primordial implica o isolamento, que permite a recordação, mas a
mantém separada de outra que lhe dá sentido. O efeito, para Freud, é igual
ao da repressão por amnésia. A articulação do isolado abre uma nova forma
de saber.
M A S C U L I N O E F E M I N I NO
O C LARÃ O
F I NA L
140 A P O S TA NO PASSE
Celso Rennó Lima1
A E S CR I TURA DO NOM E P RO P R IO :
U M PONTO D E B Á S CU L A 2
1 Nomeado Analista de Escola (AE) pelo Cartel do Passe da École Européenne de Psycha
nalyse (EEP) em 6 de março de 1997.
2 Testemunho publicado originalmente em Opção Lacaniana: RevistaBrasileiralnternacional
de Psicanálise, n. 19, São Paulo, 1997, abr., p. 2<>-5.
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DA E N T RADA EM AN Á L I S E
Tendo, desde muito cedo, escolhido o trabalho como uma forma de «dar conta»
da impossibilidade da relação com o Outro, empregou uma boa parte da vida
no cumprimento desse imperativo, o que acabou intervindo até mesmo no
lazer. Havia sempre um «peso a mais", uma certa cobrança, em tudo o que
fazia. Por causa disso, os prazeres das conquistas eram imediatamente substi
tuídos por "mais trabalho': Esse movimento, que podemos situá-lo no andar
inferior do grafo do desejo, girava sob a determinação de «resgatar o nome
do pai': Tal bandeira, escolhida muito precocemente, se sustentava nas falas
em que o pai era apresentado ora a partir de suas qualidades intelectuais e
títulos universitários - "doutorado com louvor': por exemplo -, ora como o
responsável por "bancarrotas" causadas por insucessos profissionais e cons
tantes envolvimentos com mulheres e outros "prazeres" da vida.
Outros elementos são necessários para explicitar o circuito nesse andar do
grafo. Muito precocemente surgiram indicações, vindas da mãe, que aponta
vam um irmão do pai como ideal: médico, psicanalista e, além disso, ou prin
cipalmente, muito trabalhador e honesto. Uma "swnidade': enquanto o pai
era reduzido à condição de "paciente" em virtude de constantes depressões'.
Esse ideal, no entanto, só pode ser eleito como base- de uma identificação por
existirem traços da imagem paterna a sustentá-los, deixando ao significante
''trabalho" a função de representar o que faltou e, por isso mesmo, o que trou
xe consistência ao sintoma. A instalação de um "psicanalista" no lugar de
i(a) serviu para estabelecer certo padrão de comportamento em m - "traba
lhador, honesto, estudioso" -, que, por sua vez, alimentava o sintoma - s(A) -
"mais trabalho» ! Em (A), instalou-se uma frase dita por sua mãe, num momento
em que a irritação, por não çonseguir fazer o filho escrever como ela queria, con
cluiu-se com um acesso de raiva e uma exclamação: "Não aguento mais, agora
é por sua conta!" Frase que foi imediatamente interpretada como a "senha" da
liberdade. Doce equívoco do desejo, que aprisionou o sujeito em um circuito
no qual as balizas - indicações de identificações - não deixavam muitas opções.
Durante um bom tempo, frequentou as sessões de análise, alimentando
os sintomas de sentido a partir mesmo de seu saber e perspicácia. Todo o
movimento nesse circuito vinha sendo acompanhado pela sensação de "de
ver cumprido': -até que uma intervenção do analista, recusando o lugar que
lhe era oferecido na transferência, não aceitando uma "negociação", produziu
um primeiro ponto de virada na história dessa análise.
Jacques-Alain Miller, em seu curso "Silet': lembra que uma intervenção pre
ciosa do analista é seu eventual "sem acordo" (pas d'accord), pois no inconsciente
D O D E S E J O D O PA S S E
A ESC R I T U R A DO N O M E P RÓPRIO 1 43
as questões dirigidas ao analista, à espera de uma "autorizaçãd: encontra
vam sempre a mesma resposta: silêncio! Não conseguia retirar dele um "atestado»
com o qual se garantir. Somente a decisão do sujeito, já às vésperas do encontro
onde iria ser formulada a demanda à Escola, foi capaz de produzir uma inter
venção: "Sim. Claro!':
Na sessão que antecedeu à demanda do passe, três cenas retornaram com certa
intensidade. São cenas que sempre estiveram presentes, coloridas por um tom
de brincadeira e que podem ser resumidas em três frases: a primeira, já mencio
nada acima, ''Agora é por sua conta!': A segunda se refere a um momento que se
repetia em restaurantes, quando, diante de um prato de comida, escutava do pai:
"Coma tudo! Já está pago. Não deixe resto!" A terceira cena dizia de um momento
em que, vendo passar algumas mulheres, o pai exclamou: "É mulher demais para
um homem só!".
Sem saber por que essas três frases retornavam naquele momento, nem por
que elas se apresentavam sempre juntas, deu ênfase à primeira, ''Agora é por sua
conta!': repetindo sua interpretação de "senha" da liberdade, ao relacioná-la '
com a decisão do passe. Daquela vez, no entanto, o analista disse que era pre
ciso retificá-la. A resposta foi automática: "Claro, agora eu tenho que desejar':
"Mas desejar não é o bastante': disse o analista, instalando uma interrogação onde,
até então, era só certeza.
Foi em meio aos efeitos desse enigma sobre o desejo que presenciou, no dia
que antecedeu o pedido ao Secretariado do Passe, uma discussão entre duas pes
soas que ocupavam lugares muito idealizados. O tema dessa discussão, para sua
surpresa, era absolutamente irrelevante e sem o menor propósito!
Naquela noite um sonho foi produzido: "Estava no clube, levando alguma
coisa, uma limonada, uma batida de limão, para sua mulher, quando surgiu um
menino que, com muita raiva, grita para um jovem senhor que chegava: 'Idiota!:
A surpresa é tão grande que faz cair o que estava na sua mão':
Ao acordar, comenta o sonho buscando uma saída na associação limão-alemão,
dizendo da admiração da avó materna por tudo que concerne ao povo ger
mânico. No entanto é lembrado que limão poderia ser um Lima grande. Lima,
o nome de família do pai, estava mais uma vez sendo excluído! (Não havia mais
possibilidade de continuar fazendo "limonada': não podia mais dissimular, em
meio a um.a solução de compromisso, a marca que permanece como a presença
mesmo dá diferença).
Após esse episódio e a entrada no procedimento do passe, aconteceram três
sessões. Na primeira, quando relatou o sonho do limão e a elaboração em torno
Chego, agora, ao inefável centro de meu relato; começa aqui meu desespero
de escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pres
supõe um passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos
outros o infinito Aleph que minha tímida memória mal e mal abraça? [ ... ]
Neste instante gigantesco, vi milhões de atos agradáveis e atrozes; nenhum
me assombrou mais que o fato de todos ocuparem o mesmo ponto, sem su
perposição e sem transparência. O que os meus olhos viram foi simultâneo;
o que transcreverei será sucessivo, pois a linguagem o é.3
Após uma fração de segundo, que pareceu uma eternidade, pôde ser dito:
"Quer dizer que é isso!" Quer dizer que, durante todo esse tempo, a interpre
tação que apontava essa frase como a "senha" da liberdade era um equívo
co!? Quer dizer que, ao mesmo tempo que excluía o pai da cena, colocava o
sujeito submetido a um desejo que se apresentava como um vácuo pronto
a levar-lhe seu bem mais precioso!? Esclareceu-se, então, por que o sujeito
havia escolhido, como estratégia principal no seu relacionamento com o
Outro, transformar toda e qualquer manifestação do desejo do Outro em
demanda, por meio da simples operação de "merdific:ar das Ding': Em outras
palavras, ali onde surgia um objeto a, marcado pelo -<p da castração, a ameaça
da "bancarrota" levava o sujeito a oferecer um objeto qualquer para que fosse
estabelecida uma série infinita, sem ponto de conclusão.
O saber que, então, pôde ser construído permitiu uma retificação, con
cluindo a frase e desfazendo a interpretação do inconsciente que dizia o de
sejo que aprisionou o sujeito: "Agora, meu desejo, é por sua conta , já que seu
pai não foi capaz!"
Essa retificação estabeleceu um novo sentido, explicitando que as frases
"Não deixe resto!" e "É mulher demais para um homem só!" sempre estiveram
juntas porque alimentavam o sentido da frase ''Agora é por sua conta!': ap
reforçar a ideia da impotência de um pai cuja imagem oscilava entre o ideali
zado e o impotente, e que, fundamentalmente, "não dava contà' do desejo de
uma mulher. Assim se constituiu o enlaçamento do desejo e da realidade em
3 BORGES, Jorge Luis, O Aleph. São Paulo: Editora Globo, 1986, p. 132.
A ESCRI T U RA DO N O M E P R Ó P R I O 145
torno de uma assertiva que se precipitou na conjunção dos significantes que
construíram essa cena, determinando os rumos de uma vida: "Deixa comigo!':
Esse foi o momento do passe.
A operação da interpretação, separando S1 do S2, ou seja, estabelecendo o
avesso da proposta do inconsciente, criou um intervalo onde reinava a opacida
de própria do gozo do sintoma, "bancarrotà: significante do gozo, significante
que indexa a falta. "Gozo opaco por excluir o sentido'� Uma passagem pôde, en
tão, acontecer a partir da incidência da interpretação que, à maneira de um es
tilo que sulca a tábua de cera, reinscreveu o Nome-do-Pai, revitalizando as ftm
ções do traço unário, matriz simbólica, matéria-prima do nome próprio. Ora,
é o nome próprio que faz nó enquanto quantificador lógico, "como origem
riscada, cancelada da fala no lugar onde está como repetição do Nome-do-Pai e
como ato de nascimento"4 do sujeito. Esse é o efeito de um dizer verdadeiro qu�
deixa como rastro uma ranhura por onde se explicita que é impossível escrever
a relação sexual.5 Por mais que se tentasse, não era possível escrevê-la, e a letra
ruim, que se traduzia por impotência em atender à demanda materna, nada
mais era do que um véu que deixava certo saber na obscuridade.
A revitalização do nome próprio6 promoveu sua instalação como um
ponto de báscula no quadro de uma cena construída ao longo de um árduo
trabalho, reabrindo os caminhos ao fazer surgir um desejo inédito.
"Por isso a psicanálise, ao ser bem-sucedida, prova que podemos pres
cindir do Nome-do-Pai. Podemos sobretudo prescindir com a condição de
,
nos servirmos dele :1 nos afirma Lacan. No entanto, esclarecemos, com Miller,
que dispensamos o Pai enquanto real, "à condição de dele se servir como
semblante': pois é «a título ou em lugar de semblante que o psicanalista entra
4 Cf. "Pour une logique du fantasme': ln: Scilicet 2/3. Paris: Seuil, 1970, p. 225. Na continua
ção, lê-se: "É justamente por que se trata de instituir um discurso sobre a fantasia estru
turado pelo discurso do inconsciente, e por que o nome próprio é o nó da fantasia, que é
importante fazer incidir sobre ele a negação. O escrito não tem pai".
5 LACAN, Jacques "Le Séminaire, Livre XXI: Les non-dupes errent" (1973-4) . Inédito, aula de
12 de fevereiro de 1974-
6 "Nome próprio: segundo tipo de identificação regressiva ao traço unário do Outro':
Cf. LACAN, Jacques. "Le Séminaire, Livre 1x: L'identification" (1961-2). Inédito, aula de 10
de janeiro de 1962.
7 No original: "C'est en cela que la psycahanalyse, de réussir, prouve que le Nom-du-Pere,
on peut aussi bien s'en passer. On peut aussi bien s'en passer à condition de s' en servir':
Cf. LACAN, Jacques. O Seminário, livrQ 23: o sinthoma (1975-6). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2007, p. 132.
A P O S TA NO PASSE
na operação que se cumpre sob sua direção, desde que ele se ofereça como a
causa do desejo do analisante para lhe permitir produzir os significantes que
pre_sidiram suas identificações': 8
Assim, a "função da pressa'' fez precipitar o sujeito pelo umbral que ele
mesmo construiu.
A sessão que se seguiu girou em torno das elaborações·que o momento do
passe promoveu, para, na terceira, ficar claro que o endereçamento, a partir
de então, já não era mais feito àquele que se assentava na poltrona, e sim à
Escola. O trabalho, ali, estava concluído.
A fim de melhor transmitir o que lhes digo, retomo o grafo do desejo
para escrever, em S O D, "Agora é por sua conta!': em S(,A'.), "bancarrota" e, em
($ O a), "Deixa comigo!': resposta sempre presente em um sujeito que só
interessava nada saber do desejo. Finalmente, pode-se escrever "psicanálise"
em (d), pois se conquistou o que foi herdado.
8 MILLER, Jacques-Alain. ''I:Autre qui n'existe pas et ses comités d'éthique" (1996-7).
L'Orientation lacanienne. Inédito, aula de 20 de novembro de 1996.
A E S C R ITURA DO N O ME P RÓ P R I O 147
Lêda Guimarães1
A
O SI LEN C IO QUE SE ROM PE 2
Nomeada Analista de Escola (AE) pelo Cartel do Passe bilingue da École de la Cause freu
dienne (ECF) em fevereiro de 2000.
2 Testemunho publicado originalmente em Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional
de Psicanálise, n. 28, São Paulo, 2000, jul., p. 20-3.
149
J;boba' para um homem?" -, questão que em si já trazia presente a resposta,
mas que, por ser inominável, residiu até o fim como silêncio, quando o passe
clínico produziu sua enunciação.
Dadas essas condições de entrada, percorreu um . processo analítico ao
longo de 15 anos, dedicando-se ao trabalho como analisante, implicada desde
o início na responsabilidade relativa ao seu gozo, ainda que ele estivesse oculto
na dimensão de uma insondável escolha do ser. No meio desse percurso, a
fluidez produtiva da associação livre fez passagem para a aridez dos limites
do saber do inconsciente. P<>nto de passagem que equivale à transposição do
Édipo com o pai para o Édipo primitivo com a mãe e a consequente cons
trução da fantasia fundamental. Esse ponto de passagem se produziu com
a formulação da frase axiomática "entre a vida e a morte': a qual localiza
va a posição de objeto mais-de-gozar que o sujeito sustentava para o Outro.
A formulação dessa frase abriu um terreno de análise que foi construído, pas
so a passo, pelo esforço de formular em palavras o que nunca antes tinha sido
dito, nem ouvido, até que essa frase foi transposta para uma cena fantasmá
tica central. Redução da selva fantasmática, que se precipitou no momento
mesmo em que se desvelou a identificação central ao pai.
A identificação central ao pai desvelou-se como um ideal fálico de se fazer
uma exceção à lei da castração, uma exceção à condição humana. Ao mesmo
tempo que se operou esse desvelamento, denunciou-se também que tal iden
tificação recobria e sustentava-se num gozo masoquista de se fazer objeto de
gozo para o Outro, objeto dejeto, que se encarnava também do lugar da ex
ceção. Da queda da identificação central, restou esse objeto dejeto, ali mesmo
onde localizou sua posição de gozo na cena fantasmática central.
Adveio de um período de análise em que a queda da crença no inconsciente
e o congelamento dessa cena fantasmática lhe fizeram dar voltas e voltas sem
saber o que mais poderia esperar da psicanálise. Ao longo desse período, o gozo
abjeto, subjetivado como humano, se espalhou também por todos os cantos
por onde andava, como uma inundação de bosta fétida que recobria a face
do mundo. Até que decidiu enfrentar-se, na transferência, com a ausência de
qualquer garantia no_ saber do Outro que pudesse operar uma mudança na sua
condição de gozo. Momento delicado, pois sabia que corria o risco de ema
ranhar-se nos descaminhos da vertente imaginária da transferência, mas não
encontrava outra via a não ser confrontar-se com a inconsistência do Outro,
que colocava em iminência a falência da função sujeito suposto saber. Naquele
momento, um ato analítico preciso lhe reconectou com o entusiasmo pela psi
canálise, pois tal ato lhe permitiu tomar a sério a evidência da presença do de
sejo do analista, que havia emergido, numa clareza inequívoca, em um sonho.
O PA S S E C L Í N I C O
154 A P O S TA NO PASSE
Elisa Alvarenga1
A F Ó RM U LA Q UE NÃO EXI S TE 2
D O S U P E RE U AO É D I P O
Nomeada Analista de Escola (AE) pelo Cartel do Passe da École de la Cause freudienne
(ECF) eni novembro de 2000.
155
tária, logo descobriu que buscava uma bússola para sua clínica: instalara-se
como psiquiatra e começara a estudar psicanálise, mas não sabia rtmito bem
o que fazia. Retroativamente, se dá conta de que não tinha como se autorizar.
Buscava, sobretudo, uma orientação para sua vida: havendo passado muitos
anos em franca rebeldia e desafio aos significantes mestres, encontrava-se
bastante perdida e não sabia muito bem no que acreditar. Era assim que bus-
cava, paradoxalmente, fazer existir o Outro.
Um encontro decisivo com a Orientação lacaniana, transmitida por seus
primeiros supervisores em psicanálise, se deu pelo texto "Clínica do supereu,':
conferência proferida por Jacques-Alain Miller, em Buenos Aires, em 1981.
O encontro com o significante da transferência ocorreu na mesma direção,
quando assistiu a uma conferência daquele que seria seu analista na École de la
Cause freudienne, conferência cujo título evocava o sofrimento do sujeito então
em busca de referências. A suposição de saber instalada desde aquele momento,
dirigida a esse significante do analista, levou-a a iniciar aí uma análise, alguns
meses depois, análise que estancou sua errância e a pôs finalmente a trabalho.
No momento de fazer o passe, dá-se conta de que o significante da transferência
reunira dois traços: a severidade suposta ao pai e o saber suposto à mãe.
O início, difícil, foi marcado pelo desgosto em relação ao saber, manifesto
em um sonho, no qual esgotos escorrfam das estantes, cheias de livros, da
sala de espera do analista. Sua questão, então desconhecida para ela, que se
encontrava toda identi�cada do lado masculino das fórmula$ da sexuação -
sujeito dividido pelo gozo fálico -, já se manifestava, no entanto, em outro
sonho do início da análise, no qual o analista aparecia travestido, sob uma
longa cabeleira de mulher.
A entrada em análise se deu após um sonho em que a analisante contava a
uma analista muito severa as histórias de Mil e uma noites, tal como Schehe
razade, que evitava assim sua morte. De fato, falar ao analista lhe parecia a
única saída possível do gozo mortífero no qual se encontrava embaraçada.
Percebeu então que a estratégia de substituição; até esse momento prepon
dera:nte em sua vida, estancava ali, isolando uma frase que acreditava ser a
fórmula de sua fantasia fundamental. Por trás dessa primeira frase, só muitos
anos depois, no momento da demanda de passe final, veio a descobrir uma
segunda frase, a qual enunciava sua maneira de experimentar a castração,
velada pela estratégia da fantasia formulada na primeira frase.
A fantasia fundamental tem sua matriz no início de sua vida, por ocasião
de uma primeira perda real, a perda do pai aos dois anos de idade. Não se
lembrava do fato, mas do que a mãe lhe havia contado, de sua própria von
tade de ir junto com ele. Esse abandono pelo desejo da mãe permaneceu ve-
A P O S TA NO PASSE
lado pelo seu esforço de cuidar da castração materna, ao qual se entrega, das
mais variadas formas, oferecendo-se falicamente para sustentar a imagem
dessa primeira mulher idealizada, uma mulher que, jovem viúva, criou as fi
lhas pequenas e seguiu uma carreira no estudo das letras. A idealização dessa
mulher, estudiosa e trabalhadora, custou-lhe uma longa inibição no traba
lho intelectual criativo. Uma depressão infantil, por volta dos sete anos, já
se manifestava j usti:ficada, na época, pela carga de deveres escolares exigidos
durante as férias: no lugar do gozo esperado, ela devia estudar. �ssa depressão
teste:'llunhava o luto por realiz�, encoberto pela ideia, transmitida pela mãe,
de que teria de se haver com um pai muito severo, não o houvesse perdido.
O sentimento de culpa edipiano vem dessa forma se manifestar.
Aos 11 anos, no entanto, a perda se atualiza de outra maneira, quando a
mãe volta a se casar. Uma cena, por volta dessa época, fixa sua posição como
objeto, olhar, excluído do par formado pela mãe e seu novo companheiro,
um homem que havia vivido e estudado no exterior. Ela está prestes a entrar
na sala, quando os vê refletidos na vidraça, dançando enamorados. Para ator
doada. Sentindo-se traída, vai entregar-se à repetição, desde a adolescência,
de uma busca que a decepcionará. O gosto pelas línguas estrangeiras talvez
venha de tal época, quando o casal conversava às vezes em outra língua, para
preservar sua intimidade, da qual se . via excluída. A decisão pela medicina
também se faz por identificação com o padrasto, o qual ela decepcionará,
em breve, no momento em que escolhe a psiquiatria e, logo, a psicanálise.
O gosto pelo estrangeiro também determinará, alguns anos depois, a escolha
de um companheiro, ao qual, após algumas idas e vindas, e vários anos de
análise, permanecerá ligada por um novo laço.
O sintoma central se instalará após o casamento, no momento em que
repete a estrutura fantasmática fundamental. Uma importante anorexia, de
longa duração, instaura-se quando, identificada com aquela que a <<traiu': re
pete a sua primeira frase. Esse sintoma, tentativa de sustentar o desejo a duras
penas, não deixa de fazer apelo ao Outro, a quem angustia e faz consistir com
a estratégia de recusar o que ele quer lhe dar. Trata-se de um retorno ao pri
meiro Outro: do risco de fazer-se devorar por seu amor, passa à posição de
comer ou não comer, situando o objeto oral, oferecido pela mãe, no primeiro
plano. A anorexia, real, torna-se uma forma de recusa da feminilidade, do
corpo, da castração, manifestando-se, enquanto mental, no não querer nada
saber sobre tudo isso. Muitos anos se passaram, com tentativas, infrutíferas,
de separar-se de um Outro a quem tudo demandava, sem nada poder receber.
A castração, que . não qµeria aceitar, era encontrada a cada fracasso na sua
procura, sintomática, de encontrar o objeto que a faria mulher.
A LÉM D O É D I P O : O O B JETO
APOSTA NO PASSE
o pai, tentativa de garantia contra o gozo fálico; o objeto, tampão, sob as
espécies do nada, do objeto oral, do filho. Com o olhar, objeto privilegiado,
manifestava-se, sobretudo, a inibição quanto ao saber. Embora muito curiosa,
e mesmo bulímica quanto ao saber, este era do Outro, que ela tornava assim
consistente, colocando-se na posição de espectadora, excluída da cena onde
o saber se produzia. Essa fantasia, além de lhe valer incômodos sintomas no
nível dos olhos, mantinha-a na anorexia mental, tal como Lacan a apresenta:
as ideias eram sempre do Outro.
Esse momento, que eu chamaria de passagem além do pai, tem como
consequência, na sua vida, uma emergência pulsional, um retorno da libido
até então profundamente mortificada ao longo do trabalho de análise, que
agora exige satisfação, para além da satisfação masoquista ligada à lógica do
significante. É surpreendida por um novo desejo, que não deixa de tornar-lhe
a vida mais alegre, mas também mais difícil, pois sua contrapartida a assusta:
nada para garanti-la no seu caminho, que não sabe onde vai dar.
Na próxima fatia de análise, alguns meses depois, revela-se uma transfe
rência negativa: o analista está sob suspeita, será que vai saber conduzi-la até
o final? Sabe que não há retorno possível, mas não vê ainda a saída. Essa fatia
se conclui com um pensamento, ridículo, que lhe vem à cabeça e a descon
certa: o analista é desta vez dessuposto na figura do- velho pai da psicanálise,
enquanto a analisante se apresenta na pele de uma analista conhecida, na
opinião de Freud, como mulher incurável.
À medida que caem as garantias, trabalha melhor na Escola, desembara
çada que se encontra dos ideàis que tanto sustentava em alguns personagens.
Na próxima fatia, é surpreendida por um sonho: ela rouba uma fórmula, es
crita em um pedaço de papel, das mãos de um membro da Escola, portador de
atributos fálicos. Essa fórmula, suposta ensinar-lhe como fazer existir a relação
sexual, não lhe ensina, no entanto, exatamente o que ela quer. Avisada que está
das artimanhas, dos equívocos, das peças que lhe prega o inconsciente, não fica
por isso menos perplexa diante deste sonho-interpretação, no sentido em que,
como o indica Jacques-Alain Miller, o inconsciente interpreta.
Ainda está às voltas com este sonho, quando um outro a surpreende, cla
ramente alusivo a uma separação do analista: ele mesmo lhe entrega, deixan
do-a só, um personagem, condensação do analista com alguém de quem deve
se separar como objeto. Retornando ao primeiro sonho, pensa, inicialmente,
que não é o saber da psicanálise · que daria a fórmula, e sim que ela mesma
é quem deveria construí-la, encontrando sua própria solução. Conclui, em
seguida: · esta fórmula não existe. Mais uma vez, dessuposição de saber ao
Outro: Õ Outro da fórmula não · existe. O modelo anoréxico de roubar as
3 LACAN, Jacques. "A direção o tratamento e os princípios de seu poder" (195 8). ln: Escritos,
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
2
R E LAT 0
Nomeada Analista de Escola (AE) pelo Cartel do Passe da Escola Brasileira de Psicanálise
(EBP) em 11 de setembro de 2007.
2 Testemunho apresentado na EBP-Rio em 3 novembro de 2007 e publicado originalmente
em Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 50, São Paulo, 2007,
dez., p. 32-9.
163
guardado, a ser reconquistado. A partir desse engodo, aos poucos o passado
foi se constituindo como verdade.
Depois de certo esgotamento dessa primeira etapa, abriu-se uma bre
cha no sentido, deixando prevalecer traços, marcas esparsas de gozo, que me
permitiram construir a fantasia, ou seja, me dar conta dos meios que havia
utilizado para me haver com o real. A essa invenção da história como ficção,
tentativa de escrever o que não está lá, chamei biografagem: vida de escrita.
A travessia da fantasia levou à localização de minha posição em relação
às diferentes formas do objeto, precipitando um terceiro momento em des
continuidade com o anterior, algo destacado do saber articulado, um certo
apagamento do significante e a emergência da palavra em sua materialidade
de letra. A essa última etapa chamei biografema:3 escrita vida, uma escrita
contando com o real, mais próxima da escrita poética, último véu que deixa
entrever um fragmento do objeto real.
B I O G RAF IA : V I DA D E S C R I TA
Algum tempo depois do término de uma análise realizada muito jovem e que
não deixou poucos efeitos terapêuticos, estava mais uma vez devastada pelo
amor, quando achou seu segundo analista. Encontrou-o em outra cidade, em
outro lugar; não era familiar nem mestre, onde ela sempre acabava caindo,
mas um "estranho': significante qualquer que marca a entrada na transferên
cia, indispensável condição para começar a análise.
No início era a angústia, não havia verbo, nem sujeito, nem predicado.
Só a angústia e o corpo que a habitava, angústia que lentamente foi cedendo
lugar à fala na associação livre.
Nessa primeira etapa da análise, tratava-se de uma narrativa verossímil,
prosaica, em que acontecimentos patéticos eram relatados repetidas vezes
com uma conotação épica, grandiosa e heroica. Tudo tomava sentido e muitos.
3 "Pois se, pelo artifício de uma dialética, é necessário que haja no Texto, destrutor de qual
quer sujeito, um sujeito que se deva amar, esse sujeito está disperso, um pouco como as
cinzas que se lançam ao vento depois da morte [ ... ] : se fosse escritor, e morto, como gos
taria que a minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um amigável e desenvolto biógrafo,
a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: 'biografemas� em
que a distinção e a mobilidade poderiam deambular fora de qualquer destino e virem
contagiar, como átomos voluptuosos, algum corpo futuro, destinado à mesma dispersão!':
BARTHEs, Roland. Sade, Fourier, Loyola. Lisboa: Edições 70, 1979, p. 14.
A P O STA NO PASSE
Nesse roteiro, o pai era o herói. De uma família de pequenos proprietá
rios rurais no interior de Minas, mas sem saúde para cultivar a terra, migrou
jovem para a capital a fim de estudar. Depois de muitos percalços para se
formar, voltou para o interior para exercer a medicina. De um mundo onde
só os homens sentavam-se à mesa, o pai passou à cabeceira de uma mesa só
de meninas, onde era servido, entre encantado e constrangido, pelo universo
feminino. Não tinha um filho, seu desejo e temor era mantê-las para sempre.
A mãe, de uma família da aristocracia rural decadente e até perder o
único filho que não teve, fazia existir a relação, inspirando-se nos filmes de
Hollywood; assim, dia a dia produzia com papai-sabe-tudo a família feliz,
vestindo e desinvestindo as meninas.
Uma lembrança infantil: aos dez anos, sentada horas a fio, sem uma pa
lavra, deixava-se cair sem rede num abismo infinito e sem sentido ao lado da
cama da mãe dilacerada pela perda, no parto, de seu quinto filho, o que seria
seu único menino.
Em torno de um pai ideal, portanto, não talhado para a função de inter
dição do gozo materno, havia um movimento de intermitência entre o agir e
o abismar. Entre a bela e o bebê morto, ela caía des-emendada num desejo de
desaparecer. A fobia e as brincadeiras infantis não bastavam para emendá-la.
O primeiro amor portava o sobrenome do pai, amor cortês em que ela
ocupava a posição de objeto supervalorizado. Identificada ao objeto ideal,
mas não sem prescindir da carne e do osso, sustentava a bela imagem falici
zada que encobria um corpo todo erotizado, por onde a pulsão escorria sem
limite e sem destino produzindo um excesso de sexualização. Num corpo as
sim, onde as zonas erógenas eram desenhadas em linhas frágeis e indefinidas,
lugares surpreendentes tornavam-se excitáveis e nada acontecia onde deve
ria. Os prazeres preliminares funcionavam como uma espécie de sublimação,
como uma forma precária de proteção ou mediação ao gozo genital, vivido
como ameaça à integridade do corpo.
O segundo casamento foi com alguém que, apesar de desconhecido, era
"coincidentemente" da mesma distante cidade de seu pai e portava, mais uma
vez, o mesmo sobrenome. Não eram apenas os significantes que se repetiam;
depois de escapar da devastação, ao encontrar um novo parceiro, transmitia-
-lhe, tal como Justine, as coordenadas de seu gozo masoquista, concedendo,
assim, a cada vez, o modo de reproduzi-las. Agora não mais identificada ao
ideal, mas ao objeto da fantasia perversa, a sexualidade encontra no órgão
seu destino fálico.
Mas a identificação petrificante ao objeto dejeto da fantasia masculina e
o gozo fálico deixavam um resto que produzia dor e humilhação, gozo maso-
RELATO
quista mortífero. Uma identificação que não bastava para recobrir o gozo
feminino, que mais uma vez transformava-se em angústia. O supereu mos
trava então sua face de imperativo de gozo e apresentava-se como um Outro'
tirânico, uma injunção ao gozo, "como se fosse" uma voz do real.
Nessa primeira volta, ressalta um significante, um S1, "bela': significante
de uma identificação fálica que irá dar contorno ao sem fronteiras do femi
nino. Bela diante do olhar materno que a vestia, essa identificação tornou-se
o eixo da vida amorosa, tomando sentidos diferentes segundo a prevalência
do gozo em questão. Se o significante "bela" tomou força e importância, foi
justamente porque vinha recobrir o que feio lhe parecia. Se, por um lado,
recobria o real da carne e, sob o significante, fazia erigir A mulher que se
alojava toda no furo do Outro para garantir sua existência, resultando em
erotomania histérica e sedução, por outro lado, ao cair, produzia masoquis
mo e devastação, deixando descoberto o puro nada, ao qual se identificava.
Em tal etapa, o significante esforço surgia como indício da posição maso
quista de sacrificada e a interpretação do analista pontuou certo deslocamento
de esforçada para ex-forçada, marcando a entrada em um segundo tempo.
B I O GR A FAG E M : V I DA D E E S C R I TA
RELATO
Depois da construção da fantasia, submeti-me ao passe de entrada e tor
nei-me membro da Escola. Se, anteriormente, já havia se delineado o desejo
de analista na clínica, essa passagem foi um momento importante para de�
<luzir a função da Escola, que não está dada de antemão. É preciso que cada
um encontre uma maneira própria de depositar sua experiência e de recolher
desse lugar comum algo que possa fazer continuar a existir a psicanálise.
B I O G RA F E M A : E S C R I TA V I DA
4 "Mesmo que eu quisesse descrever anatomicamente um sexo de ler, não seria capaz. É sem
ossos e sem forma. Rímbaud não estava a imaginar. Nem um de nós estava a imaginar.
Estávamos a conjecturar fisicamente no escuro. As imagens sabem que têm de caminhar
para nós como o seu sexo de ler. Sem ele, são propriamente sem texto". LLANSOL, Maria
Gabriela. Onde vais, drama-poesia? Lisboa: Relógio d'Água, 2000, p. 33.
R E LATO
Sérgio Passos Ribeiro de Campos1
T Ú NICA Í N T I MA2
P R Ó L O G O : I N I B I ÇÃO, S I N T O MA E ANGÚSTIA
Nomeado Analista de Escola (AE) pelo Cartel do Passe da Escola Brasileira de Psicanálise
(EBP) em dezembro de 2009.
171
C A P Í T U L O I : C E NA S T R AU M Á T I C A S
Cena I -Aos quatro anos, escuta gritos de sua mãe durante uma relação sexual
com seu pai. Perplexo, encosta o ouvido atrás da porta do quarto dos pais
para ouvir os gritos da mãe. Pensa que seu pai está agredindo-a e que ela, ao
sofrer, demanda ser salva. No entanto, é tomado pela angústia e fica paralisa
do. Sente-se impotente para salvar a mãe, pois teria que enfrentar o pai. Aco
varda-se, vai dormir com devaneios de salvar a mãe. O efeito dessa cena é que,
a partir de então, o sujeito se impõe a missão de ter que salvar a mulher. As es
tratégias usadas para o salvamento são pela compreensão, pelo ensino e pelo
dinheiro. Salvar as mulheres é salvá-las da castração. A voz, investida de sen
tido pela demanda do Outro, permanece fixada no inconsciente pela cena r,
elevando o sujeito à condição de "salvador do Outro" e, ao mesmo tempo,
"impotente de salvá-lo da castração".
Cena II - Os pais rompem o casamento numa separação litigiosa. A mãe
perde a guarda dos filhos, que vão morar com os avós paternos. O juiz de
termina que as visitas dos filhos sejam feitas à mãe apenas aos domingos.
No primeiro domingo que os filhos vão passar com a mãe, o sujeito, sob,
o incentivo materno, telefona para o pai, demandando-lhe que os deixasse _
dormir em companhia dela. Diante da negativa paterna, ele se rebela e afirma
que não retornaria com seu pai, liderando um motim junto aos irmãos mais
novos. A família numerosa da mãe e os vizinhos ficam sabendo do telefone
ma e se mobilizam para assistir ao previsível acontecimento. Apenas o sujeito
não se dá conta de que o pior está para acontecer.
Dezenove horas em ponto, como o juiz determinara, o pai chega para
buscar os filhos. O pai adentra a casa da avó materna sem pedir licença.
As crianças correm e se trancam no banheiro. O trinco é frágil, porém o sufi
ciente para barrar o ímpeto do pai. O pai tenta uma dissimulada negociação.
Fala que, se abrirem a porta, nada de mal irá acontecer. Um dos irmãos ad
verte: '<Não confie':
O sujeito quer acabar com aquela angústia e, num ato de confiança,
solta o trinco. O pai, mais que depressa, empurra a porta, fazendo com que
as crianças a empurrem de volta. A força para abrir e para fechar a porta é
intensa, dos dois lados. Surge uma fresta na porta, por onde o pai faz pene
trar com dificuldade o antebraço. Os irmãos mais novos se esquivam das
tentativas frustradas do pai de alcançar alguém, abaixando a cabeça, contu
do o sujeito resiste e não s� esquiva das investidas do pai. Nem, tampouco,
abaixa a cabeça. O pai agarra o filho e o puxa a força pelos cabelos, para
fora do banheiro. O sujeito é arrastado e, depois, levantado pelos cabelos.
T Ú N I CA Í N T I M A 173
C A P Í T U L O I I I : S O N H O S E D E VA N E I O S EM T R Ê S ETA PA S
174 A P O S TA NO PASSE
deixa olhar a cena da avó agonizando. Com efeito, o sujeito não tinha partici
pado do sepultamento da mãe. Noutro sonho, o sujeito sobe numa escada sem
fim, como se fosse uma longa ereção, que ultrapassa os edifícios e as nuvens.
Já na estratosfera, a escada termina subitamente e ele verifica que não há nada
lá em cima. O sonho alude ao conto "João e o pé de feijão': à diferença de que,
então, o sujeito constata que não há terra de gigantes. O sonho revela a condi
ção de que "o Outro não existe" com a enunciação: "Não há terra de gigantes".
TÚNI C A Í N T IM A 175
C A P Í T U L O V: O AT O A N A L Í T I C O
Envolvia-se em colisões de trânsito na média de uma por mês. Certa vez, seu
carro, todo batido e caindo aos pedaços, enguiçou na porta da casa do analista
e lá foi abandonado por duas semanas. Ao saber disso, o analista interrompe
a sessão: "Então, você veio estacionar aqui?" Esse dizer o colocou para andar
e assim deixou de trombar seu carro. Entretanto devaneios de que tinha seu
carro colidido com um caminhão ocuparam sua mente. Experimentou deva
neios cuja tônica era de submissão ao Outro, como, por exemplo, ter sua cabeça
esmagada por uma roda de ônibus. Percebeu, em seus devaneios, que era ele
quem se jogava de encontro ao caminhão ou que era ele quem enfiava sua
cabeça por debaixo da roda do ônibus. Como, até então, considerava-se uma
vítima do Outro, retificou-se, já que percebeu, pelos devaneios, que era ele pró
prio quem buscava colidir com o grande Outro, encarnado na imago paterna.
Havia outro devaneio incômodo que o deixava em silêncio. Era uma cena
na qual o analista ficava em ereção, toda vez que escutava sua voz. Esse de
vaneio, na entrada da análise, denotou a fantasia de ser objeto de gozo do
pai. Mais tarde, ao declinar dessa posição - no final de análise -, conseguiu
localizar o objeto voz como objeto que engancha seu desejo em relação ao '
Outro sexo, objeto esse extraído da primeira cena, na qual escutava os gritos
da mãe durante o ato sexual.
Manejo do analista: sempre em silêncio; corria em câmera lenta até a
porta; ora esboçava um pequeno passo de dança, ora manipulava a maçaneta
de uma suposta porta emperrada do consultório, ao final da sessão. Toda
via foi a partir do objeto olhar e do objeto voz que o analista, sem qualquer
contato visual direto e em profundo silêncio, operou, ao longo de 19 anos, o
desejo do analista, expresso como enigma.
C A P Í T U L O V I : PA S S E C L Í N I C O
A P O STA NO PASSE
impotência ( cena n) desamparo. Era uma novidade: a "impotência" revelada
como semblante do "desamparo':
Ao chegar à análise, narrei esse evento ao analista. O analista, numa ses
são curta, interveio num corte: "O que você pensou ser a causa, então é a con
sequência?" Fiquei confuso e não entendi bem o que ele dissera. O analista
interrompeu a sessão e olhou-me bem fixo nos olhos, pela primeira vez em
15 anos, com o semblante mais maroto do mundo. Sua cabeça arredondada
estava incandescente, como um pôr do sol, desses que acontecem no inverno
de Belo Horizonte, quando o sol beija a montanha no final do dia. Saí com
pletamente aturdido da sessão. Considerei que tinha tido uma alucinação,
uma espécie de um ex-sight. Um brilho interior projetado no objeto. Naquela
noite, sonhei com o significante angustura.
Angustura nomeia a rua em que morei na infância na casa de meu avô
paterno. O sonho: sou chamado como médico para fazer um atendimento
de urgência a uma pessoa que está morrendo. Não há luz. Está tudo escuro e
opaco. Consigo, com dificuldade, ler a placa da rua: Angustura. Era ali. Entro
na casa escura, vazia e abandonada. Dirijo-me ao barracão no fundo da casa.
A porta emperrada. Empurro-a e encontro resistência. Coloco força e a porta
range. Consigo abrir uma fresta por onde penetro minha cabeça. Giro a ca
beça para examinar o pequeno recinto e vejo a razão da resistência. Há uma
sombra caída, no ângulo interno da porta. Ao deparar com a sombra escura
e morta, em estado adiantado de putrefação, vomito e acordo. Angustura é o
significante que sintetiza esse sonho.
Angustura é uma palavra originária do século x1v que significa angústia,
desfiladeiro, passagem estreita ou brecha. O significante é apanágio da sepa
ração do sujeito e o Outro, quando encontra a sombra do pai morto, já em
estado avançado de decomposição. Sua neurose foi tentar, em vão, salvar o
pai. Foi preciso que ele passasse pelo desfiladeiro, pela brecha estreita, para
que se deparasse com o cadáver do pai morto. Foi necessário que o sujeito vo
mitasse o excesso do banquete totêmico para que encontrasse certa regulação
de gozo pela via da separação.
CA P Í T U L O V I I : D O T RAU M A D O S E N T I D O
A O B U R A C O D A L I N G UA G E M
Com efeito, o sujeito usou o pai para dar sentido ao troumatisme. Dois efei
tos sobre o tempo. Primeiro: o sujeito, congelado num tempo eterno, era
espectador de sua vida e, fotografado num instante de ver, sentia que nunca
C APÍ T U L O V I I I : A M U L H ER N Ã O E X IST E
Amor e desejo estavam disjuntos, entre minha mulher (amor) e Outra mu
lher (desejo) . O sujeito nomeia a Outra mulher de fulana. Ele cogitava que
encontraria fulana, mas ela não se deixa apreender em sua metonímia. A par
tir de uma interpretação do analista, como se estivesse dizendo para outra
pessoa «o, cara, A mulher não existe!", sonha com a frase: "Casa-se com uma
vagina e de quebra vem A mulher': "A mulher é um efeito da castração no ho
mem': medita. Assim, quanto mais se tenta salvar a mulher da castração, mais
retorna A mulher. A tradução da enunciação sonhada é "A mulher - como
grande Outro - não existe':
Assim, o sujeito desvenda que o novo amor não é um novo objeto de
amor, mas sim uma nova maneira de amar. Essa descoberta articula o amor
e o desejo, que, a partir de então, serão denominados de amoresejo. Antes, o
sujeito tinha a "minha mulher" e a "Outra mulher" (fulana) nos devaneios.
Assentir com o não todo de minha mulher fulana é deixar cair A mulher. Ago
ra, se A mulher não existe, minha mulher é fulana. Fulana é o Outro nome
do feminino. A partir de então, o sujeito passa a não dar mais sentido à mu
lher, pela via da compreensão, pois ele consente com algo que é da ordem da
não representação. Não compreender a mulher é amar o real, amar o não
A P O STA N O PA S S E
todo que nela habita. O real, no campo da mulher, situa-se no impossível de
compreendê-la. Esperar compreendê-la para amá-la é um desastre e só leva
ao pior.
O sujeito experimenta um luto por fulana, pois não acredita mais que
ela esteja no devir. Em contrapartida, tem o entusiasmo por tê-la ao seu lado,
sua mulher fulana. O que há de novo é o surgimento de um amoresejo, sem
compreender a mulher, na medida em que ela se encontra como objeto a.
E ainda um efeito sinthomático, que eleva o· sexo à condição de experimentar
a sensação como se fosse sempre '<a primeira vez': Contudo há um resto imu
tável, que é o gozo sexual pela via da depreciação do objeto amoroso. O en
contro sexual é apenas contingente, já que ele é uma substância que não deixa
rastro, nem acúmulo de experiência. Se, por um lado, é preciso compreender
o pai sem amódio filial (pois amá-lo ou odiá-lo é permanecer no campo da
submissão, da veneração e do culto ao pai), por outro, o real no campo da
mulher situa-se na impossibilidade de compreendê-la. Deve-se amá-la sem
compreendê-la, amar o não todo, amar o real que não tem representação e
que nela vive.
Sessão ultracurta: o analista não aparece na sessão. O sujeito pensa, em
forma de chiste, "O analista morreu" e "Apertem os cintos, o analista sumiu,
mas como eu uso suspensórios ... [risos] ': Passados alguns minutos, o sujeito
bate palmas para chamar o analista. O analista, em silêncio, surge da soleira
da porta e cobra-lhe o valor da sessão. O sujeito paga e se vai. Então, fica-lhe
a pergu nta: "Estaria o sujeito aplaudindo o próprio final de análise?"
E P Í L O G O : S IN TH O MA
180 A P OS TA NO PAS S E
Angelina Harari1
PARCEIRO S NO S 1 N G U LAR 2
LA L Í N G UA ( L A L A NG UE ) E E N U N C I A Ç Ã O
Nomeada Analista de Escola (AE) pelo Cartel do Passe da École de la Cause freudienne
(ECF) em 13 de dezembro de 2009.
181
do semblante fálico. Enfim, é a língua portuguesa que drena a produção que
se faz necessária para sustentar minha enunciação.
Centrarei este depoimento na minha terceira análise, de 2000 a 2009,
período em que se vê claramente - vocês terão a oportunidade de constatar -
a particularidade da solução sinthomática, encontrada a partir de uma nova
aliança com o gozo. Esse processo teve início em setembro de 2000, após
voltar de uma viagem familiar "histórica" ao Egito, país onde nasci. Procurei
meu supervisor decidida a retomar a análise. Transformar a supervisão em
análise, transpor a fronteira supervisão-análise, teve incidência fundamental
na sinuosidade do percurso analítico. Meu próprio supervisor me havia assi
nalado tratar-se de uma fronteira tênue. Hoje, no passe 3, ou seja, no depoi
mento que retroage ao passe 2, o do dispositivo, entendo por que registrei na
memória, e fortemente, as falas desse supervisor que me servem de referên
cia até hoje. Desde o princípio, ainda em 1987, quando iniciei tal supervisão,
já havia transferência analítica em jogo. Devo, portanto, acrescentar a esses
nove anos de análise os 13 anos de supervisão, período que quase coincide, no
tempo, com o de minha segunda análise.
Entre os fortes registros dessa prática de supervisão, desenvolvidos en
tre o trágico e o cômico, situam-se as falas da primeira supervisão. Apre
sento-me apoiada em uma posição enfatuada de analista kleiniana, porém
contestadora da International Psychoanalytical Association (IPA), tendo
tido alta analítica, discípula direta de Karl Abraham, linhagem promul
gada por meu primeiro analista, um franco-argentino. Apresento como
material a narrativa da análise de uma jovem histérica entristecida e sou
interpelada com esta pergunta: "Onde está o sujeito do inconsciente?" Sur
presa! Na época, para mim, o inconsciente estava por todo lado - basta
va falar de alguém. Diante da insistência do supervisor, começo a ficar
inquieta e a introduzir mais detalhes, até que, impaciente, ele questiona
que diferenças haveria entre meu modo de falar do sujeito - tratava-se de
uma jovem mulher - e o de sua melhor amiga. Estaria ele insinuando não
haver divergências entre a formação kleiniana, em que eu me assentava, e
a forma de a amiga dela abordar o mesmo conteúdo? O xeque-mate viria
ainda, pois ele deixou para o fim a tacada mortal: ao encerrar, diz preferir
ouvir a melhor amiga falar dela, já que a uma amiga se fazem confidências
mais secretas.
A decisão do passe amadureceu na passagem de 2008 a 2009, embalada
pelas apresentações de 'Jacques-Alain Miller sobre «Qual política lacaniana
para 2009?"
não fosse personagem central na minha história familiar, mas parecia tão dis
tante de minha trajetória... Desvela-se, então, para mim, o lado mulher fálica
identificada com essa mulher forte, de origem europeia, que viveu em países
árabes. Temos o mesmo nome: Angelina Harari.
O supervisor havia mantido a mesma posição de dureza da primeira su
pervisão que comentei durante vários anos - é a mesma posição dessa avó
paterna, mulher dura, que preferia os homens. No entanto foi a transferência
doce e afetiva com que esse supervisor me acolheu como analista, transposta
a fronteira supervisão-análise, que desvendou tal identificação com a mulher
dura e, consequentemente, com o semblante de dureza que ela encarnava.
Meus analistas anteriores foram escolhidos a partir desse traço de dureza,
algo a que eu aspirava como mulher sefardita, tímida, afeita a se deixar levar
pelo Outro, sempre pronta a responder à sua expectativa.
Responder à expectativa do Outro foi uma fórmula plantada pelo ana
lista: "Você é o joker da expectativa do analista': ou seja, uma carta versátil -
o curinga, em português -, se entra em cena um olhar atento ao Outro, para
atender-lhe os desejos.
Na transferência, a firmeza dos analistas me levava a estados de prontidão
diante de tudo, até a pregar a independência da mulher ou a liberação sexual
nos anos 1970, mesmo com sacrifício de filhos e marido. Mergulhada estava
em actings out, procurando vias alternativas à psicanálise, mas também, na
segunda análise, buscando a normalização da vida amorosa, pois, liberada do
conjugo - expressão em latim usada para quem aspira a uma relação conjugal -,
rompo com um casamento de sete anos e um marido, com quem tive dois
filhos, que escolhera principalmente por ser distante e duro.
A liberação do conjugo coloca-me à mercê da faceta identificatória com a
avó paterna, o que só percebo apres-coup, visto que esta, historicamente, recu
sou o costume do levirato - lei judaica que determina a obrigação de a viúva se
casar com um cunhado -, em cumplicidade com a irmã caçula, que se negava
a submeter-se a tal determinação. As duas, apoiadas pela família, abandonam a
Síria para serem professoras na cidade do Cairo, no Egito. Eu admirava muito
essa mulher intratável, que, viúva, levou, por sua vez, os filhos na rédea curta,
fazendo-se obedecer a toda prova. De sua prole de oito, seis eram homens.
ficação com a mulher forte e entendi por que não havia falado de tal iden
tificação nas análises precedentes.
A versão fantasmática do "se deixar levar pelo Outro" foi abalada pela
fórmula "joker da expectativa do analista': colocando em cena a vigilância e o
olhar sobre o Outro. Essa fórmula encadeia-se com outra, uma interpretação
que não visa à fantasia, mas sim ao funcionamento na vida amorosa: "Você
entra de bom grado nos jogos de amor: você escolhe; não é a escolhida".
D E C L I NA Ç Õ E S D A N Ã O R E L A Ç Ã O NA V I DA A M O R O SA
Esse acento sobre minha posição histérica desestrutura a defesa do "se deixar
levar': move o contexto da relação com o parceiro do amor. Antes, eu acredi
tava ser escolhida. Se sou eu a escolher, como faço então? A interpretação visa
ao funcionamento da relação com o parceiro-sintoma.
Muda o contexto dessa relação - ou seja, o binário clandestino/oficial, em
que me encontrava presa como em um impasse - e, por isso, tento encontrar
uma saída, que se configurava sempre como a normalização de minha vida
amorosa. Uma solução para o gozo clandestino, como se solução houvesse.
Ao mudar esse contexto, cai por terra a pretensão de casar-me ou de abraçar
a causa celibatária - o "tudo ou nada" não é mais necessário. Não mais me
sentindo empurrada a aspirar ao conjugal, ao conjugo, o binário clandestino/
oficial desfaz-se, permitindo-me afrouxar a relação com o gozo.
Com a renúncia a formar casal, no sentido de "formar Um': introduz-se
outra maneira de formar casal, de fazer Um. Isso quer dizer o quê? Um modo
APOSTA NO PAS S E
de introduzir a singularidade na singularidade de formar casal. O impasse
havia estabelecido uma condição de amor de não formar casal: casamento ou
nada. Então nada! Na direção do tratamento, tornar permitido o gozo clan
destino por sua oficialização é um viés normativo da vida amorosa que dá
solução ao gozo.
Entendo esse impasse como o manter esperança na expectativa de erradi
car o gozo opaco do sintoma; este, de clandestino a oficial, confunde-se com
o gozo permitido, esperado no final de uma análise. O gozo oficializado havia
deslizado para o gozo do matrimônio. E, nesse sentido, havia um progresso
quanto ao sentido a esperar de uma análise.
Lembro-me bem de um momento das entrevistas preliminares, já com o
terceiro analista. Quando propus �ssa questão do matrimônio como um bem
a ser alc�nçado, a resposta foi: "So�os . casados com o objeto a': A ·questão
sinaliza bem minha expectativa de tornar transparente o gozo opaco do sin
thoma, de liquidar os restos sintomáticos. Confundia sintoma com sinthoma,
pois este jamais é removido.3
S O N H O D E C A S T RA Ç Ã O E Q U E D A D O S E M B L A N T E F Á L I C O
Como evoquei no início, foi um sonho que revelou uma demanda de passe,
um sonho que nomeio como de castração. Na noite da passagem de ano, na
madrugada de 2009, uma vez que só vamos dormir após as batidas da meia-
-noite, sonho que estou em uma reunião do Conselho da EBP: "Em voz baixa,
quase sussurrando, falo de minha gestão na presidência do órgão como ten
do sido um fracasso. Interpreto a presença de um colega, que não faz parte do
Conselho, como a presença da morte, pois ele acabara de perder o pai".
Esse sonho acontece após uma interpretação do analista, três meses antes,
que, em análises transoceânicas, como foi meu caso, é como se tivesse ocorri
do na véspera do sonho. O analista sinaliza um ponto de satisfação, de autos
satisfação, segundo a forma freudiana de falar. E eu, de que falava nessa ses
são? Da renúncia em formar casal, no sentido de "fazer Um': dividindo-me
entre dois amantes, com encontros esporádicos em lugares muito distintos'.
E acrescento uma fala que o analista reteve: ((Com cada um deles formo casal
de forma diferente". Isso pôde sugerir - nesse momento, a análise torna-se
4 ''L'homme sert ici de relais pour que la femme devienne cet Autre pour elle-même,
comme elle l'est pour lui'� Cf. LACAN, Jacques. "Diretrizes para um Congresso sobre a
sexualidade feminina" (1960 ). ln: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 741:
5 MILLER, Jacques-Alain. "L'inconscient et le sinthome': La Cause freudienne,n. 71: Au-delà
de la clinique, Paris, 2009, p. 78.
6 MILLER, Jacques-Alain. "Semblantes e sinthomas': Opção Lacaníana: Revista Brasileira In
ternacional de Psicanálise, n. 52, São Paulo, 2008, set., p. 15.
188 A P O S TA NO PAS SB
Ana Lydia Santiago1
C O UP D E F O UD R E 2
AP REND E R A FAL A R
Nomeada Analista de Escola (AE) pelo Cartel do Passe da École de la Cause freudienne
(ECF) em 19 de junho de 2011.
2 Testemunho apresentado nas 41e Journées de l'École de la Cause freudíenne: Praxis laca
nienne de la psychanalyse, realizadas em Paris nos dias 8 e 9 de outubro de 2011, e publi
cado originalmente em Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise,
n. 62, São Paulo, 2011, dez., p. 97-103.
por meu contato, pouco familiar, com estilos e modos de vida dos franceses.
Ao chegar a Paris, para morar por um período de quatro anos, experimento,
num primeiro momento, o apagamento radical do domínio fluente da língua
inglesa, a que se segue forte impressão de não saber falar francês. Esse emba
raço não se desvincula dos usos e dos costumes de uma cultura do nome pró
prio. Em contraste com o que é corrente no Brasil, não há como negligenciar
o privilégio conferido pelos franceses ao patronímico.
Assim, vivendo maritalmente, em regime de concubinagem, era identifi
cada como "madame': porém designada pelo sobrenome paterno. E, indepen
dentemente das ocasiões em que me foi assinalado que eu me comunicava bem
no idioma francês, a dificuldade para falar, que apontava para o incompreen
sível do amor do pai, instalou-se no meu corpo e manteve-se presente na ex
periência analítica, sessão após sessão, durante toda a trajetória desse processo.
A primeira demanda de análise é endereçada a um analista do Campo
freudiano, uma mulher, que, em intervenções e cursos promovidos na École
de la Cause freudienne, atrai minha atenção pelo uso frequente de uma joia
brilhante. Esse objeto precioso associa-se, no meu íntimo, ao que se transmi
te de mãe para filha. Do mesmo modo, o que está em jogo, na última análise,
é algo da ordem do saber e do bem dizer. Contudo o entrelaçamento entre a
joia e a palavra estabeleceu-se bem precocemente, a partir da imagem ilustra
tiva de uma fábula, As três cabeças de ouro, que eu escutava, quando criança,
pela boca de minha avó paterna, antes de ter adquirido a prática da leitura.
Dessa fábula, pode-se inferir que o grande Outro está encarnado na voz
de três cabeças de ouro, as quais surgem no caminho de duas meninas e, mui
to exigentes, decidem o destino delas. Elas surgem de dentro do buraco de
uma cisterna, na borda da qual cada uma das meninas, em tempos diferentes,
se assenta para descansar e fazer uma refeição, após uma longa caminhada
em busca da própria sorte. As cabeças pedem para ser alimentadas, pentea
das e ninadas com música. A primeira menina, considerada uma boa filha,
bastante afetuosa com o pai, atende prontamente às solicitações de cada uma
das três cabeças e, por via de consequência, é beneficiada com o dom da
bondade e com um hálito suave , que lhe possibilita, ao falar, lançar pedras
preciosas pela boca. A segunda menina, filha caprichosa, mais ligada à mãe,
recusa-se a prestar favores às três cabeças, que, então, lhe reservam uma vida
difícil - literalmente, um caminho de espinhos, que lhe ferem a pele e tornam
sua aparência pouco atraente - e, ainda, um hálito horrível, que a faz lançar
cobras e lagartos pela boca quando fala.
Como a primeira menina, desde muito cedo, eu estava marcada pelo amor
ao pai, em função do desejo deste de ter uma filha a quem daria o mesmo
190 A P O S TA NO PASSE
nome de sua esposa. O uso do nome da mãe na filha é incomum e não se
encaixa na perspectiva de garantia de uma transmissão, como no caso de
quando se batiza o filho primogênito com o nome do pai ou do avô. Esse ato
de nomeação não se fez, porém, sem implicar consequências no que concer
ne ao lugar que passei a ocupar junto à minha mãe, bem como junto à mi
nha avó paterna, que morava com a família e era responsável pela educação
das crianças. Por ter como miragem o destino da primeira menina da fábula,
tornei-me uma observadora atenta dos indícios do que melhor convinha ao
outro, para nele me encaixar e ser reconhecida como uma filha modelo e de
comportamento exemplar. O destino da segunda menina, contudo, perma
neceu dúbio e em aberto, causando-me preocupação e medo.
Um equívoco da língua, que insiste em se apossar do nome da primeira
analista, acaba por destacar o significante "cólerà: designador, ou nome, do
gozo sem sentido das mulheres de minha família - notadamente minha mãe
e minha avó paterna. Manifestada na relação com a fala, a cólera é apreendida
em minha mãe no falar denegridor e depreciativo de seu marido como pai,
e em minha avó, expressa em dizeres hostis formulados contra minha mãe,
sua única nora, pois esposa de seu filho único. Com efeito, minha mãe é a
própria encarnação do Outro mau, componente inerente à subjetividade de
minha avó. Desde muito cedo, por conseguinte , não me passou despercebido
o ódio que minha avó alimentava contra a nora, minha mãe, e projetava so
bre a neta de mesmo nome. A posição que se configura para o sujeito, nessas
circunstâncias, é a de ser uma tela em que o outro lança um elemento de
insuportável dele próprio, estranhamento perturbador, que interfere na ma
neira como ele é visto.
O primeiro modo do saber do sujeito, que é o do objeto a, começa por
mostrar-se como imputado ao Outro. No laço transferencial, há o objeto
agalmático - a joia com tudo que ela representa - e o equívoco quanto ao
nome, situados do lado do Outro. O que pode ser formulado a propósito do
mal-estar advindo da palavra e circunscrito à cólera diz respeito tanto aos
impropérios e atos, julgados injustos, da mãe e da avó, quanto à exaltação das
duas ao filho e ao neto primogênito, do sexo masculino. Ao mesmo tempo,
percebe-se a manifestação de algo da ordem do impossível de dizer: a cólera
frequenta a cena dos sonhos do sujeito. Em seguida, à medida que a análise
prossegue, a cólera corporifica-se e, à revelia do sujeito, encena episódios bre
ves de crises de raiva - especialmente diante da desorganização dos objetos
em casa - e de ataques episódicos de ciúme do parceiro. A cólera e o ciúme,
que emergem do processo de análise, são considerados efeitos de desinibição
em relação ao sintoma inicial. São afetos contestados por quem quer ser uma
CO UP DE PO UDRE 191
menina modelo e almeja o bem dizer. Por isso mesmo, podem ser situados,
preferencialmente, na vertente do sintoma.
Conclui-se, então, que as soluções do amor e da doação, bem como as
identificações que destacavam habilidades das mulheres da família e, con
sequentemente, implicavam certo reconhecimento por parte do sujeito, são
impotentes para apaziguar o humor explosivo e desmedido das mulheres
em geral. Tendo como suporte o amor de transferência, o sujeito acredita
em uma reconciliação com o Outro pela instalação do novo par mãe/filha,
constituído com a analista. Essa via, no entanto, em vez de mobilizar o sinto
,,
ma - ou seja, "ensinar a falar -, acentua a exclusão característica da fantasia,
cujos elementos já começavam a se esboçar. O termo dessa primeira etapa de
análise é determinado pela ruptura da analista com a comunidade analítica
em que eu desejava me inserir. Nesse momento, o sentimento que predomina
e, também, inquieta é certa tendência ao isolamento, que reaparece, portanto,
como uma das manifestações da inibição, uma medida para evitar o turbi
lhão do gozo próprio ao universo do feminino.
APRE N D E R A LER
192 A P O S TA NO PA S S E
pai, concebido entre a morte da irmã e a morte do próprio pai, seja herdeira
do drama. A filha se torna para o pai um objeto fascinante, um objeto fálico.
E a identificação g irl = falo serve de identificação e de defesa contra certa
mortificação, de um lado, e contra a ausência do olhar do Outro matemo,
de outro.
Traçada a trama da história do sujeito, as primeiras fraturas da fantasia
não se constituem tarefa fácil e implicam uma separação no que concerne
ao olhar fascinado do pai, que recobre a ausência do olhar da mãe, e uma
perda do lugar de exceção, que fornece segurança para enfrentar o campo
obscuro do que me era oferecido, de um lado, por minha mãe e, de outro, por
minha avó paterna. Esse lugar de exceção, por sua vez, é o que desencadeia a
hostilidade de outras mulheres em geral. E constitui, assim, o ponto no qual
,
((o que eu sou se afoga, ou ainda, valendo-me da poesia de Caetano Veloso na
mesma composição, "meu zen, meu bem, meu mal':
Experimento, na transferência, o medo de existir. No processo da análise,
após delimitar o nível da inibição e o do sintoma, emerge, com efeito, o ter
ceiro do: o da angústia. Cada sessão marcada prenuncia um encontro com o
objeto fóbico - o medo é meu companheiro no trajeto para a sessão, na entrada
no consultório, no divã. Tenho medo de falar, medo de não saber o que dizer.
Medo de tudo, como se eu tivesse cometido uma falta muito grave de que não
tinha mais lembrança. Trata-se, mais precisamente, de um fundo fóbico con
cernente a todas as minhas ações, o que, contudo, não me paralisa. E prossigo.
Uma angústia apreendida no plano da imagem e outra, no plano da voz,
ambas concernentes ao Outro materno1 modificam o corpo do sujeito, cau
sando horror. A experiência do sujeito com o inconsciente e a sua repetição
estimulam a atividade onírica, sobretudo no tocante a sonhos de angústia,
que se põem a serviço da localização e da consequente recolocação de seu
modo de gozo. É o momento em que o analisante pode fazer a leitura de seus
sonhos. A via do sonho, no meu caso, desempenha um papel importante no
processo de extração da libido do objeto, que se faz sob transferência.
Esse trabalho sobre sonhos acentua o medo, que se materializa como te
mor de ser engolida por' um buraco negro, de restar só no mundo, de não so
breviver. O afeto que sobressai do inconsciente é o desânimo - uma vontade
de nada fazer, de nada clizer. Trata-se de um período difícil da análise, que, no
entanto, contrabalança com mudanças subjetivas e realizações profissionais
positivas e importantes. A cólera situa-se como uma resposta à impotência
do pai, uma resposta do sujeito ao pai; é um grito em face da renúncia deste a
constituir-se numa voz capaz de conter os excessos das duas mulheres - mãe
e avó - no que diz respeito à menina.
C O UP DH PO UDRB 193
Um sonho: encontro-me à beira do buraco negro de um elevador; con
tudo olho para esse buraco e não sinto medo. O analista observa: "II ne faut
pas rester au bord" ["Não se deve ficar na beirada"] . Escuto essa observação
como um convite para que eu me introduzisse, porém com o cuidado de me
manter a urna boa distância em relação ao furo, ou seja, à opacidade com que
o semblante fálico oculta o vazio. O que faz o objeto parecer resplandecente,
seu brilho, é o que escamoteia o vazio, o negro, o buraco negr<>s
Dois acontecimentos de corpo assinalam a perda do brilho do objeto.
No primeiro, ao atravessar a Pont Royal, mirando a Pont de la Concorde, no
horizonte, não vejo mais Paris como antes. De repente, esse lugar, considerado
uma das mais belas paisagens urbanas do mundo, perde todo seu deslumbra
mento e, aos meus olhos, sua beleza deixa de ter o esplendor exuberante de an
tes. O desinvestimento escópico é correlato à inscrição do vazio no objeto olhar.
No segundo, já do outro lado da ponte, olho para a vitrine de uma padaria e,
nela, uma pequena tarte auxfraises não mais me convida ao deleite, pois perdeu
seu caráter irresistível. Isso parece incompreensível para alguém que, por anos
a fio, ao deixar a sessão de análise, se rendia a uma tortinha de morangos, a
fim de recuperar o afeto perdido. Depois desses dois acontecimentos, só posso
guardar os doces de uma festa no bolso: olhar o objeto desperta a lembrança,
resgata o paladar, mas não implica mais a mesma vontade de comer - "C'est le
petit a dans la poche" ["É o péqueno a no bolso"], sinaliza o analista. O objeto,
antes aprisionado em sua face imaginária, perde o brilho; opera-se, então, a re
dução do real do gozo do objeto escópico. Lacan considera que "o imaginário é
o corpo"3 e afirma que este é impensável sem o gozo. Freud, em "O mal-estar na
civilização': observa que a beleza é inerente ao corpo humano. O que o sujeito
vê na paisagem é a própria beleza. A interpretação do analista sinaliza a retirada
do objeto de seu esconderijo e a instauração, para o sujeito, da separação entre
o valor de gozo do objeto e seu valor de semblante.
A I N E XI S T Ê N C I A D O D E S E J O D E S A B E R
3 LACAN, Jacques, O Seminário, livro 23: o sinthoma (1975-6). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2007, p. 64.
194 A P O S TA NO PASSE
No mesmo dia, o corpo é invadido _ por uma dor que se manifesta em todas
as articulações e deforma até seu jeito de andar. Na sequência, um sonho me
permite lembrar de um clube que frequentei durante muitos dias de minha
infância, sobretudo em períodos de férias, quando meus irmãos e eu éramos
deixados lá pela manhã e buscados no final da tarde, depois da jornada de
trabalho de minha mãe. Esse clube situava-se na frente de um quarteirão de
casas construídas por meu bisavô, numa das quais ele morava, assim como a
maior parte de seus filhos. Um quarteirão de casas que se comunicavam pelos
fundos, já que _ todas desembocavam em uma grande área central.
Nessa área, havia uma horta e árvores frutíferas de todo tipo. Meus pri
mos, irmãos e eu brincávamos nesse espaço durante o intervalo de três horas
em que o clube fechava para o almoço. Eu passava por essa área sempre um
pouco assombrada, porque sabia que fora naquele local que meu avô paterno
tinha interrompido sua vida com um tiro de fuzil. É da morte no centro desse
,,
"jardim do Éden que advém o desejo do analista. Na procura de um saber, o
sujeito coloca-se, desde muito cedo, na função de um pesquisador incansável
do que se encontra, mais além do pai e da mãe, no limite do dizer, no desejo
que enlaça o trauma da morte por amor.
Do outro lado da rua, no clube, a piscina representa o buraco negro, em
função de uma advertência .constante da avó paterna que sinalizava o pe
rigo de morte por afogamento, repetindo uma frase que soava enigmática:
<'A água exige os que sabem nadar, porque os que não sabem já são dela': O es
paço enorme do clube é decifrado e as zonas de perigo, delimitadas. Realiza-
-se, assim, um trabalho de organização em prol da vida. Integro-me na equi
pe de natação. Aluna aplicada, alcanço certa harmonia na reprodução dos
movimentos, que não passa despercebida ao treinador; frequentemente, ele
me solicita reproduzir algum tipo de nado para a observação dos demais alu
nos, o que me leva a me imaginar sendo vista - o corpo toma a forma do falo.
Os sonhos vão pôr em cena um corpo esvaziado e coberto por véus - o
semblante do falo -, e o sujeito bem posicionado em relação ao olhar, de for
ma a poder ver. Um desses sonhos causa surpresa: crianças são atingidas por
tiros de fuzil - "coups de fusil" -, vindos de toda parte; os corpos gingam para
se defender e acabam caindo no chão, um após outro. Pergunto-me: "O que, ·
é isso? Corpos de crianças caídos, atingidos por tiros de fuzil?" E a resposta
recebida é: "Coup de foudre!" Essa resposta também causa surpresa pelo
inesperado da substituição - <'coup de fusil" por "coup de foudre': Trata-se
de algo inteiramente novo, sobre o qual não há saber. � preciso lidar com isso.
Se não há desejo de saber, isso se explica porque, na experiência analítica,
não se pretende achar alguma coisa. Minha trajetória de análise revela o lado
CO UP DE POUDRE 195
idílico do desejo de saber - ou seja, uma obstinação que gera, de modo es
pecial, inibição quanto ao saber. Assim, não se trata de descobrir um saber,
mas de curar-se dele. E, para tanto, é ·preciso inventá-lo sob a égide do fazer.
No meu caso, a obstinação em extrair um saber do. real promove o encontro
contingencial com o coup de foudre - acontecimento de amor súbito, arre
batamento, trovão, semblante da fúria dos deuses ou tudo issó' no modo de
gozo do meu olhar, único capaz de circunscrever a causa e o horror de saber.
APOSTA NO PASSB
Rômulo Ferreira da Silva1
'( T O M A ! " 2
F I Z T R Ê S A N Á L I S E S AO L O N G O DE 23 ANO S .
Comecei a primeira aos 2 4 anos, já em São Paulo, logo após a formatura
no curso de Medicina e a mudança de cidade com o propósito de me especia
lizar em psiquiatria. Após alguns meses, fui convocado para o serviço militar
obrigatório em outra cidade, o que me afastou da análise por um ano. Esse
processo durou mais dois anos e interrompeu-se após meu casamento. Seis
meses mais tarde, fiz outro pedido a minha supervisora e um novo procedi
mento durou cerca de oito anos. Nesse período, ingressei no dispositivo do
passe de entrada na Escola Brasileira de Psicanálise (EBP ) e tornei-me mem
bro dessa entidade. A frase do Cartel do Passe de entrada foi memorável:
"O Cartel reconhece que houve a travessia da fantasia, porém o Outro perma
nece consistente': O final dessa análise chegou a um significante de gozo: "Sim!"
Fui conversar com aquele que viria a ser meu terceiro analista. Falei-lhe
do significante do final da análise anterior e perguntei-lhe se eu deveria ir ao
dispositivo do passe conclusivo naquele momento ou se deveria esperar mais
algum tempo. Ele, por fim, disse-me: "Você quer que eu diga 'Sim! '; então,
eu digo 'Sim!" Não consegui saber ao certo se ele havia dito: "Sim, vá para
,
o passe!, ou "Sim, espere um pouco!" Ele cobrou a sessão e minha terceira
análise começou.
1 Nomeado Analista de Escola (AB) pelo Cartel do Passe da Escola Brasileira de Psicanálise
(BBP) em 30 de abril de 2012.
197
Meu pai era filho de um casal muito pobre e viveu na roça até os 17 anos,
quando se mudou para Uberlândia, em Minas Gerais. Completou os estudos
em contabilidade e, após dez anos, casou-se e tornou-se esteio de ambas as
famílias - a dele e a de sua esposa.
Meu avô materno sumiu algumas vezes em sua vida, a primeira aos oito
anos de idade. Retornou aos 18 anos, ficou noivo da filha mais velha de uma
família de seis filhas e, novamente, se foi. Voltou, algum tempo depois, de
cidido a se a casar, porém, desta vez, com a caçÚla das mesmas irmãs, de 14
anos. Casou-se e levou a esposa para Uberlândia. Após ficar viúvo, declarou
que iria embora, quando sua filha mais nova, então com dois anos de idade,
se casasse. Criou as filhas em clima de austeridade. Era espírita e tido como
alguém capaz de promover curas espirituais. Contudo fez o prometido: foi
�mbora, sem deixar qualquer sinal de para onde iria.
Somos sete irmãos - três homens e quatro mulheres. Sou o quarto filho
e o segundo neto. Meu irmão mais velho nu.ç. ca se submeteu aos caprichos
do avô e muito menos aos cuidados que as tias tentavam dispensar-lhe. Mais
tarde, a carência da metáfora paterna revelou-se nele.
Minha mãe teve uma história obstétrica complicada. Em sua quarta gravi
dez, gerou uma mola hidatiforme, produto de fecundação que não gera um bebê,'
e foi-lhe indicada uma histerectomia. Meu avô, a partir de orientações espiritu
ais, prescreveu-lhe chás e rituais. Uma nova gravidez ocorreu. O médico disse
que, se o bebê vingasse, ela seria curada e seu organismo seria limpo de células
pré-cancerosas. Quando nasci, fui exibido pelo hospital nos braços do gineco
logista, que afirmava: "Nasceu um capitão!" Além disso, por ser o terceiro filho
Rh+ de mãe Rh-, fui considerado uma criança de muita sorte e um salvador.
Enredado nos cuidados das tias, eu passava dias na casa delas. Era o neto
predileto, todos diziam que eu me parecia muito com meu avô e era esperado
que eu ocupasse o lugar dele na família, pois muito cedo me interessei por
religião, revelando-me um menino sério, estudioso e caseiro.
Minha irmã caçula ia nascer e eu queria ficar no corredor do hospital,
onde havia um alçapão no teto, porque havia concluído que a cegonha dei
xaria o bebê por aquela abertura. Fui, porém, orientado por meu pai sobre
como os bebês vinham ao mundo e, desde então, minha futura profissão já
estava decidida. Acompanhei o puerpério de minha mãe, que se emendou
com uma segunda mola hidatiforme. Em seguida, ela sofreu um aborto por
eritroblastose fetal e, por fim, apresentou cistos de ovários bilaterais. Meus
três irmãos mais velhos iam para o · colégio logo cedo. Eu cuidava de meus es
tudos e de minha mãe. Ela sentia muito frio, ficava ao sol e sempre me pedia
para lhe buscar uma coberta ou algo para comer - ela doente e eu de plantão.
A P OSTA NO PASSE
Tive sarampo. Durante uma visita de minhas tias e primas, minha irmã
pediu para que todos saíssem do quarto, já que eu não podia ficar em local
abafado. Eu disse: "É bom ficar com gente': Ela me repreendeu, porque escu
tou: "É bom ficar doente".
Iniciou-se para mim, então, um período de fragilidade e sofrimentos.
Conheci uma vizinha e decidi pedi-la em namoro, presenteando-a com
um "anel de bala': Em retribuição, ela me deu seu anel de ouro, com uma
pedra vermelha. Estávamos namorando. Ao me ver com esse anel, minha
irmã- mais velha ficou furiosa, alegando que eu não deveria estar usando
um "anel de menina", e fui obrigado a devolvê-lo, o que implicou o fim
desse relacionamento.
Aos sete anos, brincava com uma vizinha e um vizinho, este um pouco
mais velho que nós dois. Certo dia, a menina queixou-se de que uma formi
guinha havia entrado em sua calcinha e o vizinho levou-nos a um canto, para
nos ensinar como curar aquela picada. Deparei-me pela primeira vez com
uma vagina aberta, um buraco. Fomos surpreendidos e o que restou desse
episódio foi: "Não pode! Ela é menina e não se faz isso com uma menina".
Minha curiosidade tomou-se mais aguçada e eu adorava ficar fingindo
brincar ao lado de minha mãe e de minhas tias, enquanto falavam de rela
cionamentos conjugais. Ouvi muitas coisas sobre os maridos, todas negativas.
Meu avô, porém, era sempre elogiado.
No início da minha experiência escolar, sentei-me ao lado da minha vizi
nha, aquela da formiguinha, na primeira carteira dupla da fileira das meninas.
Em casa, ouvi: <<Você acha que é uma menina?"
Os quatro primeiros anos de escola foram marcados por intensa angústia.
Lia tudo sobre sexo que estivesse ao meu alcance. Tinha crises de falta de ar e,
por isso, fui várias vezes para a enfermaria do colégio, onde eu me sentia no
paraíso. Lá havia material médico, livros, uma cama hospitalar. Rapidamente,
inscrevi-me no Pelotão de Saúde da instituição. Tínhamos de averiguar · a hi
giene das outras crianças e aprendíamos a verificar sinais básicos de saúde.
Nessa época, eu era, ao mesmo tempo, doente e cuidador.
Era ávido por crescer, chegar à vida adulta, tomar-me médico e ter uma
esposa e filhos. Seria um pai atencioso com meus filhos e um marido exem-;
plar. Não me imporia à minha esposa e tudo faria para torná-la feliz. Não a
deixaria em falta e cuidaria dela em todos os momentos.
Muito cedo, comecei a fumar, a gostar das músicas que meus irmãos mais
velhos ouviam, a usar roupas de adulto e, logo, num momento importante
da ditadura no Brasil, interessei-me por política. Comecei a trabalhar em um
escritório de contabilidade.
"TOMA!" 199
Na escola, meus colegas eram sempre mais velhos e, quando eu tinha 13 anos
de idade, todos eles já tinham tido experiências sexuais. Meus ami,Pos fizeram, na
época, uma reunião para comprovar se eu já estava «pronto» para ser iniciado
nessa área. Escolhi, com a ajuda dos amigos, uma jovem e bela prostituta, e tudo
ocorreu como esperado. Fomos comemorar e eles me perguntaram: «Ela gozou?''
Respondi, com firmeza, que sim. Contei como havia ocorrido e eles não tiveram
dúvida: ela tinha gozado. Concluí: «se ela gozou, então sou homem·�
Esse, porém, foi um momento muito conturbado na família. Então, a par
tida do meu avô deixou um grande vazio. Minha mãe, assim como minhas
tias e mesmo meus tios, sofreram muito. O efeito em mim foi, a princípio,
inverso, pois imaginei que ele, como um homem dito .tão íntegro e dedicado,
tivera a coragem de ir embora, sem deixar sequer um endereço. Contudo pas
sei a me perguntar: «Ele não teria curiosidade pelo que adviria à sua família?"
"Não quereria ver seus netos crescerem?" «Não sentiria saudade?" O lugar que
ele ocupava para mim foi, aos poucos, destruído.
Meu pai e meus tios não se mostraram capazes de suprir a falta em que as
seis mulheres da família viviam afundadas. Minha decepção aumentou mais
ainda: "Meu pai não se dava conta da insatisfação de minha mãe?" Deduzi
que ele não conseguia satisfazê-la, mesmo sabendo que era sempre ele quem '
a procurava sexualmente. Cheguei, portanto, à conclusão de que havia outra
satisfação em jogo: "O que ela queria?"
Por pretensão advinda da experiência de que meu avô era uma fraude e
de que meu pai era um fraco, alimentei o desejo de ser o homem que faltava
às mulheres - uma exceção. Tentei ser aquele que as compreendia, que as
salvava da condição humilhante e degradante de serem mulheres numa so
ciedade machista e autoritária, a qual lhes impunha suas regras.
,
Ao me "apaixonar» por uma prostituta, combinei um "programa , com
ela. Tudo correu muito bem até que chegamos a seu quarto e me deparei
com um quarto parecido com o da minha irmã. No entanto, principalmente
a forma como ela se despia, de costas, fez-me vivenciar desejos incestuosos
impeditivos ao ato sexual. Seguiu-se um período de busca desenfreada de
um saber teórico sobre a sexualidade. Quanto mais adquiria insígnias fálicas,
mais meus adings out se voltavam em direção ao gozo sem limite e à morte.
Isso me fez aproximar do que se chama de sintomas contemporâneos.
De volta à análise, uma contingência: o reencontro com a fantasia de
salvar a mulher - de sua fragilidade, de sua castração, de sua doença sempre
ameaçadora.
Deu-se, então, o encontro com uma mulher, que me surpreendeu olhan
do para seus seios deixados à mostra, displicentemente, enquanto cantava.
200 AP O S TA NO PAS S B
Ela era de uma tristeza de fazer samba, lembrando versos de Vinicius de
Moraes - " [ ... ] para fazer um samba com beleza,/ é preciso um bocado
de tristeza [ ... ] '� Foi ela quem me fez resgatar, em decorrência de minha
análise, aquilo que um homem busca em uma mulher: a causá de seu desejo
e não um saber sobre ela. Salvar a mulher amada era dar-lhe a possibili
dade de estar diante de um homem que pudesse dançar com ela, escutá-la
em seus sofrimentos, valorizá-la em suas performances, ser um amante
exemplar, provedor, sensível e educado, firme e forte, fazer comidinhas para
depois do amor, fiel, alegre e divertido. Talvez não fosse esse entusiasmo
todo que a mulher amada procurasse. Até o fim do relacionamento, em seus
últimos suspiros, a tentativa era a de dar aquilo que não se tem a quem não
pede. O casamento desfez-se após muitos anos de análise de ambas as partes.
As fantasias foram atravessadas.
A posição de querer salvar a mulher pela medicina, pelo sexo e, inclusive,
pela psicanálise revelou-se a pretensão de querer me salvar de minha própria
castração diante da relação sexual que não existe. Afirmei, então, em análise:
"Eu não preciso mais disso... Nem ela".
Assim, deparei-me com uma conclusão. O objeto oral colocava-se como
objeto privilegiado - comer, beber, fumar -, mas o falar pôs em evidência
o objeto voz. A evocação para tomar a palavra, principalmente em situações
formais, causava-me mutismo. Fazer análise em outra língua teve, contudo,
uma função importante. O esforço de dizer em francês o que havia se passa
do na minha vida fez-me distanciar do drama que, muitas vezes, gostava de
contar em rodas de amigos. Minha história tornou-se chata, ridícula e vazia.
Ocorreu, via de consequência, um fenômeno importante. Ao mesmo
tempo que falava menos da vida, minha voz mostrou-se mais ativa - de tími
da, feminina até, tornou-se uma voz mais natural, mais conforme às minhas
cordas vocais e, sem esforço de minha parte, passou a ser reconhecida como
uma voz masculina.Tratava-se antes de um compromisso com minha mãe e
todas as mulheres que pretendi seduzir, transformando-me em um homem
mais adorável que os outros. A voz masculina parecia muito autoritária para
elas. Uma simples raspada de garganta de meu pai fazia com que as mulheres
de minha família se calassem. Eu, ao contrário, queria fazê-las falar.
A posição do analista, desde o início, foi a de causar uma transferência
negativa. Num primeiro momento, disse "Sim!': mas não sem colocar outra
posição. Meses depois de começado o tratamento, entendi que estava em fim
de análise, já que tudo que eu dizia já havia sido trabalhado anteriormente
e o que me restava era ocupar uma posição que me proporcionava um lugar
muito confortável junto às mulheres, junto ao mundo em geral: dizer sim.
201
A resposta do analista foi uma crise de "nãos" jamais vista( sapateava, ba
tia na mesa, gritava "Não, não.. !' várias vezes, como uma criança birrenta,
como um louco, um ditador, que não abre mão daquilo que pensa e quer.
Depois, conduziu-me até a porta e pediu, com voz carinhosa, que voltasse
uma hora depois. Era o último dia daquela temporada de análise, às 20h.
Não havia mais ninguém no consultório, nem na rua. Foi a hora mais difícil
de passar. Eu pensava: "Que é isso? Ele é louco? Precisa fazer esse escândalo?
O que ele pensa que é? Toma! " Eu queria e, ao mesmo tempo, não queria
voltar lá. Apenas queria, mais uma vez, curto-circuitar a satisfação de parecer
o homem bonzinho e confiável, para poder dar o golpe final: "Toma!"
Foi necessária a retomada do percurso da constituição do sujeito, re
passar o Édipo, recolocando o pai no lugar dele, em vez de no do avô, para
poder abrir mão do compromisso com a mãe e deixar a identificação ao pai
aparecer sem constrangimento. Era como se tivesse feito todo o percurso
da análise, para, enfim, me tornar um obsessivo clássico. Queria, ainda, me
livrar da culpa de desejar a mulher como desejava e colocá-la no lugar de
objeto. Queria não mais precisar acompanhá-la nas compras e em tantas
outras ações, fingindo gostar disso, para, depois, ter acesso a seu corpo. Em
suma, queria me livrar do compromisso de dizer "Sim! ': a fim de poder
abordá-la pela vertente oposta. Na análise, o que se revelou foi que o con
trário do "Sim!" não era o "Não!", mas o "Toma!': . Dizer "Sim!" fazia parte
de uma estratégia para poder colocar em atividade o que era desejo em
relação à mulher: "Toma! "
O que s e apresentou em decorrência da cena da prostituta tirando a rou
pa foram cenas vividas com minha irmã: ela me olhava para verificar se eu a
observava; eu disfarçava e me colocava na posição de objeto olhado passiva
mente, fazendo de conta que não me interessava pelo que via.
Ser visto olhando fez uma marca de gozo. O olhar foi ostensivamente
recusado pelo analista, que escondia o rosto atrás da porta ao me receber nas
sessões: "Como ele tinha a coragem de fazer aquilo? Não me conceder um
olhar?" E eu pensava: "O que ele pensa que é? Acha que sou um bandido? Que
não sou confiável? Que vou utilizar de minha posição estratégica de dizer
'Sim!' para poder me impor?" "Sim"/"Toma!"
Sim, essa foi a grande revelação da minha análise. Sim, o gozo estava cir
cunscrito a dizer "Sim!" para poder me impor, dizer a que vim, dizer o que
queria: "Sim! Toma!" Era isso! A descoberta dessa articulação alimentou-me
um sentimento de astúcia e orgulho.
Certa feita, falando de uma situação de "crise" na EBP, em que solucionei
o impasse, dizendo "Sim!" e, depois, "Toma!': ouvi do analista: "Hipocrisier
�TOMA!" 203
forma de manter vivos meu pai, a mulher, o Outro consistente. Êra o petit
garçon, o menininho, reclamando do pai que não soube lhe ensinar nada
sobre a castração, que não soube cuidar dele. "Não!" Recapitulei: "Não foi
,
essa a interpretação. Ele disse que eu já fui embora. Minha análise terminou �
De volta ao Brasil, tive novo sonho: eu estava em um grupo enorme com
pessoas de todas as minhas rel_ações, amigos, colegas, parentes. De repente,
um casal chamou-me a um canto. Eu sabia o que eles queriam: que eu fizesse
uma espécie de eutanásia no filho deles, que estava numa maca. Fiz o que era
esperado. Matei aquele sujeito que estava ali e que era eu mesmo. Não havia
outra alternativa para ele. Após isso, o corpo estava cortado em grandes fatias,
,
em mantas de carne, como "carne seca : branca, sem sangue, que distribuí
naturalmente.
Na única sessão da temporada seguinte, contei esse sonho. Terminei o
relato, dizendo o que havia concluído: ''Agora, acho que minha análise pode,
um dia, ter fim': Imediatamente, associei tal sonho à temporada anterior e
relatei minha trajetória ao analista: de menininho queixoso do pai à con
clusão de que a análise havia terminado. Ele me acompanhou até a porta de
saída e a fechou. Vi-me no corredor do prédio, no escuro: ''Acabou!" A porta
foi reaberta, depois de um tempo infinito - dois segundos talvez - e o ouvi
,,
dizer: ''Au revoir!
,,
Eu estava lá, sozinho com meu "Sim! /"Toma!". Dei-me conta, enfim, de
que o "Toma!" pode ter formas incrivelmente diferentes. Não se trata de sa
ber fazer. É uma maneira sempre contingente de saber fazer com o sinthoma.
Se bem que exista a palavra "sintoma" na língua, sendo, inclusive, um termo
muito caro à psicanálise, trata-se de um neologismo. É a minha maneira de
escrever o sinthoma com h.
C O M O M O RD E R O MAR
(ou N A T R I LH A S O N O RA D E U M A ANÁL I S E )
2
T RAUMA E T RA ÇA D 0 3
O corpo__que temos resulta de- um encontro, entre . o excesso que nos habita e
�J;�idênci� · do· Outro em nossas vidas. Os contornos desse encontro entre
gozoe significante define riossa cartografia corporal, o que será e o que não
será possível em termos de pru.er e dor. Muitas vezes vivido como trauma,
ele pode ser apreendido como .troumatisme:·simpies traçado dos pontos por
onde um tanto de vida nos é extraído para que possamos, fora do absolu�o
do
- g9zo, viver.
N� ·meu caso, o encontro entre o Outro e o corpo teve toda a aparência de
trauma, que sintetizei numa agressão sofrida aos sete anos. Minha garganta
foi apertada, fui levantado do chão, meu corpo sacudido até que eu qua
se perdesse os sentidos. Era um paciente da clínica psiquiátrica em que vivi
boa parte de minha infância. Nessa empresa familiar, dirigida por minha avó
1 Nomeado Analista de Escola (AE) pelo Cartel do Passe da Escola Brasileira de Psicanálise
(EDP) em 14 de novembro de 2ou.
2 Testemunho apresentado nas xxu Jornadas Clínicas da EDP-Rio e do ICP-RJ em outubro
de 2013 e publicado originalmente em Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional
de Psicanálise, n. 67, São Paulo, 2013, dez., p. 97-104.
3 Agradeço aos amigos e colegas pelos comentários precisos aos meus primeiros testemu
nhos, que foram sendo incorporados neste texto, impossível sem eles.
205
materna, minha tia e minha mãe, tudo era mantido aparentemente sob con
trole por uma denegação radical do desregrado do gozo.4
Em plena loucura, era como se ela não existisse. A manobra era radical,
envolvendo todos, e os efeitos eram drásticos, como no exemplo mais em
blemático para mim: os gemidos dos pacientes mais comprometidos à noite,
no pavilhão de madeira a dez passos de nossa casa. Ignorados mesmo sendo
ouvidos. ·
Não havia lugar para a desrazão no discurso ambiente, não havia, por
tanto, lugar para a mão do agressor na garganta: Teria sido sempre "não é ele':
,,
"é puro impulso etc. Por isso, nada contei a ninguém. As mães me fizeram
crer na incidência de um Outro sem desejo, violência sem agente, real sem
simbólico. Enganava-me. Na verdade, inscrevia-se ali o silêncio sobre o ex
cesso do gozo, relegado ao anonimato pela manobra materna.
Do mesmo modo, tudo aconteceu como se o corpo atacado não fosse
meu. A partir dali, era como se carregasse comigo uma espécie de primo in
visível. Foi essa minha constituição obsessiva, por um lado livre da violênc�a,
por outro condenado à falta a ser, como a criança, conta Guimarães Rosa, que,
numa feira, uma festa junina, procura o guarda e diz: "Seu guarda, o senhor
viu por aí um casal sem um meninozinho assim como eu?"5
O menip.o esganado ficou como um retrato em preto e branco, na gaveta,
ainda mais oculto por um corpo vistoso bem �olorido que roubava a cena.
Era o corpo do narcisismo, de todo dia, definido pelo olhar da mãe, de filho
preferido, estruturado como llll1 mosquito elétrico (apelido dado pela tia):
agitado, brilhante e brincalhão, mas que, na hora "H': de se entregar, nunca
4 Entre outras coisas, era ·um modo de recusa da realidade que criava uma espécie de rea
lidade paralela, por meio de uma série de nomeações ad hoc que lembravam as do po
liticamente correto de hoje. Os pacientes eram os ";.iunos': o sítio era a "fazenda': um
prédio tinha o nome do palácio da República, a loucura nunca era patologia, mas apenas
"fragilidade" e assim por diante.
5 Além de haver esse menino faltante, parecia também não haver guarda nenhum, pois se
o real é aleatório, de nada serve o Nome-do-Pai como mediador. No meu caso, em vez
da mão ( ou da voz, mais comwn) de um representante qualquer da ordem paterna, ou
mesmo de falas maternas remetendo ao pai (que existiram, claro, pois até segunda ordem
não sou psicótico), em vez disso, primou a presença constante de uma violenta desordem
abafada pelo caprichoso discurso matriarcal. Como se o Nome-do-Pai fosse dispensável.
É que, classicamente, o encontro com o real é mediado pela mão paterna. É ela que, pesada,
castiga e educa, protege de outras agressões ou, ao contrário, agride, ou ainda, ausente, faz
falta (como na piada), fazendo crer que o real segue alguma lei.
O L O U C O , O A N A L I S TA E O R E S T O
Minha análise veio dar nome à marca anônima do Outro, dando lugar ao
tanto de gozo não recoberto pelo olhar e que não era entregue ao namoro
com a violência. Como esse resto parecia feito de silêncio, por muito tempo
soube que existia, mas não havia como trazê-lo à cena. Era como nesta outra
piada: um doido estava com o ouvido colado em uma parede, aproxima-se
o médico e o doido faz sinal para ele ouvir. O médico cola o ouvido e nada.
O doido diz: "Está ouvindo?" "Não': "Pois é, está assim há quatro horas!"
Para fazer a parede falar, precisei de alguém como esse doido. O analista
entrou em cena em um lugar desse tipo, imprevisto. Nem mãe, nem trovão,
nem guarda, ele veio em um lugar inesperado. De fato, desde o início a trans
ferência se engajou com relação a algu ém, como o doido da piada, que me
parecia senhor da arte de se submeter sem sucumbir, disso parecendo extrair
alguma imprecisa coisa a mais. De qualquer outro (como em uma análise
anterior), a análise teria sido muito difícil, se não impossível.
Não poderei entrar no detalhe da transferência, por isso a piada. Vou ape
nas resumir todo um percurso, extenso, de uma série de interpretações, em
uma só: «seu coração é um tambor". A novidade era que o "coração-tambor"
localizava, condensava numa parte do corpo e não no corpo inteiro, um gozo,
nesse caso o de uma selvagem chamada à luta. Por ser uma parte do corpo, o
efeito foi o da possibilidade de que eu, em vez de entrar de cabeça na batalha
para sair dela voando em caso de perigo, agora podia me demorar, mudar de
estratégias, entregar-me ao momento, e não vivê-lo no tudo ou nada.
Não é apenas o enunciado de uma interpretação que determina seus efei
tos. Se a condensação do gozo no corpo pelas interpretações foi possível, é
porque em paralelo a elas havia uma contínua presença de intervenções so
noras de estrutura análoga em minha análise. Explico.
6 Este, porém, era vivido sem agressor como força da natureza (silenciosa mesmo quando
catástrofe estrondosa, voz do trovão, por só tomar o real como aleatório, nunca a presença
de um desejo particular).
CO MO MORDER O M AR 207
A voz do Outro, quando quebrava o muro de sons e pensamentos que
eu erigia como barreira, tinha o impacto do trovão, de demanda absoluta,
que levava a uma resposta imediata: dedicar-me, de corpo e alma, a ações
intempestivas e, no caso da análise, a amplas elaborações sobre tudo e nada.
Ora, quando me embalava nesses grandes voos sobre mim mesmo, volta e
meia o analista fazia sons, os mais variados, rasgar jornal, roncar, teclar no
computador.
É bem possível que, de início, essas intervenções sonoras tenham sido
acidentais, mas ele soube a seguir utilizá-las à vontade. Por virem de onde
vinham, jamais eram vividas como a mão na garganta. Perturbavam a defesa
por apresentarem-se como coisas estranhas, de intenção indecidível.
A análise seria, então, um traumatismo controlado? O essencial é ter sido
possível encontrar-me com restos de mim mesmo, aqueles instantes em que
havia experimentado algo fora do campo da fantasia. Apresentaram-se fi
guras de um gozo não submetido ao imperativo materno de ser o brilhante
menino que um dia se imporia ao real da loucura ( e que haviam ficado até
então ocultas).
Foi-se revelando, igualmente, outro tipo de sons do pavilhão ao lado,
não apenas os lancinantes gemidos noturnos, mas balbucios de prazer quan
do os internos fora do discurso banhavam-se, tomavam sol, brincando de
cavalinho e exclamando: "ô': "êh': A voz entrara em cena não mais exclusiva
mente como música ou trovão, mas também como objeto parcial, de desejo
e causa.
Esses pequenos momentos em que pude apenas entregar-me ao vivido
sem trabalho e sem temor compuseram uma colagem que mantive &agil
mente coesa com um apelido de minha infância, Miquito. Essa coesão pre
cária foi essencial e o analista, decisivo por fazer obstáculo a torná-la apenas
uina forma identitária suplementar. Não a assumi como nova persona, o que
talvez só invertesse a polaridade da fantasia, sem introduzir algo novo. Man
tendo Miquito como colagem e não personagem, pude ir explorando, para
cada uma de suas vivências fragmentares, a presença do Outro como marca
de desejos singulares, a que pude dar lugar e reconhecer.
L E T RA
Foi possível assim ir declinando o modo como eles deixaram um traçado que
não era exigência, apenas conjunto instável de marcas contingentes e que não
exigiam, portanto, resposta. Miquito era um apelido, como o do mosquito
7 A fantasia, que poderia ser formulada como "uma criança é esganada': declinava-se como
"silencia-se um corpo", mas também "agita-se um menino" e, finalmente, havia encontra
do seu lado "B": «agarra-se um prazer': ao deixar ver que a mão que silencia é a mesma
que, na ternura do toque, pode acariciar.
8 De fato, tanto mosquito quando miquito condensavam um gozo no campo do sentido,
mesmo se um deles era o lado "A" e o outro o lado "B".
Essa interpretação, que reuniu a mão com a fantasia, foi a última. Mas apenas
por ter sido absolutamente solitária. Naquele momento _da vida, eu já vivia
no corpo a experiência do tanto de vida que não cabe em corpo nenhum, um
gozo suplementar. De alguma forma sabia que ele, como não tinha amparo
no sentido, dificilmente teria localização estável. Só teria lugar na duração se
eu dele me responsabilizasse, sozinho, por ele, dele fizesse escrita.
Disse-me, então, aquele som é de um "mordido da vida': da "amor <lida
da vida': que é também mort sure (morte certa, em francês) . Essa série se con
clui com um quase neologismo: mordidavida. Ele condensa tudo isso e mais.
Mordidavida é · um nome fabricado, talvez sinthoma, é um ato de uma
escrita para dàr lugar ao gozo que não foi capturado na operação da fantasia.
Que lugar? Ele não está em nenhum dos dois lados dà rua, não é o outro lado,
pois é o movimento que a atravessa de um lado para o outro. Se a rua fosse
um rio, ele seria, como escreve Guimarães Rosa, sua terceira margem.
A voz como objeto· perde consistência. Ela não é a fronteira final de uma
análise, também vira resto. A voz, tornada mordidavida , é só esse som que
escreve uma reiteração fora do sentido, se torna apenas essa margem que não
é, mas está lá, litoral.
Poder me servir dessa mão mordida na análi$e foi meu modo de reali�ar
o. que propõe Lacan com relação ao pai: seguir servindo-::-se dele, para poder
dispensá-lo. A mão mordida lhe deu lugar. E exatamente a partir do único
possível, o do louco. De fato, essa era a sua loucura, seus 53 cachorros. Qual
quer outro lugar teria sido o de sempre, ou do trovão ou do zero à esquerda. 9
Mas, para além dessa história de mãos e bocas, o que sustentou a passa
gem da mão na garganta como inscrição do irrepresentável, como silêncio e
morte, para a mordida na mão, como assinatura de um desejo irrepresentável,
mas vivo na mordidavida, foi a voz.
Por isso insisto na trilha sonora de minha análise. E se eu tivesse, hoje,
de dar um lugar nessa trilha sonora ao mordidavida, mesmo sem roupagem
sonora definida, seria a do seguinte sonho, que tive na mesma época:
C O M O M O R D E R O MAR 211
meça a cair, e o grande guerreiro vai se transformando em pigmeu, um pig
meu havaiano de sarongue, é como ele termina quando cai na água. Quando
a catástrofe se abate e o avião cai, descobrimos que estamos todos com a
água pela cintura apenas. Durante todo o sonho, o clima de festa é grande e
o mais importante é que, antes,: batíamos a mão para nos fazer não afundar,
mas agora batemos a mão na água com bastante barulho, na primeira parte,
para não afundarmos, na segunda, apenas pelo prazer: splash, splash, splash!
CO N J U N TO VAZ lO
O NO M E AVRAHAM
Nomeado Analista de Escola (AE) pelo- Cartel do Passe da École de la Cause freudienne
(ECF) em 25 de novembro de 2012.
213
simples jogo de escrita. Era necessário me separar do gozo sacrificial fixado
por esse nome. Inspirado no mito do sacrifício de Abraão e conforme a in
terpretação que Lacan faz desse mito na lição única do Seminário sobre os
"Nomes-do-Pai': a matriz do gozo em jogo derivava de minha identificação às
figuras do filho e do pai entrelaçadas nessa cena do Gênese.
O nome próprio parecia, desse modo, inscrever um destino, seja pelo
drama de Abraão, seja pelo drama do filho ou ainda pelo do carneiro, que
eu supunha ter sido sacrificado em seu lugar ( ram, em inglês, um carneiro
macho) .
E N G O L I R A P Í LU L A
Eu sabia que alguma coisa havia permanecido e m suspenso nessa segu nda
análise, em particular uma angústia em face do excesso de demandas, de um
"a mais" de demandas, vindas da família, da universidade e mesmo da Escola.
Eu tinha a esperança que minha extrema devoção para atendê-las acabaria
por calar essas demandas.
A terceira análise rapidamente destacou uma cena traumática. Quando
criança, nos momentos em que eu adoecia, meu pai, pediatra, me trazia um
medicamento na forma de comprimido, de cápsula ou pílula, que eu devia
engolir. Ora, eu simplesmente não conseguia engolir esse medicamento, que
permanecia retido em algum lugar de minha boca. Colocava o remédio sobre
a língua, tomava um gole d' água e, em seguida, eu mergulhava numa espécie
de fading, para logo em seguida procurar verificar se eu o havia engolido.
Em caso negativo, a cólera do meu pai aumentava, junto com seus gritos de
"Engula!" - e com isso também redobrava minha angústia e meu desespero.
O problema não estava no fato de estar tomando um medicamento, mas na
forma desse medicamento, ou seja, um sólido, uma cápsula, um recipiente
dentro do qual estava a substância ativa.
A componente libidinal na escolha do analista me saltou aos olhos. À época,
responsável pela edição de uma revista do Campo freudiano, eu havia publi
cado uma tradução de um artigo desse analista, que tem por título: "Como
engolir a pílula?'� A suposição de saber não era, portanto, algo difuso; ela
incidia 'precisamente sobre um modo de gozo com o qual eu me via embara
çado na infância.
A recusa em engolir a pílula - difícil não escutar as conotações femini
•
nas dessa expressão - fazia eco à recusa do nome Avraham. Mas desta vez a
dimensão corporal tornou-se patente: ficara evidente que se tratava também
O SACO E O VAZ I O
CONJUNTO VA Z I O 217
J ésus Santiago1
O ENGODO V IR I L 2
Nomeado Analista de Escola (AE) pelo Cartel do Passe da Escola Brasileira de Psicanálise
(BBP) em 6 de maio de 2013.
219
O T RAU M A J E S U S
A rebelião indignada contra o uso do nome próprio pelo pai fez ressurgir
a angústia com a mesma intensidade que precedeu o início da análise. Tal
intensidade atenuou-se, contudo, à medida que passei a captar o que, hoje,
identifico como fator cristocêntrico do Outro materno. Qualifico como cris
tocêntrico o apego de minha mãe pelo culto ao Grande Homem, sentimento
que, como se sabe, decorre do modo como o assassinato do Cristo repete o
assassinato primitivo do pai. 3 O descomedimento do amor ao pai fez-se pre
sente, portanto, na mãe beata. A apreensão desse componente cristocêntrico
vem à tona ao mesmo tempo que percebo que o nome Jesus não assumia,
para mim, o valor de um significante mestre (S1) que orienta existências -
o que, na verdade , acontece com meus irmãos mais velhos. No meu caso, ao
contrário, prevalece o corpo de Jesus como um dos nomes do trauma.
Relembro, a propósito, uma cena de minha infância que traduz essa preg
nância traumática do corpo de Jesus. Com frequência, eu passava o feriado
da Semana Santa numa cidade do interior de Minas Gerais, onde se localiza o
Seminário em que meus irmãos receberam formação religiosa. Nessas opor
tunidades, eu sempre vivenciava uma reação de pavor associada à Procissão
do Encontro, cerimônia na qual se representa o episódio bíblico em que Jesus,
após ser condenado à morte, se encaminha ao Gólgota, para ser crucifica
do. O clímax dessa representaçãq reside no encontro entre a mãe e o filho
condenado, que, alvo de insultos e fl�gelos, exibe seu corpo, em sofrimento.
Além de horror, tal cerimônia confirmava efeitos do cristianismo sobre
mim, considerando-se que, nesse cenário, tudo implicava excessiva exibição
do corpo, o que evocava o gozo sacrificial. O lado apavorante da celebra-:
ção e, em especial, da abnegação da mãe, exposta nesse ritual, retornava-me,
a cada vez, na forma de uma indagação: para ostentar uma missão salvadora,
é necessário passar por toda essa sorte de sacrifícios?
220 A P O STA NO PA S S E
A A B J E Ç Ã O D O G O ZO
E S Q UA R T E JA M E N T O
5 Basta levar em consideração o esquema triangular configurado nesse Seminário para coris'..."
tatar que o objeto a se aloja no lado do semblante/aparência, e não no lado do real. Rever
a natureza do a como objeto que confere consistência ao real, para situá-lo do lado do ser,
implica destacar suas a.finidades com o semblante: «Não é senão da vemmenta d(:,. imagem
de si, que vem envolver o objeto causa do desejo, que se sustenta mais frequentemente [ ... ]
a relação objetal. A afinidade do a com seu envolvimento é uma dessas articulações maiores
que foram adiantadas pela psicanálise,,. Cf. LAC:AN, Jacques. O Seminário, livro 20: mais, ainda
(1972-3). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1982, p; 125, grifos adicionados.
/No que concerne ao final de análise, não se costuma falar de homens o u mu
. lheres no plural, pois o que importa é a relação singular de cada um com a
,, solução para o seu problema do gozo, ou seja, cada um tece , como pode, a
; sua própria solução. Ainda assim, arrisco-me a manifestar minha impressão
· de que o testemunho do final de análise, no caso das mulheres, traduz, com
maior desembaraço e vivacidade, a resolução de impasses da vida amorosa.
Acredito que esse desembaraço se explica pelo fato de que é mais «elevado" fa
lar de suplantação da devastação do que do insolúvel da impotência no amor.
Í)... m�u yer, _ é .i questão do falo que se vê implicada na vertente sintomáti_ca
do impasse amoro�o mais propriamente masculino. Pude apontar, ao longo
deste testemunho, que o uso autístico do falo se constituiu no entrave maior
que dificultava o surgimento do horizonte de solução no final de análise. ·
Ao pôr-se a serviço do ideal viril, o uso autístiço. dofal� refémdo__çir€.µito
fantª�ísti�9 do gozo, alojava no seu ãrnâg�· ta�bém wn efeito feminiza.;;te,
q�e, no fund�, erà �ortificador. E era mortificador porque, embaraçado pelo
ter, eu não podia ceder ao amor, já que, além do compromisso rígido com a
fantasia, tal doação era sentida como perda - uma perda fálica. :para amar,
faz-se necessária no homem uma aproximação com o feminino. Por isso,
considero o autismo do falo uma defesa que causa impedimentos na vida
amorosa, tendo-se em vista, sobretudo, que amar é viver o vazio da pulsão
sem os imperativos obturantes da(fantasfa. As chances de poder viver o amor
, para além de sua impotência exigi'?àm��e, na verdade, dissolver a miragem
1 de que o falo consiste em meio de defesa, a fim de possibilitar, ao contrário,
: que se constituísse num objeto removível a serviço . do furo próprio da pulsão.
- :. ry'
··:: .J .,-·;,·• r./ ,.__!�
·i..
� · .� r':.!•f
224 ....;, A P OSTA NO PAS S E
Na experiência do final de análise, esse furo da pulsão foi-se estreitando,
pouco a pouco, até atingir seu ponto culminante no sonho em que aflora
a sentença "Negue teus heróis,,, que exprimia o desapego por uma posição
sacrificial. ��Q _ po.def yjyer ._ él _ pulsão. _mais _aj�m d<l_ l�do irl,flarnáy�l 4ª
{a.D
tasia é o que a�ega a mortjficaçã9 nessa saí4á que encarna a impot�ncja,
p�itestá circunscrit:a funcionam�nto fálico. Com efeito," esse uso autí�ti�
ª�-
ctofalÕ-�r�se�tav�-se peÍo gozo da mórtifiéâção. Mais do que um ·pretenso
dom-juanismo, caracteristico do ideal viril no homem, a verdadeira expressão do
sintoma residia na mortificação inerente a tal regime fálico da economia de goro.
O funcionamento do falo, traduzido no gozo associado à mortificação,
confundia-se, no fundo, com o ardil da repetição da fantasia. A par de outro
que, contrariando tal regime, se tornava resíduo, que se subtraía da dissolu
ção do herói incitado pela mãe no filho. Desgastava-se, assim, o crédito con
ferido aÓ engodo da posse fálica, que poderia servir de amparo à virilidade do
macho-:J�:nqrianto engod<l, o viril _diante do amor se mostrá fútil.:]
Ao mesmo tempo que esse "engodo a serviço da necessária presunção mas
culina se reduz, pass�:::se
.- a conviver com um resíduo fálico, preferencialmente
\ ' ·· - ·- .
condicionado pelo -�o�, isto é, pelo real da pulsão_. ' O fal<;> como objeto p�ssí-
. . . -· .,
À SO M B RA D E U MA SO M B RA 2
Nomeado Analista de·Escola (AE) pelo Cartel do Passe da Escqla Brasileira de Psicanálise
(E.BP) em 27 de novembro de 2014.
227
certeza, nela existia. Essa transmutação obedecia a um novo modo de fazer
uso de um corpo; o olho servia ao que ele é: «um olho':
Ao final da penúltima sessão, um lapso atravessou-me de modo fulgurante:
sempre levava o dinheiro da sessão separado no bolso, porém, daquela vez, eu
esquecera de fazê-lo. Precisei buscá-lo dentro da bolsa e, enquanto a abria, dis
se ao analista: "Esqueci de separar o dinheiro.. :: No entanto, em vez de dizer
"l' argent" - que, em francês, significa "dinheiro" -, eu disse "monnaie" - que
quer dizer "moeda': Poderia ter interpretado isso como um "mau uso da lín
gua': como o supere__y. exigiria, mas logo percebi o equívoco homofônico entre
monnaie [moeda] �-m�� �1)"meu olho"] . �§.e, .�qaj,yqço,_y�io �ingir�<? "p�çlaço
�� real'' que fora apré�ndi�o; até e.ntão não tinh� sido compre�ndido �um s�
�m
iilio"�óntacÍo sessões anteriores. Ainda haveria uma última sessão, mas, na
ocasião, para dizer ''um nada mais a dizer" a partir do esvaziamento do olhar
e do "nada" que se depreendeu do sonho. Foi a última oportunidade e, tam
bém, o momento em que eu disse que me dirigiria ao passe. Ouvi um "Sim!':
acompanhado de um balançar de cabeça afirmativo e de um aperto de mão
mais prolongado do que os anteriores. Um "Sim!" que continuou ressoando e
encontrou eco em minha nomeação. Voltarei a esse sonho adiante. Antes, ten
tarei localizar os pontos cruciais de minha vida, em que meu corpo se mostrou
fisgado pelo gozo, assim como a defesa que, consequentemente, se processou.
M O R D I DA D E MACACO
Fui violentamente atacado por um macaco aos cinco anos de idade. Qualquer
tentativa de remontar à cena - e foram muitas as versões encontradas - re
dundou em algo que, para mim, não fazia sentido. Explorei-as à exaustão.
Enfim, escolhi uma delas a partir das imagens congeladas que ficaram como
resto do acontecimento.
Minha casa estava em reformas e, por isso, sem água. Certo dia, quando
eu brincava com duas meninas da vizinhança, minha mãe me solicitou que
buscasse um pouco de água potável do outro lado da rua, na casa de uma
vizinha. Adverti-a de que lá havia um macaco, contudo ela alegou que ele
estava preso e que a dona da casa cuidaria para que tudo corresse bem. Fui
com minhas amigas, mas, ao nos aproximarmos da casa, elas recuaram e eu
segui em frente. Apelei para a dona da casa manter o bicho preso e �la me
garantiu que nada aconteceria. Avancei... De repente, tudo escuro... Eu não
via mais nada... Por uma fração de segundo, perdi meu corpo. Já caído, pude
ver o chão de terra batida e o animal que voltava para o topo da árvore de
O O B S T E T R A H E RÓI E O PA I F R ACA S SA D O
Nasci numa sexta-feira, 13, depois de uma tentativa de parto domiciliar, seguindo
uma regra da família. Porém, diante da gravidade do caso, minha mãe foi levada
com urgência ao hospital, onde foi submetida a uma cesariana, com diagnóstico
de "placenta prévià: Perdera muito sangue e fez-se necessária uma transfusão.
O obstetra que a atendera era um jovem de uma família muito tradicional da
quela pequena cidade e que acabara de chegar dos Estados Unidos, onde havia
completado seus estudos. Foi ele o autor da frase "Por mais cinco minutos, mãe
e filho estariam mortos': Conhecido por todos, simpático e de competência in
questionável, ele realmente «estava com a bola todà: pelo menos o suficiente para
que minha mãe o tomasse como seu anjo protetor e responsável por ter mantido
a vida dela e me trazido ao mundo são e salvo. Tudo certo, não fosse o pacto
mortífero que daí se desprendera e que foi realizado, de certa forma, cinco anos
mais tarde, diante dos olhos da mãe - a mordida do macaco. O sacrifício esta
ria inscrito na minha carne, inexoravelmente. Enquanto, por um lado, o pacto
com o salvador se cumpria, por outr�, meu pai iniciava sua derrocada definitiva.
Até meu nascimento, tudo transcorria como esperado: ele conseguira
construir um patrimônio e sustentar sua família, composta pela mulher e
três filhos. Desde então, porém, meu pai mergulhou num silêncio mortífero,
sem reagir à sua perda financeira, demitindo-se de seu desejo e encontrando
o silêncio da morte alguns anos mais tarde, enquanto minha mãe lamentava
a plenos pulmões a perda de suas posses.
À S OM B R A DE U M A S O M B RA 229
" S Ã O S E BA S T I Ã O C R IVA D O , N U B L A I M I N H A V I S Ã O . . ."
Ao mesmo tempo 9ue a matriz da fantasia que fixa <>.._ goz9 no o)harjá.está
formada, assim como se constitui um Outro que dará. matiz ao sint<>n:i3: p_elos
dois acontecimentos relatados, um terceiro e um quarto fatos sé juntaram a
esses. Fora do alcance da minha memória, eles me foram relatados com a cer
teza de que meu destino tinha sido trançado com fios da urgência, do medo
e da mortificação.
Fui vestido de São Sebastião sacrificado, para acompanhar uma procissão
em louvor desse santo e, assim, cumprir uma promessa de minha mãe. Era o
pacto mortífero sendo cumprido, um pacto que não tardou a se transformar
numa· exigência superegoica a que fui submetido durante minha vida. Logo
que soube da encenação dirigida por minha mãe, quis conhecer um pouco da
história do santo: fora um soldado romano que, a caminho da guerra, escu
tara a voz de Deus, ordenando-lhe que desertasse; contudo, ao cumprir essa
ordem, foi capturado pelo exército e, como castigo, amarrado a uma árvore
e cravejado de, flechas.
Visitei a catacumba de São Sebastião na primeira vez que fui a Roma
e, olhando detidamente para sua imagem colocada no centro da capela, fui
tomado pela repulsa de imaginar a dor ali exposta. Eu tivera a mesma reação
anos antes, quando, em Romaria, uma pequena cidade religiosa do interior
de Minas Gerais, fui visitar uma imagem da Pietá esculpida grosseiramente
numa pedra gigantesca, ao relento, e pintada com cores extenuantes à visão,
com olhos saltados, de um azul quase inexistente, fixando o nada. Enquanto
meu pai fazi� sua oração silenciosamente, eu tentava capturar a dor ali expos
ta e, aos pés da escultura, li estes dizeres: "Vede, atendei, não existe dor maior
que minha dor". Encontrei ali, na figuração de uma mulher com o corpo de
seu filho morto no colo, a expressão escrita da dor superlativa e insuspeitada
que dera o tom de consistência ao que seria buscado na minha vida.
Eu fora, pois, tomado como testemunho dessa dot cotidianarnente vivida
pelo meu pai, por sua submissão à depressão e ao silêncio, e do sofrimento
de minha mãe, que lamentava constantemente aquilo que deveria ter sido
sua vida e no que, de fato, esta se transformara. O estranho casamento entre
o silêncio paterno e o barulho materno necessitava de uma resposta subjetiva
à altura. lJ.m,a_ fobia vei�,_ e11tãQ, ��- a_cucµr.
As nuvens cinzas e carregadas no céu passaram a representar o que havia
de mais ameaçador e as tempestades que se seguiram me levaram a um quase
desfalecimento corporal. Ademais, a "chuva" também era usada como metá
fora, em conversas entre minha mãe e minha tia, para designar a chegada de
A S O M B RA .
O que descrevi até este ponto constituiu o pano de fundo que deu consis
tência a uma "sombrà' que passou a me acompanhar sempre, uma sombra
multifacetada - ·ora de tristeza, ora de ameaça, ora, inclusive, de tédio. Sua
presença exaustiva fez com que, algumas vezes, os actings out produzidos for
necessem a certeza de que ela me havia engolfado. Por longos anos, acreditei
que sua existência se devia às agruras da vida e que, pelo recurso ao saber, eu
poderia me livrar dela, ignorando por completo a incidência do inconsciente.
No entanto quanto . mais o ideal do saber avançava, mais eu me via preso
nas malhas do gozo. A análise me mostrou, muito cedo, que o tédio que eu
experímentava no exercício da profissão estava intimamente ligado à teia do
sacrifício. A exigência de eu me tomar um "homem com H maiúsculo" não
se desvinculava de uma perda corporal oferecida em holocausto a um deus
obscuro, que, certamente, respondia ao "desejo caprichoso" de minha mãe.
A ideia de que ela teria sido o agente que livrou meu pai de ir à guerra fez
dela ''a mulher salvadora': mas com seu quinhão de carne. Acreditei nisso
até "descobrir" o equívoco que, na análise, produziu risos: a convocação não
teria sido para a guerra, já que a data era compatível com o fim desta, mas
para integrar a "força de paz"; por outro lado, meu pai não teria nem desa
parecido, nem voltado mutilado, o que lhe justificaria o título de "verdadeiro
herói" que habitou minha fantasia de menino. O triste é que ele mesmo tinha
acreditado nisso - uma crença demonstrada no seu silêncio e, mais tarde, na
doença que o levou à amputação da perna esquerda.
Envolvido com tais contingências e vivendo o impasse deflagrado pelo
tédio, busquei a análise na expectativa de recobrar o valor da via do saber.
Em vão! Minhas duas primeiras análises tiveram um valor inestimável, por, ·
fazerem advir um consentimento ao inconsciente, em que minhas ações fo
ram colocadas em questão, considerando-se a lógica sacrificial em que eu me
havia enredado. A retomada do pai foi inexorável para que eu pudesse me
reconhecer em minhas próprias escolhas. Um pai que, até então envolto na
mesma roupagem sacrificial, despontava de uma fresta que se abrira median
te a retomada de uma lembrança considerada banal: um homem silencioso e
O RG U L H O O U V E R G O N HA ?
E LÁ VAM O S N Ó S • • • UM P O UCO D- E
T RANSFERÊNCIA NEGATIVA
APOSTA NO PASSE
o passaporte apenas na véspera da viagem. Embarquei e, chegando a Miami,
solicitei-lhe, protocolarmente, a possibilidade de um horário. Gentilmente,
ele me disse que não seria possível. Despedimo-nos e adiei o encontro. Dessa
vez, o "triz" não me salvou! Nada de sessão! Convivi com esse gosto amargo
até o encontro seguinte, alguns meses depois, em Buenos Aires, onde só tive
direito a wna sessão. Nada mais!
Nessa oportunidade, disse-lhe do empuxo à urgência, retomando uma das
situações mais violentas a que eu considerava ter sido submetido na vida: a
mordida do macaco. Durante a sessão, ocorreu-me algo novo! Estranhamente,
uma cena recontada ad infinitum me revelou alguma coisa inédita! Digo ao
analista que, apesar da violência do ocorrido, não havia um registro sequer da
dor que, certamente, eu teria sentido então. A forma verbal que utilizei chamou-
-me a atenção: "Eu teria sentido': Não senti? Não, a dor tinha sido foraduída
j_ustamente pela ação anestésica do encontro com o olhar matemo. Encerran
do a sessão, recebi como interpretação: "Isso é muito precisd: Nós nos vería
mos em alguns meses, sem que eu soubesse que seria a óltima fase de análise.
Saí dali com a ideia de me ter dedicado a anestesiar uma dor que nunca existiu!
C O N C LUI N D O
236 A P O S TA NO PA S S E
Maria Josefina Sota Fuentes1
D E I XAR- S E E SCREVER 2
T R A G A N D O A S PALAV RA S
Aos 1 7 anos, após ter sido deixada por um namorado, decidi iniciar minha
análise com a analista que havia atendido meu irmão, pensando que por isso
eu seria compreendida sem ter de dizer grande coisa. E assim foram cinco
anos de sessões de silêncio e lágrimas, em que minha melancolia se tornou
tanto mais intensa quanto menos eu podia nomeá-la como um modo de
gozo sintomático de desabitar o meu pequeno mundo, esparramando-se ali
onde o significante não o alcançava. O que só potencializava a posição de
covardia moral de furtar-me ao bem dizer.
Com a descoberta do ensino de Lacan, na faculdade, nasceu o desejo
de encerrar aquela análise e encontrar uma analista lacaniana, que, por fim,
instalou-me no discurso analítico. Tomei a palavra como jamais o fizera. Eu
nascia naquele divã.
Na verdade, como todo mundo, eu nasci do mal-entendido. Foi nos con
fins do mundo onde adotei o meu destino, no Chile, em Vi.fia dei Mar, local
de meu nascimento. Aos quatro anos, um pouco antes da partida da minha
família, após o golpe militar, ,rumo ao Brasil, consenti com as palavras de
meu avô materno, que, ao saborear uma melancia, me pergunta: "Você sabe
para que servem as pepast' - que em espanhol é o caroço da fruta e me'!
apelido. "Para jogá-las no lixo".
Nomeada Analista de Escola (AE) pelo Cartel do Passe da Escola Brasileira de Psicanálise
(EBP) em 26 de abril de 2017.
237
Em seguida, bastou ver meu primo vomitando a pepa de uma fruta, para
que o horror ao vômito, o primeiro sintoma da neurose infantil, se instalasse
em minha vida. Ter de vomitar passou a ser um fato aterrorizante, sobretudo
depois de ver os vômitos de minha avó materna, morrendo de câncer.
Conforme a escolha do nieu pai, eu recebi · o mesmo nome da minha
mãe, Maria Josefina, a quem apelidamos Pepa, sendo a mim destinado Pepita.
Claro que inúmeras vezes me disseram "Ah, uma pepita de ouro!': elogio que
não me causava graça alguma, pois eu já tinha bem engolido a pepita na ver
são do lixo intragável que se come e se cospe. Maria Josefina não foi de gran
de ajuda, uma vez que meus colegas de classe não perdiam a oportunidade de
me zoar por esse nome, que no Brasil é um tanto bizarro.
O medo de ser abandonada me dominava, a tal ponto que eu permanecia
grudada ao meu irmão na escola. Na partilha sexual, ele era o brilhante que
não precisava estudar, mas igualmente pouco desejado por existir em dema
sia. Como menina, eu deveria permanecer calada e quieta, sem um desejo
que perturbasse aos demais. Aprendi cedo a tragar e estragar meus desejos.
D E S APA R E C E N D O
Ainda pequena, eu tentava quebrar a muralha que o Outro era para mim,
escondendo-me por horas a fio debaixo da cama numa estratégia pouco exi
tosa, pois minha ausência mal era notada. Desaparecia em face do Outro, que
me abandonava ali onde uma feminilidade insuportável se · delineava para a
menina invisível que era um nada.
Ao partir, o que resta de mim no Outro? Na vida, e depois sob o amor de
transferência, procurava encontrar algo que não fosse meu puro desapare
cimento. No berço do mal-entendido, além do lixo e do silêncio mortal do
Outro que não respondia, outras palavras se inscreveram como matéria depo
sitada no sintoma. Quando algo é_ muito bom, dizemos que ''é de morrer':
Mas o enunciado "Você pode morrer': vindo do Outro materno, abria o enig
ma sobre o seu desejo, cuja resposta foi selada pela fantasia.
Com efeito, como diz Lacan, · o primeiro objeto que surge como resposta
ao enigma do desejo do Outro é a própria perda que anima a fantasia de
morte, da própria desaparição. Foi ali onde, em parte, eu fiquei instalada.
Com a abertura do inconsciente trànsferencial, a extração do gozo de
fazer-se abandonar foi de grande alívio. Falar em análise tomou-se uma pai
xão. Por fim, pude dar vida à minha e não abandonar aquele que me desejava
e que se tornaria meu marido e pai do meufilho. Momento fértil e de grandes
238 A P O S TA N O PAS S E
alegrias, no qual eu me inscrevia em ato no campo da vida. Passei a exercer o
que tanto desejara, fazendo uso do lugar de objeto esvaziado de gozo como
analista e ingressando pelo Passe de Entrada na Escola Brasileira de Psica
nálise (EBP)�
A consolidação da passagem da obrigação ao desejo de viver me levou a
pedir, após sete anos de análise, o passe conclusivo. A resposta do Cartel no
dispositivo bilíngue chegou após um ano, em 2002, no mesmo dia em que
recebi a notícia do falecimento do meu pai. Meu mundo caiu e, com ele, fui
parar no fundo do mar.
INTRATÁVEL
NO M AR D E E Q UÍVO C O S
NA C L AV E D E S O L
Mas com a voz pode-se ter o Outro. Foi o que descobri aos cinco anos, quan
do acreditava poder ensinar ó português ao meu pai, músico de ouvido ab
soluto, que me reconhecia como a filha capaz de ouvir a sutileza da língua
estrangeira: a manha é diferente da manhã e do amanhã.
Além disso, a música fez acontecimento de corpo. Nas noites de insônia
e medo, era o piano do meu pai que me fazia dormir, enquanto eu mantinha
entreaberta a porta do meu quarto. Era a minha canção de ninar que me
protegia do desaparecimento mortal, mobilizando com júbilo uma realidade
invisível do corpo. Iniciar-me nas aulas de edi-piano foram os passos seguin
tes para a filha que desejava ter voz e que, logo, listaria músicas proibidas
para si mesma, como o "Prelúdio", de Tristão e Isolda, e a "Marcha fúnebre",
de Chopin, limitando os excessos do arrebatamento, do gozo de dissolver-me
no Outro do amor absoluto que responderia divinamente, sem ter de passar
pelo significante.
Desconcertante é notar que eu estudava canto, mas da voz como objeto
perdido eu nada queria saber!
A analista se interessava, mas também modulava os excessos dessa satisfa
ção que levo em meu repertório. Na sala de espera, Bach ia compondo meus
caminhos descompostos, e o samba dava ritmo às passagens subterrâneas no
metrô e ao árduo ir, vir e partir de Paris. Partir era um parto e, fatalmente,
todos os caminhos da análise pareciam conduzir a um gozo mortal que se
infiltrava por toda parte.
D EI XA R - S E E S CREVER 241
Com efeito, restava ainda perder o mais difícil dos objetos, aquele · que eu
nunca tive e que a analista encarnava: perder o objeto perdido.
242 A P O S TA NO PAS SE
NO VAZ I O F É RT I L : V I DA Q U E S OA
D EI XAR- S E E S C R EV E R 243
Sérgio Laia1
1, 2, 3 E. . .
(EM ANDA MENTO VI VA CE ) 2
1 Nomeado Analista de Escola (AE) pelo Cartel do Passe da Escola Brasileira de Psicanálise
(EBP) em 10 de junho de 2017.
2 Este texto retoma, de modo um pouco mais concentrado, o primeiro testemunho que
apresentei na sede da EBP-Minas Gerais, em Belo Horizonte, no dia 11 de agosto de 2017. Ver
são mais longa foi publicada com o título "1, 2, 3 e .. :· em Opção Lacaniana: Revista Brasileira
Internacional de Psicanálise, n. 78, São Paulo, 2018, fev., p. 53-67. Na versão aqui publicada,
mantive o titulo do texto mais longo, mas, para ressaltar sua redução, recorrendo a uma
terminologia do andamento em música, precisei que se trata de uma "versão vivace".
245
engodo perpetrado, com alguma cumplicidade materna, por dois de meus ir
mãos e de sua apropriação indébita do único bem que o desvario da mãe após a
morte do marido havia deixado intocado e no nome dos cinco filhos. Um afeto
depressivo, que jamais afetou minha determinada ( e paterna) capacidade para
o trabalho, passou a me perturbar de modo ocasional e intenso, muitas vezes
acompanhado de um verso de Mallarmé: La chair est triste, hélas! et j'ai lu tous
les livres [''A carne é triste, sim, e eu li todos os livros"] .3 Nos encontros iniciais
com meu segundo analista, pude ter a coragem de admitir que esse verso rei
terava o esgotamento da quota sublimável das pulsões, assim como o engodo
perpetrado por dois irmãos em parceria com a mãe me fazia constatar que as
insígnias do pai se fragilizaram ainda mais com a morte dele.
Apenas com minha segunda experiência analítica irei constatar que não
era exatamente contra a ausência de legado paterno que eu me fazia tropeçar,
precipitar e cair: eu me defendia do real que me pulsa, não sem alguma opa
cidade, ao modo de um furo, o corpo.
O B J E TO S - TA M P ÃO
O olhar se destaca bem cedo em minha vida por meio de uma cena da qual
não guardo qualquer lembrança de presença corporal, embora tenha me im
pactado o corpo pela fala de minha mãe. Em decorrência da doença celíaca
ainda não diagnosticada e tampouco tratada em suas incidências mortíferas
no corpo de uma criança, eu, com menos de três anos e meio, estava mais
uma vez internado em um hospital, mas então considerado prestes a morrer.
Meu pai se aproximava da cama em que me encontrava prostrado e, acenden
do seu isqueiro, começava a cantar Parabéns a você. Batendo palmas, dei-lhe
sinal de vida e comovi o casal parental.
Seja por essa chama que, na narrativa materna, terá me resgatado da morte,
seja por essa comoção pela qual meus pais eram-me apresentados unidos,
como jamais me pareceram ser, o olhar me vinha e chamava como o que se
inflama, brilha, no campo do Outro e, acendendo-me, salvava-me. Também
em minhas intrusões infanta-juvenis nas brigas de meus pais e, em · espaços
diversos no romance familiar, na minha petulância (ou mesmo destemor)
APOSTA NO PASSE -
em face do Outro, julgado, por sua inconsistência, como aviltante, enganador,
ameaçador, irascível ou tirânico, o que eu buscava extrair e, ao mesmo tempo,
me tornar era esse olhar... esse olhar do pai que, ao contrário da cena relatada
por minha mãe, jamais me chegava ou salvava, por mais que eu acreditasse
firmemente poder ser apenas por ele vivificado.
Valendo-me da doença celíaca como um "sintoma somático': fixei-me,
ainda, como um objeto realizador da fantasia materna de fazer do filho o
"objeto de sua existência'� Porém, no meu caso, houve alguma cumplicidade
paterna: de modo mais sutil que nas neuroses não marcadas por um sintoma
somático infantil, minha neurose - amalgamada à doença celíaca - também
se fez valer como "representante da verdade do par familiar"4 porque a cena
em que o pai me salvava com seu olhar-fogo era a única referência com que a
mãe vislumbrava para núm meu pai como um ideal a ser visado.
. Eu tanto buscava no Outro o olhar quanto me fazia estampar no regis
tro escópico. Na segunda análise, diferenciei a satisfação real que, não sem
opacidade, me pulsa o corpo e a pregnância. escópica na qual se velava a voz
imperiosa do supereu. Destaco, nesse contexto, um sonho no qual o filme
Os pássaros e um quadro de Cabanel, intitulado O nascimento de Vênus, aju
davam a tramar uma encenação que precisou ser desmontada fonicamente
pelo analista, para que o olhar se transmutasse em voz. Desse sonho, desper
tei com angústia, quando me deparei com um gesto fálico e agressivo com
que o análista concomitantemente me parecia afastar e provocar uma gai
vota (mouette) que, lançando-se do teto (toit), nos ameaçava. Por um erro
de pronúncia, eu associava tal pássaro à posição muda (muette) com que
minha mãe, nas brigas conjugais, procurava provocar ainda mais a raiva de
meu pai. A interpretação do analista extrai, do gesto fálico-agressivo que me
angustiava em seu aspecto cênico, a voz, valorizando, ao revés da angústia,
a incidência do falo no enfrentamento do domínio materno: "Tais-toi, sur
moi matemelle! » ["Cala-te, supereu matemo"] - o que era "teto" ("toit") res
soa em "cala-te" ( "tais-toi"), fazendo-me escutar a voz do supereu, da qual
meu equívoco de forçar wna homofonia entre mouette ("gaivota") e muette
("muda"), bem como a encenação pictural e cinematográfica do sonho pro
curavam me ocultar e fazer refém.
1, 2, 3 E • • • 247
Essa desmontagem fónica, por um lado, promoveu um atravessamento
importante quanto ao afeto depressivo e reduziu minha fascinação pela
ausência do legado paterno. Por outro lado, revertendo esses ganhos em
. pura perda, também passei a tomar como perturbações do supereu e, por
conseguinte, provocações a responder a mínima inflexão de uma voz e al
guns ditos apofânticos com que o analista me nomeara algumas fixações
libidinais. Tudo, então, até mesmo as palavras às quais sempre me agar
rei, parecia condenar:-me a um destino funesto, o que, por sua vez, obli
terava o furo por onde essa trama aterradora pôde esvair-se no final de
minha análise.
VAZ I O
APOSTA NO PASSE
F URO
1, 2, 3 E . • . 2 49
é cortada e, na porta, quando estou prestes a sair, ainda escuto do analista:
"Le temps, c'est le traumatique" ["O tempo, é isso o traumático"] .
A passagem inexorável do · tempo e sua dimensão traumática me ecoaram
o destino condenatório, prévio a meu próprio nascimento, do qual eu me
fazia arauto e contra o qual, sobretudo pela propulsão ao ato na via do acting
out, eu também procurava agressivamente me rebelar. Segundo uma tradição
familiar paterna sempre evocada por minha mãe, e da qual meu pai jamais
me falou, as chances de eles terem filhos gêmeos eram tão grandes quanto
aquelas de a gravidez gemelar não chegar a seu termo ou de apenas um dos
recém-nascidos conseguir sobreviver.
A doença celíaca que, por contingência, se abateu sobre mim (e não sobre
meu irmão gêmeo bivitelino), ameaçando-me, com a morte, amalgamou-se à
minha neurose para, em co�sonância com minha recorrente suposição de ter
sido destituído de um legado paterno, dar literalmente corpo a um destino fu
nesto. A principio, era essa condenação oracular que escutei reiterar no destaque
dado pelo analista à passagem inexorável do tempo e sua dimensão traumática
em minha vida. De um lado, mortificando-me, eu me tomava como "o fraco':
"o impotente': "o esquisito·: por aquele que sucumbiria necessariamente na vida
devido à ausência de legado paterno. Por outro lado, nessa inversão pela qual a
neurose obsessiva se destaca em positivar a dimensão mortífera dos sintomas,
eu me apresentava como quem - por ter sobrevivido a uma enorme e precoce
proximidade com a morte - podia até se vangloriar de ter escapado do tempo,
tomando-se mais rápido do que o tempo que passa, capaz de resolver uma série
de coisas ao m�mo tempo e de se precipitar em cena para fazer-se olhar como
aquele que enfrenta tudo e todos, inclusive esse Outro aviltante que é a morte.
Ao desdobrar tais estratégias de afrontar o tempo traumático, o analista
me diz: "C'est votre tentation par le trou" ["É sua tentação pelo furo"]. Cor
tando a sessão, ele ainda cita a referência lacaniana ao "trou du souffleur': ao
"furo que soprà, ou seja, esse lugar vazado onde, na arquitetura mais tradi
cional dos palcos teatrais, alguém se coloca para dar encadeamento à trama
discursiva da encenação, "soprando'' as falas dos atores, se eles porventura
as esquecerem. A citação lacaniana evocada pelo analista diz: "na análise, só
há cena quando há passagem ao ato. Só há passagem ao ato çamo mergulho
no furo que sopra, sendo o furo que sopra, certamente, o inconsciente do
sujeito':5 Nessa citação, reiteram-se termos daquela temporada analítica e, de
5 LACAN, Jacques "'Entretien avec des étudiants, réponses à leurs questions -Yale University,
24 de novembre de 1975': ln: Sdlicet 6/7. Paris: Seuil, 1976, p. 35.
APOSTA NO PAS S E
modo mais extenso, da minha vida: "ato': "cena': "passagem" e também "furo':
até então escamotead0 como ausência, queda e vazio.
Minha "tentação para o furo,, me levava a manter o encadeamento sig
nificante do discurso do Outro, fazendo dele um ventríloquo do qual eu era
apenas um boneco-porta-voz - trata-se, aqui, da versão teatral mais tradicio
nal de quem, invisível, sopra de um furo as palavras para que a encenação não
se interrompa e tudo fique em seu lugar. Logo me dou conta de que minha
''tentação pelo furo" comportava também uma versão teatral mais contem
porânea e pulsional: diante do furo pelo qual o Outro é desmontado em sua
potência de encadear um discurso ou manter uma postura conforme a seu
lugar, eu me precipitava nesse furo para, como em um happening ou uma
performance, escancarar como tudo não passava de uma encenação, reiteran
do o trauma de não haver mais, para mim, qualquer tempo ou lugar.
Retornando à onírica torre do relógio erigida como um falo, passo a
tomá-la, por uma perspectiva anamórfica, também como a biruta que, por
comportar um furo, se infla e desinfla ao sabor dos ventos, ou seja, do que é
sopro e - por que não? - fala, indicando sentidos capazes de fornecer algu m
norteamento, sobretudo ao não se aterem apenas a uma semântica. A biruta
onírica é, portanto, ainda o falo, mas agora como "falácia" que "testemunha
o real': 6 Ela também me aponta para a "furadà' que é o próprio inconsciente
como discurso do Outro e, nesse viés, é tanto uma anamorfose do boneco do
Outro-ventríloquo, no qual minha neurose condenava meu corpo a um des
tino funesto, quanto, ao se valer também do corpo do analista, a localização
de sua queda do lugar de sujeito suposto saber. Por conseguinte, a biruta�
-analista também me permite localizar o inconsciente não mais como trama
discursiva, e sim como furo, lapso, "pedaço de real': sem qualquer alcance
interpretativo porque cingido, não sem satisfação, em uma insensatez diversa
daquela do supereu, uma vez que se refere ao "real sem lei"7 e não se impõe,
portanto, como porta-voz de ordenamentos destinados, em vão, a se sobre
porem à inconsistência do Outro.
No contexto dessas formulações, lembro-me da última cena do sonho: um
amigo cuja vida me parecia, diferente da minha, marcada pela eleição paterna,
mostrava para mim e para minha mulher os presentes tipicamente masculi
nos, mas bizarros, que ele recebia de seu pai - sapatos disformes ou sem par,
6 LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: o sinthoma (1975-6). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2007, p. 107.
7 Ibid., p. 133.
I, 2, 3 E . • . 251
gravatas anamórficas ou incompletas. Relatar essa terceira cena onírica ao ana
lista, depois de tudo que já lhe havia falado e sabendo que ele conhecia meu
amigo, me faz rir e a satisfação transmitida nesse riso, tal como ocorre em um
Witz, o afeta também, porque, em tom risonho, ele me diz: "Même votre ami,
l'homme du pere par excellence, reçoit des cadeaux bizarres du pere" ["Até seu
amigo, o homem do pai por excelência, recebe presentes bizarros do pai"] .
Após constatar que o legado do pai, como ausência ou presença, não dei
xa de fazer dele um sintoma e nos colocar em "furadas': das quais eu então
conseguia rir e fazer rir, consigo escutar meu destino condenatório como
"verdade mentirosa': 8 Afinal, na dimensão real da vida, tenho conquistas, uma
alegria e uma satisfação das quais eu insistia em defender-me, separando-as
de meu corpo e de minha vida. Ocorre-me, assim, ressaltar a diferença entre
a passagem ao ato de mergulhar no "furo que sopra" e a propensão ao ato que,
na forma de acting out, impelia-me a precipitar-me nesse mesmo furo para,
sempre em vão, suturá-lo discursiva e sacrificialmente.
Na última sessão daquela temporada, encontro-me mais tomado pela
certeza do mergulho pelo qual acontece minha passagem ao ato de anali
sante a analista, mas sem saber muito bem como dar-lhe literalmente corpo.
,,
Após um silêncio, falo do equívoco que me permitia tomar a "última sessão
designada pelo analista, a princípio, com referência à sequência das sessões
daquela temporada também, por um ato que me cabia realizar, como a "úl
tima sessão" de minha análise. Evoco, então, a brincadeira infantil da qual a
trama discursiva do Outro me apartava, mas que sempre concernia a uma
satisfação que eu não deixava de experimentar como uma real pulsação em
meu corpo: por meio de uma sequência numérica, antecipa-se o imprevisto
e a satisfação dos corpos: "1, 2, 3 e. . :: Surpreendo-me de que eu, sempre tão
agarrado às palavras, ao sentido, à trama, ao saber, aos nomes e à decifração,
finalize minha análise com uma sequência de cifras na qual a certeza de u,m
ato é antecipada e uma satisfação toma o corpo. Chego mesmo a dizer para
o analista que, se daquela vez eu me decidisse de novo a demandar o passe e,
à diferença do que aconteceu antes, conseguisse ser nomeado Analista da Es
cola (AE), eu até poderia intitular meu primeiro testemunho como "1, 2, 3 e ...».
Rimos, então, o analista e eu, afetados por mais esse Witz com que a terceira e
última sessão do último dia daquela temporada acabou mesmo se efetivando
como a última sessão de minha análise.
8 LACAN, Jacques. "Préface à l'édition anglaise du Séminaire x1" (1976). ln: Autres écrits.
Op. cit., p. 571-3
9 MILLBR, Jacques-Alain. "Est-ce passe?': La Cause freudienne, n. 75, Paris, 2010, p. 83-9.
1, 2, 3 E • . . 253
r;1tn,úNÊ M - S � 'AQUI DUAS
\1 / :v. : ·. . -� :::- , ·... - � . . : ' . '. .
séries :�e �fxtOs,. .Na•• priineira. delas,
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. ,,
.• càusa e v;for dessâ reunião,
n pontuaJá�sd�°r�fl�xãó :d� Jacques�
-Alain Miller. sobre P passe, ocorridas
de-wso a ;2011. Suh<livididas em três
seções, deixam·Ver COlllQ ele.-exftai do
acontecimento e d o prncedi111ento
implicados nessa proposição de
Lacan diversas consequê�çias não
só para o fün de análise, mas também
para os analistas e a existência
da psicanálise. Na segunda;
15 testemunhos de Analistas
da Escola, todos des-membros da
Escola :Brasileira de. Psicanálise, cujos
desdobram�ntos· se ligam, a partir de
2006, ao estabelecimento do Cartel
. do Passe nessa Escola, uma das que
compõem a .Associação Mundial de
Psicanálise, fundada pelo autor em 1992.
Elabora-se, assim, nesta Coleção
Opção Lacaniana, até então ·.
constituída exclusivamente de
livros autorais, um movimento que
se aproximà·de uma das inflexões
mais frutíferas çlaexperiência do
passe: uma transmissão· indil'eta
que necessariament� sê efetuà em
dois momentos distintos e cuja
ocorrência não apenas se constitui da
própria: experiência, como também
se evídenda pelo que nã.o se perde a9
set.· repetido por, sujeit9s ciifere11tes
par� :ouvi6i��· iguaUnente oriu;o$. .
' ' '