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VICTOR L.

TAPIÉ

BARROCO
E
CLASSICISMO
1.° VOLUME

EDITORIAL PRESENÇA
Prefácio
da
;gunda edição

FICHA TÉCNICA
Título original: Baroque et Classicisme
Autor: Victor L. Tapié
© Copyright by Lihrairie Plon, 1972
Tradução: Lemos de Azevedo
Capa: Sector Gráfico da Editorial Presença
Impressão: Empresa Gráfica Feirense, Lda., Sta. Maria da Feira
Acabamento: Rainho & Neves, Lda., Sta. Maria da Feira
2. a edição, Lisboa, 1988
Depósito Legal n.° 21847
Reservados todos os direitos
para a língua portuguesa à
Editorial Presença. Lda.
Rua Augusto Gil, 35-A - 1000 LISBOA
Pierre Charpentrat teve a simpatia de considerar a primeira
edição deste livro, da primavera de 1957, como uma data na
evolução do conhecimento do barroco. «Se me perguntassem,
escreveu ele na pág. 28 de Mirage baroque, qual o ponto a partir
do qual a guerra de reconquista se tinha transformado em marcha
triunfal, proporia 1957, ano de Baroque et Classicisme, de
Victor-L. Tapié».
Por que se há-defingirindiferença a tais apreciações que
dão prazer, mas tão só na medida em que estimulam a perse-
verar ? Confesso que não vejo, tão claramente como o eminente
autor, uma guerra de reconquista, antes, e uma marcha tão triunfal,
depois. Talvez certos entusiasmos de que ninguém é exclusivamente
responsável. Por isso parece-me conveniente precisar a intenção
do primeiro estádio da obra e o carácter desta segunda edição.
Foi certamente uma oportunidade feliz, nos anos 20, ir a
Praga, jovem e ignorante, mergulhar, sem qualquer preparação,
no décor maravilhoso das igrejas e dos palácios barrocos e numa
sociedade em que a palavra, carregada de reprovação na língua
francesa, adquiria um sentido concreto, aplicava-se a uma arte
e, mais ainda, a uma civilização, era testemunho duma experiência
humana prolongada e frequentemente dramática. Mas a oportu-
nidade feliz transformava-se em destino se se era admitido às
lições de um mestre incomparável, cujo primeiro conselho era a
aprendizagem do checo: José Pekar. Este homem é certamente,
entre Palacky e alguns historiadores modernos, o maior histo-
riador da Boémia. Num dia de Setembro de 1936, quando Pekar
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já sofria do mal que havia de o vitimar, um dos seus colegas, José Pekar morreu em 19S7. Contribuiu certamente para
da Universidade de Praga, José Susta, disse-me dele, como se corrigir muitas opiniões erradas sobre a arte e a civilização
tratasse duma evidência, eu diria, fisiológica: «Como sabe, é barrocas, que corriam no seu país. Mas não sei se ele observou
um génio». Ele, Susta, que passara vários anos da sua juventude a coincidência de que noutros países, na Alemanha, Itália, Espanha
em Roma, possuía certamente uma cultura mais vasta do que a e França, estava a passar-se da aversão para a curiosidade e
de Pekar. Os seus métodos críticos eram mais penetrantes e a para a simpatia. O barroco tornava-se objecto de estudo em toda
sua visão do passado mais universal. Ambos pertenciam àquilo a Europa, mas em França a desconfiança era tal que os qu
a que, em Praga, se chamava a Escola de Goll, nome do mestre, procuravam reabilitar os valores do barroco temiam pronunciar
professor na Universidade Carlos, que introduzira aí as discipli- o nome. É que a França tinha como ponto de honra ser a terra
nas exigentes e positivas de Ranhe e Waitz, próximas das de por excelência do classicismo e os dois termos continuavam a
Gabriel Monod em França. Pekar estudou durante alguns ser antinómicos: classicismo nobre e barroco impuro.
meses na Alemanha, no seminário do Professor Lenz, discípulo Creio que aquilo a que Pierre Charpentrat chama a guerra
de Treitschke. Mas para Pekar os métodos não eram senão da reconquista é este longo esforço, esta perpétua descoberta*
instrumentos para atingir uma verdade a que ele se votara: o com seus retrocessos, seus escrúpulos e suas inquietações. São
passado checo, a continuidade duma realidade territorial, social muitos os combatentes. Mas, enfim, o historiador tem por missão
e nacional através dos séculos. Continuidade e, portanto, mudan- pôr problemas e procurar a explicação para eles, não faz apologia
ças. Através destas ia ao encontro do período seguinte à Mon- nem defesa. Retomo agora o que escrevia no prefácio de 1957:
tanha Branca (1620), período conhecido pelo nome de temno «Este livro pretende elucidar um aspecto da civilização; não
(trevas), que era apresentado, no plano político e por uma pro- se espere, pois, encontrar nele uma história completa do barroco
paganda que tinha as suas razões de agressividade e de simpli- e do classicismo, com a análise exaustiva das suas obras e dos
ficação, como período de domínio estrangeiro e de geral escra- seus monumentos.
vização. Pekar não ignorava nenhuma das desgraças do seu O problema principal deste livro, que se restringe ao barroco
país, mas este período era encarado por ele, em grande parte dos séculos XVI e XVII, é investigar as razões que levaram certas
pela beleza e encanto da arte barroca, como uma preparação sociedades a acolhê-lo e a recusá-lo. Tem como ponto de partida
lenta e segura da ressurreição da consciência nacional. Este a origem italiana do barroco».
historiador inflamava (Pekar, que chama! Confessou-me um A distância de mais de três lustros, durante os quais conti-
historiador marxista checo) os seus ouvintes e os seus leitores nuei com muito entusiasmo os meus estudos sobre o barroco,
e punha um problema importantíssimo de civilização a propósito confirmei a convicção que estas linhas exprimiam. O barroco
do seu país e da sua nação. veio da Itália, continua o Renascimento, mas num clima socio-
O seu país, quer dizer, o território e o seu décor artístico, lógico completamente diferente, o do grande abalo religioso
a nação, ou seja, não uma ideia abstracta, mas as gerações boemas da Reforma, do triunfo da Igreja e das monarquias, da consoli-
que fizeram cadeia até nós. Ele ensinava que a idade barroca, dação na Europa, em toda a Europa, da grande propriedade
longe de ser um período de contorsões e extravagâncias, tinha fundiária. E certo que esta propriedade não tem a mesma força
sido vivo e vivido pela nação. Era uma revelação suficiente. social de pressão em todos os países. Mas por todo o lado vamos
Apresso-me a acrescentar que Pekar não era historiador de arte, encontrar a procura de bens de raiz, a noção de herança e o gosto
nem se interessava apenas por história moderna e que o tempo da terra, de que até os melhores historiadores falam tão pouco.
dedicado ao estudo de Jan Zizka e da sua época, à conjura de A Europa barroca foi por excelência uma Europa de rurais.
Wallenstein e às polémicas com Masaryk sobre o sentido da Quero no entanto matizar a minha posição de 1957 em dois
história checa, o impediam de aprofundar o problema mais geral pontos.
do barroco, que ele tinha posto melhor do que ninguém a pro- Em primeiro lugar sobre «.as razões de o acolher ou de o
pósito da Boémia. recusar». A aceitação é indiscutível mas a recusa é bastante
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menor, porque onde é que se encontra a recusa completa, a porta universitárias defendidas na Sorbonne por y. Bottineau, B. Teys-
fechada ao barroco? Porque continuamos a perseverar numa sêdre, F. Souchal, J. Thuillier? A partir de 1963 o Centro inter-
temível dicotomia, numa história assente sobre o bem e o mal nacional de síntese barroca de Montauban organizou colóquios
— o bem é o que nós preferimos, por vezes por simpatia filosófica e publicou cadernos com a preocupação predominante de alargar
ou política e o mal o que detestamos — chegamos a ignorar o inquérito, de reconhecer a seiva barroca (titulo duma bela
que correntes aparentemente contrárias, na realidade, andaram comunicação de René Huyghe) na literatura, no teatro e nas
frequentemente juntas. artes plásticas. Síntese barroca... será possível? Mas este
Nas extremidades colocamos um classicismo intransigente tado não é no fim de contas, necessário ou, pelo menos, urgente.
(mais grego do que romano; os gregos, escrevia Fréart de Cham- O importante é assegurar progresso no conhecimento das obras,
bray em 1650, os únicos que conheceram a perfeição da arte) na inteligência da época e das suas diversas sociedades. O que
e um barroco estonteante. Esses são inconciliáveis. Mas, entre se conseguiu já parece-me essencial: o termo e a noção de barroco,
os dois ? Mesmo em França, onde o classicismo atingiu sem dú- mesmo insuficientemente explicitada, conseguiram o seu lugar
vida a sua perfeição, o paradoxo não é verificar a existência na cultura e na investigação cientifica, quer dizer, tanto nos
de um barroco francês, mas negá-lo, como se se temesse fazer seminários das Universidades como sob a cúpula das Aca-
mal ao classicismo. Contudo, esse barroco conservou maior demias.
equilíbrio e medida por ser francês. Chegado de Itália, principal- Nesta ordem de preocupações é certo que o barroco não
mente de Roma, amorteceu, quando noutras regiões se desen- mais será uma miragem, porque, na investigação séria já não
volvia até à vertigem. é possível deixar submergir a originalidade do classicismo nem
Em segundo lugar receio um tanto que a fórmula de 1957 abrandar o conhecimento pelo uso abusivo duma etiqueta. Não
deixe entender que o barroco parou no fim do século XVII. Não será possível, de certo, impedir que o snobismo e a incompetência
foi isso que aconteceu. O alto barroco da Áustria e da Boémia utilizem frequentemente e fora de propósito o termo barroco
atinge o apogeu entre 1720 e 1740. para designar tudo aquilo que parece insólito ou para interpretar
Não acompanho Pierre Charpentrat até ao fim quando fala as mais desordenadas e audaciosas manifestações do nosso tempo,
de marcha triunfal para se referir ao renascimento dos estudos a pretexto do regresso ao espírito de fervor e de liberdade, que
sobre o barroco nestes últimos anos. Houve, de facto, um enri- deu à Europa durante dois séculos obras que depois caíram no
quecimento dos estudos, de que é prova a bibliografia que esquecimento e cuja beleza e encanto foi necessário redescobrir
apresento e que se limita ao essencial. e reabilitar. Só se compreendem a partir de certas condições
As catorze conferências da Escola Superior de Comércio gerais do tempo, a respeito das quais o século XIX acumulou
de Saint-Gall, reunidas sob o título Die Kunstformen des Barock- contra sensos e mal entendidos.
-zeitalters, são excelentes e podem considerar-se um breviário Nesta nova edição de Barroco e Classicismo permanece
cómodo. Talvez tenha sido a arquitectura a melhor servida, a o método de explicação, que procura elucidar a obra de arte
da Itália e da Europa Central por Pierre Charpentrat e a de pelo clima social e mental que as circunstâncias históricas deter
Espanha por Yves Bottineau, em dois belos e úteis álbuns da minam. Mas o estudo alargou-se a países ausentes na primeira
colecção VArchitecture universelle. Por outro lado, o Barock fase do livro, como fruto do inquérito a que se tem procedido a
in Osterreich de B. Grimschitz, R. Feuchtmuller, W. Mrazek, partir de 1957. A edição inglesa, que apareceu em 1961, graças
como a admirável Cesky Barok de Jaromir Neumann, apresen- à inteligente simpatia do editor R. Weidenfeld, com o título
taram as análises mais sugestivas e felizes das artes plásticas «The Age of Grandeur», tinha um capítulo sobre a Inglater
dos dois países vizinhos. Como não nos felicitarmos, no sector cuja reprodução foi autorizada nesta edição. Também as Presses
francês, das luzes que, directamente ou não, trouxeram ao pro- Universitaires de France permitiram a utilização do primeiro
blema da arte barroca a nova edição de VArchitecture classique capítulo do «Baroque», (n.° 923 da colecção «Que sais-j
de L. Hautecoeur, os estudos de René Huyghe, as grandes teses que se ocupa da história da palavra, e o capítulo referente ao

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barroco espanhol. Os capítulos que tratam da Europa central rismo e o rococó desencorajaram o estudo do barroco. Acrescen-
foram refundidos para dar lugar de maior relevo ao barroco tarei mais isto: o maneirismo limita-se a uma elite restrita en-
abadai, de que há testemunhos muito expressivos na região quanto que o barroco atingiu todas as camadas de certas socieda-
à volta do lago de Constança. des. O rococó, por sua vez, parece um requinte de privilegiados,
Assinalou-se com mais intensidade o desenvolvimento, a muito embora tenha contribuído para uma obra com a imponência
partir de 1683, dum barroco triunfal, bastante diferente do que de Ottobeuren e se tenha dirigido a meios populares nas capelas
o precedera. A informação fornecida pelos livros, artigos eruditos de Birnau e de Wies. Mas durou menos tempo e expandiu-se
ou pelos arquivos não basta, é necessário impregnar-se pela fre- menos no^ espaço. Filipe Minguet, num estudo científico e encan-
quência das estadias, pela familiaridade dos locais e pela observa- tador, pôs o problema da «esthétique du rococó». Eu próp
ção dos vestígios. tentei abordá-lo em duas conferências que fiz em Veneza, em
Não é que este livro, tal como se apresenta, queira ser uma 1965: «Essai d'anaiyse du rococó international». As últ
história completa do barroco e do classicismo, das suas oposições páginas deste livro oferecem os principais elementos do meu
e afinidades. Não foi possível aplicar o método á todos os países. ensaio e procuram mostrar que o rococó não é uma decadência
Aliás a intenção continua a de ser uma tentativa de demonstração do barroco mas se coloca à margem dele.
com a ajuda de alguns exemplos autorizados.
Em Abril de 1960 participei no apaixonante colóquio orga-
nizado pela Academia Na2ionale dei Limei, em Roma, e cujos
trabalhos foram publicados em 1962 com o título «Manierismo,
Barocco, concetti e termini». A partir dessa altura tornou-se
comum apresentar, para o período que provém do Renascimento,
uma cronologia em três etapas: o maneirismo, que, segundo René
Huyghe, «se contentou com requintar o estilo do período prece-
dente e desnaturá-lo para dele tirar novos recursos»(l), o barroco
e o rococó. Continua a ser difícil traçar fronteiras e está fora de
dúvida que o barroco é a fase mais importante, porque exprime
grandes mudanças e sociedades, cujos recursos são muito dife-
rentes dos do Renascimento. O pior erro é deixar-se seduzir pelo
prestigio das etiquetas e torturar-se para saber se uma determi-
nada obra merece ser chamada maneirista, em razão das formas
que apresenta, ou barroca, porque pertence ao período em que
as grandes obras primas do barroco já tinham surgido. Por outro
lado, a força do barroco foi tal que o estilo se manteve até tarde
no século XVIII, para além da data das primeiras obras rocócó.
Compreenda-se bem: eu não recuso de modo algum a utilização
das categorias maneirismo e rococó, mas muitos espíritos con-
tinuam a alimentar confusões sobre o sentido e o carácter da
civilização barroca de tal maneira que as subtilezas sobre o manei-

(1) Baroque; N.° 4 da revista internacional publicada pelo Centre Inter-


national de Synthèse baroque, 1969, p. 5; La Sève baroque.

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INTRODUÇÃO
O francês culto que, numa bela tarde de outono, se detiver
na esplanada do castelo de Versalhes, experimentará um dos
mais altos prazeres do espírito. Será um estrangeiro menos
sensível a este espectáculo ? É sensível, mas de outra maneira.
0 francês acrescenta à emoção estética, que as linhas do monu-
mento e da paisagem propõem — equilíbrio na majestade,
graça na força, medida na grandeza — o gozo duma convicção
particular. Nem a distância dos séculos, nem a mudança das
condições políticas e sociais desde a construção de Versalhes,
nem sequer a sua opinião sobre a monarquia e sobre o antigo
regime criam qualquer obstáculo irredutível entre a obra que
ele contempla e a sua maneira própria de imaginar e de sentir.
Tudo corresponde de tal maneira ao seu conceito de beleza
que se sente solidário dos grandes artistas do passado. Tem
gosto de mais para crer que poderia substituir-se a Le Vau,
Mansart ou Le Notre e, contudo, se tivesse de fazer Versalhes
c contasse com os meios e o génio deles, fá-lo-ia assim.
Imaginemos que o mesmo francês vai a Roma visitar
S. Pedro e que se trata de um católico, naturalmente com um
preconceito favorável a uma igreja, em que há tantas recorda-
ções capazes de reavivar a sua fé. O seu prazer será da mesma
qualidade? Essa imensa nave delimitada por pilares altos e
abundantemente decorados, a magnificência do baldaquino
HUStentado por colunas salomónicas, a riqueza das capelas,
01 dramas de mármore e de bronze, que parecem reviver sobre
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os cenotáfios pontifícios surpreendem-no com inexplicável estudo ajudaria a compreender melhor a Europa num período
estranheza. A nave da igreja provoca nele mais inquietação cujos limites será necessário determinar mas que, em qualquer
do que comoção ou persuasão. E essa igreja é contemporânea caso, se situam pouco depois do Renascimento e terminam
de menos de um século de Versalhes, que o satisfaz. Mais: nas grandes transformações que preparam as revoluções do
foi construída para a religião que ele pratica, quando tudo século XVIII, revoluções políticas, económicas e sociais, cujas
desapareceu do regime político e social, que fez nascer Versalhes. consequências continuam e se aceleram diante dos nossos
O rei morreu e a Igreja está viva. Nenhum argumento parece olhos.
susceptível de esconjurar a estranheza sentida pelo francês.
Para chegar ao sentido particular desta forma de arte tem de *
superar, como se tratasse dum obstáculo, as preferências que
a sua cultura nacional e os hábitos religiosos criados em cir- Por muito utilizados que sejam, os termos clássico e bar-
cunstâncias diferentes despertam nele. roco, o segundo principalmente, ainda são um tanto misteriosos.
Suponhamos que o nosso francês visita uma igreja do sul Tentemos, pelo menos, esclarecê-lo. No princípio deste século
da Alemanha ou uma abadia austríaca em que o movimento, quase não se Falava em França de barroco, de arte barroca e,
o brilho e a luxúria das formas são mais acentuadas que em muito menos ainda, de barroquismo^). Mas a palavra já existia
S. Pedro de Roma. A recusa quase geral da linha recta, a pro- e era completamente utilizada na Alemanha, para onde tinha
fusão dos doirados, uma espécie de dança sagrada que arrasta vindo dos países meridionais.
as colunas dos retábulos e as personagens das estátuas e dos Convém apresentar a história e indicar as acepções que
quadros, as paisagens com falsa perspectiva sobre as abóbadas, actualmente se dão a esta palavra de uso tão frequente e progres-
inspiram-lhe mais repugnância do que admiração. Diante sivamente mais impreciso.
de tal gesticulação e inverosimilhança, esse filho da razão e Reportemo-nos ao primeiro dicionário de língua francesa
do método fala de desordem e de irracionalidade. Ou troça que acolheu este termo, o de Furetière, de 1690, O sentido é
ou se escandaliza. claro e definido: «É um termo de joalharia que se aplica apenas
Estes exemplos, em que muitos dos nossos compatriotas a pérolas que não são completamente redondas».
reconhecem a sua experiência, podem simbolizar o conflito Depois de se ter discutido muito, desde então, sobre a
permanente entre o nosso gosto clássico, ou aquilo a que nós origem da palavra deve ter-se hoje como certo que provém
chamamos o nosso gosto clássico e as formas de arte barroca do termo çortuguês barroco, utilizado para designar a pérola
da Ttália e, principalmente, dos países da Europa germânica irregular. E essa a significação que lhe dão os «Colóquios dos
e eslava. Simples e Drogas da índia» de Garcia da Orta (Goa 1563),
E, de súbito, uma objecção se levanta no nosso espírito. col. 35, Da margarita: «Huns barrocos mal afeiçoados e não
Foi a mesma época que assistiu à conclusão de S. Pedro de redondos, e com águas mortas». A palavra berrueco, o equiva-
Roma e à construção de Versalhes, uma mesma época e a mesma lente castelhano de barroco, entrou na linguagem técnica de
Europa. Para lá das diferenças evidentes, tão visivelmente
perceptíveis, excessivamente perceptíveis talvez, não haverá
fontes comuns e afinidades escondidas ? Não serão duas expres- (I) Um pequeno problema de terminologia. O termo barroquismo, que
sões duma mesma e única civilização, ou mais exactamente, durante muito tempo pouco se usou, tende modernamente a espalhar-se. Será
não serão dois estilos que correspondem a duas sensibilidades um hem? Ocupará o lugar de substantivo, ao passo que barroco será exclusiva-
diferentes e que traduzem, um e outro, o espírito duma mesma mente adjectivo? Seria melhor manter-se o que tem sido regra de há muito:
época? Nesse caso a oposição entre o classicismo e o barroco barroco pode ser substantivo e adjectivo. O barroco de Rubens e de Bernini,
um retábulo barroco, uma obra literária barroca, o barroco de Corncitle, Ma-
obriga a uma análise das condições do tempo, da história em Ihorbc d barroco? Tudo isto se entende bem. Barroquismo é feio, supérfluo
sentido mais amplo e das próprias formas de arte. Um tal • perigoso.

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joalharia no segundo terço do século XVT. Para Covarrubias, et de dissonances, 1'intonation difficile et le mouvement
autor do Tesoro de la lengua castelhana (1611), a palavra contraint». Vem depois uma nota que não deve ser de Rous-
barrueco aplica-se à pérola irregular e berrueco significa ro- seau: «II y a bien 1'apparence que ce terme vient du baroco
chedo granítico e está na origem de «berrocal, tierra áspera, des logiciens». É uma indicação preciosa para nós, porque
y llena de berruecos que son penascales levantados en alto: prova como a etimologia culta era dificilmente aceite no século
y de alli entre las pérolas ay unas mal proporcionadas y por XVIII. Foram precisos perto de duzentos anos para se impor.
la similitud las llamaron berruecos»(2). Foi mais tarde que A Encyclopédie méthodique, obra dedicada à arquitectura
se tentou encontrar uma origem mais culta para a palavra e confiada ao jovem Quatremère de Quincy, dá, em 1788, uma
aproximando-a duma figura do silogismo, o baroco. Na reali- definição de barroco aplicada à arte de construir: «baroque,
dade, baroco não exprime qualquer irregularidade, imperfeição adjectif. Le baroque en architecture est une nuance du bizarre.
ou anormalidade no pensamento. Quando muito, admite-se II en est, si on veut, le refinement (sic) ou s'il était possible de
que, para zombar do formalismo do pensamento das Univer- le dire, 1'abus. Ce que la sévérité est à la sagesse du gout, le
sidades francesas, os estrangeiros gostavam, em certa altura, baroque l'est au bizarre, c'est-à-dire qu'il en est le superlatif.
de tratar os seus doutores de baroco, como Molière troça L'idée de baroque entraine avec soi celle de ridicule poussé
dos sábios em «us», que latinizavam os seus nomes. Subtilezas, à 1'excèss. Borromini a donné les plus grands modeles de bizar-
talvez. Se a primeira significação da palavra era a de pérola reris. Guarini peut passer pour le maítre du baroque. La chapelle
irregular, como aparecia em Furetière, a evolução para o sentido du Saint-Suaire à Turin, bâtie par cet architecte, est 1'exemple
figurado e com intenção pejorativa, aparece já em Saint-Simon. le plus frappant qu'on puisse citer de goút». Este texto foi
Nas suas Mémoires, do ano de 1711, utiliza-o para designar reproduzido literalmente pelo Dictionnaire historique d'archi-
uma ideia estranha e chocante :«L'embarras était que ces places tecture, publicado por Quatremère de Quincy em 1832. Mas,
étaient destinées aux évêques Ies plus distingues et qu'il était entretanto, o teórico italiano F. Miiizia adoptara a fórmula
bien baroque de faire succéder 1'abbé Bignon à M. de Tonnerre, no seu Dicionário das Belas-Artes (Is ed. 1797; 2.a ed. 1804):
évèque-comte de Noyon». O Dicionário da Academie Francaise, «Barocco é il superlativo dei bizarro, 1'eccesso dei ridicolo.
na sua primeira edição de 1694, retomava a definição de Fure- Borromini diede in deliri, ma Guarini, Pozzi, Marchionne
tière: «baroque, adjectif. Se dit seulement des perles qui sont nella sagrestia di San Pietro in barocco». Numa outra obra,
d'une rondeur fort imparfaite. Un collier de perles baroques». Dell' arte di vedere (Veneza, 1798), Francesco Miiizia emprega
Na edição de 1718 não havia qualquer alteração, mas a de a palavra baloco num sentido em que barroco seria bastante
1740 admitia o sentido figurado: «Baroque se dit aussi au normal: «II legislatore non permettera che le belle arti vadano
figure pour irrégulier, bizarre, inégal. Un esprit baroque, une alia stravaganza, al buffonesco, al balocco...» Mas a palavra
expression baroque». A edição de 1762 retomou a mesma de- balocco tem, desde ofimdo séc. XIII, um valor inequivoca-
finição. mente atestado de estúpido e pateta. O general Pommereul,
que traduziu Miiizia no ano VI, teve razão para escrever:
A Enciclopédia não aceitou o termo na sua primeira «O legislador não há-de permitir que as Belas Artes venham
edição. Foi só no Suplemento de 1776 que o acolheu e para a cair na extravagância, no burlesco, na estupidez...» Provavel-
o aplicar à música. Assina a breve definição S., ou seja, J. J. mente não houve contaminação mas simples relação de asso-
Rousseau: «Baroque, en musique; une musique baroque est nância.
celle dont 1'harmonie est confuse, chargée de modulations
A distinção que Quatremère de Quincy estabelece entre
barroco e bizarro merece que voltemos um pouco atrás. Os
(2) Agradeço ao meu eminente confrade do Institui de France, Mareei
numerosos doutrinários franceses do século XVII, partidários
Bataillon ter-me prodigalizado os recursos da sua erudição e da sua extraordi- do classicismo, adversários das maneiras que dele se afastavam,
nária cultura. críticos relativamente aos excessos de habilidade, de fantasia

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de liberdade com o ideal e as regras, jamais recorreram à palavra pôr em dúvida que o sucesso internacional do termo ficou
«barroco» para designar e censurar aquilo que tão fortemente a dever-se ao alemão, a partir dos meados do século XIX e da
lhes desagradava. Bastaram-lhes outras palavras: gótico, bár- obra célebre de Burckhardt, o Cicerone (1860). «Com os anos
baro bizarro. Vejamos o caso de bizarre ou bigearre, que vem 80 do século XVI, escreve Burckhardt, deixamos de caracte-
do espanhol e quer dizer estranho e cuja significação primeira rizar uniformemente os artistas. Em vez disso é possível seguir
foi audácia maravilhosa e, só depois, a de singularidade gro- uma imagem de conjunto do estilo barroco, vindo depois...
tesca. Blondel, intérprete da Academia, censurava a Borromini Não temos culpa, acrescenta, de que o estilo barroco domine,
«as volutas às avessas e mil outras bizarrias que corrompem de que Roma, Nápoles, Turim e outras cidades estejam cheias
a beleza dos edifícios que construiu, edifícios que, fora isso, de tais formas»(4).
têm, na maior parte dos casos, uma disposição e um plano Burckhardt considerava-o inferior ao estilo da Renas-
admiráveis»(3). Para condenar a arte medieval explicava: cença mas, mesmo assim, com um pouco mais de interesse
«Como há nações, que por se terem habituado a sons «bigearres» do que habitualmente se crê. A arquitectura barroca fala a língua
os acham agradáveis, muito embora não tenham nada deles da Renascença, mas num dialecto selvagem. «Die Barockbau-
que possa provocar prazer, assim também não é para estranhar kunst spricht dieselbe Sprache wie die Renaissance, aber einen
que haja pessoas que gostem dos edifícios góticos, a que se verwideltern Dialekt davon...»(5)
acostumaram». «A bizarrerie, comenta Quatremère de Quincy, Não deixemos escapar a aquisição definitiva que esta opi-
num artigo do seu Dictionnaire, é um substantivo feminino, nião de pioneiro nos traz: a ligação entre a Renascença e o
termo que exprime na arquitectura um gosto contrário aos barroco, a origem de um no outro e também o caminho percor-
princípios recebidos, uma procura afectada de formas extraor- rido pela crítica em cem anos. Já ninguém aceita uma filiação
dinárias e cujo mérito reside na novidade, que é também o seu tão simples e directa e impôs-se a etapa do maneirismo. Mas
vício... Na moral, distingue-se o capricho da bizarria. O pri- é indiscutível que as obras de Burckhardt renovaram o interesse
meiro é fruto da imaginação e o segundo resulta do carácter... por um estilo, que o classicismo condenara e que os adeptos
Esta distinção moral pode aplicar-se à arquitectura e aos di- de um certo tipo de classicismo continuaram e continuam
ferentes efeitos do capricho e da bizarria nesta arte... Vignola ainda a rejeitar e que contribuíram para o sucesso definitivo
e Miguel Angelo admitiram, por vezes, na sua arquitectura do termo barroco, que os Alemães jamais deixaram de utilizar.
pormenores caprichosos. Borromini e Guarini foram os mestres Cornélius Gurlitt publicou um amplo estudo sobre o bar-
do género bizarro». Tivemos assim a sorte de ver os termos roco, o rococó e o classicismo nos países da Europa ocidental
bizarro e bizarria tomados, na nossa língua, para designar (1887-1889), e Henrique Wõlfflin, um primeiro livro, pene-
a arte romana de seiscentos e a que lhe é aparentada. Poderíamos trante e vigoroso, sobre Renaissance und Barock (1888). Na
falar de bizarro e de bizarria em vez de utilizarmos a palavra segunda edição desta sua obra reconhecia a sua dívida para
barroco, como substantivo e como adjectivo. Mas nós sabemos com o iniciador: «Há quase vinte anos que este modesto livro,
que o barroco era o superlativo do bizarro... O uso não consa- elaborado sob a impressão duma primeira estadia em Roma
grou estes matizes e a palavra barroco prevaleceu. Porquê c das obras de Burckhardt...»
e desde quando?
Henrique Wõlfflin, um dos iniciadores, na esteira de
Os críticos italianos crêem que foi o derivado francês do Burckhardt, do estudo do barroco, é o responsável de muitas
barocco e berrueco castelhanos que se impôs aos italianos das opiniões correntes, algumas bastante contestáveis, mas
(de Quatremère a Miiizia) e que dos italianos passou talvez
aos Alemães. A filiação continua a ser incerta mas não é possível
(4) J. Burckhardt, Der Cicerone, p. 238.
(3) Traité d'archifecture, livro II, capítulo II, p. 250. (5) Ibidem, p. 329.
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não há dúvida de que lhe pertence o mérito de ter dado o melhor A Europa central possuía em abundância obras aparentadas
contributo para elucidar o que se devia entender por barroco. ao estilo da Itália barroca, ao passo que a França continuava
Ao analisar, numa segunda obra, Kunstgeschichtliche Grun- a alimentar uma predilecção pelas formas clássicas, harmoniosas
dbegriffe (1915) (As ideias fundamentais da história da arte), e severas e a pretender que o seu génio nacional, feito de clareza
apresentava o barroco em oposição à renascença clássica, não e de lógica, se opunha às fantasias e à exuberância da arte
como uma sua derivação ou corrupção, mas à maneira de dois italiana. A graça do estilo Regência ou de Luís XV tinham
estilos, cada um com sua originalidade própria. Quando o a sua preferência e inspiravam a moda «fin de siècle» e o estilo
artista da Renascença procura a linha e o desenho, o do barroco moderno, mas desconheciam-se por completo as ligações que
interessa-se pela cor; o primeiro adopta o plano e o segundo podiam ter com o barroco. Em compensação, os críticos de arte
a profundidade, um a forma fechada e o outro a forma aberta, da Áustria-Hungria, austríacos, checos, húngaros ou polacos,
a unidade e a pluralidade (cada parte de um conjunto tem o seu e russos adoptavam a palavra barroco.
valor próprio), a claridade absoluta ou a claridade relativa O sucesso tinha, em larga medida, origem na sua identidade
dos objectos apresentados. Classicismo renascentista e barroco eufónica nas mais diversas línguas. Tem o mesmo som, apenas
fizeram a sua escolha entre estas categorias de arte e a força com uma leve difrença de terminação, nas línguas latinas,
de cada um veio-lhes da capacidade para traduzir o espírito eslavas e germânicas. Com duas vogais claras bem encastoadas,
de uma época. que parecem evocar a sua amplitude e o seu brilho, o termo
Mas terá sido tudo tão certo e tão simples? Será possível conseguiu, por esse motivo, uma autoridade europeia e, depois,
colocar todo o século XVI sob o epíteto de Renascimento mundial.
clássico^e todo o século XVII debaixo da designação de bar- Durante largo tempo o termo aplicou-se somente às artes
roco? É sintomático que a França não entre nos exemplos de plásticas, mas os limites cronológicos em que o barroco domi-
Wõlfflin. nara eram difíceis de estabelecer. Como distinguir o fim da
Ora é forçoso reconhecer que, mesmo interessando-nos Renascença do princípio do barroco (spát renaissance e friihba-
apenas pelas artes plásticas, são incontáveis as obras barrocas rock), a que alguns chamam maneirismo, o barroco tardio
em toda a Europa e na América, onde se reflectiram, do século (spãtbarock) do rococó? O belo livro de Mareei Reymond,
XV ao século XIX, todas as etapas da civilização europeia, «De Michel Ange à Tiepolo» (1812), um dos melhores da
até se afirmar uma civilização americana. Mas os países bibliografia barroca e que admira que tenha permanecido
onde elas são mais abundantes são a Espanha, o sul da tão confidencial, sem reedição depois de esgotado, excessiva-
Alemanha, o conjunto danubiano e, sobretudo, a Itália, mente severo para encantar os snobs, demasiadamente discreto
O próprio Burckhardt, admirador convicto da Renascença, para obrigar a uma revisão científica do problema, opõe à arte
que considerava o barroco como alteração e decadência da severa da Contra-Reforma o barroco romano, que é o seu
primeira, confessava, mais tarde, que o seu respeito pelo barroco prolongamento e a sua realização.
crescia diariamente, como se de um contacto mais frequente Demonstra que, durante dois séculos, «o pensamento
com ele nascesse um encantamento( 6 ). cristão, reagindo contra uma Renascença cuja arte nem sempre
Se de facto a palavra barroco tinha sido transmitida aos fora profundamente religiosa, tomou a direcção da arte em
Alemães pelos Italianos a partir do termo francês, é curioso toda a Itália». Este pensamento cristão afirma-se em Roma,
observar que a crítica dos países germânicos favorecia larga- mas «os destinos artísticos da península e do mundo vão depen-
mente a sua difusão, ao passo que a crítica fancesa recusava der dele»(7). Distingue duas fases sucessivas, a primeira, na se-
com uma certa obstinação o seu uso. Compreende-se porquê. gunda metade do século XVI, ligada à Contra-Reforma, com

(6) Citado por J. Rousset, Littérature de 1'âge baroque en France, p. 281. (7) Mareei Reymond, De Michel Ange à Tiepolo, prefácio.

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uma arte severa e, a segunda, no século XVII, com uma arte as igrejas constituídas de numerosos países se mantinham,
deslumbrante, encorajada pela corte pontifícia e a que ele graças à rotina e ao conservadorismo social. Salvo raras ex-
dava exclusivamente o epíteto de barroco, que utilizava, aliás, cepções, não conseguiam interessar os homens adultos e viam
com prudência e medida. a sua religião reduzir-se progressivamente a uma devoção
Seria o barroco apenas um estilo de arte ou não seria uma de mulheres.
fase de civilização? A guerra de 1914-1918 renovou de modo Estas condições não encorajavam de modo nenhum à
notável não só o interesse pelo período em que ele triunfou simpatia por uma arte, que parecia ter-se desenvolvido sobre-
mas também a maneira de o encarar. tudo no campo religioso e que um sem número de preconceitos
Não nos devemos, pois, admirar do florescimento de contribuía para desacreditar.
estudos sobre o barroco, depois do regresso da paz, nem do É que a reabilitação dos valores religiosos, nos meios onde
brusco alargamento do problema. Werner Weisbach (Der se fazia, vinha em geral acompanhada da nostalgia da Idade
Barock ais Kunst der Gegenreformation, 1921) demonstrava Média. Impressiona que o autor do Génie du Christianisme,
que o barroco tinha sido a expressão duma civilização católica, apesar das suas visitas à Itália, não tenha nunca feito qualquer
com seus valores particulares, suas contradições e seu dinamismo referência ao seu interesse pela arte do século XVII e do século
geral. Depois, imprudentemente talvez, com um fervor man- XVIII ou a tê-la encontrado. Mais ainda: Ao ceder ao encanto
chado de imperialismo intelectual, colocava, dentro da rubrica de algumas paisagens urbanas e nas evocações admiráveis
do barroco, o estudo que, na colecção enciclopédica Propy- que delas nos deixou, não é sem espanto que se verifica o seu
lãenkunstgeschichte consagrava à arte dos países latinos e silêncio total sobre monumentos barrocos que constituíam
germânicos: Die Kunst des Barock in Italien, Frankreich, um elemento importante do seu encanto. Quando entra nas
Deutschland und Spanien (1924). igrejas está longe de sentir a emoção, que experimenta «nessas
As qualidades tradicionais do génio francês, a sua necessi- basílicas musgosas, a abarrotar de gerações de mortos e das
dade de clareza e de lógica conciliavam-se certamente mal almas dos seus antepassados»(9). O romantismo, que o conti-
com o irracional e os exageros do barroco, mas a França do nuou, dignificou o gótico e procurou trazê-lo à sua antiga
século XVII acolheu-o no brilho das suas festas de corte e, pureza. Quando era preciso construir recomendava-se a imi-
a este título, apresentava uma dupla face: clássica e barroca( 8 ). tação, em vez de se procurar um estilo novo.
Assim se fazia, por etapas, a descoberta duma arte, des- Ao desprezo do barroco não era talvez estranha a tradi-
prezada durante tanto tempo, e se elaboravam as condições cional hostilidade contra os Jesuítas. Era costume atribuir
mais favoráveis para a compreender. à inspiração da Companhia a arquitectura e a decoração das
igrejas dos séculos XVII e XVIII. Falava-se de arte e de estilo
* jesuíticos. Ainda antes de nos debruçarmos longamente sobre
Quantos obstáculos havia ainda a vencer e que caminho esta opinião não é inútil assinalar aqui os seus prováveis efeitos.
curioso a percorrer! O século XIX, sobretudo na segunda parte, Mesmo que não tivesse este preconceito, era forte e quase
assistira ao triunfo dos valores racionais e positivos. Pretendeu geral a convicção que se devia identificar arte cristã com arte
resolver o mistério e a inquietação através da ciência. A sua medieval. Emile Mâle era um seu arauto ao afirmar que, depois
burguesia triunfante pensou apoiar-se no concreto, submeter da Idade-Média, desaparecera a arte cristã.
tudo à ordem e à lógica. Até o seu idealismo foi sabedoria, Foi preciso tempo, teve necessidade duma nova estadia
fundamentada na crítica e na inteligência. Era o tempo em que em Roma e duma paciente observação dos séculos XVII e XVIII
para corrigir esta sua opinião no último livro, que, à maneira
(8) W. Weisbach. Der Barock ais Kunst der Gegenreformation, 1921.
Die Kunst des Barocks in Italien, Frankreich, Deutschland und Spanien.
Propylaen Kunstgeschichte, t. XI. 1924, p. 56. (9) Chateaubriand. Génie du christianisme, livro I, cap. VIII.
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de um coroamento de toda a sua obra, dedicou à «Art religieux a «Roma barocca» de Antonio Munoz, publicada em Roma
après le Concile de Trente» (1932). Notc-se, entretanto, que e Milão em 1919 e que, sob um título triunfal, vai apresentando
ele nunca utiliza a palavra barroco, porque lhe parece equívoca como realização admirável a evolução artística da Cidade
excessivamente ousada ou mal definida. Eterna, de Sixto V a Clemente XIV.
Peça-se a um outro país um exemplo de desprezo pela O que é definitivo, para o que nos interessa, é que a arte
arte barroca e duma sequente reconciliação. O despertar da barroca, depois de ter encontrado, no decorrer do século XIX
nacionalidade checa, durante o século XIX, que o povo reen- e por toda a parte, desprezo e desconfiança, conseguiu, depois
controu na sua própria consciência, foi obra de historiadores. da primeira guerra, e em países diferentes, um novo interesse,
Estes ensinavam que, depois da batalha da Montanha Branca digamo-lo, uma nova actualidade.
(1620), a nação perdera os seus direitos políticos, a sua língua
e a sua religião através de uma reconquista violenta, que apro- *
veitara à dinastia alemã de Viena e à Igreja Católica. Por isso,
os monumentos religiosos, construídos no país ao longo do Voltemos à interpretação, proposta por Weisbach, d o
século XVII e no início do século XVIII deviam ser considera- estilo da Contra-Reforma católica. O primeiro debate andava
dos como obra inimiga, fruto de uma arte complicada, ilógica à volta disto: tratar-se-á verdadeiramente dum estilo? Por
e decadente, puramente formal e artificial e sem correspon- esta palavra deve entender-se, para além de simples técnicas,
dência com o génio nacional. que podem não passar de modas passageiras, uma concepção
A intransigência quanto a estes monumentos atenuou-se geral da vida, a intenção de traduzir verdades gerais que, se
um tanto, por alturas de 1890, entre alguns estetas influenciados não forem válidas para todos os tempos e para todos os homens,
pela Itália e pelas literaturas estrangeiras. Conversão bem mais pelo menos o são aquelas que tiverem sido adoptadas por
significativa foi a do historiador da literatura Arne Novák, uma época como respostas às suas aspirações e necessidades.
que publicou, em 1915, um ensaio notável em honra de Praga Um estilo está ligado a formas políticas, económicas e religiosas.
barroca. A palavra e a ideia pareciam então preconceitos. Liga-se também a uma etapa dos conhecimentos humanos,
«Mas, explicava ele mais tarde, não se tratava apenas de conhe- a um estado determinado das técnicas e do trabalho, às con-
cimento e de ciência; eu vivia, nesse tempo de guerra, no meio dições dos diferentes grupos sociais na sociedade de conjunto
de graves dores pessoais e das angústias do despertar nacional, que os reúne, mesmo que se oponham uns aos outros.
o barroco como um elemento do destino. Essa experiência Benedetto Croce, ao publicar, em 1927, um longo estudo
íntima foi para mim algo de mais profundo que uma moda sobre o pensamento, a poesia, a literatura e a vida moral
literária ou,científica para compreender e interpretar o bar- do século XVII italiano, «Storia delPetà barocca in Itália»,
roco». (|0) E sempre fácil falar de moda. Ao historiador, como parecia admiti-lo. Mas, para o liberal impenitente que Bene-
ao analista, escapam muitas razões profundas, que explicam detto Croce continuava a ser, tratava-se de reagir contra
que uma corrente de civilização do passado seja impermeável as tendências manifestadas pelos historiadores alemães e dc
a uma época ou a uma geração e se torne subitamente acessível mostrar que os requintes barrocos não passavam de contorções
às seguintes. Dir-se-ia que ele flutua como uma peste flutua decadentes, que o barroco e a Contra-Reforma não tinham,
no ar. À Praga barroca de Arne Novák, publicada em 1915 no seu activo, qualquer valor positivo. As riquezas do século
e traduzida em francês no outono de 1920 para se espalhar XVII eram outras: eram os progressos da ciência experimental,
por uma Europa, então a descobrir a Checoslováquia, responde a conquista da religião natural e uma gestação que, através
das guerras religiosas e das suas consequências, fazia avançar
a Europa para a tolerância e para um novo sentido de huma-
(10) Artigo de Lidové Noviny de 25 de Julho de 1937: — Crítica da obra nidade. Para certos povos da Europa, o italiano, o espanhol
de Václav Cerny: Esej o basnickém baroku (Ensaio sobre o barroco poético). e o alemão, o barroco é um período de decadência intelectual
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e de esterilidade criativa. Se assim é, como aplicar, sem con- Para esta opinião, que podia transformar-se numa tese,
fusão, semelhante termo à plenitude intelectual e ao sucesso orientou-se o engenhoso espírito de Eugénio d'Ors. Uma
político das nações que então eram fortes e estavam a cons- das décadas de Pontigny ofereceu-lhe a oportunidade de a
truir-se, à França e à Inglaterra? fazer mais largamente apreciar. Paul Desjardins convidava,
Assim se desenhava um conflito de doutrinas e de tempe- nesses anos do após-guerra, letrados de diversos países para
ramentos. Para os espíritos definitivamente rebeldes aos va- a abadia cisterciense da Borgonha, com a esperança de fazer
lores representados pela arte religiosa do século XVII ou nascer um novo humanismo. Puseram na ordem do dia a teoria,
expressos pela literatura subtil e requintada do mesmo período, a história e crítica dos conceitos de barroco e de barroquismo.
o barroco continuava a ser uma decadência da Renascença O mestre espanhol convidou os seus interlocutores a reconhe-
e só podia ser apreciado, ou melhor, desapreciado, segundo cer que a Renascença e o século XVII não forneciam os únicos
a medida do grande período precedente. Outros espíritos, exemplos do conflito descrito por Wõlfflin entre um estilo
a quem estes mesmos valores pareciam positivos e autónomos, de economia e de razão e um outro, feito de música e de paixão,
viam o barroco viver por si mesmo, ter uma significação um, adepto de formas pesadas e estáveis e o outro, do movi-
própria. Iam mais longe ainda, porque o viam ligado a uma mento das formas que fogem. O exame da fotografia da janela
certa etapa histórica da sensibilidade e do pensamento e, do Convento de Tomar, em Portugal, obra do período manue-
por isso, não aparecia apenas no domínio das artes plásticas. lino, pareceu trazer a prova de que em épocas e em países
Críticos alemães afirmavam que tinha uma expressão na li- diferentes do Seicento e da Itália, podiam vir a descobrir-se
teratura quando o reconheciam na poesia lírica do seu país. todos os elementos típicos do barroco: tendência para o
Foram os casos de F. Strich (Der lyrische Stil des 17. Jahrhun- pitoresco, dinamismo de formas, propensão para o teatral,
derts, Munique, 1916), Herbert Cysarz (Deutsche Barockdi- procura do ênfase ou da expressão complicada.
chtung, Leipzig, 1924), R. Dehio (Die deutsche Barocklyrick, O barroco tinha, pois, um valor geral, devia ser conside-
Estugarda, 1921), cujas teses foram retomadas e discutidas rado uma constante, uma categoria, até mesmo um «éon»,
e acabaram por ser aceites pela obra de M. Moret sobre o ou seja, algo de real, de indestrutível, cujas aparências contudo
lirismo barroco da Alemanha. se renovam através das vicissitudes da história. Era preciso
Que era, então, o barroco? Segundo a palavra de Arthur renunciar à visão demasiado estreita de todos aqueles que se
Húbscher, era a forma dum sentimento contrastado da vida. limitavam a dar o epíteto de barroco à arte do século XVII,
Ora a arte e a literatura procuram estabelecer uma hierarquia analisada por Wõlfflin e por Weisbach. Só faltou, em Pontigny,
de valores e submetê-los à razão, e deste modo introduzem nela os seguidores da antiga acepção admitirem que o barroco
equilíbrio e harmonia; ora exprimem a paixão, a inquietação, o wolffliano não era senão um dos barrocos possíveis. Não
contraste entre as diversas solicitações, que atraem o coração era, de facto, verdade que o Wõlfflin das Kunstgescichtliche
humano. Portanto, se em certas obras se encontrarem as notas Grundbegriffe, pelos seus pares de categorias, tinha posto
da fantasia, do movimento, da fluidez, uma espécie de impulso a primeira pedra do templo, que estava a levantar-se em honra
libertador que rejeita as normas tidas até então como neces- do barroco eterno?
sárias ou melhores, não será o reflexo duma constante da A tese de Eugénio d'Ors, que teve enorme sucesso, apre-
alma humana, duma sensibilidade fundamental, que as cir- senta, muitos perigos e encantos. Tem uma forte simpatia
cunstâncias vêm apenas renovar a expressão? Esse estilo, pelo barroco, leva a ultrapassar a visão demasiado rápida que,
ou melhor, esses estilos de determinados períodos da história, satisfeita com as técnicas, reduz tudo à virtuosidade e ao
cujas datas de emergência e de declínio é possível fixar através artifício. Alargar muitíssimo o conceito de barroco, considerar
da cronologia mas que ressurgem constantemente, são um o barroco do século XVII como uma reincarnação da cons-
facto histórico permanente, cuja natureza é mais importante tante ou do «éon» é bem melhor do que falar de obras menores,
de definir do que as suas fases. dc artistas decadentes, cuja arte teria estado ao serviço de
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preocupações devotas ou dependente dos prémios dum pe- de cometerem uma injustiça e quase que um pecado contra
queno círculo de requintados. Quando o lirismo de Eugénio o espírito, o desdém sistemático contra o barroco, o sarcasmo
d'Ors não arranca para demasiado longe do sangue-frio o para com Bernini.
leitor, é possível recolher, com prazer e proveito, uma ou outra A opinião de Henri Focillon frente ao problema do
observação justa, ainda que não se apoie imediatamente barroco, com um carácter científico e mais rigorosamente
numa demonstração necessária. Sirva de exemplo a preocu- crítico, leva-nos a não confiná-lo às obras da Europa moderna.
pação cósmica do barroco, o seu interesse por todas as formas Numa obra, pequena de dimensões e rica de substância,
da vida e por todos os aspectos da natureza, as suas afinidades a sua «Vida das Formas», Henri Focillon, como se fosse um
rurais e camponesas. naturalista a observar a evolução das espécies, aplica o epíteto
O perigo surge quando aparece uma espécie de meta- barroco às manifestações de exuberância, de fantasia, de
física, que pretende aproximar as audácias da expressão bar- generosidade nas proporções, nos volumes e nas linhas, que
roca e a sua aparente desordem duma desorganização interior todos os estilos apresentam em certa época. Tudo se passa
da consciência individual e colectiva. O barroco, que não como se as regras aceites e consentidas na procura de uma
é decadência, transforma-se então no clima de desagregação disciplina, depois de terem dado provas da sua fecundidade
das personalidades. «Quando este estado superior se encontra ao permitirem realizar obras primas, se tornassem rapidamente
numa depressão, há livre curso para um florescimento múl- insuportáveis e apertadas. Os artistas, que se obstinarem na
tiplo e vicioso do eu, substituto barroco do eu único»(11). aplicação delas, vêm a cair na convenção e no academismo.
Ainda que Eugénio d'Ors tivesse procurado precisar Não passariam de epígonos. Se forem capazes de reencontrar
(repetia-o na mensagem que, encontrando-se doente de um a sua liberdade de expressão, isso será através duma reconquista
mal de que já não se havia de curar, dirigiu ao Congresso pessoal, reagindo contra a ordem, a regra e a medida, por
«Retórica e Barroco», realizado em Veneza, em 1954) que o um requinte de pormenores na fase maneirista ou com um
carácter do barroco é normal e, a falar de doença é só no outro tipo de exagero, dando livre curso a todas as ousadias
sentido em que Michelet dizia que «a mulher é uma eterna da fantasia e restituindo a liberdade ao movimento.
doença», uma tal divisão maniqueia da civilização entre um Por outras palavras, todos os estilos atravessam necessaria-
estilo de equilíbrio e de razão, de inspiração apolínea e um mente uma fase arcaica à procura do equilíbrio e da doutrina,
outro de fervor ou de furor dionisíaco, justifica a condenação uma fase clássica que é a da plenitude e da ordem e uma fase
implícita do segundo. Menor perigo apresenta o esforço para maneirista ou de imaginação, a que se pode dar o nome de
classificar as espécies de barroco, desde a pré-história até barroca. Deste modo, a arte posterior à Renascença, em que
aos nossos dias, apresentando nada menos de vinte e duas, são tão visíveis a originalidade, a abundância e a sobrecarga,
do barrochus pristinus da estilização pré-histórica (o barroco pode chamar-se barroca, mas trata-se dum barroco entre
exprime simpatia por toda a natureza, pelo mundo vegetal outros. Um barroco e não o barroco; um barroco como a
e animal, que os homens primitivos laboriosamente dominaram) arte da Grécia helenística, posterior à arte do século V, como
até ao barrochus postea-bellicus dos anos 20 e da obra de a arte pesada, com suas fachadas ornadas de extravagante
Proust. É um resultado, provisório aliás, simultaneamente profusão, que seguiu o românico calmo e equilibrado, como
irritante e encantador, em que se poderá comprazer sempre as audácias atormentadas do flamejante, depois da serenidade
o snobismo das capelas. A tarefa orsiana, para usar a linguagem do gótico na sua plenitude.
de Pontigny, pelo contrário, há-de provocar a gratidão de Outros historiadores da arte continuaram a reservar
todos aqueles que não podem aceitar sem terem a consciência o termo barroco para o período romano do século XVII e a
considerar Bernini e Borromini como os grandes mestres do
barroco. Pierre Lavedan, fiel à ordem adoptada por Mareei
(11) Eugénio d'Ors, Du baroque, p. 150. Reymond muito mais do que à tese de Weisbach, considera
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que nem as igrejas da Contra-Reforma, de que o Gesú é o
tipo, nem as exuberâncias do período rocaille da Alemanha
do Sul devem denominar-se barroco. Ao traçarmos esta história necessária da palavra barroco
É curioso notar que esta opinião, que podia parecer teremos nós dado uma definição suficiente do que ela inclui?
obstinada e que os partidários de Eugénio d'Ors consideram Ou não será de invocar o carácter de fraca determinação do
como tal, foi retomada nos últimos tempos por historiadores barroco, porque em si contém coisas demais e excessivamente
da literatura. A Jean Rousset e a Mareei Reymond as obras contraditórias, para declarar que é sua característica própria
plásticas do Seicento romano fornecem as verdadeiras carac- não ter uma definição estrita?
terísticas do barroco, dão-lhe uma espécie de definição de O mesmo parece não poder dizer-se do classicismo.
barroco, que vão encontrar através das suas análises no teatro A França e o classicismo evocam imediatamente o século XVII
e na poesia. De ora em diante o epíteto barroco aplicado pelos e Versalhes, a regra das três unidades e essas obras de teatro
alemães à sua literatura dos séculos XVI e XVII é aceite pelos de tamanha qualidade que a sua representação actual por
franceses para designar a literatura francesa posterior à Renas- Jouvet, J. L. Barrault ou pela Comédie Francaise desperta
cença e anterior ao classicismo. Trata-se de obras durante o entusiasmo do público tanto na América do Sul como em
muito tempo ignoradas e que pareciam ser apenas uma prepa- Moscovo e reconcilia os espíritos para além dos sistemas
ração balbuciante para o classicismo. Mas a equipa onde e das conjunturas, parece trazer na festa de uma noite uma
entram R. Lebègue, A. Adam, P. Kohler, G. de Reynold, consagração nova e inesquecível do génio francês. Poderá
O. Nadal, Jean Rousset e Mareei Reymond, tradutor de haver noção mais clara?
Wõlfflin, já prestou o inestimável serviço de os trazer à luz. Na realidade a palavra classicismo tem tantas acepções
Surpreendentemente esses autores têm características singular- e tão diferentes que apresenta quase tantas dificuldades e tanta
mente modernas e que tocam directamente a nossa sensibili- obscuridade como a palavra barroco. Num sentido já antigo,
dade, três séculos depois. que aparece em Furetière,( 12 ) «clássico» designa os autores
Não se deixa de reconhecer que essa literatura tão afas- que se lêem na classe, nas escolas e que gozam de grande auto-
tada do ideal definido por Boileau apresenta, na generalidade, ridade. Por isso é que se fala de clássicos gregos e latinos.
os temas adoptados, a expressão escolhida, afinidades evidentes São os escritores dignos de serem propostos como modelos
com as formas barrocas de arte, também elas rejeitadas e tantas e cujo estudo mais contribui para a formação dos espíritos.
vezes incompreendidas pelos técnicos do classicismo. Perspectiva tranquilizadora, esta. É evidente que uma tal
Esses escritores, a que modernamente se dá o nome de definição é excessivamente ampla. Os dois escritores que,
barrocos, não puseram freios à imaginação nem ao prazer da escola primária ao ensino das Faculdades, adquiriram maior
da fantasia. Foi o caso de Sponde e de Viau. Tanto se afastavam audiência entre o público francês e que mais do que qualquer
da realidade, orientando-se para o inverosímil, para o exagero outro modelaram a maneira de pensar e de sentir da nossa
e para o maravilhoso, tanto se interessavam pelos aspectos nação foram certamente La Fontaine e Victor Hugo. O grande
mais cruéis e mais terríveis da realidade. No teatro multipli- romântico será clássico, por esta razão? Por outro lado, como
cam-se as cenas, que impressionam o espectador pela revelação seria possível multiplicar as discussões de escola, as teses sobre
das violências dos sofrimentos e do sangue; no livro, as imagens o que faz de La Fontaine um clássico. Em certos momentos
truculentas e burlescas, cuja audácia e liberdade de expressão as virtudes pedagógicas do classicismo lembram aquelas que
tocam o leitor. Seiva que brota, vida que estala, em perpétua são atribuídas aos estudos gregos e latinos. Bastaria recorrer
liberdade e entregue à sua lei própria, o contrário exactamente u eles para ter uma cabeça em ordem e um discernimento
da ordem e da submissão às regras. Por isso é que muitos seguro.
destes escritores barrocos foram considerados irregulares pelos
seus contemporâneos. (12) Furetière, Dictionnaire universel, t. I, 1690.

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Contudo, a evidência não é tão convincente que dispense «Trata-se, diz Henri Peyre numa das melhores análises do
ulteriores insistências. O que é que torna essas obras tão classicismo, duma concepçãofilosóficaque assenta sobre a
formativas: será a sua beleza plástica ou o seu conteúdo, convicção de que há algo de permanente e de essencial para
o assunto e a maneira de o tratar? A resposta é esta: uma e além da mudança e do acidente e que esta essência permanente,
outra coisa. Escolha do tema, porque em princípio o leitor que esta substância no sentido etimológico da palavra tem
e o espectador são poupados aos aspectos mais violentos mais valor do que o passageiro e do que o relativo». Acres-
da realidade e às paixões mais baixas da humanidade. Maneira centa mais: «Procura de um equilíbrio interior e profundo,
de o tratar por uma preocupação de pureza e exactidão da língua serenidade do artista pacientemente aplicado em atingir uma
que rejeita os termos ambíguos, as imagens excessivas e submete perfeição completa e finita, tais são os dois traços a que nos
tudo a um ideal de razão, de verosimilhança e de conveniência. referimos mais insistentemente na nossa tentativa de elucidação
Adopção de regras e não de processos, regras essas que assegu- do classicismo»(14).
ram o triunfo da vontade, da razão e da disciplina. A tal perfeição chegaram grandes escritores franceses
Como observava Daniel Mornet, a ambição dos doutri- do século XVII, nos géneros mais diversos, na fábula, na tra-
nários do século XVII parecia ser apenas «estabelecer um gédia, na comédia, na oratória sacra. Mas quantos outros que
código tão completo e tão minucioso de regras razoáveis que pretenderam seguir o seu exemplo e pensando que para lá
bastasse aplicá-las em qualquer género poético para se estar chegar bastava imitar a sua técnica, não vieram a cair no mais
certo de escrever uma obra prima». seco formalismo e na mais árida secura. Foi esse talvez o caso
«Nem toda a gente pode ser poeta, é preciso o dom... de Voltaire, o de Ponsard com toda a certeza, cujo classicismo
Mas quando se possui este dom, de que se fala para não mais não produziu outra obra prima que não fosse a do aborreci-
se preocupar com ele, basta observar o código, para se estar mento.
seguro de escrever uma obra perfeita, como quando se está Seria aliás perigoso pensar que o equilíbrio e a harmonia,
seguro de uma transacção perfeita quando se fez de acordo a razão e as regras são as únicas condições de uma obra prima.
com uma lei perfeita»0*). Parece que, nesta procura de perfeição, A palavra perfeição, que designa um absoluto, não tem plural,
o artista deve apagar-se a si próprio e afastar tudo aquilo que porque não pode haver vários modos de existência para o
traz uma marca demasiadamente aparente do seu século. perfeito. Mas, na realidade, o contrário é que é verdade. Noutros
A obra clássica vale pela sua universalidade, coloca-se acima países diferentes da França imortais obras primas mantiveram-
do tempo e do particular. Alguns críticos chegam a pensar -se alheias à serenidade e ao equilíbrio e, por essa razão,
que ela não devia deixar transparecer nada do seu autor ou são acessíveis e admiradas pelos homens de todas as gerações.
da sua época. Mas eles exageram uma qualidade que é possível Shakespeare consegue no Rio de Janeiro e em Moscovo triunfos
atingir, sem tanto artifício, por meio da discreção. Tome-se idênticos aos dos clássicos franceses. Os escritores ingleses
o exemplo de Tartufo com as alusões aos devotos de 1664 que tomaram por modelos os clássicos franceses, um Pope
e ao escrínio dum criminoso de Estado, em que todos os por exemplo, não conseguiram, por isso, a universalidade de
contemporâneos reconheciam pormenores do processo Fouquet. Molière ou de Racine e não atingiram a força transformante
Modernamente só um reduzido número de iniciados os per- do seu mais ilustre antepassado. Chegou a dizer-se que Goethe
cebe e certamente não prejudicam o tema principal, a aventura foi o único clássico alemão. Uber allen Gipfeln ist Ruh.
humana sempre válida, da hipocrisia desmascarada. A obra Será de concluir por uma espécie de polaridade da obra
clássica distingue-se por uma economia interior que dá à ver- prima? É clássico se a razão harmoniza os seus diferentes
dade geral o primado sobre o acidental e sobre o acontecimento. aspectos. Mas também pode ser uma obra prima na exube-
rância e na paixão. Compreende-se a tentação de encontrar
(13) D. Mornet, Histoire de la littérature française classique, Paris 1942,
p. 55. (14) Henri Peyre, Qu*est-ce que le classicisme?, pag. 61 e 62.
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um termo para definir este segundo estado e adoptar o termo ou do romantismo, observa ele, têm rejeitado a ajuda que um
barroco. Mas viria a cair-se nos perigos indicados mais acima, exame das obras de arte contemporâneas do classicismo ou
numa espécie de alternância permanente e generalizada entre do romantismo lhes poderia dar». A negligência aqui apontada
clássico e barroco. E porque o sucesso equilibrado é mais raro resulta duma exagerada compartimentação das disciplinas.
e mais difícil de atingir do que a obra prima na independência É preciso ultrapassar, ir mais longe do que esta aproxima-
da expressão, que permite todas as audácias, poderia admitir-se ção entre a literatura e as artes plásticas. Reconhecer a aliança
a existência dum fundo barroco mais durável donde viriam estreita que há entre os estilos e as sociedades, em que os
a surgir, de tempos a tempos, assomos clássicos. «Um barroco primeiros traduzem o ideal e a maneira de viver das segundas
permanente, diz P. Kohler, nas suas Lettres de France( 15 ), não é deslizar para o materialismo histórico nem esquecer
fora do qual o clássico surgiu momentaneamente» e ainda a parte essencial do escritor e do artista na sua obra de futuro
«o classicismo é um ponto de perfeição, uma ilhota de mármore imorredoiro. Fala-seduma Europa barroca e duma Europa que
que emerge quando as águas estão baixas e a maré volta a recusa o barroco, o que é verdade, mas que põe um problema;
cobrir de novo, depondo sobre a rocha clara areia com algas problema que se ilude, quando se invocam apenas as disposi-
e conchas». Esta poesia de Anfitrite tem talvez apenas o mérito ções dum temperamento nacional, cuja definição se evita.
de uma imagem bela. Quanto a nós, que nos prendemos a E será verdade que entre o campo barroco e o campo
conservar o sentido mais eficaz dos termos, não acreditamos clássico as fronteiras são tão nítidas ?(16) Não terá havido
nesse barroco permanente nem na emergência dessas ilhas de entre um e outro contaminação e trocas? Se em determinado
mármore. Basta-nos reconhecer as belas realizações da litera- país e em certo momento se fez uma escolha, que razões a
tura francesa do século XVII e da arte da Renascença italiana. determinaram e a partir de que hesitações? Uma investigação,
Por um curioso entrecruzamento, o classicismo francês conduzida a partir da história das sociedades, encarada com
seria precedido por uma época literária em que, tendo a dis- amplitude, incluindo portanto as condições económicas, as
ciplina formal e o equilíbrio interior e profundo menos força, instituições políticas, as aspirações religiosas, levaria a reco-
valores mais coloridos e expressões mais luxuriantes justifi- nhecer que o conflito entre o barroco e o classicismo traduziu
cariam, como se disse acima, a qualificação de barroco. O clas- a riqueza interior e as múltiplas aspirações duma Europa
sicismo francês do século XVII teria assim saído do barroco, em pleno desenvolvimento, apesar das suas fraquezas e das
ao passo que o classicismo da arte da Renascença ter-se-ia suas lutas.
desagregado e decomposto no barroco.
Seria preciso estabelecer como se deram as duas evoluções.
A cronologia leva a observar que a passagem do manei-
rismo da arte renascentista ao barroco é quase contemporâneo
da adopção pela literatura francesa de valores barrocos.
Nesse caso não seriam de temer as confusões. Os termos bar-
roco e classicismo utilizar-se-iam correctamente para designar
estilos diferentes, pertencentes, muito embora ao mesmo pe-
ríodo da história.
No seu pequeno livro, tão fino e tão avisado, Henri
Peyre escreveu que um estudo paralelo da arte e da literatura (16) É a altura de lembrar, citar e meditar sobre a observação que Mareei
lançaria luz sobre o nosso conceito de classicismo. «A maior Reymond fez no simpósio de Roma de Abri] de 1960: «A linha de demarcação
parte dos historiadores da literatura e dos teóricos do classicismo do barroco stricto sensu passa por dentro dos grupos de escritores do século
XVII ou de formas de estilo, que se é tentado a considerar em bloco, quer para
(15) P. Kohler, Lettres de France, p. 43. us filiar no barroco quer para as afastar dele».

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