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ESCOLA DE ENGENHARIA
DEPARTAMENTO DE ENGENHARIA HIDRÁULICA E RECURSOS
HÍDRICOS
Introdução à Hidrologia
Aplicada
Mauro Naghettini
Essas notas de aula foram preparadas para o curso introdutório à Hidrologia Aplicada,
oferecido aos alunos do curso de graduação em Aquacultura da Universidade Federal de
Minas Gerais, sob a responsabilidade do Departamento de Engenharia Hidráulica e
Recursos Hídricos da EEUFMG. A programação para o curso é de 45 horas em 15 semanas
de 3 horas-aula/semana. Estas notas de aula foram divididas em 3 partes, a saber,
A água e o Sol são indissociáveis e imprescindíveis à existência de vida na Terra. As plantas verdes
captam a energia solar e a utilizam no processo de fotossíntese, o qual transforma a água, o dióxido
de carbono e os sais minerais em compostos orgânicos indispensáveis aos seres vivos, tanto como
fonte de energia, como para a constituição e renovação de suas células. Ainda como conseqüência
do processo de fotossíntese, a liberação de oxigênio livre para a atmosfera permite a respiração
aeróbia e, finalmente, a vida animal. Contrariamente às plantas verdes, os animais não têm
capacidade de produzir compostos orgânicos a partir de um ambiente inorgânico e,
conseqüentemente, nutrem-se de plantas e outros animais, formando-se as cadeias alimentares.
A água é a substância que existe em maior quantidade nos seres vivos. Representa cerca de 70% do
peso do corpo humano, podendo chegar a mais de 90% em alguns animais. Além de ser parte
constituinte dos tecidos, a água é o solvente que transporta as substâncias intervenientes nos
processos fisiológicos. A falta de água provoca a debilidade e até a morte dos seres vivos.
O volume de água na Terra tem-se mantido constante desde sua formação há 5 bilhões de anos,
constituindo a chamada hidrosfera, dentro da qual a água circula continuamente, sob a ação da
energia solar e da força gravitacional; a essa circulação contínua de água pelos reservatórios da
hidrosfera dá-se o nome de ciclo hidrológico. De forma sintética, o ciclo hidrológico é a seqüência
de processos físicos pelos quais a água, após evaporar-se dos oceanos, lagos, rios e superfície
terrestre, precipita-se como chuva, neve ou gelo, escoa por sobre o terreno, infiltra-se no subsolo,
escoa pelos aqüíferos, é absorvida pelas raízes das plantas, retornando à atmosfera, seja por
transpiração ou evaporação direta. Além de essencial à manutenção da vida na Terra, a água em
circulação no ciclo hidrológico pode ser captada pelo homem e utilizada para diversas finalidades,
as quais englobam desde formas primitivas de transporte até atividades econômicas de vulto, como
a geração de energia elétrica. Esses fatos caracterizam a água como um recurso natural e
renovável pelos processos do ciclo hidrológico.
Estima-se hoje que 1/5 dos habitantes do planeta não tem acesso à água em quantidade suficiente e
1/3 a água de qualidade. Neste contexto, talvez seja útil lembrar que ‘a mensuração quantitativa e
qualitativa dos elementos do ciclo hidrológico e de outras características intervenientes constitui a
base essencial para a gestão eficaz dos recursos hídricos’ (Declaração de Dublin, 1992).
O aproveitamento e a conservação dos recursos hídricos são tarefas que requerem concepção,
planejamento, administração, projeto, construção e operação de meios para o controle e a utilização
racional das águas. Envolve não só a atuação de engenheiros civis, como também a de outros
profissionais como advogados, economistas, químicos, biólogos, sociólogos e geógrafos.
A utilização dos recursos hídricos para atividades como abastecimento urbano, irrigação, geração de
energia e navegação fluvial pressupõe a quantificação de diversas variáveis do ciclo hidrológico,
bem como de suas respectivas variabilidades, com o objetivo de obter-se a vazão do curso d'água
para fins de projeto e operação das estruturas hidráulicas envolvidas.
Sob o efeito da radiação solar, a evaporação ocorre a partir das superfícies de água formando uma
massa de ar úmido. O resfriamento deste ar úmido provoca a condensação do vapor e a formação de
minúsculas gotas de água, as quais, prendem-se a sais e partículas higroscópicas, presentes na
atmosfera, dando origem a nuvens e outras formas de nebulosidade. O choque entre as gotículas em
suspensão provoca o seu crescimento, tornando-as suficientemente pesadas para se precipitarem sob
a forma de chuva (ou neve, ou granizo ou orvalho).
As gotas de chuva iniciam então a segunda fase do ciclo hidrológico, a precipitação, a qual pode
variar em intensidade de uma estação para outra, ou de uma região para outra, a depender das
diferenças climáticas no tempo e espaço.
Parte da precipitação pode ser recolhida pela folhagem e troncos da vegetação e não atinge o solo.
A esse armazenamento de água dá-se o nome de intercepção ou interceptação, grande parte do qual
retorna à atmosfera sob forma de vapor, através da energia fornecida pela radiação solar. A parte da
precipitação que atinge o solo pode infiltrar para o subsolo, escoar por sobre a superfície ou ser
recolhida diretamente por cursos e corpos d’água. As fases de infiltração e escoamento superficial
são inter-relacionadas e muito influenciadas pela intensidade da chuva, pela cobertura vegetal e pela
permeabilidade do solo.
Parte da água que se infiltra fica retida em poros na camada superior do solo pela ação da tensão
capilar. Essa umidade retida no solo pode ser absorvida pelas raízes da vegetação ou pode sofrer
evaporação. Outra parte do volume infiltrado pode formar o escoamento sub-superficial através das
vertentes e camadas mais superficiais do solo. O restante da água de infiltração irá percolar para as
camadas mais profundas até encontrar uma região na qual todos os interstícios do solo estarão
preenchidos por água. Essas camadas de solo saturado com água são chamadas aqüíferos e
repousam sobre substratos impermeáveis ou de baixa permeabilidade. O escoamento subterrâneo
em um aqüífero pode dar-se lateralmente e, eventualmente, emergir em um lago ou mesmo
sustentar a vazão de um rio perene em períodos de estiagem.
Se a chuva exceder a capacidade máxima de infiltração do solo, esse excesso irá inicialmente se
acumular em depressões e, em seguida, formar o escoamento superficial. Esse ocorre através de
trajetórias preferenciais, sulcos, ravinas, vales e cursos d’água, os quais finalmente irão desaguar
nos mares e oceanos. Nesse trajeto da água superficial, podem ocorrer mais uma vez perdas por
infiltração e evaporação, conforme as características de relevo e umidade presente no solo.
O ciclo hidrológico completa-se pelo retorno à atmosfera da água armazenada pelas plantas, pelo
solo e pelas superfícies líquidas, sob a forma de vapor d’água. Quando essa mudança de fase tem
origem em superfícies líquidas dá-se o nome de evaporação simplesmente. A planta1, por sua vez,
absorve a água retida nas camadas superiores do solo através se seu sistema radicular, utilizando-a
em seu processo de crescimento. A transpiração é a fase pela qual as plantas devolvem para a
atmosfera a água que absorveram do solo, expondo-a a evaporação através de pequenas aberturas
existentes em sua folhagem denominadas estômatos. O conjunto dos processos de evaporação da
água do solo e transpiração é conhecido por evapotranspiração. Numa escala continental, cerca de
25% do volume d’água que atinge o solo alcança os oceanos na forma de escoamento superficial e
subterrâneo, ao passo que 75% volta à atmosfera por evapotranspiração.
O volume total de água na Terra é estimado em 1460 milhões de quilômetros cúbicos e encontra-se
distribuído de forma bastante desequilibrada entre rios, aqüíferos, oceanos e lagos. A Tabela 1.1,
adaptada de Nace (1981), apresenta as estimativas do balanço global do volume de água, sua
distribuição e os respectivos tempos de residência. Observe que volume de água subterrânea,
embora represente quase a totalidade da água doce não congelada existente no globo terrestre, pode
demorar até alguns milhares de anos para ser completamente renovado.
1
“As plantas podem absorver água em toda a sua superfície, mas a maior parte do suprimento vem do solo.
Nas plantas superiores, a absorção ocorre por meio das raízes, órgãos especializados. As plantas inferiores
não as possuem. Por isso dependem da absorção direta, através de órgãos acima do solo.”
(Larcher,1986,p.231)
Tabela 1.1 - Balanço Hídrico Global (Nace, 1981)
Fonte Volume (106 km3) Volume (%) Tempo de Residência
Mares e oceanos 1370 94 4000 anos
Lagos e reservatórios 0,13 < 0,01 10 anos
Pântanos < 0,01 < 0,01 1-10 anos
Rios < 0,01 < 0,01 2 semanas
Umidade do solo 0,07 < 0,01 2 semanas - 1 ano
Água subterrânea 60 4 2 semanas - 10000 anos
Geleiras 30 2 10-10000 anos
Água atmosférica 0,01 < 0,01 10 dias
Água biosférica < 0,01 < 0,01 1 semana
Considerando os seis processos principais do ciclo da água, pode-se fazer uma estimativa das
quantidades de água que passam por cada uma destas etapas. Esta quantificação provém da
aplicação do princípio da conservação da massa, cuja formulação representa a lei fundamental da
hidrologia ou equação do balanço hídrico. Esta é uma mera expressão da equação da continuidade
aplicada ao ciclo hidrológico em uma bacia hidrográfica - ou em uma determinada região - e define
a relação entre os fluxos de água que entram (Qe) e que saem (Qs) de um sistema definido no espaço
e o volume armazenado V, durante um intervalo de tempo t:
V
Qe Qs (1.1)
t
Supondo os instantes de tempo inicial e final t1 e t2 respectivamente, a equação 1.1 poderá ser
escrita como
Para uma bacia hidrográfica, os componentes do armazenamento (V2 e V1) serão os correspondentes
ao volume de superfície VS (incluindo os volumes armazenados em rios, canais, lagos,
reservatórios e depressões), ao volume de subsolo VB (incluindo a umidade do solo e o volume
armazenado em aqüíferos) e ao volume intercepção VIT. Geralmente, a variação do volume de
água interceptada pela vegetação é muito baixo, não sendo considerado significativo relativamente
à variação dos volumes superficial e subterrâneo. Uma vez fixado um certo intervalo de tempo, a
vazão de entrada (Qe) poderá ser representada pelo volume de precipitação P. Da mesma foram, a
vazão de saída (Qs) poderá ser a soma dos volumes correspondentes ao escoamento superficial S,
aos escoamentos sub-superficial e subterrâneo B, à evaporação E, à transpiração T e à
infiltração I, no intervalo de tempo em questão. Logo em unidades volumétricas a equação 1.2
pode ser expressa como
VS VB VS t 2 VS t1 VB t 2 VB t1 P S B E T I
(1.3)
VS P S ES TS I P S ETPS I (1.4)
VB I B EB TB I B ETPB (1.5)
Da mesma forma que essas equações podem ser aplicada a bacias hidrográficas, elas podem ser
modificadas para representar o balanço hídrico de um reservatório, ou de um trecho de rio, ou
mesmo de uma superfície impermeável, desde que os termos pertinentes sejam considerados. Como
exemplo, considere o problema de determinação do volume de escoamento superficial resultante de
um evento chuvoso isolado. Nesse caso, suponha que não houve alteração significativa do
armazenamento subterrâneo e que VS(t1)=0. O escoamento sub-superficial B deve-se à infiltração I
e, portanto, a equação 1.3 torna-se
S P I E T VS t 2 (1.6)
Para eventos isolados, as quantidades E e T são muito menores do que P, I, VS e S, podendo ser
desprezadas. Nesse caso,
S P I VS t2 (1.7)
Essa equação indica que, o volume de escoamento superficial causado por um evento isolado de
precipitação sobre uma bacia hidrográfica, pode ser obtido subtraindo-se do total de chuva, a soma
do volume infiltrado e do volume superficial eventualmente utilizado ou desviado da bacia durante
a duração da ocorrência. As unidades nesse caso são alturas equivalentes, ou milímetros de água
uniformemente distribuídos sobre a área da bacia hidrográfica. No caso do escoamento superficial
S, essa altura equivalente (em mm ou cm) sobre a área de drenagem é denominada deflúvio
superficial ou, simplesmente, deflúvio.
Exercício resolvido 1.1: Cálculo do deflúvio - Considere uma vazão média anual de 1,5 m3/s em
uma bacia hidrográfica com área de 100 Km2. Qual é o deflúvio correspondente à essa bacia?
Solução - Conforme descrito acima o deflúvio é a altura equivalente (mm ou cm) a uma vazão
distribuída uniformemente sobre uma área. Logo:
m3
Q
s
86400 365s 6 86400 365 0,473m 473mm
1.5
S
Am
2
10
Exercício resolvido 1.2: Balanço Hídrico - Durante o mês de Julho de 1981, a afluência média ao
reservatório de Três Marias foi de 430 m3 /s. No mesmo período, a CEMIG operou o reservatório
liberando para jusante uma vazão de 250 m3 /s para atendimento à navegação, sendo que a geração
de energia elétrica consumiu uma vazão adicional de 500 m3 /s. A precipitação mensal na região foi
de apenas 5 mm, enquanto a média histórica de evaporação da superfície do lago vale 110 mm.
Sabendo que no início do mês o NA do reservatório era 567,03 m, calcular o NA no fim do mês,
dada a relação cota-área-volume a seguir. Despreze as perdas por infiltração e calcule a precipitação
efetiva (precipitação-evaporação) sobre o lago com base no NA de 567,03 m. Fazer interpolação
linear na relação cota-área-volume.
Mas, o problema pede o NA no fim do mês e não o volume final. Logo, fazendo uma outra
interpolação linear obtêm-se
13,527 13,126 566,00 NAf 13,527 13,393 566,00 565,50 NAf 565,83m
A quantificação das diversas fases do ciclo hidrológico, das suas respectivas variabilidades e de
suas inter-relações, requer a coleta sistemática de dados básicos que se desenvolvem no tempo e no
espaço. As respostas aos diversos problemas de hidrologia aplicada serão tão mais corretas, quanto
mais longos e precisos forem os registros de dados hidrológicos. Esses podem compreender dados
climatológicos, pluviométricos, fluviométricos, evaporimétricos, sedimentométricos e outros,
obtidos em instalações próprias, localizadas em pontos específicos de uma região, em intervalos de
tempo pré-estabelecidos. Os conjuntos dessas instalações (ou postos) constituem as redes
hidrométricas e/ou hidrometeorológicas, cujas manutenção e densidade são essenciais para a
qualidade dos estudos hidrológicos.
Exercícios
2. Considerando-se que as reservas de água subterrânea são tão abundantes, por que elas
não representam a principal fonte de abastecimento?
(d) 1 dia = _______s (e) 100 km2 =________m2 (f) 2,72 dias=_______h
6. Se a vazão média anual de uma bacia hidrográfica de 200 km2 é 1,67 m3/s, qual é o deflúvio
correspondente em mm?
8. Na equação do balanço hídrico acima da superfície, em que condições o termo VS pode vir a
ser nulo?
(a) reservatórios de acumulação (b) lagos (c) irrigação (d) trecho de um rio.
10. Qual é a função dos cursos de água (rios, córregos, ribeirões) no ciclo hidrológico ?
12. Com relação ao exercício 11, em quanto tempo a superfície recuperaria o nível de
armazenamento inicial após a chuva, se a vazão no ponto de saída variou no tempo,
conforme a tabela abaixo
13. Em um determinado ano, uma bacia hidrográfica de 25900 km2 de área de drenagem, recebeu
500 mm de precipitação. A vazão média anual na seção fluvial que drena essa área foi de 170
m3 /s. Estime a quantidade de água correspondente à evapotranspiração da bacia durante o
período.
14. A evaporação anual de um lago com superfície de 15 km2 é de 1500 mm. Determinar a variação
do nível do lago durante um ano, se nesse período a precipitação foi de 950 mm e a
contribuição dos tributários foi de 10 m3 /s. Sabe-se também que naquele ano foi retirada do
lago uma descarga média de 5 m3 /s para irrigação de culturas, além de uma captação de 165 .
106 m3 para refrigeração de uma unidade industrial.
15. Em um determinado ano, os seguintes dados hidrológicos foram observados em uma bacia de
350 km2 de área de drenagem: precipitação total: 850 mm, evapotranspiração: 420 mm,
deflúvio superficial: 225 mm. Calcule o volume de água infiltrada em m3, desprezando as
variações de armazenamento dos reservatórios superficial e subterrâneo.