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O meu dever é falar, para não ser tomado por cúmplice

Santana Castilho *

“Que patifes, as pessoas honestas” é uma citação atribuída ao escritor francês Émile
Zola, que me revisita sempre que vejo os políticos justificarem com o manto diáfano da
legalidade comportamentos que a ética e a moral rejeitam. E é ainda Zola que volta
quando a incoerência desperta o meu desejo de falar, para não ser tomado por cúmplice.

Foi duplamente incoerente o apelo ao respeito e à valorização dos professores que


Cavaco Silva fez há dias em Paredes de Coura. Incoerente quando confrontado com o
passado recente e incoerente face ao que tem acontecido no decurso da própria
campanha eleitoral. Em 2008 e 2009, os professores foram continuamente vexados sem
que o Presidente da República usasse a decantada magistratura de influência para
temperar o destempero. E foi directa e repetidas vezes solicitado a fazê-lo. Por omissão e
acção suportou e promoveu políticas que desvalorizaram e desrespeitaram como nunca
os professores e promulgou sem titubear legislação injusta e perniciosa para a educação
dos jovens portugueses. Alguma ridícula e imprópria de um país civilizado, como aqui
denunciei em artigo de 11.9.06. Já em plena campanha, Cavaco Silva disse num dia que
jamais o viram ou veriam intrometer-se no que só ao Governo competia para, dias
volvidos, aí intervir, com uma contundência surpreendente, a propósito dos cortes
impostos ao ensino privado. Mas voltou a esconder-se atrás do silêncio conivente, agora
que é a escola pública o alvo de acometidas sem critério e os professores voltam a ser
tratados, aos milhares, como simples trastes descartáveis.

Imaginemos que o modelo surreal para avaliar professores se estendia a outras


profissões da esfera pública. Que diria Cavaco Silva? Teríamos, por exemplo, juízes
relatores a assistirem a três julgamentos por ano de juízes não relatores, com verificação
de todos os passos processuais conducentes à sentença e análise detalhada do acórdão
que a suportou. Teríamos médicos relatores a assistirem a três consultas por ano dos
médicos de família não relatores; a verificarem todos os diagnósticos, todas as
estratégias terapêuticas e todas as prescrições feitas a todos os doentes. Imaginemos
que os juízes teriam que estabelecer, ano após ano, objectivos, tipo: número de arguidos
a julgar, percentagem a condenar e contingente a inocentar. O mesmo para os médicos:
doentes a ver, a declarar não doentes, a tratar directamente ou a enviar para outras
especialidades, devidamente seriadas e previstas antes do decurso das observações
clínicas. Imaginemos que o retorno ao crime por parte dos criminosos já julgados
penalizaria os juízes; que a morte dos pacientes penalizaria os médicos, mesmo que a
doença não tivesse cura. Imaginemos, ainda, que o modelo se mantinha o mesmo para
os juízes dos tribunais cíveis, criminais, fiscais ou de família e indistinto para os
otorrinolaringologistas, neurologistas ou ortopedistas. Imaginemos, agora, que um
psiquiatra podia ser o relator e observador para fins classificativos do estomatologista ou
do cirurgião cardíaco. Imaginemos, por fim, que os prémios prometidos para os melhores
assim encontrados estavam suspensos por falta de meios e as progressões nas
respectivas carreiras congeladas. Imaginemos que toda esta loucura kafkiana deixava
milhares de doentes por curar (missão dos médicos) e muitos cidadãos por julgar (missão
dos juízes). A sociedade revoltava-se e os profissionais não cumpririam. Mas este modelo,
aplicado aos professores, está a deixá-los sem tempo para ensinar os alunos (missão dos
professores), com a complacência de parte da sociedade e o aplauso de outra parte. E os
professores cumprem. E Cavaco Silva sempre calou.

Ultrapassámos os limites do tolerável e do suportável. Ontem, o estudo acompanhado e a


área-projecto eram indispensáveis e causa de sucesso. Hoje acabaram. Ontem, exigiram-
se às escolas planos de acção. Hoje ordenam que os atirem ao lixo. Ontem Sócrates
elogiou os directores. Hoje reduz-lhe o salário e esfrangalha-lhes as equipas e os
propósitos com que se candidataram e foram eleitos. Ontem puseram dois professores
nas aulas de EVT em nome da segurança e da pedagogia activa. Hoje dizem que tais
conceitos são impróprios. Ontem sacralizava-se a escola a tempo inteiro. Hoje assinam o
óbito do desporto escolar e exterminam as actividades extracurriculares. Ontem criaram
a Parque Escolar para banquetear clientelas e desorçamentar 3 mil milhões de euros de
dívidas. Hoje deixaram as escolas sem dinheiro para manter o luxo pacóvio das
construções ou sequer pagar as rendas aos novos senhores feudais. Ontem pagaram a
formação de milhares de professores. Hoje despedem-nos sem critério, igualmente aos
milhares.

Os portugueses politicamente mais esclarecidos poderão divergir na especialidade, mas


certamente acordarão na generalidade: os 36 anos da escola democrática são marcados
pela permanente instabilidade e pelo infeliz desconcerto político sobre o que é
verdadeiramente importante num sistema de ensino. Durante estes 36 anos vivemos em
constante cortejo de reformas e mudanças, ao sabor dos improvisos de dezenas de
ministros, quando deveríamos ter sido capazes de estabelecer um pacto mínimo nacional
de entendimento acerca do que é estruturante e incontornável para formar cidadãos
livres. Sobre tudo isto, o silêncio de Cavaco Silva é preocupante e obviamente cúmplice.
* Professor do ensino superior. s.castilho@netcabo.pt

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