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Cursos de epistemologia e história da filosofia – Prof. C. F.

Costa – UFRN

APARÊNCIA E REALIDADE NA HISTÓRIA DA


FILOSOFIA1

A oposição tradicional entre aparência e realidade tem sua origem na


Grécia antiga, percorrendo sob formas diversas toda a história da filosofia. No
que se segue será feita uma exposição dos principais desdobramentos
históricos da distinção, tendo em vista investigar a sua relação com questões
epistemológicas.
A palavra ‘aparência’ (em grego ‘phainómenon’, em latim ‘apparentia’,
em alemão ‘Erscheinung’) significa “o que se mostra”, ou ainda, “o que é
diretamente dado”, aplicando-se geralmente a conteúdos da consciência,
especialmente a impressões sensíveis. A aparência distingue-se
tradicionalmente da realidade ou do ser. Há na história da filosofia duas
maneiras simetricamente opostas de se entender a relação entre aparência e
realidade. Segundo a primeira, a aparência oculta a realidade. Para a segunda
maneira de entender a relação, a aparência manifesta ou revela a realidade.
Segundo a primeira concepção, a aparência obscuresce ou distorce a realidade,
tornando-a irreconhecível naquilo que ela é; nesse caso, conhecer é libertar-se
da aparência que se opõe à verdade. Já para a segunda concepção, a aparência
é a revelação da verdade, e conhecer é ter acesso às aparências que expressam
a verdade.
Na história da filosofia, no primeiro entendimento da relação entre
aparência e realidade, busca-se atingir um saber mais firme, que caminhe
1
O presente texto é pouco mais do que um resumo feito com propósitos didáticos do ítem
“aparência” do Dicionário de Filosofia de Nicholas Abbagnano (São Paulo: Mestre Jou,
1960).

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contra as aparências, contra as opiniões dos sentidos, as crenças populares e
míticas. No segundo entendimento da relação o que se procura é, pelo
contrário, levar em conta as aparências, reconhecendo que é na aparência que
se manifesta, de algum modo, a própria realidade. A expressão ‘salvar os
fenômenos’ é aqui apropriada: ela foi primeiramente usada pelos astrônomos
gregos, como exigência de que as hipóteses sobre os reais movimentos dos
astros fossem concebidas de tal maneira que os seus movimentos visíveis ou
aparentes pudessem ser deduzidos. De Galileu em diante, essa exigência
metodológica foi generalizada para toda a ciência natural. As construções
teóricas da ciência devem ser capazes, ao menos, de salvar os fenômenos.

1. Origem da distinção em Parmênides


O contraste entre aparência e realidade foi pela primeira vez estabelecido de
modo nítido por Parmênides. Em seu poema Da Natureza, a deusa da justiça
aparece ao filósofo, anunciando logo após ao prólogo:

É preciso que de tudo te instruas: da verdade robusta o sólido âmago,


e dos mortais as opiniões, em que não há fé verdadeira.
Contudo, também isso aprenderás: que a diversidade das aparências
deve revelar uma presença que merece ser recebida, penetrando tudo
totalmente. (Da Natureza, prólogo)

A deusa parece estar indicando três caminhos: o caminho do conhecimento


de uma verdade absoluta; o caminho da opinião falaz (doxa falaz), i.e., da
falsidade e do erro, e o caminho da opinião plausível (doxa plausível). A
oposição entre os dois caminhos é explicada pela deusa logo a seguir:

O primeiro diz que o ser é e que o não ser não é;


esse é o cominho da convicção, pois conduz à verdade.
O segundo, que não é, é, e que o não-ser é necessário;

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esta via, digo-te, é imperscrutável; pois não podes conhecer
aquilo que não é - isso é impossível - nem expressá-lo
em palavras.

Ao explicar o primeiro caminho, o caminho do ser, a Deusa expõe o grande


princípio de Parmênides, que poderíamos parafrasear como

O ser é e não pode não ser; o não ser não é e não pode ser
de modo algum.

Parmênides justifica esse princípio considerando que tudo o que alguém


pensa e diz é e que não se pode pensar o que não é. Donde, pensar e ser
coincidem. É pelo pensar que Parmênides deriva o conhecimento das diversas
propriedades fundamentais do ser: o ser é incriado, pois se fosse criado teria
sido gerado do não ser, o que é absurdo, posto que o não-ser não é, e se fosse
derivado do ser ele já seria, não tendo sido criado. O ser é incorruptível, pois
como o não ser não é, o ser não pode ir para o não-ser. O ser não tem passado,
pois esse deixou de ser, nem futuro, que ainda não é: ele é eterno presente,
sem início ou fim. Conseqüentemente, o ser é imutável e imóvel, pois toda
mudança, todo o vir-a-ser pressupõe o não-ser. Por fim, o ser deve ser “todo
igual”, pois se não fosse teria mais ou menos ser em suas partes, sendo não-
ser. E sendo completo, perfeitamente limitado e absolutamente igual, ele só
pode ser esférico, que é a forma do corpo geométrico perfeito...
Fica evidente que para Parmênides o ser é a realidade no mais pleno sentido
do termo. E a maneira pela qual se chega ao ser, à realidade, é pela razão, pelo
pensamento.
O segundo caminho é o de que o ser não é, e de que o não ser é. Esse é o
caminho do erro, da aparência. Ele é também o caminho dos sentidos, pois os
sentidos, atestando um mundo visível em constante mudança, atestam, pois, o

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não ser, onde há geração e corrupção. Através dele deixamo-nos enganar pelos
sentidos e pelo hábito por eles criado, como se lê no poema:

Afasta, portanto, o teu pensamento desta via de investigação,


e não te deixes arrastar por esse caminho pelo hábito
que nasce das múltiplas experiências humanas,
nem governar pelo olho sem visão, pelo ouvido ensurdecido
ou pela língua: mas com a razão decide a controversa tese
que te revelou minha palavra.

O caminho do erro é, pois, o de todos os que admitem o não-ser, que é


impensável e indizível.
Parmênides distingue assim a realidade, como o ser, ao qual temos acesso
através do pensamento e da razão, da aparência, do não-ser, que vem dos
sentidos. Mas nesse caso a aparência teria uma função puramente negativa.
Essa seria, porém, uma conclusão inaceitável, pois todo o nosso discurso
acerca dos fenômenos empíricos, que é baseado nas aparências sensíveis,
passaria a ser falso e impensável. Parmênides precisava reconhecer a licitude
de um discurso que desse conta da aparência das coisas, de maneira a salvar
os fenômenos. Daí ser necessário um terceiro caminho, o das aparências
plausíveis, que é apresentado pela deusa e desenvolvido como um
ordenamento do mundo natural, do mundo tal como nos aparece, na segunda
parte, hoje perdida do poema.
O terceiro caminho, da opinião plausível, deve dar conta do aspecto positivo
das aparências sem contradizer o princípio fundamental, de que o ser e o não
ser não podem ser admitidos juntos. A solução seria a de que no mundo
empírico o que se apresenta como não-ser nunca é não-ser em absoluto, mas é
permeado pelo ser. Segundo Parmênides, é possível ter a opinião plausível
porque os opostos do ser e do não-ser no mundo visível podem ser pensados
como estando incluídos na unidade superior do ser: ambos são ser. Considere-

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se, por exemplo, a luz e a noite: com nenhum dos dois, segundo Parmênides,
está o nada. O mesmo se dá com a vida e a morte, pois também o cadáver,
para Parmênides, sente e vive.
Essa tentativa feita por Parmênides de salvar os fenômenos de uma
ontologia monista e abstrata conduziu, naturalmente, a aporias que os filósofos
posteriores apontaram. Se luz e noite, vida e morte, são ser, e o ser é idêntico,
como considera Parmênides, então elas devem ser idênticas, o mesmo se
sucedendo com todos os opostos que se dão nas aparências. Os fenômenos,
assumidos nos ser, precisam ser igualados e imobilizados, como que
empedrados pela fixidez do ser. Parmênides salva, assim, o ser, mas não
parece ter tido a mesma sorte no esforço de salvar os fenômenos.

2. Platão e o saber intermediário


Platão, como fica claro em sua refutação do homo mensura pitagórico,
interpretado como a afirmação de que o conhecimento se reduz à sensação de
cada indivíduo, nega a identificação entre aparência e ser.
Isso não é sem razão, posto que a doutrina das idéias, chave da filosofia
platônica, é de inspiração parmenídica. A principal diferença é que no lugar do
ser único, Platão coloca uma estrutura hierárquica, constituída por uma
multiplicidade de formas ou idéias. As idéias são o ser, a realidade. O mundo
das coisas visíveis, o mundo das aparências, não é, contudo, totalmente
destituído de realidade ou de ser. Ele é real, na medida em que é constituído
de cópias das idéias, na medida de sua participação no reino das idéias.
Platão completa essa ontologia com uma tese epistemológica: a de que o
conhecimento é proporcional ao ser. O que possui o grau máximo de ser, as
idéias, pode ser perfeitamente conhecido. O que não possui grau algum de ser,
o não-ser, é absolutamente incognoscível. Mas há também aquilo que possui
um grau intermediário de ser: o mundo que percebemos pelos sentidos: o

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mundo das aparências possui uma realidade intermediária, entre o ser e o não
ser. Desse intermediário há um conhecimento também intermediário, entre a
ciência e a ignorância, que é a opinião (a doxa), geralmente enganadora. Eis a
passagem da República, onde isso é exposto:

- Sob qualquer ponto de vista que consideremos a questão, temos, pois,


por suficientemente assegurado que o que é totalmente ser é totalmente
cognoscível e que o que não é de modo algum é totalmente incognos-
cível?
- Absolutamente assegurado.
- Muito bem; mas se alguma coisa fosse tal, de modo a ser e não-ser, não
seria como intermediária entre o que é puramente e o que não é de modo
algum?
- Seria intermediária.
- Portanto, se para o que é dizemos haver ciência, para o que não é
necessariamente ignorância, para o tal intermediário será necessário
buscar algo de intermediário entre a ignorância e a ciência, desde que
ele exista mesmo.
- Certamente.
- Ora, não dizemos que a opinião é alguma coisa?
- Sem dúvida.
- Pertence a uma faculdade distinta da ciência ou à mesma?
- À uma faculdade distinta.
- Portanto, a opinião é ordenada a uma coisa e a ciência à outra, de
acordo
com a faculdade de cada uma?
- Sim." (República V, 476 e-477 b)

Essa idéia é mais completamente exposta com a analogia da linha dividida,


mostrada a seguir:

Plano do conhecer: Plano do ser:

noesis ou idéia do bem


intelecção e outras idéias

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Episteme mundo
ou ciência inteligível
dianoia ou objetos
conhecimento matemáticos
mediano

pistis ou objetos sensíveis


crença
Doxa ou mundo
opinião sensível
eikasia ou imagens sensíveis
imaginação

Na parte superior, à direita da linha, temos o mundo inteligível, que é o


mundo do ser, da realidade. Só ele pode ser objeto de conhecimento, de
ciência ou episteme. Há duas espécies de realidade inteligíveis: a dos objetos
geométrico-matemáticos, que se podem representar empiricamente, e a das
idéias puras, principalmente a da idéia que para Platão estaria no ápice da
pirâmide do conhecimento, e que em última análise o possibilitaria: a idéia do
bem. O conhecimento matemático-geométrico ele chama de dianóia e o
conhecimento dialético das idéias, que ele chama de noesis. Note-se que o
mundo inteligível, daquilo que é efetivamente real, pode ser conhecido, para
Platão, diretamente, através de uma intuição intelectual, sem necessidade da
intervenção dos sentidos.
Na parte inferior do esquema temos, à direita, o mundo sensível, que é o
mundo da aparência. Ele se divide em coisas sensíveis e sombras ou imagens
sensíveis dessas coisas, como é o caso de uma imagem no espelho ou da lua
refletida em um lago. O mundo da aparência não pode ser objeto da ciência,

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do conhecimento absoluto, mas pode ser para Platão objeto de conhecimento
provável, da opinião ou doxa. A opinião pode ser crença (pistis), se for acerca
das coisas sensíveis, mas será mera imaginação (eikasia) se for conhecimento
das imagens sensíveis e sombras das coisas.
As imagens sensíveis e sombras são a forma mais própria daquilo que
chamamos de aparência. Elas são cópias das cópias das idéias, que são as
coisas sensíveis. Por isso aqui a aparência corre maior risco de ser mero
parecer (Schein). Para Platão, como é sabido, a mímese na arte e a retórica na
política, pertencem muito facilmente a esse domínio.
Que a opinião, o saber acerca das aparências, seja uma forma, ainda que
inferior e incerta de conhecimento, deve-se ao fato de que as coisas sensíveis
são cópias das idéias. Se elas não o fossem, restaria apenas a matéria informe
e incognoscível.
Platão tem, pois, uma resposta articulada aos problemas deixados por
Parmênides. As dificuldades estão deslocadas para a relação entre aparência e
realidade, entre o mundo sensível e as idéias, e no caráter irredutível das
metáforas com que tenta explicar essa relação, como é o caso da noção de
cópia e de participação.

3. Aristóteles e a neutralidade das aparências


Aristóteles possui, como é sabido, uma ontologia diversa da de Platão, na
qual as idéias ou formas estão nas coisas sensíveis e são extraídas da
observação por um processo de abstração. Não há lugar, pois, para um acesso
direto às idéias através de anamnese. Como conseqüência, a aparência
sensível ganha importância, pois só através dela chegamos às idéias, ao ser, à
realidade. Além disso, as formas não são algo que está oculto sob ou acima
das aparências, mas algo que está nelas e que precisa ser abstraído pelo
intelecto. Daí porque muitos atribuem a Aristóteles a defesa de uma

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concepção epistemológica chamada de realismo direto: nós podemos ter
imediato acesso à realidade como a forma que está nos fenômenos observados.
Eis uma passagem onde Aristóteles que parece confirmá-lo:

Geralmente, de todas as percepções podemos dizer que é o poder de


receber no sujeito as formas sensíveis das coisas, mas sem a matéria, do
mesmo modo que um pedaço de cera, que toma a forma de um anel de
sinete, mas sem o ferro ou o ouro. (De Anima)

É importante em Aristóteles a tese da neutralidade das aparências. As


aparências, tanto como sensações quanto como imagens, podem ser tanto
verdadeiras quanto falsas. Se as aparências fossem sempre verdadeiras, então
os sonhos seriam realidade (Metafísica, IV 5, 1010 b 1 ss.). O que dá à
aparência uma garantia de verdade é somente o intelecto; só o juízo intelectual
a respeito dela pode certificá-la ou refutá-la. Por outro lado, a aparência
sensível é o próprio ponto de partida para as pesquisas científicas, como
mostram os matemáticos em suas justificações dos movimentos aparentes dos
astros. A aparência é o ponto de partida para a pesquisa da verdade, mas isso
só é possível pela aplicação dos princípios do intelecto.
No último período da filosofia grega a noção de aparência adquiriu
importância predominante. Os céticos acreditavam que não podemos ir além
das aparências: as aparências passaram então à categoria de critério de
verdade e de conduta. E os neoplatônicos interpretaram o mundo sensível
como aparência do mundo inteligível, que é aparência ou imagem de Deus. O
mundo sensível passa a ser visto como teofania, manifestação da essência
divina.

4. O ressurgimento do problema no empirismo moderno

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A distinção entre aparência e realidade volta a ocupar um lugar importante
no cenário do questionamento filosófico com o empirismo moderno. Os
empiristas, por defenderem o princípio fundamental de que todo o nosso
conhecimento se fundamenta na experiência, reabilitam a aparência como
manifestação da realidade aos sentidos e ao intelecto. Eis uma passagem de
Thomas Hobbes que é característico dessa afirmação do papel positivo da
aparência ou fenômeno para a aquisição do conhecimento:

De todos os fenômenos que nos circundam, o mais maravilhoso é


justamente o aparecer. Certamente, entre os corpos naturais alguns
possuem em si os exemplares de todas as coisas, outros de nenhuma.
Portanto, se os fenômenos são os princípios para conhecer as outras
coisas, é preciso dizer que a sensação é o princípio para conhecer os
próprios princípios e que dela deriva toda a ciência. Para indagar as
causas da sensação não se pode portanto partir de outro fenômeno que
não seja a própria sensação (De Corp. 25, par. 1).

A aparência real é nesse texto identificada com a sensação e assumida


como ponto de partida para a indagação acerca das coisas não criadas pelo
homem, i.e., não estabelecidas convencionalmente (por meio de definições)
por este.
No suceder das doutrinas empiristas a mesma importância continua sendo
dada às aparências, que são chamadas de idéias por Locke e por Berkeley e de
impressões por Hume. Muda, no entanto, a maneira como é pensada a relação
entre a aparência e a realidade. Vejamos essa diferença nos casos
paradigmáticos de Locke e Berkeley.
Locke, como realista representativo, considera as aparências, as idéias,
conteúdos mentais que são representações das coisas reais. As aparências ou
idéias, quando representam a realidade, podem ser como cópias fiéis dessa
realidade ou não. Com base na física, Locke distingue aquilo que é real nos

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corpos como sendo suas qualidades primárias ou suas qualidades secundárias.
Exemplos de qualidades primárias são a forma, a solidez e o número,
enquanto exemplos de qualidades secundárias são a cor, o sabor, o odor.
Locke sugere que as idéias que temos das qualidades primárias são idênticas
às próprias qualidades, enquanto que as idéias que temos das qualidades
secundárias dependem da constituição de nossos órgãos sensoriais. Assim,
pode ser que um cão não perceba um objeto como colorido, mas ele precisará
percebê-lo como sólido, como redondo etc., tanto quanto nós. Assim, ao
menos em parte – como idéias de qualidades primárias – as aparências
sensíveis são reproduções perfeitas da realidade, informando-nos acerca dela,
tal como ela é em si mesma.
Berkeley fez uma objeção epistemologicamente importante ao
representacionalismo de Locke: à pretensão deste de poder afirmar que nossas
aparências sensíveis, nossas idéias, possam representar uma realidade à qual
não temos acesso direto. A objeção de Berkeley é a de que Locke pretende,
primeiro, que só temos acesso cognitivo à nossas idéias, nossas aparências
sensíveis, e, em seguida, que essas idéias representam o mundo real. Ora, se
admitirmos o primeiro ponto, não temos como provar o segundo. Como
verificarmos se nossas idéias de qualidades primárias são realmente idênticas
às qualidades primáris dos objetos reais, se não podemos conferir isso
observando as próprias qualidades primárias? Como podemos saber que
qualquer de nossas idéias corresponde a algo de real se nunca temos acesso ao
que chamamos de real, a não ser através de idéias? Eis a conclusão, nas
palavras de Berkeley:

Em resumo, se existissem corpos externos, seria impossível que


pudéssemos vir a saber disso; e se eles não existissem, nós teríamos as
mesmas razões para pensar que eles existem que temos agora. Suponha, o
que ninguém pode negar que é possível, uma inteligência sem a ajuda de

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corpos externos, que seja afetada pela mesma corrente de sensações ou
idéias que você é afetado, imprimidas na mesma ordem e com a mesma
vividez em sua mente. Eu pergunto se essa inteligência não possuiria toda
a razão para crêr na existência de substâncias corpóreas, representadas por
suas idéias, e excitando-as em sua mente, que você pode possivelmente ter
para crêr na mesma coisa? (Principles of Human Knowledge I, par. 20)

A solução de Berkeley é conhecida. Ela consiste em rejeitar o realismo


representativo de Locke e fundar o fenomenalismo em sua versão idealista,
que ele decidiu denominar imaterialismo, pois nega a existência de um mundo
material, exterior às mentes. As idéias são, para Berkeley, de dois tipos. Umas
são enfraquecidas e arbitrárias, caso no qual dizemos que têm existência
meramente subjetiva, como acontece com as imagens mentais que aparecem
nos sonhos e nas alucinações. As outras são as idéias que são vívidas,
intensas, que permanecem em suas relações com outras, que seguem certas
regularidades que chamamos de leis naturais; essas idéias nada mais são do
que constituíntes do que costumamos denominar as coisas reais que povoam o
mundo externo.
Para o fenomenalismo e o idealismo, a diferença entre aparência e
realidade se estabelece, pois, ao nível da própria aparência. Determinadas
aparências são a própria realidade. Para Berkeley há, além das idéias, ainda
uma outra realidade, que é o suporte mental dessas aparências. Mas como as
idéias são de natureza mental, e assim o mundo externo por elas formado, esse
suporte não pode ser uma substância material, mas a própria mente, humana
ou divina, conforme o caso. Também na versão não-idealista do
fenomenalismo, desenvolvida por J. S. Mill, a diferença entre aparência e
realidade se estabelece ao nível da aparência: a sensação que se dá é para Mill
mera aparência subjetiva; já aquilo que se dá como a "permanente ou
garantida possibilidade de sensação" (o que hoje fenomenalistas

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contemporâneos chamaram de sensibilia) é algo real e intersubjetivamente
acessível.
Kant parece ter pretendido ficar a meio caminho entre uma posição como a
de Locke – o realismo representativo – e uma posição como a de Berkeley (e
também a de Leibniz) – o idealismo ou o fenomenalismo. Kant distingue entre
aparência como fenômeno (como Erscheinung) e como mero parecer (como
Schein). A primeira corresponde à idéia vívida e coerentemente ordenada de
Berkeley e Leibniz. A segunda corresponde a idéia enfraquecida de Berkeley,
que para Kant pode ser mera ilusão. Mas o critério de distinção é para Kant
bem diverso: os fenômenos diferem do parecer pelo fato deles serem
condicionados pelas formas da intuição, i.e., pelo espaço e tempo, acrecido
das categorias do entendimento na unidade sintetizadora da apercepção. Mas
isso não é tudo. Se fosse só isso, Kant poderia ser um fenomenalista. Para ele
o fenômeno é o que chamamos de realidade, de natureza, mas ele o é somente
por ser determinado pela realidade noumênica da coisa em si, acerca da qual
nada podemos saber. Com isso Kant aproxima-se outra vez do realismo
representativo, embora não seja como tal classificável, devido a sua tese de
que os fenômenos são constitutivos daquilo que chamamos de realidade
externa. Eis uma passagem na qual Kant testemunha-nos a sua posição, sem
dúvida complexa e carregada de tensões internas:

Os predicados dos fenômenos podem ser atribuídos ao objeto em relação


aos nossos sentidos; por exemplo, a cor vermelha ou o aroma, à rosa; mas
a aparência nunca pode ser atribuída como predicado ao objeto, porque
atribui ao objeto em si o que só lhe convém em relação aos sentidos ou
em geral ao sujeito. (...) Aquilo que não se deve procurar no objeto em si,
mas sempre na relação desse objeto ao sujeito e é inseparável da
representação do primeiro, é o fenômeno. (Crítica da Razão Pura, Estética
Transcendental, par. 8)

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O fenômeno não é, pois, apenas o objeto que se manifesta, mas o objeto
como se manifesta ao homem.

4. Aparência e realidade na filosofia posterior: fenomenologia e


filosofia analítica
Após Kant, com o declínio do interesse pela questão epistêmica, a questão
da distinção entre aparência e realidade volta a tona em filósofos como Hegel,
Husserl e Heidegger, em uma maneira que poderíamos denominar
"fenomenológica", envolta por uma densa névoa retórica.
Hegel continua, como idealista, considerando o fenômeno em relação ao
homem, mas rejeita a suposição da coisa em si, vendo na aparência
fenomênica a própria essência das coisas: a aparência identifica-se à essência.
A aparência é a essência que existe em sua imediaticidade. Não há realidade
tão recôndita que, de algum modo, não apareça. Eis como ele coloca esse
ponto:

O aparecer é a determinação por meio da qual a essência não é ser, mas


essência, e o aparecer desenvolvido, fenômeno. A essência não está, por-
tanto, atrás ou além do fenômeno, mas justamente porque a essência é o
que existe, existência é fenômeno. (Enciclopédia par. 131)

Contudo, como determinação imediata, a aparência é destinada a ser


absorvida ou suprimida por outras determinações, refletidas ou mediadas no
desenvolvimento dialético da idéia absoluta.
As posições de Husserl e Heidegger são semelhantes a essa, embora sem a
referência à subjetivação idealista. Husserl passou a conceber o fenômeno
como aquilo que se manifesta – não ao homem, mas – em si mesmo, na sua
essência, ao menos após a aplicação do método fenomenológico. Então o
fenômeno torna-se revelação da essência.

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Em um contexto semelhante, Heidegger considera o fenômeno o em si da
coisa, a sua manifestação. Ele distingue o fenômeno como aparecer puro e
simles do ser em si, a Erscheinung, da simples aparência, a blosse
Erscheinung, que é mero indício, alusão de um ser que permanece oculto. Eis
como ele faz a distinção:

Como significado da expressão 'fenômeno', deve-se ter bem assentado o


seguinte: o que se manifesta em si mesmo, o revelado, esse manifestar-se,
nós o definimos como o aparecer (Scheinen). Também em grego a
expressão 'phainomenon' tem esse significado: o que tem o aspecto de
aparente, aparência. (...) Somente porque alguma coisa, em virtude do seu
sentido, pretende em geral manifestar-se, isto é, ser fenômeno, é possível
que ela se manifeste como algo que não é, que tenha o aspecto de...
Reservamos ao termo 'fenômeno' ao sentido positivo e originário de
'phainomenon' e distinguimos fenômeno de aparência, considerando essa
última como uma modificação privativa de fenômeno (Ser e Tempo par. 7
A).

Uma posição não muito distante dessa costuma ser encontrada nas
investigações mais bem sucedidas da distinção no âmbito da filosofia
analítica. Assim, em Sense and Sensibilia, A. J. Austin realiza uma detalhada
investigação propedêutica acerca da multiplicidade de aplicações de palavras
como ‘realidade’ e ‘aparência’ na linguagem ordinária, mostrando, por
exemplo, que faz parte de nossos hábitos linguísticos a admissão de que
vemos "diretamente" objetos físicos. Austin quer defender o realismo direto
contra o fenomenalismo de A. J. Ayer e outros. Ou seja, sob condições
adequadas, aquilo que se dá como aparência, é a própria realidade.
Sob tais perspectivas, a distinção entre aparência e realidade não acarreta
mais consequências tão impressionantes no âmbito metafísico-gnosiológico,
nem mais projeta suas consequências em todos os âmbitos do interesse
humano, tal como ocorreu em seus primórdios.

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